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Maria

Laura Cavalcanti

TODO DIA AMANHECE NO ARPOADOR

Tecidas em tramas delicadas, as histórias de "Todo dia amanhece no Arpoador" enredam o leitor lentamente,
ao virar de cada página. Em cadência crescente, essas histórias descerram silêncios, descobrem mágoas,
dores e amores ocultos nas aparências que absorvem e confundem, transportando a vida interior de cada
personagem para a narrativa.
Com suavidade e precisão, Maria Laura Cavalcanti provoca simpatias, atiça a curiosidade do leitor, brinca
com suas expectativas e surpreende-o sempre no labirinto destes contos de atmosfera intimista. Sua escrita
que prima pelo olhar feminino, pela sensibilidade temperada por fino humor e que apreende as sutilezas e
surpresas das coisas e pessoas, tingindo com cores vívidas os gestos mais cotidianos.

para Carmen

De algum modo, o livro tem que se adaptar ao corpo, e com algum risco poder-se-ia dizer que os livros das
mulheres deverão ser mais curtos e mais condensados que os dos homens, e estruturados de tal modo que
não precisem de horas prolongadas de trabalho regular e ininterrupto. Pois sempre haverá interrupções.

VIRGINIA WOOLF, Um teto todo seu.



PEQUENO CONTO DE QUEM QUER SE ACHAR

Uma vida toda feita de pequenos gestos. Banhar, pentear, arrumar, calçar os filhos, reunir a pequena
bagunça espalhada pela casa. Folhear os papéis, e encontrar no espelho os olhos castanhos no fundo de um
rosto cansado, indagando. Raquel queria tanto que alguma coisa se alterasse, que o passado fosse passado, e
os melhores anos estivessem por vir! Queria um grande gesto.
– Maria!
O porteiro, na calçada, chamou a empregada. Maria tinha pedido licença para sair antes do almoço.
Voltaria para a janta. Ia num terreiro em Jacarepaguá. O pai de santo era bom, e Raquel percebia a ansiedade
com que Maria aguardava a hora de ir. Tinha feito o serviço absorta em suas preocupações. Toda a manhã
junto do tanque, da pia, do fogão. Até que, finalmente, bem-arrumada, com a calça justa e os longos brincos
dourados, avisou:
– Estou indo, dona Raquel! E, com um sorriso maroto: – Não esquece o milho no fogo!
Raquel quase lhe pediu que falasse ao pai de santo sobre ela. Para que lhe abrisse os caminhos, lhe
indicasse um norte. Mas, naquela tarde, depois de deixar os filhos na escola, o rumo que tomou foi o do
cabeleireiro: seu pequeno ritual semanal de feminilidade.
Ao encontro do prosaico. Nenhuma tinta do mundo conseguiria disfarçar a escassez de cabelos e a velhice
daquela senhora que saía do secador como quem acabava de cumprir, zelosamente, um dever.
– Aceita um café?, perguntou a manicure com solicitude. Raquel aceitou porque solicitude era bom e, em
certas ocasiões, fazer como os outros fazem lhe parecia prudente.
A sensação dos pés na bacia de água quente era confortadora. Paulo tinha telefonado novamente no dia
anterior, chamando-a para sair. Raquel podia agora aceitar livremente. Queria rir a vida inteira. Largar da
tristeza que a corroera nos últimos meses enquanto o cotidiano de seu casamento se desfazia em desespero
surdo. Até que fizera as malas do marido, e lhe pedira que fosse embora. Antes que tudo se perdesse. Seriam
as mesmas pessoas que tinham se amado tanto, um dia nem tão longe assim? Essa noite ia sair com Paulo, e
ia bonita.
Batom nos lábios, rímel, sombra, blush, perfume, roupa nova. Constatava em seu nervosismo a pouca
familiaridade com o arrumar-se. O coração descompassado, o estômago revirando. Maria, de volta, muito
compenetrada, pôs as crianças para dormir. Paulo já esperava embaixo.
O porteiro sorriu cortês: − Boa noite, dona Raquel!.
Raquel saudou-o semiclandestina.
O sorriso de Paulo era o de sempre, amigo.
Mas, de noite, com os olhos pregados no teto, ela pensava naquele amor de caso, que dali não passa, que
não vai além. Vestiu-se. Deixou um beijo num bilhete.
O dia amanhecia alheio a ela. Caminhava pela praia do Leblon com a naturalidade desse recomeço. Os
pés descalços na areia molhada. O marulho suave das ondas.
Subitamente deu-se conta (e, no entanto, era tão evidente!) de que aquela casa para a qual voltava era um
despojo do qual lhe custava separar-se. Compreendia com a limpidez do céu daquela manhã: estava diante
de um fim! Tinha gravado em sua mente o contorno de cada objeto arrumado deste ou daquele jeito ao longo
dos anos. Ah! a vontade de virar parede, tijolo, argamassa, soalho, fogão; de deixar-se ficar lá, imóvel, com
suas lembranças para sempre. Deixar-se morrer. A ideia assustou-a e Raquel estancou.
Mas à sua volta tudo continuava em movimento. As ondas se enrolavam na espuma, chegando até seus
pés, a brisa lhe acariciava o rosto, a cidade acordava num burburinho longínquo. Ainda assim, diante dela,
um fim! Raquel hesitou. Então, num de seus infinitos gestos corriqueiros, lentamente, voltou-lhe as costas.
Reencontrou pouco a pouco um ritmo e seu passo riscou na areia um traço de começo.

MONÓLOGO DE UM HOMEM SÓ

A lembrança da infância em Monlevade, a imagem do pai, judicioso advogado que zelara pela boa educação
do promissor primogênito, já quase se lhe apagara na mente. Apenas um vago sentimento de esforço e
dificuldade sobrevinha quando puxava pela memória. Sua bonomia logo o acudia e, cordato consigo mesmo
como sempre fora com os outros, Orlando admitia com um ligeiro sorriso que a vida lhe dera em troca
muitos prazeres: prestígio, riqueza, belas mulheres e boa comida.
Um dia, entretanto, quando ele tinha cinquenta anos e morava numa luxuosa suite no Copacabana
Palace, uma acirrada campanha eleitoral o levara de volta ao interior do país. Em Pirapora, um par de olhos
verdes abalara irrevogavelmente sua até então imbatível solteirice. Ester era filha de respeitado comerciante
local, e tinha vinte cinco anos. Já passara um pouco da idade de casar-se, e ele entendia por que: o rosto
pálido entre os cabelos dourados, o porte naturalmente nobre, o sorriso gentil e levemente irônico
distanciavam-na do próprio meio. Dos armazéns com linguiças penduradas e rolos de fumo sobre as
bancadas, dos sacos de ração e de adubo empilhados sobre o chão sujo, das mesas de bilhar das quais,
mesmo se quisesse, não poderia se aproximar, do rosário semanal orado com fervor na sóbria sala do
sobrado paterno, diante da imagem de Nossa Senhora das Graças. Das singelas ambições casadouras de suas
irmãs e amigas de infância, da gentileza tacanha dos filhos dos fazendeiros dos arredores. Dançaram foxtrote
no baile em homenagem ao prefeito local.
Sentado à mesa de jantar, na ampla sala da qual se avistava o mutante azul do mar, seus pequenos olhos
escuros brilhavam com a lembrança, por entre as pálpebras avermelhadas: ele não resistira ao recato de um
rosto ligado a pernas surpreendentemente ágeis. Ela era a mulher de seus sonhos! Orlando pediu-a em
casamento naquela mesma noite. Dois meses depois, casavam-se com grande pompa no salão de festas do
clube local.
Na lua de mel, viajaram o mundo. Na Turquia, compraram tapetes persas que se perderam numa
embarcação mediterrânea. Depois de muitos meses, sua persistência e discreta influência conseguiram
localizá-los, e hoje forravam, suntuosos, o chão do apartamento na avenida Atlântica.
Meneava a cabeça satisfeito: sempre fora generoso e deixara os filhos ilegítimos em boa situação. Como
num conto de fadas, Ester passara a transitar a seu lado, elegante, discreta e altiva, nos salões da capital
federal. Tiveram cinco filhos, criados nas melhores escolas, com as melhores roupas. Uma casa organizada
com todo esmero, a criadagem servil e a mesa sempre farta: queijo, goiabada, rosca e café passado na hora,
servido em xícaras quentinhas em bandeja de prata. Tantos amores! Tantas lembranças!
Porém agora, aos noventa anos, a voz e a memória por vezes falhavam e seus olhos se enchiam d’água.
Seu corpo pesado tinha ainda ganas de erguer-se num impetuoso “Peço a palavra!”. Sentado à mesa,
entretanto, pedia pequenos prazeres.
Certa feita, lembrava-se ainda, o desejo de pastéis de queijo e belas madeixas negras fizeram-no perder a
comitiva do então governador. Salvo engano, aquela rica fruteira à sua frente lhe fora dada quando estava no
Senado. Um pouco de doce de leite saberia bem junto com o queijo que mordiscava! Gostaria de declamar
uma poesia. Aquela!, de um poeta do Piauí: “Nossa vida é como um imenso lago azul (...)”. (Tinha também
“uma princesa de imperioso porte!”.) Entretanto, à sua volta, não havia mais convivas a escutá-lo! Onde
estavam os filhos? O sogro e os velhos amigos, onde estavam?
A toalha, a louça, os talheres reluziam impecáveis. Mas, de onde viria a feroz impaciência que
transformara Ester nos útimos anos? De seus próprios ciúmes? De sua doce e constante desatenção?
A claridade da janela aberta trazia-lhe um calor insuportável. Orlando levantou-se lentamente. Ansiava
por entregar-se, qual criança, ao torpor do sono. Seus passos pequenos e trôpegos conduziram-no à
penumbra do quarto. Tinha tido tanto! Será que o mais precioso lhe escapara?

RELANCES DE MULHER

1. FEMME

Em sua família, todos os nomes começavam pela letra D: David, Dario, Dayse e Dayres era ela, que indagava
com os olhos arregalados enquanto subia as escadas:
− Você acha que eu e ele combinamos? Acha que vai dar certo?
No corredor, ela explicou:
− Porque se der, quero levá-lo para conhecer meu pai. Para ele ver que não sou qualquer uma.
O rosto se acendeu de raiva. Francisco a tinha xingado de manhã. E logo se amainou numa resignação
ensaiada:
− Homem é assim mesmo. Mas ele é bom.
Na mesa do café, animou-se contando sua vida: casara-se aos quatorze anos, obrigada pelo pai, após a
segunda menstruação. Não sabia o que era gozar...
Ante os olhares surpresos, esclareceu:
− Estamos tendo uma conversa de adultos, com franqueza! Não é mesmo?
O marido embriagava-se com frequência e, quando chegava em casa trôpego, ela, assustada, escondia-se
no banheiro.
− Não sei como não fiquei aleijada.
Até que um dia, uma tia lhe ensinou a bater em homem:
− Sabe como fazer? Ela preparou para mim um cabo de vassoura, com a ponta de um prego para fora. E
disse: − Qualquer lugar que pegar tá bom!
Uma noite, o marido chegou bêbado. Quando tentou aproximar-se, violento, ela pegou o cabo de vassoura
e bateu sem ver. Atingiu os testículos.
Um mês depois, ele teve que operar. O médico comentou:
− Isso foi pancada que o senhor levou!
Divorciaram-se.
− Não dou sorte com homem, ela concluiu o rompante num suspiro lento. Olhou as unhas pintadas de
vermelho, e levantou-se recolhendo resignadamente a louça usada.
Na cozinha, arregaçou as mangas diante da pia, retomando súplice o fôlego e a dúvida que tanto a
inquietava:
− Você acha que Francisco gosta de mim? Acha que pode dar certo?

2. ROMEIRA

Todo mês de junho, as encostas da colina na entrada da pequena cidade se enchem de barraquinhas vindas
de todos os cantos: é o Jubileu do Bom Jesus de Matosinho, em Conceição do Mato Dentro.
Maria Inês, negra retinta de olhos vivazes e sorriso largo, vai lá todo ano. Quando menina, ia na garupa
do pai. Quando o pai morreu passou a ir com a mãe, caminhando. Agora era ela quem, por sua vez, trazia
todos os filhos nos costados de um caminhão alugado. Vinham de Guanhães, sob chuva ou sol.
− Devoção é assim – ela me explicava –, uma fé e um legado! Sob a noite estrelada, ela cozinhava o feijão
da janta em fogõezinhos de barro improvisados. Gostava do movimento e da novidade.
Nosso Senhor do Bom Jesus já lhe concedera uma graça. Seu irmão tinha caído do décimo andar do
andaime de uma construção. Os médicos garantiram que ficava aleijado. Que nada! Ele se recuperou. − Virou
pintor de paredes! Com uma grande cicatriz nas costas...
Seu marido tinha morrido de enfarte, quando moravam no Rio. Ela ficou muito nervosa nessa ocasião: −
Como pode um homem forte morrer assim, sem avisar nem se despedir? Ela não conseguia aceitar. Queria
uma explicação. O médico lhe deu muitos remédios, e quando a vizinha lhe perguntou no dia seguinte: −
Cadê Antônio?, respondeu mansamente: − Morreu!
Meses depois, na romaria, no meio de um animado forró, o cheiro de rosas rescendeu no ar. Ela parou
subitamente:
− Antônio! Antônio no outro mundo e tão perto!
− O que houve?, perguntou-lhe, surpreso, o par.
Maria Inês sorriu:
− Nada, nada. Vamos continuar!
Promessa, ela não faz não, que parece até compra e venda. Quando fala a Nosso Senhor do Bom Jesus, diz
simplesmente:
− O senhor não vê que estou precisando?

3. DEVOTA
Quando Domingas se foi, sem barulho nem alarde, do modo como sempre vivera, as saudades foram muitas,
mas resignadas, como ela mesma sempre tinha sido.
Maria do Carmo era sua grande amiga. Sabia de seu segredo: seu único e grande amor não correspondido.
Mariano, um tolo acabado! Um dia que já ia longe, em um remoto Barreiral, Maria do Carmo telefonara a
Mariano para intermediar um encontro com Domingas. Mariano escutara em silêncio a proposta da bela
Maria do Carmo e, ao final, suspirara apenas: − Ah! Se ao menos fosse você!
Maria do Carmo era mesmo linda, e amava Domingas. Nunca lhe dissera nada sobre a fracassada
tentativa. Porém, diante de seu silêncio evasivo, Domingas pressentiu a rejeição. Calou no peito as
esperanças que, a cada ano, iam ficando mais vãs. Mariano nunca mais olhara para ela. Tinha casado,
mudado de cidade e nunca mais se soube dele. Maria do Carmo também casara e mudara para a capital.
Quando Domingas se viu só, o amor profundo e silencioso que nutria por Mariano transbordou. Ela amou
a todos. As amigas foram casando, e ela amou cada afilhado que nascia. Os irmãos foram casando e ela amou
cada sobrinho que chegava. O pai morreu e ela amou mais do que nunca a mãe. A mãe envelheceu e
Domingas, cada vez mais diligente, tomou conta da mãe, da casa e dos empregados.
A esperança já havia morrido em seu peito, mas quando seus lábios tristes sorriam resignados, seus olhos
castanhos ainda brilhavam. Era assim que tinha de ser. Quando a mãe adoeceu, ela acompanhou-a até o
último suspiro. Presença infatigável. Desvelo mudo. Os olhos castanhos tornaram-se opacos, mas os lábios,
mais secos, ainda se entreabriam no mesmo sorriso triste. Ela toda foi secando por dentro.
Mas teimava em amar, e continuava a amar apesar de tudo. Amava a todos indistintamente apesar da
vaidade que a cercava; da humilhação que sentia por ter-se tornado para sempre “aquela que já tinha
passado da idade de conhecer homem”. A moça triste, sem namorado e sem lugar no círculo íntimo dos
casais. A moça velha sempre criança que continuava amando e querendo amar.
Até que o menino Jesus, parecido com o filho que ela sonhara um dia em ter, junto com sua Virgem Mãe,
santa e bondosa, a viu tão triste e resignada que cansou de vê-la assim e chamou-a para perto de si. Chamou-
a para amá-la muito, num tempo que não é o dos homens, de um modo que não é o dos homens, e que
ninguém tinha conseguido entender.

DOUTOR

Um púbis e duas coxas, deitados lânguidos num colchão. A sensualidade do quadro impregnava o quarto. Ele
sentia falta de mulher! Há dois meses não tinha uma... Meu Deus, em alguns momentos de sua vida, com
toda a alma, desejava ardentemente uma companheira que o entendesse. Alguém para ficar juntinho sempre.
Ainda que – admitia para si mesmo – depois de anos de convivência fosse natural que cada qual viesse a ter o
seu quarto. Queria desesperadamente um filho. Já tinha feito um espermograma. O resultado não acusara
nada, tudo bem. Aliás, aproximava-se a hora de fazer um novo checkup.
Eduardo respirou fundo. Ia sair com Lídia e precisava acalmar-se. Soltou o bipe do cinto, desabotoou a
camisa e deixou-se cair na cama. Tinha tido um dia duro. Uma cirurgia, um câncer no esôfago, começara às
dez da manhã e terminara às cinco da tarde. Depois uma emergência. A colega, ainda por cima, desentubara
um doente antes do tempo. Ele ficara roxinho, mas salvara-se. Muita adrenalina no sangue. Às vezes, suas
mãos tremiam e o braço esquerdo travava. Mas ele já sabia que passava. Mantinha a calma, e mesmo a frieza.
Seus lábios apertaram-se: não, definitivamente, não queria uma úlcera, nem um enfarte.
Enfiou-se num roupão. Sua ansiedade lhe era, por vezes, insuportável. Tomou um calmante. A memória
da morte de um paciente sobreveio nítida. A ambulância sem combustível para buscar uma bolsa de sangue
em outro hospital. Uma fina angústia o invadiu e, com ela, a vontade premente de desistir de tudo. Encheu
meio copo de uísque e saboreou-o em pequenos goles. Precisava fugir de vez em quando. Sua especialidade, a
anestesia, detinha o maior número de viciados e suicidas, segundo uma estatística norte-americana. Aqui era
muito pior!
Ligou o chuveiro, e logo a água morna acariciou-lhe o corpo. Enxugou-se com a toalha felpuda. Olhou-se
no espelho. A cara de garoto resistia aos anos e o envaidecia. No armário, um jeans da Elle et Lui, uma
camisa branca, um cinto bleu, blanc, rouge e o blazer de linho índigo aguardavam-no. Porém o valium
começou a fazer efeito e a imagem do rosto firme de Lídia nublou-se. A expectativa do jantar marcado
arrefeceu e dissolveu-se junto com o almejado horizonte de fins de semana regados a família, churrasco e
cerveja. Ele se deitou apenas a tempo de ouvir sua voz rouca e solitária murmurar num soluço desconsolado:
− Não conheço mesmo a felicidade.
No dia seguinte, o despertador tocou cedo. Eduardo levantou-se, vestiu-se e tomou o café
mecanicamente. Pediu ao caseiro que prendesse os cachorros e tirasse o carro da garagem. Encostou-se na
poltrona e respirou fundo, projetando o queixo. Deu a partida, engrenando corpo e carro a uma só vez.
Precisava chegar às oito no hospital.

