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O trabalho escravo e o trabalho forçado na colonização portuguesa oitocentista: uma

análise histórico-jurídica
Autor(es): Seixas, Margarida
Publicado por: Imprensa da Universidade de Coimbra
URL URI:http://hdl.handle.net/10316.2/38191
persistente:
DOI: DOI:http://dx.doi.org/10.14195/0870-4147_46_12

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O trabalho escravo e o trabalho forçado na colonização
portuguesa oitocentista: uma análise histórico-jurídica

Mslave labour and forced labour in nineteenth century


Portuguese colonialism a legal-historical analysis

Margarida Seixas
Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa / THD-ULisboa – Centro de Investigação
em Teoria e História do Direito da Universidade de Lisboa
margaridaseixas@fd.ul.pt

Texto recebido em / Text submitted on: 26/03/2015


Texto aprovado em / Text approved on: 25/05/2015

Resumo: Abstract:
O trabalho escravo e o trabalho forçado Slave labour and forced labour were two
foram dois instrumentos da colonização instruments of Portuguese colonialism, which
portuguesa, coexistindo durante séculos; coexisted for centuries. However, over the
porém, ao longo do século XIX, com a course of the 19th century, with the gradual
abolição gradual da escravidão e a proibição abolition of slavery and prohibition of other
de outras práticas similares, o Direito similar practices, slave labour was partially
português estabeleceu a substituição parcial replaced by forced labour under Portuguese
do trabalho escravo pelo trabalho forçado. O law. The process of gradual legal liberation,
caminho de libertação jurídica progressiva, which culminated in the 1870s, underwent
que culminou na década de 1870, sofreu a clear regression at the end of the century,
uma manifesta regressão no final do século, with the reception in Portugal of the doctrine
com a recepção em Portugal da doutrina of “anti-assimilationism” and indigenism
“anti-assimilacionista” e indigenista (assente (grounded in the notion of biological inferiority
na suposta inferioridade biológica e na and the need for legislative differentiation),
necessidade de diferenciação legislativa), com along with political and administrative practice
a prática político-administrativa colonial e a in the colonies and the enshrinement in law of
com a sua consagração legal no Regulamento the 1899 Regulation, which stipulated a legal
de 1899, estipulando uma obrigação jurídica de obligation to work for all indigenous peoples,
trabalho para todos os indígenas e um processo with a process of compulsion that was merely
de compulsão meramente administrativo. administrative.

Palavras-chave: Keywords:
Colonização; Trabalho obrigatório; Colonialism; Compulsory labour; Slavery;
Escravidão; Abolição; Legislação Abolition; Legislation

Revista Portuguesa de História – t. XLVI (2015) – p. 217-236 – ISSN: 0870.4147


DOI: http://dx.doi.org/10.14195/0870-4147_46_12
218 Margarida Seixas

As duas formas de trabalho obrigatório – escravo e forçado – coexistiram


em Portugal e territórios sob jurisdição portuguesa durante séculos e, embora
frequentemente de difícil distinção, com regimes jurídicos diversos. É exemplo
o trabalho dos libertos que, manumitidos sob condição, continuavam adstritos a
servir os patronos por certo período de tempo ou por toda a vida, habitualmente
de forma não remunerada (embora por vezes com soldada)1.
Ambas as formas de trabalho obrigatório foram utilizadas na Época Moderna,
em Portugal continental e no território colonial, embora com diferente dimensão
e relevância. O trabalho escravo estava de tal forma generalizado2 que até o
Estado resgatava escravos3/4 mas o recurso a trabalho compelido também está
documentado nas fontes5.

1. Desta coexistência se foi passando a uma substituição, em especial na


década de 18506. Face à “natureza” dos nativos, a escravatura fora justificada
como forma de civilizar; justificação que servia agora ao trabalho obrigatório.
Na Câmara dos Deputados, numa sessão em 1864, Mendes Leal, ministro
da Marinha, afirmava: “O que está acontecendo com a sociedade africana é
justamente o que já aconteceu com a sociedade europea. Passa-se da escravidão;
1
Jorge Fonseca, Escravos no Sul de Portugal. Séculos XVI-XVII, Lisboa, Vulgata, 2002,
p. 180-181, menciona dois desses casos, classificando-os como “serviço escravo, porque era
obrigatório”, afirmação de que discordo, este trabalho era obrigatório mas não escravo.
2
Sobre o tipo de trabalho dos escravos na metrópole desde o século XV, José Ramos Tinhorão,
Os Negros em Portugal – Uma presença silenciosa, Lisboa, Editorial Caminho, 1988, p. 89-97.
Numa análise mais abrangente, Vitorino Magalhães Godinho, Os Descobrimentos e a Economia
Mundial, vol. IV, Lisboa, editorial Presença, s/d, p. 197-204.
3
Luiz Filipe F. R. Thomaz, “A escravatura em Malaca no século XVI”, Studia, 53 (1994),
p. 258, sobre os escravos que a Coroa “herdara” do sultão de Malaca, após invasão portuguesa
e também, p. 278-285, a requisição de escravos de particulares para serviço público e até no
serviço militar. Para a utilização de escravos nos serviços públicos, Vitorino Magalhães Godinho,
Os Descobrimentos e a Economia Mundial..., cit., vol. IV, p. 200.
4
Por exemplo, o Regimento de 8 de Março de 1588, do governador-geral do Brasil, ordenava
o envio de um navio a Angola para resgatar até duzentos escravos para as galeotas de combate aos
corsários, publicado por Sílvia Hunold Lara, “Legislação sobre escravos africanos na América
portuguesa”, in José Andrés-Gallego (ed.), Nuevas Aportaciones a la Historia Juridica de
Iberoamérica, publicação digital, Madrid, Fundación Histórica Tavera / Digibis, 2000, p. 155.
5
Por exemplo, a Carta Régia de 19 de Setembro de 1631 (José Justino de Andrade e Silva,
Collecção Chronologica da Legislação Portugueza, anos 1627-1633, Lisboa, Imprensa de F. X.
de Souza, 1855, p. 225-226) mandava executar as propostas da Junta de Fazenda para fornecer a
armada de socorro ao Brasil, através de perdão e comutação de penas ou da conversão das penas
de degredo em serviço nesta armada.
6
Cf. James Duffy, A Question of Slavery. Labour Policies in Portuguese Africa and the
British Protest, 1850-1920, Oxford, Clarendon Press, 1967; sobre Angola e Moçambique, p. 5-59.
O trabalho escravo e o trabalho forçado na colonização
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portuguesa oitocentista: uma análise histórico-jurídica

da servidão sobe-se á emancipação. Passa-se da escravidão para a servidão,


isto é do trabalho escravo, ou pena, para o trabalho obrigatório, ou o dever”7.
Esta substituição resulta claramente das medidas abolicionistas das
décadas de 1850, com avanços tímidos e cedências face a interesses e pressões
coloniais8/9. Seria o próprio Sá da Bandeira a apontar as virtudes do sistema:
“O systema adoptado pelo governo portuguez, não alterando as condições do
trabalho colonial, concedeu toda a facilidade, e largo espaço de tempo, aos
donos dos escravos a fim de se preparem para a transição do trabalho forçado
para o trabalho livre”10.
Ainda assim, é pouco conhecida a dimensão real deste trabalho forçado nas
províncias ultramarinas11, que se prolongou para lá do século XIX.
Em 1869, quando a escravidão foi abolida nos territórios sob administração
portuguesa, sofrera já algumas machadadas. Na metrópole tivera lugar a
abolição gradual (legislação pombalina, em especial o Alvará de 16 de Janeiro
de 1773), como em parte de Angola (1856) e Cabo Verde (1857, São Vicente)
e em Macau (1856). Era nas restantes possessões africanas que a mesma ainda
subsistia, embora desde 1856 todos os filhos de escrava nascessem livres e
tivessem sido libertados os escravos do Estado (1854), das roças nacionais
em São Tomé e Príncipe (1854), das Câmaras Municipais e Misericórdias e
da Igreja (1856)12.
Interessa acentuar que a abolição da escravatura não correspondeu, em
muitos casos, a uma concessão de integral liberdade pessoal e laboral.

