Вы находитесь на странице: 1из 35

DEDALUS - Acervo - FFCLRP

J.'.~~1·r1
IIIIIII IIIII IIIII IIIII IIIII IIIII IIIII IIIII IIIII IIIII IIIII IIII IIII
-~---:--r
20800022026
l}~y~~1·1DJü

J &i;:1·r:1~·r
/"'ef~-- -f
o·i:r-'t:::'
---;::J

l>'1:1·~~rr1~l

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

~ ~:cd da memória í Pierre Achard ... [ct ai.] :


tcadução e introdução José Horta Nunes. -
C arnpinas, SP Pontes, 1999.

r:lmros autores: Jean Davallon, Jean-Louis


_ .:.:..~J. \!ichel Pêcheux. Eni Puccinelli Orlandi .

..\nfüse do discurso 2. História 3. Linguagem


=:~is:ória -+. Memória (Filosofia) 5. Semiótica
- S,,2iolingüística L Achard. Pierre. IL Davallon.
_. e.,. III. Durand. Jean-Louis. IV. Pêcheux, Michel,
- '•- l •JS~ V. Orlandi. Eni Puccinelli, 1942-.
'\ cr.~,. José Horta. VIL Título.

CDD-401.4

Indices para catálcgo sistemático:

:..:r:gJagern e história -1.0 l .4 ·Rontes


,1999'
Copyright© 1999 dos Autores
Direitos de tradução gentilmente cedidos para a
Pontes Editores
Coordenação Editorial: Ernesto Guimarães
Capa: Claudio Roberto Martini
Revisão: Equipe de revisores da Pontes Editores
ÍNDICE

B\ iq
j);. /

r;i. \1à.os,
Introdução ............................................................................ 7

Memória e Produção Discursiva do Sentido ....................... 11

A Imagem, uma Arte de Memória ...................................... 23

Memória Grega .................................................................. 39

Papel da Memória .............................................................. .49

Maio de 1968: Os Silêncios da Memória ........................... 59


PONTES EDITORES
Rua Maria Monteiro 1635
13025.152 Campinas SP Brasil
Fone (019) 252.6011
Fax (019) 253.0769
e-mail: ponteseditor@lexxa.com.br

1999
Impresso no Brasil
INTRODUÇÃO

O conjunto de quatro textos que ora apresentamos cons-


titui a sessão temática «Papel da Memória» inserida em Histó-
ria e Lingüística, uma publicação das Atas da Mesa Redonda
«Linguagem e Sociedade», realizada na Escola Normal Superi-
or de Paris em abril de 1983. Esse colóquio reuniu especialistas
de diversas áreas, tendo como ponto de encontro a relação entre
língua e história. O tema particularmente enfocado aqui, a me-
mória, é visto sob diferentes aspectos: lembrança ou reminis-
cência, memória social ou coletiva, memória institucional, me-
mória mitológica, memória registrada, memória do historiador.
Atravessando os artigos, a questão: o que é produzir memória?
Como a memória se institui, é regulada, provada, conservada,
ou é rompida, deslocada, restabelecida? De que modo os acon-
tecimentos - históricos, mediáticos, culturais - são inscritos ou
não na memória, como eles são absorvidos por ela ou produzem
nela uma ruptura ?

Estas questões se desenvolvem nos artigos através de di-


ferentes perspectivas disciplinares, incluindo-se elementos de
história, semiótica, sociolingüística, análise de discurso. Além
disso, a memória é analisada em sua materialidade complexa, arquiteturas, etc.), como operadores de memória social, traba-
com ênfase para a relação do texto com a imagem, para a passa- lham no sentido de entrecruzar memória coletiva (lembrança,
gem do visível ao nomeado. Por um lado, os textos fundadores conservação do passado, foco da tradição, monumento de remi-
de memória: mitos, relatos, enunciados, paráfrases. Por outro, a niscência) e história (quadro dos acontecimentos. conhecimen-
eficácia simbólica da imagem: a reprodução pictórica, o meio to, documento histórico).
televisual e até objetos arqueológicos. Ficam expostas ao leitor
diferentes práticas memoriais presentes na sociedade ocidental, Do contemporâneo passamos para o antigo. Jean-Louis
sejam aquelas da Grécia antiga, sejam as que emergem com as Durand faz uma interrogação envolvendo as práticas memoriais
recentes mudanças tecnológicas. da Grécia clássica. Ele coloca urna questão de enunciação im-
portante: quem fala e com que direito, ao se produzir memória?
Analisando a construção discursiva do sentido e o funci- No caso da Grécia antiga, a produção da memória só se daria na
onamento dos implícitos, Pierre Achard mostra que a memória presença do poeta épico - de Homero - por meio de um texto
não pode ser provada, não pode ser deduzida de um corpus, produzido fora do domínio da cidade. No entanto, há uma con-
mas ela só trabalha ao ser reenquadrada por formulações no tradição na memória, com a oposição dos valores de grupo, dos
discurso concreto em que nos encontramos. O implícito de um textos homéricos, aos valores éticos, políticos, sociais em urna
enunciado (Achard analisa o enunciado: «Neste momento, o dada situação. Ao examinar a imagem de um vaso grego, Durand
crescimento da economia é da ordem de 0,5%») não contém sua nota a possibilidade de remissão ao mesmo tempo a um herói da
explicitação, não se pode provar que ele tenha existido em al- epopéia e a um simples combatente da cidade, um gue1Teiro
gum lugar. O que funcionaria então seriam operadores anónimo. Se pensarmos nos sistemas atuais de memória, pode-
linguageiros imersos em uma situação, que condicionariam o remos ver a relação das práticas memoriais gregas com as me-
exercício de uma regularidade enunciativa. Haveria, deste modo, mórias heróicas estabelecidas em nossa sociedade.
a colocação em série dos contextos e das repetições formais,
numa oscilação entre o histórico e o lingüístico. Através das Em seguida o livro, o artigo de Pêcheux faz urna retoma-.
retomadas e das paráfrases, produz-se na memória um jogo de da das exposições anteriores, situando-as no contexto das pes-
força simbólico que constitui uma questão social. quisas em análise de discurso. Ele discute corno as questões de
lingüística e de discurso aparecem nos estudos sobre memória,
Jean Davallon aponta, depois do aparecimento da im- introduzindo um debate sobre as disciplinas de interpretação.
prensa, o desenvolvimento dos meios de registro da imagem e Nesse sentido, ele pergunta: a lingüística é uma disciplina pura-
do som como fatores que deslocam a questão da memória soci- mente experimental ou ela tem algo a ver com as disciplinas de
al, que não se encontraria mais nas «cabeças» dos indivíduos, interpretação? Por sua vez, a análise de discurso cada vez mais
mas nas mídias. O autor esboça uma reflexão sobre a imagem busca se distanciar, afirma Pêcheux, das evidências da proposi-
contemporânea como operadora de memória. Pela análise do ção, da frase e da estabilidade parafrástica. Ademais, ela permi-
registro televisual de um acontecimento (a posse do presidente te, após os trabalhos de Benveniste e Barthes com a noção de
Mitterrand na França), é questionada a distância que separa a «significância», avançar teoricamente e tecnologicamente na
«realidade» do «fato de significação». Davallon lança a hipóte- relação do texto com a imagem.
se de que os objetos culturais (livros, escritos, imagens, filmes,

8 9
Os textos aqui reunidos guardam as marcas do debate
em meio ao qual foram concebidos, com o tom um pouco colo-
quial e as freqüentes remissões a outros expositores. Como re-
sultado dessas discussões, salientamos o seguinte comentário
de Pêcheux: «A certeza que aparece, em todo caso, no fim desse
debate é que uma memória não poderia ser concebida como
uma esfera plena, cujas bordas seriam transcendentais históri-
cos e cujo conteúdo seria um sentido homogêneo, acumulado
ao modo de um reservatório: é necessariamente um espaço mó-
vel de divisões, de disjunções, de deslocamentos e de retoma- MEMÓRIA E PRODUÇÃO DISCURSIVA DO
das, de conflitos de regularização ... Um espaço de desdobra- SENTIDO
mentos, réplicas, polémicas e contra-discursos». Pouco mais de
dez anos depois, este é um momento bastante apropriado para
retomar esse acontecimento, atualizá-lo, inseri-lo em nosso con-
texto para que produza sentido e memória.

Acrescentamos ainda nessa edição o texto de Eni Orlandi


"Maio de 1968: os silêncios da memória", em que a autora apre- Se, a partir de uma posição de análise de discurso, que-
senta uma reflexão sobre a relação entre memória e censura no remos falar do papel da memória, e, por conseguinte, do estatu-
contexto da ditadura no Brasil. Neste caso mostra-se que há acon- to dos implícitos, logo encontramo-nos em posição delicada.
tecimentos que não se inscrevem na memória, como se não ti- Mas se este é um ponto em direção ao qual é perigoso se aven-
vessem ocorrido: os sentidos de Maio de 68, entre eles, os rela- turar - sendo real o risco de uma interpretação psicologista dos
' cionados à palavra "liberdade", são evitados em um processo implícitos - é no entanto necessário se preocupar com ele. Ten-
'f
t, histórico-político silenciador, de modo que se estabelece uma tarei então falar sobre isso, considerando que a estruturação do
falta na memória. discursivo vai constituir a materialidade de uma certa memória
social. Bem entendido, não se trata de avançar o termo
"materialidade" como máscara retórica para explicações que
José Horta Nunes seriam da ordem do inefável ou do inconsciente coletivo, nem
de dar ao termo "memória social" um valor tal que não teríamos
finalmente outro meio de analisá-lo senão colocá-lo.

