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O presente artigo baseia-se em nossa pesquisa de doutorado realizada entre 2010 e 2014 no âmbito do
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (UNB), sob a
orientação da Prof.ª Dr.ª Luciana Tatagiba. Este artigo contém trechos de nossa tese (Trindade, 2014).
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sociedade no debate sobre movimentos sociais, sociedade civil e democracia. Porém, o
risco de relativizar demais as fronteiras entre os dois campos é cair no extremo oposto e
perder de vista o fato de que movimentos sociais e Estado, por mais que atuem
conjuntamente em determinados espaços e contextos, estão situados em posições
distintas: os movimentos sociais são demandantes (e desafiantes), enquanto que o Estado
é demandado (e desafiado). Essa é uma questão estrutural e objetiva, independente da
olhar analítico do pesquisador.
Importante salientar também que nossa perspectiva confere centralidade
analítica ao conflito, o que vai de encontro com boa parte da produção teórica sobre
participação e democracia no presente contexto, tanto no Brasil como no cenário
internacional. Como sabemos, um traço marcante no debate sobre a teoria democrática
das últimas décadas tem sido a ênfase no consenso, especialmente por conta da influência
do modelo teórico habermasiano, principal matriz da vertente deliberativa da democracia.
Por isso, esse texto não dialoga apenas com a literatura nacional sobre participação, mas
busca também estabelecer (ainda que de forma breve) uma problematização com a
literatura internacional que confere primazia analítica ao consenso em detrimento do
conflito.
A questão central que será explorada aqui é a seguinte: qual a relevância
analítica das ações de protesto conduzidas pelos movimentos sociais para o debate
teórico sobre a luta pela democracia? Nossa hipótese é que o deslocamento analítico
aqui proposto - dos espaços participativos institucionalizados em direção às ruas - nos
possibilita ganhos importantes para o debate sobre a participação política e a construção
democrática no Brasil, pois, além de oferecer uma perspectiva mais ampla sobre a ideia
de participação (não restrita à sua dimensão institucional), tal procedimento nos permite
conferir maior visibilidade ao conflito e identificar com mais clareza os diferentes
projetos políticos em disputa.
A referência empírica desta pesquisa foram as ocupações de imóveis ociosos
promovidas pelo movimento de moradia no centro da cidade de São Paulo (SP). A
questão da moradia ainda é um problema social de profunda gravidade no Brasil, mesmo
com todos os avanços no campo jurídico conquistados nas últimas décadas. O
movimento de moradia de São Paulo possui uma complexa estrutura organizacional e
atua em praticamente todo o território da cidade. Nossa análise será focada
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especificamente nas organizações que atuam na área central da cidade, promovendo
ocupações em imóveis públicos e privados para reivindicar o direito dos trabalhadores
mais pobres de habitarem o centro da cidade, uma localidade servida de infra estrutura e
próxima aos locais de emprego, o que possibilita aos cidadãos uma vida muito mais
digna do que aqueles que vivem em determinados regiões periféricas da cidade. As
ocupações de imóveis ociosos na área central enquanto estratégia de mobilização coletiva
assumem um formato específico a partir de 1997, quando começam a acontecer de forma
sistemática e politicamente organizada.
É importante salientar as ocupações no centro colocam em xeque o modelo
de urbanização historicamente predominante no Brasil, que gradualmente expulsou a
população mais pobre em direção às áreas periféricas (mais desvalorizadas) da cidade,
reservando o centro e as adjacências para as camadas de mais alta renda. A luta pela
habitação popular na área central contraria, portanto, a lógica mercadológica de
urbanização. A pesquisa se focou nas duas principais organizações que atuam no centro
de São Paulo: a União dos Movimentos de Moradia (UMM) e a Frente de Luta pela
Moradia (FLM). Do ponto de vista metodológico, além da coleta de dados em pesquisas
acadêmicas, material jornalístico e documentos produzidos pelos próprios movimentos
sociais, também realizamos entrevistas com lideranças e importantes apoiadores do
movimento em questão2.
