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Gramsci materialismo
histórico e relações
internacionais
Stephen GUI
ORGANIZAÇÃO
■
Talvez com intensidade ainda maior depois do colapso
do chamado “socialismo real” os escritos do marxista
italiano Antonio Gramsci (1891-1937) tornaram-se
referência obrigatória para estudiosos de todo o mundo,
que atuam em áreas tão diversificadas como filosofia e
antropologia, pedagogia e serviço social, crítica literária
e teoria política. Nas últimas décadas, essa influência vem
se tornando significativa também na área - de interesse
sempre crescente, inclusive na universidade - dos estudos
sobre relações internacionais. Chega-se mesmo a falar,
neste campo do saber, do nascimento de uma “escola
neogramsciana”, que tem entre seus principais expoentes
Stephen Gill e Robert Cox.
A partir não só das notas que Gramsci deixou sobre
o tema específico das relações internacionais, mas
sobretudo do método e das categorias por ele elaboradas,
esta “escola” busca “traduzir” para o nível internacional
conceitos que Gramsci utilizou, essencialmente, para
compreender fenômenos nacionais, como é o caso de
hegemonia, revolução passiva, sociedade civil etc.
Mas, como advertem os neogramscianos, que rejeitam
explicitamente qualquer “ortodoxia”, Gramsci não é o
único pensador utilizado em suas análises. Contam-se
também, entre as influências intelectuais da “escola”,
autores como KarI Marx, Fernand Braudel e Karl Polanyi.
Os ensaios contidos nesta coletânea têm o objetivo
explícito de contribuir para a reconstrução contemporânea
de uma teoria histórico-materialista das relações
internacionais. Os autores analisam a contradição
entre as forças sociais e políticas globalizantes e aquelas
territorialmente situadas, no contexto da ordem mundial
passada, presente e futura. A ordem mundial emergente
é vista como resultado de uma transformação estrutural,
de uma “tríplice crise” envolvendo mudanças econômicas,
políticas e socioculturais.
A tendência predominante nas últimas décadas aponta
para uma crescente mercantilização das relações sociais, o
que leva os autores a afirmar que o socialismo precisa ser
GRAMSCI,
MATERIALISMO HISTÓRICO
E RELAÇÕES INTERNACIONAIS
p e n s a m e n to C ritíc o
7
UFRJ
Reitor
Aloisio Teixeira
Vice-Reitora
Sylvia Vargas
Coordenador do Forum
de Ciência e Cultura
Carlos Àntonio Kalil Tannus
Editora UFRJ
Diretor
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Conselho Editorial
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Charles Pessanha
Diana Maul de Carvalho
José Luis Fiori
José Paulo Netto
Leandro Konder
Virgínia Fontes
GRAMSCI,
MATERIALISMO HIS TÓRI CO
E RELAÇÕES I N T E R N A C I O N A I S
ORGANIZAÇÃO
Stephen GUI
TRADUÇÃO
Editora UFRJ
Rio de Janeiro
2007
V a i 1; A M P
BI b : O T E € A / 1F € II
© Cambridge University Press, 1993
Título original: Gramsci, Historícal Materialism, and International Relations.
ISBN 978-85-7108-303-5
Revisão da Tradução
Lisa Stuart
Revisão
João Sette Camara
Maria Teresa Kopschitz de Barros
Simone Brantes
Elaboração do índice
Maria Teresa Kopschitz de Barros
Capa e Projeto Gráfico
e Editoração Eletrônica
Ana Carreiro
Direitos da edição brasileira reservados a:
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Praia Vermelha - Rio de Janeiro
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(21) 2295-1595 r. 124 a 127
http://www.editora.ufrj.br
Apoio
103ÇBOUUÇCfO
L n u a g ò g o n u tA e iz i/n iig
SUMÁRIO
Os autores 7
Agradecimentos 9
Introdução 41
Gramsci e a política global: uma proposta de pesquisas
pós-hegemõnicas
Stephen Gill
V.. EX.
! TOMBO BC/ S 7
' PROC- /O
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PRFCO f à / : 2 0 _____
DATA Í2/..Ò 9/ÚL.___
N.o CPD-,______________
1 Gramsci usava este slogan já em 1919, no Ordine Nuovo. Eis a citação com
pleta: “Sobre devaneios e fantasias. Mostram falta de personalidade e passivi
dade. Imagina-se que algo aconteceu e perturbou o mecanismo da neces
sidade. A iniciativa própria tornou-se livre. Tudo é fácil. Pode-se fazer o que
se quiser, e quer-se muitas coisas que hoje não se possuem. Trata-se basica
mente do presente virado de cabeça para baixo que é projetado no futuro.
Tudo o que está reprimido é libertado. É necessário, ao contrário, dirigir
enfaticamente a atenção para o presente tal como ele é, caso se deseje trans
formá-lo. Pessimismo da inteligência, otimismo da vontade.” (Gramsci,
1971, p. 175, nota 75).
P refácio À edição brasileira ♦ 13
1 ‘'Este termo foi usado a partir de 1880 [na Itália] para descrever o processo
pelo qual os partidos ‘históricos’ de direita e esquerda que surgiram do Risor-
gimenlo tendiam a convergir em termos de programa nos anos que se segui
ram, até que não havia mais qualquer diferença substancial entre eles - espe
cialmente depois de a ‘esquerda’ ter chegado ao poder com Dcpretis cm 1876
[...] e a última começou a recrutar seus ministros indiscriminadamente, de
ambos os lados do parlamento.” (Gramsci, 1971, p. 58, nota dos editores 8)
16 ♦ S tephen G jll
“Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não
a fazem sob as circunstâncias de sua escolha, e sim sob aquelas com que se
defrontam dirctamente, legadas e transmitidas pelo passado.” Karl Marx, O
dezoito de brumário de Luís Bonaparte (1852).
beiras (1997) afirma que o imperialismo americano está particularmente
preocupado em fortalecer a posição global do capital americano por meio da
maior exploração da América Latina. É de lembrar que os Estados Unidos
lêm uma balança de pagamentos favorável em relação à América Latina...
Isio compensa em parte seus deficits com a Ásia e a Europa.
20 ♦ Stephen G ill
" “Foi selada uma aliança fno Governo Lula] entre os grandes fazendeiros e
pecuaristas capitalistas e as multinacionais que controlam o comércio inter
nacional de commodities, de sementes, a produção de pesticidas e o agronegó
cio. Essa visão neoliberal da agricultura dá prioridade a grandes conglomera
dos que fazem uso extensivo de agrotóxicos e pesticidas, e que se concentram
em monoculturas de produtos agrícolas para exportação.” (Stédile, 2007. Dis
ponível em: http://www.monthlyreview.org/0207stedile.htm. Acesso cm: 4
maio 2007)
22 ♦ Stephen G ill
12Um claro exemplo desse tipo de pensamento voltado para o futuro é a alter
nativa agroecológica do MST (que tem sua própria produtora de sementes or
gânicas, a Bionatur), uma alternativa ao domínio industrializado e corporati
vo da agricultura global e à recontextualização da segurança alimentar como
produto de mercado (ver McMichael, 2003): “uma alternativa baseada na
agricultura camponesa e familiar que tem o apoio de movimentos rurais so
ciais, grupos religiosos, ambientalistas, das 45 organizações do Fórum Nacio
nal pela Reforma Agrária e da mais ampla gama de representantes dos traba
lhadores rurais e das populações em áreas rurais. Este modelo alternativo de
fende a organização e a ocupação de terras em fazendas pequenas e médias;
pede ajuda para 5 milhões de famílias de agricultores de pequenas proprieda
des familiares; e insta que seja implementada uma reforma agrária que garan
ta terra a 4 milhões de famílias sem terra. Defende o cultivo intercalado e
a rotação de culturas como maneira de cuidar melhor do solo e preservar o
meio ambiente. Dá prioridade à produção de comida saudável, sem pesticidas.
