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p nto,

revista

João Pessoa, setembro de 2009, número 2, R$ 2,00


ponto,
revista

t udo é narração. Do cinema às histórias em quadrinhos,


da fofoca da manicure ao papo indolente do motoris-
ta, da piada de bar aos depoimentos no fim do filme
policial. O desejo de contar uma história é inerente ao
ser humano, ao homo fabulus. A criação do Clube do
Conto já tem um uma estrada de cinco anos. Volta e meia, nos re-
ferimos como uma tribo teimosa ao redor da fogueira. Nosso lema
é um pouco de nomadismo e persistência. E garantimos, sim, uma
nota de rodapé mais extensa, pois estamos em vários lugares e ne-
nhum, atiçamos o nosso desejo de estabelecer que o grande se-
gredo de tudo é uma amizade onde a palavra é a senha. Seja no
twitter, no blog, impressos entre uma antologia e as saudosas atas,
nossa existência mantém a mesma postura do incondicional se: não
devemos parar de contar histórias, porque é disso que somos fei-
tos, nossa matéria, nosso remo, nosso sextante. Mais um número na
praça, mais facetas a descobrir. Cabe apenas o prazer de folhear o
pequeno bosque de histórias que estão contidas nestas páginas. Há
matéria vária, curta, engraçada e que cabe no bolso sem muito es-
forço. Algo como bula de remédio sem amargura: ler ainda continua
sendo a melhor maneira de não ficar doente da cabeça.
A.R.A.
ponto,
revista
índice
Organização
Clube do Conto da Paraíba
Colaboraram
Cláudio José Lopes Rodrigues A vida bravia de Carlos Cruz
cjlrodrigues@uol.com.br Roberto Menezes ........................................................................... 4
Dôra Limeira
doralims@bol.com.br Assalto a mão armada
Emerson Cunha Joana Belarmino ............................................................................. 7
emersoncunha@yahoo.com.br
Joana Belarmino Mirna, a menina de rua
pandora00@uol.com.br
Maria Romarta ................................................................................. 8
José Benedito de Brito
jbenebrito@gmail.com Na porta da Colombo
Karen Matias
Luciana Silveira
Cláudio José Lopes Rodrigues ................................................... 10
lukasilveira_61@hotmail.com
Maria Romarta
Bolerinho perverso
romarta-eu@hotmail.com Ronaldo Monte ............................................................................ 13
Maria Valéria Rezende
valeria-rezende@uol.com.br Tartarugas marinhas
Ramon Limeira Luciana Silveira ............................................................................ 14
Roberto Menezes
betomenezes@gmail.com A coitadinha da freira
Ronaldo Monte Karen Matias .................................................................................. 16
rona.monte@terra.com.br
Editor Para um vôo clandestino
André Ricardo Aguiar Emerson Cunha ........................................................................... 18
diariodebordo@gmail.com
Design A membrana
Alfredo Albuquerque Maria Valéria Rezende ............................................................... 22
alfredoalbuquerque@gmail.com
Tiragem: 100 exemplares Lan house
José Benedito de Brito ............................................................... 24
Duas rubricas e um ponto final
Ramon e Dôra Limeira .............................................................. 26
Façamos nós a nossa história III
Dôra Limeira .................................................................................. 30
www.
clubedoconto.blogspot.com Folha corrida: Dôra Limeira .............................. 32
A vida bravia de Carlos Cruz
Roberto Menezes
Carlos Cruz combateu com bravura no Camboja. Cabia ao cabo
Carlos cuidar que o comboio de carros que levava as coisas do co-
mandante e do capitão não quebrasse. Cobras, cabras, crateras, cur-
vas arriscadas, cada coisa coibia que o comboio de kombis de Carlos
cruzasse o Camboja. Contudo, o cabo, com coragem, cada percalço
passava. Como o combinado, no prazo cravado, o comboio de kom-
bis chegou às cabanas americanas. Com tudo lá, cada fio de cabelo,
cada creme de cravo, cada caixa de caviar. Carlos Cruz caiu nas graças
do comandante Bradock. E logo recebeu o convite de visitar Cuba.
Convivendo com a brutalidade dos combates, o cabo viajou no mais
breve vôo. Vivia de dia nos calabouços, quebrando a cara dos cabras
que teimavam em calar ocultando verdades. Logo, covardes, falavam,
caso não, o cruel Carlos cavava covas rasas, sem vela, sem reza, sem
cruz. Quando ia o dia, o cabo batia o ponto e seguia para o cabaré.
Cadeira cativa para Carlos era perto do palco, onde o bailar da nobre
puta acrobata o perplexava. Complexo de Édipo? A Cruz não cabia
essa questão. No leito, queria apenas beijar os peitos da puta, mamá-
los e beber do leite, arcar no colo, gemer mamãe. Quando acabaram
os cativos com quem Carlos brincava de Deus, foi-se seu emprego. O
cabo que cresceu em Coimbra, cruzou o mar aberto, casou com um
broto do Nebraska, ganhou Green Card e graduou-se em Cambdrige,
cambiou de vida, virando recruta, querendo esquecer aquela que cre-
mou logo depois que casou. Agora, Cruz tinha uma dúvida de fato: ou
voltava pros comboios de kombis no Camboja ou entregava a farda.