No primeiro tópico do texto, discutimos as implicações teóricas e práticas
resultantes do foco analítico na dimensão institucional da participação, analisando como
os canais institucionais existentes contribuem para deslegitimar ações de protesto
conduzidas pelos movimentos sociais que adotam postura mais combativa. Em seguida,
refletimos sobre a especificidade do protesto e, mais especificamente, as ações de caráter
disruptivo em relação às formas institucionalizadas de participação. Ainda neste tópico
trazemos também uma reflexão sobre a dimensão simbólica das ocupações de terras e
imóveis ociosos, demonstrando que estas acionam determinados conflitos capazes de
expor as lacunas e contradições da democracia brasileira. No terceiro tópico,
apresentamos os principais números referentes à pesquisa empírica sobre as ocupações
2
Neste texto, trazemos trechos das entrevistas de Benedito Barbosa, coordenador da UMM e de Luiz
Kohara, coordenador do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, uma organização não governamental
que atua em várias frentes na área central de São Paulo e que hoje se constitui em um dos principais
apoiadores do movimento de moradia.
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no centro de São Paulo, destacando também as principais conquistas materiais e
simbólicas do movimento de moradia analisado neste estudo. O último tópico traz nossas
considerações finais sobre as questões discutidas no texto.
3
Para um mapeamento mais preciso do debate no interior da teoria democrática, ver Miguel (2005).
4
É necessário ressalvar apenas que esta ênfase no consenso não é algo homogêneo no campo da teoria
deliberativa. Como Mendonça (2011; 2013) e Dryzek (2000) nos alertam, é possível distinguir diferentes
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guinada deliberativa no debate teórico sobre a democracia representou o momento no
qual a ênfase analítica no consenso ganha proeminência sobre a dimensão conflituosa das
relações políticas.
Baseando-se nas análises de Joshua Cohen (1989) e de James Bohman (1996)
sobre o problema da deliberação nas obras de Habermas e Rawls, Leonardo Avritzer
(2000, p. 43) aponta que "é possível pensar em um processo público de
institucionalização da democracia deliberativa". Cohen e Bohman tentaram demonstrar
que seria possível (e desejável) que os modelos discursivos vislumbrados por Habermas e
Rawls ganhassem formas institucionais específicas, capazes de influenciar de fato o
sistema político e transformá-lo de acordo com valores essencialmente democráticos.
Questionando-se sobre quais espaços poderiam realizar tal empreitada, Avritzer (idem, p.
43) defende que o local por excelência da democracia deliberativa são os fóruns no qual
Estado e sociedade se encontram para debater questões públicas. Em se tratando do caso
brasileiro especificamente, os exemplos mais conhecidos são os orçamentos
participativos (OPs) e os conselhos gestores de políticas públicas (Dagnino, 2002;
Almeida e Tatagiba, 2012).
A rigor, hoje é possível afirmar que as experiências participativas
reconfiguraram a própria arquitetura institucional do Estado brasileiro (Avritzer, 2010;
Lavalle, 2011). Segundo alguns autores (Teixeira, 2013), atualmente podemos pensar em
termos de um sistema de participação em nível nacional, conectando diferentes
instâncias e espaços decisórios nas mais diferentes áreas de políticas públicas. Pouco
mais de 25 anos após a redemocratização do país, o que se percebe é que a ideia de
participação institucional conquistou um alcance surpreendente, tornando-se referência
até mesmo no cenário internacional. Com isso, o debate sobre a democracia no Brasil,
que entre as décadas de 1970 e 1980 esteve focado no papel dos movimentos sociais
(especialmente aqueles de cunho popular) na luta contra o regime autoritário, sofreria um
importante deslocamento em direção às instâncias institucionais participativas. Nos
dizeres de Adrian Gurza Lavalle e Ernesto Vera (2011, p. 117): "Ao longo da segunda
metade dos anos 1990 e na década seguinte, a participação passou a ser, cada vez mais,
tendências em relação à busca pelo consenso dentro do campo mais amplo no qual se constitui a teoria
deliberativa.
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participação em espaços participativos e a literatura acadêmica migrou junto com os
atores (...)".
