Um Dicionário de Perplexidades:
Crítica, Narrativa e a Produção do Conhecimento Histórico no Século XVII a partir de
Pierre Bayle (1647-1706)
Jacson Schwengber.
Porto Alegre
2016
1
1) Problema de Pesquisa
Em 1697, Pierre Bayle pôs à venda seu Dictionnaire Historique et Critique, tornando-se,
surpreendentemente, um sucesso editorial1. Por quase dois séculos, raramente esta obra esteve fora
das oficinas de impressão. Tanto o Pensées diverses (1682) quanto o Commentaire philosophique
(1685), outras obras suas, foram conhecidas pelos leitores dos séculos XVII e XVIII, mas nenhuma
teve tanta fama e repercussão quanto o Dicionário — o mais influente trabalho produzido no
refúgio da Holanda e que consta nos catálogos do maior número de livrarias privadas do que
qualquer outro livro no Setecentos2. De acordo com Anthony Grafton, o Dicionário foi a “leitura
favorita de praticamente todo letrado europeu” durante o século XVIII (GRAFTON, 1998).
A grande recepção e os intensos debates provocados por essa obra, são o primeiro
argumento de sua escolha como fonte privilegiada para pensar a historiografia do século XVII. O
objeto recortado para análise será o seu Dicionário Histórico e Crítico. Em especial as duas edições
publicadas pelo autor ainda em vida — a primeira de 1697 e a segunda versão aumentada e
corrigida de 1702. Busca-se delimitar os conceitos de crítica e narrativa da forma como foram
definidos e articulados pelo autor em suas inquirições sobre eventos do passado. A seguir serão
apresentados temas recorrentes para o conhecimento histórico, bem como as possíveis contribuições
que Pierre Bayle pode ter oferecido para a prática e a epistemologia da história na sua época.
2) Justificativa
No início dos anos dois mil, o historiador francês Roger Chartier reuniu alguns pontos que
no começo do século XXI supostamente “inquietavam” os historiadores. Com a metáfora da
história à beira da falésia tratou das frequentes constatações quanto as crises e incertezas, que nos
últimos anos foram anunciadas acerca da historiografia. No panorama que é traçado, o otimismo e a
confiança da década de 1970 parece ter dado lugar a “um tempo de dúvidas e interrogações”.
Chartier destaca que a constatação de alguns autores de que desde o final dos anos 80 as ciências
humanas, e entre elas a história, passavam por um momento de crise, não deve ser aceita sem
reservas. Para ele “proclamar, depois de muitos outros, que as ciências sociais estão em crise não
basta para estabelecê-lo” (CHAETIER, 2002, p.65). Porém, não deixa de indicar as razões que
poderiam ter configurado essa percepção de crise:
(...)a perda de confiança nas certezas da quantificação, o abandono dos
recortes clássicos, primeiramente geográficos, dos objetos históricos, ou
1
Esses livros reúnem milhares de páginas no formato in-folio, nas quais estão dispostos em ordem alfabética
artigos (verbetes) sobre personalidades e lugares. Devido a dimensão monumental dessa obra, surpreende que tenha tido
tanto sucesso e circulação.
2
Ele foi um dos autores mais influentes e amplamente lidos de sua época: “Bayle foi inspiração para o jovem
Montesquieu, Diderot o estudou e admirou, d'Holbach seguiu a ‘tradição de Bayle’ em seus textos sobre religião;
Voltaire começou a lê-lo ainda jovem, e sua influência continuou ao longo de sua vida” (REX, 1965 p.X).
2
3
A hipótese de impossibilidade de objetividade do conhecimento histórico não é uma novidade no pensamento
ocidental do século XX. Porém, as vozes descrentes teriam sido “fracos murmúrios comparados à máscula expansão do
marxismo e da Escola dos Annales”, dois paradigmas competidores depois da Segunda Guerra Mundial. As condições
de crescimento do ceticismo teriam se colocado nas décadas de 1970 e 1980. Alguns historiadores explicam a questão
de forma sociológica. Uma das causas teria sido a democratização das universidades: “grupos admitidos apenas
recentemente na universidade mostraram-se especialmente receptivos às proposições pós-modernas”. Pois, as principais
escolas historiográficas deixaram as minorias de fora de suas explicações ou trataram-nas de forma estereotipada
(APPLEBY, Joyce; HUNT, Lynn; JACOB, 1995, p.173)
4
No ano de 2012, as conferências realizadas no âmbito do 6 Seminário Brasileiro de História da Historiografia
(SNHH), problematizaram a noção de giro linguístico. O vento teve como título: “O Giro Linguístico e a Historiografia:
balanço e perspectivas”. Nesse mesmo ano, a edição de junho da American History Review, dedicou um fórum para a
questão, “Historiografical tuns in critical perspective”, onde são oferecidos artigos que fazem um balanço dos impactos
das teorias da linguagem no campo historiográfico anglo-americano. Na edição número 17, de abril de 2015, da revista
História da Historiografia, publicou um caderno especial dedicado ao tema. Cf
https://www.historiadahistoriografia.com.br/revista, última consulta 05/06/2016. Para o mapeamento dos efeitos do
chamado giro linguístico na historiografia brasileira, ver em especial CEZAR, 2015.
5
Para a atualidade do tema, não só nas discussões historiográficas, vale destacar a edição número 394, de 2001, da
Le Magazine Littéraire, na qual foi publicado um dossiê com o título “le retour des sceptiques”.
6
De acordo com Paul Hazard, “pirronismo” e “histórico” eram duas palavras que assustavam leitores e
ouvistes no século XVII (HAZARD, 1971, p.37.
3
Correta ou não, a preocupação de Perizonio parece não ter sido sem razão. De acordo com o
historiador Franklin L. Baumer o pirronismo histórico estava disseminado nos ambientes letrados
do final do século XVII. Os problemas teológicos e filosóficos (que estão necessariamente
imbricados no período), tinham um pano de fundo traumático para os europeus —s e é lícito usar
esse termo. As guerras religiosas na França, a guerra civil inglesa, a Revogação do Édito de Nantes
e o fanatismo religioso, fizeram eco nas obras de Montaigne, Hobbes e Pierre Bayle. O espírito de
sectarismo teria cindido a unidade social, por isso haveria urgência em “transcender a controvérsia”,
a qual era alimentada pela dúvida (BAUMER, 1977). A história, por sua vez, era um universo
duvidoso por excelência: “no século XVII, disputas religiosas e políticas haviam invadido a história
e desacreditado o historiador. Facilmente percebiam-se opiniões em tudo, e a conclusão natural foi
desacreditar toda a tribo dos historiadores” (MOMIGLIANO, 2014, p.30).
As tentativas de solução da crise não foram homogêneas e as estratégias foram variadas.
