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ANAIS DO IV CIAD

COLÓQUIO INTERNACIONAL DE
ANÁLISE DO DISCURSO
A produção dos consensos e a conquista das
resistências: os discursos nos movimentos do
mundo contemporâneo

ISBN 978-85- 7993-352- 3

Realizado de 2 a 4 de setembro de 2015


UFSCar

SÃO CARLOS
2016
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS - UFSCar

REITOR
Prof. Dr. Targino de Araújo Filho

VICE-REITOR
Prof. Dr. Adilson Jesus Aparecido de Oliveira

PRÓ-REITORA DE GRADUAÇÃO
Profa. Dra. Claudia Raimundo Reyes

PRÓ-REITORA DE PESQUISA
Profa. Dra. Heloisa Sobreiro Selistre de Araujo

PRÓ-REITORA DE PÓS-GRADUAÇÃO
Profa. Dra. Débora Cristina Morato Pinto

DIRETOR DO CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS


Profa. Dra. Wanda Aparecida Machado Hoffmann

COORDENADOR DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM


LINGUÍSTICA
Prof. Dr. Carlos Piovezani

CHEFE DO DEPARTAMENTO DE LETRAS


Prof. Dr. Luiz André Neves de Brito

COORDENADORA DO CURSO DE LINGUÍSTICA


Profa. Dra. Luzmara Curcino

COORDENADOR DO CURSO DE LETRAS


Prof. Dr. Pablo Arantes
Vanice Maria Oliveira Sargentini
Carlos Piovezani
Luzmara Curcino

ANAIS DO IV CIAD
Colóquio Internacional de
Análise do Discurso

A produção dos consensos e a conquista das resistências: os


discursos nos movimentos do mundo contemporâneo

ISBN 978-85-7993-352-3

2016
Editoração
Clarissa Neves Conti (PPGL – UFSCar)
Pâmela da Silva Rosin (PPGL – UFSCar)

Revisão Técnica
Clarissa Neves Conti (PPGL – UFSCar)
Carlos Alberto Turati (PPGL-UFSCar)
Denise Ribeiro Leppos (PPGL-UFSCar)
Elizete de Souza (PPGL – UFSCar)
Geovana Chiari (PPGL-UFSCar)
Hulda Gomides Oliveira (PPGL-UFSCar)
Jessica Boquetti de Oliveira Braga (Letras – UFSCar)
Mónica Guerrero Garay (PPGL-UFSCar)
Pâmela da Silva Rosin (PPGL – UFSCar)
Rafael Borges Ribeiro dos Santos (PPGL-UFSCar)
Rejane Rodrigues Almeida de Medeiros (PPGL-UFSCar)
Wilson Ricardo Barbosa dos Santos (PPGL-UFSCar)

Comissão Avaliadora dos textos


Clarissa Neves Conti (PPGL – UFSCar)
Pâmela da Silva Rosin (PPGL – UFSCar)

Sargentini, V.; Piovezani, C.; Curcino, L.; Rosin, P. S.; Conti, C. N. (orgs.).

Anais do IV CIAD – Colóquio Internacional de Análise do Discurso – UFSCar. São


Carlos: Pedro & João Editora, 2016.

ISBN 978-85-7993-352-3

1. Análise do Discurso. 2. Colóquio Internacional de Análise do discurso. 3.


UFSCar. 4. Estudos de Linguística
CDD 410
ORGANIZADORES
Profa. Dra. Vanice Maria Oliveira Sargentini (UFSCar)
Prof. Dr. Carlos Piovezani (UFSCar)
Profa. Dra. Luzmara Curcino (UFSCar)

COMISSÃO ORGANIZADORA DO IV CIAD


Allice Toledo Lima da Silveira (PPGL-UFSCar)
Carlos Alberto Turati (PPGL-UFSCar)
Clarissa Neves Conti (PPGL-UFSCar)
Debora Cristina Ferreira Garcia (PPGL-UFSCar)
Denise Ribeiro Leppos (PPGL-UFSCar)
Diane Heire Paludetto (PPGL-UFSCar)
Elizete de Souza (PPGL – UFSCar)
George Sosthène Koman (PPGL-UFSCar)
Geovana Chiari (PPGL-UFSCar)
Israel de Sá (PPGL-UFSCar)
Jocenilson Ribeiro dos Santos (PPGL-UFSCar)
Joseane Silva Bittencourt (PPGL-UFSCar)
Lívia Maria Falconi Pires (PPGL-UFSCar)
Maísa Ramos Pereira (PPGL-UFSCar)
Michelle Aparecida de Pereira Lopes (PPGL-UFSCar)
Mónica Guerrero Garay (PPGL-UFSCar)
Nirce Aparecida Ferreira Silvério (PPGL-UFSCar)
Pâmela da Silva Rosin (PPGL-UFSCar)
Pedro Ivo Silveira Andretta (DCI-UNIR)
Rafael Borges Ribeiro dos Santos (PPGL-UFSCar)
Rejane Rodrigues Almeida de Medeiros (PPGL-UFSCar)
Renata Maria Cortez da Rocha Zaccaro (PPGL-UFSCar)
Simone Garavello Varella (PPGL-UFSCar)
Thiago Barbosa Soareas (PPGL-UFSCar)
Wilson Ricardo Barbosa dos Santos (PPGL-UFSCar)

COMISSÃO CIENTÍFICA DO IV CIAD


Profa. Dra. Vanice Maria Oliveira Sargentini (UFSCar)
Prof. Dr. Carlos Piovezani (UFSCar)
Profa. Dra. Luzmara Curcino (UFSCar)
Profa. Dra. Maria do Rosário Valencise Gregolin (UNESP-FCLAr)
Prof. Dr. Pedro Navarro (UEM)
Prof. Dr. Cleudemar Alves Fernandes (UFU)
Prof. Dr. Antônio Fernandes Júnior (UFG- Campus Catalão)
Prof. Dr. Nilton Milanez (UESB)
Profa. Dra. Kátia Menezes de Sousa (UFG- Campus Goiânia)
Profa. Dra. Amanda Batista Braga (UFPB)
Prof. Dr. Pedro Henrique Varoni Carvalho (UNIT-Sergipe)
Prof. Dr. Jean-Jacques Courtine (University of Auckland)
Profa. Dra. Marlene Coulomb-Gully (Université de Toulouse)
Prof. Dr. Christian Puech (Université Paris III -Sorbonne Nouvelle)
Profa. Dra. Mônica Zoppi-Fontana (UNICAMP)
Prof. Dr. Pedro de Souza (UFSC)
Prof. Dr. Mariano Dagatti (Universidad de Buenos Aires)
Profa. Dra. Maria Alejandra Vitale (Universidad de Buenos Aires)
Prof. Dr. Arnaldo Cortina (UNESP-FCLAr)

APOIO TÉCNICO
Júnior Aparecido Assandre (secretário do PPGL)
Thais Ariane Amorim Correia (estagiária do PPGL)
PESQUISAS EM ANÁLISE DO DISCURSO:

UM PANORAMA ATUAL DA PRODUÇÃO CIENTÍFICA NA ÁREA

Dando continuidade às reflexões promovidas nas três primeiras edições do CIAD - Colóquio
Internacional de Análise do Discurso, realizadas respectivamente em 2006, 2009 e 2012, e cujo
compromisso central tem sido o de contribuir com a maior divulgação das pesquisas que se
desenvolvem na área, dando visibilidade aos grupos de estudo e pesquisa nacionais e internacionais
que se dedicam aos estudos do discurso, nesta quarta edição do CIAD propusemos a reflexão sobre
a produção dos consensos e a conquista, nem sempre simples ou visível, das formas de resistência
às formas hegemônicas de atuação dos poderes, das ideologias dominantes e das diversas formas de
coerção de nossas práticas, discursivas e não discursivas.

Participaram desta edição do CIAD 46 grupos de estudo e pesquisa na área de Análise do


discurso, oriundos de diversas instituições nacionais e internacionais, que expuseram o
desenvolvimento de seus projetos e trabalhos de pesquisa no que se refere aos objetivos gerais de
cada grupo e aos trabalhos específicos de cada membro, de modo a divulgar suas especificidades
teórico-metodológicas, temáticas, assim como dos objetos de diversas origens que constituem os
corpora adotados por cada grupo.

No primeiro CIAD, realizado em 2006, a proposta do evento foi voltada à discussão das
heranças, métodos e objetos da Análise do Discurso, de modo a apresentar um balanço geral dos
estudos do discurso no Brasil. Tanto a diversidade quanto as regularidades nesses estudos foram
ressaltadas nas diversas apresentações, em especial contempladas nos trabalhos das mesas redondas,
cujos textos estão publicados no livro organizado por Maria do Rosário Gregolin e Vanice
Sargentini, intitulado Análise do Discurso: teoria, métodos e objetos, lançado pela Editora Claraluz,
em 2008. Esses textos demonstram a produtividade do campo teórico da Análise do Discurso que
não se furta a questionar seus fundamentos teórico-metodológicos, nem a assumir seus limites
diante de objetos variáveis ao longo do tempo.

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.
Em 2009, sob a temática A ordem do olhar: discurso, semiologia e história, o II CIAD
propôs a discussão do caráter cada vez mais sincrético que frequenta nossos objetos de análise,
focalizando como a perspectiva discursiva poderia explorar essas temáticas e objetos diversos
inscritos em uma dimensão histórica. Os textos das conferências e mesas-redondas deste evento
foram publicadas no livro Discurso, Semiologia e História, organizado por Vanice Sargentini,
Luzmara Curcino e Carlos Piovezani, também pela Editora Claraluz, em 2012.

O III CIAD, realizado em 2012, tratou mais diretamente da presença e das contribuições do
pensamento de Michel Foucault à Análise do discurso. A opção por essa temática geral deveu-se à
preocupação permanente do Laboratório de Estudos do Discurso (LABOR/UFSCar), compartilhada
por outros grupos de estudo em AD no Brasil, em dispensar a devida atenção à historicidade
constitutiva do discurso e à configuração semiótica sincrética de muitos de seus objetos a partir das
reflexões acerca do método arqueológico de análise foucaultiano e de sua abordagem histórico-
filosófico-discursiva de amplo alcance. Os textos das conferências e mesas também foram
publicados no livro intitulado Presenças de Foucault na Análise do Discurso, pela EdUFSCar, em
2014, também organizado pelos professores Carlos Piovezani, Luzmara Curcino e Vanice
Sargentini.

Neste IV CIAD, buscamos promover a reflexão das diversas relações entre os sujeitos de
uma sociedade e os discursos que os constituem e circundam e são responsáveis pela construção de
hegemonias, de consensos, do senso comum, mas também de resistências, de divergências, de
dissidências. Assim, buscamos promover o debate sobre os modos de constituição das hegemonias
discursivas, as razões de suas diferentes durações na história e as formas diversas de apropriação
desses discursos por parte dos sujeitos. Sabemos que em diferentes condições de produção podem
prevalecer, entre os sujeitos e os discursos, relações de distintas modalidades, entre as quais
ocorrem a repetição, a identificação, a indiferença, o afastamento, a resistência, a oposição ou a
repulsa. Tais relações foram exploradas nas conferências dos professores Marc Angenot, da McGill
University, Marlène Coulomb-Gully, da Université de Toulouse, e Jean-Jacques Courtine, da
Université de la Sorbone Nouvelle e da University of Auckland.

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.
Além dessas conferências, o IV CIAD contou com três mesas-redondas, das quais
participaram os professores; Valdir Heitor Barzotto, da USP – Universidade de São Paulo, Kátia
Menezes de Souza, da UFG – Universidade Federal de Goiás, María Alejandra Vitale, da UBA -
Universidade de Buenos Aires, Pedro Navarro, da UEM – Universidade Estadual de Maringá;
Antônio Fernandes Júnior, também da UFG – Universidade Federal de Goiás, e Mariano Dagatti,
também da UBA - Universidade de Buenos Aires, e nas quais foram abordadas a produção dos
consensos e a conquista das resistências na Mídia, na Política e nas Ciências da Linguagem. As
discussões e reflexões empreendidas por esses pesquisadores em breve estarão publicadas no livro
(In)Subordinações contemporâneas: consensos e resistências, a ser publicado pela EdUFSCar, em
2016.

Fez parte da programação deste IV CIAD a apresentação de 46 grupos de pesquisa em


Análise do discurso, representantes das várias tendências dos estudos discursivos produzidos no
Brasil e no exterior. Em conjunto, a realização das conferências e das mesas-redondas, as
apresentações dos grupos de pesquisa e demais apresentações de painéis dos participantes
ofereceram uma oportunidade ímpar de reflexão sobre as formas e os funcionamentos dos consensos
desejáveis, mas também dos inaceitáveis que regulam nossas práticas na atualidade.

Considerando os inscritos com apresentação de trabalhos, ouvintes e convidados, o evento


contou com mais de 400 participantes. Tendo em vista a especificidade do formato do evento, a
saber, a inscrição e a apresentação dos trabalhos desenvolvidos por grupos de pesquisa na área da
Análise do discurso, destacamos a participação, nesses 46 grupos inscritos, de 97 professores
doutores e 240 alunos de programas de pós-graduação na área, em sua grande maioria doutorandos.
Destacamos ainda a origem dos grupos de pesquisa advindos das mais diversas instituições
brasileiras com representantes de todas as regiões geográficas do país1, bem como de outros países,
a saber, Argentina, Colômbia, Costa do Marfim, Congo e França, com apresentações de trabalho em

1
A consulta aos grupos de pesquisa participantes pode ser feita na página do evento pelo endereço:
<http://www.ciad.ufscar.br/?page_id=206>.

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.
português, espanhol e francês. Contamos também com a participação com apresentação de painel
(60, no total) de muitos alunos de graduação de cursos da área de estudos da linguagem, mas
também das ciências sociais, da educação, das ciências biológicas etc, de modo a prestigiar a
iniciação à pesquisa na área e promover o contato desses alunos com a variedade de abordagens e
temas adotados pelos diversos grupos de pesquisa representados no evento.

Pelo fato de reunir pesquisadores de diversas instituições, o CIAD fortalece e promove o


encontro de professores que têm afinidade quanto aos objetivos e objetos de pesquisa, viabilizando
e intensificando a produção de conhecimento nos estudos do discurso, bem como ampliando sua
divulgação. Essa forma ímpar de participação no evento permite dar visibilidade aos resultados das
pesquisas coletivas e individuais desenvolvidas no âmbito de um ou mais grupos de estudo e
pesquisa, de forma a tornar cada grupo uma referência potencial em determinada temática ou
discussão.

Ao longo dessas quatro edições do CIAD é possível conhecer os vários grupos de pesquisa
na área dos estudos discursivos no Brasil e constatar a proeminência daqueles filiados às teorias e
metodologias de origem francesa. Observamos ainda a relativa estabilidade desses grupos (entre 48
e 54 grupos) que em sua maioria participaram de todas as edições do colóquio, o que nos mostra a
regularidade da pesquisa e a permanência dos pesquisadores líderes na área. Verificamos ainda que
a formação recente de alguns grupos tem por característica derivarem de grupos já existentes, cujos
pesquisadores se tornaram professores de outras universidades, mantendo sua relação com seu
grupo de estudos de origem, mas constituindo novos grupos com perguntas e orientações de
pesquisa distintos.

É possível observarmos ainda que algumas temáticas e objetos mostraram-se mais


frequentes como fontes de pesquisa:
a)Estudos que focalizam as relações entre língua, sujeito e história, por sua vez imersas em
relações de poder e saber;
b)Estudos sobre discursos e a produção de identidades/ representações identitárias, processos de
subjetivação;

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.
c)Relações entre o discurso e o ensino das ciências, o discurso científico, a ciência da
informação;
d)Estudos sobre ensino de língua materna e língua estrangeira (preocupações com formas de
leitura, de interpretação e de autoria);
e)Estudos da materialidade multimodal, sincrética, mista, às vezes também focalizando a
imagem em sua relação com o verbal. Tais estudos exploram objetos diversos como o corpo,
o cinema, a música;
f)A análise do discurso político, do discurso da mídia, do discurso jurídico, dentre outros;
g)Estudos que analisam discursos inscritos em temáticas, poderíamos dizer de preocupações
foucaultianas, como a violência, a cidadania e sua exclusões e resistências, os direitos
humanos, as minorias, etc;
h)Estudos sobre a epistemologia (conceitos, métodos) dos estudos do discurso, em especial
sobre o campo a que se refere à Análise do Discurso;
i)Estudos sobre as contribuições bakhtinianas no âmbito dos estudos do Discurso e/ou Análise
bakhtiniana do discurso.

São em sua grande maioria trabalhos bastante sólidos que têm oferecido resultados
científicos para a compreensão das formas de produção e circulação dos textos na atualidade e seu
impacto no modo como interpretamos e nos constituímos sujeitos. Com isso, é notável o interesse
de novos pesquisadores pela área.

Neste livro, em formato eletrônico, encontram-se os artigos dos membros dos grupos de
pesquisa, cuja leitura permitirá conhecer essa diversidade de abordagens teóricas e metodológicas,
bem como a pluralidade de objetos de análise de nosso campo. É com o desejo de frutuosa leitura
que convidamos estudiosos e interessados pelas peculiaridades próprias das injunções sociais,
históricas, culturais e técnicas à produção e à circulação dos discursos, manifestos sob a forma de
textos variados, a apreciar a atualidade da produção científica na área de estudos do discurso,
manifesta nos textos aqui conjugados, e com isso melhor compreender o papel do discurso nos usos

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.
da linguagem, nas formas de interlocução e de ação sobre o outro, e nas formas de nossa
constituição identitária, bem como esclarecer o alcance das pesquisas nessa área.

Vanice Sargentini
Luzmara Curcino
Carlos Piovezani

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.
MÍDIA E MULHER EM SITUAÇÃO DE RUA: UMA ANÁLISE
DISCURSIVA

Marta AGUIAR; Mônica Santos de Souza MELO


Universidade Federal de Viçosa (UFV)
marta_aguiar20@hotmail.com; monicassmelo@yahoo.com.br

Resumo: Este trabalho estuda o discurso relacionado às cidadãs em situação de rua por
meio de análise discursiva de notícias publicadas em importantes jornais: O Globo e O
Tempo. O trabalho está fundamentado principalmente na abordagem de análise do
discurso de Patrick Charaudeau, a Teoria Semiolinguística. A metodologia inclui coleta e
seleção de textos para posterior análise, utilizando os modos de organização do discurso:
o Enunciativo, o Descritivo, o Narrativo, e o Argumentativo. Assim, foi possível perceber
que, embora haja predominância nos textos da modalidade delocutiva, que cria uma
ilusão de afastamento dos protagonistas da enunciação, os jornais se posicionam em
relação ao assunto, posicionamento esse que se constrói a partir dos demais modos de
organização do discurso.
Palavras-chave: discurso, mídia; mulher em situação de rua.

informação e construir verdades. Assim, a mídia


Introdução
pode construir/reproduzir discursos sobre esse
O problema da situação de rua é problema e sobre as pessoas por ele afetadas, o
resultado de um processo histórico e social que que também pode influenciar no tratamento
compele pessoas a ocupar logradouros social. Por isso, o trabalho se justifica não só
públicos, como praças, calçadas, pontes, pela relevância do tema social tratado, mas
prédios abandonados. Essas pessoas são também pela necessidade de discutir a influencia
geralmente chamadas de “moradores de rua”, do discurso midiático sobre o problema social
“mendigos” e “sem-teto”. da mulher em situação de rua.
Inseridas nessa problemática estão as O trabalho tem como objetivo analisar o
mulheres. Um dos instrumentos pelos quais elas discurso da mídia por meio da organização
ganham visibilidade é através dos meios de discursiva das notícias selecionadas:
comunicação. Em função de todo o 'Mendigata' de Niterói é internada em clínica
conhecimento que as pessoas adquirem sobre de reabilitação em São Paulo (O Globo) e
diferentes assuntos geralmente transmitidos pela Uma esquina, uma barraca e sete cachorros (O
mídia, esta tem o poder de controlar a

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Tempo). Assim como também descrever os externa quanto por uma interna. Acrescentamos
contratos que as regulam. o público, este também tem o poder de limitar a
mídia, podendo assim como ela ser manipulado,
1. Mídia: funcionamento e influência
mas também manipulá-la.
Segundo van Dijk (2011), muito do
conhecimento que as pessoas têm sobre o 1.1 Notícia: um gênero discursivo de
mundo é adquirido a partir dos meios de informação midiática
comunicação. Entretanto, a informação passa Considerando a relevância dos gêneros
pelo uso da linguagem e esta não é discursivos na sociedade, analisamos o gênero
necessariamente transparente, muito pelo notícia, definido, a seguir:
contrário, as mídias usam o espaço que têm
para transmitir uma verdade construída e não [...] um conjunto de informações que se
uma verdade sobre a realidade social. relaciona a um mesmo espaço temático,
tendo um caráter de novidade, proveniente
Desse modo, a partir dos objetivos de uma determinada fonte e podendo ser
desse trabalho, é de suma importância discutir diversamente tratado. Um mesmo espaço
sobre o funcionamento da “máquina midiática”. temático: significa que o acontecimento, de
De acordo com Charaudeau (2006), ela algum modo, é um fato que se inscreve num
consiste na troca entre duas instâncias: a certo domínio do espaço público, e que pode
instância de produção (produtor da informação) ser reportado sob a forma de um minirrelato
e a instância de recepção (consumidor da (CHARAUDEAU, 2006, p. 132).
informação), além de considerar que há um
produto no centro dessa relação (texto A instância midiática considera os
midiático) componentes da situação de comunicação na
Segundo Pesce (2012), uma das mídias construção de uma notícia. Nesse processo o
pesquisadas, o jornal O Globo, ao longo das sujeito informante não captura necessariamente
últimas décadas do século XX, se consolidou a realidade, esta passa por um filtro de um
como empresa jornalística com sucursais ponto de vista particular. O acontecimento é
espalhadas pelo Brasil. Isso garante uma transformado em notícia a partir de um
característica nacional com distribuição nos processo narrativizado, um acontecimento
centros de decisão política e econômica. Assim considerado relevante e atual.
como, de acordo com Lira (2009), o segundo A seguir, abordamos a temática social
jornal pesquisado, O Tempo, também tem um pela qual se interessa este trabalho por
grande alcance de leitores. Fundado em 1996, considerar que é relevante a sua discussão para
circula diariamente em 97 municípios de Minas as análises.
Gerais, com uma tiragem de 45 mil exemplares
2. Mulher em situação de rua: o problema
aos domingos e 40 mil, nos outros dias da
social apresentado na mídia
semana.
O problema social da situação de rua é
Entretanto, para Charaudeau (2006), a
cada vez mais abordado pela mídia, por isso
ação manipuladora das mídias é limitada. Ela
este trabalho tem como interesse investigar os
pode ser manipulada tanto por uma pressão

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

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discursos da mídia sobre às mulheres em
Os resultados mostram que 82% das
situação de rua, mas percebendo o problema de
pessoas em situação de rua são homens e 53%
maneira geral, pois conforme sugere Aguiar
possui entre 25 e 44 anos. Os principais
(2014) a situação de rua de homens está
motivos: desemprego (29,8%); a crescente
imbricada e interfere na situação de rua das
fragilização de vínculos familiares e sociais
mulheres.
(29,1%) e alcoolismo e/ou drogas (35,5%).
Ao abordar este problema social, Silva Estes motivos podem estar relacionados entre si
(2009) diz que este remonta ao surgimento das ou serem consequência um do outro. Quando já
cidades pré-industriais da Europa, aumentado estão nas ruas, os meios de sobrevivência vão
com as modificações ocorridas nas cidades após desde a coleta de materiais recicláveis à
a Revolução Industrial. Havia um excedente de solidariedade das pessoas. Há também os
pessoas, advindas do campo para a cidade, em pedintes, que, de um modo geral, são chamados
busca de trabalho que sem outros meios de pejorativamente pela mídia e pelo restante da
sobrevivência foram compelidas às ruas. No população de “mendigos”.
Brasil, de acordo com Caldeira (2010), os
Quanto às cidadãs em situação de rua,
liberados pela indústria na contemporaneidade
Tiene (2004) sugere que o número de mulheres
constituíram a problemática da situação de rua.
é inferior ao número de homens por questões
Entre 1930 e 1970 muitas pessoas migraram
históricas e sociais. A mulher sempre
para o Sudeste, principal região escolhida como
desempenhou o papel de reprodutora e
destino porque foi onde a industrialização
responsável pelos cuidados com os filhos.
ocorreu de forma mais acelerada.
Assim como sempre esteve limitada ao espaço
Atualmente, um grande número de físico e social da casa, submissa ao ambiente
cidadãos e de cidadãs utiliza, por diferentes doméstico. Outra explicação é a de que se
motivos, a rua como espaço de sobrevivência. comparada aos homens “as mulheres possuem
Em 2008 foi publicada pelo Ministério do uma rede social de suporte maior e estabelecem
Desenvolvimento Social, a Pesquisa Nacional relações interpessoais mais profundas”
sobre a População em Situação de Rua que teve (LOPES; BORBA; REIS, 2003, p. 47).
como público-alvo pessoas acima dos 18 anos
Quanto às que estão em situação de rua,
de idade vivendo em situação de rua, de 71
Tiene (2004), apresenta possíveis explicações.
cidades brasileiras, sendo 48 com mais de
Para a autora, a rua pode ser uma forma de
300.000 habitantes e 23 capitais. As pessoas
fuga para as mulheres. Nela podem encontrar
que responderam as questões dessa pesquisa se
formas diferentes de superar a relação de
somadas às que participaram das pesquisas nas
dominação. A mulher pode preferir ficar na rua
quatro capitais restantes resultam em 50.000.
porque existem fragilidades em casa; apesar de
Entretanto, por serem pesquisas realizadas em
na rua também encontrar violência. Nessa
momentos diferentes, bem como distintas
perspectiva, o discurso também fornece a
metodologias, acredita-se que um número
possibilidade de resistir, de intervir e de gerar
muito maior de pessoas esteja em situação de
mudanças discursivas.
rua no país.

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da enunciação e dos destinatários aos quais é
3. Abordagem teórica e metodológica:
dirigido. Assim, o ato de linguagem é
Teoria Semiolinguística
caracterizado por um sujeito enunciador e um
O trabalho consiste em uma pesquisa sujeito interpretante e a sua finalidade não pode
qualitativa porque lida com interpretação das ser considerada apenas na configuração verbal,
realidades sociais e possibilita ou seja, no que está explícito, mas também no
compreender/explorar processos sociais e sentido implícito. Além disso, é preciso
discursivos (BAUER & GASKEL, 2005). A considerar a relação dos protagonistas do ato
coleta e seleção de notícias ocorreu por meio de de linguagem, a relação desses com o contexto
palavras-chave, como as geralmente utilizadas e a situação em que estão inseridos. Isso irá
para se referir as pessoas em situação de rua: delimitar restrições comunicativas ou não.
morador(a) de rua, mendigo, sem-teto, Charaudeau (2014) ressalta que o ato de
perambulantes, pessoas em situação de rua, etc. linguagem é interenunciativo entre quatro
As notícias selecionadas fazem referência à sujeitos são eles: Sujeito Comunicante (EUc) e
problemática da mulher em situação de rua e o Sujeito Interpretante (TUi) – os parceiros do
foram publicadas nos jornais O Globo e O ato de linguagem no circuito externo, seres
Tempo. O primeiro foi escolhido por ser um dos sociais e psicológicos; o Enunciador (EUe) e o
principais do país e o segundo por ser um dos Destinatário (TUd) - os protagonistas da
principais de Minas Gerais, o estado onde enunciação no circuito interno, seres de fala.
ocorreu a pesquisa. Consideramos assim a
Esse espaço de troca entre os sujeitos é
tiragem, distribuição e importância dentro do
a situação de comunicação essa depende de um
espaço midiático/jornalístico.
contrato de comunicação que sobredetermina
A análise foi realizada a partir da Teoria parcialmente os protagonistas da linguagem em
Semiolinguística, uma abordagem de análise do sua dupla existência de sujeitos agentes e
discurso desenvolvida por Patrick Charaudeau. sujeitos de fala. As restrições passam pela
O autor propõe modos de organização do finalidade, identidade dos participantes,
discurso: enunciativo, descritivo, narrativo e propósito e circunstâncias materiais. Vinculada
argumentativo, assim como descrição dos à noção da situação de comunicação,
contratos gerais que regulam os textos Charaudeuau (2010) ainda apresenta as
analisados. estratégias discursivas, que supõem a
De acordo com Maingueneau (1998), a intencionalidade do sujeito na produção de um
Análise do Discurso é uma disciplina que não se texto portador de efeitos de sentido possíveis,
preocupa apenas com a análise linguística do efeitos de persuasão ou de sedução por meio de
texto, ou com uma análise sociológica ou estratégias de legitimação, credibilidade (ethos,
psicológica de um determinado contexto a imagem de si) e captação (pathos, interesse
preocupação maior se estabelece a partir da assegurado pela emoção).
articulação da enunciação sobre um Um dos componentes do ato de
determinado lugar social. comunicação são os modos de organização do
Na abordagem de Charaudeau (1999), o discurso, juntamente com a situação de
sentido do discurso depende das circunstâncias comunicação, a língua e o texto. Os modos são

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procedimentos que dependem da finalidade
O terceiro é o Modo de Organização
comunicativa do sujeito falante, e a partir disso,
Narrativo. Segundo Charaudeau (2014), para
utilizam determinadas categorias de língua.
que haja uma narrativa é preciso um contador
O primeiro é o Modo de Organização investido de intencionalidade perante um
Enunciativo. Conforme sugere Charaudeau destinatário. O sujeito que narra tem o papel de
(2014), enunciar é organizar as categorias da uma testemunha que mantém contato direto
língua, ordenando-as de acordo com a posição com o vivido. As narrativas podem ser tanto
que o sujeito falante ocupa em relação ao reais quanto fictícias, marcadas por uma lógica
interlocutor, considerando tanto o que ele diz com principio e fim, organizando assim o
quanto o que o outro diz. mundo de uma forma contínua e sucessiva.
As funções do modo enunciativo são: Este modo se caracteriza por uma dupla
comportamento ALOCUTIVO, que consiste articulação: a organização da lógica narrativa
em estabelecer uma relação de influência entre ou construção de uma história a partir de uma
locutor e interlocutor; comportamento sucessão de ações; e a organização da
ELOCUTIVO, que é a relação do locutor encenação narrativa ou a representação de uma
consigo mesmo, exprime o seu ponto de vista narrativa. Em uma, Charaudeau (2014) destaca
sobre o mundo e modaliza subjetivamente a os componentes da lógica narrativa que são:
verdade; e o comportamento DELOCUTIVO, actantes (ou agentes), os processos e as
no qual o sujeito falante se apaga de seu ato de sequências. Na outra, a atenção está voltada
enunciação, o que concede ao texto uma para os componentes do dispositivo da
aparente objetividade com o uso de diferentes encenação narrativa, articulados em um espaço
formas de discurso relatado. extratextual e intratextual, considerando os
O segundo é o Modo de Organização parceiros e protagonistas da narrativa.
Descritivo. De acordo com Charaudeau O quarto e último é o Modo de
(2014), este contribui para a existência dos Organização Argumentativo. A
seres à medida que os nomeia, localiza e argumentação ocorre a partir de uma proposta
qualifica: nomear consiste em fazer um ser sobre o mundo, por parte de um sujeito que ao
existir atribuindo-lhe um nome. Contudo, essa desenvolver um raciocínio tenta estabelecer
nomeação é limitada pela finalidade das uma verdade. O outro sujeito relacionado à
situações de comunicação, considerando muitas mesma proposta é o alvo da argumentação, um
vezes a posição de quem subjetiva a descrição; ser do qual se pode esperar o compartilhamento
localizar/situar é a determinação do espaço e do da verdade, ação estabelecida por uma atitude
tempo ocupado isso influencia na existência do de persuasão do sujeito argumentante.
ser, pois suas características e sua função estão Contudo, também pode refutar.
ligadas a sua posição espaço temporal; e
4. Análises e discussão
qualificar é a atribuição explicita de um sentido
particular a seres, uma qualidade que A primeira notícia analisada tem por
caracteriza e especifica. título 'Mendigata' de Niterói é internada em
clínica de reabilitação em São Paulo, foi
publicada no dia 24 de outubro de 2014 no

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jornal O Globo. Nela é relatado que uma volta. Dessa forma, a imagem da mulher como
mulher em situação de rua chamou a atenção da mãe se torna relevante na notícia.
mídia, a partir disso recebeu ajuda de uma Ao analisar a segunda notícia percebe-se
clínica de reabilitação de São Paulo. A segunda também a predominância da modalidade
notícia analisada, Uma esquina, uma barraca e delocutiva. Nos relatos da mulher em situação
sete cachorros, foi publicada no jornal O de rua é possível perceber o recurso de natureza
Tempo no dia 23 de março de 2015. Esta patêmica. O leitor é levado a acreditar no lado
notícia relata que uma mulher em situação de humano da mulher em situação de rua, alguém
rua está em uma região movimentada de Belo que é amiga, que gosta dos outros a ponto de
Horizonte, onde ergueu uma “barraca” e é chamá-los de anjos, ama os animais e por isso
acompanhada por sete cachorros. os acha mais importantes que a si mesma,
Assim, a situação de comunicação se pedindo para a sobrevivência deles.
configura a partir do contrato estabelecido entre
Ao analisar o modo de organização
a instância de produção e recepção. Os jornais
descritivo na primeira notícia destacamos a
O Globo e O Tempo na figura do Locutor
identificação das funções: nomeação e
(EUc), um ser comunicante e social: o
qualificação. A começar pelo título que
Enunciador (EUe) como o ser de fala, quem
combina o termo pejorativo “mendigo” com a
escreve a notícia e conta o fato é o jornalista.
qualificação “gata”. O termo ‘mendigata’ é
Quanto ao Destinatário (TUd) é o leitor a quem
usado com aspas para indicar que não é uma
o jornal quer alcançar, assim como o Receptor
palavra de criação de quem escreveu o texto,
(TUi) é o leitor real do texto.
assim como para se distanciar da
Ao investigar o modo de organização responsabilidade de uso. Logo, a notícia
enunciativo na primeira notícia é possível reproduz uma nomeação/qualificação. Além
destacar e analisar as modalidades discursivas disso, apesar do título, a notícia valoriza sua
delocutivas. Um trecho onde isso foi utilizado identificação por nomeação “Jéssica Pinto da
na maneira de relatar: Luz”.

Para a moradora de rua Jéssica Pinto da Ao qualificar como moradora de rua o


Luz, de 22 anos — a “mendigata” da jornal está naturalizando o problema, este
Avenida Amaral Peixoto —, tudo isso se termo, de acordo com Pereira e Siqueira
resume a uma chance que possa livrá-la do (2010), não é o mais adequado, pois remete a
vício das drogas e, consequentemente, situação como algo fixo. Ao contrário do termo
devolvê-la à companhia da filha de 1 ano usado em documentos do governo e atualmente
[…] (discurso de origem integrado, O o mais recomendado “situação de rua”.
Globo).
Na segunda notícia a mulher em
situação de rua é nomeada: Lúcia Machado,
Esse relato destacado na análise qualificada pelo jornal como moradora de rua,
contribui para a representação da mulher como amiga de Rafaela e simpática. Ao ser
mãe, pois oportunidade para ela é ter a filha de qualificada como moradora de rua percebe-se
que é comum utilizar esse termo, algo também

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verificado na notícia analisada do jornal O desde o inicio do ano de 2014. O estado inicial,
Globo. As pessoas estão acostumadas com a ou seja, o momento antes da mulher estar em
situação de rua, por isso a veem como algo situação de rua é relatado na notícia publicada
comum e classificam a rua como moradia. anteriormente.
Segundo Thompsom (2009), a naturalização Além da cronologia e do espaço-tempo
ocorre quando algo que é uma construção é possível analisar ainda os actantes da lógica
histórica e social é tratada como algo comum. narrativa. Jéssica sofre a ação, ela não é
Em outro trecho, ao qualificar Lúcia colocada como uma pessoa que pode sair dessa
como simpática e reforçar a opinião das situação sem ajuda, logo é uma agente passiva.
pessoas, “o que não é difícil”, o jornal mostra O que implica na representação comum a essas
uma construção objetiva do mundo, que pessoas: “preguiçosas” e “acomodadas”. O
consiste em construir uma visão de verdade actante benfeitor nesse caso é a emissora de TV
sobre o mundo, qualificando os seres com ajuda que vai proporcionar seu tratamento em uma
de traços que possam ser verificados por clínica.
qualquer outro sujeito além do sujeito falante. Na segunda notícia, ao analisar a partir
É possível analisar as notícias a partir do do modo narrativo identificamos apenas uma
modo de organização do discurso narrativo, história sendo contada, a de Lúcia Machado,
evidenciando as histórias que são contadas. A actante principal, apesar de contar com outros
principal é a de Jéssica, relatada nos subtítulos actantes sociais, os alunos, Rafaela Nuna,
Planos para o futuro e Despedida de amigos, pessoas que passam pelo local e os cachorros.
mas também há outros actantes como: seus A sequência narrativa ocorre num
amigos Linda Karla e o porteiro José Aldir; o encadeamento de maneira contínua, estas
“mendigo gato” Rafael e sua mãe, os sucedem de modo progressivo. Não existe um
internautas e o psicólogo, jornalista e escritor antes e o depois, apenas um agora (presente)
Felipe Pena. Assim, há uma sequência narrativa apresentado, logo o problema social não é
que ocorre num enquadramento espaço- discutido. A situação de rua de Lúcia Machado
temporal, segundo o princípio de localização e é atenuada e transformada em algo bom já que
em uma cronologia obedecendo ao princípio de não pede para si.
encadeamento.
Além disso, Lucia Machado é uma
A cronologia é apresentada de maneira actante ativa, mas a ação que pratica é de
contínua em inversão. Primeiramente o leitor é “pedir” para os cachorros, enfraquecida com o
apresentado ao fato posterior ao acontecimento termo “precisa” quando o jornal reconhece a
para depois conhecer a trajetória da necessidade do ato e a representa como
personagem principal, a mulher em situação de “coitada”. Esse trecho indica ainda que Lúcia
rua. O texto começa pelo estado final, onde é Machado não pede para a sua sobrevivência,
aberto espaço para que Jéssica fale dos Planos algo que vai de encontro aos dados do
para o futuro. Em um segundo momento é META/MDS (2008). Segundo pesquisa, 70,9%
relatado o período durante o qual Jéssica exercem alguma atividade remunerada.
permaneceu na calçada da Av. Amaral Peixoto,
onde recebeu atenção de pedestres e mídia,

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Ao analisar o modo de organização do Ao analisar as notícias relacionadas ao
discurso argumentativo na notícia do jornal O problema social das mulheres em situação de
Globo, percebemos que a argumentação é feita rua percebe-se que a situação de comunicação é
em alguns momentos pelo jornal e em outros regulada e controlada pelo contrato
pelas vozes que o jornal apresenta. estabelecido entre a instância midiática (O
Globo, O Tempo e os jornalistas) e o leitor (o
Um argumento da instância midiática
real e o esperado).
está presente no subtópico Comoção e
Polêmica entre os internautas. Nesse trecho Para compreender as maneiras pelas
percebe-se como o jornal, ser social e quais a mídia pode influenciar o leitor,
comunicante, tem o poder de influenciar o leitor analisamos a notícia a partir dos modos de
por meio de argumentos de natureza patêmica, organização do discurso. No modo enunciativo
mas o leitor também tem influência sobre o predomina as modalidades delocutivas. Apesar
jornal. A quantidade de pessoas que acessaram de serem desvinculadas dos protagonistas da
a notícia anterior, bem como a sua repercussão, enunciação, a instância midiática utiliza
tornou-se parte da notícia. O argumento dos maneiras de se posicionar por meio de relatos
internautas que provocou essa ação, a seguir: de terceiros. Esses relatos são usados para
representar a mulher em situação de rua como
Enquanto parte dos internautas se mostrou mãe e lhe associar a um comportamento
comovida com a história, outra reclamou do esperado pela sociedade. Assim, como a notícia
fato desta comoção acontecer apenas pela do jornal O Tempo que usa efeitos de natureza
fato de ser uma jovem bonita, enquanto patêmica. Entende-se que ao abrir espaço para
existem inúmeros outros casos parecidos
a voz das mulheres permite que falem sobre o
que são ignorados (argumento de oposição,
problema que vivem. Contudo, o contrato de
O Globo).
comunicação regula e restringe quais
informações são levadas ao leitor, bem como
Assim, o argumento é de oposição, pois quais termos são empregados.
uma parte dos leitores acredita que a beleza de
Jéssica foi determinante para chamar atenção, o No modo descritivo, percebemos que as
que não ocorre com outros. Logo, há também mulheres são nomeadas. Uma é pejorativamente
um procedimento semântico de valor qualificada como ‘Mendigata’ e a outra como
concernente ao domínio do estético. Este simpática e amiga. Isso significa que enquanto
pensamento é compartilhado por Felipe Pena, uma chamou a atenção por ocupar um espaço
que recebe espaço pela sua identidade social. O movimentado a outra chamou pela beleza.
espaço parece ser usado como forma de dar Ambas são qualificadas como moradoras de
credibilidade à notícia e uma aparente rua, o que evidencia a naturalização da
objetividade (neutralidade). Na análise da situação.
segunda notícia não identificamos modalidades No modo narrativo percebemos que,
vinculadas ao modo de organização enquanto uma tem um passado e um presente
argumentativo. narrados, assim como um futuro esperado a
5. Considerações finais outra tem apenas um presente, algo que nos faz

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questionar se é a beleza que traz as
BAETA, J. Uma esquina, uma barraca e sete
oportunidades esse fator parece a diferenciar
cachorros. O Tempo, Belo Horizonte, 23 mar.
das demais mulheres em situação de rua, pois o
2015. Disponível em:
que chamou a atenção foi a sua aparência e não
<http://www.otempo.com.br/cidades/uma-
o problema social que vive. Como actantes,
esquina-uma-barraca-e-sete-cachorros-
uma é passiva e a outra é ativa, mas ambas
1.1013778>. Acesso em: 20 maio. 2015.
recebem ajuda, mesmo que seja para os
cachorros. BAUER, M. W.; GASKELL, G. Pesquisa
qualitativa com texto, imagem e som: um
No modo argumentativo a notícia do
manual prático. 6. ed. Trad. Pedrinho A.
jornal O Globo mostra-se diferenciada,
Guareschi. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005.
principalmente pelo argumento de oposição dos
internautas (leitores). CALDEIRA, M. de C. O brincar e a realidade
de rua: um estudo sobre o brincar em
Dessa forma, ao realizar este estudo
adolescentes que vivem nas ruas. 2010. 168 f.
compreendem-se alguns meios utilizados pela
Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Curso
mídia para tratar de uma mulher que está em
de Pós-graduação em Psicologia, Universidade
situação de rua, lembrando que em momento
Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2010.
algum se referem ou discutem o problema
social. Assim, este trabalho visa contribuir com CHARAUDEAU, P. Linguagem e discurso:
a discussão do tratamento da mulher em modos de organização. 2. ed. Trad. Angela
situação de rua pela mídia, bem como dos M.S. Corrêa. São Paulo: Contexto, 2014.
homens já que não é possível dissociar, ______. Discurso das Mídias. Trad. Angela
considerando que esta age de forma a tentar M.S. Corrêa. São Paulo: Contexto, 2006.
influenciar o leitor do seu subjetivo relato do
acontecimento. O que é observado nos ______. Análise do discurso, controvérsias e
resultados, eles indicam relações de dominação perspectivas. In: Mari H. et alii (dir.),
veiculadas nos textos que podem contribuir Fundamentos e dimensões da análise do
para manter o problema social por meio do discurso, Fale-UFMG, Edit. Carol Borges, Belo
discurso. Horizonte, 1999.
______. Um modelo sócio-comunicacional do
discurso: entre situação de comunicação e
Referências estratégias de individualização. In: Grenissa
AGUIAR, M. Notícias sobre mulher(es) em Stafuzza e Luciane de Paula (orgs). Da análise
situação de rua: uma análise de discurso crítica. do discurso no Brasil à análise do discurso do
2014. 103 f. Trabalho de conclusão de curso Brasil, Edufu, Uberlândia, 2010.
(Graduação em Letras) – Curso de Licenciatura LIRA, J. F. Vitória a Minas: análise do
em Letras, Língua Portuguesa e Literaturas, discurso jornalístico sobre o único trem de
Universidade do Estado da Bahia, Teixeira de passageiros cotidiano no Brasil. 2009. 78 f.
Freitas, 2014. Dissertação (Mestrado em Estudos
Linguísticos), - Faculdade de Letras,

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

23
Universidade Federal de Minas Gerais, Minas
PESCE, Andressa dos Santos. Representações
Gerais, 2009.
da cidade no jornal O Globo. 2012. 108 f.
LOPES, R. E.; BORBA, P. L. de O.; REIS, Tiy Dissertação (Mestrado em Comunicação e
A. M. dos. Um olhar sobre as trajetórias, Informação) – Curso de Pós-Graduação em
percursos e histórias de mulheres em situação Comunicação e Informação, Universidade
de rua. Cadernos de Terapia Ocupacional da Federal do Rio Grande do Sul, 2012.
UFSCar, São Carlos, v. 11, n.1, p. 38-53, 2003.
SILVA, M. L. Lopes da. Trabalho e população
MAINGUENEAU, D. Termos Chave da em situação de rua no Brasil. São Paulo:
Análise do Discurso. Trad. Márcio V. Barbosa, Cortez, 2009.
Maria E. A. T. Lima. Belo Horizonte: UFMG,
THOMPSON, J. B. Ideologia e cultura
1998.
moderna: teoria social crítica na era dos meios
MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO de comunicação de massa. 8. ed. Trad. Grupo
SOCIAL E COMBATE À FOME. Nota de Estudos sobre Ideologia, Comunicação e
técnica: esclarecimentos metodológicos da Representações Sociais da Pós-graduação do
pesquisa nacional sobre a população em Instituto de Psicologia da PUCRS. Petrópolis:
situação de rua. Secretaria de Avaliação e Vozes, 2009.
Gestão da Informação. 2008a.
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______. Política nacional para inclusão social vivências e políticas sociais. Campinas, SP:
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consulta pública. 2008b.
VAN DIJK, T. A. Por uma teoria da
MOREIRA, M.; MENEZES, G. 'Mendigata' de comunicação científica: discurso,
Niterói é internada em clínica de reabilitação em conhecimento, contexto e compreensão da
São Paulo. O Globo, Rio de Janeiro, 24 out. sociedade. In: GOMES, M. C.A.; CATALDI,
2014. Disponível em: C.; MELO, M. S. S (orgs). Estudos Discursivos
<http://oglobo.globo.com/rio/bairros/mendigata em foco: práticas de pesquisa sob múltiplos
-de-niteroi-internada-em-clinica-de-reabilitacao- olhares. Viçosa, MG: Ed. UFV, 2011, p. 19-40.
em-sao-paulo-14339766>. Acesso em: 20
maio. 2015.
PEREIRA, C. P.; SIQUEIRA, M. C. A.
Criminalização da mendicância e a Realidade da
População de Rua no Brasil. In; XIII
CONGRESSO BRASILEIRO DE
ASSISTENTES SOCIAIS – XIII CBAS. –
Lutas Sociais e Exercício Profissional no
Contexto da Crise do Capital: mediações e a
consolidação do Projeto Ética Politico
Profissional, Brasília, 2010.

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24
UM OLHAR DISCURSIVO SOBRE O POLÍTICO: O
ACONTECIMENTO
MENSALÃO

Gleice Antonia Moraes de ALCÂNTARA


Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
gmoraesalcantara@gmail.com

Resumo: Alicerçada nas reflexões de Dominique Maingueneau (2007, 2008, 2010,


2014,2015) e Krieg-Planque (2010, 2011) sobre as enunciações por pequenas frases, o
presente texto tem por objetivo lançar um olhar discursivo sobre o funcionamento do
discurso político por meio de “pequenas frases” acerca do acontecimento discursivo
“mensalão”, mais precisamente sobre o período do julgamento deste que ficou conhecido
como um dos maiores casos de corrupção da história da política brasileira. Temos como
hipótese primeira que tal acontecimento ecoa e produz uma história do atual quadro
político do país, por meio da característica do funcionamento midiático atual de
produção, circulação, aforização, destacamento e a transformação de pequenas, o que
acreditamos resulta na produção pletórica de simulacros, que reforçam discursos das
formações discursivas das quais advém.
Palavras-chave: enunciação aforizante; pequenas frases em política; enquadre
interpretativo; simulacro

Introdução
As produções incessantes de discursos
políticos por meio de pequenas frases não análises na década de 80, observara as
param de ser produzidas e colocadas em mutações do discurso político, o que se deveu
circulação em diferentes suportes midiáticos, e segundo ele ao desenvolvimento dos meios de
com o advento da internet o “BUUM” dessas comunicação audiovisuais. A reflexão sobre
discursividades passou também por grandes essas novas discursividades implicava modos de
transformações, de uma atividade a princípio circulação, produção e de recepção que não
artesanal, a uma verdadeira indústria do big podiam mais ser compreendidas exclusivamente
business1. Devido a proliferação alucinante dos a partir das palavras e das formas sintáticas,
discursos políticos, Courtine (2009) em suas como proposta no projeto de base de Michel
Pêcheux, em “Análise Automática do
Discurso”, projeto esse que tinha como foco a
1
C. J. Bertrand e A. Baron- Carvais, apud. materialidade linguística e ideológica dos
Maingueneau, D (2010, p. 95) discursos. Desse modo, pode-se dizer que as

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pesquisas empreendidas por Courtine publicização do discurso político, passa a
possibilitaram a incorporação de outras gerenciar um acontecimento por intermédio da
materialidades -não verbais- ao arcabouço materialização dos textos, no processo de
teórico e analítico da Análise do Discurso, destaque de enunciados- as pequenas frases-que
doravante AD, e por sua vez a abertura do faz circular. Ao proceder desta forma, a mídia
próprio campo para análise de outros discursos. além de engendrar um determinado
Desse modo, pode-se dizer que as pesquisas acontecimento discursivo, propõe gestos de
empreendidas por Courtine possibilitaram a interpretação que tendem ao sentido “único”/
incorporação de outras materialidades -não “legítimo”, ou seja, com a materialização
verbais- ao arcabouço teórico e analítico da linguística e imagética por meio daquilo que
Análise do Discurso, doravante AD, e por sua quer destacar, oferece um percurso deôntico de
vez a abertura do próprio campo para análise de interpretação a certos acontecimentos históricos
outros discursos. Nessa imensa proliferação, da política, conforme Baronas (2013, p. 2)
produção, circulação e transformação de passando assim, a gerir e controlar os temas-
narrativas sobre os acontecimentos políticos, a chave2 (entidades, cenários, propriedades,
mídia, especificamente a internet, exerce cada acontecimentos, nós) advindos de distintos
dia mais influência nas discussões que ocorrem discursos construindo relações de poder e saber
no espaço social. A respeito dessa influência sobre e para a sociedade na forma como são
midiática contemporânea no que tange a organizados os discursos.
circulação dos discursos, Maingueneau (2010)
em uma pesquisa extensa da história da
circulação do discurso pornográfico - o que 1.Contextualização do acontecimento3 “mensalão
podemos nos atrever a dizer que também pode
ser dito dos discursos de uma forma geral- 2
Pode-se falar, neste caso, de “tema chave”, explorando
evidencia que o livro por meio das obras o duplo valor da palavra, manifestado por expressões
literárias, durante muitos séculos era o carro- como “a chave do sucesso” (o centro, o elemento
chefe na circulação daqueles discursos e hoje essencial) e “a chave dos sonhos” (a explicação, o
não são mais os livros que “dão o tom”, que desvelamento). Considera-se que o tema chave, de fato,
ditam modelos e estereótipos de como se vestir, permite o acesso a um fenômeno importante, indo além
das aparências, desvelando uma realidade pouco ou
falar, comportar, ser em uma sociedade, algo
nada visível. (MAINGUENEAU, 2015)
que ocorrera no domínio tradicional-grafosfera,
e sim as mídias audiovisuais, o que o teórico 3
Noção de acontecimento que mobilizaremos é de
denomina de regime videosfera. No novo show Guilhaumou, “o autor francês propõe que o
business, o dispositivo midiático, aqui acontecimento seja abordado numa ordem racional:
especificamente a web, assume o lugar de acontecimento linguístico, acontecimento discursivo e
narrativa do acontecimento... A narrativa do
elaborar o que é importante para uma acontecimento, apreendida na totalidade de sua
sociedade, e por consequência quais os experimentação, constrói um futuro, abre possibilidades,
ingredientes que devem agregar à produção e constitui reservas de sentidos disponíveis. Assim, é
circulação do discurso. Neste sentido, nota-se sempre possível reabrir os arquivos do passado, pois
que a mídia, em particular, o espaço de todo acontecimento permanece perpetuamente
reinterpretável juridicamente e, por conseguinte, atual
discursivização na internet, por meio da
o(s) seu(s) próprio(s) sentido(s)”.

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26
A Ação Penal nº 470, número do processo do no caso. Na matéria Jefferson fala de um suposto
“mensalão” no Supremo Tribunal Federal, ficou esquema de corrupção, revelando os detalhes da
conhecida como o maior escândalo de compra de votos existência de pagamento de propina aos parlamentares
na política de parlamentares no Congresso Nacional aliados do governo que recebiam o que chamou de um
Brasileiro. Passados nove anos desde o surgimento do "mensalão" de 30 mil reais do então tesoureiro do PT,
escândalo, muitas narrativas ainda são dadas a circular Delúbio Soares, prática ilegal que teria sido realizada
sobre o acontecimento, e em cada movimento dos usos entre 2003 e 2004, e início de 2005.
do sintagma “mensalão” mudanças contínuas dos Pode-se asseverar que o neologismo mensalão
sentidos e das formas são produzidas o que “mostra - variante da palavra mensalidade - utilizada para se
como essa palavra assume, num dado momento, um referir à mesada paga a deputados para votarem
lugar de destaque no debate público.” (BONNAFOUS, favoráveis em projetos de interesse do Governo Federal,
apud KRIEG-PLANQUE, 2010, p. 25). Embora não eclodiu na figura Roberto Jefferson, que em 06 de junho
nos detendo estritamente na lexicologia/terminologia, de 2005, em entrevista ao Jornal Folha de S. Paulo
que acompanha as palavras na longa duração de seus denunciou publicamente o esquema, que segundo ele
usos, nosso trabalho, de certa maneira faz uma interface era uma prática comum nos bastidores da política entre
com aquela, pois a vida da palavra “mensalão” implica os parlamentares. Em mesma entrevista, Jefferson
mudanças nos usos e também nas evoluções políticas e acusara como chefe/ mentor da prática ilegal, o ministro
sociais que a acompanha. Dito de outra maneira, desde na época da Casa Civil José Dirceu, um dos homens de
que o acontecimento em questão invadiu o espaço confiança do Partido do Governo.
público uma produtividade lexicológica o acompanha, De lá pra cá muitas narrativas foram produzidas
sinalizando para o caráter polêmico do sintagma. O sobre o acontecimento, dado os inúmeros
termo “mensalão” tomado aqui como acontecimento desdobramentos. Desde que o STF em 2007 acatou a
discursivo foi empregado pela primeira vez pelo denúncia contra o esquema que envolveu ao todo 38
deputado federal Miro Teixeira em setembro de 2004, nomes, o processo nº 470- 53 sessões, com a
quando em entrevista ao Jornal do Brasil "Miro condenação de 25 dos 38 denunciados-, um nome se
denuncia propina no Congresso”. A entrevista recebeu destacou no cenário brasileiro, Joaquim Barbosa, relator
destaque em primeira página com a manchete "Planalto do processo que chegara ao fim em março de 2014. Na
paga mesada a deputados”, quando na ocasião o conclusão do julgamento Barbosa dissera “Vocês nunca
deputado denunciara a existência de um mensalão no mais vão ouvir falar de uma ação tão longa, de um
governo do então na época presidente da república, julgamento tão complexo.”, e mais, que o mensalão
Luiz Inácio Lula da Silva. Decorrido alguns meses trouxera “traumas”.
desde a entrevista de Teixeira à Revista Veja, em 14 de Como podemos ver a AP nº470 por meio do
maio de 2005, divulga uma gravação de Maurício termo pelo qual ficou amplamente conhecido
Marinho, ex-chefe do DECAM/ECT, no qual o “mensalão” se impõe como uma palavra de ordem, isto
administrador de material dos Correios relata é, através das zonas de turbulência4 que acompanham
minuciosamente o esquema de corrupção de agentes seus usos, quando quando em particular do período do
públicos na estatal. Na mesma edição que tem como
capa “O vídeo da corrupção em Brasília”, a revista 4
KRIEG-PLANQUE, mostrar como as palavras, no longo
publica a matéria “O Homem Chave do PT”, referindo-
tempo de seus usos, atravessam zonas de turbulência,
se a Jefferson, aquele que é tido como o “delator” do
entram em fases críticas de sua existência.
caso de irregularidades nos Correios e também partícipe

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27
julgamento- que aqui vamos nos deter através das dos estudos discursivos norteiam nossa reflexão que
análises- o termo ganha espaço nas discussões sociais, e visa: compreender por que na sociedade há uma
por consequência torna-se um objeto de polêmica. circulação abundante de textos curtos e quais as
consequências dessa circulação, ou seja, estamos diante
2. Abordagem teórica e metodológica de um fenômeno linguístico-discursivo que colabora
Nosso trabalho se inscreve na teoria da Análise para a legitimação de saberes e poderes que
de Discurso (AD) de orientação francesa, dispositivo organizam/arquitetam o espaço público, por meio de
teórico-analítico que se debruça sobre a interpretação um processo deôntico de interpretação? Dada a vasta
para podermos compreender o objeto simbólico, que é contribuição do sofisticado6quadro teórico de
o discurso produzindo sentidos por e para sujeitos. Dominique Mainguenau à AD, reafirmada em suas
Desde o seu surgimento na década de 60, o campo elaborações pela inseparabilidade entre texto e quadro
teórico da AD passou por processos de construção e social, bem como de sua produção e circulação,
reformulação, novos canteiros de trabalhos se abriram e conceitos propostos pelo linguista serão utilizados para
se abrem para compreender esse nó5, que é o discurso, compreender o funcionamento das enunciações
o que possibilita cada vez mais pesquisas na área. aforizantes em geografia brasileira, posto que suas
Dado o grande interesse que os trabalhos em análises se voltam a dados franceses. Maingueneau ao
AD tem despertado em cenário brasileiro, é possível longo de sua produção acadêmica apresenta ao leitor
constatar como assevera Baronas (2013) três grandes novos conceitos para pensar o discurso, o que oferece
tendências que tomam os estudos discursivos como aos pesquisadores novas possiblidades de formulações à
objeto, a saber, tendência materialista, tendência AD. Do vasto quadro teórico-metodológico elaborado
historicista e a tendência enunciativa. Ainda segundo o por ele, muitos conceitos são dados a ler na Análise do
pesquisador brasileiro, no vasto quadro de pesquisas Discurso brasileira, o que mostra a contribuição do
que são produzidas no país em AD é possível perceber teórico ao campo, e mais ainda, como suas reflexões são
objetos de interesses distintos e grupos de pesquisas pertinentes para análise de dados de outras línguas.
também distintos. Posto isso, nosso trabalho se inscreve Conceitos destinados a propiciar análises que expressam
mais especificamente na tendência enunciativa, que tem a convergência entre componentes históricos e
como objetivo principal, por um lado- compreender linguísticos como: discursos constituintes,
porque certas palavras que circulam na mídia podem sobreasseveração, hiperenunciador, destacabilidade,
assumir a condição de palavras-acontecimento, a partir particitação, ethos, enunciação aforizante.
de uma formação interdiscursiva, carregando com elas 3. Análises e discussão
toda uma memória interdiscursiva; e por outro lado,
Temos como propósito neste momento
compreender como certos textos circulam: inteiros, em
apresentar uma espécie de garatuja, tomado
pedaços em versos, em fórmulas- ambas conforme,
aqui como primeiras tentativas/ensaios, para
Baronas (2013, p. 33) “buscam compreender em que
pensar a questão das aforizações destacadas de
medida essa circulação determina o que pode e deve ser
um texto, particularmente as pequenas frases, a
(re)dito enquanto debate no espaço público”.
partir do que Maingueneau (2014) denomina
Os trabalhos de Dominique Maingueneau e
enquadramento interpretativo, para isso
Alice Krieg-Planque inscritos na tendência enunciativa

5 6
MALDIDIER, D. (1990). MUSSALIM & POSSENTI. 2010.

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28
selecionamos do corpus duas pequenas frases se inscreve em um regime memorial sapiencial
do período do julgamento do mensalão. moralista, apresenta uma verdade, embora
transformada, retoma um conhecimento
Tomemos a seguir as sequências que
partilhado pela comunidade que garante assim a
serão mobilizadas:
comunhão do aforizador e a comunidade,
validando assim a enunciação.
E em “Para ser preso no Brasil é preciso
ser muito pobre e muito mal defendido” dito
pelo ministro Luis Roberto Barroso se inscreve
em uma memória coletiva brasileira a de que no
Brasil os crimes de “colarinho branco” sempre
terminam em “pizza”, enquanto crimes
considerados “menores” como “roubo de
galinhas”, em que pessoas roubam para suprir
21/08/2013 necessidades básicas, como por exemplo
alimentar-se, esses são julgados de forma rápida
e os acusados são condenados e presos. O
enquadre em que a frase pode ser lida é o
acional, o aforizador é alguém que tem o poder
de mudar uma realidade através daquilo que
enuncia.
Nas frases eleitas para esboço de análise
é possível visualizar o confronto de
posicionamentos no interior de uma mesma FD
/uma plurifocalidade, uma pluralidade de pontos
13/11/2013
de vista sobre um mesmo acontecimento/tema-
Na pequena frase “Justiça que tarda não chave, o que podemos contrapor com os
é justiça” proferida por Joaquim Barbosa em dizeres de Maingueneau, quando este coloca
razão de uma discussão acalorada com os que ao levar em conta um conjunto de textos
colegas ministros devido à delonga no publicados em um único jornal/site entre tal ou
julgamento dos réus, rememora um já-dito, um tal data, não podemos falar em FD, devido à
Thesaurus cultural da comunidade empregado estabilização do corpus (pelas práticas dos
aqui com valor disfórico sobre a justiça ao ser jornalistas, pelo gênero do discurso, por um
transformado, pois a lexia cristalizada do posicionamento). Com isso, retomamos o
provérbio latino “Tandem óbtinet iustitia” “A próprio Maingueneau quando este coloca que
justiça tarda, mas não falha”, é partilhada e em AD os trabalhos que evidenciam formações
interpretada como verdade pela comunidade discursivas plurifocais será sempre um
com valor eufórico, de que a justiça demora a fenômeno marginal, para arriscar lançar como
acontecer, mas ela sempre acontece. hipótese que o corpora da nossa pesquisa, a
Recorrendo ao enquadramento a pequena frase partir de um tema-chave, não está regido por

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29
GUILHAUMOU, J. Linguística e história: percursos
um único foco e sim por uma pluralidade de
analíticos de acontecimentos discursivos. São Carlos, SP:
pontos de vista, por uma polêmica instaurada
Pedro & João Editores, 2009.
pela cenografia.
KRIEG-PLANQUE, A. A noção de “fórmula” em análise do
Nas pequenas frases selecionadas há ainda a discurso – quadro teórico e metodológico. Trad. Salgado e
associação entre o aforizador e sua aforização, o que de Possenti. São Paulo: Parábola, 2010b.
acordo com Maingueneau (2014) é mais que um
___________________. “FÓRMULAS E “LUGARES
pensamento, é um tipo de emblema que participa da
DISCURSIVOS”: propostas para a análise do discurso
personalidade profunda do locutor, como se fosse uma
político. (in) Fórmula discursivas. Ana Raquel Motta &
tatuagem inscrita no corpo, ao mesmo tempo parte e
expressão da pessoa. As imagens (fotos) dos rostos dos Luciana Salazar Salgado (Orgs.). SP: Contexto, 2011
aforizadores: legitimam/autenticam as aforizações e ___________________. Les “PetitesPhrases” em Politique.
mais, a foto do rosto também é produto de um recorte, Communication &Langages. Número 168, junho
de um destacamento. Ao eliminar o contexto 2011.Código ISBN 9782358760492
situacional a enunciação aforizante institui uma cena de LEITE, P. M. A história do mensalão: as contradições de um
fala onde não há interação entre dois protagonistas julgamento político. São Paulo: Geração Editorial, 2013.
colocados num mesmo plano, dito de outra maneira, o
MAINGUENEAU, D. DISCURSO E ANÁLISE
aforizador assume um ethos de um individuo que está
DO DISCURSO: uma introdução. Trad. Sírio
no alto, em contato com uma Fonte transcendente, que
Possenti.1. ed. São Paulo: Parábola, 2015.
enuncia uma verdade incontestável e que não necessita
de negociação/interação, o aforizador se dirige a um ________________. Frases sem texto; Trad. Sírio
público universal, o que podemos observar nos excertos Possenti. São Paulo: Parábola, 2014
analisados, quando os aforizadores através do olhar se ________________. O discurso pornográfico; tradução
dirigem a um público universal, daí dizer que a Marcos Marcionílo. SP.: Parábola, 2010.
enunciação aforizante é monologal. ________________. Cenas da Enunciação. Sírio Possenti&
As breves tentativas de análises realizadas Maria Cecília Pérez de Souza-e-Silva (orgs). SP: Parábola
objetivaram mostrar como a circulação das aforizações Editorial, 2008.
por meio das pequenas frases sobre o acontecimento ._________________.Gêneses dos Discursos.; Trad. Sírio
discursivo “mensalão” podem ser apreendidas a partir Possenti. São Paulo: Parábola, 2008.
das elaborações de Maingueneau sobre o conceito de PÊCHEUX, Michel. Discurso – estrutura ou acontecimento.
enquadramento interpretativo, proposta pertinente para Trad. EniOrlandi. Campinas: Pontes, 2012.
pensar como são produzidas pelas mídias VILLA, M. A. Mensalão: o julgamento do maior caso de
contemporâneas interpretações por meio do recorte dos corrupção da história da política brasileira. São Paulo:
textos. Leya, 2012.
http://noticias.uol.com.br Frases do julgamento do
mensalão. Disponível em
Referências
http://noticias.uol.com.br/album/2012/10/22/frases-
do-julgamento-do-mensalao.htm. Acessado em
BARONAS, R. L. Enunciação aforizante: um estudo 26/08/2015.
discursivo sobre as pequenas frases na imprensa cotidiana
brasileira. São Paulo: EDUFSCAR, 2013.

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30
“TAMBÉM SOU TEU POVO”: TRAVESTIS E TRANSEXUAIS
COMO SUJEITOS DEVOTOS NAS ROMARIAS DE JUAZEIRO
DO NORTE

Ana Luzia Lucas de ALMEIDA; Claudia Rejanne Pinheiro GRANGEIRO


Universidade Regional do Cariri (URCA)
analuzia8@hotmail.com; claudiarejannep@yahoo.com

Resumo: Adotando a proposta da chamada Análise do Discurso francesa de ampliar os


limites do conceito de linguagem, as significações e as possibilidades de materialização
dos discursos tornam-se diversas e mutáveis. Nesse sentido, pretendemos compreender e
analisar o espaço ocupado por travestis e transexuais nas romarias de Juazeiro do Norte
e a constituição de sua identidade como sujeitos devotos por meio da análise do
documentário “Também sou teu povo” (2006), produzido por Orlando Pereira e Franklin
Lacerda.
Palavras-chave: travestis/tranxsexuais; romaria; juazeiro do norte; também sou teu povo;
orlando pereira/ franklin lacerda.

Introdução Nessa perspectiva, verificaremos os


lugares sociais de onde vem os
A partir do documentário “Também sou
dizeres/saberes/fazeres, que constituem e
teu povo” que traz à discussão a presença das
possibilitam a significação no texto em tela, a
travestis e das transexuais nas romarias de
partir da análise de uma prática de linguagem
Juazeiro do Norte, realizaremos uma análise de
específica, no caso, a representação das
discurso. À imagem desses sujeitos que
travestis e das transexuais como devotas no
representam o discurso da transgressão, o
documentário.
documentário contrapõe a do romeiro
tradicional e os rituais realizados por ele Sabendo da presença do cântico como
durante o período desses eventos. Além disso, uma das materialidades discursivas presentes no
traz à cena os principais signos que representam documentário, analisaremos os possíveis dizeres
o discurso da devoção nesta cidade, como as e a relação de interdiscursividade que
vestimentas, os acessórios religiosos e, ainda, estabelecem com outros discursos que tornam
uma das expressões mais características da possível a significação, além das relações de
região: as poéticas da oralidade, sobretudo o intericonicidade estabelecidas entre as imagens
cântico. dos sujeitos nele representados. A partir dessa

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31
primeira etapa, buscaremos as ferramentas popular e à historia social” (Idem, ibidem,
teóricas necessárias para a fundamentação e p.29).
prática da análise, a saber: os estudos sobre o O argumento de que “a identidade está
discurso e dos processos de constituição dos profundamente envolvida no processo de
sujeitos da AD francesa e os estudos sobre as representação” (HALL, 2014, p.41) evidencia a
poéticas da oralidade e sua relação com a (re) pluralidade do sujeito da modernidade,
constituição da memória de uma comunidade. concepção a partir da qual Hall levanta
1. Identidade: sujeito e nomadismo inúmeras questões sobre a identidade e os
processos de sua constituição na
A assertiva de Bakhtin (2003, p. 261) ao
contemporaneidade, principalmente depois da
dizer que “todos os diversos campos da
segunda metade do século XX.
atividade humana estão ligados ao uso da
linguagem” nos orienta a duas questões A descentralização, fenômeno apontado
pertinentes no que tange as pesquisas atuais por Hall como uma característica do sujeito
sobre esse fenômeno social: a centralidade dos pós-moderno, foi o principal impacto resultante
gêneros discursivos e a abrangência desses do conjunto de mudanças que ocorreram e
estudos a outras materialidades que não ainda ocorrem nesse período de globalização.
somente a verbal. Para além dessas questões, Segundo o autor, assim como as formas de
que se apresentam e se desenvolvem num representação, o próprio conceito de sujeito
campo de discussão complexo e variado, a sofreu significativas transformações. Do sujeito
conceituação de um gênero específico é tarefa do iluminismo e do sociológico até ao chamado
arriscada, pois sua estabilidade é relativa ao sujeito pós-moderno (HALL, 2014) as
momento histórico-social em que surge e mudanças se acentuaram de forma irreversível,
circula. culminando na desintegração da ideia do sujeito
como sendo unidade de sentido e considerado
Sabemos que um gênero, apesar de
como origem de todo dizer.
possuir características específicas que o
identifica, não possui uma forma cristalizada e Sobre a produção e veiculação dos
muito menos homogênea. Logo, o discursos, Foucault (2011) argumenta que
documentário é um gênero de difícil existe uma série de procedimentos que os
conceituação, pois ocupa um lugar de controlam e que, portanto, evitam a sua
discussão, em relação a sua natureza e dispersão e a do sujeito que por eles é
veiculação, entre o campo jornalístico e o atravessado e constituído. Essa forma de
cinematográfico. Além de possuir um alto grau ordenação é, também, um mecanismo para a
de variação e de estabelecer relações com regulação do exercício do poder, já que os
outras materialidades discursivas, esse gênero dizeres são autorizados a determinados sujeitos
sofre constantes e importantes transformações, que ocupam um lugar na esfera social. Nesse
o que já evidencia seu caráter ideológico. Nele, sentido, o discurso, para Foucault (ibid., p.10),
segundo Nichols (2005, p. 31), a ideia de
representação é essencial, pois “o documentário [...] não é simplesmente aquilo que traduz as
acrescenta uma nova dimensão à memoria lutas ou os sistemas de dominação, mas

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32
aquilo por que, pelo que se luta, o poder do
qual nos queremos apoderar.
significação. Esse processo de constituição de
saberes tem o interdiscurso como a base de
todo dizer. Nele, segundo Courtine (1999,
As discussões que a Análise do Discurso p.20), são as “posições de sujeito que regulam
de vertente francesa propõe no campo da o próprio ato de enunciação”.
linguagem, principalmente na compreensão de
conceitos como o de sujeito e de discurso, 2. Corpos que “falam”: intericonicidade e
operam com a proposta de Foucault de performance
desterritorializar esse sujeito do lugar de origem A noção de interdiscurso, longe de
para compreendê-lo como um efeito de práticas estabelecer um consenso, situa-se no interior da
discursivas que se constituem no lugar e através AD como um conceito complexo e de
de uma memória. A identidade é, portanto, um intermitentes discussões. Não nos propomos a
“efeito de sentido produzido pela e na levantar aqui um quadro das questões que o
linguagem” (GREGOLIN, 2008, p.82). circunda, mas, de uma maneira sucinta,
Assim, o percurso que a AD traça até compreender como esse conceito é fundamental
sua consolidação como um campo de pesquisa para o estudo do discurso e estruturação de
pertinente e fecundo implica desde “uma prática novos caminhos no campo da memória. Para
de leitura dos textos políticos” (COURTINE, Courtine (1999):
2006, p.140), numa abordagem estritamente
[...] um espaço vertical, estratificado e
linguística, até o alargamento do seu objeto de
desnivelado do discurso, que eu chamaria
pesquisa, considerando as múltiplas interdiscurso; séries de formulações
possibilidades de materialização dos discursos. marcando, cada uma, enunciações distintas
É nesse ponto, especificamente, onde o e dispersas, articulando-se entre elas em
sujeito, menos que perder um lugar, assume a formas linguísticas determinadas (citando-se
possibilidade de posicionar-se nos diversos repetindo-se, parafraseando-se, opondo-se
lugares de representação social. E nesse gesto entre si, transformando-se. (COURTINE,
1999, p. 18).
nômade encontramos sua característica
determinante:
A abordagem do discurso no âmbito da
Para além da morte de Deus, e segundo memória revela uma série de processos a partir
Foucault, a do homem, o nômade peregrina dos quais os indivíduos tornam-se sujeitos: o
no insólito. Em torno dele, e sob o impacto papel do esquecimento, do silêncio que habita a
de sua presença apenas, define-se um campo linguagem e que lhe é constitutivo. O
de forças que o torna lugar de “verdade” interdiscurso como o “já dito”, o repetível é
(ZUMTHOR, 2007, p. 95). (aspas do autor) necessário à significação, pois, no “domínio da
memória ressoa uma voz sem nome”, isto é,
O lugar do qual (nos) enunciamos, a anônima (COURTINE, 1982 apud ORLANDI,
transversalidade dos discursos que aí operam, 2007, p.88). E é evidente que todo dizer possui
sugerem uma memória que, articulada a um características que o individualiza e que o
esquecimento necessário à circulação e inscreve num campo de formulações já
produção dos discursos, torna possível a realizadas, isto é, o “acontecimento, no ponto

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33
de encontro de uma atualidade e de uma do princípio de interdiscursividade, Courtine
memória” (PÊCHEUX, 1997a, p.17). afirma:
Pressupondo o tratamento que Foucault A intericonicidade, supõe as relações das
(2014) dá ao enunciado, bem como a relação imagens exteriores ao sujeito como quando
que a AD pode estabelecer com outras uma imagem pode ser descrita em uma série
disciplinas e teorias, torna-se importante, por de imagens, uma genealogia como um
uma necessidade própria deste trabalho, apontar enunciado em uma rede de formulação
as contribuições de Zumthor (2007, 2010) no COURTINE, 2006 apud MILANEZ, 2013).
campo fecundo das poéticas da oralidade. A
necessidade de assinalar essa contribuição é Sobre a presença da voz, destacamos a
justificada pelo material que nos propomos a poesia oral como uma prática discursiva que se
analisa. Nesse intento, Foucault considera que: estrutura e se sustenta através de uma memória.
Mesmo depois da “galáxia de Gutemberg”
Descrever uma formulação enquanto
(ZUMTHOR, 2010, p.160), ela se sustenta
enunciado não consiste em analisar as
relações entre o autor e o que ele disse (ou como um campo singular de transmissão,
quis dizer, ou disse sem querer), mas em preservação e transformação do conhecimento
determinar qual é a posição que pode e deve humano. Dentre as formas que ela possui
ocupar todo indivíduo para ser seu sujeito encontra-se o canto, um gênero ritual que tem
(FOUCAULT, 2010, p.116). como característica a firmação e preservação
dos valores de uma sociedade. Segundo
O ponto nodal da nossa discussão é Zumthor (Id. p. 101), essas “estratégias de
justamente sobre o que o enunciado propõe de defesa e de afirmação coletivas ganham nuances
não verbal, o alargamento mesmo desse e inflexões na poesia religiosa oral” (Id. Ibid.
conceito para além dos padrões da linguística. p.101).
E, consequentemente, sobre como isso afeta o Uma noção fundamental para a poesia
sujeito e sua forma de significar (se). Em um oral é o de performance, um conjunto de ações
gênero de caráter complexo e heterogêneo desenvolvidas num campo sinestésico (id. Ibid)
como o documentário destacamos, baseando- que engloba não somente os participantes, mas
nos no nosso material de pesquisa, duas práticas o conjunto de elementos que constitui o cenário
enunciativas: as imagens por ele veiculadas e a onde a poesia é interpretada. Tudo aqui
presença da voz. significa: a voz, os objetos, as vestimentas, o
O empreendimento da AD em tentar espaço e, num movimento globalizante, o
compreender e explicar o funcionamento corpo.
discursivo das práticas de linguagem A presença, numa perspectiva material e
acompanha uma tendência relativamente simbólica, é uma característica determinante das
recente da linguística de considerar o não- poéticas da voz. O que Zumthor (ibid) chama
verbal como um espaço de múltiplas de recorrência discursiva é essa capacidade do
possibilidades de análise. Desta feita, partindo corpo de ativar uma memória recontada em
performance. Pensando a identidade e, de forma

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específica, a de gênero, o corpo é educado conjunto de elementos e atividades que
segundo pedagogias e mecanismos de controle constituem as romarias.
diversos. Portanto, torna-se necessário No cerne desse universo de
compreender como esses corpos são significações, o romeiro torna-se um “signo
constituídos, e principalmente, como “os que flutuante” (BARBOSA, 2003, p.1) que renova
fracassam em se materializar fornecem o a cada evento um contrato de fé com um dos
"exterior" — quando não o apoio — principais símbolos da experiência religiosa de
necessário, para os corpos que, ao materializar muitos nordestinos, o Padre Cícero. Ademais, o
a norma, qualificam-se como corpos que retorno constante a Juazeiro do Norte,
pesam” (BUTLER, 2001, p.124). considerado a “Jerusalém do Nordeste”, ratifica
As formas de tornar-se sujeito o elo estabelecido entre o sujeito devoto que
acontecem no interior de uma determinada tem na imagem do padre o seu patriarca e a
cultura. Segundo Louro (2001, p.4), da mesma cidade.
forma que identidades são renovadamente Na ordem do discurso religioso, a
reguladas, outras são negadas, condenadas. romaria é um espaço de louvação e de
No cerne das questões que mobilizamos penitência. Nela, o romeiro incorpora signos
no nosso trabalho está a proposta de articular que fazem da imagem estereotipada do
os conceitos de intericonicidade e performance, nordestino um penitente constante, arquétipo da
que nos leva a considerar a imagem na religiosidade dita popular. Esses signos – o
perspectiva da movência, seja do corpo que a chapéu de palha, as vestimentas, os acessórios
representa, seja dos sentidos que aí transitam. como terços, rosários, como marcas da
religiosidade, o repertório das orações e
3. “Fazendo o corpo” e a alma: travestis e
cânticos – são, no discurso corrente,
transexuais nas romarias de Juazeiro
características do “povo de Deus”, reconhecido
No cenário do filme, inúmeros são os e autorizado a assumir o papel de romeiro, de
aspectos que representam Juazeiro como a devoto do “padim Ciço”.
“Terra da fé”. Símbolos religiosos, lugares
No documentário, à imagem
considerados sagrados, efervescência do
considerada tradicional do romeiro - pessoas
comércio local são, a priori, evidência da tríade
idosas, sofridas, contritas, que fazem um trajeto
anual: Romaria à Nossa Senhora das Dores,
ritualístico até a cidade do Padre Cícero,
Romaria de Finados e Romaria das Candeias -,
percorrem o caminho repetidas vezes, ascendem
eventos que acontecem num tempo cíclico e
velas e entoam cânticos pelas ruas de Juazeiro –
que, a cada ano, são atualizados e
é entreposta as imagens de travestis e
ressignificados segundo práticas legitimadoras
transexuais que, também cumprindo um ritual,
da identidade desse espaço simbólico.
saem às ruas para fazer parte do evento
Constituídas através da veiculação e
religioso. É através de um jogo de imagens e
representação de discursos que se articulam em
vozes, no sentido ao qual Paul Zumthor (2010)
torno da ideia do sagrado, as identidades
atribui a essa palavra, isto é, como realização e
socialmente estabelecidas, longe de serem
materialidade fônica de práticas discursivas que
estáticas, também são (re) construídas no
constituem a memória da comunidade, que

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esses sujeitos, atravessados por discursos se nesse espaço de devoção e compartilhando-o
diversos, mas que se entrecruzam, ocupam um de forma igualitária.
lugar (ou lugares) nesse palco: Juazeiro. Nesse sentido, assim como os (as)
É desse lugar de “tradição” que as demais romeiros (as) que se preparam com suas
travestis e transexuais falam sobre sua vestimentas, velas, rosários, cânticos, elas
participação nas romarias. A partir deste também se preparam para ocupar esse espaço,
cenário de fé e devoção, esses sujeitos mas da sua forma.
enunciam-se como devotos e reivindicam a sua No documentário, o movimento inicial
religiosidade. Nesse sentido, as transexuais e da câmera sugere uma imagem feminina: os
travestis, numa espécie de contradiscurso, seios, a sandália, a maquiagem. Este conjunto
redefinem os limites dessa identidade: de elementos ativam a memória do espectador
[...] Isso não quer dizer que as pessoas que no sentido de pensar que seja uma mulher
são gays, homossexuais, travestis, não cisgênero, ou seja, que nasceu com o corpo
sejam católico (...) como se eu não vivesse considerado “ordenado”, segundo os padrões
na igreja, como se eu não tivesse a minha normativos de corpo e de gênero vigentes,
religião, como se eu não tivesse minha diferente das mulheres transexuais ou
devoção (KAMILA MONTENEGRO, trasgêneros, que consideram, por exemplo, o
07:52 – 08:05 min. In: PEREIRA e corpo masculino no qual nasceram, inadequado
LACERDA, 2006). ao gênero com o qual se identificam.
Em seguida, as imagens vão se
A condicional “como se” dialoga sobrepondo. A ornamentação do corpo é uma
interdiscursivamente com o discurso outro, o característica do tradicional devoto: o rosário
discurso do outro que diz que esses sujeitos não pendurado no pescoço, o lenço amarrado na
teriam religião. O pronome pessoal designa cabeça, os chinelos de couro, saia abaixo do
linguisticamente o efeito de pertencimento, um joelho, blusa fechada, de mangas etc, conforme
estar na ordem do discurso religioso. Esse dizer podemos ver na imagem abaixo:
só é possível porque existe um conjunto de
Figura 1. Romeiros lotam as ruas de
mecanismos que interferem na constituição
Juazeiro do Norte por Padre Cícero.
desses sujeitos, pois, desde cedo, acompanham
esses eventos e integram o cenário da
religiosidade local:

Duas coisa no Juazeiro é adorada.


Primeiramente o Padre Cícero e a Mãe das
Dore, segundo as travesti” (NATASHA,
05:48 – 05:53 min, Ibid).

Desta amaneira, as travestis e trans


representam-se de forma valorativa, inserindo-

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Foto: Reinaldo Canato/VEJA. travestis e trans utilizam tais signos: “[...] vai
No filme, as travestis e transexuais dentro da minha mala a minha imagem do Padre
também se preparam para a festa, porém, com a Cícero, a minha imagem da minha santa, viaja
sua indumentária: botas, sandálias, maquiagem, comigo” (KAMILA MONTENEGRO. 08:44 –
roupas com muito brilho, cinto prata, cabelos 08: 50 min, Ibid).
longos, bustiês brilhosos mostrando boa parte Segundo Bauman (2005, p.44): “Há
dos seios. E, ao lado dos dizeres do campo da pessoas que têm negado o direito de reivindicar
devoção, surge o sujeito trabalhadora do sexo, uma identidade distinta da classificação
quando enuncia: atribuída e imposta”. Nesse sentido, “Também
sou teu povo”, além de dar nome ao
Quero muito fazer meu corpo, botar minhas
prótese, meu silicone. Penso muito nisso. documentário em questão, dialoga
Trabalho pra ver se consigo realizar o meu interdiscursivamente com o cântico religioso
sonho (NATASHA, 06:25 - 06:34 min, homônimo, de autoria do Padre Zezinho, muito
ibid). popular entre os romeiros1:

Também sou teu povo, Senhor,


Aqui, o mesmo sujeito devoto, que ora, E estou nessa estrada
que “faz a sua alma” também quer “fazer o Perdoa se às vezes não creio em mais nada.
corpo”. Se alguém quer “fazer” o seu corpo
significa que ele não está feito, não nasceu feito. No momento em que tal cântico é
Aquele corpo não o serve, não é condizente entoado pelas trans e travestis, adquire outros
com o gênero com o qual se identifica. efeitos de sentido. Aqui, o sujeito enuncia
Na região do Cariri cearense outra outros dizeres inclusivos. É justamente essa
prática impulsionada pelo Padre Cícero é a ideia de pertencimento que o autoriza a
Renovação. Esta atividade religiosa que é participar do evento, sem, no entanto, abdicar
realizada pelas famílias em suas residências da sua identidade.
reúne um conjunto de signos que fazem parte Figura 2. Kamila Montenegro
do universo performático desse ritual e
dialogam com o evento romeiro: os cânticos
entoados, a participação das mulheres, as
imagens dos santos expostas em quadros ou
esculpidas na madeira e outros materiais
utilizados. A imagem do Padre Cicero ocupa
um lugar de destaque no que é chamado de
“Sala do Santo”. Nas romarias não é diferente.
As imagens do “Padim” e da “Mãe Dasdores”,
muitas frutos do artesanato local, são
transportadas pelo romeiro, representando uma
espécie de amuleto e proteção. Portanto,
inserindo-se nessa ordem e reativando o 1
http://www.vagalume.com.br/padre-zezinho/o-povo-
discurso do romeiro penitente, viajante, as de-deus.html

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37
Imagem de página pessoal. “tudo” está muito próxima de nada significar
O ato de entoar o cântico levando em si própria” (GRANGEIRO, 2013, p.135-
consigo uma vela acesa como oferenda aos 136).
santos, bem como o advérbio “também”, A concepção de “povo” no âmbito da
indicam a situação do sujeito que, colocado religiosidade, principalmente no processo das
fora da ordem do discurso religioso católico, romarias, geralmente faz referência ao sujeito
tecendo súplicas, encontra-se acolhido por um que, vivendo em condições subalternas ou
Deus que perdoa e trata a todos como iguais, enfrentando algumas dificuldades, acredita no
independente da sua condição social: “pra Deus Padre Cícero como uma força capaz de sanar
não existe pessoas melhor do que outra, todos ou amenizar os sofrimentos da vida cotidiana,
são iguais” (Kamila Montenegro; 08:26 - 08:28 por isso a prática da penitência e do retorno à
min. Ibid). cidade. Tendo em vista os inúmeros dizeres que
Esse ideal perpassa o discurso das o documentário veicula, essa noção é
travestis e das transexuais que, adotando o ressignificada de forma ainda mais inclusiva,
princípio de igualdade, propõem uma nova tanto pela performance do cântico, como pela
forma de representação do sujeito devoto, imagem das travestis e trans no cenário do
reivindicando um lugar para si no campo da “Joaseiro Celeste” (BARBOSA, 2003).
religiosidade. 4. Considerações finais
Na poesia oral, o anonimato é um Nenhum outro signo é substituível por
característica determinante. Isto porque na palavras. “Cada um deles, ao mesmo tempo, se
oralidade nada é reiterável. A cada performance apoia nas palavras e é acompanhado por elas,
sentidos e sujeitos são movidos, renovados, exatamente como no caso do canto e de seu
reconstruídos. O conceito de movência acompanhamento musical” (BAKTHIN, 2012,
(mouvance), cunhado por Zumthor (2010, p.38). Nesse sentido, considerar a linguagem
p.166), aqui se aplica para designar o fato de a com todas as suas possibilidades de significação
poesia oral, no caso o cântico, passar por um contribui para compreender os processos que
processo de atualização constante, tanto pelas tornam essa significação possível e que, por
variações espaço-temporais, como pelos conseguinte, permitem os processos de
diferentes lugares nos quais essa poesia é identificação dos sujeitos.
performatizada, resultando na modificação da
função social do texto poético. Desta forma, a emergência de novas
identidades no cenário contemporâneo e até o
De acordo com Pêcheux (1997b), as surgimento de outras possibilidades de
palavras e expressões não possuem um sentido representação de identidades antes consideradas
a priori, literal. O sentido de uma palavra impermeáveis corrobora a pertinência dessa
depende, dentre outros fatores, da formação pesquisa que procura compreender como este,
discursiva, dentre outras condições de produção ao mesmo tempo em que se distancia das
do discurso na qual esta palavra se insere. práticas religiosas da romaria, ocupa esse
Quanto à palavra “povo”, “esta fluidez de espaço e é atravessado pelos discursos nele
sentido se acentua, visto que é uma dessas veiculados, e, a partir dos quais as travestis e
palavras absolutizantes que ao significarem

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transexuais procuram legitimar-se tanto como
BAUMAN, Z. Identidade: entrevista a
sujeitos religiosos como sujeitos de direitos, de
Benedetto Vecchi. Trad. C.A Medeiros. Rio de
desejos, como sujeitos em todas as dimensões
Janeiro: Zahar, 2005.
humanas.
COURTINE, J.J. Metamorfoses do Discurso
Como nos diz Lemaire (2010, p.20), “a
político: derivas da fala pública. Trad. Nilton
tradição oral é movência”. Pelo equívoco, pelo
Milanez, Carlos Piovezani Filho. São Carlos:
acontecimento, é através do cântico, antes já
Claraluz, 2006.
mencionado, que as trans e as travestis
afirmam-se como “povo de Deus”. A imagem
do romeiro é (re) apresentada pela transexual ______. O chapéu de Cleméntis: Obsevações
que, segurando uma vela, caminhando em sobre a memória e o esquecimento na
direção ao cruzeiro e entoando o cântico enunciação do discurso político. In:
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40
A RELAÇÃO DE GÊNERO SOB O OLHAR DO DISCURSO
MIDIÁTICO: UMA ANÁLISE EM PROPAGANDAS DULOREN

Suegna Sayonara de ALMEIDA; Ivanaldo Oliveira dos SANTOS


Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN)
suegnasayonara@hotmail.com; ivanaldodosantos@yahoo.com.br

Resumo: Este artigo objetiva analisar os efeitos de sentido estabelecidos pelas relações
entre os gêneros masculino e feminino discursivizadas nas propagandas de Lingerie
Duloren. Para isso, utilizaremos os pressupostos teóricos da Análise do Discurso de linha
Francesa, abordando categorias como interdiscurso e memória discursiva, além de
reconhecer formações discursivas responsáveis por constituírem seus sentidos. Para
subsidiar nosso trabalho abordaremos os dizeres de Michel Foucault (2008), Bauman
(2005) e Charadeau (2006), entre outros estudiosos. O trabalho é constituído de 03 (três)
propagandas retiradas do site www.duloren.com.br. Sendo assim, as análises feitas em
propagandas de Lingerie Duloren, vêm a nos proporcionar o entender de como a cultura
e a ideologia, fabricadas no interior de uma sociedade, interferem no acontecer enquanto
sujeito histórico-social, e que dessa forma estabelece o lugar e o papel que cada sujeito
(homem e/ou mulher) venha a desempenhar dentro de uma sociedade.
Palavras-chave: Discurso; Propaganda; Relação de gênero.

desse campo do saber, e que nos proporciona


Introdução
analisar os vários sentidos que surgem a partir
Ao pensar as relações existentes entre de um mesmo discurso.
os seres humanos, especificamente em como se
Partiremos primeiramente de
constitui as relações entre homens e mulheres,
inquietações particulares, em pesquisar as
nos propomos aqui, analisar elos estabelecidos
relações de poder que os sujeitos exercem
entre os gêneros masculino e feminino dentro
dentro das propagandas, levando em
de algumas propagandas de lingerie Duloren
consideração o lugar que cada um ocupa dentro
que circularam na mídia nos anos de 2007,
da sociedade e como se caracteriza os
2011 e 2012. Para isso, tomaremos como base
interdiscursos, uma vez, que as análises são
a ciência Análise do Discurso (doravante AD),
feitas a partir de sujeitos distintos entre si na
através de categorias como
relação de gênero, e que ao longo do tempo
Interdiscurso/Memória discursiva além de
reconhecer Formações discursivas, oriundas

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vem desempenhando papéis diferentes em
1. A Análise do Discurso: uma breve visão
vários aspectos,
histórica-conceitual.
Para entender como os elementos que
A Análise do Discurso (doravante AD)
constituem as bases da teoria AD são
teve início no ano de 1960, tendo como meta de
construídas discursivamente dentro das
estudo o discurso. Desse modo, a proposta de
propagandas, abordaremos a relação
análise vai além da Análise de Conteúdo, que
estabelecida entre os gêneros masculino e
procura extrair sentidos apenas encontrados
feminino, observando aspectos como: cultura,
dentro do texto para a Análise do Discurso,
sociedade e relações de força. Partindo do
que compreende a linguagem como não
princípio de que esses fatores junto à história
transparente ao ponto de se apreender o seu
levam os sujeitos a significarem de acordo com
sentido completo ao utilizar-se da soma de
os aspectos formadores de regras que
frases. A AD, portanto, leva em consideração
organizam uma sociedade em níveis de
os sentidos que atravessam o discurso, e que a
representar segundo o sexo e o lugar que cada
língua junto à história é a responsável pela
sujeito ocupa socialmente.
produção dos sentidos. (ORLANDI, 2007).
Assim, as relações entre os gêneros
A Análise do Discurso é marcada por
(masculino e feminino) são estabelecidas a partir
três épocas que a configuram, assim chamadas:
da cultura e das relações de poder estabelecidas
AD1, AD2 e AD3.
no interior das instituições, sejam elas de
qualquer natureza, religiosa, politica, escolar A primeira época, denominada como
etc., passadas aos indivíduos que dela fazem AD1, tem o discurso como uma maquinaria, ou
parte, tomando como valor de verdade os seja, o discurso era homogêneo e fechado, cada
discursos que emergem desses locais. Para que campo discursivo era autodeterminante, tendo o
esses discursos sejam legitimados, os sujeitos sujeito assujeitado a um discurso pronto e
que representam essas instituições representam acabado.
o poder que essas esferas representam na Na segunda época denominada AD2, a
sociedade. noção de Formação Discursiva é tomada de
Mostraremos, no decorrer das análises, empréstimo por Pêcheux (1990b) ao filósofo
como se constitui a relação de gêneros Michel Foucault (2008). Nesse momento, o
(masculino e feminino) apresentada no discurso discurso passa a sair da noção de maquinaria
midiático. Dessa forma, a mídia tem importante para a noção de formação discursiva.
papel ao transmitir com rapidez os discursos É apenas na terceira época AD3 que a
realizados por sujeitos em dado momento noção de maquinaria é totalmente
histórico, possibilitando às retomadas de desconstruída. O discurso passa a ser visto
discursos que já foram utilizados e como heterogêneo e permeado por outros
ressignificando-os em um novo discurso. discursos explícitos e/ou implícitos
textualmente. Sendo assim, nos deteremos a
essa terceira fase para a realização do nosso
trabalho.

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sentido através da construção dos discursos
2. Interdiscurso, memória e formação
acumulados em uma memória coletiva. Assim,
discursiva: fundamentando efeitos de
tomamos por memória coletiva, as formações
sentido.
culturais e ideológicas compartilhadas por
O interdiscurso é caracterizado pelos sujeitos pertencentes a grupos sociais de uma
discursos atravessados por outros discursos em mesma sociedade. (ORLANDI, 2007)
um dado momento da história. O interdiscurso
Assim, cabe a memória discursiva, o
faz sentido inconscientemente por uma
absorver de discursos já utilizados em um
ideologia compartilhada por sujeitos de um
determinado momento da história e que volta a
mesmo grupo histórico que passa a fazer
significar diferentemente em um novo dizer. Em
sentido em outros enunciados ao serem
outra definição, temos na memória discursiva:
relacionados entre si.
Espaço de memória como condição do
Retomar enunciados conservados ao longo
funcionamento discursivo constitui um
do tempo e dispersos no espaço, em direção
corpo-sócio-histórico-cultural. Os discursos
ao segredo interior que os precedeu, neles se exprimem uma memória coletiva na qual os
depositou e aí se encontra (em todos os sujeitos estão inscritos. Trata-se de
sentidos do termo) traído. (FOUCAULT, acontecimentos exteriores e anteriores ao
2008, P. 137) texto, e de uma interdiscursividade,
refletindo materialidades que intervém na
Sendo assim, equivalem ao sua construção. (FERNANDES, 2007,
interdiscurso os mecanismos de apropriação p.65)
enquanto pensamento sobre um determinado
discurso, tornando-o legítimo e concretizado Assim, os discursos são guardados
exteriormente quando conseguimos relacioná- nesse espaço de memória cognitiva dos sujeitos
los aos discursos já utilizados anteriormente. que passa a permitir retomadas de discursos
Mas voltar a significar em um novo discurso, e utilizados em outro momento histórico-social,
conseguir identificar uma interdiscursividade, significando na superfície do discurso e volta a
está relacionado à maneira como a história vai ressignificar diferentemente em outras
sendo modificada pelos sujeitos, levando em materialidades discursivas.
consideração o conhecimento de mundo e a
cultura que promoveram esse sujeito. As Formações Discursivas (FDS) se
constituem a partir de formações ideológicas
A memória Discursiva apresenta o que o sujeito acumula ao passar do tempo, e
espaço cognitivo onde materializamos a nossa são elas as responsáveis pelas escolhas de
memória social. Então, podemos entender a determinados enunciados em lugar de outros.
partir de nossas crenças, de nossa cultura e da Isso ocorre em virtude de, os enunciados serem
nossa formação enquanto sujeito-social que escolhidos ideologicamente a partir da realidade
adquirimos a capacidade de realizar vários cultural e social da qual o sujeito se constitui.
discursos, os quais são retomados de outro As escolhas dos enunciados são feitas
momento da história e tomados de outros ideologicamente de formações discursivas
significados. Desse modo, começam a ter próprias de cada sujeito. Assim, a ideologia é a

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concepção de mundo adquirido por um mesmo de mudanças de vida que gera aos sujeitos
grupo social em um mesmo momento histórico. novas formas de pensar e agir de acordo com
(FERNANDES, 2007) novas posições e costumes que venha a adotar,
ou transferir-se para outra sociedade,
A vontade de verdade, assim como os outros partilhando de uma nova cultura.
sistemas de exclusão, apoia-se sobre um
suporte “institucional” sendo ao mesmo Portanto, a identidade vem a ser
tempo reforçada e reconduzida por todo um apontada pelas diferenças estabelecidas na
compacto conjunto de práticas como a sociedade e se configuram por várias formas
pedagogia, é claro, como o sistema dos antagônicas, no agir, pensar, se comportar e
livros, da edição, das bibliotecas, como as como se representa simbolicamente de acordo
sociedades de sábios outrora, os como nos vestimos, nos alimentamos e pela
laboratórios hoje. Mas ela é também linguagem que utilizamos, vindo a caracterizar e
reconduzida, mais profundamente sem distinguir as identidades, como é colocado por
dúvida, pelo modo como o saber é aplicado Woodward (2007, p. 10) “assim, a construção
em uma sociedade, como é valorizado, da identidade é tanto simbólica quanto social”.
distribuído, repartido e de certo modo
atribuído. (FOUCAULT, 2009, p. 17, aspas A mídia é um dos principais dispositivos
nossa) de formações discursivas da sociedade
contemporânea, pois é por meio dela que
3. A relação de gêneros na sociedade e no trazem à tona discursos que já foram proferidos
discurso midiático. em outro momento e que são ressignificados na
construção de outros discursos que nos
Para melhor explicar relações entre constitui enquanto sujeitos. Esses discursos são
homens e mulheres em uma sociedade, é reutilizados pela mídia ao proporcionar ao leitor
preciso entender como compreendemos à ideia a concepção de mecanismos que possibilitem
de identidade, colocada da seguinte forma: entender as relações de construção dos efeitos
simbólicos colocados pelos sujeitos em um
Tornamo-nos consciente de que o
‘pertencimento’ e a ‘identidade’ não têm a
determinado discurso (GREGOLIN, 2007).
solidez de uma rocha, não são garantidos Podemos, através dos textos
para toda a vida, são bastante negociáveis e apresentados pela mídia, sejam eles
revogáveis, e de que as decisões que o verbalizados ou não, identificar vários sentidos
próprio indivíduo toma, os caminhos que que permeiam o discurso, se nos detivermos a
percorre, a maneira como age- e a interpretá-los.
determinação de se manter firme a tudo
isso- são fatores cruciais tanto para o A mídia funciona por uma dupla lógica:
‘pertencimento’ quanto para a ‘identidade’. a econômica que age pela apresentação de
(BAUMAN, 2005, p. 17 aspas do autor) produtos fabricados com interesse de atingir um
público consumidor que adquira seus produtos;
Ao que tomamos como pertencimento e a simbólica que promove a opinião do público
é o fato de em algum momento passarmos a consumidor sobre um determinado produto
questionar nossa própria identidade, sobre fatos comercializado. (CHARAUDEAU, 2007)

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figura do demônio, adotada pelas lendas e pelos
A mídia é um campo discursivo que nos
trabalhos cinematográficos, em direção ao
permite uma vasta assimilação de sentidos, pois,
homem com olhar de superioridade. A relação
ela possibilita a retomada de diversos discursos,
interdiscursiva, também é retomada pelo efeito
ao trazer fenômenos históricos que
de sentido proporcionado pela figura feminina,
aconteceram no passado para um novo discurso
presente na propaganda, ao tomar lugar de
e dessa forma conseguem promover vários
demônio, quando a esse efeito conseguimos
sentidos a partir de um mesmo discurso já
fazer outra ligação com o discurso bíblico, uma
utilizado em outra época. Assim, a mídia ao
vez, que, ao retomar o discurso sobre Eva (GN;
apoderar-se de acontecimentos históricos se
2) a colocar à mulher como incentivadora ao
constitui de vários conhecimentos que voltam a
pecado cometido por Adão, que ressignifica
significar discursivamente em outras formas de
dessa forma na propaganda midiática, a
enunciação promovidos pelo próprio campo
formação discursiva existente em nossa
midiático que contribui na construção dos
sociedade, cuja, nas relações entre homens e
vários sentidos que um mesmo discurso pode
mulheres, pecados cometidos por ambos os
vir a apresentar.
sexos, só são de fato apontados e julgados com
4. A relação de gêneros sob o olhar do mais intensidade quando cometidos por
discurso midiático. mulheres. Essa análise se torna verdadeira
Há milênios, homens e mulheres ocupam quando de nossa sociedade aspectos como
diferentes lugares dentro de determinadas cultura e ideologia são partilhadas dentro de um
sociedades. A esses lugares são estabelecidas mesmo grupo formador discursivo.
regras que determinam os gêneros a distintas Além disso, a imagem enquanto
categorias que se incorporam de acordo com a enunciado também deixa marcados os diferentes
cultura na qual se inserem esses sujeitos. lugares ocupados pelos sujeitos. Dessa forma, a
Podemos então perceber que na figura mulher ocupa o lugar de diabo pela forma como
1, cujo título é Anjo não tem sexo, então, se apresenta discursivamente com a presença de
fogo, escuridão e pela lingerie vermelha, cor
qual é a vantagem? O homem encontra-se
que em nossa memória discursiva, possibilita os
caído, em posição retraída e assustado
enquanto olha em direção à mulher que ocupa efeitos de sentidos que referenciamos a paixão,
o amor e o pecado, significados em nossa
posição de diabo, uma vez que, pela memória
memória também em Gênesis (2;7) pela cor do
discursiva segundo Foucault (2008) uma
fruto proibido, comido por Adão e Eva,
espécie de memória que atravessa o tempo,
utilizado pelas escrituras sagradas como
significações, pensamentos, desejos, fantasmas
símbolo do pecado. Ao homem cabe o lugar de
sepultados que definem o que permite arrancar
pecador, tendo que se submeter a esse lugar,
o discurso passado de sua inércia a reencontrar
que pela memória discursiva nos permite
sua vivacidade perdida. Conseguimos fazer
relacionar esse discurso ao discurso religioso
essa relação pelas formas que os demônios
que adotamos enquanto cristãos sobre o inferno
aparecem em filmes e lendas, na maioria das
lugar para onde vão as pessoas que cometeram
vezes apresentando-se com essa aparência de se
perversidades aqui na terra e depois que
pôr agachada que retoma interdiscursivamente a

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morrem tem o inferno como morada por toda palavra “renda-se” com destaque maior na
eternidade e sendo submissas ao diabo dono do escrita da “renda” com a lingerie que a mulher
inferno. está usando, também de renda.
Quando tomamos essa noção de inferno, Percebemos assim, que o interdiscurso
consequentemente, fazemos relação com que se torna evidente na imagem é
demônios. Essa retomada de discurso de ordem ressignificado a partir da relação que
religiosa torna-se legítimo quando relacionamos estabelecemos em nossa memória discursiva, ao
a imagem como parte constitutiva do enunciado relacionarmos a imagem da propaganda à época
“Anjo não tem sexo. Então. Qual é a das lutas e guerras que aconteceram em outro
vantagem?”, assim, o sujeito masculino da momento da história e legitimada tanto nas
propaganda toma o lugar de pecador submisso posições que o homem e a mulher estão
e a mulher cabe à posição de algo que se opõe, ocupando na imagem, quanto na palavra
no caso o demônio. Esse discurso trazido pela “renda-se” evidenciando que o homem é
propaganda é ressignificado por meio da rendido pela mulher, em Foucault (2008)
memória discursiva partilhada por sujeitos de mostra-se como os diferentes discursos de que
uma mesma cultura, permitindo assim guardar tratamos remetem uns aos outros, organizados
os vários discursos dos quais compartilhamos por uma mesma estrutura e carregam
ao longo do tempo, e retomadas com uma nova significações que podem ser comuns a toda uma
produção de sentidos. época.
Na figura 2, cujo título é Renda-se, a A propaganda em questão emerge de
relação discursivizada entre o homem e a uma formação ideológica que é pautada na
mulher observadas na condição de produção da cultura dos sujeitos históricos e sociais,
imagem, apresenta a mulher como dominante utilizando a palavra “renda-se” e a postura
em relação ao homem legitimado pela posição adotada entre o homem e a mulher para
da mulher sobre o homem deitado e pelo significar, utilizando como base outro discurso
enunciado “renda-se”, assim, o sujeito já estabelecido na sociedade sobre as lutas
masculino torna-se rendido ao sujeito feminino, existentes entre os povos, no intuito de dominar
remetendo o interdiscurso como apreendido à o território inimigo, no caso o homem. Assim, a
posição entre guerreiros percebidas a partir da partir dessa formação discursiva colocada por
imagem e legitimada com a inserção do Foucault (2008) conseguimos compreender as
enunciado “renda-se”, essa relação relações de sentido que perpassam os discursos
interdiscursiva se faz presente para Fernandes tornando-os verdadeiros. Contudo a palavra
(2007) pois, caracterizamos no discurso dessa “renda-se” não é colocada apenas como
propaganda o entrelaçar de outro discurso, elemento que torna legítimo o discurso entre
oriundo de outro momento da história. lutas e guerras, mas, permite também outro
Colocando a mulher como vencedora do que sentido significado na lingerie fabricada com
viria a ser uma batalha, ainda em relação à tecido de renda vestida pela mulher.
palavra utilizada, há uma ambiguidade que
revela um sentido de dominação da mulher
sobre o homem, além dos efeitos de sentido da

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bem definido, aqui o discurso ressignifica
Na figura 3, intitulada Já curti e agora
antagonicamente, uma vez que a imagem do
vou compartilhar, temos na imagem uma papai Noel é apresentada na propaganda
relação entre o homem e a mulher que
diferentemente daquela que guardamos em
representa discursivamente a independência da nossa memória discursiva, que é presenteado a
mulher de hoje que não apresenta uma uma mulher que também é jovem e dona de um
submissão ao homem como acontecia no corpo escultural. Assim, o corpo representa um
passado, que se torna legitimado a partir da poder discursivo que significa de acordo com os
leitura do enunciado “já curti e agora vou padrões de beleza física que cada sociedade
compartilhar”, utilizado junto à imagem.
impõe de acordo com a cultura e a ideologia
Portanto, o discurso que tomamos como que os sujeitos adquirem ao longo do tempo,
verdadeiro é observado a partir da colocação passando, assim, a apresentar o corpo atlético
dos elementos enunciativos que compõem a como representação de saúde, bem-estar e
imagem nos remetendo assim a outros discursos beleza que para Foucault (2012) o poder passa
que se cruzam e ressignificam em novos a ser tudo aquilo que por ele é atacado, assim, o
discursos. Deste modo, temos como teia poder encontra-se exposto no próprio corpo,
interdiscursiva, o homem que aparentemente naquilo que ele representa socialmente.
estava vestido de papai Noel, símbolo de uma Assim, só podemos fazer essa relação de
figura lendária que traz presentes as crianças sentidos a partir da memória discursiva que
que se comportaram bem no decorrer do ano e temos sobre a simbologia que o natal representa
por isso são presenteados pelo bom velhinho na e consequentemente a imagem do papai Noel
época do natal, esse sentido enunciativo é
que é guardada em nossa memória discursiva e
caracterizado a partir de nossa memória volta a ressignificar no discurso atual opondo-
discursiva que permite a retomada do discurso se a imagem do papai Noel gordo e velho,
religioso construído sobre o Natal, e agora presente ideologicamente em nossa memória
apresenta um novo discurso ao ser colocado na social adquirida ao longo da história.
propaganda como o próprio presente, que
supostamente foi desembrulhado, uma vez que, 4.1 Figuras de análises
a roupa vermelha que lendariamente veste o Figura 1. Anjo não tem sexo, então, qual é
Papai Noel encontra-se jogada ao chão. a vantagem?
Nesse novo discurso, há uma formação
discursiva que nos proporciona reconhecer
outros sentidos dentro da construção
discursiva, a partir da nossa cultura e da
ideologia que compartilhamos pertencentes a
uma mesma sociedade e que está presente no
próprio papai Noel. Desse modo, o sujeito
masculino não é apresentado com sua forma
física lendariamente conhecida, gordinho e
FONTE: http://www.duloren.com.br/#!/campanhas/
velhinho, mas, com um corpo atlético, jovem e

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47
Figura 2. Renda-se. culturalmente pertencia ao sujeito masculino,
uma vez que, o sexo era determinante aos
lugares ocupados socialmente pelos sujeitos em
que apenas sujeitos do sexo masculino tinham
domínio de poder sobre o sujeito feminino
dentro de uma determinada sociedade.
Nessa perspectiva do trabalho
mobilizado pelo interdiscurso, recuperamos
vários efeitos de sentidos, pela memória
discursiva compartilhada por todos nós, que
FONTE: http://www.duloren.com.br/#!/campanhas/
permitiu chegarmos a nossas análises, uma vez
que é através da memória que conseguimos
Figura 3. Já curti e agora vou compartilhar. guardar os vários discursos acumulados durante
o tempo, permitindo assim a retomada de
discursos já significados e voltaram a
ressignificar nas propagandas a partir da
construção de novos discursos como os obtidos
em nossas análises.
Ao que pertence às formações
discursivas, entendemos a partir da teoria da
Análise do Discurso, que os sujeitos apresentam
suas formações discursivas de acordo com lugar
FONTE: http://www.duloren.com.br/#!/campanhas/ que esses sujeitos ocuparam em uma
determinada sociedade de acordo com a cultura
5. Considerações finais e a ideologia pertencente a cada esfera de poder
Assim, dentro das práticas discursivas seja ele, religioso, político, educacional e etc.
das propagandas da Duloren, no tocante a Na discursivização das relações de
fabricação das relações existentes entre os gêneros que se inserem no espaço das
gêneros observou-se que os discursos propagandas Duloren, os sujeitos masculinos e
encontrados nas propagandas revelaram femininos em seus corpos, estão geralmente em
relações de poder existentes entre gêneros uma luta constante, e no campo da sexualidade,
masculinos e femininos discursivizados no os corpos femininos apresentam força e
interior de suas práticas discursivas, na qual domínio sobre os corpos masculinos. Com isso,
sujeito feminino ocupa um lugar de a Duloren enquanto campo midiático promove
superioridade em relação ao sujeito masculino, o lugar de poder, com o sujeito feminino
fato esse recorrente em todas as propagandas superior ao masculino, esses efeitos tornam-se
analisadas, desconstruindo uma ideologia possíveis, uma vez, que, do interior de suas
adotada pela sociedade ocidental, cujo sujeito propagandas, formações discursivas se
masculino sempre foi visto como superior ao constituem a partir de uma rede interdiscursiva
sujeito feminino, apresentando um poder que presente na memória dos sujeitos, a permitir

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48
que sejam legítimados os vários discursos
ORLANDI, E. P. Análise de discurso:
apresentados a partir da interpretação de um
princípios e procedimentos. 7 ed. Campinas:
mesmo discurso, promovendo os vários efeitos
Pontes, 2007.
de sentido.
PÊCHEUX, M. A Análise do Discurso: Três
Épocas (1983). In: GADET, F. e HAK, T. Por
Referências uma Análise Automática do Discurso: Uma
BAUMAN, Z. Identidade: entrevista a Introdução à Obra de Michel Pêcheux.
Benedetto Vecchi. Tradução, Carlos Alberto Campinas: EDUNICAMP, 1990b.
Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., WOODWARD, K. Identidade e diferença: uma
2005. introdução teórica e conceitual. In: SILVA, T.
CHARADEAU, P. Discurso das mídias. T da. Identidade e diferença: a perspectiva dos
Tradução Angela M. S. Corrêa. São Paulo: estudos culturais. 7 ed. Petrópolis, RJ: Vozes,
Contexto, 2006. 2007.

FERNANDES, C. A. Análise do discurso:


reflexões introdutórias. 2 ed. São Carlos:
Claraluz, 2007.
FOUCAULT, M. A arqueologia do saber.
Tradução Luíz Felipe Baeta Neves, 7 ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2008.
______. A ordem do discurso: Aula inaugural
no Collège de France, pronunciada em 2 de
Dezembro de 1970. Tradução Laura Fraga de
Almeida Sampaio. 19 ed. Edições Loyola. São
Paulo, 2009.
______. Microfísica do poder. Organização,
introdução e revisão técnica de Roberto
Machado. 25 ed. São Paulo: Graal, 2012.
GÊNESIS. Bíblia Sagrada. Edição Pastoral.
São Paulo: Sociedade Bíblica Católica
Internacional, 1990. ISBN 85-349-0228-3.
GREGOLIN, M. R. Análise do discurso e
mídia: a (re) produção de identidades. Dossiê,
comunicação, mídia e consumo. São Paulo,
vol. 4, n 11, p. 11-25, nov. 2007.

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49
SUJEITOS PERIFÉRICOS: MAL DE ARQUIVO OU ARQUIVO
DO MAL?

Willian Diego de ALMEIDA


Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS)
willian.diego@hotmail.com

Resumo: Este trabalho propõe uma análise discursivo-desconstrutivista da Lei Maria da


Penha em relação à representação da mulher indígena, a fim de rastrear efeitos de
sentidos de discriminação que se materializam no arquivo da lei. Partimos da hipótese de
que a lei marginaliza a mulher indígena, através de um dispositivo discursivo que agencia
um processo de estatização da identidade/subjetividade de um sujeito considerado
periférico. O trabalho ancora-se na transdisciplinaridade entre: perspectiva discursiva
francesa; desconstrução derrideana; arquegenealogia foucaultiana; ponto de vista
teórico-culturalista de Anzaldúa (2005) e de Mignolo (2003). Resultados apontam que o
texto da lei mobiliza efeitos de sentidos de discriminação em relação à mulher indígena,
como uma prática discursiva que teima em permanecer no tecido da formação social.
Palavras-chave: mulher indígena; discriminação; lei maria da penha.

Introdução Embora a lei Maria da Penha (LMP)


tenha convertido o que era mero fato físico em
A mulher brasileira, em face do
direito legal, vemos que a lei não abarca a
movimento feminista principiado na segunda
autonomia de alguns dos subconjuntos de
década do século XX, que recebeu corpo nas
sujeitos que constituem a nação brasileira,
décadas de 60 e 70, tem atingindo resultados
mantendo-os à margem da cidadania (SOUZA,
benéficos em prol dos direitos (COSTA;
2003): os indígenas, mais especificamente a
BRUSCHINI, 1992; RAGO. 1998). Em face
mulher indígena.
disso, o legislador constituinte primou por
incluir no aparato jurídico brasileiro, após quase Dito isso, temos por objetivo realizar
duas décadas da feitura da Constituição Federal uma análise discursivo-desconstrutivista, por
de 1988 (CF), um direito social de caráter meio de um recorte discursivo, da LMP em
subjetivo, uma lei especial que apresenta relação à representação da mulher indígena,
direitos essenciais à mulher brasileira: a lei problematizando possíveis efeitos de sentidos
Maria da Penha, lei 11.340/2006. que caracterizam discriminação e exclusão.

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50
Vale ressaltar que, diante do nosso 1. Fundamentação teórico-metodológica
objetivo, não pretendemos minimizar a eficácia Em face do assentamento teórico
da lei. Buscamos analisar o seu funcionamento
transdisciplinar que orienta esta pesquisa,
no âmbito discursivo, ou seja, a escrita como articulamos que não há uma metodologia
um espaço de confrontos discursivos que pode pronta, acabada, baseada em uma exatidão, em
ser problematizado, sobretudo no campo de rigores científicos fechados, em uma leitura
reflexão sobre as questões indígenas. horizontal que visa à fixidez dos sentidos.
Partimos da hipótese de que a LMP, De tal modo, para empreender o nosso
embora inclua as mulheres na ordem do gesto analítico, há a necessidade que se
discurso jurídico, por outro lado marginaliza a construa um dispositivo teórico, a fim de
mulher indígena, através de um dispositivo articular apenas aqueles cordões teóricos
discursivo (a lei) que agencia um processo de (CORACINI, 2007) de que necessitamos para
estatização da identidade/subjetividade de um tramar o nosso encadeamento teórico e analisar
sujeito considerado periférico. os efeitos de sentidos que emergem na
Para tanto, pautamo-nos, materialidade linguística da LMP.
transdisciplinarmente (CORACINI, 2010), nas O primeiro fio teórico a ser considerado
contribuições teóricas da perspectiva discursiva, é o da Análise do Discurso (AD). Esta se
em que o discurso se constitui sobre o primado adorna das mais variadas definições: pode ser
de interdiscursos e que todo discurso é relacionada, em sentido amplo, ao estudo do
heterogêneo; da desconstrução, por meio das discurso; em sentido restrito, como um
balizagens teóricas derrideanas; por meio do dispositivo (ORLANDI, 2008, p. 32) que toma
suporte teórico-metodológico foucaultiano, o o discurso como objeto de investigação,
arquegenealógico, por implementar as analisando a relação da linguagem com a
metodologias teóricas da perspectiva discursiva; exterioridade, bem como as chamadas
e da perspectiva teórico-culturalista de condições de produção do discurso: o falante, o
Anzaldúa (2005) e de Mignolo (2003), que ouvinte, o contexto da comunicação, o
articulam estudos a partir daqueles que estão à
contexto histórico-social (ideológico).
margem das identidades consideradas
homogêneas, ou seja, subalternas. A AD, estabelecida sobre a tríade
teórica linguística, psicanálise e materialismo
Embora este seja um dos recortes de histórico, por meio dos trabalhos desenvolvidos
minha tese de doutoramento, resultados por Pêcheux (1988), produz um outro lugar de
apontam que o texto da lei, um arquivo conhecimento com sua especificidade. Afasta-se
jurídico, mobiliza e (d)enuncia efeitos de da mera aplicação da linguística sobre as
sentidos de discriminação em relação à mulher ciências sociais, pois considera que a linguagem
indígena, como uma prática discursiva que pode ser referida essencialmente à sua
ainda permanece no tecido da formação social. exterioridade, para que se apreenda seu
funcionamento enquanto processo significativo.

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51
sociedade e as instituições (DELEUZE, 2005;
Nesse contexto, ao analisarmos o
DREYFUS; RABINOW, 1995).
discurso, estamos, de maneira inevitável,
perante a questão de como ele se Da arqueologia à genealogia – termo
(inter)relaciona com a circunstância, a este começado por Nietzsche (2009) –,
conjuntura e a ocorrência que o criou: o que Foucault (2002) contribui para a constituição
coloca em relação “o campo da língua e o de um artifício, um modo de ler e interpretar,
campo da sociedade. que ao mesmo tempo em que procura cercar
efeitos de sentidos lançados em um texto,
O processo discursivo se dá por meio de
explica como o sujeito, os objetos do saber, da
uma interpretação que não anula, mas
verdade, do poder e os enunciados
(trans)forma e (re)escreve os textos,
desenvolvem-se, constituem-se, modificam-se; e
produzindo em todos os momentos de leitura
como se deslocam ao longo dos tempos.
outros sentidos. “O sentido, para a AD, não
está fixado a priori como essência das palavras, Essa atividade de investigação
nem tampouco pode ser qualquer um: há uma (escavação) possibilita lançar um olhar a fatos
determinação histórica. Ainda, um entremeio” desconsiderados, sejam pelos procedimentos
(ORLANDI, 2007, p. 27). históricos, seja pelo desígnio do produtor de um
texto.
Embora tudo isso esteja muito bem
delineado em diversas obras, é com base na O método arquegenealógico configura,
interface do estudo centrado no suporte então, um mecanismo ou uma atividade para
teórico-metodológico foucaultiano (1988, indagar, problematizar e enxergar
2002, 2015), o arquegenealógico, que a teoria analiticamente na dispersão de enunciados,
discursiva constitui-se como um artifício, um regularidades de acontecimentos discursivos,
modo de ver, ler e interpretar os (efeitos) de bem como supostas “essências” que foram
sentidos de um texto, na dispersão de deliberadamente estabelecidas e instauradas a
enunciados, regularidades de acontecimentos partir de conjunturas históricas que permeiam a
discursivos. humanidade.
Para além do estruturalismo, Foucault Diante desse “artifício” que aprimora a
não se limita a tratar de questões já trabalhadas. análise das problematizações, bem como das
O autor constrói uma perspectiva para tratar subjetivações provenientes de um discurso, a
dos problemas que encampam a sociedade a AD complementa-se, e oportuniza tecer
partir da recusa das evidências. E nisso, de reflexões que transcendem a simples leitura dos
maneira genérica, é que consistem suas textos, sobretudo quando discorremos acerca
produções. do caráter relativo das palavras (CORACINI,
2007).
Foucault põe em marcha as políticas das
transgressões, via instituições (prisões, escolas Pensando na análise de deslocamentos
e estabelecimentos jurídicos). E por essa via das significações, dos efeitos de sentidos, na
monta a sua perspectiva de estudo sobre o máscara de autonomização da escrita jurídica,
poder: redes capilares que permeiam a da objetividade, do direito, do justo, faz-se
necessária uma articulação com um terceiro fio

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52
teórico: a perspectiva derrideana da estrutura (a escrita) da lei (virtualidade) não
desconstrução. Especialmente pelo fato de o pode ser considerada “neutralizada, reduzida:
discurso jurídico se desenvolver (e se mantém) por um gesto que consistia em dar-lhe um
sob a égide do logocentrismo, da racionalidade centro, em relacioná-la a um ponto de presença,
ocidental. a uma origem fixa” (DERRIDA, 1995, p. 230).
Com posição intelectual diferenciada no Além de tais autores, o último fio
cenário da filosofia, Jacques Derrida opera um teórico condutor liga-se à visada teórica e
des-locamento, uma transgressão, um gesto metodológica de Anzaldúa (2005) e de Mignolo
antiestruturalista por meio do próprio (2003). Tais teóricos também vem tecer
estruturalismo, uma crítica à linguagem. reflexões que transcendem a simples leitura dos
Desestabiliza (artificiosos) (pré-)conceitos que textos, pelo fato de ambos articularem que, ao
se apoiam e tendenciam à homogeneização do olharmos para as misturas, para as bordas,
logos, ao etnocentrismo ocidental. E esse conseguimos novas formas de compreender o
movimento calcado no descentramento, chama- mundo, dando vozes aos que não a tem.
se Desconstrução. O deslocamento de suas teorias, para
Pensador rebelde, Derrida opera na de- este trabalho, fornece subsídios para a análise
sedimentação do centro, dando lugar ao que uma vez que buscam compreender e falar do
outrora estava às margens (diferenças de forças, periférico a partir de uma epistemologia
o marginalizado, o suplemento): fronteiriça (local e subjetiva), como um novo
argumento que suplementa a análise discursiva
[...] mais do que exteriores a ele [o texto, o e o deslocamento do logocentrismo e do
discurso], são o "interior do interior", razão discurso imperial.
de ser da estrutura que se deixa ler dentro
(e) fora da superfície significante. Como uma maneira de “combater” os
(SANTIAGO, 1976, p. 57). efeitos do eurocentrismo, Anzáldua (2005) e
Mignolo (2003) tecem um gesto de
Desestabilizando o pensamento binário interpretação das transformações desiguais para
que encampa a esfera ocidental, em que é a era de “independência” de ex-colônias. As
estabelecida uma hierarquia (preeminência, reflexões desses autores compreendem a
palavras centradas em relação de valores) de abertura de novas perspectivas em relação à
um termo sobre o outro (nesse caso, sempre o estrutura social, cultural e epistêmica das
primeiro) — fala vs escrita, bom vs mal, literal sociedades.
vs não literal, significado vs significante, rico vs A junção dos ensinamentos de autores-
pobre, presença vs ausência, entre outros —, o teóricos-filósofos, subsidia-nos a analisar o
plano da desconstrução denuncia a discurso da LMP como um lugar em que se
transparência e o sentido ipsis litteris atribuídos materializam ideologias, memórias,
ao signo e ao seu significado. subjetividades e estratégias que produzem
Para Derrida (1973), a linguagem é “verdades”, como um dispositivo normatizador
insuficiente para ela mesma, pelo fato da sua da escrita/interpretação dos sentidos e, por
indecibilidade. Com a perspectiva derridiana, a

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53
familiar, inclusive as esporadicamente
meio dele, da ordem social (ZOPPI- agregadas;
FONTANA, 2005).
Art. 6o A violência doméstica e familiar
2. Análise e discussão contra a mulher constitui uma das formas de
Como os discursos e os seus efeitos de violação dos direitos humanos.
sentidos são históricos, e os sujeitos são sociais,
o fio condutor deste tópico é problematizar os Em R1, as formas do dizer, sob a
possíveis efeitos de sentidos de discriminação modalização designativa de caráter jurídico,
em relação à representação da mulher indígena, indicam uma generalização da lei que se dá por
denunciando que a LMP agencia um processo meio da (in)definição dos termos “doméstica” e
de estatização da identidade/subjetividade de “familiar”.
um sujeito considerado periférico.
É interessante analisarmos o
Essa dimensão leva-nos ao caráter de funcionamento discursivo dessas regularidades
que os discursos mobilizados em uma lei no texto da LMP. De acordo com Ferreira
digladiam-se como remetendo às lutas, aos (2001), a primeira, “doméstica”, traz uma
conflitos em relação ao dispositivo identitário. construção nominal que faz referência ao lar,
Não como mero acidente, mas como delimitando que o evento da violência ocorre na
movimento do próprio funcionamento da fronteira de um lugar específico. O termo
linguagem, como uma rede (micro)capilar de “familiar” remete ao grupo social fundamental
poderes (FOUCAULT, 2015) que promove a na sociedade: a família. O que nos faz levantar
(re)configuração e o estabelecimento das que é pautado na reflexão acerca da relação de
verdade. um homem, uma mulher e seus descendentes.
Vejamos, em síntese, um recorte que Além disso, na ordem do funcionamento
traz, no bojo da análise, a marginalização da da escrita, com Neves (2000, p. 73) vemos que
mulher indígena, cujas pistas materializadas o substantivo feminino “doméstica” assume a
(linguística e histórica) podem alargar a nossa função qualificadora própria do adjetivo e os
compreensão da relação da LMP com os efeitos vocábulo “familiar” a função de adjetivo de dois
de sentidos das palavras. gêneros.

LMP (R1) Art. 5o Para os efeitos desta Lei, Após analisar a materialidade linguística
configura violência doméstica e familiar em sua função significante, vemos, com
contra a mulher qualquer ação ou omissão Pêcheux (1988), pela noção de não
baseada no gênero que lhe cause morte, transparência do dizer, que tais palavras podem
lesão, sofrimento físico, sexual ou deslocar seus sentidos se interpretadas pelo
psicológico e dano moral ou aspecto discursivo.
patrimonial: (Vide Lei complementar nº
O que estamos querendo dizer com
150, de 2015)
isso? Num gesto interpretativo, (d)enunciamos
I - no âmbito da unidade doméstica, que a utilização desses adjetivos, em um mesmo
compreendida como o espaço de convívio enunciado, tem a função de estruturar a força e
permanente de pessoas, com ou sem vínculo a função argumentativa do dizer da lei.