E é justamente aqui que se coloca um problema importante: ao mesmo tempo
que a análise da participação institucional ganhava força entre os estudiosos no Brasil, o
debate internacional já dava sinais claros de que o conflito vinha perdendo espaço para o
consenso. Estudar a participação nos espaços institucionais não significa necessariamente
desvalorizar o conflito enquanto elemento analítico constitutivo das relações políticas. O
melhor exemplo desta "conciliação" na literatura brasileira é a obra de Evelina Dagnino e
de seus colaboradores (Dagnino, 2002; Dagnino, Olvera e Panfichi, 2006; Dagnino e
Tatagiba, 2007), mas o fato é que a influência das teorias deliberativas no cenário
internacional acabou exercendo um peso significativo no debate brasileiro e em muitos
outros países da América Latina. É incontestável que a teoria deliberativa trouxe avanços
importantes para o debate sobre a democracia. Ao enfatizar o papel dos cidadãos comuns
na esfera pública, o deliberacionismo propôs uma concepção mais ampliada de política
em relação ao modelo elitista (Schumpeter, 1961), no qual o debate e as decisões
políticas eram basicamente monopolizadas pelos governantes eleitos através do voto
popular.
Porém, a ênfase no consenso como valor a ser alcançado pela deliberação
pública acarretou em problemas de outra ordem. Segundo a análise de Pereira (2012, p.
69), "a excessiva ênfase no consenso acabou por eclipsar outras formas de ação política
que vão além da participação cidadã nos espaços de partilha decisória". Nesse sentido, o
autor propõe recuperar o conflito como um elemento central para o entendimento do
desenvolvimento democrático: “o conflito não deve ser analisado na chave liberal das
teorias democráticas, mas como um elemento constitutivo do debate público e meio de
construção do interesse público” (Ibidem, p. 69). Recuperar o conflito, no sentido
proposto pelo autor, significa conferir maior ênfase analítica a formas de ação política
que são externas aos espaços institucionais, como greves, passeatas, ocupações, piquetes
e afins. Como destacado por Miguel (2014b, p. 126), um dos problemas da teoria
deliberativa é que ela estabelece uma espécie de "hierarquização a priori" das formas de
ação política consideradas legítimas, ou seja, aquelas que se realizam exclusivamente por
meio dos canais institucionais formalizados. Em termos teóricos, isto pode representar
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um bloqueio prévio à análise "de estratégias que se mostram, muitas vezes, eficazes para
que os grupos dominados obtenham êxitos em suas demandas".
Essa controvérsia no plano teórico se desdobra em um problema muito sério
para alguns movimentos sociais na realidade material. A proliferação de espaços
participativos institucionais têm reforçado, dependendo do contexto, um discurso de
criminalização daqueles movimentos sociais mais combativos, que mesmo atuando por
dentro do Estado nunca abandonaram formas de mobilização exteriores à
institucionalidade (Tatagiba, Paterniani e Trindade, 2012, p. 410). A leitura que
predomina no campo da opinião pública, e que aparentemente tem influenciado mesmo
setores da esquerda, é a de que a democracia brasileira oferece, além do voto, diversas
possibilidades de inserção institucional para que a sociedade civil encaminhe suas
demandas ao Estado. É como se existisse um modelo correto de reivindicação política:
esta deveria passar exclusiva e necessariamente pelos canais institucionais. Vejamos dois
casos onde essa ideia aparece explicitamente. No primeiro, Gabriel Feltran (2005) analisa
uma campanha publicitária do Governo Federal brasileiro no ano de 2001, que fazia um
“apelo” aos movimentos sociais do campo:
5
Democratas, antigo Partido da Frente Liberal (PFL).
8
abriremos mão de medidas judiciais de reintegração de posse dos prédios, para
retomar os projetos acordados com os próprios invasores (KASSAB, 2011).
6
A explicação mais detalhada destas diferentes rotinas interativas encontra-se entre as páginas 332 e 334
do referido artigo (Abers, Serafim e Tatagiba, 2014).