7
Câmara dos Deputados, 12 de Abril de 1864, Diário de Lisboa (DL) 14 de Abril, p. 1122.
8
Cf. João Pedro Marques, “Uma cosmética demorada: as Cortes perante o problema da
escravidão (1836-1875)”, Análise Social, XXXVI, 158-159, 2001, e “Portugal e o Fim da
Escravidão: Uma Reforma em Contra-Ciclo”, Africana Studia, 7 (2004), p. 137-161.
9
No entanto, as razões para a imposição do trabalho forçado eram ainda apresentadas em 1949
como justificadas por J. M. da Silva Cunha, O Trabalho Indígena. Estudo de Direito Colonial,
Lisboa, Agência Geral das Colónias, 1949, p. 141.
10
Sá da Bandeira, O Trabalho Rural Africano e a Administração Colonial, Lisboa, Imprensa
Nacional, 1873, p. 36.
11
Quanto às explorações agrícolas em Angola, Jill Dias, “Angola”, in Valentim Alexandre
e Jill Dias (coord.), O Império Africano (1825-1890), Nova História da Expansão Portuguesa
(X), Lisboa, Editorial Estampa, 1998, p. 442-460; para a evolução posterior, em especial em São
Tomé e Moçambique, Miguel Bandeira Jerónimo, Livros Brancos, Almas Negras – A «missão
civilizadora» do colonialismo português c. 1870-1930, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais,
2010; Valdemir Zamparoni, “Da escravatura ao trabalho forçado: teorias e práticas”, Africana
Studia, 7 (2004), p. 299-325.
12
Para maior desenvolvimento, Margarida Seixas, Pessoa e Trabalho no Direito Português
(1750-1878): Escravo, liberto, serviçal, Lisboa, AAFDL, 2015.
220 Margarida Seixas

A 25 de Outubro de 1853 foi publicado um Decreto13 que concedia terrenos


de Príncipe a José Maria de Sousa Almeida, permitindo-lhe embarcar para a
ilha cem dos seus escravos de Angola com a condição de os libertar, como
previsto no Regulamento anexo. Este disciplinava a alforria dos escravos e a
obrigação de trabalho e veio a assumir enorme relevância pois foi utilizado
como modelo para as posteriores libertações ope legis. Não se aplicou apenas
àqueles libertos mas, por efeito de diplomas posteriores, a milhares de outros
até 1876.
No ano seguinte, o Decreto de 14 de Dezembro14 consagrou a substituição
do trabalho escravo pelo forçado. Em síntese, previa sete formas diferentes
de libertação de escravos: (1) não cumprimento da obrigação de registo
imposta para todos os escravos; (2) libertação imediata de todos os escravos
do Estado; (3) direito de todo o escravo de reivindicar a sua natural liberdade,
com indemnização ao proprietário; (4) conversão em libertos dos escravos
importados por terra após a publicação do Decreto, com o direito a reivindicar
a liberdade contra indemnização; (5) libertação da criança escrava, até aos 5
anos, no baptismo, mediante pagamento; (6) libertação, sem preço de redenção,
dos filhos de mulher escrava manceba do seu proprietário; (7) libertação da
pessoa alienada como escravo, caso se provasse ser filho do vendedor (com
pena de prisão para este último).
O Decreto estabelecia regime diferenciado: os que tinham sido escravos
do Estado ficavam livres de imediato mas obrigados a servir gratuitamente
durante sete anos, em conformidade com o Regulamento de 25 de Outubro
de 1853; os escravos considerados libertos por terem sido importados por
terra em domínio português ficavam obrigados a servir o senhor por dez
anos, aplicando-se também o Regulamento de 1853 nos restantes aspectos.
Esta última era uma situação próxima da escravidão, pois era lícita a venda
dos serviços dos libertos pela totalidade ou parte do tempo de serviço a que
estavam obrigados. Os restantes libertos criados pelo Decreto não estavam
obrigados a trabalho.
No início de 1856, a Câmara dos Deputados pronunciou-se sobre o
Decreto de 185415. O deputado Afonso de Castro propôs aditamentos, para
estender o estatuto de liberto do Estado aos escravos das Câmaras Municipais

13
Diário do Governo (DG) nº 281, 29 de Novembro de 1853, p. 1600-1601.
14
DG nº 305, 28 de Dezembro de 1854, p. 1574-1575.
15
Diário da Câmara dos Deputados (DCD), 13 e 15 de Fevereiro de 1856, p. 107-108 e p.
112-118.
O trabalho escravo e o trabalho forçado na colonização
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portuguesa oitocentista: uma análise histórico-jurídica

e das Misericórdias (Lei de 30 de Junho16) e aos escravos da Igreja (proposta


aprovada17 e integrada na Lei de 25 de Julho18).
Ainda em 1856 foi aprovada a Lei da liberdade de ventre19, resultando da
proposta de Jeremias Mascarenhas, na Câmara dos Deputados, em 185420, e da
de Sá da Bandeira, em 1855, nos Pares21. A Lei pode resumir-se em três pontos:
a) eram livres aqueles que, após publicação, nascessem filhos de escrava em
qualquer província ultramarina; b) os filhos de escrava estavam obrigados a
trabalhar para os senhores de suas mães até aos 20 anos (modificação introduzida
pela Comissão); c) o proprietário da escrava estava obrigado a alimentar e
educar os filhos desta enquanto fosse servido gratuitamente.
A Lei colocava, assim, os filhos de escrava numa situação de trabalho forçado
semelhante à escravidão, ainda que transitória.
A condição jurídica dos escravos, libertos e filhos de escrava diferia da
situação real. Qualquer medida abolicionista era alvo de resistência, o que
impediu ou dificultou a aplicação dos diplomas, permitindo até ao século XX a
subsistência de trabalho escravo (ou quase escravo), tolerado pelas autoridades
encarregues de impedir e reprimir tais práticas ou mesmo de proteger aqueles
que a lei libertara.
Porém, a investigação nas fontes da época também revela que as medidas
abolicionistas e de protecção de escravos e libertos tiveram alguma aplicação
nas províncias ultramarinas, tendo como resultado a defesa contra actos de
violência, a libertação de muitos escravos e a liberdade efectiva de muitos
libertos, pela intervenção dos tribunais, da Junta de Escravos e Libertos e
das autoridades politicas e administrativas, que nem sempre protegeram os
interesses escravistas22.

2. Por outro lado, tinham sido proibidas em África práticas de escravatura


e de trabalho forçado mas as mesmas persistiram durante décadas.