Defende um tipo de agricultura que emprega trabalhadores, cria empregos e
garante renda para os trabalhadores rurais - [utilizando] técnicas que não
prejudicam o meio ambiente, com o uso de sementes convencionais já adap
tadas ao nosso país além de ser contra os transgênicos” (Stédile, 2007.
Disponível em: http://www.monthlyreview.org/0207stedile.htm. Acesso em:
4 maio 2007).
P refácio À edição brasileira ♦ 33
ras para a Ajuda aos Cidadãos (Attac). No entanto, esses debates não
podem ficar reduzidos a tais fóruns, uma vez que englobam uma sé
rie de diferentes movimentos e forças, como o MST, de grupos nativos
revolucionários, como os zapatistas no México, e de organizações
particulares vinculadas a propostas políticas específicas, como o Fó
rum Internacional sobre a Globalização, sendo que todas elaboraram
programas detalhados para a reforma e a transformação do sistema
econômico e financeiro internacional, que encontram paralelismo
nas propostas sobre taxação e redistribuição eqüitativas associadas
com a pauta da Attac na Europa.
Mesmo assim, será preciso tomar decisões a respeito de assun
tos mais imediatos e de longo prazo, especialmente porque as vitórias
locais, assim como as globais, tendem a inspirar os movimentos e a
fortalecer sua solidariedade e o otimismo da vontade. Ao mesmo tem
po, os desafios e questões imediatos devem ser compreendidos segun
do modalidades que redefinam os problemas globais e esclareçam a
sociedade, grande parte da qual simpatiza com os propósitos ampla
mente progressistas dos movimentos e com seus objetivos de reforma
e, até mesmo, de transformação da natureza da ordem mundial.
Por isso, é importante que os novos movimentos tentem rede
finir os debates globais, em parte como meio de reconquistar sua
ofensiva política após as forças conservadoras terem buscado recon
quistar ascendência enfatizando a guerra contra o terrorismo. Deste
modo, as falsas promessas dos países ricos em relação à redução da dí
vida dos países mais pobres seriam desmascaradas, e a nova energia
dada à questão talvez viesse inclusive a fazer uma diferença para os
pobres, desde que formas verdadeiramente democráticas de condicio-
nalidade (envolvendo a tomada de decisão por forças populares, e não
pelas classes dominantes e elites globalizantes) estivessem vinculadas
à redução das dívidas e, de fato, à (re)alocação da ajuda.
Conclusão
Stephen GUI
Santa Bárbara, Califórnia, 4 de maio de 2007
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IN T R O D U Ç Ã O
1 Carta assinada por Alex Fernandez, Otto Holman, Hcnk Overbeek e Kees
van der Pijl e enviada ao organizador deste volume, em 10 de junho de 1991.
I ntrodução ♦ 43
A dialética de integração-desintegração
e a ordem mundial: a visão pelo alto
trais. Na verdade, isso pode ser analisado como parte de uma “crise
tríplice” orgânica da ordem mundial do pós-guerra, que exporemos
abaixo. Um indicador dessas mudanças é o aumento recente de m o
vimentos migratórios e de refugiados, a “globalização” de povos im
pulsionada pela reestruturação da produção e das finanças globais e,
em termos mais gerais, pelo aumento das disparidades das condições
econômicas e ambientais, pela guerra e pelo conflito político.
Por outro lado, alguns neo-realistas como John Mearsheimer
(1990) afirmam uma continuidade básica nas relações internacio
nais. Para eles, persiste a situação de anarquia na política mundial, e
a rivalidade entre os Estados e a insegurança que a acompanha vão se
reforçar agora que a Guerra Fria terminou na Europa. A previsão é
de instabilidade, uma vez que a superestrutura da Guerra Fria, que
gerava ordem, foi eliminada. Outros neo-realistas, preferindo usar
analogias históricas mais matizadas (como Lawrence Freedman e sir
Michael Howard), disseram que o fim da Guerra Fria significa o res
surgimento do nacionalismo e um retorno a problemas que puseram
em xeque a segurança da Europa desde o fim da Paz dos Cem Anos.
Portanto, de acordo com essa visão, o que mudou foi a superestrutu
ra de segurança Leste-Oeste. Com o desgaste e a erosão do poder so
viético, a estrutura subjacente básica (anárquica) das relações inter
nacionais é revelada mais uma vez; a difusão crescente do poder glo
bal - na ausência de um equilíbrio estável de poder - está associada à
instabilidade e ao conflito. O aumento aparentemente recente da vio
lência intercomunal, das tensões étnicas, das forças centrífugas em
alguns países (principalmente a antiga União Soviética e a Iugoslávia)
fornece evidências que corroboram essa posição.
Nesse sentido, os neo-realistas veem não apenas o Grupo dos
Sete (G7), mas também as Nações Unidas, a Comunidade Econômica
Européia (CEE) e o processo de união econômica e política da Euro
pa Ocidental, bem como a possível ampliação da Comunidade Euro
péia (CE) para incluir outros países, como mero reflexo de uma série
de barganhas interestatais e, por conseguinte, como resultado da es
trutura de poder subjacente entre os Estados e não como uma série de
mudanças estruturais que geram condições inéditas e promovem no
vas concepções de interesse e identidade como, por exemplo, no con
texto pan-europeu.
48 ♦ Stephen G ill
Esse termo é usado no sentido que lhe foi dado por Barraclough (1967).
Keferc-se às estruturas e forças sociais que configuraram o desenvolvimento
das ordens mundiais do século XX. Barraclough enfatiza duas séries de m u
danças fundamentais: aquelas associadas às transformações tecnológicas e so-
cioeconômicas da Segunda Revolução Industrial, e um processo concomitan
te de surgimento da política de massas. Ambas podem remontar ao início
do século XIX e talvez até mesmo ao Iluminismo. Entre outras coisas, esses
desenvolvimentos contribuíram para o eclipse da ordem eurocêntrica do sé
culo XIX e para o aparecimento das superpotências e da “revolta do Terceiro
M undo” (contra a dominação européia).
60 ♦ Stephen G ill
Slephen Gill
Este capítulo deve ser lido junto com a introdução desta obra.1
() termo “escola italiana” foi cunhado por um crítico anônimo. O ob
jetivo deste capítulo é levantar uma série de questões epistemoló-
gicas, ontológicas e práticas que parecem estreitamente relacionadas
com os capítulos seguintes e podem ser úteis no sentido de ajudar a
promover o desenvolvimento teórico nesse amplo campo de estudos.
A distinção que Gramsci faz entre materialismo histórico e economi-
cismo histórico será o centro desta discussão, assim como a tentativa
de chegar a uma forma mais historicista, reflexiva e dinâmica de ex
plicar a economia política.
A abordagem presente neste capítulo pressupõe que a tarefa
fundamental das ciências sociais é elucidar a ação social, a estrutura
social e a mudança social. Além disso, com respeito às questões epis-
temológicas, pressupõe que “não existe simetria entre as ciências so
ciais e as naturais em relação à formação dos conceitos e à lógica de
investigação e explicação” (Gunnell, 1968, p, 168). Um outro pressu
posto é o de que não existe, e é lógico que não possa existir, uma lin
guagem única de explicação científica. O principal contraste entre as
ciências sociais e as ciências exatas é que a estrutura das relações
sociais e o significado dos fenômenos sociais não são as funções mais
importantes da teoria do cientista, uma vez que aquilo de que trata o
cientista social “não é uma realidade de primeira ordem, mas de se
gunda”. O “mundo” do cientista social é um mundo de segunda or
dem porque foi pré-ordenado logicamente por seus participantes, “e
é de acordo com os seus termos que a ação é conduzida e justifi-
1 Este capítulo é uma versão revisada de Gill (1991a). Agradeço a Robert Cox
por enfatizar a importância da concepção gramsciana de mito, e a Frank Par
co por esclarecer questões relativas ao estruturalismo marxista.