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54
põe em cena as diferenças aos valores
E como todo dizer está consorciado
atribuídos pelos sujeitos quando analisadas na
com a teia entre discurso, história e memória
esfera discursiva.
(PÊCHEUX, 1998), os termos “doméstica” e
“familiar”, de valores integrativos e Além disso, na esteira de Pêcheux
generalizantes, inserem-se em uma formação (1988, p. 108), consideramos que esse
discursiva patriarcal e constituem-se mediante funcionamento universalizante além propor uma
um locus de enunciação que parte dos ruptura torna-se um indício de simulação
movimentos de relações eurocêntricas. jurídica. Para o autor, “Há uma relação de
simulação constitutiva entre os operadores
Problematizamos que essas condições
jurídicos e os mecanismos da dedução
atribuídas aos sujeitos esteiam-se num memória
conceptual, especialmente entre a sanção
discursiva de um saber espistemológico
jurídica e a conseqüência lógica”.
hegemônico, que sinaliza marcas da herança
cultural esculpida pelo sistema colonial que Em tempos de sociedade de controle,
impera nos trópicos latinos. essa ruptura, como indício de simulação, nos
faz cogitar, com Foucault (2015, p. 429), que a
Isso se dá, de acordo com Lagazzi
LMP advém de uma história de
(1988), pelo fato de tais designações
governamentalidades, constituída e estabelecida
remontarem a uma memória
pelo próprio processo de colonização jurídica
discursiva constitutiva do discurso jurídico que
no ocidente. Ou seja, o direito que é exercido
encampa o modelo das constituições europeias;
no Brasil sucede de um conjunto de saberes
e que são mobilizadas no discurso da LMP,
jurídicos interdiscursivizados do Direito
segundo uma microfísica do poder. Esta,
Romano, canônico e arcaico.
estudada por Foucault (2015), vale-se como
uma prática discursiva dispersa em vários E o resultado desse processo foi pouco
âmbitos institucionais e sociais que visam a pouco permitindo definir o que deve ou não
ordenar os costumes ou relações de convívio ser inserido no âmbito jurídico brasileiro, como
social, especialmente dos grandes centros um processo de colonização. Na LMP, foram e
globalizados das cidades. são definidos os direitos dos sujeitos pautados
em um interdiscurso patriarcal que, de acordo
E ao ocorrer esse efeito metafórico
com Castells (2008), se caracteriza pela
universalizante (ZOPPI-FONTANA, 2005) na
autoridade imposta do homem sobre a mulher e
LMP, força-se a direção da completude do
os filhos no âmbito familiar, marcado por um
dizer. E ao conduzir para essa completude
posicionamento de dominação e violência.
(ORLANDI, 1999), colocando que todos os
sujeitos gozam das mesmas concepções, acaba Isso nos faz ponderar que as
por gerar uma ruptura, uma brecha, no próprio designações “doméstica” e “familiar” na LMP
discurso da lei; pois é impraticável atribuir são provenientes de um discurso jurídico
características subjetivas e cristalizá-las ao perfil hegemônico e que incluem as cidadãs que
da convivência social de todas as famílias convivem no espaço dos centros globalizados;
brasileiras. Aqui a igualdade é desejada apenas mas que, por outro lado, exclui todos aqueles
na ordem significante da escrita da lei, mas que que o ordenamento jurídico da cidade não

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55
(in)corpora. Portanto, não leva em arquivado, faz com que a LMP produza uma
consideração lugares e sujeitos fronterizos, sobrevida no percurso discursivo que atravessa
como as concepções instauradas na cultura a nossa concepção de família, na qual os
indígena. sujeitos periféricos ainda são ignorados.
Assim, não considerar o sujeito Ainda perseguindo nosso trajeto
periférico mulher indígena, implica a eliminação investigativo, com Derrida (2001, 2007)
do direito que esta mesmo deveria ter. São podemos dizer que embora a memória dos
então discursivizadas, na LMP, as concepções sujeitos periféricos, foragidos da lei, esteja
“doméstica” e “familiar” baseadas no direito esquecida em decorrência de um grande
ocidental, interdiscurso este que transborda os processo de colonização, a ruptura por nós
sentidos. analisada desvela a necessidade de se abrir o
arquivo da lei pensando numa epistemologia
No entendimento crítico de Anzaldúa
(des-)colonial (ANZALDÚA, 2005;
(2005, p. 710), a lei sofre de uma “amnésia”
MIGNOLO, 2003).
étnica que ignora nosso sangue comum. Se para
esta autora omos uma mistura que prova que Com Derrida (2001), postulamos que a
todo sangue está intimamente ligado entre si, lei funciona como um arquivo, um espaço de
R1 (d)enuncia uma prática discursivo-jurídica, memórias, onde sujeitos exercem uma função, e
sutil, disciplinar e não-coincidente, que confere esta é sustentada no próprio corpo da lei como
o estabelecimento de uma fronteira ideológica, arquivo escrito. Mediante o arquivamento de
um outro movimento de sentido de um direito uma memória que trabalha como espaço de
instituído. interpretação, o enunciador (arconte) elege,
nomeia e endereça as memórias, os
Na visada teórica de Mignolo (2003, p.
conhecimentos, os costumes do local e
254), a lei se trata de um conjunto de normas
estabelece as subjetividades mediante as
elaboradas cujo local geoistórico é
positividades (regularidades) (FOUCAULT,
marginalizado, bem como os loci de
2008) que permeiam a materialidade linguística
enunciação, o que faz convocar mais a
e social do documento oficial.
diferença. Descarta a “a especificidade e
singularidade histórica dos sujeitos que estão E se os discursos e os acontecimentos,
sendo aí designados.” (ZOPPI-FONTANA, como o de uma lei, são construções de uma
2003, p. 251). constelação de arquivos que foram selecionados
de acordo com as condições de produção, a
Desse modo, há como afirmar que o
LMP é uma interpretação, uma impressão, uma
direito estabelecido na LMP traz o efeito de
escritura; não somente um lugar de
sentido de que favorece uma categoria de
armazenamento e conservação de um conteúdo.
pessoas, mas sem deixar de lado o já-dito do
Tanto a técnica (a forma) como o conteúdo que
Direito europeu.
foram (ou são) arquivados é o que
Na perspectiva derrideana (2001), em (co)determina, também, a estrutura
Mal de Arquivo, esse rastro da concepção anarquivante do próprio conteúdo (DERRIDA,
familiar assentada em uma visão elitista, 2001).
conservadora, portanto, excludente, ao ser des-

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56
ainda que as representações sociais sobre os
E dessas “impressões” aqui
sujeitos periféricos, no recorte analisado, são
(des)arquivadas, mobilizamos que a mulher
formuladas por conflitos sociais de interesses e
indígena sofre um mal de arquivo na LMP, uma
discursivizadas pelos discursos hegemônicos
pulsão de morte, que, por sua vez, é consignado
vigentes.
pela memória colonial jurídica e pelas
formações discursivas patriarcais, advindas dos A LMP retrata, então, a concepção de
grandes centros ocidentais. uma construção sócio-histórico-ideológica que
longe de apagar as “diferenças”, reforça-as,
E essa promessa do esquecimento do
produzindo e estatizando lugares sociais por
outro, essa pulsão de morte, reforça que o
meio de um processo de subjetivação para os
processo de colonização ainda continua, via
que são considerados iguais, como também
discurso jurídico, como um processo de
para os que são considerados desiguais.
subjetivação.
Portanto, a visibilidade dada à mulher na
LMP torna-se uma armadilha, uma violência Referências
jurídico-simbólica, na qual o direito é respeitado ANZALDÚA, G. La conciencia de la mestiza /
e endereçado a alguns, mas que, na mesma rumo a uma nova consciência. Estudos
medida, torna-se um arquivo do mal, pois não Feministas, Florianópolis, 13(3): 320,
podemos ter certeza de que a justiça o foi. setembro-dezembro/2005, p. 704-719.
3. Considerações finais CASTELLS, M. O poder da identidade. vol. 2.
Levando em consideração a hipótese do 6 ed. Trad. Klauss B. Gerhardt. São Paulo: Paz
nosso trabalho bem como os objetivos, ante as e Terra, 2008
mobilizações teóricas, buscamos problematizar CORACINI, M. J. A celebração do outro:
o funcionamento discursivo da lei em relação à arquivo, memória e identidade: línguas (materna
representação da mulher indígena. e estrangeira). Plurilingüismo e tradução.
Mobilizamos que, em busca de um Campinas: Mercado de Letras, 2007.
controle social que visa preencher a falta e a _______. Transdisciplinaridade e análise de
relação conflituosa que existe entre os sujeitos, discurso: migrantes em situação de rua.
o discurso da lei traz, em seu bojo, efeitos de Cadernos de Linguagem e Sociedade, Brasília,
sentidos de exclusão. Verificamos que os 11 (1), 2010. p. 91-112.
efeitos de sentidos de marginalização da mulher
indígena denunciam a LMP como um efeito do COSTA, A. O.; BRUSCHINI, C. Uma questão
discurso colonial, como uma prática discursiva de gênero. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos;
que adquire legitimidade e intervém na São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 1992.
realidade e na representação dos sujeitos DELEUZE, G. Foucault. Trad. Claudia S.
periféricos. Martins. São Paulo: Brasiliense, 2005.
E ao observarmos o Brasil como um DERRIDA, J. Gramatologia. Trad. Miriam
país (de)marcado pela diversidade, sobretudo Schnaiderman; Renato J. Ribeiro. São Paulo:
pelos loci (geo)culturais fronteiriços, verifica-se

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

57
Perspectiva Ed. da Universidade de São Paulo,
MIGNOLO, W. D. Histórias locais/ projetos
1973.
globais: colonialidade, saberes subalternos e
_______. A escritura e diferença. 2.ed. Trad. pensamento liminar. Trad. Solange Oliveira.
Maria B. M N. da Silva. São Paulo: Editora Belo Horizonte: UFMG, 2003.
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59
OS DISPOSITIVOS DO CORPO NA TRAGICIDADE DA MODA
DE VIOLA

Aldenir Chagas ALVES


Universidade Federal de Uberlândia (LEDIF - UFU)
aldenirchagas@gmail.com

Resumo: Esta pesquisa parte dos resultados de uma dissertação de mestrado, com título
“O discurso trágico na moda de viola”. Foi feito um levantamento das letras, publicadas
no período da década de 30 aos anos 90. Nesse recorte temporal, há uma ocorrência
considerável de letras constituídas de tragicidade. Equiparadas com as noções da
filosofia do trágico, principalmente em Schopenhauer e Nietzsche, e aos postulados de
Foucault, as letras de moda de viola materializam por meio da linguagem, as
regularidades, os efeitos que induzem as relações de poder. Os protagonistas enunciados
nas letras que primam pela ação trágica, constituem-se como sujeitos diante do olhar do
discurso que os confinam e os instituem tanto na moral cristã, quanto aos grandes
sistemas de poder e exclusão.
Palavras-chave: moda de viola; tragicidade; corpo.

pesquisa se ateve às letras de moda de viola que


Introdução
foram gravadas a partir do final da década de
A moda de viola é o resultado das 30 até aos anos 90. Foram selecionadas entre
modas caipiras que teve o processo de esse período, cerca de 100 canções, cujas letras
formação a partir das relações entre jesuítas e enunciam uma ação trágica, que por sua vez
seus catequizandos, que eram indígenas e filhos implicam a "sociedade do discurso", difundida
de colonos. A partir da década de 30 com início pela doutrina que limita aos indivíduos o
das produção fonográfica no Brasil, a canções discurso que pode circular e ser transmitido.
caipiras tiveram que se adaptar ao formato dos
O objetivo deste trabalho trata-se em
discos, e consequentemente, às exigências
apresentar o diálogo possível entre
comerciais que público e as gravadoras ditam
determinadas narrativas, característica da moda
através da lógica consumista.
de viola, enunciadas de tragicidade com o
Uma das características das letras das contexto social brasileiro modernizador. O
modas de viola é sua fabulação novelesca, período entre 1930 a 2003, é marcado de
ornamentada de estilo retórico lírico-narrativo, intensas mudanças na música brasileira, com a
como assinala Sant'Anna (2009). O recorte da música caipira não é diferente. Período que se

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60
inventou e se construiu aceleradamente as exploração, de dominação e sujeição entre o
variações nominais da canção caipira, como homem e a mulher.
analisam Sant’Anna ( 2009), Nepomuceno Já nas décadas de 80 e 90, cedendo ao
(2009) e Vilela (2009). mercado fonográfico que exigia novas
1. Registros da moda de viola com letras modalidades de canção, como o sertanejo, a
constituídas de tragicidade moda de viola teve pouco espaço na indústria
fonográfica, sendo pouco recorrente nas
Diante do material pesquisado, não é
gravações. Contudo, duplas como Tião
possível estabelecer um período acerca do
Carreiro e Pardinho, Lourenço e Lourival e
aparecimento do trágico na moda de viola. É
Camões e Camargo, mesmo gravando o que se
importante lembrar que as modas já existiam
exigia nos moldes do mercado, ainda gravavam
antes das primeiras gravações no início da
modas em forma de coletâneas, intercaladas
década de 30. Sabemos que a estrutura das
entre as gravações que atendiam a expectativa
canções sofreram alterações por ter que se
das gravadoras. Alguns LPs pesquisados,
adaptar às gravações e, consequentemente ao
traziam as demarcações nas capas dos discos,
mercado fonográfico, que exigia faixas com
com termo "sertanejo", sendo que uma ou outra
canções curtas e mais objetivas nas letras, além
faixa trazia alguma canção do estilo moda de
de outras exigências da indústria fonográfica,
viola.
como informa Nepomuceno (2009). Dessa
forma, não é seguro afirmar que o trágico seja Nas décadas de 1980 e 1990 há pouca
uma das características recorrentes na moda de recorrência de gravações de novas autorias.
viola desde seu reconhecimento como uma das Com exceção da repetição de lançamentos de
expressões da canção caipira. Porém, modas já conhecidas, cujas informações eram
encontramos ainda na década de 30, uma letra enunciadas nos títulos dos LPs que traziam nas
de Alvarenga e Ranchinho, “Vida de um capas, referências que tal canção era conhecida
condenado”, que é uma das primeiras letras do público. Depois dos anos 90, marcadas por
constituídas pelo discurso trágico. Já na década grande movimentação financeira, as gravações
de 50, encontramos o maior número de de moda viola ficaram mais restritas. Nos discos
gravações que trazem o trágico nas letras, e e CDs pesquisados, há pouco registro de
Tonico e Tinoco como a dupla que mais gravou alguma moda inédita com discurso trágico,
canções com essa característica. entretanto, ainda é possível encontrar exemplos
como “Ingrata Maria” e “Fim dos tempos”,
As gravações das décadas de 1940 a
ambas de Goiano e Paranaense1 em um CD de
1970, que trouxeram o discurso trágico nas
2003.
letras, incorporaram o sentido de ação trágica
em temas como: a compaixão diante de
acidentes no cotidiano da vida rural e urbana; o
sofrimento diante da saída do campo; a velhice
1
como inutilidade; o entrelaçamento da relação Goiano & Paranaense. CD W 932.832, 2003.
vida-amor-espiritualidade, atravessados pelo Faixas 02 e 13.
discurso do casamento nas relações de

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afirma que após o século XVII, houve uma
A pesquisa sobre discurso trágico na
necessidade de fundamentação cartesiana de
moda de viola, reuniu 105 títulos de letras com
todo "pensamento e de toda verdade na
essa característica. Diante disso, vislumbramos
autoconsciência do sujeito (MACHADO, p.
uma gama de possibilidades para pensar o
07), cujo ápice dessa trajetória se dará com
discurso trágico no viés da análise do discurso,
Nietzsche.
verificar como o trágico enquanto discurso
dialoga com as questões sociais, humanas e até Para Peter Szondi (2004) é a partir de
transcendentais, e por tanto, com as relações de Schelling, que uma teoria do trágico é
poder. Há, nessa relação de letras, muitos construída com a contribuição de vários nomes
vieses por meio dos quais é possível extrair da filosofia moderna, principalmente na
outros recortes, ainda dentro do discurso Alemanha. Podemos tratar essa teoria na
trágico, que pode ser objeto de estudo a partir perspectiva histórico-filosófica, em
da reflexão filosófica que fundamenta e situa a Schopenhauer e Nietzsche, porém a teoria do
existência do sujeito no indivíduo. trágico não se encontra acabada somente nesses
dois nomes, mas confluída de forma não
2. Os dispositivos do corpo na ação trágica
estrutural no conjunto dos filósofos que
As condições para que houvesse uma escreveram a respeito, dispersa em obras que
ocorrência significativa de canções de moda de não trataram diretamente do assunto, mas que
viola, enunciando a ação trágica, apresentam foram dadas como referência para se pensar o
como lugar que reúne formas de imposição de trágico como discurso.
regras aos sujeitos do discurso. O que ocorre
Uma das características do pensamento
nas letras é uma apropriação social dos
moderno a respeito do efeito do trágico é o
discursos, uma ritualização da palavra, que fixa
distanciamento da ideia a respeito da tragédia
os papéis do sujeito que falam, constituindo e
grega, principalmente, da teoria aristotélica.
promovendo a difusão das doutrinas. Como
Schopenhauer (2001) critica a catarse, como
atesta Foucault (2010a) sobre a apropriação
purificação do temor e da compaixão,
social dos discursos por meio de seus saberes e
substituindo o sofrimento pelo prazer. Para
poderes.
Schopenhaur (2001) a finalidade da ação
A letras que se relacionam ao trágico na trágica é conhecimento de que a vida é
moda de viola, desempenham a função de fixar sofrimento.
o papel do sujeito, constituindo-o através da
Interessante que Schopenhauer entende
ação trágica. Para trazer as noções do trágico
que somente o homem é indivíduo, isso é o
enquanto discurso, é necessário subsidiarmos na
bastante para colocá-lo como “princípio da
filosofia moderna, principalmente aos
razão suficiente” (BRUM, 1998, p.34). Essa
postulados de Schopenhauer e Nietzsche.
aparição da inteligência na forma de
Tomamos como referência o movimento “individuação” fundamenta a ética do homem
cultural existente na Alemanha no final do em um desaparecimento enquanto ser individual
século XVIII, momento que possibilitou uma numa “vida universal anônima” (BRUM, 1998,
abordagem histórica-filosófica sobre o p. 35). O que nos faz pensar o sujeito enquanto
pensamento acerca do trágico. Machado (2006) sujeito do discurso, que se apaga enquanto

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indivíduo, subjetivado/objetivado em uma diante de sua vida estar chegando ao fim. Ao
existência universal anônima. desejar o local onde quer ser enterrado, ele
aciona o ser metafísico e transcendental que
Segundo Machado (2006),
funcionam como cumprimento da vontade e
Schopenhauer faz poucas referências ao
resignação perante a ideia de aniquilação do seu
trágico, mas suas reflexões se aplicam ao tema
ser físico e social.
por apresentar uma visão trágica do mundo que
a tragédia apresenta. O conceito de Schopenhauer sobre o
processo trágico que vê a “vontade” e a
Na tragédia, é o lado terrível da vida que
“representação” conhecidas como a doutrina
nos é apresentado, a miséria da humanidade,
da resignação tem como phatos a rejeição
o reino do acaso e do erro, a queda do justo,
pensada por Nietzsche em O nascimento da
o triunfo do malvado, coloca-se assim, sob
tragédia, sua primeira obra. O trágico
nossos olhos o caráter do mundo que se
pensado por Nietzsche encontrou uma
choca diretamente com nossa vontade.
postura máxima no projeto da modernidade.
(SCHOPENHAUER, apud MACHADO,
O filósofo contrapõe razão e moralidade ao
2006, p.183).
analisar o surgimento e desaparecimento da
Cabe observar que o filósofo alemão tragédia grega, reencontrando o ímpeto cego
entende que o sofrimento humano, além de uma e original do conceito da vontade no mundo
grande dor, seja merecido ou não, não é um dionisíaco da embriaguez, em princípios
sofrimento para efeito de justiça, como pensou “dionisíaco” e “apolíneo” superando os
Schiller (outro filósofo do trágico que concebia princípios antepassados da “vontade” e da
a tragédia como uma recompensa do inocente e “representação” de Schopenhauer.
(SZONDI, 2004, p.67).
uma punição ao culpado). Para Schopenhauer,
a tragédia é a purificação que o sofrimento Nietzsche pensa o homem como um ser
produz ao exibir a negação da vontade. duplo de “grandeza” e “miséria” (BRUM, 1998,
p.61), destituído de Deus, descentrado e
Ao se referir sobre a tragédia,
disperso, habitando um lugar incompreensível.
Schopenhauer (2001) reflete sobre o trágico
O pensador observa a ideia do homem como
enquanto fenômeno da natureza, o que nos leva
instrumento de vida e potência. Essa ideia vai
a considerar que algumas modas de viola
ser refletida em toda sua obra, culminando em
trazem o sofrimento como vontade aniquilada.
Assim falava Zaratustra.
Na letra de "Velho Peão"2..., de Teddy Vieira e
Sulino, gravação de Zico & Zeca de 1962, o Para Brum (1998), este olhar sobre o
sujeito enunciado não vê outra perspectiva homem visto como um animal de si, ou seja, o
senão a morte. Lamenta que sua vida de homem é animal do homem numa releitura
boiadeiro tenha chegado ao fim, e só espera ser hobbeseana. Nesse olhar escrutinador colocado
enterrado debaixo de uma mantiqueira, árvore sobre o homem, Nietzsche foi implacável e sem
de farta sombra, onde poderia "ouvir" a boiada complacência, mas não desprovido de humor.
passando e os gritos dos boiadeiros. O sujeito Considera-o com natureza instintiva de
constituído na letra se coloca na resignação aumentar sua potência, por se elevar numa
ordem superior aos outros animais, de
2
Zico e Zeca. [S.I] Disco CH-10276, 1962. Lado B. estabelecer sua filiação divina ou à eternidade.

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Além disso, essa superioridade da qual pensa o efeito do trágico, como a “consolação
ser o torna um ser cômico, ou melhor, “o metafísica” possibilitada na tragédia enquanto
comediante do universo” (idem) por ter visões pensamento mutante dos fenômenos em que a
idealistas para afagar seu orgulho. existência se apresenta como potência
indestrutível, sugerindo pela arte dionisíaca o
Em A origem da tragédia, Nietzsche
desejo e seu prazer de existir.
(2004) estabelece que a evolução da arte resulta
no duplo caráter do “espírito apolíneo” e o A partir das reflexões sobre a tragédia,
“espírito dionisíaco”. Assim, para os gregos, o Nietzsche (2004) se divorcia da poética e faz
sentido profundo e oculto da concepção uma interpretação filosófica ou ontológica da
artística recaem sobre as figuras significativas tragédia conduzindo o pensamento ao trágico.
do mundo dos deuses, ou seja, no pensamento Também se posiciona a respeito dos próprios
na sua forma inteligível. pensadores modernos que se propuseram a
É pois, às suas duas divindades das artes, a pensar o trágico. Afirma que os próprios
Apolo e Dioniso, que se refere a nossa alemães como Goëthe e Schiller não
consciência do extraordinário antagonismo, conseguiram êxito em suas reflexões por não
tanto de origens como de fins, que existe no terem considerado a música, ou seja, a tragédia
mundo grego entre a arte plástica ou musical para se pensar a tragédia grega como
apolínea e a arte sem formas musical, a arte arte essencialmente musical. Em O nascimento
dionisíaca. Estes dois instintos impulsivos da tragédia é possível perceber o
andam lado a lado e na maior parte do desdobramento da arte em filosofia, que se
tempo em guerra aberta, mutuamente se torna o objeto para se pensar no trágico como
desafiando e excitando para darem origem a reflexão da existência do indivíduo e na
criações novas (NIETZSCHE, 2004, p.19). individuação que se constitui sujeito na
Nietzsche concebe os princípios objetivação de um estado dionisíaco.
“apolíneo” e “dionisíaco” como dois instintos Ao propormos analisar o discurso
impulsivos que em sua mutualidade perpetuam trágico na moda de viola, é necessário entender
o conflito trágico. Esses impulsos humanos, que o funcionamento discursivo que a tragicidade
não se delimitam apenas na arte, tem como enuncia. Expusemos que o trágico como
“apolíneo” a representação da ordem, da luz, do pensamento ontológico, pensado pelos filósofos
individualismo, da criação, é uma representação modernos, delibera sentidos que dizem sobre a
em seu lado mais sofisticado. O impulso existência e o sujeito. Pensamos que o discurso
“dionisíaco” representa o exagero, a celebração, presente nas letras da moda de viola, promove
a libertação, a escuridão, a destruição, a quebra posicionamentos ideológicos, morais, políticos,
das barreiras irracionais, por ser representação religiosos. Instaura o discurso dos
do deus da alegria, do excesso e é também, a enfrentamentos do sujeito, de seus desejos,
forma do encontro com ou outro, numa perigos e de seu lugar ocupado historicamente.
alteridade com o próprio eu como assinala
Machado (2006). A tragédia na moda de viola dialoga de
algum modo, em sua reflexão, com as questões
Machado (2006) afirma também que na ontológicas do Romantismo na literatura, com
obra, A origem da tragédia, Nietzsche analisa epopeia, com o drama e o melodrama. Herança

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do pensamento ocidental, que em sua Foucault, presente em todos seus escritos, nos
subjetividade conseguiu cristalizar determinados quais ele visou explicitar sua constituição pelos
sentidos na cultura, na sociedade, nos dizeres, discursos na história.
nas práticas e na existência brasileira através de Foucault se debruçou sobre a
seus ritos. Então, pelo viés da filosofia do problemática do poder, considerando como
trágico, a tragicidade na moda de viola, enuncia integrante das relações discursivas que recaem
que as ações humanas são submetidas à força sobre o sujeito. Para Fernandes (2012)
repressora das condutas reprováveis pela moral
civil e religiosa. Na perspectiva da análise do As análises de Foucault sobre o poder
discurso, que as canções materializada como levam-no a abordar o sujeito em diferentes
discursividade, veicula a apropriação social segmentos sociais, em diferentes momentos
históricos de sua existência, visto que o
dos discursos, com seus limites, imposições de
poder é pensado sob diferentes direções [...].
saberes e poderes, constituindo sujeitos.
Em suas análises, mostra, e contesta, como
Ao tratar sobre o trágico como a sociedade capitalista aliada à religião
pensamento ontológico, o que se coloca em promove uma repressão ao desejo.
questão, é o lugar que o sujeito ocupa (FERNANDES, 2012, p. 52)
historicamente. De algum modo, as noções do Para Foucault (2010) o cristianismo ao
trágico retoma o mito como funcionalidade no introduzir a salvação após a morte, provocou
mundo moderno. De acordo com Eagleton, "O significativas alterações para os sujeitos, sobre
sonho de Schlegel, Schelling, Höldelin, o cuidado de si. Nessa perspectiva aparece o
Nietzche e Wagner é que o mito renasça em corpo de desejo e de prazer. A culpabilidade
escala épica no centro da época moderna" pela carne é atravessada por toda uma série de
(EAGLETON, 2013, p.309) mecanismos de "atrações" .
Ainda de acordo com Eagleton (2013) A qualificação do corpo como carne, essa
para os pós-humanistas, o sacrifício do sujeito culpabilizaçãodo corpo pela carne, que é ao
não é mais trágico, pois aquilo que está mesmo tempo uma possibilidade de discurso
renunciando já não tem valor especial. Dessa e de investigação analítica do corpo, essa
forma, o efeito dionisíaco nitzscheniano não consignação, ao mesmo tempo, da falta no
retoma o sacrifício trágico, mas aciona a corpo e da possibilidade de objetivar esse
proliferação infinita de jogo, poder, prazer, corpo como carne - tudo isso é correlativo
diferença, desejo, como um fim em si mesmo. do que podemos chamar de um novo
procedimento de exame (FOUCAULT,
Se pensamos o sujeito na enunciação 2010, p. 174).
trágica como objeto teórico na filosofia
Com a desqualificação do corpo como
moderna, é imprescindível o tomarmos como
carne, foi instaurado o aparecimento de um
aparato foucaultiano, cuja evidência de seu
discurso analítico, de uma constante vigilância,
funcionamento enquanto determinação dos
como objeto de um discurso, ligado por uma
sujeitos do discurso.
regra de silêncio. Desse modo, o cristianismo
De acordo com Fernandes (2012) o exerce seu poder através da confissão,
sujeito é a questão central das pesquisas de ritualizando certas condições de penitência. O

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Com classe e delicadeza
poder é exercido na direção espiritual, Esses cabelos compridos
enunciando a condição necessária ao São minha maior riqueza
funcionamento da regra. Se um dia você cortar
Dessa forma, as reflexões sobre o Nós separa na certeza
sujeito, o poder e o corpo como campo Além de te abandonar
discursivo, na viés foucaultiano oferecem Vai haver muita surpresa
material para ser pensado a ação trágica nas
Um mês depois de casado
modas de viola, levando como referência a
O cabelo ela cortou
abordagem do pensamento filosófico sobre o Boiadeiro de palavra
trágico como projeção do homem moderno. Nessa hora confirmou
3. A palavra com o "Boiadeiro de palavra" No salão que a esposa foi
Com ela ele voltou
Com a instauração do corpo como Mandou sentar na cadeira
aparelho discursivo, pelo viés foucaultiano, E desse jeito falou
como lugar onde a punição se subjetiva através Passe a navalha no resto
das narrações trágicas na moda de viola, e Do cabelo que sobrou
ainda, subsidiando-se na filosofia moderna O barbeiro não queria
sobre o trágico, que correlativamente constitui A lei do trinta mandou
sujeitos, reafirma práticas, retoma poderes e
exerce domínios de saber, apresentamos um Com o dedo no gatilho
exemplo das letras pesquisadas. Pronto pra fazer fumaça
Ele virou um leão
Boiadeiro de palavra Querendo pular na caça
(Lourival dos Santos, Moacyr dos Santos e Quem mexeu nesse cabelo
Tião Carreiro) Vai cortar o resto de graça
A navalha fez limpeza
Que nasceu lá no sertão Na cabeça da ricaça
Não pensava em casamento Boiadeiro caprichoso
Por gostar da profissão Caprichou mais na pirraça
Mas ele caiu no laço Fez a morena careca
De uma rosa em botão Dar uma volta na praça
Morena cor de canela
Cabelos cor de carvão E lá na casa do sogro
Desses cabelos compridos Ele falou sem receio
Quase esbarrava no chão Vim devolver sua filha
E pra encurtar a história Pois não achei outro meio
Era filha do patrão A minha maior riqueza
Eu olho e vejo no espelho
Boiadeiro deu um pulo É um rosto com vergonha
De pobre foi à nobreza Que à toa fica vermelho
Além da moça ser rica Sou igual um puro sangue
Dona de grande beleza Que não deita com arreio
Ele disse assim pra ela

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Prefiro morrer de pé
Do que viver de joelhos
Foucault (2012) o discurso é algo inteiramente
diferente do lugar em que os objetos são
(CARREIRO & PARDINHO, faixa 04, instaurados. Se o discurso é um conjunto de
1972) atos de formulação, constituído de modalidades
particulares de existência, as palavras e as
condutas do boiadeiro estão regularizadas pelos
Esse olhar regressivo como conjuntura
atos formulados em uma sociedade cujo papel
enunciadora, estabelece entre outros recursos
do homem é exercer domínio sobre a mulher. A
textuais, a transmissão de uma história da
letra é de uma canção da década de 70, foi
palavra do boiadeiro, colocada na arena dos
gravada, atendeu as exigências do mercado
discursos como personificação de determinados
fonográfico, e foi possível atender aos atos de
papéis onde se inscreve o sujeito.
sua formulação enquanto modalidade
Os elementos constituintes do texto constituidora do discurso.
apontam apenas a protagonização do boiadeiro:
No campo discursivo, a ausência da
"nasceu no sertão"; "não pensava em
palavra por parte da mulher, descreve o nível
casamento" e "caiu no laço". Neste último
enunciativo do lugar em que e ela deve ocupar
exemplo, indício que fora vítima de uma relação
no discurso: o da submissão. Não atendendo a
amorosa com uma moça rica filha de seu
palavra do seu marido, é castigada por ele,
patrão.
levada ao barbeiro, obrigando-o a deixá-la
A marcação "nasceu no sertão" serve ao careca e depois, a expõe em praça pública,
texto como uma arguição do senso comum a como castigo. O corpo da mulher encontra-se
respeito do sujeito caipira. Desta forma, nascer imerso num campo político, o do lugar
no sertão, remete à ideia, de lugar distante, discursivo ocupado pela mulher enquanto
isolado, sem acesso à civilidade. Cândido membro de uma relação matrimonial.
(2010) na obra Os parceiros do rio bonito, ao
Ser boiadeiro, ter nascido no sertão, ter
apontar a formação do caipira, atribui aos
caído no "laço da rosa", imputou ao sujeito
cronistas do Brasil Colônia, endossado por
boiadeiro, certos signos, estabelecendo-se como
Lobato, a visão caricaturesca e segregada do
uma estratégia de sujeição, condições
caipira. Assim, circunscrito nas condições de ter
discursivas à produção da violência. O manejo
nascido no sertão, o boiadeiro não tinha
de suas forças foi necessário porque não foi
condições de ter outra atitude diante da
capaz de submeter ou docilizar o corpo da
"transgressão" da mulher. Por isso, leva à cabo
mulher. Esse manejo da violência constitui uma
sua palavra, de dissolver-se do casamento e
tecnologia do corpo, que não se localiza em um
executar a "surpresa", a qual enunciou em tom
tipo definido de instituição nem no aparato do
ameaçador, caso a mulher cortasse o cabelo.
estado, trata-se de uma microfísica do poder,
A palavra do boiadeiro não é somente que pode ser pensado como uma propriedade,
sua, está atravessada por muitos já ditos, que o com técnicas e táticas de poder em
antecederam. Ela demarca um instante de funcionamento.
especificação constituída e armada por objetos
Na perspectiva ontológica acerca do
do discurso instauradas anteriormente. Para
trágico, foi necessário o sofrimento da mulher

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para operar uma subjetividade do sujeito figura caipira que se cristalizou com a imagem
enunciado. O triunfo do boiadeiro e a ruína da do Jeca, é o sujeito submerso nas verdades
mulher representam o lado terrível do coletivas, regidas pela religião, pelo estado,
sofrimento da vida. Para Schopenhauer (2001) pelas práticas cotidianas que lhes impõem
a vontade e a representação, funcionam como escolhas, perigos, coação e se travestem de
cumprimento de resignação perante a ideia de conforto existencial.
aniquilação do ser. Isto equivale dizer que o
boiadeiro, ao estar e cumprir com a sua palavra,
usa a violência, é instrumentalizado na ação Referências
trágica - uso da violência a fim de resignar-se,
ou não aceitar a ideia de não ter poder sobre a) de livro
sua esposa.
BRUM, J. T. O pessimismo e suas vontades:
Acionamos também as noções de
Schopenhauer e Nietzsche. Rio de Janeiro:
Nietzsche a respeito do homem, que habita
Rocco, 1998.
uma "lugar incompreensível" dotado de
grandeza e miséria. A atitude da mulher cortar CANDIDO, A. Os Parceiros do Rio Bonito:
o cabelo, é o impulso dionisíaco, o lado mais estudo sobre o caipira paulista e a
sofisticado do homem, é a libertação, a transformação dos seus meios de vida. 11ª ed.,
destruição da barreiras irracionais, um encontro Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2010.
com o próprio eu. O efeito trágico de sua EAGLETON, T. Doce violência: a ideia do
atitude, ainda inscreve a existência como trágico. Tra. Alzira Allegro. São Paulo: Editora
potência indestrutível de si. Resta ao boiadeiro Unesp, 2013.
o consolo metafísico que só foi possível
alcançá-lo pelo exercício da violência. FERNANDES, C. A. Discurso e sujeito em
Michel Foucault. São Paulo: Intermeios, 2012.
4. Considerações finais
FOUCAULT, M. A arqueologia do saber.
Pensamos que a pesquisa sobre o Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. 8ª ed., Rio de
contexto sócio-histórico da moda de viola e sua
Janeiro: Forense Universitária, 2012.
relação com o trágico enquanto reflexão
ontológica, colocada à disposição da análise do _____. Os anormais: curso no Collège de
discurso, possibilitou-nos algumas ponderações: France (1974-1975). Trad. Eduardo Brandão.
i) a moda de viola não é uma expressão musical São Paulo: Martins Fontes, 2010.
tipicamente rural; ii) suas letras veiculam MACHADO, R. O nascimento do trágico: de
discursos que reforçam estereótipos de gêneros, Schiller a Nietzsche. Rio de Janeiro: Jorge
como a sujeição do feminino ao masculino; iii) Zahar, 2006.
o indivíduo em sujeito nas letras é colocado em
segundo plano, para dar passagem ao trágico NEPOMUCEMO, R. Música Caipira: da roça
como excelência moralizadora e reguladora ao rodeio. São Paulo: Editora 34, 1999.
funcionando no interior dos discursos; iv) o NIETZSCHE, F. W. A origem da tragédia.
sujeito constituído no discurso trágico da moda Trad. Joaquim José de Faria. 5ª ed. São Paulo:
de viola não é um extrato caricaturesco da Centauro, 2004.

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68
SANT’ANNA, R. A Moda é Viola: ensaio do
cantar caipira. 2ª ed.; São Paulo: Arte e Ciência,
2009.
SCHOPENHAUER, A. O mundo como
vontade e representação. Trad. M. F. Sá
Correia. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001.
SZONDI, P. Ensaio sobre o trágico. Trad.
Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2004.

b) fonográficas
Goiano & Paranaense. Minha vida minha luz.
CD W 932.832, Rio de Janeiro: Unimar Music,
2003. Faixas 02 e 13.
Tião Carreiro e Pardinho. Hoje eu não posso ir.
LP CH8006, São Paulo: Chantecler, 1972.
Faixa 04.
Zico e Zeca. [S.I] Disco CH-10276 (78
rotações), São Paulo, Chantecler, 1962. Lado
B.

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69
ENTRE BENDITOS E “MAUDITOS”: O SAGRADO E O
PROFANO DISCURSIVIZADOS NO CORDEL “PADRE CÍCERO
E A VAMPIRA”, DE FANKA SANTOS

Manoel Sebastião ALVES FILHO; Claudia Rejanne Pinheiro GRANGEIRO


Universidade Regional do Cariri (URCA)
manoel.filho2@hotmail.com; claudiarejannep@yahoo.com.br

Resumo: O folheto “Padre Cícero e a Vampira” faz parte do catálogo de produções da


Sociedade dos Cordelistas “Mauditos”, movimento de jovens poetas que surgiu nos anos
2000 problematizando os discursos construídos pela historiografia oficial acerca da
formação do país. No folheto da poetisa Fanka Santos, o Padre Cícero, ícone da
religiosidade popular brasileira, é colocado em relação a uma personagem tida como
“profana” pelo discurso religioso: uma vampira. Tomando como referenciais teóricos
autores como Foucault (2002), Pêcheux (1997) e Deleuze (1995), o trabalho pretende
compreender as relações (inter) discursivas entre o sagrado e o profano e como essas
relações interferem na construção do sujeito Padre Cícero, aqui semantizado de forma
mais humana, menos santificada.
Palavras-chave: discurso; sujeito; padre cícero e a vampira; fanka santos.

de certos discursos através do tempo e a sua


Introdução
hegemonia, amparados por instituições que
O Padre Cícero foi e é uma das figuras representavam e/ou representam certos status
mais discursivizadas de todo o nordeste quo hegemônicos, com seus respectivos lugares
brasileiro. Há a imagem do padre, do político, de fala. Neste sentido, nosso trabalho discorre
do ambientalista, do santo popular, dos sobre a dicotomia do sagrado e do profano, e o
autointitulados de milagres, do altruísta etc. que a leva a ser associada a determinadas
Pensar a memória desta personagem e a sua figuras: o homem, santo, íntegro, porta voz
inserção no folheto de Fanka Santos é levar em divino; a mulher, profana, sexualizada, criatura
conta estas construções, é “escavar” uma série das “trevas”, abissal. Pretendemos, ainda,
de interdiscursos, analisando os processos procurar entender a intricada relação entre esses
através dos quais os sujeitos são levados a processos de construção dessas “verdades”,
ocupar posições no jogo das representações analisando, para tanto, a construção discursiva
sociais e as lutas travadas pelo reconhecimento dos sujeitos que se movimentam entre elas,
destas. Procuramos observar o estabelecimento atravessados por múltiplos discursos.

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grosso modo, compartilhariam uma relação de
1. O movimento “Maudito”
identificação: como povo oprimido ou como
O folheto “Padre Cícero e a Vampira”, povo opressor. “Tais visões questionam os
da poetisa Fanka Santos, faz parte do catálogo discursos nacionalistas sob a perspectiva das
de produções da Sociedade dos Cordelistas identidades diaspóricas, baseadas nas diferenças
“Mauditos”, movimento de jovens poetas que de classe social, gênero ou sexo”
surgiu nos anos 2000, na ocasião das (SHOHAT;STAM, 2006, p. 407). A coleção
(des)comemorações dos quinhentos anos da “agora são outros quinhentos”, com doze
chegada dos portugueses ao Brasil. A primeira cordéis, inaugurou a produção dos poetas como
produção do grupo foi caracterizada por uma grupo constituído. A própria materialização
série de cordéis que problematizavam, com nesse suporte elencava uma série de discussões
muitas figuras de linguagem, humor e ironia, os a respeito do cânone literário.
discursos construídos pela historiografia oficial
O folheto de cordel foi e é uma grande
acerca da construção do país. Nesse período,
manifestação cultural nordestina, e um dos
em todo o continente americano e paralelo às
projetos tipográficos mais ousados do Brasil. O
comemorações oficiais nacionais, uma série de
Cariri cearense representa um dos grandes
manifestações de contra-imagem da visão
focos de atividade. Estabelecer uma análise do
eurocêntrica ganharam forma. A Sociedade
folheto de cordel brasileiro é considerar
“maudita” inseria-se, pois, nesse contexto.
diversos aspectos de sua produção: o contexto
Essas manifestações compartilhavam de uma
em que foi criado, os mecanismos de fabricação
perspectiva que começou a se desenvolver no
e distribuição, e sua raiz marcadamente oral.
Brasil desde o início do século passado, como
Muitos estudos já foram feitos sobre o folheto,
por exemplo com o movimento antropofágico
mas não há uma definição homogênea entre os
dos modernistas, e transcorreu nas décadas
pesquisadores. Podemos citar como um dos
seguintes também no cinema, com Grande
primeiros estudiosos dessa literatura o Silvio
Otelo como Macunaíma, ou o movimento de
Romero. Sua definição do folheto brasileiro se
“estética da fome” e os filmes críticos do
baseou no pensamento de que a cultura
Glauber Rocha. Esse pensamento buscava
nordestina teria herdado esse processo tal qual
descontruir e/ou pelo menos problematizar a
um fenômeno que, na verdade, compartilha
produção dos discursos hegemônicos do
algumas características semelhantes, em
continente europeu em relação ao período
Portugal. Visão esta bastante eurocêntrica.
colonial, e como a elite nacional
Inclusive o termo “cordel”, que se refere ao
branca/europeizada se apropriara
folheto português, pois lá eles eram pendurados
convenientemente de certos aspectos destes
em cordas, foi transferido pelos pesquisadores
discursos para legitimar a própria história
para designar o nosso próprio fenômeno
nacional, ao mesmo tempo em que olhava para
cultural, que não comunga dessa característica
os povos silenciados nesse processo de
em particular. Apregoou também a morte do
constituição do país, como os indígenas e os
folheto, como uma tradição que acaba aos
afro-brasileiros. Os “Mauditos” procuraram
poucos, pois para os pesquisadores daquela
ainda criticar as relações desiguais estabelecidas
época ela só era autêntica se preenchesse certos
no seio dos próprios povos envolvidos que,

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requisitos: popular, espontânea, de povo
O movimento de “valorização da cultura
analfabeto, natural, como salienta os estudos
brasileira” do Estado Novo e com ele a
críticos de Santos (2011) e Lemaire (2010).
necessidade de se construir uma literatura das
Hoje sabemos que isso não se confirmou, e o
“raízes populares da nação brasileira” também
folheto de cordel não perdeu sua força, a
incentivou estudos sobre o folheto de cordel. É
exemplo do próprio movimento “maudito”,
a vez da Casa de Rui Barbosa. No Rio de
podendo ser encontrado até mesmo no
Janeiro, os teóricos escrevem sobre a cultura
ciberespaço: o blog Cordelirando, da poetisa
nordestina. Também na segunda metade do
Salete Maria, é um desses exemplos. O próprio
século XX, o francês Raymond Cantel viajou
nome do grupo, cuja palavra é escrita com ‘u’,
bastante pelo nordeste e se interessou pelo
traz a tona esses discursos. Como o grupo era
cordel, se tornando um dos maiores
constituído em sua maioria por jovens
pesquisadores sobre o tema. A cidade de
universitários, e portanto letrados, seus cordéis
Poitiers tem hoje o Fundo Raymond Cantel,
não eram considerados, muitas vezes, autêntica
referência mundial nos estudos sobre o folheto.
expressão desse gênero literário. Isso ocorria
Os estudos produzidos na atualidade, dos quais
entre os próprios cordelistas tradicionais. O
comungamos e participamos em certos
termo “maudito”, escrito propositalmente com
aspectos, tendem a enxergar o folheto através
desvio da norma padrão da língua, foi uma
de várias óticas: a expressão de um povo que
antropofagia do movimento em relação a esses
desenvolveu uma rica produção oral, e, se
valores de que o cordelista autêntico é um
apropriando dos mecanismos de produção da
homem simples, de poesia espontânea, e que
elite para o suporte papel, também faz a sua
para isso tem de escrever fora dos padrões
literatura; expressão cultural multimodal, pois
estabelecidos pela gramática, como salienta
não é feito para ser lido, mas declamado,
Manoel Digues Júnior em uma carta à
gestualizado; produção histórica, educacional,
Veríssimo de Melo:
visual, literária e artística; produzida não apenas
Realmente, está surgindo uma literatura de por homens, mas por mulheres poetisas;
cordel que podemos chamar “para- produção que se relaciona com muitas outras
folclórica”. É o que tem sucedido, da mesma tais como filmes, novelas, história, ensino e
forma, com danças e cantos, através de literaturas, ressignificando-as. Nesse sentido,
grupos de pessoas alfabetizadas, dançando e concebemos, pois, o cordel, como expressão
cantando Pastoril, Reisado, etc [...] Já sabia cultural inserida nas poéticas da oralidade que,
do aparecimento desse tipo de literatura de em sua forma escrita, apresenta, geralmente,
cordel, que é elaborada por poetas não duas formas de semiotização: a poesia escrita e
populares, antes alfabetizados, e a xilogravura, ambas provenientes de um
consequentemente sem a espontaneidade e a complexo e intricado jogo de determinações
naturalidade que encontramos nos
sócio-históricas, do qual participam diversos
autênticos autores populares. Creio, pois,
sujeitos sociais: produtores, editores, leitores,
que a definição sua e do Cantel atende ao
requisito básico para se considerar como ouvintes e em alguns casos, a pessoa ou
literatura de cordel: ser popular (DIEGUES instituição que encomenda o folheto.
JR. apud SANTOS, 2011, p.107). (GRANGEIRO, 2012).

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humana, sujeita às “artimanhas do diabo.” No
Nesse ritmo de crítica a certos discursos
início do período medieval, palco de ferozes
estabelecidos, a figura do Padre Cícero entra
batalhas pelo jogo das representações sociais e
em cena. Nascido no Crato, em 1844, Cícero
legitimidade no campo do discurso da
Romão Batista foi um padre caririense que
religiosidade no continente europeu, as
incidiu de forma decisiva na construção das
tradições pagãs, quando não conseguiam ser
diversas faces da cidade de Juazeiro do Norte,
cooptadas pelo cristianismo, eram severamente
no Ceará, como espaço simbólico. Foi seu
hostilizadas, cuja punição incidia no suplício do
primeiro prefeito. A imagem que se construiu
corpo e na espetacularização da pena, para que
ao redor de sua figura alicerçou um dos maiores
servisse de exemplo aos que seguissem o
fenômenos da religiosidade popular em todo o
mesmo caminho. A mulher pagã, uma terceira
Brasil.
vez, é a mais afetada, de modo que suas
O folheto de Fanka Santos foi um dos práticas e atividades culturais eram associadas à
primeiros a iniciar um ciclo de desconstrução da bruxaria, magia e figuras malignas para a
imagem santificada do Padre Cícero no mitologia da nova ordem religiosa. Essas
movimento cordelista em geral. Nele palavras, apesar de possuírem hoje uma
encontramos um padre mais humanizado, polissemia com designações mais positivas, em
desarmado, sujeito aos desejos carnais da parte graças à literatura e ao cinema, possuíam
vampira, figura feminina “maudita” para o uma carga semântica muito negativa para a
discurso religioso. Em socorro de um fiel que época, pejorativa e de deslegitimação. A
entra às pressas na igreja, Padre Cícero se curandeira da vila era, assim, a bruxa; a
encontra com uma vampira, hipersexualizada, e camponesa que comemorava o solstício e
inicia uma peleja com ela. agradecia à mãe natureza (deusa feminina) pela
A crença em criaturas malignas é tão colheita do ano era a maga, impura e associada
antiga quanto qualquer civilização, mas a ao maligno, a Satã.
terminologia vampiro (vampire no francês, No decorrer dos séculos, e com isso a
vampir em alemão) só se popularizou há dois apropriação de alguns elementos da cultura
séculos, e foi cooptada pelo folclore, depois popular pelos eruditos, o surgimento do
pela literatura, cinema, telenovelas, jogos etc. folclore, do romance moderno, e por último das
Esse imaginário foi muito difundido pela cultura indústrias do cinema e dos jogos, esse
popular. Porém, o paganismo, e, sobretudo, a imaginário começa a ganhar uma nova
figura da mulher, foram uma das mais afetadas semantização. Ele não é mais uma criatura
nesse processo. demoníaca, mas é humanizado; não age mais
Uma das imagens associadas à figura da pelo impulso feroz de saciar a sua sede, mas se
mulher, já na antiguidade, era a de receptáculo questiona sobre sua condição e existencialismo;
de volúpia e causa da paixão desenfreada, não tem aversão aos humanos, e pode até
perigosa, que alucina o homem. Com o mesmo ajudá-los em algumas situações; por
surgimento do cristianismo e de seu mito último e mais importante para nossa análise,
criador da humanidade, a mulher é mais uma seduz não mais para matar sua vítima e
vez desqualificada, culpada pela condição desgraçá-la, mas para se aproveitar do seu

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corpo, estimular a sua libido e proporcionar a afetamos e somos afetados pelos discursos, ao
experiência dos prazeres sexuais, da paixão. E a tempo em que criamos complexas estruturas de
“vítima”, agora, ao tempo em que reconhece o socialização, e através disso complexas relações
poder sobre-humano da criatura, não vê nela o de valores/verdades. Comunicar é agir sobre o
manto da morte, mas se deixa envolver outro, sobre a ação do outro, e constitui um
sofregamente, em um intricado jogo de dos três tipos de relação, juntamente com a
sedução. Essa subjetivação moderna passou a ação dos corpos e a dominação dos meios de
ser associada à figura masculina do vampiro, em coação, imbricadas umas nas outras, em que se
relação à feminina da vítima. No folheto, exerce o poder. A constituição do sujeito
porém, encontramos essa desconstrução de discursivo, portanto, perpassa esses processos
valores e uma polissemia cronológica bastante discursivos que o cercam, o envolvem, e o
fluida, misturando concepções tanto do permeiam:
presente como do passado. Padre Cícero caiu,
portanto, segundo o folheto, na intricada teia Pareceu-me que, enquanto o sujeito humano
dessas discursividades. é colocado em relações de produção e de
significação, é igualmente colocado em
2. Sujeito, discurso e interdiscurso relações de poder muito complexas [...] e
Foucault (1995) trabalha a questão da que a linguística e a semiótica ofereceriam
instrumentos para estudar as relações de
constituição do sujeito através de três modos de
significação. [...] Há dois significados para
objetivação: o sujeito discursivo, sob a égide
a palavra sujeito: sujeito a alguém pelo
das ciências da linguagem; o sujeito produtivo, controle e dependência, e preso à sua
ativo na economia, e que portanto envolve a própria identidade por uma consciência ou
análise das riquezas; e, por último, o sujeito autoconhecimento. Ambos sugerem uma
como simples fato de estar vivo na história forma de poder que subjuga e torna sujeito a
natural, envolvendo estudos de biologia etc. (FOUCAULT, 1995, p.232-235).
Iremos nos ater, no entanto, ao sujeito
discursivo, e como os discursos o constituem Deleuze e Guattari dizem ainda que “os
como tal. A linguagem, e através dela as fios da marionete, considerados como rizoma
relações de comunicação, deu ao homem a ou multiplicidade, não remetem à vontade
capacidade de compreender o mundo e aquilo suposta una de um artista ou de um operador,
que o cerca. E, a partir disso, de transmitir mas à multiplicidade das fibras nervosas que
essas informações, já carregadas de processos formam por sua vez uma outra marionete
de significação, aos seus descendentes. No seguindo outras dimensões conectadas às
momento em que nascemos, e que nos é dado primeiras” (DELEUZE;GUATTARI, 1995. p.
um nome, uma série de discursos, virtuais, mas 16). Entendemos, pois, o sujeito como um
que faz parte das relações de instrumentalização prisma que, como na experiência físico-
de saberes e poderes, e do estabelecimento das química, é trespassado por uma enxurrada de
sociedades humanas, incidem sobre nossa enunciados, luz branca que guarda em si todas
percepção de mundo e a forma como o as outras cores, refletindo e refratando para
enxergamos. É a partir dessa formação, fora de si alguns desses elementos. Ou seja, o
também, que interagimos, questionamos, sujeito é constituído, mas a filosofia até o

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de mostrar, por meio de exemplos precisos,
século XIX quis apresentá-lo como que, analisando os próprios discursos,
constituinte, como um cogito de tipo vemos se desfazerem os laços aparentemente
cartesiano, um sujeito agenciador, senhor dos tão fortes entre as palavras e as coisas, e
seus atos. Contrariamente, para Foucault, o destacar-se um conjunto de regras, próprias
sujeito foi sendo constituído por longos, árduos da prática discursiva. [...] Certamente os
e conflituosos acontecimentos discursivos, discursos são feitos de signos; mas o que
epistêmicos e práticos. O primeiro efeito da fazem é mais que utilizar esses signos para
abordagem foucaultiana é, pois, o de designar coisas. É esse mais que os torna
desapossar o sujeito do papel central que lhe irredutíveis à língua e ao ato da fala. É esse
era atribuído na tradição cartesiana. São, mais que é preciso fazer aparecer e que é
inversamente, os enunciados que se impõem a preciso descrever (FOUCAULT, 2002,
ele em função das diferentes posições que p.56).
ocupa. É só a partir da exposição a esses
discursos que o sujeito se constitui e se insere Sobre o conceito de interdiscurso, trata-
no complexo processo das relações discursivas, se da relação entre um discurso com outros, aos
como atuante e atuado, guerreiro no campo de quais recorre para acontecer, transformando-os,
batalha dos saberes/dizeres/poderes. ressignificando-os e produzindo outros
sentidos. Neste âmbito, podemos citar as
Ainda para esses intelectuais, o discurso
fundamentais contribuições de Pêcheux (1997),
é entendido como resultado de uma
para quem:
multiplicidade de outros discursos, afetado pelo
contexto, remissões a outros textos, outros [...] o interdiscurso enquanto discurso-
dizeres. Foucault o chamará de “nó em uma transverso atravessa e põe em conexão entre
rede”; Deleuze e Guattari, recorrendo à si os elementos discursivos constituídos pelo
nomenclatura da botânica, o chamarão de interdiscurso enquanto pré-construído, que
“rizoma”, cada qual com suas particularidades. fornece, por assim dizer, a matéria prima na
Quando produzimos um discurso uma voz qual o sujeito se constitui como sujeito
anônima, portanto, nos precede, fala por nós, falante (PÊCHEUX, 1997, p.167).
fala conosco, conectadas por fios espectrais de
multiplicidades, de coletivos, que se Neste sentido, nossa metodologia se
reproduzem e se transformam. Assim, para organiza em acessar esses discursos que se
Foucault, os discursos, ao tempo em que dizem/são ditos no folheto ‘Padre Cícero e a
constituem uma raridade, são reproduzidos. E Vampira’, em procurá-los, “escavá-los”, no
são eles, seu modo de produção, seus ‘lugares sentido foucaultiano, a fim de compreender suas
de fala’ e ‘as condições de produção’ em que se nuances, seus mecanismos, e como eles foram
perpetuam o objeto de interesse da Análise do possíveis, bem como os aspectos
Discurso: interdiscursivos e a forma como esses
elementos constituem os sujeitos na obra em
O discurso não é uma estreita superfície de questão.
contato, ou de confronto, entre uma
realidade e uma língua, o intrincamento
entre um léxico e uma experiência; gostaria

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3. A peleja poética entre Padre Cícero e a Todos eles compartilham o fato de:
vampira ou a fluidez entre o “sagrado” e o desconstruírem a figura maléfica do vampiro, de
“profano”. forma a discursivizá-lo de maneira mais
humanizada que, típico dos personagens do
‘Padre Cícero e a vampira’ é um texto
romance moderno, está em constante conflito
prenhe em interdiscursividades, e que dialoga
interno sobre sua condição; erotizar a relação
com diversas outras produções discursivas:
do vampiro e sua vítima, em que a segunda se e
desde a xilogravura da capa, que por si só já
entrega à primeira, se deixa seduzir, independe
traz várias referências, às músicas, livros e
do que aconteça, como na letra de Doce
filmes que discursivizaram a figura do vampiro
Vampiro:
em determinados momentos da história. O
encontro entre as personagens, cada qual, a Venha me beijar/meu doce vampiro/ou,
princípio, representando uma série de discursos ou/na luz do luar/ãh, ãh/venha sugar o
associados ao sagrado e ao profano, se dá por calor/de dentro do meu sangue vermelho/tão
conta de um fiel que, havendo visto a vampira, vivo tão eterno, veneno/que mata sua
pede socorro ao Padre. Amaldiçoado pela sede/que me bebe quente/como um
aparição, de cuja sina “nem mesmo Lampião lhe licor/brindando a morte e fazendo amor/meu
podia socorrer” (SANTOS, 2012, p. 7), doce vampiro.1
bandido sertanejo cujo bando alcançou grande
fama e ficou conhecido como um foco de Padre Cícero se depara, assim, com a
resistência ao status quo reinante, ele termina o vampira, cuja descrição e a xilogravura original
seu relato e acaba morrendo. Já despachado o de Antônio Celestino desenham-na
finado, um morcego surge no telhado da igreja hipersexualizada. Ela, nua e virada de costas, de
e se metamorfoseia na vampira. A história, tão modo que suas nádegas e pernas ganham
repercutida, chamou a atenção de vários ênfase, e cujos caninos estão à mostra,
músicos, escritores e artistas que em seus banhados em sangue, toca o ombro do Padre;
trabalhos envolviam a figura do vampiro. Desde ele, paralisado e perturbado com essa figura e
Anne Rice, que escreveu Entrevista com o performance inesperadas, arregala os olhos sem
Vampiro, à Rita Lee, com sua música Doce pronta reação.
Vampiro, ou Dalton Trevisan, com seu livro de
contos O Vampiro de Curitiba. Vieram todos A vampira toda em cima
presenciar o caso: Com os peitos de amostra
Ela tinha era uma irmã
Rita Lee veio também Que ninguém ficava brocha
Trevisan chegou na hora Padim Ciço arrepiado
Zé pretinho e Jorge bem Nunca esteve tão piado
Anne Rice, lá de fora Parecia uma rocha!
Cada um no seu papel (Ibid, p.15, 3e).
Registraram o painel
Que lhes conto bem agora
(SANTOS, 2012, p.14, 3e).
1
Retirado do site Letras. Acesso em 20/08/2015.

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76
O Padre, recobrando os sentidos, após O padrinho quando leu
contato inicial com a vampira, lança mão do Disse com convicção:
discurso religioso para combatê-la: ‘Esse livro é ateu
Não aceito a condição’
O padim se arretou (Ibid, p.18, 3e).
E olhou pra criatura
‘Se o duelo começou
Vou honrar minha cultura A vampira, representada como profana,
Vou tirar alguma reza é discursivizada com elementos que rompem
Ela vale quando pesa, com a ordem e condutas religiosas:
É sagrada a escritura
(Ibid, p.17, 1e). A vampira alcoolizada
De pitu com catuaba
Foi dizendo: ‘Na fuzaca
Religiosidade e cultura, aqui, aparecem Eu só quero lambuzada
como sinônimos. A instituição cristã, muito Com a pinga sertaneja
além de popularizar a crença em Cristo, produz Ou quiça com a cerveja
uma série de mudanças nas estruturas Que eu tomo endiabrada
socioculturais dos povos influenciados, bem (Ibid, p.27, 2e).
como estabelece um conjunto de novas práticas
discursivas e de novos valores/verdades. Ao Pitu é uma cachaça regional, produzida
tempo em que constitui um ‘lugar de fala’ inicialmente em Pernambuco, e que possui um
privilegiado, e uma ‘vontade de verdade’ que teor alcoólico de mais de 40%. A catuaba
legitima e oficializa discursos, silencia outras também é uma bebida regional, produzida de
vozes, como as das culturas chamadas de plantas que popularmente levaram esse nome, a
pagãs: pois não só possui o poder de falar sobre qual se atribuem propriedades afrodisíacas,
si, mas o de falar pelo outro. O catolicismo remetendo à libido e ao sexo. A palavra
promoveu, inclusive, uma vasta ressignificação endiabrada significa enfurecido, danado, com o
de elementos associados ao paganismo, quando satanás no corpo, menção ao anjo caído da
não conseguiu exterminá-los. A menção à mitologia cristã, senhor dos infernos e principal
escritura, ou os textos sagrados, também inimigo de Deus, na contramão de todas as
remete a essa ordem do discurso religioso- virtudes celestes.
cristão, legitima alguns discursos, e os põe na
égide do sagrado, em detrimento de outros, que É, no entanto, com o desenrolar da
são associados ao profano. peleja que podemos perceber a constituição dos
sujeitos e a fluidez que permeia a relação entre
Quando Anne Rice, especialista em o sagrado e o profano. A vampira,
vampiros, procura ajudar ao padre com o seu carnavalizada, que bebe cachaça, que ri, que
livro a uma solução prática para derrotar a dança, comportamentos que, desde a Idade
vampira, Padre Cícero retruca, deslegitimando Média, foram caracterizados como profanos,
seu discurso por estar fora da ordem discursiva marginalizados da ordem religiosa, cuja conduta
religiosa: requeria o silêncio, a reclusão, e, além de tudo,

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77
Por ter praia e beleza
a seriedade, também se mostra afetada pelo Lhe faria renascer!!!
discurso religioso, quando escuta o hino do (Ibid, p.33, 2e).
Reisado, uma dança de origem ibérica, com
traços da cultura negra, uma das mais fortes
Figura 1. Edição francesa do folheto Padre
expressões da cultura popular caririense, eivado Cícero e a vampira
de simbologias religiosas:

A vampira achou bonito


E dançou com devoção
Relatando que o bendito
Tinha muita inovação
Tinha coisa de magia
Toda aquela poesia
Produzida no sertão
(Ibid, p.28, 2e).

O Padre Cícero, discursivizado como


santo, cuja conduta deveria ser condizente com
a ordem do discurso religioso, também se deixa
afetar pelo “profano”, quando se vê induzido
pela vampira, desejoso de um envolvimento
amoroso, carnal, práticas proibidas aos
sacerdotes da Igreja Católica. Quando a
criatura vai embora, o Padre não esquece
aquele encontro e a mantém em sua memória,
recorrendo à psicanálise, e mesmo viajar para a
capital: 4. Considerações finais
A partir da produção dos “Mauditos” e
Já ouvi alguém dizer
Que o padim fez terapia
do folheto “Padre Cícero e a Vampira” é
Que leu Freud pra valer possível perceber uma série de
Pra sair dessa agonia interdiscursividades. Escolhemos por mostrar
Mas até a sua morte como a relação entre o sagrado e o profano foi
Mesmo ele sendo forte (re)significada através do tempo, sua fluidez e
Ele nunca a esquecia como esse discurso foi associado à
(Ibid, p.32, 2e). determinadas imagens, perpassando pelas
instituições e seus lugares de fala. Nossas
reflexões, ainda iniciais, não tem a intenção de
Viajar pra capital apresentar respostas nem soluções prontas, mas
Procurar espairecer
de problematizar uma série de assuntos que
Pois estava anormal
julgamos importantes para o campo da Análise
Precisava esquecer
E quem sabe Fortaleza do Discurso, em sua interface com os estudos

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

78
literários, e com a própria historiografia.
SANTOS, F. P. Água da mesma onda: a peleja
Delimitamos a nossa análise por questão de
poética epistolar entre a poetisa Bastinha e o
espaço, mas é certo que muitas outras leituras
poeta Patativa do Assaré. Fortaleza: Tipografia
podem ser feitas, e os folhetos “mauditos” ainda
Iris, 2011.
tem muito a nos dizer sobre a nossa história,
sobre diversos discursos que foram silenciados, ______. Padre Cícero e a Vampira. Fortaleza:
mas que, esperando o momento propicio, Editora IMEPH, 2012.
irrompem entre nós novamente, através deles. SHOHAT, E.; STAM, R. Crítica da imagem
eurocêntrica. São Paulo: Cosac Naify, 2006.
Referências
DELEUZE,G.;GUATTARI,F. Mil Platôs:
capitalismo e esquizofrenia, vol 1. 1. ed. Rio de
Janeiro: Ed. 34, 1995.
FOUCAULT, M. A ordem do discurso. 6 ed.
São Paulo: Edições Loyola, 1996.
______. A Arqueologia do saber. 6 ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2002.
______. O sujeito e o poder. In: DREYFUS, H;
RABINOW, P. (orgs). Michel Foucault: uma
trajetória filosófica: para além do
estruturalismo e hermenêutica. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1995.
GRANGEIRO, C. R. P. Considerações iniciais
para uma nova teorização sobre o cordel. In:
QUEIROZ, A. Arte e pensamento: a reinvenção
do Nordeste. Vol 2. Fortaleza: SESC-CE,
2012.
LEE, R. Doce Vampiro. Disponível em:
<http://letras.mus.br/rita-lee/22416/>. Acesso
em: 20/08/2015.
LEMAIRE, R. Pensar o suporte – Resgatar o
patrimônio. In: MENDES, S. (org). Cordel nas
Gerais: oralidade mídia e produção de sentido.
Fortaleza: Expressão Gráfica Editora, 2010.
PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma
crítica à afirmação do óbvio. Campinas: Ed.
Unicamp, 1997.

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

79
FORMAS DISCURSIVAS DE RESISTÊNCIA: EFEITOS DE
CONTRAIDENTIDADE NO DISCURSO DA TERCEIRIZAÇÃO

Maria Virgínia Borges AMARAL


Universidade Federal de Alagoas (UFAL)
mvirginia39@gmail.com

Resumo: Este artigo apresenta uma análise do discurso da terceirização do trabalho que
tramita nas esferas deliberativas governamentais e nos movimentos de resistência dos
trabalhadores e empresários brasileiros. Pretende-se mostrar que no confronto de
interesses do discurso desses dois protagonistas da história do capitalismo ocorre um
movimento de contraidentificação, caracterizando o processo ideológico da não
coincidência dos sujeitos envolvidos nos discursos. A não coincidência do dizer aparece
nos discurso sob o efeito da luta de classes e se rompe, fazendo emergir efeitos
imaginários de contestação da coincidência, implicando a desidentificação dos sujeitos
das classes em conflito.
Palavras-chave: discurso da terceirização, formas de resistência, processo ideológico,
desidentificação do sujeito.

coincidência que aparece sob o efeito da luta


Introdução
de classes se rompe, e emerge dos efeitos
Neste estudo apresenta-se uma análise imaginários de contestação a coincidência do
do discurso da terceirização formulado pelos dizer, implicando a desidentificação do sujeito,
detentores dos meios de produção, fazendo-se uma modalidade ideológica identificada por
acreditar como uma proposta positiva que Pêcheux (2015), à qual recorro para demonstrar
beneficia as duas classes fundamentais do a posição dos sujeitos/Sujeitos (sujeito porta-
capitalismo – os capitalistas e os trabalhadores. voz, ou sujeito de direito – o trabalhador, o
Pretende-se mostrar que no confronto empresário. Sujeito ideológico ou Sujeito
de interesses do discurso desses dois Universal – o Capital)
protagonistas da história do capitalismo ocorre 1. Abordagem teórica e metodológica
um movimento de contraidentificação,
A teoria revolucionária da Análise do
caracterizando o processo ideológico da não
Discurso explicita um conhecimento necessário
coincidência dos sujeitos em confronto. Nos
e profundo acerca da sociedade e uma tomada
discursos que se conflitam em torno da
de consciência do analista de que a condição
proposta de terceirização do trabalho, a não
fundamental para essa teoria é não abrir mão da

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sujeito está associado a um organismo em
luta ideológica de classe; história e luta de desenvolvimento em um meio, exposto às
classe dão o suporte teórico-metodológico para eventualidades desse desenvolvimento e às
uma abordagem materialista/revolucionária do más formações, perturbações e
discurso. Um dos princípios fundamentais do traumatismos de todas as ordens suscetíveis
materialismo histórico é saber que não é a de afetá-lo) e, de outro, pelas limitações
consciência que determina o mundo, mas o sociológicas (portanto, a série de limitações
mundo que determina a consciência (MARX, ligadas ao fato de que esse sujeito só pode
1986). Isto vale para a teoria revolucionária da viver em sociedade, ou seja, em cooperação-
Análise do Discurso: não é o discurso que confrontação com o conjunto de seus
constrói o mundo. O discurso é produzido na congêneres, sujeitos-estrategistas, eles
relação do sujeito com o mundo. O discurso é também, não cessando, por isso mesmo, de
dialeticamente determinado pelas condições “aliená-lo” no exercício de suas estratégias).
objetivas da vida dos homens em sociedade.
A “onipotência” do sujeito nesta
Ainda é necessário dizer que a teoria
perspectiva de autossuficiência psicológica,
social crítica de Marx é muito atual e só seus
ainda segundo Pêcheux (1998), reduz a história
fundamentos nos permitem compreender os
a situações de interações, reais ou simbólicas, a
acontecimentos do presente. Esta postura
língua a uma porção dessas interações
teórica não implica uma declaração de amor
simbólicas e o inconsciente à não consciência
pelo passado; o objeto de estudo de Marx, a
que afeta negativamente setores da atividade do
sociedade burguesa, continua o que sempre foi:
sujeito, em função das determinações biológicas
um campo de contradições sustentado pelo
e/ou sociais mencionadas. Supomos ser essa
fetiche, no sentido mais amplo, não só em sua
uma questão bastante pertinente para
forma clássica, a mercadoria, mas nas formas
discutimos hoje a força da ideologia na
mais modernas revestidas de tecnologia que
determinação do pensamento e das ações desse
absorvem o sujeito e o moldam conforme as
sujeito, equivocadamente interpretado como
necessidades do desenvolvimento da sociedade.
senhor e dono de todos os seus dizeres e
Em relação ao sujeito submerso no fazeres.
desenvolvimento do capitalismo, lembramos
Parece que o movimento dos
uma passagem de Pêcheux (1998, p. 51) ao
trabalhadores hoje no Brasil atesta a existência
criticar o mito onieficaz do sujeito psicológico,
real do sujeito submerso no desenvolvimento do
“mestre em sua morada”:
capitalismo. O sujeito trabalhador vive o
Em conformidade com o universal descaminho da história que o constituiu como
narcisismo do pensamento humano [...], o sujeito de classe opositora à dominação do
sujeito é, de direito, um estrategista capital; as formas de resistência dos sujeitos
consciente, racional e lógico-operatório, estrategistas, tanto os trabalhadores como os
cujos poderes se encontram limitados, de empresários, escamoteiam no discurso as
fato, em sua emergência progressiva, sua diferenças de interesses entre as classes
“aquisição” e seu exercício, de um lado, fundamentais da sociedade.
pelas limitações biológicas (portanto, a série
de limitações ligadas ao fato de que esse

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81
do desaparecimento da cultura e o movimento
Lembro, ainda, nessa linha de raciocínio,
dos trabalhadores em luta pelos seus direitos na
Llosa (2013), a quem devo excepcionais ideias,
sociedade do capital. Penso que, assim como a
instigadoras da análise que segue. Tive a imensa
cultura está ameaçada pelo simbolismo
satisfação de ler, recentemente, um ensaio de
exacerbado que assola a sociedade dos nossos
sua autoria sobre a cultura, intitulado A
dias, emudece as palavras dos discursos e deixa
civilização do espetáculo: uma radiografia do
a imagem produzir os sentidos que forem mais
nosso tempo e da nossa cultura, e logo me
convenientes à dominação das ideias, a cultura
chamou a atenção a tese de que a cultura está
da luta dos trabalhadores também está se
prestes a desaparecer em nossos dias. Diz ele:
modificando, com uma forte tendência ao
“E talvez já tenha desaparecido, discretamente
apagamento da identidade de classes.
esvaziada de conteúdo, tendo este sido
substituído por outro, que desnatura o 2. Trabalho terceirizado: um acontecimento
conteúdo que ela teve” (Idem, p. 11). Um dos discursivo
argumentos a respeito é o de que o Este é um processo que se agravou ao
desaparecimento da cultura está associado ao longo da história do capitalismo. Silenciar os
desaparecimento da palavra. Llosa recorre a trabalhadores é um propósito intrínseco à lógica
autores que abordaram essa questão, a exemplo desta sociedade. É interessante notar que as
de George Steiner (1971), de quem apanha a estratégias de silenciamento dos trabalhadores
ideia da “retirada da palavra”: o discurso falado, são extremamente sutis, não se dão a perceber
lembrado e escrito foi um dia “a espinha dorsal na sua imediaticidade, tanto que os sujeitos
da consciência”; agora a palavra está dando afetados, os trabalhadores, julgam resistir à
lugar à imagem. pressão do seu suposto opositor, mas acabam
Ele também lembra Marx quando, em incorporando em seu discurso o discurso do
seus Manuscritos Econômicos e Filosóficos de outro, dos defensores da ordem capitalista.
1844, chamou de alienação o processo Pode-se identificar esse movimento no
resultante do fetichismo da mercadoria que com discurso da terceirização do trabalho que
o avanço da industrialização atingiu um estágio circulou no final do ano de 2014 e início de
tal que chega a substituir qualquer assunto de 2015 na mídia brasileira. Tal movimento ganhou
ordem cultural, intelectual ou política. O fetiche força quando o Projeto de Lei 4.330/2004 foi
da mercadoria esvaziou a vida interior de aprovado na Câmara dos Deputados. O projeto
preocupações sociais, espirituais ou tramitava há pouco mais de dez anos na Câmara
simplesmente humanas, isolando o sujeito e e começou a ser discutido de fato em 2011 por
destruindo a consciência que ele tinha dos deputados e representantes dos sindicatos dos
outros, de sua classe e de si mesmo. Esse trabalhadores e representantes empresariais. O
sujeito absorvido pela a mercadoria, sujeito PL 4.330 prevê a contratação de serviços
submerso no desenvolvimento do capitalismo, terceirizados para as atividades-meio e as
volto a dizer, deixa de ser um problema, um atividades-fim; antes se destinava apenas às
antagonista para a classe dominante. atividades-meio. O texto aplica-se às empresas
As questões levantadas por Llosa me privadas, empresas públicas, sociedades de
fizeram pensar que há algo comum entre a tese economia mista, produtores rurais e

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

82
profissionais liberais, mas não à administração
O discurso dos trabalhadores é
pública, às autarquias e às fundações.
propagado pelos representantes sindicais da
Resumidamente, a terceirização do trabalho
categoria. Conta-se hoje no Brasil com 7
funciona da seguinte forma: uma empresa
centrais sindicais3. Penso que a distribuição dos
prestadora de serviços é contratada por outra
trabalhadores em tantas organizações seria um
empresa para realizar serviços determinados e
indicativo de fragmentação da luta. Mas as
específicos. A contratada é responsável pelos
centrais se unem e formulam um discurso que
funcionários, emprega-os e remunera-os pelo
simula unidade de objetivos e interesse,
trabalho realizado, quando não subcontrata outra
evidenciando-se uma forma de resistência ao
empresa para a realização desses serviços. A
processo de terceirização. O discurso é eficaz
empresa contratante não efetuará vínculos
quando intenta convencer o conjunto dos
empregatícios com os trabalhadores ou sócios das
trabalhadores sobre a necessária articulação
prestadoras de serviços1.
como estratégia de resistência, e noticia:
Para este artigo, selecionamos algumas
sequências desse acontecimento discursivo2,
procurando identificar nas formas de resistência Sd1 Centrais se rearticulam contra projeto
dos trabalhadores o movimento de coincidência da terceirização no senado. Depois de
do dizer, revelador do processo da divergências, entidades tentam se unir em
contraidentidade de classe. torno de pontos comuns para atuar no
congresso e organizar paralisação no dia
3.Resistência, contraidentidade e 294.
desidentificação no discurso: Análises e
discussão As agências sindicais se fazem
representar pelo seus porta-vozes:
1
http://g1.globo.com/concursos-e- Sd2 Temos de mostrar ao governo, ao
emprego/noticia/2015/04/entenda-o-projeto-de-lei-da- Congresso e à classe patronal que estamos
terceirizacao-que-sera-votado.html. Acesso em: agosto unidos e mobilizados. É o caminho pra
de 2015. impedir retrocessos e fazer campanha
2
O acontecimento discursivo difere do acontecimento salarial efetiva das categorias (Francisco
histórico, o fato empírico, real, mas é dele decorrente.
Tem-se o acontecimento discursivo no “ponto de
encontro de uma atualidade e de uma memória”
3
(PÊCHEUX, 1990, p, 17). Ao trabalhar a discursividade São essas as centrais sindicais mais representativas
do acontecimento, cruzam-se “proporções de aparência hoje no Brasil: 1 CGTB – Central Geral dos
estável, suscetíveis de respostas unívocas (é sim ou não é trabalhadores d Brasil; 2 CSP- Conlutas – Central
x ou y, etc.) e formulações irremediavelmente “Sindical e Popular; 3 CTB – Central dos Trabalhadores
equívocas” (Idem, p. 28). Conforme Cazarin e Rasia e Trabalhadoras do Brasil; 4 CUT- Central Única dos
(2014, p. 195), “Um acontecimento discursivo Trabalhadores; 5 Força Intersindical,- Central da Classe
estabelece uma ruptura (rompe com a “estabilidade” trabalhadora; 6 Nova Central – Nova Central Sindical
anterior) e inaugura uma nova “estabilidade” discursiva, de Trabalhadores; 7 UGT – União Geral dos
mas não logicamente organizada, pois ela tem a ver com Trabalhadores
4
a ordem do discurso que joga com a materialidade http://www.agenciasindical.com.br. Acesso em agosto
linguística e a materialidade histórica.” de 2015.

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83
Pereira da Silva (Chiquinho), secretário
nacional de Organização e Políticas Esse movimento discursivo aponta a
Sindicais da União Geral dos Trabalhadores coincidência do dizer dos trabalhadores com o dos
(UGT)) empresários; os trabalhadores acabam
concordando com a terceirização. O mesmo
Há, no discurso, o predomínio da luta acontece com o enunciado 2 quando dizem que
pelos direitos trabalhistas, incluindo, sobretudo, querem a regulamentação da terceirização, e não
as campanhas salariais. Esses aspectos são a precarização; o restante do enunciado indica
reforçados em outras ocorrências discursivas que a perda dos direitos conquistados até então é
deste mesmo acontecimento, quando produzem um ponto de luta. Não se nega a terceirização,
efeitos de resistência e de diferença de interesse mas uma modalidade da terceirização
entre as classes.
Os empresários, também sujeitos
Dizem, ainda, os trabalhadores: estrategistas, revelam-se como articuladores de
formas de resistência. Decerto a resistência não
Sd3 é uma atitude política unilateral, tanto os
1 - Não queremos a terceirização na trabalhadores como os empresários elaboram
atividade-fim. estratégias de resistência. Um lutando, supõe-
2 - Queremos a regulamentação, não a se, contra os efeitos de exploração do trabalho,
precarização. Do jeito que passou, tudo foi
o outro se esforçando para manter a posição de
rasgado. (Ricardo Patah - presidente da
sujeito dominante no processo de produção e
UGT).5
extração da mais valia a partir do processo de
trabalho. Neste acontecimento do discurso da
Nessa sequência discursiva tem-se dois terceirização os empresários comemoram a
enunciados indicando os interesses dos vitória em algumas batalhas políticas. Tomo um
trabalhadores. No enunciado 1 a negação da comunicado da presidência da Central Brasileira
atividade fim regulado pelo PL 4330 produz um do Setor de Serviços e Central Sindical dos
efeito de aceitação do projeto; mas o aceita se Empreendedores7 para identificar no discurso
for restrito a atividade meio, como já existe pontos de coincidência do dizer entre os dois
oficialmente regulamentada e orientada pela discursos, aparentemente opositores, que
sumula a Súmula 331 do Tribunal Superior do acabam por gerar a desidentificação da classe
Trabalho (TST). Esta súmula serve de base para trabalhadora.
decisões de juízes da área trabalhista, menciona os
serviços de vigilância, conservação e limpeza, bem Dizem os empresários:
como serviços especializados ligados à atividade-
Sd 4 Regulamentação da terceirização:
meio da empresa contratante.6
nosso campo de batalha agora é o senado.
É, sim, para celebrarmos a instituição de
marco regulatório para a atividade por

5
http://www.redebrasilatual.com.br/trabalho. Acesso em
7
agosto de 2015. http://www.cebrasse.org.br/ Central Brasileira do Setor
6
Sobre o conteúdo desta Súmula ver o texto de de Serviços, Central Sindical dos Empreendedores
Biavaschi e Droppa (2011).

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

84
meio do PL 4.330 aprovado na Câmara dos
Trabalhadores e empresários coincidem nos
Deputados, onde parlamentares aprovaram,
entre outros pontos, a ampla terceirização dizeres dos discursos aparentemente opostos e
de todas as atividades no mercado privado e desidentificam-se.
nas empresas públicas de economia mista, 4. Considerações finais
suas subsidiárias e controladas na União,
Estados e Distrito Federal e municípios. Nos espaços discursivos em que se
conflitam as propostas de terceirização, a não
coincidência que aparece sob o efeito da luta
A aprovação da atividade meio no
de classes se rompe, e emerge dos efeitos
processo de terceirização pela Câmara dos
imaginários de contestação a coincidência do
Deputados é motivo de comemoração dos
dizer, demonstrando a posição dos
empresários, cantam a vitória da batalha que
sujeitos/Sujeitos (sujeito porta-voz, ou sujeito
decerto travaram nas instancias deliberativas: “É,
de direito – o trabalhador, o empresário/ Sujeito
sim, para celebrarmos a instituição de marco
ideológico ou Sujeito Universal – o Capital). O
regulatório para a atividade por meio do PL
efeito de coincidência do dizer entre os
4.330 aprovado na Câmara dos Deputados”.
discursos implica a desidentificação das classes,
Então a regulamentação atende aos dois
especialmente a dos trabalhadores, que acabam
discursos.
submergindo no desenvolvimento do
Ao incorporar o discurso do outro, capitalismo.
fazendo parecer que o contraria, o sujeito
Embora o sujeito esteja sendo ameaçado
trabalhador acabar se identificando com o seu
pelo provável desaparecimento das formas
“suposto” opositor: o capital representado pelo
clássicas de cultura e pelo surgimento de formas
discurso dos empresários, e cria uma nova
supérfluas, imagéticas, simuladoras de liberdade
condição de identidade de classe, uma
e autodeterminação, como vimos em Llosa
desindentificação de classe O confronto entre
(2013), revela-se para os analistas desta
as classes fundamenta-se no efeito ideológico
realidade a certeza de que, como diz Pêcheux
causado pela evidência de desigualdade
(2015), “não há dominação sem resistência”.
econômica e interesses políticos diferentes. Os
Este princípio pauta-se pelo conhecimento das
discursos historicamente demarcados dos dois
forças que opõem interesses, revelando as
principais protagonistas da história do
estratégias de resistência dos dois lados de uma
capitalismo - trabalhadores e capitalistas
sociedade dividida e dominada pelo capital. É
sustentam-se no movimento de
preciso “ousar se revoltar”, “ousar pensar por si
contraidentificação; os sujeitos envolvidos são
mesmo”.
afetados pelo o processo ideológico da não
coincidência dos dizeres que configurariam
modos de pensar e agir diferentes. Os Referências
trabalhadores estariam conduzidos pela crença
de que sua luta contra o capitalismo é de fato BIAVASCHI, M. B.; DROPPA. A. A história
uma forma de resistência à exploração a qual da súmula 331 do Tribunal Superior do
estão submetidos. Mas a não coincidência se Trabalho: a alteração na forma de compreender
rompe e inverte o processo da diferença. a terceirização. In Dossiê: Classes sociais e

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

85
transformações no mundo do trabalho. 2011.
Disponível em
http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/mediac
oes/article/view/9657/8494. Acesso em: agosto
de 2015.
CAZARIN, E. A.; RASIA, G. dos S. As noções
de acontecimento enunciativo e de
acontecimento discursivo: um olhar sobre o
discurso político. In: Letras, Santa Maria, v. 24,
n. 48, p. 193-210, jan./jun. 2014. Disponível em
http://cascavel.ufsm.br/revistas/ojs-
2.2.2/index.php/letras/article/viewFile/14432/pd
f. Acesso em: agosto de 2015.
LLOSA, M. V. A civilização do espetáculo:
uma radiografia do nosso tempo e da cultura.
Rio de Janeiro: Objetiva, 2013.
MARX, K. Manuscritos Econômicos e
Filosóficos. Lisboa, Portugal: Edições 70,
1989.
MARX. K e ENGELS. F. A ideologia alemã.
São Paulo: Editora Hucitec, 1986.
PÊCHEUX, M.. O discurso: estrutura ou
acontecimento. Campinas, SP: Pontes, 1990.
_____. Sobre os contextos epistemológicos da
análise de discurso. In Cadernos de Tradições,
Instituto de Letras, N. 1. 2. ed. UFRGS,
novembro de 1998.
____. Michel (2013) Ousar pensar e ousar se
revoltar. Ideologia, marxismo, luta de classes.
Décalages: Vol. 1: Iss. 4. Available
at:http://scholar.oxy.edu/decalages/vol1/iss4/15

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

86
MACHADO DE ASSIS E SEUS LEITORES: UM OLHAR
ARQUELÓGICO EM DOM CASMURRO

Pedro Ivo Silveira ANDRETTA


Universidade Federal de Rondônia (UNIR)
pedro.andretta@unir.br

Resumo: O objetivo desta pesquisa é identificar e descrever os sujeitos leitores


apresentados e interpelados por Machado de Assis na obra “Dom Casmurro”. Para tanto
apoiamo-nos na Análise do Discurso e, particularmente, na teoria arqueológica de
Michel Foucault, além ainda de suas noções de “simulacro” e “transgressão”. Como
resultado, sem esgotar nosso objeto, pontuamos “enunciados” inscritos em duas
“formações discursivas”: “Os sujeitos leitores do final do XIX segundo Machado de
Assis”, “As características dos sujeitos leitores do final do século XIX segundo Machado
de Assis”. Concluímos que esses enunciados esboçam um panorama sobre os sujeitos
leitores do final do século XIX, à medida que o discurso literário reproduz e materializa
condições sócio-histórico-culturais do “autor”, cindido pela “epistémê” de sua época.
Palavras-chave: leitores; literatura; arqueologia; análise do discurso; assis, joaquim
maria machado de, 1839-1908; foucault, paul-michel, 1926-1984.

procurando agora identificar como o próprio


Introdução
Machado de Assis tematizou a leitura, e
A pesquisa que segue inscreve-se no principalmente, os leitores em seus romances
interior de uma série de estudos (des)contínuos (ANDRETTA, 2015).
em nosso trabalho de interlocução entre os
É objetivo dessa pesquisa compreender
estudos em Análise do Discurso, e
e descrever uma possibilidade sobre como
particularmente a de orientação arqueológica tal
Machado de Assis enunciou os sujeitos leitores
como concebida pelo “pirotécnico” francês
brasileiros de seu tempo, e em especial aquele
Michel Foucault, e a Literatura. Assim temos
do final do século XIX. Cientes, que esse
continuidade, pois seguimos com os estudos
empreendimento analítico-descritivo, demanda
histórico-discursivos junto ao legado
muito mais palavras, e sempre mais do que
machadiano e a temática da leitura e dos
somos capazes de escrever, optaremos nas
leitores (ANDRETTA, 2012; ANDRETTA,
próximas páginas por um recorte bastante
2013) e ao mesmo tempo descontinuidade, pois
pontual, analisando exclusivamente alguns
mudamos nosso foco, lançando um olhar
aspectos do leitor apresentado e evocado no
obliquo a temática que nos é tão cara,

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

87
romance “Dom Casmurro”. Desse modo, arqueologia para a análise do discurso e nossa
exploraremos os enunciados textuais nos quais compreensão dos conceitos de Foucault de
o literato brasileiro articula dois movimentos: o “simulacro” e “transgressão” para análise da
primeiro, de apresentar seus personagens literatura; e outras duas, voltadas a descrição
enquanto leitores; e o segundo, de evocar, das formações discursivas que encontramos na
interpelar o leitor, e desse modo, caracterizar obra analisada, a saber: “Os sujeitos leitores do
seu público. final do XIX segundo Machado de Assis” e “As
características dos sujeitos leitores do final do
Esse esforço, no sentido de trabalhar
século XIX segundo Machado de Assis”, sem,
esses enunciados sobre os leitores inscritos na
contudo esgotar nosso objeto. Por fim,
obra machadiana, justifica-se, em grande
lançamos nossas considerações finais, e nosso
medida, além de nosso gosto pessoal, pela
apreço para que essas sejam apenas indicações
nossa adesão teórica a perspectiva foucaultiana
iniciais.
de pensar o sujeito em sua sujeição às
possibilidades do dizer e sua época. 1. Abordagem teórica e metodológica
Compreender os leitores enunciados por Nessa seção vamos abordar
Machado de Assis permite-nos alcançar o que resumidamente a compreensão de três noções
era concebível dizer sobre a leitura no Brasil no bastante caras para as análises discursivas que
final do século XIX, e especialmente no espaço se seguirão nesta pesquisa, a saber: “análise
da literatura, e tão mais, o autor enquanto arqueológica”, “simulacro” e “transgressão”.
sujeito e as relações que vivenciou e Convém pontuar que nesse movimento vamos
experimentou, inclusive com seu público leitor. sinalizar também os conceitos de “discurso”,
Sobre isso, temos em “Arqueologia de uma “enunciado”, “formação discursiva” e “arquivo”
paixão”, necessário para entender o funcionamento da
Acredito que é preferível tentar conceber análise.
que, no fundo, alguém que é escritor não faz A análise arqueológica foi articulada e
simplesmente sua obra em seus livros, no justificada por Foucault em inúmeras
que ele publica, e que sua obra principal é, oportunidades, seja na forma de obras
finalmente, ele próprio escrevendo seus monográficas, entrevistas ou conferências.
livros. E é essa relação dele próprio com, Desse montante, podemos destacar as obras:
seus livros, de sua vida com seus livros, que
“As Palavras e as Coisas” e “A Arqueologia do
é o ponto central, o foco de sua atividade e
de sua obra. [...] A obra é mais do que a
Saber”. Esses dois empreendimentos, um de
obra: o sujeito que escreve faz parte da obra ordem analítica, outro teórico-metodológica,
(FOUCAULT, 2006, p. 408-9). sugerem e indicam como analisar os discursos
do homem, ou melhor, o que os homens
disseram em seus discursos.
Uma vez exposto nosso percurso,
declarado nossos objetivos e firmado nossas A proposta de análise arqueológica, tal
justificativas, apresentaremos nossa pesquisa como gestada e gerada por Foucault fixa-se na
em três partes, uma dedicada à exposição da descrição e análise do “arquivo”, tal como se
abordagem teórica e metodológica da vê,

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e que espécie de ato se encontra realizado
por sua formulação (oral ou
A arqueologia, tal corno eu a entendo, não é
escrita).(FOUCAULT, 2008, p. 98)
parte nem da geologia (como análise dos
subsolos), nem da genealogia (como
descrição dos começos e das sucessões); ela A Formação Discursiva, nesse contexto,
é a análise do discurso em sua modalidade
de arquivo (FOUCAULT, 2008a, p. 72). [...] se caracteriza não por princípios de
construção, mas por uma dispersão de fato,
já que ela é para os enunciados não uma
Distinguindo-se também de qualquer condição de possibilidade, mas uma lei de
gesto de interpretação ou análise psicológica. A coexistência, e já que os enunciados, em
proposta analítica não busca pelo discurso do troca, não são elementos intercambiáveis,
que os homens pensaram, mas sim em tomar o mas conjuntos caracterizados por sua
discurso enquanto existência material, como modalidade de existência. (FOUCAULT,
uma prática sujeita a regras de formação, de 2008, p. 132).
coexistência, de funcionamento e de existência.
Nesses termos, são quatro conceitos E o Arquivo, compreende:
importantes para entender as análises que
iremos expor: “Discurso”, “Enunciado”, [...] de início, a lei do que pode ser dito, o
sistema que rege o aparecimento dos
“Formação Discursiva” e “Arquivo”.
enunciados como acontecimentos singulares.
O Discurso pode entendido como, Mas o arquivo é, também, o que faz com
que todas as coisas ditas não se acumulem
[...] um conjunto de enunciados, na medida indefinidamente em uma massa amorfa, não
em que se apoiem na mesma formação se inscrevam, tampouco, em uma
discursiva; ele não forma uma unidade linearidade sem rupturas e não
retórica ou formal, indefinidamente repetível desapareçam, ao simples acaso de acidentes
e cujo aparecimento ou utilização externos, mas que se agrupem em figuras
poderíamos assinalar (e explicar, se for o distintas, se contenham umas com as outras
caso) na história; é constituído de um segundo relações múltiplas, se mantenham
número limitado de enunciados para os ou se esfumem segundo regularidades
quais podemos definir um conjunto de específicas [...]. É o sistema geral da
existências. (FOUCAULT, 2008, p.132- formação e da transformação dos
133). enunciados. (FOUCAULT, 2008, p. 147-8).

O Enunciado, por sua vez, Sobre o trabalho com a abordagem


arqueológica e a literatura, o crítico Roberto
[...] é uma função de existência que pertence, Machado destaca:
exclusivamente, aos signos, e a partir da
qual se pode decidir, em seguida, pela Como Foucault jamais realizou
análise ou pela intuição, se eles “fazem propriamente uma arqueologia da literatura,
sentido” ou não, segundo que regra se suas referências a ela, diferentemente do que
sucedem ou se justapõem, de que são signos, acontece com os saberes que foram objeto

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de suas pesquisas anteriores, são mínimas
nesse livro [A Arqueologia do Saber] e,
que de maneira indireta, em diferentes escritos
quando ocorrem, servem apenas para de Foucault (ANDRETTA, 2015). De tal
ilustrar os problemas gerais que dizem modo, temos:
respeito à legitimação da arqueologia como
análise do discurso e do enunciado a) quando escreve sobre a abordagem
(MACHADO, 2012, p. 121). terapêutica de Binswanger (1954),
tematizando o sonho e tocando com isso a
relação da imagem com a imaginação,
Uma arqueologia da literatura ou dos buscando situar entre elas, a posição da
textos literários, apesar de não ser trabalhada expressão poética;
por Foucault, era prevista, ou pelo menos b) quando recorre aos textos literários em
sinalizada, quando o teórico expõe, sua tese de doutorado (1961), para
compreender as mudanças de posições dos
Os territórios arqueológicos podem discursos e das práticas dos loucos e da
atravessar textos "literários" ou loucura, e quando reflete a enigmática obra
"filosóficos", bem como textos científicos. O de Rousseau (1962), debruçando-se nela
saber não está contido somente em sobre a relação do sonho, do delírio e da
demonstrações; pode estar também em loucura.
ficções, reflexões, narrativas, regulamentos c) ao lado de representantes da literatura e
institucionais, decisões políticas dos estudos literários de sua época (início da
(FOUCAULT, 2008, p. 205). década de 1960), como Soller, Bataille,
Roussel, Klosswski e Verner, refletindo
É importante ressaltar que conforme conceitos como “ficção”, “transgressão”,
Foucault, a Literatura situa-se dentro da ordem “murmúrio”, “simulacro” e “fábula”, bem
do discurso, guardando particularidades. Sobre como sobre a própria posição da Literatura
isso temos, nos estudos da linguagem.
d) assumindo e trabalhando o conceito de
“espaço” (final da década de 1960), de
A literatura, portanto, faz parte desse
Bachelard, propondo a “utopia” e
grande sistema de coação através do qual o
“heterotopia”, posicionando o texto literário
Ocidente obrigou o cotidiano a se pôr em
dentro do que podemos compreender como
discurso; mas ela ocupa um lugar
seu conceito de “epistémê”.
particular: obstinada em procurar o
e) quando já estava inserido nos estudos do
cotidiano por baixo dele mesmo, em
poder (década de 1970).(ANDRETTA,
ultrapassar os limites, em levantar brutal ou
2015, p. 39).
insidiosamente os segredos, em deslocar as
regras e os códigos, em fazer dizer o
inconfessável, ela tenderá, então, a se pôr Dessa série de encontros de Foucault
fora da lei ou, ao menos, a ocupar-se do com a Literatura e das tantas noções erigidas
escândalo, da transgressão ou da revolta pelo historiador-filósofo, interessa-nos
(FOUCAULT, 2006, p. 221). particularmente, para nossas análises a noção de
“simulacro” e “transgressão”.
A Literatura, conforme nossos estudos,
é tematizada, problematizada ou tocada ainda

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A noção de “simulacro” foi trabalhada Já a noção de “transgressão” é abordada
pelo teórico em 1964, em um artigo intitulado por Foucault em 1963, um ensaio intitulado
“A prosa de Actão”, dedicado ao escritor Pierre "Prefácio à transgressão", dedicado ao literato
Klossowski. francês Georges Bataille, que cunha o conceito.
Segundo o historiador francês, temos:
O simulacro é entendido como:

[...] vã imagem (em oposição à realidade); A transgressão é um gesto relativo ao


representação de alguma coisa (em que essa limite; é aí, na tênue espessura da linha,
coisa se delega, se manifesta, mas se retira e que se manifesta o fulgor de sua
em um certo sentido se esconde); mentira passagem, mas talvez também sua
que faz tomar um signo por um outro: signo trajetória na totalidade, sua própria
da presença de uma divindade (e origem. A linha que ela cruza poderia
possibilidade recíproca de tomar este signo também ser todo o seu espaço. O jogo
pelo seu contrário); vinda simultânea do dos limites e da transgressão parece ser
Mesmo e do Outro (simular é, regido por uma obstinação simples: a
originariamente, vir junto) (FOUCAULT, transgressão transpõe e não cessa de
2006, p. 114). recomeçar a transpor uma linha que,
atrás dela, imediatamente se fecha de
Conforme entendemos, Foucault
novo em um movimento de tênue
compreende que a literatura nasce da simulação
memória, recuando então novamente
daquele que fala, do apagamento do eu para
para o horizonte do intransponível. Mas
fazer aparecer a simulação de si, da distância da
esse jogo vai além de colocar em ação
linguagem literária em relação ao mundo. Nesse
tais elementos; ele os situa em uma
limiar, tomaremos o simulacro, como a
incerteza, em certezas logo invertidas
simulação, a representação que aquele que
nas quais o pensamento rapidamente se
escreve, fala, faz tanto de si e das práticas que
embaraça por querer apreendê-las. O
vê. Tomamos aqui a expressão “representação”,
limite e a transgressão devem um ao
em seu sentido daquilo que “não é, que se
outro a densidade de seu ser:
coloca no lugar de, mas que em si é”, sem
inexistência de um limite que não
contradizer, portanto, as proposições de outros
poderia absolutamente ser transposto;
críticos foucaultianos:
vaidade em troca de uma transgressão
que só transporia um limite de ilusão ou
O simulacro é o ser da literatura: um ser de sombra (FOUCAULT, 2006, p. 32).
que não é, pois dissimular é fingir ser
aquilo que não é. A história imaginária – A “transgressão”, tal com
dissimulada – não tem o compromisso compreendemos nesse ensaio, liga-se ao limite.
de representar a verdade. Não é como a A “transgressão”, para o teórico, apoia-se na
mimese clássica que procura uma cópia afirmação da diferença e não para a infração ou
elevada das verdades pela conveniência violência. Ainda sobre a transgressão, podemos
e verossimilhança. (AZEVEDO; entender que:
CALAÇA, 2013, p. 9)

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Essa negação [a transgressão] não tem Vivo só, com um criado. A casa em que
objetivo de dizer que as verdades moro é própria; fi-la construir de propósito,
levado de um desejo tão particular que me
construídas pela religião, história,
vexa imprimi-lo, mas vá lá. [...] Entretanto,
filosofia e ciência são falsas, mas, sim vida diferente não quer dizer vida pior; é
impedir a compreensão do homem e das outra coisa. [...]. O mais do tempo é gasto
coisas por meio de verdades literárias. em hortar, jardinar e ler; como bem e não
(AZEVEDO; CALAÇA, 2013, p. 8) durmo mal (Dom Casmurro, Capítulo II -
Do Livro).
Feitas essas considerações, em nosso
movimento de análise discursiva buscaremos, na No fragmento podemos ver marcas da
superfície enunciativa da obra “Dom época e a posição social que simulam o modo
Casmurro”, averiguar como Machado de viver do sujeito narrador. Isso posto, temos
discursivisa, representa (dissimula) e transgride um o sujeito que é aparentemente rico, pois
os sujeitos leitores de sua época. Nesse possui “casa própria”; gasta seu tempo “em
percurso, tomaremos dois caminhos, o primeiro hortar, jardinar e ler”, come e não dorme mal.
descrevendo alguns enunciados textuais no qual
Nesse processo de seleção do narrador
Machado de Assis situa o sujeito leitor por
em identificar algumas práticas cotidianas,
meio da caracterização e descrição dos
outras práticas são deixadas de lado, que por
personagens e no outro, as interpelações que o
certo, mostram-se como menos relevantes para
autor faz aos seus leitores pressupostos.
sua apresentação para o leitor, o qual quer
2. Os sujeitos leitores segundo Machado de convencer a respeito de sua moral e
Assis discernimento. Temos assim, nesse enunciado
Considerando nosso aporte teórico- textual, a preocupação do narrador em se
metodológico vamos, nessa seção, descrever colocar como leitor, ou ainda indicar que a
como Machado de Assis enuncia os sujeitos leitura faz parte de seu cotidiano, tal como
leitores do seu tempo, e particularmente do hortar, jardinar, comer e dormir.
espaço do Rio de Janeiro. Para tanto, ao Podemos observar ainda que ao parear
tomarmos a obra “Dom Casmurro”, vamos nos as atividades de hortar, jardinar e ler, o
ater aos enunciados textuais relacionados às narrador, tal como entendemos, indica que seu
características dos personagens, com o gosto pela leitura está mais para o lazer, prazer,
propósito de esboçar aquilo que acreditamos fruição, que para uma atividade profissional,
ser uma primeira formação discursiva, a saber: uma exigência, uma obrigação. Por outro lado,
“Os sujeitos leitores do final século XIX podemos verificar que o esforço da leitura, do
segundo Machado de Assis”. estudo, ligado a prática do trabalho do
Nesse contexto, podemos verificar logo advogado também tem ou teve espaço no seu
no início do romance que o narrador descreve- cotidiano, tal como verificamos em:
se como um advogado, filho de um deputado, e
Na manhã seguinte acordei [...], tomei café,
para mais, comenta:
percorri os jornais e fui estudar uns autos

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(Dom Casmurro, Capítulo CXX – Os
autos). Marcia Abreu (2001), tomando como
referência analítica as pessoas que estavam nos
É enunciado, nesse sentido, que os “meios urbanos e os operários” argumenta que
sujeitos leitores do final do século XXI no Rio era prática bastante comum nos séculos XVIII e
de Janeiro, segundo o olhar de Machado de início do XIX, a da “leitura” como sendo “a da
Assis, eram homens, escolarizados e ricos. fala e audição”, como segue:
Contudo, esse não é o único sujeito enunciado,
temos também a simulação, a representação, da No século XVIII e início do XIX, o conceito
mulher leitora. de leitura parece confundir-se com a fala e a
audição, podendo prescindir da habilidade
A presença do sujeito “mulher leitora” é de decifração dos sinais gráficos de que se
enunciado na descrição, por exemplo, da compõe a escrita. Se entre intelectuais o
personagem Capitu, tal como enunciado processo de ouvir ler fazia parte das formas
textualmente: de sociabilidade, parecendo coisa comum,
qual não seria o poder de divulgação dos
As curiosidades de Capitu dão para um escritos entre os não letrados? Por meio da
capítulo, eram de várias espécies, leitura oral, iletrados também poderiam
explicáveis e inexplicáveis, assim úteis entrar em contato com conteúdos registrados
como inúteis, umas graves, outras frívolas; por escrito (...) durante a primeira metade
gostava de saber tudo. No colégio, onde, do século XIX a leitura oral era uma das
desde os sete anos, aprendera a ler, escrever formas de mobilização cultural e política
e contar, francês, doutrina e obras de dos meios urbanos e dos operários
agulha, não aprendeu, por exemplo, a fazer (ABREU, 2001, p. web).
renda; por isso mesmo, quis que prima
Justina lho ensinasse (Dom Casmurro, A manifestação de leitura do sujeito
Capítulo XXXI - Curiosidades de Capitu). Capitu era a leitura da palavra e não “do
ouvido” ou das práticas orais, como pode ser
Nesse excerto, Machado de Assis acena visto abaixo:
para uma simulação da educação feminina de
sua época. Apesar de Capitu pertencer a uma Estava abatida, trazia um lenço atado na
família de posição social e economicamente cabeça; a mãe contou-me que fora excesso
inferior a do sujeito Bentinho, essa frequentara de leitura na véspera, antes e depois do chá,
o colégio, onde aprendeu a ler e a escrever. na sala e na cama, até muito depois da
Dentre as alunas, algumas eram filhas de meia-noite, e com lamparina...
– Se eu acendesse vela, mamãe zangava-se.
médicos e comerciantes que trabalhavam com
Já estou boa (Dom Casmurro, Capítulo
importação de produtos americanos, tal como
XLII - Capitu Refletindo).
vemos no capítulo XLII - Capitu refletindo.
Pela associação “ler e escrever” tal A leitura feminina, tal como sinalizada,
como descrito, podemos aventar que não se indicia e por isso, enuncia, que as mulheres
trata mais de “ler” em um sentido amplo, mas estavam preparadas para a leitura da palavra e
sim da leitura da palavra. que a faziam de modo solitário. Além disso,

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ontem para a valsa de hoje, quer fechá-lo às
vemos uma provável prática de justificar pressas, ao ver que beiramos um abismo.
abatimentos pela leitura noturna. Não faça isso, querida; eu mudo de rumo
Assim, os sujeitos leitores do final do (Dom Casmurro, Capítulo CXIX - Não
século XXI no Rio de Janeiro, segundo o olhar Faça Isso, Querida!).
de Machado de Assim, eram mulheres
escolarizadas, mas não necessariamente ricas. E isto é muito, leitor meu amigo; o coração,
Vemos assim a maneira de como quando examina a possibilidade do que há
Machado de Assis apresenta os leitores de sua de vir, as proporções dos acontecimentos e a
época, de um lado “homens, escolarizados e cópia deles, fica robusto e disposto, e o mal
ricos”, de outro “mulheres, escolarizadas e não é menor mal (Dom Casmurro, Capítulo
necessariamente ricas”. A “transgressão” LVII - De Preparação).
impede, no limite, a assegurar que de fato, as
mulheres assumissem a função de sujeito leitor Esse estilo de escrita de Machado,
com maior autonomia, mas podemos propor, evocando o leitor para perto do texto, além de
que Machado de Assis, vê e (dis)simula esta gerar cumplicidade entre o narrador e o leitor,
verdade. tal como descreve Lajolo e Zilberman (2009),
orienta e fixa, segundo vemos, um
3. As características dos sujeitos leitores
comportamento intimista de ser sujeito
segundo Machado de Assis
leitor/leitora.
Conforme abordamos anteriormente,
A cumplicidade entre o narrador e o
Machado de Assis enuncia que tanto as
sujeito leitor pode ser percebido no diálogo que
mulheres como homens, ocupavam a posição de
segue:
leitores no Rio de Janeiro do século XIX,
utilizado para isso a descrição e caracterização – A leitora, que ainda se lembrará das
dos personagens inscritos na obra “Dom palavras, dado que me tenha lido com
Casmurro”. Nessa seção, vamos trabalhar como atenção, ficará espantada de tamanho
o autor, na mesma obra, pela voz do narrador, esquecimento, tanto mais que lhe lembrarão
interpela o leitor e o caracteriza. ainda as vozes da sua infância e
adolescência; haverá olvidado algumas, mas
Nosso propósito nas próximas linhas
nem tudo fica na cabeça (Dom Casmurro,
será então descrever uma segunda formação Capítulo CX - Rasgos Da Infância).
discursiva, qual seja: “As características dos
sujeitos leitores do final do século XIX segundo
Machado de Assis”. Temos assim uma caracterização, ou
ainda, uma representação do sujeito leitor, no
Desse modo, e de início, podemos notar caso, como “atento”, que guarda as palavras
a caracterização do sujeito leitor, como lidas e sente em si os mesmos espantos do
“amigo”, tal como se mostra nos enunciados narrador.
textuais:
O sujeito leitor de Machado de Assis,
A leitora, que é minha amiga e abriu este tal como nos parece, “não gosta de sustos,
livro com o fim de descansar a cavatina de surpresas e violência”, e desse modo, o

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narrador se faz cauteloso ao apresentar a trama. medida que esse sujeito leitor é caracterizado
Assim é, por exemplo, quando Dom Casmurro como cristão católico.
recorda seu tempo de seminário e de suas
“visões feminis”, com senhoras de saias caindo Não me tenhas por sacrílego, leitora minha
e o rodeando com seus tique-tiques devota; a limpeza da intenção lava o que
afrancesados puder haver menos curial no estilo (Dom
Casmurro, Capítulo XIV - Inscrição).
Sim, leitora castíssima, como diria o meu
finado José Dias, podeis ler o capítulo até Como se lê, o enunciado textual leitora
ao fim, sem susto nem vexame (Dom “católica” se constrói pela escolha lexical do
Casmurro, Capítulo LVII - De Preparação). narrador, que utiliza uma terminologia própria
do repertório próprio dessa religião, tal como:
O sujeito leitor, dissimulado por “sacrilégio”, “devota” e “curial”. Recordando
Machado de Assis não gosta de sustos e que, o Catolicismo, era, segundo a Constituição
surpresas e por vezes é “incrédulo”. do Império, a religião oficial do Brasil.
Esse leitor incrédulo é capaz até mesmo Por meio dessas considerações
de ficar “entediado” com a prosa do narrador, identificamos, na obra analisada, algumas das
quando essa parece irreal. No diálogo entre características dos sujeitos leitores segundo
Bentinho e Capitu, quando esse a pede para que Machado de Assis. Essas características versam
fosse ele o padre de seu casamento, ela recusa, sobre um sujeito que é amigo, atento, não dado
afirmando que demoraria tempo para que ele se sustos, surpresas ou violência, entediado, além
tornasse padre, mas promete que ele batizaria de incrédulo e católico.
seu primeiro filho, segue-se: Essas características emergem da
Abane a cabeça, leitor; faça todos os gestos dissimulação do diálogo do autor-narrador com
de incredulidade. Chegue a deitar fora este seus leitores, e parece indicar uma preocupação
livro, se o tédio já o não obrigou a isso de Machado de Assis de não perder seu leitor,
antes; tudo é possível. Mas, se o não fez de não entediá-lo. O gesto transgressivo estaria,
antes e só agora, fio que torne a pegar do portanto no paradoxo da serie de enunciados:
livro e que o abra na mesma página, sem do falar sempre com cuidado (sem sustos,
crer por isso na veracidade do autor. surpresas ou violência) para um leitor que é
Todavia, não há nada mais exato. Foi assim amigo, de sempre retomar a fala para um leitor
mesmo que Capitu falou, com tais palavras que é atento, de brincar com a incredulidade do
e maneiras. Falou do primeiro filho, como leitor, que pela sua fé “acredita sem ver”.
se fosse a primeira boneca (Dom Casmurro,
Capítulo XLV - Abane a Cabeça, Leitor). 4. Considerações finais
Nesta pesquisa abordamos como
Sobre a incredulidade, é interessante Machado de Assis enunciou os leitores na obra
verificar que a incredulidade concerne as “Dom Casmurro”. Para isso, recorremos ao
palavras do homem, mas não as de Deus, a olhar arqueológico de Michel Foucault e

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algumas perspectivas do teórico sobre a em Linguística) – Universidade Federal de São
Literatura. Carlos. São Carlos, 2013.
Em nosso percurso apresentamos, a _____. O que dizem os novos leitores de
grandes pernadas, a abordagem arqueológica de Machado de Assis sobre a leitura desse autor
Michel Foucault, algumas considerações sobre em blogs. Versão Beta, São Carlos, v. 10, n.
seu olhar para a Literatura e as noções de 71, p. 71-81. abr.-jun. 2012.
“simulacro” e “transgressão”. Além disso, como ABREU, M. Diferentes formas de ler. 2001.
resultado de nosso trabalho analítico, Disponível em: <
descrevemos, ainda longe de esgotar nosso http://www.unicamp.br/iel/memoria/Ensaios/Ma
objeto, duas formações discursivas: “Os sujeitos rcia/marcia.htm > . Acesso em: 10 out. 2014.
leitores do final do XIX segundo Machado de
Assis”, “As características dos sujeitos leitores ASSIS, M. Dom Casmurro. Santa Catarina:
do final do século XIX segundo Machado de MEC: NUPILL/UFSC: 2008c. (Coleção Digital
Assis”. Machado de Assis). Disponível em: <
http://machado.mec.gov.br/images/stories/pdf/r
A concluir, deixamos aqui duas
omance/marm08.pdf > Acesso em: 15 jun.
expectativas. Uma que esse estudo sirva para 2014.
compreender um pouco mais dos leitores
machadianos. Outra de que nossas AZEVEDO, J. P.; CALAÇA, F. Transgressão,
considerações não sejam finais, tão pouco Morte e Simulacro: figuras que constituem a
parciais, mas, sobretudo, iniciais, não só no Literatura, segundo Foucault. Recorte, v. 10, n.
pensar a aplicação dos conceitos foucaultianos 1, p. 1-14, jan.-jun, 2013.
para a literatura como também balizar os FOUCAULT, M. Arqueologia das Ciências e
estudos sobre os leitores por meio da aplicação História dos Sistemas de Pensamento. 2.
da análise no discurso no texto literário. edição. Organização de Manoel Barros da
Motta, tradução de Elisa Monteiro. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2008a. (Ditos e
Referências Escritos II).
ANDRETTA, P. I. S. Literatura e Discurso: _____. A arqueologia do saber. 7 ed. Tradução
práticas de leitores do final do século XIX no de Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro:
Brasil pelo olhar de Machado de Assis. 2015. Forense, 2008b.
— São Carlos: UFSCar, 2015. 98 f.
Dissertação (Mestrado em Ciência, Tecnologia _____. Estética: literatura e pintura, música e
e Sociedade) – Universidade Federal de São cinema. 2 edição. Organização de Manoel
Carlos. São Carlos, 2015. Barros da Motta, tradução de Inês Autran
Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense
_____. O leitor contemporâneo e a obra de Universitária, 2006. (Ditos e escritos, III).
Machado de Assis: uma análise discursiva da
crítica amadora em blogs. 2013. — São Carlos: MACHADO, R. Foucault, a filosofia e a
UFSCar, 2013. 139 f. Dissertação (Mestrado literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.

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POLÍTICA, HUMOR E HETEROGENEIDADE NA WEB

Lígia Mara Boin Menossi de ARAUJO


Universidade Federal de São Carlos (UFSCar/Fapesp – Processo no.2011/09851-8)
ligiamenossi@gmail.com

Resumo: Este trabalho é parte de nossa tese de doutorado desenvolvida no PGGL/


UFSCar e tem como corpus de análise videomontagens do YouTube em que o alvo dos
discursos humorísticos derrisórios é Dilma Rousseff. Temos como objetivo compreender o
funcionamento discursivo da heterogeneidade enunciativa (AUTHIER-REVUZ, 2004),
sobretudo o de uma heterogeneidade dissimulada (BARONAS, 2005) já que acreditamos
que a noção de heterogeneidade constitutiva mostrada e marcada formulada necessita de
uma reconfiguração no tocante ao tratamento de corpora políticos derrisórios, sobretudo
os que circulam em suportes como o YouTube.
Palavras-chave: discurso político; heterogeneidade; YouTube; humor.

discurso com os seus Outros constitutivos, mas


Introdução
quando se trata de um Outro satírico,
Este trabalho é parte de nossa tese de zombeteiro, que é trazido para o fio do discurso
doutorado desenvolvida no Programa de Pós- do Eu, cremos que esse discurso satírico se
graduação em Linguística da UFSCar. apresenta sempre dissimulado nos traços do
Elegemos como corpus de análise duas interdiscurso.
videomontagens do site YouTube em que o
Desse modo, tecemos nossa reflexão em
alvo derrisório é Dilma Rousseff enquanto
torno da ideia de que para se pensar a derrisão
candidata às eleições presidenciais de 2010.
do político em suportes como o YouTube, a
Temos como objetivo investigar, por meio da
noção de heterogeneidade possa ser expandida
Análise do Discurso de linha francesa, como se
e pensada enquanto heterogeneidade
dá o funcionamento do discurso político
dissimulada (BARONAS, 2005). Acreditamos
derrisório e compreender como o ator político
que a noção de heterogeneidade constitutiva
Dilma Rousseff é tornado em derrisão pelo
mostrada e marcada formulada por Authier-
YouTube. Para a fundamentação teórico-
Revuz, embora bastante pertinente para dar
metodológica, entendemos que a noção de
conta de corpora políticos marcadamente
heterogeneidade enunciativa de Authier-Revuz
sérios, que circulam em suportes textuais
(2004) constitui uma importante ferramenta
tradicionais necessita de uma reconfiguração no
conceitual para refletir sobre a relação do
tocante ao tratamento de corpora políticos

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

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derrisórios, sobretudo os que circulam em esses sujeitos se inscrevem por meio da
suportes não tradicionais como o YouTube. comunicação verbal ou não verbal humanas.
Além disso, não se trata de uma negociação em Diríamos que o dialogismo é a base da
que o discurso do Eu delimita ou denega o constituição do sentido que não vem construído
discurso do Outro, mas uma tentativa de sob um só pilar, mas no e pelo entrecruzamento
apagamento desse discurso do outro que se dá de diferentes discursos que podem convergir ou
legitimado pelo interdiscurso. Isso acontece por divergir; é com o discurso outro que o discurso
meio de uma interincompreensão regrada do do sujeito se forma e pelo discurso outro
discurso do Outro, discurso esse que é também, os outros discursos seriam seu
traduzido para o discurso do Mesmo por meio “exterior constitutivo” (AUTHIER-REVUZ,
da construção de um simulacro do discurso 2004).
primeiro (MAINGUENEAU, 2005) o que O segundo pilar no qual se apoia
permite a emergência da heterogeneidade Authier-Revuz (2004) é uma releitura lacaniana
dissimulada. de Freud, que aborda o sujeito e sua relação
Heterogeneidade com a linguagem nos moldes da psicanálise, nos
quais o discurso é atravessado pelo inconsciente
O humor pode reunir estratégias que
–, assim, o sujeito é dividido, não uno, e a sua
conseguem dizer pelo sujeito aquilo que ele
fala é heterogênea. A ilusão do eu propicia ao
gostaria de ter dito, mas que não teve força
sujeito uma ilusão de que o seu discurso tem
para isto – como se um Outro falasse por ele.
origem centrada em si mesmo e que é a fonte da
Ou, ainda, nas situações em que antes se
sua enunciação, pois “nesta afirmação de que,
utilizava um tapa ou uma bofetada para
constitutivamente, no sujeito e no seu discurso
derrubar o adversário, usa-se, um chiste, um
está o Outro, reencontram-se as concepções do
enunciado de humor derrisório para destruí-lo.
É desse modo também que se entende que a discurso, da ideologia, e do inconsciente, que as
teorias da enunciação não podem, sem riscos
noção de heterogeneidade mostrada e
para a linguística, esquecer” (AUTHIER-
constitutiva, proposta por Authier-Revuz
REVUZ, 1990, p. 28).
(2004) que trata do sujeito e do seu discurso
sob dois grandes pilares, possa ser refletida e O sujeito, quase sempre, esquece a
expandida ao ser mobilizada em nossas análises. heterogeneidade presente em seu discurso e
acredita ser a fonte de sua enunciação. Assim,
O primeiro pilar que sustenta a
quando se mostra como o centro da
concepção de heterogeneidade é o da
enunciação, crendo que ele é a fonte única de
concepção bakhtiniana de dialogismo, ou seja, o
seu discurso, não há a lucidez de que o seu
discurso como palco de mediação, interação e
discurso nada mais é do que uma possibilidade
constituição entre sujeitos em suas esferas de
discursiva, oriunda do momento histórico e do
atividade e compreensão sócio-históricas.
espaço em que vive e produz sua enunciação, e
Bakhtin afirma que o sujeito precisa do seu
que o sujeito é efeito da linguagem e do
outro para se constituir, e é esse outro quem
discurso e não a causa de ambos. Um dos
estabelece as fronteiras discursivas que podem
principais postulados da psicanálise é a
compor um sujeito e seu discurso, a partir de
possibilidade de se interpretar certo número de
interações sociais, na arena cotidiana, em que

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98
fenômenos demonstrados pelos sujeitos como outro ato de enunciação discursiva. Já as que
manifestações do inconsciente sendo a tarefa do denominamos segunda categoria apontam para
analista reconstruir o discurso ausente a partir um alteridade enunciativa que sinaliza um
das pistas deixadas por esses esquecimentos. sentido especial ou um outro sentido que vem
conotado por um enunciador outro. Assim, o
Authier-Revuz (2004) denomina de
locutor, mesmo não mencionando o discurso do
heterogeneidade constitutiva a presença velada
outro, o integra a cadeia discursiva numa
do outro/Outro no discurso que se enuncia,
continuidade sintática (AUTHIER-REVUZ,
criando a ilusão de que o sujeito é a origem do
2004) e assim o faz por meio de aspas, itálico,
seu enunciado, com raízes no inconsciente; e
bold, parênteses ou por uma entonação.
mais ainda, criando as próprias condições de
produção para o discurso desse outro/Outro, ou A heterogeneidade mostrada não
seja, sem esta heterogeneidade não há marcada manifesta-se em discursos em que não
constituição dos discursos. A heterogeneidade há uma fronteira prontamente delimitada entre o
constitutiva pode ser explicitada por meio de Um e o outro, como no discurso indireto livre,
uma heterogeneidade mostrada, em que, no fio na ironia, na antífrase, na imitação, na alusão;
do discurso, o sujeito produz formas que caracterizam-se por instaurar a presença do
inscrevem o outro na cadeia discursiva. outro de maneira mais diluída no discurso, não
Portanto, Authier-Revuz expõe que o conceito é possível apreendê-la no fio discurso, só é
de heterogeneidade enunciativa comporta duas possível reconhecê-las e interpretá-las “a partir
concepções: a de heterogeneidade constitutiva de índices recuperáveis no discurso em função
e a de heterogeneidade mostrada marcada ou de seu exterior” (AUTHIER-REVUZ, 2004, p.
não marcada, ambas implicando a presença do 18, grifos da autora).
outro/Outro na produção do discurso do eu.
Simulacro
A heterogeneidade mostrada traz o Em Maingueneau (2005, p. 103), a
outro para a cadeia discursiva e se deixa ver questão do simulacro está diretamente ligada a
com mais clareza pelo seu caráter de não interincompreensão do discurso, ou seja,
ocultamento – por meio da análise, esse outro devemos compreender um espaço discursivo
pode ser recuperado de maneira explícita. Ela como uma rede de interação semântica, na qual
pode não se apresentar com marcas visíveis em podemos encontrar diferentes “posições
um discurso (AUTHIER-REVUZ, 1990), enunciativas que possibilitam o ato de enunciar
podendo, assim, constituir-se de duas formas: por meio de sua formação discursiva”. Esse
marcada e não marcada. A heterogeneidade processo simultâneo de enunciações que se
mostrada marcada é da ordem da enunciação, constroem de formações discursivas diferentes
visível na materialidade linguística e pode ser faz emergir um desentendimento recíproco, do
entendida a partir de duas categorias: a primeira qual germina a ideia de que os enunciados do
assinala explicitamente as formas que inserem, Outro só são entendidos quando trazidos para o
na linearidade do fio do discurso, o outro. interior do “fechamento semântico do
Sendo esse outro, o do discurso relatado como intérprete,” isto é, para a compreensão de cada
no discurso direto e no indireto com seus formação discursiva, na qual os discursos não
delineamentos sintáticos apontam que há um
podem ser tomados – até pela questão da

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99
identificação, isto é, o que e com o que sujeitos produzidos, o Outro é o que constitui o
inscritos nas mais distintas práticas discursivas discurso, mas, ao mesmo tempo, é o que deve
se identificam – tal como foi enunciado pelo se apartado.
Outro, mas sim no simulacro que se constrói
sobre ele.
Direto ao assunto
Em outras palavras, o discurso do
intérprete se constitui a partir de uma O corpus discursivo que mobilizamos
interincompreensão regrada do discurso do circula no site YouTube e foram intituladas
Outro que erige de um simulacro criado pelo como: Direto ao assunto: Episódio #01 –
próprio intérprete que produz seu discurso com Família e Direto ao assunto: Episódio #03 –
o escopo de descaracterizar o outro criando Meio Ambiente.
uma relação de polêmica (MAINGUENEAU, A primeira tem apenas 32 segundos,
2005). Essas relações discursivas de compõem uma “série” de seis episódios e seu
interincompreensão suscitam a noção de sujeito-produtor utiliza o pseudônimo de
polêmica que constitui-se pelo modo como Exilados na Rede, é composta por slides que
semanticamente esses discursos estão em carregam o discurso desse sujeito-produtor
embate e não, simplesmente, por uma acompanhados de um trecho de uma entrevista
controvérsia violenta; o que permite entender a da candidata, trazendo imagens e sons que
noção de polêmica como uma troca regrada na provocam determinados efeitos de sentido
qual um discurso polemiza ao entrar em contato acerca do tema enfocado: família. O primeiro
com seu Outro, isto é, esse discurso se slide traz a imagem abaixo (figura 1) com o
estabelece a partir do que compreende, isto é, seguinte enunciado: “?Direto ao assunto com a
traduz do seu Outro. ex-ministra do Presidente Lula!”, enquanto o
Ademais, “polemizar é, sobretudo, visualizamos ouvimos uma espécie de jingle em
apanhar publicamente em erro, colocar o que é possível perceber um assobio e alguns
adversário em situação de infração em relação a instrumentos que se permanecem durante todo
uma Lei que se impõe como incontestável” o video, podemos inferir que a música é de
(MAINGUENEAU, 2005, p.114), isto é, o que alguém que assobia distraidamente e de modo
se pretende é descaracterizar o adversário descontraído.
deixando claro que ele transgride as regras Figura 1 (00:00 – 00:04) e (00:28 – 00:31)
estabelecidas quando mente, traz informações
erradas, é incompetente, pouco inteligente etc.
e, por isso, é possível sucumbir seu direito. Na
polêmica, os enunciados estão sempre sendo
partilhados ou rejeitados e nessa transparência
ou nessa opacidade, torna-se possível silenciar
o Outro e afastar a alteridade própria do
discurso; por isso, o Mesmo vai polemizar com
aquilo que conseguiu separar dele e que
também o constituía por meio dos enunciados

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100
Figura 2 (00:05 – 00:10) pausado, ouvimos o tic-tac de um relógio
que é encerrado por uma campainha que
dá continuidade ao discurso de Dilma)
entre os pais, um queria Pedro, outro queria
Gabriel, ganhô Gabriel, então ele vai
chamar Gabriel (ouvimos então palmas
durante o final de sua resposta, como se
Dilma, depois de confusa, tivesse acertado
a resposta num jogo de perguntas e
respostas, um Quizz Show).

Em seguida, é inserida outra imagem Figura 3 (00:13)


(figura 2) que vai se formando em alguns
segundos, nela visualizamos um quadro negro
ou lousa, característicos das salas de aula, com
a seguinte pergunta redigida com o giz branco:
“Ex-ministra do presidente Lula, qual será o
nome do seu neto?”
O sujeito-produtor, então, traz o recorte
(00:12 – 00:27) de um dos momentos de Dilma
em seu blog Dilma na Web durante a pré-
campanha presidencial em que foi possível
enviar perguntas a candidata e ela respondia ao Figura 4 (00:18)
vivo; os internautas mandavam suas dúvidas e
em seguida já podiam obter uma resposta. Na
figura 3, temos Dilma no centro da mesa que
era transmitida ao vivo pela internet, do seu
lado direito está o coordenador da campanha de
Dilma na internet Marcelo Branco e do lado
esquerdo uma mulher – Helena – que assim
como Marcelo recebe as perguntas, o trecho
também focaliza Dilma como podemos ver na
figura 4 quando ela termina de “responder”
Em seguida, o produtor insere
supostamente a pergunta do quadro:
novamente a imagem da figura 1 e a
“Olha, tinha uma...1, uma divergência, é... videomontagem é finalizada. Diante do exposto,
(podemos observar, nesse instante, que o podemos dizer que os recursos de edição
produtor insere uma pausa no vídeo de utilizados colaboram para a construção do
cinco segundos e enquanto o vídeo é simulacro do discurso de Dilma e permitem que
se construa determinados efeitos de sentido. A
resposta que Dilma supostamente dá para
1
As reticências usadas na transcrição representam uma pausa
pergunta do quadro-negro, elaborada pelo
breve na fala.

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101
sujeito-produtor, é editada com uma pausa, fato são intercalados por slides acompanhados ou
que possibilita a emergência de alguns não de música, além da inserção de sons e
implícitos tais como: “quem demora para figuras nas imagens retiradas dos vídeos.
responder é porque não se lembra”, “uma avó Trata-se do terceiro episódio de seis da
atenciosa jamais esqueceria o nome de seu série Direito ao Assunto de um suposto
neto”, “a candidata está com dificuldades para produtor-editor que utiliza também o
responder rapidamente a pergunta do pseudônimo de Exilados na Rede. A
internauta, será que está preparada para assumir videomontagem começa com um trecho de uma
um cargo tão importante?”, é sedimentada a entrevista de Dilma em seu blog durante a pré-
possibilidade interpretativa de que Dilma não campanha eleitoral, a candidata cumprimenta os
saiba ou não se lembre do nome do seu neto, internautas e pergunta para onde deve olhar, se
por isso “demora” para responder a pergunta. referir (figura 5):
É possível entender que o produtor ao
utilizar a pausa, traduz o discurso do outro E12: Oi, eu falo pra onde? Pra lá? (E
(Dilma) que é trazido para o vídeo (entendemos aponta, figura 5).
discurso do Mesmo) sob suas categorias, a E2: Pra aquela câmera.
partir do seu interdiscurso, ele permite que a
voz da candidata apareça; entretanto, com o Figura 5 (00:00 - 00:08)
uso dos recursos de edição, permite a
construção de algumas possibilidades
interpretativas sustentadas por implícitos,
havendo, assim, uma tentativa de apagamento
do discurso Outro/outro e outras interpretações
passam a não existir, como as de que Dilma é
uma ótima mãe e boa avó, dedicou-se sempre a
família como irá dedicar-se ao país.
Igualmente, é possível entender que uma
das possibilidades interpretativas construídas é Em seguida, temos a inserção do slide
a de que se Dilma não se lembra do nome de (figura 1) que também aparece na
seu próprio neto, não tem cuidado com a videomontagem anterior e enquanto o
família, não terá cuidado com o país, o povo. visualizamos, ouvimos uma espécie de jingle,
Um dos objetivos da montagem é produzir uma música com alguém que assobia
sentido em torno da ideia de que Dilma não distraidamente e de modo descontraído. Logo
consegue responder de improviso ou até após visualizarmos esse slide representado pela
espontaneamente nenhum tipo de pergunta, pois figura 1, é inserido o trecho do mesmo vídeo do
ela é sempre treinada, ensaiada por Lula. início da videomontagem em que Dilma
responde a perguntas de internautas em um
A videomontagem intitulada Direto ao
assunto Episódio#03 – Meio Ambiente é
2
E1: Dilma Rousseff; E2: Marcelo Branco sentado do lado
composta por recortes de diferentes momentos direito de Dilma; E3: Mulher sentada ao lado esquerdo de
da então candidata, isto é, pequenos vídeos que Dilma – Helena; E4: Sujeito-produtor.

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102
continua) porque é algo que a gente tem que
bate-papo ou entrevista produzida ao vivo em se preocupar, de fato, nós inclusive lá em
seu blog durante a pré-campanha presidencial. Copenhague fomos os que tiveram oposição,
Nesse vídeo, ela encontra-se sentada em eu acho que em termos da mudança do
frente a uma mesa, do seu lado direito Marcelo clima mais consequente ...
Branco, coordenador da campanha de Dilma na
internet e, do lado esquerdo, vemos uma mulher A fala da candidata é interrompida e
com outro computador e que lê a pergunta dos entra uma tela com chuviscos; então, o sujeito-
internautas para Dilma. Vejamos a figura 6 que produtor insere um recorte da fala de Dilma em
exemplifica um trecho do vídeo e, em seguida, a Copenhague (figura 7):
transcrição da fala da então candidata e da
mulher que lê a pergunta: E1: ...o meio ambiente é, sem dúvida
nenhuma, uma ameaça ao desenvolvimento
Figura 6 (00:15 - 00:40)
sustentável e isto significa que é uma
ameaça para o futuro do nosso planeta e dos
nossos países...

Como plano de fundo, ouvimos um


assobio com tom de descontração e é inserido
novamente o slide representado aqui pela figura
1. É possível notar que o seu sujeito-
produtor traz para o seu discurso, o discurso do
outro (Dilma) e no fio do seu próprio discurso
ao provocar a junção de dois momentos
Figura 7 (00:41 – 00:52) distintos e que, de certo modo, se contradizem,
permite a emergência de outras possibilidades
interpretativas que produzem efeitos de
sentidos acerca da imagem da candidata. De
maneira sucinta, o produtor tenta repassar a
ideia de que no discurso de Dilma há algum
problema ao recortar dois momentos distintos
de seus discursos.
No primeiro (figura 6), ela afirma a
importância do governo em se preocupar com o
E3: Chegou aqui uma mensagem da Lara desmatamento da Amazônia e o aquecimento
Sales do interior da Paraíba, de 16 anos e global: “é algo que a gente tem que se
ela “tá” preocupada com o desmatamento da preocupar, de fato, nós inclusive lá em
Amazônia. Todos nós, não é Ministra? Copenhague fomos os que tiveram oposição, eu
E1: Faz muito bem, viu, é uma coisa muito acho que em termos da mudança do clima mais
boa, viu, Lara (ministra fala e pega a folha consequente ...”, contudo, no segundo recorte
onde supostamente está a mensagem e inserido que traz parte do discurso da ministra

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103
na Convenção de Copenhague (figura 7), ela que ocorre é uma tentativa de apagamento
elabora um enunciado contraditório: “...o meio desse discurso do Outro por meio dos recursos
ambiente é, sem dúvida nenhuma, uma multimodais acrescentados, tais como: o
ameaça ao desenvolvimento sustentável e assobio, a tela com chuviscos, o ponto de
isto significa que é uma ameaça para o futuro interrogação acima da cabeça do companheiro
do nosso planeta e dos nossos países...”. Essa de Dilma e a própria inserção/justaposição dos
maneira de organizar a sequência dos recortes dois recortes, que permite a emergência de uma
resulta em possíveis efeitos de sentido porque heterogeneidade dissimulada.
pode fazer emergir ideia como a de que Dilma Esse processo de apagamento, contudo,
possa ser uma pessoa incoerente ou desatenta e, se dá legitimado pelo interdiscurso de que
portanto, não tenha habilidades para bem Dilma Roussef, ex-ministra do presidente Lula,
governar o país. como diz o primeiro e o último slides
O que direciona nosso olhar para essa (representados pela figura 1), não tem
constatação de que Dilma seria incoerente e, competência para bem governar assim como o
por isso, incapaz de governar, são os recursos então presidente Lula. O sujeito-produtor
como som – o assobio que reverbera para uma refere-se a Dilma como a ex-ministra do
determinada memória acerca do seu uso, isto é, Presidente Lula, e não como Dilma Rousseff,
o descompromisso – e a imagem (figura 7) que candidata ou outro sinônimo que a predique ao
apresenta um ponto de interrogação logo acima cargo em questão. Há aqui semanticamente a
da cabeça, o que permite interpretarmos que ele construção de um sentido outro, aquele de que
também não teria entendido o enunciado Dilma não teria competência ou não seria apta a
contraditório da ministra. Em suma, as ocupar um cargo de presidência. Existe, nesse
materialidades multimodais acopladas de trajeto de sentido criado, um apagamento do
maneira simultânea na produção de sentido do traço semântico competência, que se supõe ser
discurso da videomontagem (jogo de imagem, necessário a um futuro presidente da República,
enunciados e som) colaboram para a construção algo que a montagem deixa subentendido faltar
do simulacro do discurso de Dilma que é em Dilma.
trazido para o discurso da videomontagem por Cabe ressaltar que os discursos de
meio de uma interincompreensão regrada que momentos distintos são postos numa sequência
se faz da sua imagem como candidata a partir do discurso do produtor que permitem a
das categorias do sujeito-produtor da construção de uma polêmica como
montagem. Essa voz do Outro/Dilma no interincompreensão regrada
discurso do Eu/sujeito-produtor traduzida em (MAINGUENEAU, 2005) visto que é o
forma de simulacro é característica da sujeito-produtor que constrói o seu discurso ao
heterogeneidade dissimulada do discurso. tomar o discurso do outro – Dilma – e, ao
Assim, o trecho não apresenta uma mesmo tempo, evidenciar o suposto equívoco
negociação em que o discurso do Eu delimita naquele discurso Outro/outro que não é dele.
ou denega o discurso do Outro como no Portanto, ao tomar esse discurso por meio da
processo de negociação entre a sua formação discursiva, ele possibilita a
heterogeneidade constitutiva e mostrada, mas o

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104
criação um simulacro do discurso do Mesmo e permitindo a emergência de uma
levanta uma relação de polêmica. heterogeneidade dissimulada, já que o Outro é
satírico e permanece abrigado no humor
Considerações Finais
derrisório, portanto, recebe sanções, e não
Fica evidenciado por meio da descrição punições.
do material que há materialidades multimodais
acopladas de maneira simultânea que garantem
a produção de determinados efeitos de sentido Referências
no discurso da videomontagem humorística
derrisória, recursos como jogo de imagem,
materialidade linguística e som entre outros que AUTHIER-REVUZ, J. Entre a transparência e
em conjunto buscam descaracterizar a candidata a opacidade: um estudo enunciativo do sentido.
em torno da ideia de que ele seja um robô, seja Apres. Marlene Teixeira. Revisão da trad. Leci
programada para agir de uma determinada Barbisan e Valdir Flores. Porto Alegre:
maneira. Quando essa programação, ensaio ou EDIPUCRS, 2004.
adestramento “mostrados” no início e no final ______. Heterogeneidades enunciativas. In:
da montagem não acontecem, há, Cadernos de estudos lingüísticos, 19.
consequentemente, a falta de clareza em seu Campinas: IEL, 1990.
discurso.
BARONAS, R. Derrisão: um caso de
Há regularidades enunciativas em torno heterogeneidade dissimulada. In: Polifonia.
da ideia principal da descaracterização, afirmar Cuiabá: EDUFMT, 2005. p. 99-111.
a falta de competência administrativa de Dilma
que permitem a emergência de alguns implícitos BONNAFOUS, S. Sobre o bom uso da
como: “ela seria apenas um fantoche, um ser derrisão em J.M.Le Pen Trad. de Maria do
político adestrado, robotizado por Lula”. Rosário Gregolin e Fábio César Montanheiro.
Notamos que o sujeito-produtor ao referir-se a In: GREGOLIN. M.R. (org.) Discurso e Mídia:
Dilma como a ex-ministra de Lula, a expressão a cultura do espetáculo. São Carlos: Claraluz,
faria referência a Lula o verdadeiro mentor e 2003.
idealizador da campanha, aquele que realmente Direto ao assunto: Episódio #01 – Família.
iria presidir o Brasil. Disponível em:
Ao apresentar o discurso de Dilma na <http://www.youtube.com/watch?v=IaasXCSm
videomontagem, o sujeito-produtor a partir de 1Tk> Acesso 30 març 2015.
uma interincompreensão regrada do discurso Direto ao assunto: Episódio #03 – Meio
do outro (MAINGUENEAU, 2005) possibilita Ambiente. Disponível em:
a criação de um simulacro que brota de uma <http://www.youtube.com/watch?v=8wIlFaF2r
não compreensão dos enunciados do outro. Ou 4c&feature=relmfu> Acesso 30 març 2015.
seja, o produtor não só inscreve o outro na
sequência do discurso, mas também traz esse MAINGUENAU, D. Análise do discurso e
discurso outro que o constitui traduzido sob suas fronteiras. Trad. Décio Rocha. In: Revista
suas categorias interdiscursivamente, Matraga, nº 20, Rio de Janeiro: UERJ, 2007.