Procurarei então mostrar que é possível colocar um cer-


to número de hipóteses concernentes ao funcionamento formal
no discurso, hipóteses a relacionar com a circulação dos discur-
sos; esta relação deve permitir que nos afastemos de interpreta-
ções psicológicas da memória em termos de "realmente-já-ou-

10 li
vido", memória fano-magnética ou registro mecânico. Para isso, memorização de uma forma máxima completa. Além disso. esta
apoiar-me-ei sobre alguns exemplos. memorização repousaria sobre um consenso. Ora. se olhamos
mais de perto, a explicitação desses implícitos em geral não é
Meu primeiro exemplo concerne ao funcionamento da necessária a priori, e não existe em parte alguma um texto de
palavra "crescimento" no domínio da Economia Política. Um referência explícita que forneceria a chave. Essa ausênci2. rião
enunciado como: "Neste momento, o crescimento da economia faz falta, a paráfrase de explicitação aparece antes como um
é da ordem de 0,5 %" faz apelo a um certo número de implíci- trabalho posterior sobre o explícito do que como pré-condição.
tos, dos quais evocarei apenas alguns. O primeiro deles é indu- O que é pressuposto, esse consenso sobre o implícito, é somen-
zido pela pressuposição de que se pode aplicar uma "taxa" a um te uma representação.
"crescimento da economia", quer dizer, que a economia pode
ser medida (e não simplesmente "verificada", como se diz da Um outro exemplo desse fato foi discutido na oficina
temperatura em física elementar). O segundo implícito, que é sobre os manuais escolares 1 : ainda que se considere que eles
também um implícito segundo (quer dizer, que só toma seu sen- constituam urna vulgata em relação a textos mais "elaborados",
tido em relação ao primeiro), é a equivalência, do ponto de vista o exame dos manuais concretos e sua confrontação permite co-
da taxa, entre as diferentes medidas possíveis. Particularmente, locar em evidência não somente que eles estão sujeitos à crítica,
nesse caso, a diferença entre PIB e PNB não será pertinente. apresentam variações consideráveis de um a outro, são
Em terceiro lugar. pressupõe-se implicitamente que esse cresci- insatisfatórios para o que se espera deles, mas ainda que é ao
mento seja calculado dentro do prazo de um ano, prazo consi- nível dos próprios implícitos supostos por eles que eles chegam
derado como evidente. Enfim, numa ordem um pouco diferen- a constituir a dita vulgata. Em suma, eles constituem a ilustra-
te, o local desse crescimento não é indicado; isto implica que ção do fato de que, enquanto um registro discursivo supõe urna
me situo em um universo descritivo nacional, e que falo por vulgata para funcionar, a tentativa de esclarecimento, de
conseguinte do crescimento da economia francesa - ou, mais explicitação desta vulgata, jamais ''contém" o que seria neces-
exatamente, do crescimento da economia que concerne à nação, sário para funcionar na retomada, e constitui na melhor das hi-
ao país no qual a enunciação se situa. É o que dá a este implícito póteses uma primeira retomada da vulgata.
um estatuto diferente dos precedentes, já que ele remete mais à
"situação" que à ''memória". A "memória" intervém, no entan- Do ponto de vista discursivo, o implícito trabalha então
to, para enquadrar implicitamente a situação no espaço nacio- sobre a base de um imaginário que o representa como memori-
nal, pela falta. Esse enquadramento pode ser explicitamente zado, enquanto cada discurso, ao pressupô-lo, vai fazer apelo a
deslocado (podemos falar de "crescimento da economia mun- sua (re)construção, sob a restrição ·'no vazio" de que eles res-
dial") ou utilizado no seu nível abstrato através da retomada em peitem as formas que permitam sua inserção por paráfrase. Mas
um percurso ("em média, no mundo, o crescimento foi ... "). jamais podemos provar ou supor que esse implícito
(re)construído tenha existido em algum lugar como discurso
A representação usual do funcionamento dos implícitos autônomo.
consiste em considerar que estes são sintagmas cujo conteúdo é
memorizado e cuja explicitação (inserção) constitui uma pará- Se levamos em conta os elementos enunciativos que es-
frase controlada por esta memorização - no nosso exemplo, ses implícitos comportam, podemos ver em que esse problema

12 13
de (re)construção dos implícitos corresponde também àquele Para ilustrar de maneira menos elementar a dialética en-
que Robert Lafont, em O trabalho e a língua, designa como tre repetição e regularização, utilizarei, de modo metafórico,
"regulagem do praxema" 2 • Com efeito, o funcionamento do dis- um imaginário topológico. Creio que esta analogia é relativa-
curso (e é nisso que a noção de discurso se distingue da de fala mente bem fundada. Tomemos uma série numérica, que seja,
no sentido do CLG)' supõe que os operadores linguageiros só para utilizar um exemplo simples, a série O, 1/2, 2/3, 3/4, ( ... ).
funcionam com relação à imersão4 em uma situação, quer dizer, Dizer que esta série tende a 1 pode ser formulado dizendo que
levando-se em consideração as práticas de que eles são porta- toda vizinhança de 1 contém toda a série exceto um número
dores. De outro modo, o passado, mesmo que realmente memo- finito de termos. Assim, se admitimos que o termo geral da série
rizado, só pode trabalhar mediando as reformulações que per- é da formas= (n - 1)/n, vemos que a vizinhança de I definida
mitem reenquadrá-lo no discurso concreto face ao qual nos en- como o conjunto dos números compreendidos entre 999 999
contramos. 999/1 000 000 000 e 1 000 000 001/1000000 000 compreende
todos os termos da série exceto um número finito de termos (os
Pelas necessidades da análise, vamos supor um funcio- 1 000 000 000 primeiros). Bem entendido, só posso reconhecer
namento linguageiro que comporta apenas um registro que esta série tende a 1 porque substituí a enumeração dos pri-
discursivo, e colocar aí o problema do "sentido de uma pala- meiros termos pela regra que permite formular o termo geral.
vra". Admitiremos (como hipótese lexicológica) que o que ca-
racteriza a palavra é sua unidade, sua identidade a si mesma, Sem esta formulação, nada garante que, com relação a
que permite reconhecê-la em seus diferentes contextos. De ou- uma vizinhança suficientemente pequena, o número das exce-
tro modo, colocarei aqui a palavra como uma unidade simbóli- ções continue finito. E como existe certamente uma infinidade
ca cujo reconhecimento a identificação permite definir em ter- de séries que começam pelos mesmos termos, nenhuma obser-
mos de repetição. Cada nova co-ocorrência dessa unidade for- vação empírica do começo de uma série nos permite deduzir a
mal fornece então novos contextos, que vêm contribuir à cons- regra. Em termos lingüísticos, isso corresponde a constatar que
trução do sentido de que essa unidade é o suporte. Mas para o corpus nunca é suficiente para fundar a gramática, e que a
poder atribuir um sentido a essa unidade, é preciso admitir que regularização repousa sobre um jogo de força. Acrescentamos
suas repetições - essas repetições - estão tomadas por uma regu- aqui que o jogo de força pode designar o sentido como limite 6 •
laridade' . É uma regularidade desta ordem que supomos com o
termo ''crescimento" no registro econômico. Essa regularidade, Um procedimento desta ordem parece necessário se que-
no entanto, não se deduz do corpus, ela é de natureza hipotética, remos abordar a semântica de outro modo que não como uma
ela constitui uma hipótese do analista. No caso do crescimento, semântica dos enunciados, que seria baseada em uma lista uni-
a hipótese de análise que utilizei consistiu em supor que "cres- versal de traços semânticos pré-existentes e em sua combinatória.
cimento" é um termo operador que comanda um certo número, A hipótese de uma construção discursiva do sentido é certa-
fixo, de posições. O aparecimento em diversos textos das dife- mente discutível, mas parece frutífera, pela abertura às práticas
rentes posições me permite fazer um inventário delas e estabe- que podemos estudar ao nível da dialética entre repetição e re-
lecer suas regularidades, e me permite em seguida designar, lá gularização. Com efeito, o fechamento exercido por todo jogo
onde elas não são explicitamente instanciadas, os tipos de im- de força de regularização se exerce na retomada dos discursos e
plícito por que elas clamam. constitui uma questão social. Se situamos a memória do lado,

14 15
não da repetição, mas da regularização, então ela se situaria em mada se localiza nesse nível.
uma oscilação entre o histórico e o lingüístico, na sua suspensão
em vista de um jogo de força de fechamento que o ator social ou O que distingue então o analista de discurso do sujeito
o analista vem exercer sobre discursos em circulação. Este even- histórico não é uma diferença radical mas um deslocamento. A
tual jogo de força é suportado pelas relações de formas, mas análise de discurso é uma posição enunciativa que é também
estas são apenas o suporte dele, nunca estão isoladas. Elas estão aquela de um sujeito histórico (seu discurso, uma vez produzi-
eventualmente envolvidas em relações de imagens e inseridas do, é objeto de retomada), mas de um sujeito histórico que se
em práticas. esforça por estabelecer um deslocamento suplementar em rela-
ção ao modelo, à hipótese de sujeito histórico de que fala. O
A regularização se apóia necessariamente sobre o reco- que proponho neste texto é um modelo de trabalho do analista,
nhecimento do que é repetido. Esse reconhecimento é da ordem que tenta dar conta do fato de que a memória suposta pelo dis-
do formal, e constitui um outro jogo de força, este fundador. curso é sempre reconstruída na enunciação. A enunciação, en-
Não há, com efeito, nenhum meio empírico de se assegurar de tão, deve ser tomada, não como advinda do locutor, mas como
que esse perfil gráfico ou fónico corresponde efetivamente à operações que regulam o encargo, quer dizer a retomada e a
repetição do mesmo significante. É preciso admitir esse jogo de circulação do discurso. Entre outras conseqüências desta con-
força simbólico que se exerce no reconhecimento do mesmo e cepção, levaremos em conta o fato de que um texto dado traba-
de sua repetição. Por outro lado, uma vez reconhecida essa re- lha através de sua circulação social, o que supõe que sua
petição, é preciso supor que existem procedimentos para esta- estruturação é uma questão social, e que ela se diferencia se-
belecer deslocamento, comparação, relações contextuais. É nessa guindo urna diferenciação das memórias e uma diferenciação
colocação em série dos contextos, não na produção das superfí- das produções de sentido a partir das restrições de uma forma
cies ou da frase tal como ela se dá, que vemos o exercício da única.
regra. De outro modo, é engendrando, a partir do atestado
discursivo, paráfrases, a considerar corno derivações de possí-
veis em relação ao dado, que a regularização estrutura a ocor-
rência e seus segmentos, situando-os dentro de séries. O que
desempenha nessa hipótese o papel de memória discursiva são
as valorizações diferentes, em termos por exemplo de familiari-
dade ou de ligação a situações, atribuídas às paráfrases, que Pierre Achard
entretêm então, graças ao processo controlado de derivação, re-
lações reguladas com o atestado. Na hipótese discursiva, pois,
ao contrário do modelo chomskiano, o atestado constitui um
ponto de partida, não o testemunho da possibilidade de uma
frase, e a memória não restitui frases escutadas no passado mas
julgamentos de verossimilhança sobre o que é reconstituído pelas
operações de paráfrase. Estas considerações deslocam o estatu-
to do que é provável historicamente, porque a operação de reto-

16 17
BIBLIOGRAFIA

LAFONT, R. (1978), Le travail et la tangue, Flamarion, Paris

SAUSSURE, F. (1964), Cours de linguistique générale, publ.


por charles Bailly e Albert Secheye, com a colab. de A.
Riedlinger, Payot, Paris (Ira. ed. 1915)

19
NOTAS

1. (NDT) As oficinas, exposições e textos do colóquio citados neste livro


encontram-se publicados em Histoire et Linguistique, Pierre Achard,
Max-Peter Gruenais, Dolores Jaulin (Orgs); Éditions de la Maison des
Sciences de l'Homme, Paris, 1984.

