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ISBN: 978-85-387-1506-1
CDD 340.1
Justiça em Aristóteles............................................................123
Introdução..................................................................................................................................123
Justiça e Ética.............................................................................................................................124
Justiça na polis: a Política.......................................................................................................131
Conclusões..................................................................................................................................136
Introdução
A Filosofia do Direito é uma parte da Filosofia. Assim, para se entender
adequadamente o movimento dos pensadores que articularam conceitos
e ideias referentes à categoria Justiça, é importante antes esboçar algumas
considerações preliminares acerca da Filosofia, para depois ser possível
entrar com mais segurança no terreno da Filosofia do Direito.
humana, para dentro da vida humana, e, como se verá, ainda mais além, para
dentro da vida política.
A Ontologia3, estudo do ser, pode ser entendida como o estudo que busca 3
Palavra composta pelas
raízes gregas ontos, geniti-
conhecer o ser e seus modos. É a disciplina da Filosofia que busca identificar vo do particípio presente
do verbo ser, e logos, ciên-
as essências dos seres e seus acidentes, aquilo que especifica qualquer coisa, cia, estudo.
A Filosofia do Direito
Sendo o Direito uma realidade social, presente em qualquer sociedade e
cultura, não pode a Filosofia prescindir de analisar esse importante fenôme-
8
“O Direito é realidade no.8 A Filosofia do Direito não é disciplina jurídica, mas a aplicação da Filoso-
universal. Onde quer que
exista o homem, aí existe fia ao campo jurídico. Miguel Reale delimita muito bem a diferença entre a
o Direito como expressão
de vida e de convivência.
É exatamente por ser o
pesquisa jurídica e a pesquisa filosófica do Direito:
Direito fenômeno univer-
sal que é ele suscetível de Enquanto que o jurista constrói a sua ciência partindo de certos pressupostos, que são
indagação filosófica.”
fornecidos pela lei e pelos códigos, o filósofo do Direito converte em problema o que
para o jurista vale como resposta ou ponto assente e imperativo. Quando o advogado
invoca o texto apropriado da lei, fica relativamente tranquilo, porque a lei constitui ponto
de partida seguro para o seu trabalho profissional; da mesma forma, quando um juiz
prolata a sua sentença e a apoia cuidadosamente em textos legais, tem a certeza de estar
cumprindo sua missão de ciência e de humanidade, porquanto assenta a sua convicção
em pontos ou em cânones que devem ser reconhecidos como obrigatórios. O filósofo do
Direito, ao contrário, converte tais pontos de partida em problemas, perguntando: Por
que o juiz deve apoiar-se na lei? Quais as razões lógicas e morais que levam o juiz a não
se revoltar contra a lei, e a não criar solução sua para o caso que está apreciando, uma vez
convencido da inutilidade, da inadequação ou da injustiça da lei vigente? Por que obriga
a lei? Como obriga? Quais os limites lógicos da obrigatoriedade legal? (REALE, 2002)
o filósofo vê o Direito de cima, de uma certa distância, ou seja, ele não está
envolvido no fenômeno jurídico, não dentro do problema, é antes um atento
observador externo, que racionalmente e cautelosamente percebe as incoe-
rências e formula os fundamentos que são capazes de contribuir com a evo-
lução da estruturação do Direito.
O Direito examina e formula suas leis, suas normas jurídicas. Mas a Filoso-
fia examina esse exercício, a Filosofia busca o conceito de Direito, contextu-
alizando sua função ao movimento social e cultural da humanidade. A Filo-
sofia tem prerrogativa para afirmar se uma lei é justa ou injusta, porque sua
crítica não parte de um dado posto, mas do universal, ela entende o Direito
como um enorme processo histórico, que se adéqua de modo diferente a
cada espaço e tempo. O direito positivo, o direito natural, o ordenamento
jurídico, a necessidade, função, surgimento e conceito do Direito, tudo isso é
temática da Filosofia do Direito.
Desde Sócrates não há mais como separar o Direito da Ética. A Ética está
acima das normas e leis jurídicas, ela é o exame das ações humanas. A Ética
tem prerrogativa para analisar o Direito, porque a Ética estuda a natureza
humana, e tenta formular princípios para que o indivíduo se desenvolva e
se realize tendo em vista essa natureza humana. Com efeito, o Direito deve
prestar atenção à Ética, pois ambos trabalham com o agir humano e todas as
consequências que advêm disso para a sociedade.
Filosofia e business
Se a Filosofia pode examinar criticamente e universalmente o Direito,
dando contribuições diferenciadas através da Filosofia do Direito, é certo
que ela pode realizar o mesmo em outros campos da vida humana, e aqui
incluímos o mundo do business. Os filósofos, quando buscam entender a na-
tureza humana, dando princípios para a sua realização existencial, em geral
não se esquecem de um importante aspecto: o econômico. Da poesia ho-
mérica aos contemporâneos, os pensadores colocam a questão econômica
como essencial para o indivíduo conduzir bem a sua vida. Nesse sentido,
Essa paixão pela verdade se torna uma incansável busca por encontrar as
causa primeiras de todas as coisas, aquelas causas que respondem os gran-
des questionamentos e ainda geram todos os outros questionamentos.
Talvez nenhuma frase seja tão ilustrativa para essa condição humana
como aquela empregada por Aristóteles para abrir a obra que, para ele,
era dedicada ao conhecimento do saber supremo: a Metafísica. “Todos os
homens, por natureza, tendem ao saber” (ARISTÓTELES, 2002).
A filosofia grega
A admiração pelo saber tornou-se maior, sobretudo, com os gregos an-
tigos, que viviam um período de profunda busca pelo saber. Da Teologia à
Política, passando pelas várias artes e ciências, tudo era objeto de grandes
investigações e reflexões. Fervilhava o espírito crítico, reflexivo e investiga-
dor da natureza no espírito grego. Esse momento, talvez único na história
humana, surge juntamente com a figura do homem político. O fato de tanto
a Filosofia como a Política terem nascido no mesmo período e no mesmo
lugar merece algumas reflexões, pois ajuda a demonstrar que, no fundo, os
gregos viviam uma época de liberdade de pensamento.
Entre essas ideias ousadas está a alta estima dada tanto pelos poetas
como depois também pelos filósofos acerca dos conceitos de Direito e Jus-
tiça, e a atribuição da importância dessas categorias para a organização da
comunidade. A grande novidade trazida pelos gregos está no fato de conce-
ber a comunidade como uma organização essencialmente humana, tendo
suas concepções e determinações político-jurídicas como materialização da
vontade de seus próprios cidadãos.
tação divina, que não podia ser contestado pelo cidadão comum, mas um
movimento, em que a luta pelo Direito11 era também parte desse processo. 11
Percebe-se já entre
os gregos o fundamento
Como síntese, o Direito entre os gregos tornou-se um processo de formação, principal para a luta pelo
Direito como condição
o homem desenvolvia-se ao mesmo tempo em que desenvolvia a ideia de para a existência do pró-
prio Direito, antecipando
Direito. em muitos séculos a con-
cepção do Direito como
luta de Jhering.
A igualdade é o conteúdo principal da diké, o objetivo de se dar a cada
um o que é seu, uma prerrogativa de fazer todos os cidadãos livres iguais
perante o Direito. A partir daí a igualdade ocuparia sempre lugar central nas
discussões jurídicas e políticas, chegando a influenciar os grandes filósofos
Platão e Aristóteles: “A exigência de um Direito igualitário constitui a mais
alta meta para os tempos antigos”.(JAEGER, 2003, p. 136).
A Justiça como virtude cardeal, que resume todas as demais, tal como afir-
mariam posteriormente Platão e Aristóteles, apresenta essa nova forma de
pensar criada pelo homem grego, derivada do crescimento tanto econômico
como cultural da polis. E esse desenvolvimento está ligado principalmente
ao surgimento do Estado constitucional, isto é, do período antigo da forma-
ção do homem grego em que as cidades passaram a ser reguladas por leis
escritas, por uma constituição. A constituição garantia o princípio da igual-
dade a todos os cidadãos e simbolizava o ideal de homem daquele povo;
ela era regulada e aplicada conforme a arete que se desenvolvia, sua medida
do-a para suas terras. Decidido a recuperar sua esposa, Menelau pede auxí-
lio ao seu irmão Agamemnon. Em pouco tempo, a raiva que se apossou de
Menelau tomou conta de todo o povo grego, e os grandes chefes e guerrei-
ros de todos os reinos foram convocados a participarem da guerra contra os
troianos. Entre esses ilustres guerreiros estavam, além de Menelau e Agame-
mnon, o enorme e forte Ajax, o sábio e velho Nestor, o astuto e protegido
dos deuses Ulisses e o célebre personagem principal da obra, Aquiles, filho
da deusa Tétis.
Isso não significa que contornos psicológicos e pessoais não estejam pre-
sentes na obra. Por exemplo, a epopeia inicia e termina com a ira de Aquiles,
a emoção que lhe impulsiona e dá a tônica dos relatos. A arrogância de Aga-
memnon nos primeiros cantos desperta preocupação e resistência em seus
próprios aliados, ao verem como ele enfrentou e permitiu facilmente que o
valente Aquiles se retirasse do combate. Até mesmo os deuses, como já é
frequente nas lendas gregas, não escapam de questões psicológicas, opi-
niões e preferências que por vezes os aproximam dos humanos. Logo no
início, Apolo, o deus Sol, lança epidemia aos gregos, devido à rejeição de
Agamemnon em devolver sua escrava Criseida, filha de Criseis, sacerdote de
Apolo. Depois, vendo Aquiles, seu filho, sendo humilhado perante os gregos,
Tétis implora a Zeus que dê a vitória aos troianos, até que se arrependam
e peçam perdão a Aquiles. Também por várias vezes Atena é enviada ao
campo de batalha, ora aconselhando um ou outro guerreiro. Logo no canto
II, inclusive, vemos Zeus tendo dificuldades para dormir diante das reflexões
que lhe vinham à mente, provocadas pelo inesperado pedido de Tétis.
Também situa-se aqui o episódio do Canto II, em que Zeus envia um sonho
a Agamemnon, na forma do confiável Nestor, no qual este aconselha o herói
a invadir imediatamente Troia, pois aí teria a vitória. Porém, Agamemnon,
após uma breve exaltação, deu-se conta da falsidade da mensagem, que na
verdade tratar-se-ia de uma armadilha. Zeus preferia Aquiles a Agamemnon,
30 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A.,
mais informações www.iesde.com.br
Introdução ao pensamento filosófico
e o chefe dos gregos era consciente disso. Os deuses sim interferem, mas os
humanos são livres para aceitar ou mudar seus destinos.
portanto, um roteiro inflexível. Esse destino possui relação com a ordem das
coisas, e aqueles que adentram seus mistérios são de fato os homens mais 17
A preocupação com
corajosos, heroicos e sábios.17 o destino e com a ordem
imanente do Universo
inspiraria vários fenôme-
Nesse sentido, os poemas homéricos não estão situados tanto no conhe- nos sociais e religiosos no
mundo grego, como as fa-
cimento do homem a si mesmo, mas no desvelar de seu espírito impetuoso e mosas sentenças do Orá-
culo de Delfos, a religião
heroico. A Homero não interessa tanto os dilemas que afetam a vida humana, dos Mistérios de Elêusis e
a seita órfica. Era comum
embora reconheça que existam, mas a necessidade de estender o domínio do a compreensão de que
havia uma ordem natu-
homem nesse mundo que serve de palco e cenário para conquistas. E é por ral, na qual nem homens
nem deuses poderiam
isso que a figura que se glorifica é a do herói, que não pode temer o destino, escapar. O espírito grego
aspirava a compreender
essa realidade. Relembre-
nem enfrentar a ordem natural das coisas, mas adentrá-la, e ali criar a história. mos, também, que tanto
Platão como Aristóteles
Homero cria um mundo limitado, mas que permite atitudes ilimitadas nesse situavam a máxima felici-
dade na contemplação da
círculo, ainda que o homem não possa tudo fazer, pode dentro do seu possí- realidade, no pleno enten-
dimento do mundo.
vel atitudes heroicas. Homero “[...] louva e exalta o que no mundo é digno de
elogio e de louvor. Assim como os heróis de Homero reclamam, já em vida, a
devida honra e estão dispostos a conceder a cada um a estima que tem direito,
assim todo o autêntico feito heroico é sedento de honra” (JAEGER, 2003, p. 68).
Como se vê, Homero enaltece e louva a atitude heroica, porque esta é digna
de honra, de forma que o herói passa a constituir o ideal de homem para o
grego em geral. As palavras de Homero ecoaram por toda a história helêni-
ca, transformando-o num educador de toda a Grécia. E a educação homérica
baseava-se justamente na educação do herói, de sua honra e coragem, da sua
nobreza de espírito ao deixar-se guiar pelas virtudes e atitudes de louvor, que
somente o homem ativo e criador é capaz de realizar, ao contrário do herói
passivo, que somente deixa viver, conforme foi citado anteriormente. Jaeger,
ao comentar a proposta pedagógica de Homero, assinala que “[...] os mitos e
as lendas heroicas constituem um tesouro inesgotável de exemplos e mode-
los da nação, que neles bebe o seu pensamento, ideais e normas para a vida”
(JAEGER, 2003, p. 68)
sentido da realidade, em relação ao qual todo “realismo” aparece como irreal, que se
baseia a força ilimitada da epopeia homérica. (JAEGER, 2003, p. 78)
Tal situação poderia parecer ao leitor contraditória, pois para quê Posêi-
don provocaria tantos problemas se Ulisses estava destinado a triunfar?
Porém, foi somente quando alcançou o limite de seu sofrimento existencial
é que Ulisses compreendeu que era sua soberba quem lhe provocava tantos
problemas. Ao realizar a passagem de humildade tornou-se novo homem,
mais preparado para os novos desafios. Há uma justiça superior em Homero,
que liga o humano ao divino, e inclusive apresenta consequências além dessa
dimensão. Tal Justiça surge ainda em sua mais profunda acepção, aquela em
que a Ética se preocupa com a formação do homem.
Hesíodo
Depois de Homero houve outro grande poeta que influenciaria bastante
a formação do ideal grego de homem justo e ético: Hesíodo. Contudo, havia
diferenças marcantes entre os dois. Hesíodo vivia em um tempo que não
era tão dourado quanto o de Homero. Se em Homero era essencial cantar
as façanhas dos heróis, em Hesíodo era mais importante cantar mensa-
gens que ajudassem o povo agricultor e trabalhador a levar uma vida mais
digna. Em Hesíodo se vê o segundo grande educador, agora não dos heróis
e nobres, mas do povo e dos cidadãos comuns. O ideal de heroísmo trazido
por Homero persiste, mas agora não revelado apenas as lutas e guerras gran-
19
Na mitologia grega, as diosas, mas também no árduo trabalho cotidiano.
Musas eram as nove filhas
da união de Zeus com
Mnemósina, que personi-
fica a Memória. Nasceram
De Hesíodo nos chegaram duas poesias: a Teogonia e Os Trabalhos e os Dias.
logo após a grande vitó-
ria dos deuses olímpicos
A primeira narra em forma de mitos a origem genealógica dos deuses, desde
contra os titãs, para justa-
mente cantar as enormes
os deuses primordiais, que participaram da criação do Universo segundo a
façanhas dos vencedores.
“As musas são apenas as
visão religiosa da Grécia Antiga, e depois as gerações seguintes de deuses, até
cantoras divinas, cujos
coros e hinos alegram os deuses olímpicos, como Zeus, Posêidon, Hades, Hera, Atena, entre outros.
o coração dos Imortais,
já que sua função era Também apresenta a lenda que dá origem aos humanos: o roubo do fogo sa-
presidir ao pensamento
sob todas as suas formas: grado por Prometeu e a criação de Pandora, a primeira mulher.
sabedoria, eloquencia,
persuasão, história, mate-
mática, astronomia. Para Já Os Trabalhos e os Dias possui conotação bastante diversa. Aqui, é o pró-
Hesíodo, são as Musas
que acompanham os reis prio poeta, falando em primeira pessoa, com o dom da palavra e da verdade
e ditam-lhes as palavras
de persuasão, capazes
de serenar as querelas e
inspirados pelas Musas19, que procura dizer algumas verdades ao seu irmão
restabelecer a paz entre
os homens. (BRANDÃO,
Perses, com quem o poeta discute alguns bens a serem distribuídos em su-
Junito. Dicionário Mítico-
Etimológico. 2. ed. Petró-
cessão. Hesíodo procura demonstrar ao seu irmão como Zeus deseja a Justi-
polis: Vozes, 1997. v. II. p.
150-151.)
ça e pune os injustos, de como a Justiça está pautada na medida, e a hýbris
(excesso) é aquilo que os deuses não aceitam. O poeta também fala a seu
irmão do valor do trabalho, que representa a vitória pessoal dentro de um
caminho honesto. Tudo isso traz o poeta através de relatos míticos: as duas
lutas, Prometeu e Pandora, e o mito das cinco raças.
reito do mais forte, dos juízes que, comandando o Direito, fazem da Justiça
um instrumento para alcançar seus interesses e satisfações. O gavião não
está preocupado com a vida e destino do rouxinol, assim como muitos juízes
não se interessam pela vida das partes as quais chegam até ele querendo
resolver um conflito. Essa atitude autoritária reduz o Direito a um simples ins-
trumento, longe de sua antiga acepção divina e nobre que tanto sustentou
Homero ao enaltecer as virtudes do herói. Salienta-se, porém, que o objetivo
de Hesíodo é pedagógico, é demonstrar a fraqueza do Direito de seu tempo,
ensinando aos indivíduos comuns como interagir no processo judicial, e ten-
tando romper com o autoritarismo dos juízes e senhores do poder.
homem, pois a dor e o sofrimento não condizem com a natureza divina, nem
com a ordem das coisas. Sendo assim, o trabalho e o sofrimento só podem ter
surgido em algum dado momento da história da humanidade.
Hesíodo aplica a forma “causal” de pensar, própria da Teogonia, à história de Prometeu,
nos Erga, e aos problemas éticos e sociais do trabalho. O trabalho e os sofrimentos devem
ter aparecido algum dia no mundo. Não podem ter feito parte, desde a origem, da ordem
divina e perfeita das coisas. Hesíodo assinala-lhes que encara do ponto de vista moral.
Como castigo, Zeus criou a primeira mulher, a astuta Pandora, mãe de todo o gênero
humano. Da caixa de Pandora saíram os demônios da doença, da velhice, e outros males
mil que hoje povoam a Terra e mar. (JAEGER, 2003, p. 85)
era considerado como uma maldição, e este era o grande temor de Príamo.
Aquiles concedeu ao imploro de seu adversário, significando em seguida um
período de trégua entre os combatentes. Isso demonstra um grande mérito
na atitude de Príamo: a humildade. Homero nos revela aqui como mesmo
em uma das mais sangrentas batalhas é possível haver o respeito e as regras
entre os exércitos inimigos. Apresenta, ainda, como é necessário também
saber negociar e por vezes até se humilhar a outrem, quando isso for preciso
para se obter algo conveniente naquela situação. A humildade também é
um ponto característico de Ulisses, na Odisseia.
mandou também que lhe amarrassem com várias e pesadas cordas junto ao
mastro. Por fim, Ulisses ouviu os cantos e permaneceu no navio, conseguin-
do as informações que necessitava. Esse é um saber prático, que chega in-
tuitivamente na hora da necessidade. O empresário precisa ter esse tirocínio
intuitivo, que ao ver o problema prontamente descobre a melhor saída para
da dificuldade obter proveitos.
Por fim, outro ponto importante e que merece ser destacado em Homero
é seu respeito pelo direito positivo e pelos critérios convencionais. Ulisses
implementou instituições de direito positivo para sua ilha, de forma que ele
sabia que ao retornar poderia encontrar pretendentes para sua esposa Pené-
lope. Ulisses enfrentou esse problema com inteligência, utilizando primeiro
de disfarces, para melhor conhecer seus inimigos. Também seu filho Telê-
maco precisou conhecer as regras para evitar que os pretendentes se apro-
ximassem de sua mãe. Igualmente o empresário é obrigado a conhecer as
regras da sociedade, tanto as convencionais como aquelas próprias do direi-
to positivo, ou então terão problemas em várias questões. Não conhecer as
regras da sociedade pode significar erros tanto de aspectos morais, como ir
contra os costumes daquele povo, até problemas mais graves, como alguns
de ordem tributária ou trabalhista. Diversos empresários sofrem sérios abalos
financeiros simplesmente por desconhecerem as nuances das leis trabalhis-
tas, que possuem inúmeros casos específicos, e em geral defendem a figura
do empregado contra o empregador.
-lhes essa nova mentalidade, esse novo estilo de vida – que é pelo traba-
lho que se transforma o mundo e a si mesmo. E essa transformação não é
somente na condição econômica, mas também existencial; o indivíduo, ao
trabalhar a natureza, trabalha também o seu interior. Nesse sentido, o tra-
balho recebe uma dimensão pedagógica. Essa perspectiva revela contornos
mais evidentes ainda nos dias atuais, em que as empresas, mais até do que as
famílias, realizam a função social de educar a pessoa. Por exemplo, é na orga-
nização que o colaborador participa de diversos cursos, desde atualizações
técnicas sobre as áreas em que trabalha até de temáticas envolvendo recur-
sos humanos ou de etiqueta profissional. Ou seja, no trabalho, o indivíduo
aprende a lidar com seus dilemas, desejos, vontades, virtudes e defeitos. A
paideia hoje se faz na empresa, com as organizações ensinando seus cola-
boradores a viver melhor, a criarem hábitos mais refinados, novos estilos de
vida, e atitudes mais adequadas para o cotidiano.