66 ♦ S tephen G ill
cada”. Como se verá abaixo, isso pressupõe que a explicação das ciên
cias sociais acarreta generalizações limitadas e um vocabulário con
dicional (Gunnell, 1968, p. 179, 180). Para evitar a reificação concei
tuai, isso acarreta uma interação permanente entre as construções
das ciências sociais e a “realidade social”: “Esse requisito será entendi
do como limitação somente se houver o pressuposto de que a ciência
da mecânica física deve servir de algum modo como parâmetro de
toda e qualquer explicação” (Gunnell, 1968, p. 186).
Subjacente a essa afirmação está o argumento de que a explica
ção em ciências sociais não tem como se desenvolver se ficar presa a
um dualismo cartesiano entre sujeito e objeto ou se teorizar em ter
mos de causa e efeito. É claro que não existe apenas uma forma de
superar a dicotomia cartesiana. Este ensaio apresenta simplesmente
uma delas: a forma particular de historicismo associada a Marx e a
Gramsci, limitada no espaço e no tempo em termos de sua capacidade
explicativa.
O restante deste capítulo discute um pouco da literatura re
cente sobre economia política internacional e relações internacio
nais, em parte para destacar e criticar uma tendência muito difundida
de teorização trans-histórica com base em conjuntos de categorias a
priori que parecem ter autonomia ontológica (ver os capítulos 2, 3 e
10 para mais detalhes). Essa é uma característica ligada tanto ao neo-
realismo quanto às formas mecânicas de marxismo. Essas duas orto-
doxias compartilham o problema de terem sido construídas sobre
dicotomias sujeito/objeto e agente/estrutura. Portanto, embora elas
possam ser socialmente efetivas (no sentido de que incidem sobre a
construção do mundo social e sobre certas iniciativas políticas em
um momento determinado), não satisfazem os critérios apresentados
acima, isto é, não têm como oferecer uma explicação no terreno das
ciências sociais.
' Aqui poderiamos distinguir entre contradição lógica, do tipo que caracteriza
a lógica formal e a matemática (como, por exemplo, discutido por Hegel,
em A ciência da lógica), e contradições históricas, que ocorrem cm parte co
mo resultado de coletividades humanas adquirirem autoconsciência e capaci
dade de conceituar, entender e agir sobre forças históricas. É claro que, por
conseguinte, não há uma forma única ou direta de definir ou elaborar a na
tureza das contradições históricas. Fazer isso implica, necessariamente, cons
truir abstrações e categorias ontológicas. No prefácio desta coletânea, fiz um
esboço inicial da dialética histórica contemporânea de integração/desinte-
gração da ordem mundial, ou seja, a transformação histórica da ordem m un
dial que estava sendo gerada pelas contradições entre a investida globalizante
do capital com mobilidade internacional e a natureza mais local da autori
dade política e da legitimidade no final do século XX.
E pístemologia, ontologia e a “ escola italiana” ♦ 75
1
I lal e, mais importante, na União Soviética. No contexto da legiti-
" ..........
80 ♦ S tephen G ill
ças que atuam na economia política global. Desse ponto de vista, o re
sultado desses processos provavelmente será determinado principal
mente no plano nacional, isto é, dentro de cada um desses países.
Apesar disso, a globalização da economia política e a transnacionali-
zação das forças sociais e políticas significam o predomínio de novas
condições. Não é possível identificar essas mudanças apenas com
uma teorização das estruturas históricas, que é estática, não-dialética
e baseada na premissa da separação entre o “nacional” e o “interna
cional”, entre o “econômico” e o “político”.
Gramsci e hegemonia
2 Esse parece ser o problem a de Anderson ( 1976-J 977), que afirma ter
encontrado incoerências nos conceitos de Gramsci.
3 Sobre essa questão, ver Thom pson (1978), que contrasta uma posição
historicista análoga à dc Gramsci com o estruturalismo filosófico e abstrato
de Althusser. Ver “Marxism is not Historicism”, em Althusser e Balibar
(1979).
4 Afirma-se que, com isso, Gramsci quis evitar o confisco de suas notas pelo
censor da prisão, quem, se isso é verdade, devia ser particularmente obtuso.
G ramsci, hegemonia e relações internacionais ♦ 103
obra deste. Nada podería estar mais longe de suas intenções do que
um marxismo que represente uma exegese dos textos sagrados, cujo
objetivo seria refmar um conjunto atemporal de categorias e con-
i ei tos.
Revolução passiva
do, ou lhes haviam sido impostos, aspectos de uma nova ordem criada
no estrangeiro, sem que a antiga ordem tivesse sido substituída. Esse
segundo tipo entrou numa dialética de revolução-restauração que
tendeu a ser bloqueada, pois nem as novas forças nem as antigas po
deríam triunfar. Nessas sociedades, a nova burguesia industrial não
chegou à hegemonia. O impasse resultante com as classes sociais tra
dicionalmente dominantes criou as condições do que Gramsci cha
mou de “revolução passiva”: a introdução de mudanças que não en
volveram nenhuma sublevação de forças populares.'0
De acordo com a análise gramsciana, um exemplo típico de
revolução passiva é o cesarismo: um homem forte intervém para re
solver o impasse entre forças sociais equivalentes e opostas. Gramsci
admitia a existência tanto de formas progressistas quanto reacionárias
de cesarismo: progressistas, quando o governo forte preside um pro
cesso mais ordenado de criação de um novo Estado; reacionárias,
quando estabiliza o poder existente. Napoleão I foi um caso de cesa
rismo progressista, mas Napoleão III - o exemplo clássico de cesaris
mo reacionário - era mais representativo do tipo com maior probabi
lidade de surgir no decorrer de uma revolução passiva. Aqui a análise
de Gramsci é praticamente idêntica à de Marx em O dezoito brumário
de Luís Bonaparte: a burguesia francesa, incapaz de governar direta
mente com seus próprios partidos políticos, contentou-se em desen
volver o capitalismo sob um regime político que tinha sua base social
no campesinato, classe social desarticulada e desorganizada, cujo re
presentante virtual Bonaparte podia alegar ser.
Na Itália do final do século XIX, a burguesia industrial do Nor
te, a classe que mais tinha a ganhar com a unificação do país, não esta
va em condições de dominar a península. A base para o novo Estado
passou a ser uma aliança entre a burguesia industrial do Norte e os
proprietários de terra do Sul - uma aliança que também oferecia be
nefícios à pequena burguesia dependente (principalmente do Sul)
Bloco histórico
anos como uma fase que poderia ser dividida em quatro períodos dis
tintos, aproximadamente, 1845-1875, 1875-1945, 1945-1965 e de 1965
até o presente.14
O primeiro período (1845-1875) foi hegemônico: havia uma
economia mundial com a Inglaterra no centro. Doutrinas econômi
cas coerentes com a supremacia britânica, mas universais em sua for
ma - vantagem comparativa, livre-comércio e o padrão-ouro dis
seminaram-se aos poucos da Grã-Bretanha. O poder de coerção ga
rantia essa ordem. A Grã-Bretanha determinava o equilíbrio de poder
na Europa, evitando assim qualquer desafio à sua hegemonia por for
ças baseadas em outro território. A Grã-Bretanha reinava soberana no
mar e tinha capacidade de obrigar os países periféricos a obedecerem
às regras do mercado.