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105
______. Gênese dos Discursos. Trad. Sírio
Possenti. Curitiba: Criar, 2005.

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106
AS RELAÇÕES DE INFLUÊNCIA ENTRE MÍDIA E
RELIGIÃO: REPRESENTAÇÕES DAS RELAÇÕES
HOMOAFETIVAS NO PROGRAMA DIREÇÃO ESPIRITUAL DO
PADRE FÁBIO DE MELO

Denise de Souza ASSIS; Mônica Santos de Souza MELO


Universidade Federal de Viçosa (UFV)
denisesouzaassis05@gmail.com; monicassmelo@yahoo.com.br

Resumo: O presente artigo procura investigar as representações das relações


homoafetivas no discurso religioso midiatizado. Assim, procuramos trabalhar com um
aconselhamento do Padre Fábio de Melo exibido em seu programa semanal na emissora
Canção Nova, o programa Direção Espiritual. Preocupamo-nos em analisar a
argumentação neste corpus, de modo a perceber como o padre utiliza as estratégias
argumentativas para retratar essa temática polêmica, de modo a transmitir suas ideias e
opiniões para o público. A análise deste corpus foi orientada pela Teoria
Semiolinguística de Patrick Charaudeau e as Teorias Argumentativas de Perelman.
Palavras-chave: mídia; religião; teoria semiolinguística; argumentação;
homoafetividade.

se relacionam com outros campos sociais,


Introdução afetando-os e por eles sendo afetados. Nesse
processo estão envolvidos os meios (fornecidos
Um novo fenômeno que vem se
pelo campo midiático), os demais campos com
destacando no campo social e aproximando os
os quais este se relaciona (no nosso caso, o
domínios midiático e religioso tem sido
religioso) e os indivíduos envolvidos. Assim,
responsável pela formação de interações que
como forma de trabalhar a relação entre mídia e
possibilitam a doutrinação dos fiéis a partir dos
religião, e a representação das relações
mais variados tipos de mídias. Esse processo é
homoafetivas pelo discurso religioso,
conhecido por midiatização do discurso
escolhemos, como corpus deste trabalho, um
religioso e tem se tornado cada vez mais
aconselhamento religioso exibido no programa
presente na sociedade contemporânea.
Direção Espiritual, da emissora Canção Nova,
Para Gasparetto (2009) pode-se dizer no qual, o apresentador Fábio de Melo
que a midiatização é um fenômeno técnico, responde a uma carta de uma telespectadora, de
social e discursivo por meio do qual as mídias forma a aconselhar e expor seus

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107
posicionamentos e ideias sobre a temática das
1. Mídia e Religião: O programa Direção
relações homoafetivas.
Espiritual
A metodologia utilizada neste trabalho é
O corpus utilizado neste artigo trata-se
de cunho qualitativo, visto que partimos da
de um aconselhamento religioso exibido no
transcrição do aconselhamento estudado, já
programa Direção Espiritual da rede Canção
que, neste artigo , propomos verificar, a forma
Nova. O apresentador Padre Fábio de Melo
como a igreja tem utilizado a televisão e a
aconselha e orienta o público a partir das
relação constante com a mídia para estabelecer
respostas de questionamentos sobre diversos
uma interação direta com os fiéis, de modo a
temas do cotidiano, e o programa ajuda o
propagar suas doutrinas e posicionamentos.
telespectador a refletir sobre situações da vida
Desse modo, pretendemos descrever a
real que precisam de visão espiritual e palavras
organização argumentativa do aconselhamento
de sabedoria. A dinâmica do programa é
em questão, identificando as principais teses
bastante interativa, visto que o público interage
defendidas pelo enunciador em relação à
e participa diretamente com o apresentador
temática das relações homoafetivas, bem como
através do telefone, de cartas, de e-mails e das
as estratégias argumentativas utilizadas para
redes sociais. O aconselhamento escolhido
defendê-las. Assim, seguiremos o referencial
como corpus deste trabalho pode ser acessado
teórico ligado à Análise do Discurso, Teorias
pelo youtube pelo nome: “Homoafetividade e
Argumentativas e da Teoria Semiolinguística de
Homossexualidade- Padre Fábio de Melo”
Patrick Charaudeau.
através do link http://www.youtube.com
Na primeira parte deste artigo, faremos /watch?v=UGw4kD0EWfk.
uma breve contextualização a respeito do
O tema específico deste aconselhamento
corpus escolhido para análise. Em seguida,
são as relações homoafetivas. Desse modo, o
apresentaremos um resumo do referencial
padre responde a um e-mail, no qual, uma
teórico no qual nos debruçamos para o
menina, que não é identificada pelo nome, com
desenvolvimento deste trabalho. E, por último,
idade de 23 anos, relata que tem um
apresentaremos a análise e a discussão de
relacionamento homoafetivo com sua melhor
dados.
amiga e fala de seus problemas pessoais, visto
Como resultados podemos dizer que há que, ela alega que descobriu que seu pai traía a
a predominância do discurso preconceituoso em sua mãe e que isso abalou a confiança da filha
relação às relações homoafetivas, que é em relação aos seus relacionamentos. A garota
revelado a partir dos léxicos e expressões declara que antes do relacionamento
utilizados pelo padre, além de predominar o homoafetivo, apenas namorou pessoas do sexo
discurso da igreja católica, visto que no oposto e que durante este tempo sempre foi
momento de sua fala, padre Fábio de Melo se enganada e traída.
projeta como um ser psicossocial e coloca em
Por se tratar de um corpus ligado à
destaque as posições da igreja. Os argumentos
religião e exibido por uma emissora televisiva, é
encontrados foram na maioria relacionados ao
possível dizer que se trata de um discurso
modo de encadeamento da causalidade.
religioso midiatizado, que tem se tornado cada

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108
vez mais comum na sociedade contemporânea e interlocutor) propostos pela Teoria
visa à propagação de doutrinas e captação de Semiolinguística, é possível dizer que: o TU
fieis. Segundo Gutíerrez (2006), pode-se dizer não deve ser considerado apenas um receptor
que o processo de midiatização do campo da mensagem, mas aquele que constrói uma
religioso é recente, visto que aconteceu por interpretação a partir do ponto de vista que tem
volta de 40 anos atrás, devido à influência de sobre as circunstâncias do discurso. No ato de
evangelizadores norte-americanos. No Brasil, comunicação haverá a presença de dois TUs
país predominantemente cristão e com maior que se diferem: o TU- interpretante (TU´) e o
número de católicos no mundo, esse processo TU-destinatário (TU). Assim, é possível dizer
vem causando uma modificação no fazer que:
tradicional da religião, a partir da comodidade O EU dirige-se a um TU- destinatário, que o
que as mídias oferecem. EU acredita (deseja) ser adequado ao seu
propósito linguageiro (a “aposta” contida no
2. A Teoria Semiolinguística e a ato de linguagem). No entanto, ao descobrir
Argumentação que o TU-interpretante (TU´) não
A Teoria Semiolinguística de Patrick corresponde ao que havia imaginado
Charaudeau caracteriza o ato de linguagem (fabricado), acaba por descobrir-se como
como sendo o produto de um contexto no qual um outro EU ( EU´), sujeito falante suposto
(fabricado) pelo TU-interpretante (TU´).
se inserem um emissor e um receptor, que
(CHARAUDEAU, 2010, p. 44).
podem atribuir a uma expressão linguística
diferentes interpretações. Segundo Charaudeau
(2010), esses são os sujeitos deste discurso e É essencial dizer que o ato de linguagem
responsáveis pela produção de sentido e se revela como um encontro dialético entre o
significado durante o mesmo. Assim, pode-se processo de produção, que é criado por um EU
dizer que esta teoria preocupa-se em estudar os e dirigido a um TU- destinatário, e um processo
discursos sociais do ponto de vista do sentido. de interpretação, criado por um TU´-
interpretante, que acaba construindo uma
É importante destacar que para
imagem EU´ do locutor. Partindo dessa
Charaudeau (2010) todo ato de linguagem se
perspectiva, Charaudeau (2010) diz que o ato
insere num projeto geral de comunicação que é
de linguagem acaba tornando-se um ato
concebido por um sujeito comunicante, que
interenunciativo entre quatro sujeitos.
organiza seu discurso a partir do contexto e da
situação em que está inserido. Este linguista Quando se pensa em Teoria
acredita que todo ato de linguagem será Semiolinguística, é importante destacar os
resultado de um jogo entre o implícito e o modos de organização com os quais
explícito, e para isso haverá as circunstâncias de Charaudeau (2010) trabalha. Sendo eles, os
discurso específicas, realizadas a partir do modos Enunciativo, Descritivo, Narrativo e
ponto de encontro dos processos de produção e Argumentativo. No presente artigo, nos
interpretação. pautaremos sobre o Modo Argumentativo, que
é o foco do nosso trabalho. Esses modos devem
Ao considerarmos os sujeitos de
ser considerados condições de construção do
linguagem EU (sujeito produtor) e TU (sujeito-
discurso que o sujeito falante disporia para

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109
organizar sua intenção discursiva, e não como a
esquematização do texto. A argumentação, que O sujeito que argumenta passa pela
trataremos neste trabalho, representa uma expressão de uma convicção e uma
totalidade do modo de organização explicação que tenta transmitir ao
argumentativo, e está ligada à finalidade de interlocutor para persuadi-lo a modificar seu
persuasão. comportamento. (CHARAUDEAU, 2010,
p.205)
Na antiguidade, período em que a
argumentação começou a se tornar mais visivel, 3. Análise e discussão de dados
era vista como uma grande fonte de persuasão e
sedução. Segundo Charaudeau (2010), os O foco de análise neste trabalho é a
gregos acreditavam que o estudo da argumentação no discurso do padre Fábio de
argumentação tratava-se de uma forma de Melo, em um aconselhamento religioso sobre as
expressão que tinha grande capacidade de relações homoafetivas. Desse modo, nos
captação e comoção do auditório. preocupamos em selecionar as principais teses
desenvolvidas durante a fala do padre, e os
Pensando na argumentação como a arte argumentos e tipos de argumentos que foram
de convencer e persuadir um determinado utilizados para justificar e embasar as ditas
público, Perelman e Tyteca (1987) a teses. Neste trabalho, nos limitamos a trazer as
consideram um processo situado em que um duas teses mais debatidas durante o discurso de
orador tem a finalidade de convencer seu dito Fábio de Melo, visto que foram as que tiveram
auditório, ou seja, seu destinatário. Para eles: mais embasamento pela fala do locutor.
Argumentar é fornecer argumentos, ou seja, Através das teses selecionadas é
razões a favor ou contra determinada tese. possível identificar e perceber algumas
Uma teoria de argumentação, na sua estratégias argumentativas escolhidas por Fábio
concepção moderna, vem assim retomar e de Melo como forma de transmissão de ideias e
ao mesmo tempo renovar a retórica dos posicionamentos a respeito das relações
Gregos e dos Romanos, concebido como homoafetivas, com o intuito de persuasão e
arte de bem falar, ou seja, a arte de falar de
captação da sua interlocutora direta, a menina
modo a persuadir e a convencer, e retoma a
que redigiu a carta, e os demais telespectadores
dialéctica e a tópica, artes do diálogo e da
controvérsia.(PERELMAN; OLBRECHTS- e público, que também constituem os
TYTECA, 1987, p. 234). destinatários visados pelo padre.
A primeira tese encontrada no discurso
A argumentação, como técnica de de Fábio de Melo revela o seguinte
persuasão e convencimento, muitas vezes, se posicionamento do padre:
encontrará no implícito, o que faz com que a
sua interpretação se estabeleça não apenas na TESE 1: A homossexualidade não é uma
superfície do texto, dependendo da descoberta prática correta, mas quem a pratica merece
respeito.
dos sentidos pelos sujeitos do discurso. Assim,
é importante pensar que:

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110
respeito e a dignidade devem existir, pois são
Como forma de sustentar essa tese, o
fundamentos cristãos.
padre apresenta o argumento (1), que pode ser
considerado uma citação de saber, que para A segunda tese identificada a partir da
Charaudeau (2010), é uma fonte de verdade e fala do sujeito locutor retrata que:
emana de uma figura que representa uma
autoridade. Essa autoridade pode ser percebida TESE 2: Homossexualidade não é inata,
no momento em que ele traz a figura de Jesus tem alguma causa ou motivo. É algo
adquirido ou até mesmo uma deformação de
Cristo como forma de dar legimitidade e
comportamento causada por algum trauma.
credibilidade a sua fala. Em se tratando de
discurso religioso, Essa figura pode ser
considerada o maior patamar de legitimação. Como forma de embasar o seu
posicionamento acerca da homossexualidade
ser uma prática comportamental e não estar
Eu, como legítimo representante de ligada ao inatismo biológico, como muitos
Jesus, aqui, por mais que eu não concorde grupos defendem, padre Fábio de Melo nos
com seu jeito de viver e de agir eu preciso apresenta três argumentos ditos de causa e
defender sua dignidade. (1) consequência.

Tudo aquilo que nos ocorre, tudo


Eu tenho o direito de pensar assim, aquilo que nós experimentamos no nosso
você tem o direito, mas agora agredirmos campo afetivo, de alguma maneira, tem
fisicamente ou usarmos da nossa posição raízes que precisamos descobrir. É por isso,
para podermos humilhar, para poder falar que a autorreflexão ajuda muito, ás vezes é
mal, para poder desumanizar o outro com o refletindo os fatos do passado que a gente
nosso discurso, isso nem cristão é . (2) consegue corrigir os erros do presente. (3)

É possível dizer, através de uma


A partir do momento que trai a mãe
interpretação semântica, que o padre, no
ela começou a identificar no pai, aí, ruiu
excerto (1), ao utilizar a expressão jeito de
aquela figura paterna positiva que ela tinha
viver e de agir, está se posicionando como referencial, ruiu e de repente um
contrariamente à homoafetividade, tempo depois, o processo da decepção foi
desqualificando essa prática. Desse modo, minando, foi minando , foi minando... As
mesmo ele trazendo a figura de Jesus Cristo experiências de traição dos namorados que
como forma de legitimação, Fábio de Melo também ela conta que foi muito enganada a
deixa transparecer um posicionamento ruim em levou a um relacionamento homoafetivo. (4)
relação à homossexualidade, mesmo querendo
manter o legado de humanidade e amor ao
próximo defendido pela igreja católica. Isso é Agora, no seu caso, minha filha,
claramente visível no excerto (2), visto que o você tem que analisar se você tem se
encaminhado para essa homossexualidade,
padre expõe enfaticamente que mesmo não
talvez muito mais, por que você reconhece
concordando com uma determinada prática, o
que você gosta de homens, que você

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111
namorou homens, que você tem desejo de ter
uma família e que você mesmo não tem
a levou mostrando claramente que concorda
certeza do que lhe ocorre, porque você deve que a homoafetividade da menina foi
ter encontrado nessa moça, a cura dessa consequência de problemas anteriores, o que
insegurança que o seu pai te colocou, no continua ratificando a desqualificação das
momento, em que ele traiu a sua mãe, e que relações homoafetivas.
você se sentiu traída também, ou até mesmo Pelo excerto (5), o padre vem reafirmar
quando você olhou para os relacionamentos
que a homossexualidade da menina tem causas
que você teve e você percebeu que sempre
relacionadas a seu passado, principalmente, a
houve infidelidade. (5)
traição do pai, já que na carta, a menina alega
ter descoberto que seu pai traía a sua mãe, e
A partir dos excertos (3), (4) e (5) é nos seus relacionamentos heterossexuais, visto
possível perceber que o interlocutor apresenta que a menina conta ter se relacionado com
dois argumentos de causa e consequência. homens e também ter sido traída e enganada.
Primeiramente, pelo exemplo (3) é possível Novamente, os verbos utilizados pelo padre,
dizer que Fábio de Melo traz uma causa vêm como forma de fazer com que o seu
específica para a homoafetividade da menina, destinatário reconheça veemente que a
que está ligada a problemas pessoais do seu homossexualidade é comportamental, e para
passado. Assim, ele descontrói a premissa de isso ele utiliza a forma verbal encaminhado.
que a homossexualidade seja algo inato, nos
levando a entender que a prática homossexual Outro ponto a ser destacado neste
tem um motivo relacionado a algum problema excerto, é o fato de que o padre insiste em dizer
emocional ou afetivo, o que novamente que a menina revelou que gosta de homens e
desqualifica as relações homoafetivas. Essa sente vontade em ter uma família, mas em
desqualificação também pode ser percebida no nenhum momento, há isso em sua fala, já que
momento em que o padre utiliza a expressão: ela apenas cita que teve relacionamentos com o
erros do presente, visto que fica nítida a sexo oposto e que foi traída em todos eles.
comparação da homossexualidade a um erro. Neste sentido, é possível dizer que esta é uma
Além do mais, ao sugerir que a pessoa faça uma estratégia utilizada pelo locutor para dar
autorreflexão pode-se dizer que o sujeito credibilidade ao seu pensamento de que o
comunicante também quer levar o seu relacionamento homoafetivo da menina é algo
destinatário a pensar essa prática como ruim, já comportamental e passageiro, visto que ela tem
que é algo que precisa de reflexão. outros desejos. No final do excerto, é possível
perceber que novamente o padre desqualifica as
Novamente pelo excerto (4), relações homossexuais, já que utiliza a
verificamos a presença de um argumento causa expressão cura dessa insegurança, o que nos
e consequência, no momento, em que o padre leva a pensar que há a comparação da
traz os problemas familiares e afetivos da sua homossexualidade a uma doença que precisa ser
interlocutora como uma causa ou justificativa curada.
para que ela tenha assumido um relacionamento
homossexual. A consequência é explícita no 4. Considerações Finais
momento em que o padre utiliza a forma verbal

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112
encadeamento geral de causalidade, pois,
É possível dizer que pelas análises
segundo Charaudeau (2010), as relações
feitas, pudemos perceber um posicionamento
argumentativas que se definem em uma relação
homofóbico revelado pela igreja católica e, por
de causalidade e outros tipos de relações
seu representante, Fábio de Melo, a partir dos
lógicas podem se inscrever durante a
léxicos e expressões que o mesmo utilizou
argumentação.
durante a sua fala. O uso de verbos como levou
e encaminhado confirmam o posicionamento do
padre de que a homossexualidade é algo Referências
comportamental, e são utilizados como
estratégias de captação do público e CHARAUDEAU, P. Discurso das
reconhecimento de verdade. Palavras e Mídias/tradução Angela M.S. Corrêa. 2. ed., 2°
expressões ligadas a um campo semântico de reimpressão. - São Paulo: Contexto, 2013.
desqualificação como: cura, insegurança, erro ________________, P. Linguagem e Discurso:
do presente, também são utilizadas como forma Modos de Organização; [coordenação da
de levar o interlocutor a acreditar na conduta equipe de tradução Angela M.S. Correa e Ida
errônea desta prática. Lúcia Machado]. – 2° ed. São Paulo: Contexto,
C omo sujeito comunicante deste 2010.
discurso , padre Fábio de Melo assume seu _______________, P. Visadas discursivas,
lugar como um ser psicossocial e coloca-se gêneros situacionais e construção textual, in
como um representante da igreja católica. Machado, I L; MELLO, R. Gêneros reflexões
Dessa forma, todos os argumentos utilizados em análise do discurso. Belo Horizonte,
por ele não representam somente uma Nad/Fale-UFMG, 2004. Disponível em:
manifestação de sua opinião, mas reflete os <http://www.patrickcharaudeau.com/Visadas-
posicionamentos e ideais da igreja católica, discursivas-generos.html>Acesso em: 13/05/14.
instituição representada neste discurso pelo
FIEGENBAUM, R. Z. Midiatização do campo
padre.
religioso: tensões e peculiaridades de uma
Por estarmos falando em discurso relação de campos. UNIrevista - Vol. 1, n° 3,
religioso midiatizado é crucial ressaltar a forte p.1-12: jul, 2006.
projeção midiática representada por Fábio de
GASPARETTO, P.R. Midiatização da
Melo, já que o mesmo, além de ser padre,
religião. Processos midiáticos e a construção
também é considerado uma celebridade, já que
de novas comunidades de pertencimento.
é apresentador de TV, cantor e escritor. Além
Estudo sobre a recepção da TV Canção Nova.
de ser convidado para diversos programas
Tese de Doutorado. São Leopoldo, RS:
televisivos sem cunho religioso. Essa questão
Unisinos, 2009.
intensifica a importância dessa relação entre
mídia e religião, o que dá mais legitimação ao GOMES, P.G. Processos midiáticos e
discurso proferido pelo sujeito comunicante. construção de novas religiosidades: dimensões
Os argumentos que foram destacados históricas. Cadernos IHU, ano 2, n° 8. São
neste trabalho se inscrevem em um modo de Leopoldo: UNISINOS, 2004.

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113
GUTIÉRREZ, L.I.S. A Midiatização Televisiva
da Religião. Uma experiência de pesquisa sobre
os processos midiáticos e a religiosidade.
UNIrevista - Vol. 1, n° 3, p. 1-13 : jul. 2006.
MELO M.S.S. Pressupostos de uma Teoria
Psicossocial do Discurso: A Semiolinguística.
In: CATALDI, C; GOMES, M.C. A; MELO,
M.S.S, Eds. Gênero Discursivo, Mídia e
Identidade. Viçosa, MG: Ed. UFV, 2007.
ORLANDI, E.P. Análise De Discurso:
Princípios e Procedimentos. 10° edição,
Campinas, SP- Pontes Editores, 2012.
__________. Discurso e Texto: Formulação e
Circulação dos sentidos- Campinas, SP: Pontes,
2 ° edição , 2005.
PERELMAN, C.; OLBRECHTS-TYTECA, L.
Tratado da argumentação – a nova Retórica.
São Paulo: Martins Fontes, 2000.
____________. Argumentação. In:
ENCICLOPÉDIA Einaudi. Lisboa: Imprensa
Nacional, 1987, p. 234-265.

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114
JOVENS OU DELINQUENTES: ANÁLISE DAS FORMAÇÕES
DISCURSIVAS E IDEOLOGIAS NOS DISCURSOS
ANTAGÔNICOS ACERCA DA REDUÇÃO DA MAIORIDADE
PENAL NO BRASIL.

Monnyke Olga Barbosa ASSUNÇÃO


Universidade do Estado do Amazonas (UEA)
monnyke_assuncao@hotmail.com

Resumo: Este trabalho tem por propósito investigar os aspectos discursivos e ideológicos
latentes no discurso da presidente da república, Dilma Rousseff, publicado na sua página
institucional em uma rede social, acerca da diminuição da maioridade penal. Buscar-se-á
discutir as diferentes proposições face às ideologias em voga no momento em que os
discursos foram (re)produzidos, refletindo sobre a construção destas “verdades”,
percorrendo os caminhos interpretativos que lhe dão validade e legitimidade, à luz das
teorias da análise de discurso francesa, dentre elas, a do filósofo francês Michel
Foucault, no que diz respeito às relações entre verdade, direito, poder e sua aplicação
normativa. Ademais, serão exploradas as formulações de Michel Pêcheux e Louis
Althusser, verificando se o ideal de justeza perseguido pelo Estado e pelo Direito é de
fato atingido.
Palavras-chave: maioridade penal; análise de discurso; constituição federal.

mas o sentimento de impunidade e o clamor


Introdução
social por justiça diante dos delitos cometidos
O aumento significativo de crimes de por menores, tão veementemente noticiadas
alto potencial ofensivo praticados por jovens, pela mídia atual, deslocou o epicentro da
menores de 18 (dezoito) anos, reacendeu o discussão para a sociedade, deixando de ser
debate acerca da redução da maioridade penal monopólio do Estado determinar os rumos das
no Brasil, tema sobre o qual os legisladores e alterações legislativas.
juristas vêm refletindo desde a apresentação da
As manifestações populares a favor da
Proposta de Emenda à Constituição Federal do
modificação da responsabilidade criminal dos
Brasil nº 171, de 19 de agosto de 1993, pelo
menores obrigaram os parlamentares a sair do
deputado federal Benedito Domingos.
ponto de inércia e discutirem sobre o tema,
Tal projeto vem tramitando no posicionando-se e expondo suas concepções
Congresso Nacional há cerca de 22 (vinte e filosóficas e políticas, retomando, assim, a
dois) anos, sendo reiteradamente arquivado, votação da PEC 171/1993, recentemente

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115
aprovada em primeiro turno pela Câmara dos sociedade, sendo finalmente concretizada no
Deputados, após duas sessões conturbadas e início do século XX, após muitas batalhas para
permeadas por polêmicas quanto à legitimidade que uma legislação amparasse as crianças e
do objeto da proposta e rito de aprovação. adolescentes. Em 1927, foi criado no Brasil o
Decreto nº 17.943, denominado de Código de
Tal questão tem sido analisada por
Menores, com vistas à proteção da criança que
diversos prismas, seja jurídico, biológico,
antes estava desprotegida, e a repressão aos
histórico, filosófico, sociológico, político ou
crimes infanto-juvenil. Várias outras leis foram
cultural, o que gera uma infinidade de discursos
editadas, até o advento do Código Penal de
dentro dos universos daqueles que são a favor e
1940, e posteriormente do texto constitucional
dos que são contra tal medida redutiva. E é
de 1988.
nessa esteira que a presente pesquisa buscará
identificar, no discurso produzido pela De acordo com o ainda vigente Código
presidente da república, Dilma Rousseff, em sua Penal, artigo 27, a inimputabilidade penal é
página institucional no Facebook, as ideologias aplicada aos menores de dezoito anos, sendo
latentes nos discursos (re)produzidos, refletindo vedado submetê-los a processo criminal,
sobre a construção destas “verdades”. aplicando-se, em caso de ilícito, as normas
previstas em legislação especial. Conclui-se que
Buscar-se-á os caminhos interpretativos
o ordenamento pátrio adotou um critério
que lhe dão validade e legitimidade, não por
puramente biológico ao optar pela presunção
meio de uma análise técnico-jurídica dos
absoluta da falta de discernimento do menor de
pressupostos legais acerca da temática, e sim
dezoito anos que praticar um fato descrito
através do estudo reflexivo das diversas teorias
como crime ou contravenção penal, não sendo
da análise de discurso francesa, dentre elas, a
possível infligir qualquer sanção penal.
do filósofo francês Michel Foucault, no que diz
respeito às relações entre verdade, direito, Uma grande inovação teve guarida no
poder e sua aplicação normativa, denominada texto da Constituição Federal de 1988, ao
de “formações discursivas”. elevar as normas constitucionais que tratam das
crianças e adolescentes ao nível de garantia
Ademais, serão exploradas as
individual fundamental, verdadeira cláusula
formulações de Louis Althusser sobre as
pétrea, sendo dever da família, da sociedade e
ideologias e os aparelhos ideológicos que as
do Estado protegê-los. Em seu artigo 228
materializam, transformando indivíduos em
passou a prever o limite de idade para a
sujeitos, e de Michel Pêcheux, sobre o discurso
imputação penal aos dezoito anos, afinando-se
como mecanismo de funcionamento das
com o previsto no Código Penal
ideologias e da interpelação dos indivíduos
como sujeitos. Fruto da percepção doutrinária de
direitos humanos, em 1990 foi publicado o
1. Breve histórico acerca da maioridade
Estatuto da Criança e Adolescente (ECA),
penal: critérios e previsão legal.
tendo por escopo resgatar a qualidade de
A criação de um rol de direitos sujeito de direito intrínseco a todo ser humano,
peculiares aos menores de idade sempre foi uma tratando sem discriminação de todas as crianças
preocupação dos juristas, médicos e a e adolescentes, adotando assim a doutrina da

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proteção integral. O ECA não busca República, escreveu o seguinte texto em sua
simplesmente punir menores, mas, antes de página oficial no Facebook:
tudo, visa a ampará-los, recuperando os
delinquentes e reeducando-os, para que possam Nas últimas semanas, intensificou-se o
retornar à sociedade. debate sobre a redução da maioridade penal
no Brasil de 18 anos para 16 anos de idade.
O ECA procura especialmente Isso seria um grande retrocesso para o
estabelecer um sistema de preservação da nosso País. Há poucos dias, eu reiterei aqui
educação, sem abandonar as exigências de a minha posição contrária a esse tipo de
defesa social. Impõe-se a punição pelo fato iniciativa. E mantenho minha palavra.
praticado, mas as medidas se destinam Reduzir a maioridade penal não vai resolver
essencialmente a impedir que o adolescente o problema da delinquência juvenil. Isso não
volte a delinquir. As medidas têm, por isso, um significa dizer que eu seja favorável à
caráter mais subjetivo que objetivo, mais impunidade. Menores que tenham cometido
educativo que repressivo. algum tipo de delito precisam se submeter a
medidas socioeducativas, que nos casos
A aplicação das medidas sócio- mais graves já impõem privação da
educativas previstas no ECA buscam a liberdade. Para isso, o País tem uma
reeducação e reintegração à sociedade, legislação avançada: o Estatuto da Criança
corrigindo o adolescente infrator, sendo e do Adolescente, que sempre pode ser
pressuposto para a sua aplicação a prática de aperfeiçoado. Acredito que é chegada a hora
ato infracional. Já no caso das crianças são de ampliarmos o debate para alterar a
aplicadas as medidas específicas de proteção, legislação. É preciso endurecer a lei, mas
para punir com mais rigor os adultos que
considerando-se criança a pessoa até doze anos
aliciam menores para o crime organizado.
de idade incompletos, e adolescente, aquele
Eu já orientei o ministro da Justiça, José
entre doze e dezoito anos de idade. Eduardo Cardozo, a dar início a uma ampla
As normas acima descritas são os meios discussão com representantes das entidades
utilizados pelos operadores do Direito para e organizações da sociedade brasileira para
tratar a problemáticas dos delitos cometidos aprimoramento do Estatuto da Criança e do
pelos menores. A polêmica que se instalou na Adolescente. É uma grande oportunidade
sociedade, suscitando o debate do tema, e (re) para ouvirmos em audiências públicas as
vozes do nosso País durante a realização
produzindo diversos discurso dissonantes,
deste debate. Mas, insisto, não podemos
gravita em torno de um questionamento permitir a redução da maioridade penal.
principal: é justo que o menor de idade pratique Lugar de meninos e meninas é na escola.
crimes de alto potencial ofensivo, e não seja Chega de impunidade para aqueles que
efetivamente punido? aliciam crianças e adolescentes para o
2. “Lugar de criança é na escola”: análise do crime. (Publicado em 13 de abril de 2015).
discurso presidencial acerca da redução da
maioridade penal. É sabido que a Presidência da República
é a representação maior de um Estado, sendo o
Em um de seus pronunciamentos
símbolo das ideologias predominantes em uma
públicos, Dilma Rousseff, presidente da

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classes de pronomes, que têm o mesmo
sociedade. O seu ocupante, ao exercer estatuto. São os indicadores da dêixis,
concomitantemente a chefia de governo e a demonstrativos, advérbios, adjetivos, que
chefia de estado, representa a vontade do povo organizam as relações espaciais e temporais
que governa, ou pelo menos de uma maioria, à volta do “sujeito” tomado como ponto de
uma vez que a investidura no cargo, haja vista o referência: “isto, aqui, agora”; e as suas
sistema democrático vigente no Brasil, se dá numerosas correlações: “aquilo, ontem, no
por meio de uma eleição direta por maioria ano passado, amanhã” etc. Tem em comum
absoluta dos cidadãos. E é neste espaço que definirem-se somente em relação à instância
encontramos a formação discursiva e ideológica de discurso em que são produzidos, isto é,
tida por dominante. sob a dependência do eu que aí se enuncia.
(BENVENISTE, 1992, p.53).
Chamaremos, então, formações discursivas
aquilo que, numa formação ideológica dada, Nas linhas três e treze, temos a presença
isto é, a partir de uma posição dada numa do pronome pessoal “eu” (ego). Resta claro,
conjuntura dada, determinada pelo estado da
pois, o posicionamento contrário da chefe de
luta de classes, determina o que pode e deve
estado no que concerne à criminalização de
ser dito (articulado sob a forma de uma
arenga, de um sermão, de um panfleto, de
menores, especialmente quando afirma que a
uma exposição, de um programa etc.) diminuição da maioridade penal seria “um
(PÊCHEUX, 1997, p. 160). grande retrocesso” (linha 02) para o País, o que
esclarece a valoração negativa atribuída pela
presidente à ação em tela.
Ao proferir o discurso em primeira
pessoa, cria-se um efeito de sentido de Tal medida, para a locutora, não traria
aproximação, subjetividade, marcando seu solução para o problema da delinquência
envolvimento pessoal com o tema, juvenil, propondo o reajustamento da situação
principalmente quando repete diversas vezes de criminalidade juvenil através de políticas
sua opinião através dos termos “ reiterei aqui educacionais, como forma de sanção positiva.
minha posição” (linha 03), “mantenho minha O tempo linguístico do enunciado é o
palavra” (linha 04), “insisto” (linha 18). presente, haja vista o emprego da expressão
Para Benveniste, a subjetividade tem “nas últimas semanas” (linha 01), e a publicação
como traço marcante o egocentrismo, do texto datar de 13 de abril de 2015. Assim,
colocando-se o “eu” numa posição de situa-se o acontecimento como contemporâneo
ascendência em relação ao “tu”, dado que da instância do discurso que o menciona,
daquele emergem todos os sentidos. É através representando também o momento presente na
do emprego de pronomes pessoais que se vida do interlocutor.
evidencia o aspecto subjetivo da linguagem: Afirma que a legislação que pune os
atos infracionais é avançada, embora necessite
Os pronomes pessoais é o primeiro ponto de
apoio para o esclarecimento da
de ajustes, e encerra sugerindo que a
subjetividade na linguagem. Destes modificação da legislação deve atingir não os
pronomes dependem, por sua vez, outras menores delinquentes, mas os imputáveis que
aliciam os jovens para praticar crimes.

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poder, quais as ideias e estratégias de repressão
Ao conclamar a sociedade para o
ou persuasão lançadas para garantir sua
debate, aparentemente transfere o poder de
sobrevivência (ALTHUSSER, 1985, p. 09-10).
decisão para o povo, entretanto, condiciona a
discussão à alteração da legislação aplicável aos Na sua concepção, a ideologia constitui-
adultos que aliciam menores, deslocando a se de dois aspectos fundamentais: o imaginário
solução da seara constitucional, mais rígida e e o material. Do ponto de vista da
segura, para a infraconstitucional, legal, representação imaginária dos indivíduos com
caracterizada pela maleabilidade. Eis o suas condições reais de existência, Althusser
posicionamento de Foucault acerca do que ele entende que as concepções de mundo são
denomina rede de poder, a multiplicidade de fantasiosas, não correspondem à verdade, ao
relações que permeiam toda a sociedade: real:

Rigorosamente falando, o poder não existe; [...]toda a ideologia representa, na sua


existem práticas de ou relações de poder. O deformação necessariamente imaginária,
que significa dizer que o poder é algo que se não as relações de produção existentes (e as
exerce, que se efetua, que funciona. E tudo outras relações que delas derivam), mas
funciona como uma maquinaria, como uma antes de mais a relação (imaginária) dos
máquina social que não está situada em um indivíduos com as relações de produção e
lugar privilegiado ou exclusivo, mas que se com as relações que delas derivam. Na
dissemina por toda a estrutura social. Não é ideologia, o que é representado não é o
um objeto, uma coisa, uma relação. E esse sistema das relações reais que governam a
caráter relacional do poder implica que as existência dos indivíduos, mas a relação
próprias lutas contra seus exercício não imaginária destes indivíduos com as
possam ser feitas de fora, de outro lugar, do relações reais que vivem. (ALTHUSSER,
exterior, pois nada está isento do poder. 1970, p. 82).
Qualquer luta é sempre resistência dentro da
própria rede de poder, tela que se alastra por Sob o ponto de vista da materialidade, a
toda a sociedade e a que ninguém pode ideologia seria um conjunto de práticas
escapar: ele está sempre presente e se exerce
materiais fundamentais à reprodução das
como uma multiplicidade de relações e
relações de produção, dado que representam os
forças. E como onde há poder há resistência,
não existe propriamente o lugar de
interesses materiais de uma determinada classe,
resistência, mas pontos móveis e transitórias efetivando-se em práticas sociais inscritas em
que também se distribuem por toda a instituições concretas, reguladas por rituais no
estrutura social. (FOUCAULT, 1999, p. seio dos aparelhos ideológicos do Estado.
16). Em síntese, as práticas sociais só
existem por meio da ideologia, e a ideologia,
São aplicáveis à fala da presidente para os sujeitos e por meio deles. É a ideologia
Dilma as lições do teórico do discurso Louis que interpela os indivíduos e os converte em
Althusser sobre ideologia e aparelhos sujeitos, sendo exercida e imposta pelos
ideológicos. Ele pesquisou sobre o modo como aparelhos ideológicos vigentes, dentre eles, o
a classe dominante se reproduz e se mantém no Estado:

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119
[...] uma ‘máquina de repressão’ que 3. Reflexões discursivas sobre a redução da
permite às classes dominantes (no século maioridade penal
XIX à classe burguesa e a ‘classe’ dos Em pesquisa realizada pelo Instituto
proprietários de terras) assegurar a sua Datafolha no dia 22 de junho de 2015, cerca de
dominação sobre a classe operária para 87% dos brasileiros posicionaram-se a favor da
submetê-la ao processo de extorsão da mais- redução da maioridade penal de 18 para 16
valia (quer dizer, à exploração capitalista).
anos. Ao todo, 2.840 pessoas foram ouvidas em
(ALTHUSSER, 1970, p. 31).
174 cidades. A margem de erro da pesquisa é
de dois pontos porcentuais para mais ou para
O escopo da classe dominante é manter menos. Os contrários à redução da maioridade
o poder de Estado como forma de manipular os penal representam 11% do total, enquanto 1% é
seus aparelhos ideológicos de Estado, que por indiferente e outro 1% não soube responder.
sua vez serve como instrumento de luta contra
as possíveis resistências da classe dominada, já No dia 02 de julho de 2015, a Câmara
que lhe cabe ditar as regras e as normas de dos Deputados aprovou, em primeiro turno, a
convivência, o padrão, punindo os que redução da maioridade penal de 18 para 16
transgredirem seus mandamentos. anos para crimes hediondos, para homicídio
doloso e lesão corporal seguida de morte.
Ideologicamente, o Partido dos Foram 323 votos a favor, 155 deputados
Trabalhadores (PT), ao qual Dilma Rousseff é votaram contra a redução e houve ainda 2
filiada, é majoritariamente social-democrata, abstenções. O texto passará por um segundo
embora declare-se socialista, o que significa turno de votação na mesma Casa, seguindo
dizer que o modelo que o PT representa no para o Senado Federal.
poder é o da construção do bem-estar da
sociedade, através das políticas sociais, da Eis que os ensinamentos de Michel
defesa dos segmentos mais pobres, da Pêcheux são mais do que pertinentes para
maximização do Estado e uma maior entender essa dissonância entre o discurso
intervenção na economia e na vida social. estatal, o legislativo e o social. A
reprodução/transformação das relações sociais
Uma vez que a maioria dos jovens ocorrem no seio dos aparelhos ideológicos de
delinquentes são pobres, negros, que vivem nas Estado, materializando as ideologias e
periferias das grandes cidades sem acesso à vertendo-as em formações ideológicas. Torna-
educação de qualidade, o discurso presidencial se o discurso o local onde se constituem o
afina-se com a ideologia partidária voltada à sujeito e o sentido, mediados estes pela
defesa das minorias sociais. materialidade da língua e ideologias.
Mas o que acontece quando o discurso
imposto pelo Estado não mais se alinha com as [...] o sentido de uma palavra, de uma
expressão, de uma proposição, etc., não
ideologias majoritárias, quando a classe
existe “em si mesmo” [...] mas, ao contrário,
dominante muda de posicionamento, indo de
é determinado pelas posições ideológicas
encontro ao aparelho ideológico legitimador e que estão em jogo no processo sócio-
legitimado? histórico no qual as palavras, expressões e

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120
proposições são produzidas (isto é,
reproduzidas). [...] as palavras, expressões,
fragilidades do discurso da verdade face ao
proposições, etc., mudam de sentido ideal de justeza. Através da visão do filósofo,
segundo as posições sustentadas por aqueles podemos identificar as formas concretas de
que as empregam, o que quer dizer que elas manifestação de poder, as limitações produzidas
adquirem seu sentido em referência a essas pelo regime de saber, e pelas verdades
posições, isto é, em referência às formações produzidas por meio do conhecimento. Nas
ideológicas [...] nas quais essas posições se palavras do próprio autor:
inscrevem. (PÊCHEUX, 1997, p.160).
Produz-se verdade. Essas produções de
verdade não podem ser dissociadas do poder
Sendo o discurso um dos caracteres da
e dos mecanismos de poder, ao mesmo
materialidade ideológica, ele apenas terá sentido tempo porque esses mecanismos de poder
para um sujeito quando este o reconhece como tornam possíveis, induzem essas produções
pertencente a determinada formação discursiva. de verdade, e porque essas produções de
Pêcheux estabelece que os valores ideológicos verdade têm, elas próprias, efeitos de poder
de uma formação social estão representados no que nos unem, nos atam. São essas relações
discurso por uma série de formações verdade/poder, saber/poder que me
imaginárias, que designam o lugar que o preocupam. Então, essas camadas de objeto,
destinador e o destinatário se atribuem ou melhor, essa camada de relações é difícil
mutuamente. de apreender; e como não há teorias gerais
para apreendê-las, eu sou, se quiserem, um
Leciona Fiorin que, empirista cego, que dizer, estou na pior das
situações. (FOUCAULT, 2002, p. 299).
o discurso deve ser visto como objeto
lingüístico e como objeto histórico. Nem se
pode descartar a pesquisa sobre os É imprescindível investigar essa relação
mecanismos responsáveis pela produção do interativa entre o poder e a construção de
sentido e pela estruturação do discurso nem sujeitos por meio dos regimes de verdade e o
sobre os elementos pulsionais e sociais que saber, haja vista a necessidade de
o atravessam. Esses dois pontos de vista não homogeneização clamada pela coletividade,
são excludentes nem metodologicamente sendo a norma o ponto de partida para toda a
heterogêneos. A pesquisa hoje precisa atividade interpretativa, campo perfeito para a
aprofundar o conhecimento dos mecanismos atuação da arqueologia do poder foucaultiana.
sintáxicos e semânticos geradores de
sentido; de outro, necessita compreender o 4. Considerações finais
discurso como objeto cultural, produzido a É de fundamental importância esgotar as
partir de certas condicionantes históricas,
discussões a respeito da alteração da
em relação dialógica com outros textos.
Constituição Federal do Brasil no que diz
(FIORIN, 1990, p. 177).
respeito à redução da maioridade penal, por se
tratar de garantia individual que visa a proteger
Os estudos foucaultianos permitem os menores e evitar tratamentos
alcançar a discursividade e as relações de poder desproporcionais. Entretanto, é imprescindível
que perpassam o direito, revelando as analisar de forma científica e objetiva, livre de

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121
discursos de poder, contaminados por
______. A microfísica do poder. 14. ed. Rio de
ideologias egocêntricas e defasadas.
Janeiro: Edições Graal, 1999.
A sociedade clama por um debate
______. A verdade e as formas jurídicas. 3.
aprofundado do tema sob os mais diversos
Ed. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2002.
aspectos, entretanto, evidenciar as ideologias
por traz dos enunciados aparentemente HAROCHE, C.; PÊCHEUX, M.; HENRY, P.
científicos, revestidos de uma validade A semântica e o corte saussuriano: língua,
conferida pelo exercício legitimado do poder é linguagem, discurso. In: BARONAS, R. L.
salutar para uma reflexão transdisciplinar crítica (Org.). Análise do discurso: apontamentos para
acerca do Direito, compreendido enquanto uma história da noção-conceito de formação
instituição e discurso, e os diálogos gerados discursiva. São Carlos: Pedro & João Editores,
dentre os diversos personagens que o rodeia, à 2007.
luz de parâmetros externos, relacionados à PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma
atividade interpretativa e construção da crítica à afirmação do óbvio. Tradução de Eni
linguagem, revelando as várias camadas de Pulcinelli Orlandi et al. Campinas: Ed. da
significações, as formações discursivas e UNICAMP, 1997.
ideologias atuantes, verificando-se sua
adequação à realidade e consonância com o ______. O discurso: estrutura ou
sentimento social vigente. acontecimento. 4.ed. Tradução de Eni Pulcinelli
Orlandi. Campinas: Pontes, 2006.
______. Ideologia e Aparelhos ideológicos de
Referências estado. Lisboa: Presença 1970.
ALTHUSSER, L. Aparelhos ideológicos de ROUSSEF, D. Página pessoal. Presidência da
estado: Nota sobre os aparelhos ideológicos de República. Apresenta textos e reflexões
estado. 3 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985. publicados pela presidente da república.
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 4. Disponível em: <https://pt-
ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. br.facebook.com/SiteDilmaRousseff/posts/8992
71186793140>. Acesso em: 13 abr. 2015.
______. Marxismo e filosofia da
linguagem: Problemas fundamentais do método
sociológico na ciência da linguagem. 9. ed. São
Paulo: Hucitec, 1999.
BENVENISTE, E. O homem na linguagem. 2.
ed. Lisboa: Vega, 1992.
FIORIN, J. L. Tendências da análise do
discurso. Estudos Lingüísticos, São Paulo,
1990.
FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. 5.
ed. Rio de janeiro: Forense Universitária, 1997.

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122
DE UM CORPO HETEROTÓPICO: SOBRE UM OLHAR QUE
FISCALIZA A PROSTITUTA

Elizete de Souza BERNARDES1


Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
elizete_sb@hotmail.com

Resumo: O corpo da prostituta como uma heterotopia: espaço onde diferentes lugares se
“cruzam, neutralizam, secundam ou invertem a rede de relações por si designadas,
espelhadas, refletidas” (FOUCAULT, 2009). Neste artigo, buscamos compreender as
dizibilidades possíveis do corpo da prostituta, a partir das letras jurídicas penais, dos
anos 40. Para tanto, nos fazemos valer das considerações sobre a Semiologia Histórica,
inaugurada por J.J. Courtine (1988; 2013), cujas contribuições são indissociáveis dos
estudos do discurso e de um trabalho com Foucault, principalmente, a respeito do corpo
como uma emergência política. Desejamos contribuir para pensar o corpo como um
objeto discursivo e retirar um pouco de sua opacidade tecida na linguagem.
Palavras-chave: semiologia histórica; corpo; prostituta.

Espaços que se encadeiam, porém, também se


Introdução
contradizem; espaços entre o público e o
O corpo fala. A partir dessa premissa, privado, o sagrado e o profano; espaços de
Jean-Jacques Courtine, na História do Rosto desvio (FOUCAULT, 2009). O corpo como um
(1988), nos convida a pensar uma semiologia da signo discursivizado a partir do olhar do
superfície corporal, “como se lentamente se legislador, do padre, do médico, do psiquiatra,
interpusesse entre o rosto e o olhar que o etc. Significantes e significados do corpo,
observa o véu silencioso e quase transparente indissociáveis do olhar. Olhares que fiscalizam,
da linguagem”. Corpo e discurso como uma controlam, policiam, diagnosticam, propõem
articulação tecida pela linguagem cujos lugares ordens de discursos sobre o corpo.
de memórias evocados nos impelem a
O nosso fio condutor para a análise das
“inventar” o corpo da prostituta como uma
materialidades discursivas legislativas é o
heterotopia, a partir de diferentes saberes que
corpo. O objetivo de nossa escrita é refletir
se engendram para constituir este sujeito.
como a lei brasileira (penal, principalmente) tem

1
Bolsista pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) com o projeto intitulado De um
corpo tão gentil como profano: uma história de saber-poder sobre as prostitutas no Brasil. (número do processo
2013\16256-4).

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123
novos objetos, novos conceitos, novas
construído o sujeito “prostituta”, a partir do técnicas, mas também fazem nascer formas
contraponto do corpo, imerso em relações totalmente novas de sujeitos e de sujeitos de
discursivas patriarcais, marcando desigualdades conhecimento” (FOUCAULT, 2002, p. 8).
sociais e delineando o que é ser “mulher
honesta” e o que é ser “prostituta”.
Sob esse viés, chegamos ao primeiro
A questão que norteia nossa escrita é: ponto elencado acima: as mutações do olhar
como o corpo da “prostituta” entrou em um sobre o corpo se dão a partir das práticas
regime de visibilidades e de dizibilidades? Ou sociais e do engendramento com outros
seja, a partir dos olhares que se lançam sobre a domínios do saber.
morfologia de seus corpos, como determinados
enunciados emergem? Essa questão está A transfusão de sangue, o aborto, o
implicada em campos de saberes que se transplante de órgão, a inseminação artificial,
engendram (filosófico, anatômico e médico), de entre outros exemplos são práticas muito
olhares que percorrem o corpo e ditam recentes (década de 80) que reclamaram do
“verdades” históricas. Direito uma posição teórica e pragmática sobre
os direitos da pessoa em dispor de seu corpo.
A vigilância, punição, objetivação do Com efeito, por muito tempo, o olhar jurídico
sujeito a partir de práticas jurídicas se sobre a pessoa era totalizante, no sentido de
inscrevem sobre o corpo. Este é, por ora, o que corpo e pessoa são indivisíveis,
próprio sujeito(-pessoa) e, em outro momento, indissolúveis.
o objeto. A metodologia empregada será de
fundo bibliográfico e segue o próprio conceito A pena não passará da pessoa do
de Arquivo, formulado por Foucault (2013), condenado carrega consigo a ideia de que as
cuja irrupção dos enunciados legislativos está punições sofridas pela pessoa serão inscritas na
implicada numa espessura histórica. Para tanto, superfície de seu corpo. O corpo-pessoa, no
o aporte teórico segue A verdade e as formas âmbito do Direito Civil, enquanto bem fora do
jurídicas (FOUCAULT, 2002), entre outros. comércio e uma das conquistas advindas com a
Desejamos contribuir para o enriquecimento Declaração dos Direitos Humanos, é uma
dos estudos discursivos sobre o corpo no garantia contra o retorno da escravidão e por
campo do Direito. outro lado também marca a não dissociação do
corpo à pessoa. Por fim, o fio discursivo que,
1. O corpo, em outros lugares de saberes por muito tempo, perpassou o campo do saber
Com Michel Foucault (2002), a jurídico enunciava: a pessoa é um corpo. Ser
construção do saber está diretamente ligada a pessoa implicava ser um corpo e vice-versa:
uma construção da verdade. Em outros termos: existência e identidade.
o filósofo ao analisar as formas jurídicas do Ao contrário: a pessoa tem um corpo é
inquérito mostrou como elas dão origem a o enunciado que rege a visão dualista que
determinadas formas de verdade em nossa vigora em outros campos do saber, a despeito
sociedade. As práticas sociais, afirma o autor, do monismo jurídico. A prática de dissecação
do corpo, na Anatomia; o homem cartesiano,
podem chegar a engendrar domínios de
composto por uma alma (lugar das paixões,
saber que não somente fazem aparecer

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124
emoções, sentimentos, res cogitans) e um
corpo (que evocaria um lugar de memória de [...] a asserção vaga e geral segundo a qual
uma máquina, a res extensa) (DESCARTES o corpo desde sempre “falaria”, ganha
[1664], 1986); as práticas médicas (transfusão sentido no processo de longa duração
de sangue, aborto, transplante, inseminação histórica em que a pouco e pouco o corpo se
artificial, etc.) marcam a des-subjetivação do constitui como sinal: livre, primeiramente, e
em que Deus imprimia os seus
corpo.
mandamentos, onde os astros depositavam o
2. Corpo sagrado e corpo profano seu cunho eterno, em que ainda se podia ver
o reflexo das semelhanças animais; depois,
O corpo fala: essa é a premissa que,
retórica, submetendo o corpo ao império
numa historicidade da linguagem e dos das figuras e das posturas; linguagem
discursos, nos permite enxergar o corpo como traduzindo no rosto a singularidade, a
um signo. O corpo-signo imerso num mundo sensibilidade do indivíduo; organismo
encantado, onde os astros e o macrocosmo ignorando a interioridade, a sensibilidade do
ditariam o destino, as misérias, e toda uma vida indivíduo; organismo ignorando a
revelada pelos sinais faciais ou corporais de interioridade individual na língua das
alguém. O corpo-signo que, a partir de uma reações e dos sintomas; finalmente discurso
racionalização do mundo, vê-se desfazer procurando a conjunção problemática entre
lentamente a fisignomia morfológica do corpo e o indivíduo e o seu corpo. (COURTINE e
as qualidades da alma, conforme desenlaça HAROCHE, 1988, p. 219).
Courtine (2013). O corpo-signo que, afinal, é
um corpo político, lugar onde as relações de O Código Penal Brasileiro de 1940,
saber, de poder vão marcá-lo, adestrá-lo, antes do advento da Lei 11.106/2005, trazia,
docilizá-lo, vigiá-lo e puni-lo, conforme sob o Título “Dos Crimes contra os costumes”,
reinventou Foucault, no final da década de 70. os delitos cujo sujeito passivo deveria ser
A legibilidade do corpo e do rosto, portanto, necessariamente mulher honesta (ex.: “Art.
corresponde a maneiras de dizer sobre o corpo. 215. Ter conjunção carnal com mulher honesta,
Os modos de vê-lo já são discursos: como se mediante fraude”; “Art. 219. Raptar mulher
diz sobre ele, seja a partir do olhar do campo da honesta, mediante violência, grave ameaça ou
medicina, da psiquiatria, da política, do direito fraude, para fim libidinoso”; etc.) (BRASIL,
está imerso em transformações dos saberes do 1940). De modo que, a prostituta ou “mulher
corpo – e tais saberes se engendram. pública” se torna sujeito a partir de práticas
A semiologia histórica do corpo é divisoras: “O sujeito é dividido no seu interior
indissociável da palavra que o diz e do olhar em relação aos outros. Este processo o
que o perscruta, de uma arqueologia dos objetiva. Exemplo: o louco e o são, o doente e
discursos e de uma genealogia dos olhares, o sadio, o criminoso dos ‘bons meninos’”
segundo lembra Courtine (2013). Nessa toada, (FOUCAULT, 2005, p. 231). De um lado, a
a historicidade de como se viu o corpo é mulher honrada, digna, esposa, mulher e dona
costurado pelo discurso: de casa. Na outra ponta, a mulher prostituta.
Esta seria extensamente rotulada no Dicionário
Houaiss a partir do verbete meretriz:

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125
(vagina) ou sobre as partes que se relacionam
meretriz s.f. mulher que pratica meretrício, com o ato sexual de penetração (pênis-vagina).
que mercadeja o corpo [...] SIN/VAR
alcouceira, andorinha, bagaço, bagageira,
Com efeito, a sexualidade e a própria
bagaxa, bandarra, bandida, barca, bebena, anatomia feminina foram construídas, na cultura
besta, biraia, bisca, biscaia, biscate, Ocidental, a partir de dois tabus: a virgindade e
bocetinha, bofe, boi, bruaca, bucho, cação, a menstruação. O sangue menstrual por muito
cadela, cantoneira, caterina, catraia, china, tempo foi (e, hoje, ainda entra em
clori, cocote, coirão, cortesã, courão, couro, descontinuidade) visto como manifestação de
cróia, croque, cuia, culatrão, dadeira, dama, impureza, sendo a maternidade tolerada apenas
decaída, égua, ervoeira, fadista, fêmea, em razão “da necessidade de as espécies se
findinga, frega, frete, frincha, fuampa, fusa, reproduzirem”. (ABREU, 2007, p. 54). Ao lado
galdéria, galdrana, galdrapinha, ganapa, da menstruação, o tabu da virgindade foi,
horizontal, jereba, loba, loureira, lúmia, segundo Abreu (idem), uma das tradições que
madama, madame, marafa, marafaia, mais estigmatizou a mulher. A atividade sexual
marafantona, marafona, marca, mariposa,
desta “enquadrava a mulher em duas categorias
menina, meretrice, messalina, michê,
distintas: a da mulher virgem ou casta e a da
michela, miraia, moça, moça-dama, mulher
dama, mulher-solteira, mundana, murixaba,
mulher libertina ou perdida”. (idem, p. 60).
muruxaba, paloma, pécora, pega, perdida, Nessa dicotomia, havia apenas duas
perua, piranha, piranhuda, pistoleira, alternativas: a relação sexual legal, no
piturisca, prostituta, puta, quenga, rameira, matrimônio, e a relação sexual à margem do
rapariga, rascoa, rascoeira, reboque, rongó, casamento, a prostituição. No corpo feminino,
solteira, tapada, tolerada, transviada, se inscreveriam o caráter e as qualidades morais
tronga, vadia, vaqueta, ventena, vigarista, – a exemplo dos fisignomistas do século XIII.
vulgívaga, zabaneira, zoina, zorra; e as
O tabu da menstruação e o da
loc.: mulher à-toa, mulher da comédia,
mulher da rótula, mulher da rua, mulher da
virgindade se inscrevem sob a superfície do
vida, mulher da zona, mulher de amor, corpo. Utilizam-se elementos morfológicos e
mulher de má nota, mulher de ponta de rua, anatômicos para naturalizar uma relação de
mulher do fado, mulher do fandango, mulher força, de poder, de uma história patriarcal e
do mundo, mulher do pala aberto, mulher misógina que se constrói no mundo Ocidental,
errada, mulher perdida, mulher pública, elevando os homens ao nível de uma
mulher vadia etc. (HOUAISS, 2001, p. superioridade em detrimento à mulher. Assim, a
1899). constituição corporal da mulher cumpre o papel
de justificar, reiterar, confirmar essa
Ao lado de sinônimos de animais, a inferioridade “natural” do feminino frente ao
prostituta também será classificada nesta masculino. Todavia, conforme alerta Michel
entrada do dicionário a partir de seu corpo: Foucault em História da Sexualidade – a
aquela que mercadeja o corpo ou a partir de vontade de saber (1999), o sexo não é uma
partes específicas do corpo feminino (não se propriedade biológica (corpo-sexo-desejo), mas
fala, por exemplo, do pé, do pescoço, do nariz, o sexo é história e discurso. O corpo da mulher
das mãos): se diz sobre suas partes íntimas

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126
entra em uma rede de discursos que se Figura 2. As linhas faciais de uma prostituta3
transformam ao longo da História.
A espessura histórica nos convida a
resgatar as linhas faciais catalogadas, no século
XII, pelo fisignomista Jerôme Cardan (1658)
em que deciframos o sujeito “prostituta” a
partir de seu rosto (Figuras 1 e 2). “Trata-se de
converter os indícios que libera o percurso do
olhar sobre o corpo em signos”, conforme
aponta Jean-Jacques Courtine (2013, p. 49). A
prática da metoscopia, conforme se apresenta
no prefácio do livro do Cardan (1658), “se
constitui de uma prática divinatória fundada
sobre as marcas inscritas no rosto pelos astros Os signos que se apresentam na prática
determinando o destino do indivíduo” (idem). da metoscopia aos olhos do fisignomista; os
Cuida de decifrar, a partir de uma leitura da sintomas que se apresentam sob o olhar médico
exterioridade, a interioridade do indivíduo: suas sinalizam para aquilo que insistimos desde o
paixões, vícios, virtudes, inclinações, etc. início: o corpo é um signo. Nas letras jurídicas,
Figura 1. Uma prostituta, ainda que se case2 essa premissa ganha contornos que são mais
estreitos, por considerarmos o Direito como
uma “língua de madeira”, conforme aprendemos
com Pêcheux (2012, p. 99): “estabelecida como
equivalente à realidade, a ordem da língua seria,
então, categórica, séria, precisa. O significado
existiria em si próprio porque coincidiria com
palavras na realidade de uma ideologia”. Assim,
a “mulher honesta” está para a castidade de seu
corpo bem como a “prostituta” está para
perversão, no Código Penal da década de 40.
Esta vontade de verdade terá como fio
condutor o saber “pelo modo como ele é
aplicado em uma sociedade, como é valorizado,
distribuído, repartido e de certo modo
atribuído”. (FOUCAULT, 2011, p. 17). Em
outras palavras:

Essa vontade de verdade, assim apoiada


sobre um suporte e uma distribuição
2
Cf. CARDAN, J. Métoscopie, 1658, p. 9. O livro
encontra-se disponível na Biblioteca Nacional da França
3
(BnF), Paris. Idem, p. 24.

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127
institucional tende a exercer sobre os outros
discursos [...] uma espécie de pressão e
gênero colocarão em xeque a ilusória
como que um poder de coerção. [...] Penso transparência do corpo; a Marcha das Vadias,
na maneira como um conjunto tão prescrito recentemente, negou qualquer adjetivo: nem
como o sistema penal procurou seus santa nem puta, mulher! foi um desdobramento
suportes ou sua justificação, primeiro, é da emergência do enunciado do “direito de
certo em uma teoria do direito, depois, a dispor de seu corpo”. O novo no interior da
partir do século XIX, em um saber repetição de que meu corpo me pertence, de
sociológico, psicológico, médico que não caberia ao Outro sua regulamentação
psiquiátrico: como se a própria palavra da sua normatização, o ditado de um discurso
lei não pudesse mais ser autorizada, em “verdadeiro”. A emergência no Brasil, nos anos
nossa sociedade, se não por um discurso de 2000, de um projeto para regulamentação da
verdade. (FOUCAULT, 2011, p. 19). profissão da prostituta. E, aqui, a prostituta
também é res-significada por sua nova
4. Considerações finais nomeação: a profissional do sexo seria
Quando consideramos o corpo da “reinventada” quando se reconhece o seu ofício
prostituta, no campo do saber jurídico, como – contudo, impossível tolher os efeitos de
uma heterotopia, estamos pensando nos sentidos históricos que entram em
diferentes discursos que ali entram em uma rede descontinuidade.
de memórias, de ativação, de apropriação, de O discurso verdadeiro de um saber do
res-significação. Uma heteretopia de desvio – Direito. Este é emprenhado de uma vontade de
da norma, da mulher honesta, de família, do saber. O que importará, a partir de então, é “o
casamento, etc. – mas, sobretudo, uma sentido, a forma, o objeto, a relação, a
heteretopia que ainda é permeada pela presença referência”, como observa Foucault (2011, p.
do sagrado: entre o corpo da virgem (Maria) e 17).
o corpo da Madalena, o discurso dicotomiza os
Todas as mutações discursivas que
sujeitos. Um corpo investido por exercício de
vamos assistir, ao longo de um período, nos
poderes que ora o colocam numa clínica de
reafirmam o poder do discurso. Este, afinal,
reabilitação, remontando a práticas divisoras,
“não é simplesmente aquilo que traduz as lutas
sim, mas, sobretudo, a um percurso do olhar a
ou os sistemas de dominação, mas aquilo por
partir dos sinais do corpo. O corpo como um
que, pelo que se luta, o poder do qual nos
signo, também sausseriano, se relembrarmos
queremos apoderar” (FOUCAULT, 2011, p.
que ele é formado pelo significante, da ordem
10). O exercício de poder se dá nessa relação
do verbo, e o significado, da ordem do
de interioridade com a resistência. Em outros
discurso.
termos, “lá onde há poder, há resistência”
Nossas considerações seguem uma (FOUCAULT, 1999, p. 91). Os exercícios de
descontinuidade ao longo da irrupção dos poder por serem pulverizados, também
movimentos da minoria, na virada dos anos 70. encontram pontos polimorfos. As relações de
O corpo como instrumento político nas poder “não podem existir senão em função de
reivindicações trazidas pelas feministas no grito uma multiplicidade de pontos de resistência que
do Nosso corpo nos pertence; as teorias do representam, nas relações de poder, o papel de

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128
adversário, de alvo, de apoio, de saliência que
_________. Les corps utopique, Les
permite a apreensão” (idem, ibidem).
Hétérotopies. Paris : Nouvelles Éditions Lignes,
A lei não teria um estatuto soberano, 2009.
não concentraria um poder monárquico a partir
________. História da sexualidade: a vontade
do qual diria o “não”, as interdições, proibições
de saber. Trad. Maria Thereza da Costa
e censuras a respeito do sexo. Essa hipótese,
Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio
chamada de repressiva, é afastada por Foucault.
de Janeiro: Edições Graal, 1999.
Com efeito, na sociedade Ocidental haveria
muito mais uma incitação ao dizer (sobre o ________. A verdade e as formas jurídicas. 3
sexo). Os exercícios dos poderes seriam ed. Trad. Roberto Cabral de Melo Machado e
pulverizados. Eduardo Jardim Morais. Rio de Janeiro: NAU
Editora, 2002.
________. A arqueologia do saber. 8 ed. Trad.
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Colibri, 2007.
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BRASIL. Senado Federal. DECRETO-LEI Nº trajetória filosófica. Rio de Janeiro: Forense
2.848, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940. Universitária, 1995, p. 231-249.
Disponível em:
MERETRIZ. In.: Dicionário Houaiss de
http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/194
Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva,
0-1949/decreto-lei-2848-7-dezembro-1940-
2001.
412868-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso
em 15 set. 2015. PÊCHEUX, M.; GADET, Françoise. A língua
inatingível. In.: _____. Análise de discurso:
COURTINE, J.-J. Decifrar o corpo: pensar
Michel Pêcheux: textos escolhidos por Eni
com Foucault. Trad. Francisco Morás.
Orlandi. Campinas, SP: Pontes, 2012.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.
_______; HAROCHE, C. História do Rosto:
exprimir e calar as suas emoções (do século
XVI ao início do século XIX). Trad. Ana
Moura. Lisboa: Torema, 1988.
DESCARTES, R. L’homme de René Descartes.
In. : Oeuvres de Descartes : Le monde,
descriptions du corps humain, passions de
l’âme, anatomica, varia. Paris : Librairie
philosophique J. Vrin, 1986.
FOUCAULT, M. A ordem do discurso. 21. ed.
São Paulo: Edições Loyola, 2011.

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129
A CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS: OS EFEITOS DO MEDO NA
VOZ DA ESPERANÇA

Maria Jackeline Rocha BESSA


Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN)
Jakyy84@hotmail.com

Resumo: Neste trabalho objetivamos descrever e interpretar as estratégias discursivas


sobre o futebol brasileiro, que estão materializadas nos enunciados do jornal esportivo
argentino Olé, destacando os efeitos de sentido produzidos, ligados a uma memória
discursiva sobre o futebol. Para tanto, utilizamos os pressupostos teórico-metodológicos
da Análise do discurso, na interface dos trabalhos de Michel Pêcheux e Michel Foucault,
discutindo categorias como: sujeito, efeito de sentido, memória discursiva, interdiscurso,
acontecimento discursivo e enunciado. Nesse caso específico, nos propomos a analisar o
enunciado discursivo de uma reportagem intitulada ya tengo miedo que discursiviza sobre
um momento antes do acontecimento Copa do Mundo em que, Neymar, considerado um
dos jogadores mais importantes da seleção brasileira, mostrava medo de jogar o
campeonato. É nesse entremeio que o jornal discursiviza e acaba por possibilitar a
construção de sentidos de deslizes discursivos.
Palavras-chave: Jornal Olé; Sentido; Discurso.

focalizando a produção discursiva dos discursos


que circulam na sociedade. Dessa forma, é
Introdução possível observar que há também uma
Os estudos ligados ao campo da articulação com a historicidade e com exterior,
linguagem vêm mostrando uma evolução nas estes que acabam por constituir os efeitos de
últimas décadas. Logo após 1960, com a virada sentido dos enunciados.
linguística, algumas disciplinas evoluíram, É com um olhar discursivo que
dentre essas, a Análise do Discurso, que nasce pretendemos realizar nosso trabalho, propondo
com um objetivo de discutir os efeitos de uma análise do discurso sobre a discursivização
sentido nos discursos que circulam no meio presente nos enunciados do jornal esportivo
social. Surgiu com a proposta de fazer leitura Olé. Para isso, nos apoiamos principalmente
discursiva em que envolve o sujeito com a nos estudos da Análise do discurso de tradição
linguagem, estando ligada também as questões francesa. Optamos por analisar em nosso
históricas, sociais e políticas. Pensa-se a AD trabalho os discursos em um campo discursivo
trabalhando com questões da linguagem, que ultimamente tem ganhado considerável

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130
espaço, a mídia e mais especificamente um
Tendo em vista que se trata de um
jornal esportivo da Argentina. A escolha foi
trabalho de caráter teórico analítico se faz
pautada no fato de acreditarmos ser a mídia
necessário direcionar os estudos para algumas
hoje dos principais suportes a transmitir
categorias de análises, que são Discurso, Efeito
informações. Nesse caso o jornal escolhido é
de Sentido, Sujeito, Memória discursiva,
atualmente um dos mais importantes do mundo
Interdiscurso e Acontecimento discursivo e
quando o assunto é esportes. Dessa forma, por
enunciado. É a partir dessas categorias que
acreditarmos serem discursos que emanam
tentaremos entender porque foi possível dizer
outros discursos e que se dividem no fio
dessa forma e não de outra, ou seja, “porque
discursivo que é a linguagem é que escolhemos
esse enunciado e não outro em seu lugar”
uma reportagem que ganhou destaque momento
(FOUCAULT, 2007a). Assim na sequencia
antes da Copa do Mundo de 2014 no Brasil.
iremos discorrer de forma breve sobre cada uma
Com o título Ya tengo miedo a das categorias, procurando pontuar as
reportagem fala de um dos maiores destaques discussões.
do futebol brasileiro da atualidade, Neymar. Era
Como primeiro ponto discorremos sobre
um momento antes do acontecimento que
discurso, umas das concepções dos estudos
marcaria o mundo esportivo em 2014, dessa
discursivos de maior relevância, pois se
forma vimos discursos florescendo no mundo
constitui na sociedade, como parte da história,
esportivo, tanto nas grandes mídias como
em nenhum momento está pronto e acabado, o
também pela sociedade em geral, a partir disso
que se diz hoje, já foi dito antes. Assim,
sentidos eram construídos, se deslizavam nesse
podemos introduzir esse ponto explicando que
entremeio que é a linguagem.
o discurso implica em si uma exterioridade, a
Com isso, nosso objetivo é descrever e língua e tem no social o seu ponto de apoio, de
interpretar quais são as estratégias discursivas, análise. Quando lemos, procuramos não
que estão materializadas na reportagem somente o que está escrito, mas o que está por
intitulada ya tengo miedo do jornal Olé, trás, buscamos os aspectos sociais e históricos.
destacando quais os efeitos de sentidos que são Para melhor entender o que seja discurso,
produzidos. Para isso, buscamos em algumas vejamos o que Fernandes (2005, p 22) nos diz
categorias da Análise do Discurso subsidiar tal sobre a noção de discurso.
discussão. As categorias em questão são;
sujeito, efeito de sentido, memória discursiva, Analisar o discurso implica interpretar os
interdiscurso, acontecimento discursivo e sujeitos falando, tendo a produção de
enunciado. A partir da seleção das categorias sentidos como parte integrante de suas
analíticas optamos por essa reportagem remeter atividades sociais. A ideologia materializa-
exatamente ao fato de ser uma das mais se no discurso que, por sua vez, é
materializado pela linguagem em forma de
discutidas naquele momento pré acontecimento
texto.
Copa do Mundo, em que discursos era
colocados no campo discursivo e sentidos eram
construídos a partir dos enunciados Discurso é o que é dito, sem que o
sujeito saiba que o que está sendo dito
1. Aporte Teórico

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apresenta outros sentidos a esse dizer. Analisar
De acordo com Nascimento (2010),
discurso é bem mais do que ver o que está
para Foucault o sujeito vive numa constante
posto em cada enunciado, em cada fala. É ir
tensão entre a aceitação do poder e a submissão
além, buscar entender os efeitos de sentido,
da liberdade. Não havendo assim uma servidão
pois cada discurso transmite algo novo, outros
voluntaria, pois no coração da relação de poder
sentidos.
está a relutância do querer e a intransitividade
Mostrando-se ligado a concepção de da liberdade.
discurso, é que discutiremos a concepção de
Levando em consideração que tudo que
efeito de sentido, visto como disperso e em
é dito, já foi dito antes, em outros momentos é
fuga, ou seja os sentidos estão sempre em
que surge a noção de interdiscurso. Este se
construção e isso se dá nas práticas discursivas
tornou um dos mais importantes conceitos para
dos sujeitos. De forma que se torna disperso,
os estudos ligados a AD. Marcado como sendo
ligado ao histórico e as relações discursivas
os dizeres passados, em um dito anterior, em
exteriores.
outro momento, no espaço do repetível e
De acordo com Gregolin (2001, p. 9) “o tomado pela memória em uma relação com
fazer sentido é efeito dos processos discursivos outros discursos que foram proferidos por
que envolvem os sujeitos com os textos e, outras pessoas em um outro momento histórico.
ambos, com a história”. Dessa forma, a
De acordo com Courtine (apud
discussão acerca do sentido é visto como algo
NASCIMENTO, 2013 p. 50) interdiscurso
histórico, pois não se entende os discursos por
seria: “Séries de formulações, marcando cada
eles mesmos, mas isso depende do social, do
uma, enunciações distintas e dispersas,
histórico, ou seja daquilo que vem sendo
articulando-se entre elas formas linguísticas
discutido na sociedade e que passa a fazer
determinadas (citando-se, repetindo-se,
sentido a partir de tais discussões, é o que
parafraseando-se, opondo-se entre si,
Gregolin chama de “pleno voo” ou seja
transformando-se)”. O interdiscurso se faz
enxergar os sentidos a pleno voo através desses
presente nesse emaranhado que é a linguagem,
discursos que emanam sentidos, que muitas das
que leva o leitor a ver/entender o discurso a
vezes são escorregadios que fogem, escapam e
partir do outro, de outros dizeres ditos antes,
que acabam por construir outros sentidos.
que buscamos em nossa memória, ou seja, de
Se o fazer sentido depende dos sujeitos algo que aconteceu no passado, mas que passa
historicamente marcados é que pretendemos ser lembrado a partir de outro discurso, seja ele
discutir a noção de sujeito. Visto como sendo parafraseado, transformado, mas que se
descentrado, complexo, ou seja marcado pelas mantem e nos faz remeter a algo passado, dito
relações sociais as quais está inserido, Ou seja é com outro sentido, quem sabe.
um sujeito que pode ocupar diferentes posições
Interdiscurso e Memória discursiva, dois
em uma mesma série de enunciados e assim
conceitos que partiram dos estudos
assumir diferentes papeis discursivos na
Foucaultianos que estão sempre muito
sociedade.
próximos. Se discurso é o que é dito agora o
interdiscurso é o que foi dito antes e que é

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retomado por outros discursos. Por sua vez, a como em uma relação com o que é histórico,
memória discursiva é aquilo que acaba com os sujeitos discursivos, mostrando que não
possibilitando a circulação de formulações há apenas uma relação gramatical ou semântica.
anteriores. (Gregolin 2011, p. 91) afirma que “a Pois ao enunciar o sujeito o faz de um lugar
inscrição do acontecimento na memória, a partir determinado seja por regras históricas ou
dessas materialidades permite, ao mesmo sociais, o que acaba por fazer com que tal
tempo, seu retorno constante e sua discurso seja enunciado. Segundo Foucault
rememoração”. (2012, p. 128):
É nessa retomada através da memória O enunciado, ao mesmo tempo que surge em
que certos enunciados fazem sentido, assim sua materialidade, aparece com um status,
entender como certos enunciados estão entra em redes, se coloca em campos de
relacionados à história é um trabalho utilização, se oferece a transferências e
indispensável para os estudos ligados a AD. modificações possíveis, se integra em
Com isso, a noção de acontecimento discursivo operações e estratégias onde sua identidade
ganha espaço, formando, assim, um se mantem ou se apaga.
entrecruzamento sobre um fato que é
discursivizado social e historicamente. A Dessa forma entendemos que ao
concepção não é vista nos estudos da AD como enunciar o sujeito faz de acordo com seu campo
algo ligado a um historiador ou propriamente enunciativo, deixando aberto para mudanças,
como noticia, apesar de se dá nesse transformações que são possíveis porque o
entrecruzamento, pois entende-se a esta enunciado não é algo estanque e fechado que
concepção o pensamento de enunciados que se não possa mudar. Pelo contrário e seguindo os
dão num entrecruzamento discursivo e em um estudos de Foucault podemos definir enunciado
dado momento. Explanando sobre entrando no que o autor chama de ‘redes’ e
acontecimento discursivo, Foucault (1986, ‘campos de utilização’ em que podem haver
p.14) diz que “não há, assim, enunciado livre, transferências e modificações no dizer a
neutro, independente das redes de formulações depender da função enunciativa do sujeito
nos quais ele se insere; ele faz sempre parte de enunciador. Macacheira
uma série; ele se integra, sempre, em um jogo
enunciativo”. Ou seja os enunciados estão 2. UMA JOGADA DISCURSIVA: Os efeitos
sempre sendo postos junto com outros do medo na voz da esperança
enunciados, interligados, cheios de Nesta materialidade, iremos discorrer
deslocamentos. um pouco sobre uma entrevista de Neymar,
Após uma discussão sobre todos os atacante que tem um grande destaque mundial,
conceitos se faz necessário entender aquele que em entrevista ao jornal Brasileiro Lance, que é
é base, conhecido como enunciado, ou seja a um dos principais jornais esportivos do Brasil e
leitura que fazemos de certa materialidade. que mantem uma relação de proximidade com o
Segundo o Foucault o enunciado apresenta jornal Argentino Olé. Normalmente, se ver os
sempre margens povoadas por outros dois jornais trocando farpas nas páginas de
enunciados. Assim entendemos esse conceito ambos. Se o lance publica algo relacionado ao

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futebol brasileiro ou argentino o Olé rebate, e Figura 01: Reportagem jornal Olé – “Ya
tengo miedo”
assim, os dois criaram, ao longo dos anos, essa
proximidade que acaba por divertir seus
leitores. Tanto que a reportagem que
selecionamos para análise é uma entrevista de
Neymar, ao jornal Lance, no ano de 2014, em
que ele fala sobre a ansiedade e sobre outras
coisas relacionadas à Copa do Mundo.
Essa entrevista dada ao jornal Brasileiro
é retomada pelo jornal Olé que, através de
estratégia discursiva, procura discursivizar
sobre um assunto que certamente mostra-se Fonte: [http://www.ole.com.ar/mundial-2014/Empiezo-
interessante para os argentinos que são os tener-miedo_0_1114088849.html]
grandes rivais do Brasil. Dessa forma, são os
sentidos produzidos nessa materialidade que Trazer para a materialidade do jornal
nos interessa. Assim, procuraremos analisar este enunciado e esta imagem de Neymar era
esse objeto de estudo, buscando entender o mais do que falar sobre um grande jogador e
porquê de o jornal usar da estratégia de falar do seus medos. Era a oportunidade de colocar em
jogador que é reconhecido como o mais discussão, na Argentina, que tem como maior
importante na atualidade para o futebol rival o Brasil, e demonstrar que aquele que é a
brasileiro. maior esperança brasileira para a Copa está com
medo de jogar o Mundial no Brasil, dentro de
Em algumas entrevistas, o craque não casa, com apoio da torcida.
nega a ansiedade, tanto que para o jornal
esportivo brasileiro Lance ele falou está se Os sentidos são marcados como sendo
sentindo arrepiado, sentindo um frio na barriga, constituintes a partir da história, assim, o que
pelo início do campeonato. Neymar confirma faz sentido em um dado momento para um
ainda que está sentindo medo de jogar no Brasil sujeito, em outro dado momento o mesmo
uma Copa do Mundo com uma discurso tem outros sentidos. Como
responsabilidade grande. Assim, o jornal Olé, percebemos no enunciado ya tengo miedo,
buscando do jornal Lance a entrevista dada pelo proferido por Neymar ao jornal brasileiro, no
jogador, levou para a materialidade do jornal o Brasil o enunciado não tomou tantas
seguinte enunciado para título de reportagem: proporções quando discursivizado na
Ya tengo miedo1. Vejamos: materialidade do jornal lance, porém o mesmo
discurso veiculado no jornal Olé constrói outros
sentidos.
Desse modo, se no Brasil poderia ter
alguma crítica ao jogador, na Argentina isso
ganhou mais notoriedade por ser ele o que
certamente teria mais possibilidade de levar a
seleção brasileira a final no mundial, e se ele
1
Tradução livre nossa de: “Já tenho medo”

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estava com medo era conveniente para o jornal ao mostrar que Neymar estava sentindo medo,
falar sobre isso. Vemos como, nesse caso, o inseguro de jogar a Copa do Brasil. Os sentidos
histórico, o fato de estarmos em um momento são possíveis de perceber no discurso do jornal
pré Copa, acabou por acarretar em outros pelo que Gregolin (2001, p. 9), argumenta
sentidos, como afirma Nascimento (2010, p. 4) como “O fazer sentido é efeito dos processos
ao dizer que “Os sentidos são construídos a discursivos que envolvem os sujeitos com os
partir da posição-sujeito do enunciador que se textos e, ambos, com a história”.
inscreve em diferentes momentos históricos”. Desse modo, o discurso proferido pelo
A partir desse primeiro olhar sobre o Olé está de acordo com as formações
título da reportagem, cabe-nos discutir sobre o ideológicas e discursivas que o jornal Argentino
objeto de estudo como um todo, a reportagem. compartilha sobre o futebol brasileiro. Por isso,
Ao retomar o discurso de Neymar, o jornal Olé trouxe para o seu funcionamento discursivo
não diz nada explicitamente, traz exatamente o enunciados sobre o jogador mais importante do
discurso que é de seu interesse, nesse momento, Brasil. Assim, através do controle discursivo e
já que é sabido que Brasil e Argentina são duas levando em consideração a historicidade, o
seleções que ao longo do tempo travaram jornal permitiu o resgate na memória discursiva
grandes jogos e nenhuma aceita perder para o através da rivalidade existente entre os dois
rival. países, o que acaba por criar um jogo de
sentidos em que o medo de Neymar acaba por
Assim, cabe-nos perguntar, porque o
mostrar uma atual seleção sem o mesmo brio de
jornal Olé trouxe para a materialidade do jornal
1994, 2002 por exemplo, anos que o Brasil foi
exatamente essa reportagem? Poderia ser
campeão do mundo.
qualquer outra, mas o que vimos na
discursivização presente no veículo é que se Outro enunciado que se faz presente na
mostra cheio de efeitos de sentidos, pois o materialidade midiática do jornal, é um subtítulo
enunciado dá margens para entender que ao que chama atenção exatamente pelo jornal
proferir isso Neymar estaria com medo de jogar retomar uma expressão própria dos países
o campeonato mundial no Brasil, assim o jornal hispânicos que é “Neymar dice que el
retoma esse discurso como principal enunciado Mundial le genera “piel de gallina”2 que quer
da reportagem para que eles, os argentinos, dizer, estava arrepiado. Esse é o sentimento de
soubessem que o destaque do Brasil já sentia Neymar com relação ao acontecimento Copa do
medo. Mundo no Brasil. Dessa forma, o enunciado
Assim, retomar o discurso de Neymar proferido pelo jornal, como subtítulo, deixa
sobre um posicionamento dele antes da Copa, margens para outros sentidos que podem ser de
dizendo que sentia medo, era importante para insegurança, fraqueza por parte do jogador,
os Argentinos, principalmente pelo fato do pois é sabido que historicamente quem joga em
jornal em questão ser crítico, e usar dos casa não deve sentir medo, nem ficar arrepiado.
artifícios que tem para tripudiar do futebol Com isso o jornal leva seu leitor, em sua grande
brasileiro. Não se percebe, necessariamente o
efeito de sentido de deboche, mas os sentidos 2
Tradução livre: Neymar disse que o mundial lhe
estão ligados a algo mais importante para eles, arrepia

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135
maioria argentinos, a verem como anda aquele
O jornal retoma esse enunciado para
que é o destaque brasileiro para a Copa.
dizer que o jogador está se sentindo fraco,
Se historicamente é sabido que não se inseguro, de jogar a Copa do Mundo. Os
deve sentir medo de jogar um mundial em casa, sentidos foram sendo construídos pelo jornal, a
é através da memória discursiva que é possível partir do momento que foi discursivizado e
retomar essa discussão, pois assim é falado no devido a posição discursiva permitiu ao jornal
meio do futebol, que jogar em casa é ter o que produzisse efeitos de sentidos com relação
apoio da torcida e deve ser visto como ponto à insegurança no futebol brasileiro. Os sentidos
positivo. Dessa forma o jornal retoma essa aqui são construídos pelo controle discursivo
discussão para exatamente mostrar a do jornal, pois de acordo com Nascimento
insegurança do jogador e assim mostrar, para (2013) é no controle discursivo que é possível
eles argentinos que vir ao Brasil e conquistar o criar um sentido de verdade, através da
título não é tão difícil, já que um dos favoritos credibilidade e fazendo uso de estratégias
ao título que é o país sede, o Brasil, o seu discursivas. Veja que o jornal retoma um
principal jogador está sentindo arrepios. discurso de um sujeito autorizado a falar, o que
Dando sequência, alguns pontos da traz mais credibilidade para o discurso, pois
reportagem merecem destaque por serem mesmo retomando um discurso de outro
proferidos por Neymar e que, ao retomá-los, o veículo comunicativo, a matéria é veiculada no
jornal usa de estratégia discursiva para Olé e acaba por ter outros sentidos, exatamente
discursivizar sobre o futebol brasileiro em um por se tratar de um jornal Argentino, onde as
acontecimento que é o mais importante para os condições de produção estão de acordo com
dois países quando o assunto é esportes, pois é seus interesses.
sabido que, para Brasil e Argentina, futebol é Na sequência da entrevista encontramos
uma paixão nacional. Os enunciados que se outra fala de Neymar que retoma um pouco do
seguem, mostram um pouco das estratégias que seja jogar pela seleção brasileira, no Brasil.
discursivas do jornal, pois essas palavras É possível perceber no discurso um enunciado
constroem uma imagem para o jogador e talvez que ficou conhecido como “família Scolari”.
seja esse efeito que o jornal quer produzir. Como podemos observar no fragmento a
Neymar aseguró que quiere que arranque seguir, na parte que grifamos para análise.
pronto el Mundial, pero admitió que le
genera como "unas mariposas en el En una entrevista al diario Lance, el crack
estómago3. É possível perceber o sentido de del Barcelona aseguró que siente como
que o sujeito Neymar fala sobre se sentir "unas mariposas en el estómago". También
nervoso em jogar o mundial em casa, no Brasil. dijo que su selección "va a dar el máximo en
el campo para conseguir el título, aunque no
será fácil". Y se mostró optimista con
respecto al potencial del plantel de
3 Scolari: "Es el mejor ambiente porque
Tradução livre: Neymar disse que deseja que o
mundial comece logo, mas admitiu que isso o deixa
nervoso.

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136
todos los que estamos ahí hemos soñado
con poder vestir la camiseta de Brasil"4.
"Siempre trabajé para que ese día llegara y
por desgracia no fue así5, conseguimos
identificar, através da historicidade e da
É possível perceber uma memória memória discursiva, como o jornal discursiviza
discursiva nesse enunciado, onde Neymar sobre o que foi marcante em 2010, quando na
retoma 2002, quando o Brasil foi Penta ocasião foi disputada a Copa da África do Sul,
Campeão Mundial. Pois discursos foram o que mais foi pedido naquele momento foi a
proferidos ao longo desses doze anos falando presença de Neymar na seleção, o que acabou
do ambiente que aquela seleção tinha. Já que, não acontecendo.
historicamente, é sabido que a seleção de 2002
foi um dos grupos de jogadores mais unidos. Na primeira parte do enunciado
Dessa forma, ao retomar esse trecho da Neymar comparó este momento con el que
entrevista de Neymar, o jornal mostra como é o tuvo que vivir cuando se quedó afuera del
clima na seleção brasileira atualmente, já que se último Mundial vemos que o jornal anuncia a
sabe que a comissão técnica é quase a mesma e fala de Neymar com uma discussão sobre a não
o treinador é o mesmo. Com isso, pressupõe-se ida do jogador ao último mundial. Na ocasião,
que se tem o mesmo ambiente de 2002. em 2010 discursos foram proferidos porque,
naquele momento, ele era um dos destaques do
Assim, podemos perceber que ao país e não ter sido convocado pelo então
retomar esse discurso há, por parte do jornal, técnico da seleção, causou discursos de todo o
uma memória discursiva de tudo que foi país. Agora, em outro momento, vemos como
discursivizado sobre a seleção de 2002 e que prevaleceram ainda aqueles discursos sobre
agora, em outro momento, outros discursos são Neymar, para falar do agora, da convocação
proferidos na mesma direção. Nesse sentido, e dele e por ser o destaque da atual seleção.
de acordo com Gregolin (2011, apud
NASCIMENTO, 2013, p. 53), “a inscrição do Por fim, no último enunciado, Neymar
acontecimento na memória, a partir dessas falando de um possível rival para final da Copa,
materialidades permite, ao mesmo tempo, seu responde que não tem preferência, que nos
retorno constante e sua rememoração”. Como sonhos dele somente está chegar à final. O
vimos, foram discursos que foram proferidos enunciado é levado para o Olé como estratégia
em um outro momento, mas que agora fizeram discursiva, já que é sabido que a Argentina é
sentido em outro discurso, no caso, o proferido uma das principais seleções e quem virá ao
por Neymar e veiculado no Olé. Brasil para buscar o título de campeã. Dessa
forma, os sentidos estão em aberto, através da
No enunciado Neymar comparó este estratégia discursiva de trazer esse enunciado e
momento con el que tuvo que vivir cuando não outro.
se quedó afuera del último Mundial:

4
Tradução livre: E se mostrou otimista com respeito ao
potencial do plantel de Scolari: “É o melhor ambiente 5
Tradução livre: Neymar comparou este momento com
porque todos os que estamos lá haviam sonhado em o que teve que viver quando ficou fora do último
poder vestir a camisa do Brasil”. Mundial: Sempre trabalhei para que esse dia chegasse e
por desgraça não foi assim.

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137
Argentino a resposta do jogador era
¿Con quién le gustaría definir el título? importante, já que, como um dos veículos
"Sólo sueño llegar a la final. No tengo esportivos de maior destaque, muitos eram os
ninguna preferencia por un adversario. leitores que esperavam uma resposta de um dos
En mis sueños sin duda está ver a la maiores adversários na Copa do Mundo. Diante
selección de Brasil en la final” contestó disso, compartilhamos do pensamento de
quien a los 22 años debe superar un
Santos (2012, p. 40) ao dizer que “importa
carnaval de presione.6
pensar o discurso como uma manifestação que
se constitui em seus sentidos porque aquilo que
Os discursos com relação a uma o sujeito diz se inscreve em uma formação
possível final já estão sendo construídos, desde discursiva dada. Esse processo marca a
que foram definidas as chaves da Copa. As possiblidade do sentido ser um e não outro, de
apostas já estão sendo feitas por aqueles que pertencer a uma formação discursiva e não a
são envolvidos com futebol e os cruzamentos outra”.
entre as principais seleções já foram feitos até
uma possível final. E o que se tem visto é que, Desta forma, vimos como são
na final, pode haver duas grandes seleções, produzidos os discursos, na materialidade
muitos falam que o Brasil, pela força e por estar midiática do jornal Olé. Como o jornal trabalha
jogando em casa já é uma das finalistas, o discurso, de acordo com seus interesses, de
faltando assim, somente o adversário. controle discursivo com as concepções de
interdição e vontade de verdade e retomando
Dessa forma, a estratégia discursiva do pela memória, pelos discursos outros, já
jornal Olé era discrusivizar sobre um dito em discursivizados, pela história, nesse caso sobre
outro meio discursivo, e que na materialidado um acontecimento, a Copa do Mundo.
do jornal teria outros sentidos, exatamente por
se tratar de um jornal Argentino. Com isso, Na sequência, mostraremos os
observamos que a estratégia era exatamente de resultados de nossa pesquisa, de acordo com
mostrar o que Neymar tinha a dizer sobre uma nosso objetivo, que é o de descrever e
possível final e sobre a pressão que sofre no interpretar as estratégias discursivas sobre o
Brasil, por ser ele o melhor jogador, tanto que o futebol brasileiro, que estão materializadas no
jornal Olé fala em carnaval de pressão, jornal Olé, destacando os efeitos de sentido
remetendo ao fato de que aquele que é melhor produzidos nos enunciados da reportagem.
recebe as maiores cobranças. Nessa perspectiva de trabalho, acreditamos que
a mídia possibilita que sentidos sejam
Os sentidos aparecem em uma jogada construídos. Pois, como vimos ao decorrer das
discursiva, pois se tratando de um jornal análises, os sentidos podem ser vistos nessa
relação com os sujeitos, não podendo ser
6
Tradução livre: Só sonho chegar a final. Não tenho
encontrado por ele mesmo, nunca é um sentido
preferência por nenhum adversário Nos meus sonhos só, mas um produto histórico e estando sempre
sem dúvida está ver a seleção do Brasil na final” em relação com as palavras proferidas nos
Respondeu quem aos 22 anos deve superar um carnaval enunciados veiculados na mídia, nesse caso
de pressões. especifico, no jornal Olé em que podemos ver

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138
como os sentidos podem ser um em uma possíveis pela exterioridade, pela história, pela
materialidade, e em outra apresentar outro memória, pelo que, em outro momento, já foi
sentido, ou seja, mostrando está sempre em discursivizado. São os sentidos produzidos por
fuga, não sendo, portanto, encontrado por ele outros discursos, como bem vimos na
mesmo. reportagem, que retoma um acontecimento e de
discursos que eram colocados na ordem do
3. Conclusão
discurso pela sociedade e que nas reportagem
Dessa maneira, ao fim da pesquisa do jornal Olé acabou por construir outros
conseguimos observar como na ordem do sentidos.
discurso os sentidos são cheios de deslizes,
Não encontramos na reportagem o
fugas, o fazer sentido, é efeito de outros
sentido sendo encontrado por ele mesmo, mas
discursos que são proferidos e que vão sendo
sendo preciso recorrer ao histórico, ao social,
construídos, seja pela posição do sujeito, pela
ou seja, ao exterior o que acabou por
memória discursiva, interdiscursos. Para análise
possibilitar ao jornal deixar em aberto a possível
vimos a reportagem, Ya tengo miedo que fala
inferência de o Brasil não está preparado para
sobre o acontecimento Copa do Mundo, uma
disputa do Mundial de 2014.
entrevista de Neymar, ao jornal brasileiro,
Lance em que o jogador fala sobre a pressão de Encerramos aqui esta discussão, que
se jogar um mundial em casa. No Brasil essa esperamos não ser concluída nessas páginas,
reportagem foi vista como uma reportagem de pois estudos novos devem ser feitos, para que
um menino de 22 anos que joga a primeira assim outros sentidos possam surgir, na certeza
Copa do Mundo, com a responsabilidade de ser de que o que dissemos ainda precisa ser mais
a estrela da seleção. Porém o Olé retoma a explorado, pois são discursos que em muitos
discussão e ao levar para ser discursivizado em deixam inquietações. Com isso, esperamos que
um jornal argentino toma outras proporções e mais trabalhos nessa perspectiva sejam feitos,
os discursos são mobilizados de outra forma. A uma vez que o discurso futebolístico apresenta
estratégia de falar sobre o maior craque da um viés muito amplo para que mais pesquisas
atualidade do Brasil expressando medo de sejam elaboradas, procurando entender seus
encarar tamanha responsabilidade, foi o ponto efeitos de sentidos.
que levou o jornal a estampar essa reportagem,
construindo um efeito de sentido de fragilidade
no futebol brasileiro. Referências
Dessa forma e diante do estudo da FERNANDES, C. A. A análise do discurso:
reportagem vimos que o jornal Olé usa de reflexões introdutórias. Goiânia: Trilhas
estratégia discursiva, pois mobiliza uma Urbanas, 2005.
discussão sobre um dos maiores jogadores do FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. 7.
Brasil na atualidade, tentando mostrar a ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
fragilidade daquele que era a maior esperança 2007a.
de um possível título mundial na Copa do
Mundo do Brasil, isso se deu através dos ______. A arqueologia do saber. 8. ed. Rio de
discursos, produzindo sentidos outros que são Janeiro: Forense Universitária, 2010a.

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139
______. A ordem do discurso. São Paulo:
Loyola, 16ª ed. 2008.
GREGOLIN, R. M. Análise do discurso:
entornos do sentido. A análise do discurso: os
sentidos e suas movências. São Paulo: Cultura
Acadêmica, 2001.
______ Discurso e mídia: a cultura do
espetáculo. São Carlos: Editora Clara Luz,
2003.
______ Análise do discurso: as materialidades
do sentido. São Carlos: Editora Clara Luz,
2003.
______ Foucault e Pêcheux na análise do
discurso: diálogos e duelos. 2. ed. São Carlos,
SP: Claraluz, 2004.
NASCIMENTO, M. E. F. Sentido, Memória e
Identidade no Discurso Poético de Patativa do
Assaré/ Recife: Bagaço, 2010.
ORLANDI, E. P. Análise do discurso:
princípios e procedimentos. Campinas, SP:
Pontes, 2007a.
PÊCHEUX, M. Semântica e Discurso: uma
crítica à afirmação do óbvio. 3. ed. Campinas:
Editora da UNICAMP, 1997c.
______. O discurso: estrutura ou
acontecimento. Campinas: Pontes, 2006

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140
ENTREVISTA, DISCURSO E SENTIDOS NO JORNALISMO: A
CONSTRUÇÃO DA FIGURA DO CRIMINOSO EM PROGRAMAS
POPULARESCOS

Carlos Alberto Garcia BIERNATH; Kelly De Conti RODRIGUES


Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP)
beto.biernath@gmail.com; decontik@yahoo.com.br

Resumo: Ao longo das últimas décadas, programas de cunho popularesco têm se


proliferado na televisão brasileira, muito por conta da identificação que conquistam junto
aos telespectadores. Em tais programas, constantemente há entrevistas com criminosos
que ficaram conhecidos nacionalmente, tanto pelo apelo à violência das atrações, quando
pela fama do entrevistado. Neste sentido, este trabalho resgatou duas entrevistas
veiculadas por programas popularescos: a entrevista com João Acácio Pereira da Costa,
o “Bandido da Luz Vermelha”, exibida no Aqui Agora em 1995; e a entrevista com
Eduardo Pinto Martins, acusado de matar o zelador de seu condomínio, exibida no Tá Na
Tela em 2014, com o objetivo de entender como o discurso dos programas se configurou
na trajetória das entrevistas.
Palavras-chave: jornalismo; aqui agora; tá na tela; discurso; entrevista.

brasileira. Dentre estes programas, aqueles


Introdução
considerados ‘popularescos’ talvez tenham sido
Ao longo da trajetória da televisão os que conquistaram maior identificação junto
brasileira, os programas jornalísticos logo aos telespectadores.
conquistaram os telespectadores, partindo da
Este trabalho foca entrevistas com
ideia de que apresentavam a ruptura do normal,
criminosos veiculadas em tais tipos de
originando aí a notícia. Isso se deve graças a
programas. Nesse sentido, o estudo se propôs a
capacidade única da televisão de unir visão e
analisar duas peças jornalísticas que, embora
audição – algo inexistente nos meios de
produzidas e exibidas em décadas distintas,
comunicação de massa na época de surgimento
atuaram na construção da figura do ‘criminoso’
do veículo televisivo.
através de uma entrevista realizada –gravadas
Assim, os programas jornalísticos, que nas instituições em que ambos cumpriam pena.
tiveram o Repórter Esso como primeira grande É com este objetivo que analisamos ambas as
referência de sucesso e audiência, assumiram entrevistas, baseados nos preceitos da Análise
um papel importante na história da televisão de Discurso de tradição francesa como campo

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teórico-metodológico em nosso percurso. profissionais que mais tarde viriam a integrar o
Como corpus, portanto, o estudo resgatou a Aqui Agora, como o repórter Wagner Montes e
entrevista com João Acácio Pereira da Costa, o a apresentadora Christina Rocha. Uma de suas
“Bandido da Luz Vermelha”, exibida no Aqui marcas era, de acordo com Mira (2010), trazer
Agora em 1995; e a entrevista com Eduardo reportagens policiais e polêmicas através da
Pinto Martins, acusado de matar o zelador de exibição de pessoas pobres que iam ao palco
seu condomínio, exibida no Tá Na Tela em pedir algum tipo de ajuda: médica, jurídica e
2014. financeira. Basicamente, o apresentador Wilton
Franco narrava um texto que retratava a
1. Os jornalísticos do gênero popularesco
história do convidado. Por atender ao público
Os jornalísticos considerados assim, o SBT – emissora que transmitia a
popularescos são assim denominados por conta atração – ficou conhecido como “a Porta dos
da proximidade que conquista junto ao público, Milagres”, por sempre estar lotada de gente que
muito por conta da carga dramática embutida buscava ajuda, ainda de acordo com Mira
em sua essência. Nessa linha, J. S. R. Goodlad, (2010).
citado por Marcondes Filho (1988, p. 52),
O sucesso destes programas atesta a
assevera que “o jornalismo e o telejornalismo
influência deles junto à audiência. Isso fez com
são parentes muito próximos dos dramas. Em
que novos programas surgissem e, a exemplo
questão de preferência popular, os noticiários
dos mais antigos, também obtivessem boa
ocupam, aliás, o segundo lugar, logo após o
identificação com os telespectadores, como é o
drama”. A afirmação do autor justifica a
caso do telejornal Aqui Agora e do programa
influência do drama junto à audiência.
Tá Na Tela.
O mais significativo deles foi,
possivelmente, a atração chamada O Homem do 1.1 O Aqui Agora
Sapato Branco, exibida em 1967 pelo Aliando o formato “sensacionalista ” do
apresentador Jacinto Figueira Júnior. À época, rádio ao telejornalismo, o Aqui Agora foi
como ainda não havia a utilização de recursos exibido inicialmente no ano de 1991 e trazia o
tecnológicos, como o videoteipe, por exemplo impactante slogan: “um jornal vibrante, uma
– que hoje são grandes aliados deste tipo de arma do povo, que mostra na TV a vida como
programa –, o comandante da atração recebia ela é”.
prostitutas e marginais ao vivo no palco Foi o Baseado no quase homônimo Aqui e
grande precursor deste gênero jornalístico, que Agora, que fora exibido pela TV Tupi, o
inspirou outros como o Aqui Agora e o Tá Na programa contou com diversos apresentadores
Tela – atrações que serão detalhadas mais à em sua 1ª fase, quando absorvera o formato dos
frente. famigerados O Homem do Sapato Branco e O
Outra importante atração considerada Povo na TV, como Ivo Morganti, Christina
popularesca foi o programa O Povo Na TV, Rocha (que já participara de “O Povo na TV”),
surgido na década de 80. Era exibido todas as Sérgio Ewerton, Liliane Ventura.
tardes e se apresentava como um serviço de Posteriormente, assumiu de vez o formato
utilidade pública. Sua equipe era constituída por jornalístico, em 1996, centrado em pautas mais

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noticiosas e sem tanto requinte sensacionalista,
Desde seu início, o programa, buscando
quando passou a ser apresentado por Eliakim
essa identificação que os programas
Araújo e Leila Cordeiro.
popularescos conquistam, trabalhou com temas
Em sua equipe de repórteres, destacam- polêmicos e relacionados a violência. Por
se César Tralli, Celso Russomano, Gil Gomes, diversas edições o programa exibiu ao vivo
Wagner Montes (que também já passou pelo “O perseguições de policiais aos bandidos.
Povo na TV”), Carlos Cavalcanti, dentre
Além disso, o programa também
outros.
explorou casos que envolveram a morte de
Sérgio Mattos (2010) coloca o Aqui famosos. Em uma de suas primeiras edições, em
Agora como um “telejornal popular” e o define 5 de agosto de 2014, o programa apresentou
como “(um) modelo de jornalismo popular uma foto que supostamente esclareceria o
usado nas emissoras de rádios: sensacionalista, assassinato do funkeiro Mc Daleste. Em outra,
com notícias policiais e muito apelo sexual”. datada de 8 de outubro de 2014, o programa
Algumas edições do programa acabaram exibiu trechos de uma gravação inédita (de
por ser mais marcantes, tamanho apelo do acordo com a atração) que poderia esclarecer a
programa em busca da audiência. Uma delas foi queda do avião que vitimou os integrantes da
a edição de 5 de julho de 1993, no qual o Aqui banda “Mamonas Assassinas”.
Agora exibiu o suicídio, ao vivo, de Daniele Todavia, o programa teve seu final em
Alves Lopes, de 16 anos. Ao avistar o carro de 31 de dezembro de 2014, apenas 4 meses após
reportagem do programa, a jovem se atirou seu início, muito por conta das fortes críticas
para morte do 7º andar de um edifício em São que sofria por conta de seu teor
Paulo. De acordo com Amêndola (2005), o “sensacionalista”.
programa registrou um aumento de 33 pontos
Destarte, a carga discursiva destes
de audiência na aferição do Ibope.
programas demarca bem suas peculiaridades. À
Em 2014, um programa semelhante – no medida em que se apresentam como
que tange ao apelo popular – surge: o Tá Na ‘prestadores de serviço’, mas abusando do
Tela. ‘sensacional’, o contexto apresentado ao longo
1.2 O Tá Na Tela das décadas demarca o interesse social típico do
gênero popularesco.
Exibido pela primeira vez no dia 4 de
agosto de 2014, o programa Tá Na Tela 2. O lugar social do discurso jornalístico
contava com a apresentação de Luiz Bacci. Para construir interesse social, todo
Apesar de ser comparado a outros popularescos discurso depende das condições específicas do
por seu teor, o programa contava com um contexto no qual se encontra inserido.
auditório, que constantemente participava do Conforme questiona Charaudeau (2010, p. 67),
programa em interação com o apresentador, e como os indivíduos poderiam “trocar palavras,
com a jornalista Marilei Schiavi, que comentava influenciar-se, agredir-se, seduzir-se, se não
as reportagens após a exibição. existisse um quadro de referência?” Sem este
instituto norteador, não seria possível atribuir

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143
valor aos atos de linguagem e, permanente de dissimulação ou fabulação”
consequentemente, construir sentido e atingir o (1973, apud MEDINA, 2008, p. 11).
receptor. Como ato discursivo, o jornalismo
A partir dessa ideia, remete-se que, para também se insere nesse jogo de regulação das
ser compreendido por seu interlocutor, o práticas sociais. Ele é produto de um lugar
produtor do discurso deve levar em conta “os social e, bem como ocorre com qualquer outro
dados da situação de comunicação”, os quais grupo ou prática humana, também sofre
tomam como base nas convenções e normas do influência dos conflitos que permeiam as trocas
comportamento linguageiro da sociedade, que do local de sua origem. Os profissionais seguem
tornam possível a comunicação humana ao os parâmetros e procedimentos de trabalho – os
gerarem valores e simbologias. “A situação de quais influenciam o modo de contar as estórias
comunicação é como um palco, com suas e transmiti-las ao público –desenvolvidos ao
restrições de espaço, de tempo, de relações, de longo da história dessa atividade dentro da
palavras, no qual se encenam as trocas sociais e sociedade em que estão inseridos.
aquilo que constitui o seu valor simbólico” O “poder” de construir esse registro foi
(CHARAUDEAU, 2010, p.67). conferido aos jornalistas ao longo da trajetória
Na mesma corrente de raciocínio, para da profissão. Nesse ponto, vale destacar as
Bakhtin (1979, p. 282), a palavra é o fenômeno tentativas de delimitação do que poderia
ideológico por excelência, pois carrega uma constituir a atividade jornalística e sua inserção
carga de valores culturais que expressam as no corpo social, conforme destaca Fidalgo
divergências de opiniões e as contradições da (2006). Os esforços para isso se deram, em boa
sociedade, tornando-se assim um palco de parte, pela negativa:
conflitos. O autor ainda argumenta que o
fundamento de toda linguagem é o dialogismo. [...] chamando a atenção menos para aquilo
Ou seja, todo enunciado é um elo de uma que o jornalismo era e mais para o que ele
cadeia de enunciados. Em outras palavras, as não era: nem uma tribuna de propaganda
política e proselitismo partidário, nem o
experiências verbais realizadas anteriormente
espaço mais alargado (em termos de difusão
com outros indivíduos está presente em toda
pública) para os escritores interessados em
manifestação do produtor do discurso. Os publicar as suas crônicas ou os fascículos
sentidos, com isso, não são originários do de seus romances (FIDALGO, 2006, p. 67).
momento da enunciação, mas fazem parte de
um “continuum”.
A partir disso, pode-se fazer uma
Concomitante a este raciocínio, Edgar analogia com o tratamento que Michel de
Morin salienta que o discurso também Certeau confere à análise histórica. O autor
fundamenta essencialmente na palavra, voltando aponta que, para a historiografia, o outro é o
sua crença ao discurso jornalístico – à “objeto que ela busca, que ela honra e que ela
entrevista, mais especificamente, que sepulta”, portando “a única pesquisa histórica
trabalharemos mais à frente: “A entrevista, do ‘sentido’ permanece, com efeito, a do
evidentemente, se funda na mais duvidosa e Outro”. Com isso, ele objetiva enfatizar o fato
mais rica das fontes, a palavra. Ela corre o risco

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de que não existe uma pesquisa histórica que disciplinares utilizados pelas escolas, aponta
não foque a leitura dos discursos deste Outro que, por meio das provas, os professores
do passado. Contudo, esse estudo pretende conhecem seus alunos, descritos, mensurados,
“‘compreender’ e esconder com o ‘sentido’ a comparados a outros, treinados, classificados,
alteridade deste estranho ou, o que vem a ser a normalizados. A atividade prestada pelo
mesma coisa, acalmar os mortos que ainda jornalismo popularesco atua de forma
frequentam o presente e oferecer-lhes túmulos semelhante ao combinar “as técnicas da
escriturários” (CERTEAU, 1982, p. 14). hierarquia que vigia e a sansão que normaliza. É
um controle normalizante, uma vigilância que
Da mesma maneira, o jornalismo busca
permite qualificar, classificar e punir”
um saber sobre o outro e, com isso, é notório
(FOUCAULT, 1977, p. 164).
que não há jornalismo que não esteja calcado
no discurso de outro. A construção desse saber, No encaminhamento do discurso
contudo, também se molda a partir dos jornalístico, temos a entrevista, que visa
silêncios. Como aponta Certeau (1982, p. 14) a aprofundar determinado assunto ou personagem
respeito da historiografia, “ela faz falar o corpo através das palavras do próprio. É neste gênero
que se cala. Supõe uma decolagem entre a que ancoraremos as considerações a seguir.
opacidade silenciosa da ‘realidade’ que ela
3. O gênero entrevista
pretende dizer, e o lugar onde produz seu
discurso”. Ou seja, de forma semelhante ao Quando o discurso jornalístico passa a
historiador, o jornalista também possui papel trabalhar no processo essencial da dialética, a
ativo na construção dos sentidos do discurso entrevista assume papel fundamental no ato de
que ele registra, seja no enfoque criado na elucubrar determinadas questões. Esse processo
narrativa, na elaboração de perguntas, na de dupla participação não é tão simples, no
descrição de cenários e outros elementos entanto.
composicionais. Na entrevista, estão envolvidas questões
Portanto, ao atuar como modelador dos que vão além da essencial dualidade pergunta –
discursos dos atores sociais no contexto em que resposta. Para Cremilda Medina, essa interação
se encontra, o jornalista tanto é construído entre entrevistado e entrevistador pode ser
como também atua na edificação do lugar sentida pela audiência – telespectadores, no
social. Ele trabalha com os elementos caso deste trabalho.
simbólicos existentes, bem como atua na
modificação, reforço ou criação de novos Ocorre, com limpidez, o fenômeno da
identificação, ou seja, os três envolvidos
valores, práticas e ideologias.
(fonte de informação – repórter – receptor)
No caso do jornalismo popularesco, esse se interligam numa única vivência. A
jogo simbólico fica bem evidente. O jornalista experiência de vida, o conceito, a dúvida ou
atua como um vigilante da disciplina da o juízo de valor do entrevistado
sociedade, cobrindo os eventos que fogem da transformam-se numa pequena ou grande
ordem do cotidiano, sobretudo os atos que história que decola do indivíduo que a narra
transgridam as normas éticas e/ou legislativas. para se consubstanciar em muitas
interpretações (2008, p. 5-6).
Michel Foucault, ao tratar dos mecanismos

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posicionamentos trabalhados ironicamente,
Assim, nesse jogo de perguntas e
como forma de condenação – um pouco mais
respostas, a busca por essa identificação torna-
sutil que o perfil anterior. Isso pode ocorrer
se essencial no diálogo estabelecido.
com declarações fora de contexto, por exemplo.
Na relação que o sujeito-jornalista – o
Na entrevista que trabalha com a
repórter – terá com o entrevistado, o discurso
compreensão – aprofundamento, a autora
será envolvido em diferentes instâncias, que
entende que há os seguintes subgêneros:
poderão conferir distintas interpretações da
própria audiência. Este processo de 1) Entrevista conceitual: O subgênero
interpretação também pode sofrer influência mais ‘simples’, no qual o entrevistador procura
pela forma com que a entrevista é organizada, a informação de uma fonte mais especializada
fundamentada em seus objetivos. Cremilda para isso.
Medina (2008) traz duas classificações 2) Entrevista/enquete: Aqui, o sujeito-
sintéticas da entrevista na comunicação jornalista buscará mais de uma fonte para
coletiva: aquelas que visam espetacularizar o transcorrer sobre o tema. As fontes serão
ser humano; e aquelas em que a intenção é escolhidas aleatoriamente, sem uma qualificação
compreendê-lo. específica para responder ao questionário.
Seguindo neste raciocínio, há, ainda por 3) Entrevista investigativa: Nessa
parte da autora, classificações de subgênero da entrevista, o fundamental é obter respostas a
espetacularização e da compreensão. fim de solucionar determinada investigação.
No subgênero da espetacularização, há Casos de administração governamental, gestão
4 perfis localizados pela autora, a saber: do dinheiro público e abuso de poder fazem
parte da entrevista investigativa.
1) Perfil do pitoresco: Trabalha-se aqui
mais a fofoca, o grotesco e até mesmo o picante 4) Confrontação – polemização: Os
relacionados ao entrevistado. debates fazem parte deste subgênero de
entrevista, no qual há uma busca pelo
2) Perfil do inusitado: Neste perfil, o
contraditório, por opiniões divergentes.
entrevistador busca extrair o traço mais forte
que a caracteriza como excêntrica ou exótica. 5) Perfil humanizado: Como diz o
nome, o intuito dessa entrevista é, oposto ao
3) Perfil da condenação: Amplamente
subgênero de espetacularização, traçar um
utilizado no jornalismo policialesco, há uma
perfil humano ao entrevistado, trabalhando a
força para que o bandido – o entrevistado – seja
sensibilidade deste para gerar certa identificação
implicitamente condenado. Sobre este perfil,
junto aos telespectadores.
Medina (2008, p. 16) assevera:
“ideologicamente pautada pelo maniqueísmo e 4. O caso do zelador assassinado
o julgamento apriorístico, este perfil trata o ser No dia 18 de setembro de 2014, a
humano dentro da redução mocinho/bandido”. edição do Tá Na Tela apresentou, com
4) Perfil da ironia “intelectualizada”: exclusividade, nas palavras exibidas junto ao
Aqui, o entrevistado terá suas ideias e vídeo, uma entrevista do apresentador Luiz
Bacci com Eduardo Pinto Martins, acusado de

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esquartejar e queimar o corpo do zelador Jezi demarcado em seu discurso uma ambivalência
Lopes de Souza, em 30 de maio do mesmo ano. nos dois crimes, tentando levar essa ideia ao
A entrevista foi gravada no presídio de entrevistado, possivelmente para testar sua
Tremembé – prática comum entre programas de reação.
cunho popularesco. Não menos importante é notarmos o
4.1 Da humanização à espetacularização emprego do vocábulo cruel por parte do
sujeito-jornalista. Se para Bakhtin (1979) a
Inicialmente, a reportagem apresenta
palavra é o fenômeno ideológico que carrega
breves recortes da entrevista, com imagens do
uma carga de valores culturais que expressam
entrevistado sendo escoltado pela polícia e
divergências, a entrevista, que se funda na
xingado pelos transeuntes. Em seguida, uma
palavra, de acordo com Morin (1973, apud
trilha dramática emerge no momento em que o
MEDINA, 2008), demarcará o crivo de Bacci
apresentador exibe, para o preso, uma
ao utilizar palavra de forte carga semântica:
fotografia de seu filho. Ao vê-la, Eduardo chora
chamar ainda mais atenção ao crime.
e pede para o entrevistador aguardar alguns
segundos, enquanto se recompõe. Esta cena Mais à frente, o entrevistador pede para
inicial demarca uma tentativa de humanização o entrevistado dar detalhes do crime. Junto às
do criminoso, encaixando-se no que Cremilda palavras do criminoso, a edição do programa
Medina (2008) define como Perfil humanizado, apresenta imagens do zelador no dia de sua
ao utilizar os traços de sensibilidade de morte, subindo pelo elevador. Na sequência,
Eduardo, quando este chora. uma dramatização exibe como o crime
supostamente ocorrera – seguidamente
A seguir, a reportagem cita outros
acompanhado da trilha dramática. O
criminosos que estão presos com Eduardo:
apresentador questiona: Como é que você
Roger Abdelmassih, ex-médico, acusado de
cortou esse corpo?; sem resposta do criminoso,
estuprar algumas de suas pacientes; e
a edição aumenta o zoom em sua face, congela
Guilherme Longo, acusado pela morte do
a imagem e volta outros segundos depois,
enteado, Joaquim Ponte Marques – este último
quando Bacci questiona: Por que o silêncio? É
apresentado como companheiro de cela do
arrependimento isso? Esse questionamento do
entrevistado. Neste momento, Bacci sentencia e
apresentador faz parte do que Medina (2008)
pergunta: Eu estou falando com um assassino
coloca como Perfil da condenação. Embora o
que é pai, e estou conversando também com
criminoso já esteja cumprindo sua pena, Bacci
um preso que está dividindo a cela com um
parece ter sentenciado seu silêncio como uma
preso que é acusado de matar uma criança.
confissão de culpa do entrevistado.
Quem é mais cruel nesse caso?, ao que
Eduardo responde: O culpado. Cruel é aquele No próximo trecho, o entrevistador diz:
que é culpado. Este trecho coloca o Você me desculpa, mas eu nunca tinha ficado
telespectador em contato com o “lar” do na frente de uma pessoa que tinha
entrevistado, ao lado de criminosos esquartejado outra. Já entrevistei vários
nacionalmente conhecidos. Ao perguntar qual criminosos, mas um esquartejador, não. O que
dos dois era mais cruel – Eduardo ou é que passa na cabeça de uma pessoa quando
Guilherme, que matara o enteado –, Bacci deixa ela está cortando em pedaços o corpo de uma

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pessoa? Não consigo entender. Novamente, a deixaria a “Casa de Custódia de Taubaté”, onde
entrevista se encaminha para um subgênero de se encontrava.
espetacularização, de acordo com Medina
5.1 Arrependimento e condenação na
(2008), outra vez no Perfil de condenação.
entrevista com o “homem que aterrorizou
Além do apelo que Bacci faz aos detalhes
São Paulo”
dramáticos do crime, recorrendo ao momento
do esquartejamento, sua subjetividade parece Ao chamar a entrevista, o apresentador
entregue à recorrência do crime. Isso porque o Ivo Morganti destaca: Aqui Agora exclusivo.
jornalista se apoderou do que Charaudeau Trinta anos depois, Gil Gomes conversa com o
(2010) chama de “situação de comunicação”, Bandido da Luz Vermelha, o homem que
uma vez que demarcou seu discurso de forma a aterrorizou São Paulo. Na sequência, a também
ser compreendido pelos interlocutores – a apresentadora Christina Rocha afirma: Ele foi
audiência que, supostamente, busca o condenado a quase 400 anos de cadeia. Mas,
popularesco em seu programa. para você ter uma ideia, estará nas ruas no
ano que vem. Vamos acompanhar.
Nos últimos segundos de entrevista,
seguindo um tipo de caminho até antinômico, o Destaca-se, nessa passagem, a ênfase
entrevistador pergunta: Se ele (o filho do dada ao termo “aterrorizou”, além da expressão
entrevistado) estivesse aqui, onde está essa “para você ter ideia”. Em ambos os casos, os
câmera, olhando nos seus olhos, o que você apresentadores transmitem ao público a
diria pra ele?, ao que Eduardo responde, com sensação de medo e a percepção de
os olhos marejados: Pra ele me desculpar. Este condenação, além de deixarem a entender certa
final retoma, mais uma vez, ao subgênero de incredulidade pela possibilidade de João Acácio
compreensão – aprofundamento, mais deixar a prisão.
especificamente no Perfil humanizado, ao Corrobora com essa linha de raciocínio
apresentar o sofrimento e a sensibilidade que o a ambientação criada por Gil Gomes antes da
criminoso demonstra ao falar de seu filho. entrevista. O repórter aparece em um espaço
com iluminação de tonalidade vermelha e,
enquanto segura uma lanterna, conta a história
5. O caso de João Acácio Pereira da de João Acácio. O clima sombrio se funde à
Costa, o “Bandido da Luz Vermelha” narração pausada e com expressões
O programa Aqui Agora exibiu, em 4 de condenatórias, cuja estilística discursiva
dezembro de 1995, uma entrevista do repórter assemelha-se a enredos literários, como no
Gil Gomes com João Acácio Pereira da Costa. seguinte trecho: O assassino que aterrorizava
Conhecido como “Bandido da Luz Vermelha”, São Paulo. Década: 60. Um homem invadia
ele foi preso em 8 de agosto de 1967, acusado uma casa. Em suas mãos, uma lanterna. Uma
de crimes como homicídios e assaltos. O lanterna vermelha. Sorrateiramente, ele
gancho para a pauta se deu pelo fato de que ele entrava, assaltava, violentava. Um crime, dois.
estava próximo de completar 30 anos de prisão, Vários assaltos. Homicídios também. Toda a
pena máxima permitida no Brasil, e, portanto, polícia estava atrás dele.

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148
que o fazem lembrar dos anos na prisão, a
Já ao longo da entrevista, um detalhe
exemplo de expressões como “Trinta anos se
chama a atenção: enquanto João Acácio é
passaram. Uma vida inteira na cadeia”.
chamado de Bandido da Luz Vermelha pelos
apresentadores e nessa contextualização Em relação aos dois trechos em que
apresentada pelo repórter, ele é tratado apenas aparece cantando, cria-se um personagem
pelo nome – e não pelo apelido – durante a arrependido, que deseja recomeçar a vida.
entrevista. Portanto, após a caracterização do Também é possível ter uma percepção que
perfil do criminoso, mostra-se um certo respeito coloca em dúvida a sanidade mental dele, que é
entre entrevistador e entrevistado nesse corroborada pela dificuldade de fala que ele
tratamento. apresenta neste e em outros diversos trechos.
Ao final da entrevista, parte da música entoada
Em relação às perguntas, essencialmente
por ele diz: "...o sol declina e, logo após, vai
se enquadram no perfil da entrevista de
escurecer”. Ao fundo, nota-se,
condenação, além de trazer também de perfil
propositalmente, os dizeres “Deus abençoe este
humanizado. No primeiro caso, destacam-se
local” escrito em uma lousa.
perguntas como: “João, o que você diria hoje a
um garotinho que acha que o crime compensa? Considerações finais
Você, o mais famoso dos famosos, o que você A entrevista de Luiz Bacci com
diria a um menino que quer começar no mundo Eduardo Pinto Martins demarcou uma trajetória
do crime, que acha que roubar dá camisa pra interessante quanto ao (re)trato do
alguém?”; “O crime deu o que para você? Só entrevistador e ao gênero da entrevista.
cadeia?”; “Agora, como no Brasil a pena Inicialmente, parecia enveredar para a
máxima é de 30, no ano que vem, você vai para compreensão, através do subgênero de
a rua...”; “Uma pergunta que eu quero fazer humanização, quando a edição exibiu aquele
ao João, que está em minha cabeça, e você tem que seria o sofrimento do entrevistado, que
todo o direito de responder ou não... Que está chorou ao ver a foto de seu filho – emoção esta
na minha cabeça há quase 30 anos também, e que pode dar a ideia até mesmo de
hoje não teria problema: João Acácio, você arrependimento pelo crime cometido.
agia sozinho?”.
Todavia, no transcorrer da edição, o
No caso do perfil humanizado, destaca- entrevistador Luiz Bacci parece inverter a
se o fato de iniciarem e finalizarem a entrevista essência da entrevista, reforçando a culpa do
com João Acácio cantando músicas de teor entrevistado e o teor do crime cometido. Isto
religioso e algumas perguntas sobre o pôde ser observador no próprio discurso do
aprendizado durante o tempo de prisão, como sujeito-jornalista, que empregou termos de forte
nestas passagens: “Hoje, você é um homem carga semântica – como o vocábulo cruel – aos
completamente diferente, João?”; “O que você seus questionamentos, bem como compará-lo a
pretende da vida, João?”. Questiona-se, com outro criminoso – este acusado de matar o
isso, a regeneração moral do suposto enteado. Aqui, o trajeto da entrevista parece ter
criminoso. João Acácio também mostra a mudado de direção e rumado à
humanização ao chorar, sobretudo no início da
entrevista, quando o repórter realiza perguntas

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espetacularização, ressaltando o crime e o
ANGRIMANI, D. Espreme que sai sangue: um
criminoso.
estudo do sensacionalismo na imprensa. São
No entanto, na última cena da Paulo: Summus, 1995.
entrevista, a edição parece voltar à entrevista de
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da
compreensão, igualmente trabalhada no início,
linguagem. São Paulo: Hucitec, 1979.
quando encerra com o entrevistado em prantos
ao declarar o que diria para seu filho – mais CERTEAU, M. de. A escrita da história. Rio
uma vez, dando a ideia de arrependimento do de Janeiro: Forense Universitária, 1982.
criminoso. CHARAUDEAU, P. Discurso das mídias. São
Em relação à edição do programa Aqui Paulo: Contexto, 2010.
Agora analisada neste trabalho, foi possível FIDALGO, J. M. M. O Lugar da ética e da
observar discursos de condenação em diversos auto-regulação na identidade profissional dos
momentos. Logo na chamada dos jornalistas. 2006. (Tese em Ciências da
apresentadores e, sobretudo, na ambientação Comunicação), Universidade do Minho, 2006.
criada por Gil Gomes, fica clara a tentativa de
caracterizar o personagem como um criminoso FOULCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento
de forma semelhante aos bandidos da literatura da prisão. Petrópolis: Vozes, 1977.
e dos filmes de ficção. Grande parte das GRUPO BANDEIRANTES. O Programa Tá
perguntas também carregam esse teor Na Tela. Disponível em: <
condenatório e a moralidade dos atos. http://entretenimento.band.com.br/ta-na-tela/o-
Dessa forma, como destacado programa.asp>. Acesso em: 03 ago. 2015.
anteriormente, o jornalista possui papel ativo na MARCONDES FILHO, C. Televisão. São
construção dos sentidos do discurso que ele Paulo: Scipione, 1994.
registra, seja no enfoque criado na narrativa, na
elaboração de perguntas, na descrição de ______. Televisão: a vida pelo vídeo. São
cenários e outros elementos composicionais. Paulo: Moderna, 1988.
Portanto, entendemos que o jornalismo MATTOS, S. A. S. História da televisão
popularesco atua com uma vigilância brasileira: Uma visão econômica, social e
normatizadora que cria discursos que permitem política. Petrópolis: Editora Vozes, 2010.
qualificar, classificar e punir os atores sociais –
MEDINA, C. A. Entrevista: o diálogo possível.
algo amplamente observado nos dois objetos
São Paulo: Ática, 2008.
estudados por este trabalho.
RIBEIRO, A. P. G.; SACRAMENTO, I.;
ROXO, M. História da Televisão no Brasil.
Referências
São Paulo: Contexto, 2010.
AMÊNDOLA, G. Assassinatos sem a menor
importância: banalização da violência no Brasil.
São Paulo: Editora Terceiro Nome, 2005.

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DA ESCRAVA DOMÉSTICA À ESCRAVA SEXUAL:
MEMÓRIAS ESTAMPADAS NO DISCURSO PUBLICITÁRIO DE
CERVEJAS BRASILEIRAS1

Amanda BRAGA
Universidade Federal da Paraíba (UFPB)
braga.ufpb@hotmail.com

Resumo: Este trabalho se apresenta com o intuito de empreender uma análise discursiva
do rótulo e/ou do material publicitário de três cervejas brasileiras: a cerveja Cafuza, a
cerveja Mulata e a Devassa Negra. Partindo da regularidade que une e tece os enunciados
em questão – a referência à mulher afro-brasileira –, o objetivo é analisar o fio
discursivo que os proporciona condições de emergência, oferecendo visibilidade ao
cenário ainda escravocrata que aqui se apresenta, mais particularmente no que se refere
à memória da escrava doméstica e da escrava sexual2. Como recurso teórico-
metodológico, este trabalho está ancorado em uma análise do discurso derivada de
Michel Pêcheux, mas que aceita as contribuições de Michel Foucault e Jean-Jacques
Courtine.
Palavras-chave: discurso; memória; mulher negra; cerveja.

à tona, enquanto a priori histórico desses


Introdução
enunciados, a memória de um sistema
Este artigo nasce de duas preocupações. escravocrata, ou, mais particularmente, a
A primeira diz respeito ao modo como os atuais memória da escrava doméstica e da escrava
anúncios de cerveja fazem uso do corpo da sexual.
mulher em seu material publicitário, fazendo-os
Para tanto, o intuito é fazer trabalhar um
confundir com o produto oferecido para
aparato teórico-metodológico que nos ofereça
consumo. A segunda concerne à esfera racial de
suporte para a análise de enunciados que não se
alguns desses anúncios, o que acaba por trazer
reduzem à natureza linguística e, do mesmo

1
Uma versão ampliada deste artigo foi enviada à Revista Letras e Línguas e deve ser publicado em seu próximo
número (33).
2
Em todo período escravocrata brasileiro, a prática da seleção eugênica selecionou mulheres escravizadas para o
trabalho na Casa-Grande. Na maioria dos casos, essas mulheres, além de escravas domésticas, eram também escravas
sexuais. Assim sendo, essas são memórias que fazem referência, quase sempre, à mesma pessoa, muito embora, para
fins de análise, elas se apresentem aqui de modo distinto.

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151
produção e materializada em um suporte
modo, que reivindicam uma dimensão histórica (PIOVEZANI, 2009, p. 208).
no momento de sua leitura. Esse gesto analítico
está alinhando às contribuições de Foucault à
Análise do Discurso (centrando-se aqui na Assim sendo, seria preciso que nós,
noção de enunciado) e de Jean-Jacques analistas do discurso, passássemos a considerar,
Courtine (mais precisamente em sua proposta em nossas análises, a dimensão textual em sua
de uma Semiologia Histórica aplicada aos totalidade, mediante as diferentes linguagens
estudos do discurso). sob as quais ela se funda.

