CONTANDO OS DIAS - 366 Minicontos de Júlio Saldanha

C O N TAN D O O S D IAS
1º DE JANEIRO
Terça. Roupa branca. Novo

dia, ano, dieta, caminhada,
planos, agenda, promessas...
Até fácil começar.
Manter até o fim é que é o
fim.
MINICONTOS JÚLIO SALDANHA

02/01
Disseram-lhe que o mundo

acabaria este ano.
Tenso e intenso.
Se não acabar, melhor
inventarem logo a próxima
data.

03/01
Sol, chuva, sol, chuva,

chuva, sol, sol, chuva...
Amanhã? Nunca sabe.
Chuva ou sol? Sol ou chuva?

04/01
Desde quando começou,

dizia:
“Vou parar de fumar!”
Até que descobriu o câncer.
Não falou mais nisso.

05/01
Sempre teve medo de criar

Versos muito livres.
Não sabia o que eles
poderiam sair aprontando.

06/01
Três reis. Uma estrela. A Luz.

Ofertam presentes, depois
partem, coadjuvantes, sem
deixar mais rastros na areia,
nem na história.

07/01
Foi naquele encontro

ecumênico
que Deus voltou a ter
esperança.
E sorriu.

08/01
Ao encontrar a foto
esquecida na gaveta,
descobriu que aquela
estava morta.
Faltava sepultá-la.

09/01
Os astronautas estão em
extinção. Mercúrio, Vênus, muito
quentes,
de Marte pra frente, frio demais.
Ninguém aguenta mais
passear todo ano na lua.
Melhor ficar em casa.

10/01
Nunca conseguiu reproduzir em

casa o gosto da pipoca,
o beijo da namorada,
a companhia anônima,
o desligar do mundo.

11/01
Não plantou árvores, não

escreveu livros, não teve
filhos.
Para ele era mais urgente
cuidar do que já estava ali.

12/01
A ele bastava a panela cheia.

Estava completa sua alegria.
Nem pensava no dia seguinte.
Antes de dormir,
fez mais um filho em Maria.

13/01
Foi solidária
até quando era ela
quem mais necessitava.
Quando já não tinha
nada a oferecer, deu a vida.

14/01
-Tá doendo muito, doutor.

-Vai doer muito mais quando seu
pai chegar depois de ver o que
sobrou do carro dele.
- Ai, doutor, aplica logo anestesia
geral!

15/01
Brincando com as palavras,

deu voz a elas.
Colocou-as pra dançar.
Nunca mais foram as mesmas.

16/01
Mais tempo, menos tempo.

Mais dinheiro. Menos dinheiro.
Ele perguntava: Como seria a vida
sem a medida dos números?

17/01
O velório evidenciava que

algumas mortes chocam mais que
outras:
morte prematura,
desastre,
assassinato,
morte natural de um imortal.

18/01
Uma sonora gargalhada

cortou o sólido silêncio,
quebrou o rígido protocolo,
manchou a impecável solenidade.
Novo silêncio.

19/01
- O que é que tem de novidade

hoje?
- Minha filha, farmácia não é loja
de sapatos.

20/01
Mais mar que Rio,

mais fevereiro de Janeiro.
Êta cidade pra frente!

21/01
- Criaram uma para ligar

o homem a Deus. Criaram outras
para o mesmo fim.
- Professor! Guerras, intolerância.
O que tem haver com isso?

22/01
Voltou a mulher, voltaram os

amigos.
Até os inimigos tornaram-se
simpáticos.
Sua sorte mudou desde quando
ganhou na loteria.

23/01
Vinte e dois homens correndo

noventa minutos atrás de uma
bola.
Sob olhar atento de milhões.
Não parece.
Mas lá fora a vida continua.

24/01
O velho
no banco da praça da
rodoviária espera...
Sem pressa.

25/01
As namoradas de hoje
já não esperam mais pelo
carteiro. Perdem a chance de
apaixonar-se
pelo mensageiro
da carta que extraviou.

26/01
O dia amanhece, já está

acesa.
A noite cai, as luzes
permanecem.
Insônia.
Esta cidade nunca dorme.
C O NTAN D O O S D IAS
27/01
Falou até perder os

sentidos e reticenciar no
chão.
Silêncio na multidão.

28/01
O menor tentou esconder o delito,

mas foi flagrado.
O guarda portuário foi conivente
com o roubo.
Deixou que o menino fugisse com
as conchinhas roubadas do mar.

29/01
Que notícia dar naquele

dia?
Foi preciso inventar.
Nunca vendeu tanto.

30/01
Um tinha sido feliz

e hoje só sente saudade.
O outro é feliz
e sente uma imensa
vontade.
31/01
O mágico tirava coelho

de cartola entre outras
proezas.
Só não conseguia tirar
dinheiro daquele ofício.

1º DE FEVEREIRO
Vendia o peixe dos outros

melhor que o seu próprio peixe.
Mesmo sabendo
que o seu estava fresco
E o do outro estragado.

2 DE FEVEREIRO
Sugeriu ao Presidente que

colocasse corre-mãos
na rampa da Esplanada dos
Ministérios.
Andam caindo muitos
ministros.

3 DE FEVEREIRO
Não conseguiu engolir

nem por pra fora.
Ficou com a palavra
atravessada na garganta
como uma espinha de peixe.

4 DE FEVEREIRO
Saiu pela mesma porta

Sem despedida, sem remorso,
Sem olhar para trás.
Deixou-a entreaberta,
como encontrou.

5 DE FEVEREIRO
Ele gravou sua digital

sobre a dela.
Um novo desenho, ainda
mais ímpar, ainda mais
belo.

6 DE FEVEREIRO
Antes a humanidade temia que

um louco apertasse o botão e
mandasse tudo pelos ares.
Agora teme que um louco
desligue o botão
e deixe os navegantes a ver
navios..

7 DE FEVEREIRO
Encontrado um manuscrito
do maior poeta do século XXI.
Não era um poema.
Era sua lista de
supermercado.

8 DE FEVEREIRO
Havia guardado
todas as suas senhas
dentro do cofre.
Inclusive a senha do
cofre.

9 DE FEVEREIRO
Um minuto de Deus.
O surfista
com o oceano aos seus
pés.

10 DE FEVEREIRO
Escolheu ser atleta.

Aprendeu que a dor
era parte de seu ofício,
sua rotina.
Até que aposentou.
Mas a dor não. Continuou.
Cada vez maior.

11 DE FEVEREIRO
A moeda caiu no bueiro.

Pulou o menino.
Depois a mãe.
Depois o cachorro.
Depois o homem que passava.
Finalmente o bombeiro que resgatou a
moeda
e todos os nossos heróis.

12 DE FEVEREIRO
A medida deste minuto

não é maior,
nem menor,
Nem igual
que a de qualquer outro.

13 DE FEVEREIRO
E o seu medo da vida

foi diminuindo
na proporção inversa
do medo da outra
se aproximando.

14 DE FEVEREIRO
Amaram-se desde
sempre.
Sem antes nem depois.
Sem pressa, sem demora.

15 DE FEVEREIRO
Fez uma canção pra ela.

Gravou no disco, arranhou;
fita, embolou;
CD, quebrou;
MP3, deletou.
Cansou!
Gravou direto no ouvido dela.
Se perder agora, já era!