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Porém, uma análise que se proponha a desvendar com mais profundidade os
conflitos sociais e identificar com mais clareza os projetos políticos em disputa (Dagnino,
Olvera e Panfichi, 2006), pouco tem a ganhar seguindo este caminho. E é justamente
nesse sentido que o foco da pesquisa nas ações de protesto conduzidas pelos movimentos
sociais, ao conferir primazia analítica ao conflito, nos auxilia a enxergar elementos que
dificilmente viriam à tona de outro modo. É muito importante esclarecer: focar a análise
nas ações de protesto dos movimentos sociais não implica em negar a complexidade das
relações entre estes atores e o sistema político. Antes, a opção por este recorte significa
realçar intencionalmente determinados aspectos da luta pela construção da democracia
que são tão reais quanto as redes de ativismo "socioestatais". A análise de Gabriel Vitullo
é elucidativa:
Cabe incorporar „outras‟ formas de ver, de entender, de definir e de viver o
fenômeno e as práticas democráticas, formas em geral „esquecidas‟ pelas
correntes transitológicas, consolidológicas, elitistas-competitivas, neo-
institucionalistas e demais variantes da tendência hegemônica no campo da
ciência política contemporânea. Até formas esquecidas não apenas por elas,
mas também deixadas de lado por muitos seguidores das correntes que
defendem uma democracia mais participativa e que, entretanto, na prática
caem numa espécie de neoinstitucionalismo renovado quando fixam seu olhar
unicamente nas arenas de participação sócio-política institucionalizadas
(estatais ou paraestatais) (...). Esta incorporação das „outras‟ formas de
apreender a democracia, de participar, de articular o acionar coletivo e de
protestar por fora dos canais representativos tradicionais (...) leva a conquistar
um panorama mais claro dos problemas, dos dilemas, dos desafios que
enfrentam na atualidade os regimes políticos do continente (VITULLO, 2006,
p. 377).
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acarreta em elementos importantes que não podem ser negligenciadas do ponto de vista
analítico.
Como pontuado por Tarrow (1997, p. 192), as ações políticas de caráter
disruptivo ampliam o círculo do conflito: “Ao bloquear o tráfego ou interromper
atividades públicas, os manifestantes incomodam os cidadãos, representam um perigo
para a lei e convidam o Estado a um enfrentamento”. Embora as ocupações em imóveis
ociosos não causem necessariamente esse tipo de transtorno, elas geram um
constrangimento político para os setores hegemônicos da sociedade. Em primeiro lugar
porque elas representam um ataque simbólico ao direito de propriedade das classes
economicamente dominantes. Em segundo porque, em função de sua própria natureza
pública, ainda mais em uma cidade importante como São Paulo, ações desse caráter
tendem a pressionar as forças do Estado com mais eficácia se comparadas à luta
institucional. E esta maior eficácia das ações de protesto parece estar diretamente
associada à sua visibilidade. A análise de Luiz Kohara sintetiza esse ponto:
(...) quando você quer marcar alguma reunião pra discutir alguma coisa ou
negociar, você pode tentar fazer isso no conselho e nem conseguir marcar.
Agora quando você faz uma ocupação, principalmente quando começa a
ganhar visibilidade, a primeira coisa que o gestor público faz é chamar o
pessoal pra conversar. Isso não quer dizer que essa conversa vai trazer
resultado. Mas a princípio a ocupação é mais ameaçadora para o gestor
público. A ocupação expõe o conflito. O que as instituições públicas tentam
fazer é sempre amenizar ou esconder esses conflitos (ENTREVISTA, Luiz
Kohara, 2013; grifo nosso).
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despercebido por aqueles que estão diretamente imersos na luta social. Convém aqui
resgatar a análise de Iris Young, quando esta autora afirma que os ativistas guardam
suspeitas em relação às possibilidades de que os espaços deliberativos tenham papel mais
efetivo no atendimento de suas demandas: "Isso porque ele [o ativista] percebe que as
estruturas sociais e econômicas existentes criaram restrições inadmissíveis aos termos da
deliberação e sua agenda" (Young, 2001, p. 682).
Em segundo lugar, as ocupações, assim como outras formas de ação
disrupitva, em determinados casos são realizadas para forçar negociações nos canais
institucionais. Os movimentos precisam encaminhar suas demandas às autoridades
responsáveis de algum modo. No momento em que percebem obstruções graves nas
trilhas institucionais, lançam mão do protesto como forma de trazer os governantes de
volta ao diálogo, como ficou explícito na fala de Kohara. Esta constatação nos impede de
cair na armadilha dicotômica: ação direta e ação institucional são diferentes, mas são
constitutivas da mesma dinâmica de conflito. Em muitos casos, uma se configura em
função da outra. E, o mais importante: os atores que lutam nas ruas são os mesmos que
estão inseridos na institucionalidade. É possível, no plano analítico, estabelecer esta
distinção para que possamos compreender com mais clareza o que cada nível ou esfera
de ação política tem como característica e como desdobramento peculiar, mas isso não
significa que no mundo das relações políticas concretas estas esferas estejam separadas.