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Pra sair da encruzilhada, comprou um boteco na praia de Camburaí. O
Carlos branco logo conquistou um bronze brilhante e caiu nas graças
das gurias gaúchas. O trunfo do gringo era o membro bem dotado
que viam por baixo da calça de cambraia. Correram rumores do longo
talento de Carlos Cruz. Caminhões de calcinhas o cabo colecionou.
Chamado para conhecer o carnaval, Carlos foi confiante, sabia que
ia arrasar. Com cana na cuca, caiu no samba de sunga, no suingue
se jogou numa suruba. Nas cinzas da quarta, nem tinha mais roupa,
brincou e se foi o bar em uma aposta louca. Em bancarrota, perdeu
a rota. Completamente, com as coisas contra, Carlos não fez conta.
Não queria ser um borra-botas. Rumou para o Rio com a mochila nas
costas. Com a roupa do corpo, e um pouco trocado, ia ser carioca. Não
queria voltar pros comboios de kombis do Camboja, pras lembranças
das cinzas do Nebraska, pros gramados de cravos do Coimbra. Queria
as bundas balançantes das popozudas bronzeadas, queria ser brasilei-
ro. Na terra da Grapete e da Fanta Uva, vagava sem rumo certo. Mas
quando chegou na cidade de São Sebastião, encontrou uma viúva,
Cacilda Becker. Pra ela, ele foi uma mão. Pra ele, uma luva. De Édipo,
complexo. O côncavo e o convexo. A cadavérica mulher contava cada
detalhe do tempo de brilho dos palcos, do cacete sofrido na estréia
da peça Roda Viva. Carlos Cruz só sorria e sorrateiro não via a hora da
fortuna cair nas suas mãos. Arrumou logo o casório, mas o velório da
Cacilda veio antes. A funesta morreu de derrame cerebral. Desafor-
tunado de novo, o brasileiro Carlos Cruz não desistia – nunca. Virou
bombeiro, grafiteiro, pesquisador do IBOPE, jurado de carnaval, maqui-
nista da Central, homem forte do BOPE. Mas não parou em nenhum
desses empregos. Até guia de cego por uns tempos ele foi como ar-

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rego. Residia em Botafogo e contemplava o Cristo de Copacabana,
onde corria e preservava a forma. Foi quando conheceu um diretor
de filme pornô, o cara era um ex-criador de cueca da Kevin Klein. Em
verve, viu no corpo civil de Cruz o trunfo perfeito pra sua triunfante e
petulante produção. Prontos, claquete! Só aí que Cruz viu que era um
boquete que ele tinha que fazer na gostosa da Suzete, traveco de tipo
exportação. O barraco que Cruz fez de nada adiantou, havia assinado
o contrato. “Chupa tudo, até o saco! não arrota!”, gritava o diretor que
gostara da boca do cabo, bem Angelina Jolie. Essa é a sina de quem
não lê e assina. Internado no manicômio, passou por uma terapia
de bolacha Cream Cracker e broa. Queria por tudo esquecer o gos-
to da porra tipo exportação. Concorreu ao cargo de caixa do Banco
do Brasil. Vivia, então, engravatado, saldando precatórios, esvaziando
garrafas, fanfarreando nas greves patrocinadas pelo governo, até que
lá pelas tantas, pela santa previdência se aposentou. Pacato e caduco,
o ex-combatente aposentando converteu-se. E crente, fundou uma
seita que aceitava Visa, qualquer cartão de crédito, cheque pré-data-
do, promissória com juros a perder de vista. Lá, até hoje confessa os
pecados, canta os fados, e come eternos pacotes de Bauducco.
Assalto a mão armada
Joana Belarmino
Eu nunca havia experimentado essa sensação, de ter uma arma pres-
sionando minha testa. Como se esse aperto surrupiasse de mim um monte
de lembranças, e me apetrechasse com uma única pergunta: Aonde co-
meça a vida? Pisei no seu pé? Desculpe. Antes de tudo, até a gente chegar
lá, deixe eu lhe contar a história de onde começou minha vida. Não. Não
foi propriamente minha vida que começou ali, mas, ali começou uma rota
provável que gerou todos os acontecimentos que culminaram com ela.
Você sabe, agora que penso nisso, me dou conta de que faz muito tempo
que esse pensamento anda agarrado comigo, como um alicate, como o
cano dessa arma, agora firmado na minha testa. Minha vida começou com
um ato de violência. Isso, afrouxe um pouco, não vou fugir. Como eu dizia,
minha vida começou com um ato de violência. Meu pai tinha doze anos
quando sua madrasta o açoitou, violentamente, só porque ele tinha ido na
dispensa pegar um pedaço de rapadura. O pai dele? Fez o que todo pai faz.
Apoiou a madrasta. Meu pai então fugiu de casa, com aquele desgosto açu-
carado pingando dos dentes da alma. Fugiu de casa, trabalhou, foi à feira de
quarta-feira e um dia viu minha mãe. Arma no coldre, meu pai decidiu que
era tempo de casar, ter uma dispensa onde pudesse guardar sua rapadura.
Apertado aqui, não? A senha? Juntei a minha idade e a do meu marido,
somos da mesma idade. Depois as idades dos meninos. Não, digitou errado.
A do menino mais novo vem primeiro. Eu sei, um pequeno embuste tolo.
Minha vida acaba como começou, mas pelo menos você tem agora uma
história em que pensar, além do meu saldo. O grande mistério é não haver
mistério. Tudo o que começa, sempre acaba. Isso, desça um pouco mais
para perto dos olhos, Ai!
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Mirna, a menina de rua
Maria Romarta
Amanhecia outro dia, cinzento como o de antes, se era quinta ou
sexta-feira, não tinha importância, o bom é que estava todo mundo
ali, inteiro, ou ao menos não mais desfigurado que os outros dias.
_Entra lá e pede: me dá três pão. Não! Diz... eu quero esse di-
nheiro de pão... É.
Assim entrou na padaria Mirna, com as bochechas amarronza-
das da sujeira sobre a qual se deitou a noite passada. As roupas tam-
bém estavam sujas, surradas e rasgadas. Barriga seca, e boca cheia
d`água. Seus olhos brilharam ao ver expostos os mais suculentos
pães e bolos. Parecia o paraíso, a fantástica fabrica de chocolate, sen-
do que lá havia muita massa e pouquíssimo chocolate.
Depois desse deslumbre descuidado Mirna percebeu que pre-
cisava entrar na fila, e assim o fez. Passados quatro ou cinco segun-
dos, ela olhou para trás, avistou duas cenas: uma mulher no canto
esquerdo da padaria com a cara fechada, fez jeito de quem tapa o
nariz (o chato é que Mirna nem fedia). Lá alem da porta, na calçada,
três crianças descalças sorriam, eram amigos de Mirna. Ela voltou a
concentrar-se na missão, apertando com a mão esquerda o dinhei-
ro, como que quisesse ter certeza que ele ainda estava ali.
E naquele instante afloraram inúmeras idéias preclusivas, para
não ser tirada aos gritos daquele lugar. “Tenho que falar direito”, “Se
achar que eu não posso comprar, eu mostro que posso”, “Se...”
Era a sua vez, o rapaz do outro lado do balcão esperava uma rea-
ção, porém Mirna estava paralisada, talvez tivesse perdido o equilí-

