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T

odos estarão lembrados da figura de

fogo e paixão que é a cigana Carmen, a

heroína da ópera de Bizet. Menos lembrados,

talvez, da novela inspiradora da ópera, Carmen,

de Prosper Mérimée. Na novela, está enfatizado

o lado feiticeiro da cigana, sabedora de magias

que despertam o amor. A D. José, que a leva presa

depois de uma briga de mulheres na Manufatu-

ra dos Tabacos de Sevilha, Carmen promete, em

troca da liberdade, “um pedaço da bar lachi,

pedra de imã que lhe permitiria executar sorti-

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MARLYSE MEYER

FEITIÇOS
DO AMOR

MARLYSE MEYER
é professora
aposentada da
FFCH-USP.
É especialista
na aproximação
de cultura de elite
e cultura popular.

Esta ilustração
e as seguintes
fazem parte
do livro Maria
Padilha e Toda
a sua Quadrilha,
de Marlyse Meyer
publicado pela
Editora Duas
Cidades

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légios garantindo o amor de todas as mulhe- ta, mas sim uma entidade sobrenatural, que,
res”. O mesmo D. José surpreende Carmen num ritual de possessão, apodera-se de um
executando magias, mexendo pedaços de corpo, feminino ou masculino, mimetizando o
chumbo num alguidar cheio d’água, cantan- que parece ter sido a essência de seu longínquo
do “canções mágicas que invocavam Maria homônimo europeu. O nome é Maria Padilha.
Padilla, que fora, diziam, a Bari Crallisa, a A partir de moventes indícios e sinais,
grande rainha dos ciganos”. para retomar termos de Carlo Ginzburg, ten-
Vamos reencontrar Carmen e Maria de Padilla, tei reconstituir trajetórias e metamorfoses
ou Maria Padilha, no decorrer deste tex- desse nome, detetivesca busca das pas-
to que trata de uma representação sagens e dos elos perdidos num
feminina. quadro de verossimilhanças
Uma representação da possíveis, que permitiriam re-
mulher que se instala em fi- lacionar essas figuras
nais da Idade Média, solida- transgressoras de que se vai
mente assentada nas Sagra- tratar aqui (1).
das Escrituras, prolonga-se Resumindo meus encon-
pelo Renascimento e vem até tros com esse nome.
o século XVIII, nascida da Primeiro encontro, defla-
misoginia e de um medo não isen- grador da pesquisa: Maria Padilha
to de assustado fascínio, o medo dos figura entre outras invocações demoní-
homens da Igreja, dos homens da toga, do acas num conjuro destinado a favorecer amo-
poder leigo, gentes das classes elevadas, as- res, pronunciado por uma feiticeira portuguesa
sociados esses medos a antigas representa- degredada em Recife, Pernambuco, após pas-
ções populares. sagem por Angola, em 1718. Uma Antonia
Vou falar de feiticeiras. Não daquelas Maria de Beja, cujas vicissitudes foram estu-
bruxas velhas, estereótipo igualmente engen- dadas e descritas pela historiadora Laura de
drado pelos homens, mas de feiticeiras talvez Mello e Souza a partir dos autos da Inquisição.
mais perigosas, belas, jovens, a cujos sortilé- Antonia Maria é feiticeira que não hesita
gios, filtros e invocações diabólicas, de natu- em utilizar em benefício próprio suas
reza “amatória”, se acresce o feitiço imanente encantações (seduziu um seu vizinho), as
de sua própria e execrada sedução, quais teriam reforçado sua figura graciosa,
diabolizadas figuras da transgressão. “de pequena estatura, alva de rosto, olhos
A elas cheguei pela mediação de um nome. pretos e fermosos”, como rezam os autos.
Não um qualquer nome que poderia ser um Um exemplo de oração. Sentada no portal
outro qualquer, como diz Shakespeare, para de sua casa, dizia Antonia Maria: “neste portal
nomear o eterno perfume da rosa, mas um me venho assentar... vá Barrabás, vá Satanás,
nome único, um nome próprio, intransferível vá Lucifer, vá Maria Padilha com toda a sua
portanto. Mas, emboscado nas fímbrias de quadrilha, e todos se queiram juntar e de qual-
imaginários movediços, varando o tempo e quer forma em casa de fulano entrar, e o não
as fronteiras, como que consubstancial ao que deixem comer, dormir, nem repousar, sem que
nomeia, vem esse nome se repetindo. Uma pela minha porta adentro venha entrar [...]”.
permanência, como haveria de descobrir, feita Ou este outro conjuro, inserido numa sé-
de metamorfoses, desvios, migrações e rie de operações mágicas praticadas por
transmigrações, desde o tempo – um tempo Antonia Maria:
que não é o da fábula, mas está inscrito na
História – em que por esse nome atendia na “‘O céu vejo, estrelas acho, Senhora Santana
Espanha do século XIV uma linda mulher de que farei que ainda hoje não vi a fulano e
carne e osso e de atributos muito especiais. O fulano [...] Senhora Santana, talvez ocorra
que a fez entrar na lenda, melhor dizendo, a lembrar que Santana era a grande padroeira
atirou nos abismos infernais. Nome que no dos [ciganos], assim como o mar mareja, o
Brasil nomeia hoje, já não uma mulher concre- céu estreleja e o vento venteja, e os peixes não