16 DE FEVEREIRO
Naquele dia
o repórter virou notícia.
No fogo cruzado
entre polícia e bandidos,
mais uma vítima.

17 DE FEVEREIRO
Morreu pela boca.

Bar fechado. Luto.
Amigos de copo na despedida.
No outro dia, todos,
menos ele, no bar.
Olhares buscando adivinhar
qual o próximo freguês.

18 DE FEVEREIRO
Zé está com meses de sono

atrasado.
Mas não consegue dormir.
Contas mais caras, inclusive a de
luz. Liga a TV: Brasília comemora
a economia com o horário de
verão.
19 DE FEVEREIRO
Chuva no morro
Escorre
sangue,
suor,
samba.

20 DE FEVEREIRO
Nasceram um para o
outro.
Separados.
Um dia se encontraram.
Quebrou-se o encanto.

21 DE FEVEREIRO
Naquele carnaval
A Colombina ficou sem par.
Juntos, o Pierrot com o
Arlequim.

22 DE FEVEREIRO
Sexta-feira o encontro.
Arrebatador.
Intenso como o carnaval.
Alegria fevereira.
Passou.
Hoje é quarta-feira.

23 DE FEVEREIRO
Escolheu o mais sedutor.

Anos depois separou-se.
Descobriu que ele
continuava
o mesmo.

24 DE FEVEREIRO
- Para facilitar e organizar as relações

as leis foram criadas.
- E quando criarão algo

para facilitar e organizar
as leis?

25 DE FEVEREIRO
- Qual o número do seu celular?

- Eu tenho três...
- Qual deles é mais fácil te achar?
- Bom, melhor te passar o da minha
mulher...

26 DE FEVEREIRO
Passou a vida fazendo comédia

da vida privada.
Quando fizeram piada com seu
nome,
apelou.
Não achou graça nenhuma.

27 DE FEVEREIRO
Quando o fiscal percebeu

que a balança estava contra o
vendedor
hesitou.
Não sabia se o multava
ou fazia vistas grossas.

28 DE FEVEREIRO
O marido ligou
avisando que chegaria mais
cedo.
A mulher adiantou o jantar
e dispensou o amante.

29 DE FEVEREIRO
Saiu da prisão
daquela cidade, daquela vida.
Saiu das roupas.
Naquele momento,
se sentiu
completamente livre.

1º DE MARÇO
Deu a volta ao mundo.

Experimentou a comida típica
de cada lugar.
Depois disso descobriu
que o melhor tempero estava em
casa.

2 DE MARÇO
País grande. Tudo pra dar certo.

Cresceu, desenvolveu.
Um detalhe o impediu
de ser um grande país.
Prioridade na Educação:
Só no discurso.

2 3 DE MARÇO
O meteorologista
saiu para o trabalho convicto
de que não choveria.
Tomou um banho!
Chegou a tempo
de corrigir a notícia.

2 4 DE MARÇO
Rezava todos os dias.

Às vezes para pedir,
às vezes para agradecer,
às vezes para não perder o
costume.

2 5 DE MARÇO
Para o locador,
o valor recebido era pouco.
Para o locatário,
o valor pago era muito.
Após longa negociação,
chegaram a um acordo:
Deixa como está.

2 6 DE MARÇO
Preferiu não ler jornais,

não acessar internet.
Medo que algo ruim acontecesse.
Há tempos não passava
um dia tão tranquilo.

7 DE MARÇO
Procurou a palavra no dicionário.

Não havia.
No dia seguinte,
respondeu a provável ofensa:
- Idem.

8 DE MARÇO
Daquele amor nasceu uma mulher.

A parte de cada um
Já não pertencia a eles.
Ela é quem abrigava agora
A semente deles.

9 DE MARÇO
O homem que ela idealizava

se materializava príncipe
no dia da mulher.
Na manhã seguinte,
já era sapo novamente.

10 DE MARÇO
O telefone toca fora de hora.

A cobrar.
Não diz nada. Desliga.
Número desconhecido.
Bandido? A outra? Notícia ruim?
Engano?
Não deve ser ninguém.

11 DE MARÇO
Barulho na garagem.
A mulher acorda o marido.
 Cadê minhas roupas, minhas
chaves,
Meus óculos, um porrete...
Minutos depois...
- Cadê?
Nem ladrão, nem carro na garagem.
12 DE MARÇO
Chegou à biblioteca.
Um livro o escolheu ao acaso.
Amor à primeira vista.
Não dormiu naquela noite.

13 DE MARÇO
Quando a casa não tinha quase

nada
era cheia de gente e felicidade.
Agora, tantos objetos inúteis,
cadeiras de sobra pra solidão.

14 DE MARÇO
O gramático-legista
esquartejou o belo poema.
Verbo pra cá, sujeito pra lá.
Adjetivo aqui, pronome acolá...
Atestado:
a poesia estava morta.

15 DE MARÇO
Na primeira vez que aquele circo

veio a cidade, mudou a vida do
menino
e a rotina do lugar.
Quando voltou,
a cidade se achava
grande demais pra parar
e o menino, grande demais pra
MINICONTOS sonhar. JÚLIO SALDANHA
16 DE MARÇO
Preferia ser surpreendido pela chuva

que o incômodo de um guarda-
chuva
pingando, sem lugar,
sem conserto, sem beleza,
sempre esquecido após o temporal.

17 DE MARÇO
Minas, montanhas, mulher.

Há mar em Minas.
Mais que em qualquer lugar.

18 DE MARÇO
Viajou no tempo.
Sua alma perdeu a nave de volta.
Preso no passado,
perdido no espaço presente.

19 DE MARÇO
Mãos divinas.
Capaz de dar vida a uma pedra
e ressuscitar a madeira.
Imagem e semelhança.

20 DE MARÇO
Despertador, sinal, papéis, telefone,

cobranças, intrigas, defeito,
estresse, burocracia, corrupção,
contas, despesas, fila, trânsito,
notícias...
E amanhã ainda é terça-feira.

21 DE MARÇO
Para ele, o diferente era sempre

uma ameaça. Discriminava quem
tinha
outra cor, outro sexo, outra crença,
outra pátria, outro pensamento.
Jamais experimentou o rico sabor
da diversidade.

22 DE MARÇO
Ao perder o brinquedo no mar,

O menino teve uma ideia:
Esvaziar o oceano transferindo a
água com um baldinho
para um buraco na areia.
Já escurecia. Precisaria da ajuda do
pai para ganhar tempo.

23 DE MARÇO
Parentes velam todos os dias.

Há dez anos
os médicos prolongam sua morte.

24 DE MARÇO
Um romântico.
Nasceu no século errado.
Queria cantar versos de amor
à janela da amada,
morrer jovem de tuberculose.

25 DE MARÇO
-Mãe, estou interessado em uma

mulher...
- Ela não serve pra você!
- Mas, mãe, eu nem disse quem!
- E precisa? Tá pra nascer alguma
que sirva pro meu filhinho.

Agora esquece isso e vai brincar no
computador.
26 DE MARÇO
Perdeu tudo que tinha

Finalmente estava livre
Para escolher
Seu próprio caminho.

