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1. Introdução
Durante um longo período, a base da economia do Estado do Paraná esteve apoiada na produção,
comercialização e consumo de erva-mate (Ilex paraguariensis). Essa atividade teve grande importância na
construção de uma identidade paranaense. Esse fato é demonstrado na presença de um ramo da planta
ao lado esquerdo de quem observa a esfera do Cruzeiro do Sul na bandeira do Estado. Ao lado direito
dessa esfera, tem-se outro de pinheiro-do-paraná (Araucaria angustifolia) (Figura 1) (Paraná, 2019). A
erva-mate ocorre naturalmente em associações com o pinheiro-do-paraná na Floresta Ombrófila Mista,
que é parte do Bioma Mata Atlântica (Zanette et al., 2017).
O Estado do Paraná apresenta três ciclos econômicos da erva-mate. O primeiro se estendeu até 1820,
onde a produção utilizava mão de obra indígena e era direcionada ao mercado interno. Apresentava
características primitivas e rudimentares. A partir de 1820 até 1875 temos o segundo ciclo, que já era um
processamento industrial em curso. Empregava força hidráulica e a vapor no primeiro engenho em
Paranaguá, com a produção final uniformizada e acondicionada. O terceiro ciclo teve início entre 1875 e
1880, com o aperfeiçoamento de máquinas e equipamentos necessários ao processamento da erva-mate.
O engenheiro Francisco de Camargo Pinto foi o maior responsável pela implantação de novas técnicas de
industrialização. Nesse ciclo, os engenhos já haviam sido deslocados para o planalto curitibano. Essa foi a
fase áurea da erva-mate paranaense e a viga mestra da economia do Estado do Paraná. É nesse ciclo
que foram incentivadas medidas de divulgação no exterior. Essa fase teve duração até meados de 1930
(Linhares, 1969).
produção brasileira de erva-mate folha verde (392.962 t), Santa Catarina 5,8 %, Rio Grande do Sul 6,3 % e
Mato Grosso do Sul 0,02 % (IBGE, 2019).
Atualmente, o consumo de infusão de água quente com erva-mate beneficiada (chimarrão), especialmente
no meio rural da Região Sul do Brasil, é uma tradição/ritual que persiste ao longo do tempo. É sinônimo de
hospitalidade, sendo importante na constituição e manutenção de relações sociais.
Os humanos chegaram ao sul da América entre 12700 e 8600 anos atrás (Kern, 1991; Schmitz, 2006).
Quando os europeus aportaram à América, os povos nativos guaranis já utilizavam as folhas de erva-mate
("folha sagrada"). Desde o início da ocupação do Paraguai pelos espanhóis (século XVI), a utilização da
erva-mate pelos povos nativos foi observada. A bebida era consumida pelos carijós, xetás, guairás,
charruas, caingangues (que chamam o chimarrão de kógwuin) e pelos incas, pois todos eles mantinham
relações comerciais com os guaranis. Em túmulos pré-colombianos no distrito peruano de Ancón
(Província de Lima), foram encontradas folhas de erva-mate próximas a alimentos e diferentes objetos
como armas, tecidos e joias (Mazuchowski, 1991).
O termo "mate" tem origem no idioma dos incas, o quíchua, através do vocábulo mati, e significa "cuia,
cabaça ou porongo". Dessa forma, o recipiente feito com o fruto maduro da curcubitácea Lagenaria
siceraria (Molina) Standley, no qual até hoje se bebe a infusão de erva-mate, é a referência inicial. Essa
espécie tem origem no continente africano e foi dispersa mundialmente no período pré-colombiano
(Stephens, 2018). No Rio Grande do Sul existem duas populações principais de porongos: uma de casco
fino (cultivada em Santa Maria) e outra de casco grosso (região noroeste de Alto Uruguai), que apresenta
maior valor de mercado (Trevisol, 2013 citado por Cancelier et al., 2017). O termo "porongo", que nomeia a
planta que fornece a cuia usada para beber o mate, também vem do quíchua, significando "vaso de barro
com o gargalo estreito e comprido" (“vaso de beber”) (Burtenshaw, 2003).
Arróspide (1997) cita que o jesuíta Antonio Ruiz de Montoya relatou que a erva-mate, assim como o
tabaco, era repelida e desprezada pelos Guarani no início do século XVI. Apenas os xamãs faziam seu
uso (e de outras ervas) para consultar os “maus espíritos” (“demônios” na visão cristã), originando a
denominação “erva do diabo”. Atualmente, sabe-se que os jesuítas criaram o mito que o “diabo” (Anhangá-
pitã) estava dentro do mate, porque “afastava os fiéis dos serviços religiosos” (“ao tomá-lo, os povos
nativos não se concentravam nas missas ou sermões, quebravam os jejuns e davam mau exemplo para
as crianças, que seguiam os pais") (Linhares, 1969). Os jesuítas não cogitavam que a simples imposição
de um “discurso religioso” não era “atrativo”.