CASAMENTO

No topo da escadaria da igreja, entre a parede externa e a porta central aberta aos convidados, Rafaela se
mantinha ereta e rija. Suas cunhadas, mãe e tias da noiva, em veludo, tafetá e seda, recebiam a todos com
sorrisos afáveis, maquiagem cuidada e cabelos penteados. Ela, entretanto, como um pequeno animal fora de
seu ambiente, guardava a defensiva. Acenava secamente com a cabeça, e colocava o rosto à distância nos
cumprimentos, de modo a não arriscar danos à grossa camada de pó de arroz que lhe cobria a face. As mãos,
pequenas e magras, ajeitavam nervosamente os cabelos. O vestido de lycra azul, estampado com pequenas
flores amarelas, desenhava seu corpo decididamente equilibrado sobre saltos altos prateados.
Ela e Miguel eram um dos casais de padrinhos da noiva. Diante da igreja já quase repleta, ela esperava
por seu par, que tardava em aparecer. Os padrinhos já se enfileiravam. E ela ali, sem saber ao certo...
Finalmente o avistou, enfiado num terno azul, conversando displicente num degrau próximo. Os primeiros
acordes do órgão soaram solenes. Miguel acercou-se, deram-se os braços e o cortejo entrou, anunciando a
chegada da noiva.
A voz monocórdia do padre enchia o ar: − Na felicidade e na dor, na riqueza e na pobreza, para sempre...
Seus lábios crisparam-se ligeiramente, e os olhos umedeceram turvando-lhe a vista. Logo, porém, o convite
para o coquetel num hotel na Savassi foi anunciado em alta voz, e Miguel tocou-lhe a manga do vestido,
oferecendo-lhe novamente o braço para acompanharem a saída dos recém-casados.
Na recepção no hotel, depois de um uísque, no meio da alegre balbúrdia reinante, ela murmurou no
ouvido da cunhada, que recuou constrangida: – Ele não é mais meu! Naquela manhã, Miguel enchera-se de
coragem e tinha finalmente lhe contado o que ela já sabia há muito: tinha outra mulher.
No dia seguinte, uma parte da família encontrava-se novamente num churrasco em um condomínio nos
arredores da cidade. Lá estava também Rafaela, sentada num banquinho com saia justa e rosto bravo.
Soprava um vento gelado que a obrigava a pôr e repor o casaco sempre que as nuvens encobriam o sol ainda
forte de abril. Rafaela tomava cerveja, beliscava pedacinhos de carne que o sobrinho, compenetrado, assava
com o pai. Balançava as pernas cruzadas, tinha vontade de conversar. Disfarçou com auxílio do jeito
agressivo, mas a cerveja já a descontraíra e a vontade era maior. A carne com gordura e a farofa com ovo
eram gostosas, e felizmente – ela comentou com a sobrinha – não precisava se submeter a restrições
alimentares. Já tinha tido entupimento total da coronária: – Isso mesmo! Mas como não queria
aposentadoria por invalidez, foi empurrando a licença até completar dois anos, mesmo arriscando um
enfarte. Quando finalmente foi fazer o exame para definir a operação, seu organismo tinha feito uma artéria
por cima do pedaço entupido. Ela sorriu satisfeita consigo, e pôs raiva no seu canto de vitória:
– Minha cabeça é muito boa! Não vou deixar acabarem comigo por qualquer coisa!
Miguel chegou, e logo se aproximou do irmão que não via há muito: – João, meu querido caçula!,
exclamou, abraçando-o entre afetuoso e irônico.
– Quer pitar?, perguntou-lhe, detendo-se por um instante a seu lado. João nunca fumara. Diante da
esperada recusa, Miguel abriu um sorriso matreiro e explicou que só fumava quando bebia, sendo essa a
razão pela qual era alcóolatra. Prosseguiu os cumprimentos e logo voltou para o lado do irmão:
– Quer ver minha casa recém-reformada, pronta para ser alugada?
João aceitou e os dois caminharam com vagar pelas ruas estreitas e sombreadas do condomínio até a
casa, erguida no topo de uma pequena colina gramada. Era uma bela casa com paredes de pedra, janelas
envidraçadas e uma porta de madeira maciça adquirida na demolição de uma capela barroca do sertão
mineiro. Miguel retirou um molho de chaves do bolso da calça e, uma a uma, experimentou-as
pacientemente na fechadura. Em vão: – Por que diacho não conseguia abrir com suas chaves a porta de sua
própria casa? Resignou-se. Por sorte o pedreiro, que lá estivera pela manhã, tinha deixado a janela de um dos
quartos apenas encostada. Pularam-na, e Miguel mostrou então a João os cômodos amplos e vazios, onde
morara com Rafaela e os dois filhos por nove anos.
Seguiram de lá até o Belvedere, de onde as montanhas se estendiam em suaves ondulações até o
longínquo horizonte. Miguel sentou-se numa pedra na beirada de uma encosta íngreme, João postou-se
cauteloso a alguma distância. Dali era possível ouvir o silêncio e observar a tarde deslumbrante.
A beleza do lugar o emocionava, e Miguel comentou: − Dá até vontade de se jogar lá embaixo... Tem uns
quatro que já se jogaram... João olhou-o apreensivo. Nunca soubera exatamente o que dizer-lhe! Miguel
meneou a cabeça, e recuou alguns passos, indicando outra direção: – Ali também é lindo! Lentamente, os
dois contornaram o morro e pegaram a trilha de volta, enquanto Miguel se lembrava, saudoso, dos rios e das
cachoeiras, dos passeios e muitos caminhos da região que percorrera com sua inseparável cachorrinha terrier
preta: Lola!
Miguel contou então a João da filhinha que tivera com Lídia, sua nova mulher, em Recife, onde assumira
nos últimos três anos a almejada função de gerente de uma multinacional. Neném, era como a chamava
carinhosamente. Mandar-lhe-ia em breve uma foto!
Voltaram para a família. O cheiro da carne na brasa enchia o ar. João sentou-se numa pequena roda de
amigos. Miguel foi logo servir-se, enchendo o prato com linguiças, um belo pedaço de picanha malpassada,
um pouco de farofa. Procurou um lugar para sentar e o encontrou junto a Rafaela. Lado a lado,
silenciosamente, tomaram cerveja e mastigaram a carne.

O PRESENTE

Era uma lata de chá. Contra o preto profundo de suas faces, emolduradas por ligeiros frisos de arabescos
verdes, desenhava-se um vaso cinzento, repleto de rosas vermelho-vivo.
Há cerca de um ano, Dora a tinha pousado discretamente sobre a mesa de Eunice: – Trouxe-a de
Londres, para você! Eunice se lembrava da surpresa com que tomara o presente nas mãos, apreciando a
gentileza da colega. Lembrava-se também de que, no final daquele dia, não quisera levá-lo para casa. Sua
beleza miúda e escura a afligira. A latinha lá ficara, pequenina presença num canto de prateleira, junto com
as quinquilharias que tornavam o ambiente do escritório mais acolhedor.
Só agora, algumas semanas depois da morte de Dora, Eunice detinha novamente o olhar sobre a latinha,
arriscando-se a tocá-la, apalpá-la, abrir-lhe a tampa e aspirar o cheiro adocicado do chá inglês: Whittard of
Chelsea – Darjeeling. Quanta saudade!

* * *

Durante seis anos, Dora e Eunice haviam trabalhado juntas na seção de pesquisa do Museu de História
Natural. Dora tinha 50 anos e trajava-se com apuro. De preferência, saias e vestidos de cores sóbrias: azul,
bege, amarelo, em suaves tonalidades, que acompanhavam a limpidez dos olhos no meio do rosto cheio e
rosado enfeitado por cachos alourados. Eunice era mais jovem. Muito magra, seus cabelos escuros,
compridos e lisos emolduravam um rosto pálido e ensimesmado. Quando ela falava, entretanto, os olhos
castanhos adquiriam um brilho súbito, e se penduravam no interlocutor como num pedido de socorro.
A mesa de Dora, grande e lustrosa, ocupava o centro da sala, próxima às janelas que deixavam entrever o
pé de abacateiro debruçado sobre a varanda. Eunice ocupava uma mesa lateral, menorzinha, cheia de papéis
e livros, sempre desarrumados.
Dora costumava chegar cedo, antes do horário estabelecido. Recostava-se em sua poltrona giratória,
tirava suaves baforadas de cigarro e, entre petulante e resignada, aguardava a chegada dos colegas com a
leitura do jornal diário ou da revista semanal. Era geralmente interrompida por Eunice, que a saudava
esbaforida, ansiosa pelo mergulho diário nos afazeres e assuntos do trabalho. Os olhos azuis de Dora
erguiam-se então molemente, perscrutavam, solenes, a alma da colega, e enquanto se afastavam irônicos,
seus lábios murmuravam um seco “Bom-dia!”.
Um dia Eunice tinha chegado especialmente aflita. Vestia uma calça cor de abóbora, uma blusa de malha
azul marinho e calçava um tênis verde. As cores fortes e contrastantes lhe davam um ar especialmente
juvenil. Correra tanto para chegar no trabalho! Sua filha tinha febre, a empregada atrasara, enfrentara um
imenso engarrafamento no túnel (tinha claustrofobia e quase sufocara lá dentro!). Como se tudo isso não
bastasse, o ex-marido queria namorá-la, e o filho menor, de dois anos, perguntava ininterruptamente por ele.
– Não sei o que fazer!, ela exclamou com a voz embargada. Seus olhos meigos e tristes fitaram a colega.
Dora era discreta em tudo, sobretudo quanto a si mesma. A ansiedade latente de Eunice já a incomodava
normalmente. Explícita então, soava-lhe insuportável. Pigarreou, enrolou as mãos no colar de pérolas que
adornava o colo claro. Levantou-se displicente, ajeitando a blusa de malha sobre a calça de linho, e
aproximou-se sorrindo:
– Ora, maridos... Para que maridos!? E prosseguiu com ares de douta sapiência: − Você tem uma boa
empregada? Mesmo chegando atrasadas, empregadas são muito mais importantes que maridos!
Eunice sorriu. A excentricidade de Dora a desconcertava. Dora conversava em alemão pelo telefone,
devorava best-sellers nos fins de semana. Fumava com elegância dois maços de cigarros por dia. Afirmava
sentir-se em casa em poltronas de avião. Ah!, os amplos saguões de confortáveis hotéis, o farto café da
manhã, a presteza do serviço de atendimento. Isso sem falar na eficiência dos aeroportos e na solicitude das
aeromoças! Como se a vida prática encontrasse nesses ambientes a tonalidade ideal para sua preguiça
aristocrática. O mundo dos seres mortais emergia medíocre e, sobretudo, parecia-lhe não merecedor de seus
esforços. Quando voltava às atividades cotidianas, trazia consigo o véu da afável impessoalidade dos
viajantes frequentes. Sua fina inteligência virava então orgulho associado a uma discreta e prazerosa boemia:
nada como um copo de chope gelado com batatas fritas ao fim do dia. (“Às favas com o colesterol!”)
Durante muito tempo, Eunice sorriu com a lembrança da frase sobre a desimportância dos maridos, que
vinha sempre acompanhada da imagem branda de sua locutora. Até que seus sorrisos diante dos irônicos
achados de Dora foram substituídos pela preocupação.
Uma inesperada sequência de infortúnios e contrariedades irrompera na vida da colega. Primeiro, o
marido resolveu casar-se com a amante de muitos anos. Dois meses depois, sua mãe morreu de um ataque
cardíaco fulminante. Nessa mesma época, seu filho mais velho, piloto de voos internacionais, casou-se em
Sidney. Como se nada disso bastasse, o filho mais novo decidiu estudar hotelaria na Áustria!
Dora descobriu que tinha um câncer e, na sequência da notícia, teve um enfarte. Recuperou-se do enfarte,
enfrentou o câncer com coragem. Manteve o porte, submeteu-se à quimioterapia e, alguns meses depois, a
uma bem-sucedida cirurgia. Seu filho mais velho veio então acompanhá-la, com a jovem esposa e o bebê
recém-nascido. Sua casa alegrou-se novamente e ela decidiu terminar a recuperação em Londres, numa
clínica especializada.
Quando voltou e retomou o trabalho, seu riso tinha se tornado leve e franco. Organizou sobre a mesa uma
pasta de “Problemas a resolver”, e parecia de fato decidida a enfrentá-los.
Nos seus olhos azuis, cada vez mais límpidos e atônitos, a solidariedade brilhou, como agora reluziam,
nas mãos de Eunice, as rosas vermelhas contra o fundo preto da lata de chá.

ORAÇÃO

Nas horas de aperto, ela murmurava uma curta jaculatória: “Coração do Divino Jesus, providenciai!”, e
mentalizava DIVINO, em letras vermelhas maiúsculas. Assim tudo, a seu tempo, se resolveria.
Rezava também três vezes por dia para Nossa Senhora da Cabeça. Sim, porque a cabeça de seus entes
queridos precisava ficar mais forte: Nossa Senhora da Cabeça, protegei Afonso, Juliano, Jorge, Edmundo,
Roberta e Cida. Todos os dias, três vezes por dia, Sílvia desfiava perante o pequeno altar doméstico uma
longa lista de pedidos. No seu quarto de dormir − sobre o mármore rosado da gaveteira de peroba clara que
trouxera consigo das longínquas terras nortistas, ao lado da imagem de Nossa Senhora −, ela havia colocado
a linda escultura do Menino Jesus de Praga, com cabelos louros cacheados, roupinha branca debruada de
renda e o cordão de ouro do relógio de bolso de Estevão, seu finado marido, amarrado na cintura. Ao seu
lado, a escultura da Nossa Senhora da Cabeça. Silvia agrupava os pedidos conforme a natureza do problema e
o estado de suas relações com o alvo de suas preces. Enunciava-os então para a Santa Mãe e seu divino filho
em pequenos grupos, cada um seguido de cinco ave-marias. Tudo, um dia, haveria de dar certo!
Ao longo dos anos, conforme os filhos foram crescendo e saindo de casa, imagens de outros santos
tinham se amontoado no oratório. Lá estavam agora também Nossa Senhora Aparecida, Nossa Senhora das
Graças, Nossa Senhora das Dores, Nossa Senhora da Conceição, além de Santo Antônio, São José, São
Sebastião. Velas ardentes eram acesas a cada semana. Silvia orava por todos. Começava pela humanidade
inteira, mesmo por aqueles que não compartilhavam de sua mesma fé. Aos poucos ia restringindo o alcance
de seus pedidos e concentrava a atenção nos filhos. Detinha-se, zelosa, em cada um deles. Conhecia-os tanto
e tão bem. Afonso, tão inteligente e orgulhoso, malcasado! Juliano, bom filho e marido, mas dado a súbitas e
inexplicáveis neurastenias. Edmundo, introvertido e nervoso, amante da boa música, advogado e convicto
solteirão. Roberta, determinada e vaidosa, flautista talentosa, casada com um rapaz remediado, mas de boa
família, mãe de seus três netos. Cida, sua caçula, excessivamente tímida, era intelectual e tinha teimado em
escolher um modesto professor universitário para marido, e estava grávida de gêmeos! Ela sempre pulava
Jorge, seu terceiro filho, propositalmente. Costumava a deixá-lo para o final de suas preces. Jorge, tão alegre
e afetuoso. Uma unanimidade: era mesmo um amor de pessoa!
Mas justamente, a cada ano que passava, era ele quem mais a preocupava. Por vezes, ela chegava a achar
que não havia mesmo mais jeito! Já o havia levado a uma famosa psiquiatra que lhe dissera: − Dona Sílvia, a
senhora quer cuidar dos seus filhos até depois de sua morte: deixe-os mais soltos! Ao lembrar-se desse
conselho, ela suspendia os ombros, aproximando-os do peito e virava para cima as pequeninas palmas das
mãos, confirmando com o gesto a sensação de esgotamento de todos os recursos a seu alcance. Sua cunhada
já lhe falara de outro psiquiatra capaz de curar o vício da bebida e o gosto pelas apostas. Ela falara com Jorge,
mas nada feito: ele não queria ir!
Sílvia conhecia a dedicação total aos seus, a compreensão propriamente parecia escapar-lhe. Talvez Deus,
em sua infinita misericórdia, soubesse o porquê de tanto descaminho, apesar de seu transbordante amor.
Sílvia entendia de algumas coisas como ninguém. Era preciso vencer na vida, e a pior de todas as tristezas
era a pobreza. Sim, essa ideia a compadecia, e rezava muito por todos a quem a penúria, as dificuldades ou
mesmo a falta de juízo financeiro ameaçassem. Não que ela mesma se considerasse um exemplo, longe disso!
Tinha tantos receios! Há muito desistira de pôr os pés na rua. Depois do constrangimento e do desprazer de
encontrar, num chá na Colombo, Estevão com uma de suas amantes. Era mais sábio ficar: que o mundo
viesse até ela, e servir-lhe-ia de bom grado um suco de maracujá. Afinal, o telefone fora inventado para quê?
Renovava periodicamente a decoração da casa onde se sentia, afinal, em segurança, e cuidava que as roupas
estivessem sempre limpas, cheirosas e bem passadas e a cozinha, senão farta, ao menos apetitosa. Vez por
outra empenhava uma joia. Impressionava-a o fato de seu caseiro, que ganhava dois salários mínimos,
prestando-lhe bons e necessários serviços, achar a quantia “mixuruca”, quando ela mesma via-se às voltas
com limitações. Se o troco de algumas compras faltava, fechava os olhos, e deixava passar o ocorrido. Como
sempre fizera, por sinal, com Jorge, que lhe tirava pequenas somas de dinheiro diariamente da carteira, ou
da gaveta. Havia ainda o sumiço da espada dada a seu pai, herói republicano, por uma subscrição popular.
Era toda folheada a ouro e com rubis incrustados no cabo e na bainha. Quando seu pai ainda era vivo e
moravam todos no sobrado da rua Frei Leandro, nos dias de seu aniversário sua mãe abria com cuidado o
estojo que a guardava e a espada reluzia solene no aparador da sala de visitas, onde ele recebia as
homenagens dos amigos. Teria sido Jorge o possível autor desse lastimável furto? Silvia se entristecia e orava
por Jorge com devoção redobrada. Afinal, ele era tão bom! Sempre disposto a ajudá-la, a trazer-lhe
presentes, frutas e afeto. Seu amor era uma rocha e mantinha-o perto de si. Mas em meio ao murmúrio
infatigável de suas orações, por vezes cansava e admitia que as coisas nunca, afinal, saíam como ela queria.

