Вы находитесь на странице: 1из 16

Página 1 de 14

Cavalcanti, A. D. L. O mal-estar do coletivo: uma análise sobre as liberdades individuais dentro de uma ecovila

O mal-estar do coletivo: uma análise sobre as liberdades individuais dentro


de uma ecovila

Civilization and its discontents of the collective: an analysis of individual


freedoms in an ecovillage

El malestar del colectivo: un análisis sobre las libertades individuales


dentro de una ecovilla

Andrea Douat Loyola Cavalcanti1

Resumo

Este trabalho visa analisar como as liberdades individuais são expressas em uma proposta de
convivência voltada para o coletivo, como são as ecovilas. O presente estudo contribui para uma reflexão
sobre a vida em comunidade, assim como para criar um debate sobre trocas e concessões possíveis entre
indivíduo e sociedade. A partir de uma pesquisa de campo, de abordagem qualitativa (com observação
participante e entrevistas), foi possível perceber que os conflitos fazem parte do cotidiano local, mas
que a convivência se torna viável com construções de estratégias e propósitos – que podem ser
importantes para a elaboração de alternativas para a sociedade atual. Percebemos que os desafios para
se construir uma vida com senso de comunidade em uma ecovila são diários, e são observados por seus
moradores de diferentes formas – ao mesmo tempo em que eles ainda estão buscando conjugar as
liberdades individuais com as necessidades coletivas, em um processo contínuo.

Palavras-chave: Ecovilas. Comunidades sustentáveis. Indivíduo. Liberdades individuais.

Abstract

This article aims to analyze how individual freedoms are expressed in a proposal of coexistence geared
towards the collective, as are ecovillages. The present study contributes to a reflection on life in a
community, as well as to create a debate about possible exchanges and concessions between individual
and society. From a field research, with a qualitative approach (with participant observation and
interviews), it was possible to perceive that conflicts are part of local daily life, but that coexistence
becomes viable through constructions of strategies and purposes – which may be important for the
elaboration of alternatives to the current society. We realize that the challenges to building a community-
based life in an ecovillage are daily, and are observed by its residents in different ways – at the same
time as they are still seeking to combine individual freedoms with collective needs, in a continuous
process.

Keywords: Ecovillages. Sustainable communities. Individual. Individual freedoms.

Resumen

Este trabajo busca analizar cómo las libertades individuales se expresan en una propuesta de convivencia
orientada hacia el colectivo, como son las ecoaldeas. El presente estudio contribuye a una reflexión
sobre la vida en comunidad, así como para crear un debate sobre intercambios y concesiones posibles
entre individuo y sociedad. A partir de una investigación de campo, de abordaje cualitativo (con
observación participante y entrevistas), fue posible percibir que los conflictos forman parte del cotidiano

1 Mestre em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social pela UFRJ/IP. Jornalista formada pela PUC-Rio,
com ênfase em jornalismo corporativo.

Pesquisas e Práticas Psicossociais 14(2), São João del-Rei, abril-junho de 2019. e3024
Página 2 de 14

Cavalcanti, A. D. L. O mal-estar do coletivo: uma análise sobre as liberdades individuais dentro de uma ecovila

local, pero que la convivencia se torna viable a través de construcciones de estrategias y propósitos –
que pueden ser importantes para la elaboración de alternativas a la sociedad actual. Se percibe que los
desafíos para construir una vida con sentido de comunidad en una comunidad son diarios, y son
observados por sus habitantes de diferentes formas – al mismo tiempo que éstos todavía están buscando
conjugar las libertades individuales con las necesidades colectivas, en un proceso en curso.

Palabras clave: Ecoaldeas. Comunidades sostenibles. Individuo. Libertad individual.

Pesquisas e Práticas Psicossociais 14(2), São João del-Rei, abril-junho de 2019. e3024
Página 1 de 14

Cavalcanti, A. D. L. O mal-estar do coletivo: uma análise sobre as liberdades individuais dentro de uma ecovila

Introdução “trocaram um quinhão de suas


possibilidades de segurança, por um
Nas últimas décadas, o mundo quinhão de felicidade” (Bauman, 1998, p.
presenciou inúmeros avanços tecnológicos 10). Para o autor, a necessidade de proteção
e materiais. Mas, ao contrário do esperado, e ordem construída pelas cidades acabou
esse avanço não trouxe, necessariamente, gerando seu inverso: conflitos contínuos e
uma melhoria no grau de satisfação dos uma profunda sensação de insegurança.
indivíduos (Bauman, 1998). Níveis altos de Norbert Elias (1994), por sua vez,
estresse, expectativas frustradas e afirma que essa oposição se faz por uma
consumismo desregulado, entre outros visão que diferencia o indivíduo da
fatores, acabaram por gerar um mundo onde sociedade, como se ele estivesse “solto” e a
há um grau crescente de insatisfação e sociedade fosse uma entidade à parte.
ansiedade (Bauman, 1998). A satisfação Assim, o homem transfere suas frustrações
pessoal foi trocada pela falsa sensação de para esse algo externo, enxergando-o como
segurança dada pelo coletivo, num um limitador para a realização de seus
movimento analisado por Sigmund Freud desejos e necessidades.
(1929) no seu texto “O Mal-Estar na Apesar dos “mal-estares” (ou talvez
Civilização”. por conta deles), vemos despontando, ao
Freud afirmava que sempre longo das últimas décadas, projetos que
ganhamos algo em troca de alguma perda. apontam para um estilo de vida mais natural
E explicava ainda que a civilização e sustentável (Gilman, 2013). Existe cada
moderna renunciou ao instinto natural vez mais a necessidade de se pensar em
humano, assim como trocou a “liberdade de novas alternativas de convivência, de
agir por seus próprios impulsos” por beleza, modos de produção e de organizações
pureza e ordem, mantidas com grandes sociais que também se relacionem com os
sacrifícios em nossa sociedade. A ecossistemas (Loureiro, 2012). Dentre as
civilização, por sua vez, dá em troca uma alternativas viáveis, as chamadas ecovilas
sensação de proteção e segurança, mas traz despontam como uma realidade em
consigo a insatisfação do indivíduo, que diversos países, e também no Brasil.
precisa abrir mão de sua busca por prazeres As ecovilas podem ser definidas
de ordem pessoal (Freud, 1976). O mal- como comunidades intencionais
estar se configura na oposição entre sustentáveis (Kasper, 2008) por serem
liberdade/prazer e segurança, em que o construídas com uma visão ecológica de
indivíduo troca parte de sua liberdade pela sustentabilidade. A ideia de ecovilas foi
segurança do coletivo. incorporada pelas Nações Unidas no
Quase 70 anos depois, Zygmunt Programa de Desenvolvimento de
Bauman (1998) trouxe à tona essa reflexão, Comunidades Sustentáveis (SCDP/UNDP)
contextualizando-a para a atualidade, em e, em 1998, elas foram incluídas na lista da
que os ideais de beleza, pureza e ordem ONU das 100 melhores práticas para o
continuam presentes, mas agora realizados desenvolvimento sustentável.
por meio do desejo e do esforço individuais. Dessa forma, as ecovilas surgem
A princípio, temos a impressão de que o como uma proposta de vida comunitária,
problema foi solucionado: unimos as em que o homem está inserido na natureza,
necessidades sociais com a liberdade e e não fora dela. As estruturas de trabalho,
expressão individuais. No entanto, Bauman moradia e convivência social são pensadas
ressalta que a antiga regra de perdas e com o intuito de respeitar os ciclos naturais
ganhos, analisada por Freud, continua e causar o menor impacto possível. O
valendo: sempre se ganha alguma coisa em objetivo deste artigo é estudar como as
troca de outra. Só que, no presente, a ordem comunidades intencionais lidam com a
foi invertida e homens e mulheres questão da liberdade individual e como são

