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Daughters of the Dust​: observações sobre a realização

independente do filme e aspectos estéticos da construção de uma


memória mítica1

Dimitria Herrera2

Resumo: ​O objeto de estudo deste artigo é o filme ​Daughters of the Dust ​(1991)​, ​escrito,
produzido e dirigido por Julie Dash e lançado nos cinemas norte-americanos em 1992. Com
base no livro ​Daughters of the dust: the making of an African American woman's film, ​o
diálogo entre Dash, bell hooks e Toni Cade Bambara será utilizado pelo artigo para aproximar
os falantes de português ao universo criado pela obra cinematográfica, que demarca um
caminho para a construção de uma imagem descolonizada das pessoas afro-americanas
através de uma ressignificação mítica da história. Serão realizadas uma apresentação do
processo de produção independente do filme, uma breve contextualização do enredo e as
escolhas estéticas que desafiam o cinema ocidental tradicional e, por fim, a apresentação de
algumas das personagens interessantes para destacar certas tradições dos povos ​Gullah
apresentadas por Dash que contribuem para a construção de uma memória mítica
descolonizada.

Palavras-chave: ​Daughters of the Dust​; Cinema afro-americano; Julie Dash

Abstract: ​The main focus of this article is the movie Daughters of the Dust (1991), written,
produced and directed by Julie Dash and distributed in the american theaters in 1992. Based
on the book “Daughters of the dust: the making of an African American woman's film” the
dialog between Dash, bell hooks and Toni Cade Bambara will be used by this article to
approximate the portuguese speakers to the universe created by the film, that delineates a
path to the construction of a decolonized image of African American people through a mitic
resignification of history. A presentation of the movie’s independent production process will
be done, followed by a short contextualization of the plot and the aesthetics choices that
challenges the traditional western cinema and, by the end, the presentation of a few
characters interesting to highlight some of the Gullah tradition shown by Dash that
contributes to the construction of a decolonized mitic memory.

Keywords: ​Daughters of the Dust; African American cinema; Julie Dash

1
​Trabalho produzido como forma de avaliação para a disciplina optativa Teatro de Diáspora Afrodescendente,
coordenada pelos docentes Licko Turle e Alexandra Dumas e pelas tirocinistas/docentes Mônica Santana e
Fernanda Silva, realizada no primeiro semestre de 2019 na Universidade Federal da Bahia.
2
Dimitria Herrera é graduanda em Artes Cênicas com habilitação em Interpretação Teatral pela Universidade
Federal da Bahia. Tem pesquisas nas áreas de Artes e Letras.
1. Introdução

Daughters of the Dust ​(1991), traduzido no Brasil como Filhas do Pó ou Filhas da

Poeira, é um filme independente norte-americano, escrito, dirigido e produzido pela cineasta


Julie Dash. Seu lançamento, em 1992, marcou a história do cinema nos Estados Unidos como
a primeira vez em que a obra de uma mulher afro-americana3 teve ampla exibição nos
cinemas do país. Essa informação, entretanto, não é suficiente para dimensionar o
acontecimento. Tal obra cinematográfica desafia o cinema ocidental convencional até os dias
de hoje, tanto por sua estética quanto pelo tema, por suas escolhas narrativas, elenco, equipe e
a maioria dos caminhos tomados durante sua produção. Em uma conversa com Julie Dash em
1992, a artista, autora e teórica feminista bell hooks, analisando a necessidade de uma
redefinição da história e da mitologia no processo de descolonização e libertação das pessoas
afro-americanas (ou de outros grupos globalmente oprimidos), diz:

Como ​Daughters f​ az isso de uma maneira tão incrível, cria-se um novo tipo
de filme artístico, porque claramente pode ser visto como um filme artístico,
mas também como uma intervenção política progressiva. Existem imagens
de pessoas negras nesse filme, imagens nossas como nunca havíamos visto
nós mesmos na tela antes. (DASH; BAMBARA; HOOKS, 1992, p. 31/32)4

Apesar de ter sido lançado no início da década de 90 e da extensa bibliografia sobre o


assunto em inglês, existem poucas produções em português com foco nessa obra
cinematográfica. Mesmo que acontecimentos recentes tenham colocado o filme em pauta
(como o álbum ​Lemonade, de Beyoncé, com inspiração estética e temática em ​Daughters of
the Dust)​, mesmo após seu relançamento nos cinemas americanos e com a disponibilização do
filme em alta definição na plataforma Netflix brasileira, para os nativos da língua portuguesa
as referências escritas ao filme ainda são escassas. Das publicações brasileiras podemos citar
o artigo de Marco Aurélio da Conceição Correa e Tatiana Santos dos Reis ​publicado pela
Kwanissa: Revista de Estudos Africanos e Afro-Brasileiros como uma das poucas produções
escritas facilmente acessíveis online.