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brio daquele sonho onde ela era gente, capaz de andar com todos,
ficar na fila com todos, e como todos poder comprar.
Que confusão, menina! Logo tu, aquela criatura formada equi-
librista pela Faculdade do Abandono. Onde ainda não despencou
uma vez das noites sem lençol, e nem sequer tombou, quando fugia
de quem havia roubado a carteira...
Mas só pode ser isto. Convenhamos que é fácil perder o equilí-
brio quando se anda por um fio.

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Na porta da Colombo*
Cláudio José Lopes Rodrigues
Lembro-me de um vetusto (esta é a palavra...) redator de estilo
gongórico que trabalhava em A Imprensa, jornal católico pessoense
onde meu pai era o homem dos oito instrumentos. Publicadas as
matérias do prolixo redator, este costumeiramente protestava: meu
pai reduzira a balofa meia página – plena de repetições e pendurica-
lhos – a poucos e essenciais períodos. A banha redacional era lipoas-
pirada também pelo diretor do jornal, padre Carlos Coelho (que faria
brilhante carreira eclesiástica).
O escrevinhador de textos gordurosos entra nesta narrativa não
por suas adiposas notas emagrecidas por papai e pelo futuro arce-
bispo. Ele aqui se encontra para ilustrar um interessante fenômeno
comum a quem escreve sobre a realidade imediata ou quase ime-
diata na perspectiva memorialística.
Quando conheci o exuberante redator de A Imprensa ele já era
um velhinho, embora conservasse vestígios de antigas inquietações.
Falante, ele, em sua jovialidade temporã, me parecia um tipo meio
farofeiro. A impressão confirmou-se, de certa forma, por força da sua
tenaz inclinação redacional. No crepúsculo da sua vida, nos meados
dos anos sessenta, o trêfego velhinho pôs suas intensas emoções
no papel. Cauteloso, atribuiu a outrem as próprias aventuras (ver-
dadeiras ou imaginárias). Empregou a velha fórmula de usar o ele
ao invés do eu, uma falsa ficção, artifício encontrável em narrativas
de mui talentosos ficcionistas, a exemplo de Gabriel García Márquez
(Crônica de uma morte anunciada, O Amor nos Tempos do Cólera,

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Ninguém escreve ao Coronel...). Fugir completamente da realidade
é quase impossível a quem escreve. Ela acaba se impondo, explícita
ou subliminarmente.
O desvelamento da realidade camuflada sob a suposta ficção
provoca reações diversas. No caso do velhinho jactancioso ocorreu
um incidente mui significativo. Na ausência de alguém especializa-
do que pudesse ler e opinar sobre o texto, ele entregou os originais
a uma nora, que demonstrava certo gosto pela leitura.
A nora foi lendo, foi lendo... e começou a gostar do texto, emo-
cionando-se com as aventuras de tom licencioso do herói. Mas, a
partir de dado momento, começou a notar certas coincidências, a
fazer certas associações... já ouvira, não se lembrava onde, referên-
cias a estripulias idênticas àquelas... certos personagens pareciam
conhecidos seus... Descobriu, então, o que se revelou o óbvio mais
do que ululante: o herói era o descarado sogro! Velho safado! Creti-
no! Sem-vergonha... ter a impudência de colocar aquelas safadezas
no papel, tornar públicas as traições à sua mulher (prevaleceu, no
caso, o corporativismo feminino: a figura da pobre senhora idosa
enganada pelo marido suplantou a tradicional Jararaca velha, pro-
verbial cognome das sogras). O pior: inquirido pela nora, o velho
safado confessou o crime. Cinicamente, sob um risinho malicioso e
de superioridade...
Lembro-me bem da revolta da leitora ao comentar para mim o
hediondo crime:
– Eu até que estava gostando do que estava lendo... Mas quan-
do descobri que história era a dele mesmo...
A leitora foi tomada por nojo ao autor. A leitura foi estancada

