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Ficção
Poncio Arrupe
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Maria
Abre o seu pequeno cofre, retira de dentro o lenço, poisa-o no chão à sua frente e
afasta-lhe as pontas. Uma vez mais conta as guloseimas que tinha juntado no último
mês: dez pastilhas pirata, das pequenas, que estão embrulhadas como os rebuçados, com
duas orelhas de papel de cada lado, cor rosa vivo por dentro, pequenos paralelepípedos,
quase cubos, suave e finamente cobertos de um açúcar muito leve; dois chocolates
Lunch – as estrelas da companhia! -, de longe o seu preferido, quase que não lhes resiste
... o recheio de caramelo líquido espesso por dentro ...; alguns rebuçados Dr. Bayard,
que são para a tosse mas que são muito melhores do que os outros que não tratam mal
nenhum; quatro chupa-chupas esféricos, cada um de seu sabor, um por cada semana.
Era tudo. Ocupavam tão pouco espaço, tão insignificantes – cabiam numa algibeira!,
envoltos no seu lenço de bolso de criança atado pelas pontas – e, no entanto, valiam
quase todo o dinheiro que lhe passou pelas mãos naquele período e que podia gastar
para si, como bem entendesse, para satisfazer os seus caprichos de menino de dez anos.
Abdicou ao longo daquele mês de todos aqueles pequenos prazeres a que se tinha
habituado. Nem lhe custava muito olhá-los porque o motivo porque os juntou se
sobrepunha naturalmente, por isso sem sacrifício demasiado, a qualquer fútil prazer
momentâneo, efémero. Por várias vezes se perguntou se já seria suficiente. Por várias
vezes decidiu que não e continuou a juntar por mais uns dias. Hoje sabe que João
criança foi adiando o culminar do seu projecto essencialmente por insegurança quanto à
reacção de Maria, e por um pânico descomunal perante a antecipação do momento da
verdade, em que de alguma forma revelaria os seus sentimentos e lhe ficaria à mercê.
Em rigor, qualquer quantidade parecer-lhe-ia sempre insuficiente porque, embora
criança, intuía já que o amor não se compra, mesmo que eventualmente alguém o queira
vender. Muito mais tarde João ficaria a perceber que, na verdade, o que não se compra
nem vende é a paixão. Que era o que ele realmente sentia irremediável e
desesperadamente por Maria. O amor, esse sim, compra-se – induz-se, faz-se nascer,
alicia-se, alimenta-se, encena-se, ... -, mas normalmente por bem mais do que um
punhado de guloseimas. De novo, o que muitos assumem como o essencial, o
sentimento dito mais nobre, o amor, está sob a influência de motivos aparentemente
fúteis. A paixão, errática, inconstante, efémera, é que não. Esta parece seguir sempre o
seu curso “contra tudo e todos”, contra vontades e consciências.