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Gramsci materialismo
histórico e relações
internacionais
Stephen GUI
ORGANIZAÇÃO


Talvez com intensidade ainda maior depois do colapso
do chamado “socialismo real” os escritos do marxista
italiano Antonio Gramsci (1891-1937) tornaram-se
referência obrigatória para estudiosos de todo o mundo,
que atuam em áreas tão diversificadas como filosofia e
antropologia, pedagogia e serviço social, crítica literária
e teoria política. Nas últimas décadas, essa influência vem
se tornando significativa também na área - de interesse
sempre crescente, inclusive na universidade - dos estudos
sobre relações internacionais. Chega-se mesmo a falar,
neste campo do saber, do nascimento de uma “escola
neogramsciana”, que tem entre seus principais expoentes
Stephen Gill e Robert Cox.
A partir não só das notas que Gramsci deixou sobre
o tema específico das relações internacionais, mas
sobretudo do método e das categorias por ele elaboradas,
esta “escola” busca “traduzir” para o nível internacional
conceitos que Gramsci utilizou, essencialmente, para
compreender fenômenos nacionais, como é o caso de
hegemonia, revolução passiva, sociedade civil etc.
Mas, como advertem os neogramscianos, que rejeitam
explicitamente qualquer “ortodoxia”, Gramsci não é o
único pensador utilizado em suas análises. Contam-se
também, entre as influências intelectuais da “escola”,
autores como KarI Marx, Fernand Braudel e Karl Polanyi.
Os ensaios contidos nesta coletânea têm o objetivo
explícito de contribuir para a reconstrução contemporânea
de uma teoria histórico-materialista das relações
internacionais. Os autores analisam a contradição
entre as forças sociais e políticas globalizantes e aquelas
territorialmente situadas, no contexto da ordem mundial
passada, presente e futura. A ordem mundial emergente
é vista como resultado de uma transformação estrutural,
de uma “tríplice crise” envolvendo mudanças econômicas,
políticas e socioculturais.
A tendência predominante nas últimas décadas aponta
para uma crescente mercantilização das relações sociais, o
que leva os autores a afirmar que o socialismo precisa ser
GRAMSCI,
MATERIALISMO HISTÓRICO
E RELAÇÕES INTERNACIONAIS
p e n s a m e n to C ritíc o
7

UFRJ

Reitor
Aloisio Teixeira
Vice-Reitora
Sylvia Vargas
Coordenador do Forum
de Ciência e Cultura
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Editora UFRJ
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Carlos Nelson Coutinho
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Coordenadora de Produção
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Conselho Editorial
Carlos Nelson Coutinho (presidente)
Charles Pessanha
Diana Maul de Carvalho
José Luis Fiori
José Paulo Netto
Leandro Konder
Virgínia Fontes
GRAMSCI,
MATERIALISMO HIS TÓRI CO
E RELAÇÕES I N T E R N A C I O N A I S
ORGANIZAÇÃO

Stephen GUI

TRADUÇÃO

Dinah de Abreu Azevedo

Editora UFRJ
Rio de Janeiro
2007

V a i 1; A M P
BI b : O T E € A / 1F € II
© Cambridge University Press, 1993
Título original: Gramsci, Historícal Materialism, and International Relations.

Ficha Catalográfica elaborada pela Divisão


de Processamento Técnico - SIBI/UFRJ

G726 Gramsci: materialismo histórico e relações internacionais /


Organizador Stephen Gill; tradução Dinah de Abreu Azevedo
- Rio de Janeiro : Editora UFRJ, 2007. - (Pensamento Crítico;
V. 7)
452 p.; 14 x 21 cm
1. M aterialismo histórico. 2. Relações internacionais.
3. Gramsci, Antonio (1891-1937). 4. Revolução. I. Gill, Stephen
(org.).
CDD 335.4119

ISBN 978-85-7108-303-5

Revisão da Tradução
Lisa Stuart
Revisão
João Sette Camara
Maria Teresa Kopschitz de Barros
Simone Brantes
Elaboração do índice
Maria Teresa Kopschitz de Barros
Capa e Projeto Gráfico
e Editoração Eletrônica
Ana Carreiro
Direitos da edição brasileira reservados a:
Editora UFRJ
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Praia Vermelha - Rio de Janeiro
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Tel./Fax: (21) 2542-7646 e 2295-0346
(21) 2295-1595 r. 124 a 127
http://www.editora.ufrj.br

Apoio
103ÇBOUUÇCfO
L n u a g ò g o n u tA e iz i/n iig
SUMÁRIO

Os autores 7

Agradecimentos 9

Prefácio à edição brasileira 11


A América Latina e o príncipe pós-moderno
Stephen Gill

Introdução 41
Gramsci e a política global: uma proposta de pesquisas
pós-hegemõnicas
Stephen Gill

Parte I - Reflexões filosóficas e teóricas


Epistemologia, ontologia e a “escola italiana” 65
Stephen Gill
Gramsci, hegemonia e relações internacionais: um ensaio 101
sobre o método
Rohert W. Cox
Alienação, capitalismo e sistema inter-Estados: rumo a 125
uma crítica marxista/gramsciana
Mark Rupert
Hegemonia global e o poder estrutural do capital 157
Stephen Gill e Davíd Law

Parte II - Passado, presente e futuro

Gramsci e as relações internacionais: uma perspectiva 201


geral com exemplos da política recente dos Estados
Unidos no Terceiro Mundo
Enrico Augelli e Craig N. Murphy
As três hegemonias do capitalismo histórico 227
Giovanni Arrighi
A transição hegemônica na Ásia Oriental: uma perspectiva 275
histórica
Barry Gills
UNIDADE-.IFCH j
CHAMADA |

V.. EX.
! TOMBO BC/ S 7
' PROC- /O
c LZJ D ^ í
PRFCO f à / : 2 0 _____
DATA Í2/..Ò 9/ÚL.___
N.o CPD-,______________

Internacionalização e democratização: Europa Meridional, 309


América Latina c a crise econômica mundial
Otto Holman
O socialismo soviético e a revolução passiva 339
Kees van der Pijl
Questões estruturais de um governo global: implicações 367
para a Europa
Robert W. Cox

Referências bibliográficas 407

índice de nomes 435


OS AUTORES

G iovanni A rrig hi é professor de sociologia na Universidade


Johns Hopkins. É autor de vários livros, dentre os quais The Geometry
of Imperialism (Verso, 1976) e The Long Twentieth Century. Money,
Power, anã the Origins of Our Times (Verso, 1994).
E nr ic o A ugelli (1946-1996) foi diplomata e estudioso italia­
no. Sua obra abrange desde propostas para reforma do serviço diplo­
mático italiano e relações entre o Norte e o Sul (especialmente na
África) até trabalhos teóricos aplicando as idéias de Gramsci e de Weber
à política mundial. Foi co-autor, com Craig Murphy, de America’s
Questfor Supremacy ín the Third World (Westview, 1988).
R obert W. C ox é professor emérito de ciência política e ciência
social na Universidade de York, em Toronto, Canadá. É autor de Power,
Proâuction and World Order: Social Forces in the Making of History
(Columbia, 1987), Approaches to World Order (Cambridge University
Press, 1996) e The Political Economy of a Plural World: Criticai Reflec-
tions on Power, Morais and Civüization (Routledge, 2003).
S tfjphen G tí,i, é professor-pesquisador em ciência política na
Universidade de York, em Toronto, Canadá. Escreveu muitos livros e
artigos a respeito de relações internacionais e globais, economia polí­
tica global e políticas americanas, dentre os quais American Hegemony
and the Trilateral Commission (Cambridge University Press, 1991) e
Power and Resistance in the New World Order (Palgrave, 2003).
B arry K. G ills é professor de estudos sobre o Extremo Oriente
na Universidade de Newcastle, na Inglaterra. É autor (com J. Roca-
mora e R. Wilson) de Low Intensity Democracy: Political Power in the
New World Order (Pluto, 1993).
O tto H olman é professor catedrático de relações internacio­
nais no Departamento de Relações Internacionais e Direito Público
Internacional da Universidade de Amsterdã, Holanda. É autor de In-
8 ♦ GRAMSCI, MATER1ALISMO HISTÓRICO E RELAÇÕES INTERNACIONAIS

tegrating Southern Europe: EC Expansion and the Transnationalisation


ofSpain (Routledge, 1996).
D avid L aw é professor catedrático de economia na Wolver-
hampton Polytechnic, Inglaterra. Trabalha com economia política
internacional e desenvolvimento. É co-autor, com Stephen GUI, de
The Global Political Economy (Johns Hopkins, 1988).
C raig M u r ph y é professor de relações internacionais no
Wellesley College, Massachusetts. Entre suas publicações, encon­
tram-se International Organization and Industrial Change: Global
Governance since 1850 (Oxford, 1994) e Egalitarian Politics in the Age
of Globalization (Palgrave, 2002).
M ark R u per t é professor de ciência política na Maxwell
School of Citizenship and Public Affairs, da Universidade de Siracusa,
Estados Unidos. É autor de Producing Hegemony: The Politics ofMass
Production and American Global Power (Cambridge University Press,
1995).
K ees van der P iji . é professor de relações internacionais na
Sussex University. É autor e editor de diversos livros e numerosos
artigos, dentre os quais The Making of an Atlantic Ruling Class
(Verso,1984) e Transnational Classes and International Relations
(Routledge, 1997).
AGRADECIMENTOS

Meus sinceros agradecimentos pela permissão de reimprimir


e editar as versões originais dos capítulos 1,2,4 e 6, publicados origi­
nalmente como Stephen Gill, “Gramsci, Historical Materialism and
International Political Economy”, em C. Murphy e R. Tooze (orgs.),
The New International Political Economy, Londres: Macmillan, 1991,
p. 51-75; Robert W. Cox, “Gramsci, Hegemony and International
Rclations: An Essay in Method”, Millennium: Journal of International
Studies>n. 12, p. 162-175, 1983; Stephen Gill e David Law, “Global
Hegemony and the Structural Power of Capital”, International Studies
Quarterly, n. 33, pp. 475-499, 1989; Giovanni Arrighi, “The Three
líegemonies of Historical Capitalism”, Review,n. 13, p. 365-408,
1990, respectivamente.
Pelo desenvolvimento de algumas idéias neste livro, eu gosta­
ria de agradecer, entre outros, aos seguintes amigos e colegas que par-
liciparam do processo, mesmo que indiretamente: John Agnew, Rob
Albritton, Giovanni Arrighi, Richard Ashley, Enrico Augelli, Steve
Burman, Alan Cafruny, David Coates, Robert Cox, Martin Durham,
Sciji Endo, Richard Falk, Jeff Frieden, Barry Gills, Eric Helleiner,
Oito Holman, Glenn Hook, Makato Itoh, Takehiko Kamo, Robert
Keohane, Bradley Klein, David Lake, David Law, Geoff Martin, Craig
Murphy, Henk Overbeek, Leo Panitch, Frank Pearce, David Rapkin,
Mark Rupert, Yoshikazu Sakamoto, Tim Shaw, Steve Smith, Susan
St range, Rober Tooze, Kees van der Pijl, Doublas Verney, John
Vincent, Rob Walker e Victor Wolfenstein. Agradeço também os
comentários construtivos de críticos anônimos. Algumas linhas de
raciocínio do livro foram desenvolvidas em convenções da American
Political Science Association, da British International Studies Asso-
ciation e da United States International Studies Association.
Steve Smith, o organizador de ambas as séries, e Michael
1ioldsworth, editor de ciências sociais da Cambridge University Press,
10 ♦ G ramsci, materialismo histórico e relações internacionais

deram-nos apoio e fizeram valiosos comentários editoriais. Melodie


Cilio ajudou na preparação do texto e na bibliografia, e Randy
Persaud, no índice remissivo.
O apoio financeiro foi dado pela Wolverhampton Polytechnic,
The British Academy, University of Manchester (no contexto da bolsa
de pesquisa Hallsworth em Economia Política), York University e
Japan Foundation Endowment Committeep, pelo qual sou muito
grato.
Por fim, queria fazer um agradecimento especial a Robert e
Jesse Cox, à minha mãe, Millicent Gill, assim como a David Law, pelo
estímulo e pelo apoio nas horas boas e ruins.
Não é preciso dizer que sou responsável por todo e qualquer
defeito do produto final.
P R E F Á C IO À E D IÇ Ã O BR A SILEIRA *

A América Latina e o príncipe pós-moderno


S tephen GilI

Quando a primeira edição deste livro foi publicada em 1993,


ocorria na política global uma mudança significativa, na verdade,
amplamente conservadora, que combinava elementos antigos e radi­
calmente novos e abrangia um vasto experimento histórico no antigo
Bloco Oriental e na ex-União Soviética. Parte dessa grande transfor­
mação se deu no Terceiro Mundo, onde, após as crises financeiras dos
anos 1980, houve em muitas nações uma mudança nos modelos es-
tatistas e mercantilistas de desenvolvimento econômico para aquilo
que os latino-americanos chamam de neoliberalismo. Projetos políti­
cos neoliberais davam nova forma a constituições e instituições polí­
ticas. Além disso, a “guerra ao terror” liderada pelos Estados Unidos a
partir de 2001 institucionalizou uma espécie de estado de emergência
global que envolvia o fortalecimento dos aparatos estatais de polícia,
vigilância e controle interno. Assim, o movimento liberal pressupu­
nha um contexto autoritário e conservador nas políticas de segurança
de Estado.
Para usar a famosa expressão de Fernand Braudel, o que houve
foi um esforço por parte dos neoliberais (freqüentemente chamados
nos Estados Unidos de “neoconservadores”) no sentido de redefinir
os “limites do possível” e, assim, reformular o significado do político
na vida cotidiana (Braudel, 1981). O emblema da política global desse
momento era o “fim da história”.
Não obstante, no início do século XXI começaram a surgir
novas formas de ação política, especialmente no Sul global e na Amé­
rica Latina, numa luta para manter e desenvolver suas condições de
existência dentro do novo contexto geopolítico. De fato, a América

* Quero agradecer a Isabella Bakker e Tim Di Muzio pelos comentários e pela


ajuda na preparação deste prefácio.
12 ♦ Stephbn G ill

Latina em geral e o Brasil em particular propõem, em muitos aspectos


importantes, questões fundamentais sobre as lutas sociais relaciona­
das com a ordem mundial atual.
Portanto, exploraremos, neste prefácio, aspectos da nova dialé­
tica global de poder, e de poder e resistência, além de fazermos um es­
boço de algumas das mudanças ocorridas na política global desde o
início dos anos 1990. Neste texto, adotarei a máxima política favorita
de Gramsci, que ele adaptou de Romain Rolland: “pessimismo da
inteligência, otimismo da vontade”.1 Com isto, Gramsci queria dizer
que devemos examinar as condições contemporâneas não do ponto
de vista dos “devaneios e fantasias”, mas fazendo uma análise mais
sensata. A análise política deve se fundamentar num realismo emba-
sado historicamente e que reconheça quanto e de que maneira o po­
der e suas potencialidades servem para definir os “limites do possível”
político - os impedimentos e oportunidades para a mudança progres­
siva - em qualquer momento particular. Também tentarei evitar as
armadilhas do falso cientificismo (isto é, o positivismo ou o marxis­
mo mecânico) que, de certa forma, divide a realidade em fatores “ob­
jetivos” e “subjetivos” ao analisar a produção da história (por exem­
plo, as armadilhas do que Gramsci chamou de “economicismo histó­
rico”). Uma passagem mais bem poética de Gramsci apreende essa
necessidade de uma capacidade dialética na análise política:
Objetivo sem pre significa “hum anam ente objetivo”, e
pode-se considerar que isto co rrespo n d a exatam ente a
“historicam ente subjetivo”; em outras palavras, objetivo
significaria “universalmente subjetivo”. O hom em conhece 1

1 Gramsci usava este slogan já em 1919, no Ordine Nuovo. Eis a citação com­
pleta: “Sobre devaneios e fantasias. Mostram falta de personalidade e passivi­
dade. Imagina-se que algo aconteceu e perturbou o mecanismo da neces­
sidade. A iniciativa própria tornou-se livre. Tudo é fácil. Pode-se fazer o que
se quiser, e quer-se muitas coisas que hoje não se possuem. Trata-se basica­
mente do presente virado de cabeça para baixo que é projetado no futuro.
Tudo o que está reprimido é libertado. É necessário, ao contrário, dirigir
enfaticamente a atenção para o presente tal como ele é, caso se deseje trans­
formá-lo. Pessimismo da inteligência, otimismo da vontade.” (Gramsci,
1971, p. 175, nota 75).
P refácio À edição brasileira ♦ 13

a objetividade tanto quanto o conhecim ento é verdadeiro


para todo o gênero hum ano historicam ente unificado num
único sistema cultural unitário. C ontudo, esse processo de
unificação histórica se dá m ediante o desaparecim ento das
contradições internas que dividem a sociedade hum ana,
ao passo que essas mesmas contradições são a condição
para a formação de grupos e o nascim ento de ideologias
que não são concretam ente universais, mas são im ediata­
m ente tornadas transitórias em virtude da origem prática
de sua essência. (Gramsci, 1971, p. 445)

O fim da história ou a produção da história?

Como amplamente documentado por uma série de relatórios


cio Programa de Desenvolvimento da Organização das Nações Unidas
(UNDP), desde meados dos anos 1990 entramos numa era de profun­
da reestruturação da economia política global, de redefinição global
cia segurança e de aceleração míope de padrões insustentáveis de con­
sumo intensivo de energia e de recursos. Estes acontecimentos pro­
duzem monoculturas sociais e ecológicas, e causam danos à biosfe­
ra e problemas de saúde em escala mundial (UNDP, 1994; 1998). Na
vida das pessoas comuns, essas mudanças foram acompanhadas por
significativo deslocamento social e econômico sem precedentes - ao
menos em tempos de paz - não só no antigo Bloco Oriental, mas
também na África, na Ásia e nas Américas. As formas anteriores de
proteção social foram substituídas por um sistema individualista de
auto-ajuda, oficialmente aprovado, por meio do qual se pretende que
as pessoas permaneçam indefesas diante das novas e duras discipli­
nas do mercado. Isto quer dizer um mundo em que bilhões de pes­
soas estão marginalizadas no chamado “setor informal”, freqüen-
iemente vivendo em extensas aglomerações urbanas - em favelas ou
cm áreas rurais distantes - em condições precárias de sobrevivência
(Davis, 2004). As sociedades neoliberais, comandadas por práticas a
que o Banco Mundial chamou de “boa governança”, devem agora se
basear num sentido mais comercial do mundo e de suas motivações,
visando erradicar a antiga ordem “coletivista”. Em maior ou menor
grau, novas formas de individualismo possessivo e de atomização
14 ♦ Stephen G ill

social emergiram no mundo inteiro.2 As instituições sociais foram |


redefinidas para criar o que chamei de civilização de mercado
emergente - uma cultura unitária de desenvolvimento socioecológi- í
co e da mentalidade, associada a um neoliberalismo disciplinador j
que se apóia no poder disciplinador das forças do mercado para mol­
dar as preferências e a estratificação sociais (Gill, 1995).
Uma das dimensões dessa mudança foi a forma como, no
mundo inteiro, novas constituições liberais foram promulgadas e ve­
lhas constituições, emendadas. Por recomendação do Fundo Monetá- |
rio Internacional (FMI), do Banco Mundial e de outras agências da i
economia capitalista mundial, freqüentemente foram criados novos j
arranjos institucionais, seguindo o modelo da arquitetura européia
de governança econômica, com o objetivo de separar a “política” da
“economia” e> assim, “garantir” os ganhos de poder do capital (Banco
Mundial, 1997 e 2002; Gill, 1998). Esse projeto pretendia igualmente
“excluir” ou despolitizar as forças nacionalistas, socialistas ou po­
pulares e democráticas, restringindo suas ações àquilo que James
Buchanan e outros neoliberais chamaram de limites da “política
normal”, os quais garantiríam, por via constitucional, os direitos do
capital contra as pressões populares (Buchanan, 1991; 1997). Nos
países em que estas forças não se resignaram ao fato de não haver al­
ternativa ao neoliberalismo, outras táticas foram utilizadas para ten­
tar intimidar, domesticar, cooptar ou tornar irrelevantes diversas for­
mas de oposição.
Porém, durante os anos 1990, os limites da civilização de mer­
cado se tornaram evidentes à medida que a atomização e a desigual­
dade sociais se intensificaram e que as contradições decorrentes de
uma forma de desenvolvimento econômico global mais suscetível a
crises se tornaram mais óbvias. Com isso, novas formas de ação políti­

2 As tendências à desigualdade social, à redefinição espacial das relações sociais,


à atomização e à criação de enclaves estão cada vez mais inscritas c exemplifi­
cadas em ambientes imaginados como mundos de fantasia, tal como o que
está sendo construído em Dubari para os muito ricos e as celebridades (por
exemplo, jogadores de futebol e estrelas de cinema). Estes enclaves protegidos
contrastam com a proliferação de favelas no Norte e no Sul globais.
P refácio À edição brasileira ♦ 15

ca começaram a surgir, visando desafiar a globalização pelo alto das


elites globalizantes, no contexto de uma renovação da acumulação
primitiva ou originária e da intensificação mundial da exploração.
Este processo se acelerou após 1997-1998, depois da pior crise econô­
mica global desde os anos 1930, que acentuou níveis já deploráveis de
desigualdade econômica, empobrecendo e expropriando milhões ao
mesmo tempo em que enriquecia poucos. Além disso, levantou a
questão do admirável mundo novo do capital livre de fronteiras, bem
como o comando da economia global pelo G7 e pelo FMI.
Neste contexto, as novas restrições ou limites à ação política
foram eficazes em muitas partes do chamado Norte global, na medida
em que a emergência do neoliberalismo e do problema da segurança
serviram para disciplinar e redefinir muitas formas tradicionais de
ação política e os programas dos principais partidos políticos - como
os socialdemocratas e, mesmo, outros partidos da esquerda. Por
exemplo, grande parte do antigo Partido Comunista Italiano (que se
tornou o Partido Democrático de Esquerda), os partidos socialistas
francês e espanhol, bem como elementos importantes do Partido So-
cialdemocrata alemão começaram a abraçar cada vez mais, volun­
tariamente ou não, o neoliberalismo disciplinador. Escrevendo em
uma prisão fascista nos anos 1930, Gramsci incluiu o processo de coop-
tação da oposição dentro dos limites da ideologia dom inante,
chamado por ele de transformismo político.3 O processo de transfor-
mismo foi consumado pelo Partido Trabalhista do Reino Unido du­
rante o governo de com Tony Blair, o qual, junto com o presidente Bill
Clinton, buscou redefinir o neoliberalismo disciplinador como uma
terceira via; os novos limites do possível pressuporiam o disciplina-
mento do mercado e a liberdade dos empreendimentos, aliados a um 1

1 ‘'Este termo foi usado a partir de 1880 [na Itália] para descrever o processo
pelo qual os partidos ‘históricos’ de direita e esquerda que surgiram do Risor-
gimenlo tendiam a convergir em termos de programa nos anos que se segui­
ram, até que não havia mais qualquer diferença substancial entre eles - espe­
cialmente depois de a ‘esquerda’ ter chegado ao poder com Dcpretis cm 1876
[...] e a última começou a recrutar seus ministros indiscriminadamente, de
ambos os lados do parlamento.” (Gramsci, 1971, p. 58, nota dos editores 8)
16 ♦ S tephen G jll

novo sistema de direitos e obrigações políticos baseado no workfare4


para os recalcitrantes e em verdadeiros direitos de cidadania para as
classes médias ascendentes e os ricos.
Mais tarde, Blair apoiou o presidente George W. Bush e tornou-
se aliado dos Estados Unidos nas guerras do Afeganistão e do Iraque,
que tinham como finalidade assegurar a supremacia geopolítica dos
Estados Unidos e seu controle estratégico das vastas reservas de petró­
leo da região. Um aspecto do “fim da história” no Iraque foi não só o
esfacelamento dos seus sistemas socioeconômico e político, mas tam ­
bém a destruição e o roubo em larga escala de bens do patrimônio
histórico e cultural do Iraque durante e após a invasão americana.
Muitos estudiosos consideram a antiga Mesopotâmia o “berço da ci­
vilização”.
De fato, a Guerra do Iraque está vinculada ao desenvolvimento
de novas doutrinas do Pentágono para o planejamento do poder glo­
bal e do “imperialismo democrático”. São estratégias visando assegu­
rar a expansão mundial da globalização corporativa liderada pelos
Estados Unidos e também para reforçar a segurança energética ame­
ricana. Essas doutrinas foram codificadas recentemente em docu­
mentos sobre a segurança nacional elaborados pelo Pentágono, nos
quais se exigia que os Estados Unidos pudessem iniciar guerras “pre­
ventivas” e manter insuperável superioridade militar com base no
“domínio de espectro completo” (US, 2002; US Space Command,
1997).
Domínio de espectro completo significa que os Estados Unidos
pretendem agora exercer o domínio sobre qualquer adversário, ou
qualquer grupo potencial de adversários, mediante a utilização de
novas tecnologias de armas e do poderio militar (em terra, mar, ar e
espaço), apoiados em sua supremacia em processamento de infor­
mações, guerra cibernética, inteligência e propaganda. Realmente,
como disse um estrategista do Pentágono, ao justificar antecipada-1

1 Modelo alternativo aos sistemas tradicionais de seguridade social (em inglês,


welfare) no qual os beneficiários devem passar por programas de treinamento
e de reciclagem profissionais e se submeter a trabalhos sem pagamento ou
com salários reduzidos a fim de receberem benefícios.
P refácio À edição brasileira ♦ 17

mente a Guerra no Iraque, e sua extensão para o Oriente Médio e ou-


t ras regiões: “Se condomínios fechados e segurança privada fossem
suficientes, o 11 de Setembro nunca teria acontecido [...]. [As amea­
ças aos Estados Unidos] não desaparecerão enquanto nós, como na­
ção, não tivermos respondido ao desafio de tornar a globalização ver­
dadeiramente globar (Barnett, 2003, p. 7; grifo meu).
Naturalmente, nem todos concordam com a visão de mundo
do Pentágono. De fato, há sinais de um novo globalismo que se opõe
aI ivamente a essa visão. A amplitude real e, o que é mais importante,
potencial destas forças de oposição refletiu-se na maior passeata polí-
i ica até hoje ocorrida, realizada em fevereiro de 2003, que congregou
.18 milhões de pessoas no mundo inteiro contra o projeto de invasão
do Iraque pelos Estados Unidos. As pessoas que se reuniram, e inú­
meras outras que não foram aos protestos, recusaram-se a acreditar
1) que por serem organizações terroristas, a Al-Qaeda e o regime de
Saddam Hussein no Iraque estavam relacionados; ou 2) que o Iraque
possuía armas de destruição em massa que poderiam ameaçar os
Estados Unidos e seus principais aliados. Bush realmente chegou a
dizer que estas armas ameaçavam a “civilização ocidental”.
De fato, apesar da ampla mobilização popular em contrário, e
da consternação com a maneira como a Guerra do Iraque foi condu­
zida (dentro e fora dos Estados Unidos) - decorrente da tortura de
prisioneiros, do assassinato de civis inocentes, da criação de um go­
verno biônico e da efetiva expropriação de petróleo iraquiano os
Estados Unidos parecem ter tido sucesso em reafirmar sua preponde­
rância sobre seus aliados mais importantes, como, por exemplo, so-
lue a maior parte dos governos da União Européia. Mesmo os gover­
nos europeus que não apoiaram diretamente a invasão e a ocupação
iom o envio de tropas, mostraram-se omissos: não condenaram a
( hierra do Iraque como agressão e violação ao direito internacional,
reclamando apenas que suas empresas estavam sendo tratadas de mo­
do injusto na distribuição de contratos relativos à reconstrução (após
a guerra) e ao petróleo iraquiano. Assim, a Guerra do Iraque revelou,
(imdamentalmente, a base militante do imperialismo neoliberal dis-
ciplinador do atual governo. Mostrou como os Estados Unidos afir­
mam unilateralmente o direito de ditar regras, leis e normas nacio­
18 ♦ Stephen G ill

nais e internacionais, enquanto se reservam “poderes excepcionais”5


de intervenção e ação, e ressaltou uma das principais contradições
políticas do papel americano na nova ordem mundial, ou seja, o fato
de os Estados Unidos, por um lado, pregarem o liberalismo, a demo­
cracia e o governo limitado sob o império da lei, enquanto, por outro,
violam abertamente o império da lei pela utilização do poder estatal
arbitrário e da violência organizada, empregados impunemente.
Mesmo assim, apesar dessa reafirmação da supremacia dos Es­
tados Unidos - e da aparente capacidade de seu governo de rejeitar a
legalidade e a legitimidade e de apagar a história -, os chamados limi­
tes do “fim da história” parecem ter sido muito menos eficazes em
impedir o surgimento de novas formas de ação política, especialmen­
te no Sul global, incluindo a América Latina. Na verdade, essas forças,
parafraseando Marx, estão constituídas de pessoas interessadas em

5 Há muito que os Estados Unidos afirmam ter o direito de intervir no estran­


geiro. Apesar da independência formal da América Latina a partir de 1820,
o presidente James Monroe anunciou em 1823 que os poderes europeus não
deveriam interferir nem procurar colônias nas Américas. A Doutrina Monroe
declarou que a América Latina estava ciaramente sob a esfera de influência
americana. Os líderes americanos disseram que os Estados Unidos tinham
um “destino manifesto” de levar a “civilização” às Américas. Os Estados Uni­
dos expandiram seu domínio territorial rapidamente nos anos 1840: em
1845, anexaram o Texas; em 1846, adquiriram o Oregon num tratado com
a Grã-Bretanha; conquistaram a Califórnia e o Novo México na guerra com
o México (1846-1848). Nos anos 1890, a Doutrina Monroe foi usada para
justificar a guerra com a Espanha, que levou à colonização de facto de Cuba
pelos Estados Unidos. Em 1904, o presidente Theodore Roosevelt afirmou
o direito dos Estados Unidos de intervir diretamente na América Latina,
coincidentemente estendendo o controle americano ao canal do Panamá, de
grande valor geopolítico e comercial. Os Estados Unidos enviaram suas forças
militares para intervir na América Latina mais de trinta vezes entre 1898 e
1929, justificando suas ações por meio da invocação do “corolário de
Roosevelt” na doutrina que supostamente outorgava aos Estados Unidos
“poder internacional de polícia” sem deixar de mencionar que, desde sua
fundação moderna no século XVII, os Estados Unidos expandiram a coloni­
zação “internam ente”, conquistando, pela força, o controle sobre vastas ex­
tensões de terra das populações nativas, obrigando-as a se mudar para reservas
em regiões remotas e freqüentemente improdutivas.
P refácio À edição brasileira ♦ 19

produzir a história, ainda que não necessariamente em condições de


sua própria escolha.6
Isto parece ainda mais surpreendente se considerarmos a ma­
neira como as crises econômicas e sociais que caracterizaram os anos
1980 e 1990 criaram estagnação econômica e atomização social na
América Latina. É bem sabido que, no início dos anos 1980, a Amé­
rica Latina provavelmente já possuía a distribuição de riqueza e de
renda mais desigual do mundo, situação que piorou significativa-
mente na era neoliberal (Portes e Hoffman, 2003, p. 50). Na realidade,
a desigualdade econômica foi agravada pelo fato de, entre 1980 e
2000, a América Latina ter continuado a transferir quantidades signi­
ficativas de riqueza para os centros metropolitanos que dominam a
economia mundial: o capital estrangeiro penetrou mais profunda­
mente na América Latina a fim de ganhar o controle das fontes locais
de lucro (Petras, 1997).7 O subcontinente experimentou uma dete­
rioração contínua em termos de comércio, em parte como conse­
quência da dependência geral da exportação de commodities. O resul­
ta do foi que, no período de 1982-2002, a renda per capita caiu em to­
da a região. O crescimento econômico havido refletiu em grande par­
le uma transferência de renda da base da sociedade para o topo e, em
particular, para detentores estrangeiros de capital (Robinson, 2004).
Ao mesmo tempo em que os salários reais caíam, o desemprego cres­
ceu e a pobreza aumentou, com o grosso da população marginalizado
tios setores informais, cada vez mais lutando para simplesmente so­
breviver. Na América Latina, o maior segmento da população empre­
gada trabalha no setor informal e “precisa sobreviver por meio do tra-

“Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não
a fazem sob as circunstâncias de sua escolha, e sim sob aquelas com que se
defrontam dirctamente, legadas e transmitidas pelo passado.” Karl Marx, O
dezoito de brumário de Luís Bonaparte (1852).
beiras (1997) afirma que o imperialismo americano está particularmente
preocupado em fortalecer a posição global do capital americano por meio da
maior exploração da América Latina. É de lembrar que os Estados Unidos
lêm uma balança de pagamentos favorável em relação à América Latina...
Isio compensa em parte seus deficits com a Ásia e a Europa.
20 ♦ Stephen G ill

balho desregulamentado e de atividades diretas de subsistência” (Portes


e Hoffman, 2003, p. 53).8 Para muitos países latino-americanos, o
índice de Desenvolvimento Humano do Programa de Desenvolvi­
mento da Organização das Nações Unidas (ONU) mostrou queda nos
indicadores sociais (expectativa de vida, nível de escolaridade e padrão
de vida) na Argentina, no Brasil, na Bolívia, no Chile, na Colômbia e
em vários outros países.
Nos anos 1970, o autoritarismo foi o modo principal de con­
trole social, ainda que, aparentemente, os regimes autoritários te­
nham sido incapazes de controlar as forças econômicas. Contudo, a
crise do autoritarismo foi parcialmente resolvida mediante a transi­
ção para democracias eleitorais limitadas, supervisionadas pelo pode­
rio militar e econômico dos Estados Unidos. Com isso, as classes do­
minantes locais e seus aliados no estrangeiro conseguiram canalizar
e limitar os movimentos pela democratização durante a década de
1980 e o início dos anos 1990.
Nos últimos dez anos, boa parte da esquerda brasileira deslo­
cou-se politicamente para o centro, ao mesmo tempo em que se enga­
jou em programas de redistribuição de renda a fim de conter os desa­
fios populares que vinham de baixo. Apesar de sua postura radical no
passado e de seus muitos anos de envolvimento na luta de classes, o
presidente Lula manteve a integração do Brasil ao neoliberalismo
disciplinador. Seu governo tentou equilibrar políticas econômicas e
financeiras ortodoxas com algumas iniciativas voltadas para as desi­
gualdades sociais no país. Sob Lula, portanto, a aliança subordinada
da classe dominante brasileira com o capital internacional conti­
nuou, e a política econômica parece ter atendido, de modo geral, aos
interesses dessa aliança. Com efeito, no Governo Lula, o modelo neo-
liberal continuou a ser aplicado ao setor agrário, aspecto fortemente

Os dados de Portes e Hoffman (2003) sobre a era neoliberal evidenciam qua­


tro grandes tendências: 1) diminuição dos trabalhadores do setor público, ob­
servável em todos os países da região; 2) diminuição paralela do proletariado
formal como um todo em todos os países, com exceção da Argentina; 3) au­
mento da classe de microempresários (donos de microempresas com menos
de cinco empregados); 4) estagnação ou aumento do proletariado informal.
P refácio à edição brasileira ♦ 21

criticado pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra


(MST). As políticas agrárias de Lula envolvem alguns passos signifi­
cativos para aliviar a crise rural e ajudar os pequenos proprietários,
por meio de empréstimos, eletricidade subsidiada, construção de ca­
sas, um programa de biodiesel, ajuda técnica e certa garantia de renda.
Em outros aspectos-chave, porém, Lula deu continuidade às políticas
macroeconômicas e agrícolas do Governo Fernando Henrique Car­
doso (1995-2002).9 Essas políticas sustentam uma situação na qual
menos de 3% da população possui dois terços da terra; e 1,6% dos
proprietários possuem (mas não necessariamente cultivam) aproxi­
madamente 46,8% da terra. Quase um milhão de pequenas proprie­
dades desapareceram de 1985 a 1996 - pois as políticas neoliberais
implicaram o corte dos subsídios agrícolas -, e, em 2002,4,8 milhões
de famílias não possuíam terra. O desemprego rural cresceu para 5,5
milhões e, em apenas cinco anos (1995-1999), 4 milhões de brasilei­
ros trocaram o campo pelas cidades (McMichael, 2003).
Assim, no Brasil, “dez multinacionais - Monsanto, Bunge
(agronegócio e alimentos), Cargill, ADM, Basf (produtos químicos),
Bayer, Syngenta, Norvartis, Nestlé e Danone - controlam pratica­
mente toda a produção agrícola, de pesticidas, de sementes transgê-
nicas e o comércio de commodities estrangeiras” (Stédile, 2007). O
controle do mercado de sementes pelas multinacionais está aumen­
tando - a Monsanto, por exemplo, controla cerca de 60% do mercado
brasileiro de sementes de milho. Essas empresas exigem que, ao com­
prarem as sementes, os produtores comprem também “pacotes tecno­
lógicos” que representam entre 60% e 70% dos ganhos desses produ­
tores.

" “Foi selada uma aliança fno Governo Lula] entre os grandes fazendeiros e
pecuaristas capitalistas e as multinacionais que controlam o comércio inter­
nacional de commodities, de sementes, a produção de pesticidas e o agronegó­
cio. Essa visão neoliberal da agricultura dá prioridade a grandes conglomera­
dos que fazem uso extensivo de agrotóxicos e pesticidas, e que se concentram
em monoculturas de produtos agrícolas para exportação.” (Stédile, 2007. Dis­
ponível em: http://www.monthlyreview.org/0207stedile.htm. Acesso cm: 4
maio 2007)
22 ♦ Stephen G ill

Em resposta, o MST organizou um movimento de 1,5 milhão


de pessoas, com atuação em 23 dos 27 estados brasileiros, que buscam
realizar uma agricultura “agroecológica” orgânica governada por
princípios democráticos, conseguindo títulos de propriedade para
mais de 300 mil famílias em 2 mil assentamentos. As ocupações de
terra são justificadas pelo direito ao confisco da propriedade agrária
privada improdutiva presente na Constituição brasileira e também
pelo “modelo de apropriação social” do MST. Após as ocupações de
terra pelo MST, foram criadas cem cooperativas alimentares, mil es­
colas, para 95 mil crianças e 17 mil alunos em idade adulta, bem co­
mo creches, clínicas e moradias, isto é, houve ampla democratização
do poder, da produção e da reprodução social.10
De fato, durante os anos 1990, em toda a América Latina, sur­
giram inúmeras insurreições e organizações espontâneas urbanas,
rurais e indígenas que - como o MST - tiveram lugar fora das institui­
ções políticas formais (Petras, 1997). Muitos integrantes da esquerda
esperavam que os Estados Unidos fossem enfrentar e reprimir essas
mobilizações populares por meio da intervenção militar ou de ações
disfarçadas e “guerra de baixa intensidade”, talvez sob a roupagem da
“guerra” às drogas e ao terror - como o pesado investimento feito
pelos Estados Unidos no Plano Colômbia. E, claro, alguns governos
da região tentaram rotular os movimentos de terroristas e efetiva­
mente os enfrentaram usando a coerção e a intimidação.
No entanto, apesar de confrontados com outras ameaças do
Pentágono que buscam provocar “temor” nas mentes de seus adversá­
rios, há um claro ressurgimento, na América Latina, que se manifesta
pela combinação entre um populismo de esquerda desafiador e um
capitalismo de Estado, como é o caso, por exemplo, do presidente
Chávez na Venezuela. Em termos mais amplos, vários movimentos
de operários e de camponeses, feministas e ambientalistas c outros
combinaram-se, no mundo inteiro - Ásia, África, América I,atina -,
para produzir um marco teórico em grande medida comum para a
análise dos problemas relacionados à globalização ncolibcral. Al­

10Ver http://w w w .w aronw ant.org/Thc+Landless+M ovi.-m cnl l iu l Bra/il+


109.1 .twl. Acessado em: 4 maio 2007.
P refácio à edição brasileira ♦ 23

guns> como o MST, estão forjando alternativas reais e práticas ao do­


mínio do capital.
Porém, o mais importante é que várias destas novas forças são
muito mais radicais do que os partidos ortodoxos de esquerda e estão
engajadas em novas práticas e discursos políticos. De fato, sob muitos
aspectos, a fortaleza mais radical do ressurgimento da esquerda está
entre os camponeses sem-terra - que formaram um movimento so­
cial grande, forte, dinâmico, inovador e eficiente no Brasil. Na Bolívia
e no Paraguai, e também no México, os movimentos camponeses
têm sido muito importantes na reformulação e na redefinição do ter­
reno político, freqüentemente aliados a outros movimentos sociais e
sindicais tradicionais.
O que geralmente une esses movimentos é a forma como o
neoliberalismo disciplinador, mediante um processo de acumulação
primitiva, expropriou a terra, ou seja, os meios de subsistência, de
muitos pequenos produtores. Decorre, portanto, que a resistência dos
camponeses tanto à perda de seus direitos quanto à expropriação é
também uma resistência ao capital, ainda que alguns dos termos da
resistência reafirmem formas sociais e políticas pré-modernas. Um
exemplo disso é o discurso de RigobertaMenchú, que defende formas
comunitárias de posse da terra ameaçadas de expropriação violenta
pelos governos quando estes tentam impor formas “modernas” (o
termo é dela) de propriedade privada, a fim de transformar a terra em
mercadoria (Burgos-Debray, 1984). Vale ressaltar que essa posição
não representa uma oposição absoluta dos povos indígenas à moder­
nidade enquanto tal (há um reconhecimento, por exemplo, de alguns
dos benefícios da ciência e da tecnologia). Trata-se, antes, de uma in­
sistência no fato de que certas instituições da modernidade, como o
capitai e a propriedade privada, precisam ser rejeitadas, por represen­
tarem uma expropriação do direito à subsistência (Beverley, 2004,
p. 271).
O contraste entre esses novos intelectuais orgânicos e os inte­
lectuais antigos e mais vinculados à esquerda tradicional é realmente
surpreendente. Assim, muitos dos novos líderes jovens que surgiram
das fileiras do campo durante os anos 1990 representam um novo
tipo de intelectual orgânico: moralista, espartano e integrante de uma
24 ♦ S tephen G ill

liderança coletiva epistemológica e politicamente ligada aos interes­


ses dos povos nativos, assim como aos camponeses. Esses intelectuais
constituem uma forma específica de liderança moral e intelectual,
pois sua conduta é irrepreensível; têm disposição de luta e demons­
tram forte compromisso com a ecologia sustentável e com os direitos
não apenas das populações nativas, mas também das mulheres, as
quais, como Rigoberta Menchú, muitas vezes assumem a liderança
no plano comunitário. A base religiosa de alguns desses novos líderes
é a teologia da libertação, e seu pensamento parece se fundir com o
marxismo de forma sincrética (Petras, 1997). Finalmente, os novos
movimentos camponeses - incluindo o MST - estão vinculados entre
si em toda a América Latina por meio da antiga organização dos movi­
mentos da região e pela organização internacional Via Campesina.
Assim, essas forças atuam local e globalmente, usando novas e
diferentes técnicas de organização política local e transnacional,
técnicas que envolvem a combinação entre velho e novo, moderno e
pós-moderno, e que parecem estar criando sentidos diferentes do
político.
Resta ver se uma frente popular mais ampla e profunda contra
o capitalismo surgirá desses movimentos. O princípio do “popular”
teria de ser unificador (isto é, a luta comum contra a expropriação
capitalista), diversificado, múltiplo, necessitaria respeitar as diferen­
ças e não ficar confinado a uma única classe ou identidade étnica/na-
cional. Novas formas de ação política exigem, assim, que haja inclu­
são ampla dos setores populares nos discursos sobre a constituição
pós-moderna do partido - o que eu discuto a seguir.

O choque de globalizações e o príncipe pós-moderno11

Alguns leitores desta obra se lembrarão do modo como o teóri­


co conservador do “poder americano”, Samuel R Huntington, caracte­
rizou a natureza da política global no mundo pós-Guerra Fria como

Este trecho inspira-se em Gill, 2000 e 2003.


P refácio à edição brasileira ♦ 25

um choque de civilizações. Ele sugere, especificamente, que haverá


uma luta entre “Ocidente” e “o resto”, na qual cada “civilização” com­
petirá pela supremacia numa nova era das cruzadas (Huntington,
1993). Huntington está certo ao dizer que, sob muitos aspectos, as lu­
tas políticas mundiais dizem respeito à natureza e ao significado das
civilizações. No entanto, não se trata de uma luta do Islã contra a cris-
tandade. Como Braudel demonstrou, as civilizações são mais fluidas,
mais complexas e menos singulares do que sugere o típico modelo
realista rígido da Guerra Fria (Braudel, 1994). Há uma luta dentro de
e entre os complexos de civilizações - uma luta mediada pelos pro­
cessos e mecanismos da globalização, em particular pela intensifica­
ção das disciplinas do capital. Esta luta serve tanto para unir quanto
para dividir o mundo, com o aprofundamento das políticas de desi­
gualdade, em cisões freqüentemente violentas de classe, raça e gênero.
Assim, num sentido ético, o que está fundamentalmente em
questão no choque de globalizações do início do século XXI é o que sig­
nifica ser civilizado. Por sua vez, do ponto de vista das novas forças so­
ciais, isso depende de qual forma de economia política permite que
uma diversidade de civilizações floresça de maneira compatível com
a integridade da biosfera e a subsistência das futuras gerações. As for­
ças da globalização por baixo perguntam se uma monocultura de
mercado puramente materialista e singular pode realmente ser a
marca da vida civilizada - ou seja, talvez tenhamos de nos perguntar
se aquilo que chamei de “civilização de mercado” é mesmo uma con­
tradição em termos, um oximoro.
Além dessa questão, os novos movimentos e grupos comparti­
lham uma série de preocupações relacionadas aos deslocamentos so­
ciais e às enormes conseqüências ecológicas da globalização intensi­
va. À medida que o novo milênio se aproximava, ficaram mais auto-
conscientes e procuraram desafiar as novas configurações de restri­
ções e disciplinas com as quais haviam tentado redefinir os parâme­
tros e a natureza do político. Contudo, outros autores afirmam que os
movimentos de oposição se enfraqueceram diante da ofensiva políti-
co-militar neoconservadora americana. Os movimentos de oposição
não conseguiram impedir a Guerra do Iraque; tiveram pouca in­
26 ♦ S tephen G ill

fluência, na Europa, sobre seus próprios governos, majoritariamente


socialdemocratas, que efetivamente apoiaram a guerra; não conse­
guiram pressionar as nações mais ricas a se comprometerem com a
diminuição das gigantescas dívidas dos países em desenvolvimento;
os movimentos de oposição não conseguiram que seus governos na­
cionais se empenhassem minimamente em colocar em prática os
compromissos básicos associados às Metas de Desenvolvimento do
Milênio; as forças progressistas conquistaram pouco ou nenhum
avanço no que diz respeito aos problemas econômicos e sociais inter­
nos, como o desemprego em massa. Tudo isso parece haver se combi­
nado e contribuído para uma visão bastante pessimista das forças
progressistas, ao mesmo tempo em que precipitou as cisões entre, por
exemplo, os que defendem uma abordagem mais radical e aqueles
que preferem trabalhar dentro das instituições dominantes para obter
reformas.

Reflexões e teses sobre o futuro dos movimentos progressistas

Parece, então, que talvez tenhamos chegado a um momento


em que muitos estão questionando o potencial político dos novos
movimentos. Como contribuição para o tratamento dessas questões,
eu destacaria cinco conjuntos de assuntos que podemos considerar e
devemos ter em mente ao falar das complexidades da política global
no início do século XXI.
Em primeiro lugar, penso que necessitamos ter uma visão
mais de longo prazo sobre o por que do surgimento dessas forças,
relacionando, assim, passado, presente e futuro em nossas análises
políticas. Os movimentos progressistas contemporâneos devem ser
entendidos com base em acontecimentos e fracassos associados a
uma linhagem muito mais longa de políticas progressistas, que re­
monta às lutas mais primordiais por representação política, direitos e
igualdade, incluindo as lutas de muitas gerações contra a colonização
e o imperialismo. As lutas pelos direitos básicos e pela representação
política ainda continuam e devem continuar em seu sentido mais
elementar.
P refácio à edição brasileira ♦ 27

De fato, talvez a coisa mais fundamental a se dizer sobre as no­


vas forças da política global é que elas ultrapassam em muito as pri­
meiras formas de progressismo socialista ou comunista. Ainda que
muitos ganhos tenham sido obtidos pelos movimentos socialistas do
século XIX, e que muitos ainda estejam sendo alcançados mediante
formas de populismo de esquerda, uma das fraquezas históricas
essenciais estava vinculada precisamente às suas relativamente res­
tritas definições de política: dava-se primazia à política da produ­
ção e às lutas entre trabalho e capital. Com isto, outros assuntos fun­
damentais associados às condições de vida, ao racismo, às relações
entre homens e mulheres - e, mais amplamente, àquilo que as femi­
nistas chamam de reprodução social - e entre os seres humanos e a
natureza foram deixados para segundo plano. Os movimentos pro­
gressistas de hoje, ao contrário de seus predecessores dos séculos XIX
e XX, baseiam-se, assim, em uma compreensão muito mais abran­
gente das condições de existência e em um entendimento mais pro­
fundo das estruturas e dos processos de opressão, e de como eles se in-
terconectam entre si e com outras comunidades políticas.
Em segundo lugar, precisamos nos perguntar continuamente
sobre o modo como os movimentos se relacionam com aspectos-cha-
ve do mundo em que estamos vivendo efetivamente e, particularmen­
te, como esses movimentos estão relacionados com as experiências
cotidianas que diferentes comunidades têm dos problemas e contra­
dições associados com as estruturas atualmente dominantes de globa­
lização e subdesenvolvimento - isto é> aqueles ditados pelo poder
corporativo e pelas formas militantes do neoliberalismo disciplinador.
Em terceiro lugar, devemos evitar a falácia de presumirmos
que todas as forças de oposição estão, ou deveríam estar, unificadas
para uma resposta específica a todos os problemas, ou que elas devem
estar unificadas organizacionalmente na forma de um partido políti­
co tradicional com unidade de propósitos, objetivos e, ainda, exi­
gências para restringir a admissão de membros. As forças de oposição
são muito melhor entendidas como um movimento de movimentos
(Patomãki e Teivainen, 2004). Se isto, evidentemente, pode dar mar­
gem a certa falta de organização, a liderança política, por sua vez, pas­
28 ♦ S tephen G jll

sa a estar, de fato, na totalidade de seus membros, o que representa


uma forma de organização não apenas diferente, mas também poten­
cialmente ilimitada e, como tal, é e continuará a ser difícil de cooptar
e intimidar.
Em quarto lugar, podemos, por tudo isso, começar a repensar
as formas de ação política em termos de movimentos, em vez de insti­
tuições, nos quais seus elementos-chave constitutivos estejam carac­
terizados pela diversidade e pela unidade de ação, a qual decorre do
reconhecimento de problemas comuns e da empatia com o sofrimen­
to alheio. Estas formas de ação também são principalmente movi­
mentos que englobam o Norte e o Sul, e cuja premissa está na igual­
dade e na valorização mútuas. Esses movimentos, portanto, não se
concentram simplesmente na preponderância dos trabalhadores in­
dustriais, como “vanguarda” do proletariado, mas englobam também
camponeses e trabalhadores urbanos, feministas, ecologistas, anar­
quistas, populações autóctones e uma vasta gama de forças progressis­
tas, incluindo Igrejas e até mesmo muitos especialistas com alto nível
de especialização científica e tecnológica. Além disso, os movimentos
estão interligados globalmente por poderosos meios e modos de co­
municação global, tais como a internet, e sua mensagem é propagada
pela utilização de inovações culturais e de comunicações, e divulgada
por canais radicais dos meios de comunicação. Esses canais também
servem para controlar e analisar as práticas do poder dominante, e
elaborar críticas que podem ser instantaneamente divulgadas para o
mundo inteiro. Como esses canais de mídia utilizam as mesmas es­
truturas utilizadas pelos empreendimentos comerciais, é difícil, se
não impossível, que o poder estabelecido possa conter ou impedir seu
uso.
Dito de outro modo, esta ampla base de conhecimento, habili­
dade e ação serve para que a vasta maioria da população mundial pos­
sa consolidar uma compreensão de que suas condições de existência
são mutáveis, ao mesmo tempo em que também oferece alguns re­
cursos com os quais essas condições podem ser transformadas.
Então, nesse sentido, os novos movimentos - apesar dos retro­
cessos associados à intensificação do poder coercitivo - parecem ser
P refácio à edição brasileira ♦ 29

muito mais radicais e dispor de maior potencial para incorporar con­


tingentes relativamente ilimitados de pessoas do que seus antecesso­
res, os movimentos socialistas ou comunistas dos séculos XIX e XX.
Como disse Gramsci, quando esboçou sua visão de um partido comu­
nista radical e democrático nos anos 1930:
O m oderno príncipe, o m ito-príncipe não pode ser
um a pessoa real, um indivíduo concreto; só pode ser um
organismo; um elemento complexo da sociedade no qual
já tenha tido início a concretização de um a vontade coletiva
reconhecida e afirm ada parcíalm ente na ação. (Gramsci,
1971, p. 129)

Hoje, o conceito de partido progressista precisa ser repensado


com relação à situação política, social e ecológica global, que envolve
uma combinação de forças sociais e condições históricas pré-moder-
nas, modernas e pós-modernas. Assim, a forma política dos novos
movimentos é mais flexível e diversificada do que aquela associada
aos partidos políticos da era modernista, incluindo o príncipe moder­
no de Gramsci. Ela compreende diversos movimentos em uma nova
e fluida forma de partido político transnacional que não está institu­
cionalizado sob um controle central. Esse novo “partido” é, ao mesmo
tempo, movimento e processo sociais, econômicos, ecológicos e polí­
ticos; pressupõe, simultaneamente, um momento ético e um pedagó­
gico. Tem uma forma nova, múltipla, flexível e com muitas ramifica­
ções. Penso, por isso, que já é possível falar da emergência de uma no­
va forma política pós-moderna. A isto chamo de “príncipe pós-mo-
derno” (Gill, 2000; 2003).
É importante enfatizar aqui que o termo “pós-moderno” não
se refere, como acontece freqüentemente, a um momento discursivo
ou estético. No uso que faço do termo, “pós-moderno” se refere a um
conjunto de condições, particularmente políticas, materiais e ecoló­
gicas, que estão dando margem ao surgimento de novas formas de
ação política cujos mitos definidores estão associados à demanda para
garantir a segurança da humanidade, e das futuras gerações, no plane­
ta - e a segurança do próprio planeta -, bem como o desenvolvimento
humano democrático e os direitos humanos. Como tais, as múltiplas
30 ♦ Stephen G ill

e diversas forças políticas que compõem o príncipe pós-moderno


combinam não apenas estratégias defensivas mas também estratégias
voltadas para o futuro. Em vez de trabalhar na desconstrução, buscam
desenvolver uma política global e universal de (re)construção radical.
Coloquemos esta hipótese num contexto teórico. O príncipe de
Maquiavel tratava do problema da ética do poder do ponto de vista
tanto do príncipe - o palazzo (o palácio) como do povo - a piazza (a
praça). Maquiavel buscava teorizar o modo pelo qual construir uma
forma de poder que combinasse tanto a virtu (a ética, a responsabili­
dade e o consenso) e o medo (a coerção) sob as condições da fortuna
(as circunstâncias). O príncipe foi escrito em Florença no contexto
dos levantes políticos da Itália renascentista. Tanto Maquiavel quanto
Gramsci, mais tarde, relacionaram suas análises e proposições não só
à realidade das circunstâncias históricas concretas, mas também ao
potencial de transformação. Essas circunstâncias englobavam ques­
tões contemporâneas urgentes associadas aos problemas da unifica­
ção italiana e ao lugar subordinado da Itália nas estruturas de relações
internacionais.
E foi em um contexto nacional e internacional semelhante
que O príncipe moderno de Gramsci foi escrito numa prisão fascista.
Trata-se de um texto que lida com um problema central da política: a
constituição do poder, da autoridade, da lei, dos direitos e responsabi­
lidades da criação de uma comunidade ético-política. Mesmo assim,
o que Gramsci viu em O príncipe foi que se tratava “não de uma abor­
dagem sistemática, mas de uma obra ‘viva5, em que a ideologia política
e a ciência política estão fundidas na forma dramática de um ‘mito’”
(Gramsci, 1971, p. 125). O mito, para Maquiavel, era o do conãottiere,
aquele que representa a vontade coletiva. Por contraste, O príncipe
moderno de Gramsci propunha o mito de um partido político de mas­
sas democrático moderno - o partido comunista -, encarregado da
construção de uma nova forma de Estado e sociedade e de uma nova
ordem mundial.
Neste novo contexto estratégico (fortuna) de neoliberalismo
disciplinador e globalização, então, o problema central da teoria polí­
tica passa a ser como conceber e teorizar novas formas coletivas de
P refácio à edição brasileira ♦ 31

ação e de identidade políticas que possam levar à criação de institui­


ções políticas e formas de prática (virfií) novas, éticas e democráticas.
Por isto, permitam-me, aqui, esclarecer uma vez mais que, ao falar
em príncipe pós-moderno, não estou referindo-me a uma forma de
ação política fundamentada na filosofia pós-moderna e no relativis-
mo radical que ela geralmente pressupõe. O que estou tentando dizer
é que há uma mudança nas formas de ação política que permite a essa
ação ir além dos projetos políticos modernistas anteriores. Assim, o
príncipe pós-moderno engloba tendências que já começaram a desafiar
alguns dos mitos e disciplinas das práticas modernistas e que se con­
trapõem especialmente àquelas tendências que procuram consolidar
o projeto da globalização militante sob o império do capital.
Em quinto lugar, para entender os potenciais futuros desses
novos movimentos e forças precisamos não só examinar a credibili­
dade de suas propostas e estruturas políticas, mas, de modo mais fun­
damental - como acabamos de mostrar ir além das concepções es­
treitas de como a ação política deve ser pensada, articulando-as às uto­
pias viáveis ou mitos que esses movimentos abraçam ou venham a
abraçar. Nesse sentido, de um lado, existe a necessidade, como para
qualquer força política concreta, de uma estratégia na qual se acredite
e de um conjunto de propostas políticas que possa ter um impacto
prático. Como esses movimentos tentam proteger ganhos sociais du­
ramente conquistados, relacionados à proteção dos meios de subsis­
tência de diferentes grupos, um aspecto dessa estratégia política é ne­
cessariamente defensivo, tendo em vista a tendência do capital de
buscar programas radicais de privatização e de mercantilização de
aspectos fundamentais da vida cotidiana e da natureza. De outro lado,
uma estratégica política eficaz de longo prazo nunca pode ser pura­
mente defensiva. Deve ter como meta a reformulação do terreno polí­
tico, tratando efetivamente de questões políticas específicas e procu­
rando oferecer vitórias ou ganhos concretos que tornem evidentes
sua força política e seus crescentes potencial e poder de atração. É por
isso que grande parte da pauta e do debate sobre os movimentos de
oposição tem se concentrado em diversos assuntos específicos de im­
portância geral, tais como política da dívida, segurança alimentar e
32 ♦ S tephen G ill

direitos básicos de subsistência, associados às lutas contra a privatiza­


ção de serviços públicos e de meios essenciais de vida, como o forne­
cimento de água.12

A política e a nova ordem social mundial

Além disso, de uma forma bastante importante, estamos em


uma nova ordem social mundial, na qual se intensificam a concen­
tração de riqueza social e espacial (por exemplo, os condomínios fe­
chados) e de pobreza (a crescente criação de guetos e a proliferação de
favelas) (Gill, 2003). De acordo com pesquisas demográficas, há uma
política global de desigualdade em que as linhas de classe estão se tor­
nando mais rígidas social e espacialmente - um processo que, no pas­
sado, era atribuído sobretudo à raça, disfarçando suas dimensões de
classe. Os ricos estão protegidos no mundo inteiro por serviços pri­
vados de segurança e por práticas institucionais de segregação (Low,
2003). À medida que esse processo evolui, as bases dos tributos das

12Um claro exemplo desse tipo de pensamento voltado para o futuro é a alter­
nativa agroecológica do MST (que tem sua própria produtora de sementes or­
gânicas, a Bionatur), uma alternativa ao domínio industrializado e corporati­
vo da agricultura global e à recontextualização da segurança alimentar como
produto de mercado (ver McMichael, 2003): “uma alternativa baseada na
agricultura camponesa e familiar que tem o apoio de movimentos rurais so­
ciais, grupos religiosos, ambientalistas, das 45 organizações do Fórum Nacio­
nal pela Reforma Agrária e da mais ampla gama de representantes dos traba­
lhadores rurais e das populações em áreas rurais. Este modelo alternativo de­
fende a organização e a ocupação de terras em fazendas pequenas e médias;
pede ajuda para 5 milhões de famílias de agricultores de pequenas proprieda­
des familiares; e insta que seja implementada uma reforma agrária que garan­
ta terra a 4 milhões de famílias sem terra. Defende o cultivo intercalado e
a rotação de culturas como maneira de cuidar melhor do solo e preservar o
meio ambiente. Dá prioridade à produção de comida saudável, sem pesticidas.
Defende um tipo de agricultura que emprega trabalhadores, cria empregos e
garante renda para os trabalhadores rurais - [utilizando] técnicas que não
prejudicam o meio ambiente, com o uso de sementes convencionais já adap­
tadas ao nosso país além de ser contra os transgênicos” (Stédile, 2007.
Disponível em: http://www.monthlyreview.org/0207stedile.htm. Acesso em:
4 maio 2007).
P refácio À edição brasileira ♦ 33

comunidades mais pobres são erodidas, e se apresenta um ciclo vicio­


so: os pobres recebem serviços cada vez piores, ao passo que os ricos
pagam uma proporção menor de impostos, mas recebem serviços
muito melhores do ponto de vista per capita do que receberíam se vi­
vessem numa comunidade em que morassem ricos e pobres. Os ricos
se encontram cada vez menos com os pobres. Nos Estados Unidos,
tais processos têm estado ligados, em muitas cidades, a uma nova for­
ma de “ecologia social” cada vez mais niilista e violenta (Massey, 1996,
p. 403-404).
Podemos, portanto, vincular esta análise ao choque de globali­
zações, observando que as questões: 1) ultrapassam fronteiras, isto é,
são locais, nacionais e globais; e 2) são sociais e culturais, parcialmen­
te vinculadas à urbanização do mundo - e, como veremos, estão vin­
culadas a importantes questões ecológicas de longo prazo. Mas pode­
mos também observar brevemente aqui que esta nova política socio-
espacial da desigualdade, documentada por Massey e outros, anuncia
uma nova “era dos extremos”, sucessora daquela identificada por
Hobsbawm (1994) como o “breve século XX” - 1914-1991.
O objetivo desta digressão sobre demografia e questão social é
defender a ampliação do âmbito de análise da economia política, a
fim não só de levar em conta os assuntos político-jurídicos da globali­
zação, mas também de redefinir seu postulado metodológico, tendo
em vista tanto englobar quanto ultrapassar o “poder” e a “produção”,
isto é, a matriz tradicional de entendimento e explicação da econo­
mia política. Como demonstraram economistas políticas feministas
tais como Diane Elson, Brigitte Young e Isabella Bakker, talvez preci­
semos acrescentar ainda a dimensão da reprodução social à nossa
análise (Bakker, 1994; Bakker e Gill, 2003; Elson, 1999; Young, 2001).
Alguns membros dos movimentos sugeriram, por isso, que
deve haver alguma forma de priorização e de ação coordenada para
obter uma vitória global ou regional em um desses grupos de ques­
tões. Até agora, porém, não há uma decisão clara sobre como priorizar
as questões - o debate se espalha por diversos fóruns globais e regio­
nais, como o Fórum Social Mundial e o Fórum Social Europeu, e
dentro de organizações específicas relacionadas à produção e às
finanças, como a Associação para a Taxação das Transações Financei­
34 ♦ Stephen G ill

ras para a Ajuda aos Cidadãos (Attac). No entanto, esses debates não
podem ficar reduzidos a tais fóruns, uma vez que englobam uma sé­
rie de diferentes movimentos e forças, como o MST, de grupos nativos
revolucionários, como os zapatistas no México, e de organizações
particulares vinculadas a propostas políticas específicas, como o Fó­
rum Internacional sobre a Globalização, sendo que todas elaboraram
programas detalhados para a reforma e a transformação do sistema
econômico e financeiro internacional, que encontram paralelismo
nas propostas sobre taxação e redistribuição eqüitativas associadas
com a pauta da Attac na Europa.
Mesmo assim, será preciso tomar decisões a respeito de assun­
tos mais imediatos e de longo prazo, especialmente porque as vitórias
locais, assim como as globais, tendem a inspirar os movimentos e a
fortalecer sua solidariedade e o otimismo da vontade. Ao mesmo tem ­
po, os desafios e questões imediatos devem ser compreendidos segun­
do modalidades que redefinam os problemas globais e esclareçam a
sociedade, grande parte da qual simpatiza com os propósitos ampla­
mente progressistas dos movimentos e com seus objetivos de reforma
e, até mesmo, de transformação da natureza da ordem mundial.
Por isso, é importante que os novos movimentos tentem rede­
finir os debates globais, em parte como meio de reconquistar sua
ofensiva política após as forças conservadoras terem buscado recon­
quistar ascendência enfatizando a guerra contra o terrorismo. Deste
modo, as falsas promessas dos países ricos em relação à redução da dí­
vida dos países mais pobres seriam desmascaradas, e a nova energia
dada à questão talvez viesse inclusive a fazer uma diferença para os
pobres, desde que formas verdadeiramente democráticas de condicio-
nalidade (envolvendo a tomada de decisão por forças populares, e não
pelas classes dominantes e elites globalizantes) estivessem vinculadas
à redução das dívidas e, de fato, à (re)alocação da ajuda.

Conclusão

Para concluir, podemos sugerir que a dialética da política glo­


bal - da supremacia confrontada por novas formas de ação política,
P refácio à edição brasileira ♦ 35

da luta entre o velho e o novo - reflete-se intensamente na questão


latino-americana.
De um lado, as forças sociais e de classe dominantes estão mais
ou menos organizadas num bloco histórico transnacional que apoia
0 neoliberalismo disciplinador. Este bloco se baseia na capacidade
coercitiva dos aparatos estatais do G7, e suas operações e normas se
encontram racionalizadas num conjunto articulado de organizações
internacionais como o FMI, o Banco Mundial, a Organização M un­
dial do Comércio (OMC) e a Organização do Tratado do Atlântico
Norte (Otan). Nos anos 1990, esse bloco conquistou a supremacia so­
bre forças aparentemente fragmentadas e subordinadas no novo con-
lexto de globalização. A estratégia de busca da supremacia envolvia a
imposição coercitiva do poder sobre populações aparentemente
despolitizadas, numa situação de extrema desigualdade de classe e de
impasse político.
Por outro lado, no início do século XXI, essa supremacia está
sendo desafiada. Muitos questionam a racionalidade da forma neoli-
heral de acumulação sob o domínio dos gigantescos oligopólios e
monopólios do capital transnacional, que estão garantidos, em últi­
ma instância, pela ação coercitiva da Otan e do Pentágono. Nos anos
1990, as vulnerabilidades do sistema de acumulação global ficaram
cada vez mais evidentes - por exemplo, na série de intensas crises fi­
nanceiras nas Américas e no Extremo Oriente. Agora, no início do
novo milênio, as forças dominantes estão sendo desafiadas politica­
mente, não só pela esquerda como também pela direita, a qual apre­
senta diversas roupagens: autoritária, ditatorial, fundamentalista e, é
claro, nacionalista (ver o nazismo e o fascismo nos anos 1930).
A questão central para a América Latina e a política mundial é,
portanto, saber se o predomínio deste bloco neoliberal, centrado nos
listados Unidos, é politicamente sustentável. Essa questão está sendo
discutida nos terrenos da cultura e da política, da ecologia e da civili­
zação, e também da economia política e da ética.
Para as antigas e novas forças progressistas, a questão mais pro-
1unda diz respeito à possibilidade de desenvolver novas formas de
ação política democrática para tratar, de modo confiável, as questões
36 ♦ Stephen G ill

urgentes do nosso tempo, e com base em perspectivas de longo prazo,


vinculadas à realização do amplo potencial humano e às futuras gera­
ções do planeta.
Entendo por ação política a capacidade de ação coletiva que
pode resultar na transformação da sociedade, da economia política e
da relação entre os seres humanos e a natureza. Esta capacidade exige
não apenas uma organização política eficaz, mas também mitos polí­
ticos fundacionais ou aspirações que confiram identidade a e galvani­
zem forças políticas distintas e diferenciadas no interior de nações e
entre elas. Os mitos dominantes relacionados aos novos movimentos
de oposição estão associados à reivindicação para garantir a segurança
da humanidade, e das futuras gerações, no planeta - e a segurança do
próprio planeta bem como o desenvolvimento humano democráti­
co e os direitos humanos. Esta nova forma de ação política é e deve
continuar a ser a busca da criação de uma nova linguagem política,
que permita a tradução de diferentes perspectivas políticas e tradi­
ções, tomadas mutuamente compreensíveis por pessoas de diferentes
nações e comunidades, dentro do tempo e do espaço políticos, numa
nova forma de internacionalismo.
Nesse contexto, é de fundamental importância ressaltar que
formas de ação política inovadora provêm de grupos aparentemente
sem poder, especialmente quando se vinculam e se relacionam com
outros movimentos e forças do mundo inteiro. O MST, no Brasil, por
exemplo, conseguiu não apenas obter controle sobre a terra e torná-
la produtiva, mas também desenvolver uma nova forma de sociedade
e cultura que envolve novos conceitos de poder, produção e reprodu­
ção social por meio da ação coletiva. Os camponeses brasileiros -
aliados aos trabalhadores urbanos, aos intelectuais, às Igrejas e a ou­
tras forças progressistas - tomaram, assim, o controle não só da terra
improdutiva de proprietários ausentes, mas também de suas próprias
vidas e destinos. Esses movimentos - que são pedagógicos, políticos e
populares - disseminam-se, na tentativa de incluir outros grupos da
América Latina e de outras partes do mundo, com o objetivo não ape­
nas de resistir às políticas de expropriação, mas também para criar
novas formas de identidade e comunidade política (por exemplo, os
P refácio à edição brasileira ♦ 37

zapatistas ou os U’Wa13 na Colômbia). Seus exemplos ofereceram


inspiração para outros grupos em sua luta por afirmar sua identidade,
tiignidade e seus direitos à subsistência. Também oferecem uma al­
ternativa epistemológica às modalidades dominantes de ver e inter­
pretar o mundo.
Enquanto isso, em Porto Alegre (cidade conhecida por seu au-
togoverno por e para o povo), surgiu uma análise comum e teve início
um debate global sobre alternativas reais. Em um documento, o Par­
tido dos Trabalhadores brasileiro afirmou que todas as formas de Esta­
do devem se basear na solidariedade e na justiça sociais, bem como
conclamou à criação de elos orgânicos entre todas as forças sociais
progressistas do mundo inteiro. No Fórum Social Mundial, questões
políticas fundamentais estão sendo colocadas.
Uma jovem brasileira, nua até a cintura, desfila e pula num
palco diante de um auditório suado e lotado. O cenário atrás dela é
um mar de bandeiras multicoloridas, e seu acompanhamento é o
pulsar insistente de um grupo de percussão afro-latino. Ela declama,
como num fluxo de consciência, um brilhante monólogo contra a
globalização e a economia neoliberal:
Será que não conseguimos imaginar um m undo m elhor
que este? Em que o ar esteja livre do veneno do medo e
da insegurança? Em que o aparelho de TV não seja o
m em bro mais im portante da família? Em que o alimento
e a comunicação não sejam bens de consumo, porque o
direito de com er e falar uns com os outros são direitos
hum anos? Em que a justiça e a liberdade, estas gêmeas
siamesas condenadas a viver separadas, estarão novam ente
unidas, lado a lado? (Jonquières e Lloyd, 2001)

Stephen GUI
Santa Bárbara, Califórnia, 4 de maio de 2007

Ver http://www.uwacolombia.org. [N. da E.]


36’ ♦ S tephen G ill

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IN T R O D U Ç Ã O

Gramsci e a política glohal:


uma proposta de pequisas pós-hegemônicas
Stephen Gill

Este livro recolhe estudos que se propõem a contribuir para


novos desenvolvimentos do materialismo histórico. Seu argumento
central é o de que precisamos desenvolver novas abordagens da eco­
nomia política internacional e das relações internacionais mediante
a elaboração de formas de explicação historicamente integradas e
dialéticas, apropriadas às condições do final do século XX. Nesta in­
trodução, resumo algumas das principais idéias, propostas e objetos
de pesquisa relacionados, em termos gerais, à reconstrução das teorias
histórico-materialistas sobre as relações internacionais. As contribui­
ções a este livro oferecem amplo leque de diferentes abordagens, mas
no quadro de uma perspectiva amplamente compartilhada. Um rese-
nhista anônimo chamou a perspectiva, presente na maioria das con­
tribuições, de “nova escola italiana” de relações internacionais. No
capítulo 1, uso o adjetivo “italiano” com certa ironia, hesitação e defe­
rência aos nossos dois colaboradores italianos (Giovanni Arrighi e
Enrico Augelli).
Ficará claro para o leitor que os ensaios deste volume foram
inspirados pelos problemas levantados não apenas nos escritos de
Antonio Gramsci, mas também nos de autores como Karl Marx,
Eernand Braudel, Karl Polanyi, Robert Cox e outros, como, por
exemplo, os que trabalham na Escola de Relações Internacionais de
Amsterdã (ver os capítulos de Otto Holman e Kees van der Pijl). Em
outras palavras, as notas de Gramsci sobre relações internacionais
precisam ser relacionadas à reconstrução do pensamento histórico-
inaterialista em sentido amplo, a fim de evitar um novo sectarismo
intelectual. É im portante transcender distinções acadêmicas de
utilidade limitada, tais como aquelas entre relações internacionais e
política comparada, entre teoria política e teoria empírica, entre so­
ciologia política e economia política. A reconstrução da teoria his-
íórico-materialista precisa considerar questões epistemológicas, on-
42 ♦ Stephen G ill

tológicas e metodológicas no contexto do passado, do presente e do


futuro. Nos escritos de Marx, a ênfase teórica residia na idéia de uma
sociedade histórica e integral, cuja análise implicava a recusa do redu-
cionismo inerente ao “materialismo objetivista, ao mecanicismo e ao
empirismo [...] para se poder chegar a uma atitude verdadeiramen­
te realista, assumida com a consciência de ser um produto do pensa­
m ento”.1
A problemática deste livro pode ser relacionada à idéia de que
o socialismo precisa ser redefinido para além de sua associação com
projetos totalitários, como aquele do stalinismo. Por outro lado, essa
redefinição e a política que ela implica podem ser conectadas em
parte à idéia de autodefesa da sociedade contra a investida desintegra-
dora e atomizante das forças de mercado globalizadoras, relativamen­
te pouco planejadas.

Uma escola gramsciana de relações internacionais?

Assim como não existe uma única escola de marxismo (o pró­


prio Marx negava ser marxista), também não existe uma única escola
gramsciana ou “italiana”. Também não existe uma interpretação
consensual das idéias fragmentadas e muitas vezes contraditórias de
Gramsci a respeito da teoria social. O que existe, ao contrário, são
grupos de intelectuais procurando discutir em seus trabalhos algu­
mas das questões levantadas e apresentadas em termos gramscianos
em diferentes disciplinas, num grande número de países. Esses inte­
lectuais começaram a se comunicar e a participar de seminários con­
juntos e, dessa forma, começaram também a formar o embrião de uma
comunidade global de pesquisa. Parte da pesquisa tem consequências
práticas na medida em que está ligada, de diferentes modos, ao apoio
dado à atividade de partidos políticos socialistas e progressistas, e
também de movimentos sociais.

1 Carta assinada por Alex Fernandez, Otto Holman, Hcnk Overbeek e Kees
van der Pijl e enviada ao organizador deste volume, em 10 de junho de 1991.
I ntrodução ♦ 43

Alguns dos primeiros trabalhos com base na perspectiva neo-


gramsciana implicaram um diálogo construtivo e uma crítica das di­
ferentes perspectivas, incluindo a teorização predominante - ou, em
termos gramscianos, hegemônica - nos campos da economia política
e das relações internacionais (como Gill e Law, 1988). A meu ver, isso
se tornou necessário por causa de, pelo menos, dois fatores impor­
tantes. Em primeiro lugar, embora o marxismo sempre tenha ofere­
cido uma abordagem integrada, o materialismo histórico - em grande
parte por causa da orientação da teoria norte-americana e de sua
predominância nesse campo - tendeu a se marginalizar em relação a
muitos dos principais debates sobre estudos internacionais. Essa
inarginalização foi ocasionada em boa parte pelas limitações de uma
aplicação mecânica e a-histórica de muitas idéias e teorias marxistas,
algumas das quais vinculadas a uma tendência fundamentalista de
gerar “expectativas cada vez maiores do colapso do capitalismo” (ao
passo que Gramsci dizia enfaticamente que não havia uma relação
necessária entre crise econômica e política, ou vice-versa).
Essa fraqueza teórica levou a que a argumentação se revelasse
implausível, bem como à perda do atrativo das idéias do materialismo
histórico para as novas gerações de estudantes das universidades oci­
dentais. Esse também parece ter sido o destino do marxismo ortodo­
xo no Japão durante os últimos vinte anos. Principalmente no con­
texto do desmoronamento dos sistemas de governo leninista e pós-
stalinista na Europa Oriental, bem como do colapso do marxismo-
leninismo dogmático como doutrina social, agora talvez possamos
esperar pelo momento em que haja condições de se atribuir a esse
marxismo mecânico e patológico seu lugar numa exposição macabra
de um museu de história do século XX.
Este último comentário reforça meu segundo ponto de vista a
favor do diálogo. As décadas de 1980 e 1990 testemunharam um de­
clínio secular e, em alguns casos, espetacular, na visibilidade e no
atrativo teórico das idéias de esquerda. Apesar do triunfalismo e dos
propagandistas do Ocidente que proclamam “o fim da história”, cer­
tos acontecimentos da Europa Oriental e da ex-União Soviética refor­
çaram as exigências de credibilidade, de poder posicionai e de vigor
tios discursos hegemônicos no Ocidente. Sobre a questão da Rússia e
44 ♦ Stephen G ill

da fragilidade das relações entre Estado e sociedade civil e, por conse­


guinte, da propensão do Estado a entrar subitamente em colapso,
Gramsci teve uma intuição importante. Essa intuição pode ser apli­
cada aos acontecimentos de 1991-1992, quando a União Soviética
desmoronou.
No Oriente, o Estado era tudo, a sociedade civil era
prim itiva e gelatinosa; no Ocidente, havia entre o Estado
e a sociedade civil um a relação apropriada e, ao oscilar o
Estado, podia-se im ediatam ente reconhecer um a robusta
estrutura da sociedade civil. (Gramsci, 2000, p. 262)

As idéias marxistas desenvolvidas num gueto teórico sofrem


de falta de relevância. Elá muito a ganhar com um diálogo construti­
vo, com argumentos e teorias com base em perspectivas diferentes.
Isso é de importância crucial para avaliar o status de novas idéias teó­
ricas: para serem convincentes, essas idéias têm de apresentar explica­
ções mais abrangentes, consistentes e refletidas do que as predomi­
nantes (Gill, 1990).
A maior parte da obra substantiva de Gramsci girou em torno
da análise de formações sociais nacionais, em determinados períodos
históricos, principalmente da Itália. Gramsci afirmava que esse era o
nível inicial em que o Estado e a sociedade civil (e sua anatomia, a
economia política) devem ser analisados e no qual se constroem os
alicerces das hegemonias sociais. Esse foco nacional predomina nos
estudos gramscianos não só no Japão e na América Latina, mas
também na Europa Ocidental, como mostra a obra do Birmingham
University Centre for Contemporary Cultural Studies (por exemplo,
Hall, 1982; Larrain, 1983) e os debates atuais naNewLeft Reviewe no
Socialist Register sobre a natureza da cultura, da ideologia, do Estado,
da sociedade civil e da hegemonia na sociedade capitalista. Têm havi­
do, também, muitas discussões em revistas de esquerda sobre a ques­
tão do imperialismo, embora elas em geral sejam expressas em ter­
mos das teorias do ultra-imperialismo e do superimperialismo, e não
em termos gramscianos.
O movimento que propõe estender as idéias de Gramsci ao es­
tudo das relações internacionais e da economia política internacional
é lento e recente e envolveu relativamente poucos estudos ambiciosos
I ntrodução ♦ 45

uo sentido de definir as origens, o desenvolvimento e a dinâmica da


economia política global que está surgindo. Apesar disso, começaram
.i aparecer obras de peso sobre a internacionalização do Estado e da
.sociedade civil, sobre os aspectos internacionais da hegemonia e da
supremacia social, sobre a classe transnacional, formações de blocos
e forças econômicas, sobre o papel de intelectuais orgânicos e sobre
organizações internacionais e outras questões que ajudam a definir a
natureza da política global do século XX (como, por exemplo, van der
Pijl, 1984; Cox, 1987; Augelli e Murphy, 1988; Gill, 1990; Overbeek,
1990). É importante aqui a obra pioneira de Robert Cox, que publi­
cou dois ensaios do maior interesse em Millennium no começo da dé­
cada de 1980 (Cox, 1981; 1983), o último dos quais pode ser lido co­
mo uma introdução à aplicação dos conceitos de Gramsci no plano
internacional e faz parte desta coletânea.
Portanto, embora muitos cientistas sociais tenham conheci­
mento da aplicação das idéias gramscianas à análise do papel da polí-
iica, da cultura popular e da hegemonia ideológica e cultural no plano
nacional, esse conhecimento é muito menos evidente nas relações
internacionais e na economia política internacional. O que talvez se
deva em parte ao fato de o pensamento de Gramsci se concentrar
pouco em questões de economia política per se, principalmente por­
que ele parece ter trabalhado de acordo com os pressupostos m ar­
xistas clássicos sobre a economia política do capitalismo e do feuda­
lismo.
Na ausência de um aparato satisfatório para analisar a dinâmi-
>.a da economia política global da década de 1980, estudiosos das
relações internacionais e da economia política internacional come­
çaram a desenvolver sua própria ontologia e aparatos conceituais (ver
( :ox, 1987; van der Pijl, 1984). É claro que ainda é preciso trabalhar
muito para desenvolver perspectivas gramscianas capazes de um
maior poder de atração. Há diferentes modos de fazer isso. Por exem­
plo, a Escola de Amsterdã criou o conceito não teleológico de sociali­
zação (Vergesellschaftung), essencial à sua atividade intelectual, con-
i eilo que tem como objetivo pôr uma história e uma teoria social in­
tegrais no âmago da análise:
46 ♦ S tephen G ill

A relação entre a sociedade e o Estado, bem com o as


relações entre os Estados, em conseqüência de sua interação
social, têm de ser situadas no contexto da socialização co­
m o processo generalizado. As formas pelas quais o capital
(no sentido de capital total, isto é, um universo auto-sus­
tentável e quase totalitário de acumulação competitiva de
mais-valia) atua com o agente de socialização, ao mesmo
tempo em que restringe seu potencial (tanto no sentido da
divisão do trabalho quanto no sentido de cultura universal/
estruturas norm ativas), têm de ser esclarecidas e relaciona­
das a outras estruturas de socialização de natureza com uni­
tária - família, nacionalidade, etnicidade bem com o ao
direito e ao Estado com o arranjos formais constitutivos
de agentes legais/legítimos.2

O tipo de contribuição aqui incluída precisa estar vinculado a


um trabalho teórico mais amplo, de forma que, por exemplo, os es­
tudos que tenham um foco mais “local” ou “nacional” estejam rela­
cionados com estudos “globais”. Isso permitiría, então, uma nova
síntese intelectual e prática. Tendo isso em mente, desenvolvo no res­
tante deste prefácio alguns dos outros temas principais encontrados
nesta coletânea.

A dialética de integração-desintegração
e a ordem mundial: a visão pelo alto

Um tema deste volume é o de uma crise da hegemonia do pós-


guerra. Parte da explicação dessa crise é atribuída a um leque de for­
ças globalizadoras que estão integrando a vida material, política, so­
cial e cultural de muitos povos do planeta, mas que, ao mesmo tempo,
estão desintegrando formas previamente articuladas da organização
socioeconômica e política (essa idéia corresponde em parte ao pro­
cesso histórico de Vergesellschaftung). Esse processo dialético tem sua
expressão mais evidente na Europa Oriental e Central e nos Estados
sucessores da União Soviética, mas também está acontecendo no as­
sim chamado Terceiro Mundo, bem como em países capitalistas cen­

Carta de Fernandez et al., citada.


I ntrodução ♦ 47

trais. Na verdade, isso pode ser analisado como parte de uma “crise
tríplice” orgânica da ordem mundial do pós-guerra, que exporemos
abaixo. Um indicador dessas mudanças é o aumento recente de m o­
vimentos migratórios e de refugiados, a “globalização” de povos im ­
pulsionada pela reestruturação da produção e das finanças globais e,
em termos mais gerais, pelo aumento das disparidades das condições
econômicas e ambientais, pela guerra e pelo conflito político.
Por outro lado, alguns neo-realistas como John Mearsheimer
(1990) afirmam uma continuidade básica nas relações internacio­
nais. Para eles, persiste a situação de anarquia na política mundial, e
a rivalidade entre os Estados e a insegurança que a acompanha vão se
reforçar agora que a Guerra Fria terminou na Europa. A previsão é
de instabilidade, uma vez que a superestrutura da Guerra Fria, que
gerava ordem, foi eliminada. Outros neo-realistas, preferindo usar
analogias históricas mais matizadas (como Lawrence Freedman e sir
Michael Howard), disseram que o fim da Guerra Fria significa o res­
surgimento do nacionalismo e um retorno a problemas que puseram
em xeque a segurança da Europa desde o fim da Paz dos Cem Anos.
Portanto, de acordo com essa visão, o que mudou foi a superestrutu­
ra de segurança Leste-Oeste. Com o desgaste e a erosão do poder so­
viético, a estrutura subjacente básica (anárquica) das relações inter­
nacionais é revelada mais uma vez; a difusão crescente do poder glo­
bal - na ausência de um equilíbrio estável de poder - está associada à
instabilidade e ao conflito. O aumento aparentemente recente da vio­
lência intercomunal, das tensões étnicas, das forças centrífugas em
alguns países (principalmente a antiga União Soviética e a Iugoslávia)
fornece evidências que corroboram essa posição.
Nesse sentido, os neo-realistas veem não apenas o Grupo dos
Sete (G7), mas também as Nações Unidas, a Comunidade Econômica
Européia (CEE) e o processo de união econômica e política da Euro­
pa Ocidental, bem como a possível ampliação da Comunidade Euro­
péia (CE) para incluir outros países, como mero reflexo de uma série
de barganhas interestatais e, por conseguinte, como resultado da es­
trutura de poder subjacente entre os Estados e não como uma série de
mudanças estruturais que geram condições inéditas e promovem no­
vas concepções de interesse e identidade como, por exemplo, no con­
texto pan-europeu.
48 ♦ Stephen G ill

No entanto, pode-se defender a hipótese de que o século XX


entrou numa nova era de política global, de modo que talvez seja
mais apropriado começar a falar em termos de um conjunto de estru­
turas mais integradas globalmente ou, de acordo com a expressão cu­
nhada por David Law e por mim, de uma “economia política global”.
Embora essas estruturas tenham sido configuradas, pelo menos até o
final da década de 1980, pelas lutas dialéticas entre sistemas socio-
econômicos pré-capitalistas, capitalistas e comunistas, a evidência
recente das mudanças na Europa Oriental e Central, na União Sovié­
tica e na China, bem como em países como o Vietnã, sugere que, mais
uma vez, o capitalismo está se disseminando como forma predomi­
nante de organização socioeconômica não apenas entre os Estados,
mas também no interior de cada um deles, à medida que a mercanti-
lização aprofunda seu domínio social e geográfico. Ao mesmo tempo,
uma consciência planetária cada vez maior das questões ecológicas e
ambientais reflete os encadeamentos complexos entre as forças cu­
mulativas do desenvolvimento e do subdesenvolvimento econômico,
a interação entre cidade e campo, entre ricos e pobres, e entre paz e
guerra na emergente ordem mundial.
Afirma-se algumas vezes que o atual nível de internaciona­
lização da atividade econômica é menor do que aquele predominante
antes de 1914. É possível encontrar alguns indicadores que corrobo­
ram essa afirmação. Mas agora vivemos num mundo caracterizado
pela integração global crescente das estruturas financeiras e de pro­
dução, por intrincadas redes de comunicação, pela rápida inovação e
difusão de tecnologia e pelo possível surgimento de formas associadas
de consciência, bem como por mudanças nas estruturas de segurança
e alianças estratégicas. Portanto, a economia global que está surgindo
hoje implica um sistema de alcance planetário, e não apenas um sis­
tema de economias nacionais independentes e coordenadas basica­
mente por mecanismos de troca, carteiras de ações e fluxos de capi­
tal especulativo, isto é, a economia política “internacional” do século
XIX, que provavelmente sobreviveu até a década de 1960, ou seja, o
período que coincidiu com o início do aumento maciço dos merca­
dos europeus e com o crescimento substancial das atividades de em­
presas transnacionais, tanto manufatureiras quanto ligadas a indús­
trias extrativistas.
I ntrodução ♦ 49

Apesar do surgimento do embrião de uma estrutura informal


de poder global, pelo menos no nível da elite, houve um desenvol­
vimento relativamente parcial da sociedade civil e política globais e,
em conseqüência, uma internacionalização subdesenvolvida da au­
toridade política. Na verdade, embora tenha havido uma boa dose de
institucionalização das relações econômicas e de segurança globais
por intermédio de organizações e alianças internacionais, o locus da
autoridade política ainda é, em ampla medida, situado territorial-
mente em Estados formalmente soberanos, embora essa situação es­
teja mudando, conforme se verá mais adiante.
Contudo, no contexto da turbulência de 1989-1991, o que
podemos observar é uma espécie de “desordem organizada”. Com
essa expressão, estou designando um movimento da elite que ambi­
ciona consolidar uma nova forma de hegemonia no coração mesmo
do sistema, ainda que com uma base social diferente da forma ante­
rior, que vai de 1945 até cerca de 1970. Por conseguinte, as discussões
realizadas entre 15 e 19 de julho de 1991, na reunião de cúpula do G7,
foram interessantes em parte por causa da pauta, que incluiu: a rees­
truturação da antiga União Soviética; a reconstituição da Organização
das Nações Unidas (ONU); uma iniciativa ecológica infrutífera, en­
volvendo uma barganha entre dívidas e natureza, para salvar as flores­
tas tropicais úmidas do Brasil; e questões relativas ao protecionismo
comercial e a relações macroeconômicas. Fóruns como o do G7 (e
seus congêneres privados, como o Fórum Econômico Mundial e a
Comissão Trilateral) são importantes também porque sua existência
dá destaque às forças de vanguarda e à maneira pela qual elas podem
servir para gerar um consenso estratégico a fim de configurar o que
poderiamos chamar de “pirâmides do privilégio” nas estruturas da
ordem mundial que os governantes do G7 procuram contornar.
Igualmente importante é o fato de que esses fóruns indicam as con­
dições de ingresso nas instituições centrais da economia política
global.
As tentativas do G7 para mobilizar um consenso dos aliados
em torno do conceito de “nova ordem mundial” do presidente Bush
reflete a interação complexa entre idéias, instituições e capacidade
material (produção e poder militar) e de que modo, de acordo com
certas condições, esses fatores podem convergir num conceito coe­
50 ♦ S tephen G ill

rente de ação. Apesar disso, as discussões pós-Guerra Fria também


sublinham divisões e conflitos nas fileiras do G7. Entre eles, podemos
mencionar, por exemplo, a maneira de reagir aos pedidos de ajuda de
Gorbachev e mais tarde de Yeltsin, com a França, a Alemanha e a Itá­
lia, mais a Comunidade Européia, posicionando-se contra o Canadá,
o Japão, os Estados Unidos e o Reino Unido sobre a natureza e a mag­
nitude da ajuda, bem como as discordâncias entre Estados Unidos e
CE a respeito de negociações do Acordo Geral sobre Tarifas e Comér­
cio (Gatt). Mas, embora se possa dizer que há um movimento no sen­
tido da reconsolidação e recomposição do “coração” do sistema, ve­
mos simultaneamente a fragmentação de formas anteriores de Esta­
do, crises econômicas e políticas, guerra, fome e desastre ecológico.
Recentemente, na esteira da Guerra do Golfo, a consciência de
alguns desses problemas inspirou iniciativas do G7 e da CE no sentido
de pressionar para um maior rigor no regime de exportação de armas
e de providenciar condições de ajuda intimamente ligadas à “demo­
cratização” e à redução dos gastos militares. Essas iniciativas ocor­
reram na mesma época em que a capacidade militar da Organização
do Tratado do Atlântico Norte (Otan) estava sendo reorganizada para
permitir uma intervenção mais ágil dos membros europeus, de acor­
do com as linhas da US Rapid Deployment Force (Tropa Norte-Ame­
ricana de Intervenção Rápida) (criada logo depois da revolução ira­
niana de 1979 e que foi essencial para a vitória militar dos Estados
Unidos na Guerra do Golfo de 1991). Junto com as forças de merca­
do, relacionadas por exemplo ao acesso ao crédito, essas iniciativas
indicam uma dupla forma de disciplina do G7 com relação às possibi­
lidades de desenvolvimento do Terceiro Mundo. Novas possibilidades
de sustentar uma intervenção rápida estão vinculadas a certo controle
institucional sobre as condições de prover dinheiro e investimento,
por exemplo, por parte do Grupo dos Sete, do Fundo Monetário In­
ternacional (FMI), do Banco Mundial, do recentemente fundado
Banco Europeu de Reconstrução e Desenvolvimento e do banco cen­
tral dos banqueiros, o Bank for International Settlements (Banco de
Compensações Internacionais).
I ntrodução ♦ 57

A visão a partir de baixo e a ordem mundial emergente:


a política global depois de 2000

Uma determinada ordem mundial tem suas próprias condi­


ções específicas de existência e de dinâmica. Por causa disso, a ordem
mundial não pode ser explicada de forma adequada por meio do es-
truturalismo abstrato e, talvez ainda menos, por referências idealistas
ao espírito da história. A história está sempre se fazendo, numa inte­
ração complexa e dialética entre estrutura, consciência e ação, dentro
do que Fernand Braudel chamou de “os limites do possível”:
A coexistência de níveis superiores e inferiores [de civiliza­
ção] impõe ao historiador uma dialética esclarecedora. Co­
mo entender as cidades sem entender o campo, o dinheiro
sem o escambo, as variedades de pobreza sem as variedades
do luxo, o pão branco dos ricos sem o pão preto dos pobres?
(1981, p. 29)

Então, o que realmente mudou na ordem mundial? Há ques­


tões de epistemologia e de ontologia envolvidas nessa pergunta. Posi­
ções diferentes nos debates atuais sobre a ordem mundial emergente
refletem várias abordagens do processo de adquirir conhecimento,
bem como visões da maneira pela qual o mundo social é constituído.
Por conseguinte, os debates teóricos (e práticos) sobre a ordem m un­
dial tratam em parte de três questões interligadas: como entender a
natureza da realidade social, quais são seus componentes e relações
determinantes e de que forma se alteram com o passar do tempo.
Além disso, dado que ordem é um conceito político, é necessário
perguntar: “Ordem para quem e com que objetivo?”
Como sugeri acima, a ordem mundial emergente pode ser
pensada como decorrente de uma tríplice crise, isto é, de uma trans­
formação envolvendo três “níveis” inter-relacionados: 1) o “econô­
mico”, que inclui a reestruturação da produção, das finanças e do co­
mércio global, o qual põe em questão modos anteriores de negocia­
ção e formas de organização econômica; 2) o “político”, implicando
mudanças institucionais que incluem novas formas de Estado, a in­
ternacionalização, a transnacionalização e certamente a globalização
do Estado, bem como o que Robert Cox (ver capítulo 10) chama de
52 ♦ Stephen G ill

surgimento do sistema interestatal “pós-westfaliano”, indicando,


assim, a mudança onde os neo-realistas veem uma continuidade es­
sencial; e 3) o “sociocultural”, ou seja, o modo de reestruturação glo­
bal dos níveis político e econômico implica também, em parte, a con­
testação de conjuntos inter-relacionados de estruturas, idéias e prá­
ticas sociais, promovendo, dessa forma, possibilidades de mudança,
mas, ao mesmo tempo, restringindo-as.
Cada um desses “níveis” é abstraído das estruturas e das forças
sociais que existem, por definição, em e entre cada nível. Essa crise
tem características comuns em diferentes partes do mundo, embora
seu impacto seja desigual, em parte por causa das diferentes carac­
terísticas entre cidade e campo, entre ricos e pobres, em cada país e
entre grupos de países. Portanto, as categorias de “Primeiro”, “Se­
gundo” e “Terceiro” Mundos são abstrações primitivas ou tipos ideais,
cuja função é oferecer formas mediante as quais a natureza e a mag­
nitude das crises da ordem mundial podem ser conceituadas.
Sobre a questão das formas do Estado, as forças econômicas de
vanguarda, entre outras, principalmente a intensificação da inovação
e da competição globais numa era de comunicações em geral instan­
tâneas, estão servindo para tom ar daras as hegemonias sociais, os ar­
ranjos políticos e as formas do Estado que predominaram tanto nos
Estados capitalistas centrais da América do Norte e da Europa Oci­
dental (e possivelmente do Japão) quanto, e de maneira ainda mais
dramática, nas estruturas sociais e dos ordenamentos políticos do
“socialismo real”. Mudanças semelhantes estão ocorrendo em muitas
nações em desenvolvimento - como, por exemplo, na América La­
tina à medida que os ordenamentos estatistas e mercantilistas
tradicionais vão sendo substituídos por um padrão de desenvolvi­
mento mais voltado para o mercado. Apesar disso, a ordem mundial
emergente ainda é configurada pela divisão do planeta em soberanias
políticas, embora elas estejam em processo de reformulação. Isso en­
volve a reestruturação interna e externa do Estado e da sociedade civil
em resposta ao, e como resultado do impacto da globalização das for­
ças sociais.3Ao que parece, tais mudanças são essenciais à nossa com­

3 Sobre essa idéia, ver Cox, 1989 e 1990b.


I ntrodução ♦ 53

preensão da ordem mundial emergente e exigem muito mais pes­


quisa.
Ao estudar questões contemporâneas, por exemplo, pode ser
importante problematizar os conceitos de Estado e de soberania (ju­
rídica). Redefinições de soberania e mudanças constitucionais são,
agora, importantes questões políticas em muitos contextos, tais como
a Comunidade Européia, a Europa Oriental e Central, o Canadá, a
Austrália e muitas partes do Terceiro Mundo. Aqui a pergunta podería
muito bem ser: “Que tipo de soberania, para quem e com que pro­
pósitos?”
Em outra obra (Gill, 1992), escrevi sobre o discurso do “novo
constitucionalismo”, que é uma doutrina e um conjunto de forças
sociais que procuram impor restrições ao controle democrático de
organizações e instituições econômicas públicas e privadas. O dis­
curso pode ser ligado às tentativas de fundamentar a hegemonia do
neoliberalismo “disciplinador”, do tipo associado às tentativas de re­
estruturar os Estados pós-comunistas de acordo com as linhas pro­
postas pelo FMI e sob a tutela ocidental. Tentativas da elite européia,
por exemplo, procuraram criar uma forma de macrorregionalismo
baseado na racionalidade econômica liberal (como o programa de
1992, por exemplo). O desenvolvimento constitucional e político
associado à união econômica e monetária da Comunidade Européia
implicou a idéia de “restrições inegociáveis” da liberdade de manobra
dos (futuros) governos-membros no sentido de instituir livremente
uma política fiscal e monetária. Essas limitações complementariam
a disciplina das forças de mercado para restringir a autonomia polí­
tica dos governos (ver o capítulo 4, que trata do poder do capital em
resposta a certos tipos de políticas públicas).
Além disso, o papel do Parlamento Europeu como instituição
de governo representativo é restrito, isto é, sua voz como soberania do
povo europeu é severamente limitada (objeções a essa limitação são
expressas, por exemplo, na oposição do Partido Socialdemocrata
Alemão a aspectos dos acordos de Maastricht de dezembro de 1991 e
nos resultados do plebiscito dinamarquês de junho de 1992, que re­
jeitou a ratificação do Tratado de Maastricht). Os poderes do Parla­
mento Europeu são principalmente consultivos: pouco tem a dizer
na maioria das áreas cruciais da política européia (o que tem sido
54 ♦ S tephen G ill

chamado de “déficit democrático” da CE). Da mesma forma, a re­


construção de organizações capitalistas na Europa Oriental ocorreu
com o isolamento, por exemplo, dos bancos centrais, no que diz res­
peito à sua responsabilidade de prestarem contas à população. O novo
constitucionalismo pretende garantir a liberdade de entrada e saída
do capital móvel internacional em relação a diferentes espaços socio-
econômicos (o que se reflete no leque cada vez maior de regras for­
muladas nas negociações da Rodada Uruguai do Gatt e no Acordo de
Livre-Comércio entre Estados Unidos e Canadá). O alcance dessas
restrições, numa era de mobilidade substancial do capital, significa
que os líderes políticos talvez tenham de prestar contas às forças do
mercado internacional da mesma forma que prestam a seu eleito­
rado.
Portanto, ambos os significados de soberania (referentes à au­
tonomia política de governos eleitos e do povo) estão em questão.
Nesse sentido, a posição central e as prerrogativas exclusivas dos Es­
tados Unidos estão em contradição com o novo constitucionalismo
de base mundial. Os Estados Unidos têm tanto quanto qualquer ou­
tro país de se submeter às restrições inegociáveis dessa ordem (seus
políticos preferem estar “amarrados à liderança” a estarem “amarra­
dos ao mastro”, como Ulisses para resistir às tentações das sereias).
Apesar disso, mesmo a autonomia dos Estados Unidos em questões
de política macroeconômica está sendo cada vez mais limitada pela
globalização das finanças e da produção, embora os Estados maiores
e as associações políticas macrorregionais (como o Japão e a CE) em
geral tenham um espaço de manobra maior do que os pequenos. Por­
tanto, alguns são mais soberanos do que outros na ordem mundial
emergente.
O tema da soberania envolve não apenas direitos jurídicos e a
questão da cidadania e da responsabilidade, mas também a alocação
de recursos e as oportunidades de vida, uma vez que estas estão asso­
ciadas à capacidade de autonomia humana e de opção social. Por­
tanto, embora os sistemas mundiais e os teóricos da dependência
falem dos conceitos de organizações “centrais”, “semiperiféricas” e
“periféricas”, que refletem a hierarquia dos Estados e os estágios do
desenvolvimento socioeconômico (e das restrições e possibilidades
I ntrodução ♦ 55

que eles implicam), também podemos enfatizar que esses conceitos


podem se aplicar tanto ao interior de cada Estado quanto a vários
deles. Portanto, no caso da CE, não existe apenas um desenvolvimen­
to socioeconômico desigual entre as diferentes regiões, mas também
no interior de cada uma delas e até no interior de determinadas ci­
dades, o que pode ser visto claramente nos Estados Unidos de hoje
(não só no sentido de pobreza rural, que está aumentando), onde a
cidade de Nova York é um microcosmo desses padrões. Esse ponto de
vista é reforçado se levarmos em conta os padrões de migração interna
e de urbanização dos países do Terceiro Mundo, com cidades como
Lago, Rio de Janeiro e Xangai como bons exemplos. Por conseguinte,
mesmo que nosso foco esteja nas sociedades relativamente privilegia­
das e afluentes da Europa Ocidental, ainda podemos falar de “perife-
rização do centro” e ampliar nossa conceituação para incluir oportu­
nidades de vida, questões de segurança e insegurança pessoal e formas
de consciência.
A natureza desses processos indica contradições entre a lógica
das forças globalizadoras e as condições políticas de existência para a
operação dessas forças. O ajuste estrutural na América Latina está a-
tomizando muitas capacidades do Estado e gerando novos movimen­
tos sociais e partidos políticos que, com o tempo, podem chegar a
questionar o poder das ortodoxias neoliberais, como é o caso do fenô­
meno Lula no Brasil.4 Na Europa Oriental, a reintrodução das con­
dições neoliberais de mercado está gerando uma combinação de de­
sencanto e ressentimento generalizados que, em certa medida, refle­
tiram-se no ressurgimento do populismo, do racismo, do fascismo e
do gangsterismo. Na Rússia de hoje, por exemplo, o conceito de mer-
cantilização está cada vez mais associado ao desespero, a um rápido
aumento da criminalidade (a atividade que mais cresce no país) e da
violência (uma reportagem recente, citada no artigo mencionado

4 O “fenômeno Lula” refere-se à coalizão que se formou em apoio ao líder sin­


dicalista, desafiando e quase derrotando o neoliberal Collor de Mello nas
eleições presidenciais de 1989 no Brasil. Essa coalizão incluía sindicatos, tra­
balhadores do setor público, pobres urbanos e rurais e um grande número
de grupos e movimentos sociais,
56 ♦ S tephen G ill

abaixo, afirmava que, na Rússia, havia um assassinato a cada 22 m i­


nutos). O “mercado” está sendo reintroduzido no contexto de um
colapso geral da lei e da ordem. Um relato feito há pouco tempo por
um jornalista econômico do Ocidente dizia que as condições sociais
e econômicas durante o cerco de 900 dias a Leningrado, ocorrido em
1941, eram muito melhores do que aquelas da cidade rebatizada de
São Petersburgo em março de 1992. O jornalista contou suas expe­
riências num mercado próximo à estação da praça da Paz, no centro
de São Petersburgo, da seguinte maneira:
Seria preciso um Hogarth, um Goya ou um Hieronymous
Bosch para retratar esse “m ercado” desolado, onde cerca
de 5 mil pessoas com pravam e vendiam [...]. O term o
“m ercado” evoca visões de barracas em ordem e produtos
bem arrum ados. Havia poucas barracas e a Praça da Paz
tinha neve suja sem iderretida e lama negra até a altura dos
tornozelos. Q uem tinha pouca coisa a vender ficava de pé
em filas com centenas de m etros de com prim ento, com os
cartões de racionam ento nas mãos, latas de arenque e de
leite em pó ocidental enviadas para as crianças de São Pe­
tersburgo, um a torneira enferrujada ou um punhado de
pregos [...], lâmpadas usadas, decorações militares, gorros
de pele puídos ou eletrodomésticos quebrados |...J; os n e­
gociantes andavam de um lado para ou tro com placas que
diziam: “Troco, em moeda russa ou estrangeira”. Bêbados
tropeçavam nos muros. Tudo e todos estão à venda. O es-
cambo é um m odo de vida, principalm ente quando surge
nova escassez. É inacreditável, mas não há rublos. Os b an ­
cos estão fechando as portas, as pessoas não estão receben­
do seu salário, as empresas ocidentais estão enlouquecendo
com a tentativa de encontrar dinheiro para pagar seu qua­
dro de funcionários locais [...]. “Para onde” - pergunto a
um em presário, a um cambista, à polícia, aos bancos -
“foram todos os rublos?” Recebo inevitavelmente a mesma
resposta, um levantar de ombros: “Não sabemos. É mais
um dos grandes m istérios russos.” (Chisholm , 1982)
I ntrodução ♦ 57

Mudança histórica e opção social

Minha breve discussão dos conceitos de soberania, periferia e


mercado pretende mostrar o grau em que fazer história é um exer­
cício tanto intelectual quanto histórico, no sentido de que o teórico
dá significado a processos complexos. Fazer história envolve a intera­
ção entre passado, presente e futuro. A Guerra do Golfo de 1991 ofe­
rece mais um exemplo:
Na época contemporânea, festa guerra] é o capítulo mais
recente da luta histórica entre o m undo árabe e o Ocidente
pelo controle do petróleo. No entanto, o mais im portante
é que ela reflete em parte não apenas as lutas entre Estados,
cruciais para o trabalho teórico institucionalizante do neo-
realista e do liberal, mas tam bém as lutas pelos princípios
organizadores da sociedade. Estas lutas com eçaram pelo
menos desde a Idade Média e a era das Cruzadas, contra­
pondo o materialismo capitalista laico do Ocidente e a me­
tafísica e a doutrina social do islamismo, bem com o forças
pan-árabes mais seculares sob a form a do regime iraquiano.
Nesse sentido, a G uerra do Golfo tem raízes nas lutas e
transform ações sociais que ocorreram no m undo durante
m uitos séculos. (GUI, 1991b, p. 275)

As cruzadas não estavam associadas apenas a um choque de


valores religiosos, mas também à luta para ampliar a esfera de ação e-
conômica do capitalismo mercantil, vinculada ao crescimento e à
expansão de cidades-Estado, como Veneza, e ao embrião de forças
socioeconômicas do capitalismo que configuravam em parte o desen­
volvimento histórico das regiões em torno do Mediterrâneo nos sé­
culos XII e XIII.
Por isso, a pesquisa feita com base nessa perspectiva pode
referir-se ao uso (e abuso) político da história e do mito político: mi­
tos de origem e identidade nacional e mitos relativos ao potencial
humano, inclusive o potencial de desenvolvimento econômico e de
cooperação internacional. Essa questão envolve amplamente a rela­
ção entre discursos hegemônicos e os princípios de inclusão/exclusão
e supremacia/subordinação que tais discursos contêm ou implicam.
No contexto discutido na seção anterior desta introdução, são levan­
58 ♦ Stephen G ill

tados os problemas relativos não apenas aos conceitos de Estado, de


mercantiíização e de pluralismo político, mas também de educação e
comunicação de massas. Uma forma de entender esses problemas é a
maneira pela qual as estruturas existentes associadas a estes conceitos
(que costumam, até certo ponto, ser limitados e definidos “nacional­
mente”) estão sendo reforçadas e/ou transformadas pelos processos
de socialização. Esses problemas precisam ser tratados de forma críti­
ca, com base em extensa pesquisa histórica, para que seja superada a
simples justaposição, por exemplo, da equiparação entre progresso e
disseminação da racionalidade econômica liberal pós-iluminista (da
forma como aparece nos relatórios de desenvolvimento do Banco
Mundial) e os fundamentalismos de “atraso” e/ou o fracasso do “so­
cialismo real”.
Sob essa luz, é digno de nota que o discurso político em torno
da questão da imigração na CE no começo da década de 1990, no
contexto da ascensão de partidos racistas, fascistas e neonazistas (com
a Frente Nacional Francesa adquirindo um poder cada vez maior),
pretende implícita e explicitamente restringir a liberdade de movi­
mentação nos mercados de trabalho e institucionalizar hierarquias
de direitos jurídicos dentro deles. Isso está ligado a debates que pro­
curam determinar os princípios para inclusão na exclusão do cres­
cente espaço socioeconômico e político de uma CE mais integrada,
espaço esse que está se ampliando. Além do racismo evidente e da dis­
criminação de gênero muito difundida (e que se encontra em todos
os maiores partidos políticos franceses, por exemplo), há um discurso
mais difuso sobre a identidade européia. Tal discurso se baseia nas
origens mitológicas da Europa, tal como narradas pelos mitos e teo-
logias greco-romanos e judaico-cristãos, ancorados na idéia histórica
de cristandade. Ele pretende excluir os imigrantes do Norte da África,
do Oriente Médio e da Ásia, bem como os oriundos de países da Eu­
ropa Oriental e da ortodoxia russa, com base em sua “alteridade” ou
condição de “não-europeus”.3A aplicação prática desse discurso é a

5 Há algumas exceções a isso. Os que rezam pela cartilha da ortodoxia grega


são uma delas, uma vez que a Grécia já faz parte da CE. Além disso, as pes­
soas que podem provar uma ascendência alemã têm o direito, garantido
constitucionalmente, de emigrar para a Alemanha.
I ntrodução ♦ 59

construção de uma categoria de “migrantes econômicos” que não são


considerados dignos de “asilo político” e de ter residência permanen­
te na CE. E isso apesar da migração estar relacionada com a rees-
i ruturação da produção e com a natureza da desigualdade global. Essa
aplicação prática interage e encobre muitas formas de violência, como
aquelas vinculadas à reafirmação nacionalista intercomunal, à into­
lerância e à perseguição religiosas. Portanto, o que as mudanças e as
lutas políticas do Oriente Médio e da Europa têm em comum é esta­
rem ligadas à expansão constante de um sistema social modernista,
secular e materialista, o qual tem sido associado historicamente a de-
terminadas formas eurocêntricas de imperialismo religioso e cultu-
ral. O capitalismo modernista e globalizante talvez seja a principal
lot ça motora da história contemporânea, força que leva de modo
consistente ao surgimento de complexos contraditórios de forças
sociais.6
Alguns dos comentários acima podem sugerir uma pesquisa
para identificar a formação de discursos e de blocos históricos concre­
tos que existiram nacional e internacionalmente ao longo do tempo,
bem como as condições em qne foram contrabalançados por discur­
sos e blocos opostos; que grau de mutação sofreram; e em que medida
foram suplantados ou entraram em colapso. Temos necessidade de
uma pesquisa histórica de base ampla, que não gire apenas em torno
do “Primeiro Mundo”. Essa pesquisa deveria abranger, no mínimo,
desde o período em que se inicia a economia mundial moderna, tal
como esta foi definida por Braudel (1981), e mesmo antes (ver o capí­
tulo 7, de Barry Gills).