MAs datas são tentativas e teriam de ser refinadas por uma pesquisa sobre as
características estruturais próprias de cada período, bem como sobre os fato
res destinados a constituir a linha divisória entre um período e outro. Essas
datas são apresentadas aqui como meras anotações para uma revisão dos estu
dos históricos acadêmicos com a finalidade de levantar algumas questões so
bre hegemonia e as estruturas e os mecanismos que a acompanham.
O imperialismo, que assumiu formas diferentes nesses períodos, é uma ques
tão intimamente relacionada. No primeiro, o da pax britannica, embora al
guns territórios fossem administrados diretamente, o controle das colônias
parece ter sido mais incidental do que necessário à expansão econômica. A
Argentina, país formalmente independente, teve essencialmente a mesma
relação com a economia inglesa que o Canadá, uma ex-colônia. Isso, como
observou George Lichtheim, pode ser chamado de fase do “imperialismo libe
ral”. No segundo período, o chamado “novo imperialismo” deu mais cnfase
ao controle político direto. Viu também o crescimento das exportações de
capital e do capital financeiro identificadas por Lenin como a própria essên
cia do imperialismo. No terceiro período, que poderia ser chamado de neoli-
beral ou de imperialismo liberal-monopolista, a internacionalização da pro
dução surgiu como forma predominante, apoiada também por novas formas
de capital financeiro (bancos e consórcios multinacionais). Parece não fazer
m uito sentido tentar definir uma essência imutável do imperialismo; talvez
seja mais proveitoso descrever características estruturais do imperialismo que
correspondem a ordens mundiais sucessivas, hegemônicas e não-hegemô-
nicas. Para uma discussão mais detalhada dessa questão relacionada à pax bri
tannica e à pax americana, ver Cox, 1983.
G ràmsci, hegemonia e relações internacionais ♦ 117
As perspectivas da contra-hegemonia
M ark R upert
1 Esse problema ontológico foi muito bem resumido por Alex Wendt (1987)
em termos da relação entre os agentes e as estruturas na teoria das relações
internacionais, e dos pressupostos epistemológicos para uma compreensão
adequada dessas relações. Apesar disso, tenho reservas contra qualquer solução
que se tenha tentado dar ao problema ontológico de agentes e estruturas em
termos de uma epistemologia do realismo científico, ou de uma ontologia
trans-histórica da estruturação. Acho mais satisfatória uma visão de teoria e
prática como aspectos internamente relacionados do processo de autoprodu-
ção social, isto é, uma ontologia social radicalizada da práxis. Essa visão enfa
tiza a práxis como a base da experiência e do conhecimento, e situa os com
promissos epistemológicos num contexto sociopolítico concreto, tal como a
crítica do capital e sua ontologia historicamente específica da alienação. Isso
não precisa ser incoerente com o realismo científico. Para discussões que su
gerem que uma crítica marxista do capitalismo pode implicar certo tipo de
epistemologia do realismo científico, ver Keat e Urry, 1982, capítulo 5;
Callinicos, 1983, capítulo 5; Sayer, 1983; e Isaak, 1987. No entanto, sugeriría
que a afirmação inversa (a de que o realismo científico implica uma crítica
do capitalismo ou de quaisquer outras relações históricas de desigualdade ou
de dominação) não pode ser deduzida desses argumentos. Para uma análise
que critica a versão da teoria realista/de estruturação de Wendt, mas que não
adota necessariamente uma concepção marxista da práxis, ver Milliken,
1990.
2 Uso “neo-realismo” para designar uma família de argumentos que têm em
comum o compromisso com uma ontologia atomista (individualismo abstra
to) e com uma epistemologia empirista. Para uma crítica que procura situar
a economia política internacional neo-realista numa tradição de individualis
mo abstrato que remonta a Hobbes e Smith, ver Inayatullah e Rupert, 1990.
Sobre a ontologia do individualismo abstrato e sua relação com toda a tradi
ção do liberalismo ocidental, ver Arblaster, 1984, especialmente capítulos 2
a 4.
A lienação, capitalismo e o sistema interestados ♦ 127
' Não se deve pensar que essa interpretação representa a totalidade da tradição
marxista, e nem mesmo uma espécie de “tendência central” dela. O pen
samento marxista é tão rico e complexo que desafia um resumo simples ou
uma visão geral esquemática. Apesar disso, existem obras que procuram dar
ao leitor uma idéia dos contornos gerais nesse terreno. O livro de Kolakowski,
Main Currents ofMarxism (1981), é extraordinariamente abrangente. Outras
obras que tratam mais especificamente da tradição multifacetada do marxis
mo ocidental - dentro do qual Gramsci frequentemente é situado - incluem
Anderson, 1976; Jacoby, 1981; Callinicos, 1983, especialmente capítulo 3;
e Jay, 1984.
' Um conceito de relações internas é fundamental para o método dialético.
Uma relação interna é uma relação na qual as entidades interligadas obtêm
seu significado (ou são constituídas no interior) de sua relação e são inin-
128 ♦ M ark R upert
” Há continuidade no tratam ento crítico que Marx deu ao Estado antes e de
pois de desenvolver a problemática da separação do trabalho nos manuscritos
de 1844. As primeiras discussões esclarecedoras da relação Estado/sociedade
civil podem ser encontradas em Crítica da filosofia do direito de Hegel (Marx,
1975b, p. 57-198) e A questão judaica (Marx, 1978c, p. 211-241). Entre os
comentários que ajudam a situar essas primeiras obras em termos de sua rela
ção com a crítica subseqüente de Marx ao capitalismo, temos Avineri, 1968;
McGovern, 1970; Wood, 1981; Jessop, 1982, p. 1-31; e Sayer, 1985.
A lienação, capitalismo e o sistema interestados ♦ 137
2üEsse argumento se inspira em Berki (1984) e Der Derian (1987), mas tam
bém se afasta deles substancialmentc.
I .iiAM.SC), MATERIALISMO HISTÓRICO E RELAÇÕES INTERNACIONAIS ♦ 151
' Agradecemos a Richard Ashley, Robert Cox, Pat McGowan, Craig Murphy,
Carlos Parodi e Kees van der Pijl por seus comentários. Uma versão mais
longa deste ensaio foi publicada na International Studies Quarterly, n. 33,
p. 475-499, 1989, e, num a forma anterior, em Gill e Law, 1988. Nossa
interpretação de Gramsci foi influenciada por Sassoon, 1980; e Cox, 1983.
158 ♦ S tephen G il i e D avid Law
I los nos últimos vinte anos tem sido associado não só à internacionali
zação da produção, mas também ao deslocamento setorial da ativida
de econômica das manufaturas “tradicionais” para o setor de serviços.
Na verdade, esse deslocamento constitui
[...] a modificação mais im portante no investim ento direto
internacional dos últim os dez a quinze anos. E nquanto
apenas um quarto do investim ento direto estrangeiro foi
feito no setor de serviços no início da década de 1970, essa
parcela aum entou para 40% (US$ 300 bilhões) das reservas
m undiais e cerca de 50% (USS 25 bilhões) dos fluxos
anuais em m eados dos anos 1980 [...] concentrando-se
nas economias de mercado desenvolvidas. (Centro das N a
ções Unidas sobre Corporações Transnacionais, 1988, p. 42)
182 ♦ S tephen G ill e D avid Law
.v«rU!l*#ihtól
remodelar a produção de notícias e de propaganda.
em aberto até que ponto este centro pode se expandir para incorporar
outros Estados e interesses da periferia num bloco histórico interna
cional emergente. Tentativas de esboçar uma estratégia desse tipo
foram empreendidas pela Comissão Trilateral, em seu conceito de
círculos concêntricos de participação, com os grandes Estados capita
listas no centro, e, num quadro de referências mais redistributivista,
pelo Relatório Brandt (Report of the Independent Commission on
International Development Issues, 1980).