Pesquisas e Práticas Psicossociais 14(2), São João del-Rei, abril-junho de 2019. e3024
Página 2 de 14

Cavalcanti, A. D. L. O mal-estar do coletivo: uma análise sobre as liberdades individuais dentro de uma ecovila

expressos e realizados os desejos inicial) com um ou mais propósitos


individuais em uma perspectiva voltada intencionais (Degenhardt, 2011).
para a coletividade; além de observar as Sustentabilidade e interações sociais e
possibilidades de discussão sobre ambiente ambientais estão entre os seus grandes
e sociedade, a partir da experiência em uma pilares. Podemos definir, ainda, que as
ecovila. Para isso, partimos da seguinte ecovilas utilizam “processos de
questão central: como conjugar as participação local para integrar
necessidades e liberdades individuais com holisticamente as dimensões ecológica,
as necessidades comunitárias ou coletivas? econômica, social e cultural, da
A análise sobre essas questões têm sustentabilidade” (Gen, 2010).
como objetivo mais amplo contribuir com É preciso deixar claro, no entanto,
reflexões sobre a convivência em que nenhuma ecovila é 100% sustentável,
comunidade, assim como criar um debate nem em termos ambientais nem em termos
amplo sobre as trocas e concessões econômicos (Degenhardt, 2011). Entende-
possíveis entre indivíduo, sociedade e se que todos os sistemas estão
ambiente. Dentre as opções de pesquisa interconectados e que o equilíbrio está na
social, escolhemos a pesquisa qualitativa, troca e na interdependência. Assim, e
exploratória, de estudo de campo, realizada buscando um equilíbrio, as ecovilas
em uma ecovila, conforme os parâmetros procuram manter sistemas justos de trocas
necessários. A coleta de dados foi feita a (monetárias, de produtos/serviços, e
partir de observação participante, com também sociais/culturais) com as
diário de campo e entrevistas comunidades do entorno e com a sociedade
semiestruturadas. onde estão inseridas.2
Nas próximas seções, serão As ecovilas se organizam segundo
apresentados os conceitos e autores que conceitos de liderança e governança
permeiam a discussão teórica nesse estudo próprios, discutidos e acordados pelo grupo.
(ii); a ecovila pesquisada (iii); a Esses acordos geralmente se dão por
metodologia utilizada na pesquisa (iv); os assembleias, conselhos e reuniões
resultados obtidos com a pesquisa e a regulares. Cada ecovila tem sua própria
análise destes (v); e as considerações finais regulação interna, geralmente explicitada
(vi). em um estatuto. Muitas se baseiam nas
diretrizes geradas pela Global Ecovillage
O conceito de ecovilas: a relação entre Network (GEN) – Rede Global de Ecovilas
indivíduo, comunidade e ambiente – e por grupos locais que servem como
pontos de discussão para a organização de
Ecovilas são comunidades ecovilas e de troca de informações, como o
intencionais. Ou seja, um dos principais Conselho de Assentamentos Sustentáveis
fatores que diferenciam uma ecovila de das Américas (Casa) –“braço” da GEN na
outro tipo de comunidade é o fato de que ela América Latina.3
foi projetada e construída (seja a partir do Degenhardt (2011) delimita cinco
ponto “zero” ou de uma comunidade dimensões para o desenvolvimento e

2 A questão da sustentabilidade financeira e em Casa (para a parte da América Latina) e Genna


ambiental das ecovilas foi apresentada em diálogo (para a parte da América do Norte). Hoje, a GEN tem
com um dos membros – que faz parte do Conselho cinco “braços” de atuação: África, Europa e
de Assentamentos Sustentáveis das Américas (Casa) Oceania+Ásia, além das citadas América do Norte
– durante a fase de trabalho de campo, e faz parte, (Genna) e América Latina (Casa). Para evitar
portanto, das anotações de campo. confusões, retiramos o nome da ENA, atualizando o
3 Na época da pesquisa de campo, o Casa estava em texto para a configuração atual dessas organizações,
seu início, ainda se estruturando, e a ENA ainda era sem que isso implique em perda de informação
chamada com esse nome, como a parte da GEN que relevante. Recuperado de
englobava as Américas. Depois, a ENA foi dividida https://ecovillage.org/regions/

Pesquisas e Práticas Psicossociais 14(2), São João del-Rei, abril-junho de 2019. e3024
Página 3 de 14

Cavalcanti, A. D. L. O mal-estar do coletivo: uma análise sobre as liberdades individuais dentro de uma ecovila