2. Lafont, 1978.

3. Saussure, 1964.

l! 4 . A noção de imersão ("plongement") - que, nas matemáticas. é um con-


ceito - supõe ao mesmo tempo a possibilidade de um ponto de vista
intrínseco, e propriedades induzidas pela consideração da situação no
espaço da imersão.

l 5. Esse efeito, aliás, é reforçado sobretudo pela existência de vários regis-


tros articulados nos discursos reais. Por exemplo, em economia da edu-
cação, o discurso econômico desenvolve o papel de um registro maior
no qual são retomados e m1iculados os registros da pedagogia, registros
de considerações tecnológicas, políticas, etc., tomados como englobantes
ou englobados, conforme o caso, o que faz com que haja sempre, na
retomada metafórica das palavras, um deslocamento de uso que só pode
repousar sobre a regularização suposta do funcionamento da palavra no
registro fonte.

6. Bem entendido, os matemáticos não se interessariam tanto pelas séries


se elas convergissem sistematicamente a números, como 1, já definidos
em outro lugar. É na medida em que as séries permitem definir novos
números que elas são interessantes. Do mesmo modo, a perspectiva que
proponho por analogia tem essencialmente por interesse propor pers-
pectivas para uma semântica que não se limite a uma combinatória de
semas pré-existentes.

21
A IMAGEM, UMA ARTE DE MEMÓRIA ?

O aparecimento da imprensa parecia já ter tornado fora


de uso as "artes da memória" antigas e medievais 1 • Com razão
mais pertinente, o desenvolvimento dos meios de registro da
imagem e do som (essas extensões de nossos sentidos, se acre-
ditamos em Me Luhan), que permitem estocar depois restituir o
saber quase tão bem quanto os acontecimentos, parece hoje nos
afastar definitivamente da necessidade de situar uma parte da
memória social na "cabeça" dos (ou de certos) sujeitos sociais:
a memória social estaria inteiramente e naturalmente presente
nos arquivos das mídias.

Uma tal concepção tecnicista da memória social, que


em muitos pontos assimila esta à "memória" do computador,
supõe resolvidas duas questões maiores. A primeira é bastante
ingénua: registrar, descrever, representar a realidade (saber ou
acontecimento) é suficiente para produzir memória? Ou ainda:
a partir de quando, e do que, um acontecimento constitui me-
mória? A segunda é sociológica: o que ocorre, nessa redução
tecnicista, com os processos de manutenção da coesão social;

23
com a instituição/re-instituição societal de que o funcionamen- :\-Iemória social e produções culturais
to da memória é o lugar, e mais particularmente ainda, com a
reprodução das relações sociais e políticas fundada sobre a
dominância desse funcionamento da memória social ?
Uma primeira constatação se impõe imediatamente: para
Pensemos, a propósito, numa cerimónia política como que haja memória, é preciso que o acontecimento ou o saber
aquela da posse do Presidente da República: com os múltiplos registrado saia da indiferença, que ele deixe o domínio da insig-
jogos que surgem entre a referência, de um lado, a uma memó- nificância. É preciso que ele conserve uma força a fim de poder
ria social já existente (o Panteão, os heróis republicanos) e, de posteriormente fazer impressão. Porque é essa possibilidade de
outro lado. à produção de uma nova memória. Pois o registro do fazer impressão que o termo "lembrança" evoca na linguagem
··acontecimento·· deYe constituir memória, quer dizer: abrir a corrente. Um sociólogo um pouco esquecido hoje, é verdade,
dimensão, entre o passado originário e o futuro, a construir, de mas que uma sociologia do conhecimento não poderia ignorar -
uma comemoração 2 . a saber, M. Halbwachs - caracterizaria aliás a memória como "o
que ainda é vivo na consciência do grupo para o indivíduo e
Com esta alusão rápida a um exemplo político contem- para a comunidade" 4 •
porâneo, vemos que entre o simples registro da realidade e a
memória social; que entre a reprodução de um acontecimento e Uma segunda constatação complementa a primeira: lem-
a função social de instituição/re-instituição do tecido social atri- brar um acontecimento ou um saber não é forçosamente mobili-
buída à memória, há toda a distância que separa a "realidade" zar e fazer jogar uma memória social. Há necessidade de que o
do "fato de significação". Faria essa distância pensar, em suma, acontecimento lembrado reencontre sua vivacidade; e sobretu-
que a memória, como fato social, comportaria uma dimensão do, é preciso que ele seja reconstruído a partir de dados e de
semiótica e simbólica que lhe seria intrínseca ? noções comuns aos diferentes membros da comunidade social.
Esse fundo comum, essa dimensão intersubjetiva e sobretudo
Assim. é em \·ista dessa dupla dimensão da memória so- grupal entre eu e os outros especifica, diz-nos Halbwachs, a
cial (como fato societal e como fato de significação) que gosta- memória coletiva5 • Mas a contrapartida seria que a memória
ria de esboçar aqui uma reflexão sobre a imagem contemporâ- coletiva "só retém do passado o que ainda é vivo ou capaz de
nea como operadora de memória, mas convém antes indicar com viver na consciência do grupo que o mantém. Por definição, ela
algumas palavras o que é preciso entender por memória social não ultrapassa o limite do grupo" 6 •
quando nos interessamos pelos objetos culturais'.
Estas duas constatações convidam a salientar o caráter
paradoxal da memória coletiva: sua capacidade de conservar o
passado e sua fragilidade devida ao fato de que o que é vivo na
consciência do grupo desaparecerá com os membros deste últi-
mo. Aliás, em páginas que mereceriam uma outra atenção e uma
outra apresentação, que estas rápidas e alusivas evocações não
permitem, Halbwachs pode assim opor a memória coletiva à

24 25

· ,;_,p11111111111m11
,,,,J,11,l1111m1
história, o "foco da tradição" ao "quadro dos acontecimentos" 7 , monumento de recordação.
a "lembrança" (corrente de pensamento contínua no seio do gru-
po social) ao "conhecimento" (descontínuo e exterior ao pró- Por conseguinte, apoiando-nos sobre essa oposição en-
prio grupo). Em compensação, a história resiste ao tempo; o tre "memória coletiva" e "história" para considerar os objetos
que não pode a memória. culturais, poderíamos adiantar, a título de hipótese. que ~stes
últimos vão no sentido não de um antagonismo, mas antes de
Se a distinção efetuada por Halbwachs entre "memória urna conjunção, de um entrecruzamento, de uma síntese entre
coletiva" e "história" permite desse modo compreender melhor memória coletiva e história.
por que registrar ou ainda lembrar um acontecimento não é obri-
gatoriamente ipso facto um fato de memória social, ela nos in- Trata-se aí de uma simples hipótese de trabalho, mas ela
troduz acima de tudo em uma problemática dos objetos cultu- não me parece sem interesse no quadro de uma reflexão sobre o
rais considerados como operadores de memória social. Eu me papel da memória. Ela torna com efeito a adiantar que os obje-
explico. tos culturais abrem a possibilidade de um controle da memória
social; que esse controle está de fato estreitamente ligado ao
1 Evoquemos novamente o exemplo da emissão funcionamento formal e significante desses objetos; e que, por
televisionada que "representava" a posse do Presidente da Re- último, ele é um fato social não desprezível. Eis, a meu ver, o
pública. Compreenderemos muito facilmente a questão política que merece ser examinado; embora não seja questão de preten-
der encarar, no estado atual, a verificação dessa hipótese, seria
1 e a importância sociológica que estão ligadas à possibilidade de
"casar" história e memória coletiva: de entrecruzar, de aliar a em compensação uma atitude bastante heurística voltar-se so-
bre aquilo que autoriza sua formulação.
resistência ao tempo que caracteriza uma e o poder de impres-
são - vivacidade - da outra. Assim, o acontecimento, como acon-
tecimento "memorizado" poderá entrar na história (a memória É o que veremos a propósito da imagem.
do grupo poderá perdurar e se estender além dos limites físicos
do grupo social que viveu o acontecimento); mas enquanto "his- A imagem, operador de memória social
tórico". ele poderá se tomar, em compensação, elemento vivo
de uma memória coletiva. Esta última adquirirá então uma ou- Por que a imagem? Porque ela oferece - ao menos em
tra dimensão: aquela, se podemos dizer, de uma memória um campo histórico que vai do século XVII até nossos dias -
societal. Como esse entrecruzamento se opera? Qual é o seu uma possibilidade considerável de reservar a força: a imagem
instrumento? O acontecimento - no caso, a cerimônia do Panteão representa a realidade, certamente; mas ela pode também con-
-, por ser representado (o que é mais e outra coisa do que ser servar a força das relações sociais (e fará então impressão sobre
simplesmente registrado ou difundido), tomará o valor de uma o espectador).
espécie de ponto originário da comunidade social: o aconteci-
mento se dará em um momento singular do tempo; mas a essên-
L. Marin aliás mostrou muito bem como, por exemplo,
cia do ato se encontrará para sempre na própria estrutura do
no funcionamento do poder absoluto na idade clássica, o retrato
objeto que o representará (a emissão televisionada, por exem-
do rei expõe em uma viva pintura as qualidades reais descritas -
plo)'. Ele se tornará indissociavelmente documento histórico e

26 27

:.,;:,11·11'11111';1. .
':,i,l,,,,,1),1!,1
l",l''ijl~
1 i, L
1.J...llil!ilUlliilllHllllllllH'

"contadas" - no relato de suas ações; de tal maneira que estas se se poderia esquecer este ponto - com que 2 isager:-. c,:'."'.'-r:'~'e
transformam em substância real. Do relato desse acontecimento um programa de leitura: ela assinala um cerw lugar ao ópecD-
à imagem do rei, o que era o menos representável, o menos dor (ou melhor: ela regula uma série com a p2:ss2g.:m ce uma a
memorizável (a força), torna-se o mais presente na ocasião da outra posição de receptor no curso da recep,;-2.c e: cc:2 é'::'C:e
representação do personagem histórico do rei. Posso somente "rentabilizar" por si mesma a competência semió,i-.: 2 e: , . : :c·
aqui remeter às análises de Marin no que concerne ao modo desse espectador 10 • Este é um fato bastante conhecido pek,s
como esse uso das imagens se apóia sobre seu próprio funcio- publicitários.
namento9.
Se procuramos o que serve de fundamento à eficácia sim-
Adicionemos que poderíamos, em contraponto a essa bólica da imagem, duas características semióticas parecem en-
análise e de um modo comparável, mostrar como a publicidade, tão bastante consideráveis.
desta vez, utiliza a imagem em complementaridade com o enun-
ciado lingüístico para apresentar - tornar presentes - as qualida- Em primeiro lugar, uma imagem pode ser compreendida
des de um produto e conduzir assim o leitor a se recordar de ou recebida segundo dois níveis diferentes. Cada um desses dois
suas qualidades, mas também a fazê-lo se posicionar em meio níveis possui regras de funcionamento que lhes são, ao menos
ao grupo social dos consumidores desse produto; a se situar, a parcialmente, próprias. Por exemplo, os códigos perceptivos
se representar esse lugar. No entanto, desenvolver essas análi- mudam menos rápido que os códigos iconológicos: por isso,
ses nos levaria longe demais e demandaria muito tempo; note- ficamos sensíveis a c_omposições ou representações de quadros
mos então somente que esses dois exemplos indicam, para cer- da Renascença (ou de publicidades do início do século) de que
tos períodos e segundo diferentes modalidades, a eficácia da ignoramos parcialmente a significação: a potência perceptiva
imagem em poder se inscrever em uma problemática da memó- perdura, enquanto as significações se perdem. Resta uma orga-
ria societal. nização formal que continua a constituir um dispositivo.