VITÓRIA, À MERCÊ DOS HOMENS
Parecia ter descoberto que tudo era passível de aperfeiçoamento, a cada coisa se
emprestaria uma aparência harmoniosa.
CLARICE LISPECTOR, “Amor”

A ordem e a harmonia impunham-se todo dia a ela como uma necessidade imperiosa. Como a água que
sorvia em pequenos goles e escorregava pela garganta seca. A cada dia, quando suas pálpebras erguiam-se
ainda pesadas do sono propiciado pelo Dormonid, e o corpo amolecido espreguiçava na cama, os olhos ainda
inchados − de choro ou da vontade de chorar ? − buscavam ávidos à sua volta um pequeno traço que fosse do
sentido de utilidade e destino cumprido que emana das coisas belas. Fixavam então o pequenino urso,
esculpido em rosa-croceta − a pedra nacional da Argentina, dissera-lhe um dia a vendedora de uma loja de
bijuterias em Foz do Iguaçu.
Mas a pedrinha, esculpida em forma de urso, provinha do norte, do norte distante, era um talismã hopi,
comprado num museu das culturas indígenas do Meio-Oeste em Tucson, numa viagem com Carlos há menos
de um ano. O urso/pedrinha a fascinara desde o primeiro instante. Inteiriço em sua pequenez, camadas de
cor, que iam do branco e rosa claro ao vinho, se sobrepunham nele como babados tombando uns sobre os
outros até chegarem às patas inteiramente brancas. Roliça na parte traseira, o pescoço e o peito alinhavam-se
em diagonal, da ponta erguida do focinho até as patas dianteiras. Uma seta incrustrada em jade azul partia
da boca indicando o centro da pequena rocha onde um coração parecia pulsar. Manchas brancas
arredondadas sobre um fundo cor-de-rosa enfeitavam suas costas. No topo do focinho, dois olhinhos,
também em jade azul, fitavam-na − “O que queres comigo?” – indagavam docilmente. O lindo animalzinho
se acomodara prontamente em sua mão, como se seu sempre houvesse sido. Ela, posto que o escolhera, tinha
personalidade! Dissera-lhe o vendedor. Personalidade …
Pois bem, toda aquela personalidade lhe escapara qual pó quando, dois meses depois, ao buscá-la no
Galeão na volta de uma viagem de três semanas a Cuba para uma oficina de roteiro com ninguém menos do
que Gabriel García Marquez, Carlos lhe anunciara, assim mesmo a seco, que se apaixonara por uma jovem
filósofa e pretendia sair de casa.
Vitória, sentindo o chão faltar sob os pés, o ar escassear à sua volta, e a polidez habitual esboroar-se
diante de feroz indignação, reagiu extremadamente:
– Se assim é, que seja agora!, disse-lhe sem dó de si. No dia seguinte, todas as malas de que dispunha
enfileiravam-se na sala com as roupas e pertences de Carlos.
Desde então, se pudesse jamais pediria nada a ninguém, nem se queixaria de nada nunca, manteria a
aparência serena como sua mãe lhe ensinara a fazer. Gestos suaves, muita observação, percepção fina das
coisas. Toujours, quelque fois, jamais. Bons modos à mesa e um bom homem ao lado, a garantir-lhe um
certo estado de coisas. Roupas elegantes e o cabelo sempre penteado. Aparentar era sua forma de ser. Não no
sentido corriqueiro de aparentar como uma coisa oposta aquilo que se é realmente, não, isso seria mesmo
tolice e completo equívoco acerca de sua natureza. Isso se chamava falsidade, e Vitória era sincera. Nela, a
aparência era revelação. Era a alma das coisas aflorando, como o coração do pequenino urso.

Vitória tomou coragem e levantou-se. Precisava arrumar-se, o que incluía também aulas diárias de
alongamento, frequentadas com abnegação. Tudo afinal exigia exercício constante e regular. Um copo de
lima, um cafezinho e era só atravessar a rua e obedecer ao comando ritmado da professora: um-dois, um–
dois-três; ou um-dois-três-quatro. Sem pensar em nada. Na volta, depois do banho frio que ajudava a manter
a pele jovem, entrava no espaçoso closet, agora inteiramente seu e dedicava-se ao cultivo de seu incrível
talento em combinar tecidos, formatos e cores.
Era uma manhã clara e amena de maio. O desejo de contraste pediu-lhe o negro. Foi assim que, quando
cruzou apressada o hall espelhado, o engenheiro, que passava para verificar um reincidente vazamento na
garagem do prédio, não pôde conter um sorriso amistoso e o desejo de um dedo de prosa com aquela senhora
dona que saía para o dia com o charme e a modéstia de uma princesa nata.
Vitória calçava uma sandália de tiras de couro preto entrelaçadas com um pequeno salto, uma calça
também de couro preto e macio lhe moldava coxas e nádegas no exato limite do sensual. Uma blusa de crepe
sem manga fechava-se na frente com botões de madrepérola em forma de rosácea, um decote redondo
deixava entrever os ossos finos das clavículas. Três largos anéis de prata brilhavam em seus dedos e uma
pulseira larga como que firmava seu punho direito. O pescoço se erguia quase tão esguio quanto o de uma
mulher pintada por Modigliani, e seu rosto largo e ovalado parecia equilibrar-se sobre ele.
Alguma coisa, porém, se interrompia entre o rosto e os cabelos. Ruivos de brilho acobreado, eles outrora
lhe caíam em cachos até os ombros. Entretanto, depois da separação de Carlos, a rebeldia daqueles cachos
havia começado a surpreendê-la. Por mais que os penteasse, por mais que neles aspergisse discretamente um
sensacional fixador francês, não havia como garantir para que lado e de que modo eles tombariam no
instante seguinte. Seus cachos haviam se tornado uma fonte de transtorno permanente, a lembrar-lhe os
dias, também eles soltos e desordenados, em que, com a cadela Branquinha, uma vira-lata dada por sua
antiga babá, e com Carlos, então órfão recente de pai e mãe, saíra da casa paterna na avenida Delfim Moreira
para ir morar numa pequena casa de vila na Glória. Sua mãe lhe dissera então, com uma secura triste e
funda: − Minha filha, sair do Leblon é fácil. Difícil é voltar! Seus incontroláveis acessos de fome na
adolescência, os seios fartos, o corpo inchado e dolorido durante a primeira e difícil gravidez, tudo isso lhe
vinha à memória tão dolorosamente junto com os cachos rebeldes que decidira cortá-los. Afinal, não era mais
uma garota, e muito menos uma ex-hippie. Num belo dia, límpido e manso como esse, cortou-os, junto com
sua inocência, na altura do queixo de modo a ficarem bem lisos e comportados.
Vitória tinha um encontro marcado com o possível patrocinador do novo filme de Silvinha White. Não era
o trabalho que mais lhe agradava, porém, nos últimos tempos, a inspiração para escrever argumentos, e
sobretudo desdobrá-los em roteiros, se arrefecera. Voltara-se para produção, em sua parte mais árida:
arranjar a grana. Conseguir o contato com Roberto Kael lhe custara horas, dias a fio, em muitos telefonemas
para Brasília, Casa Civil, alto escalão, empresários, amigos influentes etc e tal. Uma lei de patrocínio infernal
criara uma verdadeira selva, a ser desbravada, entretanto, com a leveza e a habilidade que se orgulhava de
dispor. Respostas rápidas sempre gentis, o sentido do momento certo e da exata espera. Ligou hoje, amanhã
não liga, liga na sexta-feira, ou, melhor ainda, na segunda, para não dar sinais de latente ansiedade com
relação à resposta, e depois aguarda as duas semanas seguintes, tempo suficiente para as negociações se
encaminharem. Aí então sim, usar de todos os recursos para falar diretamente com o homem da decisão.
Pedir sem incomodar, sem aparentar necessidade, pedir sem passar a impressão de que não há
alternativas e o interlocutror é a tábua de salvação sem a qual tudo, irremediavelmente tudo que foi
idealizado e detalhadamente planejado, naufragará. Pedir de igual para igual ou, melhor ainda, com um
ligeiro ar de superioridade, dando a impressão de que se a resposta vier afirmativa não fará senão se somar a
outras fontes desejosas de unirem seu nome a um magnífico e digno projeto cuja grandeza e talento reunidos
saltarão aos olhos do público e enobrecerão o nome do patrocinador. Pedir como quem dá ao outro o prazer
de desfrutar de uma companhia inteligente e sensível, que sabe fazer graça e retirar-se na hora certa. No
fundo, no fundo, era tudo muito parecido com a regra básica da malandragem que, Manuelzinho, o servente
manco de um antigo emprego, uma vez lhe formulara com encantadora sabedoria: − É preciso, dona Vitória,
saber chegar, saber ficar e saber sair. Era afinal uma profissional.

* * *

Roberto fora muito gentil. Revelara claramente interesse pelo projeto, mas ainda não podia lhe garantir o
valor disponível. Isso significava que o final das rodadas de hábeis telefonemas, da expectativa diária por
respostas afirmativas, ainda não estava no horizonte. Era preciso continuar a pedir, constatou num suspiro
profundo. Pensava com ironia que, em vida, seu pai havia atendido a tantos pedidos... E ela, sua única filha,
já tivera que ouvir de uma amiga, cujos pais muito deviam ao seu, que “favor custa caro”... Engoliu em seco,
seu corpo recostou, cansado, no banco traseiro do táxi.
Seus olhos divagavam molemente pela enseada de Botafogo quando o celular tocou. Era Ralph, em mais
uma de suas meteóricas passagens pelo Rio de Janeiro. Sim, ele estava como sempre hospedado no
Copacabana Palace. Chegara pela manhã, estava voltando de um almoço que se alongara demasiado. Tinha
um compromisso para jantar, mas das seis às oito e meia estaria livre. Por que ela não vinha encontrá-lo para
um bom papo e um drink na piscina do hotel?
Vitória hesitou por um instante. Consultou mecanicamente a agenda. Estava indo para o escritório de
Silvinha acertar alguns detalhes pendentes da produção, em especial a porcentagem a ela devida, caso o
patrocínio da empresa de Kael se efetivasse. Sim, sim, às seis já estaria livre e iria encontrá-lo.
Um homem bonito, um ótimo papo, e a certeza de que nunca passariam disso. Sobre essas bases tinham
acabado por construir uma amizade feita de tranquila expectativa e muita conversa. Cheia de pronto
entendimento, sobretudo com relação ao que nunca fora e jamais seria dito. Em silêncio haviam acordado
que assim seria. Uma coisa de louco, vista de fora, mas tão profundamente reconfortante quando
experimentada de dentro! Não, definitivamente não queriam correr o risco de arranhões e fraturas. Paravam
na soleira da própria porta, saudavam-se cordiais e apreciavam a inesperada ordem e harmonia que emanava
de seus encontros.
Tocavam-se apenas ao saudar-se e, sentados face a face nas confortáveis poltronas brancas que ladeavam
a piscina, usufruíam doce e intenso prazer com a mútua companhia. Um dry martini seco e lúcido. A brisa da
tarde. Um pacto de muito tato e respeito mútuo. Sem subterfúgios, trocavam planos, roçavam frustações,
riam de boas histórias, analisavam os tempos sempre difíceis. Soterravam entre as cascas salgadas dos
pistaches a fragilidade, a angústia, e quem sabe mesmo algum erro irremediável, tão profundo e antigo que
ambos tinham por certo jamais poder encontrar diante de si alguma coisa parecida que fosse com a
estabilidade. Mas sorriam e, sabendo seguro o terreno tão educadamente cultivado, saboreavam os minutos
da discreta aventura. Os minutos preciosos corriam, entretanto, dolentes.
Às vezes Vitória sonhava, e nos seus sonhos Ralph era seu príncipe encantado, montado em cavalo
branco, lança à mão, a salvá-la de uma vez por todas. Não pediria então nada mais nunca. Tudo teria,
adornado com talento e requinte. Tudo escolheria, do bom e do insólito. Reinaria em domínios por ela
tornados mansos e elegantes. Chamaria amigos, muitos amigos, todos bem posicionados e, sobretudo,
agradáveis e cultos. E Ralph ali ao lado, sempre a seu alcance, com seus quadros, poemas e a intensa vida
interior que ele, desavisado, lhe permitia, por vezes, vislumbrar. Sempre ali, afável e, quem sabe, amante,
pronto para atender a seus pequenos caprichos, adivinhar seus desejos secretos, a desentranhar, gentilmente
é claro, os tortuosos e confusos caminhos em que seus pensamentos mais razoáveis tantas e tantas vezes se
perdiam. Ralph. Mas Ralph já pedia a conta ao garçom e indagava, solícito, se ela gostaria de uma carona. Ia
para o Flamengo.
Um leve rubor subiu-lhe às faces, chegando mesmo ao lóbulo das orelhas, e um lampejo de raiva flamejou
nos olhos. Às vezes era como se ele lhe concedesse audiências! De tal hora a tal hora. Hora para começar e
para acabar. Nenhum compromisso desmarcável, nenhuma fração de tempo solta podendo estender-se até,
talvez, quem sabe... Um convite para jantar, o desejo ou a curiosidade mais claramente assumidos... Não,
não, nunca passariam disso. Ela era, talvez, correta demais, e ele, talvez, cauteloso em excesso. Ambos
igualmente bem-educados não se dispunham a arriscar um passo incerto. Antes assim. Seus lábios roçaram-
lhe as bochechas em dois beijos suaves. Ele afagou-lhe carinhosamente os ombros. Seguiriam direções
diferentes, continuariam a conversa pelo correio eletrônico, e ela voltava para casa, onde o namorado, sim,
Marcelo, seu namorado, já a devia estar aguardando.

* * *

Marcelo lá estava. Ultimamente parecia querer chegar-se cada vez mais. Quando se aninhava em seus braços,
experimentava imensa doçura, e deixar-se-ia ficar ali para sempre. Era um homem bom, bonito também. E
gostoso. Cheiro de homem, gosto de homem, entrega quente e silente. Tinham seus segredos, verdadeiros, só
seus. Mas ele a desconcertava e Vitória tinha muitas dúvidas.
Marcelo a presenteava. Surpreendera-a no aniversário com um colar de ouro fosco e um pequeno
pingente de esmeralda. Ela adorava esmeraldas.
Marcelo compartilhava com ela o gosto pela casa – assistiam a muitos vídeos em longas jornadas noite
adentro. Gostavam de deixar-se ficar, como que se apaziguando mutuamente. Nos dias arrastados de
domingo, degustavam petiscos e tomavam chope acompanhado de copinhos de steinhagen. Eram capazes de
passar horas a fio rindo muito. Em tardes ensolaradas, o tempo escorria molemente no frescor da sala
refrigerada. Essa felicidade se interrompia, contudo, pontualmente às cinco da tarde para o jogo de futebol. A
monotonia daquele tempo ôco aos olhos de Vitória quebrava-se apenas num arrastado grito de gol, ou num
decepcionado e profundo “Aaaahhh!”. Nessas horas, não havia penteado, trejeito, dengo, traje ou petisco que
tirasse Marcelo de sua irritante concentração. Nos dias de decisão, chegava mesmo, aguçando ao extremo o
sentido de ridículo em Vitória, a vestir-se com o uniforme de seu coração tricolor, chuteiras, meias, short e
camiseta incluídos. Como se não bastasse, para constrangimento total da namorada, chegava a pendurar nas
grades brancas de sua varanda uma velha e poída bandeira, herança de seu avô pó-de-arroz. Era assim que
Marcelo – vendo o jogo no telão do home-theatre, que por sinal ele mesmo ajudara a montar, zelando pela
qualidade e posição das caixas de som, como que a antecipar o deleite futebolístico que o aguardava – virava
uma grande e repulsiva barriga espreguiçada no sofá de sua sala, a cabeça reclinada em suas almofadas, os
pés esticados sobre a sua mesinha de centro a tomar a cerveja guardada em sua geladeira, em suas belas
canecas térmicas reservadas para grandes ocasiões...
Marcelo a exasperava. Era impossível partilhar com ele suas aflições. Ele a ouvia ensimesmado, olhando-
a ironicamente de um mundo longínquo e impenetrável, como a lhe dizer: − Lá vem você com suas
abobrinhas! Vitória amuava-se e, projetada de volta num circunlóquio malsão, perdia-se em desespero
mudo, atormentada por muitas incertezas.
Por vezes também, ele a surpreendia num ataque súbito de rispidez, vindo sabe Deus de onde. Olhava-a
ferozmente nesses momentos, como se tratasse com uma potência inimiga. Com gestos de contido furor e o
rosto afogueado rompia a bonança reinante: − Não me venha novamente com essas arrumações... Já lhe
disse milhões de vezes que a caixa de som deve ficar na terceira estante e não na quarta! Virada para a
esquerda e não para a direita! Vitória olhava-o estupefata e alguma coisa preciosa se dissolvia no peito junto
com pontadas de uma dor fina que logo se acalmaria, ela já sabia, deixando tudo em volta espesso e turvo.
Achava melhor não retrucar. Sentava-se na cama, olhava as paredes e esperava que as ondas de raiva e
frustração, que se erguiam devastadoras dentro dela, se amainassem. Procurava em si mesma o que poderia
tê-lo irritado a tal ponto. Tonteava. Lembrava-se de que seus pais nunca haviam erguido a voz com ela, e
muito menos Carlos em todos os anos de convivência. As saudades e a imensa pena de si mesma que
sobrevinha viravam pequenas lágrimas a escorrerem pelo canto da face. Procurava um lenço, enxugava o
rosto, massageava-o querendo despertar de um sonho ruim. Lembrava-se, então, que o pai de Marcelo,
morto de enfarte justamente num acesso de raiva doméstico, provocado por uma mosca que lhe caíra na
sopa, tinha sido um general do exército, duro e autoritário na criação dos filhos. Era até de se admirar que
Marcelo, com tudo isso, tivesse saído uma pessoa normalmente tão amena.
Com brandura ele a esperava, sentado no sofá, assistindo televisão.
− Puxa − disse-lhe com carinho −, achei que você se tivesse perdido! Já estava quase telefonando para
Silvinha para saber o que, diabos, te retinha até tão tarde! Vitória sorriu e deixou-se cair a seu lado. Ele a
abraçou, ela recostou a cabeça no seu ombro. Um breve suspiro de conforto e amparo, e logo saíram para
tomar um chope na noite fresca.