autocompreensão das ecovilas: Gesellschaft (sociedade). Para ele,


comunidade, autonomia, meio ambiente, enquanto as comunidades de sangue e de
intencionalidade e indivíduo. Assim, as local em comum constituíam vínculos
ecovilas se diferenciam das comunidades próprios da natureza animal, as de espírito
tradicionais essencialmente por sua constituem vínculos pela afinidade
intencionalidade, mas também por sua intelectual ou mental (Brancaleone, 2008).
aspiração ao desenvolvimento humano e ao E é nesse contexto que podemos enquadrar
preenchimento das necessidades as ecovilas como agrupamentos em que os
individuais e de realização pessoal; pela indivíduos se unem por afinidades mentais,
interação harmônica vivida em comunidade valores e ideais em comum.
e pelas tomadas de decisões coletivas; pela Nas vilas e aldeias, a sensação de
possibilidade de autonomia (ainda que comunidade é vivida de forma intensa nas
parcial, já que a maioria das ecovilas relações de amizade e parentesco. Essas
depende da produção externa e da relações e sentimentos comunitários vão se
comunicação com outras formas de perdendo à medida que o homem constitui
comunidade); e por um conceito de ética as cidades (Brancaleone, 2008). Assim, as
integrada ao ambiente. Outra característica ecovilas partem de uma busca também por
marcante que diferencia as ecovilas de um retorno do sentimento comunitário.
outras comunidades tradicionais e/ou Nesse estudo, utilizaremos o termo
intencionais, como quilombolas e “comunidade” não como uma categoria do
kibbutzim, é a diversidade de seus escopo das Ciências Sociais, mas sim como
integrantes. De forma geral, não há um valor ou estilo de vida, relativo ao estilo
necessariamente uma coesão étnica, de “vida comunitária” – indicando, assim,
cultural ou social entre os moradores da uma dinâmica de convivência de pessoas
ecovila – que podem ter histórias de vida em um espaço delimitado, onde há
bastante distintas. objetivos e atividades em comum.
Podemos dizer, ainda, que as Para Bauman, esse conceito de
ecovilas criam um campo fértil para um comunidade está relacionado a uma ideia de
ambiente social colaborativo, no qual as “paraíso perdido” para onde queremos
pessoas buscam uma “vida em harmonia retornar (Bauman, 2001). Dessa forma,
consigo mesmas, com os outros seres e com partimos do princípio (que, mais tarde, pôde
o planeta” (Svenson, 2002, p. 10). ser observado ao longo do trabalho de
campo e das entrevistas) de que uma
Comunidade e sociedade: o que une e comunidade intencionalmente projetada –
separa os indivíduos caso das ecovilas – irá muitas vezes
conviver com esse imaginário de
Não há um consenso sobre o “comunidade ideal”, diante das
conceito de comunidade, já que muitos possibilidades reais.
autores tratam dessa temática com Bauman aponta ainda que há uma
diferentes focos, dando mais importância a certa “romantização” da ideia de
um ou outro elemento. No entanto, sabemos comunidade, como algo que ainda não está
que, desde sempre, o homem busca ali, mas que está para chegar. Nesse sentido,
agrupar-se em comunidades (Tönnies, o conceito de comunidade algumas vezes se
1947). Tönnies entende as relações aproxima do conceito de Utopia criado por
comunitárias como aquelas que precedem Thomas Morus (2002/1516): um lugar onde
as societárias, ou seja, aquelas que são as pessoas vivem em harmonia num sistema
formadas por laços sanguíneos, de igualitário e trabalham em prol do bem
localização e de amizade, ou espírito. O comum. A comunidade seria, de forma
autor cunhou o termo Gemeinshaft similar, um lugar seguro e bom, “o tipo de
(comunidade) em oposição ao termo mundo que não está, lamentavelmente, ao

Pesquisas e Práticas Psicossociais 14(2), São João del-Rei, abril-junho de 2019. e3024
Página 4 de 14

Cavalcanti, A. D. L. O mal-estar do coletivo: uma análise sobre as liberdades individuais dentro de uma ecovila

nosso alcance – mas do qual gostaríamos de O indivíduo e a liberdade: da


viver e esperamos vir a possuir” (Bauman, modernidade à pós-modernidade
2001, p. 9).
Para o autor, a palavra Bauman (2000) faz uma distinção
“comunidade” evoca aquilo do qual entre a liberdade subjetiva e objetiva. Para
sentimos falta e que poderia nos trazer o autor, a tal liberdade pregada de forma
felicidade e segurança. Assim, percebemos geral pelas pessoas no ocidente é de tal
que a ideia de “comunidade” se aproxima forma subjetiva que haveria ainda a
de um ideário abstrato, de um desejo ou, possibilidade de que “o que se sente como
ainda, de um objetivo almejado. liberdade não seja de fato liberdade”
A questão da obediência às normas (Bauman, 2000, p. 24). Assim, a liberdade
é, aliás, quase imperativa para o “bom não estaria ligada a fatos concretos, mas sim
funcionamento” de uma comunidade a um sentimento, a uma necessidade de
(Bauman, 2001). Assim, para que a liberdade sutil, sentida de forma única pelos
comunidade aconteça, as liberdades indivíduos, e não necessariamente
individuais precisarão ser limitadas. relacionada a uma liberdade mais sólida,
Independentemente dos valores atribuídos a objetiva (Bauman, 2000, p. 25).
essas limitações, a questão principal será Bauman apresenta duas questões
sempre a eterna tensão entre a liberdade colocadas pelos filósofos modernos quanto
individual e as necessidades do coletivo. à liberdade: a primeira sugere que talvez os
Até que ponto vale a pena sacrificar um ou homens prefiram não pensar sobre ela, já
outro lado, e qual deles podemos ou que essa liberdade traria incômodos que as
devemos sacrificar? A questão não é tanto pessoas prefeririam não saber. Como num
saber se a libertação do indivíduo das Mito da Caverna (Platão, 381 a.C.) às
opiniões herdadas e da garantia coletiva avessas, o homem, diante da possibilidade
contra as inconveniências da de ser livre, escolheria continuar na ilusão.
responsabilidade individual acontece ou Já a segunda assume que talvez esse
não – mas se isso é bom ou ruim (Bauman, questionamento sobre os benefícios que a
2000, p. 194). liberdade traria tenha sua razão de existir.
Esse é o paradoxo do Nesse caso, o questionamento seria se a
comunitarismo. Para realizar um projeto liberdade de fato implicaria em trazer mais
comunitário, é preciso “apelar às felicidade.
mesmíssimas (e desimpedidas) escolhas O autor segue exemplificando o
individuais cuja possibilidade havia sido pensamento da época até chegar ao
negada” (Bauman, 2000, p. 195). questionamento central dessa questão: a
Bauman aponta, ainda, que a submissão às normas de sociedade, em vez
segurança proporcionada pela comunidade de limitar, traria mais liberdade? Para
e a liberdade4 individual são inversamente alguns filósofos da era moderna, como
proporcionais: quanto mais se tem uma, Durkheim (1972), o homem seria, até certo
menos se tem outra. Dessa forma, o autor vê ponto, dependente da sociedade – mas nisso
o comunitarismo como uma reação à não haveria contradição, e sim uma
acelerada “liquefação da vida moderna” e dependência libertadora (Durkheim, 1972,
ao desequilíbrio entre liberdade e as p. 115). A regularidade de modos e ações
garantias individuais (2000, p. 195). traria uma tranquilidade ao indivíduo, que
Voltamos, assim, à questão central, quando não teria que lidar com as incertezas
nos questionamos como fica a liberdade constantes que viriam, caso tivesse de
individual em uma proposta comunitária. decidir tudo sozinho.

4 Bauman (2001, p. 10) utiliza ainda as palavras “individualidade” quando se refere a esse conceito
“autonomia”, “direito à autoafirmação” e de liberdade do indivíduo.