Esse termo é usado no sentido que lhe foi dado por Barraclough (1967).
Keferc-se às estruturas e forças sociais que configuraram o desenvolvimento
das ordens mundiais do século XX. Barraclough enfatiza duas séries de m u­
danças fundamentais: aquelas associadas às transformações tecnológicas e so-
cioeconômicas da Segunda Revolução Industrial, e um processo concomitan­
te de surgimento da política de massas. Ambas podem remontar ao início
do século XIX e talvez até mesmo ao Iluminismo. Entre outras coisas, esses
desenvolvimentos contribuíram para o eclipse da ordem eurocêntrica do sé­
culo XIX e para o aparecimento das superpotências e da “revolta do Terceiro
M undo” (contra a dominação européia).
60 ♦ Stephen G ill

Não sabemos se as hipóteses, argumentos e sugestões de pes­


quisa apresentados acima serão ou não aceitos; mas o simples fato de
levá-los a sério implica a necessidade de discutir a fundo questões
ontológicas e suas implicações para teorizar a mudança. Este livro
oferece modos - que estão longe de ser os únicos - de tentar explicar
algumas das mudanças que estão acontecendo na ordem mundial e-
mergente. Embora seja apenas uma entre muitas possibilidades, ela
reflete parcialmente a crise da ordem mundial, uma crise que se m a­
nifesta em mudanças no mundo intelectual e no desafio aos discur­
sos hegemônicos no estudo da economia política e das relações inter­
nacionais. Por fim, a dialética histórica entre economia e política está
mudando na ordem mundial do final do século XX, produzindo
novas condições políticas, entre as quais somente algumas são plena
ou claramente discerníveis.
Essas mudanças podem abrir o espaço político para movi­
mentos contra-hegemônicos. Para que os desafios sejam significati­
vos, é preciso haver sinergia entre partidos políticos e movimentos
sociais progressistas. Entre outras coisas, isso vai exigir tolerância e
respeito pelas diferenças e um esforço consciente para transpor o fos­
so (que alguns acham que é um abismo) entre o materialismo históri­
co e projetos feministas de emancipação (por exemplo, ver Tickner,
1991). Sob essa luz, os progressos nas comunicações de massa e na
educação serão cruciais, bem como, evidentemente, aqueles associa­
dos aos perfis mais gerais da vida material e política. O controle hu-
manizador das forças globalizantes, discutido nesta introdução, exi­
girá, em termos gramscianos, longa e paciente “guerra de posição”,
por meio da qual as forças progressistas possam se agrupar em blocos
contra-hegêmonicos mais integrados para conseguirem se engajar
em batalhas intelectuais e políticas numa grande variedade de níveis
da ordem mundial emergente: do local ao global.

Esboços de uma agenda de pesquisa

Resumindo, uma nova agenda de pesquisa histórico-materia-


lista para o estudo da política global envolvería de modo coerente e
sistemático ao menos as seguintes dimensões teóricas e práticas:
I ntrodução ♦ 61

1) tentativas incessantes de reconsiderar aspectos epistemoló-


gicos e ontológicos da ordem mundial no contexto do passado, do
presente e do futuro;
2) esforço contínuo no sentido de promover a inovação meto­
dológica, teórica e conceituai como, por exemplo, para transpor a li­
nha divisória entre aspectos subjetivos e objetivos da análise (e dicoto-
mias agente-estrutura). O trabalho deve procurar generalizar formas
integradas de explicação. O que poderia ser tentado, por exemplo,
colocando a idéia de uma história integral e o conceito de socialização
a ela ligado no centro da análise;
3) o estudo histórico concreto da ordem mundial emergente
em termos de suas dimensões econômica, política e so cio cultural,
tendo em vista suas contradições também emergentes e os limites e
possibilidades que elas implicam para diferentes coletividades. Isso
envolvería trabalhar com as seguintes dimensões:
a) análises das estruturas/agentes da globalização (por exem­
plo, produção e finanças, migração, comunicações e cultu­
ra, ecologia, segurança) e suas relações com estruturas e
forças mais definidas territorialmente;
b) isso estaria ligado à análise - em várias formações sociais -
do papel e das mudanças de organizações sociais como o
Estado e a sociedade civil, o mercado e a família. Por exem­
plo, as hipóteses relativas às formas “pós-westfalianas” de
Estado e à internacionalização da autoridade, bem como a
reflexão sobre as perspectivas de uma sociedade civil global,
precisam de mais análises e mais pesquisa. Parte desse
trabalho se concentraria nos fóruns públicos/privados que
tratam da administração da economia global, como o G7, o
Fórum Econômico Mundial e a Comissão Trilateral, e na­
queles que podem se contrapor a eles;
c) por sua vez, (a) e (b) poderíam estar vinculados à análise da
persistência e da mudança de padrões de interesse e de iden­
tidade, como, por exemplo, aqueles relativos à religião, à
nacionalidade, à etnia e ao gênero. A esse respeito, estudos
sobre os usos políticos da história e da construção de mitos
sociais (como as possibilidades humanas, o desenvolví-
62 ♦ Stephen G ill

mento econômico e as oportunidades de cooperação inter­


nacional) são de importância crucial.
d) finalmente, discutir diretamente e desenvolver abordagens
éticas e práticas dos problemas globais. Essa tarefa precisa­
ria estar ligada a uma análise rigorosa das formas existentes
e potenciais de organização e ação política, incluindo par­
tidos, movimentos sociais e vínculos informais num gran­
de número de níveis, do local ao global.
Como notamos acima, essa análise da política poderia estar
associada, por exemplo, à idéia da autodefesa da sociedade contra a
investida desintegradora e atomizante das forças econômicas globali-
zadoras.
Esse trabalho não só problematizaria os conceitos de sobera­
nia, Estado e mercado, mas também procuraria articular e desenvol­
ver concepções de cidadania e de responsabilidade política coerentes
com o controle democrático sobre as forças econômicas, de modo a
oferecer, por exemplo, alternativas ao “novo constitucionalismo” e à
predominância neoliberal. Esses esforços devem mostrar respeito pe­
las diferenças, evitar o etnocentrismo e auxiliar o desenvolvimento
de blocos históricos contra-hegemônicos (transnacionais). Sua polí­
tica deve estar vinculada ao aumento da capacidade de opção social
dentro e entre as diferentes sociedades.
Em outras palavras, essa agenda de pesquisa “pós-hegemôni-
ca” pode ser vista como geradora de uma perspectiva que precisa ser
entendida como uma parte do processo histórico, isto é, sua forma de
engajamento envolve conhecimento, consciência e ação humanos no
processo de fazer história e de dar forma aos nossos futuros coletivos.
PARTE I

REFLEXÕES FILOSÓFICAS TEÓRICAS


E PIST E M O L O G IA , O N T O L O G IA E A “ ESCOLA ITA LIAN A ’

Slephen Gill

Este capítulo deve ser lido junto com a introdução desta obra.1
() termo “escola italiana” foi cunhado por um crítico anônimo. O ob­
jetivo deste capítulo é levantar uma série de questões epistemoló-
gicas, ontológicas e práticas que parecem estreitamente relacionadas
com os capítulos seguintes e podem ser úteis no sentido de ajudar a
promover o desenvolvimento teórico nesse amplo campo de estudos.
A distinção que Gramsci faz entre materialismo histórico e economi-
cismo histórico será o centro desta discussão, assim como a tentativa
de chegar a uma forma mais historicista, reflexiva e dinâmica de ex­
plicar a economia política.
A abordagem presente neste capítulo pressupõe que a tarefa
fundamental das ciências sociais é elucidar a ação social, a estrutura
social e a mudança social. Além disso, com respeito às questões epis-
temológicas, pressupõe que “não existe simetria entre as ciências so­
ciais e as naturais em relação à formação dos conceitos e à lógica de
investigação e explicação” (Gunnell, 1968, p, 168). Um outro pressu­
posto é o de que não existe, e é lógico que não possa existir, uma lin­
guagem única de explicação científica. O principal contraste entre as
ciências sociais e as ciências exatas é que a estrutura das relações
sociais e o significado dos fenômenos sociais não são as funções mais
importantes da teoria do cientista, uma vez que aquilo de que trata o
cientista social “não é uma realidade de primeira ordem, mas de se­
gunda”. O “mundo” do cientista social é um mundo de segunda or­
dem porque foi pré-ordenado logicamente por seus participantes, “e
é de acordo com os seus termos que a ação é conduzida e justifi-

1 Este capítulo é uma versão revisada de Gill (1991a). Agradeço a Robert Cox
por enfatizar a importância da concepção gramsciana de mito, e a Frank Par­
co por esclarecer questões relativas ao estruturalismo marxista.
66 ♦ S tephen G ill

cada”. Como se verá abaixo, isso pressupõe que a explicação das ciên­
cias sociais acarreta generalizações limitadas e um vocabulário con­
dicional (Gunnell, 1968, p. 179, 180). Para evitar a reificação concei­
tuai, isso acarreta uma interação permanente entre as construções
das ciências sociais e a “realidade social”: “Esse requisito será entendi­
do como limitação somente se houver o pressuposto de que a ciência
da mecânica física deve servir de algum modo como parâmetro de
toda e qualquer explicação” (Gunnell, 1968, p. 186).
Subjacente a essa afirmação está o argumento de que a explica­
ção em ciências sociais não tem como se desenvolver se ficar presa a
um dualismo cartesiano entre sujeito e objeto ou se teorizar em ter­
mos de causa e efeito. É claro que não existe apenas uma forma de
superar a dicotomia cartesiana. Este ensaio apresenta simplesmente
uma delas: a forma particular de historicismo associada a Marx e a
Gramsci, limitada no espaço e no tempo em termos de sua capacidade
explicativa.
O restante deste capítulo discute um pouco da literatura re­
cente sobre economia política internacional e relações internacio­
nais, em parte para destacar e criticar uma tendência muito difundida
de teorização trans-histórica com base em conjuntos de categorias a
priori que parecem ter autonomia ontológica (ver os capítulos 2, 3 e
10 para mais detalhes). Essa é uma característica ligada tanto ao neo-
realismo quanto às formas mecânicas de marxismo. Essas duas orto-
doxias compartilham o problema de terem sido construídas sobre
dicotomias sujeito/objeto e agente/estrutura. Portanto, embora elas
possam ser socialmente efetivas (no sentido de que incidem sobre a
construção do mundo social e sobre certas iniciativas políticas em
um momento determinado), não satisfazem os critérios apresentados
acima, isto é, não têm como oferecer uma explicação no terreno das
ciências sociais.

Diferenças entre as abordagens gramsciana e positivista


das relações internacionais e da economia política internacional

De que maneira a abordagem gramsciana difere das tradições


mais importantes e da ortodoxia predominante? É possível apontar
três diferenças principais.
E pistemologia, ontologia e a “ escola italiana” ♦ 67

Em primeiro lugar, a abordagem gramsciana nos estudos in-


irmacionais é uma crítica epistemológica e ontológica ao empirismo
c ao positivismo que estão na base das teorizações predominantes. Is-
•><>acontece porque a abordagem gramsciana é uma forma específica
de historicismo não estruturalista. Como observou Robert Cox (1987),
a noção de estrutura em Gramsci opõe-se aos estruturalismos de
l.ouis Althusser e Etienne Balibar (Althusser e Balibar, 1979) ou
,u|iiele, oriundo de uma outra tradição, de Kenneth Waltz (1979).
Apesar disso, a abordagem de Gramsci é coerente com a idéia de es-
iruturas históricas, constituídas, em parte, pela consciência e pela
ação de indivíduos e grupos. Portanto, a abordagem de Gramsci con-
t casta com o “estruturalismo” abstrato, na medida em que tem um
aspecto humano(ista): a mudança histórica é compreendida, num
grau significativo, como conseqüência da atividade humana coletiva.
Mais especificamente, pode-se dizer que o historicismo de
( íramsci tem três componentes principais: a) transitoriedade; b) ne­
cessidade histórica; e c) uma variante dialética do realismo (filosófi­
co) (Morera, 1990). O ponto (a) indica que a história e a mudança so­
cial são um processo cumulativo, infinito e, apesar disso, não repe-
tível, com diferentes ritmos e andamentos, aplicando-se respecti­
vamente a desdobramentos estruturais e a parâmetros de fenômenos
aparentemente distintos. Portanto, a crítica da economia política pró­
pria de Marx e Gramsci começa com o conceito de historicidade ou
especificidade histórica do sistema capitalista de mercado, em lugar
de vê-lo como natural ou eterno (ver abaixo o capítulo 3, de Mark
Kupert).
A idéia de necessidade histórica, o ponto (b), pressupõe que a
interação social e a mudança política ocorrem no interior do que po­
de ser chamado de “os limites do possível”, limites que, no entanto,
não são fixos nem imutáveis, mas existem dentro da dialética de uma
determinada estrutura social (que compreende o aspecto intersubje-
1ivo de idéias, ideologias e teorias, as instituições sociais, um sistema
socioeconômico predominante e um conjunto de relações de poder),
t ) aspecto dialético disso é histórico: embora a ação social seja restrin­
gida pelas estruturas sociais dominantes e constituída em seu seio,
essas estruturas são transformadas pela ação (como, por exemplo, por
meio da ação coletiva, no que Gramsci chamava de “guerra de posi-
68 ♦ Stephen G ill

ção”). Portanto, o problema da necessidade histórica é compreendido


em termos dialéticos, a partir de perspectivas que desafiam a dicoto-
mia sujeito/objeto da epistemologia positivista. Nesse sentido, o ma-
terialismo histórico de Gramsci baseia-se em (e amplia) aspectos da
crítica marxista à economia política clássica.
Nos Grundrisse, Marx mostra como, abstraindo as relações so­
ciais de produção, Ricardo desenvolveu uma concepção a-histórica e,
por conseguinte, equivocada, da liberdade do indivíduo:
Nas relações financeiras do sistem a desenvolvido de
troca [...] os indivíduos parecem ser [...] independentes,
isto é, colidem uns com os outros e realizam trocas dentro
dos limites dessa liberdade. Mas só parecem fazer isso aos
olhos de alguém que abstrai as condições de existência nas
quais esses indivíduos entram em contato [...]; mas um a
investigação rigorosa dessas condições ou circunstâncias
externas m ostra como é impossível para os indivíduos que
fazem parte de um a classe etc. superarem -nas en masse
sem as abolir. (Marx, 1971, p. 83-84)

A variante gramsciana do realismo filosófico, o ponto (c), identi­


fica o processo intelectual como um empenho criativo, prático, ilimi­
tado e contínuo para explicar uma realidade social aparentemente
incompreensível. Tal como os processos de mudança no seio de uma
determinada realidade, esse é um processo dialético e, por conseguin­
te, parte do processo histórico: não existe fora dele. Gramsci desen­
volveu o conceito exclusivamente seu de “intelectual orgânico” para
mostrar que os processos de produção intelectual estão, eles próprios,
em relação dialética com os processos de mudança histórica. O traba­
lho intelectual voltado para a explicação social esteve muitas vezes
direta ou indiretamente ligado a estratégias políticas, desenvolvidas
elas mesmas a partir de perspectivas diferentes. Essas perspectivas
existem no tempo e no espaço políticos. Portanto, ao associar a teoria
da produção do conhecimento a uma teoria de identidade e interes­
ses, Gramsci foi capaz de mostrar como, ao menos nesse sentido, a
teoria sempre se destina a alguém e sempre tem um objetivo (para
uma aplicação desse argumento, no que se refere aos conceitos de or­
dem mundial vinculados, entre outras coisas, à perspectiva do capital
E pistemologia, ontologia e a “ escola italiana” ♦ 69

Iransnacional, ver Gill, 1990; para argumentos mais abrangentes, ver


Gox, 1987; Gill e Law, 1988).
Esse ponto de vista gramsciano pode ser contrastado com as
premissas tecnocráticas que formam a visão da maioria dos econo­
mistas profissionais do Ocidente e do Japão, e daqueles que trabalham
em grandes organizações econômicas internacionais, como o Fundo
Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial. Em termos mais
gerais, essas premissas estão associadas aos que trabalham com a eco­
nomia política moderna de acordo com a tradição neoclássica, como,
por exemplo, os keynesianos, com seu pressuposto - oriundo da en­
genharia - de que o papel do economista é construir um aparato be-
haviorista que possibilite uma sintonização fina da economia. Mais
uma vez, essa premissa se baseia na separação positivista entre sujeito
e objeto.
Em segundo lugar, a abordagem gramsciana fornece uma crí-
lica geral ao individualismo metodológico e ao reducionismo meto­
dológico. É claro que esse último é encontrado freqüentemente em
algumas variantes do marxismo, bem como em outras tradições. Na
verdade, o marxismo analítico procura sintetizar o individualismo
metodológico e o holismo metodológico desenvolvendo, por exem­
plo, uma teoria da exploração (Roemer, 1982; para uma visão geral,
ver Mayer, 1989). Na abordagem gramsciana, não é possível com­
preender a história e a economia política como uma seqüência ou sé­
rie de acontecimentos ou momentos distintos que, quando reunidos,
equivalem a um processo de mudança com certas regularidades pre­
dominantes: para Gramsci, é a totalidade das relações sociais confi-
guradas pelas estruturas sociais (“a situação”) que é a unidade básica
de análise, e não os agentes individuais, sejam eles consumidores,
empresas, Estados ou grupos de interesse interagindo de uma forma
(potencialmente) governada pelas normas do “mercado político”,
num determinado momento ou conjuntura, como na moderna teo­
ria da escolha pública (ver Frey, 1984).
Em terceiro lugar, a abordagem insiste numa dimensão ética
da análise, de modo que as questões de justiça, legitimidade e credi­
bilidade moral são integradas sociologicamente no todo e em muitos
de seus conceitos-chave. Isso se reflete na concepção dual de política
70 ♦ S tephen G ill

e Estado em Gramsci: por um lado, existe uma preocupação marxista


clássica em analisar o Estado como um aparato de dominação basea­
do na classe. Por outro, existe algo semelhante à visão aristotélica da
política como tentativa de criar condições para a boa sociedade, na
qual o Estado é visto como capaz, ao menos potencialmente, de ser
transformado de aparato baseado na desigualdade social em uma es­
fera pública ética.
Por conseguinte, ao contrário da ortodoxia predominante que
prioriza a ordem política e a necessidade pragmática de administrar
sistemas, o objetivo normativo da abordagem gramsdana é chegar à
solução do problema fundamental da filosofia política: a natureza da
boa sociedade e, portanto, politicamente, a construção de um Estado
“ético” e de uma sociedade na qual o desenvolvimento pessoal, a re­
flexão racional, o debate aberto, a participação democrática e a libera­
ção econômica e social sejam amplamente acessíveis. É importante
enfatizar aqui que essa é uma definição preponderantemente nega­
tiva, que estabelece as condições mínimas para a “boa sociedade”,
sem fazer promessas ou prescrições sobre a forma que essa sociedade
pode assumir: as estruturas históricas podem ser transformadas pela
ação coletiva numa “guerra de posição”, mas não há nenhuma inevi­
tabilidade histórica. Aqui, o principal contraste seria com o marxis­
mo teleológico, com sua promessa de utopia(s) possível (possíveis),
ou com a célebre distopia de Francis Fukuyama sobre “o fim da histó­
ria”: o desdobramento final da lógica e do espírito do capitalismo li­
beral democrático. Em lermos gramscianos, telos é “m ito”:
De Sorel, [Gramsci] tom ou a noção do m ito social (is­
to é, o príncipe m oderno como um m ito). O mito pressu­
põe um a força psíquica, um movim ento irresistível com bi­
nado ao repúdio das norm as predom inantes (por exemplo,
por serem hipócritas, desmistificadas). É um a força norm a­
tiva, mas não um plano norm ativo, ou um a série de crité­
rios normativos. Pode gerar movimento, mas não prevê o
resultado. Por conseguinte, o elemento norm ativo é crucial,
mas não com o teleologia.2

2 Bilhete de Robert Cox ao autor, em 29 de setembro de 1990.


E pistemologia, ontologia e a “ escola italiana” ♦ 71

Em suma, pode-se assim dizer que, em contraste com a ten­


dência de grande parte da literatura (norte-americana) de priorizar a
ordem e a administração sistêmica de um ponto de vista vinculado
aos elementos predominantes no centro rico da economia política
global, a perspectiva do materialismo histórico encara o sistema de
baixo para cima tanto quanto de cima para baixo, numa avaliação
dialética de uma determinada situação histórica: preocupa-se mais
com o movimento do que com a administração. Isso sublinha os li­
mites de uma abordagem estreita da economia política para a análise
ilas relações internacionais. Para Gramsci, uma perspectiva mais am­
pla e mais integrada é obtida pela elaboração de uma versão historicis-
ta do método dialético desenvolvido a partir de Hegel e Marx, e tam ­
bém influenciada por Maquiavel. Nos Cadernos do cárcere, isso assu­
miu a forma de crítica e de polêmica contra os historicistas alemães e,
mais especificamente, contra o idealista italiano Benedetto Croce.

A crítica da economia política: quatro argumentos

Busco aqui, inicialmente, identificar e desenvolver algumas


das principais características teóricas e aplicadas de uma abordagem
materialista histórica de explicação social e histórica, comparando-a a
leorias materialistas mais estreitas, que podem ser associadas à noção
gramsciana de economicismo histórico. Para mostrar inicialmente co­
mo o materialismo histórico de Gramsci desenvolve conceitos que
.ijudam a explicar aspectos da estrutura normativa da sociedade, é
bom termos em mente o conceito gramsciano de mito (isto é, telos co­
mo mito), o qual sugere que forças aparentemente normativas po­
dem ter o poder social geralmente associado a “forças materiais” (co­
mo a tecnologia, as forças de produção).
Uma teoria materialista do conhecimento pressupõe que não
existe nada (isto é, Deus, a idéia de liberdade, providência) fora e in­
dependente da natureza e da sociedade. A meu ver, isso também pres­
supõe não existir nenhum telos ou espírito que sirva de guia ou de
meta para aquele processo. Apesar disso, para os materialistas, a meta­
física e o pensamento idealista fazem parte da realidade social a ser
explicada, uma vez que ajudam a estabelecer a perspectiva social e as
72 ♦ S tephen G ill

predisposições dos indivíduos e, em termos mais gerais, de grupos e


movimentos no interior das formações sociais. Num livro recente
sobre o historicismo de Gramsci, Esteve Morera (1990, p. 122) afirma
que, para uma teoria ser materialista, é necessário satisfazer pelo me­
nos quatro condições:
1) o materialismo reconhece a existência de um objeto de co­
nhecimento, independente do sujeito que conhece, do processo de
produção do conhecimento e do próprio sistema de conhecimento;
2) a adequação do objeto do conhecimento provê o padrão
último pelo qual o status cognitivo do pensamento deve ser avaliado;
3) o pensamento e as idéias são reconhecidos como realidades
por si sós e, como tais, são objetos do conhecimento;
4) essas realidades são teorizadas não como algo sui generis,
mas como resultado de mecanismos causais.
Procurarei agora mostrar como a epistemologia materialista
convencional tem graves limitações, principalmente em sua vertente
mais positivista. E sugerirei que uma abordagem criativa do materia­
lismo histórico transcende teorias rígidas de causalidade e assume
uma forma reflexiva e dinâmica de explicação da economia política.
Como demonstrarei abaixo, o conceito de causalidade mecânica, por
exemplo, é incoerente com o historicismo, uma vez que o historicis­
mo se ocupa com a explicação, e não com a causalidade. Isso pressu­
põe rejeição ao reducionismo tecnológico, econômico ou a qualquer
outra forma de reducionismo. Nesse sentido, a explicação se baseia
numa abordagem que insiste na centralidade da inter-relação entre
forças sociais “subjetivas” e “objetivas” no desenvolvimento históri­
co, com o foco, por exemplo, na organização social da produção e nas
relações de classe no interior do Estado, onde o subjetivo e o objetivo se
interpenetram - “a realidade de segunda ordem” que Gunnell (1968)
identifica como o objeto das ciências sociais. Essa linha de raciocínio
está relacionada à diferença entre o que Gramsci chamava de “econo-
micismo histórico” e de “materialismo histórico”.3

3 Meus agradecimentos a Robert Cox por enfatizar essa questão.


E pistemologia, ontologia e a “ escola italiana” ♦ 73

Além da inflexibilidade da “realidade social”

Evidentemente, aceitamos que existe uma “realidade” inflexí­


vel na sociedade e na natureza (que nunca poderemos conhecer ou
explicar inteiramente em virtude de sua escala e complexidade). Por
esse motivo, em certa medida, essa realidade é independente e, apesar
disso, interdependente dos processos de produção do conhecimento.
Além disso, “a verdade” da realidade social torna-se ainda mais refra-
lária por envolver o pensamento e os significados intersubjetivos de
indivíduos que têm diferentes formas de autoconsciência e de per­
cepção da natureza social de sua ação/ou falta de ação. Portanto, a
organização social da produção, como um aspecto do mundo social,
<\ em parte, constituída necessariamente por significados intersubje-
Iivos, os quais podem ser identificados e compreendidos, mesmo que
de forma imperfeita. Assim sendo, nossa realidade de segunda ordem -
a “realidade” social - tem diferentes dimensões que não podem ser
mteiramente compreendidas, nem inteiramente registradas, embora
as abstrações relativas aos componentes estruturais dessa realidade
social possam e devam ser produzidos intelectualmente para que a
explicação seja possível.
No que diz respeito à interdependência entre teoria e realidade,
de acordo com Hegel podemos dizer que não há um conhecimento
imediato, pois isso implicaria a inexistência de uma consciência que
laça a mediação com essa realidade. Consciência pressupõe, portanto,
um aparato conceituai explícito ou implícito, e linguagem. Da forma
como esboçado nos Grundrisse, a adaptação (ou inversão) que Marx
fez do método dialético hegeliano (que Gramsci ampliou e elaborou
ainda mais) aplica uma singular abordagem materialista à sociedade
e aumenta, refina e elabora constantemente seu aparato conceituai,
gerando novos conceitos e descartando outros. Isso ocorre no contex­
to de uma explicação na qual se pressupõe que a história é um proces­
so dialético. Com relação à formação do conceito, nossas apreensões
são, em parte, produtoras de teorias; nossas idéias sobre o que é ou
pode ser produzido conceitualmente e nossas estruturas conceituais
são geradas em parte pelo meio ambiente ou pela sociedade.
74 ♦ S tephen G ill

No que diz respeito ao processo de conhecimento, um modo


pelo qual a dialética histórica, tal como defini aqui, pode ser abordada,
são as idéias de Marx sobre o “concreto real” (que determina a teoria)
e o “concreto pensado” (que é uma interpretação do concreto, ou o
significado da ação e da estrutura sociais gerado por esse processo de
reflexão e pensamento). Está implícito aqui que cada estrutura con­
ceituai produz sua própria versão de “concreto real” e de “concreto
pensado” (Resnick e Wolff, 1987). Portanto, para Marx, o conheci­
mento é o processo de transformação no qual os dois “concretos”
estão interligados e se modificam um ao outro para produzir nova
síntese.4
A essa altura, podemos enfatizar uma questão-chave que dife­
rencia o materialismo histórico do empirismo e do positivismo. Uma
mudança no pensamento é uma mudança na totalidade social e, nes­
se sentido, tem impacto sobre outros processos sociais; uma mudança
na totalidade social provocará uma mudança no processo de pensa­
mento. Portanto, o processo de pensar faz parte de uma dialética inces­
sante do ser social.

Os limites da objetividade ontológica

Como, então, são desenvolvidos e elaborados os concretos


pensados? Podemos chegar à resposta a essa pergunta fazendo uma

' Aqui poderiamos distinguir entre contradição lógica, do tipo que caracteriza
a lógica formal e a matemática (como, por exemplo, discutido por Hegel,
em A ciência da lógica), e contradições históricas, que ocorrem cm parte co­
mo resultado de coletividades humanas adquirirem autoconsciência e capaci­
dade de conceituar, entender e agir sobre forças históricas. É claro que, por
conseguinte, não há uma forma única ou direta de definir ou elaborar a na­
tureza das contradições históricas. Fazer isso implica, necessariamente, cons­
truir abstrações e categorias ontológicas. No prefácio desta coletânea, fiz um
esboço inicial da dialética histórica contemporânea de integração/desinte-
gração da ordem mundial, ou seja, a transformação histórica da ordem m un­
dial que estava sendo gerada pelas contradições entre a investida globalizante
do capital com mobilidade internacional e a natureza mais local da autori­
dade política e da legitimidade no final do século XX.
E pístemologia, ontologia e a “ escola italiana” ♦ 75

distinção inicial entre aparência e essência, ou entre manifestações


internas e externas da realidade social. De acordo com o método de
Marx, tal como apresentado nos Grundrisse, trata-se de um esforço
leito por meio de um processo incessante e infinito de geração de abs-
(rações e conceitos, os quais são reconstruídos e refinados quando
confrontados com um conjunto de dados. Esse método, para usar a
metáfora de Engels, possibilita ao teórico chegar a uma explicação
mais abrangente e coerente da realidade social, como uma assímptota
se aproxima de uma linha reta (uma assímptota é uma curva que se
aproxima de, mas nunca encontra, uma linha reta que se estende ao
infinito).
Essa posição parece ligeiramente semelhante à de John Stuart
Mill e à dos empiristas céticos os quais afirmam que os sentidos ou
seus substitutos nunca podem produzir um conhecimento social que
se aproxime verdadeiramente da realidade social. Mas os materialis-
las históricos levam esse argumento um pouco mais adiante, afir­
mando que a sociedade é uma totalidade ou sistema regulado ou con­
dicionado por relações estruturais e, por isso, nunca poderá ser com­
preendido pelo método do atomismo empirista. Além disso, o pro­
cesso de desenvolvimento de concretos pensados é incessante, e so­
mente é interrompido ou incompleto quando se baseia ou é explica­
do por meio de abstrações ou teorias trans-históricas, como aquelas
associadas às Cassandras da ascensão e queda (inevitável) da hegemo­
nia (romana, holandesa, inglesa) norte-americana (para uma abor­
dagem pormenorizada dessa literatura, ver Gill, 1986b; 1988; 1990).
I' claro que esse tipo de argumentação foi feito originalmente por
Marx, ao desenvolver sua crítica da economia política, em suas críti­
cas a Ricardo e a Malthus, por exemplo. Essa questão é mais elaborada
adiante, na abordagem do estruturalismo e da crítica de Gramsci a
lUikharin.
Portanto, embora geralmente grande parte da teoria moderna
sobre relações internacionais considere ponto pacífico a ascensão e o
declínio das hegemonias e o equilíbrio de poder no sistema interes-
lados, com sua forma primordial e anárquica constitutiva das possibi­
lidades de desenvolvimento das relações internacionais pelo menos
desde a época de Tucídides, segundo o materialismo histórico, essa
76 ♦ S tephen G ill

estrutura, na medida em que sua existência pode ser substancializa-


da, é uma configuração particular de Estados e forças sociais, corres­
pondendo a uma época particular, com determinadas condições de
existência tangíveis e transitórias (para a exposição realista arque-
típica, ver Gilpin, 1981, p. 11). Em outras palavras, os marxistas enfa­
tizam a aplicação condicional e histórica do que Robert Gilpin parece
considerar como algo semelhante a uma abstração sociológica.
Robert Cox (1987), ao contrário, sugere que há diferentes
formas de Estado e ordens mundiais, cujas condições de existência,
princípios constitutivos e normas variam com o tempo. Essas condi­
ções incluem diversos modos sociais de produção e de estruturas so­
ciais de acumulação, com suas próprias éticas e políticas caracterís­
ticas, variando no tempo e no espaço políticos. Portanto, nenhum
essencialismo trans-histórico ou homeostasia são atribuídos a qual­
quer sistema social ou ordem mundial dados. Além disso, como Cox
faz o possível para mostrar, o próprio Estado e as formas de ação estatal
são eles mesmos constituídos diferencialmente de maneiras comple­
xas por blocos de forças socioeconômicas e políticas que atuam den­
tro dos limites de determinada necessidade histórica.
Na verdade, embora os empiristas tentem compreender a reali­
dade social da perspectiva do individualismo metodológico, os mate­
rialistas históricos desenvolvem uma teoria baseada em estruturas
sociais como unidade fundamental de análise. Nesse sentido, embora
todas as “realidades sociais” sejam teorizadas, algumas o são mais do
que outras. Assim, para Kenneth Waltz (1979), o sistema interestados
é visto em termos individualistas, com Estados como atores atomi-
zados interagindo no interior da estrutura da anarquia; isto é, Waltz,
Gilpin e a maioria dos estudiosos norte-americanos de relações inter­
nacionais e economia política internacional se movem no seio da­
quilo que Richard Ashley (1988) chama de problématique da anar­
quia.
Para esclarecer melhor a aplicação dessa perspectiva, e de for­
ma mais substantiva, esboçaremos alguns aspectos do sistema pós-
guerra do ponto de vista do materialismo histórico.
O primeiro, e o mais importante deles, é que qualquer aborda­
gem materialista histórica para compreender e explicar determinado
E pistemologia, ontologia e a “ escola italiana” ♦ 77

sistema de ordem mundial deve analisá-lo como um todo. A onto­


logia particular usada não é de forma alguma evidente por si mesma
e deve, num certo nível, ser uma ontologia teorizada. Portanto, sin-
ietizando percepções de vários autores com base nessa perspectiva in­
fluenciada por Gramsci, nossa ontologia deve ter como alicerce a
idéia de uma formação social global constituída em parte pelo grau
de integração/desintegração das estruturas sociais básicas, das forças
sociais e do que Robert Cox (1987) chama de “formas do Estado”. Es­
sa é a base fundamental para compreender o “internacional”: é o que
usualmente é visto como um sistema interestados relativamente au-
lônomo, articulado a forças, mecanismos e instituições de produção
c troca que se relacionam nos planos “nacional” e “internacional”.
Em outras palavras, nossa compreensão da dinâmica da eco­
nomia política baseia-se em certas idéias sociológicas relativas, por
exemplo, ao grau de “imbricação” das ordens mundiais em estrutu­
ras sociopolíticas nos planos nacional e transnacional (como diz
Polanyi, 1957, por exemplo). Assim, na época contemporânea (isto é,
desde 1945), podemos chamar de economia política global essa con­
figuração historicamente específica - mesmo que em processo de
lransformação - de estruturas e forças sociais (Gill e Law, 1988).
Desse modo, desde 1945, na era da pax americana, surge uma
nova estrutura de ordem mundial que, em certos aspectos, é quali-
lativamente diferente de suas predecessoras. No entanto, não é pos­
sível explicar esse novo sistema considerando apenas suas caracterís-
i icas aparentemente exclusivas, como a existência de armas de des-
iruição em massa, ou as ameaças de longo prazo à sobrevivência da
espécie, representadas pela catástrofe ecológica (tipos anteriores de
armamento causaram destruição em massa, e civilizações mais anti­
gas foram desalojadas ou eliminadas, em parte por causa de mudan­
ças ambientais e ecológicas adversas). Portanto, o sistema interestados
e a transição de um sistema político internacional de equilíbrio de
poder/hegemonia (westfaliano) para um sistema pós-westfaliano
((lox, 1990a) - foco convencional de grande parte do trabalho teórico
sobre relações internacionais - precisam ser explicados pelo exame
das maneiras como as forças sociais e as estruturas sociais estão en-
irando num período de transição, e de modo tal que, em termos
78 ♦ S tephen G ill

marxistas clássicos, existe tanto uma socialização (universalização)


crescente de aspectos da vida social quanto uma desintegração de for­
mas anteriores de identidade e interesse: falando grosso modo, entre
grupos de interesse “internacionalistas” e “nacionalistas”, por exem­
plo. Assim, essa transformação e luta envolvem, entre outras ques­
tões, uma interação dialética entre forças que são relativamente cos­
mopolitas e outras que são mais locais, tais como movimentos e ideo­
logias nacionalistas, estruturas de segurança militar, formas lingüís-
ticas particulares e padrões de identidade.
Num sentido mais específico, o sistema formal de soberania
estatal, que de certa maneira foi reforçado e constituído por formas
anteriores de atividade econômica internacional (daí o termo econo­
mia política “internacional”), agora parece ter sido solapado cumula­
tivamente pela integração e competição econômicas mais difundidas
e de raízes mais profundas (inclusive a competição interestados para
atrair capital e investimento de outros países e promover a competiti­
vidade de indústrias “nacionais”). Isso criou novo campo de força de
restrições, oportunidades e riscos, isto é, novas condições de existên­
cia para todos os Estados, grupos e classes do sistema, além de ampliar,
mesmo que de forma ainda limitada e contraditória, um poder estru­
tural crescente para o capital transnacional com mobilidade interna­
cional (Gill e Law, 1989).
Dando continuidade à metáfora de Orwell, alguns são mais
restritos do que outros nesse sistema de ordem mundial. Essa nova
ordem não só coincide com a mudança decisiva nas capacidades pro­
dutivas e no equilíbrio de forças sociais dentro e entre os Estados mais
importantes, mas também com o fato das estruturas estatais dos gran­
des países capitalistas terem sido transformadas em variantes diversas
de feição neoliberal, isto é, estão mais voltadas para a integração de
suas economias no sistema global emergente de produção e comér­
cio, no qual o conhecimento, as finanças e as informações desempe­
nham papel mais decisivo em comparação com o período entre guer­
ras. Em grande parte, é o que Cox (1987) quer dizer com processo de
internacionalização do Estado, envolvendo coalizões, alianças de
classe e blocos históricos de forças sociais entre os países, bem como
no seu interior.
Epistemologia, ontologia e a “ escola italiana” ♦ 79

Ao mesmo tempo, as economias periféricas ficaram mais inti­


mamente ligadas à atividade econômica do centro, e seus ritmos de
desenvolvimento subordinados, em parte, aos imperativos da política
da Guerra Fria e às doutrinas econômicas neoclássicas e liberais - e
instituições e forças sociais afins. Entraram num período de ampla
reestruturação social na medida em que seus arranjos nacionais co­
meçaram a se desintegrar e, ao mesmo tempo, passaram a estar mais
sintonizados com a integração crescente do comércio, dos investi­
mentos, da produção e das finanças. Para alguns, a história da década
de 1980 comprova os custos sociais dessa transformação: um período
de estancamento do potencial de desenvolvimento, com a crise da dí­
vida do Terceiro Mundo acarretando transferências colossais de re­
cursos dos países mais pobres para os mais ricos.
Portanto, no sistema pós-westfaliano que está surgindo, o cos-
mopolitismo das forças econômicas internacionais foi acompanhado
de um processo destinado a disciplinar grupos sociais do Terceiro
Mundo para aprofundar o poder estrutural do capital com mobilida­
de internacional e solapar os arranjos mercantilistas precedentes.
Isso aconteceu, com variados graus de eficiência, por meio da combi­
nação do poder de mercado com a fiscalização das instituições inter­
nacionais de Bretton Woods sob a liderança dos Estados Unidos (ver
Augelli e Murphy, 1988).
Esse cosmopolitismo capitalista também é im portante em
qualquer explicação acerca do desmoronamento da estrutura de blo-
(os durante a Guerra Fria entre Estados Unidos e União Soviética, e
na Europa. Aqui, as mudanças ocorreram em grande parte devido à
intensificação da inovação tecnológica e da rivalidade militar, princi­
palmente entre Estados Unidos e União Soviética. No contexto de
uma crise profunda na estrutura social de acumulação e, por conse­
guinte, na capacidade produtiva de várias nações do bloco soviético,
■ <* mito social da utopia comunista, que chegou a seu apogeu num
I período precoce da história, volatilizou-se quase completamente.
I Essa crise hegemônica e orgânica do “comunismo real” se mostrou
■ particularmente grave na Polônia, na Romênia, na Alemanha Orien-

1
I lal e, mais importante, na União Soviética. No contexto da legiti-

" ..........
80 ♦ S tephen G ill

relações entre o Estado e a sociedade civil eram coordenadas por uma


estrutura autoritária e paternalista de poder político -, a incapacidade
da União Soviética de responder aos desafios de longo prazo surgidos
no contexto das formas existentes da economia política pós-staíinis-
ta levou a seu colapso como um mito social alternativo (ao capitalis­
mo).
Assim sendo, na ordem mundial capitalista, o poder parece
ter-se concentrado novamente nos países centrais, os quais, no en­
tanto, também estavam passando por uma transformação substancial
no que é, claramente, um processo global de reestruturação. As forças
sociais e os arranjos políticos, associados ao que John Ruggie (1982)
chamou de “liberalismo imbricado”, foram progressivamente solapa­
dos pela magnitude crescente, pelos recursos e pelo poder das forças
internacionalmente móveis, minando os blocos históricos de forças
sociais que constituíam, no plano nacional, as bases estruturais de
sustentação da economia política internacional do pós-guerra. Em
termos gramscianos, o conjunto desses blocos e de formas de Estado
nacionalistas/de bem-estar social (Cox, 1987) foi politicamente sin­
tetizado, no contexto dos pilares gêmeos da hegemonia norte-ameri­
cana (as estruturas da Guerra Fria e a liberalização internacional da
ordem econômica), num bloco histórico internacional em formato
inicialmente transatlântico e depois trilateral (isto é, incluindo o Ja­
pão). Mas as recessões, os processos de reestruturação das décadas de
1970 e 1980 - aliados à internacionalização cumulativa de produção,
consumo e comércio - e a integração das forças econômicas globais
significaram que toda a natureza desses blocos históricos fora sola­
pada, e que um bloco histórico de forças transnacionais (associado aos
interesses dominantes dos países centrais e outros), ainda não com­
pletamente desenvolvido mas claramente emergente, começara a
surgir, principalmente durante as décadas de 1970 e 1980. As con­
tradições desse processo, o qual envolve uma crise das antigas estru­
turas e formas hegemônicas de consenso político negociadas interna­
cionalmente, estão agora desfazendo o antigo bloco histórico inter­
nacional e estão intimamente ligadas ao novo e emergente bloco
transnacional (Gill e Law, 1989; Gill, 1990).
No entanto, mesmo aqui, as contradições do sistema podem
estar se intensificando. Processos no núcleo central do sistema, com
E pistemologia, ontologia e a “ escola italiana” ♦ 81

efeitos cascata no Terceiro Mundo, como apresentados, por exemplo,


no livro de Susan Strange intitulado Casino Capitalism (1986), podem
estar levando a uma situação em que as estruturas de produção e co­
mércio estejam se desarticulando nesta era de redução dos horizontes
temporais e de capitalismo especulativo (como as disparidades cada
vez maiores entre investimento produtivo, comércio e capital inter­
nacionais e mercados de troca), de modo que, em determinado nível,
os atrativos éticos dos contratos sociais da era do liberalismo imbrica-
do estão se desgastando rapidamente. Como observa Strange, o jogo
da vida econômica começou a parecer uma combinação do jogo co­
bras e escadas com a roleta (russa).
Como podemos iniciar a explicação sobre a natureza dessas
mudanças? Na literatura convencional sobre economias políticas in­
ternacionais, o que acabamos de discutir costuma ser entendido co­
mo a disjunção entre forças “nacionais” e “internacionais” no siste­
ma mundial de comércio, somada à difusão internacional do poder
interestados, o que está levando ao distanciamento da estabilidade do
duopólio de superpotências e à aproximação de um sistema plural
mais complexo. Portanto, a questão que se coloca é a de como é possí­
vel a ordem “depois da hegemonia”? (Keohane, 1984a). Foram desen­
volvidas teorias para saber como as nações capitalistas metropolita­
nas do centro do sistema podem cooperar de maneira frutífera num
mundo pós-hegemônico caracterizado pelo crescimento mais lento e
por instabilidade econômica. Grande parte do debate gira em tom o
do problema da coordenação extremamente imperfeita na cúpula do
sistema, ou seja, em como enfrentar as complexidades dos jogos de
“dois níveis”, ou de “múltiplos níveis” ou “mistos” entre um número
maior de atores nacionais, isto é, de governos (aqui o pioneiro foi
Axelrod, 1984). Dessa maneira, a questão que constituiu e continua
constituindo a pauta de pesquisa da teoria ortodoxa da economia po­
lítica internacional durante a última década é: “Como é possível che­
gar à cooperação num ambiente de anarquia?”
No entanto, uma outra forma de ver essa questão é situar uma
discussão dos fóruns interestados, organizações internacionais e con­
selhos informais como a Comissão Trilateral no contexto do desen­
volvimento e da aplicação de estratégias hegemônicas numa base cada
vez mais transnacional. Porém, esse nível de análise ainda é insufi-
82 ♦ Stephen G ill

ciente para explicar devidamente o surgimento e a importância des­


sas estratégias, e as lutas políticas por elas acarretadas. Os deuses polí­
ticos da cúpula do sistema e os vários fóruns nos quais eles interagem,
como as cúpulas do Grupo dos Sete (G7), operam nos limites do pos­
sível, limites situados no contexto das transformações históricas dis­
cutidas acima, assim como os blocos de forças sociais com os quais
estão associados no plano nacional em seus próprios países e em ou­
tros lugares (Gill, 1990).
Dada a complexidade histórica dessas forças, sua importância
e a interação em seu interior, esses fóruns de elite não podem ser ex­
plicados apenas com formulações abstratas como o Dilema do Prisio­
neiro (que Axelrod afirma que pode explicar igualmente bem a evo­
lução biológica e a guerra de trincheiras da Primeira Guerra Mun­
dial). Como esses fóruns intergovernamentais e transnacionais exis­
tem há algum tempo, sua relevância cada vez maior só pode ser expli­
cada historicamente. Além de serem respostas institucionais concre­
tas à crise ou à transformação do sistema da ordem mundial do pós-
guerra, correspondendo a uma globalização desigual da economia
política, também são iniciativas intimamente ligadas ao nascimento
e ao desenvolvimento inicial de uma sociedade civil e política inter­
nacional que, em certos aspectos, é uma reconfiguração nova e suges­
tiva da ordem mundial no final do século XX.
Do ponto de vista dos sistemas mundiais, o processo descrito
acima parece corresponder a uma situação em que o poder parece
ter-se concentrado novamente nos Estados do “centro”, embora os
realistas, concordando até certo ponto, lamentem a dissolução da cola
das estruturas dos blocos associada ao equilíbrio do terrorismo e ao
declínio do poder e da liderança dos Estados Unidos. Mas o que talvez
seja o aspecto fundamental de nossa época é o fato de as relações so­
ciais e a estrutura social estarem num período longo e profundo de
transformação ou crise em escala global: uma crise que, de fato, é tan­
to uma crise da Guerra Fria atual quanto da ordem inter e intracapi-
talista.
Na medida em que existem elementos que guiam esse proces­
so, os princípios de organização dessa ordem mundial reconstruída e
reestruturada estão cada vez mais associados às idéias e interesses
E pistemologia, ontologia e a “ escola italiana” ♦ 83

econômicos liberais (isto é, o capital transnacional e as instituições


de Bretton Woods), envolvidos numa luta dialética em relação ao
mercantilismo imbricado e às perspectivas do estadismo (com fre-
qüência associadas ao setor público, ao complexo de segurança e aos
ramos industriais protegidos e que não são internacionalmente com­
petitivos). Essa luta e essa transformação envolvem não apenas os Es­
tados no centro capitalista, mas também configuram a pauta de trans­
formação social da América Latina, da Europa Central e Oriental e
dos países sucessores da União Soviética, a Comunidade dos Estados
Independentes (CEI), criada em dezembro de 1991. Tanto o ensaio
de Giovanni Arrighi (capítulo 6) quanto o de Robert Cox (capítulo
10) podem ser interpretados como transformações da sociedade
internacional compreendidas em termos do capitalismo e do territo-
rialismo globalizantes como lógicas e formas opostas de organização
do poder.
Um bom exemplo recente da investida globalizante do capita­
lismo e da internacionalização da sociedade civil e política e, em certa
medida, da internacionalização da autoridade de acordo com essas
novas condições foi a maneira pela qual as instituições de Bretton
Woods, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econô­
mico (OCDE), os governos capitalistas centrais e uma série de inte­
resses privados (como figuras de proa de bancos e empresas transna-
cionais, além de think tanks e universidades particulares) reuniram-
se rapidamente em janeiro de 1990 para produzir um pacote radical e
draconiano de reformas destinadas a transformar a economia polo­
nesa (em 1991-1992, essa abordagem também foi aplicada na Rússia,
depois do colapso da União Soviética). O experimento polonês foi,
como disse a OCDE na época, o lançamento de uma estratégia de
mudança social sem precedentes, transform ando uma sociedade
comunista, protegida e mercantilista, em uma sociedade capitalista
com base no mercado, uma “grande transformação” que precisou de
pelo menos setenta anos para ser realizada na Inglaterra do século
XIX (Polanyi, 1957). O plano para a Polônia baseou-se, ele próprio,
num processo de aprendizado das elites capitalistas à luz da expe­
riência das décadas de 1970 e 1980, e nos experimentos que implica­
vam o uso da condicionalidade do FMI e do Banco Mundial. A nova
84 ♦ S tephen G ill

estratégia aplica o conceito de macro e microrreestruturação de


Kornai (1986) e a idéia de restrições rigorosas ao orçamento (às des­
pesas estatais e também às empresas individuais), em um sentido que
estenderá e aprofundará o poder estrutural do capital. Essa estraté­
gia - que, no mínimo, não tem garantia alguma de êxito - não é uma
estratégia exclusivamente de mercado: há alguma direção política e
internacionalização da autoridade para evitar a repetição dos erros da
década de 1970 (relativos à reciclagem da dívida) e da década de 1980
(relativos à crise da dívida). Portanto, essa estratégia, na medida em
que tem uma lógica interna, representa o uso de poder político direto
para consolidar o poder estrutural do capital (ver o capítulo 4 para
mais detalhes).
Nesse contexto, a forma suprema da “condicionalidade” refle-
tiu-se na unificação econômica, monetária e social da Alemanha
Oriental com a República Federal da Alemanha, iniciada no dia Io de
julho de 1990. É claro que esta logo se fez acompanhar da plena unifi­
cação política, a 2 de outubro de 1990, quando a Voíkskammer se au-
todissolveu e uma multidão estimada em mais de um milhão de pes­
soas reuniu-se em frente ao Reichstag, em Berlim, a antiga capital prus­
siana, agora totalmente alemã. Observadores disseram que o estado
de espírito daquela multidão imensa e emocionada era uma mistura
de alegria, perplexidade, ansiedade e catarse. O establishment político
da Alemanha Ocidental reuniu-se na Schauspielhaus e seus coque­
téis foram devidamente regados pelos ecos da “Ode à alegria” da Nona
sinfonia de Beethoven. Não desejando estragar essa alegria, o normal­
mente sóbrio Bundesbank negou a possibilidade de catástrofe econô­
mica na Alemanha Oriental. Enquanto os alemães celebravam com
versos de Schiller e notas musicais de Beethoven, Margaret Thatcher
dava-lhes seus parabéns, depois de anteriormente ter feito previsões
sinistras a respeito do domínio alemão na Europa. A União Soviética
declarou que a unificação fora provocada pela lógica da política
iluminista da Perestróica, e a Comissão Européia afirmou que isso
significava que o processo de unificação econômica e política da Eu­
ropa seria acelerado (ver, por exemplo, Financial Times, 3 de outubro
de 1990).
E pistemologia, ontologia e a “ escola italiana” ♦ 85

A estrutura da necessidade e a consciência política

Nos exemplos apresentados acima, portanto, segundo o ponto


de vista dos diversos agentes, sejam eles indivíduos, sindicatos, em­
presas, burocracias estatais ou organizações internacionais, a estrutu­
ra da necessidade variou em parte. Além disso, a natureza dessa estru­
tura muda com o tempo. As mudanças do pós-guerra, que acabamos
de descrever, não são, simplesmente, resultado de transformações es­
truturais cumulativas e impessoais mesmo que, de acordo com
Fernand Braudel (1981), aquelas mudanças relativas à longue durée,
isto é, os gestes répétês da história, tenham criado a estrutura da neces­
sidade em que os événements ou eventos da história ocorrem em de­
terminadas conjunturas. É claro que esse ritmo cronológico duplo é
ele próprio uma simplificação, embora mudanças de longo prazo de
importância estrutural nesse contexto estejam se propagando e
aprofundando a commoditização e a monetarização das relações so­
ciais.
No entanto, a realidade social não envolve somente restrições
estruturais, muitas vezes consideradas os limites do possível; também
envolve consciência e, por isso, abrange idéias filosóficas, teóricas,
éticas e do senso comum. Beethoven, e não Wagner, foi escolhido,
pela geração atual de líderes políticos, para simbolizar a emoção ca-
tártica da Alemanha unificada. No caso de Gramsci, esse aspecto da
sociedade se reflete em seu interesse por questões de consciência e
cultura política, pelo papel dos intelectuais e da filosofia e pela grande
atenção dada às superestruturas, principalmente à sociedade civil,
cm suas concepções de hegemonia e de constituição da sociedade:
A com preensão crítica do eu ocorre, p o rtan to , p o r
m eio de um a luta entre as “hegem onias” políticas e as
orientações opostas, prim eiro no campo ético e depois no
campo político propriam ente dito, com o objetivo de chegar
aos m ínimos detalhes de um a ordem superior de concep­
ção da realidade. A consciência de fazer parte de um a de­
term inada força hegemônica (isto é, consciência política)
é o prim eiro estágio na direção de um a autoconsciência
progressiva, em que teoria e prática serão, por fim, um a
coisa só. Portanto, a unidade entre a teoria e a prática não
86 ♦ S tephen G ill

é apenas um a questão mecânica de fato, mas parte de um


processo histórico, cuja fase elem entar e prim itiva é encon­
trada no significado de ser “diferente” e “à parte”, num
sentim ento instintivo de independência, e que progride pa­
ra o nível da posse real de um a concepção indivisa e coe­
rente do m undo. Por isso, é necessário enfatizar que o de­
senvolvimento político do conceito de hegemonia representa
um grande avanço filosófico, bem com o um grande avanço
prático. (Gramsci, 1971, p. 333)

Gramsci está dizendo, então, que a compreensão crítica não é


um processo automático: envolve reflexão e esforço interior, bem co­
mo no contexto da luta mais ampla de idéias e programas políticos.
Assim, a “autoconsciência progressiva” é definida em termos de de­
senvolvimento e de política: a percepção de si é reconstituída por in­
termédio da avaliação dos padrões predominantes de raciocínio e da
natureza e distribuição das oportunidades de vida. Nesse sentido, o
momento da autopercepção leva a um entendimento mais complexo
e mais coerente do mundo social e é uma forma de mudança histórica
(e, por conseguinte, de equilíbrio das forças sociais e políticas). Che­
gar à autoconsciência é um processo entendido dialeticamente. A
política e o indivíduo são centrais para a definição de estruturas e de
mudança: não são abstraídos “falsamente” de uma teoria da história.
Este argumento não significa que Gramsci era um idealista ou
que tenha subordinado a “economia” à “política”. Em sua teoria so­
cial, a sociedade é concebida, como no marxismo clássico, como uma
totalidade constituída basicamente pelos modos de produção. Essa
totalidade pode ser analiticamente dividida em idéias, instituições e
forças materiais, mas continua sendo uma entidade genérica e inte­
grada, mesmo que contraditória. Certos sistemas de pensamento, co­
mo a religião ou o senso comum (ou filosofias, como diria Gramsci),
ou instituições sociais (como a família) podem sobreviver a qualquer
modo de produção, ou estrutura social de acumulação, e, por esse
motivo, não existe congruência necessária entre “base” e “superes-
trutura”. O mesmo se aplica a sistemas de governo e políticas em ge­
ral: um modo capitalista de produção pode andar de mãos dadas com
o autoritarismo, a ditadura ou a democracia parlamentar. O crucial é
pôr cada um desses conjuntos de idéias e instituições sociais no seu
E pistemologia, ontologia e a “ escola italiana” ♦ 87

devido contexto sócio-histórico, uma vez que sua importância e seu


significado podem mudar com o tempo.
Da mesma forma, se levarmos em conta o caso das revoluções
de 1989 no Leste Europeu e na Europa Central, um aspecto estrutural
fundamental da explicação desse tipo de mudança foi a implosão do
desempenho econômico e uma crise profunda de longo prazo na es­
trutura social irracional e imbricada de acumulação. O “socialismo
real” perdeu o vigor porque não conseguiu reconciliar suas próprias
contradições. Kornai (1986), por exemplo, mostra como, ao menos
no caso da Hungria, a prática de subsídios distribuídos politicamente,
mas em geral sem limites fixos, aliada à centralização universal do
sistema e ao conjunto de objetivos abstratos e irrealistas, resultou em
um sistema ineficiente de alocação de recursos e incentivos: não ha­
via indicadores reais de mercado, como há no capitalismo, e nenhu­
ma restrição financeira ou de mercado para punir os incompetentes.
A alocação do trabalho foi distorcida (subemprego maciço, concen­
tração do trabalho e dos fatores de produção). O sistema simplesmen­
te não oferecia bens e serviços que as pessoas queriam ou precisavam.
Em termos habermasianos, isso representou uma crise profunda da
racionalidade (Habermas, 1973) de um sistema social cujas premis­
sas eram, por assim dizer, o cálculo perfeito das necessidades sociais e
da atividade econômica.
Essa crise orgânica foi intensificada, de um lado, pelos desafios
econômicos de longo prazo que estavam sendo apresentados pelos
países capitalistas adiantados e, de outro, pelas implicações militares
e econômicas do desafio estratégico do reaganismo à União Soviética.
A falta de qualquer legitimidade substantiva sob condições de declí­
nio do desempenho econômico só enfatizou a fragilidade cada vez
maior do sistema stalinista antidemocrático. Essa forma de legitimi­
dade grosseiramente materialista e antidemocrática tornou-se, é cla­
ro, mais frágil, pela eliminação virtual de toda e qualquer atividade
política autônoma, e, desse modo, impediu a criação ou o renasci­
mento de uma sociedade civil. Por conseguinte, como uma bola de
neve que vai aumentando de tamanho à medida que rola morro abai­
xo, quando chegou ao seu destino, as contradições do sistema tinham
atingido a escala de uma avalanche. Kees van der Pijl (1988) coloca
88 ♦ S tephkn G ii.i,

esses processos no contexto do que ele chama de crise orgânica da for­


ma estatal repressiva hobbesiana. Em sua pior manifestação na Ro­
mênia, esse processo (para o qual os líderes ocidentais fecharam os
olhos, quando não o receberam de braços abertos, nas décadas de
1970 e 1980, devido à oposição de Ceausescu a Moscou e à sua capaci­
dade de pagar as contas aos banqueiros estrangeiros) envolveu o abu­
so de direitos humanos e políticos e quase matou de fome a popula­
ção, obrigada a pagar, entre outras coisas, o grotesco palácio de már­
more construído para o carniceiro de Budapeste. Aqui, o ponto-chave
é que uma análise gramsciana poderia ter sugerido que uma estrutura
de Estado hobbesiana é inerentemente instável por duas razões: falta-
lhe credibilidade ética e, como seu sistema político não está firme­
mente assentado nas “fortalezas e trincheiras” de uma sociedade civil
forte, pode ser posto abaixo como o palácio de Ceausescu por uma
forma insurrecional de espontaneidade revolucionária.
Portanto, segundo a teoria de van der Pilj, os sistemas Estado
hegemônico/sociedade civil do Ocidente têm sido historicamente as­
sociados à idéia de um “estado lockiano”, isto é, um Estado onde exis­
te uma sociedade civil vigorosa e é, em grande parte, auto-regulado.
Esse tipo de complexo Estado/sociedade civil é exemplificado pelos
países anglo-saxões e, em certa medida, por muitos Estados-membros
da Comunidade Européia. A contrapartida internacional desse tipo
de formação hegemônica é a Comunidade Britânica, enraizada na
história do imperialismo e do colonialismo ingleses, mas que repre­
senta, no plano internacional, a transformação da coerção em con­
sentimento e regulação informal das relações entre os Estados. Aqui,
poderiamos fazer uma comparação com a idéia familiar de um Esta­
do forte encontrada no cerne das teorias das relações internacionais,
muitas vezes associada àquilo que van der Pijl chama de forma estatal
hobbesiana: um Elstado forte que domina a sociedade civil de cima,
com a capacidade política de centralizar o poder político de modo a
desenvolver e mobilizar os recursos materiais da nação. Portanto, em
geral, esse tipo de forma estatal não é hegemônico, uma vez que não
está firmemente assentado socialmente numa sociedade civil forte e,
por implicação, sua legitimidade é frágil. Ao menos na Europa Orien­
tal, essa crise reflete não apenas a legitimidade tênue do governo
E pistemoi.ogia , ontologia e a “ escola italiana” ♦ 89

comunista (por exemplo, a ascensão ao poder de Vaclav Havei como


um símbolo de repúdio ético-político ao mito social e forma concreta
da ordem comunista na Tchecoslováquia), mas também a pressão
cumulativa das forças internacionais sobre cada um dos países en­
volvidos.
Portanto, em vez da tendência para reificar o Estado e o sistema
interestados, a abordagem gramsciana explica a natureza do Estado
em termos da complexidade das relações entre o Estado e a sociedade
civil, e mostra que a natureza do poder estatal está relacionada à força
da síntese dinâmica entre as principais correntes da economia e da
sociedade, operando politicamente numa base inclusiva. A síntese
dessas forças cria o que Gramsci chamava de bloco histórico, que, às
vezes, tem o potencial de tornar-se hegemônico. Para a hegemonia
ética ser possível, o Estado tem de ser necessariamente constituído,
primeiramente, pela legitimidade geral e pelo consentimento ativo, o
que implica a inclusão dos interesses dos elementos subordinados
dentro do sistema. Algo que precisa ser explicado pela análise históri­
ca, é claro, é o que exatamente os elementos representam para qual­
quer formação social em particular. Mas, no seu sentido mais funda­
mental e completo, a conquista da hegemonia está relacionada com o
transcender as perspectivas estreitas baseadas no economicismo ou
no corporativismo, para que uma posição genuinamente universal,
que sintetize interesses particulares e gerais, possa chegar a prevalecer.
De acordo com a linha de argumentação de van der Pijl, tam­
bém poderiamos comparar as revoluções do Leste Europeu e da Euro­
pa Central (que, com exceção da Romênia, geralmente foram pacífi­
cas) com a crise de legitimidade na China, e também com o declínio
do autoritarismo estatal e da ditadura militar na América Latina. Co­
mo já foi mencionado, van der Pijl sugere que cada uma dessas va­
riantes da forma estatal hobbesiana passou por uma crise fundamen­
tal durante as décadas de 1970, 1980 e 1990. Mas o caso da China po­
de se revelar problemático para a tese geral de van der Pijl. Outro caso
problemático seria o desenvolvimento do Japão desde a Restauração
Meiji (ver o capítulo 7, de Barry Gills).
Resumindo, no plano internacional, o movimento rumo a
uma economia política global mais liberal e mais integrada, e o co-
90 ♦ Stephen G ill

meço da reconstrução social na Europa Oriental e na América Latina


são dois lados da mesma moeda de uma reestruturação profunda da
ordem internacional. Não somente os Estados hobbesianos, mas tam ­
bém muitos outros estão se voltando mais para o mercado e, portanto,
para a internacionalização de algo parecido com uma forma lockiana
de sociedade civil auto-regulada (embora o modelo alemão de eco­
nomia de mercado social seja uma variante-chave no contexto pan-
europeu). Apesar das contradições e conflitos envolvidos na transfor­
mação do Leste Europeu e da Europa Central, provavelmente vere­
mos esse processo, no plano europeu, mais cedo: a Guerra Fria parece
ter acabado. No dia 6 de julho de 1990, a Organização do Tratado do
Atlântico Norte (Otan) finalmente declarou que não considerava mais
o Pacto de Varsóvia seu inimigo e, no início de agosto de 1990, Mar-
garet Thatcher, a primeira-ministra da Grã-Bretanha, defendeu uma
cadeira para Mikhail Gorbachevna cúpula seguinte, de 1991, do (G7)
em Londres. Gorbachev compareceu à cúpula e depois foi obrigado a
se retirar quando a União Soviética dissolveu-se formalmente. Como
observamos acima, alguns membros da Comunidade dos Estados In­
dependentes (CEI), principalmente a Rússia, estão entrando numa
forma de reestruturação econômica draconiana, à polonesa, guiados
pelo FMI e por ministros do (G7) com experiência financeira e políti­
ca, mesmo nas condições econômicas em processo de rápida deterio­
ração da CEI. A “grande transformação” do antigo bloco soviético po­
de muito bem ocorrer em condições semelhantes àquelas da Grande
Depressão da década de 1930 no Ocidente. O que pode ser visto como
um aspecto do que Gramsci chamava de “revolução passiva”, isto é, o
desenvolvimento de estruturas políticas e econômicas miméticas em
partes do mundo menos desenvolvidas do mundo (ver o capítulo 9,
de Kees van der Pijl sobre a aplicação dessa idéia à União Soviética).
O que parece caracterizar a natureza do sistema da ordem
mundial de fins do século XX, portanto, é uma série de crises profun­
das de identidade, e a reestruturação ética e socioeconômica nos pla­
nos nacional e internacional abrangendo todas as três categorias de
país que discutimos: o capitalismo central, os Estados comunistas/
pós-comunistas e o Terceiro Mundo (sobre a América Latina, ver o
capítulo 8, de Otto Holman). Essas crises estão interligadas pelas for-
E pistemologia, ontologia e a “ escola italiana” ♦ 91

ças que atuam na economia política global. Desse ponto de vista, o re­
sultado desses processos provavelmente será determinado principal­
mente no plano nacional, isto é, dentro de cada um desses países.
Apesar disso, a globalização da economia política e a transnacionali-
zação das forças sociais e políticas significam o predomínio de novas
condições. Não é possível identificar essas mudanças apenas com
uma teorização das estruturas históricas, que é estática, não-dialética
e baseada na premissa da separação entre o “nacional” e o “interna­
cional”, entre o “econômico” e o “político”.

Transformação histórica e contra-hegemonia

Está claro que a conquista da hegemonia dentro de uma deter­


minada formação social é um processo complexo e contraditório,
uma vez que forças contra-hegemônicas desafiarão os arranjos insti­
tucionais e políticos dominantes. Pode ser mais difícil ainda alcançar
a hegemonia no plano internacional (e, por isso, ela é mais rara, se
não teoricamente impossível), pois não existe um Estado mundial
único, nem uma sociedade civil internacional completamente ma­
dura, embora se possa dizer que existe um quadro de referências
substanciai tanto de direito internacional quanto de organização in­
ternacional (e, por conseguinte, uma série de normas, regras e valores
internacionais), parcialmente entrelaçado a uma estrutura interna­
cionalizada de produção e comércio (e, por conseguinte, a uma rede
complexa de encadeamentos privados e informais, alguns dos quais
envolvendo agentes estatais). A hegemonia internacional, tal como
costuma ser definida pela literatura, tem sido associada ao domínio e
à liderança de um Estado poderoso no seio do sistema de relações in­
ternacionais que obtém poder sobre outros Estados. Mas essa é uma
definição insatisfatória, uma vez que vincula forças sociais a uma en­
tidade territorial, ao passo que o sistema global precisa ser concebido
como uma totalidade, e as forças sociais que operam dentro desse
sistema não têm limites ou determinações territoriais. Portanto, nas
palavras de Robert Cox,
A hegemonia é um a estrutura de valores e critérios so­
bre a natureza da ordem que permeia um sistema inteiro
92 ♦ S tephen G ill

de Estados e entidades não-estatais. N um a ordem hege­


mônica, esses valores e critérios são relativamente estáveis
e não são questionados. Aos olhos da maioria dos atores,
parece a ordem natural das coisas. Essa estrutura de signifi­
cados é definida por uma estrutura de poder, na qual m u i­
to provavelmente um Estado é dom inante, mas não conse­
gue chegar à hegemonia. A hegemonia deriva dos estratos
sociais dom inantes dos Estados dom inantes, desde que es­
sas maneiras de agir e pensar tenham obtido a aquiescência
dos estratos sociais dom inantes de outros Estados. (Cox,
1990a)

Discutindo um dos principais exemplos de hegemonia global,


Giovanni Arrighi (capítulo 6) apresenta algumas razões pelas quais o
termo “hegemônico’' parecia aplicar-se aos estratos dirigentes e às
forças sociais dominantes que se irradiaram da Grã-Bretanha durante
o século XIX, à medida que o capitalismo industrial e comercial co­
meçou a se internacionalizar. Embora tenha mantido seu mercado
nacional relativamente aberto, e com vantagens comparativas no co­
mércio, o Reino Unido detinha substancial controle sobre o mercado
mundial. Também detinha um domínio generalizado sobre o equilí­
brio global de poder e uma “relação íntima de instrumentalidade mú­
tua com a haute finance” (e, por conseguinte, a capacidade de admi­
nistrar o sistema monetário internacional de acordo com o padrão-
ouro). Isso possibilitou ao Reino Unido governar o sistema interes-
tados “com tanta eficiência quanto um império mundial” e, com
isso, ajudar a sustentar os cem anos de paz - sem precedentes - entre
as grandes potências. O poder material não era uma condição sufi­
ciente para isso ser possível. Segundo Arrighi, a chave da hegemonia
britânica era:
[...] a capacidade de reivindicar com credibilidade que a ex­
pansão do poder do Reino Unido não atendia somente a
seus interesses nacionais, mas também a um interesse “u ni­
versal”. Fundam ental para essa afirmação hegemônica era
a distinção entre o poder dos governantes e “a riqueza das
nações”, baseada sutilm ente na ideologia liberal propagada
pela intelligentsia britânica [...] apresentada como a força
m otora de um a expansão universal da riqueza das nações.
E pistemologia, ontologia e a “ escola italiana” ♦ 93

O livre-comércio podería solapar a soberania dos governan­


tes, mas, ao mesmo tem po, expandiría a riqueza de seus
súditos, ou pelo menos dos súditos que tinham proprieda­
des. (Ver capítulo 6; p. 267-268; itálicos meus)

Portanto, a combinação das capacidades material, de coerção e


de exercer a hegemonia criou a possibilidade, e a realidade, da su­
premacia britânica, principalmente nas décadas de meados do século
XIX. Isso permitiu uma capacidade extraordinária e, em geral, legí­
tima (ao menos entre os elementos dirigentes dos países mais desen­
volvidos da Europa) de reestruturar o mundo de forma a satisfazer os
interesses nacionais da Inglaterra. Mas essa não foi uma hegemonia
num sentido fundamentalmente gramsciano, embora a análise de
Arrighi a mostre como uma “situação”, isto é, a interseção e a intera­
ção de conjuntos de forças sociais que produzem uma síntese de inte­
resses explicam a credibilidade da liderança britânica na economia
internacional do século XIX. O fato de o padrão-ouro, e sua utiliza­
ção, ter sido constituído e depender muitíssimo da cooperação de ou-
tros Estados europeus corrobora essa visão: nesse sentido, era um
sistema europeu. Aqui, o elemento-chave é que a realização da
hegemonia britânica pressupôs o consentimento dos principais ele­
mentos dos Estados centrais. Além disso, no plano global, os custos
tio ajuste exigido pelo padrão-ouro tenderam a ser pagos mais subs­
tancialmente pelas colônias mais pobres sob o controle de cada uma
das nações imperialistas da Europa e, assim sendo, não estavam de
forma alguma imbricados globalmente, nem eram consensuais
(Polanyi, 1957), fato que Arrighi observa em seus comentários sobre
a absorção de “tributos” do subcontinente indiano pelo Estado inglês.
Portanto, mudança social, e, no caso acima, estabilidade polí­
tica internacional, é, em qualquer momento histórico, o resultado da
interação entre aspectos estruturais ou relativamente permanentes
da realidade social e conjunturas específicas de eventos, ou seja, é o
resultado de forças sincrônicas e diacrônicas. Em outras palavras, a
hegemonia nunca pode ser o produto simples da preponderância de
um único Estado ou grupo de Estados exercendo poder sobre outros
Estados. Isso, evidentemente, se deve em parte ao fato de os seres hu-
94 ♦ S tephen G ill

manos terem consciência e certo grau liberdade de decisão ou de


atuação dentro dos limites do possível.
Por conseguinte, qualquer tentativa de construir um sistema
hegemônico de governo tende a gerar, dialeticamente, um conjunto
de forças contra-hegemônicas, que podem ou não ser progressistas. O
cadáver da pax brittanica foi enterrado nas trincheiras de Ipres e
Somme. Aqui, o problema teórico é que o mundo social é uma reali­
dade de “segunda ordem”, qualitativamente diferente daquela expli­
cada pelas ciências naturais (que podem ser comparadas a sistemas
de elaboração de regularidade causai). Portanto, teorias mecânicas,
como a teoria neo-realista da estabilidade hegemônica, têm validade
científica limitada, bem como falta de plausibilidade para explicar
transformações sociais complexas e os constituintes da ordem m un­
dial. Nesse sentido, a crise social e a transformação social podem ser
melhor explicadas como desintegração das hegemonias sociais e for­
mação de contra-hegemonia na economia política global, e não por
“longas ondas” de desenvolvimento capitalista.
Finalmente, nenhum conceito unilinear de tempo pode ser
usado para compreender e explicar plausivelmente constelações de
forças sociais e conjunturas históricas. Estruturas sociais e eventos
sociais são constituídos em parte por processos que refletem ritmos e
andamentos históricos diferentes. Aqui a análise de Gramsci é seme­
lhante à de Braudel (1981) e à dos historiadores da École des Annales.
Como dizia Braudel em relação ao tempo histórico, a primeira di­
mensão é aquela que muda muito lentamente, como a relação topo-
lógica entre as placas continentais, ou seja, aquela que existe entre a
humanidade e sua geografia (tempo geográfico). A segunda dimen­
são, com um ritmo mais rápido do que o primeiro, é a da mudança
nas estruturas sociais fundamentais: a longue durée (tempo social). O
terceiro ritmo, o mais rápido de todos, é aquele que gira em torno dos
indivíduos, eventos e conjunturas específicas: a histoire événementielle
(tempo individual). Qualquer análise histórica (e, por conseguinte,
qualquer estudo da economia política global) deve ter sensibilidade,
ao menos, para as dimensões desses ritmos temporais.
E pistemologia , ontología e a “ escola italiana” ♦ 95

Além do marxismo vulgar e dos discursos ortodoxos

Ainda não discuti, em detalhe, o problema de como superar


essas questões epistemológicas e tomar um caminho mais detalhado
rumo à ontologia, à teoria social e ao método analítico, o que evita o
engano de cairmos cm argumentos relativos à determinação tanto
"política” quanto “econômica”, ou em uma causalidade subjacente
ou suprema, embora minha posição nesse debate esteja implícita em
muito do que foi dito acima. O capítulo 3, de Mark Rupert, trata de
aspectos da ontologia marxista/gramsciana, assim como os capítulos
e 10, de Robert Cox, e o capítulo 9, de Kees van der Pijl. Na verdade,
.is obras mais longas de Cox (1987) e de van der Pijl (1984) podem ser
i onsultadas de maneira frutífera sobre essa questão, uma vez que am­
bos desenvolvem uma ontologia bem sofisticada do materialismo
histórico, e cada um aplica seu próprio método particular ao que
1hivid Law e eu (Gill e Law, 1988) chamamos de economia política
global. Este último conceito implica um sistema integrado de conhe­
cimento, produção e comércio, e inclui as relações dialéticas entre
sistemas e Estados capitalistas e não-capitalistas, e aspectos ecológi­
cos, éticos e outros aspectos da totalidade.
Por mais que desenvolvamos uma determinada ontologia so­
cial, é crucial lembrar a natureza abstrata, efêmera e necessariamente
incompleta de todos os processos de pensamento e sistemas de conhe-
t iinento. Por isso, é preciso dar ouvidos à advertência de Marx sobre
os economistas políticos clássicos:
A ralé [isto é, os economistas clássicos] concluiu, por
conseguinte, que as verdades teóricas são abstrações que
estão em desacordo com a realidade, em lugar de ver que,
ao contrário, é Ricardo que não leva o verdadeiro pensa­
m ento abstrato suficientemente longe e, por isso, é induzi­
do à abstração falsa. (Marx, Teorias da mais-valia, apud
Resnick e Wolff, 1987, p. 58, n. 44)

Aqui, falsidade não equivale somente a aproximar uma abstra­


ção de uma realidade independente, visto que tanto Marx quanto
Ricardo conceituam a relação do pensamento com o “concreto real”
96 ♦ Stephen G ill

de maneiras bem diferentes. O que está em jogo é como, por que e


com que conseqüências os economistas clássicos e os marxistas che­
gam a diferentes “concretos pensados” (Resnick e Wolíf, 1987). Dois
pontos parecem relevantes nessa discussão. Em primeiro lugar, existe
a questão da relatividade na asseveração da verdade. Em segundo, as
condições sociais interagem e, ao fazê-lo, influenciam a sobrevivên­
cia, o status “científico” e as conseqüências de teorias sociais rivais: o
conhecimento também é um processo de luta social, uma vez mais
entre perspectivas e princípios hegemônicos e contra-hegemônicos.
Portanto, desse ponto de vista, as perspectivas hegemônicas no seio da
economia política internacional e nas relações internacionais podem
ser criticadas por não se aprofundarem devidamente no papel com­
plexo das idéias, da consciência e da interação dos sistemas de conhe­
cimento com o resto do processo histórico, exemplo extremo do que
Marx chama de “abstração falsa”, que são as abstrações sem base con­
creta na história. Muitos marxistas também são vítimas desse erro
metodológico.
Por exemplo, Gramsci mostrou como A teoria do materialismo
histórico: um manual popular de sociologia marxista, de Nikolai
Bukharin, eliminou a postura dialética e introduziu um “materialis­
mo metafísico” ou “idealismo às avessas” (Gramsci, 1971, p. 437). A
busca de causas únicas de última instância reduziu “a filosofia da
práxis” a algo parecido com a busca de Deus, e o processo filosófico, à
mecânica social:
A filosofia implícita no M anual popular pode ser consi­
derada um aristotelismo positivista, um a adaptação da ló­
gica formal aos métodos das ciências físicas e naturais. A
dialética histórica é substituída pela lei da causalidade e pe­
la busca de regularidade, norm alidade e uniform idade [...].
Em term os mecânicos, o efeito nunca pode transcender a
causa ou o sistema de causas e, por conseguinte, não pode
haver o u tro desenvolvim ento além do desenvolvim ento
vulgar raso do econom icism o. (Ibid.)

Críticas semelhantes podem ser feitas às abordagens racionais


neo-realistas predominantes no estudo da economia política inter­
nacional como, por exemplo, sua natureza a-histórica; sua falta de
E pistemologia, ontologia e a “ escola italiana” ♦ 97

qualidade dinâmica e dialética; a estreiteza e a incompletude de suas


abstrações, confinadas, quase tautologicamente, às relações entre abs-
trações teóricas (isto é, os atores racionais unitários chamados Esta­
dos); a tendência à parcimônia extrema na explicação relativa à com­
plexidade infinita de seu objeto de análise, ou seja, o sistema interna­
cional.3
Dados os argumentos e comentários feitos acima, a persistên­
cia das abordagens predominantes entre os norte-americanos parece­
ría estranha se vivéssemos num mundo científico e racional onde, de
acordo com as injunções de Karl Popper, aquelas teorias internamen-
le inconsistentes e/ou refutadas pela evidência fossem descartadas co­
mo sucata intelectual. Enfatizo essa questão somente porque Popper
exerceu muita influência na formulação de programas de pesquisa
das ciências sociais norte-americanas, e não porque aceito ou defen­
do suas posições. Como, então, explicar a perspectiva neo-realista
entre os estudiosos da economia política internacional nos Estados
Unidos? A meu ver, ela pode ser explicada de duas maneiras. Apesar
de suas limitações, tem um grau de eficiência prática que decorre, em
parte, de sua parcimônia e plausibilidade superficial: oferece um
quadro de referências para uma ciência social instrumentalista de­
senvolver diretrizes políticas. E, de certo modo, seu uso correspondeu
à ascensão do globalismo norte-americano decorrente do tremendo
dinamismo do desenvolvimento capitalista nos Estados Unidos. Isso
não significa sugerir que os legisladores norte-americanos aceitem
acriticamente quer seus quadros de referências quer suas recomenda­
ções políticas. Figuras de proa do establishment político norte-ameri­
cano costumam ser mais sutis e pragmáticas. Talvez o mais importan-
le seja o fato de que determinadas políticas e iniciativas podem ser
articuladas e justificadas por meio do uso dessas idéias, na medida em
que correspondem ao “senso comum” e são reforçadas por um apelo
à “autoridade” (no sentido do aprendizado, da sabedoria) e à “tradi-

Para maiores detalhes sobre essas questões, ver C. M urphy e R. Tooze,


“Introduction” e “Getting Beyond the ‘Common Sensc’ of the IPE Ortho-
doxy” (Murphy e Tooze, 1991, p. 1-32).
98 ♦ Stephen G ill

ção” ou à defesa de um determinado “modo de vida”. Existem ao


menos dois elementos que ajudam a explicar essa eficiência prática.
Em primeiro lugar, a plausibilidade das abordagens neo-rea­
listas de escolha racional corresponde à predominância de tradições
positivistas e behavioristas na academia anglo-saxônica. Essas tradi­
ções serviram para constituir o grosso das ciências sociais norte-ame­
ricanas e têm raízes profundas. Remontam aos primórdios da breve
história dos Estados Unidos. A ressonância dessa perspectiva é am­
pliada pelo alcance e peso substanciais da maior e mais bem financia­
da comunidade acadêmica do mundo. É claro que muitos acadêmi­
cos de outros países fazem cursos de graduação nos Estados Unidos,
onde estão muitas das principais universidades e think tanks do m un­
do. O efeito desse tipo de desenvolvimento acadêmico é tanto proteger
a perspectiva de ataques fundamentais, principalmente dentro dos
próprios Estados Unidos, quanto difundir sua influência em escala
global. Esse argumento pode ser vinculado à base social e ao financia­
mento da pesquisa nos Estados Unidos, onde a privatização das inicia­
tivas e dos programas de pesquisa é muito difundida. A pesquisa e as
publicações instruídas pelas abordagens neo-realistas de escolha ra­
cional infiltram-se nos debates públicos e na formulação de políti­
cas. Mas isso não significa que exista uma programação linear de po­
líticas na forma de entrada/saída. O sistema político norte-americano
é um dos mais complexos do mundo.
Em segundo lugar, e num nível social mais amplo, como Enri­
co Augelli e Craig Murphy (1988) mostram com muita perspicácia, a
aplicação abstrata desse discurso, com sua substantiva tendência
capitalista liberal e imperialista ganha força e se harmoniza muito
bem com elementos profundamente arraigados na cultura política
maniqueísta dos Estados Unidos (ver também Gill, 1986b). Dois as­
pectos parecem importantes aqui: o antiintelectualismo e pragmatis­
mo dos norte-americanos (o que inclui uma atração por teorias sim­
ples e parcimoniosas e por um trabalho empírico detalhado) e a meta­
física onipresente da religião denominacional, talvez tão fundamen­
tal quanto aquele primeiro aspecto, com suas idéias relativas ao Des­
tino Manifesto, evangelização e cruzadismo que evocam uma im­
pressão dupla de missão e responsabilidade de salvar o resto do mun-
E pistemologia, ontologia e a “ escola italiana” ♦ 99

do dele mesmo. Além disso, eu acrescentaria a tradição isolacionista,


.r.sim como seu congênere esquizofrênico, o imperialismo messiâni-
(o (ambos com premissas na oposição entre “nós e eles”), semelhan­
tes na separação radical entre sujeito e objeto que ocorre no pensa­
mento positivista.
Esses são, portanto, aspectos tanto da eficiência prática quanto
do mito social do liberalismo norte-americano análogos à pseudo-
i eligião do marxismo soviético, pois em ambos existe uma tendência
de proteger a teorização padronizada num processo que ajuda a
i onstituir os limites do possível em termos de inovação acadêmica.
Na indústria acadêmica dos Estados Unidos, pelo menos nos campos
das relações internacionais e da economia política internacional,
i entenas de teses de doutorado e, por conseguinte, muitas carreiras,
lotam construídas em torno das teorias do regime e da estabilidade
hegemônica. Esse é apenas um exemplo da maneira pela qual o para­
digma positivista norte-americano se consolidou. Um processo de
encerramento social e intelectual assegura que os partidários e suas
teorizações fiquem protegidos do diálogo crítico com aqueles que
defendem perspectivas ou paradigmas diferentes. Para seus defen­
sores, o paradigma dominante assume o manto, por assim dizer, de
uma verdade absoluta, ou quase.
GRAMSCI, HEGEMONIA E RELAÇÕES INTERNACIONAIS:
UM ENSAIO SOBRE O MÉTODO
R obert W. Cox

Há algum tempo, comecei a ler os Cadernos do cárcere, de


( iramsci. Nesses fragmentos, escritos numa prisão fascista entre 1929
e 1935, o ex-líder do Partido Comunista Italiano estava preocupado
com o problema de entender as sociedades capitalistas das décadas de
!920 e 1930, e, principalmente, com o significado do fascismo e as
possibilidades de construir uma forma alternativa de Estado e socie­
dade baseada na classe operária. O que ele tinha a dizer girava em
lorno do Estado, da relação da sociedade civil com o Estado e da rela­
ção da política, da ética e da ideologia com a produção. Não é de sur­
preender que Gramsci não tenha diretamente muito a dizer sobre
relações internacionais. Apesar disso, achei que seu pensamento aju­
dava a compreender o significado da organização internacional com
a qual eu estava ocupado naquela época. Particularmente valioso foi
seu conceito de hegemonia, mas também foram valiosos vários con­
ceitos correlatos que ele elaborou para si mesmo ou desenvolveu para
outros. Este ensaio mostra minha forma de entender o que Gramsci
queria dizer com hegemonia e esses conceitos afins, e sugere como
penso que eles podem ser adaptados, preservando seu significado
essencial, para compreender os problemas da ordem mundial. Ele
não pretende ser um estudo crítico da teoria política de Gramsci, e
sim apenas uma derivação de algumas idéias dessa teoria política para
uma revisão da teoria corrente das relações internacionais.1

Este ensaio foi originalmente publicado em Millenium, v. 12, n. 2, p. 162-175,


1983.
102 ♦ R obert W. C ox

Gramsci e hegemonia

Os conceitos de Gramsci foram todos derivados da história -


tanto de suas reflexões sobre os períodos da história que ele achava
que ajudavam a lançar uma luz explicativa sobre o presente quanto
de sua própria experiência pessoal de luta política e social. Entre elas
há reflexões sobre o movimento dos conselhos operários do início da
década de 1920, sua participação na Terceira Internacional e sua opo­
sição ao fascismo. As idéias de Gramsci sempre estiveram relaciona­
das ao seu próprio contexto histórico. Mais ainda; ele estava sempre
ajustando seus conceitos a circunstâncias históricas específicas. Não
é possível usar os conceitos de maneira frutífera se eles forem abstraí­
dos de suas aplicações, pois ao serem assim abstraídos, suas diversas
utilizações parecem conter contradições ou ambigüidades.2 No pen­
samento de Gramsci, um conceito é vago e flexível, e só adquire preci­
são quando posto em contato com determinada situação que ele aju­
da a explicar - contato que também desenvolve o significado do con­
ceito. Nisso reside a força do historicismo de Gramsci, assim como
sua capacidade explicativa. Mas o termo “historicismo” costuma ser
mal-entendido e criticado por aqueles que procuram uma forma de
conhecimento mais abstrata, sistemática, universal e a-histórica.3
Gramsci atrelou coerentemente seu pensamento ao objetivo
prático da ação política. Em seus escritos da prisão, sempre se referia
ao marxismo como “a filosofia da práxis”.4Poderiamos supor que, ao
menos em parte, isso se deve ao fato de querer enfatizar o objetivo
revolucionário prático da filosofia. Em parte também pode ter sido
para mostrar sua intenção de contribuir para uma corrente de pensa­
mento vigorosa, em processo de desenvolvimento, a qual recebeu seu
impulso inicial de Marx, mas não está circunscrita para sempre à

2 Esse parece ser o problem a de Anderson ( 1976-J 977), que afirma ter
encontrado incoerências nos conceitos de Gramsci.
3 Sobre essa questão, ver Thom pson (1978), que contrasta uma posição
historicista análoga à dc Gramsci com o estruturalismo filosófico e abstrato
de Althusser. Ver “Marxism is not Historicism”, em Althusser e Balibar
(1979).
4 Afirma-se que, com isso, Gramsci quis evitar o confisco de suas notas pelo
censor da prisão, quem, se isso é verdade, devia ser particularmente obtuso.
G ramsci, hegemonia e relações internacionais ♦ 103

obra deste. Nada podería estar mais longe de suas intenções do que
um marxismo que represente uma exegese dos textos sagrados, cujo
objetivo seria refmar um conjunto atemporal de categorias e con-
i ei tos.

Origens do conceito de hegemonia

Existem duas correntes principais que levam à idéia gramscia-


na de hegemonia. A primeira nasceu dos debates da Terceira Inter­
nacional sobre a estratégia da Revolução Bolchevique e da criação de
um Estado socialista soviético; a segunda, dos textos de Maquiavel.
Ao seguir a primeira corrente, alguns comentaristas procuraram
contrastar o pensamento de Gramsci com o de Lenin, associando
( iramsci à idéia de uma hegemonia do proletariado, e Lenin, à dita­
dura do proletariado. Outros comentaristas sublinharam sua concor­
dância básica.5 O importante é que Lenin se referia ao proletariado
russo tanto como uma classe dominante quanto dirigente; o domínio
implicando ditadura, e a direção implicando liderança com o con­
sentimento das classes aliadas (principalmente o campesinato). Na
verdade, Gramsci apropriou-se de uma idéia corrente nos círculos da
Terceira Internacional: os operários exerceríam hegemonia sobre as
classes aliadas, e ditadura sobre as classes inimigas. Mas essa idéia foi
aplicada pela Terceira Internacional somente no que diz respeito à
classe operária e expressava o papel da classe operária na liderança de
uma aliança de operários, camponeses e, talvez, alguns outros grupos
potencialmente simpatizantes da transformação revolucionária.6

5 Buci-Glucksmann (1975) coloca Gramsci inequivocamente na tradição


leninista. Tanto Porteili (1972) quanto Macciocchi (1974) contrastam
Gramsci e Lenin. A meu ver, a obra dc Buci-Glucksmann é muito mais bem
articulada. Ver também Mouffe, 1979; Sassoon, 1982.
ft Essa noção se harmoniza bem com a avaliação que Gramsci fez da situação
da Itália no início da década de 1920: a classe operária sozinha era frágil
demais para assumir toda a carga da revolução e só poderia fundar um novo
Estado por meio de uma aliança com o campesinato e alguns elementos da
pequena burguesia. Na verdade, Gramsci considerava o movimento de
conselhos operários uma escola de liderança desse tipo de coalizão c suas
atividades antes de ser preso eram dirigidas à construção dessa coalizão.
104 ♦ R obert W. Cox

A originalidade de Gramsci consiste no viés que deu à primeira


corrente: começou a aplicá-la à burguesia, ao aparato ou mecanismos
de hegemonia da classe dominante.7 Isso lhe permitiu distinguir os
casos em que a burguesia havia alcançado uma posição hegemônica
de liderança sobre as outras classes daqueles em que não havia alcan­
çado. No Norte da Europa, nos países onde o capitalismo se estabele­
ceu primeiro, a hegemonia burguesa foi a mais completa. Essa hege­
monia envolveu necessariamente concessões para subordinar classes
em troca da aquiescência à liderança burguesa, concessões que pode-
riam levar, em última instância, a formas de democracia social que
preservam o capitalismo ao mesmo tempo em que o tornam mais
aceitável para os trabalhadores e a pequena burguesia. Como sua he­
gemonia estava firmemente entrincheirada na sociedade civil, a bur­
guesia poucas vezes precisou, ela própria, administrar o Estado. Aris­
tocratas proprietários de terras na Inglaterra, os junkers na Prússia ou
um pretendente renegado ao cetro de Napoleão I na França, todos
esses governantes serviam, desde que reconhecessem as estruturas
hegemônicas da sociedade civil como os limites básicos de sua ação
política.
Essa visão da hegemonia levou Gramsci a ampliar sua defini­
ção de Estado. Quando o aparato administrativo, executivo e coerciti­
vo do governo estava de fato sujeito à hegemonia da classe dirigente de
uma formação social inteira, não fazia sentido limitar a definição de
Estado àqueles elementos do governo. Para fazer sentido, a noção de
Estado também teria de incluir as bases da estrutura política da socie­
dade civil. Gramsci pensava nessas bases em termos históricos con­
cretos - a Igreja, o sistema educacional, a imprensa, todas as institui­
ções que ajudavam a criar nas pessoas certos tipos de comportamento
e expectativas coerentes com a ordem social hegemônica. Por
exemplo, Gramsci dizia que as lojas maçônicas da Itália constituíam
um vínculo entre os funcionários do governo que entraram na ma­
quinaria estatal depois da unificação da Itália, e, por isso, deviam ser
consideradas parte do Estado quando o objetivo fosse avaliar sua es-

7 Ver Buci-Glucksmann, 1975, p. 169-190.


G ramsci, hegemonia f. relações internacionais ♦ 105

1111 (ura política mais ampla. Portanto, a hegemonia da classe domi-


n.iiite era uma ponte que unia as categorias convencionais de Estado
■•‘.ociedade civil, categorias que preservavam certa utilidade analítica,
fi ms que, na realidade, haviam deixado de corresponder a entidades
separáveis.
Como dissemos acima, a segunda corrente que levou à idéia
r,i amsciana de hegemonia percorreu um longo caminho desde Ma-
<|i liavel, e ajuda a ampliar ainda mais o alcance potencial da aplicação
do conceito. Gramsci refletiu sobre o que Maquiavel havia escrito,
jM i licularmente em O príncipe, em relação ao problema de fundar
mu novo Estado. No século XV, Maquiavel estava interessado em
encontrar a liderança e a base social de apoio para uma Itália unifi-
<ada. No século XX, Gramsci estava interessado em encontrar a lide-
i.mça e a base de apoio para uma alternativa ao fascismo. Enquanto
Maquiavel considerara o príncipe individual, Gramsci considerava o
príncipe moderno: o partido revolucionário engajado num diálogo
ronstante e produtivo com sua própria base de apoio. Gramsci retirou
de Maquiavel a imagem do poder como um centauro, metade ho­
mem, metade animal, uma combinação necessária de consentimen-
in c coerção.8 Enquanto o aspecto consensual do poder está em pri­
meiro plano, a hegemonia prevalece. A coerção está sempre latente,
mas só é aplicada em casos marginais, anômalos. A hegemonia é sufi­
ciente para garantir o comportamento submisso da maioria das pes­
soas durante a maior parte do tempo. A conexão com Maquiavel li­
bera o conceito de poder (e o de hegemonia como uma forma de po­
der) de um vínculo com determinadas classes sociais históricas e lhe
permite uma esfera maior de aplicação às relações de domínio e su­
bordinação, inclusive, como vamos sugerir abaixo, às relações de or­
dem mundial. Mas isso não separa as relações de poder de sua base
social (isto é, no caso das relações de ordem mundial, transformando-
as em relações entre Estados concebidas de forma estreita), dirigindo
sua atenção, ao contrário, para o aprofundamento da consciência des­
sa base social.*

* Gramsci, 1971, p, 169-190.


106 ♦ R obert W. C ox

Guerra de movimento e guerra de posição

Pensando na primeira influência em seu conceito de hegemo­


nia, Gramsci refletiu sobre a experiência da Revolução Bolchevique e
procurou determinar que lições podiam ser tiradas dela para a tarefa
da revolução na Europa Ocidental.9 Chegou à conclusão de que as
circunstâncias da Europa Ocidental eram muito diferentes daquelas
da Rússia. Para ilustrar as diferenças de circunstâncias e as conse-
qüentes diferenças nas estratégias necessárias, recorreu à analogia
militar de guerras de movimento e guerras de posição. A diferença
básica entre a Rússia e a Europa Ocidental estava nas forças relativas
do Estado e da sociedade civil. Na Rússia, o aparato administrativo e
coercitivo do Estado era formidável, mas vulnerável, enquanto a so­
ciedade civil era subdesenvolvida. Uma classe operária relativamente
pequena, liderada por uma vanguarda disciplinada, conseguiu derru­
bar o Estado numa guerra de movimento e não encontrou nenhuma
resistência efetiva do restante da sociedade civil. O partido de van­
guarda podia se dedicar à fundação de um novo Estado, combinando
a aplicação da coerção sobre os elementos recalcitrantes com a cons­
trução do consentimento entre os outros. (Essa análise dizia respeito,
em parte, ao período da Nova Política Econômica, antes da coerção
começar a ser aplicada em escala maior contra a população rural.)
Por outro lado, a sociedade civil da Europa Ocidental, sob a
hegemonia burguesa, estava muito mais plenamente desenvolvida e
assumiu múltiplas formas. Uma guerra de movimento poderia muito
bem, em condições de revolta excepcional, permitir que uma van­
guarda revolucionária tomasse o controle do aparato de Estado; mas,
devido à capacidade de recuperação da sociedade civil, uma façanha
desse tipo estaria, a longo prazo, fadada ao fracasso. Gramsci descre­
veu o Estado na Europa Ocidental (nessa descrição, devemos enten­
der o Estado em seu sentido limitado de aparato administrativo, go­
vernamental e coercitivo, e não pelo conceito ampliado de Estado
mencionado acima) como “uma trincheira avançada por trás da qual
há um poderoso sistema de fortalezas e casamatas”.

9 O termo “Europa Ocidental” refere-se, aqui, à Inglaterra, França, Alemanha


e ^tália das décadas de 1920 e 1930.
G ramsci, hegemonia e relações internacionais ♦ 107

N a Rússia, o Estado era tudo, a sociedade civil era p ri­


mitiva e gelatinosa; no Ocidente, havia um a relação apro­
priada entre Estado e sociedade civil e, quando o Estado va­
cilava, a estrutura firme da sociedade civil revelava-se im e­
diatam ente. (Gramsci, 1971, p. 238)

Por isso é que Gramsci dizia que a guerra de movimento não


poderia ser efetiva contra os Estados-sociedades hegemônicos da Eu­
ropa Ocidental. A estratégia alternativa é a guerra de posição, que len-
la mente constrói os fundamentos dos alicerces sociais de um novo
listado. Na Europa Ocidental, a luta tinha de ser vencida no seio da so­
ciedade civil, antes que um assalto ao Estado pudesse ter êxito. Um
ataque prematuro ao Estado, por meio de uma guerra de movimento,
só revelaria a fraqueza da oposição e levaria à reimposição do domínio
burguês, à medida que as instituições da sociedade civil reafirmassem
seu controle.
As implicações estratégicas desta análise são claras, mas cheias
de dificuldades.) Construir as bases de um Estado e de uma sociedade
civil alternativos sob a liderança da classe operária significa criar ins-
Iituições e recursos intelectuais alternativos dentro da sociedade exis-
lente e construir pontes entre os operários e as outras classes subordi­
nadas. Significa construir ativamente uma contra-hegemonia no in-
lerior de uma hegemonia estabelecida, e, ao mesmo tempo, aumentar
,i resistência contra as pressões e as tentações de recair na busca de
ganhos incrementais para grupos subalternos no seio das estruturas
da hegemonia burguesa; Essa é a linha que separa a guerra de posição,
como estratégia revolucionária de longo prazo, e a democracia social,
como política para obter ganhos dentro da ordem estabelecida.

Revolução passiva

Contudo, nem todas as sociedades da Europa Ocidental eram


hegemonias burguesas. Gramsci distinguia dois tipos de sociedade.
Um tipo havia passado por uma revolução social completa e desen­
volveu inteiramente suas conseqüências em novos modos de produ­
ção e relações sociais. Nesse sentido, a Inglaterra e a França foram os
casos que chegaram mais longe do que a maioria dos outros países. O
outro tipo eram as sociedades que, por assim dizer, tinham importa­
108 ♦ R obert W. C ox

do, ou lhes haviam sido impostos, aspectos de uma nova ordem criada
no estrangeiro, sem que a antiga ordem tivesse sido substituída. Esse
segundo tipo entrou numa dialética de revolução-restauração que
tendeu a ser bloqueada, pois nem as novas forças nem as antigas po­
deríam triunfar. Nessas sociedades, a nova burguesia industrial não
chegou à hegemonia. O impasse resultante com as classes sociais tra­
dicionalmente dominantes criou as condições do que Gramsci cha­
mou de “revolução passiva”: a introdução de mudanças que não en­
volveram nenhuma sublevação de forças populares.'0
De acordo com a análise gramsciana, um exemplo típico de
revolução passiva é o cesarismo: um homem forte intervém para re­
solver o impasse entre forças sociais equivalentes e opostas. Gramsci
admitia a existência tanto de formas progressistas quanto reacionárias
de cesarismo: progressistas, quando o governo forte preside um pro­
cesso mais ordenado de criação de um novo Estado; reacionárias,
quando estabiliza o poder existente. Napoleão I foi um caso de cesa­
rismo progressista, mas Napoleão III - o exemplo clássico de cesaris­
mo reacionário - era mais representativo do tipo com maior probabi­
lidade de surgir no decorrer de uma revolução passiva. Aqui a análise
de Gramsci é praticamente idêntica à de Marx em O dezoito brumário
de Luís Bonaparte: a burguesia francesa, incapaz de governar direta­
mente com seus próprios partidos políticos, contentou-se em desen­
volver o capitalismo sob um regime político que tinha sua base social
no campesinato, classe social desarticulada e desorganizada, cujo re­
presentante virtual Bonaparte podia alegar ser.
Na Itália do final do século XIX, a burguesia industrial do Nor­
te, a classe que mais tinha a ganhar com a unificação do país, não esta­
va em condições de dominar a península. A base para o novo Estado
passou a ser uma aliança entre a burguesia industrial do Norte e os
proprietários de terra do Sul - uma aliança que também oferecia be­
nefícios à pequena burguesia dependente (principalmente do Sul)

'"Gramsci tom ou o termo “revolução passiva” emprestado do historiador


napolitano Vincenzo Cuocco (1770-1823), que esteve em atividade nos
primeiros estágios do Risorgimento. Segundo a interpretação de Cuocco, os
exércitos de Napoleão levaram a revolução passiva para a Itália.
G ramsci, HEGEMONIA E RELAÇÕES INTERNACIONAIS ♦ 109

. Hic constituía os quadros da nova burocracia estatal e dos novos parti­


dos políticos e tornou-se intermediária entre os vários grupos da po­
pulação e o Estado. A falta de qualquer participação popular prolon­
gada e amplamente disseminada no movimento de unificação explica
0 i aráter de “revolução passiva” que teve o seu resultado. Na esteira da
Primeira Guerra Mundial, a ocupação de fábricas e terras por operá-
1ios e camponeses mostrou a existência de uma força suficientemen-
tr considerável para ameaçar o Estado existente, mas não para desalo-
i.i lo. Aconteceu então o que Gramsci chamou de “deslocamento da
luse do Estado”11 rumo à pequena burguesia, a única classe presente
n a todo o país, e que se tornou a âncora do poder fascista. O fascismo
deu continuidade à revolução passiva, defendendo a posição das anti­
gas classes proprietárias, mas não conseguiu o apoio de grupos subal­
ternos como os operários ou os camponeses.
Além do cesarismo, a segunda característica mais importante
da revolução passiva da Itália é o que Gramsci chamou de transformis-
mo, exemplificado na política italiana por Giovanni Giolitti, que
procurou fazer uma coalizão de interesses mais ampla possível e que
dominou a cena política nos anos que precederam o fascismo. Por
exemplo, ele pretendia formar uma frente única entre os operários
<Ias fábricas do Norte e os industriais por meio de uma política prote­
cionista. O transformismo trabalhava para cooptar líderes potenciais
de grupos sociais subalternos. Por extensão, o transformismo pode
servir de estratégia de assimilação e domesticação de idéias potencial­
mente perigosas, ajustando-as às políticas da coalizão dominante e
pode, dessa forma, obstruir a formação de uma oposição organizada,
com base na classe, ao poder social e político estabelecido. O fascismo
deu continuidade ao transformismo. Gramsci interpreta o corporati­
vismo do Estado fascista como uma tentativa malograda de introduzir
algumas das práticas industriais mais avançadas do capitalismo nor-
le-americano sob a égide da antiga administração italiana.
O conceito de revolução passiva é uma contrapartida do con­
ceito de hegemonia por descrever a condição de uma sociedade não-

Buci-Glucksmann, 5975, p. 121.


110 ♦ R obert W. Cox

hegemônica - uma sociedade na qual nenhuma classe dominante


conseguiu estabelecer a hegemonia no sentido gramsciano do termo.
Hoje, essa noção de revolução passiva, combinada a seus componen­
tes - o cesarismo e o transformismo - é particularmente pertinente
aos países do Terceiro Mundo em processo de industrialização.

Bloco histórico

Gramsci atribuía a origem de sua noção de blocco storico a


Georges Sorel, embora Sorel nunca tenha usado o termo, ou qual­
quer outro, exatamente com o sentido que Gramsci lhe atribuiu.12
Mas Sorel de fato interpretou a ação revolucionária em termos de mi­
tos sociais por meio dos quais as pessoas engajadas na ação percebiam
um conflito de totalidades - em que viam uma nova ordem desafian­
do uma ordem estabelecida. No decorrer de um evento catastrófico, a
ordem antiga seria derrubada como um todo, e a nova estaria livre pa­
ra se desenvolver.13Embora Gramsci não compartilhasse o subjetivis-
mo dessa visão, compartilhava a visão de que Estado e sociedade jun­
tos constituíam uma estrutura sólida, e que a revolução implicava o
desenvolvimento, dentro dela, de outra estrutura forte o suficiente
para substituir a primeira. Fazendo eco a Marx, ele achava que isso só
aconteceria quando a primeira tivesse esgotado todo o seu potencial.
Quer dominante, quer emergente, uma estrutura desse tipo é o que
Gramsci chamava de bloco histórico.
Para Sorel, o mito social, uma forma muito potente de subje­
tividade coletiva, obstruiria tendências reformistas e poderia atrair
operários, afastando-os do sindicalismo revolucionário e levando-os
ao sindicalismo <cde resultados” ou a partidos políticos reformistas. O
mito era uma arma na luta, bem como um instrumento de análise.
Para Gramsci, o bloco histórico também tinha uma orientação revo­
lucionária por sua pressão sobre a unidade e a coerência de ordens

12Gramsci, Quaderni, 1975, p. 2 e 632.


BVer a discussão de Sorel sobre mito e a “batalha napoleônica” na carta a
Daniel Halévy (Sorel, 1961).
G ramsci, hegemonia e relações internacionais ♦ 111

■-ndopolíticas. Era uma defesa intelectual contra a cooptação pelo


iransformismo.
O bloco histórico é um conceito dialético no sentido de que
mtis elementos - que interagem entre si - criam uma unidade maior.
As vezes, Gramsci falava desses elementos que interagem entre si co­
mo o subjetivo e o objetivo e, outras vezes, como superestrutura e in-
Ira-estrutura.
Estruturas e superestruturas de um “bloco histórico”.
Isso .significa que o conjunto com plexo, co ntraditório e
discordante das superestruturas é o reflexo do conjunto
das relações sociais de produção. (Gramsci, 1971, p. 366)

A justaposição e as relações recíprocas das esferas política, éti­


ca c ideológica de atividade com a esfera econômica evitam o reducio-
uismo. Isso impede que tudo seja reduzido tanto à economia (econo-
micismo) quanto às idéias (idealismo). No materialismo histórico de
( iramsci (que ele tinha o cuidado de distinguir do que chamava de
“cconomicismo histórico”, ou uma interpretação estreitamente eco­
nômica da história), as idéias e as condições materiais andam sempre
de mãos dadas, influenciando-se mutuamente, e não podem ser re­
duzidas umas às outras.. As idéias têm de ser compreendidas em rela­
ção às circunstâncias materiais^, as quais incluem tanto as relações so­
ciais quanto os meios físicos de produção. Superestruturas de ideolo­
gia e de organização política moldam o desenvolvimento de ambos os
aspectos da produção e são por eles moldadas.
Um bloco histórico não pode existir sem uma classe social he­
gemônica. Em um país ou em uma formação social em que a classe
hegemônica é a classe dominante, o Estado (no conceito ampliado de
( iramsci) mantém a coesão e a identidade no interior do bloco por
meio da propagação de uma cultura comum. Um novo bloco é for­
mado quando uma classe subordinada (como os operários, por exem­
plo) estabelece sua hegemonia sobre outros grupos subordinados
(por exemplo, pequenos proprietários de terras, marginais). Esse pro­
cesso requer um diálogo intensivo entre líderes e seguidores dentro
da futura classe hegemônica. Gramsci pode ter contribuído para a
idcia leninista de um partido de vanguarda que assume a responsabi­
112 ♦ R obert W. C ox

lidade de liderar uma classe operária imatura, mas só como um as­


pecto de uma guerra de movimento. Como, para Gramsci, a estratégia
de uma guerra de posição era necessária nos países ocidentais, o papel
do partido devia ser o de liderar, intensificar e melhorar o diálogo no
seio da classe operária e entre a classe operária e outras classes subor­
dinadas que poderiam chegar a fazer uma aliança com elat Nesse sen­
tido, a “campanha de massa” como técnica de mobilização desenvol­
vida pelo Partido Comunista Chinês é coerente com o pensamento de
Gramsci.
Os intelectuais desempenham papel-chave na construção de
um bloco histórico', Os intelectuais não são um estrato distinto e rela­
tivamente fora das classes sociais. Gramsci os via como organicamen­
te conectados a uma classe social. Realizam a função de criar e susten­
tar as imagens mentais, tecnologias e organizações que mantêm coe­
sos os membros de uma classe e de um bloco histórico ao redor de
uma identidade comum. Os intelectuais burgueses fizeram isso para
a totalidade de uma sociedade em que a burguesia era hegemônica.
Os intelectuais orgânicos da classe operária desempenhariam um
papel semelhante na criação de um novo bloco histórico, sob a hege­
monia da classe operária, dentro dessa sociedade. Para isso, teriam de
desenvolver claramente uma cultura, uma organização e uma tecno­
logia distintas, e fazer isso em interação constante com os membros
do bloco emergente. Para Gramsci, todos têm o seu lado intelectual,
embora só alguns realizem a função social de um intelectual em regi­
me de tempo integral. Nessa tarefa, o partido era, segundo sua concep­
ção, um “intelectual coletivo”.
No movimento rumo à hegemonia e à criação de um bloco
histórico, Gramsci distinguia três níveis de consciência: o econômi­
co-corporativo, no qual determinado grupo tem conhecimento de
seus interesses específicos; a solidariedade ou consciência de classe,
que se estende a toda uma classe social, mas continua num nível pu­
ramente econômico; e o hegemônico, que harmoniza os interesses da
classe dirigente com os das classes subordinadas e incorpora esses
outros interesses numa ideologia expressa em termos universais
(Gramsci, 1971, p. 180-195). O movimento rumo à hegemonia, diz
G ramsci, hegemonia e relações internacionais ♦ 113

Gramsci, é uma “passagem da estrutura para a esfera das superestru-


turas complexas”; com isso ele queria dizer passar dos interesses es­
pecíficos de um grupo ou classe para a construção de instituições e a
elaboração de ideologias. Se essas instituições e ideologias refletem
uma hegemonia, terão uma forma universal, isto é, parecerão ser de
uma determinada classe e darão alguma satisfação aos grupos subor­
dinados, mas sem solapar a liderança ou os interesses vitais da classe
hegemônica.