MILENE, À MERCÊ DE SI

Já eram três da tarde quando o dia abriu sua luz branda. O vento leste afastou as nuvens e a cadeia de
montanhas, coberta de mata densa, ergueu-se solene. Um pequeno avião riscou o ar e sumiu atrás do morro
do Cantagalo, deixando no céu um rastro branco, logo desfeito em pedaços. O sol brilhou no espelho d’água.
Milene, recostada num banco à beira da Lagoa, espichou o corpo. Bocados de algodão doce derretiam-se
em sua boca e ela cerrou os olhos, querendo reter, ao mesmo tempo, a doçura e o suave calor da tarde.
Ela mesma era como aquele dia de outono, aguardando incerta o brilho oblíquo do sol. O colo, os seios, os
quadris, as coxas, os joelhos, as batatas das pernas, os braços eram roliços e brancos. Quando caminhava,
calcava firme o chão e toda ela balançava para a esquerda e para a direita. Usava sempre uma fita larga, de
preferência vermelha ou cor de abóbora, para prender os cabelos, escuros e lisos, bem rentes à cabeça.
No meio da fita, a redondeza do rosto. As bochechas salientes e rosadas, pareciam, cada uma, querer levar
a face para seu próprio lado. O nariz afilado, o queixo fino e os lábios carnudos e pequenos obrigavam-nas,
entretanto, a se reunirem. Mas, então, novamente, os olhos − dois olhos verdes e esgazeados – pareciam, eles
também, querer se afastar teimosamente da fronte, cada qual para seu lado.
Tinha o hábito de furtar-se ao olhar direto do interlocutor. Fixava a vista constantemente no chão, ou na
primeira parede encontrada, corando com frequência perturbadora. Seu corpo era presença evasiva,
querendo escapar aos propósitos alheios, embora uma surda determinação terminasse por trazê-la sempre
de volta a eles, os outros.
Era neles que pensava agora, evocando as imagens confusas da noite anterior. Muita gente à sua volta,
num burburinho caloroso, cumprimentando-a pelo desempenho na pré-estreia do espetáculo. Um rosto,
entre tantos, ia rapidamente ganhando contornos mais nítidos. Só de pensar nele, suas bochechas
incendiaram-se e o coração palpitou mais forte: Jonas.
Era um velho amigo de seus pais. Milene acostumara-se a vê-lo desde criança. Porém, pela primeira vez,
parecia-lhe que Jonas, finalmente, se apercebera dela como mulher. Repassava na memória o instante em
que, ao tomar-lhe carinhosamente as mãos, ele a abraçara com inesperado ardor. Ela tinha o rosto suado e a
respiração ainda ofegante do esforço da cena final. Quando os lábios de Jonas, cálidos e macios, lhe roçaram
a face antes de beijá-la, um frêmito percorreu-lhe o corpo, acendendo o desejo instantâneo de possuí-lo. A
ruidosa fila de amigos e parentes, no entanto, comprimia-os no exíguo espaço do camarim e logo ela se viu
envolta por outros abraços afetuosos.
Seria só imaginação ou os lábios de Jonas lhe haviam realmente roçado o rosto antes do beijo?
Surpreendera-o em seguida fitando-a, displicentemente recostado na parede ao lado da porta. Instantes
depois, já havia ido embora.
Milene ergueu-se rápida. Agora era todo seu corpo e não apenas o rosto que ardia. Era hora de voltar para
casa e repassar suas falas, calmamente, aproveitando o dia de folga. Estivera um pouco insegura na pré-
estreia. Lambeu a ponta dos dedos lambuzados de açúcar e suspirou fundo, esticando o rosto na direção do
sol. Seu pai telefonara cedo, contando que Jonas, com quem havia jantado, se dissera impressionado e
disposto a escrever para o jornal uma boa crítica da peça teatral! Milene gostaria de sacudir seus
pensamentos como o pato preto que sacudia as asas emergindo do prolongado mergulho nas águas turvas da
Lagoa. Porém, seu corpo forte e treinado esmorecia, a cabeça queria aninhar-se no próprio colo e os olhos
aflitos perdiam-se nas órbitas até pousarem aliviados num ponto fixo bem próximo: suas mãos, que tateavam
a bolsa em busca dos óculos escuros. O sol recém-surgido ofuscava.

* * *

No sinal da São João Batista, o rapaz mulato e rijo dizia, de um só fôlego, em ritmo cantado de pregão: − Eu
não sou bandido, não! Sou um vendedor de amendoim! Estou aqui todos os dias no mesmo horário.
Erguendo com o braço a lata de tinta transformada num pequeno fogareiro, prosseguia: − Olha o amendoim
quentinho, a madame vai querer? Milene queria. Logo estacionou o carro em frente da vila em que morava
na rua Sorocaba. Cabeça baixa, mochila nas costas, ela caminhou absorta em abrir o pequeno cone de papel
amarelo tão firme, quentinho e bem dobrado. Quando ergueu o rosto, diante do portão da vila, lá estava
Jonas.
Ele retornava para São Paulo e, no caminho, pensara em deixar-lhe o rascunho da matéria que tinha
escrito sobre o seu espetáculo: − Que sorte encontrá-la! Milene convidou-o a entrar e ofereceu-lhe um copo
d'água. Jonas trazia consigo o brando calor do sol outonal. Milene falava pouco, enrubescia, os olhos fugiam,
desnorteados com tanta proximidade. Até que ele lhe tomou o rosto entre as mãos. Que linda mulher ela se
tornara! Ela fitou-o finalmente. Junto com os olhos, vieram as bochechas e os lábios e, com eles, os ombros, a
ponta dos seios e o ventre. Tudo convergiu para ele. Toda ela, firme e macia, enroscada em seu sol. Os
calcanhares se ergueram do chão e ela não viu mais nada porque seus olhos viraram água.

* * *
Milene ofereceu-se para levá-lo até o Santos Dumont. Falavam banalidades no caminho: − Como estaria o
tempo em São Paulo? Deixaram o carro no estacionamento e caminharam com vagar, lado a lado, até o
saguão do aeroporto. O ruído célere de muitas vozes embaralhadas se alastrava e a agitação reinante os
envolveu. Enquanto Jonas caminhava até o balcão, Milene sentiu um tremor discreto percorrer-lhe a espinha
estendendo-se até a ponta dos dedos. Uma taquicardia agitou-lhe o peito. Sentiu frio! Seus pés falsearam,
buscando a firmeza do chão. Jonas voltava com o bilhete na mão. Olhou-a um tanto apreensivo. Pousou a
mala entre as pernas, e os braços livres convidaram-na. Milene lançou-se sobre a pequena distância que os
separava. Desmoronava. Jonas abraçou-a. Por um instante, ela buscou nele sua fonte de luz e calor. Tudo,
entretanto, tornara-se subitamente enevoado: − Time to go!, ele sussurrou mansamente. Milene voltou o
rosto para o chão e, enquanto dava meia-volta, a voz rouca de Jonas, que pareceu vinda de muito longe,
chegou-lhe ainda aos ouvidos: − A gente se vê por aí!

MATRIARCAL

Quando menina, Mariana buscava refúgio ali, na penumbra daquela igreja, nos vãos iluminados pela pouca
luz que atravessava os vitrais esmaecidos − Rosa Mística, Mater Puríssima. O ar abafado e o cheiro de vela
enchiam de torpor suas orações silentes. Sem respostas. As paredes eram agora mais claras, e as colunas
decoradas em rosa e dourado. Era a missa de sétimo dia do sogro de Vânia, já sentada no primeiro banco da
esquerda, bem empertigada, junto com os filhos e sobrinhos. Mariana sentou-se atrás, num dos bancos
laterais, e pegou o folheto pousado sobre o assento, disposta a acompanhar a liturgia que já se iniciava.
Em pé, sentada ou de joelhos, uma forte inquietação a agitava. Vinha se sentindo assim nos últimos
tempos. Esquisita. Procurava acalmar a respiração curta e entrecortada por monótonos “Demos graças ao
Senhor, nosso Deus!”. O coro de vozes inócuas logo chegou às frases da consagração e, nesse ponto, para ela,
a repetição deixou de ser mecânica. Quando menina, nunca conseguia manter os olhos semicerrados e a
cabeça reclinada sobre o corpo ajoelhado, em contrição, como prescreviam as freiras da escola. Seus olhos
sempre se abriam, curiosos, e fitavam os gestos do sacerdote, que erguia os braços em direção aos céus.
Primeiro o cálice com o vinho, do qual ele beberia um pequeno gole, precisando sempre enxugar, com um
guardanapo muito branco, as gotículas que sobravam bordejando os lábios. Logo em seguida, o momento
supremo: uma das mãos erguia novamente o cálice dourado e a outra, a hóstia redonda e grande, que
precisaria ser partida em pequenos pedaços para caber na boca: “Hosana nas alturas!”. Transubstanciação.
Vinho feito sangue e pão tornado corpo. Mistério da fé. Pensou em comungar, mas não se sentia
suficientemente purificada. À sua volta, a família parecia ter acolhido resignada essa morte que encerrava
dois anos de agonia. Nenhum arroubo de dor, só uma tristeza quieta e saudosa. Apenas o padre, contendo
soluços, tinha pedido perdão pela fraqueza emocional que não lhe permitira falar tudo o que gostaria em
louvor do amigo falecido.
Depois das condolências, ainda no vão do altar lateral, Mariana procurou Vânia. Beijaram-se sem
precisar trocar muitas palavras. Vivi e Nádia acercaram-se e a conversa instalou-se imediata. Tão animada
que Vânia, incumbida de levar a sogra em casa, lembrou-lhes, ao se despedir, que estavam ainda dentro da
igreja. As três amigas saíram, então, juntas para a rua.

* * *

Nádia, de cabelos curtos e negros como seus olhos, vestia uma calça preta e uma blusa de linho branco, em
cuja gola despontava um pequeno broche dourado com miosótis esmaltados. Vivi, com os olhos lânguidos e
amendoados e um corte chanel, trajava um vestido de linho areia com uma barra marrom na saia. Um colar
de pedras com três voltas – uma verde, outra roxa, outra marrom clara – repousava no colo emoldurado pelo
decote quadrado. Mariana usava uma saia bege, fendida um palmo acima do joelho esquerdo, uma blusa de
malha verde escura e um cordão dourado com um pingente de água marinha. O cabelo castanho e
encaracolado passava dos ombros e dava-lhe ares de menina.
Dispostas a prolongar o encontro, elas procuraram nas proximidades onde tomar um suco ou um café.
Era dezembro. O mormaço matinal, úmido e quente, tinha cedido lugar ao sol radiante do verão.
Atravessaram a rua e, num pequeno bar, logo na esquina da praça, havia uma mesa livre e à sombra. O cheiro
de peixe subia do asfalto junto com o calor; a algazarra da feira e as buzinas ansiosas dos carros enchiam o
ar. Sentaram-se, pediram chá gelado e a barulheira tornou-se subitamente distante. Tinham saudades, há
quanto tempo não se viam!
O ano tinha mesmo sido corrido! Vivi tinha realizado um sonho: casara-se com Geraldo e agora era uma
feliz madrasta de dois meninos, de 10 e 12 anos. Mas como andava agressiva ultimamente! Ela contou com
sua fala arrastada: − Anteontem mesmo, quando eu saía da casa do papai lá em Laranjeiras, caí em prantos
no primeiro sinal. O ódio que senti por ele, quando ele e mamãe se separaram há vinte anos, voltou com
força total, irretocado! Andava assim ultimamente, “feito bicho”, sem ter quê nem porquê, raivas terríveis e
tristezas infinitas a acometiam. Tão irascível se tornava que tinha até medo de estragar o almejado
casamento!
Nádia escutava atenta. Entendia perfeitamente a amiga. Não é que se vira, recentemente, muito abalada –
“a-ba-la-dé-rri-ma”, ela espaçava as sílabas como se desse notícia para uma coluna social – com a separação
recente de seus pais. Sua voz ensaiava tonalidade indignada: − Depois de quarenta e cinco anos, papai
arranjou uma nova mulher, com a minha idade, e já providenciaram um filho! Que tal? Um baque, ela
suspirou, meneando a cabeça em impotente reprovação. – Mamãe ficou muito triste e dá muita raiva. Eu
olho para ela, tão bonita, tão inteira em seus setenta e cinco anos. Papai jamais verá sua nova mulher com a
idade que ela tem hoje! Novo suspiro cansado. Tudo o que queria, ela disse, sonhadora, era envelhecer junto
com Alberto, com quem tinha comprado um lindo apartamento, tipo casa, com piscina e árvores. Sua filha
tinha gostado tanto que já organizara um clubinho, com carteirinha para os amigos. – Vocês precisam me
visitar! Vamos marcar alguma coisa para logo depois da passagem do ano, ela exclamou, já pensando nas
providências que tomaria para organizar o encontro prometido.
Mariana aguardava sua vez de entrar na conversa. Ora, ela também andava agitada e confusa. Alegre e
triste ao mesmo tempo. − Adivinhem vocês com o quê?, ela desafiou as amigas, respondendo sem aguardar
um segundo sequer. − Elena casou! Lá se foi ela, muito feliz e contente!, acrescentou ainda perplexa. Júlio,
seu marido, zombava dela que, ainda por cima, via-se tolhida da diversão de falar mal do novo genro, que era
um ótimo rapaz... Elena era sua filha mais velha e lhe parecia ser ainda ontem que explicava a dois olhinhos
fascinados pela variedade daquelas formas e cores, que todas elas respondiam ao mesmo nome de “botão”! −
Nunca – ela concluiu em desajeitada rendição −, nunca estamos preparados, quando chega a hora das coisas
que realmente importam!
Numa amizade tecida de muitas conversas, casuais como essa, cheias de sorrisos cúmplices, as três
mulheres, mais uma vez, sorriam entre si. Mas tinham pouco tempo e logo se despediram, apressadas entre
as fainas de final de ano e prometendo visitas próximas.

* * *

Esse breve encontro fez bem a Mariana. Quando chegou em casa, já de tardinha, estava mais tranquila. Ao
entrar na sala de estar, entretanto, a visão da árvore de Natal, que comprara na véspera, já toda enfeitada,
fulminou-a como um raio. Bolas vermelhas pendiam todas para um só lado, escondidas dentro dos galhos.
Bolas azúis emaranhavam-se nos ramos mais elevados e as luzinhas piscantes se embolavam junto ao
tronco... Lembrou que Jorgete, sua prestativa empregada, se dispusera a ajudá-la...
Ondas de calor lhe subiram à face. Jogou a bolsa na poltrona, descalçou as sandálias, arregaçou as
mangas até a altura dos cotovelos e, num gesto súbito, mergulhou no interior daquela árvore de Natal.
Tentava desprender os enfeites dos galhos. Primeiro delicadamente. Gotas de suor escorriam pela testa. Sua
paciência escorria junto. O pescoço começou a doer. Quebrou cinco bolinhas, que deixaram os cabinhos
pendidos nos galhos. Arranhou o rosto, catando os cacos que caíam na terra do vaso. Sujou as unhas,
tentando retirá-los. Decidiu ir então à cozinha, lavar as mãos e buscar uma tesoura para desprender o resto
das bolinhas. Ao girar o corpo, entretanto, a manga direita agarrou no fio das luzinhas e, enquanto tentava se
desvencilhar, Jorgete apareceu na porta da cozinha e perguntou suavemente: − Dona Mariana, a senhora
quer ajuda?
O fio das luzinhas puxou consigo mais umas quatro bolinhas, espatifadas no chão. Mariana surpreendeu-
se aos berros: − Não Jorgete, não quero ajuda. Aliás, não quero ajuda nunca! Olha que horror de decoração
natalina!
Enquanto gritava, o movimento dos seus braços quebrou dois galhos. Jorgete, de braços cruzados,
espiava atônita e murmurou: − Dona Mariana, coitadinha, a árvore sente! Mariana, a essa altura já sem
nenhuma compostura, quebrou mais três galhos por sua livre e espontânea vontade. O pequeno pinheiro era
pouco para tanto furor. Sentia forças para enfrentar – ao menos assim lhe parecia – uma mangueira ou um
jatobá! Com um galho de pinheiro agarrado na saia, cacos vermelhos e azuis numa das mãos sujas de terra,
noutra o pedaço de um dos galhos partidos, o rosto suado e arranhado, Mariana berrou finalmente: − E eu lá
me importo que essa droga de árvore sinta ou deixe de sentir! Eu sinto, eu sinto, eu sinto! Jogou-se na
poltrona, arfando exausta, diante do pinheiro vitorioso, ainda que despedaçado.
Jorgete lhe trouxe um copo de água: – Dona Mariana, a senhora precisa se acalmar! Com um surdo
“muito obrigada!”, Mariana conteve ainda a gana de saltar-lhe no pescoço.
O coração batia descompassado. Foi tomar ar na varanda. Andava mesmo esquisita de uns tempos para
cá. Feito “um bicho”, como dissera Vivi de si mesma. Emoções absurdas para seus padrões habituais, como
se um bicho de fato morasse dentro dela. Não era mesmo possível explicar. Era preciso viver para saber, ela
asseverou para si.