1. Discurso e Semiologia Além disso, a dimensão histórica que


Courtine vincula à dimensão semiológica não
Nos últimos anos, aqueles que representa, nas palavras de Piovezani (2009),
trabalham com uma Análise do Discurso em um mero sintagma atraente. Associando o
terras brasileiras têm se deparado com novas caráter histórico à Semiologia, Courtine
discussões ou desafios. Entre eles, estão as pretendia ampliar o alcance da visada
novas materialidades do discurso e a busca por discursiva, oferecendo novo fôlego e novos
um aparato teórico-metodológico que responda desafios ao projeto que buscava restituir ao
de modo satisfatório às análises de tais discurso sua espessura histórica, em
materialidades. Nesse contexto, aqueles que se contraposição a uma tendência de
fazem valer das noções foucaultianas em seus gramaticalização do discurso.
trabalhos, têm, cada vez mais, colocado à prova
as atuais discussões de Jean-Jacques Courtine, Fundamentados nos postulados da
mais particularmente aquelas que trazem uma Semiologia histórica, de Courtine, visamos a
leitura de Michel Foucault para discutir o uma certa reabilitação da densidade
corpo, as expressões, as imagens. Decorre histórica que atravessa toda e qualquer
daqui a disseminação de pesquisas que levam discursividade, com vistas a inscrevermos
em conta a perspectiva denominada por nosso objeto de reflexão e análise na
Courtine de Semiologia Histórica. intersecção de múltiplas durações da
história e a considerarmos, mesmo que
Essa Semiologia reclama a necessidade sumariamente, a historicidade das memórias
de uma mudança no que se refere ao apego pela que ele atualiza, dos recursos que ele
dimensão textual dos discursos. Seria preciso emprega, quando de sua formulação, e da
considerar que o processo de materialização forma do objeto cultural por intermédio do
textual ocorre, atualmente, mediante uma qual ele se manifesta materialmente e
diversidade de meios de expressão, tendo, nas circula na sociedade (PIOVEZANI, 2009,
palavras de Piovezani (2009), um caráter p. 204).
plurissemiótico, de modo que seria preciso
considerar o texto como sendo uma Destarte, grosso modo, poderíamos
dizer que a proposta de uma Semiologia
unidade simbólica que se formula em uma, Histórica, antes de estar ligada à concepção de
duas ou mais linguagens, sob a forma de um uma disciplina, está ligada à construção de uma
dado gênero de discurso, produzida em perspectiva teórica que carrega o desejo não
determinadas condições históricas de apenas de revolver (e devolver) a espessura

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152
histórica dos discursos, mas, além disso, de
considerar uma unidade textual baseada no
caráter sincrético que a constrói. Essa abertura
não significa, no entanto, distanciar-se dos
preceitos postulados pela Análise do Discurso.
Piovezani (2009) fala de uma reformulação
conservadora, na medida em que a perspectiva
adotada por Courtine faz irromper novas
questões sobre a composição, a historicidade e
o funcionamento do discurso contemporâneo,
apresentando-se como via possível na
ampliação da visada discursiva e renovando, na
Análise do Discurso, sua capacidade analítica, A mulher retratada se apresenta de
na medida em que explora seus limites e forma crua, alheia a qualquer vaidade ou
alcances. Vejamos, agora, como essa proposta produção. Sua expressão é de passividade, mas
se aplica às análises. de uma passividade bravia, principalmente se
reparamos em sua sobrancelha esquerda
2. Cerveja Cafuza: forte, escura
levemente arqueada, de onde poderíamos supor
O enunciado abaixo é rótulo de uma uma dada altivez. A linguagem verbal – que
cerveja produzida artesanalmente no Brasil. Seu igualmente compõe o enunciado em questão –
nome – Cafuza – funciona na ambivalência coaduna com este sentido ao mesmo tempo em
entre a combinação de ingredientes utilizados que o expande: cerveja forte e escura,
na cerveja, a miscigenação entre negros e oferecendo-nos a ratificação não apenas da
índios, historicamente comum em nosso país, e designação atribuída à mulher enquanto cafuza
a mulher que estampa seu rótulo, supostamente – escura –, mas também da expressão descrita
cafuza. de seu rosto – forte.
Sobre esta última, especificamente, seria A confusão que se instaura – entre a
preciso questionar, à luz da arqueologia mulher e a cerveja, ambas igualmente cafuzas,
foucaultiana ([1969] 2010), os motivos pelos fortes e escuras – nos faz questionar,
quais há uma determinada fotografia na estampa novamente, sua escolha. Quem é essa mulher no
do rótulo, e não outra em seu lugar, haja vista decorrer de nossa história e por que ela – e
que não se trata de uma fotografia recente, nenhuma outra – estampa o anunciado aqui
produzida conforme solicitação da empresa, analisado? São muitas as fotografias do século
muito menos trata-se de uma modelo inspirada XIX que poderiam ser colocadas enquanto
nos atuais conceitos de beleza, com pose e operadores de memória deste rótulo. Uma
vestimenta específicas para este fim. delas, no entanto, merece destaque. Abaixo,
temos uma fotografia datada de 1870,
provavelmente de uma mulher escravizada,
Figura 1. Cerveja Cafuza

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153
como tantas outras3. Um rápido contato com a de um luxo tão longínquo de sua realidade –,
fotografia e é possível perceber que a imagem nos permite concluir que se trata de uma
do rótulo anteriormente apresentado é uma escrava doméstica, certamente levada por seu
retomada da fotografia aqui impressa. São senhor ao estúdio fotográfico para fins de
imagens que colocam em jogo uma memória registro em álbum de família, tão comuns na
das imagens acontecimentalizadas pelo época. Sua condição explica, pois, sua
presente. Com isso, não estamos afirmando que expressão passiva, embora determinada, ou, no
temos, em ambos os casos, o mesmo limite, servil com os senhores e forte para o
enunciado, uma vez que o enunciado, embora trabalho.
tenha materialidade repetível, empreende em A escolha da imagem presente no rótulo
seu retorno a emergência de uma nova parece se dá, portanto, porque é a imagem
discursividade (FOUCAULT, [1969] 2010). dessa escrava doméstica quem melhor responde
Trata-se, portanto, de funcionamentos aos interesses da cerveja, principalmente em se
discursivos distintos, embora haja, entre ambas, tratando de uma cerveja artesanal, que, em
a retomada de uma materialidade. princípio, foi produzida de forma caseira. Esta
Figura 2. Fotografia de 1870 ideia agregaria valor à cerveja na medida em
que a diferencia da maioria das cervejas do
mercado, feitas em larga escala, de forma
massiva, sem qualquer apuro em sua
composição e até, por vezes, acusadas de
substituírem a cevada pelo milho, numa
tentativa de baratear o produto. A cerveja
Cafuza, por sua vez, teria na imagem atualizada
da escrava doméstica o símbolo de um produto
familiar, fabricado em pequena escala, na
intimidade da casa e aos cuidados domésticos, o
que garantiria, portanto, sua qualidade. Mas
essa memória não seria exclusividade deste
anúncio, ou deste enunciado, ainda a veremos
refletida, ainda que sob outra ótica, no
enunciado a seguir, cartão publicitário da
O modo como se apresenta esta segunda
cerveja Mulata.
fotografia – considerando a ausência de
qualquer adereço mais representativo, o que a 3. Cerveja Mulata: a mistura perfeita
deixa à margem de tantas outras fotografias que
nos chegam do século XIX, nas quais as O anúncio abaixo é um cartão
mulheres portam vestimentas, joias e penteados publicitário lançado em 2006: Gostosa é
apelido. O nome é Mulata. Cerveja Mulata: a
mistura perfeita. Bem como o enunciado
3
Fotografia de autoria de Alberto Henschel, datada de anteriormente analisado, o anúncio em questão
1870. Atualmente catalogada em Ermakoff (2004, p. não tarda em fazer deslizar a ideia de mistura
182).

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154
para a ideia de miscigenação. O produto a ser está cozinhando e não fazendo qualquer outra
vendido é, ele mesmo, fruto de uma mistura: atividade? Que sentidos a imagem evoca e em
elaborada a partir de uma combinação que espessura histórica (e cultural) buscará
exclusiva de maltes pilsen e lúpulos importados respaldo?
da Europa. Como bem prega o nosso imaginário, e
Figura 3. Cerveja Mulata como bem resgata DaMatta (1986), na mesa
brasileira não pode faltar arroz com feijão – e
talvez seja exatamente o feijão que a mulata
anda a cozinhar na publicidade! Voltemos, pois
à (con)fusão instaurada entre mistura e
miscigenação: a mistura que fazemos à mesa
não é bem aquela que corre em nosso sangue?
O preto e o branco comungam no nosso rosto e
no nosso prato. O feijão deixa de ser preto e o
arroz deixa de ser branco para formarem,
Sua garota propaganda, do mesmo juntos,
modo, é, por excelência, a representante da
nossa miscigenação, bem como da nossa um ser intermediário, desses que a
identidade nacional: em franca oposição ao sociedade brasileira tanto admira e
discurso advindo das teorias eugenistas do valoriza positivamente. Comer arroz-com-
século XIX, segundo as quais a miscigenação feijão, então, é misturar o preto e o
deveria ser combatida enquanto principal branco, a cama e a mesa fazendo parte de
responsável pela possível degeneração da raça um mesmo processo lógico e cultural...
(DAMATTA, 1986, p. 56).
humana, o que a nossa cultura nacional fará é
atribuir valor positivo ao mulato, ratificando a
“glorificação da mulata e do mestiço como Assim, a comida se apresenta enquanto
sendo, no fundo, uma síntese perfeita do melhor código representativo da sociedade brasileira,
que pode existir no negro, no branco e no tanto no que diz respeito ao modo como nos
índio” (DAMATTA, 1986, p. 40). alimentamos, quanto no que diz respeito ao
modo como nos organizamos enquanto povo:
Sua representação aqui se constitui mulata não é apenas aquela brasileira que
entre a caricaturização de um corpo sensual e a carrega os traços de nossa formação social, mas
tarefa que exerce na cena em que é retratada: é também a comida que temos à mesa, ou,
enquanto sorri e remexe um corpo embalado ainda, o modo como a preparamos antes de
por um vestido insinuante, a mulher prepara ingeri-la:
uma comida escura numa enorme panela.
Poderíamos partir, mais uma vez, da clássica Tal como somos ligados à idéia de sermos
pergunta foucaultiana: por que esse enunciado e um país de três raças, um país mestiço e
não outro em seu lugar? (FOUCAULT, ([1969] mulato, onde tudo que é contrário lá fora
2010). Por que esse exato modo de aqui dentro fica combinado, nossa comida
representação e não outro? Por que a mulata

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155
revela essa mesma lógica (DAMATTA,
1986, p. 64).

Dessa associação, decorre, ainda, aquela


que estabelece um parâmetro entre mulheres e
comidas, a partir da subversão do verbo
“comer”. Para além da rápida e cristalizada
associação feita entre a mulher e seu papel
doméstico, tratamos aqui da corrente Acima, temos o anúncio publicitário da
associação entre sexo e refeição. Essa dimensão Cervejaria Devassa, veiculado pela Revista
está ratificada pela maneira como está posta a Rolling Stones em dezembro de 2010: É pelo
linguagem verbal: Gostosa é apelido. O nome é corpo que se reconhece a verdadeira negra.
Mulata. Aqui se confundem a cerveja, a mulher, Associando, em toda sua linha de produção, a
a comida. Se a cerveja é fruto de uma mistura e, imagem da mulher à imagem da cerveja, a
por isso, sustenta a ideia de ser mais gostosa em Devassa também faz uso de ambiguidades a fim
relação às demais, a mulher também o é. Seu de confundir as duas esferas. O próprio nome
corpo exala sensualidade, falando-nos sobre um da cerveja – bem como fizeram a cerveja
sabor que está não apenas na cerveja, mas está, Cafuza e cerveja Mulata – é prova disso: afinal,
principalmente, no corpo da mulher mulata. o que é a Devassa, ou quem é a devassa? Certo
é que todas as cervejas produzidas nessa linha
O que temos aqui, por um lado, é o
não apenas recebem denominações femininas,
retrato de uma mulata fácil, docilizada ao sabor
como também são tratadas por irmãs: uma
dos desejos patriarcais: aquela que iniciou
família bem atípica, todas as irmãs são
nossos meninos de engenho “no amor físico e
gostosas, diz a página oficial do produto 4.
os transmitiu, ao ranger da cama de vento, a
Apresenta-se, assim, a loura, a ruiva, a negra, a
primeira sensação completa de homem”
índia e a sarará: mas nem todo mundo aguenta
(FREYRE, [1933] 2006, p. 367). Mas não é só
4 na mesma noite, dispara o site.
isso. Por outro lado, atentemos para o resgate,
também presente, de uma escrava doméstica, O ambiente criado para a publicidade da
destinada aos trabalhos caseiros, Devassa negra, especificamente, é um misto de
particularmente àqueles ligados à cozinha: é bordel e botequim. Este último está presente,
cozinhando que a mulata se apresenta. Não por por exemplo, nos azulejos que formam o pano
acaso, a linguagem verbal faz uso de expressões de fundo da imagem: em botequins mais
que retomam os dois enredos: quem é gostosa, tradicionais, principalmente aqueles que
a mulher mulata ou a comida por ela produzida? remontam a meados do século passado, no
É esse a priori histórico, ou, mais melhor estilo português, os azulejos – quando
particularmente, essas memórias, que oferecem não são o típico azulejo lusitano, decorado com
sustentação ao enunciado em questão. suas formas florais ou abstratas –, estão
acomodados na forma de losangos, sobrepondo
4. Devassa Negra: é pelo corpo...
dois tons de cor, tal qual nos mostra o
Figura 4. Devassa Negra
4
<www.devassa.com.br>. Acesso em: 25 abr. 2015.

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156
enunciado em questão. Aliada ao azulejo, a beijos de quem a deseja), porta uma roupa
imagem da cerveja: chope ou long neck. insinuante (que mostra mais do que esconde) e
Enquanto a garrafa – geladíssima – insinua uma um olhar que revela uma suposta maldade da
leve abertura da tampa, o chope, em copo raça, como já cantava Bororó na década de
personalizado, transborda sua espuma, como 305. E de outro modo não poderia ser: é pelo
quem acaba de ser recolhido: ambos prontos ao corpo que a reconhecemos, são as curvas
consumo, oferecendo-se aos olhos e ao paladar desenhadas sobre sua pele que podemos
do consumidor. A competir com a cerveja, no identifica-la.
entanto, apresenta-se – maior! – a mulher negra Não por acaso, o anúncio em questão
que se estende pelo restante do anúncio. É ela o provocou reações em cadeia e foi acusada de
contraponto à garrafa long neck ou ao chope. reforçar o processo de racismo e veicular
Do mesmo modo, é ela quem colocará em cena, estereótipos e mitos sobre a sexualidade da
numa relação de memória, a imagem do bordel população negra. A tal acusação, o grupo
de que falávamos anteriormente. Devassa parece responder citando a alegria e a
Sentada, coxas à mostra, sapato alto, criatividade do brasileiro. Em seu site,
vestido decotado (minuciosamente desenhado), disponibiliza um Manifesto fazendo alusão à
uma rosa amarrada ao braço, uma tiara ao Devassa como sinônimo de liberdade,
cabelo e, por fim, um olhar que tem por autenticidade e descontração: mostrar quem, de
finalidade seduzir o leitor do enunciado. Em verdade, a gente é e fazer aquilo que tem
contraste com os azulejos verdes, a negra veste vontade de fazer são algumas das possibilidades
vermelho, numa atmosfera de paixão e luxúria. apresentadas pela cerveja, porque quem bebe
Em trajes típicos de uma concubina, a mulher Devassa procura liberdade. Nada de fazer tipo,
está sentada de costas para quem vê o quadro: caras e bocas, fingir ser o que não é. Por esse
apoia seus braços sobre o chão e apresenta seu viés, o que o anúncio por eles divulgado faria,
rosto. É sob esse ângulo que se dá a ver o então, seria oferecer visibilidade e espaço para
maior decote de sua roupa: desnudando seus que a mulher negra seja exatamente quem ela é,
ombros, seu dorso, ao mesmo tempo em que para que ela assuma, finalmente, sua identidade
ameaça deixar à mostra seus seios e insinua, sob sem que seja preciso qualquer máscara ou
o “corte” que traja, o desenho de suas nádegas. maquiagem.
Paralelamente, a linguagem verbal salienta: é Se quisermos considerar, ainda, o
pelo corpo que se reconhece a verdadeira parâmetro feito por DaMatta (1986, p. 60)
negra. entre mulheres e comidas, em lugar de uma
Uma leitura do enunciado em sua mulher negra que estivesse moldada por um
espessura histórica nos dirá que a verdadeira discurso social que impõe controle de sua
negra, aqui, é, na verdade, um acontecimento identidade, de sua conduta e de seu apetite
discursivo que atualiza, mais uma vez, a sexual, a Devassa daria vazão à verdadeira
memória de uma escrava sexual. A verdadeira
negra tem um corpo exposto, oferece-o aos
olhos de quem a observa, traz uma boca
5
entreaberta (como que pronta a entregar-se aos Referência à música Da cor do pecado, escrita por
Bororó na década de 30 do século XX.

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157
negra: “comida de todos”, nas palavras do modo, sustentando a produção de sentido
autor, ou, quiçá, “bebida” de todos. destes enunciados, esta linha tênue entre
mulheres e cervejas também trará à tona uma
É esse parâmetro – de uma mulher
espessura histórica que acontecimentalizará a
negra “comida ou bebida de todos” – e
memória senhoril/ escravocrata, retomando da
principalmente as ambiguidades presentes na
imagem da escrava doméstica à imagem da
proposta publicitária da revista – o nome das
escrava sexual.
cervejas, o modo como se apresenta cada uma
delas, além do cenário de luxúria montado em Por outro lado, é justamente esse
seu site – que nos proporá, então, a confusão crescendum – entre a escrava doméstica e a
propositalmente instaurada entre o produto escrava sexual – que nos apontará as rupturas
oferecido pela publicidade e suas garotas enunciativas aqui encontradas. A começar pela
propagandas. Seria, mais uma vez, preciso cerveja Cafuza, vimos que toda construção de
questionar: quem é a devassa: a mulher negra seu enunciado, passando pela mulher estampada
que se estende pelo anúncio ou a cerveja que se em seu rótulo até a linguagem verbal que define
apresenta, tímida, ao lado dela? O que oferece, o produto, trabalha na manutenção da memória
de fato, o anúncio: o corpo da mulher ou a de uma escrava doméstica, uma vez que essa
cerveja escura, encorpada, estilo dark ale? Uma memória agregaria valor a um produto
ou outra, certo é que, segundo a publicidade, o artesanal, atestando sua qualidade através de
lado devassa da negra (a mulher ou a cerveja) seu modo caseiro de produção. Já a cerveja
só seria perceptível pelo corpo. Mulata se apresenta na corda bamba entre as
memórias da escrava doméstica, anteriormente
4. Considerações finais
acionada, e a memória da escrava sexual. Ora, é
Após empreender uma leitura discursiva na caricaturização de um corpo sensual e que
dos enunciados em questão – o rótulo da cozinha que o enunciado em questão se
cerveja Cafuza, um cartão postal da cerveja constitui, instaurando uma dada confusão entre
Mulata e um anúncio da Devassa Negra –, mulheres, sexo e comida. A Devassa Negra,
restar-nos-ia, ainda, esboçar as regularidades e por seu turno, proporá a sensualidade do corpo
rupturas que se fizeram presentes neste negro em sua máxima caracterização,
percurso. De início, é preciso reconhecer o uso aguçando, de modo definitivo, a memória da
do corpo da mulher em anúncio de cerveja de escrava sexual. Prova disso é o modo como se
modo geral, para além da questão racial aqui estende pelo anúncio e toda composição de sua
apontada. No entanto, nos enunciados roupa (da cor ao corte), além de um olhar
analisados neste artigo, além do uso desse sedutor e de um cenário que lembra os clássicos
corpo, há, em todos eles, uma sintomática bordeis.
ambiguidade instalada entre os nomes das
Com isso, talvez tenhamos atingido o
cervejas, sua composição e as mulheres que
objetivo elencado para este texto: analisar o
estampam seus rótulos. Não por acaso, são as
material publicitário das cervejas mencionadas
mulheres que aparecem nos três enunciados,
trazendo à tona sua espessura histórica e
protagonizando uma fusão entre garotas
considerando sua natureza semiológica. Para
propagandas e produtos a serem
tanto, foi preciso abrir mão de uma Análise do
comercializados e consumidos. Do mesmo

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158
Discurso obcecada pela materialidade
FOUCAULT, M. [1969]. A arqueologia do
linguística e pelo teatro das condições de
saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 7.
produção. Foi preciso fazer trabalhar uma
ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.
Análise do Discurso que começa a se configurar
na década de 80, principalmente quando FREYRE, G. [1933]. Casa-grande & senzala:
Courtine ([1981] 2009) trazia para o campo as formação da família brasileira sob o regime da
contribuições da arqueologia foucaultiana, ou, economia patriarcal (Introdução à história da
da mesma forma, quando ele se deslocava rumo sociedade patriarcal no Brasil – 1). 51. ed. São
a uma Semiologia Histórica (2011; 2013). É Paulo: Global, 2006.
essa articulação que distanciar-nos-á da PIOVEZANI, C. Verbo, corpo e voz:
gramaticalização dos discursos, na medida em dispositivos de fala pública e produção da
que devolve sua dimensão histórica; bem como verdade no discurso político. São Paulo: Ed. da
distanciar-nos-á da limitação linguística dos UNESP, 2009.
enunciados, na medida em que nos fará
considerá-los em sua dimensão semiológica.

Referências

COURTINE, J-J. [1981]. Análise do Discurso:


o discurso comunista endereçado aos cristãos.
Tradução de Bacharéis em Letras pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
São Carlos: EdUFSCar, 2009.
______. Discurso e imagens: para uma
arqueologia do imaginário. Tradução de Carlos
Piovezani. In: PIOVEZANI, Carlos;
CURCINO, Luzmara; SARGENTINI, Vanice.
(Org.). Discurso, semiologia e história. São
Carlos, SP: Claraluz, 2011. p.145-162.
______. Decifrar o corpo: pensar com Michel
Foucault. Tradução de Francisco Morás.
Petrópolis: Vozes, 2013.
ERMAKOFF, G. O negro na fotografia
brasileira do século XIX. Textos de George
Ermakoff. Projeto gráfico de Victor Burton e
Angelo Allevato Bortino. Rio de Janeiro:
George Ermakoff Casa Editorial, 2004.
DAMATTA. R. O que faz o brasil, Brasil? Rio
de Janeiro: Rocco, 1986.

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159
PRÁTICAS DE LEITURA E SUA LEGITIMAÇÃO: FORMAS
DE ACONSELHAMENTO NA WEB

Jessica Boquetti de Oliveira BRAGA


Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
jebobraga@gmail.com

Neste trabalho, apresentamos considerações iniciais da nossa pesquisa de Iniciação


Científica cujo objetivo é empreender um levantamento na web de declarações de famosos
sobre a leitura, de modo a identificar e analisar o que se enuncia sobre a leitura,
asformas de promoção dessa prática e de ostentação de si como leitores, que remetem
invariavelmente a representações compartilhadas histórica e culturalmente sobre essa
prática. Assim, pautamo-nos teórico-metodologicamente naAnálise do Discurso de linha
francesa e em alguns princípios da História Cultural da leitura.
Palavras-chave: Práticas de leitura; Leitores famosos; Representações discursivas do
leitor; Análise do discurso; História Cultural de leitura

avaliarmos o que dizem ou o que mostram


Introdução
sobre a leitura.
Neste artigo, apresentamos algumas
Graças à visibilidade midiática que
considerações iniciais de nossa pesquisa de
esses sujeitos dispõem, logo, de certo prestígio
Iniciação Científica que estamos
e de reconhecimento, eles atuam como
desenvolvendo e que se apoia nas pesquisas e
formadores de opinião e por isso suas
discussões realizadas no âmbito do Laboratório
declarações, de modo geral, e aquelas
de estudos Interdisciplinares das
referentes à leitura, de modo específico, são
Representações discursivas do leitor brasileiro
legitimadas, ainda que não sejam reconhecidos
contemporâneo – LIRE/UFSCar.
como especialistas do tema. Por outro lado, ao
Inspirados, especialmente, na pesquisa mostrarem-se publicamente como leitores,
realizada por Santos&Curcino (2014) sobre as constroem sobre si uma imagem positiva, um
declarações de famosos acerca de suas leituras certo ethos, cujo prestígio advém do valor
no Blog do Galeno, objetivamos com este simbólico sócio e historicamente constituído
trabalho, descrever certas práticas de leitura acerca da própria prática, do que se enuncia e
apresentadas ou declaradas na web por figuras se reitera sobre ela. São esses enunciados
públicas e de sucesso na mídia de modo a verbais e não-verbais presentes no que é dito e
empreendermos uma busca das ocorrências de mostrado sobre essas figuras “famosas” quanto
declarações sobre a leitura manifestas por à leitura e quanto ao seu perfil leitor que
famosos não-especialistas no tema, de modo a

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160
compõem nosso corpus de pesquisa, de modo e validados historicamente sobre essa prática,
que a nossa análise busca refletir sobre as assim como são por eles fomentados e
representações discursivas compartilhadas hoje produzidos. Esses discursos são aceitos e
quando são apresentadas figuras públicas e compartilhados pelos sujeitos de modo a
famosas como leitores. nortearem suas práticas reproduzidas
socioculturamente, e com eles se estabelece
Dessa forma, nossa análise é subsidiada
processos de desidentificação complexos,
pela articulação teórica da Análise do Discurso
responsáveis pelas mudanças, ao longo do
de linha francesa, principalmente nos trabalhos
tempo e de cultura a cultura, do que dizemos e
empreendidos por Michel Foucault, no que diz
fazemos em relação a essa prática.
respeito às formações discursivas comuns a
esses enunciados coletados, de modo a Os discursos têm uma espessura
situarmos histórica e culturalmente algumas histórica oriunda do modo como constituímos,
dessas declarações em relação “ao que pode e validamos e reproduzimos esses discursos, e que
deve ser dito” sobre a leitura; e por alguns é responsável por sua duração no tempo (cf.
princípios da História Cultural da leitura Courtine 1999), podendo ser depreendidos não
preconizados por Roger Chartier, em relação às apenas no que é dito explicitamente sobre uma
representações da leitura e do leitor que prática, mas também no modo como os textos
circulam atualmente. circulam materialmente, sob a forma de
determinados gêneros e suportes.
1. Leitores e Leitura:
Não sem razão, são recorrentes certas
Ao se pensar sobre a sociedade
afirmações sobre a leitura, tais como a
heterogênea na qual estamos hoje inseridos,
importância da leitura de livros, para
buscamos compreender quais são as relações
entretenimento, especialmente de origem
que possibilitam sujeitos distintos
literária, ou a afirmação genérica de que a
compartilharem, produzirem e reproduzirem
leitura traz benefícios para o sujeito, sob a forma
ações e ideias de uma comunidade. Para tanto,
de seu desenvolvimento intelectual, profissional
com base na História Cultural da leitura e na
etc, tal como discutido, por exemplo, por
Análise do Discurso, concebemos que essas
Varella&Curcino (2012).
ações resultam de, ao mesmo tempo em que
produzem, certas representações coletivas, Pela ampla difusão desses discursos, o
comuns, que norteiam nosso modo de conceber livro impresso ocupa lugar de destaque e valor,
o mundo e as nossas relações interpessoais, tornando-se um importante objeto cultural cuja
uma vez que a representação corresponde a um posse e acesso ao longo do tempo
conjunto de valores que promovem relações de desempenhou papel de distinção dos sujeitos, o
identificação do sujeito com a sociedade. que se encontra manifesto nos exemplos que
buscaremos analisar em nossa pesquisa.
Segundo Chartier (1998), a leitura, tal
como em relação a outras práticas, também é Entre os gêneros em que mais se
representada conforme concebida e validada evidencia a recorrência desses discursos mais
socialmente. Assim, tanto a presença ou remanentes sobre a leitura encontram-se aquele
ausência dessa prática, quanto o que é lido, das campanhas publicitárias em favor da leitura
assim como o modo como se lê num dado (Cf. VARELLA & CURCINO, 2012) e as
grupo social refletem discursos compartilhados propagandas de livros ou de materiais escolares

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161
de promoção dessa prática. Nelas vemos de
modo mais objetivo a determinação dos usos e 3. Análises e discussão
dos objetos legítimos de leitura. No processo de seleção dos enunciados,
Atualmente, um dos lugares inicialmente, nos valemos da busca via Google1,
privilegiados de circulação de textos, a partir por meio de palavras-chaves pré-definidas, tais
dos quais podemos buscar formas de como “famosos”, “celebridades”,
manifestação de práticas de leitura, é a Internet. “personalidades públicas”, conjugadas com
Nela, em sites muito variados que vão de blogs, outras palavras-chave como “leitores”, “leitura”,
páginas pessoais em redes sociais etc, é “livros”, “lendo”.
possível localizar formas distintas de Num levantamento inicial observamos
referenciação da leitura, isto é, de manifestação serem frequentes as declarações sobre a leitura
de sujeitos acerca dessa prática que validam por parte de famosos em ‘entrevistas’
sob a forma de postagens, fotos e entrevistas, o concedidas ou publicadas em blogs e sites de
que se entende por leitura e por “ser” leitor (Cf. comunicação, como revistas online, figurando,
CURCINO, 2016). normalmente, em colunas de “Entretenimento”,
Dessa forma, em nossa pesquisa, em que, conjuntamente, circulam notícias e
objetivamos depreender discursos sobre a entrevistas relacionadas a diversos temas, sobre
leitura presentes na internet (sites, blogs e redes a vida de celebridades, como curiosidades,
sociais), por meio de levantamento de textos hobbys, etc.
diversos em que figurem imagens ou Em geral, o tema da leitura não é
declarações verbais feitas por diversos evocado espontaneamente pelo entrevistado,
indivíduos, em situações as mais variadas, cuja mas induzido por meio de questões relativas ao
similitude entre eles encontra-se no fato de que tema realizadas pelo próprio entrevistador,
todos esses indivíduos se apresentam ou são como: o que estão lendo no momento; se são
apresentados como leitores. leitores; quais são seus gostos por um gênero e
2. O que se enuncia e quem enuncia sobre a estilo literário, e o que indicariam para a
sobre a leitura nas redes sociais leitura.

Pelo estágio inicial de nossa pesquisa, Outro conjunto de ocorrências refere-se


procedemos neste momentoa uma consulta a a situações e gêneros distintos. Ao invés de
blogs, sites e redes sociais diversas, de modo a serem questionados, por meio de perguntas,
levantarmos e selecionarmos posts, notícias e acerca de suas práticas de leitura, os famosos,
postagens contendo recomendações de leitura são apontados como sujeitos leitores por meio
manifestas por famosos, ou sobre eles, de da utilização de imagens, fotografias,
diferentes campos e origens. Em seguida, construindo uma espécie de “flagra” do que
sistematizamos essas declarações em função de fazem cotidianamente. O termo “flagra” é
suas semelhanças quanto àquilo que enunciam
sobre a leitura, lembrando queessas declarações
não apenas validam o que é dito sobre a leitura, 1Foram utilizadas na busca diferentes
como também aqueles que se apresentam como máquinas e navegadores, evitando a “busca
leitores. viciada” que ocorre ao estarmos logados em
uma conta google, por exemplo.

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162
usualmente utilizado no meio marcadores de páginas (que comprovariam a
jornalístico/midiático, principalmente nos leitura efetiva), por exemplo.
portais de revistas e jornais de fofoca, Desses conjuntos de dados citados,
atualidades, colunas sociais, seja online ou
devemos considerar alguns aspectos relativos
impresso, para exporem acontecimentos aos meios de vinculação dessas informações,
relacionados às celebridades. Dentre as apresentações, a saber, os portais, blogs
situações recorrentes nesses “flagras” pessoais e redes sociais.
observamos várias fotografias não-posadas,
obtidas de forma “espontânea” de O primeiro, geralmente, diz respeito
personalidades em restaurantes, na praia, no propriamente ao que se diz sobre a leitura:
salão de beleza etc, portando ou lendo livros. quais livros estão sendo lidos, ou supostamente
Devido à origem dessas fotografias, que lidos, por essas personalidades? Tendo em vista
teoricamente representariam situações do dia-a- que, nas entrevistas vinculadas pelos portais e
dia das celebridades obtidas de forma blogs, os sujeitos em destaque tendem a indicar
“espontânea”, uma vez que os fotografados não títulos de livros que estão lendo ou que são
sabem que estão sendo clicados, elas adquirem seus favoritos. Observamos, uma certa
maior valor de verdade por teoricamente não diversidade de títulos, que se diferenciam nos
serem posadas e/ou encenadas (cf. CURCINO, gêneros indicados; o mesmo se dá quando
2006). Assim, são flagrados artistas, sobretudo migra-se para as redes sociais, pois os famosos
aqueles do universo da TV aberta, em dão destaque ao livro que estão lendo no
momentos rotineiros, como o da compra de um momento, de modo a afirmarem sua intenção
novo livro, a ida à praia com um livro na mão, e/ou realização de leitura, explorando aspectos
por exemplo, que contribuem para a de ordens diversas, tais como o conhecimento
constituição do ethos desses sujeitos. do autor e do livro pelos fãs e seguidores,
criando uma relação mais direta, mesmo que
Um terceiro conjunto de dados é aquele generalizada, de interação.
oriundo de páginas de famosos ou páginas para
as quais os famosos enviam, com vistas à O segundo refere-se aos “flagras”
publicação, imagens ou declarações sobre si, de propriamente ditos, em que os títulos dos livros
modo geral, entre elas imagens e declarações tendem a ter um papel secundário, sendo o
sobre suas práticas de leitura. É preciso objeto físico livro o único requisito necessário
considerar que, muitas dessas personalidades para a validação e constituição do ethos de
têm assessores de publicidade e as redes sociais leitor desses sujeitos. As imagens, por serem
são uma ferramenta para a ampliação das espontâneas, não trazem com clareza a capa do
formas de aproximação com o público. Assim, livro, possibilitando aos blogs e portais
várias postagens nesse ambiente, seja de realizarem uma espécie de análise da
imagens seja de enunciados sobre as práticas de fotografia, aproximando a imagem para o
leitura desses famosos, ostentam sua condição reconhecimento do livro portado pelas
de leitor, e para as quais são empregadas celebridades.
estratégias diversas como o uso de imagens Além disso, é notória a diferenciação
desses famosos diante de estantes de livros nas realizada entre artistas nacionais e
suas casas, carregando livros em suas bolsas, internacionais. Do material levantado, nos
ou mesmo nas mãos desses sujeitos, com

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163
ajudinha, fornecendo dicas de obras
portais brasileiros de notícias, como o UOL2, variadas e interessantes.
são destacados artistas nacionais, normalmente
conhecidos por seu trabalho na TV aberta, Esse recurso aparece também em alguns
usualmente em novelas ou programas de dos outros blogs em situações de flagras, em
entretenimento, enquanto nos blogs, que são que são utilizadas imagens de atores lendo,
em sua maioria sobre leitura e/ou literatura, porém, não é explicitado pelo blog que se trata
administrados por indivíduos ou grupos que se de contextos fictícios, seja pelo
denominam leitores, que trazem resenhas e desconhecimento do próprio blogger, seja por
assuntos relacionados ao universo da leitura, falta de cuidado na sua reunião de material para
temos esses enunciados de forma mais a postagem.
diversificada: existem artistas nacionais Em todos os contextos (portais, blogs e
citados, ou fotografados, mas são artistas redes sociais), os enunciados não-verbais, ou
internacionais que ganham destaque. Entre as seja, as imagens, tem mais destaque e presença
celebridades, os internacionais, principalmente do que os enunciados verbais. Em sua maioria,
americanos, em geral são priorizadas as as entrevistas e blogs trazem a imagem, e
celebridades jovens. normalmente abaixo o nome do artista e o
Um acontecimento peculiar e nome do livro: em alguns casos uma curta
interessante percebido durante o levantamento informação sobre o artista ou sobre o livro que
dos enunciados foi o aparecimento de está citado. Em menor quantidade, em seus
personagens fictícios, de novelas brasileiras e enunciados verbais (sempre são anteriores ou
seriados americanos, figurando na lista de posteriores a uma imagem), os autores fazem
leitores. Isso foi destacado no blog Estante um breve texto referente às celebridades e seus
Virtual3, que utilizou como recurso o recorte de hobbys, explicitam uma aproximação, dizendo
21 imagens de flagras, 7 artistas internacionais, que “eles” leem como nós, e a confirmação se
7 nacionais e 7 personagens de novela da TV dá por meio das fotografias e depoimentos,
aberta, estes últimos explicitamente como uma forma de ‘matar’ a curiosidade dos
mencionados em função da características fãs e sua necessidade de identificação.
desses personagens nas novelas:
E não é só na vida real que as celebridades
demonstram seu gosto pelos livros.
Também nas novelas é possível ver os
personagens da ficção se entretendo entre
uma cena e outra com uma boa leitura. E
para quem anda em dúvida sobre o próximo
livro a ler, as novelas podem dar uma

2http://www.uol.com.br/
3http://blog.estantevirtual.com.br/2012/07/04/c
onheca-os-livros-das-celebridades-nacionais-e-
internacionais/

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Figura 1. Famosos mostram o que estão Figura 2. Flagras de famosos com livros
lendo

A figura 2 representa o segundo


contexto anteriormente apresentado, no qual
A figura 1 diz respeito a uma notícia do
blogs se utilizam de imagens de artistas em
Portal UOL4, em que os artistas são
“flagras” comprando ou lendo algum livro.
questionados sobre seus hábitos de leitura por
Nesses casos, a imagem tem mais destaque e
se tratar de uma reportagem do dia nacional do
compõem a totalidade da postagem. O exemplo
livro. Essa imagem representa o primeiro
refere-se a uma imagem do blog Estante
contexto mencionado, onde artistas são
Virtual5 e traz o seguinte enunciado:
questionados sobre suas leituras, sobre seus
hábitos leitores. A fotografia da Maísa Silva é Eles estão sob os holofotes. E suas vidas,
acompanhado do enunciado verbal seguinte: assim como também suas leituras, são alvo
da curiosidade de muitas pessoas. Afinal, o
No Dia do Livro, a apresentadora Maisa que será que os famosos fazem em seu
Silva, a Maisinha, escolheu o livro "O tempo vago? Como nós, algunstambém
Teorema Katherine", de John Green, que gostam de visitar bibliotecas, livrarias e de
ela ganhou recentemente. "Ganhei esse ter ao lado a companhia de um bom livro. E
livro e fiquei feliz, porque adoro ler e se alguns preferem as leituras rápidas e os
também gosto demais do autor John Green. livros bem-humorados, outros dedicam-se a
Esse foi um presente da Simone, que é a uma leitura maisprofunda, encarando livros
nossa maquiadora no 'Estação Pet'. densos como os do filósofo Friedrich
Também gosto de outros livros desse autor, Nietzsche e Nikolai Gógol. Os clássicos e
o meu predileto é 'Cidades de Papel', mas os religiosos também estão entre os
também adoro 'Quem é Você, Alasca?'", queridinhos dos famosos. Conheça os
afirmou a jovem. gostos literários das celebridades nacionais
e internacionais.

4http://celebridades.uol.com.br/album/2014/10/ 5http://blog.estantevirtual.com.br/2012/07/04/c
29/no-dia-nacional-do-livro-famosos-mostram- onheca-os-livros-das-celebridades-nacionais-e-
o-que-estao-lendo.htm internacionais/

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165
Figura 3. Uso das redes sociais para se durante o vôo de novo apenas para ter
apresentar como leitor tempo de lê-lo novamente!!!! E eu
realmente não gosto de voar! [smile de
coração]

4. Considerações finais
Os discursos sobre a leitura são
construídos historicamente e compartilhados
socialmente desempenhando importante papel
na construção do ethos dos sujeitos. A leitura,
como prática, é muito valorizada em nossa
sociedade e por isso é empregada como forma
de ostentar uma imagem de prestígio, ao
mesmo tempo em que produz o seu avesso, ou
seja, a estigmatização da não-leitura e daqueles
considerados não-leitores. A ostentação da
condição leitora não apenas constrói um ethos
positivo dessas celebridades que posam ou são
A figura 3 foi retirada do blog Literature-se6, e retratas com livros como também garantem
representa o último contexto apresentado, o certa aproximação com o público a que se
qual se refere ao uso das redes sociais por parte dirigem. O livro entra aqui como um
dos artistas para se validarem como sujeitos instrumento, uma ferramenta, um meio de
leitores. As imagens normalmente mostram a autopromoção.
capa dos livros, com ou sem marcador de A diferença perceptível hoje em relação
página, normalmente próximo de algum objeto ao que era considerado como leitura legítima
pessoal, ou mesmo nas maõs dos famosos.. No refere-se à amplitude de gêneros dos textos
caso desta fotografia, foi retirada do Instagram7 lidos que vemos nessas representações dos
da atriz e cantora americana Hillary Duff, em leitores. Isso pode indiciar uma relativa
que vemos uma mão segurando o livro “A mudança nas formas de valoração da leitura e
culpa é das estrelas” do autor John Green. do perfil leitor brasileiro, e uma maior abertura
Juntamente à fotografia temos o seguinte quanto ao que garante prestígio nessa relação
enunciado (teoricamente escrito pela próxima de apresentação de si como leitor. É como se
atriz): importasse mais que se leia do que o que
propriamente é lido.
Eu acabei de ler esse livro inteiro de LA
[Los Angeles] até NYC [New York City]. A leitura, em especial a leitura com a
Eu gostaria de voltar para o avião e sentar finalidade de entretenimento, e de certos
títulos, continua gozando de uma representação
de prestígio, ainda que possamos observar hoje
6http://www.literature- uma menor estigmatização de certos gêneros,
se.com/2014/08/celebridades-tambem- dada sua ampla circulação, o que os torna
leem.html populares, figurando nas listas de mais
vendidos, e com isso de certa forma são
7https://www.instagram.com/

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166
validados, mesmo que pelos não especialistas distinção e apropriação. Campinas: Mercado de
no tema, e mesmo circulando de modo Letras, 2003. p. 141-167.
diferente dos cânones. COURTINE, J. -J. O Chapéu de Clémentis. In:
INDURSKY, F. e LEANDRO FERREIRA, M.
C. (orgs). Os múltiplos territórios da Análise
Referências
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Preconceitos em Leitura. In: MARINHO,
CURCINO, Luzmara. Práticas de leitura
Marildes (org.). Ler e Navegar: espaços e
contemporâneas: representações discursivas do
percursos da leitura. Campinas: Mercado de
leitor inscritas na revista VEJA. 2006. 337 f.
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Tese (Doutorado em Linguística e Língua
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DA COMUNICAÇÃO, 24., 2001, Campo “Júlio de Mesquita Filho”, Araraquara, 2006.
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______. Diferentes formas de ler. In: das (in)subordinações contemporâneas. São
CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS Carlos, EDUFSCar, 2016.
DA COMUNICAÇÃO, 24., 2001, Campo FOUCAULT, M. A ordem do discurso: Aula
Grande. Anais... Campo Grande: INTERCOM, inaugural no Collège de France, pronunciada
2001c. Disponível em: em 2 de Dezembro de 1970. São Paulo:
<http://www.unicamp.br/iel/memoria/Ensaios/ Edições Loyola, 1999.
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BARZOTTO, V. H.; BRITTO, L. P. L. condições. In: BARZOTTO, Valdir. Estado de
Promoção da leitura x mitificação da leitura. leitura. Campinas: Mercado de Letras, 1999.
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______. P. Discurso e Texto: Formulação e
1998.
Circulação dos Sentidos. Campinas: Pontes, 2001.
BAYARD, P. Como falar dos livros que não
POSSENTI, S. Sobre a leitura: o que diz a
lemos? Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.
Análise do Discurso? In: MARINHO, Marildes
CHARTIER, Roger. A ordem dos livros: leitores, (org.). Ler e navegar: Espaços e percursos da
autores e bibliotecas na Europa entre os séculos leitura. Campinas: Mercado de Letras;
XIV e XVIII. Trad. Mary Del Priori. Brasília : Associação de Leitura do Brasil, 2001.
Editora da Universidade de Brasília, 1998.
SANTOS, R. B. R.; & CURCINO, L. Projeto
CHARTIER, R. Leituras “populares”. In:- de pesquisa “Dicas de quem já leu”: uma
_____. Formas e sentido. Cultura escrita: entre análise discursiva das representações de leitura

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167
inscritas em depoimentos de leitores postados
no blog do Galeno, (mimeo), 2014.
SOARES, M.. Ler, verbo transitivo. In: PAIVA,
Aparecida [et al.] (Orgs.). Leituras literárias:
discursos transitivos. Belo Horizonte: Autêntica.
2008. Disponível em:
<http://www.leiabrasil.org.br/old/leiaecomente/verb
o_transitivo.htm>. Acesso em: 15 nov. 2012.
VARELLA, Simone Garavello; CURCINO,
Luzmara. Os discursos incentivadores da
leitura: uma análise de campanhas em prol
dessa prática. In: Anais eletrônicos do
Colóquio Internacional de Estudos Linguísticos
E Literários – Cielli, 2. Maringá,
2012.Disponível em:
<http://anais2012.cielli.com.br/pdf_trabalhos/1
685_arq_1.pdf>. Acesso em: 12 set. 2012.

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168
A CONSTITUIÇÃO DA RESISTÊNCIA PELO DISCURSO DO
JORNAL O ESTADO DE SÃO PAULO NO MOVIMENTO DE
JUNHO DE 2013

Fernanda BUFONI
Universidade de Franca (UNIFRAN)
bufoni.fernanda@gmail.com

Resumo: Este trabalho pretende analisar como a resistência dos protestos realizados no
Brasil em 2013 foi constituída no jornal O Estado de São Paulo à luz do pensamento de
Michel Foucault. Para tanto, observamos que nas edições de 1º a 30 de junho de 2013, as
publicações sobre as manifestações trazem sempre palavras e imagens que remetem à
violência. Como instrumentos teóricos, utilizamos os conceitos de formação discursiva,
acontecimento discursivo, e poder e resistência. Análises preliminares mostram que o
jornal documenta os protestos como foco de resistência, ao mesmo tempo em que
funciona como mecanismo de controle para excluir, sujeitar e limitar discursos. Para
Foucault, as lutas na sociedade moderna se dão em busca de identidade e seu principal
objetivo não é o de atacar instituições, mas contra uma forma de poder que se exerce
sobre o cotidiano.
Palavras-chave: foucault; resistência; acontecimento discursivo; manifestações 2013;
jornal o estado de são paulo.

Introdução levou cartazes e gritou palavras de ordem em


130 cidades do país. No dia seguinte, a
Em 27 de março de 2013, centenas de
mobilização popular ocupava lugar de destaque
pessoas foram às ruas em Curitiba (PR) para
nas capas dos principais jornais do Brasil com
protestar contra o aumento do valor das
fotos e textos descritivos e opinativos.
passagens de ônibus. Era a primeira de uma
série de manifestações que marcou a história Quando comparamos as capas dos
política brasileira. Nos dois meses seguintes, as diversos jornais, publicadas ao longo do mês de
prefeituras de todas as capitais brasileiras junho de 2013, é possível observar que cada
negociaram e reduziram a tarifa. veículo de comunicação tem seus próprios
critérios para a escolha das palavras, das
O ápice dos protestos aconteceu no dia
imagens e do espaço destinado às
20 de junho, quando, de acordo com o jornal O
manifestações. No dia 19 de junho, por
Estado de São Paulo, 1,4 milhão de pessoas

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169
exemplo, enquanto a manchete do jornal O
São exemplos, a linha-fina (frase em
Globo (RJ) dizia: “Capitais já baixam tarifa de
destaque logo abaixo do título) do dia
ônibus; protestos continuam”; O Estado de São
08/06/2013: “Manifestantes contra tarifa de
Paulo (SP) trazia: “Manifestantes tentam
ônibus entram em confronto com a PM pelo 2º
invadir prefeitura; SP tem noite de caos”; e o
dia; estação do metro é depredada”; a legenda-
Zero Hora (RS) estampava: “Por dentro do
destaque da foto publicada no dia 11/06/2013:
Protesto. Não uma, mas muitas razões levam
“Quebra-quebra no Rio”; a legenda da foto
milhares às ruas do país” (figura 1).
principal da capa do dia 12/06/2013: “Prejuízo.
Figura 1 – Capa Zero Hora 19/6/2013 Manifestantes depredam ônibus; movimento foi
engrossado por representantes da UNE, PT e
PSOL, além de estudantes de outros estados”;
ou ainda o título da manchete da edição de
14/06/2013: “Paulistano fica ‘refém’ de bombas
em novo confronto”. Dessa forma o tema
segue sendo apresentado.
Já as imagens mostram incêndios,
nuvens de gás, sangue, movimentos de ataque e
a tropa de choque da Polícia Militar em
formação de barreira, como exposto nas figuras
a seguir:
Figura 2. Imagem de chamada especial
Devido a essa diversidade e enorme posicionada no topo da capa no dia 16/06
campo de trabalho, decidimos limitar nossa
pesquisa às publicações do jornal “O Estado de
São Paulo”, que, em 2014, foi o de maior
distribuição no estado de São Paulo - com a
média de 169 mil exemplares/dia, e o quarto
maior do Brasil - com 234 mil exemplares
diários.
1. Metodologia
Através do recorte de títulos, textos e
legendas de fotos, constatamos que os
protestos foram temas de chamadas de capa em
21 edições no período estudado. É possível
apontar que todas as vezes em que são citadas,
as manifestações são sempre acompanhadas
pelas palavras violência, confronto, vandalismo,
depredação, quebra-quebra, choque, refém,
caos e saques.

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170
Figura 3. Foto da manchete do dia 21/06: “incompetência da presidente Dilma Rousseff
fogo, manifestantes de rosto coberto e
mergulho em Brasília (DF)
na administração de crises”, e o “isolamento
político do PT (Partido dos Trabalhadores)”.
Também a partir desse corpus,
destacamos as condições de possibilidades,
que, de acordo com Foucault, trata-se de uma
rede que organiza a historicidade de um saber e
que permite um jogo de opiniões simultâneas e
aparentemente contraditórias.
Na trama tecida como pano de fundo
para o surgimento dos protestos, o jornal traz o
cenário político da época. As manifestações
aconteceram exatos 12 meses antes da data
Figura 4. Tropa de choque em foto que limite (convenções até 30/06/2014) para a
acompanha manchete do dia 23/06 ratificação pelos partidos dos nomes dos
candidatos à Presidência da República (eleições
em 5/10/2014).
Os políticos Eduardo Campos, Marina
Silva e Dilma Rousseff já são citados no
período como possíveis pré-candidatos e
começam a compor o cenário político-eleitoral.
A análise sobre o posicionamento do
jornal quanto ao papel da presidente Dilma
2. Abordagem teórica Rousseff (citada 17 vezes) e do governador de
Com o recorte de textos e imagens das São Paulo Geraldo Alckmin (citado 6 vezes)
capas do jornal, identificamos nos enunciados durante o mês de junho em relação aos
uma regularidade entre objetos, tipos de protestos também se mostrou relevante para a
enunciação e escolhas temáticas, que composição do discurso identificado em O
caracterizam várias formações discursivas. A Estado de São Paulo.
maioria delas, nesse caso, está ligada Comparando os registros, podemos
diretamente às manifestações: “baderna”, observar que as duas personagens políticas
“imaturidade democrática” e “descontrole por aparecem em momentos diferentes, apenas
parte dos líderes das manifestações”. Juntas, coincidindo nos dias 18, 19 e 20 - de maior
essas formações discursivas compõem um mobilização nas ruas. O jornal explicita que
discurso de violência de forma a invalidar o ambos agem em resposta à pressão popular.
foco de resistência. Outras formações
A figura do governador deixa de
discursivas compõem discursos políticos de
aparecer no momento em que ele atende ao
direita como a “instabilidade econômica com
clamor popular e reduz o valor das passagens
pressão dos empresários e risco de colapso”, a

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171
de ônibus (figura 5). O número de publicações Figura 6 – Capa O Estado de São Paulo
24/6/2013
da figura da presidente, ao contrário, aumenta.
Figura 5 – Capa O Estado de São Paulo
20/6/2013

Além do cenário político, há também o


registro de três conflitos com grande destaque
nas capas com fotos e texto antes de os
As notícias sobre o governador Geraldo protestos pela redução das tarifas ganharem
Alckmin mostram uma rápida mudança de espaço: entre policiais e indígenas após
comportamento e contenção da crise. Em “invasão em fazendas” em Sidrolândia (MS);
apenas uma semana, suas ações passam de manifestantes na Alemanha contra a política de
criticar os manifestantes e negar a redução do austeridade econômica adotada na Europa; e a
preço da passagem, a elogiar os líderes do Turquia registra protestos contra políticas
movimento e ceder à redução da tarifa. adotadas pelo governo do primeiro-ministro
Já no caso da presidente, o noticiário Recep Erdogan.
sugere que no início Dilma dá atenção às As minorias também aparecem com a
exigências dos manifestantes, mas em seguida divulgação do estudo do IBGE de que “Casais
se atrapalha e se vê em meio a uma crise gays são mais diversificados” (02/06/2013);
política. A mudança se dá de um dia para o pelo registro da Parada Gay (03/06/2013); e da
outro como mostram as manchetes de 24/06 e aprovação da “Cura Gay”, na Câmara dos
25/06. A primeira: “Em resposta às ruas, Dilma Deputados (19/06/2013).
faz pacote contra a corrupção” (figura 6). E a
segunda: “Dilma propõe plesbicito para reforma O desenrolar da Copa das
política, ação é atacada”. Confederações deixa as páginas dos jornais
mais coloridas, principalmente de verde e
amarelo, em contraste com as imagens escuras
– quase sempre registradas à noite – dos

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172
protestos com o batalhão de choque da PM, Como uma configuração histórica, a verdade se
incêndios e multidões. transforma de acordo com contingências
históricas. E a vontade de verdade exerce uma
Foi observado também que o jornal O
espécie de pressão, um poder de coerção.
Estado de São Paulo garante diariamente a
Controla a produção da “verdade”, assim como
veiculação de notícias de política e economia
a mantém como mecanismo controlador. E
com destaque em suas capas. No mês de junho
nesse caso o jornal tem papel importante ao
de 2013, são temas de reportagens: “alta do
servir de suporte institucional que a distribui e
dólar”, “PIB (Produto Interno Bruto) fraco”,
consolida.
“queda da Bovespa após nota de classificação
de risco de agência” e “pressão da indústria”. Do segundo grupo, dos procedimentos
internos - em que os discursos eles mesmos
3. O poder
exercem seu próprio controle, têm função
Talvez o conceito mais importante de restritiva e coercitiva para sujeição dos
Foucault que aplicamos à analise seja o de discursos -, destacamos o comentário nas capas
poder e resistência. Para o filósofo, há na do jornal o Estado de São Paulo. Para
sociedade moderna um poder transitório e Foucault, esse procedimento controla o acaso
circular, que trabalha para forjar representações do aparecimento do discurso, restringindo
de subjetividades e impor formas de aqueles discursos que retornarão e serão
individualidades. A esses poderes preservados em uma cultura e os que serão
correspondem, em oposição, formas de esquecidos.
resistência que afirmam o direito à diferença e
Trazendo-o para a materialidade do
combatem tudo o que pode isolar o indivíduo,
texto publicado no jornal, temos a repetição de
desligá-lo dos outros.
enunciados com paráfrases e metonímias, que
Nessa estrutura, o jornal O Estado de nas edições estudadas contribuem para a
São Paulo se configura como um mecanismo de formação do discurso de “terrorismo
controle. Para Foucault, a produção do discurso econômico” e “pressão política”, entre outros.
é controlada por procedimentos que se
Do terceiro grupo de princípios de
caracterizam por mecanismos discursivos que
controle – rarefação dos sujeitos que falam – a
têm como efeitos a exclusão (o que pode ou
apropriação do discurso chama a atenção na
não ser dito), sujeição (o que é verdadeiro/falso
análise das capas do jornal. Segundo Foucault,
e o que retornará/será esquecido?) e rarefação
toda sociedade possui instituições responsáveis
(limita o discurso a alguns sujeitos). Esses
pela distribuição dos discursos, pelo
princípios de controle são divididos em 3
gerenciamento das apropriações. E nesse caso,
grupos (externos, internos e rarefação dos
o jornal desempenha papel fundamental.
sujeitos que falam) que, se articulam, estando
interligados e sem fronteiras. Observado como parte de uma
instituição (a imprensa), o jornal é caracterizado
Tais procedimentos são claramente
por sua circulação e seu caráter documental.
identificados no corpus proposto. Entre os
Ele distribui os discursos de forma seletiva,
procedimentos externos, destacamos a vontade
classificando os sujeitos por grupos para
de verdade, que opõe o verdadeiro ao falso.

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gerenciar o que cada um deles lê, vê, ouve,
Elas não são, no entanto, apenas modos
comenta, entende, etc. Faz parte da essência do
de fabricação de discursos e estão ligadas a um
jornalismo moderno buscar atingir, sensibilizar
complexo conjunto de modificações operadas
os leitores, falando a todos – e a cada um –
em seu exterior (em formas de produção,
através de práticas discursivas que mobilizem o
relações sociais, instituições políticas), no
arquivo.
interior delas mesmas, e a seu lado, em outras
O arquivo é, de início, a lei do que pode ser práticas discursivas.
dito, o sistema que rege o aparecimento dos Assim, o movimento, que no princípio
enunciados como acontecimentos regulares. era por 20 centavos (contra aumento na tarifa
(...) entre a tradição e o esquecimento, ele de R$ 3 para R$ 3,20), em poucos dias,
faz aparecerem as regras de uma prática que
levantava bandeiras como: “educação e saúde
permite aos enunciados subsistirem e, ao
padrão Fifa”, “contra a militarização das
mesmo tempo, se modificarem
regularmente. (FOUCAULT, 1986, p. 148- polícias”, “pelo fim da corrupção”, “contra os
150). gastos com a Copa” e “contra a PEC 37”. No
dia 19 de junho, a cidade de São Paulo
anunciou a revogação do aumento das
Os três tipos de procedimentos listados
passagens e o grupo Movimento Passe Livre,
por Foucault têm funções restritiva e coercitiva
que encabeçava o movimento, comemorou a
para a sujeição dos discursos.
vitória e afirmou que as manifestações
4. E a resistência parariam. Mas, àquela altura, o protesto já
Do outro lado, os protestos se havia sido transformado por outras práticas
constituem como resistência, não a esta discursivas e novos protestos foram registrados
instituição ou aquela, mas a uma forma de em várias cidades ainda por muitos dias.
poder sobre a vida cotidiana. E finalmente, os protestos de junho de
Nessa resistência, os sujeitos buscam 2013 podem ser observados como um
sua identidade contra a classificação por acontecimento discursivo. Pelo método
categorias, a individualização. E nessa busca, arqueológico, Foucault trata os enunciados
observamos por meio das capas do jornal a efetivamente produzidos, em sua irrupção.
transformação das práticas discursivas. Segundo ele, um acontecimento obedece a uma
combinação de regras, que constituem o
Práticas discursivas são um conjunto de arquivo e que determinam as condições de
regras anônimas, históricas, sempre possibilidades de sua aparição.
determinadas no tempo e no espaço, que
5. Considerações finais
definiram, em uma dada época e para uma
determinada área social, econômica, Como conclusão preliminar, o estudo
geográfica ou linguística as condições de confirma a configuração das manifestações de
exercício da função enunciativa. junho de 2013 como um acontecimento
(FOUCAULT, 1986, P. 136) discursivo e o jornal O Estado de São Paulo
como um mecanismo de controle que age em
reação a um foco de resistência. Ao fazê-lo, o

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jornal reconhece sua existência, ao mesmo
______. A arqueologia do saber. Tradução de
tempo em que procura barrar, proibir e
Luis Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro:
invalidar os discursos dessa resistência.
Forense Universitária, 1986.
Com textos e imagens, o jornal promove
______. A ordem do discurso. Tradução de
um recorte e a reinterpretação dos protestos a
Laura Fraga Sampaio. São Paulo: Loyola,
partir de um referencial político de direita. E
1996.
procura legitimar esse discurso articulando
formações discursivas relacionadas, GREGOLIN, M. R. Foucault e Pêcheux: na
principalmente, à área econômica. análise do discurso - diálogos e duelos. São
Carlos: Claraluz, 2006.
Para tanto, as práticas discursivas
entram em cena e o arquivo é acionado. As
manifestações passam de protestos
democraticamente legítimos por parte da
população que quer se posicionar a respeito de
vários temas que fazem parte de seu dia-a-dia, a
quebra-quebra promovido por uma multidão
descontrolada encabeçada por grupos de
baderneiros.
Ainda nesse cenário de confusão criado
pelo próprio jornal, a memória dos movimentos
estudantis das décadas de 60 e 70 é sutilmente
resgatada. Os cartazes, a recorrência da figura
do jovem, a comparação explícita através de
comentários e até fotos antigas dão o tom às
reportagens.
E ao final, as manifestações são
retratadas apenas como parte de um problema
maior: as crises política, econômica e
institucional provocadas pela incompetência
administrativa da presidente Dilma Rousseff.

Referências
ORLANDI, E. P. Análise de Discurso:
princípios e procedimentos. Campinas: Pontes,
1999.
FOUCAULT, M. Microfísica do poder.
Organização e tradução de Roberto Machado.
Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979

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ANÚNCIOS IMPRESSOS DAS DÉCADAS DE 1940 E 1950: UMA
ANÁLISE DISCURSIVA

Ana Lúcia Furquim CAMPOS-TOSCANO


Centro Universitário Municipal de Franca (UNI-FACEF)
anafurquim@yahoo.com

Resumo: O objetivo deste trabalho é analisar propagandas diversas, veiculadas nos anos
40 e 50, que promoviam o American Way of life, a fim de verificarmos as ideologias e
vozes sociais presentes nesses discursos. Objetivamos, ainda, compreender sua
construção discursiva, principalmente no tocante aos elementos constitutivos de um
gênero discursivo, ou seja, o conteúdo temático, o estilo e a estrutura composicional.
Para tanto, utilizamos como referencial teórico-metodológico, os estudos do Círculo de
Mikhail Bakhtin sobre gêneros do discurso, dialogismo e ideologia. Por meio dessas
reflexões, é possível entender como foram sendo construídos discursos que valorizavam o
sistema capitalista, cujos valores estão pautados no ato de comprar como forma de bem
viver e da conquista de conforto.
Palavras-chave: gêneros do discurso; dialogismo; ideologia.

Digest, uma publicação norte-americana que


Introdução promovia, por meio de seus artigos e
Este trabalho é parte de uma pesquisa propagandas, o American Way of life, ou seja,
mais ampla que busca refletir sobre a incentivava o estilo de vida capitalista
constituição da identidade brasileira obtida por americano em todas as Américas. Esses
meio de imagens, narrativas e figuras presentes, anúncios refletem a expansão da economia
por exemplo, em textos verbais como literários, industrial decorrente da chamada “Segunda
históricos, canções, verbo-visuais e/ou visuais Revolução Industrial” ou “Revolução
como pinturas, bandeiras e gravuras e que são, Científico-Tecnológica”. O aparecimento, por
muitas vezes, retomados por discursos da esfera exemplo, de veículos automotores,
midiática, em especial, os discursos advindos da transatlânticos, navios, da eletricidade e,
esfera publicitária. consequentemente, dos aparelhos
eletroeletrônicos domésticos, do rádio, telefone
Nesta análise, selecionamos anúncios e televisão, entre outros produtos alteraram o
publicitários, veiculados nas décadas de 1940 e cotidiano das pessoas, exigindo uma nova
1950. Muitos anúncios dessa época eram maneira de ver e estar no mundo.
veiculados pela Revista Seleções, do Reader’s

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Como sabemos, os gêneros publicitários O signo e a situação social estão
são enunciados que buscam atender a finalidade indissoluvelmente ligados. Ora, todo signo é
de uma das variadas esferas das práxis ideológico. Os sistemas semióticos servem
humanas, veiculando ideologias e axiologias para exprimir a ideologia e são, portanto,
representativas da sociedade. Nesse contexto, modelados por ela. A palavra é o signo
entendemos que os anúncios em questão não ideológico por excelência; ela registra as
somente refletem, mas, principalmente, refratam menores variações das relações sociais, mas
a realidade da época, divulgando valores, como isso não vale somente para os sistemas
também, pela característica dialógica da ideológicos constituídos, já que a “ideologia
linguagem, apresentam vozes sociais do cotidiano”, que se exprime na vida
dissonantes, que acabam por construir novos corrente, é o cadinho onde se formam e se
sentidos. renovam as ideologias constituídas.

Assim sendo, neste trabalho, utilizamos


Ademais, o enunciado só ocorre num
como referencial metodológico os estudos do
fluxo efetivo de comunicação, que pressupõe a
Círculo de Mikhail Bakhtin, na perspectiva
presença de sujeitos e de discursos. O
dialógica, sobre os enunciados concretos
enunciado é, portanto, inconcluso, exigindo que
constituintes dos gêneros do discurso a fim de
o outro o complete por meio de uma atitude
compreendermos a construção discursiva desses
responsiva ativa.
anúncios como forma de dar sentido à realidade
de uma determinada época. Marcado pela alteridade, o enunciado
exige o movimento em direção ao outro para
1. Enunciado concreto: reflexo e refração da sua completude. O sujeito, portanto, constitui-
realidade se a partir do outro, das axiologias e valores
Pela perspectiva do Círculo de Mikhail sociais veiculados, numa atitude ética e
Bakhtin, o enunciado concreto é compreendido responsável no ato da enunciação. Viver é
por meio de um ponto de vista histórico, social participar do diálogo inconcluso que se efetiva
e cultural e, por isso, reflete e refrata a de diferentes maneiras: ao interrogar,
realidade. Não só aponta para a realidade do concordar, discordar, ouvir etc. Como afirma
mundo, como também, de modo refratado, Geraldi (2010, p. 286),
constroem-se discursos que expressam a a avaliação entonacional que conduz a ação
interpretação desse mundo por meio de consciente se faz através da língua que não
posições ideológicas em acordo com os grupos pertence ao indivíduo, pois esta está nele
sociais em que cada sujeito está inserido. pelo processo de sua vivência da vida, isto
Assim, os enunciados, a partir dos interesses é, de sua prática social concreta convivida
sociais e ancorados pela História, apontam com outros.
confrontos, aproximações, contradições ou
anuências que vão marcando ideologicamente O enunciado é um “elo na cadeia da
os signos linguísticos. Como afirmam Bakhtin e comunicação verbal” (BAKHTIN, 2000, p.
Voloshinov (1999, p. 16) 308) e representa a instância ativa do locutor,

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visto que é necessário selecionar recursos da
2. Anúncios publicitários: entre os interesses
língua para que haja a expressividade, ou seja, o
americanos e a venda de produtos
tom emotivo-valorativo do discurso. Há ainda
que considerar não somente os elos que A concepção do Círculo de Bakhtin de
precedem um enunciado, mas os que o que todo enunciado emana de uma esfera de
sucedem, pois há de se pensar na eventual atividade humana e, portanto, está atravessada
reação-resposta. Nesse contexto, levantam-se por axiologias e ideologias, contribui para a
questões como: A quem se dirige o enunciado? compreensão de anúncios publicitários das
Quais as preferências desse destinatário? Qual a décadas de 1940 e 1950.
força de influência no enunciado? Situados em um determinado contexto
Desses questionamentos depende a sócio-histórico e derivados da expansão
composição e o estilo do enunciado, tecnológica determinada pela Revolução
configurando, por sua vez, os gêneros Científica Tecnológica ou Segunda Revolução
discursivos que, compostos por “enunciados Industrial, esses enunciados advindos da esfera
relativamente estáveis” (BAKHTIN, 2000), publicitária não somente refletem a realidade,
atendem as finalidades das mais diversas esferas como, principalmente, constroem sentidos, ou
de atividade humana. Sabemos que as práxis seja, refratam essa mesma realidade.
humanas são várias e inesgotáveis e cada esfera Os discursos publicitários produzidos
pode apresentar um conjunto de gêneros do nessas décadas exprimem os valores sociais da
discurso que, além da ampliação do repertório, época, pois, ao exaltarem o americanismo,
ainda há modificações relativas ao contexto constituído a partir da primeira metade do
sócio-histórico-cultural, à relação intersubjetiva século XX, expõem como princípios o
e ao desenvolvimento tecnológico. progressismo, a democracia e o tradicionalismo.
No que se refere ao estilo, as escolhas Segundo Tota (2000), o norte-
linguísticas e também visuais não são feitas americano é tido como um homem capaz de
somente devido ao intuito discursivo do transformar o mundo natural e, portanto, pode
locutor, mas também leva-se em conta a criar diversos produtos, estabelecendo uma
relação expressiva desse locutor com o outro e nova forma de prazer – o consumismo. Nesse
com seus enunciados – “ter um destinatário, contexto, o homem livre, produtor, consumista
dirigir-se a alguém, é uma particularidade vive numa sociedade democrática em que se
constitutiva do enunciado, sem a qual não há, e prezam os valores de liberdade, de direitos
não poderia haver enunciado” (BAKHTIN, individuais e de independência. O
2000, p. 325). tradicionalismo, por sua vez, encontra-se
Por essa perspectiva, o enunciado, nas presente nas ideias dos homens que temem a
condições reais de comunicação, provoca o Deus e defendem os valores familiares,
lampejo da expressividade, do tom emotivo- enaltecendo, assim, as concepções
valorativo e das vozes sociais, configurando anticomunistas e reforçando o imperialismo
maneira(s) de ver o mundo e de posicionar-se norte-americano.
ideologicamente.

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veículos que contribuíram para a divulgação do
Palavras como “progresso”, “ciência”,
estilo de vida norte-americano. Entendemos que
“tecnologia”, “racionalidade”, “eficiência” e
existem propagandas comerciais cujo objetivo é
“estilo de vida americano” passaram a significar
vender um produto, promover uma marca ou
a realidade, interpretando-a por uma posição
criar fidelidade do consumidor com um
axiológica que contemplava os ideais norte-
determinado produto, mas também há outros
americanos. Entretanto, como todo signo
tipos de propagandas, as chamadas não
ideológico emerge e significa no interior das
comerciais ou de ideias. Para Briggs e Burke
relações sociais, os anúncios passaram também
(2004), a propaganda pode ser concebida como
a deslizar por diferentes posições axiológicas,
a mobilização consciente da mídia para a
expondo a dialogicidade da linguagem. Assim,
mudança de atitudes. Daí, muitas vezes, ter um
vozes sociais diversas estão presentes numa
sentido pejorativo.
contínua cadeia de responsividade, pois não
somente são respostas ao que já foi enunciado, Vender um produto é a função
como também provocam continuamente as mais primordial, entretanto, e também por causa
diferentes respostas. dessa função, a publicidade promete, cria
desejos, aproxima o enunciatário do meio social
De um lado, temos o discurso
no qual deseja estar inserido. Nesse contexto, a
americano e seus valores ideológicos, de outro
propaganda, como uma das práxis humanas,
emergem discursos que se opõem a isso, como
constitui-se por seu caráter persuasivo e, por
o germanismo, o patriotismo do brasileiro e a
isso, foi uma das correias de transmissão da
valorização de nossa cultura.
ideologia imperialista norte-americana.
A expressão good neighboor, utilizada
Os gêneros publicitários, assim como
pelo então presidente dos Estados Unidos
todos os gêneros discursivos, estão sempre
Hebert Hoover, em 1928 durante uma viagem
inseridos em um determinado contexto sócio-
às Américas, foi, posteriormente, tomada de
histórico-cultural, configurando, dessa maneira,
empréstimo por Roosevelt para a “Política da
um conjunto de enunciados de comunicação
Boa Vizinhança” cujo objetivo era aproximar os
socioideológica. No entanto, é importante
Estados Unidos das demais nações americanas e
ressaltar que o enunciado apresenta efeitos de
banir qualquer influência alemã. Roossevelt
sentido decorrentes da possibilidade da inserção
enfatizava a importância do Brasil e de seus
em diferentes horizontes sociais de valor.
produtos para os EUA, assim como evidenciava
a necessidade de o Brasil adquirir produtos Como vimos, a década de 1940,
manufaturados americanos. Criava-se, assim, a caracterizada por um período de medos e
ideia de cooperação entre os dois países como incertezas diante de uma guerra mundial, foi um
indispensável para a salvaguarda do hemisfério momento propício para a divulgação do
ocidental em face da ameaça nazista. American way of life. A revista Seleções,
lançada no Brasil na primeira metade de 1942,
Para a efetivação do processo de
muito contribuiu para a difusão das ideias de
americanização, os meios de comunicação de
americanização, pois, além da veiculação de
massa foram utilizados de forma pedagógica. O
anúncios publicitários, também promoveu a
rádio, as revistas e o cinema são exemplos de
divulgação do modo de vida americano por

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meio de seus artigos. Segundo Tota (2000, p.
59-60)

O próprio nome da revista é elucidativo de


seu funcionamento. Seleção mensal de
artigos publicados em outros veículos da
imprensa americana. A ideia principal, a
filosofia da revista, revelava-se em seu
subtítulo: ‘Artigos de interesse permanente’.
O inimigo comum, momentaneamente
representado pelo Eixo, permitia a Seleções
um liberalismo que não veremos em tempos
posteriores.

3. Anúncios publicitários: a venda de


produtos e a promoção de ideias
A primeira propaganda selecionada para
análise foi retirada da revista Seleções,
publicada em setembro de 1942. O tema central
é a menção ao esforço de guerra propalada
pelos Estados Unidos, como forma de garantir
a segurança de todo o continente americano. Tôda a produção da “Caterpillar” está hoje
A empresa norte-americana Caterpillar, a ser mandada para as frentes de guerra.
com o slogan “Tratores ociosos não ganham Mas ainda há milhares de tratores Diesel
guerras”, divulgava seus produtos e também os “Caterpillar”, representando ao todo
milhões de horas de trabalho inaproveitadas
valores socioideológicos da “Política da Boa
que estão disponíveis para prestar valiosa
Vizinhança” proposta por Roossevelt, como
ajuda na “frente doméstica” da América: na
podemos verificar no anúncio a seguir: produção de gêneros alimentícios; na
Figura 1. Tratores ociosos não ganham execução de obras essenciais; na
guerra manutenção das redes de estradas e
transportes; na indispensável conservação
dos pavimentos e sistemas sanitários das
cidades; na defesa da estrutura econômica
geral das nações livres.
Mantenha os seus Motores Diesel
“Caterpillar” a fazer trabalho útil

Graças ao seu traçado experiente e fabrico


de precisão, estas centrais móveis de fôrça-
motriz integram robutez fundamental e

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capacidade de produção a longo prazo. E
embora muitos deles tenham já rendido
a atender um determinado quadro semântico-
milhares de horas de trabalho, bastará ideológico, ou como afirmam Bakhtin e
geralmente uma revisão para pôr a máquina, Voloshinov (1999, p. 33)
mesmo a mais inexorávelmente usada, em
condições de produzir ainda mais. cada campo de criatividade ideológica tem
seu próprio modo de orientação para a
Os distribuidores da “Caterpillar” estão-se realidade e refrata a realidade à sua própria
esforçando por auxiliar seus fregueses a maneira. Cada campo dispõe de sua própria
tirar o máximo proveito do material função no conjunto da vida social.
“Caterpillar” Diesel espalhados pelo mundo
inteiro. O distribuidor oferece também outro Assim, inicialmente, os princípios da
gênero de auxílio: seus conhecimentos de Política de Boa Vizinhança são apresentados
remoção de terras, preparo de solos, corte como forma de vencer a guerra, seja por meio
de madeiras, exploração de pedreiras e das “frentes de guerra”, seja pela “frente
outras operações pesadas, habilita-o a
doméstica da América”, essa última chamada
fornecer úteis conselhos... sobre problemas
para a produção de alimentos, a manutenção de
de manutenção... como cortar despesas de
exploração... que é a melhor maneira de redes de estradas e transportes, a conservação
realizar qualquer tarefa. dos pavimentos e sistemas sanitários das
cidades e, principalmente, para a “estrutura
PONHA SUA FÉ NO FUTURO DAS econômica geral das nações livres”.
AMÉRICAS! Dialogicamente, é suscitado outro discurso, de
origem germânica e, portanto, em acordo com
(PROPAGANDAS ANTIGAS, online,
o contexto sócio-político da época, de ideais
acesso em: 28 out. 2014.)
nazistas.

A estrutura composicional do anúncio No confronto entre índices de valores


publicitário, constituída por imagem e contraditórios, esse enunciado exalta a cultura e
enunciado verbal, contribui para a temática da a ideologia norte-americanas, como o
guerra, embora, num primeiro momento, o progressismo conquistado por meio de bens de
intuito discursivo pareça ser a venda de tratores consumo que, não somente facilitam os
para o Brasil. trabalhos do campo, como também contribuem
para debelar o poderio germânico com o envio
A imagem é composta, em um cenário de máquinas às frentes de guerra.
noturno, por grandes tratores preparando o solo
para o plantio. Veicula-se, assim, a ideia de que Valores como tecnologia, abundância e
as outras Américas também estão no esforço de eficiência estão presentes na descrição técnica
ganhar a guerra, não necessariamente com dos tratores, reforçando, desse modo, a
soldados em linhas de batalha, mas sim, por concepção de que os EUA podem oferecer aos
meio do trabalho. demais países americanos produtos
manufaturados de qualidade e que estes, ao
Dividido entre o discurso de divulgação comprarem seus produtos, estão contribuindo
do produto e de propagação de ideias, o para a união das Américas.
enunciado verbal refrata a realidade de maneira

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181
Ao final, o enunciado “Ponha fé no Nos anos 40, a evocação dos astros de
futuro das Américas”, construído verbalmente Hollywood era uma das maneiras de promover
no modo imperativo, acompanhado pela palavra produtos de empresas norte-americanas.
“fé” conclama a todos os brasileiros a Ideologicamente, cria-se a ideia de que é
participarem desse “esforço de guerra”. um produto de confiança, pois, ao utilizar
O segundo anúncio foi veiculado em enunciados na afirmativa, que se repetem
1948 e apresenta o ator de cinema Roy Rogers, estruturalmente, como “Agrada mais... Limpa
protagonista de filmes norte-americanos de mais... Rende mais...”, reforça a concepção de
westerns para a venda de pasta de dente da progresso por meio da industrialização desses
marca Kolynos: produtos norte-americanos que, por sua vez,
promovem o prazer e o bem estar, a higiene e a
Figura 2. Você também usará Kolynos economia. Como enunciado proveniente de uma
determinada esfera de atividade humana dirige-
se a um sujeito que tem suas preferências e
valores sociais. O que se questiona é: quais são
os valores sócio-ideológicos desses
enunciatários? Nesse anúncio, podemos
verificar que para persuadir o consumidor a
comprar a pasta de dente, menciona-se a
rentabilidade do produto, resultado do
progresso.
Os filmes de western exaltavam o
pioneirismo e o desbravamento dos homens
americanos que conquistaram as terras,
vencendo as intempéries da natureza e as
dificuldades de se viver em terras ainda não
“civilizadas”, de vida simples, ou seja, é a
defesa do tradicionalismo do homem que “luta”
por sua terra, por sua família e por Deus. A
valorização dos pioneiros norte-americanos
reflete uma visão de mundo, ignorando outras
culturas, outras histórias, inclusive a História do
Você também usará Kolynos diz Roy Brasil.
Rogers
Quanto ao enunciado “Você também
Famoso astro da Republic Pictures que
aparece em “Primavera na serra”
usará Kolynos”, é possível verificar que, por
(PROPAGANDAS HISTÓRICAS, online, meio de um discurso de autoridade, no caso
acesso em 02 ago. 2015). específico, de um astro do cinema, ocorre um
diálogo que busca aproximar o enunciatário

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182
desse discurso de valorização da cultura norte- e, portanto, havia abandonado nossa cultura
americana. popular e nosso samba.
Por último, apresentamos uma Interessante observar que, nesse
propaganda do sabonete Lux (chamado anúncio, Carmem Miranda não está vestindo o
inicialmente no Brasil de Sabonete Lever) cujo turbante estilizado de baiana, assim como todas
slogan “Nove entre dez estrelas de Hollywood as suas vestimentas que se tornaram sua marca
usam Lux”, veiculado a partir da década de registrada.
1930, apresentavam estrelas de Hollywood O enunciado “Confirmado: Também
como garotas-propagandas. Carmem Miranda usa sabonete Lever”, sendo
Figura 3. Sabonete Lever seguido por seu depoimento “ ‘Sabonete Lever
mantém a pele maravilhosamente jovem!’, diz a
Pequena Notável”, busca conquistar o
consumidor brasileiro por meio de um símbolo
brasileiro, evidenciando uma luta entre duas
posições diversas: o americanismo, de um lado,
com seus valores capitalistas, de produtos
industrializados, e a cultura brasileira, com a
exaltação do samba e das características que
marcam nossa brasilidade. Embora Carmem
Miranda represente uma estilização de nossa
cultura, com o estereótipo de um país tropical
para muitos americanos “selvagem” e sem
“civilidade”, tornou-se conhecida pelo cinema
americano e, por isso mesmo, paradoxalmente,
foi motivo de orgulho e de revolta dos
brasileiros em sua época.
Observamos, ainda, que os produtos
veiculados precisavam se firmar no incipiente
mercado brasileiro que estava aos poucos se
modificando, principalmente porque deixava de
ser uma sociedade rural para se tornar mais
urbana e, nesse contexto, era necessário criar
(PROPAGANDAS HISTÓRICAS, online, novos hábitos que criavam a ideia de
acesso em 02 ago. 2015). modernidade, de progresso, de uma nação que
se aproximava de países industrializados,
Carmem Miranda foi a única brasileira a produtores de um modo de vida consumista,
estrelar filmes americanos. No Brasil, era mas que, ao mesmo tempo, proporcionava
idolatrada por muitos, mas criticada por bem-estar, prazer e conforto.
outros, pois, em 1940, de volta de uma viagem
aos EUA, diziam que ela estava americanizada 4. Considerações finais

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183
enunciados e discursos expõem constantemente
Ao analisarmos anúncios publicitários
novas configurações discursivas. Como
das décadas de 1940 e 1950, buscamos recortar
sabemos, nossa identidade não está acabada,
um contexto sócio-histórico-cultural específico
posto que é discurso e, portanto, num processo
para verificarmos como a identidade brasileira,
de embates e aproximações, configura os
num processo dialógico, recebeu discursos
reflexos e as refrações de nossa cultura, enfim,
advindos de outros contextos, mas que
de nossa nação.
modificaram nosso modo de ver o mundo e, por
extensão, alteraram nossos costumes e nossos
valores sócio-culturais.
Referências
Os anúncios, como vimos, não tinham
somente o intuito discursivo de vender um BAKHTIN, M. (2000). Estética da criação
produto ou promover uma marca, pois foram verbal. Tradução de Maria Ermantina Galvão
utilizados também como forma de propagação G. Pereira. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes.
dos ideais americanos. Assim, foram divulgados ______;VOLOCHINOV (1999). Marxismo e
ideologias e valores sociais norte-americanos filosofia da linguagem. Tradução de Michel
que, por estarem inseridos no fluxo da Lahud e Yara Frateschi Vieira com a
comunicação verbal também apontam para colaboração de Lúcia Teixeira Wisnik e Carlos
outros discursos, principalmente aqueles a que Henrique D. Chagas Cruz. 9. ed. São Paulo:
se opõem ou se omitem, como a ideologia Hucitec.
germânica e os valores culturais brasileiros.
BRIGGS, A.; BURKE, P. (2004). Uma história
Em um contexto de guerra, o destaque à social da mídia: de Gutenberg à internet.
superioridade da nação norte-americana a partir Tradução de Maria Carmelita Pádua Dias. Rio
de valores como progressismo, consumismo e de Janeiro, Jorge Zahar.
tradicionalismo são constantemente evocados
FARACO, C. A. (2003). Linguagem e diálogo:
como forma de dar a contra-palavra a discursos
as ideias linguísticas do Círculo de Bakhtin.
nazistas ou comunistas. Unir as Américas era,
Curitiba: Criar Edições.
portanto, uma forma de reiteração de ideais que
fortaleceram o capitalismo e suas formas de GERALDI, J. W. Sobre a questão do sujeito.
divulgação, entre elas, aquelas advindas da In: PAULA, Luciane; STAFUZZA, Grenissa
esfera publicitária. (Orgs.) (2010). Círculo de Bakhtin: teoria
inclassificável. Campinas: Mercado de Letras.
Esses enunciados, que compõem os
gêneros publicitários, apresentam conteúdos PROPAGANDAS antigas. Disponível em:<
temáticos referentes, nos anos 40, ao contexto http://propagandasantigas.blogspot.com.br/>.
da 2ª Guerra Mundial e, nos anos 50, ao Acesso em: 28 out. 2014.
consumo aliado ao entretenimento promovido PROPAGANDAS históricas. Disponível em:
pelo cinema hollywoodiano, contribuindo, dessa <http://www.propagandashistoricas.com.br/sear
maneira, para a construção discursiva da ch/label/higiene>. Acesso em 02 ago. 2015.
identidade brasileira que, marcada por nossa
História e por relações dialógicas entre

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184
TOTA, A. P. (2000). O imperialismo sedutor: a
americanização do Brasil na época da segunda
guerra. São Paulo: Companhia das Letras,
2000.

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185
SABERES E PODERES NAS TRAMAS DAS INSTÂNCIAS DE
GOVERNANÇA

Conceição Belfort CARVALHO; Fabiana dos Santos SILVA


Universidade Federal do Maranhão (UFMA)
cbelfort@globo.com; fabyanasantos88@hotmail.com

Resumo: O Ministério do Turismo, com o propósito de incentivar as regiões brasileiras a


adotarem estratégias de desenvolvimento, propôs a criação do Programa de
Regionalização da Atividade Turística, que agrega em um de seus módulos a Instância de
Governança Regional-IGR. A IGR propõe coordenar o programa de regionalização por
meio de uma administração participativa entre os setores público, privado e o terceiro
setor na implantação de políticas públicas para elaboração e monitoramento das
atividades. O Programa de Regionalização do Polo Turístico de São Luís desenvolve
atividades com a participação de vários atores. Nosso propósito, neste trabalho, é
analisar o lugar de fala de alguns desses atores sociais, a fim de verificar que poderes e
saberes são produzidos em seus discursos.
Palavras-chave: instâncias de governança; saber; poder.

operacionais a fim de orientar o processo de


Introdução
regionalização. Ao todo são nove módulos:
O Ministério do Turismo – Mtur, por Elaboração de Roteiros Turísticos,
meio do Programa de Regionalização do Mobilização, Sensibilização, Elaboração do
Turismo, idealizou um mecanismo para obter Plano Estratégico de Desenvolvimento
um melhor planejamento da atividade turística Regional, Implementação do Plano Estratégico
em nível regional, possibilitando assim que cada de Desenvolvimento Regional, Promoção e
região crie suas próprias estratégias a fim de Apoio à Comercialização, Sistema de Monitoria
impulsionar essa atividade. O Programa foi e Avaliação, Sistema de Informações Turísticas,
criado com o intuito de desenvolver os Instância de Governança Regional. Cada
municípios agregados em regiões turísticas, a módulo pode ser aplicado de forma aleatória,
partir de municípios indutores, que se de acordo com a necessidade de cada
caracterizam como núcleos receptores e localidade. Para este artigo, tomamos como
distribuidores de fluxos turísticos. objeto de discussão a Instância de Governança
Para a implementação do Programa de Regional.
Regionalização, foram constituídos módulos

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186
essências fixas, leis subjacentes, finalidades
A Instância de Governança Regional
metafísicas. Ao contrário da história, que se
tem por objetivo coordenar o programa de
fundamenta no contínuo das coisas, no
regionalização por meio da participação e apoio
progresso e seriedade, a genealogia busca
da população local na elaboração,
descontinuidades, recorrências e jogo. Ela
monitoramento e, em alguns casos, na execução
transita no espaço da superfície dos
de políticas públicas (MTUR, 2007, p. 16), o
acontecimentos, nos mínimos detalhes, nas
que reflete o modelo de gestão descentralizada
menores mudanças e nos contornos sutis:
instituído pela Constituição Federal de 1988.
observada a correta distância, há uma profunda
Levando em conta que o visibilidade nas coisas. Tudo é interpretação e a
desenvolvimento do turismo e a implantação de genealogia conta a história dessas
uma Instância de Governança, doravante IG, interpretações, criadas e impostas por outras
dependem do entendimento de seu pessoas e não inerentes à natureza das coisas.
funcionamento, assim como da atividade de
Na arqueologia, Foucault entende o
sujeitos que estejam envolvidos no processo,
discurso pela análise do saber. O discurso,
desde sua concepção até sua finalização e
segundo ele, é determinado por uma
prática, propomos analisar o papel do sujeito a
regularidade que permite com que algo apareça
partir de um complexo de formações
como verdadeiro. Há uma relação entre todo
discursivas que refletem sua interpretação sobre
saber e uma prática discursiva definida, de
a implantação da Instância de Governança
forma interdependente. Na genealogia, há uma
Regional do Polo São Luís.
relação interdependente entre discurso e poder,
Para procedermos a uma análise das podendo o discurso ser instrumento e efeito de
formações discursivas dos sujeitos envolvidos poder. Assim, Foucault (1999) concebe o
no processo das políticas de governança, discurso como espaço onde se alojam os
aplicamos o método aquegenealógico de Michel saberes e os poderes.
Foucault (1999).
As coisas não preexistem às práticas
1. Arquegenealogia e discurso discursivas, estas é que constituem e
A análise arquegenealógica do discurso determinam os objetos. (FOUCAULT, 1986).
não obedece às mesmas leis de verificação que É, pois, a partir da reflexão sobre as
regem a História Tradicional. Sob influência das transformações históricas do fazer e do dizer na
leituras de Nietzsche, Foucault (2000) propõe sociedade ocidental – práticas discursivas que
uma história genealógica, que problematiza o provocam fraturas, brechas e rearranjos nas
passado, com o propósito de desvelar suas configurações do saber-poder – que se edificam
camadas arqueológicas, voltando-se para uma suas problematizações.
aguda crítica do presente. As Instâncias de Governança têm sua
A genealogia tem como objetivo genealogia nas práticas discursivas que a
“assinalar a singularidade dos acontecimentos, tornam possível, que reconhecem sua validade,
fora de toda finalidade monótona” sua necessidade em movimentos tais como a
(FOUCAULT, 2007, p. 15). Para ela, inexistem criação do Estado Moderno, a globalização e a
Constituição Federal de 1988.

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187
Estado, ao propiciar o acesso da população e
O Estado Moderno fundamenta-se no
dos movimentos sociais às instâncias decisórias.
princípio segundo o qual a finalidade do Estado
é o bem comum, que consiste no conjunto de Em todos esses âmbitos, destaca-se a
condições sociais que permitem e favorecem atuação da sociedade. Na criação e mobilização
aos seres humanos seu desenvolvimento de uma Instância de Governança são realizadas
integral. (DIAS e MATOS, 2012, p. 09). Esse várias reuniões com o propósito de estabelecer
desenvolvimento será efetivado por meio de ações a fim de gerenciar seu programa de
políticas públicas estruturadas que atendam às regionalização. Na IG do polo São Luís, as
necessidades da comunidade. relações sociais são estabelecidas por meio de
um conselho gestor, formado por
A globalização possibilitou uma
representantes da iniciativa privada,
mudança nas relações entre o Estado, o
representantes de órgãos públicos e da
mercado e a sociedade permitindo uma
comunidade em geral, que se reúnem na tomada
modificação nas relações humanas. Graças à
de decisões importantes.
globalização, nasceu a necessidade de políticas
públicas em âmbito global, conhecida como Como os sujeitos que participam desse
governabilidade global. Segundo Dias e Matos programa interpretam sua implementação? A
(2012), governabilidade global pode ser fim de responder essa pergunta, reunimos
entendida como o grau de aceitação social das alguns enunciados produzidos por esses
políticas oriundas das estruturas de governança sujeitos, para analisar suas formações
global. A governança serve para que sejam discursivas e os efeitos de saber e poder delas
estabelecidas normas e regulamentos em derivados.
diversas áreas, e permitem uma convivência Para o desenvolvimento de nossa
relativamente harmônica dos diversos atores da pesquisa, realizamos dez entrevistas com os
cena mundial (as pessoas, os diversos tipos de sujeitos mais assíduos às reuniões da IG do
organizações e os Estados nacionais). A Polo São Luís, no período de 2013 a 2014, a
Organização Mundial do Turismo (OMT) é um fim de verificar como eles sujeitos percebem o
exemplo de governança global. (DIAS e processo de implantação e mobilização dessa
MATOS, 2012). Instância a partir do lugar que ocupam. Para
A Constituição Federal de 1988 este artigo, selecionamos três entrevistas. O
inaugura um modo de administrar que conta nome dos participantes foi preservado; os
com conselhos gestores, instituições entrevistados serão identificados como SA
importantes no âmbito das políticas públicas. (Sujeito A), SB (Sujeito B) e SC (Sujeito C).
Os conselhos gestores decorrem dos princípios 2. O olhar do sujeito na instalação da
constitucionais que preceituam a participação Instância de Governança Regional no polo
da sociedade na condução das políticas São Luís
públicas, das legislações regulamentadoras que
condicionam o repasse de recursos federais e do Compreender uma formação discursiva
processo de descentralização. Os conselhos se é observar a atuação do sujeito no trabalho com
configuram como um novo espaço de a linguagem e as diferentes posições que ele
participação da sociedade, no âmbito do assume num enunciado. Descrever um

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188
começo havia uma grande participação dos
enunciado é dar conta de algumas agentes, porém poucos assumiam as
especificidades (a referência a algo que responsabilidades de fato. A princípio eles
identificamos; o fato de ter um sujeito; o fato de até que vinham, participavam das reuniões,
o enunciado não existir isolado, de estar sempre eu não vou dizer na sua totalidade, mas as
em associação e correlação com outros entidades, especialmente, estavam sempre
enunciados do mesmo discurso; a materialidade representadas. Mas, assim... eu não sentia
do enunciado, as formas com que ele aparece), muita disponibilidade dos mesmos,
é apreendê-lo como acontecimento, como algo especialmente o setor privado, de se
que irrompe num certo tempo, num certo lugar. envolver nesse processo todo, na
O que permitirá situar um complexo de realidade o processo ficou mais ...
enunciados numa certa organização é caminhava mais por conta do incentivo do
exatamente o fato de eles pertencerem a uma setor público. As entidades apesar de ter
certa formação discursiva. (FOUCAULT, sempre uma representação nas reuniões é ...,
eu acho que elas não assimilaram muito a
1986).
‘coisa’ do compromisso e de trabalho, é
Os sujeitos participantes da IG do Polo uma coisa (a criação da Instância) que
São Luís ocupam diversos lugares como o de demanda trabalho e demanda um certo
representante do poder público, representante tempo de cada um e não somente naquele
da iniciativa privada, representante do momento das reuniões e eu acho que eles
empresariado, representante de cooperativa. não assimilaram isso é ... vamos dizer... de
Para esse trabalho, analisamos as formações forma satisfatória. Entendo que essa
discursivas de sujeitos que representam o poder situação não possui nenhum fato
especifico, acho que é uma questão de
público.
cultura mesmo, aquilo que acham que é
A propósito da participação dos sempre o poder (público) quem tem que
membros nas reuniões, SA comenta: fazer, que puxa.

O processo de sensibilização para Para SB,


implantação da Instância de Governança
começou desde 2009, juntamente com uma Há uma grande dificuldade em sensibilizar
contratação do Ministério do Turismo de os municípios a participarem das reuniões
uma consultoria, do IADH, que era uma do fórum, e [há] falta comprometimento. O
consultoria para criação de Instâncias de principal ator, que pode ser considerado
Governança nos destinos turísticos. No caso como o ator-chave da instância é o
do Maranhão ocorreu em São Luís e Estado, e apenas uma parcela muito
Barreirinhas. No processo de mobilização pequena do trade se interessa em executar as
foram realizadas reuniões e palestras. À ações.
frente mesmo, conduzindo o processo,
estava a Setur-MA (Secretaria Estadual
do Maranhão). Eu estava à frente desse SC destaca:
processo porque na época nós
trabalhávamos aqui na secretaria com um Os municípios não conseguem enxergar a
interlocutor pra cada polo, certo?! [...] No importância da atividade para a região.
Através das ações desenvolvidas pela

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189
Setur criam-se projetos tendo o apoio
papel do Estado na tomada de decisões sobre
total da secretaria.
acontecimentos que envolvem a sociedade.
Situando as formações discursivas de O olhar dos sujeitos desta pesquisa
SA, SB e SC, observamos o destaque para a reatualiza um discurso já cristalizado em nossa
representatividade que o poder público, cultura: um empreendimento depende da
representado pela Secretaria de Turismo- iniciativa de alguém, ou de um órgão, a fim de
SETUR e pelo “Estado”, assumem. Os lugares levá-lo adiante. No caso em análise, o Estado é
de onde falam os sujeitos A, B e C são bastante o principal agente a desempenhar esse papel.
marcados por um discurso que dá importância à Segundo A, B e C, graças ao Estado, “principal
atuação do setor público como agente ator” do processo, as articulações são feitas, os
responsável pelas políticas de desenvolvimento projetos são criados.
do turismo. 4. Considerações finais
Esse lugar de fala reflete uma formação A genealogia das instâncias de
discursiva do discurso oficial, que destaca a governança tem uma relação com diversos
Secretaria de Turismo como um órgão acontecimentos que construíram suas bases,
cumpridor de seu papel: possibilitar o como a reforma do Estado, a globalização,
desenvolvimento de políticas públicas em favor Constituição Federal de 1988.
da criação e andamento das IG. Essa FD se
revela por meio de uma prática discursiva que Segundo Foucault (1986), ao produzir
se instaura e se reatualiza nos enunciados dos enunciados, o sujeito ocupa diferentes lugares e
sujeitos. Para Foucault, tudo é prática. E toda fala de diferentes formações discursivas. Nesse
prática é atravessada por relações de poder e sentido, ele pode ocupar o lugar de pai, de
saber, que se relacionam. “Enunciados e filho, de professor, de pregador, dependendo da
visibilidades, textos e instituições, falar e ver situação e da instituição de onde fala (da
constituem práticas sociais por definição família, da escola, da igreja).
permanentemente presas, amarradas às relações Em nossas análises, destacamos sujeitos
de poder, que as supõem e as atualizam.” que participaram de fóruns de discussões
(FISCHER, 2001, p. 2001) (reuniões) sobre a criação e implementação de
Os sujeitos A, B e C entram na ordem políticas públicas para a Instância de
do discurso do poder e promovem um saber Governança do Polo São Luís, e que ocupam e
sobre o esforço e o desempenho do Estado no falam do lugar do poder público.
processo de criação e implantação das As análises sobre as falas desses
instâncias de governança. sujeitos, denominados de SA, SB e SC, revelam
O discurso, na fala desses sujeitos, formações discursivas eivadas de um poder que
existe para além da mera utilização da dão à Secretaria de Turismo-Setur, órgão
materialidade linguística, pois ele não é representante do poder público, uma
simplesmente uma expressão de algo. Ele visibilidade de ator principal na direção e
apresenta regularidades, por meio das quais desenvolvimento dos trabalhos da IG do Polo
podemos definir uma rede conceitual sobre o São Luís.

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190
Segundo SA, SB e SC, os municípios ______. Arqueologia do saber. Rio de Janeiro:
maranhenses envolvidos na criação das IG Forense Universitária, 1986.
mantêm uma relação de dependência com a
______. A ordem do discurso. 5. ed. São Paulo:
Secretaria Estadual do Turismo, já que esperam Loyola, 1999.
da Setur a iniciativa de reunir os representantes
das instâncias de governança, assim como de
dar continuidade aos trabalhos de criação e
instauração de políticas públicas para sua
efetivação. Produz-se, ao mesmo tempo, um
saber sobre o papel do Estado como peça-chave
na atuação dos trabalhos e sobre a falta de
compromisso de alguns atores envolvidos no
processo.

Referências
BRASIL. Ministério do Turismo. Programa de
Regionalização do Turismo – Relatório do
Programa de Regionalização do Turismo –
Roteiros do Brasil: panorama geral e propostas
para o futuro do turismo no país. Brasília, DF,
2007.
DIAS, R.; MATOS, F. Políticas públicas:
princípios, propósitos e processos. São Paulo:
Atlas, 2012.
FISCHER, R. M. B. Foucault e a Análise do
Discurso em Educação. Cadernos de Pesquisa,
n. 114, novembro/2001. Disponível em
<http://www.scielo.br/pdf/cp/n114/a09n114.pdf
>. Acesso em: 21 jul.2015.
FOUCAULT, M. O nascimento da medicina
social. In: ______. Microfísica do poder.
Organização e tradução de Roberto Machado.
23. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2007. p. 79-98.
______. Nietzsche, a Genealogia e a História.
In: MOTTA, M.B. (Org.). Michel Foucault.
Ditos e Escritos II. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2000. p. 260-281.

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191
MEDIAÇÃO EDITORIAL E ETHOS DISCURSIVO: UMA
ANÁLISE DA CONSTRUÇÃO DE PERSONAGENS NA COLEÇÃO
SNOOPY

Fernanda Capelari de CARVALHO


Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
f.ccarvalho95@gmail.com

Resumo: Inscrito no quadro da análise do discurso de tradição francesa de base


enunciativa, este trabalho mobiliza um modelo teórico proposto pelo linguista Dominique
Maingueneau (2007, 2012) para analisar processos de edição, tendo como proposta
focalizar a construção de personagens como criação de ethos discursivo. O material que
constitui o corpus reúne dez livros da coleção SNOOPY, uma coleção que abrange
tirinhas da obra de Charles M. Schulz, Peanuts. Nessas tirinhas, focalizaremos os
materiais linguísticos ligados aos personagens dessa obra, evidenciando curiosidades
com relação aos processos de edição que afetam o ethos discursivo dos personagens.
Consideraremos também questões como a problemática da tradução e autoria. Trata-se
de abordar um problema de mediação editorial.
Palavras-chave: mediação editorial; ethos discursivo; tradução.

característica produzir livros em formato de


Introdução bolso, em geral mais acessíveis. Possivelmente,
Peanuts, as tiras em quadrinhos de há um valor simbólico nesse formato, além da
Charles M. Schulz (1922 - 2000), é uma das vantagem do custo, mas essa discussão será
histórias mais conhecidas e difundidas no feita em outra ocasião. Aqui, registremos que,
mundo todo. Mesmo depois da morte do autor, bastante recente (2007 - 2014), a coleção é
a obra continua a fazer sucesso em diferentes composta por 10 livros, sendo eles: Snoopy e
materialidades. Primeiro impressas em jornais, sua turma, Feliz dia dos namorados!, Assim é a
as tiras de Schulz foram publicadas vida, Charlie Brown!, É Natal!, Posso fazer
ininterruptamente por 50 anos nos jornais, e uma pergunta, professora?, Como você é
agora, podemos encontrar Peanuts em livros, azarado, Charlie Brown!, Doces ou
camisetas, cadernos e brinquedos sem fazer travessuras?, No mundo da Lua!, Pausa para a
muitos esforços. soneca e Sempre alerta!.

A coleção SNOOPY, que é o objeto Observando esse material que constitui


central do presente projeto, foi publicada pela o corpus, este trabalho, inscrito no quadro da
editora L&PM POCKET, que tem como análise do discurso de tradição francesa,

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192
assumindo uma base enunciativa, procura
entender como a mediação editorial influencia A produção das “correspondências sem
na construção do ethos discursivo dos adequação”, que constituem a solução
personagens de Peanuts, mobilizando um sempre provisória e historicamente
modelo teórico-metodológico proposto pelo condicionada do dilema prático da
linguista Dominique Maingueneau. tradução, implica, portanto, uma estreita
articulação entre o ato de interpretar e o de
1. Desenvolvimento traduzir. (RICOEUR, 2011, p.13)
Este projeto se delineia ao observar um
registro editorial relevante em termos Essas manobras de tratamento editorial
discursivos, que diz respeito ao material de textos, fazem com que precisemos falar
linguístico que delineia a personagem Patty sobre a problemática da autoria.
Pimentinha: referida por sir no original em A tradução sobre um nome já
inglês, a personagem, que em quase todas as consagrado em uma obra tão difundida quanto
coleções e transmidiações é referida por a de Peanuts, traz consequências como a
senhor, em português, nesta coleção que mudança na construção do ethos das
estudamos é tratada como meu. Certamente, na personagens.
passagem se sir para senhor já há
considerações a fazer, se levamos em conta que É preciso, ainda, que se coloque em
o tratamento sir tem especificidades que senhor jogo a mudança de suporte que as tirinhas
não recobre, como, por exemplo, a sofreram, já que, inicialmente, Schulz difundia
característica de título que convoca toda uma sua obra em jornais e, agora, sua coleção se
memóriadiscursiva nobiliárquica, caracterizada concentra em livros de compilações, suporte
na origem, pela posse sobre territórios, que supõe um meio de circulação muito
escravos e mesmo de cavaleiros que serviam à diferente, que pressupõe outra leitura e
nobreza. Senhor, por traços semânticos de entendimento, já que a própria ideia de coleção
poder, refere, em português, uma hierarquia induz a uma expectativa de que seja um
social, eventualmente militar. Essa manobra material em que os elementos que o compõem,
nos permite já uma série de reflexões sobre a tenham traços comuns. O que não acontece
identidade dessa personagem. Mas, ao utilizar quando observamos os outros nove livros da
meu, opta-se por uma gíria bastante coleção SNOOPY, em que a tradução feita para
regionalizada, de um falar paulistano sir foi senhor.
estereotípico, que em nada remete aos jogos de 2. Abordagem teórica e metodológica
poder da nobreza ou do poderio institucional.
A abordagem teórica e metodológica
Se, conforme o quadro teórico dos desse problema acima explicitado se baseia no
estudos do discurso convocado aqui, entende- modelo proposto por Dominique Maingueneau
se que os sentidos são dados nas relações para estudo doethos discursivo:
parafrásticas que convocam certas memórias,
silenciando outras, no caso dessa manobra Podemos [...] estar de acordo sobre alguns
editorial, pode-se entender que: princípios mínimos, sem prejulgar o modo
como eles podem eventualmente ser

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explorados nas diversas problemáticas de
ethos: socialmente, consagrados numa dada
– o ethosé uma noção discursiva, ele se comunidade discursiva, para serem
constrói através do discurso, não é construídos. Esses esteriótipos são imagens
uma“imagem” do locutor exterior a sua cristalizadas, criadas socialmente, uma base
fala; imprescindível para que os coenunciadores
– o ethosé fundamentalmente um processo construam os ethos. Eles podem facilitar o
interativo de influência sobre o outro; entendimento sobre conteúdos mas também
– é uma noção fundamentalmente híbrida criar modelos prontos para coisas que não
(sócio-discursiva), um comportamento deveriam ser estereotipadas, coisas que
socialmente avaliado, que não pode ser precisam que esses estereótipos não se
apreendido fora de uma situação de mantenham para que a sua real imagem seja
comunicação precisa, integrada ela mesma
construída.
numa determinada conjuntura sócio-
histórica. (MAINGUENEAU, 2008, p.17

Maingueneau ainda faz distinção entre


dois ethos pré-discursivo e ethos discursivo,
que se conjugam na composição para a
constituição do ethos efetivo. Sabendo que é no
e pelo discurso, que a imagem do sujeito é
construída, podemos definir o primeiro como a
imagem que é construída do sujeito antes da
enunciação, conforme informações prévias
obre o lugar de fala, e o segundo, a imagem (MAINGUENEAU, 2008, p.19)
construída do sujeito após sua fala ou ação.
Esse modelo teórico-metodológico
Apesar de serem características distintas, os
proposto por Maingueneau é a base para
dois se afetam mutuamente. E, no que diz
investigarmos o modo como a mediação
respeito ao ethos discursivo, o autor integra o
editorial afeta o ethos discursivo dos
ethos dito e o ethos mostrado. Assim como as
personagens na coleção SNOOPY.
setas que ligam o ethos pré-discursivo com o
ethos discursivo, as que estão entre o ethos dito 3. Análise e discussão
e ethos mostrado representam sua relação A coleção SNOOPY contém o livro em
mútua. A diferença entre os dois é que o que consta a tradução de sir, do inglês, para
primeiro é suscitado por marcas linguísticas meu (Figura 1). Essa mediação editorial
explícitas, principalmente dêiticos, já o ocorreu justamente quando a editora L&PM
segundo se formula através de marcas
linguísticas não explícitas, mas sim com pistas Pocket deixou a responsabilidade da
que fazem o coenunciador “criar” esse ethos tradução do primeiro livro da coleção - Snoopy
mostrado do enunciador. e sua turma –a cargo da empresa
Intercontinental Press; todos os outros nove
Na base do diagrama abaixo, livros da mesma coleção foram traduzidos por
encontram-se esteriótipos ligados aos mundos Cássia Zanon, uma tradutora já experiente nos
éticos, assim, segundo Maingueneau, os ethos quadrinhos de Peanuts.
são baseados em conteúdos partilhados

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194
traço semântico que senhor traz em si. Assim
A tradução inicial do modo como a também fazendo a relação com sir, que contém
personagem Marcie se refere a sua amiga Patty aspectos muito mais autoritários, de poder e
Pimentinha passa de senhor (Figura 2), uma força.
tradução de sir (Figura 3), que aparentemente é
uma escolha que melhor representa o texto Traços mínimos como esses
original em relação a todos os aspectos que a contemplam o ethos da personagem Patty
“expressão” em inglês contempla. Pimentinha. Logo, se a referênciasenhor sofre
Considerando a tradução como um transporte um tratamento editorial que o transforma em
de um significado de uma língua, para outra, o meu, o ethos da personagem também sofrerá
cuidado deve ser minucioso, já que as culturas alterações.
que permeiam as sociedades são muito distintas Marcie por outro lado, tem um ethos
uma das outra, fazendo com que traduções as discursivo de uma amiga paciente e, pelo uso
sejam base imprescindível para o conhecimento do senhor, podemos inferir que também é
da obra e do autor em diferentes contextos submissa, em certa medida. Sendo assim, é
socioculturais. importante observar que a personagem Marcie,
No caso de Peanuts, há informações que se apropria do uso de meu ou senhor,
sobre os personagens que constituem a obra, também é afetada no que diz respeito ao seu
porém quase nenhuma precisamente ethos discursivo, dependendo da forma de
confirmada. Assim, poderíamos considerar como ela se apropria da língua: ela refere
Peanuts uma autobiografia do autor? Apenas amiga querida como alguém de superioridade
essa consideração faria com que todos que hierárquica na intimidade delas ou como um
lessem a obra a observassem de maneira “brother”, na gíria paulistana, alguém com
diferente. O mesmo acontece quando uma quem horizontaliza?
mediação como essa surte efeito: pessoas que Essas são análises preliminares que
nunca leram Peanuts antes e tivessem contato guiarão outras e de outros personagens,
apenas com a tradução de meu, possivelmente conforme o andamento da pesquisa tendo em
teriam uma disposição totalmente diferente em vista essas alterações.
relação a uma enormidade de coisas que a obra
se delineia, as quais comentaremos adiante. 3.1 Figuras
Observamos que Patty Pimentinha, se
cosntitui de traços andróginos, o que é
sustentado durante a obra toda, a partir do
momento que suas vestimentas e cortes de
cabelo não se encaixam nos estereótipos
femininos em vigor. Também se constatam
características da personagem que a podem
definir como uma pessoa coercitiva, que
mantém fortes opniões e pode ser até muitas
vezes, considerada arrogante, principalmente
com sua melhor amiga Marcie, que a adora.
Essas suposições podem ser sustentadas pelo

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Figura 1: SCHULZ, C.M Snoopy e sua Neste artigo, trabalhamos de modo
turma: 1, tradução de Intercontinental
Press. - Porto Alegre: L&PM, 2013. introdutório com o conceito deethos discurso,
verificando e como a constituição da identidade
de personagens é afetada por certos tratamentos
editorias de texto. Analisando a obra Peanuts,
mais especificamente, a coleção SNOOPY,
vimos a recorrência do problema acima
apresentado: as mediações editorias
interferindo na construção do ethos de
personagens da obra.
Na leitura de bibliografia relacionada, o
a noção de ritos genéticos editoriais (Salgado,
2011) parece ser muito importante para
entendermos conceitos como a autoria na obra
Figura 2: SCHULZ, C.M Snoopy - Feliz
Dia dos Namorados: 2, tradução de Cássia
analisada, já que essa teoria especifica a noção
Zanon. - Porto Alegre: L&PM, 2010 de Maingueneau (2006) sobre ritos genéticos,
ao referir os trabalhos de criação e edição de
textos autorais, contemplando diversos
aspectos de sua preparação para circulação
pública.
Em relação à tradução, vemos que é um
modo de fazer laço entre outros mundos, outras
culturas, logo, outros seres com outros
conhecimentos de mundo (BURKE, XXXX).
Precisamos levar em consideração que a partir
do momento que se entende que ninguém tem o
Figura 3: SCHULZ, C. M THE
COMPLETE PEANUTS - Lake City Way:
conhecimento total sobre a própria língua, a
FANTAGRAPHICS BOOKS, 2013. proposta do tradutor de se imergir tanto em
uma língua quanto em outra é complexa, apesar
da ajuda dos novos dispositivos e as relações
culturais se aproximando.
Assim, o estudo linguístico de objetos
editoriais exige a abordagem dos suportes de
inscrição e dos meios de circulação que,
entendidos como condicion condicionantes da
produção dos sentidos, registram que os ritos
genéticos editoriais são um trabalho na ordem
do discurso.

4. Considerações finais Referências

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AMOSSY, R. Da noção retórica de ethos à ______.A Circulação da Energia Social
análise do discurso. In: AMOSSY, Ruth (org.). Inscrita na Vitalidade dos Textos. Alfa, São
Imagens de si no discurso. Tradução Dílson Paulo, v.54, n.1, p.11-31, 2010.
Ferreira da Cruz; Fabiana Komesu; Sírio ______. Ritos genéticos editoriais: uma
Possenti. São Paulo: Contexto, 2005. abordagem discursiva da edição de
BURKE, P. & HSIA, R. P. (Orgs). A Tradução textos.Revista do Instituto de Estudos
Cultural – Nos Primórdi-os da Europa Brasileiros, Brasil, n.57, 2013 p. 253-276.
Moderna. São Paulo: Unesp, 2009.
CHARTIER, R. A mão do autor e a mente do
editor. Tradução George Schlesinger - 1.ed -
São Paulo: Editora Unesp, 2014.
GATTI, M. A.; SALGADO, L. S. Personagens
infantis de tiras cômicas em suportes diversos:
uma questão de circulação, aforização e
estereotipia. Revista DELTA, São Paulo , v. 29,
n. spe, 2013. Disponível em http://dx.doi.org/
10.1590/S0102-44502013000300009
MAINGUENEAU, D. (1998) Análise de textos
de comunicação. Tradução de Cecília de
Souza-e-Silva e Décio Rocha. 3. ed. São Paulo:
Cortez, 2004.
_______. Ethos, cenografia, incorporação. In
AMOSSY (org.) Imagens de si no dis- curso –
a construção do ethos. Trad. Dilson Ferreira da
Cruz, Fabiana Komesu e Sírio Possenti (orgs.).
São Paulo: Contexto, 2005.
______. Discurso literário. Trad. Adail Sobral.
São Paulo: Contexto, 2006.
______. A propósito do ethos. In MOTTA;
SALGADO (orgs.). Ethos discursivo. Trad.
Luciana Salgado. São Paulo: Contexto, 2008.
RICOEUR, P. Sobre a tradução. Belo
Horizonte: UFMG, 2011. 71p.
SALGADO, L. S. O Autor e seu Duplo nos
ritos genéticos editoriais. Eutomia – Revista de
Literatura e Linguística, ano 1, vol. 1, 2008,
pp. 525-546.

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O JOGO BARROCO: MANIFESTAÇÕES DE SUBJETIVIDADE
EM DISCURSOS RELIGIOSOS DO SÉCULO XVII

Ricardo CELESTINO
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)
ricardo.celestino2003@gmail.com

Resumo: Em contribuição aos estudos enunciativo-discursivos da Análise do Discurso,


temos a proposta de analisar as manifestações de subjetividade em discursos religiosos do
século XVII. Nas práticas religiosas seiscentistas, é possível identificar a antítese do
racionalismo, do cientificismo e do teocentrismo contra-reformista como uma relação
polêmica e subjetiva entre os campos discursivos artístico, religioso e renascentista.
Selecionamos como fundamentação teórica as categorias de gêneros de discurso e cenas
da enunciação para evidenciar os desdobramentos do ato enunciativo e a manifestação de
subjetividade nos discursos de Frei Antonio das Chagas.
Palavras-chave: subjetividade; discurso religioso.

renascentista, que constituem a estética e o


Introdução
pensamento do Barroco português.
Esta pesquisa desenvolve reflexões
A escolha de nossa amostra foi
enunciativo-discursivas de práticas sociais do
impulsionada pela necessidade de
século XVII e tem como tema estudar as
compreendermos como o discurso é encenado
manifestações de subjetividade e polemicidade
na enunciação, sendo uma das condições para
em Cartas Espirituais de Frei Antonio das
entendermos a esfera de atividade religiosa de
Chagas, escritas no Barroco português.
Cartas Espirituais. A subjetividade, nesta
Obra de valor documental, Cartas pesquisa, é tomada como processo no aparelho
Espirituais foi editada postumamente em dois enunciativo e é condição para a
volumes, o primeiro em 1684, com 100 cartas, interdiscursividade do discurso
e o segundo em 1687, com 266. Estudá-las na institucionalizado religioso com as formações
perspectiva enunciativo-discursiva nos discursivas da Literatura Barroca e da
possibilita compreende-las como documento Religiosidade.
histórico que revela episódios da vida cotidiana
A compreensão de Cartas Espirituais
de uma sociedade, cuja formação social,
está diretamente relacionada ao entendimento
espiritual, religiosa, política e cultural agregam
de suas condições sócio-históricas de produção
referências dos pensamentos medieval e
e de circulação. A Análise do Discurso de

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198
orientação francesa, doravante AD, é o Católica, seu discurso propunha
referencial teórico-metodológico que nos desdobramentos que evidenciassem certa
possibilita compreender o discurso indissociável conduta moral exemplar do religioso. Os
de seu quadro social. Os estudos realizados na dogmas e as doutrinas da Igreja Católica eram
AD ultrapassam a reflexão intradiscursiva, pois validados como leis naturais a todo Império
contemplam os aspectos sociais, históricos, cristão. Eram leis que normatizavam e
culturais e institucionais da produção orientavam o comportamento das instituições
discursiva. Assim, selecionamos os estudos de sociais e da vida comunitária. A lei humana era
Maingueneau (2005, 2008a, 2008b) como realizada sob a luz das leis naturais cristãs
referencial teórico-metodológico e as categorias baseadas no texto bíblico. A união entre as leis
de gêneros o discurso e cenas da enunciação naturais da fé e as organizações e ordens sociais
para depreendemos acerca da polêmica e da do Estado eram pautadas em reflexões de
subjetividade em Cartas Espirituais. teóricos religiosos da filosofia. Paes (2006)
observa que a filosofia tomista possibilitou a
1. De Fonseca a Chagas, do secular ao
Portugal e outros Estados europeus a
espiritual
construção de uma organização do poder
Frei Antonio das Chagas, convertido à monárquico. Contudo, este poder foi abalado
vida religiosa com 31 anos de idade e no reino português devido a questões
pertencente a Ordem de São Francisco em hereditárias de sucessão do trono, já que o
Évora, é caracterizado como pregador de ardor último rei da Dinastia de Avis, D. Sebastião
e paixão, exagerado em seu ofício. Percorreu (1554 – 1578), não possuía herdeiros que
em andanças missionárias as terras do Alentejo pudessem ser nomeados reis. Tal episódio inicia
e de Algarve e o estatuto de homem mundano o período histórico da Dinastia Filipina (1581 -
convertido à palavra de Deus fez dele ícone à 1640) e a nação espanhola passou a ser
sua época. responsável pelas expansões ultramarinas e
O percurso religioso de Chagas foi pelas regras de exportação e importação
marcado pela máxima de que a vida é breve e o portuguesas frente à Europa. A perda de
homem cortal de bichos e pó (Belchior Pontes, independência portuguesa também gerou uma
1953, p. 182). A efemeridade da vida e a paixão crise nas camadas sociais, intelectuais e
de Cristo foram os referenciais de Chagas em religiosas de Portugal, marcada pela falta de um
seu trabalho missionário. Durante o ano em que líder que os identificasse.
se preparou religioso, no noviciado de São O reinado monarca é marcado, no
Francisco, manteve sempre boas relações com pensamento seiscentista, sob uma perspectiva
todos os religiosos com quem convivera. finita e infinita. A finitude da vida de um rei não
Acabado o noviciado, partiu para Setúbal, onde abala a infinitude de um reino e suas funções
retomou os estudos filosóficos. devem ser preenchidas por um novo nomeado
O comportamento de Chagas na que irá governar o povo. Hansen (1994, p.17)
interlocução com seus fiéis justifica-se como acredita que aos religiosos e demais pensadores
postura institucional seiscentista, já que para seiscentistas domina-se o conceito de Ordem da
topicalizar-se como pertencente à Igreja Razão Divina, que irá refletir nos discursos

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199
institucionalizados da religião católica
2. Gêneros do discurso e cenas da
portuguesa em ordens retórica, ética, política e
enunciação
teológica, capturando vulgaridades e
inverossimilhanças, desvios e ilegalismos,
pecados do corpo que afetam o espírito, dentre Selecionamos como aporte teórico de
outros. O eterno idealizado é que dará sentido nossa pesquisa as categorias da Análise do
para a vida social, e esta encontra-se Discurso de linha francesa, doravante AD,
desestruturada. propostas por Dominique Maingueneau, que
propiciam examinar o processo de subjetividade
Os eventos políticos que ocorrem em
em Cartas Espirituais de Frei Antonio das
Portugal no século XVII revelam uma realidade
Chagas. Destacamos as categorias de o primado
finita que direciona a nação para um futuro de
do interdiscurso; tipos e gêneros de discurso; e
infinitude e eternidade que figuram uma
as cenas da enunciação.
sacramentação do corpo para a salvação da
alma. A sociedade seiscentista era acometida O conceito de discurso em Foucault
por reflexões, tanto na esfera religiosa quanto (1987, 2012) e Deleuze (2005) é de um lugar
artística, sobre a antítese do ser e do desejar possível entre o pensamento e a palavra. O
ser. Hansen (2004) afirma que a comoção do pensamento é revestido de signos linguísticos e
corpo político com o corpo místico do Estado representações sociais influenciadas pelo lugar e
se dava nessa relação dual de modo imperativo, tempo, que se tornam visíveis por meio do
indicativo e optativo. A tríade culmina em texto. O discurso, para ambos os autores,
recursos retóricos da adesão do outro a um carrega valores de verdade de um determinado
determinado ponto de vista doutrinário. grupo ou instituição social, o que constituem as
Imperava nos seiscentos a noção de que o formações discursivas.
Estado era um corpo místico de vontades Maingueneau (2008a) apropria-se do
subordinadas ao Um, e que cada estamento conceito de formação discursiva de Foucault e
social, cada súdito à hierarquia natural de sua propõe a categoria do interdiscurso, que afeta a
ordem, era submisso ao Rei Esperado, à virtude discursividade para além da relação direta entre
católica e ao bem comum do Estado. O trabalho língua e história. Os enunciados de um discurso
religioso era, além de doutrinário, político- estabelecem uma relação dialógica com
social, pois contribuía para o funcionamento da enunciados anteriores, e é esse diálogo que
nação portuguesa, tendo como fim seu permite a valorização dos aspectos sócio-
progresso. histórico-culturais para a construção dos efeitos
Nesse sentido, o discurso religioso de sentido de um discurso, em nosso caso, de
seiscentista constitui-se predominantemente da Cartas Espirituais.
polêmica entre, pelo menos, dois espaços Para analisarmos o estabelecimento
discursivos para a reflexão moral, o literário e o institucional de nossa amostra, buscamos em
bíblico, que são desdobramentos em um Bakhtin (1992) a noção de gênero do discurso,
processo de subjetividade na prática que o compreende como uma unidade da
enunciativa. linguagem que dialoga com a prática social e
discursiva. O gênero é analisado em três

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200
dimensões: o tema, a estrutura composicional e Maingueneau (2008b) propõe, assim, a
o estilo. Maingueneau (2008a) retoma Bakhtin categoria cenas da enunciação, que amplia as
(1992) e observa que os gêneros do discurso possibilidades de trabalho com o gênero e são
estão suscetíveis a um sistema de coerções classificadas por cena englobante, relacionada
determinado, que opera nos planos do discurso aos tipos de discursos, cena genérica, aos
e na rede institucional de um grupo. Pressupõe gêneros, e cenografia.
um quadro institucional ao gênero, denominado Na cenografia, identifica-se as
tipos de discurso, que o legitima como estratégias enunciativo-discursivas de oferta de
petencente a uma determinada instituição, que adesão de um ponto de vista do enunciador ao
afirma tratar-se de espaços já pré-delineados co-enunciador, a legitimidade e a garantia de
pelas práticas verbais. (MAINGUENEAU, veracidade dos enunciados como pertencentes a
2008a, p. 16) São espaços enunciativos que se um lugar institucional de autoridade, o que
relacionam com os múltiplos setores da possibilita a criação de efeitos de sentido no
atividade humana, sendo estes o discurso discurso epistolar de Cartas Espirituais. Há,
administrativo, o discurso literário, o discurso ainda, a possibilidade de mobilizar o aparelho
político e, em nossa pesquisa, o discurso
enunciativo, a fim de emergir uma instância que
religioso. Os tipos de discurso englobam uma valida o ponto de vista do enunciador como
diversidade limitada de gêneros, que constituem inquestionável. Maingueneau (2008a) denomina
as práticas enunciativas e institucionais dessas essa instância de hiperenunciador e afirma que
atividades humanas. Observar os gêneros ela emerge nos usos do discurso citado,
pertencentes a diversos tipos de discurso é explícito no discurso e não no texto. O
fundamental, na medida em que estes fornecem
hiperenunciador tem como função tornar inútil
um lugar e um espaço de enunciação, enquanto a presença de quaisquer outras marcas de
aqueles realizam a ação institucional da pontos de vista dos enunciados, que não as
enunciação. A possibilidade em atribuir ao almejadas pelo enunciador. Trata-se de uma
gênero uma situacionalidade em um tipo de instância que valida um olhar e
discurso pressupõe a inserção de um lugar consequentemente garante a impossibilidade de
institucional ao gênero. Por isso, o gênero carta outros olhares sobre um determinado
espiritual é analisado como pertencente não só enunciado. É fundamental para
ao tipo de discurso religioso, mas a uma compreendermos os efeitos de sentido possíveis
instituição religiosa específica: a Igreja Católica. de Cartas Espirituais enquanto discurso
O estudo de gêneros, para a AD, é polêmico de orientação doutrinária religiosa da
compreendido enquanto práticas enunciativo- Igreja Católica, mas que estabiliza a
discursivas cooperativas e regidas por normas e polemicidade na voz de um hiperenunciador
certo número de regras conhecidas e divino, embora fruto de um processo de
sancionadas pela comunidade que faz uso deles. subjetividade do enunciador, exigido pelas
Na enunciação, há emergência de uma categoria regras de seu meio.
que encena o que é dito e define os papéis dos
3. Análises e discussão
enunciadores e o contrato estabelecido por eles
e pelo gênero no espaço enunciativo. As cartas selecionadas em nossa
pesquisa são tomadas como gênero do discurso

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201
carta espiritual, que tem como finalidade social destinatário. Encontramos, no decorrer do
orientar e doutrinar os fiéis espiritual e Recorte I, enunciados como Guardai ao menos
institucionalmente, como se observa no recorte este papel, que algum dia póde ser que me
abaixo: aproveite do que elle diz., que revelam
proximidade e afetividade do enunciador com o
Recorte I coenunciador, o que torna o discurso pessoal.
Elle vos guarde, e guarde a todos os que Os enunciados constituem-se a partir da
lerem este papel, que foi vontade sua, que influência das formações discursivas da
este indigno, e miserável, inutil, falso, e
instituição religiosa da qual o enunciador
mentiroso a Deos, de sua vontade o
representa. Faz parte do trabalho missionário
escrevesse para sua Gloria, honra, e bem
de todas as Almas de todos aquelles, que o do religioso seiscentista semear as doutrinas
guardarem á risca. Guardai ao menos este religiosas e espirituais, com o intuito de livrar
papel, que algum dia póde ser que me todas as Almas dos atos pecaminosos que serão
aproveite do que elle diz. julgados no dia do juízo final. A missão de
doutrinar o fiel, além de adequá-lo à instituição
Igreja Católica, também tem por finalidade
No Recorte I, extraído da Carta I, o
reforçar sua espiritualidade, uma vez que o
enunciador justifica os motivos que escreve
enunciador assume a função de mediador entre
para o coenunciador. Ao enunciar e guarde a
o divino e o fiel. Tem, assim, um cuidado
todos os que lerem este papel, que foi vontade
estético com a prática enunciativa que
sua, o enunciador revela que a epístola fora
assemelha-se ao Barroco seiscentista.
encomendada pelo coenunciador, por meio de
um contato anterior. Trata-se de uma carta que Recorte II
responde a um incômodo do coenunciador, que
pede os aconselhamentos do enunciador, Senhora: as arvores podem estar cheyas de
observando nele seu porto-seguro. fructos, e juntamente estar verdes, e com
alguma flor: nas do espírito requere-se,
Além de tratar-se de uma orientação que se acabe a flor, e que se acabe a
doutrinária, observamos enunciados que verdura, para chegar à transformaçaõ de
permitem efeitos de sentido de uma orientação Christo crucificado, que he o que eu prego,
pessoal, espiritual e institucional. A escrita da sem ser S.Paulo: e assim deve estar
epístola, como identificada no enunciado que crucificado tudo na árvore da
este indigno, e miserável, inutil, falso, e mortificaçaõ, que eu estimo mais que a
mentiroso a Deos, de sua vontade o escrevesse, Oraçaõ. Necessario he que se seque a flor
foi obra de compromisso espiritual e religioso, da discriçaõ,e se seque a verdura de nossas
paixoes e inclinaçoes naturaes, e que se
já que o enunciador se dedica à Gloria, honra e
ponha todo o cuidado em sazonar os
bem de todas as Almas. A orientação também fructos das obras virtuosas, sem que
se faz pessoal, uma vez que o enunciador se concorra a arvore para a folha, e para a
propõe a orientar o coenunciador de livre e flor com a substancia, que tira os fructos.
espontânea vontade, em seu particular, na
escrita de uma epístola que se supõe
personalizada, que pode servir somente a seu

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202
outro. O enunciador associa uma árvore sem
O recorte II, retirado da carta VI,
frutos com Christo crucificado e defende o
evidencia as estratégias estéticas do enunciado
ponto de vista de que o missionário deve fazer
para a doutrinação do coenunciador. O
germinar frutos bons, inspirados na vida de
enunciador faz uso de um processo metafórico
Cristo, em seu trabalho religioso. Para atingir a
que busca referências de outros campos
condição de Christo crucificado, é necessário
discursivos, no caso o da botânica, ao enunciar
esgotar os frutos a ponto de deixá-los
o amadurecimento dos frutos e o nascimento de
amadurecer até que não se sustentem mais na
flores em uma árvore, para alcançar, no
árvore.
coenunciador, a compreensão da fé cristã e
adesão ao posicionamento do campo discursivo O amadurecimento dos frutos, para o
religioso. A partir de uma analogia entre a enunciador, pressupõe a renúncia da vida
natureza e a espiritualidade, o enunciador mundana e seguir os caminhos institucionais
constrói seu discurso doutrinário. propostos pela Igreja Católica. Cultivar bons
frutos e semeá-los significa executar boas
No enunciado as árvores podem estar
missões, dar bons alimentos espirituais e
cheyas de fructos, e juntamente estar verdes, e
doutrinários aos homens e, no fim da vida
com alguma flor, as árvores cheias de frutos
mundana do missionário, ser uma árvore sem
são aquelas muito produtivas, que alimentam o
frutos, mas ter cumprido com sua missão
homem e, portanto, são boas. Contudo, uma
institucional que é alimentar o próximo
árvore com frutos verdes é aquela que ainda
espiritualmente, através da doutrina cristã. O
não está preparada para alimentar o homem,
enunciador eleva o posicionamento institucional
deve esperar o tempo de seu amadurecimento
da Igreja Católica e a espiritualidade cristã à
para exercer seu papel de fruto bom para o
idealização perfeita de uma vida. O bom viver
alimento humano. Ao propor tal analogia, o
não significa desfrutar dos prazeres mundanos,
enunciador possibilita o efeito de sentido de que
das práticas que exaltam o material, o corpo e o
o espírito deve ter seu tempo de
efêmero. O bom viver, observado e legitimado
amadurecimento, independente dos frutos que
pelo enunciador como o melhor a ser adotado,
possui.
significa cumprir a missão institucional à qual se
Em assim deve estar crucificado tudo é encarregado, com apego espiritual ao divino,
na árvore da mortificaçaõ, que eu estimo mais sem privilegiar os atos pecaminosos e efêmeros
que a Oraçaõ, o enunciador pressupõe que o do mundo.
caminho ideal para o enriquecimento espiritual
A antítese criada e a legitimação de um
é, mais que a oração de contemplação, a
posicionamento sob uma de suas teses é o que
compreensão dos sacrifícios mundanos a que o
caracteriza o radicalismo do barroco
missionário religioso deve se sujeitar. Uma
seiscentista e o desdobramento subjetivo ao
árvore com frutos não está preparada para
trazer campos polêmicos à religiosidade em seu
alimentar o homem, pois os frutos não estão
discurso. Em enunciados como Necessario he
maduros; porém, uma árvore sem frutos é
que se seque a flor da discriçaõ, e se seque a
aquela que já alimentou os homens, já exerceu
verdura de nossas paixoes e inclinaçoes
sua função missionária, ou seja, os frutos já
naturaes, o enunciador propõe um
amadureceram e já serviram de alimento ao

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203
distanciamento entre o missionário religioso e cientificismo e da decadência da espiritualidade,
seu trabalho com a discrição, as paixões e as e buscam posicionar-se de forma a não
inclinações naturais, características típicas dos estabelecer um equilíbrio entre um
homens mundanos que não optam pela vida posicionamento e outro, mas institucionalizar-se
religiosa, ou estão distantes dela. Mesmo que e defender uma verdade absoluta. Assim, o
não se trate de uma antítese evidenciada em enunciador mostra-se adepto a um
texto, ela emerge em discurso, nas formações posicionamento de forma a invalidar todos os
discursivas que legitimam cartas espirituais demais, utilizando da retórica gongórica do
como discurso religioso. No século XVII, os cultismo e do conceptismo, também frequentes
homens que possuíam inclinações às paixões e na arte Barroca, para convencer o
aos sentimentos naturais do corpo eram coenunciador, que possui sensação de
considerados pecadores perante a Igreja fragilidade de sua fé e de sua devoção
Católica, imorais em suas atitudes. Por se tratar institucional frente às antíteses do mundo
de um discurso doutrinário, o enunciador seiscentista, quanto a qual posicionamento deve
propõe orientar o coenunciador de que as aderir.
inclinações à vida mundana são ruins, pois são
caminhos opostos para se alcançar o cume da
perfeição espiritual. Referências
Assim, o desenvolvimento temático é BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São
marcado por pontos de vista que revelam o Paulo: Martins Fontes, 1992.
posicionamento institucional do enunciador no BELCHIOR PONTES, M. de L. Frei Antonio
aconselhamento que se compromete pessoal e das Chagas: um homem e um estilo do século
espiritual. Ao mesmo tempo que o enunciador XVII. Lisboa: Sá da Costa, 1953.
assume um papel de amigo pessoal e orientador
missionário do coenunciador, há a doutrina de DELEUZE, G. Foucault. Trad.: Claudia
um posicionamento religioso e espiritual que Sant'Anna Martins. São Paulo: Brasiliense,
norteará a maneira de ver e de ser na prática 2005.
social. FOUCAULT, M. A ordem do discurso: aula
4. Considerações finais inaugural no Collège de France, pronunciada
em 2 de dezembro de 1970. Trad.: Laura Fraga
Observamos ao término da pesquisa que de Almeida Sampaio. 22º ed. São Paulo:
os enunciados de Cartas Espirituais revelam Edições Loyola, 2012.
posicionamentos e formações discursivas que
nos permitem a consolidação de um espaço __________. A Arqueologia do Saber. Trad.:
discursivo que determina o que pode e o que Luiz Felipe Baeta Neves. 3º ed. Rio de Janeiro:
não pode ser dito. Ao examinar as condições Forense-universitária, 1987.
sócio-histórico-culturais de produção dos FURLANETTO, M. M. Gênero do Discurso
enunciados analisados, identificamos que tanto como componente do arquivo em Dominique
o enunciador quanto o coenunciador se Maingueneau. In: MEURER, J.L.; BONINI,
deparam com a polêmica do sacroprofano, das A.; MOTTA-ROTH, D. (org.) Gêneros:
reformas religiosas, da valorização do teorias, métodos, debates. 1º edição. 2º

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204
Reimpressão. São Paulo: Parábola, 2010. p.
260 – 281.
GRANADA, F. L. Guia de Pecadores. A
riqueza das virtudes e o caminho para alcança-
las. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil.
HANSEN, J. A. Prefácio. IN.: PÉCORA, A. A.
B. Teatro do Sacramento: a unidade teológico-
retórico-política dos Sermões de Antonio
Vieira. Editora da Universidade de São Paulo.
São Paulo, 1994. p. 15 – 36.
_________. Educando príncipes no espelho.
IN.: Floema Especial – Ano II, n. 2 A, p. 133 –
169. Out. 2006.
_________. Barroco, Neobarroco e outras
ruínas. IN.: Destiempos.com.br. México,
Distrito Federal. Marzo-abril 2008. Ano 3. N.
14. p. 169 – 215.
MAINGUENEAU, D. A noção do
hiperenunciador. IN.: Polifonia. Cuiabá:
EDUFMT, Nº 10, p.75-97, 2005.
__________. Cenas da Enunciação. São Paulo:
Parábola, 2008a.
___________. O Primado do Interdiscurso. IN:
Gênese dos discursos. São Paulo: Parábola,
2008b.