Hegemonia e relações internacionais

Agora podemos fazer a transição do que Gramsci disse a respei-


lo de hegemonia e conceitos afins para as implicações desses concei­
tos nas relações internacionais. Mas, antes, seria bom vermos quão
pouco o próprio Gramsci falou a respeito de relações internacionais.
Vamos começar com o seguinte trecho:
As relações internacionais precedem ou derivam (logi­
camente) de relações sociais fundamentais? Não há dúvida
de que derivam. Q ualquer inovação orgânica da estrutura
social, por meio de suas expressões técnico-miíitares, tam ­
bém modifica organicamente relações absolutas e relativas
no cam po internacional. (Gramsci, 1971, p. 176)

Com “orgânico” Gramsci estava se referindo àquilo que é es-


Ifuturai, de longo prazo ou relativamente permanente, em oposição
ao curto prazo ou “conjuntural”. Estava dizendo que as mudanças
básicas nas relações de poder internacional ou de ordem mundial,
vistas como mudanças no equilíbrio militar-estratégico e geopolítico,
podem remontar a mudanças fundamentais nas relações sociais.
Gramsci não ignorava de forma alguma o Estado, nem dimi­
nuía sua importância. Para ele, o Estado continuava sendo a entidade
básica das relações internacionais e o lugar onde os conflitos sociais
acontecem - portanto, também é o lugar onde as hegemonias das
classes sociais podem ser construídas. Nessas hegemonias das classes
sociais, as características particulares das nações se combinam em
lormas originais. A classe operária, que pode ser considerada interna­
114 ♦ R obert W. C ox

cional num sentido abstrato, nacionaliza-se no processo de construir


sua hegemonia. O surgimento de novos blocos liderados pelos operá­
rios no plano nacional precedería, de acordo com essa linha de racio­
cínio, toda e qualquer reestruturação básica das relações internacio­
nais. Mas o Estado, que continua sendo o foco principal da luta social
e a entidade básica das relações internacionais, é o Estado amplificado
que inclui sua própria base social. Essa visão deixa de lado a concep­
ção estreita ou superficial de Estado que o reduz, por exemplo, à buro­
cracia da política externa ou às suas capacidades militares.
Graças à sua perspectiva italiana, Gramsci tinha uma percep­
ção aguda do que hoje chamaríamos de dependência. Ele sabia que os
acontecimentos ocorridos na Itália haviam sofrido grande influência
de forças externas. No nível exclusivo da política externa, as grandes
potências têm uma liberdade relativa de determinar suas políticas ex­
ternas em resposta a interesses nacionais; as potências menores têm
menos autonomia (Gramsci, 1971, p. 264). A vida econômica das na­
ções subordinadas é invadida pela vida econômica de nações podero­
sas, e a ela se entrelaça, processo que se complica ainda mais pela
existência de regiões estruturalmente diferentes no interior dos paí­
ses, regiões essas que têm tipos distintos de relações com as forças ex­
ternas (ibid., p. 182).
Num nível ainda mais profundo, os Estados que têm poder são
exatamente aqueles que passaram por uma profunda revolução social
e econômica e elaboraram de forma mais plena as conseqüências
dessa revolução na forma do Estado e das relações sociais. A Revolu­
ção Francesa foi o caso sobre o qual Gramsci refletiu, mas podemos
pensar no desenvolvimento do poder nos Estados Unidos e na União
Soviética nos mesmos termos. Todos esses foram desenvolvimentos
com base na nação que transbordaram para além das fronteiras na­
cionais, tornando-se fenômenos de expansão internacional. Outros
países receberam o impacto desses processos de forma mais passiva,
um exemplo do que Gramsci descreveu no plano nacional como re­
volução passiva. Isso acontece quando o ímpeto para mudar não sur­
ge de “um vasto desenvolvimento econômico local [...] sendo, ao con-
G ramsci, hegemonia e relações internacionais ♦ 115

irário, reflexo de processos internacionais que transmitem suas cor-


ientes ideológicas à periferia” (ibid., p. 116).
Nessas circunstâncias, o grupo portador de novas idéias não é
um grupo social autóctone ativamente engajado em construir uma
nova base econômica com uma nova estrutura de relações sociais. É
um estrato intelectual que aproveita idéias originadas de uma revolu­
ção econômica e social ocorrida anteriormente no estrangeiro. Por
isso, o pensamento desse grupo assume uma forma idealista, sem raí­
zes num processo econômico de seu país, e sua concepção do Estado
.issume a forma de “um racional absoluto” (ibid., p. 117). Gramsci
i riticou o pensamento de Benedetto Croce, a figura dominante do es-
hiblishment intelectual italiano de sua época, por apresentar esse tipo
dedistorção.

Hegemonia e ordem mundial

O conceito gramsciano de hegemonia pode ser aplicado ao pla­


no internacional ou mundial? Antes de tentar sugerir como isso po-
deria ser feito, seria bom excluir certos usos do termo, comuns nos
estudos de relações internacionais. “Hegemonia” é freqüentemente
usada para indicar o domínio de um país sobre outros, vinculando
assim o uso a uma relação exclusivamente entre Estados. Às vezes, o
termo hegemonia é empregado como um eufemismo de imperialis­
mo. Quando os líderes políticos chineses acusam a União Soviética
de “hegemonismo”, parecem ter em mente uma combinação qual­
quer desses dois conceitos. Esses significados diferem tanto do senti­
do gramsciano do termo que, neste ensaio, é melhor, por uma questão
de clareza, usar o termo “domínio” em seu lugar.
Ao aplicar o conceito de hegemonia à ordem mundial, é im­
portante determinar quando começa e quando termina um período
de hegemonia. Um período em que uma hegemonia mundial já foi
estabelecida pode ser chamado de hegemônico, e de não-hegemônico,
outro período em que prevaleça um domínio de tipo não-hegemôni­
co. Para exemplificar, vamos considerar os últimos cento e cinqüenta
116 ♦ R obert W. C ox

anos como uma fase que poderia ser dividida em quatro períodos dis­
tintos, aproximadamente, 1845-1875, 1875-1945, 1945-1965 e de 1965
até o presente.14
O primeiro período (1845-1875) foi hegemônico: havia uma
economia mundial com a Inglaterra no centro. Doutrinas econômi­
cas coerentes com a supremacia britânica, mas universais em sua for­
ma - vantagem comparativa, livre-comércio e o padrão-ouro dis­
seminaram-se aos poucos da Grã-Bretanha. O poder de coerção ga­
rantia essa ordem. A Grã-Bretanha determinava o equilíbrio de poder
na Europa, evitando assim qualquer desafio à sua hegemonia por for­
ças baseadas em outro território. A Grã-Bretanha reinava soberana no
mar e tinha capacidade de obrigar os países periféricos a obedecerem
às regras do mercado.

MAs datas são tentativas e teriam de ser refinadas por uma pesquisa sobre as
características estruturais próprias de cada período, bem como sobre os fato­
res destinados a constituir a linha divisória entre um período e outro. Essas
datas são apresentadas aqui como meras anotações para uma revisão dos estu­
dos históricos acadêmicos com a finalidade de levantar algumas questões so­
bre hegemonia e as estruturas e os mecanismos que a acompanham.
O imperialismo, que assumiu formas diferentes nesses períodos, é uma ques­
tão intimamente relacionada. No primeiro, o da pax britannica, embora al­
guns territórios fossem administrados diretamente, o controle das colônias
parece ter sido mais incidental do que necessário à expansão econômica. A
Argentina, país formalmente independente, teve essencialmente a mesma
relação com a economia inglesa que o Canadá, uma ex-colônia. Isso, como
observou George Lichtheim, pode ser chamado de fase do “imperialismo libe­
ral”. No segundo período, o chamado “novo imperialismo” deu mais cnfase
ao controle político direto. Viu também o crescimento das exportações de
capital e do capital financeiro identificadas por Lenin como a própria essên­
cia do imperialismo. No terceiro período, que poderia ser chamado de neoli-
beral ou de imperialismo liberal-monopolista, a internacionalização da pro­
dução surgiu como forma predominante, apoiada também por novas formas
de capital financeiro (bancos e consórcios multinacionais). Parece não fazer
m uito sentido tentar definir uma essência imutável do imperialismo; talvez
seja mais proveitoso descrever características estruturais do imperialismo que
correspondem a ordens mundiais sucessivas, hegemônicas e não-hegemô-
nicas. Para uma discussão mais detalhada dessa questão relacionada à pax bri­
tannica e à pax americana, ver Cox, 1983.
G ràmsci, hegemonia e relações internacionais ♦ 117

No segundo período (1875-1945), todas essas características


Io ram invertidas. Outros países desafiaram a supremacia britânica. O
equilíbrio de poder na Europa desestabilizou-se, levando a duas guer­
ras mundiais. O Iivre-comércio foi suplantado pelo protecionismo, o
padrão-ouro acabou sendo abandonado, e a economia mundial frag­
mentou-se em blocos econômicos. Foi um período não-hegemônico.
No terceiro período, na esteira da Segunda Guerra Mundial
( 1945-1965), os Estados Unidos fundaram uma nova ordem mundial
hegemônica, semelhante, em sua estrutura básica, àquela dominada
pela Grã-Bretanha em meados do século XIX, mas com instituições e
doutrinas ajustadas a uma economia mundial mais complexa e a so­
ciedades nacionais mais sensíveis às repercussões políticas das crises
econômicas.
Em algum momento entre o final da década de 1960 e o início
da década de 1970, tornou-se evidente que essa ordem mundial ba­
seada nos Estados Unidos já não estava mais funcionando bem. Nos
momentos de incerteza que se seguiram, três possibilidades de trans­
formação estrutural da ordem mundial manifestaram-se: a recons­
trução da hegemonia com a ampliação de uma gerência política de
acordo com as linhas propostas pela Comissão Trilateral; o aumento
da fragmentação da economia mundial, que giraria em torno de esfe­
ras econômicas centradas em grandes potências; e a possível afirma­
ção de uma contra-hegemonia baseada no Terceiro Mundo, precedida
pela exigência de uma Nova Ordem Econômica Internacional (Noei).
Com base nessas observações preliminares, parece que, histo­
ricamente, para se tom ar hegemônico, um Estado teria de fundar e
proteger uma ordem mundial que fosse universal em termos de con­
cepção, isto é, uma ordem em que um Estado não explore outros Es­
tados diretamente, mas na qual a maioria desses (ou pelo menos a-
queles ao alcance da hegemonia) possa considerá-la compatível com
seus interesses. Essa ordem dificilmente poderia ser concebida ape­
nas em termos interestados, pois isso provavelmente traria para pri­
meiro plano os interesses opostos dos Estados. O mais provável seria
que enfatizasse as oportunidades para as forças da sociedade civil ope­
rarem em escala mundial (ou na escala da esfera no seio da qual de­
118 ♦ R obert W. C ox

terminada hegemonia prevalece). O conceito hegemônico de ordem


mundial não se baseia apenas na regulação do conflito interestados,
mas também numa sociedade civil concebida globalmente, isto é,
num modo de produção de extensão global que gera vínculos entre as
classes sociais dos países nela incluídos.
Historicamente, hegemonias desse tipo foram fundadas por
Estados poderosos que passaram por uma revolução social e econô­
mica completa. A revolução não só modifica as estruturas econômi­
cas e políticas internas do Estado em questão, como também libera
energias que se expandem além das fronteiras do Estado. Portanto,
uma hegemonia mundial é, em seus primórdios, uma expansão para
o exterior da hegemonia interna (nacional) estabelecida por uma
classe social dominante. As instituições econômicas e sociais, a cul­
tura e a tecnologia associadas a essa hegemonia nacional tornam-se
modelos a serem imitados no exterior. Essa hegemonia expansiva é
imposta aos países mais periféricos como uma revolução passiva. Es­
ses países não passaram pela mesma revolução social completa, nem
têm suas economias desenvolvidas da mesma forma, mas procuram
incorporar elementos do modelo hegemônico sem que as antigas es­
truturas de poder sejam afetadas. Embora os países periféricos possam
adotar alguns aspectos econômicos e culturais do núcleo hegemôni­
co, têm menos condições de adotar seus modelos políticos. Assim co­
mo o fascismo se tornou a forma de revolução passiva na Itália do pe­
ríodo entre guerras, várias formas de regime militar-burocrático
supervisionam revoluções passivas nas periferias atuais. No modelo
hegemônico mundial, a hegemonia é mais intensa e coerente no cen­
tro e tem muito mais contradições na periferia.
Portanto, a hegemonia no plano internacional não é apenas
uma ordem entre Estados. É uma ordem no interior de uma econo­
mia mundial com um modo de produção dominante que penetra
todos os países e se vincula a outros modos de produção subordina­
dos. É também um complexo de relações sociais internacionais que
une as classes sociais de diversos países. A hegemonia mundial pode
ser definida como uma estrutura social, uma estrutura econômica e
uma estrutura política, e não pode ser apenas uma dessas estruturas:
tem de ser todas as três ao mesmo tempo. Além disso, a hegemonia
G ramsci, hegemonia e relações internacionais ♦ 119

mundial se expressa em normas, instituições e mecanismos univer­


sais que estabelecem regras gerais de comportamento para os Estados
v para as forças da sociedade civil que atuam além das fronteiras na­
cionais - regras que apoiam o modo de produção dominante.

Os mecanismos da hegemonia: organizações internacionais

Um dos mecanismos pelos quais as normas universais de uma


hegemonia mundial se expressam são as organizações internacionais.
Na verdade, as organizações internacionais funcionam do mesmo
modo que o processo por meio do qual as instituições da hegemonia
r sua ideologia são desenvolvidas. Entre as características da organiza-
çao internacional que expressam seu papel hegemônico, temos as se­
guintes: 1) corporifica as regras que facilitam a expansão das ordens
mundiais hegemônicas; 2) é, ela própria, produto da ordem mundial
hegemônica; 3) legitima ideologicamente as normas da ordem m un­
dial; 4) coopta as elites dos países periféricos; e 5) absorve idéias con­
da-hegemônicas.
As instituições internacionais corporificam regras que facili-
l.un a expansão das forças econômicas e sociais dominantes, mas per­
mitem simultaneamente aos interesses subordinados fazerem ajus­
tes com um mínimo de desgaste. As regras que controlam o mundo
monetário e as relações comerciais são particularmente importantes,
e basicamente organizadas para promover a expansão econômica. Ao
mesmo tempo, admitem exceções e minimizações para resolver si­
tuações problemáticas, e podem ser revistas caso as circunstâncias se
modifiquem. As instituições de Bretton Woods ofereceram mais sal­
vaguardas aos interesses sociais nacionais, como o do desemprego, do
que o padrão-ouro, com a condição de que as políticas nacionais fos­
sem coerentes com os objetivos de uma economia mundial liberal. O
sistema atual de taxas de câmbio flutuantes também dá espaço para as
.ições nacionais, ao mesmo tempo em que mantém o princípio de
mn compromisso prioritário para harmonizar as políticas nacionais
com os interesses de uma economia mundial liberal.
Em geral, as instituições e regras internacionais se originam
do Estado que estabelece a hegemonia. No mínimo, têm de ter o apoio
120 ♦ R obert W. Cox

desse Estado. O Estado dominante encarrega-se de garantir a aquies­


cência de outros Estados de acordo com uma hierarquia de poderes
no interior da estrutura de hegemonia entre os Estados. Alguns países
de segundo escalão são previamente consultados para que seu apoio
seja assegurado. O consentimento de ao menos alguns dos países
mais periféricos é solicitado. A participação formal pode pesar em fa­
vor das potências dominantes, como no Fundo Monetário Interna­
cional e no Banco Mundial, ou pode basear-se em um voto por Estado,
como na maioria das principais instituições internacionais. Existe
uma estrutura informal de influência que reflete os diferentes níveis
do verdadeiro poder político e econômico por trás dos procedimentos
formais de decisão.
As instituições internacionais também desempenham um pa­
pel ideológico. Elas ajudam a definir diretrizes políticas para os Esta­
dos e a legitimar certas instituições e práticas no plano nacional, refle­
tindo orientações favoráveis às forças sociais e econômicas dominan­
tes. A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico
(OCDE), ao recomendar o monetarismo, endossou um consenso
dominante no pensamento político dos países centrais e fortaleceu
aqueles determinados a combater a inflação dessa maneira, em detri­
mento de outros que estavam mais preocupados com o desemprego.
Ao defender o tripartismo, a Organização Internacional do Trabalho
(OIT) legitima as relações sociais surgidas nos países centrais como
modelo ideal a ser imitado.
O talento da elite dos países periféricos é cooptado para as ins­
tituições internacionais no estilo do transformismo. Indivíduos de
países periféricos, embora entrem em instituições internacionais
com a idéia de trabalhar, de seu interior, para modificar o sistema, são
condenados a trabalhar dentro das estruturas da revolução passiva.
No melhor dos casos, vão ajudar a transferir elementos de “moderni­
zação” para as periferias, mas apenas aqueles coerentes com os in­
teresses dos poderes locais estabelecidos. A hegemonia é como um
travesseiro: absorve os golpes e, mais cedo ou mais tarde, o suposto
assaltante vai achar confortável descansar sobre ele. Só quando a re­
presentação nas instituições internacionais está firmemente enraiza­
da num desafio social e político articulado à hegemonia - de um blo­
G ramsci, hegemonia e rf.i.ações internacionais ♦ 121

co histórico nascente e contra-hegemôníco —, a participação poderá


representar uma ameaça real. A cooptação de figuras de proa das peri­
ferias torna isso menos provável.
O transformismo também absorve idéias potencialmente con-
Ira-hegemônicas e faz elas se tornarem coerentes com a doutrina he­
gemônica. A noção de auto-suficiência, por exemplo, começou como
contestação à economia mundial, defendendo um desenvolvimento
independente endogenamente determinado. O termo agora foi trans­
formado, significando apoio dos órgãos da economia mundial aos
programas previdenciários do tipo faça-você-mesmo dos países peri­
féricos. Esses programas visam capacitar as populações rurais a serem
auto-suficientes, impedir o êxodo rural para as cidades e, desse modo,
obter maior grau de estabilidade social e política entre aquelas popu­
lações que a economia mundial não é capaz de integrar. O significado
transformado de auto-suficiência torna-se complementar e apóia os
objetivos hegemônicos da economia mundial e lhes dá apoio.
Portanto, uma tática para introduzir mudanças na estrutura
da ordem mundial pode ser descartada como total ilusão. Há pouca
probabilidade de uma guerra de movimento no nível internacional,
por meio da qual os radicais se apropriariam do controle da superes-
irutura das instituições internacionais. Apesar de Daniel Patrick
Moynihan, os radicais do Terceiro Mundo não controlam instituições
internacionais. E mesmo que controlassem, não conseguiriam nada
com isso. Essas superestruturas não estão adequadamente vinculadas
a nenhuma base política popular. Estão vinculadas às classes nacio­
nais hegemônicas dos países centrais e, com a intermediação dessas
classes, têm uma base mais ampla nesses países. Nas periferias, estão
associadas apenas à revolução passiva.

As perspectivas da contra-hegemonia

As ordens mundiais - para retomar a afirmação de Gramsci


citada anteriormente neste ensaio - baseiam-se em relações sociais.
Portanto, uma mudança estrutural significativa da ordem mundial
estaria, provavelmente, ligada a uma mudança fundamental nas rela­
ções sociais e nas ordens políticas nacionais que correspondem às es­
122 ♦ R obert W. C ox

truturas nacionais de relações sociais. No pensamento gramsciano,


isso poderia acontecer com o surgimento de um novo bloco histórico.
Precisamos retirar das instituições internacionais o problema
da transformação da ordem mundial, colocando-o nas sociedades na­
cionais. A análise que Gramsci fez da Itália é mais válida ainda quan­
do aplicada à ordem mundial: só uma guerra de posição tem condi­
ções, a longo prazo, de realizar mudanças estruturais, e uma guerra
de posição implica a construção de uma base sociopolítica para a m u­
dança, com a criação de novos blocos históricos. O contexto nacional
continua sendo o único lugar no qual um bloco histórico pode ser
criado, embora a economia mundial e as condições políticas globais
influenciem substancialmente as perspectivas de tal empreitada.
A prolongada crise da economia mundial (cujo início rem on­
ta ao final da década de 1960 e inícios da década de 1970) foi propícia
para alguns processos que poderíam levar a um desafio contra-hege-
mônico. Nos países centrais, as políticas que se traduziram em cortes
na transferência de recursos para grupos sociais que sofrem privações
e que geraram muito desemprego abriram as perspectivas de uma
grande aliança entre os desfavorecidos e contra os setores do capital e
do trabalho que se apoiavam na produção internacional e na ordem
mundial liberal-monopolista. É muito provável que a base política
dessa aliança seja pós-keynesiana e neomercantilista. Nos países pe­
riféricos, alguns Estados são vulneráveis à ação revolucionária, como
sugerem os eventos no Irã e na América Central. No entanto, o prepa­
ro político da população, com a profundidade necessária, pode não
ser suficiente para acompanhar o ritmo da oportunidade revolucioná­
ria, o que diminui a perspectiva de um novo bloco histórico. É necessá­
ria uma organização política eficaz (o príncipe moderno de Gramsci)
para reunir as novas classes operárias criadas pela produção interna­
cional e para construir uma ponte que leve aos camponeses e aos
marginalizados urbanos. Sem isso, só é possível imaginar um proces­
so no qual as elites políticas locais, mesmo algumas que são produto
de sublevações revolucionárias abortadas, protegeriam seu poder
dentro de uma ordem mundial liberal-monopolista. Uma hegemonia
liberal monopolista reconstruída teria muita força para praticar o
transformismo, ajustando-se a diversos tipos de instituições e práticas
Gramsci, HEGEMONIA E RELAÇÕES INTERNACIONAIS ♦ 123

nacionais, entre os quais a nacionalização de indústrias. Na periferia,


a retórica do nacionalismo e do socialismo poderia então ser aliada à
restauração da revolução passiva sob novo disfarce.
Em síntese, a tarefa de mudar a ordem mundial começa com o
longo e trabalhoso esforço de construir novos blocos históricos dentro
tias fronteiras nacionais.
ALIENAÇÃO, C A P IT A L IS M O E O SISTEM A IN T E R E ST A D O S:
RUM O A UMA C R ÍT IC A M A R X IST A /G R A M SC IA N A

M ark R upert

Este capítulo apresenta uma interpretação da ontologia histó-


lica radicalizada característica de Marx e Gramsci, e afirma que é
possível compreender tanto o sistema de Estados soberanos quanto a
economia mundial capitalista de maneiras não reducionistas, se as
leorias sobre relações internacionais e economia política interna-
i ional forem reconstruídas com base numa ontologia social marxista/
gramsciana. Para construir esse alicerce, sugiro uma interpretação
ilas relações políticas que fundamentam a organização capitalista da
produção, bem como o sistema interestados, o que nos permite en-
lender a construção histórica dessas relações sem reduzir a priori
11 ma à outra. Vistas dessa perspectiva, as relações entre Estados sobera­
nos podem ser compreendidas de forma crítica como relações de alie­
nação construídas historicamente entre comunidades políticas (Esta-
dos/sociedades) que são, elas mesmas, construídas sobre a base de re­
lações de alienação (isto é, as correspondentes separações entre o pro­
dutor e os meios de produção, entre as relações políticas e as econô­
micas etc.).
Podc-sc dizer que Marx e Gramsci compartilharam um com­
promisso político comum que permeou suas práticas de investigação
social e que constitui, para mim, seu maior legado. Ambos se engaja­
ram em um exercício da crítica que tinha por objetivo desvelar e tor­
nar explícita uma ontologia social - um processo social de autocria-
çáo - que é subjacente ao modo de produção capitalista e possibilita
sua existência, mas que é sistematicamente distorcida e ocultada pe­
las formas institucionais e práticas sociais características do capitalis­
mo. No processo de construção dessa crítica à realidade social capita­
lista, a própria ontologia é radicalizada; não mais vista como a priori,
isto é, como anterior e constitutiva da realidade que podemos conhe­
cer, passa a ser, em vez disso, um produto social em andamento, histo-
126 ♦ M ark R upert

ricamente concreto e contestável.1Isso difere, portanto, do discurso


neo-realista dominante nos estudos norte-americanos sobre econo­
mia política internacional e relações internacionais.2
Para Marx e Gramsci, a construção de uma ontologia social
era parte integrante do projeto de desvelar e concretizar possibilidades
revolucionárias latentes. A ontologia social de Marx e Gramsci é, por
conseguinte, tanto um projeto político concreto e prático quanto
uma filosofia do ser social. Separar e reificar esses aspectos da vida (is­
to é, política e teoria ou filosofia) e enfatizar a filosofia, ao mesmo
tempo em que se negligencia a política, seria abstrair os escritos teóri-

1 Esse problema ontológico foi muito bem resumido por Alex Wendt (1987)
em termos da relação entre os agentes e as estruturas na teoria das relações
internacionais, e dos pressupostos epistemológicos para uma compreensão
adequada dessas relações. Apesar disso, tenho reservas contra qualquer solução
que se tenha tentado dar ao problema ontológico de agentes e estruturas em
termos de uma epistemologia do realismo científico, ou de uma ontologia
trans-histórica da estruturação. Acho mais satisfatória uma visão de teoria e
prática como aspectos internamente relacionados do processo de autoprodu-
ção social, isto é, uma ontologia social radicalizada da práxis. Essa visão enfa­
tiza a práxis como a base da experiência e do conhecimento, e situa os com ­
promissos epistemológicos num contexto sociopolítico concreto, tal como a
crítica do capital e sua ontologia historicamente específica da alienação. Isso
não precisa ser incoerente com o realismo científico. Para discussões que su­
gerem que uma crítica marxista do capitalismo pode implicar certo tipo de
epistemologia do realismo científico, ver Keat e Urry, 1982, capítulo 5;
Callinicos, 1983, capítulo 5; Sayer, 1983; e Isaak, 1987. No entanto, sugeriría
que a afirmação inversa (a de que o realismo científico implica uma crítica
do capitalismo ou de quaisquer outras relações históricas de desigualdade ou
de dominação) não pode ser deduzida desses argumentos. Para uma análise
que critica a versão da teoria realista/de estruturação de Wendt, mas que não
adota necessariamente uma concepção marxista da práxis, ver Milliken,
1990.
2 Uso “neo-realismo” para designar uma família de argumentos que têm em
comum o compromisso com uma ontologia atomista (individualismo abstra­
to) e com uma epistemologia empirista. Para uma crítica que procura situar
a economia política internacional neo-realista numa tradição de individualis­
mo abstrato que remonta a Hobbes e Smith, ver Inayatullah e Rupert, 1990.
Sobre a ontologia do individualismo abstrato e sua relação com toda a tradi­
ção do liberalismo ocidental, ver Arblaster, 1984, especialmente capítulos 2
a 4.
A lienação, capitalismo e o sistema interestados ♦ 127

. <»s tle Marx e Gramsci de seus contextos históricos e políticos, come-


iciulo uma violência contra a integridade de suas obras e de suas vidas
<■ o que é o mais importante, a meu ver - perdendo os aspectos vitais
■• práticos de seus legados que podem ser mais relevantes para nossas
próprias vidas e para as possibilidades históricas do que julgavamos
.i(ó agora.
Nas duas subseções abaixo, procuro reconstruir as ontologias
•.nciais de Marx e de Gramsci e situá-las em seus contextos sociopolí-
i icos de crítica. O principal, aqui, não é dar conta de todas as miríades
<lc nuanças e contradições da totalidade de suas obras (como faria um
historiador intelectual), ou compreender o sistema original de signi-
Iiçados dentro do qual o autor escreveu seus textos (como faria um
intérprete hermeneuta). A interpretação que se segue representa, isso
•<im, uma apropriação e uma reconstrução dos textos de Marx e
( iram sei motivadas por interesses particulares do presente. Seu obje-
Iivo é oferecer uma base sobre a qual propor a questão central deste
artigo: como uma visão da tradição marxista possibilitaria uma
• otnpreensão crítica das relações internacionais e da economia polí­
tica internacional no final do século XX?3

Marx: natureza, vida social humana e a crítica da alienação

Da perspectiva de uma ontologia marxista radicalizada, a


relação interna,4 desenvolvida historicamente, da sociedade com a

' Não se deve pensar que essa interpretação representa a totalidade da tradição
marxista, e nem mesmo uma espécie de “tendência central” dela. O pen­
samento marxista é tão rico e complexo que desafia um resumo simples ou
uma visão geral esquemática. Apesar disso, existem obras que procuram dar
ao leitor uma idéia dos contornos gerais nesse terreno. O livro de Kolakowski,
Main Currents ofMarxism (1981), é extraordinariamente abrangente. Outras
obras que tratam mais especificamente da tradição multifacetada do marxis­
mo ocidental - dentro do qual Gramsci frequentemente é situado - incluem
Anderson, 1976; Jacoby, 1981; Callinicos, 1983, especialmente capítulo 3;
e Jay, 1984.
' Um conceito de relações internas é fundamental para o método dialético.
Uma relação interna é uma relação na qual as entidades interligadas obtêm
seu significado (ou são constituídas no interior) de sua relação e são inin-
128 ♦ M ark R upert

natureza é o elemento central para uma compreensão crítica da vida


social humana sob o capitalismo e suas possibilidades latentes. Em
vez de conceber a natureza e a sociedade como entidades distintas,
relacionadas uma à outra só externamente, Marx as entendeu como
aspectos de um processo único. Para Marx, natureza e sociedade são
constantemente mediadas pela prática caracteristicamente humana
da objetivação, isto é, a criação consciente de um mundo de objetos
por meio da atividade produtiva organizada socialmente, na qual
seres humanos, suas vidas sociais e seus ambientes naturais transfor­
mam-se juntos. Nesse processo, simultaneamente social e natural, os
seres humanos criam múltiplas necessidades e sensibilidades, bem
como novas capacidades produtivas. Portanto, por meio da atividade
produtiva, os seres humanos se objetivam socialmente a si mesmos e
podem transformar conscientemente sua própria “natureza hum a­
na” junto com suas circunstâncias sociais e naturais (ver, por exem­
plo, Marx e Engels, 1970, p. 48-52, 59-64; Marx, 1975a, p. 322-334,
349-350, 355-358, 389-391; Marx, 1977a, p. 133-134, 173). Enfati­
zando o nexo essencial e a interação constante entre a vida social hu­
mana e um ambiente natural que está aparentemente separado dos
seres humanos e lhes é exterior, Marx, em seus Manuscritos econômicos
efilosóficos, refere-se à natureza como “corpo inorgânico do homem”
(1975a, p. 328). O processo de objetivação e a reconstrução contínua
da relação natureza/sociedade são ontologicamente anteriores e ex­
plicam a natureza dos seres humanos sociais em qualquer época his­
tórica determinada.
No plano mais geral de abstração de nossa própria experiência
histórica, Marx sugeriu que os seres humanos são naturalmente so­
ciais e socialmente naturais, uma vez que a interação social com a

teligíveis (ou inexistentes) fora do contexto dessa relação. Entre os exemplos


clássicos, temos as relações senhor/escravo, pais/filhos e professor/aluno. As
relações internas são contrastadas com as relações externas, “nas quais cada
relatum é considerado uma entidade distinta e auto-suficiente, que existe
à parte da relação e parece ser totalmente independente dela” (Gould, 1978,
p. 38), Sobre isso, ver Ollman, 1976, p. 12-40, 256-276; Ollman, 1990,
p. 36-40; Gould, 1978, p. 37-39, 184, n. 22; Sayer, 1987, p. 18-23.
A lienação, capitalismo e o sistema jnterestados ♦ 129

n.it ureza (isto é, a objetivação, o processo de trabalho) é uma condição


iii ccssária para a reprodução da totalidade da vida humana.
O processo de trabalho [...] é um a atividade deliberada
cujo objetivo é a produção de valores de uso. É um a apro­
priação do que existe na natureza para os propósitos h u ­
manos. É a condição universal da interação metabólica en­
tre hom em e natureza, a condição perm anente im posta
pela natureza para a existência hum ana e, por isso, é inde­
pendente de toda e qualquer form a dessa existência ou,
m elhor dizendo, é com um a todas as formas de sociedade
em que os seres hum anos vivem. (Marx, 1977a, p. 290)

As maneiras pelas quais a atividade produtiva é organizada e


realizada não podem ser determinadas a priori. As condições sociais
da atividade produtiva variam - sendo constantemente reproduzidas
ou transformadas nas práticas produtivas dos seres humanos - e, por
isso, são historicamente específicas, entrelaçadas com formas particu­
lares de vida social e com os tipos de práticas que sustentam.
É com base nisso que Marx critica a representação das relações
sociais específicas do capitalismo como se fossem imediatamente
naturais e universais, em lugar de serem vistas como produto da me­
diação ativa das relações sociais humanas com a natureza por meio da
atividade produtiva, isto é> como socialmente produzidas e historica­
mente mutáveis. Na representação da realidade social (capitalista)
como se ela fosse natural e universal, Marx vê uma forma autolimita-
dora de compreensão humana na qual os objetos - produtos sociais
humanos - são abstraídos do processo de sua criação e, por isso, lhes
são atribuídos uma autonomia e um poder efetivo sobre a vida social
humana que eles não possuem em sua natureza intrínseca. Quando
os seres humanos julgam que seus produtos adquirem vida própria,
renunciam às suas próprias capacidades sociais de objetivação e estão
cada vez mais “sujeitos à violência das coisas” (Marx e Engels, 1970,
p. 84). A vida social humana é governada, então, pelos objetos que
criou, e pelas formas mistificadas por meio das quais compreende
esses objetos. A vida social pode assumir a aparência do objetivo, na
medida em que os seres humanos ficam subordinados aos objetos
130 ♦ M ark R upert

que produziram e, nesse sentido, eles próprios são objetivados.3*5Marx


refere-se a essa relação distorcida e invertida de objetivação em ter­
mos de “alienação” ou “fetichismo”.6
Irredutível a simples erro cognitivo ou percepção enganosa, a
alienação e o fetichismo estão enraizados nas práticas materiais da vi­
da social capitalista. Nas condições históricas específicas do capitalismo,
o processo ontologicamente central de objetivação assume a forma
de alienação. O processo necessário e constante de mediação entre se­
res humanos e natureza é, ele próprio, mediado pela organização so­
cial da produção capitalista. As relações internas entre os seres huma­
nos e as suas circunstâncias naturais e sociais aparecem como rela­
ções externas de oposição: necessidades e capacidades humanas, na­
tureza e sociedade, são praticamente separadas dos produtores hum a­
nos e os enfrentam como forças externas e hostis. É em vista desse
“mediador externo” que o capitalismo se torna o principal objeto da
crítica de Marx.7
Sob o capitalismo, os meios de produção (instrumentos, maté­
rias-primas e outras exigências concretas para a objetivação do traba­
lho) são possuídos privadamente. Separados dos meios de produção
necessários, os operários precisam entrar em contato com alguém
que possua os meios de produção (um capitalista) para produzir algu­
ma coisa. O/a operário/a é obrigado/a a vender sua capacidade de tra-

3 Sob as relações capitalistas de produção. Ou seja, os seres humanos se tornam


objetOvS em relação a seus produtos, que são separados dos produtores, sendo-
lhes atribuídos, com o capital, poderes autônomos e, por isso, pode-se dizer
que atuam efetivamente sobre seus produtores humanos.
6 Sobre “alienação”, ver Marx e Engels, 1970, p. 52-54, 84, 91-93; Marx,
1975a, p. 322-379; 1979b, p. 990, 1.002-1.018, especialmente p. 1.003-1.004,
1.016, 1.054, 1.058. Para discussões sobre a noção de “fetichismo”, ver
Marx, 1977a, capítulo l, especialmente p. 164-165, 167-168, 174-175; ver
também Marx, 1977b, p. 980-990, 998, 1.003, 1.005-1.008, 1.052-1.058.
Para obras secundárias que enfatizam a importância fundamental desses te­
mas em toda a obra de Marx, ver Avineri, 1968; Bernstein, 1971, p. 11-83;
Colletti, 1975; Mészáros, 1975; Sayer, 1987; e Arthur, 1986. Influenciado
por Althusser, Callinicos (1983, capítulo 2) é bem mais ambivalente.
‘ Sobre essa interpretação da alienação como uma “mediação de segunda or­
dem ” dos seres humanos com a natureza, ver especialmentc Mészáros, 1975,
p. 78-84; e Arthur, 1986, p. 5-19.
A lienação, capitalismo e o sistema interestados ♦ 131

l>alho (na linguagem de O capital, “força de trabalho”) a um capitalis-


la, a fim de poder assegurar apenas seus meios de sobrevivência, isto é,
imi salário. Como parte dessa barganha, o produto da força de traba­
lho do operário torna-se propriedade do capitalista. Esse processo de
Irabalho alienado constituiu o ponto de vista central da análise crítica
que Marx fez do capitalismo (Ollman, 1990). Uma relação multiface-
(ada, vários aspectos do trabalho alienado são explicitamente distin-
guidos por Marx (ver particularmente 1975a, p. 324-334; e também
Marx e Engels, 1970, p. 52-54).
Primeiro, como o produto do trabalho alienado não pertence a
seu produtor, mas ao capitalista, e serve apenas para aumentar a massa
de capital que o operário tem de enfrentar no processo de trabalho, “o
objeto que o trabalho produz, seu produto, opõe-se a ele como algo
estranho, como uma força independente do produtor” (Marx, 1975a,
p. 324). Portanto, o processo de trabalho alienado implica a separação
entre produtor/a e produto do mundo de objetos criados pelo traba­
lho e, por isso, do “mundo externo sensorial”, isto é, da própria na-
lureza. Assim como o capitalismo gera uma vasta riqueza nova por
meio do domínio sempre crescente da natureza, os operários são ex­
cluídos do mundo objetivo que seu trabalho criou na medida em que
ele se torna propriedade privada de outro.
Um segundo aspecto do trabalho alienado é a separação entre
o/a operário/a e sua própria atividade vital, o processo de auto-obje-
livação. “Portanto, se o produto do trabalho é alienação, a produção
em si mesma deve ser alienação ativa, a alienação da atividade, a ativi­
dade de alienação” (Marx, 1975a, p. 326). A atividade produtiva que
poderia ser intrinsecamente satisfatória, um processo de autodesen-
voívimento, um fim em si mesma, torna-se pouco mais do que um
meio para o fim mínimo da sobrevivência física. Em vez de ser pina
atividade de auto-afirmação e de auto-realização, o trabalho do çperá-
rio pertence a outro, cujos propósitos são estranhos e antagônicos ao
operário. Assim sendo, para o operário, o trabalho corresponde a uma
perda contínua de si mesmo, a uma auto-separação. No próprio pro­
cesso de desenvolver capacidades sociais de produção sem preceden­
tes, os operários contribuem para a acumulação de capital, repro­
duzem a relação capital/trabalho à qual estão subordinados e, desse
modo, separam-se ativamente de si mesmos.
132 ♦ M ark R upert

Outro aspecto importante do conceito de trabalho alienado de


Marx diz respeito à alienação dos seres humanos uns em relação aos
outros, e do indivíduo em relação à sua espécie. Para o operário, a ati­
vidade produtiva é reduzida a um simples meio de garantir que o ca­
pitalista lhe forneça o necessário para sobreviver. Nessas condições, os
outros seres humanos parecem relacionados externamente ao operá­
rio e à atividade produtiva. À medida que o capitalismo leva cada vez
mais pessoas à divisão simples do trabalho e ao mercado mundial, as
relações humanas que poderíam ser deliberadamente cooperativas e
socialmente criativas tornam-se, ao contrário, individualmente ins­
trumentais e, desse modo, negam a dimensão social da atividade pro­
dutiva e da vida humana. Em vez de promover o livre desenvolvimen­
to das forças sociais de produção e a riqueza de sensibilidades, as ne­
cessidades humanas tornam-se uma vulnerabilidade individual que
pode ser instrumentalmente manipulada por outros.
Essa crítica da alienação não se baseia em princípios morais
abstratos, ou em alguma concepção trans-histórica da natureza hu­
mana essencial violentada pelo capitalismo; a crítica de Marx está vol­
tada, isso sim, para a contradição entre as possibilidades históricas e a
realidade histórica que o capitalismo produziu. É, nesse sentido, uma
crítica imanente da ironia histórica da vida social capitalista, en­
fatizando possibilidades latentes que se nos apresentam de forma dis­
torcida, mistificada e autolimitadora. Portanto, a importância crítica
da teoria de Marx deriva da existência contraditória, no interior da
mesma realidade histórica, da objetivação (a mediação ontologicamen-
te primária e sem limites fixos entre os seres humanos e a natureza) e
da alienação (a mediação de segunda ordem, isto é, a forma autolimi­
tadora da objetivação por meio do capital, o “mediador estranho”).
Isso pressupõe ser possível superar alguns problemas de alienação
transcendendo o capital.
Embora uma defesa completa dessa tese esteja fora do alcance
deste capítulo, apresento aqui três tipos de evidência para sustentar
essa interpretação: 1) a mais significativa de todas é que a totalidade
da crítica de Marx ao capitalismo, dos manuscritos de Paris datados
de 1844 até O capital, foi construída de acordo com a perspectiva do
trabalho alienado, isto é, de acordo com a relação trabalho/capital, e
A lienação, capitalismo e o sistema interestados ♦ 133

não de um ponto de vista externo à realidade histórica do capitalis­


mo; 2) naqueles textos em que os contornos do materialismo históri­
co são esboçados, como A ideologia alemã (Marx e Engels, 1970, es­
pecialmente p. 42-52, 58-59, 60-64) e Teses sobre Feuerbach (Marx,
1975d), Marx faz o possível para deixar claro que a “essência hum a­
na” é produzida pelas relações sociais e, por isso, muda historicamen­
te junto com essas relações. Na medida em que existe uma concepção
de natureza humana em Marx, ela é vista como uma capacidade sem
limites - e, por isso, abstratamente indeterminada - de autoprodução
social por meio da objetivação, e só pode ser mais plenamente especi­
ficada a partir de uma perspectiva histórica particular. Mesmo nos
manuscritos de Paris (1975a, p. 280-400), nos quais a problemática
da alienação de Marx é desenvolvida pela primeira vez e expressa em
linguagem filosófica adaptada de Hegel e Feuerbach, Marx afirma ex­
plicitamente que não existe nenhum ponto de vista trans-histórico
ao qual ele ou nós tenhamos acesso. Como seres historicamente si­
tuados, diz Marx, não temos condições de discutir de forma significa­
tiva nem o começo, nem o fim absoluto do processo histórico de me­
diação entre seres humanos e natureza. “Se você me perguntar sobre
a criação da natureza e sobre a criação do homem, então você está se
abstraindo da natureza e do homem [...]. Sua [nossa] abstração da
existência da natureza e do homem não tem sentido” (1975a, p. 357).
Nós nos conhecemos por meio do processo de objetivação no qual a
vida social humana e a natureza são mediadas e, por isso, não pode­
mos ter qualquer perspectiva fora de nossa própria situação histórica
no interior desse processo. Portanto, a problemática que Marx cons­
trói, inicialmente nos manuscritos de 1844, gira em torno da relação
trabalho/capital e da auto-separação da atividade produtiva humana,
compreendida em sentido estrito, no contexto da economia capitalis­
ta, como “trabalho”.8 /

8 Para outras interpretações a respeito da crítica da alienação de Marx com im­


plicações semelhantes, ver Kolakowski, 1968; Bernstein, 1971, especialmen­
te p. 66-70; Mészáros, 1975, especialmente p. 63-65, 114-119, 162-186;
Ollman, 1976; 1990; Petrovic, 1983; Sayer, 1983; 1987; e Arthur, 1986, es­
pecialmente p. 39-41, 117-121, 145-146.
134 ♦ M ark R upert

Outro ponto de vista do qual Marx viu o capitalismo é o da re­


lação entre Estado e sociedade civil, ou entre política e economia. A
separação entre política e economia desempenha importante papel
no modo de exploração historicamente específico do capitalismo,
pois permite que essa exploração assuma uma aparência indubitavel­
mente “econômica”. No desenvolvimento histórico do capitalismo, a
“subordinação formal do trabalho ao capital” é um ponto de transi­
ção crucial para Marx. O trabalho é simultaneamente “liberado” de
seus sedimentos feudais (relações de servidão e guildas) e separado
dos meios de produção e, por isso, tem de entrar em determinada re­
lação “econômica” com o capital a fim de assegurar os meios de sobre­
vivência física. A partir desse desdobramento, o processo de trabalho
(objetivação) é subordinado à acumulação de capital (o “processo de
valorização”, implicando múltiplas relações de alienação). Agora o
excedente de trabalho é extraído dos produtores por meio da compra
de sua força de trabalho no mercado (e seu uso subseqüente no pro­
cesso de trabalho, controlado e dirigido pela classe capitalista, por
causa de sua propriedade dos meios de produção). Nenhuma coerção
explicitamente política precisa entrar de forma direta na exploração
capitalista do trabalho, pois ela aparece como simples troca de merca­
dorias no mercado: força de trabalho trocada por salário.9“A coerção

9 Segundo a análise de Marx (1977a) sobre o caráter duplo das mercadorias


na sociedade capitalista, “força de trabalho” denota a forma abstrata, mer-
cantilizada de trabalho, isto é, a capacidade de trabalho, vendida por seu “va­
lor de troca”, por salários. Essa forma é rigorosamente distinguida de “traba­
lho”, que denota o trabalho propriamente dito, realizado em troca dos salá­
rios pagos pelo capitalista. Trabalho é, portanto, o “valor de uso” que o capi­
talista pode extrair de sua compra da força de trabalho. Na teoria do valor
de Marx, a força de trabalho hum ano é uma mercadoria única, no sentido
de que o valor das mercadorias geradas pelo trabalho é potencialmente muito
maior do que o valor da força de trabalho em si (isto é, o tempo de trabalho
socialmente necessário para a produção dos meios de subsistência do operário
e para a reprodução da força de trabalho). O valor de uso da força de trabalho
é, portanto, maior (numa magnitude variável) que seu valor de troca. É essa
diferença - a “mais-valia”, produto e, ao mesmo tempo, prc-condição do
processo de alienação do trabalho - que constitui o centro da teoria da
exploração de Marx na sociedade capitalista, e que representa a realidade
cotidiana da luta de classes.
A lienação, CAPITALISMO E O SISTEMA INTERESTADOS ♦ 135

rxira-econômica” como a exercida pelas classes dirigentes feudais é


desnecessária, porque os produtores (operários) já não estão de posse
dos meios de produção. São obrigados a vender sua força de trabalho
para obter acesso a esses meios de produção e para adquirir os meios
de comprar o necessário à vida. O domínio do capital é mediado pelas
"forças impessoais do mercado”, e aparece ao produtor individual co­
mo o funcionamento inelutável de leis econômicas “naturais”.10
Quando o capitalismo é apoiado por um poder coercitivo explícito,
esse poder se situa na suposta esfera comunal ocupada pelo Estado, e
aparece como lei e ordem impostas pelo interesse público.
Isso não quer dizer que o poder estatal ou o poder da classe ca­
pitalista não tenham presença efetiva na economia. Ambos são im­
portantes, mas nenhum dos dois tem uma presença explicitamente
"política” no funcionamento rotineiro da economia capitalista. 1) O
poder da classe capitalista-baseado “economicamente” na capacida­
de de controlar o acesso aos meios de produção necessários que essa
classe possui - desempenha papel direto no processo de trabalho.
Aqui, a quantidade variável de mais-valia está constantemente em
questão, e o grau de controle capitalista sobre o processo de trabalho é
objeto permanente de luta (Marx, 1977a; 1977b). 2) O Estado define
as condições jurídicas da propriedade privada, do contrato e da troca,
inserindo-se assim, implicitamente, na constituição e na reprodução
da esfera econômica, bem como nos poderes de classe que residem
nessa esfera (ver, por exemplo, Marx, 1977a, capítulo 10).

10Os capitalistas também são governados pelo funcionamento de leis econô­


micas aparentemente objetivas e, nesse sentido, pode-se considerar que so­
frem um tipo próprio de alienação (ver, por exemplo, Marx, 1977b, p. 990).
Enfrentam o mercado como indivíduos em competição uns com os outros
e, por isso, são levados a intensificar a extração de mais-valia aumentando
seu controle sobre a organização e a realização do trabalho. Marx se refere
a esse domínio do processo de trabalho como a “submissão real do trabalho”
sob o capital (1977b, p, 1.023-1.02-5-, 1.034-1.038; e também 1977a, parte 4).
É esse domínio que permite a- iheorporação constante de novas tecnologias
e procedimentos ao processo de trabalho, e que está na base do dinamismo
econômico singular das formações sociais capitalistas. Sobre as relações so­
ciais como “forças de produção” na teoria marxista, ver Brenner, 1986; Sayer,
1987, capítulo 2.
136 ♦ M ark R upert

Além disso, o próprio Estado pode ser um terreno da luta polí­


tica de classe e pode ser explicitamente reconhecido como tal. Quan­
do as lutas de classe chegam a ser compreendidas em termos políticos
explícitos e abrangem não só o Estado, mas também a economia, elas
questionam a reprodução da dicotomia reificada política/economia,
central para o capitalismo. Nesse sentido, a luta de classe explicita­
mente política tem implicações potencialmente revolucionárias.
A reprodução das relações sociais capitalistas e o processo de
exploração pressupõem, portanto, a separação formal entre política e
economia, de forma tal que as duas esferas parecem estar relacionadas
apenas externamente, e suas relações internas estão submersas e não
podem ser percebidas. Complementar, mas muito menos bem desen­
volvida que a análise da relação trabalho/capital de Marx, é sua crítica
ao Estado “político” moderno, em que ele sugeriu que essa forma de
Estado era baseada na abstração capitalista da política da vida mate­
rial real da comunidade (isto é, objetivação), e no domínio implícito
da política pela classe que controla essa vida material (Marx, 1977a,
p. 874-875; Marx, 1977b, p. 1.027).11
Como sistema centrado na mercantilização e na alienação do
trabalho e, por isso mesmo, na propriedade privada dos meios de pro­
dução e na apropriação de seus produtos, o capitalismo pressupõe a
criação de um espaço social no qual o direito do indivíduo para pos­
suir e para alienar a propriedade possa manifestar-se, um espaço em
que o capital e o trabalho possam se encontrar como compradores e
vendedores de mercadorias. A criação desse tipo de espaço implicou
duplo processo histórico, no qual a fusão - característica do feudalis­
mo - das relações econômicas com as políticas foi desfeita. Por um
lado, o surgimento do capitalismo envolveu a criação histórica de

” Há continuidade no tratam ento crítico que Marx deu ao Estado antes e de­
pois de desenvolver a problemática da separação do trabalho nos manuscritos
de 1844. As primeiras discussões esclarecedoras da relação Estado/sociedade
civil podem ser encontradas em Crítica da filosofia do direito de Hegel (Marx,
1975b, p. 57-198) e A questão judaica (Marx, 1978c, p. 211-241). Entre os
comentários que ajudam a situar essas primeiras obras em termos de sua rela­
ção com a crítica subseqüente de Marx ao capitalismo, temos Avineri, 1968;
McGovern, 1970; Wood, 1981; Jessop, 1982, p. 1-31; e Sayer, 1985.
A lienação, capitalismo e o sistema interestados ♦ 137

uma esfera “privada” na qual os indivíduos podiam ser compreendi­


dos como abstraídos da sociedade na qual estavam inseridos e, desse
modo, como capazes de conceber e perseguir seus interesses econô­
micos egoístas.12 Seguindo Hegel, Marx chama essa esfera de indiví­
duos aparentemente isolados e egoístas de “sociedade civil”. A econo­
mia (em seu sentido moderno) situa-se dentro do reino individualis­
ta da sociedade civil. Correspondente a essa esfera privada há uma es­
fera pública na qual a vida comunal dos indivíduos abstratos do capi­
talismo pode ser expressa (em geral, por meio de procedimentos e sis­
temas formais de ordem jurídica). O mesmo processo de abstração,
que separou o indivíduo e sua propriedade privada da comunidade,
criando, assim, a sociedade civil como espaço social inteligível, tam ­
bém gerou a possibilidade de um espaço comunal distinto da socieda­
de civil. O Estado político moderno, com todos os seus ornamentos
institucionais weberianos, é distinguido exatamente por sua constru­
ção histórica no interior dessa esfera pública.13Assim, como enfatiza
Derek Sayer: “A formação do Estado político e a despolitização da so­
ciedade civil são dois lados da mesma moeda” (1985, p. 233). Nesse
sentido, o Estado está internamente relacionado com a organização
da produção da sociedade civil que tem base na classe: são aspectos
complementares da mesma realidade sócio-histórica.
Essa questão é de im portância capital, pois implica que
o Estado é enfaticamente um a categoria histórica. Em outras
palavras, o conceito não é sinônim o de to d a e qualquer
form a de governo (ou formas pelas quais as classes dom i­
nantes governam), mas descreve um a form a social definida
e historicam ente delimitada, a forma social, especificamente,
do governo da classe burguesa. (Sayer, 1985, p. 231)

12A base histórica do mercado competitivo de Smith e seu indivíduo egoísta


nas relações capitalistas de produção é um tema central nas obras de Brenner
(1977 e 1986).
13Compare, por exemplo, Weber, 1946; Poggi, 1978; Wood, 1981; Sayer, 1985
e 1987, capítulo 4. Cada um deles, de uma perspectiva ligeiramente diferente,
aborda a importância dessas separações (isto é, público/privado, econômico/
político etc.) para o caráter do Estado moderno.
138 ♦ M ark R upert

O Estado político m oderno se desenvolveu dentro de um


sistema político/econômico de domínio de classe e é parte integrante
dele - um complexo Estado/sociedade no qual a propriedade é atri­
buída à esfera privada como direito individual primordial e, por isso,
dispensada do diálogo político permanente na esfera pública. Numa
república burguesa inteiramente desenvolvida, as relações de classe
explícitas são banidas da esfera pública, pois todos os cidadãos são
reconhecidos, para propósitos políticos, como indivíduos formal­
mente iguais. Além disso, na medida em que o Estado moderno pres­
supõe a própria separação entre política e economia, da qual a pro­
priedade burguesa depende, não pode questionar fundamentalmente
essa separação sem solapar os pré-requisitos de sua própria existência.
Assim, isolado de interesses explicitamente comunais e políticos, os
poderes “privados” do capital são escondidos no santuário da socie­
dade civil e, dela, permeiam implicitamente a esfera pública, trans­
formando-a numa forma parcial, distorcida e autolimitadora de co­
munidade, numa “universalidade falsa”. Por conseguinte, de uma
perspectiva marxista, o poder estatal e o poder da classe burguesa são
interdependentes num sentido histórico real.14Marx e Engels sinteti­
zam essa relação nos seguintes termos:
Com a emancipação da propriedade privada em relação
à com unidade, o Estado tornou-se um a entidade separada,
exterior e paralela à sociedade civil; mas não passa de um a
form a de organização que a burguesia adota necessaria­
m ente, tanto com objetivos internos quanto externos, para
a garantia m útua de sua propriedade e interesses. (Marx
e Engels, 1970, p. 80)

Como o Estado político moderno está historicamente embebi­


do nas relações de alienação subjacentes ao capitalismo, e interna­
mente ligado a elas, pode-se dizer que o Estado encarna a alienação,
que é sua forma política específica. Em geral, a alienação capitalista

MA form a dessa interdependência é uma questão que suscitou debates


acalorados entre os teóricos políticos marxistas. As primeiras contribuições
provocadoras foram as de Milibandi (1969) e Poulantzas (1969) e suas dis­
cussões subsequentes nas páginas da New Left Review. Entre as visões gerais
de boa qualidade, temos Laclau, 1975; Jessop, 1982; e Carnoy, 1984.
A lienação, capitalismo e o sistema interestados ♦ 139

implica a criação de novas capacidades sociais, ao mesmo tempo em


que individualiza os seres humanos, separando-os de suas próprias
capacidades e impedindo o controle social deliberado dessas capaci­
dades. Como expressão política dessa separação, o Estado pode incor­
porar preferências e interesses individuais, mas não pode transcendê-
los: torna-se o instrumento de alguns interesses particulares e um
obstáculo externamente imposto a outros. Não pode superar o isola­
mento fundamental dos indivíduos no capitalismo, ou servir de veí­
culo para o controle comunal das novas capacidades sociais de produ­
ção que o capitalismo cria. A própria existência do Estado como enti­
dade política especializada é prova da separação entre comunidade e
capacidades comunitárias da vida cotidiana e as atividades produtivas
das pessoas no seio da realidade social capitalista. A política expressa
pelo Estado moderno é exaurida por sua própria abstração do proces­
so total de reprodução social, inclusive pelos aspectos relativos à eco­
nomia; e é distorcida pelas concentrações de poder “privado” que
existem fora do domínio da “política” tal como ela é compreendida
nas sociedades capitalistas. Nesse sentido, então, o Estado político
moderno pressupõe, é parte integrante e contém em si as relações de
alienação.
Em suma: a ontologia social radical de Marx permite-nos in­
terpretar como exemplos de alienação historicamente específicos não
só a “economia” capitalista, mas todo o complexo de relações sociais
nos quais está imbricada, inclusive as separações formais público/
privado, política/economia, Estado/sociedade. Sua crítica pressupõe
que essas relações alienadas são fundamentalmente contraditórias,
no sentido de que elas fazem surgir as pré-condições de suas próprias
transcendências. Foi exatamente a transcendência teórica e prática
dessas relações históricas de alienação - principalmente as dicoto-
mias Estado e sociedade, classe dominante e grupos subordinados
relacionadas a ela - que chamaram a atenção de Gramsci.

Gramsci: filosofia da práxis, hegemonia e bloco histórico

O marxismo de Gramsci surgiu de sua crítica não só às cor­


rentes idealistas da filosofia italiana, mas também às interpretações
grosseiramente materialistas, positivistas e mecanicamente econo-
140 ♦ M ark R upert

micistas do marxismo, então difundidas no movimento socialista in­


ternacional. Explicitamente preocupado com a unificação entre a teo­
ria e a prática, Gramsci reconstruiu a ontologia social radicalizada de
Marx e desenvolveu, dentro do contexto dessa “filosofia da práxis”
reativada, uma compreensão da ação política revolucionária no capi­
talismo avançado no Ocidente do século XX. Integrava esse projeto
uma “perspectiva dual” da política social que abrangia (como momen­
tos dialéticos internamente relacionados) Estado e sociedade, formas
de poder coercitivas e consensuais, aspectos militares e culturais de
luta. O engajamento na prática política impregna a obra teórica de
Gramsci e se reflete em suas distintas concepções da política e do
Estado no capitalismo avançado (Gramsci, 1971; Forgacs, 1988).15
Em seus Cadernos do cárcere, Gramsci esboça uma ontologia
social radical incrivelmente parecida àquela cm cujos termos procu­
rei interpretar Marx. Como Marx, Gramsci insiste que os seres hu­
manos não devem ser concebidos como mônadas isoladas da socie­
dade e da natureza, nem como tendo qualquer essência fixa ou trans-
histórica. E apresenta argumentos consistentes a favor de uma auto-
compreensão mais autorizada, na qual os seres humanos se autocons-
tituem ativamente no processo de reconstruir conscientemente suas
relações internas com a sociedade e a natureza.
É preciso conceber o hom em como um a série de relações
ativas (um processo) no qual a individualidade, em bora
talvez o elemento mais im portante, não seja, apesar disso,
o único elem ento a ser levado em conta. A hum anidade
que se reflete em cada individualidade com põe-se de vários
elementos: 1) o indivíduo; 2) os outros homens; 3) o m u n ­
do natural. Mas os dois últim os elem entos não são tão
simples quanto podem parecer. O indivíduo não entra em
relação com outros hom ens por justaposição, e sim organi­
camente, isto é, fazendo parte de entidades orgânicas que
vão da mais simples à mais complexa. Portanto, o hom em
não entra em relação com o m undo natural só por fazer

l5Entre os comentários apresentados aqui e que tratam da reconstrução, temos


Texier, 1979; Adamson, 1980; Jessop, 1982, p. 142-152; Buci-Glucksmann,
1982; Sassoon, 1982 e 1987; Cox, 1983; e Jay, 1984, capítulo 4.
A lienação, capitalismo e o sistema interestados ♦ 141

parte, ele mesmo, do m undo natural, mas ativamente, por


meio do trabalho e da técnica. Além disso, essa relação
não é mecânica. É ativa e consciente. Corresponde ao grau
m aior ou m enor de entendim ento que cada hom em tem
dela. Por conseguinte, poderiam os dizer que cada um de
nós m uda a si m esm o, modifica-se, na m edida em que
m uda e modifica as complexas relações das quais é o cen­
tro. (Gramsci, 1971, p. 352)
A descoberta de que as relações entre a ordem social
e a natural são mediadas pelo trabalho - pelas atividades
teórica e prática do hom em - cria os prim eiros elementos
de um a intuição do m undo livre de qualquer magia e su­
perstição. Oferece um a base para o desenvolvimento subse-
qüente de um a concepção histórica e dialética do m undo,
que com preende movim ento e m udança [...] e que concebe
o m undo contem porâneo como um a síntese do passado,
de todas as gerações passadas, que se projeta no futuro.
(Ibid., p. 34-35)

Portanto, de forma muito semelhante ao conceito de objetiva-


ção de Marx, Gramsci afirma que “a realidade é um produto da apli­
cação da vontade humana à sociedade das coisas” (1971, p. 171), e
que esse processo de produzir a realidade implica a transformação
histórica dos seres humanos e de suas vidas sociais, bem como da na­
tureza. Além disso, os seres humanos têm o potencial de dirigir auto-
conscientemente essa atividade e, por conseguinte, de determinar seu
próprio processo de vir a ser (ver Gramsci, 1971, especialmente p. 9,
34-35, 133-134, 323-325, 332-334, 344, 351-357, 360-361, 445-446).
Esse processo, no entanto, não pode ocorrer num vácuo de
abstração, mas somente em circunstâncias históricas específicas.16
Para Gramsci, as lutas historicamente concretas para determinar o
processo social do vir a ser são a essência da política. Como Marx,
Gramsci enfatiza a relação contraditória entre a realidade histórica e

16Gramsci sugere claramente que a filosofia da práxis não tem condições de


considerar qualquer valor como verdade absoluta, trans-histórica, e sim como
específico de uma determinada realidade social e histórica, e será de próprio
transcendido junto com essa realidade (1971, p. 404-407; ver também, sobre
as raízes históricas do conhecimento, p. 364-366 e 446).
142 ♦ M ark R upert

as possibilidades latentes que, juntas, constituem o nexo no qual a


práxis política pode acontecer.
O político ativo é um criador, um iniciador; mas não
cria do nada, nem se move no vácuo confuso de seus dese­
jos e sonhos. Toma com o base a realidade efetiva; mas o
que é realidade efetiva? É algo estático e imóvel, ou um a
relação de forças em movim ento constante e com alterações
de equilíbrio? Q uando um ser hum ano aplica sua vontade
à criação de um novo equilíbrio entre as forças que real­
m ente existem e estão em atividade - tom ando com o base
a força particular que acredita ser progressista e fortalecen­
do-a para ajudá-la a conquistar a vitória - ainda assim se
m ove no terreno da realidade efetiva, mas faz isso para
dom iná-la e transcendê-la (ou contribuir para ela). O que
“deve ser” é, portanto, concreto; na verdade, é a única in ­
terpretação realista e historicista da realidade; só ela é his­
tória em andam ento e filosofia em andam ento, só ela é
política. (Ibid., p. 172)

O conflito de forças históricas, a fluida realidade política pela


qual Gramsci estava particularmente interessado, é a luta política e
ideológica das sociedades capitalistas avançadas do Ocidente - onde a
sociedade civil é extremamente desenvolvida e onde o poder da classe
capitalista permeou e moldou as instituições culturais da sociedade,
da mesma forma em que é inerente, em última instância, ao Estado
político e ao seu aparato coercitivo (ibid., p. 12, 54,235-239,242-243,
244, 258-263).
É importante notar a esta altura que Gramsci usava conceítos-
chave como “ideologia”, “sociedade civil” e “Estado” de forma um
pouco mais genérica do que Marx. Superando as imagens predomi­
nantemente negativas de Marx sobre a ideologia como um conjunto
de formas distorcidas, invertidas e autolimitantes da consciência que
caracteriza as relações sociais capitalistas a visão de Gramsci pres­
supunha aspectos explicitamente positivos e promissores da ideo­
logia como um terreno potencialmente revolucionário de luta (ibid.,
p. 164-165, 326, 328, 375-377). De acordo com essa “perspectiva
dual”, centrada na relação interna de coerção e consenso nas lutas
políticas do capitalismo avançado, Gramsci vê a “sociedade civil”
A lienação, capitalismo e o sistema interf.stados ♦ 143

relacionada internamente à “sociedade política”. Enquanto esta últi­


ma designa o aparato coercitivo do Estado entendido de forma mais
restrita (isto é, a que reconheceriamos como sua forma classicamente
vveberiana), a primeira representa a esfera das instituições e práticas
culturais na qual a hegemonia de uma classe pode ser construída ou
desafiada. Gramsci usa a expressão sociedade civil para designar a
;írca de entrelaçamento cultural e ideológico entre as relações de clas­
se na economia e o aspecto explicitamente político do Estado. Por-
lanto, a sociedade civil incluiría partidos, sindicatos, igrejas, educa­
ção, jornalismo, arte e literatura etc. Juntas, a sociedade política e a
sociedade civil constituem o Estado ampliado ou integral de Gramsci,
o terreno unificado no qual as classes burguesas do Ocidente estabe­
leceram seu poder social como “hegemonia revestida de coerção”
(ibid., p. 263). Portanto, nesse sentido mais amplo (integral), “o Es-
lado é todo o complexo de atividades práticas e teóricas com as quais
.1 classe dirigente justifica e mantém não só o seu domínio, mas con­
segue obter o consentimento ativo dos governados” (ibid., p. 244; ver
lambém p. 12-13, 239, 257-263, 268). O uso aparentemente pecu­
liar que Gramsci faz de conceitos como esses deve ser entendido no
contexto de sua visão abrangente da política social nas sociedades ca­
pitalistas do século XX e de sua estratégia para a transformação revo­
lucionária dessas sociedades por meio da “guerra de posição” e da
construção de uma contra-hegemonia proletária (ibid., p. 229-239,
242-243).17
Seu principal objetivo político é desencadear um processo de trans-
formação, uma unificação de teoria e prática que transcenderá a divi­
são da sociedade capitalista em governantes e governados, classes do­
minantes e grupos subalternos, Estado e sociedade (ibid., p. 139-140,
144-157, 253, 258-260, 263, 267, 332-335, 350-351, 382, 418). Em­
bora essa luta - resultando numa “sociedade regulada”, isto é, no so­
cialismo - implique necessariamente a transformação da economia
capitalista, ela não é determinada por “causas” originadas nessa eco-

- Particularmente valiosos para compreender esses aspectos de Gramsci são


Texier, 1979; Adamson, 1980, p. 215-228; Sassoon, 1982 e 1987, p. 109-114;
Larrain, 1983, capítulos 1 e 2.
144 ♦ M ark R upert

nomia, nem suas implicações se limitam às mudanças econômi­


cas (ibid., p. 158-168, 175-185, 229-239, 257-260, 381-382, 407-409).
A política radical de Gramsci prefigura a ampla transformação da
realidade social por meio da criação de uma contracultura efetiva, de
uma visão de mundo alternativa e de uma nova forma de organiza­
ção política em cujas práticas participativas e consensuais essa visão
de mundo assume forma concreta. Em última instância, a política
gramsciana tem por objetivo produzir uma forma qualitativamente
nova de “Estado”, uma comunidade genuinamente auto determinante
pouco semelhante à forma “política” autolimitante de Estado que é
parte integrante da realidade social capitalista. Assim, nessa visão da
prática política revolucionária, a totalidade da sociedade capitalista
avançada torna-se um terreno de luta no qual os grupos subordinados
podem desafiar a hegemonia burguesa e, desse modo, começar a con­
cretizar possibilidades históricas reais, sistematicamente eclipsadas.
Portanto, a meu ver, Gramsci tem em comum com Marx (in­
clusive o Marx dos primeiros escritos) o foco na contradição entre a
realidade histórica e as possibilidades históricas no interior da realida­
de social capitalista. Nesse sentido, pode-se dizer que Gramsci tam ­
bém se preocupava com a alienação, mesmo que não usasse o termo.18
Interpreto sob essa luz a crítica gramsciana como “economicismo”
dessas formas historicamente autolimitadoras de teoria/prática (ibid.,
p. 158-168; também p. 175-185,229-239,407) e “estadolatria” (ibid.,
p. 268), bem como seus argumentos sobre a realidade da “consciência
contraditória” entre as massas do povo na sociedade capitalista (ibid.,
p. 333) e a possibilidade que elas têm de desenvolver uma autocom-
preensão mais crítica e, desse modo, concretizar suas capacidades co­
mo filósofos práticos, determinando autoconscientemente suas pró-

18Aqui a minha interpretação diverge da de Adamson (1980, especialmente p.


108-109, 130-135), que vê as primeiras obras de Marx como uma encar­
nação da “dialética antropológica” da essência humana e do ser da espécie,
e que afirma que a “dialética pragmatológica” concreta de Gramsci dificil­
mente consegue acomodar noções como a de alienação. Além disso, Adamson
diz que Gramsci “carecia quase inteiramente da problemática da reificação
que Marx desenvolveu como base desses conceitos” (ibid., p. 132).
A lienação, CAPITALISMO E O SISTEMA INTERESTADOS ♦ 145

[irias relações e atividades econômicas/políticas/culturais (ibid., p. 9,


323-325, 332-335,344). É precisamente essa tarefa de educação críti­
ca que distingue o partido revolucionário de Gramsci, e seu projeto
hegemônico, daqueles da burguesia.
Esse projeto político-moral envolve a criação de um novo
"bloco histórico” no qual a liderança proletária das várias classes e
grupos subordinados sob o capitalismo poderia ser organizada e ex­
pressa. A construção de um bloco histórico é uma pré-condição para
o exercício da hegemonia no sentido gramsciano e implica a recons­
trução das relações Estado/sociedade por meio de processos organica­
mente relacionados de mudança política, econômica e cultural. O
conceito gramsciano de bloco histórico resolve a separação estrutural
entre Estado e sociedade nas formações sociais capitalistas, na medida
cm que a liderança ideológica de uma classe ou fração de classe ofere­
ce certa coerência a um leque de práticas sociais (culturais, políticas,
econômicas) aparentemente díspares. Quando uma classe ou fração
de classe consegue articular uma ideologia unificadora que se apre­
senta como universal, capaz de obter o consentimento de grupos su­
bordinados e de estruturar sua participação num grande número de
práticas sociais, ela pode criar a base da liderança hegemônica, tanto
no Estado quanto na sociedade civil - isto é, no Estado ampliado ou
integral de Gramsci (ibid., p. 12, 239, 244, 257-263; ver também o
capítulo 2 deste volume).
Embora enfatize que as mudanças na organização das práticas
produtivas e na dominação de classe para a consolidação de tal bloco
histórico eram orgânicas, Gramsci afirma coerente e rigorosamente
que nem as práticas políticas, nem as práticas culturais são passíveis
de redução a forças ou interesses “econômicos” (ver, por exemplo,
Gramsci, 1971, p. 407). Na verdade, uma condição necessária para
uma classe ou fração de classe chegar à hegemonia é a substituição de
seus interesses econômicos estritos (o que Gramsci chamava de “eco-
nômico-corporativos”) por uma visão social ou uma ideologia mais
universal e concessões concretas aos grupos subordinados para ga­
rantir sua participação na visão social da classe ou da fração de clas­
se dirigente (ibid., p. 12, 136-137, 161, 167-168, 180-183, 365-367,
375-377, 418; Forgacs, 1988, p. 190-200).
146 ♦ M ark R upert

Para Gramsci, um bloco histórico é mais do que uma simples


aliança de classes ou frações de classe. Abrange aspectos políticos,
culturais e econômicos de determinada formação social, unindo-os
de maneiras historicamente específicas para formar um conjunto
complexo, politicamente desafiador e dinâmico de relações sociais.19
Um bloco histórico articula uma visão de mundo fundamentada em
condições sociopolíticas e relações de produção historicamente espe­
cíficas, o que dá consistência e coerência ideológica a seu poder social.
Segue-se daí, por conseguinte, que as hegemonias e os blocos históri­
cos têm qualidades específicas ligadas a determinadas constelações
sociais, a suas forças de classe e às relações de produção subjacentes.
Podem ser conservadores ou revolucionários.
A hegemonia burguesa pressupõe a dicotomia entre líderes e
seguidores, entre a classe dominante e as classes subordinadas, e tenta
reproduzir essa situação na economia, no Estado político e nas insti­
tuições culturais da sociedade civil. A “revolução passiva” - na qual o
grupo dominante toma a iniciativa de fazer concessões limitadas (do
tipo “econômico-corporativo”) às classes subordinadas, impedindo
assim contestações mais abrangentes por parte dessas - pode servir
para impedir a ação social efetiva dos grupos subalternos e, por conse­
guinte, para reproduzir as condições da dominação capitalista.
Por sua vez, a hegemonia da classe operária procura dissolver a
dicotomia entre líderes e seguidores (bem como as separações reifica-
das entre política e economia, Estado e sociedade etc.) por meio da
participação ativa de todos os grupos subordinados no interior de um
movimento revolucionário unificado. Isso significa que a hegemo­
nia da classe operária não pode se basear em concessões econômico-
corporativas graduais a outros grupos subordinados; implica, isso
sim, um processo transformador por meio do qual se permite a esses
vários grupos participar ativa e diretamente da reconstrução do mun-

19Essa questão é enfatizada por Adamson (1980, p. 178) e Sassoon (1987,


p. 121-122). Para discussões mais gerais sobre a interpretação de Gramsci da
relação interna entre política e cultura para a organização da produção
baseada na classe sob o capitalismo, ver Texier, 1979; Buci-Glucksmann,
1982; e Sassoon, 1982.
A lienação, capitalísmo e o sistema interestados ♦ 147

•Io social. O projeto fundamental da classe operária - construir uma


comunidade participativa no qual as forças sociais de autoprodução
sao reguladas em comum e de forma consensual - não pode ser reali­
zado sem elas, pois, se isso acontecer, o processo não passará de uma
reprodução da dicotomia entre líderes e seguidores. Em última ins-
láncia, o partido político da filosofia da práxis será autoliquidado na
medida em que possibilite às massas se tornarem senhoras de seu
próprio destino coletivo e, desse modo, eliminarem a necessidade da
liderança organizada num partido político, ou em um Estado coer­
citivo especializado (ibid., p. 144, 152, 253, 258-260, 263, 267, 332-
835, 382).
Nesse sentido, as forças de classe, a organização política e os
objetivos históricos de um bloco histórico estão todos relacionados
internamente. É essa concepção mais ampla de política social, que
abrange o Estado, a economia e as esferas culturais de uma formação
social, que distingue Gramsci dos teóricos mais positivistas e econo-
micistas do marxismo, e que dirige a investigação para os processos
de luta sociopolítica por meio da qual os blocos históricos e suas he­
gemonias são construídos nos Estados/sociedades.
Concluo este exercício de interpretação sugerindo que tanto
Gramsci quanto Marx compreenderam as separações entre política e
economia e entre Estado e sociedade como historicamente reais, mas
não como parte essencial da existência social humana, isto é, não são
reais em nenhum sentido trans-histórico. Essas oposições eram vistas
como fatores produzidos historicamente - e abertas à transcendência
histórica - por meio de processos sociais de objetivação. Uma parte
integrante dessa transformação social, embora de forma alguma sua
totalidade, envolverá a eliminação da organização capitalista de pro­
dução, internamente relacionada a essas antinomias claramente mo­
dernas.

Práxis, alienação capitalista e a crítica da economia


política internacional e das relações internacionais

A análise marxista esteve tradicionalmente à margem das rela­


ções internacionais e da economia política internacional, e, em geral,
148 ♦ M ark R upert

é considerada incapaz de conceituar adequadamente as realidades de


um sistema de organizações administrativas autônomas, que exer­
cem poder e são fundamentalmente coercitivas, tais como Estados
soberanos (ver Skocpol, 1979, p. 26-31; Giddens, 1985; Linklater,
1986). Nesse sentido, Gilpin (1987, p. 26-33) equipara o marxismo
ao economicismo; e Keohane (1986) sugere que os autores marxistas
recorrem frequentemente ao uso implícito de conceitos “realistas”
na tentativa de analisar o internacional e, desse modo, revelam não só
os defeitos da análise marxista, como também a capacidade analítica
superior e a validade básica do modelo realista de relações internacio­
nais. Nesta seção, espero levantar dúvidas sobre a afirmação de que a
relevância do marxismo para as relações internacionais e a economia
política internacional está verdadeiramente fora de questão.
Eu disse acima que o cerne de uma abordagem marxista dialé­
tica da investigação social é uma ontologia da práxis, uma compreen­
são da realidade social em termos do processo de produção de um
mundo de objetos, relações sociais e identidades por meio de ativida­
des deliberadas de seres humanos sociais. Isso permite que nos veja­
mos, e ao mundo à nossa volta, em relação com nossas atividades pro­
dutivas, com as formas historicamente específicas em que essas ativi­
dades foram organizadas socialmente e com as possibilidades trans­
formadoras implícitas nessa organização.
Nas condições da produção capitalista, os produtores são alie­
nados. Essas relações de alienação são multifacetadas: o trabalho co­
mo mercadoria, o capital, o indivíduo isolado e egoísta da sociedade
civil, a economia, o Estado político moderno, todos são aspectos da
vida social alienada sob o capitalismo. Parecem coisas dadas pela na­
tureza e, como tais, universais e necessárias. Desse modo, as relações
que possibilitam as formas institucionais específicas da sociedade ca­
pitalista são ocultadas, bem como os processos sociais pelos quais es­
sas formas características foram produzidas e reproduzidas, e por
meio dos quais a realidade social histórica pode ser modificada. Lan­
çar luz sobre essas relações e processos - como parte necessária da
transformação da sociedade capitalista alienada - é o objetivo da críti­
ca. O que eu gostaria de dizer agora é que o projeto de crítica e trans­
formação abarca e implica a crítica das relações internacionais e da
A lienação, CAPITALISMO E O SISTEMA INTERESTADOS ♦ 149

<i onomia política internacional. Tanto o sistema de Estados sobera­


nos quanto a divisão global do trabalho - que o neo-realismo e a teo-
it.t do sistema mundial consideram unidades ontologicamente pri­
mitivas-também podem ser compreendidos como aspectos da orga­
nização social historicamente específica da atividade produtiva sob o
i apitalismo, como concretizações das relações de alienação e como
potencialmente passíveis de transcendência.
Para construir uma crítica radical, é necessário antes ampliar
missa concepção de política mundial para acomodar uma noção sig­
nificativa de práxis transformadora. Portanto, vai ser necessário aban­
d o n a r a premissa característica do neo-realismo de que a realidade
fundamental da política mundial - em todo lugar e sempre - é uma
lula de poder entre Estados autônomos num contexto de anarquia.
Aqui, eu não gostaria que pensassem que estou sugerindo que a visão
neo-realista da política mundial está simplesmente errada, que é uma
ilusão da “falsa consciência”. Ao contrário, ela é real e efetivahistori­
camente, mas, apesar disso, é uma forma autolimitante de teoria/prá-
(ica. Como qualquer ideologia, o neo-realismo baseia-se 11 a experiên-
1 ia prática e, por isso, deve ter algum grau do que Derek Sayer chama
de “adequação prática”: “Deve, em outras palavras, permitir que ho­
mens e mulheres realizem e dêem sentido à sua atividade cotidiana”
(! 983, p. 8). Mas a maneira pela qual o neo-realismo permite que as
pessoas confiram sentido ao seu mundo também tem o efeito de mos-
irar como natural e universal um conjunto de relações sociais, histo­
ricamente específicas e socialmente mutáveis. Isso ocorre pela abstra­
ção dessas relações dos processos que as produziram e por meio dos
quais elas podem ser transformadas. Embora seja possível fazer dis­
tinções analíticas entre o “global” e o “nacional”, a reificação que 0
neo-realismo faz desses “níveis de análise” fragmenta o campo da a-
ção política, impossibilitando a crítica e a práxis. Uma alternativa
seria o nacional e o internacional serem concebidos como dois aspec­
tos internamente relacionados da mesma totalidade, totalidade que,
cm certo sentido, é capitalista e alienada. No lugar do “pressuposto de
anarquia” dos neo-realistas (termo cunhado por Hayward Alker),
uma crítica marxista/gramsciana tomaria como ponto de partida a
proposição de que a política internacional, tal como a conhecemos,
150 ♦ Stephen G ill

está historicamente inserida nas relações sociais capitalistas e interna­


mente a elas conectada.
Como as separações formais entre Estado e sociedade, público
e privado, aspectos políticos e econômicos da vida são parte integrante
da realidade histórica do capitalismo, poderiamos dizer que o capita­
lismo, e suas múltiplas relações de alienação, é o contexto necessário
no interior do qual se torna possível a construção histórica de Estados
soberanos - compreendidos em sentido moderno, como organiza­
ções funcionalmente especializadas em administração e coerção, isto
é, como organizações “políticas”. A própria existência do tipo de Esta­
dos descritos pela teoria neo-realista pressupõe relações de alienação
em que a “política” assume uma identidade distinta da “economia”,
e chega à sua própria forma de expressão institucional. A alienação do
indivíduo em relação à comunidade e a abstração da política em rela­
ção à vida produtiva individualizada são condições tanto para a possi­
bilidade de produção capitalista quanto para a existência do Estado
político moderno.
A política internacional pode ser, então, entendida criticamen­
te como uma espécie de alienação de segunda ordem. Isto é, a política
internacional interessa-se pela separação m útua de comunidades po­
líticas, construídas, elas próprias, no interior de relações de aliena­
ção.20A alienação de primeira ordem ocorre quando o Estado político
moderno faz a mediação entre a objetivação capitalista, isto é, a vida
produtiva da comunidade tal como vivida na sociedade civil de indi­
víduos, e a vida explicitamente comunal na esfera pública. O Estado
é situado como um mediador externo entre a sociedade como um
conjunto de indivíduos egoístas e a sociedade como uma comunidade
política potencialmente autodeterminante. Ou seja, o Estado faz a
mediação entre a sociedade capitalista e ele próprio, sua própria vida
política alienada. Mas o Estado político moderno também faz a me­
diação entre essa comunidade alienada e outras comunidades histori­
camente construídas. Nesse sentido - isto é, visto criticamente do in­
terior da realidade social capitalista - o sistema de Estados que surgiu

2üEsse argumento se inspira em Berki (1984) e Der Derian (1987), mas tam ­
bém se afasta deles substancialmentc.
I .iiAM.SC), MATERIALISMO HISTÓRICO E RELAÇÕES INTERNACIONAIS ♦ 151

lir.ioricamente com a produção capitalista representa outra faceta do


■oniplexo de relações sociais que corporificam a alienação e, por isso,
■leve estar incluído em toda e qualquer estratégia política concreta
•1111■lenha por objetivo superar essas relações de alienação. Acredito
que era isso que Gramsci tinha em mente ao escrever que:

[...] de acordo com a filosofia da práxis (tal como se m a­


nifesta politicam ente) [...], a situação internacional deve
ser considerada em seu aspecto nacional. Na verdade, as
relações internas de qualquer nação são o resultado de
um a combinação que é “original” e (de certo m odo) singu­
lar: essas relações devem ser entendidas e concebidas em
sua originalidade e singularidade se quisermos dom iná-las
e dirigi-las. É claro que a linha de desenvolvimento é na
direção do internacionalism o, mas o ponto dc partida é
“nacional” - e é desse ponto de partida que é preciso co­
meçar. No entanto, a perspectiva é internacional e não p o ­
de ser de outra forma. (Gramsci, 1971, p. 240)

Está claro que Gramsci dá prioridade ativa àqueles aspectos da


i cal idade social que são produzidos dentro das fronteiras da comuni­
dade política “nacional”. Mas os seguidores de Gilpin e Waltz não de­
vem se precipitar em suas condenações, pois não se trata de uma cau­
sa 1idade unidirecional, de uma redução economicista grosseira e
a histórica. Gramsci está dizendo, em vez disso, que uma abordagem
baseada na práxis precisa entender a política internacional da pers­
pectiva da produção e reprodução da vida social, e que esse tipo de en-
icndimento prático não pode derivar abstratamente de constelações
específicas de fatores (a interação entre local e global) que moldaram
.1 criação histórica de Estados particulares e a relação entre eles. Para
( iramsci, as relações internacionais não podem ser meramente epife-
nomenais. Ele está dizendo claramente, na passagem citada, que as
relações internacionais moldam “tanto passiva quanto ativamente” o
desenvolvimento das relações sociopolíticas no interior de Estados
particulares. Na verdade, uma visão marxista/gramsciana das rela­
ções internacionais não pode recorrer a reduções economicistas sem
invalidar seu compromisso fundamental com uma filosofia da prá­
xis. Por conseguinte, sugiro que uma interpretação desse tipo deve
implicar uma reconstrução crítica da interação histórica entre os pro-
152 ♦ M ark Rupert

cessos sociopolíticos que ocorrem dentro de Estados particulares e as


relações e processos globais.
Dessa perspectiva geral, parece que a alienação de segunda
ordem do sistema interestados reproduziu, no plano global, aspectos
da alienação de primeira ordem, que é mais fundamental. Em parti­
cular, o sistema de Estados políticos reproduziu instituições e práticas
que abstraem a política da vida produtiva e, por isso, impedem direta­
mente a autodeterminação comunal explícita no interior da ativida­
de produtiva. A atividade produtiva é organizada, em vez disso, numa
'‘economia” mundial, uma divisão do trabalho global governada pelas
forças mundiais do mercado e aparentemente fora do alcance de
qualquer forma de controle comunal.21Da mesma maneira, a “políti­
ca” é compreendida em termos das interações instrumentais de ato­
res políticos individualizados que lutam para exercer algum controle
sobre suas condições sociais e econômicas. A ampliação do conceito
marxista de alienação para abarcar as relações sociais globais ajuda a
explicar a preocupação usual do neo-realismo e da teoria do sistema
mundial (cada qual de seu ponto de vista) com a construção de hie­
rarquias políticas sobrepostas à economia mundial. Tanto a perspecti­
va do neo-realismo quanto a da teoria do sistema mundial são produ­
zidas pela abstração de um ou outro aspecto dessa relação alienada
entre política e economia, seguida da construção de explicações cau­
sais abstratas em termos da unidade primitiva privilegiada.
Em vez de começar com Estados soberanos ou com o sistema
mundial como ponto de partida teórico, poderiamos dizer que Marx
e Gramsci sugerem outro ponto de vista para considerar as relações
internacionais e a economia política mundial. Nessa perspectiva, as
relações internacionais e a economia política internacional podem
ser compreendidas em termos do processo de objetivação tal como
ele se organiza sob o capitalismo, ou seja, como parte do aspecto glo-

21No contexto da teoria do sistema mundial de Wallerstein, a separação entre


política (confinada às políticas individuais do sistema interestados) e econo­
mia (a divisão global e abrangente do trabalho) é elemento constitutivo da
economia mundial capitalista e um requisito funcional de sua reprodução
(ver 1979, p. 6, 24, 32, 66; 1984a, p. 7-12, 33-36, 50, 130).
A lienação, capitalismo e o sistema interestados ♦ 153

Im) do capitalismo. Isso não pressupõe, de forma alguma, que as dinâ­


micas políticas sejam inteiramente compreensíveis em termos de
eausas “econômicas”. Pressupõe, na verdade, que todas as relações
sociais - inclusive o sistema de Estados e a economia mundial - se­
jam historicamente produzidas e politicamente contestáveis. Tais
contestações acontecem entre forças e atores sociais variados histori­
camente específicos (como, por exemplo, funcionários do Estado po­
lítico, classes ou frações de classe, blocos históricos, grupos subalter­
nos) . A forma particular assumida pela relação entre política e econo­
mia, ou entre nacional e internacional é vista, por conseguinte, como
uma forma determinada pelos resultados dessas lutas históricas.
Assim, é inteiramente coerente com essa perspectiva afirmar, por
exemplo, que a competição interestados e as guerras tiveram efeitos
historicamente significativos sobre a relação entre capital e trabalho
na esfera da produção, bem como sobre as relações entre Estado e
sociedade. Na verdade, afirmei ter sido isso o que aconteceu nos Esta­
dos Unidos durante as duas guerras mundiais do século XX (Rupert,
1990). Portanto, a questão não é atribuir uma eficácia causai univer­
sal às forças “econômicas” ou aos fatores “nacionais”, e sim compreen­
der de que maneira os processos da objetivação capitalista (tanto glo­
bais quanto nacionais, tanto políticos quanto econômicos) produzi­
ram a realidade social contemporânea, e como as relações de aliena­
ção, inerentes a essa realidade, podem ser superadas.
Isso levanta a questão da práxis. Como podemos pensar um
projeto de emancipação de alcance global? Certamente não é fácil ser
otimista em relação a isso. Berki (1984) e Wallerstein (1984a), por
exemplo, sugerem que um projeto de emancipação fundamentado
na classe estará contido dentro das fronteiras nacionais e, por isso, se­
rá incapaz de tratar de aspectos mais globais da alienação. De novo, as
contribuições teóricas de Gramsci podem, no entanto, nos ajudar a
conceituar esse difícil problema de maneira inovadora e facilitadora:
no projeto de emancipação de Gramsci, sua noção de sociedade civil,
e da hegemonia que pode ser construída dentro dela, não se limita ne­
cessariamente às fronteiras dos Estados-nação. Um bloco histórico
progressista tem. por objetivo construir um movimento participativo
no qual as dicotomias entre líderes e seguidores etc. são dissolvidas.
154 ♦ M ark R upert

Esse processo implica também a dissolução do Estado burguês no


qual o poder de coerção da classe dominante está institucionalizado.
Portanto, para Gramsci, a práxis transformadora não precisa se inter­
romper nas fronteiras do Estado, pois o próprio Estado está sendo
transformado à medida que a nova hegemonia vai sendo construída e
novas formas de organizar as relações sociais vão sendo assimiladas.
“Toda relação de ‘hegemonia’ é necessariamente uma relação educati­
va e não ocorre apenas no interior de uma nação, entre as várias forças
que compõem a nação, mas também nos campos internacional e
mundial, entre complexos de civilizações nacionais e continentais”
(Gramsci, 1971, p. 350; ver também p. 240-241). Está implícita aqui
uma estratégia política radical que subverte a hegemonia das concep­
ções de política baseadas no Estado (alienação de primeira e segunda
ordens), faz a mediação entre os vários grupos “nacionais” cujas prá­
ticas políticas têm estado contidas por essas concepções e lhes permite
participação ativa na construção de uma comunidade política global.
Tudo isso pode parecer utópico. Que fundamentos temos para
acreditar que um projeto desses seja historicamente viável? No século
XX, a reorganização da produção capitalista, em escala global, e os
desdobramentos sociopolíticos associados a essa transformação te-
riam juntos condições de possibilitar novos tipos de práxis que clara­
mente transcendem as fronteiras nacionais. A princípio nos Estados
Unidos, especialmente nas primeiras décadas do século XX, os fabri­
cantes começaram a intensificar seu controle sobre o processo de tra­
balho e a impor aos operários uma divisão maior entre o trabalho
mental e o manual, entre planejamento e execução. A quebra da re­
sistência dos operários e a obtenção de seu consentimento (a magni­
tude dessa façanha não deve ser subestimada; ver Rupert, 1990) faci­
litaram a fragmentação dos processos de produção em uma série de
processos distintos e de tarefas especializadas. Esses processos podiam
ser integrados numa única fábrica de produção em massa, como no
complexo pioneiro da Ford em River Rouge, onde as matérias-primas
entravam por um lado e os automóveis saíam pelo outro; ou, como
nas últimas décadas, podiam ser distribuídos, de forma a racionalizar
o processo de produção, numa escala geográfica tão grande quanto
fosse necessário. No contexto da ordem global do pós-guerra, o cresci­
A lienação, capitalismo e o sistema interestados ♦ 155

mento da produção transnacional e o comércio entre as empresas subs-


iilniram, em grau significativo, o comércio internacional {Hymer,
19/9; Cox, 1981, p. 146-147; Cox, 1987, p. 244-253; Gill, 1990,
I'. 90-93). Hoje, enormes empresas multinacionais orquestram sua
produção e suas transações em escala mundial e tornam cada vez
mais antiquada a distinção de Marx (1977a, p. 470-480) entre a “divi-
*.ao do trabalho na fábrica”, onde o poder do capitalista impõe a racio­
nalização dos processos de trabalho no plano micro, e a “divisão do
trabalho na sociedade”, na qual o mercado faz a mediação entre os
produtores e onde não prevalece nenhuma coordenação social cons-
i icntc no plano macro. Portanto, o efeito mistificador do mercado
(i|iie disfarça relações do poder de classe como forças de mercado im­
pessoais e naturalizadas que se contrapõem aos indivíduos) pode es-
iar diminuindo à medida que empresas enormes administram mais
Ji retamente a produção e o comércio em escala mundial, e o poder
•iocial do capital torna-se menos camuflado. Correspondendo a essa
internacionalização da produção tem havido uma internacionaliza­
ção do Estado ampliado no sentido de Gramsci (Cox, 1981, p. 144-146;
1987, p. 253-265) e um desenvolvimento mais explícito de uma so-
<iedade civil global por meio da qual a hegemonia do capital interna­
cional tem sido organizada no mundo do pós-guerra (van der Pijl,
1984; 1989; Gill, 1990). Ainda que essas tendências de longo prazo
talvez tenham estimulado certa fragmentação da classe operária (co­
mo, por exemplo, entre os operários de indústrias voltadas para a pro­
ibição de escala global versus aqueles que trabalham em firmas de ba­
ses mais nacionais), agora, mais do que nunca, é possível falar realisti-
camente de uma estrutura de classe global e da possibilidade de lutas
explicitamente políticas que podem contestá-la.
No contexto dessa transnacionalização da produção capitalis­
ta, uma crítica transformadora permite conceber o surgimento de
uma práxis política radical e global, até mesmo nas indústrias do
Norte e, particularmente nos Estados Unidos. Numa era em que a
produção e os empregos têm mobilidade global, é cada vez mais difícil
para esses operários relativamente privilegiados considerarem ponto
pacífico o padrão de vida de que desfrutaram até agora. As empresas
multinacionais, procurando minimizar os custos gerais, podem im­
156 ♦ M ark R upert

por cortes draconianos nos salários ou benefícios desses operários,


podem tentar enfraquecer seus sindicatos ou simplesmente podem
fazer as malas e mudar para um “clima comercial mais hospitaleiro”,
isto é, um clima no qual exista uma força de trabalho submissa, não
sindicalizada e que aceite salários baixos (Bluestone e Harrison,
1982). Isso, por sua vez, pode levar à politização explícita do conflito
de classe e abrir novos horizontes de ação política que não precisam
ser limitados pelas fronteiras convencionais entre político/econô-
mico, Estado/sociedade, nacional/internacional. Essa luta poderia
ampliar-se até a construção de coalizões transnacionais entre operá­
rios e outros grupos subalternos para enfrentar seus exploradores,
exercer um controle coletivo sobre as suas vidas e explorar novas mo­
dalidades de vida social. É claro que essas condições também pode­
ríam favorecer o ressurgimento da xenofobia, do racismo e do chau­
vinismo entre os operários do Norte ou entre os trabalhadores ameri­
canos.
Não posso esperar um resultado mais promissor. Apesar disso,
parece-me que é exatamente a abertura histórica, a ausência de ga­
rantia, que torna tão importante para o estudo crítico das relações in­
ternacionais e da economia política internacional enfatizar as possibi­
lidades de mudança social progressista, inerentes às relações sociais
que tão freqüentemente consideramos ponto pacífico, e os processos
históricos que tendemos a aceitar da mesma maneira como nos con­
formamos com o início de um tempo inclemente.
Não sabemos a priori se ou como um projeto global de eman­
cipação se concretizará efetivamente, pois isso dependerá do que
Thompson (1978, p. 49) chama de “práxis do resultado”. No entanto,
espero ter persuadido o leitor de que as relações internacionais e a
economia política mundial podem e devem se esforçar para explicitar
as possibilidades transformadoras geradas pela produção histórica do
capitalismo global.
HEGEMONIA GLOBAL
E O PODER ESTRUTURAL DO CAPITAL
S tephen G ill
D avid Law

Neste capítulo, fazemos uma distinção entre formas diretas e


estruturais de poder.1Relacionamos estas formas de poder aos concei­
tos de hegemonia, bloco histórico e Estado “ampliado” em nossa aná­
lise do capitalismo contemporâneo. Com esse procedimento, procu­
ramos enfrentar dois desafios principais. O primeiro é o de integrar
melhor os níveis “nacional” e “internacional” de análise. O segundo,
intimamente relacionado com o primeiro, é o de teorizar as relações
complementares e contraditórias entre o poder dos Estados e o poder
do capital.
Ao contrário dos marxistas clássicos, que enfatizam o instru-
mentalismo e o economicismo, alguns marxistas contemporâneos
inspiram-se no racionalismo ético de Antonio Gramsci. O conceito
de hegemonia de Gramsci (1971) difere do uso feito pelo realismo or­
todoxo. Refere-se ao domínio de um Estado sobre outros Estados e,
em geral, é um exemplo daquilo que chamamos de exercício direto
do “poder sobre”, no sentido usado por Max Weber. Para Gramsci,
hegemonia era um conceito usado para analisar a relação de forças
em uma dada sociedade. Uma ordem hegemônica era aquela na qual
o consentimento, em vez da coerção, caracterizava basicamente as re­
lações entre as classes e entre o Estado e a sociedade civil.
O conceito de Estado usado por Gramsci é um conceito “am­
pliado” e integral que reflete o fato de que, em determinadas circuns­
tâncias (como nos países anglo-saxões, por exemplo), muitas vezes
existe uma fusão orgânica entre o Estado e a sociedade civil (Gramsci,*

' Agradecemos a Richard Ashley, Robert Cox, Pat McGowan, Craig Murphy,
Carlos Parodi e Kees van der Pijl por seus comentários. Uma versão mais
longa deste ensaio foi publicada na International Studies Quarterly, n. 33,
p. 475-499, 1989, e, num a forma anterior, em Gill e Law, 1988. Nossa
interpretação de Gramsci foi influenciada por Sassoon, 1980; e Cox, 1983.
158 ♦ S tephen G il i e D avid Law

1971, p. 12). Esse conceito de Estado contrasta com a definição estrei­


ta do Estado “gendarme” dos economistas liberais e do Estado “inter-
vencionista” associado aBismarck (ibid., p. 257-263).
O poder da classe, ou fração de classe, dirigente sobre as demais
classes era parcialmente exercido pelo Estado. Não era um simples
caso de dom ínio por meio de sanções, punições ou persuasões:
envolvia também “liderança intelectual e moral” (Gramsci, 1971, p. 182,
269). A hegemonia era exercida no interior de uma constelação mais
ampla de forças sociais e políticas, ou “bloco histórico”. Este último
conceito diz respeito à congruência histórica entre forças materiais,
instituições e ideologias ou, de modo geral, a uma aliança entre dife­
rentes forças de classe. Por conseguinte, um bloco histórico era o vín­
culo “orgânico” entre o “político” e a “sociedade civil”, uma fusão de
capacidades materiais, institucionais, intersubjetivas, teóricas e ideo­
lógicas (ibid., p. 366). Um bloco bem-sucedido era politicamente or­
ganizado em torno de um conjunto de idéias hegemônicas que davam
alguma coerência e direção estratégicas a seus elementos constituin­
tes. Para que um novo bloco histórico possa surgir, seus líderes devem
engajar-se na “luta consciente, planejada”. Esta não era apenas uma
questão do poder da ideologia, nem mesmo de “tom ar” o Estado.
Qualquer novo bloco histórico não deve ter somente poder no seio da
sociedade civil e na economia; também precisa de idéias e argumen­
tos convincentes (envolvendo o que Gramsci chamava de plano
“ético-político”) sobre os quais construir e catalisar suas redes e orga­
nização políticas. Segundo Gramsci, o catalisador é proporciona­
do por: “Uma iniciativa política apropriada [que] sempre é necessária
para liberar as forças econômicas do peso morto das políticas [e
idéias] tradicionais - isto é, para mudar a direção política de certas
forças que têm de ser absorvidas a fim de que um novo bloco histórico
político-econômico homogêneo, sem contradições internas, seja
constituído com êxito” (Gramsci, 1971, p. 168).
Esse aspecto do pensamento de Gramsci serve de fonte de ins­
piração para o presente ensaio porque tem potencialmente implica­
ções de longo alcance para uma nova abordagem no estudo das rela­
ções internacionais, como Cox (1983) demonstrou. Implica a neces­
sidade de considerar a transformação estrutural global e as ordens
H egemonia global e o poder estrutural do capital ♦ 159

mundiais em termos da dialética de suas dimensões não só norma-


livas (ética, ideológica, prática) mas também materiais.
Aqui, nossa contribuição diz respeito principalmente à teoria
do poder. Pressupomos que as teorias do poder e da hegemonia devem
incluir as dimensões normativa e material, estrutural e existencial
(comportamental, relacionai) das relações sociais. Parte da riqueza
dos conceitos de Gramsci é que eles combinam esses elementos. Por
causa disso, oferecem pistas para transpor o fosso entre estrutura e
ação. Acreditamos que uma possível chave para a resolução do proble­
ma estrutura-ação da teoria social mais geral, e da teoria das relações
internacionais em particular, seja o desenvolvimento de conceitos de
mediação, como os de poder estrutural e bloco histórico.2

Blocos históricos e regimes de acumulação

Alguns autores recentes sugeriram que o capitalismo está en­


trando num estágio transnacional e pós-fordista que, em aspectos
importantes, difere do estágio imperialista/nacional-assistencialista
(capitalista nacional) e fordista analisado pelos marxistas clássicos
(ver Brewer, 1980, p. 79-130). Aplicando as idéias de Gramsci ao pla­
no internacional - e a esse estágio particular Cox (1987, p. 355-398)
demonstrou que é possível conceber novas formas de Estado, hege­
monia e formação de blocos históricos em escala mundial.
Portanto, é possível teorizar o papel que esses blocos podem
desempenhar na promoção de grandes mudanças no processo de de­
senvolvimento capitalista. Isso inclui passar de um tipo de estrutura
social de acumulação para outro, dentro dos limites mais amplos de
um determinado modo de produção (Cox, 1987, p. 17-34, 309-353, e
os dois capítulos de sua autoria neste volume). O conceito de estrutu­
ra social de acumulação articulado por Cox é semelhante ao conceito
de regime de acumulação, termo usado pela escola regulacionista fran-

Sobre poder estrutural, mediação e ação, ver Knights e Wilmott, 1985; e


Betts, 1986. Sobre o poder estrutural do capital no plano nacional, ver
Marsh, 1983; Lindblom, 1977; e Grant e Sargcnt, 1987. Sobre o problema
agente-estrutura, ver Wendt, 1987.
160 ♦ Stephen G ill e D avid L aw

cesa (Noel, 1987). Pressupomos que tal regime envolve relações de


classe e relações intraclasse. Essas relações englobam o modo de vida
e a composição da força de trabalho, sua organização política, o pro­
cesso de trabalho (em seus aspectos técnico, organizacional e huma­
no) e a regulamentação jurídica do trabalho. Envolve também “for
mas de regulamentação” relativas ao alcance dos mercados e à liber ­
dade de iniciativa, tanto no plano nacional quanto no global. Portan­
to, um regime abrange as formas de reprodução socioeconômicas
que, juntas, constituem as condições do desenvolvimento econômico
numa determinada época ou período histórico. Assim, pode haver
diferentes regimes de acumulação (por exemplo, capitalista ou do
“socialismo real”) coexistindo em dado momento. O conceito de Cox
diverge daquele da maioria dos regulacionistas por ser menos centra­
do no Estado e, por isso, mais flexível no sentido de admitir formas de
política e de Estado em processo de transformação, incluindo a inter­
nacionalização ou globalização do Estado (ver o capítulo 10 desta co­
letânea).
De Vroey (1984) delineia dois regimes principais de acumula­
ção que caracterizaram o capitalismo moderno. O primeiro, o “re­
gime extensivo” (abrangendo aproximadamente os primeiros três
quartos do século XIX), estava associado a estruturas industriais rela­
tivamente competitivas e a formas de produção menos intensivas em
termos de capital do que o segundo, o “regime intensivo”, que se ma­
nifestou mais plenamente no século XX. O primeiro regime estava
associado a uma esfera restrita de intervenção estatal e, em certa me­
dida, a uma doutrina do liberalismo econômico. Além disso, a demo­
cracia política e as organizações dos trabalhadores eram muito pouco
desenvolvidas. O segundo - ligeiramente mais democrático carac­
terizou-se pelo uso mais intensivo do capital, pelos sistemas de pro­
dução em massa e pelo aumento gradual dos salários reais. Foi acom­
panhado pela intervenção estatal em grande escala, principalmente
no que diz respeito à administração monetária e macroeconômica e à
promoção da educação, dos programas de treinamento e de pesquisa
e desenvolvimento. Também esteve associado à expansão do sindica­
lismo, dos partidos políticos de esquerda e do planejamento corpora-
tivista, e à consolidação do Estado assistencialista. Charles Maier (1988)
H egemonia global e o poder estrutural do capital ♦ 161

<li.unou esse complexo de políticas e acordos de classe de “política de


piodutividade”. No plano internacional, esses dois regimes de acu­
mulação coincidiram, respectivamente, com o período de hegemonia
inglesa e seu padrão-ouro e com o equilíbrio de poder e, depois de
I*M5, com o período do globalismo norte-americano, as alianças in-
irgrais ou orgânicas entre os Estados Unidos e os outros grandes Esta-
ilos capitalistas centrais e o sistema de Bretton Woods, contrapostos
ao bloco soviético do “socialismo real” e à China.
Quais foram os elementos internacionais mais importantes
no regime de acumulação pós-1945 que geraram o crescimento eco-
nomico com velocidade sem precedentes em todo o mundo capitalis-
i.t industrializado? Sugeririamos pelo menos quatro. O primeiro foi a
i onstrução, no mundo não-comunista, da estrutura econômica, po-
inica e de segurança centrada nos Estados Unidos, que garantia condi-
i.oes de paz ao núcleo capitalista (em agudo contraste com os anos
!*>14-1945). O segundo, intimamente relacionado ao primeiro, foi a
<.ipacidade de os Estados Unidos manterem o crescimento da deman-
*l.i agregada global por meio de seus deficits na balança de pagamentos,
gerados em parte por grandes despesas militares no exterior. O tercei­
ro elemento foi a congruência substancial de idéias, instituições e po-
Inicas entre as principais nações capitalistas, num sistema de “libera­
lismo incrustado” (Ruggie, 1982), o qual envolveu o surgimento e a
<niisolidação da ideologia da “economia mista”. Junto com a escalada
i Ia Guerra Fria, esse elemento foi importante na reconstituição (ou
»ri ação) da legitimidade da forma de governo liberal-democrática no
<K idente e no Japão. O quarto elemento foi a oferta de matérias-pri­
mas baratas e abundantes, particularmente de petróleo.
O que cimentou essa ordem foi o que chamamos de novo bloco
histórico internacional de forças sociais, centrado nos Estados Unidos,
que passou a ser a peça-chave da aliança orgânica do pós-guerra no
"(icidente”. Este bloco se originou a partir da expansão de forças so-
i ia is emergentes dos Estados Unidos para fora de seu território. Os
principais elementos dessa constelação procuraram internacionali­
zar os princípios do NewDeal e as formas fordistas de acumulação as­
sociadas ao capital intensivo e ao consumo de massa, e aumentar as
oportunidades de exportar e/ou de fazer investimentos diretos em
162 ♦ S tephen G ill e D avid Law

países estrangeiros, tanto no ramo manufatureiro quanto no da in­


dústria extrativista, principalmente na do petróleo. O bloco também
representava interesses financeiros de Wall Street que buscavam me­
lhores oportunidades de investimento além-mar e um papel interna­
cional mais abrangente para o dólar. No entanto, esse bloco não reu­
niu somente frações do capital produtivo e financeiro, mas também
elementos dos aparatos de Estado, partidos políticos de centro e asso­
ciações não comunistas de trabalhadores das grandes nações capita­
listas. Forças dos Estados Unidos, ligadas ao bloco, conseguiram de-
liberadamente forjar vínculos com suas congêneres européias para
criar uma comunidade política transatlântica (van der Pijl, 1984;
Gill, 1990).
O que é preciso ser enfatizado aqui, portanto, é que o conceito
de um bloco histórico internacional significa muito mais do que uma
aliança de interesses capitalistas que transpõe as fronteiras nacionais.
Implica que elementos de mais de uma classe estão envolvidos e sua
base é mais orgânica e mais enraizada nas estruturas materiais e nor­
mativas da sociedade, isto é, “nas instituições governamentais e so­
ciais e nas sociedades civis de um grande número de países, inclusive
Estados fracos [...]. [Por isso] a aliança de forças sociais que este bloco
compreende é vista como 'natural’ e legítima pela maioria de seus
membros” (Gill, 1986a, p. 211).
Visto dessa perspectiva, o amálgama da socialdemocracia do
pós-guerra e a “economia mista” incorporaram um leque de interes­
ses de classe que sustentou a emergente ordem econômica liberal in­
ternacional. Isso manteve sua coerência e continuidade por aproxi­
madamente vinte e cinco anos após 1945, embora a aparência de
continuidade nesse período possa ser considerada enganosa, uma vez
que determinadas forças contraditórias estavam em ação e, a longo
prazo, corroeram a base do regime de acumulação e a natureza essen­
cial do bloco histórico associado internacional. Exemplos dessas for­
ças foram a crescente intensificação da produção de conhecimento e
de sistemas organizacionais, e o aumento gradual da importância do
capital transnacional associado a esse processo, principalmente do
capital financeiro, importância ressaltada no crescimento dos euro-
mercados desde a década de 1960. Ao mesmo tempo, a escala e o
H egemonia global e o poder estrutural do capital ♦ 163

.ilcance dos gastos previdenciários também estavam aumentando,


assim como os gastos estatais em proporção ao Produto Interno Bruto
(PIB).
Num sentido estrutural, o que estava ocorrendo no período do
pós-guerra era a emergência de uma economia globalmente integra­
da, enquanto a regulamentação política no plano nacional tornava-
se cada vez mais abrangente. Discutimos esse assunto abaixo, sob o
aspecto do crescimento simultâneo e de certa forma contraditório do
"poder” tanto dos Estados quanto dos mercados.