16
DG, nº 158, 7 de Julho de 1856.
17
DCD, 14 de Julho de 1856, p. 190.
18
DG nº 178, 30 de Julho de 1856.
19
Carta de Lei de 24 de Julho, DG nº 178, 30 de Julho de 1856.
20
DCD, 3 de Agosto de 1854, p. 62-63.
21
Câmara dos Dignos Pares, 9 de Abril de 1855, DG nº 87, 14 de Abril de 1855, p. 426-428.
Sá da Bandeira apresentara idêntica proposta, sem sucesso, em Março de 1836, em Agosto de
1842, em Maio de 1849 e no início de 1851.
22
Ver, para o território angolano, Margarida Seixas, “Escravos e libertos no Boletim Oficial
de Angola (1845-1875)” I e II partes, E-REI – Revista de Estudos Interculturais do CEI, 2,
2014 e 3, 2015.
222 Margarida Seixas

O serviço de carregadores (serviço forçado no sertão de Angola, com


recrutamento violento de africanos, para o carrego de mercadorias do interior
para o litoral23) foi proibido por iniciativa de Sá da Bandeira, por Portaria de 31
de Janeiro de 183924. Esta medida nunca foi cumprida e foi revogada em 184025.
Mais tarde, após parecer do Conselho Ultramarino (25 de Janeiro de 1856)
que justificava a nova proibição26, a mesma foi decretada a 3 de Novembro
desse ano27. Este último Decreto proibia o serviço de carregadores e qualquer
outro serviço forçado, com excepções (serviço militar e outros obrigatórios
por lei; serviço de Comoros ou vallados para impedir estragos de inundações;
serviço dos habitantes dos Districtos e Presidios, para construção e reparação
de estradas).
Outro tipo de trabalho forçado, proibido pelo Governo-Geral de Angola28,
foi o dos mixoluandas, prática que obrigava os habitantes das ilhas adjacentes
a Luanda a servir nas embarcações do Estado por insignificante retribuição. A
Portaria abolia a prática, permitindo apenas o serviço se livremente ajustado.
No interior de Angola, as caravanas portuguesas perpetuaram o tráfico
e a escravatura: em terras de Lunda, Bena-Lulua ou dos Luena trocavam
mercadorias por escravos, usados para obter marfim junto dos Quiocos, dos
Luba e dos Kuba. Este tráfico escoava os escravos antes destinados ao comércio
transatlântico29.
Por outro lado, os comerciantes portugueses continuavam a resgatar escravos
no interior, vendidos pelas autoridades autóctones. Os “resgatados” eram com

23
Quanto ao serviço de carregadores, Jill Dias, “Angola”, in Valentim Alexandre e Jill
Dias (coord.), O Império Africano (1825-1890), cit., p. 394-398; Maria Emília Madeira Santos,
“Perspectiva do Comércio Sertanejo do Bié na Segunda Metade do Século XIX”, Studia (45),
Janeiro/Junho 1981, p. 85-103.
24
DG nº 32, 6 de Fevereiro de 1839.
25
Cf. Sá da Bandeira, O Trabalho Rural Africano e a Administração Colonial, cit., p. 56.
26
Annaes do Conselho Ultramarino, Parte Oficial, série I, Lisboa, Imprensa Nacional, p.
623-626.
27
DG nº 291, 9 de Dezembro de 1856, p. 1677, com rectificação no nº 292, 10 de Dezembro
de 1856, p. 1682, e publicação do Parecer do Conselho Ultramarino de 12 de Setembro, e da
Portaria de 31 de Janeiro de 1839 no DG nº 293, 11 de Dezembro de 1856, p. 1685-1687.
28
Portaria n.º 10, 7 de Janeiro de 1869, no Boletim Official do Governo-Geral da Província
de Angola, 1869, n.º 2, 9 de Janeiro, p. 12-13.
29
Cf. Jill Dias, “Angola”, in Valentim Alexandre e Jill Dias (coord.), O Império Africano
(1825-1890), cit., p. 404-406; Isabel Castro Henriques, Percursos da Modernidade em Angola –
Dinâmicas comerciais e transformações sociais no século XIX, Lisboa, Instituto de Investigação
Científica Tropical/Instituto de Cooperação Portuguesa, 1997, p. 590-593 e p. 615-617; Maria
Emília Madeira Santos, “Perspectiva do Comércio Sertanejo no Bié na Segunda Metade do
Século XIX”, cit., p. 78-82.
O trabalho escravo e o trabalho forçado na colonização
223
portuguesa oitocentista: uma análise histórico-jurídica

frequência inseridos nas listas dos já existentes, pois os proprietários substituíam


de forma fraudulenta os escravos registados por força do Decreto de 1854 que
iam morrendo ou fugindo.
As campanhas portuguesas forneciam o mercado com prisioneiros de guerra
e os próprios moradores e comerciantes faziam o mesmo com aprisionamentos
por dívidas de africanos.

3. O serviço forçado também foi proibido em Moçambique.


Durante séculos os senhores dos prazos30 reuniam hordas de escravos, através
da captura ou da prática do corpo vendido, sendo alguns (encarregues da guarda
armada, caça e comércio) conhecidos como achicunda, vivendo em aldeias,
comandando outros escravos do mesmo proprietário e tendo os seus próprios
escravos. Esta autonomia não impedia que os senhores os considerassem
propriedade que podiam transmitir e que os achicunda se sentissem escravos,
que “se comportavam na mais estrita obediência e total fidelidade aos senhores
que reconheciam como tais”31.
Em 1838, a 6 de Novembro, proibira-se a concessão de novos prazos,
considerando nula qualquer concessão posterior e responsabilizando a pessoa
e bens da autoridade que a realizasse32.
O Decreto de 22 de Dezembro de 185433 extinguiu os prazos da Coroa,
mediante indemnização, declarando extintas todas as obrigações, serviços
ou prestações, estabelecendo o pagamento de imposto anual por habitação
(art. 13º). Admitindo a cobrança por senhorios particulares de prestações em
dinheiro ou géneros, excluía o trabalho forçado, salvo o imposto por utilidade
pública. Visava o fim da exploração dos africanos pelos senhorios dos prazos,
envolvidos em práticas de escravidão e de trabalho forçado.
A Portaria de 12 de Março de 185534 veio regular o Decreto anterior,
impondo a publicação do art. 13º em todos os distritos, com a declaração que

30
Sobre os prazos, Malyn Newitt, A History of Mozambique, Londres, Hurst & Company,
2009, p. 217-24; R. J. Hammond, Portugal and Africa 1815-1910. A Study in Uneconomic
Imperialism, Stanford, California, Stanford University Press, 1966, p. 39-42; René Pélissier, As
Campanhas Coloniais de Portugal 1844-1941, Lisboa, Editorial Estampa, 2006, p. 70-72; José
Capela, “Conflitos sociais na Zambézia, 1878-1892: a transição do senhorio para a plantação”,
Africana Studia, 1 (1999), em especial p. 152-154.
31
José Capela, “Conflitos sociais na Zambézia, 1878-1892...”, cit., p. 155.
32
DG nº 272, 16 de Novembro de 1838.
33
DG nº 7, 8 de Janeiro de 1855.
34
Collecção Official da Legislação Portuguesa redigida por José Máximo de Castro Neto
Leite e Vasconcellos, do Conselho de Sua Magestade e Juiz da Relação de Lisboa, Anno de 1855,
Lisboa, Imprensa Nacional, 1856, Supplemento, p. 26-27 (inédita no DG).
224 Margarida Seixas

os indivíduos reduzidos à escravidão podiam requerer a liberdade perante as


autoridades judiciais, sendo-lhes devidos protecção e auxílio.
No terreno, a manutenção de antigos escravos era comum, o domínio dos
senhores persistia35 e era denunciado em 1885, pelo governador-geral Augusto
Castilho. Foi nomeada uma Comissão, que apresentou um Relatório36/37, e, na
sequência deste, foi promulgado o Decreto de 18 de Novembro de 189038, que
reconhecia a existência dos prazos e os regulava, impondo o mussoco (imposto
cobrado pelo senhor do prazo), pago em metade do valor pela prestação de
serviços, instituindo um sistema de trabalho forçado para os habitantes dos
prazos.
O Decreto só foi aplicado após 1892 39 , afirmando Mouzinho de
Albuquerque que “o colono, antigamente escravizado” passara a “uma
espécie de servo da gleba”40, embora com mobilidade, pois tinha a faculdade
de mudar de prazo41.
O trabalho forçado sub-remunerado ou não remunerado era comum,
designado com o termo chibalo, i.e. “todo o tipo de trabalho conscrito, seja ele
realizado através de contratos, seja trabalho prisional, realizado pelos detidos
por bebedeira, vadiagem e outros pequenos delitos”42.
Por outro lado, persistia a escravatura interna, quanto a indivíduos do mesmo
clã ou conjunto de clãs e a membros de clãs distintos43.
Ainda em Moçambique, embora para trabalho a prestar noutros territórios,
teve lugar o engajamento de trabalhadores livres e seu transporte por navios