Contudo, a maior parte dos jogadores apostou na capacidade da razão em dirimir as incertezas. Em
vários pontos do continente surgiram esforços de construção de uma nova filosofia que fosse capaz,
“ao mesmo tempo, restaurar e reconciliar; proporcionar princípios permanentes e universais, novos
e necessários, com os quais os homens podiam contar e concordar” (BAUMER, 1977, p.52). O
primeiro campeão da razão foi Descartes, o “racionalista par excellence”, com o estabelecimento de
um método geométrico com regras e princípios claros e evidentes para o estabelecimento da
verdade. Mas essa forma de combate à incerteza filosófica alimentou, em contrapartida, o
pirronismo histórico.
Conforme Baumer, para os pensadores do Seiscentos, havia quase um consenso de que a
história deveria ser classificada como um tipo de conhecimento mais baixo quando comparado a
filosofia e as ciências da natureza (Ibid., p.153). Dois exemplos de autores influentes do período
podem servir de ilustração. No De la Recherche de la Vérité (1674), Malebranche apresentava o
historiador como um falso douto e a história como uma falsa ciência. Nessa obra reuniu princípios
cartesianos para formulação de uma nova ciência do espírito, no lugar de uma velha ciência de
memória (MALEBRANCHE, 1678). No prefácio de sur l’utilité des mathématiques et de la
physique, Fontenelle comemorava o avanço do espírito geométrico para todos os campos do saber.
Sua apologia da matemática e da física era acompanhada da detração da história. Esta não era mais
do que uma matéria de curiosidade sobre as ações humanas. Nas histórias via-se o nascimento e o
declínio de impérios, de costumes, de práticas e de opiniões que se sucediam sem cessar. A
conclusão era que da história nada se aprendia7.
7
Segundo Fontenelle, a diversidade infindável de coisas que surgem para logo deixar de existir, faziam da
história um espetáculo tão interessante quanto o ascender e apagar de um fósforo (FONTENELLE, 1829, p.55).
4
Será sobre essa atitude historiadora de Pierre Bayle que esse projeto intentará tratar. Antes,
serão apresentados na definição do problema de pesquisa dados sobre o autor e a obra em questão.
Também, na seção seguinte, situa-se as noções de cítica e narrativa.
5
10
Em 1684, seu irmão mais novo morreu, provavelmente por causas naturais. No ano seguinte, no qual ocorreu a
Revogação do Édito de Nantes (1685), seu irmão e seu pai foram encarcerados como represália pela publicação da
Critique de Maimburg. Ambos vieram a falecer na prisão, possivelmente por causa das péssimas condições do carcere e
de possíveis maus tratos. Esses eventos trágicos, provocados por perseguições religiosas, teriam deixados marcas
profundas em Bayle e reforçado sua obstinação na defesa irrestrita da tolerância e da liberdade de consciência.
11
Nessa mesma época, outros fatores de sua vida pessoal viriam afetar sua trajetória intelectual. Um deles foi a
recusa de se casar com uma pretendente que lhe fora apresentada pela família de Jurieu. O tema se um erudito deve ou
não se casar foi recorrente em seus escritos. Ele impôs a si uma espécie de dedicação monacal aos estudos. Outros estão
relacionados com suas teses de tolerância radical e as críticas ao dogmatismo, tanto católico quanto protestante. Tais
ideias se chocavam com a perspectiva ortodoxa de Pierre Jurieu. Este, que fora seu melhor amigo, acabou por se tornar
seu maior inimigo. Inimizade que lhe custou o cargo na Écolle Illustre. Jurieu denunciou-o como um perigo a
verdadeira religião e de professar o ateísmo, em 1693 Bayle acabou sendo demitido de seu posto universitário. O
isolamento de Pierre Bayle cresceu ao longo do tempo. Os representantes liberais do protestantismo viram na sua
contenda contra a ortodoxia de Jurieu, um possível aliado contra a intolerância. Mas logo o filósofo de Roterdã entrou
em disputa com eles também. Bayle discordava da perspectiva racionalista que autores como Jaquelot e Le Clerc
utilizavam na interpretação da fé. Para o autor do Pensées e do Comentaire, não havia síntese possível entre a ciência, a
razão e o cristianismo.
7
conjunto de palavras que se associam ao conceito, nas diversas línguas nacionais da Europa, foi
apropriado do latim por volta de 160012. No final do século XVII, aqueles que se autodenominavam
críticos (critici) e que entendiam sua prática letrada como crítica (critice), tentaram, com diferentes
graus de sucesso, criar uma teoria e um modelo metodológico padronizado13 (BRAVO, 2006,
p.136). Como foi dito acima, os debates teológicos alimentaram também as discussões sobre o
conhecimento histórico. A cultura erudita monacal, em especial, mas também de representantes do
clero secular, reuniram um conjunto de regras de controle e verificação dos textos: instrumentos
exigentes de análise que tiveram fortuna e vieram a se estabelecer como procedimentos obrigatórios
da inquirição histórica. O De re Diplomatica (1681), de Mabillon, é celebrada como obra fundante
de uma disciplina rigorosa que ofereceu um modelo de objetividade a ser perseguido pelos
historiadores. Para Blandine Kriegel, essa obra notabilizou Mabillon como “pai do método crítico
moderno” (BARRET-KRIEGEL, 1996, p.203). No entanto, para um conceito, cuja prática e função
se transformou tanto ao longo do tempo, talvez não seja adequado atribuir-lhe uma paternidade. Ou,
pelo menos, deva-se se pensar em uma guarda compartilhada desse rebento.
Para entender o significado e a função que Bayle atribuiu ao conceito de crítica, acredito ser
importante situá-lo no contexto intelectual mais próximo do momento de produção do Dictionnaire.
Alguns nomes são particularmente relevantes: Baruch Espinosa, Antoine Arnauld e Richard Simon.
Esses pensadores contribuirão também para adiantar a aproximação dos termos crítica e história a
ser feita nesse projeto.
3.3 Baruch Espinosa talvez tenha sido a figura mais controversa do período e recebeu ataques
mais violentos que o próprio Bayle. Em 1670, publicou uma obra controversa, o Tractatus
Theologico-Politicus. Publicada pela primeira vez em Amsterdã, sem indicação do local exato e da
autoria. Ernst Cassirer destaca que como filósofo as preocupações de Espinosa não eram
propriamente empíricas e históricas. Porém, a revelia de sua vontade ou não, foi ele “quem primeiro
concebeu com plena lucidez a ideia de uma historicidade da Bíblia” (CASSIRER, 1994, p.249).