Estados, mercados e o poder do capital

Tanto os mercados quanto os Estados precederam em muito o


capitalismo industrial. No entanto, este último esteve historicamente
associado ao desenvolvimento de mercados integrados de capital. En­
quanto os autores marxistas enfatizaram o surgimento dos mercados
de trabalho assalariado como uma característica que define o capita­
lismo, sugerimos que o surgimento de sofisticados mercados de capi­
tal tem pelo menos a mesma importância, e, a seguir, concentramo-
nos nessa questão.
Geralmente, os mercados exigem alguma forma de organiza­
ção e proteção política, em geral suprida pelo Estado. Por sua vez, as
instituições governamentais precisam de dinheiro. Essa necessidade
cria um interesse adicional de facilitar e regular os mercados, por
exemplo para a arrecadação de impostos. No entanto, regulamenta­
ção e restrição em demasia costumam diminuir lucros e alimentar
formas de evasão (como contrabando, mercados negros e “inovações”
financeiras). O incentivo para que o capital fuja ao controle é maior
quando há diferentes regulamentações nacionais, principalmente se
os obstáculos técnicos na área de transportes e das comunicações fo­
rem reduzidos à medida que o capital adquira maior mobilidade. O
crescimento dos euromercados desde a década de 1960 é um impor­
tante exemplo disso, exemplo que relacionamos abaixo com o poder
estrutural do capital. Assim como o capital procura as condições mais
propícias para seus investimentos, os Estados competem para atrair
fluxos de capital e investimentos diretos. Nas circunstâncias recessi­
164 ♦ Stephen G ill e D avid L aw

vas da década de 1980, isso deu lugar à desregulamentação competitiva


dc diversos mercados de capitais nacionais. Mas desregulamentação
competitiva é um termo inapropriado, uma vez que está associada às
tentativas de redefinir as regras de mercado sob novas condições. No
entanto, o essencial foi que o processo reduziu gradativamente as
barreiras à mobilidade internacional do capital financeiro, criando
um mercado de capitais global e mais integrado.
Nesse sentido, há em desenvolvimento uma relação dialética
entre a natureza e o alcance dos mercados e as formas de regulamen­
tação estatal, principalmente à medida que o conhecimento, a tecno­
logia e o transporte sofrem mudanças. A dialética envolve tanto di­
mensões nacionais quanto internacionais da ação estatal, que procu­
ra reconciliar o alcance potencialmente global da atividade econômi­
ca com os aspectos social e territorial específicos do poder político.
Este último é limitado pelos problemas de legitimação, mobilização
e comunicação no tempo e no espaço políticos. Assim sendo, o capi­
tal, como relação social, depende do poder do Estado para definir, moldar
eparticipar de um regime de acumulação. Por capital como relação so­
cial, temos em mente o contraste entre aqueles com um substancial
ou até privilegiado domínio, controle ou acesso aos recursos finan­
ceiros e/ou físicos, em comparação com o grosso do restante da socie­
dade (a maioria de trabalhadores e seus dependentes).
A forma dos diferentes regimes de acumulação oferece um
contexto mais amplo à nossa discussão das relações contemporâneas
entre Estado e capital e à questão do poder estrutural dos mercados.
Vamos argumentar que a ampliação do alcance do mercado na déca­
da de 1980, e provavelmente na de 1990, junto com certas mudanças
na tecnologia e nas comunicações, contribuem para o aumento do
poder estrutural do capital com mobilidade internacional. Por outro
lado, o Estado (como entidade institucional e social) também cria a
possibilidade de limitação desse poder estrutural. Isso se deve em
parte aos bens e serviços políticos que ele oferece ao capitalista e à
autonomia institucional que possui. A postura do Estado diante da li­
berdade de iniciativa, num determinado regime de acumulação, está
no cerne dessa questão.
No plano nacional, a distinção entre as formas diretas e estru­
turais do poder do capital ou dos “empreendimentos” já foi bastante
H egemonia global e o poder estrutural do capital ♦ 165

abordada (ver nota 2). Aspectos diretos do poder e da influência relati­


vos ao trabalho dos empreendimentos incluem recursos financeiros,
conhecimentos especializados, contatos com o governo e controle
sobre grande parte da mídia. Os empreendimentos têm uma capaci­
dade privilegiada de influenciar os governos, por exemplo, por meio
de lobbies. Além disso, nas indústrias oligopolistas, as grandes corpo­
rações têm algum poder de mercado sobre os preços e talvez sobre os
.salários. Isso pode ser comparado com o caso de mercados extrema­
mente competitivos, em que tanto os compradores quanto os vende­
dores estão submetidos ao poder do mercado. Um exemplo deste últi­
mo caso é o comportamento de mercados financeiros extremamente
competitivos (dos quais os governos regularmente tomam emprésti­
mos). Nesse tipo de concepção, grande parte da qual inspirada em
Undblom (1977), os empreendimentos (e o capital) são vistos como
mma espécie de direito adquirido privilegiado num sistema político
mais ou menos pluralista (poliárquico). Por sua vez, os marxistas
associam os empreendimentos ao capital como classe. Assim, a análi­
se de seu poder implica uma dimensão socioestrutural mais profun­
da, inerente ao sistema capitalista. Mesmo assim, o poder do capital
em geral precisa ser diferenciado do poder e da influência de deter­
minadas frações do capital.
Aqui, nossa principal intenção é analisar o poder dessas fra­
ções do capital que são tanto de larga escala quanto internacional­
mente móveis. Essa categoria inclui algumas frações do “capital pro­
dutivo” (dos setores manufatureiro e extrativista) e do “capital finan­
ceiro” (isto é, serviços financeiros como operações bancárias, seguros
c compra e venda de ações). O poder do capital em geral reside, em
parte, no grau de divisão existente entre as diferentes frações do capi­
tal, ou o que Lindblom (1977) chamaria de diferentes ramos de em­
preendimentos. Ao mesmo tempo, é evidente que a pressão competi­
tiva pode significar que a cooperação entre capitalistas de frações dife­
rentes é difícil ou mesmo impossível de ser alcançada. Contudo, em
praticamente toda análise dos conflitos e divisões que separam os ca­
pitalistas, o conceito de poder usado é um conceito comportamental.
Assim, enfoca-se a maneira pela qual determinado grupo de capita­
listas procura exercer poder e influência diretos sobre outros, ou so­
bre o aparato de Estado. Embora essa dimensão seja essencial, precisa
166 ♦ Stephen Gill e D avid L aw

ser combinada com a investigação do poder estrutural. Na verdade,


quanto mais marcantes as divisões entre suas fileiras, tanto mais es­
sencial se torna o aspecto estrutural do poder do capital.
Esse aspecto estrutural é associado tanto à dimensão material
quanto à dimensão normativa da sociedade (como estrutura do mer­
cado e papel da ideologia). Essas dimensões podem ou não se reforçar
mutuamente. A tenacidade das estruturas normativas é ilustrada pela
maneira como, nas economias modernas, sempre se dá prioridade
maior ao crescimento econômico do que a outras metas (como a pre­
servação). Outro exemplo dessa tenacidade diz respeito aos pressu­
postos e declarações feitas a respeito das condições para se chegar ao
crescimento. No tocante às economias capitalistas, Lindblom (1977,
p. 170-188) sugere que homens e mulheres de negócios podem decla­
rar ter conhecimentos especializados de valor público, em parte por­
que existe uma aceitação generalizada da visão de que o crescimento
econômico depende fundamentalmente de investimentos e inova­
ções dos empreendedores privados.
A aceitação dessas premissas e declarações feitas pelos políticos
e pela opinião pública significa que os governos têm de se preocupar
em cultivar um “clima empresarial” adequado, senão investimentos
podem ser adiados e pode haver recessão. Portanto, a atuação de um
partido socialista eleito com um programa radical estaria limitada,
nas suas escolhas políticas, pela natureza do “clima empresarial”, e
um dos motivos importantes para que isso ocorra é que haveria ne­
cessidade de receita fiscal (e/ou empréstimos) para financiar seus
ambiciosos planos de gastos.3 Um pressuposto por trás desses argu­
mentos é o de que existe um mercado para capitais, empreendimen­
tos e engenhosidade, e sua oferta seria reduzida pela tributação mais
elevada. Na verdade, esses argumentos são a essência da chamada teo­

3 Kalecki (1943) enfatizou a confiança nos negócios e o clima empresarial


mais amplo a curto e a longo prazo. Existe uma literatura im portante sobre
a escolha pública no ciclo econômico e político (por exemplo, Alesina e
Sachs, 1988) que, entretanto, em geral carece da avaliação feita por Kalecki
sobre os requisitos estruturais do sistema capitalista.
H ecemonia global e o poder estrutural do capital ♦ 167

ria econômica da política “orientada para a oferta” (supply-side econo-


tnics), que se tom ou influente nos Estados Unidos na década de 1980.4
Há um contraste chocante entre as capacidades do capital e do
i rabalho moldarem a política de longo prazo em sociedades capitalis­
tas. Mesmo que possa ocorrer espontaneamente uma “greve de inves­
timentos” pelas corporações se o clima empresarial se deteriorar, o
trabalho, para exercer uma influência equivalente, teria de organizar
diretamente uma greve ampla, ou mesmo uma greve geral. Uma “gre­
ve de investimentos” é um caso de poder estrutural que somente as
corporações têm condições de viabilizar. Nas economias capitalistas,
esse poder funciona basicamente por meio do mecanismo de merca­
do. Enquanto uma disposição menor de investir em objetivos produ­
tivos em geral se instala gradativamente, a oferta de dinheiro aos go­
vernos, por meio da compra de seus títulos e letras de câmbio, pode
diminuir muito rapidamente. Isso pode resultar na incapacidade de
o governo financiar suas atividades, a não ser que recorra à inflação
monetária. Do ponto de vista das corporações, essa inflação leva à de­
terioração ainda mais intensa do “clima de investimentos”, prolon­
gando assim a “greve de investimentos”. Desse modo, o capital e,
principalmente, os setores financeiros do capital podem ter o poder
de disciplinar indiretamente o Estado. Como muitos dos maiores fi­
nancistas têm acesso aos líderes do governo, esse poder indireto pode
ser suplementado pelo uso direto do poder, por meio de lobbies e de
outras formas “civilizadas” de pressão. Mas essas pressões não são tão
importantes quanto o que pode ser chamado de “poder dos merca­
dos”, e, em particular, dos mercados financeiros. Esse poder, quando
precisa levantar fundos, coage os participantes do mercado, inclusive
o governo.
Alguns dos pontos discutidos acima se ajustam perfeitamente
à noção de uma ideologia hegemônica que serve aos interesses de
classe do capital em relação àqueles do trabalho. No seu cerne estão as

4 Sobre a teoria econômica a respeito da oferta e sua influência sobre o Gover­


no Reagan, ver Canto et a).., 1983; Evans, 1983; Bosworth, 1984; Roberts,
1984; Stein, 1984; e Bartlett e Roth, 1985.
168 ♦ Stephen G ill e D avid Law

idéias de que a propriedade privada e a acumulação são sagradas e


que, sem o setor privado, o crescimento correría perigo. Um caso es­
pecífico da força dessas idéias foi a forma pela qual as idéias moneta-
ristas sobre a necessidade de controlar a inflação tiveram aceitação
geral e levaram à concretização de políticas deflacíonárias nos países
ocidentais no final da década de 1970 e início da década seguinte. Es­
se compromisso se refletiu, por exemplo, em discussões e comunica­
dos feitos durante as reuniões de cúpula do Grupo dos Sete (G7)
(Putnam e Bayne, 1984). No final da década de 1970, evidentemente,
os governos conservadores ainda não haviam assumido o poder na
maioria das nações do G7. Apesar disso, os objetivos monetaristas
tornaram-se lugar-comum rapidamente, exigindo “disciplina” nos
mercados de bens e do trabalho. Ou os salários seriam reduzidos ou,
segundo a lógica dessas políticas, os trabalhadores “sofreriam as con-
seqüências” e perderíam o emprego.
Na Inglaterra, o thatcherismo não implicou somente uma mu­
dança de políticas, mas também um esforço deliberado de mudar
idéias e expectativas em relação ao papel apropriado ao governo, à im­
portância da iniciativa privada e às virtudes dos mercados. O objetivo
era convencer os eleitores de que “não há alternativa” ao thatcheris­
mo (se quisessem ser cada vez mais prósperos). Pode-se dizer, por
conseguinte, que estava sendo reconstruída uma forma gramsciana
de hegemonia a favor do capital.5No entanto, essa análise polarizada
entre trabalho e capital pode ser ela própria criticada como supersim-

s Entre os intelectuais que influenciaram as políticas thatcherianas temos E.


A. von Hayek e Milton Friedman. As instituições ativas na disseminação das
idéias econômicas e sociais liberais foram a Sociedade Mont Pèlerin (fundada
por Hayek em 1947), o Institute of Economic Affairs (1955), o British Cen­
tre for Policy Studies (CPS) (1974) e o Adam Smith Institute (1977). Edwin
J. Feulner Jr., presidente da norte-americana Heritage Foundation em 1986,
também foi tesoureiro da Sociedade M ont Pèlerin (Overbeek, 1987, p. 184).
Sobre a defesa consciente dessas idéias, ver Seldon et aí., 1981. Sir Alfred
Sherman, ex-assessor de Thatcher, definiu da seguinte maneira a função do
CPS: “Nosso objetivo é remodelar o clima de opinião. O Centro pretende
combater vigorosamente nessa frente de batalha de idéias” (apud Overbeek,
1987, p. 185). A ambição declarada da senhora Thatcher era, evidentemente,
erradicar o socialismo do Reino Unido.
H egemonia global e o poder estrutural do capital ♦ 169

plilicação, principalmente por não distinguir entre frações transna-


( lonais e nacionais do capital, e por dizer pouco a respeito das contra­
dições políticas e ideológicas associadas ao thatcherismo, que impli-
*avam chauvinismo e racismo, ao mesmo tempo em que encoraja­
vam o investimento direto estrangeiro japonês e o uso de violência
econômica e física para derrotar determinados adversários políticos
(como no conflito de 1984-1985 com os mineiros), enquanto o gros­
so da corrente principal do Partido Conservador ainda falava em ter­
mos de “uma nação” monolítica.

O poder do comportamento do capital: a dimensão global

Voltando-nos agora para o plano mundial, dada a ascensão das


corporações transnacionais e da mobilidade internacional do capital,
dos fluxos monetário e da informação, e das interconexões dos siste­
mas de comunicação, é essencial fazer uma análise global do poder do
capital (Gill e Law, 1988; Centro das Nações Unidas sobre Corpora­
ções Transnacionais, 1988).6Aqui a análise realista está obsoleta, em­
bora alguns autores que falam de interdependência (como Keohane e
Nye, 1977) tenham mostrado consciência da mobilidade internacio­
nal do capital. Alguns economistas neoclássicos examinaram o poder
de barganha das corporações transnacionais, assim como as conse-
qüências determinantes e políticas dos fluxos de capital de curto pra­
zo, mas negligenciaram os aspectos institucionais e ideológicos do
poder. Muitos marxistas também cometeram esse erro (por exemplo,
Radice, 1975).

“ Uma visão contrastante - e cética - é oferecida por Gordon, 1988. Apesar


disso, as corporações transnacionais parecem cada vez mais importantes na
economia mundial. As 56 maiores tiveram vendas entre 10 bilhões de dólares
e 100 bilhões de dólares no final da década de 1980; 33 corporações transna­
cionais de países em desenvolvimento tiveram vendas de mais de 1 bilhão de
dólares. As 600 maiores companhias industriais responderam por 20% a 25%
do valor agregado na produção de bens em países não comunistas. Seu papel
de importadores e exportadores foi ainda maior (Centro das Nações Unidas
sobre Corporações Transnacionais, 1988, p. 2).
170 ♦ S tephen G ill e D avid Law

No que diz respeito às formas do comportamento direto do po­


der, embora Lindblom (1977) tenha feito uma distinção entre autori­
dade (associada aos governos) e mercados (associados à iniciativa pri­
vada) no plano nacional, as corporações transnacionais também
exercem autoridade além das fronteiras nacionais quando alocam
recursos no plano internacional. A sede das corporações decide fre-
qüentemente sobre a localização geográfica da produção. As transna­
cionais tomam decisões sobre investimentos numa escala global,
transferindo fundos de um país para outro. Certas subsidiárias são
impedidas de exportar sua produção, enquanto outras recebem essa
função. Várias subsidiárias realizam um comércio intracompanhia a
preços de “transferência”, em vez de preços de mercado. Isso significa
que, em certa medida, a produção de suas subsidiárias (que pode ser
imensa, e coletivamente talvez maior do que o PIB de vários países) é
retirada do mercado e alocada, nos termos de Lindblom, “autoritaria­
mente” no interior de uma única companhia transnacionai. Isso sig­
nifica que a produção é alocada consciente e politicamente. Um
exemplo dramático desse poder intracompanhia é a abertura de uma
fábrica num país, ao mesmo tempo em que outra, desempenhando as
mesmas funções, é fechada ou não é construída em outro país. É claro
que a liberdade para o uso desse tipo de poder é refreada por pressões
políticas e competição de outras companhias. Quanto menor o nú­
mero de concorrentes, menores serão provavelmente as restrições.
Na verdade, quando há apenas algumas companhias, é muito maior a
probabilidade de haver um conluio oligopolista, produzindo padrões
de comportamento semelhantes em várias companhias.
Em certas indústrias, o poder de mercado das corporações oli-
gopolistas opera no plano internacional. Um exemplo clássico é o das
chamadas “Sete Irm ãs” da indústria internacional do petróleo
(Sampson, 1975). As sete “grandes” companhias de petróleo (cinco
de propriedade de norte-americanos, uma de britânicos e uma anglo-
holandesa) dominaram a indústria mundial do petróleo da década de
1920 até o final da década de 1960. Os preços eram fixados de comum
acordo entre as companhias. Isso significava que as diferenças nos
custos marginais e de transporte não se refletiam coerentemente nos
preços, o que levou a uma situação em que as companhias petrolíferas
H egemonia GLOBAL E O PODER ESTRUTURAL DO CAPITAL ♦ 171

tinham condições de exercer poder sobre muitas áreas do Terceiro


Mundo. Esse exemplo ilustra também a inter-relação das formas di­
retas de poder econômico e militar. As incursões de companhias pe­
trolíferas ocidentais - principalmente da Inglaterra - no Oriente Mé­
dio entre 1900-1940 tiveram como base de sustentação o poder militar
britânico na região. Os interesses econômicos da British Petroleum e
da Shell, e os interesses de segurança do Império Britânico andavam
de mãos dadas. A British Petroleum pressionou o governo inglês para
uma ação militar quando seus bens no Irã foram nacionalizados em
1953.0 governo inglês pediu ajuda, então, à Agência Central de Inte­
ligência (CIA) norte-americana para garantir o retorno do xá ao po­
der. A desnacionalização levou a British Petroleum a recuperar parte
de seus antigos bens, indo o resto para as corporações norte-ameri­
canas.
Até agora falamos de corporações transnacionais pressionando
seus governos de origem para conseguir políticas favoráveis a suas
operações no exterior. Esse tipo de pressão também acontece em rela­
ção aos governos que sediam subsidiárias, bem como às organizações
internacionais, como o Banco Mundial (Payer, 1982). As redes finan­
ceiras transnacionais são particularmente bem desenvolvidas, e as re­
lações entre bancos comerciais, bancos centrais, Fundo Monetário
Internacional (FMI) e Banco Mundial são ilustradas num grande
número de fóruns internacionais, como, por exemplo, o Bank for
International Settlements (Banco de Compensações Internacionais).
Os padrões internacionais de interação da elite - entre corpo­
rações, funcionários do governo, burocratas e membros de organiza­
ções internacionais e as redes que eles geram - não foram inteira­
mente investigados ou compreendidos, ao menos em comparação
com as redes nacionais. Entretanto, algumas formas de organização,
como as reuniões de Bilderberg (iniciadas em 1954) e a Comissão
Trilateral (formada em 1973), mostram um interesse explícito em
fomentar a interação social, as redes e uma perspectiva em comum
entre os poderes internacionais constituídos dos mais influentes paí­
ses capitalistas. Interação semelhante é encontrada no interior de or­
ganizações intergovernamentais, como a Organização para a Coope­
ração e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que organiza confe-
172 ♦ Stephen G ill e D avid Law

rendas e iniciativas de pesquisa. É importante notar a existência de


elementos com uma perspectiva comum, ao menos no que diz respei­
to ao papel das corporações internacionais e da iniciativa privada, que
perpassa em todos esses fóruns institucionais. Embora a pesquisa so­
bre aspectos de consciência estratégica e formação de ideologia no
plano da elite ainda esteja engatinhando, alguns trabalhos identifica­
ram a maneira pela qual os empreendimentos e os líderes do governo
de diferentes países procuram desenvolver uma visão comum sobre
as condições gerais de existência da ordem internacional, ainda que
nenhuma seja homogênea em todas as questões. Existe muita discus­
são sobre uma série de questões-chave, como o Estado de bem-estar,
as relações Oriente-Ocidente e a regulamentação do capital global e
dos mercados de câmbio (Gill, 1990). Mas o que estamos sugerindo é
que, durante as décadas de 1970 e 1980, a ênfase, certamente em
relação à política econômica, passou a ser a definição das questões e
conceitos, a qual é mais congruente com os interesses de larga escala
do capital transnacional.7

v Duas citações ajudam a entender isso. Paul A. Volcker (1985), ex-presidente


do Conselho de Administração do Banco Central dos Estados Unidos (1979-
1987), sintetizou o que, em meados da década de 1980, tornou-se uma
perspectiva comum entre os políticos. “Existe [um] elemento de estratégia
comum [...] [que tem sido persistente] há alguns anos [...] [envolve] mais
ênfase na orientação de mercado das políticas econômicas, mais preocupação
e esforço para reduzir a proporção do governo no PIB, mais ênfase na ini­
ciativa privada. É óbvio que isso corresponde a muita retórica e oratória nos
Estados Unidos. Mas o que é realmente impressionante é a retórica c a ora­
tória na França, que segue esse tipo de orientação em suas políticas. Isso é ver­
dade até em grande parte do mundo em desenvolvimento” (Volcker, 1985).
Walter Wriston, o papa dos banqueiros internacionais norte-americanos,
observa que “não há nada que os políticos possam fazer [...] [com relação
ao novo] patam ar de informação; a sociedade intensiva em informação julga
[a responsabilidade política] pela forma como nossas políticas são percebidas
pelos mercados internacionais [...] é um novo mundo e o conceito de sobe­
rania está mudando. Politicamente, o novo mundo é um mercado integrado
no qual [...] [você] não tem como controlar o que seu povo escuta [...] nem
o valor de sua moeda [...] nem seus fluxos de capital. A idéia do direito inter­
nacional do século XV morreu [...]. É como o limite de três milhas num
mundo de mísseis balísticos intercontinentais” (apud Frieden, 1987, p. i 15).
H egemonia global e o poder estrutural do capital ♦ 173

As pessoas que trabalham em redes transnacionais são cada


vi-/, mais bem servidas por uma série de periódicos internacionais,
. nino The Financial Times, The Economist, The Far Eastern Economic
Ucview e The Wall Street Journal. O processo de interação e construção
de redes da elite ajuda a moldar a pauta das políticas estatais que afe-
i,im a operação do capital transnacional. Assim como as organizações
internacionais aceitam um quadro de idéias que favorecem os inte-
iesses do capital, é provável que exerçam influência e, às vezes, até
pressionem (como em relação às condições impostas pelo FMI para
seus empréstimos) os governos nacionais de forma semelhante àque-
l,i empregada pelas corporações. Vários autores sugeriram que os ele­
mentos acima mencionados estão se reunindo para produzir uma
t lasse ou fração de classe capitalista “transnacional”, com sua própria
lorma de consciência de classe “estratégica” (Cox, 1979; van der Pijl,
1984; Gill, 1990). Essa consciência envolve um horizonte temporal
ile longo prazo e o esforço de considerar as condições gerais sobre as
quais o capital transnacional opera, bem como questões mais especí­
ficas, imediatas e de “crises administrativas”. No entanto, existe uma
variação nos horizontes temporais das diferentes frações do capital
transnacional, com o capital financeiro privado mostrando freqüen-
temente uma perspectiva mais de curto prazo, que talvez seja menos
“estratégica”. Um bom exemplo desta última afirmação é a maneira
como grandes bancos comerciais, em seus esforços de reciclar o exce­
dente de petrodólares, se apressaram em fazer empréstimos para paí­
ses menos desenvolvidos em meados da década de 1970. No entanto,
pode-se questionar se a consciência que os governos dos principais
países capitalistas tinham dos perigos desses empréstimos era muito
maior do que a dos bancos (Frieden, 1981; ver também Lipson, 1981;
Pfister e Suter, 1987).

O poder estrutural do capital: a dimensão global

Tratamos anteriormente da importância do clima empresarial


ou de investimentos e do conceito de confiança nos empreendimen­
tos. Hoje, o capital tem tanta mobilidade internacional, principal­
mente entre as principais economias capitalistas, que o “clima de
174 ♦ S tephen G ill e D avid Law

investimentos” de um país pode ser julgado pelas corporações com


base no clima que prevalece em outros lugares. As corporações trans-
nacionais avaliam rotineiramente liberdades jurídicas (como as rela­
cionadas à remessa de lucros), custos de produção, relações de traba­
lho, estabilidade política e concessões financeiras oferecidas por di­
versos países. Isso é conhecido, popularmente, como “análise dos ris­
cos políticos” (Schollhamer, 1978). Examinam também o tamanho e
o crescimento potencial do mercado de um país. Como resultado, a
liberdade de manobra dos governos sofre cada vez maiores restrições
das políticas econômicas de outros Estados, bem como das decisões
sobre investimentos do capital com mobilidade internacional Na
verdade, essas avaliações são feitas diariamente, ou mesmo de hora
em hora, por analistas de mercado e investidores dos setores finan­
ceiros.
As atitudes francesas diante do investimento estrangeiro ten­
deram a ser extremamente nacionalistas, especialmente sob De Gaulle.
Na década de 1960, foi adotada uma postura de resistência à entrada
de empresas estrangeiras, principalmente as norte-americanas. Havia
o medo de que as transnacionais norte-americanas acabassem sendo
um cavalo de Tróia que solaparia a soberania econômica da França.
Apesar disso, no final daquela década, o governo francês achou que
seria de bom alvitre adotar uma posição mais receptiva e flexível em
relação a empresas estrangeiras de indústrias de alta tecnologia. A ex­
clusão dessas empresas da França levou unicamente à sua instalação
num membro vizinho da Comunidade Européia (CE), onde pode­
ríam evitar barreiras alfandegárias e suprirem o mercado francês. Sob
o governo socialista do presidente Mitterand, na década de 1980, as
atitudes da França se tornaram mais “flexíveis”, chegando ao extremo
de receber de braços abertos algumas companhias japonesas, depois
de anos de queixas contra as incursões do Japão. Uma flexibilidade
semelhante foi também manifestada por uma série de países naciona­
listas, mercantilistas e até comunistas, como a China, e por grande
parte do mundo em desenvolvimento (Centro das Nações Unidas so­
bre Corporações Transnacionais, 1988). Essa flexibilidade propicia,
em grande medida, que as transnacionais joguem um governo contra
outro em sua busca de concessões. Na verdade, em alguns países, di-
H egemonia GLOBAL E O PODER ESTRUTURAL DO CAPITAL ♦ 175

fe rentes regiões costumam competir por esse investimento estrangei­


re). O fenômeno é visível em países de características tão diversas
quanto os Estados Unidos, a Inglaterra e a China. No plano nacional,
uma questão-chave a ser pesquisada é até que ponto o governo central
pode e vai regulamentar a competição pelo investimento estrangeiro
entre as diversas regiões (e suas administrações estaduais ou m uni­
cipais). Por exemplo, no caso dos Estados Unidos, o federalismo difi­
culta, em muito, a criação e a solidificação de uma ampla política na­
cional unificada. Por sua vez, essa situação permite ao capital estran­
geiro (e também ao capital nacional) jogar um estado contra o outro,
aumentando seu poder relativo de barganha.
No plano internacional, o poder de barganha das corporações
Iransnacionais poderia ser reduzido se a maioria dos governos nacio­
nais conseguisse coordenar suas regulamentações e concessões fi­
nanceiras. No entanto, mesmo aqueles países ricos e de mentalidade
supostamente semelhante, reunidos numa entidade econômica cole-
(iva como a CE, não conseguiram discutir esse objetivo a sério, e me­
nos ainda colocá-lo em prática. Mesmo que os governos de alguns
listados-membro estivessem inclinados a isso, dadas as regras esta­
belecidas pela CE, é praticamente certo que haveria outros (como a
Inglaterra) que se oporiam a tais medidas e vetariam qualquer inicia­
tiva política desse tipo. Ainda não se sabe se o processo de unificação
política e econômica da Comunidade Econômica Européia (CEE)
vai mudar essa situação (Gill, 1992). Numa era de companhias trans­
nacionais, os Estados podem ser obrigados a adotar políticas neomer-
cantilistas para terem melhores condições de competir pelo investi­
mento estrangeiro direto, a fim de fortalecerem seu poder, por meio
de qualificações, capital e tecnologia, os quais reforçam o poder estru­
tural das corporações transnacionais em contraste com as empresas
nacionais, poder que deve muito à divisão do mundo em vários Es­
tados. Com isso, a ameaça de nacionalização é menos perigosa para
uma empresa transnacional, pois um único país provavelmente ex-
propriaria apenas uma pequena parte de seus bens. A empresa exclu­
sivamente nacional está mais à mercê de seu próprio governo.
Já vimos como a confiança das corporações num governo pode
depender de suas políticas econômicas, incluindo suas políticas
176 ♦ Stephen G ill e D avid Law

macroeconômicas. Idéias sobre “saneamento das finanças” e “com­


bate à inflação” restringem os governos. Essas idéias podem se propa­
gar de um país para outro. A aplicação de tais políticas também pode
atrair mais investimento estrangeiro (quando as outras variáveis per­
manecem iguais). A resposta das corporações a essas políticas e a ou­
tros determinantes do clima de investimento costuma ser gradual e
estender-se por vários anos. Como já observamos, o capital financeiro
pode reagir às políticas governamentais - ou a políticas previstas -
muito mais depressa do que o capital produtivo. Com a liberalização
dos fluxos de capital entre as grandes economias capitalistas (e entre
alguns dos países menos desenvolvidos), a reação do capital finan­
ceiro não precisa ser a de adiar o investimento (como numa “greve de
investimento”). Em vez disso, imensas somas de dinheiro podem sair
rapidamente de um país para refúgios mais seguros, podendo gerar
uma crise na balança de pagamentos sob taxas de câmbio fixas, ou
uma crise no câmbio de moedas estrangeiras (queda na taxa de câm­
bio), quando essas taxas são flutuantes. Uma queda na taxa de câmbio
traz consigo riscos maiores de aumento da inflação, principalmente
numa economia pequena e aberta. Por isso, a mobilidade internacio­
nal do capital financeiro pode obrigar rapidamente os governos que
se desviam de políticas vistas como adequadas pelo “mercado” a m u­
dar de curso. Por exemplo, os governos podem ser levados a aumentar
as taxas de juros, adotando uma política monetária mais rigorosa, e,
com isso, ocasionar um aumento do desemprego para compensar
uma crise na moeda circulante ou de pagamento. Na verdade, foi exa­
tamente isso o que aconteceu na Inglaterra em 1976, mesmo que,
nesse caso, o governo trabalhista tenha conseguido responsabilizar o
FMI (em geral, a mídia culpava os sindicatos) por impor suas políti­
cas de austeridade. Contudo, com um pano de fundo de inflação ele­
vada, a Inglaterra teria de mudar suas políticas nesse sentido de qual­
quer maneira, ou haveria um colapso ainda maior no valor interna­
cional da libra esterlina. O governo socialista francês mudou de curso
depois de 1981 por causa dos mesmos tipos de pressão internacional
(Cobham, 1984).
Com base no exemplo acima, é tentador reinterpretar o slogan
de Margaret Thatcher de forma a que se transforme em “não há alter-
HEGEMONIA GLOBAL E O PODER ESTRUTURAL DO CAPITAL ♦ 177

nativa”, a longo prazo, para oferecer um clima empresarial atraente


<lc acordo com os padrões internacionais. Em outras palavras, o con­
trole da inflação seria apenas um aspecto de uma doutrina mais am­
pla. Já observamos como os grandes Estados capitalistas adotaram, do
litrai da década de 1970 até meados da década de 1980, políticas ma-
<rocconômicas baseadas na premissa do “combate à inflação”. Uma
explicação para a adoção de tais políticas é, obviamente, o poder dos
mercados. Mas não há nada de inevitável ou automático numa deter­
minada reação política a mudanças nas condições do mercado ou no
<lima empresarial. O que pode ter sido fundamental para a adoção
das políticas monetaristas foi a aceitação crescente de determinada li­
nha de atuação pelos líderes políticos, bem como pelos bancos cen-
t rais e privados, o que significa que nenhuma alternativa razoável (ao
monetarismo do mercado) tenha realmente sido considerada, exceto
em um ou dois dos principais Estados capitalistas, como a França (ver
McCracken et al., 1977; Pinder et al., 1977; Putnam e Bayne, 1984).
( )nde essas políticas foram adotadas com pouca reflexão ou, mais
i caiisticamente, devido à falta de credibilidade em alternativas possí­
veis, o poder do capital chega a ter status hegemônico. Excluindo os
listados Unidos, no grupo dos principais países capitalistas, esse pro­
cesso talvez tenha ido mais longe no laboratório socioeconômico da
Inglaterra de Thatcher, embora mesmo nesse período, a ligação, por
exemplo, com o National Health Service (Sistema Nacional de Saú­
de) fosse considerável (Grant e Sargent, 1987). Não estamos sugerin­
do que tenha existido uma hegemonia transnacional no século XX.
Mas as forças sociais baseadas na livre iniciativa e nos mercados aber­
tos que constituem tal hegemonia tornaram-se mais proeminentes
na década de 1980. Entretanto, a essa altura, surge a questão de quem
são os beneficiários dessa hegemonia.
O impacto da maior mobilidade do capital, e também das re-
cessões, acabou favorecendo o grande capital transnacional em rela­
ção ao capital nacional. O capital transnacional não é completamente
dependente das condições econômicas de um único país da mesma
forma como, obviamente, o são as companhias nacionais. Quando há
uma recessão num país, é mais fácil que as corporações transnacio-
nais sobrevivam ou prosperem do que as companhias nacionais. Um
178 ♦ S tephen G ill e D avid Law

notável exemplo disso foi a capacidade de a Ford Motor Company ter


sobrevivido às grandes perdas em suas operações nos Estados Unidos
durante a recessão do início da década de 1980 graças aos lucros das
subsidiárias no além-mar, tendência que se mantém. Na verdade, o
processo de reestruturação por meio do qual empresas frágeis abrem
falência, ou são absorvidas por outras mais fortes, provavelmente re­
sultará sistematicamente em benefício para o capital transnacional,
principalmente no setor manufatureiro (Centro das Nações Unidas
sobre Corporações Transnacionais, 1988). A Inglaterra da década de
1980 é um claro exemplo desse processo (Young et al., 1988).
Desde a Segunda Guerra Mundial o poder estrutural do capital
transnacional aumentou não só em relação ao dos governos (exceto
talvez nos setores primários), mas também em relação ao do trabalho
organizado.8 Empresas transnacionais podem ameaçar os sindicatos
com o fechamento de fábricas e a transferência de investimentos para
outros países, o que não ocorre com as empresas nacionais. As nações
com movimentos trabalhistas relativamente fracos ou politicamente
controlados tenderão - quando as demais variáveis são iguais - a
atrair investimento em prejuízo dos países com movimentos traba­
lhistas fortes e independentes. Por exemplo, parte da indústria eletrô­
nica norte-americana mudou-se para países asiáticos, como Cinga-
pura e Taiwan, na década de 1960. Essas tendências também estiveram
presentes no interior de determinados países capitalistas, como os Es­
tados Unidos das duas últimas décadas, com a mudança de fábricas
para estados relativamente pouco sindicalizados (os estados do Sul e

s Países com elevadas concentrações de reservas minerais são casos especiais.


Mais cedo ou mais tarde, as firmas transnacionais procurarão entrar em
acordo com os governantes dessas nações, cujo poder direto de controlar o
acesso aos recursos autóctones aum entou desde a descolonização. Bons
exemplos disso são a Líbia e a Arábia Saudita. Aqui, o paradoxo aparente é
que, embora o poder direto (do mercado) de alguns relativamente poucos
Estados do Terceiro Mundo no setor de mineração tendeu a aumentar com
a independência política, o poder estrutural do capital transnacional em
relação aos países do Terceiro Mundo em geral tornou-se maior. Esse poder
estrutural afeta todos os países do Terceiro M undo no que diz respeito à
maior parte da indústria.
H egemonia global e o poder estrutural do capital ♦ 179

do Sudoeste dos Estados Unidos, chamados de sunbelt), afastando-se


do Nordeste e do Meio-Oeste (rustbelt), onde a organização sindical é
i radicionalmente forte. A questão mais importante, aqui, é que a ‘'no­
va divisão internacional do trabalho”, decorrente do fato de algumas
( orporações manufatureiras terem se instalado seletivamente em
países recém-industrializados, é apenas uma das manifestações do
poder crescente do capital transnacional em relação ao capital nacio­
nal e ao trabalho, principalmente nos Estados capitalistas centrais.
Por sua vez, é bom lembrar que algumas das corporações mais
bem-sucedidas dos países recém-industrializados se transnacionali-
zaram e investiram nos países capitalistas centrais (Centro das Nações
Unidas sobre Corporações Transnacionais, 1988, p. 2). Mas é preciso
não exagerar a importância do êxodo das corporações manufatureiras
dos países centrais: houve alguma internacionalização, mas esta tem
sido freqüentemente superestimada (Gordon, 1988). Talvez isso
ocorra porque grande parte do potencial de investimento estrangeiro
direto seja desestimulada por condições políticas e econômicas ad­
versas. Também há evidências recentes de que mudanças nas comu­
nicações, nas tecnologias de produção e nos sistemas de organização,
bem como a necessidade de uma base em cada um dos três maiores
mercados, estejam fazendo as indústrias retornarem aos Estados Uni­
dos, à CE e ao eixo do Pacífico (Centro das Nações Unidas sobre Cor­
porações Transnacionais, 1988). A questão principal não é se o capital
vai fugir para os países recém-industrializados por causa da militân­
cia sindical, mas sim que ele se mudará para outros países, muitas ve­
zes para as grandes nações capitalistas centrais.
No passado, o poder do capital implícito na “nova divisão in­
ternacional do trabalho” pode ter sido contrabalançado em termos.
Nas décadas de 1950 e 1960, o trabalho organizado era relativamente
mais forte nos Estados centrais e parecia ter potencial para se organi­
zar internacionalmente. Na década de 1980, tal potencial foi substan­
cialmente solapado. Trabalhadores sindicalizados de diversos países
encontraram-se em posição semelhante à de seus governos, isto é,
competindo para atrair investimentos estrangeiros. Níveis muito mais
elevados de desemprego colocaram-nos na defensiva (Gordon, 1988).
Na Inglaterra, depois que a resistência dos sindicatos à reorga­
180 ♦ Stephen Gill e D avtd Law

nização do local de trabalho perdeu força na década de 1980, houve


uma entrada substancial de investimentos estrangeiros diretos, gran­
de parte deles oriunda do Japão e dos Estados Unidos. Em certa medi­
da, esse processo foi motivado também pelo fato de algumas empresas
desejarem conquistar posição mais sólida num país politicamente
receptivo da CE antes da criação do mercado interno integrado em
1992. Também houve certo “retorno” da indústria eletrônica aos Es­
tados Unidos, em parte porque os sindicatos norte-americanos esta­
vam enfraquecidos, em parte por causa da introdução de novos siste­
mas de organização e de produção e distribuição, como os sistemas de
estoque just-in-time (JIT), que exigem que os fornecedores de com­
ponentes estejam perto das montadoras e dos mercados finais (Cen­
tro das Nações Unidas sobre Corporações Transnacionais, 1988, p. 8-9).
No tocante ao poder estrutural do capital, o principal contraste
no plano internacional é a mobilidade relativa do capital, bem como
a imobilidade relativa do trabalho na maioria dos setores de atividade;
em relação a esta, é necessário fazer uma ressalva para o trabalho
qualificado e muito especializado, pois este costuma ter mobilidade
internacional, ao menos entre os países capitalistas. Em certas indús­
trias de tecnologia avançada (nas quais predominam as corporações
transnacionais em geral), os Estados Unidos conseguiram atrair ta­
lentos (cientistas, engenheiros, administradores) de muitos países.
Pode-se dizer que o mesmo ocorre na maioria das “indústrias” de co­
nhecimento intensivo em relação à academia. Esse trabalho qualifi­
cado é fundamental para o vigor econômico tanto dos países quanto
das transnacionais. Até agora, a maior parte das atividades de conheci­
mento intensivo (como pesquisa e desenvolvimento) tendeu a ser
realizada no país de origem da companhia transnacional. Por isso,
algumas características nacionais continuaram a sobressair na cultu­
ra empresarial de muitas dessas companhias. Como sugeriu Robert
Cox (1983), a incorporação desses trabalhadores qualificados é essen­
cial para a construção de um bloco histórico transnacional, isto é,
para a criação de vínculos além das fronteiras nacionais e entre as
classes, de modo a gerar as condições para uma hegemonia do capital
transnacional. Fundamental nesse contexto é o que Gramsci chama­
va de “intelectuais orgânicos”, isto é, aqueles capazes de teorizar as
H egemonia global e o poder estrutural do capital ♦ 181

. ondições de existência do sistema como um todo, sugerirem políti-


. .is e justificativas para essas políticas e, se necessário, implementá-
l.is. Esses intelectuais precisam combinar tanto uma visão estratégica
quanto a capacidade técnica e política para colocar essa visão em
|Hátíca (Gill, 1986a, p. 210-216).
Essas mudanças podem ser interpretadas como sinais do surgi­
mento de um novo regime de acumulação. Na Inglaterra, a mudança
Ioi acompanhada de legislação sindical e também de demonstrações
sobre a determinação do governo de derrotar a organização do traba-
Iho durante a prolongada greve dos mineiros de 1984-1985. O gover­
no procurou modificar as atitudes dos sindicatos em relação a um.
"novo realismo” (Crick, 1985). Divergências a respeito da vantagem
do crescimento do sindicato único e dos acordos antigreve levaram a
i isões no movimento dos trabalhadores. Também ocorreram cisões
semelhantes em sindicatos de trabalhadores norte-americanos, por
causa de um sistema duplo de salários em vários setores. Trabalha­
1

dores novos recebem menos e têm menos estabilidade no emprego


d)> que trabalhadores antigos que realizam as mesmas tarefas. A situa­
ção do trabalho organizado nesses países é diferente daquela da Euro­
pa Ocidental, onde os sindicatos em geral se saíram melhor.
Embora a influência do trabalho organizado tradicional pareça
menor no bloco histórico transnacional que está surgindo, esse fator
pode não significar, necessariamente, um bloco muito mais limitado
do que aquele dos anos de boom do pós-guerra. O declínio dos sindica-

I los nos últimos vinte anos tem sido associado não só à internacionali­
zação da produção, mas também ao deslocamento setorial da ativida­
de econômica das manufaturas “tradicionais” para o setor de serviços.
Na verdade, esse deslocamento constitui
[...] a modificação mais im portante no investim ento direto
internacional dos últim os dez a quinze anos. E nquanto
apenas um quarto do investim ento direto estrangeiro foi
feito no setor de serviços no início da década de 1970, essa
parcela aum entou para 40% (US$ 300 bilhões) das reservas
m undiais e cerca de 50% (USS 25 bilhões) dos fluxos
anuais em m eados dos anos 1980 [...] concentrando-se
nas economias de mercado desenvolvidas. (Centro das N a­
ções Unidas sobre Corporações Transnacionais, 1988, p. 42)
182 ♦ S tephen G ill e D avid Law

Ainda que esse deslocamento setorial, e a transformação inter­


nacional à qual está ligado, pareça ter criado obstáculos para as pers­
pectivas de um sindicalismo internacional baseado nas organizações
de trabalhadores tradicionais, ele fez surgir a perspectiva de uma in­
corporação mais ampla de trabalhadores e de outros interesses, inclu­
sive governos estrangeiros, num bloco histórico transnacional. É pos­
sível enumerar quatro motivos principais para que isso tenha ocorri­
do. Primeiro, dada a natureza intangível e perecível do setor de servi­
ços, muitas subsidiárias prestadoras de serviços realizam atividades
semelhantes às da companhia original e oferecem salários maiores do
que seus concorrentes nacionais; com isto, os níveis de competência
não ficam centralizados na matriz. Segundo, os níveis de competên­
cia propagam-se para os países hospedeiros e representam considerá­
vel transferência de conhecimentos e tecnologia. Terceiro, as transna-
cionais estão construindo, rapidamente, redes de filiais. Por último,
essas atividades parecem oferecer substancial crescimento das opor­
tunidades de emprego no futuro (Centro das Nações Unidas sobre
Corporações Transnacionais, 1988, p. 45-47).
Ao mesmo tempo, a proporção de mulheres na força de traba­
lho aumentou drasticamente. Além do trabalho extremamente quali­
ficado, as mulheres e muitos outros operários podem ainda ser incor­
porados ao novo bloco. Essa incorporação pode se dar por meio de seu
vínculo ou envolvimento com pequenos negócios familiares e traba­
lho domiciliar, num novo tipo deputting-out system. O controle sobre
esse tipo de sistema é facilitado pelas novas tecnologias de comunica­
ção e informática e está ligado a sistemas just-in-Hme, nos quais os fa­
bricantes japoneses de automóveis foram pioneiros.
No plano ideológico, está ocorrendo uma luta pelos “corações
e mentes” de números crescentes de integrantes não tradicionais da
classe operária, os quais talvez se considerem classe média, mesmo
que a maior parte de sua renda atual derive da utilização de sua força
de trabalho, e não de propriedades ou rendimentos financeiros. Uma
implicação dessas afirmações feitas é que ainda há muito por saber a
respeito do impacto político das mudanças ocorridas na estrutura in­
dustrial, no processo de trabalho e no grau de mobilidade do trabalho.
Essas mudanças precisam ser relacionadas à consolidação de uma
H egemonia GLOBAL E O PODER ESTRUTURAL DO CAPITAL ♦ 183

cwltura de consumo individualista e às possibilidades de ação coletiva


por parte de trabalhadores e consumidores. Mais especificamente,
parece provável que o regime de acumulação que está surgindo será
dominado pela indústria da informática e pelas indústrias que utili­
zam conhecimento intensivo. Portanto, a organização do processo de
li abalho, a localização geográfica e a perspectiva ideológica de traba-
Ihadores-chave nessas áreas são fundamentais para qualquer tipo de
mudança de peso. Qualquer bloco histórico transnacional necessita­
rá, para ter êxito, incorporar amplamente esses trabalhadores relativa­
mente privilegiados.
Assim, conceber blocos históricos em termos puramente ma-
lcriais seria um grande erro, uma vez que as linhas gerais de qualquer
novo regime de acumulação serão definidas em parte pelo clima ideo­
lógico nos planos nacional e global. Por isso, os avanços nos meios de
comunicação e na educação podem ter grande importância a longo
prazo. Além da geração de tecnologias e de conhecimento que permi­
tem a coordenação da atividade econômica e política, esses setores de
atividade também encarnam estruturas ideológicas e materiais que
aluam cada vez mais numa base mundial, tal como a propaganda e o
patrocínio, envolvendo tanto os esportes profissionais e amadores
quanto atividades culturais.
As instituições educativas e os meios de comunicação usual­
mente têm estado sob controle nacional. Na verdade, historicamente,
muitos centros de educação superior, bem como corporações de tele­
comunicações, estações de rádio e canais de televisão, faziam parte do
setor público. Contudo, por causa dos novos progressos tecnológicos
(satélites, redes a cabo para processamento de informação), é possível
a esses setores desenvolverem-se de maneira muito mais global. As
economias de escala na produção de programas de televisão trouxe­
ram tantas vantagens competitivas para grandes empresas ocidentais
de comunicação de massa - principalmente as norte-americanas -
que os seriados Dynasty e Dallas foram apresentados, em 1988, em
108 países. A importância dessas economias de escala pode aumentar
com o crescimento da radiodifusão via satélite. O custo de construção
e lançamento dos satélites é tão grande que muitas vezes é dividido
entre consórcios internacionais, tendência relacionada ao desenvol­
184 ♦ Stephen G ill e D avid Law

vimento de outros setores em que os consórcios estão proliferando


(Centro das Nações Unidas sobre Corporações Transnacionais, 1988,
p. 3). As estações de satélite podem enviar sinais a um grande número
de países ao mesmo tempo, acabando com as tentativas nacionais de
controlar o acesso aos meios de comunicação estrangeiros. Nesse
contexto, empresas transnacionais de mídia têm poder de mercado
bem maior do que o de suas concorrentes nacionais, poder que prova­
velmente aumentará em mais e mais países, com o uso difundido do
inglês como primeira ou segunda língua. Com a disseminação do in­
glês como principal meio internacional para as comunicações da
educação superior, o alcance das corporações transnacionais também
é imenso, principalmente se considerarmos que as maiores universi­
dades c institutos de pesquisa dos Estados Unidos já atuam em vários
países. As possibilidades do fortalecimento dessas tendências aumen­
tam com o movimento em direção a um mercado internacionalmen­
te competitivo tanto na educação superior quanto nos meios de co­
municação. Por esses motivos, os defensores da hegemonia capitalis­
ta, principalmente da hegemonia transnacional, têm interesse em
apoiar políticas favoráveis ao rápido crescimento da radiodifusão via
satélite. É provável que procurem desacreditar as instituições nacio­
nais públicas de radiodifusão, ou estabelecer vínculos com elas para

.v«rU!l*#ihtól
remodelar a produção de notícias e de propaganda.

O poder do capital: limites e contradições

Há um grande número de forças sociais que podem se contra­ !4»


por aos interesses do capital em geral. Ao examinar algumas dessas
forças, estamos particularmente interessados naquelas que podem
servir para limitar o aumento do poder do capital transnacional. As
contradições que afetam a relação entre Estado e sociedade civil, tanto
no plano nacional quanto no plano global, são essenciais para a análi­
se dessas forças sociais.
Não há estagnação nem uniformidade no capitalismo. Para
que o capital se reproduza, precisa usar a força de trabalho de maneira
lucrativa: o capital está numa relação dialética de classe com o traba­
lho. Como já observamos, essa relação se desenvolve no interior de
H egemonia globai. e o poder estrutural do capital ♦ 185

um regime de acumulação que provê as condições mais gerais que


estabelecem o alcance e as oportunidades de investimento e cresci­
mento. Assim sendo, a forma e o caráter das instituições do Estado,
i.mto em seu sentido estrito quanto no sentido amplo, são elementos
i entrais de qualquer regime de acumulação. Como observamos im­
plicitamente em nossa discussão anterior sobre Lindblom, isso levan-
i;i a questão da autonomia relativa do Estado. Lindblom sugere que,
num sistema capitalista “poliárquico”, o Estado tenderá a servir os
interesses do capital. Portanto, o que está em jogo são as dimensões
segundo as quais essa relação pode variar de forma a impor limites ao
I>oder do capital. Um eixo de variação é a postura do Estado em relação
.10 capital nacional e ao capital transnacional. Ou seja, qual o equilí­
brio de forças entre nacionalistas e internacionalistas dentro do con­
junto de instituições estatais? Quais instituições estão mais associadas
.1 idéias e políticas internacionalistas? Quais estão mais ligadas às po-
iiticas mercantilistas? O aparato de um Estado pode estar interna­
mente dividido de modo que não tenha coesão nem coerência nas
suas políticas econômicas externas. Foi o que aconteceu nos Estados
l Jnidos nas décadas de 1920 e 1930 (Frieden, 1988).
O corolário lógico disso, do ponto de vista dos liberais econô-
micos que procuram aumentar 0 poder do capital, é a mudança nas
orientações e perspectivas da burocracia, ao mesmo tempo em que se
desmantelam as bases de sustentação de setores industriais em declí­
nio. Por exemplo, incentivos que estimulem a eficiência e a competi-
1 ao dentro do setor público, além da redução da seguridade social e
do emprego serviríam para debilitar as forças que apoiam as formas
dc mercantilismo assistencialista discutidas acima. O método japo­
nês (cada vez mais usado no Reino Unido) é o do revezamento contí­
nuo nos cargos de liderança do setor privado e do governo, de modo a
deixar os burocratas mais intensamente imbuídos dos valores de
mercado, diluindo as diferentes identidades profissionais desses car­
gos. Anos de atuação profissional no serviço público antes de assumir
cargos no setor privado podem fortalecer a orientação nacional da
iniciativa privada: a expressão “Japan Incorporated” reflete em parte
esse estado de coisas. Por isso, sob determinadas circunstâncias, esse
vics profissional corporativista pode fortalecer as barreiras culturais e
institucionais à internacionalização.
186 ♦ Stephen Gill e D avid Law

Em alguns países em desenvolvimento, surgiram configura­


ções semelhantes entre interesses industriais e estatais, os quais se or­
ganizaram freqüentemente em torno de um conceito de “indústrias
estratégicas” sob controle nacional, conceito que, às vezes, como na
índia, tinha por base o modelo soviético de planejamento:
[...] o crescimento do setor público com freqüência esteve
ligado a um a ideologia nacionalista, nascida às vezes de lu ­
tas pela independência. Em países com o a índia, idéias
nacionalistas e socialistas fundiram -se. As idéias nacionalis­
tas favoreceram o crescimento dos gastos militares e o es­
tabelecimento da produção de armas. O desenvolvimento
m ilitar-industrial patrocinado pelo Estado tornou-se fre­
qüentem ente uma característica de alguns países m enos
desenvolvidos [...]. No entanto, essa pode ser um a fase de
transição, refletindo o atraso [econômico] de alguns países
[...] na época da independência. (Gill e Law, 1988, p. 97)

Um dos resultados da conquista da independência em países


como a índia foi a desconfiança arraigada em relação ao capital es­
trangeiro e uma determinação de desenvolver o capital nacional (pri­
vado ou público), se necessário à custa de grandes investimentos pa­
gos pelos consumidores (Nayar, 1983). A experiência histórica e a
forma e qualidade da relação Estado-sociedade civil são, portanto,
considerações fundamentais para compreender o quanto os limites
ao poder do capital, principalmente do capital transnacional, podem
variar de acordo com os países. Seria pouco realista esperar a mesma
magnitude e grau de limitações ao poder do capital em todas as na­
ções; esta é, em última instância, uma questão empírica que depende
da relação entre Estado e sociedade civil.
No plano global, os limites ao poder do capital transnacional
estão fundados nas contradições entre o que, em termos gramscianos,
seria chamado de sociedade política internacional embrionária e
uma sociedade civil internacionalizada ainda subdesenvolvida, po­
rém mais perceptível. Os aspectos internacional e nacional dos limi­
tes ao poder do capital estão intimamente ligados. Por exemplo, no
que diz respeito à sociedade política, a força do nacionalismo, a preo­
cupação com a segurança e com os interesses do setor militar-públi-
co estão diretamente relacionados à intensidade dos conflitos entre
H egemonia global e o poder estrutural do capital ♦ 187

Estados. Como já observamos, na década de 1930 ocorreu o naciona­


lismo econômico, o militarismo e uma mudança pronunciada em
direção a blocos econômicos regionais. Esses elementos fortalece­
ram a tendência a uma economia política internacional de capitais
nacionais rivais. Por sua vez, os períodos mais “disciplinados” daquilo
que os realistas chamam de liderança hegemônica (a Inglaterra em
meados do século XIX, os Estados Unidos nos vinte e cinco anos se­
guintes à Segunda Guerra Mundial) deram maior abertura aos ele­
mentos “internacionalistas liberais” nas coalizões políticas nacionais
c, por isso, permitiram certo desenvolvimento da sociedade civil na­
cional no plano internacional. Nesses períodos mais liberais, aumen-
lou o poder relativo e estrutural do capital com mobilidade interna­
cional. Esse poder estrutural, porém, declinou entre as duas guerras
mundiais, uma vez que a forma da relação Estado-sociedade civil es­
tava mais circunscrita às fronteiras nacionais.
No entanto, a importância da liderança hegemônica no que
diz respeito ao poder do capital depende fundamentalmente da natu­
reza não apenas da economia política dos Estados dominantes, mas
também das coalizões internas que controlam sua política econômi­
ca internacional. Tanto a Inglaterra quanto os Estados Unidos, além
de capitalistas, também eram a favor de políticas econômicas inter­
nacionais liberais. Se, depois da Segunda Guerra Mundial, o Estado
hegemônico tivesse sido a antiga União Soviética, o poder do capital
tcria sido profundamente afetado, como aconteceu na Europa Orien­
tal. A ampliação da esfera comunista, com a vitória do comunismo
chinês em 1949, aumentou as restrições políticas à mobilidade inter­
nacional do capital, além de tornar as idéias comunistas mais atraen­
tes, principalmente no Terceiro Mundo. Por conseguinte, mudanças
nas políticas propostas pelos Estados comunistas na década de 1980 -
principalmente na União Soviética, Europa Oriental e China -, em
direção a um enfoque mais liberal para a iniciativa privada, os merca­
dos e o comércio internacional, ampliaram muito o poder do capital.
Isso aconteceu porque esses países ofereceram maior liberdade de
ação e maiores possibilidades para o investimento estrangeiro, au­
mentando o número de países e regiões competindo para atrair o ca­
pital estrangeiro.
188 ♦ Stephen Gill e D avid Law

Embora o poder do capital com mobilidade internacional pos­


sa diminuir quando as rivalidades entre Estados são intensas (princi­
palmente entre as grandes potências, como em 1914-1945), o aspecto
estrutural de seu poder deve muito à divisão do mundo em Estados
rivais. Na verdade, a relação entre capital transnacional e Estado tem
um caráter contraditório. Talvez o poder do capital com mobilidade
internacional fosse maximizado por uma confederação mundial,
com os Estados competindo para atrair o investimento estrangeiro
(como ocorre no interior da CE e dos Estados Unidos) e como é prová­
vel que ocorra entre os membros da Comunidade de Estados Inde­
pendentes (CEI). Quanto menor o número de Estados, tanto mais
fácil a cooperação nesse tipo de confederação, pois as comunicações
seriam simplificadas e a tentação de “correr por fora” menos pronun­
ciada, desde que os líderes em questão tenham em comum uma série
de conceitos e definições sobre o funcionamento do mundo e uma
visão do futuro. Quando existe essa visão comum, é mais fácil uma
cooperação substancial entre um grande número de Estados se os re­
cursos do poder estiverem concentrados em relativamente poucos
deles. Essa questão foi desenvolvida no que diz respeito ao forneci­
mento de “bens públicos” internacionais (Snidal, 1985). Portanto, é
imprescindível determinar que forças influenciam e moldam a polí­
tica do governo no pequeno número de Estados-chave no sistema ca­
pitalista. Esses Estados têm uma perspectiva “internacionalista” ou
“nacionalista”? Em relação aos sucessores dos Estados do “socialismo
real”, seus grupos políticos dominantes são a favor da participação
nas estruturas do capitalismo global, ou desejam perseguir estratégias
independentes de desenvolvimento?
Do ponto de vista do capital, a questão do número ideal de Es­
tados é dialética. Envolve tensões tanto entre as dimensões “política”
e “econômica” quanto entre as formas diretas e estruturais de poder,
nos planos nacional e global. Como já observamos, o capital precisa
do Estado para obter bens públicos, inclusive leis e ordem; isto é, re­
quer inevitavelmente a atividade coercitiva direta do Estado. Ou seja,
para o capital, o poder estrutural é insuficiente no sentido de manter
sua hegemonia. No plano global, ainda está em aberto a questão de sa­
ber exatamente a forma como esses bens públicos (ou, mais precisa­
H egemonia GLOBAL E O PODER ESTRUTURAL DO CAPITAL ♦ 189

mente, quase públicos) serão definidos: devem ser estipulados por


um Estado hegemônico, agindo, por assim dizer, como substituto de
nm Leviatã global? Ou há outras formas emergentes de autoridade
política internacional que realizam funções semelhantes e talvez
mais legítimas? É por isso que, embora o poder estrutural do capital
com mobilidade internacional possa ser aumentado com a participa­
ção de um grande número de Estados relativamente pequenos, o pro­
blema da ordem política e social no plano global pode permanecer
sem solução.
Contudo, em qualquer configuração histórica, o número de
listados, seja grande ou pequeno, é apenas um fator a influenciar o
grau em que a cooperação e a ordem internacional são possíveis, co­
mo são fundamentais o grau e o tipo de convergência internacional
entre diferentes complexos Estado-sociedade civil (Cox, 1981). Ou­
tro fator - ao qual aludimos acima - é a adequação das teorias e dos
modelos sobre economia política global, e o grau em que ambos con­
seguem constituir a base para um “consenso prático” nas diretrizes
da política entre os Estados-chave do sistema. Mesmo que todas essas
condições sejam satisfeitas, uma cooperação bem-sucedida ainda
exigirá quantidades maciças de informações precisas e atualizadas.
Grande parte dessas informações não está disponível: é controlada
por instituições privadas ou por órgãos públicos que atuam em con­
dições de sigilo. Muitas informações são evidentemente incorretas,
for exemplo, o computo dos números relativos à balança comercial
nacional, feito pelo FMI em 1986, resultou num déficit mundial de
US$ 65 bilhões, em vez do total zero teoricamente necessário.
O que queremos dizer aqui é que não existe uma sociedade
política internacional bem definida e ideal para promover a hegemo­
nia transnacional em escala global, visto que qualquer das alternati­
vas envolve elementos contraditórios. Além disso, a questão é dinâ­
mica e histórica, uma vez que as condições para a criação de estrutu­
ras hegemônicas podem ser muito diferentes daquelas necessárias
para sua manutenção e desenvolvimento. Como Cox (1983) obser­
vou, a necessidade de consentimento político no interior dessas es­
truturas é fundamental “no cerne”, isto é, no centro do sistema, onde
a hegemonia capitalista alcança sua maior intensidade. Ainda está
190 ♦ S tephen G ill e D avid Law

em aberto até que ponto este centro pode se expandir para incorporar
outros Estados e interesses da periferia num bloco histórico interna­
cional emergente. Tentativas de esboçar uma estratégia desse tipo
foram empreendidas pela Comissão Trilateral, em seu conceito de
círculos concêntricos de participação, com os grandes Estados capita­
listas no centro, e, num quadro de referências mais redistributivista,
pelo Relatório Brandt (Report of the Independent Commission on
International Development Issues, 1980).
Nas condições do final do século XX, talvez a melhor situação
possível (para o capital transnacional) seja aquela que existe mais ou
menos na prática no Ocidente, onde o grosso do capital transnacional
está aquartelado num pequeno número de nações economicamente
poderosas, nações onde a hegemonia capitalista está firmemente inse­
rida. Mas essa situação só seria ideai se uma União Soviética “reestru­
turada” se tornasse membro do grupo capitalista central com uma
base política razoavelmente ampla no plano nacional, e realizasse
dolorosas reestruturações econômicas e políticas que acompanha­
riam a transição para o capitalismo. A ironia da história é que, eviden­
temente, as origens da ordem atual devem muito não somente ao do­
mínio dos Estados Unidos no Ocidente, mas também ao desafio sovié­
tico vindo do Oriente - e agora há muitos debates entre teóricos oci­
dentais para saber se o eclipse da União Soviética vai dissolver o “ci­
m ento” das alianças ocidentais e levar a um possível retorno à visão
quase leninista da rivalidade imperialista entre Estados Unidos, Japão
e Europa Ocidental.
Como não existe nenhum Estado socialista hostil, nem Esta­
dos intensamente nacionalistas perseguindo estratégias econômicas
independentes, o capital transnacional talvez prefira que eles não se­
jam grandes, nem geograficamente vizinhos. Portanto, nesse aspecto,
uma mudança na CEI e na China (no sentido de adotar uma atitude
mais receptiva ao capital estrangeiro) é da maior importância. Por sua
vez, o desmoronamento de um Estado grande e relativamente inde­
pendente, principalmente um Estado relutante em liberalizar sua
economia, resultaria num aumento do poder estrutural do capital
transnacional. A índia é um possível caso, embora uma liberalização
restrita tenha ocorrido na década de 1980. Mas outra consideração
H egemonia GLOBAL E O PODER ESTRUTURAL DO CAPITAL ♦ 191

importante para o capital é a manutenção da ordem necessária à sua


.u umulação. Assim, tumultos num país como a índia precisariam
mt medidos para avaliar a possibilidade de guerras regionais num
•.ubcontinente que podería se dividir em vários Estados. Dada essa
perspectiva, um Estado indiano mais federalizado (de acordo com as
linhas norte-americanas) poderia ser mais favorável para o capital
i!.msnacional. Argumentos semelhantes poderiam ser aplicados à di­
versidade étnica dos membros da CEI, supondo-se que ela possa
manter um acordo político entre suas repúblicas.
Além disso, a proliferação de novos Estados desde 1947 tendeu
a aumentar o grau de militarização global, gerada em parte pelo cres-
i ente comércio internacional e quase capitalista de armas e pela dis­
seminação mais limitada da fabricação dessas. Na verdade, esses dois
elementos se combinaram para possibilitar um mercado de armas
mais competitivo, que, por isso, é, hoje, muito menos passível de con-
irole por parte das superpotências. Embora a militarização tenha
acompanhado o desenvolvimento de aparatos de segurança interna
<le novos Estados, também aumentou a possibilidade de guerras de­
vastadoras, principalmente no Terceiro Mundo. O aumento do terro­
rismo é outro aspecto dessas mudanças estruturais. Uma implicação
disso é o fortalecimento dos interesses de setores do aparato de Estado
(jue desejam priorizar a segurança nacional (a expensas até mesmo
das liberdades civis e da democracia). Podem aliar-se a outras forças
partidárias do estadismo e nacionalistas e reforçar um bloco naciona-
Ii.sta, protegidos muitas vezes pelo véu do sigilo e por outras formas de
isolamento político. Nesse sentido, a necessidade que o capital tem de
condições políticas estáveis para a acumulação pode corresponder à
perda substancial da liberdade de iniciativa. Portanto, embora o poder
estrutural do capital aumente num mundo com muitos Estados, suas
condições políticas de funcionamento podem, de certa forma, ser en­
fraquecidas. Em outras palavras, estamos longe da perspectiva real de
uma sociedade política global. A persistência de blocos nacionalistas
c complexos de segurança é basicamente, nesse contexto, um proble­
ma para o capital transnacional, uma vez que é provável que conceitos
de segurança nacional signifiquem negar acesso e tratamento igual
ao das empresas nacionais para as empresas estrangeiras. Isso aconte­
ce muito frequentemente na esfera da produção militar.
192 ♦ Stephen G ill e D avi d Law

Os limites e as contradições que afetam a formação de um blo­


co histórico transnacional e a conquista da hegemonia transnacional

irrun
também surgem em relação às estruturas de mercado e à política eco­
nômica. A internacionalização da produção e das finanças assim co­
mo a propagação do consumismo resultaram numa economia m un­

v-¥ . i ;
dial cada vez mais integrada, à medida que as estruturas sociais de
acumulação e formas de Estado anteriores desintegram-se ou são re-
configuradas. Isso significa que se está tornando cada vez mais plausí­

->*l-
vel aplicar o conceito gramsciano de sociedade civil às ordens m un­
diais (Cox, 1983). Mas a instabilidade financeira e a perversidade po­
lítica, associadas ao que os economistas chamam de “falácias de com­

,à ü M M ü -
posição”, propõem não apenas problemas mas também oportunida­
des para o capital transnacional. Isso não quer dizer que os efeitos
dessa composição se limitem às questões econômicas: a busca de se­
gurança por parte de cada Estado individual pode gerar mais insegu­
rança para o mundo como um todo. Na esfera monetária, essa falácia
pode se manifestar nas políticas macroeconômicas dos governos e
nas políticas de empréstimo dos bancos. Essa falácia pode se aplicar
não só à esfera política comercial, do meio ambiente e da biosfera,
mas também à questão da migração global - intimamente relaciona­
da tanto à reestruturação da produção e ao aumento das disparidades
econômicas quanto à violência e à instabilidade política.
Mais especificamente, uma hegemonia transnacional envol­
vendo bancos, transnacionais produtivas, trabalho altamente qualifi­
cado e governos, principalmente quando se reflete em políticas de
“monetarismo de mercado”, está repleta de contradições. Se todos os
países competem para provar sua “saúde monetária”, suas políticas de-
flacionárias terão efeitos negativos multiplicadores. A recessão m un­
dial é o resultado natural quando todos se deflacionam ao mesmo
tempo. Os perigos da hegemonia de uma ortodoxia financeira rigoro­
sa foram ilustrados durante a década de 1930, principalmente nos Es­
tados Unidos e no Reino Unido. Nestes países, o compromisso com
orçamentos equilibrados e disciplina monetária tornaram difícil re­
verter a tendência à recessão. Outros países abandonaram mais rapi­
damente essa ortodoxia, a ponto de alguns Estados capitalistas terem
colocado em prática políticas para restringir o poder dos mercados.
H egemonia global e o poder estrutural do capital ♦ 193

{lm exemplo extremo disso é a Alemanha nazista. O grande problema


macroeconômico é que uma política que talvez pareça “racional” do
ponto de vista de um país pode, se reproduzida em outro lugar, au­
mentar a “irracionalidade coletiva” de uma economia capitalista
mundial única e extremamente integrada. Essa falácia de composi-
çao esteve em jogo nas tentativas feitas por alguns países de exportar
seu desemprego por meio de uma desvalorização competitiva e da
restrição das importações durante a década de 1930. Isso levou a uma
redução do comércio mundial, à instabilidade das taxas de câmbio e
.1 um clima de incerteza internacional cada vez maior, que alguns au-
lores afirmam não apenas terem desencorajado o investimento, mas
lambém terem sido uma das condições que levaram à deflagração da
Segunda Guerra Mundial (Kindleberger, 1973).
Por sua vez, na década de 1980 houve indícios de que políticos,
banqueiros e economistas, reunindo-se freqüentemente em confe­
rências e outros fóruns internacionais, tinham conhecimento das
implicações dessa falácia e estavam ansiosos por evitá-las, em parte
mediante a coordenação internacional de políticas macroeconômi­
cas. Em 1986-1987, por exemplo, uma visão comum era a de que, a
menos que a Alemanha Ocidental e o Japão começassem a expandir
sua economia, era inevitável uma redução na velocidade do cresci­
mento econômico mundial. Visões como essa eram apresentadas nas
reuniões anuais de cúpula dos sete principais países capitalistas - o
G7 - e, em 1987, foram colocadas em prática nesses países, levando a
uma expansão monetária mais rápida e, desse modo, a um boom na
demanda e nas importações. Essa expansão monetária estava ligada à
compra de dólares em larga escala por parte dos bancos centrais dos
parceiros dos Estados Unidos no G7. Isso aconteceu no início de 1987
e continuou depois da quebra do mercado de ações em outubro desse
mesmo ano. O contraste com as políticas deflacionárias da década de
1930 foi impressionante e refletiu a existência de um processo inter­
nacionalizado de tomada de decisões políticas e econômicas do G7,
apoiado pelo FMI, pelo Banco Mundial, pelo Bank for International
Settlements e pela OCDE, como também uma estrutura econômica
mundial talvez com maior capacidade de recuperação e mais integra­
da. Mas é necessário que essa cooperação se torne muito maior caso
194 ♦ S tephen G ill e D avid Law

se queira instituir um novo regime internacional de acumulação, o


que pode implicar mais mudanças nas funções e recursos do FM I c
do Banco Mundial (ver Feinberg, 1988).
Apesar disso, ainda persiste a questão de que, durante a década
de 1980 e início dos anos 1990, grande parte da população mundial
sofreu com os efeitos de uma prolongada depressão econômica que
levou a uma queda maciça na produção e nos padrões de vida, e il
destruição física de infra-estrutura e capital (por exemplo, a “década
perdida” da América Latina desde o começo dos anos 1980; na maior
parte da África, nos últimos quinze anos pelo menos; na Europa
Oriental e Central e na CEI desde 1987-1988). Em muitos desses paí­
ses, o declínio esteve intimamente ligado à aplicação draconiana das
políticas de ajuste estrutural do FMI e do Banco Mundial. A pers­
pectiva econômica para a maioria dos países da OCDE, no início da
década de 1990, também era relativamente desalentadora: na Europa,
por exemplo, as políticas deflacionárias continuaram sendo a norma,
em parte por causa das elevadas taxas reais de juros na Alemanha,
destinadas a neutralizar os efeitos inflacionários dos deficits crescen­
tes do orçamento e das demandas salariais na esteira da unificação
das duas Alemanhas. Como o marco alemão é a moeda que serve de
âncora para o sistema monetário europeu, esse fato manteve as taxas
de juros altas nos outros países. Os Estados Unidos estavam passando
por uma recessão longa e profunda, assim como o Canadá, a Austrália
e a Nova Zelândia. No Japão, a velocidade do crescimento econômico
diminuía. Os centros financeiros de cada um desses países pareciam
mais frágeis e foram abalados por uma enxurrada de casos de corrup­
ção e exemplos de fraude em massa, e - é essa a impressão que ficou
- o sistema financeiro global dava a impressão de necessitar supervi­
são ou fiscalização adequadas.
Nesse sentido, mais uma tendência contraditória da economia
política global surge da natureza dos mercados, principalmente dos
mercados financeiros, uma vez que eles geram instabilidade econô­
mica. A competição entre os bancos pode levar, e levou de fato, à cria­
ção de estruturas precárias de dívida e a empréstimos míopes em al­
guns países menos desenvolvidos (como na década de 1970). Há evi­
dência de que, nos anos 1970, certos países que tomaram dinheiro
H egemonia global e o poder estrutural do capital ♦ 195

«•mprestado usaram os fundos obtidos para financiar corporações ca-


Iu(alistas estatais relacionadas a interesses manufatureiros transna-
t ionais, isto é, jogando um setor do capital internacional contra outro
i l;rieden, 1981). Esse fato sugeriu que o poder do capital transnacio-
ii.ii não está suficientemente enraizado nesses países, a ponto de evi-
i.ir o uso de finanças internacionais para objetivos nacionalistas, e
que a ausência de uma estratégia coletiva por parte dos bancos enfra­
queceu sua posição. Essa contradição aumenta quando há supera-
luindância financeira no plano internacional, de modo que o equilí­
brio entre o capital estatal e o capital transnacional pende mais em fa­
vor do primeiro.
Seja como for, o processo político internacionalizado discuti­
do acima conseguiu, ao menos em meados da década de 1980, chegar
a um grau extraordinário de cooperação entre governos e bancos do
( i7 para administrar a crise, evitando assim os descuidos de larga es­
cala ocorridos na década de 1930. As lições para um sistema financei­
ro internacional mais institucionalizado, com maior capacidade de
recuperação, e talvez mais “sólido organicamente”, não foram apren-
didas apenas com a experiência dos anos 1930, mas também com a
ilos anos 1970 (Pfister e Suter, 1987). Portanto, essas lições recentes
lalvez tenham estado associadas à avaliação e à análise mais acuradas
da interdependência econômica. A importância da instabilidade do
mercado e, na verdade, a estimativa de sua gravidade, não são uma
constante. Uma razão disso é que o alcance e a organização dos m er­
cados pode mudar. Outra é que o conhecimento teórico e a sofistica­
ção política também variam com o tempo. Outra ainda é o quanto as
formas de regulamentação podem ser inadequadas para enfrentar o
plano de inovação gerado sob o capitalismo, como na área dos serviços
financeiros. Aqui houve uma inovação em termos de idéias (como os
modelos de “expectativas racionais”) e de técnicas (como os novos
recursos financeiros). Na corrida para se manter em dia com esses de­
senvolvimentos, são principalmente os governos e algumas organiza­
ções internacionais e corporações privadas (em lugar de sindicatos e
grupos de consumidores) que têm a capacidade intelectual e os recur­
sos para competir, e também para lucrar, com o aumento dos riscos e
da incerteza.
196 ♦ S tephen G ill e D avid Law

Embora os processos discutidos acima (e aqueles da área de


comunicações e educação) dêem realmente a impressão de favorecer
os agentes dominantes da economia política global, também abrem
possibilidades para as forças contra-hegemônicas, particularmente
para o que Gramsci chamava de plano ético-político. Isso porque, em
termos gramscianos, uma hegemonia global precisaria não só de legi­
timidade e competência econômica, mas também de credibilidade
moral. Nesse contexto, as imagens transmitidas pela mídia de africa­
nos morrendo de fome, contrapostas a montanhas de manteiga e a la­
gos de vinho europeus, são uma afronta tanto à decência moral quan­
to ao senso comum. No começo de 1992, a situação da Rússia e de
muitas das antigas repúblicas soviéticas parecia ser de caos econômi­
co, com críticas generalizadas às políticas de reestruturação propostas
pelo FMI, pelo governo norte-americano - como aquelas propostas
por Paul Volcker, ex-presidente do Conselho de Administração do
Banco Central dos Estados Unidos (1979-1987), que prestou assesso-
ria a instituições financeiras e bancárias na Rússia - e por acadêmicos
da Universidade de Harvard. De grande influência nessas iniciativas
por parte dos intelectuais orgânicos do Ocidente tem sido o professor
Jeffrey Sachs, de Harvard, que foi assessor econômico do Sindicato
Solidariedade da Polônia, país onde, depois da terapia de choque do
FMI em 1989-1990, agora parecem estar vindo à tona níveis seme­
lhantes de desilusão e oposição.
Uma contestação contra-hegemônica efetiva requer acesso a
grandes recursos financeiros, conhecimento e informações, e algum
grau de controle sobre os processos de produção e distribuição. Nesse
sentido, cooperativas e grupos como a Intermediate Technology, com
sede no Reino Unido, e a rede Results, da América do Norte, são um
começo (ver Bennet e George, 1987, p. 191-216). Mas, para um en-
frentamento significativo, é necessário que esses grupos cresçam
muito, forjem vínculos transnacionais mais abrangentes entre eles
próprios e mobilizem o apoio significativo de sindicatos e de outros
interesses de produtores, e, talvez, de partidos políticos (velhos e no­
vos) que possam ser simpáticos a essas alternativas. Entre as organiza­
ções e movimentos que podem fazer parte de um bloco contra-hege-
mônico incluem-se a Anistia Internacional, os partidos verdes e os
HEGEMONIA GLOBAL £ O PODER ESTRUTURAL DO CAPITAL ♦ 197

grupos ecológicos, os centros de pesquisa socialistas, como o Trans-


national Institute, os grupos que lutam pela paz, como o European
Nuclear Disarmament, as agências de desenvolvimento, como a
<)xfam, e organizações religiosas, como o Conselho Mundial de Igre­
jas. Dado seu tamanho e potencial como veículo para o descontenta­
mento popular numa série de países menos desenvolvidos, a partici­
pação islâmica num bloco contra-hegemônico provavelmente seria
essencial, mesmo que pouco provável. Uma forma pela qual o poder
coletivo desses grupos poderia se manifestar seria mediante a mobili­
zação de fundos às expensas do capital ortodoxo -, por exemplo, sob
a forma de fundos de investimento “éticos”. Em alguns países muçul­
manos, como o Egito, foram criados fundos islâmicos (fundos mú-
luos/corporações fiduciárias) - para constrangimento das autorida­
des - principalmente desde que conquistaram grande número de de-
positantes (Walker, 1988). São necessárias ainda muitas outras pes­
quisas sobre as maneiras pelas quais essas coalizões podem se formar
e se tornar melhor organizadas e representadas.
PARTE II
PASSADO, PRESENTE E FUTURO
J
GRAMSCI E AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS: UMA
PERSPECTIVA GERAL COM EXEMPLOS DA POLÍTICA
RECENTE DOS ESTADOS UNIDOS NO TERCEIRO MUNDO
E nrico Augelli
Craig N. M urphy

Os conceitos de Gramsci perm item que os especialistas


lt anscendam alguns dos debates atuais que dividem o campo das re­
lações internacionais ao mesmo tempo em que preservam os achados
das grandes tradições, sejam elas “realistas” ou “idealistas”, “estrutu­
rais” ou “históricas”. Além disso, nos ajudam a romper com o hábito
de reificar o Estado-nação e a nos concentrar nas fontes mais profun­
das da continuidade e da mudança social. Este artigo discute os bene­
fícios de empregar os achados de Gramsci e os ilustra por meio das
conclusões de um estudo sobre a política exterior norte-americana
em relação ao Terceiro Mundo nas eras Reagan e Bush.

Os conceitos de Gramsci e as relações internacionais

O campo das relações internacionais estuda a consolidação do


poder sobre grandes populações e territórios em um mundo de múlti­
plos centros de poder territorialmente separados. Em suas investiga­
ções a respeito de “hegemonia”, e da noção mais ampla de “suprema-
cia”, o interesse de Gramsci é também o de compreender a dinâmica
da consolidação do poder, incluindo a dinâmica das relações interna­
cionais. Assim, em seu comentário sobre a história da Itália moderna,
Gramsci conseguiu discutir, usando o mesmo quadro de referências
e os mesmos conceitos, tanto o sistema estatal renascentista quanto a
política do Estado do século XX. Para nós, a sociologia gramsciana do
poder começa com a distinção entre governar pela “força” e governar
pelo “consenso”, tomadas de empréstimo a Maquiavel. Gramsci
apresenta essa distinção em seus próprios termos contrastando dois
lipos ideais de supremacia: o domínio - exercício do poder sem o
consentimento crítico e ponderado dos governados - e a hegemonia
ética, isto é, liderança intelectual e moral:
202 ♦ Enrico Augelli e C raig N. M urphy

A supremacia de um grupo social se manifesta de dois


m odos, com o “d o m ín io ” e com o “direção intelectual e
m o ra l”. U m grupo social dom ina os grupos adversários
que visa “liq u id ar” ou subm eter, inclusive com a força
arm ada, e dirige os grupos afins e aliados. (Gramsci, 1971,
P- 57)

Gramsci não considera equivalentes os dois pares de conceitos.


O uso da “força” não é exatamente o mesmo que “domínio”, ainda
que o “consenso” sempre caracterize a “hegemonia”. Quando a hege­
m onia não é “ética”, quando se baseia na fraude e no engano,
Gramsci a vê como uma forma de domínio.
Gramsci observa que a filosofia idealista, seja de direita (refor­
çando o que os estudiosos das relações internacionais passaram a
chamar de “realismo”), seja de esquerda (reforçando o que os estu­
diosos das relações internacionais passaram a chamar de “idealismo”,
“liberalismo” ou “funcionalismo”), vê uma separação radical entre
força e consenso, ao passo que, no mundo real, essas duas formas de
governo se apoiam mutuamente e se combinam com freqüência de
maneiras incertas. A força raramente aparece como força bruta, e os
representantes do poder também não costumam justificar seu uso
invocando os interesses do grupo social dominante ou da aliança so­
cial dominante, mesmo que esta necessariamente seja a razão última
pela qual a força, em vez do consenso, é usada para governar. Para
mascarar a falta de consenso, os representantes do poder sempre pro­
clamam grandiosos princípios morais a fim de justificar o uso da for­
ça. Nas democracias parlamentares, afirma Gramsci, a mobilização
dos “órgãos de opinião pública” sempre se faz acompanhar do uso da
força para assegurar a aprovação ampla da utilização da mesma, ainda
que esse consenso só possa ser obtido pelo engano (Gramsci, 1975,
t. 3, p. 1.638).
Os três níveis gramscianos de sociedade, a “estrutura econômi­
ca” e os dois planos superestruturais - a “sociedade civil” e a “socieda­
de política” -, definem os domínios nos quais a força e o consenti­
mento operam para consolidar o poder:
Por enquanto, podem -se fixar dois “planos” superestru-
turais: o que pode ser chamado de “sociedade civil” (isto
G ramsci e as relações internacionais ♦ 203

é, o conjunto de organism os designados vulgar m ente como


“privados”) e o da “sociedade política ou Estado”, planos
que correspondem , respectivamente, à função da “hegem o­
nia” que o grupo dom inante exerce em toda a sociedade
e àquela de “d o m ín io d ireto ” ou de com ando, que se
expressa no Estado e no governo “jurídico”. (Gramsci, 1971,
p. 12)

De acordo com nossa leitura, a “sociedade civil” de Gramsci


i nnsiste de várias formas de associação voluntária e constitui o mo­
mento de transição da estrutura econômica para a sociedade política,
0 domínio social no qual meros interesses corporativos (definidos
1H-la posição de um grupo no modo de produção) podem ser transfor­
mados em aspirações políticas mais amplas, mais universais. Para
( iramsci, a sociedade civil é o domínio político fundamental, o domí­
nio no qual se dão todas as dinâmicas de formação de identidade, luta
ideológica, atividades dos intelectuais e de construção da hegemonia
(seja ela “ética” ou baseada no engano). A sociedade civil é o contexto
iio qual a pessoa se torna consciente e engaja-se pela primeira vez na
.u, ao política. A sociedade civil é onde ocorre a confluência de interes­
ses, onde interesses estreitos são transformados em visões mais uni­
versais à medida que ideologias são adotadas ou aperfeiçoadas e alian­
ças se formam.
Gramsci situa a “sociedade política”, as instituições que regu­
la mentam a sociedade, acima da sociedade civil. O que Gramsci cha­
ma de “sociedade política” equivale ao que muitos “realistas” consi­
deram o “Estado”. Mas, ao contrário de muitos realistas, os quais
pressupõem que a força e a ameaça do uso da força não podem cons-
l iluir a única base para a consolidação do poder sobre grandes territó-
i ios e populações, Gramsci considera o uso da força importante para
diferenciar “sociedade política” ou “Estado propriamente dito” do
que ele chama de “Estado no sentido orgânico mais amplo”, isto é, o
que os teóricos contemporâneos da política costumam chamar de
"ordenamento político” (polity). Por “Estado no sentido orgânico”,
( iramsci refere-se à totalidade da “estrutura da superestrutura”, que
pode incluir as instituições essenciais para a vida política da comuni­
dade, mesmo que elas pareçam ser de natureza meramente privada,
t omo no caso da sociedade civil contemporânea.
204 ♦ E nrico A ugelli e C raig N. M urphy

Compreendido dessa forma, o Estado não é nem a expressão


externa da sociedade (apenas um “ator” nas relações internacionais),
nem está situado acima da sociedade; o Estado é uma característica da
sociedade, e está constituído pela articulação entre sociedade políti-
ca e sociedade civil. Nesse sentido, podemos usar os conceitos de
Gramsci até para perguntar em que grau existe um “Estado” no sen­
tido mais amplo que caracteriza a sociedade mundial: pois “Estado
mundial”, ou “ordenamento político mundial” ou (melhor) sim­
plesmente “sistema político mundial” abrange instituições da “socie­
dade civil internacional” - associações transnacionais, diplomacia,
alianças e entidades intergovernamentais -, mas abrange pouco ou
nada da “sociedade política mundial” ou do “Estado mundial pro­
priamente dito”.
Gramsci observa que há uma tendência para existir uma coin­
cidência entre o uso da força e a esfera do Estado propriamente dito, e
entre governar pelo consenso e a esfera da sociedade civil. Mas isso
não justifica a situação atual da teoria em relações internacionais, na
qual os “realistas”, que se concentram no uso da força enfatizam o
mundo anárquico de Estados separados propriamente ditos, en­
quanto aqueles que estudam a cooperação econômica internacional
e as relações sociais transnacionais concentram-se na consolidação
do poder por meio do consenso. Na verdade, tanto o uso da força
quanto as políticas voltadas para a obtenção do consenso podem ser
aplicadas em qualquer uma das três esferas sociais. Em particular, o
uso da força pode ser aplicado a economias nacionais na forma de
sanções (mudando os “limites do possível”) ou até a economia m un­
dial como um todo: pense-se no impacto das políticas macroeconô­
micas restritivas de uma grande potência econômica. A força também
pode ser aplicada contra instituições da sociedade civil internacional,
restringindo assim a possibilidade de cooperação internacional e
transnacional por meio do “aumento dos custos de operação e infor­
mação” - usando os termos de Robert Keohane ( 1984a) - associados
a essa atividade.
G ramsci e as relações internacionais ♦ 205

Hipóteses sobre a supremacia

Gramsci usa esses conceitos em análises que mostram como o


l>oiicr consolidado, ao qual chama de “supremacia”, foi conquistado.
Isso lhe permite prever como o poder pode ser consolidado em situa-
t(ocs essencialmente novas. As instruções práticas de Gramsci para a
<«mquista da supremacia também podem ser vistas como hipóteses
i|uc talvez expliquem outros casos não analisados por ele, entre os
quais, por exemplo, a supremacia de certos Estados e forças sociais na
■.ocicdade mundial.
A hipótese que os especialistas das questões internacionais
associam mais freqüentemente ao nome de Gramsci talvez seja a de
que, para obter a supremacia, um grupo social (um ator corporativo)
deve ser capaz de estabelecer a “hegemonia” entre um grupo de alia­
dos. A “hegemonia” de Gramsci é a capacidade que um grupo social
possui para exercer uma função de “direção política e moral” na so­
ciedade. Outros grupos reconhecem que o grupo hegemônico tem
um papel de liderança na sociedade e que um consenso político rela-
iivamente amplo apóia seus objetivos. Um grupo hegemônico lidera
lanto por responder aos “interesses” de seus aliados, às suas motiva­
ções, derivadas de suas posições no modo de produção (uma das duas
motivações básicas da ação humana reconhecidas por Gramsci),
quanto por responder e ajudar a dar forma às “aspirações” ideais (a
outra motivação básica) que surgem na sociedade civil.
Gramsci argumenta que nas sociedades industriais só os gru­
pos sociais que desempenham um papel essencial no modo de produ­
ção podem se tornar hegemônicos, ao contrário, por exemplo, do que
ocorreu nas sociedades feudais, nas quais os grupos religiosos exerce­
ram a direção política e moral (Gramsci, 1971, p. 161). Esse papel
essencial no mundo da produção é o primeiro a conferir prestígio a
um grupo social dirigente e a tornar seu papel social e político dom i­
nante aceitável para os outros grupos.
Como a hegemonia envolve entender e responder a interesses
e aspirações, nenhum grupo pode se tornar hegemônico sem antes
compreender seus próprios interesses e desenvolver sua própria aspi­
ração hegemônica. Membros do grupo potencialmente hegemônico
206 ♦ E nrico A ugelu e C raig N. M urphy

têm de adquirir autoconsciência do papel econômico que desempe­


nham e do papel político que poderíam desempenhar. Com base nessa
autocompreensão crítica, o grupo hegemônico potencial pode fazer
alianças, dando um passo além da defesa de seus interesses econô-
mico-corporativos - ou seja, os “interesses egoístas imediatos e estrei­
tos de uma determinada categoria’" (Gramsci, 1971) - a fim de se unir
a outros grupos envolvidos nas lutas políticas essenciais da sociedade.
Este é o processo que Gramsci, usando a linguagem de Sorel, chama
de criação de um “bloco histórico econômico-político” (Gramsci,
1975, t. 3, p. 1.612); não apenas uma aliança, mas uma “unidade dia­
lética de base e superestrutura, de teoria e prática, de intelectuais e
massas” (Forgacs, 1988, p. 424).
Nesse aspecto, o trabalho dos intelectuais é fundamental. “O
papel dos intelectuais é representar as idéias que constituem o terreno
no qual a hegemonia é exercida” (Gramsci, 1975, t. 2, p. 1.084). De­
vem dar apoio intelectual e moral ao papel político dominante do
grupo hegemônico a ponto de “aquilo que é ‘política’ para a classe
produtiva [e potencialmente hegemônica] tornar-se ‘racionalidade’
para a classe intelectual” (ibid., 1.1, p. 134). Os intelectuais organica­
mente vinculados à classe hegemônica têm de demonstrar, em todos
os campos do saber, que as aspirações do grupo a que servem coinci­
dem com os interesses da sociedade como um todo. Os intelectuais
da classe hegemônica devem produzir uma filosofia, uma teoria polí­
tica e uma teoria econômica que, juntas, constituam uma visão de
mundo coerente e cujos princípios possam ser traduzidos de uma
disciplina para outra (Gramsci, 1971, p. 403). Como atores na luta
ideológica, os intelectuais da classe dominante devem suplantar os
intelectuais de outras classes desenvolvendo teorias mais convincen­
tes e sofisticadas, inculcando em outros intelectuais a visão de mundo
dominante e incorporando-os à causa do grupo hegemônico. Grupos
hegemônicos em potencial fracassam quando não conseguem conso­
lidar o apoio dos intelectuais, assim como a burguesia italiana das co­
munas (analisada por Maquiavel) fracassou porque os intelectuais
dessa nova classe não conseguiram conquistar os intelectuais tradi­
cionais, que continuaram defendendo as idéias e os interesses do
mundo feudal.
Gramsci e as relações internacionais ♦ 207

Finalmente, Gramsci afirma que, para reforçar ainda mais a


.solidariedade de seu bloco de aliados mais imediatos e ir além dele, de
íorma a estender a hegemonia do grupo social dominante às massas
populares, o grupo hegemônico potencial precisa garantir o desenvol­
vimento econômico, satisfazendo os interesses mais estreitos de seus
aliados. Essa é uma segunda razão pela qual, nas modernas sociedades
industriais, os grupos hegemônicos só podem vir das classes que de­
sempenham papel essencial na economia. O papel central que o gru­
po hegemônico desempenha na produção lhe dá grande influência
sobre a economia como um todo, mas esse potencial deve se transfor­
mar em realidade por meio da ação política consciente. Analisando a
história da burguesia francesa, que teve de responder a uma série de
crises desse tipo, Gramsci argumenta que “O consenso político é re­
cuperado (a hegemonia é preservada) pela ampliação e pelo aprofun­
damento da base econômica por meio do desenvolvimento indivi­
dual e comercial” (idem, 1975,1.1, p. 58). Nesse processo de desenvol­
vimento econômico, que Gramsci vê como uma das funções progres­
sistas da classe social hegemônica, ocorre a extensão das novas ativi­
dades produtivas e a ascensão social daqueles que são “mais dotados
de energia e espírito empreendedor” (ibid., 1975, t. 3, p. 1.637). Na
verdade, foi o colapso desse processo dinâmico que, segundo Gramsci,
levou à crise da hegemonia burguesa na Europa durante a grande
depressão que se seguiu à Primeira Guerra Mundial.
Portanto, no entender de Gramsci, um ator corporativo que
deseje chegar à hegemonia, hoje, deve levar em conta todos esses re­
quisitos, desenvolvendo uma autocom preensão crítica, fazendo
alianças e conquistando o domínio ideológico e, caso pretenda esten­
der sua hegemonia a maior número de pessoas, garantindo o desen­
volvimento econômico. Uma sociedade em que qualquer desses re­
quisitos esteja ausente passa por uma “crise de autoridade”. E um
grupo hegemônico que não consegue satisfazer ao menos os requisi­
tos que mantêm sua aliança social perde sua hegemonia.
Contudo, a hegemonia é apenas um aspecto da consolidação
do poder. Gramsci vê a supremacia do ator corporativo como algo
baseado na hegemonia sobre os aliados, no interior do bloco histórico,
e na dominação, quer pela força, quer pelo engano, dos grupos sociais
208 ♦ E nrico A ugelli e C raig N. M urphy

que não fazem parte da aliança. Embora Gramsci parta da hipótese de


que a supremacia não pode ser obtida somente pela força ou pelo do­
mínio, não subestima a importância da força para manter a suprema­
cia sobre grupos fora da aliança no núcleo central do bloco histórico.
Sugere, no entanto, que a dominação baseada na fraude e enraizada
numa hegemonia falsa, que não leva em conta realmente os interes­
ses dos grupos aliados, no final está condenada ao fracasso. Com o
tempo, será substituída, quer pela força (e pela exclusão do grupo do
bloco histórico), quer por uma hegemonia verdadeira, “ética”.

A aplicação das hipóteses de Gramsci às relações internacionais:


os Estados Unidos e o Terceiro Mundo

Em Américas Quest for Supremacy and the Third World (Augelli


e Murphy, 1988), empregamos os achados de Gramsci às tentativas do
Governo Reagan de reafirmar seu poder sobre o Terceiro Mundo.
Dissemos que, depois da Segunda Guerra Mundial, as classes domi­
nantes dos Estados Unidos conseguiram formar um bloco histórico
internacional e coerente: o do “mundo livre”, para usar o termo em­
pregado com mais freqüência por seus defensores. No centro deste
bloco havia uma aliança hegemônica que incluía alguns elementos
do trabalho nos países da Organização para a Cooperação e Desenvol­
vimento Econômico (OCDE), as classes dominantes e (numa ampli­
tude surpreendente) as massas populares de grande parte do Terceiro
Mundo dependente e, claro, as classes dominantes da Europa Oci­
dental e do Japão. Num grau maior ou menor, cada um desses grupos
foi alvo da força do governo norte-americano durante toda a década
de 1980, principalmente aquela dirigida à esfera econômica. No iní­
cio da década de 1990, somente o Terceiro Mundo continua a ser um
alvo muito evidente da força norte-americana, e a Guerra do Golfo
parece ser um sinal da reconstrução da supremacia norte-americana.
Acreditamos que a reconstrução da supremacia mundial dos
Estados Unidos ocorreu na década de 1980, basicamente como resul­
tado do uso efetivo da força econômica. Em última instância, a hege­
monia norte-americana foi reconstruída com o restabelecimento da
relação ética anterior entre as classes dominantes norte-americanas e
G ramsci e as relações internacionais ♦ 209

.is i lasses dominantes da Europa Ocidental e do Japão. Mas, tanto nos


ji.iíses de mercado desenvolvido quanto entre estes e a maior parte do
liTceiro Mundo dependente, o caráter da supremacia norte-america-
n,i mudou de tal forma que hoje se baseia mais na dominação, tanto
l>or meio da fraude quanto pelo uso da força.
Para entender a reconstrução da hegemonia norte-americana,
r importante lembrar as crises que o governo dos Estados Unidos en­
frentou. Talvez a mais importante delas tenha sido a do desenvolvi­
mento econômico: com o início da “estagflação” do começo da déca­
da de 1970, as classes dominantes dos Estados Unidos não consegui-
tam mais oferecer a incrível prosperidade dos anos do pós-guerra. Es-
■..I crise foi, em parte, uma crise das relações norte-americanas com o

Terceiro Mundo, ao menos no que se refere à extensão da estagflação


decorrente da tentativa de pagar tanto a Guerra do Vietnã quanto a
<d ande Sociedade de Lyndon Johnson sem aumentar impostos (ver
Block, 1977).
Em 1973, o único grupo de Estados do Terceiro Mundo que
poderia reivindicar um papel essencial na divisão internacional de
trabalho no “mundo livre”, os produtores de petróleo, aprofundou a
i rise. Durante alguns anos, os governos do Terceiro Mundo acredita­
ram que a primeira crise do petróleo lhes havia dado uma oportuni­
dade de mudar a forma pela qual o sistema econômico internacional
era administrado.1A dependência ocidental em relação ao petróleo
obrigou os países industrializados a ouvir as demandas do Terceiro
Mundo, e a política de preços da Organização dos Países Exportadores
de Petróleo (Opep) revelou rachaduras potenciais na aliança do nú-
i leo central do bloco histórico ocidental (Miller, 1983).
Apesar disso, a Opep não conseguiu entender seu próprio po­
tencial de liderança mundial. Sua recusa a levar em conta os interes­
ses das nações mais pobres do Terceiro Mundo, dependentes de seu
petróleo, e as próprias contradições internas da Opep solaparam sua

(irande parte da literatura que trata das reivindicações econômicas do


Terceiro Mundo na década de 1980 pouco faz para distinguir as reivindicações
do Terceiro Mundo de suas expectativas - nenhum a das quais foi satisfeita.
Hart (1984) e Murphy (1984) são exceções.
210 ♦ E nrico A ucelli e C raig N. M urphy

capacidade de impor um programa de mudança baseado nas deman­


das da Nova Ordem Econômica Internacional (Noei) do Terceiro
Mundo. Além de desempenhar papel fundamental na economia
mundial e de reconhecer as aspirações de seus aliados por meio de
seu apoio à Noei, a Opep não tinha nenhuma das outras características
que Gramsci considera essenciais para a construção da supremacia.
Em 1979, quando os preços do petróleo foram elevados a patamares
historicamente altos, independentemente das consequências para os
aliados da Opep, a coalizão do Terceiro Mundo foi abalada, mas conti­
nuou existindo graças à desunião ocidental e à ilusão dos países mais
pobres do Terceiro Mundo de que logo a Noei seria implementada.
Dada a fraqueza interna daquela que desafiou o bloco ociden­
tal, a política de força contra o Terceiro Mundo empregada pelos Esta­
dos Unidos a partir de 1979 rapidamente destruiu a base econômica
do bloco alternativo. Durante todo o Governo Reagan, a força política
e militar exerceu, principalmente, papel psicológico, reforçando a
nova agressividade verbal dos Estados Unidos (Augelli e Murphy,
1988, p. 180-182). A força que realmente contava era a força econô­
mica. As políticas monetaristas de efeito cascata implementadas pe­
los Estados Unidos tiveram como resultado, no Terceiro Mundo, tan­
to a redução dos ganhos com exportação quanto o aumento das taxas
de juros. Isso levou a uma catastrófica crise de liquidez. Mas o mais
importante é que a recessão monetarista dos países industrializados e
a escassez de dinheiro vivo das nações produtoras de petróleo torna­
ram abundante a oferta do petróleo, privando assim o Terceiro Mundo
da influência que dera credibilidade à exigência de criação da Noei
(Khader, 1986).
Com a derrota do bloco do Terceiro Mundo no final de 1982,
os Estados Unidos estavam livres para se dedicar à tarefa de reconstruir
sua hegemonia no interior do bloco ocidental, tarefa terminada antes
do fim do primeiro mandato de Reagan. Como Gramsci teria espera­
do, a hegemonia no interior da aliança social ocidental foi acompa­
nhada pela dominação dos adversários, o Terceiro Mundo. Além de
dominar o Terceiro Mundo, restringindo indiretamente suas opções
por meio do uso da força na economia mundial, os Estados Unidos
também fizeram sentir sua influência mais diretamente na sociedade
Gramsci e as relações internacionais ♦ 211

( ívil internacional. O bloco ocidental usou a influência da ajuda ex-


lerna para tentar refazer as economias do Terceiro Mundo, confor­
mando-as à imagem laissez-faire. Os Estados Unidos concentraram-
se nas organizações intergovernamentais (que tinham sido impor-
lantíssimas para a formação do consenso da Noei no Terceiro Mundo)
r conseguiram transformar o sistema da Organização das Nações Uni­
das (ONU) num porta-voz mais efetivo das preferências políticas do
(kidente.2
As agências intergovernamentais, principalmente o Fundo
Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, passaram a ser
um dos poucos centros de poder do bloco ocidental reconstituído in­
teressado em transformar a política de uso da força no Terceiro M un­
do em uma política para construir o consenso. As agências intergo­
vernamentais se juntaram e se reuniram a algumas instituições pri­
vadas da sociedade civil internacional na luta ideológica contra as
muitas versões do keynesianismo global. Os antikeynesianos usaram
0 sucesso econômico de alguns poucos países em desenvolvimento
sob o novo regime global como evidência a favor da “reaganecono-
mia” global.
De fato, o sucesso dos países recém-industrializados da Ásia
( íriental pode ter tido mais a ver com sua posição inusitada na econo­
mia mundial do que com qualquer tipo de adesão às fórmulas admi­
nistrativas do governo norte-americano para a relação entre empre­
sas e governo (Harris, 1987). Além disso, até a análise econômica das
agências mais interessadas em promover o programa de ajustes estru-
1urais e a reforma da política econômica revela que as regiões e povos
menos favorecidos da economia mundial pouco podem esperar de
um mundo “reaganeconômico”.3Para grande parte do Terceiro Mun-

Uma breve relação de trabalhos - muito longe de ser completa - sobre os


listados Unidos e a crise das organizações internacionais na década de 1980,
abrangendo um grande número de opiniões diferentes, deve incluir Adelman,
1988; Beigbeder, 1987; Cox, 1980; H arrod e Schrijver, 1988; Puchala e
Coate, 1989; e Roberts e Kingsbury, 1988.
' Chegamos a essa conclusão comparando as projeções cada vez mais sombrias

[
■ feitas pelo Banco Mundial em seus relatórios sobre a África e o World Devei-

~
212 ♦ Enrico A ugelli e C raig N. M urphy

do, a nova visão econômica global do bloco reconstituído foi simples­


mente uma ilusão - fato que tanto as agências intergovernamentais
quanto os intelectuais ocidentais que haviam apoiado o movimento
do Terceiro Mundo foram tendo cada vez menos possibilidade de de­
nunciar em virtude de sua derrota na luta ideológica.
De 1984 até o fim do Governo Reagan, novos problemas eco­
nômicos criaram dificuldades para o bloco ocidental: a supervalori-
zação do dólar e sua queda subseqüente, o déficit cada vez maior da
conta-corrente dos Estados Unidos e o concomitante aumento rápido
da posse dé recursos produtivos por parte de estrangeiros nos Estados
Unidos, além da instabilidade constante dos mercados financeiros
mundiais. As novas bases de consenso no bloco ocidental freqüente-
mente tiveram de ser reconstruídas e consolidadas, e permanece em
aberto a questão de saber se as políticas econômicas norte-america­
nas usadas para restabelecer sua supremacia mundial aumentaram
ou solaparam sua capacidade de manter a hegemonia dentro do bloco
ocidental a longo prazo. Apesar disso, a curto prazo, essa tarefa tor-
nou-se mais simples, uma vez que o Terceiro Mundo desapareceu da
cena mundial como ator independente, e não se sabe se algum dia
reaparecerá como um ator cujos interesses e aspirações devam ser
considerados por um poder supremo, seja ele qual for.
Na Guerra do Golfo, o Governo Bush conseguiu ir além de
Reagan no sentido de consolidar a aliança ocidental e diminuir ainda
mais a probabilidade de que algum grupo do Terceiro Mundo tivesse
condições de usar o petróleo como arma num futuro próximo. O Go­
verno Bush também procurou, em certa medida, trazer de volta as
classes dominantes do Terceiro Mundo para a aliança do núcleo cen­
tral do bloco ocidental, ao mesmo tempo em que descobriu papéis
novos e mais importantes para as organizações intergovernamentais
na construção de uma “nova ordem mundial”. O papel do Conselho
de Segurança da ONU de sancionar a guerra contra o Iraque foi ape­
nas um aspecto menor dessa nova função.
Em parte, a tentativa de trazer de volta as classes dominantes
do Terceiro Mundo para o bloco ocidental foi feita encorajando a
substituição das elites. As crises de desenvolvimento das décadas de
1970 e 1980 questionaram as elites mais antigas que implementaram
a série de estratégias “populistas” de desenvolvimento econômico em
G ramsci e as relações internacionais ♦ 213

lodo o Terceiro Mundo - muitas vezes com um apoio muito grande


dos órgãos intergovernamentais - até o fim dos anos 1970. Na década
de !980, os órgãos da ONU, o Banco Mundial e o FMI retiraram seu
.ipoio ao Terceiro Mundo e adotaram, cada vez mais, uma análise dos
problemas econômicos da região que se concentrava nas políticas na-
. tonais, arquitetadas pelas mesmas elites, como impedimentos à pros­
peridade; na visão divulgada por muitas agências internacionais na
década de 1980, os governos do Terceiro Mundo tornaram-se o pro-
Idcina, em lugar da solução.4
Muitos financiadores ocidentais concordaram com essa análi­
se, e com as políticas norte-americanas em geral, associando-se a pro­
gramas que coordenam a ajuda cada vez mais limitada posta à dispo­
sição da maioria dos países do Terceiro Mundo por meio do “diálogo
s<>l>re políticas”, em que as preferências por políticas de laissez-faire e
I>ela abolição de gastos governamentais voltados para o assistencialis-
ino populista no Terceiro Mundo foram comunicadas de maneira tão
.mloritária quanto tinham sido os recentes programas de “ajustes es-
n murais” das instituições de Bretton Woods (Augelli, 1986).
Essa perda de legitimidade das elites “populistas” interessadas
n,i auto-sufíciência não se deu apenas em relação à comunidade in-
imiacional. Essas mesmas elites perderam sua popularidade em
muitos Estados do Terceiro Mundo. Isso fez realmente diferença, por­
que a década de 1980 e os primeiros anos da década seguinte foram
um período de democratização em todo o Terceiro Mundo. Na Amé­
rica Latina, no Caribe e na África, Estado após Estado viu a criação ou
a reintrodução de sistemas políticos pluralistas, nos quais os partidos
i ompetem de fato pelo apoio popular.51

1 Analisamos esse processo (e a precisão de sua análise) em relação à África


em Augelli e Murphy, 1989b.
1Para aqueles que têm interesse pela África, a ligação entre os dois fenômenos
c particular mente forte. Foi difícil assistir à recente onda de democratização
que varreu a África, com a substituição de tantos governos desenvolvimen-
listas populares de esquerda por partidos políticos que defendem o funda-
mentalismo islâmico, o nacionalismo étnico ou o laissez-faire, sem ter a im­
pressão de que os partidos que abandonaram o governo o fizeram com certa
sensação de alívio. Muitas vezes, a “democratização” mais pareceu uma “de­
sistência”.
214 ♦ Enrico A ugelli e C raig N. M urphy

Na maioria dos Estados onde houve democratização nos últi­


mos anos, ela correspondeu à substituição de governos de esquerda
ou governos populistas, voltados para o desenvolvimento e o assisten-
cialismo, por outros que defendem políticas antimodernistas {como
o fundamentalismo islâmico ou o nacionalismo étnico), ou ainda
que têm uma orientação de desenvolvimento tipo laissez-faire} ou
ambas. A vitória das elites empenhadas na visão de mundo comparti­
lhada pelos governos Reagan e Bush está longe de ser completa, mas
tem sido significativa.
Nos Estados onde conflitos prolongados e internacionalizados
precederam à democratização (Nicarágua, Namíbia, Angola etc.), a
ONU desempenhou papel-chave na transição entre elites, oferecendo
ajuda nas eleições em andamento, observando-as e certificando-se de
sua lisura. Essa função extra da ONU pode ter sido mais importante
na reafirmação da supremacia norte-americana do que seu papel na
Guerra do Golfo, sobre o qual se falou mais. Isso no caso de o desen­
volvimento poder ser retomado com a reconstituição do sistema do
“mundo livre” (que agora, com o colapso do império soviético, pode
chegar a incluir o mundo inteiro, com exceção da China e da índia).
Se isso não acontecer, arriscaríamos o palpite de que os novos siste­
mas democráticos de todos os países do Terceiro Mundo acabarão
sendo menos permanentes do que as novas elites governantes.
Esse breve resumo da política norte-americana para o Terceiro
Mundo é apenas um entre muitos outros semelhantes que podem ser
feitos, por meio da aplicação dos achados de Gramsci, ao problema do
“declínio da hegemonia norte-americana”, que deixou preocupados
tantos estudiosos das relações internacionais nos últimos quinze
anos. Stephen Gill (1986a), que se concentra mais na crise interna do
bloco ocidental do que nas relações Norte-Sul, por exemplo, tira
conclusões ligeiramente diferentes. Mas tanto a visão de Gill quanto
a nossa demonstram, a meu ver, a vantagem do quadro dc referências
mais abrangente de Gramsci sobre as tradições mais estreitas que do­
minaram o debate acerca do “declínio da hegemonia norte-am e­
ricana”.
O quadro de referências de Gramsci levou-nos a considerar o
papel da força militar e econômica e a quantidade de recursos que
G ramsci e as relações internacionais ♦ 215

l'oc!criam ser usados para ameaçar essa ação. Levar essas variáveis
"realistas” em conta permitiu a Gill ver que, até agora, elas desempe­
nharam modesto papel nas lutas internas do bloco ocidental de Esta-
■Ios-nação e nos fez ver o importante papel que a força econômica de-
•.empenhou, como preveria um neo-realista, nas relações Norte-Sul.
Mas não podemos parar por aqui. O quadro de referências de
<h amsci exige que consideremos o papel que as instituições interna-
. lonais, tanto as formais quanto as informais, desempenham na ma-
tintenção da supremacia norte-americana e em sua contestação. As
inovações institucionais do Ocidente, como as reuniões de cúpula do
<irupo dos Sete (G7), são essenciais tanto para uma explicação grams-
i iana da continuidade do poder dos Estados Unidos quanto para uma
rxplicação institucionalista como a de Keohane (1984a). E a destrui­
rão das instituições do Terceiro Mundo para agregar interesses será
1.10 claramente identificada como um fator político importante por
um seguidor de Gramsci quanto seria pelo “idealista” que escreveu a
.málise política ao final do último relatório da Comissão Brandí
(llrandt Comission, 1983).

Um realismo social mais abrangente

Até agora, a reivindicação que apresentamos da aplicação da


iroria de Gramsci às relações internacionais foi muito modesta. Te­
mos sugerido que os estudiosos que trabalham com o quadro de refe­
rencias de Gramsci ajudem seus colegas, realizando debates dentro
Gessa área como parte de seus programas de pesquisa, em vez de dei­
xar essa discussão a cargo de um processo mais demorado de publica­
rão e refutação, que tanto pode tender a ossificar posições contrárias
(jiianto a instaurar uma discussão frutífera. Agora apresentamos uma
mitra reivindicação, de maior importância: a de que a teoria de
( iramsci nos ajuda a ver um aspecto fundamental do nosso objeto de
estudo que, sem ela, permanecería oculto.
Deve ficar evidente que, ao empregar a teoria de Gramsci para
analisar as relações internacionais, somos levados a aprender a respei-
lo de uma grande parte a sociedade. A teoria não oferece aos analistas
um ponto de partida seguro, nenhuma precondição, tal como a dos
216 ♦ E nrico A ugelli e C raig N. M urphy

Estados-nação, que parecem unidades de análise igualmente relevan­


tes para tantas tradições. Os analistas podem começar com quaisquer
relações concretas, em qualquer plano de estudo; são as perguntas de
Gramsci sobre a sociedade que começarão a deixar claras as linhas di­
visórias entre os objetos em questão.
Os analistas precisam definir a dinâmica e o alcance da “base",
os limites do possível, a economia produtiva e as relações de reprodu-
ção humana nas quais se insere a relação inicial. Depois precisam
usar esse conhecimento para definir as classes no interior da econo­
mia, quais papéis fundamentais desempenham e quais seriam os inte­
resses (muitas vezes contraditórios e inconscientes) de cada grupo.
Depois são levados a examinar as formas objetivas pelas quais os ato­
res sociais entendem esses interesses hipotéticos, manifestados nas
instituições da sociedade civil e nos grupos que operam em seu inte­
rior. Suas interações habituais entre si e com as instituições de força
são a próxima questão. Tudo isso antes dos tópicos tradicionais das
relações internacionais - uso da força e da guerra, cooperação e paz
entre os Estados propriamente ditos - serem discutidos.
Qual o papel de todo esse trabalho preliminar? Em síntese, o de
tornar aqueles que analisam a mudança nas relações internacionais
mais conscientes das fontes fundamentais da mudança na vida hu­
mana, permitindo-nos pensar as fronteiras entre os Estados mais co­
mo estratégias nas lutas sociais do que como fatos sociais predesti­
nados.

O estudo das fontes de mudança fundamental

Que as fontes mais essenciais da mudança social não sejam


necessariamente visíveis para alguém que se concentre na observação
dos Estados-nação jurídicos não é uma afirmação muito controverti­
da. As pessoas podem lutar e morrer por seu país, mas as fontes do na­
cionalismo, e de qualquer outro elemento da identidade que signifi­
que mais do que a vida, só podem ser encontradas no exame das rela­
ções que ocorrem dentro de e entre as unidades nas quais os analistas
das relações internacionais às vezes se fixam. Da mesma forma, a fon­
te dos interesses econômicos que as pessoas protegem (que consti-
G ramsci e as relações internacionais ♦ 217

Iuem ameaças para a força econômica do trabalho) também surge em


planos diferentes daqueles dos Estados jurídicos. Certamente as fon­
tes da “cooperação” no sentido proposto por Keohane de interesses
materiais potenciais e intactos, encontram-se no mesmo nível das
economias concretas. E as fontes de conhecimento real nas relações
internacionais, do tipo de progresso que envolve comunidades inte­
lectuais de “cientistas” que incentivam a cooperação internacional
" liincionalista”, só podem ser compreendidas se identificarmos o sis­
tema que gera esses intelectuais, um sistema que não pode ser detec-
l.ido quando se examinam apenas os Estados jurídicos.
Em nosso caso, quando nos propusemos entender a reafirma-
ao da supremacia norte-americana em relação ao Terceiro Mundo
na década de 1980, a perspectiva que adotamos nos levou a enfrentar
i» problema de tentar explicar a mudança na política norte-americana
que provocou a mudança internacional que mencionamos. Fomos
introduzidos em domínios pouco familiares de análises de política
exterior, de política nacional e até mesmo de história cultural - mun-
ilos raramente visitados com muita profundidade por qualquer mem­
bro da legião de analistas do problema do “declínio da hegemonia
norte-americana”. Nossa teoria convenceu-nos de que, para explicar
,i.s relações dos Estados Unidos com o Terceiro Mundo na década de
1980, seria preciso explicar a ascensão de Reagan ao poder. Outros
[iodem discordar dessa conclusão. Talvez até estejam certos, ou pelo
menos podem ser capazes de nos convencer de que estão certos. Mes­
mo assim, as descobertas sobre a sociedade norte-americana que fize­
mos a partir de nossa excursão pela história política e social ajudam a
esclarecer os problemas políticos e práticos mais profundos que mo-
i ivaram nossa pesquisa: não gostamos dos resultados da política exte­
rior atual dos Estados Unidos no Terceiro Mundo e gostaríamos de vê-
la modificada. Pesquisando a fundo a sociedade norte-americana,
aprendemos um pouco mais sobre como ela deveria ser modificada.
Estamos convencidos de que o aspecto mais importante da ex­
periência política recente dos Estados Unidos é o de que as soluções
evidentes para muitos problemas enfrentados por seus cidadãos po-
(lem ser encontradas no aglomerado contraditório de idéias que Gramsci
chama de “senso comum”. Apesar de tudo, o triunfo de Reagan não
218 ♦ E nrjco A ugri.u f C raig N. M urphy

representou a introdução de nenhuma análise nova ou de nenhum


entendimento novo sobre a organização da vida social norte-america­
na. Sem dúvida, a “guinada para a direita” da década de 1980 deveu-
se inteiramente à nova organização política em torno de velhos temas
ideológicos: grupos empresariais de pressão organizando-se para de­
fender seus próprios interesses, fundamentados em uma visão sem
dúvida superficial do liberalismo pré-keynesiano; igrejas fundamen-
talistas que cresceram durante as revoltas sociais e problemas econô­
micos do final da década de 1960 e toda a década seguinte, introduzin­
do temas puritanos tradicionais no processo político dos Estados Uni­
dos; e internacionalistas da Guerra Fria procurando soluções tecno­
lógicas para a batalha histórica com a União Soviética. Surpreenden­
temente, apesar dos problemas fundamentalmente novos que en­
frentou, o Governo Reagan, combinando todos esses elementos, con­
seguiu fazer as pessoas se sentirem muito melhor a respeito de si mes­
mas e de sua sociedade, ao menos por algum tempo.
Outros analistas (Edsall, 1984; Ferguson e Rogers, 1987) fazem
o triunfo da direita parecer muito menos importante, como se apenas
refletisse o fato de o Partido Democrata não ter conseguido apresentar
uma alternativa convincente. Mas oferecer uma alternativa convin­
cente seria difícil, dado o preconceito do “senso comum”. As pessoas
que Edsall, Ferguson e Rogers e nós consideramos os “mocinhos” da
política norte-americana - grupos ligados aos trabalhadores, em lugar
de grupos que representam interesses empresariais; igrejas e movi­
mentos sociais que representam os mais pobres e os mais desfavoreci­
dos, em lugar dos fundamentalistas petit-bourgeois; o movimento a
favor da paz, em lugar do movimento a favor da guerra, todos esses
grupos e movimentos simplesmente não podem fazer as mesmas coi­
sas que a direita faz. E a esquerda não tem nenhuma vantagem especí­
fica só porque, em geral, as atitudes das pessoas sobre questões políti­
cas concretas, em contraposição a princípios abstratos, são muito dife­
rentes daquelas da direita. Desenvolver uma alternativa bem-suce­
dida ao reaganismo exigiria um esforço ideológico e intelectual m ui­
to maior. Em vez de apenas escolher entre preconceitos, os que se
opõem a Reagan precisam ajudar os norte-americanos a enfrentar
sua consciência contraditória e procurar os motivos pelos quais os
G ramsci e as relações internacionais ♦ 219

princípios abstratos que aceitam contradizem o que Gramsci cha­


maria de “bom senso” de suas atitudes a respeito de determinadas po­
líticas.