35
Cf. José Capela, “Conflitos sociais na Zambézia, 1878-1892..., cit., p. 143-173; Alfredo
Augusto Caldas Xavier, Estudos Coloniais, Nova Goa, Imprensa Nacional, 1889, I, p. 39-44.
36
Comentado por Alfredo Augusto Caldas Xavier, Estudos Coloniais..., cit., III, p. 1-12.
37
Cf. R. J. Hammond, Portugal and Africa 1815-1910. A Study in Uneconomic Imperialism,
cit., p. 39-40 e 158-160.
38
DG nº 265, 20 de Novembro de 1890.
39
António Enes, Moçambique. Relatório apresentado ao Governo, Lisboa, Imprensa
Nacional, 1971, p. 93-95, mencionava os regulamentos que elaborara em 1892 e as resistências
ao regime.
40
Mouzinho de Albuquerque, Moçambique 1896-1898, s/l, Agência Geral das Colónias,
1934, p. 152.
41
R. J. Hammond, Portugal and Africa 1815-1910. A Study in Uneconomic…, cit., p. 160-166.
42
Valdemir Zamparoni, “Chibalo: Trabalho Livre, Trabalho Escravo?”, As Discussões
em torno do Trabalho Compulsório em Moçambique Colonial”, in Isabel Castro Henriques
(ed.), Escravatura e Transformações Culturais. África – Brasil – Caraíbas, Lisboa, Vulgata,
2002, p. 87-88.
43
Malyn Newitt, “Moçambique...”, cit., p. 562-575, p. 619-628; Valdemir Zamparoni,
“Chibalo: Trabalho...”, cit., p. 82-83.
O trabalho escravo e o trabalho forçado na colonização
225
portuguesa oitocentista: uma análise histórico-jurídica

franceses44/45. A prática era semelhante ao tráfico negreiro e o transporte visava


recrutar mão-de-obra sujeita a trabalho forçado.
Embora o governo português se tenha oposto firmemente a essa prática,
remetendo ao governador-geral ordens inequívocas (Portarias de 27 de Fevereiro
de 185546 e de 30 de Julho de 185647), o mesmo resistia frontalmente, situação
apenas ultrapassada com a sua substituição. A postura do governo da metrópole
manteve-se firme na recusa do engajamento (Portaria de 11 de Maio de 185748,
Ofício de 6 de Outubro de 185749, Portaria de 8 de Outubro de 185750), embora
a Circular de 20 de Novembro de 185751 recomendasse prudência no exame
dos barcos saídos de Reunião, para evitar “graves embaraços”.
As consequências do incidente com a barca Charles et George fizeram-
se sentir na actividade das autoridades. A Portaria de 30 de Novembro de
185852 referia a detenção da barca francesa Alfred com 125 negros a bordo,
nativos de Moçambique e “arrancados à força a seus domicilios”. A Portaria
aprovava a resolução do governador de “desembaraçar a mencionada barca
por deferencia com a bandeira franceza”, como fizera com as barcas Caroline
e Maris Stella. As provas evidentes de tráfico negreiro cediam perante a
bandeira francesa.
Encontrei, publicada em 186153, uma minuta para os contratos entre
engajadores franceses e trabalhadores africanos, obrigando-se estes a dez anos
de serviço, a troco de salário, alojamento, alimentação e tratamento médico.

44
Eduardo dos Santos, “A Questão da Barca «Charles et Georges» ”, Studia, 45 (1981),
p. 158-171, 195-211; José Capela, O escravismo colonial em Moçambique, Porto, Edições
Afrontamento, p. 98-110.
45
Face a esta realidade, parece-me existir falta de imparcialidade na afirmação de Isabel
Castro Henriques e Louis Sala-Molins, “Introduction”, in Isabel Castro Henriques e Louis
Sala-Molins (ed.) Déraison, esclavage et droit – Les fondements ideologiques et juridiques de
la traite négrière et de l’esclavage, Paris, Éditions Unesco, 2002, p. 18, atribuindo somente a
Portugal a “palma da exploração” dos africanos através da figura do trabalhador “contratado”.
46
Collecção Official da Legislação Portuguesa… 1855, Supplemento, cit., p. 19-20 (inédita
no DG).
47
DG nº 181, 2 de Agosto de 1856.
48
Collecção Official da Legislação Portuguesa…, 1857, Lisboa, Anno de 1857, Lisboa,
Imprensa Nacional, 1858, Supplemento, p. 35 (inédita no DG).
49
Idem, p. 107-108 (inédito no DG).
50
Idem, p. 108 (inédita no DG).
51
DG nº 195, 20 de Agosto de 1858.
52
Collecção Official da Legislação Portuguesa…, 1858, Lisboa, Imprensa Nacional, 1859,
Supplemento, p. 99 (inédita no DG).
53
Publicada no Relatorio do governador Geral da Provincia de Angola Sebastião Lopes de
Calheiros e Menezes expedido ao ano de 1861, Lisboa, Imprensa Nacional, 1867, p. 440-442.
226 Margarida Seixas

Os pagamentos seriam em parte diferidos: metade do salário no fim do mês, o


restante no fim de cada ano. O trabalhador poderia regressar ao local de origem
findos os dez anos depositando mensalmente na caixa de emigração um décimo
do seu salário. O ajustado declarava ter recebido previamente 200 francos,
para a sua “libertação e para diversas despezas de sua conta”, posteriormente
descontados no seu salário. Da análise desta minuta, resulta clara a situação
de dependência, sobretudo tendo em conta o prazo do contrato e a quantia
realmente disponível por mês.
Este recrutamento só cessaria muito mais tarde54.
Por outro lado, as plantações do Cabo e Natal necessitavam de mão-de-
obra, impulsionando a emigração do sul de Moçambique na década de 1850
e, a partir de 1867, para as minas de diamantes. Nesta fase, os salários eram
elevados e a migração por vezes livre, mas, frequentemente, os régulos
obrigavam os jovens a assinar contratos com os recrutadores e estes chegavam
a praticar raptos55.
Esta emigração começou a ser regulada a partir de 1875, tendo Portugal
imposto a passagem obrigatória dos trabalhadores pelos portos de Lourenço
Marques ou Moçambique, recebendo um passaporte e um contrato56. A situação
deteriorou-se a partir de 1886, com a descoberta das minas de ouro de Rand,
sorvedouro de mão-de-obra.

4. Noutros territórios, a diminuição do trabalho escravo foi acentuada: na


Índia, até à década de 1840 era desembarcada uma quantidade relativamente
elevada de escravos (cerca de 40 por ano) mas este comércio quase desapareceu
na década de 1850 e apenas existiriam então 134 escravos em Goa, Damão e
Diu57.

54
Cf. Malyn Newitt, “Moçambique”, cit., p. 595-596, em 1864; José Capela, O escravismo
colonial em Moçambique..., cit., p. 109-110, prolonga-o pela década de 1870, sendo permitida
a contratação a partir de 1881 (cf. James Duffy, A Question of Slavery. Labour Policies in
Portuguese Africa and the British Protest…, cit., p. 87-91). Em menor escala, os franceses
também recrutavam na Costa Ocidental, v. g. em Angola, cf. Eduardo dos Santos, “A Questão
da Barca «Charles et Georges...”, cit., p. 172-175.
55
Malyn Newitt, “Moçambique”, cit., p. 608-610 e 613-614.
56
José Capela, O escravismo colonial em Moçambique..., cit., p. 111.
57
Ernestina Carreira, “Índia”, in Valentim Alexandre e Jill Dias (coord.), O Império Africano
(1825-1890)..., cit., p. 695-696.
O trabalho escravo e o trabalho forçado na colonização
227
portuguesa oitocentista: uma análise histórico-jurídica

Para Cabo Verde encontram-se proibições58 e permissões59 de saída de


população livre para trabalhar noutros territórios, sendo ordenado às autoridades
especial cuidado na fiscalização das condições de saída.
Para São Tomé e Príncipe, na década de 1860 eram importados libertos para
trabalhar nas roças onde ainda serviam escravos60.
Persistia também a emigração dos culis (ou coolies), chineses
transportados de vários portos da China e também de Macau para os
continentes americano e africano para trabalhar, prática legal mas equiparada
ao tráfico de escravos61.
As péssimas condições de alimentação e transporte62 suscitaram diversa
regulação do Governo de Macau, entre 1853 e 187363, aprovada pela
metrópole (Portarias de 27 de Dezembro de 185864, 20 de Abril de 185965, 27
de Agosto de 185966, 20 de Dezembro de 185967). Os abusos continuaram68
e Andrade Corvo proibiu tal emigração, a 20 de Dezembro de 1873. A 23
de Dezembro, uma Portaria local69 reiterou a proibição, a vigorar no prazo
de três meses.