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podem entrar no mar sem água, nem o corpo Y el Rey de la flor de lis
sem alma, assim fulano e fulana não possam Pone en su escudo mis armas.
estar sem o perdão virem a dar’. Antonia metia De Francia vine á Castilla,
a boca na tigela, batia no chão com três varas ¡Nunca dejara yo á Francia!
de marmeleiro, invocava ‘Barrabás, Satanás, [...]
Caifás, Maria Padilha com toda a sua quadri- Hija soy de la desgracia.
lha, Maria da Calha com toda a sua canalha, Caséme en Valladollid
cavalo-marinho que com pressa os traga pelo Con Don Pedro, Rey de España;
caminho’. Jogava num fervedouro pedra El semblante tiene hermoso,
d’ara, buço de lobo, alfazema, sangue de leão, Los hechos de tigre hircana.
barbasco [...]”. Dióme el si, no el corazón,
¡ Alevosa es su palabra!
Segundo encontro: no Romancero Gene- ¡ Rey que la palabra miente!
ral de España, organizado por A. Duran, na ¿ Que mal habrá que no haga?
seção dos “romances relativos a la historia Posesion tomé en la mano.
de España”, 14 romances tratam da vida de Mas no la tomé en el alma,
Pedro I, o Cruel de Castela (1334-69) e de sua Porque se la dió primero
amante, a bela Doña Maria de Padilla. A otra mas dichosa dama;
O Romancero (cujas grandes linhas são A una tal Doña Maria
confirmadas por manuais de História da Que de Padilla se llama,
Espanha) apresenta duas visões dos persona- Y deja su mesma esposa
gens. Uma, em que D. Pedro é chamado O Por una manceba falsa
Justiceiro, favorável ao casal e a Doña Maria [...]
de Padilla, cuja lembrança aliás é até hoje con- Caséme en un dia aciago,
servada em Sevilha, em nome de ruas, na ca- Martes fué por la mañana,
tedral em cuja cripta está enterrada ao lado do Y el miércoles enviudaron
rei, no real Alcazar onde se mostram seus apo- El tálamo y la esperanza.
sentos, o pátio das “muñecas” onde brincavam Dile una cinta á Don Pedro
as filhas que tivera com D. Pedro, e os “baños De mil diamantes sembrada,
de Doña Maria de Padilla”. Séculos depois de Pensando enlazar con ella
sua morte o poeta Quevedo ainda lembraria Lo que amor bastardo enlaza:
que: “Era hermosa la Padilla / Manos blancas Húbola Doña Maria,
y ojos negros”. E outra versão, negativa, a mais Que cuando pretende alcanza;
difundida, obra dos inimigos de D. Pedro, dos Entregola a un hechicero
homens de igreja, oficializada e difundida a De la hebrea sangre ingrata;
partir da Crônica del Rey Don Pedro do cro- Hizo parecer culebras
nista Pedro Lopez de Ayala, contemporâneo Las que eran prendas del alma.
do rei, escrita em fins do século XIV. Esta Y en este punto acabaron
versão insiste sobre a crueldade do rei, e atri- La fortuna y mi esperanza”.
bui a Maria de Padilla a instigação aos crimes
que lhe valeram a alcunha, entre eles a de ter Os dotes de feiticeira atribuídos à “mala
mandado matar sua legítima esposa, Doña mujer”, “manceba falsa”, figuram uma ima-
Blanca de Borbon, a qual “nem conhecera”, gem que correspondia à misoginia de que o
após tê-la mantida anos encarcerada. Escute- Malleus Maleficiarum (circa 1486),
mos o lamento de Doña Blanca: celebérrimo manual de caça às bruxas, e vá-
rios outros textos eclesiásticos dão boa de-
1 Ver Marlyse Meyer, Maria
“contando su historia amarga: monstração. Misoginia que abomina a sedu- Padilha e toda a sua Qua-
drilha: de Amante de um
A una dueña se la cuenta ção feminina, e que deve sem a menor dúvida Rei de Castela a Pomba-
Que en la prision la acompaña. estar na origem da lenta metamorfose da fi- Gira de Umbanda, São
Paulo, Duas Cidades,
– De Borbon, dice, soy hija; gura da bela Maria de Padilla em invocação 1993.