Nas condições do final do século XX, talvez a melhor situação
possível (para o capital transnacional) seja aquela que existe mais ou
menos na prática no Ocidente, onde o grosso do capital transnacional
está aquartelado num pequeno número de nações economicamente
poderosas, nações onde a hegemonia capitalista está firmemente inse
rida. Mas essa situação só seria ideai se uma União Soviética “reestru
turada” se tornasse membro do grupo capitalista central com uma
base política razoavelmente ampla no plano nacional, e realizasse
dolorosas reestruturações econômicas e políticas que acompanha
riam a transição para o capitalismo. A ironia da história é que, eviden
temente, as origens da ordem atual devem muito não somente ao do
mínio dos Estados Unidos no Ocidente, mas também ao desafio sovié
tico vindo do Oriente - e agora há muitos debates entre teóricos oci
dentais para saber se o eclipse da União Soviética vai dissolver o “ci
m ento” das alianças ocidentais e levar a um possível retorno à visão
quase leninista da rivalidade imperialista entre Estados Unidos, Japão
e Europa Ocidental.
Como não existe nenhum Estado socialista hostil, nem Esta
dos intensamente nacionalistas perseguindo estratégias econômicas
independentes, o capital transnacional talvez prefira que eles não se
jam grandes, nem geograficamente vizinhos. Portanto, nesse aspecto,
uma mudança na CEI e na China (no sentido de adotar uma atitude
mais receptiva ao capital estrangeiro) é da maior importância. Por sua
vez, o desmoronamento de um Estado grande e relativamente inde
pendente, principalmente um Estado relutante em liberalizar sua
economia, resultaria num aumento do poder estrutural do capital
transnacional. A índia é um possível caso, embora uma liberalização
restrita tenha ocorrido na década de 1980. Mas outra consideração
H egemonia GLOBAL E O PODER ESTRUTURAL DO CAPITAL ♦ 191
irrun
também surgem em relação às estruturas de mercado e à política eco
nômica. A internacionalização da produção e das finanças assim co
mo a propagação do consumismo resultaram numa economia m un
v-¥ . i ;
dial cada vez mais integrada, à medida que as estruturas sociais de
acumulação e formas de Estado anteriores desintegram-se ou são re-
configuradas. Isso significa que se está tornando cada vez mais plausí
->*l-
vel aplicar o conceito gramsciano de sociedade civil às ordens m un
diais (Cox, 1983). Mas a instabilidade financeira e a perversidade po
lítica, associadas ao que os economistas chamam de “falácias de com
,à ü M M ü -
posição”, propõem não apenas problemas mas também oportunida
des para o capital transnacional. Isso não quer dizer que os efeitos
dessa composição se limitem às questões econômicas: a busca de se
gurança por parte de cada Estado individual pode gerar mais insegu
rança para o mundo como um todo. Na esfera monetária, essa falácia
pode se manifestar nas políticas macroeconômicas dos governos e
nas políticas de empréstimo dos bancos. Essa falácia pode se aplicar
não só à esfera política comercial, do meio ambiente e da biosfera,
mas também à questão da migração global - intimamente relaciona
da tanto à reestruturação da produção e ao aumento das disparidades
econômicas quanto à violência e à instabilidade política.
Mais especificamente, uma hegemonia transnacional envol
vendo bancos, transnacionais produtivas, trabalho altamente qualifi
cado e governos, principalmente quando se reflete em políticas de
“monetarismo de mercado”, está repleta de contradições. Se todos os
países competem para provar sua “saúde monetária”, suas políticas de-
flacionárias terão efeitos negativos multiplicadores. A recessão m un
dial é o resultado natural quando todos se deflacionam ao mesmo
tempo. Os perigos da hegemonia de uma ortodoxia financeira rigoro
sa foram ilustrados durante a década de 1930, principalmente nos Es
tados Unidos e no Reino Unido. Nestes países, o compromisso com
orçamentos equilibrados e disciplina monetária tornaram difícil re
verter a tendência à recessão. Outros países abandonaram mais rapi
damente essa ortodoxia, a ponto de alguns Estados capitalistas terem
colocado em prática políticas para restringir o poder dos mercados.
H egemonia global e o poder estrutural do capital ♦ 193
[
■ feitas pelo Banco Mundial em seus relatórios sobre a África e o World Devei-
~
212 ♦ Enrico A ugelli e C raig N. M urphy
l'oc!criam ser usados para ameaçar essa ação. Levar essas variáveis
"realistas” em conta permitiu a Gill ver que, até agora, elas desempe
nharam modesto papel nas lutas internas do bloco ocidental de Esta-
■Ios-nação e nos fez ver o importante papel que a força econômica de-
•.empenhou, como preveria um neo-realista, nas relações Norte-Sul.
Mas não podemos parar por aqui. O quadro de referências de
<h amsci exige que consideremos o papel que as instituições interna-
. lonais, tanto as formais quanto as informais, desempenham na ma-
tintenção da supremacia norte-americana e em sua contestação. As
inovações institucionais do Ocidente, como as reuniões de cúpula do
<irupo dos Sete (G7), são essenciais tanto para uma explicação grams-
i iana da continuidade do poder dos Estados Unidos quanto para uma
rxplicação institucionalista como a de Keohane (1984a). E a destrui
rão das instituições do Terceiro Mundo para agregar interesses será
1.10 claramente identificada como um fator político importante por
um seguidor de Gramsci quanto seria pelo “idealista” que escreveu a
.málise política ao final do último relatório da Comissão Brandí
(llrandt Comission, 1983).
mento cada vez maior nas redes de produção e comércio mediante ;ti
quais as empresas capitalistas se apropriam do excedente e o transídr
mam em lucros.
Ao mesmo tempo, a competição entre os acumuladores capilu
listas não promove necessariamente a segmentação contínua do do
mínio político em jurisdições separadas. Repetindo, isso depende em
grande parte da forma e da intensidade da competição, neste caso
entre empresas capitalistas. Se os acumuladores capitalistas estão pre
sos em densas redes de produção e comércio, a segmentação dessas
redes em jurisdições políticas separadas pode ter um impacto negati
vo sobre a posição competitiva de toda e qualquer empresa capitalista
em relação às empresas não-capitalistas. Nessas circunstâncias, os acu
muladores capitalistas podem muito bem mobilizar seus respectivos
Estados para diminuir a segmentação política da economia mundial,
em lugar de aumentá-la ou mantê-la. E pode-se esperar que essa ten
dência seja tanto mais forte quanto mais intensa for a competição in-
tercapitalista.
Em termos mais gerais, a competição interestados e a competi
ção interempresas podem assumir formas diferentes, e a forma que
assumem tem conseqüências importantes na maneira como o mo
derno sistema mundial - como modo de governo e de acumulação -
funciona ou não funciona. Não basta enfatizar a conexão histórica
entre a competição interestados e a competição interempresas. Tam
bém devemos especificar a forma que assumem e como ela muda
com o tempo. Só dessa maneira é que poderemos avaliar corretamen
te a natureza evolutiva do sistema mundial moderno e o papel desem
penhado pelas sucessivas hegemonias mundiais na construção e na
reconstrução do sistema a fim de resolver a contradição recorrente
entre a acumulação incessante de capital e a organização comparati
vamente estável do espaço político.