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incontinenti e os originais devolvidos com significativas insinuações
de asco e indignação. A nora repeliu integralmente os escritos do
sátiro velhinho. Nada aproveitou. Foi mais inclemente do que a du-
pla formada por papai e o padre Carlos Coelho em A Imprensa.
O caso do infausto velhinho nas plagas literárias demonstra um
dos meandros da alma humana. Algo pode ser interessante, envol-
vente, bem elaborado, e, como tal, despertar o interesse e a admi-
ração de quem lê o seu texto. Desde que não afete ou prejudique
interesses ou valores próprios ou, dependendo do caso, familiares
do leitor.

*Excerto do livro A Agridoce Vida – Diário não diário. 3 (João Pessoa:


Ideia,2009)
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Bolerinho perverso
Ronaldo Monte
Eu vou pedir tua mão
ao teu pai, ao teu irmão,
te namorar no portão,
beijar teus lábios de mel.

Eu vou te dar um anel,


agulha e carretel
e alguns lenços de papel
pra quando você chorar.

Vou te levar pro altar


para o soçáite aprovar
e o bom Deus abençoar
nossa perfeita união.

Te boto num avião,


lua de mel em Belém,
prometo te querer bem
na alegria e na dor.

E já no primeiro amor
te faço uma cicatriz.
e de ator para atriz
juro te fazer feliz...
até morrer.
Até morrer.

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Tartarugas marinhas
Luciana Silveira
Ainda lembro daquele dia, naquele buraco desencavado. Todo
esforço pra quebrar aquele invólucro duro, romper com as amarras,
sair e soltar os membros na areia branca e fina. A primeira brisa no
corpo, o sol sobre a cabeça, queria mesmo entrar na água, que es-
forço pra chegar até lá!
Tão pequena, e já pensava em ser grande um dia, tamanha des-
façatez. Queria abraçar o mundo e nem imaginava que ele não ca-
bia num abraço. Assistia perplexa ao movimento daqueles animais
tão pequenos, que, soube mais tarde, ficariam grandes e com uma
casca enorme e dura. Eu também não sabia, ainda, o meu destino.
Nem imaginava que também criaria uma casca enorme e dura.
Quem diria acabei no irajá, trabalhando pra ganhar a vida, des-
frutando e sendo desfrutada por muitos cavalheiros. Não havia me-
lhor local pra ser desfrutável, afinal irajá no sentido da palavra, no
melhor tupi guarani é onde brota o mel. E como me lambuzei nesse
mel.
Atrás do Ceasa havia um pequeno teatro, local onde os ca-
minhoneiros vindos de todo país se distraiam em suas noites
solitárias. Foi lá que fui parar. Trabalhava dia e noite, noite e dia,
dançando e cantando num pequeno palco, acompanhada por um
pianista.
A vida bandida! Era assim que ganhava a vida e me divertia. Re-
presentava, fui rainha, donzela, estudante, guerreira, tantos persona-
gens que perdi a conta.

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Deixei tudo pra traz, passei do tempo, já não represento nem
me apresento.
Hoje, neste aquário imenso, olhando estas grandes tartarugas
marinhas por detrás do vidro, só consigo pensar naquela manhã
de sol, em uma praia solitária, eu e minha tia observando aquele
buraco desencavado, todo esforço daqueles pequenos seres para
quebrarem a casca do ovo e correrem para o mar. E eu como eles,
só queria correr para o mar.

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Para um vôo clandestino
Emerson Cunha
Acreditava que voava. Não acreditava necessariamente que o
gênero humano voasse, mas ele, sim, poderia voar. Subir no alto dos
céus, disputar o seu espaço com os aviões e as nuvens e surpreen-
der os pássaros. Atentou para isso quando identificou que não esta-
va sozinho no mundo. Havia mais pessoas como ele, principalmente
lá nas bandas da América, de cujas histórias faziam mil revistinhas.
Uns tinham realmente asas, outros haviam sofrido alguma espécie
de radiação, e mesmo as mulheres, tão frágeis, desafiavam a gravi-
dade e se deixavam acariciar pelas nuvens. Mas, naquele vilarejo,
não havia ninguém parecido com ele.
Fazia muito calor naquela região de casas de taipa, em que as
mulheres lavavam roupas e as punha para secar esticadas nas pe-
dras, no meio do chão; a água que usavam para beber vinha dos
poços construídos nos fundos dos quintais das casas. As crianças
brincavam com o barro, faziam dele bola e bonecos, e, quando cho-
via, atiravam bolas de lama uns nos outros. Parecia que toda aquela
gente vivia da terra, e vivia para a terra, vivia sempre a terra. Olhavam
pro chão, olhavam para baixo, e esperavam que da terra brotasse a
sua felicidade.
Mas ele não, ele olhava pro alto, para a imensidão dos céus, pro
azul celeste da noite, que dava lá no horizonte! Ele tinha sido feito
para os céus, e esperava o momento certo para poder se entregar a
sua vocação. Ele não era dali, era do alto; e também pertencia à cida-
de, onde havia espaço para alçar vôo. Pois era nas cidades grandes