Eis o que nos conduzirá talvez a encarar a imagem sob Sabemos, desde o artigo em muitos aspectos fundador
um prisma particular: menos a nos interessar pelo que a imagem de E. Benveniste, aparecido em Semiótica em 1969, que exis-
pode representar (os objetos do mundo), ou ainda pela informa- tem dois modos de significação: um semiótica, fundado sobre o
ção que ela pode oferecer, nem mesmo pelo modo como ela reconhecimento de unidades de significação previamente defi-
efetua um ou outro desses processos, do que a prestar atenção à nidas (eu reconheço o sentido das palavras), outro semântico e
maneira como certa imagem concreta é uma produção cultural - meta-semântico, fundado sobre a compreensão do sentido do
quer dizer, a levar em consideração sua eficácia simbólica. Com texto em sua totalidade (eu compreendo o sentido do conjunto
efeito, aquele que observa uma imagem desenvolve uma ativi- de uma frase, por exemplo) e que inclui os mecanismos da
dade de produção de significação; esta não lhe é transmitida ou enunciação. Benveniste adianta que a imagem funciona antes
entregue toda pronta. Esse estado de coisas abre, como aliás de tudo sob o modo semântico e que ela não pode conjugar os
insistem em nos fazer observar, a uma liberdade de interpreta- dois modos de significação (somente a língua poderia operar
ção (o que quer dizer que o conteúdo "legível", ou antes "dizível", essa conjunção) e há um largo acordo entre os semioticistas para
pode variar conforme as leituras); mas o que faz também - e não reconhecer que a imagem depende de uma abordagem textu-

28 29
al 11 • De minha parte, resumirei as coisas como segue: existe Esse apagamento da passagem dos componentes à tota-
uma espécie de aproximação entre as oposições formais (de for- lidade tem por conseqüência essencial interditar que se reen-
ma, de cor e de topologia) e a instância textual e enunciativa: na contre a maneira como o efeito estético e significante é produzi-
publicidade, por exemplo, certa relação de cor ou certo contras- do. A génese se apaga; a (re )construção de uma origem mítica é
te de forma retém o olhar e, ao mesmo tempo, quer nos dizer da aberta, com mais um efeito de força viva. Então, começa aderi-
qualidade que distingue um produto dos outros. Essa aproxima- va indefinida (e não infinita) que caracteriza toda interpretação
ção escamoteia - se posso dizê-lo - um nível intermediário que de imagem; não obstante, se nos volvemos para essa deriva,
teria por homólogo na linguagem o nível das palavras; a lingua- percebemos que essa busca, essa "reprodução" da significação
gem supre aliás essa escamoteação (pode-se sempre descrever do dispositivo, se faz segundo o próprio programa trazido pelo
uma imagemr=. Em compensação, essa aproximação possui a dispositivo. Do mesmo modo que a recitação do mito ou os ges-
vantagem de trabalhar sobretudo com os sistemas de oposição e tos litúrgicos seguem a estrutura do mito ou do ritual, cada lei-
simultaneamente com as relações entre emissor, receptor, men- tura é em si mesma uma pequena recitação. Momento central,
sagêm ê contexto. É porque a imagem é antes de tudo um dispo- ato que fornece à imagem sua razão de ser, que está fora do
sitiYo que pertence a uma estratégia de comunicação: dispositi- espaço da imagem, assim como, aliás, o acontecimento memo-
vo que tem a capacidade, por exemplo, de regular o tempo e as rizado.
modalidades de recepção da imagem em seu conjunto ou a emer-
gência da significação 13 • E é um dispositivo, lembremo-nos, que Conclusão
por natureza é durável no tempo.
Eis então o que leva a pensar a imagem como um opera-
Em segundo lugar, a imagem é um operador de dor de memória social no seio de nossa cultura. Assim, volte-
simbolização. Conviria observar, a esse propósito, que a difi- mos a nossa hipótese. Com efeito, se a imagem define posições
culdade, conhecida por todos os semioticistas da imagem, em de leitor abstrato que o espectador concreto é convidado a vir
segmentar esta_ se deve menos a sua má-formação semiótica do ocupar a fim de poder dar sentido ao que ele tem sob os olhos,
que: à aproximação que eu assinalava logo acima entre oposi- isso vai permitir criar, de uma certa maneira, uma comunidade -
ções formais e instância textual e enunciativa, entre a um acordo - de olhares: tudo se passa então como se a imagem
matêrialidade e o sentido. Entrecruzando esses dois níveis, a colocasse no horizonte de sua percepção a presença de outros
imagem teria assim capacidade para integrar os elementos que a espectadores possíveis tendo o mesmo ponto de vista. Domes-
compõem em uma totalidade. É porque compreenderíamos o mo modo como - explicava Halbwachs - a reconstrução de um
sentido global antes de reconhecer a significação dos elemen- acontecimento passado necessita, para se tornar lembrança, da
tos; e atingiríamos primeiro o efeito dessa integração; estaría- existência de pontos de vista compartilhados pelos membros da
mos sob o charme desse efeito formal, estético; toda imagem comunidade e de noções que lhes são comuns 14 ; assim a ima-
pareceria assim se apresentar como única origem dela mesma gem, por poder operar o acordo dos olhares, apresentaria a ca-
assim como de sua significação; e enfim, ela introduziria uma pacidade de conferir ao quadro da história a força da lembran-
diferença de natureza, um salto qualitativo entre os componen- ça. Ela seria nesse momento o registro da relação intersubjetiva
tes (os que a análise pode repertoriar) e ela mesma considerada e social.
em sua totalidade.

30 31

:--•::1:11i::11111111111!1m--■
Restaria, então e enfim, considerar como a imagem in-
tervém concretamente no estabelecimento de uma forma de
memória societal própria à nossa época e à nossa sociedade; e
sobretudo, qual é a relação que se instaura entre o que podería-
mos chamar "a memória interna" (aquela situada nos membros
do grupo) e "a memória externa" (aquela dos objetos culturais),
mas isto seria perguntar sobre as características das estruturas
mentais de nossa cultura e se engajar na psicologia histórica15 •
BIBLIOGRAFIA

Jean Davallon

ALBERA, F. (1980), "Introduction à S. M. Eisenstein",


Cinématisme: peinture et cinéma. Bruxelas, Ed. Complexes.

BENVENISTE, E. (1974), Problemes de linguistique générale,


t. 2, Paris, Gallimard.

DAVALLON, J. (1981), "Les fêtes révolutionnaires: une


politique du signe", Traverses, 21-22, pp. 187-195.

_ _ (1983a), "Réfléxions sur l'éfficacité symbolique des


productions culturelles", Langages et Société, nº 24, pp. 37-52.

_ _ (1983b). "Voyages au pays d' Air France: !'espace de la


"lecture" dans l'image", Actes sémiotiques, Documents, V. 49.

HALBWACHS, M. (1950), La mémoire collective, Paris, Presses


Universitaires de France.

MARIN, L. (1950), Le portrait du roi, Paris, Ed. de Minuit.

METZ, Ch. (1975), "Le perçu et !e nommé", in: Vers une


32 33
esthétique sans entraves: mélanges offerts à Mikel Dufrenne,
Paris, Union Générale d'Édition (10/18, Coll. Esthétique, 931 ).

MEYERSON, I. (1948), Les fonctions psychologiques et les


oeuvres, Paris, Vrin.
NOTAS
SCHEFER, J. L. (1969), Scénographie d'un tableau, Paris, Ed.
du Seuil.

YATES, F. A. (1975), L'art de la mémoire, Trad. do inglês [The


art ofmemory, 1966] por D. Arasse, Paris, Gallimard.

1.. Como assinala Yates, 1966. Lembremos que o autor define assim a arte
da memória: "Esta arte visa permitir a memorização graças a uma
técnica de 'lugares' e 'de imagens' que impressionam a memória".

2. Penso particularmente na "cerimónia da memória" que se desenrolou


durante as jornadas de posse de F. Mitterand, em 21 de março de 1981.
O que está então em jogo, para além da referência declarada ao cerimo-
nial republicano herdado em grande parte das festas revolucionárias
(ou ao menos de sua ideologia), é o estatuto que se atribui aos meios de
difusão e de representação do acontecimento - no caso: à emissão
televisionada desta cerimónia.

3. Entendo por "objetos culturais" o conjunto dos objetos concretos (li-


vros, escritos, imagens, filmes, arquiteturas, etc.) que resultam de uma
produção formal e que são destinados a produzir um efeito simbólico.
Sobre esse ponto ver Davallon, 1983.

4. Halbwachs, 1950, p. 70.

5. Ibid., p. 13: "Não basta reconstruir peça por peça a imagem de um


acontecimento passado para se obter uma lembrança. É preciso que
essa reconstrução se opere a partir de dados e de noções comuns que
se encontram tanto em nosso espírito quanto no dos outros, porque
eles passam sem cessar destes àquele e reciprocamente, o que só é
possível se eles fazem e continuam afazer parte de uma mesma socie-
dade. Somente assim podemos compreender que uma lembrança possa
ser ao mesmo tempo reconhecida e reconstruída".

34 35
- '°' ::-:emória coletiva: "é uma corrente de pensamento contínllo, de Ltma 13. Para a análise detalhada, ver: Davallon, 1983.
_ •;::,;;iidade qLte não tem nada de artificial, pois ela só retém do pas-
,_, qLte dele ainda é i·il·o mi capa: de viver na consciência do
:·:,_~-' que o mantém" Ibid., p. 70. 14. Halbwachs insiste várias vezes sobre a partilha de um ponto de vista e
sobre a comunhão dos dados de referência como fundamentos da me-
mória coletiva, por exemplo: op cit, pp. 3, 48-53, 61, etc._
- Ibid.. pp. 74-79, Na seqüência da exposição. empregarei o termo "es-
pectador um movimento que ultrapassa a simples compreensão do es-
Detáculo proposto e se faz produtora de sentido. Composição, monta- 15. Com relação à memória coletiva. a memória individual estaria na ver-
gem, ritmo conduzem da visão à compreensão", F. Albera, 1980, p. 9. tente oposta àquela em que se situa o objeto cultural. Uma abordagem
que se refira à psicologia histórica seria então possível (Meyerson, 1948).

S. Assim acontece com a representação do juramento no momento da


Revolução Francesa ou ainda com a representação do herói revolucio-
nário: J. Davallon, 1981.