De Carlos, Delfin, cuñada, demoníaca (2). 2 Idem, ibidem, pp. 44-50.

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Como se teriam dado as passagens? Diablo Cojuelo [...] y de Doña Maria de
Como, da Espanha, o conjuro chegou a Padilla y toda su cuadrilla”.
Portugal, para depois atravessar os mares com O nomadismo das feiticeiras ciganas, cru-
as Antonias Marias e se fixar nas memórias zando suas irmãs de “profissão”, mais a cir-
até desembocar no uso atual numa religião culação oral dos conjuros numa constante
inventada no Brasil, que mistura elementos repetição dos mesmos problemas amorosos
dos rituais indígenas, africanos e do espiritis- que não necessitavam a renovação do fundo
mo do francês Allan Kardec, era o problema “hechiceril” explicariam em parte a trans-
a tentar resolver. missão de mesmos nomes e orações a Portu-
Já evoquei a pista francesa que me levou gal. Deve-se acrescentar que, dentro desse
à Espanha, melhor dizendo à Andaluzia e aos processo de “circulação dos seres e das coi-
ciganos: a Carmen de Mérimée e seus sorti- sas pela Europa de então”, as ciganas podem
légios. Confirmou-se, graças a um livro re- ter conhecido feiticeiros africanos, uma vez
cente da historiadora Maria Elena Ortega (3), que era grande em Sevilha o número de ne-
que também trabalhou com autos da gros, escravos ou forros, originários da
Inquisição espanhola, a presença do conjuro Guiné, comercializados por Lisboa desde
de Maria Padilha, para efeitos “amatórios” fins do século XIV, para trabalharem nas
tanto entre feiticeiras ciganas como feiticei- culturas de açúcar andaluzas. Negros esses
ras “cristianas viejas” de Espanha: “Por dos quais muitos já nascidos em Sevilha,
Barrabás, por Satanás y Lucifer/ Por doña forros muitos deles, confundindo-se com a
Maria de Padilla/ Y toda su cuadrilla”, invo- arraia miúda dos empregos subalternos.
ca a feiticeira Geronima Gonzales, “cristiana Eram cristianizados, tendo criado a confra-
vieja”. E a mesma, no “conjuro de las ria de Nossa Senhora de los Angeles no bair-
cazoletas”: “Por Barrabás, por Satanás y por ro de Triana onde coabitavam com mouros
Lucifer/ Por doña Maria de Padilla/ Y toda e ciganos congregados em torno de sua pa-
su compañia”. droeira Santa Ana que também tinha sua
Outra feiticeira “cristiana vieja”, Laura igreja em Triana. Cristãos, embora, se ti-
Garrigues, num ritual em que manda a mu- nham conservado o uso das danças de seu
lher abandonada à janela fazer um pedido “às país de origem, para gáudio dos sevilhanos
forças benevolentes do exterior” (será o dia- (4), provavelmente não teriam esquecido
bo o gran señor de la calle?), pronuncia: seus dotes mágicos. Essas trocas todas cer-
tamente aumentadas depois da anexação de
“Vecino y compadre Portugal à Espanha (1580-1640). Da
Gran Señor de la calle Espanha a Portugal, e daí, pelas punições da
Solia venir a casa Inquisição, passando por Angola, ao Brasil.
Y ahora no viene Aí também aportaram muito cedo, despa-
Yo quiero que vengas chados igualmente pelo Santo Ofício, os ci-
Si me lo has de traer ganos portugueses. Por que misteriosos pro-
Yo te conjuraré cessos se foi perpetuando a memória dos fei-
Con tres almas de mocicos enamorados tiços e do nome que os encarnavam, é difícil
Con tres almas de desesperados responder.
Con el alma de doña Maria de Padilla O fato é que vamos encontrar o nome de
Y toda su cuadrilla [...]” Maria Padilha associado ao Exu dos terrei-
ros dos cultos afro-brasileiros, aquele espa-
E haveremos de encontrar as mesmas in- ço dinamizado por uma força, o “axé”, onde
3 Maria Elena Sánchez Or-
tega, La Inquisición y los vocações na boca das feiticeiras ciganas con- se cultuam os orixás que ali “baixam” e se
Gitanos, Madrid, Taurus,
1988. denadas pela Inquisição cujos processos apoderam da cabeça de seus “filhos”, os quais
4 Carmen Bernand e Serge
Ortega examinou. Por exemplo, Adriana, dançam para eles. Os orixás são divindades
Gruzinski, Histoire du “gitana celestina”, de grande reputação: “Asi que representam uma força natural cósmica,
Nouveau Monde, 1. De la
Découverte à la Conquête, como esto yerbe, yerbe el corazón de Blas, en individualizados conforme sua relação com
Paris, Fayard, 1991, pp.
111-2; 184-5. el nombre de Satanás y de Barrabás y del os diferentes aspectos da natureza, e se reen-