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que viviam os homens americanos que voavam, que pulavam dos
edifícios, dos arranha-céus, das antenas de televisão; tão alto era de
onde se jogavam, que havia tempo para o corpo se acostumar com
o céu, e flutuar. Ali não, o único lugar alto para tomar impulso era
o teto das casas, e aquela altura ainda não era o céu. Não poderia
se arriscar.
Completou 16 anos, e agora, homem feito de barba na cara
e pêlo no peito, poderia tomar conta do seu destino. Já estava
decidido: iria para a São Paulo, o melhor lugar para ir, onde havia
prédios muito altos, tão altos que, as pessoas não se acanhavam
em pegar o céu com a mão. E quando aprendesse a voar direiti-
nho, traria para aquelas bandas um punhado de céu pro povo, que
só se acostumou a vê-lo de longe. Pegou, com mais uns duzentos
homens, o pau-de-arara de seu Mano, que prometeu conseguir
um ônibus para São Paulo assim que chegassem à capital. No alto
e no baixo das estradas de barro esburacadas, depois nos parale-
lepípedos das cidadezinhas mais perto, e no asfalto das rodovias
dos caminhoneiros e das meninas que se prostutuíam, viu de tudo
na viagem; passou por mato, perto do mar, na beira de uns fiteiri-
nhos que vendiam fruta e fumo, e adentrou a escuridão da estrada
solitária. Solitário. Dormia nos bancos de madeira do pau-de-arara
de seu Mano, e, no ônibus dormiu no chão lotado de malas, mu-
ambas e galinhas.
Achava que lá, na cidade grande, encontraria muitos que de-
viam voar como ele, pois era impossível que, num lugar de prédios
e edifícios, não houvesse gente que se dispusesse a enfrentar o peso
do vento na cara e os pingos das chuvas fortes. Imaginava como

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seria bonito, como seria estranho também, voar, encontrar os pás-
saros, saber o jeito certo de ficar no céu, o gosto das nuvens, e se o
calor do sol era maior quanto mais subisse. Era o seu lugar aquele
azul quase cego. E tudo isso, depois, ele sentiu.
Arrumou um emprego de pedreiro, mas depois viu que, sendo
lavador de janelas, conseguiria subir mais rápido no alto dos edi-
fícios, pois não havia tempo a perder. Já havia feito tentativas de
subir nos prédios, por dentro, mas havia sido sumariamente barrado
pelos seguranças da entrada, de braços largos e uns óculos escu-
ros que escondiam os olhos. Tentou, tentou, e nada. Então desistiu,
achou que se trabalhasse, seria considerado um homem honesto e
digno, e então poderia subir.
Logo conseguiu um trabalho num prédio de pra lá de trinta
andares, e teria que subir por fora, para alcançar as janelas dos últi-
mos andares junto com dois homens, também vindos lá do Norte.
Sabia que não teria medo, e aceitou logo o trabalho, que lhe ren-
deria alguns cruzados. Mas o valor, nem lhe importava. O que lhe
empolgava é que aquela seria sua chance, a primeira oportunida-
de de estar nos céus, e não lhe preocupava que pudesse perder
o emprego depois disso. O que importava é que, enfim, estaria lá
no alto, no meio do céu, e talvez fosse ate considerado um herói,
como aqueles americanos, cujas histórias eram contadas nas re-
vistinhas.
Então subiu. Sentou no apoio de madeira destinado ao traba-
lho, e as cordas começaram a ser puxadas; no primeiro balançar,
sentiu um frio na barriga, um aperto um peito. A altura começou a
aumentar e ele sentiu nos pés o vento frio do alto, e se hipnotizava

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vendo as pessoas pequeninas lá embaixo, e sorriu, lembrando que
dessa forma as iria ver sempre que voasse. O nada ao seu redor, sem
carros, sem gente, sem motos ou homens vestidos de terno e gra-
vata. Nada mais escutava, a não ser o passar dos aviões ao longe, o
grulhar das aves a trabalhar seus membros alados, ou o leve ranger
das nuvens em romper o ar. Queria ir mais alto, queria alcançar essas
nuvens, ultrapassar os pássaros, e ser livre, muito livre, não depender
mais da terra como em outrora, como seus pais e seus avós e seus
conterrâneos.
E foi. No momento, na altura certa, arrancou as roupas, sorriu,
sentiu o coração sair pela boca e pulou. Pulou nu, para que nenhum
peso o levasse ao chão, e nada atrapalhasse a sua aerodinâmica.
Lançou-se fora, lançou-se longe, lançou todas as suas esperanças e
foi junto com elas. Fechados os olhos, sentiu o ar que perpassava os
pêlos de seu sexo ainda virgem, e as nuvens que molhavam o seu
humor, e o ar que gritava nos seus ouvidos enquanto descia o corpo
nos céus, até se acostumar e pegar o impulso.
Não, não pensou mais em nada, a não ser que, enfim, estava na
cidade, nos céus, e sua vocação no ar poderia surgir livremente. Es-
tava feliz pelo seu presente, e pelo seu futuro. Vinte minutos depois,
quando tudo já havia passado, e os transeuntes, assistido perplexos
e curiosos o acontecido, a ambulância ainda não chegara para re-
colher o corpo, e toda a avenida paulista buzinava, sem saber o que
ocorrera com o menino que havia nascido para voar.