Mas quando se fala de religião grega é preciso operar uma nítida distinção
entre religião pública, que tem o seu mais belo modelo em Homero, e reli-
gião dos mistérios: entre a primeira e a segunda há uma divisão claríssima: em
mais de um aspecto, o espírito que anima a religião dos mistérios é negador
do espírito que anima a religião pública. Ora, o historiador da Filosofia que
se detenha no primeiro aspecto da religião dos gregos, veta a si mesmo a
compreensão de todo um importantíssimo filão da especulação, que vai dos
pré-socráticos a Platão e aos neoplatônicos, e falseia, portanto, fatalmente a
perspectiva de conjunto. E isso aconteceu justamente com Zeller e com o nu-
meroso grupo dos seus seguidores ( e, portanto, com o grosso da manualísti-
ca que por longo tempo reafirmou a interpretação de Zeller).
os raios são lançados por Zeus do alto do Olimpo, as ondas do mar são levan-
tadas pelo tridente de Posêidon, o sol é carregado pelo áureo carro de Apolo,
e assim por diante. Mas também os fenômenos da vida interior do homem
grego individual assim como a sua vida social, os destinos da sua cidade e
das suas guerras são concebidos como essencialmente ligados aos deuses e
condicionados por eles.
Mas quem são esses deuses? São – como há tempo se reconhece acertada-
mente – forças naturais diluídas em formas humanas idealizadas, são aspectos
dos homem sublimados, hipostasiados; são forças do homem cristalizadas em
belíssimas figuras. Em suma: os deuses da religião natural grega são homens
amplificados e idealizados; são, portanto, quantitativamente superiores a nós,
mas não qualitativamente diferentes. Por isso a religião pública grega é cer-
tamente uma forma de religião naturalista. É tão naturalista que, como jus-
1
W. F. Otto. Die Götter tamente observou Walter Otto, “a santidade aí não pode encontrar lugar”1,
Griechenlands, Frankfurt
AM Main 1956; trad. Ital. uma vez que pela sua própria essência os deuses não querem, nem poderiam,
Florença 1941 (Milão
1968), p.9. elevar o homem acima de si mesmo. De fato, se a natureza dos deuses e dos
homens, como dissemos, é idêntica e se diferencia somente por grau, o homem
vê a si mesmo nos deuses, e, para elevar-se a eles, não deve de modo algum
entrar em conflito com ele mesmo, não deve em nenhum sentido morrer em
parte a si mesmo; deve simplesmente ser si mesmo.
Portanto, como bem diz Zeller, o que a divindade exige do homem “não é
de modo algum uma transformação interior da sua maneira de pensar, não
uma luta contra as suas tendências naturais e os seus impulsos; porque, ao
contrário, tudo isso, que para o homem é natural, é legítimo também para a
divindade; o homem mais divino é aquele que desenvolve do modo mais vi-
goroso as suas forças humanas; e o cumprimento do seu dever religioso con-
siste essencialmente nisso: que o homem fala, em honra da divindade, o que
2
Zeller-Mondolfo, I, 1, P. é conforme com a sua natureza”2.
105.
Assim como foi naturalista a religião dos gregos, também “[...] a sua mais
antiga Filosofia foi naturalista; e mesmo quando a Ética conquistou a preemi-
3
Zeller-Mondolfo, I, p. 106. nência [...], a sua divisa continuou sendo a conformidade com a natureza”3.
Quanto Tales disser que “tudo está cheio de deuses”, mover-se-á, sem
dúvida, em análogo horizonte naturalista: os deuses de Tales serão deuses de-
Mas antes de dizer isso, devemos ilustrar outra característica essencial da religião
grega, determinante para a possibilidade do nascimento da reflexão filosófica.
Os gregos não possuíam livros tidos como sagrados ou fruto de divina re-
velação. Eles não tinham uma dogmática teológica fixa e imodificável. (Nessa
matéria, as fontes principais eram os poemas homéricos e a Teogonia de Hesí-
odo). Consequentemente, na Grécia não podia haver sequer uma casta sacer-
dotal que custodiasse os dogmas. (Os sacerdotes na Grécia tinham um poder
muito limitado e uma escassa relevância, uma vez que, além de não terem a
tarefa de custodiar e comunicar um dogma, não tinham nem mesmo a exclu-
sividade de oficiar os sacrifícios).
Atividades de aplicação
1. Em Homero todos os personagens recebem contornos heroicos, no
sentido de que uma vida ativa, ainda que de riscos, é mais válida que a
vida passiva. Relacione essa questão às problemáticas atuais, refletin-
do sobre o papel do cidadão de hoje na sociedade.
Gabarito
1. O cidadão atual tende a levar uma vida sem grandes participações
políticas e sociais, preferindo a passividade. Comparando com o herói
Aquiles, em geral as pessoas se recusariam a entrar na batalha quando
soubessem dos riscos. Essa passividade gera redução de criatividade,
e por consequência do desenvolvimento do potencial.
Referências
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Revisão da tradução e tradução dos novos textos de: BENEDETTI, Ivone Castilho.
São Paulo: Martins Fontes, 2003.
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LESKY, Albin. História da Literatura Grega. Tradução de: LOSA, Manuel. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1995.
______. História da Filosofia Antiga: das origens a Sócrates. 4. ed. Tradução de:
PERINE, Marcelo. São Paulo: Loyola, 2002. v. 1.
REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. Tradução de: PERINE; Marcelo. São
Paulo: Loyola, 1993. p. 21.
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
_____. A Construção da Ilíada: uma análise de sua elaboração. 2. ed. Porto Alegre:
LP&M, 2004.
Introdução
A palavra teatro, analisada em sua origem etimológica significa “o lugar
onde deus escorre”, “como deus corre e se manifesta”, “como deus se faz diante
do povo”(MENEGHETTI, 2007, p. 7). Disso já se pode inferir que as encenações
teatrais possuíam um espírito pedagógico aliado à experiência religiosa, tra-
tando-se do modo pelo qual o divino do humano, aquela parte mais perfeita,
mais adequada à situação em que se encontra, a exata proporção do indiví-
duo com a vida, se fazia presente representada nos grandes personagens da
mitologia. Isso ocorria, não somente na dimensão da perfeição estética, como
manifestação artística que era, mas também como uma forma de levar os es-
pectadores a uma profunda reflexão sobre a conduta humana.
Por sua vez, as comédias não se utilizavam da mitologia para reproduzir sua
mensagem, mas somente da realidade cotidiana. Os antigos a denominaram
“espelho da vida” (JAEGER, 2003, p. 416), pelo modo como se retratava a nature-
za humana e suas fraquezas, pois com sua representação exagerada e cômica da
realidade também atuava como uma forma de educação do seu espectador.
Ésquilo
Ésquilo nasceu e cresceu no período dos governos tirânicos em Atenas. Viu a
queda destes e a ascensão do novo governo ateniense, instituído pela reforma
de Sólon. Essa experiência do nascimento da democracia ateniense e a vitória
grega na Guerra Médica tiveram marcante influência no modo em que o autor
construía suas tragédias. Conforme Jaeger (2003), essas vivências são sólidos
vínculos com que Ésquilo unia a sua fé no Direito, herdada de Sólon, às realida-
des da nova ordem. Por isso, o Estado é o espaço ideal nos seus escritos.
Desse modo, o autor faz ressurgir o ideal do homem heroico, porém, con-
textualizado com a realidade urbana de sua época. Trata-se do retrato do
homem que somente pode se realizar enquanto cidadão, exercendo suas
atividades na polis (JAEGER, 2003, p. 291-292). Nesse escopo, ao representar
as figuras dos cantos heroicos, Ésquilo não as retrata do modo como haviam
se consagrado, mas utiliza-as como um fundo vazio, pelo qual expunha as
ideias que deles se formavam. Como resultado, por exemplo, o Zeus de Pro-
meteu Acorrentado representa a figura do moderno tirano, ou o Agamemnon
que na tragédia de mesmo nome, comporta-se de modo totalmente diverso
do retratado por Homero (LESKI, 1995, p. 133).
O ideal trágico em Ésquilo pode ser muito bem retratado através da aná-
3
lise da trilogia de Prometeu3, mais especificamente da única obra que nos foi Titã que na mitologia
grega roubou o fogo dos
deuses e o levou até os
legada completamente, Prometeu Acorrentado (JAEGER, 2003, p. 309). Essa é homens em um ato de
amor à humanidade da
a tragédia do gênio; enquanto nas demais obras o trágico vem de fora, em qual ele próprio havia sido
o criador.
Prometeu a origem é no próprio personagem, sua natureza e sua ação. Pro-
meteu, assim, diz: “Eu havia previsto tudo... Eu quis cometer o meu crime! Eu
o quis, conscientemente, não o nego!”(ÉSQUILO, 1998, p. 119).
Assim, pode-se dizer que é pela força da dor que o coração do homem
experimenta a passagem ao triunfo divino. O homem trágico expande sua
harmonia oculta com o ser e ergue-se, por sua capacidade de sofrimento e
por sua força vital, a um grau superior de humanidade, ou seja, possibilita-se
a este, por intermédio desses instantes, a realização das passagens essen-
ciais ao seu desenvolvimento próprio.
Sófocles
“Sófocles é considerado, tanto pelos antigos quanto pelos atuais pensado-
res, como o apogeu do drama grego devido ao rigor da sua forma artística e à
sua luminosa objetividade” (JAEGER, 2003, p. 317). Característica marcante de
suas tragédias é a representação das grandes questões que geram a crise do ser
humano. As paixões mais violentas, os sentimentos mais ternos, a grandeza he-
roica e altiva da autêntica humanidade, são profundamente semelhantes à atua-
lidade, motivo que justifica a constância de suas peças nos repertórios de
representações artísticas.
Édipo Rei
Édipo Rei é a primeira peça da trilogia sobre a tragédia na linhagem dos
4
Relativo à geração oriun-
da de Lábdaco, genitor de
Labdácidas4. Contextualizando a obra na mitologia grega, primeiramente há
Laio.
de se considerar a maldição lançada sobre Laio, ponto de partida de toda a
intencionalidade que carrega as desgraças em sua família. Sua origem foi o
encantamento que Laio possuiu por Crísipo, filho do rei Pélops. Apaixonado,
raptou Crísipo, sendo por isso amaldiçoado por Pélops, que desejou que Laio
morresse sem deixar descendentes.
Certo dia, Édipo é insultado por um ébrio, que o chamou de filho adotivo.
Procurando, então, o oráculo de Apolo, é revelado ao jovem que ele mataria
seu pai e casar-se-ia com sua mãe. Para evitar o cumprimento da profecia,
abandona o lar e foge para o caminho oposto a Corinto, Tebas. No trajeto,
encontra-se com um carro distinto, no qual vinha um homem idoso seguido
por seus criados. O senil grita insolentemente para que Édipo deixe o cami-
nho livre, e ele, absolutamente irado, mata o senhor e seus servos, seguindo
seu rumo.
No início da peça, Tebas está sendo assolada por uma forte seca. Ordena-
da a consulta ao oráculo, tem-se a notícia de que para purificar a cidade seria
necessário desterrar ou sacar a vida do culpado da morte de Laio. Tomado
pela ânsia de descobrir quem é o assassino e recuperar a ordem da cidade,
Édipo ordenou que lhe trouxessem o sábio Tirésias para que revelasse a ver-
dade ao rei. Após muito pressionar o velho sábio, Édipo ouve que o assassino
é ele próprio, levando-o a repreender Tirésias por tais palavras, entendendo-
-se acusado injustamente.
Anunciado seu triste fim, Édipo ordena que retirem de sua presença o sábio,
porém, logo na saída, lhe é novamente lançada a dúvida sobre sua linhagem.
Édipo, transtornado, passa a acusar todos, até que, ao ouvir as palavras do pastor
que havia sido encarregado de matá-lo quando recém-nascido, a verdade torna-
-se tão clara que o rei não mais podia desviar seus olhos dela. Édipo começa a
sentir culpa pelo que fez e a fazer-se de vítima do destino. Jocasta, constatando
que Édipo havia descoberto toda a verdade que ela escondia, suicida-se, e Édipo,
ao saber que sua mãe e esposa sacou a própria vida, escolhe não mais enxergar,
cegando-se (SOFÓCLES, 2004, p. 87). Ele decide então que deve ser expulso da
cidade. Antígona, sua filha, decide acompanhar seu pai, tornando-se guia dele.
havia assassinado seu próprio pai e casado com sua mãe. Jocasta, persona-
gem que durante toda a peça estava ciente da realidade, ao perceber que
havia perdido o controle sobre a situação de domínio de seu filho e esposo,
acaba decidindo por sacar sua própria vida.
Édipo Rei nos revela, portanto, que, diante de uma realidade superior e
anterior que é a intencionalidade ao erro, representada pela ideia de “mal-
dição”, infelizmente aquele que é capacitado a não se deixar influenciar por
esse ciclo destrutivo acaba decidindo mantê-lo, não tendo coragem de en-
frentar e superar tal situação, sofrendo as consequências dessa triste esco-
lha, deixando, assim, a grandeza da própria vida.
Antígona
Antígona ocorre cronologicamente após um evento que não é trabalha-
do por Sófocles: o episódio dos sete reis contra Tebas. Após Édipo abando-
nar Tebas, seus filhos, Etéocles e Polinice, passam a disputar o trono da polis.
Ambos haviam firmado o acordo de se revezar no poder. Porém, Etéocles ao
assumir o trono decide não mais compartilhar com o irmão. Polinice aban-
dona então a cidade-Estado e mobiliza o exército de seis reis contra sua terra
natal. Ambos os irmãos morrem na batalha, um transpassando sua lança
contra o outro. Ao final, Tebas sai vitoriosa, e Creonte, tio dos falecidos guer-
reiros, torna-se o governante. (ÉSQUILO, 2007)
Logo após tomar posse do trono, Creonte profere o célebre édito que dá
princípio à tragédia: Etéocles, que morreu lutando pela cidade, deveria ser
sepultado com todos os ritos que tinha direito; Polinice, por outro lado, por
ter atacado a pátria, deveria permanecer insepulto, servindo de alimento às
aves e aos cães. Àqueles que descumprissem o comando do soberano de
Tebas ser-lhes-ia imposta a morte.(SÓFOCLES, 2006, p. 20-21)
Buscando evitar a fúria divina, Creonte vai dar o funeral devido a Polinice,
porém, já era tarde. Hémon, seu filho, pranteando sobre o cadáver da amada
e prometida esposa, que havia se enforcado com um pano de linho fino, sui-
cida-se com sua própria espada, morrendo ao lado de Antígona. Informada
da morte de seu filho, Eurídice, esposa de Creonte, também retira sua própria
vida. O tirano, desiludido com todas as desgraças que o vitimaram, termina a
peça a lamentar todos os eventos que ocorreram. (SÓFOCLES, 2006, p. 96, 97)
Creonte, por sua vez, sempre que tratava sobre sua decisão, se referia a
ela como uma medida em favor da cidade e da sociedade tebana. Mencio-
nava sua decisão como um prêmio ao irmão que bravamente sacrificou-se
pela guarda de Tebas e um castigo a Polinice, considerado traidor e, por isso,
condenado ao eterno sofrimento.
Antígona, por sua vez, através do seu sacrifício, seu martírio, mais do que
lutar pela Justiça, por um digno enterro a seu irmão, encontrava na afronta a
Creonte, mesmo com a perda de sua vida, um modo de atingir o poderio de
Creonte e derrubar o injusto decreto. Demonstra-se a importância de um de-
sígnio subjetivo para barrar um ato objetivo indevido, o ímpeto de Antígona
contra um decreto descabido.
Eurípides
Eurípides é o último dos grandes tragediógrafos gregos; viveu no período
em que Atenas já havia alcançado seu apogeu e começava a entrar em declí-
nio. Inclusive, é na tragédia de Eurípides que se começa a denunciar a “crise
do tempo” (JAEGER, 2003, p. 386). O autor viveu na época posterior à sofís-
tica, motivo pelo qual nota-se a impregnação da ideia desses pensadores e
de sua arte retórica em suas peças. Além disso, é nessa época que ocorre a
migração da Filosofia da Jônia para Atenas, sendo que as ideias dos filósofos
chamados pré-socráticos oxigenavam o pensamento da metrópole crescen-
te e também influenciaram o autor.
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Justiça e Direito no teatro grego: tragédias e comédias
A comédia de Aristófanes
“Não é à toa que os gregos denominaram a comédia como “espelho da
vida”, nela se pensava na natureza humana e nas suas fraquezas. A comé-
dia é justamente um espelho no qual se reflete de modo jocoso a conduta
dos homens e, nesse sentido, nenhum outro gênero de arte ou de literatu-
ra pode se comparar a ela. Através da efemeridade de suas representações,
demonstram-se certos aspectos eternos do homem que escapam às demais
formas de manifestação artística.
Por lutar por esse ideal Aristófanes tem Eurípides como seu inimigo. O
autor projeta em Eurípides toda a corrupção moral que vivia seu tempo. Este,
que era tido pelos atenienses como uma figura divina, é utilizado para sim-
bolizar a passagem crítica dada pelo povo de Atenas.
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Justiça e Direito no teatro grego: tragédias e comédias
9
Também chamada de A Na comédia Lisístrata9, na qual as mulheres de Atenas, Esparta, Corinto e
Revolução das Mulheres.
ARISTÓFANES. Lisístrata. Tebas, cansadas das tensões da guerra e de estarem longe de seus maridos
Tradução de Millôr Fer-
nandes. São Paulo: Abril,
1977.
que batalhavam entre si na Guerra do Peloponeso, sob a liderança da ate-
niense Lisístrata, propõem-se a por um fim na guerra e alcançar a paz. Para
tanto, o grupo de mulheres se utilizaria da sedução de seus maridos conju-
gada com a abstinência sexual. Todas as mulheres das polis envolvidas na
guerra firmam o pacto de vestirem as melhores e mais provocantes roupas,
os melhores perfumes e agirem da maneira mais sensual possível enquanto
seus maridos estivessem por perto, sem, porém, se entregarem a eles.
Ao final, tomados pelo desejo por suas mulheres, sem mais poder se con-
centrar na batalha, os homens rendem-se à revolução das mulheres e juntos
firmam a paz, pondo fim, pelo menos na comédia, à guerra.
A comédia de Aristófanes
(JAEGER, 2003)
O fato de que até os altos deuses pudessem ser tema e objeto do riso cômico
prova que, no sentir dos Gregos, em todos os homens e em todos os seres de
forma humana reside, ao lado da força que leva ao pathos heroico e à grave dig-
Atividades de aplicação
Leia este fragmento do artigo “O segredo dos poetas trágicos”, de Kathrin
Rosenfield, e responda às questões a seguir.
Gabarito
1. Com base no que foi estudado, constata-se que as questões mal resolvi-
das no plano existencial-afetivo, se não enfrentadas pelo indivíduo, mas
tão somente suprimidas, se tornarão mais adiante um problema jurídico
que poderá atingi-lo, tanto na esfera individual quanto profissional.
Referências
ARISTÓFANES. Lisístrata. Tradução de: FERNANDES, Millôr. São Paulo: Abril,
1977.
ARISTÓTELES. Arte Retórica e Arte Poetica. 17. ed. Tradução de: CARVALHO, An-
tonio Pinto de. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005. p. 258.
COULANGES, Fustel de. A Cidade Antiga. 8. ed. Tradução de Jonas Camargo Leite
e Eduardo Fonseca. Rio de Janeiro: Ediouro, 1999.
ÉSQUILO. Prometeu Acorrentado. 19. ed. Tradução de: MELLO E SOUZA, J.B. Rio
de Janeiro: Ediouro, 1998. p. 119.
______. Os Sete Contra Tebas. Tradução de Donaldo Schüler. Porto Alegre: L&PM,
2007.
LESKY, Albin. A Tragédia Grega. 3. ed. Tradução de: GUINSBURG, J.; SOUZA, Geral-
do Gerson de; GUZIK, Alberto. São Paulo: Perspectiva, 1996.
ROSENFIELD, Kathrin Holzermayr. O segredo dos poetas trágicos. In: ______ (Org.).
Filosofia & Literatura: o trágico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 158.
ROSENFIELD, Kathrin. Sófocles & Antígona. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
Introdução
A história da Filosofia traz os pré-socráticos como os primeiros pensado-
res da filosofia ocidental. São assim chamados por serem, em sua maioria,
filósofos anteriores a Sócrates. Para além das várias escolas de pensamento
que existiram no período dos pré-socráticos, há uma ideia que reunia todos
e os diferenciava dos poetas e dos tragediógrafos e comediógrafos: a neces-
sidade de explicar o mundo a partir da relação entre causa e efeito, a busca
por princípios que expliquem por que as coisas são como são. Por isso a
physis (natureza) é fundamental para esses pensadores: não se trata mais de
explicar de forma mítica, mas de forma investigativa.
Escola Jônica
Na Escola Jônica encontram-se os primeiros fragmentos acerca de um
conceito de Justiça na história da Filosofia. O iniciador dessa escola foi Tales
de Mileto, que disse que a água é o princípio de todas as coisas. Essa tenta-
tiva de encontrar uma explicação além da simples observação sensível fun-
damenta a passagem do pensamento mítico para o pensamento racional.
Os pré-socráticos, assim como Homero e Hesíodo, pensam o mundo como
uma ordem preconcebida. Embora os mitos já contivessem elementos de
racionalidade, e inclusive Hesíodo mencionasse o Oceano como origem das
coisas, é somente com Tales que isso se modifica de uma exposição mítica
para um esforço explicador, que tente encontrar na natureza um porquê de
ela ser o princípio primeiro de todas as coisas. Tales de Mileto fundamentou
isso ao observar que todas as coisas continham água, e que a vida frutifica-se
a partir do úmido.
“Princípio não é certamente um termo de Tales (que parece ter sido forjado por seu
discípulo, Anaximandro), mas é sem dúvida o termo que, melhor do que qualquer outro,
indica o pensamento de que a água é origem de tudo. Pois bem, o princípio-água não tem
absolutamente mais nada a ver com o caos hesiodiano, nem com qualquer princípio mítico.