12
A configuração do termo no interior da cultura europeia moderna, teve sua gênese nos trabalhos eruditos de
Joseph Scaliger, por volta de 1575. Desde então, o termo ganhou importância ascendente nos meios cultos do continente
(BRAVO, 2006, p.140). As expressões critique, criticims ou criticks se consolidaram nos respectivos vocabulários
vernaculares ao longo do século XVII: “por crítica entendia-se a arte de avaliar de forma adequada a matéria em
questão, em particular textos antigos, mas também obras literárias e artísticas, assim como homens e povos”. Ou seja,
era uma arte de julgar. A atividade crítica consiste em “interrogar a autenticidade, a verdade, a correção e a beleza de
um fato” (KOSELLECK, 1999, p.93-94).
13
As regras de exegese que conformam a crítica textual, foram formuladas pelos humanistas dos séculos XV e
XVI. Todavia, nesse primeiro momento moderno, o conjunto de operações filológicas mobilizadas eram pouco
sistematizadas e, por vezes, arbitrárias (BRAVO, 2006, p.140). A crítica não era ainda uma arte ou um ofício
sistematizado.
8
O método de análise espinoseano teria criado as condições para isso, pois, “ele decide
interpretar não o ser, a ‘natureza das coisas’, a partir da Bíblia, mas a própria Bíblia como parte do
ser e como tal submetida às suas leis universais” (Ibid., p.250). Dessa forma, as palavras contidas
nas santas escrituras não são a revelação de uma verdade universal e atemporal, mas produtos
condicionados por contextos específicos. Em outros termos, colocou a Bíblia como um objeto de
análise e crítica histórica de estatuto equivalente ao de qualquer outro texto clássico. Assim, não se
deveria ler o texto bíblico a partir da presunção de que ele tivesse sido inspirado pela graça divina.
Não foram textos escritos para nós, mas construções narrativas feitas em diferentes períodos do
passado, por autores que endereçaram suas mensagens aos seus contemporâneos e pretendiam ser
entendidos por eles14.
Antoine Arnauld é outo nome relevante para a discussão sobre os parâmetros da crítica e sua
relação com a história. Na verdade seu nome está atrelado ao monastério jansenista de Port-Royal,
instituição responsável por influentes obras coletivas do período como a Gramática e a Lógica de
Port-Royal. No interior do monastério, entre os anos de 1657 e 1660, iniciou-se um projeto para
uma nova tradução da Bíblia para o francês. Em 1688, Arnauld escreveu a Défense des versions en
langue vulgaire de l’Écriture Sainte. Contra as proibições eclesiásticas de tradução das Escrituras
em línguas vernaculares argumentou que a própria Vulgata consistiu em uma tradução. Portanto, o
autor se associava ao projeto original de São Jerônimo, o qual consistia em propagar as palavras
divinas a todos os homens15.
Arnauld e Port-Royal foram acusados de defender as teses de sola scriptura protestante; os
ataques partiram principalmente dos jesuítas. Richard Simon16 também ofereceu oposição a versão
do Novo Testamento publicado por Port-Royal, mas suas considerações tinham outro conteúdo.
Denunciava o amadorismo dos representantes de Port-Royal no uso das fontes gregas e orientais.
Também discordava frontalmente dos princípios teóricos e metodológicos do uso da crítica
defendidos por Antoine Arnauld. Essa oposição entre os autores representa uma divisão
fundamental nos estudos históricos-linguísticos do século XVII. Simon representava um modelo
14
Interessante notar que Espinosa não atribuía a si a função de crítico (criticus), também que no seu método de
interpretação da Bíblia não aplica o termo crítica (critice), mas história (historia). (BRAVO, 2006, p.185).
15
Conforme Arnauld, as línguas originais dos testamentos—hebreu, aramaico, siríaco e grego—foram também
línguas vernaculares, tanto para aqueles que originalmente os escreveram, quanto para suas audiências: “logo, seria
absurdo, para textos que se esperava serem entendidos por toda uma comunidade linguística, ser agora transmitidos sem
cuidado quanto as mudanças linguísticas de sua audiência”. A tese da necessidade de tradução atualizada era defendida
por “razões linguísticas”(PÉCHARMAN, 2010, p.329).
16
Para fugir dos embaraços doutrinário, Richard Simon asseverava, em conformidade com as diretrizes do
Concílio de Trento, que a propagação da fé se dava através da expressão oral, divinamente inspirada e legitimamente
representada pela Igreja Católica. Na verdade, tomava a autoridade da tradição eclesiástica como superior às Escrituras
em questões de dogma. Para ele, a crença poderia se enraizar sem a necessidade da leitura dos textos sagrados. Dessa
forma, a Bíblia podia ser considerada estritamente como texto, avaliando-a em sua materialidade literária e
desvinculando sua crítica de questões teológicas (PÉCHARMAN, 2010, p.330).
9
papel que ele afirma ter adotado muitas vezes estavam dissociados como práticas distintas. De um
lado a crítica (descrição e avaliação da veracidade dos textos), do outro, a escrita de um enredo
histórico17.
Bayle repetia fórmulas literárias como regras de composição. Para ele, o historiador tinha
que comunicar em sua narração “os nervos, a vivacidade, a nobreza e majestade” que os
acontecimentos demandam (BAYLE, 1737c, p.192a-b). Sendo que “as verdadeiras regras da arte
histórica demandam muita ordem, um estilo puro, curto e simples” (BAYLE, 1737a, p.202b). Foi
justamente a classificação da história como uma província do reino da memória (portanto
perigosamente próxima da imaginação) e cuja arte se preocupava mais com a forma do que com o
conteúdo18, se converteu em alvo do pirronismo.
Porém, as proposições sobre a natureza e o valor da história eram temas em debate. Paralelo
aos manuais que enfatizavam as virtudes da forma, também produziam-se tratados que se
preocupavam em conciliar os aspectos narrativos com a veracidade do relato 19. Em 1679, o autor da
História de Portugal Restaurado declarava não querer “mayor recompensa que o reconhecimento,
de que ategora naõ sahio ao mundo historia mais verdadeira” (sic). Mas esclarecia que “antes que
começasse a escrevê-la passey por espaço de dous annos as historias mais selectas antigas, e
modernas, conhecendo, que era necessario assentar o estylo” (MENESES, 1751). Pierre Bayle, no
entanto, confessava ter negligenciado os aspectos estilísticos, adotando para a escrita dos
seus verbetes uma estratégia diversa.