Por outro lado, Jungblut (2008) menciona que, antes de 1600, apenas os pajés e feiticeiros utilizavam a
erva-mate, mas em rituais de cura e como forma de conexão com os ancestrais (celebração dos
antepassados). Os idosos dessa etnia faziam seu uso moderado devido ao seu efeito estimulante, o que
lhes restituía as forças. Com o passar do tempo, os povos nativos passaram a fazer uso dessa mesma
erva com maior frequência, sempre antes do amanhecer ou quando não tinham alimento disponível.
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Desse modo, a erva-mate foi se incorporando ao cotidiano de povos nativos e não nativos nas
confraternizações e outros ritos. Desde os primeiros relatos de utilização pelos povos nativos em rituais
até sua incorporação aos hábitos de espanhóis, não se passaram mais de cem anos (Contini et al., 2012).
No Brasil, a área de ocorrência natural da erva-mate abrange Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul,
extremo sul de São Paulo e do Mato Grosso do Sul. Na Argentina, é nativa nas Províncias de Misiones,
Corrientes e de Tucumã, e no Paraguai entre os Rios Paraná e Paraguai (Figura 2) (Oliveira e Rotta, 1985;
Penteado Júnior e Goulart, 2019).
As missões jesuíticas (1610 a 1768) ocuparam grande parte da área de ocorrência natural da erva-mate.
Os jesuítas que se instalaram na Companhia de Jesus do Paraguai, após perceberem que ao difamar a
erva-mate acabaram promovendo seu uso, orientaram esses povos a iniciar o cultivo dessa espécie.
Assim, contribuíram no aperfeiçoamento de métodos de cultivo para aumento na produtividade e
expandiram seu consumo. Os jesuítas também animaram os povos nativos a consumirem a erva-mate
como forma de prevenção ao alcoolismo. Por essa razão, em determinado período histórico, a bebida
chegou a ser conhecida como “chá dos jesuítas”. Mesmo após a saída forçada da Companhia de Jesus
(em 1768), os jesuítas continuaram a exploração do comércio e exportação da erva-mate (Mazuchowski,
1991).
A comunicação da doutrina cristã pelos jesuítas aos povos nativos (catequese e evangelização) era uma
forma sutil de escravização. A liberdade era limitada e um novo modo de vida, direcionado às atividades
de seu interesse, era imposto pela persuasão religiosa. Eles não eram convertidos, mas subjugados
(Ribeiro, 1983; Eremites de Oliveira e Esselin, 2015).
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Mazuchowski (1991) relata que os povos nativos consumiam a caá (erva-mate) com água quente. Porém,
o consumo inicial era com água fria. A utilização de água quente no preparo do chimarrão foi iniciada com
os europeus a fim de evitar doenças, devido ao possível consumo de água não potável (contaminada).
A forma com que a erva-mate era consumida pelos povos nativos se manteve sem maiores alterações até
os dias atuais. A caá-i (caá significa erva-mate ou “erva verdadeira”, e i significa água) ou “água da erva”
era a bebida feita com folhas secas fragmentadas de erva-mate e sorvidas em um pequeno porongo
utilizando um canudo de taquara. Esse canudo apresentava, na extremidade em contato com a erva, um
trançado de fibras para evitar que as partículas das folhas fossem ingeridas. O vocábulo
guarani caiguá tem um significado específico e retrata o “recipiente para a água da erva” (caá é erva, i é
água e guá é recipiente). O conjunto de cuia e bomba era chamado caá-mati (caá é erva e mati é porongo
ou cuia) (Mazuchowski, 1991; Rosa, 2008).
O nome científico da erva-mate (Ilex paraguariensis) é devido ao fato do botânico Auguste de Saint-Hilaire
ter se localizado de forma incorreta ao coletar as amostras. Pensou estar no Paraguai quando, na
verdade, estava no Paraná. Outra versão é que coletou as primeiras amostras da erva-mate no Paraguai
e, posteriormente, no sul do Brasil. Por isso considerou as amostras brasileiras idênticas às paraguaias,
sendo essas últimas a referência na nomenclatura. Mais uma explicação é que amostras coletadas em
diferentes localidades no Paraguai e no sul do Brasil foram misturadas, com consequente identificação
incorreta. Sabe-se que a área de ocorrência natural da erva-mate no sul do Brasil é muito superior à do
Paraguai (e Argentina) (Figura 2) (Oliveira e Rotta, 1985; Mazuchowski, 1991). Assim sendo, seria mais
apropriado chamá-la de Ilex brasiliensis.