É, como diz Aristóteles, ‘aquilo de que derivam originariamente e em que se dissolvem por
último todos os seres’, é ‘uma realidade que permanece idêntica na transformação das suas
afecções’, vale dizer, uma realidade ‘que continua a existir intransformada’, mesmo através
do processo gerador de tudo. Portanto, é a) fonte ou origem das coisas; b) foz ou termo
último das coisas, c) permanente sustento (substância, diremos um termo posterior) das
coisas. Em suma, o ‘princípio’ é aquilo do qual as coisas vêm, aquilo que são pelo que
são, aquilo no qual terminam. Tal princípio foi denominado com propriedade por esses
primeiros filósofos (senão pelo próprio Tales) de physis, palavra que não significa ‘natureza’
no sentido moderno do termo, mas realidade primeira, originária e fundamental; significa,
como foi bem assinalado, ‘o que é primário, fundamental e persistente, em oposição ao
que é secundário, derivado e transitório’.“ (REALE, 1993. p. 52-53)
Os pluralistas
Não podemos constituir os filósofos pluralistas como uma escola, pois não
houve um contato entre eles como de mestre e discípulo, tal como ocorria nas
demais escolas filosóficas do período. Os dois maiores nomes dessa linha de
pensamento, Anaxágoras de Clazómenas e Empédocles de Agrigento, possuí-
am em comum somente o fato de conceberem a causa de todas as coisas não
em um único princípio, como água, ar etc., mas numa pluralidade deles.
Anaxágoras:
E visto as porções do grande e do pequeno serem iguais em número, assim também todas
as coisas estariam contidas em tudo. Nem é possível haver nada de isolado, mas todas
as coisas têm uma parte no todo. Como o mínimo não pode existir, nada se pode dividir
nem formar por si, mas, tal como inicialmente, também agora tem de estar tudo junto.
Em todas as coisas há um grande número de ingredientes, iguais em número nas coisas
maiores e nas mais pequenas, que estão a separar-se. Em todas as coisas há uma porção
de tudo, exceto Espírito; e há algumas em que também existe Espírito. (ANÁXOGORAS,
1994, p. 385)
A Escola Atomística
A Escola Atomística inicia-se com Leucipo de Abdera e consegue seu
ápice com Demócrito de Abdera. Esses filosófos, assim como Anaxágoras e
Empédocles, também situavam o princípio de todas as coisas na pluralidade,
em contraposição ao monismo dos jônicos. Na Escola Atomística os átomos
são o princípio de toda a physis, a origem de todo o mundo material.
Mas devemos esclarecer ainda um ponto fundamental. Aos ouvidos modernos a palavra
“átomo” evoca inevitavelmente os significados que o termo adquiriu na moderna ciência,
de Galileu à física contemporânea. Pois bem, é preciso despojar a palavra átomo desses
significados, se quisermos descobrir o sentido ontológico originário segundo o qual
entenderam os filósofos de Abdera. O átomo dos abderianos traz em si o selo típico do
pensar helênico: é átomo-forma, é átomo que se diferencia dos outros átomos pela figura,
ordem e posição, é átomo eideticamente pensado e representado. (REALE, 1993, p. 154)
A Escola Pitagórica
Os pitagóricos foram um célebre grupo de filósofos que se notabilizaram
por carregar as mesmas ideias, baseadas na concepção de que o número é
o princípio de todas as coisas. O grande iniciador dessa escola foi Pitágoras
de Samos, figura complexa que contribuiu enormemente com a Matemática,
criou uma seita religiosa, influenciou a construção da filosofia posterior, e
realizou ainda estudos em diversas áreas do conhecimento. Os pitagóricos
foram mentes que da Astronomia à Música, da Matemática à Cosmologia,
da Política ao Direito, tentaram entender o princípio que se situa além da
aparência e que dá fundamento a todas as coisas.
pois era a soma dos dois componentes anteriores, ou que o número 4 seria a
essência do ser, pois tanto pelo somatório como pela multiplicação das díades
encontramos o mesmo algarismo. Por fim, o número 10 é a máxima perfeição,
já que contém a soma de todos os anteriores (1, 2, 3, e 4).
Existe uma medida perfeita, uma medida que inserida em harmonia cons-
titui beleza estética e também Justiça, e essa é a grande contribuição pitagó-
rica. A inserção da proporcionalidade como fundamento de verdade, de cri-
tério e inclusive de estética, do Belo, retratando a harmonia simétrica como
aspecto divino, ressoará em todas as dimensões da vida humana. Trata-se
de um certo tipo de proporção, de medida perfeita que devemos cultivar a
todo momento, uma simetria na qual qualquer atividade, qualquer ofício se
realiza como se fosse uma obra de arte. A mesma harmonia matemática que
cria a beleza da arte é a que sustenta um exame justo do Direito. Há sempre
uma medida perfeita a ser agida, uma decisão ideal a ser tomada.
A Escola Eleata
Com o pensamento eleático, que se inicia com Xenófanes de Colofão, segue
e alcança sua maior importância com Parmênides de Eleia, e recebe ainda con-
tribuições posteriores do discípulo Zenão de Eleia, a Filosofia finalmente ela-
bora aquilo que podemos chamar de metafísica. Afirma-se que os eleatas, em
3
A palavra Ontologia é especial Parmênides, criaram a disciplina da Ontologia3. A revolução provocada
formada pelos vocábulos
onto, que deriva do verbo pelo poema de Parmênides intitulado “Sobre a natureza”, primeiro tratado filo-
einai (ser), e logia, que
vem de logos, portanto, o
“estudo do ser”.
sófico em versos e do qual restam alguns fragmentos, está justamente no fato
de o autor ter declarado que toda compreensão sensível, todo exame humano
a partir da existência corpórea situa-se apenas na doxa, na opinião, e ainda que
estas possam conter traços de verdade, conseguem ver apenas partes do ser,
jamais este em sua totalidade. O ser em sua completude e perfeição somente
é encontrado pela via racional da aletheia, da verdade, que se encontra apenas
no puro pensamento, numa dimensão afastada da insegurança e instabilidade
das compreensões humanas. O caminho da verdade leva o homem até a ver-
dade do ser. Em Parmênides encontramos pela primeira vez a contraposição
entre opinião e verdade, questão que será problematizada metaforicamente
por Platão em sua alegoria da caverna. O pensamento de Parmênides advém
de Xenófanes, que era contrário à tradição politeísta dos gregos, que sempre
cultuaram deuses antropomorfos, ou seja, que possuem não somente aparên-
cia humana, mas também virtudes e defeitos humanos. Para Xenófanes e Par-
mênides, o ser é um deus único, é a própria verdade.
Por isso que Parmênides sustentava que o ser possui algumas proprie-
dades que o distingue das simples aparências e fenômenos. O Ser é eterno,
imutável, perfeito, incorruptível, pleno, único, uno e imóvel. A simbologia do
ser é o círculo, por ele ser perfeito, uno, sem início nem fim; no círculo tudo
é unidade plena e perfeita. A Ontologia de Parmênides – representada na
sua máxima: “o ser é e o Não-Ser não é” – influenciará decisivamente a filo-
sofia posterior, pois as metafísicas platônica e aristotélica somente podem
ser concebidas com a influência parmenidiana, bem como a filosofia cristã
medieval de Santo Agostinho e São Tomás de Aquino apenas poderão cons-
truir seus sistemas a partir da ideia de um único ser completo e perfeito e
demonstrado também rigorosamente e logicamente, portanto ontologica-
mente. E é praticamente impensável qualquer discussão filosófica posterior
sem o conceito ontológico de ser, pois continuaremos nele, seja na escolásti-
ca medieval, seja no idealismo alemão, seja nos existencialistas.
Heráclito de Éfeso
Por fim, nossa jornada pelos pré-socráticos termina em Heráclito de Éfeso.
Embora em geral se insira Heráclito junto aos pensadores jônicos, por este
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Os primeiros filósofos pré-socráticos e sofistas
Heráclito é sempre lembrado pela célebre frase que diz que um homem
não pode banhar-se duas vezes no mesmo rio, ou seja, em tudo há uma flui-
dez universal, que renova todo instante, de forma que não existe repetição,
tudo é novidade.
Na interpretação de Reale: “O sentido é claro: o rio é aparentemente sempre o mesmo,
mas na realidade é feito de águas sempre novas, que se acrescentam e se dispersam; por
isso à mesma água do rio não se pode descer duas vezes, justamente porque, quando se
desce a segunda vez, já é outra a água que se encontra; e porque nós mesmo mudamos, no
momento em que completamos a imersão no rio, tornamo-nos diferentes do momento em
que nos movemos para mergulhar, como sempre diferentes são as águas que nos banham:
assim Heráclito pode dizer, do seu ponto de vista, que entramos e não entramos no rio.
E pode também dizer que somos e não somos, porque, para ser o que somos em dado
momento, devemos não ser mais aquilo que éramos no precedente momento, assim como,
para continuar a ser, deveremos logo não ser mais aquilo que somos nesse momento. E isso
vale, segundo Heráclito, para todas as coisas, sem exceção”. (REALE, 1993, p. 64)
Hoje já não sou a mesma pessoa de ontem, pois renasço a cada instante.
Tal doutrina contrapõe-se à unidade imóvel de Parmênides, sustentada nas
propriedades do ser. Para Heráclito, o ser não pode ser eterno, somente o
vir-a-ser.
[...] na medida em que um certo estado de vir-a-ser permanente define de modo definitivo
a qualidade das coisas. E, não fossem essas coisas, sequer justiça haveriam de ter conhecido
os homens, na medida em que desta unidade plural, é deste vir-a-ser onde a essência de
tudo é estar o tempo todo em constante movimento, revela aos homens o que é cada
coisa, e nesta ordenação (onde os contrários se encontram em luta, e as coisas empíricas
não encontram permanência), lhes faz conhecer justiça (“Nome de justiça não teriam
sabido, se não fossem estas (coisas)”). (BITTAR, 2009, p. 78)
Os sofistas
Durante séculos o termo sophisté acompanhou o significado de sábio,
como palavra derivada da expressão sophos, a mesma que originou o termo
filósofo. Contudo, com o crescimento da polis, a sophisté passou de sábio
a uma utilização mais técnica e específica, a de professor. Por isso, quando
surgem os sofistas estes são considerados os professores, os indivíduos que
ensinam diversas técnicas e ofícios a todo aquele que pagar pelo serviço.
Os sofistas diziam-se dominar uma série de técnicas, da Medicina à Astro-
nomia, da arte política aos temas jurídicos, e principalmente a arte retórica.
Atividades de aplicação
A partir da leitura do texto do Ampliando seus conhecimentos, responda
aos exercícios a seguir.
Gabarito
1. A arte, tanto para gregos, romanos como os renascentistas, exige uma
proporcionalidade que, conforme os artistas clássicos, simbolizava
uma medida divina. É uma busca por exatidão, proporção e perfeição,
que se for aplicada a cada pequena coisa do cotidiano transforma cada
tarefa numa obra de arte.
Referências
ANAXÁGORAS. Fragmento. In: KIRK, G. S.; RAVEN, J. E.; SCHOFIELD, M. Os Filóso-
fos Pré-Socráticos. 4. ed. Tradução de: FONSECA, Carlos Alberto Louro. Lisboa:
Fundação Calouste Gukbenkian, 1994. p. 385.
REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. Tradução de: PERINE, Marcelo. São
Paulo: Loyola, 1993. p. 52-53. v. 1.
Introdução
Neste capítulo estudaremos os pensadores que operaram a mudança do
eixo da Filosofia das colônias para Atenas, grande metrópole da época. Mais
do que isso, analisaremos duas figuras essenciais na Filosofia Clássica. Só-
crates é a mente que protagoniza uma passagem tão importante no pensa-
mento filosófico que acaba dividindo essa forma de conhecimento entre os
pensadores anteriores e posteriores à sua vida. Platão, principal discípulo de
Sócrates, criou um importante sistema filosófico que refletia sobre as mais
complexas questões do mundo, tal como o fizeram os pré-socráticos, assim
como sobre a conduta humana, em seu aspecto individual e social, como seu
mestre, apresentando uma importante concepção de Justiça.
Por mais que possa parecer até mesmo óbvio, dada a tradição de mais
de dois mil anos de cristianização, essa exortação ao cuidado da alma segue
tendo um especial valor ao homem contemporâneo. Conforme dito, Sócra-
tes dá ao conceito de alma uma significação próxima ao conceito contempo-
râneo de “consciência”, aquela parte racional que conduz o homem, porém,
ao agir a conduta do homem não deve ser vazia, deve mirar um fim, o qual,
por sua vez, deve primeiro resguardar a própria inteligência, para depois
tratar do ganho material.
Nesse sentido, há que se considerar que a cultura grega já dava muita im-
portância à saúde do corpo, ao valor da ginástica. Considerava-se o cuidado
do próprio corpo em uma dimensão de beleza, que refletia nas demais ques-
tões da vida. Contudo, Sócrates é inovador ao trazer mais do que a impor-
tância do cuidado com a saúde, também o cuidado com o mundo interior. A
alma para Sócrates é o que há de divino no homem.
Essa parte divina surge da consciência cultivada, que depois será o critério
para identificar o que é adequado, justo. Pela consciência cultivada podemos
ter o critério que já está na alma, mas que precisa nascer através de um pro-
cesso de desvelamento de si mesmo, de seus conceitos, preconceitos, ideias
e máximas. Conforme Jaeger (2003): “Sócrates, tanto em Platão como nos
outros socráticos, sempre coloca na palavra ‘alma’ uma ênfase surpreenden-
te, uma paixão insinuante e como que um juramento. Antes dele, nenhum
sábio grego pronunciou assim essa palavra”.
Conforme nos foi legado por Platão, em suas obras A Apologia de Sócrates
e Críton, Sócrates estava ciente de seu destino e o aceita, morre pela mesma
motivação que o fizera viver e provocar os cidadãos atenienses, o apelo pelo
conhecimento, pela Filosofia. Relata-se no Críton que Sócrates negou-se a
aceitar o auxílio de seus discípulos para fugir do cárcere e escapar da morte.
(PLATÃO, 1993)
grego. Não é à toa que em seu quadro A Escola de Atenas, Rafael Sanzio re-
presenta ambos com especial destaque ao centro, cada um carregando uma
de suas principais obras. Sócrates, junto do Timeu, aponta ao céu, símbolo
que identifica a concepção do mundo inteligível em sua teoria, ao passo que
Aristóteles, apontando ao chão, carrega a Ética a Nicômaco.
Assim como seu mestre, Platão seguia a tradição de transmissão oral das
ideias e ensinamentos. Platão entendia que o conhecimento, devendo ser
passado oralmente, não poderia ser reproduzido pela escrita, e esta serviria
somente como modo de se lembrar dos ensinamentos obtidos. Conforme
Jaeger (2003): “[...] o que caracterizava Platão era o fato de lhe interessar mais
expor a Filosofia e a sua essência através do movimento vivo da dialética do
que sob a forma de um sistema dogmático acabado”.
Platão considera que há uma virtude (areté) própria a tudo aquilo que
está encarregado de uma função. Sendo a Justiça uma virtude da alma, e
a injustiça um defeito, conclui que a alma justa e o homem justo viverão
bem, enquanto o injusto viverá mal. O homem virtuoso é feliz e venturoso, já
quem não possui virtude alguma é o contrário, “o justo é feliz, ao passo que
o injusto é desgraçado”. (PLATÃO, 2001, p. 50)
Platão então escreve que a Justiça é um bem que deve ser buscado por si
mesmo, tem de ser inerente à alma humana, uma espécie de saúde espiritual
do homem. Para comprovar tal ideia, leva o Sócrates de sua obra a idealizar
uma cidade, que seria fundada desde o início, buscando através desta en-
contrar o que é o Justo e qual sua finalidade.
pressuposto de que cada um deve exercer o que sabe fazer melhor, pois cada
homem não nasce semelhante aos outros, mas com diferenças naturais, apto
a fazer trabalhos diferentes. Os guardiões do Estado devem ser dotados, antes
de tudo, de uma índole apropriada. O guardião deve ser como um cão de boa
raça, dotado ao mesmo tempo de mansidão e de ousadia, deve ser forte e ágil
3
Na filosofia platônica, no físico, irascível3, valente e amante do saber na alma, portanto, necessitam
irascibilidade é uma das
faculdades da alma, trata- de uma educação especial, o que é desnecessário na primeira classe, posto
-se da capacidade de
indignar-se e lutar por que as profissões usuais são fáceis de aprender. (REALE, 2002, p. 246)
aquilo que a razão julga
justo. (ABBAGNANO,
Nicola. Dicionário de Fi- A formação dos guerreiros se daria através da ginástica e da música. Trata-
losofia. Tradução de: BOSI,
Alfredo. Revisão e tradu-
ção dos novos textos: BE-
se, conforme diz Reale, da própria paideia helênica, porém, reformulada pelo
NEDETTI, Ivone Castilho, .
São Paulo: Martins Fontes,
pensador ateniense. “A poesia da qual se alimentará a alma dos jovens no
2003. p. 425.)
Estado perfeito deverá ser purificada de tudo o que é falso, sobretudo no
que diz respeito às narrações em torno aos Deuses” (REALE, 2002, p. 246). São
propostas reformas na música e na ginástica, tendo-se como foco sempre
possibilitar a formação do guerreiro na devida proporcionalidade. A música
e a ginástica complementarmente exercem um papel de educação para a
alma. A educação musical forma e robustece a parte racional da alma; a edu-
cação física, por meio do corpo, a parte irascível da alma. O produto da união
de ambas é a harmonia perfeita. (REALE, 2003, p. 246)
Ao terminar de constituir sua cidade, Platão conclui, no livro III, estar apto
a procurar pela Justiça dentro dela. Nesse ponto são apresentadas as quatro
principais virtudes que se encontrariam na cidade, as chamadas virtudes
cardeais: a sabedoria (sophia), a coragem (andreía), ou fortaleza de ânimo, a
temperança (sophrosyne) e a justiça (dikaiosine). Conforme Copleston (1994),
a sabedoria é a virtude da parte racional da alma, a coragem é a relativa à
parte irascível ou veemente da alma, a temperança consiste na união das
partes veementes e apetitivas abaixo do governo da razão, o controle das
paixões. A justiça é somente determinada mais adiante, após a apreciação
dessas três virtudes. Contudo, Platão já conclui no diálogo que o Estado per-
feito deverá necessariamente possuir as quatro virtudes.
Além disso, a cidade é corajosa “numa de suas partes, pelo fato de aí ar-
mazenar energia tal que preservará através de todas as vicissitudes a sua
opinião sobre as coisas a temer, que são tais e quais as que o legislador pro-
clamar na educação” (PLATÃO, 2001, p. 178). Trata-se da capacidade de con-
servar com constância a opinião reta em matéria de coisas perigosas ou não,
sem deixar-se vencer pelos prazeres ou pelas dores, ou pelos medos ou pelas
paixões. É a virtude sobretudo dos guerreiros.
Destaca-se que essa ideia de exercer a sua tarefa é muito mais ligada à
perspectiva dos resultados do que dos gostos da pessoa. Pois, sem saber,
tal indivíduo pode possuir especiais habilidades em determinada área em
que nunca havia sido provocado a desenvolver-se. Com isso, reforça-se uma
vez mais a importância do autoconhecimento e da profunda formação, de
modo que auxiliem o indivíduo a encontrar seu devido lugar, onde exercerá
a tarefa que lhe incumbe, seja de gerenciamento, seja de execução ou qual-
quer outro tipo de serviço, da melhor maneira.
Destaca-se que quando Platão (2000) fala em filósofo considera-se que es-
te possui como exemplo seu próprio mestre Sócrates. Prova disso é sua refe-
rência do Górgias, de que Sócrates teria sido o maior estadista de seu tempo.
A alegoria da caverna
(Trecho retirado do livro VII da obra A República, de Platão, 2001)
– Sem dúvida.
– É forçoso.
– Considera pois – continuei – o que aconteceria se eles fossem soltos das ca-
deias e curados da sua ignorância, a ver se, regressados à sua natureza, as coisas
se passavam desse modo. Logo que alguém soltasse um deles, e o forçasse a
endireitar-se de repente, a voltar o pescoço, a andar e a olhar para a luz, ao fazer
tudo isso, sentiria dor, e o deslumbramento impedi-lo-ia de fixar os objetos cujas
sombras via outrora. Que julgas tu que ele diria, se alguém lhe afirmasse que até
então ele só vira coisas vãs, ao passo que agora estava mais perto da realidade e
via de verdade, voltado para objetos mais reais? E se ainda, mostrando-lhe cada
um desses objetos que passavam, o forçassem com perguntas a dizer o que era?
Não te parece que ele se veria em dificuldades e suporia que os objetos vistos
outrora eram mais reais do que os que agora lhe mostravam?
– Pois não!
– Necessariamente.
– Com certeza.
– Suponho que seria assim – respondeu – que ele sofreria tudo, de prefe-
rência a viver daquela maneira.
– Com certeza.
– Ora pois! Entendes que será caso para admirar, se quem descer dessas coisas
divinas às humanas fizer gestos disparatados e parecer muito ridículo, porque está
ofuscado e ainda não se habituou suficientemente às trevas ambientes, e foi força-
do a contender, em tribunais ou noutros lugares, acerca das sombras, e a disputar
sobre o assunto, sobre o que supõe ser a própria Justiça quem jamais a viu?
– Dizem, realmente.
– Chamamos.
– Absolutamente.
(PLATÃO. A República. 9. ed. Introdução, tradução e notas de: PEREIRA, Maria Helena da
Rocha. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. p. 317-323.)
Atividades de aplicação
1. Considerando o que foi estudado sobre as concepções da filosofia so-
crática e da sua valorização do conceito da alma humana, a busca por
conhecê-la e por torná-la realidade efetiva, discorra sobre a importân-
cia do autoconhecimento para o exercício da liderança funcional na
contemporaneidade.
2. Conforme foi visto, Sócrates propunha-se não a ensinar aos seus pares,
mas sim a incentivá-los a encontrar um conhecimento que o pensador
entendia já ser existente, porém ignorado. Desse modo, utilizava-se da
ironia como modo de levar o interlocutor a compreender seu estado de
ignorância e, caso optasse, se dispor a buscar conhecer qual é a episte-
me, a verdade relacionada àquele fato em discussão. Pergunta-se, qual
a importância desse recurso na vivência empresarial, especialmente em
relação à formação de um corpo de colaboradores que torne possível o
desenvolvimento de todo o grupo?