58
Por exemplo, a Portaria de 7 de Novembro de 1857 (Boletim do Conselho Ultramarino:
legislação novíssima, vol. 3, cit., p. 145) ou a Portaria de 18 de Agosto de 1858, (Collecção
Official da Legislação Portuguesa, 1858, cit., Supplemento, p. 78, inédita no DG).
59
V.g., na Portaria de 8 de Agosto de 1856 (Collecção Official da Legislação Portuguesa…,
1856, cit., Supplemento, p. 45-46, inédita no DG) para o governador-geral de Cabo Verde ou
a Portaria de 7 de Novembro (nota anterior), onde se exceptuava a emigração para a Guiné.
60
Augusto Nascimento, “Escravatura, trabalho forçado e contrato em S. Tomé e Príncipe nos
sécs. XIX e XX: sujeição e ética laboral”, Africana Studia, 7 (2004), p. 189.
61
José Vicente Serrão, “Macau”, in Valentim Alexandre e Jill Dias (coord.), O Império
Africano (1825-1890), cit., p. 749-751.
62
João Andrade Corvo, Estudos sobre as Províncias Ultramarinas, vol. IV, Lisboa, Academia
Real das Ciências, 1887, p. 132, 144-145, 149.
63
[Andrade Corvo], Relatorio e Documentos sobre a abolição da emigração de chinas
contratados em Macau, apresentado às Cortes na sessão legislativa de 1874 pelo ministro e
Secretario d’ Estado dos Negocios da Marinha e Ultramar, Lisboa, Imprensa Nacional, 1874,
p. 15-21, 27-31, 34-45.
64
Collecção Official da Legislação Portuguesa…, Anno de 1858, cit., Supplemento à
Collecção, p. 110 (inédita no DG).
65
DG nº 116, 19 de Maio de 1859.
66
Boletim Official do Governo Geral da Província de Moçambique, ano de 1860, nº 11, 17
de Março, p. 46.
67
Idem, nº 43, 27 de Outubro, p. 179.
68
Relatório de 4 de Abril de 1868, de B. S. Fernandes, superintendente da emigração chinesa,
DL, n.º 256, 10 de Novembro de 1868, p. 2672-2674.
69
Boletim da Província de Macau e Timor (BPMT), n.º 52, 27 de Dezembro de 1873, p. 207.
228 Margarida Seixas

Após esta data, os chineses continuaram a ser recrutados a partir de Cantão,


de Hong Kong e de outros portos e, posteriormente, a emigração voltou a ser
permitida a partir de Macau, em 188270.

5. A década de 1860 não foi favorável ao abolicionismo mas o contexto


modificou-se na década de 70, devido ao crescente interesse por África, que
em Portugal teve reflexos em meados da década, reagindo às ameaças que se
previam nas viagens de exploração ou na criação da Associação Internacional
Africana.
Com a extinção formal da escravatura nos territórios sob administração
portuguesa em 1869, pelo Decreto71 de Sá da Bandeira, foi regulado o trabalho
dos que ficavam sujeitos a trabalho obrigatório para os anteriores proprietários
até 1878. O Decreto estipulava a abolição imediata da escravatura nos territórios
portugueses, passando todos os escravos à condição de libertos, com as
obrigações e direitos previstos no Decreto de 1854, que cessariam por completo
a 29 de Abril de 1878.
As notícias sobre recursos auríferos no interior da África Austral e os
progressos comerciais em Angola no início da década de 70 pareciam prenunciar
uma nova fase. Logo em 1875, foi fundada a Sociedade de Geografia de Lisboa,
que impulsionou as viagens de exploração. Também na imprensa parecia existir
uma nova sensibilidade, dirigida para a crítica às práticas escravistas72.
A nível governamental, a questão colonial ganhou relevância, através de
João de Andrade Corvo, Ministro dos Negócios Estrangeiros (1871-1878) e
da Marinha e Ultramar (1872-1877), que defendia uma reforma do sistema
colonial73: liberalismo comercial, eliminação de monopólios e outros privilégios,
expansionismo pacífico e comedido, progresso acentuado dos transportes e suas
vias e supressão autêntica do tráfico, da escravatura e do trabalho forçado, que
persistia, quer legal, quer, sobretudo, ilegalmente.

70
Portaria régia n.º 76-A, 19 de Dezembro de 1882, BPMT, nº 6, 10 de Fevereiro de 1883,
p. 35, e Portaria provincial n.º 92 e regulamento (art. 32º), de 3 de Agosto de 1883, BPMT, nº
31, 4 de Agosto de 1883, p. 269-271. A Portaria nº 992, de 17 de Dezembro de 1894, BPMT,
suplemento ao nº 50, 17 de Dezembro de 1894, p. 606-611, autorizava este embarque para todas
as províncias portuguesas e a emigração teve lugar para S. Tomé, a partir de 1895, cf. Augusto
Nascimento, “A Passagem dos Collies por S. Tomé e Príncipe”, Arquipélago – História, 2ª série,
VIII (2004), p. 80-85.
71
DG nº 45, 27 de Fevereiro de 1869, p. 251-252.
72
Cf. Valentim Alexandre, “A Questão Colonial no Portugal Oitocentista”, in Valentim
Alexandre e Jill Dias (coord.), O Império Africano (1825-1890)..., cit., p. 96-97, notas 203-205.
73
Cf. Rui Ramos, “«Um novo Brasil de um novo Portugal». A história do Brasil e a ideia
de colonização em Portugal nos séculos XIX e XX”, Penélope, n.º 23 (2000), p. 141-142, 148.
O trabalho escravo e o trabalho forçado na colonização
229
portuguesa oitocentista: uma análise histórico-jurídica

Durante este período foi promulgada legislação essencial para a extinção


da condição servil e regulação do trabalho nas Províncias Ultramarinas
portuguesas.
Em 1875, foi publicada a Lei de 29 de Abril74. Os libertos, declarados
livres mas sujeitos à tutela pública, salvo exercendo alguma arte e sabendo
ler e escrever ou trabalhando no ensino, eram obrigados a contratar os seus
serviços por dois anos, de preferência com o antigo patrão, na sua província
ou noutra diferente.
Para execução desta Lei foi publicado o Regulamento de 20 de Dezembro
de 187575, que estabeleceu o trabalho obrigatório para os que se tinham tornado
libertos pelo Decreto de 1854, os filhos de mulher escrava, livres pela Lei de
1856, os libertos do Decreto de 1869 e todos os introduzidos como libertos.
A Lei e o Regulamento de 1875 constituíram medidas fundamentais no
caminho do trabalho livre. Embora a extinção da condição servil ficasse
condicionada pela obrigação de contratar, foi o passo essencial para a atribuição
de plena liberdade jurídica (formal) aos que eram libertos ou filhos de escrava.
O ambiente era novamente favorável a estas medidas. São significativos os
louvores a Sá da Bandeira na sessão dos Deputados em que se aprovou o Projecto
para a extinção da condição servil em 187576. Na Câmara dos Deputados foi
aprovada sem discussão77 a Lei de 3 de Fevereiro de 187678. A aprovação nos
Pares não foi pacífica mas fez levantar várias vozes a favor da liberdade e
contrárias aos maus tratos ainda infligidos a libertos e serviçais79.
Em 1878 foi publicado o Regulamento de 21 de Novembro80, que coroaria
o processo, pondo fim à obrigação de contratar, ainda estipulada em 1875.
O Regulamento estipulava a extinção da tutela pública e a cessação da
obrigação de contratar, enquadradas na linha de orientação do diploma, pois
ninguém poderia ser obrigado a contratar os seus serviços, salvo se julgado