A despeito desta constatação, aqui é necessário tomar um cuidado
importante: não podemos cair no erro de reduzir o protesto a um simples recurso
mobilizado pelos movimentos sociais por razões eminentemente pragmáticas. As ações
de protesto possuem uma forte dimensão simbólica, em geral associada às reivindicações
dos atores que as mobilizam. Isto é muito verdadeiro no caso das ocupações. Estas ações
são capazes de acionar um conflito central na sociedade brasileira: o problema da
concentração fundiária, ou seja, do acesso à terra pelas camadas populares. Ao ocupar
terras e imóveis ociosos, os movimentos sociais estão questionando o direito irrestrito de
propriedade dos setores economicamente dominantes da sociedade. Em tempo: a rigor,
esta luta não contesta o direito de propriedade stricto sensu, isto é, não coloca em xeque
o estatuto jurídico da propriedade privada, mas, antes, problematiza o fato da estrutura
fundiária ser altamente concentrada. Na prática, é uma reivindicação para criar novos
proprietários e avançar na implementação dos direitos sociais previstos no texto
13
Constitucional. Nunca é demais lembrar que os direitos sociais, por si só, não
representam uma ameaça ao capitalismo, mas ainda assim isto não significa que as
classes dominantes desejem sua concretização (Saes, 2003).
Ademais, contestar o direito de propriedade das classes dominantes nunca é
tarefa simples do ponto de vista político no âmbito de uma sociedade capitalista. No caso
do Brasil, este quadro se agrava em função de nossa herança colonial e da mentalidade
patrimonialista fortemente arraigada no tecido social (Maricato, 2000; Schwarz, 2000), o
que faz com que a propriedade privada seja um princípio defendido inclusive por aqueles
que não a detêm (Tatagiba, Paterniani e Trindade, 2012, p. 413). Através das ocupações,
os movimentos sociais tocam em um ponto extremamente delicado na sociedade
brasileira, que constitui uma lacuna fundamental em nossa jovem democracia. Nesse
sentido, ainda que os movimentos realizem algumas ocupações visando objetivos
considerados pragmáticos (como por exemplo forçar o agendamento de uma reunião para
discutir a liberação de verba para programas habitacionais), estas ações estão imbuídas de
um poderoso conteúdo simbólico, que inevitavelmente provoca debate e controvérsia na
esfera pública, em especial no que diz respeito à legitimidade e à suposta ilegalidade de
ações desta natureza no contexto de um ordenamento democrático7.
Por parte de determinados veículos de imprensa, a tentativa de
desqualificação ou de deslegitimação dos setores populares politicamente organizados
fica evidente nos momentos em que os movimentos sociais expõem suas reivindicações à
sociedade. Em um editorial publicado em outubro de 2007, o jornal O Estado de São
Paulo mostra-se indignado com as ações dos movimentos de moradia na época.
7
Para um debate mais aprofundado sobre a legitimidade e a legalidade das ocupações, ver Fernandes
(2008) e Boulos (2012).
14
„comemorativo‟: era para marcar o „Dia Nacional da Reforma Urbana‟- mais
uma que este governo não fez. Nem por isso, no entanto, essa „banalização do
caos‟ ou esse atentado à ordem pública, motivado por razões de marketing
político, deixou de ser grave e merecer plena repulsa da sociedade brasileira.
15
movimento de moradia no centro de São Paulo a partir das ocupações de imóveis
ociosos.
3. A importância das ocupações para as conquistas materiais e simbólicas do
movimento de moradia
8
Segundo Neuhold (2009, p. 44), os dois projetos foram iniciados em 1990, porém foram concluídos
somente em 1992 e 1996, respectivamente.
9
Atualmente conhecido somente por Partido Progressista (PP).
10
Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo
11
Banco Interamericano de Desenvolvimento
16
vinha negociando, negociando, mas o recurso não saía. Foi quando os
movimentos começaram a avaliar que era necessário fazer pressão. Então em
1997, cinco anos depois de não ter nada concreto da prefeitura, e quase três
anos de discussão com o governo do estado, percebeu-se que a única atitude
possível era fazer pressão social. Foi, portanto, uma decisão política dos
movimentos nesse sentido (ENTREVISTA, Luiz Kohara, 2013).
12
Em relação aos imóveis públicos, os movimentos ocupam edifícios pertencentes a autarquias e
instituições governamentais ligados às três esferas administrativas (municipal, estadual e federal). Isto é,
apesar de atuarem na cidade de São Paulo, os movimentos conseguem abrir um campo de conflito e de
negociação com todas as instâncias de governo.