Gabarito
1. Trata-se de questão essencial ao indivíduo que se propõe a ser um
protagonista responsável a busca por conhecer-se e, através desse
processo, tanto encontrar o local onde essa pessoa exercerá do me-
lhor modo para si e para os demais sua liderança, assim como saberá
identificar e evitar situações de vivência que são muito mais ligadas à
sua formação do que um problema dentro da organização. Tal como
os clássicos diziam, é essencial um processo de autoconhecimento e
de cuidado com a inteligência para tornar-se um líder vencedor.
Referências
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Tradução de: BOSI, Alfredo. Revisão
e tradução dos novos textos: BENEDETTI, Ivone Castilho. São Paulo: Martins Fontes,
2003. p. 425.
ARISTÓTELES. Metafísica. Tradução de: PERINE, Marcelo. São Paulo: Loyola, 2002.
2 v. p. 35.
BITTAR, Eduardo C. B.; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de Filosofia do Direi-
to. 7. ed. Rev. e Aument. São Paulo: ATLAS, 2009.
______. A República. 9. ed. Introdução, tradução e notas de: PEREIRA, Maria Helena
da Rocha. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. II: Platão e Aristóteles. p. 246. Tra-
dução de: VAZ, Henrique Cláudio de Lima; PERINE, Marcelo. São Paulo: Loyola,
1994. v. 2.
REALE, Giovanni. O Saber dos Antigos: terapia para os tempos atuais. 2.ed. Tra-
dução de Silvana Cobucci Leite. São Paulo: Loyola, 2002.
Introdução
Seguindo o processo de análise da fundamentação do conceito de Justiça
na Grécia Clássica, chega-se ao momento de tratar sobre o maior expoente
do pensamento grego, representado pelo filósofo Aristóteles de Estagira1. 1
Aristóteles nasceu em
Estagira, na região da Ma-
cedônia, em 384/383 a.C.
Aristóteles distingue as ciências em três grandes ramos: as ciências teoréticas, Foi para Atenas aperfeiço-
ar sua formação, estudan-
que buscam o saber por si mesmo; as ciências práticas, que buscam o saber para do na Academia de Platão
por cerca de 20 anos. Após,
alcançar através dele a perfeição moral, e as ciências poiéticas ou produtivas, que fundou sua própria escola,
o Liceu. Com a morte de
buscam o saber em vista do fazer, da produção de determinados objetos. Alexandre Magno, retirou-
-se de Atenas, evitando
os movimentos contra os
macedônios que movi-
Aristóteles, contrariamente a Platão, seu mestre, trabalha ambas as ques- mentavam a cidade, indo
para a Calcídia. Morreu
tões separadamente, mesmo que em seu pensamento ambas ainda possu- em 322 a.C, poucos meses
após exilar-se. (REALE,
am uma íntima relação. Ao separá-las, o filósofo evidencia que sua proposta Giovanni. História da Fi-
losofia Antiga. Tradução
é tratar sobre as duas ciências, tendo em vista o todo, mas também conside- de: VAZ, Henrique Cláudio
de Lima; PERINE, Marcelo.
rando a metodologia adequada a cada parte nessa relação. São Paulo: Loyola, 1994. p.
316-317. 2 v.)
Justiça e Ética
Para tratar das questões da Ética, utilizar-se-á o mais célebre tratado escri-
to por Aristóteles sobre a matéria, Ética a Nicômaco (Etica Nicomachea), obra
que é um verdadeiro compêndio sobre toda a existência humana. Nos dez
livros da obra são analisadas as principais questões nas quais é necessário
atentar quando propõe-se a viver bem. (ARISTÓTELES, 1992, p. 23)
Essa espécie de bem é a felicidade, pois todos a buscam, mesmo que di-
virjam acerca da concepção de felicidade que buscam. A felicidade é comu-
mente classificada em três diversos modos, como a vida prazerosa, a vida
política, ou a vida contemplativa. Aos primeiros, a felicidade confunde-se
com uma vida agradável e com a honra, no reconhecimento da nobreza do
caráter, enquanto que o verdadeiro ideal de conduta é a vida contemplativa,
que é o modelo de vida baseado nas virtudes, no qual o homem pode con-
templar a verdade e nisso ter o prazer em si próprio, sendo, por tal motivo, a
vida mais feliz. (ARISTÓTELES, 1992, p. 201-203)
A felicidade necessita não somente das virtudes, mas também dos bens
exteriores, pois é impossível praticar ações nobres sem os devidos meios.
Portanto, ao se falar em Ética, trataremos não somente dessas disposições
de formação humana, mas também daqueles bens externos que devemos
obter para que possamos viver bem. Nesse sentido consideram-se ques-
tões como a amizade, a riqueza e poder político na obra. Conclui-se, assim,
que felizes são aqueles que agem em conformidade com a virtude perfeita
e estão suficientemente providos de bens exteriores, entendendo-os como
tudo o que é externo a nós e que nos auxilia em nosso desenvolvimento.
(ARISTÓTELES, 1992, p. 30)
Para o exercício de sua função, o juiz tem como uma de suas prerrogativas
a possibilidade de recorrer a juízos de equidade, quando a situação o pedir,
pela ausência de previsão legal ou pela limitação da lei. Na atualidade, no
Estado brasileiro, nenhum juiz pode furtar-se de julgar uma situação que lhe
é provocada, se tiverem cumpridos os pressupostos para a recepção do pro-
cesso. Nesse sentido, o artigo 4.º da Lei de Introdução ao Código Civil dispõe
que: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia,
os costumes e os princípios gerais de direito”7 (lei de Introdução ao Código 7
Lei de Introdução ao
Código Civil.
Civil). Demonstra-se, assim, que na busca pela realização da Justiça, o ordena-
mento jurídico pátrio recepciona a concepção aristotélica de equidade.
Assim, apesar da íntima relação entre a Ética e a Política, cada uma dessas
ciências disciplina o indivíduo de maneira diversa. Enquanto a Ética orienta
o indivíduo para que este saiba conduzir bem sua vida e, consequentemen-
te, vir a realizar-se, a Política busca preparar os cidadãos para que exerçam
devidamente suas funções dentro da estrutura do Estado. Apesar de ambas
as virtudes não serem as mesmas, não se está negando por intermédio dessa
afirmação a conduta Ética, mas sim consignando-se que não bastará sim-
plesmente a virtude para que o Estado possa estar organizado e venha a
gerir bem a vida de seus cidadãos.
quia, que é o governo dos mais ricos. Por fim, tem-se o regime ao qual se dá
o nome de regime constitucional, que é o governo de um grande número
de indivíduos e apresenta características atinentes à oligarquia e à democra-
cia, sendo um termo intermediário entre estas. Sua corrupção seria a própria
democracia, entendida como o governo dos pobres e tendo em vista seus
próprios interesses. (ARISTÓTELES, 1998, p. 38)
essas funções, o que somente será feito mais tarde, baseando-se nas ideias
do filósofo francês Montesquieu.
Porém, como isso não é possível e, por mais que o indivíduo desenvolva-se
e esteja acima da média, este ainda vive em meio à sociedade, e os demais co-
brarão dele o cumprimento dessas normas, reforça-se a questão das virtudes
do bom cidadão e do homem de bem. Necessário se faz calcular a conduta de
modo a se cumprir o que lhe é socialmente exigido, por mais que se esteja além
dessa relação, sem perder nesse processo o foco no próprio desenvolvimento.
Conclusões
Conforme foi visto neste capítulo, Aristóteles trabalha a questão da Justi-
ça dentro da Ética e da Política. Tanto a Ética quanto a Política visam conduzir
o indivíduo à realização de sua finalidade, a felicidade na vida, a qual é cons-
truída pelo desenvolvimento das virtudes, tanto morais quanto intelectuais,
através dos hábitos e do estudo. A Ética procura disciplinar o indivíduo para
que por si consiga alcançar tal finalidade. A Política, diversamente, busca que
todos aqueles que vivem dentro da cidade possam alcançar a felicidade.
A Justiça e a Eticidade
O problema da Justiça é, dentro da filosofia aristotélica, como já se procurou
acentuar, uma questão acentuadamente de caráter ético. Tal premissa requer que
preliminarmente se proceda um exame do que se pode entender pelos termos
ético, Eticidade e natureza ética, apesar de já ter desenvolvido esse assunto nos
capítulos anteriores. Uma primeira referência nesse sentido deve necessaria-
mente sublinhar que a esfera da Eticidade não se aparta daquela racionalidade.
Não se aparta pelo fato de que, em Aristóteles, razão prática (noûs praktikós) e
razão teórica, ou teorética (noûs teoretikós), caminham conjuntamente na totali-
zação do ser racional, ou seja, atuam paralelamente para a realização integral da
natureza social do homem em sociedade. A vida social demanda respostas do
indivíduo que tocam as faculdades da utilidade, do prático (práxis), assim como
da razão pura, abstrata e teórica (theoría). Nesse sentido, ambas as razões, tanto
a razão prática quanto a razão teórica, representam, quando vistas em conjunto,
a completude das esferas noética e dianoética do ser racional. Se o ser humano
se distingue por ser-lhe inerente a racionalidade – o que envolve razão prática
e razão teórica –, seu télos não se confunde com o dos demais seres, e o que
o caracteriza é a faculdade de alcançar a beatitude da felicidade (eudamonía)
através da utilização de suas faculdades racionais.
Atividades de aplicação
1. Conforme visto neste capítulo, ao tratar sobre a Ética, especialmen-
te no pensamento aristotélico, se está tratando da ciência que busca
possibilitar ao homem que este viva bem. Considerando-se que na
atualidade fala-se muito em crise ética, crise dos valores, qual é a im-
portância da concepção de Ética apresentada por Aristóteles?
Gabarito
1. Apesar de se falar em crise ética, não se propõe solução alguma a essa
questão. Desse modo, a ética aristotélica apresenta-se como uma pro-
posta de boa conduta da vida. Pautando-se em um critério objetivo,
a virtude, o meio-termo, trata-se de um modo de se disciplinar a con-
duta humana em busca da realização humana, o que é essencial na
sociedade contemporânea.
Referências
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. 2. ed. Tradução do grego, introdução e notas de:
KURY, Mário da Gama. Brasília: UnB, 1992.
______. Política. Edição Bilingue. Tradução de: AMARAL, António Campelo; GOMES,
Carlos de Carvalho. Lisboa: Veja, 1998.
______. Metafísica. Tradução de: PERINE, Marcelo. São Paulo: Loyola, 2002. 2 v.
______. Arte Retórica. 17. ed. Tradução de: CARVALHO, Antônio Pinto de. Rio de
Janeiro: Ediouro, 2005.
______. Arte Retórica e Arte Poética. Traduzido por Antônio Pinto de Carva-
lho. 17ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005. (a referência no capítulo encontra-se
incompleta)
______. A Justiça em Aristóteles. 3. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Forense Uni-
versitária, 2005.
Introdução
Neste capítulo trataremos sobre dois momentos da história da filosofia.
Primeiramente, estudaremos o pensamento filosófico da época helenística,
iniciada com as conquistas de Alexandre Magno. Essa linha de pensamento
se estende até o período da dominação romana, acompanhando-o na época
do apogeu deste império.
O epicurismo
O epicurismo é a primeira das grandes escolas filosóficas que se erguem
4
Epicuro nasceu em no período helenístico, fundada por Epicuro4. Suas principais ideias podem
Samos, em 341 a.C.
Fundou sua escola em
Atenas, provavelmente
ser resumidas nas seguintes proposições: a) pela inteligência do homem
entre 307/306 a.C, e esta
recebeu o nome de Jardim
pode-se conhecer a realidade perfeitamente; b) nas dimensões do real
(Képos) por dar suas aulas
não como uma palestra,
existe espaço para a felicidade do homem; c) a felicidade é a falta de dor e
símbolo da Grécia Clás-
sica, mas em um prédio
perturbação; d) para atingir essa felicidade e essa paz, o homem só precisa
com um jardim nos subúr-
bios de Atenas. Epicuro de si mesmo; e) não lhe servem absolutamente a cidade, as instituições, a
morreu em Atenas, em
271 ou 270 a.C. nobreza, as riquezas, todas as coisas, nem mesmo os deuses. Nesse sentido,
o homem é perfeitamente “autárquico”5. (REALE, 2003, p. 239)
5
Autárquico: da fusão
entre autos e cratos, ou Assim, há a concentração no homem, proporcionando-se a este, através
seja, relacionado à capaci-
dade do homem guiar-se da análise do mundo em que vive, libertar-se das paixões que o condicio-
por si próprio.
nam, para poder viver.
Epicuro afirma que a sensação “colhe o ser” de modo infalível, esta nunca
pode falhar, trata-se do critério de identificação da realidade. É objetiva e verda-
6
Para os epicuristas, deira, porque é produzida pela própria estrutura realidade6 e, acima de tudo, é
o mundo e também o
homem eram reduzidos a-racional, incapaz de retirar ou acrescentar em si mesma alguma coisa, sendo,
a um mero agrupamento
de átomos. por esse motivo, um critério objetivo (REALE, 2003, p. 240). Além das sensações,
as antecipações, também chamadas de “prolepses” ou “pré-noções”, represen-
tações mentais das coisas, memórias daquilo que já mostrou-se no exterior,
também são formas de conhecimento. Por último há a afecção, consideran-
do-se os sentimentos de prazer e dor também como critérios, constituindo-
-se como bases para a distinção do bem e do mal. (CAROTENUTO, 2009, p. 27)
Para o epicurismo, o homem, para viver bem, deve buscar o prazer. “A feli-
cidade consiste apenas no prazer estável ou negativo, ‘no não sofrer e no não
agitar-se’ e é, portanto, definida como ataraxia (ausência de perturbação) e
aponia (ausência de dor)”. (ABBAGNANO, 1999, p. 31) Assim, para Epicuro a
vida política é em suma não natural. Consequentemente, ela comporta con-
tinuamente dores e perturbações, o que compromete o prazer do homem.
O filósofo do “jardim” defendia a retirada do convívio social para “si mesmo”,
propunha uma profunda interiorização, em detrimento da realidade social.
O estoicismo
Outra importante escola filosófica nascida no séc. IV a.C é o estoicismo,
fundada por Zenão.7 Tal como o epicurismo, essa escola renegava a metafísi- 7
Zenão, por ser oriundo
da Ilha de Chipre, não
ca e toda a forma de transcendência, tratando-se de uma forma materialista possuía direito a adquirir
um prédio em Atenas, de
de se conhecer a realidade. A Filosofia era concebida como a “arte de viver”. modo que ele ministrava
suas aulas num pórtico
(em grego stoá). Razão
Divide-se este período em três diversas fases. A primeira é oriunda da pela qual deu-se o nome
de “Estoá” ou “Pórtico” à
tríade ateniense, Zenão, Cleanto de Assos e Crísipo de Solis. A segunda refe- sua escola.
O ceticismo e o ecletismo
O ceticismo é a corrente filosófica divulgada por Pirro de Élida. A palavra
ceticismo vem de skepsis, que quer dizer observação, reflexão, indagação. O
objetivo do ceticismo é alcançar a felicidade como ataraxia. Para essa corren-
te o alcance desse estado se opera através da indagação que põe em evidên-
cia a inconsistência de qualquer posição teorético-prática, as considera igual-
mente falazes e se abstém de aceitar alguma. (CAROTENUTO, 2006, p. 30)
Cícero representa o modo mais eficaz pelo qual se realizou a ponte entre
a filosofia grega e a cultura romana. Desse modo, sua importância não é
tanto teorética, mas sim por essa passagem que o filósofo e jurista realiza.
Cícero opera a fusão eclética das várias correntes do mundo grego que pôde
conhecer, repropondo-a em termos latinos. (REALE, 2003, p. 281)
Santo Agostinho
O mundo romano foi também o cenário em que surgiu Santo Agostinho,
talvez o primeiro grande filósofo cristão, responsável por iniciar o processo
de absorção da Filosofia pela Teologia, que atravessaria toda a Idade Média.
É difícil separar o pensamento de Agostinho das contingências históricas,
10
A biografia de Santo uma vez que um de seus principais objetivos era justamente defender a fé
Agostinho é importante
para entender a sua cons- cristã e supremacia de seu Deus diante das invasões bárbaras e do conflito
trução como intelectual e
defensor das ideias cris- com outras religiões e doutrinas, o que não significa que Agostinho também
tãs. Agostinho não nasceu
cristão, mas converteu-se, não havia estudado tais doutrinas10. Agostinho foi educado nas artes da gra-
após estudar diversas re-
ligiões e doutrinas. Além mática e da retórica, e iniciado na Filosofia na leitura dos clássicos gregos e
disso, o fato de ter se con-
vertido não significa que romanos. Cícero influenciou seu pensamento, na perspectiva de que existe
tenha renegado aquelas
ideias anteriores, pois uma lei universal que governa inclusive a vida humana, mas nenhum outro
como é sabido, Platão
seguiu exercendo enorme
influência em suas obras.
pensador lhe inspirou tanto como Platão. A obra máxima de Agostinho, A
Cidade de Deus, certamente nasce de um enorme trabalho de estudo da Re-
A relação com Platão torna-se mais evidente nessa questão. O paralelo das
duas cidades é muito semelhante à problemática platônica da República, quando
o filósofo grego apresenta o mundo das ideias como aquele em que a verdade
se revela e todo o restante como apenas sombras. A “cidade dos homens” não
passa de sombra, falsidade, diante da verdade da “cidade de Deus”
Contudo, Santo Agostinho não declara a invalidade das leis terrenas nem
da Justiça que impera na “cidade dos homens” conforme Villey:
Enquanto dure a história, enquanto realizemos nossa “peregrinação terrestre” e enquanto
o joio não tiver sido separado da boa semente, é da essência das duas cidades elas
coexistirem, estarem mescladas, imbricadas. E a própria cidade terrena tem, na história,
sua razão de ser; é obra, como todas as coisas, da providência divina e cumpre certa
função em nosso caminho para a salvação. Por isso o Estado, as leis, o direito de nossas
cidades humanas históricas – cujo valor é questionado e que é preciso confrontar com
os da cidade celeste – serão tratados por Santo Agostinho do ponto de vista de nossa
salvação. (VILLEY, 2006, p. 82)
Embora de fato várias vezes Agostinho ataque as leis romanas, bem como
toda lei pagã, apresentando como elas contrariam as leis divinas, e ainda assi-
nalando a relevante possibilidade de uma lei humana ser contraditória em re-
lação às leis de Deus, não se pode dizer que ele permita a simples transgressão
à ordem jurídica histórica vigente. Agostinho possui formação clássica greco-
romana, suas leituras de Platão, Aristóteles e Cícero lhe permitem vislumbrar a
importância da obediência às leis vigentes, pois não é possível tentar construir
uma ordem social se antes não se estabelece a ordem interior no indivíduo.
Para Agostinho, cada atividade tende à uma paz, que não precisa ser
obrigatoriamente a paz perfeita, aquela ligada à justiça divina. O estabele-
cimento da segurança e da ordem social na cidade dos homens já é alguma
manifestação de paz, o que requer a obediência às leis profanas.
Porém, talvez mais razoável ainda seja outro argumento para se justificar
a obediência às leis injustas dos homens. Para Agostinho, tudo que acontece
na história do mundo é vontade divina, é obra de Deus, e nisso inclui-se os
reinados tirânicos e os períodos de guerras e fome. Em cada evento histórico
há uma ação divina, ainda que seus desígnios sejam misteriosos, de forma
que devemos obedecer às leis instituídas pelas contingências históricas, por
mais injustas que elas pareçam, já que ali também presencia-se a vontade de
Deus. Por isso os cristãos obedecem a César, porque “obedecer às leis de César,
o cristão sabe que também é curvar-se ante a lei eterna”(VILLEY, 2006, p. 92).
fletir com os instrumentos da razão pura, para que, a partir dessa, possa agir
bem e, por conseguinte, corresponder aos anseios do Divino que ordena o
mundo. (BOEHNER, 2000, p. 452)
Por isso, se não houver uma causa primeira entre as causas intermediárias,
estas não existirão, bem como não haverá causa última. Mas se fosse possível
ir ao infinito, não haveria causa primeira. Portanto, é necessário admitir uma
causa eficiente, à qual todos dão o nome de Deus. (BOEHNER, 2000, p. 454)
portanto, só pode ser o Direito, sendo a própria coisa justa, ou seja, o estabe-
lecimento de uma igualdade entre as partes. (BARROS, 2007, p. 53)
São Tomás não concebia a necessidade das leis positivas humanas por causa
do pecado, como outros escolásticos pensavam, mas como remédio para os
vícios do homem em estado de corrupção. Ela é necessária pela própria natu-
reza do homem, sociável e naturalmente destinado à ordem política. A origem
dessa lei procederá da autoridade presente, por natureza, em todo grupo po-
lítico humano. Toda lei humana deriva da lei natural, seja por via de conclusão
(aplicação a circunstâncias históricas de um processo tirado da natureza) ou de
determinação (adição aos dados vagos da ciência do direito natural, para servir
aos fins da natureza). Assim, o Direito é ao mesmo tempo fruto da razão e da
vontade. Da razão por captar algo que naturalmente já é, e voluntária por ser
produto de um poder legislativo. (VILLEY, 2006, p. 150-152)
Após o que foi tratado neste tópico, constata-se que a doutrina, ao passo que
ressuscitou o método e as fontes da Filosofia e do Direito antigo, incorporou-as
às concepções da Igreja Cristã. Mais do que fundamentar a fé nas concepções
mais profundas da racionalidade humana, Tomás é agente operador de uma es-
sencial passagem racional na Filosofia e no Direito, propondo-se a, através da
base religiosa, superar os modelos clássicos dos quais partiam como modelo.
Duns Scott
Duns Scott, que em seu tempo era chamado de Doctor Subtilis, devido à
profundidade de sua doutrina, resultado de longos estudos e trabalhos nos
dois principais centros de sua época, Oxford e Paris, exerceu grande influê-
ncia na construção do pensamento moderno, devido à sua defesa de não
somente a distinção, mas da separação entre Filosofia e Teologia. Duns Scott
era contrário à doutrina tomista, alegando que a Filosofia possui metodo-
logia própria, não assimilável pela Teologia; era contrário também a Santo
Agostinho, que havia proposto a absorção da Filosofia pela Teologia.