Pesquisas e Práticas Psicossociais 14(2), São João del-Rei, abril-junho de 2019. e3024
Página 5 de 14

Cavalcanti, A. D. L. O mal-estar do coletivo: uma análise sobre as liberdades individuais dentro de uma ecovila

Já para Bauman, a liberdade na “era de Proteção Ambiental (APA) da Serra da


pós-moderna”, concebível e possível de Mantiqueira (MG).
alcançar, já foi atingida (2000, p. 30). No A escolha do local se deu, em grande parte,
entanto, essa liberdade – que é uma por a ecovila já ter um histórico de sete anos
liberdade sobretudo de reflexão e de críticas de existência e diversidade de membros,
– não se aprofunda o suficiente para além de ter uma estrutura de tomada de
enxergar os mecanismos complexos da decisões e de gerenciamento de conflitos
sociedade. Assim, apesar de toda a que facilitava observarmos a questão
liberdade para questionar e criticar, não central do nosso estudo: a relação entre as
ganhamos, junto com isso, uma maior necessidades individuais e as necessidades
capacidade de ação e de mudança, pelo coletivas (o processo de tomada de decisões
contrário. Nos tempos “de nossas avós”, o será detalhado na seção Tomadas de
trabalho era solidificado – aquilo que decisões e conflitos do presente artigo).
causava desconforto pela falta de A ecovila atua como um centro
flexibilidade, por outro lado, trazia educacional transdisciplinar rural-urbano,
segurança pela estabilidade (Bauman, onde são praticadas técnicas de
2000). Nos tempos atuais, a estabilidade permacultura, bioconstrução e
não é mais um valor universal; valoriza-se agroecologia. Até o momento, não há um
mais a variedade de opções e projeto de renda comum entre os membros
possibilidades, em especial em relação ao da ecovila. Sendo assim, cada um é
trabalho. Cria-se a ilusão de que as chances responsável pelo próprio sustento
infinitas trazem mais liberdade. E que financeiro, com diferentes atividades e
liberdade seria essa? A liberdade de poder fontes de renda.
tornar-se qualquer um, qualquer coisa que O local central da ecovila fica na
se queira ser (Bauman, 2000). casa onde está a cozinha – o mais
No entanto, essa liberdade não movimentado da comunidade e que serve
trouxe consigo mais satisfação (Bauman, de ponto de encontro para todos. Ali são
1998). O consumismo incentivado pela feitos os almoços comunitários, que, por
sociedade atual surge como uma forma de enquanto, são as principais atividades
assegurar essa liberdade que, muitas vezes, comuns a todos os moradores.
se mistura com o conceito de identidade do Na época do levantamento de dados,
indivíduo, de sua afirmação como sujeito a comunidade tinha quase sete anos de
individual e único. Na contramão disso, as existência, e um total de 22 membros,
ecovilas buscam ações de consumo divididos da seguinte forma: oito membros
responsável (Borelli, 2014), relacionadas a efetivos (aqueles que, por terem pago a
uma ideia de ecologia profunda,5 que “joia”, valor relativo ao preço do terreno
considera que as ações individuais estão dividido pelos moradores, podem construir
todas interconectadas, como numa trama. casas); 14 membros colaboradores (que não
podem construir casas, mas podem morar
A ecovila pesquisada na ecovila); e três aspirantes (que estão
passando pelo processo para se tornarem
Para a presente pesquisa, membros).
escolhemos como objeto de estudo uma Os membros, tanto efetivos quanto
ecovila de 48 hectares, localizada na Área colaboradores, não necessariamente moram
na ecovila (na época, eram 13 moradores),

5 Ideia proposta em 1972 pelo filósofo norueguês conceito, podemos dizer que a ecologia profunda
Arne Naess, em oposição ao que ele chama de acredita no valor intrínseco da natureza e de todos os
“ecologia rasa ou antropocêntrica”, ou seja, a visão seres, e enxerga o mundo como uma grande teia de
de que o meio ambiente deve ser preservado para o conexões.
benefício do ser humano. Sem adentrarmos no

Pesquisas e Práticas Psicossociais 14(2), São João del-Rei, abril-junho de 2019. e3024
Página 6 de 14

Cavalcanti, A. D. L. O mal-estar do coletivo: uma análise sobre as liberdades individuais dentro de uma ecovila

mas precisam estar engajados em grupos de para a elaboração do roteiro definitivo, de


trabalho da ecovila, participar das perguntas semiestruturadas.
atividades, das reuniões e das tomadas de As entrevistas foram gravadas e
decisões na comunidade. transcritas integralmente, para posterior
Uma das principais atividades que a sistematização dos dados e análise. As
ecovila desenvolve é o curso Educação Gaia respostas foram separadas em temáticas
– Design em Sustentabilidade, programa principais (já indicadas pelas entrevistas) e
associado à GEN – Rede Global de as categorias foram organizadas por meio
Ecovilas, com o endosso da Unitar (ONU). de falas que surgiram espontaneamente nas
Em sua organização estrutural, a respostas, e que depois foram agrupadas por
comunidade pratica uma ferramenta de conceitos e palavras similares que
tomada de decisões definida como emergiam de forma repetida e significativa.
“governança circular”, na qual todos os Neste estudo, a participação da
participantes têm voz ativa e as decisões são pesquisadora esteve incluída diretamente
tomadas por consenso. No processo de em atividades cotidianas da ecovila, tais
consenso, as questões são apresentadas e como: limpeza de quartos e banheiros,
debatidas pelos presentes até que se alocação de resíduos para compostagem e
encontre uma proposição que satisfaça a atividades na cozinha (preparação de
todos, ou a todos menos um membro, alimentos, limpeza e organização do
chamado de “consenso menos um”. Para ambiente etc.). É importante ressaltar que,
facilitar as decisões em grupo, são durante o trabalho de campo, estiveram
realizadas uma reunião semanal com os presentes também alguns voluntários e as
membros presentes na ecovila e uma atividades da pesquisadora foram inseridas
reunião mensal com todos os membros. nas atividades do grupo. As atividades
O trabalho da ecovila é organizado e foram indicadas pela pessoa responsável
dividido por meio grupos de trabalho (GTs). pelo grupo naquela semana: no caso, um
O grupo incentiva que os GTs tenham membro efetivo da ecovila.
lideranças circulares, ou seja, se revezem Assim, foi interessante notar que, na
nos grupos, embora isso nem sempre maior parte do tempo em que a
aconteça, porque alguns líderes pesquisadora esteve em campo, as pessoas
desenvolvem aptidões específicas para agiam como se ela fosse apenas mais uma
determinadas tarefas. voluntária (embora a observação tenha sido
informada previamente a todos os
Metodologia presentes). Essa indistinção trouxe, de certa
forma, o benefício de facilitar a observação
Este estudo se baseia em uma do cotidiano de forma mais natural, com
abordagem qualitativa e utilizou seus conteúdos ficando em maior evidência.
observação participante e entrevistas O mesmo não pode ser dito das entrevistas,
semiestruturadas. A observação em campo momento em que ficou claro que a figura da
foi realizada ao longo de oito dias pesquisadora estava bastante evidente para
consecutivos na ecovila escolhida, com os entrevistados.
autorização prévia dos responsáveis, e com Após a realização da entrevista-
chegada no local no dia 20 de março de piloto, o roteiro de entrevistas foi elaborado
2014 e saída no dia 28 de março de 2014. com questões semiestruturadas, dando
Utilizamos em todo o processo o diário de assim espaço para a inserção de novas
campo como instrumento de registro da questões surgirem. A história de vida
observação e posterior material de análise. também foi um método utilizado na forma
As entrevistas foram realizadas com seis de história de vida tópica (Minayo, 1993, p.
indivíduos, após entrevista-piloto, realizada 59), focalizando a etapa de vida dos
entrevistados, que abrangia desde os