3
​O termo “afro-americano” será utilizado durante este artigo por se tratar de uma forma mais comum nas
publicações brasileiras. O termo “africano americano” foi mantido nas traduções para preservar uma
aproximação com o termo utilizado na língua de origem.
4
​As traduções apresentadas durante este artigo foram realizadas pela pesquisadora de forma livre e estarão
sempre acompanhadas, em nota de rodapé, da citação na língua de origem. Excerto original: “Because Daughters
does this in such an incredible way, it creates a new kind of art film because it clearly can be seen as an art film,
but also as a progressive political intervention. There are images of black people is this film, images of us as
we've never seen ourselves on the screen before.”
1
Por esse motivo, se faz necessário ao presente artigo aproximar os falantes de
português ao rico universo criado por Julie Dash e sua equipe. O livro ​Daughters of the Dust:
the making of an African American woman’s film5 ​(1992) escrito por Julie Dash com
participações de bell hooks e Toni Cade Bambara, cineasta e ativista social afro-americana,
será uma das principais referências bibliográficas neste artigo. O ponto de partida será o
processo de produção independente do filme, que evidencia alguns aspectos do racismo
estrutural em uma sociedade patriarcal branca e os caminhos utilizados para contornar esses e
outros problemas. Em sequência, será feita uma contextualização do enredo do filme e de
algumas escolhas estéticas e políticas de sua construção. Por fim, serão apresentadas
personagens relevantes para destacar algumas das tradições apresentadas por Dash em seu
filme e para construir um diálogo sobre a memória mítica que está sendo criada.

2. Julie Dash e a produção independente de ​Daughters of the Dust


Julie Dash é uma escritora, diretora e produtora afro-americana nascida em Nova
Iorque em 1952. Graduada em produção cinematográfica pelo City College of New York em
1974, prosseguiu os estudos com uma bolsa na American Film Institute. Após terminar o
curta-metragem ​Illusions ​(Ilusões), em 1981, deu início ao intenso processo de pesquisa para
Daughters of the Dust,​ q​ ue levaria cerca de sete anos.
Inicialmente pensado como um curta-metragem silencioso sobre o momento em que
uma família afro-americana das ilhas da Carolina do Sul se prepara para migrar para o norte,
na virada do século XX, seria por causa da pesquisa de Dash que a história se transformaria
num longa metragem. Ela percebeu que “havia muita informação e ela precisava ser
compartilhada” (DASH; BAMBARA; HOOKS, 1992).
Até 1985, as pesquisas para o filme permaneceram constantes. Pelo final de 1986,
havia uma versão do roteiro (que passaria por 5 reescritas completas, dois polimentos e teve
partes alteradas durante a gravação) pronta para a filmagem. Dash, então, começou a busca
por financiamento. O orçamento inicial estipulava 250 mil dólares, mas, mesmo aplicando-se
para diversas bolsas e programas de financiamento, o dinheiro não se fez acessível. Dash e
Arthur Jafa, co-produtor e diretor de fotografia, decidiram filmar uma prévia do filme na

5
​Livro disponível na íntegra, em inglês, para empréstimo através do site Archive.org -
https://archive.org/details/daughtersofdustt00dash
2
esperança de que isso facilitasse a obtenção de recursos. No verão de 87, formaram uma
equipe de 14 pessoas e gravaram na ilha marítima de Santa Helena, na costa da Carolina do
Sul, durante cinco dias.
A experiência de gravação fez com que Dash percebesse quais seriam realmente os
gastos monetários para o filme, gerando uma atualização no orçamento previsto, de 250 para
800 mil dólares. A título de comparação, o filme Thelma & Louise (1991), lançado na mesma
época, cujo enredo é focado em duas mulheres brancas e tem uma estética convencional, teve
um orçamento de 16,5 milhões de dólares e recebeu seis indicações ao Oscar, levando o
prêmio de melhor roteiro original. Por outro lado, Dash realizou pessoalmente a edição da
prévia de seu filme, investindo, para isso, suas economias pessoais. A prévia, editada, foi
enviada para diversos possíveis financiadores, americanos e europeus. Sobre as respostas que
foram recebidas, Dash diz:

Os estúdios de Hollywood ficaram geralmente impressionados com o visual


do filme, mas de alguma forma eles não conseguiam compreender o
conceito. Eles não conseguiam processar o fato de que uma mulher negra
cineasta queria fazer um filme sobre mulheres africano americanas na virada
do século - particularmente um filme com uma família forte, com
personagens que não estavam vivendo no gueto, matando uns aos outros e
queimando coisas. E não haveria nenhuma cena de sexo explícito, tampouco.
Eles pensavam que o filme seria invendável. 6
(DASH; BAMBARA; HOOKS, 1992, p. 8)

Percebe-se que a dificuldade de Dash em encontrar financiadores estava relacionada


ao racismo estrutural do patriarcado, através do qual a cultura dominante, branca, alimenta
financeiramente os projetos cinematográficos que construam imagens pejorativas, violentas,
da cultura afro-americana e que objetificam as pessoas do gênero feminino. Ou, ao menos,
projetos cinematográficos que não desafiem a construção dessas imagens e que sejam,
preferencialmente, dirigidos e produzidos por homens. Dash estava enfrentando uma batalha
contra uma das bases que sustenta o sistema patriarcal branco.
Em 1988, durante um retiro nas Montanhas Rochosas, em Utah, Dash conheceu Lynn
Holst, que trabalhava para a American Playhouse. Uma série de longas discussões sobre o

6
“​Hollywood studios were generally impressed with the look of the film, but somehow they couldn't grasp the
concept. They could not process the fact that a black woman filmmaker wanted to make a film about African
American women at the turn of the century - particularly a film with a strong family, with characters who weren't
living in the ghetto, killing each other and burning things down. And there weren't going to be any explicit sex
scenes, either. They thought the film would be unmarketable.”
3
projeto, que capturou o interesse de Holst, levaram ao posterior investimento da American
Playhouse, que aceitou arcar com a maior parte do financiamento. As filmagens foram
planejadas para outubro de 1989 na ilha de Santa Helena.
Mal tinham acabado de instalar a equipe de produção na ilha marítima quando
receberam a notícia do iminente furacão Hugo, que os obrigou a abandonar Santa Helena no
mesmo dia. Quando finalmente começaram a filmar, restavam 28 dias para capturar a parte
principal. A locação mais frequente ficava a uma milha de caminhada, e, por motivos de
preservação ambiental, não podiam usar veículos motorizados, de forma que todo o
equipamento de filmagem precisava ser carregado a pé. Como não seria possível levar um
gerador, Arthur Jafa decidiu filmar com a luz natural, solar. Essa decisão criou uma
importante marca estética no filme e teve grandes consequências para o processo de
filmagem, fazendo com que a equipe tivesse que mudar o cronograma de gravação diversas
vezes na tentativa de capturar o melhor da luz solar.
Dash descreve o período de filmagem como extremamente exaustivo. Além da
constante necessidade de aproveitar as horas de luz, lidavam com os problemas de
convivência da equipe, com a natureza e seus implacáveis mosquitos e tempestades de areia, e
com os recursos financeiros cada vez mais escassos. Uma parte da equipe teve que ser
enviada de volta ao continente mais cedo por falta de dinheiro. Alguns permaneceram,
trabalhando voluntariamente por alguns dias, o que demonstra um envolvimento que
extrapola o nível puramente comercial.
Finalizada a gravação, o que antes era recurso disponível havia se transformado em
dívidas. Em janeiro de 1990, Dash começa a editar o filme em sua casa, valendo-se de toda a
ajuda e todos os recursos pessoais que podia conseguir - as recompensas de premiações e
outros pequenos projetos em que ela trabalhou foram destinados imediatamente para a edição
de ​Daughters. Em dezembro, havia uma versão. John Barnes produziu a trilha sonora original
em duas semanas devido à impossibilidade de alterar a data final da mixagem de som. Ele
incluiu o respeito e o conhecimento da astrologia em suas composições, trabalhando
exaustivamente durante o feriado de natal.
Com o filme pronto, começou a busca por um distribuidor. Dash imaginava que, com
o material filmado, editado e sonorizado, a busca por um distribuidor seria menos dolorosa.
Infelizmente, foi um desafio tal qual a busca por uma financiador. Sobre isso, Dash diz:

4
Os distribuidores falavam sobre o visual espetacular do filme e sobre as
imagens e sobre a história ser tão diferente e provocar reflexão, mas a
resposta final era de que ‘não havia mercado’ para esse tipo de filme. De
novo, eu estava escutando principalmente homens brancos dizendo a mim,
uma mulher africano americana, o que meu povo queria ver. De fato, eles
estavam decidindo o que nós deveríamos ser permitidos a ver. Eu sabia que
estava errado. Eu sabia que eles estavam errados.7 (DASH; BAMBARA;
HOOKS, 1992, p. 25)

Diante desses acontecimentos, o filme foi colocado no circuito de festivais. O


Sundance Film Festival de 1991, em Utah, deu o prêmio de melhor direção de fotografia a
Daughters of the Dust​. A recepção ao filme foi igualmente calorosa nos outros festivais em
que participou, até setembro do mesmo ano, quando Kino International assinou um contrato
de distribuição para o ano seguinte.
Daughters of the Dust foi lançado no dia 15 de Janeiro de 1992 em Nova Iorque, no
Film Forum. Todos os ingressos se esgotaram. No dia do lançamento, a ​Coalition of One
Hundred Black Woman of New York8 fez uma recepção em apoio ao filme. ​Daughters foi
exibido largamente nos cinemas do país e se tornou um marco histórico para o cinema
norte-americano.

3. O filme: enredo, narração e escolhas estéticas


Daughters of the Dust conta a história da família Peazant, habitantes da ilha de Santa

Helena na costa da Carolina do Sul, em 1902, no momento em que a maior parte da família se
prepara para migrar para o continente e tomar a direção norte. O enredo se desenrola num
único dia, um domingo, quando a família faz uma grande refeição como forma de despedida
da matriarca, Nana, que permanecerá em Santa Helena. Duas Peazant que já habitam o
continente voltam para esse encontro, uma delas trazendo um fotógrafo contratado para
registrar o momento.

7
“​The distributors talked about the spectacular look of the film and the images and story being so different and
thought-provoking, yet the consistent response was that there was 'no market' for this type of film. Again, I was
hearing mostly white men telling me, an African American woman, what my people wanted to see. In fact, they
were deciding what we should be allowed to see. I knew that was wrong. I knew they were wrong."
8
​Descrição retirada da página de Facebook da organização (tradução livre): “Fundada em 1970, a ​New York
Coalition of One Hundred Black Women é uma organização que age como voz de liderança para mulheres, com
um foco particular em mulheres negras. Nossos programas e atividades são feitos para expor, desenvolver e
inspirar mulheres com confiança para que elas possam se tornar mais proativas em assuntos relativos a sua
qualidade de vida.” - acesso em: ​https://www.facebook.com/pg/NewYorkCoalitionOfOneHundredBlackWomen/about/

5
Os Peazant são ​Gullah,​ ou ​Geechee,​ termo amplamente utilizado para designar
afro-americanos da região da Geórgia e da Carolina do Sul, nos Estados Unidos. As ilhas
dessa região foram, no período do comércio transatlântico de pessoas escravizadas, o
principal ponto de desembarque dos navios vindos do continente africano. O relativo
isolamento que as ilhas encaravam frente ao continente contribuiu para que ali se
desenvolvesse uma cultura própria, na medida em que os diversos povos africanos,
trabalhadores forçados das plantations, buscavam formas de se relacionar e manterem vivas as
suas tradições. Desenvolveram sua própria linguagem, uma rica mistura de variados idiomas
africanos com o inglês, considerada preconceituosamente como um “inglês de bebê” por
muito tempo, até progressivamente passar a ter sua importância e características reconhecidas.
Daughters of the Dust ​está baseado nessa cultura. O ponto de partida para a história do
filme foram as recordações de sua família, como diz Dash em seu livro:

“As memórias de minha própria família levaram à ideia de ​Daughters e​


formaram as bases para alguns dos personagens. Mas quando sondei meus
parentes por informações sobre a história da família na Carolina do Sul, ou
sobre a nossa migração para o norte, para Nova Iorque, eles frequentemente
se mostraram relutantes a discutir. [...] Eu já sabia então que as imagens que
eu queria mostrar, que a história que eu queria contar, tinha que tocar a
audiência da forma como tocava a minha família. Tinha que levá-los de
volta, para dentro das memórias de suas famílias, para dentro de nossas
memórias coletivas.”9(DASH; BAMBARA; HOOKS, 1992, p. 5)