A Filosofia se ocupa do ente enquanto tal e de tudo o que é redutível a ele ou dele
dedutível. Já a Teologia, ao contrário, trata dos articula fidei ou objetos de fé. A Filosofia
segue o procedimento demonstrativo, a Teologia o procedimento persuasivo. A Filosofia
se detém na “lógica natural”, a Teologia move-se na “lógica do sobrenatural”. A Filosofia
se ocupa do geral ou universal, porque é obrigada a seguir “pro statu isto”, o itinerário
cognoscitivo da abstração, enquanto a Teologia aprofunda e sistematiza tudo o que
Deus se dignou nos revelar sobre a sua natureza pessoal e o nosso destino. A Filosofia
é essencialmente especulativa, porque visa a conhecer por conhecer, ao passo que a
Teologia é tendencialmente prática, porque nos põe a par de certas verdades para nos
induzir a agir mais corretamente. (REALE, 2003, p. 598-599)
Para Duns Scott, a literatura pagã, e nisso inclui-se a filosofia grega, deve
servir somente de instrumento auxiliar à busca pela verdade, que se encontraria
na Sagrada Escritura, pois a “fé governa a razão, que não passa de uma servidora”
(VILLEY, 2006, p. 202)
seria obra de Deus seria um crime contra a própria figura de Deus, subordi-
nando-o a uma razão humana e intelectualista. Deus, como princípio criador
de todas as coisas, não necessitaria de uma ordem, porque isso seria já uma
limitação de seu poder. A razão não pode limitar Deus, porque inclusive a
razão é obra de Deus. Interessante notar que essa inversão pode ser aplicada
inclusive à moral cristã, pois o preceito “não matarás”, por exemplo, não seria
uma regra universal, já que Deus poderia ter escolhido outros preceitos.
Guilherme de Ockham
Guilherme de Ockham foi outro franciscano que prosseguiu no caminho
aberto por Duns Scott contra a filosofia tomista. A diferença é que Ockham
foi um profundo conhecedor de Aristóteles, em especial de sua dialética.
Questão 91
(AQUINO, 1997)
Artigo I
Se há alguma lei eterna
1 – Com efeito, toda lei impõe-se a alguns. Ora, não houve desde toda eter-
nidade alguém a quem a lei pudesse impor-se, pois só a Deus coube ser desde
toda a eternidade. Portanto, nenhuma lei é eterna.
3 – Além disso, a lei importa certa ordem para algum fim, pois só o último
é eterno. Logo, nenhuma lei é eterna.
Resposta: Deve dizer-se que, como se disse acima (q. 90, a. 1), nada é a
lei senão certo ditame da razão prática no príncipe, que governa alguma co-
munidade perfeita. Ora, é manifesto, suposto ser o mundo regido pela divina
providência, como se estabeleceu na primeira parte (q. 22, a. 1 e 2), que toda a
comunidade do universo é governada pela razão divina. Assim pois, a própria
razão do governo existente, em Deus, como príncipe do universo, compreen-
de a razão de lei. E porque a divina razão nada concebe a partir do tempo, mas
é dotada de conceito eterno, como diz o Livro dos Provérbios (8,23), segue-se
que tal lei deve dizer-se eterna.
Artigo II
Se há em nós alguma lei natural
irracionais, que agem em vista do fim apenas mediante o apetite natural. Mas
o homem age em vista do fim mediante a razão e a vontade. Portanto, não há
para o homem alguma lei natural.
3 – Além disso, quanto mais alguém é livre, tanto menos é sujeito à lei. Ora, o
homem é o mais livre de todos os animais por força do livre arbítrio que possui,
excedendo por ele todos os outros animais. Não sendo, pois, os restantes animais
sujeitos à lei natural, não é também o homem sujeito a qualquer lei natural.
Em sentido contrário, há o que nos diz a glosa sobre Romanos, 2,14: “Os
gentios, que não possuem a lei, fazem naturalmente o que contém a lei”.
Embora possam a lei escrita, possuem, todavia, a lei natural pela qual cada um
intelige o que é o bem e o mal e disto cônscio.
Resposta: Deve dizer-se que, como se disse acima (q. 90, a. 2, ad. 1), sendo
a lei regra e medida, pode estar em algo de dois modos: de um modo, no
que é regulante e mensurante, de outro modo no que é regulado e mensu-
rado, pois ao participar algo da regra ou medida, é nisso regulado e mensu-
rado. Donde, como tudo o que está sujeito à divina providência é regulado
e mensurado pela lei eterna, como é patente no que anteriormente se disse
(art. prec.), é manifesto que tudo participa de algum modo da lei eterna, na
medida em que, por impressão desta, é dotada de inclinação para os próprios
atos e fins. Todavia, entre as restantes, a criatura racional está submetida à
divina providência de modo mais excelente, na medida em que se faz ela pró-
pria participante da providência para si e para as outras. Donde ser também
nela participante a razão eterna, pela qual tem uma natural inclinação para o
seu devido fim e ato. E tal participação da lei eterna na criatura racional diz-se
lei natural. Donde, quando diz o Salmista: “Sacrificai um sacrifício de justiça”
(Salmo 4,6), como a responder a alguns que perguntam quais são as obras da
justiça, acrescente: “Muitos dizem: quem mostrará os bens?” E, ao responder a
essa questão, diz: “Foi assinalada sobre nós a luz da tua face”, é como se a luz
da razão natural, pela qual discernimos o que é o bom e o que é o mal, o que
pertence à lei natural, outra coisa não seja que a impressão da luz divina em
nós. Donde ser patente que a lei natural outra coisa não é senão a participa-
ção da lei eterna na criatura racional.
Artigo III
Se há alguma lei humana
1 – Com efeito, a lei natural é uma participação da lei eterna, como se vem
de dizer (art. prec.). Ora, mediante a lei eterna tudo é elevado à ordem a mais
perfeita, como diz Agostinho no Livro I do Sobre o Livre Arbítrio (cap. 6, 51,
C.Chr. XXIX, 220). Portanto, a lei natural é suficiente para ordenar tudo o que é
humano. Portanto, não é necessário haver lei humana.
2 – Além disso, a lei possui a razão de medida, como se disse (q. 90, a. 1).
Ora razão humana não é medida das coisas, ocorrendo muito mais o contrá-
rio, como se diz na Metafísica (IX,1,1053 a31). Donde, nenhuma lei pode pro-
ceder da razão humana.
3 – Além disso, uma medida deve ser certíssima, como se diz na Metafísica
(IX,1,1053 a31). Ora, o ditame da razão humana quanto à gestão das coisas é
incerto, conforme o dito da Sabedoria (cap. 9, v. 14): “São hesitantes os pensa-
mentos dos mortais e incertas nossas providências”. Logo, nenhuma lei pode
proceder a razão humana.
Resposta: Deve dizer-se que, como se disse acima (q. 90, a. 1, ad. 2), a lei
é certo ditame da razão prática. Ora, verifica-se na razão prática um proces-
so semelhante ao que ocorre na especulativa: cada uma delas procede de
alguns princípios a que algumas conclusões, como se estabeleceu acima (ib.).
Segundo esta semelhança deve dizer-se que como na razão especulativa são
produzidas as conclusões das diversas ciências a partir dos princípios inde-
monstráveis, naturalmente dados, mas encontrados pelo trabalho da razão,
da mesma forma, a partir dos preceitos da lei natural, como a partir de certos
princípios comuns e indemonstráveis, é necessário que a razão humana passe
à disposição de algo mais particular. E essas disposições particulares desco-
bertas pela razão humana dizem-se leis humanas, observadas outras condi-
ções que pertencem à razão da lei, como se disse acima (q. 90). Donde dizer
Túlio em sua Retórica (Invent. Reth., Livro 2, cap. 53, DD I,165) que “o início do
Direito procede da natureza, em seguida algo veio a ser costume em virtude
da utilidade da razão; posteriormente, as coisas produzidas pela natureza e
aprovadas pelo costume sancionou-as pelo medo das leis e a religião”.
ARTIGO IV
Se é necessária uma lei divina
No que concerne ao quarto artigo, assim se procede. Parece não ser neces-
sário haver alguma lei divina.
1 – Isso porque, como já se disse (art. 2), é a lei natural certa participação
da lei eterna em nós. Ora, a lei eterna é a própria lei divina, como se disse (art.
1). Portanto, não é necessário haver alguma lei divina além da lei natural e das
leis humanas dela derivadas.
Atividades de aplicação
1. Os filósofos helenistas, na busca pela orientação da conduta humana
em direção à felicidade, propuseram variadas formas de como alcançar
tal concepção, identificando-a como o afastamento dos problemas ou
das preocupações (epicuristas), com a ausência de prazer (estoicistas),
ou com a renúncia à busca pelo conhecimento e a vivência em atara-
xia (ceticistas). Com base nessas concepções, identifique as relações
entre essas concepções de vida e o Direito.
Gabarito
1. Todas essas correntes concentravam-se muito mais no indivíduo e sua
conduta. Desse modo, afastam-se das preocupações com as relações
sociais e, por conseguinte, com o Direito. A felicidade é mais questão
de conduta pessoal do que um escopo social, tal como era para os
predecessores.
Referências
ABBAGNANO, Nicola. História da Filosofia. 5. ed. Tradução de: CARVALHO, Ar-
mando Silva. Lisboa: Editorial Presença, 1999. 3.v.
AQUINO, Santo Tomás de. Do reino ou do governo dos príncipes ao Rei de Chipre.
Escritos Políticos. Tradução de Francisco Benjamin de Souza Neto. Petrópolis:
Vozes, 1997. (Clássicos do Pensamento Político).
______. Suma Teológica. Tradução de Alexandre Corrêa. 2. ed. Porto Alegre: Escola
Superior de Teologia Lourenço de brindes, Livraria Sulina; Caxias do Sul: Universi-
dade de Caxias do Sul, 1980. 5 v.
______. O Ente e a Essência. Tradução de Luiz João Baraúna. São Paulo: Nova Cul-
tural, 1996. (Os Pensadores).
______. Súmula contra os Gentios. Tradução de Luiz João Baraúna. São Paulo:
Nova Cultural, 1996. Os Pensadores.
BITTAR, Eduardo C. B.; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de Filosofia do Direi-
to. 5.ed. São Paulo: Atlas, 2007.
Introdução
Neste capítulo trataremos sobre a revolução no pensamento ocorrida no
período compreendido pelo final da Idade Média e início da modernidade.
Essa passagem, que tem seus primórdios com o movimento renascentista
e seu retorno à cultura clássica greco-romana, ocorre com o movimento ra-
cionalista e sua estruturação das ciências através de um método certo, bus-
cando-se não mais compreender as causas dos fenômenos pelas próprias
causas, pelo contrário, propondo-se a se deparar com a realidade por meio
da análise dos fenômenos. Por fim, apresentaremos o pensamento iluminis-
ta, o qual revolucionou a Europa moderna, possuindo marcante influência
no pensamento filosófico do Direito.
Francis Bacon
A transição da racionalidade medieval para a racionalidade moderna, já
iniciada pelos franciscanos Duns Scott e Guilherme de Ockham, prossegue
no pensamento de Francis Bacon, filósofo, político e jurista do século XVII.
A crítica baconiana aos antigos, e aqui ele insere tanto os gregos como os
medievais, se dá na concentração dos estudos numa natureza metafísica ou
numa natureza divina. Para Bacon, nenhum homem é capaz de obter todo
esse conhecimento, de forma que é mais necessário estudar a própria natu-
reza desse mundo, ou seja, suas coisas sensíveis.
Espinoza
Baruch de Espinoza iniciou seus escritos filosóficos publicando obras com co-
mentários ao pensamento de Descartes e da Escolástica medieval. Na sua obra
Já foi dito que, para Espinoza, Deus é o Ente perfeito, portanto a única
substância. Nesse sentido, sendo Deus a causa primeira de todas as outras
coisas, não pode ele ser coagido a nada, pois toda ordem deriva de Deus.
Sendo assim, não existe uma finalidade na natureza, isto é, algum raciocínio
dedutivo que implique na natureza uma ordem buscando algum fim, porque
esse fim seria divino, e desse modo poderia ser de qualquer forma.
ódio, a tendência é que esse ódio aumente, mas se retribuirmos com amor,
a outra parte somente poderá retribuir com amor. Além do raciocínio geo-
métrico, é importante notar novamente a relativização espinoziana de ideias
como ódio e amor, bem e mal. Ora, todas essas paixões são impulsos, causas
não livres que atingem o homem. Por isso Espinoza reforçará na parte da
Ética dedicada às virtudes que elas não podem ser suprimidas, porque são
realidades humanas. Conhecer as paixões, não suprimi-las e agir objetivando
as virtudes, é aquilo que o filósofo chamará de razão, a condição ética espe-
cial que conduz o homem ao conhecimento de Deus.
As coisas mundanas são porque são, e não porque devem ser, isto é, são
porque Deus assim as pôs. Nessa condição, é notório que a alegria produz
aumento de capacidade, por exemplo, e que a tristeza, ao contrário, reduz.
É aqui que o homem se dá conta de que a alegria é um bem natural da hu-
manidade, e que viver conforme ela produz uma condição mais divina. A
aproximação a Deus se dá pelo conhecimento, pelo gosto de viver e querer
viver conforme os valores espirituais, aqueles que nos conduzem acima das
paixões.
Immanuel Kant (2005), o qual terá seu pensamento analisado mais adian-
8
O termo alemão Au- te, em sua “Resposta à pergunta: que é esclarecimento?” (Aufklärung8), diz o
fklärung é o correlato
germânico do Iluminismo seguinte:
francês; sua tradução mais
precisa é aquela apre-
sentada no texto, como Esclarecimento [Aufklärung] é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é
esclarecimento. culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção
de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não
se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de
si mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teu próprio
entendimento, tal é o lema do esclarecimento [Aufklärung].
Além disso, o profundo respeito pelo ser humano dos iluministas traz
a responsabilidade do líder e de seus colaboradores no desenvolvimento
humano. Se a busca pela igualdade é um princípio, ao menos a igualdade de
Portanto, para que isso se torne possível, faz-se necessário que o líder da
contemporaneidade, seja qual for sua área de atuação, se responsabilize por
buscar, no exercício de sua liderança, tornar realidade esses valores, visto
que no mundo contemporâneo a busca pelo desenvolvimento econômico
sem o crescimento daqueles que com ele trabalham ou da sociedade não é
mais aceita pelas sociedades contemporâneas, sendo pressuposto essencial
a preocupação com o desenvolvimento social sustentável.
“Em seu significado mais amplo, as leis são as relações necessárias que
derivam da natureza das coisas”, afirma Montesquieu em O Espírito das Leis.
E, embora livres das cadeias da religião, devemos estar sujeitos ao domínio
da Justiça, pois as leis do Direito são objetivas e não modificáveis, à seme-
lhança das leis da Matemática, continuava dizendo Montesquieu nas Cartas
Persas. Por seu turno, embora constatando a grande variedade de costumes e
vendo que “o que em uma região se considera virtude é precisamente o que
em outra se vê como vício”, Voltaire era de opinião que “existem certas leis na-
turais sobre as quais os homens de todas as partes do mundo devem estar de
acordo [...]. Assim como (Deus) deu às abelhas forte instinto, pelo qual traba-
lham em comum e procuram juntas o seu alimento, da mesma forma também
deu ao homem certos sentidos que nunca poderá renegar: são os vínculos
eternos e as primeiras leis da sociedade humana”. A fé na natureza imutável
do homem – feita de inclinações, instintos e necessidades sensuais – pode-se
encontrar também em Diderot, que reafirmou contra as teses de Helvetius,
segundo as quais os instintos morais nada mais seriam do que máscaras do
egoísmo. Para Diderot, existem vínculos naturais entre os homens, vínculos
que as morais religiosas procuram despedaçar.
Foi com base nas ideias jusnaturalistas dos iluministas que se elaborou a
doutrina dos direitos do homem e do cidadão, que encontra a sua realiza-
ção mais eloquente na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, na
qual, em 1789, a Assembleia Constituinte francesa quis especificar princípios
que seriam o documento programático da Revolução Francesa. Os direitos
do homem e do cidadão que a Assembleia Constituinte considerou naturais
foram: a liberdade, a igualdade, a propriedade, a segurança e a resistência à
opressão. A lei é igual para todos e estabelece limites precisos ao poder exe-
cutivo, a fim de proteger a liberdade pessoal, de opinião, de religião e de pala-
vra. A lei é expressão da vontade geral, feita com o concurso dos cidadãos ou
através dos representantes de todos os cidadãos. A propriedade é afirmada
como direito “sagrado e inviolável”.
Atividades de aplicação
1. Francis Bacon defendeu uma Filosofia empírica, baseada na análise das
coisas sensíveis, em oposição a uma explicação metafísica. A procura
pela coisa posta repercutirá no Direito influenciando um direito posi-
tivista, preocupado sobretudo com os fatos. Com base nisso, comente
a relação entre empirismo científico e positivismo jurídico, lembrando
também que Bacon se preocupa mais com o útil do que com o justo,
ou seja, um Direito mais voltado à praticidade do aqui e agora do que
com concepções filosóficas.
Gabarito
1. Influenciado pelo empirismo científico, o direito demasiadamente po-
sitivista corre o risco de esquecer aspectos filosóficos, sociais, psicoló-
gicos, entre outros, que existem por trás de um fato, e ignora que um
acontecimento não pode ser analisado em separado da totalidade.
188 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A.,
mais informações www.iesde.com.br
A fundação do pensamento moderno: do racionalismo ao Iluminismo
Referências
ADORNO, F.; GREGORY, T.; VERRA, V. Manuale di Storia della Filosofia. Roma-Bari:
Laterza, 1998. 2 v.
_____. Regras para a Orientação do Espírito. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
MONTESQUIEU. O Espírito das Leis. Tradução de: RIBEIRO, Renato Janine. São
Paulo: Martins Fontes, 2000.
WHITE, Howard B. Francis Bacon [1561-1626]. In: STRAUSS, Leo; CROPSEY, Joseph
(Org.). Historia de la Filosofía Política. Cidade do México: Fondo de Cultura Ecó-
nomica, 1996.
Introdução
Continuando a análise das escolas de pensamento que mais influencia-
ram a Filosofia do Direito na transição para o período moderno, trataremos
neste capítulo de um grupo de pensadores desse período que destacam-se
por serem os fundamentadores da nova concepção de sociedade, Estado e
de Direito que surgia.
A Lei de Natureza (Lex Naturalis), por sua vez, é o preceito ou regra geral
estabelecido pela razão, mediante o qual se proíbe a um homem fazer tudo
o que possa destruir sua vida ou privá-lo dos meios necessários para preser-
var ou omitir aquilo que pense melhor contribuir para preservar. Essa lei na-
tural possui um caráter estritamente moral, não jurídico, dada a inexistência
de qualquer força que fixe, dê validade e coercibilidade a essas leis (VILLEY,
2005, p. 740).
Baseado nas influências de Bacon, Hobbes não busca mais as causas, mas
as potências do mundo, chegando por esse procedimento à hipótese do
estado de natureza. O homem não é mais considerado social “por natureza”,
o animal político, mas contrariamente é “naturalmente livre”. Assim fazendo,
Hobbes limita o Direito à lei moral, que é a lei natural para ele. O Direito não
é mais uma coisa distribuída ao sujeito pela organização política, mas um
atributo essencial, uma qualidade do sujeito. Esse é o significado de direito
subjetivo em Thomas Hobbes.
196 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A.,
mais informações www.iesde.com.br
A fundamentação do estado moderno: os filósofos contratualistas
reito em Hobbes não tem como valor primordial a Justiça em sentido absolu-
to, mas o que é justo na questão dos interesses do próprio indivíduo.
John Locke
8
John Locke nasceu em O filósofo inglês John Locke8, célebre por sua epistemologia empirista,
Wrington, próximo a Bris-
tol, em 1632. Estudou na dedica-se também a tratar sobre a organização das sociedades humanas e
Universidade de Oxford,
onde conseguiu o título
de Master of Arts em 1658 e
o nascimento do Estado, o que faz em sua obra Dois Tratados sobre o Gover-
onde ensinou, na qualidade
de tutor, grego e retórica, no. Nesse livro, suas concepções são apresentadas mais especificamente no
tornando-se censor da fi-
losofia moral. Estudou Me- “Segundo tratado sobre o governo”, posto que o primeiro tratado dedica-se
dicina, Anatomia, Fisiologia
e Física, além de Teologia.
Foi nomeado membro da
precipuamente a refutar as teses absolutistas de Robert Filmer, presentes na
Royal Society de Londres.
Acusado de traição, se obra O Patriarca.
retira para Oxford refu-
giando-se com o Conde
de Shaftesbury, contudo,
com o sucesso da Revolu-
John Locke também considera a existência de um estado de natureza an-
ção Gloriosa e a tomada
do trono por Guilherme tecedente à vida em sociedade, partindo deste para explicar o princípio das
de Orange, instituindo-se
o regime parlamentarista, sociedades humanas e a consequente instituição do Estado. Locke, contudo,
retorna a Londres, colhen-
do as glórias do triunfo da
teoria que tanto defendera.
não entende que esse estado natural é a verdadeira “guerra de todos contra
Morreu no castelo de Oates,
em Essex, no ano de 1904.
todos”, mas sim uma perfeita liberdade dos indivíduos para regularem suas
(REALE, Giovanni; ANTISERI,
Dario. História da Filoso- ações e disporem de posses e pessoas do modo como julgarem acertado,
fia: do humanismo a Kant.
p. 502-505.) sem pedir licença ou depender da vontade de qualquer outro homem, li-
mitados somente pela lei da natureza (GOLDWIN, 1996, p. 453). Os limites a
essa ampla liberdade estão consignados na obrigação de preservar-se, bem
como de, o quanto possível for, preservar o resto da humanidade.