Bayle tinha pouco apreço pela historiografia clássica: “creio que todos os historiadores
antigos tiveram a mesma licenciosidade em relação as velhas memórias que consultaram”. Quanto
aos fatos, “eles os aumentaram e vestiram conforme lhes aprazia; e hoje chamamos isso que fizeram
de história” (BAYLE, 1697, p. 37). No entanto, não parece ter refutado o saber histórico em si, mas
uma determinada forma de se pensar o passado e de escrever sobre ele. Pode-se notar na articulação
dos dois termos que dão título ao Dicionário, histórico e crítico, que mais do que recordar e
17
De acordo com J. G. A. Pocock, uma das características da história da historiografia foi a lenta e tardia
combinação das técnicas de análise crítica, desenvolvidas nos séculos XVI e XVII, com a escrita da história como uma
forma narrativa. Havia um divórcio entre eruditos e antiquários de um lado e escritores de história de outro
POCOCK,1987, p. 6-7). Eruditos e historiadores trabalhavam “de costas voltadas uns para os outros, ignorando-se”
(HAZARD, 1971, p.48).
18
No período contava-se uma anedota sobre o abade Vertot (1655-1735), segundo a qual ao terminar de escrever
sua história sobre cerco da cidade de Malta lhe indicaram documentos novos a respeito do evento. Ele teria respondido,
então, “que era tarde demais, que o seu cerco já estava feito”. Verdadeira ou não, a anedota se enquadra nos parâmetros
formais que eram então canônicos na redação da história, entendida como uma obra de arte retoricamente elaborada. O
historiador, emulando modelos como os de Tito Lívio, deveria antes se dedicar na composição e arranjo dos fatos, do
que sair a sua procura: “mais vale pensar na beleza, na força, na nitidez e brevidade do estilo, do que parecer infalível
em tudo o que se escreve” (HAZARD, 1971, p.35).
19
Em minha dissertação de mestrado abordei a necessidade do historiador, no século XVIII, de “possuir uma
ampla erudição e conhecer todas as técnicas da crítica. Depois de avaliar a veracidade das fontes e estabelecer as causas
das ações humanas, vinha o trabalho de dar forma à sua narrativa. Além de pesquisador, tinha de ser um esteta”
(SCHWENGBER, 2016, p.102).
11
registrar os feitos e ações do passado, trata-se de pesá-los e julgá-los. Isso implicou na adoção de
uma dupla estratégia expositiva. No prefácio Bayle registrou: “dividi minha composição em duas
partes: uma puramente histórica; uma narrativa sucinta dos fatos; a outra é um grande comentário,
uma mistura de provas e discussões nas quais inseri a censura de muitas faltas, e mesmo algumas
reflexões de caráter filosófico” (BAYLE, 1697, p.2). Pierre Bayle anunciava aos leitores que lhes
apresentava, ao mesmo tempo, “fatos históricos e as provas desses fatos” (BAYLE, 1697, p.6). Para
provar o que dizia colocava longas citações dos textos que consultou, bem como a referência do
número das páginas, do ano e do local de edição.
Esses procedimentos contrariavam as regras da arte histórica: discurso breve e continuado:
“sei bem que essa conduta seria absurda em um pequeno tratado de moral, em uma peça de
eloquência ou em uma história” (Idem). Por isso, a escolha do formato de um dicionário foi uma
estratégia para realizar sua concepção de conhecimento histórico. Dito de outra forma, a escolha
desse formato tipográfico como suporte para seu texto implicava num procedimento intelectual
específico. Seu livro era uma obra de compilação (ouvrage de compilation), “onde se propões narrar
os fatos e depois ilustrá-los” (Idem). Em linhas gerais, o que hoje é padrão, parece ter sido naquele
momento uma novidade inventiva: “a dupla narrativa do moderno historiador — a narrativa na qual
um texto afirma os resultados finais enquanto um comentário descreve a jornada necessária para
atingi-los foi tanto vislumbrada quanto defendida por Bayle” (GRAFTON, 1998, p.166).
Nessa breve exposição, argumenta-se que o projeto quanto a prática, a forma e os
fundamentos da pesquisa histórica, formulados por Pierre Bayle, pode contribuir para a
compreensão do conhecimento histórico, tal como foi entendido na passagem do século XVII para o
XVIII. Na pesquisa pretende-se identificar os procedimentos de investigação e crítica das fontes,
bem como os critérios que Bayle aplicava para conferir aos textos o estatuto de documento e, na
averiguação do testemunho do documento, por quais procedimentos determinar algo como fato (ou
evidência). Mas também ressalta-se que ao fim do processo de inquirição (ou concomitante a ele), o
autor se dedicava a criar um texto a ser editado e exposto ao público. O que traz questões quanto a
organização formal do texto e aos aspectos tipográficos da obra.
4) Revisão Bibliográfica:
Os primeiros testemunhos da fortuna crítica das obras de Pierre Bayle, em geral, e do seu
Dictinnaire, em particular, remetem ao final do século XVII e início do século XVIII. Em 1708, um
ano após sua morte, seu amigo e correspondente, Pierre Desmaizeaux (1673-1745), escreveu um
esboço sobre os principais fatos biográficos de Bayle. Esse texto, sob o título de The life of Mr
Bayle, foi editado como suplemento da tradução que Desmaizeaux fez para o inglês do Pensées
Diverses. Nos anos subsequentes, talvez motivado pelo sentimento de amizade e profunda
12
20
Para esse projeto foi consultado o texto de Desmaizeaux que compõe o primeiro tomo da edição do Dicionário
de 1820. A edição de 1730 está disponível para consulta na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
21
Do ponto de vista dos clérigos, protestantes e católicos, as sentenças de suas obras eram tidas como “ardis do
demônio” com o objetivo de “envenenar as almas” (ISRAEL, 2001, p.24; 2006, p.31). Os que viam o caráter quase
tóxico em suas ideias — mesmo quando reconheciam suas habilidades argumentativas e grande erudição — procuraram
oferecer vacinas para evitar a contaminação pelo ceticismo (JACQUELOT, 1705, DORIA, 1732; VERNEY, 1751).
22
Para os juízos de Voltaire, que oscilavam entre o elogio e a desqualificação, ver ISRAEL, 2006.
23
Na verdade, mesmo a bibliografia que ressalta o ceticismo e os aspectos laicos de seu pensamento,
concorda que os representantes do iluminismo do século XVIII remodelaram as ideias de Pierre Bayle conforme seus
próprios projetos intelectuais. Para Israel, Bayle foi apresentado como algo “que ele não era” (2006, p.87). Sua visão de
tolerância era mais radical que a de Locke, pois incluía também judeus, muçulmanos, socinianos, hindus, espinosistas,
ateus e todas outras visões de mundo (POPKIN, 2003, p.297). Nem mesmo os representantes mais progressistas da
ilustração parecem ter ido tão longe. Para Cassirer, tomar a figura de Pierre Bayle através de seus ilustres admiradores
pode distorcer sua concepção de história. Em Voltaire e Montesquieu, por exemplo, é ignorado “a pura alegria do fato
estabelecido em sua unicidade, tão característica de Bayle” (CASSIRER, 1994, p.282). Ainda segundo esse autor,
“Bayle nunca nos deu uma verdadeira filosofia da história” (Idem). Seguindo a interpretação de Paul Hazard, mesmo
que os intelectuais vissem Bayle como uma espécie de patrono ou “padroeiro” de seus próprios projetos filosóficos, não
seria adequado colocar seu pensamento em conformidade com o padrão que se convencionou como Aufklärung.