17
Quadro 1 - Número de ocupações em imóveis ociosos no centro de São Paulo
13
Até o ano de 2007, os dados são extraídos do trabalho de Neuhold (2009). Para obter os dados entre 2008
e 2012, realizamos pesquisa em material jornalístico e nos sítios eletrônicos dos movimentos que atuam no
centro.
18
Gráfico 1 - Número de ocupações em imóveis ociosos no centro de São Paulo
(1997-2012)14
14
Para uma análise mais detalhada a respeito do ritmo e da incidência das ocupações no centro de São
Paulo, ver o capítulo 3 de nossa tese de doutorado (Trindade, 2014, p. 135-146).
19
Em relação aos resultados desta luta, buscaremos demonstrar em linhas
gerais aquelas que consideramos ser as principais conquistas do movimento de moradia
do centro de São Paulo no decorrer desses anos de mobilização, tanto do ponto de vista
material quanto simbólico. Em relação à dimensão material, descobrimos que o Centro
Gaspar Garcia de Direitos Humanos realizou um levantamento em anos recentes no
intuito de quantificar as unidades habitacionais conquistadas pelo movimento de moradia
do centro desde o início de sua atuação. Segundo tal levantamento, o movimento
conquistou cerca de 2.980 unidades habitacionais, sendo 769 através de programas
federais, 943 de programas estaduais e 1.268 a partir de programas municipais. Segundo
esses dados fornecidos pelo Gaspar Garcia, nota-se, portanto, um papel mais ativo da
administração municipal em comparação às outras duas esferas governamentais. Estas
unidades foram construídas através de diferentes programas, convênios e parcerias,
contando com financiadores como a Caixa Econômica Federal (CEF) e o Banco
Interamericano de Desenvolvimento (BID)15.
Porém, segundo um relatório divulgado em meados de 2012 pela Companhia
de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU), órgão vinculado ao governo
estadual, consta que haviam sido construídas 1.605 unidades habitacionais à população
de baixa renda por meio do Programa de Atuação em Cortiços (PAC), feito através de
um convênio com o BID. Este número altera significativamente o panorama dos dados
coletados pelo Centro Gaspar Garcia. Em primeiro lugar, de quase 3 mil unidades
construídas saltamos para um total de 3.642, o que significa uma diferença de mais de
600 unidades. De qualquer forma, é bem possível que os dados oferecidos pelo Gaspar
Garcia tenham certa defasagem (principalmente em relação aos dados do governo
municipal), assim como também é possível que o relatório da CDHU exagere um pouco
nos números. Todavia, como o relatório da CDHU é um documento oficial, ou seja,
produzido por instituição governamental, ele não pode ser desprezado. Para todos os
efeitos, trabalharemos com uma perspectiva de que o número de unidades habitacionais
construídas pelo poder público após o início da luta pela moradia no centro gira em torno
de 3.500, mas não temos como apontar com a devida clareza o quanto foi construído por
cada esfera governamental (municipal, estadual ou federal) especificamente.
15
É importante salientar que nem todas as pessoas beneficiadas por esses programas habitacionais eram ou
são vinculadas a movimentos sociais, embora alguns empreendimentos tenham sido destinados
exclusivamente para organizações ligadas aos movimentos.
20
Este número demonstra que as ocupações iniciadas em 1997 tiveram um
papel importante no sentido de acelerar as negociações entre os movimentos e o poder
público no que diz respeito à produção de habitação social. Como já mencionado, a
gestão petista de Luíza Erundina vinha trabalhando em parceira com os movimentos e
desenvolvendo programas habitacionais no centro da cidade. Mas esses programas não
tiveram continuidade nas gestões posteriores. Deste número de 3.500 unidades
conquistadas no total, apenas aquelas 227 foram entregues antes do início das
ocupações16, justamente no governo de Erundina (1989-1992). Isso demonstra de forma
muito clara como a luta do movimento moradia, sobretudo através das ocupações de
imóveis, contribuiu efetivamente para a democratização do centro da cidade no que se
refere à questão da moradia. Claro que precisamos considerar que ao longo deste período
centenas ou até milhares de pessoas pobres podem ter saído do centro em direção às áreas
mais periféricas por não terem condições de arcar com os custos da moradia, ou também
porque foram despejados e não conseguiram se manter no centro. Mas isso não elimina a
relevância da luta política levada a cabo pelo movimento estudado. A pergunta que se
deve fazer é: como seria este cenário sem a intervenção do movimento? Provavelmente,
muito mais perverso do ponto de vista da elitização do espaço urbano e da expulsão das
camadas populares do centro.