Quanto a essa última obrigação destaca Locke: “[...] e não pode, a não ser que seja para
fazer justiça a um infrator, tirar ou prejudicar a vida ou o que favorece a preservação da
vida, liberdade, saúde, integridade ou bens de outrem”.(LOCKE, 2001, p. 384)
9
Sintetizando esse ponto,
Para que todos os homens sejam impedidos de agredir direito alheio, pre-
Locke utiliza-se da seguin-
te conclusão de Hooker: judicando uns aos outros e deixando-se de observar a lei de natureza, cada
“Dado que não somos
capazes de nos prover um possui a responsabilidade da execução dessa lei, estando depositado em
por nós mesmos de uma
quantidade conveniente
das coisas necessárias para
suas mãos o direito de punir os transgressores dela em tal grau que baste
viver a vida que nossa na-
tureza deseja, uma vida para impedir sua violação. Conforme Locke (2001): “todo homem tem o di-
adequada à dignidade do
homem, somos natural- reito de punir o transgressor e de ser o executor da lei de natureza”. Nesse ín-
mente induzidos, a fim de
suprir esses defeitos e im-
perfeições que portamos
terim, a decisão pela vida em sociedade ocorre devido a um motivo, a vanta-
quando vivemos isolados
e somente por nossos
gem do convívio social, o qual supre as limitações do indivíduo que conduz
próprios meios, a buscar
a comunhão e a associa- por si sua vida.9 (LOCKE, 2001, p. 394)
ção com outros. Foi por
essa razão que os homens
começaram a reunir-se
em sociedades políticas”.
Constata-se assim a diferença entre as concepções do estado de nature-
(HOOKER apud LOCKE,
John. Dois Tratados sobre za de Locke com as de Hobbes. Essa diferença torna-se explícita no capítu-
o Governo. p. 394. [Grifo
do autor].) lo 3 do “Segundo tratado”, onde o filósofo diferencia o estado de natureza
Para Locke, a lei natural somente pode ser conhecida por intermédio da
razão, de modo que os que ainda não atingiram o seu uso não podem se
considerar sob a égide de tal lei. Nesse sentido, o termo lei pode ser entendi-
do como a limitação quanto à direção de um agente livre e inteligente rumo
a seu interesse adequado, não prescrevendo além daquilo que é para o bem
geral de todos que a ela estão sujeitos. Se estes pudessem ser mais felizes sem
a lei, esta desapareceria por si mesma, sendo coisa inútil. O fim da lei não é
abolir ou restringir, mas conservar e ampliar a liberdade, a lei é o dispositivo
que auxilia o indivíduo para que este possa agir bem, possuindo, portanto,
uma função que pode ser chamada de pedagógica.
Montesquieu
17
Charles-Louis de Se- O filósofo e cientista francês Montesquieu17 realiza em sua obra O Espírito
condat, barão de Mon-
tesquieu, nasceu em
1689, nas proximidades
das Leis uma profunda investigação acerca da constituição do Estado e do
de Bordeaux. Foi conse-
lheiro do Parlamento de
modo pelo qual este se estrutura para regular a si próprio e à sociedade que
Bordeaux e colaborador
da Academia de Ciências
o instituiu.
local. Elaborou estudos
sobre diversas áreas do
conhecimento. Suas prin- Montesquieu parte da consideração de que as leis são as relações neces-
cipais obras são O Espírito
das Leis e Cartas Persas. sárias derivadas da natureza das coisas. Assim sendo, todos os serem têm
Nesta última, satiriza toda
a organização social da suas leis. A divindade, o mundo material, as inteligências superiores aos
Europa de sua época.
homens, os homens, os animais, todos possuem suas leis. Desse modo, o
homem também é governado por leis invariáveis, contudo, como ser inteli-
gente, viola incessantemente essas leis e transforma aquelas que ele mesmo
estabeleceu. (MONTESQUIEU, 2000, p. 11)
Cada uma dessas formas possui seu próprio princípio, o valor pelo qual
se constrói determinado governo e de onde partem todas as atitudes desse
18
governo.18 Na República, o princípio do governo é o amor à república, o qual, Reforça-se esse caráter
nos capítulos da obra de-
na democracia reflete-se no amor à igualdade e na aristocracia no amor à vir- dicados à consideração de
que as leis sobre a educa-
tude. O princípio da monarquia é a honra, enquanto que no despotismo este ção, bem como as leis em
geral, devem se relacionar
princípio é o temor. A importância desses princípios é assinalada na conside- com o princípio de cada
forma de governo.
Por outro lado, o próprio Estado não pode ser empecilho ao desenvolvi-
mento do indivíduo, nem ser o primeiro a afrontar a liberdade dos seus cida-
Destaca-se disso que, sendo o Estado um ente ficto, que se faz presente
historicamente representado por pessoas que agem em nome dessa figura
maior, a limitação e o controle dos poderes do Estado são essenciais para
que seus agentes não se utilizem do poder que lhes é conferido para preju-
dicar a outrem, bem como para alcançar benefícios próprios, situações em
que estar-se-ia denunciando a corrupção do governo e a falência do Estado
como figura reguladora de determinada sociedade civil.
Rousseau
béry, mudando-se depois
para Paris, onde conhece
Diderot e, através deste,
os enciclopedistas. Au-
xiliou na elaboração da
Enciclopédia, contudo, Rousseau19 é uma das mais influentes mentes do séc. XVIII. Seu pensa-
por divergências com o
grupo, afasta-se destes mento marcou o auge do iluminismo francês, bem como o princípio do mo-
em 1758, quando retira-
-se para o Montmorency, vimento romantista. Suas ideias acerca da constituição do Estado e do Direi-
onde publicou sua obra
Du contract social, em to são apresentadas em sua obra Do Contrato Social (ROUSSEAU, 1999), na
1762. Rousseau morreu
em Ermenonville, em 2 de qual o filósofo parte da seguinte premissa: “O homem nasceu livre e por toda
julho de 1778.
parte ele está agrilhoado” (ROUSSEAU, 1999, p. 9). Romper as cadeias que
o aprisionam e possibilitar ao homem viver em liberdade é a sua proposta
nessa obra. A ordem social é considerada um direito sagrado que prescinde
a todos os demais, para Rousseau esse direito não possui origem na natureza
como pensaram outros contratualistas, mas sim nos pactos que os próprios
homens fazem entre si.
Rousseau considera que apenas ser o mais forte não é o suficiente para
ser o dono de alguma coisa, se não se transformar essa força em Direito e a
obediência na figura de um dever, não existem garantias da manutenção do
poder sobre essa coisa. Ceder à força é um ato de necessidade, não de von-
tade, trata-se de um ato de prudência, quando é necessário fazê-lo. Contudo,
a atitude de o homem renunciar a sua liberdade constitui-se na renúncia de
sua própria qualidade de homem, aos direitos de toda humanidade e inclu-
sive a seus deveres. (ROUSSEAU, 1999, p. 12)
Considerando que os homens não podem criar novas forças, senão so-
mente unir e dirigir as que existem, não possuem outro remédio para se
conservar do que somar suas forças. Porém, como é possível garantir que os
homens, ao somarem suas forças e liberdades, principais instrumentos de
conservação do homem, não acabarão saindo prejudicados? Esse é justa-
mente o problema do contrato social. A única forma dessa cessão de direitos
prosperar é através da alienação total de cada um, com todos seus direitos, a
toda a comunidade, dando-se cada um, por inteiro, para todos. Sendo igual
para todos, não haverá interesse em fazê-la onerosa aos outros. Conforme
Rousseau (1999): “Dando-se cada um a todos, não se dá a ninguém; e como
não há um associado sobre o qual se adquira um direito distinto ao que este
cede sobre si mesmo, se ganha o equivalente de tudo o que se parte e maior
força para conservar-se da que se tem”. Assim, o contrato social trata-se da
união de todos, entregando a todos seus poderes e suas liberdades, para que
esse todo possa organizar-se e buscar organizar a vida de toda essa coleti-
vidade, instituindo-se o Estado. Destaca-se que para o pensador, em razão
desse pacto, todo Estado regido por leis, qualquer que seja a forma de sua
administração, é uma República.
Por vontade geral entende-se aquela vontade que cada indivíduo possui
dentro de si e que conduz ao bem comum, é uma disposição ao melhor da
coletividade e, portanto, ao melhor de si mesmo. Esta pode ser contrária à
vontade particular, que trata do próprio interesse do indivíduo singularmen-
te. A vontade geral é importante porque será muito mais vantajoso que um
indivíduo perca a realização do seu interesse do que, através do seu exercí-
cio, prejudique aos interesses de toda a sociedade.
ordenação à boa conduta desse que não soube reconhecer qual a melhor
atitude a ser tomada naquela ocasião. (ROUSSEAU, 1999, p. 25)
Por mais que no Estado o homem seja privado de muitas das vantagens
concedidas pela natureza, ele ganha outras de igual importância, elevan-
do sua alma a tal ponto que transforme o indivíduo de fato em um homem
(ROUSSEAU, 1999, p. 26). Nesse momento, Rousseau divide três espécies de
liberdade existentes: a liberdade natural, relacionada a um direito sem limites
a tudo o que tenta e pode atingir, movida pelo espírito do homem; a liberda-
de civil, recebida pelo Estado Civil em conjunto da propriedade, é o exercício
da liberdade limitado pela vontade geral. Todavia, acima dessas ergue-se a
liberdade moral, que faz o homem verdadeiramente ser senhor de si, a qual
diz respeito à experiência própria de cada homem, havendo nesse instante,
portanto, a superação da dependência da coletividade.
21
Em suma, sendo desiguais em força ou talento, o pacto social torna os “Prodigiosa (mas in-
dispensável) exceção do
homens iguais por convenção e direito, garantindo assim, com base nos di- pensamento rousseaunia-
no ao seu princípio mais
querido, a igualdade de
tames da vontade geral, que os melhores ou os piores dos homens possam todos os membros do
corpo social: haverá um
viver bem em determinado grupo social. (ROUSSEAU, 1999, p. 30) homem, ou um grupo,
o princípio, que poderá
ordenar sem contrapar-
Tal como foi dito, a finalidade da vontade geral é o bem comum, e somente tida [...] Sem dúvida, em
Rousseau, o príncipe só
essa é que pode dirigir a força do Estado em direção a essa finalidade. O exer- pode ordenar aquilo que
a lei havia anteriormente
cício da vontade geral constitui-se em um verdadeiro exercício de soberania. prescrito: mesmo não
tendo contrapartida ‘a
Nesse sentido, a vontade geral é inalienável, bem como não pode ser repre- jusante’, a lei permanece
boa, pelo menos ‘a mon-
sentada, pois o soberano, sendo um ser coletivo, só pode ser representado tante’, enquanto expres-
são da vontade geral”.
por si mesmo. Transmite-se o poder, mas não a vontade ao governante.21 Além (JAUME, Lucien. Rousseau
e a questão da soberania.
In: DUSO, Giuseppe (Org.).
disso, a vontade geral não pode errar, pois esta trata-se do perfeito juízo da O Poder: história da Fi-
losofia Política moderna.
coletividade em busca do seu bem geral; caso haja o erro, este ocorrerá no mo- p. 189.)
Contratualismo
(ABBAGNANO, 2003)
não modificasse as condições da sua existência” (Du contrat social, I, 6); é que,
após ter surgido a linguagem, a família e a propriedade privada, só é possível
o estado de guerra ou o despotismo, expressão última da desigualdade, que
iguala, contudo, os súditos sob a vontade do Senhor.
Atividades de aplicação
1. Thomas Hobbes propõe que um dos principais motivos para se viver
em sociedade é a garantia da segurança, dada a guerra de todos con-
tra todos existente no estado de natureza. Acerca desse argumento,
considerando o Estado contemporâneo, qual a importância da tutela
do Estado para a proteção da segurança do indivíduo?
Gabarito
1. O Estado, até a atualidade, no mínimo no plano das leis existentes,
toma para si o direito de garantir a segurança dos indivíduos que vi-
vem dentro dele, bem como de punir os transgressores dos ordena-
mentos sociais. Surge, pois, a problemática de como o Estado tornará
efetiva a garantia da segurança de seu povo.
Referências
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Tradução de: BOSI, Alfredo. São
Paulo: Martins Fontes, 2003. (Revisão da tradução e tradução dos novos textos.
Ivone Castilho Benedetti).
BITTAR, Eduardo C. B. Curso de Filosofia Política. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2008.
(Rev., aument. e modif. pelo autor).
GOLDWIN, Robert A. John Locke [1632-1704]. In: STRAUSS, Leo; CROPSEY, Joseph
(Comp.). Historia de la Filosofía Política. México: Fondo de Cultura Económica, 1996.
LOCKE, John. Dois Tratados sobre o Governo. Tradução de: FISCHER, Julio. São
Paulo: Martins Fontes, 2001.
MERLO, Maurizio. Poder natural, propriedade e poder político em John Locke. In:
DUSO, Giuseppe (Org.). O Poder: história da Filosofia Política moderna. Tradução
de: CIACCHI, Andrea; SILVA Líssia da Cruz e; TOSI, Giuseppe. Petrópolis, Vozes,
2005. p. 166.
PICCINI, Mario. Poder Comum e representação em Thomas Hobbes. In: DUSO, Giu-
seppe (Org.). O Poder: história da Filosofia Política moderna. Tradução de: CIAC-
CHI: Andrea; CRUZ E SILVA, Líssia da; TOSI, Giuseppe. Petrópolis: Vozes, 2005.
Introdução
Immanuel Kant nasceu em 1724, em Königsberg, Prússia (hoje Alemanha),
cidade em que habitou por toda a sua vida. A primeira fase de sua vida, que
vai da graduação em Königsberg à sua estreia como professor na mesma
universidade, é marcada pelos estudos sobre metafísica da natureza, susten-
tadas no racionalismo moderno, sobretudo em Descartes e Leibniz, e na re-
volução científica iniciada por Nicolau Copérnico. É nesse período que alcan-
ça sucesso com suas primeiras teses, como “A verdadeira avaliação das forças
vivas” (1747), e a dissertação “De mundi sensibilis atque intelligibilis forma et
principiis” (Dissertação sobre a forma e os princípios do mundo sensível e
do mundo inteligível) (1770). O filósofo David Hume foi fundamental para
despertar Kant de seu sono dogmático, pois a crítica do pensador escocês
ao sistema metafísico obrigou o alemão a refundar suas concepções. Hume
teria demonstrado, a partir do empirismo, a desnecessidade de causas meta-
físicas para explicar os fenômenos, o que inquietou demasiadamente Kant,
de formação baseada na leitura dos filósofos clássicos, e, portanto, sustenta-
do em princípios metafísicos.
Costume, por sua vez, deriva do termo alemão Sitten, que corresponde
ao vocábulo latino mores, e ao grego ethos, todos significando costume. O
uso grego, como já explicado no primeiro capítulo deste livro, reúne em sua
acepção tanto Ética como moral, demonstrando que para aquele povo não
havia essa distinção que é própria do mundo moderno. Portanto, costumes,
em geral, retratam a necessidade de se sistematizar o agir humano, estabele-
cendo regras para suas condutas.
Os imperativos categóricos
do direito natural e, ex-
ternamente, pelas regras,
também racionais, de uma
Disso decorre também que deve-se obedecer a lei não por seu conteú-
do, mas simplesmente pelo dever de obedecer. A moral kantiana, portanto,
assenta-se no modo de como as ações devem ser e não naquilo que as coisas
são. Por isso também extrai sua moral da metafísica de ideias a priori capta-
das somente pela razão, e não pela experiência.
de que o homem é o único que pode agir conforme as suas leis, no qual se 6
O princípio da autonomia
da vontade se revestirá de
fundamenta o princípio da autonomia da vontade6, que é aquele em que de- enorme importância no
ordenamento jurídico bra-
vemos obedecer somente as leis que formulamos.7 Aqui torna-se bastante evi- sileiro atual, representando
papel fundamental tanto
na Constituição Federal de
dente a influência iluminista em Kant, na necessidade de se orientar conforme 1988 como sendo um dos
pilares da teoria geral dos
as próprias leis, é a ideia de autonomia, de esclarecimento, que em alemão é direitos contratuais, que
afirma que somente posso
Aufklärung, e que traduz o Iluminismo dos franceses. aderir a um contrato se a
minha vontade assim o
querer. No primeiro caso,
quando falamos da Cons-
Delineada a distinção entre imperativos hipotéticos e categóricos, e com- tituição, pode ser aplicada
a qualquer lei, a partir da
preendida a fundamental importância dos imperativos categóricos para a fi- ideia de um princípio de-
mocrático. Pela autonomia
da vontade, nós sabemos
losofia kantiana, vejamos como ele se dá na discussão da moral e do Direito. que devemos obedecer às
leis porque nós as coloca-
mos lá, já que somente pre-
cisamos obedecer o que a
nossa razão assim o pensa.
Ética e Direito
Num regime democrático,
entende-se que as leis são
postas pelo povo, pelas
regras que esse sistema
condiciona, de forma que
Na Metafísica dos Costumes, Kant conceitua e delimita as áreas abrangidas as leis democráticas seriam
sempre leis postas pelos in-
pelo Direito e pela Ética, identificando dessa forma que o homem obedece a divíduos, logo necessárias
de serem obedecidas sim-
duas leis, uma lei interna e uma lei externa. A lei interna é a moral, ou a Ética, plesmente por dever-ser.
Tal princípio, ainda, é uma
das bases de todo o direi-
e a lei externa é o Direito. Kant utiliza a construção paralela desses dois con- to privado, tendo como
exemplo o direito contratu-
ceitos para fundamentar a liberdade humana. al, no qual é mais evidente
sua função. (NORONHA,
Fernando. O Direito dos
Contratos e seus Princí-
A lei interna identifica liberdade porque está ligada aos postulados racionais pios Fundamentais. São
Paulo: Saraiva, 1994; KRETZ,
da metafísica dos costumes. Para Kant, como já se afirmou, todo homem já é Andrietta. Autonomia da
Vontade e Eficácia Hori-
dotado de uma vontade boa, ou seja, de uma inclinação a praticar boas ações. A zontal dos Direitos Fun-
damentais. Florianópolis:
moral interna do indivíduo se articula através dos imperativos categóricos. Im- Momento Atual, 2005.)
7
portante notar que liberdade, para Kant, não está ligada essencialmente a uma A leitura de um pequeno
texto de Kant, intitulado
“Resposta a pergunta: o que
ausência de coação exterior, mas à condição de agir conforme a lei interna da é Esclarecimento?”, é essen-
cial não somente para com-
minha razão. Partindo da inclinação humana às boas ações, Kant constrói um preender o sistema filosó-
fico kantiano mas também
sistema que permite a formulação de leis universais, que seriam aquelas leis que o próprio período histórico
vivido pelo autor. Nesse
texto, Kant enfatiza a neces-
qualquer humano, devido à sua capacidade racional, é capaz de entender como sidade de o indivíduo passar
a pensar e agir por si mesmo,
uma obrigação a ser seguida. Não se obedece essa lei por capricho ou desejo, ou livre de qualquer paternalis-
mo. O texto também apre-
por opinião subjetiva, mas por um dever interno, postulado pela razão. senta a enorme influência
das ideias iluministas no
pensamento kantiano. O
termo Esclarecimento refere-
Já a lei externa, por sua vez, fundamenta a legalidade, por ser a faculdade se à expressão Aufklärung,
termo alemão que identifica
do agir no mundo externo. A lei externa traz consigo também a liberdade o Iluminismo. (KANT. Imma-
nuel. Resposta à Pergunta: O
externa, pois fundamenta a ausência de obstáculos dos outros para com que é Esclarecimento? (Au-
fklärung). In: KANT, Imma-
nuel. Fundamentação da
as minhas ações. Sendo todos os homens livres tanto interna como exter- Metafísica dos Costumes
e outros Escritos. Tradução
namente, não posso ter impedimentos provindos de outrem para com as de Leopoldo Holzbach. São
Paulo: Martin Claret, 2003. p.
minhas ações. Dessa ideia de lei como condição para a liberdade surge o 115-122.)
Para Kant, são três os elementos que compõem o Direito. Primeiro, o Di-
reito baseia-se nas relações externas, nas relações de uma pessoa com outra,
de forma que ambas influenciam-se reciprocamente. Segundo, o Direito não
se relaciona ao desejo do outro, que condicionaria a necessidade à relação,
mas apenas ao arbítrio. E, por fim, como terceiro elemento, essa relação re-
cíproca entre os arbítrios deve ocorrer de tal forma que a ação de um não
interfira na liberdade do outro, segundo uma lei universal.
Por fim, o terceiro elemento identifica que a minha ação não pode nunca
interferir na liberdade do outro. É o conflito entre coerção e arbítrio. Porém,
como os indivíduos obedecem a leis universais, que eles mesmo formularam
segundo princípios universais, não são eles coagidos a obedecer, mas sim
a exercer sua liberdade, sua autonomia. Na moral minha ação não é limita-
da pelo outro, porque a exerço segundo a minha razão de agir. No Direito,
mesmo a minha ação é limitada pela liberdade do outro. Certamente, tal
como já demonstrado no conceito kantiano de Direito, essa restrição está
inserida na liberdade e autonomia da vontade, pois o Direito, mais do que
coagir alguém a fazer ou deixar de fazer algo, impede o outro de interferir na
minha liberdade.
O Estado
Assim como para os predecessores, Kant entende o Estado como um contra-
to, um pacto entre os indivíduos. O Estado é o ente público que não é um patri-
mônio de ninguém, mas de todos, por isso tem em vista as questões universais.
Por fim, Kant traz também o conceito para injustiça, que seria: “[...] comete
uma injustiça contra mim aquele que me perturba nesse estado porque o
impedimento (a oposição) que me suscita não pode subsistir com a liberda-
de de todos, segundo leis gerais”. Dessa forma, a Justiça aconteceria com a
retirada desses impedimentos contra a liberdade do outro. A ordem jurídica
de Kant é uma ordem que se baseia na proteção à liberdade, tanto interna
como externa, e é nela que deve ser concebido o dever-ser (Sollen). Sendo
assim, retirar a oposição à liberdade é proteger e exercer a liberdade.
