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ANO XIII
No 300
MEMÓRIA
Temos lembranças
guardadas dentro das
psicologia • psicanálise • neurociência células cerebrais
BEM-ESTAR
Ambiente e decoração
gr tidão
fome com tristeza
ou alegria
Agradecimento, uma
proteção psíquica
A
contece mais ou menos assim: em dada situação, você se dá conta
de que tem ao seu alcance algo muito bom de que pode desfrutar,
seja uma experiência, uma oportunidade, um relacionamento ou
mesmo um bem material. Enfim, algo que traz satisfação sensorial ou afeti-
va e permite – ainda que forma breve – que sua mente relaxe, sem se deixar
levar pela busca constante daquilo que quer ou precisa. Nesse instante,
toma conta de você uma onda de gratidão (que também podemos chamar
de felicidade).
Para que essa sensação surja, ocorre uma movimentação no cérebro:
a liberação da dopamina, um neurotransmissor capaz de ativar o sistema
de recompensa. Por outra via neural, são estimuladas outras formas de li-
beração de um hormônio chamado ocitocina, que potencializa os vínculos
afetivos, favorece a tranquilidade, reduz a ansiedade e o medo. É como se
o um mundo ao nosso redor, muitas vezes hostil, se tornasse de repente
um lugar aconchegante para viver.
Um dos fatos mais curiosos: não somos capazes de sentir ao mesmo
tempo satisfação e angústia (uma imediatamente após a outra é possível,
mas não processamos esses estados mentais de maneira simultânea).
Portanto, nesse sentido, a gratidão funciona como uma espécie de bálsa-
mo psíquico que nos protege do sofrimento.
O artigo de capa desta edição de Mente e Cérebro mostra que, feliz-
mente, a gratidão pode ser exercitada e fortalecida. Entre os vários estudos
que mostram que isso é possível, um artigo publicado por pesquisado-
res da Universidade de Indiana no periódico científico Neuroimage, por
exemplo, atesta que após poucos meses exercitando conscientemente a
gratidão é possível constatar alterações cerebrais visíveis em exames de
imagem do cérebro. Mas os cientistas que se dedicam a entender esses
processos ressaltam: não se trata de negar a tristeza ou supervalorizar
conquistas pessoais – e sim reconhecer, em um nível mais profundo, o
que temos de positivo e dar a esse saber o devido lugar. Em última ins-
tância, parece que gratidão também está relacionada ao cuidado consigo
mesmo e à inteligência.
Boa leitura!
GLÁUCIA LEAL, editora-chefe
glaucialeal@editorasegmento.com.br
sumário | janeiro 2018
10 capa
O poder terapêutico
da gratidão
por Rebecca Shankland 20 Onde não moram as
Reconhecer o que temos ou recebemos
lembranças
de positivo amplia a satisfação geral por Roni Jacobson
em relação à vida e nos torna mais Não basta usar drogas para
resistentes às adversidades. Alguns apagar lembranças dolorosas,
pesquisadores acreditam que o cultivo como durante muito tempo
dessa atitude com a manifestação o cientistas acreditaram, pois
agradecimento genuíno ajuda a evitar elas persistem profundamente
sintomas de depressão e ansiedade. no interior de células
cerebrais; a constatação abre
novas perspectivas para a
compreensão do Alzheimer
especial
22 A estreita relação entre
humor e comida
Na cabeça de quem
28 voltou da morte
O “comer emocional”,
embasado na necessidade de
aplacar algum desconforto
ou a dificuldade de lidar com
por Felipe Leal, Mateus
sentimentos –ainda que
Silvestrin, Raquel Giacóia Leal e
positivos – é um risco para a
Edson Amâncio
saúde física. Neurocientistas
O fenômeno fascina leigos ensinam “truques” para evitar
com relatos da visão do essa armadilha
próprio corpo observado do
teto, imagens de túneis que
levam à luz e o encontro com 24 Entre a razão e a emoção
parentes e amigos já falecidos.
por Jorge Moll e Ricardo de
Para psicólogos, médicos e
Oliveira-Souza
neurocientistas, esse estado
de consciência tão específico, Quando nossas escolhas
relatado por pessoas em envolvem valores éticos –
todo o planeta, pode revelar como sacrificar algumas vidas
informações importantes sobre para salvar outras tantas –
o funcionamento do cérebro e entram em jogo complexos
da mente mecanismos psíquicos e
neurológicos.
4
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Spektrum der Wissenschaft
Verlagsgesellschaft, Slevogtstr. 3-5 Edição no 298, novembro de 2017,
69126 Heidelberg, Alemanha ISSN 1807156-2.
Narrativas sutis
se desenrolam
A ssistir a Com Amor, Van Gogh é uma experiência
sensorial e afetiva. A animação, criada com base em
pinturas, seguindo o estilo do artista holandês, não ape-
simultaneamente. nas mostra as obras, mas de fato se passa dentro delas.
Céu, estrelas, campos, flores, casas e rostos escapam do
Uma delas trata de enquadre usual, ganham movimento e som sem perder a
perseverança na busca identidade, à medida que as pinceladas rápidas e os tons
pela reconstituição fortes se multiplicam em uma cena após a outra, apre-
sentando cenários e personagens retratados pelo artista.
histórica e promove não A produção do longa-metragem traduz um delicado traba-
apenas uma homenagem lho artesanal: 125 pintores, comandados pelos diretores
póstuma ao artista, mas Dorota Kobiela e Hugh Welchman, trabalharam em mais
também uma espécie de 65 mil frames. Um dos maiores desafios foi a iniciativa
inédita de adaptar técnica da pintura a óleo a cada imagem
de reparação simbólica apresentada. Nos últimos momentos do filme, aliás, é
ao seu sofrimento curioso ver as comparações entre os quadros conhecidos
– e revisitados – e os atores caracterizados.