Diferente daqueles ilustres filósofos que declararam sua admiração por seus livros, Bayle não erigiu um monumento de
esperança na razão. O ato de filosofar não reparava as brechas que abria: “apesar dos cuidados que toma; se é muito
13
capaz de destruir as informações recebidas, é incapaz de pôr no seu lugar mais do que interrogações”. Para Richard
Popkin, os pensadores ilustrados se enganaram a seu respeito: “sua destruição de certos pontos de vista foi
transformado, na ‘era da razão’, em afirmações positivas para outros pontos de vista”. Porém, Bayle não teve uma
concepção tão coerente, não estabeleceu qualquer sistema e era descrente quanto ao que a “razão” poderia conquistar
(POPKIN, 2003, p.300). A conclusão das ideias bayleanas, postas em seus próprios termos, seria: “é impossível afirmar
e saber seja o que for” (HAZARD, 1975, p.91).
14
propôs uma possibilidade de leitura, entre outras possíveis. Thomas Lennon faz uso do conceito de
polifonia na análise dos textos de Bayle. A característica de um texto polifônico consiste em
permitir que outros falem autonomamente, mais do que servir como veículo dos pontos de vista do
autor. Potanto, naquilo que outros viram como opacidade, confusão e perplexidade, Lennon atribuiu
como elemento mais rico da engenharia narrativa bayleana.
Na seleção bibliográfica aqui reunida, quis destacar o consenso, dentre muitos pesquisadores,
tanto das dificuldades de interpretação quanto da importância de Pierre Bayle para o contexto
intelectual europeu dos séculos XVII e XVIII — embora seu nome tenha recebido menos atenção
do que outros expoentes do período da ilustração, como Locke, Rousseau ou Voltaire. Contudo, não
se fez ainda uma pesquisa sobre as condições de produção do conhecimento histórico
operacionalizada por Pierre Bayle em seu Dicionário. Tampouco se estabeleceu a relação da
produção historiográfica presente na referida obra com outras práticas letradas do período, para
dessa forma, quem sabe, poder estabelecer qual o estatuto da crítica e da narrativa histórica no
contexto cultural do Setecentos.
Por fim, deixa-se o registro do número diminuto de pesquisas sobre esse autor no Brasil. Na
consulta de catálogos online das bibliotecas universitárias brasileiras, foram encontrados somente
dois trabalhos acadêmicos, ambos realizados em programas de pós-graduação de filosofia. Nenhum
deles teve como objeto o Dictionnaire. A inexistência de traduções das obras de Bayle para o
português e a complexidade narrativa de seus textos, podem ser dois motivos plausíveis para um
número tão pequeno de estudos produzidos nacionalmente sobre ele. Por isso, acredita-se que essa
pesquisa possa contribuir para preencher uma lacuna na investigação historiográfica dedicada a esse
autor e ao período em que atuou.
5) Considerações Teóricas e Metodológicas
5.1 Nesse momento, passo para delimitação dos conceitos e procedimentos, os quais pretendo
mobilizar como parâmetros de análise para o objeto que construí para a presente pesquisa. Também
nesse espaço gostaria de tentar definir que tipo de história da historiografia associo as questões
elencadas até aqui. Minhas indagações teóricas, em grande medida, estão associados as percepções
de crise, apresentado na justificativa deste projeto, e algumas estratégias de resolução desse desafio,
com destaque àqueles que dizem respeito ao âmbito da crítica. O recorte temporal, como já
explicitado, é o final do século XVII e início do século XVIII. Não se trata, portanto, de um estudo
sobre o linguist turn ou o pós-modernismo. Todavia, a agenda em torno do giro linguístico e da
pretendida desestruturação das metanarrativas modernas servem de ancoragem para pensar um
momento, também ele, de reconfiguração e embates em torno do conhecimento, em especial o
conhecimento histórico.
16
Esse paralelo entre dois momentos tão distintos não supõe uma continuidade, mas quer
ressaltar que a relação entre realidade, pensamento e linguagem, é tema recorrente na reflexão sobre
os fundamentos epistemológicos da ciência histórica. O problema da linguagem sempre foi
fundamental no pensamento histórico ocidental, tanto na tradução ou na tentativa de dar sentido a
um passado estranho, quanto no esforço de aplicação de uma descrição acurada dos eventos, no uso
adequado de fontes para uma narrativa fidedigna, das tentativas de analisar e reconstruir realidades
sociais e criações culturais. De acordo com Donald Kelley: “em muitos momentos e em vários
contextos históricos, pensadores propuseram formas de viradas linguísticas contra impulsos
transcendentes” (KELLEY, 1991, p.14). Marcelo de Mello Rangel e Valdei Lopes de Araújo,
destacam que o giro linguístico é convencionalmente situado como um fenômeno recente nas
ciências humanas em geral, e na história em particular. Normalmente situado nas décadas
posteriores a Segunda Guerra Mundial (com alguma variação na precisão do momento de início).
Porém, os autores preferem “pensar o giro linguístico como um deslocamento histórico-estrutural
mais amplo que pode ser definido em torno da clássica descrição foucaultiana da crise da
representação, ou seja, do divórcio progressivo entre as palavras e as coisas que tem no século
XVIII seu momento decisivo” (ARAÚJO; RANGEL,2015, p.320). Pretendem, então, que “neste
momento”, teriam sido postas as primeiras “condições de possibilidade para o giro linguístico24”.
Minha proposta, que aqui fica como primeira hipótese, é que esse deslocamento
epistemológico possa ser recuado para o final do século XVII. Talvez não seja adequado colocar o
Dictionnaire num contexto de aceleração do tempo ou fora do quadro temporal estruturado pela
noção de uma história mestra da vida. No entanto, em função de eventos e contextos que caberá a
futura pesquisa elucidar, Pierre Bayle e seus contemporâneos também enfrentaram questionamentos
sobre as condições de possibilidade do conhecimento histórico.
De modo geral, na virada do século XVII para o século XVIII, se debateu quanto a relação
entre as ideias e a realidade. As dúvidas inerentes à história em sua forma retórica levou muitos
eruditos a se voltar a cultura material. Desde inícios da modernidade o antiquariato analisava
24
Rangel e Valdei, não recusam a legitimidade e pertinência da abordagem tradicional que aborda o tema como
um “evento/processo” constituinte da história intelectual recente. Apenas ampliam o escopo temporal da problemática.