Pesquisas e Práticas Psicossociais 14(2), São João del-Rei, abril-junho de 2019. e3024
Página 7 de 14

Cavalcanti, A. D. L. O mal-estar do coletivo: uma análise sobre as liberdades individuais dentro de uma ecovila

últimos trabalhos antes da entrada na classificação no perfil dos entrevistados)


ecovila, passando pelo início de seu que estivessem presentes, de forma
interesse e envolvimento com a concomitante, durante o trabalho de campo
comunidade em questão até a entrada na na ecovila. Oito dias foi o período de tempo
comunidade. que conseguimos com essa delimitação,
Assim, a história de vida não foi pois, nos períodos anteriores ou posteriores
realizada como um item em separado, mas a este, havia um número de membros menor
sim como uma abordagem da entrevista, o a no local (entre idas e vindas de membros).
que é totalmente compatível com a
metodologia adotada. Segundo Plummer Perfil dos entrevistados
(2001), as pessoas contam em suas histórias
o que lhes é importante, sob seu ponto de Foram entrevistadas seis pessoas,
vista. sendo três homens e três mulheres.
Escolhemos fazer o recorte pelas pessoas
Limitações da pesquisa presentes na ecovila durante as atividades
de observação participante e que fossem
Consideramos importante relatar membros efetivos (2) ou colaboradores (4),
que, durante a pesquisa, a ida a campo foi ou seja, ficariam de fora da pesquisa os
adiada algumas vezes, ao longo de quase aspirantes, as crianças, os funcionários
quatro meses, por falta de “quórum”, já que contratados, os voluntários e os visitantes.
foi delimitado como fator essencial para o Para facilitar a visualização dos perfis,
trabalho de campo um mínimo de seis traçamos o Quadro 1.
membros (efetivos ou colaboradores –

Quadro 1. Perfil dos entrevistados


Ent. 1 Ent. 2 Ent. 3 Ent. 4 Ent. 5 Ent. 6
Sexo Feminino Masculino Feminino Feminino Masculino Masculino
Idade 34 35 27 33 45 37
Rio de Janeiro/ Rio de Jotedoerg/Suéc
Naturalidade Sobradinho/BA RJ Niterói/RJ Janeiro/RJ Liberdade/MG ia
Escolaridade Pós-Grad. Pós-Grad. Pós-Grad. Sup. Incomp. Ensino Médio Superior
Área
profissional Turismo Biologia Biologia Educação Bioconstrução Músico
Atuação na
ecovila Colaborador Efetivo Colaborador Colaborador Colaborador Efetivo
Tempo na 1 ano e 8 2 anos e 8
ecovila 4 anos 3 anos meses 7 meses meses 7 anos
Fonte: Elaborado pela autora.

Dos entrevistados, apenas dois externa aos seus trabalhos atuais – tais
possuem casas próprias na ecovila. Entre os como aluguel de imóveis e economias
demais: um possui casa na cidade (apesar de anteriores, entre outras – não dependendo
também utilizar uma das casas da ecovila portanto somente de sua renda atual para
como “casa temporária”) e os demais seu sustento. Duas pessoas entrevistadas
membros vivem em casas temporárias na têm filhos pequenos, de cinco e três anos,
ecovila. Dos seis entrevistados, cinco que moram com elas na comunidade.
mantêm trabalhos e atividades fora da
ecovila, além de também executarem As expectativas e os desafios da vida
tarefas e trabalhos na comunidade. A comunitária
maioria (4) tem alguma fonte de renda

Pesquisas e Práticas Psicossociais 14(2), São João del-Rei, abril-junho de 2019. e3024
Página 8 de 14

Cavalcanti, A. D. L. O mal-estar do coletivo: uma análise sobre as liberdades individuais dentro de uma ecovila

A convivência e a importância do “estar tempo, eu tenho muito uma coisa muito


junto” social, eu gosto de gente, gosto de estar
junto com amigos [...]. Então, essa proposta
de viver em uma ecovila junta esses dois
Percebemos, ao longo deste estudo, lados meus, de estar imersa e junta na
que buscar um senso de comunidade, onde natureza, mas ao mesmo tempo não perder
as relações humanas são mais estreitas, é as relações sociais, as trocas, porque você
um dos principais motivos que levam as ganha muito quando você está em contato
com outras pessoas, com o convívio. Então
pessoas a buscarem uma vida em acho que foi por aí... (Entrevistado 4)
comunidade (Bauman, 2001; Sawaia, 1996;
Tönnies, 1955), portanto, não surpreende Entre todos os entrevistados, a
que essa temática tenha aparecido bastante sensação de pertencimento ao grupo
nas falas dos membros. apareceu em algum momento da fala como
Quando perguntados sobre o que os algo relevante e que impulsionava a pessoa
motivou a buscarem viver em uma ecovila, a seguir naquele estilo de vida. Bauman
o motivo mais citado (5, de 6) foi “estarem (2001) traz uma reflexão sobre os
juntos”, “fazer juntos”, ou seja, estarem em sentimentos relacionados à palavra
comunidade, junto a pessoas com quem “comunidade”. Para ele, fazer parte de uma
compartilham ideais e com quem gostam de comunidade ou estar em comunidade
estar. remete a uma sensação de bem-estar
União, cooperação e estar em um (Bauman, 2001). A comunidade acolhe,
local onde há um “sentimento de família” traz segurança, dá uma sensação de
também foram motivos bastante citados pertencimento. Na comunidade, ninguém
durante as entrevistas, assim como a está sozinho – há ajuda e apoio. Ou, pelo
vontade de morar em uma região rural e a menos, é isso que a palavra evoca.
preocupação com questões ambientais. Os entrevistados consideraram
como os principais motivos para a escolha
de uma ecovila (em percentual de respostas,
Eu já realmente tinha essa coisa de querer por ordem das mais comuns para as menos
estar perto da natureza, mas, ao mesmo comuns):

Tabela 1. Motivos para escolha de uma ecovila


Motivos citados Percentual
1 Convivência na ecovila, “estar com as pessoas” 20%
2 União, cooperação 16%
3 Morar em zona rural 16%
4 Questões ambientais 12%
5 Sentimento de família 12%
6 Convívio com os vizinhos6 8%
7 Criação dos filhos 8%
8 Diminuir o ritmo 4%
9 Segurança 4%
Fonte: Elaborada pela autora.

Podemos perceber que a principal relacionada ao estilo de vida em


motivação para essas pessoas deixarem suas comunidade do que somente à
vidas na cidade e buscarem uma vida em sustentabilidade. Ou melhor, podemos dizer
uma ecovila aparece muito mais que as preocupações com sustentabilidade e
6As pessoas que citaram “convívio com os vizinhos” se referiam ao convívio com os moradores dos arredores da
ecovila e das cidades próximas, enquanto o principal motivo da lista, “estar com as pessoas”, se referia a estar com
outros membros e visitantes da ecovila, ou seja, era relativo ao convívio diário e mais constante.