9. "De um lado, então, um ícone qLte é a presença real e 'viva' do monar-


ca; de oLttro, um relato que é seu túmLtlo subsistindo para sempre. A
representação como poder, o poder como representação são um e ou-
tro um sacramento na imagem e um 'monumento' na linguagem, onde,
cambiando seus efeitos, o olhar deslumbrado e a leitura admirativa
consomem o corpo radioso do monarca, um recitando sua história em
seu retrato, o outro contemplando uma de suas perfeiç{Jes no relato
que eterniza a manifestação". L. Marin, 1981, p.

10. Esta particularidade da imagem foi notavelmente bem estudada pela


sê'midogia do cinema. Como indica F. Albera, é ela que S. M. Eisenstein
:i::-s:;::-..2. ;e~.: te:w:, . .~:,:e.n;.:..:-ismo: ··o que caracteriza efetivamente es-
-,. ___ -~·=:-- ~" Sr!rn: Toulouse-Lautrec, Van Gogh,
___ ~ ~ :_:-_:,::;. ,__ :::,:, _; es::1dar para compreender esta no-
. .. __ _ é': é-:,, s:'"; consrrução impõe ao espectador um
__ .. , '".:-_:~.:s.,,: a simples compreensão do espetáculo pro-
' ,-, _---:~ ;;r, durora de sentido. Composiçcio, montagem, ritmo
1:,::,:em da risão à compreensão", F. Albera, 1980, p. 9.

l
11. Esse artigo de E. Benveniste foi retomado em Problemas de lingiiística
geral, t. 2., 1974. Essa dominância do modo semântico e meta-semân-
tico foi reconhecida bem cedo pela semiologia (J .L. Schefer, 1969; R.
Barthes, L. Martin, etc.), depois apoiada e corroborada pelas análises
da semiótica visual que se referem à teoria de A. J. Greimas.

12. Este ponto exigiria uma análise precisa e circunstanciada. Encontrare-


mos uma primeira e indispensável abordagem em Metz, 1975. 1
36 37
MEMÓRIA GREGA
,,~-•·''':

Escolhi propor-lhes, para introduzir o debate desta ma-


nhã, não uma descrição de nossas próprias práticas memoriais,
uma análise de nossa própria gestão da memória, mas uma in-
terrogação envolvendo aquelas da Grécia antiga, da Grécia clás-
sica. Observar em que posição particular os gregos se coloca-
vam com relação à sua própria memória, à gestão que eles podi-
am fazer dela. Serei rápido, portanto esquemático, e aqueles
que conhecem esses problemas queiram desculpar a brutalida-
de deste esboço grosseiro. A discussão permitirá, espero, voltar
a todos os pontos que se desejar que eu retome.

Os gregos apresentam um problema com sua memória,


um problema muito simples. Não é possível para o não-grego,
digamos, para o bárbaro (o que não é um termo necessariamen-
te negativo), reconhecer-se grego sem referência a toda uma
série de relatos com todo seu peso, seu valor normativo, sejam
eles retomados coletivamente ou não, e sejam eles fixados ou
não em formas "literárias" precisas: o Mito. Mas o mito é tam-
bém algo de muito organizado, em uma forma codificada, diga-

39

1111111111 1 - - - - - - - -

: l l:!1li !Jll l!l l~III


mos, a epopéia. E imediatamente coloca-se o problema funda- em resumo, valores políticos e sociais, no qual nos situamos, as
mental. Falo certamente aqui situando-me como observador em coisas se apresentam de outro modo e a contradição aparece.
uma Atenas do século V sempre tão mítica e sempre tão neces-
sária. Se pretendemos, por exemplo, fazer a guerra, a guerra
da cidade, como o fazia Aquiles, arriscamos com os nossos nas
Se, como esse menino grego, sou educado através da piores dificuldades. Observemos o modo como as coisas se pas-
salmodia de Homero, ou se, como grande diva percorrendo as sam nesse texto célebre (analisado por P. Vida! Naquet) 1 , a cena
cidades gregas, interpreto o poeta durante manifestações coleti- dos escudos em os Sete contra Tebas 2 • O guerreiro do mito é
vas, festas que organizam e estruturam o grupo, não produzo atingido pelo menos, esse furor que possui sua alma e o rende.
uma epopéia. Quero dizer com isso que aquele que recita o tex- Ele é invadido pela ira de matar, orientado para realizar os gran-
to épico pode apenas retomar indefinidamente uma memória des feitos que são objeto do canto épico. Isto o coloca em con-
organizada em um texto que se tornou fechado e em relação ao tradição total com as regras do grupo social no quadro da cida-
qual ele mantém uma relação que podemos chamar demoníaca, de, regras que supõem uma guerra racional e democrática. A
que ultrapassa então as estruturas da memória humana, uma re- igualdade dos combatentes é aí fundamental: não se trata de
lação que o faz entrar em contato, de maneira quase possessória, combater para se fazer ilustre no combate mas de defender a
com o próprio poeta ou alguma coisa que resta dele e se trans- cidade com os companheiros de linha, cada um solidário um
mite por sua palavra. Por quê? Porque o poeta, ele mesmo, o com o outro, na falange. Há verdadeiramente uma contradição
aedo, não possui fala própria. No momento em que recita as inevitável em uma memória que estabelece ao mesmo tempo o
proezas dos heróis, o aedo só o faz porque a Musa fala através sistema categorial que nos define como partidários de nosso
dele, por ele. Quer dizer que não há possibilidade de produção grupo, e valores sociais que nos colocam em oposição a ele.
da memória na cidade fora da presença do poeta épico, diga- Isto teve como efeito imediato na produção cultural, para reto-
mos, para ser breve, de Homero. Os gregos apresentam, então, mar a fórmula proposta logo acima, a tragédia. A tragédia na
como principal meio de reconhecimento de si mesmos, um dos qual vemos estabelecidas ao mesmo tempo a necessidade do
textos que se produziram e se fixaram fora de seu domínio e que mito e as dificuldades que ele provoca. Não podemos nos livrar
eles são forçados a repetir sem meios de modificá-los em fun- do Édipo nem se acomodar com ele. De onde a necessidade de
ção de novas exigências sociais. Textos que lhes fornecem as interrogar o mito em função do sistema de valores da cidade
categorias de percepção do mundo no qual se encontram. O contemporânea, já que não podemos levá-lo tal qual em consi-
garoto educado em Atenas aprende música, recita a epopéia, e deração.
sabe assim definir o mar em oposição à terra, a tempestade em
oposição ao céu sereno, etc. Ele recebe toda uma série de meios Por outro lado, existe a necessidade de se produzir uma
de categorizar o real, que o situam como grego. Em contraste memória, um memorável válido para o tempo da cidade, e, de
com os vizinhos persas, que possuem calças, modos de viver certa forma, nos trabalhos de memória, estamos sempre em ri-
diferentes, que percebem as coisas diferentemente, etc. O pro- validade com Homero. Quando, por exemplo, as primeiras prá-
blema aí não é maior, isso funciona de modo bastante imediato. ticas historiadoras aparecem (F. Hartog, ausente da França, es-
Mas a partir do momento em que olhamos não mais as categori- taria melhor posicionado do que eu para falar disso), vemos
as de percepção da realidade, mas o sistema de valores éticos, bem que a necessidade da pesquisa vem da necessidade de fa-

40 41
1mm11.-----------------------------------------------------------~

bricar um memorável adequado ao mundo dos contemporâne- mente um guerreiro em presença de Atena. O que faz com que
os. Ao mesmo tempo coloca-se a questão da enunciação. Quem uma representação desse gênero seja ao mesmo tempo válida
fala e com que direito? O poeta com suas garantias não está para o herói e para a situação na qual o combatente da cidade, o
mais aí para fazê-lo em meio aos seus. Aquele que produz o hoplita, é declarado comparável aos heróis, com uma verdadei-
memorável para a cidade, assim, tem sempre, de certo modo, a ra metaforização interna à imagem. Podemos ir ainda mais lon-
nostalgia da epopéia definitivamente impossível. Quando a ci- ge, nesse sentido, adicionando por exemplo no dispositivo car-
dade produz um discurso adequado pelo qual ela se funda, fa- regador/carregado, em presença de Atena, um leão que desfila
bricando seu próprio memorável mítico, quando ela pratica a com os personagens da imagem, ao fundo do conjunto. O valor
oração fúnebre, ela o faz em referência aos valores do epos (N. metafórico da imagem é assim assinalado do interior do próprio
Loraux, de novo aqui, seria bem melhor que eu para falar dis- dispositivo, o leão não tendo outra significação possível em um
so). O orador oficial narra então a grandeza de Atenas pela gran- contexto como esse. Aliás, o ritual dos funerais públicos não
deza de seus guerreiros mortos ao modo dos heróis, incorporan- tinha rigorosamente nada o que fazer com o que era representa-
do os valores que servem a isso. do nas imagens desse tipo (eu deveria, desculpem, tê-lo dito no
começo), quer dizer com esse transporte individual do cadáver
incluído no universo épico. Os mortos celebrados pelo ritual
Para não multiplicar os casos de figura, gostaria agora
ateniense são anónimos, coletivamente honrados, etc. e disso a
de observar o modo como a imagem pode se inserir nesse dis-
imagem não diz nada. Podemos assim ver como a imagem pode
positivo de produção (seguindo desta vez F. Lissarrague que
jogar nessa estratégia da memória onde as margens de mano-
não pode estar aqui hoje. Espero não trair ninguém, enfim não
bras são bastante reduzidas. Visto que as questões de enunciação
muito, fazendo falar tantos amigos ausentes!). A imagem possui
não se colocam mais no interior do novo conjunto onde a ima-
uma vantagem fundamental: ela representa e ao mesmo tempo
gem joga com suas condições específicas de produção, torna-se
produz sentido. De outro modo, quando a imagem é representa-
possível praticar uma política de memória mais flexível nesse
ção, ela pode representar um guerreiro da cidade, o hoplita car-
regando o corpo de seu companheiro morto. Através de alguns mundo, somando-se tudo, tão complexo que é o domínio gre-
elementos do dispositivo icónico, é possível mostrar que o guer- go. Penso que seria necessário desdobrar um pouco mais tudo
isso diante de vocês.
reiro morto é um herói parecido com o da epopéia, com o guer-
reiro épico: a forma do escudo, o tipo de penteado, por exem-
plo. A imagem pode conter nomes, Aquiles, Ajax, com uma E isso para remeter, certamente, dentro de uma perspec-
referência evidente aos dados épicos. Ela é representação ou tiva antropológica, que eu defendia ontem em uma outra ofici-
motor de discursos, ocasião assim de reatualizar a memória para na, à nossa própri:i prática memorial, no sistema com memória
retomar o que estava dito antes, a memória dos valores do epos. institucional que é o nosso. Temos historiadores, universidades
Em uma cena desse gênero, podemos introduzir Atena. A deu- onde se ensina a história. Gostaria simplesmente que nos inter-
sa, sabemos, mantém uma relação específica com os heróis do rogássemos, enquanto produtores de memória, com relação ao
ciclo troiano: ela pode então fazer parte dessas representações. funcionamento grego da prática memorial. E gostaria, para ter-
Se suprimimos as indicações de nomes, Atena continua reco- minar e à guisa de incitar a discussão, de me perguntar se o fato
nhecível graças aos elementos que a definem (armas, coruja, de que a primeira memória heróica produzida no curso do esta-
etc.) mas o guerreiro carregador ou carregado, torna-se simples- belecimento de nossa história republicana gire em torno de per-

42 43

, li'rt:l!llii/111 H~!t!Hl!I n
sonagens como Vercingétorix ou Joana d' Are, que eu diria
massivamente "míticos" à grega, é um acaso ou se isso coloca
questões sobre nossa própria gestão da memória no quadro da
instituição que a produz. BIBLIOGRAFIA

Jean-Louis Durand

VIDAL-NAQUET, P. (1978), "Les boucliers des héros ... ",


Revue des Études grecques, no XVI.