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A membrana
Maria Valéria Rezende
A membrana começou a formar-se, fininha e vertical, milímetro
a milímetro, bem no meio da cama kingsize. Romeu e Julieta não
perceberam. Cada um se deitava pelo seu lado, na sua beirada, vira-
va-se pro canto, acendia seu abajur, lia duas ou três páginas do res-
pectivo livro, ele, os Sonetos de Camões, ela, Veinte poemas de amor y
uma canción desesperada, do Neruda, suspiravam, apagavam a luz,
um logo depois do outro, e adormeciam. Havia séculos.
A membrana, nunca incomodada, em poucos dias cresceu até
o teto e jeitosamente esgueirou-se para os outros cômodos da casa.
Onde quer que estivessem os dois moradores, a fina e flexível pelí-
cula, como se girasse sobre um eixo vertical, achava jeito de estar
sempre entre os dois.
Romeu e Julieta não deram mostras de perceber coisa alguma.
Apenas Eudora, a faxineira, tinha a sensação que de vez em quando
esbarrava numa tênue teia de aranha, sacudia o espanador, mas não
achava nada nele e continuava o serviço, prum lado e pro outro,
achando que estava mesmo ficando uma velha cheia das esquisiti-
ces, sonhando com uma aposentadoria qualquer e apenas comen-
tando comigo a história da teia de aranha que a incomodava a cada
vez que vinha fazer a limpeza dos vizinhos.
Eudora acostumou-se, deixou de fofocar sobre esse assunto,
preferindo falar das cuecas floridas do novo habitante do 306.
Numa manhã, em que Eudora areava as panelas na cozinha e
os dois moradores, cada um por seu lado, preparava merendinha

22
das dez horas, Julieta queimou o mindinho na chama do fogão, sol-
tou um inédito e agudo grito, Romeu assustou-se e se virou tão de
pressa, com uma faca na mão e a lâmina em riste, que a membrana,
desprevenida, foi rompida com um grande rasgão. Julieta e Romeu
ficaram se olhando, estranhando-se, examinando-se com olhos
críticos, o que reencetou finalmente um diálogo interrompido no
século passado. A conclusão foi de que estavam demasiado velhos,
demasiado surdos, de que Romeuzinho exibia cada vez mais má
vontade em fazer-lhes a feira e que Eudora estava ficando muito
cara e abusada, não era bom continuarem ali sozinhos.
Mudaram-se ambos para o Lar da Alegria, num parque às aforas
da cidade. Eudora aposentou-se e, com a indenização, deu entrada
numa casinha. A membrana foi com eles, satisfeita por ter muito
mais espaço para expandir-se.

23
Lan house
José Benedito de Brito
Sol não havia, naquela tarde de sábado. A rua mais parecia um
charco, recoberta por águas fétidas da galeria de esgoto que estoura-
ra. E como se não bastasse, chuva. Uma chuva torrencial, persistente
e fria que, ao jorrar na rua, somava-se as águas do esgoto criando um
lamaçal escuro e lodoso, que dificultava a marcha dos passantes.
Luiza não tinha dúvidas, aquela chuva inoportuna lhe estraga-
ria os planos. Um tédio! Com sorte, chegaria ensopada ao local do
encontro, caso não caísse, vitimada pelo escorregadio traiçoeiro da
rua. Mas sua determinação era inconteste. Chegaria ao local previs-
to, na hora certa e finalmente veria face a face aquele que ela tanto
sonhava ver pessoalmente um dia.
Procurando evitar surpresas, andou cuidadosamente sobre o
atoleiro, calculando todos os riscos visíveis ao pisar sobre o solo,
os saltos altos das sandálias não a ajudavam é certo, mas devia de-
monstrar elegância, afinal aquele seria um dia inesquecível.
A custo de grande esforço e habilidade venceu os oitocentos
metros de chão encharcado e chegou a parada do ônibus, onde
mediu os danos que o lamedo havia feito na roupa e constatou,
para felicidade própria, que não havia lama no jeans que compro-
metesse sua aparência e seguiu o curso.
No ônibus em movimento e livre das armadilhas da chuva, podia
pensar no encontro com tranqüilidade. Palpitava-lhe o coração ao notar
que chegava a hora do encontro com o grande homem de sua vida. E se
tudo de fato ocorresse sem contrariedade, o casamento seria em breve.

24
Luisa, ainda no ônibus em movimento, sacou da bolsa, a fotogra-
fia impressa em papel ofício na impressora da lan house no dia ante-
rior. Havia passado cerca de três meses, do seu primeiro contato digi-
tal, com Alberto e desde então, nenhuma semana havia transcorrido
sem que se comunicassem através do orkut. Mas, aquela condição
suburbana, e de parco recurso dificultava os planos. A culpa era do
Edgar que não modernizava a lan house e ainda cobrava um absur-
do por cada hora de navegação, pensava ela. Discretamente, olhou a
fotografia como procurasse privacidade, sentiu cólicas repentinas e
inexplicáveis, ao ver aquele rosto sorridente e jovial. Involuntariamen-
te percebeu que suava em demasia, enquanto se certificava de que
ninguém a olhava. Um frio desceu-lhe na espinha, tentou disfarçar a
ansiedade e distraída, quase perde o ponto de parada, pois tinha ela o
pensamento fixo no encontro que se acercava a cada instante.
Desceu na Lagoa e apressou-se por causa da chuva que não
cessava, correu e o vento arrebatou-lhe o abrigo da sombrinha a
deixando exposta a chuva. Xingou sem saber se dirigia o insulto ao
vento ou a chuva e seguiu as pressas.
Ao chegar no Tambiá, tinha o coração em descompasso. Teve a
sensação de que todos que se encontravam em frente à porta de
entrada a olhavam e rogou para que não houvesse algum conheci-
do, entre os que ali estavam. Sem embaraços entrou no Shopping e
foi ao banheiro, onde enxugou o rosto suado, retocou a maquiagem
e desembaraçou o cabelo.
Refeita das contrariedades do tempo dirigiu-se a lan house no
interior do Shopping e pagou por trinta minutos para usar um com-
putador que tivesse câmara.