A melhor época de colheita das folhas de erva-mate é ao final do inverno e antes de ocorrer a nova
brotação (as folhas estão maduras e a planta está em repouso fisiológico) (Mazuchowski, 1991). Com
colheitas próximas ao outono, as plantas já possuem maior concentração de compostos fenólicos, assim
como as folhas mais jovens. Segundo Borille et al. (2005), o teor de cafeína, teobromina e taninos é maior
nas folhas jovens, reduzindo com a idade. A época de colheita se concentra nos meses de junho, julho e
agosto (Mazuchowski, 1991; Ferrera et al., 2016).
Para ervais comerciais bem manejados, com alto grau de adoção tecnológica, é recomendada a poda de
colheita entre setembro e outubro e entre fevereiro e março, desde que seja respeitado um período de 18
meses entre as podas, deixando um mínimo de 20 % de folhas nas plantas. Dessa maneira, o
desenvolvimento de folhas novas será mais rápido, obtendo-se maior produtividade do erval ao longo do
tempo (Penteado Júnior e Goulart, 2019).
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Desde a década de 1980 existem estudos referentes a problemas de saúde devido ao consumo da erva-
mate. Vassallo (1985) relaciona a ocorrência de câncer de esôfago ao tabagismo, consumo de bebida
alcoólica e de mate. Segundo Barros et al. (2000), o volume de ingestão de água com temperatura acima
de 60 oC é um fator de risco para o desenvolvimento de processos cancerígenos. No sul do Brasil, a
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temperatura média na qual o chimarrão é consumido é de 69,5 ºC (67,6 a 71,9 ºC). Temperaturas acima
de 60 oC podem causar lesão térmica crônica à mucosa do esôfago (Victora et al., 1990; Islami et al.,
2009; Chen et al., 2015; Okaru et al., 2018). No Brasil, a incidência de câncer de esôfago em homens é
em torno de três vezes maior que em mulheres. O tipo mais frequente é o carcinoma epidermoide
escamoso (96 % dos casos). O mecanismo que se relaciona com essa carcinogenicidade parece estar
relacionado com danos celulares ocasionados pela injúria térmica. Essa condição potencializa a exposição
a agentes carcinogênicos (ex. hidrocarbonetos policíclicos aromáticos - HPAs) e eleva o risco de
carcinoma de células escamosas de esôfago (Chen et al., 2015; Okaru et al., 2018; INCA, 2019). A Região
Sul apresenta a maior frequência de câncer de esôfago entre os homens (17,10/100 mil) e mulheres
(4,94/100 mil). A Região Norte apresenta a menor frequência dessa enfermidade para ambos os sexos
(2,59/100 mil para homens e 0,67/100 mil para mulheres) (INCA, 2017).
Todavia, Jotz et al. (2006) mostram que, independente da temperatura da água, a erva-mate pode conter
HPAs (ex. benzopireno), devido à combustão de materiais orgânicos na secagem manual das folhas. O
beneficiamento industrial da erva-mate reduz o contato das folhas com a fumaça, mas não impede
completamente a queima parcial das folhas e a geração de hidrocarbonetos carcinogênicos. Kamangar et
al. (2008) encontraram níveis elevados de hidrocarbonetos aromáticos policíclicos em oito marcas
comerciais de erva-mate produzidas no Rio Grande do Sul.
As formas manuais de processamento da erva-mate são o carijo e o barbaquá. O carijo (sistema quase
completamente em desuso) é uma armação de madeira à altura aproximada de 1,70 m do solo, com fogo
(braseiro) logo abaixo em uma escavação. Sobre essa armação se amarram frouxamente os feixes de
erva sapecada e fragmentada, para que o calor possa penetrar e favorecer a secagem. O produto final
apresenta acentuado odor e sabor de fumaça. Já o barbaquá é um conduto subterrâneo com suave
declividade, com fogo na extremidade mais baixa e liberação de calor na outra, promovendo separação
parcial entre calor e fumaça (Mazuchowski, 1991; Kamangar et al., 2008).
5. Considerações
Pelos dados apresentados, é possível afirmar que a Ciência “pode” estar presente mesmo nas atividades
habituais comuns de agrupamentos humanos e na forma como elas são desenvolvidas.
As tradições e rituais alimentares “devem” ter uma leitura científica multidisciplinar, a fim de “reconhecer e
comprovar” seus benefícios e/ou corrigir eventuais “não conformidades”. Os costumes não sobrevivem (ou
desaparecem) sem razão.
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