* * *

Mariana recostou o corpo no gradil. Uma brisa fresca trazia o cheiro da maresia para dentro da cidade. Com
ela, os ferozes sentimentos se acalmaram. Uma ronda de irrequietos pensamentos tomou-lhes, entretanto, o
lugar. Ela reconheceu neles uma nova espécie de assalto, pois eram simultâneos e insistentes, e guardavam
ainda algo da fúria que a assolara, dispostos que estavam a se fazer ouvir. Dessa vez, porém, ela se preparou
para enfrentá-los e, em seu estado de alerta, uma expressão os iluminou como um relâmpago lúcido: “Furor
uterino”.
“Furor uterino!?”, Mariana repetiu para si mesma, surpresa. Seu útero falava uma língua desconhecida!
Ela nunca se dera conta da extensão da força avassaladora que, trazida pela inesperada expressão, surgia
agora plena, quase despudorada.
A ronda de ideias inquietas parecia ter achado um caminho a seguir, organizou-se em fileiras e
prosseguiu no rumo encontrado. “Por que se diz furor uterino”, ela se perguntou, “e não furor vaginal?” A
resposta veio rápida e madura: “Vagina é sexo, erotismo. Útero é interioridade, ventre fértil, enquanto
puder...”.
Mariana se assustou, mas agora já era tarde demais e a fileira pensante seguiu sua decidida marcha:
“Enquanto puder, e assim reinar fecundo, gerando sementes de vida, gente. Mistério supremo”. Rosa Mística
e Mater Puríssima tornadas de volta corpo e finitude. Sem nenhum alarde ou profanação. Sentiu-se uma
verdadeira sacerdotisa, compartilhando segredos tão ancestrais como os do templo da Lua em Machu Picchu.
(Ela tinha estado lá com Júlio, há muitos anos, no começo de namoro. Haviam pernoitado no hotel na
entrada do parque, Júlio tinha tido febre alta naquela noite e delirara de madrugada chamando pela mãe. No
dia seguinte, acordara refeito. Quando a névoa forte se dissipara, eles avistaram o vale profundo e as
montanhas grandiosas com as ruínas da cidade inca. No topo de uma delas, o templo da lua que o guia
indicara na tarde anterior. Tinham subido até lá e Mariana reencontrava agora, no meio da inquietude
pensante, o sentimento com que voltara da escalada: o desejo puro e claro de deixar a vida ser.)
Suas ideias retornaram ao caminho central e ela assentiu satisfeita, crendo ter entendido afinal o teor da
expressão investigada. Arriscou então a própria definição: “Deve ser isso! Dizem acometidas por furor
uterino as mulheres que se deixam governar pelo próprio útero e, com ele, querem dominar homens,
mulheres, velhos e crianças”.
A fileira de pensamentos prosseguia em caminhos que se abriam, agora, por si mesmos. “O equivalente
feminino”, ela supôs, “da expressão ‘pensar com o pau’.” Mariana se surpreendeu com a vulgaridade da ideia.
Seus pensamentos iam ficando feios e rudes, mas prosseguiram teimosos: “Quando um homem, então, quer
ser só potência e gozo, o sexo lhe sobe à cabeça e governa selvagem seus gestos e intenções instintivos até a
parceira. Êxtase e alívio”. Ora, ela se sentia parte de mistérios infinitamente superiores a essa animalesca
simplicidade do sexo masculino.
Mariana buscou um copo de leite gelado. Agora já era um vento quente que chegava, anunciando uma
virada de tempo para a noite que engolia o céu. Alguma massa de ar frio devia estar próxima, obrigando o
deslocamento do ar, o dia inteiro intoleravelmente abafado. Sentia-se cansada, era como se pudesse apalpar
o envelhecimento, como se tocasse com os dedos a passagem célere e indelével do tempo pelo seu corpo.
“Na mulher”, ela teorizou com doutos ares feministas, “o incontrolável nada tem dessa entrega a
indomáveis instintos.” Há muito tempo descobrira que sexo e amor eram coisas diferentes. Sexo não precisa
de amor para ser. Amor pede mais. É preciso saber querer.
Na mulher, que era ela mesma, mas também – assim ao menos lhe parecia naquele anoitecer – suas
amigas, incontrolável era a fúria com que, por vezes, queria. Vivi tinha ligado as trompas para evitar o filho
tão ardentemente desejado, que ela sabia, entretanto, que não devia ter em seu novo casamento. Nádia tinha
tirado útero e ovários, depois de um aborto natural, logo em seguida ao nascimento de seu terceiro filho.
Desse jeito – ela dissera naquela ocasião com grande convicção a Mariana – resolvia esse assunto
definitivamente! Mariana, entretanto, voltava a indagar: o que exatamente se resolvia assim? Agora
compreendia que Nádia havia admitido não confiar em seu próprio juízo para conter o desejo de engravidar.
Seus olhos umedeceram.
Vânia mesmo, de seu jeito doce e seco, já tinha lhe perguntado, há menos de um mês atrás: −Por que você
não resolve isso logo de uma vez? Coragem, tudo vai ficar bem!. “Isso” eram hemorragias assustadoras que
vinham irrompendo em suas menstruações desregradas. Terrível, a sensação de esvair-se em sangue no meio
de uma rua, num táxi, na sua própria sala de estar. Como se aquele bicho furioso, que agora aprendia a
nomear, insistisse também em se libertar, fosse lá de que forma.
Visceral. Desejos confusos e insatisfeitos escorriam. Inundação terrível a exauri-la, cada vez mais, cada
vez mais histérica até a histerectomia. Mulheres com útero e mulheres sem útero. O jornal do dia anterior
estabelecia esses dois grupos estatísticos produzidos por uma operação conhecida e segura, quase banal. A
notícia esclarecia que só as mulheres do primeiro grupo haviam sido afetadas negativamente pelos
hormônios testados e tiveram que suspendê-los. As mulheres sem útero puderam continuar a medicação
indicada para os problemas da menopausa. Talvez fosse mesmo melhor se livrar do órgão incômodo. Dele e
de sua fúria! Seria certamente um alívio. Ventre redondo, agora inútil, ventre vazio. Que êxtase então se
apresentaria?
Vânia lhe assegurara, sempre ereta e com uma segurança um tanto triste, que depois de tirar o útero
tinha passado muito bem. − Mariana − ela insistia com ares sapientes −, para que um útero e ovários a essa
altura do campeonato? Contara também de sua colega de faculdade, uma mulher ainda nova, casada de
segundas bodas com um conhecido jornalista que não queria ter mais filhos. Essa colega, tendo resolvido
“operar”, lhe dissera: − O útero agora só serve mesmo para ser dado aos cachorros...
Mariana seguia espantada, reunindo o que ouvira em suas conversas recentes sobre o assunto. Numa
certa idade da vida – exatamente aquela em que ela se encontrava e que começava a lhe parecer não
exclusivamente cronológica −, as mulheres pareciam ter raiva de um útero que já não mais lhes atendia,
lembrando, impiedoso, que o tempo passa e a juventude acaba. Para sempre?
− A tempa, dissera-lhe o médico sorrindo na última consulta. − Tempo devia ser substantivo feminino,
ele havia completado. Talvez fosse mesmo um bom momento, ela disse para si, para uma plástica, uma lipo,
uma discreta, muito discreta, imperceptível mesmo, puxadinha nos olhos e no queixo. Mas enquanto isso, a
ronda pensante já liberta de quaisquer peias cravou uma bandeira de paz em algum montículo de sua mente:
“Que final era esse que se fazia preceder de tanto tormento?”. Mariana procurou a lembrança de alguma
poesia de Olavo Bilac ou de Manuel Bandeira, alguma louvação à morte, essa indesejada das gentes. Ia
buscar os livros na estante, quando a imagem de tia Odete, risonha e falante, lhe sorriu na memória.

* * *
Era uma manhã muito azul em abril daquele mesmo ano que ia agora terminando. Júlio e Mariana tinham
alugado um carro no aeroporto de Belo Horizonte e rumavam para o almoço de aniversário de tia Odete.
Odete era a irmã mais nova da mãe de Júlio, que Mariana não chegara a conhecer. Naquele ano,
aproximando-se do centenário, Odete decidira finalmente confessar aos filhos a subtração de quatro anos a
que fora, ao longo dos últimos cinquenta anos, submetendo a própria idade. Como prova irrefutável mandara
tirar nova certidão de nascimento no cartório de Patos de Minas. A esperada certidão chegara com o ano de
1905 claramente estampado em cuidadosa caligrafia, e toda a família aderira, carinhosa, à celebração. A festa
seria no salão do prédio de um de seus filhos, no bairro do Sion.
Viam pouco esses parentes, mas a raridade de momentos como aquele logo enchia o ambiente de alegria,
de calor e de conversas. Para o aniversário de Odete, o salão estava todo enfeitado de rosas cor-de-rosa,
rosas-chá, camélias lilazes, brancas e roxas, angélicas, flores do campo, lírios, orquídeas roxas, brancas e
amarelinhas. Flores em cascata cujo aroma suave se desprendia em ternura envolvente. No centro do salão,
em pé, recebendo os convivas sorridente ao lado dos dois filhos, Odete.
Odete com os pés firmes no chão, vestido verde-claro, realçando os olhos também claros e espertos. Olhos
alegres no rosto engelhado, envolto pelos cabelos brancos penteados num coque habilmente preso no alto da
cabeça. Odete conversava excitada com cada um que chegava. Abraçou Júlio, Mariana e os sobrinhos-netos
que há tanto não via. Como haviam crescido!, exclamou satisfeita. − Que beleza, tia Odete − disse Mariana ao
cumprimentá-la −, toda essa alegria! Odete segurou Mariana com as duas mãos, surpreendendo-a com o
olhar firme e direto: − Filha, dizem que o passado a gente esquece!. Ela prosseguiu irônica: − Qual o quê!
Não penso assim, o passado... a gente guarda, guarda no coração. A gente guarda a juventude, a infância, as
dores, os amores... Abaixando a voz e aproximando-a ainda mais, ela acrescentou gravemente, como a lhe
revelar um segredo: − A juventude a gente guarda. Ela assentia com a cabeça, confirmando as palavras: − Vai
fazer o quê? Jogar fora? Isso não! Guarde! E concluiu ligeira, já se desprendendo: − Conforme você for
ficando mais madura, você vai ver como isso ajuda a enfrentar a vida. Com os olhos Mariana seguiu Odete,
que passeava pelo salão, segurando nos braços dos netos e bisnetos, conversando com os parentes e amigos,
até que Júlio a chamou para sentar-se a seu lado.

* * *

Mariana recostou-se no sofá, remoendo esses pensamentos incansáveis. Júlio já devia estar para chegar.
Enquanto esperava, adormeceu e sonhou sonhos jamais ousados.

O HOMEM QUE GOSTAVA DAS CORES
Já nem sabes que sentido
as coisas têm quando despem
as formas que então lhes davas.
EMÍLIO MOURA. “Viagem”.

Março, 1983. De volta à terra natal.


“Curioso!”, ele pensou, enquanto caminhava pelos compridos corredores do hotel. O cheiro enjoativo do
tapete e o cansaço não o impediam de observar o vermelho quase púrpuro do chão e o bege das paredes
estampadas com flores coloridas cuja variedade obedecia (ele acabava de descobrir!) a uma sequência de
cinco espécimes: pequenos miosótis, margaridas, rosas, amores-perfeitos – quase se detinha para olhá-los
melhor – dálias, e então novamente miosótis... De vez em quando, uma porta escura e rija, com grossos
números dourados inscritos no topo, interrompia o padrão da sequência, que logo recomeçava, agora com os
amores-perfeitos. Jacques se deteve por instantes diante do roxo profundo que, envolto por um amarelo
intenso, despertava nele uma sensação intraduzível... “Curioso!”, ele murmurou, intimamente satisfeito com
a descoberta. Tinha chegado ao quarto.
O valete acomodou a bagagem no cavalete, ligou o ar refrigerado, mostrou o frigobar e emendou,
prestimoso, enquanto aguardava a gorjeta: − Se o senhor desejar alguma coisa é só chamar!. Assim que se viu
sozinho, Jacques se jogou na poltrona felpuda que ladeava a cama.
Recostou a nuca no espaldar e seus olhos se depararam com a branca lisura do teto. Seguiram um pouco
adiante e alcançaram um lustre dourado, com flores de lis cujos ramos torneados, cheios de circunvoluções,
chegavam até as tochas luminosas. Havia ainda o âmbar das cortinas, insinuando uma tênue claridade. Para
onde daria aquela janela?
Jacques fez menção de se erguer, mas desistiu, ajeitando-se na poltrona. O corpo ressentia as horas a fio
do voo cheio de escalas que o trouxera de Turim até Belo Horizonte. Tirou os sapatos com alívio e tateou,
com a planta dos pés, a emenda quase imperceptível do tapete acinzentado. As paredes, integralmente
forradas de madeira escura, chamaram então sua atenção. Retângulos de diferentes tamanhos, em alto e
baixo-relevo, encaixavam-se uns nos outros e formavam largas colunas. No vão entre os encaixes, pequenas
bolas douradas se sobressaíam. Jacques se ergueu e aproximou-se vagarosamente de uma delas. A bolinha
desencaixou a um leve toque e acomodou a superfície porosa na palma de sua mão. Subitamente, o dourado
áspero luziu como uma pilha de feno no sol. A respiração de Jacques se agitou e, por um breve instante, ele
viu os olhos de Edite.
Jacques pousou a bolinha na mesa de cabeceira. Sua imagem se refletiu, então, no espelho pendurado
diante da cama. Alguns fios grisalhos se insinuavam por entre os cabelos pretos. O corpo magro, ligeiramente
arqueado, as olheiras fundas, a barba por fazer. Estava mesmo cansado. Mas, ainda assim, não conseguia
deter a atenção esquadrinhadora. O espelho era subdividido em nove quadrados menores, todos com
acabamento em bisotê, que multiplicavam pedaços de sua imagem. Para permanecer íntegro, precisava fixar-
se no quadrado esquerdo inferior, de onde emergia envelhecido.
Estirou-se na cama, sem banho nem nada, protegeu a vista com um tapa-olhos. Adormeceu.

Maio, 1977. Uma tarde fria na mesma cidade.

O céu anoitecia num azul quase lilás e Edite aguardava, na lanchonete na esquina da praça da Liberdade.
Jacques, com sandálias emborrachadas, calças jeans desbotadas e longas madeixas negras, saía da faculdade
para encontrá-la. Estava ainda absorto com a discussão proposta pelo professor de teoria da arte: até que
ponto a percepção das cores era um fato natural? Ele sabia que, fisicamente, tudo se resumia ao espectro da
luz transmitida por ondas mais longas ou mais curtas, mais frias ou mais quentes, tangendo os limites da
percepção humana. Como seria o mundo para além do infravermelho e do ultravioleta? Porém, jamais lhe
ocorrera que embora existindo assim, abstratamente, aquelas gamas do espectro da luz − agrupadas nas
cores que tanto admirava − estavam longe de serem universalmente reconhecidas. A ideia o excitava e
imaginava tonalidades e nuances a serem ainda descobertas, combinações insuspeitas a serem exploradas.
Sua mente fervia diante das infinitas possibilidades do uso da cor pelo design, das inúmeras combinações
possíveis entre cores e formas.
Na esquina da Afonso Pena com Bahia, deteve-se. Pensou no percurso que não faria, descendo até a
Guaicurus, e sorriu lembrando o quanto se divertira na noite anterior, junto com os amigos de turma,
dançando com as moças na boate Petit Coin. O aroma adocicado de perfume inundava o ambiente acalorado.
A penumbra envolvia as bocas de língua solta e risada cortante. Cabelos ruivos cheirando a cigarro, peitos
arfando dentro de um decote ousado e uma dança molenga e trôpega, até a hora em que tudo se turvara
numa infalível mistura de uísque, vinho e vodka. Tinha acordado com uma ressaca horrorosa, curada ao
longo da manhã com muito chá de carqueja feito pela mãe de Róbson, na casa de quem, sem saber
exatamente como, tinha ido parar. Jacques suspirou complacente, concedeu a si mesmo pronto perdão e
seguiu ladeando o parque Municipal.