27 DE MARÇO
Nos palcos
experimentou viver várias vidas.
Ainda procura a sua.

28 DE MARÇO
Os filhos que não vieram não

sentiram nem dor, nem amor, nem
ódio.
Não agiram com esperança
Ou travaram com o medo.
Chegaram primeiro
Pelo caminho sem curvas nem
paisagens.
29 DE MARÇO
Seus fantasmas já não perguntam:

Como vai?
A pergunta agora é: quando vai?

30 DE MARÇO
Espelho, espelho meu,

Por que você mudou mais que eu ?

31 DE MARÇO
No elevador, do sexto ao primeiro

andar:
6- medo
5- raiva
4- desejo
3- calor
2- surpresa
1- pressa
1º DE ABRIL
A mulher disse que iria ao

supermercado.
O marido ao futebol.
Por azar, se encontraram.
Chegando em casa,
ela não estranhou o uniforme limpo,
nem ele comentou a falta das
compras.
Foram
MINICONTOS
dormir em silêncio.
JÚLIO SALDANHA
2 DE ABRIL
Era uma vez.

E não mais.
E nunca mais.
3 3 DE ABRIL
No dia em que resolveu dizer a

verdade
ninguém lhe deu crédito.
Voltou a mentir para ser ouvido.

4 DE ABRIL
Qual a mais velha? A casa ou ela?

Qual tombará primeiro?
Olha o tempo...
A janela sem ela ou ela sem a
janela.
Um dia, abrir se esqueceu de.

5 DE ABRIL
A propaganda era tão boa

que comprou o remédio.
Agora espera precisar
dele
antes que a validade
vença.
6 DE ABRIL
O movimento da procissão de velas,

O impulso das orações engrenadas
E a marcha fúnebre da banda
Embalam o seu caminhar
subindo a ladeira
Que em dias não santos
já não pode mais alcançar.

7 DE ABRIL
Todos os dias
acorda bem cedo
para correr atrás da
notícia.
Mas tem dias
que é acordado por ela..
6 08 DE ABRIL
Pensam que as crianças de hoje

ainda nascem bobas.
Depois da história do velhinho,
gordo e barbudo, descendo chaminé
com presentes, essa história de
coelho botar ovo! E de chocolate!
Não dá nem pra fingir que
acredito...!
9 DE ABRIL
As lágrimas
do nadador vitorioso
Nem foram notadas
Gotas salgadas
num mar de água doce.

10 DE ABRIL
Enquanto uns, na miséria,

lutam contra a fome,
outros, na fartura,
passam fome na luta contra a
balança.

11 DE ABRIL
Corria demais no trânsito.

Risco “eminente” “sob” duas rodas.
Pressa? Necessidade?
Não.
Prazer em flertar com a morte.

12 12 DE ABRIL
Amanheceu disposto a manter

o sétimo dia da dieta.
Café sem açúcar,
pão integral sem recheio,
uma fruta, iogurte desnatado. E só.
Conspirando contra, uma mesa
interminável de variedades
proibidas
MINICONTOS
no restaurante do hotel.
JÚLIO SALDANHA
13 13 DE ABRIL
Para ela,
o beijo era sempre
uma contravenção.
Proibido, inesperado,
escondido ou roubado.

14 DE ABRIL
Vendia poesia na feira.

Versos no cordel
concorrendo
com as pencas de banana
da barraca vizinha.

6 15 DE ABRIL
Quatro cabeludos se reunem

em uma garagem
Com seus instrumentos
e o velho sonho de mudar o mundo.
Canções próprias e clássicos dos
Beatles.
The dream is not over!

6 16 DE ABRIL
Gostava de usar o verbo

corromper na terceira pessoa
em todos os tempos verbais.
Jamais na primeira pessoa,
de forma alguma.
Soava como o pior palavrão.

17 17 DE ABRIL
Francisco da Silva
do Sô Chiquinho de Assis
(por causa do santo)
do vô Chico, nem da Silva, nem de Assis,
nem de lugar nenhum.
Do Dr. Francisco? Do Chicão doido?
Nem sua mãe saberia.
Vô Chico só, só como ele só..

6 18 DE ABRIL
Era uma vez uma linda princesa

que depois de mil aventuras e
desventuras
encontrou o príncipe.
E viveram felizes para sempre.

19 DE ABRIL
Índio agora tem celular,

Instagram,
Whatsapp,
facebook.
Esqueceu o Tupi
e quer aprender inglês.

6 20 DE ABRIL
A música não tocava o menino

pela melodia,
mas pelo movimento mágico do vinil
deslizando sob a agulha.

21 DE ABRIL
Joaquim perdeu a cabeça

por um ideal.
Hoje o Zé mal reclama
e perde os cabelos
com tantos impostos.

6 22 DE ABRIL
7 Uma nau perdida...

8 Terra a vista!
9 Monte Pascoal. Vera Cruz. Um Porto Seguro.
10 Beleza.
11 Índios. Vergonhas à mostra.
12 Presentes.
13 Primeira missa
14 Catequização.
15 Achamento.

6 23 DE ABRIL
Enquanto carros-bomba explodem,

bolsas caem e potências balançam,
os frágeis amantes sobrevivem
e celebram a vida ao som de Bach.

6 24 DE ABRIL
Sonhava uma escola sem paredes,

sem filas,
Sem foco único, sem rótulos.
Um lugar onde o prazer de aprender
e ensinar estivesse estampado no
rosto de todos, a começar pelo
porteiro.

6 25 DE ABRIL
Aprendeu a respeitar
o rumo dos ventos,
dos rios, do tempo e do destino.

6 26 DE ABRIL
Engarrafamento na estrada.
Maratonista em férias perde a
paciência,
desce do carro e diz à esposa:
- Vou na frente!
Te espero no quiosque da praia.

6 27 DE ABRIL
A empregada chega em casa

exausta
após o expediente
e encontra sua casa mais uma vez
de pernas pro ar.
Tudo bem. Não precisa arrumar
hoje.
Amanhã é seu dia de folga.
6 28 DE ABRIL
O moleque se esborrachou do outro

lado
ao cair do muro.
Preferiu mentir
que queria roubar mangas
do que confessar que estava
espiando
as calcinhas da vizinha
MINICONTOS
sacudindo no varal.
JÚLIO SALDANHA
6 29 DE ABRIL
Ao completar quarenta anos, perdeu

a dianteira na corrida contra o
tempo:
Ele corria mais rápido
e o tempo mais devagar.
Agora, o tempo corre ligeiro
e ele corre atrás.

6 30 DE ABRIL
Antigamente,
nesta cidade mineira,
passava um trem.
Agora, passa tudo quanto é trem,
menos o trem.

1º DE MAIO
Gostava tanto do seu

trabalho
que seria incoerente
comemorar este dia
Sem fazer nada.

2 02 DE MAIO
3 Se impressionavam
4 com a velocidade
5 de seus dedos digitando.
6 Não imaginavam
7 quão mais veloz
8 era seu pensamento.

3 3 DE MAIO
Décadas em coma.
O sertanejo acordou.
Ligou o rádio. Música sertaneja.
Sertaneja?
Certamente estava
agora em outro planeta.

3 4 DE MAIO
Não entendia uma palavra

pronunciada pelo narrador.
Não interessava o futebol.
Mas o som no rádio era um mantra
que lhe resgatava um sono de
infância.

3 5 DE MAIO
Em maio, anjos perdem as asas

E saem correndo pela cidade.

3 6 DE MAIO
Tempo de paz sem medida.