Feito esse esclarecimento, os autores colocam questionamentos quanto “as condições de possibilidade do giro
linguístico constituídas alguns séculos antes”, e que tornaram “possível o questionamento acerca das funções
tradicionais da ‘historiografia’; e,num segundo momento, a própria colocação radical do problema epistemológico da
‘parcialidade’ e do ponto de vista”. Apoiando-se nos conceitos de campo de experiência, horizonte de expectativa e
aceleração do tempo, do historiador alemão Renhardt Koselleck, indicam um conjunto de eventos como a
Independência dos Estados Unidos, a Revolução Francesa, as guerras napoleônicas, a Independência das colônias
espanholas e portuguesas na América, como momentos de configuração de realidades inéditas que não encontravam
respostas adequadas no passado. Colocavam em causa, portanto, o conceito de história magistra vitae.Quanto ao
conceito de história mestra da vida, observam: “é importante ressaltar que utilizamos a expressão ‘história magistra
vitae’ como uma metonímia de uma forma própria de experimentar os eventos históricos que amadureceu ao longo de
séculos na história ocidental, que passou por diferentes formatos e modelos, mas que apontava sempre para elementos
relativamente estáveis no plano experiencial” (ARAÚJO; RANGEL,2015, p.320).
17
inscrições, medalhas e estátuas que pareciam possuir estatuto empírico mais evidente
(Momigliano). Não raro o antiquário era também autor de tratados de botânica ou medicina. A
observação e a descrição direta da natureza ou dos vestígios materiais tinham relação com a busca
por objetividade e empiria (POMATA; SIRAISI, 2005). No entanto, Pierre Bayle participou dessa
discussão com sua atenção voltada exclusivamente para textos. Suas preocupações dirigiam-se a um
domínio circunscrito: “o terreno que elege são os livros, porque Bayle não procura ou não sabe
encontrar as informações pelas quais têm fixação, a não ser peneirando-as no canal dos impressos”
(LABROUSSE, 1964, p.3). Foi nesse campo de atuação que buscou ser objetivo no estabelecimento
de evidências e fatos. Nas suas teorizações sobre a produção letrada colocou, além dos textos, a
própria figura do historiador como objeto de análise crítica.
Cabe ainda definir como ele entende e aborda aquilo que poderíamos chamara de
subjetividade do pesquisador. Mas pensar essa questão envolve uma visada quanto a parcialidade e
o ponto de vista daquele que escreve. O Essay of Human Understanding (1690), publicada quanto
anos antes do Dicionário, poderá ter particular interesse para esse estudo. Suas proposições
trouxeram consequências radicais para a epistemologia da história (POCOCK, 2004, p.56).
Seguindo a leitura do Ensaio sobre o Entendimento Humano, chega-se ao seguinte postulado: a
mente pode formar, mas não validar ideias. Portanto, havia limites para o intelecto humano para
formar sistemas de crenças (POCOCK, 2004, p. 65). Isso significou uma mudança nas formas e nos
motivos pelos quais se olhava para o passado. As operações mentais, que Locke analisou em um
mundo de objetos, foi transposto para o mundo dos discursos. Por toda a Europa ou, pode-se dizer
de forma genérica, no interior da República das Letras, o fascínio pela literatura clássica e
eclesiástica permanecia vigoroso. Porém, adotava-se, agora, outra postura diante desse material. No
lugar da autoridade inerente aos textos, se consolidava o estudo sobre as especificidades das mentes
que produziram esses textos. (Ibid., p.64). Foi colocado em pauta que efeitos as leis, os costumes, as
opiniões e as ideias tiveram, no passado, sobre as formulações teológicas (também filosófica e
científicas. Assim, mesmo sem ser historiador ou ter teorizado sobre a história, Locke contribuiu
imensamente para que a teologia se convertesse em história da teologia (Ibid, p.68).
A atitude historiadora de Pierre Bayle parece ter seguido perspectiva semelhante, e ao olhar
para os textos sagrados não procurou a revelação, mas a história da religião. Nos sistemas
filosóficos não parece ter esperado encontrar uma verdade, mas uma coleção de doxografias. Em
resumo, efetuava uma leitura crítica menos para questionar as heresias e verdades, e mais
para compreender como se produz a autoridade que define algo como herético ou
verdadeiro. Mas isso tem ainda de ser confirmado. Nas próximas linhas, passo para a
definição de outra noção chave para o projeto: a narrativa.
18
5.2 No prefácio do Dicionário fica expresso que sua explicação é largamente narrativa. O autor
parece ter tido consciência, e os testemunhos de muitos que o leram confirma isso, que um dos
grandes atrativos do seu texto estava na própria trama dos enredos sobre os personagens de cada
verbete. Bayle atribuiu a si um duplo papel: o historiador (que relata) e o crítico (que pesa os
argumentos e verifica as provas). Mas a composição literária não deve ser posta como simples
acessório. Uma metanarrativa “é um grande esquema que organiza a interpretação e a escrita da
história” (APPLEBY; HUNT, JACOB, 1995, p.185).
Em um livro escrito a três mãos, as historiadoras Joyce Appleby, Lynn Hunt e Margaret
Jacob, enunciaram que questões teóricas sobre o conhecimento histórico, no passado e hoje,
colocam em cena problemas epistemológicos quanto a forma narrativa que dá coesão à história
como disciplina. De diferentes maneiras, a narrativa permanece um elemento fundamental para
pensar a história como uma forma de conhecimento sobre a vida humana. Mesmo que não se
escreva mais a história profissionalmente conforme modelos clássicos daquilo que se chamava
história retórica, e apesar do anunciado declínio das grandes narrativas; para as autoras, a história
permanece dentro de moldes fortemente narrativos. Todo trabalho histórico possuiria a estrutura de
uma trama com início, meio e fim, mesmo nas monografias mais especializadas de história social,
cultural ou econômica. Esse elemento textual seria inerente ao fazer do historiador, independente do
tema tratado (Idem).
A identidade estrutural da historiografia e a narrativa de ficção25 não foi ignorada pelos
pensadores do século XVII. Por isso, a narrativa será abordada no Dicionário como uma operação
pela qual através da seleção dos fatos se construíram tramas que se pretendiam verídicas. É dessa
forma que se pretende falar, seguindo Paul Ricoueur, de uma “inteligência narrativa”, pois os fatos
encontrados (ou produzidos) na atividade de inquirição crítica, não possuem por si, em sua
dispersão, um sentido: “recebem uma significação efetiva graças ao encadeamento sequencial que a
intriga confere aos agentes, ao seu fazer e ao seu sofrer”. Também é a narrativa que parece
estabelecer uma relação entre os fatos/evidências que os convertam em elementos explicativos26. De
acordo com Ricoeur, o historiador não é um simples narrador:
25
Quanto a essa identidade estrutural entre história e narrativa é importante destacar duas críticas diversas feitas
por Paul Ricoeur e, ao mesmo tempo referir duas obras importantes quanto ao tema da narrativa, ainda que de naturezas
diversas. Lawrence STONE (1991), avaliou que nas últimas décadas teria ocorrido o retorno da narrativa na história.