Essencial para esse entendimento é a definição de “capitalis
mo” e “territorialismo” como modos de governo ou lógicas de poder
opostos. Os governantes territorialistas identificam o poder à exten
são e ao numero de habitantes de seus domínios, e concebem a rique
za/ capital como meio ou subproduto da busca “incessante” de expan
são territorial. Por outro lado, os governantes capitalistas identificam
AS TRÊS HEGEMONIAS DO CAPITALISMO HISTÓRICO ♦ 235
Conceitos-chave
_A
A TRANSIÇÃO HEGEMÔNICA NA ÁSIA ORIENTAL ♦ 283
mibárbaros que não eram chineses. Aos olhos dos chineses étnicos, a*i
classes governantes bárbaras estavam interessadas basicamente na ex
tração predatória, expectativa que a dinastia mongol Yuan encarnou
com perfeição. No entanto, esse governo estrangeiro e ganancioso era
difícil de legitimar, em virtude da grande ênfase confucionista no
bom governo, definido como a devida atenção ao bem-estar do povo.
As idéias hegemônicas centrais da civilização asiática-oriental
baseavam-se num corpo de doutrinas social, política e cosmológica
herdadas do período formativo da civilização chinesa e, em última
instância, identificadas aos chineses como raça ou nação. É em parle
por esse motivo que a maioria das dinastias governantes bárbaras
escolheu, deliberadamente, se naturalizar chinesa e, desse modo, 1c-
gitimar seu poder. Também é verdade que, fosse qual fosse a dinastia
governante, a “aristocracia” chinesa, ou a classe proprietária de terras
em geral, ocupava posição única e poderosa na sociedade. O Estado
não tinha como funcionar com eficácia sem incorporar essa classe â
coalizão dominante, e essa classe inseriu-se tão completamente na
burocracia que o próprio governo foi, em certa medida, dominado
por ela. No entanto, aliar-se a essa classe também significava fazer-lhe
concessões, diminuindo assim o poder imperial central e sua renda.
Embora sucessivos Estados e classes hegemônicos da Ásia
Oriental tenham tido pretensões de exercer um papel hegemônico
universal, a verdadeira extensão de sua influência hegemônica de
pendia de muitos outros fatores materiais, e não apenas da influência
cultural ou ideológica. A hegemonia entre os Estados é mediada pelo
uso aberto ou implícito da força, e pelo reconhecimento dos fatos de
poder por todos os participantes do jogo, tanto grandes quanto peque
nos. A conquista foi empreendida sempre que se fazia necessária e
quando havia meios para realizá-la. Mas, em alguns casos, a conquista
não foi considerada necessária; nesses momentos, a dimensão ideoló
gica e consensual da hegemonia foi mais importante. Pode-se dizer
que a Ásia Oriental desenvolveu sua própria teoria internacional. Essa
teoria internacional derivou das concepções de Mêncio cujo sentido
era o de reduzir o papel da força e aumentar o papel da virtude ou do
exemplo moral. Em períodos de consolidação dinástica, a freqüência
da guerra parece ser menor que nos períodos de ascensão dinástica.
A TRANSIÇÃO HEGEMÔNICA NA ÁSIA ORIENTAL ♦ 287
terra contava com o poder naval dos japoneses no Pacífico para redu
zir os custos de se projetar como potência marítima na Ásia Oriental,
ao mesmo tempo em que exercia influência norteadora e limitadora
sobre as ambições econômicas e políticas de seu sócio novato.
Mas a ambição japonesa na Ásia Oriental era um problema
para outras potências hegemônicas. A questão de como organizar a
divisão da China em esferas de influência, sem deixar que essa divisão
alterasse as relações entre as potências hegemônicas, teve monumen
tal importância nos anos que se seguiram à Primeira Guerra M un
dial. A política da Porta Aberta, defendida pelos Estados Unidos e
apoiada por várias outras potências, principalmente pela Inglaterra,
foi uma tentativa de manter o equilíbrio entre as potências, permitin
do-lhes continuar explorando a Ásia Oriental, mas impedindo que
qualquer delas, isoladamente, impusesse privilégios econômicos
monopolistas à custa das outras. Enquanto o Japão submeteu sua
própria expansão econômica e territorial a essas restrições, foi incor
porado na coalizão hegemônica do sistema global. Dado que as potên
cias globais dominantes (pós-Segunda Guerra Mundial) eram demo
cracias - Estados Unidos, Inglaterra e França o Japão experimentou
a democracia na “década liberal” de 1920, durante a qual os partidos
políticos dominaram a sucessão do primeiro-ministro, em contrapo
sição aos oligarcas, ou elite imperial japonesa. Mas, mesmo durante o
apogeu da democracia Taishô, a legislação repressiva impôs parâme
tros estritos à atividade política da esquerda e dos sindicatos.
No entanto, a democracia japonesa não sobreviveu às restri
ções impostas ao país pelo sistema do Tratado de Washington, princi
palmente na esfera naval, nem à depressão mundial. O Estado japonês
foi usurpado por militaristas favoráveis ao expansionismo agressivo
como solução para a crise econômica e de segurança do Japão. As
repercussões ideológicas e políticas foram enormes. Para os militares
japoneses, assim como para o regime do Kuomintang sob a direção de
Chiang Kai-shek na China, o nazismo e o fascismo eram exemplos de
regimes fortes. As ideologias desses novos contestadores do status quo
eram atraentes para as elites asiáticas conservadoras, anticomunistas
e anti-ocidentais. No Japão, essas idéias fizeram eco ao culto ao impe
rador e ao mito da singularidade japonesa e de sua superioridade ra-
A TRANSIÇÃO HEGEMÔNICA NA ÁSIA ORIENTAL ♦ 297
ciai. Mas o imperialismo japonês não foi apresentado aos outros asiá-
iicos apenas como um direito divino de governar. Ao contrário, o im
perialismo japonês foi disfarçado por uma doutrina de liberação e
harmonia racial. O Japão foi apresentado como o salvador da Ásia nu
ma missão pan-asiática de eliminar os imperialistas estrangeiros e de
t onstruir uma nova ordem de cooperação econômica e racial.
Não seria absurdo sugerir que a Segunda Guerra Mundial co
meçou na Ásia Oriental e ainda ardia ali em fogo baixo muito tempo
depois que a estabilidade foi restabelecida na Europa. Estavam em jo
go o futuro modelo dos padrões de acumulação regionais e global, das
coalizões de classe e das ideologias dominantes. Na Ásia, foi essencial-
mente o súbito rompimento do Japão com o status quo da Ásia Orien-
lal que causou a Guerra do Pacífico. Os objetivos de guerra do Japão
('i am ambiciosos: eliminar por completo a presença imperialista oci
dental na Ásia e reestruturar a economia de toda a região de acordo
com o modelo do colonialismo japonês já existente, privilegiando as
sim sua acumulação de capital. Em Taiwan, e principalmente na Co
réia da década de 1930, o grau em que o colonialismo japonês levou
i apitai e tecnologia para o território colonial, desenvolvendo-o in
dustrialmente, foi excepcional. Mas o Sudeste da Ásia foi conquista
do principalmente para servir como fonte de recursos naturais a fim
de alimentar o centro industrial japonês.
..
pelo desejo dos Estados Unidos de facilitar a rápida industrialização e
a acumulação de capital na Ásia Oriental a fim de fortalecer e “estabi
lizar” o capitalismo na região. Mas, na década de 1980, os excedentes
colossais do comércio do Japão e dos Quatro Tigres constituíram uma
carga insuportável para a economia norte-americana. Por isso, os Es
• m r A t r r r n it n •
tados Unidos aumentaram a pressão política bilateral sobre os gover
nos da Ásia Oriental para solucionar o desequilíbrio e reduzir seus
excedentes comerciais. Todo o complexo da Ásia Oriental foi molda
do pelo neomercantilismo. Se as exportações da Ásia Oriental para
outras regiões foram significativamente reduzidas pelos acordos co
merciais protecionistas ou negociados fora do Acordo Geral sobre Ta
,
A superacumulação japonesa
,
Introdução
' l’or “tempo m undial” quero dizer, de acordo com Anthony Giddens, “que
uma seqüência aparentemente similar de eventos, ou dc processos sociais for-
malmcnte similares, pode ter implicações ou conseqücncias bem diferentes
om distintas fases do desenvolvimento m undial” (Giddens, 1981, p. 167).