Entre o pai e a mãe, deitado na
rede,
o filho adormecia contando estrelas.

3 7 DE MAIO
Seu silêncio incomodava mais.

Era mais ameaçador
que os argumentos
dos outros adversários.

3 8 DE MAIO
Diante das três biografias,

todas distantes
de sua verdadeira história,
autorizou a publicação
da mais mentirosa.

3 9 DE MAIO
Mesmo com rabo preso,

com telhado de vidro
era o primeiro a atirar pedras.

3 10 DE MAIO
A estrela que brilhava no

palco
não deixou de brilhar.
Mudou de lugar.

3 11 DE MAIO
Passavam madrugadas trocando e-

mails
Centenas de créditos em
mensagens
horas e horas de conversas ao
celular.
No dia do primeiro encontro não
virtual
caiu a conexão, esgotaram-se os
3 14 DE MAIO
Nem imaginava,
mas desde que fez o seguro
de vida
passou a correr um grande
risco de morte.

3 15 DE MAIO
No dia que perdeu o senso

foi andando pela praia
fugindo-se de vista,
recortando o continente.

3 16 DE MAIO
Novamente a pedra no meio do caminho.

“ Passe por cima!”, “Contorne à direita!”,
“Contorne à esquerda!”, “Pare!”, “Retire-
a!”, “Dê meia volta!”, “Passe por baixo!”.
Enquanto falavam,
deitou sobre a pedra e tirou uma soneca..

3 17 DE MAIO
Ele ficou com água na boca

Ao vê-la saboreando o sorvete.
Deliciosamente.
Não pelo sorvete,
que poderia comprar quantos quisesse,
mas por ela, que não se derreteria
tão facilmente.

3 20 DE MAIO
Era tão otimista

que a sorte era sua
companheira
o mal que não exorcizava,
ficava pequeno diante dele.

3 21 DE MAIO
Não bastasse ter aprendido

outras dez línguas,
dominava a nossa língua pátria
muito mais que qualquer um de
nós.

3 22 DE MAIO
Passou a colocar no orçamento

os gastos com o ladrão
que se tornou freguês:
Todo mês, sem falta,
fazia uma visita
ao seu estabelecimento
comercial.
31 DE MAIO
Era tolerante com as opções

sexuais alheias.
Mas quando ele próprio quis
mudar de opção, não
perdoou. Aí era demais.

1º DE JUNHO
Grandes adversidades
Agarrou-se às poucas
oportunidades.
Fez escolhas certas.
Venceu na vida.

2 02 DE JUNHO
Não se casou. Não encontrou

ainda
mulher a altura de sua mãe,
Amélia.
(que Deus a tenha!)

3 3 DE JUNHO
Contas, cartões, cheques

Engordavam a carteira
em seu bolso.
Mas o assaltante
só aceitava em dinheiro.

3 4 DE JUNHO
Na torre da igreja
um badalar diferente e fora de hora.
Ninguém mais sabia
a linguagem dos sinos.
A avó saberia, mas esquecera
a linguagem dos homens.

3 5 DE JUNHO
Fazia questão de estar preso à

coleira
para passear com o dono.
Medo de ganhar a liberdade de volta
e perder o afeto.

06 DE JUNHO
A discussão do casal
acordou a vizinhança de
madrugada.
No dia seguinte, indignação geral
ao vê-los reconciliados,
felizes da vida!

3 7 DE JUNHO
Quando acordou do pesadelo,

nem acreditou,
Achou que era sonho.

8 DE JUNHO
Do do do do ...(olhares para trás)

Do do do mi (portas se abrem)
Mi mi mi sol (fotógrafos preparados)
Sol sol sol do... (que linda!)
Perdeu a visão, mas a marcha
nupcial desenhava a cena em sua
memória.

3 9 DE JUNHO
A ela não bastava ver.

Queria ter nas mãos
E pegar, e cheirar, e acariciar
E depois adormecer abraçado a
ele...
Coisas que o e-book
Não podia lhe proporcionar.

10 DE JUNHO
Tinha mais medo

do médico, do hospital,
do remédio,
que das doenças,
da própria morte.

3 11 DE JUNHO
Varreu o lixo o ano inteiro

para dentro do bueiro.
Quando vieram as chuvas,
entupimento.
Casa inundada.
Pôs a culpa na prefeitura, nos
vizinhos,
em São Pedro, no marido, na sorte...
Não merecia passar por
MINICONTOS isso.
JÚLIO SALDANHA
3 12 DE JUNHO
Ficou um tempo namorando

Ficou um tempo casado
Ficou um tempo sozinho
Agora anda só ficando.

3 13 DE JUNHO
Cansada de esperar,
já tinha até perdido a fé em Santo
Antônio...
Até que o Antônio (que não o era
santo)
apareceu.
E o milagre aconteceu.

3 14 DE JUNHO
Como não ouve bem

nem percebeu
o que houve de mal.

3 15 DE JUNHO
Ao descobrir a traição
teve o ímpeto de cortar o mal pela
raiz,
ou de pagar com a mesma moeda.
Mas o que fez foi descobrir que o
amava
mais que devia.

16 DE JUNHO
Sentiu estar sendo seguida...

Apertou o passo...
Sentiu um vulto se aproximando...
Soltou o grito!!!!!!!!!!!!!!!!!!
O gato pulou assustado pra dentro
E os moradores
Pularam assustados pra fora.
Ela respirou aliviada.

3 17 DE JUNHO
Arrastou melancolicamente
seu tempo de trabalho,
contando os dias para se
aposentar. Quando a
aposentadoria chegou, esperar
o quê?
Caiu de vez em depressão.
3 18 DE JUNHO
Mais uma vez acendeu a vela

pra que ela assoprasse.
Desejou repetir o gesto, naquela data,
enquanto vivesse.

3 19 DE JUNHO
Atravessou a rua
com tanta pressa
Que acabou chegando
“do outro lado”
Mais rápido que desejava.

3 20 DE JUNHO
O catador, ao encontrar aquilo no

lixo,
largou o seu carrinho ali mesmo.
Olhou para os dois lados,
atravessou a rua apressado
e nunca mais foi visto por ali.

3 21 DE JUNHO
Seu antivirus estava mais eficiente

do que nunca.
Excluiu até o arquivo HIV.exe
E o computador que andava lento e
vulnerável ficou curado.

3 22 DE JUNHO
No único dia que saiu atrasado,

esquecendo os documentos,
o cinto e o limite de velocidade,
a blitz estava a sua espera,
na primeira esquina
para lembrá-lo.

3 23 DE JUNHO
Era só um menino brincando de correr

atrás de uma bola.
De repente, a globo avisa
que o globo vai parar
e que bilhões de globos oculares
estarão focados nele
brincando e correndo atrás da bola.

3 24 DE JUNHO
A filha do João
foi atrás de Antônio pedir
perdão.
Havia se separado de Pedro.
A fogueira estava acesa
novamente.

3 25 DE JUNHO
Não sabia mais o que fazer:

Aumentar o consumo de
vegetais
para evitar as doenças
causadas pelo consumo de
agrotóxicos;
ou comer menos vegetais
pelo mesmo motivo.
3 26 DE JUNHO
Perdoou tudo.
Traição, indiferença, exploração,
desamparo, agressão.
Mas quando ele se arrependeu, se
converteu, mudou da água pro
vinho
e se tornou militante monástico,
ela não aguentou.
MINICONTOS
Pediu a separação.
JÚLIO SALDANHA
3 27 DE JUNHO
Um tsuname de turistas invadiu

a cidade
tomando as ruas e casas.
No dia seguinte, rastros da
destruição.