Pesquisas e Práticas Psicossociais 14(2), São João del-Rei, abril-junho de 2019. e3024
Página 9 de 14

Cavalcanti, A. D. L. O mal-estar do coletivo: uma análise sobre as liberdades individuais dentro de uma ecovila

com questões ambientais – redução de seis) foi “isolamento e distância da


impactos ambientais, escolhas e consumo ecovila”, e a terceira (duas respostas, em
conscientes etc. – fazem parte integrante seis) foi “solidão”.7
desse estilo de vida em comunidade, que As observações citadas nos remetem
engloba ainda questões mais subjetivas, novamente à ideia já apresentada de que a
como a sensação de pertencer a um grupo comunidade, muitas vezes, está nesse limiar
que lhe dá suporte. entre a realidade e um conceito romântico
No entanto, apesar da convivência de idealização, uma utopia a ser alcançada.
em grupo ter aparecido nas falas como um Assim, a ideia de convivência em
fator importante para a escolha da vida comunidade como um fator forte de
comunitária em uma ecovila, foram motivação para a escolha da vida em
percebidos alguns conflitos entre as falas e ecovila se mostrou enraizada no ideal dos
as práticas durante a observação entrevistados, mas muitas vezes não se
participante. Um exemplo disso foi visto refletia no que era observado na prática (ou
durante a hora do almoço – momento citado mesmo em outras falas).
por todos os entrevistados como o principal
período do dia em que o grupo se reunia Tomadas de decisões e conflitos
para fazer uma atividade em comum e
“estar junto”. Apesar disso, durante os oito A ecovila pesquisada tem um
dias de observação, somente em um dia o sistema de decisão chamado de consenso.
grupo (membros que estavam na ecovila No consenso, as decisões passam por várias
naquele dia) se reuniu na casa principal, etapas de diálogo, até que se chegue a uma
onde havia a cozinha coletiva, para fazer decisão satisfatória a todos, ou à grande
essa refeição juntos. Nos outros dias, uma maioria (“consenso menos um”). O
parte dos membros moradores escolheu consenso foi citado por todos, em algum
comer em suas próprias residências momento, como sendo de grande valia para
(alegando praticidade ou falta de tempo o entendimento em comunidade e uma
para se deslocar até a casa central) – e, em ferramenta positiva para o respeito e escuta
boa parte dos dias (cerca de 50%), um de todos.
número muito pequeno (apenas dois ou três É importante frisar que o conflito
membros) se deslocou até a casa principal não é visto, necessariamente, como um
para compartilhar da convivência durante o problema, mas sim como parte de um
almoço. processo natural e contínuo de
Foi observado também que, mesmo aprendizagem, um exercício de convivência
com a baixa adesão, a hora do almoço ainda e de entendimento mútuo (Christian, 2003).
era o momento em que os membros mais se É, sobretudo, um exercício de escutar e de
encontravam na ecovila – sendo que (com ser escutado. E essa visão foi compartilhada
exceção da reunião semanal) era raro, em amplamente pelo grupo entrevistado,
outros momentos, ver o grupo se reunindo aparecendo em muitas das falas. A palavra
para atividades em comum (não estamos “escuta” também foi amplamente citada por
incluindo aqui os voluntários e visitantes todos os entrevistados, explicitando a
que estavam presentes na ecovila). Essa valorização que o grupo dá a essa ação.
contradição pôde ainda ser sentida nas Durante a observação participante
respostas a outra pergunta feita durante as (e, em especial, durante a reunião semanal
entrevistas, relativa às desvantagens de se do grupo), pudemos observar que, mesmo
morar em uma ecovila, quando a segunda com uma disposição visível dos membros
resposta mais comentada (três respostas, em para a escuta, o limite entre a tomada de

7 A primeiraresposta mais citada, em relação às social”.


desvantagens, foi “pouca diversidade cultural e

Pesquisas e Práticas Psicossociais 14(2), São João del-Rei, abril-junho de 2019. e3024
Página 10 de 14

Cavalcanti, A. D. L. O mal-estar do coletivo: uma análise sobre as liberdades individuais dentro de uma ecovila

decisão que deve ser de âmbito individual necessidades individuais e as necessidades


ou coletivo às vezes é tênue. Isso se do coletivo, muitas vezes, eram vistos em
evidenciou, por exemplo, em um momento acontecimentos comuns do dia a dia.
de conversa informal após o almoço com Muitos desses pequenos conflitos
um dos membros, que estava comentando apareciam na hora do preparo das refeições
sobre uma questão de Wi-Fi (algumas casas e escolha de ingredientes, por exemplo.
têm Wi-Fi, e outras não), e ele desabafou: Uma questão que estava sendo debatida
“cada um resolveu o seu, mas não há uma naquele momento era o uso – ou não – de
solução em conjunto” (entrevistado 6). açúcar na ecovila e nas compras coletivas.
Nesse caso, um dos membros (que, na Essas questões eram debatidas
época, dava aulas on-line) instalou uma repetidamente durante as reuniões e em
antena para captação de sinal de internet na conversas informais. Mas era possível
sua casa, mas que tinha um perímetro curto enxergar uma preocupação dos membros
de sinal, ou seja, outros membros que em olhar para os conflitos e buscar novas
moravam em casas mais distantes ferramentas de diálogo para que a
precisavam andar até a casa desse morador comunicação fosse mais transparente e as
(ou perto dela) para poder captar o sinal. decisões mais justas e satisfatórias.
Dessa forma, o problema de um (que tinha
urgência em ter sinal de internet) foi Então, agora a gente vai começar a se
resolvido, mas, para outros membros, a capacitar para usar algum sistema
restaurativo próprio, aquilo que foi dito na
situação ainda continuava insatisfatória. reunião, a gente tá num movimento. E eu
Até o momento da pesquisa, a questão do acho que a base é essa. A gente não nega, às
Wi-Fi estava em discussão, mas ainda não vezes negligência no sentido de postergar
havia sido completamente solucionada. O mais que o normal, a gente às vezes aceita
que nos remete novamente ao soluções parciais, às vezes a gente aceita
decisões por cansaço, mas isso tudo é fruto
questionamento central deste estudo: até de estar existindo, estar praticando, ousar
onde as ações podem atender ao mesmo novas formas de decisão, por mais que a
tempo às necessidades individuais e gente às vezes entra em atos autoritários
coletivas – é possível conciliar as sim, entra nos hábitos que a gente herdou.
demandas? É uma questão de focar nos objetivos que
façam a gente chegar aonde a gente quer
chegar. (Entrevistado 2)
Necessidades individuais × necessidades
coletivas Dessa forma, apesar dos pequenos
conflitos cotidianos serem constantes, estes
Como já foi falado ao longo deste não eram percebidos como fatores
estudo, a tensão entre a liberdade das negativos na fala dos entrevistados – que
escolhas individuais e a segurança coletiva são conscientes sim dessa tensão, mas que a
sempre existirá (Bauman, 2001). No enxergam como um processo natural e
entanto, percebemos na observação parecem lidar de forma atenta em relação à
participante e nas entrevistas que há uma questão, não a negando e agindo com
busca pelos membros em conjugar as transparência, valor tido como essencial à
necessidades de seus integrantes – ainda ecovila.
que, muitas vezes, isso fique mais em um
lugar de “meta a ser alcançada” do que de Elas contam [as necessidades individuais]!
algo que se consegue realizar na prática. A Estamos todos atentos em falar de
busca por ferramentas de diálogo e de necessidades individuais. [...] Eu acho que
acordos nos indica que essa é uma questão eu sou o único da ecovila que curte
rock’n’roll, por exemplo. E eu não posso
importante para o grupo. ouvir rock’n’roll aqui, daí a minha vontade
Os conflitos advindos de uma de ter o mais rápido a minha casa, meu som,
oposição entre as liberdades ou e poder ouvir no volume que eu acho que