Na tentativa de acessar essas memórias coletivas e com base em anos de pesquisa,


Dash criou em seu filme um caminho para a reconstrução da história e da mitologia das
pessoas afro-americanas, incorporando a cosmologia Yorubana e todas as referências
relevantes à necessidade. Uma delas foi o ​Ibo Landing.​ Em conversa com bell hooks, Dash
explica que existem dois mitos e uma possível realidade para essa história. Conta-se de um
grupo de pessoas da etnia Ibo que, capturadas e enviadas através do atlântico, ao
desembarcarem na costa americana, se recusam a viver a escravidão. Elas dão as costas ao
continente e caminham para a água - em uma das versões, o grupo caminha por cima da água

9
"​The stories from my own family sparked the idea of Daughters and formed the basis for some of the
characters. But when I probed my relatives for information about the family history in South Carolina, or about
our migration north to New York, they were often reluctant to discuss it. [...] I knew then that the images I
wanted to show, the story I wanted to tell, had to touch an audience the way it touched my family. It had to take
them back, take them inside their family memories, inside our collective memories."
6
todo o caminho de volta ao continente africano. Em outra, são levados pelas correntes
marítimas até a costa da África. A terceira versão, supostamente a que confere à realidade, diz
que o grupo de pessoas Ibo marcha para dentro da água e voluntariamente se afoga,
libertando-se da condição de escravidão.
O ​Ibo Landing aparece no filme como um lugar real, com o qual as personagens se
relacionam. Dash descobriu em suas pesquisas que em quase todas as ilhas marítimas daquela
região existe um ​Ibo Landing,​ um local sinalizado pela população como o lugar em que aquilo
realmente aconteceu. Ela diz que:
“É porque essa mensagem é tão forte, tão poderosa, tão fundamental para a
tradição de resistência, de todas as formas possíveis, que toda comunidade
Gullah acolhe esse mito. Então eu aprendi que o mito é muito importante na
luta para manter um senso de identidade e para mover-se em direção ao
futuro.”10 (DASH; BAMBARA; HOOKS, 1992, p. 30)

A respeito da forma fílmica, ​Daughters of the Dust não tem uma estrutura ocidental,
cronológica, da disposição dos eventos. A forma de mostrar a história, assim como seu
conteúdo, é afrocentrada. Dash inspirou-se na figura do ​griot,​ o “contador de histórias” dos
povos africanos. No livro ​Talk That Talk: An Anthology on African-American Storytelling
(1989), D’jimo Kouyate11 explica a figura do ​griot c​ omo sendo o “historiador oral e
educador” nas sociedades do continente africano. O ​griot ​era uma figura respeitada, próxima
ao rei, para quem interpretava alguns acontecimentos. Era também responsabilidade do ​griot
“garantir que as pessoas recebessem todas as informações sobre seus ancestrais - o que o pai,
os avós e suas linhagens fizeram e como eles fizeram isso.”12
No filme, assistimos como se uma ​griot ​revelasse a história da família. Passado,
presente e futuro estão entrelaçados, como uma linha de história que se desenrola e puxa outra
história, e outra, e outra. Ainda que quase todos os acontecimentos do filme estejam
concentrados num único dia, em 1902, num domingo em que a família se despede da bisavó, a
percepção do tempo para o espectador é de um outro tempo, um tempo em que passado e
futuro fluem conjuntamente. Existem duas narradoras principais: a bisavó, Nana Peazant, e a

10
“​It's because that message is so strong, so powerful, so sustaining to the tradition of resistance, by any means
possible, that every Gullah community embraces this myth. So I learned that myth is very important in the
struggle to maintain a sense of self and to move forward into the future.”
11
​D’jimo Kouyate foi o 149° das gerações de ​griot (​ também chamado ​diali)​ da família senegalesa Kouyate.
12
“​It was also the responsibility of the griot to make sure that the people received all the information about their
ancestors - what the father, the grandparents, and their lineages had done and how they had done it.”
7
Unborn Child, a criança não nascida, no ventre de Eula. Dessa forma, o filme é contado e
sustentado tanto pela figura dos ancestrais tanto quanto pelo futuro, a expectativa da vida.
Se faz importante destacar, também, o uso das câmeras e de certos efeitos nas
imagens. É através de sobreposições e efeitos estilo “câmera lenta” utilizados em alguns
momentos que podemos compreender que os acontecimentos paralelos do filme também estão
conectados. O que certas personagens estão dizendo em uma cena está intimamente
relacionado com os acontecimentos de outra cena, com outras personagens. Além disso, esses
efeitos também anunciam momentos mágicos, em que o tempo se entrelaça e a ​Unborn Child
interage com o momento presente. Quanto ao uso das câmeras, Toni Cade Bambara faz uma
explanação interessante:
Em D ​ aughters,​ a ênfase está em espaço compartilhado (cenas com
enquadramento de ângulos amplos e grande profundidade de campo) em vez
de espaço dominado (herói em primeiro plano com foco nítido, outros
borrados no fundo); em espaço social em vez de espaço idealizado (como
nos filmes ocidentais); em espaço delineado que encoraja uma leitura
contínua da realidade em vez de espaços maquiados em que, através de
close-ups e enquadramentos, o espectador é encorajado a acreditar que
conflitos são apenas psicológicos, não, digamos, sistêmicos, e, desse modo,
podem ser resolvidos por um psiquiatra, um advogado, ou uma arma, mas
não, digamos, através de uma transformação social.13(DASH; BAMBARA;
HOOKS, 1992 p. xiii)