28 DE JUNHO
... e o mundo não acabará

apesar de nós,
antes de destruí-lo totalmente
destruiremo-nos.
E depois do fim, em paz e
equilíbrio
a vida seguirá,
sem saudades da humanidade.
3 29 DE JUNHO
Naquele dia, o pescador não

saiu pra pescar.
Saiu decidido a encontrar
Iemanjá.
Ainda não voltou.

30 DE JUNHO
Passou grande parte da noite

em claro.
Quando finalmente
pegou no sono profundo, o
despertador.
Já saía, se arrastando para o
trabalho
quando se deu conta que era
MINICONTOS domingo... JÚLIO SALDANHA
30 DE JUNHO
De tão unânimes convicções,

não houve acordo:
Todos preocupados com o futuro do
planeta.
Todos sabendo o que o outro deve fazer
Ninguém querendo fazer a sua parte,
Ninguém querendo assumir a sua culpa,
Ninguém querendo pagar sua parte da
conta.
1º DE JULHO
Passou grande parte da noite em claro.

Quando finalmente
pegou no sono profundo, o despertador.
Já saía, se arrastando para o trabalho
quando se deu conta que era domingo....

2 02 DE JULHO
Sempre pontual, naquele dia,

o atraso, por sorte,
custou-lhe a perda do vôo
que não teria volta.

3 3 DE JULHO
Naquela noite sonhou

que se amavam ardentemente.
Na manhã seguinte, nua e só.

3 4 DE JULHO
Hipnotizado pelo jogo eletrizante na

TV,
deixou a filha ir para onde não
deixaria,
assinou um cheque para a esposa
sem saber quanto ou pra quê.
Mas, o pior foi que o time perdeu.

3 5 DE JULHO
Antes que os dois, de ânimos

exaltados
pusessem fim à relação,
caiu a conexão.
No outro dia, internet e amor
restaurados.

06 DE JULHO
Como não falam a mesma língua?

Os músicos acabaram de se
conhecer
e parecem dois compadres
dialogando com seus instrumentos
harmonicamente,
num entrosamento perfeito.
É o início de uma amizade profunda
que dispensa tradução.
3 7 DE JULHO
Nem sentiu
quando o seu coração falhou.
Quando o HD travou
quase teve um infarto fulminante.

8 DE JULHO
Nunca desejou a mulher do próximo,

mas quando a mulher do próximo
demonstrou desejo,
se aproximou, próximo se tornou.
E transformou o próximo em
anterior.

3 9 DE JULHO
Sonhou que devorava

um bolo de chocolate com
sorvete.
Acordou se sentindo
muito mais gordo:
Peso na consciência.

10 DE JULHO
Começou tentando imitar seu

ídolo.
Não conseguiu.
A cópia acabou superando
o original.

3 11 DE JULHO
O peixe que pegou

era tão grande
que daquela vez
mentiu pra menos.

3 12 DE JULHO
Quando a esperança morreu,

Não houve velório.
Não sobrou ninguém para lamentar.

3 13 DE JULHO
Gostava tanto da vida

que achava um desperdício
passar um terço dela dormindo.

3 14 DE JULHO
Não queria a mentira

mas também não queria a verdade.
O silêncio do médico foi
ainda pior que as duas alternativas.

3 15 DE JULHO
4 Passou a vida inteira preocupado

5 em encontrar um sucessor.
6 Mas ele só foi mesmo dar as

caras
7 no dia do seu velório.

16 DE JULHO
- Juro que eu não tô bêbado, seu guarda.

A culpa foi daquela árvore maluca
atravessando na minha frente.

3 17 DE JULHO
Qualquer mulher que se

aproximasse
num raio de três metros,
naquela penumbra
saía disparando seu olhar de
sedução.
Não havia diferença. Todas iguais.

3 18 DE JULHO
Foi um amor sem fim, porém,
bem mais triste que o fim de um amor.
Sem fim, porque sequer teve começo.

3 19 DE JULHO
Saiu distraído
naquele dia tempestuoso
para tirar um extrato no
banco.
Mais uma vítima de um
sequestro relâmpago.
3 20 DE JULHO
Ela seguiu a risca o conselho do

amigo:
- A vida é curta. Não perca mais
tempo com quem não te quer, ache
logo alguém que te gosta!
... Dez minutos depois já estavam
se beijando.

3 21 DE JULHO
Não se preocupava
com a sua reputação.
Era gente demais
se ocupando disto.

3 22 DE JULHO
Enquanto cada um tentava impor

a sua verdade pronta e acabada
e rejeitar a dos outros,
o sábio, que nada sabia,
ia juntando tudo
para mais uma vez reconstruir a
sua.

3 23 DE JULHO
Um menino e uma mulher,

às vezes o oposto,
feitos um para o outro.
Incompatíveis.
Fim precoce. Já era tarde.

3 24 DE JULHO
Tudo que pedia ao marido, tinha

como resposta:
- Tudo bem, depois eu resolvo
isto!
Não agüentou mais. Pediu
divórcio. Pra variar, a mesma
resposta.
3 25 DE JULHO
Quando criança,
O que mais desejava
era ter um radinho FM.
Hoje se sente rica: tem computador,
casa, carro, amor verdadeiro
(que não se compra), viagens...
E, é claro, não poderia faltar
o que mais desejava:
Um radinho no celular que pega FM!

3 26 DE JULHO
Prazer dobrado em ser avó.

Menos obrigações e preocupações.

3 27 DE JULHO
Tamanha preocupação
e sofrimento antecipado...
Acreditou tanto no pior
que é como se ele tivesse
realmente acontecido.

28 DE JULHO
Corou ao ver seu rosto,

Como desejava,
estampado no outdoor.
Porém, ninguém parecia notar...

3 29 DE JULHO
No banheiro,
único lugar privado da casa
de poucos cômodos
e muitos incomodantes,
não podia se dar ao luxo de meditar.
Logo a fila crescia
com alguns casos de emergência.

30 DE JULHO
Naquele momento
Em que a terra inverteu seu giro
E os relógios também
Logo percebeu-se o mundo às
avessas.
Crianças que mal chegaram
voltando ao ventre,
Idosos recomeçando a vida
MINICONTOS do fim para o começo.
JÚLIO SALDANHA
31 DE JULHO
Ora, ou desiste antes,

ou desiste depois.
Desistir agora?
É muito fora de hora.

1º DE AGOSTO
Viveram anos em função dos filhos.

Eles cresceram. Voaram. Ninho
vazio.
Enfim sós, sem motivo,
Sem assunto, sem atitude.

2 DE AGOSTO
Um segundo
na vida de um atleta olímpico
vale ouro.

3 DE AGOSTO
Aprendeu com seu filho

o que seu pai morreu
tentando ensinar.

04 DE AGOSTO
O político discursando
se achando dono do poder.
O povo com o título no bolso,
se achando dono do poder.
As autoridades comandando,
se achando donas do poder.
E os pombos no telhado, não se achavam
Podiam ser livres e voar como ninguém.
5 DE AGOSTO
Da longa fila no confessionário,

um a um,
todos saíram de consciências leves.
Ficou apenas o padre,
com a cabeça cheia de tantos
pecados.