Kant divide o sistema jurídico em direito privado e direito público, sendo que
o primeiro contempla ainda direitos como os pessoais e os reais, e o segundo
trazendo o direito estatal, o direito das gentes e o direito cosmopolita.
Esse estudo, portanto, não é um estudo que visa tratar de filantropia entre
os homens de nações diferentes, mas algo solidamente constituído e consa-
grado no plano dos direitos.
“Fala-se aqui, como nos artigos anteriores, não de filantropia, mas de ser
tratado com hostilidade em virtude da sua vinda ao território de outro”.
Isso parece constituir uma necessidade natural, ou, ainda, uma decorrência
natural de todo o processo civilizatório da razão. Não se poderiam esperar
outros reflexos do evolver racional. E nisso há grande operosidade da natureza,
imperiosa e autossuficiente na condução de seus processos evolutivos, citada
por Kant como a grande artífice do processo de aproximação dos homens
entre si. É a astúcia da natureza que faz com que do ódio surja o amor, assim
como da guerra surja a paz.
O que subministra essa garantia é nada menos que a grande artista, a natureza
(natura daedala rerum), de cujo curso mecânico transparece com evidência uma
finalidade: através da discórdia dos homens, fazer surgir a harmonia, mesmo contra
sua vontade.
o infinito, então a paz perpétua, que sem segue aos até agora falsamente chamados
tratados de paz (na realidade, armistícios), não é uma ideia vazia, mas uma tarefa que,
pouco a pouco resolvida, se aproxima constantemente do seu fim (porque é de se
esperar que os tempos em que se produzem iguais progressos se tornem cada vez
mais curtos).
Atividades de aplicação
1. A partir da postura crítica de Kant para com a metafísica, ele revisa a me-
tafísica clássica, concebendo a impossibilidade de se alcançar as causas
das causas, e ideias como Deus, alma. Analise a questão comparando
com a visão dos filósofos medievais, já discutidos no capítulo 6.
Gabarito
1. Os medievais, em especial Agostinho e Tomás de Aquino, concebiam a
metafísica como essência do Direito, uma vez que elas emanavam da
vontade divina. Esses filósofos faziam o universal decorrer do pensa-
mento teológico, enquanto que Kant postula o universal e a metafísica
em questões do conhecimento, nas ideias inatas a partir da razão pura
humana.
Referências
BITTAR, Eduardo C. B. Curso de Filosofia Política. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2008.
(Rev., aument. e modif. pelo autor).
KANT, Immanuel. Doutrina do Direito. Tradução de: BINI, Edson. São Paulo: Ícone,
1993.
_____. Crítica da Razão Pura. Tradução de: ROHDEN, Valerio; MOOSBURGER, Udo
Baldur. São Paulo: Nova Cultural, 1996.
_____. La Metafisica dei Costumi. Tradução de: VIDARI, Giovanni. Roma-Bari: La-
terza, 2004.
234 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A.,
mais informações www.iesde.com.br
Liberdade interna e externa em Kant
MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Kant e a crítica da razão: moral e Direito. In:
_____. Curso de Filosofia Política: do nascimento da Filosofia a Kant. São Paulo:
Atlas, 2008.
O sistema hegeliano
O idealismo alemão, que se inicia com Kant, tem em Hegel sua face mais
desenvolvida, pois em seu sistema filosófico de fato a Ideia (Idee) ocupa
lugar central em todas as dialéticas, conforme anuncia logo no início da
última seção da sua Ciência da Lógica, obra em que apresenta o desenvolvi-
mento lógico e ontológico de sua filosofia: “a Ideia é o conceito adequado,
o verdadeiro objetivo, ou seja, o verdadeiro como tal. Se algo tem verda-
de, tem por meio sua Ideia, ou seja, algo tem verdade apenas enquanto é
Ideia”. (HEGEL, 1968, p. 471) Para Hegel, a Ideia não é apenas uma concep-
ção teleológica, mas aquilo que dá validade ao conhecimento racional. A
Ideia está em toda a sua filosofia, de forma que inclusive as questões éticas,
políticas e jurídicas, objeto da sua obra Linhas Fundamentais da Filosofia do
Direito, tem como objetivo a realização da Ideia de Liberdade, aquilo que
ele denomina como Eticidade (Sittlichkeit).
A Fenomenologia do Espírito
A Fenomenologia do Espírito é considerada a primeira grande obra hege-
liana, escrita após seus vários trabalhos de juventude. Trata-se de uma obra
enigmática, pois trabalha inúmeras temáticas simultaneamente, o que a
torna uma leitura ainda mais complexa. A proposta da obra é apresentada
logo no prefácio: “A tarefa de conduzir o indivíduo, desde seu estado inculto
até o saber, devia ser entendida em seu sentido universal, e tinha de consi-
derar o indivíduo universal, o espírito consciente-de-si em sua manifesta-
1
“Die Aufgabe, das Indi- ção cultural”.1 E logo a seguir complementa a sentença explicando o porquê
viduum von seinem unge-
bildeten Standpunkte aus
zum Wissen zu fuhren, war
do indivíduo universal: “O individuo particular é o espírito incompleto, uma
in ihrem allgemeinen Sinn
zu fassen und das allgeme-
figura concreta: uma só determinidade predomina em todo o seu ser-aí, en-
nine Individuum, der Sel-
bstbewußte Geist, in seiner
quanto outras determinidades só ocorrem com seus traços rasurados”.2 Ou
Bildung zu betrachten” (FE,
Prefácio, HW 3, p. 31-32.)
seja, Hegel pretende conduzir o indivíduo desde seu estágio mais primitivo,
aquele do estado inculto, até o saber absoluto. Não se trata de formar apenas
2
“Das besondere Indivi-
duum ist der unvollstän-
o indivíduo singular, e sim o universal, porque o objetivo é formar a huma-
dige Geist, eine konkrete
Gestalt, in deren ganzem
nidade em geral. Isso se torna mais claro quando observamos a estrutura da
Dasein eine Bestimmtheit
herrschend ist und worin Fenomenologia, que é dividida em duas partes: a primeira, que trata da “Ciên-
die anderen nur in verwis-
chten Zugen vorhanden cia da experiência da consciência”, ou seja, trabalha o indivíduo singular em
sind” (FE, Prefácio, HW 3,
p. 31-32.) suas várias dimensões (intelectuais, existenciais, morais, religiosas, jurídicas,
entre outras); e uma segunda, intitulada de “Espírito”, que representa a passa-
gem do indivíduo singular ao indivíduo universal, da consciência de si singu-
lar à consciência de si universal. No “Espírito” não se trabalha este ou aquele
indivíduo, mas a universalidade representada na figura da comunidade e
manifestada por meio dos costumes e da história. Neste trabalho, nos dedi-
caremos a analisar algumas passagens das experiências da consciência, pois
o indivíduo universal poderá ser trabalhado também na Filosofia do Direito.
que possam ajudá-la na tarefa de entender o mundo. Para isso passa pelas
experiências da certeza sensível, da percepção e do entendimento. Na certe-
za sensível ela confirma a existência de um objeto, afirma que “isto é”, ou “isto
existe”; na percepção atribui qualidades a esse objeto, “é verde”, “é salgado”;
e no entendimento busca conceituar o objeto, tenta entendê-lo por meio de
leis universais. Porém, mesmo esta última passagem não completa o seu ob-
jetivo, pois a consciência teórica cai na incerteza quanto à sua possibilidade
de conhecer o objeto. Tal incerteza conduz a consciência para o momento
seguinte: a consciência de si.
ser consciência de si, o indivíduo precisa ser dono de sua própria existência,
num trabalho de autonomia existencial. A liberdade, antes de ser política, é
algo interior ao indivíduo, se dá no plano da consciência. O plano que segue é
o do trabalho, o qual a consciência serva deverá produzir para servir o senhor.
As linhas fundamentais
da Filosofia do Direito
Como já mencionado no início do trabalho, a Filosofia do Direito ocupa
um estágio intermediário no desenvolvimento do espírito. É o espírito ob-
jetivo, que sucede a mediação do espírito subjetivo e antecede o espírito
absoluto. Ademais, entre as divisões já comentadas na Filosofia do Direito
(Direito Político Interno, Direito Político Externo e História Universal), nos ate-
remos ao estudo da primeira, que contempla o Direito Abstrato, a Moralida-
de e a Eticidade. Como se verá, ainda, a passagem entre esses três momentos
representa também o desenvolvimento do indivíduo por meio da vontade
A família
A família é universalidade natural, imediata, pois o indivíduo nasce na fa-
mília, e não por um ato de vontade. A família se forma pelo reconhecimento
recíproco entre duas pessoas que se unem numa só: o matrimônio, que é
uma relação ética.
Como “pessoas”, as famílias guardam entre si uma relação de igualdade. Entretanto, essa
igualdade externa como “pessoa” não é a expressão de uma igualdade interna onde, em
princípio, dever-se-ia encontrar a concretização dos princípios universais da liberdade.
[...] refere-se à desigualdade das mulheres em relação aos homens, formulação que
descarta completamente o direito das mulheres. A segunda concerne à punição que é
considerada como um meio para “despertar as crianças para o universal”. (ROSENFIELD,
1983, p. 147-8)
A sociedade civil
A sociedade civil, introduzida por Hegel com o termo burgerliche Gesells-
chaft, pode ser traduzida também por sociedade civil-burguesa. Essa infor-
mação é importante para a contextualização da sociedade civil como fenô-
meno histórico ligado ao mundo moderno, à ascensão do cidadão burguês.
Os gregos não conheciam a sociedade civil porque não conseguiam ver o
indivíduo como capaz de ser apenas singular, sem estar necessariamente en-
volvido na universalidade do Estado. A explosão econômica do mundo mo-
derno, com suas necessidades de grandes navegações e comércios distan-
tes, bem como o impulso da tecnologia e da industrialização, são as causas
que conduzem à criação da sociedade civil. É essencialmente burguesa,
porque antes dos burgueses não havia a possibilidade de o indivíduo viver
no Estado sem ser para o Estado. Não por outro motivo Hegel analisa nessa
seção vários pensadores da Economia Política, como Ricardo e Smith.
Por fim, uma nação não pode viver com excessivas desigualdades sociais,
porque isso resultaria em algum momento em problemas a toda a coletivi-
dade. Com isso cumpre-se a passagem da sociedade civil ao Estado, o ente
que reconcilia o singular com o universal.
O Estado
Embora seja o último a momento da Eticidade, isso não significa que o
Estado seja o último a ser posto, nem historicamente nem logicamente. O
Estado já existe como Ideia desde o Direito Abstrato, o que se tem aqui é
apenas sua efetivação no mundo. O Estado não é criado juridicamente, não
é um ato de vontade dos cidadãos que estabelecem um contrato social, pois
isso seria aceitar que o Estado é uma associação atomística, em que cada
indivíduo decide participar do Estado por vontade, e também por vontade 13
“Der Staat ist die Wirkli-
chkeit der sittlichen Idee,
poderia decidir sair dele. O Estado é o fim absoluto do mundo ético, é para - der sittliche Geist, als der
offenbare, sich selbst deu-
ele que convergem todos os momentos, o que significa que sua ideia é que tliche, substantielle inso-
fern er es weiß, vollfuhrt. An
movimenta todas essas passagens. der Sitte hat er seine unmit-
telbare, und an dem Selbst-
bewußtsein des einzelnen,
O Estado é a realidade efetiva da ideia ética, – o espírito ético enquanto vontade dem Wissen und Tätigkeit
substancial, manifesta, clara a si, que se pensa e se sabe, e realiza plenamente o que ele desselben, seine vermittelte
Existenz, sowie dieses durch
sabe e na medida em que o sabe. No costume o Estado tem ela a sua existência imediata die Gesinnung in ihm, als
e na autoconsciência do singular, no saber e na atividade do mesmo, a sua existência seinem Wesen, Zweck und
mediada, assim como essa autoconsciência do singular, através da [sua] disposição de Produkte seiner Tätigkeit,
seine substantielle Freiheit
ânimo, tem no Estado, como sua essência, fim e produto da sua atividade, a sua liberdade hat”. (FD. O Estado, § 257,
substancial.13 HW 7, p. 398.)
Isso significa que a Constituição sempre será justa, porque se ela não re-
flete a vontade dos indivíduos, ela deve ser modificada por eles.
Por fim, é importante salientar que a Eticidade não elimina o Direito Abs-
trato e a Moralidade, pois esses dois momentos precedentes permanecem
presentes no movimento dialético de Hegel. A Eticidade contém o mundo
O cidadão de hoje torna-se cada vez mais apático, não se envolve nas
grandes questões políticas, sociais, econômicas, jurídicas, não entende o
que se passa consigo mesmo nem com o seu povo. Esse cidadão não é livre,
não é consciente de si, e portanto nem seu direito nem sua sociedade são
livres. Em 1821 Hegel já alertara que o Direito por si só não é capaz de au-
xiliar a sociedade, antes é necessário preparar o povo. O indivíduo deve se
formar e tomar consciência de si. Criminalidade, corrupção, apatia política,
desigualdades sociais, são todos problemas que escondem outros maiores:
os indivíduos não se reconhecem nas leis, nem entendem seu papel como
operadores históricos e sociais. O indivíduo contemporâneo perde cada vez
mais o poder de dizer não e mudar as instituições, aprimorá-las.
Atividades de aplicação
1. A Fenomenologia tem como objetivo conduzir o indivíduo desde o
saber inculto até o saber absoluto, o filosófico, devendo para isso o
mesmo superar vários momentos, experiências da consciência, como
a dialética do reconhecimento e a dialética entre senhor e servo. Esses
movimentos são impulsionados pelo desejo. Explique como você en-
tendeu ser o desejo para Hegel.
3. Na Eticidade o indivíduo se vê nas leis, nos costumes, por isso para ele
é um dever ético obedecer a Constituição. Relacione isso à contempo-
raneidade: os indivíduos hoje se veem na Constituição?
Gabarito
1. O desejo é uma impulsão interna que movimenta a consciência a sair
de si mesma e ir buscar realizar suas necessidades. O desejo é algo
natural ao indivíduo, por isso não se satisfaz com o consumo desse
alimento ou dessa situação específica.
Referências
BOURGEOIS, Bernard. Os Atos do Espírito. Tradução de: NEVES, Paulo. São Leo-
poldo: Editora UNISINOS, 2004.
______. Grundlinien der Philosophie des Rechts oder Naturrecht und Sta-
atswissenschaft im Grundrisse. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1982 (Werke
in zwanzig Bänden 7) [mit Hegels eigenhändigen Notizen und den mündlichen
Zusätzen], auf der Grundlage der Werke von 1832-1845 neu edierte Ausgabe Re-
daktion Eva Moldenhauer und Karl Markus Michel.
Introdução
Neste momento trataremos de duas correntes de pensamento diversas,
mas de grande importância para a constituição da racionalidade contem-
porânea e para a construção dos sistemas filosóficos jurídicos. Essas corren-
tes são o marxismo e a corrente filosófica existencialista que, ao indagar o
problema da existência humana e dos objetivos das ciências representarem
uma importante influência na busca pela retomada de um Direito que esteja
em conformidade aos anseios da coletividade ou do indivíduo.
Karl Marx
O filósofo alemão Karl Marx é identificado como pensador do materialis-
mo dialético, ou materialismo histórico. O materialismo dialético é um dos
momentos de maior repercussão na história da Filosofia, pois implica o en-
tendimento do mundo e da sociedade como processo de constante trans-
formação. O mundo hoje é diferente daquele de ontem e também do de
amanhã, e quem executa a transformação é a própria sociedade. O mundo
está ligado à história, e por isso a Filosofia pode transformar a realidade e
não apenas estudá-la.
[...] ruptura das estruturas de poder, para a instauração provisória do governo proletário
e o desmonte paulatino e sucessivo do Estado, com vista na constituição do comunismo
como forma unitária, de iniciativa da sociedade civil, imposta de cima para baixo pela
superestrutura estatal (com seus aparatos de força, coação, leis, políticas, burocracia...), de
condução dos negócios de interesse coletivo. (BITTAR, 2008, p. 229)
S0ren Kierkegaard
em sua opinião somente
conservava de cristã o
nome. Kierkegaard fale-
ceu em 4 de novembro de
1855. (COPLESTON, Frederi-
ck. Historia de la Filosofía:
7: de Fichte a Nietzsche. 4.
O filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard5 é considerado um dos pre-
ed. Traducción de: DOMÉ-
NECH, Ana. Barcelona: Ariel, cursores, ou até mesmo o primeiro dos filósofos da corrente existencialista.
1999. p. 263-266.)
Seu pensamento centra-se na valorização da individualidade, a qual, para
262 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A.,
mais informações www.iesde.com.br
O Direito e os dilemas da existência humana: de Marx aos filósofos existencialistas
Em Além do Bem e do Mal, Nietzsche diz ter descoberto dois tipos primá-
rios de moral, “a dos chefes e a dos escravos”, mescladas em todas as civiliza-
ções superiores, elementos de ambas podem se encontrar inclusive em um
mesmo homem. A moral dos chefes é a moral aristocrática, “bom” e “mal” são
equivalentes de “nobre” e “plebeu”. Já na moral dos escravos a norma é o que
for benéfico à sociedade do débil e impotente. Valorizam-se qualidades como
simpatia, bondade e humildade, os indivíduos fortes e independentes são
considerados perigosos. As valorações morais dessa segunda concepção são
expressões das necessidades do “rebanho”. (COPLESTON, 1996, p. 263, p. 316)
Edmund Husserl
como único guia da vida
individual e social do
homem, único conheci-
mento, moral e religião
Edmund Husserl14 é o fundador do movimento fenomenológico, uma pro- possível. Suas principais
teses são: a ciência é o
posta de refundação do critério científico através do retorno às próprias coisas único conhecimento pos-
sível e o seu método é o
único válido; o método
“indo além da verbosidade dos filósofos e de seus sistemas construídos no ar” da ciência é puramente
descritivo; o método da
(REALE, 1991, p. 544). Trata-se de uma verdadeira crítica às concepções positivis- ciência deve ser estendi-
do a todos os campos de
tas15 da ciência e uma busca por dar à Filosofia o caráter rigoroso de uma ciên- indagação da atividade
humana.(ABBAGNANO,
cia. Nesse escopo, precisa-se partir de dados indubitáveis para, com base neles, Nicola. Dicionário de Fi-
losofia. São Paulo: Martins
Fontes, 2005. p. 776-777.)
A crise das ciências não é sua crise de cientificidade, mas sim a crise de
seu significado para a existência humana. Husserl critica a pretensão da ciên-
cia positivista e naturalista de serem a única verdade válida e a ideia ligada
a ela de que o mundo descrito pelas ciências seria a verdadeira realidade.
Essa concepção exclui aqueles problemas que são os mais candentes para o
homem, que, em nossos tempos, atormentado, sente-se à mercê do destino,
sofre com os problemas do sentido e do não sentido da existência humana
em seu conjunto. Nessa crise categorial, substitui-se as categorias científicas
pelo concreto, o pré-categorial, o mundo-da-vida18. O mundo da vida é o 18
“Se trata do reino de
uma subjetividade com-
âmbito das originárias “formações do sentido” humanas, é o conjunto de su- pletamente circunscrita
em si mesma, que é no
perações realizadas antes do nascimento da ciência, âmbito e conjunto que seu modo, que atua em
qualquer experiência, em
as ciências adotam delas. Isso significa que o mundo, para Husserl, é um ser qualquer pensamento,
e que por isso é em toda
já dado, mas que não existiria para o ser humano se ele não o vivificasse na parte inevitavelmente
presente e que, todavia,
sua subjetividade. Por isso, a superação da atitude natural consiste precisa- não tem sido mais consi-
derada não tem mais sido
mente nisto: o ser humano deixa de acreditar no mundo exterior como algo apreendida, nem compre-
endida”; “Si trata del regno
dado e passa a indagar como as validades são dadas à subjetividade. di una soggettività com-
pletamente circoscrita in
se stessa, essente nel suo
A coisa percebida não é só ela mesma, real e propriamente, porque a sub- modo, che funge in qual-
siasi esperienza, in quali-
jetividade lhe acrescenta algo mais, que é anexado ao objeto. Experienciar im- sasi pensiero, in qualsiasi
vita, e che quindi è ovun-
plica perceber, e este, um projetar. Por isso o mundo não é dado “como haver”, que inevitabilmente pre-
sente e che tuttavia non è
mai stata considerata, non
mas sim através de uma operação subjetiva da consciência que percebe. Daí è mai stata afferrata né
compressa”. (HUSSERL. La
porque tudo no mundo é subjetivo-relativo, visto que se relativiza segundo o Crisi delle Scienze Euro-
pee e la Fenomenologia
sentido que é elaborado ou dado pela subjetividade. (HUSSERL, 2002, p. 172) Trascedentale: per un
sapere umanistico. Tradu-
zione di: FILIPPINI, Enrico.
A simples experiência, ou a experiência direta das coisas, não é uma ex- Milano: Net, 2002. p. 141,
142. [tradução livre].)
periência da objetividade, mas sim uma experiência subjetivo-relativa do
mundo-da-vida. O mundo objetivo não é experienciável, pois o experienciá-
vel é somente o elemento subjetivo. É o ser humano traduzido pelo eu ou
conscientizado. O método que viabiliza a transformação de atitude frente ao
mundo (passando de ingênuo a reflexivo) é o método da “epoché fenomeno-
lógica”, o qual consiste em uma suspensão do conceito em análise, libertando
o filósofo dos vínculos mais fortes e universais com aquela coisa, e, por isso,
mais ocultos. Encontrando-se sobre o objeto estudado, portanto livre, o feno-
menólogo pode, ao ver o mundo como Fenomenologia, identificar a essência
daquilo que estuda. (HUSSERL, 2002, p. 179, p. 180)
Eu, sujeito, percebo o mundo, mas os outros sujeitos o percebem tal como eu. Isso significa
que possuo em mim a experiência do mundo e dos outros, não como uma obra da minha
atividade sintética, de certa maneira privativa, mas como de um mundo estranho, a mim,
intersubjetivo, existente para cada um, acessível a cada um. (HUSSERL, 2002)
Martin Heidegger
Martin Heidegger é provavelmente o mais famoso dos filósofos existen-
cialistas. Sua extensa obra é resultado da leitura de toda a história da Filo-
sofia, o que resultou numa profunda familiaridade com o pensamento de
mentes como Heráclito, Platão, Aristóteles, Kant e Hegel. Todo esse estudo
motivou-se a responder uma indagação fundamental, a questão metafísica
e do ser. É disso que resulta a sua filosofia do dasein, ou do ser-aí.