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contram simbolicamente no espírito do ser
humano. Este é composto por um orixá prin-
cipal, dono de sua cabeça, um segundo orixá
e outros ainda, cuja presença é indicada pelo
jogo das adivinhações, os búzios. O conjun-
to dos orixás estrutura a pessoa do filho-de-
santo. Nesse conjunto figura sempre obriga-
toriamente Exu. Exu é entidade ambígua,
uno e múltiplo, pois, além de ser o orixá
mensageiro geral entre os homens e as di-
vindades, entre os vivos e os mortos, guardião
da porta da rua e das encruzilhadas, e obri-
gatoriamente invocado no início dos rituais
públicos, cada orixá tem um Exu que lhe
serve de “escravo”, de mensageiro particu-
lar, o qual fica assim também associado ao
“filho” desse orixá .
Na umbanda o Exu conservou suas atri-
buições de mensageiro, de dono dos cami-
nhos e do cemitério, mas incorporou novos
sentidos, entre os quais o de sincretizar-se
com o diabo cristão e entrar na hierarquia dos
demônios bíblicos, da cabala. A partir dele se
projetou seu duplo feminino, também diaba,
também ligada à morte: a pomba-gira (prova-
velmente do banto bombo-giro). Mas, ressal-
vam os teóricos da umbanda, sendo ela mu-
lher, sempre será mais perversa do que o seu
homólogo masculino...
Há grande variedade, donde nomes di-
versos, de exus e de pombas-giras, associa-
dos a atributos diversos.
A pomba-gira possui vários poderes, en-
tre os quais o de resolver problemas amoro- As pessoas que entrevistei sempre de-
sos. Quando baixa no corpo de um fiel toma monstram certa hesitação antes de respon-
geralmente a forma de uma prostituta ou der, quando se trata da dona Padilha, como
mulher da vida, usa roupas de cores vivas, se tivessem medo de desagradar a essa enti-
fuma, bebe, solta estrepitante gargalhada. dade. São visões por vezes diferentes, mas
Mas existe uma pomba-gira que se sobressai todos concordam quanto à sua força, seus
entre as demais, geralmente não “encarna” poderes, sua beleza, sua grandeza passada.
como prostituta, tem capa e coroa, pois é Todos lhe atribuem origem nobre, é branca,
considerada a rainha das pombas-giras. Ocu- linda, princesa espanhola, ou, como me dis-
pa alto posto na hierarquia infernal: é mu- se um senhor, dono de um terreiro em São
lher de Lúcifer. É muito cultuada, temida e Paulo, “não é branca não, é princesa africa-
procurada por um número cada vez maior de na, mas quando baixa, é loura, esguia, linda
fiéis que recorrem a seus poderes. de morrer [...]”. Ela fuma os melhores cigar-
A rainha das pombas-giras é também a ros, bebe vermute, champanhe, ou anis. Ofe-
única a possuir um nome próprio, e esse nome recem-lhe rosas vermelhas. Pede, e recebe
é Maria Padilha: “Na família da Pomba-Gira/ no dia que é o seu, que, em muitos lugares,
Só se mete quem puder/ Ela e Maria Padilha/ é o dia dos mortos, belíssimas roupas, só
São mulher de Lucifer”. usadas pelos médiuns em transe no dia de