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205
MARCHA DAS VADIAS: UM MOVIMENTO, A LÍNGUA, A
HISTÓRIA

Tyara Veriato CHAVES1


Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)
tyarajpb@hotmail.com

Resumo: Este trabalho se volta para as disputas de sentido que envolvem a presença das
mulheres no espaço público a partir da seguinte pergunta: como os sentidos de ‘vadia’ se
constituem no movimento Marcha das Vadias? Para tanto, propomos pensar a
apropriação militante da palavra ‘vadia’ buscando desenvolver uma reflexão sobre a
textualização do político e o funcionamento da memória discursiva nas relações
históricas que significam as mulheres no espaço público, bem como o processo de
construção e legitimação do sujeito vadia social e politicamente na Marcha.
Palavras-chave: mulheres; espaço público; marcha das vadias; memória; acontecimento.

para a eclosão do movimento. Um relato que


Introdução
funciona como ação, pois ao mesmo tempo em
A Marcha das Vadias se filia a uma onda que rememora, produz um fazer político.
de protestos que teve início no Canadá em 2011 Narração, inclusive, que se materializa sob a
sob a denominação SlutWalk, cuja origem se forma de versões em diversas cidades nas
localiza como resposta aos dizeres de um Américas do Norte, Central e do Sul, Europa,
agente de polícia na York University de Toronto Ásia e África, onde o movimento se realiza com
sobre táticas para evitar estupros. No site da diferentes denominações: Besharmi Morcha na
SlutWalk a fala do policial aparece do seguinte Índia, Marcha das Vadias/Marcha das
modo: “women should avoid dressing like sluts Vagabundas no Brasil, Marcha das
in order not to be victimized”. Galdérias/Marcha das Ordinárias em Portugal,
Esta citação sobre o dizer do agente de Marche des Salopes na França, dentre outros.
polícia se encontra presente em diversos Dessa forma, inicio o trabalho com uma
espaços: matérias jornalísticas, sites, blogs, no reflexão sobre os funcionamentos desta
Facebook e em outros lugares de modo a ‘narrativa de origem’ Canadense a partir da
explicitar o motivo que serviu como estopim tradução brasileira e em como a sua retomada

1
Doutoranda em Linguística (Unicamp, CNPq: 141740/2015-9) e participante do Grupo Mulheres em Discurso
(CNPq, 487140/2013-3). Este trabalho foi fruto da pesquisa de Mestrado (Unicamp) sob o financiamento da FAPESP
(2013/14539-9).

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206
pelos coletivos de militância Marcha das Vadias discurso de constituição da SlutWalk é
nos permite percorrer trajetos de memória que retomado no Brasil? E ainda, quais os efeitos de
constituem relações tensas e variáveis entre as sentidos implicados na nomeação ‘vadia’, tendo
mulheres e o espaço público, bem como em vista os trajetos de memória convocados e
esboçar gestos de interpretação que pairam em deslocados pelo uso militante?
torno de dois movimentos sobre a mesma Começo pela primeira questão
palavra: o insulto (a que é dita vadia), e o procurando observar como esta ‘narrativa de
empoderamento (a que se diz vadia). origem’ se apresenta em forma de versões, a
Proponho, portanto, um gesto de leitura começar pelo próprio texto que se encontra no
sobre a apropriação militante da palavra ‘vadia’ site da SlutWalk quando traz as palavras do
como um movimento dos sentidos na história. policial canadense em discurso direto sob a
Este ponto de vista se sustenta no campo evidência de uma transcrição daquilo o que foi
teórico da Análise materialista do Discurso dito em um determinado lugar/dia/ocasião por
proposta por Michel Pêcheux, que considera a alguém. Assim como Orlandi (1996), considero
constituição ideológica dos sentidos o texto um bólido de sentidos, um sítio
instaurando um campo de reflexão que leva em significante, em que qualquer modificação na
conta as relações entre a realidade histórica, a sua materialidade implica em distintos recortes
materialidade da língua e a existência do de memórias e relações com a exterioridade,
sujeito (GADET & PÊCHEUX, 1991). fala de diferentes posições-sujeito, diz de
diferentes gestos de interpretação. É neste
1. Dizer de outro modo
sentido que os textos aqui trazidos são tomados
Dada à amplitude global do movimento, em suas distintas materialidades de onde
destaco, no caso brasileiro, a relação que existe resultam diferenças nos processos de
entre as Marchas das Vadias e a SlutWalk, uma significação. A seguir, veremos como alguns
vez que processos de unidade/dispersão atuam recortes das Marchas das Vadias de Curitiba,
pelo funcionamento da nomeação vadia de Belo Horizonte e Rio de Janeiro retomam a
modos diferentes de slut. Ao mesmo tempo em ‘narrativa de origem’ da SlutWalk no Facebook
que vadia se coloca como uma tradução, cuja e Blogs dos movimentos no Brasil:
memória se filia à unidade de um movimento
global através de vários elementos (sendo um Marcha das Vadias de Curitiba2 O
deles o discurso de origem), há, porém, uma movimento surgiu porque, em janeiro de
dispersão atuando de modo a evidenciar o 2011 na Universidade de York, um policial,
caráter regionalizado do protesto cada vez que falando sobre segurança e prevenção ao
é atualizado por uma coletividade política em crime, afirmou que “as mulheres deveriam
determinado país/cidade com condições de evitar se vestir como vadias, para não
serem vítimas de ataque”.
produção específicas tendo, portanto,
elementos que se repetem e se deslocam
constantemente (as frases escritas no corpo, as
canções de protesto, o modo de se vestir/despir 2
Disponível em:
dos(as) militantes). É neste ponto que pretendo marchadasvadiascwb.wordpress.com/conheca-a-marcha
me voltar para as seguintes questões: como o (acessado em 17/04/15)

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207
língua e da História “[...] na forma de um saber
Marcha das Vadias Rio de Janeiro3 A que não se transmite, não se aprende, não se
Marcha das Vadias teve inicio no Canadá ensina, e que, no entanto, existe produzindo
em resposta à conduta machista de um efeitos” (PÊCHEUX, 1983, p.43); um saber
policial. Este declarou que as mulheres que coloca significantes como ‘estupros’,
eram vítimas de ataques sexuais, pois se ‘mulheres’, ‘vitimas’ e ‘vadias/sluts’ em relação
“vestiam como vagabundas”.
causal.
Volto-me agora para a sequência
Marcha das Vadias Belo Horizonte4 referente à Marcha das Vadias de Belo
Vadia...... É uma forma de resignificar o Horizonte, que não traz as palavras do policial
termo e expor os preconceitos, machismo e sob a forma da citação, mas a evidência do
moralismo que estão embutidos nele, usado
sentido de que vadia é exatamente aquilo o que
de forma pejorativa para criticar somente
todo mundo sabe o que é: um termo embutido
mulheres (homens não são considerados
vadios!) de preconceitos, machismo e moralismo,
‘usado de forma pejorativa para criticar
somente mulheres (homens não são
Tomando a interpretação como um considerados vadios!). Formulação que adquire
gesto ideológico, situado na história, sentido sob a forma da universalidade em
textualizando o político e tendo a metáfora conformidade com as condições de produção
como base da significação (PÊCHEUX, 1975), de um movimento que eclode já na segunda
percebe-se nos trechos referentes à Marcha das década do século XXI, mas quando dirigimos o
Vadias de Curitiba e do Rio de Janeiro, como olhar para outras condições históricas, é
as palavras do policial, embora modificadas e possível afirmar que homens também foram
interpretadas, são postas entre aspas marcando considerados vadios quando interpelados
o dizer do outro, daquele que chama a mulher juridicamente sob a acusação do crime de
de ‘slut’, ‘vadia’, ‘vagabunda’. Relembrar o vadiagem, que embora estivesse ligado à
surgimento do movimento canadense é ociosidade, desocupação, posição de classe e
convocar esta memória, filiar-se a um raça entre o final dos séculos XIX e início do
movimento mundial e dar sentido a própria XX, era produzido em uma sociedade marcada
existência em expressões como ‘surgiu por diferenças na forma de conceber a presença
porque...’, ‘teve início no Canadá em resposta de homens e mulheres no espaço público 5.
à...’. Frases que evidenciam a necessidade de Portanto, o enunciado - homens não são
explicitar o motivo que ao mesmo tempo em considerados vadios! - revela tanto um
que é o ficcional da história contada e
reatualizada, revela-se também pelo real da 5
A respeito das relações entre gênero envolvidas nos
crimes de vadiagem do século XIX, Garzoni discorre:
3
Disponível em “[...] Há uma série de questões de gênero que poderiam
facebook.com/MarchaDasVadiasRioDeJaneiro (acessado ser discutidas em relação aos “vagabundos”,
em 17/04/15) relacionadas à forma como estereótipos acerca dos
4
Disponível em homens pobres, muitas vezes tidos como irracionais e
marchadasvadiasbh.blogspot.com.br/2014/05/ (acessado violentos, poderiam ser acionados nessas situações [...]”.
em 17/04/15) (2007, p. 8).

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208
processo de (de)significação da vadiagem neste confronto de sentidos, relembro, aqui, a
masculina ligada à vagabundagem/ociosidade, noção de acontecimento em Pêcheux,
como também marca uma divisão histórica dos trabalhada a partir do enunciado ‘on a gagné’,
sentidos da vadiagem pelo gênero, quando que ressoou nas ruas de Paris em decorrência
vadia remete pela evidência à da eleição de François Mitterrand como
vagabunda/prostituta. Esquecer-se deste Presidente da França (1981). Um enunciado
sentido-outro é falar da posição de militante- cuja estrutura léxico-sintática funciona de modo
vadia, tendo a certeza daquilo o que está variável, fugindo de qualquer estabilidade lógica
dizendo, o sujeito seleciona “[...] um enunciado, tanto na pergunta sobre o sujeito do enunciado
forma ou sequência, e não um outro, que, no – quem ganhou? – como quando se questiona
entanto está no campo daquilo que poderia sobre o seu complemento – ganhou-se o quê?
reformulá-lo na formação discursiva Perguntas que fazem Pêcheux colocar a
considerada” (PÊCHEUX, 1975, p.161). seguinte questão: “[...] a do estatuto das
discursividades que trabalham o acontecimento,
É nesta linha que busco compreender
entrecruzando proposições de aparência
como a história rememorada – a fala do policial
logicamente estável, suscetíveis de resposta
– dá de encontro com determinações históricas,
unívoca (é sim ou não, é x ou y, etc.) e
a saber, as relações tensas e múltiplas entre as
formulações irremediavelmente equívocas”.
mulheres e o espaço público, materializadas no
(PÊCHEUX, 1983, p. 28).
dizer que se repete - ‘evitar se vestir como
vadia, para...’ – e em um trabalho de leitura de É neste ponto que formulações como: a
um arquivo tal como proposto por Pêcheux marcha é sobre o quê? É sobre quem? O que é
(1982), em que foi possível encontrar outros uma vadia? Vão de encontro ao impossível.
ditos e não-ditos que se repetem e se deslocam Mas tudo acontece como se fosse possível
nas Marchas das Vadias, tais como, a questão reponde-las, defini-las, enumerar suas
do vestuário e a disponibilidade para o sexo, a características, administrar seu sentido,
relação entre mulheres e bebida, o falar colando-a a determinado objeto. Ao mesmo
palavrões, o estar na rua, enfim, regularidades tempo em que são perceptíveis os pontos de
que revelam uma rede de sentidos envolvendo ansiedade em torno das perguntas, a urgência
as mulheres, o corpo, a posição de classe, a cor nas respostas, a assertividade nas formulações
da pele, a identidade de gênero, dentre outros que aparecem o tempo todo nas mais variantes
fatores, trazendo um jogo de forças na memória gradações, em cartazes, nos manifestos, nos
sob o choque do acontecimento na Marcha. corpos dos manifestantes. Proposições que
fazem a vadia e a marcha serem uma coisa e
2. Memória e acontecimento
também outra; serem x e y, serem e não serem,
Ao retomar esses fragmentos que pois são atravessadas por uma série de
parecem funcionar como uma narrativa de equívocos, tem seu modo de existência regido
origem para as Marchas das Vadias, o leitor é pela maneira como são faladas.
levado ao confronto entre lugares de memória:
Mas a questão é justamente este ‘ser
de um lado, dizeres cujo efeito é o insulto (o ser
falada’, que marca uma existência na língua e na
falada) e de outro lado, um movimento de
História, pondo a discursividade como estrutura
tomada da palavra (dizer-se vadia). Para pensar

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209
e acontecimento no ponto de encontro de uma os desafios colocados pelo objeto desta
atualidade com uma memória (PÊCHEUX, pesquisa, a saber: o trabalho com materialidades
1983), impondo uma prática de leitura que leve discursivas complexas, as falhas nos processos
em conta a materialidade da língua, exposta ao de identificação e o caráter paradoxal dos
equívoco, lembrando que “[...] todo enunciado objetos discursivos.
é intrinsecamente suscetível de tornar-se outro, Neste ponto, retomo a noção de objetos
diferente de si mesmo, se deslocar paradoxais em Pêcheux, que se situam no
discursivamente de seu sentido para derivar cruzamento da linguagem com o Histórico,
para um outro [...]” (Idem, p. 53), na relação existindo em relações de forças e no centro de
com a materialidade da História, tomada como disputas, produzidos no interior de
uma disciplina de interpretação. Dupla discursividades inerentes aos processos
perspectiva que para o analista de discurso se ideológicos, funcionando de forma dividida
desdobra no batimento descrição/interpretação, logo, “[...] a produção discursiva desses objetos
abrindo o discurso para a possibilidade de ‘circularia’ entre diferentes regiões discursivas,
deslocamentos na História. das quais nenhuma pode ser considerada
Ao se interrogar sobre qual conceito de originária” (PÊCHEUX, 1984a, p. 158). Nesta
História é mobilizado na construção do objeto perspectiva, não há como tomar como ponto de
teórico discurso, Zoppi-Fontana (2009) propõe partida um sentido de vadia originário em
uma leitura sobre a noção de acontecimento em determinado momento na história, mas sim,
Pêcheux, que marca a possibilidade de partir do seu funcionamento em redes de
desregulação-desestruturação de todo discurso, memória, pondo em ligação discursos sobre
aproximando-a da noção de encontro em mulheres, classe, corpo, espaço público,
Althusser (1982), que [...] sem negar a feminismo, feminino, dentre outros em uma
sobredeterminação dos processos históricos, relação histórica de tensão e movência.
abre o conceito de história para a Esse horizonte teórico me levou me
indeterminação potencial desses mesmos levou a cosiderar essas tensões entre o feminino
processos [...]” (ZOPPI-FONTANA, 2009, p. e o espaço público como constitutiva de
135). Leitura que traz uma reflexão sobre o real
sentidos. Aposta estabelecida pela via do
da história sem reduzi-lo ao real da língua, trabalho com a memória discursiva, sobretudo,
pondo-o na sua relação com o discurso. Essa através da materialidade significante da palavra
perspectiva se mostra produtiva para este ‘vadia’ na relação com um trabalho de leitura
trabalho tanto por considerar a dupla que perpassa outras instâncias enunciativas6:
materialidade, histórica e simbólica, do relatos historiográficos, ditos populares,
acontecimento do discurso: “[...] Dito de outra
inquéritos policiais, textos religiosos, médicos e
maneira, se o real da língua se funda em um literários, enfim, de um arquivo (PÊCHEUX,
impossível, o real da História se funda no
possível, isto é, não há necessidade nem 6
Esse trabalho com a memória discursiva foi
impossibilidade que estruture a priori os
aprofundado na dissertação de Mestrado ‘Da Marcha
processos históricos” (Idem, p. 142); como por das Vadias às vadias da marcha: discurso sobre as
levantar questões que dialogam fortemente com mulheres e o espaço’. CHAVES, Tyara Veriato.
Campinas, SP: [s.n.], 2015.

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210
1982), que vale ressaltar, não foi dado a priori, sexual sobretudo nas redes sociais eletrônicas -
mas constituído na relação com o corpus, o que Facebook e Instagran - após a ampla
reciprocamente também se coloca como divulgação da pesquisa em que o IPEA8
verdadeiro, já que o arquivo “[...] não é um informou que 65% dos entrevistados haviam
simples documento no qual se configuram concordado com a afirmação de que mulheres
referências; ele permite uma leitura que traz à que usam roupas que mostram o corpo
tona dispositivos e configurações significantes” merecem ser atacadas9; enfim, uma rede de
(GUILHAUMOU & MALDIDIER, 1984, p. enunciados que permite um gesto de
162). interpretação sobre aquilo o que é dito em
outro lugar, independentemente (PÊCHEUX,
3. As mulheres e a rua
1975), como um processo de interpelação
A mulher ideal deve ser envolvendo o corpo e o feminino em sua
dama na mesa e puta na cama circulação pelo espaço público, legitimando
Nelson Rodrigues práticas de violência.
Tomando como ponto de partida que a Ao descrever o processo de construção
relação entre a forma da cidade e a forma- da casa e da rua do período colonial do Brasil,
sujeito se dá de maneira constitutiva, Mary Del Priore (1993) resgata a noção de
(ORLANDI, 2012), rememoro a famosa frase público e privado como herança Renascentista
do escritor Nelson Rodrigues como um (re)dito legada à Europa e largamente difundida nos
ecoando historicamente as tensões que processos de colonização. A mística da vida
envolvem a presença das mulheres no espaço comum envolvia não só a modificação dos
público. Tanto na frase de Nelson Rodrigues espaços domésticos, como também, moldava a
quanto no dizer do policial canadense – evitar vida conjugal, seja pela gestão dos afetos, em
de vestir como vadia… – há um elemento que que o racional prevalecia ao pulsional, seja na
se torna presente pela sua ausência: a rua. Em delimitação dos papéis de gênero através de
ambos os enunciados a distinção uma divisão criteriosa de tarefas entre o casal.
público/privado se coloca fortemente, seja sob a Para a mulher, a maternidade, a casa, a
forma do par mesa/cama, puta/dama, seja pela administração do cotidiano, a educação e
paráfrase possível de evitar se vestir como cuidado da prole. Uma espécie de
vadia em evitar sair como vadia. Confrontando confinamento, mas também uma forma de
tais dizeres, aliados a outros que circulam nas garantir as condições materiais e um lugar
conversas cotidianas como: “isso não é hora de privilegiado no imaginário social:
mulher andar na rua”, “fulana estava pedindo
para ser estuprada”, “prendam suas cabras Se no período colonial a mulher na
que meus bodes estão soltos”, somando-se ao figura da santa-mãe se fazia peça-chave no
famoso slogan “eu não mereço ser estuprada”7 discurso normativo da Igreja é possível
que virou tema de campanha antiviolência
8
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.
9
A pesquisa trazia duas possibilidades de escolha para o
7
Disponível em: enunciado (concorda ou discorda). Informação
https://www.facebook.com/diganaoaomachismo disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal (acessado
(acessado em 18/02/2015). em 18/02/2015).

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211
observar em Esteves (1989) como tal justificação para o descaso e os abusos de
funcionamento se engendra nos discursos poder com as mulheres das camadas populares,
jurídicos do início da república que, atuando de como afirma a historiadora Margareth Rago:
forma pedagógica e repressiva, difundia valores
relativos a um projeto de progresso e [...] a comercialização sexual do corpo
civilização nas cidades e nos sujeitos, atrelados feminino se caracterizará como prostituição,
à disciplinarização do trabalhador e à segundo conceito elaborado no século XIX,
saturado de referências médico-policiais, e a
moralização da mulher. Dessa forma, os dizeres
figura da prostituta poderá ser
que circulavam nos tribunais em contendas
estrategicamente redefinida, aparecendo
entre réus, mulheres ofendidas e testemunhas como parâmetro limite para o
arroladas logo migravam para o disse-me-disse comportamento feminino no espaço urbano.
das conversas cotidianas e “[...] todos esses, de (RAGO, 1991, p. 64).
uma forma ou de outra, acabavam vivenciando
determinadas noções de honestidade,
Neste sentido, trago também um estudo
relacionadas com as proibições da rua e do
realizado por Nunes (2001), que ao considerar
exterior” (ESTEVES, 1989, p. 47). Tal é o
os processos de produção de sentidos próprios
caso no processo envolvendo a costureira
da cidade e tomando o dicionário como local de
Carlinda da Silva, parda e operária de uma
observação do léxico imbricado aos processos
fábrica de chapéus, contra Carlos Augusto
discursivos, observa como a análise da palavra
Araújo10. Nas palavras do advogado de defesa,
‘rua’ em tais instrumentos definidores delineia
a acusadora há muito não possuía o ‘perfume
um percurso semelhante à história da palavra
da flor de laranjeira’, pois, frequentadora de
‘público’, que aparece na França e Inglaterra
Bailes, de hospedarias e do Moulin Rouge,
entre os séculos XVII e XVIII marcando
Carlinda foi descrita como mulher de vida
distinção aos sentidos de ‘privado’, região
desregrada, sendo geralmente (tida) como
ligada à família, ao estar em casa.
prostituta.
Na pesquisa de Nunes, chamo a atenção
O desenrolar do processo de Carlinda,
para uma das acepções da palavra “rua”,
assim como tantos outros marcam a tênue linha
primeiro em Aulete (1881): “Moço ou rapaz da
que separava a nomeação ser prostituta, de ser
rua: vadio, gaiato | Mulher da rua, prostituta”,
prostituída. Essas mulheres tidas como
depois em Freire (1954), onde “arruaceiro” é
prostitutas simbolizavam no universo
definido como o sujeito que faz arruaça, já
logicamente estabilizado do discurso jurídico o
“arruadeira” é a mulher que está sempre na
desamparo de um segmento que não contava
rua, prostituta. Um percurso pelo léxico que
com a proteção do Estado, as prostitutas de
marca a relação entre o espaço e o sujeito,
fato, e a outra parcela, as tidas prostitutas
atravessada não só pela posição de classe, mas
também rechaçadas e não merecedoras de
também pela sexualidade. Retomando Nunes,
proteção. Dupla forma de controle: um modelo
quando diz que “[...] é a classe baixa que está
na oposição com a ‘mulher de respeito’ e uma
na rua” (2001, p. 108), acrescento, que no caso
10
da mulher, além da classe é o corpo que parece
Carlos Augusto Araújo, proc. nº 33, 1908 (Apud também estar em jogo.
ESTEVES, 1989, p. 49). Grifo meu.

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212
(op. cit.). Daí a expressão ‘fulana era muito
Soma-se a essa questão uma outra
saidinha’, pois andava na rua em horários
relacionada à memória que se atravessa no caso
‘suspeitos’, frequentava determinados locais
brasileiro, que traduziu slut para vadia: o Crime
considerados impróprios ou até mesmo
de Vadiagem. Formulado no período pós-
trabalhava, como era o caso das lavadeiras, das
abolicionista e em meio ao processo de
operárias e das empregadas domésticas;
implantação do regime capitalista no Brasil que
mulheres que frequentemente eram tidas
tinha como eixo a disciplinarização e a
marginalizáveis.
moralização dos cidadãos(ãs), o Crime de
Vadiagem foi previsto no Código Penal da Como é possível perceber, o corpo
República, sancionado em 1890, no artigo 399, aparece como elemento central no processo de
que estabelecia como infração “Deixar de criminalização da mulher acusada de crime de
exercitar profissão, ofício, ou qualquer mister vadiagem nos séculos XIX e XX. Ao visitar as
em que ganhe a vida, não possuindo meio de fichas criminais do período foi possível perceber
subsistência e domicílio certo em que habite, trajetos de memória em que língua e História se
prover à subsistência por meio de ocupação atravessam, revelando apagamentos e
proibida por lei e manifestamente ofensiva da deslocamentos que produziam o sujeito-
moral e dos bons costumes”11. Neste ponto é meliante do século XIX face ao aparecimento
possível observar como o jurídico interpelava do sujeito-militante-vadia, significada em
homens e mulheres que deambulassem pelas outras condições de produção, a partir de uma
ruas, sobretudo pardos(as) / negros(as) e onda de protestos iniciada em 2011 no Canadá.
pobres em vadios (as) de maneira distinta: os A vadia da Marcha surge como outra
primeiros ditos vagabundos pela ociosidade, possibilidade de articulação discursiva, em que
enquanto que as segundas ditas vagabundas a memória opera tanto em esquecimento – pois,
pela suposta ‘degeneração’ moral. esburacou-se (PÊCHEUX, 1984b), perdeu o
perdeu o trajeto (do crime de vadiagem) –
Muitos dos processos criminais
quanto em disputa, pois sob o mesmo da
envolvendo mulheres na época demonstravam
materialidade da palavra vadia, ecoam
que a rua, no simbólico dos discursos juristas,
determinações históricas de uma sociedade
era um espaço de tentações e desvios, de modo
marcada por diferenças significativas na forma
que era comum a pergunta à ré ou vítima: ela
de conceber a presença de homens e mulheres
saía à rua? (ESTEVES, 1989). Tal enunciado
no espaço público.
funcionava como mecanismo de pôr a
honestidade da mulher em questão, inclusive a 4. Discursos retorcidos
validade da sua denúncia ou acusação. Comum Depois de percorrer estes trajetos de
também era dizer que tal mulher ‘vagava memória que dizem das relações conflituosas
constantemente pela vizinhança do lugar’ 12 entre as mulheres e o espaço público, ponho-me
agora a tarefa de olhar para o presente, para
11
Código Penal Brasileiro (Decreto n. 847 de 11 de este barulho no meio da rua, a Marcha das
outubro de 1890) comentado por Affonso Dionysio
Vadias, e em como essas memórias até aqui
Gama. São Paulo: Saraiva e Cia. Editores, 1923.
12
A frase citada consta no processo contra José Maria remexidas funcionam no gesto da formulação,
dos Santos, nº 9, 1904. (apud Esteves, 1989). como disse Eni Orlandi, “[...] momento que a

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213
linguagem ganha vida, que a memória se possível a partir de diferentes posições
atualiza, que os sentidos se decidem, que o discursivas.
sujeito se mostra (e se esconde)” (2001, p. 9). Concluo esse percurso que vai das
Com o corpo enlaçado ao corpo dos sentidos, o palavras do policial à tomada da palavra na
sujeito se inscreve na história e a ‘mulher Marcha das Vadias, em que dizer do outro e o
falada’ é também a mulher que fala e diz no dizer de si se cruzam na materialidade da língua
início do século XXI ‘não sou santa, não sou com a materialidade da história, ou, melhor
puta, sou livre’.13 dizendo, os dizeres se trombam, entram em
É justamente neste espaço em que a choque, na medida em que falam de diferentes
repetição não é a reprodução do mesmo que posições-sujeito, tratam de distintas relações
retomo as questões implicadas em um objeto com a memória. Desse modo, recorro à
como Marcha das Vadias, em que a língua afirmação de Pêcheux (1975), ao dizer que não
funciona como um campo de forças, pela há sentido a priori nas palavras, mas em relação
própria apreensão/repreensão da palavra vadia àqueles que a empregam, assim como à reflexão
e suas relações com discursividades morais- de Zoppi-Fontana (2001) sobre lugares de
jurídicas-religiosas aliada a um ‘novo uso’, já enunciação e sua eficácia ideológica que
que agora também nomeia um sujeito político- considera “[...] o processo de constituição do
militante. É este novo no interior da repetição sujeito do discurso nas relações de identificação
que possibilita o gesto de interpretação sobre o estabelecidas com a forma-sujeito e as posições
acontecimento, “[...] que não se confunde nem de sujeito definidas nas FD que o afetam”
com a notícia, nem com o fato designado pelo (Idem, p. 201). É nesta filiação que vejo o
poder, nem mesmo com o acontecimento processo de produção de sentido na Marcha das
construído pelo historiador. Ele é apreendido na Vadias como uma tensão entre o mesmo e o
consistência dos enunciados que se entrecruzam diferente, dita a partir de lugares e em
em um momento dado” (GUILHAUMOU & condições de produção que fazem o discurso
MALDIDIER, 1984, p. 164). O que nos sofrer uma espécie de torção entre
permite pensar nos efeitos que um lugar de ‘depreciação’ e ‘empoderamento’. Portanto, as
enunciação (ZOPPI-FONTANA, 2001) vadias da marcha carregam a ‘slut’ do policial
identificado com a posição-militante produz canadense, a puta e a dama de Nelson
quando enuncia sobre si aquilo o que seria o Rodrigues, as madalenas pecaminosas da Igreja,
dizer depreciativo do outro. Dizer-se vadia as prostituídas, as embriagadas, as que ‘se
tendo sido ‘já dita’ na História, marcar-se com vestem como...’, as que ‘se portam como...’,
esse nome, marcando uma outra enunciação mas com um acréscimo significativo que se dá
pelo atravessamento de uma discursividade-
outra, a dos movimentos Feministas, logo, além
de tudo isso, a vadia é também a aquela que
13
Chamo a atenção para as derivas em torno deste assume uma posição política, que ‘luta por...’.
enunciado escrito em cartazes, circulando nas redes
sociais eletrônicas e no corpo dos participantes da
Marcha, para citar algumas: “nem santa, nem puta,
vadia”, “nem santa nem puta, mulher”, “sou santa, sou Referências
puta, sou mulher”, dentre outros.

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214
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215
ENTRE INSULTOS E FALSAS HARMONIAS: A
CONSTRUÇÃO DOS EFEITOS DE AGRESSIVIDADE NO
DISCURSO POLÍTICO ELEITORAL NA CAMPANHA DE 2014

Geovana CHIARI
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
geovanachiari@gmail.com

Resumo: Durante o período pré-eleitoral das eleições presidenciais no pleito de 2014, as


notícias e os comentários acerca das campanhas políticas dos candidatos à presidência
foram de que nelas se adotaram discursos agressivos. Tendo em vista que, de forma
genérica, atribuiu-se a um e outro candidato a liderança de uma campanha marcada pela
agressividade, elegemos como objetivo deste artigo analisar o discurso dito agressivo,
buscando compreender sua formulação e materialização no discurso político. Orientados
pelo arcabouço teórico da Análise do discurso de linha francesa, propomos a análise de
fragmentos dos debates políticos televisivos, imagens e vídeos que circularam nas redes
sociais (Facebook, Youtube), bem como nos sites oficiais de campanha.
Palavras-chave: agressividade; discurso político; campanha eleitoral.

agressivo entre os candidatos na campanha


Introdução
política de 2014. O site do jornal Estadão2
A campanha política referente às veiculou no dia 26 de outubro de 2014 a notícia
eleições de 2014 foi caracterizada como sendo intitulada “Dilma e Aécio votam e trocam
extremamente agressiva. O site do jornal Folha críticas sobre agressões na campanha”, na seção
de São Paulo1, por exemplo, veiculou, no dia Política Eleições, mostrando que o PT atribuía
22 de outubro de 2014, uma notícia intitulada a agressividade ao PSDB, e este, por sua vez,
“71 % criticam agressividade na eleição”, atribuía as agressões à campanha Petista. Nessa
referindo-se a uma pesquisa feita pelo reportagem, Dilma critica a campanha de Aécio
Datafolha, a qual constatou que 71 % dos dizendo que a mesma valeu-se de “tratamentos
eleitores entrevistados criticavam o conflito

1 2
Disponível em: Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/10/1536236- <http://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,dilma-
71-criticam-agressividade-na-eleicao.shtml>. Acesso e-aecio-votam-e-trocam-criticas-sobre-agressoes-na-
em: 26 maio 2015. campanha,1583067>. Acesso em: 26 maio 2015.

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216
indevidos”, e o Tucano, por sua vez, qualifica a
Nosso arquivo é constituído por trechos
campanha do PT como ‘terrorista’.
do debate da Rede Bandeirantes (14/10/2014),
Ao observarmos campanhas políticas por imagens que circularam durante a campanha
anteriores, notamos que há momentos em que a política nas redes sociais (Facebook, Youtube) e
agressividade se torna preponderante, e outros nos sites oficiais.
em que o corpo político parece ser docilizado.
2. Análises e discussão
Esse processo de docilização do corpo marcou
a campanha política do ex-presidente Luís A fotomontagem nas redes sociais e
Inácio Lula da Silva, nas eleições presidenciais nos blogs
de 2002 (SARGENTINI, 2011). Segundo Foucault (1996), a troca e a
Diferentemente ao que ocorreu nessa eleição de comunicação fazem parte de um sistema
2002, em 2014, o efeito de agressividade ganha complexo de restrição, sem os quais o
força nas redes sociais, nos sites, nas funcionamento daqueles seria impossível. Sobre
campanhas televisivas e debates. os rituais, o autor assinala que esses definem os
A tal agressividade foi produzida gestos os comportamentos, as circunstâncias, e
produzido no interior da mídia, nos discursos todo o conjunto de signos que devem
produzidos nas redes sociais, os quais também acompanhar o discurso (FOUCAULT,1996, p.
foram replicados nos debates. A expressão da 38, 39).
agressão não se deu apenas no discurso verbal, Os rituais que caracterizam as redes
mas também pelos gestos, expressões faciais, sociais, como a democratização do dizer – visto
imagens, vídeos, dentre outros. que todos que possuem cadastros nas redes
1. Abordagem teórica e metodológica podem compartilhar diversos conteúdos,
expressando, assim, opiniões -, possibilidade de
Para analisar as várias materialidades
compartilhar imagens e vídeos que veicularam
que compõe o corpus deste trabalho e
em outros meios de comunicação ou criados
compreender como se constrói o discurso dito
pelos próprios internautas, textos curtos, que
agressivo e as formas de difundi-lo em
exigem menos tempo de leitura, dentre outras,
diferentes suportes, lançaremos mão dos
fazem com que tais condições possibilitem a
aportes teórico-metodológicos da Análise do
emergência de determinados discursos e não
discurso de linha francesa.
outros em seu lugar.
Mobilizaremos alguns conceitos
No período pré-eleitoral das eleições de
produzidos na base teórica da Análise do
2014, as redes sociais foram caracterizadas
Discurso, nos estudos de M. Pêcheux (1983,
como arenas políticas, espaço de discussão,
1990, 1997), M. Foucault (1975, 1996, 2004) –
exposição e, algumas vezes, de imposição de
noção de discurso, enunciado, memória –
ideias e demonstrações de intolerância e
Courtine (2003, 2006, 2009, 2011) – relação
preconceitos. Os efeitos de agressividade
entre mídia e discurso, semiologia histórica,
produzidos nesse aparato tecnológico parecem
dentre outros.
não ter limites. Um dos recursos virtuais que

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possibilitam e potencializam esses efeitos são as esteira dos estudos de Belting3 (2002)- “toda
fotomontagens. imagem se inscreve em uma cultura visual, e
esta cultura supõe a existência junto ao
Enquanto no jornalismo essa prática é
indivíduo de uma memória visual, de uma
proibida, causando perda de credibilidade em
memória das imagens onde toda imagem tem
relação às notícias veiculadas, nas redes sociais
um eco”. A noção de intericonicidade supõe
tem se tornado cada vez mais recorrente tal
considerar que “não existe imagem que não nos
‘manipulação’ de imagens. Segundo a fotógrafa
faça ressurgir outras imagens”.
Grete Stern (2009), em seu texto Anotações
sobre fotomontagem, uma definição Vejamos abaixo duas fotomontagens
aproximada para fotomontagem seria “a união que circularam em blogs4e no Facebook5 no
de diferentes fotografias já existentes, ou a período pré-eleitoral da referida eleição:
serem tiradas com esse fim, para criar com elas
uma nova composição fotográfica”. Apesar de
essa prática ser considerada tão antiga quanto a
própria fotografia, é com o avanço das
ferramentas cibernéticas que seu uso é
acentuado.
Uma característica recorrente das
fotomontagens que circulam nas redes sociais e Na primeira fotomontagem, referente a
nos blogs é a apresentação de dizeres breves Aécio Neves, o enunciado verbal “Corrida
associados a imagens que circulam Presidencial, Aécio sobe 4 pontos...no
aparentemente sem sujeito, corroborando as bafômetro” é acompanhado por uma imagem
características de uma língua de vento do candidato, cuja expressão facial assemelha-
(flexíveis, fluidas, efêmeras, de difícil se a de um indivíduo que está alcoolizado, dado
apreensão). Observamos nesse espaço algo ao arqueamento das sobrancelhas, e o olhar
semelhante ao que Pêcheux denominava como baixo e sem foco, acompanhado do gesto
ça circule (isso circula), em Materialités
discursives, já em 1981, produzindo efeitos de
que “qualquer coisa” circula ampla e
massivamente nos meios de comunicação. No 3
BELTING, H. Pour une anthropologie des
entanto, ele ressalta que “as circulações images. Paris: Gallimard, 2002.
discursivas nunca são aleatórias, o qualquer 4
Disponível em
coisa nunca é qualquer coisa”. As imagens,
portanto, devem ser analisadas considerando a <http://camociminformados.blogspot.com.br/2014/07/o-
memória, suas condições de produção, sua legado-perverso-de-aecio-neves.html>. Acesso em: 26
historicidade. Assim como o discurso verbal é maio 2015
constituído por memórias, um “sempre-já” do
discurso, segundo Courtine (2013, p. 43) - na 5
Disponível em :
http://www.facebook.com/MovimentoBrasilConsciente?f
ref=ts. Acesso em: 26 maio 2015.

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218
conhecido popularmente como Hang Loose. Ao álcool, mesmo em pequenas quantidades,
retomar um gesto, utilizado tipicamente por diminui a coordenação motora e os reflexos”6.
jovens, e que se convencionou significar a Há um imaginário de que o homem bêbado não
expressão de alguém que está calmo, feliz, e tem valor, não é digno de crença, não cuida de
tem controle sobre determinada situação, si, distanciando-se da imagem do responsável
acentua-se ainda mais a produção dos efeitos de pai de família.
agressividade, visto que o enunciado emergente Veiculou-se, em alguns sites, notícias
contraria o imaginário que se tem sobre a sobre o envolvimento de Aécio com bebidas e
conduta de um candidato à Presidência da drogas ilícitas, como mostra o exemplo 7 abaixo:
República.
Com relação ao enunciado verbal,
contrapõem-se a ideia de avanço nas pesquisas
referentes à corrida presidencial, e o avanço nas
medidas do bafômetro, ocasionado pelo
aumento da ingestão de bebidas alcoólicas.
Fonte: G1, 17 abr 2011
É importante salientar que os sentidos,
O enunciado “[...] sobe 4 pontos...no
neste caso, só se completam na interseção entre
bafômetro” relaciona-se a outros enunciados
texto verbal e a imagem, construindo um
que atribuíram ao candidato Aécio a utilização
enunciado sincrético (multilinguístico).
indevida de bebidas alcoólicas e o desrespeito
Constroem-se imagens de um candidato às leis de trânsito.
que não respeita leis, atribuindo o seu avanço,
Sabe-se que um dos objetivos da Lei
não à sua competência enquanto candidato, mas
Seca, promulgada em 2008, foi a redução dos
à imagem de alguém que avança os níveis do
acidentes provocados por motoristas
bafômetro, em decorrência da ingestão do
embriagados no Brasil. Diversas operações
álcool. A emergência de tais enunciados retoma
foram e estão sendo realizadas a fim de garantir
memórias de saberes que associam
a segurança no trânsito. Dada a atual
negativamente a imagem do homem público e
conjuntura e os vários discursos que circulam
ingestão de bebida alcoólica, como ocorreu
na sociedade a esse respeito, ao vincular a
com os ex-presidentes Jânio Quadros e Luís
imagem de um homem político ao desrespeito
Inácio Lula da Silva.
da referida lei, constroem efeitos de
Tais memórias resgatam saberes que
estão dentro do discurso da saúde, higiene, da
relação entre homem público e privado, da 6
Disponível em :
confiança, do homem de família. No discurso da <http://www2.unifesp.br/dpsicobio/cebrid/folhetos/alcoo
saúde, por exemplo, encontramos a emergência l_.htm>. Acesso em: 31 maio 2015.
de enunciados que corroboram efeitos 7
Disponível em: <http://g1.globo.com/rio-de-
negativos da bebida alcoólica e da diminuição janeiro/noticia/2011/04/aecio-neves-tem-habilitacao-
do autocontrole sobre o indivíduo que a ingere, apreendida-em-blitz-da-lei-seca-no-rio.html>. Acesso
como mostrado no exemplo: “A ingestão de em: 26 maio 2015.

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219
agressividade, uma vez que o mostra como imagem não vem só. Outros enunciados verbais
alguém que infringe leis. Vemos, com isso, que circundam o discurso imagético, dentre eles:
o efeito de agressividade produzido neste “Dona de casa, cozinheira e cuida do
enunciado é alimentado por um conjunto de jardim...só não cuida do país!”, “É mentira do
dispositivos complexos constituídos por outros PT”, “Na propaganda eleitoral, quer passar a
saberes, outras imagens, outras memórias. imagem de dona de casa que cozinha, lava e
Na fotomontagem referente à Dilma, a passa...tudo pra enganar você”.
candidata aparece vestida com um avental, A imagem da “mulher polvo” retomada
detentora de seis braços, cada qual segurando nesse enunciado, assim como enunciados
um utensílio, como pincel, martelo, esponja de provenientes do discurso publicitário, intensifica
aço, etc. O discurso imagético dialoga com os efeitos de agressividade, e a associação da
outros discursos sobre a mulher, como por imagem de Dilma como um produto a ser
exemplo: “A mulher consegue desempenhar vendido. A supervalorização de suas habilidades
várias tarefas ao mesmo tempo”, “a mulher em desempenhar várias tarefas ao mesmo
deve ser dona de casa”. Além da memória tempo, é desconstruída pelo discurso verbal.
discursiva, há também um já-dito icônico. A
figura de Dilma com vários braços retoma Na fotomontagem de Dilma, também
outras imagens, como a “mulher polvo”, capaz emergem enunciados do campo doméstico
de desempenhar multi-tarefas: (cozinha, lava e passa) – um discurso que se
atribui à mulher -, construindo imagens de uma
candidata “mentirosa”, a qual tentaria mostrar
aos seus eleitores que é também uma dona de
casa, no entanto, sua única ação seria a de
enganar, fingir.
A afirmação “É mentira do PT”,
acusação dirigida diretamente ao partido da
candidata, colabora para a construção de um
efeito de agressividade que desliza da candidata
A segunda imagem diz respeito a um ao partido e vice-versa.
anúncio publicitário de 1965 da Hysil que
apresentava o seu conjunto de cozinha como Uma estratégia semelhante entre os
essencial, econômico, atrativo, eficiente, dizeres que compõe as fotomontagens é a
moderno, prático, agradável e útil, utilização dos três pontos seguidos de sentenças
apresentando, portanto, enunciados do campo acusatórias. Tanto em “Corrida presidencial,
doméstico. Aécio sobe 4 pontos”, como “Dona de casa,
cozinheira e cuida do jardim”, constroem
Ao reatualizar as características de imagens positivas das ações dos candidatos. No
“mulher polvo” constroem-se imagens de uma entanto, há uma quebra da expectativa na
candidata capaz de desempenhar várias continuação das frases, visto que se constroem
atividades ao mesmo tempo. No entanto a efeitos de que Aécio avançaria no bafômetro, e
Dilma não seria capaz de cuidar do país.

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220
programada. A temática que relaciona Aécio ao
desrespeito da Lei Seca, e Dilma à ação de
“Corrida presidencial, Aécio sobe 4
mentir aparece também nos sites oficiais dos
pontos” ... “no bafômetro”
candidatos, porém de forma mais estratégica.
“Dona de casa, cozinheira e cuida do Vejamos os exemplos:
jardim” ... “só não cuida do país”
Os enunciados analisados produzem
efeitos de agressividade por meio de afirmações
acusatórias dirigidas diretamente aos candidatos
– “É mentira do PT”, Aécio sobre 4 pontos...no
bafômetro”, da ironia – que relaciona a
pontuação nas pesquisas (que não aumentava)
com os pontos na carteira de habilitação e no
bafômetro (que apresentavam avanço) - , por
meio da seleção temática (Ex. apreensão da
habilitação do candidato ao se recusar a fazer o www.dilma.com.br
teste do bafômetro), escolhas lexicais, e
imagéticas as quais retomam outros saberes e
acentuam os efeitos do discurso dito ácido.
Sites oficiais
No espaço “cibernético”, por exemplo,
coexistem sites que funcionam como as redes
sociais, e outros que são institucionais,
“oficiais”, seguindo os modelos dos veículos
www.aecioneves.com.br
midiáticos. Um dos rituais que caracterizam
estes últimos é a possibilidade de se enunciar a Na primeira imagem, veiculada no site
partir de um lugar “oficial”, o que apresenta de campanha da candidata Dilma Rousseff, a
mais restrições. Tanto as mensagens dos temática sobre a apreensão da carteira de
moderadores desses sites, como as mensagens habilitação do candidato tucano e sua recusa a
enviadas pelos eleitores para uma possível fazer o teste do bafômetro numa operação da
exibição, sofrem alguns tipos de coerções. Lei Seca em 2011, aparece novamente, por
Afinal, ocupar historicamente um lugar, nos meio da apresentação de duas fotos sobrepostas
permite dizer algumas coisas, e não outras, uma em um fundo azul, as quais colaboram para a
vez que há regras determinadas por esses construção de efeitos de verdade. A primeira
lugares, os quais nos impõem restrições que imagem refere-se a uma notícia de junho de
também estão intrinsecamente relacionadas ao 2009, na qual Aécio participa de uma campanha
público a quem são dirigidos os discursos. educativa sobre os perigos de dirigir sob efeito
de bebidas alcoólicas. Em sequência, a segunda
Nos sites oficiais observamos
imagem remete a notícia de Aécio quando teve
características de uma agressividade
sua habilitação apreendida.

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221
O provérbio “Faça o que eu digo, não
faça o que eu faço”, ao ser atualizado, produz
efeitos de um candidato que não apresenta
coerência entre o agir e o dizer. O enunciado
composto pelo provérbio destacado pela cor
amarela, as duas fotos, e a imagem do rosto de
Aécio posicionado à direita constroem efeitos
de agressividade, sobretudo, no que diz respeito
à temática.
No site do candidato Aécio, por sua
vez, cria-se uma seção denominada
Dilmentirômetro, representada pela segunda A rememoração da personagem da
imagem. O Dilmentirômetro corresponde a uma literatura infantil produz efeitos de uma
versão de um espaço denominado “Combata o candidata mentirosa. Assim como na
boato” e “Compare as campanhas”, recorrente fotomontagem veiculada em blogs, o enunciado
nos sites de campanha oficiais de 2010 e 2012. que emerge no site oficial também associa a
O neologismo que dá nome ao espaço – candidata Dilma à ação de mentir, porém o faz
(Dilmentirômetro) – juntamente a afirmações de um modo mais estratégico, por meio da
acusatórias e a uma caricatura de Dilma, produz criação de uma seção exclusiva que permite a
imagens de uma candidata mentirosa e participação dos eleitores, uma vez que podem
corrobora os efeitos de um discurso compartilhar as “mentiras”.
desrespeitoso.
A ação que desvenda as mentiras de
Courtine (2005), considerando o caráter Pinóquio se relaciona ao ditado popular
icônico e discursivo da imagem, afirma que “mentira tem pernas curtas”, o qual também é
toda imagem se inscreve em uma cultura visual, (re)atualizado neste enunciado. Com isso,
e essa cultura supõe a existência para o sujeito constatamos algumas características do
de uma memória visual, uma memória das enunciado apontadas por Foucault (2004),
imagens. Segundo o teórico, toda imagem tem dentre elas, o fato de o enunciado ter sempre
um eco. “margens povoadas de outros enunciados” e
No exemplo do material observado nos que “não há enunciado que, de alguma forma
sites, verificamos alguns indícios que remetem a ou de outra, não reatualize outros enunciados”.
sentidos e memórias construídas historicamente Logo abaixo à imagem de Dilma e a
em nossa cultura. O nariz saliente na caricatura definição do que seria a seção Dilmentirômetro,
de Dilma retoma um já-dito imagético, exibe-se o seguinte enunciado: “As mentiras do
evocando uma memória da história de PT não tem limites, mas têm as pernas curtas”.
Pinóquio, clássico da literatura infantil que A retomada do provérbio, assim como da
conta a história de um menino de madeira cujo imagem do nariz saliente, evoca outros
nariz crescia a cada mentira contada por ele. discursos, referentes aos saberes e memórias
acerca do político mentiroso.Observamos que

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222
os efeitos de agressividade se materializam, historicamente determinados que os permitem
sobretudo, nos elementos do corpo (Nariz, dizer algumas coisas e não outras, visto que as
pernas) desproporcionais, os quais regras determinadas por esses lugares impõe
representariam as cristalizações das mentiras, restrições que também estão ligadas ao público
construindo efeitos de que estas sempre acabam a quem esses discursos são dirigidos. Com isso,
sendo descobertas. verificamos nos debates uma agressividade mais
controlada e vigiada, dado o imaginário
Tanto a imagem de Aécio, como de
construído historicamente sobre a posição
Dilma retomam ditos populares – “Faça o que
sujeito ‘candidato à presidência da República’.
eu digo, não faça o que eu faço” e “Mentira tem
pernas curtas” - e ao ressignificá-los constroem Com relação ao sujeito, é importante
efeitos de agressividade. destacar que Foucault (1997) o compreende
como descentralizado, historicamente
Debate
construído, o qual se constitui pelo saber e pelo
Segundo Desmarchelier (2003), os poder. Em “Arqueologia do Saber”, o autor
debates políticos são, com frequência, lugares entende que o sujeito se encontra disperso nos
de expressão de uma violência que se dá por “(...) diversos status, nos diversos lugares, nas
meio de palavras. O autor reitera que apesar da diversas posições que o sujeito pode ocupar ou
recorrência em se atribuir à palavra ‘violência’ à receber quando exerce um discurso, na
ação física, a mesma ocorre também por meio descontinuidade dos planos de onde fala”
do discurso. O debate político na TV é um (FOUCAULT, 1987, p. 61). Observa-se, com
lugar que ‘demanda’ a agressividade, uma vez isso, que o sujeito é constituído por meio das
que os candidatos estão frente a frente e em posições sócio históricas que ocupa. Para
posição de confronto. Foucault (1987, p. 59) “as posições de sujeito
Os debates eleitorais televisivos se definem igualmente pela situação que lhe é
brasileiros, assim como as redes sociais e sites, possível ocupar em relação aos diversos
obedecem a certos rituais. Em todos os debates, domínios ou grupos de objetos”, afinal posição-
por exemplo, existe a figura do mediador e de, sujeito não existe anteriormente ao discurso,
no mínimo, dois participantes, o que possibilita mas se constrói, e é apreendida por meio dele.
o confronto e apresentação de ideias entre No debate veiculado pela rede
candidatos a um determinado cargo político. Bandeirante, no dia 14 de outubro de 2014, há
Determina-se a duração do debate, a ordem de atenuações dos efeitos de agressividade nos
intervenção, o número de participantes. Os dizeres de Aécio Neves e Dilma Rousseff.
debates são realizados geralmente nos estúdios Enquanto nas fotomontagens emergem
da emissora, apresentando a seguinte disposição enunciados como: “É mentira do PT”, e se
espacial: o mediador ao centro do palco e os constitui como uma afirmação acusatória e
candidatos em pé ficam nas laterais atrás de direta, nos debates encontramos uma atenuação
suas “bancadas”. de tais efeitos, por exemplo, nos trechos da fala
Em contraposição aos discursos de Aécio: “Não é verdade, candidata. A senhora
difundidos nas redes sociais e blogs, nos falta com a verdade”. (15:20 – 15:23), “Aliás,
debates os sujeitos ocupam lugares não falar a verdade se tornou uma tônica da

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223
sua campanha desde o primeiro turno.(11:10 – ambos os candidatos: Dilma comumente
11:19). associada à imagem de “mulher mentirosa”, e
Aécio, ao “homem irresponsável”.
“Faltar com a verdade”, “Não falar a
verdade” produzem efeitos de sentido mais Nas fotomontagens que circularam nas
polidos em comparação ao enunciado “Você redes sociais e blogs, bem com nas imagens
está mentindo” ou “É mentira do PT”. veiculadas nos sites oficiais, os efeitos de
agressividade se materializam sobretudo em
Tais formas de polidez atenuam a
determinadas partes do corpo (nariz, pernas,
agressividade quando ela, ainda sim, está
etc.). Segundo Coulomb-Gully (2003), houve
presente e marcada.
um momento em que a imposição da escrita
Vejamos um trecho da fala da candidata como principal vetor de informação
Dilma: “Candidato, eu acho que quem faz marginalizou o papel do corpo na comunicação.
ataques cruéis é o senhor, e acho que o senhor No entanto, com o advento da televisão e, mais
distorce todos os fatos e realidades.” (13:15 – recentemente, da internet, o corpo passa a ser o
13:24). centro do processo de significação. O corpo do
A utilização de verbos modais, como no candidato político passa a ser alvo de ataques,
exemplo – “acho que”, constituem marcas que constituindo um lugar de materialização da
o sujeito deixa em seu discurso e constroem agressividade.
efeitos de atenuação da agressividade. As redes sociais e blogs possibilitam a
Enquanto Aécio afirma “A senhora falta com a emergência de discursos que produzem efeitos
verdade”, Dilma diz “acho que o senhor mais agressivos, dada a possibilidade da
distorce todos os fatos e realidades”. O circulação de dizeres breves aparentemente sem
primeiro enunciado cria efeitos de certeza, ao sujeito e do imaginário construído acerca destes
passo que o segundo apresenta dúvidas e suportes: “qualquer coisa” circula ampla e
marcas do grau de comprometimento do sujeito massivamente neste meio. É justamente neste
com aquilo que está enunciando. Ao dizer aparato tecnológico em que aparecem com
“acho que”, o sujeito estaria se frequência as fotomontagens, as quais tornam
responsabilizando menos pelo seu discurso, possível a modificação dos corpos dos
indicando uma baixa adesão ao conteúdo candidatos por meio de técnicas de multimídia.
verbalizado, e diminuindo, com isso, efeitos de Enquanto nas redes sociais e blogs operam-se
agressividade. alterações em recortes de fotos dos candidatos,
3. Considerações finais o que ocorre nos sites é a apresentação de
caricaturas dos mesmos.
A partir das análises dos discursos que
circularam nas redes sociais, blogs, sites oficiais Notamos nestes três suportes a
e debates, constatamos que os efeitos de apresentação de afirmações acusatórias
agressividade apresentam gradações e são associados a imagens que corroboram efeitos de
produzidos de modos distintos em cada agressividade. Entretanto, nos sites há uma
suporte. Além das diferenças, observamos uma agressividade mais estratégica.
regularidade na construção de imagens de

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224
Milanez e Carlos Piovezani. São Carlos:
Nos debates a agressividade passa a ser
Claraluz, 2006.
vigiada, seus efeitos são mais contidos, em
decorrência da posição ocupada pelos sujeitos ______. (1981). Análise do discurso político: o
enunciadores, os quais enunciam a partir de um discurso comunista endereçado aos cristãos.
lugar oficial, o que os permitem dizer algumas São Carlos: EdUFSCar, 2009.
coisas, silenciando outras. Enquanto na internet ______. Déchiffrerlecorps. Penseravec
apresentam-se afirmações acusatórias e a Foucault. Paris: EditionsJérômeMillon, 2011.
possibilidade de exibição de fotos e
fotomontagens que intensificam os efeitos de ______. Discurso e imagens: para uma
um discurso ácido, nos debates ocorre uma arqueologia do imaginário. In: PIOVEZANI,
atenuação de tais efeitos, por meio da utilização C; CURCINO, L; SARGENTINI, V. Discurso,
de verbos modalizadores, e da emergência semiologia e história. São Carlos: Claraluz,
indireta de temáticas “agressivas”. 2011.

Constatamos que os efeitos de DESMARCHELIER, D. Les mots de la


agressividade produzidos nos enunciados violence, la violence des mots dans le discours
analisados são alimentados por um conjunto de politique français contemporain. In:
dispositivos complexos constituídos por outros Bonnafous, Simone, Pierre Chiron, Dominique
saberes, outras imagens, outras memórias, e os Ducard& Carlos Lévy. Argumentation et
mesmos apresentam gradações em decorrência discours politique. Antiquité grecque et latine,
das condições de emergência e dos rituais que Révolution française, Monde contemporain
os permeiam e os constituem. (Rennes : PUR). 2003. p.225-234.
FOUCAULT, M. A ordem do Discurso. São
Paulo, SP: Loyola, 1996.
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espetáculo político. In: GREGOLIN, Maria do CONEIN, Bernard; COURTINE, Jean Jacques;
Rosário (Org.). Discurso e mídia: a cultura do GADET, Françoise; MARANDIN, Jean Marie;
espetáculo. São Carlos: Claraluz, 2003. p. 21- PECHÊUX, Michel (eds.). Matérialités
34. discursives. Lille, Presses Universitaires de
______. Metamorfoses do discurso político: Lille, 1981 [1980].
derivas da fala pública. Tradutores. Nilton

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225
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docilização do corpo na campanha eleitoral de
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Universidade Estadual de Maringá, Maringá.
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In: MUSEU LASAR SEGALL/IPHAN/MinC.
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2009.

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226
DIFERENTES MATERIALIDADES DISCURSIVAS: O OLHAR
SOBRE TEXTOS MIDIÁTICOS

Raquel da Rocha CONTI


Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
raaquelconti@gmail.com

Resumo: Considerando as transformações que o objeto da Análise do Discurso passou,


nota-se a relevância de voltar à atenção para a incorporação de novas materialidades
que ampliam a noção de discurso e de práticas discursivas inscritas numa historicidade.
Dessa forma, este trabalho tem por objetivo analisar como a heterogeneidade da
materialidade discursiva reflete em práticas discursivas que são construídas no âmbito de
textos midiáticos, especificamente anúncios publicitários. Para tanto, serão abordadas as
noções de sujeito, enunciado e formação discursiva, na perspectiva da AD de linha
francesa, e, a partir disso, serão considerados o anúncio publicitário das cervejas
Devassa e Antarctica, da lingerie Duloren, dos motéis Savana e Lemon. Notou-se que há
confrontos de FDs que estão atravessadas pela materialidade histórica/discursiva.
Palavras-chave: análise do discurso; materialidades discursivas; textos midiáticos.

discursivas no âmbito de textos midiáticos,


Introdução
especificamente os anúncios publicitários.
Ao refletir sobre o campo de estudos da
Para tanto, será explicitado, de forma
Análise do Discurso no Brasil, é inevitável
breve, o percurso teórico traçado por Pêcheux
voltar à atenção para a multiplicidade de
acerca do objeto de estudo da AD, tomando
discussões que foram construídas e
como base o texto de Pêcheux ([1983] 1997b)
reformuladas no que se refere ao seu objeto de
A Análise do Discurso: três épocas, em que o
análise, o discurso. Assim, a AD, sob o
autor faz uma síntese da AD e retoma alguns
horizonte dos primeiros escritos de seu
conceitos fundamentais para o
preconizador Michel Pêcheux até a década de
desenvolvimento desta disciplina. Depois de
1980, passa por diversos embates teóricos, o
passar por este percurso, serão considerados
que traz para os analistas contemporâneos um
alguns conceitos sobre a noção de sujeito,
novo olhar/redefinição para o seu objeto: o
enunciado e formação discursiva para, então,
discurso atravessado/entrecruzado por
partir para a análise dos anúncios publicitários
diferentes materialidades.
das cervejas Devassa e Antarctica, da lingerie
Nesse sentido, este trabalho tem por Duloren e dos motéis Savana e Lemon, para
objetivo analisar como a heterogeneidade aprofundar a reflexão das diferentes
constitutiva reflete em diferentes práticas materialidades discursivas que estão

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227
imbricadas neste discurso publicitário, tendo deslocamento desse objeto de estudo (“corpora
como principal articuladora do sentido a figura discursivo”) e ultrapassa a justaposição da fase
da mulher. anterior produzindo discursos menos
estabilizados.
1. Um breve percurso sobre as reflexões
teóricas acerca das diferentes materialidades A AD-2, diferentemente da AD-1, mas
também problemática, foi a fase em que houve
Devido à repercussão das discussões
dúvidas, incertezas e desconstruções de
feitas sobre a concepção da Análise do
conceitos. Então, a questão que se coloca neste
Discurso Francesa entre as décadas de 1960 e
período, é que novas discussões se acentuavam
1980, pode-se afirmar, atualmente, que essas
em torno da Linguística, ao mesmo tempo em
reflexões, principalmente dos escritos de
que ocorriam revoluções na ideologia francesa.
Michel Pêcheux em A Análise Automática do
Pêcheux afirma que o “esgotamento” do
Discurso e as formulações de Michel Foucault
estruturalismo acarretou na reconfiguração de
em A Arqueologia do Saber, contribuíram
seu dispositivo, assim, na AD-2, o seu objeto
significativamente na compreensão de como
de estudo torna-se “as relações entre as
tratar um objeto de estudo complexo
“máquinas” discursivas estruturais”
(discursivo e heterogêneo) que está presente no
(PÊCHEUX [1983] 1997b, p. 313-314) e a
campo da língua e no campo da sociedade
noção de “máquina” começa a explodir. Nessa
apreendida pela história.
perspectiva, desencadeia o conceito de
Na primeira fase da AD, nos anos 1960, formação discursiva (FD), tomado como
sobretudo em 1969, há fortes ligações com o empréstimo de Foucault, em sua Arqueologia
estruturalismo de Saussure. Pêcheux (cf. do Saber (2008): “é um conjunto de regras
PÊCHEUX, 1997a, p. 62) já questionava esse anônimas, históricas, sempre determinadas no
modo estruturalista de pensar a língua como tempo e no espaço [...]” (cf. FOUCAULT,
um sistema, pois, assim, ela deixaria de ser 2008, p. 133).
compreendida em função de exprimir sentido.
Portanto, a introdução dos fundamentos
Dessa forma, com forte influência dessa teoria,
de uma FD será fundamental para se afastar do
os linguistas discutem sobre a exploração
conceito de uma “máquina” discursiva fechada
metodológica de uma produção do corpus
sobre si mesma e homogênea. Desse modo,
discursivo dominada por uma “maquinaria
percebe-se que nessa segunda fase, há um
discursivo-estrutural” (PÊCHEUX [1983]
entrelaçamento de discursos, que foi
1997b, p. 311). Tem-se, então, a noção desta
denominado interdiscurso que, segundo
“máquina discursiva”: [...] uma máquina
Pêcheux (cf. PÊCHEUX [1983] 1997b, p. 314),
autodeterminada e fechada sobre si mesma [...]
foi usado para designar o exterior de uma FD,
(PÊCHEUX [1983] 1997b, p. 311).
que é “invadida” por outras FDs e outros
Em consequência de críticas de elementos que foram construídos e
linguistas e pesquisadores, essa primeira fase reformulados no meio socio-histórico.
impulsionou o deslocamento teórico que
Apesar desta nova concepção, da
resultou na segunda fase da AD. Esta, por sua
introdução destes termos, que foram bastante
vez, aparece marcada também pelo dispositivo
relevantes, o sujeito do discurso continua sendo
“máquina discursiva”, entretanto com a
assujeitado, como na AD-1, pois é “concebido
amplitude desse conceito. A AD-2 faz o
como puro efeito de assujeitamento à

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228
maquinaria da FD com a qual ele se identifica” mais separar linguagem e imagem
(PÊCHEUX [1983] 1997b, p. 314). Assim, (COURTINE, 2006, p. 57).
enquanto na AD-1 o sujeito tem a ilusão de que
tem o domínio do seu discurso, sendo ele a sua Nessa perspectiva, as imagens
própria fonte, na AD-2, o sujeito ainda ganharam um papel relevante na análise
continua iludido, mas com a diferença de que discursiva. O texto homogêneo já não era
há o assujeitamento desse sujeito, já que suficiente, era preciso algo a mais, algo que
determina o que pode e deve ser dito, a partir ficasse na memória social, pois, segundo
do seu meio social. Davallon “[...] a imagem representa a
Com isso, a problemática explicitada na realidade, certamente; mas ela pode também
primeira e segunda fase da AD impulsionou conservar a força das relações sociais [...]”
para a terceira fase (AD-3) com a (DAVALLON, 1999, p. 27). Com isso, a
desconstrução da “máquina” discursiva. Nesta sociedade acompanha o desenvolvimento
fase, Pêcheux reconhece que “o procedimento crescente da tecnologia e da informação, no
da AD por etapas, com ordem fixa, explode qual diversos textos sincréticos, multimodais,
definitivamente” (PÊCHEUX [1983] 1997b, p. circularam pela mídia. Portanto, novas
315). Então, em decorrência dessa materialidades discursivas não só no discurso
reconfiguração do campo discursivo, surge político, mas também no discurso publicitário
uma nova concepção de objeto de análise – o foram inerentes para fazer os analistas de o
interdiscurso. Este objeto, por sua vez, tem seu discurso pensar sobre a incorporação de novas
caráter atravessado pela heterogeneidade discursividades para os estudos linguísticos.
enunciativa e desencadeou a ampliação de 2. Alguns conceitos: sujeito, enunciado,
sentidos para a análise de produções formação discursiva
discursivas, pois há, na AD-3, “o estudo da
construção dos objetos discursivos [...] e Foram vistos alguns conceitos ao
também dos “pontos de vista” e “lugares explicitar o percurso que a Análise do Discurso
enunciativos no fio intradiscursivo”” percorreu entre 1960 e 1980 até a
(PÊCHEUX [1983] 1997b, p. 316), fazendo contemporaneidade. Nesse percurso alguns
aparecer um discurso outro como constitutivo conceitos, como sujeito, enunciado e formação
do mesmo. discursiva foram citados ou feitos alguma
referência e, como pode ser observado,
Dessa forma, a década dos anos 1980 é passaram por mudanças. Nesta perspectiva, é
o momento de grandes transformações, relevante compreender, nesse tópico, a noção
sobretudo no discurso político, como afirma desses conceitos para a AD, pois será tomado
Courtine (2006): como embasamento teórico para a análise do
corpus.
[...] A transmissão da informação política,
atualmente dominada pelas mídias, se A noção de sujeito para AD, de acordo
apresenta como fenômeno total de com os escritos de Pêcheux (cf. PÊCHEUX
comunicação, representação extremamente [1983] 1997b, p. 311-319) como foi explicitado
complexa na qual os discursos estão a pouco, teve dois momentos: o da AD-1 e da
imbricados em práticas não-verbais, em que AD-2, como sujeito “assujeitado”, em que tem
o verbo não pode mais ser dissociado do a ilusão de que tem o domínio do próprio
corpo e do gesto, [...] em que não se pode

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229
discurso e pode controlar o que diz, mediante o relacioná-las com todo um campo adjacente”.
meio social em que se encontra; e tem-se o Nesse sentido, o enunciado existe dentro de um
sujeito da AD-3, que não foi citado contexto e necessita de elementos e regras para
anteriormente, mas que merece atenção, pois é que possa fazer sentido. Ainda nessa
o momento em que esse sujeito deixa de ser formulação, comungando com as ideias de
“assujeitado” e torna-se um sujeito que não é Foucault, Pêcheux reconhece que: “todo
mais centrado numa maquinaria discursiva. enunciado é intrinsecamente suscetível de
tornar-se outro” (PÊCHEUX, 2006, p. 53), o
Com isso, a partir da terceira fase da
que pode ser observado que o enunciado é
AD, a formação discursiva (FD) é atravessada
diferente e abre espaço para outras
por outras FDs, sendo, assim, heterogênea, e o
interpretações à medida que ele se deriva. É
interdiscurso, por sua vez, está presente em
nesta perspectiva, então, que a AD se preocupa
toda FD por haver o entrelaçamento de
e pretende trabalhar, notando o sentido que os
discursos, proveniente de diferentes contextos
enunciados podem admitir em diversas
históricos e sociais. Dessa forma, o sujeito
possibilidades de construção.
deixa de ser individualizado, para ser
socializado. Entretanto, deve ser feita a Com base na descrição de enunciado
observação em relação a este caráter do sujeito, proposta por Foucault, Courtine (cf.
pois, como explica Orlandi (cf. ORLANDI, COURTINE, 2009, p. 85) propõe a releitura da
2007, p. 48-49), ao mesmo tempo em que ele é definição de enunciado, acrescentando a
socializado, capaz de produzir sentidos, ele é rearticulação entre a materialidade da língua e
sujeito à língua e à história, uma vez que é materialidade do discurso. Nesse sentido,
afetado por elas para se constituir. Desta forma, Courtine (2009) mostra que o enunciado, além
o sujeito tem sua materialidade constituída na de estar ligado a um referencial e manter uma
língua e na história e assume determinadas relação determinada com o sujeito, tem
posições para se opor a determinadas situações, existência material e ocorre em um domínio
formular ideias, representar um papel na associado, em que consiste “[numa] rede de
sociedade, entre diversas outras atividades que formulações nas quais o enunciado se insere e
abrem espaço para vários sentidos que são forma elemento” (COURTINE, 2009, p. 89,
concretizados no enunciado. grifo do autor). Com isso, pode-se
compreender que o enunciado existe à medida
No que se refere ao enunciado, não há,
que se relaciona no discurso e na história,
para a AD, uma definição específica para o
através de uma série de formulações inscritas
conceito de enunciado. Entretanto, há algumas
em seu interior.
formulações, de acordo com Pêcheux e
Foucault, no qual suas ideias se aproximam, e a Quanto conceito de FD, Pêcheux (1997)
reiteração desse estudo, como será visto remete a formação discursiva como formação
adiante, é tomada com o trabalho de Courtine ideológica. Tomando-a, assim, numa
(2009). contradição do interior de fundamentos
marxistas/althusserianos, afirmando que: “[a]
Foucault, em seu livro A Arqueologia
formação discursiva aquilo que, numa
do Saber (cf. FOUCAULT, 2008, p. 110),
formação ideológica dada [...] determina o que
explica que a noção de enunciado vai além de
pode e deve ser dito [...]” (PÊCHEUX, 1997c,
uma sequência de frases ou proposições, pois
p. 160, grifo do autor). Desse modo, pode-se
não basta apenas pronunciá-las, mas “é preciso

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230
afirmar que através do discurso das classes, das modelo de persuasão para uma possível venda
posições ideológicas que os indivíduos do produto. Será analisado como a
carregam é possível estabelecer sentidos de heterogeneidade do enunciado reflete em
acordo com a FD em que se encontram. práticas discursivas/FDs que foram
convencionalizadas pela sociedade.
Entretanto, na medida em que a FD se
volta para si mesma, para se atravessar, temos Anúncio 1 - Cerveja Devassa
aí o efeito da exterioridade do ideológico-
discursivo (cf. PÊCHEUX, 1997c, p. 172).
Portanto, não basta ver a FD no exterior
ideológico, mas em “princípio de dispersão e
de repartição” (FOUCAULT, 2008, p. 122) em
uma dada inscrição enunciativa. Diante disto,
para Foucault, a FD está articulada a todo um
conjunto de conceitos foucaultianos (que ele
chamou de “regras de formação”), ressaltando
o caráter singular e específico de uma prática Nota-se que neste anúncio da cerveja
discursiva. Dessa forma, Foucault define a FD, Devassa há elementos no plano visual e no
chamando-a de “prática discursiva” e sendo o plano verbal e que ambos complementam-se. O
enunciado em destaque ao lado esquerdo “É
“conjunto de regras anônimas, históricas, pelo corpo que se reconhece a verdadeira
sempre determinadas no tempo e no espaço negra” está associado com a figura da mulher
[...] em uma dada época e para uma negra mostrando boa parte de seu corpo. Logo,
determinada área social, econômica, se olhar para a figura separadamente do
geográfica ou linguística, as condições de
enunciado, não seria possível compreender a
exercício da função enunciativa”
(FOUCAULT, 2008, p. 133). proposta ou vice-versa.
Percebe-se que apesar de ser um
Portanto, pode-se compreender que a anúncio de cerveja, a mulher ganha destaque,
FD inscreve-se em um campo enunciativo, pois está em primeiro plano. Entretanto, ao
determinado pelo tempo e pelo espaço, que é invés de aparecer como apreciadora do
capaz de ter irredutíveis interpretações e vários produto, como é visto quando é uma figura
sentidos, materializados através da língua e da masculina, a mulher negra representa o sabor
história. deste, mostrando, através do enunciado, que o
3. Textos midiáticos: analisando diferentes sabor é equivalente ou semelhante ao dela
materialidades (“Devassa negra, encorpada, estilo Dark Ale,
de alta fermentação cremosa e com aroma de
Sabe-se que com a explosão de malte torrado”). Além disso, nota-se que o
diferentes materialidades a partir dos anos enunciado tem cunho racista e erótico, pois se
1980, o discurso político, o jornalístico, refere à cor da mulher e ao seu biótipo,
sobretudo o publicitário, ganhou enorme ressaltando suas características na imagem
atenção. Nesta perspectiva, foram selecionados (cabelo black power, corpo escultural, cor) e
cinco anúncios publicitários impressos, em que utilizando a palavra “verdadeira negra”,
ambos possuem a figura feminina como deixando implícito que para a mulher ser

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231
reconhecida, ela precisa ter um corpo atraente, figura feminina representada pela atriz Juliana
caso contrário, não há interesse do público. Há, Paes, segurando o copo de cerveja e, no fundo,
também, a objetificação da figura da mulher está o enunciado: “BAR DA BOA”.
negra por ser comparada a um objeto (cerveja), Pode-se perceber que, assim como o
e a erotização dela, evidenciando partes íntimas anúncio anterior, a figura das mulheres
e envolvendo o público masculino pela sua associadas ao sabor e à qualidade da cerveja é
sensualidade. recorrente. Ocorre, neste caso, a ambiguidade
Desse modo, o anúncio deixa clara a de sentido no enunciado. Quem é a
materialização da figura feminina e traz à tona boa/gostosa/deliciosa? A cerveja ou a mulher?
os mitos e estereótipos de que a mulher negra é Ou as duas? Nota-se, ainda, que as
objeto sexual desde muitos anos, o que faz características físicas da atriz são ressaltadas
refletir sobre a memória social construída que pela cor azul, cor que também representa o
cruzam e constituem/forjam identidades. Além logotipo da Antarctica, e pela blusa decotada, o
disso, entrecruzam-se muitas práticas que atrai os olhares masculinos, grande público
discursivas apresentadas pela mídia brasileira consumidor.2 Por cima da sua roupa há o
que persuadem um público que já está avental bem justinho, o que remete ao
dessensibilizado. A noção de que a mulher imaginário da mulher como serviçal do
possui inferioridade ao homem, de que ela foi homem, trazendo a cerveja geladinha e gostosa,
feita para servi-lo e satisfazê-lo e que seu poder satisfazendo-o não apenas pela cerveja, mas
sobre ele está associado ao sexo são FDs por ser o padrão de mulher que muitos homens
convencionalizadas por uma sociedade gostariam de ter.
machista e reforçada por muitos anúncios Desta forma, as FDs que são
publicitários. Portanto, embora o anúncio seja
construídas no anúncio, põem-se em confronto,
de cerveja, o contexto construído pela mídia uma vez que o anúncio não apenas vende o
através da heterogeneidade discursiva põe em produto, mas a ideia de que a mulher também
confronto temas que permitem formulações, deve ser consumida, usada e provada. Assim,
reiterações e deslocamentos que se estendem a todos estes estereótipos ressaltam a
papéis sociais femininos e masculinos. inferioridade imposta durante tantos anos entre
Anúncio 2 – Cerveja Antarctica o homem e a mulher, sendo esta lembrada
apenas para os desejos sexuais e a satisfação de
serviços prestados ao homem.

Este outro anúncio é referente à cerveja acessar: http://top10mais.org/top-10-cervejas-mais-


Antarctica. 1 Nota-se que há a presença de uma vendidas-brasil/#comments.
2
Segundo a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF)
do IBGE, reportagem da Carolina Gonçalves. Ver:
1
Ocupa o 3° lugar entre as cervejas mais vendidas no http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2011-
Brasil. A cerveja Devassa é bem consumida também e 07-28/ibge-homens-bebem-cinco-vezes-mais-cerveja-do-
ocupa o 8° lugar. Para ver o ranking das outras cervejas, que-mulheres.

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232
Anúncio 3 – Lingerie Duloren
no campo do discurso, é o motivo das mídias
investirem veementemente numa política de
liberdade, modernidade e prazer. Isso chama a
atenção do público feminino, obviamente. Pois,
neste contexto, o anúncio traz a ilusão de que
ao adquirir a lingerie Duloren, a mulher terá
maior poder de sedução. Além disso, induz a
consumidora a valorizar suas fantasias sexuais,
como pode ser visto no enunciado utilizado
pela Duloren “Você não imagina do que uma
Duloren é capaz” e também na gestualidade da
mulher que está sendo representada –
Neste outro anúncio, campanha de nov. expressão facial com a boca entreaberta,
de 2012 da lingerie Duloren, nota-se que, posição em que está sentada na poltrona,
diferentemente dos anúncios anteriores, chamando mais atenção para o corpo seminu e
pretende-se apresentar outra perspectiva sobre para a lingerie Duloren e sandália, ambas de
a figura feminina. Com o intuito de vender a cor vermelha, em que destaca e ressalta as
marca da lingerie Duloren, foi utilizado o característica da figura feminina.
enunciado “Já curti e agora vou compartilhar”,
Entretanto, apesar da pretensão de
possivelmente comum por um público
desfazer os estereótipos da mulher submissa e
feminino moderno, conectado em redes sociais,
valorizar alguns aspectos da mulher do século
pois faz uso de palavras usadas neste meio
XXI, o apelo erótico, construído nessa
virtual. Além disso, traz a ideia de que essa
atmosfera discursiva através da exposição do
suposta relação entre o homem e a mulher foi
corpo do homem e da mulher, traz a
apenas uma diversão, algo passageiro e que
banalização do sexo e os reconfigura como
segue adiante, tal como pode ser visto na
objetos: o homem por ser dominado pela
associação feita entre o enunciado e a foto
mulher, sendo curtido (usado) e compartilhado
representada por uma mulher que veste a
(descartado)3 e a mulher, por sua vez, por
lingerie Duloren dispensando um homem que
expor seu corpo atraente ao público que a
se encontra despido.
observa vestir a lingerie Duloren.
Como materializado na história
Portanto, percebe-se que por intermédio
brasileira, o homem é quem sempre possuiu o
de práticas/formações discursivas atravessadas
poder de escolha e/ou de recusa, o que ficou
pelo contexto socio-histórico do tema discutido
convencionado pela sociedade que o homem é
e pelo caráter heterogêneo da materialidade do
quem tem autoridade sobre a família. A mídia
anúncio publicitário, foi possível identificar um
brasileira, por intermédio dessas FDs e
sujeito dividido ora pela ilusão de ter poder
compreendendo que muitas mulheres lutaram
sobre o outro, ora por ser objeto sexual, como
para ter voz, seus direitos civis e maior
liberdade no meio social em que vivem, põe em
evidência a mulher como protagonista da
situação, exercendo o controle sobre o 3
Os significados das palavras “curtir” e “compartilhar” é
personagem que foi, durante anos, o detentor de nossa adaptação de acordo com o contexto em que
do poder. Assim, esta transformação histórica está inserido no anúncio publicitário da marca Duloren.

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233
se
a

mulher pudesse vencer o homem apenas pelo que comanda a situação e ela, por sua vez, é a
sexo. passiva, submissa. Mais uma vez, vê-se, então
Anúncio 4 – Motel Savana o corpo atraente da mulher como símbolo de
desejo sexual e como convite para ser
usado/explorado.
Anúncio 5 – Motel Lemon

A escolha deste anúncio de motel,


juntamente com o próximo, foi motivada pela
curiosidade acerca do forte uso da figura Este outro anúncio, referente ao motel
feminina como “convite” para o homem. Lemon, situado em Recife-PE, aparece em
Mulheres também utilizam os serviços forma de outdoor e traz uma proposta ousada.
prestados pelo motel, e, ainda assim, há poucos Observa-se que, para chamar a atenção do
atrativos visuais para a sua persuasão, como, público masculino, o corpo da mulher é
por exemplo, a exposição do corpo masculino. representado pela maçã e ao lado há apenas o
Este anúncio se refere ao motel Savana, enunciado “Desfrute”, um verbo no imperativo,
localizado em Ribeirão Preto – SP. Nota-se que que provoca desejo no público masculino com
há um casal e ao lado há o enunciado: “Você a leitura conjunta do enunciado e a imagem.
não nasceu para comemorar a noite mais Nota-se, então, a associação da mulher,
importante da sua vida num lugar qualquer. com uma fruta, mas não qualquer fruta, mas
Comemore de corpo e alma. Núpcias. com a maçã, que virou símbolo do pecado
Espumante e café da manhã completo por cometido por Adão e Eva, embora as escrituras
nossa conta.”. O fundo escuro mostra as bíblicas não tenham definido qual fruto foi
características do motel e, em primeiro plano, o este. Com isto, foi criado o mito de que o
casal ganha destaque. O que chama a atenção, “fruto proibido” seria a maçã. Portanto, ela
entretanto, é o corpo da mulher quase despido, simboliza não só o pecado, mas a liberdade, a
apenas envolvido por um tecido branco, meio fuga de paradigmas, o conhecimento, a magia,
transparente e com a aparência de ser leve. E o o desejo, a sedução, a malícia e todos estes
homem, por sua vez, aparece vestido símbolos estão, neste anúncio, materializados
formalmente, de terno e gravata. Daí surge a no corpo da mulher. Deste modo, há a
pergunta: Por que apenas a mulher já está erotização da figura feminina, através da oferta
quase nua? Observa-se, então, que o anúncio, que é proposta. As formações discursivas que
de forma implícita, ressalta a FD que a mulher estão atravessadas neste anúncio publicitário
é um ser sensível, mais frágil do que o homem remetem à objetificação da mulher diante do
e, portanto, mais vulnerável. Ao ver o homem convite explícito a este homem, que obtém
ainda vestido, pode-se compreender também, poder sobre ela. Além disso, torna-se evidente
que foi ele quem a despiu e ao descobrir seu a ideia que fica no imaginário: a atividade de
corpo, exerce poder sobre ela, é o ser ativo, é o

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234
“comer” a fruta relacionada ao ato de “provar” discursos que estão na origem de certo
o corpo feminino, exposto ao prazer. número de atos novos de fala que os
4. Considerações finais retomam, os transformam ou falam deles,
ou seja, os que, indefinidamente, para além
Considerando as contribuições teóricas de sua formulação são ditos, permanecem
mencionadas neste trabalho, foi visto que ditos e estão ainda por dizer. (FOUCAULT,
houve mudanças relevantes quanto às 1999, p. 22, grifo do autor).
materialidades discursivas que ampliaram a
noção de discurso. Logo, é inevitável afirmar Logo, não se pode afirmar que há
que os estudos linguísticos referentes à análise leituras certas ou equivocadas a respeito do
do discurso possuem um objeto de natureza corpus analisado. O que deve ser posto em
semiológica que se constrói na historicidade da evidência é a relevância de olhar com mais
língua e é materializado através de práticas atenção para os processos discursivos que
discursivas atravessadas pelo contexto socio- apresentam diferentes materialidades, sem
histórico. deixar de abordar as condições históricas pelos
quais se fazem presentes na atualidade.
Para tanto, foram considerados cinco
anúncios publicitários, que são textos que Desse modo, pontua-se que as
circulam pela mídia e possuem forte poder de contribuições teóricas mencionadas aqui são o
persuasão por meio de uma materialidade impulso para que outros analistas do discurso
heterogênea, multimodal, que tenta possam dar continuidade, acrescentar, explorar
construir/forjar identidades através do esse campo, pois não se pode mais negar este
confronto de diferentes formações discursivas. discurso atravessado pela materialidade
Portanto, notou-se que estes anúncios heterogênea e apreendido na língua e na
representam o discurso atravessado pela história. Portanto, este trabalho está
historicidade, trazendo a figura da mulher contribuindo para ampliar o campo de estudos
como principal articuladora do sentido, nesta área, ressaltando a relevância de observar
apresentando e reforçando a construção do diferentes materialidades discursivas em textos
sujeito e de suas práticas discursivas por meio midiáticos que ampliam reflexões sobre
de uma materialidade heterogênea, que merece práticas discursivas inscritas numa
a atenção dos analistas do discurso. historicidade e estendidas para a
contemporaneidade.
Deve-se ressaltar que os textos
midiáticos possuem diversas interpretações,
pois, como foi mostrado, há diferentes FDs Referências
que, muitas vezes, são postas em confronto e
são construídas através de um contexto socio- ABELHA RAINHA COMUNICAÇÃO REAL.
histórico, convencionalizadas pela sociedade, Disponível em:
pois como afirma Foucault (1999): <http://www.abelharainha.com/clientes/savana-
motel/portfolio/impresso>. Acesso em 20 de
[...] há, muito regularmente nas sociedades, setembro de 2014.
uma espécie de nivelamento entre os
discursos: os discursos que “se dizem” no
COURTINE, J-J. Análise do discurso político:
correr dos dias e das trocas, e que passam o discurso comunista endereçado aos cristãos.
com o ato mesmo que os pronunciou; e os São Carlos: EdUFSCar, 2009.

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235
______. [1992] Uma genealogia da Análise do LUCAS, A. Top10mais.org. Blog. Disponível
Discurso. In: COURTINE, Jean-Jacques. em: <http://top10mais.org/top-10-cervejas-
Metamorfoses do discurso político: derivas da mais-vendidas-brasil/#comments>. Acesso em:
fala pública. Tradução de Carlos Piovezani e 05 de agosto de 2014.
Nilton Milanez. São Carlos: Claraluz, 2006, p. ORLANDI, E. P. Análise de Discurso:
37-57. princípios e procedimentos. Campinas, SP:
DA SILVA, H. F. Afrokut. Blog. Disponível Pontes, 2007.
em: PÊCHEUX, M. Análise Automática do
<http://negrosnegrascristaos.ning.com/profiles/
Discurso (AAD-69). In: GADET F.; HAK, T.
blogs/cerveja-devassa-tera-que-alterar- (Orgs.) Por uma Análise Automática do
propaganda-considerada-de-teor-r>. Acesso
Discurso: uma introdução à obra de Michel
em: 20 de junho de 2014. Pêcheux. Trad. de Eni P. Orlandi. Campinas:
DAVALLON, J. A imagem, uma arte de Unicamp, 1997a, p. 61-151.
memória? In: ACHARD, P. (org) Papel da ______. Análise do Discurso: três épocas
memória. Tradução de José Horta Nunes.
(1983). In: GADET F.; HAK, T. (Orgs.) Por
Campinas: Pontes, 1999, p. 23-37. uma Análise Automática do Discurso: uma
DIAS, K. Mundo das marcas. Blog. Disponível introdução à obra de Michel Pêcheux. Trad. de
em: Eni P. Orlandi. Campinas: Unicamp, 1997b, p.
<http://mundodasmarcas.blogspot.com.br/2006 311-318.
/06/antarctica-com-antarctica-mais- ______. Semântica e discurso: uma crítica à
gostoso.html>. Acesso em: 05 de agosto de
afirmação do óbvio. Trad. Eni P. Orlandi. 3. ed
2014. – Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1997c.
DULOREN. Disponível em: ______. [1938 – 1983]. O discurso: estrutura
<http://www.duloren.com.br/#!/campanhas/>. ou acontecimento. Tradução de Eni P.Orlandi –
Acesso em: 25 de junho de 2014. 4. ed. Campinas: Pontes, 2006.
FOUCAULT, M. A ordem do discurso. PORTAL NEURÔNIO. Disponível em:
Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. <http://portalneuronio.ne10.uol.com.br/noticia/
5. Ed - São Paulo: Edições Loyola, 1999. visualizar/741/a-ma%C3%A7%C3%A3-ganha-
______. A arqueologia do saber. Tradução de destaque-em-pe%C3%A7a-criada-pela-
Luiz Felipe Baeta Neves. 7. ed - Rio de italobianchicom-para-o-lemon-motel.html>.
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GONÇALVES, C. IBGE: homens bebem cinco
vezes mais cerveja do que as mulheres.
Disponível em:
<http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/notic
ia/2011-07-28/ibge-homens-bebem-cinco-
vezes-mais-cerveja-do-que-mulheres>. Acesso
em: 10 de junho de 2014.

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236
O CORPO COMO ACONTECIMENTO NA “MARCHA DAS
VADIAS”

Hilda Rodrigues da COSTA; Kátia Menezes de SOUZA


Universidade Federal de Goiás (UFG)
hildardacosta@gmail.com

Resumo: Há um poder que conduz o corpo na sociedade, um poder de discursos


institucionalizados, um poder, ou poderes, que estabelecem, por exemplo, de que o corpo
deve gerar vida, que o corpo deve ser cuidado, preservado, etc., impondo ao sujeito
determinados códigos de controle que permitem, ordenam e autorizam a maneira de
pensar e agir em sociedade. Posicionando-se contra esses discursos institucionalizados, a
Marcha das Vadias constitui-se como um dispositivo de poder e de subjetividade, pois o
corpo emerge como um objeto de contra conduta, ele milita em pró de uma causa, ele
contra ordena, produzindo um contra poder. Daí a necessidade de compreender como
este corpo é discursivizado em um contexto de luta na sociedade contemporânea, pois ele
é ao mesmo tempo um objeto simbólico e político. Sendo o discurso, como afirma
Foucault (2014, p. 110), “instrumento e efeito de poder”.
Palavras-Chave: corpo; marcha das vadias; discurso; poder, resistência.

vítimas de estupro, teriam provocado a


Introdução
violência por seu comportamento.
O movimento SlutWalk é que deu
A primeira “Marcha da Vadias” no
origem a “Marcha das Vadias” no Brasil, ele
Brasil ocorreu em São Paulo, em 4 de junho de
surgiu a partir de uma palestra na Universidade
2011, dois meses depois de Toronto, com
de Toronto, proferida por um oficial da polícia,
repercussão nas cidades de Recife, Belo
que orientou as mulheres “a não se vestirem
Horizonte, Brasília e Itabuna, no mesmo ano.
como vadias”, como uma medida de segurança
para evitar o estupro. A fala deste policial O movimento é constituído por
causou indignação e revolta nas mulheres feministas que lutam pela igualdade de gênero,
canadenses, que saíram as ruas de Toronto para mas principalmente, pela violência contra a
protestar no dia 3 de abril de 2011. mulher. Durante a marcha palavras de ordem
como “meu corpo, minhas regras”, “Eu não sou
Imediatamente este movimento
coisa, meu corpo me pertence”, enfatizam o
internacionalizou-se, com o objetivo de
protestar contra a crença de que as mulheres,

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237
direito das mulheres de ir e vir, o direito ao
Os discursos sobre o corpo na “Marcha
respeito e a igualdade.
das Vadias” é um objeto de contra conduta,
A “Marcha das Vadias” milita em prol pois eles produzem um poder, ou melhor, um
de uma causa, de uma injustiça, o discurso tem contra poder em seus enunciados. Portanto,
um cunho feminista e, enuncia-se, em alguns investigar o corpo como objeto de investimento
casos com o corpo nu. Com os seios à mostra, de sentidos faz-se necessário, pois conhecer a
o corpo promove sentidos que se deslocam história do corpo requer também uma
entre a sexualidade e a questão parental. problematização de sua existência e das
O corpo é suporte de denúncia, de discursividades que são formuladas a partir
militância e com ele se produz enunciados que dessa existência: o direito de falar sobre o
traduzem diferentes sentidos, fazendo emergir objeto “corpo”.
regimes de práticas, de condutas, bem como O corpo como acontecimento
diferentes efeitos de verdade no que diz
Seguindo a tradição filosófica
respeito “à busca de si” (MILANEZ, 2006, p.
cartesiana, até o século XIX, o corpo teve um
153).
papel secundário em nossa história. Somente
Nesse sentido, o corpo é objeto de com a virada do século é que “a relação entre o
investimento de sentido, ele é uma prática sujeito e o seu corpo começou a ser definida em
discursiva presente na contemporaneidade e, outros termos” (COURTINE, 2014, 7).
que por sua vez, constitui um dispositivo de
De acordo com Courtine (2014), o
poder e de subjetividade. Ele é o próprio
século XX é que inventou teoricamente o
acontecimento, ele é o viés e meio de
corpo. Esta teoria emergiu primeiramente com
imposições coletivas, de prisão e de liberdade.
Freud e os estudos da psicanálise. Depois da
Uma vez que o poder, segundo Souza fenomenologia ao existencialismo, com a
(2012, p. 47), “enquanto produz, organiza, e concepção elaborada por Maurice Merleau-
enquanto organiza, fala e se expressa como Ponty do corpo como “encarnação da
autoridade”, articulando com outros campos do consciência”. E posteriormente no campo da
saber que incidem sobre a vida dos indivíduos, antropologia, com Marcel Mauss.
criando regras, normatizando práticas, criando
Dessa forma, “o corpo foi ligado ao
um estado de direito.
inconsciente, amarrado ao sujeito e inserido nas
Para Foucault (2014, p. 100) “[...] o formas sociais da cultura” (COURTINE, 2014,
poder não é uma instituição nem uma estrutura, 8). Porém, ainda faltava um obstáculo a ser
não é uma certa potência de que alguns sejam transposto – a obsessão linguística do
dotados: é o nome dado a uma situação estruturalismo. Somente ao final da década de
estratégica complexa numa sociedade 1960 é que está visão estruturalista passa a
determinada”. Portanto, os discursos veiculam e mudar, com “a iniciativa de pensadores da
produzem poder, porém, da mesma forma o época, o corpo se pôs a desempenhar os
minam, onde há poder há resistência. primeiros papéis nos movimentos individualista
e igualitários de protesto contra o peso das

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238
hierarquias culturais, políticas e sociais,
Sohn (2014) fala sobre libertar os
herdadas do passado” (COURTINE, 2014, 8).
corpos e as sexualidades no princípio do século
Podemos citar como exemplo uma XX. Este processo passou ao mesmo tempo
passagem do livro História do Corpo, de Jean- “pela liberação da palavra e dos gestos, pela
Jacques Courtine (2008, p. 9), transgressão da moral conjugal tradicional,
chegando a suspensão dos tabus”. Porém, o
“Nosso corpo nos pertence!” – gritavam no direito ao prazer teve uma contrapartida – “a
começo dos anos 1970 as mulheres que
recusa das violências sexuais e de uma
protestavam contra as leis que proibiam
sexualidade sob coerção” (SOHN, 2014, p.
o aborto, pouco tempo antes que os
movimentos homossexuais retomassem o
132).
mesmo slogan. O discurso e as estruturas Emerge nesse momento histórico uma
estavam estreitamente ligados ao poder, ao mudança de hábitos e pensamentos que vão de
passo que o corpo estava do lado das encontro às leis de uma sociedade burguesa
categorias oprimidas e marginalizadas: as estática, indiferente aos acontecimentos. A
minorias de raça, de classe ou de gênero rejeição as violência sexuais torna-se crescente,
pensavam ter apenas o próprio corpo para
beneficiando principalmente os menores de
opor ao discurso do poder, à linguagem
idade. Mas, a questão sobre a repressão do
como instrumento para impor o silêncio aos
corpos. estupro volta ao primeiro plano, por meio do
debate.
Segundo o autor, o corpo foi investido Segundo Sohn (2014, p.154),
no contexto das lutas travadas pelos direitos
Durante todo o século XX, os magistrados
das minorias na década de 1970, colocando “o
se mostraram mais compreensivos para com
corpo no coração dos debates culturais”,
os estupradores que em relação às vítimas.
transformando sua “existência como objeto de Por muito tempo, com efeito, o estupro foi
pensamento” (COURTINE, 2014, p.9). Este desculpado, interpretado como uma clássica
corpo é portador de valores, portanto, ele é manifestação da masculinidade e as vítimas
lugar de poder. consideradas como tendo consentido ou
O corpo constitui um dispositivo de sendo responsáveis pelo desejo que
poder e subjetividade, impondo ao sujeito despertaram.
códigos de controle que permitem, ordenam e
autorizam a maneira de pensar e agir em Período este que perdurou até o final do
sociedade. século XX e que traz uma herança traumática
as mulheres de toda uma sociedade, tida ainda
O século XX foi marcado pela
como machista. Mesmo os corpos sendo
proliferação dos discursos sobre o corpo (sexo,
portadores de valores, lugares de poder.
sexo e sexualidade) e também pela intervenção
da medicina sobre o corpo sexuado, O discurso sobre o corpo: um
possibilitando progressos no campo científico. dispositivo de poder

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239
cadeias de variáveis que se destacam umas das
outras”. Produzindo regimes de luz, regimes de
enunciado. Esses regimes, por sua vez, “são
definíveis pelo visível e pelo enunciável, com
suas derivações, as suas transformações, as suas
mutações. E em cada dispositivo as linhas
atravessam limiares em função dos quais são
estéticas, científicas, políticas, etc”
(DELEUZE,1996, p. 1). Produzindo assim,
subjetividades que emergem dos poderes e dos
Marcha das Vadias – Goiânia, 2015 saberes de um dispositivo para transforma-se
em outro, sob outras formas que hão de nascer.
Na “Marcha das Vadias”, o discurso Uma vez que, cada dispositivo é uma
sobre o corpo impõe-se como um objeto de multiplicidade na qual os processos singulares,
contra conduta, está nu, ele milita, ele contra de unificação, de totalização, de verificação, de
ordena. Negando estatutos de poderes objetivação, de subjetivação compreendido na
institucionalizados que afirmam que “o corpo própria essência do todo, operam em um vir a
tem que dar a luz”, “o corpo deve ser ser.
produtivo”, “o corpo é divino”, “o corpo é
inviolável” e, posicionando-se contra estas Deleuze (1996, p. 4) afirma que
afirmações, ele também produz poder, um
contra poder nos enunciados. Pois, o discurso Pertencemos a dispositivos e neles agimos.
À novidade de um dispositivo em relação
está na ordem das leis.
aos que o precedem chamamos actualidade
Sabe-se que há um poder que conduz o do dispositivo. O novo é actual. O actual
corpo na sociedade, um poder de discursos não é o que somos, mas aquilo em que nos
institucionalizados, um poder, ou poderes, que vamos tornando, aquilo que somo em devir,
estabelecem, por exemplo, que o corpo deve que dizer, o Outro, o nosso devir-outro. É
gerar vida, que o corpo deve ser cuidado, necessário distinguir, em todo o dispositivo,
preservado, etc.e, quando se entra na ordem do o que somos (o que não seremos mais), e
aquilo que somo em devir: a parte da
discurso religioso, por exemplo, outros
história e a parte do actual. A história é o
sentidos, como os que vimos na passagem
arquivo, é o desenho do que somos e
bíblica: “O senhor é o que tira a vida e a dá, faz deixamos de ser, enquanto o actual é o
descer à sepultura e faz tornar a subir dela” esboço daquilo em que vamos nos tornando.
(1Sm: 2.6). Esses sentidos tomam voz, uma voz Sendo que a história e o arquivo são o que
que autoriza, e, com uma propriedade supra nos separa ainda de nós próprios, e o actual
individual interditam certas atitudes ou posições é esse Outro com o qual coincidimos desde
do sujeito, como a questão do aborto. já.
Segundo Deleuze (1996, p. 1), “saber,
poder e subjetividade, não possuem contornos Portanto, pouco a pouco vamos
definidos de uma vez por todas; são antes deixando de ser, produzindo novas
subjetivações, emergindo em novos enunciados,

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240
em novos campos de saber e poder na
actualidade. é sempre um acontecimento que nem a
língua nem o sentido podem esgota
Veyne (2014, p. 57) diz que “o inteiramente. Trata-se de um acontecimento
dispositivo mistura, portanto, vivamente, coisas estranho, por certo: inicialmente porque está
e deias ( entre as quais a de verdade), ligado, de um lado, a um gesto de escrita ou
representações, doutrinas, e até mesmo à articulação de uma palavra, mas, por
filosofias, com instituições, práticas sociais, outro lado, abre para si mesmo uma
econômicas. O discurso impregna tudo isso.” existência remanescente no campo de uma
Para o autor o “discurso não move a história, é memória, ou na maturidade dos
movido por ele com seu inseparável manuscritos, dos livros e de qualquer forma
dispositivo” (VEYNE, 2014, p. 59). de registro: em seguida, porque é único
como todo acontecimento, mas está aberto à
De acordo com Veyne (2014, p. 169), repetição, a transformação, a reativação;
finalmente, porque está ligado não apenas a
O dispositivo é menos o determinismo que situações que o provocam, e a
nos produz do que o obstáculo contra o qual consequências por ele ocasionadas, mas, ao
reagem ou não nosso pensamento e nossa mesmo tempo, e segundo uma modalidade
liberdade. Estes se ativam contra ele na inteiramente diferente, a enunciados que o
medida em que o próprio dispositivo é ativo; precedem e o seguem.
trata-se de um instrumento “que tem sua
eficácia, seus resultados, que produz algo na
sociedade, que está destinado a ter um
efeito”. Ele não se limita a informar o objeto
de conhecimento: age sobre os indivíduos e
a sociedade, e quem diz ação diz reação. O
discurso comanda, reprime, persuade,
organiza; ele é “o ponto de contato, de
atrito, eventualmente de conflito” entre as
regras e os indivíduos. Seus efeitos sobre o
conhecimento podem ser assim efeitos de Marcha das vadias – Goiânia/2015
poder. Não que os jogos de verdade, em
Como pode ser observado na imagem
certas épocas, entre as quais a nossa, podem
contrair relações com certos poderes. abaixo, os enunciados “Meu corpo, minhas
regras” e “Nosso corpo nos pertence” faz
emergir todo um campo de saber e poder sobre
Segundo Foucault (2007, p. 31), tomar a forma de existir. Esse poder, segundo
um discurso em um determinado acontecimento Foucault (2007, 2014) não tem apenas a função
implica “compreender o enunciado na estreiteza de reprimir, de censurar, excluir, ele é capaz de
e singularidade de sua situação”, implica produzir um saber, ou melhor, dizendo uma
“determinar as condições de sua existência”, de vontade de saber, por meio dos discursos.
“estabelecer suas correlações com outros
enunciados”. Para Foucault (2007, 31-32), um Pois, de acordo com Foucault (2014, p.
enunciado 110),

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241
olhar por outras lentes, em cada época, os
Os discursos, como os silêncios, nem são enunciados que entrecruzaram este objeto, o
submetidos de uma vez por todas ao poder, corpo. Para em seguida, buscar demonstrar os
nem opostos a ele. É preciso admitir um processos de subjetivação do objeto corpo na
jogo complexo e instável em que o discurso sociedade contemporânea.
pode ser, ao mesmo tempo, instrumento e
efeito de poder, e também obstáculo, escora,
ponto de resistência e ponto de partida de Referências
uma estratégia oposta.
CORBIN, A., COURTINE, J-J. História do
corpo: As mutações do olhar. O século XX.
Estes enunciados além de irem contra
(trad.) ALVES, E. F. – 2ª ed. – Petrópolis, Rio
uma determinada conduta, “revelam a inscrição
de Janeiro: Vozes, 2014.
ideológica destes sujeitos, que, na história, se
opõem e se embatem” (FERNANDES, 2012, p. DELEUZE, G. O que é um dispositivo. In: O
32). Estas batalhas discursivas são produto de mistério de Ariana. Lisboa: Veja, 1996.
práticas sociais e históricas determinadas, pois FERNANDES, C. A. Discurso e sujeito em
não se pode falar de qualquer coisa em qualquer Michel Foucault. São Paulo: Intermeios, 2012.
lugar ou tempo. É preciso se submeter à ordem
do discurso, é preciso descrever a materialidade FOUCAULT, M. Arqueologia do Saber. Trad.
dos enunciados, é preciso conhecer suas regras NEVES, L. F. B. Rio de Janeiro: Forense
de controle, sua inserção em determinadas Universitária, 2007.
formações discursivas, o espaço e o tempo em _____. História da sexualidade I: A vontade de
que estes enunciados se realizam. saber. (trad.) ALBUQUERQUE, M. T. C e
Considerações finais ALBUQUERQUE, J.A.G. 1ª ed. – São Paulo,
Paz e Terra, 2014.
Como afirma Gregolin (2003, p.89), “o
corpo é objeto das disciplinas; não apenas GREGOLIN, M. R. Discurso e mídia: a cultura
enquanto lugar das ações disciplinares, mas do espetáculo. São Carlos: Claraluz, 2003.
também enquanto depositário de um MILANEZ, N. O corpo é um arquipélago:
pensamento ordenado e representacional e, por memória, intericonicidade e identidade. In:
isso, capaz de atribuir particularidades àquilo Estudos do texto e do discurso: mapeando
que pensa”. Este corpo discursivizado, além de conceitos e métodos. NAVARRO, P. (org.) –
servir para comunicar, é ao mesmo tempo um São Paulo: Claraluz, 2006.
objeto simbólico e político. Simbólico no
sentido de representar um objeto e político no SOHN, A. O corpo sexuado. In História do
sentido de que representa uma luta pelo poder. corpo: As mutações do olhar. O século XX.
(trad.) ALVES, E. F. – 2ª ed. – Petrópolis, Rio
Descrever o corpo na Marcha das de Janeiro: Vozes, 2014.
Vadias implica interpretar a rede de relações
que estão imbricados os enunciados que se SOUZA, K. M. Discurso e biopolítica na
estabelecem por indícios corporais, através dos sociedade de controle. In: TASSO, I.,
dispositivos de poder-saber. É preciso escavar, NAVARRO, P. (orgs). Produção de

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242
identidades e processos de subjetivação em
práticas discursivas [online]. Maringá:
EDUEM, 2012, pp. 41-55.
VEYNE, P. Foucault: seu pensamento, sua
pessoa. (trad.) MORAIS, M. J. – rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2014.

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243
A CIDADE DA DIVERSIDADE: IDENTIDADES E
DIFERENÇAS NA DIVULGAÇÃO DE SÃO LUÍS (MA) EM SITES
DE TURISMO

Mônica da Silva CRUZ


Universidade Federal do Maranhão (UFMA)
monicasc.cruz@ig.com.br

Resumo: Na internet, a construção discursiva das identidades de São Luís tem contornos
plurais, fazendo-se a partir do entrelaçamento entre o verbal e o não-verbal, entre o
considerado real e o virtual. Na atualidade, um discurso sobre a capital maranhense
como lugar da diversidade vem se destacando em sites e blogs de diferente natureza.
Dessa observação, esta pesquisa avalia como o discurso da diversidade edifica
identidades para o espaço citadino de São Luís (MA) e de que forma esse discurso
silencia conflitos e produz consensos sobre a cidade. O referencial teórico pauta-se em
estudos do discurso (FOUCAULT, 2008) e a metodologia consiste em avaliar dois sites
voltados para o turismo.
Palavras-chave: discurso; diversidade; cidade

mídias, sendo apresentada, em blogs e sites,


Introdução
como lugar de cultura “excêntrica”, de povo
Desde o século XIX, descobriu-se que a festeiro e hospitaleiro. Nessa lógica midiática, a
imagem urbana pode ser comercializada, capital maranhense é re-significada, por meio de
gerando muitos lucros (ABREU, 2014), fato discursos variados, como um lugar encantador,
que passou a ser explorado em uma perspectiva em que o exotismo, a presença de diversas
globalizante, na qual o local passou a ser alvo culturas e a natureza exuberante tornam-lhe,
de grandes empreendimentos econômicos. nas telas eletrônicas, mais interessante do que
Soma-se a esse dado o crescimento vertiginoso costuma ser normalmente para seus moradores.
de demanda por mercados e bens culturais, com
Na internet, a construção discursiva das
a regulamentação de órgãos sobre os aspectos
identidades da cidade de São Luís tem
culturais, em todo o mundo, como a Unesco
contornos plurais, fazendo-se a partir do
(ALVES, 2010).
entrelaçamento de diferentes materialidades de
Fatores como esses somados ao linguagem (do verbal ao não-verbal), entre o
desenvolvimento do setor turístico têm feito a considerado real e o virtual. Atualmente,
cidade de São Luís (MA) se destacar em várias identifica-se um discurso sobre a cidade como

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244
lugar da diversidade não só em sites voltados busca por referenciais identitários.
para o turismo, como em páginas de divulgação Esse cenário tornou fundamental o
do poder público. Esta pesquisa avalia como o redimensionamento das identidades locais, as
discurso da diversidade cria identidades para o quais, em certo momento, tiveram sua
espaço citadino de São Luís (MA) e de que sobrevivência ameaçada, em face da atuação
forma esse discurso silencia conflitos e produz das identidades globais. Nesse processo, a
consensos sobre a cidade. instantaneidade dos meios de comunicação tem
exercido papel importante, propiciando
consensos acerca do espaço global,
1. Desenvolvimento do artigo
contribuindo para que todos os lugares hoje
Este texto é um recorte de uma pesquisa sejam bem parecidos e que “o lugar esteja hoje
maior intitulada A construção da cidade de São em todo lugar”. (ABREU, 2014, p.20). A
Luís em sites de Turismo: espaço, memória e mídia, em tal movimento, principalmente em
produção de identidades, desenvolvida no sua versão eletrônica, faz-se extremamente
interior do Grupo de Pesquisa em Linguagem e relevante, por se constituir um dos lugares de
Discurso do Maranhão (GPELD-Deler-UFMA) difusão de identidades (GREGOLIN, 2007),
e tem por finalidade analisar construções agindo sobre a identificação de pessoas, lugares
discursivas da cidade de São Luís em mídias e práticas culturais diversas.
eletrônicas. O GPELD se constitui em um
Com base no princípio de que é por
grupo transdisciplinar que abriga docentes e
meio dos discursos que essas identidades são
discentes de diferentes campos do saber, como
difundidas e de que os discursos são formados
Letras, Turismo, Jornalismo, Direito e outros.
por regularidades que se inscrevem em uma
O foco principal do Grupo é avaliar discursos
dispersão histórica (FOUCAULT, 2008), esta
que constroem identidades em contextos locais.
pesquisa, situada no âmbito dos estudos do
Neste artigo, o objetivo centra-se
discurso, tem reunido enunciados sobre a
especificamente em analisar construções
cidade de São Luís encontrados em mídias de
discursivas da cidade de São Luís postas em
três espaços principalmente: jornalismo,
sites e blogs relacionados à Prefeitura da cidade
poderes públicos (articulados à prefeitura e ao
que a edificam como cidade da diversidade.
governo do estado do Maranhão) e sites
Parte-se da percepção de que as especializados em turismo. Para este artigo
discussões em torno das identidades constituem apresentamos reflexões acerca de enunciados
uma característica da contemporaneidade, coletados em sites voltados para o turismo.
marcada pela fluidez das relações e por
2. Abordagem teórica e metodológica
mudanças velozes. Essas particularidades da
atualidade se intensificam pelo intercâmbio Segundo Foucault (2008), todo discurso
proporcionado pela globalização e pelo nasce de uma rede complexa de relações de
desenvolvimento das tecnologias da poderes e de forma descontínua na história que
informação, fenômenos que têm diluído os sustenta (FERNANDES, 2012). Os objetos
fronteiras, encurtado distâncias entre culturas de discurso são, nessa perspectiva, objetos
díspares, exposto diferenças e estimulado a construídos no e pelo discurso. Assim, cabe ao

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245
analista compreender os discursos dentro de de discursividades em torno das diferenças e
processos histórico-sociais de sua constituição, com ela a ideia da diversidade cultural. No
ao se materializarem em um conjunto de Brasil, esse discurso ganhou força
acontecimentos discursivos produzidos principalmente porque órgãos voltados para a
dispersamente. Nesse exercício, busca-se cultura viram o potencial do país em termos de
entender a singularidade que envolve a práticas populares e da mistura cultural que o
existência de um enunciado. No caso desta constitui. Assim, foi vislumbrada a possibilidade
pesquisa, a singularidade buscada refere-se ao de geração de riquezas por meio da criação de
aparecimento da ideia de diversidade que trabalhos e rendas entre produtores, artistas e
norteia a apresentação da cidade de São Luís técnicos ligados à cultura popular. Além dessa
nos canais dos poderes públicos. percepção, Alves (2010) ressalta que o
investimento nas práticas culturais populares e
Segundo Carvalho (2009), o discurso da
na diversidade cultural do país relaciona-se a
diversidade emerge com acontecimentos como
questões políticas como o fato de o Governo
a problematização da história tradicional, a
Federal ter sido, em 2002, eleito com o apoio
emergência da noção de cultura, apontado por
muito significativo das camadas populares e das
Strauss (1978), a revisão do conceito de
chamadas minorias culturais.
patrimônio e os questionamentos sobre as
identidades, na modernidade líquida Nessa trama de sentidos, ainda convém
(BAUMAN, 2005). ressaltar que entre as regulamentações
propostas pela Unesco em seus documentos
Levados pela necessidade de enfrentar a
encontra-se a de que é necessário o amplo
diferença, com o desenvolvimento de
apoio de municípios no processo de
fenômenos advindos da globalização, alguns
preservação e promoção da cultura popular.
países em desenvolvimento buscaram na cultura
elaborada pelas camadas populares a força que Esses vários acontecimentos, essas rupturas e
descontinuidades em torno da noção de
precisavam para marcarem as suas diferenças
diversidade fazem surgir o discurso de uma São
dentro de uma lógica globalizante (ALVES,
Luís da diversidade.
2010).
De posse dessas informações avaliam-se
Em outra etapa desta pesquisa observa-
alguns sentidos que aparecem agregados à ideia
se que o discurso da diversidade envolvendo a
de diversidade em sites ligados ao turismo.
cidade de São Luís liga-se principalmente às
práticas populares, as quais são postas como Apresenta-se a seguir um enunciado do
grande diferença da cidade em relação a outros site Férias Brasil, no endereço:
lugares. Nesse sentido, Alves (2010) explica http://www.feriasbrasil.com.br/ma/saoluis/. A
que o discurso da diversidade, no âmbito da escolha desse canal deve-se ao fato de ser de
cultura dita popular, surge ligado a vários repercussão nacional e está em plena circulação
fatores. Para ele, além da globalização, a atualmente.
relevância do lugar da cultura no campo de
órgãos políticos importantes como a Unesco [...].Tombada pela Unesco, boa parte do
(Organização das Nações Unidas para a casario colonial datado dos séculos 18 e 19
Educação, Ciência e Cultura) gerou uma rede

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246
remete a uma viagem a um passado de
prosperidade e ostentação.
diferenças, quer nas expressões culturais, quer
em seus elementos naturais, como a cor das
Hoje, os antigos solares dos suas águas (não tão azuis) ou na variação das
barões abrigam espaços culturais, museus, marés.
lojas e restaurantes que preservam em suas
fachadas os coloridos azulejos portugueses. Outro site a ser avaliado neste artigo é o
Os bares garantem o agito nas noites de http://viajeaqui.abril.com.br/cidades/br-ma-sao-
sexta e sábado. Infelizmente, a conservação luis, do Guia Quatro Rodas. Nele a capital
de boa parte dos imóveis deixa a desejar. maranhense é assim descrita:
Além da história, a cidade preserva culturas
São Luís, a capital do Maranhão, tem
e tradições. O Bumba-Meu-Boi,
muitas particularidades: é a única cidade do
representação folclórica que combina teatro,
país fundada por franceses, tem a maior
música e dança, atrai gente de todo o
coleção de azulejos portugueses da América
canto que chega para participar da colorida
Latina e, apesar de pertencer ao Nordeste,
festa que toma conta das ruas nos meses de
fica juntinho da Amazônia. No Centro
junho e julho.
Histórico, as fachadas dos casarões,
Tão enraizado quanto o folclore é o reggae.
enfeitadas por delicados ladrilhos vindos da
O ritmo, presente nas rádios, clubes e bares,
então Metrópole, permitem uma volta ao
conferiu a São Luís o título de "Jamaica
passado - é uma pena, no entanto, que a
brasileira" e torna impossível não soltar o
conservação desse patrimônio mundial
corpo ao lado dos rastafaris ao som de Bob
decepcione. Mas a "Ilha do Amor", como
Marley e companhia. A capital
São Luís é conhecida, também tem seu lado
maranhense, porém, exibe uma faceta
moderno, como lembram a movimentada
moderna e luxuosa. Do outro lado do Rio
Avenida dos Holandeses e os bares da
do Anil está a parte nova de São Luís,
charmosa Lagoa da Jansen.
ligada à área antiga pela ponte José Sarney.
Por lá estão arranha-céus, shoppings
centers, restaurantes sofisticados que Observa-se nesse enunciado o anúncio
servem pratos típicos como o arroz-de-cuxá de uma diversidade que se pauta, sobretudo,
e bares ao redor da charmosa Lagoa da nos traços que diferenciam a cidade de outros
Jansen. As praias - de águas não tão azuis - lugares. A diversidade que aparece então nesse
também ficam nesta área. A maré costuma espaço discursivo é constituída em dois
variar bastante ao logo do dia, ainda assim, aspectos: a história da cidade e sua geografia.
dá para curtir um banho em Calhau, Olho
D'Água e Araçagi. Na sequência, o site informa:

COMIDA TÍPICA Maranhense


Nessas informações há a construção de Principal receita local, o cuxá é uma espécie
uma cidade em que a diversidade se encontra na de bobó feito com folhas de vinagreira (uma
arquitetura, na cultura e no fazer popular como erva azedume), papa de farinha de
a festa do Bumba-meu-boi, no apreço ao mandioca, gergelim torrado e socado no
reggae ou na culinária. Mesmo sem estampar pilão e camarão seco. Em São Luís, a
que há diversidade nesse espaço, o texto leva o mistura é integrada ao arroz e acompanha
leitor a imaginar uma cidade constituída por peixes e frutos do mar. Outro prato típico é

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247
a torta de camarão, um tipo de omelete. Na
sobremesa, cremes de frutas regionais, como
acontecimentos que podem ser analisados
bacuri e cupuaçu. dentro de uma descontinuidade, de uma
Onde comer: Maracangalha, Dona transformação. O efeito de unidade de um
Maria e Cabana do Sol. enunciado pode ser sugerido, mas seus sentidos
são sempre incompletos, pois nele habita uma
heterogeneidade de vozes de toda sorte.
Nesse ponto, a culinária é apresentada
em uma espécie de tradução de valores Nas vozes que habitam ambos os sites
culinários; o enunciador situa o leitor, em análise, o enunciador põe ao leitor a
aproximando a torta de camarão a uma diversidade da cidade inicialmente destacando a
omelete, o cuxá ao bobó, apontando assim que história da fundação local, sem qualquer
existe muita diferença cultural na cidade. referência à presença de índios ou aos negros
que ajudaram a construir a cidade.
Ainda sobre as diferenças do local, o
enunciador destaca: Existe nessas informações um intenso
diálogo com uma formação discursiva que narra
Guaraná Jesus Em 1920, o farmacêutico a fundação da cidade a partir de uma
Jesus Norberto Gomes, tentando fabricar perspectiva eurocêntrica. Nessa formação os
um remédio, acabou criando um xarope que enunciadores dos dois sites falam sobre a
viria a ser um verdadeiro fenômeno de fundação de uma São Luís instituída por uma
vendas. Chamada de Guaraná Jesus
cultura europeia, silenciando índios e africanos
(possivelmente uma auto-homenagem do
que vieram para a capital maranhense. Em um
criador, que era ateu), a bebida cor-de-rosa
com cheiro de tutti-frutti conquistou o deles, contudo, a presença da cultura africana
coração dos ludovicenses. Em 2001, a na cidade é sugerida pela dedução de que o
Coca-Cola comprou a fórmula do gosto pelo reggae possa denotar a presença
refrigerante, famoso pelo sabor adocicado, dessa cultura no local.
com traços de cravo e canela, mas manteve Essa versão da fundação da cidade que
sua comercialização restrita ao estado. Onde
os sites apresentam é dada por uma memória
beber: nos bares e restaurantes do estado.
social e histórica que produziu, durante um bom
tempo, um consenso sobre o lugar periférico do
Outros aspectos da cidade são índio e do negro em nossa cultura. Quando se
ressaltados pelo site, no entanto deter-se-á a considera que em um enunciado as descrições
esses pontos apenas, pelos limites do artigo. não cessam de se deslocar, porque a história
3. Análises e discussão assim define (FERNANDES, 2012), percebe-se
que a história atual, em referência à própria
É preciso fazer algumas considerações ideia de diversidade, exige que esses sujeitos,
acerca das noções de discurso e enunciado para outrora silenciados, sejam mostrados, incluídos
a compreensão da formação do conceito de na nacionalidade de um país que busca sua
diversidade presente nesses textos. Para isso, identidade nas diferenças culturais que o
tomam-se algumas reflexões de Foucault constitui. No entanto, esses sites ainda se
(2008), para o qual os enunciados, moléculas edificam a partir de uma história que tem sido
dos discursos, assim como os discursos, são combatida por diversos segmentos da sociedade

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248
brasileira, na atualidade, e que problematiza o
Nas vozes que habitam ambos os sites
lugar que etnias como índios e negros devem
em análise, o enunciador põe ao leitor a
ocupar na memória do país.
diversidade da cidade inicialmente destacando a
Como todo enunciado está preso a história da fundação local, sem qualquer
regimes de verdade de uma época, o sujeito de referência à presença de índios ou aos negros
um enunciado se relaciona sempre com o lugar que ajudaram a construir a cidade.
socio-histórico de onde ele produz o discurso.
Por isso, a cidade apresentada por esse lugar
discursivo em análise é edificada sobre a ideia Referências
de uma diversidade em que as diferenças são ABREU, M. Sobre a memória das cidades. In:
dadas por um mirante que valoriza pouco CARLOS, A. F. A. et al.(org.). A produção do
questões como o fazer popular, porque esse espaço urbano: agentes e processo, escalas e
ponto de vista possivelmente não atrairia um desafios. São Paulo: Contexto, 2014.
público de nível econômico mais empoderado,
ávido por novidades e diferenças culturais. ALVES, E. P. M. Diversidade cultural,
patrimônio cultural material e cultura popular: a
4. Considerações finais Unesco e a construção de um universalismo
Na atualidade, um discurso sobre a global. In.: Revista Sociedade e
capital maranhense como lugar da diversidade Estado.vol.25 no.3 Brasília Sept./Dec.2010.
vem tendo uma regularidade em sites e blogs Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php.
de diferente natureza. Dessa observação, esta Acesso em: 15 de setembro de 2015.
pesquisa propôs avaliar como o discurso da BAUMAN, Z. Identidade. Tradução de Carlos
diversidade edifica identidades para o espaço Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
citadino de São Luís (MA) e de que forma esse Editor, 2005.
discurso silencia conflitos e produz consensos
sobre a cidade. O referencial teórico pautou-se CARVALHO, C. M. B. de. A genealogia do
em estudos do discurso, principalmente em patrimônio em São Luís: da Athenas à capital
Foucault (2008) e a metodologia consistiu em da diversidade. UNESP: Araraquara, 2009.
avaliar dois sites voltados para o Turismo. FERNANDES, C. A. Discurso e sujeito em
Na análise empreendida, observou-se Michel Foucault. São Paulo: Intermeios, 2012.
que a identidade da cidade nesses sites dialoga FOUCAULT, M. Arqueologia dos sistemas de
com uma história fundacional da cidade, que se pensamento. 2.ed. Organização de Manoel
pauta na visão eurocêntrica, destacando apenas Barros da Costa. Trad. Elisa Monteiro. Rio de
as heranças europeias da capital maranhense. Janeiro: Forense Universitária, 2008. (Col.
A referência a outras culturas Ditos & Escritos).
existentes na cidade é feita por meio das GREGOLIN, M. R. V. Formação discursiva,
diferenças que marcam a culinária e as redes de memória e trajetos sociais de sentido:
manifestações populares locais, como o mídia e produção de identidades. In:
Bumba-meu-boi ou o reggae, mas tudo dito de BARONAS, Roberto Leiser (org.). Análise do
modo apenas sugerido. discurso: apontamentos para uma história da

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

249
noção-conceito de formação discursiva. São
Carlos: Pedro & João Editores, 2007.

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

250
SOB OLHARES E VOZES: A CIDADE PERSPECTIVADA

Ilza Galvão CUTRIM


Universidade Federal do Maranhão (UFMA)
ilzagal@uol.com.br

Resumo: O discurso urbano tem uma memória peculiar, pois se desenvolve em um espaço
próprio, constituindo-se por relações entre seres que se significam e significam as
relações que sustentam sua própria existência. (ORLANDI, 2004). A percepção desses
elementos, das contradições expressas no espaço, o reconhecimento das diferenças e das
desigualdades produzem a experiência sobre uma cidade. Este trabalho coloca em foco a
cidade de São Luís, capital maranhense, como espaço de enunciação de onde vários
discursos emergem. Analisam-se os sentidos que sujeitos localizados em diferentes
lugares produzem sobre a cidade, a partir do objeto de discurso mobilidade urbana.
Palavras-chave: sujeito; discurso; cidade.

aqueles que não têm veículos, a forma mais


Introdução utilizada para a locomoção.
Observar a cidade é procurar compreender as Cidades como São Luís, capital
alterações que se dão na natureza humana e na maranhense, tem vivido o drama da mobilidade
rede social. (ORLANDI, 2004, p. 12) de metrópoles como São Paulo, apesar das
notáveis diferenças. Segundo dados do IBGE
O desenvolvimento das cidades, o (2010), a ilha de São Luís soma mais de 1
aumento no padrão de vida do brasileiro, assim milhão de habitantes. O aumento do número de
como as facilidades de crédito para a compra de veículos tem acompanhado o crescimento
veículos criaram uma “crise na mobilidade”. A populacional. Circulam pela cidade, segundo o
mobilidade urbana, nos últimos anos, ganhou DETRAN-MA (2013), mais de
visibilidade e tornou-se tema de debate em 300.000 veículos, sendo 179.984 automóveis e
vários setores da sociedade. 1.185 ônibus do transporte público coletivo.
Algumas cidades têm tomado medidas Com o crescimento da frota, as pessoas
como o rodízio de carros, o uso de motos e a tentam se adequar ao ritmo quase parado do
construção de ciclovias para o deslocamento trânsito, e o direito à mobilidade urbana torna-
por meio de bicicletas, que surgem como mais se algo longe de ser alcançado. A população
uma alternativa de deslocamento. Mas o uso de lida com a intrafegabilidade provocada por
ônibus como transporte coletivo ainda é, para congestionamentos diários, e é nesse

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

251
tumultuoso contexto que surgem enunciados
1. Formação discursiva: princípios de
como “é preciso enfrentar o trânsito”,
organização
(re)significando o ato de locomoção como um
combate. Foucault (2008a) inicia A Arqueologia
do saber apresentando uma crítica aos temas da
A população tem-se mostrado
continuidade da história. Após isso, ele
insatisfeita e inconformada com os
apresenta hipóteses sobre o caso em que se
engarrafamentos, que provocam atrasos e
possam vislumbrar regularidades entre os
alteram seu dia a dia. O ano de 2013 destacou-
discursos. Seu propósito é o de direcionar a
se pelas manifestações populares que levaram a
análise a uma organização dos saberes que se
população às ruas de São Luís reivindicando
constitui na dispersão dos enunciados. Essa
uma cidade com melhores condições de
organização ou regularidade é dada, segundo
trafegabilidade. A cidade completava
ele, pelas formações discursivas ou regras de
quatrocentos e um ano de fundação, um ano
formação, que, por sua vez, são “sistemas
após a inauguração da via Expressa, que se
dispersos” que garantem, em uma dada época,
apresentava como uma promessa para
determinadas relações entre os saberes postos
desafogar o tráfego em horários de pico, em
em circulação.
duas avenidas de grande circulação.
A fim de caracterizar e descrever os
A mídia local, particularmente o jornal
princípios de organização das formações
O Estado do Maranhão, pôs a cidade em
discursivas, quatro hipóteses são apresentadas
evidência na voz de alguns de seus moradores.
por Foucault. A cada uma delas associa-se um
No dia 08 de setembro de 2013, dia em que se
princípio de organização dos saberes e da
comeorava o aniversário de São Luís, o jornal,
existência das regras de formação. Os princípios
em um caderno especial de comemoração,
apresentados dizem respeito à formação dos
perguntou a alguns moradores: “O que você
objetos, das modalidades enunciativas, dos
acha que é preciso fazer para São Luís se tornar
uma cidade melhor?” conceitos e das estratégias.