Somado a todas essas características está o fato de que o filme se concentra na


perspectiva das mulheres. ​Daughters of the Dust leva o espectador a acompanhar
prioritariamente o universo feminino, o que as mulheres conversam, o que fazem durante
aquele dia, o que pensam e sentem. Em diálogo com bell hooks, Dash diz que quem ela estava
tentando privilegiar com esse filme eram “as mulheres negras primeiro, a comunidade negra
em segundo, as mulheres brancas em terceiro. E todos os outros após isso.”14 ​(DASH;
BAMBARA; HOOKS, 1992, p. 40)

13
“​In Daughters, the emphasis is on shared space (wide-angled and deep-focus shots in which no one becomes
backdrop to anyone else's drama) rather than dominated space (foregrounded hero in sharp focus, others Othered
in background blur); on social space rather than idealized space (as in westerns); on delineated space that
encourages a contiguous-reality reading rather than on masked space in which, through close-ups and framing,
the spectator is encouraged to believe that conflicts are solely psychological not, say systemic, hence, can be
resolved by a shrink, a lawyer, or a gun, but not say, through societal transformation.”
14
“I wanted black women first, the black community second, white woman third. That's who I was trying to
privilege with this film. And everyone else after that.”
8
4. As personagens e a construção de uma memória mítica
Em ​Daughters of the Dust,​ não é apenas através da inserção de elementos da tradição

e da linguagem ​Gullah e dos povos do continente africano que se dá a construção de uma


memória mítica, mas sim através da articulação desses elementos dentro do campo da
imaginação, valendo-se da ressignificação de certos símbolos. Esse movimento também
desafia certas expectativas restritivas da cultura dominante sobre os trabalhos artísticos
produzidos por pessoas afro-americanas, como diz bell hooks:

Eu acho que um dos maiores problemas enfrentados por cineastas negros é a


forma como tanto o espectador quanto, frequentemente, a cultura dominante
querem nos reduzir a alguma estreita noção de “real” ou “preciso.” E me
parece que um dos aspectos inovadores de ​Daughters of the Dust​, porque é
verdadeiramente um filme inovador, é sua insistência num movimento para
longe da dependência da “realidade”, “precisão”, “autenticidade”, para o
campo do imaginário.15(DASH; BAMBARA; HOOKS, 1992, p. 31)

Um exemplo da ressignificação são as marcas físicas deixadas pelo período da


escravidão nas personagens do filme, que são as mãos tingidas de índigo. Ainda que a tinta
venenosa não provoque marcas permanentes, Dash encontra uma nova maneira de se referir a
esse acontecimento e provoca novos sentimentos e reflexões no espectador, contribuindo para
uma re-sensibilização do olhar, tão necessária para uma abordagem descolonizada da
memória dos descendentes da diáspora forçada aos povos africanos.
Ao tratar dessa memória, o filme lida com os lapsos, os inevitáveis vazios de memória.
A história daquela família não é a história que está escrita, que é ensinada nas escolas, é antes
aquela que vive dentro da lata cheia de pedacinhos de memória que Nana carrega durante o
filme. Outras personagens também carregam suas próprias latas, suas coleções, os pedacinhos
de passado capturados ao longo do tempo e que necessariamente precisam do ​griot, d​ o
contador de histórias que faça com que os elementos materiais tomem a forma de memória
compartilhada. Elementos esses que também podem se transformar numa fonte de poder e
proteção, como quando, ao final do filme, Nana prepara um amuleto para sua família.