Caminhava agora com mais vagar, remoendo pela última vez as decisões recentes. Tinha conseguido a tão
almejada bolsa para o mestrado na Universidade de Turim. O peito agitado tentava em vão conter uma
efusão de expectativas. Franziu o cenho, o queixo quase encostou na garganta e seus olhos fitaram o chão
esburacado da calçada. Entrelaçou as mãos diante de si e seguiu assim, absorto, olhando mecanicamente
cada passada.
Ia encontrar Edite. Pela centésima vez ao longo do dia, dizia a si mesmo que, não importa o que
acontecesse, seguiria até o fim as decisões tomadas. Iria em frente. O melhor era mesmo resolver, de uma vez
por todas, o angustioso impasse em que se encontrava. Jacques procurou o lenço no bolso e enxugou o suor
da testa. Seus amigos haviam reparado o silêncio crescente que o envolvera nas últimas semanas. Sondaram-
no com inúmeras perguntas, até que Róbson o interpelara diretamente: − Jacques, por favor! O que está
havendo com você? Jacques, empertigado, estufou o peito e lhe disse secamente, como se lidasse com um
assunto já obsoleto: − Não estou disposto a levar Edite para a Itália comigo! Róbson ainda tentou ponderar:
− Mas, Jacques, você gosta da moça! Jacques deu de ombros, suspirou fundo e disse pragmático: − Está
decidido, afinal não será a primeira vez nesse mundo que alguém deixa para trás a namorada!
Jacques esfregou as têmporas com as mãos, tentando aliviar a dor de cabeça que só fazia aumentar. O
barulho dos automóveis irrompia atordoante a cada abertura do sinal. O nó de uma invisível gravata lhe
apertava a garganta, sentia dificuldade em engolir. Afrouxou a gola da camisa e arregaçou as mangas.
Controlava-se e repassava, pela terceira vez consecutiva, ponto por ponto, cada item da conversa pretendida.
Eram seis ao todo, e era importante que os explanasse na ordem certa. Um: era ainda muito jovem para
assumir tamanha responsabilidade. Dois: não tinha recursos suficientes para os dois. Três: ela cuidava dos
irmãos menores, como ficariam eles sem ela? Quatro: voltaria dentro de dois anos, e então quem sabe?
Cinco: mas sem compromissos, pois ele sabia que seria pedir demais dela. Seis: ele sabia que ela tinha suas
próprias ambições, queria ser física e estudar no Rio de Janeiro. Por vezes, as mãos de Jacques gesticulavam
aceleradas, rebatendo possíveis respostas. Tudo iria bem – ele se reassegurava – se não a encarasse
diretamente. Olharia suas mãos, seus joelhos, seu vestido, seus ombros, seus óculos, as sobrancelhas
castanhas e tão bem desenhadas que estendiam a todo o rosto seus firmes contornos. Mas não seus olhos.
Recostou-se por um minuto num gradil, acendeu o cigarro e a imaginou vestida de azul, como quando a
conhecera, havia dois anos, no Minas Tênis Clube. Seu irmão se esquecera de buscá-lo e, com o atraso,
acabara topando na saída com aquela jovem que chegava correndo e tão distraída a ponto de esbarrar nele,
que vinha, por sua vez, cabisbaixo em direção ao portão. Os óculos de Edite caíram e ele prontamente
engatinhou ao seu redor até encontrá-los na beirada do jardim. Ao se erguer, viu-se diante de uma criatura
clara e espigada que, imóvel, apertava as pálpebras para enxergá-lo melhor: − Obrigada!, ela disse, com um
sorriso franco que dava graça insuspeita ao rosto largo. Ele também lhe sorriu e, nesse exato instante, foi
surpreendido pela limpidez de um par de olhos amarelos que, ao se abrirem arregalados, lançaram sobre ele
uma torrente de luz. − Obrigada!, ela repetiu, estendendo-lhe a mão. Os dedos tocaram-se levemente e as
mãos trocaram um cálido aperto. Ele teve a impressão de que alguns segundos haviam passado até que
conseguisse lhe devolver os óculos. Edite sorriu ao ajeitá-los na face e Jacques apreciou ainda a luz
amarelada por trás das lentes grossas, emolduradas por aros que se misturavam com as sobrancelhas
escuras.
Depois disso, tinham se encontrado outras vezes no clube, até que ele a convidara para um lanche.
Sentaram-se nos bancos altos do balcão e, quando ele lhe passou o copo de refrigerante, suas mãos
novamente se roçaram e Jacques acariciou os dedos finos e longos de Edite. Sua presença o acalmava. Tudo
nela era manso, até o momento em que tirava os óculos. Então, os olhos amarelados fulguravam,
incendiando o coração de Jacques.
Passaram a ir ao cinema juntos, a passear de mãos dadas pelo centro depois das aulas na faculdade. Por
vezes, Jacques pedia o fusca de seu irmão emprestado e eles subiam até o mirante do parque das
Mangabeiras, para apreciar o pôr do sol no horizonte rochoso das montanhas. Sentavam-se lado a lado. Ela
apoiava a cabeça em seu ombro e, quando ele lhe tirava mansamente os óculos, a mágica acontecia: dois
olhos amarelos e arregalados o inundavam com luz palpitante, cheia de tonalidades irizadas. Pequenas listras
iam do castanho-claro até chegar aos amarelos salpicados de pontos esverdeados e marrons. Talvez as
emoções de Edite – ele pensou, enquanto soltava no ar baforadas de fumaça – fossem como prismas
produzindo esse misterioso efeito.
Jacques subia agora a João Pinheiro. Jogou o cigarro fora e apertou os dedos uns contra os outros. Quem
sabe adiava o início da bolsa para o semestre seguinte? E dava a ambos a chance de conversarem melhor o
assunto? Mas a simples ideia de que seria preciso conversar, e de que lágrimas se fariam provavelmente
presentes, era intolerável. Não suportaria vê-la sofrendo! Ademais, adiar a decisão seria prolongar a terrível
angústia que lhe oprimia o peito e fazia o coração doer de sofrimento indesejado.
Além disso, Vivaldo, seu professor, já lhe avisara que essa bolsa de estudos era muito concorrida. Adiá-la
era correr o sério risco de perdê-la. Não!, ele concluía severo, era melhor resolver tudo de uma só vez.
Repetia para si, com determinação: teria coragem, explicar-lhe-ia tudo, direitinho, ponto por ponto dos seis
itens arrolados. Ela haveria de entender. Afinal, ele havia trabalhado tanto por isso! E, não – ele sacudia a
cabeça em desagrado –, ele não podia exigir nem dela que abandonasse os seus, nem de si essa imensa
responsabilidade.
Desde menino, quando ia com a família rezar na Santíssima Trindade, quando olhava a imagem de Nossa
Senhora no altar, pedia que lhe abrisse o mundo. Ansiava por trajetos desconhecidos. Na volta para casa,
descendo e subindo as ladeiras íngremes do Santo Antônio, respirava bem devagarinho, os olhos
semicerrados, para não deixar escapar aquele desejo intenso: quando crescesse, seria livre e conheceria o
mundo. A praia de Copacabana, São Paulo, Buenos Aires, Santiago, Lima, Paris, Londres e mais além, mais
além. O ardor da determinação infantil sobreveio intacto enquanto Jacques aguardava o sinal abrir para
mudar de calçada. Ergueu o rosto, decidido, cruzou a rua e logo o corpo magro de Edite despontou na frente
da lanchonete. Ele respirou fundo.
Pediram cachorro-quente com mostarda e ketchup e dois refrescos. Jacques começou então a explanar,
uma a uma, as razões de sua decisão. Edite fitava-o perplexa. Não sabia o que dizer, muito menos o que fazer
diante de argumentos tão articulados e expostos de forma cortante. Tinham se encontrado talvez muito cedo
na vida, sua mãe já lhe havia avisado. Os óculos de Edite se embaçaram de lágrimas e quando ela os tirou,
não achou nem palavras nem gestos. Viu apenas um vulto magro e determinado diante de si.

Março de 1983. Quando Jacques adormeceu no quarto do hotel, sonhou muitos sonhos, entre eles esse:
Ele subia a João Pinheiro, subindo, sempre subindo. A ladeira cada vez mais íngreme. Sua respiração
arfando, entrecortada. Um peso crescente nas pernas o obrigava, pouco a pouco, a arrastá-las. Para movê-las,
precisava de toda vontade. Primeiro a perna direita, lentamente, muito lentamente, e depois a outra. Peso
intolerável. Precisava chegar na praça da Liberdade. Mas reparava, aflito, que mal se afastara do ponto de
partida. Talvez fosse melhor virar à direita. Mas, mal fazia menção de se mover e o terrível peso nas pernas o
prendia ao chão. Tentava novamente. Edite talvez o aguardasse ainda. Seria melhor pegar o carro para
encontrá-la.
Agora era seu irmão, ensinando-lhe pela terceira vez o percurso para chegar na casa nova, quando
chegasse na cidade. Entrava no carro, mas ao dar a partida seus pés não encontravam os pedais. Via-se na
mesma esquina por onde já tinha passado duas ou três vezes. Saltou do carro em desespero. Um passante
indicou o rumo que procurava, mas agora suas pernas se recusavam de todo a obedecer. Desesperado,
Jacques tomou impulso, lançando-se para frente como quem ensaia um voo. Foi quando avistou um par de
olhos amarelados que se aproximavam velozes, lançando sobre ele uma furiosa torrente luminosa.

Jacques acordou sobressaltado. Suava e o coração batia descompassado com a lembrança doída de Edite,
sua face pálida, seus olhos amarelados. Fulgurando. Uma nesga de sol invadira o quarto pela fresta da janela
e iluminava a pequena bola dourada, pousada na mesinha de cabeceira. Jacques ergueu-se em direção à luz e
abriu as cortinas. Do alto do sétimo andar, avistava o movimento da Afonso Pena. Estava de volta, afinal!
Ainda aturdido, lembrou-se do almoço marcado com a família. Espreguiçou o corpo. Aos poucos se
acalmaria. O dia, e com ele sua nova vida, estava apenas começando: faria um pouco de abdominais; tomaria
um bom banho e um farto café da manhã; leria os jornais; telefonaria para a casa da mãe de Edite; ouviria
um pouco de boa música. Ultimamente vinha se interessando pelo estudo dos sons e dos ritmos e seus
infinitos arranjos. Talvez mesmo, tudo, até aquele momento, tivesse sido apenas um prelúdio.

(Quando seu irmão chegou para buscá-lo, Jaques levou consigo a bolinha dourada e, com ela, a
lembrança doída de Edite, sua face pálida, seus lábios de mel, seus olhos amarelados. Fulgurando.)

MAR ALTO
Que maior mal podes causar que odiar-me? Odiar-me! Por quê? Ai de mim!
Que aconteceu contigo, meu amor? Não sou Hérmia? Não és Lisandro? Sou tão bela
hoje quanto era ontem.
No curto espaço de uma noite, tu me amaste e me abandonaste. Por que então me
abandonaste?
SHAKESPEARE, Sonhos de uma noite de verão.

Clarissa ouvia calada a divagação de seu médico, que, depois do exame clínico, se ajeitara na poltrona de
couro escuro e discorria, professoral, sobre a natureza também psíquica das doenças. A voz monocórdia
embalava o estado enevoado em que ela se encontrava graças aos remédios que lhe retiravam uma parte ao
menos da dor nas costas.
– Toda doença é o resultado combinado de uma agressão externa com uma reação interna do organismo!,
anunciara dr. Wolff, antes de lhe contar um triste caso ocorrido com uma paciente há alguns anos. Com os
cotovelos sobre a mesa e o queixo apoiado nas mãos, ele falava com gravidade, reclinado para frente, de
modo a se aproximar dela:
− X era uma bela mulher de 40 anos, de uma família nordestina abastada, e teve um câncer de mama com
metástase na cabeça do fêmur. Todos os exames indicavam que o restante do organismo estava limpo. Ela
então submeteu-se à cirurgia da mama e eu retirei a parte doente do fêmur, o trocanter (uma parte que o
osso não precisa para funcionar, e mudei a localização do tendão, ele esclareceu). Ela se recuperou bem. A
cada seis meses vinha ao Rio de Janeiro, e ficava uns dez dias para submeter-se a uma batelada de exames.
Nisso passaram-se os anos e fiquei amigo da família. X estava finalmente totalmente recuperada e sadia...
Dr. Wolff retomou o fôlego antes de prosseguir. Clarissa, que começara a escutá-lo por polidez, ouvia
agora com interesse:
− Pois bem, ele se reclinou, cruzando os braços sobre o abdômen. − Foi quando, numa dessas vindas ao
Rio para exames, em função da ausência da amiga que sempre a hospedava, X resolveu antecipar sua volta.
A amiga, ele explicou, era colecionadora de arte e tinha em casa peças valiosas. Sem a amiga, ela ficaria
só, assistida por um mordomo de quem ela, por sua vez, desconfiava da honestidade. − Vendo-se nessa
situação delicada, X decidiu antecipar a volta e me telefonou, pedindo para fazer todos os exames necessários
em dois dias. Assim fiz. Tudo concluído – os resultados logo se revelariam saudáveis −, X voltou para a terra
natal. Lá chegando – ele pigarreou, projetando novamente o corpo para a frente e pousando agora os dois
braços na mesa −, ela se depara com a clássica cena de adultério: o marido na cama com outra mulher, que
vinha a ser a empregada de sua confiança!
Clarissa inspirou, arregalando os olhos.
Ele continuou, mais descontraído: − Veja bem. Um outro tipo de mulher reagiria e estaria muito bem de
vida. Era só divorciar-se, dividir os bens, que eram muitos, mudar-se, quem sabe para o Rio de Janeiro, e
curtir a vida... Mas ela tinha uma educação muito tradicional. Ele meneou tristemente a cabeça: − Resultado:
em seis meses tinha metástase em todo o corpo...
Clarissa permaneceu em silêncio, enquanto dr. Wolff concluía: − A doença desejada, a morte necessária.
Eu li um excelente artigo, há anos atrás, no Journal of Psychoanalysis, tudo documentado. Digo-lhe uma
coisa, d. Clarissa: Eu não sei onde começa uma doença, se no psiquismo ou no organismo. Mas eu sei, essa é
a minha experiência, que toda doença termina num quadro psicossomático.
Clarissa tinha dor e tomou distância do assunto. Comentou, pedindo emprestado os doutos ares do
interlocutor: − Que maravilha e que mistério, não é mesmo?, o psiquismo humano!
− Minha senhora − prosseguiu impessoalmente o dr. Wolf −, quero voltar a vê-la em três semanas.
Lembranças a seu esposo!, disse ainda ao se despedir.

* * *

Naquela noite Clarissa levantou-se em sobressalto. Foi até a janela e abriu as cortinas que davam para a
sacada. Queria um pouco de ar fresco. Uma brisa fria soprava e a estrela matutina já brilhava no céu. O
vizinho da frente esquecera a televisão ligada e, mais ao lado, uma nesga de luz deixava entrever a tela
brilhante de um computador. Alguém escrevia na madrugada. Era impressão sua, ou podia ouvir o som
abafado de um piano tocado em surdina? Clarissa olhou para baixo e se assustou com a altura. Os seguranças
da rua eram pequenos pontos negros recostados nos jardins. Uma forte vertigem a tomou e por um átimo de
segundo teve vontade de se jogar. Recuou assustada até encontrar a parede fria. Esgueirou-se para dentro da
sala. A história da pobre esposa traída não saía da sua cabeça. “Um outro tipo de mulher...”, dissera o dr.
Wolff − a frase ressoava ainda em seus ouvidos. Clarissa reagiu e perguntou-se: Por que não outro tipo de
homem como esposo? Tomou um calmante – Dormidol, como num filme de Almodóvar – e se enfiou
novamente debaixo das cobertas, aproximando-se devagarzinho do corpo quente de Jéferson, que ressonava
abraçado aos travesseiros.
Quando acordou, achou na mesa do café da manhã um bilhete em cima do jornal: “Fui caminhar. 11:10.
Kisses!”. Quem sabe ela o encontrava ainda?

* * *

Era um sábado de agosto e a avenida à beira-mar estava vazia, com as folhas das palmeiras arrastadas pelo
vento norte. Uma faixa luminosa atravessava as nuvens escuras e baixas amontoadas no céu e esverdeava a
arrebentação. Dessa vez não era o mar encaracolado dos sudoestes frequentes no litoral carioca. A imensa
superfície líquida e lisa ondulava até que uma força arrebatadora irrompia das profundezas, e uma onda
volumosa se erguia soberba no ar. Longa parede móvel de bordas translúcidas que se crispavam e aspergiam
o ar com uma franja rendada de gotas cristalinas.
Clarissa aspirou o cheiro forte da maresia e sentou-se nos degraus mais altos da escada que levava à praia.
Outra vez, uma onda volumosa se ergueu e começou a se enrolar até estourar cheia de fúria e se esvair na
espuma alva e borbulhante sorvida pela areia.
Poucos surfistas se arriscavam nessas ondas altas, dispostos a mergulhar fundo no coração do turbilhão
líquido. Se fosse preciso. Tamanha claridade entre tantas nuvens era prenúncio certo de chuva. Mas isso não
a apressou. Jéferson, quando retornasse, passaria certamente por ali. Clarissa fechou o zíper do casaco
impermeável de Jéferson, que pegara, apressada, antes de sair. Puxou o capuz protegendo o rosto do vento
forte. Apalpou um dos bolsos para verificar se tinha mesmo trazido a chave de casa e, para sua surpresa,
achou dentro dele uma foto dobrada – um pôr de sol, num céu quase lilás, por trás da curva de subida da
Niemeyer que se avistava da sacada de sua sala.

A lufada forte do vento chegou junto com a lembrança da cena que presenciara inadvertidamente há cerca
de duas semanas. Denise, parada no meio da sala, e Jéferson debruçado sobre o braço da poltrona como que
procurando alguma coisa caída no chão. Seus óculos, talvez? E ela, imóvel, na soleira da porta por uma fração
de eternidade.
(Denise, a fotógrafa com quem trabalhava na redação havia passado em sua casa para buscá-la. Clarissa,
atrasada, pedira-lhe que subisse para aguardá-la. Chegaria logo, em menos de meia hora.)
Denise logo viera a seu encontro, sorrindo. Estava aproveitando a luz do fim de tarde para fotografar a
avenida Niemeyer, ela lhe explicara. Ela não era exatamente bonita. Olhos esgazeados e opacos. Roupas
justas e decotadas. E, sim – comentou Clarissa −, a luz do entardecer estava mesmo linda, quase lilás...
As rajadas de vento se tornaram mais cortantes e a chuva anunciada chegou maciça. Pingos grossos
resvalaram no asfalto.