Porém, Paul Ricoeur considera o termo inadequado, pois a narrativa, a rigor, jamais teria saído de cena. Mesmo a
história dos Annales com ênfase em categorias sociais, econômicas ou estruturas de longa duração não teria abandonado
i caráter narrativo, pois, as entidades societais construídas conceitualmente pelos “novos historiadores”, funcionavam na
estrutura narrativa como “quase personagens” (RICOEUR, 1997, p.280). Outra obra de referência é Hayden WHITE
(1995), o qual teria dado atenção apenas a dimensão narrativa da história, porém, a escrita é uma das atividades do
historiador. Para a noção de “operação historiográfica”, que busca entender os vínculos entre a escrita e o lugar social
do historiador ver CERTEAU, 2008.
26
Paul Riqueour entende que a intriga é mediadora: “faz a mediação entre acontecimentos ou incidentes
individuais e uma história considerada como um todo (…) pode-se dizer que ela extrai uma história de — uma
19
Outro procedimento será situar o Dicionário Histórico Crítico em seu cenário de produção.
Pretende-se mapear diferentes modalidades de pesquisa e escrita sobre o passado. Também as
técnicas de verificação das provas históricas e as formas de organizá-las em um texto a ser
comunicado — se na forma narrativa, dialogal, descritiva, entre outras. Um primeiro estudo
comparativo será feito com o Le Grand Dictionnaire Historique28 (1674), de Louis Moréri (1643-
1680). Pierre Bayle pretendera que seu dicionário crítico seria superior a todas as outras obras de
referência que o precederam. Grande parte do Dictionnaire consiste em correções e observações
sobre o livro de Moréri. Outras obras de caráter historiográfico, consideradas relevantes para essa
pesquisa, estão elencadas na relação das fontes do projeto. É com auxílio desses materiais que se
pretende pesquisar diferentes configurações dos conceitos de crítica e narrativa histórica no século
XVII.
Sobre o tipo de história da historiografia que se quer fazer: a intenção é investigar as formas
diversas de inquirição histórica que conviveram em um mesmo momento. Por isso, outra hipótese
que se coloca é que esse período, largamente abordado como Revolução Científica (meados do
Seiscentos) e o “século da filosofia” (Setecentos), foi também um momento de complexas
proposições sobre o saber histórico — seu valor e suas possibilidades. Embora, para as categorias
da época, Pierre Bayle não fosse um historiador — nem o Dictionnaire um livro de história —
propõe-se que esse estudo poderá contribuir para o entendimento da historiografia no período
moderno. Entendendo a historiografia não só como a prática de escrita da história, mas também
como a historicização, a crítica e a teorização a respeito das formas de inquirir o passado.
6) Objetivos:
6.1. Objetivos gerais:
- Compreender quais as condições de produção do conhecimento histórico no século XVII, dando
ênfase às noções de linguagem e objetividade.
- A partir do Dicionário Histórico e Crítico de Pierre Bayle, estabelecer o estatuto da verdade
histórica em relação aos parâmetros epistemológicos da época.
28
Este fora o dicionário mais famoso do período até a publicação do Dictionnaire Historique et Critique. Mesmo com
os repetidos ataques de Bayle a essa obra, em 1759 ela chegou a sua vigésima edição (GRAFTON, 1998, p.159).
21
Gramática de Port-Royal podem oferecer para pensar essa relação entre linguagem e realidade, tal
como elaborada no período. Na terceira seção será colocado a própria figura do historiador como
produtor do conhecimento histórico. O pensamento de John Locke norteará as discussões sobre
percepção, pontos de vista e parcialidade na produção de ideias. Na quarta seção serão apresentadas
as concepções de Pierre Bayle sobre a razão e as condições subjetivas de aquisição do
conhecimento. O objetivo desse capítulo será: saber se para Bayle era possível produzir um discurso
de verdade sobre o passado. Caso a resposta seja positiva, caberá responder que tipo de verdade era
essa e qual a forma de comunicá-la textualmente.
No terceiro capítulo se abordará mais detidamente o tipo de conhecimento histórico teorizado e
praticado por Pierre Bayle no seu Dicionário. Provavelmente será um capítulo mais extenso. Na
primeira seção, pretende-se questionar se a dúvida histórica se dirigia ao conhecimento histórico em
sentido mais amplo ou apenas ao seu modelo retórico. Em seguida, na segunda seção, serão
mapeadas diferentes formas de se apropriar do passado. A partir da leitura de bibliografias
especializadas, será avaliado como começaram a se organizar os primeiros arquivos documentais na
Europa. Também se estudará sobre práticas eruditas e antiquárias. Será feito um mapeamento dos
diferentes tipos de materiais que eram considerados como vestígios históricos. Depois, estudarei os
procedimentos textuais de apresentação dos resultados dessas diferentes modalidades de pesquisa e
catalogação — memórias, antiguidades, cronologias, dissertações históricas e dicionários históricos.
Na terceira seção, procederei a comparação entre o Dicionário de Pierre Bayle e o Dicionário
Histórico de Moreri. Procurando identificar diferenças formais e estilísticas. Também qual a
diferença na avaliação das fontes. Dessa comparação, espero conseguir delimitar quais foram os
procedimentos críticos mobilizados por Bayle na avaliação dos testemunhos históricos. Na quarta e
última seção, avaliarei como ele organiza seu texto na apresentação de seus resultados. Até que
ponto seu modelo de argumentação rompe ou dá continuidade em relação a outros padrões de
exposição. Também, como crítica e narrativa se relacionam na sua produção de conhecimento sobre
o passado.
Previsão de Fontes:
BAYLE, Pierre. Projet et Fragmens d’un Dictionnaire Critique. Roterdã: chez Reinier Leers,
MDCXII [1692].
______________. Dictionnaire Historique et Critique. Roterdã: chez Reinier Leers, MDCXCVII
[1697].
______________. Dictionnaire Historique et Critique. Roterdã. 4 vol., MDCCXV [1715].
______________. Pensées Diverses sur la Comète. Paris: Edouard Cornély, (1682) 1911.
FRESNOY, Lenglet Du. Methode pour Étudier l’Histoire avec un Catalogue des principaux
Historiens, & des Remarques sur la bonté de leurs Ouvrages, & sur les choix des meilleures
Editions. 5v.. Pariz: Chez Pierre Gandouin, MDCCXXIX (1729).