Há, porém, outras narrativas, mais sutis, que se de-
senrolam simultaneamente. Uma delas trata de perse-
verança e reparação. Na trama, o jovem Armand Roulin
retorna à cidade francesa de Arles, depois de um ano da
morte do pintor naquele local, com uma missão: entregar
a Theo, irmão de Vincent, uma última carta escrita pelo
pintor que havia sido perdida. A tarefa foi conferida por
6
divulgação
seu pai, o chefe dos Correios, que havia se afeiçoado a atirar no próprio peito. “Uma possível razão para Van Gogh
Vincent Van Gogh, após tantas vezes providenciar o envio ter tomado essa atitude pode ter sido o desejo de deixar de
de correspondências para o artista, que frequentemente ser uma preocupação para o irmão que, além de sustentá-lo,
se comunicava com o irmão. No início, o rapaz rejeita a sustentava a esposa e a mãe”, explica a mestre em artes vi-
incumbência, mas termina por se entusiasmar com a in- suais Liane Carvalho Oleque. Após a tragédia, o pintor ainda
vestigação sobre as circunstâncias que envolveram o fale- conseguiu retornar para a hospedaria onde vivia, mas mor-
cimento. Afinal, teria sido suicídio ou assassinato? A bus- reu dois dias depois. O filme mostra que, com a morte do
ca de uma resposta para essa pergunta, no entanto, não irmão, Theo (que já enfrentava problemas graves de saúde)
parece ser o mais importante, mas sim um caminho para caiu em profunda depressão e sucumbiu seis meses depois,
reconstituir os últimos meses da vida do pintor, abordan- deixando a esposa e um filho chamado Vincent.
do conflitos emocionais, sofrimento psíquico, angústia, Ao desvendar detalhes dessa história, atravessando os
busca por tratamento, bem como seus escassos relacio- espaços habitados e retratados por Van Gogh, na busca
namentos e uma possível história de amor. pela reconstituição de sua história, Roulin promove não
O filme procura ser fiel ao que conta a história oficial. apenas uma homenagem póstuma, mas também uma
Nos últimos anos antes de seu falecimento, o artista – espécie de reparação ao artista morto em 1890, aos 37
que apesar de desenhar desde criança só começou a se anos. A descoberta de que não seria possível entregar a
dedicar à sua arte com afinco após os 28 anos – pinta- carta destinada a Theo (porque ele mesmo também já
va regularmente e estava em plena atividade criativa. Na estava morto) parece despertar em Roulin a persistência
tentativa de encontrar alívio para suas crises, procurou o implícita de ressaltar algo verdadeiro e belo – como se,
médico Paul Gachet, retratado em uma das obras mais de certa forma, fosse possível compensar o sofrimento
famosas de Van Gogh, Retrato do Doutor Gachet. e a solidão que subjaz à história de Van Gogh. E, nesse
Como descobre Roulin em suas investigações, em 27 de trajeto, o jovem termina por se reconciliar com o próprio
julho de 1890, o artista teria então saído para um passeio no pai. Uma reparação banal, talvez, mas simbolicamente
campo, carregando consigo um revólver e teria acabado por ocorrida numa noite estrelada.
janeiro 2018 • mentecérebro 7
bem-estar
Influências do
ambiente
sobre a
percepção
Psicólogos da Universidade Yale tentam descobrir como
características dos lugares que frequentamos nos afetam;
cientistas já constataram, por exemplo, que cômodos abafados
e lotados costumam deixar as pessoas mais tensas
M
uitos pesquisadores costumam torcer
o nariz para assuntos como canais
energéticos e cristais. Alguns, che-
gam a admitir que embora não
endossem essas práticas, preferem aguardar
comprovações para se pronunciarem. Há,
porém, prática não comprovada cientificamente
– pelo menos por enquanto que desafiam os estudiosos.
É o caso, por exemplo, do feng shui, a antiga arte chinesa
shutterstock
10
O poder
terapêutico
da
A AUTORA
REBECCA SHANKLAND é doutora em psicologia, professora do Laboratório
Interuniversitário de Psicologia da Universidade Pierre Mendès France, Grenoble 2;
escreveu La psychologie positive (Dinod, 2012).
por exemplo, um professor que dedica mui- apreciadas. Na realidade, não se trata de uma
tas horas de seu tempo para montar uma forma de submissão nem reflete um estado
comédia musical com seus alunos, com a de espírito que diminui quem a experimenta.
intenção de melhorar a atmosfera em sala de Acima de tudo, é um modo de relacionar-se
aula e transmitir à garotada maior entusias- com a vida. A “orientação para a gratidão”
mo com relação à escola. Caso nem os pais constitui um traço de personalidade – pas-
nem os próprios alunos demonstrem algum sível de ser desenvolvido e fortalecido. Re-
sinal de reconhecimento pelo trabalho, po- conhecer a importância do apoio alheio não
dem surgir decepções e tensão. Inversamen- é, de maneira alguma, incompatível com a
te, se o professor receber agradecimentos e consciência do valor dos esforços individuais.
talvez até um presente coletivo, o gesto pode Um atleta, por exemplo, atribui seu sucesso à
consolidar vínculos afetivos. Ou, eventual- própria constância nos treinos, mas se pos-
mente, provocar em algumas pessoas a sen- sui um elevado grau de orientação para a gra-
sação de que “são devedoras” de quem lhes tidão irá considerar também essencial para
dedicou algo. Para entender esses processos, a vitória a contribuição das pessoas que o
é importante compreender alguns aspectos cercam: a família pela paciência, o time pelo
fundamentais para o bem-estar psicológico. apoio, até mesmo os rivais que o impulsiona-
ram a melhorar.