6 DE AGOSTO
Depois da bomba,
a paz voltou,
com um semblante
desconhecido.

7 DE AGOSTO
O aluno sentiu admiração pelo

professor.
Sua inteligência, sua paixão pelo
saber.
O professor demonstrou fé no aluno.
No seu potencial, sua vontade de
crescer.
MINICONTOSA Educação estava salva.
JÚLIO SALDANHA
8 8 DE AGOSTO
Ele voltou para contar ao amigo

como era do outro lado.
O amigo duvidou.
Mentiu a vida inteira, não seria
depois de morto
que deixaria de inventar histórias.

9 DE AGOSTO
Quando, por um minuto,

conseguiu esquecê-la,
ligou o rádio.
Da próxima vez,
nada de música
até estar completamente curado.

10 DE AGOSTO
Esta é a Bahia
De Gabrielas e Marinas passando,
este mar de ondas verdes indo e
vindo,
cenário composto por Caymmi,
inventado por Jorge,
abençoado por todos os santos.
11 DE AGOSTO
Fez o serviço. Para receber, cadastro

aqui, carimbo ali, pegar senha, aguardar
na fila, pagar taxa, outra fila, outra
repartição, horas perdidas, só amanhã,
mais fila,
daqui uma semana, pronto?
Cheque, banco, fila, impostos
descontados. Ufa!
Teve a certeza de que o burocrata que
MINICONTOS
inventou todo o processo, jamaisJÚLIOpassou
SALDANHA
12 DE AGOSTO
Um dia, de repente,
quando se olhou no espelho,
viu a imagem de seu pai.
Um pouco mais velho e mais
grisalho
que no dia de sua partida.

13 DE AGOSTO
O banco ligou oferecendo dinheiro.

Acreditou no milagre econômico.
Já não tinha, adquiriu uma dívida.

14 DE AGOSTO
Gastava uma hora por dia, ida e volta,
caminhando do trabalho a sua casa.
Comprou um carro para ganhar tempo.
Meia hora para o mesmo trajeto
com trânsito normal.
Mais meia hora até o parque
onde passou a fazer
uma hora de caminhada
(recomendação médica).

15 DE AGOSTO
Tinha fama de pegador.

Acabou pegando o que não queria.

16 16 DE AGOSTO
Apagão. Cidade às escuras?

Silêncio?
Não. Acendem-se as estrelas
e podem ser ouvidas
como nos tempos de Bilac.

17 DE AGOSTO
O filósofo precisava de férias.

Mas não conseguia parar.
Tinha consciência disto
E passou os dias
filosofando sobre o assunto.

18 DE AGOSTO
Era mais que um fotógrafo.

Seus olhos flagravam o ângulo
perfeito,
o exato instante em que um lampejo
de arte atravessava a paisagem.

19 DE AGOSTO
Só percebeu realmente
que não era mais um menino
quando seu neto lhe pediu
a chave do carro.

20 DE AGOSTO
- O doutor tem certeza então que o filho é

meu?
- Seu Tomé, o exame de DNA tem 99,99%
de confiabilidade!
- E esses 0,01% ? Fora isso o rapaz
parece tanto, mas tanto comigo que dá
até pra ficar desconfiado que é armação.

21 DE AGOSTO
Morava em frente ao cemitério.

Morria de medo de sair de casa à
noite. Medo de trombar com os
mortos?
De jeito nenhum.
Medo de ter de enfrentar
algum vivo mesmo.
22 DE AGOSTO
Não havia imaginação literária

capaz de superar
as histórias secretas daquela
cidadezinha.
Os contos que o vigário não contou.

23 DE AGOSTO
Como foi de graça,

não tinha como reclamar,
pedir indenização pelos danos
do conselho mal dado.

24 DE AGOSTO
Sempre trocava de mulher, de time,

de partido, de religião.
Só não abria mão de ser situação.
Desde sempre no poder
driblando a oposição.

25 DE AGOSTO
Depois que entrou

para o mundo das drogas,
não deu outra:
Sua vida transformou-se em uma
droga.

26 DE AGOSTO
Quando passou pela avenida,

Seminua, desfilando no carnaval,
Aplaudiram, chamaram de arte.
Quando passou pela avenida,
Seminua, defendendo uma ideia,
ficaram chocados e chamaram a
polícia.
27 DE AGOSTO
Um aumentou um ponto,
Outros aumentaram dois pontos,
interrogações,
exclamações, reticências...
Quem viu o fato de fato,
nem o associa ao fato contado.

28 DE AGOSTO
O segredo já havia vazado entre

todos que ali estavam.
O que ninguém sabia (este
segredinho ficou bem guardado)
é que o segredo que todos
guardavam
já não era segredo pra mais
MINICONTOS
ninguém.
JÚLIO SALDANHA
29 DE AGOSTO
Bissexto. De quatro em quatro anos

torna-se simpático,
amigo íntimo de infância
De todos os seus possíveis eleitores.

30 DE AGOSTO
Depois dela. Não sabe como.

Destruído? Renovado? Talvez.
Jamais o mesmo.

31 DE AGOSTO
No dia que o coveiro morreu,

seu colega de trabalho não teve
tempo de chorar pelo amigo.
Teve que trabalhar para os dois.

1º DE SETEMBRO
Diante da urna, deu um branco.

Escolheu qualquer número.
Confirmou.
A sorte para os próximos quatro
anos estava lançada.

2 DE SETEMBRO
Bom dizer, pensar, sentir seu amor.

O tempo corre a favor.
Coração batendo mais que ontem.

3 DE SETEMBRO
Humanidade conectada. Evolução.

Grandes cabeças, dedos a mais.
Demais partes atrofiadas.
Grande apagão.
Corpos desequilibrados, cegos,,
cabeças rolando sem direção.

4 4 DE SETEMBRO
Todos reconheceram
os milagres do “santo de casa”.
Depois de morto.

5 DE SETEMBRO
E Sô Chico da varanda espia

como se o tempo não passasse
e o tempo ao redor se ia
como se Sô Chico nem notasse.

6 DE SETEMBRO
Como não conseguiu

cumprir as promessas
de campanha em quatro anos,
pediu mais um mandato.
Acabou reeleito.

7 DE SETEMBRO
Desde quando ouviram o brado

retumbante
às margens do Ipiranga,
esperam a independência da pátria
amada.

8 DE SETEMBRO
Levantou vôo com atraso

do local previsto
Pousou adiantado,
local ignorado.

9 DE SETEMBRO
E o veterinário respondeu para o

médico:
- Reclama, não! Meus (im)pacientes
são muito mais exigentes. Se não
gostam do tratamento, dão coice,
mordida, arranhada, latem e
mordem.

10 DE SETEMBRO
Vozes calam, luzes morrem...

A poesia desvairada
passeia na madrugada
enquanto os poetas dormem.

11 DE SETEMBRO
Distraía a ansiedade no corredor

Cada vez que a enfermeira passava
Com um no colo.
Mas não teve a menor dúvida
Nem precisou perguntar.
De imediato reconheceu
Quando a viu: era sua cria, seu coração.