Pesquisas e Práticas Psicossociais 14(2), São João del-Rei, abril-junho de 2019. e3024
Página 11 de 14

Cavalcanti, A. D. L. O mal-estar do coletivo: uma análise sobre as liberdades individuais dentro de uma ecovila

mereço. A única necessidade que eu sinto indivíduos veem a comunidade como algo
hoje é essa. (Entrevistado 5) da qual ele faz parte. Eles são a
comunidade. Assim, esse embate entre
Observamos também falas que sociedade/comunidade e indivíduo não é
sugerem que os conflitos são acolhidos sentido da mesma forma. Apesar de os
como algo natural, que não deve gerar conflitos entre interesses diversos
tensão ou uma sensação de limitação acontecerem o tempo todo, há uma
pessoal – embora possam trazer limitações disposição maior do grupo em olhar para
práticas (que são entendidas como essas questões como suas, e em buscar
necessárias). ferramentas para acordos possíveis, que
estarão sempre sendo revistos e
É uma fronteira eterna da vida em
comunidade [a questão das necessidades
rediscutidos, buscando um ambiente onde
individuais em oposição às coletivas]. O todos sejam vistos em suas necessidades
que eu acho fundamental é que isso não vire (mesmo que haja desequilíbrios pontuais).
uma fonte de medo, de medo de poder fazer Essa integração entre ambas as
as suas escolhas livres, porque o grupo partes só pode ser pensada em um conceito
virou seu pai, seu patrão. Não pode. A
tranquilidade de você ser livre, de poder ser
de não separação, em que o
quem você é, é fundamental de cultivar e se homem/indivíduo é parte integrante da
ter. (Entrevistado 2) sociedade, e não seu oposto, e em que os
A gente é tranquilo em não concordar sobre interesses coletivos são construídos
tudo. A gente não fica insistindo em ter incluindo os individuais (Elias, 1994). Essa
regras aonde a gente não chegou lá, aonde a
gente não chegou a acordos fixos
ideia, não por acaso, é exatamente o cerne
satisfatórios a todos. Então tá nessa área, a do conceito de ecovila: a integração entre
gente vai continuar divergindo, cada um vai indivíduo e ambiente como parte do mesmo
continuar o que sempre foi, o trabalho vai sistema.
ser pessoal de cada um. (Entrevistado 2)
Considerações finais
As reuniões periódicas do grupo e as
ferramentas de tomadas de decisões tentam Percebemos que o “estar junto”
progressivamente diminuir essas distâncias aparece muitas vezes na fala de seus
entre as necessidades individuais e membros, expressando algumas vezes um
coletivas. E, ainda, entender como essas desejo ou necessidade, em outras um
necessidades “se permeiam”, quais são seus motivo de satisfação e de persistência ou,
pontos em comum. Dessa forma, a ainda, um desafio a ser superado.
liberdade individual não está desconectada Essa aparente contradição entre o
do coletivo. O “bem coletivo” não é visto desejo do convívio e suas limitações
como um limitador para o bem pessoal, mas práticas aponta para o que Bauman descreve
sim fazendo parte do mesmo conjunto. como um imaginário de “comunidade
Para Norbert Elias (1994), por ideal” – expressa também nos valores
exemplo, a oposição entre sociedade e utópicos apontados por outros autores –, em
indivíduo acontece porque o indivíduo que a ideia de comunidade harmoniosa se
sente que sua alma, seu verdadeiro “eu”, apresenta como algo que ainda está por
está sujeito a algo externo, que seria a chegar (Bauman, 2001; Sawaia, 1996;
sociedade. Esse indivíduo vê a sociedade Morus, 2002/1516). No entanto, podemos
como a imagem de uma pessoa que lhe dizer, pelas falas apresentadas, que os
rouba a liberdade. Assim, a liberdade membros da comunidade pesquisada estão
individual do sujeito e as exigências feitas – ao menos parcialmente – cientes dessas
pela sociedade na qual ele está inserido, que contradições (que são vistas ora como
estão em lados opostos, não poderiam, a obstáculos, ora como desafios) e que,
princípio, coexistir. No entanto, o que muitas vezes, esse ideário serviu como
vimos na ecovila estudada é que os

Pesquisas e Práticas Psicossociais 14(2), São João del-Rei, abril-junho de 2019. e3024
Página 12 de 14

Cavalcanti, A. D. L. O mal-estar do coletivo: uma análise sobre as liberdades individuais dentro de uma ecovila