As discussões aqui apresentadas têm a No que diz respeito à formação dos


cidade de São Luís como espaço de produção objetos, eles destaca que não há objetos dados,
discursiva a partir do olhar dos sujeitos a priori, no mundo. Cabe ao arqueólogo fazer
entrevistados pelo jornal. Nosso objetivo é um levantamento dos enunciados que, em
verificar como a cidade significa, a partir do que diversos lugares e tempos se referem a um
é dito e por quem é dito sobre a mobilidade. determinado objeto; enunciados que conferem
Fazemos uma análise das formações discursivas existência aos objetos pelo modo como os
produzidas sobre São Luís por sujeitos que se recortam. O objeto loucura, por exemplo, pode
localizam em uma trama histórica, que se ser demarcado por superfícies de emergência
inscreve em um lugar de fala e em um lugar como família”, “grupo social próximo”, “meio
institucional. de trabalho”, “comunidade religiosa”
(FOUCAULT, 2008a, p. 46) e daí pode-se
estabelecer as fronteiras sociais que sugerem

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

252
seu aparecimento, sua transformação e até seu perguntas: quem fala? Quem, no conjunto de
desaparecimento. todos os indivíduos-que-falam, está autorizado
a ter esta espécie de linguagem? Quem é seu
No tocante às superfícies de emergência,
titular? Qual é o estatuto dos indivíduos que
Foucault (2008a, p. 46) lembra que,
têm – e apenas eles – o direito regulamentar ou
inicialmente, haveria a necessidade de demarcar
tradicional, juridicamente definido ou
as superfícies primeiras de sua emergência:
espontaneamente aceito, de proferir semelhante
mostrar onde [os objetos] podem surgir, para
discurso? A fala médica, por exemplo, só tem
que possam, em seguida, ser designadas e
eficácia quando associada ao personagem
analisadas essas diferenças individuais. A partir
médico.
daí, o objeto doença, por exemplo, segundo os
graus de racionalização, os códigos conceituais O lugar institucional diz respeito ao
e os tipos de teoria, vão receber uma lugar de onde se obtém o discurso: de que
qualificação: alienação, anomalia, demência, lugares institucionais procedem os discursos?
neurose ou psicose, degenerescência etc. de onde o sujeito obtém seu discurso? “Os
lugares institucionais que relacionam sujeito e
O objeto loucura também teve não
discurso funcionarão como legitimadores da
somente na medicina sua superfície de
verdade inerente ao discurso e necessária à
emergência. Destacam-se também instâncias
manutenção e transformação dos saberes.”
como a justiça penal, as autoridades religiosas e
(VOSS, 2011, p. 43). Um dos lugares do
a crítica literária e artística. Tais superfícies
discurso da fala médica é o hospital. O status de
promoveram a organização dos saberes em
médico não é suficiente para que o sujeito tenha
torno desse objeto e garantiram o
seu discurso reconhecido; é necessário um lugar
funcionamento das práticas discursivas. Vale
de fala que o institucionalize e lhe dê respaldo.
ressaltar, por outro lado, que as práticas
discursivas são dinâmicas e a singularidade dos As posições do sujeito se definem
acontecimentos discursivos colocam em também “pela situação que lhe é possível
funcionamento as regras de formação dos ocupar em relação aos diversos domínios ou
objetos; “mas as relações plurais que as definem grupos de objetos”. (FOUCAULT, 2008a, p.
permitem a existência de objetos também 59). Quais as posições do sujeito frente aos
plurais. São objetos que não permanecem diversos domínios ou grupos de objetos? é
constantes nas práticas que os definem, que sujeito que questiona, que observa? ele utiliza
também não emergem de um mesmo lugar e intermediários instrumentais? que posições o
que não se caracterizam como singulares.” sujeito ocupa na rede de informações, no
(VOSS, 2011, p. 42-43). campo dos domínios teóricos e institucionais?
Quanto à formação das modalidades Em relação ao sistema de conceitos,
enunciativas, os diferentes modos de produção Foucault ressalta que eles se encontram em um
de enunciados estão associados aos modos de agrupamento discursivo. Muitos conceitos, em
inserção do sujeito que enuncia, ou seja, ao uma mesma unidade de enunciados podem não
lugar de fala, aos lugares institucionais, à apresentar semelhanças entre si, podendo até
situação. Ao se referir ao lugar de fala, mesmo apresentar incompatibilidades,
Foucault (2008a, p. 57-8) propõe algumas considerando os saberes que os entrecortam em

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253
dado momento da história. (FOUCAULT,
As reivindicações giravam em função de
2008b).
melhores condições de asfalto, melhores
A formação das estratégias é o último condições da frota de ônibus, mais faixas de
princípio destacado por Foucault. As estratégias pedestres, melhor sinalização. Vários grupos
se referem aos temas e teorias caracterizados aproveitaram a visibilidade que as
pelos enunciados derivados de certo domínio manifestações adquiriram diante da mídia para
discursivo. solicitar melhorias em outros serviços.
Ancoramos nosso olhar sobre os Estudantes da Universidade Federal do
princípios de organização da formação Maranhão interromperam a Avenida dos
discursiva, e a partir do que afirma Foucault Portugueses, onde se localiza o campus, para
(2008a, p. 36) sobre os enunciados: há pedir por moradia estudantil; policiais civis
enunciados que “diferentes em sua forma [...] interditaram a Avenida Beira Mar em prol de
formam um conjunto quando se referem a um reajuste salarial; diversos grupos formados por
único e mesmo objeto”, analisamos enunciados moradores interditaram diferentes pontos da
de moradores de São Luís que se manifestam cidade pedindo mais segurança e menos
sobre a mobilidade urbana, a fim de violência no trânsito; alunos de uma escola
observarmos se há convergências em torno do pública, localuzada no centro da cidade
olhar sobre a cidade. interditaram a rua em apoio à paralização dos
professores. Toda essa mobilização gerou
2. Mobilidade e discurso cruzando a cidade diversos pontos de congestionamento. As
Os discursos produzidos sobre a autoridades utilizavam a mídia local para
mobilidade em São Luís têm desencadeado solicitar à população que só saísse de casa em
vários acontecimentos e vêm ganhando espaço caso de extrema necessidade porque ruas e as
diário na mídia local e nacional. principais avenidas não tinham condições
mínimas de trafegabilidade. Muitos serviços
O objeto mobilidade urbana, em São deixaram de ser oferecidos; o comércio teve seu
Luís, tem na fronteira que sugere a sua movimento enfraquecido. A cidade quase
superfície de emergência o movimento Passe parou.
Livre, iniciado em junho de 2013 no sudeste do
país e que ganhou as ruas de várias capitais Os jornais locais, impressos e
brasileiras graças à visibilidade proporcionada televisionados, mostravam motoristas parados
pela mídia. Dessa superfície de aparecimento em seus carros em meio ao trânsito parado; as
surgiram novas condições que lhe possibilitaram pessoas desciam dos ônibus e sob um forte sol
um novo status a partir de outras instâncias caminhavam para seus compromissos. Todos se
sociais. Coube aos meios de comunicação mostravam incorformados com a situação.
mediatizarem esse objeto, dando visibilidade às Em 8 de setembro do mesmo ano, dia
reinvindicações. Em São Luís, a população foi de aniversário de 403 anos de São Luís, o jornal
às ruas e transformou a cidade virou palco de O Estado do Maranhão, em encarte especial de
inúmeras manifestações. aniversário, publicou o ponto de vista de vários
moradores sobre a cidade.

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254
saudável para a população e para a
O jornal entrevistou aligns moradores economia percorrer grandes distâncias por
com a seguinte pergunta: “O que você acha que vias congestionadas e desorganizadas.
é preciso fazer para São Luís se tornar uma Uma São Luís com ruas e logradouros
cidade melhor?” As respostas foram distribuídas públicos mais racionais e aprazíveis trará
enormes benefícios para as empresas e
com as fotos dos entrevistados, separados em
instituições. Precisamos repensar a
grupos, que aqui denominamos Grupo 1: os
questão, discutir e agir nesse sentido.
sujeitos que ocupam as posições sociais de (J.L.B, diretor regional dos Correios).
cozinheira, estudante, consultora de venda, S2: A realidade cotidiana da maior parte
maquiadora, universitário, secretária. No Grupo da nossa população indica que vivemos
2 os sujeitos enunciadores são advogado, ex- uma verdadeira tragédia urbana. Para
presidente da OAB/MA, diretor regional dos traduzir a melhor dimensão do problema,
Correios, presidente da Fundação da Memória basta lembrar que teremos que equacionar
Republicana Brasileira, presidente do Sindicato graves problemas de trânsito e mobilidade,
do Fisco Estadual, presidente do Sindicato dos o que inclui a situação do transporte
Trabalhadores em Transportes Rodoviários do coletivo, saúde, educação, abastecimento,
Estado do Maranhão, engenheiro e Mestre em moradia, segurança, água e esgoto,
Planejamento Urbano. Para cada grupo de limpeza urbana, entre outros. Como
sujeitos utilizamos a nomenclatura Sujeito 1 dediquei 30 anos da minha vida
profissional a projetos de recuperação do
(S1), Sujeito 2 (S2) e assim sucessivamente.
Centro Histórico de São Luís, sempre
Para nossas análises, destacamos dois acreditei que se conseguíssemos numa
representantes de cada Grupo. primeira etapa, que simplesmente os
órgãos públicos cumprissem suas
GRUPO 1 obrigações regimentais nesta área de
S1: A cidade está um caos. É preciso grande valor histórico, reconhecida como
investir em elevados, pois os Patrimônio da Humanidade pela Unesco e
engarrafamentos estão grandes. Demoro 2 que é referência para as demais, daríamos
horas de casa para o trabalho e não é uma demonstração de que somos capazes
longe. Os ônibus são precários e em de viver uma grande mudança, criando
quantidade insuficiente. (S.L., cozinheira). alternativas para realizar o mesmo na
S2: Precisa melhorar a mobilidade. Os cidade como um todo. (L.P.A, engenheiro e
congestionamentos estão demais. Mestre em Planejamento Urbano)
Atrapalha a vida de todos. A Secretaria de
Transportes precisa dar mais atenção aos
Esses enunciados nos permitem
bairros de maior movimento. (M.G.,
observar que o lugar ocupado pelos
estudante).
enunciadores do Grupo 1 é o de usuários do
sistema de transporte público, que se
GRUPO 2 locomovem em ruas de tráfego intenso.
S1: Para chegar ao estágio de cidade
O lugar e a posição social permitem aos
desenvolvida, precisamos avançar
enunciadores dizer (como) que a cidade está um
principalmente na questão do urbanismo,
da mobilidade e da logística. Não é
caos, que os congestionamentos atrapalham a

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255
vida de todos para os leitores dos jornais
O Sujeito 2 também satisfaz as
(população em geral, incluindo os gestores
exigências do lugar de fala, do lugar
publicos) sobre as condições da mobilidade
institucional e da posição sujeito. Seu lugar de
urbana. Nesse caso, a posição do sujeito frente
fala é o de engenheiro e Mestre em
ao objeto mobilidade é a de sujeito que observa
Planejamento Urbano, posição que marca o
sua precariedade, que destaca como isso afeta
lugar institucional na medida em que o princípio
seu dia a dia.
da Engenharia e do planejamento urbano é
A posição social, que se reflete no lugar estabelecer na cidade uma organização de modo
de fala do sujeito, não se sobrepõe nesses a torná-la funcional. S2 mostra-se consciente
enunciados. O que se torna marcante não é a dos problemas de São Luís e revela em seu
fala da cozinheira ou do estudante, mas sim o enunciado sensibilidade quanto a esses
lugar que cada um deles ocupa em cada problemas ao utilizar nossa população como
enunciado: o de quem faz uso do sistema de um recurso linguístico. O possessivo nossa,
transporte e o de cidadão. nesse caso, aponta para uma relação de
O Sujeito 1, do Grupo 2, fala do lugar proximidade e indica uma formação discursiva
de diretor dos Correios. A Empresa Brasileira de quem fala pelo povo.
de Correios constitui, assim, o lugar A tragédia urbana é traduzida segundo
institucional de onde ele enuncia. Urbanismo, um olhar de quem precisa lembrar que teremos
mobilidade, logística, ruas e logradouros que equacionar graves problemas de trânsito e
públicos racionais estabelecem em sua fala uma mobilidade, o que inclui a situação do
relação estreita com uma empresa que trabalha transporte coletivo, saúde, educação,
em função de uma logística espacial. Como abastecimento, moradia, segurança, água e
diretor regional dos Correios, S2 defende a esgoto, limpeza urbana, entre outros. O
necessidade de uma racionalização de ruas e transporte coletivo é apontado como um
logradouros públicos. Sua fala seria direcionada problema de trânsito e de mobilidade, que
aos gestores do executivo, que têm em mãos o precisa ser equacionado.
poder de transformar a cidade em um lugar
Conforme o modo como os enunciados
“com ruas e logradouros públicos mais
recortam um objeto, lhe conferem existência.
aprazíveis”, em benefício de “empresas e
(FOUCAULT, 2008a) Nessas conjunturas, em
instituições”.
que os sujeitos enunciam segundo formações
Como destaca Foucault (2008b, p 32), discursivas, ou seja, segundo o lugar social de
“ninguém entrará na ordem do discurso se não onde falam, algumas práticas discursivas se
satisfizer a certas exigências ou se não for, de repetem, como por exemplo, a de que a
início, qualificado para fazê-lo”, o que implica população vive momentos estressantes no
em dizer que “os discursos [...] não podem ser trânsito e que são necessárias intervenções
dissociados dessa prática de um ritual que tendo em vista a problemática da mobilidade
determina para os sujeitos que falam, ao mesmo urbana.
tempo, propriedades singulares e papeis pré-
4. Considerações finais
estabelecidos.”

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A cidade de São Luís é ignificada, sob _______. A Ordem do Discurso. Trad. Laura
o ponto de vista dos sujeitos entrevistados pelo Fraga de Almeida Sampaio. 16. ed. São Paulo:
jornal O Estado do Maranhão, um lugar Edições Loyola, 2008b.
caótico, carente de planejamento em sua malha IBGE, 2010. Censo Demográfico de 2010.
viária. Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e
Os sujeitos que enunciam falam ora de Estatística, dados referentes ao município de
um lugar que representa o usuário do transporte São Luís- MA.
público que tem sua rotina alterada em função ORLANDI, E. Cidade dos sentidos. Campinas:
de atrasos no trânsito, decorrentes de Pontes, 2004.
engarrafamentos. Ora falam de um lugar de
diretor regional de uma empresa que necessita VOSS, J. O conceito de formação discursiva
de uma cidade planejada para desenvolver de Foucault e o tratamento de objetos da
melhor suas atividades. Ora do lugar de mídia: sobre a responsabilidade social na
engenheiro e mestre em planejamento urbano; publicidade impressa brasileira. Dissertação
alguém que propõe uma mudança a fim de (Mestrado). Programa de Pós-graduação em
melhorar vários setores, dentre eles a Letras. Universidade Estadual de Maringá,
mobilidade. 2011.
Ao retomarmos a epígrafe que se
encontra no início deste artigo, concordamos
que as mudanças que ocorreram em São Luís
(crescimento populacional, aumento da frota de
veículos) alteraram a rotina dos moradores e
seu olhar sobre a cidade. Os enunciados, de um
modo geral, revelam uma convergência em
torno do olhar sobre a cidade.

Referências

DETRAN-MA. Estatísticas de veículos.


Departamento Trânsito do Maranhão (2013).
Disponível em:
http://servicos.detran.ma.gov.br/Estatisticas/Est
atisticasVeiculos. Acesso em <Acesso em 14 jul
2015>
FOUCAULT, M. A arqueologia do saber.
Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. 7. ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2008a.

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257
POLÍTICAS DE PRESERVAÇÃO: CONSENSOS E CONFLITOS

Kláutenys Guedes CUTRIM


Universidade Federal do Maranhão (GPELD/UFMA)
kdguedes@yahoo.com.br

Resumo: Este trabalho tem o objetivo de discutir desdobramentos das políticas de


preservação do Centro Histórico de São Luís e o processo que transformou a capital
maranhense em Patrimônio Cultural da Humanidade. O corpus constitui-se da
justificativa do dossiê apresentado à UNESCO pelo Governo do Estado, em 1997, para a
candidatura de São Luís ao título de Patrimônio Cultural da Humanidade, e de
reportagens e entrevistas do Jornal O Estado do Maranhão. Nesse sentido, indagamos o
que é preservado, como um bem é preservado e por quem é preservado. Procura-se
compreender, a partir dos conceitos de discurso e enunciado, as Políticas de preservação
propostas para o Centro Histórico de São Luís. Busca-se avaliar como essas políticas
instauram consensos e silenciam conflitos, na tentativa de reatualizarem uma memória
para o local.
Palavras-chave: Patrimônio Cultural; Memória; Políticas de Preservação; Discurso;
Diálogo.

verdades, campos de poderes determinam o


Introdução que e como o passado deve ser sustentado.
O conceito de patrimônio, como um Dessa forma, relações de poder sempre
bem que deve ser preservado, modifica-se de permeiam a seleção do que pode ser
acordo com as conjunturas temporais políticas “patrimonializado” em nossa sociedade. Surge
de uma sociedade. O patrimônio é um meio de daí as políticas de preservação, que constituem
transmissão das tradições culturais, um veículo normas de regulamentação, de controle de
de conservação de identidade e por isso os preservação da cidade, que legitimam maneiras
grupos e as nações devem manter seu de perpetuação da memória. As políticas são
patrimônio para codificar suas referências. fruto de jogos de forças, representam um
Movidas por uma série de transformações e passado e, portanto, um tempo, instaurados
implicações políticas, algumas cidades do com vistas a projetar um efeito de
Brasil foram levadas a recuperar seu passado continuidade, coesão e pertença de um povo.
sob a égide do presente. As políticas de preservação patrimonial
Mas a recuperação não poderia compõem a cidade por meio de várias
acontecer de qualquer forma e jogos de memórias. Nesse sentido, a cidade é como

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258
define Rolnik (1992), um espaço de afluência cidade já contava com uma efetiva politica de
de dinâmicas políticas, demográficas, preservação.
econômicas, sociais, culturais e, sobretudo, Segundo Silva (1996), a implementação
simbólicas. As Políticas de preservação do PPRCH passou por diferentes etapas desde
constituem-se em um conjunto de práticas 1991. A quarta etapa ocorreu entre 1995, com
desenvolvidas no sentido de resguardar uma investimentos externos e a candidatura de São
área degradada. Luís a Patrimônio Cultural da Humanidade. A
partir do início do Governo de Roseana Sarney
Aqui iremos discutir os desdobramentos
(1994-2002), buscam-se convênios externos
das políticas de preservação do Centro
para financiamento das obras complementares
Histórico de São Luís-Maranhão, incluindo o
para a continuidade do PPRCH. Distingue-se
que consideramos a culminância do Programa
nesse momento a articulação entre as políticas
de Preservação e Revitalização do Centro
de preservação a um nítido interesse econômico
Histórico (PPRCH), isto é, o processo que
representado pelo desenvolvimento da atividade
possibilitou à capital maranhense a preservação
turística, o qual se relaciona a muitos fatores,
necessária para ser considerada Patrimônio
como a globalização, a relações indenitárias na
Cultural da Humanidade (1991 – 1997) e as
modernidade, a emergência de certos lugares e
políticas de preservação de patrimônios.
apagamento de outros.
Procura-se compreender, a partir dos conceitos
Para Bauman (2005), o movimento
de discurso e enunciado, as Políticas de
globalizador trouxe à tona uma séria questão –
preservação propostas para o Centro Histórico
a identidade. As identidades ligam-se à
de São Luís e para realizar esse feito
globalização e com ela o surgimento da
utilizaremos a justificativa do dossiê
modernidade líquida, fenômeno desencadeador
apresentado à UNESCO pelo Governo do
de grandes transformações sociais, como a
Estado, em 1997, para a candidatura de São
desestabilização de estruturas estatais, de
Luís ao título de Patrimônio Cultural da
condições de trabalho, de relações entre
Humanidade, e algumas representações da
estados, de subjetividades coletivas e a noção
mídia local através de reportagens e entrevistas
de Segurança. Esse movimento liquefez a
veiculadas no Jornal O Estado do Maranhão.
garantia de instituições consideradas há pouco
tempo sólido, inabalável, acendendo a
1.As políticas de preservação e a inclusão do necessidade de debates em torno das políticas
Centro histórico de São Luís na lista do de identidade, na era moderna.
Patrimônio Mundial da UNESCO. A campanha se inicia de fato em maio
de 1996, quando a Governadora do Estado,
O título de Cidade Patrimônio Cultural Roseana Sarney, apresenta oficialmente à
da Humanidade está diretamente ligado ao UNESCO um dossiê juntamente com a
Programa de Preservação e Revitalização do proposta para inclusão de Centro Histórico de
Centro Histórico (PPRCH), pois esse São Luís na lista de bens considerados como
documento trouxe as diretrizes de conservação Patrimônio da Humanidade.
do Centro da capital maranhense e, portanto foi O Dossiê é um documento elaborado
primordial para convencer a UNESCO que a por uma equipe de técnicos (sobretudo

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259
engenheiros e arquitetos) e teve como de maio de 1996, a então governadora Roseana
coordenador executivo o arquiteto Luiz Philipe Sarney envia ofício ao Diretor Geral da
Andrés. O documento tem 114 páginas e inclui UNESCO, Dr. Frederico Mayor, apresentando
apresentação, cronologia das tratativas do oficialmente o pleito de inclusão do Centro
processo junto à UNESCO, delimitação do Histórico da cidade na lista do Patrimônio
núcleo principal do acervo; localização precisa Mundial, acompanhado de relatório e dossiê
do Centro Histórico; estado de preservação e fotográfico.
conservação e uma justificativa de inscrição na
lista do patrimônio, entre outros itens. Em 23

2. A Justificativa

Neste momento, interessa-nos analisar a parque têxtil do princípio do século XX,


justificativa do dossiê para avaliarmos a São Luís manteve papel preponderante
representação de espaço e tempo construída no na cultura nacional que se traduziu na
documento (SILVA, 1996, p.36). produção de seus poetas, escritores e
políticos e materializou-se nos espaços
2.1 - JUSTIFICATIVA DE urbanos, praças e solares.
INSCRIÇÃO DO CENTRO Palco de lutas pela afirmação
HISTÓRICO DE SÃO LUÍS NA nacional, a São Luís coube criar através
da releitura da arquitetura portuguesa,
LISTA DO PATRIMÔNIO
uma arquitetura única: seja pela
MUNDIAL. generosidade dos materiais construtivos
2.1.1 Sobre O Bem Cultural utilizados, seja pelas soluções ambientais
adotadas, a casa maranhense se distingue
Núcleo habitacional fundado por de toda arquitetura colonial do país. O
franceses, anteriormente visitado por caso requintado do azulejo como
espanhóis, atraídos por um possível proteção térmica e adorno, a modulação
caminho até El Dourado, conquistado e de cheios e vazios reforçados pela pedra
saqueado por holandeses, São Luís é, lioz nas molduras, cunhais, bacias de
finalmente, colonizada por portugueses sacada e passeios públicos, dão a
que consolidaram seu domínio em todo o singularidade externa a esta maneira de
território brasileiro. construir. Internamente, são os
Destes primórdios que a fazem avarandados de rótulas, o pé-direito de 4
caminho e destino de inúmeros povos, a 5 metros de altura, as espessuras de
São Luís atravessou sua história como parede os forros variados.
ativo participante na vida do estado Nascida de um plano urbanístico
colonial do Maranhão, que mantinha de 1615, do Engenheiro-Mór Francisco
relação de comércio e poder diretamente Frias de Mesquita, São Luís cresceu
com Lisboa. Porto de escoamento da obedecendo àquelas diretrizes e, inda que
produção de toda a região Norte, pujante suas quadras obedeçam mais às

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

260
características topográficas do sítio do estão em curso, como organismos
que a romanas medidas de extensão, o financiadores, nacionais e internacionais
resultado do conjunto ganha em surpresa com intuito de assegurar os recursos
sem prejuízo do conjunto de fachadas, financeiros necessários para tanto.
telhados e quintais. É neste momento, em que a
Mais extenso conjunto urbano e economia do planeta se organiza,
arquitetônico colonial da América Latina, internacionalizando-se derrubando
com seus mais de 3.500 imóveis antigas fronteiras, que a eventual
representativos de nossa história, São inclusão de São Luís na lista do
Luís é definitivamente um dos mais Patrimônio Mundial se constituirá em
acabados exemplos da maneira de viver importante fator de reconhecimento por
do Brasil dos séculos XVIII e XIX. parte da comunidade internacional
Atualmente o Centro Histórico representada pela UNESCO, de seu
concentra as principais funções inestimável valor cultural, testemunho
administrativas, financeiras e comerciais vivo da história da ocupação do território
da Capital, que por sua vez é o epicentro sul-americano.
de uma região metropolitana que atinge Justificativa de inscrição do Centro Histórico de
cerca de 1 milhão de habitantes. São Luís na lista do Patrimônio Mundial
Fonte :Silva(1996)
Apresenta, portanto, uma rara
oportunidade de assegurar a salvaguarda
e a preservação do seu valioso acervo Nesse documento observa-se que o
cultural. enunciador mobiliza vários discursos para
O Governo do Estado vem persuadir seu enunciatário. No primeiro
realizando um considerável esforço no parágrafo, o enunciador resgata a história da
sentido de viabilizar soluções. Nos fundação da cidade e discursiviza um fato que é
últimos 20 anos foram recuperadas curiosamente muito aclamado pelos
dezenas de quadras e mais de 200 maranhenses: o orgulho de ter sido colonizado
edificações de interesse histórico, além pelos portugueses, muito embora sua fundação
de dois grandes complexos industriais do tenha sido realizada por franceses1. Dizemos
século XIX agora readaptados para “curiosamente” porque a colonização no
funções modernas. Outras medidas de Maranhão foi um processo de caráter
natureza legal e institucional vêm sendo dominador, que consistiu na escravização de
aplicadas no sentido de valorizar e povos e de recursos naturais, levando à
proteger o acervo. construção de grandes impérios. Um dos
Pela extensão do conjunto e aspectos mais impressionantes da colonização
grandes áreas ainda em precário estado maranhense foi à escravatura, com a importação
de conservação, o governo estadual e a de grandes contingentes de negros africanos,
municipalidade de São Luís terão que com consequências nefastas, que perduram até
exercer doravante um permanente hoje, tanto para o Continente Negro, como para
trabalho no sentido de garantir a
continuidade dos programas de 1
Atualmente essa fundação é problematizada por
preservação já iniciados. Negociações estudos como os de Lacroix (2008).

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261
os descendentes dos escravos. Nesse parágrafo, É reticente, no quinto parágrafo, o
o enunciado “colonizado”, entretanto, adquire critério usado para eleger o que o enunciador
uma coloração semântica positiva, e a considera elementos “representativos da nossa
tonalidade negativa é diluída, por meio de história”, pois não é demarcada à qual história
manobras enunciativas. exatamente ele se refere; quando destaca no
No primeiro período, do segundo parágrafo cinco: “Mais extenso conjunto
parágrafo, o enunciador destaca que São Luís urbano e arquitetônico colonial da América
tornou-se, por conta da colonização Latina, com seus mais de 3.500 imóveis
portuguesa, “destino de inúmeros povos”, mas representativos de nossa história [...]”. Se o
não demarca, por exemplo, que entre esses enunciador toma apenas como referência o sítio
povos estavam também os índios e os negros, localizado no território do Centro, ele deixa de
os quais são silenciados na construção dessa contemplar a história de todas as outras partes
história. É ressaltado o discurso do passado da cidade que não se enquadram nesse campo,
glorioso da cidade de São Luís, que se destacou construindo uma imagem unilateral e não
pelos filhos ilustres, no período de grande abrangente da identidade local.
pujança da cidade, no século XIX. Nos sexto e sétimo parágrafos, o texto
Extremamente recorrente na memória dos formulado tem o intuito de persuadir os
maranhenses, como uma referência identitária, avaliadores da UNESCO construindo um
esse fato é trazido ao texto como argumento de cronótopo de cidade para São Luís que se
persuasão. Também vale enfatizar que o destaca pela dinâmica da produtividade,
acontecimento selecionado para representar o sugerindo que a preservação do patrimônio
valor que a cidade tem para alcançar o título de deve estar associada à utilização sustentável do
cidade patrimônio é a história da elite, dos lugar, já que não se trata apenas de consumir a
escolarizados, metonimizada nas figuras dos imagem visual, mas valorá-la. Essa proposta
“poetas, escritores e os políticos” que dialoga entre outros elementos com a
“materializou-se nos espaços urbanos, praças e democratização dos espaços não só para a
solares”. A partir dessa narrativa, elencada por atividade turística, mas para a população local,
esses atores, o cronótopo de cidade construído também, com o objetivo de construir elos
é também elitizado, de traços pujantes e sólidos de identificação.
europeus. O parágrafo seis condensa essa noção,
Até esse parágrafo, entretanto, o que é ao destacar: “Atualmente o Centro Histórico
representado como um bem patrimonial são concentra as principais funções administrativas,
manifestações de cunho elitista. financeiras e comerciais da Capital, que por sua
Nos terceiro, quarto e quinto vez é o epicentro de uma região metropolitana
parágrafos, o argumento se sustenta com base que atinge cerca de 1 milhão de habitantes
na arquitetura “única” da cidade, em que se [...]”.
destacam os materiais utilizados nas Nesse parágrafo a ideia de espaço de
construções, a adaptação do processo de memória liga-se intimamente à noção de espaço
construção europeu ao clima da cidade e a de produção de renda, numa perspectiva de
quantidade significativa de imóveis de padrão preservação sustentável.
colonial da cidade.

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deve ser preservado e constantemente
Vale ressaltar, no sétimo parágrafo, que
relembrado, manipulando tempo e espaço em
a ênfase recai novamente sobre o aspecto
função de uma construção de ideia de nação e
rentável do conjunto, com destaque para o
de cidade. O texto é heterogêneo na medida em
início, quando o enunciador afirma:
que traz enunciações de lugares como o do
O Governo do Estado vem realizando historiador e do arquiteto, da economia, do
um considerável esforço no sentido de turismo e de muitos outros.
viabilizar soluções. Nos últimos 20 Como efeito de sentido, essas
anos foram recuperadas dezenas de escolhas se apresentam como naturais; o
quadras e mais de 200 edificações de enunciador, e a própria enunciação, constroem
interesse histórico, além de dois uma naturalização dos itens que são eleitos
grandes complexos industriais do como objetos patrimoniais, essencializando
século XIX agora readaptados para certa ideia de passado, edificando a noção de
funções modernas. [...] (SILVA, que esse valor é constitutivo desses objetos.
1996, p. 37). Dessa forma, a enunciação, que consideramos
aqui o ato de escrever uma justificativa, com o
O aspecto de continuidade marcado no
fim de levar uma cidade ao título de cidade
gerúndio em “o governo do estado vem
patrimônio cultural da humanidade, que tem
realizando um considerável esforço no sentido
como destinatário um órgão que avaliará a
de viabilizar soluções” fragiliza o papel e o
dignidade desse conjunto, oculta o fato de essas
esforço dos outros governos nesse processo e
características nada terem de natural e são, em
põe em relevo o papel do governo atual, que
grande parte, produto de um jogo de poder.
reforça, no parágrafo seguinte, as articulações
Vale também ressaltar que a justificativa
políticas que desenvolve no sentido de garantir
distancia-se da ideia de diversidade, pregada
a preservação do centro histórico.
por documentos importantes, como a Carta de
No oitavo parágrafo, o enunciador põe
Veneza, a qual propõe um olhar sobre o
seu enunciatário a par do estado das políticas de
diverso, o heterogêneo.
preservação da cidade, na época. No nono
Nesse momento, houve, em São Luís,
parágrafo, o diálogo com as noções de
um esforço intenso da imprensa maranhense,
territorialidade, globalização e identidades deixa
principalmente aquela ligada ao grupo da
entrever a perspectiva de criar condições nessas
governadora Roseana Sarney, na divulgação
políticas de preservação para inserir o Centro
desse processo. Notícias em jornais impressos,
Histórico na rota de uma temporalidade
em telejornais, rádios, faziam circular entre a
contemporânea.
população o que a política estava fazendo. No
Vemos nesse espaço discursivo uma
próximo item, apresentamos parte desse
São Luís sendo construída com ares
movimento desencadeado na imprensa,
cosmopolitas, um lugar pensado para receber a
especificamente no Jornal O Estado, utilizado
humanidade, independente da nação de origem
como instrumento de divulgação do processo
dos seus visitantes. Vemos também o poder
de patrimonialização da cidade.
político se inscrever nesse espaço e ditar o que

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263
Nesta pesquisa, a imprensa é tomada
2.As Políticas do Reconhecimento de São pelo seu papel de formador de opinião e
Luís como Patrimônio Cultural da cristalizador de realidades. Analisa-se o jornal
Humanidade O Estado do Maranhão pelo fato de ser um
Na sociedade contemporânea, os meios periódico diário de grande circulação no estado
de comunicação de massa e, mais e também por ser o jornal da família da
especificamente, os jornais se destacam não Governadora Roseana Sarney, que comandou
apenas como formadores, mas, também, como as negociações que levaram a cidade ao título
armazenadores da memória social e nesse de Cidade Patrimônio da Humanidade. Desse
aspecto, eles podem ser pensados como lugares modo, buscamos nesse lugar de memória as
de memória, no sentido dado por Pierre Nora. manobras enunciativas e discursivas que
Segundo Nora (1988), a criação de lugares de construíram não só a ideia de cidade patrimônio
memória é garantia de que a memória subsistirá da humanidade, mas a memória da governadora
em algum lugar. Assim, arquivos, cemitérios, como a líder política que levou a cidade a
coleções, museus, festas, aniversários, tratados receber essa honraria.
constituem-se em signos de rememoração. É preciso, inicialmente, atentarmos para
A partir do ponto de visa de Nora, o fato de que, nesse lugar, existe uma
segundo o qual os lugares de memória podem apropriação de um real já fragmentado, que
ser pensados tanto da perspectiva material, será utilizado para construir uma visão, ainda
quanto das perspectivas simbólica e funcional, que parcial capaz de ser confundida com o
podemos considerar os meios de comunicação próprio real. Mas esse real não é capaz de,
de massa como lugares de memória da sozinho, significar. Isso porque ele reúne um
sociedade contemporânea, dadas as sistema de representações simbólicas que
interpretações mais restritas do conceito, dependem, para sua interpretação, tanto do
espaços privilegiados do arquivamento e trabalho do produtor, que deve organizá-las
produção da memória contemporânea. Assim é adequadamente, como das condições do
que, nas sociedades contemporâneas, há que se interlocutor, que deverá interpretá-las. A
considerar a intrínseca relação entre os interpretação, de certa forma, é o que dá
discursos midiáticos e a produção da memória sentido ao discurso, tanto quanto sua produção.
(ou como assinala Nora, uma memória que já Essa realidade é dada, portanto, por meio de
não é espontânea, mas produzida). Essas estratégias enunciativas, tanto verbais como
observações articulam-se à noção de não-verbais.
documento, pensada por Le Goff (2003), pois Os discursos se formam não só a partir
os jornais, como documentos, constroem do sujeito que fala, mas também por meio da
memórias e, paralelamente, edificam interação com o sujeito que recebe ou que se
identidades. Na condição de documento, o representa como suposto interlocutor. Esta
jornal não fica por conta do passado, pois é concepção remete ao dialogismo. Por essa
produto da sociedade que o fabricou, segundo razão, o discurso não tem um sentido único. É
relações de força, onde mais uma vez se certo que, por se tratar de uma construção
apresentam redes de poderes. dialógica, em grande medida o discurso se
ancora no real, na própria experiência dos

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receptores, o que direciona sua interpretação A UNESCO finalmente responde ao
para os caminhos definidos pelo produtor da relatório enviando a São Luís, em novembro de
mensagem. 1996, uma missão de reconhecimento chefiada
Não há, numa produção discursiva, pelo arquiteto representante do ICOMOS –
mensagens fechadas, uniformes, prontas para International Council of Monuments and Sites,
serem decodificadas pelos leitores/receptores; Júlio Angel Moroni, com o intuito de verificar
por outro lado, não há discursos livres de in loco, a veracidade das informações contidas
ideologias e interpretações. No entanto, não no relatório supracitado. Juntamente com
podemos perder de vista que é nas relações de Moroni vieram outras figuras importantes do
fronteira, nas situações de interação, que os cenário cultural, como atesta o Jornal o Estado
discursos sociais são construídos e apropriados. do Maranhão: “Veio acompanhado do
Este é o princípio que nos orienta neste presidente do ICOMOS a professora Suzana
trabalho. Cruz Sampaio e pelos arquitetos Jorge Derengi,
Por meio desses jogos de enunciação e Pedro e Dora Alcântara” (O ESTADO DO
discurso é construída uma relação intrínseca MARANHÃO, 04.12.1997, p. 6).
entre memória, identidade e imprensa. Nesse Em março de 1997 acontece em Paris à
sentido, a mídia assume papel importante, e reunião anual do ICOMOS, momento em que é
analisar as estratégias discursivas adotadas pela apresentado e aprovado o dossiê e o relatório
mídia local pode nos levar à percepção do de Júlio Morosi, que recomenda a inclusão de
processo discursivo de construção da noção de São Luís na lista de Patrimônio da Humanidade,
cidade Patrimônio Cultural da Humanidade para atestando na reunião que:
São Luís do Maranhão. O Centro Histórico de São Luís do
Considerando a importância dos jornais, Maranhão é um exemplo excepcional de cidade
como documentos que constroem memórias, colonial portuguesa adaptada com sucesso à
vale destacar que, no processo de vida contemporânea e às condições climáticas
reconhecimento da cidade de São Luís como da América do Sul equatorial e que tem
Patrimônio Cultural da Humanidade, o jornal O conservado dentro de notáveis proporções o
Estado do Maranhão ressalta o considerável tecido urbano harmoniosamente integrado ao
papel do IPHAN, principalmente nas ambiente que o cerca. (O ESTADO DO
orientações técnicas: pois foi esse órgão que MARANHÃO, 05.12.1997, p. 6).
subsidiou o pleito em nível nacional (O Nesse fragmento também é criada uma
ESTADO DO MARANHÃO, 19.12.1997, imagem de cidade patrimônio pautada em um
p.12). cronótopo de temporalidade heterogênea,
A argumentação utilizada para o agregadora de passado e atualidade.
recebimento do título foi atestada através de um No mês de dezembro de 1997, reúne-se
levantamento histórico e arquitetônico em Nápoles, Itália, o Comitê do Patrimônio
encomendada a uma equipe de consultores, Mundial, que homologa a decisão e
renomados profissionais, entre os quais faziam- oficialmente inclui São Luís na lista da
se presentes, principalmente, arquitetos e UNESCO. Com base nos incisos III, IV e V, da
historiadores, conforme analisamos. Convenção do Patrimônio Mundial:

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265
III – Testemunho excepcional de tradição cultural;
IV – Exemplo destacado de conjunto arquitetônico e construídas a partir de uma perspectiva da
paisagem urbana que ilustra um momento significativo história oficial.
da história da humanidade;
V – Exemplo importante de um assentamento humano As análises das matérias do Jornal O
tradicional que é também representativo de uma Estado do Maranhão evidenciaram estratégias
cultura e de uma época. discursivas adotadas pela mídia impressa local
Fonte: UNESCO (2005).
para a construção da noção de cidade
Incisos da Convenção do Patrimônio Mundial
Patrimônio Cultural da Humanidade. Também
sugerem, em linhas gerais, que o saber popular
Nesses incisos, é importante notar o
não era ainda reverenciado como digno de ser
jogo de temporalidades por meio do qual o
patrimonializado e, assim, era construída uma
enunciador busca afirmar o lugar como cultural,
noção de espaço voltado para aspectos
ressaltando as temporalidades múltiplas que se
elitizados da sociedade.
instauram nesse local. É um local que deve ser
valorizado por concentrar as marcas de um
passado importante para a humanidade, a qual Referências
deverá se identificar nesse espaço também.
Paralelamente às políticas oficiais, BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da
aconteciam outras formas de política, linguagem. 8. ed. São Paulo: Hucitec, 2006.
divulgadas em jornais, informativos em táxis, BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de
em ônibus, em comerciais de café e outros Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 2005.
veículos de comunicação da cidade. Eram
notícias que buscavam propagar a importância CUTRIM, K. São Luis patrimônio cultural da
do título entre a população e cristalizar humanidade e os discursos da preservação do
sentidos. patrimônio. In: CRUZ, M. et al. (orgs).
Nesse processo de divulgação do título, Discursos, sujeitos e sentidos: perspectivas
a mídia maranhense foi de fundamental identitárias.Curitiba:CRV,2014.
importância. Com o poder coercitivo que tem a LACROIX, M. L. A fundação francesa de São
mídia, os jornais locais fizeram crer à população Luís e seus mitos. 3. ed. São Luís: EDUFMA,
que o título recebido seria de grande 2008.
importância econômica e cultural para todos. LE GOFF, J. História e memória. 2. ed.
Campinas: Ed. Unicamp, 2003.
4. Considerações finais O ESTADO DO MARANHÃO. São Luís, 12
jan. 1990.
Na análise proposta à concepção de
patrimônio e daquilo que é digno de ser ______. São Luís, 4 dez. 1997. p. 6.
preservado na memória coexistem com um ______. São Luís, 5 dez. 1997. p. 6.
amálgama de interesses políticos, econômicos e ______. São Luís, 19 dez. 1997. p.12
valorativos da atualidade. Assim, o sujeito
promovido nos documentos corresponde aos NORA, P. O retorno do fato. In: LE GOFF, J.;
sujeitos da história oficial, bem como o espaço NORA, P. História: novos problemas. Rio de
e o tempo do Centro Histórico são dimensões Janeiro: Francisco Alves, 1988.

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266
SILVA, R. Preposição a Unesco – 1996.
Revisão do documento original. [S.l.:s.n], 1996.
UNESCO. Textos fundamentais da Convenção
do Patrimônio Mundial de 1972. 2005.
Disponível em:
<http://whc.unesco.org/uploads/activities/docu
ments/activity-562-1.pdf>. Acesso em: 12 set.
2010.
ROLNIK, R. História Urbana: História na
cidade? In: FERNANDES, A.; GOMES, M. A.
F (Orgs.). Cidade e história: modernização das
cidades brasileiras nos séculos XIX e XX.
Salvador: UFBA/Mestrado em Arquitetura e
Urbanismo, 1992.
.

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267
DA (CONTRA-)ASSINATURA: SABER, PODER, DESEJO E(M)
MANIFESTO

Marluza DA ROSA
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)
marluza.rosa@gmail.com

Resumo: Neste artigo, dedicamo-nos à análise de textos escritos e divulgados em meio


eletrônico, autointitulados “manifestos”, cuja temática concerne às propostas de
reestruturação do Ensino Superior, difundidas nas últimas décadas, no Brasil. Para esse
propósito, ancoramo-nos na articulação entre os estudos do discurso, da psicanálise e da
desconstrução, tal como esta vem sendo desenvolvida por Coracini (2007, 2010), com
vistas a potencializar uma leitura que explore os efeitos de sentido decorrentes desses
textos.
Palavras-chave: discurso; manifesto; ensino superior; reforma universitária; (contra-
)assinatura.

Yanoshevsky (2009), dentre outros. Contudo,


Introdução
nos estudos da linguagem e do discurso
Os manifestos costumam ser escritos brasileiros, esse caminho parece ainda pouco
breves, nos quais se materializa um discurso de trilhado. Trabalhos de grande envergadura,
contestação e ruptura, geralmente publicados como La parole pamphlétaire, de Marc
em jornais e revistas ou, mais recentemente, na Angenot, publicado em 1982, por exemplo, são
internet. Por sua importância histórica, é ainda pouco conhecidos e explorados no país.
comum associarmos o termo aos grandes
Deve-se à escassez de estudos nessa
manifestos políticos, artísticos ou literários que
direção e/ou que desenvolvam análises da
nos foram legados, como o Manifesto
problemática do ensino superior, sem tomar a
Comunista, de Marx e Engels, ou o brasileiro
Universidade como “estranha ao poder”, a
Manifesto Antropófago, de Oswald de
proposta desta discussão. Para tanto, faremos
Andrade. É fato que essa forma de escrita,
menção, aqui, a um recorte do corpus de nossa
chamada literatura de combate, tem recebido
pesquisa em desenvolvimento, constituído de
considerável ênfase no âmbito da crítica
quatro manifestos. Trata-se de 1) Uma outra
literária, que se volta para sua história e suas
universidade é possível, educação não é
características principais, como apontam os
mercadoria: manifesto em defesa do debate da
trabalhos de Lyon (1999), Dumasy e Massol
(2001), Gelado (2006), Puchner (2005)

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268
reforma universitária1, de 2005; 2) Manifesto (demanda de uma) assinatura coletiva. Aspectos
em favor de uma Reforma Universitária2, como esses fazem com que os manifestos
também de 2005; 3) Manifesto da universidade frequentemente assumam a condição de porta-
nova: Reitores de Universidades Federais vozes de um grupo ou de um movimento
Brasileiras pela Reestruturação da Educação filosófico, artístico, literário, político, etc.
Superior no Brasil, de 2006 e 4) Manifesto para Podemos entender que, como qualquer
as instituições de ensino superior à altura das texto, um manifesto se escreve em condições de
suas missões3, de 2012. Traçaremos um produção específicas que, segundo Lyon
percurso dividido em três momentos, a fim de (1999), aparecem relacionadas a momentos de
compreendermos, primeiramente, como se crise, a transformações, diríamos, que
caracteriza um manifesto; em seguida, de que compreendem também os modos de
modo a autoria coletiva desses textos se articula subjetivação. No que concerne à sua finalidade,
à noção de (contra-)assinatura, buscando a autora argumenta que um manifesto funciona
engajar interlocutores possíveis; e, finalmente, como o emblema de um combate político, na
como saber, poder e desejo podem se relacionar medida em que escrevê-lo implica uma tentativa
nessa forma de escrit(ur)a.
de participar simbolicamente em uma história de
1. Dos manifestos lutas contra forças dominantes4. Por se ancorar
na esfera do simbólico, essas batalhas são
Acredita-se que o termo manifesto
regidas por esse registro, ou seja, pela inscrição
advenha do Latim Manus fectus (mão hostil) o
na linguagem e em discursos, pela atualização
que aponta, já em sua etimologia, para a
constante de uma memória discursiva que não
tomada da palavra como um ato de
se desenoda dos laços sociais, tanto que esse
contraposição a uma ordem já estabelecida, de
ato de escrita equivale, ainda nos termos de
ruptura com determinados discursos ou,
mesmo, de violência. Por se valerem de uma Lyon (1999, p. 4), a “unir sua voz às
incontáveis vozes de conflitos revolucionários
linguagem assertiva e passional, os manifestos
precedentes”5.
são comumente interpretados como uma
exortação à ação. Além disso, segundo Rabatel É nessa voz coletiva que se supõe um
(2015), tais textos caracterizam-se pelo saber sobre a situação à qual seria preciso se
embasamento em uma análise da situação contrapor, um saber analisar o presente,
contra a qual se insurgem, por uma relação ancorando-se, para isso, em já-ditos, dados
injuntiva com seus destinatários e pela como irrefutáveis, na qualidade de princípios,
como no “Manifesto em favor de uma Reforma
1
Disponível em: Universitária”; fundamentos, como no
http://www.anped11.uerj.br/Uma%20outra%20uni- “Manifesto da universidade nova”; ou missões,
%20UNE%20fev%202005.pdf como no caso do “Manifesto para as
2
Disponível em:
http://www.espacoacademico.com.br/045/45univ_manisf
4
esto.htm “emblem of political combat: to write a manifesto is to
3
Disponível em: participate symbolically in a history of struggle against
http://www.univendebat.eu/manifeste/manifesto-para- dominant forces”.
as-instituicoes-de-ensino-superior-a-altura-das-suas- 5
“to link one’s voice to the countless voices of previous
missoes/ revolutionary conflicts”.

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269
instituições de ensino superior à altura de suas com os destinatários que representam (ou
missões”. Mais ainda, esse saber se consolida almejam representar), visto que, ao assumirem
quando esse “nós”, autor-enunciador coletivo, o lugar de suposto saber e de quem assume a
reivindica um lugar hierárquico de representante palavra, também abafam outros discursos
ou de porta-voz, como é possível ler nos igualmente contestatários, oficializando-se em
manifestos supramencionados: detrimento dos demais.

a) Somos professores universitários, A esse respeito, a análise de Lyon


defensores da escola pública como peça (1999) mostra-se pertinente, ao afirmar que,
fundamental de uma sociedade democrática mesmo que se proponham como uma escrita de
(Manifesto 2). combate, os manifestos não se eximem de
solidificar relações binárias e hierárquicas. Para
a autora, esses textos participam
b) Reitores de Universidades Federais
Brasileiras pela Reestruturação da de uma compreensão reduzida de campos
Educação Superior no Brasil (Manifesto 3). sociais heterogêneos, criando audiências
através de uma retórica de exclusividade,
parcelando identidades políticas através de
c) nós representantes de mais de dois um campo discursivo polarizado,
milhões de estudantes universitários de reivindicando para ‘nós’ o princípio moral
Instituições privadas apoiamos o debate em do idealismo revolucionário e construindo
curso sobre a Reforma Universitária ‘eles’ como tiranos ideológicos (LYON,
(Manifesto 1). 1999, p. 3)7.

Nesse sentido, à pergunta “o que são os Proceder em uma escrita polarizadora


manifestos”, Abastado (1980, p. 5) responde implica estabelecer, quando não uma tentativa
serem estes “o lugar privilegiado de uma leitura de inversão hierárquica, uma relação unilateral
do imaginário de uma cultura”6. Imaginário este e/ou antagônica entre certo e errado, “nós” e
no qual a busca pela conquista de poder “eles”, como argumenta a autora. Essa tentativa
simbólico implica, de antemão, a assunção de é, na verdade, característica das relações de
certo lugar de poder, de propriedade, do falar poder e, em um conflito que se dá na/pela
de dentro. Sendo assim, embora contrapondo- palavra, no/pelo discurso, pode significar a
se à lógica dominante e se configurando como sobrevida ou o enfraquecimento de um texto. A
um discurso secundário e, de certo modo, permanência nada mais é do que efeito desse
marginal, os manifestos instauram um duplo embate, que pressupõe leituras, interpretações
jogo de poder-saber: por um lado, na relação
hierárquica entre si mesmos e o discurso 7
“the manifesto participates in a reduced understanding
hegemônico, com o qual combatem; por outro, of heterogeneous social fields, creating audiences
na relação também assimétrica que estabelecem through a rhetoric of exclusivity, parceling out political
identities across a polarized discursive field, claiming
for ‘us’ the moral high ground of revolutionary
6
“le lieu privilégié d'une lecture de l'imaginaire d'une idealism, and constructing ‘them’ as ideological
culture”. tyrants”.

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270
substância e fonte de seu vigor 9
que são, sempre, ativas e seletivas. Como (ABASTADO, 1980, p. 6)
acrescenta Abastado (1980, p. 6), o sucesso em
um embate dessa ordem pode transformar a
marginalidade em norma, pode instituir outra Desse modo, a lógica neoliberal
ortodoxia. Já o fracasso pode fazer com que o dominante, responsável, como (d)enunciam
manifesto e seu movimento sejam esquecidos diversos manifestos, pelo “privatismo”
pela história8. De fato, como mencionamos na (Manifesto 2) do/no âmbito universitário, lógica
introdução a este artigo, grandes manifestos nos “do mercado e da normalização mundial”, na
são legados, pois permaneceram em relação a qual são privilegiados “os saberes utilitaristas e
um futuro por meio de um trabalho de arquivo, ‘vendáveis’ à custa das ciências fundamentais e
ou seja, de seleção, de leitura. Porém, nunca dos saberes de âmbito humanista, críticos e
teremos a dimensão exata de quantos reflexivos” (Manifesto 4), pode facilmente
permanecem perdidos, escondidos, silenciados, absorver e converter a seu favor os vários
analogamente ao que considera Derrida (2012), discursos de resistência que possam surgir,
referindo-se aos “pequenos autores”, talvez abafando esse ruído. Devido a tal
geniais, mas que, por alguma razão, funcionamento, é impossível saber a priori se
desapareceram, foram “suicidados” pela determinado manifesto não acabará por
sociedade. disseminar o próprio discurso que combate,
pois, para que seja inteligível enquanto texto de
Se pensarmos na conjuntura atual e nas contestação, deve atualizar esse discurso, deve
condições de produção dos manifestos escritos estar a ele interligado no âmbito da memória
e divulgados on-line contemporaneamente, não discursiva, mas também no plano de sua
é difícil imaginar seu rápido esquecimento ou as textualização.
transformações nas situações e nas formas que
serão lidos, se o forem. Embora produzida Talvez se deva a esse aspecto a
ainda nos anos 1980, a reflexão de Abastado estratégia linguístico-discursiva de nem sempre
permanece atual acerca dessa questão, pois, se nomear o adversário. Em alguns dos
para o autor, manifestos que analisamos, é possível apontar
essa indefinição do interlocutor-opositor, dentre
em um sistema político liberal e em um outros recursos, pelo uso de sintagmas
contexto intelectual aberto, a mensagem de nominais que produzem um efeito de
um manifesto passa e é rapidamente generalização, como nos seguintes excertos:
fagocitada, diluída nas contradições da
ideologia dominante que faz dela sua a) aqueles que temem ver seus privilégios
expostos e questionados abertamente por
um conjunto mais amplo da população
brasileira [...] protagonistas de novas

8 9
La réussite transforme la marginalité en norme, Dans un système politique libéral et un contexte
institue une nouvelle orthodoxie, fait succéder à l'esprit intellectuel ouvert, le message d'un manifeste passe mais
de conquête le souci de maintenance […] L'échec fait il est très vite phagocyté, dilué dans les contradictions
sombrer le mouvement manifestaire dans les oubliettes de l'idéologie dominante qui en fait sa substance et en
de l'histoire. tire sa vigueur.

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271
formas de privatismo que tomaram corpo
Assim, para que se afixem10, ou seja, para que
no interior das universidades (Manifesto 2).
se mantenham, os manifestos dependem não só
de um número de assinaturas, mas também de
b) Os estilos actuais de governação das uma contra-assinatura, a qual, em termos
instituições do ensino superior vão ao derridianos, diz respeito a um (re)conhecimento
encontro desta visão da instituição de ensino que ocorre sempre em um espaço público, em
superior. Estes estilos têm como palavras um espaço político, e possui o futuro como
principais eficácia, rentabilidade e temporalidade: “esse futuro perfeito que
competitividade (Manifesto 4). naturalmente politiza a obra, que a entrega a
uma outra pessoa, isto é, à sociedade, a uma
Ainda que esse outro nem sempre seja instituição, à possibilidade da assinatura”
nomeado, o tom manifesto, dada sua seleção (DERRIDA, 2012, p. 37). Tempo futuro que
lexical, é visivelmente de oposição e de ruptura, indica, igualmente, a promessa e o adiamento
o que é ratificado pelos princípios, fundamentos da ruptura.
e missões retomados, bem como por apelos e
2. Da (contra-)assinatura
propostas para situações futuras e/ou
diferenciadas. Não é preciso mencionar que Autodesignar-se “manifesto” e/ou
essa escrita de embate presume a existência e, caracterizar-se como um texto coletivo,
de certo modo, a eficácia do discurso todavia, não é o suficiente para que se
combatido, pois, do contrário, sem um reconheça um manifesto como tal. Se, como
oponente “à altura”, perderia seu sentido. Além define Abastado (1980, p. 4), “nomeia-se
disso, ancora-se em ideais democráticos, ‘manifesto’ todo texto que toma violentamente
regidos pelas mesmas leis dos discursos oficiais posição e institui, entre um emissor e seus
autorizados, o que nos permite indagar, com alocutários, uma relação injuntiva flagrante”11,
Foucault (1988, p. 17), se esse funcionamento sabemos que as fronteiras entre um texto e
discursivo não se inscreve na “mesma rede outro são tênues. Como bem pontuou Foucault
histórica daquilo que denuncia”, já que, fora (2009), nem sempre podemos isolar as unidades
dessa rede, talvez não tivesse lugar. Esse com as quais nos relacionamos, pois
aspecto leva-nos a interrogar, também, de frequentemente não temos critérios para fazê-
acordo com Angenot (2015), se os manifestos lo, para convertê-las e fechá-las em uma
analisados podem ser caracterizados como totalidade. Essas distinções – entre manifesto,
formas de resistência ou se, longe de panfleto, petição, por exemplo – são frágeis,
desestabilizar, alimentam o mecanismo da como argumenta também Abastado (1980), por
própria lógica hegemônica. se tratarem de interpretações decorrentes de
modos de leitura em circunstâncias históricas
Dada essa condição, outro elemento
deve ser salientado: a (contra-)assinatura,
10
enquanto projeção, endereçamento ao outro. Um manifesto pode ser lido como um afixo, uma
exposição (geralmente escrita) pública e, mais ou
menos, estável.
11
“on nomme ‘manifeste’ tout texte qui prend
violemment position et institue, entre un émetteur et ses
allocutaires, une relation injonctive flagrante”

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272
determinadas. Dependendo do modo como universitários, apoiados pela UNE, por 8 UEE e
esses textos são recebidos, os efeitos de sentido pelos DCE de 85 IES12 (Manifesto 1); 2.957
que produzem podem deslizar, deslizando assinaturas na versão em português (Manifesto
igualmente sua classificação. O fato é que, para 4) – mas também por projetar mudanças,
além do título, a compreensão de um texto transformações, por expor demandas, que o
como sendo ou não um manifesto é fruto de manifesto também é visto “como um gênero
uma leitura, centrada seja em sua forma, seja que, de forma única, representa e produz as
em seu tom, seja em seu caráter fundador; seus fantasias, esperanças, aspirações e deficiências
efeitos de sentido e seu estatuto advêm, da modernidade” (PUCHNER, 2005, p. 7).
portanto, das vezes e do modo como é lido e Desse modo, esses textos compartilham
arquivado. Embora tenhamos herdado muitos também das ilusões constitutivas dessa
textos, sejam eles históricos, filosóficos, modernidade, como a ilusão de transparência
científicos, literários, revolucionários ou não, pragmática entre dizer e fazer. Esta última
estaremos sempre diante de um recorte permanece atrelada ao campo da esperança e da
historicamente determinado. promessa que não tem outro direcionamento
senão o receptor-destinatário.
A essa leitura podemos chamar de
contra-assinatura, contanto que consideremos Assim, falar de contra-assinatura implica
que esta última precede a obra, segundo pensar que “tudo começa [...] com o receptor”
Derrida (2012). Dito diferentemente, nos (DERRIDA, 2012, p. 36). No que concerne ao
termos do autor, a atestação de uma assinatura endereçamento ao outro, é possível afirmar,
se dá com base na contra-assinatura. Se a retomando a condição de porta-vozes que
primeira pode ser vista, não como um simples assumem, que os manifestos também funcionam
nome próprio, mas como um gesto de de modo a construir e a articular identidades de
responsabilidade, “um ato discursivo” ou “um grupo, uma vez que, nos termos de Abastado
performativo por meio do qual alguém se (1980, p. 7), um manifesto pode ser visto como
compromete a alguma coisa” (DERRIDA, “o ato fundador de um sujeito coletivo (mas
2012, p. 34), a segunda a precede pelo fato de não institucional): trata-se de dar existência,
que esse ato (performativo ou não) deve ser como entidade reconhecida, a [...] um grupo
reconhecido como tal. Portanto, ainda segundo animado por convicções comuns e pelo desejo
Derrida (2012, p. 35), “se não há contra- de ação”13. Um aspecto recorrente e que apela à
assinatura a assinatura não existe”, afirmação identificação do leitor-destinatário é o emprego
que repercute diretamente na sobrevida dos de um nós inclusivo, ligado a verbos de
manifestos, na medida em que precisam ser exortação, como em:
assinados e contra-assinados, ou seja,
reconhecidos em seu funcionamento. 12
Respectivamente: União Nacional dos Estudantes
(UNE), União Estadual dos Estudantes (UEE), Diretório
É não só por se ancorar em Central dos Estudantes (DCE) e Instituições de Ensino
assinaturas/identificações múltiplas – um Superior (IES).
conjunto de professores universitários, 13
“l'acte fondateur d'un sujet collectif (mais non
subscrito por 351 nomes (Manifesto 2); institutionnel) : il s'agit de faire exister comme entité
representantes de mais de 2 milhões de reconnue […] un groupe animé par des convictions
communes et le désir d'action”.

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273
existir um autêntico projeto nacional.
Torna-se também indispensável o papel do
Conclamamos os colegas, alunos,
Estado na regulamentação do Ensino
servidores das universidades, mas também
Privado garantindo assim sua função social
aos governos, partidos, ao Congresso
e estratégica (Manifesto 1).
Nacional e, sobretudo, a população
brasileira em suas mais diversas formas de
organização (Manifesto 2). Explorar o efeito de endereçamento de
um texto a um interlocutor construído não
Destacam-se ainda, nessa demanda de prescinde do fato de que um destinatário
(contra-)assinatura, de reconhecimento, de (mesmo não projetado) possa integrar um
validação, elementos que apontam, por um espaço político e social, espaço do
lado, para o engajamento e a responsabilidade reconhecimento de um texto, segundo Derrida
pontual dos próprios propositores do manifesto, (2012), de sua contra-assinatura. Ora, na leitura
visando a um consenso e ao bem da proposta por Mazère (2005, p. 46), “o desejo
comunidade, como uma forma de convite- está direta e imediatamente conectado ao social
garantia ao outro, como em: e ao político, é nesse sentido que ele constitui
sempre uma força de subversão”14. É pensando
os Reitores subscritos se nessa direção que o atrelamos às relações de
COMPROMETEM pessoalmente com a poder-saber.
tarefa de construção desse processo de
3. Desejo e(m)manifesto
reestruturação, e a empenhar-se no
envolvimento democrático de toda a Podemos considerar que os manifestos
comunidade universitária, os poderes de possibilitam uma reflexão sobre o desejo, na
Estado e a sociedade brasileira no debate medida em que estes se articulam à promessa
correspondente (Manifesto 3). adiada, para sempre insatisfeita, de uma
identidade una e múltipla, de um coletivo de
Por outro lado, recorre-se também ao vozes que ressoem em uníssono. Tais demandas
eixo do obrigatório, ao dever e/ou à falta de podem ser atreladas, assim, ao desejo enquanto
alternativas, associado, por sua vez, à expressão desejo do Outro, tomado aqui enquanto campo
de um princípio universal, que, além de simbólico, onde se faz laço social.
assinalar um afastamento do sujeito da Ao manifestar um saber sobre o discurso
enunciação, também visa a anular qualquer (em geral, dominante) ao qual se contrapõe e ao
abertura a um possível contra-argumento, como propor uma mudança (ou uma ruptura), bem
em: como ao suscitar a identificação especular dos
destinatários, por meio da assinatura – a qual,
A Universidade é o espaço onde as nações
além de ser um gesto de responsabilidade, é
buscam sua autonomia, construindo seus
referenciais, seus valores e sua cultura. É investimento e inscrição de si –, o
instituição comprometida fundamentalmente funcionamento do manifesto pode apontar para
com os destinos da Nação e das futuras
14
gerações. É por isso que sem Universidade "le désir est directement et immédiatement connecté
pública, autônoma e de qualidade não pode au social et au politique, c’est en ce sens qu’il constitue
toujours une force de subversion.

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

274
um entrelaçamento entre saber, poder e desejo. instaura o desejo, o qual, por sua vez, remonta
Para Abastado (1980), constantemente ao que foi perdido e é
irrecuperável, permanecendo, portanto,
Os manifestos, enfim, são máquinas do insatisfeito. Diferentemente da demanda,
desejo […] pode-se observar que um expressa por palavras e em objetos, manifesta
manifesto produz sempre o efeito de no querer, o desejo não sabe ser dito. Para
estruturar e de afirmar uma identidade [...]
Lacan (2005, p. 33), “não só não há acesso ao
Esse intento explica o ritual de
meu desejo, como sequer há uma sustentação
autodestinação da escrit(ur)a manifestária:
os signatários nela informam e contemplam
possível de meu desejo que tenha referência a
uma imagem especular15 (ABASTADO, um objeto qualquer”. Contudo, embora o
1980, p. 7). sujeito deseje sempre em vão, o desejo se
articula às demandas (individuais, que podem
convergir no social), uma vez que estas
Nos manifestos decorrentes dos
caracterizam-se como tentativas de saná-lo.
movimentos em prol da reforma ou da
reestruturação da Universidade, como já Nesse sentido, se o desejo pode ser
colocamos, observamos que os enunciadores e pensado como um endereçamento ao
destinatários são identificados como outro/Outro, os manifestos funcionam de modo
professores e estudantes – posições que a potencializá-lo, apresentando-se, de acordo
envolvem certo saber reconhecido – com a leitura de Puchner (2005, p. 2), como
“defensores da escola pública”, “representantes “meios para um fim, demandando serem
de milhões de estudantes universitários”, que julgados, não por seus méritos retóricos ou
vivenciam a precarização do meio acadêmico, o literários – sua poesia –, mas por sua habilidade
que implica uma relação de poder, que, ao de mudar o mundo”16. É nessa promessa, que,
mesmo tempo, evoca e convoca a identificação, para o autor, manifesta-se um anseio de
seja a traços de uma imagem de abertura, central no manifesto. Tal promessa
estudante/professor em construção, seja a um pode ser associada, também, à força de
discurso marcado por reivindicações, subversão de que trata Mazère (2005),
proposições ou mudanças almejadas. anteriormente citada, enquanto possibilidade
sempre iminente (mas também adiada) de
Na perspectiva de Lacan (2005), toda
mudança social e política, de proposição de
relação com o outro/Outro passa pelo desejo,
uma outra/nova realidade, como sugere o título
pois a entrada do sujeito no simbólico, que o
do Manifesto 1.
torna um ser de linguagem, um ser falante,
também marca uma privação, uma clivagem: Uma outra universidade é possível,
algo se perde, e é essa perda, essa falta, que educação não é mercadoria (manifesto 1).

15
Les manifestes enfin sont des machines du désir […]
on peut observer qu'un manifeste a toujours pour effet de
structurer et d'affirmer une identité […] Cet intenté
16
explique le rituel d'auto-destination des écritures means to an end, demanding to be judged not by their
manifestaires : les signataires y informent et rethorical or literary merits – their poetry – but by their
contemplent en elles une image spéculaire. ability to change the world.

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275
Ao analisar o tema do Fórum Social Procuramos, com este breve percurso,
Mundial de 2001, “um outro mundo é apontar alguns caminhos de leitura para uma
possível”, Beck (2005, p. 45) argumenta que tal escrita de contestação e de embate, tal como a
formulação funciona como um slogan e que se entretece nos manifestos para os quais
“permite um engajamento, uma pertença, a nos voltamos. Para além desta leitura pontual,
afirmação de uma convicção e o chamado à que, certamente, necessita de aprofundamento,
mobilização”. Vemos que, ao se afirmar a por meio de debates e de outras escritas, os
possibilidade de existência de outra manifestos também possibilitam a
universidade, por meio de uma formulação com problematização de um ideal de Universidade
tom universal, dado pelo verbo assertivo ser, que constantemente compartilhamos e
assegura-se um saber que assume o estatuto de ajudamos a disseminar – uma abstração, uma
verdade, barrando qualquer questionamento (é ficção – templo do saber, lugar da produção de
assim ou sabemos que é assim). Além disso, verdades, que, contemporaneamente (já faz
como argumenta o autor, tal asserção pode parte de um consenso), tem lutado para não ser
marcar também a contraposição a um deglutido pela voracidade do que se tem
préconstruído, a um discurso (ou a discursos) chamado de neoliberalismo. Se, nos termos de
que afirmaria só haver um mundo, uma Derrida (2003, p. 20), a universidade, apesar de
universidade viável, o que caracteriza, na fazer “profissão da verdade”, longe de ser
materialidade linguística, a remessa a outros soberana, é impotente e frágil “perante os
sentidos e a outros enunciados não ditos, mas poderes que a comandam, assediam-na e tentam
latentes, construindo, com estes, uma relação dela se apropriar”, parece-nos imperativo
de silenciamento e, também, de poder. Nos discuti-la sem que insistamos em seu
manifestos, essas relações complexas de saber- estranhamento quanto aos poderes-saberes que
poder se tecem à promessa de mudança e de a constituem e a movimentam. Atentar para
uma universidade por vir. Trata-se, contudo, do ruídos, tais como os manifestos, pode ser uma
âmbito do desejo por se apelar a um possível, via para a compreensão desses embates.
por se prometer e se assegurar esse outro No que tange aos manifestos, podemos
mundo (outra universidade) almejado.
afirmar, a partir do que aqui discutimos, que
Sendo assim, podemos afirmar que, se o sua sobrevida resulta de um trabalho de
sujeito nada sabe de seu desejo, posto que não arquivo, de mal de arquivo, de leituras que são
o acessa, e, se o desejo é uma incógnita, como violentas, porque seletivas. Se serão contra-
pontua Lacan (2005), é a um lugar vazio que o assinados, reconhecidos em seu caráter de
sujeito o endereça; lugar que, no entanto, manifesto, em sua força de ruptura, ou se serão
funciona (ou parece/finge funcionar) como fagocitados, inscritos como mais um elo de uma
possibilidade de (cor)responder às suas longa cadeia ininterrupta, é uma questão de
demandas e aos seus sintomas. Ora, nenhum inscrição, de tomada de um espaço público e
lugar é mais vazio e mais auspicioso do que o político, combate ainda permeado de
diferente e o possível. incontáveis vozes.
4. Considerações finais

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

276
Referências ______. História da sexualidade. vol. I. Trad.
Maria Thereza Albuquerque e Guilhon
ABASTADO, C. Introduction à l’analyse des
Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
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http://www.persee.fr/web/revues/home/prescrip São Carlos: EDUFSCar, 2006.
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ago. 2015. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
ANGENOT, M. O discurso social e as LYON, J. Manifestoes: provocations of the
retóricas da incompreensão. Trad. Carlos modern. Cornell University, 1999.
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MAZÈRE, L. Devenir-femme chez Deleuze et
BECK, M. Um outro mundo é possível? Do fim Guattari. Cahiers du Genre. n. 38, p. 43-62,
da história a outros sentidos possíveis. 2005. 2005.
79f. Dissertação (Mestrado em Letras) –
Centro de Artes e Letras, Universidade Federal RABATEL, A. Une analyse de discours du
de Santa Maria, Santa Maria, 2005. manifeste « Pour des universités à la hauteur de
leurs missions » pour une alternative à la
CORACINI, M. J. A celebração do outro. gestion libérale des universités e de la recherche
Campinas: Mercado de Letras, 2007. en Europe. Semen, n. 39, 2015 [no prelo].
______. Transdisciplinaridade e análise de PUCHNER, M. Poetry of the Revolution:
discurso: migrantes em situação de rua. Marx, Manifestos, and the Avant-Gardes.
Cadernos de Linguagem e Sociedade, n. 11, Princeton University Press, 2005.
v.1, p. 91-112, 2010.
YANOSHEVSKY, G. Three decades of writing
DERRIDA, J. As artes espaciais: uma on manifesto: the making of a genre. Poetics
entrevista com Jacques Derrida. In: DERRIDA, Today. 30:2. Porter Institute for Poetics and
Jacques. Pensar em não ver: escritos sobre as Semiotics, 2009, pp. 257-286. Disponível
artes do visível (1979-2004). Florianópolis: Ed. em:http://www.academia.edu/3819054/Three_
UFSC, 2012. Decades_of_Writing_on_Manifesto_The_Maki
______. A universidade sem condição. Trad. ng_of_a_Genre>. Acesso em: 14 set. 2015.
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DUMASY, L; MASSOL, C. Pamphlet, utopie,
manifeste : XIXe-XXe siècles. Editions
L'Harmattan, 2003.
FOUCAULT, M. A arqueologia do saber.
Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2009.

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277
FUNCIONAMENTO DISCURSIVO DO CLUBE DE AUTORES

Vitória Ferreira DORETTO; Ana Silvia Couto de ABREU


Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
vickydoretto@gmail.com; anaabreu@ufscar.br

Resumo: Este artigo visa apresentar, de forma sucinta, a análise feita sobre o
funcionamento discursivo da plataforma brasileira Clube de Autores, durante pesquisa de
Iniciação Científica entre os anos de 2013 e 2015, neste caso enfocando principalmente
os deslizamentos de sentido compreendidos na ocorrência do termo autor.
Palavras-chave: discurso; autoria; digital.

América Latina, o que traz desdobramentos


Introdução
políticos e sociais ao modificar as relações de
Neste artigo, apresentaremos um dos publicação.
pontos analisados durante projeto de Iniciação
Tendo exposto isso, nosso foco neste
Científica, realizado entre os anos de 2013 e
artigo será explicar de forma sucinta as
2015, financiado pelo CNPq, no qual tomamos
mudanças em autoria que o site possibilita, bem
enquanto corpus o site brasileiro de
como a forma que o site materializa a previsão
autopublicação Clube de Autores
de que, com o advento da tecnologia, a forma
(www.clubedeautores.com.br).
de autoria seria modificada – afinal, uma nova
A pesquisa discorreu sobre o estudo do forma de ver o livro se traduz em uma nova
funcionamento discursivo do Clube de Autores, forma de autoria. A nova forma de autoria
visando compreender o funcionamento do site, promovida pelo Clube requer um sujeito que
analisar seu jogo parafrástico, seu jogo de reúna todos os componentes necessários para a
deslizamentos dos sentidos de autor, direito edição, o autor mais do que escritor do livro,
autoral, obra, edição de obra, mediação no deve ser o preparador do texto, o revisor, o
processo de circulação; e também compreender diagramador, o capista e também aquele que
qual foi a contribuição do site para fortalecer o escolhe o que será ou não publicado, ou seja, o
campo da criação, circulação e gestão de bens editor.
culturais, além de analisar a frequência de
Não há uma função separada para cada
determinados gêneros publicados pelo site.
atividade, e é justamente por isso que o sentido
A escolha pelo Clube de Autores se deu de autor se amplia, para se tornar algo ainda
por, além de ser nacional, ser a maior inominado. Como denominar uma função tão
plataforma digital de autopublicação da

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278
multifacetada como a criada pelo Clube de Consideramos, portanto, que não há um
Autores? arquivo fechado com todas as manifestações
sobre direitos autorais, mas sim um arquivo,
1. Abordagem teórica e metodológica
entendido como “campo de documentos
O corpus dessa pesquisa compreendeu, pertinentes e disponíveis sobre uma questão”,
além do site do Clube de Autores, o blog dos em constante movimento, sendo que o
desenvolvedores e funcionários do Clube de surgimento de novos discursos/documentos
Autores (blog.clubedeautores.com.br), a ressignifica os documentos já presentes no
plataforma especial do site para livros escritos arquivo, bem como há gestos de leitura
por crianças, o Clubinho de Autores diferentes “na construção do arquivo, no acesso
(www.clubinhodeautores.com.br) e a seção de aos documentos e a maneira de apreendê-los”
ajuda do Clube, a Universidade do Autor (PÊCHEUX, in ORLANDI, 1994, p.57).
(clubedeautores.com.br/webpage/universidade-
do-autor), para autores da plataforma que 2. Análises e discussão
desejam aprender a divulgar e diagramar seus O termo autor utilizado no corpo dos
livros, além de outras informações. textos explicativos disponíveis em todo o site
do Clube de Autores, nos faz compreender uma
Colocamos em foco questões essenciais
série de diversos sentidos sendo empregados a
sobre a relação entre direito de autor, acesso ao
essa palavra. Nenhuma novidade haveria aí,
saber produzido e posição brasileira, fazendo-o
pois Pêcheux e Orlandi já o disseram. Para
em uma perspectiva discursiva, inscrita na
Pêcheux (1975, apud ORLANDI, 2003 p.17),
filiação teórica da Análise de Discurso que tem
“os sentidos não estão nas palavras elas
como referências Michel Pêcheux (1988, 1990),
mesmas. Estão aquém e além delas”; para
Michael Foucault (1992) e Eni Orlandi (2000,
Orlandi (1999, p.42):
2005). E as questões que nos mobilizaram
partiram do pressuposto de que o sujeito, como (...) o sentido não existe em si mas é
afirma Orlandi (2005, p.44), determinado pelas posições ideológicas
colocadas em jogo no processo sócio-
no dizer, se significa e significa o mundo. histórico em que as palavras são
Nessa perspectiva é que consideramos que a produzidas. As palavras mudam de sentido
linguagem é uma prática. Não no sentido de segundo as posições daqueles que as
realizar atos, mas porque pratica sentidos, empregam.
ação simbólica que intervém no real.
Pratica, enfim, a significação no mundo. O
sentido é história e o sujeito se faz (se A novidade no Clube de Autores,
significa) na historicidade em que está portanto, é, além de uma mudança no jogo
inscrito. socio-histórico das palavras, uma mudança no
conceito de autoria e autonomia de autoria.
Cabe ressaltar que “não há discurso A mudança de sentido nesse vocábulo,
fechado em si mesmo, mas um processo porém, é algo possivelmente previsto, já que no
discursivo do qual se podem recortar e analisar século passado Foucault o denominava como
estados diferentes” (ORLANDI, 2000:62). função autor e explicava que essa função “(...) é

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279
característica do modo de existência, de espanhola, o autor original é apagado,
circulação e de funcionamento de certos removido, esquecido para dar lugar à pessoa
discursos no interior de uma sociedade” (1992, que paga pelo uso do escrito. Ainda sobre as
p.14) e que mudanças quanto à palavra, ele continua nos
contando que:
ela não se forma espontaneamente como a
atribuição de um discurso a um indivíduo. É A evolução terminológica é uma conquista
o resultado de uma operação complexa que progressiva da autoridade dos auctores
constrói um certo ser de razão que se chama pelos actores e, finalmente, a utilização
de autor (Ibid, p.16). sistemática do termo latim ou da palavra
francesa acteurse estabelece, no final do
Tal definição foi retomada por Chartier século XIV e durante o século XV, para
designar ao mesmo tempo os autores da
em sua revisão da conferência feita por
tradição, da Antiguidade ou do período
Foucault na Sociedade Francesa de Filosofia e
Cristão, e certo número de escritores de
complementada com a afirmação de que a textos publicados em língua vulgar. A partir
função autor: de 1530, esse termo moderno “autor” é
substituído pelo termo “ator”, investido do
resulta, portanto, de operações específicas,
que antigamente pertencia propriamente às
complexas que relacionam a unidade e a
auctoritates. A palavra escritor adquire não
coerência de alguns discursos a um dado
apenas o sentido daquele que copia, mas
sujeito. Do que deriva o duplo processo, de
também daquele que compõe, e o termo
seleção e de exclusão, que estava no coração
invenção não define mais apenas aquilo que
da reflexão de Foucault. Um processo que
é decifração do que Deus criou, mas
se ocupa primeiro dos enunciados, fazendo a
também aquilo que é criação humana
triagem daqueles que são atribuíveis a esta
original. (2012 p.58).
função e daqueles que não o são (2012, p.
8).
É então a partir de 1530 que o
escritor/autor passa a ser visto como o
O autor dessa época seria, então, aquele
conhecemos hoje, mais do que ser a pessoa que
que comporia o texto e após sua escrita seria
faz as cópias do texto de terceiros, ele é aquele
também o responsável por fazer os ajustes
que o cria. No Clube de Autores essa função
necessários – correção de termos, exclusão ou
ainda se mantém; no entanto, outras atividades
inclusão de informações, entre outros – para
são acrescentadas/aglutinadas ao termo.
que a coerência fosse alcançada. Traçando um
Contudo ainda assim havia mais uma relação
paralelo entre passado e presente, tais
dentro da atividade do autor, “a relação de
atividades, hoje, no mercado editorial foram
apropriação: o autor não é exatamente nem o
separadas e os ajustes ficariam a cargo do
proprietário nem o responsável por seus textos;
revisor ou preparador de textos.
não é nem o produtor nem o inventor deles”
Mas Chartier, ainda em sua conferência, (FOUCAULT, 1992, p.2).
também nos lembra que houve outras mudanças
quanto ao uso de autor, a começar pela língua

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

280
for a vontade de quem irá publicar por meio da
Percebemos também que Chartier já
plataforma, não há um papel separado para
esperava que houvesse alguma modificação no
cada uma dessas atividades e é justamente por
papel do autor, pois:
isso que o sentido de autor se amplia, para se
(...) uma nova forma de livro produz novos tornar algo ainda inominado. Nossa discussão
autores, ou seja, que na construção do autor gira justamente ao redor desse papel trazido
é uma função não apenas no discurso, mas para o autor.
também de uma materialidade, Como notado em uma das primeiras
materialidade e discurso que na minha postagens do blog do Clube, o site cria a ilusão
perspectiva de análise são indissociáveis
de controle quando diz que “(...) essa será uma
(2012, p.62-63).
importante atualização, pois dará ao autor o
controle efetivamente pleno sobre a sua obra”
Vemos então que o site materializa uma (Blog do Clube de Autores, 2009, grifo nosso),
nova forma de ver o livro – que se traduz em o que Pêcheux (2008) havia dito que é um
uma nova forma de autoria. Essa nova forma de desejo semanticamente normal:
autoria requer uma pessoa que reúna todos os
componentes necessários para a edição, o autor O sujeito pragmático – isto é, cada um de
além de escrever o texto a ser publicado, deve nós, os “simples particulares” face às
ser o preparador do mesmo, o revisor, o diversas urgências de sua vida – tem por si
diagramador, o capista e também aquele que mesmo uma imperiosa necessidade de
escolhe o que será ou não publicado, ou seja, o homogeneidade lógica (...). (2008, p.33).
editor. Editor esse que já fora problematizado
por Chartier: e

(...) e, por outro lado, um setor que seria De nada serve negar essa necessidade
aquele da edição digital, no qual se (desejo) de aparência, veículo de disjunções
reencontrarão, para se dissociar ou se aliar, e categorizações lógicas: essa necessidade
os interesses de autores e os interesses de universal de um “mundo semanticamente
editores – será preciso então definir o papel normal”, isto é, normatizado, começa com a
de editores sob essa nova forma –, o que relação de cada um com seu próprio corpo e
conduz sem dúvida, tentando aí resguardar o seus arredores imediatos (e antes de tudo
que é profundamente novo na técnica com a distribuição de bons e maus objetos,
eletrônica, a inventar uma nova forma de arcaicamente figurados pela disjunção entre
fixidez e de estabilidade dos textos. alimento e excremento) (2008, p.34),
(CHARTIER, 2012, p.88).
Pois todo indivíduo sente a necessidade
Como já comentado, na prática da de pertencer a um mundo normatizado que
publicação digital do site, a figura exclusiva de possua fronteiras que coincidam com laços de
editor não existe, seu papel está aliado ao de dependência com o conhecimento adquirido.
autor, preparador do texto, revisor,
Esta função tão multifacetada criada
diagramador e capista (figura 1). Portanto, se
pelo processo de publicação do Clube de

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281
significantes passam a se confrontar, de
Autores se torna difícil de nomear, pois mais do modo que se revestem de um sentido.
que um rearranjo de significantes, há um novo (ORLANDI, 1999, p.44).
discurso que começa a se estabilizar na prática
da publicação digital. Ao fazer com que a
presença de um editor para mediar a publicação No momento em que os sentidos de
de uma obra – literária, científica, educacional, preparador de texto, revisor, diagramador e
religiosa – seja desnecessária, e ao entregar essa capista são confrontados pelo de autor,
função ao autor, nota-se aí a transferência de percebemos também a ocorrência da polissemia,
posições e nesse caso, sobreposição ou afinal ela é exatamente a “simultaneidade de
agregação de tais cargos, tornando assim o movimentos distintos de sentido no mesmo
processo de publicação uma escolha total e objeto simbólico” (idem, p. 38). Ora,
completa daquele que compôs o livro. Isso faz compreendemos que no caso analisado a
com que a publicação torne-se um ato palavra autor possui muitos sentidos sendo
centralizado em um só indivíduo. empregados simultaneamente, sentidos esses
que ao se juntarem formam um outro sentido,
Percebemos então um deslizamento no um novo sentido.
sentido da palavra autor, que amplia e modifica
seu alcance através de sua forma empregada no Assim, vemos que, quando Rena afirma,
Clube de Autores. Pois o discurso em que o como uma consequência negativa da internet,
vocábulo é utilizado sempre está aberto a que
modificações influenciadas pelo o que lhe é a noção de escritor passa a não existir da
exterior, afinal forma como o circuito tradicional de
literatura a concebeu nos últimos 200 anos,
“(...) todo enunciado é intrinsecamente
pois todos se tornam escritores (2009,
suscetível de tornar-se outro, diferente de si
p.113),
mesmo, se deslocar discursivamente de seu
sentido para derivar para um outro (...)”
(PÊCHEUX, 1990, p.53). no Clube de Autores tal possibilidade de
todos se tornarem autores é visto como algo
Quando o discurso do site desloca para positivo, capaz de ampliar o alcance da
se tornar outro, novo, desloca também os literatura, de pessoas que querem se tornar
sentidos encontrados em autor. O autor é autores e não conseguem entrar no mercado
dotado de mais responsabilidades, como uma editorial através de editoras tradicionais, o que
cadeia de palavras e cargos sobrepostos uns aos pode ser comprovado através de depoimentos
outros, formando um novo e diferente sentido e dos usuários dispostos na página inicial do site
(figura 2).
segundo Pêcheux (1975), o sentido é sempre Nota-se também que é através dos
uma palavra, uma expressão ou uma processos parafrásticos, onde “em todo dizer há
proposição por uma outra palavra, uma sempre algo que se mantém” (Orlandi, 1999),
outra expressão ou proposição; e é por esse
que o site reformula o que é dito em sua página
relacionamento, essa superposição, essa
inicial (principalmente no quadro, que fica
transferência (metaphora), que elementos
quase ao final da página, “Como funciona”) em

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282
seções/páginas como “Quem Somos” e escolha total e completa daquele que compôs o
“Dúvidas” e estabiliza suas formas particulares livro. Isso faz com que a publicação torne-se
de editar obras em sua plataforma. assim um ato centralizado em um só indivíduo.
2.1 Figuras Com essa sobreposição de funções,
Figura 1. Clube de Autores – Quem somos acabamos por perceber também alguns
desdobramentos aparentemente favoráveis –
como, para o autor, independência, economia
financeira; para o público em geral, acesso a
diversos gêneros de literatura de autores
nacionais sem o aparato de grandes editoras – e
outros aparentemente desfavoráveis, por
exemplo a sobrecarga sobre o autor, aumento
da consciência sobre a qualidade do produto
oferecido e ser responsável pela publicidade do
livro.
Quais os efeitos desse processo para a
Figura 2. Depoimento concepção de obra e sua qualidade é temática a
ser desdobrada em outro texto.

Referências
ABREU, A. S. C. de. Políticas de Autoria. São
Carlos: EdUFSCar e FAPESP, 2013.
_________________. Políticas de Autoria:
entre regulação e falha. Revista Rua, v 1, 2009.
Disponível em: www.labeurb.unicamp.br/rua.
Acesso em: jul. 2009.
CHARTIER, R. O que é um autor? Revisão de
uma genealogia. São Carlos: EDUFSCar, 2012.
3. Considerações finais
CLUBE DE AUTORES. Blog. Capas
Mais do que um rearranjo de
personalizadas. Disponível em:
significantes, há um novo discurso que começa
http://blog.clubedeautores.com.br/2009/02/capa
a se estabilizar na prática da publicação digital.
s-personalizadas.html. Acesso em 27 set. 2005.
Ao fazer com que a presença de um editor para
mediar a publicação de uma obra seja FOUCAULT, M. O que é um autor? Trad.
desnecessária e aglutinar essa função ao autor, Antônio Fernando Cascais, Eduardo Cordeiro.
há transferência de posições – e nesse caso, Rio de Janeiro: Vega, 1992
sobreposição ou agregação de tais cargos, ORLANDI, E. Análise de Discurso: princípios
tornando assim o processo de publicação uma e procedimentos. Campinas, SP: Pontes, 2000.

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283
___________. Discurso e Texto: formulação e
circulação dos sentidos. Campinas, SP: Pontes,
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PÊCHEUX, M. O Discurso: estrutura ou
acontecimento. Trad. Eni P.Orlandi. Campinas,
SP: Pontes, 1990.
____________. Semântica e Discurso: uma
crítica à afirmação do óbvio. Trad. Eni P.
Orlandi et al. Campinas, SP: Editora da
Unicamp, 1988.
RENA, A. S. A. Do autor tradicional ao
agenciador cibernético: do biopoder a
biopotência. São Paulo: Annablume, 2009.

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284
A DISCURSIVIZAÇÃO DO FEMININO E SUAS RELAÇÕES
COM A DOCÊNCIA: A ANÁLISE DE IMAGENS EM REDES
SOCIAIS

Camila Carrari DORNELAS, Filomena Elaine ASSOLINI


Faculdade de Filosofia Ciências e Letras-USP (FFCLRP-USP)
carrari@usp.br

Resumo: É notória a maciça participação da mulher na profissão docente. No entanto, a


forma como a mulher obteve acesso aos processos e espaços educacionais foi permeada
pela ideologia dos atributos “necessários” para se educar que, acaba por colocar a
referência docente, no feminino, na mulher e na mãe. O presente trabalho inscreve-se no
campo da Análise do Discurso de matriz francesa para, a partir daí, discutir imagens que
circulam na rede social Facebook, buscando compreender como o feminino e a docência
estão imbricados, como são falados e imaginados no espaço cibernético. Para esse
intento, valemo-nos também da Psicanálise freudo-lacaniana e dos estudos das Ciências
da Educação, particularmente, os que dizem respeito à formação de professores.
Palavras-chave: Feminino; Docência; Análise do Discurso Francesa.

imaginados no espaço cibernético. Para tanto,


Introdução valemo-nos da Análise do Discurso de matriz
Historicamente, a relação das mulheres francesa (AD), da Psicanálise freudo-lacaniana
com o campo da educação foi permeada pela e dos estudos das Ciências da Educação,
ideologia da vocação e dos atributos particularmente, os que dizem respeito à
“necessários” para se educar que, formação de professores.
substancialmente coloca a referência docente 1. Desenvolvimento do Artigo
no feminino, na mulher ou na mãe. Portanto, ao
Tanto a trajetória histórica - que reflete
abordar essa questão é preciso ter ciência de
as condições de trabalho, educação e família -
que os discursos sobre a profissão docente, a
quanto o paradigma da diferença sexual e a
mulher e a mãe se atravessam e entrecruzam.
igualdade de direitos - que postulam sobre o ser
Sendo assim, trazemos resultados de e fazer do homem e da mulher - trazem
uma pesquisa que investigou a discursivisação elementos importantes para o entendimento da
do feminino e da docência em redes sociais. relação que se estabelece entre o feminino e a
Buscamos compreender, especificamente, profissão docente e para observarmos a
como o feminino e a docência estão construção de uma memória histórica e
imbricados, como são tratados, falados e

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285
poder patriarcal, mas manteve inalteradas
discursiva, que estabelece ecos e reverberações as fontes do poder masculino. Para isso,
nos discursos atuais. entretanto, foi necessário forjar um novo
Foi com o desenvolvimento da discurso, precisamente sobre a diferença
sexual, pelo qual o homem e a mulher
propriedade privada e das sociedades de classe
teriam finalidades e inserções sociais
que passa a existir, mais marcadamente, a bastante diversas, em consequência de suas
desigualdade social e a desigualdade do ponto naturezas diferenciadas e irredutíveis, uma
de vista jurídico entre homens e mulheres, à outra. (BIRMAN, 2001, p.49, grifo do
sobretudo com relação ao casamento que, nas autor)
sociedades greco-romanas, se constituía a partir
de um arranjo político/econômico. O que destacamos nesse paradigma da
Prevalecia, na Antiguidade Clássica, o diferenciação sexual, são os aspectos que
modelo de sexo único e de uma relação envolvem a maternidade. A construção
hierárquica entre o homem e a mulher. Foi exclusiva e restrita do ser e fazer da mulher em
Aristóteles quem concebeu a geração como torno da figura da mãe e da finalidade
diversamente distribuída entre as figuras do específica de reprodução,fundamenta de
homem e da mulher e estabeleceu os alicerces maneira irrefutável a concepção da diferença
fundamentais do ideário de sexo único. Essa sexual, que irá influenciar todo o pensamento
leitura se desdobraria em outras, de polarização moderno.
do masculino e feminino (BIRMAN, 2001). Com relação aos aspectos que
Com a Revolução Industrial Inglesa e, envolvem a educação, esta se estabelece
posteriormente, a Revolução Francesa, também focada na hierarquização dos sexos,
importantes etapas para a construção do mundo sustentada pelo paradigma naturalista da
burguês, ocorrem impactos também na diferenciação sexual. A educação feminina
organização familiar. A criança passa a ter desempenha papel fundamental para a
mais visibilidade social e a preocupação com manutenção do pensamento dominante, de
sua educação ganha consistência. hierarquia entre os sexos e de uma visão
androcêntrica.
Concernente a isso, o modelo de um
sexo único fundado nas questões da geração e No Brasil, a mulher só adquiriu o
reprodução, passa a dar lugar ao paradigma da direito à educação através de lei, em 15 de
diferenciação sexual, baseado numa visão outubro de 1827, quando criam-se as primeiras
naturalista da diversidade sexual (essências escolas para meninas e, como consequência
diferentes e naturezas inconfundíveis) que disso, o surgimento das primeiras vagas para o
delineariam as finalidades sociais diversas para sexo feminino no magistério primário,
os sexos. sustentado pelo ideário de uma função materna,
um dom, uma vocação, pertencentes ao
[...] a nova democracia advinda da feminino.
Revolução Francesa procurou fundar na No início do século XX, diante da
natureza biológica as inserções sociais expansão industrial, o discurso sobre a
diferentes entre os sexos. [...] a moderna
importância do trabalho da mulher (carregado
democracia transformou efetivamente os
fundamentos até então inquestionáveis do da ideologia de “atributos necessários” e de
uma “vocação” ou “missão”), impulsiona-as

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286
para determinados setores considerados articula-se à concepção de um sujeito
apropriados para seu sexo, como a saúde e a ideológico.
educação, explicando, portanto, a íntima É um sujeito afetado pela língua e
relação do gênero feminino com a docência.
atravessado pela ideologia. A ideologia é
2. Abordagem teórica e metodológica condição para a constituição desse, de modo
que, interpelado por ela, produza o dizer. Ao
Através do discurso, acreditamos ser
dizer, dar sentido e interpretar (ao mesmo
possível acessar o que há de singular no
tempo em que nega essa interpretação),
sujeito, ou seja, o inconsciente, assim como as
naturaliza o que é produzido na relação do
marcas sociais e históricas que o caracterizam.
histórico e do simbólico.
Para isso, optamos pela Análise do Discurso de
matriz francesa (AD), tendo Michel Pêcheux Delinear o conceito de ideologia se faz
como um dos estudiosos mais profícuos desse necessário, embora seja tarefa difícil, já que é
campo. um conceito composto por inúmeras nuances e
matizes, por vezes confuso e controverso.
É um campo que tem como
característica aforar a interdisciplinaridade, Althusser (1996) irá relacionar o termo
inscrevendo-se num quadro que articula o aos aparelhos ideológicos do Estado,
linguístico com o social e estendendo-se para justificando que, para que a classe dominante
outras áreas do conhecimento. perpetue sua dominação, essa vem gerar
mecanismos de reprodução das condições
[...] a Análise do Discurso é herdeira das materiais, ideológicas e políticas de exploração.
três regiões de conhecimento – Psicanálise, Para o autor, a ideologia é “uma
Linguística, Marxismo – não o é de modo ‘representação’ da relação imaginária dos
servil e trabalha uma noção – a de discurso
indivíduos com suas condições reais de
– que não se reduz ao objeto da Linguística,
nem se deixa absorver pela teoria Marxista existência” (P. 126).
e tampouco corresponde ao que teoriza a Pêcheux (1995) avança essa proposição,
Psicanálise. Interroga a Linguística pela discutindo o funcionamento da(s) ideologia(s)
historicidade que ela deixa de lado, e a interpelação do indivíduo em sujeito, pela
questiona o Materialismo perguntando pelo ideologia e pelo discurso. Para o autor, a
simbólico e se demarca da Psicanálise pelo
ideologia interpela o individuo em sujeito e se
modo como, considerando a historicidade,
trabalha a ideologia como materialmente realiza através do complexo das formações
relacionada ao inconsciente sem ser ideológicas que, “fornece a ‘cada sujeito’ sua
absorvida por ele. (Orlandi, 2012, p.20) ‘realidade’, enquanto sistema de evidências e
de significações percebidas- aceitas -
A AD tem como foco principal o experimentadas” (p. 162).
discurso e suas inter-relações do real, do social, Essa interpelação se dará pela
com o sujeito histórico. O sujeito da AD é um identificação do sujeito com a formação
sujeito essencialmente histórico, marcado por discursiva que o domina, que o constitui como
espaço e por tempo determinados. Como sua sujeito, e que, por sua vez, se re-inscreverá no
fala é produzida desse determinado lugar e seu próprio discurso. No discurso (formações
tempo, a concepção de um sujeito histórico discursivas) dos sujeitos, “a materialidade

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287
concreta da instância ideológica existe sob a em relação ao homem ou a uma criança; se é
forma de formações ideológicas, que, ao professor em relação a um médico ou em
mesmo tempo, possuem um caráter ‘regional’ e relação a um engenheiro.
comportam posições de classe”(PÊCHEUX,
Cabe salientar que, o discurso não é
1995, p. 146). Assim, a materialidade uma materialidade fixa, rígida, imutável. Os
ideológica só é possível de ser apreendida a discursos produzem sentidos que são múltiplos,
partir da materialidade linguística. complexos, e que se evidenciam através de
O sujeito discursivo, determinado pela marcas, manifestações, que o constituem, que
língua e pela história, ocupa um lugar, uma advêm do sujeito, seu inconsciente, seu tempo
“posição” (FOUCAULT, 1969, apud histórico, do social e da ideologia (condições
ORLANDI, 2012) para ser sujeito do que diz. de produção). Assim, pode-se dizer que os
Assim, o sujeito pode ocupar a posição (onde sentidos não existem em si mesmos, mas são
não tem acesso direto ao interdiscurso que o determinados pelas posições ideológicas em
constitui) de mulher, mãe, professor. Ao falar um processo sócio-histórico, onde se produz o
de uma posição, revela sua identidade, sempre discurso.
em relação a outras posições.
A formação discursiva está intimamente
Já o sujeito na Psicanálise também não relacionada à noção de formação ideológica, já
é o indivíduo ou o eu. É um sujeito que o discurso se constitui em seus sentidos. A
descentrado, atravessado pelo inconsciente. formação discursiva se define como aquilo que
numa formação ideológica dada – a partir de
Para Lacan (1998), o sujeito se encontra
uma posição dada em uma conjuntura sócio-
onde o discurso desliza. O sujeito fala o outro,
histórica dada – determina o que pode e deve
que lhe empresta falso significado (o
ser dito (ORLANDI, 2012, p.43).
significante transita numa cadeia assumindo
um valor que não está diretamente ligado ao Portanto, não existe homogeneidade na
significado) e, portanto, a linguagem procura composição das formações discursivas, pois
de todas as maneiras sustentar uma essas são constituídas por contradições.
compreensão que, na verdade, é falsa, porque é Vinculado a essa exterioridade, o
construída a partir da ilusão. É onde o discurso
discurso também se vincula a outros discursos,
desliza, escorrega, que é possível desconstruir o interdiscurso, “aquilo que fala antes, em
um percurso. É na lacuna do discurso, na outro lugar, independentemente”. (ORLANDI,
desconstrução, que vamos encontrar o sujeito 2012, p.31). É o saber discursivo que torna
(MAGGI, 2002, p.94-95). possível todo o dizer e que retorna sob a forma
Seguindo esse raciocínio, não se trata, do pré-construído, do já-dito.
pois, de definir o sujeito da Psicanálise ou da “O fato de que há um já-dito, que
AD, porque ele é indefinível, posto que o sustenta a possibilidade mesma de todo dizer, é
sujeito vai deslizando de significante em fundamental para se compreender o
significante pelo conjunto da linguagem que funcionamento do discurso, a sua relação com
compõe o Outro (inconsciente), assim como, os sujeitos e com a ideologia” (idem, p.32). É a
discursa dessa ou daquela determinada posição. observação do interdiscurso que permite
O sujeito é um vazio, “um furo na linguagem” remeter um dizer a toda uma filiação de
(QUINET, 2012, p.23). Ou seja, só se é mulher dizeres, a uma memória, a uma historicidade.

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No discurso, circulam formulações já Assim, é por meio da análise da
enunciadas anteriormente que funcionam como materialidade do discurso que podemos
estruturação da materialidade discursiva, se atravessar o imaginário que condiciona os
estendendo em uma dialética da repetição e da sujeitos em suas discursividades e, explicitando
regularização: “a memória discursiva seria o modo como os sentidos são produzidos,
aquilo que, face a um texto que surge como compreender melhor o que está sendo dito,
acontecimento a ler, vem restabelecer os referindo-os às suas condições de produção,
‘implícitos’ [...] de que sua leitura necessita: a estabelecendo as relações que os sentidos
condição do legível em relação ao próprio mantêm com a memória e, também,
legível” (PÊCHEUX, 2010, p. 52) remetendo-os a uma formação discursiva – e
As posições sociais ocupadas pelos não outra – para a compreensão do processo
sujeitos e o lugar a partir do qual ele fala discursivo (ORLANDI, 2012).
também são constitutivos do que ele diz,
3. Análises e discussão
caracterizando uma relação de forças. Nossa
sociedade é caracterizada por relações Os (efeitos de) sentidos circulam e se
hierarquizadas que sustentam um poder que materializam em textos e imagens. Na
advém de diferentes lugares: lugar de homem e sociedade atual, entre os espaços de produção e
de mulher, de adulto e de criança, de professor circulação de discursos e sentidos, as redes
e de aluno, por exemplo. Nesse caso, não são sociais têm alcançado, cada vez mais, enorme
os sujeitos e nem seus lugares na sociedade que importância. A rede social Facebook sustenta
funcionam no discurso, mas a imagem que é inúmeros “perfis” e “comunidades” que se
resultado de suas projeções. Podemos dizer que centram na temática e no fazer docente.
o sujeito produz um discurso que é resultado da Diariamente, estes perfis compartilham
imagem que possui do outro. Discursamos a imagens que discursam sobre a profissão de
partir de formações imaginárias. professor que são replicadas e recompartilhadas
Para Orlandi (2012), as condições de por toda a rede social, fazendo circular sentidos
produção implicam o que é material (a língua e sobre o ser e fazer docente que merecem,
seus equívocos e a historicidade), o que é portanto, a nossa atenção. A partir da escolha
institucional (a formação social) e o de algumas dessas imagens, configuradas como
mecanismo imaginário. É esse mecanismo que um “recorte”, teceremos nosso corpus de
produz imagens dos sujeitos dentro de uma análise.
conjuntura sócio-histórica. É um jogo Recorte 1: Imagem retirada de
imaginário que preside a troca de palavras. facebook.com/superprofessoracriativa?fref
Destarte, nesse jogo complexo que =photo em março 2015
constitui o discurso, formações imaginárias,
formações discursivas e formações ideológicas
estabelecem uma forte ligação entre si. A
imagem não é resultado que advém somente do
sujeito, mas também do social, englobando as
formações discursivas que se ligam à ideologia,
às formações ideológicas.

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O recorte 1, apresenta uma figura ainda assim eternizam a profissão de professor
feminina que imbuída de óculos e uma num fazer próprio do feminino (e de
prancheta na mão, associam à figura do características associadas ao gênero), e que
professor - numa tentativa de “cientifizar” um servem como um chamamento para que o
saber, dar credibilidade - um caráter professor assuma este lugar.
intelectualizado. Isso pode denotar que, como o O uso do genérico discursivo (TFOUNI,
discernimento entre o feminino, o materno e o 2010) implica caráter anônimo que advém de
fazer pedagógico é um tanto obscuro, surgiria a uma estrutura linguística específica, que se
demanda de um “carimbo” científico que caracteriza por ser marcada sintaticamente pela
legitimasse um fazer pedagógico.
não identificação do enunciador empírico, o
Essa obscuridade sustenta-se num que se traduz pelo uso do sujeito indeterminado
estereótipo criado sobre a existência de uma ou impessoal. Assim, “Não importa quando,
íntima ligação entre a educação dos filhos e a quem, nem onde ou para quem esse genérico se
mulher e foi fundamental para que no século dirija; seu efeito de sentido é exatamente o
XX, houvesse a “transferência” da mesmo” (TFOUNI, 2010, p. 78, grifo do
responsabilidade da mulher com a educação autor).
doméstica para a educação escolar (SILVA, Dessa forma, no genérico imperativo
2002, p. 74). “Case-se com uma professora!”, tanto
Contrariamente à ideia da tentativa de enunciador como receptor ficam anônimos.
cientifizar o fazer pedagógico; o enunciado Tfouni&Tfouni (2007) chama a atenção para o
principal convoca à finalidade do matrimônio. fato de que a construção em forma de lei,
No idos do século XIX e início do século XX, generalizante, confere aos genéricos um caráter
o casamento, atrelado a uma noção de de universalidade. Isso faz parecer que eles
“natureza feminina”, é um destino tido como asseveram uma verdade válida a todos. Existe,
praticamente incontestável. portanto, nos genéricos uma tentativa de
apagamento da subjetividade, o que impede
Essa memória se inscreve em
outras interpretações possíveis, produzindo um
formações discursivas e imaginárias que
efeito de transparência de sentido e, colocando
atualizam o discurso e naturalizam os sentidos
forçosamente o ouvinte, no caso o leitor do
atrelados ao educar como sendo um fazer quase
texto e da imagem, em uma determinada
exclusivamente de mulheres e denotam uma
posição em relação à ideologia.
memória que atualiza os discursos, onde a
profissão docente surge e se desenvolve de Assim, no genérico aqui discutido, há o
maneira não especializada, o que demandaria apagamento de que, em alguns contextos ou
então, como apresentado na imagem, a situações, existam professores que sejam do
tentativa de uma legitimação científica. sexo masculino, que possam existir professoras
que não desejam se casar ou que existam
Embora seja possível observar o
pessoas que não queiram se casar com uma
deslocamento de sentidos no discurso
professora. Esconde ainda, o fato que,
funcionando como acontecimento, determinado
casamento e profissão docente existam como
por condições de produção que são
instâncias separadas.
enunciativas e sócio históricas, observa-se
também o uso de genéricos discursivos que

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290
Há ainda a obliteração de que nem Mas, se as condições histórico-culturais
todas as professoras teriam as qualidades influenciam os discursos que circulam em
descritas posteriormente como “boas” relação à mulher e ao fazer docente e,
características em uma professora (ou em uma efetivamente, constroem os sentidos desses
mulher) e que outras características existam e mesmos discursos; com a mudança nessas
sejam importantes no fazer docente. Mais condições, discursos assumidamente
ainda, que estas características não seriam androcêntricos tendem a perder sua
questionáveis e totalmente verossímeis e legitimidade.
necessárias, sendo consideradas eletivas para se No entanto, em alguns domínios, tais
tornar uma professora ou, como apresentado na discursos continuam a circular. Essas
formação discursiva na imagem, contrair um contradições presentes no discurso - já que
casamento. junto aos atributos “lindas” e “charmosas”,
O que se observa é que, através da agora adjetivos como “corajosas” e
memória inscrita nas formações discursivas, “determinadas”, e “cheias de amor para dar” –
busca-se eternizar a profissão de professor num agregam-se e marcam o surgimento de um
fazer próprio do feminino e ao instituir o novo tipo de discurso de poder, o discurso
genérico como chamamento para que o sujeito mercadológico.
assuma seu lugar, coloque a profissão de Payer (2005) observa a existência de
professor profundamente arraigada a um um “enunciado todo-poderoso do Mercado”
ideário construído historicamente de uma que funciona como lugar de interpelação
profissão eminentemente feminina e de ideológica (Althusser) do indivíduo em sujeito,
“espera-marido”, que reúne qualidades
que pode ser resumido em uma palavra:
consideradas de boa mãe, mulher e professora. “sucesso”. “O enunciado do sucesso se
Retomando a sequência do enunciado imprime através de inúmeros textos, e circula
que, após uma generalização, apresenta de muitos modos, mas sobretudo através da
adjetivos à figura feminina (“lindas, charmosas, Mídia.” (PAYER, 2005, p. 18)
inteligentes, corajosas, determinadas e cheias Dentre as possíveis armadilhas desse
de amor para dar”) é importante notar que,
discurso de sucesso, as mulheres, diante das
historicamente estes atributos já foram mudanças sociais em que assumem cada vez
polarizados numa lógica binária entre os sexos. mais “funções”, caracterizadas por um acúmulo
O modelo naturalista de diferença entre de jornada de trabalho e cuidado com a casa e
os sexos impôs ao homem e à mulher educação dos filhos, tornam-se sujeitos atraídos
finalidades e inserções sociais, assim como por esse funcionamento simbólico. Na “ilusão
atributos e qualidades bastante diversas uma da de completude”, as mulheres, professoras, são
outra. Beleza e charme eram associados à chamadas a assumirem este lugar de sujeito
figura feminina, com pouca participação determinado e polivalente, impossível de ser
intelectual e social; enquanto que atributos alcançado.
como coragem e determinação já foram Recorte 2: Imagem retirada de
associados à figura masculina, num sistema facebook.com/pages/Profissão-
claramente androcêntrico. Professor/329222423788535?fref=ts, em
abril de 2014

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291
religiosos e leigos das mais diversas origens.
Com o processo de estatização do ensino,
pretende-se a substituição de professores
religiosos, por um corpo de professores laicos e
sob o controle do estado, sem, no entanto,
modificar-se as normas e valores originais que
aproximam o modelo de professor do modelo
de padre (JULIA, 1981, apud NÓVOA, 1999).
Educar, então, seria um “dom”, uma
“vocação”, ideário este que se fortalece com a
ambiguidade do estatuto dos professores e
Caminhando na mesma direção de um acentua-se com o processo de feminização do
atravessamento discursivo entre o ser e fazer professorado (NÓVOA, 1999); processo este,
docente e o feminino e a ambiguidade da histórico e social, que aproxima a pedagogia e
profissão docente, o recorte número dois traz a o feminino, tendo como resultado o
figura de um bebê, em uma clara referência à atravessamento do discurso pedagógico e do
“maternagem” e, em seu enunciado, ideias discurso materno.
relacionadas ao “dom” e a “vocação” para
No fim do século XVII, o amor materno
educar, não sendo necessário, portanto,
surge como novo valor, que significou a
embasamento científico.
promoção do sentimento e também a promoção
Muitas imagens circulantes pela rede da mulher enquanto mãe. É o discurso de
social, não sem frequência, apresentam protagonismo social que seduz e captura as
discursos carregados de valores como “dom”, mulheres.(BADINTER, 1985).
“vocação” ou “missão”, enraizados na tradição
Reside aqui, um ponto forte
de servir e cuidar, impregnados por uma
ideologicamente falando. A necessidade de
estreita relação desenvolvida entre o ato de
mão de obra barata e farta seria satisfeita
ensinar e as congregações religiosas.
usando o trabalho não remunerado da mulher,
O atravessamento do discurso religioso já que esse (cuidar, educar, maternar) era algo
produz efeito de sentido de que, o ato de considerado próprio de sua natureza. (SILVA,
educar, estaria marcado por sentidos de 1968, p.76)
abnegação, renúncia, missão e sacerdócio. Os
Ao estar fortemente imbricada a ideais
estudos de Nóvoa (1999) corroboram com
relacionados ao cuidar, trabalho que exigiria
nosso argumento, pois, segundo o educador
menor qualificação, a profissão docente passa
português, uma das imagens mais fortes e
por uma desvalorização. O ato de educar,tarefa
recorrentes a respeito do professor é a de
socialmente reconhecida como trabalho da
missionário, a quem caberia ações de doação
mulher, parece trazer prejuízos no sentido de se
(amor, atenção, compreensão, conteúdos).
avançar no reconhecimento e valoração da
De acordo com Nóvoa (1999, p.15), profissão e da necessidade de qualificação
inicialmente a função docente desenvolveu-se docente.
de forma subsidiária e não especializada,
constituindo uma ocupação secundária de

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A ausência de um corpus conceitual 4. Considerações finais/Conclusões
próprio, por se constituir de uma ciência
mestiça (CHARLOT, 2006), dificulta os Ao trazermos algumas reflexões,
limites claros da Pedagogia como campo de advindas de nossos gestos interpretativos
conhecimento e formação. Fato que acaba (lembramos: não definitivos e inacabados),
também, por fusionar e dispersar, ao mesmo apontamos para essa dispersão discursiva
tempo, os discursos circulantes. presente em torno do ser e fazer da profissão
docente que circunda, fortemente, aspectos do
Há uma confusão sobre uma possível
feminino e da maternagem. Procuramos
ideia do que possa ser a Pedagogia que,
demonstrar, através dos recortes aqui
facilmente se confunde com uma ideia do que
apresentados, as formações ideológicas e as
possa ser docência. A dispersão conceitual de
memórias históricas e discursivas sobre o
uma profissão pode gerar uma profusão de
feminino e o ser e fazer docente presentes, que
discursos, igualmente dispersos, que se
naturalizam os discursos circulantes na
configuram desde um saber materno
atualidade das redes sociais. Antes de oferecer
cientifizado (como observado nos recortes
qualquer fechamento ou solução, através desse
destacados anteriormente), passando pelo
movimento analítico, convidamos à abertura
discurso humano e religioso até a defesa
reflexiva sobre a subjetivação docente e a
vigorosa do aprender na prática da sala de aula
novos modos de se pensar e se interrogar a
(PEREIRA, 2008).
Pedagogia e sua área de atuação, bem como,
Pereira (2008) chama a atenção para a abrir espaço para outras maneiras de se pensar
maternagem não só no sentido da feminização a formação e o fazer docente.
do magistério, mas como uma problemática no
cerne da construção da epistemeda Pedagogia.
Referências
Na contemporaneidade, assistimos ao
declínio da autoridade da imagem paterna. A ALTHUSSER, L. Ideologia e Aparelhos
educação não é tarefa só da escola (família, Ideológicos de Estado (notas para uma
mãe e pais, televisão, todos, educam). Vivemos investigação). In: ADORNO, T.et al. .O Mapa
em um tempo “racional”, “técnico”, cujo saber- da Ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto,
fazer foi teorizado. Dessa forma, a 1996.p. 105-142.
maternagem, acabou perdendo seu fôlego. Seu BADINTER, E. Um amor conquistado: o mito
discurso passa a requerer um carimbo científico do amor materno. Rio de Janeiro: Nova
e a Pedagogia passa a ser essencial para esse Fronteira, 1985.
intuito.
BIRMAN, J. Gramáticas do erotismo: a
Pereira (2008) aponta ainda que, “entre feminilidade e suas formas de subjetivação em
a adjetivação das epistemologias e a psicanálise. Rio de Janeiro: Civilização
cientifização do saber materno, a pedagogia Brasileira, 2001.
procrastina a invenção de uma epistémeprópria,
capaz de elevar os gestos de suas práticas à CHARLOT, B. A pesquisa educacional entre
categoria de saber teórico” (p. 184). conhecimentos, políticas e práticas:
especificidades e desafios de uma área de

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293
saber.Revista Brasileira de Educação, Rio de
Janeiro, v. 11, n. 31, abr. 2006. QUINET, A. Os outros em Lacan. Rio de
Janeiro: Zahar, 2012.
LACAN, J. O Seminário, livro 2: O eu na
teoria de Freud e na técnica da Psicanálise. Rio SILVA, E. M da. As relações de gênero no
de Janeiro: Jorge Zahar, 1995. magistério: a imagem da feminização. Vitória:
Edufes, 2002.
______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1998. TFOUNI, Fabio E. V., TFOUNI, Leda V. Entre
burro; sai ladrão: O imaginário sobre a escola
MAGGI, N. R. Subjetividade e materializado nos genéricos. In: Linguagem em
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Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

294
SUJEITO POLÍTICO MULHER: NOTAS SOBRE A
CONSTRUÇÃO DA MULHER CANDIDATA NO ÚLTIMO DEBATE
PRESIDENCIAL ELEITORAL DE 2010

Livia Maria FALCONI PIRES


Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
liviamfpires@yahoo.com.br

Resumo: O campo político é historicamente marcado pela dominação masculina, o que é


corroborado pela noção social, dual e separatista entre homem e mulher a qual preconiza o
espaço privado delegado à mulher, e o espaço público, delegado unicamente ao homem. Dessa
maneira, a fim de analisarmos a construção do sujeito político mulher em campanha eleitoral
presidencial brasileira, apresentamos, neste artigo, uma breve análise da construção da
imagem da então candidata Dilma Rousseff, no último debate do segundo turno das eleições
presidências de 2010 no Brasil. Apoiar-nos-emos nas teorias da Análise do Discurso de linha
francesa, mobilizando estudos de Michel Pêcheux, Michel Foucault, Jean-Jacques Courtine,
relacionados com o discurso político e, também, trabalhos de outros âmbitos como de Marlène
Coulomb-Gully, que se concentram na relação entre mídia, política e gênero.
Palavras-chave: debate eleitoral; mulher; discurso político.

(PIOVEZANI, 2009, p. 137), fruto de uma


1. O discurso político eleitoral
densidade histórica e, portanto, historicamente
contemporâneo em/no debate
constituído, as características da “modernidade
Ao tomarmos como objeto o último líquida” (BAUMAM, 2001) também estão por
debate eleitoral presidencial de 20101, ele perpassadas, emergindo, na
focalizamos o discurso político eleitoral contemporaneidade, um discurso político “mais
contemporâneo, aquele que se constitui por fluído, mais imediato que requisitaria o instante
uma fala pública afetada pela construção mais do que se inscrever na memória”
histórica da efemeridade e rapidez. Sendo o (COURTINE, 2006, p. 84). O discurso político
discurso político “um tipo de fala pública” contemporâneo é também caracterizado por
uma “língua de vento” (PÊCHEUX e GADET,
1
Último debate eleitoral entre os candidatos à
2004, p. 23), que dá amplas margens para o
presidência, Dilma Rousseff e José Serra, em 2010. O lugar de destaque do homem político. Trata-se
debate foi veiculado pela rede Globo de televisão no dia de um discurso político que se inscreve e se
29 de outubro de 2010. adequa aos aparatos audiovisuais, sendo que “o

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295
verbo não pode mais ser dissociado do corpo e promovendo, então, uma “intimidade distante2”,
do gesto, a expressão pela linguagem conjuga- preconizando-se a ilusão do contato do eleitor
se com aquela do rosto, de modo que não com o candidato (COULOMB-GULLY, 2003).
podemos mais separar linguagem e imagem” O corpo físico deixa de ser real, verdadeiro e
(COURTINE, 2011, p. 150). torna-se, na tevê, uma representação que
necessita de construção e “estetização”. O
O gênero debate eleitoral presidencial
discurso e o corpo do político não se separam
reafirma o entrelaçamento de verbo e imagem,
da gestualidade, da voz, da vestimenta, todos
articulando “língua, conjuntura social e
esses cuidadosamente construídos para serem
estrutura histórica, em um espaço onde se
exibidos na mídia audiovisual. Assim, “a relação
combinam ação e coerção no encontro entre
física torna-se principalmente estética, o corpo
uso e circunstância” (PIOVEZANI, 2009, p.
torna-se uma imagem: é um corpo que
146). O debate configura-se como uma arena
representa3” (COULOMB-GULLY, 2003, p.
para o embate discursivo eleitoral, já que cada
125).
candidato deve fazer a propaganda de si e sua
imagem deve ser coerente com sua proposição Dentre as “cenas” que constroem a
política. “Levando em conta o sincretismo “mise en scène” eleitoral, o debate tem uma
existente entre verbo e imagem e a densidade grande importância para o processo
histórica que constitui os enunciados” democrático. É nele que os candidatos se
(SARGENTINI, 2011, p. 116), é na esteira das expõem e falam de maneira mais direta aos
discursividades sincréticas, da evidência da eleitores, apesar daquela “mise en scène” ser
imagem, que não mais pode ser desvinculada do cuidadosamente construída e moldada. A priori,
verbo, que analisamos a construção da imagem seria ele, o debate, o lugar do embate, da
do homem político, a qual é passível de batalha, pois é nele que os candidatos são
estetização, nas circunstâncias de debate em interpelados, porém
campanha eleitoral.
(...) os candidatos não “pelejam”, visto que
A midiatização conferiu ao corpo dos enfrentamentos discursivos entre eles não
indivíduos uma grande visibilidade. Fez do são permitidos. Isso significa que,
corpo do homem político o primeiro operador formalmente, há um debate, na esfera
de sentido, passando, então, a significar tanto púbica, metaforizado pela “arena”, mas que,
quanto seu programa político (COULOMB- não se passando necessariamente entre os
GULLY, 2003). candidatos, permite inferir, não se sabe ao
certo com quem eles debatem porque, afinal
O encontro com os eleitores com a de contas, rigorosamente não existem
multidão, que se dava nos comícios, nos
pronunciamentos públicos, nos quais o
palanque era a arena da discursividade política, 2
(...) “distance d´intimité” dont parle E.T.Hall
promovendo uma “distância próxima” et qui caractérise la langage télévisuel (Coulomb- Gully,
(COURTINE, 2003, p. 29), modificou-se. Na 2003,p.123).
3
(tradução nossa) (…) “La relation au physique
contemporaneidade, esse encontro ocorre, de
devient principalement esthétique, le corps devient une
maneira mais frequente, mediado pela tevê, image: c´est un corps représentation.” (Coulomb- Gully,
2003,p.125)

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296
interações envolvendo os interlocutores.
(FAUSTO NETO; RUBIM; VERÓN,
Numa sociedade como a do século XVII, o
2003, p. 148)
corpo do rei não era uma metáfora, mas
uma realidade política: sua presença física
O modelo de debate brasileiro era necessária ao funcionamento da
apresentado em 2010 é uma construção pautada monarquia (FOUCAULT, 2003 p. 145)
no estilo norte-americano, “town hall meeting”
que preconiza menor formalidade. O foco do Assim como, segundo Foucault em
debate não é somente o homem político; nesse Microfísica do Poder, o corpo do rei era
caso, ele divide o plano com os eleitores necessário para o funcionamento da monarquia
evidenciando a proximidade, a “intimidade no século XVII, o corpo do político é
distante” (COULOUMB-GULLY, 2003) tão necessário para o funcionamento da democracia
característica do discurso político no século XXI.
contemporâneo, proporcionada pela mídia.
Quanto ao debate que tomamos como objeto (o Um dos processos democráticos mais
último debate da campanha de 2010), o celebrados da democracia tem seu centro na
tratamento parece menos agressivo; no entanto, imagem, no corpo do sujeito político. As
os candidatos não se dirigem um ao outro, eleições são calcadas mais fortemente na
somente fazem referências. A disposição do propaganada política eleitoral televisiva, a qual
debate em 2010 propiciou um tratamento mais constitui a construção de um sujeito político ali
íntimo entre o político e o eleitor, uma conversa moldado e estetizado para alcançar os eleitores.
direta, na qual o primeiro nome do eleitor é É naquele momento, o da campanha eleitoral,
também evidenciado, como elucidado abaixo na em que o sujeito político é construído. A mídia
transcrição. televisiva, promotora do encontro do político
com o eleitor, proporciona ao candidato a
“É, queria dizer ,Misterly, que a sua pergunta possibilidade de entrar na “casa” dos eleitores e
é muito correta.”4 de mostrar-se, exibir-se construindo uma
A constituição do debate de 2010, que realidade, a da campanha eleitoral.
preconiza menos formalidade e maior O campo politico é historicanente
intimidade entre o candidato e o eleitor, reforça marcado pela dominação masculina, não sendo,
uma forte característica do discurso político então lugar previamente ocupado por mulheres.
atual no qual “O homem público se dirige
diretamente a cada um, sob a forma de De acordo com os estudos de gênero, a noção
conversação privada” (COURTINE, 2006, p. dual e separatista entre homem e mulher, a qual
133). preconiza que o espaço privado, o da casa, da
família é delegado à mulher, sendo o lugar a ela
2. Breve análise destinado, e o espaço público, o da rua, das
2.1. Apontamentos sobre a construção e interações externas, das rodas de conversas é
estetização da mulher política brasielira delegado unicamente ao homem, foi
socialmente construída. Dessa maneira, não
4
Primeira frase da primeira resposta da
candidata Dilma à eleitora de nome Misterly.

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297
sendo socialmente cabível à mulher frenquentar
Dessa maneira, para tratarmos da
o espaço público. Segundo Bourdieu5,
mulher no campo político apoiar-nos-emos em
a ordem social funciona como uma imensa estudos de Coulomb-Gully (2012), que
máquina simbólica tendendo a ratificar a acompanha a candidatura de mulheres à
dominação masculina na qual é fundada: é a presidência na França, analisando como a mídia
divisão sexual do trabalho (...) a estrutura as retrata de 1974 a 2007, já que a primeira
do espaço, com a oposição entre o mercado, aparição da mulher nas eleições presidenciais
reservado aos homens, e a Casa, reservada francesas deu-se em 1974, condicionando a
às mulheres. (BOURDIEU,1998 p.22 e 23). mudança no campo político francês. De acordo
com os estudos de Coulomb-Gully, (2012), há
No cenário político atual brasileiro a diferentes mulheres políticas, que são
presença feminina é existente, mas ainda está discursivizadas de maneiras distintas, em
longe de ser equiparada à masculina, vide diferentes épocas na França. Em 1974, a
gráfico a seguir que atesta o empoderamento primeira candidata à presidência, Arlette
político no Brasil. Laguiller, apresentava-se discursivizada sob o
aspecto da androgenia, sem fortes marcas de
The Global Gender Gap Report 2014
gênero. Vestindo, sempre, calças compridas,
(Brasil)6
camisetas, não usando maquiagem, tampouco
joias, encarnando, assim “a antítese dos
modelos de feminilidade valorizados na
sociedade burguesa”7. Diferentemente de
Laguiller, Ségolène Royal, em sua candidatura
de 2007, apresentou-se bela e feminina. “Royal
escolheu, nessa campanha, cumprir os critérios
de beleza valorizados pela norma
5
(Tradução nossa) L´ordre social fonctionne comme une
contemporânea” , encarnando, deveras, a
8

immense machine symbolique tendant à ratifier la feminilidade, se inscrevendo definitivamente no


domination masculine sur laquelle el est fondé: c´est la gênero feminino. Para Coulomb-Gully, (2012),
division sexuelle du travail, (...) c´est la structure de o desafio consiste em assegurar a
l´espace, avec l ´opposition entre le lieu d ´assemblée ou compatibilidade da imagem entre o feminino e o
le marché, reservés aux hommes, et la Maison, réservée
político, há muito tempo construída como
aux femmes (...)” (BOURDIEU,1998 p.22 e 23).
antônima, contraditória, assim a mulher política
6
Através do Relatório Global de “Gender Gap*”, de
2014, o “Fórum Econômico Mundial” quantifica a
magnitude das disparidades com base no gênero e
rastreia seu progresso ao longo do tempo. Como 7
(Tradução nossa) “(...)antipodes dês modèles de
nenhum parâmetro pode capturar, sozinho, a situação féminité valorisés dans la société bourgeoise (...)”
completa, o Índice de “Gender Gap” apresentado nesse (Coulomb- Gully, 2012,p.45)
relatório busca mensurar um aspecto importante da 8
(tradução nossa) Royal a choisi,pour cette
igualdade entre gêneros: as lacunas relativas entre campagne,de se conformer aux critères de beauté
mulheres e homens por quatro áreas chave: saúde, valorisés par la norme contemporaine.”( Coulomb-
educação,economiaepolítica. Gully, 2012,p.237)

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298
tende a movimentar-se por dois lugares, o
feminino e o masculino.
Para tratarmos do discurso político
eleitoral no Brasil, país que tem como
representante maior de seu governo uma
mulher, e elucidar nossa breve análise,
elencamos três imagens (cf. figuras abaixo) da
presidente, então candidata, no último debate
eleitoral do segundo turno das eleições de
2010: Debate eleitoral promovido pela rede
Globo realizado em 29 de outubro de 2010
Tomando como central a importância do
corpo do homem político para a “consolidação”
da democracia, já que, o corpo do homem
político é um forte operador de sentido, que
significa tanto (ou até mais)9 quanto seu
programa político (Coulomb- Gully, 2003),
consideramos como se apresenta a mulher
Debate eleitoral promovido pela rede política brasileira em campanha eleitoral.
Globo realizado em 29 de outubro de 2010
2.2. Estetização e encarnação
Ao falarmos do sujeito político,
voltamo-nos para as noções mobilizadas por
Coulomb-Gully (2003, 2009, 2012) que tratam
da materialidade corpórea. A noção de
“estetização” preconizada pela autora, elucida
a construção de um corpo político eleitoral
midiatizado, visualmente, esteticamente
agradável que mais do que ocupar uma posição
“encarna-a ”.
Assim, é a silhueta, o rosto e o verbo
Debate eleitoral promovido pela rede que nos mostram a constituição da mulher
Globo realizado em 29 de outubro de 2010
política em campanha eleitoral.
2.3. Uma silhueta
No âmbito da “estetização”, da
construção de um corpo político que
discursiviza, contribuindo para a criação da

9
Grifo meu

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

299
mulher política, a candidata, portando joias,
No entanto, o sujeito construído por
marca de feminilidade discretas, inscreve-se no
Dilma Rousseff, se inscreve na neutralização do
âmbito do gênero feminino. O terno, austero e
feminino. Dilma porta um semblante sério, sem
de cor cinza, é corroborado pelo gesto das
sorriso, se afastando da posição feminina, como
mãos para trás, e pelo andar forte e duro, como
também está marcado em seus curtos cabelos.
se pressionasse o solo, gestos esses geralmente
Apesar de curto, a maneira como é penteado e
relacionados ao masculino, possivelmente uma
sua coloração marcam a feminilidade. Tais
estratégia para não perder a força e demarcar
marcas, no entanto, são discretas; dessa
sua posição de candidata à presidência em um
maneira, temos uma feminilidade levemente
lugar notoriamente machista, a política.
assinalada, entrelaçada com o masculino.
Entretanto, o peito aberto demonstra uma
possível proximidade com o eleitor, gesto de 2.5. Um verbo: A materialidade linguística
docilidade; isso se dá também com as mãos, que A materialidade linguística aparece
em vários momentos assinalam um traço também sob o signo da neutralização. É notório
semelhante, pois estão em geral abertas, ou que há uma neutralização de termos ditos
contra o seio. Demostra-se, assim, a femininos: a fala de Dilma é impregnada de
transitoriedade de lugares ocupados pela fatos e dados sobre o governo anterior (como
candidata: ora manifesta-se a partir do espaço exemplificado abaixo), o que dá credibilidade
feminino, ora do masculino. ao dizer político e que constitui esse sujeito,
2.4. Um rosto não destoando da forma do discurso político
contemporâneo:
Segundo os estudos da teoria de gênero,
a mulher é tomada como um sujeito “Primeiro, nós fizemos um programa de
socialmente construído em uma sociedade habitação chamado ‘minha casa minha
patriarcal e sexista: “esperamos, das mulheres, vida’. Eu vou fazer mais dois milhões de
que sejam femininas, ou seja, sorridentes, moradias para evitar que nas áreas de
simpáticas (...)”10 (BOURDIEU, 1998, p. 94). risco as pessoas sejam objeto desse
problema que você disse que às vezes
Por diferentes estratégias de campanha,
coloca as pessoas até em risco de vida.”
o sujeito encarnado pela mulher política
Ségolène Royal traz fortes traços de
feminilidade, como o sorriso constante. A Dessa maneira, podemos dizer que o
candidata francesa utiliza seu sorriso como um sujeito político encarnado por Dilma se inscreve
aparato estratégico, o qual, segundo Goffman sob a esteira do equilíbrio entre os polos
(1988), é característica feminina por excelência, masculino e feminino.
assim reforçando a inscrição da candidata no 3. Conclusões prévias
âmbito feminino, encarnando a feminilidade.
No Brasil, pela primeira vez, em 2010,
ocorre um debate eleitoral presidencial de
10
(Tradução nossa)“ On attend d’elles qu’elles segundo turno no qual há uma interação direta
soient «féminines»c’est diresouriantes,sympathiques protagonizada por um casal, um homem e uma
(...) " (Bourdieu,1998,p.94)

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300
mulher. Assim, a questão do gênero aparece em
__________ Rhétorique télévisuelle et
evidência.
esthétisation politique : le corps (en) politique.
A candidata Dilma Roussef em 2010 In :BONNAFUS,S. et al. (org.) Argumentation
apresenta-se sob a marca do equilíbrio: ao et discours politique. Rennes: Presses
mesclar terno cinza (ícone de vestimenta Universitaires de Rennes, 2003
masculina) com joias e maquiagem, ícones
________________. Le corps présidentiel.
femininos, juntamente com os sapatos de bico
Représentation politique et incarnation dans la
fino com pequeno salto (que demostram uma
campagne présidentielle française de 2007.
leve feminilidade velada pela masculinidade,
Mots. Les langages du politique [conteúdo
diferente do que demonstraria saltos altos, forte
digital], 89 | 2009, acesso em 09 de janeiro de
marca feminina), entrelaçam-se o feminino e o
2016. Disponível em:
masculino, na tentativa de ocupar e marcar um
<http://mots.revues.org/18753>.
lugar na política brasileira, local previamente
dominado por homens. COULOMB-GULLY, M. Présidente: le grand
défi. Femmes, politique et médias. Paris: Ed
Dessa maneira, a candidata nem tanto se
Payot & Rivages, 2012.
aproxima de Arlette Laguiller, a qual se
apresentava discursivizada sob o aspecto da COURTINE, J-. J. Os deslizamentos do
androgenia, sem fortes marcas de gênero e espetáculo político. Trad. Roberto Leiser
tampouco de Ségolène Royal, em sua Baronas e Fábio César Montanheiro. In:
candidatura de 2007, momento no qual a ______. Metamorfoses do discurso político:
imagem da candidata apareceu extremamente derivas da fala pública. Tradução de Nilton
feminina. A imagem da candidata brasileira Milanez e Carlos Piovezani Filho. São Carlos:
Dilma Rousseff, em 2010, construiu-se na Claraluz, 2006.
esteira do equilíbrio: marcas do feminino e do
GOFFMAN,Erving , « La ritualisation de la
masculino a constituíam, permitindo-a transitar
féminité », Les moments et leurs hommes,
nos dois lugares, proporcionando ao sujeito
Paris, Le Seuil/Minuit, 1988
político feminino ocupar um lugar que
historicamente não lhe era permitido – a política FAUSTO NETO, A.; RUBIM,A.C.;
– e, sobretudo, o posto de presidente de um VERÓN,E. Lula presidente: Televisão e
país. Política na Campanha Eleitoral. São Paulo:
Hacher; São Leopoldo, RS: Unisinos,2003.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder.
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BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Trad.
GADET, Françoise; PÊCHEUX, Michel. A
Plínio Dentzien. Rio de Janeiro, RJ: Jorge
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Zahar, 2001.
lingüística. Campinas, SP: Pontes, 2004.
BOURDIEU, Pierre. La domination
PIOVEZANI, Carlos. Verbo, corpo, voz:
masculine. Paris, Ed du Seuil, 1998, et 2002
dispositivos de fala pública e produção de
pour la préface.