A problematização das fronteiras entre os Estados

No caso específico que examinamos, pode-se dizer que seguir


.1 teoria gramsciana só nos levou a considerar um número maior de
I'Ia nos de análise; olhamos dentro dos limites do ordenamento políti-
i n norte-americano na década de 1980, mas não questionamos sua
i cal idade. No entanto, talvez seja essa capacidade de questionar a im­
portância das fronteiras sociais aparentes o que torne mais empolgan­
te a aplicação das teorias de Gramsci às relações internacionais.
Até mesmo em nosso breve estudo sobre a história da cultura
política norte-americana começamos a ver algumas das possibilida­
des da abordagem das fronteiras dos Estados como problemáticas.
I >epois de localizarmos, na cultura política e histórica dos Estados
l tn idos - que combina elementos de calvinismo, liberalismo clássico
c cientificismo -, uma boa dose do atrativo popular de Ronald Reagan
r de sua mensagem, começamos a procurar os aspectos que ajudaram
.) manter intactos os componentes dessa consciência contraditória
durante tanto tempo. Queríamos saber, em particular, o que foi res­
ponsável pela força contínua desses elementos arcaicos da consciên-
i ia norte-americana, oriundos da experiência religiosa do século
XVII de um punhado relativamente insignificante de “fundadores”.
A explicação mais convincente é a dos historiadores que se interessam
por entender as fronteiras variáveis do Estado norte-americano (no
•.entido amplo do termo). Com isso não estamos nos referindo ape­
nas às alterações das fronteiras imperialistas dos Estados Unidos no
( ícidente, mas também às alterações de suas fronteiras sociais de in­
clusão e exclusão, refletidas em parte na política de imigração dos Es­
tados Unidos. Portanto, a política de imigração é crucial para explicar
lauto a escala quanto a natureza do Estado norte-americano de hoje.
A conformidade com um “americanismo” enraizado no calvinismo,
como dizem alguns estudiosos, sempre foi o preço para a admissão do
novo imigrante no ordenamento político norte-americano.
220 ♦ Enrico A ugelli e C raig N. M urphy

Não é preciso muita imaginação para conceber uma norma


social desse tipo, e entender a forma da extensão do Estado que ela
permitiu, como “funcional” no velho sentido, desacreditado, de que,
sendo benéfica para alguém, poderia, por conseguinte, ser adotada
conscientemente, como arma potencial nas lutas sociais. E não é
muito grande a distância entre reconhecer isso e reconhecer que oh
hábitos de pensamento e ação que mantêm e transformam continua­
mente as fronteiras de outros Estados em outros momentos poderíam :
ser igualmente frutíferos se considerados como resultados de deci- i
sões estratégicas, como ferramentas em conflitos fundamentais, não j
como dados imutáveis.
É claro que foi exatamente isso que Gramsci fez em seu exame \
da história da Itália moderna, a história da integração do Estado con­
temporâneo no século XIX - um dos tópicos centrais dos Cadernos do
cárcere. Os teóricos contemporâneos das relações internacionais estão
dispostos a problematizar as fronteiras do Estado ao estudar a Itália, a
Alemanha ou outros casos de integração jurídica do século XIX, ou
de algo semelhante, como os desenvolvimentos da Comunidade Eu­
ropéia. As relações internacionais poderíam ser bem diferentes se a
localização - entre diferentes grupos econômicos, tanto quanto entre
diferentes grupos de identidade - sempre fosse tratada como proble­
ma, se sempre tivéssemos de perguntar por que a fronteira está aqui e
não ali?. Por que este grupo está incluído e aquele não? O insight crítico
daqueles que fazem regularmente essas perguntas - alguns estudio­
sos do conflito regional nas relações Norte-Sul ou das origens do
conflito Oriente-Ocidente - não pode ser negado. E há vínculos im­
portantes a serem explorados entre suas conclusões e aquelas poucas
tradições da “melhor” análise em relações internacionais que sempre
faz perguntas sobre fronteiras: a escola da pressão lateral no estudo do
grande conflito de poder (Choucri e North, 1975; Ashley, 1980) e al­
gumas outras escolas de pensamento mais antigas sobre organização
e integração internacionais (Deutsch, 1966; Haas, 1964).

Fronteiras e materialismo histórico

Nosso palpite, no entanto, é o de que a importante vantagem


obtida com a problematização das fronteiras do Estado que Gramsci
G ramsci e as relações internacionais ♦ 221

oUTCce terá seu maior impacto num domínio diferente de pesquisa,


u.io entre os estudiosos que levantam questões fundamentais em re­
lações internacionais, mas não conseguem ser críticos a respeito das
unidades de análise que empregam, e sim entre os que fazem as per­
guntas tradicionais do materialismo histórico e que são, apesar disso,
igualmente propensos a reificar o Estado jurídico.
Esse problema sempre foi difícil. Considere as reflexões de Marx
r Engels sobre o nacionalismo, o internacionalismo e o Estado. Em A
ideologia alemã, de 1846, Marx e Engels escrevem que a revolução
■|ue defendem só pode ser realizada com as classes trabalhadoras
agindo simultânea e “repentinamente” (Marx e Engels, 1947, p. 46),
■.ugerindo que a verdadeira unidade da economia industrial mundial
exigia uma internacionalização muito mais completa do que aquela
i|iic os socialistas defenderam. Dois anos depois, durante as revolu­
ções de 1848, Marx e Engels corrigiram suas análises, escrevendo, no
Manifesto comunista, que o proletariado de cada país teria de se haver
( om sua própria burguesia primeiro (apud Anderson, 1983, p. 13).
bencdict Anderson comenta que, escondidos sob a ambigüidade do
pronome “sua”, encontram-se todos os problemas de identidade na-
«ional que os marxistas nunca resolveram. A mesma ambigüidade
lainbém obscurece o problema do internacionalismo que Marx e
Engels expuseram em 1846, assim como o problema da importância
do Estado jurídico, que os estudiosos das relações internacionais
ignoraram.
Em 1848, alemães como Marx e Engels estavam fadados a se-
ivin ambíguos quando se referiam à “nação” ou ao “Estado”. Usar es­
sas palavras para indicar a existência - ou mesmo a probabilidade -
de um Estado propriamente dito com fronteiras nítidas, para não fa­
lar do ordenamento político, seria invocar uma idéia tão controverti­
da como não comprovada do “internacionalismo” do proletariado.
Em 1848, teria sido ainda mais difícil identificar uma “nação alemã”
concreta do que identificar uma classe operária industrial e mundial
i. oncreta. O texto e o contexto histórico do Manifesto nos dão uma boa
idéia do que Marx e Engels devem ter querido dizer por sua própria
"nação” em 1848. A revolução levou à convocação do primeiro parla­
mento de “todos os alemães”, uma assembléia constituinte composta
por representantes dos muitos Estados alemães independentes, bem
222 ♦ E nrico A ugelli e C raig N. M urphy

como por representantes dos alemães do Império Austro-Húngaro e


representantes dos cantões suíços que falavam alemão. Foram os in­
teresses representados nesse parlamento que Marx e Engels conside­
raram o primeiro alvo de seu “próprio” proletariado (Draper, 1978,
p. 209-249). Mas, mesmo assim, como afirma Draper, Marx “consi­
derava a Alemanha como um dos campos de batalha em uma guerra
européia e, em geral, um campo de batalha secundário” (ibid., p. 241).
E a passagem do Manifesto imediatamente anterior à famosa citação
sobre a necessidade de um foco nacional de lutas para o comunismo
sugere algo ligeiramente diferente. São aquelas palavras famosas que
falam do capital “demolindo todas as muralhas chinesas” e da des­
truição, empreendida pela burguesia, das barreiras ao comércio e à
comunicação que dividiam os Estados.
Os estudiosos das organizações internacionais gostam de lem­
brar que a União Aduaneira alemã da época serviu de modelo a Marx
e a Engels. Ela havia quebrado as barreiras entre alguns, mas não to­
dos, dos muitos Estados aos quais os alemães do parlamento de 1848
deviam lealdade, ao mesmo tempo em que integrara a economia “ale­
m ã” às economias daqueles Estados “não alemães” em processo de
industrialização, membros da União Aduaneira. Dada a ênfase pre­
ponderante que muitos estudiosos marxistas contemporâneos deram
às perspectivas de transformação social no interior dos Estados-nação
jurídicos existentes na época, seria bom sublinhar que a visão da na­
ção alemã de que Marx e Engels dispunham em 1848 dificilmente
era a mesma coisa que “o Estado que governava legitimamente todos
os alemães”.
O próprio Marx era cidadão de uma província renana da Prús­
sia, tão distante física e culturalmente de Berlim quanto qualquer
parte da União. Ele trabalhou no Manifesto bem perto de casa, durante
um exílio na vizinha Bélgica, Estado cuja soberania, reconhecida há
pouco mais de uma década, era limitada por sua posição oficial de
“neutralidade perpétua”. Se não conhecéssemos o vínculo histórico
entre a reunião do parlamento alemão e a redação do Manifesto, pode­
riamos imaginar que Marx acreditava que seu “próprio” proletariado
e sua burguesia eram aqueles da área industrial que estava surgindo
na época ao longo do Reno e de seus afluentes, uma economia capi-
Gramsci e as relações internacionais ♦ 223

ulista que incluía partes da Alemanha, as terras baixas e parte do Nor-


i<- da França.
Marx e Engels tiveram uma boa intuição ao perceberem que o
desenvolvimento da indústria capitalista na Prússia renana - e tam ­
bém nas terras baixas, no Norte da França, na Suíça e em partes do
Império Austríaco que se industrializaram antes de sua dissolução -
estaria ligado à história do Estado-nação que se desenvolvia dentro da
l inião Aduaneira alemã em 1848. Só erraram ao sugerir que, em to-
<los os lugares e para todo o sempre, a história da indústria capitalista
estaria vinculada à história de um único Estado-nação, na mesma
medida em que os primórdios da industrialização da Europa conti­
nental estavam vinculados à história da Alemanha.
A abordagem do materialismo histórico feita por Gramsci, e
principalmente seu relato sobre o Risorgimento italiano, supera a for­
ma como os marxistas problematizaram o Estado e suas fronteiras.
Essa superação se dá quando Gramsci examina a transformação his­
tórica concreta do Estado em sentido amplo - as superestruturas inte­
gradas da sociedade civil e da sociedade política, do fmal da Idade Mé­
dia em diante.
Gramsci vê os Estados europeus modernos como continuação
de um Estado europeu medieval mais abrangente, cujas instituições
lundamentais eram o Império e a Igreja. As fronteiras do Estado euro­
peu eram as da cristandade ocidental. Gramsci argumenta que o Esta-
ilo medieval começou sua lenta desintegração, no século XI, da mes­
ma forma que a estrutura econômica da Europa começou a mudar, a
princípio, com as transformações na agricultura durante a Alta Idade
Média, depois com as mudanças da indústria nas cidades e, fínalmen-
lo, com o comércio, as viagens de descobrimento e o estabelecimento
cios primeiros postos avançados europeus no mundo inteiro. Ao lado
dessas mudanças na base, simultânea e dialeticamente relacionadas a
elas, ocorreram transformações culturais: o humanismo e a Renas­
cença, a Reforma, o iluminismo e, por fim, o liberalismo. O tema his-
lórico de ambos os conjuntos de mudanças era o mesmo. Era a nova
dasse emergente, a burguesia européia, cujo poder aumentava à me­
dida que diminuía o poder da aristocracia proprietária de terras. O
nascimento do Estado moderno, diz Gramsci, ocorre quando a nova
224 ♦ E nrico A ugelli e C raig N. M urphy

classe consegue criar superestruturas institucionais (Estados e o sislc


ma estatal) que refletem e garantem seus interesses políticos e econA
micos.
Se o processo em direção ao Estado moderno se estendia a todft
Europa, por que terminou em Estados-nação distintos? A análise de
Gramsci sugere a explicação apresentada a seguir.
Em primeiro lugar, embora seja verdade que a expansão eco ­
nômica da burguesia precisava de um território maior do que aquele
das áreas municipais onde surgiu a consolidação política de unidade»
maiores, não poderia ocorrer simultaneamente e da mesma forma
em toda a Europa. A força da burguesia e a capacidade de resistênciu
da antiga classe e de seus aliados intelectuais eram diferentes em dife­
rentes partes do continente. Gramsci acreditava que a mudança ocor­
rera primeiro, e de forma quase completa, na Holanda. Na Inglaterra,
e depois na Alemanha, houve a fusão entre o novo e o velho; na nova
superestrutura, as classes feudais tornaram-se os intelectuais da bur­
guesia e mantiveram alguns privilégios sobre a terra, na administra­
ção do governo e no setor militar. A França foi mais longe do que a
Holanda, mas numa data posterior: durante a Revolução, a aliança
entre a burguesia e as massas permitiu que a antiga classe fosse descar­
tada. Na Itália, dada a fraqueza da burguesia, sua divisão geográfica, o
desenvolvimento desigual do país e, principalmente, a influência da
Igreja em Roma, o processo foi muito mais lento. O surgimento dc
nações separadas evitou a expansão homogênea da burguesia euro­
péia, permitindo às burguesias nacionais prosperarem dentro dc con­
chas monárquicas e, com ajuda dos Estados, se expandirem para fora
da Europa.
Em segundo lugar, a idéia geral de “nação” provou ser uma ar­
ma ideológica efetiva e prática contra a concepção cosmopolita e reli­
giosa do mundo feudal, que sustentava o poder do Império e da Igreja.
O protestantismo, que fortaleceu os príncipes protestantes - estabele­
cendo, em última instância, suas “soberanias” distintas - desempe­
nhou papel semelhante.
Por fim, o teor específico de cada nacionalismo, a promoção dc
uma identidade nacional específica, baseada como sempre na cultura
comum de um povo e numa desconfiança generalizada dos estran-
4

G ramsci e as relações internacionais ♦ 225

f.riros, mostrou ser uma forma eficiente de canalizar a lealdade para


i•. novas unidades territoriais, reforçando a supremacia das novas
. lasses governantes.
Juntos, esses três fatores permitiram à Europa, na aurora de
■.na supremacia global, se organizar em Estados separados com um
•nsiema estatal. Em sua época, Gramsci pensou claramente que as
i i<inteiras dos diversos Estados do sistema estatal podiam ser conside-
i .ulas como fronteiras de sistemas sociais separados, argumentando:
"A unidade histórica das classes governantes realiza-se no Estado, e a
história dessas classes é essencialmente a história dos Estados ou de
i'i upos de Estados” (Gramsci, 1971, p. 52). Todavia, se empregarmos
hoje seu método de análise, podemos chegar a uma conclusão um
pouco diferente, pois as instituições que vinculam os Estados domi-
n.mtes e suas classes dirigentes ao sistema internacional tornaram-se
muito mais relevantes (van der Pijl, 1984; Gill, 1990). Por isso, os ato-
i es sociais que se opõem ao status quo e buscam “sua própria burgue-
.t.i” talvez tenham de procurar não apenas em seu próprio Estado-na-
.io, mas na totalidade da área econômica mais global onde vivem ou,
forem da periferia dependente menos industrializada, na totalida­
de do núcleo das áreas de mercado às quais estão ligados.
Apesar disso, não devemos exagerar o grau em que qualquer
i nisa que se aproxime de um Estado capitalista “m undial” mais
.íbrangente tenha se desenvolvido. Certamente, a expansão econômi-
i .i sob o capitalismo atual parece precisar de territórios mais amplos
do que as áreas nacionais nas quais essa expansão se deu até a época
dc Gramsci. Mas só isso não seria motivo suficiente para concluir
que a natureza fundamental da política mundial mudou. Na época
<lc Gramsci, também havia uma contradição entre uma economia in-
i icr nacional cada vez mais global e as políticas protecionistas de mui-
ios governos nacionais, como ele próprio observou depois da crise
econômica de 1929. Além disso, a obra de Gramsci nos aconselha a
ii.m ver a evolução das relações políticas, mesmo no plano internacio­
nal, como um resultado mecânico de mudanças na economia, mes­
mo no plano internacional. E, fmalmente, temos poucos motivos pa­
ia duvidar de que certos nacionalismos continuam sendo forças po-
icntes no sentido de garantir a supremacia, ainda que identidades
226 ♦ Enrico A ugelli e C raig N. M urphy

culturais novas e mais abrangentes - “Europa”, o “Mundo Livre” as


“nações desenvolvidas” - também possam desempenhar algum papel.
Além do mais, o método de Gramsci requer que consideremos
as mudanças na economia internacional à luz de atores sociais con­
cretos e das instituições que eles construíram para proteger seus inte­
resses. Hoje, essas instituições incluem tanto os mais poderosos Esta ­
dos capitalistas, que continuam sendo as expressões das burguesias
nacionais mais fortes, quanto as instituições internacionais: a Comu­
nidade Européia, a OCDE, o FMI, a Organização do Tratado do Atlân­
tico Norte (Otan) e assim por diante. Essas instituições, unidas às idc-
tificações ideológicas que operam em seus níveis, devem ser levados
em conta. Identificar os instrumentos concretos de poder dentro das
fronteiras móveis na economia mundial deve consistir o núcleo cen­
tral de um programa de pesquisa gramsciano fiel tanto à sua sociolo­
gia do poder quanto ao objetivo político para o qual ela foi criada.
AS TRÊS HEGEMONIAS DO CAPITALISMO HISTÓRICO
G iovanni A rrighi

O conceito de hegemonia mundial

O declínio do poder mundial dos Estados Unidos nas décadas


Jc 1970 e 1980 originou uma onda de estudos sobre ascensão e de-
i Imio das “hegemonias” (Hopkins e Wallerstein, 1979; Bousquet,
1079; 1980; Wallerstein, 1984b), “potências mundiais” (Modelski,
11>78; 1981; 1987), “núcleos” (Gilpin, 1975) e “grandes potências”
(kennedy, 1987-1988). Esses estudos diferem consideravelmente uns
dos outros em seus objetos de estudo, metodologia e conclusões, mas
tem duas características em comum. Primeiro, se e quando usam o
termo “hegemonia”, querem dizer “domínio”; e, segundo, se seu foco
r sua ênfase estão numa suposta invariabilidade básica do sistema no
interior do qual o poder de um Estado ascende e declina.
A maioria desses estudos se baseia em algum conceito de “ino­
vação” e “liderança” ao definir as capacidades relativas dos Estados. No
i aso de Modelski, inovações sistêmicas e liderança para executá-las
•.ao consideradas as principais fontes da “potência mundial”. No en­
tanto, em todos esses estudos - inclusive nos de Modelski - , as
movações sistêmicas não alteram os mecanismos fundamentais por
meio dos quais o poder do sistema interestados ascende e declina.
Aliás, em geral se diz que a invariabilidade desses mecanismos é uma
ilas principais características do sistema interestados.
Neste ensaio, vou tentar mostrar que, com a aplicação do con-
i eito gramsciano de hegemonia às relações interestados, podemos
i ontar a história da ascensão e queda de uma potência mundial que
explica não só a invariabilidade, mas também a evolução e a supera­
d o do sistema mundial moderno. O conceito de “hegemonia m un­
dial”, adotado aqui, se refere ao poder que um Estado tem de exercer
funções governamentais sobre um sistema de Estados soberanos. Em
princípio, esse poder não envolve só a administração usual desse
228 ♦ G iovanni A rrighi

sistema tal como foi instituída numa determinada época. No entanto,


como veremos, o governo de um sistema de Estados soberanos sem
pre envolve, na prática, algum tipo de ação transformadora que altera
o modo de operação do sistema de maneira fundamental.
Esse poder é algo mais do que “dominação” pura e simples. É o
poder associado ao domínio ampliado pelo exercício da “liderança
intelectual e moral”. Como enfatizado por Gramsci a respeito da he­
gemonia no plano nacional,
A suprem acia de um grupo social se manifesta de dois
modos, como “dom ínio” e como “direção intelectual e m o­
ral”. U m grupo social dom ina os grupos adversários, que
visa a “liquidar” ou a submeter, inclusive com a força ar­
mada, e dirige os grupos afins e aliados. Um grupo social
pode e, aliás, deve ser dirigente já antes de conquistar o
poder governamental (esta é um a das condições principais
para a própria conquista do poder); depois, quando exerce
o poder e mesmo se o m antém fortem ente nas mãos, tor-
na-se dom inante, mas deve continuar a ser tam bém “diri­
gente”. (Gramsci, 1971, p. 57-58)

Essa é uma reformulação da imagem de Maquiavel sobre o po­


der: uma combinação de consentimento e coerção. Coerção implica
uso da força ou ameaça verossímil de seu uso; o consentimento
implica liderança moral. Quando o uso da força é arriscado demais c
o exercício da direção moral é problemático, a “corrupção” e o “enga­
no” podem intervir temporariamente como substitutos no exercício
do poder:
Entre o consentim ento e a força estão a corrupção e o
engano (que são característicos de certas situações quando
é difícil exercer a função hegemônica e quando o uso da
força é arriscado dem ais). Essa situação consiste em tentar
desm oralizar e paralisar o adversário (o u adversários)
com prando seus líderes - na surdina, ou, em caso de p eri­
go im inente, às claras - a fim de semear a desordem e a
confusão entre suas fileiras. (Ibid., n. 80)

Portanto, a corrupção e a fraude são armas táticas numa luta de


retaguarda para preservar o poder. Não são a expressão do poder, e
sim do fracasso do poder.
As TRÊS HEGEMONIAS DO CAPITALISMO HISTÓRICO ♦ 229

Ao contrário, a hegemonia é o poder adicional que resulta da


i apacidade de um grupo dominante apresentar, num plano univer­
sal, todas as questões em torno das quais gira o conflito.
É certo que o Estado é visto como o órgão de um gru­
po particular, destinado a criar condições favoráveis para
a expansão máxima deste grupo. Mas o desenvolvimento
e a expansão do grupo particular são concebidos e apresen­
tados com o a força m otora de um a expansão universal,
de um desenvolvimento de todas as energias “nacionais”
(Ibid., p. 181-182)
É claro que a asseveração do grupo dominante de representar
um interesse universal sempre é mais ou menos fraudulenta. Apesar
disso, de acordo com Gramsci, só podemos falar de hegemonia quan­
do essa asseveração é verdadeira ao menos em parte e acrescenta algu­
ma coisa ao poder do Estado dominante. Uma situação em que a asse­
veração do Estado dominante de representar um interesse geral é in-
leiramente fraudulenta não será definida como uma situação de he­
gemonia, e sim como um fracasso da hegemonia.
Como a palavra hegemonia, em seu sentido etimológico de “li­
derança”, e em seu sentido derivado de “dominação”, refere-se nor-
!iKiimente a relações entre Estados, é inteiramente possível que Gramsci
lenha usado o termo metaforicamente para esclarecer relações entre
grupos sociais por meio de uma analogia com as relações entre os Es­
guios. Ao transpor o conceito gramsciano de hegemonia social deriva­
da das relações intra-Estado para as relações interestados - como foi
leito implicitamente por mim (Arrighi, 1982) e explicitamente por
i :<>x (1983; 1987), Keohane (1984a), Gill (1986a) e Gill e Law (1988),
entre outros - podemos estar apenas refazendo em sentido inverso o
processo mental de Gramsci. E, com isso, estamos diante de dois pro­
blemas.
O primeiro problema diz respeito ao duplo sentido de “lide­
ra nça”, principalmente quando aplicado às relações entre Estados.
11m Estado dominante exerce uma função hegemônica quando dirige
o sistema de Estados a um sentido desejado e, com isso, é percebido
rumo perseguindo um interesse universal. É esse tipo de liderança
que torna hegemônico um Estado dominante. Mas um Estado dom i­
230 ♦ G iovanni A rrighi

nante também pode liderar no sentido de atrair outros Estados para


sua trajetória de desenvolvimento. Tomando emprestada uma expi e»
são de Schumpeter, esse segundo tipo de liderança pode ser entendido
como “liderança à revelia de si mesmo” porque, com o tempo, ela au
menta a competição pelo poder, em vez de aumentar o poder do Esln
do hegemônico (Schumpeter, 1963, p. 89). Esses dois tipos de liderim
ça podem coexistir - ao menos por algum tempo. Mas só a liderança
no primeiro sentido é que define uma situação de hegemonia.
O segundo problema diz respeito ao fato de que é mais difícil
definir um interesse geral no plano do sistema interestados do que no
plano dos Estados individuais, no qual um aumento de poder do E,s
tado em relação a outros Estados é um componente importante ~ e,
em si mesmo, uma medida necessária - na busca bem-sucedida do
um interesse geral (nacional). Mas, nesse caso, o poder, por definição,
não pode ser aumentado para o sistema como um todo. É claro que o
poder de um determinado grupo de Estados pode aumentar a expcn-
sas dos demais Estados, mas a hegemonia do líder daquele grupo é, no
melhor dos casos, “regional” ou “civilizacional”; não é uma hegemo­
nia mundial.
As hegemonias mundiais, da forma como são entendidas aqui,
só podem surgir quando a busca de poder por parte dos Estados, uu.s
em relação aos outros, não é o único objetivo da ação estatal. Na ver­
dade, a busca de poder no sistema interestados é apenas um dos lados
da moeda que ao mesmo tempo define a estratégia e a estrutura dos
Estados como organizações. O outro lado da moeda é a maximização
do poder perante os súditos. Portanto, um Estado pode se tornar
mundialmente hegemônico porque pode afirmar com credibilidade
ser a força motora de uma expansão universal do poder coletivo dos
governantes perante os súditos. Ou, inversamente, um Estado pode se
tornar mundialmente hegemônico porque tem condições de afirmar
com credibilidade que a expansão de seu poder em relação a alguns
ou até mesmo a todos os outros Estados representa o interesse geral
dos súditos de todos os Estados.
Afirmações desse tipo têm mais probabilidade de serem ver­
dadeiras e verossímeis em situações de “caos sistêmico”. “Caos” não é
o mesmo que “anarquia”. Mesmo que os dois termos sejam freqüen-
A S TRÊS HEGEMONIAS DO CAPITALISMO HISTÓRICO ♦ 231

iimente usados como sinônimos, a compreensão das origens sistêmi-


. .r. das hegemonias mundiais requer que se faça uma distinção entre
ambos.
“Anarquia” designa “ausência de poder central” Nesse sentido,
11 \isiema moderno de Estados soberanos, bem como o sistema de go-
vitih) da Europa medieval, do qual nasceu o sistema moderno, podem
mt considerados sistemas anárquicos. No entanto, cada um desses
.1-.lemas teve/tem seus próprios princípios, normas, regras e procedi­
mentos implícitos e explícitos que justificam o fato de nos referirmos
,i eles como “anarquias ordenadas” ou “ordens anárquicas”.
O conceito de “anarquia ordenada” foi introduzido pela pri­
meira vez por antropólogos que tentavam explicar a tendência obser-
v.ula em sistemas “tribais” de produzir ordem a partir do conflito
l f vans-Pritchard, 1940; Gluckman, 1963, capítulo 1). Essa tendência
i.unbém está presente nos sistemas de governo medieval e moderno,
IMii que nesses sistemas a “ausência de um poder central” não significa
falia de organização e, respeitados os seus limites, o conflito tende a
(Moduzir ordem.
Ao contrário, “caos” e “caos sistêmico” dizem respeito a uma si-
i nação de completa, e aparentemente irremediável, falta de organiza­
rão. É uma situação que surge porque o conflito aumenta progres-
ava mente e suscita poderosas tendências antagônicas, ou porque um
11ovo conjunto de regras e normas de comportamento é imposto, ou
I I rsce no interior de um conjunto mais antigo de regras e normas
m ui substituí-lo, ou por causa da combinação entre esses dois pro-
<essos. À medida que o caos sistêmico aumenta, a demanda por “or­
dem” - a ordem antiga, uma nova ordem - tende a se tornar cada vez
in.lis generalizada entre os governantes ou entre os súditos, ou entre
.mibos. Qualquer Estado que tenha condições de satisfazer essa de­
manda de todo o sistema obtém, por conseguinte, a oportunidade de
m- tornar hegemônico.

As origens do moderno sistema interestados

As hegemonias mundiais são um fenômeno do moderno sis-


UTiia interestados que surgiu da decadência e da desintegração final
232 ♦ G iovanni A rrighi

do sistema de governo da Europa medieval. Como diz Ruggie (1983),


existe uma diferença fundamental entre o sistema de governo medie
vai (europeu) e o moderno. Ambos os sistemas podem ser caracteriza­
dos como “anárquicos”, mas anarquia, no sentido de “ausência de ptr
der central”, tem diferentes significados de acordo com a base de prin­
cípios pelos quais as unidades do sistema são separadas umas das ou
tras: “Se anarquia nos diz que o sistema político é um domínio seg­
mentado, a diferenciação nos diz em que bases os segmentos são defi­
nidos” (idem, p. 274).
O sistema de governo medieval consistia em cadeias de rela­
ções senhor/vassalo, baseadas num amálgama de propriedade condi­
cional e autoridade privada. Por isso, os “diferentes exemplos jurídi­
cos eram geograficamente entrelaçados e estratificados, e abunda­
vam lealdades plurais, suseranias assimétricas e enclaves anômalos” ,
(Anderson, 1974, p. 37-38). Além disso, as elites governantes eram
extremamente móveis nos espaços dessas jurisdições políticas sobre­
postas, sendo capazes de “viajar e assumir o governo de uma ponta do
continente à outra sem hesitação ou dificuldade”. Finalmente, esse 1
sistema de poder era “legitimado pelos códigos usuais do direito, da 1
religião e do costume que expressavam direitos naturais inclusivos
pertencentes à totalidade social conformada por suas unidades cons­
tituintes” (Ruggie, 1983, p. 275). i
Em suma, esse era essencialmente um sistema de gover­
no segm entado; era a anarquia. Mas era um a form a de
governo territorial segmentado sem nenhum a das conota­
ções de possessividade e exclusividade que nos são transm iti­
das pelo conceito m o d ern o de soberania. Representava
um a organização heterônom a de direitos e reivindicações
territoriais - de espaço político. (Ibid.)

Em contraste com o sistema de governo medieval, “o sistema


de governo moderno consiste na institucionalização da autoridade
pública no interior de domínios jurisdícionais mutuamente exclusi­
vos” (ibid.). Os direitos de propriedade privada e os direitos do gover­
no público passam a ser absolutos e separados uns dos outros; as ju­
risdições políticas tornam-se exclusivas e claramente demarcadas por
fronteiras; a mobilidade das elites governantes pelas jurisdições polí-
A S TRÊS HEGEMONIAS DO CAPITALISMO HISTÓRICO ♦ 233

iu as diminui e acaba desaparecendo; o direito, a religião e o costume


i<unam-se “nacionais”, isto é, não estão sujeitos a nenhuma outra au-
ii ii idade política além daquela do suserano.
Essa “evolução” do sistema de governo moderno esteve intima-
mrnLe associada ao desenvolvimento do capitalismo em escala mun-
iliai como modo de acumulação. Essa associação íntima está presente
na base da conceituação feita por Wallerstein (1974a) do sistema
mundial moderno como economia capitalista mundial. Nessa con-
i ei Inação, a ascensão e a expansão do moderno sistema interestados é
iatilo a principal causa quanto um efeito da incessante acumulação
de capital: “O capitalismo conseguiu florescer exatamente porque a
.■( tmomia mundial teve, dentro de suas fronteiras, não um, mas uma
multiplicidade de sistemas políticos” (ídem, p. 348). Ao mesmo tem ­
po, a tendência dos acumuladores capitalistas de mobilizar seus res-
Iicctivos Estados para melhorar sua posição competitiva na economia
mundial reproduziu continuamente a segmentação do domínio po­
lítico em jurisdições separadas (idem, 1974b, p. 402).
A força da formulação de Wallerstein está em sua ênfase na
unidade fundamental entre o capitalismo e o sistema de governo mo­
derno. Sua fraqueza está em sua tendência a ignorar todas as distin­
gues analíticas entre os dois termos dessa relação.
A meu ver, a íntima conexão histórica entre o capitalismo e o
moderno sistema interestados não permite a dissimulação de suas
identidades analíticas distintas, pois a relação entre elas tem as mes­
mas doses de contradição e de unidade.
Mais especificamente, a segmentação da economia mundial
<in jurisdições políticas rivais não beneficia necessariamente os acu­
muladores capitalistas. Ela depende muito da forma e da intensidade
■Ia competição. Por exemplo, se a competição interestados assume a
Io una de lutas armadas intensas e prolongadas, não há razão para que
<is custos da competição interestados para os acumuladores capitalis-
i.is não devam exceder os custos do governo centralizado com os
<piais eles teriam de arcar num império mundial. Nessas circunstân-
<ias, ao contrário, a lucratividade do empreendimento capitalista po­
dería muito bem ser solapada e acabar sendo destruída por um desvio
<ada vez maior de recursos para o setor militar e/ou por um rompi-
234 ♦ G iovanni A rrighi

mento cada vez maior nas redes de produção e comércio mediante ;ti
quais as empresas capitalistas se apropriam do excedente e o transídr
mam em lucros.
Ao mesmo tempo, a competição entre os acumuladores capilu
listas não promove necessariamente a segmentação contínua do do
mínio político em jurisdições separadas. Repetindo, isso depende em
grande parte da forma e da intensidade da competição, neste caso
entre empresas capitalistas. Se os acumuladores capitalistas estão pre
sos em densas redes de produção e comércio, a segmentação dessas
redes em jurisdições políticas separadas pode ter um impacto negati
vo sobre a posição competitiva de toda e qualquer empresa capitalista
em relação às empresas não-capitalistas. Nessas circunstâncias, os acu
muladores capitalistas podem muito bem mobilizar seus respectivos
Estados para diminuir a segmentação política da economia mundial,
em lugar de aumentá-la ou mantê-la. E pode-se esperar que essa ten­
dência seja tanto mais forte quanto mais intensa for a competição in-
tercapitalista.
Em termos mais gerais, a competição interestados e a competi­
ção interempresas podem assumir formas diferentes, e a forma que
assumem tem conseqüências importantes na maneira como o mo­
derno sistema mundial - como modo de governo e de acumulação -
funciona ou não funciona. Não basta enfatizar a conexão histórica
entre a competição interestados e a competição interempresas. Tam­
bém devemos especificar a forma que assumem e como ela muda
com o tempo. Só dessa maneira é que poderemos avaliar corretamen­
te a natureza evolutiva do sistema mundial moderno e o papel desem­
penhado pelas sucessivas hegemonias mundiais na construção e na
reconstrução do sistema a fim de resolver a contradição recorrente
entre a acumulação incessante de capital e a organização comparati­
vamente estável do espaço político.
Essencial para esse entendimento é a definição de “capitalis­
mo” e “territorialismo” como modos de governo ou lógicas de poder
opostos. Os governantes territorialistas identificam o poder à exten­
são e ao numero de habitantes de seus domínios, e concebem a rique­
za/ capital como meio ou subproduto da busca “incessante” de expan­
são territorial. Por outro lado, os governantes capitalistas identificam
AS TRÊS HEGEMONIAS DO CAPITALISMO HISTÓRICO ♦ 235

11 poder com a extensão de seu controle sobre recursos escassos e con­


sideram as aquisições territoriais como meio e subproduto d a “inces-
•„mte” acumulação de capital.
A diferença entre essas duas lógicas também pode se expressar
r 111 lermos da metáfora que define os Estados como “continentes de
poder” (Giddens, 1987). Os governantes territorialistas tendem a au­
mentar seu poder aumentando o tamanho do continente. Os gover­
nantes capitalistas, por sua vez, tendem a aumentar seu poder abarro-
i.indo de riqueza um continente pequeno e só aumentam o tamanho
do continente se esse processo for justificado pelas exigências da acu­
mulação de capital.
A característica essencial do moderno sistema mundial é a
oposição constante entre essas duas lógicas, e a solução recorrente de
■.nas contradições por meio da reorganização inovadora do espaço
político-econômico mundial pelo Estado capitalista líder no período,
r.ssa dialética entre capitalismo e territorialismo precede o estabeleci­
mento do sistema moderno interestados. Suas origens residem na
lormação - dentro do sistema de governo medieval - de um subsiste-
ma regional de Estados capitalistas e protocapitalistas no Norte da
11alia.
Inicialmente, essa região não passava de um dos “enclaves anô­
malos” que abundavam no espaço político do sistema de governo me-
1 1ieval, como Anderson nos lembra na passagem citada acima. Mas, à
medida que a decadência do sistema de governo medieval se dissemi­
nou e se aprofundou, o enclave capitalista do Norte da Itália organi­
zo u-se num subsistema de jurisdições políticas separadas e indepen-
ilentes que mantinha sua coesão graças ao princípio de equilíbrio de
poder e às redes densas e extensas de diplomacia residencial.
Como enfatizado de formas diferentes mas complementares
por autoridades como Braudel (1984, capítulo 2), Lane (1966; 1979)
<■ McNeill (1984, capítulo 3), esse subsistema de cidades-Estado -
t entrado em Veneza, Florença, Gênova e Milão - antecipou em dois
séculos ou mais muitas das características-chave do moderno sistema
interestados. Quatro dessas características merecem ser comentadas.
Primeiro, esse subsistema de cidade-Estado constituiu essen-
cialmente um sistema capitalista de realização da guerra e de cons­
236 ♦ G iovanni A rrighi

trução do Estado. O Estado mais poderoso do subsistema, e seu líder


(Veneza), é o verdadeiro protótipo do Estado capitalista, no duplo
sentido de “exemplo perfeito” e de “modelo para casos futuros”. Unia
oligarquia capitalista mercantil manteve firmemente nas mãos as ré­
deas do poder estatal. As aquisições territoriais eram submetidas à aná­
lise rigorosa de custo-benefício e, em geral, concretizadas apenas co­
mo simples meios para aumentar a lucratividade do intercâmbio co*
mercial da oligarquia capitalista que exercia o poder estatal (Braudel,
1984, p. 120-121; Modelski e Modelski, 1988, p. 19-32).
Com o devido respeito a Sombart, se algum dia existiu um Es­
tado cujo executivo satisfazia os requisitos do Manifesto comunista
para o Estado capitalista - “um comitê para administrar as questões
usuais de toda a burguesia” (Marx e Engels, 1967, p. 82) -, foi Veneza
do século XV. Desse ponto de vista, os principais Estados capitalistas
de épocas futuras (Províncias Unidas,1Reino Unido, Estados Unidos)
aparecem como versões cada vez mais “diluídas” do modelo ideal tí­
pico realizado por Veneza séculos antes. Como veremos, não se trata
de mero acaso. Embora Gênova, Florença e Milão (nessa ordem) não
tenham satisfeito os padrões ideais típicos do Estado capitalista tão
bem quanto Veneza, todas elas atenderam os padrões menos rigorosos
de épocas posteriores.
Em segundo lugar, o funcionamento do “equilíbrio de poder”
desempenhou um papel crucial em três planos diferentes no que diz
respeito à promoção do desenvolvimento desse enclave de governo
capitalista dentro do sistema medieval, O equilíbrio de poder entre as
autoridades centrais do sistema medieval (papa e imperador) foi útil
para o surgimento de um enclave capitalista organizado no Norte da
Itália - locus geopolítico desse equilíbrio. O equilíbrio de poder entre
as próprias cidades-Estado do Norte da Itália foi útil para preservar
sua separação mútua e sua autonomia. E o equilíbrio de poder entre
os Estados dinásticos emergentes da Europa ocidental foi útil para
evitar que a lógica do territorialismo cortasse pela raiz a ascensão de

1 As sete províncias dos Países Baixos que declararam sua independência da


Espanha em 1581 e lançaram os alicerces para a criação dos Países Baixos.
(N. da T.l
AS TRÊS HEGEMONIAS DO CAPITALISMO HISTÓRICO ♦ 237

uma lógica capitalista no interior do sistema de poder europeu (ver


Mi Neill, 1984, capítulo 3).
Portanto, o equilíbrio de poder foi essencial desde o início para
11 desenvolvimento do capitalismo como forma de governo. O equilí-
l»i ia de poder pode ser interpretado como um instrumento por meio
.In qual os governantes capitalistas podem, individualmente ou em
► *,i upo, reduzir os custos da proteção em termos absolutos e relativos
:i<>s concorrentes e rivais. No entanto, para que o equilíbrio de poder
ou se torne um instrumento desse tipo, o Estado, ou os capitalis-
u*. têm de estar em condições de usar esse equilíbrio a seu favor, em
vez de ser apenas a roda de uma engrenagem que ninguém controla
nu que é controlada por algum outro Estado. Se o equilíbrio de poder
.. i pode ser mantido com guerras intermináveis e dispendiosas, então
p.ii licipar dele frustra os objetivos dos Estados capitalistas, porque os
. a st os financeiros dessas guerras tendem inevitavelmente a exceder
.riis benefícios financeiros. O segredo do êxito capitalista é fazer que
-.li,is guerras sejam travadas por outros, se for possível, de graça e, se
ii.io, ao menor custo possível.
Em terceiro lugar, ao transformar as relações de salário-traba-
IIin naquilo que Lane (1979) chamou corretamente de “indústria de
I«indução de proteção” - isto é, realização da guerra e construção do
I .lado - , as cidades-Estado italianas foram capazes de converter ao
II u nos parte de seus custos de proteção em renda e, desse modo, fazer
que as guerras se pagassem a si mesmas.
Nas cidades italianas mais ricas, circulava dinheiro [su­
ficiente] para possibilitar aos cidadãos cobrarem impostos
de si mesmos e usarem a quantia arrecadada para com prar
o serviço de estrangeiros arm ados. Depois, pelo simples
fato de gastarem seu salário, os soldados contratados p u ­
nham novam ente esse dinheiro em circulação. Desse modo,
eles intensificavam as trocas no mercado que, perm itiram
inicialmente que essas cidades comercializassem a violência
arm ada. Assim, o sistema em ergente tendeu a se to rn ar
auto-sustentável. (McNeill, 1984, p. 74)

O sistema emergente só podia se tornar auto-sustentável até


. crio ponto - isto é, até o ponto em que a inflação de custos e as mu-
J.inças na composição social da cidade-Estado solaparam a possibili-
238 ♦ G iovanni A rrighi

dade da oligarquia capitalista dominante de concretizar efetivamenlc


a incessante acumulação de capital. Em situações de guerra perma­
nente, mais cedo ou mais tarde a circulação cada vez maior de dinhei­
ro dentro dos estreitos domínios territoriais das cidades-Estado estava
fadada a aumentar, e em geral aumentou, o preço dos suprimentos
(meios de vida, meios de proteção, meios de produção) mais rapida­
mente do que sua produtividade. Além da inflação de custos, ou mes­
mo unidas a ela, guerras intermináveis tendiam a aumentar o poder
social dos artesãos (como em Florença) ou dos militares (como em
Milão), com repercussões negativas sobre as predisposições capitalis­
tas da cidade-Estado.
Em quarto e último lugar, os governantes capitalistas das cida­
des-Estado do Norte da Itália (mais uma vez Veneza ocupava a pri­
meira posição) assumiram a liderança no sentido de construir redes
densas e extensas de diplomacia residencial. Por meio dessas redes,
adquiriram o conhecimento e as informações relativos às predispo­
sições e aptidões de outros governantes (inclusive dos governantes
territorialistas do sistema de governo medieval mais amplo dentro do
qual atuavam), necessárias para administrar o equilíbrio do poder de
forma a minimizar os custos de proteção. Assim como a lucratividade
do comércio de longa distância dependeu essencialmente do controle
quase monopolista das informações sobre o maior espaço econômico
possível (Braudel, 1982), também a capacidade dos governantes capi­
talistas de administrar o equilíbrio de poder em benefício próprio de­
pendeu essencialmente do conhecimento quase monopolista do pro­
cesso de tomada de decisões de outros governantes, e da capacidade de
controlar esse conhecimento.
Essa era a função da diplomacia residencial. Em comparação
com os governantes territorialistas, os governantes capitalistas tive­
ram tanto motivações mais fortes quanto maiores oportunidades para
promover o desenvolvimento da diplomacia residencial. Tiveram
motivações mais fortes porque o conhecimento preciso da predispo­
sição e das aptidões dos governantes era essencial para administrar o
equilíbrio de poder que, por sua vez, era essencial para estimular um
comportamento de poupança. Mas também tiveram oportunidades
maiores porque as redes de comércio de longa distância controladas
AS TRÊS HEGEMONIAS DO CAPITALISMO HISTÓRICO ♦ 239

pelas oligarquias capitalistas forneceram um alicerce já pronto e au-


loíinanciável sobre o qual construir redes diplomáticas.
Portanto, a acumulação de capital por meio do comércio de
longa distância, a administração do equilíbrio de poder, a comercia-
li/.ação da guerra e o desenvolvimento da diplomacia residencial
t omplementavam-se, e, durante um século ou dois, criaram uma ex­
traordinária concentração de riqueza e poder nas mãos das oligar­
quias que governavam as cidades-Estado do Norte da Itália. Por volta
de 1420, as principais cidades-Estado italianas, além de funcionarem
como grandes potências na política européia (McNeill, 1984, p. 78),
i.imbém tinham rendas maiores do que as rendas dos Estados dinás­
ticos mais bem-sucedidos da Europa Ocidental e do Noroeste euro­
peu (Braudel, 1984, p. 120). Mostravam, assim, que até pequenos ter­
ritórios podiam se tornar formidáveis continentes de poder ao procu­
rarem unilateralmente a acumulação de riquezas, em lugar da aquisi­
ção de territórios e súditos. Portanto, “considerações sobre abundân-
t ia” tornaram-se parte integrante e central das “considerações sobre
poder” em toda a Europa.
Mas as cidades-Estado italianas nunca tentaram - individual
ou coletivamente - uma transformação deliberada do sistema de go­
verno medieval. Ainda demoraria dois séculos - de cerca de 1450 a
cerca de 1650 (o chamado “longo” século XVI) - antes que um novo
(ipo de Estado capitalista (Províncias Unidas) tivesse de fato a oportu­
nidade de transformar o sistema de governo europeu de modo a ade­
quá-lo aos requisitos da acumulação do capital em escala mundial, e
pudesse beneficiar-se dessa oportunidade.

A hegemonia holandesa e o surgimento do sistema westfaliano

Essa nova situação surgiu em decorrência de uma grande m u­


dança na luta européia pelo poder, precipitada pelas tentativas de go­
vernantes territorialistas para incorporarem aos seus domínios, ou
evitar que outros incorporassem, a riqueza e o poder das cidades-Es­
tado italianas. Conforme se mencionou, a conquista direta se mos­
trou impossível, basicamente por causa da competição entre os pró­
prios governantes territorialistas. Mas, nessa luta pelo impossível, cer­
240 ♦ G iovanni A rrighi

tos Estados territoriais (Espanha e França em particular) desenvolve


ram novas técnicas de realização da guerra (os terços espanhóis, o»
exércitos permanentes de profissionais, os canhões de cerco móveis,
os novos sistemas de fortificação, e assim por diante) que lhes deram
decisiva vantagem em termos de poder perante outros governantes, c
também perante autoridades de alto e baixo escalões do sistema dt*
governo medieval (ver McNeill, 1984, p. 79-95).
A intensificação da luta pelo poder na Europa logo se fez seguir
da expansão geográfica dessa luta, pois alguns governantes territoria-
listas procuraram formas mais indiretas de incorporar aos seus domí­
nios a riqueza e o poder das cidades-Estado italianas. Em vez de - ou
além de - procurarem anexar as cidades-Estado, esses governantes
tentaram conquistar as próprias fontes de sua riqueza e poder: os
circuitos do comércio de longa distância.
Mais especificamente, a fortuna das cidades-Estado italianas
em geral, e de Veneza em particular, dependia basicamente do con­
trole monopolista sobre um elo crucial da cadeia de trocas comerciais
que ligava a Europa Ocidental à índia e à China através da “Casa do
Islã”. Nenhum Estado territorial era forte o bastante para apoderar-se
do monopólio, mas certos governantes territorialistas tinham e tenta­
ram de fato estabelecer uma ligação mais direta entre a Europa Oci­
dental e a índia e a China de modo a desviar os fluxos de dinheiro e
suprimentos de Veneza para seus próprios circuitos comerciais. Por­
tugal e Espanha, auxiliados por agentes genoveses excluídos por Ve­
neza das rotas mais lucrativas do Mediterrâneo, assumiram a lide­
rança dessas tentativas. Embora Portugal tenha atingido sua meta, a
Espanha fracassou, mas encontrou por acaso uma fonte inteiramente
nova de riqueza e poder, as Américas.
A intensificação e a expansão global da luta pelo poder na Eu­
ropa engendraram um círculo vicioso/virtuoso (vicioso para suas ví­
timas, virtuoso para seus beneficiários) de recursos cada vez maiores
e de técnicas cada vez mais sofisticadas e caras de construção do Esta­
do e de realização da guerra, usados na luta pelo poder. As técnicas
que tinham sido desenvolvidas nas lutas na Europa foram usadas
para subjugar Estados e povos não-europeus, e toda a riqueza e o po­
der originados da sujeição dos Estados e povos não-europeus foram
A S TRÊS HEGEMONIAS DO CAPITALISMO HISTÓRICO ♦ 241

,i ..ulos na luta no interior do continente europeu (McNeill, 1984,


), *M-95,100 e seg.).
O Estado que inicialmente mais se beneficiou com esse círcu­
lo vicioso/virtuoso foi a Espanha, único Estado protagonista ao mes­
mo tempo da luta pelo poder nas frentes européia e não-européia. Ao
longo de todo o século XVI, o poder da Espanha excedeu de longe o de
iodos os outros Estados europeus. Mas esse poder, longe de ser usado
Ii.ii .i controlar uma transição “suave” para o sistema de governo mo-
,|rmo, tornou-se um instrumento da casa imperial dos Habsburgos e
do papado para salvar o que podia ser salvo do sistema de poder me­
dieval cm desintegração.
Na realidade, pouco ou nada podia ser salvo, porque a grande
mudança na luta pelo poder na Europa, desde meados do século XV,
i mlia feito a desintegração do sistema medieval chegar a um ponto do
qual não havia mais retorno. Dessa luta, haviam surgido no Noroeste
d.i Europa novas realidades de poder que, em graus variados, tinham
■.ubordinado a lógica do poder capitalista à lógica territorial. O resul­
tado foi a formação de miniimpérios compactos (cujos melhores
exemplos são os Estados dinásticos da França, Inglaterra e Suécia)
que, individualmente, não eram adversários à altura do poder da Es­
panha; mas, coletivamente, não se subordinariam ao domínio de ne­
nhuma autoridade política antiga ou nova. A tentativa da Espanha,
aliada ao papado e à casa imperial dos Habsburgos, de desfazer ou su-
lmrdinar essas novas realidades de poder, além de fracassada, criou
uma situação de caos sistêmico que criou as condições que levariam
,m surgimento da hegemonia holandesa e à liquidação final do siste­
ma de governo medieval. Pois o conflito foi além da capacidade regu-
l.imentadora do sistema de governo medieval e transformou suas ins-
lituições em muitas outras novas causas de conflito. Por isso, a luta
pelo poder na Europa tornou-se um jogo cujo computo final era cada
vez mais negativo, jogo em que todos, ou a maioria dos governantes
europeus, começaram a perceber que não tinham nada a ganhar e tu­
do a perder com a sua continuidade. O fator mais importante dessa
percepção foi o súbito acirramento do conflito social no sistema, que
chegou a constituir uma séria ameaça ao poder coletivo dos gover­
nantes europeus.
242 ♦ G iovanni A rrighi

Como afirmou certa vez Marc Bloch, a revolta camponesa cru


tão comum nos primórdios da Europa moderna quanto as greves nu»
sociedades industriais de hoje. Mas, no final do século XVI e, sobrelu
do, na primeira metade do século XVII, essas sublevações rurais fb
ram agravadas por revoltas urbanas de proporções sem precedentes
revoltas dirigidas não só contra os “patrões”, mas contra o Estado. A
Revolução Puritana da Inglaterra foi o episódio mais dramático dessa
combinação explosiva de revoltas rurais e urbanas, mas quase todos
os governantes europeus foram diretamente afetados ou se sentiram
seriamente ameaçados pela rebelião social (Parker e Smith, 1985,
p. 12 e seg.).
Essa intensificação do conflito social em todo o sistema foi rc
sultado direto do aumento anterior, e persistente, dos conflitos arma­
dos entre os governantes. De 1550 a 1640, o número de soldados em­
pregados pelas grandes potências da Europa mais do que dobrou, ao
passo que, entre 1530 e 1630, o custo de colocar cada um desses solda­
dos no campo de batalha aumentou cinco vezes em média (ibid.,
p. 14). Essa escalada nos custos de proteção levou a um aumento ver­
tiginoso da pressão fiscal sobre os súditos, o que, por sua vez, de­
sencadeou muitas das revoltas do século XVII (Steensgaard, 1985,
p. 42-44).
Além do aumento nos custos de proteção, ocorrera uma am­
pliação da luta ideológica. O colapso progressivo do sistema de poder
medieval levara a uma mistura de inovações e restaurações religiosas
ditadas de cima - de acordo com o princípio “cuius regio eius religio” -
que provocou ressentimentos populares e rebeliões (Parker e Smith,
1985, p. 15-18). Como os governantes haviam transformado a reli­
gião num instrumento de suas lutas pelo poder, os súditos seguiram
o exemplo e transformaram a religião num instrumento de insurrei­
ção contra os governantes.
Por último, mas nem por isso menos importante, a intensifica­
ção dos conflitos armados entre os governantes desintegrou as redes
transeuropéias de comércio, das quais os governantes dependiam pa­
ra obter recursos para a realização da guerra e das quais seus súditos
dependiam para obter seus meios de vida. Os custos e riscos para que
as mercadorias atravessassem jurisdições políticas aumentaram dra-
A S TRÊS HEGEMONIAS DO CAPITALISMO HISTÓRICO ♦ 243

ni.ilicamente, e os suprimentos deixaram de ser provisões de meios


de vida, transformando-se em provisões para a realização da guerra. É
I•I.»usível supor que essa desintegração e desvio dos fluxos comerciais
. oiiiribuíram muito mais decisivamente do que os fatores climáticos
0 nino a Pequena Era Glacial) para o agravamento do problema do
itnmadismo e para a “crise de subsistência” que constituíram o pano
de fundo da crise geral de legitimidade social e econômica do século
XVII (ver Braudel e Spooner, 1967).
Seja qual for a combinação de tendências que levou à insurrei-
i,.u) popular, o resultado foi uma consciência muito maior, entre os
governantes europeus, de seu interesse comum pelo poder em rela-
(,.10 aos súditos. Como disse Jaime I, no estágio inicial da crise geral,
Iuvia “um vínculo implícito entre os reis que os obrigava, mesmo
(pie não houvesse nenhum outro interesse ou compromisso particu-
l.ir, a se ampararem e repararem as ofensas mútuas para enfrentar a
insurreição dos súditos” (Hill, 1958, p. 126). Em circunstâncias nor­
mais, esse “vínculo implícito” tinha pouca ou nenhuma influência
-.obre o comportamento dos governantes. Mas, nas ocasiões em que a
.iiiloridade de todos ou da maioria dos governantes era seriamente
1ontestada por seus súditos - como aconteceu em meados do século
XViI - o interesse geral dos governantes em preservar seu poder cole-
i ivo sobre os súditos eclipsava suas brigas e os antagonismos mútuos.
Foi nessas condições que as Províncias Unidas se tornaram he­
gemônicas, liderando uma grande e poderosa coalizão de Estados di­
násticos no processo de liquidação do sistema de poder medieval e de
estabelecimento do moderno sistema interestados. No decorrer da
lula anterior por sua independência nacional da Espanha, os holande­
ses já haviam criado uma vigorosa liderança intelectual e moral sobre
<>s Estados dinásticos do Noroeste da Europa, que estavam entre os
principais beneficiários da desintegração do sistema de poder medie­
val. À medida que o caos sistêmico aumentava durante a Guerra dos
Trinta Anos, as propostas holandesas de uma grande reorganização
do sistema de poder pan-europeu encontraram um número cada vez
maior de defensores entre os governantes europeus, até que a Espanha
ficou completamente isolada. Com a Paz de Westfália em 1648, nas­
ceu um novo sistema de poder.
244 ♦ Giovanni A rrighi

A idéia de um a autoridade ou organização acima de


Estados soberanos deixou de existir. O que tom a seu lugar
é a noção de que todos os Estados form am um sistema
político m undial ou que, seja como for, os Estados da Eu­
ropa O cidental form am um único sistema político. Esse
novo sistema se baseia no direito internacional e no equilí­
brio de poder, um direito exercido mais entre os Estados
do que sobre eles e um poder exercido mais entre os Esta­
dos do que sobre eles. (Gross, 1968, p. 54-55)

O sistema de poder criado em Westfália também tinha propó­


sito social. À medida que os governantes foram legitimando seus res­
pectivos poderes absolutos de governo sobre territórios mutuamente
exclusivos, também colocaram sob a proteção internacional o princí­
pio da igualdade religiosa. Portanto, a participação no sistema interes-
tados recém-criado estava condicionada a certas práticas sociais na­
cionais (tolerância religiosa). Um princípio mais geral, que comple­
mentava o princípio de separação das jurisdições políticas - o princí­
pio de que os civis não estavam incluídos nas brigas entre os sobera­
nos -> foi assim estabelecido.
Além da tolerância religiosa, a aplicação mais importante deste
princípio se deu no setor do comércio. Nos acordos que se seguiram
ao Tratado de Westfália, foi inserida uma cláusula cujo objetivo era
restaurar a liberdade de comércio, com a abolição das barreiras que
tinham sido criadas durante a Guerra dos Trinta Anos. Acordos sub-
seqüentes introduziram regras cujo objetivo era proteger a proprieda­
de dos cidadãos e o comércio entre eles. Com isso, foi estabelecido
um regime internacional, por meio do qual os efeitos da realização da
guerra pelos soberanos na vida cotidiana dos súditos foram minimi­
zados.
O século XVIII foi testem unha de m uitas guerras; mas,
no que díz respeito à liberdade e à facilidade de convívio
entre as classes instruídas dos principais países europeus,
com o francês com o língua com um , foi o período mais
“internacional” da história m oderna, e os cidadãos podiam
ir e vir e fazer seus negócios livremente uns com os outros,
enquanto seus respectivos soberanos estavam em guerra.
(Carr, 1945, p. 4)
A S TRÊS HEGEMONIAS DO CAPITALISMO HISTÓRICO ♦ 245

O caos sistêmico do início do século XVII transformou-se,


I>ni tanto, numa nova ordem anárquica. A liberdade considerável
>uncedida à iniciativa privada de organizar pacificamente o comércio
. nire jurisdições políticas, mesmo em tempos de guerra, refletia não
apenas o interesse geral dos governantes e súditos em suprimentos
<nu fiáveis de meios de guerra e de meios de vida, mas também os in-
i«Tosses particulares da oligarquia capitalista holandesa na acumula-
i,.iu irrestrita de capital. Essa reorganização do espaço político de
•Hnrdo com os interesses da acumulação de capital marca o nasci­
mento não apenas do moderno sistema interestados, mas também do
>.ipitalismo como sistema mundial. As razões pelas quais isso acon-
(r<. eu no século XVII sob liderança holandesa, em vez de ter ocorrido
no século XV sob liderança de Veneza, não são difíceis de encontrar.
A mais importante delas, abrangendo todas as outras, é que, no
-.ei ulo XV, a anarquia ainda não havia se transformado em caos sistê­
mico, de modo que não existia um interesse geral entre os governan-
i<‘s europeus pela extinção do sistema de governo medieval. A oligar­
quia capitalista de Veneza estava se saindo tão bem no interior desse
‘.islema que não tinha qualquer interesse em sua liquidação. Seja co­
mo for, o sistema italiano de cidades-Estado foi um subsistema regio­
nal implodido constantemente por poderes maiores ou menores do
•.islema mundial mais amplo ao qual ele pertencia. As rivalidades po-
lii icas e as alianças diplomáticas não poderiam ser confinadas ao sub-
■.is lema. Elas colocaram sistematicamente em cena - e com isso am­
pliaram seus poderes - os governantes territorialistas que mantive-
um as oligarquias capitalistas do Norte da Itália permanentemente
na defensiva.
Por sua vez, no início do século XVII, o caos sistêmico cada vez
maior havia criado tanto o interesse geral entre os governantes euro­
peus por uma racionalização maior da luta pelo poder quanto uma
<>1igarquia capitalista com as motivações e as aptidões necessárias para
assumir a liderança satisfazendo esse interesse geral. A oligarquia ca­
pitalista holandesa foi, em aspectos importantes, réplica da oligarquia
*apitalista de Veneza. Como esta última, foi defensora de uma lógica
ile poder capitalista e, como tal, líder na administração do equilíbrio
246 ♦ G iovanni A rrighi

de poder e nas iniciativas e inovações diplomáticas. Mas, ao contrário


desta última, foi mais produto do que causa da grande mudança na
luta pelo poder na Europa, possibilitada pelo surgimento de Estados
capitalistas no Norte da Itália. Essa diferença teve várias implicações
importantes.
Primeiro, a importância da influência - e, por conseguinte, do
poder - da oligarquia holandesa na política européia e mundial foi
muito maior do que a de Veneza. A riqueza e o poder de Veneza basea­
vam-se numa cadeia comercial que era, ela própria, um elo de uma
cadeia muito maior que Veneza não controlava. Como vimos, esse
elo local podia ser - e foi - suplantado por novos circuitos comerciais
ou por rotas mais longas. A riqueza e o poder da Holanda, por sua vez,
baseavam-se em redes comerciais e financeiras que a oligarquia capi­
talista do país havia construído para si própria nos impérios colonia­
listas de além-mar, por meio das quais os governantes territorialistas
de Portugal e Espanha haviam suplantado a riqueza e o poder de Ve­
neza.
Essas redes formaram um circuito mundial e não poderiam
ser facilmente ignoradas ou superadas. Aliás, a riqueza e o poder da
oligarquia capitalista holandesa baseavam-se mais em seu controle
sobre as redes financeiras mundiais do que sobre as redes comerciais.
Isso significava que era menos vulnerável que a oligarquia capitalista
veneziana ao estabelecimento de rotas comerciais rivais, ou ao au­
mento da competição por uma determinada rota. Quando a compe­
tição no comércio de longa distância se intensificou, os oligarcas ho­
landeses conseguiram recuperar suas perdas e encontrar novo campo
de investimento lucrativo na especulação financeira. Portanto, a oli­
garquia capitalista holandesa teve poder para elevar-se acima da com­
petição, e utilizar-se dela.
Segundo, o conflito entre os interesses da oligarquia capitalista
holandesa e os interesses das principais autoridades do sistema de go­
verno medieval foram muito mais determinantes do que os conflitos
entre o sistema de governo medieval e os interesses da oligarquia ca­
pitalista de Veneza. Como demonstrou a história do “longo” século
XVI, a riqueza e o poder de Veneza foram ameaçados de modo muito
mais decisivo pelo poder ascendente dos Estados dinásticos do Sul e
ÂS TRÊS HEGEMONIAS DO CAPITALISMO HISTÓRICO ♦ 247

«Io Noroeste da Europa, que estavam surgindo da desintegração do


Mslema de governo medieval, do que pelo poder decadente do papado
«da casa imperial. A oligarquia capitalista holandesa tinha, ao contrá-
i iu, um importante interesse em comum com os Estados dinásticos
emergentes de pôr fim às reivindicações do papa e do imperador de
•.nem autoridades morais e políticas supra-estatais, tal como per-
■.oniíicadas nas pretensões imperialistas da Espanha.
Em conseqüência de sua luta secular por sua independência
política do imperialismo espanhol, os holandeses tornaram-se defen­
ire s e organizadores das aspirações protonacionalistas de governan-
if.s dinásticos e das aspirações populares de autodeterminação reli­
giosa. Ao mesmo tempo, procuraram constantemente novas formas e
meios de evitar que o conflito se intensificasse a ponto de poder sola­
par gravemente os alicerces comerciais e financeiros de sua riqueza e
de seu poder. Ao procurar satisfazer seus próprios interesses, a oligar­
qu ia capitalista holandesa passou, por conseguinte, a ser vista como
defensora não só da independência em relação às autoridades cen-
11 ais do sistema de poder medieval, mas também de um interesse ge-
i ,iI pela paz que estas últimas não tinham mais condições de atender.
Terceiro, as aptidões da oligarquia capitalista holandesa de rea-
lização da guerra ultrapassavam de muito aquelas da oligarquia vene­
ziana. As aptidões desta última estavam intimamente ligadas à posi­
ção geográfica de Veneza e tinham pouca utilidade além dessa po-
:.ição, principalmente depois do grande salto progressista dado pelas
técnicas de guerra durante o “longo” século XVI. As aptidões da oli­
garquia holandesa baseavam-se, ao contrário, numa participação
bem-sucedida na linha de frente daquele grande salto progressista.
Aliás, os holandeses eram líderes não só na acumulação de capital,
mas também na racionalização das técnicas militares.
Ao redescobrir e aperfeiçoar técnicas militares romanas, es­
quecidas há muito tempo, Maurício de Nassau, príncipe de Orange,
propiciou ao exército holandês do início do século XVII o que a admi­
nistração científica propiciou à indústria norte-americana dois sécu­
los depois (McNeill, 1984, p. 127-139; van Doorn, 1975, p. 9 e seg.).
As técnicas de cerco foram transformadas para; 1) aumentar a efi­
248 ♦ G iovanni A rrighi

ciência da força de trabalho militar; 2) reduzir os custos em termos de


baixas; e 3) facilitar a manutenção da disciplina nas fileiras do exérci
to. As formas de marchar, carregar armas e atirar foram padronizadas,
e o treinamento tornou-se atividade regular dos soldados. O exército
foi dividido em unidades táticas menores, o número de oficiais supe­
riores e de oficiais subalternos aumentou, e as linhas de comando fo­
ram racionalizadas para que
[...] dessa forma, u m exército se tornasse um organismo
articulado e contasse com um sistema nervoso central que
perm itia respostas precisas e mais ou m enos inteligentes
para circunstâncias imprevistas. Cada m ovim ento atingia
um novo patam ar de precisão e rapidez. Os m ovim entos
individuais dos soldados quando estavam atirando e m ar­
chando, bem com o os m ovim entos dos batalhões pelo
campo de batalha, podiam ser controlados e previstos co­
mo nunca. Uma unidade bem treinada, ao calcular cada
m ovim ento, podería aum entar a quantidade de chum bo
projetado contra o inim igo por m inuto de batalha. A des­
treza e a capacidade de decisão dos m em bros individuais
da infantaria praticam ente não contavam m ais nada. A
bravura e a coragem pessoal desapareceram por com pleto
sob um a disciplina férrea [...]. No entanto, as tropas treina­
das à m aneira m auriciana m ostravam au tom aticam ente
um a eficiência m aior na batalha. (McNeill, 1984, p. 130)

A importância dessa inovação é que ela neutralizou a superio­


ridade numérica desfrutada pela Espanha e, por isso, tendeu a igualar
o poderio militar relativo na Europa. Ao incentivarem ativamente a
propagação de novas técnicas entre seus aliados, as Províncias Unidas
criaram condições de igualdade substantiva entre Estados europeus,
igualdade que foi pré-requisito para o futuro sistema westfaliano. E,
evidentemente, com isso fortaleceram sua liderança intelectual e
moral sobre os governantes dinásticos que estavam procurando legi­
timar seus direitos absolutos de governo.
Em quarto c último lugar, as possibilidades de construção do
Estado da oligarquia capitalista holandesa eram muito maiores do
que aquelas da oligarquia veneziana. A exclusividade dos interesses
capitalistas na organização e administração do Estado veneziano foi
A s TRÊS HEGEMONIAS DO CAPITALISMO HISTÓRICO ♦ 249

.1 principal fonte de seu poder, mas também a principal limitação


«lesse poder. Pois essa exclusividade manteve o horizonte político da
oligarquia veneziana dentro dos limites estabelecidos pela análise
■uslo-benefício e pelo sistema de contabilidade por partidas dobra­
das.2Isto é, manteve os governantes venezianos distantes das questões
políticas e sociais que estavam desintegrando o mundo no qual
.ii iiavam.
Por sua vez, as possibilidades de construção do Estado da oli­
garquia capitalista holandesa foram forjadas numa luta secular visan­
do à sua emancipação do governo imperialista da Espanha. Para al-
*.mçar a vitória nessa luta, a oligarquia capitalista holandesa teve de
1.1 /cr uma aliança e dividir o poder com os interesses dinásticos (a Ca-
..i iie Orange) e teve de agarrar à unha o touro da rebelião popular (o
<.ilvinismo). Por isso, o poder da oligarquia capitalista, no seio do Es-
t.ulo holandês, foi muito menos absoluto do que havia sido emVene-
/.i. Mas, exatamente por esse motivo, o grupo dirigente holandês de-
m*n volveu aptidões muito maiores do que os governantes venezianos
j.unais tiveram para definir e resolver os problemas em torno dos
quais girava a luta pelo poder na Europa. Isso quer dizer que as Pro­
víncias Unidas tornaram-se hegemônicas em virtude de serem menos
*.ipitalistas que Veneza, e não mais.

A hegemonia inglesa e o imperialismo de livre-comércio

Os holandeses nunca governaram o sistema criado por eles.


Assim que o sistema westfaliano começou a funcionar, as Províncias
i )iiidas perderam o controle sobre o equilíbrio de poder europeu e lo­
go perderam também seu status anterior de potência mundial. Em
imiios de poder, os grandes beneficiários do novo sistema de governo
loi am seus antigos aliados, a França e a Inglaterra. Durante os cento e
<inqüenta anos seguintes - da deflagração das guerras anglo-holande-
s.is, cm 1652 (apenas quatro anos depois do Tratado de Westfália), até

Sistema no qual sempre há necessidade de dois lançamentos: o lançamento


de débito em uma conta e o conseqüente lançamento de crédito em outra.
| N. da T.]
250 ♦ G iovanni A rrighi

o fim das guerras napoleônicas em 1815 o sistema interestados pas


sou a ser dominado pela luta pela supremacia mundial entre essas
duas grandes potências.
Esse conflito secular se desenvolveu ao longo de três fases par­
cialmente sobrepostas que, em certos aspectos, reproduziram as fases
da luta do “longo” século XVI. A primeira fase foi caracterizada mais
uma vez pelas tentativas dos governantes territorialistas de incorporar
aos seus domínios o principal Estado capitalista. Assim como a Fran­
ça e a Espanha tinham tentado, no final do século XV, conquistar as
cidades-Estado do Norte da Itália, no final do século XVII a Inglaterra
e a França também tentaram conquistar as Províncias Unidas,
Como enfatizou Colbert em seu conselho a Luís XIV, “[se] o
rei quisesse submeter todas as Províncias Unidas à sua autoridade,
seu comércio se tornaria o comércio dos súditos de sua majestade, e
já não restaria nada mais a exigir” (Anderson, 1974, p. 36-37). O pro­
blema desse conselho estava no condicional “se”. Mesmo que as pos­
sibilidades estratégicas da França do século XVII (aliás, também as da
Inglaterra) excedessem em muito as possibilidades dos Estados do sé­
culo XV, as possibilidades estratégicas das Províncias Unidas exce­
diam ainda mais aquelas dos principais Estados capitalistas do século
XV. Apesar do esforço conjunto de vida breve, França e Inglaterra não
conseguiram subjugar os holandeses. Repetindo mais uma vez: a com­
petição entre os aspirantes a conquistadores mostrou ser obstáculo
insuperável na estrada da conquista.
Como essas tentativas fracassaram, a luta entrou numa segun­
da fase, na qual os esforços dos dois rivais concentraram-se cada vez
mais na incorporação das fontes de riqueza e de poder do Estado capi­
talista, e não do Estado capitalista em si. Assim como Portugal e Espa­
nha tinham lutado pelo controle do comércio com o Oriente, agora
França e Inglaterra lutavam pelo controle do Atlântico. Mas as dife­
renças entre as duas lutas são tão importantes como o são suas seme­
lhanças.
Tanto a França quanto a Inglaterra chegaram tarde à luta pelo
poder global, o que teve suas vantagens. A mais importante foi que, na
época em que a França e a Inglaterra entraram nos negócios da ex­
pansão territorial no mundo fora da Europa, a disseminação da “ad-
A S TRÊS HEGEMONIAS DO CAPITALISMO HISTÓRICO ♦ 251

n unis tração científica” de Maurício de Nassau nos exércitos euro­


peus tinha transformado sua relativa vantagem sobre os exércitos dos
governantes de fora da Europa num fosso intransponível. O poder do
Império Otomano começara a declinar irreversivelmente.
Mais para o Leste, o novo estilo de treinam ento dos
soldados adquiriu im portância quando instrutores euro­
peus com eçaram a criar exércitos em m iniatura, recrutando
efetivos locais para a proteção dos postos comerciais fran­
ceses, holandeses e ingleses nas costas do oceano Índico.
No século XVIII, essas forças, por mais dim inutas que fos­
sem, m ostraram clara superioridade sobre os exércitos de­
sajeitados que os governantes locais estavam acostumados
a levar para o campo de batalha. (McNeill, 1984, p. 135)

Mas essa relativa vantagem diante dos governantes de fora da


Europa pouco ajudou os retardatários no processo de desalojar os
portugueses, os espanhóis e, principalmente, os holandeses de suas
•.«ilidas posições nas encruzilhadas do comércio mundial. Para alcan-
«.,»r c ultrapassar os que haviam entrado antes na luta, os retardatários
tiveram de reestruturar radicalmente a geografia política do comércio
mundial. Isso foi conseguido por meio da nova síntese entre capitalis­
mo e territorialismo alcançada pelos mercantilismos francês e inglês
iIo século XVIII.
Essa nova síntese teve três componentes principais, todos inti­
mamente relacionados entre si: colonialismo de povoamento, escra-
vismo capitalista e nacionalismo econômico. Todos esses três compo­
nentes eram essenciais para a reorganização do espaço político-eco­
nômico mundial, mas é provável que o colonialismo de povoamento
tenha sido o principal elemento da combinação. Os governantes in­
gleses, em particular, dependiam muitíssimo da iniciativa privada de
.eus siíditos para neutralizar as vantagens dos pioneiros na expansão
.iléin-mar.
E m bora não pudessem se com parar aos holandeses
em term os de tino financeiro e no tam anho e eficiência de
sua frota mercante, os ingleses acreditavam no estabeleci­
m ento de povoados, e não apenas de portos de escala, na
rota para as índias [...]. Além de sociedades anônim as ou
com panhias po r ações, os ingleses criaram meios para a
252 ♦ G iovanni A rrighi

colonização, com o as colônias de proprietários, análogas


às capitanias portuguesas do Brasil, e colônias da Coroa
sob o controle direto da realeza. O que as colônias inglesas
da América não possuíam em recursos naturais e uniform i­
dade, foi com pensado pelo núm ero e pela diligência dos
próprios colonos. (Nadei e Curtis, 1964, p. 9-10)

O escravismo capitalista foi em parte condição, em parte resul


tado do êxito do colonialismo de povoamento, pois a expansão no
número de colonos e sua diligência eram constantemente limitadas,
e continuamente recriadas, pela escassez de força de trabalho, a qual
não poderia ser resolvida se dependessem exclusivamente, ou mesmo
em grande parte, dos suprimentos gerados espontaneamente entre as
populações de colonos, ou arrancados à força das populações indígcv
nas. Essa escassez crônica de força de trabalho aumentou a lucrativi­
dade das empresas capitalistas envolvidas na obtenção (principal­
mente na África), no transporte e no uso produtivo (principalmenle
nas Américas) do trabalho escravo. O desenvolvimento do escravis­
mo capitalista, por sua vez, tornou-se o principal fator na expansão da
infra-estrutura e dos mercados compradores necessários para susten­
tar a atividade produtiva dos colonos.
O colonialismo de povoamento e o escravismo capitalista fo­
ram condições necessárias, mas insuficientes, para o êxito dos mer-
cantilismos francês e inglês no que diz respeito à reestruturação radi­
cal da economia política global.
O terceiro ingrediente-chave (nacionalismo econômico) teve
dois aspectos principais: acumulação incessante de excedentes mone­
tários obtida com o comércio colonial e o comércio entre Estados -
uma acumulação com a qual o mercantilismo costuma ser identifi­
cado; e construção de uma economia nacional, ou, melhor dizendo,
doméstica. Como sublinhado por Schmoller, “no seu âmago, [o mer­
cantilismo] não passava de uma construção do Estado - não de uma
construção do Estado em sentido estrito, mas uma construção do Es­
tado e de uma economia nacional ao mesmo tempo” (apud Wilson,
1958, p. 6).
A construção da economia nacional levou à perfeição, numa
escala muitíssimo maior, as práticas criadas pelas cidades-Estado ita-
AS TRÊS HEGEMONIAS DO CAPITALISMO HISTÓRICO ♦ 253

Ii.inas três séculos antes de fazer as próprias guerras se pagarem, trans-


lormando os custos de proteção em rendimentos (ver acima). Em
|i;ii1c por meio de decisões ditadas às burocracias estatais e em parte
l>or meio de incentivos à iniciativa privada, os governantes da França
<• do Reino Unido englobaram em seus domínios, na medida do pos-
'.ivel, um número cada vez maior de atividades que, direta ou indire-
i. imente, entravam como insumos para a guerra e para a construção
<l<> Estado. Dessa forma, conseguiram transformar em imposto de
i rnda uma parte muito maior dos custos de proteção do que a conse­
guida pelas cidades-Estado italianas ou do que as Províncias Unidas
j, unais conseguiram ou poderíam ter conseguido. Ao gastar esse vo­
lume maior de impostos em suas economias domésticas, criaram no ­
vos incentivos e oportunidades de gerar, cada vez mais, novos víncu­
los entre as atividades e, dessa forma, de fazer as guerras se pagarem
i ada vez mais.
De fato, as guerras não estavam “se pagando a si mesmas”; um
II iímero cada vez maior de civis estava sendo mobilizado para susten-
iar indireta e, com freqüência, inconscientemente os esforços dos
governantes de realização de guerras e construção do Estado. A guerra
e a construção do Estado estavam se tornando um negócio cada vez
mais confuso, e envolviam um número, uma esfera e uma variedade
i ada vez maiores de atividades desvinculadas entre si. A capacidade
<lc os governantes mercantilistas mobilizarem as energias de seus sú­
ditos civis para o compromisso e a realização dessas atividades decor­
ria forçosamente de sua capacidade de se apropriar dos lucros prove­
nientes do comércio mundial, do colonialismo de povoamento e do
escravismo capitalista, e de transformar esses lucros em retribuições
adequadas para os esforços empresariais e produtivos de seus súditos
metropolitanos.
Ao romper esses limites, os governantes ingleses conseguiram
uma vantagem relativa decisiva em relação a todos os outros concor­
rentes, inclusive os franceses. Essa vantagem relativa era geopolítica e
se assemelhava à vantagem relativa de Veneza no auge de seu poder.
Tanto no com ércio além -m ar quanto no poderio naval,
a Inglaterra conquistou a suprem acia, favorecida, com o
254 ♦ G iovanni A rrighi

Veneza, por dois fatores inter-reíacionados: sua posição


insular e o novo papel que lhe caiu nas mãos, o papel de
interm ediária entre dois m undos. Ao contrário das potên­
cias continentais, a Inglaterra podia dirigir todo o seu p o ­
derio para o mar; ao contrário de seus rivais holandeses,
não teve de m andar hom ens para um a linha de frente ter­
restre. (Dehio, 1962, p. 71)

A canalização das energias e dos recursos britânicos para a ex-


pansão ultramarina, enquanto as energias e os recursos de seus rivais
europeus estavam comprometidos em lutas perto de casa, gerou um
processo de causalidade circular e cumulativa. Os êxitos ingleses na
expansão ultramarina aumentaram a pressão sobre os Estados da Eu­
ropa continental no sentido de acompanhar o poder mundial cres­
cente da Grã-Bretanha. Mas esses êxitos também deram à Grã-Bre­
tanha os meios necessários para administrar o equilíbrio de poder na
Europa continental de forma a manter seus rivais bastante ocupados
em casa. Com o tempo, esse círculo virtuoso/vicioso deixou o Reino
Unido em condições de eliminar todos os competidores da expansão
ultramarina e de, ao mesmo tempo, tornar-se o senhor inquestioná­
vel do equilíbrio de poder na Europa.
Quando o Reino Unido venceu a Guerra dos Sete Anos (1756-
1763), terminou a luta secular com a França pela supremacia m un­
dial. Mas o Reino Unido não se tornou uma hegemonia mundial por
causa disso. Ao contrário, assim que acabou a luta pela supremacia
mundial, o conflito entrou numa terceira fase, caracterizada por um
caos sistêmico crescente. Do mesmo modo que as Províncias Unidas
no início do século XVII, o Reino Unido tornou-se hegemônico
criando nova ordem mundial a partir desse caos sistêmico.
Como no início do século XVII, o caos sistêmico foi resultado
da intrusão do conflito social nas lutas de poder dos governantes. Mas
houve diferenças consideráveis entre as duas situações. A mais im­
portante é o grau muito maior de autonomia e eficiência demonstra­
do pelos súditos rebeldes do fim do século XVIII e do início do século
XIX em comparação com o do início do século XVII.
É claro que a nova onda de rebelião em todo o sistema teve suas
origens mais profundas na luta pelo Atlântico, como veremos adian­
te. No entanto, depois que irrompeu, a rebelião criou condições para
AS TRÊS HEGEMONIAS DO CAPITALISMO HISTÓRICO ♦ 255

.1 renovação, em bases inteiramente novas, da rivalidade anglo-fran-


<cs.i, e a rebelião continuou grassando aproximadamente por mais
it inla anos depois que essa nova rivalidade chegou ao fim. Conside-
i .mdo o período 1776-1848 como um todo, essa segunda onda de re­
belião resultou, primeiro, num a transformação completa das rela-
yics governante/súditos em todas as três Américas e na maior parte
<l.i Europa, e, segundo, no estabelecimento de um tipo inteiramente
novo de hegemonia mundial (o imperialismo inglês de livre-comér-
• io) que reorganizou completamente o sistema interestados para que
«•Ir se ajustasse a essa transformação.
As origens mais profundas dessa onda de rebelião podem ser
encontradas na luta anterior pelo Atlântico, porque seus agentes
eram exatamente aquelas forças sociais que haviam sido geradas e
moldadas por essa luta nas novas comunidades: os colonos, os escra­
vos das grandes plantações e as classes médias metropolitanas. A rebe­
lião começou nas colônias, com a Declaração da Independência dos
listados Unidos em 1776, e atingiu primeiro o Reino Unido. Os gover­
nantes franceses aproveitaram, imediatamente, a oportunidade para
iniciar uma campanha revanchista que, no entanto, teve efeito con-
i rá rio, levando à Revolução de 1789. As energias liberadas por essa re­
volução foram canalizadas por Napoleão, com a intensificação dos es-
lorços revanchistas franceses, o que, por sua vez, levou a uma gene­
ralização da revolta entre colonos, escravos e classe média (ver
llobsbawm, 1962; Wallerstein, 1988; Blackburn, 1988).
No decorrer dessas lutas no interior dos Estados e entre eles, as
violações dos princípios, normas e regras do sistema westfaliano fo­
ram muito freqüentes. A França napoleônica, em particular, menos­
prezou os direitos absolutos de governo dos dirigentes europeus, tan­
to fomentando a revolta a partir de baixo quanto impondo ordens
imperiais vindas de cima. Ao mesmo tempo, transgrediu os direitos
de propriedade e a liberdade de comércio dos civis com expropria-
(,oes, bloqueios e uma economia planejada que se estendeu à maior
parte da Europa continental.
O Reino Unido tornou-se hegemônico por liderar, no início,
um leque muito amplo de forças dinásticas, que se colocavam contra
essas infrações a seus direitos absolutos de governo e a favor da restau-
256 ♦ Giovanni àrrighi

ração do sistema westfaliano. O êxito desse processo de restauração


foi coroado peio Tratado de Viena de 1815 e pelo subseqüente Con­
gresso de Aix-Ia-Chapelle, em 1818. Até esse momento, a hegemonia
britânica era uma réplica da hegemonia holandesa. Assim como os
holandeses conseguiram liderar o sistema interestados prestes a nas­
cer da luta contra as pretensões imperialistas da Espanha dos Habs-
burgos, os ingleses também conseguiram liderar o sistema interesta­
dos prestes a ser destruído na luta contra as pretensões imperialistas
da França napoleônica (ver Dehio, 1962).
Mas, ao contrário das Províncias Unidas, o Reino Unido passou
a governar o sistema interestados e, com isso, empreendeu uma gran­
de reorganização desse sistema, com o objetivo de acomodar as novas
realidades de poder liberadas pela insurreição revolucionária em cur­
so. O sistema que surgiu é o que Gallagher e Robinson (1953) chama­
ram corretamente de imperialismo de livre-comércio - um sistema
mundial de governo que tanto expandiu quanto suplantou o sistema
westfaliano. Essa expansão e essa suplantação são perceptíveis em três
níveis de análise diferentes, mas inter-relacionados.
Primeiro, o sistema interestados chegou a incluir um número
e uma variedade muito maiores de Estados, ao passo que o equilíbrio
de poder chegou a operar num plano acima dos Estados, e não entre
eles. Um novo grupo de Estados juntou-se ao grupo de Estados dinás­
ticos e oligárquicos que tinha constituído o núcleo original do siste­
ma westfaliano. Este novo grupo consistia basicamente de Estados
controlados por comunidades nacionais de proprietários de terras
que haviam conseguido conquistar sua independência dos impérios
novos e velhos. As relações interestados começaram a ser governadas,
portanto, não pelos interesses, ambições e emoções pessoais dos m o­
narcas, e sim pelos interesses, ambições e emoções coletivos das co­
munidades nacionais (Carr, 1945, p. 8).
A “democratização” do nacionalismo foi acompanhada de uma
centralização sem precedentes do poder mundial nas mãos de um
único Estado, o Reino Unido. No sistema interestados ampliado que
surgiu com o levante revolucionário de 1776-1848, só o Reino Unido
esteve simultaneamente envolvido na política de todas as regiões do
mundo e - o mais importante -, manteve uma posição de comando
AS TRÊS HEGEMONIAS DO CAPITALISMO HISTÓRICO ♦ 257

rm todos eles. Pela primeira vez, o objetivo de todos os Estados capita­


listas precedentes de serem senhores, e não servos, do equilíbrio
global de poder fora plenamente realizado (mesmo que temporaria­
mente) pelo Estado capitalista dominante da época.
Para controlar mais efetivamente o equilíbrio global do poder,
,i Inglaterra assumiu a liderança no sentido de apertar o frouxo siste­
ma de consulta entre as grandes potências da Europa que havia fun-
i ionado desde a Paz de Westfália. O resultado foi o Concerto da Euro­
pa, que, desde o início, foi um instrumento do poder britânico sobre
a l .uropa continental.
Segundo, a desintegração dos impérios coloniais do mundo
m idental foi acompanhada e seguida pela expansão de impérios no
mundo não-ocidental. Portanto, a esfera de ação territorial do moder­
no sistema interestados expandiu-se de muitas formas, mas mediante
0 ressurgimento do poder imperialista em seu seio. O ressurgimento
1Io poder imperialista foi, na verdade, a principal razão para designar
0 novo sistema como imperialismo de iivre-comércio.
Nenhum governante territorialista jamais incorporara antes a
■.ais domínios tantas, tão populosas e tão vastas regiões quanto o Rei­
no Unido incorporou no século XIX. E nenhum governante territo-
1ialista jamais conseguiu extrair à força, em tão pouco tempo, tribu­
tos tão colossais - em força de trabalho, em recursos naturais e em
meios de pagamento - como o Estado inglês e seus aliados no sub-
i onlinente indiano ao longo do século XIX. Parte desses tributos foi
usada para sustentar e expandir o aparato coercitivo com o qual um
número cada vez maior de súditos não-ocidentais foi incorporado ao
império territorial inglês. Mas outra parte, igualmente importante,
loi remetida a Londres, de uma forma ou de outra, para ser reciclada
nos circuitos de riqueza por meio dos quais o poderio inglês no m un­
do ocidental se reproduziu e se expandiu sistematicamente. Desse
modo, as lógicas territorialista e capitalista de poder passaram por um
processo de fecundação e de apoio recíprocos.
A reutilização dos tributos imperialistas extraídos das colô­
nias, transformados em capital investido no mundo inteiro, aumen­
tou a vantagem relativa de Londres como centro financeiro mundial
<un relação aos centros rivais, como Amsterdã e Paris. Essa vantagem
258 ♦ G iovanni A rrighi

comparativa fez de Londres o lar natural da hautefinance- um corpo


muito bem articulado de financiadores cosmopolitas, cujas opera*
ções e redes tinham crescido em tamanho e alcance desde que o siste­
ma westfaliano colocara sob proteção internacional a propriedade c 0
comércio dos civis. E, à medida que os vínculos orgânicos entre o go«
verno inglês e a haute finance foram se consolidando, as redes das fi­
nanças mundiais foram transformadas, no sistema interestados, eifl
mais um instrumento inglês de dominação.
Por fim, e o mais importante, a expansão e a suplantação dtt
sistema westfaliano encontraram expressão num instrumento intei*
ramente novo de governo mundial. O sistema westfaliano baseou-M
no princípio de que não havia autoridade operando acima do sistema
interestados. O imperialismo de livre-comércio estabeleceu, ao con«
trário, o princípio de que as leis que operavam dentro e entre os Esta­
dos estavam sujeitas à autoridade superior de uma nova entidade me­
tafísica - o “mercado mundial” - supostamente dotada de poderes so­
brenaturais maiores do que aqueles que qualquer papa ou imperador
jamais tivera no sistema de poder medieval. Ao apresentar sua suprí1
macia mundial como corporificação dessa entidade metafísica, a In­
glaterra conseguiu, da década de 1820 em diante, expandir seu poder
no sistema de interestados bem além do que era garantido pela extern
são e eficácia de seu aparato coercitivo.
Esse poder foi o resultado da adoção, pelo Reino Unido, de
uma prática e de uma ideologia do livre-câmbio. É claro que o pri iu I
pio do livre-câmbio universal nunca foi aplicado, e a Inglaterra ten
tou impor ao sistema interestados nada mais do que uma forma mnl
to limitada de livre-câmbio. Apesar disso, em meados do século XIX,
o princípio tornou-se dominante com a abertura progressiva do mer
cado doméstico inglês.
A colonização dos espaços vazios [sic], o desenvolvimen­
to da indústria m ovida por m áquinas a carvão e a abertura
de vias de com unicação mundiais, por m eio de ferrovias
e das empresas de navegação comercial, andaram a passo
acelerado sob a liderança inglesa e estim ularam em todo
lugar o surgim ento e o desenvolvim ento de nações e a
consciência nacional; a contrapartida dessa “expansão da
Inglaterra” foi o m ercado aberto, que surgiu na Grã-Breta­
AS TRÊS HEGEMONIAS DO CAPITALISMO HISTÓRICO ♦ 259

nha a partir da década de 1840, oferecendo produtos não


beneficiados, gêneros alim entícios e m atérias-prim as do
resto do m undo. (Carr, 1945, p. 13-14)

Com a abertura de seu mercado doméstico, os governantes in­


gleses criaram redes mundiais de dependência e lealdade à expansão
da riqueza e do poder do Reino Unido. Esse controle sobre o mercado
mundial, combinado ao domínio do equilíbrio global do poder e à
nlação íntima de instrumentalidade mútua com a haute finance, per-
miiirain ao Reino Unido governar o sistema interestados tão efetiva-
iiiriitc quanto um império mundial. O resultado foi “um fenômeno
.i-i>i precedentes nos anais da civilização ocidental, qual seja, uma
p.i/ de cem anos - 1815-1914” (Polanyi, 1957, p. 5).
Esse fenômeno inaudito refletiu as capacidades hegemônicas
.••ui precedentes da Inglaterra. Seu aparato coercitivo (ou seja, princi-
p.ilmente sua marinha de guerra), combinado à sua posição insular,
.<ui dúvida dotou o Reino Unido de uma vantagem relativa decisiva
■ui relação a todos os seus rivais na luta pelo poder europeu e m un­
dial. Mas, por maior que tenha sido, essa vantagem não explica a ex-
11 .mrdinária capacidade de reestruturar o mundo (e não apenas o sis-
11 ina interestado europeu), de modo a adequá-lo a seus interesses na-
<(onais, que a Grã-Bretanha mostrou ter em meados do século XIX.
Essa capacidade extraordinária foi uma manifestação de hege-
m on ia - ou seja, a capacidade de reivindicar com credibilidade que a
<\pansao do poder do Reino Unido não atendia somente a seus inte-
i esses nacionais, mas também a um interesse “universal”. Fundamen-
t.tl para essa afirmação hegemônica era a distinção entre o poder dos
governantes e “a riqueza das nações”, baseada sutilmente na ideologia
liberal propagada pela intelligentsia britânica. Segundo essa ideolo­
gia, a expansão do poder dos governantes ingleses quando comparado
h>de outros governantes era apresentada como a força motora de
uma expansão universal da riqueza das nações. O livre-comércio po-
•ler ia solapar a soberania dos governantes, mas, ao mesmo tempo, ex­
pandi ria a riqueza de seus súditos, ou pelo menos dos súditos que ti-
nlum propriedades.
O atrativo e a credibilidade dessa reivindicação tiveram por ba­
se as circunstâncias sistêmicas criadas pelos levantes revolucionários
260 ♦ G iovanni A rrighi

de 1776-1848. Pois as comunidades nacionais que tinham ascendido


ao poder nas Américas e em muitas partes do mundo, no decorrer
desses movimentos, eram fundamentalmente comunidades de pro­
prietários, os quais estavam mais preocupados com o valor monetário
de seus bens do que com o poder autônomo de seus governantes. Foi
o conjunto dessas comunidades que formou a clientela “natural” du
hegemonia inglesa do livre-câmbio.
Ao mesmo tempo, as insurreições revolucionárias de 1776*
1848 promoveram, no interior da Inglaterra, mudanças que aumen­
taram as capacidades de seus governantes para satisfazerem a deman­
da pela riqueza “democrática” do sistema. A mudança mais importan­
te foi a Revolução Industrial, que ocorreu depois da Revolução Ame­
ricana de 1776 e estava praticamente concluída durante a restauração
ulterior da rivalidade anglo-francesa. Para nossos objetivos aqui, fo­
ram dois os aspectos mais importantes da Revolução Industrial.
Por um lado, a partir dela, melhorou muitíssimo a relação dc
complementaridade que ligava as empresas de súditos ingleses a em­
presas de súditos de outros países, principalmente dos Estados que
surgiram da insurreição dos colonos contra o poder britânico nu
América do Norte. Em decorrência desse processo, os governantes in­
gleses começaram a perceber que sua liderança na construção da eco­
nomia doméstica dava-lhes vantagem considerável, permitindo-lhes
usar as relações entre súditos de diferentes jurisdições políticas como
instrumentos invisíveis de poder sobre os súditos de outros Estados
soberanos. Foi essa percepção, mais do que qualquer outra coisa, que
levou os governantes ingleses, ao fim das guerras napoleônicas, a
apoiarem as forças ligadas ao nacionalismo democrático e a protege-
rem-nas das predisposições reacionárias de seus antigos aliados mo-
narquistas.
Por outro lado, a Revolução Industrial transformou o Estado
inglês, alterando sua estrutura de representação e, por conseguinte,
suas predisposições e aptidões na política mundial. Essa transforma­
ção foi o resultado do surgimento de uma nova classe de empresários
capitalistas e protocapitalistas, envolvidos principalmente com a pro­
dução, o comércio e as atividades bancárias no plano nacional, e que
dependia do Estado e da antiga e mais bem estabelecida classe de mer-
As TRÊS HEGEMONIAS DO CAPITALISMO HISTÓRICO ♦ 261

catlores e financistas capitalistas para obtenção de insumos e distri­


buição dos produtos em mercados estrangeiros.
O surgimento dessa nova classe de empresários capitalistas e
protocapitalistas foi resultado dos êxitos do mercantilismo inglês do
século XVIII em geral, e da construção da economia nacional em
particular. No entanto, quanto mais crescia, mais sua expansão e
prosperidade, e, por conseguinte, sua própria capacidade de se tornar
uma classe capitalista madura, se contrapunham aos limites estabele­
cidos pela superlotação do espaço econômico nacional. A inflação
dos aluguéis, em particular, ameaçava constantemente acabar com os
lucros dos novos empresários, tanto diretamente quanto por meio de
seus efeitos sobre os índices salariais. Com o fim das guerras napoleô-
nicas, aparte relativa aos impostos que voltava para esses empresários,
sob a forma de demanda de seus produtos gerada pela guerra, dimi­
nuiu drasticamente. A competição aumentou, assim como a parcela
que o aluguel e os salários subtraíam aos lucros de suas empresas.
Foi nesse contexto que a burguesia nacional inglesa tornou-se
“internacionalista” e encabeçou um poderoso movimento social que
linha por objetivo, ao mesmo tempo, reformar as estruturas de repre­
sentação do Estado britânico e lograr uma abertura mais radical do
mercado inglês às mercadorias e matérias-primas estrangeiras. Na
luta por esses objetivos, a burguesia nacional inglesa estava procuran­
do satisfazer seus interesses de classe, isto é, esforçava-se para dimi­
nuir a pressão da superlotação da economia doméstica. Mas esse inte­
resse podia ser apresentado, de maneira verossímil, como força m oto­
ra da expansão do poder britânico mundial e da riqueza de todas as
nações. A vitória da burguesia nacional britânica em sua luta pela re­
presentação dentro do bloco dominante do Reino Unido foi o toque
final da construção da hegemonia mundial dos ingleses.

A hegemonia norte-americana e o sistema da livre-iniciativa

O Reino Unido exerceu funções de governo mundial até o fim


do século XIX, mas, a partir da década de 1870, começou a perder o
controle sobre o equilíbrio de poder na Europa e, logo depois, tam­
bém do equilíbrio de poder global. De ambos os pontos de vista, a as-
262 ♦ G iovanni A rrighi

censao da Alemanha à condição de potência mundial foi o processo


decisivo.
Ao mesmo tempo, a capacidade do Reino Unido de dominar o
centro do mercado mundial foi solapada pelo surgimento de uma
nova economia nacional mais rica do que a sua, os Estados Unidos, e
que se transformou numa espécie de “buraco negro”, com o poder de
atrair trabalho, capital e espírito empreendedor da economia m un­
dial com o qual o Reino Unido, para não falar de Estados menos ricos,
tinham poucas chances de competir. Os desafios alemão e norte-
americano ao poder mundial inglês fortaleceu tanto a Alemanha
quanto os Estados Unidos, diminuiu a capacidade de o Reino Unido
governar o sistema interestados e acabou levando a uma nova luta pe­
la supremacia mundial, uma luta de violência e ferocidade sem pre­
cedentes.
No decorrer dessa luta, o conflito passou por algumas, mas não
por todas, as fases que caracterizaram a anterior luta pela supremacia
mundial. A fase inicial, na qual os governantes territoriais tentaram
incorporar o principal Estado capitalista, foi completamente supri­
mida. Aliás, a fusão das lógicas de poder territorialista e capitalista ti­
nha chegado tão longe entre os três principais adversários em luta pe­
la supremacia mundial (Reino Unido, Alemanha e Estados Unidos)
que é difícil dizer quais governantes eram capitalistas e quais eram
territorialistas.
Durante todo o confronto, os governantes alemães mostraram
inclinações territorialistas muito mais fortes do que os governantes
do Reino Unido e dos Estados Unidos, reflexo de sua entrada tardia
nos negócios da expansão territorial. Como vimos, o Reino Unido foi
tudo menos parcimonioso em suas aquisições territoriais, e a cons­
trução do império no mundo não-ocidental constituiu parte funda­
mental de sua hegemonia mundial. Quanto aos Estados Unidos, sua
transformação em principal pólo de atração do trabalho, do capital e
dos recursos empresariais da economia mundial estava intimamente
ligada à magnitude continental atingida por sua economia doméstica
ao longo do século XIX. Esses eram os dois “modelos” que os gover­
nantes alemães estavam tentando imitar com seu territorialismo
tardio.
As TRÊS HEGEMONIAS DO CAPITALISMO HISTÓRICO ♦ 263

No começo, procuraram seguir os passos do Reino Unido.


Mas, assim que o resultado da Primeira Guerra Mundial demonstrou
a futilidade dessa tentativa, bem como a superioridade do modelo
norte-americano, tentaram seguir os passos dos Estados Unidos
(Neumann, 1942).
Seja como for, nem a Alemanha nem os Estados Unidos jamais
lentaram incorporar aos seus domínios o principal Estado capitalista,
i omo a França e a Espanha tentaram no século XV, e a França e a
[ngiaterra pretenderam no século XVII. O poder mundial do Estado
capitalista líder crescera tanto em comparação com o de seus ante­
cessores e seus rivais contemporâneos que a luta só poderia começar
com o que antes havia sido a segunda fase, na qual os rivais tentam su­
plantar a vantagem comparativa da riqueza e do poder do Estado capi­
talista líder. Mesmo que o controle sobre o comércio e as finanças
mundiais tenha continuado a desempenhar importante papel na defi­
nição das capacidades relativas do sistema interestados, no decorrer
do século XIX as vantagens mais decisivas na luta pelo poder m un­
dial passaram a ser o tamanho comparativo e o potencial de cresci­
mento do mercado doméstico. Quanto maior e mais dinâmico o
mercado doméstico de um determinado Estado em relação aos ou­
tros, tanto maiores as chances desse Estado substituir o Reino Unido
no centro das redes globais de relações de clientelismo que consti­
tuíam o mercado mundial.
Desse ponto de vista, os Estados Unidos estavam muito mais
bem posicionados do que a Alemanha. Sua dimensão continental,
seu isolamento e sua imensa riqueza em recursos naturais, bem co­
mo a política seguida sistematicamente por seus governantes de man­
ter as portas do mercado doméstico fechadas para os produtos estran­
geiros, mas abertas ao capital, trabalho e espírito empreendedor de
fora, fizeram deste país o principal beneficiário do imperialismo li-
vre-cambista inglês. Quando a luta pela supremacia mundial come­
çou, a economia nacional dos Estados Unidos estava bem-encami-
nhada no sentido de se tornar o novo centro da economia mundial,
vinculando-se à economia do resto do mundo, no início, não por
meio de fluxos comerciais, mas por transferências mais ou menos
unilaterais de trabalho, capital e espírito empreendedor que fluíam
do resto do mundo para sua jurisdição política.
264 ♦ Giovanni A rrighi

A Alemanha não tinha condições de competir com os Estados


Unidos nesse terreno. Sua história e posição geográfica fizeram dela
mais uma devedora do que uma beneficiária desses fluxos de traba­
lho, capital e espírito empreendedor. Ao mesmo tempo, seu envolvi­
mento secular na linha de frente da luta pelo poder europeu ofereceu
a seus governantes uma vantagem comparativa na incipiente “indus­
trialização da guerra”. A partir da década de 1840, inovações militares
e industriais começaram a interagir cada vez mais intimamente na
região que estava em processo de se tornar a Alemanha. Foi exatamen­
te essa interação que fundamentou tanto a espetacular industrializa­
ção quanto a ascensão ao status de potência mundial vividas pela Ale­
manha na segunda metade do século XIX (ver McNeill, 1984, capí­
tulos 7 e 8).
O aumento absoluto e relativo de suas capacidades militares e
industriais não alterou fundamentalmente a posição desfavorecida
da Alemanha nos circuitos de riqueza da economia mundial. Ao con­
trário, os benefícios ao Reino Unido, por ser ele o centro do comércio
e das finanças mundiais, aumentaram com o favorecimento dos Esta­
dos Unidos em relação aos fluxos de trabalho e de capital e aos recur­
sos empresariais. A obsessão crescente dos governantes alemães com
o Lebensraum (“espaço vital”) teve suas origens sistêmicas nessa situa­
ção de impotência de transformar rapidamente capacidades milita­
res e industriais crescentes em aumento significativo do seu controle
sobre os recursos da economia mundial.
Como já mencionei, essa obsessão fez os governantes alemães
seguirem, inicialmente, os passos do Reino Unido e, depois, dos Esta­
dos Unidos. Essas tentativas levaram a reações defensivas que fizeram
o conflito interestados se transformar rapidamente em confrontos de
larga escala. Mas, desde o começo, a intensificação do conflito inte­
restados foi seguida de um caos sistêmico crescente. Aqui está uma
segunda diferença importante entre essa luta pela supremacia m un­
dial e a luta anterior entre a França e a Inglaterra. Na luta anterior
pela supremacia mundial, foi preciso mais de um século de conflito
armado entre as grandes potências antes que a anarquia provocasse
uma grande onda de rebeliões populares que, por sua vez, precipita­
ram o caos sistêmico. Mas, no século XX, a anarquia transformou-se
ÂS TRÊS HEGEMONIAS DO CAPITALISMO HISTÓRICO ♦ 265

em caos sistêmico logo que as grandes potências se enfrentaram n u ­


ma luta declarada.
Aliás, antes mesmo da deflagração da Primeira Guerra M un­
dial, vigorosos movimentos sociais de protesto tinham começado a se
lazer sentir em todo o mundo ocidental e em pontos-chave do mundo
não-ocidental. Esses movimentos de protesto tinham suas raízes na
dupla exclusão em que o imperialismo de livre-comércio se baseava,
c tinham por objetivo miná-lo. Essa dupla exclusão dizia respeito aos
povos não-ocidentais, de um lado, e, de outro, às massas não-proprie-
tárias do Ocidente.
Sob hegemonia inglesa, os povos não-ocidentais não se qualifi­
cavam como comunidades nacionais nem aos olhos da potência he­
gemônica nem aos olhos de seus aliados, clientes e seguidores. En­
quanto o direito das nações ocidentais de procurarem enriquecer foi
colocado acima dos direitos absolutos de governo de seus dirigentes,
os povos não-ocidentais foram privados de seus direitos consuetudi-
nários de autodeterminação. Ao mesmo tempo, as nações que se ha­
viam tornado unidades constituintes do sistema interestados eram
geralmente comunidades de proprietários, das quais os não-proprie-
tários estavam praticamente excluídos. Com isso, o direito de aumen­
tar sua riqueza, desfrutado pelos proprietários, se elevou não somente
acima dos direitos absolutos dos chefes do governo, mas também aci­
ma do direito consuetudinário das massas não-proprietárias de ter
um meio de vida (ver Polanyi, 1957). Como a democracia ateniense
do mundo antigo, a democracia liberal do século XIX era uma “oli­
garquia igualitária” na qual a “classe dirigente de cidadãos dividia os
direitos e as vantagens do controle político” (Mclver, 1932, p. 352).
Desde o começo, os povos não-ocidentais e as massas não-pro­
prietárias do Ocidente resistiram aos aspectos do imperialismo livre-
cambista que afetavam mais diretamente seus direitos consuetudi-
nários de autodeterminação e de subsistência. Mas, de um modo ge­
ral, essa resistência não redundou em nada. Essa situação de impo­
tência começou a mudar para as massas não-proprietárias do Oci­
dente no final do século XIX em decorrência direta da intensificação
da competição interestados e da disseminação da necessidade de
construção da economia nacional como instrumento dessa compe­
tição.
266 ♦ G iovanni A rrighi

O processo de socialização das guerras e da construção do Esta­


do, que na onda anterior de luta pela supremacia mundial levara à
“democratização” do nacionalismo, deu mais um passo com a indus­
trialização da guerra. Os esforços produtivos das massas não-pro-
prietárias em geral, e do proletariado industrial em particular, torna-
ram-se componente crucial para os esforços de guerra e de construção
do Estado dos governantes. O poder social das massas não-proprie-
tárias aumentou de forma correspondente, assim como a efetividade
de suas lutas pela proteção do Estado de seus meios de vida (ver Carr,
1945, p. 19).
Nessas circunstâncias, a deflagração da guerra entre as grandes
potências estava fadada a ter um impacto contraditório nas relações
governante-súdito. Por um lado, aumentou o poder social das massas
não-proprietárias envolvidas direta ou indiretamente nos esforços
militares-industriais dos governantes. Por outro, reduziu os meios à
disposição destes últimos para se conciliarem com aquele poder. Essa
contradição tornou-se evidente ao longo da Primeira Guerra Mun­
dial, quando apenas alguns anos de hostilidades abertas foram sufi­
cientes para liberar a mais intensa onda de rebelião popular jamais
experimentada pelo sistema mundial moderno.
O foco dessa onda de rebelião foi a Revolução Soviética de
1917. Ao defender o direito de todos os povos à autodeterminação,
(“antiimperialismo”) e a precedência dos direitos de subsistência
sobre os direitos de propriedade e os direitos do governo (“internacio-
nalismo proletário”), os líderes da Revolução Soviética evocaram o
fantasma de uma interferência muito mais radical no funcionamen­
to do sistema interestados do que qualquer outro fato anterior. Ini­
cialmente, o impacto da Revolução de 1917 foi semelhante ao da Re­
volução de 1776, promovendo a retaliação da grande potência que ti­
nha acabado de ser derrotada na luta pela supremacia mundial (dessa
vez, a Alemanha) e, com isso, levou a uma nova rodada de conflito
aberto entre as grandes potências.
O sistema interestados passou a ficar polarizado entre duas
facções opostas e antagônicas. A facção dominante (liderada pelo Rei­
no Unido e pela França) era conservadora, isto é, voltada para a preser­
vação do imperialismo livre-cambista. Em oposição a essa facção, es-
AS TRÊS HEGEMONIAS DO CAPITALISMO HISTÓRICO ♦ 267

i.ivam os recém-chegados à luta pelo poder mundial, que não tinham


um império colonial considerável e nem as conexões certas nas redes
do comércio e das finanças mundiais, que se aglutinaram numa fac­
ção reacionária dirigida pela Alemanha nazista. Os governantes que
.sc aglutinaram nessa facção tinham interesse ainda maior do que os
governantes da facção conservadora na aniquilação da Revolução So­
viética. Mas, acertadamente ou não, reconheceram que seus objetivos
i ontra-revolucionários seriam mais rapidamente alcançados com
um confronto preliminar ou simultâneo com a facção conservadora.
Esse confronto culminou na desintegração completa do mer­
cado mundial e em novas e drásticas violações dos princípios, normas
c regras do sistema westfaliano. Além disso, como as guerras napo-
Icônicas de cento e cinqüenta anos antes, a Segunda Guerra Mundial
funcionou como poderosa correia de transmissão da revolução social
que, durante e depois da guerra, propagou-se por todo o mundo não-
ocidental 11 a forma de movimentos de libertação nacional. Sob o im­
pacto conjunto da guerra e da revolução, o imperialismo livre-cam­
bista entrou em colapso, deixando o sistema interestados numa situa­
ção de desorganização aparentemente irremediável.
Como o Reino Unido no início do século XIX, os Estados Uni­
dos primeiro tornaram-se hegemônicos, ao orientar 0 sistema inter­
estados no sentido da restauração dos princípios, normas e regras do
sistema westfaliano; depois, passaram a governar e a remodelar o siste­
ma que haviam restaurado. Essa capacidade de refazer o sistema inter­
estados baseou-se, como já foi dito, numa percepção generalizada
entre os governantes e súditos do sistema de que os interesses nacio­
nais da potência hegemônica representavam um interesse universal.
Essa percepção foi alimentada pela capacidade de os governan-
les norte-americanos apresentarem soluções para os problemas em
lorno dos quais girava, a partir de 1917, a luta pelo poder que confron­
tava forças revolucionárias, reacionárias e conservadoras. Desde 0
princípio as facções mais esclarecidas da elite governante dos Estados
Unidos mostraram uma percepção muito maior de quais eram esses
problemas do que as elites governantes das grandes potências conser­
vadoras e reacionárias:
268 ♦ G iovanni A rrighi

De m uitas form as, a característica m ais im p o rtan te


tan to do program a de W ilson quanto do program a de
Lenin é a de que eles não se centravam na Europa, mas
envolviam o m undo inteiro: quer dizer, am bos se pro p u ­
nham a lançar um apelo a todos os povos do m undo, in ­
dependentem ente de raça e cor. Ambos implicavam uma
negação do sistema europeu anterior, quer estivesse confi­
nado à Europa, quer disseminado [...] pelo m undo todo
[...]. Os apelos de Lenin à revolução m undial provocaram,
como um contragolpe deliberado, os Q uatorze Pontos de
Wilson; a solidariedade do proletariado e a revolta contra
o im perialism o encontraram eco na autodeterm inação e
no século do hom em com um . (Barraclough, 1967, p. 121)

Essa resposta reformista aos desafios apresentados pela Revolu­


ção Soviética estava muito à frente de seu tempo. Mas assim que ter­
minou a luta entre as forças conservadoras e reacionárias da política
mundial, resultando num formidável aumento do poder mundial
tanto dos Estados Unidos quanto da União Soviética, o palco estava
pronto para a reconstrução do sistema interestados no sentido de aco­
modar as demandas dos povos não-ocidentais e das massas não-pro-
prietárias.
Depois da Segunda Guerra Mundial, foi garantido a todos os
povos, quer “ocidentais”, quer “não-ocidentais”, o direito à autodeter­
minação, isto é, o direito a constituírem-se em comunidade nacional
e, depois de assim constituídos, serem aceitos como membros efeti­
vos no sistema interestados. Nesse sentido, a “descolonização” global
foi o correlato mais importante da hegemonia norte-americana.
Ao mesmo tempo, oferecer meios de vida a todos os súditos
tornou-se o mais legítimo dos objetivos dos membros do sistema in­
terestados. Assim como a ideologia liberal da hegemonia inglesa tinha
colocado a busca de riqueza dos súditos proprietários acima dos direi­
tos absolutos de governo de seus dirigentes, a ideologia da hegemonia
dos Estados Unidos também colocou a prosperidade de todos os súdi­
tos (“consumo de massa”) acima dos direitos absolutos de proprieda­
de e dos direitos absolutos do governo. Se a hegemonia britânica ex­
pandiu o sistema interestados de forma a acomodar a “democratiza­
ção” do nacionalismo, a hegemonia norte-americana completou a
expansão de forma a acomodar a “proletarização” do nacionalismo.
AS TRÊS HEGEMONIAS DO CAPITALISMO HISTÓRICO ♦ 269

Mais uma vez, a expansão envolveu a superação. A superação


<!i> sistema westfaliano pelo imperialismo de livre-comércio foi real,
.linda que parcial. Os princípios, normas e regras de comportamento
i rslaurados pelo Congresso de Viena deixaram considerável margem
de manobra para os membros do sistema interestados organizarem
Mias relações domésticas e internacionais. O livre-câmbio chocava-se
i uni a soberania dos governantes, mas sua capacidade de se desvincu­
larem das redes comerciais se assim o quisessem, ainda era considerá­
vel. Acima de tudo, a guerra e a expansão territorial continuaram
•.eudo meios legítimos aos quais os membros do sistema interestados
podiam recorrer para alcançar seus objetivos.
Ao mesmo tempo, não havia organizações com poderes autô­
nomos em relação ao poder estatal para governar o sistema interesta-
i los. Sob a hegemonia britânica, o direito internacional e o equilíbrio
de poder continuaram funcionando da mesma maneira que funcio­
navam desde 1650: entre os Estados, e não acima deles. Como vimos,
0 ( ,'oncerto da Europa, a hautefinance e o mercado mundial funcio­
navam todos acima dos dirigentes da maioria dos Estados. Apesar dis-
•a», tinham pouca ou nenhuma autonomia organizacional em relação
ao poder mundial do Reino Unido. Eram instrumentos de controle
1le um determinado Estado sobre o sistema interestados, e não organi­
zações autônomas controlando o sistema interestados.
Em comparação com o imperialismo de livre-câmbio, as insti-
iuições da hegemonia dos Estados Unidos restringiram consideravel­
mente os direitos e poderes dos Estados soberanos. Os princípios,
normas e regras aos quais os Estados tinham de se submeter aumen­
taram em número e ficaram mais rigorosos, enquanto uma quantida­
de cada vez maior de organizações supranacionais adquiriu poder
.mlônomo para controlar o sistema interestados.
Com relação à primeira característica da hegemonia norte-
.imericana mencionada no parágrafo anterior, os Estados soberanos
\nb a hegemonia norte-americana têm tido muito menos liberdade
.Io que tinham sob a hegemonia britânica para organizar as relações
. om outros Estados e com seus próprios súditos da maneira que acha­
rem melhor. Em particular, os Estados soberanos têm tido menos li­
berdade do que nunca de usar a guerra e a expansão territorial como
270 ♦ G iovanni A rrighi

meios legítimos para a realização de seus objetivos. Com relação à se­


gunda característica, o desenvolvimento contemporâneo de organi
zações internacionais e grandes empresas transnacionais criou uma
rede extensa e compacta de trocas monetárias e não monetárias que
nenhum Estado é capaz de controlar unilateralmente e, o que é mais
importante, da qual nenhum Estado pode se desvincular, exceto a
custos exorbitantes.
É claro que, a partir de 1948 até por volta de 1968, essas redes
foram instrumentos do governo mundial exercido pelos Estados Uni­
dos e, nesse sentido, são equivalentes aos instrumentos do governo
mundial exercido pelo Reino Unido no século XIX. A Organização
das Nações Unidas, com sua assembléia, conselho de segurança, agên­
cias e burocracias especializadas, passou a desempenhar funções aná­
logas àquelas exercidas pelo Concerto da Europa. O Bank for Interna­
tional Settlements (Banco de Compensações Internacionais), o Fun­
do Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial passaram a
desempenhar funções análogas àquelas exercidas pela haute financc.
E as redes organizacionais de empresas multinacionais com sede nos
Estados Unidos passaram a desempenhar funções análogas àquelas
exercidas pelas redes comerciais com sede no Reino Unido (ver Carr,
1945, p. 49; Gilpin, 1975, capítulo 6).
No entanto, as analogias são mais de forma do que de conteú­
do. Em primeiro lugar, o alcance e a complexidade organizacional
das instituições de hegemonia dos Estados Unidos são muito diferen­
tes daqueles da hegemonia inglesa. Seu maior alcance e sua comple­
xidade organizacional têm sido fatores fundamentais para o aumento
da autonomia das instituições da hegemonia mundial dos norte
americanos em relação a cada um e a todos os membros do sistema
interestados, e em relação, inclusive, ao próprio Estado hegemônico.
Além disso, há um fator mais decisivo: a partir de 1968, aproximada­
mente, as grandes empresas transnacionais transformaram-se num
sistema integrado de produção, comércio e acumulação que não está
submetido a nenhuma autoridade estatal e que tem o poder de sujei­
tar a suas “leis” todos os membros do sistema interestados.
O surgimento do sistema de livre-iniciativa - isto é, livre de to­
da a vassalagem anterior ao poder estatal - tem sido o resultado mais
AS TRÊS HEGEMONIAS DO CAPITALISMO HISTÓRICO ♦ 271

».íi acterístico da hegemonia norte-americana, bem como seu limite


ultimo (verArrighi, 1982). Ele marca o fim do processo de superação
tio sistema westfaliano e o princípio do fim do sistema interestados
i oi no locus primordial do poder mundial.