* * *

Jéferson tinha os cabelos crespos e pretos, a pele morena e um corpanzil que movimentava sempre
desajeitadamente. Talvez os braços fossem demasiado curtos para pernas tão compridas e o quadril
demasiado estreito para um peito tão forte! A sensação de desproporção era maior ainda com a pequena
cabeça oval ligada ao tronco por um pescoço curto e largo. Sua boca era pequena também e a voz lhe saía
sempre arranhada da garganta. Falava rápido e um pouco alto, mas, por vezes, com surpreendente doçura.
Era míope e seus olhos amendoados se tornavam grandes por trás das lentes. Quando ficava nervoso,
apertava as pálpebras na tentativa de não se descontrolar. Tinha sido brigão quando criança e seus súbitos
acessos de raiva eram famosos na família. Dava seu sangue e suor nos jogos de futebol, não tinha medo de se
machucar, o que lhe custara, ao longo dos anos, dois braços e três dedos do pé quebrados, uma torção no
joelho, uma costela fissurada, e algumas cicatrizes que lhe davam um ar de bandido – ou mocinho? – de um
faroeste norte-americano. Seu pai apostava com os tios que, com o temperamento acalorado, o corpanzil
desconjuntado e a grande timidez escondida pelos modos rudes, Jéferson era um imbatível candidato ao
celibato. Qual o quê! As meninas logo se tornaram encantadoras companheiras do jovem que sabia ouvi-las e
diverti-las com sua fala rascante e mordaz, e achava mesmo que as compreendia, embora não soubesse
transformar isso em palavras. O problema eram os acessos de raiva que o acometiam nas mais corriqueiras
situações, como quando, num chope, via-se às voltas com a desatenção de um garçom, ou, numa sala de
cinema, reagia à indelicadeza de alguém que se recusava a facilitar sua passagem pela apertada fileira de
cadeiras. No mais, era muita praia, boate, cuba libre e uísque com guaraná. Até que um dia Jéferson
conheceu Clarissa.
Clarissa assistia a uma pelada no clube, e Jéferson, com fortes câimbras musculares, precisara ser
retirado de campo numa pequena maca improvisada. Seus colegas o largaram no chão, perto das
arquibancadas, e voltaram correndo para suas posições no jogo. Jéferson urrava de dor. Ela acompanhou
toda a movimentação com preocupação e não lhe ocorreu nada melhor para acalmá-lo do que derramar um
pouco da água gelada que bebia em seu rosto suado.
Jéferson ergueu-se atônito. Com a vista ainda turva, entreviu um vulto delicado que tocou levemente no
seu ombro e indagou solícito se ele já se sentia melhor. Jéferson apertou as pálpebras e viu na sua frente um
rosto anguloso e firme e mãos que abanavam sem cerimônia o seu pescoço. Jéferson desatou a rir, e Clarissa
riu também antes de voltar para o alto da arquibancada.
Jéferson passou a tirá-la para dançar nas domingueiras do clube. Não sabia ao certo o que lhe atraía
naquele corpo miúdo e todo redondo, os seios pequenos, as pernas fortes e o quadril que parecia saltitar
levemente quando ela caminhava apressada depois de se despedirem. As mãos pequeninas e os olhos
castanhos sempre tão diretos e solícitos – “você já se sente melhor?”, eles pareciam continuar indagando.
Logo, movido por um poderoso impulso, Jéferson se viu procurando por ela em toda parte. Na rua, na
escola, no clube, na praia. Quando dançavam, enlaçavam-se e ela era então só uma respiração misturada com
a sua. Haviam namorado muitos anos, e, com a maioridade, noivado e casado. Tudo parecia ir bem. Exceto
por uma ligeira impaciência que, de uns tempos para cá, ele percebia nos gestos de Clarissa. Um desejo mudo
e informe de que ele fosse diferente do que era? Mais calmo, como seus irmãos tão mais bem-sucedidos do
que ele? Mais culto, como os colegas de trabalho de Clarissa que sempre a requeriam na finalização de suas
matérias? Mais solícito, como ela mesma era com ele? Mais atento, talvez, mas a quê? Esse sentimento
começava a incomodá-lo e foi nessa circunstância que observara, numa festa recente, o bamboleio sensual
dos quadris de Denise dentro de um tubinho vermelho – “vestida para matar!”, Clarissa sussurrara irônica e
ligeiramente bêbada em seu ouvido.

* * *

Clarissa sempre escolhera a firmeza e a ordem. Entre o pai boêmio e displicente e a mãe distante em suas
leituras esotéricas e consultas astrológicas, enxergando sinais celestes em cada pequeno detalhe do cotidiano,
Clarissa tinha definido desde muito cedo seus próprios contornos. Tornara-se atenta e solícita, avessa a
muita reflexão, prática e firme em seus propósitos. Tomara logo posse de seu próprio armário e a partir daí
ordenara seu mundo – suas gavetas eram arrumadas com esmero, com as roupas bem dobradas, organizadas
por tipo e por cores. Das mais escuras às mais claras, passando por todas as tonalidades, as lisas separadas
das estampadas. Flor com flor, bola com bola, listra com listra. A pequena gaveta de bijuterias era um primor
estético – num relance sabia exatamente de tudo o que dispunha e escolhia sabiamente o que melhor
combinava com a roupa que iria usar. Com esse mesmo espírito determinado, estudara, conquistara a
confiança de amigos e colegas de faculdade, do trabalho e Jéferson, que precisava, afinal, de quem desse um
prumo à sua vida. Ele ficava elegante nos ternos impecavelmente passados. As camisas sociais brancas
ficavam todas de um lado do closet e, do outro, o magnífico degradê colorido. E o cabideiro exibia charmosas
gravatas também ordenadas por tonalidades. Ela gostava de ajudá-lo a escolher a que melhor combinava
com cada camisa. Orgulhava-se dele e de si.
Mas, recentemente, ao se olhar no espelho do banheiro antes de sair para o trabalho, a imagem nele
refletida lançou-lhe de volta um estranho olhar! Inquieto, insatisfeito, irreconhecível. Aquilo a perturbara.
Não conseguia se conectar com aquela desconhecida criatura e, desde então, duvidava. Duvidava de si, e seus
projetos de vida, sempre tão firmemente estabelecidos, reapareciam como que pelo avesso – por que afinal
havia interrompido o curso de flauta transversa na hora exata em que o pequeno conjunto que estavam
formando começava a engrenar? Por que havia escolhido o jornalismo se a arquitetura a atraíra tanto a ponto
de se acreditar apaixonada pelo gentil professor de matemática? Por que jamais aceitara – isso muito antes
de Jéferson! – as propostas de namoro insistentes de Rodney, com quem se dava tão bem? Por que, quando
todos os seus amigos organizavam uma viagem para Machu Picchu, ela havia se enfiado em Corrêas
cuidando de crianças numa longínqua férias de verão? Não sabia nomear o que sentia, mas pela primeira vez
sua vida lhe parecia insípida e Jéferson a irritava! E essa insuportável dor nas costas que vinha sentindo!

Quando os grossos pingos de chuva começaram a cair e a espetacular ressaca a que assistia se acalmou,
uma súbita onda se ergueu dentro dela e Clarissa teve raiva – raiva profunda da desatenção com que fora
criada e do aprisionante sentimento de que a ordem de seu lar dependia dela, e somente dela. Teve pena de si
e as lágrimas que lhe escorriam pela face se misturaram com os pingos fortes da chuva que caía. Clarissa
subiu a rua correndo em busca de abrigo.

* * *

Jéferson tinha caminhado até o Arpoador, onde se arriscara num rápido mergulho. Voltava correndo,
tentando chegar antes da chuva certa que se avizinhava. Correr lhe fazia bem. Sem querer, as ideias se
ordenavam. Pensou em Denise e meneou a cabeça − não queria confusão com mulher! E aquilo era barulho
na certa. Aquela fotografia que ela lhe enviara! Que descarada, caramba! E dizia-se amiga de Clarissa. Sua
mulher... Gostaria tanto se ela se desorganizasse um pouquinho só! Ele, de sua parte, talvez pudesse ser um
pouco menos abrupto. Quem sabe? A chuva caiu forte. Ele franziu as pálpebras e avistou um vulto miúdo
atravessando a rua com um casaco parecido com o seu. Apressou o passo em seu alcance.
Da lanchonete, Clarissa o avistou. Ele lhe acenou com os dois braços num gesto largo. Clarissa não pôde
deixar de sorrir diante de sua falta de jeito. Jéferson se aproximou esbaforido e repetiu o gesto. – Você aqui,
então?, e seu rosto se iluminou ao abraçá-la. Clarissa lhe mostrou na palma da mão a fotografia ensopada.
Jéferson a jogou no lixo, e indagou: – Voltamos para casa?


TODO DIA AMANHECE NO ARPOADOR

PARTE I. VERA

Uma tarde em setembro


Em casa
Quando Vera despejou as últimas gotas da loção tonificante na mão e as espalhou no rosto com leves
tapinhas, como lhe ensinara a dermatologista, uma agradável sensação de ordem cumprida a invadiu.
Jogaria fora aquele frasco de vidro azul translúcido e podia, então, comprar outro produto de beleza, com
outra forma, outra cor e outro cheiro. Delicioso!
Havia muito que não tirava uma tarde como aquela só para si. Para não fazer rigorosamente nada, a não
ser exatamente o que lhe aprouvesse. Pensava mesmo em tirar uma licença do trabalho e, assim, quem sabe,
pudesse saber afinal quem mesmo era ela... Tinha dito isso desse jeito, de supetão, no meio de um
lançamento de livro, para uma amiga que protestara: − Não precisa exagerar! Vera tinha sorrido, pois era
verdade e não tinha mais medo.
Queria ensaiar e experimentar na tarde livre. Subiu para o andar de cima observando as paredes que bem
precisavam de pintura, as cortinas um tanto manchadas, o veludo vermelho escuro já surrado das poltronas
da sala da televisão. Quem lhe indicaria um bom estofador? Vera pegou o jornal e se aninhou na cadeira de
balanço. Podia ler tranquilamente as notícias do dia. E deixar o pensamento vagar à vontade. Leu todas as
matérias do segundo caderno, queria comprar o CD do João Donato, ouvir seu piano cristalino como água
corrente. Levantou-se e, meio a esmo, abriu a porta do corredor que dava para o quarto das crianças. Que
crianças nada, Deus meu! Eram já adultos, e há quanto tempo ela e Pedro não se esforçavam para reinventar
aqueles quartos antes tão cheios de risos e barulho? Aos poucos, pilhas de retratos, cartões postais e bilhetes,
livros rabiscados, bijuterias quebradas, velhos brinquedos, roupas e sapatos esquecidos tinham ido embora e
os dois quartos tinham se adequado a novos usos. Um deles era agora um ateliê para suas porcelanas e
pinturas e o outro continuava arrumado para eventuais hospedagens e, quem sabe, futuros netos.
Vera entrou nesse quarto, sentou-se no sofá-cama e contemplou-se no largo espelho bisotado da porta do
armário. Aquele armário tinha sido da avó paterna que não chegara a conhecer e de quem seu pai pouco
falava. Sabia apenas que ela estivera internada por breve período no antigo hospício, na Praia Vermelha.
Quantas vezes, quando caminhava com ele pelas calçadas do bairro, no exato instante em que quase lhe
perguntava sobre a avó, seu olhar doído lhe pedia que, por favor, não remexesse no passado. Nenhuma foto
dela tinha sobrado. Havia apenas um quadro pintado por ele, agora pendurado ao lado do armário. De tanto
observá-lo, Vera achava que podia compreendê-la com os olhos ensimesmados no rosto oval, de traços retos,
que a fitavam de volta, perguntando: por quê? Estava sentada à mesa, como que no meio de um dia rotineiro,
com uma blusa amarela de manga comprida e os cabelos presos numa touca azulada que sobressaía contra o
fundo cor de abóbora. O braço esquerdo pousava sobre a mesa e a mão direita segurava sua borda. Parecia
indecisa, talvez quisesse se erguer, mas o desalento a detinha. Vera se levantou. Seu rosto turvou. Talvez
nunca viesse a saber o que, afinal, havia ocorrido. A doença de seu pai vinha piorando rapidamente nos
últimos meses.
O sol entrava pela janela aberta e Vera resolveu arejar os casacos e capotes de frio guardados no armário.
Abriu a porta espelhada e retirou-os um a um. Foi quando avistou, no fundo da prateleira inferior, um
embrulho retangular em papel pardo embolorado. Devia ser algum outro quadro de seu pai, ela pensou.
Empilhou os casacos no parapeito da janela e se animou a abrir o embrulho. Mas logo entreviu o vestido
vermelho de uma mulher que, cercada de palhaços a espreitá-la, desviava os olhos meio vesgos para baixo. E
uma inquietude aflita tomou conta dela. Era aquela homenagem de seu pai ao filme Fellini 8 ½! O artista em
crise conjugal... Guardou de volta os casacos e o velho quadro. Desceu as escadas correndo, vestiu um
jogging e foi caminhar.

Na praia
O mar estava manso. Mas o cheiro forte da maresia perturbou-a, evocando outro, muito nítido, mas diferente
e longínquo – era o de tinta misturada com óleo de linhaça e terebintina, que exalava da palheta cheia de
cores que formavam montículos. E havia também o cheiro do querosene, que limpava os pincéis e se
embrenhava nos panos brancos que iam ficando inteiramente borrados. Quantas tardes e manhãs, na
infância, ela tinha ficado bem quieta, rabiscando, enquanto seu pai pintava? Será que o incomodava? Nas
noites claras, ele gostava de ir pescar no Arpoador – para aplacar a angústia!, dizia. Angústia devia ser
alguma coisa que dava aflição e um pouco de falta de ar, ela não entendia bem, mas apreciava os peixes
prateados que chegavam de volta junto com um arsenal de curiosos objetos: anzóis, molinetes e caniços cujas
pontas eram cuidadosamente amarradas com linhas de costura coloridas e depois envernizadas. Ele a
ensinara a mergulhar das pedras do Arpoador, quando nas tardes de verão a brisa afagava o rosto e o corpo
quente saudava a água salgada.
− Olha – ele dizia −, é assim que se faz para voltar para a pedra. Espere a onda estourar, acompanhe seu
movimento boiando, e pise levemente nos mariscos. Assim que ela refluir, levante-se. Quando uma nova
onda viesse, era preciso aguardar o momento exato em que ela atingisse a pedra para mergulhar sobre ela,
novamente, no mar.
Seu pé tocou em alguma coisa mole. Era um pequeno peixe morto que jazia na areia, os olhos vidrados e a
boquinha aberta. Vera o pegou pelo rabo inerte e o jogou mais para cima da praia, fora do alcance das ondas.
Reparou que a maré baixava, deixando um cardume encurralado pela arrebentação na beira do mar. Iniciou
uma operação de salvamento. Pegava na areia os peixes que ainda se debatiam. Precisava pinçá-los
firmemente pelo rabo para lançá-los de volta mar adentro. Mas lá vinham mais ondas e, com elas, novas
levas de peixe. Um menino que brincava por perto se uniu a ela. Iam e vinham rapidamente tentando salvar
os peixinhos. Nessa faina percorreram, sem reparar, mais de 200 metros, até que a mãe da criança a chamou
e Vera sentou-se impotente – trabalho de Sísifo! Avistou o Arpoador que se alongava no horizonte para
dentro do mar. Quem sabe caminhava até lá? Mas tinha cansado. Ensaiou a indiferença e acabou por tomar o
caminho de casa. De quando em quando, jogava ainda um peixinho que se debatia de volta n’água. Quem
sabe aquele se salvava? E não vinha a dar de novo na areia e sufocar de ar tão perto do mar? Seu desconforto
e inquietude só tinham aumentado! Para que servia, afinal, aquela tarde livre?
Foi só a contragosto, quando pôde conversar com Pedro naquela noite que admitiu: havia a doença do pai
a ser enfrentada. E como viria a sonhar depois de sua morte que estava tão próxima sem que então se
soubesse, ela o levaria no colo até onde não fosse mais possível acompanhá-lo.

Alguns meses depois


Uma madrugada insone

Grandes estrellas de escarcha
vienen con el pez de sombra
que abre el camino del alba.
GARCÍA LORCA

Vera não sabia ao certo o que evocava, quando indagava: – Quem era mesmo aquele senhor que a fitara com
insistência na festa de inauguração do apartamento de sua tia? E logo depois, ao cumprimentá-la, derrubara
um pouco de uísque em seu braço? Esgueirou-se para fora da cama. Buscou um copo de leite frio na cozinha.
Sentou-se na varanda que dava para o pequeno jardim. O desenho sinuoso da constelação de Escorpião ainda
se estendia na amplidão do céu.
Preferia o leite frio. O leite morno lhe lembrava o avental branco do uniforme escolar de menina,
encharcado pela garrafa térmica que se rompera na hora da merenda. Tinha ficado bem quieta até que tudo
secasse, mas o cheiro enjoativo do leite derramado grudara nela por todo o dia. Agora era o leve odor de
uísque que ainda emanava de sua pele, apesar de seus esforços para esquecer o episódio. Desagradável! Ele a
abordara um tanto bêbado:
– Não sei se você se lembra, sou o Marcelo!
Vera tinha enxugado o braço com o xale e se apressara em retrucar:
– Claro que sim! Não subimos juntos no elevador da última vez em que estivemos aqui?
Lembrava-se bem daquela ocasião, a visita que ela e Pedro haviam feito junto com seus pais para verem
as obras de reforma do apartamento então recém adquirido por sua tia. Quando já iam subindo de elevador,
esse senhor abrira a porta, esbaforido, “para aproveitar a viagem” – ele logo explicara, exclamando, surpreso:
– “Rodolfo! Cristina! Vocês não estão me reconhecendo! Sou o Marcelo de Sá!” Seus pais sorriram –“Ora!
Sim, certamente!” Apresentaram-lhe o genro. Ele com certeza se lembrava de Vera, não? Haviam descoberto,
desse modo, que Marcelo morava naquele prédio e no mesmo andar de sua tia. Despediram-se no hall,
dirigindo-se às distintas portas de entrada: 1401, 1402. “Mundo pequeno!” – comentara sua mãe. “Situação
esdrúxula ...” – sussurrara seu pai.
Mas por que tanta inquietação até agora, no meio da noite, quando ela ainda procurava se acalmar com
pequenos goles do leite frio? Vera não tinha comentado nada com Pedro, mas o mais estranho acontecera
logo depois do abrupto reencontro. Quando ela entrou no lavabo para limpar um pouco o xale e retocar a
maquiagem, ao aproximar o rosto do espelho para desenhar melhor o contorno dos lábios, um par de olhos
amarelados fitou-a de volta, desconhecido, e ela perdeu-se dentro deles. Por quanto tempo? O rosto vazio,
que finalmente reconheceu, perturbou-a e ela saiu em busca do marido que já a procurava também.