FAZ BEM PARA QUEM? Inúmeros estudos têm revelado que pes-
Há alguns anos, o pesquisador Jean Dumas, soas orientadas ao reconhecimento tendem
professor da Universidade de Purdue, nos a ser mais dinâmicas, otimistas, empáticas
Estados Unidos, pediu que um grande nú- e abertas a experimentar emoções positivas.
mero de voluntários avaliasse 800 traços de Segundo a neurocientista Sonja Lyubomirsky,
personalidade: os resultados demonstraram da Universidade da Califórnia, em Riverside,
que a gratidão é uma das 30 qualidades mais quanto mais alto é o nível de orientação para a
janeiro 2018 • mentecérebro 13
capa
gratidão de uma pessoa, menos ela apresenta anotar uma vez por semana cinco eventos
sintomas associados a ansiedade e depressão que lhes haviam provocado sentimento de
ou vivencia sentimentos de solidão, inveja e gratidão; aos do segundo grupo, os cientistas
frustração. Além disso, os efeitos da gratidão pediram que fossem registradas cinco preo-
costumam ser proporcionais à consciência dos cupações; e aos participantes do terceiro, cin-
eventos que nos inspiraram o reconhecimento. co eventos ao acaso. Após duas semanas, os
Num estudo desenvolvido na Universida- jovens do primeiro grupo declararam se sen-
de da Califórnia, em Davis, os doutores em tir mais otimistas e satisfeitos com os outros
psicologia Robert Emmons e Michael McCul- e também apresentaram menos distúrbios
lough, ambos professores da instituição, di- físicos, como dor de cabeça ou de estômago,
vidiram alunos voluntários em três equipes. em comparação aos outros universitários.
rimeiro rupo deveriam
É PRECISO FALAR
Sentir é bom, mas comunicar o sentimen-
shutterstock
to é melhor ainda. Emmons e McCullough
também constataram que expressar a grati-
dão não constitui a simples comunicação de
um sentimento, mas tem o efeito de aumen-
tar o bem-estar da pessoa que passa pela
experiência. Os pesquisadores verificaram
que mais da metade dos voluntários entre-
vistados declarava que o simples fato de
agradecer sinceramente a alguém os deixava
“extremamente felizes”. Outro trabalho rea-
lizado com adultos que sofriam de doenças
crônicas mostrou resultados semelhantes:
aumento das emoções positivas – alegria,
entusiasmo, incremento da autoestima –
nos dias em que haviam expressado senti-
mentos de reconhecimento.
A orientação para a gratidão é um dos
traços pessoais mais ligados ao bem-estar
psicológico, e diversos fenômenos podem
explicar sua ligação com a saúde física e
mental. Examinemos, por exemplo, seu im-
pacto sobre o modo pelo qual retemos as
informações. As pessoas com alto nível des-
sa característica costumam memorizar mais
facilmente as lembranças prazerosas positi-
vas, o que torna os aspectos da vida mais
agradáveis. A sensação de reconhecimento
aumenta a intensidade com a qual uma pes-
soa pensa em um favor recebido, em quem
o prestou e no contexto relativo à situação:
todos esses elementos contribuem para re-
forçar aquela lembrança.
Quando se pede a indivíduos com um
alto nível de orientação para a gratidão que
se recordem de eventos do passado, eles
apresentam maior número de lembranças
boas, enquanto pacientes deprimidos de-
monstram tendência às evocações nega-
tivas. Assim, dado que a orientação para a
gratidão permite se concentrar nos fatos po-
sitivos, é possível pensar que essa tendência
reduz o risco de depressão.
Sentir-se intimamente grato – por tudo a
que temos acesso e mesmo pelas atitudes
que nos beneficiam até sem que haja essa
intenção específica – também favorece as
interações sociais, o que pode ser um im-
portante fator de bem-estar. Perceber as
emoções positivas alheias direcionadas a
nós aumenta a autoestima: sentimo-nos
considerados, amados, valorizados e apoia-
dos. Além do mais, ao nos voltarmos prin-
cipalmente aos outros, nos “esquecemos”
de nós mesmos – enquanto os deprimidos
se curvam sobre si mesmos, alimentando
sentimentos de solidão e tristeza, a gratidão
encoraja a abertura emocional.
Essa disposição favorece comportamen-
tos empáticos e aumenta a sensação de
proximidade em relação ao outro, ainda que
se trate de um desconhecido. Isso explica
por que as pessoas empenhadas no auto-
conhecimento tendem a criar redes sociais
duradouras e de qualidade: no âmbito das
pesquisas realizadas sobre o reconhecimen-
to, os indivíduos inclinados à gratidão se dis-
tinguem pelo maior sentido de proximidade
com outras pessoas. E mais: os amigos de
voluntários desses estudos declararam que
sentiam os efeitos do “contágio psicológico”
do bem-estar provocado pela convivência É POSSÍVEL APRENDER
com os “gratos”, em comparação aos que Mas nem sempre é fácil manter esse círculo
eram próximos aos participantes do grupo de virtuoso. Estímulos e apelos para nos sentir-
controle do experimento. Cientistas afirmam mos menosprezados e cultivarmos a certeza
que o mecanismo que produz esses efeitos de que temos menos do que merecemos –
se autoalimenta: a boa vontade e a generosi- o que não raro deflagra ciúme e inveja – são
dade incrementam a capacidade de desenvol- frequentes. E muitas vezes o estado de des-
ver relações satisfatórias, e estas, por sua vez, contentamento parece tão “natural” que o to-
aumentam a sensação de bem-estar. Assim, mamos como uma verdade irrefutável – sem
uma espécie de espiral ajuda as pessoas que espaço para o agradecimento. Mas é possível
cultivam a gratidão a se manterem felizes de reverter isso. Um bom começo é compreen-
forma duradoura. der como nos apropriamos de crenças (que
janeiro 2018 • mentecérebro 15
Em quatro passos
Embora direcionada ao outro, na prática a gratidão faz bem,
comprovadamente, a quem a sente, já que além do bem-estar
a curto e médio prazo ela favorece a capacidade de resiliência
em situações difíceis de forma geral. Alguns psicólogos
cognitivos elaboraram um programa em quatro etapas para
incrementar esse sentimento de gratidão:
1. IDENTIFICAR “pensamentos ingratos”.
2. FORMULAR pensamentos de reconhecimento.
3. IMAGINAR que esses últimos substituem
os anteriores em sua cabeça.
4. TRANSFORMAR o sentimento em ação,
expressando o reconhecimento.
A AUTORA
HEIDI GRANT HALVORSON é doutora em psicologia, diretora associada do Centro de Ciência da Motivação
na Universidade de Columbia, autora de No one understands you and what to do about it
(Harvard Business Review Press, 2015), entre outros livros.
18
de carro. Mesmo assim o homem entregou
a carta escrita antes da tragédia. Nos meses
seguintes, refletir sobre o conteúdo daquele
texto ajudou toda a família a superar progres-
sivamente o luto.
Onde não
moram as
lembranças
Não basta usar drogas para apagar lembranças dolorosas, como
durante muito tempo cientistas acreditaram, pois elas persistem
profundamente no interior de células cerebrais; a constatação abre
novas perspectivas para a compreensão do Alzheimer
por Roni Jacobson
A
pesar de abstratas, intangíveis e muitas vezes Angeles pode derrubar essa interpretação ao sugerir que
pouco consistentes, nossas memórias têm memórias talvez residam no interior de células do cérebro.
uma sólida base biológica. Segundo a neuroci- Se for corroborado, esse trabalho pode ter implicações –
ência clássica, elas se formam quando células para o bem e para o mal – no tratamento do transtorno de
cerebrais enviam às suas vizinhas sinais de comunicação estresse pós-traumático, condição marcada por memórias
química através das sinapses (espaços entre as células), dolorosamente vívidas e intrusivas. Há mais de uma década
ou para entroncamentos que as conectam. Toda vez que cientistas começaram a examinar a droga propranolol para
uma memória é ativada, a conexão é fortalecida. A noção o tratamento do distúrbio. Acreditava-se que ela impedis-
de que sinapses armazenam memórias dominou a ciência se a formação de memórias ao bloquear a produção de
por mais de um século, mas um novo estudo realizado proteínas necessárias ao armazenamento de longo prazo.
por especialistas da Universidade da Califórnia em Los Infelizmente a pesquisa logo deparou com um problema: a
não ser que fosse ministrado imediatamente após o evento
shutterstock
de Petri e ativaram quimicamente a lembran- novos caminhos para estudar e compreender Memória. Alan. Baddeley.
Artmed, 2010.
ça dos choques, ministrando, em seguida, transtornos ligados à memória, como a
uma dose de propranolol. doença de Alzheimer.
janeiro 2018 • mentecérebro 21
alimentação
A estreita
relação
entre
humor e
comida
O “comer emocional”, embasado na necessidade de
aplacar algum desconforto ou a dificuldade de lidar com
sentimentos –ainda que positivos – é um risco para a
saúde física. Neurocientistas ensinam alguns “truques”
para evitar essa armadilha
A
fome talvez seja a sensação que mais nos confunda: tristeza, cansaço ou
mesmo felicidade frequentemente nos impulsionam a buscar algo para mas-
tigar. A maior parte das pessoas só não deseja comer quando está doente,
fazendo exercícios físicos ou dormindo. O problema é que quando estamos
estressados, tendemos a fazer escolhas alimentares imprudentes. E talvez
a maioria das pessoas não consiga controlar rigorosamente a relação entre humor e
comida, mas entender essa proximidade pode ser muito importante.
Historicamente, cientistas têm analisado como os estados “negativos” de humor nos
levam a comer em excesso. O que parece uma “comida reconfortante”, pode ser vista
por psicólogos como uma “alimentação emocional”. Os pesquisadores tentam entender
esse processo que nos faz recorrer a alimentos calóricos e gordurosos quando estamos
angustiados, como mostra um artigo publicado no periódico Psycosomatic Medicine. Já
os pesquisadores N. Rose, S. Koperski e B.A. Golomb comprovaram que, quando estão
deprimidos, homens e mulheres comem mais chocolate do que nos momentos em que
se sentem felizes. Infelizmente, fartar-se de guloseimas nem sempre traz conforto, prin-
cipalmente quando se instala a culpa. Sob estresse, temos dificuldade até em discernir se
certa comida é saudável, como mostra o artigo Oral perceptions of fat and taste stimuliare
modulated by affect and mood induction, publicado na PLoS ONE. Por essa razão, não é de
22
admirar que o “comer emocional” aumente o
risco de obesidade e outros problemas de saú-
de ligados à alimentação incorreta.