Algumas conclusões preliminares

Uma análise da contradição do sistema de livre-iniciativa que


-.urgiu sob a hegemonia norte-americana está além do alcance deste
ensaio, No entanto, o que tem sido dito a respeito da anterior recor-
lí-ncia de hegemonias mundiais é suficiente para tirarmos algumas
i unclusões preliminares sobre as condições em que se pode esperar
que novas hegemonias mundiais surjam ou não. Três pontos em par-
licular merecem ser enfatizados.
Primeiro, o que tornou as Províncias Unidas, o Reino Unido e
i>s Estados Unidos hegemônicos no passado não foi seu poderio mili-
i.ir, nem seu maior controle sobre recursos escassos, e sim suas pre­
disposições e capacidades de fazer uso de um deles ou de ambos para
i csolver os problemas em torno dos quais giravam os conflitos do sis­
tema mundial. Essas predisposições e capacidades refletiam a vontade
r ,i perspicácia da futura nação hegemônica, mas essa vontade e pers­
picácia foram moldadas em grande parte pelo caos sistêmico que
11 iou uma demanda geral por ordem.
Se o passado pode servir de guia para o futuro, podemos esperar
que uma ou mais nações hegemônicas surjam de uma nova situação
de conflito social e caos sistêmico, cujos contornos, entretanto, agora
.linda estão nebulosos e são difíceis de prever. Seja como for, não basta
nos concentrarmos no atual ou provável poderio militar e no controle
sobre recursos escassos exercido no presente pelos rivais contempo­
râneos na luta pelo poder mundial para definir qual ou quais têm
mais probabilidades de se tornarem hegemônicos e refazer o sistema
mundial de modo a transformar o futuro caos sistêmico numa nova
ordem (anárquica?). O poderio militar e/ou o maior controle sobre
recursos escassos podem muito bem continuar sendo condições ne­
cessárias para a hegemonia mundial, mas têm muito menos probabi­
lidades de serem condições suficientes do que tiveram no passado.
272 ♦ G iovanni A rrighi

O que nos leva ao segundo ponto: os perigos de se confiar ex j


cessivamente em modelos de recorrências hegemônicas do passado j
para prever modelos futuros. O moderno sistema interestados tem si j
do essencialmente evolutivo, exatamente como seu congênere histô
rico: o capitalismo como sistema mundial de acumulação. Isso signi-
fica que as hegemonias mundiais têm ascendido e declinado não
num sistema imutável, mas num sistema que elas próprias criaram,
expandiram e superaram. Como conseqüência dessa evolução, as
condições de ascensão e declínio das hegemonias mundiais muda­
ram de uma hegemonia para a seguinte em aspectos significativos.
A mudança mais importante de todas tem sido o que podemos
chamar de “aceleração da história (social) ”, contrapartida da “desace- j
leração da história (política)” de Aron. Em todos os três exemplos do I
hegemonia mundial, a intensificação do conflito interestados engen- j
drou ondas de rebelião dos súditos em todo o sistema, as quais por sua j
vez, serviram como meios para a transformação da anarquia sistêmi- !
ca em caos sistêmico. Apesar disso, de um ciclo hegemônico para o
seguinte, cada vez foi necessário menos tempo até que o conflito inte­
restados engendrasse um conflito social em todo o sistema, e cada vez !
foi necessário mais tempo para que o conflito social fosse novamente
controlado depois do fim da fase aguda do conflito interestados. Essa 1
aceleração do tempo de reação da revolta popular ao conflito interes-
tado deveu-se à socialização crescente dos esforços dos governantes
no sentido de construir o Estado e o mundo. Quanto maiores os cír­
culos de súditos mobilizados direta ou indiretamente nesses esfor­
ços, tanto mais rapidamente o conflito interestados fez surgir re­
beliões populares contra a distribuição dos custos e benefícios desses
esforços.
A contrapartida dessa aceleração da história social foi a desace­
leração da história política. Isto é, a socialização do esforço de guerra
e da construção do Estado aumentou muitíssimo os custos e riscos
gerados pelos antagonismos mútuos entre os governantes. Se for as­
sim, a próxima luta pela hegemonia mundial pode assumir uma for­
ma ainda mais condensada do que a anterior e saltar completamente
toda a fase de conflito armado entre as grandes potências. Aliás, tanto
quanto sabemos, um novo período de luta pela hegemonia mundial
AS TRÊS HEGEMONIAS DO CAPITALISMO HISTÓRICO ♦ 273

l*<mIl*já ter começado - uma luta em que o caos sistêmico é o resulta-


náo da intensificação do conflito interestados, e sim da crise per-
ii).mente do sistema interestados e de sua substituição por organiza­
r e s supra-estatais.
Nesse sentido, uma terceira e última conclusão provisória po­
de ser tirada da análise feita neste ensaio. Em todos os três exemplos
Inslóricos de hegemonia mundial, a nação hegemônica também foi
IHler na organização dos processos globais de acumulação de capital
r, por isso, foi o principal Estado capitalista de sua época. Mas os três
I".lados foram “o principal Estado capitalista” em graus diferentes e de
.lilerentes formas. Se nos concentrarmos na representação de inte-
i t-í.ses no Executivo desses três Estados - como fizeram Marx e Engels
no Manifesto comunista - chegamos à conclusão de que cada Estado
hegemônico posterior foi menos capitalista do que o anterior. Mas,
emhora o Estado hegemônico tenha se tornado cada vez menos capi-
i.ilista nesse sentido, o sistema interestados tornou-se cada vez mais
. .ipitalista no sentido de que todos os seus membros foram submeti­
dos cada vez mais rigorosamente à lógica do poder capitalista.
Caso essa progressão continue, o próximo Estado hegemônico
m ia de ser menos capitalista em suas estruturas internas de represen­
tação do que os Estados Unidos pós-Segunda Guerra Mundial; ao
mesmo tempo, teria de tornar o sistema mundial ainda mais capita-
Iisia do que é hoje. Isso soa muito parecido com uma democracia so-
<i.il mundial, mas poderia ser algo bem diferente. Seja como for, a es-
i r.ula daqui até lá ainda está sendo aberta, e é difícil prever que tipo de
r .pécie humana surgirá da próxima rodada de caos sistêmico. Tam­
bém não está claro se a progressão dos últimos quinhentos anos, na
qual se baseia nossa previsão, continuará válida nos próximos cin­
quenta ou cem anos. Para avaliar as probabilidades de que isso acon-
leça, precisamos levar nossa análise muito mais adiante do que foi
possível fazer aqui.
A
A TRANSIÇÃO HEGEMÔNICA NA ÁSIA ORIENTAL:
UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA
Barry Gills

Um dos maiores desafios intelectuais da atualidade é a formu-


Lii, .10 de uma teoria crítica da hegemonia nas relações internacionais,
t ><onceito de hegemonia de Gramsci pode ser aplicado à esfera da
.. nnomia política global. A abordagem gramsciana dá atenção espe-
. t.d aos aspectos culturais, ideológicos e políticos da estrutura
hegemônica da ordem mundial e às coalizões de suas classes domi-
n.inlcs (Cox, 1981, 1983; Gill, 1990).
A abordagem gramsciana da hegemonia global reintroduz a
{•tthiica na análise materialista histórica das relações internacionais.
I Vt.i ênfase renovada nos processos políticos pode enriquecer uma
iiulise dos ciclos de hegemonia e de liderança mundial destacando a
I'indução, os modelos comerciais e o poder militar. A abordagem
i;i .unsciana obriga-nos a examinar não só as capacidades produtivas e
militares do(s) Estado(s) na condição de propulsor(es) da transição
hegemônica, mas também a investigar a maneira pela qual as alianças
de t lasse são constituídas, e como a ideologia é empregada tanto para
-1 mstruir quanto para legitimar uma ordem hegemônica. Pode-se
d. linir o Estado como composto por uma coalizão de classes. A hege­
monia opera entre as classes e é historicamente fluida em sua compo­
rão, muito mais do que admitiria qualquer concepção antropomór-
h< .1 equivocada de “Estado”. Mas, no caso da Ásia Oriental, há um
1 'mhlerna em trabalhar com o conceito gramsciano de consenso. Na
A-,ia Oriental, o “consenso” é mais reduzido do que em algumas ou-
II .is culturas. O Estado existia para a elite, não havia “cidadãos”, nem
direitos”, apenas súditos. No entanto, as classes governantes precisa-
v.nn de legitimidade social.
Levando a concepção geral de Gramsci um pouco mais além, é
IMissível ver toda a história internacional e mundial como um proces­
so político e econômico perpétuo de penetrações e transformações
.«•ciais mútuas. Classes e Estados coexistentes entrelaçam-se em rela-
276 ♦ Barry Gili.s

ções competitivas/cooperativas de acumulação e rivalidade. Essas re­


lações não determinam apenas as alterações no “equilíbrio de poder”
ou a configuração da hierarquia internacional no correr do tempo,
mas também, não menos importante, ao mesmo tempo forçam a re­
estruturação constante de todas as classes, Estados e sociedades inter­
ligados por essas relações competitivas/cooperativas. Esse processo
constante de reestruturação social deve ser visto como o principal as­
sunto da disciplina das relações internacionais (Palan e Gills, 1994).
Este capítulo pretende explorar a relação entre ordem, hege­
monia, acumulação e legitimidade mundial, ilustrando-a com exem­
plos da história da Ásia Oriental. Mesmo que não tenham essa inten­
ção nossas teorizações ainda refletem muito freqüentemente o euro-
centrismo. Uma abordagem gramsciana é igualmente esclarecedora
quando aplicada à história internacional não-ocidental, e quando,
além de aplicada ao presente, é também aplicada ao passado. No caso
da Ásia Oriental, as análises que se apoiam no contexto mundial em
que a região está inserida têm maior rigor. Janet Abu-Lughod (1989)
demonstrou que “a queda do Oriente precedeu a ascensão do Ociden­
te”. Isto é, antes de a Europa chegar à posição hegemônica predomi­
nante no sistema mundial, algum tempo depois do século XVI, várias
potências asiáticas tinham exercido um poder hegemônico sobre a
economia mundial, ao passo que a Europa Ocidental era uma área
relativamente atrasada ou periférica. A “queda” (ou, melhor dizendo,
o declínio relativo) das potências asiáticas hegemônicas, no que diz
respeito ao sistema mundial, foi o pré-requisito histórico da “ascen­
são” (ou, melhor dizendo, da ascendência relativa) das potências oci­
dentais.
Com a mudança no poder e na acumulação, surgiu uma nova
ordem hegemônica global - regulada pelas normas ocidentais da “so­
ciedade internacional” - as quais foram portadoras de novas mensa­
gens ideológicas, políticas e culturais para a maioria dos povos não-
europeus. Contudo, no fmal do século XIX, os europeus cooptaram
deliberadamente uma potência asiática, o Japão, para o clube das po­
tências hegemônicas globais, principalmente para utilizá-lo na pre­
servação do status quo regional e global. A incorporação do Japão às fi­
leiras das potências hegemônicas globais, iniciada há quase um sécu-
A TRANSIÇÃO HEGEMÔNICA NA ÁSIA ORIENTAL ♦ 277

(u, continua sendo um elemento-chave da ordem mundial atual e


. i m um dilema para as potências ocidentais: o de acomodar, e, ao
mesmo tempo restringir, a expansão japonesa, de modo a preservar o
«*|nilíbrio global e seus próprios interesses vitais.
Além de discutir a transição hegemônica no passado histórico
.l.i Asia Oriental, vou discutir o século XX e a transição hegemônica
. tiiilemporânea na economia política global. Como no passado, a
n.msição hegemônica de nossos dias é parte de uma reestruturação
luiulamental da economia e da política ocasionada por interações
. ompetitivas. Um dos elementos-chave dessa reestruturação da eco-
numia política global são as mudanças no processo de acumulação
mundial. A meu ver, existe agora uma tendência de intensificação da
icnsão estrutural entre os centros rivais de acumulação na economia
mundial. Depois de um período de hegemonia norte-americana, em
>11 u' a concentração da acumulação numa zona central do sistema
mundial foi a principal tendência do processo mundial de acumula-
mo, existe agora uma hegemonia global dividida entre as três princi-
Imis zonas centrais da economia mundial. Essa hegemonia trilateral,
•>ii G3-7, pôs fim à unipolaridade temporária e um pouco anormal
tl.i pax americana e fez a economia política mundial voltar a uma si­
tuação de tripolaridade semelhante àquela que a caracterizou no fim
■Io século XIX e início do século XX, mas com novas formas institu-
i ionais.
Entre essas três zonas centrais, o Japão surgiu com potencial
Itara ser o produtor mais eficiente de todos e, por isso, o centralizador
mais bem-sucedido da acumulação de capital na economia mundial.
No entanto, parece muito pouco provável que o Japão consiga centra­
lizar a acumulação mundial ou o poder hegemônico de maneira se­
melhante à conseguida pelos norte-americanos no período imediata-
iiiente posterior à Segunda Guerra Mundial, ou surgir como o único
•.ucessor hegemônico do poder norte-americano. Seja como for, o
exilo no processo de acumulação não é a única característica do poder
hegemônico global. Os aspectos políticos, ideológicos e culturais da
hegemonia são partes integrantes da transformação do poder econô­
mico em mais poder político no interior da formação social global.
I mbora haja muita discussão sobre a maneira pela qual o Japão pode-
278 ♦ Barry G ii.ls

ria transformar seu poder econômico em mais poder político e mili­


tar no sistema mundial, existe o perigo de se adotar uma posição mc-
canicista demais, apesar da elegância e do atrativo das descrições ge­
rais sobre o processo histórico de ascensão e queda de grandes potên­
cias (como a análise de Kennedy, 1987-1988). Uma análise gramscia-
na desse problema deve indicar as limitações existentes para a trans­
formação do atual “poder de acumulação” do capital japonês em he­
gemonia política, ideológica, cultural e m ilitar no plano global
(Rapkin, 1990). Embora o poder estrutural do Japão (Strange, 1988)
tenha aumentado e continuará aumentando, há menos possibilida­
des de uma pax niponica segundo o modelo norte-americano.
À luz da análise histórica geral sobre os modelos de acumula­
ção e hegemonia da Ásia Oriental e, particularmente, sobre o papel do
poder da Ásia Oriental, na hierarquia hegemônica global durante o sé­
culo XX, surgiram duas importantes hipóteses acerca dos limites da
hegemonia japonesa e das tendências por meio das quais a nova or­
dem mundial emergirá. Primeiro, é provável que o Estado japonês
continue a cultivar o papel de participante “cooperativo” e ostensiva­
mente benigno no interior da coalização hegemônica das três zona.s
centrais. Entretanto, procurará aumentar constantemente seu podei'
estrutural, assim como o poder estrutural do seu capital nas princi­
pais instituições do capitalismo global. Agir de outra maneira, ou, es-
pecificamente, tentar obter uma transmissão óbvia do cetro hegemô­
nico dos Estados Unidos para o Japão seria, quase com certeza, con­
traproducente, tanto no plano econômico quanto no plano político.
Seja como for, isso está certamente além das possibilidades políticas
reais do Japão na transição hegemônica atual.
Segundo, a nova ordem mundial emergente se caracteriza por
duas correntes estruturais contrárias que parecem suficientemente
equilibradas para se manterem durante toda a transição hegemônica
em curso. A primeira tendência é a da integração crescente entre as
zonas centrais, tanto em termos de transnacionalização do capital
quanto em relação à coordenação estratégica e política dos programas
de governo. Uma segunda tendência contrária é a da regionalização
do comércio e do investimento, que poder levar ao surgimento con­
comitante de zonas predominantes acompanhando a regionalização
A TRANSIÇÃO HEGEMÔNICA NA ÁsiA ORIENTAL ♦ 279

ilu economia mundial. Na história internacional, a tensão gerada pela


t oexistência dessas duas tendências será, dentro em pouco, a princi-
l>.il característica da ordem mundial. Esse novo período será, portan-
lo, por sua própria natureza, uma era contraditória. Ainda é muito
«alo para prever qual dessas duas tendências prevalecerá, ou mesmo
.e esse é um resultado necessário.

Conceitos-chave

De acordo com Stephen Gill (na introdução deste livro), uma


.uiálise materialista histórica deve fugir do determinismo vulgar e se
• wncentrar nos processos fundamentais econômicos e de classe. Uma
lorma de fazer isso é privilegiar o papel da acumulação do capital na
investigação sobre mudança histórica. Segundo Gills e Frank (1990),
um modo de acumulação sempre é constituído pelas dimensões políti-
. .1, ideológica e econômica, que formam uma unidade de estruturas
•.m iais interligadas. Os modos de acumulação requerem: 1) um nexo
a onômico baseado numa complexa divisão internacional do traba­
lho - na qual as relações de classe facilitem a extração de mais-valia e
.uTimulação; 2) um aparato político que imponha as regras da extra­
vio da mais-valia e da acumulação; e 3) uma ideologia que condicio-
n.i a consciência histórica para permitir que haja acumulação, e or-
ileiii social, naquela forma histórica específica. Esses elementos são
Iu rí es integrantes da “hegemonia”, desde que ela seja exercida entre
.is classes no plano nacional e entre Estados e classes no plano global.
Hegemonia pode ser definida da seguinte maneira: “uma estru-
tura hierárquica da acumulação de mais-valia entre entidades políti-
<.is, e suas classes constituintes, mediada pela força. É estabelecida
unia hierarquia de centros de acumulação e de sistemas de governo
(11 ie conferem uma parcela privilegiada de mais-valia - e o poder eco-
nomico/político necessário para esse fim - para o centro/Estado he-
gnnônico e suas classes governantes/de proprietários.” (Gills e Frank,
I‘>90, p. 32). Nessa estruturação hierárquica, o centro hegemônico de
■u umulação e poder político subordina os centros subalternos. Essa
rslrutura piramidal não é constituída somente de Estados, mas tam-
Iicm de classes. Na base da pirâmide estão as classes subordinadas, das
280 ♦ Barry G ills

quais as elites extraem a mais-valia. No ápice da pirâmide estão flt


classes que cooperam na coalizão hegemônica, classes situadas tantO
no centro quanto na periferia. As relações entre as elites combintUH
elementos de competição, cooperação e subordinação em todas as tíl»
truturas hegemônicas históricas, sejam quais forem os modos de acU*
mulação.
Em vez de conceituar a transição hegemônica como a transmll*;
são do predomínio de um único Estado hegemônico para outro, pr<»
cisamos considerar os vários exemplos de períodos históricos nOl
quais não existe um único Estado hegemônico que abrange todos Oi.
demais. De fato, em qualquer época, a totalidade da formação sociâí
global talvez possa ser caracterizada com maior precisão como uni
conjunto de hegemonias interligadas. Janet Abu-Lughod afirma qufí
o sistema mundial do século XIII não foi organizado com base nuífl,
único Estado hegemônico, e sim com base em “uma série de poderei
‘centrais’ coexistentes, que tanto por meio de relações de conflito
quanto de cooperação, tornaram-se cada vez mais integrados” (1989»
p. 341). Essa estruturação é análoga à configuração tripoíar da hege*
monia global de nosso tempo.
Na verdade, como observa Abu-Lughod, o clichê “ascensão I
queda” aplicado tão indiscriminadamente a nações, civilizações, im­
périos, e até a sistemas mundiais históricos, é uma noção equivocada
e imprecisa. Talvez fosse melhor dizer que, no “curso da história, algu­
mas nações, ou pelo menos grupos delas, conquistaram um poder re­
lativo quando comparadas a outras e, ocasionalmente, conseguiram
impor os termos de suas interações com as nações subordinadas [...|,
Quando isso acontece, é chamado de ‘ascensão’. Inversamente, a per­
da de uma posição vantajosa é designada como ‘declínio’.” (ibid.).
Superacumulação é um conceito usado para analisar a maneim
pela qual as hegemonias constituintes do sistema mais abrangente
estão ligadas entre si por meio da acumulação. A superacumulação é
definida como um processo por intermédio do qual uma zona (cen
trai) do sistema mundial e as classes governantes/de proprietários
que a constituem são capazes de acumular mais efetivamente e, por
conseguinte, de centralizar essa acumulação à custa das outras zonas
(centrais) (Gills e Frank, 1990, p. 1.991). Portanto, o poder hegemôni-
A transição hegemônica na Á sia O riental ♦ 281

• conceituado basicamente como um meio para um fim, e esse fim


■ i acumulação. No entanto, os processos políticos e econômicos da
ti|n i acumulação se relacionam de forma tão íntima que passam a
■iHisiituir um único processo histórico.
Como modelo histórico mundial, a transição hegemônica po-
-I. \(T melhor compreendida se relacionarmos os ciclos de hegemonia
i oscilação entre um Estado dominante, um modo de acumulação e
um modo privado de acumulação predominante, dependendo da
• l.tvse ou classes que detêm a hegemonia. Essa oscilação é a expressão
uma relação perpétua simbiótica e competitiva entre o Estado e as
■l.t-.ses proprietárias, cujo objetivo é a obtenção de parcelas da mais-
v.ili.i social. Essa concepção é baseada numa adaptação do modelo de
l>n.igrafo competição entre as classes nos impérios pré-industriais
l>i' iposto por Eisenstadt (1963). Toda formação social pode ser anali-
■iTi como uma combinação de modos de acumulação públicos e
I*t ivados.
Quando as classes que realizam a acumulação privada contro­
lam grande parcela da maís-valia social disponível em detrimento do
I .i.ido, temos uma fase entrópica de acumulação. Numa fase entrópi-
- I. |>rincipalmente em formações sociais pré-industrializadas, a es-
ii utiira de acumulação torna-se cada vez mais descentralizada e não
. .ii ingida pela regulamentação do Estado. Ao mesmo tempo, o poder
r.i I é mais difuso, uma vez que o centro perde sua força. Ou seja,
r, coisas caem aos pedaços”. Portanto, a acumulação entrópica e
<lr'.centralizada é historicamente associada - em particular antes da
K. volução Industrial - a tendências desintegradoras no interior do
I '.t.ido e à desintegração dos sistemas burocráticos imperialistas.
Quanto mais profunda a entropia, tanto mais aguda se torna a
. i r.c fiscal do Estado. Como conseqüência não só da maior concen-
II .i<,ao de poder econômico em mãos privadas, mas também da crise
h-.c ,il, as fases entrópicas costumam ser associadas ao aumento da ex­
ploração e da miséria das classes produtoras, ao crescimento dos mo-
Minentos sociais e à maior frequência e intensidade da rebelião e da
guerra civil. Dessa forma, podemos correlacionar diretamente a fase
■i.i ordem hegemônica com a fase de acumulação e o ritmo dos movi­
mentos sociais, da guerra e da rebelião.
282 ♦ Barry G ills

O estudo erudito de Geoffrey de Sainte Croix (1981) sobr# |


luta de classes no mundo grego antigo, por exemplo, argumenlti i|U|
o Império Romano do Ocidente não caiu apenas como conseqüéntll
da ameaça dos bárbaros e da superexpansão militar, e sim em virlurlf
de uma superconcentração de riqueza e da superextração de nirillfi
valia por parte das classes proprietárias e do Estado. Isto é, Roma udtf
no meio de uma fase entrópica de acumulação que debilitou imilllMÍ
simo a capacidade de o Estado imperialista resistir a desafios sério»*
O estudo bastante conhecido de Paul Kennedy (1987- \ m )
sobre ascensão e queda de grandes potências defende a hipótese df
que a superexpansão do aparato militar e burocrático das grandes |itl»
tências (hegemônicas) torna-se insustentável depois que a base oitl*
nômica desse poder militar e político diminui em relação aos rival» #|
desse modo, agrava o seu declínio. Embora concorde em grande ptirlf
com essa afirmação, eu diria que, na maioria dos casos da hislófii
mundial, foi mais a tendência entrópica no processo de acumulaçAttj
manifesta nas agudas contradições de classe, que realmente tornuhlllt
o aparato militar e burocrático insustentável. Isto é, o colapso de ilffl
aparato imperialista superexpandido foi sintomático da fraqueza eco­
nômica estrutural subjacente, mas essa fraqueza também se exprcuJHh
va por meio de importantes mudanças nas coalizões e subordinaçOM
de classe subjacentes ao poder hegemônico.
Os períodos nos quais o Estado domina as classes que dispOCIII
de propriedade privada na estrutura de acumulação, e nos qual» l
renda e o poder aumentam na formação social relativa para os aul
muladores privados subordinados, representam uma fase de cenirtili
zação de acumulação. Numa fase centralizada, o Estado e a infra-eslru
tura imperialista se expandem. O Estado investe intensamente na inl tit
estrutura, tanto produtiva quanto administrativa. Em geral, as la»«*»
de centralização da acumulação estão associadas à expansão de poder
hegemônico e da administração burocrática centralizada, bem como
do aparato militar da hegemonia. Inicialmente, costuma haver um
período de expansão econômica diretamente relacionado a um novn
nível de integração política e econômica. A “paz hegemônica” no in
terior do Estado ou império recém-consolidado, embora não noa*»
sariamente entre ele e outras entidades políticas, facilita ainda mais 4

_A
A TRANSIÇÃO HEGEMÔNICA NA ÁSIA ORIENTAL ♦ 283

. ■.ji.nisão econômica. Portanto, numa fase centralizada de acumula-


.. tn, ,( expansão do império e a expansão da economia reforçam-se
....luumente; numa fase entrópica de acumulação isso não acontece.
Em outra obra (Gills, 1989), fiz algumas adaptações nos con-
»i iios de sincronização e conjuntura. Existe sincronização quando as
i . i d c acumulação em A e em B ocorrem paralelamente. Existe
■ou juntura quando elas não ocorrem paraíelamente. Esses conceitos
> .1 .ilcnção dada à sincronização facilitam a análise das hegemonias
*|iu- nao é apenas comparativa, mas que abarca processos de desenvol-
umrnlo da totalidade do sistema mundial e de suas “partes” consti-
..... (cs. Quando A está numa fase entrópica de acumulação e B está
mi ma fase de centralização, existe potencial para uma alteração do
.. nim c para uma mudança hegemônica. Numa fase centralizada de
i. nmulação, as potências tiram partido de um rival que esteja numa
).! .<• entrópica e, em geral, procuram subordiná-lo completamente
..d Mibordinar parte(s) dele. Isso pode acontecer tanto pela apropria­
v a de uma parcela do mercado ou do controle financeiro quanto pe-
11 .qu opriação de território e, por conseguinte, de recursos, trabalho e
n iida.
Nesse processo panorâmico de reestruturação pelo qual todas
r. •.<><.iedades, classes, Estados, hegemonias e culturas passam, a natu-
■r/.i do modo de acumulação é um elemento fundamental. Na pri-
ii u n a parte do século XX, por exemplo, a luta entre as grandes potên-
■m*i durante a Segunda Guerra Mundial refletiu a competição subja-
•» nlc entre os diferentes modos de acumulação. O nazismo, o milita-
nMimeos modos de acumulação que representavam foram vencidos
ihi <entro capitalista com a derrota da Alemanha e do Japão. Na or-
■Eni mundial do pós-guerra, o socialismo de Estado, o liberalismo
.1. mocrático e o neomercantilismo competiram entre si pela supre-
m.u ia. Com o colapso da antiga União Soviética, a variante do Estado
i h ialista foi visivelmente derrotada, permitindo que o neomercanti-
li.mo - representado pelo Japão e por grande parte da Ásia Oriental -
lulasse pela supremacia com as tradições do liberalismo democrático
■do laissez-faire das duas zonas centrais do Ocidente. A combinação
i-.pecífica do Japão - de ser o menos militarista, o menos democrático
• o mais mercantilista dos três centros capitalistas - fez dele o mais
284 ♦ Barry G ills

competitivo e bem-sucedido no plano econômico, representando


assim um desafio direto às ortodoxias anglo-americanas sobre as virlü»
des da “livre-iniciativa” e do mercado. Como Chalmers Johnson (1982)
observa corretamente, o modelo japonês questiona a teoria de que ft
intervenção estatal na economia é inevitável, ineficiente e distorcidfli
e solapa a crença de que o mecanismo de mercado, sem direção polí*
tica direta, é suficiente para alcançar competitividade.

Uma ordem mundial “chinesa”?

Michael Mann (1986) e David Wilkinson (1989) identifica*


ram a alternância entre ordens hegemônicas unitárias e sistemas dl
Estados com múltiplos atores como uma tendência-chave da história
mundial. Historicamente, todos os sistemas internacionais regionail
parecem ter experimentado semelhante modelo a longo prazo, eitt
períodos geralmente calculados por séculos. A Ásia Oriental não 4
exceção. As contradições inerentes a cada forma de ordem social ge­
ram pressões estruturais que produzem, inexoravelmente, transfor­
mação social e sistêmica.
Alguns estudiosos da história internacional da Ásia OrienUl
desenvolveram um viés analítico segundo o qual consideram os mo­
mentos hegemônicos unitários como normais ou representativos. An
interrupções nos períodos de hegemonia consolidada são vistas como
desvio da norma. Em geral, a história da Ásia Oriental é descrita por
meio de uma série de momentos dinásticos imperialistas nos quai»,
por exemplo, presumivelmente o mesmo império “chinês” é perpe­
tuamente reconstituído, ainda que por distintas dinastias dirigente». r
Essa visão de continuidade no que diz respeito à Ásia Oriental ba
seia-se na suposta influência de certas normas culturais e estrutura» |
sociais às quais o termo amplo “confucionista” costuma estar a»
sociado. No entanto, não devemos considerar os sistemas de Estado»
na história internacional da Ásia Oriental como meros desvios da
norma da hegemonia unitária. O período de sistemas de Estados com
múltiplos atores é uma parte tão fundamental do processo história»
geral de alternância entre formas de ordem na Ásia Oriental como
em qualquer outra parte do mundo. Um resumo sucinto e esque-
A TRANSIÇÃO HEGEMÔNICA NA ÁSIA ORIENTAL ♦ 285

mático das transições hegemônicas da história da Ásia Oriental ilustra


esse processo histórico (Gills, 1989).
O império chinês não foi apenas reconstruído muitas e muitas
vezes. A China, como a Europa, é também uma referência geográfica.
N inguém diria que a Europa foi um único império ou país, a despeito
ile suas continuidades culturais e civilizacionais. Depois do colapso
iIo poder chinês no século XIV e da ascensão inexorável do Japão, não
I.ilamos mais de uma ordem mundial chinesa, e sim de uma civiliza­
d o “confucionista”. Na realidade, uma sucessão de povos, classes,
listados e hegemonias muito diferentes governou a Ásia Oriental ao
longo de toda sua história. Mesmo quando existiu de fato um império
. ontinental, ele coexistiu com outras potências numa ordem inter­
nacional asiática-oriental e eurasiana mais abrangente. Essas potên-
i ias hegemônicas não apenas foram diferentes em termos da compo­
sição étnica da classe dominante, mas também em termos da ideolo­
gia dominante e dos cultos religiosos utilizados e promovidos pela
dite. Também diferiram em sua organização do processo de acumu­
lação e na forma como trataram sua relação com a economia eura­
siana mais ampla.
A ênfase na continuidade da ordem na Ásia Oriental deve-se
em parte a uma lacuna entre a teoria internacional e a prática, tão ver­
dadeira na história internacional da Ásia Oriental quanto na do Oci­
dente, só que, no primeiro caso, essa lacuna é ainda maior. Por exem-
jdo, a história oficial imperial era tipicamente orwelliana: eventos do-
eumentados eram distorcidos para se conformarem às normas prefe­
ridas, fosse qual fosse seu verdadeiro caráter. Essa tendência marcante
da historiografia chinesa é explicada em parte pelas necessidades espe­
cíficas de legitimação naquele contexto cultural.
Como em outras partes do mundo, a hegemonia era basica­
mente um meio para as classes que a exerciam obterem grande rique-
/.a e grande poder. O Estado e a dinastia imperial eram os maiores
.icumuladores, e novas ordens imperiais sempre prestaram muita
.ilenção à reorganização do aparato de extração de mais-valia. No en-
lanto, o governo imperial em mãos de dinastias étnicas chinesas foi
lanto a exceção quanto a regra, o que é ilustrado pelos períodos recor­
rentes e prolongados de poder exercido por povos “bárbaros” ou se-
286 ♦ B arry G ílls

mibárbaros que não eram chineses. Aos olhos dos chineses étnicos, a*i
classes governantes bárbaras estavam interessadas basicamente na ex
tração predatória, expectativa que a dinastia mongol Yuan encarnou
com perfeição. No entanto, esse governo estrangeiro e ganancioso era
difícil de legitimar, em virtude da grande ênfase confucionista no
bom governo, definido como a devida atenção ao bem-estar do povo.
As idéias hegemônicas centrais da civilização asiática-oriental
baseavam-se num corpo de doutrinas social, política e cosmológica
herdadas do período formativo da civilização chinesa e, em última
instância, identificadas aos chineses como raça ou nação. É em parle
por esse motivo que a maioria das dinastias governantes bárbaras
escolheu, deliberadamente, se naturalizar chinesa e, desse modo, 1c-
gitimar seu poder. Também é verdade que, fosse qual fosse a dinastia
governante, a “aristocracia” chinesa, ou a classe proprietária de terras
em geral, ocupava posição única e poderosa na sociedade. O Estado
não tinha como funcionar com eficácia sem incorporar essa classe â
coalizão dominante, e essa classe inseriu-se tão completamente na
burocracia que o próprio governo foi, em certa medida, dominado
por ela. No entanto, aliar-se a essa classe também significava fazer-lhe
concessões, diminuindo assim o poder imperial central e sua renda.
Embora sucessivos Estados e classes hegemônicos da Ásia
Oriental tenham tido pretensões de exercer um papel hegemônico
universal, a verdadeira extensão de sua influência hegemônica de­
pendia de muitos outros fatores materiais, e não apenas da influência
cultural ou ideológica. A hegemonia entre os Estados é mediada pelo
uso aberto ou implícito da força, e pelo reconhecimento dos fatos de
poder por todos os participantes do jogo, tanto grandes quanto peque­
nos. A conquista foi empreendida sempre que se fazia necessária e
quando havia meios para realizá-la. Mas, em alguns casos, a conquista
não foi considerada necessária; nesses momentos, a dimensão ideoló­
gica e consensual da hegemonia foi mais importante. Pode-se dizer
que a Ásia Oriental desenvolveu sua própria teoria internacional. Essa
teoria internacional derivou das concepções de Mêncio cujo sentido
era o de reduzir o papel da força e aumentar o papel da virtude ou do
exemplo moral. Em períodos de consolidação dinástica, a freqüência
da guerra parece ser menor que nos períodos de ascensão dinástica.
A TRANSIÇÃO HEGEMÔNICA NA ÁSIA ORIENTAL ♦ 287

Nos dois séculos que precederam a restauração Meiji de 1868, a guer-


i .1 parece ter sido menos característica das relações internacionais da
Asia Oriental confucionista do que do Ocidente sob o sistema westfa-
Iia no.
Na Ásia Oriental, a aquiescência aparente de alguns vassalos
mi tributários às pretensões hegemônicas de outros nem sempre ou
necessariamente foi um indício de que a pretensão se concretizou
<<>mbase numa assimilação genuína de valores, em contraposição ao
ntieresse pessoal. O “vassalo” submisso também poderia estar agindo
de acordo com seus próprios interesses materiais numa relação mu-
hlamente benéfica, ao mesmo tempo em que respeitava apenas su-
perficialmente o ritual obrigatório e a forma ideológica da subordi­
nação.
Por exemplo, o Japão foi tradicionalmente um “membro re-
<alcitrante” das ordens hegemônicas originadas na China, que o do­
minou a partir do continente. Apesar disso, o xogunato Ashikaga acei­
tou uma posição formal de tributário no seio da hegemonia Ming. O
xogunato Ashikaga fez isso para facilitar o intercâmbio econômico
sem ser inteiramente assimilado ou dominado pela matri 2 ideoló­
gica, política e cultural do sistema continental. Durante vários sécu­
los, a dinastia Yi da Coréia conformou-se exteriormente às demandas
do sistema tributário da dinastia Qing (manchu) na condição de “Es­
tado tributário-modelo”, ao mesmo tempo em que mantinha secreta-
inente um santuário dedicado aos Ming na casa real e desprezava os
Qing bárbaros, contra os quais se ressentia por considerá-los gover­
nantes ilegítimos.
A etimologia dos termos usados para tributo, imposto e domí­
nio nos dá uma pista do sistema hierárquico geral da Ásia Oriental e
de como o poder e a acumulação estiveram vinculados entre si na or­
dem hegemônica. Em lugar do princípio de igualdade entre Estados
soberanos do sistema westfaliano, o modelo da Ásia Oriental era mais
parecido com o do feudalismo francês em seu estágio mais desenvol­
vido. Redes complexas de relações sobrepostas de “vassalagem” foram
construídas entres as elites e entre as classes. Um imperador classifi­
cava os vassalos de acordo com vários critérios - culturais, geográficos
e outros - , mas o objetivo central era construir, por meio desses vassa-
288 ♦ Barry G ills

los, uma rede de dependência tão grande quanto possível ou desejd


vel. Essa subordinação não era apenas formal ou simbólica, mas tam
bém material, pois os deveres de um vassalo incluíam invariavelmen­
te a obrigação de pagar algum tributo ao senhor feudal. As ordens hc
gemônicas da Ásia Oriental eram, portanto, complexas concatcm»
ções de relações burocrático-estatais e “feudais” de extração de mais
valia. Na prática, algumas entidades tinham laços de vassalagem com
mais de um senhor feudal dentro da mesma ordem. Por exemplo,
durante muito tempo, as ilhas Riukiu foram vassalas tanto do daimío
Satsuma do Japão quanto dos Qing no continente. A ilha de Tsushimu
era vassala tanto do xogunato Tokugawa, sediado em Edo, quanto d(t
dinastia coreana Yi, sediada em Seul.
Havia um discurso universal da diplomacia da Ásia Oriental
que se aplicava não só às relações entre a “China” e as entidades políti­
cas não-chinesas, mas também às relações entre essas entidades não
chinesas (Fairbanks, 1968; Rossabi, 1983). As formas e a terminologia
dessa “sociedade internacional” derivaram, em última instância, du
civilização chinesa arcaica, mas se disseminaram, durante muitos sé­
culos, por todo o mundo asiático-oriental. Esse discurso estava conti
do primeiramente no universo de uma tradição literária comum, ba
seada nos ideogramas chineses, de forma muito parecida àquela com
que o latim constituiu a base última do discurso entre os europeus da
cristandade. Os Ming fizeram um esforço extraordinário para pro
mover contatos diplomáticos bem amplos. A diplomacia dos Ming
provavelmente era motivada pela necessidade consciente de revalidai
os princípios da teoria internacional da tradição confucionista como ca
racterísticas distintas da força bruta empregada, tão freqüentemen
te, pelos mongóis que os precederam (Fairbanks, 1968). No entanto,
em geral, os impérios continentais, dependendo como dependiam da
aliança de classe com a aristocracia proprietária de terras, mostraram
pouco interesse pelo imperialismo de além-mar, a ser concretizado
por meio da organização de seu poder naval. O período dos Ming cos
tuma ser caracterizado como aquele em que a marinha chinesa pode *
s
ria ter desempenhado o papel-chave no processo de disputa global. As
frotas do almirante eunuco Cheng já navegavam para o oceano Índico
e para os portos comerciais do litoral da África Oriental décadas antes
A transição hegemônica na Á sia O riental ♦ 289

. I. >s portugueses introduzirem sua presença naval nessas águas. Mas a


i hina raramente valorizou a rota marítima como meio para expandir
,i poder do império ou extrair uma renda da rede comercial mundial.
Apesar de sua aparência de universo isolado, como em qual­
quer sistema regional histórico, a coerência interna da Ásia Oriental
11 >i solapada pelo contato extenso com outros sistemas. Houve áreas
. onsideráveis em que as formas culturais e o discurso simbólico se
•.obrepuseram e onde houve intercâmbio material inter-regionai,
limitas vezes como parte de processos mundiais de acumulação. Uma
dessas zonas de interação era a Indochina, onde a influência da índia
suplantou a chinesa. Até mesmo na época dos romanos, essa região
desempenhou importantíssimo papel de intermediária nas trocas
et onômicas entre Ocidente e Oriente. Os poderes hegemônicos lo-
. ais, principalmente as potências marítimas do arquipélago, surgi-
Min na região muitas vezes como decorrência da cobrança de uma
quantia por esse intercâmbio.
No século XVII, a expansão territorial do império russo ao
longo do rio Amur também criou um ponto de contato entre os dois
Msicmas regionais. É bom lembrar que esse contato solapou a eficácia
H-gulamentadora do sistema chinês de cobrança de tributos do co­
mercio na fronteira entre a esfera russa e o império dos Qing. Um
exemplo excepcional do efeito do contato inter-regionai é o do Japão,
quando entrou em seu famoso período de “reclusão” no século XVII.
<>Japão virou as costas para o período anterior de intensos contatos
min as nações mercantis da Europa e para sua fracassada tentativa
expansionista de conquistar a Coréia. Fez isso em grande parte para
c.olar-se das influências ideológicas corrosivas representadas pelo in-
n rcâmbio material sistêmico com outras potências, principalmente
i-uropéias, e, desse modo, salvaguardar a ordem interna hegemônica
■ri ém-consolidada sob os Tokugawa. Um exemplo mais extremo
.unda é o do comércio inglês do início do século XIX, que constituiu
■,<t í o desafio a todo o complexo sociopolítico chinês. Do ponto de vis-

i.i dos ingleses, as restrições da dinastia Qing ao comércio do ópio,


impostas por meio de seu sistema tradicional de regulamentação do
i mnércio tributário, entraram em conflito com os circuitos comer-
i ia is extremamente lucrativos que envolviam o comércio inglês tan­
290 ♦ Barry G ills

to com a índia quanto com a China, isto é, diziam respeito à acumu­


lação em escala mundial. Para proteger essa fonte de lucro, os inglese»
usaram a força militar para obrigar a dinastia Qing a permitir a conti­
nuidade e a expansão do comércio, mesmo que esse comércio causa»
se grave drenagem de suas reservas de ouro e criasse instabilidade
social, decorrente do aumento no número de viciados em ópio.
Em termos de sua ideologia, a ordem do mundo oriental asiíb
tico foi menos coerente do que se costuma pensar. O confucionismo
não foi sempre o modelo ideológico predominante na história da
Ásia Oriental. Os períodos de seu predomínio dependeram de condi •
ções que o favoreceram. Ele se adaptava melhor, como doutrina, á le­
gitimação e ao treinamento da burocracia centralizada, e à reprodu­
ção da aristocracia proprietária de terras. Funcionava bem como dou­
trina de um Estado imperialista já estabelecido, mas nem tanto no»
períodos de rivalidade entre Estados em luta. Semelhante à ideologia
dominante das classes proprietárias de terras de Roma, o confucioni»
mo elevava o status das atividades econômicas baseadas na exploraçáo
da terra, mas prejudicava as atividades comerciais ou mercantis, tf
sempre sofreu por sua incongruência com determinadas formas iltf
acumulação, principalmente as mercantis. Por isso, os mercadorr»
ocupavam a posição mais humilde na hierarquia social, abaixo do»
camponeses, que ao menos produzem mais-vaiia, ao passo que um
mercador é um “parasita”. Esse preconceito era reflexo do ódio e d*
rivalidade de classe entre a oligarquia proprietária de terras e as classe»
comerciais, sentimentos profundamente arraigados naÁsia Oriental,
No Japão, onde a versão continental do confucionismo talvez tenha
sido a menos influente, o declínio da classe dominante proprietária
de terras - os samurais - estava bem avançado em meados do século
XIX, assim como a ascensão de uma classe mercantil-comercial ur­
bana. Essa situação preparou muito melhor o Japão, do que a China
ou a Coréia - onde a classe proprietária de terras continuava esmaga
doramente hegemônica-, para concretizar a transição para o modci
no capitalismo industrial-comercial e, por conseguinte, para o Estado
moderno.
Entretanto, nem mesmo o confucionismo teve o monopólio
no Estado imperialista. No final do período Han, o taoísmo, e princl
A TRANSIÇÃO HEGEMÔNICA NA ÁSIA ORIENTAL ♦ 291

l».ilmente o budismo, tornaram-se proeminentes, em grande parte à


. n .i.i do confucionismo, com o apoio oficial das novas classes gover­
na n tos. Muitas dessas classes governantes não eram etnicamente
«!i mesas, e sim povos “bárbaros”, especialmente no Norte. O confu-
<Hinismo não foi totalmente eclipsado nesse período, preservando
parle de sua influência, mas as condições estruturais não favoreciam
.1 manutenção do predomínio que tivera sob a dinastia Han. Mesmo
■liiando a hegemonia unitária foi reconstruída durante a dinastia
lang, esta continuou apoiando o budismo como culto religioso do
Kl ado. Mas a dinastia Tang enfrentou um poderoso rival islâmico no
<ii id ente. As ligações econômicas com o Ocidente, por meio da Ásia
i .mirai, levaram a dinastia Tang a entrar em confronto militar direto
• (mi a dinastia islâmica Abbassid, que estava em ascensão. A derrota
dos Tang pelos Abácidas em 751 d.C. marcou a mudança em direção
.D) declínio imperialista, à entropia e à desintegração final. A Ásia
( mtral foi uma perda, tanto para a ordem imperialista Tang quanto
l>.u a a cultura budista ou confucionista, incorporando-se a partir de
eniao à esfera islâmica.
A influência do budismo nesse período da história internacio­
nal da Ásia Oriental estendeu-se também à Coréia e ao Japão. Sua in-
i i <»dução na Ásia Oriental, proveniente da índia, estava intimamente
n lacionada aos contratos comerciais relativos às rotas da seda da Ásia
<Vntrai e foi adotado em mais larga escala primeíramente pela classe
mercantil. No entanto, o budismo também servia aos interesses das
rliles do Estado. O budismo predominante, o maaiana, incentivou
■m11 culto de orações para a segurança do Estado, além de enfatizar a
•..il vação individual. Na Coréia, a classe proprietária de terras protegia
.1 Igreja budista. No Japão, o budismo, e não o confucionismo, foi o
I'i incipal agente ideológico no início do processo de centralização do
Klado. O enorme poder econômico da Igreja budista, que acumulou
gi.mdes extensões de terras cultivadas por escravos e arrendatários,
,n abou ameaçando a saúde fiscal do Estado e intensificou as tendên-
*ias entrópicas do sistema. Em meados do século IX, a dinastia Tang
ilerrotou a igreja budista com uma grande desapropriação e dissolu­
ção de mosteiros. Isso ocorreu durante uma fase entrópica de acumu­
laçao e refletiu os danos crescentes à acumulação estatal infligidos
292 ♦ Barry G ills

pelo rateio da receita com a Igreja. O budismo, como doutrina de le


gitimação ideológica com forma religiosa, em lugar de laica, provou
ser indefensável. Os perigos da rivalidade Igreja-Estado, inerentes ao
respaldo em formas religiosas de legitimação ideológica, provável
mente aumentaram o atrativo de uma ideologia secular de legitima
ção e, dessa forma, prepararam o terreno para a restauração confucio-
nista.
O neoconfucionismo, um acordo sintético entre secularismo
e religião, foi o veículo filosófico e ideológico da aristocracia durante
a fase de centralização e consolidação da dinastia Sung. Era muito di­
ferente do confucionismo da dinastia Han e, fortalecido por uma im­
portante reinterpretação das doutrinas antigas, apresentava-se como
uma ultra-ortodoxia fundamentada num entendimento “correto"
das doutrinas clássicas. Essa reificação aparentemente retrógrada drt
autoridade arcaica é um hábito intelectual particularmente arraigado
na civilização da Ásia Oriental. Apesar do extremo conservadorismo
ideológico do período, paradoxalmente a dinastia Sung presidiu umn
fase de dramáticas mudanças econômicas. A acumulação na China
tornou-se cada vez mais oriunda do comércio, a economia foi cada
vez mais monetarizada e a ciência e a tecnologia eram, provavelmen­
te, as mais avançadas do mundo na época. O comércio marítimo dos
Sung era amplo, principalmente nas rotas do Sudeste da Ásia e nos
mares que banham a Coréia e o Japão.
A classe governante mongol que sucedeu a dinastia Sung teve
uma predileção evidente pelo cosmopolitismo e uma preferência pe­
lo budismo tibetano (lamaísta). O cosmopolitismo dos mongóis pro
vavelmente refletia a enorme diversidade das terras que governavam
na Eurásia. A hegemonia mongol do século XIII foi a que chegou
mais perto de uma “hegemonia mundial” na história eurasiana. Os
mongóis empregaram assessores e funcionários vindos de todas as
partes desse território ecumênico para ajudá-los a governar, e a explo­
rar, a China. Incentivaram transações comerciais e atividades mer­
cantis entre todas as partes do império. Mas, como classe governante
estrangeira e bárbara, não tinham legitimidade. Para manter a ordem,
os mongóis também tiveram de contar com a aristocracia chinesa pa­
ra ocupar os níveis inferiores da administração imperial, embora a
A TRANSIÇÃO HEGEMÔNICA NA ÁSIA ORIENTAL ♦ 293

<-xcluíssem de grande parte dos postos-chave dos escalões superiores.


<'t confucionismo também predominou sob a hegemonia bárbara da
dinastia Qing, refletindo mais uma vez a necessidade dos manchus,
i elativamente pouco numerosos, de contar com a aristocracia chine­
sa para a administração local e das províncias.
Portanto, é claro que qualquer concepção monolítica da cha­
mada ordem social “chinesa”, ou mesmo do mundo confucionista,
não tem fundamento. Na Ásia Oriental, como em outros lugares, a
hegemonia foi exercida por grande número de povos, classes, Estados
c impérios que empregaram grande número de ferramentas culturais
o ideológicas. Em seu todo, a ordem mundial alternou entre hegemo­
nia unitária e sistemas de Estados competitivos. O contato com outros
“mundos” é muito antigo na Ásia Oriental e sempre carregou consi­
go potencial de ruptura e reestruturação, além de trazer muitas infor­
mações materiais e culturais positivas. A história moderna da Ásia
Oriental é uma história de reestruturação causada por sua interação
com o Ocidente.

A reestruturação da Ásia Oriental no embate com o Ocidente

No início, a intensificação do contato marítimo com as potên­


cias ocidentais em processo de expansão nos séculos XVI e XVII im­
plicava a acomodação dos “bárbaros” às normas da Ásia Oriental.
Mas, à medida que o poder do Ocidente aumentava e a dinastia Qing
entrava numa fase entrópica, o desafio ocidental mudou de caráter e
tornou-se uma força material superior tentando subordinar o Oriente.
Aprofunda reestruturação da Ásia Oriental em todos os níveis
da vida social acompanhou essa subordinação internacional e a tran­
sição para o capitalismo, lançando toda a ordem social e a economia
no caos. Nenhuma das nações da Ásia Oriental voltou a ser a mesma,
e sua cultura e consciência nacionais jamais se recuperaram inteira­
mente dos tremendos choques desse período. No fim, foi a esmagado­
ra superioridade material das potências ocidentais que definiu a vitó­
ria de suas idéias e de seu sistema econômico.
Enquanto as forças oligárquicas conservadoras bloqueavam a
reforma na China e na Coréia, os governantes dos feudos de Choshu e
294 ♦ Barry G ills

Satsuma tomaram a iniciativa de destruir o xogunato Tokugawa em


nome da restauração do sistema imperial no Japão. Em reação direi a
ao desafio apresentado pelo imperialismo ocidental, a nova classe do­
minante japonesa durante a dinastia Meiji empreendeu uma reestru­
turação radical no plano socioeconômico. Em pouco tempo, os ter­
ritórios feudais foram convertidos num Estado moderno centraliza­
do que adotou a industrialização, o capitalismo e o imperialismo, in­
cluindo a aceitação das formas e práticas da diplomacia internacional
do Ocidente. Sob o regime Meiji, o Japão compreendeu muito me­
lhor a natureza da rivalidade internacional do que as classes gover­
nantes durante o império Qing e a dinastia Yi da Coréia. A reestrutu­
ração material e ideológica do Estado Meiji foi empreendida por
meio da imitação deliberada de seus inimigos, a fim de garantir a so­
brevivência nacional como entidade soberana. A extraordinária capa­
cidade de adaptação da sociedade japonesa às exigências das disputas
econômica e política do final do século XIX e começos do século XX
foi o elemento-chave de seu êxito subseqüente. Essa flexibilidade foi
conquistada por intermédio da desapropriação decisiva da classefeudal
proprietária de terras.
Por sua vez, na China e na Coréia, os obstáculos ideológicos e
estruturais à reforma provaram ser grandes demais para serem supe­
rados pela revolução dos “ilumínistas” imposta de cima. A dinastia
Manchu, invasora na China, e as poderosas famílias proprietárias de
terras na Coréia resistiram à grande reestruturação, encarando-a co­
mo ameaça tanto a seus direitos adquiridos quanto a toda a civiliza­
ção. Essa obstrução pela elite conservadora proprietária de terras foi
influência decisiva, no século seguinte, no desenvolvimento da Ásia
Oriental. Só deixou duas outras possíveis fontes de mudança sistê­
mica: revolução vinda de baixo, ou revolução vinda de fora, isto é, re­
volução camponesa ou intervenção estrangeira. Foi a combinação
dessas duas forças que finalmente destruiu o poder político das classes
governantes confucionistas, arrasou o antigo sistema de classe e
transformou o Estado.
A fase entrópica da Ásia Oriental foi explorada implacavel­
mente pelas potências estrangeiras, que procuravam ampliar seus in­
teresses econômicos e extrair mais-valia da Ásia Oriental a fim de ali-
A TRANSIÇÃO HEGEMÔNICA NA Á s iA ORIENTAL ♦ 295

mcntar seus próprios processos de acumulação. A anexação e o colo­


nialismo foram os meios políticos freqüentemente usados, e o Japão
logo superou seus mentores em seu entusiasmo pelo uso da força, co­
mo se pode ver nos casos de Taiwan, Coréia, Manchúria e da própria
( Tina. O Japão abandonou as normas menos coercitivas da teoria
internacional da Ásia Oriental e passou de Estado relativamente não-
agressivo à condição de Estado hiperagressivo. A partilha e a coloniza­
ção da China provavelmente foram adiadas porque os efeitos estraté­
gicos de uma “disputa” foram considerados provocadores demais,
com implicações estratégicas diretas no sistema de alianças da Euro­
pa. Uma boa analogia é o Império Otomano, o “doente da Europa”,
que não foi partilhado tão cedo quanto poderia ter sido por razões se­
melhantes. Apesar disso, a degradação da China levou a uma revolu­
ção social completa, na qual o confucionismo foi erradicado por sua
condição de ideologia da elite governante, dando lugar a um período
de confusão e de intensas lutas ideológicas. Talvez a melhor forma de
compreender a transição hegemônica seja entender que ela sempre
vem acompanhada de crises ideológicas e culturais.
O Japão, mesmo sendo uma nação da Ásia Oriental, desempe­
nhou papel-chave no solapamento dos padrões ideológicos e sociais
tradicionais da ordem do mundo “confucionista”. O Japão foi o pri­
meiro Estado não-ocidental a exigir e a conseguir um tratado com os
Qing assinado em 1871, no moderno estilo ocidental. Foi a primeira
vez em que os Qing aplicaram normas do direito internacional oci­
dental a um Estado que era da Ásia Oriental e, por isso, constituiu
uma ameaça ao sistema tributário tradicional e à sua ideologia.
A magnitude do desafio do Japão à dinastia Qing estava direta­
mente relacionada à sua transição para o capitalismo industrial, às
suas ambições em relação à nova ordem internacional e ao caráter
predatório do imperialismo daquela era. O capital japonês foi aceito
no clube das potências hegemônicas globais por meio do combate. O
Japão derrotou primeiro a China, em 1894-1895, e depois a Rússia,
em 1904-1905. Durante a Primeira Guerra Mundial, o Japão, em sua
condição de aliado da Inglaterra, apropriou-se de possessões alemãs
na China e no Pacífico, e também de uma parcela do mercado ociden­
tal, e sentou-se à mesa em Versalhes como um dos vitoriosos. A Ingla­
296 ♦ Barry G ills

terra contava com o poder naval dos japoneses no Pacífico para redu ­
zir os custos de se projetar como potência marítima na Ásia Oriental,
ao mesmo tempo em que exercia influência norteadora e limitadora
sobre as ambições econômicas e políticas de seu sócio novato.
Mas a ambição japonesa na Ásia Oriental era um problema
para outras potências hegemônicas. A questão de como organizar a
divisão da China em esferas de influência, sem deixar que essa divisão
alterasse as relações entre as potências hegemônicas, teve monumen­
tal importância nos anos que se seguiram à Primeira Guerra M un­
dial. A política da Porta Aberta, defendida pelos Estados Unidos e
apoiada por várias outras potências, principalmente pela Inglaterra,
foi uma tentativa de manter o equilíbrio entre as potências, permitin­
do-lhes continuar explorando a Ásia Oriental, mas impedindo que
qualquer delas, isoladamente, impusesse privilégios econômicos
monopolistas à custa das outras. Enquanto o Japão submeteu sua
própria expansão econômica e territorial a essas restrições, foi incor­
porado na coalizão hegemônica do sistema global. Dado que as potên­
cias globais dominantes (pós-Segunda Guerra Mundial) eram demo­
cracias - Estados Unidos, Inglaterra e França o Japão experimentou
a democracia na “década liberal” de 1920, durante a qual os partidos
políticos dominaram a sucessão do primeiro-ministro, em contrapo­
sição aos oligarcas, ou elite imperial japonesa. Mas, mesmo durante o
apogeu da democracia Taishô, a legislação repressiva impôs parâme­
tros estritos à atividade política da esquerda e dos sindicatos.
No entanto, a democracia japonesa não sobreviveu às restri­
ções impostas ao país pelo sistema do Tratado de Washington, princi­
palmente na esfera naval, nem à depressão mundial. O Estado japonês
foi usurpado por militaristas favoráveis ao expansionismo agressivo
como solução para a crise econômica e de segurança do Japão. As
repercussões ideológicas e políticas foram enormes. Para os militares
japoneses, assim como para o regime do Kuomintang sob a direção de
Chiang Kai-shek na China, o nazismo e o fascismo eram exemplos de
regimes fortes. As ideologias desses novos contestadores do status quo
eram atraentes para as elites asiáticas conservadoras, anticomunistas
e anti-ocidentais. No Japão, essas idéias fizeram eco ao culto ao impe­
rador e ao mito da singularidade japonesa e de sua superioridade ra-
A TRANSIÇÃO HEGEMÔNICA NA ÁSIA ORIENTAL ♦ 297

ciai. Mas o imperialismo japonês não foi apresentado aos outros asiá-
iicos apenas como um direito divino de governar. Ao contrário, o im­
perialismo japonês foi disfarçado por uma doutrina de liberação e
harmonia racial. O Japão foi apresentado como o salvador da Ásia nu­
ma missão pan-asiática de eliminar os imperialistas estrangeiros e de
t onstruir uma nova ordem de cooperação econômica e racial.
Não seria absurdo sugerir que a Segunda Guerra Mundial co­
meçou na Ásia Oriental e ainda ardia ali em fogo baixo muito tempo
depois que a estabilidade foi restabelecida na Europa. Estavam em jo­
go o futuro modelo dos padrões de acumulação regionais e global, das
coalizões de classe e das ideologias dominantes. Na Ásia, foi essencial-
mente o súbito rompimento do Japão com o status quo da Ásia Orien-
lal que causou a Guerra do Pacífico. Os objetivos de guerra do Japão
('i am ambiciosos: eliminar por completo a presença imperialista oci­
dental na Ásia e reestruturar a economia de toda a região de acordo
com o modelo do colonialismo japonês já existente, privilegiando as­
sim sua acumulação de capital. Em Taiwan, e principalmente na Co­
réia da década de 1930, o grau em que o colonialismo japonês levou
i apitai e tecnologia para o território colonial, desenvolvendo-o in­
dustrialmente, foi excepcional. Mas o Sudeste da Ásia foi conquista­
do principalmente para servir como fonte de recursos naturais a fim
de alimentar o centro industrial japonês.

A Ásia Oriental na economia política-global do pós-guerra

A estrutura do poder global foi alterada pelo êxito do imperia-


lismo japonês e de seu capital. Apesar de vencido na guerra, o Japão
loi reincorporado à nova aliança hegemônica global. Assim como a
Inglaterra acomodara o Japão na aliança de 1902, os Estados Unidos
Iriunfantes também acomodaram o Japão derrotado em 1945. A cen-
u alidade do capital e da indústria do Japão eram indispensáveis para
os propósitos norte-americanos de manter a estabilidade na Ásia e
preservar ao máximo a região para sua participação no capitalismo
global. Para preservar o capitalismo japonês, o Japão exigiu uma peri­
feria asiática, inicialmente mantida com os auspícios políticos norte-
americanos, mas, em última instância, herdada pelo capital japonês.
298 ♦ B arry G ills

O vácuo criado pela súbita destruição do império japonês no verão do


1945 foi tremendamente desestabilizador. A revolução comunista na
China, a divisão da China (em República Popular da China e Repúbli
ca da China), a divisão da Coréia e a posterior Guerra da Coréia, a
divisão do Vietnã e as guerras do Vietnã e da Indochina, todos esse»
processos foram, em certa medida, parte do legado desestabilizador
da dramática “ascensão e queda” do império japonês e da tentativa
dos Estados Unidos de preencherem o vácuo deixado pelo Japão.
Depois da Guerra do Pacífico não houve, na Ásia, um sucessor
hegemônico único do Japão. A Guerra Fria e a influência dos interes­
ses norte-americanos produziram profundas mudanças econômicas
e políticas na região. Os Estados Unidos, aliados à elite conservadora
da Ásia Oriental, desempenharam papel-chave na preservação dos
enclaves do capitalismo na China, na Coréia e na Indochina, e todas
essas três nações foram divididas com a intervenção norte-americana.
O fato de as principais guerras travadas pelos Estados Unidos depois
da Segunda Guerra Mundial terem sido todas na Ásia Oriental é um
indício da grande importância dada pelos Estados Unidos à sua estra­
tégia de hegemonia global para preservar uma esfera econômica capi­
talista nessa região. Dada a grande força do comunismo autóctone da
Ásia Oriental, os norte-americanos enfrentaram grandes dificuldades
para preservarem essa esfera econômica por meios políticos que não
envolvessem o uso da força militar, e isso levou-os a recorrer à guerra.
Outras situações potencialmente revolucionárias, como a das Filipi­
nas e a da Indonésia, foram “contidas” sem que fosse preciso recorrer
a todos os possíveis matizes da intervenção militar norte-americana.
A preservação do capitalismo na Ásia Oriental por meios polí-
tico-militares foi inseparável da acomodação do centro japonês rees­
truturado no núcleo capitalista global. Mas o legado político do mili­
tarismo japonês tornou praticamente impossível para o próprio Japão
assumir ativamente as tarefas político-militares da contra-revolução
na Ásia do pós-guerra. Apesar disso, as vitórias políticas dos Estados
Unidos foram divididas economicamente com o capital japonês em
toda a região.
Na esfera capitalista, a hegemonia funciona por meio de pro­
cessos de acumulação que se interpenetram. Foram feitas alianças de
A transição hegemônica na Á sia O riental ♦ 299

i lasse entre as elites do centro e da periferia para manter a economia


dos países associados aberta ao capital estrangeiro, e para disciplinar a
lorça de trabalho doméstica, aumentando a taxa de lucro por meio da
rsiabilidade autoritária. Mas grande parte da energia do período do
pós-guerra foi absorvida pela monumental tarefa político-militar de
preservar e estabilizar a esfera capitalista na Ásia Oriental. Não foi so­
mente até meados da década de 1960 que o milagre econômico dos
países recém-industrializados começou a diminuir. A guerra na In­
dochina efetivamente impediu qualquer milagre econômico por lá.
( Amo Richard Nixon declarou certa vez, os Estados Unidos tiveram
de destruir o Vietnã para salvá-lo! Apesar disso, o Sudeste capitalista
da Ásia estava bem preparado para aproveitar sua chance de se tornar
.1 região dos novos milagres das décadas de 1980 e 1990.
As elites capitalistas da Coréia do Sul, de Taiwan e do Vietnã do
Sul eram profundamente antidemocráticas; no entanto, estavam su­
postamente comprometidas como o “mundo livre” e com sua luta
pela democracia e pela liberdade individual. As elites desses Estados
capitalistas percebiam-se como parte de uma aliança natural transna-
cional de classe. A ideologia anticomunista que adotaram era eficaz
para a repressão da esquerda doméstica, para o confronto militar com
regimes comunistas rivais e para a dominação da sociedade civil, do
capital e do trabalho nacionais pelo Estado. Nesse sentido, esses regi­
mes são os sucessores diretos do militarismo japonês. Não é mero
acaso que a Coréia e Taiwan, ex-colônias do Japão, tenham surgido
como protótipos dos países recém-industrializados da Ásia Oriental.
() “capitalismo dirigido” do pós-guerra e sua aliança neomercantilis-
la entre Estado e capital foram um legado da experiência militarista
neomercantilista dos japoneses (Johnson, 1982).
A economia política da Ásia Oriental pode e deve ser analisada
como um complexo de desenvolvimento coerente. E isso nos faz ir
além do debate sobre os componentes do modelo nacional, sejam
eles “o Estado de desenvolvimento capitalista” (Johnson, 1982) ou
qualquer outro modelo nacional. Embora seja verdade que vários
países recém-industrializados e o Japão compartilham algumas im­
portantes características internas, a abordagem do modelo de desen­
volvimento nacional tem sido menos capaz de explicar diferenças
300 ♦ Barry G ills

significativas entre eles, ou de captar adequadamente a lógica de do


senvolvimento da região como um todo. A teoria dos ciclos produti
vos explica de forma convincente parte do modelo específico de recv
truturação espacial e temporal da indústria na Ásia Oriental do perío
do do pós-guerra (Cumings, 1987). Quando o centro japonês desisle
de uma camada tecnológica, deixa um espaço estrutural na economia
política regional. E os outros Estados que fazem parte do centro japo­
nês exploram essa oportunidade. O capital do centro, principalmente
o do Japão, é muitas vezes um participante ativo que facilita, quando
não impulsiona, o processo global. Essa dimensão integradora da acu­
mulação interpenetrante tem recebido pouca atenção dos teóricos,
como conseqüência da preocupação com os modelos de desenvolvi­
mento nacional.
A estrutura de camadas da economia política da Ásia Oriental
lembra uma pirâmide de capital intensivo e de (alta) tecnologia. A
existência da soberania, isto é, do sistema de Estados capitalistas, í
uma faceta integrante e necessária à reprodução dessa organização
regional de capital, tecnologia e trabalho (Chase-Dunn, 1989). O nú­
cleo ou centro japonês é a camada mais alta. Só nessa camada a demo­
cracia tem sido o sistema político dominante, embora, claro está, com
uma forma específica que permitiu a um bloco hegemônico de elites
conservadoras exercer o poder estatal em aparente perpetuidade (van
Wolferen, 1989). Abaixo do centro está a camada intermediária ou
semiperiférica, constituída de Estados industrializados como a Co­
réia, Taiwan, Cingapura e Hong Kong. Abaixo dessa, a camada de no-
vos países recém-industrializados que ocupam o nicho das manufa­
turas de trabalho intensivo antes ocupado pela camada intermediária.
Abaixo, estão as zonas da economia política regional que fornecem
matérias-primas básicas e reservas de mão-de-obra.
A pressão competitiva da camada inferior sobre a camada ime­
diatamente superior é muito grande, assim como a competição entre
os Estados que ocupam a mesma camada. Como conseqüência, existe
uma pressão estrutural no sentido do aperfeiçoamento continuado
de cada economia nacional. O rápido crescimento econômico nacio­
nal nesse complexo regional não deve ser compreendido apenas co­
mo uma questão de competitividade nacional mediante políticas in-
A TRANSIÇÃO HEGEMÔNICA NA ÁSIA ORIENTAL ♦ 301

.liisl riais, e sim como um produto estrutural-seqüencial da lógica


global de desenvolvimento do processo de acumulação de capital na
legião como um todo. Essa abordagem pode ajudar a explicar porque
.1 <loréiae o Taiwan foram milagres na década de 1960, a Tailândia e a
Malásia no final da década de 1980 e o Vietnã, nunca. Também nos
ajuda a entender a reincorporação gradual dos Estados comunistas
tia economia política regional a despeito das diferenças ideológicas.
Até mesmo o Vietnã está fazendo um esforço para se abrir para
n capital transnacional, tanto que foi advertido pelo Banco Mundial
para não exagerar, porque poderia prejudicar seus investidores nacio­
nais! Dada a hostilidade incessante do embargo econômico dos Es-
i.ulos Unidos, a lupa do capital transnacional ainda não se focou no
Vietnã, que agora tem a mão-de-obra mais barata da região. Quando
isso acontecer, o Vietnã também pode se tornar, de repente, o milagre
<lr amanhã.
Em relação ao debate geral sobre o desenvolvimento do Tercei-
m Mundo, essa abordagem não implica nenhum modelo asiático-
m iental de desenvolvimento nacional que possa ser imitado com êxi­
to pelos países de outras regiões do Terceiro Mundo. De preferência, o
desenvolvimento de cada uma das partes nacionais no complexo re­
gional deveria ser analisado dentro da seqüência lógica específica
temporal e espacial do todo, ao mesmo tempo em que deve ser consi­
derado extremamente conjuntural e não potencialmente universal.
I*or exemplo, é possível identificar a primeira grande onda de reestru-
t u ração industrial do pós-guerra no complexo da Ásia Oriental du­
rante a primeira metade da década de 1960, quando tanto a Coréia do
Sul quanto Taiwan passaram da substituição de importações para
uma política de exportação. Em geral, essa transição é explicada como
.ílgo que se deveu ao esgotamento do potencial da substituição de im­
portações, ou a uma crise interna de cada um desses Estados. Mas,
ipiando o modelo regional é levado em conta, a evidência sugere que
os Estados Unidos e o Japão usaram sua influência tanto em Taiwan
quanto na Coréia do Sul de modo a aliciar suas elites para um novo
papel na economia política da região. A reestruturação industrial
global que essa influência implicou foi benéfica para todos os partici­
pantes, embora de formas diferentes. O Japão teve ajuda para superar
302 ♦ B arry G ills

a recessão econômica e livrar-se de indústrias menos lucrativas e


mais poluidoras do meio ambiente. Os Estados Unidos conseguiram
dim inuir a assistência econômica à Coréia e a Taiwan e, desse modo,
reduzir os custos de manter seu poder hegemônico na Ásia. A Coréia
e Taiwan conseguiram industrializar-se mais rapidamente por meio
do acesso ao capital, à tecnologia e ao mercado.
Por fim, é importante caracterizar rigorosamente a articulação
da economia política da Ásia Oriental com a economia política glo­
bal. A industrialização da região tem sido assegurada e acelerada pelo
sistema liberal de comércio internacional, do qual é uma das princi­
pais beneficiárias. Os Estados Unidos, em particular, toleraram um
dilúvio de importações de manufaturas da Ásia Oriental durante as
décadas de 1960 e 1970. Esse processo pode ser explicado em parte

..
pelo desejo dos Estados Unidos de facilitar a rápida industrialização e
a acumulação de capital na Ásia Oriental a fim de fortalecer e “estabi­
lizar” o capitalismo na região. Mas, na década de 1980, os excedentes
colossais do comércio do Japão e dos Quatro Tigres constituíram uma
carga insuportável para a economia norte-americana. Por isso, os Es­

• m r A t r r r n it n •
tados Unidos aumentaram a pressão política bilateral sobre os gover­
nos da Ásia Oriental para solucionar o desequilíbrio e reduzir seus
excedentes comerciais. Todo o complexo da Ásia Oriental foi molda­
do pelo neomercantilismo. Se as exportações da Ásia Oriental para
outras regiões foram significativamente reduzidas pelos acordos co­
merciais protecionistas ou negociados fora do Acordo Geral sobre Ta­
,

rifas e Comércio (Gatt), é lógico esperar que toda a economia política


da região passe por uma crise e, provavelmente, por uma profunda
reestruturação política e econômica.

A superacumulação japonesa
,

Dados econômicos sugerem que, durante a década de 1980, o


capital japonês alcançou uma posição de superacumulador no sis­
tema mundial. Antes de discutir o que isso pode ou não significar em
relação ao problema da hegemonia na economia política global, vou
resumir parte desses dados.
A TRANSIÇÃO HEGEMÔNICA NA ÁSIA ORIENTAL ♦ 303

O superávit do Japão aumentou de US$ 4,7 bilhões em 1981


para US$ 35 bilhões em 1984 e para US$ 79,6 bilhões em 1988. Na dé­
cada de 1980, o Japão exportou maciçamente capital. Por exemplo,
segundo o Banco do Japão, o déficit de sua conta de capital de longo
prazo foi de apenas US$ 9,6 bilhões em 1981, chegou a US$ 49,6 bi­
lhões em 1984 e a US$ 130,9 bilhões em 1988. Em 1985, o Japão tor­
nou-se o maior credor líquido do mundo, sendo o país que dispunha
da maior quantidade de ativos líquidos no exterior em todo o planeta,
lun 1988, essa quantidade situava-se pouco abaixo de US$ 300 bilhões.
O investimento japonês direto no exterior aumentou de US$
10,8 bilhões em 1980 para US$ 149,8 bilhões em 1988. O investimen­
to em ações no exterior feito por instituições financeiras japonesas
aumentou de minguados US$ 4 bilhões em 1982 para US$ 102 bi­
lhões em 1986. Calculado pelo total de ativos econômicos, o valor to­
tal da economia japonesa agora é maior do que o de qualquer outro
listado (isto é, o Japão é o “número um”, e não os Estados Unidos).
O Japão também se destaca por uma proporção elevada de ati­
vos financeiros pessoais em relação ao PIB total, os quais, em 1987,
representaram 203% do PIB. O PIB total do Japão passou de 15 tri­
lhões de ienes em 1960 para 73 trilhões de ienes em 1970, e os ativos
financeiros pessoais (não considerando os ativos das empresas)
cresceram na mesma velocidade e no mesmo patamar. Essa tendência
de crescimento dos ativos financeiros pessoais se acelerou na década
de 1970, quando o Japão foi mais bem-sucedido do que seus concor­
rentes em realizar ajuste estrutural para enfrentar a crise do petróleo.
O PIB nominal chegou a 366 trilhões de ienes em 1988. Esse cresci­
mento e a regulamentação financeira, que incentivou o aumento no
índice de poupança interna, passaram a ser a principal base da posição
financeira privilegiada do Japão no sistema mundial no fmal da déca­
da de 1980. As instituições financeiras japonesas encontravam-se de
posse de enormes somas em capital excedente para investir na econo­
mia interna e internacional. Em 1988, o total das contas de todos os
bancos chegou a 366 trilhões de ienes. Quando a esse total foram
acrescentados os recursos de outras grandes instituições financeiras -
como seguradoras e fundos de investimento -, a cifra alcançou, em
304 ♦ B arry G ills

1988,526 trilhões de ienes, segundo o Banco do Japão. Consideradas


isoladamente, as companhias de seguro japonesas têm ativos norte-
americanos no valor de US$ 150 bilhões. Os bancos japoneses finan­
ciaram cerca de 40% das compras alavancadas de ações em meados da
década de 1980, no auge da mania de fusões e apropriação do controle
de empresas.
A renda derivada de investimentos dos Estados Unidos no ex­
terior tendeu a declinar em relação àquela derivada dos investimen­
tos japoneses. Nesse sentido, o capital japonês, fortalecido pelo au­
mento no nível de investimentos diretos no exterior, muitas vezes su­
perior aos 100%, investimentos que antes representavam apenas pe­
quena parcela do total de ativos estrangeiros, segue uma trajetória
oposta à dos Estados Unidos. Portanto, o capital japonês está explo­
rando cada vez mais o trabalho estrangeiro e montando manufaturas
no exterior, expandindo assim o poder estrutural japonês no processo
de produção global. Isso se tornou mais urgente com a integração
econômica iminente da Comunidade Européia (CE) em 1992, e pela
entrada em vigor do Trade Act (Tratado de Comércio) dos Estados
Unidos em 1988, que legitima mecanismos formais de retaliação
contra sócios comerciais “desleais”. O investimento estrangeiro dire­
to tem o benefício político extra de reduzir o nível de exportações do
Japão propriamente dito e, desse modo, diminuir atritos comerciais
com os concorrentes, reduzindo o excedente comercial visível do país.
Por exemplo, em meados de 1991, o Japão e a CE acordaram novos
termos para a condução do comércio no setor automobilístico. O
Japão concordou em restringir as exportações por mais alguns anos,
permitindo assim que a indústria automobilística européia pudesse
respirar e ajustar-se à competição mais intensa, mas o investimento
direto japonês na indústria automobilística dos países da CE deve au­
mentar.
O excedente de liquidez dos japoneses em seu país gerou as
menores taxas de juros médios nacionais do mundo, o que constitui
um incentivo para a saída do capital japonês, na busca por taxas de ju­
ros mais elevadas no exterior. Os anteriores superacumuladores do
sistema mundial também tiveram taxas de juros internas muito
A TRANSIÇÃO HEGEMÔNICA NA ÁSIA ORIENTAL ♦ 305

faixas: a Inglaterra até a Primeira Guerra Mundial e os Estados Uni-


ilos até meados da década de 1970.
No Acordo de Píaza, de setembro de 1985, o Japão concordou
<m cooperar com a baixa do dólar. O relatório Maekawa sobre o ajuste
estrutural do Japão, de abril de 1986, recomendava reformas na eco­
nomia japonesa destinadas a preservar seu vigor e, ao mesmo tempo,
diminuir a tensão entre os parceiros comerciais. Contudo, durante
iodo esse período, o capital japonês continuava se “internacionali­
zando” e expandindo seu papel no capitalismo global. Quando o
Bank for Internacional Settlements (Banco de Compensações Inter­
nacionais) instituiu novas regulamentações para a adequação do ca­
pital em dezembro de 1987, o Japão saiu fortalecido mais uma vez. A
reforma, como a pressão sobre o primeiro-ministro Nakasone Yasu-
Itiro para dar início ao processo Maekawa, pretendia originalmente
reduzir o poder estrutural em expansão das finanças japonesas. Teve
efeito contrário. As medidas decididas para forçar a valorização do
iene pretendiam sobrecarregar os mais ricos, mas também tiveram
resultados opostos. O Trade Act de 1988 dos Estados Unidos suposta­
mente foi outra medida defensiva que teve o efeito imprevisto de ace­
lerar o investimento japonês direto na indústria global transferindo,
.issim, uma parte ainda maior do controle do processo de produção
global para o capital japonês.

Reflexões sobre o Japão e a hegemonia global num mundo tripolar

A questão-chave é como a superacumulação pode ser transfor­


mada em mais poder político, ideológico, militar e cultural na econo­
mia política global. Ao longo de todo este ensaio, argumentei que a
liegemonia raramente, ou nunca, é monolítica ou unidimensional.
Embora haja uma sucessão de superacumuladores na economia
mundial, a sucessão específica de um único Estado hegemônico é
menos fácil de demonstrar. A hegemonia global pode ser melhor
compreendida se considerarmos que ela sempre é dividida entre vá­
rias potências hegemônicas e suas classes governantes. Antes da
Guerra do Pacífico, o Japão já estava incorporado a uma coalizão
306 ♦ B arry G ills

hegemônica transnacional Depois que o Japão se desligou do reba­


nho e tentou expandir unilateralmente seu império na Ásia à custa
de seus antigos aliados, acabou sendo trazido de volta para o rebanho
como um sócio hegemônico necessário e desejável. Sozinho, o tran-
satlantismo não seria suficiente para o exercício efetivo da hegemo­
nia global no mundo de hoje. Por conseguinte, o Japão foi incorpo­
rado a um trilateralismo institucionalizado das três zonas centrais da
economia mundial capitalista. Desde o colapso da União Soviética,
ficou muito claro que o G3 (atuando por meio do G7) está tentando
“governar o m undo” em nome do núcleo do capital central.
Saber se a hegemonia norte-americana está em declínio ou se
o Japão pode ser seu sucessor leva-nos a uma direção errada. Como
até mesmo no auge do poder norte-americano a hegemonia global jâ
estava extensamente dividida, não há motivos para esperar que uma
única potência hegemônica suceda os Estados Unidos, que passam
por relativo declínio. Mas temos todos os motivos para esperar que a
institucionalização da hegemonia global, empreendida com tanta efi­
ciência sob os auspícios norte-americanos, continue e provavelmen­
te chegue até mesmo a se fortalecer. O Japão é agora a potência econô­
mica mais importante em vários aspectos. Mas isso não significa ne­
cessariamente que vai tentar questionar diretamente as instituições
trilaterais da hegemonia global que foram tão úteis para a sua ascen­
são no passado. Ao contrário, o Estado e o capital japoneses provavel­
mente desejarão continuar cooperando ao máximo com essa estrutu­
ra no futuro próximo. A curto prazo, isso quer dizer que apoiarão
prudentemente a continuidade da liderança militar norte-americana
no sistema de segurança global e ao menos fingirão estar tomando
providências para moderar suas tendências neomercantilistas. Não é
preciso dizer que é o poder estrutural subjacente do capital japonês
que continuará facilitando o aumento sistemático da influência ja­
ponesa em todas as instituições-líderes da economia política global.
O sol nascente do Japão tem seguido a trajetória de participar
cada vez mais da hegemonia global, desde que começou sua transição
para a modernidade no fim do século XIX. O interesse do primeiro-
ministro Takeshita em acordos para a pretensa “divisão do poder”
com os Estados Unidos não era um novo e dramático ponto de parti­
A TRANSIÇÃO HEGEMÔNICA NA ÁSIA ORIENTAL ♦ 307

da, mas sim a continuidade de uma tendência secular. A humilhação


<lo presidente Bush na quadra de tênis e na sala de jantar, onde des­
maiou depois de vomitar durante uma visita ao Japão no começo de
! 992, é significativa. Naquele dia, Bush perdeu muito mais do que o
seu jantar. De uma forma bastante concreta, os termos da relação no
seio da coalizão hegemônica global mudaram, e a incapacidade m o­
mentânea do presidente Bush foi um reconhecimento simbólico des­
sa mudança. Ele foi ao Japão com capitães de indústria norte-ameri­
canos em dificuldades para pedir ajuda. O primeiro-ministro Miya-
zawa só podia lhes oferecer um aumento de importações de autopeças
automobilísticas, o que, na verdade, reforça o papel dos Estados Uni­
dos de “subempreiteiro do Japão”. Até mesmo essa promessa teve de
ser revista alguns dias depois, quando os ministros terminaram o es-
ludo de suas implicações. Como resultado dessa visita, e enquanto a
recessão atingia ainda mais gravemente os centros nervosos da indús-
l ria norte-americana, os políticos dos Estados Unidos responderam
i <>m um novo debate sobre “o que fazer com o Japão”, incluindo na
discussão a proposta de uma política industrial nacional indepen­
dente do orçamento do Pentágono.
Seja como for, persiste o fato de que o Japão está inextricavel-
mente ligado aos outros dois blocos centrais, numa hegemonia global
i ompartilhada. Como eu disse no começo deste ensaio, a ordem
mundial contemporânea é caracterizada por duas correntes contrá-
i ias de mudança estrutural: globalização e regionalização. Enquanto
a globalização tornou óbvia a necessidade de competição militar en-
Ire as três zonas centrais e aumentou seus interesses comuns de segu­
rança em relação ao Terceiro Mundo, a regionalização aumentou a
icnsão na ordem comercial internacional e liberal de nossos dias,
além de ter estimulado a competição entre os centros em termos eco­
nômicos e sociopolíticos. Como o poder real do Japão tornou-se
maior, os termos da relação trilateral mudaram. No futuro, o Japão
com certeza se afirmará cada vez mais nas instituições de hegemonia,
r sua voz será ouvida. A questão da “diferença” do Japão, ou seja, seu
neomercantilismo e maior competitividade, continuará dominando
a pauta dessa relação, junto com a consciência por parte dos outros
dois centros de que o Japão continuará aumentando sua grande in-
308 ♦ B a r r y G i l i .s

fluência. A era da supremacia das raças brancas da Europa e da Amé­


rica acabou. O Japão não é mais um sócio secundário, nem a raça
asiática é mais uma raça de “cidadãos de segunda classe”. Essa podo
ser a mudança mais profunda de todas.
INTERNACIONALIZAÇÃO E DEMOCRATIZAÇÃO:
EUROPA MERIDIONAL, AMÉRICA LATINA
E A CRISE ECONÔMICA MUNDIAL
O tto H olm an

Introdução

Neste momento particular do tempo m undial,1somos teste­


munhas de algumas mudanças profundas nas estruturas do Estado e
ila ordem mundial, em parte decorrentes da crise econômica que as­
sola o planeta há duas décadas, em parte decorrentes da crise do siste­
ma bipolar da política de superpotências, e que resultou na extinção
desse sistema. O fim do domínio soviético e da hegemonia norte-
americana coincidiu com um renascimento sem precedentes dos va­
lores liberais, tanto na economia quanto na política. Esse surto de li­
beralismo é, ao mesmo tempo, resultado e causa da mudança nas es-
iruturas de classe, no Estado e na ordem mundial.
Há duas manifestações óbvias desse processo de liberalização:
.1 primeira, o surgimento da política neoliberal, inicialmente no Chi­
le depois do golpe militar de 1973, e realçada nas políticas do presi­
dente Reagan e da primeira-ministra Thatcher na década de 1980; a
segunda, a passagem do autoritarismo para a democracia política for­
mal num grande número de países em desenvolvimento, particular­
mente na Europa Meridional nos anos 1970 e na América Latina nos
.mos 1980. Ambos os fenômenos são concomitantes à crise econômi-
<a mundial das décadas de 1970 e 1980.
Ao comparar os diferentes processos de democratização na Es­
panha, em Portugal e na Grécia, de meados da década de 1970, e em
vários países latino-americanos no período seguinte, algumas ques-
loes nos vêm à mente. Em primeiro lugar, em que medida as transi-

' l’or “tempo m undial” quero dizer, de acordo com Anthony Giddens, “que
uma seqüência aparentemente similar de eventos, ou dc processos sociais for-
malmcnte similares, pode ter implicações ou conseqücncias bem diferentes
om distintas fases do desenvolvimento m undial” (Giddens, 1981, p. 167).
310 ♦ O tto H olman

ções para a democracia estão inter-relacionadas nos três países dit Ihl
ropa Meridional e podem ser explicadas pela mesma ótica, tanto v|||
termos de momento histórico quanto de conteúdo? Em segundo In
gar, em que medida as transições em países como a Argentina, o HtiU»l|
e o Uruguai estão inter-relacionadas e podem ser comparadas ãqudrfi
da Europa Meridional? Em terceiro lugar, por que a democracia poli
tica enraizou-se firmemente e consolidou-se na Espanha, em Poliu
gal e na Grécia, e continuou extremamente instável e vulnerável ml
Cone Sul do hemisfério ocidental? Em quarto lugar, o que expliui ti
paradoxo de que dois países com tantas características em comiiltt
(Espanha e Brasil) apresentem formas tão diferentes de desenvolví
mento político e de incorporação ao mercado mundial? Antes de pna
sar às respostas a essas perguntas, vamos examinar as tentativas de ea
plicar características e processos semelhantes na Europa Meridiomil
e na América Latina. Os principais trabalhos sobre esse tema ou nilo
oferecem explicações ou, quando oferecem, essas são unilaterais. Na
verdade, só uma abordagem que transcenda o problema implícilo otl
explícito do plano da análise, bem como da questão sempre presenie
da determinação externa versus determinação interna, pode nos íul
ciar no entendimento dos processos de ambas as regiões. As diferenle*
posições da Europa Meridional e da América Latina no sistema do
fordismo atlântico ou internacional do pós-guerra constituem meu
ponto de referência básico, sendo o processo de integração europeu o
elemento decisivo nos caminhos divergentes por meio dos quais n
Brasil e a Espanha foram incorporados ao sistema político e econúmi
co global no período em questão.

Transições para a democracia e crise global: algumas teorias

Podemos dividir o conjunto da produção sobre a Europa Mcri


dional e a América Latina em três grupos, esquematizando uma di.s
tinção entre as seguintes abordagens: 1) da “política comparativa” pa
ra a transição democrática; 2) da escola francesa da regulação, prim i
palmente a obra de Alain Lipietz; e 3) do sistema mundial, caraclcri
zada por sua ruptura radical com as duas primeiras interpretações,
que estão centradas no Estado. Esta terceira abordagem enfatiza um
I nternacionalização e democratização ♦ 311

nu»<Ido de equilíbrio no qual as unidades básicas de análise são geo-


gi .dicas: zonas centrais, semiperiféricas e periféricas da economia
mundial. Vamos resumir sucintamente e criticar cada uma destas
il-iudagens e, depois, apresentar uma perspectiva mais integrada da
.. miomia política, a fim de analisar a dinâmica geral da mudança e
i <usos específicos da Espanha e do Brasil.

Comparação entre os esforços nacionais de modernização

O conjunto mais importante da produção comparativista so-


Iu r regimes autoritários e transição democrática na Europa Meridio-
u.il e na América Latina tem algumas características em comum:
1) países individuais são analisados de uma perspectiva com-
Iui aí iva na tentativa de chegar a uma forma “universal” de democra-
ti/.ição, enfatizando-se mais as semelhanças do que as diferenças en-
II c- esses países;
2) faz-se abstração das estruturas econômicas e sociais internas
ir das mudanças nessas estruturas) de um lado, e, do outro, das estru-
luras e processos globais;
3) a atenção concentra-se principalmente em mudanças nos
icgimes políticos e nas formas de mediação dos interesses, resultando
na primazia dos indicadores políticos e institucionais sobre os indica­
dores sociais e econômicos;
4) e, por fim, a democracia política é considerada um objetivo
rm si mesmo, e complemento do capitalismo como sistema econô­
mico.
Essas características dão alguns indícios da insuficiência da
abordagem política comparativa. Do ponto de vista da “economia po­
lidica global”, nossa crítica se concentra, em primeiro lugar, no enfo­
que da análise, que tem como premissa uma perspectiva centrada no
listado. Em segundo lugar, a teoria econômica é reduzida, na maioria
dos casos, aos ritmos nacionais de desenvolvimento e de moderni­
zação, redundando numa conexão causai abstrata com processos de
democratização política.
Em terceiro lugar, e o argumento mais importante, a aborda­
gem comparativa não explica padrões comuns de desenvolvimento
312 ♦ O tto H olman

político, apesar de se inspirar em semelhanças extraordinárias. Por


exemplo: Espanha, Portugal e Grécia passaram por processos somo
lhantes de desenvolvimento econômico e sociopolítico depois da St*
gunda Guerra Mundial: liberalização econômica no final da décadii
de 1950 e início dos anos 1960; internacionalização e acelerado tlt*
senvolvimento econômico subseqüentes, na década de 1960, com n
surgimento das chamadas novas classes médias; fim das ditaduras em
1974-1975; ascensão de partidos socialdemocratas ao poder; e entrada
no Mercado Comum Europeu. Uma comparação análoga pode ser
feita em relação à América Latina. Mas por que a democratização int
Espanha, em Portugal e na Grécia se deu na mesma época? E quanto
à transição para a democracia na Argentina em 1983, no Uruguai em
1984 e (mesmo que com relutância) no Brasil, com a eleição indiretrt
de Tancredo Neves em 1985? E, de novo, por que a democracia se
consolidou na Europa Meridional ao passo que a experiência tia
América Latina está longe da estabilidade? A abordagem político
comparativa não oferece uma base para que se responda a essas per
guntas. As explicações fundamentaram-se no pressuposto de que é
possível discernir um “modelo mediterrâneo” de democracia, ou em
uma correlação entre padrões majoritários e consensuais de demo
cracia e tamanho da população, e seu vínculo com o grau de plural is
mo em sociedades nacionais (ver Pridham, 1984, p, 26; e Lijphart el
ah, 1988, p. 24). Essa debilidade de oferecer explicações amplas t*
coerentes é uma característica desse tipo de abordagem.

Dependência interestados e a globalização da crise do forãismo

Sendo uma das principais personalidades da escola francesa da


regulação, Lipietz consolidou sua reputação mediante a tentativa tlt*
combinar uma análise do regime de acumulação fordista com a mu
dança no padrão da divisão internacional do trabalho nos anos 1970
e começos dos anos 1980. Para Lipietz, o fordismo está vinculado
essencialmente às formações socioeconômicas das antigas áreas in
dustriais dos países centrais, onde foi introduzido para regulamentar
a relação de longa data entre trabalho assalariado e capital. Ao falar da
expansão subseqüente do fordismo para países do “Sul”, Lipietz argu
I nternacionalização e democratização ♦ 313

menta que o problema desses países é “a criação ou o estabelecimento


da relação do salário” e não o ajuste dessa relação. Por isso, a crise do
lordismo nos países centrais, e a subseqüente transferência dos pro-
<essos de produção para a “periferia interna” (os chamados países de
industrialização recente), não inclui, nem pode incluir, a transferên-
<ia do regime de acumulação fordista. Em lugar da expansão global
do fordismo, deve-se falar da expansão da crise do fordismo (Lipietz,
I'>82). Em outras palavras, o contexto geral de referência das relações
<cntro-periferia necessariamente impede os países periféricos de
adotar estruturas semelhantes àquelas dos países do centro. Como o
lordismo se originou no centro metropolitano, e posteriormente foi
importado (ou “internalizado”) por algumas regiões da periferia,
uma cópia medíocre do regime o riginal-o “fordismo periférico” - é
.eu resultado inevitável.
Lipietz nos adverte contra o uso de fórmulas que se aplicam à
‘antiga divisão do trabalho”, no sentido de inferir, da desacreditada
dicotomia centro-periferia, as formações sociais específicas. Na ver­
dade, ele defende a “primazia das causas internas”: a unidade básica
de análise, para ele, é a formação socioeconômica nacional, que deve
■.er estudada em si mesma, em vez de no contexto de um sistema
mundial único de “regime mundial de acumulação”. No melhor dos
(.tsos, pode-se falar de uma “configuração mundial” de regimes na-
<ionais de acumulação. Apesar disso, Lipietz acrescenta que, “se dese-
j.unos entender o que está acontecendo 'na periferia, temos de co­
meçar examinando o que está acontecendo no mundo capitalista
Avançado” (1987, p. 29-30). Portanto, embora enfatize a primazia dos
!a(ores internos, também presta atenção às relações centro-periferia
no interior da “nova divisão internacional do trabalho”. Essas rela­
ções “não são relações diretas entre Estados ou territórios que fazem
1 tarte de um único processo. São relações entre processos, entre proces-
■,os de luta social e entre regimes de acumulação que são, em maior
ou menor grau, introvertidos ou extrovertidos” (idem, p. 25).
Aqui nos deparamos com o velho dilema entre determinação
■'interna” e “externa”. “Como nossa análise teórica pode reconhecer
,i primazia do processo produtivo ‘interno’ das colônias e, mesmo as­
sim, conciliá-lo ou combiná-lo com a troca ‘externa’, que também é
314 ♦ O tto H olman

determinante, e com outras relações de dependência em relaçàn


metrópole capitalista?” (Frank, 1979, p. 2-3). Esse problema da detn
minação ou primazia do modo de produção e acumulação “interno",
de um lado, e as relações comerciais “externas” e os fluxos de capital,
de outro, aparece claramente na obra de Lipietz. Embora ele paivçrt
estar bastante ciente da afirmação de Mao de “que as causas externa*
são a condição da mudança, e as causas internas são a base da mudan
ça, e que as causas externas se tornam operantes por meio das causa»
internas” (Mao Tse-tung, 1977, p. 28), parece também que ele apllu
esse princípio mais às formações socioeconômicas nacionais do cen
tro, e muito menos às da periferia. Nos países centrais, as estrutura»
internas de classe, assim como os regimes de acumulação, subor<II
nam as condições externas; inversamente, nos Estados em que o lór
dismo periférico foi introduzido, as estruturas internas estão subor
dinadas às “relações entre processos” globais. Nesses Estados, as attl
sas externas - isto é, a crise do fordismo no centro e a subseqüentc in
ternacionalização da produção - são as bases da mudança, e a luta sn
ciai interna condiciona o êxito ou o fracasso de sua implantação.
É possível identificar vários pontos discutíveis nessa tese. Em
primeiro lugar, é questionável, em Lipietz, a distinção analítica impll
cita entre produção e acumulação restrita às formações socioeconô
micas nacionais e às relações comerciais internacionais. Lipietz nrto
nega a internacionalização do capital produtivo. Diz, no entanto, qiit1
“mesmo que os interesses econômicos e as pressões ideológica*
transnacionais ignorem de fato as fronteiras, é preciso lembrar que a
forma pela qual essas pressões e interesses são integrados ainda é a
forma estatal” (1987, p. 22). Contrapondo-me a essa visão, enfatizo,
neste artigo, o impacto de processos diferentes de transnacionalizaç;lo
sobre o desenvolvimento das relações atlânticas. Na verdade, é a anâlí
se dos processos concretos ocorridos depois da Segunda Guerra Mim
dial, entre os quais a transnacionalização da produção é seguramenlr
um dos mais importantes, que nos permite transcender os problema*
teóricos e metodológicos da argumentação de Lipietz. Como afirma
Robert Cox, referindo-se ao componente econômico do que ele cha­
ma de ordem mundial hegemônica da pax americana, “uma econo
mia mundial de produção internacional se originou do interior clti
Internacionalização e democratização ♦ 315

economia internacional analisada pela teoria m ercantil clássica


existente”.2
Esse ponto discutível está relacionado com outro problema: a
-inálise que Lipietz faz do Estado é paupérrima, reduzindo seu papel à
u-gulamentação dos processos nacionais de acumulação. Embora
r.so sirva para ilustrar a diferença entre a teoria da regulação e a pro­
dução sobre as transições para a democracia (isto é, a primazia dos
" regimes de acumulação” versus a primazia dos regimes e instituições
políticas), não consegue ocultar o fato de que ambas as abordagens
i onsideram o Estado o elemento básico, ou o único, das relações in-
(ernacionais. É surpreendente que essa visão se mantenha com tama­
nha tenacidade em épocas de transnacionalização (da produção, mas
i.imbém da sociedade civil, de certas funções estatais, de estruturas
ideológicas) e de “internacionalização da política nacional”.
Em terceiro lugar, a análise que Lipietz faz da luta social e do
icgime de acumulação num determinado Estado periférico está “in-
11 ustada” em sua análise sobre as relações entre processos, ou seja, a
cslrutura imperialista. Uma conseqüência importante desse tipo de
,inálise, como afirmou Giovanni Arrighi, é que favorece a generaliza-
t, ao “e, por isso, desencoraja a análise concreta de situações concretas,
que é essência do marxismo”.3A abordagem de Lipietz leva-o a aplicar
equivocadamente o conceito de fordismo periférico a situações reais
na Espanha, em Portugal e na Grécia, de um lado, e no Brasil, na Ar­
gentina e no México, de outro. Esse problema é ilustrado no seguinte
irecho:
Hipótese: as mesmas causas econômicas (a maturação
do fordismo periférico) tiveram os mesmos efeitos nos
primeiros países de industrialização recente (Europa Meri-

' Ver Cox, 1987, p. 244 e seg. “Enquanto o modelo da economia internacional
se concentra no comércio”, continua Cox, “o modelo da economia mundial
concentra-se na produção”. No próximo item, vamos ver que aquilo que Cox
chama de “economia mundial” restringiu-se, na era da pax americana, à área
tio Atlântico.
' Trecho retirado de um comunicado pessoal de Arrighi, no qual ele comenta
a obra inicial de Frank (citado em Frank, 1979, p. 6-7).
316 ♦ O tto H olman

dional) e, dez anos depois, nos “países de industrialização


recente dos anos 1970”. (Lipietz, 1987, p. 114)

Países intermediários e o conceito de semiperiferia

A hipótese de Lipietz representa uma transição para o terceiro


bloco da produção comparativista sobre a Europa Meridional o a
América Latina. Embora fique evidente o caráter heterogêneo do gru
po dos chamados países de industrialização recente quando examina
mos os detalhes de sua composição, o próprio surgimento desse grupo
nas décadas de 1960 e 1970 alterou de forma substancial as discussôc»
da teoria do desenvolvimento, levando até mesmo à criação de um no
vo conceito, o de semiperiferia, introduzido por Immanuel WaUersleill,
Esse novo conceito é usado de duas formas: em primeiro lugar, como
um conceito bastante vago, cujo objetivo é distinguir determinado
grupo de países - os extremamente desenvolvidos e os menos desen
volvidos - , e que se faz acompanhar com freqüência da afirmação cx
plícita de que o uso dessa categoria não sugere nenhuma concordân
cia com as opiniões de Frank e Wallerstein sobre a economia mundial
capitalista (ver, por exemplo, Mouzelis, 1986). Em segundo lugar,
essa categoria é usada como um conceito associado à teoria do sislc
ma mundial, um construto teórico do qual vamos tratar.
A teoria do sistema mundial rompeu radicalmente com a idéia
de que o sistema internacional pode ser explicado exclusivamenU’
pelo enfoque nos Estados individuais. Procura interpretar, por exem
pio, ações de Estados individuais como resultado de suas atividade*
dentro de uma estrutura global chamada sistema mundial. Pela pri
meira vez na história das ciências sociais, uma escola de pensamenlo
relativamente homogênea (com suas próprias instituições, publica
ções e congressos, e organizada em torno de uma rede internacional
de cientistas sociais) conseguiu dar nova direção ao debate sobre rela
ções internacionais, introduzindo esse “terceiro nível” de análise, o
sistema mundial. Contudo, ao dar muita ênfase à importância das es
truturas globais, a abordagem fica vulnerável a acusações de reifícaçâu
e determinismo. Uma parte da crítica a esse tipo de abordagem sc
concentra, por um lado, no determinismo econômico e na subordina
Internacionalização e democratização ♦ 317

ção funcional das estruturas políticas à estrutura econômica global,


e, por outro, na caracterização do sistema mundial de Estados como
uma série exclusiva de processos políticos singulares com dinâmica
histórica própria. Outra parte da crítica questiona a definição de capi-
lalismo do sistema mundial, o qual é compreendido como uma rede
de relações comerciais que determina o destino das nações, por sua
localização estrutural seja no centro, na semiperiferia ou na periferia.
Em vez da maximização dos lucros por meio da produção para um
mercado de massa, os críticos dessa abordagem observam que a
característica mais importante do capitalismo se encontra nas rela­
ções sociais de produção e na formação de classe, ambas tanto no âm-
híto nacional quanto internacional.
Os princípios fundamentais da teoria do sistema mundial se
refletem no conceito de semiperiferia. Um dos principais objetivos de
um projeto de pesquisa conjunta realizada por teóricos do sistema
mundial era investigar os motivos da “convergência” de Espanha,
Portugal, Grécia, Itália e Turquia “para regimes autoritários e políticas
neomercantilistas [...] no decorrer da crise político-econômica m un­
dial da década de 1930”, e de sua convergência “para regimes parla­
mentares e políticas neoliberais [...] durante a crise político-econô­
mica mundial da década de 1970” (apud Arrighi, 1985, p. 12). Ao ex­
plicar por que em diferentes momentos ocorreram convergências
distintas, o impacto de ambas as crises mundiais foi analisado e
comparado, a fim de se detectar “um tipo abrangente dc desenvolvi­
mento político-econômico na Europa Meridional”. Em sua intro­
dução ao primeiro estudo, Giovanni Arrighi observa que o debate do
grupo girou em torno da proposição de que esse tipo sul-europeu de
“convergência e transição pode ser identificado na crescente inte­
gração da região na economia mundial como zona semiperiférica”
(Arrighi, 1985, p. 14). Em outras palavras, os processos de desenvol­
vimento sociopolítico da semiperiferia em geral, e, mais especifica-
mente, a transição para a democracia parlamentar e a convergência
para políticas neoliberais nos países do Europa Meridional, são resul­
tado das posições que esses países assumem na divisão internacional
e econômica do trabalho, isto é, na rede global de relações comerciais.
318 ♦ O tto H olman

Essa explicação um tanto mecanicista não teve grande au’i


tação dos demais participantes no grupo de pesquisa. Em primeiro
lugar, estudos empíricos sobre países individuais mostraram diferen
ças fundamentais que, traduzidas em consequências teóricas, inipll
caram a erosão final do conceito de semiperiferia. Em segundo lugar,
essa discrepância entre empirismo e teoria é o resultado da imprccl
são da definição inicial, segundo a qual um Estado semiperiférico <*
caracterizado por “uma mistura completa de atividades centro-pcrl
feria” (Wallerstein, 1985, p. 35). Isso pressupõe que não existam atl
vidades semiperiféricas propriamente ditas, o que torna o valor com
parativo dessa categoria extremamente questionável, isto é, a nature
za quantitativa da definição impossibilita uma comparação qualitaf i
va entre países individuais. Christopher Chase-Dunn, eminente leó
rico do sistema mundial, procura resolver esse problema num estudo
recente. Ele distingue dois tipos analíticos de semiperiferia: um, de
acordo com Wallerstein, abrangendo a “mistura equilibrada de alivi
dades do centro e da periferia” nos Estados; o outro, abrangendo “a
quelas áreas ou Estados onde predominam atividades que estão em
níveis intermediários no que diz respeito à distribuição atual da pm
dução de capital intensivo/trabalho intensivo no sistema mundial"
(Chase-Dunn, 1989, p. 212). Embora a natureza exata dessas a tivida
des intermediárias ainda não tenha sido bem definida, seu estudo pa
rece indicar que ele tem em mente o que Lipietz chamaria de ativi
dades periféricas fordistas.

