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”:
UM DEBATE SOBRE UM
FILME EPIDEMIOLÓGICO
“AND THE BAND PLAYED ON…” -
A DEBATE ON AN EPIDEMIOLOGICAL FILM
Stela Nazareth Meneghel*
RESUMO ABSTRACT
Este texto é uma síntese reflexiva sobre o fil- This constitutes a reflexive synthesis on the
me “E a vida continua...”. A obra cinematográ- film “And the band played on...”. The cine-
fica, além de documentar o início da epidemia matographic work, besides documenting the
de AIDS, mostra de maneira detalhada as ativi- beginning of the AIDS epidemic, shows in detail
dades do dia a dia de um serviço de vigilância the daily activities of an epidemiological sur-
epidemiológica e é um recurso didático potente veillance service and is a powerful didactic re-
para a discussão e reflexão crítica acerca da epi- source for the discussion and critical reflection
demiologia e também sobre as vigilâncias epi- on epidemiology and also on epidemiological
demiológica e sanitária. and sanitary surveillance.
PALAVRAS-CHAVE KEYWORDS
Vigilância Epidemiológica. Epidemiological Surveillance.
Epidemias. HIV/AIDS. Epidemics. HIV/AIDS.
Correspondência:
E-mail: *stelameneghel@gmail.com
cia epidemiológica constitui um sistema de cada pela notificação de casos e pelo apare-
informação alimentado pela notificação de cimento da doença em diferentes estratos
casos ou de surtos, cuja relevância em mui- populacionais: homossexuais, hemofílicos,
tas situações é avaliada de modo político. A bebês, haitianos, usuários de drogas, mu-
vigilância vai se preocupar com a emergên- lheres (esquecidas). A “conta do açougueiro”,
cia de doenças novas; com o reaparecimento alusiva às estatísticas de morte de soldados
de doenças eliminadas (doenças emergentes ingleses elaboradas pelo almirante Nelson na
e reemergentes), com doenças consideradas guerra contra Napoleão, vai computando inci-
de notificação compulsória e com situações dência, mortalidade e letalidade e anuncia a
que se apresentam de forma não usual (visto doença como uma sentença de morte.
no filme, como o Sarcoma de Kaposi acome- A relação tensionada entre os organismos
tendo pessoas jovens). estatais de saúde pública e os grupos domi-
O primeiro caso de AIDS registrado no nantes (a indústria do sangue e mais tarde a
mundo ocorreu no início da década de 1980. indústria farmacêutica) transversaliza o fil-
Entretanto, em 1977, aos 47 anos, morreu a me. Acrescentem-se as péssimas condições
médica e pesquisadora dinamarquesa, Mar- de trabalho dos técnicos do CDC, a ausência
grethe P. Rask. Ela havia estado na África, e/ou corte das verbas para pesquisas (o go-
estudando sobre o Ebola e começara a apre- verno Reagan reduziu os orçamentos de todos
sentar diversos sintomas estranhos para a os ministérios, exceto o da defesa, e atrasou
sua idade. Historicamente, talvez esse seja décadas a pesquisa sobre a AIDS), os malaba-
o primeiro caso descrito de morte por de- rismos para conseguir recursos, a secunda-
corrência da AIDS. Diante do número pro- rização do CDC frente aos institutos privados
gressivo de notificações da síndrome, o CDC de pesquisa, que abocanharam a maior parte
passou a estudar a doença e a pesquisar as dos méritos da pesquisa e tem-se o quadro
suas características epidemiológicas. No real das condições de trabalho dos vigilantes
filme, observamos um dos marcos do início epidemiológicos, sanitários e da saúde.