E embora as emoções negativas estejam
associadas à prática de alimentar-se em ex-
cesso, muita gente exagera na comida quan-
do está feliz. Na verdade, é tão fácil comer em
excesso na alegria quanto na tristeza. Embora
este último estado possa aumentar o desejo
de comer chocolate, é mais provável que al-
guém consuma mais batatas fritas e amen-
doim torrado quando está animado. O fato é
que a felicidade pode reduzir as inibições dian- psicólogos comportamentais: não compre
te de um pacote de Doritos. No entanto, nem aquilo que não consegue deixar de comer ou
todas as pessoas comem da mesma maneira que consome abusivamente quando tem de-
em resposta às emoções – em razão de carac- terminado humor. Não se trata, obviamente,
terísticas pessoais, aspectos culturais e expe- de nunca comer aquilo que nos traz confor-
riências de vida os comedores emocionais são to psicológico. Apenas é importante reservar
mais propensos a esse comportamento. esses alimentos para ocasiões especiais ou
Evidentemente, não queremos nos privar para quando realmente “precisamos” deles
de sentir emoções, mesmo negativas, nem –e mesmo nessas situações é recomendável
queremos deixar de ingerir os nutrientes de ingeri-los com moderação. Vale a pena tomar
que precisamos. Porém, se você é um come- um sorvete com a família no final da semana
dor emocional, pode tomar algumas atitudes ou, de vez em quando, comprar seu biscoito
para não agarrar uma barra de chocolate toda favorito no caminho de volta do trabalho de-
vez que ficar com os olhos marejados. Lem- pois de um dia longo e frustrante. Apenas é
bre-se da sua tendência para usar os alimen- conveniente ser prudente com relação a quan-
tos como apoio, não faça a comida de leni- to consome e tentar perceber o que realmente
tivo e busque outras fontes de conforto: os deseja. É um biscoito ou um colinho?
amigos, a família, o exercício físico, um bom Segundo algumas pesquisas, os alimentos
livro, um banho relaxante, o passeio com o que nos reconfortam são, em parte, resultado
cachorro. Além da comida, o que lhe parece de preferências adquiridas. Nossa experiência
um agrado? Quando esticar a mão para a bar- passada nos ensinou a pensar em um pote
ra de chocolate, pergunte: “Estou realmente de sorvete como uma gratificação e uma fon-
com fome de comida? Existe outra coisa que te amparo emocional. Teoricamente, pode-
possa me trazer satisfação nesse momento? ríamos considerar qualquer alimento como
O que mais poderia preencher meu vazio?” um alívio para as angústias. Por exemplo, no
Os “comedores emocionais” devem limitar Ocidente as mulheres tendem a compensar
o acesso aos alimentos que desejam quando as carências emocionais com chocolate, mas
estão emotivos. Ou seja, se você não mantiver em lugares onde o chocolate é mais escasso,
em casa as comidas que compensam suas ca- nossas congêneres anseiam por outros tipos
rências, será mais difícil consegui-las quando de doces. Portanto, o nosso alimento recon-
as emoções estiverem à flor da pele. Afinal, se fortante depende dos recursos do ambiente
você estiver disposto a ir até o mercado para ao nosso redor. Podemos não ser capazes de
comprar algum alimento, talvez realmente mudar a cultura nas qual estamos inseridos
precise daquele reconforto. São muitos os ali- assumir a responsabilidade pelo “ambiente
mentos que realmente não precisamos ter em alimentar” de nossas casas e assim mudar
shutterstock
casa: batatas fritas, doces, biscoitos, sorvete. nossa tendência a desejar certos alimentos na
A solução, nesse caso, é simples, afirmam os presença de determinadas emoções.
Entre
a
ea razão
Quando nossas escolhas envolvem valores
éticos – como sacrificar algumas vidas
para salvar outras tantas – entram em
jogo complexos mecanismos psíquicos
e neurológicos. Pesquisadores tentam
entender esses processos
D
e que maneira o que sentimos afeta
nosso julgamento sobre o que é
certo ou errado? Um estudo pu-
blicado na Nature apresenta uma
importante concepção sobre a relação entre
raciocínio moral e emoção. Os pesquisadores
Michael Koenigs, pós-doutorando do Instituto
Nacional de Transtornos Neurológicos e Aci-
dente Vascular Cerebral (AVC), Liane Young,
aluna de pós-graduação em psicologia cogni-
tiva da Universidade Harvard descobriram que
uma lesão no córtex pré-frontal ventromedial
(CPFVM, uma região do cérebro localizada
acima das órbitas dos olhos) aumenta a pre-
shutterstock
Na
cabeça
de quem
voltou
da morte
O fenômeno fascina leigos com relatos da visão do próprio
corpo observado do teto, imagens de túneis que levam à
luz e o encontro com parentes e amigos já falecidos. Para
psicólogos, médicos e neurocientistas, esse estado de
consciência tão específico, relatado por pessoas em todo
o planeta, pode revelar informações importantes sobre o
funcionamento do cérebro e da mente
por Felipe Leal, Mateus Silvestrin,
Raquel Giacóia Leal e Edson Amâncio
OS AUTORES
FELIPE LEAL é psiquiatra, mestrando em antropologia pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
MATEUS SILVESTRIN é psicólogo, mestrado em neurociência e cognição pela Universidade Federal do ABC (UFABC).
RAQUEL GIACÓIA LEAL é psiquiatra do Núcleo de Estudos em Saúde Mental e Psicanálise (Nesme).
EDSON AMÂNCIO é neurocirurgião, pós-graduado pela Unifesp. Os autores agradecem ao físico teórico Carlos de
Moura Ribeiro Mendes as inúmeras sugestões e o entusiasmo com esta publicação.