Mas o fato é que os resultados desta mobilização popular vão além da
dimensão material. O depoimento de Benedito Barbosa sugere que o movimento de
moradia foi capaz de inserir o tema da moradia popular na área central na agenda política
dos governantes, mesmo daqueles vinculados a partidos políticos tidos como adversários,
como é o caso do PSDB. Ainda que haja discordâncias entre o movimento e o governo
estadual no que se refere à forma de organizar a produção habitacional de interesse social
no centro, a alegação é que o tema foi definitivamente incorporado, o que já é, por si só,
algo muito relevante:
(...) o governo do estado fez uma operação que a gente está discutindo ainda,
que é o programa das Parcerias Público-Privadas (PPPs) que desapropriou
mais de 600 terrenos no centro da cidade pra viabilizar um programa de 20 mil
moradias. O centro entrou de vez na pauta. A gente tem discordância profunda
com o conteúdo da proposta, com a metodologia, com o modelo de PPP para o
centro, mas de fato o discurso da moradia no centro ganhou a pauta e agenda
16
Informações mais detalhadas sobre a participação das três esferas governamentais na construção de
unidades habitacionais reivindicadas pelo movimento de moradia do centro podem ser encontradas na
dissertação de mestrado de Neuhold (2009, p. 96-108).
21
das políticas de uma forma geral, seja do governo estadual, do governo federal
(ENTREVISTA, Benedito Barbosa, 2013).
Considerações finais
23
literatura internacional que, influenciada pelas teorias deliberativas, relegou o conflito a
segundo plano no debate teórico sobre a democracia e conferiu primazia analítica ao
consenso. De modo algum, este texto teve como pretensão apresentar elementos
conclusivos sobre o que foi analisado aqui, mas sim propor um esboço para uma agenda
de pesquisa renovada sobre a disputa pela construção democrática na sociedade brasileira
em particular e na América Latina em geral. Nesse sentido, algumas considerações são
importantes para que continuemos com esse debate.
É totalmente compreensível que o debate brasileiro sobre a participação
política - sobretudo no campo da Ciência Política - tenha se direcionado para os
processos institucionalizados no contexto pós redemocratização. A grande verdade é que
o período da ditadura militar congregou várias forças sociais em torno de uma plataforma
comum - a luta pela redemocratização do país. Esta luta não era penas pela retomada do
regime democrático, mas também pela institucionalização de uma série de direitos que
ainda não estavam garantidos em nível constitucional (ou estavam, mas de forma
insuficiente e pouco clara). Com todas as ressalvas, este processo teve uma conquista
importante: a Constituição Federal de 1988. Mas, com a retomada da democracia, o
"inimigo comum" deixou de existir, e (como era previsível) as agendas dos setores
democrático-reformistas se pulverizaram. Com os direitos assegurados no plano formal,
o próximo passo seria lutar pela sua implementação efetiva, atundo em conjunto com o
Estado em contexto diversos. Isso não era apenas uma questão de opção política, mas sim
de necessidade. A democracia foi uma conquista e ao mesmo tempo um desafio para os
movimentos sociais: era necessário adotar uma postura mais propositiva e não apenas de
crítica em relação ao Estado e ao governo, principalmente naqueles locais onde os
partidos de esquerda haviam conquistado vitórias eleitorais importantes nas eleições de
1989, como foi o caso de São Paulo e Porto Alegre.
Dessa forma, os atores migraram para dentro das instituições. Não deixaram
de protestar. Greves, passseatas e ocupações nunca cessaram totalmente. Mas o foco de
atenção estava em outro lugar. A mobilização nas ruas não era mais capaz de reunir
tantas pessoas como nas campanhas pelo fim da ditadura militar na década de 1980. E,
inegavelmente, muitos espaços institucionais foram criados, a maior parte deles por conta
da pressão dos próprios setores populares. Tudo isso era novo para os estudiosos, fossem
eles sociólogos, cientistas políticos ou mesmo antropólogos. É totalmente compreensível,
24
portanto, que as atenções acadêmicas (e militantes) tenham se voltado para a dimensão
institucional dos processos participativos. Todos esses espaços tiveram, e ainda têm, de
fato, uma importância grande no contexto da luta pela democratização do país. Se é
verdade que eles não foram capazes de cumprir com todas as expectativas neles
depositadas (tanto por parte dos estudiosos quanto por parte dos ativistas), também é
verdade que estas instâncias contribuíram para ampliar o controle social sobre a
administração pública e viabilizar uma maior pluralidade de atores e interesses no campo
institucional (Lavalle e Vera, 2010; Trindade, 2010; Teixeira, 2013).