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

301
verdade no discurso político. São Paulo: Ed.
UNESP, 2009.
SARGENTINI, V. Discurso e História em
diferentes materialidades do discurso político.
In: INDURSKY, F., MITTMANN, S. e
FERREIRA, M. C. L. Memória e História
na/da Análise do discurso. Campinas, SP:
Mercado de Letras, 2011
<http://reports.weforum.org/global-gender-gap
report2014/economies/#economy=BRA>
Acesso em 10/03/2015

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

302
IMAGEM EM MOVIMENTO: KURTZ, UM CORPO NA
SOMBRA

Jaquelinne Alves FERNANDES


Universidade Federal de Goiás (UFG)
jaquelinnefer@gmail.com

Resumo: Pretende-se, neste estudo, centrado na Análise do Discurso francesa, com


recorrência ao pensamento de M. Foucault, pensar as ‘imagens em movimento’ do
cinema como discursos que são construídos por uma rede de enunciados, possibilitando a
emergência de posições sujeito. Para tal, nos propomos a analisar um recorte do filme
Apocalypse Now, a partir do referencial teórico que problematiza ‘o corpo’ no interior da
Análise do Discurso, uma vez que trataremos a materialidade da imagem fílmica a partir
dos corpos que nela emergem, com o objetivo de verificar a constituição do sujeito Kurtz.
Palavras-chave: imagem em movimento; corpo; norma; resistência.

descrição dos jogos de relações entre


Introdução
enunciados, grupos de enunciados e
Neste estudo, centrado na Análise do acontecimentos não-discursivos.
Discurso francesa, com recorrência ao
Pensando que a partir da função
pensamento de M. Foucault, pretende-se pensar
enunciativa há a instauração de discursos,
as ‘imagens em movimento’ do cinema como
acreditamos que o discurso é uma prática que
discursos instaurados que são construídos e
se define como um “conjunto de regras
constitutivos por uma rede de enunciados.
anônimas, históricas, sempre determinadas no
Conforme Foucault (2007), para se pensar em
tempo e no espaço, que definiram, em uma
enunciado, faz-se necessário, ainda, pensar em
dada época e para uma determinada área social,
função enunciativa que, a nosso ver, estabelece
econômica, geográfica ou linguística, as
uma relação direta com a noção de função
condições de exercício da função enunciativa”
sujeito (correlato das práticas), que é uma
(FOUCAULT, 2007, p. 133). Estabelecido
função vazia uma vez que não é ocupada por
como um regime de práticas, foi necessário
seres individuais. Nesse sentido, a função
evidenciar o tipo de positividade (de um saber e
enunciativa é responsável por estabelecer as
não de uma ciência) que caracteriza os
regras do que pode ser dito em um espaço,
discursos. A função enunciativa estabelece-se
tempo e por sujeitos determinados. Não há
por meio de campos de possibilidades, de
enunciado isolado, por isso a necessidade da

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

303
regularidades da circulação e da troca de possibilita observar as imagens enquanto redes
enunciados. Nesse ínterim, o sujeito configura- de enunciados, uma vez que é o "campo de
se, também, em uma função enunciativa. utilização" de um enunciado, sua relação com
outros enunciados, que definem sua
A teoria do discurso emerge pelo
materialidade.
cruzamento da história e dos saberes, tomando
o discurso como um campo de alianças, No que se refere à materialidade dos
articulações, debates e duelos que se enunciados, conforme afirma Milanez (2012),
sobrepõem. Os discursos se apresentam por deve-se obedecer a ordens “institucionais a que
meio de uma dada materialidade: há uma estão associadas e que regem os saberes”
materialidade própria à língua, mas há também (MILANEZ, 2012, p. 10) e sua organização
uma materialidade que se estende a domínios do dependerá do suporte que sustenta a sua
não-verbal, como as imagens fixas (fotografia, realização. Para nosso trabalho, interessa-nos
pintura...) e imagens em movimento (seriados, tratar da materialidade fílmica, uma vez que
cinema...). A materialidade e seus suportes são tomaremos como objeto de estudo uma imagem
heterogêneos, possibilitando a existência real do em movimento do filme Apocalypse Now, numa
enunciado que, na perspectiva de Foucault tentativa de verificar a constituição de um
(2007), sujeito, coronel Walter Kurtz, por meio de
jogos de poder e saber, expressos em seu
Chamaremos enunciado a modalidade de corpo.
existência própria desse conjunto de signos:
modalidade que lhe permite ser algo Segundo Milanez (2012), a
diferente de uma série de traços, algo materialidade fílmica
diferente de uma sucessão de marcas em
uma substância, algo diferente de um objeto é marcada primeiro de tudo pela força
qualquer fabricado por um ser humano; daquele que imprime seu olhar sobre uma
modalidade que lhe permite estar em relação imagem que chegará até nós com recortes e
com um domínio de objetos, prescrever uma edições. Tomando a câmera como a
posição definida a qualquer sujeito possível, extensão do corpo, serão as determinações
estar situado entre outras performances corporais de um sujeito que vê o mundo por
verbais, estar dotado, enfim, de uma meio de maneira controlada e reduzida aos
materialidade repetível. (FOUCAULT, campos de visão dentro do enquadramento
2007, p. 123-124) de uma lente. Por isso mesmo, qualquer
posição de um sujeito é um olhar que conta,
antes de tudo, o lugar que esse sujeito
Foucault (2007), define o enunciado ocupa, tanto historicamente quanto
como "uma função que cruza um domínio de fisicamente em relação à imagem capturada.
estruturas e unidades possíveis e que faz com Desse jeito, câmera, corpo e história são
que apareçam, com conteúdos concretos, no produções que não se dissociam e cuja
tempo e no espaço" (Foucault, 2007, p.98). existência produzirá as imagens que vemos
Portanto, o enunciado não se reduz a um em um filme. (Milanez, 2012, p. 5)
agrupamento de significantes e significados e
não tem uma materialidade restrita, o que nos

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304
texto de Antoine de Baecque (2008), O corpo
Não temos a pretensão de esgotar as
no cinema, pois acreditamos que a objetivação
possibilidades de análise da imagem
do indivíduo em sujeito, só é possível pelo
selecionada, portanto a observaremos a partir
“caminho” do corpo. Acreditamos, também,
do referencial teórico que problematiza ‘o
que as práticas de subjetivação relacionam-se a
corpo’ no interior da Análise do Discurso, uma
uma noção de corpo, uma vez que esses estão
vez que trataremos a materialidade da imagem
submetidos às técnicas de poder presentes em
fílmica a partir dos corpos que nela emergem,
toda a sociedade, atreladas a dispositivos
que são produtores e suportes de discursos,
políticos.
permeados por saberes e poderes, que atuam
para a constituição dos sujeitos. 2. O Corpo no Cinema – breves pinceladas
Nosso corpus de estudo será construído Para nossas discussões, buscamos
por um fragmento de imagem recortado de observar o corpo como suporte discursivo, que
Apocalypse Now (1979), um filme baseado na atua para o exercício de poder, resistência e
obra “O coração das trevas”, de Joseph Conrad, liberdade; assim, trataremos o corpo como
que conta a história do capitão Willard, um acontecimento e memória, inseridos em uma
combatente no Vietnã que recebe uma missão rede discursiva que faz emergir a história. Nesse
especial e confidencial: encontrar e matar o sentido, pensar o corpo e sua história no cinema
coronel Walter Kurtz, um dos mais pressupõe uma arqueologia dos discursos e uma
condecorados e respeitados oficiais do exército genealogia dos poderes e saberes que deles
americano, que parece ter se tornado um sujeito emergem. O corpo é, nessa perspectiva,
anormal (“... foi para as Forças Especiais e, materialidade discursiva produzida, modificada
depois disso, as ideias dele, seus métodos e reconfigurada por práticas subjetivas,
tornaram-se anormais. Anormais!”), de acordo portanto está no centro das relações entre
com a disciplina militar, e formado uma própria sujeito, discurso e instituições, constituindo a
milícia/seita. O filme aborda, de forma ficcional, história, a partir das posições que ocupa. O
os últimos anos da Guerra do Vietnã (1959- corpo é, indiscutivelmente, social e histórico.
1975), tratando os sujeitos-personagens Pensando nisso, trataremos dos embates
envolvidos a partir de suas angústias, medos, e duelos de um corpo com outros corpos,
dualidades e conflitos, levando em consideração tentando compreender os mecanismos
a tênue fronteira entre a vida e a morte, entre a históricos de continuidades e rupturas
normalidade e a anormalidade. Interessa-nos, vivenciados por esse corpo em sua constituição
para este momento, o sujeito Kurtz que se torna enquanto suporte discursivo, dentro da
alvo do exército por ser considerado um materialidade cinematográfica, por meio da
anormal e agir por “suas próprias regras”, imagem em movimento. Assim, tratamos o
tornando-se um obstáculo para a conquista do corpo como uma superfície para o exercício de
objetivo maior: vencer a guerra. relações de poder, “caminho” para a
No tópico seguinte, trataremos da subjetivação, uma vez que as relações sociais e
história do corpo no cinema, uma vez que o culturais são impressas no corpo. Para tal,
corpo será o nosso foco de observação para a tomaremos como referencial teórico o texto de
análise do sujeito Kurtz, a partir da leitura do Antoine de Baecque (2008), que trata da

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305
história do corpo na perspectiva cinematográficas, por meio das mulheres
cinematográfica, no decorrer do século XX. martirizadas. Na Nouvelle Vague, houve outra
uma mudança de olhar lançado ao corpo, que o
Baecque (2008) afirma que, para se
observou e o tratou como um corpo real, que
compreender as principais representações do
escapava às limitações dos estúdios e das suas
corpo, nesse período, é necessário uma
convenções plásticas (Brigitte Bardot foi a
observação de seus meios de transmissão sobre
maior representante desse período).
a tela do espetáculo de massa, que tem como
característica registrar corpos e, por meio deles, O cinema contemporâneo retorna ao
contar histórias, tomando-os como um traço da corpo-espetáculo, apresentando corpos
crença no espetáculo. desolados, mortificados, primitivos, saturados e
sangrando, porque fizeram a experiência da
Ao longo da história, pode-se dizer que
morte, subvertendo-a, e se colocando contra a
as sociedades sempre ansiaram pelo espetáculo
normatização. Pensamos que a emergência
do corpo. Em Paris, essa ansiedade, antes do
desse tipo de enunciado se justifica pelo fato de
cinema, era saciada em dois espaços de
que há, na sociedade moderna, uma espécie de
distração: “o Museu Grévin (figuras de cera,
“irrealidade” em que estamos mergulhados, um
representando corpos); e o necrotério
mundo de ameaças que, quase nunca, se tornam
(cadáveres exibem casos de crimes famosos)”
reais, mas que circulam sempre, principalmente
(BAECQUE, 2008, p.483). Esses espaços
na mídia. Um mundo em que tudo se
foram substituídos pelas telas do cinema, assim,
transforma rápido demais.
os corpos do cinema nascem na França – como
o corpo espetáculo –, “mas foram fabricados Interessa-nos, para este estudo, essa
em série na América do Norte” (BAECQUE, perspectiva dos corpos no cinema da
2008, p.483), como o corpo artifício. contemporaneidade, que é o recorte temporal
em que se enquadra o filme que nos propomos
As configurações e representações do
a analisar. Além disso, essa relação
corpo, no cinema, foram se reconfigurando e
contemporânea que o cinema estabelece com o
sofrendo mutações, acompanhando as
corpo, nos permite uma análise
transformações que ocorriam nas telas. No
arquegenealógica da constituição do corpo
cinema burlesco, que teve origem na França, o
enquanto suporte discursivo, que evidencia a
corpo-espetáculo sede lugar ao corpo-
tomada de posições-sujeito.
catástrofe, que se tornou o exclusivo e único
instrumento de espetáculo. A Vamp, a Diva, a No caso do sujeito-personagem que nos
Star e a pin-up girl, os corpos-sedutores, são propomos a analisar, é notório que sua
uma tentativa de apagar as vivências e as emergência se dá em meio uma situação
recordações que lembravam as guerras, por caótica, cercado por acontecimentos
meio de uma domesticação dos corpos no discursivos que o levam a ter práticas
cinema, em busca de uma beleza mais consideradas como anormais e, por essa razão,
padronizada. O cinema moderno desestabilizou toma atitudes que vão contra os padrões
a domesticação e o encantamento dos corpos, normativos do grupo social em que se insere –
apresentando-os asselvajados, violentados, o Exército. Faremos, a partir de agora, a
voltando ao primitivo das origens observação e análise desse sujeito, por meio das

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306
representações de seu corpo, no fragmento de nitidez, o que nos permite pensar na
imagem recortado do filme. emergência de uma posição sujeito em meio à
escuridão. Seu corpo não aparece em
3. Kurtz: um Corpo na Sombra
evidência, pois tornar-se-ia alvo fácil para o seu
Tomando Apocalypse Now como combatente (Willard). Essa escuridão em que
corpus para análise, propomo-nos a analisar emerge (ou se esconde?) o corpo de Kurtz nos
uma imagem (imagem em movimento, permite evidenciar alguns aspectos da posição
conforme explicitado anteriormente) do filme1, sujeito que ocupa, pois o corpo é uma
com o intuito de verificar, a partir do superfície para o exercício de relações de
referencial teórico que problematiza ‘o corpo’ poder, o “caminho” para a subjetivação, uma
no interior da Análise do Discurso, como se dá vez que as relações sociais e culturais são
a constituição da posição sujeito Kurtz, uma impressas no corpo.
vez que acreditamos que a constituição desse
A cena que escolhemos analisar, neste
objeto recai sobre a objetivação de um sujeito.
estudo, um recorte entre 1:54:39 e 1:55:36, é
As câmeras do filme nos inserem em constituída tanto por discursos verbais quanto
uma viagem, pelo rio, rumo ao interior de uma não-verbais. Ateremo-nos aos discursos não-
floresta e ao interior dos sujeitos personagens – verbais, expressos no corpo que está inscrito
dois sujeitos percorrem esse caminho: Kurtz, o em um ambiente escuro, para tentar alcançar as
pioneiro, e Willard, refazendo, seguindo, relações de poder e saber constitutivas da
trilhando seus passos –, o que nos possibilita posição sujeito Kutrz. Abaixo, um recorte da
observar como se dão as práticas de cena:
subjetivação relacionadas a uma noção de
corpo, uma vez que esses estão submetidos às
técnicas de poder presentes em toda a
sociedade, atreladas a dispositivos. Os passos
de Kurtz nos são apresentados, em um primeiro
momento, a partir das percepções de Willard e
das informações que são repassadas a ele pelo
Exército, no entanto, com o desenrolar dos
acontecimentos, nos é apresentado o coronel
Kurtz, que vive no “Coração das trevas”,
protegido pela floresta.
A primeira cena em que Kurtz aparece, 2
após 1:54:39 minutos de filme, retrata um
ambiente escuro, repleto de sombras. Nesse
ambiente, o corpo não pode ser visto com
2
Esta imagem congelada (1:54:39) é o momento em que
1
Dada a impossibilidade da reprodução dessas imagens Kurtz aparece pela primeira vez no filme. A relevância
em movimento nesse artigo, faremos a descrição verbal de se apresentar essa imagem se dá pelo fato de trazer
delas e, quando se fizer necessário, apresentaremos, por para o leitor desse artigo a noção da sombra em que os
meio de uma imagem congelada, alguns recortes. corpos se inserem.

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307
seu corpo não pode ser visto e nem alcançado
Na imagem acima, vê-se, em meio à
e, assim, pode continuar sua atuação como
escuridão, a sombra, Willard: ajoelhado, de
sujeito de resistência, como aquele que
costas e com as mãos atrás do corpo. O resto
transgride às normas estabelecidas pelo
da imagem é marcada por pequenos focos de
exército, estabelecendo uma nova ordem.
luminosidade (velas acesas) e uma luz mais
forte ao fundo. Em meio a essa escuridão, O corpo que emerge, em meio à
Kurtz passa quase que despercebido, mas, com escuridão, não representa o medo de ser morto,
um olhar mais atento, é possível observar que, mas o medo de ser morto antes do tempo,
do lado direito do ambiente, há um homem antes de convencer, por completo, Willard de
deitado. suas convicções. O corpo na escuridão
permite-lhe assumir uma posição sujeito de
Os focos de luz chamam nossa atenção
resistência, protegendo-se de um possível
para outros pontos do ambiente,
rompante para o cumprimento da ordem – de
impossibilitando que, em um primeiro
ser morto –, e evidenciando suas razões para
momento, seja possível notar a presença do
romper com a disciplina.
corpo deitado. Acreditamos que essa escuridão
seja uma estratégia utilizada por Kurtz para que Nesse sentido, podemos afirmar que a
não seja notado, antes do previsto, por Willard, aparição nas sombras reforça uma
o que possibilita pensar em relações de poder. contraposição à disciplina e às normas do
Pensamos que o poder atua sobre o corpo que, Exército, que são “claras”: aquele que as
conforme Foucault (1995), é uma superfície infringe deve ser morto. Devemos ressaltar que
para o exercício de relações de poder, estamos, neste momento, pensando em
“caminho” para a subjetivação, uma vez que as disciplinamento e governo do corpo, uma vez
relações sociais e culturais são impressas no que a disciplina tem como objetivo tornar o
corpo. corpo dócil e, com base em tecnologias
disciplinares, constrói-se uma “anatomia
Os processos de subjetivação, por meio
política” para melhor competência do corpo,
de relações poder-saber, atuam sobre o corpo
diretamente ligada ao enquadramento e
de Kurtz por meio de técnicas e tecnologias.
esquadrinhamento.
No caso em questão, a sombra, que
impossibilita a visibilidade do corpo, evidencia Notamos assim, que o corpo não tem
que esse sujeito, embora tido como herói pelos uma existência a priori, devendo ser
que o cercam, sabe que Willard, para cumprir problematizado e produzido por práticas
uma ordem que lhe foi dada por seus discursivas e não discursivas (sombra,
superiores, está ali para matá-lo, exercendo (ou escuridão). O corpo está atrelado a formas de
imaginando exercer) um controle sobre a vida e atuação, a mecanismos de controle, a formas
a morte de Kurtz. “econômicas” de usá-lo e pensá-lo, afinal, há
uma complexidade de rituais a ser seguida, uma
Willard representa e atua em nome de
eficiência a cumprir. Assim, esse corpo na
uma disciplina militar. Kurtz é um desertor, que
sombra, que se protege da visibilidade, mas que
deve ser morto. Kurtz apresenta-se na
pode ver, estabelece uma relação entre micro
escuridão, cercado e protegido pelas trevas,
poderes e os saberes, uma vez que o poder se

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308
dá por meio de uma rede de relações que cria momento. Assim, há uma troca mutua de
saberes. papeis, que é propiciada pela escuridão: caça e
caçador mudam, constantemente de posição.
Kurtz estabelece suas relações de
Kurtz não aparenta sentir medo, o que poderia
poder por meio do combate que, nesse caso,
se justificar pelo fato de se sentir seguro no
não é luta física, não é algo que se detém ou
ambiente em que está, onde os únicos inimigos
um lugar que se ocupa permanentemente e
são Willard e seus dois soldados, que estão
muito menos violência. Kurtz utiliza de seus
fora da cena, pois estão no barco. No entanto,
saberes sobre as práticas e normas do Exército,
essa seria uma justificativa muito simplista.
para camuflar-se no ambiente, podendo
Kurtz não tem medo porque sentir medo,
observar o “inimigo”, numa tentativa de uma
naquela situação, faria com que entrasse em
interação que lhe permitisse evidenciar, para
uma dada norma. Sentir medo da morte, pelas
Willard, suas razões para resistir às ordens
mãos de um tenente do Exército seria, de
militares e tornar-se um desertor.
alguma forma, se render à disciplinarização
Pensemos: o que se apresentou no imposta por aquela instituição.
filme, até o momento de sua primeira aparição,
Em meio à sombra, deitado,
evidenciava Kurtz como um sujeito anormal,
calmamente aguarda e observa Willard,
aos olhos da disciplina militar, uma vez que
contudo não teme a morte e nem resiste a ela,
rompeu com o exército e criou sua própria
colocando-se como anormal, agindo por meio
milícia, estabelecendo resistência e perigo às
de suas próprias regras, tornando-se um
normas3 militares. Kurtz aparece, pela primeira,
“monstro humano” aos olhos do exército.
em um ambiente escuro, onde Willard é
Tratamos, para nossas análises, da concepção
colocado de joelhos e vigiado por um homem
de “monstro humano” conforme Foucault
armado. Willard está ali para cumprir um
objetivo: matar Kurtz e garantir a ordem para (2002), como aquele que transgride às leis
sociais e às leis da natureza. Nesse ínterim, o
os militares. Kurtz sabe disso e aguarda sua
monstro faz parte da constituição do domínio
chegada, prepara-se para isso.
da anormalidade. Ele é a figura chave que nos
Deitado em uma cama, com roupas permite compreender as articulações entre as
escuras e em um ambiente sem nenhuma instâncias de poder e os campos de saber
iluminação, não pode ser visto, em um primeiro envolvidos na constituição dos “anormais”,
enquanto objetos discursivos. Kurtz torna-se,
então, um “monstro humano” aquele que
3
Norma é o que está em jogo no interior das constitui, em sua existência e em sua forma,
normalidades diferenciais. O normal é que é primeiro, e uma transgressão às leis do Exército,
a norma se deduz dele, ou é a partir desse estudo das combinando o impossível com o proibido.
normalidades que a norma se fixa e desempenha seu
papel operatório. Logo, eu diria que não se trata mais de Assim, podemos pensar que aquele
uma normação, mas sim, no sentido estrito, de uma sujeito que não se submete, ou que apresenta
normatização. (FOUCAULT, 2008, p. 09) certa resistência às práticas disciplinares a que
está inserido, como Kurtz o faz em relação ao
Exército, age em nome de uma dada

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309
normatização e moralização, submetido à
Partimos dos pressupostos teóricos da
punição, pois aqueles que não respeitam o
Análise do discurso de herança francesa com o
“contrato social” (os anormais: o monstro, o
objetivo de analisar, com recorrência aos
indisciplinado) devem ser punidos. E, no caso
postulados foucaultianos, a constituição
do sujeito em questão, a punição se dá sobre a
histórico-discursiva do sujeito Kurtz, por meio
vida do sujeito, que foi condenado à morte pelo
de uma análise do seu corpo, que emerge em
Exército, uma vez que deve ser punido, em
meio às sombras, na materialidade fílmica
definitivo, por sua “desordem” e anormalidade;
tomada como corpus de estudo.
o que asseguraria ao Exército a manutenção do
controle. Para tal, fez-se necessário uma breve
discussão acerca da materialidade fílmica
Nessa perspectiva, podemos
enquanto suporte que sustenta a realização de
considerar, recorrendo a Foucault (1986), que o
enunciados, uma vez que tomamos como
corpo e os processos de subjetivação são
objeto de estudo uma imagem em movimento
colocados em um campo de luta entre o
do filme Apocalypse Now, que nos propiciou
controle exercido pelo poder disciplinar – no
verificar a constituição do sujeito Kurtz, a
caso do filme em questão, controle exercido
partir de relações de poder e saber, expressas
pelos militares – e as resistências que emergem
em seu corpo.
a esses mecanismos de controle – resistência
exercida por Kurtz. Nesse caso, o Exército Ocupamo-nos, para nosso percurso de
exerce uma vigilância constante sobre o corpo análise, da observação do corpo como suporte
de Kurtz e, uma vez que se vê diante da discursivo, no qual, ao materializar um sujeito,
impossibilidade de controlá-lo, decide eliminá- se inscrevem discursos de resistência. Para tal,
lo, tentando, por meio disso, exterminar pensamos o corpo, conforme Foucault (1986),
qualquer prática de resistência. O corpo de como suporte discursivo e lugar onde ocorrem
Kurtz funciona como uma linha de resistência embates, lutas travadas por meio de relações de
às práticas que lhe são impostas pelo Exército poder e de saber que se articulam
e, mais ainda, como possibilidade de conhecer e estrategicamente na história, produzindo
governar a si mesmo, por isso deve ser posições subjetivas e campos de regularidade
aniquilado, destruído. discursiva. Assim, o corpo, conforme Foucault,
é uma realidade biopolítica, "interpenetrada de
Podemos pensar então que o recorte (a
história" e suporte sobre o qual incidem e
imagem) escolhido para a análise evidencia a
constroem-se uma vasta gama de enunciados.
emergência de um sujeito de resistência, que
Acreditamos, portanto, que o corpo é uma
tem em seu corpo as marcadas discursivas que
peça dentro de um jogo de confrontos em toda
lhe constituem, por meio de um corpo nas
rede social, o que o torna depositário de
sombras. Embora o recorte tenha pouco mais
“marcas” (discursos) que nele se inscrevem, de
de um minuto, sabemos que nossa breve análise
acordo com as efetividades destes entraves.
não o encerra e deve ser continuada e
aprofundada em outro momento. Portanto, o corpo é uma
problematização entre “o que é o corpo”, em
4. Considerações Finais
sua materialidade física, e “o que se diz e se faz

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310
com o corpo” historicamente. E é da relação
______. Os anormais: curso no Collège de
entre discurso-história-memória que emerge sua
France (1974-1975). Trad. Eduardo Brandão.
materialidade e importância como suporte de
São Paulo: Martins Fontes, 2002.
discursos, como espaço no/do qual emergem
práticas de subjetivação e mecanismos de ______. O sujeito e o poder. In: DREYFUS,
normatização constitutivos de posições sujeito. Hubert; RABINOW, Paul. Michel Foucault,
uma trajetória filosófica: para além do
O filme que tomamos como corpus,
estruturalismo e da hermenêutica. Rio de
construiu uma narrativa a partir de uma
Janeiro: Forense Universitária, 1995. p. 231-
instituição social (Exército) em que a disciplina
249.
é o grande instrumento do poder, composta,
em conformidade com Foucault (1995) por ______. Poder-corpo. In: Microfísica do
“métodos que permitem o controle minucioso poder. Rio de Janeiro: Graal, 1986.
das operações do corpo, que asseguram a MILANEZ, N. Materialidades da imagem no
sujeição constante de suas forças e lhes cinema: discurso fílmico, sujeito e corpo em a
impõem uma relação de docilidade-utilidade” dama de ferro. Revista Movendo Ideias. Vol.
(Foucault, 1995, p. 240). No entanto, Kurtz 17, Nº 2 . 2012.
resiste a essa prática disciplinar, tornando-se
alguém a ser combatido e destruído, em nome
de uma dada normatização. Percebe-se, nessa
relação disciplina-resistência, a instauração de
um tipo de exercício de poder, que é um modo
de um sujeito agir sobre outro, uma vez que as
relações de poder pressupõem uma ação sobre
outra ação. Não há poder sem resistência, e foi
por meio da resistência que Kurtz conseguiu
"escapar" dos dispositivos de identificação, de
classificação e de normalização do discurso em
que estava inserido, ocupando uma nova
posição sujeito.

Referências
BAEQUE, A. de. Telas: O corpo no cinema. In.:
COURTINE, J-J (org.). HIstória do Corpo: as
mutações do olhar: o século XX. Vol.3.
Petrópolis: Vozes, 2008, p. 481-507.
FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio
de Janeiro: Forense Universitária. 2007.

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311
A PIADA RELIGIOSA E A VERDADE ABSOLUTA

Sarah Menoya FERRAZ


Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
sarahmenoya@hotmail.com

Resumo: Trazendo mais propostas de reflexão do que respostas propriamente ditas,


afinal são questões de um início de pesquisa, este artigo visa a reflexão sobre as piadas
de cunho religioso e a ilusão de verdade do discurso que a subjaz. Para tanto, mobilizam-
se: o conceito de Discurso Constituinte, de Dominique Maingueneau; a abordagem
teórico-materialista do funcionamento das representações e do pensamento nos processos
discursivos e a noção de Formação Discursiva, de Michel Pecheux. Diante deste aparato
de conceitos, tentemos responder: será possível afirmar o responsável pelos processos de
criação intolerantes das piadas antirreligiosas (assim como pelos processos de criação
dos enunciados que as refutam) é a ilusão de racionalidade dos discursos religiosos?
Palavras-chave: religião; piada; verdade; Análise do Discurso.

somente a seus membros, então toda outra


Introdução parte dos sujeitos existentes estão excluídos, ou
É indiscutível, e está fora das nossas incluídos no caminho da perdição. Parece
forças querer evitar, que exista uma infinidade estranha esta afirmação, e um tanto injusta.
de religiões. E o poder das palavras e das ações Devemos então culpar a cultura pela qual o
de cada instituição religiosa, pautadas no seu sujeito está inserido? É aí que a AD e os
discurso pretencioso e parcial, provoca pressupostos teóricos dos quais refletiremos
perigosos conflitos. aqui podem contribuir. As convicções religiosas
são/estão materializadas verbalmente e estão
Como lidar com essas realidades? Será dispostas em gêneros textuais diversos, como
possível ao sujeito assegurar por completo a por exemplo, uma piada. A contribuição teórica
verdade das suas convicções religiosas e ainda para estas questões não está apenas no gênero,
manter o compromisso com a paz? Como a pouco falaremos dele aqui, mas principalmente
Análise do Discurso (AD) pode ser útil para no fato de que cada instituição quer legitimar
pensar essas questões? Ela pode? seu discurso pautada no que é verdadeiro
Se apenas uma religião é detentora da segundo seus próprios fundamentos.
verdade eterna e se o reino de Deus cabe

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312
313
Constituintes é tensa (o que explica os conflitos
1. Abordagem teórica e metodológica
armados, verbais, e de toda espécie). Cada um
1.1. Discursos Constituintes com suas especificidades (a única coisa em
Maingueneau (2008), teórico francês da comum é esse caráter pretensioso que estamos
Análise do Discurso, trata o discurso religioso nos referindo); entre eles há citações e
dentro de características próprias a um tipo de refutações, eles se atraem e se excluem. Enfim
discurso que ele nomeou de “constituinte”, dialogam polifonicamente e polemicamente
reconhecendo que se trata de uma categoria entre si. É por isso mesmo, pelo fato de
insólita, pois os analistas do discurso têm pouco servirem de marcadores explícitos de
interesse no trabalho com isso. Segundo o posicionamentos, que eles se dirigem a
pesquisador francês (2008, p.41) “a dificuldade comunidades específicas.
em abordar textos ‘constituintes’ se explica O Discurso Constituinte é responsável
também por certa resistência das correntes pela gestão das normas de uma coletividade
dominantes em Análise do Discurso, que muitas garantindo o comportamento ideal dos
vezes privilegiam os enunciados que não são membros da comunidade linguística e
submetidos a fortes restrições institucionais”. delimitando o seu lugar-comum. Trata-se, por
Maingueneau (2008, p.37) criou esta isso, de um modo específico de se situar no
categoria para definir os discursos que não interdiscurso.
reconhecem “outra autoridade além da sua 1.2. Formações Discursivas
própria, de não admitir quaisquer outros
Muitos trabalhos em AD se debruçam
discursos acima deles”. Os Discursos
sobre o que é formação discursiva, mas para
Constituintes negam a existência de
nós basta o seguinte:
dependência de outros discursos por causa
desta pretensão. A relação deles com os não- as palavras, expressões, proposições etc,
constituintes é parecida com uma relação de mudam de sentido segundo as posições
hierarquia. Eles pensam servir como o primado sustentadas por aqueles que as empregam, o
do conhecimento dando suporte aos outros. que quer dizer que elas adquirem seu sentido
Serviriam, por exemplo, de embasamento para em referência a essas posições, isto é, em
um discurso político porque este se ocupa com referência às formações ideológicas nas
convicções religiosas ou filosóficas. Ou também quais essas posições se inscrevem.
poderiam servir como autoridade nos casos em Chamaremos, então, formação discursiva
que a imprensa, divulgando determinado aquilo que, numa formação ideológica dada,
acontecimento, solicita o auxílio de cientistas. isto é, a partir de uma posição dada numa
conjuntura dada, determinada pelo estado da
Portanto, há outros gêneros que aparecem em
luta de classes, determina o que pode e deve
cena na exibição dos Discursos Constituintes. É
ser dito. (PÊCHEUX, 2014, p. 146-147)
devido ao fato de serem reivindicados pelos
não-constituintes é que os Discursos
Constituintes pretendem estar acima de todos. Há de se considerar também, como base
no mesmo autor, que as formações discursivas
No entanto, a relação dos Discursos
Constituintes com outros Discursos

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314
não são simétricas e nem estáveis, antes, posição o sujeito afirma que esta posição é
portanto, se reconfiguram e se reinscrevem. verdadeira. Os motivos pelos quais isso
acontece podem ser explicados justamente
1.3. Abordagem teórico materialista do
pelos conceitos acima apresentados. Porém a
funcionamento das representações e do
natureza dessa “verdade” pode ser melhor
pensamento nos processos discursivos
representada ao observarmos a crítica feita por
Pêcheux (2014) afirma que o Pêcheux sobre o idealismo racionalista, que
funcionamento das representações e do consiste em subordinar idealmente a verdade
pensamento nos processos discursivos tem contingente à verdade necessária. Segundo ele
estreita relação com questão do discurso na
forma-sujeito, afinal não existe prática sem o resultado dessa subordinação é a
sujeito. Não se pode dizer que uma prática seja possibilidade aparente de tratar todos os
prática de sujeitos, mas deve-se constatar que seres (incluindo-se os que pertencem ao
todo sujeito é colocado como autor de seus domínio da moral, da religião, da política,
atos. etc) como análogos a seres lógico-
matemáticos e aplicar a seu respeito as
O indivíduo é interpelado em sujeito de mesmas operações. (PÊCHEUX, 2014,
seu discurso porque ele se identifica com a p.63).
formação discursiva na qual se inscreve. Neste
processo concebe-se, de um lado, o sujeito que Essas questões desmistificam a
enuncia, e de outro, o sujeito universal, evidência da existência espontânea do sujeito
havendo entre eles duas maneiras de se como origem de si, pois o sentido se constitui
relacionar: 1. como sujeito assujeitado, que unindo-se à constituição do sujeito interpelado,
aceitou o discurso do sujeito universal como pois este reflete o processo de representação
sendo legítimo e 2. como sujeito que se interior ao não-sujeito constituído pela rede de
posiciona contra o sujeito universal e não se significantes.
identifica com a formação discursiva que
atravessa o seu discurso. 2. Alguns exemplos para ajudar na reflexão
Leibniz (In PÊCHEUX, 1988) difere a Há dois casos que eu quero trazer à
verdade de razão (necessárias, seu oposto é nossa reflexão: um vídeo do programa
impossível, podemos encontrar sua razão pela humorístico brasileiro televisivo Porta dos
análise, indo das verdades mais simples às mais Fundos e uma charge da revista de humor
primitivas) e verdades de fato (contingentes, francesa Charlie Hebdo. Ambos casos se
seu oposto é possível, há uma sequência de inscrevem no discurso ateu, oferecem conteúdo
coisas onde a resolução em razoes particulares cômico (e, por isso, mobilizam o estereótipo
poderia ir a um detalhe sem limites, ideias que exagerado da doutrina criticada) e têm recepção
não podem ser remetidas a axiomas, verdades nada amistosa pelos adeptos da formação
da religião, moral, diplomacia...). discursiva estereotipada.

O assujeitamento e a inscrição do sujeito Registrou-se um incêndio criminoso na


numa formação discursiva também coloca em sede da revista francesa Charlie Hebdo, com
questão a noção de verdade, pois ao aderir uma sede em Paris, na madrugada do dia 2 de

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315
novembro de 2011, aparentemente porque atacaram a sede da revista deixando doze
houve um número da revista com a seguinte vítimas fatais: dez jornalistas e dois policiais.
charge: No dia 09 do mesmo mês a polícia francesa
Figura 1. Charge de nov.2011 matou os dois suspeitos pelo atentado à revista,
os irmãos Kouachi. O ocorrido se deu dentro de
uma gráfica, numa cidade próxima a Paris, onde
estavam os suspeitos e alguns funcionários. A
ação ocorreu ao mesmo tempo em que um
homem armado fez mais ou menos vinte reféns
e resultou em quatro mortos dentro de mercado
Hyper Cacher, também na capital. Os dois
casos foram relacionados ao ataque à sede da
revista.
Depois do ataque, o jornal alemão
Hamburger Morgenpost publicou na primeira
página três charges da Charlie Hebdo como
forma de apoiar as manifestações contra a
liberdade de imprensa. No dia 11 do mesmo
mês o jornal sofreu um incêndio não havendo
feridos. Ainda nesto dia, uma cerimônia na
Nota-se, nesta charge, uma tarja
Grande Sinagoga de Paris foi realizada para
vermelha com os dizeres “Charia Hebdo” e
homenagear todas as vítimas dos atentados,
“Mahomet Redacteur em chef”. Trata-se de um
entre elas quatro judeus. Ao menos três milhões
trocadilho entre o nome do jornal e a “Xaria”, a
de pessoas saíram às ruas da França para
lei islâmica baseada nos princípios da religião
manifestar solidariedade às vítimas. Em
muçulmana, que, diferentemente do Brasil, não
Washington, nos Estados Unidos, cerca de três
dissocia a religião das leis do país. Maomé é
mil pessoas foram às nas ruas para apoiar as
colocado ironicamente como o diretor chefe da
vítimas dos atentados na França, de acordo com
revista. Além disso, o personagem muçulmano
a embaixada francesa nos EUA. Em Montreal,
ocupa o centro da capa junto com a sua fala
no Canadá, vinte e cinco mil pessoas também
“Cem chicotadas se você não morrer de rir”.
saíram às ruas com o mesmo intuito.
Muitas outras charges de cunho
No dia 12 do mesmo mês, numa
antirreligioso foram criadas pela revista. Não
segunda-feira, temerosos quanto aos ataques,
que a revista só faça piada sobre religião, mas,
mais de setecentas escolas judaicas na França
partindo do princípio que é uma revista ateia, o
estavam protegidas por quase cinco mil policiais
repertório de piadas religiosas faz sucesso.
e soldados, segundo o “Le Figaro”. O
Essas caricaturas provocaram enorme
Observatório contra a Islamofobia do Conselho
controvérsia nos países de maioria muçulmana.
Francês de Culto Muçulmano (CFCM)
No dia 07 de janeiro de 2015, três anunciou neste dia que mais de 50 atos
homens encapuzados, armados com fuzis, antimuçulmanos foram registrados na França

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316
desde o atentado jihadista contra a revista populares em favor da revista. “Tudo está
francesa e pediu ao Estado que reforce a perdoado” é um termo ambíguo e irônico, afinal
vigilância das mesquitas. não é claro quem perdoa quem. Esta capa faz
referência à charge de 2011, sobretudo na cor
Neste dia ainda, o advogado da revista,
de fundo, o verde, e na figura de representação
Richard Malka, falava sobre a próxima edição
muçulmana.
da publicação, que sairia na quarta, dia 14: “Ela
será finalizada ainda nesta segunda, e um Mesmo antes recalcitranes sobre as suas
milhão de cópias serão distribuídas. Não será práticas de publicação, Renald Luzier,
um número de tributo, não é o espírito do conhecido como Luz, cartunista da revista,
Charlie. O espírito do jornal é fazer as pessoas anunciou que não vai mais fazer charges com o
rirem”. Neste edição, do dia 14, segue a profeta Maomé, em uma entrevista divulgada
seguinte capa: no dia 29 de abril do mesmo ano do atentado.
Figura 2. Capa de 14 de jan. de 2015 No dia 19 de maio, o cartunista se afasta do
jornal e declara o seu perdão aos assassinos.
Em linhas gerais, as instituições que
foram solidárias à revista, mesmo sem
mencionar explicitamente sua ideologia, foram
alvos dos extremistas. E a insegurança não
pairou apenas nestas como também nas próprias
instituições com laços islâmicos, que previam
uma vigança, e que de fato aconteceu.
Aplicando os conceitos teóricos citados
aqui para análise das charges que mostramos,
percebe-se elas se constituem como produto da
identificação com a formação discursiva ateia e
da não identificação com a religião muçulmana.
Trocando em miúdos: analisado a fig. 1
e 2, observa-se que há o sujeito ateu
Foram vendidas quase oito milhões de (cartunistas e produtores da revista: indivíduos
cópias deste número, enquanto as revsitas interpelado em sujeito, e que, por isso, podem
anteriores vendiam apenas trinta mil cópias. representar um grupo e não eles mesmos) e há
o sujeito universal, que é a referência do
Nesta capa, percebemos Maomé, não
conteúdo: a religião e costumes muçulmanos. A
explicitamente nomeado, triste, com uma
relação entre estes sujeitos é uma relação de
lágrima no olho esquerdo, carregando os
subversão, em que o sujeito ateu se posiciona
dizeres "Eu sou Charlie" a fim de retomar a
contra o sujeito universal e aproveita o seu
aforização mundial que surgiu depois dos
contexto de enunciação (ou seja, o fato de
ataques. Este enunciado propõe que Maomé
tratar os enunciados que produz de forma
esteja solidário às causas da Charlie, como se
cômica e de ser este o espaço que possui para
ele tivesse tido seu lugar nas manifestações

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317
enunciar) usando as figuras caricatas com exibidos seis esquetes e uma entrevista com Inri
exagerados estereótipos a fim de fazer rir. Este Cristo. Para este artigo escolho analisar o
é resumidamente o contexto de produção. terceiro esquete do vídeo entitulado “Abraão”.
De outro lado, o contexto da recepção: Trata-se de uma paródia da história
há o sujeito muçulmano1, muçulmano-leitor, e bíblica do momento em que Deus manda
há o sujeito universal (o mesmo que nos Abraão sacrificar o próprio filho, Isaque. O
referimos no parágrafo acima), sendo a relação esquete é bem curto e mostra o personagem
entre estes sujeitos uma relação de Abraão (interpretado pelo ator Antônio Tabet)
identificação, pois o sujeito muçulmano ouvindo a voz de Deus (interpretado pelo ator
identifica-se com as “chicotadas”, visto que elas Fábio Porchat) mandando matar Isaque
constituem elementos da sua formação (interpretado pelo ator Bruno Jablonski).
discursiva religiosa. Esta identificação, porém, Abraão obedece e, antes que Deus pudesse
não constitui o locus amoenus da formação terminar sua fala, mata o filho. Deus aparece
discursiva do leitor muçulmano, pois o sujeito encarnado e segue o diálogo:
universal deixa de ser tratado deveria ser
conforme a formação discursiva muçulmana, - Não, peraê Abraão, não, seu animal, puta
que protegerá o caráter constituinte de seu que pariu, cagou tudo de sangue, puta
discurso. É o valor de verdade dado ao sujeito merda, o que que você tá fazendo?
- Eu matei meu filho.
universal (representado pela figura de Maomé,
- Pois é, mas não era pra matar, cara.
pela xaria e pelo uso das chicotadas) que difere
- Mas foi você que mandou matar.
as instâncias de produção e de recepção, pois - Mas não era pra matar, cara, eu ia te dizer
este sujeito é visto e interpretado de maneiras agora, eu tava no meio da frase falando “oh
diferentes segundo as diferentes posições Abraão parabéns, não mate o seu filho”
sustentadas. Portanto, há identificação e não
identificação, esta não identificação é ressaltada
Deus resolve ressucitar o menino
pelo caráter irônico dado ao enunciado, que
quando:
produziu sentido de subversão, provando ira em
vez de riso. - e agora se eu falar assim “mata Isaque” ...
Analisamos também um vídeo do (Abraão mata Isaque novamente)
programa humorístico brasileiro Porta dos - não é pra matar, puta que caralho, olha aí,
Fundos veiculado em dois veículos de olha aí.
comunicação: em seu programa televisivo e
pela internet, por meio do site do YouTube, em Verificamos a revolta dos cristãos em
24 de dezembro de 2014. Neste especial, são relação aos vídeos do programa Porta dos
Fundos e a revolta deste sobre os comentários
1 daquele. Surgem, pela internet, vídeos de
Fique claro: não estamos falando de qualquer
muçulmano, estamos nos referindo ao contexto histórico cristãos de todas as ordens (padres, pastores e
que descrevemos aqui, ou seja, os assassinos e aqueles anônimos) comentando o programa do Especial
que estavam ao lado deles nos atentados contra a revista. de Natal 2014. Até então não houve (que eu
Nem todos os muçulmanos são solidários às atitudes saiba) violência física neste contexto, mas muita
extremistas de seus colegas de religião.

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318
inteligentes, tem cristão que gosta de
(muita mesmo) violência verbal, que beira o comédia, para quê tentar humilhar pessoas
ridículo se pensadas no âmbito dos princípios que assistem vcs, que gostam de vcs, sei que
cristãos. No canal Porta dos Fundo no vão encher de comentários do tipo que cara
YouTube também há críticas. Seguem algumas: trouxa e tal. Foda-se, vcs são uns talentosos
babacas que não respeitam o público...
FILHOS DA PUTA!!!! SE QUEREM abraço!!! e JUÍZO!!! kkkkkkkk
FAZER GRAÇA COM ALGO FAÇAM
COM O CU ARROMBADO DAS
VOSSAS MÃES EM VEZ DE FICAREM Aplicando os conceitos teóricos, citados
OFENDENDO A RELIGIÃO! TUDO aqui, à análise deste vídeo percebe-se ele se
BEM SE VOCÊS NÃO CRÊEM MAS constitue como produto da identificação com a
FICAR DESRESPEITANDO A formação discursiva ateia e da não identificação
RELIGIÃO É QUE NÃO! TOMARA QUE com a religião cristã.
QUANDO VOCÊS MORREREM SEJA
Trocando em miúdos: há o sujeito ateu
FEITA JUSTIÇA E QUEIMEM JUNTO
DE SATANÁS! CABRÕES DO (atores e produtores: indivíduos interpelado em
CARALHO! (Pancrácio Jetósbáldo) sujeito, e que, por isso, podem representar um
grupo e não eles mesmos) e há o sujeito
universal, que é a referência do conteúdo: Deus
Um diálogo entre produtor e receptor:
e o conteúdo bíblico. A relação entre estes
Vocês são muito engraçados hahahha sujeitos é uma relação de subversão, em que o
(Peter Camillo) sujeito ateu se posiciona contra o sujeito
universal, ridicularizando-o, dando a ele
características que não são comumente aceitas
Vc também, com esses óculos de sol como verdadeiras no seio da formação
enormes, tampando toda a cara. Gostou de discursiva cristã. Este é resumidamente o
nossos vídeos anticristãos? Inscreva-se ai... contexto de produção.
seja mais um idiotaseguidor... é assim que
chamamos nossos inscritos kkkk De outro lado, o contexto da recepção:
Atenciosamente, a redação (Moreira4903) há o sujeito cristão2, cristão-telespectador, e há
o sujeito universal (o mesmo que nos referimos
no parágrafo acima), sendo a relação entre estes
Acho vcs uns caras muito talentosos, porém, sujeitos uma relação de identificação, pois o
entretanto, contudo, todavia, fico sujeito cristão identifica-se com a prática da
constrangido em assistir os vídeos em que obediência a Deus, visto que elas constituem
tratam os assuntos religiosos. Já sei! Vão
elementos da sua formação discursiva religiosa.
pensar; puta merda, lá a maldita lição de
Esta identificação, porém, não constitui o locus
moral...rsrsrs Acertou!!! Kkkk (Samuel
Passos) amoenus da formação discursiva do
2
Fique claro: não estamos falando de qualquer cristão,
Porra seus talentosos do caralho, vcs não estamos nos referindo ao contexto dos enunciados
precisam denegrir a crença de ninguém para descritos aqui, ou seja, os cristãos insatisfeitos e
intolerantes com a intolerância religiosa que marca o
atingir o objetivo, porra!!! Vcs são
esquete.

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319
telespectador cristão, pois o sujeito universal vivem num estreito quadrado corporativista
deixa de ser tratado deveria ser conforme a (tanto no âmbito das religiões, como em relação
formação discursiva cristã, que protegerá o aos meios de comunicação que asseguram
caráter constituinte de seu discurso, ou seja, determinadas interpretações) em defesa de
Deus deixa de ser a representação da absoluta ideais restritos a eles mesmos. A violência é a
santidade e Abraão deixa de ser um homem que consequência disso e não a causa. Isso acontece
sabe ouvir a voz de Deus e ser obediente. principalmente porque o mundo tem vivido uma
intensa miscigenação cultural e religiosa.
É o valor de verdade dado ao sujeito
universal (representado pela figura de Deus e de O fundamentalismo é a base para o
um homem obediente à Deus) que difere as radicalismo de certos grupos religiosos, como
instâncias de produção e de recepção, pois este existe no seio do estado islâmico. O
sujeito é visto e interpretado de maneiras fundamentalismo sempre sustentou a existência
diferentes segundo as diferentes posições humana, pois desde que existem bases
sustentadas. Portanto, há identificação, mas, econômicas existe propaganda, e o discurso de
sobretudo, há uma não identificação, e esta não se impor por meio de “propagar” os ideais dá
identificação produziu sentido de subversão, espaço à violência. Em se tratando de
provando ira em vez de riso. fundamentalismo religioso, ou seja, a maneira
de assegurar os elementos fundamentais da fé
Considerações finais
relativos a cada instituição, a intensidade do
As charges e o esquete não são ódio pode ser ainda maior por conta do caráter
percebidas como produtos de enunciados que constituinte do discurso que a engendra,
reproduzem crenças possíveis de serem conforme vimos.
estereotipadas (como todas as são) mas são
A liberdade religiosa virou libertinagem
recebidos como ofensas. Todo comportamento
religiosa, um vale-tudo. É humanamente fácil
e todas as concepções ideológicas/religiosas são
exigir a liberdade, pois é desejo comum, mas é
possíveis de serem estereotipadas e servem de
difícil conviver com a pluralidade, que a é
produtos da criação artística. Dificilmente
imanente. Não é possível lutar contra a
admite-se que o estereótipo não é o real.
pluralidade, pois os enunciados pertencentes a
De um lado, o desenho que ridiculariza cada discurso das instituições já foram
o muçulmano e o esquete que ridiculariza legitimados por elas num processo
pressupostos do cristianismo e, de outro, a não historicamente irreversível. Pode-se, como
tolerância com a ridicularização. Essas duas prega muitas igrejas cristãs, levar o evangelho
instâncias são produtos do julgamento de valor até os confins da terra, mas não há receita
verbalizado que impõe obstáculo para o diálogo mágica para conversão de todos os povos.
de paz entre as diferentes crenças. De forma Portanto é necessário conviver com uma
mais intensa, os terroristas não pretendem ser sociedade militante, que produz enunciados
diplomáticos, afinal para eles a paz não está na ofensivos e que recebe com ofensa os
ordem do dia. enunciados que os outros produzem a seu
Fica cada vez mais evidente que as respeito.
instituições vinculadas a conceitos ideológicos

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320
2011. Disponível em:
É necessário desapegar-se da
<www.letras.ufscar.br/linguasagem> Acessado
necessidade de verdade, não da verdade da fé,
em: 27/25/2013 as 09h51min.
como “certeza daquilo que esperamos e a prova
das coisas que não vemos” (Hebreus 11:1), mas POSSENTI, S. Humor, língua e discurso. São
a necessidade pela verdade empírica que se Paulo: Contexto, 2010.
opõe à fé, verdade limítrofe em relação às SILVA, C. A.; RIBEIRO, M. B. Intolerância
verdades-outras. religiosa e direitos humanos - Mapeamentos de
intolerância. Porto Alegre: Sulina; Editora
Universidade Metodista, 2007.
Referências
Os momentos de terror na redação do Charlie
BÍBLIA SAGRADA: Nova Tradução na
Hebdo. Disponível em
Linguagem de Hoje. Barueri – SP: Sociedade
<http://observador.pt/2015/01/08/os-
Bíblica do Brasil, 2000.
momentos-de-terror-na-redacao-charlie-
ECO, U. Apocalípticos e Integrados. Tradução hebdo/> acesso em 08/01/2015
Pérola de Carvalho. 7ed. São Paulo:
Charlie Hebdo: tribuna da resistência satírica.
Perspectiva, 2011.
Disponível em
GREIMAS, A. J. Sobre o sentido II. Ensaios <http://pt.euronews.com/2015/01/07/charlie-
semióticos. Tradução Dilson Ferreira da cruz. hebdo-tribuna-da-resistencia-satirica> acesso
São Paulo: Nankin: Edusp, 2014. em 08/01/2015
MAINGUENEAU, D. Cenas da enunciação. Cartunista do 'Charlie Hebdo' diz que não fará
Orgs. Sírio. Possenti, Maria Cecília Pérez de mais charges de Maomé. Disponível em
Souza-e-Silva. São Paulo: Parábola Editorial, <http://g1.globo.com/mundo/noticia/2015/04/ca
2008. rtunista-do-charlie-hebdo-diz-que-nao-fara-
______. A análise do Discurso e suas mais-charges-de-maome.html> acesso em
fronteiras. Matraga, Rio de Janeiro, v.14, n.20, 29/04/2015
2007. Luz deixa de ser Charlie Hebdo, mas será para
ORLANDI, E. A linguagem e seu sempre Charlie. Disponível em
funcionamento: as formas do discurso. São <http://www.publico.pt/mundo/noticia/luz-
Paulo: Brasiliense, 1983. deixa-de-ser-charlie-hebdo-mas-sera-para-
sempre-charlie-1696160> acesso em
PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma 29/07/2015.
crítica à afirmação do óbvio. Tradução Eni P.
Orlandi et al. – 5ed. Campinas, SP: Editora da
UNICAMP, 2014.
PLANQUE, A. K. Por uma análise discursiva
da comunicação: a comunicação como
antecipação de práticas de retomada e de
transformação dos enunciados. São Carlos, SP,

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321
UM OLHAR FOUCAULTIANO SOBRE EVASÃO NO CURSO
DE MATEMÁTICA DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE
MARINGÁ

Luciano FERREIRA; Rui M. de O. BARROS; Pedro NAVARRO


Universidade Estadual de Maringá (UEM)
luciano.mat.mga@gmail.com

Resumo: Este trabalho propôs a identificar qual é o “sujeito evadido" do curso de


matemática da Universidade Estadual de Maringá (UEM), à luz da teoria de Michel
Foucault, por meio dos enunciados proferidos por alunos evadidos. Nesta pesquisa,
entendemos por discurso “um conjunto de enunciados que se apoiem na mesma formação
discursiva (Foucault, 2008, p.132)” e usamos os seguintes conceitos: enunciado, prática
discursiva, os processos de subjetivação e de objetivação do sujeito e heterogeneidade do
discurso, que fazem com que o sujeito possa se tornar, na qualidade de sujeito, objeto de
conhecimento (FOUCAULT, 2004, p. 236). O objetivo, além da verificação das
representações que os evadidos têm, é sim incitar uma discussão crítica acerca das
representações do maior envolvido com a evasão, uma vez que observamos que as
representações mostram sua subjetividade.
Palavras-chave: subjetividade; objetividade; evasão; discurso.

estudo de trabalhos científicos correlatos acerca


Introdução
do objeto evasão foram documentos que
Pretendemos descrever qual é o “sujeito forneceram elementos para a elaboração de
evadido" do curso de matemática da entrevistas com amostra estratificada de (32
Universidade Estadual de Maringá (UEM), para alunos) evadidos entre os anos supracitados. O
tal fazemos uso da teoria de Michel Foucault, tratamento dado nas entrevistas se fundamentou
aspiramos que, por meio dos enunciados na análise de discurso de Michel Foucault.
proferidos por alunos evadidos, seja possível Aspiramos dar voz aos sujeitos excluídos, que
alcançar nossa questão, além disto, utilizamos até então são apenas números em tabelas
dados oficiais da UEM acerca da evasão no estatísticas da Universidade. Levamos em conta
curso de Matemática entre os anos de 2003 a a crítica que Foucault escreve no livro
2013. Nesse período, 719 alunos, praticamente “Arqueologia do Saber”, aos documentos
cinquenta por cento não terminaram o curso. históricos “É claro que, desde que existe uma
Os dados tabulados pela universidade e o disciplina como a história, temo-nos servido de

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322
documentos, interrogamo-los, interrogamo-nos realidade era quase impossível fazer isso ai!”
a seu respeito” (FOUCAULT, 2008, p.7). Essa dificuldade é reproduzida no discurso de
Sendo assim, existe a necessidade de muitas pessoas, é muito comum escutar que
interrogarmos os documentos e os sujeitos. Matemática é só pra gênio, só para inteligentes.
Nesta pesquisa, usamos os seguintes conceitos: Reconhecemos que esse discurso, que é
enunciado, prática discursiva, os processos de utilizado e aparece nos enunciados desde os
subjetivação e de objetivação do sujeito e primeiro anos escolares, é repetido, por pais,
heterogeneidade do discurso, que fazem com professores, alunos demais componentes da
que o sujeito possa se tornar, na qualidade de comunidade escolar.
sujeito do discurso (sujeito evadido), e se Contaremos a história da evasão do
reconhecer objeto de conhecimento (a evasão). curso de matemática da UEM nos atendo ao
Buscamos regularidades discursivas que período de dez anos (2003 – 2013) devido aos
apontem para as práticas discursivas, por dados estatísticos disponíveis. Para esse intento,
exemplo, os que acham o curso de matemática utilizamos os enunciados dos que se evadiram,
“muito difícil” e se julgam incapazes de o por isso nos apoiamos na teoria foucaultiana
concluírem, se inserem em determinado
que, segundo Fischer:
discurso. Ao oferecermos a oportunidade para
“sujeito evadido” falar acerca de sua evasão do A partir do referencial foucaultiano,
curso de Matemática da UEM, compreendemos explicita-se a íntima relação entre discurso e
como agente passivo, influenciado, pelas poder, bem como as várias e complexas
subjetividades e pelas objetividades do curso, formas de investigar as coisas ditas. O
indivíduo resistente ao poder, a ele exercido, objetivo é mostrar a produtiva contribuição
capaz de concluir outros cursos superiores ou desse referencial teórico e metodológico
mesmo o curso que evadiu-se, deixando de ser para as pesquisas em educação, nas quais
um dado no papel e se tornando um sujeito do que se pretende analisar discursos.
discurso. É importante lembrar que o assunto (FISCHER, p. 198, 2001)
evasão no curso de matemática, no Brasil, era
tratado com naturalidade, até pouco tempo, por Sendo assim, este referencial sustentará
exemplo, na UEM, ingressavam 80 alunos por está pesquisa em dois aspectos: teórico e
ano e não se formavam 20 alunos por ano. metodológico.
Algumas pesquisas, como a de (Santos, 2012), 1. Desenvolvimento da pesquisa
tentam romper com a ideia de ser normal não
concluir o curso de Matemática. Sendo assim, Sabemos da impossibilidade de vasculhar
entendemos que relação do saber e do poder todo o período de existência do curso, que se
perpassa esses enunciados que aceitam com iniciou em 1971. Porém, incialmente, fizemos
naturalidade a alta taxa de evasão nos cursos de uma análise documental, com acesso às bases
matemática. Para exemplificar, como o aluno de dados da Universidade Estadual de Maringá
evadido se subjetiva, destacamos um extrato da em período mais recente, e também com acesso
entrevista realizada com um dos ex-alunos, ao a dados históricos fornecidos pela Diretoria de
falar acerca de sua decisão de abandonar o Assuntos Acadêmicos da UEM. Paralelamente
curso: “mais foi dificuldades mesmo, na à análise documental, fizemos um estudo

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323
teórico acerca do objeto evasão, uma revisão
O processo de objetivação, por sua vez,
bibliográfica do tema, que serviu de apoio,
diz respeito ao modo como o sujeito pode se
tanto para elaboração das questões das
tornar um objeto para o conhecimento. Em
entrevistas quanto para nossas análises. Desde
particular, em nossa pesquisa, perceberemos
2012, ao decidirmos fundamentar teoricamente
como o aluno que interrompeu o curso de
a pesquisa nos ensinamentos de Foucault,
matemática da UEM objetivou-se como um
ingressamos no Grupo de Estudo Foucaultiano
sujeito evadido socialmente construído e
da UEM – GEF, sob a coordenação do
determinado historicamente.
Professor Doutor Pedro Navarro. Com ajuda
desse grupo, aprofundamos nossos estudos da A relação entre a subjetividade e a
teoria de Michel Foucault, alicerçamo-nos em objetividade está implicada na constituição do
leituras e compreensões da teoria do Discurso. objeto, entendemos, como Foucault, que o
exterior é determinante nos modos de
Após levantar o número de evadidos
funcionamento do sujeito. Nesse caso
(719), entramos em contato com
particular, vamos considerar o aluno evadido
aproximadamente 50 ex-alunos, destes 32 se
como o sujeito, e a Evasão como objeto que se
despuseram a contribuir com a pesquisa, isso
inscreve e se modifica na história. Ainda que,
não teria sido possível sem a colaboração das
por vezes, essa subjetividade seja compreendida
administrações do Departamento de
como de natureza poética, expressão de uma
Matemática (DMA-UEM) e da Diretoria de
interioridade pura, na qual residiria a verdade
Assuntos acadêmicos (DAA-UEM). Em 2014
do sujeito, (FERNANDES, 2011, p.6) “são os
foram realizadas as 32 entrevistas, em posse de
discursos exteriores que a determinam,
todas as gravações e transcrições das
modificam-na, possibilitam a criação de mundos
entrevistas, fizemos nossas análises e
– espaços socialmente construídos – reservados
considerações para um enriquecimento do
exclusivamente a segregação desses sujeitos”. A
conhecimento do curso de Matemática da
evasão será compreendida por nós como
Universidade Estadual de Maringá,
manifestação de subjetividade, em seu
principalmente acerca do caso da evasão.
antagonismo com a universidade, resulta na
2. Elementos teóricos saída do aluno do curso da Universitário antes
Na fundamentação teórica de nossa de se formar. Na realidade, tem-se um embate
pesquisa, damos ênfase aos processos de contra uma vontade de verdade (vontade de se
subjetivação e objetivação. formar), porém, por alguns motivos e causas,
isso não acontece, este momento de conflito
O processo de subjetivação refere-se ao define a Evasão e justifica a saída do aluno da
modo como o próprio homem - sujeitos universidade.
evadidos do curso de matemática da UEM - se
compreende como sujeito legítimo de Concordamos com Fernandes (2011),
determinado tipo de conhecimento, ou melhor, que define a subjetivação como o processo
como o sujeito percebe a si mesmo na relação constitutivo dos sujeitos, salienta que o
sujeito-objeto, nesse caso particular Aluno - ex- processo de produção da subjetividade
aluno. possibilita, em um sentido foucaultiano, a
objetivação dos sujeitos. “Considerando que os

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324
que definiram, em uma dada época e para
modos de subjetivação produzem sujeitos uma determinada área social, econômica,
singulares, devem-se procurar mostrar, por geográfica ou linguística, as condições de
meio da análise dos discursos, os exercício da função enunciativa.
procedimentos mobilizados para a produção da (FOUCAULT, 2008, p.113).
subjetividade e, consequentemente, dos
sujeitos” (Fernandes 2011, p.15).
Neste trabalho, pretendemos descrever o
Por tal razão, entendemos que a análise sujeito evadido do curso de matemática da
da produção discursiva dos alunos evadidos do UEM, sendo assim julgamos necessário
curso de matemática da UEM traz insumos para esclarecer que na Análise de Discursos aqui
a compreensão da relação sujeito-poder nessa utilizada “o sujeito é produzido no interior dos
situação específica. discursos e sua identidade é resultante das
Considerando o conceito de Enunciado, posições e das práticas do sujeito nos
como Foucault, não é uma unidade construtiva discursos” (Fernandes e Alves Júnior 2009, p.
do discurso, não é uma palavra, uma frase, uma 113).
proposição lógica, uma fala ou coisa do gênero. 3. Descrição da pesquisa
Enunciado, para ele, é uma função de existência
Ao consultar os documentos da
de signos (escritos, falados, gestuais) e que
Universidade, identificamos 719 alunos
pode ser alvo de interesse da busca por sentido
evadidos entre 2003 a 2013, período de
naquilo que está registrado pelos signos. “[...]
abrangência da nossa pesquisa. Devido à
um enunciado é sempre um acontecimento que
desatualização dos dados cadastrais,
nem a língua nem o sentido podem esgotar
conseguimos contato com aproximadamente 50
inteiramente” (FOUCAULT, 2008, p.31), O
ex-alunos, dentre esses, 32 se despuseram a
autor também ressalta que as palavras, as
contribuir com a pesquisa.
frases, as interjeições, os sons etc. só serão um
enunciado se tiverem função enunciativa. O recorte aqui expostos são de cinco
enunciados dos entrevistados. Ligando estes
Assim, buscamos, nos enunciados, a
enunciados, que denominaremos de A1, A2,
relação entre saber e poder, a partir da qual
A3, A4 e A5, com os conceitos expostos
buscamos regularidades discursivas que
anteriormente, assim possibilitamos o
apontaram para as práticas discursivas, por
entendimento da subjetividade nos discursos
exemplo, buscamos identificar os ex-alunos que
dos alunos evadidos. Usamos os enunciados
acham o curso de matemática “muito difícil” e
como uma função. Após uma breve descrição
se julgam incapaz de concluírem, mas mesmo
dos fatos de discursos buscamos,
assim resistem.
principalmente, apreender o exercício dos
Neste texto entendemos prática elementos da função enunciativa, a saber, o
discursiva como: referencial, a posição sujeito, o suporte material
e o campo associado. Esse trajeto permite-nos
Finalmente, o que se chama "prática apreender a constituição dos enunciados em
discursiva" pode ser agora precisado: é um questão e prestar a atenção à sua singularidade.
conjunto de regras anônimas, históricas, A partir da nossa interpretação, almejamos
sempre determinadas no tempo e no espaço,

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325
verificar os modos como se materializam os matemática. Você pode me dizer se eles foram
processos de objetivação e de subjetivação dos determinantes ou se não houve relação com o
alunos evadidos do curso de Matemática da fato da interrupção de seu curso. Tudo bem?
UEM.
4a) Com relação ao trabalho, houve
A entrevista procedeu da seguinte alguma relação? Com relação ao tempo
maneira: em um primeiro contato, foram dedicado ao estudo das disciplinas?
esclarecidos aos entrevistados os interesses e
4b). E com respeito ao tempo dedicado
motivos da pesquisa e os procedimentos de
às aulas semanais?
anonimato e de livre consentimento do uso do
material gravado; no segundo momento, depois 4c) E com respeito ao tempo dedicado
que a pessoa se dispôs a colaborar, é que às aulas semanais?
começamos a fazer as perguntas. 4d) E com relação ao tempo para
De posse do histórico escolar da pessoa, terminar o curso? Você tinha previsões?
confirmamos o ano de ingresso e o ano de 4e) Houve problemas financeiros?
evasão, e número de disciplinas cursadas e de
dependência. Prosseguimos com o seguinte 4f) Com relação a estímulo pessoal,
roteiro de perguntas exposto a seguir. você teve estímulos? Houve falta de estímulos?
Questão 1) Você se lembra dos motivos 4g) Com relação aos pré-requisitos
que o/a levaram a prestar o vestibular para o teóricos das disciplinas cursadas, o que você
curso de matemática? pode me dizer?
Questão 2) Você pode comentar alguns 4h) Acerca da motivação para terminar
que o/a impediram de continuar o curso de o curso de matemática, você pode me dizer se
matemática? houve relação disso com a interrupção?
Questão 3) Você gostaria de retornar ao 4i) Houve problemas familiares que
curso de matemática, hoje ou em um futuro dificultaram sua permanência no curso?
próximo? (Sim ou não) 4j) Com relação a transporte ou
3a) Caso a resposta seja sim: Você pode deslocamento até a UEM, o que você pode me
me dizer se isso lhe traria algum benefício? Se dizer?
ele não compreender, sugerir motivos: No 4k) Em relação aos vínculos com os
trabalho, realização pessoal, algo assim? professores do curso que você conheceu, tem
3b) Caso a resposta seja não: Você pode algo a me dizer?
me dizer alguns motivos para não querer 4l) E as dependências físicas
continuar o curso de matemática? (construções, mobiliários e equipamentos), elas
Questão 4) Agora eu vou lhe falar tiveram alguma relação com a impossibilidade
alguns temas ou assuntos e gostaria que de continuar seu estudo no curso?
comentasse se eles tiveram alguma relação com 4m) Houve a tentativa de fazer outro
a impossibilidade de você se formar no curso de curso?

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326
4n) Tem algum outro motivo que você Tomar o “poder” na esteira de Michel
se lembrou e que não foi citado? Foucault é compreender que as práticas
discursivas que aparecem nas entrevistas dos
4. Análise
alunos evadidos da Universidade Estadual de
A leitura interpretativa das repostas da Maringá no curso de matemática provêm de
questão 1 permite, de uma maneira mais geral, várias relações que admitem que determinadas
entender que a escolha pelo curso de coisas sejam proferidas e também dos efeitos de
matemática, na maioria das vezes, se dá mais poder que perpassam os enunciados. Quando os
por “gostar” da matemática ensinada no ensino ex-alunos produziram os enunciados,
médio do que saber propriamente do que se entendemos que a produção desses enunciados,
trata o curso de matemática (licenciatura e pelo próprio sujeito evadido, funciona como
bacharelado). No entanto, a projeto de vida uma subjetivação. O ex-aluno do curso de
desses sujeitos, construído e repetido por uma matemática é objeto e ao mesmo tempo sujeito
memória político-social dominante, atravessa desse discurso.
seus enunciados, sendo materializado nas falas
Ao questionarmos se eles desejam voltar
de A1, A2, A3 e A5: “sempre gostei de
ao curso, conseguimos compreender como vai
matemática, gosto muito de Matemática, eu
se delineando a subjetividade do sujeito
gostava, Tinha paixão por matemática”.
evadido, antes transformado em um número de
Baseando-se na genealogia de Foucault, tabela é agora com voz, para falar de sua
perceberemos que o poder produz evasão, é um sujeito preocupado com a
individualidades. O sujeito evadido torna-se impossibilidade de um saber, com exceção de
singular, isto é, um indivíduo que é produto A4 e A5, os outros três aqui expostos deixam
tanto do poder quanto do saber. Quando claro que são capazes de fazer outro curso.
dizemos que ex-aluno do curso de matemática,
se forma em outro curso, isso é produto do A1: Não, Já Fiz outro curso! A2: Não, Já
poder, estamos, ao mesmo tempo, levando em Fiz outro curso! A3: Não tenho intenção
conta que esse indivíduo está inserido na nenhuma, mudei de curso
Universidade que é um espaço institucional. Os
saberes são mobilizados como um dispositivo Ressaltamos que as entrevistas foram
de poder que aparecem nos discursos do sujeito entendidas como enunciados, que para Foucault
evadido e produzem sujeitos singulares. Vemos (2009), são uma função e como tal permitem
isso no discurso de A1 na questão 2. que sentidos sejam produzidos acerca do sujeito
evadido. Queremos, com isso, dizer que a partir
A1: Por isso, foi o motivo que te disse da descrição dos elementos da função
anteriormente que fez trocar de curso, fiz enunciativa (referencial, posição sujeito,
Engenharia Química e mestrado em suporte material e campo associado) é possível
Engenharia Química, pois assim posso dar
verificar como o ex-aluno do curso de
aula, que foi o que sempre quis, porém no
momento não estou trabalhando não, estou
matemática da UEM se torna objeto e sujeito
cuidando de dois filhos! do e para o discurso.

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327
saberes acerca do curso de Matemática, saberes
Percebe que o trabalho do docente em
de ex-alunos, saberes de excluídos, apreendidos
sala de aula pode funcionar, dentre outros,
com saída do curso como dispositivo de poder.
como um dos dispositivos de poder que
Porém, se há poder há resistência e para esse
perpassam a constituição da subjetividade do
sujeito, nem mesmo o discurso do que é
aluno, haja vista o depoimento de A4 e A5.
“normal” não terminar o curso de Matemática
A4: Não eles eram até compreensivos, ele usa de justificativas para sua evasão.
porem tinham alguns que eram bem 5. Algumas Considerações
rígidos. E outros falavam que trabalha não
pode estudar, eu me lembro disso. A5: Do Quando decidimos pesquisar a evasão
pessoal, o normal eu não tinha muito do curso de Matemática da UEM e nos
intimidades com eles não, eu também não apoiamos no referencial Foucaultiano,
fui uma aluna exemplar eu não ficava indo pensamos em uma entrevista que permitisse
direto igual os meninos o pessoal iam sentidos acerca do sujeito evadido, em
sempre na sala deles e tal, eu fui uma consequência, pensamos em verificar a
aluna que não fui assim não, teve um outro subjetividade deste sujeito, ou seja, descrever
professor que eu meio que não ia com a quem é o ex-aluno do curso de matemática que
cara dele, não vou falar o nome dele e que não conseguiu ou não quis se formar, sua
só faltou me chamar de burra na cara e constituição com sujeito.
Graças a Deus não precisei mais estudar
com ele, mas é são profissionais são A constituição do sujeito, para
doutores que podemos fazer doutores né !!! Foucault,

É absolutamente geral na medida em que o


Como nossas análises foram construídas sujeito do enunciado é uma função
por meio dos registros dos enunciados orais em determinada, mas não forçosamente a
forma de entrevistas, entendemos esses mesma de um enunciado a outro; na medida
“discursos”, como práticas que permitem-nos em que é uma função vazia, podendo ser
historicizá-los. Assim, priorizamos aquilo que exercida por indivíduos, até certo ponto,
os “sujeitos evadidos” disseram a respeito da indiferentes, quando chegam a formular o
evasão. A nosso ver, constituem os saberes de enunciado; e na medida em que um único e
dada época, logo é a representação que eles têm mesmo indivíduo pode ocupar,
de suas saídas do curso. Tal interpretação alternadamente, em uma série de
histórica dessas representações apoiadas em enunciados, diferentes posições e assumir o
nossos referenciais teóricos é que compõe papel de diferentes sujeitos (Foucault,
nosso estudo. p.105, 2008).

Ao prestarmos atenção aos enunciados,


Com base na citação acima
percebe uma relação de poder que decorre da
perguntamos qual é a posição que todo e
fala dos “sujeitos evadidos”. Foucault (1999,
qualquer indivíduo pode e deve ocupar
p.36), explica que os mecanismos e as técnicas
para ser sujeito dos enunciados das nossas
de poder estão ligados com a produção dos
entrevistas?
saberes, que no caso desta pesquisa, significa

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328
podíamos esperar que esses sujeitos
Foucault (2008, p. 108) responde “a
representassem em seus enunciados, senão
posição que pode e deve ser ocupada por
o enunciado que apareceu na questão 4)b)
um indivíduo é um lugar determinado”.
de A5 ou o enunciado de A3 na questão
Somente a partir do momento em que se
4)h) de deste trabalho.
puder assinalar a posição sujeito é que uma
frase, uma proposição ou mesmo um ato A5: “eu também não fui “aquela” aluna
de fala poderá ser considerado um exemplar, concordo eu poderia ter me
enunciado. dedicado mais”
A elaboração das questões de nossa A3: Não, não me identifiquei mesmo!
entrevista, levou em conta enunciados
extraídos dos documentos oficiais da Nesse momento entende-se que as
UEM, pesquisas que tratam o mesmo tema falas de A3 e A5 estão no mesmo domínio
“Evasão” e da própria experiência como associado, conforme (Navarro, 2004, p.51)
ex-aluno e professor do departamento de “O segundo elemento indispensável ao
Matemática, da Universidade Estadual de exercício da função enunciativa concerne
Maringá de um dos autores. ao fato de o enunciado pertencer a um
O aluno evadido enquanto relatório domínio associado, o qual faz que ele não
do DAA é apenas um dado, quando seja apenas uma simples aglomeração de
discutido por professores e alunos torna-se signos.” Fora deste domínio talvez a fala
um objeto sobre o qual se constroem de A3 não teria tal relevância.
saberes no imaginário social, talvez se Corroboramos com (Miranda, 2012
pense que as pessoas evadem por p.137) sendo que a “existência de um
problemas financeiros e de trabalho, domínio associado significa admitir que o
principalmente. Mas, quando se da voz a enunciado para sê-lo, de fato, deve
eles, surge o discurso deles sobre si relacionar a frase ou a proposição a um
mesmos e sua experiência, eles se tornam campo adjacente”. Os enunciados dos
sujeitos, relatam como se veem sujeitos evadidos não são, em hipótese
(subjetivam) e qual o processo que os alguma, livres, independentes ou mesmo
levou ate essa condição. Para ser sujeito neutros, pois eles são frutos de suas
evadido do discurso da instituição, é experiências, parte de um conjunto ou de
preciso se encaixar em certas praticas uma série, isto é, para (Foucault, 2008, p.
(hipóteses), para ser sujeito do seu 110) “um enunciado tem sempre margens
discurso e preciso mostrar a experiência povoadas de outros enunciados” podemos
vivida. caracterizar com que os “outros” falam, o
O ex-aluno não concluinte só pode que é ser “exemplar”? O que é se
representar o sujeito evadido a partir de identificar?
sua posição de sujeito que é no momento As analises dialogam com uma memoria
que fala sobre sua evasão, que até então sobre o evadido, tanto que no inicio a
não tinha sido escutado. Dessa forma, não entrevista baseou-se nessas supostas praticas

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329
a matéria eu não passei eu não me formei
para investigar se os motivos apresentados ai sacanagem !!!
pelos sujeitos seriam os mesmos que circulam
no discurso da instituição.
Nosso principal objetivo, nesta pesquisa,
Podemos dizer que há uma repetição de para além da verificação dos efeitos das
enunciados nesta pequena análise até aqui feita, representações que os evadidos têm do curso
de tantos outros enunciados ditos e escritos de Matemática da UEM, foi e é incitar uma
acerca da evasão no curso de Matemática em discussão crítica acerca das representações
tantos outros momentos, embora algum senso por parte de todo maior envolvido com a
comum e outros documentos estejam no mesmo evasão, uma vez que observamos que as
campo associado. Começamos a perceber uma representações não somente integram e
regularidade discursiva, procedendo em uma constituem a subjetividade como podem criar
formação discursiva. Os enunciados aqui outro de si mesmo.
expostos são frutos de uma memória discursiva
que muitos já disseram ao abonar um curso Podemos começar a descrever o sujeito
superior e aparecem em alguns documentos e evadido do curso de Matemática da UEM como
sua presença significou e significa para a um agente passivo, influenciado, pelas
universidade como uma única palavra, como, subjetividades e pelas objetividades do curso,
jubilou, trancou, desistiu, trocou aparecem nos indivíduo resistente ao poder, a ele exercido,
seguintes enunciados: capaz de concluir outros curso superiores ou
mesmo o curso que evadi-o, deixando de ser
A1: Por isso, foi o motivo que te disse um dado no papel e sendo um sujeito do
anteriormente que fez trocar de curso. discurso.
A3: Não tem motivo. Achei que era o que
esperava, o que imaginava, acabei fazendo
Referências
vestibular para outro curso.
A5: O motivo porque jubilei, BARBOSA, P. L. N. Navegar foi preciso? O
discurso do jornalismo impresso sobre os 500
A5: .... eu acho pouco por aluno para anos do Brasil / Pedro Luis Navarro Barbosa. –
desistir, .... , ai eu via que meus amigos Araraquara, 2004 Tese de Doutorado 347 f.: 30
desistiam porque a maioria não tinham
cm
bagagem matemática básica e acabavam
desistindo! FERNANDES, C. A.; ALVES JR., José
A5: .... o menino reprovou, .... assim eu ia
Antônio. Mutações da noção-conceito de
jubilar eu precisava só daquela matéria sujeito na Análise do Discurso. In:
pra eu passar e eu não passei, e por causa SEMINÁRIO DE PESQUISAS EM ANÁLISE
de uma matéria eu jubilei por causa de DO DISCURSO, 3., Uberlândia. Anais...
Estruturas Algébrica o professor não teve Uberlândia: Universidade Federal de
compaixão comigo dai reprovei, jubilei tive Uberlândia, 2008.
fazer vestibular para ai tinha que ficar
FERNANDES, C. A. Discurso e produção de
quase dois anos de novo, por causa de uma
subjetividade em Michel Foucault. pós-
doutoramento sobre o tema “Teoria do discurso

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330
em Foucault”, desenvolvido junto à UNESP –
CAr, durante o período de janeiro de 2010 a
agosto de 2011, como bolsista Pesquisador
Sênior pelo CNPq.
FISCHER, R. M. B.; Foucault e a Análise do
Discurso em educação, Cadernos de Pesquisa,
n. 114, p. 197-223, novembro/ 2001
FOUCAULT, M. Arqueologia do saber.
Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2008.
______. A hermenêutica do sujeito. Tradução
de Márcio Alves Fonseca e Salma Tannus
Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2004
______. As palavras e as coisas: uma
arqueologia das ciências humanas. Trad.
Salma Tannus Muchail. 8ª. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1999. (coleção tópicos).
MACHADO, N. J. Matemática e Realidade.
São Paulo: Cortez, 1994.
MIRANDA, A. Z. Heterotopia e subjetivação:
a representação nacional francesa nos
discursos do sujeito da educação / Andréa
Zíngara Miranda. -- Maringá, 2012. 240 f.
SANTOS, F. A. dos. Evasão discente no
ensino superior: estudo de caso de um curso de
licenciatura em matemática. Tese (Doutorado
em Educação). Universidade Metodista de
Piracicaba-UNIMEP, Piracicaba-Sp 2012.

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331
A MULHER E SEUS DIZERES NAS REDES SOCIAIS: UM
ESPAÇO DE MILITÂNCIA

Dantielli Assumpção GARCIA; Lucília Maria Abrahão e SOUSA


Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP/USP)
dantielligarcia@gmail.com; luciliamsr@uol.com.br

Resumo: Este trabalho, tendo como perspectiva teórica a Análise de Discurso


pecheutiana (PÊCHEUX, 1997), analisa a postagem #SomosTodxsFran divulgada pela
Marcha das Vadias de Belo Horizonte. Nosso objetivo é refletir sobre a constituição de
um espaço de militância em que há a formulação de um (outro) dizer sobre a posição-
sujeito mulher na sociedade contemporânea e um convite para que a sociedade aceite e
milite também por essa outra posição permitida à mulher.
Palavras-chave: #somostodxsfran; mulher; militância; marcha das vadias; análise de
discurso.

de uma menina (Fran) que teve um vídeo íntimo


Introdução
divulgado na internet. Diante desse objeto,
Neste trabalho, parte de uma pesquisa pretendemos responder aos seguintes
de Pós-Doutorado (FAPESP, proc. nº questionamentos: como um dizer sobre a
2013/16006-8), sob a perspectiva teórica da mulher é formulado e circula na sociedade
Análise de Discurso de linha francesa contemporânea, buscando romper com dizeres
(PÊCHEUX, 1997), analisaremos como a já estabilizados na memória da sociedade sobre
militância se dá no ciberespaço e convida as o que é e não é ser mulher? Na rede, será que é
mulheres e toda a sociedade a refletirem sobre a constituído um espaço para que as mulheres
posição-sujeito mulher na sociedade militem? Há a formulação de novos sentidos em
contemporânea. Para tanto, analisaremos um relação ao que é ser mulher e que extrapola o
post (#SomosTodxsFran) publicado na página ciberespaço? Para que essas indagações sejam
do Facebook da Marcha das Vadias de Belo respondidas, dividimos nosso texto em dois
Horizonte. Nesse post, temos um convite (“Que momentos. Inicialmente, faremos uma breve
tal você também se juntar ao clube das pessoas discussão acerca do ciberespaço enquanto um
que não têm vergonha em exercer livremente espaço de militância. Em seguida, analisaremos
sua sexualidade, que não acham que sentir a campanha #SomosTodxsFran publicada na
prazer deva ser um pecado possível de página do Facebook da Marcha das Vadias de
julgamento público?”), feito pela Marcha das Belo Horizonte.
Vadias, para que as pessoas militem pelo caso

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332
Buscaremos mostrar que é na militância, A Marcha das Vadias é um movimento
portanto, que a mulher ganha voz e não se feminista recente (2011-2015) que traz à tona
deixa silenciar pela sociedade contemporânea diversas discussões acerca do que é ser mulher
que sustenta e divulga na rede um discurso que e do que significa uma sociedade sexista
a violenta e tenta calá-la. No espaço virtual, nas baseada na desigualdade de gênero. A Marcha
redes sociais, há o encontro das mulheres que das Vadias surgiu a partir de um episódio
lutam e militam pela formulação e circulação de ocorrido em janeiro de 2011, quando o policial
um dizer da não violência contra a mulher, do canadense Michael Sanguinetti, em uma
poder, das lutas que esta tem travado tanto no palestra na Universidade de Toronto,
espaço virtual, como no espaço público. Assim, recomendou que “as mulheres evitassem se
explicitaremos que a militância começa no vestirem como putas para não serem vítimas de
ciberespaço, todavia, territorializa-se no espaço estupro”. Como reação a essa fala, em abril do
urbano para chegar a uma ação social que mesmo ano, cerca de três mil canadenses saíram
legitima a mulher como partícipe e agente da às ruas para protestar na primeira SlutWalk, a
vida em sociedade. Marcha das Putas, ou na tradução adotada no
Brasil, a Marcha das Vadias. As manifestações
1. E a luta começa: a Marcha das Vadias e o
das Marchas das Vadias espalharam-se pelo
ciberespaço
mundo e já em 2011 ocorreram em diversas
Ao observarmos diariamente o cidades brasileiras.
funcionamento da sociedade patriarcal e sua
Nunes (2013, p. 65) aponta que as
relação com a mulher, diversos
chamadas “marchas urbanas” têm se
questionamentos vêm à tona e tornam evidentes
intensificado nos últimos anos, configurando
as relações de poder que circulam no dia-a-dia e
novas práticas no espaço citadino. Conforme o
que buscam silenciar o “segundo sexo”
autor (2013, p. 65), isso ocorre, por um lado, à
(BEAUVOIR, [1949] 1967). Como um
disseminação das redes sociais digitais e, por
discurso sobre a mulher, atravessado por um
outro a determinadas formas de manifestação
discurso de violência, aparece e circula em
dos movimentos sociais:
nossa sociedade? Como os movimentos
feministas constituem-se hoje frente a era Pode-se dizer que há, no acontecimento das
digital? Como as mulheres em seus movimentos marchas, uma imbricação entre o
sociais ganham voz para dizer sobre sua movimento nas redes e o que ocorre nas
condição feminina? Como há a formulação de ruas, entre o digital e o acontecimento que
outros sentidos, antes não previstos, à mulher, a toma corpo no espaço público, com as
seu corpo e a sua relação com o homem? Para contradições e as migrações de sentido que
respondermos a essas questões, analisaremos envolvem esse processo (NUNES, 2013, p.
uma campanha da Marcha das Vadias de Belo 65).
Horizonte que circulou em sua página do
Facebook e traz um outro dizer sobre a mulher Como salienta Moraes (2001, p. 1-2): “a
e sua relação com o homem e a sociedade. Internet vem dinamizar as lutas das entidades
civis a favor da justiça social num mundo que

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333
globaliza desigualdades de toda ordem”. Diz- Na cibermilitância, o discurso é constituído no
nos ainda o autor (2001, p. 1) que as vozes que espaço virtual, contudo, as ações são para
se somam no ciberespaço representam grupos serem sentidas no espaço público. Como nos
identificados com causas e comprometimentos coloca Barbero (s.d), “En las grandes ciudades
comuns, a partir de diversidade de campos de el uso de las redes electrónicas está permitiendo
interesse: construir grupos que, virtuales en su
nacimiento, acaban territorializándose, pasando
Daí porque a organização em redes, dentro e de la conexión al encuentro, y del encuentro a la
fora da Internet, se revela inovadora. Elas acción”. A Marcha das Vadias busca produzir
facilitam a intercomunicação de indivíduos e uma ruptura nos sentidos já estabilizados sobre
agrupamentos heterogêneos que
a mulher, seu corpo, sua relação com o homem.
compartilham visões de mundo, sentimentos
Ao formular outros dizeres sobre a mulher e
e desejos. Servem de estuários para a defesa
de identidades culturais, a promoção de
sua relação com o espaço da cidade, a Marcha
valores éticos e a democratização da esfera constitui à mulher uma posição de sujeito de
pública (MORAES, 2001, p. 2). direito, livre para ter desejos, para ter vida, para
usar a roupa que quiser, para ter relações com
quem preferir, para ser feminista, para ser
Mittmann (2009), refletindo sobre a
mulher, para lutar. É isso que vemos na
apropriação do ciberespaço pelos movimentos
campanha da Marcha das Vadias.
sociais, ressalta uma diferença entre a grande
#SomosTodxsFran.
mídia e o ciberespaço. Para a autora,
Vejamos:
Enquanto a grande mídia serve ao poder 2. #SomosTodxsFran: um convite à
político-econômico como instrumento de militância
controle da circulação de discursos e,
portanto, controle da interpretação para a A campanha #SomosTodxsFran,
perpetuação desse poder, a apropriação do divulgada pela Marcha das Vadias de Belo
ciberespaço pelos movimentos sociais – Horizonte, surgiu a partir de um episódio em
enquanto movimentos à margem do sistema que a garota Fran teve um vídeo íntimo
– tem sido um forte instrumento de divulgado na rede e passou a ser vítima de
enfrentamento às dominâncias, furando esse ciberviolência. Essa campanha interpela os
controle e provocando novas formas de usuários da rede para que enviem uma foto
produção e circulação de discursos fazendo o gesto que Fran fez no vídeo em que
(MITTMANN, 2009, p. 01). transava com seu parceiro e mais a hashtag
#SomosTodxsFran. O gesto é o de Ok, em
As mulheres da Marcha das Vadias referência ao sexo anal. Esse gesto se repete
usam o ciberespaço para convidar outras nas postagens como forma de apoio,
mulheres e toda a sociedade a militarem pelas inscrevendo no corpo uma forma de militância.
causas femininas/feministas. O ciberespaço
serve como um lugar de divulgação e de
circulação de novos dizeres sobre questões que
tocam na constituição da sociedade patriarcal.

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334
Figura 1. #SomosTodxsFran explicitando que o processo discursivo não
começou naquele momento, “mas, sob outras
condições de produção, parte de dizeres já
ditos, postados, ‘linkados’ e, por vezes,
esquecidos” (DIAS, COELHO, 2014, p. 236).
Como Dias e Coelho, acreditamos que
as hashtags vão criando, pela indexação, modos
de acesso à informação armazenada em
qualquer ponto da rede: “Desta forma,
podemos dizer que as hashtags são um convite
não só à informação, mas também à
colaboração” (DIAS, COELHO, 2014, p. 236).
Em nosso trabalho, em uma colaboração com o
movimento feminista da Marcha das Vadias e
Como mostram Dias e Coelho (2014, p. com a Fran, vítima de uma violência patriarcal
235), tecnicamente, uma hashtag se forma pela de gênero.
junção de uma palavra precedida por uma Na hashtag, temos um enunciado
cerquilha (#) que age como hiperlink de formulado por meio de um nós oculto. Esse nós
assuntos dentro da rede, indexados pelos “somos” pode referir-se às mulheres da Marcha
mecanismos de busca, tais como o Google: das Vadias, às mulheres que já foram vítimas de
uma violência como a sofrida pela Fran, aos
Isso permite que outros usuários cliquem
usuários da rede que apoiam a campanha
nas hashtags ou as busquem nos
mecanismos de busca, para ter acesso a (mulheres e homens). Conforme Cestari (2010,
todas as mensagens, fotos e publicações que p. 779), ao analisar o funcionamento do nós
participaram da discussão de um tópico nas político no discurso feminista brasileiro dos
redes sociais. Discursivamente, as hashtags anos 1970 em circulação na imprensa feminista
marcam um funcionamento (DIAS, alternativa:
COELHO, 2014, p. 235).
considera-se que a passagem do singular eu
para o plural nós não implica apenas
Em nossa análise, a hashtag marca o multiplicação, mas indefinição. Nós pode ao
funcionamento do sentido do caso Fran como mesmo referir-se ao locutor e produzir um
sendo constituído pela discursividade da rede efeito de difusão a outras pessoas
ou das redes sociais. Ao sair da tela do (CESTARI, 2010, p. 779).
computador para uma foto (de um indivíduo
que se identifica com a violência sofrida pela Assim é o funcionamento do nós na
Fran e que resolve militar contra essa hashtag, há uma difusão de pessoas que podem
violência), a hashtag marca uma relação entre o enunciar-se da posição de apoiador da
espaço físico e o espaço virtual, eletrônico. A campanha, por isso também da escrita de
marca da hashtag na foto tem o funcionamento “Todxs”. Com um “X” no lugar do “A” ou
de um hiperlink com o espaço digital,

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335
“O”, como forma de pertencimento de 2004, p. 219). Nessa formulação da Marcha, o
diferentes gêneros no movimento feminista da encontro seria com o discurso-outro que afirma
Marcha das Vadias. ser Fran culpada pela divulgação do vídeo e
pela violência que sofreu, afinal, cometeu o
O texto da campanha #SomosTodxsFran
pecado de ter prazer em uma relação sexual:
formula-se trazendo como memória o discurso
religioso. Na sequência discursiva 1, o uso da SD2: Ela, a vadia, safada, destruidora de
palavra pecado já indicia esse funcionamento: lares. Mas do cara que traiu a confiança da
esposa ao sair com Fran e que mais tarde
SD1: Seu “pecado” não foi outro senão traiu a confiança de Fran publicando o
confiar no cara com o qual foi pra cama. vídeo pouco se fala. A ela, o apedrejamento
em praça pública, a ele, a convivência do
Nessa SD, a palavra pecado aparece tapinha nas costas.
entre aspas, como algo talvez a ser
questionado, marcando, assim, um Aponta-se, na SD2, para uma diferença
distanciamento do julgamento da atitude de entre a forma como Fran é tratada e o “cara”
Fran. Esse dizer não seria da Marcha das não. Nessa e em outras postagens, a vítima da
Vadias, mas sim um discurso-outro que é violência aparece com uma identificação – Fran
trazido à enunciação para ser contradito. O uso – diferentemente do agressor que não tem seu
das aspas mostraria uma não concordância do nome divulgado (aparece, em diferentes notícias
movimento a considerar a atitude de Fran (fazer sobre o fato, como “ele”, “jovem suspeito”, “o
sexo anal) como pecado. suspeito”, “o rapaz”). Fran, de certo modo,
Como afirma Authier-Revuz (2004, p. para a sociedade, é culpada e, por isso, o
219), as aspas são: “apedrejamento em praça pública”. Mais uma
vez o discurso religioso é trazido ao fio do
a marca de uma operação metalingüística discurso, rememorando o caso bíblico da
local de distanciamento: uma palavra, mulher adúltera, que seria apedrejada se não
durante o discurso, é designada na intenção fosse a intervenção de Jesus e seu dizer “atire a
do receptor como o objeto, o lugar de uma primeira pedra quem não tem pecado”.
suspensão de responsabilidade – daquela
que normalmente funciona para as outras Ao trazer a discursividade religiosa, a
palavras. Essa suspensão de Marcha explicita que todos têm uma prática em
responsabilidade determina uma espécie de torno do sexo que envolve o prazer e não a
vazio a preencher, através de uma reprodução (dizer comum do discurso
interpretação, um “apelo de glosa”, se assim religioso) e, por isso, o ato de julgar Fran e
se pode dizer, glosa que, às vezes, se “atirar” a pedra indicariam uma atitude de
explicita, permanecendo mais pecador:
frequentemente implícita.
SD3: Que atire a primeira pedra quem
Para a autora, as aspas “são, portanto, nunca fez boquete. Quem nunca deu de
em um discurso algo como o eco de seu quatro. Quem nunca transou por prazer – e
não somente para reproduzir. Você atira?
encontro com o exterior” (AUTHIER-REVUZ,

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336
com outros movimentos. O movimento da
Para finalizamos essa breve análise,
Marcha das Vadias usa o ciberespaço para a
gostaríamos de tecer alguns comentários acerca
divulgação de questões que afetam as mulheres,
da SD4:
tais como a violência, seja no espaço físico ou
SD4: Que tal você também se juntar ao no virtual. A tentativa da Marcha, por meio de
clube das pessoas que não têm vergonha em suas postagens e campanhas, é possibilitar a
exercer livremente sua sexualidade, que não circulação de um outro dizer sobre a mulher
acha que sentir prazer deva ser um pecado que não a culpabiliza pela violência que sofre e
passível de julgamento público? que dê mecanismos para ela superar essa
violência.
O que nos chama a atenção nessa O movimento feminista da Marcha das
sequência é a palavra pecado que aparece agora Vadias frente à era digital assume o lugar de
sem aspas. Não há mais o distanciamento do agente político pelas causas das mulheres e
discurso-outro, esse aparece incorporado ao interpela os usuários do ciberespaço para que
dizer da Marcha. Além disso, a construção “não também militem para que esses outros sentidos
... deva ser” indica que ter prazer no sexo é à mulher – não previstos, porém, pelos quais os
algo pecaminoso. Um discurso que a Marcha movimentos feministas militam – estejam em
tentou romper, mas que aparece, pela falha, em funcionamento na sociedade (não mais a
sua formulação, como uma memória ainda a “pecadora”, mas a que pode ter prazer em suas
reverberar mesmo sendo tão combatida. relações e não ser vítima de julgamento).
Essa postagem da Marcha convida à As mulheres, por meio dos movimentos
militância para que nenhuma mulher seja vítima sociais que estão presentes nas diferentes redes
de violência, seja ela no espaço físico ou virtual. sociais, em nosso trabalho especificamente no
A militância se dá no ciberespaço por meio do Facebook, ganha voz para dizer sobre sua
envio das fotos com a hashtag condição feminina e para apoiar e proteger
#SomosTodxsFran e por meio da abertura para outras mulheres que muitas vezes são vítimas
a circulação de um discurso de apoio à vítima de uma violência patriarcal de gênero,
de violência contra a mulher e não de simplesmente por serem mulheres e terem
julgamento, embora esse insista em aparecer prazer como ousou ter Fran.
sorrateiramente nas palavras escolhidas e no
uso ou não das aspas.
Referências
3. Considerações finais
AUTHIER-REVUZ, J. Palavras mantidas a
Buscamos mostrar neste trabalho que há
distância. In: ____. Entre a transparência e a
na rede a constituição de um espaço para que as
opacidade: um estudo enunciativo do sentido.
mulheres militem. A rede, como já afirma
Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. p. 217-237.
Mittmann (2009, p. 02), tem permitido aos
movimentos sociais a divulgação de discursos BARBERO, J. M. Comunicación y
de denúncias, de convocação do usuário da solidariedad en tiempos de globalización.
rede, de estabelecimento de relações de aliança Disponível em:

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337
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Acesso em: 11 ago 2015. 2013.
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experiência vivida. São Paulo: Difusão
Européia do Livro, 1967.
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feminista dos anos 1970. In: Seminário de
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Disponível em:
http://revistas.iel.unicamp.br/index.php/seta/arti
cle/view/959/722. Acesso em: 11 ago 2015.
DIAS, C.; COELHO, A. V de Vinagre: a
produção de imagens humorísticas sobre as
manifestações brasileiras de 2013 nas redes
sociais. In: PATTI, A. R. [et.al.]. Textecendo
discursos na contemporaneidade. São Carlos:
Pedro e João Editores, 2014.
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Nacional sobre Hipertexto, 2009, Belo
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Hipertexto. Belo Horizonte: UFPE, 2009, p.
01-10. Disponível em:
https://www.ufpe.br/nehte/hipertexto2009/anais
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MORAES, D. Ativismo digital, 2001.
Disponível em:
http://www.bocc.ubi.pt/pag/moraes-denis-
ativismo-digital.html. Acesso em: 11 ago 2015.
PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma
crítica à afirmação do óbvio. Campinas:
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NUNES, J.H. Marchas urbanas: das redes
sociais ao acontecimento. In: PETRI, V.;
DIAS, C. (Org.) Análise de Discurso: teoria,

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A REPRESENTAÇÃO DOS AUTORES/LEITORES: UMA
ANÁLISE DAS CARTAS DOS LEITORES DO CORREIO
PAULISTANO

Débora Cristina Ferreira GARCIA


Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
debora_cfg@hotmail.com
.

Resumo: Este artigo tem como objetivo analisar as cartas dos leitores publicadas em
seção específica do Correio Paulistano entre as décadas de 1860 e 1870 de modo a
depreendermosa imagem discursiva de seus autores. A escolha pelo jornal acima referido
deve-se ao fato de ser o primeiro impresso a circular diariamente na então província de
São Paulo por mais de um século. A seção de cartas dos leitores, espaço destinado ao
debate de assuntos e de pontos de vista variados, constituiu-se como uma das seções de
grande prestígio do periódico em que ações públicas ou privadaseram analisadas e
divulgadas de modo a valorizar as boas condutas e depreciar as más. Os atores dessa
seção eram sujeitos que, além de se manterem informados, mostravam seu lado vigilante
em todos os segmentos sociais.
Palavras-chave: cartas do leitor; correio paulistano; leitor.

Introdução
a fim de apreendermos a representação de seu
Este artigo constitui a segunda parte
público leitor por meio das recorrências de
de nossa pesquisa de pós-doutorado cujo
elementos composicionais e discursivos,
objetivo principal foi o de delinear do perfil
partindo do princípio de que a representação
dos leitores de folhetins do Correio
dos possíveis leitores do jornal ou, mais
Paulistano entre as décadas de 1860a 1880 1.
especificamente, dessa seção específica,
Num primeiro momento, dedicamo-nos ao
determina a escolha dos assuntos e a forma de
levantamento e à análise das narrativas de
abordá-los.
ficção publicadas no rodapé do referido jornal
O folhetim surgiu como estratégia
jornalística e editorial utilizada pelos jornais
1
A pesquisa intitulada “O leitor de folhetins do Correio
Paulistano no século XIX” foi desenvolvida junto do
franceses para manter as assinaturas e, ao
Departamento de Letras da Universidade Federal de mesmo tempo, atrair um novo público além
São Carlos, sob a supervisão da Profa. Dra. daquele que se interessava pelos artigos
LuzmaraCurcino e financiada pela Fapesp políticos predominantes até então. A fórmula
(2012/064457-0).

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339
de sucesso dessa nova seção foi copiada por andamento da obra, nosso interesse na
jornais de todo o mundo, inclusive os segunda fase da pesquisa foi o de procurar
brasileiros. Escolhemos então para o corpus indícios dessas cartas dos leitores que
de nossa análise o Correio Paulistano, comentassem o que e como leram os folhetins
primeiro porque não encontramos um estudo ali impressos. Embora o jornal contasse com
verticalizado acerca da recepção do folhetim uma seção de cartas de leitores bastante
nessa região do país2 e segundo porque esse apreciada pelo público, principalmente entre
periódico foi o primeiro impresso diário da as décadas de 1860 e 1870, conforme
capital paulista. Outro fator que corroborou salientou Sousa (1904), em seu estudo
nossa escolha foi a presença constante dessa histórico do Correio Paulistano, surpreendeu-
seção no referido jornal desde o seu segundo nos o fato de não encontrarmos cartas
número. relacionadas ao folhetim ou aos folhetinistas.
Passamos então a abordar esse rico material
Com o interesse de ampliar e
com o intuito de verificar quem eram seus
intensificar dados que permitissem delinear a
autores já que também eram leitores
imagem do público leitor das narrativas de
potenciais desse veículo de informação,
ficção seriada do Correio Paulistano e
tentando responder a algumas questões como:
apoiados em comentários feitos em pesquisas
Quais assuntos eram mais comuns? Quais as
como as realizadas por Meyer (1996) e Nadaf
intenções dessas cartas? Quem eram esses
(2002) de que muitos leitores de folhetins
sujeitos? Como eles se posicionavam diante
escreviam para os jornais e até mesmo aos
do leitor específico a quem se dirigiam e,
próprios escritores elogiando ou criticando as
mais especificamente, aos leitores do jornal?
condutas de sua produção ficcional, o que
certamente contribuía para medir o Por serem publicadas diariamente e
em quantidades variadas, as cartas dos leitores
2
constituem um material muito amplo se
O surgimento e a difusão considerável desse objeto
comparado ao tempo de nossa pesquisa, o que
cultural e desse gênero literário são, sem dúvida, um
capítulo importante da história da leitura no Brasil, nos levou a fazer um pequeno recorte desse
cujos contornos já foram muito bem delimitados por corpus, selecionando duas seções publicadas
vários especialistas como as obras de MEYER, por mês entre as décadas de 1860 e 1870,
Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo: totalizando 480 seções. Dessas, escolhemos
Companhia das Letras, 1996; TINHORÃO, José
aproximadamente 20 paracompor nossas
Ramos. Os romances em folhetins no Brasil:1830 à
atualidade. São Paulo: Duas Cidades, 1994; SERRA, reflexões neste artigo.Antes de passarmos à
Tânia Rebelo Costa. Antologia do Romance-folhetim análise dos textos propriamente ditos,
(1839 a 1870). Brasília: Editora da UNB, 1997; gostaríamos de fazer uma breve apresentação
NADAF, Yasmin. Rodapé de miscelâneas. CIDADE: desse jornal que apareceu em um cenário
7 Letras, 2002; HOHLFELDT, Antonio. Deus escreve
bastante peculiar, passou por alguns
direito por linhas tortas: o romance-folhetim dos
jornais de Porto Alegre entre 1850 e 1900.Porto momentos de crise, mas que conseguiu
Alegre: EDIPUCRS, 2003. As pesquisas “ Jornais e manter-se em circulação por mais de cem
Folhetins Literários da Paraíba do século XIX, anos.
desenvolvido na Universidade Federal da Paraíba, e
“Dumas, Montépin e duTerrail: a circulação de 1. Breve história do Correio Paulistano
romances-folhetins franceses no Pará”, da
Universidade Federal do Pará, abordam a recepção
OCorreio Paulistano surgiu em 26 de
desses textos nos respectivos estados. junho de 1854e pareceu ter sido distribuído

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340
em alguns locais, conforme inferimos do conhecimento das opiniões dos serviços
anúncio pulicado na seção “Expediente”: de seus representantes; a ella pois cumpre
fazer justiça ao merecimento de cada um.
Pedimos a assignatura d’aquelles senhores Entre nós a imprensa ainda não
á quem o Correio for entregue. No caso de attingioáquellegráo de perfeição e de
recusa terão a bondade de devolvel-o. celeridade que é para desejar, e pois, não
(CORREIO PAULISTANO, 26 de junho temos a presumpção de haver dado neste
de 1854, p.04). anno uma publicação de debates com a
regularidade e presteza que convém, e que
Desde a sua inauguração, oCorreio lhe dá todo mérito. Todavia, nas
Paulistano diferenciou-se dos demais circumstancias em que nos achamos, e
periódicos que circularam em São Paulo até com os limitados recursos de que
os anos de 1850, pois tinha como proposta a dispomos, fizemos quanto esteve á nosso
alcance para corresponder a confiança e
criação de uma imprensa livre, disposta a coadjuvação com que temos sido
discutir todas as opiniões e todos os pleitos honrados por nossos assignantes.
tanto no campo político como literário, Redobraremos pois de esforço para as
responsabilizando-se, por conta disso, apenas discussões da seguinte sessão, cuja
pelos artigos impressos sob o título especial publicação já contratamos.
da folha.No entanto, a defesa dessa As causas, que nos impediram o
imparcialidade foi constantemente provada se desenvolvimento e a celeridade que
observarmos na história desse jornal não só as anhelavamos dar á publicação dos debates
alterações de sua posição política, como na presente sessão, são as mesmas que nos
também as modificações de seu formato. forçam hoje a restringir o formato desta
folha, afim de não nos vermos forçados a
A publicação inicial em papel florete, faltas aos nossos compromissos: julgamos
geralmente importado da Espanha, nas mais conveniente uma publicação regular,
dimensões 28X37, com quatro páginas embora modesta no formato [...]
divididas em três colunas em que eram (CORREIO PAULISTANO, 30 de abril
publicados atos oficiais, notícias do exterior, de 1855, p. 01).
anúncios, modificou-se a partir de 15 de
fevereiro de 1855, quando o Correio No entanto, a redução do tamanhoque
Paulistano foi contratado para publicaros atos já indicava a escassez de recursos e de apoios,
da assembleia legislativa. Nessa época, o nãofoi suficiente para a manutenção da
jornal apresentava-se em tamanho maior, com periodicidade diária e o jornal no dia 17 de
as dimensões 37X56, em que as mesmas julho do mesmo ano noticiou sua circulação
quatro páginas passaram a ser divididas em 4 bissemanal, às terças e sextas-feiras que não
colunas. No entanto, o encerramento dos fossem dias santificados, conforme o
trabalhos legislativos exigiu o retorno das comunicado:
folhas ao tamanho original, assim justificado
na seção “Correio Paulistano”: Em vista do que temos expendido somos
forçados a modificar a publicação desta
Ahi vai finalizada a publicação dos folha; o seu apparecimento terá lugar
trabalhos da assembléa provincial, e o d’ora em diante somente duas vezes por
Correio Paulistano lisongea-se de ter sido semana, no presente formato, á excepção
o órgão pelo qual a nossa província teve dos mezes em que funccionar a assembléa

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341
provincial, em cuja época continuara a À publicação diária seguia-se outros
publicara-se diariamente. Não foi sem melhoramentos: a contratação de pessoal para
grande difficuldade que tomamos essa o escritório e para a tipografia ea abertura de
resolução, porém ella foi antes uma um escritório exclusivo para o recebimento de
imposição das circumstancias. anúncios. Além disso, a tipografia investiu em
(CORREIO PAULISTANO, 17 de julho
novos maquinários. Em 1863, Joaquim
de 1855, p. 01).
Roberto de Azevedo Marques substituiu o
De acordo com Sousa (1904, p.29), a antigo prelo manual por uma máquina de aço
promessa de circular diariamente nos meses do tipo Alauzet que possibilitava o aumento
de funcionamento dos trabalhos legislativos, da tiragem para 700 exemplares em
cujos extratos o jornal seria obrigado a detrimento dos 450 impressos no antigo
publicar, não foi cumprida regularmente, dada sistema. Seis anos depois, em 1869, um novo
a precariedade financeira em que se investimento em uma oficina de impressão a
encontrava. Nessa mesma fase, o jornal aderiu vapor favoreceu o aumento no número de
abertamente ao partido conservador como jornais que passou a ser de 850. A novidade
uma alternativa para manter-se em circulação, na província foi tamanha que nos primeiros
o que não foi bem visto pelos leitores da dias do funcionamento desse novo sistema de
época. impressão:
A publicação diária reiniciou-se Houve uma verdadeira romaria de gente
apenas em 1º de agosto de 1858, momento em de todas as classes para vel-o trabalhar, e,
que o jornal recebeu uma subvenção do devido ao grande aperto do povo que se
governo para a publicação do expediente acotovellava no recinto das officinas e
oficial. A notíciadessa nova fase apareceu na agglomerava-seá porta da rua, deram-se
seção “Aos leitores”, acompanhada da alguns esmagamentos e scenas de
pugilato. (SOUSA, 1904, p. 56).
reafirmação dos princípios defendidos pelo
periódico desde seu surgimento – comoa No entanto, em 1866, um fato
valorização da imparcialidade política e aparentemente de pequena importância
literária e a extinção da linguagem virulenta ocasionou o rompimento do contrato
que se disseminava pelos jornais políticos até
governamental com o Correio Paulistano.
então publicados. Antônio Manuel dos Reis, diretor literário de
Inspirado em experiências americanas O Cabrião, um periódico de caráter
e europeias em que as folhas, ao fazerem humorístico, inseriu na seção “A pedido” do
parte da distração e da instrução do povo Correio Paulistano um comunicado, assinado
tanto do campo como da cidade, conseguiram por ele, censurando a inércia da polícia diante
contribuir para o seu aperfeiçoamento, o dos atentados cometidos por um grupo de
editor e proprietário do Correio Paulistano, acadêmico contra o mesmo jornalista e seu
Joaquim Roberto de Azevedo Marques, jornal. Tavares Bastos, então presidente da
reiniciavao novo momento decirculação província,ofendido pela publicação contra seu
diária, trazendo frequentes e breves notícias e grande amigo, escreveuao proprietário do
até mesmo transcrições de fatos ocorridos na Correio Paulistano ameaçando a suspensão
corte e no estrangeiro. do contrato de publicação de atos do governo
se continuasse a publicar textos daquele tipo

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342
na seção.Diante detamanha prepotência, o professorado, nas lutas do partidarismo,
Correio Paulistano iniciou uma campanha de nos comicios parlamentares, nas
oposição ferrenha ao presidente da província polemicas jornalísticas, na administração
que perdurou durante todo seu mandato. e nas letras; a população se pouco
Nesse período, o jornal tornou-se liberal. aumentara na quantidade,
medráraoptimamente em qualidade, pelo
Em 1868, Américo de Campos, que já derramamento mais generalizado da
era redator do Correio Paulistano desde 1866, instrucção em seus diversos graus e pela
começou a utilizar as colunas editoriais para constante leitura de livros e jornaes da
difundir o pensamento dos membros mais côrte e de obras de todo o gênero
radicais do partido progressistas, hostilizando provindas do extrangeiro. (SOUSA, 1904,
p.45-46).
a atual situação. Embora conservador,
Joaquim Roberto não impediu que Américo
O cenário de progresso da época
de Campos comentasse e elogiasse o
somado à frustração do povo em relação ao
manifesto do Centro Liberal do Rio de
gasto oneroso com a guerra contra o Paraguai
Janeiro, em 1869. Em 1870, o clube radical da
incitavam ainda mais o pensamento
corte lançou o manifesto de 1870 em defesa
nacionalista e faziam com que a bandeira do
da República e encontrou adeptos por todo o
republicanismo fosse levantada. O Correio
país, fazendo fortes críticas à centralização da
Paulistanoaderiu ao partido republicano na
Monarquia, ao seu caráter hereditário, à
figura de Américo de Campos entre os anos
vitaliciedade do senado e a um sistema
de 1872 a 1874, data em que o redator deixou
político que excluía a maioria da
o jornal para assumir outra redação, a da
população.Nessa época, as condições
Província de S. Paulo, folha também
econômicas e culturais do Brasil melhoravam
republicana. No intervalo de tempo da saída
e São Paulo precede as demais capitais nesse
de Américo de Campos até 1875, o Correio
cenário próspero, já que:
Paulistano não o substituiu, transformando-se
em jornal de informações e curiosidades úteis.
[...] não era mais a cidade escura,
silenciosa e deserta, segregada de toda a (SOUSA, 1904, p. 53).
utilconvivencia de civilização exterior. A A compra do Correio Paulistano por
illuminação a Leôncio de Carvalho em 18 de julho de 1875
gazembellezavanocturnamente a cidade, foi noticiada logo na primeira página do
as vias-ferreas cortavam os campos, jornal, com um curto comunicado de Joaquim
galgavam serras, trasnpunham rios,
Roberto de Azevedo Marques, seguido de um
ligando o sertão e a marinha á séde oficial
do governo; as linhas de bondes, com toda vasto programa publicado na seção “Correio
a sua lentidão primitiva e rotineira, Paulistano”em que o jornal afirmava aderir
aproximavam do centro os arrebaldes e aos ideais liberais.
facilitavam a circulação urbana, a A descrição minuciosa do programa,
imprensa e a arte typografica tomavam
publicada durante os cinco dias posteriores à
incremento, desenvolviam-se,
melhoravam; a academia preparava para a
venda, revelava não só uma fase de transição
vida publica um maior numero de homens do jornal, mas colocava-se comouma
de talento superior que vinham exercitar- ferramenta para aplacar os ânimos
se luminosamente na judicatura, no republicanos que cresciam em ritmo

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343
acelerado. Os liberais, em busca de uma Azevedo Marques Filho do cargo de
sociedade igualitária e atendendo aos secretário da Academia de Direito. A venda
clamores da sociedade da época, pregavam a do jornal ao Dr. Antônio da Silva Prado,
limitação do poder monárquico tanto no chefe da união conservadora, no ano de 1882,
campo político como econômico, acreditando iniciou uma nova fase do jornal, a que Sousa
ser esse o único meio de promover o (1904) denominou consolidação e progresso,
desenvolvimento do cidadão, das províncias e mas que não será aqui abordada, já que
do país. Valorizavam também a liberdade de ultrapassa o período em que nos propomos
expressão e de iniciativa, tão necessárias para analisar as cartas dos leitores.
a construção de uma sociedade igualitária. Ao A longevidade do Correio Paulistano
proporem essas ideias, o jornal e seus permite àquele que se dedica a sua leitura
partidários neutralizavam os revoltados e, observar a transformação da pacata vila em
com isso, mantinham o Império uma cidade que se destaca no cenário
Constitucional. Nesse cenário, Leôncio de nacional. Além disso, é possível conhecer a
Carvalho autorizou a utilização das colunas transformação gradual de seu povo, de suas
do Correio Paulistano para a veiculação dos formas de vida, de seu desenvolvimento
propósitos liberais, responsabilizando-se
intelectual, cultural, moral e financeiro. Isso
apenas pelos artigos pertencentes à seção se refletia nas colunas do jornal e, mais
editorial. especificamente, na seção reservada a
No entanto, sem apoio3, Leôncio de publicação das cartas dos leitores. Segundo
Carvalho, em 19 de dezembro de 1875, Sousa (1904), essa seção tornou-se a mais
deixou um comunicado no jornal, alegando importante do Correio Paulistano entre os
que, por ter de ausentar-se da capital da anos de 1866 a 1872, período que
província por algum tempo, transferia, a partir compreende nosso objeto de análise.
de um contrato firmado entre as partes, a
2. A seção de cartas dos leitores do Correio
propriedade do jornal e da tipografia a
Paulistano
Azevedo Marques. Este voltou a gerir o
Correio Paulistano ainda que sob as ordens Intitulada inicialmente de “A pedido”,
do primeiro. O jornal durante essa nova etapa a seção das cartas dos leitores do Correio
ainda mantinha a mesma filiação partidária. Paulistano recebeu outros nomes: chamou-se
Só em 4 de dezembro de 1877 é que Joaquim “Seção Particular” entre 1872 e 1878 e no
Roberto de Azevedo Marques cedeuas folhas final deste ano recebeu o nome de “Seção
de seu jornal para a defesa do programa Livre”. Todos esses títulos convergiam para a
doutrinário e dos interesses políticos do ideia de que se tratava de um espaço em que
partido conservador. No ano seguinte, o qualquer cidadão poderia deliberar sobre
Correio Paulistanofaz implacável oposição assuntos diversificados e cuja
ao partido liberal, então no poder, o que responsabilidade do conteúdo era única e
rendeu a demissão de Joaquim Roberto de exclusivamente atribuída aos seus autores,
algumas vezes nomeados, mas muitas vezes
identificados por pseudônimos ou pelo uso
3
Segundo Sousa (1904), o pomposo programa lançado das iniciais dos nomes.
por Leôncio de Carvalho parece não ter agradado os
chefes liberais o que o levou a abandonar a direção do
Correio Paulistano.

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344
Desde a Antiguidade, as cartas eram duas páginas do jornal oitocentista. Vejamos,
utilizadas como um instrumento de veiculação portanto, como essa seção constituía a
de informações entre as pessoas, pois era por imagem discursiva de seus autores, tentado
meio delas que responder as perguntas inicialmente
propostas.
[...] atacado, defendia-se o político diante
das pessoas cuja estima desejava O primeiro contatocom as cartas dos
conservar; emudecido o Fórum, como no leitores do Correio Paulistano confirma a
período de Cesar, era por meio delas que afirmação de Sousa (1904) de que se tratava
se procurava formar num público restrito de um espaço em que eram abordados
uma espécie de opinião geral. Certas assuntos heterogêneos: comportamentos
cartas afixavam-se nas praças ou corriam pessoais ou coletivos; política; administração,
em cópias distribuídas pelos destinatários, saúde e segurança públicas; assuntos do dia a
tornando-se públicas. (RIZZINI, 1977, dia da população; acontecimentos relevantes
p.09). do ponto de vista nacional, provincial ou do
interior; poemas; e, anúncios de produtos,
A incorporação desse gênero ao
principalmente da área farmacêutica.
campo jornalístico foi tão natural que isso se
mantém na impressa até os dias atuais. As As cartas geralmente eram destinadas
cartas dos leitores atuais são publicadas em a sujeitos específicos, o redator, de modo
espaços tecnicamente reservados. No entanto, geral, ou a um cidadão particular, no entanto,
a suposta liberdade inferida pela ao serem inseridas em um espaço de
funcionalidade desse espaço é logo circulação pública, elas ainda atingiam os
desmistificada quando temos conhecimento demais leitores do jornal. Além de informar,
de que há um conjunto de injunções definidas esses textos exerciam um papel de persuasão
pelos próprios jornais e revistas no que diz muito influente. Do ponto de vista
respeito à seleção e à publicação de tais pragmático, essas cartas também tinham
textos. Assim, em vez de emergirem propósitos variados, dentre os quais pudemos
espontaneamente, as correspondências são reuni-los em dois grandes grupos: no
construídas na medida em que passam pelo primeiro, de divulgação, incluímos cartas de
crivo dos editores que decidem o que deve ser agradecimento, de elogios e os anúncios. Já os
publicado, em que momento e quais as segundos e mais frequentes, os de denúncia,
pessoas que devem fazer parte desse espaço. debatiam comportamentos pessoais e
Além dessa seleção minuciosa, os editores coletivos.
ainda podem agir sobre o texto do leitor por As cartas de divulgação tinham
meio dos cortes de algumas partes e do finalidades diversificadas: os autores
resumo das ideias principais. agradeciam por visitas recebidas, pelo
É importante salientar que a seção de comparecimento ao funeral, por doações
cartas dos leitores do Correio Paulistano coletivas ou individuais ou por prestação de
diferia dos periódicos da atualidade em serviços. Tinham como objetivo realçar
relação à extensãodo espaço ocupado: qualidades socialmente valorizadas como a
enquanto estes delimitam uma área com honestidade, o altruísmo, a luta pelo bem
número específico de linhas e palavras, o comum e pela nação. Ao mesmo tempo,
outro podia ocupar metade de uma coluna ou promoviamos sujeitos alvos de descrições.

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345
Tratava-se de uma forma de divulgar pessoas previa os leitores do jornal, fazendo perguntas
e, principalmente, profissionais. Incluímos que, ao mesmo tempo em que denunciavam,
ainda nesse conjunto de cartas, textos despertavam questionamentos nesses leitores
publicados na seção “A pedido” que traziam acerca da precariedade desse serviço público.
relatos de pessoas ou de um grupo de pessoas Essas cartas de denúncias versavam
acerca dos benefícios de alguns produtos sobre assuntos variados e tinham como
comerciais, com destaque aos medicamentos. noticiar questões relacionadas à ineficiência, à
Quanto ao outro segmento de cartas, omissão ou até à negligência dos serviços
que classificamos como denúncia, incluímos oferecidos pelo governo à população da
aquelas que se apresentavam em forma de capital ou das cidades do interior; problemas
perguntas, de pedidos ou de relatos de relacionados à conduta de alguns profissionais
condutas reprováveis pela sociedade. Na carta civis ou políticos; debater acerca de fatos
destinada inicialmente ao presidente da locais, regionais ou nacionais relevantes. Com
província, publicada em 8 de março de 1862, isso, a seção incitava seus leitores a
por exemplo, o autor não identificado discutirem fatos, formando opiniões acerca
questionou a administração pública acerca da dos mais variados temas.
situação precária da segurança pública da Quanto à posição dos sujeitos que se
cidade de Silveiras que estava sem um propunham a escrever para oCorreio
subdelegado há aproximadamente três meses. Paulistanovimos que a maioria utilizava
Em outra correspondência, intitulada pseudônimos. Nos textos que abordavam
pergunta, “O cidadão Tavares”, em tom condutas repreensíveis de pessoas da igreja,
bastante firme questiona algumas condutas os autores se identificam com nomes ligados a
reprováveis de ligados ao matadouro público essa esfera social – um católico apostólico
da capital: romano; um irmão; um romeiro; um romeiro,
porém honrado. Nas críticas ao serviço
Póde ser colletor das rendas das carnes público ou à política, encontramos
verdes um individuo que á anos não póde pseudônimos como um brasileiro, um seu
comparecer ao matadouro publico por seu administrador, um administrador de princípio
estado de gravemente molesto?
tão luminoso, um munícipe, um votante entre
Póde ser veterinário um individuo que não
tem habilitações algumas para tal e só outros. Com tal estratégia, os autores se
pódeexhibir um atestado do officio de inseriam nas esferas sociais que abordavam,
latoeiro? [...] (CORREIO PAULISTANO, mostrando-se conhecedores desse espaço, o
1 de fevereiro de 1863, p. 03). que lhes dava mais autoridade diante dos
leitores. Havia ainda correspondências em que
Embora o autor da carta não tenha os autores não se identificavam ou utilizavam
nomeado seu destinatário, inferimos que iniciais do nome, como uma forma de
primeiramente dirigia-se aos envolvidos - evitarem possíveis represálias.
principalmente se considerarmos o trecho Os nomes dos autores geralmente
final “venhão às respostas que voltará à apareciam em cartas de respostas e de
carga” -em que o denunciante parecia retaliar agradecimentos. No primeiro caso, as pessoas
aqueles que supostamente viriam a público que já tinham sido nomeadas nas cartas de
para defender-se. Além disso, ele também já denúncia não precisavam se esconder já que

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346
seus nomes figuravam nos jornais. Já aqueles público do Correio Paulistano simpatizava
que escolhiam vir a público na defesa de com as discussões das condutas das
algum cidadão denunciado, poderiam escolher instituições públicas, que deixavam muito a
pela revelação ou não de seu nome. Nas cartas desejar, e também com o debate do
de agradecimento, o autor que optava pela comportamento de alguns profissionais da
identificação, além de valorizar as condutas época, seja valorizando os atos virtuosos ou
de amigos ou de profissionais, tornando condenando os maus hábitos como a
público atos valoráveis, também se projetava desonestidade, a falta de ética ou a falcatruas
na sociedade já que fazia parte do círculo políticas ou profissionais.
dessas pessoas ilustres.
3. Considerações finais
Ascartas dos leitorespublicadas pelo A leitura e análise de algumas cartas
Correio Paulistano revelavam a percepção dos leitores publicadas nas folhas do Correio
que seu proprietário e redator tinhamacerca da Paulistanoentre as décadas de 1860 e 1870
importância daquele espaço para o público permitiram conhecer as angústias, os desejos,
para o qual se dirigiam. Tratava-se de uma as insatisfações, as dúvidas que faziam parte
seção que, ao dar voz a autores externos ao do cotidiano dos cidadãos daquela época. São
jornal, trazendo informações de diversos Paulo vivia um processo de transformação
segmentos da sociedade sob pontos de vista sócio, econômico e cultural. A primeira delas
muitas vezes díspares, aconteceu com a instalação da Academia de
envolviaemocionalmente seus leitores. Ali,a Direito no segundo decênio do século XIX. O
vida da sociedade da capital da província ou choque de culturas entre os pacatos
do interior era exposta publicamente, oque habitantes, de costumes bastante interioranos,
sem dúvidaatraía o leitor curioso. As cartas de com a dinamicidade e a criticidade trazidas
denúncias, principalmente as mais polêmicas, pelos estudantes provenientes das diversas
certamente teriam desdobramentos, seja na regiões do país foi importante para a
forma de uma carta-resposta do acusado ou de consolidação da identidade paulistana e para
pessoas que tomavam partido da discussão, seu desenvolvimento nas mais diversas áreas.
corroborando ou refutando denúncias. Isso Além disso, o progresso nas plantações de
prendia a atenção dos leitores.
café, que se desenvolviam no interior da
Ao trazer predominantemente as cartas provínciatransformou efetivamente o pequeno
de combate e de polêmica, acolhendo queixas burgo estudantil em uma cidade próspera e de
variadas, a seção divulgava de forma relevância nacional. Todas essas
inteligente assuntos capazes de apaixonarem a transformações afetavam a população e
opinião pública e a constituía como um repercutiam nas páginas do jornal de modo
importante meio, além do folhetim, para geral e nas cartas dos leitores de modo
despertar a atenção de um público leitor que específico.
se formava na época4. Acreditamos que

4
O proprietário do Correio Paulistano, Joaquim
Roberto de Azevedo Marques, em uma das crises prendessem a atenção desses leitores de modo a
financeiras do jornal aponta como um dos motivos a criarem vínculo com o jornal, e, as seções folhetim e
falta da formação do gosto pela leitura na população das cartas dos leitores parecem ter sido criadas para
paulistana. Assim era preciso criar estratégias que esse fim.

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347
Vimos que as cartas dos leitoresque
privilegiavam as queixas, as críticas e as
bajulações, além de divulgarem as condutas
dos cidadãos ou das instituições públicas, seja
para enaltecê-los ou para recriminá-los,
mostravam o perfil de um público interessado
pelos fatos desde os mais comezinhos até os
de importância nacional. Além da informação,
tais correspondências revelavam a postura
vigilantes de seus autores/ leitores a tudo o
que os cercavam.

Referências
MEYER, M. Folhetim: uma história. São
Paulo: Companhia das Letras, 1996.
NADAF, Y. Rodapé de miscelâneas.
CIDADE: 7 Letras, 2002
NOBRE, F. História da imprensa de São
Paulo. São Paulo: Edições Leia, 1950.
RIZZINI, C. O jornalismo antes da
tipografia. São Paulo: Editora Nacional,
1977.
SOUSA, A. Memória histórica sobre o
Correio Paulistano. São Paulo: Tipografia
Rosenhain e Meyer, 1904.

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348
PRODUÇÃO DE IDENTIDADE E MODOS DE
OBJETIVAÇÃO/SUBJETIVAÇÃO DO SUJEITO TATUADO NA
REVISTA INKED

Edileide de Souza GODOI; Maria Regina Baracuhy LEITE


Universidade Federal da Paraíba (UFPB)
edileidegodoi17@gmail.com; mrbaracuhy@hotmail.com

Resumo: Tendo como pressuposto que os sujeitos inseridos em uma sociedade de


discursos cada vez mais efêmeros, submissos a liquidez da pós-modernidade, encontram
na prática da tatuagem um lugar de retorno a si mesmo, o objetivo geral deste trabalho é
analisar como o sujeito tatuado se constitui e é produzido na revista Inked no período de
2010 a 2012. Essa problemática se ancora na seguinte questão: Será que os sujeitos, a
todo momento, disciplinarizados, normativizados por mecanismos de controle social,
conseguem se subjetivar pela prática da tatuagem? Para responder a tal questionamento,
analisamos, à luz da Análise do Discurso, três capas da Inked e algumas seções da
revista, articulando-as a outras materialidades que se inscrevem interdiscursivamente no
interior do arquivo, a fim de discutir como são produzidos os jogos de verdade que,
sutilmente, ensinam e propõem ao sujeito modos de se comportar.
Palavras-chave: análise do discurso; prática da tatuagem; modos de
objetivação/subjetivação

de mudança do mundo, tanto subjetivo quanto


Introdução social, ou seja, a possibilidade de contestação
O objetivo de sistemas hegemônico de poder e a
principal, hoje, não é nos descobrirmos e sim possibilidade de modificá-los. São ideias e
nos recusarmos a ser o que somos inventando questões que se perpetuam até nossos dias, pois
nossa subjetividade. nessa volatilidade dos discursos e das
tecnologias direcionadas à vida das pessoas em
Michel Foucault “tempos líquidos”1, as relações de forças que

O motivo pelo qual se compartilha essa


1
epígrafe é sobretudo o problema que anima o Esse termo tem como base a ideia de líquido, de
último Foucault (1978-84) - o da possibilidade Zigmunt Bauman característica presente nas relações
humanas atuais, inspirado na obra Amor Líquido -

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349
produzem os sujeitos e suas identidades são relação necessária entre o dizer e as condições
cada vez mais pulsantes. de produção desse dizer. (GREGOLIN, 2004).
É em meio a essas relações de poder, 1. Análise do Discurso: por que este campo
disseminadas discursivamente na sociedade teórico e não outro em seu lugar?
“líquido-moderna”, que também se arrisca a É a partir das contribuições da Análise
pensar os sujeitos sob a base de determinações do Discurso em torno da constituição dos
que lhes são exteriores. Entretanto, para esse sujeitos, principalmente com as contribuições
trabalho, não é todo e qualquer sujeito que nos deixadas por Michel Foucault, que se
interessa, mas sim, o sujeito tatuado, desenvolve esse trabalho. Para alguns
discursivizado pela revista Inked e suas estudiosos como Veiga Neto (2013), Branco
possíveis relações com outros discursos, outros (2013), Fischer (2013), os postulados de
enunciados (verbais ou não verbais) inseridos Foucault nos ajudam a compreender como se
em diferentes meios midiáticos. Para fazer essas dão, no interior dos discursos, as relações de
relações será tomado como corpus três capas forças, os jogos de verdades que direcionam a
da revista no período de 2010 a 2012 (uma de vida dos sujeitos. Relações que têm
casa ano). direcionamentos distintos antes e depois da
Entendendo que o sujeito não está década de 80. Para Branco (2013, p.155), se
desvinculado das relações sócio-históricas e antes da década de 80, Foucault via, através do
ideológicas que o cercam, vinculamo-nos a um desenvolvimento de tecnologias para o controle
campo de pesquisa que trabalha os sujeitos sob e regulação dos corpos (nas fábricas, nas
em diferentes possibilidades de existência, escolas, sistemas penitenciários, etc.) o poder se
considerando-os em relação à história, ou seja, transformar no controle que nos fabrica,
uma perspectiva que integra, no interior dos impondo a todos e cada um de nós uma
discursos, relações complexas de poder, individualidade, uma identidade, a partir de
assevera posições sujeitos e apontam para 1980 seu interesse passa a ser os combates e as
construções identitárias. (FERNANDES, lutas inerentes às relações desse poder que
2012). Imergimos, assim, numa perspectiva criam formas de subjetividades.
linguístico-discursiva que irrompe no final da Por isso, Foucault (1995), vendo as
década de 60 - Análise do Discurso – que vê o lutas como inerente às relações de poder, “[...]
sujeito não de forma empírica, psicológica, ele passa a estudar o papel das resistências, em
dono do seu dizer, mas o compreende numa todas as suas dimensões na trama complexa de
poder na atualidade, seus antecedentes
históricos e suas perspectivas de êxito”
sobre a fragilidade dos laços humanos. As relações se (BRANCO, 2013, p.52).
misturam e condensam com laços momentâneos, frágeis Desde então, o filho de Poitiers
e volúveis. Em um mundo cada vez mais dinâmico,
fluido e veloz, seja real ou virtual. “O mundo em nossa
considera que a resistência ao poder deve ser
volta está repartido em fragmentos mal coordenados, compreendida como uma ação que busca a
enquanto as nossas existências individuais são fatiadas
numa sessão de episódios fragilmente conectados”
(BAUMAN, 2005, p. 18).