28
shutterstock
especial • EQM
E
m 1943, Georgie Ritchie escreveu
o livro Voltar do amanhã (Nórdica,
1980), no qual conta que, quando
era um jovem soldado, foi convocado
para se apresentar num batalhão cuja sede
ficava no meio do deserto. Durante vários
dias foi açoitado por uma tempestade de
areia e contraiu pneumonia, numa época em
que ainda não havia antibióticos. Após um
período de febre intensa e violentas dores no
peito, foi declarado morto e colocado num
pequeno cubículo, envolvido por lençóis. Um
enfermeiro, porém, convenceu o médico de
plantão a aplicar uma injeção de adrenalina
no coração do jovem soldado. Depois de ter
estado “morto” durante nove minutos, Ritchie
recobrou a consciência, para grande espanto
de todos, e confessou que durante esse tem-
po viveu uma experiência intensa, da qual se
lembrava perfeitamente bem.
No início ele evitava falar sobre o assunto,
pois temia a opinião alheia. Mais tarde escre-
veu o livro sobre o que lhe aconteceu naque-
les nove minutos. Posteriormente, formou-se
em medicina e fez residência em psiquiatria.
Tornou-se professor e passou a evocar sua ex-
periência durante as aulas. Um desses futuros
médicos, Raymond Moody, ficou de tal forma
intrigado com o relato de Ritchie que começou
a pesquisar o que poderia se passar com os
pacientes durante situações críticas. Em 1975,
Moody publicou A vida depois da vida (Butterfly
Editora, 2004), na qual cunhou o termo near
death experience – em português, experiência
de quase morte (EQM).
Depois do relato de Moody, numerosos
casos de EQM foram descritos na literatu-
ra médica. O cardiologista holandês Pin van
Lommel, autor de Consciousness beyond life:
the science of the near-death experience (Har-
per, 2010), publicou em 2001 na revista The
Lancet uma série de 344 casos de EQM num
estudo prospectivo em hospitais da Holanda.
Van Lommel e sua equipe revisaram os pron-
tuários e ouviram o relato desses pacientes.
Foram analisados o tempo de parada cardior-
respiratória (PCR), as drogas utilizadas na
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O QUE É EQM?
Uma experiência de quase morte (EQM) é a lembrança (recontada) de todas as
impressões experimentadas durante um estado de consciência particular, marcada por
elementos específicos como visão de túnel, luz, filme da própria vida, personagens
mortos ou associados ao momento da reanimação. Segundo o médico Pim van Lommel,
esse estado mental pode se produzir durante uma parada cardíaca, o chamado período
de morte clínica, mas também durante uma doença grave ou mesmo sem causa médica
aparente. A experiência provoca quase sempre mudanças essenciais e duráveis na atitude
da pessoa em relação à vida, incluindo a perda do medo da morte.
Trata-se de uma vivência altamente subjetiva e pessoal, mas fatores individuais,
culturais e religiosos determinam a maneira como esses fenômenos são descritos e
interpretados. Uma criança provavelmente não empregaria as mesmas palavras que um
adulto, e o testemunho de um cristão certamente é diferente do de um budista ou de um
agnóstico.
“As experiências de quase morte são eventos psicológicos profundos, contendo
elementos transcendentais e místicos, que se produzem geralmente nos indivíduos
próximos da morte ou em situação de dano físico ou emocional grave”, diz o psiquiatra
Bruce Greyson, pesquisador da Universidade de Michigan e autor da escala que
caracteriza a profundidade das EQMs.
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especial • EQM
tes nos primeiros seis dias de internação na do que os pacientes internados com outros
unidade de tratamento cardíaco e na unidade diagnósticos cardíacos (3%).
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A alteração de oxigênio e gás carbônico dirigido por Sam Parnia, diretor do The Human
ocorrida durante a parada cardíaca em pa- Consciousness Project, da Universidade de
cientes que tiveram EQM foi pesquisada por Southampton, o AWARE (Awareness during Re-
Klemenc-Ketis e colaboradores da Universi- suscitation), concluído em 2008 e publicado em
dade de Maribor, na Eslovênia, em 2010. Eles 2014. Durante quatro anos foram entrevistados
pesquisaram medidas de pressão parcial de 2.060 sobreviventes de parada cardíaca em 15
CO2 exalado no final da expiração (petCO2), hospitais dos Estados Unidos, Reino Unido
pCO2, pO2 e níveis de sódio e de potássio e Austrália. Todos foram submetidos a testes
séricos. Pacientes com petCO2 e pCO2 mais específicos com o propósito de identificar a in-
elevados relataram significativamente mais cidência e a validade de relatos de consciência
EQM. As pontuações das EQMs também fo- durante parada cardíaca. Para avaliar a precisão
ram positivamente correlacionadas com os das alegações de percepção visual durante a pa-
níveis de pCO2 e potássio sérico. Os pacien- rada cardíaca, cada hospital instalou entre 50 e
tes com pO2 mais baixo tiveram mais EQM, 100 prateleiras em áreas onde a ressuscitação
porém a diferença não foi expressiva. de paradas cardíacas era considerada provável
Citado por Van Lommel, um dos mais de ocorrer. Cada prateleira continha uma ima-
emblemáticos casos de EQM se refere a uma gem apenas visível acima dela. Estas imagens
jovem mulher que, operada de um aneurisma foram instaladas para permitir a avaliação de
cerebral, teve uma EQM profunda na cirur- relatos de consciência visual.