O que é existencialismo?
(HUISMAN, 2001, p. 8-11; 177-178)
A evolução do existencialismo
Poder-se-ia dizer que o existencialismo tem origem em Kierkegaard(seria sua
pré-história), que sua proto-história começa com grandes pensadores alemães
que, de Husserl e Nietzsche a Jaspers e Heidegger, encarnaram, e até mesmo
ilustraram, as “riquíssimas horas” do movimento, simultaneamente com Gabriel
Marcel na França, pois é em 1927 que saem ao mesmo tempo o Sein und Zeit (Ser
e Tempo) de Heidegger e o Jornal Métaphisique de Gabriel Marcel.
O vocábulo será usado pela primeira vez nos anos 30, primeiro num texto
italiano e depois sob a pena de Gabriel Marcel e de Karl Jaspers. Mas passa
mais ou menos despercebido na época.
Outros afirmam que ressurgiu um pouco mais tarde, em 1943, data da pu-
blicação de L’Être etle Néant, de Sartre, de novo sob a assinatura de Gabriel
Marcel. Nada pode sustentar tal hipótese. Não se encontra nenhum sinal do
emprego da palavra nessa data. Não: é em 28 de outubro de 1945 que Jean-
-Paul Sartre institui a certidão de nascimento e o atestado de batismo da pala-
vra existencialismo, ao fazer sua célebre conferência: “O existencialismo é um
humanismo”.
Notemos que fora também em outubro de 1945 que ele publicara o pri-
meiro fascículo da revista Les Temps Modernes com “a equipe” que se trans-
formará progressamente em “escola” compreendendo Albert Camus, Maurice
Merleau-Ponty, Simone de Beauvoir, Raymond Aron e alguns autores menos
célebres. Ela se desagregará na sequência: mas o existencialismo invade, nos
anos 1945 a 1960, a vida política (criação a partir de 1947 do partido político
de Sartre e David Rousset: a R.D.R.), a vida literária, o teatro, o cinema, e, evi-
dentemente, a Filosofia.
Conclusão
Nascido em meados do século XIX na Dinamarca, com Kierkegaard, o exis-
tencialismo derramou-se sobre a Alemanha de 1890 a 1940, com Nietzsche,
Husserl, Jaspers e Heidegger, antes de se instalar na França de 1930 a 1960 e,
em menor escala, de 1960 a 1990. Definitivamente, o movimento tem mais
de um século de existência, e seu dirigente, Jean-Paul Sartre, dominou a cena
filosófica europeia durante perto de 50 anos. La Nausée permanece um dos
Best-sellers dos livros de bolso: rivaliza com La Peste de Camus, La Condition
Humaine de Malraux e Vol de nuit de Saint-Exupéry. No plano da história das
ideias, o existencialismo é portanto um grande movimento intelectual, com
lugar ao lado do marxismo, do estruturalismo e da psicanálise.
Atividades de aplicação
1. A partir da visão de Marx sobre a sociedade, comente algumas rela-
ções da sua leitura com a realidade atual. Analise a supremacia do
poder estatal, o papel do indivíduo como ativista político, as classes
sociais etc.
Gabarito
1. Embora a sociedade tenha se modificado bastante durante as últimas
décadas, o Estado, o Direito, bem como demais instituições seguem
sendo instrumentos de poder nas mãos de alguns indivíduos. Requer-
-se uma tomada de consciência mais efetiva dos cidadãos na luta por
seus direitos, o que não significa revolução violenta, tal como ocorreu
no século XX.
Referências
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Tradução de: BOSI, Alfredo. Revi-
são e tradução dos novos textos: BENEDETTI, Ivone Castilho. São Paulo: Martins
Fontes, 2005.
ADORNO, F.; GREGORY, T.; VERRA, V. Manuale di Storia della Filosofia. Roma-Bari:
Gius Laterza & Figli Spa, 1996.
BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. 3. ed. rev, aument. e modif. pelo Autor.
São Paulo: Atlas, 2008.
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. 15. ed. Tradução de: SCHUBACK, Marica Sá Ca-
valcante. Petrópolis: Vozes, 2005. Tomo I.
_____. Nietzsche: biografia de uma tragédia. Tradução de: LUFT, Lya. São Paulo:
Geração Editorial, 2001.
Max Scheler
Em Visão Filosófica do Mundo é possível captar a forma de como Scheler
pensa e filosofa acerca das grandes questões da vida humana. Para Scheler,
o saber possui três níveis: um primeiro ainda ligado aos objetos, em que é
marcante o saber empírico das ciências positivas. Nesse nível o grande obje-
tivo é entender as leis que regem o mundo, porque entendendo essas leis 1
“Também a ‘pessoa’ es-
podemos captar seu funcionamento, prevendo-as e dominando-as. Um se- piritual do homem não
é uma coisa substancial
gundo nível é o saber filosófico, que se relaciona àquilo que Aristóteles cha- nem um ser com a forma
de um objeto. O homem
mava de filosofia primeira, portanto o entendimento ontológico do homem pode unir-se com essa
sua pessoa somente de
e do mundo. Por fim, um terceiro nível é a metafísica da salvação, momento uma forma ativa. Pois essa
pessoa é uma estrutura
em que o homem se liga ao cosmos e a Deus.1 monarquicamente orde-
nada de atos espirituais
que representa todas as
vezes uma autoconcen-
Esse entendimento é importante para se compreender como a filosofia tração única e individual
desse espírito infinito, um
de Scheler insere-se numa visão ampla que envolve a Antropologia, a Cos- e sempre mesmo, em que
está enraizada a estrutura
mologia e a Teologia, ou seja, o homem, o mundo e Deus. A ética de Scheler, essencial do mundo ob-
jetivo. Por analogia, en-
representada em sua cosmologia dos valores, também situa-se nessa linha tretanto, o homem, como
ser dotado de instinto e
de pensamento. vida, está também enrai-
zado no impulso divino
da ‘natureza’, em Deus.
Max Scheler foi grande adversário da ética kantiana, que teria formula- Nós experienciamos essa
unidade de raiz de todos
do apenas uma ética do ressentimento, em que se obedece a lei por dever os homens, mesmo de
tudo que é vivo, no im-
apenas, mas que nada justificaria tal formulação. A arbitrariedade de obrigar pulso divino dos grandes
movimentos de simpatia,
a obediência causa ressentimento e bloqueia o prazer e a alegria da vida. Por de amor, e em todas as
formas de sentir-se numa
só unidade com o cosmos.
tal motivo, Scheler muda o conceito fundamental da ética do dever para o Esse é o caminho ‘dioni-
síaco’ a Deus”. (SCHELER,
valor. A Ética trabalha com bens, mas os bens são bens justamente pelos va- Max. Visão Filosófica do
Mundo. p. 17.)
Essa concepção de valores seria a sua Ética, pois como os valores não são
essências criadas teoricamente pelo homem, mas intuídas emocionalmente
de um cosmos de valores, o qual brotaria do íntimo da relação do homem
com o próximo, com a natureza, e com Deus, deveria ser o núcleo das rela-
ções em sociedade, inclusive das questões envolvendo a Justiça. Para Scheler,
a Justiça deve refletir sobre essa hierarquia de valores, bem como pelos cri-
térios dos graus, pois os problemas jurídicos são consequências dessas de-
ficiências sociais envolvendo os valores. Portanto, o relativismo de valores é
perigoso para a aplicação do Direito.
Carl Schmitt
O conturbado século XX, cenário de duas Guerras Mundiais e outros inú-
meros conflitos bélicos em todo o mundo, que colocaram em xeque as gran-
des ideologias que perduraram na história da humanidade, resultou em um
complexo espaço de debates acerca das questões jurídicas, sociais, políticas,
econômicas. O período entre o final da Primeira Guerra e o início da Segunda
Guerra recebeu preocupação, sobretudo, acerca da condição humana. Um
dos autores que trabalhou essas indagações foi Carl Schmitt.
Desse modo, Schmitt critica Kelsen, afirmando que a lei não se justifica por
si mesma, nem o Direito possui fim em si mesmo. O jurídico não emana de si
mesmo, mas da ordem política, que “lhe antecede, lógica e cronologicamente”
(BITTAR, 2008, p. 239). Schmitt também demonstra a limitação das formula-
ções kelsenianas argumentando que muitos casos os quais o Direito precisa se
manifestar não estão prescritos em leis e códigos, mas que ainda assim preci-
sam de uma resolução, que vem por meio da decisão política ou institucional.
“[...] o Direito é fruto das instituições existentes e vigorantes, e não o contrário.
A ordem concreta existente nas condições históricas de um povo é o que de-
termina a formação do Direito, e não o contrário”. (BITTAR, 2008, p. 240)
Hans Kelsen
Tal como Carl Schmitt, Hans Kelsen também não se preocupou com a
questão de se a lei seria justa ou injusta. Para esse jusfilósofo alemão, são
distintas a justiça, a validade e a eficácia do Direito. Kelsen é responsável pelo
positivismo jurídico, mas não um positivismo em sentido ideológico, mas
apenas naquele em que o autor busca estudar o Direito como uma ciência
jurídica, autônoma em relação às demais ciências.
Kelsen [...] afirma que o que constitui o Direito é a sua validade jurídica. E acrescenta que
a norma jurídica, diferentemente de outras normas, se qualifica por sua coatividade, mas
não sustenta de modo algum que o Direito válido seja também o justo. Para Kelsen, o
problema da Justiça é problema ético, enquanto o problema jurídico é o problema da
validade das normas, se a autoridade de que emana esta ou aquela norma tinha ou não o
poder legítimo para fazê-lo; (REALE, 1991, p. 909-910)
Entretanto, precisamente, o nexo entre o ilícito e a sanção não é nexo causal entre
fenômenos naturais, que o pensamento simplesmente constata, mas muito mais uma
imputação ou atribuição – realizada pela vontade de alguém – em consequência a um
fato que, em si mesmo, não é sua causa, mas sim condição – e que o é por uma vontade o
colocou como tal. (REALE, 1991, p. 909-911)
Não obstante, para que esse juiz seja obrigado a aplicar a sanção, exige-
-se do ordenamento jurídico uma norma anterior, que é aquela que sanciona
caso o juiz não aplique as outras sanções a quem é devido. O problema é
que nessa lógica chegaríamos à necessidade de haver sempre uma norma
anterior, que sancione quem não aplicasse as posteriores.
Contudo, não se pode retroceder ao infinito. Logo, deve haver uma norma
que dê validade a todas as outras normas jurídicas, a qual se situa na base de
todo o ordenamento jurídico. Essa primeira norma Kelsen chamou de “norma
fundamental”. Essa primeira norma não é posta, mas pressuposta. Como cada
norma procede conforme determinação de uma norma anterior, sempre aca-
baríamos retrocedendo à Constituição, a qual por sua vez decorre de Consti-
tuição anterior etc. Esse processo retornaria na história, até que se encontrasse
uma primeira vontade da qual emanaram as demais normas. Essa vontade
pode ser tanto uma medida despóstica como uma decisão por assembleia. É
esse sistema hierarquizado de normas da qual depende a validade do Direito.
A norma fundamental pode muito bem ser referida como a “fonte do Di-
reito”, pois é ela que dá validade a todo o ordenamento jurídico, antes dela
não há norma. A necessidade de uma norma depende de outra norma para
existir, culminando numa hierarquia em forma de pirâmide, está conforme
também ao seu princípio de que a ciência jurídica deve ser separada das
demais ciências. Por isso a norma fundamental deve ser uma norma, algo
que proponha autonomia ao Direito. Esse caráter confere soberania ao orde-
namento jurídico.
Esse tópico é importante, pois é aqui que Kelsen se diferencia de Carl Sch-
mitt. Como a soberania provém de um respeito ao ordenamento jurídico de
outro Estado, isso significa que a perspectiva positivista-normativista implica
ela mesma em soberania interna e externa, e não um poder político. É o sis-
tema jurídico que implica na Política em reconhecer a validade das normas, e
não a decisão de algum indivíduo ou instituição, pois essas decisões já são de-
corrências do sistema normativo. Kelsen afirma mais uma vez a necessidade
de uma teoria pura do Direito, desprovida de análises axiológicas.
John Rawls
John Rawls foi um contratualista do século XX que formulou uma Teoria
da Justiça, que colocava a Justiça como equidade, como um dos pilares da
construção de uma sociedade democrática para cidadãos que fossem livres
e iguais. John Rawls não somente buscou caracterizar o que é a Justiça, ou
qual a sua finalidade, mas também procurou explicar todas as etapas que
envolvem a formulação de uma concepção de Justiça, para que esta poste-
riormente pudesse nortear toda construção das estruturas componentes de
uma sociedade. Portanto, sua teoria procura explicar desde as questões mais
primordiais, como momento que precede a própria criação de uma estrutura
Habermas
2
Nascido em 18 de junho Jürgen Habermas2, considerado um dos maiores expoentes do pensamento
de 1929 em Dusseldorf.
Estudou Filosofia, História, filosófico na contemporaneidade, direciona seu pensamento à reflexão da me-
Psicologia, Economia e
Literatura alemã nas uni- todologia hermenêutica das ciências humanas, o espírito das ciências (Geis-
versidades de Göttingen,
Zurique e Bonn entre 1949 teswissenschaften). O pensador alemão procura justificar a primazia de uma ciên-
e 1954. Doutorou-se em
Bonn no ano de 1954 com cia social crítica contra a hegemonia metodológica na discussão sobre as ciências
a tese O Aboluto na História
– um estudo sobre Filosofia (INGRAM, 1987, p. 21). Para sustentar essa base metodológica, o pensador pre-
das Idades do Mundo de
Schelling. É considerado ocupa-se em criar um fundamento ético, considerando-o essencial para que as
um dos pensadores da se-
gunda geração da Escola mencionadas ciências sejam invocadas como auxiliares à administração racional
de Frankfurt, tendo por
influências os pensado- humana.
res da primeira geração
como Adorno, Horkheimer
e Marcuse. (HABERMAS, Sua principal obra é a Teoria da Ação Comunicativa, onde defende a cons-
Jurgen. Sociologia. Tradu-
ção de: FREITAG, Barbara; trução da sociedade através de consensos obtidos através do discurso. Enten-
ROUANET, Sérgio Paulo.
São Paulo: Ática, 1993. p. de que com a diminuição do poder das autoridades religiosas e tradicionais no
9-10.
presente século, estar-se-ia entrando em um perfeito ambiente para o desen-
volvimento desse espaço de discussões isento de coerções e de entidades que
personalizassem a interpretação vigente dos fenômenos. O pensador consi-
dera que há agir comunicativo quando: “os planos de ações dos atores impli-
cados não se coordenam através de um cálculo egocêntrico de resultados,
senão mediante atos de entendimento” (HABERMAS, 1999, p. 367), quando
as partes envolvidas no discurso estão abertas a através do discurso firmarem
um entendimento.
Nesse sentido, uma teoria social voltada aos potenciais de reflexão e crí-
tica imersos nas interações linguísticas deve assumir a tarefa de uma comu-
nicação isenta de coerções em diversos âmbitos da vida social, bem como
analisar a natureza de seus principais entraves. Fala-se assim na colonização
do mundo-da-vida, o próprio solo da ação comunicativa, pelo sistema, en-
tendendo-se essa categoria, a Lebenswelt, no sentido husserliano do termo.
Essa invasão é protagonizada pela monetarização e burocratização da vida
social, onde as relações interpessoais passam a ser coordenadas não pelo en-
tendimento recíproco dos participantes, mas por meios padronizantes e lin-
guisticamente empobrecidos do dinheiro e do controle burocrático; vários
são os resultados dessa força atuante como a perda de sentido cultural e a ‘‘a
nomia social’, a perda da validade das normas sociais.
Miguel Reale
O jurista e filósofo brasileiro Miguel Reale é considerado um dos grandes
nomes do pensamento jurídico contemporâneo; com sua teoria tridimen-
sional do Direito o pensador marca a superação do positivismo jurídico na
esfera nacional. Sua produção científica e filosófica repercutiu no Brasil, na
América Latina e na Europa.
Manifesta que essa última forma de Justiça já havia sido antecipada pelos
pitagóricos e estudada por Aristóteles, São Tomás e os mestres que os su-
cederam. A Justiça geral representaria a superação e complementação da
Justiça comutativa e distributiva, revelando o mais alto grau de atualização
das virtudes da pessoa. (REALE, 1998, p. 311)
O bem comum é entendido como objeto mais alto da virtude Justiça, re-
presentado por uma ordem proporcional de bens em sociedade. Assim, o
Direito não tem a finalidade exclusiva de realizar a coexistência das liberda-
des individuais, mas também alcançar a “coexistência e a harmonia do bem
de cada um com o bem de todos”. (REALE, 1998, p. 311)
[...]
Eis aí, numa percepção sumária e elementar, os três fios com que é tecido o
discurso da validade do Direito, em termos de vigência ou de obrigatoriedade
formal dos preceitos jurídicos; de eficácia ou da efetiva correspondência social
ao seu conteúdo; e de fundamento, ou dos valores capazes de legitimá-los
numa sociedade de homens livres.
6. Digo que houve a tentação dos descaminhos por duas razões funda-
mentais. Em primeiro lugar, houve juristas que, desenganados das soluções
de ordem intelectiva, recorreram às vias da intuição emocional, esperando
captar, num ato de identificação afetiva, os jus vivens, descendo até às fontes
primordiais da juridicidade. Em alguns autores, a predileção pelo Direito es-
pontâneo, ainda não ordenado em fórmulas intelectuais, significou o aban-
dono do patrimônio, mais que bimilenar, de objetividade e de prudência que
é o apanágio do Direito, como a mais antiga e madura das ciências sociais3. Tal 3
Sobre as várias formas
de intuicionismo jurídico,
sedução pelo Direito em estado nascente, na imediatidade incerta dos dese- v. Miguel Reale, Funda-
mentos do Direito, 2. ed.
jos e dos impulsos, significava como que uma forma de simbolismo jurídico, São Paulo, 1972, p. 23 e
seguintes.
contraposto ao parnasianismo de alguns corifeus da Escola de Exegese, o que
não deve surpreender, pois a história das ideias jurídicas, como expressão de
uma das dimensões essenciais da vida humana, obedece ao ritmo da história
da arte e da literatura, tendo havido juristas românticos e realistas, simbolistas
e neoclássicos4. 4
Como exemplos de pes-
quisas sob esse ângulo,
v. Julien Bonecase, Hu-
Em linha paralela, outra encruzilhada se abriu àqueles que, deslumbrados manisme, Classicisme, Ro-
mantisme dans La Vie Du
Droit, Paris, 1920, e Science
com os progressos das ciências naturais, conceberam o plano de chegar à efe- du Droit et Romantisme,
Paris, 1928; Louis Bourgés,
tividade do Direito através do método indutivo, nos moldes do que ocorria na Le Romantisme Juridique,
Paris, 1922.
esfera das investigações físicas e biológicas. No fundo, a questão se resumia no
programa já enunciado por Augusto Comte ao vaticinar a substituição da “me-
tafísica dos fazedores de leis” pela “ciência positiva dos descobridores de leis”.
Atividades de aplicação
1. Comente algumas diferenças e semelhanças entre os pensamentos de
Carl Schmitt e Hans Kelsen, partindo do pressuposto que um privilegia
o político e outro o jurídico.
2. Reflita sobre a importância das questões trazidas por Max Scheler para
a atualidade.
3. O autor traz a ideia de que, para que haja um acordo justo, é necessá-
rio que as partes se valham do “ véu da ignorância”, situação na qual as
partes possuem desconhecimento sobre as características individuais,
tanto próprias como da outra parte. Levando esse conceito para a prá-
tica, é de fato viável a possibilidade de se formular acordos utilizando
o “véu da ignorância” do autor? Escolha uma situação (acordo entre
Gabarito
1. Carl Schmitt diz que o poder é fundamentado na Política, e não no Di-
reito, porque é sempre uma decisão política que origina as normas. Já
Kelsen afirma que a ciência jurídica não deve se interessar pelas ques-
tões políticas e outras, mas limitando-se apenas às normas jurídicas.
Contudo, o conceito de norma fundamental o aproxima de Schmitt,
na medida em que aceita que a primeira das manifestações é sempre
uma decisão.
5. Tal como na busca por uma organização social, uma empresa para al-
cançar sucesso, realização de modo estável no mercado, prescinde de
um sistema de regulação de todos os que nela trabalham, ligados a
uma finalidade específica ligada ao desenvolvimento do negócio, mas
sem deixar de considerar o modo como a empresa se encontra na atua-
lidade, bem como os hábitos que nela estão instaurados.
Referências
BITTAR, Eduardo C. B. Curso de Filosofia Política. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2008.
(Rev., aument. e modif. pelo autor).
_____. Sociologia. Tradução de: FREITAG, Barbara; ROUANET, Sérgio Paulo. São
Paulo: Ática, 1993.
RAWLS, John. Justicia como Equidad: materiales para una teoría de la justicia.
Traducción de: RIDILLA, Miguel Angel. Madrid: Tecnos. 1986.
_____. Uma Teoria da Justiça. Tradução de: PISETTA, Almiro; ESTEVES, Lenira M.
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REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5. ed. rev. e reestr. São Paulo:
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_____. Fundamentos do Direito. 3. ed. fac símile da 2. ed. São Paulo: Revista dos
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_____. Teoria Tridimensional do Direito. 5. ed. rev. e reestrutur. São Paulo: Sa-
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