ESCHYLE. Les Sept contre Thebes, texto elaborado e traduzi-


do por Paul Mazon, Paris, Les Belles Lettres, la ed., 1963; re-
vista em 1966.

44 45
NOTAS

1. Vidal-Naquet, P., 1978. Les boucliers des héros ... , Revue des Études
grecques, no XVI.

2. Eschyle. Les Sept contre Thebes, texto elaborado e traduzido por Paul
Mazon, Paris, Les Belles Lettres, la ed., 1963, revista em 1966.

47
PAPEL DA MEMÓRIA

Não pretendo fornecer um levantamento exaustivo do


trabalho da manhã, nem resumir as três apresentações de que
nos beneficiamos. Gostaria simplesmente de dar a tonalidade
delas, acentuando o que me pareceu ser as nervuras principais
do debate.

De início, uma observação de conjunto sobre as três apre-


sentações: Pierre Achard trabalha em sociolingüística e em aná-
lise de discurso, Jean Davallon em semiótica e sociosemiótica
do espaço e Jean-Louis Durand efetua pesquisas semióticas so-
bre o gestual na antiguidade ateniense clássica.

Corríamos o risco então de ter discussões agradavelmente


paralelas, sem ponto de contato: por exemplo, uma sobre os
textos e os discursos, e outra sobre a imagem. De fato, a questão
do papel da memória permitiu um encontro efetivo entre temas
a princípio bastante diferentes. Esta questão conduziu a abordar
as condições (mecanismos, processos ... ) nas quais um aconteci-
mento histórico (um elemento histórico descontínuo e exterior)
49
é suscetível de vir a se inscrever na continuidade interna, no rações e na discussão, sobre a especificidade da ordem propria-
espaço potencial de coerência próprio a uma memória. mente lingüística (definida por exemplo como a da variação
combinatória, à qual J.-C. Milner se referiu em sua apresenta-
ção), em relacão à ordem do discursivo, e afortiori em relação
Memória deve ser entendida aqui não no sentido direta-
às do icônico, do simbólico ou da simbolização.
mente psicologista da "memória individual", mas nos sentidos
entrecruzados da memória mítica, da memória social inscrita
em práticas, e da memória construída do historiador. O risco O fato de que possa existir localização de traços distinti-
evocado de uma vizinhança flexível de mundos paralelos se deve vos e de oposições pertinentes na esfera do icônico, por exem-
de fato à diversidade das condições supostas com essa inscri- plo, não conduziu ninguém a supor que, mesmo para uma
ção: é a dificuldade - com a qual é preciso um dia se confrontar sincronia dada, haveria universais do icônico (pessoalmente, a
- de um campo de pesquisas que vai da referência explícita e impensabilidade de uma sintaxe do icônico me parece marcada
produtiva à lingüística, até tudo o que toca as disciplinas de pela inexistência da negação e da interrogação no interior da
interpretação: logo a ordem da língua e da discursividade, a da imagem). A questão de uma possível combinatória culturalmente
"linguagem", a da "significância" (Barthes), do simbólico e da determinada dos segmentos gestuais (a propósito da qual J.-L.
simbolização ... Durand mencionou certos trabalhos etnológicos americanos re-
centes) coloca provavelmente um problema bem diferente, mas
não desemboca mais em impossíveis universais gestuais.
Não é de se admirar, nessas condições, que a idéia de
uma fragilidade, de uma tensão contraditória no processo de
inscrição do acontecimento no espaço da memória tenha sido Concebemos desde então que o fato incontornável da
constantemente presente, sob uma dupla forma-limite que de- eficácia simbólica ou "significante" da imagem tenha atraves-
sempenhou o papel de ponto de referência: sado o debate como um enigma obsediante, e que, por seu lado,
os fatos de discurso, enquanto inscrição material em uma me-
mória discursiva, tenham podido aparecer como uma espécie
- o acontecimento que escapa à inscrição, que não chega
de problemática-reserva. Essa negociação entre o choque de um
a se in'screver;
acontecimento histórico singular e o dispositivo complexo de
uma memória poderia bem, com efeito, colocar em jogo a nível
- o acontecimento que é absorvido na memória, como se
crucial uma passagem do visível ao nomeado, na qual a imagem
não tivesse ocorrido. seria um operador de memória social, comportando no interior
dela mesma um programa de leitura, um percurso escrito
discursivamente em outro lugar: tocamos aqui o efeito de repe-
tição e de reconhecimento que faz da imagem como que a reci-
No que concerne aos múltiplos registros evocados aci- tação de um mito. Na transparência de sua compreensão, a ima-
ma, que formam uma continuidade problemática entre a lingüís- gem mostraria como ela se lê, quer dizer, como ela funciona
tica e as disciplinas de interpretação (restando saber em que enquanto diagrama, esquema ou trajeto enumerativo. Refiro-
medida a própria lingüística é ou não uma disciplina de inter- me a tudo o que Jean Davallon adiantou a esse respeito.
pretação), um acordo muito amplo se manifestou, nas apresen-

50 51
ill!ll
1
!

Haveria assim sempre um jogo de força na memória, sob


Tocamos aqui um dos pontos de encontro com a questão
o choque do acontecimento:
da memória como estruturação de materialidade discursiva com-
plexa, estendida em uma dialética da repetição e da regulariza-
ção: a memória discursiva seria aquilo que, face a um texto que - um jogo de força que visa manter uma regularização
surge como acontecimento a ler, vem restabelecer os "implíci- pré-existente com os implícitos que ela veicula, confortá-la como
tos" (quer dizer, mais tecnicamente, os pré-construídos, elemen- ·'boa forma", estabilização parafrástica negociando a integração
tos citados e relatados, discursos-transversos, etc.) de que sua do acontecimento, até absorvê-lo e eventualmente dissolvê-lo;
leitura necessita: a condição do legível em relação ao próprio
legível. Ora, acontece que esta é uma das questões cruciais atu- - mas também, ao contrário, o jogo de força de uma
almente abordadas pela análise de discurso: uma discussão aberta "desregulação" que vem perturbar a rede dos "implícitos".
a esse respeito, que - sem ser puro 11egócio de butique - reveste
apesar de tudo um caráter relativamente "técnico". A questão é Em relação com a questão da regularização, a da repeti-
saber onde residem esses famosos implícitos, que estão "ausen- ção (dos itens lexicais e dos enunciados) prolongou o debate: a
tes por sua presença" na leitura da seqüência: estão eles dispo- repetição é antes de tudo um efeito material que funda comuta-
níveis na memória discursiva como em um fundo de gaveta, um ções e variações, e assegura - sobretudo ao nível da frase escri-
registro do oculto? P. Achard levanta a hipótese de que não en- ta1 - o espaço de estabilidade de uma vulgata parafrástica pro-
contraremos nunca, em nenhuma parte, explicitamente, esse dis- duzida por recorrência, quer dizer, por repetição literal dessa
curso-vulgata do implícito, sob uma forma estável e sedimentada: identidade material.
haveria, sob a repetição, a formação de um efeito de série pelo
qual uma "regularização" (termo introduzido por P. Achard) se Mas a recorrência do item ou do enunciado pode tam-
iniciaria, e seria nessa própria regularização que residiriam os bém (este é um ponto introduzido por Jean-Marie Marandin na
implícitos, sob a forma de remissões, de retomadas e de efeitos discussão) caracterizar uma divisão da identidade material do
de paráfrase (que podem a meu ver conduzir à questão da cons- item: sob o "mesmo" da materialidade da palavra abre-se então
trução dos estereótipos). Mas, sempre segundo P. Achard, essa o jogo da metáfora, como outra possibilidade de articulação
regularização discursiva, que tende assim a formar a lei da série discursiva ... Uma espécie de repetição vertical, em que a pró-
do legível, é sempre suscetível de ruir sob o peso do aconteci- pria memória esburaca-se, perfura-se antes de desdobrar-se em
mento discursivo novo, que vem perturbar a memória: a memó- paráfrase.
ria tende a absorver o acontecimento, como uma série matemá-
tica prolonga-se conjeturando o termo seguinte em vista do co-
Esse efeito de opacidade (correspondente ao ponto de
meço da série, mas o acontecimento discursivo, provocando
divisão do mesmo e da metáfora), que marca o momento em
interrupção, pode desmanchar essa "regularização" e produzir
que os "implícitos" não são mais reconstrutíveis, é provavel-
retrospeciivamente uma outra série sob a primeira, desmascarar
mente o que compele cada vez mais a análise de discurso a se
o aparecimento de uma nova série que não estava constituída
distanciar das evidências da proposição, da frase e da estabili-
enquanto tal e que é assim o produto do acontecimento; o acon-
dade parafrástica, e a interrogar os efeitos materiais de monta-
tecimento, no caso, desloca e desregula os implícitos associa-
gens de seqüências, sem buscar a princípio e antes de tudo sua
dos ao sistema de regularização anterior.