inspiração para manter as pessoas unidas As ecovilas reconstroem a vida em


em torno de um objetivo comum, que está comunidade, trabalhando formas
sendo construído aos poucos, no seu próprio inovadoras de se relacionar, equilibrando
ritmo, conforme pudemos observar nas cooperação com individualidade e unidade
entrevistas. com diversidade (Kunze, 2012). Não que
Dessa forma, percebemos que há essa seja uma solução simples – e, a julgar
ainda uma dissonância entre o desejo de pelo ponto de vista tanto dos autores
estar junto, convivendo e levando uma pesquisados quanto das pessoas
“vida em comunidade” (na esfera social, entrevistadas durante pesquisa, não é –, mas
comunitária e sustentável de uma ecovila) e ainda assim pode indicar um caminho
a realidade que, muitas vezes, mostra possível, que vale a pena ser perseguido.
dificuldades práticas de convívio parecidas Alguma tensão entre liberdade e
com as que conhecemos nas cidades. No segurança (e, portanto, entre
entanto, é importante ressaltar que vimos individualidade e comunidade) sempre
também uma diferença marcante em termos existirá; no entanto, abandonar a busca de
de qualidade de convívio, quando a escuta um equilíbrio entre elas também não é uma
é um valor incentivado, assim como a opção (Bauman, 2001). Observamos,
confiança mútua, o respeito à diversidade durante a pesquisa, uma busca para se
de ideias e a tentativa contínua de buscar conjugar os interesses individuais com os
acordos que, na medida do possível, interesses coletivos. Mesmo que muitas
satisfaçam os anseios de todos – vezes esse objetivo não consiga ser
individualmente e coletivamente. alcançado, essa preocupação existe.
Quanto à questão central a que essa Dessa forma, não temos aqui a
pesquisa se propôs, e analisando com os intenção de encontrar a “solução mágica”
autores pesquisados, notamos que a relação para essa questão, nem sequer esgotar suas
entre as necessidades individuais versus as possibilidades. Mas esperamos com este
necessidades coletivas se configura em um estudo termos levantado questionamentos
conflito que pode ser percebido pelos que possam ser ampliados e que levem a
membros da ecovila, mas que, ao mesmo reflexões sobre as relações entre
tempo, não é classificado como algo comunidade, ambiente e indivíduos,
negativo, algo que deva ser negado ou refletindo ainda sobre o papel de cada um e
eliminado. É visto – e isso foi falado, suas correlações, em uma perspectiva de
espontaneamente, diversas vezes durante as sustentabilidade e harmonia entre os seres
entrevistas – como uma construção vivos e seu entorno.
contínua, algo que se busca aperfeiçoar,
mesmo que, muitas vezes, não seja possível Referências
encontrar uma solução que atenda a todos
(ao menos naquele momento). Bauman, Z. (2001). Comunidade. Rio de
Notamos que, assim como descrito Janeiro: Zahar.
por alguns autores, os entrevistados Bauman, Z. (2000). Modernidade líquida.
também percebem que suas necessidades Rio de Janeiro: Zahar.
individuais podem estar em harmonia com Bauman, Z. (1998). O mal-estar da Pós-
as necessidades coletivas, conforme valores modernidade. Rio de Janeiro: Zahar.
maiores que unem o grupo. Dessa forma, Borelli, F. C. (2014). Consumo responsável
esses interesses não são opostos ou sob a perspectiva prático-teórica: um
contraditórios, como parecem num primeiro estudo etnográfico em uma ecovila.
momento. Podem caminhar juntos, Tese de doutorado, Universidade
apoiando-se mutuamente. Mas, para isso, é Federal do Rio de Janeiro, Instituto de
necessário que a satisfação individual esteja Pós-Graduação e Pesquisa em
no escopo das necessidades da comunidade. Administração, Rio de Janeiro.

Pesquisas e Práticas Psicossociais 14(2), São João del-Rei, abril-junho de 2019. e3024
Página 13 de 14

Cavalcanti, A. D. L. O mal-estar do coletivo: uma análise sobre as liberdades individuais dentro de uma ecovila

Brancaleone, C. (2008). Comunidade, Kunze, I. (2012). Social Innovations for


sociedade e sociabilidade: revisitando Communal and Ecological Living:
Ferdinand Tönnies. Revista de Lessons from Sustainability Research
Ciências Sociais, 39(1). and Observations in Intentional
Christian, D. L. (2003). Creating a Life Communities. Communal Societies:
Together: Practical Tools to Grow Journal of the Communal Studies
Ecovillages and Intentional Association, 32(1).
Communities. New Society Loureiro, C. F. B. (2012). Sustentabilidade
Publishers. e Educação: um olhar da ecologia
Degenhardt, P. H. (2011). Ecovillage política. São Paulo: Cortez.
Education Centre: Plan for the Mead, G. H. (1938). The Philosophy of the
Organizational Development of a Act. Chicago: University of Chicago
Brazilian Ecovillage within the Press.
Context of Education for Sustainable Minayo, M. C. de S. (2004). O desafio do
Development. EEPOD (In German) conhecimento: pesquisa qualitativa
Master Thesis. Rostock University. em saúde. São Paulo: Hucitec.
Durkheim, E. (1972). Educação e Minayo, M. C. de S. (Org.). (1993).
Sociologia. São Paulo: Pesquisa social: teoria, método e
Melhoramentos. criatividade. Petrópolis: Vozes.
Elias, N. (1994). A sociedade dos Morus, T. (2002). Utopia. São Paulo:
indivíduos. Rio de Janeiro: Zahar. Ridendo C. Moraes. (Obra original
Elias, N. (1994). O processo civilizador (2 publicada em 1516).
vols.). Rio de Janeiro: Zahar. Platão. (2000). A alegoria da caverna: A
Freud, S. (1929). O Mal-Estar na República. In D. Marcondes. Textos
Civilização (Coleção Os Pensadores). básicos de Filosofia: dos Pré-
São Paulo: Abril Cultural. socráticos a Wittgenstein (2a ed.). Rio
de Janeiro: Zahar. (Obra original
Gergen, K. J. (1985). The Social publicada em 381 a.C.)
constructionist Movement in Modern Plummer, K. (2001). The Call of Life
Psychology. American Psychologist, Stories in Ethnographic Research. In
40(33), 266-275. P. Atkinson et al. Handbook of
Gilman, R. (1991). The Eco-Village Ethnography. London: Sage.
Challenge: The Challenge of Polit, D. F., Beck, C. T., & Hungler, B. P.
Developing a Community Living in (2004). Fundamentos de pesquisa em
Balanced Harmony – With Itself as enfermagem: métodos, avaliação e
Well as Nature – Is tough, but utilização. Porto Alegre: Artmed.
Attainable. Living Together, 29 Sawaia, B. B. (1996). Comunidade: a
(Summer, 1991). apropriação científica de um conceito
Global Ecovillage Network – GEN. What is tão antigo quanto a humanidade. In R.
an Ecovillage?. Recuperado em 14, H. F. Campos (Org.). Psicologia
março, 2014, de Social Comunitária: da solidariedade
https://ecovillage.org/projects/what- à autonomia (pp. 35-53). Petrópolis:
is-an-ecovillage/ Ed. Vozes.
Jackson, J. T. R. (2008). The Ecovillage Sevier, L. (2008). Ecovillages: A Model
Movement. Permaculture Magazine, Life?. The Ecologist, 38(4), May.
40, 25-30, 2004. Svenson, K (2002). What Is an Ecovillage?
Kasper, D. Van S. Redefining Community In H. Jackson & K. Svenson (Ed.).
in the Ecovillage. Human Ecology Ecovillage Living: Restoring the
Review, 15(1). Earth and her People. Devon: Green
Book, and Gaia Trust.

Pesquisas e Práticas Psicossociais 14(2), São João del-Rei, abril-junho de 2019. e3024
Página 14 de 14

Cavalcanti, A. D. L. O mal-estar do coletivo: uma análise sobre as liberdades individuais dentro de uma ecovila

Tönnies, F. (1955). Community and


Association: Gemeinschaft und
Gesellschaft (C. P. Loomis, Trad.).
London.
Winand, E. J. (2011). Comunidade
enquanto estética do inter-humano: a
comunidade em Martin Buber e em
Boaventura de Souza Santos. Revista
Ética e Filosofia Política, 1(13).

Recebido em: 2/8/2018

Aprovado em: 13/6/2019

Pesquisas e Práticas Psicossociais 14(2), São João del-Rei, abril-junho de 2019. e3024

Вам также может понравиться