12 DE SETEMBRO
Nunca vira a tal tão de perto.

Mas, daquela vez,
não era ele
quem vinha buscar.

13 DE SETEMBRO
Assistia imóvel.
Árvores em pânico
correndo
em todas as direções.

14 DE SETEMBRO
Estavam se beijando, de olhos fechados,

No meio da multidão, quando a luz
acabou.
E a confusão aconteceu.
Quando abriram os olhos novamente
Estavam na claridade do hospital
impossibilitados de beijar por uma
semana.
15 DE SETEMBRO
Pagaria o dobro para assistir

novamente aquele concerto. Após
uma semana de insônia, conseguiu
dormir profundamente, levitando
entre as notas.

16 DE SETEMBRO
Ao cruzar a fronteira entre os dois

países, o menino ficou
decepcionado.
Cadê a linha divisória
que sempre visualizou nos mapas?

17 DE SETEMBRO
Onde está o vento? As ondas do

mar?
E o sol que não nasce?
Ele está só. Ponteiros imóveis.
A terra parou. Final dos tempos?
O verbo permaneceu calado.

18 DE SETEMBRO
Percorreu toda a rua principal

E os quarteirões paralelos
Em busca de uma vaga. Nada.
Voltou com o carro para a garagem de
casa
E saiu à pé. Sem estresse.

19 DE SETEMBRO
Nunca estudou para aquilo.

Desconhecia qualquer técnica.
Ignorava as teorias.
Sem saber como nem porquê.
Sabia fazer. E bem!

20 DE SETEMBRO
Em um certo dia vinte de setembro,

caminhou Benedito pela direita
na rua principal da cidade.
Que rua é essa?

21 DE SETEMBRO
 - Olha, pai!
Nasceu uma árvore no meio da rua.
 - Não, filho.
 Foi a rua que nasceu

 no caminho da árvore.

22 DE SETEMBRO
Tatuou no braço: “Forever young”.

Anos depois, a tatuagem intacta,
mas a juventude...

23 DE SETEMBRO
As flores da casa,
antes bem cuidadas e risonhas
já avisavam da tragédia.
Os vizinhos só deram conta do
acontecido
depois de uma semana.

24 DE SETEMBRO
Virou artista
por olhar a vida
com o olhar distraído...
Ou seria o contrário?

25 DE SETEMBRO
Alta velocidade, não dá seta, fura o

sinal, canta pneu. Parece bêbado.
Dou passagem, coitado! Deve estar
com pressa de encontrar São Pedro.

26 DE SETEMBRO
Contou uma história para a polícia,

outra para o advogado,
outra para a família.
A verdade? Já não sabia mais qual
era
ou mesmo se havia contado a
alguém.
27 DE SETEMBRO
Apaixonou-se pela matemática na oitava série.

Não perdia gesto ou palavra,
depois da aula fazia as contas com prazer
pensando nela...
No ano seguinte, primeiro dia,
professor novo revisando. Que matéria chata!
Não ia ser fácil passar.
Arrependeu-se de não ter sido reprovado antes.

28 DE SETEMBRO
O candidato aproveitou
as promessas de campanha usadas
na eleição passada e não
cumpridas. Reeleição garantida.

29 DE SETEMBRO
No horizonte a tarde arde em

desejos e, no primeiro ensejo, entre
nuvens,
se recosta nos seios da serra.
Devagar, vai penetrando-lhe
até que o crepúsculo dê lugar
à discrição da noite.
30 DE SETEMBRO
A gripe do ministro da saúde

se espalhou
por todos do ministério.

1º DE OUTUBRO
Pra disfarçar seu olhar mentiroso,

seu olhar indiscreto,
seu olhar incerto;
pra encarar o mundo sem medo
usava óculos escuros.

2 DE OUTUBRO
Às vésperas da aposentadoria,
descobriu sua verdadeira vocação.
Começou do zero
correndo atrás do tempo perdido.

3 DE OUTUBRO
Nasceu igual a qualquer ser

humano.
Queria ser amado.
Quando a sociedade roubou-lhe
definitivamente a esperança,
transformou-se em um monstro.
Cabeças rolando sem direção.
4 DE OUTUBRO
Disseram ao poeta
que seu texto era conotativo.
Isso mudou sua vida!
Nunca mais voltou a escrever.

5 DE OUTUBRO
Quando quis dialogar com a morte

foi a vez dela não querer conversa.

6 DE OUTUBRO
Falta de manutenção, excesso de

trabalho,
falta de lubrificação,
combustível adulterado.
A máquina pifou.
Uma semana de molho no hospital.
A mesma semana que não poderia
tirar
de jeito nenhum para a viagem
MINICONTOS de
JÚLIO SALDANHA
7 DE OUTUBRO
O poeta leu certa vez:

“nada se perde, nada se cria.”
Saiu transformando tudo em poesia.

8 DE OUTUBRO
O menino saiu pra ver

se achava uma bala para comprar.
No caminho encontrou
uma bala perdida.

9 DE OUTUBRO
A intimidade do músico no palco

com seu instrumento e o prazer
despudorado e crescente
com que fazia a música vibrar
chegava a ser obsceno.

10 DE OUTUBRO
Solução prática
foi longo encontrando:
Serenata sem violão?
O jeito é levar o piano!

11 DE OUTUBRO
Era a pessoa mais comum do

mundo.
Vida medíocre, sem grandes
desafios.
Até que a deficiência lhe trouxe a
vontade de superar barreiras,
tornar-se um campeão.
12 DE OUTUBRO
Neste mesmo dia,

há algum tempo atrás,
mais fogos cortando o céu,
mais crianças brincando na rua,
mais fé movimentando os corações.

13 DE OUTUBRO
A outra tinha certeza que nem a

esposa,
nem ninguém desconfiava do caso.
Mal sabia, que mais discreta que
ela,
havia uma terceira.

14 DE OUTUBRO
Só a força do mar para tirar a

angustia.
Saudade do que poderia ter sido.
Falta do que absorve inteiro.
Amar era pra ser bom.

15 DE OUTUBRO
Era professor. Salário não dava.

Queria mudança.
Candidatou-se. Chegou ao poder.
Resolveu seu problema.
Tirou ainda mais do professor
que o substituiu e o elegeu.

16 DE OUTUBRO
Posso te contar um segredo? Pronto.

O amigo contou só pra esposa, que
contou só pra melhor amiga, que
contou só pro marido, que contou pra
amante, que contou, que contou, que
contou...
A cidade inteira ficou sabendo. Menos
o dono do segredo que continuou
achando que só ele e o amigo
MINICONTOS sabiam.
JÚLIO SALDANHA
17 DE OUTUBRO
O avião lhe causava

uma estranha sensação de prazer:
a possibilidade de morrer de
repente
sem tempo para lamentações e
despedidas.

18 DE OUTUBRO
A mulher e os filhos já sabiam.

Quando o dia de trabalho era tenso,
O eletricista chegava em casa
dando choque, soltando faísca.

19 DE OUTUBRO
Ama em Francês,
celebra em Italiano,
negocia em Inglês...
...Reza em silêncio.

20 DE OUTUBRO
O poeta descansou feliz

depois de uma vírgula.