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sua festa. Ela encarna, resumindo todas as raigado preconceito, o medo da mulher, que
pombas-giras, a sedução feminina com toda os teólogos oficiais da umbanda ainda tei-
sua carga transgressiva. mam em teorizar. Pomba-gira = luxúria =
“Me deixe tão atrativa quanto você, Ma- mal absoluto = Asmodeus = Demônio Mor,
ria Padilha, mostre-me sua força. Me dê o mais alto que Lúcifer: o DIABO.
poder de dominar e não ser dominada e me Não se poderia ver nessa entidade como
deixe tão atrativa quanto você, Maria que a metamorfose, o avatar atualizado, con-
Padilha”, reza uma oração à entidade. temporâneo, dentro da sociedade brasileira
Tanto quanto o marginalizado Exu, a pom- de hoje, daquelas feiticeiras dos tempos
ba-gira vem sendo, repito, cada vez mais coloniais, tão concretamente ressuscitadas
querida e procurada por consulentes aflitos. pelas pesquisas de Laura de Mello e Souza?
E estes pertencem a todas as camadas sociais; Acredito ser possível situar a pomba-gira
costumam ir à festa dela levando presentes numa linha que vem desde essa feiticeira
para agradecerem os benefícios recebidos. colonial, a qual, ainda em Portugal, mistura-
Ainda que essa grande procura da pom- va milenares feitiços pagãos, bíblicos,
ba-gira, em geral, da forte Padilha, em par- cabalísticos, cristãos, reelaborados pelo cris-
ticular, possa se explicar pelo apelo aos seus tianismo militante da Inquisição que,
dotes de feiticeira para resolver as agruras demonizando-a, “reinventou” a feiticeira, até
da vida e do coração, e, para quem a recebe as mandingas africanas, nas quais o
em transe, como compensação às frustrações islamismo também tinha a sua parte. Uma
da pobreza cotidiana, não se poderia tam- África deambulante, que circulava dentro do
bém ver nesse culto a atração pela sistema colonial espanhol e português. Em
perturbadora figura de sedução que a pom- Portugal, onde era muito grande a mão-de-
ba-gira encarna? O que a levou à obra escrava negra (e moura), trazida por
demonização pelos bem-pensantes, entre os funcionários, diretamente d’África ou do
quais, repita-se, incluem-se os teóricos Brasil. Na Espanha, onde muitos negros já
umbandistas, que, ao equipará-la a Exu, in- nasceram em Sevilha, mas haviam conser-
sistem todavia sobre o seu lado negativo, vado o uso das danças da África das origens,
porque é mulher? Atração pela liberdade do ao mesmo tempo que, cristianizados, havi-
amor fora das normas que ela representa? am fundado uma confraria consagrada a
Figura mítica do mundo invertido, a pomba- Nossa Senhora de los Angeles. No Brasil,
gira não só atende e pode permitir exprimir para onde eram degredados, entre tantos
os amores fora da divisão costumeira dos outros, os escravos africanos da metrópole,
sexos, como ainda deve seduzir tanto ho- condenados por feitiçaria, ao passo que aque-
mens como mulheres pela sua atuação amo- les condenados no Brasil pelo mesmo delito
rosa fora da domesticidade das normas. O eram despachados, às vezes mal sabendo
“balanço” da norma. O “balanço” da encruza. falar português, para serem julgados pelos
“Mulher de sete maridos.” “Atrativa Maria tribunais do Santo Ofício em Portugal. E,
Padilha, linda mulher, rainha do candom- sempre acompanhando as idas e vindas, a
blé.” Feiticeira. Prostituta. O interdito. O dito circulação dos feitiços, principalmente re-
tão lindamente por Guimarães Rosa: “Aquela sumidos nas bolsas de mandinga (amuletos),
linda moça, meretriz, vestida de vermelho, de cuja confecção e comercialização esses
por lindo nome Nhorinhá... falada de ser fi- escravos africanos eram especialistas, diz
lha de ciganos... Nhorinhá, prostituta, pimen- Laura de Mello e Souza. As mesmas bolsas,
5 João Guimarães Rosa, ta branca, boca cheirosa... Nhorinhá puta e diz ela ainda, que eram também fabricadas
Grande Sertão:Veredas,
Rio de Janeiro, José bela, que casou com muitos e sempre nasceu por índios e mestiços no Grão-Pará (6).
Olímpio, 1956.
em flor” (5). Se supusermos que as feiticeiras brancas
6 Laura de Mello e Souza, O
Diabo e a Terra de Santa
Uma valorização da feminilidade no que portuguesas possivelmente cruzaram seus
Cruz: Feitiçaria e Religio- tem de primordial, de força viva. Como que homólogos africanos não só pelas ruas da
sidade Popular no Brasil
Colonial, São Paulo, Com- se quebra, nessa instância libertadora da re- metrópole, como talvez nos cárceres
panhia das Letras, 1987,
pp. 194-201, 210-26, 273. lação entidade/consulente, o milenar e ar- inquisitoriais, e sabendo que podiam passar