74
DG nº 104, 11 de Maio de 1875, p. 862-863.
75
DG nº 293, 24 de Dezembro de 1875, p. 2443-2445.
76
DCD, Sessão de 22 de Março de 1875, p. 944-947.
77
DCD, Sessão de 29 de Janeiro de 1876, p. 208-210.
78
Veio antecipar a entrada em vigor da Lei 29 de Abril de 1875 para São Tomé e Príncipe. A
urgência era justificada: após a Lei de 1875, muitos trabalhadores das roças dirigiram-se à capital,
reclamando a liberdade e aceitando trabalhar, desde que remunerados, cf. Augusto Nascimento,
“A «Crise Braçal» de 1875 em S. Tomé – Os Comportamentos dos Agentes Sociais”, Revista
Crítica de Ciências Sociais, 34 (1992), p. 317-329.
79
DCP, Sessão de 1 de Fevereiro de 1876, p. 86-90: parecer da Comissão do Ultramar,
discursos do ministro da Marinha, de Carlos Bento e Martens Ferrão.
80
Regulamento para os contratos de serviçaes e colonos nas províncias da África portugueza,
DG, nº 267, 25 de Novembro de 1878, p. 2852-2854.
230 Margarida Seixas

como vadio. Aplicável nas Províncias Ultramarinas a todos os contratos de


prestação de serviços, de colonização ou mistos celebrados por indígenas,
estabelecia um conjunto significativo de condições mínimas, sujeitando-os a
formalidades, fiscalização e vigilância.
Estas tarefas cabiam aos curadores gerais, que o Regulamento considerava
protectores natos dos serviçais e colonos (a mesma expressão do Regulamento
de 1875), com competências de intervenção na celebração dos contratos,
garantia do cumprimento das disposições legais e contratuais, inspecção e
recepção de representações e queixas, bem como competências que cabiam ao
Ministério Público quanto aos menores contratados81.
Quanto à celebração e condições dos contratos, o Regulamento de 1878,
disciplinando o trabalho livre, reproduzia a maioria das normas dos diplomas de
1875. A diferença fundamental – inexistência da obrigação de contratar – tinha
reflexo na duração dos contratos: cinco anos (dez para aprendizes).
A celebração, aprovação e registo dos contratos estava fortemente
condicionada, com sujeição à forma escrita e a registo (não aplicável aos
serviçais assoldadados à semana ou ao mês). Atente-se também nas limitações
à contratação em ambos os Regulamentos: proibição de separação de famílias,
condições exigidas aos patrões, limitação da intervenção de agentes, limitação
da cedência sem acordo, proibição de prorrogação antes de findo o prazo inicial
do contrato.
As semelhanças aumentam quanto a condições contratuais impostas e a
limitações previstas: dias de descanso, máximo de horas de trabalho por dia,
fornecimentos obrigatórios, trabalho nocturno, adiantamento de salários.
A regulação tornava-se mais exigente quanto a contratos em terras
avassaladas ou país estrangeiro, para fora ou por conta da província. Os
trabalhadores deslocados eram alvo de cuidados acrescidos na contratação de
menores de 15 anos, regulação do transporte, trabalho prestado, doença ou
invalidez e retorno à província de origem.
Todos os diplomas estabeleciam que as condições mínimas de retribuição
e habitação seriam fixadas pelos regulamentos provinciais. Porém, apenas
localizei o Regulamento Provincial para Moçambique82. Apesar das limitações
impostas (os serviçais ficavam fechados de noite se dormissem no quartel e não
podiam sair da propriedade sem licença do patrão mesmo nos dias de folga), o
81
Cristina Nogueira da Silva, Constitucionalismo e Império, A Cidadania no Ultramar
Português, A Cidadania no Ultramar Português, Coimbra, Almedina, 2009, p. 368-369.
82
Regulamento Provincial para a execução na provincia de Moçambique do Regulamento
decretado em 21 de Novembro de 1878 para os contratos de serviçaes e colonos na provincia
de Moçambique, Moçambique, Imprensa Nacional, 1890.
O trabalho escravo e o trabalho forçado na colonização
231
portuguesa oitocentista: uma análise histórico-jurídica

Regulamento provincial não se afastava ainda, no essencial, do espírito liberal


do Regulamento de 1878, embora com um maior cerceamento da liberdade
dos serviçais.
A compreensão do regime dos diplomas de 1875 exige a ponderação das suas
principais motivações. A Lei de 29 de Abril de 1875 pretendia evitar práticas
análogas às da escravatura, preocupação patente no Regulamento de 20 de
Dezembro de 1875, com a regulação minuciosa de vários aspectos sensíveis,
como os contratos de trabalhadores deslocados. Os diplomas impunham o
trabalho obrigatório para aqueles que tinham sido escravos mas tentavam
também evitar os riscos (manifestos) de, no terreno, o trabalho obrigatório
fazer perdurar a escravatura.
Porém, o risco não desapareceria com o fim do trabalho obrigatório. As
características deste grupo social, as práticas seculares e as estruturas de
produção das províncias dificultavam a implantação de um modelo puramente
liberal como aquele que – ao menos legalmente – vigorava em Portugal
continental, previsto na prestação de serviços no Código Civil de 1867.
Assim, o Regulamento de 1878 pretendia evitar a persistência da escravatura
ou práticas similares e muitas das normas do Regulamento de 1875 foram
reproduzidas integralmente ou de forma semelhante.
Embora o incumprimento do Regulamento de 1878 fizesse permanecer no
terreno antigas sujeições83, discordo de João Pedro Marques, que, comparando a
Lei de 1875 e o Regulamento de 1878, afirma que este “perpetuava os princípios
e as condições impostas na regulamentação anterior, o que permitiu continuar
a arregimentar mão-de-obra africana à força”84, e de Valentim Alexandre que,
sobre o diploma de 1878, declara “no terreno, a cláusula referente a «vadios»
fornecia a necessária cobertura legal a todas a exacções”85.
Discordo ainda de Cristina Nogueira da Silva. Existem aspectos semelhantes
na Lei de 29 de Abril de 1875 mas verifica-se uma diferença fundamental: o
Regulamento de 1878 não impunha a obrigação de contratar (como a Autora
realça86). Na sua vigência, ficavam revogados os arts. 4º e 5º da Lei de 1875 (o
que não é claro no texto87). A remissão do art. 96º do Regulamento (aliciação ou