25
Duas rubricas e um ponto final
Ramon e Dôra Limeira

N
a Clínica Soft Life, doutor Mariênio adentrou seu gabinete
pressurizado e sentou diante do computador. Imediata-
mente, a voz metálica do alto-falante wenb lembrou-lhe
que precisava requisitar kits-eutanásia. O médico pronunciou “boa
morte”, e a tela da máquina apresentou-lhe o formulário eletrônico
de requisição e uma lista dos arquivos já encaminhados. Seu braço
conduziu mecanicamente à boca a xícara com café branco dinami-
zado, que, além de não escurecer os dentes, era cafeína-free. Sor-
veu-o gole a gole, degustando-lhe o sabor artificial, e autenticou
o pedido dos kits com o próprio DNA, por meio de um dispositivo
capaz de ler seu genoma com uma microgota de sangue. A voz
difusa do computador forneceu a Doutor Mariênio as estatísticas
atualizadas, ressaltando que, naquele dia, somente uma dúzia de
procedimentos seriam encaminhados. Isso não chegaria a ameaçar
o equilíbrio entre a ocupação e a desocupação de leitos na clínica. O
médico remeteu o pedido dos kits-eutanásia, depois de especificar
marca, modelo, doses e fabricante.
Naquela mesma semana, mais precisamente no dia 20 de de-
zembro de 2049, doze enfermos terminais morreriam na Clínica Soft
Life. Eram oito cancerosos em estado desolador - rubrica CED - e
quatro idosos sem perspectivas vitais significativas - rubrica IPVS. Os
pacientes tinham suas rubricas afixadas nos espelhos das camas. Os
CEDs, ainda jovens, traziam nos rostos as estampas da agonia de
quem nem vive nem morre, apenas respira. Os IPVS, todos acima

26
de oitenta anos, pareciam bois desolados, olhares fixos em algum
ponto, remelando. Cada doente tinha familiares muito atarefados,
que pagaram à clínica para que seus hologramas fossem reprodu-
zidos ao redor dos pacientes. Todos já tinham assinado termos de
autorização, cujas cópias assinadas digitalmente seriam retidas nos
servidores da clínica, para fins judiciais.
Na data aprazada, consumou-se o trâmite sereno, sem dor nem
culpa. No exato momento em que o procedimento foi acionado,
nenhum dispositivo orgânico ou inorgânico notou ou detectou
que CED20491220-1 despediu-se da vida com um bocejo, que
CED20491220-2 não conseguiu armar um sorriso ao ver a filha no
recinto, que CED20491220-3 recordou o inverno de leite e queijos
de coalho no sertão onde nasceu, que CED20491220-4 era cego
havia sete anos e vira a vida passar depressa, que CED20491220-
5 sentiu um gosto doce na ponta da língua, que CED20491220-6
pensou em Deus e pediu perdão, que CED20491220-7 teve idéia
para uma poesia e que CED20491220-8 quis tomar banho de
mar. IPVS20491220-1 não conseguia lembrar-se do rosto da mãe,
IPVS20491220-2 já estava morta, e IPVS20491220-3 perdera um filho
tragicamente anos antes. A IPVS20491220-4, ninguém nunca saberá
o que lhe sucedeu.
Envolvidos em sacos plásticos anatômicos, com aroma artificial
de flores do campo, os corpos e seus pertences foram entregues
aos familiares. Doutor Mariênio comandou todo o procedimento,
cenhos franzidos, competente, à frente de sua equipe de unidades
médico-assistenciais computadorizadas. O médico se comportou
como se fosse um monumento cinzento esquecido numa das an-

27
tigas praças que tinham existido nas cidades pelo mundo. Tudo
transcorreu muito asseado. As pessoas falecidas jaziam, despidas
e ainda moles, dentro daqueles invólucros. Os músculos, tecidos e
toda a massa corpórea ainda se quedavam flexíveis, por um proces-
so químico que evitava o apressado enrijecimento e adiava por um
bom tempo o advento do mau cheiro característico. A clínica tudo
previa. Os parentes assinaram comprovantes de recebimento, con-
forme exigência da lei e da instituição hospitalar em apreço.
Coletivo e mecânico, o velório aconteceu num único ambien-
te, programado por computador. No recinto funerário fechado, os
familiares se entreolharam e as lágrimas irromperam, sob efeito de
lacrimogêneos sprays aspergidos em volta dos doze ataúdes. Aque-
les que não puderam comparecer encomendaram na loja virtual da
funerária carpideiras eletrônicas, que diziam o nome do cliente e
choravam um choro de comover acetilenos. O monitor de cem po-
legadas instalado acima dos caixões mostrou o perfil de cada um
dos falecidos no Orkut, com mensagens de saudades eternas e do-
res infindáveis. As flores de fibra óptica, organizadas em guirlandas,
exalaram odores de essências industrializadas, e as velas eletrônicas,
sem cheiro nem fumaça, arderam frias sob o ar condicionado enre-
gelante.
Na hora do enterro, como previamente programado, acele-
rou-se o procedimento. Potentoso e solene, um carro funerário, re-
vestido de tecido sintético cor cinza, abrigou e conduziu os doze
ataúdes. Os familiares seguiram em automóveis últimos modelos
ultraleves, equipados de sons apropriados para a ocasião. Ao longo
do trajeto, réquiens de Mozart deram o planejado tom de tristeza