HUET, Pierre. De La Foiblesse de l’Esprit Humain. Londres: Jean Nourse, MDCCXLI [1741].
LAMY, Bernard. Nouvelles Refexions sur l’Art Poetique. Paris, 1668.
MABILLON, Jean. “Traité des Études Monastiques” in HUREL, Odon (org.). Le moine et
l’historien – Dom Mabillon: Oeuvres choisis. Paris: Robert Lafont, pp. 381-625 [1691], 2007.
MENESES, Luiz de. História de Portugal Restaurado. Tomo 1. Lisboa: Na officina de Domingos
Rodrigues, (1680) 1751.
MORERI, Louis. Le Grand Dictionaire Historique. Amsterdã: George Gallet, MDCXCVIII
[1698].
SAMÓSATA, Luciano de. Como se deve escrever a história. Belo Horizonte: Tessitura, 2009.
SIMON, Richard. Histoire Critique du Vieux Testament. Lausane: Georges Bridel, (1680) 1869.
PULIAN, Pierre. Critique des lettres pastorales de M. Jurieu. Lyon: Anisson, Posuel & Rigaud,
MDCLXXXIX [1689].
VALLEMONT, Abbé de. Les Élemens de l’Histoire ou ce qu’il faut savoir de Chronologie, de
Geographie, de l’Histoire Universelle., de l’Eglise de l’Ancien Testament, des Monarchies
Anciennes, de l’Eglise du Nouveaux Testament, des Monarchies Nouvelles, & de Blazon. Tome
Premier. Paris: chez Quai des Augustins, MDCCLVIII (1758).
Bibliografia:
ALMEIDA, Maria Cecília P. de. O Elogio da Polifonia: Tolerância e Política em Pierre Bayle.
São Paulo: FFLCH/USP, 2011, tese de doutoramento.
APPLEBY, Joyce; HUNT, Lynn; JACOB, Margaret. Telling the Truth About History. New York:
Norton and Company, 1995.
BAUMER, Franklin L. O Pensamento Europeu Moderno: séculos XVII e XVIII. volume I. Rio
de Janeiro: editora 70, 1977.
BRAVO, Benedetto. “Critice in the Sixteenth and Seventeenth Centuries and the Rise of the Notion
of Historical Criticism” in QUANTIN, Jean-Louis; LIGOTA, Christopher. History of Scholarship.
Oxford: University Press, 2006.
CHARTIER, Roger. À Beira da Falésia: a história entre incertezas e inquietude. Porto Alegre:
Ed. da UFRGS, 2002.
DELISLE, Jean; WOODSWORTH, Judith. Translators through History. FIT and Unesco:
Amsterdam and Philadelphia, 2012.
GARNIER, Bruno. “Anne Dacier, un esprit moderne au pays des anciens,” in DELISLE, Jean (org).
Portraits de traductrices. Ottawa and Artois: Presse universitaire d’Ottawa and Artois Presse
universitaire, 2002.
GAY, Peter. O Estilo na História. São Paulo: Cia das Letras, 1990.
GINZBURG, Carlo. O Fio e os Rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Cia das Letras,
2007.
_________________. Relações de Força. História, Retórica, Prova. São Paulo: Cia das Letras,
2004.
GRAFTON, Anthony. What Was History? The art of history in early modern Europe.
Cambridge: Cambridge University Press, 2007.
189
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Modernização dos Sentidos. São Paulo: Ed. 34, 1998.
HAYES, Julie Candler. “Of Meaning and Modernity: Anne Dacier and the Homer Debate” in
RUBIN, David Lee (org). Strategic Rewriting. Charlottesville. VA: Rookwood, 2002.
ISRAEL, Jonathan Irvine. Radical Enlightenment: philosophy and the making of modernity
(1650-1750). New York: Oxford Press, 2001.
JENKINSON, Sally L. “Instodution: a defense of justice and freedom” in BAYLE, Pierre. Political
Writings. Cambridge: University Press, 2000.
KELLEY, Donald R. Versions of History: from Antiquity to the Enlightenment. New Haven:
Yale University Press, 1991.
KOSELLECK, Reinhart [et al.]. O Conceito de História. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.
McKENNA, Antony. “Rationalisme moral et fidéisme “ in ROBERT, Philipe de. Pierre Bayle
citoyen du monde. De l’enfant du Carla à l’auteur du Dicitonnaire. Paris: Honoré Champion,
1999.
MOMIGLIANO, Arnaldo. História Antiga e o Antiquário. Anos 90, Porto Alegre, v.21, n.39. p.30.
MORI, Gianluca. Scepticisme ancien er moderne chez Pierre Bayle in Libertinage et Philosophie
au XVIIe Siècle, Publications de l’Université de Saint-Étienne, 2003.
27
NEVEU, Bruno. Erudition et Religion aux XVII et XVIII Siècles. Paris: Albin Michel, 1994.
__________________. Como se deve ler a história: Jean Bodin e a ars historica do século XVI
in NICOLAZZI, Fernando; MOLLO, Helena Miranda; ARAUJO, Valdei Lopes (orgs.). Aprender
com a História? O passado e o futuro de uma questão. Rio de Janeiro: FGV, 2011.
PAGANINI, Giani. The Return of Scepticism: from Hobbes and Descartes to Bayle. Vercelli:
Università del Piemonte Orientale, 2000.
PALTI, Elias. Giro Linguístico e Historia Intelectual. Buenos Aires: Universidade Nacional de
Quilmes, 1998.
PÉCHARMAN, Martine. “The ‘Rules of Critique’ – Richard Simon and Antoine Arnauld” in BOD,
Rens; MAAT; Jap; WESTSTEIJN, Thijs. The Making of Humanities – Volume 1: Early Modern
Europe. Amsterdam: Amsterdam University Press, 2010.
POCOCK, J.G.A. Barbarism and Religion: the Enlightmenments of Edward Gibbon (1737-
1764). Cambridge: University Press, 2004.
_______________. The Ancient Constitution and the Feudal Law: A study of English Thought
in Seventeenth Century. Cambridge: Cambridge University Press, 1987.
RANGEl, Marcelo de Mello; ARAUJO, Valdei Lopes de. Teoria e História da Historiográfia: do
giro linguístico ao giro ético-político. Revista história da historiografia, Ouro Preto, n.17, abril de
2015, pp. 318-332.
REX, Walter. Essays on Pierre Bayle And Religious Controversy. Netherlands: Martinus Nijhoff,
1965.
STONE, Lawrence. O Ressurgimento da Narrativa. Reflexões sobre uma Nova Velha História.
In Revista de História. Campinas/SP: UNICAMP. Nº2/3. Primavera 1991. p.13 a 37.
WHITE, Hayden. Meta-História: a imaginação histórica do século XIX. São Paulo: Edusp, 1995.
28