da epidemia, a notificação de dois casos de Ainda no filme, a estratégia de ação da
Pneumonia por Pneumocistis carinii em ho- vigilância epidemiológica difere da vigilân-
mossexuais, nessa situação a epidemiolo- cia sanitária, ficando mais claro o processo
gista Mary Guinan sugere a divulgação do negociado – para entrar nas saunas Selma
evento, porém, o coordenador do serviço de Ditz utilizou o capital de relações, a inserção
controle de doenças transmissíveis do CDC militante junto aos movimentos sociais que
retira do informe a palavra “homossexual”. referendariam, ou não, as ações de contro-
Os diferentes tipos de discurso, o oculta- le propostas. Aparece uma diferença funda-
mento de determinadas palavras e a ênfase mental entre as duas práticas, uma delas
em outras, a peste gay ou a doença que ainda pautada na arena política e no consenso en-
não tem nome (“vocês não deram sequer um tre os atores sociais e a outra, na identifica-
nome para esta doença”, diz o ativista), vão ção de padrões de risco encontrados segun-
revelando a construção social da epidemia. do a aplicação do método epidemiológico. De
A pontuação cinematográfica do tempo qualquer maneira, a AIDS foi a doença que
é realizada por meio dos indicadores de uso implodiu a noção de grupos de risco, definido
corrente na epidemiologia: a incidência e a como o grupo populacional mais propenso a
mortalidade. A linha de tempo vai sendo mar- adquirir um determinado agravo – conceito
usado muitas vezes de modo dúbio e discri- realidade explicitam as possibilidades múlti-
minador. Com a AIDS ampliou-se a noção de plas, embora frequentemente contraditórias,
risco para vulnerabilidade, categoria oriunda de um mundo de complexidade crescente.
do campo dos direitos humanos, que incor- Outro aspecto importante do filme “E a
pora a dimensão social do adoecer humano. vida continua...” é a construção social do
No Brasil, a integração entre as vigilâncias discurso científico. Discurso que atende a in-
para constituir a vigilância em saúde está em teresses econômicos (a indústria do sangue
consonância com os princípios do SUS, que não vai perder dinheiro fazendo teste em mi-
prevê a integralidade das ações de saúde e a lhões de doadores, sem evidências concre-
consequente eliminação da dicotomia entre tas) e do preconceito em relação a grupos e
as duas áreas. Além disso, a descentraliza- modos de vida (ninguém dará um vintém para
ção das responsabilidades e funções do sis- pesquisa se a palavra gay for ventilada).
tema de saúde implicou no redirecionamento O término do filme retrata uma das gran-
das atividades de vigilância epidemiológica des marchas noturnas pela AIDS, em que
para o nível local. Dessa forma, o SNVE es- multidões caminharam para visibilizar a doen-
tabeleceu como prioridade o fortalecimento ça, para lembrar os mortos, demandando
de sistemas municipais de vigilância epide- um olhar mais atento para essa doença que
miológica, dotados de autonomia técnico-ge- se tornaria uma das mais prevalentes, temi-
rencial para enfocar os problemas de saúde das e estigmatizadas da contemporaneidade.
próprios de suas respectivas áreas de abran- Esse fechamento, que na verdade é um ponto
gência (BRASIL, 2009). de interrogação frente ao futuro, nunca dei-
O modelo tradicional de vigilância, basea- xa de afetar e comover a plateia, mesmo que
do na centralização normativa e na aplicação o filme já tenha sido visto incontáveis vezes
de práticas padronizadas por meio de servi- (MENEGHEL, 2015). Enfim, mais de vinte anos
ços locais distribuídos por todo o país, foi su- depois, o filme “E a vida continua...” ainda pode
plantado por outro, que previa o controle por ser considerado uma aula de epidemiologia.
transferência de fundos e atribuição de res-
ponsabilidades. Centrado na municipalização,
na autonomia local, no repasse de recursos REFERÊNCIAS
financeiros, no atendimento orientado ao in-
divíduo, na participação de organizações da BARATA, R. C. B. O desafio das doenças emergentes
sociedade civil, na difusão de informações, e a revalorização da epidemiologia descritiva.
Informe Epidemiológico do SUS, Brasília, DF, v. 8,
a partir de mudanças de comportamento e n.1, p. 7-15, mar. 1999.
mobilização social. O exemplo mais pertinen-
te desse tipo de programa no Brasil foi o da BRASIL. Lei n° 6.259, de 30 outubro de 1975.
vigilância da AIDS, implicando em uma parti- Dispõe sobre a organização das ações de Vigilância
Epidemiológica, sobre o Programa Nacional
cipação intensa da sociedade civil organizada
de Imunizações, estabelece normas relativas à
(BRASIL, 2010; TEIXEIRA, 2002). notificação compulsória de doenças, e dá outras
Além disso, prioridades definidas a partir providências. Diário Oficial [da] República Federativa
de perspectivas globais, repercutem local- do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 31 out. 1975.
mente, fazendo com que a vigilância em saú-
BRASIL. Ministério da Saúde. Guia de vigilância
de se concretize em uma multiplicidade de epidemiológica. 7. ed. Brasília, DF, 2009. (Normas e
propostas que parecem conflitantes, mas na Manuais Técnicos, Série A).