28
ao comboio. O desfile fúnebre se desenrolou sob um Sol ardente,
diante dos olhares indiferentes das ruas.
No Shopping da Paz, onde seriam sepultados, enfileiravam-se
doze urnas encravadas ao solo, feitas de alumínio misturado com
urânio e cimento armado. Obedecendo ao disparo de um disposi-
tivo eletrônico, as urnas abriram as bocas automáticas para receber
os corpos. Os familiares tinham urgência de voltar aos seus afazeres
e compromissos do dia a dia. Mal houve tempo de um último adeus
aos ataúdes. Sob a ordem de um novo disparo automático, as bo-
cas das urnas se fecharam herméticas, tragando os cadáveres, para
sempre lacrados.

29
Tresloucadas atas para a posteridade
3
por Dôra Limeira

D
façamos nós a nossa história
esde os primórdios, adota-se o costume de
se registrar o que acontece a cada reunião do
Clube do Conto. O primeiro registro de que se
tem notícia é um arremedo de ata: “Pelo visto, ainda não
está definido o rumo das coisas. Proponho que os encon-
tros dos sábados sejam espaços onde se possam articular
encontros presenciais mais consistentes. A presença dos
contistas e de outros escritores aos sábados é que poderá
definir os rumos desse grupo. Para o encontro do próxi-
mo sábado, vislumbra-se a adesão de André e de Barre-
to. Esperemos que mais gente venha engrossar o caldo.
Assinado: Dôra Limeira, em 16 de junho de 2004.” Com
base neste trecho entre aspas, infere-se que, desde o iní-
cio, as atas no Clube do Conto são inusitadas, diferentes
nos modos de relatar, assinar, comentar. Dentro de uma
ata cabem comentários sérios, chistosos ou lacrimogêne-
os, bem ao gosto de quem estiver redigindo. Qualquer
pessoa pode fazer uma ata de reunião, expressando sua
própria visão de mundo. O ato de fazer ata é voluntário
e prazeroso. Já aconteceu de, para uma única reunião,
aparecerem várias atas feitas por várias pessoas diferen-
tes, cada uma falando de seu próprio ângulo de visada. O
Clube do Conto é assim. Não importa o que vão dizer os

30
compêndios de História da Literatura Brasileira sobre isso daqui a
alguns anos ou séculos.
Em junho de 2004, registram-se as presenças de Regina Behar,
Ronaldo Monte, André Ricardo, Zezé Limeira, Valéria Rezende, Ge-
raldo Maciel (Barreto) Tarcisio Pereira, Marília Arnaud, Wellington
Pereira, Lau Siqueira (visitante), Aécio, Dira Vieira, Antônio Mariano,
Dôra Limeira.
Naquela altura dos acontecimentos, alguém tem a idéia de que
o grupo comece a pensar na hipótese de editar uma antologia, pois
que o montante e a qualidade dos contos já permitem que se de-
senhe esse projeto a médio ou a longo prazo. Lau Siqueira, diretor
da Fundação Cultural de João Pessoa – Funjope, por acaso presente
a uma das reuniões, declara que a Funjope se dispõe a dar todo o
apoio no que diz respeito à edição.
Em junho de 2004, já se prevê a expansão do formigueiro.

r e
avi
ni X
Rao

31
Dôra Limeira
Ilustração por Raoni Xavier

D
ôra Limeira é barra pesada. A
tinta de sua escrita é feita me-
tade de adrenalina, metade dos
excrementos do corpo e da alma dos hu-
manos.
Dôra escreveu três livros de contos. O primeiro é Ar-
quitetura de um abandono, de 2003. O segundo é Preces
e orgasmos dos desvalidos, de 2005. O terceiro é O beijo
folha corrida

de Deus, de 2006. Desaconselho os três às almas leves e


afeitas a desmaios. Os contos de Dôra doem como uma
espremida de carnegão.
A escrita de Dôra se faz com o que sobra, o que res-
ta, o que excede dos corpos.
Encontro com Dôra quase todo sábado, no Clube
do Conto. Para brigar e beber chocolate quente. Com
o tempo que sobra, lemos e ouvimos contos nossos e
alheios. A cada novo conto de Dôra que conheço, mais
me aproximo de sua humanidade. Mais me aproximo
de minha própria humanidade. Quanto mais ela apura
o seu estilo, mais me sinto instigado a escrever melhor a
cada dia. Ninguém sai de perto de Dôra Limeira do mes-
mo jeito que chegou. Eu já disse e repito: esta senhora
é barra pesada.

Ronaldo Monte
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