310 ♦ O tto H olman
ções para a democracia estão inter-relacionadas nos três países dit Ihl
ropa Meridional e podem ser explicadas pela mesma ótica, tanto v|||
termos de momento histórico quanto de conteúdo? Em segundo In
gar, em que medida as transições em países como a Argentina, o HtiU»l|
e o Uruguai estão inter-relacionadas e podem ser comparadas ãqudrfi
da Europa Meridional? Em terceiro lugar, por que a democracia poli
tica enraizou-se firmemente e consolidou-se na Espanha, em Poliu
gal e na Grécia, e continuou extremamente instável e vulnerável ml
Cone Sul do hemisfério ocidental? Em quarto lugar, o que expliui ti
paradoxo de que dois países com tantas características em comiiltt
(Espanha e Brasil) apresentem formas tão diferentes de desenvolví
mento político e de incorporação ao mercado mundial? Antes de pna
sar às respostas a essas perguntas, vamos examinar as tentativas de ea
plicar características e processos semelhantes na Europa Meridiomil
e na América Latina. Os principais trabalhos sobre esse tema ou nilo
oferecem explicações ou, quando oferecem, essas são unilaterais. Na
verdade, só uma abordagem que transcenda o problema implícilo otl
explícito do plano da análise, bem como da questão sempre presenie
da determinação externa versus determinação interna, pode nos íul
ciar no entendimento dos processos de ambas as regiões. As diferenle*
posições da Europa Meridional e da América Latina no sistema do
fordismo atlântico ou internacional do pós-guerra constituem meu
ponto de referência básico, sendo o processo de integração europeu o
elemento decisivo nos caminhos divergentes por meio dos quais n
Brasil e a Espanha foram incorporados ao sistema político e econúmi
co global no período em questão.
' Ver Cox, 1987, p. 244 e seg. “Enquanto o modelo da economia internacional
se concentra no comércio”, continua Cox, “o modelo da economia mundial
concentra-se na produção”. No próximo item, vamos ver que aquilo que Cox
chama de “economia mundial” restringiu-se, na era da pax americana, à área
tio Atlântico.
' Trecho retirado de um comunicado pessoal de Arrighi, no qual ele comenta
a obra inicial de Frank (citado em Frank, 1979, p. 6-7).
316 ♦ O tto H olman
diu no tempo com a crise do fordismo nos países centrais da área «Itt
Atlântico, ou foi resultado dela, como afirma Lipietz, por exemplo,
Bem antes dos primeiros sinais dessa crise, em ambas essas regióc»
havia começado uma reestruturação da produção de acordo com o#
moldes fordistas, seja em decorrência de iniciativas nacionais (públl
cas ou privadas), seja por meio de investimentos estrangeiros, ou p e l a
combinação de ambos. Nesse sentido, o fator decisivo não é o nm :j
virtuoso” (ou seja, um Estado forte que fomenta uma cultura civil
baseada na participação sociopolítica das massas, fortalecendo grupos
de interesses da sociedade civil que tendem a contrabalançar o exccs
sivo centralismo estatal e a insistir num Estado menos hipertrofiado)
(Tortosa, 1985, p. 20-21). Na América Latina, a instabilidade sociopo
lítica estrutural, caracterizada pela constante luta pelo poder entre
elites econômicas e políticas rivais, e o sempre presente conflito enlre
as classes sociais impediram a passagem gradual para uma configura
ção Estado-sociedade civil na qual a sociedade civil conquistasse um
tal grau de coesão auto-sustentável que a democracia não represen
tasse mais ameaça para as classes dominantes.
A segunda conseqüência importante está relacionada à pri
meira. Na Europa Meridional, um sistema razoavelmente estável de
mediação de interesses (ou “modo das relações sociais de produção”)
foi implementado ao longo do tempo, um sistema de “corporativis
mo estatal” (e, no caso da Grécia, de “clientelismo estatal”). Embora
a harmonização dos interesses tenha se tomado um princípio geral do
organização da sociedade (na Espanha chegou a afetar até as organiza
ções estudantis), em todos os três países esse modelo autoritário de
mediação de interesses concentrou-se primariamente na administra
ção do conflito social e político, “restringindo o desenvolvimento das
forças sociais em luta” (Foweraker, 1987, p. 58) mediante a institucio
nalização hierárquica, não-representativa e exclusiva das relações de
trabalho. Na Espanha, essa implementação assumiu a forma concreta
do sindicato vertical do Estado orgânico franquista (ver abaixo); em
Portugal, as decisões relativas a salários, preços e produção eram to
madas por várias grandes empresas (organizadas por setor de produ
ção) e pela Câmara Corporativa do Estado Novo de Salazar; e, na Gré
cia, os sindicatos eram controlados pelo Estado e os interesses traba
lhistas mediados por um “modo incorporativo vertical de inclusão”
(Mouzelis, 1986). Na América Latina, as tentativas de introduzir “de
cima” essas estruturas estatais corporativistas foram frustradas pela
ressurreição sistemática do populismo que, em certa medida, sobre
viveu à alternância entre ditaduras e regimes democráticos. Nessa
região, a mobilização periódica das classes populares por líderes caris
máticos foi tanto causa quanto efeito da falta de institucionalização
I nternacionalização e democratização ♦ 327
Conclusões
A internacionalização do stalinismo
A Perestróica e o colapso
Â
O SOCIALISMO SOVIÉTICO E A REVOLUÇÃO PASSIVA ♦ 363
i
366 ♦ K ees van der P iíl
BT
368 ♦ R obert W. C ox
Globalizaçao
3Esses termos têm sido usados pelos economistas da escola da ré g u la tio n fran
cesa, como Boyer, 1990. Uma abordagem semelhante sobre a transformação
da organização industrial foi feita por alguns economistas norte-americanos,
como Piore e Sabei, 1984.
Q uestões estruturais de um governo global ♦ 371
1Sobre o papel dos “regimes”, ver, especialmente, Keohane, 1984a. É claro que
há fatores que escapam à regulamentação do regime, como oscilações nos
empréstimos bancários, que podem ter conseqüências demolidoras.
L
372 ♦ R obert W. C ox
Hiperliberalismo
O capitalismo de Estado
382 ♦ R obert W. C ox
. c*rto cinismo, expresso na frase: “Vocês fingem que nos pagam, nós
fingimos que trabalhamos”.
A classe operária compreendia um segmento com contrato
lormal de trabalho e outro sem contrato formal. Um grupo de operá
rios, o segmento de trabalhadores com contrato formal, permanecia
mais tempo no emprego, tinha qualificações mais diretamente apli
cadas em suas tarefas, estava mais envolvido na empresa como insti
tuição social e em outras atividades políticas e cívicas. O outro grupo,
o do segmento de trabalhadores sem contrato formal, mudava de em
prego com mais freqüência, não ascendia na carreira e não participa
va da empresa, nem de outras atividades sociais e políticas. A forma
dessa segmentação variava nos diversos países socialistas.
Sociólogos húngaros discerniram uma divisão ainda mais
complexa entre os trabalhadores sem contrato formal: os “burros de
carga”, que se deixavam explorar para poderem acumular privada
mente (recém-casados, por exemplo); os “hedonistas”, trabalhadores
solteiros interessados apenas no salário como um meio para se diver
tir; e os “visitantes internos”, principalmente mulheres, ou campone
ses que trabalhavam em regime de tempo parcial, ou, ainda, membros
de minorias étnicas que faziam o “trabalho sujo”.22Na prática, a seg
mentação do trabalho no socialismo real tinha surpreendente seme
lhança com a segmentação do trabalho no capitalismo.