52 53

] pmn11 --~-
IIMIIII

significação ou suas condições implícitas de interpretação. gestos de designação antes que sobre os designata, sobre os pro-
cedimentos de montagem e as construções antes que sobre as
Trata-se, de outro modo, de retirar-se provisoriamente, significações? A questão da imagem encontra assim a análise
de discurso por um outro viés: não mais a imagem legível na
taticamente, da questão do sentido, sabendo ao mesmo tempo
transparência, porque um discurso a atravessa e a constitui, mas
que a questão da interpretação é incontornável e retornará sem-
pre. A esse propósito, devo fazer um esclarecimento a respeito a imagem opaca e muda, quer dizer, aquela da qual a memória
da fala de Sylvain Auroux, que me atribuiu uma controvérsia "perdeu" o trajeto de leitura (ela perdeu assim um trajeto que
com J.-C. Milner sobre a questão de saber se ele se estimava ou jamais deteve em suas inscrições).
não ser colega de Beauzée: parece-me útil explicar um pouco
de que se trata! A questão concerne de fato ao estatuto da lin- A imagem muda é por exemplo o choque opaco de uma
güística frente às disciplinas de interpretação. Eu tinha pergun- imagem de vaso grego: a arquelogia possui apenas o olho, quer
tado a Vidal-Naquet (a partir da alusão ao artigo de Nicole dizer, imagens e textos, sem coincidência, e não, como a antro-
Loraux "'Tucídides não é um colega", muito citado no decorrer pologia de hoje, o "a mais" do ouvido (a voz, a "trilha sonora").
dessas jornadas), se, para ele, Tucídides, sem ser seu colega, era O que evoco aqui remete à apresentação de J.-L. Durand, que
não obstante um historiador; questão à qual P. Vidal-Naquet res- mostrou como a epopéia heróica grega fazia irrupção nas cenas
pondeu: "Sim, certamente!", o que implica que não há começo visuais da democracia ateniense (em particular as cenas funerá-
histórico assinalável para a disciplina histórica, na medida em rias), através de telescopias burlescas por seu anacronismo (mais
que a história é uma disciplina de interpretação: para um físico, ou menos como se mostrássemos Vercingétorix a bordo de um
por exemplo, o problema de saber se Aristóteles é um colega avião a jato).
não se coloca. Aristóteles não é para ele nem um colega, nem
um físico. Minha questão a J.-C. Milner concernia então de fato No outro extremo, o choque opaco do acontecimento
à posição da lingüística a respeito da interpretação. Perguntar- televisual é também algo que não se inscreve, na medida em
se se há ou não um momento histórico assinalável em que se que está sempre "já lá", no retorno de um paradigma pesado
pode dizer de alguém ''é um lingüista", não é então colocar um que se repete no interior de sua aparição instantânea: por exem-
mero poblema de datação, mas levantar a questão de saber se a plo (intervenção de Maurice Mouillaud), a história do submari-
lingüística é uma disciplina puramente "experimental", ou se no soviético perdido no Báltico, quando este vem à superfície
ela tem necessariamente algo a ver (de modo complexo, equí- da tela de TV; o submarino está sempre lá, não necessariamente
voco, ambíguo ... mas algo a ver) com as disciplinas de interpre- no fundo do mar, mas nas profundezas de um paradigma que
tação, desde a história até a psicanálise. estrutura o retorno do acontecimento sem profundidade.

Fecho este parêntese para retornar à questão da interpre- Reencontramos assim, para finalizar, a questão da rela-
tação em análise de discurso: P. Achard caracterizou esse movi- ção entre a imagem e o texto: no entrecruzamento desses dois
mento de retirada provisório da questão do sentido e da vontade objetos, onde estamos, tecnologicamente e teoricamente, hoje,
de interpretar, lembrando o provérbio chinês "Quando lhe mos- com relação a esse problema que, após Benveniste, Barthes de-
tramos a lua, o imbecil olha o dedo". Com efeito, por que não? signou com o termo "significância"?
Por que a análise de discurso não dirigiria seu olhar sobre os

54 55
Em que pé estamos com relação a Barthes? Barthes era
tanto lingüista dos textos como teórico das imagens, ou de pre-
ferência não era nem um nem outro (quer dizer, nem lingüista,
nem semiólogo, nem analista) mas antes de tudo o esboço con-
traditório de gestos que tentamos hoje reencontrar, e que ele
soube agenciar à sua maneira talvez única, quer dizer, em pes-
soa - logo também, e de maneira equívoca: como pessoa? NOTAS

A certeza que aparece, em todo caso, no fim desse deba-


te é que uma memória não poderia ser concebida como uma
esfera plena, cujas bordas seriam transcendentais históricos e 1. Assinale-se a esse propósito uma intervenção de Françoise Madré,
cujo conteúdo seria um sentido homogêneo, acumulado ao modo problematizando a relação escrito/oral do ponto de vista da repetição e
da memória.
de um reservatório: é necessariamente um espaço móvel de di-
visões, de disjunções, de deslocamentos e de retomadas, de con-
2. Penso nas teses desenvolvidas por Paul Veyne, que poderiam bem ilus-
flitos de regularização ... Um espaço de desdobramentos, répli-
trar esse pantextualismo que foi designado como risco constante no
cas, polêmicas e contra-discursos. decorrer dos debates. O último livro de P. Veyne "Les Grecs ont-ils cru
à leurs mythes" dá uma idéia desse frasco ideal do relativismo absoluto.
E o fato de que exista assim o outro interno em toda
memória é, a meu ver, a marca do real histórico como remissão
necessária ao outro exterior, quer dizer, ao real histórico como
causa do fato de que nenhuma memória pode ser um frasco sem
exterior .

Michel Pêcheux

56 57
MAIO DE 1968: OS SILÊNCIOS DA MEMÓRIA*

Introdução

Falando de história e de política, não há como não consi-


derar o fato de que a memória é feita de esquecimentos, de si-
lêncios. De sentidos não ditos, de sentidos a não dizer, de silên-
cios e de silenciamentos.

Os sentidos se constróem com limites. Mas há também


limites construídos com sentidos. E quando penso maio de 68, o
que vem à frente da cena - política e histórica - é o silenciamento,
são os sentidos que impõem limites. A tortura, a censura, a agres-
são da ditadura à sociedade, à cidadania.

Mais do que ver no acontecimento maio-68 a constatação


dessa violência, interessa vê-lo, enquanto acontecimento
discursivo, justamente, como fato desencadeador de um pro-
cesso de produção de sentidos que, reprimido, vai desembocar
na absoluta dominância do discurso (neo)liberal. No entanto,
enquanto tal, no momento em que apareceu, maio-68 abria para
uma nova discursividade, produzindo efeitos metafóricos que
afetavam a história e a sociedade, de maneira explosiva, em várias

59
direções: politicamente, culturalmente, moralmente. E o que vai para significar. E é isso a materialidade discursiva, isto é,
se dar com essa discursividade no futuro? O que significa maio linguístico-histórica. Da interpelação do indivíduo em sujeito
de 68 hoje? pela ideologia resulta a forma-sujeito histórica. Em nosso caso,
a forma-sujeito histórica capitalista corresponde ao sujeito-jurí-
Para trazermos essa questão para a reflexão, podemos dico constituído pela ambiguidade que joga entre a autonomia e
referir o texto de M. Pêcheux (p. 33 aqui mesmo), no qual ele a responsabilidade sustentada pelo vai-e-vem entre direitos e
procura compreender, junto a lingüistas, semioticistas e histori- deveres. Podemos dizer, então, que a condição inalienável para
adores, a fragilidade no processo de inscrição do acontecimen- a subjetividade é a língua, a história e o mecanismo ideológico
to no espaço da memória que, segundo ele, joga em uma dupla pelo qual o sujeito se constitui.
forma: a. o acontecimento que escapa à inscrição, que não che-
ga a inscrever-se, e b. o acontecimento que é absorvido na me- Por outro lado, esse sujeito, uma vez constituído, sofre
mória como se não tivesse ocorrido. diferentes processos de individualização (e de socialização) pelo
Estado. Assim, se temos o indivíduo como ponto de partida para
O caso que estou apresentando não se enquadra nem na o assujeitamento ao simbólico - e, quanto a este assujeitamento
primeira, nem na segunda possibilidade. É uma nuance entre o sujeito não tem controle pois ele se passa "antes, em outro
elas: é como se não tivesse ocorrido (b ), não porque foi absorvi- lugar e independentemente" - temos sobre esse sujeito proces-
do mas, ao contrário, justamente porque escapa à inscrição na sos que o individualizam e que derivam das diferentes formas
memória (a). É este, penso eu, o caso da censura em geral. Nes- de poder. E aí as Instituições e o Poder constituído têm um
se sentido, embora eu explore aqui uma situação particular de papel determinante. É nessa instância que se dão as lutas, os
censura, essa minha reflexão pode contribuir para a compreen- confrontos e onde podemos observar os mecanismos de imposi-
são da relação entre memória e censura em geral. ção, de exclusão e os de resistência.

Pois bem, é assim, partindo dessa posição teórica, que


procuraremos compreender o que tenho chamado de "proces-
Um pouco de teoria
sos de de-significação" que estão presentes em discursividades
como as que incidem sobre maio de 68. Portanto, não tratare-
mos o sujeito como algo que se trabalha do ponto de vista de
É já conhecido, na análise de discurso, que há interpela- uma sua essência, mas pensando sua existência como constituí-
ção do indivíduo em sujeito pela ideologia. É assim que se con- da pela sua relação com a língua e com a história onde se con-
sidera que o sujeito se constitui em sujeito por ser afetado pelo frontam o simbólico e o político.
simbólico. Daí seu assujeitamento, ou seja, para que o sujeito
seja sujeito é necessário que ele se submeta à língua. E é por E a nossa questão é: o que aconteceu com os sentidos
estar sujeito à língua, ao simbólico, que ele, por outro lado, pode que constituem o evento maio-68?
ser sujeito de.
Para falar disso retomamos o fato de que falar é esque-
Além disso, é preciso que a língua se inscreva na história
cer. Esquecer para que surjam novos sentidos mas também es-

60 61
quecer apagando os novos sentidos que já foram possíveis mas
cusa a uma vida reduzida a regras e a um trabalho que, por sua
foram estancados em um processo histórico-político silenciador.
vez, reduz o homem em suas possibilidades de vida.
São sentidos que são evitados, de-significados.

Uma paráfrase agora, com o tempo já deslocado, mostra


a conversão desse discurso em um processo que o de-signifi-
Formações Discursivas e Esvaziamento de Sentido cou. Essa paráfrase aparece, em maio de 1998, em um poster
de propaganda no metrô de Paris: um casal nu, tatuado com
flores no peito, dirigindo-se a uma exposição, e, embaixo, os
A definição de formação discursiva diz que ela delimita dizeres "Entrada livre. Isso faria sonharem seus pais ... ".
"'aquilo que pode e deve ser dito por um sujeito em uma posição
discursiva em um momento dado em uma conjuntura dada" Esse enunciado por sua vez mostra a forma como os sen-
(Haroche, Henry, Pêcheux, 1975). tidos concretos e explosivos de liberdade, que estavam levando
à uma revolução social e cultural, a novos sentidos para os su-
No modo como o político se simboliza nos anos 60 há jeitos e para à história, foram barrados violentamente pelo status
todo um possível dizer da sociedade, da cultura que coloca os quo. Pelas instituições, pelo poder. E, no caso do Brasil, mais
sujeitos em medida de uma transformação histórica e social de violentamente ainda porque estávamos em uma ditadura e era
grande dimensão. Essa possibilidade eclode nos movimentos bem diferente dizer "É proibido proibir" aqui em uma rua de
de 68 tendo a palavra liberdade como carro-chefe. No mundo São Paulo e em uma rua de Paris ...
todo há manifestações de rua em que uma discursividade can-
dente trabalha os muitos sentidos postos na reivindicação das No poster dos anos 90 "entrada livre" e gratuita reduz o
liberdades concretas necessárias à sociedade em suas novas sentido de liberdade ao preço de um parque de diversões.
posssíveis formas.