gia. Durante o procedimento, seu corpo foi
resfriado e foi realizada circulação extracorpó- Trata-se de uma vivência subjetiva,
rea. Ela estava sob efeito de anestesia geral,
os olhos estavam cobertos por bandagens carregada de fatores culturais e
para evitar ressecamento e foram colocados religiosos que determinam a maneira
tampões nos ouvidos. Apesar de não ter ne- como os fenômenos são descritos
nhuma atividade elétrica cortical e no tronco
encefálico, a paciente passou por uma profun-
e interpretados. Uma criança não
da EQM. Ela se surpreendeu ao ver que um empregaria as mesmas palavras que um
médico tentava realizar algum procedimento adulto e o testemunho de um crente
na região de sua virilha direita e o ouviu dizer
ao neurocirurgião que “não estava conseguin-
seria diferente do de um agnóstico
do...”. Seu interlocutor sugeriu então que ele
que fosse para o outro lado da mesa cirúrgi- Entre as 2.060 pessoas, 140 sobreviven-
ca. Tratava-se da canalização da artéria femo- tes fizeram as entrevistas da fase 1, enquanto
ral para realizar a circulação extracorpórea. A 101 dos 140 pacientes completaram a etapa 2.
moça havia sido informada de que sua cabeça Do total, 46% relataram memórias com sete
seria aberta com uma serra, mas o que viu na temas cognitivos principais: medo; animais/
mão do médico foi um objeto parecido com plantas; luz brilhante; violência/perseguição;
sua escova de dentes elétrica. Ela descreveu déjà-vu; família; recordações de eventos pós-
inúmeras situações ocorridas na sala de cirur- -parada cardíaca. Apenas 9% tiveram EQM e
gia – as quais, estando ela anestesiada, com o 2% descreveram a recordação explícita de ver
corpo resfriado, o coração parado e o cérebro e ouvir eventos reais relacionados à sua res-
inativado, jamais poderiam ter sido percebi- suscitação. Entre os que apresentaram EQM
das. A equipe cirúrgica confirmou todos os não houve registro de pacientes que contaram
relatos, embora nenhum profissional conse- ter visto os alvos colocados nas prateleiras. O
guisse explicar como a jovem pôde ter acesso argumento para a não visualização desses ob-
a todas essas informações. jetos é que 78% das paradas cardíacas ocorre-
A mais abrangente pesquisa sobre EQM rea- ram em locais onde não havia prateleiras com
lizada até o momento foi o estudo multicêntrico alvos previamente colocados.
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especial • EQM
Os autores do estudo concluíram que os Das duas EQMs, a mais vívida e detalha-
sobreviventes de parada cardíaca vivenciaram da foi a ocorrida aos 22 anos. No início de
ampla gama de memórias após PCR, incluin- 1973, Vicki, trabalhava eventualmente como
do experiências assustadoras e persecutórias, cantora em uma casa noturna em Seattle.
e que tiveram momentos em que acreditavam Uma noite, após a apresentação, ela não
estar conscientes. Os pesquisadores reconhe- conseguiu chamar um taxi para levá-la para
cem, porém, que outros estudos são necessá- casa. A única opção era aceitar carona do
rios para delinear o papel explícito e implícito casal de patrões, embora ambos estivessem
da parada cardíaca e seu impacto na ocorrên- embriagados. Na viagem ocorreu um sério
cia de eventuais transtornos de estresse pós- acidente e Vicki foi jogada para fora do veí-
-traumático (TEPT) entre os sobreviventes. culo. Sofreu fratura de crânio e concussão
cerebral, lesões no pescoço e nas costas e
Substâncias químicas liberadas ou quebrou uma perna.
estimulada por acontecimentos dos Vicki lembra-se claramente dos segundos
que antecederam o acidente, mas tem lem-
quais temos consciência tendem a branças nebulosas de ter estado “fora do cor-
reduziras inibições naturais tanto do po” – foi quando diz ter visto, de vislumbre, o
organismo quanto da mente e podem veículo amassado. Foi nesse momento que ela
afirma ter tido a sensação de que se encontra-
proporcionar a ampliação de estados va num corpo não físico “como se fosse feito
de consciência de luz”. Ela não se recorda da sua ida para o
hospital na ambulância, mas, quando chegou
PESSOAS CEGAS à sala de emergência, recobrou a consciência
Os doutores em psicologia Sharon Cooper, e estava no teto do cômodo, assistindo a um
professora da Universidade de Nova York, e médico e a uma mulher (ela não soube especi-
o professor Kennety Ring, da Universidade ficar se era médica ou enfermeira) trabalhando
de Connecticut, cofundador e ex-presidente em seu corpo. Ela ouvia a conversa entre eles,
da Associação Internacional para Estudos de que comentavam a ocorrência de um possível
Quase-Morte, analisaram vários casos de pes- dano do tímpano e falavam do receio de que,
soas cegas que relataram o fenômeno. Um além de cega, ela se tornasse surda. Vicki ten-
dos casos é o de Vicki Umipeg, uma mulher tou desesperadamente se comunicar com eles
de 43 anos, moradora do estado de Washing- dizendo que estava bem, mas obviamente não
ton, que teve duas EQMs. A primeira, quando obteve resposta. Ela estava consciente de ver o
ela tinha 12 anos de idade, ocorreu em 12 de próprio corpo abaixo dela.
fevereiro de 1962, quando teve uma crise de Ela primeiro percebeu uma imagem
apendicite e peritonite. A segunda foi quase muito fraca de si mesma deitada na maca
exatamente uma década depois, na noite de 2 de metal e estava segura de que fosse ela,
de fevereiro de 1973, quando foi gravemente embora tenha levado um momento para re-
ferida num acidente de automóvel. gistrar esse fato com certeza. Em seu relato
Vicki nasceu prematura, com apenas 1,5 diz: “Sabia que era eu... Eu era muito magra,
kg, na 22a semana de gestação. Como era na época. Era muito alta e magra. E eu reco-
comum ocorrer com crianças prematuras na nheci que era um corpo, mas nem sabia que
metade do século 20, foi colocada numa incu- era o meu, inicialmente. Quando eu percebi,
badora para administração de oxigênio, mas estava no teto e pensei: ‘Isso é meio estra-
houve falha na regulagem da quantidade de nho. O que estou fazendo aqui em cima?’.
oxigênio e Vicki recebeu uma dose excessiva, Em seguida pensei: “Bem, este deve ser eu,
que provocou lesão definitiva nos nervos ópti- será que estou morta?’. Só vi esse corpo bre-
cos dos dois olhos. Em razão disso, ela nunca vemente, sabia que era o meu porque eu es-
teve experiência visual durante toda a sua vida. tava fora dele. Eu estava longe dele”.