Mas, após todos esses anos, é crescente a percepção de que as arenas
institucionais são instrumentos da luta política que possuem severas limitações. Não é de
hoje o diagnóstico de que os esforços despendidos pelos movimentos sociais para a
inserção nestes espaços (sobretudo nos conselhos gestores de políticas públicas) parecem
ser muito grandes em face dos resultados concretos obtidos. A análise de Tatagiba (2002)
no início dos anos 2000 já apontava para esse cenário. Independente dessa constatação, é
claro que os movimentos sociais não podem simplesmente abrir mão da participação
nestes espaços. Bem ou mal, estes também se constitutem em um espaço de disputa,
inclusive do ponto de vista ideológico. Mas o fato é que hoje parece haver uma
percepção cada vez mais fote no meio movimentalista de que os movimentos sociais
deram muita importância aos espaços institucionais no processo de mobilização. Isto
acabou absorvendo muita energia das organizações populares e em alguns casos até
mesmo transformando ativistas em gestores públicos, algo que sempre constitutiu fonte
de tensão permanente no interior dos círculos militantes. Afinal, por mais que o
movimento atue em conjunto com o Estado, cada um tem uma lógica de ação peculiar.
Como dizem importantes lideranças: "movimento não é Estado, e Estado não é
movimento".
Em outros termos: o risco de que os movimentos sociais sejam absorvidos
pelas instituições políticas é real, e isso não deve ser subestimado pelos estudiosos. E é
em grande medida em função disso que resulta o nosso incômodo com o foco na
dimensão institucional da participação: por vezes, os analistas parecem relativizar tanto
as fronteiras entre o Estado e os movimentos sociais com o intuito de analisar as relações
que se estabelecem entre ambos que corremos o risco de diluir estas fronteiras por
completo e ignorar justamente as clivagens estruturais inerentes à luta política. Com isso,
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não estamos defendendo o abandono da agenda de pesquisa centrada nas instituições
participativas e nas múltiplas esferas dentro das quais movimentos sociais e Estado se
tocam. Ainda há muito a ser pesquisado sobre este assunto, especialmente pelo fato de
que, em termos históricos, tudo isso continua sendo muito novo na sociedade brasileira.
Sem dúvida, ainda há muito a ser investigado e problematizado no que se refere aos
processos participativos intitucionalizados.
O que estamos defendendo aqui na verdade é que esta agenda seja
enriquecida e não fique tão restrita à essa dimensão. Reforçando o que já foi exposto ao
longo do texto, a disputa pela construção da democracia não se desenrola apenas nos
pontos de intersecção entre Estado e ativistas sociais, mas sim em múltiplas esferas e
contextos. E, sem dúvida, uma das esferas que precisa ser mais valorizada analiticamente
é a rua, que consideramos ser o principal lócus de atuação dos movimentos sociais. É
sobretudo através da luta nas ruas que os movimentos conseguem equilibrar o jogo a seu
favor. Historicamente, nas democracias ocidentais, o protesto e a ação disruptiva tiveram
um papel crucial na construção e na ampliação dos direitos básicos de cidadania. Os
estudiosos da democracia precisam reconhecer a importância de tais ações para a luta
pela democratização das democracias reais. A dimensão institucional da luta política é
muito relevante, mas ela é insuficiente para que possamos ter uma compreensão mais
ampla a respeito da complexidade dos projetos políticos em disputa e da profundidade
dos conflitos que estruturam a sociedade. É nesse sentido que, a exemplo do que outros
estudiosos vêm fazendo, procuramos resgatar a importância do conflito como um
elemento essencial na luta pela construção da democracia e na ampliação dos direitos
civis, políticos e sociais. O movimento de moradia analisado por esta pesquisa apresenta
interessantes evidências empíricas que reforçam nosso argumento em favor de uma
agenda de pesquisa mais ampla sobre a participação política.
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