São assim enunciados que funcionam em suas relações O interditado que toma a forma do impossível
parafrásticas, relacionando-se em suas diferentes formulações
ao que pode significar "liberdade":

Então, sentidos possíveis, historicamente viáveis foram


a. "É proibido proibir!".
politicamente interditados. E tornaram-se inviáveis. Essa im-
possibilidade, posta pela censura e pela força, se naturaliza e
b. "Faça amor e não faça guerra !" que deriva ainda para funciona como um pre-construído restritivo a certos sentidos de
"Paz e Amor!". liberdade, de tal maneira, que eles parecem impossíveis. Foram
assim desmoralizados, amolecidos, inviabilizados, de-signifi-
c. "Boulot, Metro, Dodo!" em português: "Trabalho, cados, postos fora do discurso. E a palavra "liberdade" aparece
Condução e Cama!". feito florzinha que se prende com um bottom numa roupinha
maneira ... Ao mesmo tempo, pela outra mão, a da direita, nesse
Que, em suas diferentes formas de dizer, afirmam a re- mesmo processo, se estabelecem as bases do discurso neo-libe-

62 63
ralem que se individualiza a questão da liberdade, destituindo-
e esquecidas, ao longo do tempo e de nossas experiências de
ª da força concreta histórica que ela tinha na outra formação linguagem que, no entanto, nos afetam em seu "esquecimento".
discursiva - a da esquerda, em que o partido comunista propu-
Assim como a língua é sujeita a falhas, a memória também é
nha em seu programa a necessidade de construção de uma de-
constituída pelo esquecimento; daí decorre que a ideologia, diz
mocracia fundada nas liberdades concretas necessárias para as
M. Pêcheux (1982), é um ritual com falhas, sujeito a equívoco,
novas formas sociais - em que haviam se alocado sentidos ex-
de tal modo que, do já dito e significado, possa irromper o nm o,
plosivos de liberdade. E o que é silenciado em uma formação
o irrealizado. No movimento contínuo que constitui os sentidos
discursiva é acolhido em outra formação discursiva, esta, domi-
e os sujeitos em suas identidades na história.
nante, que corresponde ao viés pragmático e empresarial da
política neo-liberal desembaraçada dos sentidos mais corrosi-
vos, transformadores do político. Essa liberdade sem determi- Ainda em M. Pêcheux (aqui mesmo, p. 36) temos: "uma
nações concretas, agora generalizada, pode ser reivindicada, espécie de repetição vertical, em que a memória esburaca-se,
individualizando-se, até pelos neo-nazistas que, em nome dela, perfura-se antes de desdobrar-se em paráfrase". O que dá, se-
exigem o direito de usar a suástica em suas roupas opressivas. gundo esse autor (idem, p.39), a idéia de memória como um
espaço móvel de divisões, de disjunções, de deslocamentos e
de retomadas, de conflitos de regularização. Um espaço de des-
dobramentos, réplicas, polémicas e contra-discursos (1).
O que é isto companheiro?

Memória e Censura
Não é nada disso, companheiro, diz uma paráfrase de
José Simão que, com seu humor, evoca o jogo discursivo que
atravessa esse enunciado em sua memória, agora transformada
O que acontece com maio-68 porém é de outra ordem. A
de romance em filme.
falha é constitutiva da memória, assim como o esquecimento.
No entanto o que acontece com os sentidos de 68 é que eles não
E a questão é, sem dúvida uma questão de memória. No falham apenas nessa memória, eles foram silenciados, censura-
sentido discursivo. A memória - o interdiscurso, como defini- dos, excluídos para que não haja um já dito, um já significado
mos na análise de discurso - é o saber discursivo que faz com constituído nessa memória de tal modo que isso tornasse, a par-
que, ao falarmos, nossas palavras façam sentido. Ela se consti- tir daí, outros sentidos possíveis. Há faltas (2) - e não falhas -
tui pelo já-dito que possibilita todo dizer. de tal modo que eles não fazem sentido, colocando fora do dis-
curso o que poderia ser significado a partir deles e do esqueci-
Pois bem, como dissemos no início, o su1e1to é mento produzido por eles para que novos sentidos aí significas-
assujeitado, pois para falar precisa ser afetado pela língua. Por sem. Há, assim, "furos", "buracos" na memória, que são luga-
outro lado, para que suas palavras tenham sentido é preciso que res, não em que o sentido se "cava" mas, ao contrário, em que o
já tenham sentido. Assim é que dizemos que ele é historicamen- sentido "falta" por interdição. Desaparece. Isso acontece por-
te determinado, pelo interdiscurso, pela memória do dizer: algo que toda uma região de sentidos, uma formação discursiva, é
fala antes, em outro lugar, independentemente. Palavras já ditas apagada, silenciada, interditada. Não há um esquecimento pro-

64 65
duzido por eles, mas sobre eles. Fica-se sem memória. E isto
impede que certos sentidos hoje possam fazer (outros) sentidos. to a repressão porque resvala para o que, hoje, se considera como
Como a memória é, ela mesma, condição do dizível, esses sen- ilegal, indo na direção do que se considera "mobilização soci-
tidos não podem ser lidos. al", ilegal, e que, em maio-68, estava absolutamente dentro das
espectativas do político.
Para observarmos isso basta pensarmos nos sentidos dos
nossos "companheiros" de maio-68 trucidados pela tortura e pela Para tenninar, eu gostaria de dizer que o real histórico
repressão militar. Eu vi, em meu silêncio, muitos de meus cole- faz pressão, fazendo que algo irrompa nessa objetividade mate-
gas com suas fotos afichadas como perigosos guerrilheiros em rial contraditória (a ideologia). O que foi censurado não desa-
pilares da rodoviária de São Paulo toda vez que ia tomar ôni- parece de todo. Ficam seus vestígios, de discursos em suspenso,
bus. Eram lidos, vistos, pensados como perigosos terroristas. in-significados e que demandam, na relação com o saber
Por onde passam os sentidos do terrorismo? Por onde passam discursivo, com a memória do dizer, uma relação equívoca com
os sentidos da resistência política de 68? Os sentidos de liber- as margens dos sentidos, suas fronteiras, seus des-limites.
dade?

Acontece que estes sentidos - excluídos, silenciados -


não puderam e não podem significar, de tal modo que há toda Eni P. Orlandi
uma nossa história que não corresponde a um dizer possível.
Não foram trabalhados socialmente, de modo a que pudésse-
mos nos identificar em nossas posições. Do mesmo modo ficam
sem ser politicamente significados os feitos da tortura e do que
resultou dela na nossa política. Toda vez que vamos votar, mes-
mo que nem pensemos nisso, o fato de que o Brasil é um país
que tortura os dissidentes políticos faz parte de nossa memória
e de nossos gestos políticos. E isso não mereceu ainda sua
explicitação política (3). Está fora da memória, como uma
sua margem que nos aprisiona nos limites desses sentidos. O
que está fora da memória não está nem esquecido nem foi traba-
lhado, metaforizado, transferido. Está in-significado, de-signi-
ficado (4).

Em conseqüência, a discursividade política tem seus


pontos de tensão nos indícios desses silenciamentos. Hoje, dis-
cursos como os do MST, que são uma ruptura no discurso polí-
tico neo-liberal, têm dificudade de significar-se nessa margem
em que muitos sentidos não podem fazer o sentido do político,
onde palavras como "movimento" podem significar algo sujei-

66 67

.,, 'l))l\,1:11,111,
BIBLIOGRAFIA

CL.HAROCHE, P. HENRY EM. PÊCHEUX (1975) "La


couppure saussurienne: langue, langage, discours" in Langages,
Larousse, Paris.

E. P. ORLANDI (1993) As Formas do Silêncio, Ed. Unicamp,


Campinas.

E. P. ORLANDI (1998) "Ética e Significação", trabalho apre-


sentado em mesa-redonda da ANPOLL, Campinas.

M. PÊCHEUX (1982) "Délimitations, Inversions,


Deplacements" in L'Homme et la Société, Paris, trad. Bras. de

-,.
José Horta Nunes, in Cadernos de Estudos Lingüísticos , nº .
'
19, IEL, Unicamp, 1990.

M. PÊCHEUX (1983)" Rôle de la Mémoire", in Histoire et


Linguistique, trad. José Horta Nunes, O Papel da Memória,
Ed. Pontes, 1999, Campinas.

69
NOTAS

* Uma primeira versão deste texto foi apresentada em Santa Maria


(RS), no Colóquio "Utopias e Distopias", em maio de 1998.
Agradeço a Amanda Scherer a oportunidade e a convivência com os
que estiveram no evento.

1. As teses de Bethania C. S. Mariani, sobre o discurso do Partido


Comunista no Brasil (1997), a de Suzy Lagazzi Rodrigues sobre o
discurso do Assentamento ( 1998) e a de Maria Onice Payer sobre
memória da língua, na situação da imigração italiana (em curso),
trabalham todas elas esses aspectos de cristalização, de apagamento,
ou de ruptura e resistência.

2. Estou aqui fazendo uma distinção - falha CCll1stitutiva e falta por inter-
dição - que corresponderia, em paralelo, à distinção que faço entre não-
sentido (que aponta para o sentido que poderá vir, o irrealizado) e o
sem-sentido (o que já significou e que não faz mais sentido). No caso, a

.
,.
(i falha é o lugar do possível, do sentido a vir: e a falta, é o que foi tirado
do sentido, o que não pode significar. Essas formas se indistinguem e,
na maior parte das vezes, não é fácil separá-las. E está aí justamente, do
ponto de vista da ideologia, a eficácia de seus efeitos.
t'---
tn
'T
,....... 3. Mais recentemente, há referências públicas à tortura, mas que permane-
µ, cem à margem, como acasos sem história, violência que não aparece
o
o; z como parte da política mas à parte dela. Transferida para a polícia.
V)
O\ CIJ
C'1
C---1 "D 4. Conferir - a respeito da falta de trabalho da memória, da dificuldade de
N
o :5 dizer, de se identificar e de transferir (metaforizar) sentidos que se pode
o
0i "D - perceber na falta de palavras, na tensão dos gestos, dos olhares e do
N "D +-'
o
Cl...
-----
u; ü
<1)

E 8
a,
silêncio constrangido (e constrangedor para nós cidadãos brasileiros ... )
:=; ? ü
o tA 1) dos corpos - o filme "15 Filhos": a imaterialidade da morte (sob tortura,
e<'. ~ E- ~ C) fabricam-se os desaparecidos, a morte fica sem corpo .. ) é a
imaterialidade da vida diz um dos, ou melhor, uma das filhas.

71

Вам также может понравиться