15
“​I think one of the major problems facing black filmmakers is the way both spectator and often, the dominant
culture want to reduce us to some narrow notion of "real"or "accurate."And it seems to me that one of the
groundbreaking aspects of Daughters of the Dust, because it truly is a groundbreaking film, is its insistence on a
movement away from dependence on "reality", "accuracy", "authenticity", into a realm of the imaginative.”
9
Nana é a ​griot​, a bisavó, a matriarca, a mais velha. Com ela reside a responsabilidade
de passar aos seus descendentes a sabedoria de seus ancestrais. Ela experimenta uma conexão
forte com o passado e ao mesmo tempo um laço com o futuro, com a comunicação que
mantém com a ​Unborn Child.​ Além da representação física de Nana como uma mulher
enérgica, ágil, diferente das representações ocidentais tradicionais de uma “avó”, ela também
ressignifica a relação daquele povo com aquele pedaço de terra. Nana se apropria da terra e
quer permanecer ali. Não há a representação da terra como um fardo que aquela gente precisa
carregar. Em vez disso, a ilha de Santa Helena significa um local de abundância, a terra de
onde se conseguem os alimentos e onde aconteceu a história daquela família.
Eli é marido de Eula e inicia o filme enfrentando um momento de dúvida do poder de
sua ancestralidade, dos ritos de sua família, após a esposa ter sido estuprada por um homem
branco. Eli nos apresenta algumas referências às sociedades secretas africanas, que se
comunicavam através de uma linguagem de sinais e cuja sabedoria foi passada através de
gerações. Ele é visto algumas vezes treinando sozinho ou trocando sinais com outros parentes
e também utilizando um tipo de luta marcial africana com seu primo. Aparentemente, a
migração para o continente representa uma possibilidade de fuga para Eli, que, aprisionado à
ilusão de propriedade marital criada pelo patriarcado, se sente arruinado pelo acontecimento
enfrentado por sua esposa e duvida ser pai da criança em gestação no ventre de Eula. Sendo
uma das principais personagens masculinas, parece simbólico que Eli não tenha a
representação típica de protagonistas masculinos nos filmes ocidentais, a saber, fisicamente
opressivo, de personalidade impositiva, responsável solitário pela liderança de sua família e
resgate de sua suposta “honra” mesmo que isso vá contra os interesses e desejos de todos.
Também parece simbólico que ao final do filme a fé em sua ancestralidade seja restaurada.
Eula aparece como uma das personagens mais conectadas às tradições da família,
depois de Nana. Ela se comunica com a mãe, falecida há alguns anos, através de uma
mensagem deixada embaixo da cama sob um copo d’água. Seu quarto está coberto de jornais
para afastar os maus espíritos e ela fica visivelmente abalada quando Eli destrói a árvore com
os jarros de vidro, que Dash explica em seu livro como uma representação simbólica daqueles
que já se foram e uma outra forma de proteção contra espíritos ruins. Eula vê beleza na ilha,
na vida que levam ali. Apesar de ter sido a vítima de uma violência recente, suas palavras não
denotam raiva, mas sim um desejo de reconciliação com a individualidade e com a
ancestralidade para si e para seus próximos.

10
A personagem Bilal Muhammed faz referência a uma pessoa de mesmo nome que
viveu nas ilhas marítimas daquela região durante o período da escravidão. Bilal era
muçulmano, raptado do Sudão quando criança. Sabia francês, tendo permanecido por certo
tempo nas Índias Ocidentais antes ser levado para as plantations nas ilhas marítimas do sul,
onde continuou praticando a sua fé. Até a virada do século, suas cinco filhas ainda
carregavam a tradição do Islã. No filme, a personagem Bilal Muhammed é contemporânea ao
enredo e ecoa a memória dos acontecimentos reais, sua presença simbolizando a força e o
poder da ancestralidade e da tradição.

​1. Nana Peazant e sua lata com “pedaços de memórias” ​ 2. Eli, ajoelhado, abraça Eula Peazant
​Frame ​do filme. ​ rame ​do filme.
F

3. Eli (de colete, à esquerda) após a luta com seu primo. 4. A mensagem deixada por Eula para sua falecida mãe.
Frame ​do filme. ​Frame ​do filme.