Rumo a uma abordagem integrada

Agora vamos procurar ir além das abordagens criticadas acima


para desenvolver uma perspectiva da economia política global à ma­
neira de Cox (1987). Esse procedimento é necessário para evitar ex
plicações a-históricas, deterministas e idealistas, e também para situar
as transformações da Europa Meridional e da América Latina no con­
texto do “tempo mundial” (ver nota 1). Ao conceituar dessa maneira
uma economia política global, podemos escapar das armadilhas do
problema chamado “níveis de análise” e tomar a direção de uma
abordagem integrada da economia política.
Internacionalização e democratização ♦ 319

O fordísmo atlântico e as diferentes


configurações Estado-sociedade civil

Neste item, vamos examinar mais detalhadamente o contexto


econômico e sociopolítico internacional no qual tiveram lugar os
processos de industrialização e democratização da América Latina e
da Europa Meridional. Primeiro, traçaremos as linhas gerais das di­
mensões básicas do modelo de desenvolvimento do pós-guerra. To­
mando por base uma interpretação gramsciana, chamamos esse com­
plexo de características políticas e econômicas nacionais e interna­
cionais inter-relacionadas de modelo de desenvolvimento do fordis-
mo internacional ou atlântico do pós-guerra. Esse modelo tem três
dimensões, que são “dimensões sobrepostas da realidade, em que ‘fa-
los’ pertinentes a uma dimensão só adquirem seu pleno significado
quando considerados contra o pano de fundo das outras dimensões”
(Overbeek, 1990, p. 87).
Em primeiro lugar, o fordismo no plano nacional origina-se
na fábrica, por meio da introdução de novos métodos produtivos em
empresas individuais, o que eventualmente leva ao princípio macro­
econômico de incrementos combinados na produtividade e nos salá­
rios reais (isto é, a implementação do modelo de crescimento macro­
econômico baseado na produção e no consumo de massa). A própria
introdução do fordismo pode depender em parte de fatores externos,
como tecnologia e capital estrangeiros. Inversamente, a superioridade
técnica dos Estados hegemônicos e de seus capitais nacionais pode re­
sultar na globalização de certos processos e técnicas de produção, e
dos modos de organização do trabalho mediante a internacionaliza­
ção do comércio e da produção. Mas o êxito da implantação do fordis­
mo num país sempre está inextricavelmente ligado à existência de
um nível específico de desenvolvimento socioeconômico e político
desse país. Isso, entre outras coisas, explica as consideráveis diferen­
ças nacionais no tempo e no conteúdo do surgimento eventual e do
desenvolvimento subsequente do fordismo na área do Atlântico.
Tomando como ponto de partida essa dimensão restritiva do
fordismo, simplesmente não é verdade que a adoção de métodos for-
distas de produção na Europa Meridional e na América Latina coinci-
320 ♦ O tto H olman

diu no tempo com a crise do fordismo nos países centrais da área «Itt
Atlântico, ou foi resultado dela, como afirma Lipietz, por exemplo,
Bem antes dos primeiros sinais dessa crise, em ambas essas regióc»
havia começado uma reestruturação da produção de acordo com o#
moldes fordistas, seja em decorrência de iniciativas nacionais (públl
cas ou privadas), seja por meio de investimentos estrangeiros, ou p e l a
combinação de ambos. Nesse sentido, o fator decisivo não é o nm :j

mento, mas a maneira como a introdução de novas formas de orgnni £


r
zação das relações de produção e trabalho mudou a estrutura econò
mica convencional. Ou seja, embora o fordismo implique a “raciona-
lização e a ampliação [das relações de classe do capitalismo] das qítala
já foi removida toda a parafernália irrelevante e pré-capitalista”, d#
nunca obtém controle sobre a totalidade da produção (ver Cox, 1987,
p. 309 e seg.). A produção fordista pode acabar se tornando a forma
dominante, coexistindo com outras formas subordinadas de organi
zação das relações de produção e trabalho, mas isso também pode nflti
acontecer. Neste último caso, um equilíbrio bem instável entre dile
rentes formas de produção (aliás, entre diferentes formas de relaçfle»
sociais de produção) pode persistir, deixando às forças regressiva» e
improdutivas da sociedade um espaço considerável de manobra so
ciopolítica.
Se quisermos saber em que medida a produção foi reestrutura
da de acordo com os moldes fordistas em países individuais da Amé
rica Latina e da Europa Meridional no período do pós-guerra, deve
mos estudar os seguintes indicadores: as proporções da agricultura e
da indústria na produção total e suas mudanças ao longo do tempo,
incluindo o uso intensivo do trabalho e do capital em ambos os selo
res; as mutações na estrutura da produção industrial (como aumen
tos no tamanho do setor de bens de consumo em relação a outros se
tores); a dualidade estrutural da indústria, isto é, a relação entre em
presas modernizadas de larga escala com índices elevados de produl i
vidade e salários reais relativamente altos, de um lado, e pequenas lá
bricas e lojas com tecnologia atrasada e salários abaixo da média, de
outro, revelando a heterogeneidade da produção industrial; o taina
nho das respectivas populações nacionais, que mostra o potencial de
diversos mercados nacionais; e a extensão em que uma dinâmica in
I nternacionalização e democratização ♦ 321

in na de crescimento predomina em relação ao crescimento impul-


■aonado pelas exportações, predomínio que reflete diferentes estraté­
gias de desenvolvimento.
Está além do objetivo desta contribuição analisar em detalhe
cvses indicadores para todos os mais importantes países examinados
.kIui. Além disso, uma avaliação abrangente dessa reestruturação
Nu dista não nos levaria a uma hierarquia precisa dos países, simples­
mente porque os países individuais não mostram padrão linear e uni-
loi rne no que diz respeito a todos os indicadores. A Grécia, por exem­
plo, parece prestar-se muito bem a uma comparação com a Argentina
em certos aspectos, principalmente no tocante à tendência de indus-
11 ialização intensiva em capital e à capacidade relativamente pequena
«lc absorção de trabalho no setor industrial (ver Mouzelis, 1986, p. 119).
I'.m outros aspectos, a Grécia tem características essenciais em co­
mum com a Espanha e com Portugal: todos os três países tiveram au­
mentos médios de produtividade anual “superfordistas” durante o
período 1963-1973 - 5,46% na Espanha; 6,81% em Portugal; e 7,51%
na Grécia (ver Lipietz, 1987, p. 127) - e passaram por radical mudança
ua composição da força de trabalho - a porcentagem de trabalhadores
empregados no setor primário da Grécia declinou de 57% em 1960
para 29,7% em 1980; em Portugal, passou de 42,8% para 28,3%; e, na
Espanha, de 42,3% para 18,9% (ver Holman, 1987-1988, p. 25). Por­
ia nto, toda e qualquer análise quantitativa dos indicadores citados
acima deve se fazer acompanhar de uma avaliação qualitativa de suas
interconexões. Além disso, não se pode tirar nenhuma conclusão de-
íinitiva de um exercício desse tipo sem levar em conta as outras duas
ilimensões do que chamamos de fordismo atlântico.
Apesar disso, a maneira como os países individuais enfrenta­
ram o impacto da crise global de reestruturação das décadas de 1970
o 1980 serve de indício. Ambas as regiões, de forma bem diferente,
passaram por uma incorporação acelerada às estruturas do mercado
mundial. Enquanto a América Latina foi integrada, de forma dramá­
tica, à economia de crédito internacional, Espanha, Portugal e Grécia
realizaram sua integração ao Mercado Comum Europeu nos anos
1980. Examinando mais de perto a região da América Latina, deve­
mos concluir que os regimes autoritários de países como a Argentina,
322 ♦ O tto H olman

o Chile e o Uruguai implementaram políticas neoliberais rigorosa»,


que acabaram levando a uma desindustrialização da economia nu
cional. Os regimes militares que chegaram ao poder nesses países nu
década de 1970 realizaram a síntese do neoliberalismo com a doulri
na da segurança nacional, culpando os processos anteriores de indus
trialização e o fortalecimento subseqtiente do movimento trabalhista
por todas as suas mazelas sociopolíticas. A reestruturação forçada
no sentido de uma economia de exportação, baseada napredominán
cia da produção primária, foi o resultado final desse tipo de polí ti
cas, criando um bloco de poder formado por burguesias rurais, insti­
tuições financeiras urbanas e burocracias militares (ver Fernando/
Jilberto, 1989; Cortazar et ah, 1984).
No Brasil e no México, foi implementado o modelo de “dívida
bancária financiada e industrialização dirigida pelo governo” - a cha ­
mada industrialização endividada - na década de 1970, cujo objetivo
era se contrapor à influência excessiva de empresas estrangeira»
transnacionais em sua economia nacional por meio do aumento da
participação dos setores público e privado locais no crescimento in­
dustrial, usando a intervenção estatal, o financiamento da dívida e os
incentivos às exportações de bens de consumo como seus principais
métodos. Quando as exportações começaram a diminuir no começo
dos anos 1980, esse modelo de crescimento entrou em colapso, levan­
do esses países a abandonar as empresas transnacionais em favor do»
bancos internacionais como seus principais fornecedores de capital
estrangeiro (ver Frieden, 1981; e também Harris, 1987). Ironica­
mente, esse procedimento levou a uma situação em que os países que
mais reestruturaram, durante as décadas de 1960 e 1970, sua econo
mia de acordo com os moldes fordistas, fundamentados numa aliança
aparentemente estável entre o capital local privado e público e o capi
tal produtivo transnacional, foram obrigados, cada vez mais, a imple­
mentar princípios neoliberais para enfrentar o estonteante ônus de
sua dívida. Na verdade, na América Latina, o Brasil e o México pare
cem ser as principais vítimas do impacto da crise econômica mundial
e da mudança das estruturas da ordem mundial. E parece realmente
que a adoção recente da democracia no Brasil e a eleição do neoliberal
Fernando Collor de Mello em 1989 para a presidência devem ser in-
I nternacionalização e democratização ♦ 323

lerpretadas como uma mudança radical da política econômica im­


posta às classes sociais sob a bandeira da legitimidade democrática.
Por fim, nos países da Europa Meridional, o impacto da crise
econômica internacional foi implacável, principalmente na última
metade da década de 1970 e no começo dos anos 1980. Além disso,
essa crise econômica coincidiu com os primeiros anos da transição
democrática nestes três países, adiando, ao menos inicialmente, a
implantação completa de “medidas rigorosas”, a fim de não ameaçar
as jovens e vulneráveis democracias. Mais tarde, depois que os parti­
dos socialdemocratas chegaram ao poder, no começo da década de
1980 (consolidando, dessa forma, os respectivos sistemas democráti­
cos), a administração integral da crise concentrou-se na reestrutura­
ção e na modernização das economias nacionais, visando à entrada
plena no Mercado Comum Europeu, principalmente no caso da Es­
panha e de Portugal. Isto é, não houve nem destruição neoliberal da
capacidade industrial, como aconteceu no Chile e na Argentina, nem
endividamento seguido do controle externo sobre o crescimento eco­
nômico sustentável, como aconteceu no Brasil e no México. As eco­
nomias espanhola e portuguesa tiveram, ao contrário, índices anuais
médios de crescimento que foram os maiores do Mercado Comum
Europeu nos últimos anos da década de 1980, mostrando extraordi­
nária capacidade de reconversão econômica e de modernização in­
dustrial (ver Holman, 1989a).
A segunda dimensão do fordismo atlântico diz respeito ao Es­
tado e à sua relação com a sociedade civil. Estamos nos referindo aqui
ao keynesianismo como política econômica, com o Estado interven-
cionista e a “economia mista” como seus acompanhantes, de um la­
do, e os “modos das relações sociais de produção”, de outro.
Enquanto o fordismo, em seu sentido estrito, caracteriza-se
por uma forma específica de organização das relações de produção e
trabalho, levando eventualmente a um acordo entre as principais for­
ças sociais (acordo baseado numa combinação entre aumento da pro­
dutividade e elevação dos salários reais), o keynesianismo é reflexo de
um equilíbrio específico de poder nas políticas econômicas, numa
conjuntura fordista determinada. Ou, em outras palavras, o keynesia­
nismo ideal e típico “implica o uso do governo para influenciar e di­
324 ♦ O tto H olman

recionar decisões tomadas no setor privado” (Wolfe, 1981, p. 54). N»


queles países onde existia um movimento trabalhista forte, poJíl iuit
econômicas keynesianas poderiam ser efetivamente seguidas poirt
“salvar o capitalismo dos capitalistas”. Na maioria dos casos, a social
democracia funcionou como intermediário político óbvio desse tipo
de política. Por outro lado, nos países sem uma forte tradição soda
lista ou socialdemocrata, o planejamento macroeconômico do póN
guerra implicou “o uso do setor privado para influenciar o alcance *
as atividades do governo”. Neste caso, seria melhor falar de um “and
keynesianismo” (Wolfe, 1981, p. 54). Mas, embora o antikeynesianiu-
mo “pressuponha uma autoridade política intervencionista [cuja |
administração econômica realiza as expectativas de grupos ou classe»
que a dominam”, as políticas desse tipo de autoridade “servem parrt
legitimar a autoridade do poder hegemônico, visto que as conquisla»
que lhes são devidas correspondem às promessas propagadas pela
ideologia dominante” (Keyder, 1985, p. 140).4Isto é, mesmo nos caso»
de antikeynesianismo, os interesses dos grupos ou classes dominado»
têm de ser satisfeitos em certa medida.
Obviamente, nenhuma das descrições do keynesianismo ou
menos ainda do antikeynesianismo feitas acima pode ser aplicada à
situação na América Latina e na Europa Meridional no pós-guerra.
Uma questão é falar do confronto social entre grupos dominantes e
subordinados da sociedade resultante de uma divisão desigual da ri­
queza e da renda e que eventualmente leva a sublevações e greves es ­
pontâneas dentro de um clima de agitação social generalizado e cons­
tante; outra bem diferente é falar da existência de um movimento tra­
balhista bem organizado, institucionalizado em sindicatos fortes e
com bom nível de politização para alcançar seus objetivos. Deve ficar
claro que esta última situação existe em sociedades de classe relativa­

4 Observe-se que Keyder, em sua contribuição ao livro organizado por Arrighi


(1985), refere-se ao keynesianismo internacional e à hegemonia no pós-guer­
ra dos Estados Unidos no sistema internacional. Embora se possa duvidar
de que um sistema keynesiano internacional tenha existido algum dia, acredi­
tamos que as observações de Keyder se aplicam ao keynesianismo em plano
nacional.
I nternacionalização e democratização ♦ 325

mente avançadas, como reflexo de um determinado grau de desen­


volvimento econômico e sociopolítico com base no qual pôde acon-
lecer, na Europa Ocidental, no período imediatamente seguinte à Se­
gunda Guerra Mundial, a reestruturação da produção de acordo com
os moldes fordistas. Isto é, a industrialização anterior, confinada nos
sistemas econômicos nacionais, forneceu as estruturas econômicas e
sociopolíticas nas quais a introdução do fordismo e a subseqüente
iransnacionalização do capital produtivo puderam ser realizadas na
era que passou a ser conhecida comopax americana. Na América La­
tina e na Europa Meridional, essas estruturas básicas estavam quase
inteiramente ausentes antes da Segunda Guerra Mundial e, por isso,
tiveram de ser construídas num ambiente internacional, atlântico,
no qual os países mais avançados tinham entrado em novo estágio de
desenvolvimento. O impacto da industrialização do pós-guerra em
ambas essas regiões teria de ser necessariamente diferente daquele
que a “velha terra natal da indústria” experimentara anteriormente.
Um dos exemplos mais impressionantes dessa deficiência estrutural
foi a ausência de estratos médios consideráveis - as chamadas novas
classes médias - com base nas quais a socialdemocracia da Europa
Ocidental se tornou o instrumento político óbvio da política econô­
mica keynesiana.
No entanto, a principal diferença entre essas duas regiões é que
os regimes autoritários da Europa Meridional chegaram ao poder no
período do entre-guerra e mantiveram sua posição até o final dos
anos 1970, ao passo que, na América Latina, um modelo cíclico de
transições do autoritarismo para a democracia formal, e vice-versa,
foi o traço característico do desenvolvimento político. Essa diferença
teve algumas conseqüências importantes.
A primeira é que a continuidade do regime na Europa Meri­
dional constituiu o quadro de referências políticas no qual processos
sociais e econômicos relativamente harmoniosos e lineares rompe­
ram o “círculo vicioso” (ou seja, a tendência a um Estado fraco que
fomenta o individualismo e o particularismo, deixando o campo
aberto para os chamados “poderes fácticos” - “oligarquia, exército e
Igreja” - , que tendem a contrabalançar todo e qualquer fortaleci­
mento do Estado), substituindo-o gradativamente por um “círculo
326 ♦ O tto H olman

virtuoso” (ou seja, um Estado forte que fomenta uma cultura civil
baseada na participação sociopolítica das massas, fortalecendo grupos
de interesses da sociedade civil que tendem a contrabalançar o exccs
sivo centralismo estatal e a insistir num Estado menos hipertrofiado)
(Tortosa, 1985, p. 20-21). Na América Latina, a instabilidade sociopo
lítica estrutural, caracterizada pela constante luta pelo poder entre
elites econômicas e políticas rivais, e o sempre presente conflito enlre
as classes sociais impediram a passagem gradual para uma configura
ção Estado-sociedade civil na qual a sociedade civil conquistasse um
tal grau de coesão auto-sustentável que a democracia não represen
tasse mais ameaça para as classes dominantes.
A segunda conseqüência importante está relacionada à pri­
meira. Na Europa Meridional, um sistema razoavelmente estável de
mediação de interesses (ou “modo das relações sociais de produção”)
foi implementado ao longo do tempo, um sistema de “corporativis­
mo estatal” (e, no caso da Grécia, de “clientelismo estatal”). Embora
a harmonização dos interesses tenha se tomado um princípio geral do
organização da sociedade (na Espanha chegou a afetar até as organiza­
ções estudantis), em todos os três países esse modelo autoritário de
mediação de interesses concentrou-se primariamente na administra­
ção do conflito social e político, “restringindo o desenvolvimento das
forças sociais em luta” (Foweraker, 1987, p. 58) mediante a institucio­
nalização hierárquica, não-representativa e exclusiva das relações de
trabalho. Na Espanha, essa implementação assumiu a forma concreta
do sindicato vertical do Estado orgânico franquista (ver abaixo); em
Portugal, as decisões relativas a salários, preços e produção eram to­
madas por várias grandes empresas (organizadas por setor de produ­
ção) e pela Câmara Corporativa do Estado Novo de Salazar; e, na Gré­
cia, os sindicatos eram controlados pelo Estado e os interesses traba­
lhistas mediados por um “modo incorporativo vertical de inclusão”
(Mouzelis, 1986). Na América Latina, as tentativas de introduzir “de
cima” essas estruturas estatais corporativistas foram frustradas pela
ressurreição sistemática do populismo que, em certa medida, sobre­
viveu à alternância entre ditaduras e regimes democráticos. Nessa
região, a mobilização periódica das classes populares por líderes caris­
máticos foi tanto causa quanto efeito da falta de institucionalização
I nternacionalização e democratização ♦ 327

(autoritária) da sociedade, principalmente no campo das relações


lrabalhistas.
Portanto, é de fundamental importância que, na Europa Meri­
dional, o corporativismo do Estado tenha criado as pré-condições para
a subseqüente transição democrática e a consolidação da democracia
nas décadas de 1970 e 1980. Para entender esse paradoxo, é necessário
primeiro refutar a caracterização do processo de democratização co­
mo transferência de funções do Estado para as instituições de uma
sociedade civil incipiente, mas cada vez mais forte, como se a socie­
dade civil e o Estado fossem esferas separadas, e o fortalecimento de
uma implicasse necessariamente o enfraquecimento do outro.
Do nosso ponto de vista, um Estado “fraco” é, entre outras coi­
sas, caracterizado pelo amálgama quase completo do poder político
com o poder econômico no interior de uma classe dominante oligár-
quica; por uma sociedade dividida em classes que separa essa classe
(ou estrato) oligárquica ou aristocrática das classes dominadas (ou
estratos inferiores); e por uma rede onipresente de relações de cliente-
lismo servindo de mecanismo de contenção, num plano individual,
das sublevações populares. Portanto, nesses Estados há ausência de
nacionalismo e falta de estruturação e de incorporação sociais, isto é,
a sociedade civil praticamente não existe. Na Europa Meridional e na
América Latina, esses Estados “fracos” existiram durante a maior par­
te da primeira metade do século XX.
Por outro lado, um Estado “forte” não precisa depender da in­
tervenção militar direta ou indireta nas políticas nacionais para salva­
guardar a estabilidade do regime, o que permite a subordinação efeti­
va do aparato militar às instituições civis. No plano sociopolítico, um
Estado forte é caracterizado pela separação ou insulamento entre o
poder econômico e o político, acarretando o surgimento de uma clas­
se política dirigente que adquire, no plano político, relativa autono­
mia das classes sociais, enquanto, ao mesmo tempo, assegura a domi­
nação de classe no plano socioeconômico. Finalmente, um Estado
forte caracteriza-se por um alto grau de inclusão social, o que torna o
clientelismo, o populismo ou as formas oligárquicas ou autoritárias
de dominação política não só cada vez menos necessários, mas tam ­
bém - e o que é mais importante - extremamente indesejáveis e con­
328 ♦ O tto H olman

traproducentes. Nesse sentido, uma sociedade civil forte acompanha


um Estado forte. Aliás, é nesta configuração de Estados fortes e socic
dades civis fortes que a noção gramsciana de hegemonia adquire rele
vância (ver Holman, 1989b).
É necessário um comentário final para que se entenda perfei
tamente bem este último argumento. Quando se fala de Estados “for­
tes”, deve-se ter sempre em mente o significado relativo dessa noção
no que diz respeito ao mundo externo, isto é, em comparação com
outros Estados. Isso também se aplica ao grau de desenvolvimento
econômico de um Estado. Um Estado “forte” não se caracteriza só por
sua estrutura econômica relativamente desenvolvida. Como disse
Wallerstein, “um Estado é mais forte do que outro Estado na medida
em que consegue maximizar, no interior de economia mundial, as
condições de obtenção de lucro por suas empresas (o que inclui as
grandes empresas estatais)” (1984a, p. 5). A caracterização de um
Estado “forte” também inclui a posição de força de determinado Esta­
do em relação ao capital estrangeiro que está atuando ou que deseja
atuar em seu território. No próximo item, vamos examinar essa ques­
tão mais de perto, encaminhando a discussão para a terceira dimensão
do fordismo atlântico, a organização política e econômica geral das
relações capitalistas na área do Atlântico. O Brasil e a Espanha, embo­
ra aparentemente comparáveis, mostram formas completamente di­
ferentes de adaptação à mudança nas estruturas da ordem mundial
que se deu no fim da década de 1970 e na década de 1980, e, por isso,
são bons exemplos para que possamos generalizar tendências gerais
para ambas as regiões.

A diferença do impacto da mudança nas estruturas


da ordem mundial no Brasil e na Espanha

Como já dissemos, o corporativismo estatal criou as condições


para a transição e a consolidação final da democracia na Europa Me­
ridional. No caso da Espanha, o corporativismo estatal, imposto às
classes sociais por meio de uma sangrenta luta de classes, ajudou a
criar um crescimento econômico sem precedentes. A implementa­
ção desse sistema, além de salvar o capitalismo das forças revolucio­
I nternacionalização e democratização ♦ 329

nárias de oposição, mediante extermínio físico e repressão implacá­


vel, também forneceu o contexto institucional de referências para o
aprofundamento das relações capitalistas de produção (e para uma
reestruturação completa da economia espanhola). Paradoxalmente,
ao implementar exatamente esse quadro de referências, a ditadura
desencadeou sua própria erosão interna e cavou o próprio túmulo.
Nesse caso, porém, o que explica as diferenças entre Espanha e
Brasil? Se restringirmos o impacto do corporativismo estatal nos pro­
cessos econômicos que ele gerou, não é possível ignorar algumas si­
milaridades aparentes entre ambos os países (Holman e Fernandez,
1989, p. 17-18):
1) os dois países passaram por uma fase preliminar de indus­
trialização na primeira metade do século XX, como conseqüência di­
reta de uma “estratégia de industrialização baseada na substituição de
importações” sob a bandeira ideológica do nacionalismo econômico;
2) essa primeira fase lançou os alicerces para a aceleração e o
aprofundamento dos respectivos processos de industrialização ocor­
ridos a partir do final da década de 1950 (Espanha) e do início dos
anos 1960 (Brasil) em diante, que resultaram em elevados índices
médios anuais de crescimento e na denominação de ambas essas eco­
nomias como “milagres econômicos” do mundo ocidental;
3) em ambos os países, o modelo de desenvolvimento foi im­
plementado na década de 1960, com base na combinação entre
políticas econômicas keynesianas e cautelosa liberalização econômi­
ca, e levou à abertura das respectivas economias para o mundo exter­
no e à subseqüente “internacionalização do capital”. Em ambos os
países, passou a existir uma aliança razoavelmente bem equilibrada
entre o capital privado e público locais e o capital transnacional es­
trangeiro. Além disso, essa liberalização foi acompanhada de certo
grau de protecionismo seletivo e aconteceu sob a presença constante
do sistema político franquista na Espanha e da ditadura militar que se
instalou no Brasil em 1964.
No plano socioeconômico, e como conseqüência direta desses
processos econômicos, houve uma transformação estrutural em am­
bos os países que resultou na discrepância cada vez maior entre a de­
manda social por democracia e as estruturas políticas verticais dos
330 ♦ O tto H olman

Estados autoritários. A perda de legitimidade dos dois regimes não se


refletiu apenas no descontentamento popular crescente, mas tam
bém - o que é ainda mais importante - na mudança de atitude das
elites econômicas. Tradicionalmente, essas elites foram as que mais
se beneficiaram dos regimes autoritários, mas começaram a se afastar
deles cada vez mais assim que perceberam que a volta à democracia
era a melhor maneira de dar continuidade à sua posição de classe do­
minante sob outras condições socioeconômicas.
No Brasil, a conseqíiência última desse processo foi a abertura
gradual do regime, que começou com a “distensão lenta” do Governo
Geisel (1974-1978) e culminou na eleição indireta de Tancredo Ne­
ves em 1985 e nas primeiras eleições presidenciais livres desde o Gol­
pe Militar de 1964, realizadas em novembro e dezembro de 1989 (ver
Lamounier, 1989). Na Espanha, a morte de Francisco Franco, em
1975, foi o prelúdio de um processo de transição democrática que en­
volveu as principais forças do governo e da oposição recebendo gran­
de apoio tanto dos sindicatos dos trabalhadores quanto das associa­
ções patronais, e levando à consolidação final da democracia quando
o Partido Socialista Espanhol (PSOE) obteve maioria absoluta nas
eleições de 1982.
Portanto, no Brasil, a abertura política foi uma medida tomada
pelo regime militar e imposta “de cima” à oposição extraparlamentar
e ilegal, ao passo que, na Espanha, a transição da ditadura para a demo­
cracia foi negociada desde o início com todas as principais forças so­
ciais, a chamada ruptura pactada. E é exatamente aqui que nossa
comparação entre o Brasil e a Espanha deve passar das semelhanças
aparentes para as diferenças marcantes. Para mostrar isso, temos de
voltar ao impacto do corporativismo estatal sobre a sociedade espa­
nhola.
Uma segunda conseqíiência importante do sistema autoritário
foi o fato de ter canalizado as transformações da sociedade espanhola
para a criação de instituições e corporações estatais que mostraram
uma capacidade extraordinária de adaptação a mudanças nas condi­
ções econômicas, principalmente no campo das relações trabalhistas.
Um exemplo disso é o sindicato vertical franquista, criado para con­
trolar e organizar toda a produção nacional seguindo linhas verticais
I nternacionalização e democratização ♦ 331

de comando. Já na década de 1940, as eleições sindicais eram realiza­


das no âmbito da fábrica e também em âmbito municipal, provincial
e nacional, ainda que o eleitorado tenha diminuído e se tornado me­
nos representativo à medida que os postos a serem preenchidos au­
mentaram de importância. Inicialmente, as linhas hierárquicas que
vinham do Ministério do Trabalho, eram muito mais importantes.
Durante a liberalização e a internacionalização da economia espa­
nhola na década de 1960, esse sindicato proporcionou o espaço para a
negociação coletiva e para a organização da força de trabalho “a partir
de baixo”, um espaço que, no seu devido tempo, foi preenchido pelo
Partido Comunista Espanhol por meio das comisiones obreras. Essas
comissões de operários infiltraram-se no sindicato por meio de elei­
ções sindicais no âmbito da fábrica e acabaram desempenhando papel
cada vez mais importante nas negociações descentralizadas sobre as
condições de produção e trabalho, principalmente depois que se
transformaram numa organização trabalhista nacional e autônoma
em 1966. Como diz Foweraker, “a estratégia corporativista de Franco
representava um modo fixo e exclusivo de mediação das relações
capital-trabalho, e seu exclusivismo - e não suas qualidades intrínse­
cas-m ostrou ser sua falha histórica fatal” (1987, p. 60). É nesse con­
texto que podemos entender a transição harmoniosa do corporativis­
mo estatal para o corporativismo social depois da morte de Franco
(ver Holman, 1989b). Essa transição contribuiu para o caráter estável
do processo geral de democratização. E é com base nela que podemos
explicar, em parte, a mudança de atitude da burguesia espanhola em
relação ao regime de Franco e sua defesa da democracia.
Um dos determinantes não só da transição para a democracia
propriamente dita, mas também de seu próprio êxito a longo prazo, é
a fusão desse projeto político com os conceitos predominantes de
controle, ou “modos de comportamento econômico”, na cúpula da
burguesia. Os conceitos de controle são estratégias de longo prazo, re­
lacionadas a determinadas frações da burguesia, formuladas em ter­
mos abrangentes e que tratam de áreas como relações trabalhistas,
políticas socioeconômicas e a ordem internacional socioeconômica
e política (van der Pijl, 1984). Portanto, ao optar pela democracia, a
burguesia - ou frações dela - passou a ter uma percepção clara do pa­
332 ♦ O tto H olman

pel da nação nas relações econômicas e políticas do presente e do fu


turo no plano global.
Nesse sentido, é importante observar que a liberalização e a
abertura da economia espanhola da década de 1960, e a subseqüente
internacionalização do capital na Espanha, geraram, na comunidade
empresarial espanhola, uma mentalidade voltada para o exterior que,
por motivos óbvios, dirigiu-se, antes de tudo, para a Europa Ociden­
tal, principalmente para a integração no Mercado Comum Europeu.
Contudo, para realizar essa opção, a Espanha teve de instituir políticas
democráticas, outro motivo para a burguesia espanhola apoiar a tran­
sição para a democracia. Durante o período de transição, principal­
mente depois que o Partido Socialista chegou ao poder, essa opção eu­
ropéia foi confirmada como a única alternativa realista para o capital
espanhol. A transnacionalização crescente da economia espanhola,
combinada à sua crescente orientação para o Mercado Comum Euro­
peu, foi uma razão importante do êxito da transição para a democra­
cia e de sua consolidação: foi tão fundamental quanto o impacto do
corporativismo estatal. Na verdade, do ponto de vista da configuração
Estado-sociedade civil da Espanha nas décadas de 1970 e 1980, esses
dois fenômenos não podem ser separados.
Durante esse período, a sociedade civil espanhola adquiriu re­
lativa força; com isso queremos dizer que conseguiu certo grau de au­
tonomia e coesão auto-sustentável perante o Estado. Para entender
plenamente essa afirmação, podemos usar um dos conceitos grams-
cianos de sociedade civil, citado na introdução dos editores ao capítu­
lo sobre “Estado e sociedade civil” dos Cadernos do cárcere.
Entre a estrutura econômica e o Estado com sua legisla­
ção e sua coerção, está a sociedade civil. O Estado é o ins­
trum ento para conformar a sociedade civil à estrutura eco­
nômica, mas c necessário que o Estado “esteja disposto”
a fazer isso, isto é, que os representantes da m udança
ocorrida na estrutura econôm ica tenham o controle do
Estado. (Gramsci, 1971, p. 208)

Os editores afirmam corretamente que, na verdade, Gramsci


está, nesta passagem, equiparando a noção de sociedade civil com o
“modo de comportamento econômico”. Na Espanha, os “represen­
I nternacionalização e democratização ♦ 333

tantes da mudança ocorrida na estrutura econômica” - isto é, o


Partido Socialista Espanhol, cooperando com a burguesia transnacio-
nalizada e europeísta - usaram efetivamente o Estado espanhol para
“conformar a sociedade civil”. Mas, por sua vez, em 1992, a burguesia
espanhola ainda dependia do Estado espanhol no que diz respeito à
política necessária para preparar as empresas do país para a competi­
ção aberta, A política socialista de reconversão e modernização indus­
trial, de um lado, e o ajuste macroeconômico anticíclico, do outro,
implica “o uso do governo para influenciar e direcionar decisões to­
madas no setor privado”. Se um Estado “é mais forte do que outro Es­
tado na medida em que consegue maximizar, no interior da econo­
mia mundial, as condições de obtenção de lucro por suas empresas”,
como sugere Wallerstein, nossa avaliação da força do Estado espanhol
também vai depender do grau em que ele consegue neutralizar as de­
mandas dos sindicatos e dirigir a modernização da indústria es­
panhola.
Voltando à nossa comparação, podemos dizer que tanto o pa­
pel do corporativismo estatal na criação de uma sociedade civil espa­
nhola autônoma e relativamente forte quanto o impacto do processo
de integração à Europa na consolidação da democracia espanhola
impedem-nos de levar mais longe a analogia entre esses dois países.
Em sua excelente análise da transição brasileira para a democracia,
vista da perspectiva histórica do processo de construção do Estado
hobbesiano, Lamounier (1989) afirma que o desenvolvimento insti­
tucional do Brasil girava predominantemente em torno do Estado,
em sua tentativa sistemática de minimizar o conflito entre as elites e
reprimir revoltas populares ou a simples oposição organizada. Embo­
ra tenha motivado um crescimento industrial sustentável e acelerado,
o regime militar que chegou ao poder em 1964 não melhorou as con­
dições de vida de uma parte substancial da população brasileira, dei­
xando a desigualdade socioeconômica estrutural e a pobreza absoluta
em grande medida intactas. Em 1960, os 50% mais pobres da popula­
ção ativa ganhavam 17,7% da receita nacional; em 1976, os 50% mais
pobres ganhavam apenas 11,8%. No mesmo período, os 5% mais
ricos viram sua cota na receita nacional aumentar de 27,7% para
39%. Outros indicadores sociais (a taxa de mortalidade infantil, por
334 ♦ O tto H olman

exemplo) confirmam que a distribuição da riqueza no Brasil é uma


das mais desiguais do mundo (Roett, 1988, p. 113). Nesse contexto, o
clientelismo, o populismo e o particularismo continuam sendo ca­
racterísticas muito persistentes na sociedade brasileira, deixando cs
paço para o inesperado e para a obstrução de uma “universalização da
política”. Deve estar claro que esse quadro se agravou em decorrência
da situação atual da dívida brasileira. Fazendo mais uma vez um paru
leio com a Espanha, isso pressupõe que o Estado democrático nascen
te no Brasil “tem de influenciar e dirigir as decisões tomadas no setor
privado”, pela implementação de uma política neoliberal de desregu
lamentação e liberalização do comércio, ao mesmo tempo em que
deve estar inteiramente incorporado à economia de crédito interna
cional. Controlar a hiperinflação e assumir a carga da dívida externa
parece incompatível com a retomada do crescimento industrial. De
pois de mais de um ano de truques econômicos e soluções rápidas, o
Governo Collor de Mello entrou num absoluto caos social, econômi
co e político.
Outra opção para o futuro próximo é a possibilidade de refor
çar o processo de integração regional na América Latina no contexto
da Associação Latino-Americana de Integração (Aladi). Tentativa»
frustradas nesse sentido, feitas nas décadas de 1950 e 1960, podem ser
retomadas tendo em mente as mudanças nas estruturas da ordem
mundial e, mais particularmente, nas relações políticas e econômicas
da região com os Estados Unidos. De forma grosseira e talvez simplili
cada demais, poderiamos dizer que, durante apax americana, em go
ral o domínio dos Estados Unidos no sistema interamericano foi acei
to pelas elites políticas, militares e econômicas da América Latina,
ainda que, num grau maior ou menor, tenha sido repudiado por grau
de parte das populações do continente. Uma rede de relações bilaterais
entre os Estados Unidos e os países individuais da América Latina ga
rantiu a coesão interna desse sistema interamericano, baseado na pre
missa implícita de “dividir para reinar”. Essa situação parece ter che
gado ao fim, que de alguma forma começou com o embate Estados
Unidos-América Latina na crise das ilhas Malvinas, ocorrida em
1982, e ilustrada mais recentemente pelo protesto declarado da Amé
I nternacionalização e democratização ♦ 335

rica Latina contra a intervenção norte-americana no Panamá em de­


zembro de 1989.
Essa mudança de situação pode muito bem ser o prelúdio do
aumento da independência política da região em relação aos Estados
Unidos e de um aumento da cooperação inter-regional, principal-
inente se as outras duas alternativas prováveis forem ou a introversão
nacional e o colapso da democracia, ou a incorporação sistemática à
economia de crédito internacional e o ajuste forçado aos princípios
tio neoliberalismo global. Nesse contexto, as discussões do Grupo do
Rio sobre a viabilidade do projeto “América Latina - 1995” e a criação
do Mercosul, o mercado comum entre Argentina, Brasil, Paraguai e
Uruguai, são os primeiros passos nessa direção. Essa situação ganha
mais importância ainda se observarmos a aceleração dos investimen­
tos de capital estrangeiro de outros países, principalmente do Japão,
<|ue ocorreu durante a década de 1980 e que pode continuar nos anos
1990. Por outro lado, as reações entusiásticas da América Latina de­
pois que o presidente Bush lançou o plano batizado de “Iniciativa pa­
ra as Américas” no verão de 1990 parecem indicar que a maioria dos
líderes latino-americanos ainda tende a depender muito da hegemo­
nia norte-americana na região se (e só se) os Estados Unidos estive­
rem preparados para desempenhar o papel de “interesse universal”.

Conclusões

Uma das principais conclusões a tirar da análise acima é que os


processos de transição para a democracia na Europa Meridional e na
América Latina não podem ser interpretados sem que se considerem
Mias origens históricas e o vínculo inseparável entre desenvolvimento
econômico e desenvolvimento sociopolítico de longo prazo em am­
bas as regiões, e sem levar em conta o contexto global em que as m u­
danças estruturais ocorreram em cada país individualmente. Neste
sentido, distinguimos analiticamente três dimensões: o impacto
transformador do fordismo atlântico sobre as estruturas econômicas;
a articulação de estruturas de classe com estruturas do Estado em
processo de mudança nas configurações Estado-sociedade civil; e o
336 ♦ O tto H oi.man

impacto das mudanças ocorridas nas estruturas da ordem mundial


sobre o desenvolvimento econômico e sociopolítico nacional. Hs.su
inter-relação materialista histórica entre as três dimensões do fordis
mo atlântico é essencial nas diferenças teóricas com a perspectiva
comparativista. A análise de Lipietz sobre o fordismo periférico c ati
abordagens do sistema mundial sugerem o caráter inovador da teoria
gramsciana das relações internacionais.
Além disso, ao comparar Espanha e Brasil, enfatizamos a im
portância da direção cada vez mais firme da Espanha rumo à Europa
Ocidental. Em termos gramscianos, essa “europeização”, como alter
nativa ao isolacionismo político e ao mercantilismo, tem sido a força
mediadora da transição histórica do plano econômico-corporativisla
da consciência para o plano hegemônico da consciência, “gerando
não só a unanimidade de objetivos econômicos e políticos, mas tam
bém a unidade intelectual e moral, que coloca todas as questões ent
torno das quais gira a luta não num plano corporativo, mas num
'plano universal", criando assim a hegemonia de um grupo social fun
damental sobre uma série de grupos subordinados” (Gramsci, 1971,
p. 181-182). A opção de integração à Europa, materializada nas liga
ções entre a burguesia espanhola e suas congêneres européias, uni
ficou os objetivos econômicos e políticos dos principais grupos so
ciais, criando assim o contexto para a “universalização” da política
espanhola, ao mesmo tempo em que preservou a hegemonia burgue
sa. No contexto dessa “consciência européia”, a socialdemocracia es
panhola realizou o exercício político de tornar o capitalismo transna
cional mais aceitável para as classes subordinadas.
A aceleração do processo de integração da Espanha à Europa
na segunda metade da década de 1980, ela própria concomitante às
mudanças nas estruturas da ordem mundial, também reforçou a ne
cessidade de o país adaptar suas estruturas econômicas e sociopolíti
cas àquelas prevalecentes nos Estados-membros mais avançados. A
transferência de recursos dos países do Norte da Europa para os do
Sul europeu é, e continuará sendo, um fator essencial para que esse
processo de modernização seja bem-sucedido. Disso decorrem os
medos recentes de políticos e industriais espanhóis de que a abertura
da Europa Oriental desviará investimentos alemães para países como
I nternacionalização e democratização ♦ 337

a Polônia, a Hungria e a Tchecoslováquia, seguidos no seu devido


tempo por empresas de outros países do Norte da Europa.
No caso do Brasil, não surgiu uma opção alternativa como a
representada pela integração à Europa no caso da Espanha no período
i in questão. Por isso, a adaptação das estruturas econômicas brasilei­
ras aos mecanismos do fordismo atlântico teve efeitos diferentes
sobre suas estruturas sociais, políticas e ideológicas. Principalmente
no que diz respeito à configuração Estado-sociedade civil no Brasil,
l>ode-se concluir que a sociedade civil brasileira ainda não conseguiu
urn grau considerável de coesão auto-sustentável, deixando a hege­
monia burguesa e a democracia nascente extremamente vulneráveis
.1 uma luta constante inter e intraclasse. Deve estar claro que, nesse
<ontexto, a incorporação acelerada do Brasil à economia de crédito
internacional no final dos anos 1970 e no começo dos anos 1980 teve
<>eleito oposto ao que Gramsci chamou de “concordância de objeti­
vos econômicos e políticos”.
Ao tentar diminuir sua dependência tradicional dos Estados
l Jnidos, o Brasil adotou recentemente uma estratégia de diversifica­
d o de suas relações econômicas. Isso pode ser ilustrado pelo fortalc-
<imento das relações comerciais Brasil-Japão e pelo aumento dos in­
vestimentos japoneses no Brasil. Na verdade, dada a importância que
os analistas japoneses conferem ao Brasil como mercado comprador
•ie produtos japoneses, que deram ao país nota “A” com louvor em
termos de recursos industriais e “A” em termos de oportunidades de
mercado de massas (Nester, 1989, p. 395), é provável que os investi­
mentos japoneses no Brasil aumentem na década de 1990. Isso, por
mui vez, pode ser o prelúdio de um maior afastamento econômico e,
lmalmente, político dos Estados Unidos, dando novo ímpeto à opção
. Ie integração regional da América Latina.
O SOCIALISMO SOVIÉTICO E A REVOLUÇÃO PASSIVA
Kees van der Pijl

A tese deste capítulo é que o fim do socialismo soviético e o co­


lapso da antiga União Soviética devem ser interpretados em termos da
lransição de uma configuração particular de Estado-sociedade civil
para outra. A morte de um Leviatã hobbesiano, e não uma crise do so­
cialismo, marca igualmente seu fim. Mas não são apenas as observa­
ções de Gramsci sobre a importância da sociedade civil como esfera
separada do poder formal do Estado que justificam uma referência ao
.uitor de Cadernos do cárcere. Gramsci também esboçou uma teoria da
formação de classe “molecular” regulada pelas relações entre diferen-
Ics tipos de Estado que é particularmente relevante para o caso sovié-
lico.
Primeiro, resumiremos sucintamente essa teoria e, depois,
passaremos a interpretar, segundo os seus princípios, as várias fases da
história da antiga União Soviética, até a tentativa de golpe de Yanayev
em agosto de 1991, momento que catalisou a dissolução final da anti­
ga União Soviética.

A revolução passiva e as relações internacionais

Partimos da premissa de que as relações internacionais são


um aspecto do desenvolvimento social global pelo qual os Estados
atuam para articular as condições da produção social e do poder entre
dirigentes e dirigidos, e entre os Estados propriamente ditos. Como
cada unidade política combina em seu interior um conjunto histori­
camente concreto de forças sociais, refletindo o desenvolvimento de­
sigual de diferentes fragmentos de uma sociedade mundial imanente,
a formação do Estado e as relações internacionais espelham, de forma
mais aguda, os atritos no caminho que leva à integração global, tais
como a guerra combinada à revolução social (Rosenstock-Huessy,
1961).
340 ♦ K ees van der P i; l

Ao lado do crescimento do capital, com o qual a formação d«


Estado moderno interage, as estruturas sociais vão ficando mais parr
cidas e promovem a integração horizontal no núcleo do capitalismo,
Esse processo é favorecido pela tendência dos Estados capitalishtl
mais desenvolvidos de permitir à sociedade civil um espaço de auln
regulamentação mais amplo. Por isso, nos séculos XIX e XX, uma so
ciedade civil transnacional foi enxertada nos laços culturais entre o
Inglaterra e as colônias de povoamento brancas de língua inglesa, e x
piorando sua periferia por meio do mercado mundial, que se desen­
volveu até se tornar o que poderia ser chamado de núcleo lockiano.
A formação desse centro integrado do imperialismo ocidenlttl
passou por uma fase crítica quando, ao fim da Primeira Guerra Mun­
dial, os Estados Unidos lhe acrescentou sua influência. Com isso, dc» •
de seu início, o poder bolchevique teve de enfrentar a força unificada
da entente vitoriosa. Gramsci, escrevendo em 1919, tinha essa conll
guração de forças em mente ao avaliar as perspectivas da Revolução
de Outubro:
D urante a guerra, para satisfazer as dem andas da luta
contra a Alemanha imperial, os Estados que constituíram
a entente form aram um a coalizão reacionária, cujas fun­
ções econômicas estavam intensam ente centralizadas em
Londres, e cuja demagogia era coreografada em Paris... O
enorm e aparato adm inistrativo e político construído nessa
época ainda existe; fortaleceu-se e aperfeiçoou-se ainda
mais e agora é, efetivamente, o instrum ento da hegemonia
m undial dos anglo-saxões. Com a Alemanha imperial pros­
trada, e o Reich socialdem ocrata incorporado ao sistema
político-econôm ico global controlado pelo capitalismo an-
glosaxão, o capitalismo agora já forjou sua p rópria unida­
de e canalizou todas as suas forças para a destruição das
repúblicas com unistas. (Hoare, 1977, p. 81)

A interação entre uma configuração lockiana de Estado-socic


dade civil e a transnacionalização também pode ser reconstruída a
partir da obra de Gramsci. Assim, nos Cadernos do cárcere, encontra
mos comentários dispersos sobre o Estado lockiano anglo-saxão (por
exemplo, 1971, p. 261-262, 293), a tradição de autogestão na Ingla
O SOCIALISMO SOVIÉTICO E A REVOLUÇÃO PASSIVA ♦ 34 l

i.-rra e o Estado de direito (1971, p. 46, n. 186, 195) e as forças sociais


ti.msnacionais (como a Igreja Católica Romana, o rotarianismo e os
puleus), que servem para “mediar os extremos e 'socializar’ as desco­
bertas técnicas que fornecem estímulo a todas as atividades de lide-
i.mça, a fim de articular meios-termos, e saídas, para soluções extre­
mas” (1971, p. 182n).
No entanto, sobre as questões mencionadas acima, relativas ao
Kiado, ao direito e ao papel da Igreja e da religião, as reflexões de
i ,i amsci são incompletas e às vezes contraditórias, como pode se ver,
(n>r exemplo, na análise sobre o papel diretivo concreto dos Estados
l ínidos (Hoare, 1978, p. 284; 1971, p. 317).
Entretanto, é na fronteira entre o núcleo lockiano e sua perife-
i u imediata que o pensamento de Gramsci se torna mais pertinente
no que diz respeito à interação entre relações internacionais e forma-
<,.!<>de classe. A partir de suas notas sobre a Revolução Francesa e seus
■leitos na Itália e na Europa Central, podemos deduzir um modelo
|ura a relação entre a expansão do núcleo lockiano (no sentido do
.1 juste progressivo da configuração Estado-sociedade civil à estrutura
■le classe gerada pelo modo de produção capitalista) e os Estados m e­
nos desenvolvidos que se defrontam com essa expansão. Para Gramsci,
a relação histórica entre o Estado francês moderno nascido da Revolu-
.io e os Estados da Europa continental deve ser entendida em termos
■le quatro elementos (1971, p. 114):
1) a explosão revolucionária na França;
2) a oposição européia à Revolução Francesa e a expansão desta
.íléin da França;
3) a guerra entre a França, durante a República e sob Napoleão,
eu resto da Europa - inicialmente, para evitar a extinção da Repúbli-
■;i logo após seu nascimento e, depois, com o objetivo de estabelecer
.1 hegemonia francesa permanente, tendendo para a criação de um im-
Imrio universal;
4) revoltas nacionais contra a hegemonia francesa e o nasci­
mento dos Estados europeus modernos, mediante pequenas ondas
Micessivas de reformas, em vez das explosões revolucionárias, como
•.c deu originalmente na França. As “ondas sucessivas” foram consti­
342 ♦ K ees van der P íjl

tuídas por uma combinação de lutas sociais, intervenções vindas dc


cima, como as dos déspotas esclarecidos, e guerras nacionais - sendo
os dois últimos fenômenos predominantes.
O quarto elemento é o fator-chave dessa lista. Refere-se ao con
ceito usado por Gramsci para analisar o impacto de uma revolução
original sobre uma sociedade que lhe opõe resistência no plano polí
tico: o conceito de revolução passiva. A revolução passiva combina a»
seguintes noções: 1) uma “revolução feita a partir de cima”, sem parti
cipação das massas (as pequenas ondas sucessivas de reformas e “in
tervenções vindas de cima, como as dos déspotas esclarecidos”); c
2) uma transformação social demorada, “molecular”, na qual a classe
progressista se vê forçada a avançar de forma mais ou menos sub'
reptícia, “fazendo concessões”. Sua estratégia política tem de ser ade­
quada a essa situação, pois, numa revolução de massas, a classe revo­
lucionária pode levantar a questão do poder aberta e diretamente, c
adotar cursos de ação resumidos na noção gramsciana de “guerra de
manobra” (ou guerra de movimento); mas, nas condições da revolu
ção passiva, ela só pode ter esperanças de conquistar terreno com
uma “guerra de posição” mais prolongada (Gramsci, 1971, p. 108).
Os limites da análise de Gramsci estão em sua concentração
unilateral na luta política e em seu relativo desinteresse pelo desen
volvimento do capital no plano internacional. Poderiamos dizer que
a Revolução Francesa foi, ela mesma, uma expressão do fracasso da
França absolutista do final do feudalismo para manter sua estratégia
mercantilista e ficar em pé de igualdade com a supremacia inglesa no
mercado mundial. Enquanto a classe dirigente inglesa pôde permitir
a regulamentação da exploração e que a autoridade fosse delegada do
Estado para a sociedade civil, refletindo a coesão social fundamentada
na economia de mercado mais desenvolvida e na ideologia do capita­
lismo industrial, na França e em outros países continentais, o poder
do Estado e a exploração econômica ainda estavam mais diretamente
entrelaçados. Assim, a uma pequena distância espacial e temporal do
centro anglo-saxão do desenvolvimento social global, persistia uma
configuração de Estado-sociedade civil que havia sido idealizada no
Leviatã de Hobbes, texto que deixou de ser relevante para a autocons-
ciente burguesia inglesa da época da Revolução Gloriosa. Mas, exata­
O SOCIALISMO SOVIÉTICO E A REVOLUÇÃO PASSIVA ♦ 343

mente por causa da proximidade do confronto, o Estado hobbesiano


tendeu a se transformar no que Gramsci (1971, p. 117) chama de “um
absoluto racional”.
Nessas condições, a emancipação da auto-regulamentação da
sociedade civil em relação ao Estado foi adiada pela concentração de
todas as forças sociais no Estado. Não só na França, mas em todos os
listados retardatários subseqüentes, a prolongada fase hobbesiana,
t ípica da revolução passiva, dificultou a transição para a configuração
lockiana e sua integração a esta (Cohen-Tanugi, 1987, p. 6). O proces­
so de acumulação original, premissa hobbesiana da transformação da
sociedade agrária e, por fim, da acumulação de capital, torna-se tarefa
estatal que transforma o interior do país no equivalente funcional
dos mercados e colônias de além-mar (Lefebvre, 1976, p. ii, 35-36).
( iramsci chegou a considerar - exagerando, talvez - que
[...] a autogestão só foi possível na Inglaterra, onde a clas­
se de proprietários de terras, além de sua condição de in ­
dependência econômica, nunca entrou em conflito violento
com a população (como aconteceu na França) e não teve
grandes tradições militares corporativas (como na Alema­
nha), com a separação e a atitude autoritária que deriva
destas. (1971, p. I86n; entretan to , ver tam bém M oore,
1977)

Desse modo, chegamos ao seguinte esquema: uma revolução


pode ser reprimida pela contra-revolução em países vizinhos, mas a
própria necessidade de conter as forças revolucionárias (combinando
Estados e um determinado modo de produção) força a contra-revolu­
ção a acelerar as mudanças às quais procura resistir politicamente.
]sso, por sua vez, permite ou convida a classe progressista a se desen­
volver de forma molecular, por meio de uma “guerra de posição”. A
Revolução Russa ocorreu numa configuração complexa de forças,
uma vez que esse padrão já tinha se repetido várias vezes: Inglaterra/
frança; França/Europa continental; Estados Unidos e Europa em re­
lação ao Japão; Europa Ocidenlal/Rússia etc., enquanto a acumula­
ção de capital promoveu a autonomização do Estado no mundo de
língua inglesa como corolário da integração. Portanto, embora a Re­
volução Bolchevique tenha representado uma ameaça revolucionária
n
344 ♦ K ees van der P ijl

ao mundo capitalista (gerando uma revolução passiva, por meio drt


qual a socialdemocracia em particular poderia avançar “de formn
molecular”), a integração do imperialismo anglo-americano revigo \
rou a revolução burguesa. A nova vitalidade do capitalismo colocou n
antiga União Soviética na defensiva, gerando paradoxalmente umu I
revolução passiva dentro do “socialismo num só país” que reprodu
ziu aspectos das experiências “hobbesianas” anteriores, principal
mente na Alemanha do século XIX, mas que também permitiu o de­
senvolvimento, no contexto da economia planejada, de uma classe
progressista. i
No resto deste capítulo, vamos nos concentrar no aspecto russo
da equação. Discutiremos, em primeiro lugar, o processo de acumu­
lação original dirigido pelo Estado que levou à Revolução de Outu
bro; em segundo lugar, a mudança para o “socialismo num só país",
colocando novamente a União Soviética na posição de um Estado que
resistia à dinâmica de uma civilização superior; em terceiro lugar, u
internacionalização do stalinismo; e, por fim, o episódio da Perestrói
ca, que terminou com a tentativa de golpe de Yanayev e o colapso dit
antiga ordem.

A Rússia czarista da revolução passiva à explosão socialista

A teoria da revolução de Marx e Engels afirma que uma trans


formação deveria começar com o colapso de estruturas políticas ins
táveis “nas extremidades do organismo burguês”, desencadeando
uma série de mudanças que, finalmente, atingiríam o núcleo do ca
pitalismo desenvolvido. Em 1850, quando formulou essa possibilida
de pela primeira vez, Marx via a França e a Alemanha como periferia
e a Inglaterra como área central (MEW, v. 7, p. 97). À medida que a cs
fera de ação do capital expandiu-se por toda a Europa, a Rússia passou
a ser cada vez mais identificada como essa “extremidade do organis
mo burguês”. Nela os desvios inerentes à acumulação original eram
os mais agudos, e o absolutismo do czar, altamente instável. O Estado
russo corrupto mantinha-se, nas palavras de Engels, “com grande di­
ficuldade, por meio de um despotismo oriental [...] que, em sua en­
carnação atual, tornou-se confuso internamente”, governando um
O SOCIALISMO SOVIÉTICO E A REVOLUÇÃO PASSIVA ♦ 345

país que se transformava rapidamente numa nação capitalista indus­


trial. A proletarização em massa dos camponeses e a desintegração
das comunidades aldeãs foram os marcos dessa metamorfose (MEW,
v. 18, p. 567; ver também MEW, v. 19, p. 115).
Quando a derrota na Guerra da Criméia acabou com a auto-
complacência que persistira depois da luta contra Napoleão, a auto­
cracia começou um processo atrasado de modernização a partir de ci­
ma. A emancipação dos servos em 1861 e a abolição do poder admi­
nistrativo dos proprietários de terras promoveu a proletarização e
,i diferenciação entre Estado e sociedade (Berend e Ranki, 1982,
p. 40-41). Mas a debilidade da burguesia russa transformou a social-
democracia na vanguarda das forças progressistas, embora o m ar­
xismo ortodoxo, incluindo Lenin, tenha se apegado à idéia de uma
democracia radical, e não à possibilidade de uma revolução socialista
na Rússia (Lõwy, 1981, p. 36-38).
A classe operária propriamente dita ainda estava em fase de
formação. Por volta de 1899, os operários migrantes, que viviam de
sua terra durante o verão e retornavam a suas aldeias até mesmo nos
lins de semana do inverno, ainda eram camponeses em termos de
mentalidade. Camponeses-operários organizados em artéis, dirigidos
por um capataz que vendia sua força de trabalho a um empregador,
i onstituíram a fase seguinte. Abrigados em barracos com suas famí­
lias ainda vivendo nas aldeias, os companheiros do artel substituíam,
em certa medida, a comunidade familiar. No terceiro estágio, os ope­
rários estavam em contato direto com os donos das fábricas, viviam
com suas famílias perto da fábrica e só voltavam à aldeia na velhice.
()s operários da indústria têxtil viviam dessa forma. Só os trabalhado­
res empregados nas indústrias metalúrgicas e de máquinas, vivendo
com a família nas cidades industriais em residências individuais, po­
diam ser considerados um proletariado maduro. “Falando em termos
gerais, havia muito mais camponeses do que operários na jornada ha­
bitual às fábricas, mas o movimento também teve sua vanguarda pro
letária, embora sem força suficiente para comprovar os princípios
marxistas.” (von Laue, 1967, p. 74-75).
Para a maior parte da classe operária emergente (à qual se jun-
laram cerca de 10 milhões de aldeões para os objetivos de guerra de­
9

346 ♦ K ees van der P ijl

pois de 1914), o choque de ser arrancado das condições de vida do sé


culo XVII foi a principal experiência. Esse choque tende a produzir i»
tipico estado de colapso dos antigos sentidos de identidade e comunl
dade, a anomia, que ideologias radicais podem transformar num
novo sentido de comunidade, mas que não pode ser comparado
com a consciência avançada de classe (Anderson, 1983; Vielle, 1988,
p. 233-234).
O “absoluto racional” que o Estado representa na área da revo
lução passiva também conformou a atitude geral e o programa políll
co da socialdemocracia - e a experiência alemã foi paradigmálicrt
nesse sentido. Comentando os princípios lassallianos do Programa
de Gotha de 1875, Marx enfatizou o fato de que a maioria do “povo
trabalhador” da Alemanha ainda vivia da terra. Porém, ao declantr
que as demais classes eram uma única massa reacionária, o partido
coloca todas as esperanças no Estado nacional. Na visão de Marx, esHtí
era uma estratégia autodestrutiva. Como os operários alemães pode
riam resistir à burguesia internacional já unificada contra eles se o
seu internacionalismo era mais tímido do que aquele dos defensorc»
burgueses do livre-comércio? Sua conclusão foi que, por causa do
premissa dos socialistas alemães de que o Estado era “uma entidade
autônoma”, que possuía seus próprios “fundamentos espirituais, mo
rais e libertários”, em vez de ser a forma concreta do Estado de uma de
terminada sociedade, as demandas dos socialistas alemães continua
ram dentro dos limites das demandas da burguesia de outros lugarcn
(MEW, v. 19, p. 18).
Na Rússia, as demandas da socialdemocracia eram as derrum
das da “burguesia de outros lugares”. Para começo de conversa, n
conceito de partido de vanguarda defendido por Lenin já havia sitio
prescrito pela pequena linha de frente proletária que enfrentava o
universo dos camponeses semiproletarizados da Rússia. O gênio táli
co de Lenin reside em seu entendimento da complexidade das força*
sociais que o Partido Bolchevique devia liderar, entre as quais se
incluíam minorias nacionais. Criticando revolucionários doutriná
rios que só queriam a participação de socialistas puros na revolução,
ele escreveu:
O SOCIALISMO SOVIÉTICO E A REVOLUÇÃO PASSIVA ♦ 347

Im aginar que a revolução social seja concebível sem a


revolta de pequenas nações, nas colônias e na Europa, sem
explosões revolucionárias de estratos da pequena burguesia
com todos os seus preconceitos, sem um m ovim ento das
massas proletárias e semiproletárias sem consciência políti­
ca contra a opressão dos proprietários de terras, da Igreja e
da monarquia, contra a opressão nacional etc. - imaginar tu ­
do isso é repudiar a revolução social. (MEW, v. 22, p. 355)

A revolta das massas em 1917 acabou sendo expressa em


lermos religiosos, dirigida contra um processo de acumulação origi­
nal monitorado pelo Estado que estava acabando com a vida tradicio­
nal do povo, processo esse exacerbado pelos horrores da guerra. So-
cialmente, a Revolução Russa, como diz Moshe Lewin, foi um “movi­
mento de indignação cristã contra o Estado” enraizado num “anties-
latismo espontâneo das massas rurais” (1985, p. 269). A acumulação
original e seus desvios, não a luta de classes contra a burguesia, gerou
.i massa crítica para a insurreição liderada pelos bolcheviques. “A ba­
se social da Revolução Bolchevique”, observa Hough, “assim como a
da revolução de Khomeini no Irã, foi propiciada pelas massas de anti­
gos camponeses que chegavam à cidade”, e o componente do operário
migrante imprim iu à revolta uma tendência velada à xenofobia
(1990, p. 48).
A necessidade de manter a natureza proletária da revolução
exigia sair do contexto russo.
O verdadeiro obstáculo à im plem entação de um progra­
ma socialista de um governo operário na Rússia não seria
tanto o econômico - isto é, o atraso das estruturas técnicas
e produtivas do país - mas o político: o isolamento da clas­
se operária e a ruptura inevitável com seus aliados cam po­
neses e pequeno-burgueses. Só a solidariedade internacional
p od eria salvar a revolução socialista na Rússia. (Lõwy,
1981, p. 56)

Depois da derrota da revolução na Europa Central (Hungria,


Alemanha), a Revolução Russa voltou a contar apenas consigo mes­
ma e foi obrigada a se entrincheirar atrás de um poder estatal unifica­
do. Isso também implicou revogar os direitos que, com a perspectiva
do avanço da revolução, haviam sido previamente garantidos às nrt
cionalidades. A guerra civil e a intervenção estrangeira convencentill
os bolcheviques de que estavam, como disse Lenin em 1919, “vivendo
não apenas num Estado, mas num sistema de Estados” (MEW, v. 29,
p. 153). Mas, na raiz do Estado centralizado estava a relação incipien
te entre Estado e sociedade. Sem o pluralismo de uma sociedade civil
emancipada, na qual frações da classe dominante podem se reagrupar
(tanto no plano transnacional quanto no nacional) em blocos hego
mônicos sem necessariamente colocar em cena o poder do Estado, *
configuração indiferenciada de Estado-sociedade civil só permilç
uma única ordem política fixa e uma única classe estatal (política)»
isto é, uma classe que deve sua unidade principalmente ao Estado p,
por isso, a rigor, é mais um Estado do que uma classe (Fernánde/,
1988; Cox, 1987).
Embora nesse tipo de contexto uma revolução possa transpor
o poder do Estado diretamente por meio de uma “guerra de mano
bra”, não tem os pré-requisitos para articular interesses e aspiraçúc»
num acordo social orgânico subjacente ao conceito hegemônico d<*
controle. Com isso o tema unificador, que tende a continuar sendo o
que Gramsci chama de “mito revolucionário”, deixa de existir, “dl*
persando-se numa infinidade de vontades individuais que, na iàsp
positiva, tomam caminhos separados e conflitantes” (1971, p. 128).
Depois da Guerra Civil, na qual os camponeses ainda ficaram
ao lado dos bolcheviques contra os brancos e seus simpatizantes oci
dentais, a retirada para a Nova Política Econômica teve o efeito de li
berar essas forças “separadas e conflitantes”. O contraste, principal
mente entre os centros industriais “socialistas” e o interior anarco
liberal aumentou rapidamente (Laird e Laird, 1970, p. 37).

O stalinismo como revolução passiva

A consolidação do poder soviético no que pôde ser mantido do


território da antiga Rússia czarista deixou os bolcheviques na defensi
va perante a burguesia ocidental. O Comintern continuou apegado à
noção da “crise geral do capitalismo”, mas Gramsci (1971, p. 11H)
(embora alimentasse a idéia de que a Revolução Russa geraria uma
O SOCIALISMO SOVIÉTICO E A REVOLUÇÃO PASSIVA ♦ 349

revolução passiva na Itália) considerava a conclusão do acordo


comercial entre soviéticos e ingleses, assinado em 1921, um retroces­
so para a revolução. Mesmo que representasse uma vitória política
para o governo dos trabalhadores em Moscou, o acordo permitiu que
o capitalismo se tornasse, para os camponeses o fator que restaurara a
produção. “Os próprios alicerces do Estado dos trabalhadores foram
danificados e corroídos por esse fato [...] a força do proletariado russo
loi reduzida economicam ente pelo acordo”, observou Gramsci
(iíoare, 1978, p. 27-28).
O reforço, a princípio tático, do Estado passou a ser cada vez
mais definido pela dependência objetiva do Ocidente. A formação de
uma classe estatal típica do Estado hobbesiano, a desapropriação da
esfera civil (Carrère d’Encausse, 1980) e a transformação do vanguar-
dismo internacionalista em mobilização nacional de massa (isto é,
de toda a antiga União Soviética) da população desarraigada desen-
volveram-se de mãos dadas.
Quanto à classe estatal, em 1920 foram criados departamentos
do Comitê Central e dos comitês regionais - responsáveis pelo regis-
t ro e nomeação de funcionários -, os Uchraspreds. Em 1922, ano em
que Stalin se tornou secretário-geral, o “Uchraspred fez mais de dez
mil nomeações e, em 1923, expandiu suas atividades” (Voslensky,
1984, p. 48-49). O sistema da nomenklatura que se desenvolveu sobre
essa base coincidiu com a ascensão de Stalin como expoente: 1) do la­
do administrativo do poder bolchevique; 2) da passagem da defesa da
revolução mundial para a consolidação da revolução no antigo impé­
rio czarista, com a necessidade de controlar tendências centrífugas
naquele contexto; e 3) da necessidade de empregar e controlar os es­
pecialistas burgueses (compare as três funções de Stalin: secretário-
geral do partido, comissário do Povo para as Nacionalidades e chefe da
Inspeção de Camponeses e Operários).
A transformação do Partido Bolchevique numa organização
da classe estatal começou em meados da década de 1920. Ainda que
no exterior o número de membros do Partido Comunista tenha caído
para a metade entre 1922 e 1931, o partido soviético bateu recordes de
participação, mesmo que, por causa da guerra civil, a classe operária
sociológica em grande parte tenha se desintegrado (Ellenstein, 1975,
350 ♦ K ees van der P ijl
Tfc-
í-

p. 13-14; Claudin, 1975, p. 112). A tarefa do partido transformado dl -


rigiu-se para o front doméstico, onde serviu, depois de 1927-1928, df
cadeia de comando na retomada do processo de acumulação origi uai
sob os auspícios do Estado hobbesiano. Entre os bolcheviques intef
nacionalistas, foi Bukharin quem percebeu esse vínculo com maior
clareza. “Foi ele que usou, no Comitê Central, o termo forte e provo
cador de ‘Estado-Leviatãj que resultaria do sistema de ‘exploração ml
litar-feudal do campesinato’ que Stalin e seus seguidores estavam em­
pregando na industrialização” (Lewin, 1985, p. 19-20).
Em parte por estar sitiado pelo imperialismo, em parte pela
ameaça da espada fascista da contra-revolução, a desapropriação e U
domínio da sociedade soviética pelo Estado não tiveram precedeulcm
O Estado em penhou-se num a organização confusa,
apressada e com pulsiva da e stru tu ra social, ob rig an d o
seus grupos e classes a entrarem num m olde em que a
m aquinaria adm inistrativa-e-coercitiva m antinha sua supe­
rioridade e autonom ia. Em vez de “servir” à sua base, o
Estado, usando os poderosos meios à sua disposição (pla­
nejam ento central, com unicações m odernas e mecanismos
de controle, m onopólio das inform ações, liberdade para
usar a coerção a seu bel-prazer) conseguiu pressionar o
organism o social para servir seu p róp rio âiktat. (Lewin,
1985, p. 265)

No entanto, como em experiências anteriores desse tipo, a un


tiga União Soviética isolada estava tentando freneticamente imitai1o j
inimigo em aspectos essenciais. A tendência autárquica inerente í\ '
política econômica do período - depois de uma alta inicial, o comér
cio exterior novamente teve uma queda drástica, em 1937, para cerol
da metade do volume de 1929 (van der Pijl, 1982, p. 72, tabela I )
não afastou o desenvolvimento econômico soviético dos moldes csla
belecidos pelo capitalismo avançado. Como uma típica revolução
passiva, a industrialização soviética foi uma imitação - controlada
pelo Estado - de um tipo mais avançado de relações sociais e prodtili
vas, nesse caso o taylorismo e a produção em massa fordista.
Abandonando sua dependência inicial da tecnologia alemã, o* j
planejadores soviéticos recorreram, no final da década de 1920, a uma !
firma de engenharia norte-americana, a A. Kahn Organisation. Por [
O SOCIALISMO SOVIÉTICO E A REVOLUÇÃO PASSIVA ♦ 351

honorários que totalizaram 2 bilhões de dólares entre 1928 e 1930, a


Kahn definiu os projetos dos dois primeiros planos, realizou cursos
ilr treinamento na área de administração e controlou diretamente
(no caso das instalações militares, por meio de engenheiros estrangei-
i os que eram membros do Partido Comunista) o desenvolvimento de
iodo o leque da indústria leve e pesada da União Soviética. “Aassistên-
i ia ocidental”, escreve A. C. Sutton, “foi canalizada pelos soviéticos
para objetivos simples e bem definidos, como os de construir novas
unidades gigantes de produção em massa para fabricar grande quanti­
dade de modelos padronizados simplificados, com base em designs
ocidentais de qualidade comprovada, que não sofreriam modifica­
r e s durante um longo período. Portanto, depois da transferência da
k cnologia ocidental, a simplificação, a padronização e a imitação
(ornaram-se os aspectos operacionais da estratégia industrial sovié­
tica” (apud Spohn, 1975, p. 240).
A retomada da acumulação original sob os auspícios do Estado
r a nacionalização do “mito” revolucionário original geraram uma
i ontradição entre a classe estatal soviética, os internacionalistas do
( iomintern e o Partido Comunista da União Soviética (PCUS). Essa
contradição foi resolvida pelos expurgos feitos depois de 1934, nos
julgamentos de Moscou; pela dissolução do Comintern em 1943; e
pelos expurgos e julgamentos-espetáculo da Europa Oriental no iní­
cio dos anos 1950. Ao mesmo tempo, esses foram momentos da luta
pela qual a classe soviética destruiu os revolucionários internaciona­
listas, primeiro os bolcheviques propriamente ditos e, depois, a gera­
ção da Frente Popular da Europa Oriental.
Os expurgos de Stalin e a demonização de Trotski como ex­
poente emblemático das revoluções mundiais serviram para galvani­
zar a unidade e a consciência de classe da classe estatal ascendente.
Também foram além, no sentido de que a própria classe estatal foi
submetida ao terror, reflexo da impossibilidade de diminuir a veloci­
dade da construção para um ritmo mais tolerável, uma impossibili­
dade interpretada subjetivamente como traição.
Essa segunda dimensão do terror do alto stalinismo refletiu a
configuração do novo terreno político depois da destruição dos bol­
cheviques internacionalistas, quando a principal contradição da elite
352 ♦ K ees van der P ijl

governante da antiga União Soviética passou a ser a própria nomenklti


tura. Na década de 1920, isso já tinha se tornado evidente nos atrito»
entre a burocracia do partido e a elite de profissionais da Comissão d*
Planejamento Estatal (Konrád e Szelényi, 1981, p. 283). Mas, quando
o ritmo frenético da construção - coincidindo com a culminação da
autarquia e do fechamento político - chegou a seu apogeu, os requisl
tos técnicos estavam inteiramente subordinados à teleologia univor
salizante. Legitimado em termos de uma dialética semi-hegeliaua, o
terror, em seu ápice, tornou-se de fato inteiramente “espiritual”, tor
nando-se autônomo em relação aos verdadeiros parâmetros da socip
dade que procurava transformar.
A definição de Marx sobre o terrorismo da Revolução Franctf
sa, de não ter sido “nada além do que uma forma plebéia de enfrentar
os inimigos da burguesia, o absolutismo, o feudalismo e o fílistinl»
mo” {apud Blishchenko e Zhdanov, 1984, p. 20), pode ser generaliza
da para o terror stalinista. Agora dirigido contra aqueles que resistiam
à política do “socialismo num só país”, ou que apenas haviam fraca»
sado em manter o ritmo de suas marchas forçadas, o terror stalinisU
apresentou suas decisões ao povo em termos de uma luta entre as for­
ças do progresso e os demolidores que tentavam conspirar contra
elas. Essas imagens eram apropriadas para um povo que estava na»
garras da anomia gerada pela acumulação original - não apenas parti
aqueles que abraçaram um mito revolucionário transformado em
doutrina estatal, mas, em termos mais gerais, para “mentes instruída»
em bruxas, demônios e ‘forças do mal’, e que acreditavam nelas”, da
terra russa, onde, “na década de 1920, as seitas rurais estavam sc ex
pandindo vigorosamente às custas da Igreja Ortodoxa oficial” (Lewin,
1985, p. 17).
Começando com os estágios iniciais da Segunda Guerra Mu»
dial, um relaxamento periódico tornou-se necessário para permitir
que o elemento tecnocrático funcionasse minimamente, processo
que entrou num estágio qualitativamente novo com a desestalinizn
ção. Daí em diante, o socialismo soviético da antiga União Soviética i*
dos outros países passou a se caracterizar por uma “alternância palpi
tante de concessões com repressão” pelo elemento ideológico perante
o elemento tecnocrático na nomenklatura e a classe estatal em geral
O SOCIALISMO SOVIÉTICO E A REVOLUÇÃO PASSIVA ♦ 353

(Konrád e Szelényi, 1981, p. 289). À medida que esse processo evo­


luiu, até chegar a um acordo estrutural de classe, houve uma diferen­
ciação entre Estado e sociedade que criou oportunidades para uma
classe de quadros tecnocráticos e democráticos de administradores,
educadores e especialistas de todos os tipos (Bihr, 1989). No entanto,
até muito recentemente, seu avanço no sentido de uma “ciasse pro­
gressista” no contexto da revolução passiva continuou a ser feito de
maneira sub-reptícia, baseada em mudanças moleculares dependen-
ics de iniciativas “de cima”.

A internacionalização do stalinismo

Em seu leito de morte, Lenin refez o projeto da revolução


mundial, levando ainda mais para a periferia as coordenadas das “ex-
Iremidades do organismo burguês”. A índia e a China tinham se tor­
nado o terreno da acumulação original e a guerra tinha acabado com
d autocontentamento anterior delas. “A fermentação geral na Europa
começou a afetá-las e agora está claro para o mundo inteiro que elas
se deixaram levar por um processo de desenvolvimento que conduzi­
da necessariamente a uma crise em todo o capitalismo mundial”
(MEW, v. 33, p. 498-501).
As características particulares da União Soviética de Stalin -
listado forte, confisco da esfera civil, formas extremistas de mobiliza­
ção política e terror para fazer progredir e controlar o elemento técni-
co-executivo da revolução passiva, ao mesmo tempo em que oferecia
uma “comunidade imaginada” às massas - eram tão funcionais na
periferia quanto restringiam a influência com unista no núcleo
lockiano. Como Lenin em sua crítica ao “comunismo de esquerda”,
Cramsci concluiu que
[...] era necessário passar da guerra de m ovim ento, aplicada
vitoriosam ente no O riente em 1917, para a guerra de posi­
ção, que era a única form a possível no Ocidente [...]. Na
Rússia, o Estado era tudo, a sociedade civil era primitiva
e gelatinosa; no Ocidente, havia um a justa relação entre
Estado e sociedade civil e, quando o Estado estremecia, re­
velava-se im ediatam ente a robusta estrutura da sociedade
civil. (1971, p. 237-238)
354 ♦ K ees van der P ijl

A bolchevização dos partidos comunistas no exterior, intera


gindo com a centralização do Comintern, serviu para impor o modc
lo soviético também na Europa. Mas o perfil hobbesiano do partido
stalinista, que combinava autoritarismo com uma atitude maniptt
ladora diante das forças sociais, só atraiu trabalhadores dos estágio»
iniciais da industrialização, aqueles que já haviam ultrapassando o
anarquismo compatível com a prim eira geração de camponeses
transformados em operários, mas ainda não estavam completamente
integrados ao universo das mercadorias em que todas as relações so
ciais são percebidas em termos do valor de troca. Em setores semi
industriais, como a mineração, o trabalho nas docas ou a construção
civil - nos quais os trabalhadores se organizam em equipes que ven
dem coletivamente, e de forma temporária, sua força de trabalho - e,
em termos mais gerais, em países como a Alemanha pré-fascista, a
França e a Itália, onde era possível recrutar um eleitorado de segunda
geração com um passado anarco-sindicalista, os partidos comunista»
consolidaram-se (Lorwin, 1967, p. 66-69). Na moderna indústria ca
pitalista, as teses soviéticas sobre um capitalismo decadente careciam
de credibilidade, dado o desenvolvimento espetacular das forças pro
dutivas nos Estados Unidos durante a década de 1920 e, mais tarde, no
noroeste da Europa. O imperialismo social e os mecanismos ideoló­
gicos, eficazes principalmente onde mecanismos de exploração dire­
ta estão ocultos, marginalizaram ainda mais os partidos comunistas.
No entanto, mesmo quando já tinham refluído as ondas de
choque da Revolução de Outubro e as concessões memoráveis que o
Ocidente foi obrigado a fazer por causa dela - como o sufrágio univer
sal e a legislação social - , o modelo soviético continuou a exercer
pressão sobre o capitalismo avançado. Sua influência interagiu com
o processo de socialização da produção e de reprodução gerado pela
acumulação de capital. A classe de quadros qualificados ou tecnocrá
ticos associada a esse processo, “avançando sub-repticiamente” no
sentido de apoiar o planejamento econômico, o pleno emprego e a le
gislação social, constituiu uma força “entre a burguesia e o proíeta
riado” (Bihr, 1989). No contexto da Guerra Fria, a classe de quadros
tecnocráticos e administrativos da Europa conseguiu representação
política, principalmente na socialdemocracia. Portanto, foram os
O SOCIALISMO SOVIÉTICO E A REVOLUÇÃO PASSIVA ♦ 355

partidos socialistas, e não os comunistas, que se desenvolveram,


transformando-se em partidos que negociavam a mudança “molecu­
lar” no capitalismo avançado (Bahro, 1978, p. 157).
Objetivamente, havia similaridades substanciais entre a classe
de quadros (ou tecnocracia) ocidental e oriental - tanto em termos de
papéis quanto em termos de consciência social. De certo modo, a
classe de quadros soviética também estava situada entre o proletaria­
do e a burguesia (internacionais). Portanto, a mudança de nome dos
partidos, que deixaram de ser comunistas e passaram a ser socialde-
mocratas no período da Perestróica, não foi apenas tática e cosmética:
refletiu um processo real de emancipação da classe de quadros tecno-
cráticos (ver Szelényi e Szelényi, 1991).
Para Moscou, a impossibilidade do avanço da revolução na
Europa foi interpretada como traição e, mais tarde, como cumplici­
dade com o fascismo. Porém, diga-se de passagem, Stalin tinha pouco
interesse pela revolução mundial. “Sua falta de entusiasmo pelo
Comintern e pelos comunistas estrangeiros era notória”, escreve Carr.
Exceto no V Congresso do Comintern, realizado em 1924, quando
estava ativo nos corredores, mas não apareceu nas sessões plenárias,
ele nunca participou de um congresso do Comintern” (Carr, 1982,
p. 403-404). Após a queda de Zinoviev c o afastamento de Bukharin
dos assuntos do Comintern depois do VI Congresso, em 1928, e da
promulgação por ele da linha stalinista ultra-esquerdista de “classe
contra classe” que refletia a proposta de coletivização e de industriali­
zação, os ajustes nesse curso autodestrutivo, que tinham em mira a
ascensão de Hitler ao poder, ficaram a cargo de líderes comunistas
não soviéticos. Dimitrov, que havia desafiado os juizes nazistas no
julgamento do Reichstag, tornou-se o herói do VII Congresso do
Comintern em 1935.
Embora aparentemente retornando a um formato de Estado
nacional (o partido americano pediu até seu desligamento do Co­
m intern em 1939 para enfatizar isso, e a própria entidade foi
dissolvida por Stalin em 1943), o VII Congresso, em sua luta contra o
fascismo, gerou um novo internacionalismo que logo depois seria
testado nos campos de batalha da Espanha e na Resistência durante a
Segunda Guerra Mundial. Os julgamentos de Moscou já haviam ser­
356 ♦ K ees van der P ijl

vido para destruir a base que esses internacionalistas ainda tinham nu


cidade, e a caça aos trotskistas logo se estendeu para as linhas de frenle
da Espanha e, mais tarde, para a resistência antifascista.
Depois da Segunda Guerra Mundial, o alvo da liderança sovié
tica continuou sendo a consolidação do reconhecimento que havia
conquistado com a aliança da época da guerra, confirmado em Ialta c
Potsdam. Mas uma onda de aspirações populares vinda de baixo
ameaçava o status quo diplomático alcançado dessa forma. Stalin se
empenhava em eliminar essa ameaça, mas as fórmulas de 1935, refor
çadas pelo patriotismo democrático alimentado durante a Resistên ­
cia ao fascismo, ainda animavam os partidos comunistas da Europa,
Na Ásia, as revoluções na China, na Coréia e no Vietnã também esta
vam avançando, independentemente dos acordos entre as grandes
potências.
O embargo econômico que acompanhou o Plano Marshall - c
a ofensiva ideológica do mundo livre da qual o plano fazia parte - tra
çou uma linha divisória muito nítida entre a Europa Oriental e a Eu
ropa Ocidental, e ameaçou diminuir o controle soviético na Europa
Oriental dois anos após a vitória dos aliados. Coalizões dirigidas por
comunistas na esfera de influência soviética foram postas à prova
nessa época, e substituídas - de forma mais dramática cm Praga - pe
lo governo do partido único comunista, quer formalmente, quer dc*
fato. O enorme conflito entre o stalinismo e um tipo hegemônico dc
poder - preferido pelos internacionalistas da Europa Oriental seguin
do o espírito de 1935 - , e entre uma economia autárquica de planeja
mento central subordinada a uma ideologia fixa e uma economia
também inserida na divisão capitalista internacional de trabalho pas
saram para o primeiro plano. As lutas da antiga União Soviética no»
períodos pré-guerra - entre internacionalistas e a classe estatal e, anlc»
da Segunda Guerra Mundial, entre ideólogos e tecnocratas-voltaram
à tona e, com elas, as formas “plebéias” de representá-las, por mais
impróprias que fossem à luz do maior desenvolvimento político da
população.
Os agentes que operavam pelos canais partidários, na Europa
Oriental, com o apoio da força - serviço secreto, polícia, exército (o
marechal soviético Rokossovski tornou-se ministro da Defesa da Po
O SOCIALISMO SOVIÉTICO E A REVOLUÇÃO PASSIVA ♦ 357

lônia) serviram para impor o controle soviético. Somente no caso


da Iugoslávia, a tentativa de obrigar Tito a acelerar a liquidação do ca­
pitalismo e a romper seus vínculos com o Ocidente teve de ser feita
pelo correio, uma vez que os comunistas iugoslavos tinham consegui­
do manter o controle de seu aparato de segurança.
Tito foi excomungado e travou-se uma luta contra os sobrevi­
ventes do VII Congresso do Comintern da Europa Oriental, os quais
tinham conquistado sua reputação na Espanha, na Resistência e na
reconstrução do pós-guerra. Julgamentos-espetáculo levaram à eli­
minação desses sobreviventes na Hungria, na Bulgária (Dimitrov
morreu de morte natural antes que a situação chegasse a esse ponto)
e na Tchecoslováquia. “Homens como você, com seu passado, suas
idéias, seus conceitos, seus contatos internacionais, não foram feitos
para países que estão em processo de construção do socialismo”, dis­
seram a Artur London, veterano da Guerra Civil Espanhola e secretá­
rio de Estado em Praga quando o prenderam. “Temos de nos livrar de
você” (London, 1970, p. 59).
Ao mesmo tempo, também na própria União Soviética, a ideo­
logia triunfava sobre os conhecimentos técnicos especializados no
interior da própria classe estatal. O chefe da Gosplan, N. Voznesenskii,
que estava considerando um relaxamento do centralismo extremo,
foi removido em 1949 e morreu um ano depois, ao passo que, em
1948, a teoria genética de Lysenko triunfou sobre seus críticos (Nove,
1978, p. 298). O planejamento central e a economia controlada foram
transpostos, então, para os países do Leste Europeu, tendo sido intro­
duzido também o modelo de acumulação original voltado para o de­
senvolvimento econômico autárquico, mesmo que vários de seus
países fossem mais desenvolvidos que a antiga União Soviética. O fra­
casso dessa mudança constituiu, para a União Soviética, a peça funda­
mental da acusação de Slansky, o secretário-geral do partido tcheco, e
de outros acusados junto com ele (London, 1970, p. 267).
Ainda que as políticas de embargo norte-americanas tenham
dificultado as exportações ocidentais - apesar de não terem sido efica­
zes no campo da produção técnica e dos licenciamentos -, o desen­
volvimento técnico dos países socialistas continuou empregando
como modelo o exemplo ocidental (Boot, 1982, p. 32). A lógica da
358 ♦ K ees van der P íjl

corrida armam entista, no entanto, manteve a tecnologia militar da


antiga União Soviética, basicamente, nos limites do modelo criado
pela liderança dos Estados Unidos, embora num nível essenciaímen-
te inferior (Holloway, 1984, p. 152-157). Por fim, sua dependência
fundamenta] do modelo capitalista obrigaria os Estados socialistas
a se voltarem diretamente - e independentemente uns dos outros -
para o Ocidente, a fim de obter tecnologia para o próximo estágio
mais avançado do desenvolvimento econômico; isso os levou â
armadilha da dívida e, finalmente, à dependência direta do capital
mundial (van Zon, 1991).
O próprio Stalin louvou as perspectivas de um “mercado
mundial socialista” unificado, criado, à revelia, pelo Plano Marshall
(Stalin, 1972, p. 31). Mas a típica configuração hobbesiana Estado-
sociedade civil surgida na Europa Oriental, e reproduzida na China,
no Vietnã do Norte e na Coréia do Norte, impediu a divisão do traba­
lho entre esses países. O Comecon, o bloco econômico da Europa
Oriental instituído em 1949, fundamentava-se em economias esta­
tais centradas na indústria pesada. No entanto, essas economias, além
de sua necessidade de obter importações de matérias-primas da União
Soviética, estavam pouco inclinadas ao comércio mútuo.
O conflito com a Romênia é um exemplo claro do “socialismo
num só país”, que resistia à divisão do trabalho planejada no âmbito
do Comecon. Em 1962, Gheorghiu-Dej, empenhado numa estratégia
de industrialização forçada, recusou-se a cooperar com a proposta de
Krushchev de planejamento supranacional, proposta que “transfor­
maria a Romênia num reservatório de petróleo, num celeiro e num
fornecedor de matérias-primas” (Marcou, 1979, p. 116). Todas as for­
ças sociais da Romênia - aliás, também as da antiga União Soviética -
dispostas a criar vínculos econômicos transnacionais eram reprimi­
das pela realidade do Estado hobbesiano e por seu monopólio do co­
mércio exterior. Desse momento em diante, os conflitos entre os Es­
tados socialistas tenderam a resultar dos diferentes estágios a que ha­
viam chegado no processo de desenvolvimento econômico e dos
meios empregados para acelerar a acumulação primitiva ou original,
em parte criando vínculos com o mercado mundial capitalista.
O SOCIALISMO SOVIÉTICO E A REVOLUÇÃO PASSIVA ♦ 359

Nos últimos dias de Stalin, a ascendência do elemento tecno-


crático levou a retificações ou modificações da linha extremamente
politizada que se tentou implementar, pela última vez, a partir de
1949, ainda que apenas como conseqüência da necessidade de desen­
volver as forças produtivas. Essa mudança foi exemplificada pela crí­
tica de teorias extremistas na lingüística (representada pelo Lysenko
dessa área, Marr). Segundo Marcuse, essas teorias “podem ter desem­
penhado uma função útil na utilização 'mágica’ da teoria marxista.
Porém, com o progresso tecnológico e industrial da sociedade sovié­
tica [...] elas entraram em conflito com objetivos mais fundamentais
[e] [...] tiveram de ceder lugar a concepções mais universalistas, 'nor­
mais’ e internacionalistas” (1971, p. 31). A concessão ao elemento
tecnocrático da classe estalai (ou seja, a desestalinização) levou ao
ressurgimento da orientação de “1935” em vários países do Leste Eu­
ropeu, dentre os quais a Hungria e a Polônia. Nos países menos de­
senvolvidos, essa descentralização era impossível. Na China, na Albâ­
nia e na Romênia, a “mobilização de recursos internos”, que coinci­
diu com a formação inicial da classe estatal, gerou as mesmas formas
extremas de desapropriação da esfera social e de “espiritualização” da
vida social que anteriormente haviam acompanhado o processo de
acumulação original e a subordinação da elite profissional tecno-
crática na antiga União Soviética. Nesses países, a acumulação ori­
ginal dirigida pelo Estado tendeu a reproduzir as características do
stalinismo.
Portanto, os conflitos entre os Estados socialistas não foram
somente prova da anarquia internacional ou do nacionalismo eterno
(embora o conflito étnico tenha sido um componente com história
própria). Revelam o desenvolvimento desigual de Estados compro­
metidos com a construção do socialismo por meio de uma revolução
passiva e as diferenças concomitantes no que diz respeito à emancipa­
ção de uma “classe progressista” mais voltada para o mundo exter­
no - isto é, uma classe tecnocrática de profissionais especializados -
das restrições ideológicas do fechamento inicial. Daí em diante, esse
aspecto estrutural do conflito “entre irmãos” misturou-se às dife­
rentes atitudes em relação à acumulação original dirigida pelo Estado
360 ♦ K ees van der P ijl

em outros lugares: para a antiga União Soviética a partir de Krushchcv,


a divisão socialista do trabalho passou a ser vista como a estratégia
preferencial, ao passo que a China se apegou à sua auto-suficiência
até que as políticas de modernização de Deng Hsiao-ping colocassem
o país no caminho de uma “Nova Política Econômica” que resvalou
para o capitalismo.1

A Perestróica e o colapso

A história da antiga União Soviética ilustra de forma dramática


o conceito de formações sociais históricas de Marx, que Gramsci
resumiu como
[...] os dois princípios fundam entais da ciência política: 1)
de que nenhum a formação social desaparece enquanto as
forças produtivas que se desenvolveram dentro dela ainda
encontram espaço para continuar avançando; 2) de que
um a sociedade não se propõe tarefas para cuja solução as
condições necessárias já não estiverem em gestação etc.
(1971, p. 106)

O drama do socialismo prematuro foi o fato de que, embora o


capitalismo ainda tivesse recursos disponíveis para se expandir, as
marchas forçadas do “socialismo num só país” obrigaram a antiga
União Soviética a entrar num molde de poder conservador para en­
frentar a revolução burguesa que ainda estava em progresso. O bloco
soviético nunca transcendeu a condição de um aglomerado de Esta­
dos mantido pela coerção, ao passo que o capitalismo anglo-america­
no evoluiu no sentido de uma sociedade civil transnacional, politica­
mente integrada em vários planos e, mesmo assim, deixando o Estado
intacto. A “Guerra Fria” foi uma forma grosseira de mostrar a luta de­

1Onde foram permitidas a “ajuda fraternaP’ e a presença moderadora, mesmo


que muitas vezes arbitrária, de consultores soviéticos - como em Cuba os
excessos inerentes a uma transformação rápida foram, em grande parte, evi­
tados; onde isso não ocorreu - como no Camboja a “autoconfiança” fre­
nética no processo de acumulação original às vezes se transformou em mas­
sacre. Para as visões teóricas dos soviéticos sobre essas questões, ver Hough,
1986.
O SOCIALISMO SOVIÉTICO E A REVOLUÇÃO PASSIVA ♦ 361

sigual entre o núcleo lockiano do capital, que controlava o campo


global de operações, e o bloco dos “socialismos num só país” dirigido
pela antiga União Soviética - ou, como no caso da China, até mesmo
em luta com ela. Só os imensos recursos demográficos e naturais
controlados pela antiga União Soviética e seus vínculos permanentes
com o processo avançado de descolonização econômica e política
conseguiram manter a paridade militar soviética e o mito de suplan-
tação do capitalismo.
No início da década de 1970, começou a fase final - em retros­
pectiva - dessa “Guerra Fria”, quando a descolonização do Terceiro
Mundo assumiu proporções revolucionárias e as classes trabalhado­
ras e a juventude das metrópoles adotaram posturas militantes. As
classes estatais dos países do Terceiro Mundo, contra o pano de fundo
dessa revolta global, desfraldaram a bandeira de uma nova ordem
econômica internacional, elevando os preços do petróleo e de outras
matérias-primas para exercerem pressão em favor de suas demandas.
Nesse contexto, a classe de quadros e a socialdemocracia, no Ociden­
te, e a antiga União Soviética, no plano do equilíbrio político global,
poderiam reforçar sua posição, pelo fato de o imperialismo liderado
pelos Estados Unidos parecer estar desogarnizado e batendo em retira­
da. Durante algum tempo, a impressão talvez tenha sido de que os
princípios liberais do mundo capitalista teriam de ceder lugar a um
“regime” global baseado no que Krasner (1985) chama de alocação
autorizada.
Porém, em resposta a esse desafio, teve início uma reorganiza­
ção inicialmente desigual da classe dominante capitalista, reorgani­
zação que, aos poucos, passou a ser mais sistemática, envolvendo a re­
estruturação do capital com vistas à produção integrada do mercado
mundial, que reordenou a hegemonia burguesa em torno de um con­
ceito neoliberal de controle e retomou a iniciativa das forças socialis­
tas e reformistas em escala mundial (van der Pijl, 1987; Overbeek,
1993). Acelerar a corrida armamentista passou a ser visto como ele-
mento-chave para derrotar a coalizão heterogênea da Nova Ordem
Econômica Internacional (Noei) e seus defensores (Gerbier, 1987).
Em 1978-1979, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan)
começou a fazer pressão sobre a antiga União Soviética em relação à
I

362 ♦ K ees van der P jjl

utilização de armas nucleares de alcance médio e mísseis, além dc


embargos punitivos. Estes últimos, impostos como represália à inter­
venção russa no Afeganistão e à decretação da lei marcial na Polônia,
foram dirigidos contra os dois pilares do crescimento soviético: a tec­
nologia de computação e os grãos forrageiros, destinados a aumentar
o consumo de carne,
A reestruturação do capital no Ocidente implicou tanto uma
intensificação da divisão internacional do trabalho e da exploração
na fábrica quanto a introdução de uma nova geração de tecnologias
de produção. Os embargos apenas agravaram o fato de a antiga União
Soviética, por motivos estruturais, ser incapaz de competir com esses
avanços. O comércio Oriente-Ocidente ainda floresceu nos anos
1970, em conseqüência dos preços elevados dos combustíveis, mas já
havia perdido o ímpeto no início da década seguinte. Entretanto,
quando, depois de 1985, os preços do petróleo caíram, a União Sovié­
tica perdeu cerca de 40% de seus ganhos com exportações em moedas
conversíveis. O bloco soviético foi marginalizado da economia m un­
dial, também reestruturada em outros aspectos. Os Estados do
Comecon, que em 1973 ainda respondiam por 22,7% das importa­
ções de máquinas para a área da Organização para a Cooperação e De­
senvolvimento Econômico (OCDE), em 1985 viram sua participação
no mercado sofrer uma queda de 4,9% (van Zon, 1987, p. 11).
Durante o Governo Reagan, foi lançado um movimento global
de contra-revolução, estruturado mais tarde na chamada “Doutrina
Reagan”, movimento que unia não apenas empresas de armamentos
do setor privado, traficantes e fanáticos militares, mas também xeques
e sultões dos mais variados tipos. No que diz respeito ao bloco sovié­
tico na Europa, os Estados Unidos tinham passado, em 1984, do reco­
nhecimento do status quo territorial (ocorrido em Hélsinque, em
1975), mediante a campanha de Carter pelos direitos humanos dirigi­
da basicamente contra a antiga União Soviética, para um repúdio ex­
plícito da “divisão imposta artificialmente à Europa” pelo ministro
Schultz (US Department of State, 1984).
Em março de 1981, Richard Pipes, ex-presidente da “Equipe
B” - criada em 1976 por George Bush, então diretor da Agência Cen­
tral de Inteligência (CIA) norte-americana, para melhorar as avalia-

Â
O SOCIALISMO SOVIÉTICO E A REVOLUÇÃO PASSIVA ♦ 363

ções do poder militar soviético por esse órgão - e membro do Conse­


lho de Segurança Nacional, responsável pelas questões soviéticas no
Governo Reagan, declarou numa entrevista que a antiga União Sovié­
tica teria de mudar seu sistema ou entrar em guerra. Um ano depois,
documentos da Rand Corporation e material do governo propria­
mente dito levaram a imprensa norte-americana a dizer que tudo in­
dicava que os Estados Unidos tinham declarado guerra econômica
e tecnológica contra a União Soviética. Em 1984-1985, a pressão des­
tinada a “levar a União Soviética à falência”, introduzindo sistemas
armamentistas com os quais os soviéticos não poderiam competir -
como a Iniciativa de Defesa Estratégica (IDS) foi complementada
pela criação de um Fundo Nacional pró-Democracia, cujo objetivo
era apoiar os agentes da mudança no interior do “Império do Mal”,
que já estava sob forte pressão (Gervasi, 1990, p. 22-25).
Numa conferência em Washington, realizada em 1982 (dedi­
cada à melhoria dos programas de estudos eslavos nos Estados Uni­
dos), Pipes (NeueZüricherZeitung, 10 nov. 1982) previu que a política
de Reagan de pressão intensificada acabaria impondo uma outra nova
política econômica à União Soviética, a qual levaria a uma realocação
de recursos escassos para fora do setor militar. Depois da tentativa so­
viética inicial de reagir nos mesmos termos à aceleração da corrida
armamentista feita pela Otan e imitar os rumos mais recentes do de­
senvolvimento da tecnologia arm am entista dos Estados Unidos
(provocando conflito entre os militares soviéticos a respeito da neces­
sidade de introduzir armas não-nucleares de tecnologia avançada),
Gorbachev, quando subiu ao poder, mudou de política, dando início
a um desarmamento unilateral, descartando o “culto à paridade” an­
terior (Izyumov e Kortunov, 1988). Foi assim que a previsão de Pipes
se cumpriu, embora a um preço altíssimo para os próprios Estados
Unidos.
Sob a Perestróica de Gobarchev, a última fase da revolução pas­
siva soviética se entrelaçou à emancipação da sociedade civil em rela­
ção ao Estado. Os sociólogos soviéticos estavam discutindo a neces­
sidade de experimentar uma “estratégia social” que galvanizasse as
forças modernizadoras e neutralizasse a hipertrofia dos intermediá­
rios nos ministérios e governos regionais. A esse respeito, Gorbachev
364 ♦ K ees van der P ijl

se referiu como uma luta entre o “profissionalismo bolchevique” e as


forças do conservadorismo e da letargia. Num discurso-chave feito na
Escola Politécnica de Leningrado em maio de 1985, ele pediu um sal­
to qualitativo na “revolução científica e técnica”, pedido seguido, no
mesmo mês, por um aumento salarial para mais de 13 milhões de es­
pecialistas acadêmicos da antiga União Soviética.
Saber se a Perestróica começou como uma revolução imposta
de cima ou se, já em seu início, era, como afirma Hough, “uma revol­
ta da classe média - uma revolta defendida principalmente por buro­
cratas, profissionais liberais e a intelligentsia” (1990, p. 178) é menos
importante do que entender sua dinâmica como processo de emanci­
pação da sociedade civil em relação a um Estado hobbesiano.
Gorbachev, como a classe de quadros ascendente, via a socieda­
de soviética como parte de uma sociedade civil global emergente, que
ainda tinha contradições de classe, mas que, apesar disso, estava sub­
metida ao interesse comum que as políticas externas não podiam
mais ignorar. Foi por isso que Gorbachev procurou definir as tarefas
da União Soviética nos termos de uma luta planetária para enfrentar
uma crise generalizada de civilização a qual asfixiava tanto o capita­
lismo quanto o socialismo soviético (“Der soziale Fortschriftt in der
Welt von heute”, 1988, p. 564). No entanto, aos olhos de muitos da­
queles que viviam nas partes mais ocidentais da antiga União Soviéti­
ca e nos países do Leste Europeu, principalmente para os mais jovens,
o comunismo de estilo soviético era o único problema - na verdade,
representava uma anomalia que se interpunha no caminho entre eles
e o cobiçado Ocidente: o universo da mercadoria, sua generosa abun­
dância e a alegria de viver que o capitalismo encarnava. Como a pop
art durante a década de 1950 no Ocidente, as imagens e os sons que
traduziam o modo de vida ocidental penetraram no Oriente no co­
meço dos anos 1980 e apoderaram-se, com as promessas do consu-
mismo, de um enorme grupo de pessoas na órbita soviética (Menand,
1990, p. 106; Hough, 1990, p. 122).
Grande parte da atenção dada na União Soviética ao conceito
de sociedade civil (grazhdanskoe obshchestvo, Flaherty, 1988, p. 27), na
verdade, tendia a expressar uma lenta integração às estruturas hege­
mônicas do capitalismo ocidental da mesma forma que a emancipa­
O SOCIALISMO SOVIÉTICO E A REVOLUÇÃO PASSIVA ♦ 365
i
f ção real em relação ao controle estatal. Para enfrentar essa tendência,
í
Cíorbachev desenvolveu uma estratégia essencialmente social demo­
crata, que incluía uma economia mista - tentando chegar a um acor­
do entre a nomenklatura e a classe de quadros. Mas forças centrífugas,
não apenas nacionais, multiplicaram-se a ponto de, em 1990, o poder
do partido passar para vários órgãos parlamentares, enquanto a pro­
priedade privada era reconhecida junto com a propriedade coletiva.
Isso enterrou definitivamente a opção socialista e deu início à luta
entre várias frações da própria nomenklatura pelos despojos da privati­
zação, luta agravada por controvérsias ideológicas oriundas do perío­
do 1985-1989, mas agora firmemente entrincheirada num quadro de
referências capitalistas (Chauvier, 1991a).
Como disse Gramsci em suas notas da prisão: “Pode-se aplicar
ao conceito de revolução passiva [...] o critério interpretativo de m u­
danças moleculares que, na verdade, modificam progressivamente a
composição pré-existente de forças que, assim, torna-se a matriz de
novas mudanças” (1971, p. 109). Na crise soviética, as mudanças cu­
mulativas tinham chegado a um ponto em que mudavam qualitativa­
mente a situação. Com a sociedade civil acessível na condição de no­
vo terreno de lutas de classe e nacionais abertas, essas lutas assumiram
de novo características de uma “guerra de manobra”, travada princi­
palmente pelas forças lideradas por Boris Yeltsin. Gorbachev procu­
rou transformar a União Soviética por meio de acordos, permitindo
uma metamorfose gradativa da classe estatal da nomenklatura numa
burguesia estatal, além de elevar o status social da classe de quadros
tecnocráticos. Por outro lado, as forças de Yeltsin eram a favor de uma
ruptura mais radical com o passado. Aliando-se a novos estratos de
empresários, comerciantes e intelectuais, e também a investidores
estrangeiros, principalmente atuantes na mídia, Yeltsin adotou prin­
cípios neoliberais e, como seus congêneres em outras repúblicas, pro­
moveu a reforma nas estruturas de toda a União para alterar comple­
tamente o terreno da luta. Com essa finalidade, cortejou o nacionalis­
mo russo, inclusive a Pamyat, sua ala fascista (Chauvier, 1991a;
1991b).
Com o fim do controle e da soberania do Estado, a luta política
se entrelaça inevitavelmente às redes transnacionais de poder que

i
366 ♦ K ees van der P iíl

operam a partir do núcleo lockiano. Enquanto Gorbachev procurava


forjar vínculos com a Internacional Socialista, as forças de Yeltsin,
como as bálticas e outras forças nacionalistas, estabeleceram relações
íntimas com bastiões do neoliberalismo e do anticomunismo, como
a Heritage Foundation, a alemã Konrad Adenauer Stiftung e também
com os exilados cubanos em Miami (Bellant e Wolf, 1990, p. 29-31;
Chauvier, 1991a).
É claro que a tentativa de golpe de Yanayev esteve inteiramente
nas mãos das forças neoliberais já ascendentes. A experiência de so-
cialdemocratização da antiga União Soviética já estava se desintegran­
do em aspectos-chave: o sistema democrático de autogestão dos traba­
lhadores, promulgado em 1988, foi revogado em 1990. O neolibera­
lismo queria orientar os trabalhadores para ganhos financeiros e posi­
ções privilegiadas, em vez de promover o “populismo” (Chauvier,
1991b, p. 7). Da mesma forma, a inicialmente encorajada, ainda que
politicamente conservadora, pequena burguesia que surgiu da “se­
gunda economia” foi marginalizada, após ter sido considerada um
intermediário essencial para a transformação numa economia mista
(Hough, 1990, p. 191). Até mesmo Starodubtsev, o líder do movi­
mento das cooperativas agrícolas, esteve entre os golpistas de 1991.
Comentando os planos da União Soviética (nessa época ainda
atribuídos a Trotski) de “dar supremacia na vida nacional à indústria
e aos métodos industriais, acelerar, por meio de coerção imposta de
fora, o aumento da disciplina e da ordem na produção, e adaptar os
costumes às necessidades do trabalho”, Gramsci escreveu que “dada a
forma geral com que os problemas associados a essa tendência foram
concebidos, ela estava destinada a acabar numa variante qualquer do
bonapartismo” (1971, p. 301). Enquanto a União Soviética sucumbe
na “extremidade do organismo burguês”, do qual fazia parte às véspe­
ras da revolução bolchevique, e suas perspectivas apontam para sua
transformação num conjunto de economias comparável à da Nigéria
de hoje ou à da França de cinqüenta ou sessenta anos atrás (Chauvier,
1991a), o dilema entre Estado forte versus sociedade livre no capitalis­
mo periférico não pode deixar de ser proposto mais uma vez.
1
QUESTÕES ESTRUTURAIS DE UM GOVERNO GLOBAL:
IMPLICAÇÕES PARA A EUROPA
R obert W. Cox

Num período de mudanças fundamentais nas estruturas glo­


bais e nacionais, as separações convencionais entre política, econo­
mia e sociedade tornam-se inadequadas para a compreensão da m u­
dança, Esses são aspectos que, em épocas de relativa estabilidade, po­
dem ser selecionados, de forma apropriada, para seu exame particular
com base numa premissa de ceteris paribus. Mudanças fundamentais
têm de ser compreendidas em sua totalidade. Essa totalidade é a confi­
guração das forças sociais, sua base econômica, sua expressão ideoló­
gica e sua forma de autoridade política como totalidades de atuação
recíproca. Antonio Gramsci (1971) chamava isso de blocco storico. Po­
demos pensar o bloco histórico, como fez Gramsci, no âmbito de um
determinado país. Também podemos pensá-lo no âmbito europeu e
mundial, desde que haja evidências da existência de uma estrutura
social global e de processos globais de mudança estrutural.
Este capítulo se concentrará em três questões amplas relativas
a um governo global na transição do século XX para o século XXI:
1) a globalização da economia mundial e as reações que pode provo­
car; 2) a transformação do sistema interestados tal como era conheci­
do desde a era westfaliana; e 3) a problemática de uma ordem mundial
pós-hegemônica.1Ao discutir essas questões, três planos de organiza­
ção humana têm de ser considerados em suas inter-relações: o plano
das forças sociais, o plano dos Estados e sociedades nacionais, e o pla-

1 Este texto é uma versão revisada de um artigo preparado originalmente para


uma conferência sobre “Uma nova Europa no sistema global em transfor­
mação”, realizada em setembro de 1991 em Velence, Hungria, sob os auspí­
cios da Universidade das Nações Unidas e da Academia Húngara de Ciências.
Agradeço a Stephen Gill e a Susan Strange por sua cuidadosa leitura crítica
do texto original e por suas sugestões. Duvido que ambos fiquem satisfeitos
com as minhas revisões do texto original.

BT
368 ♦ R obert W. C ox

no da ordem mundial e da sociedade global. O objetivo deste capítulo,


ao adotar a perspectiva dos blocos históricos, é traçar as linhas gerai*
de um quadro de referências para compreender o problema de um
governo global, usando essas três questões e esses três planos, e depoi*
considerando suas implicações para a Europa e as opções da Europa
em relação ao mundo.

Globalizaçao

Os dois principais aspectos da globalização são: 1) organiza


ções globais de produção (redes transnacionais complexas de produ
ção que obtêm os vários componentes do produto em lugares que
oferecem as maiores vantagens em termos de custos, mercados, im
postos e acesso ao trabalho apropriado, e também vantagens de segu
rança e previsibilidade políticas); e 2) finanças globais (em sua maior
parte, um sistema não regulamentado de transações em dinheiro,
crédito e ações). Juntos, esses elementos constituem uma economia
global, isto é, um espaço econômico que transcende todas as fronteiras
dos países, e ainda coexiste com uma economia internacional baseada
em transações que respeitam as fronteiras dos países e é regulamenta­
da por acordos e práticas entre Estados.2 O crescimento da economia
global e a progressiva subordinação da economia internacional a ela
são vistos muito freqüentemente pelos economistas e políticos libe­
rais como a onda do futuro - ou seja, em geral, como uma coisa “boa”
à qual, mais cedo ou mais tarde, todos vão ter de se adaptar por causa
da pressão da competição global.
A globalização tem certas conseqüências observadas com me­
nos freqüência, mas com graves implicações para a futura estrutura
da ordem mundial.
Uma dessas conseqüências é um processo que pode ser chama­
do de internacionalização do Estado. Se nos remontamos à época do
período entre-guerras, e especificamente aos anos de depressão da dé­
cada de 1930, o papel do Estado era basicamente proteger o espaço da

2 Sobre essa distinção entre economia internacional e economia global, ver


M adeuf e Michalet, 1978.
Q uestões estruturais de um governo global ♦ 369

economia nacional de perturbações externas. O sistema de Bretton


Woods levou a um equilíbrio diferente. Procurou chegar a um acor­
do: os Estados ainda tinham a responsabilidade primordial de salva­
guardar a prosperidade nacional, os níveis de emprego e a atividade
econômica, mas tinham de fazer isso de acordo com regras que impe­
dissem a agressão econômica contra outros Estados, visando à har­
monização das diferentes políticas econômicas de cada país. Desde
meados da década de 1970, com o fim do sistema de Bretton Woods,
uma nova doutrina adquiriu proeminência: os Estados devem se tor­
nar instrumentos que ajustem as atividades econômicas nacionais às
exigências da economia global - os Estados estão se tornando linhas
de transmissão da esfera econômica global para as esferas econômicas
nacionais. O ajuste à competitividade global é o novo imperativo
categórico.
Os efeitos dessa tendência se diferenciam conforme o poder
relativo de cada Estado. Os Estados endividados do Terceiro Mundo
são os que se encontram na posição mais frágil. Os Estados que não
conseguem resistir às pressões externas devem se tornar suficiente­
mente fortes no plano interno para impor medidas punitivas de
ajuste a grupos sociais vulneráveis. Os Estados dos países “desenvolvi­
dos” descobrem que a sensibilidade a mercados de títulos estrangei­
ros, crises fiscais e mobilidade transnacional do capital diminuíram
efetivamente sua autonomia na hora de definir a política nacional.
Os Estados Unidos, apesar de serem o maior devedor do mundo, pre­
servam uma autonomia relativa para determinar a política econômica
nacional. A Alemanha e o Japão têm alguma autonomia, quando es­
tão preparados para correr os riscos de exercê-la. Outros Estados pre­
cisam ajustar suas políticas econômicas a situações determinadas em
sua maior parte pelos Estados Unidos.
Outra conseqüência da globalização é a reestruturação das so­
ciedades nacionais e o surgimento de uma estrutura social global. A
globalização é dirigida por uma classe transnacional de administra­
dores que consiste em diversas frações (norte-americana, européia,
japonesa), mas que, em seu todo, constitui o núcleo do que Susan
Strange (1990) chamou de “civilização empresarial”. A reestrutura­
ção da produção está mudando o chamado modelo “fordista” de orga-
370 ♦ R obert W. C ox

nização da produção para um modelo “pós-fordista”.3Isso quer dizer


que a era da grande fábrica integrada de produção em massa está aca
bando; o novo modelo é uma estrutura de produção centro/periferirt
com um núcleo de controle relativamente pequeno no centro e nu
merosas unidades subsidiárias de produção de peças e de prestação ck*
serviços necessariamente vinculadas ao centro. As economias de es
cala foram substituídas por economias de flexibilidade. Uma produ
ção descentralizada mais flexível facilita as relações entre fronteiras
na organização de sistemas de produção; segmenta também a força de
trabalho em grupos segregados por nacionalidade, etnia, religião, gé
nero etc., de tal forma que essa força de trabalho perde a coesão natural
derivada da concentração de grandes números de trabalhadores nas
antigas indústrias de produção em massa. No processo de reestrutura
ção da produção, o poder mudou dramaticamente do trabalho para o
capital.
A distinção geográfica entre o Primeiro Mundo e o Terceiro
Mundo está começando a perder sua nitidez. As condições do Tercei
ro Mundo estão sendo reproduzidas no interior dos países “desenvol
vidos”. As migrações em massa do Sul para o Norte se combinam
com o ressurgimento do trabalho a fação, às vezes com uma variação
na exploração do trabalho do tipo sweatshop ou com a expansão do
emprego mal pago no setor de serviços dos países “desenvolvidos” do
Norte para produzir um fenômeno chamado “periferização do cen­
tro”. Os termos “centro” e “periferia” estão perdendo seu antigo signi
ficado exclusivamente geográfico, adquirindo, aos poucos, o sentido
de diferenciação social numa sociedade globalizante - diferenciação
produzida em grande medida pela reestruturação da produção.
A análise da Inglaterra do século XIX feita por Karl Polanyi
(1957) sugere um paradigma para as mudanças globais de nossos
dias. Polanyi falava de um “movimento duplo”. A primeira fase desse
movimento foi a imposição à sociedade do conceito de mercado auto-
regulamentador. Para Polanyi, como historiador econômico e an-

3Esses termos têm sido usados pelos economistas da escola da ré g u la tio n fran­
cesa, como Boyer, 1990. Uma abordagem semelhante sobre a transformação
da organização industrial foi feita por alguns economistas norte-americanos,
como Piore e Sabei, 1984.
Q uestões estruturais de um governo global ♦ 371

iropólogo, a noção de um processo econômico não inserido na socie­


dade e a ela sobreposto era uma aberração histórica, uma idéia utópica
que não podia durar. Os efeitos desintegradores que a tentativa de im ­
por o mercado auto-regulamentador tiveram sobre a sociedade gera­
ram, durante a última metade do século XIX, a segunda fase desse
movimento duplo: uma resposta para a autoproteção da sociedade
por meio do sistema político, reafirmando a primazia do social. Esta
segunda fase tomou forma com a legalização dos sindicatos e da nego­
ciação coletiva, a construção de sistemas de seguridade social, a intro­
dução da legislação fabril e, por fim, com o reconhecimento da res­
ponsabilidade do governo em manter níveis satisfatórios de emprego
e bem-estar social.
Hoje em dia, é possível pensar na hipótese de que a tendência
atual de desregulamentação e privatização, que parece levar a todos
de roldão na economia global, terá uma resposta global. Essa resposta
vai tentar mais uma vez colocar o processo econômico sob o controle
social, inserir de novo - mas agora no plano global - a economia na
sociedade e subordinar as capacidades econômicas mais desenvolvi­
das a propósitos sociais aceitos globalmente.