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por Angola a caminho do degredo para a gia para garantir sua posição. A sua bele-
Terra de Santa Cruz, itinerários que também za: “ojos negros, manos blancas”, a
teriam permitido encontros com outros “hermosa” Doña Maria de Padilla ficou
mirongueiros, os ciganos, igualmente per- na lembrança dos poetas até três séculos
seguidos pela Inquisição, imagine-se o grau após sua existência terrena. A sua
alucinante de trocas mágicas de todas essas demonização, já anunciada no Romancero:
vítimas do Poder único da Santa Madre, ví- enfeitiçadora, metaforicamente, como to-
timas detentoras de altos poderes! E, nessas das as grandes mulheres sedutoras, e “con-
trocas, teria continuado a pairar, num fenô- cretamente”, pelo cinto de pedrarias que
meno de longas e recônditas memó- se transforma em serpentes. Asso-
rias, a lembrança da “hermosa ciada a Salomé e São João
Doña Maria de Padilla, ojos Batista. Este último, opositor
negros, manos blancas”, de Asmodeus, associado às
aqueles mesmos olhos de bruxarias.
perdição que vamos reen- Nessa permanência no
contrar nas gitanas como imaginário que forjou a
Carmen, ou na feiticeira “lei” da umbanda/quim-
Antonia Maria. Sem esquecer banda e na preferência dos
“os olhos água-mel, com fiéis por ela e suas filhas tal-
verdolências” de Maria da Luz, a vez se poderia ver ainda, brincan-
mulher-dama do Verde-Alecrim, muito do do com o Tempo, um tempo que insiste
gosto de Riobaldo. É como que um estereó- em ser teimosamente presente, como que
tipo que encarna a perigosa e enfeitiçadora uma reabilitação da vilipendiada Doña
sedução feminina e por isso mesmo Maria de Padilla. A enfeitiçadora mulher
demonizada, sedução e feitiço que continu- que o medo e a inveja dos homens, concre-
am a encarnar as pombas-giras e sua mais tizando a metáfora amorosa,
elevada representação, a rainha de todos, a metamorfosearam em feiticeira. Uma fi-
perigosa e sempre invocada Maria Padilha. gura de subversão tão radical que, irmana-
É nessa longa cadeia que se pode, me da ao Príncipe das Trevas, não se lhe ne-
parece, situar a pomba-gira, simbolizada pela gou, nem no obscuro Reino, a mais alta
figura de Antonia Maria de Beja, Exu men- posição. Expressão simbólica que remete
sageira, ponte entre Europa e Recife, com também, hoje ainda, àquela vertente im-
um desvio por Angola. plícita no velho Romancero, de uma iden-
E por que Maria Padilha? tificação com os excluídos da hierarquia
Se todas as pombas-giras que parecem oficial, que “choraram a formosa Padilla”,
ter prolongado as feiticeiras coloniais têm uma hierarquia onde não faltaram os ho-
características comuns, há uma, como vi- mens de Igreja para quem beleza e paixão
mos, que se destaca entre elas e as resume são banidos, coisa do Demônio.
todas. É dona Padilha. Este nome, perpe- Princesa espanhola cantada ou mal-
tuado no conjuro satânico, terá emergido dita em versos populares, invocação em
de outras profundezas da imbricada me- conjuro “amatório”, Bari Crallisa
mória da feiticeira matricial, fincado em convocada por Carmen, rainha das pom-
raízes ibéricas. Remota lembrança das bas-giras, todas essas figuras se chamam
origens, quem sabe, o nome fixou-se, en- Maria Padilha. Fortes figuras da sedu-
tre as entidades que a continuaram, naque- ção feminina que falam àquelas zonas
la cuja preeminência permitiria associá-la escuras, feitiço e desejo, que habitam
à longínqua e ilustre homônima. homens e mulheres, obscuras e reprimi-
Não faltam, me parece, os indícios que das forças atraídas pela radical subver-
permitam tal associação. A sua história: são que se encarnou num nome. O eterno
nobreza espanhola, amante de um rei, re- perfume da rosa encerrado num andarilho
correndo, diz a lenda, à vingança e à ma- nome próprio.

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