83
Cf. Augusto Nascimento, “Escravatura, trabalho forçado e contrato...”, cit., p. 192: “Nesse
período, os serviçais em pouco se distinguiram dos escravos.” A afirmação é adequada a outros
territórios, especialmente Angola e Moçambique.
84
João Pedro Marques, Portugal e a escravatura dos africanos, Lisboa, ICS, 2004, p. 135-136.
85
Valentim Alexandre, “A Questão Colonial no Portugal Oitocentista...”, cit., p. 102.
86
Cristina Nogueira da Silva, Constitucionalismo e Império..., cit., p. 369, último §.
87
Idem, p. 370, continuação do último §. da p. 369 e primeiro § que começa na p. 370, onde
se afirma que “aquela lei” (sublinhado meu, só pode ser a de 1875), “criou condições para que
232 Margarida Seixas

provocação para perturbar o trabalho dos serviçais ou colonos) para o art. 489º
do Código Penal (possibilidade de decretar prisão até um mês ou multa até vinte
mil réis por Regulamentos administrativos e de policia geral, ou municipal,
ou rural, ou nas Posturas das Câmaras) não permitia às autoridades locais,
de “forma praticamente autónoma e descontrolada”88 resolver os possíveis
conflitos.
Não duvido que o trabalho forçado se manteve nos territórios coloniais mas
sem o amparo da Lei. A única forma de trabalho forçado permitida era a dos
condenados judicialmente como vadios, tal como na metrópole (arts. 256º e ss.
do Código Penal). É essencial reforçar esta ideia: não bastava qualquer medida
administrativa de recrutamento, era necessária uma condenação judicial.
Admito que os anteriores proprietários de escravos usassem técnicas de
recrutamento ilícitas e que as autoridades coloniais as tolerassem89 mas, se
o Regulamento de 1878 tivesse sido cumprido, o trabalho forçado tinha sido
extinto. Aliás, é Valentim Alexandre que o caracteriza como “o mais aberto e
menos repressivo de todos os promulgados para as Províncias Ultramarinas
até 1961”90. James Duffy identifica-o como “one of the refreshing moments in
colonial policy”91.
Basta atentar nas críticas a esta legislação e nas profundas alterações
introduzidas pelo Regulamento de 1899 para que este aspecto se torne bem claro.

6. Após as medidas abolicionistas, mantiveram-se formas de trabalho


obrigatório que significaram um abandono “suave” e formal do trabalho
escravo. Manteve-se a defesa do resgate92 nas zonas limítrofes angolanas para

a coacção atingisse a liberdade destes indivíduos nos aspectos mais quotidianos da sua vida, o
que sucedeu logo nos primeiros regulamentos locais” O exemplo dado é o do Regulamento de
1890 (que mencionei), elaborado com tal Lei já revogada.
88
Idem, p. 369.
89
Situação mais visível em São Tomé e Príncipe, pelas características próprias e pelo cultivo
intensivo do cacau no final do século XIX, cf. Augusto Nascimento, “Escravatura, trabalho
forçado nos sécs. XIX e XX...”, cit., p. 183-217.
90
Valentim Alexandre, “Questão nacional e questão colonial em Oliveira Martins”, Análise
Social, XXXI, 135 (1996 - 1°), p. 200.
91
James Duffy, Portuguese Africa, Cambridge: Harvard University Press, 1959, p. 153, com
uma análise atenta e lúcida deste diploma.
92
Discutia-se se o Decreto de 14 de Dezembro de 1854 permitia a operação aos cidadãos
portugueses ou se lhes estava proibida, cf. R. J. Hammond, Portugal and Africa. A Study in
Uneconomic Imperialism, cit., p. 59-60.
O trabalho escravo e o trabalho forçado na colonização
233
portuguesa oitocentista: uma análise histórico-jurídica

fornecimento de mão-de-obra93. Os resgatados eram sujeitos a um longo período


de aprendizagem, pertencendo o seu trabalho ao benemérito resgatador.
António Leite Mendes, por exemplo, defendia a continuação do resgate e
sugeria a aquisição aos chefes tribais de trabalhadores obrigados a servir durante
dez anos (com salário razoável) ou o recrutamento forçado dos ociosos (pelo
Chefe do Conselho), obrigados a servir por três a cinco anos, com remuneração94.
Este Autor defendia uma legislação musculada, que impedisse a vadiagem e
a indolência95.
Estas posições não despertaram muitas respostas contrárias: apenas as de
Sá da Bandeira, de Andrade Corvo e de Diocleciano da Neves (célebre caçador
de Moçambique)96.
As transformações no último quartel do século XIX traduziram uma profunda
crítica ao modelo colonizador defendido até à década de 1870. A intervenção
para os territórios ultramarinos modificou-se97, no contexto da corrida a
África, acentuada a partir da Conferência de Berlim98. As transformações estão
exaustivamente estudadas, v.g., na forma de relacionamento com os indígenas
e no modelo de trabalho a implementar99. Assim, a crítica ao anterior modelo
assimilacionista (assim caracterizado no final do século XIX100), assentava na
crença de uma inferioridade civilizacional, que não era nova mas que requeria
novas soluções.
De forma simplista, foi afastada a ideia de assimilação pelo contacto
com instituições europeias (cristianização, comércio, contactos entre povos).
Mouzinho de Albuquerque, queixando-se do “sentimentos demasiado
negrófilos” de governadores da Zambézia, tecia críticas às “ridículas tentativas de

93
Quanto ao recrutamento no sertão de Angola para São Tomé e Príncipe, Augusto
Nascimento, “A Passagem dos Collies por S. Tomé e Príncipe”, cit., p. 77-79, e “Escravatura,
trabalho forçado e contrato nos sécs. XIX e XX...”, cit., p. 183-217.
94
António Leite Mendes, Abolição da Escravatura em Angola e Organização do Trabalho,
Lisboa, Typographia do Jornal de Lisboa, 1867, p. 22-23.
95
Valentim Alexandre, “A Questão Colonial no Portugal Oitocentista”, cit., p. 101.
96
Idem, p. 100-101.
97
António Enes, Moçambique. Relatório apresentado ao Governo, cit., p. 75-76, afirmava
que a Europa tinha “amplos direitos tutelares” em que se incluíam “o da conquista e até o do
extermínio”.
98
Sobre a Conferência de Berlim, Pedro Caridade de Freitas, Portugal e a Comunidade
Internacional na Segunda Metade do Século XIX, Lisboa, Quid Juris, 2012, p. 431-458 e 483-484.
99
Para uma excelente sinopse e abundante bibliografia, Cristina Nogueira da Silva,
Constitucionalismo e Império, A Cidadania no Ultramar Português, cit., p. 21-66.
100
Para uma caracterização deste modelo “assimilacionista” como “idealista, racionalista”,
Marcello Caetano, Portugal e o Direito Colonial Internacional, Lisboa, s/e, 1948, p. 16-17.
234 Margarida Seixas

assimilação”101. António Enes lamentava a existência de magistrados “patronos


dos pretos contra os brancos” e os problemas da legislação metropolitana em
Moçambique102. Caldas Xavier considerava “ridículo” elevar “uma besta á
categoria de cidadão livre e até bem mais livre e feliz que o nosso proletario”103.
Se tendencialmente as diferenças entre europeus e africanos eram atribuídas,
no primeiro modelo, a factores culturais e ambientais104, tais diferenças tinham
agora um pendor mais racial105, que acentuava a inferioridade e a remetia para um
plano biológico. A suposta inferioridade era bastante conveniente à civilizadora
ocupação europeia e a caracterização do africano como indolente106 foi
acentuada para justificar o novo regime jurídico, numa lógica de diferenciação
necessária em função dos destinatários da legislação107.
Enes, no Relatório apresentado ao Governo em 1893, afirmava: “[…] é
certo que os negros, todos os negros de todas a partes da Africa, consideram a
ociosidade como estado mais perfeito de beatitude depois da embriaguez”108.
Mouzinho de Albuquerque admitia a razão das críticas dos “negrófilos” mas
defendia a manutenção dos prazos, pois uma raça não devia passar da escravidão
ao “uso pleno de todos os direitos e regalias do cidadão livre”, devendo ocupar
o estado intermédio do “servilismo”109.
As novas concepções alcançaram consagração legal em Portugal: em 1899
foi publicado o Regulamento do Trabalho Indígena110, que estabelecia uma
obrigação jurídica de trabalhar e também os meios legítimos para assegurar