Essa diferenciação no interior da classe operária teve impor
tância muito grande na estrutura do planejamento central. O plane
jamento central pode ser pensado em termos abstratos como um sis
tema que compreende: 1) redistribuidores em órgãos centrais do Es
tado, que planejam seguindo uma racionalidade na tomada de deci
sões, isto é, maximizando certos objetivos já determinados e alocando
recursos de acordo com essa racionalidade; e 2) produtores diretos
que realizam os planos com os recursos que lhes foram fornecidos.
Na prática, o planejamento central desenvolveu uma dinâmica inter
na que se opunha à racionalidade dos responsáveis por ele. Tornou-se
um processo complexo de negociação da empresa com os níveis cen-
^Stafford Beer foi ao Chile na época de Allende para pôr em prática um siste
ma de planejamento interativo com base em computadores, no qual os sinais
viríam tanto da base quanto da cúpula, usando a moderna tecnologia de mi-
croprocessamento para democratizar o planejamento .socialista. É claro que
a proposta não deu em nada por causa do golpe de Pinochet. Ver Beer, 1974.
396 ♦ R obert W. C ox
29Isso foi escrito antes do golpe abortado de agosto de 1991 em Moscou. Nem
por isso essa possibilidade deve ser descartada como um déjà-vu. O golpe po
de ter sido um evento prem aturo, mal planejado, mal dirigido e, em geral,
malfeito. Depois do caos ter se instaurado na sociedade, uma nova tentativa
de golpe podería ter conseqüêncías imprevisíveis.
a)Davies (1990, p. 23) fala isso do economista Aganbegyan, por exemplo.
Q uestões estruturais de um governo global ♦ 401
11Esses parecem ser a esperança e o medo dos autores que contribuíram para
Kuklinski, 1991.
32Novosibirsk Report, 1984. Survey, v. 128, n. 1, p. 88-108. Essa questão é tra
tada nas p. 95-96.
402 ♦ R obert W. C ox
A Europa e o mundo
Milão, no sul, passa por Stuttgart, no leste, e por Lyon, no oeste, e che
ga até as terras baixas e o sudeste da Inglaterra, abrangendo sete Esta
dos. Em termos políticos, a autoridade se baseia num confederalismo
consultivo em que os Estados participantes muitas vezes têm escolhas
políticas diferentes e as microrregiões fazem valer sua autonomia. Is
so torna menos provável que a Europa possa falar de maneira unifica
da, principalmente em questões de política externa - basta lembrar as
divergências sobre a Guerra do Golfo e sobre uma resposta comum à
desintegração da Iugoslávia -, embora a pressão de outras macrorre-
giões econômicas possa se tornar uma força unificadora recorrente.
A questão central na definição da futura identidade européia
será o quanto essa identidade estará fundamentada numa separação
entre economia e política. Forças importantes exigem que essa sepa
ração se torne a ontologia básica da nova ordem européia, e que seja
construído um sistema político no âmbito europeu que limite as
pressões populares em favor do controle político e social dos proces
sos econômicos. Esses processos ficariam então a cargo de uma com
binação entre o mercado e uma tecnocracia sediada em Bruxelas,
que, por sua vez, refletiria o domínio do grande capital e dos Estados
“centrais”, principalmente da Alemanha. Essas forças têm a liderança
na Europa e o apoio externo dos Estados Unidos em sua condição de
país que impõe o liberalismo econômico ao globo.33 Mas a Europa
tem uma tradição profundamente enraizada de controle político e
social sobre os processos econômicos, tanto na socialdemocracia da
Europa Ocidental quanto no socialismo real da Europa Oriental. É
por isso que a transformação das sociedades do Leste Europeu pode
ser tão importante, apesar de sua fraqueza atual, para o completo
equilíbrio das forças sociais que estão modelando o futuro. Oriente e
Ocidente deixaram de ser compartimentos estanques. Os processos
políticos fluem de um para o outro, e, embora agora o fluxo domi
nante seja do Ocidente para o Oriente, é plausível prever um contra-
}iStephen Gill, “The Emerging World O rder and European Change: íhe
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432 ♦ G ramsci, materialismo histórico e relações internacionais
Comitê D
de Segurança do Estado ver
KGB Dahrendorf, R. 398n
Central (do Pcus) 350 Davis, M. 13
Comunidade Davies, R. W. 394n, 400n, 401
Britânica 88 De Gaulle, Charles 174
dos Estados Independentes ver Dehio, L. 254, 256
CEI Der Derian, J. 150n
Econômica Européia ver CEE Deutsch, K. 220
Européia ver CE DeVroey, M. 160
Concerto da Europa 257, 269, 270 Deng Hsiao-ping 360
Cone Sul 310 Depretis, Agostino 15
Conselho Dimitrov, Georgy 355, 357
de Administração do Banco Draper, H. 222
Central dos Estados Unidos Di Muzzio, Tim 11
172n,196
Mundial de Igrejas 197 E
de Segurança da ONU 212 Edsall, T. B. 218
de Segurança Nacional 363 Egito 197
Coréia 289-295, 297, 298, 300-302, Eisenstadt, S. N. 281
356 Ellenstein, J. 349
do Norte 358 Elson, D. 33
do Sul 299, 301, 398n Engels, Friedrich 75, 128, 129,
Cortazar, R. 322 130n, 131, 133, 138, 221-223,
Cox, Robert W. 41, 45, 51, 52n, 236, 273, 344
65n, 67, 69, 70n, 72n, 76-78, Escola
80,83,91,92, 95, 116n, 140n, Politécnica de Leningrado 364
155, 157n, 158-160, 173, 180, de Relações Internacionais de
189, 192, 21 ln, 229, 275, 314, Amsterdã 41,45
315n, 318, 320, 348,367, 374, Espanha 18, 240, 241, 243, 246-250,
376n, 387n,388n 256, 263,310-312,315,317,
Crick, M. 181 321,323,326,328-330, 332,
Croce, Benedetto 71, 115 333, 336, 355, 356, 357, 372
Crozier, M. 384 Estados Unidos 11, 16-18, 18n,
Cuba 18n,360n 19n, 20, 22,33, 50, 54, 55, 79,
Cumings, B. 300 82, 97-99, 114, 117, 153-155,
Cuocco, Vincenzo 108n 161, 162, 167, 172n, 175,
Curtis, R 252 177-180, 184, 185, 187, 188,
190, 192-194,201,208,211,
211n, 212,215,217,219,236,
i
Í ndice de nomes ♦ 439
Wolff, R. D. 74,95,96
Wood, E. M. 136n, 137n
Wriston, Walter 172n
Y
Yanayev, G. 339> 344, 366
Yasuhiro, Nakasone 305
Yuan, dinastia 286
Yeltsin, Bons 50, 365, 366
Yi, dinastia 287, 288, 294
Young, B. 33
Young, S. 178
z
Zaslavskaya, T. 401-402
Zhdanov, N. 352
Zinoviev, G. E. 355
Zysman, J. 383n
1010877672
IFCH
U W I t a jr.* -
320:5322 G762
c a p a A n a C a r r e ir o
“Ficará claro para o leitor que os ensaios deste volume foram
inspirados pelos problemas levantados não apenas nos escritos
de Antonio Gramsci, mas também nos de autores como Karl
Marx, Fernand Braudel, Karl Polanyi, Robert Cox e outros
Em outras palavras, as notas de Gramsci sobre relações interna
cionais precisam ser relacionadas à reconstrução do pensamento
histórico-materialista em sentido amplo, a fim de evitar um novo
sectarismo intelectual É importante transcender distinções aca
dêmicas de utilidade limitada, tais como aquelas entre relações
internacionais e política comparada, entre teoria política e teoria
empírica, entre sociologia política e economia política.”
Stephen GUI