21 DE OUTUBRO
Mania de organização,
resolveu colocar a escala de dó
em ordem alfabética.
Deu uma bela melodia.

22 DE OUTUBRO
Fila de banco pro filho,

levar e buscar neto na escola,
fazer as compras da casa,
síndico do prédio,
levar parente no hospital...
Isso é aposentadoria? Saudade dos
tempos tranqüilos de trabalho.

23 DE OUTUBRO
Um tinha asas,
não sabia como voar.
O outro sabia como voar,
não tinha asas.
Um deles voou.

24 DE OUTUBRO
A aeromoça passava por

turbulências
na vida pessoal.
Deixava transparecer sua
preocupação.
Voo tenso.
Pânico entre os passageiros.
25 DE OUTUBRO
Aquele povo não desenvolveu

seu intenso amor pela cultura
da noite pro dia.
Exigiu semente, solo, adubo,
irrigação
clima, transplante, poda,
até que viessem os frutos.
26 DE OUTUBRO
Para ele, olhar vitrines no shopping

era tão entediante, desinteressante e
inútil
quanto, para ela, assistir futebol.
Depois do jogo e das compras se
encontram.
Difícil um casal tão compatível.

27 DE OUTUBRO
Não definia das vozes que ouvia

qual seria do anjo torto ou do anjo
bom.
Tempo esgotado. Hora da decisão.

28 DE OUTUBRO
Estava no fundo do poço.

Um fracassado. Covarde.
Não tinha competência
nem para tirar a própria vida.
Deitou-se no passeio do cemitério
e ali pernoitou
Sonhando estar do outro lado do muro.

29 DE OUTUBRO
No dia que nasceu o poeta,

a poesia já existia.
Mas só se tornou poesia
depois que nasceu o poeta.

30 DE OUTUBRO
Concluía um objetivo
com a mesma “feliztristeza”
que começava o próximo.

31 DE OUTUBRO
Queria ser escritor.

Mas escrevia tão certinho,
mas tão certinho,
que se tornou escrivão.

1º DE OUTUBRO
Pra disfarçar seu olhar mentiroso,

seu olhar indiscreto,
seu olhar incerto;
pra encarar o mundo sem medo
usava óculos escuros.

1º DE DEZEMBRO
Outra língua. Outros costumes.

Outro clima.
Finalmente encontrara o seu lugar..

2 DE DEZEMBRO
No dia que ela surgiu, fez um

samba.
No dia que ela partiu, fez outro
samba.
No dia que ela voltou, mais um
samba.
Aconteça o que acontecer, dá-lhe
MINICONTOS
samba.
JÚLIO SALDANHA
3 03 DE DEZEMBRO
Leu a placa.
“Reservado para deficientes”.
Estacionou ali, assim mesmo.
Deficiência de leitura ou de
compreensão?

04 DE DEZEMBRO
O mundo não acabou em água,

nem em fogo
Não acabou em bomba,
nem em burocracia.
Talvez acabe em breve em
propaganda.

05 DE DEZEMBRO
Seu horóscopo não estava nada

bom naquele dia.
Achou melhor não sair de casa.
Noticiário:
Chuva forte provoca
deslizamento de terra.
Casas soterradas.
06 DE DEZEMBRO
Viveu fazendo o que queria.

Absolutamente nada que não
quisesse.
Disse não à morte várias vezes.
Só foi quando realmente quis.

07 DE DEZEMBRO
Quando fabricada,
a moeda valia alguma coisa.
Passados uns anos,
passou a não valer mais nada.
Passados séculos,
passou a valer muito.

08 DE DEZEMBRO
Os avós tiveram mais de uma dúzia.

Seus pais tiveram quatro.
Ele teve dois, somando aos dos
irmãos, não chega meia dúzia.
Filhos e sobrinhos
não querem nem falar nisso.

09 DE DEZEMBRO
Arrastando um corpo que já não é

dele.
Guiado por uma alma ausente.
Chega em casa.
Mulher assustada.
Filhos embaixo da cama.

10 DE DEZEMBRO
Nasceu pobre,
morreu pobre.
A graça de sua vida
foi fazer a alegria de todos.

11 DE DEZEMBRO
Cada qual com seu ofício.

Achava a coisa mais fácil
Levantar um edifício.

12 DE DEZEMBRO
O médico,
ao sentir aquela dor
súbita e aguda,
diagnosticou de imediato:
Era o fim.

13 DE DEZEMBRO
O cego foi o primeiro a ver

as intenções do farsante.

14 DE DEZEMBRO
Era justo e generoso.

Se pedisse a ele um ponto de vista
Daria no mínimo três.

15 DE DEZEMBRO
Levou o ano ao Deus-dará

E ficou Odara.

16 DE DEZEMBRO
Não podia chamá-lo de traidor.

Soube desde sempre
do que ele era capaz.
Também não podia perdoá-lo.
A reincidência era questão de
tempo.

17 DE DEZEMBRO
Acabou descobrindo
que o verdadeiro papai Noel
era o que menos se parecia com
ele.

18 DE DEZEMBRO
Não fazia hora extra de jeito

nenhum.
Morria de medo de ficar ali
sozinho com seus fantasmas.

19 DE DEZEMBRO
- Natal? Odeio esta data.

- Por que?
- Fico triste.
- O ano inteiro pra ficar triste,
escolhe justo o dia do Meu
aniversário?

20 DE DEZEMBRO
Tinha vocação pra médico.

Mas não tinha estudo.
Tornou-se mecânico.
O paciente podia morrer
que ele dava um jeito.

21 DE DEZEMBRO
Ele surgiu tão doce

que ela esqueceu a dieta
e outras restrições:
Vinte quilos em nove meses.

22 DE DEZEMBRO
Quando estava na escola,

achava esquisito
esse negócio de quatro estações.
Agora, depois de velha, pode
afirmar:
maior conversa fiada.

23 DE DEZEMBRO
Eram seus parentes mais próximos:

De um lado a irmã querida,
quase uma segunda mãe;
do outro a nora insuportável
com seu incansável cão latidor.

24 DE DEZEMBRO
Assim que ganhou

as bonequinhas de presente,
a menina correu até o presépio.
Elas não podiam perder o
nascimento..

25 DE DEZEMBRO
Nasceu humilde, mas era rei.

Viveu pregando a paz,
mas despertou a ira dos poderosos.
Morreu humilhado,
mas ressurgiu glorioso.
Principal mandamento: amar, mas...

26 DE DEZEMBRO
Quanto mais velho ficava,

mais distante ia buscar lembranças.
O velho-menino não se lembra
da última refeição.
Mas o menino-velho ainda sente o
sabor da jaboticaba roubada
no quintal do vizinho.
27 DE DEZEMBRO
Hoje ninguém começa nada.

Hoje ninguém termina nada.
Se não tem o dia da espera,
fica sendo hoje.

28 DE DEZEMBRO
Quando o salva-vidas precisou de

ajuda
ele era o único profissional por
perto.
Dessa vez negou socorro.

29 DE DEZEMBRO
O movimento no supermercado
está terrível.
Todos agitados para comprar
antes que o ano acabe.

30 DE DEZEMBRO
Amanhã,
todos sairão correndo feito loucos,
mas o relógio não terá pressa.
Foguetes dispararão antes da hora..

31 DE DEZEMBRO
Branco. Último dia. Tchau ano velho.

Esquece a dieta, a caminhada,
os planos passados, promessas.
Não é fácil. Chegar ao fim não é o
fim.

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