Aconchegada no sofá da varanda, Vera repetiu, um tanto irritada: – Marcelo de Sá! Remoeu o nome
algumas vezes e, num laivo de passado revolto, outro par de olhos claros, muito semelhantes, surgiu. Não a
tinham fitado da mesma forma havia alguns meses, na fila de cumprimentos da missa de sétimo dia de seu
pai? Na confusão emocionada, em meio à surpreendente multidão que lotara a igreja, esse outro senhor, ao
se aproximar, indagara também: – “Não sei se você se recorda, sou o Bento, Bento de Sá. Era o antigo sócio
de seu pai no Laboratório de Análises Clínicas Gomes & Sá. Ele estava comovido e tinham se abraçado sem
dizer mais nada.

Um gato pulou o muro do jardim e ela se ergueu para espantá-lo de volta. A grama estava úmida de
orvalho. O céu já ia arroxeando e, enquanto ela procurava a constelação que esmaecia, outro par de olhos
claros cintilou no caminho da aurora e imagens ainda mais longínquas, de outra noite festiva, se reavivaram.

Uma noite de festa em 197...


Era o aniversário de 40 anos de Rodolfo, seu pai, e a festa era na antiga casa de sua tia, na Avenida Atlântica.
No salão iluminado por lustres cheios de pingentes de cristal, um piano soava alegremente em meio ao
burburinho dos convivas. A pequena Vera e uma amiga corriam animadas por entre um verdadeiro mar de
gente. Esgueiraram-se até o escritório e acharam nas prateleiras da estante, de madeira escura e lisa, um
livro de Nélson Rodrigues. Liam, cheias de curiosidade, suas estranhas crônicas – que engraçado era
imaginar que, por baixo das roupas, todos estavam nus! Riam cúmplices até que vozes adultas se
aproximaram. Fecharam, rápidas, o livro e escaparam pelos corredores.
Foi quando Vera esbarrou em seu pai, que a conteve num abraço afetuoso. A seu lado, havia uma moça
morena, de cabelos negros e lisos, cujos olhos claros, esverdeados, faíscaram no rosto alongado que se
aproximou meigamente. Uma mão macia lhe tocou o queixo e lábios vermelhos falaram: − Então essa é Vera!
Menina bonita!, e Vera disparou a correr em busca da amiga e do som contagiante do piano.
Vera respirou fundo. Sorveu o último gole de leite enquanto buscava um nome para aquela breve imagem
até então informe. Essa moça era Judite, Judite de Sá, irmã de Marcelo e de Bento.
“Hermano bebe, que la vida es breve!” − eram os dizeres da jarra de cerâmica esmaltada que o pai
ganhara de presente de um primo naquela festa de aniversário. “A vida começa aos quarenta!”, dizia também
o cartão de parabéns.
E depois disso, durante um tempo sem dias nem horas, sua mãe trazia para casa pilhas de processos para
“adiantar”, ela dizia, o trabalho. Para chegar mais cedo e encontrar a filha na volta da escola e, depois do
almoço, recolher-se para um repouso que parecia nunca querer terminar. Vera entrava, então, pé ante pé,
bem de mansinho, na penumbra do seu quarto. Sentava-se a seu lado e lhe acariciava os cabelos castanhos
encaracolados. Sua mãe continuava com o rosto enfiado no travesseiro; só depois que Vera saísse, o
levantaria.

No dia seguinte: o quadro


Vera acordou decidida a desembrulhar novamente o velho quadro que há meses havia voltado ao fundo do
armário. Logo que Pedro saiu para trabalhar, ela subiu a escada para o segundo andar. Trouxe o quadro para
a mesa da sala. Mordeu o lábio inferior e abriu o embrulho.
Sentada de perfil, ereta, na cadeira azul marinho virada para o lado direito da tela, a mulher morena, de
cabelos negros e olhos claros, parecia impassível entre um grupo de estranhos personagens. O vestido justo
era vermelho, de decote arredondado e mangas curtas, e deixava entrever parte da coxa esquerda atravessada
pela liga preta da meia-calça cor-de-rosa que envolvia a perna até acima do joelho. O braço esquerdo pousava
nessa perna, com a mão escondida atrás da coxa. O braço direito cruzava o tronco, e sua mão, de dedos finos
e compridos, repousava no lado de fora do joelho esquerdo. Como se ela tivesse girado o rosto para o centro,
levemente apoiada nos braços cruzados sobre a coxa e, lá chegando, tivesse desviado os olhos para o chão.
Parecia triste. Calçava um sapato preto, de salto alto, e a perna direita aparecia recuada, atrás dos pés
dianteiros da cadeira.
Logo atrás, estavam as silhuetas de dois pajens, com os rostos sem traços voltados para o chão. O tronco
volumoso e as pernas retas e unidas se afinavam até os pés. Pareciam pequenas setas firmes a separar a
mulher dos demais personagens, em especial do palhaço de gola azul turquesa e traje verde-escuro que,
posto no lado direito da cadeira, se debruçava sobre a mulher num gesto amplo, sem, entretanto, tocá-la.
Com rosto pintado e um chapéu afunilado, vermelho listrado de branco, com um pompom no topo, ele a
olhava solícito. Mas ela olhava para baixo, impassível como uma esfinge. Outro palhaço, moreno, com traje
em gomos azuis claros e escuros, tocava absorto um saxofone, dançando discretamente no balanço da
música. No último plano do quadro, atrás desse grupo, um homem de camisa vinho, saído de algum quadro
de Picasso, assistia à cena com os olhos arregalados no rosto largo, de barba comprida e cabelos curtos. No
outro canto, o focinho de um burrinho azul claro, vindo de um quadro de Chagall, espreitava quieto com seus
olhinhos pretos. E, de repente, interposto entre o braço aberto do palhaço turquesa e o rosto da mulher,
saltava a face oval e pálida de um homem-fantasma de olhos esbugalhados. Estranha cena feita de
conturbação sensual e recatada quietude. E a mulher impassível. O rosto assimétrico, os lábios retos, o olhar
desviado, alheado e triste.
O quadro pendurado e despendurado de tantas paredes, sem palavra dita, sem achar lugar. Era Judite de
Sá, e Vera sempre soubera.

PARTE II. CRISTINA


Quando Rodolfo saiu de casa, Cristina chorou amargamente por muito tempo. Parecia que seu coração
queria se partir ao meio. Um choro de morte. As lágrimas correndo e encharcando suas mãos largas e fortes.
Cantarolava baixinho antigas canções que aprendera no colégio de freiras, também elas tristes de partir o
coração. Uma delas começava com a fala cantada da heroína: “Le prisionnier de la Tour, s’est tué ce matin.
Grand mère ! Il s’est jeté en me tendant les mains. Le prisionnier de la Tour, s’est tué ce matin. Grand mère!
Il m’a semblé qu’il avait du chagrin!”. Vinha então o melódico refrão de um coro: “Si le roi savait ça Isabelle,
Isabelle si le roi savait ça, à la robe de dentelles, vous n’auriez plus jamais droit, Isabelle, si le roi savait ça”.
E, ao final, a heroína confessava mansamente: “Le prisionnier de la Tour chaque soir m’attendait, grand-
mère! On a tué mon amant que j’amais”.* Cristina chorava mais ainda.
Tinha bordado, noite adentro, uma tapeçaria com a imagem da casa paterna erguida na aspereza do
cerrado goiano. O riso da preta Júlia, a ternura de sua avó. Os garimpeiros cruzando o terreno rumo à serra
do Silêncio com suas mulheres e crianças a tiracolo. O canto dos pássaros. Os lobos guarás uivando ao longe.
O cheiro do requeijão ferventando no fogão a lenha. Tinha se refugiado nesse passado distante, e murmurado
rezas antigas, até que cansara. E topara com os olhos da pequena Vera espreitando-a da porta do quarto.
Cristina se refizera, tinha arranjado um trabalho, alimentara até mesmo um amor secreto. Comprara
vestidos novos, sapatos altos, brincos. Começou a fazer uso de tudo o que aprendera outrora – dirigia com
habilidade, cozinhava com esmero, voltara a andar de bicicleta!, e era com interesse que lia os jornais diários.
Afinal, havia problemas piores, muito piores – ela repetia para si com coragem. Gostava dos colegas de
trabalho que lhe faziam ver que sua dor não era o fim do mundo, e das lembranças da vida de solteira na
Copacabana praiana. Arrumou seus álbuns de fotografia. Chorava ainda um pouco ao se lembrar, saudosa,
do cruzeiro de navio até a Argentina, do passeio de trem até Congonhas, dos longos verões nas praias
desertas de Cabo Frio, dos banhos de mar e dos amores que teriam podido ser, se ao menos... Se ao menos
Rodolfo não lhe tivesse aparecido uma tarde no Arpoador e não tivessem vistos juntos aquele pôr de sol de
fim de verão. Guardava ainda vívida a lembrança desse encontro:
A pequena faixa de areia e o rebojo das ondas nas pedras faziam com que o mar, em movimento uniforme
e constante, parecesse reivindicar para si aquele pedaço de praia. Soprava uma brisa fresca e o rastro
dourado do sol poente chegava até a pedra, onde estava reunido o grupo de amigos. Um bando de gaivotas
seguia o balanço de duas pequenas traineiras. Um amigo comum os apresentou e eles logo se sentaram, lado
a lado, no Samarangue. A conversa correra fácil, ele também era um apreciador da literatura espanhola,
amante dos esportes e do football! Enquanto falavam, o sol se tornou uma imensa bola branca e brilhante,
atravessou uma pequena nuvem e saiu, incandescente, do outro lado. Ficaram em silêncio, diante daquilo
que devia ser – Rodolfo assegurava – um dos mais bonitos pores do sol do mundo. A ponta da Joatinga se
desenhava miúda por trás dos Dois Irmãos, já inteiramente sombreados, com a Pedra da Gávea, imponente,
ao fundo. A bola luminosa foi ficando cada vez mais vermelha até desaparecer no horizonte. Um dia iriam a
seu encontro, no outro lado da Terra!, brincou Rodolfo. Ela sorriu e lhe ofereceu um cachorro-quente. A luz
rosada do crepúsculo foi arroxeando e as primeiras estrelas despontaram junto com a nesga da lua crescente.
Subitamente Rodolfo se levantou: – Cristina, venha ver, são golfinhos! Era um cardume de golfinhos que
passava rente à ponta do Arpoador saltitando sobre as ondas. As traineiras já tinham partido rumo a
Copacabana. Tinha anoitecido e eles lá, esperando o caminho esbranquiçado da Via Láctea se erguer no céu.
Rodolfo lhe indicara Sírius e Canopus, a constelação de Órion, Alfa e Beta do Centauro. Era sensacional, ele
lhe dissera empolgado, pensar que distâncias colossais as separavam. As pequenas Plêiades fulguraram
intermitentes ao norte, como “sete cavalinhos em busca de França. Busca que busca e nunca que alcança!”,
recitara Cristina, lembrando a cantilena da avó e as noites profundas e límpidas do sertão goiano. Ele lhe
dera, depois disso, um atlas celeste, “Mistérios do firmamento”. − Para não esquecer como achar as
constelações, dissera, sorrindo.
Mas quando ela se refez da separação, não quis mais saber nem do mar, nem de estrelas e nem das
nuvens no céu. Queria só o chão bruto e rude, do jeito que fosse. Jogou muito papel fora. Quebrou um a um,
com imenso prazer, todos os copos de vinho de cristal dados pela família de Sá a Rodolfo por ocasião de seus
quarenta anos. Todos os exames clínicos do arquivo morto do Laboratório, que Rodolfo costumava trazer
para casa por precaução, foram devidamente queimados. A correspondência também. Tudo tinha virado
cinza. E ela já se dispunha a fazer o mesmo com seu amor por Rodolfo, quando ele reapareceu.
Vinha triste, cansado, mas com os olhos sempre tão negros, com a mesma fala suave e a mesma pele
macia. Teve compaixão, dele e de si. Leram juntos um poema de Bécquer:

Assomaba a sus ojos una lágrima
Y a mi lado una frase de perdón;
Habló el orgullo y enjugó su llanto,
Y la frase em mis lábios expiró.

Yo voy por un camino, ella por outro:
Pero a pensar en nuestro mutuo amor,
Yo digo aún: “?Por qué callé aquel dia?”
Y ella dirá: “Por qué no lloré yo?”

Choraram e perdoaram-se.
A vida seguira mansa e amiga por muitos anos até que a doença o levara. Cristina quis chorar, mas suas
lágrimas tinham secado. Achou que morria junto, mas descobriu que gostava ainda do sol e do cheiro do
mar. Apegou-se novamente a suas lembranças, aos velhos amigos do trabalho. Havia Vera, agora com Pedro
e com os netos que cresciam. E a vida seguira novamente até aquela noite surpreendente...

Legítima cigana
Uma aragem fresca soprava. Cristina sorriu ao se lembrar do interesse de Rodolfo pelos ventos. Era uma
lesada, ele teria dito. A noite estava clara com a lua que acabara de nascer, amarelada, erguendo-se acima do
mar e riscando-o com seu rastro prateado. Ela esperava por Pedro e Vera, que tinham ficado de buscá-la para
jantarem na casa de sua irmã para comemorarem, juntos, a futura paternidade de seu neto – e ela, Cristina,
ia afinal ganhar um bisneto! Estavam demorando mais do que o previsto e logo o celular tocou. Era Vera
explicando que enfrentavam um engarrafamento grande na saída da Lagoa. Era melhor que ela tomasse um
táxi e se encontrassem direto lá.
Cristina chegou sozinha. Tomou o elevador – aquele mesmo elevador onde, tempos atrás, quando
Rodolfo ainda vivia, ela havia encontrado Marcelo de Sá... Olhou-se no espelho e se sentiu bem. Os cabelos
curtos e sempre ligeiramente encaracolados lhe agradavam, o vestido marrom com pequenos detalhes em
vermelho realçava seus olhos acastanhados. Reforçou o blush, ajeitou o cinto. No hall de entrada ficou em
dúvida – as portas dos dois apartamentos do andar, 1401 e 1402, estavam entreabertas! Risos e vozes vinham
animados do 02 e ela rumou nessa direção.
Entrou porta adentro, cruzou a saleta e chegou ao salão iluminado pronta para os abraços. E se viu
subitamente em meio à família de Sá. Achou que sonhava e, por uma fração de segundo, quase entrou em
pânico ao se lembrar de um recorrente pesadelo que a acometera nos tempos em que tanto havia chorado:
via-se subitamente na velha casa dos avós no cerrado. Parentes, tios, irmãos, primos e colegas de trabalho
cercavam-na e diziam, repetindo, ameaçadores, a ela, que se quedava muda no meio da roda: − Você não
existe! Você não existe! Você não existe! Ela então acordava subitamente, acalorada e com a respiração
ofegante. Justamente, agora, o calor de seu rosto e a respiração que começava a ofegar não permitiam
engano. Estava acordada e seu orgulho e autoestima impediam que simplesmente voltasse as costas e batesse
em retirada sem mais explicações. Por sorte, Marcelo já havia se levantado e a saudava com um sorriso
hospitaleiro: – Cristina! Que prazer revê-la! Sua esposa acorria também para acolhê-la. Logo atrás dela,
estava Bento, que a abraçou, gentil. Cristina pisou com firmeza o chão atapetado do salão. Lembrou-se de
suas aulas de yoga e uma seta, que pareceu vir do centro da Terra, ergueu-se dentro dela chegando ao topo da
cabeça; e antes que seus olhos avistassem o perigo iminente que pressentira, o verso de um poema de Garcia
Lorca – que ela e Rodolfo tanto apreciavam – ressoou límpido e adaptado em sua memória: “Me porté como
quien soy. Como una gitana legítima”. Cristina se adiantou então para cumprimentar Julieta, que já se
erguia da poltrona para saudá-la também. Contou-lhe sobre o futuro bisneto, razão pela qual ela ali estava
para comemorar na casa de sua irmã, e sobre o talento recém-descoberto de Vera para a pintura. Todos
comentaram risonhos sobre a grande coincidência entre a comemoração vizinha e o aniversário de Marcelo!
Cristina logo se despediu.

Enquanto isso, no apartamento 01, Vera e Pedro aguardavam já um tanto apreensivos a chegada de
Cristina, que tardava mais do que haviam imaginado. Cristina finalmente apareceu, um tanto lívida, e tomou
lugar entre os netos, que a abraçaram, carinhosos. Era bom tê-los reunidos. Como de hábito, palavras não lhe
pareceram suficientes para exprimir o que havia sentido e ninguém ali tomou conhecimento de sua aventura.
Cristina deu, depois disso, a Antologia poética de Garcia Lorca, que pertencera a Rodolfo, para Vera. Na
página de rosto, entre os desenhos em bico de pena de uma choupana entre árvores e um pequeno boneco
bailarino rodopiando, Rodolfo tinha escrito com letras largas e já um tanto esmaecidas: “Presente de
Cristina. Minha futura esposa”.

* * *

No Arpoador
O velho quadro desembrulhado talvez nunca encontrasse seu lugar. Mas alguma coisa nova havia tomado
forma ao contemplá-lo. As ondas estavam mansas, fluíam e refluíam no Samarangue, e Vera dizia a Pedro:
− Espere a onda estourar, acompanhe seu movimento, boiando, e pise levemente nos mariscos. Assim
que ela refluir, levante-se.
Era bom erguer-se na pedra, mergulhar novamente e saber voltar.


MARIA LAURA CAVALCANTI nasceu no Rio de Janeiro em 1954. É antropóloga e professora na Universidade
Federal do Rio de Janeiro. De suas pesquisas resultaram,entre outros, Carnaval carioca: dos bastidores ao
desfile (Ed. UFRJ, 2006), O rito e o tempo: ensaios sobre o carnaval (Civilização Brasileira, 1999)
e Reconhecimentos: antropologia, folclore e cultura popular (Aeroplano,2012). Este é seu primeiro livro de
ficção.
Maria Laura Cavalcanti © 2012

Este livro segue as normas do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, adotado no Brasil em 2009.

Coordenação editorial
Isadora Travassos

Produção editorial
Cristina Parga
Eduardo Süssekind
Rodrigo Fontoura
Sofia Soter
Victoria Rabello

ISBN: 978-85-421-0045-7

Viveiros de Castro Editora Ltda.
R. Visconde de Pirajá, 580/sl.320. Ipanema
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