Por fim, vale destacar a diversidade das personagens apresentadas pelo filme. Tanto as
personagens femininas quanto masculinas apresentam maneiras muito diferentes de se
relacionar com os aspectos da tradição da família Peazant e da migração para o continente,
bem como maneiras muito diferentes de expressarem suas personalidades individuais. Através
dessas imagens, ​Daughters of the Dust p​ rivilegia a diversidade, alimentando a ideia de que
existem muitas formas de se relacionar e existir no mundo, e que todas elas são válidas. A

11
opção pela diversidade também é fundamental no processo descolonizador que o filme
propõe.

5. Conclusão
Ao longo deste artigo, torna-se evidente que certos termos poderiam ter sua
conceituação explorada, tais como “memória mítica”, “descolonização”, “diáspora” e as
próprias noções de “raízes”, “ancestralidade” e “tradição.” O espaço destas páginas prioriza
uma tentativa de apresentação do universo de ​Daughters of the Dust aos falantes da língua
portuguesa com consciência da impossibilidade de abarcar certos temas e discussões
emergentes, o que exigiria uma pesquisa e escrita mais extensas e detalhadas. Portanto, o
artigo se propõe a contribuir para a valorização da obra cinematográfica em questão bem
como para a divulgação de alguns aspectos de sua produção e seu conteúdo, esperando
oferecer estímulo e material para discussões sobre o filme ou temas relacionados a ele.
O percurso da produção de ​Daughters of the Dust apresentado na primeira seção
evidencia o racismo e machismo estruturantes e apresenta as soluções encontradas por suas
realizadoras para finalizar e lançar a público uma obra tão desafiadora das normas
pré-estabelecidas na sociedade patriarcal. O inegável sucesso do filme demonstra a existência
de grande interesse da população por uma representação imagética que trate de suas
memórias, seu corpo e suas escolhas com dignidade e respeito. Além disso, demonstra que o
espectador está não só preparado, mas ávido por estéticas e narrativas que escapam ao modelo
tradicional do ocidente.
A segunda e terceira partes promoveram uma elucidação breve do enredo e da forma
narrativa proposta, comentando sobre a criação de uma memória coletiva que recrie a história.
A opção de ​Daughters of the Dust ​pelo ingresso no campo do imaginário, do sensível, aparece
como fundamental para o caráter inovador deste filme, que, ao integrar um passado histórico
real com elementos da mitologia e ficções da imaginação é capaz de, através da
ressignificação e da criação, demarcar um caminho possível para a descolonização e
despatriarcalização das obras cinematográficas levadas ao grande público. As palavras de bell
hooks, Julie Dash e Toni Cade Bambara, traduzidas livremente em algumas passagens,
apontam discussões necessárias para aqueles que desejam seguir por este caminho.

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Por fim, podemos notar que os espectadores de ​Daughters of the Dust não só são
apresentados a uma cultura não-hegemônica através de um modelo narrativo e estético sólidos
e pouco convencionais como são, também, convidados a questionar as bases eurocêntricas
que influenciam na formação do seu pensamento enquanto indivíduos. Assim, parece
imprescindível que este artigo termine com as palavras de bell hooks:
Uma das formas principais pelas quais ​Daughters of the Dust intervém
poderosamente na história do cinema de longa-metragem sobre pessoas
negras é requerindo às pessoas que interroguem as parcialidades
eurocêntricas que embasaram nosso entendimento da experiência africano
americana. 16(DASH; BAMBARA; HOOKS, 1992, p.39)

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"​One of the major ways in which Daughters of the Dust intervenes powerfully in the history of feature-length
filmmaking about black people is by requiring people to interrogate the Eurocentric biases that have informed
our understanding of the African American experience."
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Referências bibliográficas

CORREA, Marco Aurélio da Conceição; REIS, Tatiana Santos dos. Daughters of the Dust: o
cinema da diáspora negra na contra modernidade. ​Kwanissa: ​Revista de Estudos Africanos
e Afro-Brasileiros​, Universidade Federal do Maranhão, 2019. Disponível em:
http://www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/kwanissa/article/view/10999​. Acesso
em: 12 jun. 2019.

DASH, Julie; BAMBARA, Toni Cade; HOOKS, Bell. ​Daughters of the dust: the making of
an African American woman's film​. 1. ed. Nova Iorque: New Press, 1992. ISBN
1-56584-029-1.

GOSS, Linda; BARNES, Marian E. (ed.). ​Talk That Talk: An Anthology on


African-American Storytelling​. 1. ed. Nova Iorque: Touchstone, 1989. ISBN
0-671-67167-7.

HOOKS, Bell. ​Black Looks: Race and Representation​. Boston: South end Press, 1992.
ISBN 0-89608-433-7.

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