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Ela relata que depois disso se viu subindo cinco pessoas já falecidas que ela conhecera.
pelo teto do hospital até que alcançou do te- Diane e Debby eram colegas cegas da escola,
lhado do edifício. Desfrutou da vista panorâ- com 6 e 11 anos, respectivamente, na época
mica e sentiu-se inundada por uma intensa de sua morte. Além de cegas, ambas tinham
sensação de alegria, liberdade e movimento. um retardo mental profundo, mas agora pa-
Em seguida se deu conta de que ouvia uma reciam brilhantes, belas, saudáveis – e muito
música harmoniosa, bastante agradável, “se- vivas. E já não eram crianças. Vicki distinguiu
melhante ao som de sinos ao vento” e per- ainda um casal de cuidadores seus na infân-
cebeu que estava sendo sugada pela cabeça cia, o senhor e senhora Zilk. Finalmente, Vicki
para dentro de um túnel. “O lugar era escuro, viu sua avó, que se aproximou para abraçá-la.
mas estava ciente de que me movia em dire- Vicki disse que, nesses encontros, nenhuma
ção a uma luz”, diz. palavra foi dita: mas tinha consciência dos
Quando alcançou a abertura do túnel, a sentimentos de amor e bem-estar. No meio
música que tinha ouvido antes se transforma- desse arrebatamento, ela de repente foi domi-
ra em hino (semelhante ao que ela escutou nada por uma sensação de conhecimento to-
anos mais tarde, na EQM posterior). Então tal. “Tive a impressão de que sabia tudo e de
ela “rolou para fora” e deu-se conta de que que tudo fazia sentido. Eu só sabia que este
estava deitada na grama. Estava rodeada por era o lugar onde eu iria encontrar as respostas
árvores e flores e grande número de pessoas, para todas as perguntas sobre a vida, sobre os
em um lugar de intensa luz, que podia sentir planetas, sobre Deus e sobre tudo... Era como
tão bem quanto ver. Até as pessoas que ela viu se o lugar fosse o próprio conhecimento.”
eram brilhantes. “A luz transmitia paz, amor Ela relata que, em dado momento, se viu
e era como se isso viesse do ambiente, dos na presença de um “ser de luz”, profunda-
pássaros e das árvores.” mente amoroso, que lhe mostrou uma espé-
Vicki então tomou consciência da presen- cie de filme de toda a sua vida e a advertiu
ça de pessoas que ela havia conhecido em vida de que ela deveria voltar. “Em seguida, fui
e a estavam acolhendo naquele lugar. Havia conduzida de volta ao meu corpo, que estava
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especial • EQM
Sartre.
Nathalie Monnin.
Estação Liberdade, 2017.
280 págs. R$ 49,00
Um filósofo em busca
da liberdade
Obra introdutória aborda o pensamento e a lógica política de Sartre, o que
ajuda a compreender a produção teórica do autor francês sob várias vertentes
Os principais pontos
de sua obra são
O filósofo, dramaturgo e intelectual politicamente engajado
Jean-Paul Sartre (1905-1980) marcou profundamente o século 20.
Em seu livro Sartre, recém-lançado no Brasil pela Estação Liberdade,
apresentadas de forma a professora de filosofia Nathalie Monnin refaz a trajetória desse pen-
rigorosa e ao mesmo sador da liberdade e da alienação, que refletiu sobre as implicações da
autonomia do sujeito e da consciência acerca de si mesmo, do outro
tempo acessível, e da sociedade na qual se insere, assim como das questões morais.
explorando também sua Para o escritor francês, considerado uma voz original da fenome-
atuação de Sartre na nologia, o ser humano é livre e responsável por seus atos. E não há
desculpas aceitáveis, é preciso se haver com as próprias escolhas
literatura e no teatro e suas consequências. Exemplo disso é a peça teatral Entre quatro
paredes, em que os personagens, condenados ao convívio eterno, se
dão conta de que, embora “o inferno sejam os outros”, esse inferno
sem tridentes ou demônios chifrudos é um estado mental, fruto da
construção subjetiva. Sartre acredita que a consciência humana é, ir-
revogavelmente, a consciência de mundo. Ou seja: está relacionada
à noção pessoal de nossa própria situação.
Sartre se destacou ao introduzir o existencialismo enquanto ten-
dência filosófica, exposta em seu texto O existencialismo é um huma-
nismo. No livro, Monnin analisa a densa obra do filósofo, passando
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“O que é um ‘grande intelectual’? De onde vem este inalcançável
ascendente? O talento, ou melhor, a ambição de Sartre. Seu
apetite. Sua curiosidade insaciável. O único a tentar todos os
domínios e a mostrar-se excelente em todos eles. Filosofia.
Política, também. Literatura. Jornalismo. Crítica literária.
Reportagem. Teatro, letras de canções, conferências, rádio,
cinema... Seu lado intelectual integral, decidido a possuir o
‘mundo inteiro’, e a se dar os meios dessa fabulosa hegemonia.”
Bernard-Henri Lévy, em O século de Sartre