Transformação do sistema estatal?

A globalização econômica impôs restrições à autonomia dos


Estados. Cada vez mais, as dívidas nacionais são dívidas contraídas no
exterior, de modo que os Estados são obrigados a prestar atenção aos
mercados externos de títulos e às taxas de juros influenciadas por paí­
ses estrangeiros ao determinar suas próprias políticas econômicas. O
nível da atividade econômica nacional depende também do acesso a
mercados estrangeiros. A participação em vários “regimes” interna­
cionais canaliza as atividades dos Estados em países capitalistas de­
senvolvidos de acordo com os processos da economia global, ten­
dendo a uma estabilização da economia capitalista mundial.41

1Sobre o papel dos “regimes”, ver, especialmente, Keohane, 1984a. É claro que
há fatores que escapam à regulamentação do regime, como oscilações nos
empréstimos bancários, que podem ter conseqüências demolidoras.

L
372 ♦ R obert W. C ox

Além dessas restrições inerentes à ordem econômica global


existente, há novas tendências no interior dessa ordem, produzindo
dois novos níveis de participação, um além do plano dos Estados exis
tentes, outro, interno a esses Estados. Os dois níveis novos podem ser
chamados de macrorregionalismo e microrregionalismo.
Como contrapeso ao domínio da economia dos Estados Unido*
e a seus prolongamentos na esfera econômica da América do Norle,
duas outras esferas econômicas macrorregionais estão surgindo, uma
na Europa e outra na Ásia Oriental, cujo centro é o Japão. A Europa e
o Japão enfrentam separadamente o desafio de aumentar sua autono
mia em relação ao domínio do poder econômico dos Estados Unidos
na economia global.
Ao mesmo tempo, a abertura de espaços econômicos maiores,
tanto no plano global quanto no plano macrorregional, combinada
com a autonomia cada vez menor dos Estados existentes, permitiu a
entidades subestatais aspirar a uma maior autonomia ou à indepcn
dência, e buscar uma relação direta com espaços econômicos maio
res, escapando à subordinação a um Estado existente debilitado. Os
microrregionalistas catalães e lombardos aspiram a um futuro mais
afluente na Europa pós-1992, livre dos controles do governo central
da Espanha e da Itália, e de suas políticas redistributivas. Os indepen
dentistes de Quebec são os defensores mais fervorosos de um espaço
econômico norte-americano. O império soviético e a Iugoslávia de­
sintegraram-se numa multiplicidade de entidades políticas, a maio­
ria das quais mal tem condições de alimentar esperanças de governar
o próprio destino, mas procurará estabelecer uma forma qualquer de
relação com os grandes espaços econômicos agora em formação.
A globalização está gerando um sistema político mais comple­
xo, com vários planos, o qual questiona implicitamente a antiga pre­
missa westfaliana de que um Estado é um Estado é um Estado. As es­
truturas de autoridade não compreendem um, mas, no mínimo, três
planos: o plano macrorregional, o plano do Estado antigo (ou Estado
westfaliano) e o plano microrregional. Todos esses três planos são li­
mitados em suas possibilidades por uma economia global que tem
meios de exercer suas pressões sem que tenha, para isso, estruturas
políticas formalmente reconhecidas ou autorizadas.
Q uestões estruturais de um governo global ♦ 373

Existe uma dualidade e uma tensão cada vez mais manifestas


entre os princípios de interdependência e a territorialidade baseada
no poder. A interdependência (muito freqüentemente um eufemis­
mo para relações de dominação e dependência) manifesta-se na esfe-
i ii econômica. O poder territorial é, em última instância, militar. Os
listados Unidos estão no cerne da tensão entre os dois princípios. A
interdependência econômica global requer um órgão que imponha
suas regras - do mesmo modo como o mercado auto-regulamentador
do século XIX contava com a força policial de Robert Peel e o poder
marítimo inglês para se impor em nível local e global. Hoje, os Esta­
dos Unidos desempenham o papel de impor as regras em todo o m un­
do; mas, ao mesmo tempo, sua economia está perdendo a liderança
em termos de produtividade.
O déficit comercial e o déficit orçamentário dos Estados Unidos
foram contornados nos últimos anos com empréstimos no exterior,
principalmente do Japão. As reformas internas, necessárias para re­
verter esse processo levando à redução dos deficits, são bloqueadas pe­
la rigidez do sistema político dos Estados Unidos e pela relutância dos
políticos em enfrentar a sociedade com escolhas desagradáveis. Por
enquanto, as finanças estrangeiras sustentam nos Estados Unidos um
padrão de consumo da sociedade e militar que sua produção nacio­
nal, de outra maneira, não permitiria.
A Guerra do Golfo revelou na área militar (uma vez que a Ale­
manha, o Japão, a Arábia Saudita e o Kuwait foram obrigados a pagar
uma guerra decidida e dirigida pelos Estados Unidos) o que já estava
acontecendo silenciosamente no plano da sociedade há alguns anos.
Os Estados Unidos não são lucrativos para o resto do mundo, en­
quanto seu poder estrutural, que depende cada vez mais de sua força
militar, continua a fazer o sistema global tender a seu favor. Essa si­
tuação é muito diferente do mundo pós-Segunda Guerra Mundial,
quando os Estados Unidos forneceram os recursos para a recuperação
e o modelo de produtividade para o resto do m undo.5 O que era um
sistema de liderança hegemônica tornou-se um sistema tributário.

5 A esse respeito, ver o perspicaz ensaio de Maier, 1977.


374 ♦ R obert W. C ox

A hegemonia e depois dela6

Há um debate acalorado acerca do declínio da hegemonia da


pax americana.7O que continua complicando esse debate é a falta de
diferenciação entre os dois significados de '‘hegemonia”. Um deles,
usualmente utilizado na produção teórica sobre relações internado
nais, é o domínio de um Estado sobre outros, a capacidade de o Estado
dominante determinar as condições em que as relações interestado.s
serão conduzidas, e também determinar os resultados dessas relações,
O outro significado, fundamentado no pensamento de Antonio Gramsci,
é um caso especial de domínio: ele define a condição de uma socieda
de mundial e de um sistema de Estados no qual o Estado dominante
e as forças sociais dominantes sustentam sua posição aderindo a prin
cípios universalizados que são aceitos ou consentidos por um núme
ro suficiente de Estados e forças sociais subordinados (Cox, 1983).
Este segundo significado de hegemonia implica liderança intelectual
e moral. O forte faz determinadas concessões para obter o consenti
mento do mais fraco.
A pax americana pós-Segunda Guerra Mundial se caracteriza
va por esse significado gramsciano de hegemonia. Os Estados Unidos
eram o poder dominante e seu domínio se expressava na liderança
fundamentada em alguns princípios de conduta que se tornaram am­
plamente aceitos. Os “regimes” econômicos estabelecidos sob a égide
dos Estados Unidos durante esse período tinham a aparência de acor­
dos consensuais. Não pareciam nem uma exploração grosseira de­
corrente de uma posição de poder, nem uma negociação difícil em­
preendida entre interesses rivais.
O recurso das políticas norte-americanas, durante a década de
1980, ao unilateralismo, e as mais manifestas divergências de interes­
ses entre Estados Unidos, Europa e Japão, assim como a subordinação

6 Estou tomando emprestado os títulos de dois livros muito diferentes, cada


um com algo relevante a dizer: N a tio n a lis m a n d A fte r, dc E. H. Carr, 1945,
e A fte r H e g e m o n y , de Robert O. Keohane, 1984a.
7 Além de Keohane, 1984a, ver também Kennedy, 1987-1988; Nye, 1990;
Strange, 1987; e Gill, 1990.
Q uestões estruturais de um governo global ♦ 375

mais declarada dos países do Terceiro Mundo às pressões econômicas


e militares do Ocidente, mudaram a natureza das relações globais.
Talvez o poder dos Estados Unidos não tenha declinado nem em ter­
mos absolutos, nem em termos relativos, mas a natureza do sistema
mundial já não pode ser definida como hegemônica no sentido origi­
nal do termo.
As hegemonias do passado - a pax britannica de meados do sé­
culo XIX e a pax americana de meados do século XX - basearam-se
em princípios universais delineados por uma forma de civilização
ocidental. Uma civilização é uma ordem intersubjetiva, isto é, as pes­
soas compreendem as instituições e os princípios nos quais ela se
fundamenta de forma mais ou menos semelhante. Sua compreensão
é influenciada e confirmada por suas próprias experiências da vida
material. Ao compreender o seu mundo da mesma maneira, as
pessoas o reproduzem em seus atos. Os significados intersubjetivos
constroem o mundo objetivo do sistema de Estado e da economia.8O
prognóstico atualmente em moda de que chegamos ao “fim da histó­
ria”9 (idéia reforçada pelo colapso do poder soviético e pelo fim da
Guerra Fria) celebra a apoteose de um capitalismo ocidental tardio.
No entanto, é da natureza da história não ter fim, e sim seguir em
frente, de forma tortuosa, mediante ação e reação. Se a base consen­
sual da pax americana já não é tão sólida quanto nas décadas de 1950
e 1960, então é necessário perguntar qual a base intersubjetiva de
uma futura ordem mundial.
Uma era pós-hegemônica seria aquela em que diferentes tradi­
ções da civilização pudessem coexistir, cada uma delas fundamentada
numa intersubjetividade diferente, caracterizada por um conjunto
distinto de valores e um caminho distinto para o desenvolvimento.
Esse é um desafio difícil para as formas usuais de pensamento. Impli­
ca, como primeiro passo, a construção de um quadro mental de uma
ordem mundial futura por meio do reconhecimento e da compreen­
são mútuos das diferentes imagens da ordem mundial que derivam

* Sobre os significados intersubjetivos em política, ver Taylor, 1976.


9 Francis Fukuyama, em T h e N a tio n a l In terest, verão de 1989.
376 ♦ R obert W. C ox

de raízes culturais e históricas distintas. Depois, como segundo passo,


pressupõe a elaboração de uma base para a coexistência dessas inirt»
gens - criando uma supra-intersubjetividade que vincularia ou re­
conciliaria essas intersubjetividades culturalmente distintas.

As opções da Europa: formas de Estado e sociedade

Como essas tendências e questões globais se manifestam no


contexto europeu? Como os europeus responderão ao estruturar sufl
sociedade e sua forma ou formas de Estado?
Tornou-se lugar-comum, tanto à esquerda quanto à direita do
espectro político, que o Estado capitalista tem de apoiar o capital em
seu impulso de acumular e, também, de legitimar essa acumulação
aos olhos da sociedade, moderando os efeitos negativos da acumula
ção nas áreas da previdência social e do emprego. Durante os anos do
pós-guerra, um tipo neoliberal de Estado tomou forma em países de
capitalismo avançado apoiado num consenso negociado entre on
principais interesses industriais, o trabalho organizado e o governo
o bloco histórico neoliberal. Era “neo” no sentido de que o liberal is
mo clássico foi modificado pela prática keynesiana de tornar o com
portamento do mercado coerente com a proteção social dos grupos
menos privilegiados.10
Durante a década de 1970, os governos dos países capitalistas
avançados rescindiram na prática o contrato social feito entre capital
e trabalho durante o boom econômico do pós-guerra. Os governos
foram obrigados a contrapor o medo da agitação política, decorrente
do desemprego crescente e do esgotamento dos recursos destinados â
seguridade social, ao medo de que os empresários deixassem de em
preender uma recuperação que reforçaria o emprego e aumentaria a
base tributária. Nessas circunstâncias, os governos se inclinaram para
os interesses do capital.
No consenso neoliberal, aceitou-se o princípio de que a socic
dade não toleraria um nível alto de desemprego, nem o desmantela

10 Esta seção se baseia em Cox, 1987, capítulo 8; e também em Cox, 199ia.


Q uestões estruturais de um governo global ♦ 377

mento do Estado de bem-estar social. Se isso acontecesse, diziam, o


l '.lado perderia sua legitimidade. A verdade dessa afirmação não foi
demonstrada consistentemente. De fato, em geral, é a legitimidade do
I st ado de bem-estar social e dos movimentos trabalhistas, e não a do
l stado em si, que parece ter sido abalada. O desemprego em grande
escala gerou medo e preocupação pela sobrevivência individual em
vez de protestos coletivos. Os sindicatos recuam, em retirada estraté­
gica, perdem membros e, em geral, são incapazes de apelar para o
apoio da opinião pública.
A desintegração do bloco histórico neoliberal foi facilitada pe-
ln esforço coletivo de revisão ideológica realizado por meio de vários
urgãos não oficiais - a Comissão Trilateral, as conferências de Bilder-
berg, o Clube de Roma e a Sociedade Mont Pèlerin, mais esotérica,
entre outros - e posteriormente endossada por órgãos geradores de
lonsenso, como a Organização para a Cooperação e Desenvolvi­
mento Econômico (OCDE). Uma nova doutrina definiu as tarefas
dos Estados na nova arrancada do desenvolvimento capitalista para
sair da depressão da década de 1970. Nas palavras de um comitê
iinportante da OCDE, havia “um caminho estreito para o desenvolvi­
m ento”, lim itado de um lado pela necessidade de incentivar o
investimento privado, aumentando as margens de lucro, e, de outro,
pela necessidade de evitar que a inflação se reavivasse.11
A aliança governo-empresários, formada para que fosse possí­
vel avançar por esse caminho estreito, não considerou soluções de ti­
po corporativo, como a negociação de políticas de salários e preços,
nem, tampouco, a expansão do investimento público. Enfatizou basi­
camente a restauração da confiança dos empresários no governo e, na
prática, reconheceu que os compromissos com a previdência social e
o emprego, assumidos no contexto do contrato social do pós-guerra,
leríam de vir em segundo lugar.
A reestruturação da produção acentuou a segmentação e as di­
visões no interior da classe operária, mas essa tendência não foi uni-*

"The McCracken Report. T ow ards F ull E m p lo y m e n t a n d P rice S ta b ility . Paris:


OCDE, 1977.
378 ♦ Robert W. C ox

forme. Em muitos países da Europa Ocidental, uma longa história dtf


educação ideológica manteve um senso de solidariedade. Tanto mi
Itália quanto na França houve casos em que a ação dos sindicatos foi
solidária tanto com os trabalhadores migrantes quanto com os operrt
rios locais com contratos formais de trabalho, mas a agitação xetio
fóbica também teve eco entre trabalhadores e desempregados. A
segmentação tem sido a tendência oculta que explica a dificuldade do
trabalho de se opor à desintegração do consenso social do pós-guemi
e ao programa colocado em seu lugar pela aliança governo-empre
sários.12
Seria prematuro definir as linhas gerais de um novo bloco his
tórico capaz de alcançar alguma durabilidade para ser o fundamento
de uma nova forma de Estado. São visíveis duas direções principais dn
mudança nas estruturas políticas dos Estados anteriormente neolibc
rais da Europa Ocidental: uma é exemplificada pelas táticas de con
fronto usadas pelo thatcherismo na Inglaterra (e semelhantes às do
reaganismo nos Estados Unidos) para remover obstáculos internos
ao liberalismo econômico; a outra, por um processo de ajuste pautado
mais no consenso, processo que tem sido característico da Alemanha
Ocidental e de alguns países menores da Europa. Quer pelo confron
to, quer pelo movimento consensual, o modelo da Europa Ocidental
tem mudado do keynesianismo para os mercados livres.

Hiperliberalismo

O modelo Thatcher-Reagan pode ser considerado ideológica


mente a antecipação de uma forma de Estado hiperliberal - no senti
do de que esse modelo parece pressupor um retorno ao liberalismo
econômico do século XIX e um repúdio à tentativa neoliberal de
adaptar o liberalismo econômico às reações sociopolíticas que o libe
ralismo clássico produziu. O modelo Thatcher-Reagan retira o “neo”
do neoliberalismo. Toda a parafernália do apoio à demanda e aos ins
trumentos redistribucionistas da política keynesiana é vista com ,\
mais profunda desconfiança pela abordagem hiperliberal.

I? Sobre a tendência à segmentação, ver, entre outros, Wilkínson, 1981.


Q uestões estruturais de um governo global ♦ 379

O hiperliberalismo promove ativamente uma reestruturação,


não apenas da força de trabalho, mas também das relações sociais de
produção. Ele renuncia ao tripartismo13 e enfraquece também, com
seu ataque aos sindicatos do setor estatal e com seu apoio e estímulo
nos empresários para resistirem às demandas sindicais no setor oligo-
polista, o bipartismo.14Indiretamente, o Estado incentiva a consolida-
ção das relações cor por ativistas empresariais para os trabalhadores
científicos, técnicos e administrativos do setor oligopolista. As políti­
cas do Estado são dirigidas para a expansão do emprego a curto prazo,
em setores que empregam trabalho pouco qualificado e com alta rota-
lividade, contribuindo para a segmentação ainda maior do mercado
de trabalho.
As implicações políticas representam uma inversão completa
daquelas da coalizão que sustentou o Estado neoliberal. Esse Estado
baseava-se em suas relações com os sindicatos do setor oligopolista (o
contrato social); num setor estatal em expansão e cada vez mais sindi­
calizado; na disposição de ajudar grandes empresas em dificuldades
(oferecendo subsídios aos preços agrícolas e ajuda financeira a gigan­
tes industriais); e na transferência de renda e de serviços para grande
número de grupos desprivilegiados. O Estado neoliberal desempe­
nhou um papel hegemônico e fez a acumulação de capital em escala
mundial parecer compatível com uma gama bastante ampla de in­
teresses de grupos subordinados. Ele fundamentou sua legitimidade
na política de consenso.
A aliança governo-empresários do hiperliberalismo cria uma
enorme relação de grupos desprivilegiados e excluídos. Os emprega­
dos do setor estatal obtiveram grandes ganhos no que diz respeito à
sua negociação coletiva e a seus salários durante os anos de expansão,
mas, agora, se tornaram os alvos da linha de frente dos cortes orça­
mentários. Os beneficiários da previdência social e trabalhadores sem
contrato formal de trabalho, categorias socialmente relacionadas, são
atingidos pela redução dos gastos estatais e pelo desemprego. Agricul-

13No qual as decisões relativas às relações sociais de produção são estabelecidas


por meio do diálogo entre governo, empresários e trabalhadores. [N. da E.]
l4No qual prevalece a negociação entre empresários e trabalhadores. [N. da E.]
380 ♦ R obert W. C ox

tores e pequenos empresários ficam furiosos com bancos e governos,


ao não terem mais acesso a financiamentos que antes tinham condi
ções de fazer. Trabalhadores com contrato formal de trabalho em selo-
res que enfrentam problemas graves decorrentes de uma divisão de
trabalho internacional em processo de transformação - das indústrias
têxtil, de automóveis, de aço, da construção naval, por exemplo
deparam-se com o desemprego ou com a redução em seus salários.
Enquanto os grupos excluídos não alcançarem organização
sólida e coesão política, a mistificação ideológica, o êxito nas guerras
em países distantes, as medidas para aumentar a identificação desles
grupos com a classe média e para fortalecer os interesses dessa classe,
assim como o foco no costumeiro discurso da sobrevivência indivi
dual em lugar da ação coletiva, manterão a força da nova ortodoxia
política. Se ao menos uma pequena parcela da população, ou mesmo
uma minoria politicamente participante, continua relativamente sa
tisfeita, elas podem ser mobilizadas para manter essas políticas, apesar
do descontentamento de uma minoria muito ampla ou de uma maio
ria modesta que é passiva, dividida e incoerente.

O capitalismo de Estado

Ainda que o modelo hiperliberal reafirme a separação entre


Estado e economia, a forma alternativa de Estado que luta para reto
mar o desenvolvimento capitalista estimula a fusão entre Estado e
economia. O aspecto mais evidente desse capitalismo de Estado é que
ele opera por meio de uma política industrial deliberada. Essa política
só pode ser empreendida por intermédio de um entendimento nego
ciado entre as principais forças sociais, com a mediação do Estado,
num processo corporativo. Esse processo visa produzir acordos sobre
objetivos estratégicos da economia e, também, sobre a divisão de res­
ponsabilidades e benefícios no esforço de alcançar esses objetivos.
A concepção do capitalismo de Estado fundamenta-se na acei­
tação do mercado mundial como o determinante último do desen­
volvimento. Ao contrário da abordagem neoliberal, a abordagem do
capitalismo de Estado não pressupõe nenhuma regulamentação con­
sensual do mercado mundial em relação ao comércio e às práticas fi-
Q uestões estruturais de um governo global ♦ 381

uanceiras multilaterais. Os “regimes” podem sobreviver na eraneoli-


beral, mas o capitalismo de Estado não é o campo mais fértil para a
formação de novos regimes, nem para a reforma dos antigos. Espera-
se que os Estados intervenham não só no sentido de aumentar a com­
petitividade das indústrias de seus países, mas também para negociar
ou ditar benefícios para os exportadores de suas nações. O mercado
mundial é o estado de natureza a partir do qual a teoria do capitalismo
de Estado deduz sua política específica.
As linhas gerais dessa política consistem, em primeiro lugar,
cm desenvolver os principais setores da produção nacional de manei­
ra a dar-lhes uma vantagem competitiva nos mercados mundiais e,
em segundo lugar, em proteger os principais grupos sociais de tal mo­
do que a assistência dada a eles seja vista como algo ligado ao sucesso
do esforço nacional de produção.
O primeiro aspecto dessa política - competitividade indus­
trial - deve ser alcançado mediante uma combinação de abertura
desses setores industriais ao estímulo da competição mundial, com
uma política de subsídios estatais e de orientação para a inovação.
Fundamental para a capacidade de inovação é a situação da indústria
do saber; o Estado terá grande responsabilidade no financiamento da
pesquisa e do desenvolvimento científico e técnico.
O segundo aspecto dessa política - equilibrar a assistência aos
grupos sociais - tem de estar ligado à busca de competitividade. A
proteção a grupos e setores desprivilegiados (indústrias ou regiões)
seria considerada uma assistência transitória que facilitaria sua trans­
ferência para atividades econômicas mais lucrativas. Portanto, a assis­
tência em treinamento e especialização e no remanejamento da pro­
dução teria um lugar proeminente na política social. O Estado não
protegeria indefinidamente setores em declínio ou ineficientes, mas
daria incentivos às pessoas interessadas, a fim de que essas pudessem
ser mais competentes segundo os critérios do mercado. No entanto, o
Estado se colocaria entre as pressões do mercado e os grupos
interessados de forma que não recaísse sobre os ombros destes últi­
mos toda a carga dos ajustes.
Quando as poupanças geradas internamente forem considera­
das essenciais para aumentar a competitividade, tanto os investidores
quanto os trabalhadores terão de ser persuadidos a aceitar uma divisão

382 ♦ R obert W. C ox

justa dos sacrifícios, antecipando uma futura divisão eqüitativa do*


benefícios. Desse modo, as políticas relativas aos rendimentos tornar
se-iam uma contrapartida indispensável para a política industrial. I >u
mesma maneira, a iniciativa empresarial necessária para incentivar a
inovação e a resposta rápida a mudanças no mercado poderia ser eqtti
librada por formas de participação do trabalhador no processo de in
trodução de mudanças tecnológicas. A eficácia dessa concepção de
capitalismo de Estado dependería, portanto, da existência de institui
ções e processos corporativos não apenas no âmbito das empresas c
indústrias, mas também de um tipo mais centralizado, capaz de cana
lizar as transferências de recursos entre indústrias, entre setores e cn
tre regiões para a produção e a previdência social.
A forma do capitalismo de Estado envolve um dualismo entre,
de um lado, um setor voltado para o mercado mundial que seja efi
ciente em termos competitivos e, do outro, um setor que garanta a as
sistência social. O êxito do primeiro deve fornecer os recursos para o
segundo; o senso de solidariedade implícito no segundo daria impul
so e legitimidade ao primeiro. Portanto, o capitalismo de Estado pro
põe uma forma de reconciliar as funções de acumulação com a legiti­
midade, as quais entraram em conflito por causa das crises econômi­
cas e fiscais da década de 1970 e da política hiperliberal. Continua em
aberto a questão de saber se a expansão do setor voltado para o merca
do mundial, representado por grandes empresas transnacionais, po­
de ou não desenvolver uma autonomia em relação tanto ao Estado-
sede quanto ao setor nacional de assistência social. Isso dificultaria
a preservação do equilíbrio do dualismo. As reivindicações relativas
à competitividade internacional tenderiam a ter mais peso do que
aquelas relacionadas à previdência social interna.
Em sua forma mais radical, o capitalismo de Estado acena para
a perspectiva de um socialismo interno sustentado pelo êxito capita­
lista na competição do mercado mundial. Este seria um socialismo
dependente do desenvolvimento capitalista, isto é, do sucesso na pro­
dução de valores de troca. Mas, como afirmam seus proponentes, se­
ria menos vulnerável à desestabilização externa do que as estratégias
socialistas de países economicamente fracos (como o Chile de Allende
ou o Portugal pós-revolucionário). A forma mais radical da estratégia
Q uestões estruturais de um governo global ♦ 383

do capitalismo de Estado apresenta-se como uma alternativa às fór­


mulas defensivas e semi-autárquicas de construção do socialismo, as
quais têm por objetivo diminuir a dependência da economia m un­
dial e enfatizar a produção de valores de uso para consumo interno.15
Por sua experiência histórica, os países estão mais ou menos
bem equipados para a adoção do caminho de desenvolvimento do ca­
pitalismo de Estado com ou sem coloração socialista.16Os mais bem
equipados são os países em que o Estado (como na França) ou um sis­
tema financeiro centralizado, mas autônomo (como na Alemanha),
desempenharam papel importante na mobilização de capital para o
desenvolvimento industrial. As instituições e a ideologia desses países
estimularam uma íntima coordenação entre o Estado e o capital pri­
vado na busca da realização de objetivos comuns. Os menos bem
equipados são os antigos líderes industriais, Inglaterra e Estados Uni­
dos, países em que as instituições e a ideologia hegemônicas mantive­
ram o Estado, em geral, fora de iniciativas econômicas específicas,
confinando seu papel à garantia e ao reforço de regras de mercado e à
administração macroeconômica das condições de mercado. Portanto,
os efeitos retardados da liderança hegemônica no passado podem ser
um obstáculo à adoção de estratégias de capitalismo de Estado. O pa­
pel do Estado, especialmente nos Estados Unidos, é sobretudo o de
usar o incentivo político ao comércio exterior para apoiar indústrias
incapazes de alcançar êxito em mercados estrangeiros.
O processo corporativo que dá sustentação ao desenvolvimen­
to do capitalismo de Estado, que incluiria empresários e trabalhadores
no setor voltado para o mercado mundial e trabalhadores do setor ter­
ciário de serviços de previdência social, excluiria ao mesmo tempo
certos grupos marginais. Estes grupos costumam ter uma relação pas­
siva com os serviços de previdência social e não têm influência na de­
finição de políticas. São constituídos fundamentalmente de jovens,

15Alguns autores franceses investigaram essas questões, como Stoffaes, 1978;


e Kolm, 1977.
l('Entre alguns estudos norte-americanos recentes que compararam as caracte­
rísticas institucionais dos principais países capitalistas temos Kaztzenstein,
1978; e Zysman, 1983.
384 ♦ R obert W. C ox

mulheres, grupos de imigrantes ou de minorias e desempregados. C)


número dos marginalizados tende a aumentar com a reestruturação
da produção. Como esses grupos são fragmentados e relativamenle
destituídos, sua exclusão raramente foi questionada. Mas são de falo
uma ameaça latente aos processos corporativistas. Essa ameaça pode
assumir a forma de explosões anômicas de violência entre os homens
jovens marginalizados ou uma forma mais grave, a mobilização polí ­
tica dos marginalizados, que contraporia a legitimidade democrática
à eficiência econômica corporativista. Esses perigos são pressagiados
nos textos dos ideólogos neoliberais que falam do problema da “ingo-
vernabilidade” das democracias modernas (ver Crozier et al., 1975).
À implicação disso é que os processos corporativistas necessários para
que o capitalismo de Estado dê certo talvez tenham de ser isolados das
pressões democráticas. Na medida em que isso se concretize, as pers­
pectivas de socialismo interno sustentado pelo capitalismo de Estado
voltado para o mercado mundial serão uma ilusão. A médio prazo, as
estruturas de algum tipo de capitalismo de Estado parecem uma al­
ternativa viável ao impasse hiperliberal. A viabilidade a longo prazo
dessas formas é uma questão ainda não definida.
Com seus diversos antecedentes nacionais, a Europa Ocidental
possui predisposições que poderíam levá-la a essas diferentes formas
de Estado e de sociedade.17Pode-se dizer que, em sua atual estrutura
de poder, a predominância do capital na abertura da Europa a partir
de 1992 favorece o hiperliberalismo. Contudo, a tradição corporati­
vista social é forte, principalmente na Europa continental, e pode
compensar, por meio da política, a predominância do hiperlibera­
lismo no poder econômico. O conceito de “Europa social”, tabu para

l7Albert (1991) contrasta dois tipos rivais de capitalismo que se aproximam


do contraste hiperliberalismo/capitalismo de Estado feito aqui. Um, que ele
apresenta como um tipo norte-americano e que se baseia no individualismo
e no lucro financeiro de curto prazo; outro, um tipo norte-europeu, baseado
no consenso e no êxito coletivo de longo prazo. O primeiro, para ele, está
presente na Inglaterra thatcherista; o segundo seria mais característico da
Alemanha, da Holanda, da Suíça e do Japão. A conclusão de Albert é que
o capitalismo da Europa deve ser construído de acordo com o segundo
modelo.
Q uestões estruturais de um governo global ♦ 385

o thatcherismo e repudiado mais disfarçadamente por alguns ele­


mentos do capital continental, é apoiado por uma socialdemocracia
que está mais profundamente enraizada na Europa do que em outras
regiões importantes do mundo (Spyropoulos, 1990). O debate entre
liiperliberalismo e capitalismo de Estado será testado primeiro na
Europa, e a resposta da Europa servirá de modelo, ou ao menos de al­
ternativa, para a América do Norte e o Japão e, talvez, para outras re­
giões num mundo vindouro.

As forças sociais que se contrapõem à globalização

O hiperliberalismo é a ideologia da globalização em sua forma


mais extrema. O capitalismo de Estado é uma adaptação à globaliza­
ção que responde, ao menos em parte, à reação da sociedade aos efei­
tos negativos da globalização. Temos de nos perguntar se há perspecti­
vas de mais longo prazo que possam ser alcançadas após uma expe­
riência de médio prazo com o capitalismo de Estado. A melhor forma
de abordar essa questão é indagar como as condições criadas pela glo­
balização podem gerar uma prise de conscience entre aqueles elemen­
tos da sociedade que se tornaram mais vulneráveis por causa da glo­
balização.
Se a solução do capitalismo de Estado fosse apenas um estágio
intermediário, a perspectiva de reverter os efeitos segmentadores, so­
cialmente desintegradores e dissociadores da globalização se apoiaria
na possibilidade de emergência de uma cultura política alternativa
que criasse uma esfera maior de ação coletiva e desse maior valor aos
bens coletivos.!SPara que isso aconteça, segmentos inteiros das socie­
dades teriam de se vincular, por meio da participação ativa e do desen­
volvimento de lealdades, a instituições sociais envolvidas em ativi-18

18 É preciso cuidado com os significados das palavras aqui. O discurso da


globalização representa as principais características da globalização econômica
como “bens públicos”, ou seja, a manutenção dos pré-requisitos de uma
economia capitalista global. Por “ação coletiva” e “bens coletivos”, quero me
referir à moderação do individualismo em favor da ação comunitária e da
produção ou conservação de valores de uso que podem ser usufruídos
386 ♦ R obert W. C ox

dades coletivas. Teriam de estar preparados para defender essas insti


tuições em tempos adversos.
Nesse sentido, a condição para uma reestruturação da socieda
de e do governo seria a construção de um novo bloco histórico capaz
de sustentar uma longa guerra de posição até ter força suficiente para
se tornar uma base alternativa de governo. Esse esforço teria de se ba­
sear nas camadas populares. As atividades que fazem parte desse es ­
forço provavelmente não se dirigirão, inicialmente, ao Estado, por
causa do grau de despolitização e de alienação em relação ao Estado
entre essas camadas. É mais provável que sejam dirigidas às autorida
des locais e à auto-ajuda coletiva. Em muitos casos, serão respostas
locais a problemas globais - a problemas do meio ambiente, da orga ­
nização da produção, da ampliação da previdência social, da migra­
ção. Se, em última instância, elas resultarem em novos tipos de Esta­
do, essas formas de Estado vão surgir da prática da ação coletiva popu­
lar não-estatal, e não de desdobramentos dos tipos de controle admi­
nistrativo atuais.
A história social da Europa conhece esses movimentos. Eles
influenciaram indiretamente a formação da sociedade e do Estado,
embora nunca tenham alcançado seus objetivos iniciais. Seja como
for, esses objetivos não poderíam ser alcançados somente numa so­
ciedade nacional: movimentos desse tipo teriam de crescer simulta­
neamente em vários países. A fusão dos processos políticos europeus,
inerente ao projeto de 1992, pode oferecer uma grande arena para
que essa luta seja travada. Mas a globalização econômica sugere que
esses movimentos não têm condições de dar certo quando se restrin­
gem apenas a uma macrorregião. Eles teriam de conseguir apoio sufi­
ciente do sistema mundial para proteger sua base regional, ou enfren­
tar as conseqüências de um relativo enfraquecimento militar e eco-

diretamente pelo povo, como o transporte público e um meio ambiente


saudável. Outros termos que foram apropriados pelo discurso hegemônico
com uma mudança dc significado são “necessidades básicas”, tal como a
expressão é usada pelo Banco Mundial, e “ajuste estrutural” (substituindo a
expressão mais crítica “mudança estrutural”), tal como é usada pelo Fundo
Monetário Internacional (FMI). F provável que a lista possa se estender.
Q uestões estruturais de um governo global ♦ 387

nômico se macrorregiões concorrentes não efetuarem processos se­


melhantes. A globalização que existe hoje, enraizada na lógica econô­
mica dos mercados, teria de ser confrontada por uma nova globali­
zação que inserisse novamente a economia na sociedade global.

A conseqüência do “socialismo real”15

Se as opções que o capitalismo ocidental tem a oferecer à Euro­


pa podem ser expressas em termos relativamente claros, a situação
dos países do antigo “socialismo real”, ao nos aproximarmos do um­
bral do século XXI, é mais complexa. No entanto, o futuro a longo
prazo da Europa implica uma acomodação entre essas duas regiões.
No início da década de 1990 é fácil proclamar que o socialismo real
fracassou. É mais difícil imaginar que seja possível apagar a história
de duas gerações que conceberam essas estruturas sociais. A Europa
Orientai não é uma tábula rasa na qual o capitalismo ocidental pode
ser pura e simplesmente gravado. As opções para essa região têm de
ser realistas e levar em conta as estruturas sociais existentes naquelas
regiões em que se pode prever ou sua total integração ao Ocidente
(como a República Democrática Alemã), ou sua associação mais ínti­
ma com as comunidades européias, ou sua evolução autônoma com
um grau maior de integração à economia mundial.
Tanto as sociedades capitalistas quanto as socialistas cresceram
por meio da extração de mais-valia dos produtores. Nas sociedades
capitalistas orientadas pelo mercado, essa mais-valia é investida em
qualquer coisa que os capitalistas julguem que produzirá mais lucro.
Nas sociedades socialistas, os investimento têm sido decididos poli­
ticamente, segundo os critérios que os responsáveis pela tomada de
decisões queiram enfatizar no momento, por exemplo, o setor da pre­
vidência social ou o do poder do Estado. A estrutura social de acu­
mulação é a configuração particular do poder social por meio da qual
o processo de acumulação ocorre. Essa configuração delineia uma
relação entre os grupos sociais no processo de produção por meio do

Esta seção está bastante fundamentada em Cox, 1991b.


388 ♦ Robert W. C ox

qual a mais-valia é extraída. Essa relação de poder serve de base de


sustentação para os arranjos institucionais mediante os quais o pru
cesso se desenrola,20 E também molda a forma efetiva da autoridade
política.
Para entender a natureza da estrutura social de acumulação
no momento da crise do socialismo real do final da década de 1980,
devemos nos voltar para a transformação da classe operária que co
meçara cerca de três décadas antes. A nova classe operária, composta
em grande parte por ex-camponcses que empreenderam a industria
lização dos anos 1930 na antiga União Soviética e o esforço de guerra
dos anos 1940, trabalhou sob uma disciplina férrea, com regulamen
tação rigorosa e feitores implacáveis, recrutados nas unidades de pro
dução. Durante os anos 1950, uma nova mentalidade remodelou as
práticas industriais. As regulamentações foram relaxadas e a forma
como foram aplicadas permitiu uma ampliação da proteção dos inte­
resses individuais dos operários. Os administradores começaram a
ser recrutados principalmente em escolas profissionais, e estavam mais
inclinados a empregar métodos de manipulação e de persuasão, em
vez de coerção. O regime da fábrica passou do tipo despótico para o
hegemônico.21
Um acordo histórico elaborado pela liderança do partido in­
cluía um contrato social defacto no qual havia a garantia implícita de
estabilidade no emprego para os operários, de preços estáveis dos bens
de consumo e de controle sobre o ritmo de trabalho, em troca da
aquiescência passiva dos trabalhadores ao governo da direção política.
Os operários tinham um poder estrutural considerável, isto é, seus
interesses tinham de ser previstos e levados em conta pela direção,
embora tivessem pouco poder instrumental decorrente da represen­
tação direta. Com o tempo, esse arranjo de aquiescência passiva gerou

20Uso o conceito de estrutura social de acumulação desenvolvido por Gordon,


1980. O emprego que faço dele se concentra mais especificamente na relação
das forças sociais, ao passo que Gordon o utiliza de forma mais abrangente,
nele englobando, por exemplo, as instituições da economia mundial. Apli-
quei o conceito à economia m undial capitalista em Cox, 1987, capítulo 9.
21Os termos foram retirados do uso que Michael Burawoy faz do conceito
gramsciano de hegemonia. Ver Burawoy, 1985.
Q uestões estruturais de um governo global ♦ 389

. c*rto cinismo, expresso na frase: “Vocês fingem que nos pagam, nós
fingimos que trabalhamos”.
A classe operária compreendia um segmento com contrato
lormal de trabalho e outro sem contrato formal. Um grupo de operá­
rios, o segmento de trabalhadores com contrato formal, permanecia
mais tempo no emprego, tinha qualificações mais diretamente apli­
cadas em suas tarefas, estava mais envolvido na empresa como insti­
tuição social e em outras atividades políticas e cívicas. O outro grupo,
o do segmento de trabalhadores sem contrato formal, mudava de em­
prego com mais freqüência, não ascendia na carreira e não participa­
va da empresa, nem de outras atividades sociais e políticas. A forma
dessa segmentação variava nos diversos países socialistas.
Sociólogos húngaros discerniram uma divisão ainda mais
complexa entre os trabalhadores sem contrato formal: os “burros de
carga”, que se deixavam explorar para poderem acumular privada­
mente (recém-casados, por exemplo); os “hedonistas”, trabalhadores
solteiros interessados apenas no salário como um meio para se diver­
tir; e os “visitantes internos”, principalmente mulheres, ou campone­
ses que trabalhavam em regime de tempo parcial, ou, ainda, membros
de minorias étnicas que faziam o “trabalho sujo”.22Na prática, a seg­
mentação do trabalho no socialismo real tinha surpreendente seme­
lhança com a segmentação do trabalho no capitalismo.
Essa diferenciação no interior da classe operária teve impor­
tância muito grande na estrutura do planejamento central. O plane­
jamento central pode ser pensado em termos abstratos como um sis­
tema que compreende: 1) redistribuidores em órgãos centrais do Es­
tado, que planejam seguindo uma racionalidade na tomada de deci­
sões, isto é, maximizando certos objetivos já determinados e alocando
recursos de acordo com essa racionalidade; e 2) produtores diretos
que realizam os planos com os recursos que lhes foram fornecidos.
Na prática, o planejamento central desenvolveu uma dinâmica inter­
na que se opunha à racionalidade dos responsáveis por ele. Tornou-se
um processo complexo de negociação da empresa com os níveis cen-

n Ver Academia Húngara de Ciências, 1984.


390 ♦ R obert W . C ox

trais no qual diferentes grupos tinham diferentes graus de poder. I Jin


dos mais importantes esforços teóricos dos últimos anos foi analisar
a verdadeira natureza do planejamento central de modo a discernir
suas leis ou regularidades inerentes.23
O capital é compreendido, em termos marxistas, como uma
forma de alienação; com o seu trabalho, as pessoas criam algo que se
torna uma força que se impõe a elas e ao seu trabalho. O planejamen
to central também se tornou uma forma de alienação: em vez de ser
um sistema de controle humano racional sobre processos econômi
cos, ele também se tornou um sistema que ninguém controlava, mas
que passou a controlar igualmente planejadores e produtores.
Característica notável do planejamento central, tal como ele se
desenvolveu nas décadas imediatamente anteriores às mudanças que
começaram a ser introduzidas no fim da década de 1980, é sua teu
dência a investir demais. As empresas procuravam incluir novos pro
jetos no planejamento e, com isso, aumentar suas verbas com as alo
cações de recursos do Estado. Verbas maiores facilitavam o cumpri
mento das obrigações existentes, mas, ao mesmo tempo, geravam
obrigações futuras. A economia de planejamento central constituiu
uma economia de escassez; a oferta era restringida, em contraste com
a economia capitalista, na qual a demanda é restringida. A economia
da escassez gerou incertezas em relação à oferta, e essas incertezas lõ
ram transmitidas de empresa para empresa ao longo da cadeia de i»
sumos e produtos.
Os administradores das empresas ficaram muito dependentes
de operários-chave para enfrentar as incertezas. Os operários-chave,
familiarizados com o equipamento instalado, eram os únicos capazes
de improvisar quando havia estrangulamentos na produção. Se ne
cessário, conseguiam improvisar para enfrentar a falta de peças de re
posição, consertar equipamento obsoleto ou usar materiais substitu
tos. Os administradores também tinham motivos para empregar mais
operários do que o necessário: eles serviam para manter uma reserva
interna de trabalho que poderia ser mobilizada para os períodos de

23 Os teóricos mais importantes entre os que abriram essa linha de investigação


teórica são Brus, 1973; e Kornai, 1980; 1982.
Q uestões estruturais de um governo global ♦ 391

trabalho intenso ao final de uma etapa do planejamento. Os adminis­


tradores também passaram a depender de suas relações com funcio­
nários do partido a fim de assegurar os insumos necessários quando a
escassez comprometia a capacidade de a empresa atingir seu objetivo
conforme o planejamento.
Esses fatores se combinaram para tom ar a estrutura funda­
mental do núcleo do sistema uma estrutura de dependência adminis­
trativa dos quadros locais do partido, aliada à inter-relação íntima
entre administração e operários-chave numa forma de corporativis­
mo empresarial. Essa estrutura fundamental mantinha vínculos des­
cendentes com grupos subordinados de trabalhadores sem contrato
formal, de cooperativas rurais e de produtores familiares. Também
mantinha vínculos ascendentes com os ministros da Indústria e com
o planejamento estatal. E mantinha uma relação paralela com a “se­
gunda economia” que, junto com as conexões políticas, ajudou a su­
perar alguns dos estrangulamentos inerentes à economia formal.
Várias conclusões podem ser inferidas da estrutura social de
acumulação. Uma é que aqueles que constituem seu núcleo - admi­
nistradores, operários com contrato formal e quadros locais do parti­
do - estavam bem entrincheirados no sistema de produção. Sabiam
como fazê-lo funcionar e, provavelmente, ficavam apreensivos com
mudanças que introduziríam mais incertezas do que aquelas que ti­
nham aprendido a enfrentar. A motivação para a mudança tinha mui­
to mais probabilidade de vir daqueles que estavam no topo, que sa­
biam ser a produção menos eficiente do que podería, e que queriam
eliminar o excesso de mão-de-obra e introduzir uma tecnologia mais
produtiva. Os que estavam no núcleo do sistema tinham interesse em
manter a tecnologia obsoleta de que dispunham porque suas qualifi­
cações particulares faziam com que ele funcionasse. A motivação pa­
ra a mudança também podería surgir entre a população em geral, sob
a forma de insatisfação com a queda nos padrões de serviços públicos
e bens de consumo; e em parte da crescente “classe média”, formada
por empregados de colarinho-branco do setor de serviços. Os traba­
lhadores sem contrato formal mais periféricos - aqueles mais aliena­
dos dentro do sistema - também não estavam muito motivados para
a mudança. Na verdade, não havia uma base social coerente para a
392 ♦ R obert W. C ox

mudança, e sim uma insatisfação difusa decorrente da forma como o


sistema estava funcionando. Contudo, provavelmente havia uma base
social coerente no núcleo do sistema que poderia ser mobilizada para
impedir a mudança.

Reforma econômica e democratização

Os sistemas socialistas, a começar pela antiga União Soviética,


estavam preocupados com a reforma do mecanismo econômico des
de os anos 1960.0 problema foi apresentado em termos de uma tran
sição do modelo de crescimento extensivo - que estava produzindo
retornos decrescentes a partir de meados da década de 1960 - para um
modelo de crescimento que seria mais intensivo no uso de capitai c
tecnologia. A percepção do problema veio do topo da hierarquia polí­
tico-econômica e expressou-se por meio de uma seqüência de expe­
rimentos intermitentes. A reforma gradativa mostrou-se difícil por
causa da própria coerência interna do sistema de poder constituído
pelo planejamento central. Quando se fazia um movimento numa
direção - por exemplo, no sentido de garantir mais poder de decisão
aos administradores - surgiam obstáculos em outras partes do siste­
m a - como, por exemplo, a autoridade dos principais ministérios e os
direitos trabalhistas adquiridos pelos empregados.
As frustrações com as reformas gradativas incentivaram a ado­
ção de reformas mais radicais; e as reformas radicais estavam ligadas
à proposta de dar muito maior alcance ao mecanismo de mercado. O
mercado era um conceito atraente, uma vez que prometia um meio
mais eficiente e menos incômodo de alocar insumos materiais às
empresas e de distribuir bens de consumo. Era compatível com a des­
centralização da administração - que seria entregue às empresas - e
com o estímulo à produção de bens de consumo. No entanto, o mer­
cado também era suspeito, uma vez que criaria preços (e, por conse­
guinte, inflação numa economia de escassez), geraria disparidades
maiores nas rendas e solaparia o poder do núcleo de planejamento de
dirigir a totalidade do desenvolvimento econômico. Uma combina­
ção que aliasse o mercado à direção central da economia parecia ser a
melhor solução, se pudesse ser posta em prática.
Q uestões estruturais de um governo global ♦ 393

Na esteira do movimento de reforma surgiram pressões, em


favor da democratização, de várias fontes: de uma série de movimen­
tos reprimidos, mas cumulativamente contagiantes, ocorridos na
Alemanha Oriental, na Polônia, na Hungria e na Tchecoslováquia; do
repúdio ao stalinismo e do posterior enfraquecimento do aparato re­
pressivo instalado pelo stalinismo; e das conseqüências do renasci­
mento da sociedade civil e do reconhecimento, pelos quadros das ca­
madas governantes, de que a intelligentsia tinha direito a uma autono­
mia maior. Na verdade, a intelligentsia exigia acesso às idéias e às pes­
quisas das sociedades capitalistas avançadas para que pudesse ajudar
o socialismo real a sair de seu impasse. Os dois movimentos - a Peres-
tróica e a Glasnost em sua forma soviética - encontraram-se e intera­
giram no final da década de 1980. Reforçaram um ao outro? Ou traba­
lharam um contra o outro? Ainda não temos a resposta.
Alguns reformadores econômicos viam a democratização co­
mo um meio de soltar as amarras da sociedade, o que poderia fortale­
cer a descentralização. Alguns desses reformadores também viam a
autogestão operária como forma de apoio à autonomia da empresa e
à liberalização dos mercados. Os intelectuais humanistas tendiam a
ver a reforma econômica como algo que limitava o aparato coercitivo
do Estado e incentivava o surgimento de uma sociedade mais plura­
lista. Para esses grupos, a reforma econômica e a democratização an­
davam de mãos dadas.
Outros reformadores econômicos reconheciam que as medi­
das reformistas imporiam novas cargas à população antes de mostra­
rem quaisquer benefícios. Haveria inflação, escassez e desemprego.
O contrato social do maduro socialismo real seria descartado no pro­
cesso de introdução da flexibilidade no mercado de trabalho e na
administração das empresas. As qualificações dos administradores
tornar-se-iam obsoletas, junto com aquelas dos muitos funcionários
do Estado e do partido envolvidos no processo de planejamento cen­
tral. Prevendo a reação de todos esses grupos, os reformadores “rea­
listas” poderiam muito bem concluir que haveria necessidade de um
poder autoritário para implementar a reforma com sucesso. Sem
ele, a reforma poderia simplesmente ficar comprometida e acabar
sendo ineficaz, desintegrando o sistema existente sem conseguir
394 ♦ R obert W. C ox

substituí-lo.24 Os thatcheristas econômicos do socialismo real pode


riam tornar-se seus Pinochets políticos.
Os efeitos iniciais tanto da reforma econômica quanto da de
mocratização geraram conseqüências problemáticas. O relaxamenlo
dos controles econômicos no sentido de incentivar alguma mudam, a
em direção à adoção de mecanismos de mercado resultou no colapso
do sistema de distribuição, com a canalização das mercadorias para
os mercados livre e negro, no gangsterismo desenfreado e numa dra
mática cisão entre novos-ricos e pobres. Entre os novos-ricos havia
membros da antiga nomenklatura bem posicionados para adaptai
seus conhecimentos sobre o funcionamento das empresas às novas
oportunidades do capitalismo de mercado. O relaxamento dos con
troles políticos deu vazão a conflitos reprimidos há muito tempo,
aglutinando as pessoas em torno dos nacionalismos étnicos, de várias
formas de populismo e, em sua forma extrema, de movimentos fas
cistas de direita. Além disso, a explosão dos debates públicos, enquan
to demolia a legitimidade do Estado socialista e dos mitos que o sus
tentavam, também demonstrou-se incapaz de enfrentar a reorganização
prática da economia e da sociedade. O próprio processo de reforma
piorou a situação em vez de melhorá-la. Os acordos entre os grupos
sociais nos quais o antigo sistema se fundamentava também se esface
laram, revelando um estado de natureza no qual o capitalismo primi ­
tivo e predatório florescia.
A legitimidade do socialismo real foi destruída pelo stalinismo
e pela reação anti-stalinista. A sociedade civil está ressurgindo, mas os
grupos que a compõem ainda não conseguiram articular uma expres­
são organizada. Essa é a situação que Gramsci chamou de crise orgâ­
nica. E a solução para uma crise orgânica é a reconstituição de uma
hegemonia ao redor de um grupo social que seja capaz de liderar e de
obter o apoio ou a aquiescência de outros grupos. O que nossa análise
da estrutura social do socialismo real nos diz sobre as possibilidades
disso acontecer?

24As posições dos vários grupos da sociedade soviética em rclaçao às reformas


foram recapituladas por Davies, 1990.
Q uestões estruturais de um governo global ♦ 395

Há três significados distintos que podem ser atribuídos à “de­


mocracia” no contexto do colapso do socialismo real. Um é o signifi­
cado “burguês” convencional de pluralismo liberal, que tem grande
efeito de demonstração na Europa Oriental. O pluralismo liberal tem
uma história e muitos exemplos.
Os dois outros significados surgiram das aspirações socialistas.
Um deles é a autogestão pelos produtores, que se expressou na ação
espontânea de operários em muitas situações revolucionárias dife­
rentes - nos sovietes russos originais, no movimento do Ordine nuovo
no norte da Itália em 1919, no controle operário de fábricas durante
a revolução da Argélia, nos conselhos de empresa organizados na Po­
lônia depois dos eventos de 1956 e nos movimentos de fábrica da
Hungria, durante a revolução de 1956, e da Tchecoslováquia, em
1968, Essas experiências tiveram vida curta. A única experiência lon­
ga de autogestão dos operários foi a iugoslava e, apesar de muita aná­
lise e muito debate, não pode ser considerada convincente. Há muita
coisa a favor da possibilidade de os produtores conseguirem determi­
nar suas próprias condições; mas também há provas de que essas ex­
periências, supondo que sobrevivam à repressão de uma autoridade
política superior, tendem a mudar de direção e a se transformar num
corporativismo autocentrado.
O outro significado socialista de democracia implica a partici­
pação popular no planejamento central. Não é possível citar ne­
nhuma experiência histórica; essa experiência ainda está por ser vivi­
da. No entanto, essa talvez seja a perspectiva mais atraente para o espí­
rito do socialismo. Alec Nove (1983, p. 199) sugeriu uma forma de
acordo entre o planejamento democrático e a autogestão dos produ­
tores: os consumidores decidiríam o que produzir; os produtores
decidiríam como.25

^Stafford Beer foi ao Chile na época de Allende para pôr em prática um siste­
ma de planejamento interativo com base em computadores, no qual os sinais
viríam tanto da base quanto da cúpula, usando a moderna tecnologia de mi-
croprocessamento para democratizar o planejamento .socialista. É claro que
a proposta não deu em nada por causa do golpe de Pinochet. Ver Beer, 1974.
396 ♦ R obert W. C ox

Gyõrgy Lukács (1985) escreveu um texto, publicado poslu


mamente na Hungria com o título de Demokratisierung Heute uinl
Morgen,26no qual repudia tanto o passado stalinista quanto o conceito
liberal de democracia, e especula sobre as condições nas quais a de
mocratização do socialismo seria possível.
Para Lukács, uma primeira condição seria a redução do tempo
de trabalho socialmente necessário, o que deslocaria a concentração
da atividade humana do reino da necessidade para o reino da liberda
de. A sociedade teria de conseguir produzir o suficiente para satisfazei'
as necessidades da vida material sem absorver todo o tempo e o esforço
de seu povo. Essa condição é reconhecida também por outros que
pensaram sobre o problema. Janos Kornai (1971), antes de adotar a
alternativa capitalista, afirmou que seria preciso desacelerar bastante
a produção para se fazer uma reforma numa economia de escassez.
Rudolf Bahro (1978) afirma que um estado de “consciência excedeu
te”, isto é, a existência de uma margem de tempo e de esforço além da
satisfação das necessidades básicas, é indispensável para a satisfação
de “interesses emancipatórios” como alternativa aos “interesses com­
pensatórios” do consumismo.
A condição seguinte, para Lukács, seria uma coalizão das for­
ças sociais nas quais a estrutura do socialismo democrático poderia se
basear. A essa altura, as indicações de Lukács tornam-se obscuras.
Como Bahro e como Gorz no Ocidente, ele não via, nesta última fase
de seu pensamento, os operários como a classe social dirigente em
torno da qual o socialismo democrático poderia se corporificar. Em
vez disso, Lukács falava em liberar as “tendências subterrâneas” repri­
midas até então. Esperava que o partido pudesse se reconstituir para
conseguir isso.
Essa foi uma esperança inspirada no movimento de reforma
de 1968, dirigido pela intelligentsia naTchecoslováquia. Teve um bre­
ve ressurgimento na República Democrática Alemã durante a época
em que o Neues Forum e grupos semelhantes estavam construindo o

2fi Ver Lukács, 1985. Agradeço a A. Bródy, do Instituto de Economia da


Academia Húngara de Ciências, por chamar minha atenção para esse texto.
Q uestões estruturais de um governo globai. ♦ 397

movimento popular que derrubaria o regime de Honecker. O projeto


continua vivo, embora sua plausibilidade tenha diminuído.
Outros dois caminhos para a democratização na experiência
recente da Europa Oriental foram, primeiro, o movimento externo a
um partido moribundo dirigido por um grupo de operários autôno­
mos ao qual a intelligentsia se vinculou (Polônia); e, segundo, o
aumento da esfera das tomadas de decisões independentes na eco­
nomia por meio da retirada estratégica do partido, que renunciou ao
controle direto de certos aspectos da sociedade civil (Hungria). Em
retrospectiva, esses dois caminhos parecem ter levado à restauração
do capitalismo. A ex-República Democrática Alemã mostra um ter­
ceiro caminho para o capitalismo: colapso total das estruturas políti­
cas do socialismo real e incorporação total de sua economia ao capita­
lismo da Alemanha Ocidental.
Nos outros países europeus do antigo socialismo real, as opções
para o futuro podem ser reunidas, grosso modo, em três possibilidades.
Cada uma delas deve ser examinada em termos da relação entre a for­
ma projetada do Estado e da economia e a estrutura social de acumu­
lação do socialismo real.
O primeiro cenário é o da liberalização econômica, que leva ao
capitalismo de mercado e à integração da economia nacional à eco­
nomia capitalista global. Em sua forma “pura”, esse projeto é favore­
cido por alguns segmentos da intelligentsia que pensam ser necessária
uma “terapia de choque” no estilo polonês para empreender a privati­
zação e liberar as forças de mercado. Esses segmentos dizem que o
apoio popular à liberalização política cria as condições em que o po­
vo se prepara para enfrentar as dificuldades da “terapia de choque” -
falências de empresas, desemprego em massa, inflação desenfreada,
escassez de bens vitais e cisão entre novos-ricos e pobres que surgem
com a reforma radical de mercado.
Essa é a opção incentivada pelos consultores ocidentais - jo­
vens excepcionalmente brilhantes de universidades de prestígio, ou
atuando em empresas privadas de consultoria e órgãos da economia
mundial - que pululam no mundo em colapso do socialismo real. É
incentivada, paradoxalmente, pelo ressurgimento das idéias de von
398 ♦ R obert W. C ox

Hayek na Europa Oriental, pela mitologia do capitalismo e por um


fascínio pré-ambientalista com o consumismo ocidental.
No entanto, o estado de espírito benevolente da liberalização
política é vulnerável à realidade de uma privação sem precedentes e
da humilhação coletiva. Nesse caso, a opção seria entre o que sacrifi­
car: a democracia ou o livre-mercado. O registro histórico, como Karl
Polanyi (1957) apresentou em sua análise sobre a década de 1930 na
Europa Central, sugere que a democracia é sacrificada primeiro, mas
o mercado não se salva com isso. Essa possibilidade era, para Polanyi,
uma abertura para o caminho que levava ao fascismo. E alguns obser­
vadores da Europa Oriental avivaram de novo esse fantasma, como
provável resultado das convulsões sociais ocorridas na esteira do co­
lapso do socialismo real.27
Uma liderança política mais moderada e madura podería hesi­
tar antes de impor aos elementos resistentes e vulneráveis da socieda-

27Como Vojinovic, 1990. Ralf Dahrendorf (1990, p. 115-116), ao discutir a pos­


sibilidade de convivência entre o capitalismo e o pluralismo liberal, tam­
bém se preocupa com a possibilidade de um ressurgimento do fascismo.
O simpósio “Globality versus Locality”, organizado por Antoni Kuklinski
(1991) para a Associação Polonesa para o Clube de Roma, examina essa pos­
sibilidade. Uma contribuição de Zdzislaw Sadowski avalia o apoio da socie­
dade às reformas de mercado e a disposição desta em suportar dificuldades
que não seriam toleradas sob o regime anterior como fatores que se transfor­
maram em desilusão por volta de maio de 1990, levando a uma abertura para
o populismo grosseiro. O que, segundo ele, diminuiría ainda mais a possibi­
lidade de uma estratégia racional de recuperação econômica a longo prazo.
Jan Szczepanski, numa análise da história política da Polônia, afirma que a
estabilidade política teria de se basear em partidos políticos que represen­
tassem classes sociais bem organizadas (operários, camponeses e classe média),
mas isso não existiu nem na Polônia comunista, nem na Polônia pós-comu-
nista. O anticomunismo do Solidariedade não apresentou nenhum a alterna­
tiva com base social coerente. Desintegrou-se num a miríade de partidos que
provavelmente levarão ao imobilismo político e à desilusão do povo com a po­
lítica parlamentar. Todas essas análises apontam para algum tipo de autoritari-
tarismo populista. Nem mesmo a observação (como aquela feita por Sadowski,
por exemplo) de que o autoritarismo tem sido muitas vezes mais eficiente
do que a democracia em efetuar a transição para o capitalismo (como é o
caso da Coréia do Sul e de Taiwan) legitima o tipo de autoritarismo populista
que podería surgir na Polônia.
Q uestões estruturais de um governo global ♦ 399

de civil todas as medidas necessárias aos ajustes que fariam os meca­


nismos de mercado funcionarem. O acordo pensado por essa lideran­
ça provavelmente constituiria uma forma de corporativismo cujo
objetivo seria cooptar os trabalhadores-chave para efetuarem a transi­
ção para o capitalismo, separando os segmentos da classe operária
mais articulados e situados em posições mais estratégicas da maioria
menos articulada e menos influente. O núcleo empresa-corporati-
vismo da estrutura social de acumulação do socialismo real se presta­
ria, por conseguinte, a facilitar a transição para o capitalismo - para
algo parecido com a opção pelo capitalismo de Estado na Europa
Ocidental, discutida anteriormente, com um traço político possivel­
mente mais autoritário.28
O segundo cenário é o do autoritarismo político combinado
com um centro econômico de controle administrativo que incorpore
algumas características secundárias do mercado e certo grau de refor­
ma burocrática. Isso deixaria basicamente intacto o núcleo empresa-
corporativismo do sistema de planejamento existente, e que também
teria suas principais raízes políticas na sociedade civil e sua fonte
constante de legitimação na “classe operária”. Os “conservadores” da
antiga União Soviética (com o apoio de homens influentes das forças
armadas e do Comitê de Segurança do Estado - KGB) podem ser con­
siderados alguns de seus defensores. O problema de longo prazo de­
corrente do desenvolvimento desse cenário seria a exclusão contínua
dos segmentos mais periféricos da força de trabalho de qualquer parti­
cipação efetiva no sistema, embora esses elementos possam ser acal­
mados a curto prazo se o ressurgimento da autoridade no planeja­
mento central conseguisse tirar a economia do caos resultante do

28Numa entrevista ao Le Monde, em 11 de setembro de 1991, Lech Walesa,


o chefe dc Estado polonês, disse o seguinte:
“Na Polônia, em nossas reformas, cometemos um erro: escolhemos andar
rápido, para ir ao encontro de vocês. Resultado: hoje ternos problemas
terríveis, grande desemprego, máquinas paradas. Se tivéssemos andado mais
devagar, teríamos a metade de desempregados. Não é de dinheiro que preci­
samos, mas da resposta à pergunta: como fazer funcionar o potencial exis­
tente?”
400 ♦ R obert W. C ox

colapso da autoridade tanto no planejamento econômico quanto nas


estruturas políticas.29
O terceiro cenário é o da democratização combinada com a re
forma socialista. Como foi sugerido anteriormente, esse cenário pode
assumir a forma da autogestão dos produtores ou da democratização
do processo de planejamento central, ou, talvez, uma combinação di­
ambas. Dos três cenários, é este, com suas duas variantes, o que foi
formulado com menor clareza. Tem sido omitido no debate interno e
na introdução de fórmulas estrangeiras de reforma. O poder da mídia
foi monopolizado pelos defensores dos dois primeiros cenários e,
principalmente, pelos que apoiam a reforma radical a favor da econo
mia de mercado (Mandell, 1990).
A autogestão tem sido defendida tanto pelos liberais econômi
cos quanto pelos socialistas. Perdeu terreno entre os liberais sem ter
conquistado nenhuma adesão importante entre os socialistas. Alguns
desses reformadores econômicos que um dia pensaram a autogestão
como forma de apoio à liberalização econômica parecem agora ter
esquecido essa opção.30 Apesar disso, de uma perspectiva socialista,
permanece a possibilidade de que a autogestão, à falta de um quadro
mais amplo de referências econômicas socialistas, evolua no sentido
de um tipo de corporativismo empresarial dentro de um mercado ca­
pitalista, ou seja, a variante moderada do primeiro cenário.
A perspectiva de democratizar o planejamento central esteve a
ponto de ser retirada da pauta do debate público; mesmo assim, conti­
nua tendo algum apoio entre aqueles intelectuais que, pessimistas
sobre a viabilidade da orientação de mercado pura e simples nas polí­
ticas existentes, prevêem um recuo no futuro. Eles anseiam pelo sur­
gimento de uma economia de mercado socialista construída com ba­
se na concepção de Michael Kalecki de um mecanismo de planeja-

29Isso foi escrito antes do golpe abortado de agosto de 1991 em Moscou. Nem
por isso essa possibilidade deve ser descartada como um déjà-vu. O golpe po­
de ter sido um evento prem aturo, mal planejado, mal dirigido e, em geral,
malfeito. Depois do caos ter se instaurado na sociedade, uma nova tentativa
de golpe podería ter conseqüêncías imprevisíveis.
a)Davies (1990, p. 23) fala isso do economista Aganbegyan, por exemplo.
Q uestões estruturais de um governo global ♦ 401

mento ativado a partir de baixo e nos avanços da socialdemocracia do


Ocidente. “Socialismo” tornou-se uma palavra praticamente proibi­
da na Europa Oriental, mas os valores do socialismo sobrevivem sem
a palavra e podem dar substância à futura reação contra as conseqüên-
cias socialmente devastadoras do comportamento desenfreado do
mercado. O grande temor dos que defendem essa alternativa é que,
antes que ela seja implementada, a sociedade ingresse no tipo de caos
que engendra uma forma fascista de regime populista.31
A posição dos trabalhadores em relação a esses três cenários
continua ambígua e fragmentada. Nisso há uma semelhança impres­
sionante com a posição dos trabalhadores sob o capitalismo desde a
crise econômica da década de 1970. A mesma questão deve ser
levantada em cada caso: será que o termo impreciso “classe operária”
ainda corresponde a uma força social coerente e identificável? O po­
tencial para um movimento autônomo dos trabalhadores foi de­
monstrado na Polônia pelo Solidariedade; mas, no exato momento
de seu triunfo, esse movimento se fragmentou. A greve realizada pe­
los mineiros soviéticos em julho de 1989 fez ressurgir a credibilidade
no movimento operário, mas não foi suficiente para constituir uma
tendência.
Projetos de condução e de novas diretrizes para a classe operá­
ria que nascem entre os membros da intelligentsia são bem mais fáceis
de encontrar do que uma evidência clara de opções autônomas da
classe operária. Parece que o governo soviético tentou canalizar a gre­
ve dos mineiros no sentido de exigir a autonomia das empresas, para,
em seguida, abandonar a autogestão como integrante da reforma de
mercado (Davies, 1990, p. 18). A acadêmica Zaslavskaya, num agora
célebre documento interno do partido, defendia uma política de ma­
nipulação “oblíqua”, por meio de incentivos, das atitudes dos traba­
lhadores.32Alguns reformadores econômicos liberais que perderam o
interesse pela autogestão alimentam a idéia de uma negociação

11Esses parecem ser a esperança e o medo dos autores que contribuíram para
Kuklinski, 1991.
32Novosibirsk Report, 1984. Survey, v. 128, n. 1, p. 88-108. Essa questão é tra­
tada nas p. 95-96.
402 ♦ R obert W. C ox

coletiva feita por sindicatos independentes como contrapartida a uma


economia capitalista.
Parece que os operários não têm voz muito ativa para iniciai
um processo de reforma. Podem continuar, como antes, sendo uma
importante força estrutural passiva que a intelligentsia reformista lei ã
de considerar. Suas atitudes podem ser remodeladas com o passar do
tempo, como Zaslavskaya e outros previram. Atualmente, os traiu
lhadores, como presença estrutural, provavelmente continuarão
comprometidos com algumas das idéias básicas do socialismo: igual
dade de oportunidades e de renda, responsabilidade do Estado na oíci
ta de serviços básicos de saúde e educação, estabilidade dos preços r
disponibilidade de bens que possam ser adquiridos com os salário*
básicos. Nesse sentido, teriam de ser classificados - segundo o novo
vocabulário usado para se discutir a Perestróica - como “conservado
res”. Como outros grupos, os trabalhadores são críticos em relação a
burocracia e a casos exasperantes de privilégio. Esses são sentimentos
fundamentais sobre os quais as futuras opções de socialismo têm
mais possibilidade de serem construídas.

A Europa e o mundo

O futuro da Europa tem sido considerado aqui segundo as


opções de formas de Estado e de sociedade tal como condicionadas
pelas atuais forças sociais da Europa - forças que são a manifestaçao
européia das tendências globais discutidas na primeira parte deste ca
pítulo. A relação da Europa com o resto do mundo dependerá de co
mo os europeus definam a própria identidade social e política ao fazei
sua escolha entre essas opções. Ao mesmo tempo, porém, as influên
cias externas do sistema mundial estão afetando o equilíbrio interno
das forças sociais da Europa ao fazerem essas opções.
A macrorregião européia que está surgindo terá uma estrutura
política formal diferente da estrutura de autoridade mais informal
das duas outras macrorregiões, as esferas de influência dos Estados
Unidos e do Japão. Enquanto os Estados Unidos e o Japão são domi
nantes econômica e politicamente em suas esferas, a área do núcleo
europeu, em termos econômicos, é um corredor que vai de Turim e
Q uestões estruturais de um governo global ♦ 403

Milão, no sul, passa por Stuttgart, no leste, e por Lyon, no oeste, e che­
ga até as terras baixas e o sudeste da Inglaterra, abrangendo sete Esta­
dos. Em termos políticos, a autoridade se baseia num confederalismo
consultivo em que os Estados participantes muitas vezes têm escolhas
políticas diferentes e as microrregiões fazem valer sua autonomia. Is­
so torna menos provável que a Europa possa falar de maneira unifica­
da, principalmente em questões de política externa - basta lembrar as
divergências sobre a Guerra do Golfo e sobre uma resposta comum à
desintegração da Iugoslávia -, embora a pressão de outras macrorre-
giões econômicas possa se tornar uma força unificadora recorrente.
A questão central na definição da futura identidade européia
será o quanto essa identidade estará fundamentada numa separação
entre economia e política. Forças importantes exigem que essa sepa­
ração se torne a ontologia básica da nova ordem européia, e que seja
construído um sistema político no âmbito europeu que limite as
pressões populares em favor do controle político e social dos proces­
sos econômicos. Esses processos ficariam então a cargo de uma com­
binação entre o mercado e uma tecnocracia sediada em Bruxelas,
que, por sua vez, refletiria o domínio do grande capital e dos Estados
“centrais”, principalmente da Alemanha. Essas forças têm a liderança
na Europa e o apoio externo dos Estados Unidos em sua condição de
país que impõe o liberalismo econômico ao globo.33 Mas a Europa
tem uma tradição profundamente enraizada de controle político e
social sobre os processos econômicos, tanto na socialdemocracia da
Europa Ocidental quanto no socialismo real da Europa Oriental. É
por isso que a transformação das sociedades do Leste Europeu pode
ser tão importante, apesar de sua fraqueza atual, para o completo
equilíbrio das forças sociais que estão modelando o futuro. Oriente e
Ocidente deixaram de ser compartimentos estanques. Os processos
políticos fluem de um para o outro, e, embora agora o fluxo domi­
nante seja do Ocidente para o Oriente, é plausível prever um contra-

}iStephen Gill, “The Emerging World O rder and European Change: íhe
Political Economy of European Union”, artigo apresentado no XV Congresso
Mundial da Associação Internacional de Ciência Política, realizado em
Buenos Aires, em julho de 1991.
404 ♦ R obert W. C ox

fluxo ocasionado pela migração e pelos movimentos políticos. O de


sespero que gera extremismos de direita no Leste Europeu pode tanto
questionar quanto incentivar extremismos de direita na Europa Oci
dental. O surgimento de um socialismo democrático com base sólida
e bem articulada, nascido da transformação do socialismo real da Eu
ropa Oriental, poderia também fortalecer a socialdemocracia da
Europa Ocidental.
A longo prazo, a relação da Europa com os Estados Unidos será
redefinida à medida que os europeus recriem sua própria identidade.
A Guerra do Golfo e a “nova ordem mundial” do presidente Bush co
locaram a Europa numa posição ambígua. A Inglaterra e a França se
guiram a liderança norte-americana, com a intenção de recuperai
uma posição próxima do centro da política global tal como esta foi
pensada na década de 1940. Nenhum desses dois países parece ter
conquistado status ou outras vantagens em conseqüência dessa pos
tura. A Alemanha recuou, consciente de uma opinião pública dividi
da e da necessidade esmagadora de dar prioridade à absorção do im
pacto provocado pelo colapso do socialismo real no Leste Europeu. A
Itália, de certa forma, oscilou entre esses dois posicionamentos.
Será que a Europa continuará aceitando o papel dos Estados
Unidos como país que impõe o liberalismo à economia global? O Ja
pão continuará a emprestar dinheiro para cobrir o déficit dos Estados
Unidos? Apesar de seu indubitável poder econômico e político, os
Estados Unidos estão entrando no mesmo tipo de dificuldades que
assolaram a economia soviética - índices decrescentes de produtivi
dade, gastos militares elevados e um déficit orçamentário impossível
de resolver. A tarefa de impor o liberalismo à economia global não
pode ser exercida somente pelos Estados Unidos; além disso, há uma
questão concreta, que reside em saber se os europeus e os japoneses
ainda vão querer perpetuar e subsidiar esse papel dos Estados Unidos
por muito tempo.
Reconsiderar a relação da Europa com os Estados Unidos é al­
go que está diretamente ligado à relação da Europa com o Terceiro
Mundo. A Guerra do Golfo foi - em um de seus múltiplos aspectos -
uma lição objetiva para o Terceiro Mundo de que a economia política
global é capaz de reunir forças militares suficientes para disciplinar e
Q uestões ESTRUTURAIS DE UM GOVERNO GLOBAL ♦ 405

punir um país do Terceiro Mundo que tente tornar-se um poder mili­


tar autônomo e desviar-se de um comportamento econômico aceitá­
vel. A decisão subseqüente da Organização do Tratado do Atlântico
Norte (Otan) de criar uma força européia de intervenção rápida, sob
o comando inglês, pode ser interpretada como uma repetição dessa
lição.
Isso é coerente com uma visão que considera o Terceiro Mun­
do da perspectiva das forças dominantes da economia global: alguns
segmentos do Terceiro Mundo integraram-se ao processo de globali­
zação; outros segmentos que não se integraram têm dc ser adminis­
trados por uma combinação de assistência global à pobreza com con­
trole de motins. A assistência à pobreza destina-se a evitar condições
de desespero decorrentes do empobrecimento que podem ameaçar a
estabilidade política dos segmentos integrados. O controle de motins
assume a forma de apoio político e militar aos governos que se atêm
às rotinas da economia global e as colocam em prática, e, em último
caso, conta com a rápida intervenção de forças militares para disci­
plinar os desobedientes.
A Europa, em termos históricos e geopolíticos, tem uma rela­
ção particular com o Terceiro Mundo: uma relação semelhante à do
Islã com as civilizações cristãs. A vocação que a Europa tem pela uni­
dade remonta à respublica christiana da Idade Média, um conceito de
unidade que não tinha uma autoridade política correspondente. A
vocação do Islã para a unidade também se volta para um passado
igualmente distante e para a efêmera autoridade política do califado.
Sua unidade também transcende os Estados. O Islã é o grande “outro”
da cristandade. Em termos contemporâneos, o Islã também parece
uma metáfora para o repúdio ao capitalismo ocidental como modo
de desenvolvimento.
O fim do cisma entre Oriente e Ocidente na cristandade, sim­
bolizado pelo colapso do socialismo real, mas que reapareceu na
guerra entre sérvios e croatas, não resolveu o confronto europeu com
o Islã. A perspectiva econômica global considera o Terceiro Mundo
um fator residual e marginal, como um mundo sem identidade. A
experiência e a perspectiva históricas da Europa percebem o Islã co­
mo uma identidade concreta e como uma civilização diferente. O
406 ♦ R obert W. C ox

Islã se voltou para a filosofia grega das esquecidas origens européias,


ensinou à Europa a ciência e a medicina e mostrou-lhe um modo de
vida refinado, apesar de ter-se mantido fundamentalmente estrangei­
ro e de nunca, ao contrário da Europa, ter gerado seu próprio capita­
lismo.
O confronto com o Islã não é só externo, além das fronteiras e
do mar Mediterrâneo. Também está se internalizando nas sociedades
européias, na migração e nas reações à migração, com fenômenos co­
mo a Frente Nacional Francesa. A nova Europa foi desafiada a se libe­
rar da visão residual e marginalizada do Terceiro Mundo e a enfrentar
diretamente as questões culturais, bem como as questões econômicas
e políticas, com o reconhecimento da coexistência de duas civiliza­
ções diferentes.34
Em suma, a Europa pode ser um campo de provas de uma nova
forma da ordem mundial: pós-hegemônica em seu reconhecimento
da coexistência de civilizações universalistas; pós-westfaliana em sua
reestruturação da autoridade política num sistema de múltiplos ní­
veis; e pós-globalizadora em sua aceitação da legitimidade de cami­
nhos diferentes para a satisfação das necessidades humanas.

41Uma introdução interessante a essa perspectiva pode ser encontrada em


Lacoste, 1984.
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ÍNDICE DE NOMES

A Alemanha 50, 58n, 85, 106n, 193,


194, 220, 223,224, 262-264,
A. Khan Organisation 350, 351
266, 267, 283, 340, 343, 344,
Abácidas, dinastia dos 291
346, 347, 354, 369, 373, 383,
Abu-Lughod, Janet 276, 280
384n,403
Academia Húngara de Ciências Ocidental 84, 193, 378, 397
367n, 389n,396n Oriental 79, 84, 88, 387, 393,
Acordo 396, 397
de Ialta 356 Alesina, A. 166n
de Livre Comércio entre Aiker, Hayward 149
Estados Unidos e Canadá 54 Allende, Salvador 382, 395n
de Piaza 304 Althusser, Louis 67, 102n, 130n
de Postdam 356 América 252, 307
Geral sobre Tarifas e Comércio Central 122
ver Gatt Latina 11, 18, 18n, 19, 19n, 22,
Adam Smith Institute 168n 24,35,36,44,52,55,83,89,90,
Adamson, W. 140n, 143n, 144n, 194,213,309-312,316,318-322,
146n 324-327, 334, 335, 337
Adelman, C. C. 21 ln do Norte 52, 260, 372
Afeganistão 16, 362 Américas 13, 18n, 35, 240, 252,
África 13,22, 194, 21 ln, 213, 255, 260
213n,252 Amur, rio 289
Oriental 288 Anderson, Benedict 102n, 127n,
Norte da ... 58 221, 232, 235, 250, 346
Aganbegyan, Abel 400n Angola 214
Agência Central de Inteligência ver Anistia Internacional 196
CIA Arábia Saudita 178n, 373
Al-Qaeda 17 Arblaster, A. 126n
Aix-la-Chapelle, Congresso de Argentina 20, 20n, 310, 312, 315,
256 321-323, 335
Albânia 359 Aron, Raymond 272
Aladi 334 Arrighi, Giovanni 41, 83, 92, 93,
Albert, M. 384n 229, 271, 315, 317, 324n
436 ♦ S tephen G ill

Arthur, C. J. 130n, 133n Barnett, T. 17


Ashikaga, xogunato 287 Bartlett, B. I67n
Ashley, Richard K. 76, 157n, 220 Bayne, N. 168, 177
Ásia 13, 19n, 22, 58, 297-299, 302, Beer, S. 395n
356 Beethoven, L. von 84, 85
Central 291 Beigbeder, Y. 21 ln
Ocidental 276 Bellant, R. 366
Oriental 211,275-278,283-302, Bélgica 222
372 Bennet, J. 196
Sudeste da ... 292, 297 Berend, I. T. 345
Associação Berki, R. N. 150n, 153
Latino-Americana de Bernstein, R. J. 130n, 133n
Integração ver Aladi Betts, K. 159n
para a Taxação das Transações Beverley, J. 23
Financeiras para a Ajuda aos Bionatur 32n
Cidadãos (Attac) 33, 34 Bilderberg, reuniões de 171, 377
Atlântico 250, 254, 255, 315n, 319, Bihr, A. 353, 354
328 Birmingham University Centre for
Augelli, Enrico 41, 45, 79, 98, 201, Contemporary Cultural
208, 210, 213, 213n Studies 44
Austrália 53, 194 Bismarck, Otto von 158
Avineri, S. 130n, 136n Blackburn, R. 255
Axelrod, R. 81,82 Blair, Tony 15, 16
Blishchenko, I. 352
Bloch, Marc 242
B
Block, F. 209
Bahro, Rudolf 355, 396 Bloco Oriental 11,13
Bakker, Isabella lln>33 Biuestone, B. 156
Balibar, Etienne 67, 102n Bolívia 20, 23
Banco Bonaparte ver Napoleão I
Europeu de Reconstrução e Boot, P. 357
Desenvolvimento 50 Bosh, Hieronymus 56
do Japão 303 Bosworth, B. 167n
Mundial 13, 14, 35, 50, 58, 69, Bousquet, N. 227
83,120,171, 193, 194,211, Boyer, R. 370n
21 ln, 213, 270, 301, 386n Brandt, Relatório 190
Bank for International Settlements Braudel, Fernand 11, 25, 41, 51, 59,
(Banco de Compensações 85, 94, 235, 236, 238, 239, 243
Internacionais) 50, 171, 193, Brasil 12, 20, 21, 23, 36, 49, 55,
270, 305 55n, 252,310-312,315,322,
Barraclough, G. 59n, 268 323, 328-330, 333-337
Í ndice de nomes ♦ 437

Brenner, R. 135n CEÍ 83,90, 188, 190, 191, 194


Breton Woods, sistema de 79, 83, Centro das Nações Unidas sobre
119,161,213,369 Corporações Transnacionais
Brewer, A. 159 169,169n, 174, 178-180,181n,
British Centre of Policy Studies 184
(CPS) 168n Chase-Dunn, Christopher 300,
British Petroleum 171 318
Bródy, A. 396 Chauvier, J. M. 365, 366
Brus, W. 390n Chávez, Hugo 22
Buchanan, J. H. 14 Cheng Ho 288
Buci-Glucksmann, C. 104n, 109n, Chiang Kai-shek 296
140n, 146n Chile 20, 309, 322, 323, 382, 395
Bukharin, Nicolai 75, 96, 350, 355 China 48, 89, 161, 174, 175, 187,
Bulgária 357 190,214, 240, 285, 287-290,
Bundesbank 84 292-294, 296, 298, 353, 356,
Burawoy, Michael 388n 358-361
Burgos-Debray, E. 23 República d a ... 298
Bush, George 49, 201, 212, 214, República Popular da ... 298
306, 307, 335, 362, 404 Chisholm, J. 56
Bush, George W. 16, 17 Choucri, N. 220
CIA 171,362
c Cingapura 178, 300
Claudin, F. 350
Callinicos, A. 126n, 127n, 130n
Clinton, Bill 15
Canto, V. A. 167n
Clube de Roma 377
Canadá 50, 53, 116n, 194
Câmara Corporativa do Estado Coate, R. 21 ln
Cobham, D. 176
Novo (Portugal) 326
Camboja 360n Coben-Tanugi, L. 343
Cardoso, Fernando Henrique 21 Colbert, Jean-Baptiste 250
Caribe 213 Colletti, L. 130n
Carnoy, M. 138n Colômbia 20, 37
Carr, E. H. 244, 256, 259, 266, 270, Plano ... 22
355, 374n Comecon 358, 362
Carrère d’Encausse, J. 349 Comintern 348, 351, 354, 355, 357
Carter, Jimmy 362 Comissão
Ceaucescu, Nicolai 88 Brandt 215
CE 47, 50, 53-55, 58, 58n, 59, 84, de Planejamento Estatal 352
88, 174, 175, 179, 180, 1S8, Européia 84
220, 226, 304, 387 Trilateral 49, 61, 81, 117, 171,
CEE 47, 175 190, 377
438 ♦ Stephen G ill

Comitê D
de Segurança do Estado ver
KGB Dahrendorf, R. 398n
Central (do Pcus) 350 Davis, M. 13
Comunidade Davies, R. W. 394n, 400n, 401
Britânica 88 De Gaulle, Charles 174
dos Estados Independentes ver Dehio, L. 254, 256
CEI Der Derian, J. 150n
Econômica Européia ver CEE Deutsch, K. 220
Européia ver CE DeVroey, M. 160
Concerto da Europa 257, 269, 270 Deng Hsiao-ping 360
Cone Sul 310 Depretis, Agostino 15
Conselho Dimitrov, Georgy 355, 357
de Administração do Banco Draper, H. 222
Central dos Estados Unidos Di Muzzio, Tim 11
172n,196
Mundial de Igrejas 197 E
de Segurança da ONU 212 Edsall, T. B. 218
de Segurança Nacional 363 Egito 197
Coréia 289-295, 297, 298, 300-302, Eisenstadt, S. N. 281
356 Ellenstein, J. 349
do Norte 358 Elson, D. 33
do Sul 299, 301, 398n Engels, Friedrich 75, 128, 129,
Cortazar, R. 322 130n, 131, 133, 138, 221-223,
Cox, Robert W. 41, 45, 51, 52n, 236, 273, 344
65n, 67, 69, 70n, 72n, 76-78, Escola
80,83,91,92, 95, 116n, 140n, Politécnica de Leningrado 364
155, 157n, 158-160, 173, 180, de Relações Internacionais de
189, 192, 21 ln, 229, 275, 314, Amsterdã 41,45
315n, 318, 320, 348,367, 374, Espanha 18, 240, 241, 243, 246-250,
376n, 387n,388n 256, 263,310-312,315,317,
Crick, M. 181 321,323,326,328-330, 332,
Croce, Benedetto 71, 115 333, 336, 355, 356, 357, 372
Crozier, M. 384 Estados Unidos 11, 16-18, 18n,
Cuba 18n,360n 19n, 20, 22,33, 50, 54, 55, 79,
Cumings, B. 300 82, 97-99, 114, 117, 153-155,
Cuocco, Vincenzo 108n 161, 162, 167, 172n, 175,
Curtis, R 252 177-180, 184, 185, 187, 188,
190, 192-194,201,208,211,
211n, 212,215,217,219,236,

i
Í ndice de nomes ♦ 439

262, 264, 267-271, 273, F


296-299,301-304, 306, 307,
324n, 334, 335, 337, 340, 341, Fairbanks, J. K. 288
343, 354, 358, 361-363,369, Feinberg, R. E. 194
372-375, 378, 383, 402-404 Ferguson, Thomas 218
Eurásia 292 Fernandez Jilberto, Alex 42n, 46n,
Europa 19n, 26, 34, 47, 58, 59, 84, 322, 329, 348
93,116, 117,194,207,223-226, Feurbach, Ludwig von 133
231,232, 239-242, 246,248, Feulner Jr., E. J. 168n
250,251,255, 257, 261,268, Filipinas 298
285, 289, 295, 297, 307, 333, Flaherty, R 364
336, 341,343,347,353-356, Florença 30, 235, 236, 238
362, 367, 367n, 368, 372, 374, FMI 14, 15, 35, 50, 53, 69, 83, 90,
376, 378, 384n, 384-387, 402- 120, 171, 173, 176, 189, 193,
406 194, 196,211,213,226, 270,
Central 46, 48, 53, 83, 87, 89, 386n
90,194,341,347,398 Ford Motor Company 154, 178
Continental 254,255,257,341, Forgacs, D. 140, 206
343,384 Fórum
Meridional 309-312,315,317, Econômico Mundial 49, 61
318-320, 323-328, 335 Internacional sobre a
Noroeste da ... 239, 243, 247 Globalização 34
Norte da ... 104, 336 Nacional pela Reforma Agrária
Ocidental 44, 47, 52, 55, 106, 32n
106n, 107, 181, 190,208,209, Social Mundial 33, 37
236, 239, 240, 244, 325, 332, Social Europeu 33
336, 343, 356, 378, 384, 399, Foweraker, Joseph 326, 331
403, 404 França 50, 104, 106n, 107, 174,
Oriental 43, 46, 48, 53-55, 58, 177, 223,224, 240, 241,250,
83, 88,90, 187, 194, 336,351, 253-256, 263, 264, 266, 296,
356-358,387, 395,397, 398, 341, 342-344, 354,366, 378,
401,403,404 383,404
Sul da ... 246, 336 Franco, F. 331
European Nuclear Disarmament Frank, André Gunder 279, 280,
197 314, 315n, 316
Evans, M. K. 167n Freedman, Lawrence 47
Evans-Pritchard, E. 231 Frente
Extremo-Oriente 35 Nacional Francesa 58, 406
Popular da Europa Oriental
351
Frey, B. S. 69
440 ♦ Stephen G ill

Frieden, J. 172n, 185, 195, 322


Gosplan 357
Friedman, M. 168n
Gotha, Programa de 346
Fukuyama, Francis 70, 375n
Gould, C. 128n
Fundo
Goya y Lucients, F. J. de 56
Monetário Internacional ver
Grã-Bretanha 18n, 90, 92, 116,
FMI
117, 254, 258, 259
Fundo Nacional Pró- Gramsci, A. 12, 12n, 13, 15, 15n,
Democracia 363 29,30,41-45,65-73, 75, 77,
85, 86, 89,90,94, 96, 101, 102,
G 102n, 103, 103n, 104, 105,
G3 306 105n, 106-1.08, 108n, 109, 110,
G3-7 277 1lOn,111-115, 121, 122,
G7 15,35,47,49,50,61,82,90, 125-127, 127n, 139, 140, 141,
168, 193, 195,215, 306 141 n, 142, 143, 143n, 144,
Gallagher, J. 256 144n, 145, 146, 146n, 147,
Gatt 50,54,302 151-155, 157, 157n, 158, 159,
Geisel, Ernesto 330 189, 196,201-208,210,
Gênova 235,236 214-217,219, 220, 223-226,
George, S. 196 228,229, 275, 332, 336,337,
Gerbier, B. 361 339-343,348,349,353,360,
365-367, 374, 394
Gervasi, S. 363
Grant, W. 177
Gheorghiu-Dej, G. 358
Grécia 58n, 309, 310, 312, 315,
Giddens, A. 235, 309n
317, 321,326
Gill, Stephen 11,14, 24n, 29, 32,
Gross, L. 244
33,41,43-45, 53, 57, 65, 65n,
Grupo do Rio 335
69, 75, 77, 78, 80, 82, 95,98,
Grupo dos Sete ver G7
157, 157n, 162, 169, 172, 173,
Grupo dos Três ver G3
175, 181, 186,214,215, 225,
Guerra Fria 25, 161, 218, 298, 354,
229, 275, 279, 367n, 374n,
360, 361, 375
403n
Gunnell, John 65, 66, 72
Gills, Barry 59, 275, 276, 279, 280,
283,285
H
Gilpin, Robert 76, 148, 151, 227,
270 Haas, E. 220
Giolitti, Giovanni 109 Habermas, J. 87
Glasnost 393 Habsburgos 241, 256
Gluckman, M. 231 Halévy, D. llOn
Gorbachev, Mikhail 50, 90, 363-366 Hall, S. 44
Gordon, D. 169n, 179, 388n Han, dinastia 290-292
Gorz, André 396 Harris, N. 211,322
Í ndice de nomes ♦ 441

Harrod, J. 21 ln índia 186, 190, 191, 214, 240,


Hart, J. A. 209n 289-291,353
Havei, Vaclav 89 Índico, oceano 251, 288
Hegel, G. W. F. 71, 73, 74n, 133, índias 251
137 Indochina 289, 298, 299
Heritage Foundation 168n, 366 Indonésia 298
Hill, C. 243 Inglaterra 93, 104, 106n, 107, 116,
Hitler, Adolf 355 168, 171, 175-179, 181, 187,
Hoare, Q. 340,341,349 224, 241,249, 250,253, 254,
Hobbes, Thomas (Leviatã) 126n, 258-260, 263, 264, 295-297,
342 304, 340, 378, 383, 384n, 403,
Hobsbawm, E. 33, 255 404
Hoffman, K. 19, 20, 20n Iniciativa de Defesa Estratégica
Hogarth, William 56 (IDS) 363
Holanda 224, 246, 384n Institutc of Economic Affairs
Holloway, D. 358 (Inglaterra) 168n
Holman, O. 41, 42n, 90, 309, 321, Intermediate Technology
323,329, 331 (Inglaterra) 196
Honecker, Erich 397 Internacional Socialista 366
Hong Kong 300 Irã 122, 171, 247
Hopkins, T. K. 227 Iraque 16, 17, 212
Hough, Jerry 360n, 364, 366 Isaak, J. 126n
Howard, M. 47 Islã 25,404-406
Hungria 336, 347, 357, 359, 367n, Casa do ... 240
393,395, 397 Itália 15n, 30, 44, 50, 103n, 104,
Huntington, S. P. 24, 25 106n, 108, 108n, 114, 118,
Hussein, Saddam 17 220, 224,317, 341,349,354,
372, 395
I Norte da ... 235, 236, 238, 239,
245,246,250
Igreja 224,291,292,341,347 Iugoslávia 47, 372, 403
budista 291 Izyumov, A. 363
Católica Romana 341
Ortodoxa 352
Império J
Austríaco 223 Jacoby, R. 127n
Britânico 171 Jaime I 243
Austro-Húngaro 222 Japão 43, 44, 50, 52, 69, 80, 89,
Romano do Ocidente 282 161, 174, 180, 190, 193, 194,
Otomano 251, 295 208, 209, 275-276, 283,
Inayatullah, N. 126n 287-292, 294-307, 335, 337,
442 ♦ Stephen G ill

343, 369, 372-374, 384n, 385, Lane, F. 235, 237


402, 404 Larrain, J. 44, 143n
Jay, M. 127n, 140n Law, David 43, 48, 69, 77, 78, 80,
Jessop, B. 136n, 138n, 140n 95,157, 157n, 169, 186, 229
Johnson, Chalmers 284, 299 Lefebvre, H. 343
Jonquières, G. 37 Lenin, V. I. 103, 103n, 116n, 268,
345, 346, 348, 353
K Leste Europeu 87, 89, 90, 357, 359,
364, 403,404
Kalecki, Michael 166n, 400 Lewin, Moshe 347, 350, 352
Katzenstein, P. 383n Líbia 178n
Keat, R. 126n Lichtheim, G. 116n
Kennedy, Paul 227, 278, 282, 374n Lijphart, A. 312
Keohane, Robert O. 81, 148, 169, Lindblom, Charles 159n, 165, 166,
204,215,217,229, 371n,374n 170, 185
Keyder, C. 324, 324n Linklater, A. 148
KGB 399 Lipietz, Alain 312-316,318,320,
Khader, B. 210 321, 336
Khomeini, R. 347 Lipson, C. 173
Kindleberger, C. P. 193 Lloyd, J. 37
Kingsbury, B. 21 ln London, Arthur 357
Knights, D. 159n Lorwin, V. R. 354
Kolakowski, L. 127n, 133n Low, S. 32
Kolm, S. C. 383n Lõwy, M. 345, 347
Konrad, G. 352, 353 Luís XIV 250
Konrad Adenauer Stiftung 366 Lukács, Gyorgy 396, 396n
Kornai, Janos 84, 87, 390n Lula [Luiz Inácio da Silva| 20, 21n,
Kortunov, A. 363 55,55n
Krasner, Stephen 361 Lysenko, T. 357, 359
Kruschev, Nikita 358
Kuklinski, A. 398n, 40ln
M
Kuomintang 296
Kuwait 373 Maastricht
acordos de ... 53
L Tratado de ... 53
Macciocchi, M. A. 103n
Laclau, E. 138n Madeuf, B. 368n
Lacoste, Y. 406n Maekawa, Relatório 304, 305
Laird, R. D. 348 Maier, Charles 160, 373
Laird, B. A, 348 Malásia 301
Lamounier, B. 333 Malthus, Thomas 75
Í ndice de nomes ♦ 443

Malvinas, ilhas 334 Milão 236,238


Manchúria 295 Miliband, R. 138n
Mandeli, D. 400 Miil, John Stuart 75
Mann, Michael 284 Miller, L. B. 209
Mao Tse-tung 314 Milliken, J. 126n
Maquiavel, N. 30, 71, 103, 105, Ming, dinastia 287, 288
201, 206 Mitterand, François 174
Marcou, L. 358 Miyazawa, Kiichi 307
Marcuse, Herbert 359 Modelski, George 227, 236
Marshall, Plano 356, 358 Monroe, James 18n
Marr, Nicolay Y. 359 Moore Jr., B. 343
Marx, Karl 18, 19n, 41, 42, 66-68, Morera, Esteve 67, 72
71, 73-75, 95,96, 102, 108, Mouffe, C. 103n
110, 126-130, 130n, 131-134, Mouzelis, N. 316,321,326
134n, 135, 135n, 136, 136n, Movimento dos Trabalhadores
137-142, 144, 144n, 147, 152, Rurais Sem Terra ver MST
155,221-223, 236, 273,344, Moynihan, Daniel P. 121
346, 352, 360 MST 21-24, 32n, 34, 36
Mayer, T. F. 69 Murphy, Craig 45, 79, 97n, 98,
McCracken, P. 177, 377n 157n, 201,208, 209n,210,2l3
McGovern, A. F. 136n
McGowan, P. 157n N
Mclver, R. M. 265
Nações Unidas ver ONU
McMichael, P. 32n
Nakasone, Yashuhiro 305
McNeill, W. 235,237,239-241, Namíbia 214
247, 248, 251,264 Napoleão I 104, 108, 108n, 255,
Mearsheimer, John 47 341, 345
Mediterrâneo, mar 57, 240, 406 Napoleão III 108
Meiji, dinastia 287, 294 Nassau, Maurício de 247, 251
Mello, Fernando Collor de 55n, National Health Service (Grã-
323,334 Bretanha) 177
Menand, L. 364 Nayar, B. R. 186
Menchú, Rigoberta 23, 24 Neues Forum (Alemanha) 396
Mêncio 285 Neumann, F. 263
Mercado Comum Europeu 312, Nester, W. 337
321,323,332 Neves, Tancredo 312, 330
Mercosul 335 Nicarágua 214
Mészáros, I. 130n, 133n Nigéria 366
México 23,34,315,322,323 Nixon, Richard 299
Michalet, C. A. 368n Noei 117,210,211,361
444 ♦ Stephen Gill

Noel, A. 160 Orwell, George 78


North, R. C. 220 Otan 35, 50, 90, 226, 361, 363, 405
Nova Ordem Econômica Overbeek, H. W. 42n, 168n, 319,
Internacional ver Noei 361
Nova Política Econômica 106, Oxfam 197
348,360
Nova Zelândia 194 P
Nove, Alec 357, 395
Novosibirsk, Relatório 401n Pacífico
Nyejr., J. S. 169, 374n oceano ... 295
eixo do ... 179
O Países Baixos 236
Palan, R. 276
OCDE 362, 377, 377n Panamá 334
Ocidente 25, 43, 44, 56, 57, 69, 88, canal do ... 18n
90, 107, 140, 142, 143, 161, Paraguai 23, 335
172, 190, 196,211,215, 219, Parce, Frank 65
220, 265, 283, 285, 287, 289, Parker, G. 242
291,293, 294, 349,353,354, Parlamento Europeu 53
357,358,361,362,364,375, Parodi, C. 157n
387, 396, 401, 403-405 Partido
OIT 120 Bolchevique 346, 349
Ollman, B. 128n, 131, 133n Comunista 349, 351
OMC 35 Comunista Chinês 112
ONU 49,211,213,214,270 dos Trabalhadores (Brasil) 37
Opep 209,210 Comunista Espanhol 331
Organização Comunista Italiano 15, 101
das Nações Unidas ver ONU Comunista da União Soviética
para a Cooperação e (Pcus) 351
Desenvolvimento Econômico Conservador (Estados
ver OCDE Unidos) 169
Internacional do Trabalho ver Democrata (Estados Unidos)
OIT 218
dos Países Exportadores de Democrático de Esquerda
Petróleo ver Opep (Itália) 15
do Tratado do Atlântico Norte Socialdemocrata Alemão 15,
ver Otan 53
Mundial do Comércio ver Socialista Espanhol (PSOE)
OMC 330, 332, 333
Oriente 44, 172, 190, 220, 250, 276, Trabalhista (Reino Unido) 15
289, 293, 353, 362, 403-405 Patomãki, H. 27
Médio 17, 58, 59, 171 Payer, C. 171
Í ndice de nomes ♦ 445

Peel, Robert 373 R


Pentágono 16, 17, 35, 307
Perestróica 84, 344, 355, 360, 363, Radice, H. 169
364, 393, 402 Rand Corporation 363
Petras, J. 19, 19n, 22, 24 Ranki, G. 345
Petrovic, G. 133n Rapkin, D. P. 278
Pfister, U. 173,195 RDA ver Alemanha Oriental
PIB 163, 170, 172n, 303 Reagan, Ronald 167n, 201, 208,
Pinder, J. 177 210,212,214,217-219, 309,
Pinochet, A. 395n 362,363
Piore, M. 370n Reichstag 84, 355
Pipes, Richard 362, 363 Reno, rio 222
Poggi, G. 137n Results (América do Norte) 196
Polônia 79, 83, 336, 356, 359, 362, Reino Unido 50, 90, 168n, 185,
393, 395, 397, 398n, 399n, 401 192, 196, 236, 253-259,
Polanyi, Karl 77, 83, 259, 265, 370, 261-264,266, 267, 269-271
398 República Federal da Alemanha
Popper, Karl 97 ver Alemanha Ocidental
Porta Aberta, política da 296 Reisnick, S. A. 74, 95, 96
Portelli, H. 103n Revolução Industrial 59n, 260
Portes, J. 19, 20, 20n Ricardo, David 68, 75, 95
Portugal 240, 246, 250, 309, 310, Riukiu, ilhas 288
312,315,317,321,323,326, River Rouge, complexo de (Ford
382 Motor Company) 154
Poulantzas, N. 138n Roberts, A. 167n, 21 ln
Pridham, G. 312 Robinson, R. 256
Primeiro Mundo 52, 59, 370 Robinson, W. 19
Produto Interno Bruto ver PIB Roemer, J. 69
Províncias Unidas 236, 239, 243, Roett, R. 334
248-250, 253, 254, 256 Rogers, J. 218
Prússia 104, 222, 223 Rokossovski, K. 356
Puchala, D. J. 21 ln Rolland, Romain 12
Putnam, R. D. 168, 177 Romênia 79, 88, 89, 358
Roosevelt, Theodore 18n
Q Rosenstock-Huessy, E. 339
Qing 288 Rossabi, M. 288
dinastia ... 287, 289, 290, 293, Roth, T. P. 167n
295 Ruggie, John 80, 161, 232
império dos... 289, 294 Rupert, Mark 67, 95, 126n, 153,
Quatro Tigres 302 154
446 ♦ Stephen G ill

Rússia 44, 55, 56, 83, 106, 107, Steensgaard, N. 242


196,295,343, 345-348, 353 Stein, H. 167n
Stédile, J. P. 21, 21n, 32n
s Stoffaes, C. 383n
Strange, Susan 81, 278, 367, 369,
Sabei, C. 370n 374n
Sachs, Jeffrey 166n, 196 Suécia 241
Sadowski, Zdzislaw 398n Suíça 384n
Sainte Croix, Geoffrey de 282 Sung, dinastia 292
Salazar, Antônio de Oliveira 326 Suter, C. 173, 195
Sampson, A. 170 Sutton, A. C. 351
Sargent, J. 159n, 177 Szczepanski, I. 398n
Sassoon, A. S. 103n, 140n, 143n, Szelényi, I. 352,353,355
146n, 157n
Szelényi, S. 352, 353, 355
Sayer, Derek 126n, 128n, 130n,
133n, 135n, 136n, 137, 137n,
T
149
Schiller, Friedrich 84 Tailândia 301
Schmoller, T. 252 Taiwan 178, 295, 297, 299, 301,
Schollhamer, H. 174 302, 398n
Schrijver, N. 21 ln Takeshita, Noburo 306
Schultz, George P. 362 Tang, dinastia 291
Schumpeter, Joseph 230 Taylor, C. 375
Seldon, A. 168n Tchecoslováquia 89, 336, 357, 393,
Sete Irmãs 170 395, 396
Shell Oil Company 171 Teivainen, T. 27
Sherman, Alfred 168n Terceira Internacional 102, 103
Sindicato Solidariedade (Polônia) Terceiro Mundo 11, 46, 50, 52, 53,
196, 398n, 401 55, 59n, 79,81,90, 110, 117,
Skocpol, T. 148 121, 171, 178n, 187, 191, 201,
Slansky, R. 357 208, 209, 209n, 210-215,217,
Smith, Adam 126n, 242 301, 307, 361, 369, 370, 375,
Snidal, D, 188 404-406
Sociedade Mont Pèlerin 168n, 377 Texier, J. 140n, 143n, 146n
Sorel, Georges 70, 110, llOn, 206 Thatcher, Margaret 84, 90, 168n,
Spohn, W. 351 176, 177,309,378
Spooner, F. 243 Thompson, E. P. 102n, 156
Spyropoulos, G. 385 Tickner, J. A. 60
Stalin, Josef 349-351,353, 355, Tito, J. B. 357
356,358,359 Tokugawa, xogunato 288, 289, 294
Starodubtsev, Vasily 366 Tooze, R. 97n
Í ndice de nomes ♦ 447

Tortosa, J. M. 326 Versalhes [Conferência de Paz de|


Trade Act (Estados Unidos) 304, 295
305 Vielle, P. 346
Transnational Institute 197 Viena
Tropa Norte-Americana de Tratado de ... 256
Intervenção Rápida 50 Congresso de ... 269
Trotski, Leon 351, 366 Vietnã 48,298, 299, 301,356
Tsushima, ilha de 288 do Norte 358
Tucídides 75 do Sul 299
Turquia 317 Vojinovic, M. 398n
Volcker, Paul 172n, 196
u Volkskammer 84
Von Hayek, F. A. 168n, 398
União Von Laue, T. H. 345
Aduaneira Alemã 222, 223
Voslensky, M. 349
Européia 17
Voznesenskii, N. 357
Soviética 11, 43, 44, 46-49, 79,
80, 83, 84,87, 90, 114, 115,
187,190,218, 268,283, 306,
w
339, 344, 349, 350, 353, Wagner, Richard 85
356-366,388, 392,399 Walesa, Tech 399n
Universidade Walker, T. 197
das Nações Unidas 367n Wallerstein, Immanuel 152n, 153,
de Harvard 196 227, 233, 255,316,318, 328,
Urry, J. 126n 333
Uruguai 310, 312, 322, 335 Waltz, Kenneth 67, 76,151
U'Wa 37 Washington, Tratado de 296
Weber, Max 137n, 157
V Wendt, Alex 126n, 159n
Westfália
Van der Pijl, Kees 41,42n, 45, 87-90, Tratado de ... 244, 249
95, 155, 157n, 162, 173, 225, Paz de... 243,257
331,339,350,361 Wilkinson, David 284
Van Doorn, J. 247 Wilkinson, F. 378n
Van Wolferen, K. 300 Wilmott, H. 159n
Van Zon, H. 358, 362 Wilson, C. 252
Varsóvia, Pacto de 90 Wilson, Woodrow
Veneza 57, 235, 238, 240, 245-247, Programa de ... 268
249, 253, 254 Wolf, L. 366
Venezuela 22 Wolfe, A. 324
448 ♦ Stephen G ill

Wolff, R. D. 74,95,96
Wood, E. M. 136n, 137n
Wriston, Walter 172n

Y
Yanayev, G. 339> 344, 366
Yasuhiro, Nakasone 305
Yuan, dinastia 286
Yeltsin, Bons 50, 365, 366
Yi, dinastia 287, 288, 294
Young, B. 33
Young, S. 178

z
Zaslavskaya, T. 401-402
Zhdanov, N. 352
Zinoviev, G. E. 355
Zysman, J. 383n
1010877672
IFCH
U W I t a jr.* -

320:5322 G762

Este livro foi impresso pela Sermograf para a Editora UFRJ cm


julho dé 2007. Utilizou-se a fonte Minion na composição, papel
pólen soft 80 g/mr para o miolo e cartão supremo 250 g/m2para a capa.
I
redefinido fora dos parâmetros do chamado “marxismo-
leninismo”, uma redefinição que implica a idéia de
construir mecanismos de autodefesa da sociedade contra
os efeitos desagregadores e atomizantes da globalização e
do mercado não planejado.
Além das “reflexões teóricas e filosóficas” que
constituem a primeira parte do livro, em que se busca
elaborar uma teoria hístórico-materialista das relações
internacionais, o leitor encontrará nesta coletânea, em
sua segunda parte, estudos de caso sobre a política
internacional norte-americana, sobre o Leste da Ásia,
sobre a Europa do Sul e a América Latina, bem como
sobre a natureza do sistema soviético e as razões do seu
colapso.
Num prefácio escrito especialmente para esta edição
brasileira, Stephen Gill apresenta sugestivas reflexões sobre
os problemas atuais vividos pelo nosso subcontinente.

Gilí., organizador desta coletânea, nasceu em


Stephen
1950 e é atualmente professor de ciência política na York
University, em Toronto, Canadá. Ensinou anteriormente
na Universidade de Manchester e foi professor visitante em
várias universidades, em particular na Universidade de
Tóquio. É autor, entre outros livros, de American
Hegemony and the Trilateral Commission (1990),
Globalizadon, Democratization and Mullilateralism (1997)
e Power and Resistance in the New World Order (2002).

Colaboram também neste volume:


Giovanni Arrighi, Enrico Augelli,
Robert W! Cox, Barry K. Gills,
Otto Holman, David Law,
Craíg Murphy, Mark Rupert

c a p a A n a C a r r e ir o
“Ficará claro para o leitor que os ensaios deste volume foram
inspirados pelos problemas levantados não apenas nos escritos
de Antonio Gramsci, mas também nos de autores como Karl
Marx, Fernand Braudel, Karl Polanyi, Robert Cox e outros
Em outras palavras, as notas de Gramsci sobre relações interna­
cionais precisam ser relacionadas à reconstrução do pensamento
histórico-materialista em sentido amplo, a fim de evitar um novo
sectarismo intelectual É importante transcender distinções aca­
dêmicas de utilidade limitada, tais como aquelas entre relações
internacionais e política comparada, entre teoria política e teoria
empírica, entre sociologia política e economia política.”
Stephen GUI

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