101
Mouzinho de Albuquerque, Moçambique 1896-1898, cit., p. 74 e p. 172-174, p. 86. Ver
Douglas Wheeler, “Joaquim Mouzinho de Albuquerque (1855-1902) e a política do colonialismo”,
Análise Social, vol. XVI, 61-62 (1980, l°-2°), p. 295-318.
102
António Enes, Moçambique. Relatório apresentado ao Governo, p. 72, 255-265, 481-486.
103
Alfredo Augusto Caldas Xavier, Estudos Coloniais, cit., I, p. 33.
104
Por exemplo, Andrade Corvo, Estudos sobre as Províncias Ultramarinas, cit., III.
105
Cf. Mouzinho de Albuquerque, Moçambique 1896-1898, cit., p. 136-137, 173-174;
António Enes, Moçambique. Relatório apresentado ao Governo., cit., p. 47-50, 72-75; Sebastião
Chaves Aguiar, A Administração Colonial. Trabalho precedido de uma carta ao Exmo. Senhor
Conselheiro Mariano de Carvalho, Lisboa, Tipografia Lisbonense, 1891, p. 36-39.
106
Esta imagem continuava bem presente no início do século XX: v.g., A Escravatura em
Mossamedes – Carta Aberta dirigida a S. Ex.ª o Presidente da Republica por um grupo de
agricultores, industriais e commerciantes de Mossamedes, Lisboa, Tipografia do Comércio, [19--],
p. 12, 15-16 e 19-24; José de Almada, Apontamentos Históricos sobre a Escravatura e o Trabalho
Indígena nas Colónias Portuguesas, Lisboa, Imprensa Nacional, 1932, v.g., p. 5-8, 10 e 13-17.
107
Mouzinho de Albuquerque, Moçambique 1896-1898, cit., com uma crítica velada à abolição
“de chofre” do tráfico e da escravatura (p. 144 e 174).
108
António Enes, Moçambique. Relatório apresentado ao Governo, cit., p. 24.
109
Mouzinho de Albuquerque, Moçambique 1896-1898, cit., p. 172-179.
110
Regulamento de 9 de Novembro de 1899, DG nº 262, 18 de Novembro de 1899.
O trabalho escravo e o trabalho forçado na colonização
235
portuguesa oitocentista: uma análise histórico-jurídica

o cumprimento dessa obrigação111. Agora todos os indígenas112 poderiam ser


forçados a trabalhar sem qualquer condenação judicial e por via meramente
administrativa113.
O processo de compulsão começava com a intimação para trabalhar.
Desobedecida, a autoridade podia chamar o indígena, mesmo sob custódia, para
lhe explicar a obrigação, admoestá-lo e fazê-lo conduzir para evitar a evasão.
Os indígenas poderiam ser empregues ao serviço do Estado, municípios ou
particulares, mediante requisição.
Se estas medidas não resultassem, os indígenas seriam entregues ao curador
dos serviçais e colonos da Comarca e condenados a trabalho correccional114.
Saliento que esta pena poderia ser aplicada não só pelos tribunais ordinários e
juízes municipais mas pelos curadores e até pelos seus delegados.
As circunstâncias que justificavam a alteração foram descritas pelo Relatório
da Comissão de 1898115 e pelo seu presidente António Enes: “Por medo de que as
práticas do regime abolido lhe sobrevivessem, elaboraram-se leis e regulamentos
encimados por uma espécie de declaração dos direitos dos negros, que lhes dizia
textualmente: de ora avante ninguém tem obrigação de trabalhar, e os tribunais
e as autoridades administrativas foram encarregadas de proteger contra qualquer
atentado o sagrado direito de ociosidade reconhecido aos Africanos.”116.

111
Artigo 1.º: Todos os indigenas das provincias ultramarinas portuguezas são sujeitos
à obrigação, moral e legal, de procurar adquirir pelo trabalho os meios que lhes faltem, de
subsistir e de melhorar a propria condição social.
Têem plena liberdade para escolher o modo de cumprir essa obrigação; mas, se a não
cumprem de modo algum, a auctoridade publica póde impor-lhes o seu cumprimento.” A
obrigação considerava-se cumprida pelos que possuíssem capital ou rendimentos para assegurar
a subsistência ou exercessem comércio, indústria, profissão liberal, arte, ofício ou mester; pelos
que plantavam a terra por conta própria com certos parâmetros ou trabalhassem por soldada ou
salário num número mínimo de meses durante o ano.
112
A obrigação não era imposta às mulheres, homens maiores de 60 e menores de 14 anos,
doentes e inválidos, sipais ou membros de corpos de polícia e segurança, chefes e grandes
indígenas.
113
A punição por via administrativa constava nos arts. 6º a 12º da proposta de Reforma
Judiciária (XXIX) e principalmente da proposta de Regulamentação do Trabalho dos Indígenas
(XXXI), apresentadas por António Enes, Moçambique. Relatório apresentado ao Governo, cit.,
p. 482-483 e 495-513.
114
É a pena prevista pelo Decreto de 20 de Setembro de 1894, DG nº 220, 28 de Setembro.
Apesar de exigir condenação judicial, o processo era sumário e as garantias muito diminutas
(art. 5º).
115
Relatório publicado na Antologia Colonial Portuguesa, I, Lisboa, Agência Geral das
Colónias, 1946, 25-55.
116
António Enes, Moçambique. Relatório apresentado ao Governo, cit., p. 70.
236 Margarida Seixas

As obrigações dos empregadores eram contrapostas às faculdades do


trabalhador: fixar o salário, marcar o tempo de trabalho, abandoná-lo ou “ter
comida e alojamento de graça num lugar de beatitude” (a prisão) quando faltava
ao contratado, furtava, devastava ou incendiava as plantações, era “madraço e
vicioso”, delitos enunciados nesta ordem, sem qualquer diferenciação117.
Esta visão correspondia a uma intervenção diferenciada e diferenciadora118.
A Comissão aludia ao art. 256º do Código Penal e considerava-o insuficiente
e inadequado ao território colonial, propondo “meios práticos que não fossem
simples aplicação de sanções penais”, porque o trabalho compelido não era
uma pena e “a autoridade administrativa deveria ter competência bastante para
o impor”119.
O ponto mais paradoxal do diploma prende-se com a afirmação de uma
obrigação de trabalho universal mas admitindo um regime diferenciado, em
que só os indígenas podiam ser compelidos a trabalhar, muito consentâneo
com o final do século XIX. Porém, em Portugal, em meados do século XX, o
Regulamento de 1878 era ainda apreciado com idêntica orientação: “Como se
vê, consagrava-se na lei um regime amplamente liberal, para usar da linguagem
da época, que, pode dizer-se, deixava aos indígenas absoluta liberdade de
trabalhar e até de não trabalhar”120.
Em conclusão, podemos afirmar que a progressiva libertação oitocentista nas
províncias ultramarinas, que estabelecia uma obrigação de trabalho transitória
para os antigos escravos e filhos de escrava, foi substituída, na última década
do século, por uma obrigação de trabalhar de todos os indígenas que reforçava
a colonização europeia, especialmente no continente africano.
Em 1906, Adolpho Lima numa obra dedicada ao trabalho livre, discorria
ainda sobre a antiga escravatura: “Tal foi nos primeiros tempos e na antiguidade
a organização jurídica do trabalho humano a qual ainda se prolonga pela
presente época – apesar dos desmentidos dos governos civilizados e dos decretos
metropolitanos nas colonias africanas”121.

117
Idem, p. 71.
118
Cf. Cristina Nogueira da Silva, Constitucionalismo e Império, cit., p. 42.
119
Relatório da comissão, cit., p. 33-34.
120
J. M. da Silva Cunha, O Trabalho Indígena. Estudo de Direito Colonial, cit., p. 148. Para
um forte elogio ao Relatório, Marcello Caetano, Portugal e o Direito Colonial Internacional,
cit., p. 191.
121
Adolpho Lima, O contrato do trabalho, Lisboa, Antiga Casa Bertrand, 1909, p. 34.

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