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350
defesa da liberdade2. Esta devendo ser “governo de individuação”3 e liberdade. São
explanada no plano da vida e das lutas sociais; batalhas importantes que visam à compreensão
seu exercício só ocorre em um espaço público, de sujeitos constituídos socialmente, visto que
no qual estejam garantidas as condições as lutas contra a dominação, contra a forma de
mínimas de tolerância político-social. Para exploração (que separa os indivíduos daquilo
Foucault (2006), o campo da liberdade se faz que ele produz), contra o assujeitamento,
de atitudes e comportamentos, decorrentes da contra as diversas formas de subjetividade e
maneira como os indivíduos, em suas lutas, em submissão estão no cerne das questões que
seus planos, recusam ou escolhem as práticas levam tantos pesquisadores a se embrenharem
que lhes são propostas, ou muito, além disto, se nessa (des)ordem arriscada da produção dos
constituem como sujeitos em de suas práticas. sujeitos, questionando: “quem somos nós”?
É nesse campo de controle e de Foucault (1995, p.232) assinala logo
liberdade que se pretende, com esse trabalho, que não se trata de perguntar “quem somos nós
adentrar nas relações de poder e resistência que enquanto sujeitos universais”, mas enquanto
constituem o sujeito tatuado em uma época sujeitos ou singularidades históricas. Qual é
líquido – moderna, a fim de compreender a esta historicidade que nos atravessa e nos
partir dessas relações inscritas no interior do constitui? Podemos problematizar que, se
corpus aqui analisado como e por que ele somos constituídos historicamente pelos
emerge, hoje, de uma determinada forma e não saberes; a historicidade é ao mesmo tempo, a
de outra. determinação daquilo que somos e uma
provocação a “ser o que queremos ser”, pois
No entanto, de acordo com Branco
nessa retomada apaziguada, projetada num
(2013), para se compreender os sujeitos na
naturalismo neutro da questão quem somos nós
atualidade, é preciso entendê-los em um campo
de relações, de embates em que se entrelaçam há um desejo de liberdade de constituição de si.
Enfrentar essa questão na atualidade é buscar
uma identidade em meio a tantas constituídas
socialmente.
2.A noção de liberdade em Foucault está relacionada ao 2. Tatuagem: modos de subjetivação e
desaparecimento do sujeito ou a morte do homem. O produção de identidade
homem desaparece na Filosofia, não como objeto do
saber, mas como sujeito de liberdade de sua existência. O sujeito é nosso objeto de estudo, seja
“Pois bem, o homem sujeito de sua própria existência e enquanto objeto do saber-poder, seja enquanto
de sua própria liberdade, no fundo é uma espécie de objeto de construção identitária. Portanto, a fim
imagem correlata de Deus”. (CASTRO, 2009) A noção
de liberdade foucaultiana, situa-se em primeiro lugar,
de compreender as técnicas ou procedimentos
no abandono desse mito humanista da essência do
3
homem. Surge com base nas análises das relações entre O governo por individuação ou normalização na
os sujeitos e na relação consigo mesmo, as quais se contemporaneidade é o substituto ativo do poder
denominam em termos gerais de poder. O poder só se pastoral desenvolvido a partir do século XVIII pela
exerce sobre sujeitos livres em que possam perceber igreja. Trata-se de submeter os indivíduos a normas e
diante de si um campo de possibilidade onde possam dar padrões de sua constituição de subjetividades, e auto-
muitas condutas, muitas reações e diferentes modos de identificado através de regras perpetradas de conduta
comportamento. (CASTRO, 2009) ideal [FOUCAULT, 1984].

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351
de subjetivação que constituem para os sujeitos,
Figura 2
na revista Inked, a ideia de identidade,
passaremos a análise das três capas da revista,
engendrando as relações entre linguagem,
história e sociedade. Isso porque, assim como
Foucault, acreditamos que o sujeito é uma
fabricação e que está em contínua construção
histórica.
Centramos nossa análise a partir de três
séries enunciativas propostas pela revista; a
saber: a) tatuagem como arte e estilo; b)
tatuagem como símbolo de moda e status; c)
tatuagem como símbolo de sensualidade.
Conforme imagens a seguir:
Figura 1

Figura 3

Na figura 1, a qual temos a capa que


apresenta um torso de uma mulher branca
muito tatuada com uma venda nos olhos e o
enunciado centralizado, “Isto não é uma revista
de tatuagem”. Seguindo as ideias de Foucault
(2005) em torno do enunciado, observa-se no
sincretismo verbo-visual uma transferência

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352
quase metonímica entre o enunciado, “Isto não tatuagem, é uma revista de quê? Ou sobre o
é uma revista de tatuagem” e o enunciado Ceci quê? No interior da edição, não é difícil
n’est pas une pipe (Isto não é um cachimbo”), perceber que o que está em jogo não são as
de 1929, uma das obras mais famosas do pintor tatuagens (desenhos, símbolos e tipos), mas os
surrealista belga René Magritte (1898 – 1967), sujeitos tatuados, seus modos de vida, suas
e ainda retomada na capa do livro de Foucault relações de força que se criam discursivamente
(1988) Isto não é um cachimbo. entre ser tatuado e não ser tatuado, ou seja, a
emergência dessa prática na atualidade e o meio
O deslocamento dos sentidos na Inked,
pelo qual se materializa o sujeito que se tatua.
em torno da obra artística, no enunciado “Isto
não é uma revista de tatuagem”, retoma as Já a capa nº 06 (figura 2) os modos de
mesmas inquietações a fim de fazer emergir subjetivação e produção de identidades inscritos
novos efeitos de sentido por meio do pré- nos enunciados são propostos a partir da
construído, visando ratificar determinados visibilidade do discurso da moda. Esse Segundo
dizeres inscritos no fio discursivo. É nessa rede Coco Chanel não é algo presente apenas nas
enunciativa em que os sentidos apresentam-se roupas, mas tem a ver com ideias, a forma
num jogo de ausência e presença, que se como vivemos, o que está acontecendo”. (Coco
constitui o tom afirmativo de verdade, Chanel).
insinuando que a revista não é sobre tatuagem, Disseminada em diversos segmentos da
mas sobre o sujeito que se tatua, sua vida, seus sociedade, a tatuagem adentra no campo do
desejos e anseios; suas preocupações e vestuário, da beleza e do status, indo além de
reflexões a respeito da prática da tatuagem. propor ao sujeito um “lugar ao sol”, é o desejo
Nesse jogo enunciativo a capa produz efeitos de ser visto no mundo esteticamente visual,
positivos para a prática da tattoo. posto que representa vivências de uma época,
Portanto, o lugar de ideias, comportamentos, modos de ser, estilo de
objetivação/subjetivação construído para sujeito vida, ou seja, “a tatuagem, na sociedade
tatuado, nessa edição especificamente, se dá ocidental, a partir de meados do século XIX,
pelos sentidos expressos nos questionamentos apodera-se do corpo, transformando-o em
sobre a tela de Magritte: “Isto não é um espaço de conflitos de subjetividades, onde se
cachimbo”. Assim como o desenho do desenham comportamentos e representações de
cachimbo, a revista cria um olhar de dúvida como somos ou queremos parecer aos olhos do
para o que, a princípio, seria inquestionável, outro.” (LE BRETON, 2004, p. 69)
pois ao ver regularmente em todas as edições Segundo Pires (2005), é a partir desse
anteriores a foto de uma pessoa sempre muito olhar externo que a prática da tatuagem tece
tatuada, ninguém pensaria que “isto” (pronome suas linhas no discurso da moda. Nele, os
demonstrativo que aponta para algo perto - se hábitos e a moda começam a passar por novas
referindo à revista) não seria uma revista de percepções corporais. Esse momento atinge
tatuagem, se não houvesse a frase na capa que diretamente a vida dos indivíduos, as mudanças
“isto não é uma revista de tatuagem”; ao nos processos de subjetivação, marcando
contrário, todos pensariam: “É uma revista de alteração constante no gosto pessoal, na forma
tatuagem!”. Entretanto, se não é uma revista de

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353
de se identificar e ser identificado. (PRADO, esteticamente aceitáveis no mundo fashion.
2009). Vejam que revista não escolhe qualquer um,
mas a escritora e apresentadora Fernanda
Retomando acontecimentos históricos a
Young que por muito tempo carregou a fama
capa em análise reinsere a tatuagem no discurso
de sujeito rebelde, cheio de tatuagens,
da moda a partir da reinserção de objetos,
irreverente que se escrevia sua própria história,
marcas, cores que relembra acontecimentos que
entretanto, esse lugar de rebeldia é
surgia no final da década de 1970. Segundo
desconstruído por enunciados do tipo: Ela é
Pires (2005), os estilistas dessa época,
assim também, doce, suave, sensual “Fernanda
rompendo com a forma de apresentação
Yung está mais do que nunca acostumada a
tradicional da alta-costura, realizam desfiles em
escrever histórias e, talvez, por isso não tenha
locais com performances cada vez mais
medo de reinventar a própria. A escritora baixa
inusitadas. Apresentam nas passarelas corpos
a guarda e mostra um lado mais suave, sedutora
magros, tatuados, eróticos com roupas
e real”.
preferencialmente pretas e de couro, fartamente
adornadas por elementos metálicos. Inseridos nesse campo semântico da
docura, da suavidade e da sedução os
Nas peças íntimas femininas, surgiam
elementos fetichistas como as roupas de couro,
peças com forte apelo sexual, como meia-
os piercings, as tatuagens ganham mais espaços
arrastão, sutiãs aparentes e capas de borracha.
discursivos, saindo da clandestinidade e
Esses elementos irromperam nessa época
imbuindo-os de um caráter sedutor que passa a
(década de 70), a partir dos revolucionários dos
ser incluído na prática da moda.
anos 60 (Punk, hippie, góticos, pervs)4, que
lutavam contra os códigos existentes na busca Já na capa nº 05 (figura três) em que a
de expressão de liberdade. revista apresenta a atriz Mel Lisboa o sujeito
tatuado é produzido a partir da temática da
Esse estilo punk, adotado pela moda dos
sexualidade: a estimulação dos corpos
anos 1970, é retomado na revista por meio da
esteticamente perfeitos, a intensificação dos
memória discursiva que traz à “tona” figuras
prazeres, o reforço dos controles e das
emblemáticas que ainda hoje dão um ar de
resistências. Essa temática nos inquieta a pensar
sofisticação e personalidade aos novos padrões
como a mídia lança um discurso verdadeiro que
4 incessantemente enuncia um corpo tatuado
Os góticos deram sequência ao interesse dos punks pelo
fetichismo e o traduziram para um estilo mais chique e desejante.
exagerado. Então vieram os pervs, que tiveram As técnicas e práticas direcionadas ao
influencia pronunciada tanto nas tribos de estilo
posteriores (como o ciber punks)quanto na moda em
corpo sensualizado repetidas midiaticamente, só
geral. Os pervs geralmente não eram fetichistas reais, comprovam o que Foucault já anunciava em
apesar de se vestirem com materiais fetichistas como 1984, quando propunha os sujeitos a partir da
borracha e adotarem tatuagem e itens como espartilho e história da sexualidade. Naquele momento, ele
sapatos bizarros. Eles abrangiam um continente da anunciava que vivemos numa sociedade que, ao
música pop, estilistas de moda alternativa (como Pam
contrário de camuflar ou mascarar os discursos
Hogg e Krystina Kitsis), e club Kids lançadores de
tendência. Valeria Steel, Fetiche: moda, sexo e poder, sobre a sexualidade, precisa falar deles, divulgá-
1997 los, espalhá-los e incitá-los:

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354
inerente ao sexo, mas em função das táticas
de poder que são imanentes a tal discurso.
a sexualidade é uma criação cultural que
(FOUCAUALT, 1988 p.79-80)
entende o triângulo corpo-sexo-prazer como
um conjunto de enunciados que administram
domínios de conhecimento que fazem com Nessa relação de verdade do sujeito sexual
que nos reconheçamos como sujeitos do pela confissão, entende-se que ela de algum
desejo. (FOUCAULT, 2012, p. 338) modo nos garante uma identidade de valor,
atribuído por outrem. Isso porque o outro nos
Por essa via, conduzir-se-á nossa análise constrói pelos vínculos que criamos com os
pelos deslocamentos contemporâneos em que a valores sociais e culturais de uma época.
sexualidade entra em cena no discurso Na revista cuja capa apresenta Mel
midiático, mas especificamente na revista Inked, Lisboa, temos uma série de enunciados
a fim de fazer ver os jogos de verdade em que o sincréticos (verbais e imagéticos) que são
sujeito tatuado se reconhece e se constitui pela reiterados no campo da sensualidade ao retomar
sexualidade, que é, então, esmiuçada, detalhada um conjunto de procedimentos e símbolos
para a afirmação de sua existência. específicos a essa prática.
Dizemos isso porque consideramos, Na estrutura enunciativa, a começar pela
conforme Foucault (1988), que a sexualidade é capa, em que aparece a modelo e atriz Mel
uma forma de poder que vai aparecendo não só Lisboa, o efeito sensual é visto por um conjunto
como verdade do indivíduo e de seus prazeres, de elementos regularizadores em torno da
mas principalmente, como um lugar de sensualidade e correlações, entre múltiplos
excelência do patológico e do oculto que se domínios de saber. A correlação se refere ao
urge decifrar. domínio de memória que prescrevem
Tem-se, assim, no sexo, na história da regulações disciplinares e históricas em torno da
sexualidade, nas técnicas de confissão um longo sensualidade; é o olhar sinuoso, provocativo, o
processo de constituição do sujeito, como corpo esbelto seminu, meio curvado para
sugere Foucault (1988 p.79-80): frente, incitando o desejo do sexo no outro,
bem como as roupas íntimas pequenas e
foi nesse jogo que se constituiu, lentamente, provocativas (estola de boá branca, cobrindo
desde há vários séculos, um saber do apenas os seios, a calcinha branca com detalhes
sujeito, saber não tanto sobre sua forma, pretos).
porém daquilo que o cinde; daquilo que o
determina, talvez e sobretudo o faz escapar No interior da reportagem, a memória
a si mesmo. (...) o projeto de uma ciência do em torno do discurso da sexualidade é ainda
sujeito começou a gravitar em torno da mais acentuada pela exposição das fotos em
questão do sexo. A causalidade no sujeito, o poses sensuais e pelos enunciados verbais que
inconsciente do sujeito, a verdade do sujeito se inscrevem nesse campo semântico como por
no outro que sabe, o saber, nele, daquilo que exemplo, Mel Lisboa, mais tattoo, menos
ele próprio ignora, tudo isso foi possível inocência, revelando no superlativo de
desenrolar-se no discurso do sexo. Contudo, superioridade ‘mais’, as proposições sugeridas
não devido a alguma propriedade natural na imagen, explicitando a partir da confluência

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355
entre a materialidade verbal e imagética um
3. Efeito de fim
novo saber em torno do discurso da
sensualidade. Agora não é apenas o sujeito Dispor a tatoo nesse conjunto visual de
sensual, mais o sujeito sensual tatuado que marcas da arte, da moda e da sensualidade nos
quanto mais tatuado, menos ingenuidade, remetem a ecos de nossa cultura, resgatando
menos pureza, menos candura, e, mais malícia, imagens, enunciados e temporalidades atreladas
mais astúcia, mais luxúria, mais sensualidade. a outros discursos, outras formações
discursivas, mas que são reinterados em
Além disso, a estratégia de retomar Mel
práticas do presente. São fatos acontecimentos,
Lisboa faz emergir intericonicamente imagens
lembranças, “imagens de memória, armazenadas
anteriores (Anita minisérie da globo) que vêm
pelo indivíduo” (COURTINE, apud
ratificar o lugar da sensualidade, do desejo, e,
MILANEZ, 2006, p.68), que são rearticuladas
que agora, agrega a prática da tatuagem como
como estratégias para regular o sujeito tatuado
um novo símbolo desse conjunto de
a uma nova ordem discursiva.
transformação da ingenuidade para a vida
sexual. Entretanto, essa reinserção em outras
práticas discursivas não acontece de qualquer
Por outro lado, há no interior das
forma, nem por meio de qualquer enunciado, ao
revistas um conjunto de dizeres que estão
contrário, a escolha é cuidadosamente feita por
inscritos em outras condições de produção,
meio do visivelmente positivo; é o corpo belo e
dizeres que são acolhidos e reapropriados a
escultural, é a tatuagem como arte ou como
desejos e histórias pessoais como por exemplo:
símbolo de sensualidade, é a moda das
“[...]... Foi uma escolha minha... Escolhi ter passarelas, da mídia.
tatuagem, tenho que arcar com isso. Minhas Entretanto, por outro lado, de acordo
últimas tattoos são bem diferentes das com Foucault (1979), a objetivação do sujeito
primeiras. Sem dúvida, um sinal de que não se dá de forma pacífica e coercitiva, pois as
meus gostos mudaram. Com o tempo você
escolhas individuais são exemplos da relação de
entende melhor os diferentes estilos de
ser-si, em que o ser humano é impelido a se
tatuagem, descobre o que você curte. Essa
tatuagem da panturrilha eu fiz pro reconhecer enquanto um sujeito, que se difere
do outro na maneira de se expressar, na maneira
Bernardo” (INKED, 2001, p.44).
de enxergar o seu corpo, a ponto de sentir a
necessidade de modificar seu corpo,
Para Gregolin (2007, p.54), “o sujeito transformá-lo e tê-lo reconhecido socialmente
contemporâneo consome sistemas de como marca de sua singularidade.
representações e sensibilidades”, mas sendo a
subjetivação um produto de relações sociais é Desse modo, segundo Foucault (1995)
possível pensar que os sujeitos tomam para si o sujeito é reconhecido em um duplo processo,
estas subjetividades de maneira tensa se (re) ou seja, ele é transformado em sujeito pelas
apropriando e de alguma forma (re) modelando práticas de subjetivação pré-construídas por um
outras, consequentemente, produzindo formas saber poder que o determina. Por outro lado,
de individuação. esse processo é construído na relação consigo
mesmo, por meio de técnicas de si, que lhe

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356
permite constituir-se sujeito da própria de memórias. Vitória da Conquista, BA:
existência. Edições UESB, 2007, p. 39-60.
MILANEZ, N. O corpo é um arquipélago:
memória, intericonicidade e identidade. In:
Referências
NAVARRO,P. (Org.) Estudos do texto e do
BRANCO, G. C.; NETO, A. Agonística e discurso: mapeando conceitos e métodos. São
palavra: as potências de liberdade In; Foucault: Carlos, SP: Claraluz, 2006, p. 62-92.
Filosofia e Política. Belo Horizonte, Ed.
Autêntica. 2013 PIRES, B. F. O corpo como suporte da arte:
piercing, implante, escarificações, tatuagem –
FOUCAULT, M. Microfísica do poder. São Paulo, 2005
Tradução de Roberto Machado. 14. ed. Rio de
Janeiro: Edições Graal, 1979 PRADO, G. No mundo das aparências: uma
análise do discurso publicitário da moda. 2009.
______ O sujeito e o poder. In: RABINOW, P, Dissertação (Mestrado em Linguística) –
& DREYFUS, H. Michel Foucault: uma Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa,
trajetória filosófica. Rio de Janeiro: Forense 2009.
Universitária, 1995.
_____História da sexualidade 1: a vontade de
saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
_____História da sexualidade 2; o uso dos
prazeres.tradução Maria Theresa da Costa. Rio
de Janeiro: Graal, 1984.
_____A arqueologia do saber. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 7ºed. 2005.
_____ Ditos e escritos, volume V. Ética.
Sexualidade. Política; Organização, seleção de
textos e revisão técnica Manoel Barros da
Motta; tradução Elisa, Inês Autran dourado
Barbosa. 3. Ed. - Rio de Janeiro – Forense,
universitária, 2012
FERNANDES, C. A. Discurso e sujeito em
Michel Foucault. São Paulo. Intermeios, 2012
GREGOLIN, M.R. Foucault e Pêcheux na
análise do discurso: diálogos e duelos. São
Carlos: Claraluz, 2004
_____. Discurso, História e a produção de
identidades na mídia. In: FONSECA-SILVA,
M.da C. e POSSENTI, S. (Org.) Mídia e rede

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357
POR UMA HISTÓRIA DO NOVO FEMINISMO NO BRASIL

Juliane de Araujo GONZAGA


UNESP Araraquara
gonzagajuliane@gmail.com

Resumo: Esta pesquisa propõe delinear os contornos do novo feminismo brasileiro que toma
impulso, sobretudo, nas e pelas mídias digitais. Visto que uma das principais questões do novo
feminismo refere-se à conduta sexual de homens e mulheres no contexto do assédio sexual e do
estupro, propomos analisar acontecimento discursivo instaurado por processos de
subjetivação que “desculpabilizam” a vítima. Assim, objetivamos apresentar análises de
processos de objetivação e subjetivação nos discursos feministas nas mídias digitais, bem
como o movimento que o sujeito ético empreende sobre sua própria conduta moral. Além disso,
pretendemos demonstrar que esses discursos são marcados por descontinuidades e dispersões,
e, ainda, que são determinados por regimes de enunciabilidade heterogêneos que coexistem e
constituem sujeitos e objetos de formas distintas.
Palavras-chave: novo feminismo; mídia digital; subjetivação.

Introdução o governo de si e do outro no domínio da


sexualidade.
Ao propor uma história do novo
feminismo brasileiro, esta pesquisa tenciona Situados em uma Análise do Discurso
delinear os contornos desse movimento social que pensa com Michel Foucault as práticas
que, a partir de 2011, ganha novas formas e discursivas que constituem sujeitos e objetos,
toma impulso nas ruas (com a Marcha das esta pesquisa de doutorado propõe investigar a
Vadias), mas, sobretudo, nas mídias digitais história de problemas que se tornaram a
(redes sociais, blogs, revistas, jornais). principal bandeira do novo feminismo
brasileiro: o estupro e o assédio sexual.
Considerando que o discurso é
construído na e pela história (FOUCAULT, Tendo em conta a concepção de
2012), pretendemos verificar como as práticas acontecimento discursivo como a emergência
discursivas do campo feminista são de um discurso que produz sentidos singulares
atravessadas por esses movimentos históricos e instaura um novo regime de enunciabilidade
que, sendo tão descontínuos, são marcados pela pretendemos analisar a seguinte singularidade:
dispersão de determinadas formas de a produção de sentidos de “desculpabilização”
constituição do sujeito e de regularidades sobre da vítima e a refutação de práticas discursivas

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358
anteriores que situam a mulher como
responsável pelo assédio/estupro. O trabalho de seleção do corpus se
pauta no gesto de interpretação das
Com isso, propomos problematizar regularidades, ou seja, na busca de uma ordem,
como se constitui esse sujeito assediado de uma repetição no modo de constituir esses
(culpado/não culpado) e, mais especificamente, objetos e sujeitos de discurso para determinar
qual a relação que ele estabelece com um os regimes de enunciabilidade que emergem no
conjunto de regras morais e consigo mesmo. momento histórico presente.
Além disso, pretendemos investigar Nesse sentido, destacamos
como, ao repudiar o assédio sexual e o estupro, acontecimentos históricos que propiciaram a
o discurso feminista é marcado por uma emergência de regimes de enunciabilidade e
regularidade que entra em dispersão (emerge campos de visibilidade que funcionam de
tanto nas mídias alternativas quanto nas mídias forma dispersa e relacional: (i) a pesquisa do
corporativas) e produz sentidos de interdição e IPEA sobre tolerância social à violência contra
controle de dadas condutas sexuais em relação a mulher; (ii) o projeto de criação de vagão
à mulher. exclusivo para mulheres em São Paulo; (iii) a
Desse modo, propomos as seguintes ocorrência de estupros em universidades,
questões: instituições e espaços públicos.
(i) Como o estupro e o assédio sexual se A fundamentação teórica que conduz
tornaram o principal problema do novo esta pesquisa é a Análise do Discurso francesa,
feminismo? mais especificamente, os pressupostos de
Michel Foucault (2012 [1969]; 2013 [1975];
(ii) Como se define esse regime de 2006 [1984]) sobre a arqueologia, a genealogia
enunciabilidade? e a ética, cuja metodologia propõe investigar os
(iii) Como são produzidos os objetos de solos históricos de emergência dos discursos e
discurso assédio/estupro? suas imbricações com a produção de saberes,
poderes, subjetividades e condutas no âmbito
(iv) Como pode se constituir e ser constituído o da moral.
sujeito assediado/estuprado nesses lugares de
enunciação? Em função do espaço e da proposta
deste capítulo, apresentaremos brevemente
O corpus de pesquisa é constituído por algumas análises que compõem esta pesquisa
materialidades verbo-visuais das mídias de doutorado. Baseado na apresentação que
digitais, pois principal lugar de produção e realizamos no IV Colóquio Internacional de
circulação desses discursos. Logo, voltamo-nos Análise do Discurso, este capítulo objetiva
para os enunciados produzidos tanto em mídias fornecer alguns exemplos de processos de
alternativas, em redes sociais e blogs (Escreva objetivação e subjetivação nos discursos
Lola Escreva, Blogueiras Feministas, feministas nas mídias digitais.
Feminismo na Rede, Moça você é machista,
Cem homens, etc.), quanto em mídias Ademais, tencionamos apresentar aqui
corporativas (Folha de São Paulo, Estado de breves constatações e hipóteses que direcionam
São Paulo, Revista Veja, Revista Isto é, etc.). nossa tese a sustentar que: (i) a emergência dos
discursos feministas é marcada por

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359
descontinuidades e dispersões e (ii) esses digitais. A seguir, vejamos enunciados
discursos são habitados por regimes de extraídos da revista Bolsa de mulher e da
enunciabilidade heterogêneos que não se comunidade Eu não mereço ser estuprada em
excluem, e sim coexistem no momento rede social:
histórico presente, de modo a constituir os Figura 1: Revista Bolsa de mulher (2014)
objetos e os sujeitos de formas distintas.
1. Processos de objetivação e subjetivação
nas mídias digitais
Os acontecimentos históricos são
determinantes para a organização de lugares
sociais para os sujeitos, o que nos permite dizer
que é a história que fornece as regras sobre
aquilo que o sujeito pode fazer e como pode
constituir-se em relação aos outros. Em termos
de discurso e relações de poder, esse
pressuposto nos leva a constatar, portanto, que
o sujeito é histórico. (FOUCAULT, 2013).
A partir dessa concepção, interessa-nos
investigar como os indivíduos se tornam
Figura 2: Comunidade Eu não mereço ser
sujeitos de discursos feministas sobre o estupro estuprada (2015)
e o assédio sexual. Propomos então pensar os
processos de objetivação, uma vez que é na
condição de objeto a ser detalhado e explicado
que o sujeito assume uma forma. O processo de
objetivação se dá, portanto, por meio da
mobilização de saberes que categorizam e
classificam o indivíduo e o inscrevem em jogos
de poder (FOUCAULT, 1995).
Ressaltamos, ainda, que as relações
entre os sujeitos são marcadas por processos de
subjetivação, em que o sujeito empreende
trabalho sobre si mesmo. Tendo em conta as
regras de formação dos discursos e as
possibilidades históricas, o sujeito assume
posições que lhe são permitidas e, por
conseguinte, formas de se conduzir em relação Dessas materialidades, destacamos dois
aos outros (FOUCAULT, 1995). enunciados verbais que demonstram como se
dão os processos de objetivação e subjetivação
A partir dessas considerações,
nessas mídias digitais:
apresentaremos exemplos de como o sujeito
toma forma nos discursos feministas das mídias

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360
também produzido neste lugar, [#ninguém
(1) Assédio sexual: mulher, a culpa não é sua. merece], que funciona como uma espécie de
(2) De saia longa ou pelada, eu não mereço delimitador de sentidos do enunciado [Eu não
ser estuprada. mereço ser estuprada], e que instaura o sentido
de que o assédio/estupro não deve ser
No primeiro enunciado, verificamos um
concebido numa relação de causa e efeito.
processo de objetivação – pois o sujeito mulher
é classificado, categorizado – que o constitui Por outro lado, a singularidade do
como isento de culpa pelo assédio sexual. Em enunciado (2) reside justamente no movimento
termos de interdiscursividade, podemos dizer que empreende o sujeito na elaboração de si
que o enunciado (1) se relaciona com um dado mesmo, sendo por isso considerado um sujeito
domínio de memória e retoma sentidos ético. O trabalho ético apresenta diferentes
históricos que atestam que, a depender da possibilidades e ocorre “não apenas para tornar
vestimenta da mulher, o homem é autorizado a seu comportamento conforme a uma regra
praticar o assédio. dada, mas sim para tentar transformar a si
mesmo em sujeito moral de sua conduta”
Entretanto, ao atualizar essa memória
(FOUCAULT, 2006, p. 213).
discursiva, o enunciado emerge como refutação
a essas práticas. Isso porque o enunciado Assim, podemos dizer que os
apresenta processo de objetivação que desloca enunciados materializam movimento que se dá
o sujeito da posição de culpada, para aquela de na direção de uma determinação da substância
não culpada, ou seja, de vítima que sofre o ética, definida por Foucault como “a maneira
abuso. pela qual o indivíduo deve constituir este ou
aquele aspecto dele próprio como matéria
No enunciado (2), há um processo de
principal de sua conduta moral” (2006, p. 212).
subjetivação visto que o próprio sujeito realiza
trabalho sobre a forma que ele pode assumir Logo, quando o sujeito se posiciona em
neste lugar de enunciação. Em relação ao relação aos outros e assume que “de saia longa
enunciado anterior, este repete o sentido de ou pelada” (independentemente da roupa que
“desculpabilização” da mulher [eu não mereço usa) não merece ser estuprada, compreendemos
ser estuprada]. Porém, ao mesmo tempo, o que ele tenta transformar a si mesmo em sujeito
enunciado produz o sentido de que o moral de sua conduta. Há, nesse trabalho ético,
assédio/estupro tem possibilidade de ser a busca de criar para si possibilidades de
praticado como efeito e/ou resposta a algum existência fora de obrigações morais
comportamento ou postura da mulher, afinal, legitimadas socialmente, tais como o dever de
constitui o estupro – ainda que refutando-o – usar roupas recatadas, evitar conduta
em termos de “merecimento”. considerada incitativa, dentre outras.
O enunciado apresenta, portanto, uma A princípio, essa forma existência no
contradição constitutiva, pois apresenta interior de determinadas relações de poder
sentidos divergentes: “a mulher não é culpada pode ser interpretada como posicionamento que
pelo assédio/estupro” e “assédio/estupro refuta e inverte normas de conduta para a
decorre de merecimento”. A contradição mulher. Contudo, questionamos: a criação de
somente é desfeita por outro enunciado formas de existência para si fora de obrigações
no âmbito da moral sexual consiste em

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361
movimento de resistência? A hipótese que dispersos, que determina as regras daquilo que
sustentamos é a de que não, pois a dispersão e a é possível dizer e ver em termos de assédio
legitimação dessa determinação ética para o sexual no momento histórico presente.
sujeito acabou por criar efeitos de norma de Ao problematizar a constituição dos
conduta no interior do discurso feminista. saberes, Deleuze (2005) assinala que Foucault
Dito de outro modo, ao relacionar-se faz trabalhar duas dimensões do estrato
com os jogos de regras morais, o sujeito histórico: o regime de enunciabilidade (as
instaura singularidade porque cria possibilidades de dizer de cada época) e o
possibilidades de desviar-se deles, porém, campo de visibilidade (a “luz” que permite que
acaba criando também um modelo de conduta vejamos os objetos e os sujeitos tal como os
para si que integra os processos de vemos). Assim, o enunciável e o visível se
subjetivação e o regime de enunciabilidade dos intersecionam distribuindo e organizando
discursos feministas. posicionamentos, regras, estratégias e poderes
que determinam o modo como se deve
Desse modo, essa forma de existência
constituir um sujeito ou objeto no momento
não promove resistência, mas sim
histórico analisado.
transformações e mutações nesta ordem,
porque produtora de novas regras para os Em termos de poder, o campo de
sujeitos constituírem-se e conduzirem-se em visibilidade também estabelece sobre os
relação às regras morais e aos demais sujeitos. sujeitos modos de diferenciação e
individuação, pois “a plena luz e o olhar de um
2. Regimes de enunciabilidade e campos de
vigia captam melhor que a sombra, que
visibilidade
finalmente protegia” (FOUCAULT, 2013
Nesta seção, propomos analisar a [1975], p. 190) e, por conseguinte, determinam
relação entre séries de enunciados a fim de com eficácia a distribuição e a conduta dos
verificar regularidades nos discursos que sujeitos nos espaços.
constituem o sujeito assediado e o objeto de
Nesse sentido, destacamos
discurso assédio sexual. Para tanto,
materialidades verbo-visuais produzidas nas
consideramos que a regularidade supõe o
mídias digitais que estabelecem relações com
“comportamento de uma curva”, ou seja, um
os enunciados anteriormente analisados, pois
funcionamento recíproco que passa pela
inseridos no mesmo campo associado. Vejamos
vizinhança dos enunciados, distribuindo e
os exemplos a seguir:
reproduzindo regras em um campo associado
determinado (DELEUZE, 2005, p. 16).
No método arqueológico (FOUCAULT,
2012), o campo associado remete à série de
formulações outras, isto é, ao emaranhado de
relações que se estabelecem entre enunciados
dispersos. Para este trabalho, a importância de
pensar o campo associado está na possibilidade
de identificar um funcionamento recíproco
entre enunciados produzidos em lugares

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362
Figura 3: Revista Veja (2014) socialmente como espaço propício para sua
realização: o metrô. A primeira materialidade
foi extraída de reportagem publicada pela
Revista Veja sobre o projeto de Lei para
criação de vagão feminino em São Paulo. A
imagem mostra um vagão de metrô lotado com
homens e mulheres, cujos corpos estão
posicionados em proximidade. Ao centro,
figura uma moça aparentemente desatenta ao
que se passa a seu redor. A legenda da imagem
utilizada na reportagem diz: “Além da
superlotação, as mulheres têm que se preocupar
com o ataque de depravados no metrô de São
Paulo”.
Já na materialidade seguinte, temos uma
Figura 4: Peça publicitária da Companhia peça da campanha publicitária que circula tanto
do Metropolitano de São Paulo (2015) no metrô de São Paulo quanto no perfil da
Companhia do Metropolitano (CMSP) nas
redes sociais. A imagem traz três policiais
dentro de um vagão em postura defensiva e de
vigilância, com maior destaque ao centro para a
policial mulher. Acompanhando a imagem, a
legenda: “Você não está sozinha. Somos mais
de mil agentes de segurança treinados para agir
imediatamente em casos de abuso sexual”.
A relação entre esses enunciados
demonstra que há uma determinada
regularidade que perpassa lugares de
enunciação dispersos. Tanto a reportagem da
Revista Veja sobre o projeto de criação de
vagão exclusivo para mulheres no metrô de São
Paulo quanto a peça publicitária da Companhia
do Metropolitano dão a ver um funcionamento
recíproco, isto é, uma ordem, uma relação no
modo de constituir o sujeito mulher e o objeto
assédio sexual.
Os enunciados objetivam o sujeito da
seguinte maneira:

Os enunciados falam sobre a prática do


assédio sexual em um lugar legitimado

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363
como efeito a legitimação do assédio em
decorrência do espaço (metrô) e da
• As mulheres têm que se preocupar com o proximidade entre os corpos.
ataque de depravados no metrô. Portanto, não há, nesses lugares de
• Você [mulher] não está sozinha. enunciação, refutação à construção histórica
que situa a mulher como culpada pelo assédio,
O sujeito mulher é constituído, então, tampouco uma tentativa de inversão das regras
como aquele que, no espaço do metrô, é objeto que corroboram a possibilidade de assédio em
de atração sexual para os homens e que sempre função do local e da disposição dos corpos de
corre o risco de ser assediada e/ou atacada homens e mulheres.
neste lugar. É classificado ainda como “sexo
3. Considerações finais
frágil”, ou seja, sujeito em condição indefesa
que necessita de ajuda e proteção contra o Para concluir, destacamos as relações
assédio sexual. Dessa forma, o campo de que estabelecem as séries de enunciados
visibilidade (o modo como podemos ver a produzidos em lugares dispersos no momento
mulher assediada e o assédio sexual no espaço histórico presente. Os enunciados aqui
do metrô) e o regime de enunciabilidade (o analisados foram produzidos entre 2014 e 2015
modo como podemos dizer o assédio e a e, apesar da “simultaneidade”, configuram-se
mulher assediada nesse lugar) se intersecionam de forma heterogênea, descontínua e dispersa.
e determinam as seguintes regularidades: Isso porque essas práticas discursivas
situam-se em pontos difusos de poder e
apresentam diferentemente as relações que os
• É preciso que a mulher se proteja para evitar sujeitos estabelecem com as regras morais e a
o assédio. necessidade/desnecessidade de defesa contra o
• É preciso zelar pela segurança e bem-estar da assédio e o estupro.
mulher. Com isso, refletimos que a emergência
• A mulher precisa de alguém para protegê-la. de formas singulares de subjetivação e de
novas relações que o sujeito estabelece consigo
A emergência desses enunciados mesmo e as regras morais não excluem regimes
materializam um regime de enunciabilidade e que atestam a possibilidade de assédio/estupro
visibilidade do assédio sexual e da mulher como resultado de fatores como o lugar, a hora
assediada que define as regularidades “cuidar”, e a roupa da mulher.
“zelar”, “proteger”. As práticas discursivas
Entre essas séries de enunciados não há
aqui se ligam a um fazer histórico dos sujeitos
relação de exclusão, mas sim de coexistência,
que produz o objeto assédio como problema de
dispersão e descontinuidade, o que pode ser
segurança pública, e a mulher assediada como
demonstrado pela interpretação dos regimes de
ser que necessita de vigilância e proteção
enunciabilidade existentes no momento
constantes.
histórico presente:
Diferentemente do efeito de sentido dos
enunciados analisados na primeira seção deste
capítulo, aqui, os sentidos instaurados têm

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364
Referências
“Você não está sozinha”. DELEUZE, G. Foucault. Tradução de Claudia
Sant’Anna Martins. São Paulo: Brasiliense,
O assédio sexual e o estupro são
2005.
condicionados pelo local em que se encontra a
mulher. FOUCAULT, M. A arqueologia do saber.
Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 8ª
edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2012 [1969].
“Mulher, você não é culpada”.
______. O panoptismo. In: ______. Vigiar e
O assédio sexual e o estupro não se punir. Tradução de Raquel Ramalhete. 41ª.
justificam pela roupa nem pelo lugar. Edição. Petrópolis: Vozes, 2013 [1975], p. 184-
214.
Nessas condições, constatamos que,
quase simultaneamente, emergem nas mídias ______. O sujeito e o poder. In: DREYFUS,
digitais discursos que constituem os objetos e H.; RABINOW, P. (Orgs.) Michel Foucault,
os sujeitos segundo regimes de enunciabilidade uma trajetória filosófica para além do
heterogêneos. Constatamos também que, estruturalismo e da hermenêutica. Rio de
apesar da heterogeneidade discursiva, essa Janeiro: Forense Universitária, 1995. p. 231-
série de enunciados produz sentido próprio de 250.
um campo associado feminista: o de oposição à ______. O uso dos prazeres e as técnicas de si.
violência sexual contra a mulher. In: MOTA, M. B. (Org.). Ditos e escritos V:
ética, sexualidade, política. Tradução de Elisa
Logo, ainda que produzam objetos e Monteiro e Inês Autran Dourado Barbosa. 2ª
sujeitos segundo regras diferentes, esses edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
enunciados se entrecruzam historicamente e 2006 [1984], p. 192-217.
exercem função antagônica à violência sexual,
ou seja, exercem a função de interditar e
controlar o assédio e o estupro por meio de Sites consultados
técnicas de controle e vigilância já legitimadas, COMPANHIA DO METROPOLITANO DE
mas também por meio de novas formas de SÃO PAULO – METRÔ. Comunidade.
subjetivação e conduta moral. Disponível em:
A positividade desses discursos reside <https://www.facebook.com/metrosp?fref=ts>.
justamente na produção de mecanismos de Acesso em agosto de 2015.
poder e subjetividades que repudiam o assédio EU NÃO MEREÇO SER ESTUPRADA.
e o estupro. No momento presente, ainda que Comunidade. Disponível em:
de forma dispersa e heterogênea, torna-se regra <https://www.facebook.com/diganaoaomachis
interditá-los em favor da segurança e mo?ref=ts&fref=ts>. Acesso em agosto de
integridade do corpo da mulher. 2015.

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

365
LELLI, A. Assembleia aprova vagão para
mulheres em trens e metrô. Revista Veja. Jul.
de 2014. Disponível em:
http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/assemblei
a-legislativa-aprova-vagao-exclusivo-para-
mulheres-em-trens-e-metro/. Acesso em agosto
de 2015.
LOPES, M. Assédio sexual: como denunciar e se
defender legalmente. Bolsa de Mulher. Nov. 2014.
Disponível em:
<http://www.bolsademulher.com/estilo/assedio
-sexual-como-denunciar-e-se-defender-
legalmente>. Acesso em agosto de 2015.

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

366
HETEROTOPIAS NO PAÍS DO MILAGRE:
UMA HISTÓRIA DO PRESENTE DAS SOCIEDADES
INDÍGENAS NAS TELAS

Maria do Rosário GREGOLIN; Maurício Neves CORRÊA


Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP-Araraquara)
mrgregolin@gmail.com; mauricio_nc@hotmail.com

Resumo:O objetivo deste trabalho é realizar uma pesquisa arquegenealógica a partir dos
estudos de Michel Foucault, a fim de problematizar acontecimentos discursivos que
inventaram e inventam identidades de povos indígenas em produções audiovisuais, no
decorrer do século XX, até a contemporaneidade. Pretendemos analisar processos
discursivos construídos em materialidades fílmicas que agenciam uma ética e uma
estética da corporalidade, da sexualidade e do gênero cujos efeitos de sentido
objetivam/subjetivam o indígena brasileiro. Essa análise pressupõe focalizar os regimes
de verdade que constituem esses discursos. Por que determinados enunciados ganharam
destaque na mídia e outros foram interditados, excluídos? Que relações de saber e poder
agenciaram e agenciam o movimento dessas agitações históricas?
Palavras-chave: sociedades indígenas; michelfoucault; heterotopia.

Introdução Neste sentido, a história do Brasil


esconde por entre suas margens muitos destes
Para Michel Foucault vivemos na época
pequenos pedaços. Podemos observar na
do espaço, do simultâneo, isto é, “Estamos em
bandeira nacional os dizeres “ordem e
um momento em que o mundo se experimenta,
progresso”. Estes discursos agenciam uma
acredito, menos como uma grande via que se
história do Brasil “o país do futuro, o país do
desenvolveria através dos tempos do que como
milagre”. Há em nossa sociedade lugares que
uma rede que religa pontos e que entrecruza
flutuam em fuga deste “milagre” e deste
sua trama” (FOUCAULT, p.401, 2013). Ao
“progresso”. Ao longo de nossa história, os
pensar com ele, estamos em busca de pedaços
senhores do litoral que observaram estranhas
desta rede, como aquelas pequenas luzes que
embarcações em seus horizontes, procuram
nãobrilham na teia da árvore de natal e
outros espaços para seus próprios barcos,
precisam de um aperto, uma engenharia, e que
espaços que chamamos, hoje, de aldeias
nosso olhar pouse sobre elas em meio às tantas
indígenas. Lugares que despertam fascínio e
luzes que brilham ao redor de seu apagamento.
medo e permeiam o imaginário nacional de
Precisamos olhar para os sutis acontecimentos
onde vai emergir o corpo indígena pintado,com
na inteligível rede da história descontinua.

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367
um arco e flecha, seja para admiração ou para o Semiologia Histórica de J.J. Courtine e as
pavor. Estes espaços estão presentes nas propostas de uma análise do discurso com
margens de nossa sociedade e são ao contrário Michel Foucault empreendida pelo Grupo de
do que não tem lugar, eles são hererotopias. Análise do Discurso - Araraquara(GEADA),
retomam as formulações da AD francesa e
Há, igualmente, e isso provavelmente em ampliam as reflexões sobre o funcionamento da
qualquer cultura, em qualquer civilização, mídia no Brasil, reflexões estar que também
lugares reais, lugares efetivos, lugares que nortearão as análises desenvolvidas
são delineados na própria instituição da
estetrabalho.
sociedade e que são espécies de contra
posicionamentos, espécies de utopias 1. Os acontecimentos na mídia: uma
efetivamente realizadas nas quais os história nas telas
posicionamentos reais, todos os outros
Figura 1. Frame do vídeo povos do Xingu
posicionamentos reais que se podem
contra Belo Monte. Greenpeace 2009
encontrar no interior da cultura estão ao
mesmo tempo representados, contestados e
invertidos, espécies de lugares que estão
fora de todos os lugares, embora eles sejam
efetivamente localizáveis. Esses lugares,
por serem absolutamente diferentes de
todos os posicionamentos que eles refletem
e dos quais eles falam, eu os chamarei, em
oposição às utopias, de heterotopia[..]
(FOUCAULT, p.415, 2005)

Ao olharmos para uma trama


heterotópica em que as sociedades indígenas se
ligam numa história do presente, encontramos
na mídia, mais especificadamente no Uma mulher indígena protesta em
audiovisual, o fio condutor de nossas análises. frente às câmeras contra construção de uma
Para Gregolin (2008), a função do hidroelétrica. Ela argumenta que é da floresta
arquegenealogista é “interpretar ou fazer a que retiram seu sustento e a barragem é uma
história do presente”. Este procedimento ameaça. Podemos notar a ênfase dela quanto a
consistiria em mostrar que “as transformações sua condição feminina. Que efeitos de sentidos,
históricas foram as responsáveis pela nossa ou ainda, que relações de poder se entrecruzam
atual constituição como sujeitos objetiváveis este enunciado? Para responder estas questões,
por ciências, normalizáveis por disciplinas”. A precisaremos buscar um fio regular em
partir desta perspectiva teórica, a proposta é materialidades dispersas numa história do
colocar em luta os saberes produzidos pelas presente.
diversas produções audiovisuais sobre os povos A imagem acima foi retirada de um
indígenas ou sobre o silenciamento destas vídeo, cujo temaé um protesto de povos
sociedades, do lugar histórico de onde eles indígenas contra a criação da hidroelétrica de
falam.Na relação mais estrita entre discurso e Belo Monte. A construção da barragem,
mídia, as contribuições na elaboração de uma

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368
segundo o vídeo, vai afetar as práticas sociais Figura 2. Frames do cinejornal Coluna
Norte e da campanha presidência 2014.
de diversas sociedades indígenas que vivem às
margens do rio Xingu.
Ao longo da história recente do Brasil a
região Amazônica foi alvo de várias grandes
obras. Sob o argumento da colonização, da
modernidade e do desenvolvimento, estradas,
hidroelétricas e uma série de outros projetos se
estabeleceram na região.Estes projetos, para
muito além de topias localizáveis, deixaram na
mídia, produções de suas verdades.

Na sociedade contemporânea, a mídia é o


principal dispositivo discursivo por meio do
qual é construída uma “história do
presente” como um acontecimento que
tensiona a memória e o esquecimento. É
ela, em grande medida, que formata a
historicidade que nos atravessa e nos
constitui, modelando a identidade histórica
que nos liga ao passado e ao presente O cinejornal Coluna Norte, uma
(GREGOLIN, 2007, p.11). produção de Jean Manzon, patrocinada pela
indústria automobilística, conta a história da
As produções de verdade são a construção da rodovia Belém-Brasília durante o
engrenagem por onde o poder funciona e a governo JK. No vídeo é dito que a Amazônia é
mídia tonou-se em nossa sociedade o principal “um pesadelo cheio de duendes e ameaças” e
agenciador destas produções. Segundo que a rodovia iria integrar a região ao resto do
Foucault, “Somos submetidos pelo poder à Brasil, para assim, trazer o progresso. Em outro
produção da verdade e só podemos exercê-lo cinejornal contemporâneo ao Coluna Norte e
através da produção da verdade”. Nesta também de produção de Manzon,Juscelino
perspectiva, a mídia nos fornece os declara.
monumentos que nos permite analisar a
construção de nossas identidades históricas. O Brasil se apresenta, agora, numa fase
extraordinária de desenvolvimentos, a sua
Em uma série de vídeos de campanhas dimensão imensa continental está sendo
políticas e institucionais que percorrem rasgada por estradas que ligam em todas as
osgovernos de Juscelino Kubitschek, dimensões o solo Brasileiro.
EmílioGarrastazuMédicie Dilma Russef
encontraremos discursos sobre o Nos dois vídeos percebemos a exaltação
desenvolvimento do Brasil, e a associação do às construções das estradas. No Coluna Norte,
progresso às grandes obras. A figura abaixo é é ignorada a presença dos povos que vivem nas
uma compilação de dois destes vídeos. terras por onde a rodovia vai passar. São
chamados de “duendes”. O filme vangloria a
queda da floresta e a colonização que trará o

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369
desenvolvimento. Podemos perceber nestes
enunciados os discursos desenvolvimentistas e Podemos pensar com Coutine e analisar
progressistas sobre o país. uma memória das imagens, uma
intericonicidade, que destacada como
Precisamos olhar as condições de ferramenta analítica, tem o propósito de nos
produção destes vídeos. Sua realização é datada mostrar que existe uma rede de memória em
em meados da década de 1950, período que o materialidades imagéticas, um já dito/visto. É
país experimentava certa euforia em vários um recorte metodológico para trabalhar as
aspectos econômicos e sociais. A política de JK redes de memória na imagem, uma vez que
de fazer o Brasil crescer 50 anos em 5, “[...] toda imagem se inscreve em uma cultura
consistia na integração nacional a partir da visual, e esta cultura supõe a existência junto
construção de estradas e de uma nova capital, ao indivíduo de uma memória visual, de uma
Brasília, que se localizava numa região central memória das imagens onde toda imagem tem
do país, tinha como um dos objetivos, ser um um eco [...]” (COURTINE, 2013, p.42).
centro de integração de todas as regiões.
O vídeo da campanha presidencial de
É claro que a emergência de um país 2014 de Dilma Russef, cujo o tema é a
integrado não se deu no Governo de JK e essa é construção da hidroelétrica de Belo Monte,vai
uma história muito mais longa. O que se filiar em alguns aspectos aos vídeos do
queremos destacar, neste momento, é o governo de JK. Na produção, é exaltada a
silenciamento dos sujeitos que estavam no vitória das máquinas sobre a paisagem da
“caminho” do desenvolvimento e também a floresta e também a associação das obras ao
filiação a movimentos de colonialidade, como a progresso. A presidente ao refletir sobre a obra,
invasão europeia nas Américas e a conquista do vai enunciar “[...] a verdade é que o Brasil está
oeste estadunidense. No vídeo coluna norte, se movimentando como nunca, realizando as
temos estas duas memórias atualizadas. obras que eram esperadas há décadas”.
Percebemos com estes enunciados que os
Por acaso as raças mais velhas hesitaram? discursos sobre o desenvolvimento do Brasil
Ou lá, no além-mar, esmoreceram e
atravessam a história recente do país. É claro
encerram sua missão fatigados?
Retomamos nós o perene fardo a tarefa e a que as possiblidades históricas entre os dois
lição... (COLUNA NORTE) momentos são totalmente distintas.
O vídeo de Dilma apresenta uma
A obra também faz clara alusão aos sofisticação/atualização destes discursos; o
filmes de velho-oeste americanos. Em vários desenvolvimento sustentável. Se nos vídeos do
enunciados do filme, como “Nítido vos vejo governo JK a queda das árvores era exaltada e
jovens do oeste, a caminhar com os mais os habitantes da região eram chamados de
avançados!”. Estes enunciados retomam duendes, na campanha presidencial, a
memórias do cinema estadunidense, afinal presidente vai destacar que o objetivo da obra
estas produções eram muito difundas neste são as pessoas e que o impacto ambiental será o
período. Estes discursos permaneceram fortes e mínimo possível, embora os enquadramentos
foram bastante afirmados também durante o enfatizem a maquinaria devastando a floresta.
governo militar, com a produção de outras
materialidades audiovisuais.

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370
Retomemos as cenas da figura 01. A A intenção deste breve diagnóstico não
indígena protesta contra a construção da é levar à ideia de que não se deva ter energia
mesma hidroelétrica que Dilma tanto exalta. elétrica ou qualquer outro recurso neste
Podemos observar o conflito entre as grandes sentido. A maioria dos povos indígenas são
obras e os povos indígenas, uma vez que estas sujeitos que vivem em nossa sociedade,
construções desencadeiam grandes problemas também devem querer a eletricidade. Contudo
nas terras destes povos. A construção das precisamos pensar, a partir de outras
estradas tão alardeadas por JK, por exemplo, perspectivas, sobre questões como estas. Neste
foi responsável por conflitos que levaram à sentido, uma análise do discurso com Foucault
depopulaçãode várias sociedades indígenas, vai nos munir de ferramentas para pensarmos
como os Aikewára e os Assurini do Xingu. diferentemente.
As aldeias indígenas enquanto Ao selecionarmos como corpus de
espaçosheterotópicos vãorevelar uma tensão análise um frame de três vídeos de épocas
entre topia, utopia e heterotopia. Ao mesmo distintas, e buscarmos traçar regularidades em
tempo em que parecem lugares utópicos e meio as suas dispersões, precisamos destacar a
permeiam os imaginários, seja por medo ou heterogeneidade destas produções.Todas estas
admiração, as aldeias são espaços reais e materialidades foram retiradas do YouTube e é
localizáveis nas margens de nossa sociedade. preciso fazer algumas considerações sobre isto:
Muitas vezes, estes lugares são envolvidos em a) os vídeos presidenciais não foram
conflitos pelo “progresso” nacional, daí vem a concebidos com o fim de estarem neste lugar;
necessidade da topia, da demarcação, seja por b) a acontecimentalização desta rede se dá a
proteção ou por aprisionamento. partir de uma ordem do olhar, não pela
emergência de sua enunciação, mas sim a
A heterotopia se dá no próprio corpo,
simultaneidade histórica de seu acesso, a
como podemos ver na imagem do vídeo contra
história como rede, não como
a construção da barragem de Belo Monte. O
desenvolvimento;
corpo da mulher indígena vai revelar muito
desta tensão. Ela protesta pelo seu espaço, sua c) as possibilidades técnicas são marcadas pela
terra, e esta trama vai nos levar a muitos outros diferença, esta história não deixa de ser
espaços. também uma história do audiovisual.
É importante destacar alguns aspectos Podemos considerar o primeiro frame a
de uma historicidade belicosa de que o materialização de uma apropriação, como,
pensamento foucaultinano nos fala. Para além talvez, conceberia Martin-Barbeiro. Uma
das obras e dos territórios, o simples ato de produção em que a tecnologia serve como
ligar uma luz em nossas casas, vai nos ligar tática de resistência em oposição ao
também, a esta trama que nos esforçamos para pensamento do centro.
ver. Uma simples agência cotidiana pode estar Este vídeo foi produzido pela ONG
carregada de “eletro-relações de poder”, Greenpeacee reflete este momento em que a
enquanto uma terra indígena na Amazônia é popularização de tecnologias vai permitir que
inundada por uma barragem. tomemos conhecimento de certas narrativas.
Muito dificilmente um vídeo com esta

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371
característica seria produzido na época do povo. Podemos notar que seu corpo está
governo JK, ou mesmo durante os governos munido de sentidos que remetem as identidades
militares. É claro que muitas ONGs têm suas indígenas. Seus gestos são firmes, como se
intenções questionadas, mas neste caso, o estivesse preparada para o conflito. Ao fundo
nosso olhar vai ao funcionamento do vídeo e a podemos ver homens e flechas que parecem
escuta que ele proporciona a estas vozes fazer reverência à mulher, que luta com e por
outrora silenciadas. Vale destacar, que na eles na defesa de suas terras.
produção não é creditado o nome da mulher Do outro lado, temos uma carismática
indígena. presidenta candidata à reeleição, vestindo trajes
Os outros vídeos de que retiramos os formais e pronuncia suas palavras publicitárias
fragmentos na figura 02, possuem um caráter previamente escritas. Dilma exalta a construção
totalmente distinto, seja em sua da hidroelétrica que aparece bem a fundo da
intencionalidade, ou em seu alcance. Não cena.
podemos comparar a abrangência de um vídeo Temos um conflito nestas imagens, de
produzido por uma ONG para ser postado em um lado Dilma relata que o principal objetivo
redes sociais, com vídeos institucionais da obra são as pessoas, do outro a indígena diz
veiculados em rede nacional, como no caso da que Belo Monte será prejudicial às pessoas. Ao
campanha presidencial de 2014, ou mesmo dos fundo de uma imagem vemos concreto, na
cinejornais do governo de JK. Esta outra, corpos. Assim, podemos retomar as
apropriação, ou resistência, se dá em um nível
perguntas iniciais: Que relações de poder
muito mais microfísico e ela se impõe em meio atravessam estas duas cenas? Quais os efeitos
àstensões dos conflitos, nas brechas do de sentido e as subjetivações que elas
discurso. provocam?
Considerações finais É evidente que entre a presidenta e a
Os enunciados audiovisuais reunimos mulher indígena existe um cima/baixo, uma
neste trabalho apresentam brevemente uma hierarquia. Porém, nem tudo é tão transparente
história do presente e algumas relações de e matemático, muitas outras intervenções
poder que as atravessam. Dedicamos este analíticas seriam possíveis.
momento final para um olhar mais atento ao Vale ressaltar, que duas imagens
corpo e as identidades.A câmera filmadora é expõem mulheres em situações que outrora,
um mecanismo objetivador em seu manuseio, é muito provavelmente, no caso da mulher
um procedimentomuitas vezes rígido, em que
indígena e, certamente, no caso de
os enquadramentos e a performance Dilma,seriamdesempenhadas por homens.
determinam sentidos bem orquestrados.
A mídia, como este dispositivo de
As imagens da mulher indígena e de agenciamento de nossas subjetivações, é
Dilma se encontram bem trabalhadas e em também a grande narradora das redes históricas
oposição. Ambas estão no foco do olhar, bem que nos atravessam. Fazer um diagnóstico
ao centro da cena. Os efeitos subjetivadores são crítico do presente é uma proposta da análise
disciplinadamente organizados; a indígena se do discurso com Foucault. A partir destas
impõe como uma guerreira, que como mulher, materialidades midiáticas buscamos entender o
vai lutar ao lado dos homens para defender seu

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372
que estamos nos tornando, para assim procurar
pensar de outras formas. Ao esquadrinhar na _______. A Microfísica do Poder. São Paulo:
linguagem as redes de poder que se Graal, 2007
entrecruzam afim de determinar quem somos, _______. AOrdem do Discurso. São Paulo:
podemos encontrar pontos de fuga em meio ao Edições Loyola, 2000.
emaranhado de sistemas que nos envolvem.
_______. Vigiar e Punir.Petrópolis: Vozes,
O GEADA tem se dedicado a realizar 2006.
pesquisas a partir destas leituras. Neste
_______. O corpoutópico, As heterotopias, São
trabalho, apresentamos algumas possibilidades
Paulo: N-1 Edições, 2013.
analíticas que temos desenvolvido. Pensar
como a mídia é um espaço de visibilidade e GREGOLIN, M. R. F. V.Análise do Discurso e
invisibilidade do corpo. Este corpo mídia: a reprodução das identidades. Revista
heterotópico, que a partir destas produções, Comunicação, Mídia e Consumo, São Paulo,
navega por outros lugares e viabiliza novos Vol. 4, No11 2007.
olhares sobre uma história do presente e as _______. Identidade: objeto ainda não
múltiplas identidades dos sujeitos. identificado?. Estudos da Língua(gem)
(Impresso), v. 04, p. 23-36, 2008.
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méthodologiques em analyse Du discours à 2ª. Edição. Rio de Janeiro: Editora UFRJ,
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374
O GÊNERO ARGUMENTATIVO ESCOLAR: UM ESTUDO
SOBRE OS ENUNCIADOS DE CONSENSO E DE POLÊMICA

Rinaldo GUARIGLIA
Centro Universitário Unifafibe (UNIFAFIBE)
guarigliar@gmail.com

Resumo: Este estudo fundamentado no pensamento bakhtiniano objetiva apresentar duas


categorias dialógicas de enunciados regidos retoricamente no gênero argumentativo
escolar, designado atualmente por texto de opinião. Trata-se dos enunciados de consenso
e dos enunciados de polêmica, que respondem, respectivamente, pela propagação de
sentidos do senso comum e de sentidos que se contrapõem a ele. A fundamentação teórica
compreende o aproveitamento da reflexão do Círculo de Bakhtin sobre dialogismo e
gênero; especificamente, sobre a instituição da palavra do outro como forma de
contestação: polêmica velada e polêmica aberta. O córpus de pesquisa compreende a
análise de vinte redações dissertativas produzidas durante um processo seletivo
universitário.
Palavras-chave: gênero; redação dissertativa; ensino; polêmica; senso comum.

econômica, a composição avaliativa, rígida e


Introdução
dedutiva e o estilo objetivo compõem o gênero.
A redação escolar dissertativa é uma A retórica é regida por uma subjetividade
tipologia muito explorada no ensino de baseada em quatro sujeitos: produtor,
produção e interpretação textuais em nossas examinador, texto-proposta e vozes sociais.
escolas, em função da sua condição de recortar
Dessa forma, há relações dialógicas
um ponto de vista e possibilitar uma
fundamentais para a organização argumentativa
organização argumentativa que valide o ponto
deste gênero argumentativo por excelência,
de vista. Reúne, assim, basicamente duas
polarizadas pelos diálogos entre o produtor e o
habilidades importantes para o ensino: o
examinador, entre o produtor e a proposta de
aprimoramento da modalidade escrita e o
redação e entre o produtor e as vozes sócio-
exercício da argumentação crítica.
históricas. Essas matrizes geram propriedades
Como gênero de discurso, o discurso dialógicas, que são enunciados retórico-
argumentativo escolar mantém específicas linguísticos deste gênero: redução temática,
características temáticas, composicionais e adoção parcial de um posicionamento,
estilo, e organiza coerções retóricas também rompimento com a proposta de redação,
próprias. A temática social, política e

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375
polarização, paráfrases de trechos da proposta
Dessa forma, há um espaço discursivo
de redação, interrogativa retórica, respeito ao
em que se constrói a argumentação desse
raciocínio lógico hipótese-argumentos-tese,
gênero, principalmente sob duas categorias
noções de aspecto generalizante e enunciados
imanentes ao texto argumentativo: a categoria
descritivos e descritivo-causais.
consensual, que responde pelo arcabouço de
Esta pesquisa considera a investigação sentidos acatados pelo grupo social em
de um córpus formado por redações produzidas determinado momento histórico, e a categoria
por candidatos à vaga em nível superior em polêmica, que se caracteriza pelo
uma instituição de ensino particular no interior questionamento de conceitos aceitos como
do estado de São Paulo. consensuais, ou pela dialética que consiste no
1. As Categorias Dialógicas de Consenso e embate de proposições que pode resultar na
de Polêmica. As Matrizes e as Propriedades instituição de um consenso.
Dialógicas Assim, polemizar, sob a perspectiva
A dialética, tão cara ao gênero bakhtiniana, é contrapor o discurso do autor ao
argumentativo escolar — retórico por discurso do outro por meio de um mesmo
excelência — indica importantes relações objeto, a fim de reelaborá-lo; “nomeando-o,
dialógicas que permeiam a produção do texto representando-o, enunciando-o” (BAKHTIN,
argumentativo. O diálogo, no âmbito da 1997, p. 196). Trata-se da polêmica
subjetividade, promove uma confrontação entre velada/oculta:
a voz do produtor (que é avaliado) e do
Na polêmica velada, o discurso do autor
examinador (que avalia). Postulamos também está orientado para o seu objeto, como
outras duas relações dialógicas importantes do qualquer outro discurso; neste caso, porém,
gênero escolar: uma que envolve o enunciador qualquer afirmação sobre o objeto é
e as vozes sociais e históricas, que ora construída de maneira que, além de
convergem para o senso comum, ora divergem resguardar seu próprio sentido objetivo, ela
dele; e a outra que se refere à relação do possa atacar polemicamente o discurso do
enunciador com a proposta de redação. outro sobre o mesmo assunto e a afirmação
do outro sobre o mesmo objeto. Orientado
A convergência de vozes compreende para o mesmo objeto, o discurso se choca
um conjunto de conceitos convencionados, no próprio objeto com o discurso do outro.
aceitos por um determinado grupo social, a Este último não se reproduz, é apenas
partir de um consenso estabelecido entre subentendido: a estrutura do discurso seria
membros desse grupo. O afastamento dessa inteiramente distinta se não houvesse essa
convergência, em busca de uma polêmica, é relação ao discurso subentendido do outro.
entendido como qualquer contraposição de [...] O discurso do outro começa a
dados, em um cenário em que há sentidos influenciar de dentro para fora o discurso
consensuais que são postos em oposição a do autor. É por isso que o discurso
polêmico oculto é bivocal, embora, neste
outros sentidos avessos a eles, até mesmo para
caso, seja especial a relação recíproca entre
que se permita, eventualmente, instituir um as duas vozes. A ideia do outro não entra
novo consenso. “pessoalmente” no discurso, apenas reflete

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376
neste, determinando-lhe o tom e a
significação. O discurso sente tensamente seria uma casualidade, mas uma estratégia
ao seu lado o discurso do outro falando do retórica, independentemente do grau de
mesmo objeto e a sensação da presença habilidade linguística do produtor, do
deste discurso lhe determina a estrutura. aproveitamento que ele vem a obter na
(Ibid., p. 196) avaliação, e, talvez, do grau de consciência que
ele possa ter sobre esse recurso.
Entendemos que um conceito Postulamos que atuem três matrizes
consensual não se estabelece dialógicas fundamentais da relação dialógica
quantitativamente, em função do número de envolvidas neste gênero escolar: o diálogo
seus defensores; mesmo porque há, na maioria entre o produtor-enunciador e o avaliador-
das vezes, a dificuldade em se comprovar que enunciatário, o meio sócio-histórico, e a
determinado conteúdo é, de fato, aceito por um proposta de redação. Os discursos sociais que
número superior de indivíduos em detrimento abarcam o sujeito-produtor por inúmeros
de um número inferior que se opõe a ele. meios, inclusive o midiático, é uma primeira
Acreditamos que há consenso entre os matriz. A segunda refere-se ao diálogo com a
defensores de uma posição, e que há também proposta de redação, o texto-estímulo para a
consenso entre os opositores dela; assim, a produção redacional, em que ele deve extrair
polêmica se estabelece no enunciado e se refere um recorte temático a fim de estipular um
à voz contrária, a fim de acatá-la ou refutá-la. ponto de vista, para validá-lo. A inobservância
Não se pode esquecer o caráter da proposta pode significar a anulação do texto,
avaliatório envolvido na enunciação de todo dentro do processo de avaliação,
discurso argumentativo escolar: o produtor da independentemente dos demais critérios
redação está sendo avaliado justamente por sua avaliatórios. A terceira matriz — talvez a mais
capacidade de debater um determinado tema e relevante entre as conduções dialógicas do
extrair dele um recorte, um ponto de vista, que gênero escolar — refere-se à dialética entre o
deve ser provado por meio de um exercício produtor-avaliado e o examinador. A
argumentativo, que pressupõe inclusive um importância desse diálogo é vital às pretensões
exercício de contra-argumentação, a fim de do produtor, porque o sucesso na obtenção da
contrapor-se aos conceitos opostos. vaga universitária depende da observação de
normas linguísticas associadas à condução de
Pretendemos examinar as categorias um raciocínio lógico convincente.
consensual e polêmica a partir do estudo de
enunciados que ora são compostos para A partir dessas matrizes, procuramos
dirigirem-se à voz consensual ora ao investigar os enunciados que trabalham as
rompimento dessa voz por meio da adoção de vozes do senso comum, seja para acatá-las, seja
recursos linguísticos e discursivos. Postulamos para contradizê-las. Acreditamos que
que essa possibilidade de alternância entre encontramos propriedades em nível discursivo
enunciados consensuais e enunciados e em nível textual atribuídas a determinados
polêmicos serve aos propósitos de cada enunciados, que, apesar da variedade de
exercício argumentativo. Dessa forma, a recursos a serviço da argumentação,
aplicação, ou não, de conceitos consensuais não constituem-se regularmente no texto

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377
argumentativo escolar. Denominamos essas constituem enunciados relativamente estáveis
manifestações propriedades dialógicas, pois caracterizam a redação opinativa escolar um
surgem a partir das relações dialógicas gênero do discurso:
envolvidas nesse gênero, as chamadas matrizes
 Redução Temática. O produtor não
dialógicas.
promove a partir desse recorte outras
O arcabouço sócio-histórico em que se ramificações de sentido, a fim de possibilitar
inserem os gêneros discursivos promove uma exploração mais ampla do ponto de
relações dialógicas que regem a composição vista, e, por conseguinte, possibilitar um
dos gêneros. Especificamente, o gênero debate. Nesse caso, os argumentos são
argumentativo escolar comporta quatro reduzidos a obviedades; tampouco há
principais papéis dialógicos: o sujeito-produtor, contra-argumentação. É um recurso de
o sujeito-avaliador, o meio social e a proposta consenso.
de redação. O enunciador no discurso escolar
 Adoção Parcial de Posicionamento.
põe-se a dialogar com os outros três pilares da
Essa propriedade refuta a exigência típica de
dialética argumentativa. As matrizes dialógicas
textos-estímulos desta tipologia que exigem
são a relação entre o sujeito-produtor e a
uma posição do produtor considerando
proposta de redação, entre o sujeito-produtor e
necessariamente o polo a favor ou o polo
o interlocutor-examinador e entre o sujeito-
contra. Essa adoção parcial de
produtor e as demais vozes sócio-históricas.
posicionamento tem origem na categoria
Surgem, a partir dessas matrizes, estratégias
polêmica, em função do efeito de ruptura.
para o exercício argumentativo.
 Rompimento com a Proposta de
Essas estratégias se estabelecem por
Redação. O sujeito-produtor determina um
meio das propriedades dialógicas que
permeiam o discurso e o texto do gênero recorte temático adverso à exigência do
texto-estímulo; nem a favor nem contra. O
argumentativo escolar. Essas três matrizes
produtor mantém o tema proposto, porém
dialógicas fundamentam as diretrizes retóricas
desconsidera os polos. Trata-se de uma
que visam à validade do ponto de vista
manifestação da categoria polêmica.
recortado a partir do texto-estímulo. A redução
temática, a adoção parcial de um  Paráfrase de Trechos da Proposta
posicionamento, o rompimento com a proposta de Redação. É um recurso no qual o sujeito-
de redação, a polarização, paráfrases de trechos produtor parafraseia trechos do texto-
da proposta de redação, a interrogativa retórica, estímulo a fim de tornar a voz de outrem a
o respeito ao raciocínio lógico hipótese- sua voz; em uma interposição de mesmos
argumentos-tese, as noções de aspecto conteúdos. Embora um recurso que indica
generalizante e os enunciados descritivos e dificuldade de textualização, pode ser um
descritivo-causais manifestam-se no diálogo recurso de argumentação e de contra-
entre o produtor com o outro, com o avaliador e argumentação. Portanto, serve
com o social. indiferentemente ao consenso e à polêmica.
Mais especificamente, esta é a descrição  Condução lógico-argumentativa:
das nove propriedades dialógicas, que se raciocínio hipótese-argumentos-tese. Trata-

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378
se da adoção do padrão hipótese- totalidade, cujo princípio é conduzir
argumentos-tese (introdução, particularidades para um padrão. Remete
desenvolvimento e conclusão), em que se geralmente à categoria consensual.
efetiva uma paragrafação preestabelecida. É
um recurso da categoria consensual, porque
não rompe a compartimentagem de A investigação de enunciados
conceitos em parágrafos específicos. consensuais e polêmicos por meio das
propriedades dialógicas, não nos permitiu —
Polarização. Essa propriedade dentro das limitações traçadas para a pesquisa
ocorre geralmente em enunciados que — uma análise geral de cada redação e entre as
inserem um raciocínio de causa e efeito; redações, pois encontramos que um texto não
neles, o sujeito-produtor omite conceitos pode ser considerado, em sua totalidade,
que justificam a passagem da causa para o predominantemente consensual ou polêmico;
efeito, ou vice-versa. É ocorrência da mas, são os seus segmentos argumentativos que
categoria consensual. detêm essas características. Assim, as
Enunciados Interrogativo- propriedades dialógicas consensuais e
Retóricos. Essa propriedade dialógica é um polêmicas foram estudadas no âmbito de partes
recurso argumentativo que consiste em uma do texto, de enunciados permeados de
tentativa de refutação de um discurso por estratégias argumentativas textuais e
meio de um enunciado interrogativo que traz discursivas.
consigo a resposta à indagação, a fim de não 2. Análise de uma redação
permitir uma contradição pelo interlocutor.
A categoria polêmica geralmente permeia Analisaremos uma redação produzida
essa propriedade. em um processo seletivo para ingresso em uma
instituição de ensino superior privada
Enunciados Argumentativo- localizada no interior do Estado de São Paulo.
Descritivos. Trata-se de um recurso Antes, porém, apresentaremos a proposta de
argumentativo que consiste na exposição de redação que norteou a prova de redação:
características que procuram compor o
cenário real atribuído ao tema da proposta Muito se discute atualmente a
ou ao recorte opinativo. O produtor diminuição da maioridade penal dos atuais
argumenta por meio de constatações, que dezoito anos para dezesseis, devido a
geralmente são lugares-comuns. Trata-se de ocorrências graves envolvendo menores de
enunciados da categoria consensual, porque idade, em que eles são autores de crimes
os enunciados descritivos — incluem-se os bárbaros. Pode-se citar o recente episódio em
narrativos — são mais susceptíveis a São Paulo, no qual um casal de namorados foi
discursos do senso comum do que os morto por menores quando ocupavam uma casa
enunciados temáticos. em uma fazenda. O crime chocou pelos
resquícios de crueldade inimagináveis.
Enunciados de Noção
Generalizante. São enunciados que O assunto é muito polêmico. As pessoas
estabelecem um efeito de sentido de que defendem a responsabilidade pelos atos a

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379
partir dos dezesseis anos argumentam que o amanhã e esse ato foge das prioridades
jovem, nesta idade, já sabe exatamente o que governamentais, pois implica um mundo novo
está cometendo; além disso, a medida seria e solidário, uma justiça cega pela verdade e a
uma forma de conter a escalada da violência. violência destruida pela ternura da paz. / (6)
Aqueles que defendem a manutenção da Uma criança mata por que seu ambiente social
maioridade penal a partir dos dezoito anos e sua desestrutura familiar tem o crime como
justificam, entre outros argumentos, que, além meio de vida já que a vida não encontra outro
de inconstitucional, a proposta é desnecessária, meio. / (7) Mais viável que “algumas alterações
pois bastam algumas alterações no Estatuto da no E.C.A.” seria acabar com as “universidades”
Criança e do Adolescente para que se atinja um do crime organizado sem nenhum escrúpulo
estágio em que se conteriam os atos de que usa a criança e o adolescente como iscas
violência envolvendo menores. indefesas para proteger e livrar o verdadeiro
criminoso e assassino; oferecer meios para a
Escreva sua redação posicionando-se
criança e o adolescente desenvolver-se como
em relação à polêmica. Exponha seu ponto de
pessoa que acredita em si, em seu potencial,
vista e defenda-o.
acabar com o “buraco” ou “janela humana” que
Redação – transcrição (ipsis verbis): se denomina hoje FEBEM porque daí saem os
(1) Sou absolutamente contra a futuros pais com “mestrado” e “doutorado” em
diminuição da maioridade penal, por que crimes e assim mais uma familia infratora... /
acredito que o problema vai além de “algumas (8) Em nosso país, ainda predomina a
alterações no Estatuto da Criança e do sensibilidade latina que deu vida ao E.C.A. que
Adolescente”. / (2) O E.C.A. foi é a única voz de milhares de crianças e
cuidadosamente elaborado, estudado, avaliado adolescentes. / (9) O ciclo vicioso do crime
e graças a Deus, aprovado, após muitas nunca vai se romper porque se houver a
tentativas de sensibilizar as autoridades, ou diminuição da maioridade penal, estaremos
seja, foi-se criada a maioridade penal, em base num futuro não tão longinquo aprovando a
ao direito que a criança e o adolescente e estes, pena-de-morte, o genocídio e tristemente a
como infratores, têm de serem assistidos, extinção da espécie humana. / (10) É muito
acompanhados e amados. / (3) Assistidos em mais fácil começar fazendo “algumas
sua condição de vida, na maioria das vezes, alterações”, hoje no E.C.A., amanhã na nossa
desastrosas sem perspectivas nenhuma de Carta Magna e assim a decadência de nosso
atingir horizontes diferentes do crime, do identidade como pessoa brasileira vai
tráfego, do roubo. / (4) Acompanhar o menor desaparecendo e o que é pior, impune... / (11)
infrator, apelidado e etiquetado como Argumento minha opinião porque acho mais
“marginais” “monstros mirins”, numa atitude simples colocar diante de uma criança ou de
que favoreça o apoio psicológico, moral e adolescente, de repente os mesmos que
fundamentalmente o respeito como pessoa mataram, uma arma e as portas abertas para um
humana, independentemente do que ele tenha horizonte digno, deixando que ela escolha o
cometido ou venha a cometer, porque esses que mais a fará sentir assistida, acompanhada e
menores não são o que fazem... / (5) Proteger e amada.
amar a criança é cuidar a sociedade para o

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380
do genocídio à referida extinção; manifestação
Neste texto, um recurso argumentativo
da categoria consensual.
adotado consiste em refutar o ponto de vista
antagônico e os argumentos em contrário sem Ocorre o respeito ao raciocínio lógico
propriamente mencioná-los de maneira hipótese-argumentos-tese, pois o produtor
explícita na materialidade linguística, mas o insere um primeiro parágrafo, introdutório, em
enunciador mantém o diálogo com a que expõe a hipótese: a favor da redução da
proposição oposta, principalmente por meio da maioridade penal. Após, exerce a
proposta de redação. Inclusive, o produtor argumentação, parágrafo a parágrafo: destaca o
parafraseia uma sentença da proposta de Estatuto como a única proteção para crianças e
redação como citação: “algumas alterações no adolescentes, defende que o contato do menor
Estatuto da Criança e do Adolescente”. Essa com os maiores de idade nas prisões é
construção entre aspas se repete no texto mais prejudicial ao menor, e prevê que alterações na
duas vezes: “mais viável que ‘algumas legislação poderiam representar a abertura de
alterações no E.C.A’ seria acabar com as um precedente que culminaria com a pena de
‘universidades’ do crime organizado” e “É morte e com a extinção da espécie humana. O
muito mais fácil começar fazendo ‘algumas último parágrafo traz a tese: a defesa pela
alterações’, hoje no E.C.A, amanhã na nossa assistência aos menores infratores, em vez de
Carta Magna e assim a decadência de nossa punições. O respeito ao modelo é uma
identidade”. Dessa forma, a categoria manifestação da categoria consensual, em
consensual é manifestada pela adoção parcial função de se tratar de um método
de um posicionamento; principal efeito causado preestabelecido, a despeito da segurança que
para o interpretante pela arquitetura ele propicia ao produtor.
argumentativa. Além disso, há paráfrase de O texto apresenta enunciados
trecho da proposta de redação. A adoção argumentativo-descritivos. O segmento
parcial é manifestação da categoria polêmica, descritivo mais relevante refere-se à menção
em função da fuga da polaridade que o texto- que o produtor promove em relação ao ECA:
estímulo exige. Excepcionalmente, nesse caso, “O E.C.A. foi cuidadosamente elaborado,
a paráfrase é uma propriedade polêmica, pois o estudado, avaliado e graças a Deus, aprovado,
produtor a utilizou para adotar o recorte após muitas tentativas de sensibilizar as
polêmico. autoridades, ou seja, foi-se criada a maioridade
Além da paráfrase de trechos da penal, em base ao direito que a criança e o
proposta de redação, podemos observar a adolescente e estes, como infratores, têm de
aplicação de outros recursos. A polarização é serem assistidos, acompanhados e amados”.
revelada principalmente na seguinte sequencia: Observamos também um enunciado descritivo-
“O ciclo vicioso do crime nunca vai se romper causal: “Uma criança mata por que seu
porque se houver a diminuição da maioridade ambiente social e sua desestrutura familiar tem
penal, estaremos num futuro não tão longínquo o crime como meio de vida já que a vida não
aprovando a pena-de-morte, o genocídio e encontra outro meio”. Tais enunciados
tristemente a extinção da espécie humana”. O manifestam a categoria consensual, porque eles
produtor não explica os estágios que levariam são constituídos para a aplicação da seguinte

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381
estratégia: a descrição de características de um professor da área de Comunicação e Expressão
cenário cumpre a função de um enunciado para uma reflexão sobre as estratégias
propriamente temático, pois a caracterização do argumentativas desse gênero; principalmente,
cenário dispensa um conceito; como se o fato no que diz respeito à aplicação dos conceitos
falasse por si só. do senso comum e, por conseguinte, o
posicionamento contrário a eles. Entender as
O texto conta com enunciados de
coerções (propriedades dialógicas) que advêm
aspectos generalizante, típicos da categoria
das relações dialógicas pode justificar muitas
consensual. Os argumentos não apresentam um
ocorrências, que, à primeira vista, poderiam ser
avesso a refutar; consequentemente as orações
interpretadas como uma improbidade.
não trazem conectivos gramaticais, bem como
há excesso de parágrafos, por conta da ausência Acreditamos que esta pesquisa
de subordinações. Os conceitos são postos possibilita a orientação, ou ao menos a
como definitivos: os “infratores têm de serem discussão, de novas metodologias para o ensino
assistidos, acompanhados e amados” (a locução de produção de texto, e para uma reformulação
tem de ser expressa uma necessidade), nos critérios de avaliação desses textos;
“proteger e amar a criança é cuidar a sociedade principalmente quanto a esta habilidade: o
para o amanhã” (noção formalizada), “esses necessário debate de conceitos, a fim de que o
menores não são o que fazem”, “esse ato aprendiz possa produzir uma argumentação
[assistencial] foge das prioridades com base em uma fundamentação crítica, que
governamentais”, “Uma criança mata por que seja capaz de condicioná-lo a não aceitar um
seu ambiente social e sua desestrutura familiar conceito posto como consensual sem polemizá-
tem o crime como meio de vida já que a vida lo. Polêmica pressupõe manter o senso comum,
não encontra outro meio”, “O ciclo vicioso do ou, se necessário, contradizê-lo, sempre após
crime nunca vai se romper porque se houver a um exercício de contraposição de uma ideia.
diminuição da maioridade penal, estaremos Talvez possa ser esta metodologia um segundo
num futuro não tão longinquo aprovando a passo após o estabelecimento do principal
pena-de-morte, o genocídio e tristemente a compromisso das aulas de Língua Portuguesa
extinção da espécie humana”. Notamos a nas escolas de ensino fundamental e ensino
generalização sugerida pelo circunstancial médio: o domínio da modalidade escrita da
nunca. língua.
As propriedades interrogativa retórica, Uma metodologia nesses moldes não
rompimento com a proposta de redação e permite normas estruturais tão rígidas para a
redução temática não participam da construção organização do raciocínio argumentativo; é
argumentativa do texto. preciso que haja o exercício crítico das ideias, a
partir das habilidades de leitura. A motivação
3. Considerações Finais
centrada na não aceitação de um conceito, sem
Embora esta pesquisa não tenha a que ele sofra contraposições, é condição para
pretensão de formular uma metodologia para o que esse exercício crítico fundamente as
ensino de redação escolar, entendemos que ela estratégias de ensino. Afinal, o objetivo dessa
possa levar a subsídios que auxiliem o prática pedagógica não pode ser somente

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382
avaliatório; é preciso priorizar a formação de
JAPIASSÚ, H.; MARCONDES, D. Dicionário
cidadão engajado em seu meio social, que
básico de filosofia. 3.ed. Rio de Janeiro: Jorge
procurará não se deixar convencer por
Zahar Ed., 1996.
conceitos inconclusos ou ideologicamente
corrompidos. MARCHEZAN, R. M. F. C. Diálogo. In:
BRAIT, Beth. (Org.) Bakhtin: outros conceitos-
Situar o aprendiz como um sujeito
chave. São Paulo: Contexto, 2006, p.115-131.
produtor crítico, participante no seu universo
social, político e econômico, é uma habilidade PERELMAN, C.; OLBRECHTS-TYTECA, L.
plenamente satisfatória, e complementar ao Tratado da argumentação: a nova retórica. São
principal compromisso da escola: promover Paulo: Martins Fontes, 1996.
uma competência linguístico-discursiva da RANCIÈRE, J. As novas razões da mentira.
modalidade escrita da língua materna. Folha de S. Paulo, São Paulo, 22 ago. 2004.
Caderno Mais!, p.3.
Referências
AUTHIER-REVUZ, J. Hétérogénéité montrée
et hétérogénéité constitutive: élements pour une
approche de l'autre dans le discours. DRLAV –
Revue de Linguistique, [S.I.], n. 26, p.91-151,
1982.
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal.
4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
___________. Marxismo e filosofia da
linguagem. 11.ed. São Paulo: Hucitec, 2004.
___________. Problemas da poética de
Dostoievski. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense-
Universitária, 1997.
CHARAUDEAU, P.; MAINGUENEAU, D.
Dicionário de análise do discurso. São Paulo:
Contexto, 2004.
EMEDIATO, W. A fórmula do texto: redação,
argumentação e leitura. São Paulo: Geração
Editorial, 2005.
FIORIN, J. L. Introdução ao pensamento de
Bakhtin. São Paulo: Ática, 2006.
GREIMAS, A. J.; COURTÉS, J. Dicionário de
semiótica. 9.ed. São Paulo: Cultrix, 1989.

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383
OS DEBATES ELEITORAIS NO DISCURSO POLÍTICO DA
AMÉRICA LATINA: UM ESTUDO SOBRE AS IDENTIDADES E
DIFERENÇAS DE ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS NAS ELEIÇÕES
PRESIDENCIAIS DO BRASIL E DA COLÔMBIA

Mónica GUERRERO GARAY


Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
moniggaray2009@hotmail.com

Resumo: Considerando a fundamental importância da linguagem na política e


compartilhando da crença de que a Análise do Discurso consiste num campo de saber
particularmente produtivo para a descrição e a interpretação dos efeitos de sentido dos
usos da língua em determinadas condições históricas, entre as quais o contexto político
eleitoral e as distintas ideologias que ele compreende. Este artigo apresenta algumas
concepções teóricas, que estão sendo trabalhadas no desenvolvimento da pesquisa: “Os
debates eleitorais no discurso político da América latina: Um estudo sobre as identidades
e diferenças de estratégias discursivas nas eleições presidenciais do Brasil e da
Colômbia”. Para assim depreender as ideologias que se materializam nas formações
discursivas ali em jogo e os recursos linguísticos, enunciativos e textuais que os
candidatos empregam para formular o que é dito nos debates transmitidos pela televisão.
Palavras-chave: Análise do Discurso, Discurso político, Estratégias discursivas, Brasil,
Colômbia.

Introdução
predomínio midiático que resulta da
A comunicação política moderna nasce
espetacularização da política. Segundo Rubim,
no final do século XVIII, quando nos países
(2001) “equivocadamente muitos críticos da
europeus se reivindicou o direito de acesso à
espetacularização midiática da política, diz que
informação sobre assuntos políticos. A
a mídia, e, em especial a televisão, “... esteja
participação foi limitada aos cidadãos que
agora desnaturalizando uma época de ouro em
possuíam um nível relativamente alto de
que a política se inclinava para o melhor
educação e ajudavam a sustentar o Estado,
argumento e representava de modo transparente
pagando impostos.
os interesses gerais da sociedade”. Sendo
Nas ultimas décadas, a sociedade assim, poderia se considerar a mídia como a
contemporânea permite que haja um responsável pela idealização politica dos

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384
candidatos presidenciais, que pode ser divulgação que eram impensáveis há 30 anos
permeada a través das campanhas eleitorais. (FERRAZ, p. 46. 2010).
1. As campanhas eleitorais na construção do Evidentemente, não existem
discurso. candidaturas que não tenham uma filiação a um
tipo de discurso, ou seja, nenhum candidato
A campanha eleitoral pode ser definida
concorre a uma eleição sem que pertença a
como um conjunto de atividades
algum “ideal”, bem como à forma de transmiti-
organizacionais e de comunicação de campanha
lo. No entanto, além desses aspectos, existem
por candidatos e partidos que visam captar
outras funções essenciais a um discurso que
votos. Os candidatos políticos são aqueles que
acontece durante as eleições. Segundo Roman
se dispõem a realizar objetivos sociais, sendo
Jakobson (1984) estas funções são: a) a função
uma espécie de porta-voz do povo a fim de
referencial: nesse tipo de discurso o emissor
assegurar os direitos dos cidadãos
(locutor) centra a sua mensagem de forma
(PIOVEZANI, p. 16-17 2009). Estas
predominante sobre o referente (objeto). Esses
atividades estão sujeitas a regras e diretrizes
discursos são caracterizados pela objetividade,
que permitam concorrentes iguais, a equidade e
neutralidade e imparcialidade; b) a função
a transparência do processo eleitoral e da
persuasiva ou argumentativa: trata-se de um
neutralidade do governo. Em muitos países,
tipo de discurso no qual o emissor procura
essas atividades são financiadas direta ou
influenciar, seduzir, convencer ou comandar o
indiretamente por fundos públicos. A
receptor, provocando nele uma reação. Um
campanha tem dois aspectos básicos: a
exemplo desde tipo de discurso é a propaganda
campanha política tradicional e a campanha
e o debate político.
política através de outros meios.
Uma das funções do discurso na
No primeiro caso, a campanha política
campanha política é fornecer para os eleitores
tradicional se manifesta um contato próximo e
informações sintéticas a respeito das possíveis
direto entre candidatos e eleitores Portanto, o
políticas públicas a serem adotadas em caso de
seu impacto é reduzido. No segundo caso, a
vitória eleitoral. O candidato, para fazer visível
questão das mensagens políticas, utilizado
seu programa político, ganha destaque de
pelos meios (jornais e propagandas eleitorais)
maneira mais rápida por meio da fluidez e da
permite a recepção de milhares de eleitores, de
velocidade da informação. Sendo assim, um
modo que a comunicação é impessoal, mas
bom discurso pode levar à vitória ou não, mas
com maior impacto. Nos últimos anos o eleitor
certamente fazem diferença as estratégias
presenciou uma verdadeira revolução no modo
discursivas utilizadas. A via das estratégias no
de se fazer uma campanha eleitoral, e isso não
discurso é de importância fulcral como
ocorreram apenas em razão das novas
auxiliadora no aumento do interesse por parte
tendências políticas do século XXI, mas,
dos eleitores na participação política, por isso
sobretudo porque as transformações
sua importância como objeto de pesquisa.
tecnológicas encabeçaram novas formas de
ação no fazer político. A tecnologia 2. Algumas conceições do discurso como
disponibiliza hoje para os candidatos meios de “efeito de sentido” na configuração de
ideologias.

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385
Haja vista o que foi discutido, um dos Além disso, Pêcheux faz uma grande
elementos mais efetivos para a realização contribuição aos estudos linguísticos ao
política são as estratégias discursivas, as quais desenvolver a ideia de que a linguagem é uma
são utilizadas por políticos e agentes sociais na importante forma material da ideologia. Na sua
construção do discurso político. No jogo de análise do discurso, ele procura demonstrar os
fazer conhecer e levar a crer são empregadas embates ideológicos que ocorrem no
retóricas de grande importância nas campanhas funcionamento da linguagem e a existência da
políticas (GARCÍA-TALAVERA, 2008). materialidade linguística na ideologia.
Para o desenvolvimento desta pesquisa Nesse contexto, desde a teoria de
sobre as identidades e diferenças das estratégias Pêcheux a linguagem não pode ser
discursivas, que fazem conhecer e levam a crer, compreendida como um sistema significativo
entre as eleições do Brasil e da Colômbia no fechado, sem relação com o exterior, devendo
pleito de 2010, apoiamo-nos no conhecimento ser compreendida a partir do contexto
teórico e metodológico da Análise do Discurso histórico-ideológico dos sujeitos que a
de linha francesa, surgida no final da década de produzem e que a interpretam.
60 na França com Michel Pêcheux e seu grupo, É nesse sentido que a análise das
tendo por principal interesse o discurso estratégias discursivas entre as eleições do
político. Portanto, são aos princípios e Brasil e da Colômbia no pleito de 2010,
procedimentos da Análise do Discurso que compreende a relação entre língua e ideologia,
recorremos. sendo “o discurso a materialidade específica da
Desse modo, compreendemos, assim ideologia e a língua a materialidade específica
como Pêcheux (2010 [1969]), o discurso como do discurso” (ORLANDI, 2012, p. 214).
efeito de sentidos entre interlocutores, ou seja, Também nos parece produtivo para nossa
no discurso há relação entre o simbólico e o análise o conceito de formações discursivas que
político, sendo o discurso pensado não como Pêcheux (2009 [1975], p. 147) define como:
uma simples transmissão de informação entre
sujeitos, mas como efeito de sentidos entre [...] aquilo que, numa formação ideológica
sujeitos que, mesmo sem saber, ocupam lugares dada, isto é, a partir de uma posição dada
determinados no sistema de (re)produção numa conjuntura dada, determinada pelo
estado de luta de classes, determina o que
discursiva. Todo discurso sempre existe a partir
pode e deve ser dito (articulado sob a
de condições de produção que devem ser forma de uma arenga, de um sermão, de um
levadas em conta para compreendermos os panfleto, de uma exposição, de um
efeitos de sentido de um dado discurso, “Com programa, etc.). Isso equivale a afirmar que
efeito, o laço que une as “significações” de um as palavras, expressões, proposições, etc.,
texto às suas condições sócio-históricas não é recebem seu sentido da formação
meramente secundário, mas constitutivo das discursiva na qual são produzidas [...] as
próprias significações (PÊCHEUX; formações discursivas representam “na
HAROCHE; HENRY, 2007, p. 20; grifo dos linguagem” as formações ideológicas que
autores). lhes são correspondentes. (grifo do autor).

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386
dizeres passam pelo crivo da ordem do
Assim, as palavras possuem sentidos
discurso dentro da qual emergem os sentidos
segundo a formação discursiva dentro da qual
produzidos de acordo com suas condições de
se encontra, em outros termos as palavras não
emergência e, ao mesmo tempo, reflete
possuem sentido em si mesmas, mas em
discursivamente o poder do qual são investidos
relação à pertença ideológica, que por sua vez,
ou desinvestidos certos dizeres.
tem intenção de produzir determinados efeitos
de sentidos. 3. O Brasil e a Colômbia nos debates
políticos.
O livro a Arqueologia do Saber, Michel
Foucault, se aproxima à concepção de discurso A política é um tema que gera polêmica
baseado no análises das formações discursivas, na Colômbia, pois se centra na luta de uma
“(...) discurso: conjunto de enunciados que se guerra civil1 de mais de 60 anos, onde a
apoia em um mesmo sistema de formação” corrupção e a violação dos direitos dos
(Foucault, 2000,p 122). cidadãos causaram um desequilíbrio interno no
país. Atualmente, na Colômbia há diferentes
O conceito de enunciado trabalhado por
partidos políticos, desde os mais tradicionais
Foucault é entendido como unidade elementar
como o Partido Liberal e o Partido
do discurso e definido como indispensável para
Conservador, até os últimos da política
que se possa dizer uma frase, proposição, ato
contemporânea Centro Democrático, Partido
de linguagem. (...) ele não é, em si mesmo, mas
Cambio Radical, Polo Democrático
sim uma função que cruza um domínio de
Alternativo, Movimiento Independiente de
estruturas e de unidades possíveis e que faz
Renovación Absoluta e mais especificamente
com que apareçam, com conteúdos concretos,
os partidos de nosso interesse nesta pesquisa o
no tempo e no espaço. (1986, p.98-99).
Partido Verde e Partido de la Unidad Nacional
Foucault, em seu livro A ordem do que procuram um maior reconhecimento por
discurso, traz considerações fundamentais para meio do discurso político. Os problemas que
os estudos do discurso: envolvem a pobreza, a saúde, a educação e o
conflito armado são os tópicos mais
[...] Suponho que em toda sociedade a mencionados nesses discursos. O domínio
produção do discurso é ao mesmo tempo político é liderado pelo Partido de la Unidad
controlada, selecionada, organizada e
Nacional (Partido da U), de direita, com sua
redistribuída por certo número de
procedimentos que tem por função conjurar
política de Seguridade Democrática2, uma
seus poderes e perigos, dominar seu
1
acontecimento aleatório, esquivar sua A Guerra Civil de 1860-1862 foi um conflito que opôs
pesada e temível materialidade o governo conservador de Mariano Ospina Rodríguez e
(FOUCAULT, 2010, p. 49). do Partido Liberal que apoiou o federalismo, originada
pelas reformas levadas a cabo pelos conservadores e do
presidente.
2
A partir dessa compreensão de discurso, Seguridade Democrática é uma política governamental
entende-se que há uma regulação dos dizeres na do ex-presidente Álvaro Uribe Vélez, que propõe um
sociedade, ou seja, não é qualquer um que diz papel mais ativo da sociedade colombiana dentro da luta
do estado e de seus órgãos de seguridade frente à ameaça
qualquer coisa e em qualquer lugar, todos os de grupos insurgentes e outros grupos armados.

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387
posição ideológica e política com mais de 12 dirigiram a seus eleitores através dos debates
anos de operação. O atual líder do Partido é o presidenciais.
presidente Juan Manuel Santos. (CONGRESO Tomemos como exemplo os seguintes
VISIBLE, 2013). pronunciamentos dados pelos candidatos,
Por seu turno, a história da República convidando ao voto eleitoral e de maneira
Brasileira foi marcada por inúmeros golpes de breve seu respetivo analise discursivo.
Estado e pela instabilidade política, cenário que
parece ter mudado no início do século XXI. A Mockus: “Mantener la seguridad
Ditadura Militar foi um dos períodos mais democrática del Presidente Uribe pero
también la justicia en cada municipio, la
repressivos da história do Brasil. Inúmeros
gente con acceso a la justicia entonces
grupos políticos foram cassados e seus
señores Colombianos e señoras, personas
membros torturados. O que diferenciou o de todas las edades estoy listo si me
período foi a sistematização da repressão escogen a servir a Colombia”. Candidato
estatal aliada ao incentivo e ao Partido Verde. Debate Presidencial RCN,
desenvolvimento econômico. A ditadura existiu 17 junho de 2010.
até 1985, quando as pressões populares por
abertura política tomaram as ruas do país,
principalmente na campanha das “Diretas Já’. Dilma: “Peço humildemente o voto de
Mesmo com milhares de pessoas nas ruas, a cada um dos brasileiros e brasileiras, eu
me comprometo a criar um pais cheio de
reforma do Estado foi feita de forma “lenta e
oportunidades para todos, um pais em qui
gradual” (CODATO, 2013). A Nova República milhões de brasileiros e brasileiras terão
brasileira iniciou-se em 1985 com o governo de aceso”.Candidata Partido do Trabalhador.
José Sarney e permanece até os dias atuais com Debate Presidencial Globo, 29 de outubro
o segundo mandato da presidente Dilma do 2010.
Rousseff.
As eleições presidenciais de 2010 Analisando o discurso anterior de cada
aconteceram no dia 20 de junho na Colômbia e um dos candidatos, trazendo em consideração
participaram como candidatos mais expressivos seus fatores ideológicos (Dilma, de centro-
Antanas Mockus Sivickas, do partido político esquerda; Mockus, de esquerda) observam-se
Verde e Juan Manuel Santos, do partido semelhanças na fala da candidata presidente
político Union Nacional. No Brasil, as Dilma com o candidato Mockus no momento
eleições presidenciais ocorreram no dia 31 de em que na sua eloquência fazem um chamado
outubro e nessas eleições participaram como de maneira cordial no enunciado “señores
candidatos mais expressivos Dilma Rousseff, colombianos e señoras” e no entanto
do Partido dos Trabalhadores (PT) e José Serra, dramática “peço humildemente” com vistas a
do Partido Social da Democracia Brasileira produzir efeitos de sedução e persuasão nos
(PSDB). seus eleitores. O movimento das mãos se
realiza de maneira frequente nos candidatos
No entanto os candidatos presidenciais
evocando o poder de convencimento.
Dilma e Serra e pela Colômbia Santos e
Mockus, chegaram no segundo turno e se

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388
gol” o que remete a uma proximidade verbal
Em quanto os candidatos (Serra, de com o eleitor.
centro-direita / Santos, de direita; se mostram a
continuação seus pronunciamentos: 4. Considerações finais
Em síntese, as estratégias discursivas
Santos: “Estamos convocando un
determinam o dizer do candidato a partir de
gobierno de la Unidad Nacional, un
suas diferentes filiações ideológicas, que se
gobierno de unidad nacional para el
trabajo, trabajo, trabajo y más trabajo y determinam no seu discurso político, a través
yo aspiro que los colombianos nos apoyen do qual gera efeitos de sentidos no interlocutor
en ese gran gobierno de unidad nacional ou leitor, como se evidenciou nas breves
por eso quiero invitarlos a que le metamos eloquências dos candidatos do Brasil e da
un gol al abstencionismo”. Candidato Colômbia.
Presidencial Partido Union Nacional.
Por outro lado os debates presidenciais
Debate Presidencial RCN, 17 junho de
2010. constituem o cenário da fala pública, onde não
só existe a disputa pela fala, mais o cenário se
converte em um espaço de persuasão e
Serra: “Eu queria pedir aqui o seu voto, convencimento que é utilizado pelo candidato
queria pedir seu voto, se você já voto em na procura de sua eleição como representante
mim então eu queria pedir que consegue- máximo do povo. Como é evidente nos
se ah ah um voto mais o que ofereço é exemplos anteriores, onde os candidatos
minha vida, minha biografia. Eu venho de presidenciais fazem uso de diferentes
família modesta eu chegue onde chegue
estratégias discursivas para obter a confiança
com muito orgulho graças ao ensino
público ”.Candidato Presidencial Partido do eleitor.
Social da Democracia Brasileira. Debate
Presidencial Globo, 29 de outubro do 2010.
Referências
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passagens em negrito fazendo referência a política da transição brasileira: Da ditadura
construção do sujeito politico produzindo militar à democracia. Disponível em:
efeitos de relações de identificação quando se <http://www.scielo.br/pdf/rsocp/n25/31113.pdf
desloca na posição de brasileiro modesto. >. Acesso em: 27 out. 2013.
Note-se o uso repetido da palavra CONGRESO VISIBLE (Org.). Partido Social
“trabajo” no pronunciamento do candidato de Unidad Nacional: Seguridad Democrática
Santos o que evoca uma fixação da palavra como Política de Estado Disponível em:
com o partido político “Union Nacional” que <http://www.congresovisible.org/partidos/perfi
determinam a produção de efeitos de l/partido-social-de-unidad-nacional partido-de-
autoridade, laboriosidade e convencimento, la-u/5/>. Acesso em: 10 out. 2013.
além é notável o uso de palavras populares na DILMA ROUSSEFF (Org.). Dilma Rousseff
fala do povo colombiano como “metamos un (Propostas, Convicções e Memórias).
Disponível em:

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

389
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seff.htm>. Acesso em: 27 out. 2013.
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390
RITOS GENÉTICOS EDITORIAIS EM FANDOMS: A
MEDIAÇÃO DAS BETA-READERS
Amanda GUIMARÃES; Luciana Salazar SALGADO
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
amanda.guimaraes@live.co.uk

Resumo. Este artigo visa apresentar, de forma sucinta, a análise feita sobre o
funcionamento discursivo da mediação editorial dentro da cultura de fãs, mais
especificamente por meio das fanfics, fanfic writers e beta-readers, tema da pesquisa de
iniciação científica financiada pela FAPESP ainda em desenvolvimento.

Introdução paratopia criadora aplicados ao material cedido


por Vague_Shadows, de modo a contribuir para
Aqui, discorreremos brevemente sobre a sistematização de categorias nos estudos
alguns dos pontos principais analisados durante linguístico-discursivos das fanfics, ao
o projeto de iniciação científica que se encontra identificar os aspectos do fandom que
em fase de desenvolvimento, financiado pela influenciam a escrita das fanfics e, assim,
FAPESP, cujo corpus foi, de forma mais verificar quanto da autoria se pode atribuir
abrangente, a cultura de fãs e os fandoms – tecnicamente à fanfic writer (a autora das
comunidades de fãs com interesses similares fanfics), à beta-reader (a sua editora/revisora) e
que interagem e participam de atividades de fãs ao texto-fonte, considerando as três instâncias
por meio de discussões ou trabalhos criativos, apontadas por Maingueneau como constitutivas
como as fanfics –, mais especificamente fanfics da paratopia criadora (a saber, pessoa, inscritor
(ficções escritas por fãs) cedidas pela autora e escritor), que se entrelaçam em um nó
Vague_Shadows, autora esta que escreve para o borromeano, indiciando implicações
site Archive of Our Own, pertencente à recíprocas.
Organization for Transformative Works, uma
organização feita de fãs para fãs a fim de Neste artigo, especificamente,
preservar a história dos fandoms e apoiar focaremos na mediação das beta-readers em si,
qualquer tipo de trabalho feito pelos mesmos. em como isso acontece na prática, em quais
espaços se dá, quais são algumas das
Mobilizando os desdobramentos dificuldades do processo, mobilizando
recentes propostos por Dominique principalmente os conceitos de “fiador” e
Maingueneau (2006, 2008, 2010), na pesquisa “inscritor”, introduzidos por Maingueneau.
analisamos a questão da criação e da autoria no
“mundo dos fãs”, mobilizando os conceitos de
discurso constituinte, ritos genéticos e

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391
comparação entre o texto original, as
1. Abordagem teórica e metodológica interferências dos beta-readers e o produto final
que foi publicado: um estudo de caso da
O corpus dessa pesquisa se constituiu mediação editorial que legitima esse universo
de, nesta pesquisa, refletir sobre o lugar de criação.
discursivo instável do autor no mundo das
fanfics e no que implica o seu lugar social a 2. Análises e discussão
partir de conceitos do quadro da análise do
discurso de tradição francesa. Tais conceitos Deve-se considerar, primeiramente, que
são fundamentalmente os de discurso nem toda mediação se dá da mesma forma; não
constituinte (MAINGUENEAU, 2006), há uma fórmula pronta para que a mediação
paratopia criadora (MAINGUENEAU, 2006) seja feita. No mundo das fanfics, todo processo
e ritos genéticos editoriais (SALGADO, 2011). está diretamente ligado a como a beta-reader e
A partir deles, mobilizamos reflexões a autora se relacionam como pessoas: elas são
correlatas, como a do estatuto da autoria. amigas, conhecidas ou se conheceram apenas
por meio da fanfic? Têm afinidades dentro do
Como objeto de estudo são focalizados fandom? Quais afinidades? Outros fandoms em
como dados fanfics do site Archive of Our Own comum além do fandom da fanfic que está
(AO3), um site da Organization for sendo betada? São um grupo ou trabalham
Transformative Works (OTW), uma sozinhas? Trabalham sozinhas dentro de um
organização sem fins lucrativos criada em 2007 grupo? O que é o foco da mediação: gramática,
por fãs para fãs, com a finalidade de preservar e conteúdo, ambos?
dar acesso à história dos fanworks e da cultura
de fã. O AO3 abriga mais de 14.000 fandoms e, Pois bem. Vague_Shadows têm uma
mesmo ainda estando em sua fase beta, já beta-reader por, além de ter alguém para revisar
possui mais de 1.000.000 de trabalhos, entre seu trabalho, ter, na beta-reader alguém que,
fanfics, fanarts, fanvids e podfics. A grande apesar de ser uma leitora de seu trabalho, faça
maioria de seus trabalhos é produzida em um trabalho de coxia; alguém que literalmente
língua inglesa, portanto os dados mobilizados faça o papel da versão beta de algo e teste a
aqui são textos em inglês. história antes que ela vá a público, sugerindo
mudanças, adições ao plot, cliffhangers (coisa
As definições dos elementos que pela qual a série de fanfics é conhecida,
caracterizam a cultura de fã estão fortemente inclusive), cortes de cena, enfim; melhorias em
embasadas no fanlore, um site também geral que nem sempre tem a ver com correções.
pertencente à OTW, destinado a documentar a Ela diz:
categorização desse universo de produção. O
material autoral cedido para análise pertence à
Minha atual beta, Pippa, me ajuda a
autora que atende pelo nickname de
revisar, mas mais do que tudo ela garante
Vague_Shadows no AO3, e faz parte do que eu não me adiante no plot. Eu ainda
fandom do seriado "Teen Wolf". Foi possível, a dirijo as coisas, em grande parte, mas
partir do material fornecido, fazer a quando eu corro, ela me encoraja a

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392
desacelerar, a colocar mais descrições, a
explicar mais claramente as motivações por Vague_Shadows descreveu, ali, parte de
trás de certo ator. O que digo é que ela tem seus ritos genéticos editoriais: ela fala sobre
um ponto de vista melhor do que o meu
seus processos não-escriturais em conjunto,
porque eu uso meus "óculos de autora"
todo o tempo; eu sei em minha cabeça relativos à preparação desses textos que mais
como a história funciona, e às vezes eu tarde virão a ser publicados. O resultado desse
pulo ou deixo detalhes sem querer porque processo eleva seu trabalho aos olhos do
eu não estou olhando para isto como uma público leitor, devolvendo à autora a dedicação
pessoa de fora. Ela também olha a que ela coloca em suas histórias; e isso não
gramática e a ortografia, é claro, mas eu seria possível sem a figura da beta-reader, que é
disse a ela que eu prefiro que ela me ajude quem avaliza essa dedicação, fazendo com que
a focar no plot e nas personagens e em ter a fanfic ganhe cada vez mais pregnância dentro
certeza de que estamos alcançando o tom e do fandom (junto a outros motivos importantes,
o plot que nos propusemos a alcançar. E
como a postagem regular e a manutenção ou
então, às vezes é tão simples quanto eu
finalização da história: leitores tendem a
mandar uma mensagem que diz "Eu acho
que isso precisa de outra coisa" ou "Eu não montar uma fanbase mais fiel a boas fanfics
tenho certeza que gosto dessa versão" e ela que não são abandonadas sem finalização; a
me fará questões sobre o que eu escrevi fanfic pode ser bem escrita, mas se não há a
para me ajudar a explorar e expandir a manutenção da relação beta/autora > fandom, a
cena. (Mensagem enviada em 6 jan.2015, fanbase não se mantém).
de arebutvagueshadows@gmail.com para
Para que os leitores saibam que existe
amanda.guimaraes@live.co.uk. Tradução
nossa)1 uma beta-reader por trás da mediação editorial
da fanfic, algumas medidas têm de ser tomadas:
muitas vezes, a autora projeta seus
agradecimentos nas notas antes ou depois das
1
fanfics (cf. Projeto, p. 5). No caso
My current beta, Pippa, helps me proofread, but more
than anything she makes sure that I don't run away with
deVague_Shadows, a todo novo capítulo ela
myself on the plot. I still largely steer things, but when escreve agradecimentos, muitas vezes (mas não
I'm speeding through, she encourages me to slow down, sempre) específicos à aquela parte da história.
to put in more descriptions, to more clearly explain the Outros autores podem apenas comentar no
motivations behind certain actor. We say that she's got a primeiro ou último capítulo das fanfics. Na
better vantage point than me because I have my "Author
glasses" on all the time; I know in my head how the story
figura 1, temos alguns exemplos disso.
works, and sometimes I skip over or leave out details Todas as notas são referentes a
without meaning to because I'm not looking at it as
capítulos diferentes e beta-readers diferentes,
someone from the outside. She also looks for grammar
and spelling of course, but I've told her I'd rather her help sempre feitas ao final de ditos capítulos. Como
me focus on the plot and the characters and making sure dito anteriormente, esse reconhecimento é
we've achieving the tone and plot we set out to. And extremamente importante não só para a beta-
then sometimes it's as basic as me shooting a message reader, que recebe o crédito por seu trabalho,
that says "I think this needs something else" or "I'm not
mas também para a autora, que acaba
sure I like this version" and she'll ask questions about
what I've written to help me explore and expand the conferindo a si mesma uma imagem de
scene. seriedade e comprometimento com a história e

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393
com os fãs, nesse acordo tácito onde ela pode
desenvolver uma história que pouco tem a ver Esse descrédito com o qual toda essa
com o texto-fonte, mas ainda assim ser aceita comunidade tem que lidar torna, então, a
pelo fandom como parte de si, e ser apreciada validação por meio da apreciação crucial e,
em grande escala pelos fãs. como já dito, a beta-reader tem um papel
essencial nisso; esse pequeno passo em direção
Essa apreciação vai além da vaidade.
a uma profissionalização dentro da comunidade
Os fandoms fazem parte de uma cultura
discursiva mostra ao mundo fora do fandom
marginal; não são bem vistos na sociedade em
que tudo o que se produz ali não faz parte de
geral. No meio geek, que agora está na moda?
nenhuma brincadeira. É claro; a maioria das
Tudo bem, aí os fandoms fazem parte de sua
fanfic writers não se considera profissional, de
base. Mas na sociedade em geral, e por muito
forma alguma; ao menos no início, mas o
tempo, nem os geeks nem as fangirls foram
conteúdo ali produzido para a apreciação do
bem vistos, nunca. Henry Jenkins explica:
fandom não pode ser produzido com descuido,
exatamente pelo fato de o mundo em geral não
"(...) um homem se casou na Disney usando tratar o texto-fonte com o respeito e o cuidado
um uniforme da Federação [dos Planetas que os fãs creem que ele merece. Para um fã,
Unidos] e sua noiva "Trekkie" usou (o que trabalhar com o texto-fonte é pisar em solo
mais), orelhas Vulcanas de borracha. Tais sagrado, e fazê-lo descuidadamente é cometer o
detalhes, ainda que corretos, são seletivos, maior dos sacrilégios. É um pecado mortal.
oferecendo uma imagem distorcida de sua
comunidade, moldando a realidade de sua No cenário brasileiro, é aí que nascem
cultura para se encaixar nos estereótipos já as ripagens. O termo vem do inglês “RIP – rest
postos pelos escritores e leitores da in peace”, ou descanse em paz. Essas práticas
Newsweek. O texto e as imagens tiram sua lidam com fanfics ruins, ou “mal escritas” de
credibilidade de fatos aparentemente forma violenta, esboçando uma edição pública
'naturais' oferecidos por fotografias e e cruel de fanfics que possuem muitos erros
citações, ainda, na realidade, tendo um gramaticais, escrita inconsistente ou falhas de
papel importante ajustando tais 'fatos' em plot imperdoáveis. É uma prática que
uma 'mitologia' maior sobre identidade de despedaça, dilacera fanfics não-betadas de
fãs (Barthes, 1973)." (JENKINS, 2013, p.
maneira absolutamente não construtiva.
11, tradução nossa)2
Esse tipo de discurso de ódio é
2
(...) one man was married in Disneyland wearing a
geralmente rechaçado no cenário internacional,
Federation uniform and his “Trekkie” bride wore (what onde a cultura do no-hate é muito mais forte;
else), rubber Vulcan ears. Such details, while no doubt no cenário internacional, se prega que críticas
accurate, are selective, offering a distorted picture of precisam ser feitas com carinho e cuidado, de
their community, shaping the reality of its culture to modo a não desencorajar novas escritoras, mas
conform to stereotypes already held by Newsweek’s
writers and readers. The text and captions draw their
fazê-las melhorar para que elas possam
credibility from the seemingly “natural” facts offered by produzir para o fandom, com o fandom e
the photographs and quotes, yet actually play an dentro do fandom. Para isso, se oferecem
important role fitting those “facts” into a larger “serviços” de betagem; auxílio conforme o
“mythology” about fannish identity (Barthes, 1973).

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394
procurado por meio de posts no tumblr,
3. Considerações finais
comentários em fanfics de outras pessoas que
já tem betas, notas em suas próprias fanfics
perguntando aos leitores se eles conhecem O mundo e a cultura de fãs são um
alguma beta ou sugestões dos próprios leitores, universo vasto, e de muitas formas
indicando betas ou se oferecendo para o inexplorados pela maioria das pessoas,
serviço. principalmente no meio acadêmico; o
funcionamento social e discursivo dessas
Betas não precisam ter experiência
comunidades pode ser muito distinto entre si,
prévia; podem ou não escrever suas fanfics e
mas algo é certo em qualquer fandom: por mais
podem ou não ter uma formação no “mundo
que em escassez, haverá a produção de fanfics
real” relacionada à mediação editorial. O único
e outros tipos de fanworks.
pré-requisito real para que se faça a betagem é
a paixão compartilhada pelo fandom, pelo ship Portanto, plataformas como o Archive
ou pelo personagem principal, e um senso de of Our Own e organizações como a
desafio que instigue a autora, como Organization for Transformative Works são tão
Vague_Shadows diz que suas betas o fazem, importantes nessa comunidade; elas permitem
criando inputs, resolvendo situações ou que esses trabalhos se arquivem, se reproduzam
levantando questões que a autora jamais teria e se difundam, fortalecendo e incentivando a
visto sozinha, como seus “óculos de autora”. produção literária por pessoas que talvez, sem
isso, nunca se interessassem em produzir
conteúdos em geral.

No caso das fanfics, especificamente, a


partir do incentivo da produção literária, a
presença das beta-readers se faz mais
2.1 Figuras necessária do que nunca, de modo a reafirmar e
solidificar a obra possíveis autoras que
compartilham generosamente seus conteúdos
Figura 1. AO3 - Notas com o resto da fanbase.

Referências
HELLEKSON, Karen; BUSSE, Kristina. Fan
fiction and fan communities in the age of the
Internet: New essays. North Carolina:
McFarland & Company, 2006b.
JENKINS, Henry. Textual Poachers:
Television fans and participatory culture. New
York: Routledge, 2013.

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395
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culture and popular media. New York:
Routledge. 1992.
MAINGUENEAU, Dominique. Cenas da
enunciação. Organização de Sírio Possenti e
Maria Cecília Perez de Souza-e-Silva. São
Paulo: Parábola, 2008.
_______ . Discurso literário. Tradução de
Adail Sobral. São Paulo: Contexto, 2006.
_______ . Doze conceitos em análise do
discurso. Organização de Sírio Possenti, Maria
Cecília Perez de Souza-e-Silva; Tradução Adail
Sobral... [et al.] São Paulo: Parábola, 2010.
_______ . Gênese dos discursos. Tradução de
Sírio Possenti. São Paulo: Parábola, 2008. 184
p.
SALGADO, Luciana Salazar. Ritos genéticos
editoriais: autoria e textualização. Prefácio de
Sírio Possenti. São Paulo: Annablume; Fapesp.
2011. 1ª edição.
ORGANIZATION FOR TRANSFORMATIVE
WORKS. Archive of our own. Diponível em:
<http://archiveofourown.org/> Acesso em: 20
set. 2015
VAGUE_SHADOWS. Desolate. Disponível
em: <
http://archiveofourown.org/series/48562>
Acesso em: 20 set. 2015
_______. vagueshadows. Disponível em: <
http://vagueshadows.tumblr.com/> Acesso em
20 set. 2015

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396
A LINGUÍSTICA TEXTUAL SOB A PERSPECTIVA
BAKHTINIANA

Lícia Maria Bahia HEINE


Universidade Federal da Bahia (UFBA)
liciaheine@uol.com.br

Resumo: Este artigo objetiva transcender algumas das críticas feitas à Linguística
Textual, considerando que, apesar das revisões em função de suas diferentes fases, há
limitações que devem ser discutidas. Essas reflexões ganham força no final do século XX,
quando o texto passa a ter como lastro a referenciação (MONDADA, 1995), o que lhe
imprimiu uma base sociocognitivista. Contudo, observa-se ainda um apego ao código
linguístico, haja vista não se encontrar, em suas análises, menção aos signos não verbais.
Sugere-se, então, a Fase Bakhtiniana, para a qual o texto é um evento dialógico
linguístico-semiótico (HEINE, 2012), o que refuta a dicotomia entre o verbal e o não
verbal, refletindo sobre a possibilidade de a coesão e coerência ocorrerem também
através de signos icônicos, revestidos de sentidos, marcados ideologicamente.
Palavras-chave: fase bakhtiniana; ideologia; signos icônicos; texto.

imanência do sistema linguístico? Na verdade,


Introdução
criticavam a tese da autonomia linguística,
A Linguística de Texto (LT) surgiu, na defendida pela visão formalista, que diz respeito
década de 60 do século XX, na Alemanha, em à independência semântica do texto escrito
um momento em que o paradigma formal da formal, restringindo, pois, a significação aos
linguagem, vigente naquela época, deixava de constituintes de uma sentença e os neófitos da
responder, adequadamente, a vários problemas, LT questionavam o fato de a ciência da
que foram gradativamente se instaurando por linguística ter como objeto de estudo a langue,
uma plêiade de diferentes pesquisadores. Dentre como postulava Saussure, ou a competência
essas questões, ilustram-se: os pragmaticistas linguística, de Chomsky, arguindo que a
questionavam por que Saussure se debruçou às linguística devia voltar-se para o estudo do
estruturas linguísticas, excluindo, destarte, o texto como seu objeto de investigação
indivíduo dos estudos linguísticos; os linguística, sem ter como foco a identificação de
pesquisadores da Análise de Discurso, em seu morfemas e fonemas, a partir de um corpus
sentido geral, bem como os da Pragmática limitado.
perguntavam: Por que o sentido provém da

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397
indiretamente, pelo movimento da semântica
Apesar de não ter tido um
gerativa e pela investigação psicolinguística de
desenvolvimento homogêneo, pelo fato de ter
Eleanor Rosch (1978,apudRosch; Mervis
surgido em vários países, apresentando,
1975), a LT já caminhava para uma abordagem
consequentemente, diversas tendências para o
sociocognitiva, conforme se observa no excerto
tratamento do texto, há um senso comum em
textual a seguir:
apresentar três momentos, que caracterizam as
pesquisas da LT, a saber: a Análise texto passa a ser considerado resultado
Transfrástica (também denominada de processos mentais: é a abordagem
interfrástica), a Construção de Gramáticas e as procedural, segundo a qual os
Teorias do Texto. parceiros da comunicação possuem
saberes acumulados quanto aos diversos
Contudo, no final do século XX e nos
tipos de atividades da vida social,
primórdios do século XXI, observam-se sinais têm conhecimentos representados na
pontuais de que a LT estaria caminhando para memória que necessitam ser ativados para
novos momentos — a perspectiva que sua atividade seja coroada de sucesso
sociocognitivo-interacionista de Koch (2004, p. (KOCH, 2004, p. 21).
31-32), já consolidada no seio das pesquisas da
LT, e a fase bakhtiniana, que vem sendo
Enfoque esse que endossa o
proposta por Heine, de forma sistemática desde
processamento textual, segundo Heinemann e
(2009). Mas as pegadas que sustentam essa
Viehweger (1991 apud KOCH, 2004, p. 21),
caminhada da LT ligam-se às reflexões do
que envolve quatro grandes sistemas de
filósofo Bakhtin (2003), solidificando-se mais
conhecimento: o linguístico (conhecimentos
ainda em Barros (2007, p. 21), que, desde
gramatical e lexical), o enciclopédico
1994, vem buscando pontuar as contribuições
(compreende as informações armazenadas na
de Bakhtin em relação ao texto e/ou discurso,
memória de cada indivíduo, o sociointeracional
pesquisa que impele a rever os precursores
(conhecimento sobre as ações verbais, isto é,
stricto sensu da LT, incluindo, ao lado dos
sobre as formas de inter-ação através da
retóricos, da estilística, da Escola de Praga e
linguagem) e por último, o conhecimento ligado
dos formalistas russos, a obra de Bakhtin, na
aos modelos textuais globais (possibilita
sua abordagem semiótico-discursiva.
reconhecer textos enquanto gênero ou tipo
1.Desenvolvimento do artigo textual). Contudo, apesar de sua importância
A Fase Bakhtiniana (HEINE, 2009) da inquestionável na ciência textual, o caráter
LT começou a apresentar os seus primeiros sociocognitivo-interacionista, de um modo
embriões na transição entre os séculos XX e geral, deixa espaço para novas reflexões no que
XXI, em especial no Brasil, quando Heine tange ao sujeito, ao texto e aos processos de
(2001) sugere, na sua tese de doutoramento, coerência e coesão, cujas análises prendem-se,
uma nova classificação da anáfora que, em especial na questão coesiva, à superfície
finalmente, ampliava incisivamente a clássica textual, ou seja, apesar dos caminhos dados
concepção de Halliday e Hasan (1976). Nessa pela LT, a mesma continua presa ao código
transição, impulsionada, direta ou linguístico. Essas reflexões pautam-se nos

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398
postulados bakhtinianos que, embora a Por outras palavras, a análise linguística não se
literatura vigente da LT tenha incorporado atém aos elementos linguísticos enquanto
algumas das concepções bakhtinianas, as suas código, mas se volta também aos fatores
pesquisas parecem não apresentar implicações semióticos, aos aspectos sócio-históricos e
resultantes das ideias do referido filósofo que, ideológicos que envolvem as diversas
direta ou indiretamente, vêm imprimindo uma linguagens no seio social. Segundo Bakhtin
ressignificação substantiva nos seus pilares (1997, p. 124), “[...] a comunicação verbal é
básicos, a ponto de dar respaldo teórico para o sempre acompanhada por atos sociais de caráter
surgimento de um novo momento. não verbal (gestos do trabalho, atos simbólicos
de um ritual, cerimônias, etc.), dos quais ela é
A fase bakhtiniana, apesar de concordar
muitas vezes apenas o complemento,
com as diversas as acepções de texto que o
desempenhando um papel meramente auxiliar.
concebem enquanto processo, sugere um outro
A partir do lastro bakhtiniano, chegou-se ao
conceito, considerando questões feitas pelos
seguinte conceito:
alunos, em geral professores da rede estadual da
Bahia de cursos de especialização, oferecidos Considera-se o texto como evento dialógico,
pela Universidade Federal da Bahia, entre 2009 e linguístico-semiótico, falado, escrito,
2013. Dentre as perguntas costumeiras, abarcando, pois, não somente o signo
destacam-se: verbal, mas também os demais signos no
seio social (imagens, sinais, gestos, meneios
- Professora, é correto, nas histórias em da cabeça, elementos pictóricos, gráficos
quadrinhos, eu considerar texto apenas o etc). Assim compreendido, apresenta-se
código verbal? constituído de duas camadas que se
- Professora, o texto se refere apenas à imbricam mutuamente: a camada
linguagem escrita? linguístico-formal, que consiste dos
- Professora, a interpretação do texto deve princípios morfofonológicos, sintáticos,
se limitar ao código linguístico? semânticos e semióticos; e a camada
histórico-ideológica, caracterizada pelo
Para responder a essas questões, foi processamento de sentidos inferenciais e
preciso recorrer, sobretudo, ao apoio teórico efetivada a partir de diferentes estratégias
bakhtiniano que, dentre as suas diferentes (conhecimentos de mundo, conhecimentos
acepções, concebe a linguagem como atividade partilhados, intencionais, conhecimentos
ideológicos, dentre outros) que vão alicerçar
dialógica, eminentemente social, oriunda das
a construção desses sentidos. (HEINE,
efetivas práticas discursivas.
2012)
O filósofo russo introduziu, portanto, a
situacionalidade de todo o fenômeno Para melhor explicar o referido conceito
linguístico, seja literário ou conversacional, de texto, recorre-se à metáfora do
mostrando precisamente que ela só existe caleidoscópio. Esse último é um aparelho
socialmente, referindo-se à linguagem óptico, constituído por um tubo de metal, com
semiótica, o que vai possibilitar o diálogo com vidros coloridos e espelhos inclinados. Quando
outras linguagens, no seu sentido lato sensu. a luz exterior incide sobre ele, a mesma reflete

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399
nos espelhos inclinados, o que faz com que, a tese de que ele se processa apenas a partir do
cada movimento, sejam visualizadas diferentes contexto imediato (o lugar, os participantes e a
imagens coloridas, mostrando que há uma relação que estabelecem entre si) e sobremodo
profusão de possibilidades de se ver diversos da intenção do falante, excluindo a
desenhos no jogo de cores e espelhos. (HEINE, historicidade. É pertinente registrar que a LT
2014, et al.) não mais postula o sujeito pragmático de linha
dura, mas um sujeito social, tal como se
(1)
observa em Marcuschi:

[...] Não somos mais sujeitos cartesianos


monolíticos, integrais e indivisíveis, que
persistem à margem do corpo e deles
desgarram como alma que volta para a
divindade. Não se nega a individualidade
nem a responsabilidade pessoal,mas se
afirma que as formas enunciativas e as
possibilidades enunciativas não emanam de
um indivíduo isolado e sim de um individuo
numa sociedade e no contexto de uma
instituição. (MARCUSCHI, 2008, p. 67).

Koch (2004, p. 32-33) assevera também


(HEINE et al, 2014)
que, na concepção interacional (dialógica) da
A figura anterior procura representar os língua, os sujeitos são vistos como
diversos sentidos de um texto, isto é, as atores/construtores sociais, ativos. É o
diferentes possibilidades de compreendê-lo que, momento sociocognitivista interacionista, que
à semelhança de um caleidoscópio, quando a não mais contempla, dentre outros, o referido
luz exterior incide sobre ele, processa uma sujeito pragmático. Entretanto, ao endossar o
profusão de diferentes imagens. É importante conhecimento sociointeracional de Heinemann e
que não se compreenda essa imagem de forma Viehweger (apud KOCH, 2004), que tem como
fragmentada, considerando-a, por exemplo, um dos seus elementos constitutivos o
apenas uma das suas partes. Ao contrário disso, conhecimento ilocucional, Koch deixa o leitor
o que se propõe é asseverar que o texto é meio confuso, uma vez que o referido
composto, no mínimo, da imbricação de todos conhecimento é detentor do sujeito pragmático
esses fenômenos explicitados no caleidoscópio de linha dura, embora Koch deixe a sua posição
ilustrado, sendo os mesmos inseparáveis uns clara a respeito do sujeito social.
dos outros.
Diferentemente do sujeito pragmático, o
Como se pode observar a partir do sujeito dialógico é ideológico e só se constrói
caleidoscópio, a LT hodierna não mais se atém na inter-relação com o outro, tendo uma
aos aspectos pragmáticos ortodoxos, que consciência eminentemente social; por isso, não
buscam a construção do sentido, defendendo a detém o traço individual, nem o de um ser livre,

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400
justamente por construir-se através do outro, apenas a parte verbal escrita, sem observarem
sem tomar posição unilateral. Contudo, ao que as partes verbal e não verbal se completam,
apresentar a sua concepção de enunciado, formando um todo de sentido, denominado
Bakhtin (2003, p. 261) faz menção ao traço texto. Esse hiato pode indicar que o alicerce
individual. Essa posição de Bakhtin pelo ato teórico subjacente a esses livros concebem o
individual pode conduzir a interpretações texto nos moldes formais, isto é, texto enquanto
distorcidas, a exemplo de se asseverar que ele código linguístico, apenas.
considera o sujeito individual. Faraco (2009, p. Quanto à última pergunta em que o
86-87) esclarece que essa menção refere-se, professor questiona se a interpretação do texto
indubitavelmente, à singularidade do ser deve se limitar ao código linguístico,a LT e
humano, ao “afirmar que cada ser humano outras linhas de pesquisa de cunho discursivo
ocupa um lugar único e insubstituível, na consideram que todo texto possui uma gama de
medida em que cada um responde às suas possibilidades de sentidos, sendo, pois, o
condições objetivas de modo diferente de código linguístico opaco e não transparente
qualquer outro” (FARACO, 2009, p. 86). semanticamente, ou seja, o sentido não está
Para o referido filósofo russo, a nele, visto que “[...] a interpretação de um
ideologia provém das diferentes esferas sociais enunciado não pode levar em consideração
(a religião, a arte, a moral, a ciência, a ética, a apenas a informação linguística”
filosofia etc.), e do signo – entidade linguístico- (CHAREAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004,
semiótica que, por si só, expressa sempre uma p. 394). No diz respeito ao dialogismo, o
posição avaliativa, pois não há enunciado sentido é processado entre o contexto imediato
neutro; a própria retórica da neutralidade é e o entorno sócio-histórico a partir de um
também uma posição axiológica. Na tradição, a enunciado concreto munido de ideologia. Dessa
ideologia aponta para o social, excluindo o forma, o texto é tentacular, voltando-se para
individual, como é o caso da Análise de enunciados precedentes e consequentes
Discurso Peucheutiana; mas para Bakhtin, a historicamente, configurando a tese bakhtiniana
ideologia permite que o social, o histórico e o de o enunciado ser uma correia de elos
individual se entrelacem mutuamente, históricos da sociedade. (BAKHTIN, 2003)
ressaltando, contudo, a preponderância dos dois A Fase Bakhtiniana, embora reconheça
primeiros sobre o terceiro mas com nuances os avanços da LT em relação aos processos de
intencionais no processo discursivo, o que coesão e coerência, considerando em especial
configura a sua face individual. Marcuschi (2001), Heine (2001) e o trabalho de
Parece ser possível asseverar que esse Apothéloz (1995), concorda com as reflexões
sucinto enfoque teórico responde às questões de Costa (2000) a seguir ilustradas:
feitas pelos docentes do curso de
especialização. No que tange às primeiras Há [...] revisões que mantêm em grande
questões, na tradição, consoante Heine, Cristo, parte o conceito e os critérios de delimitação
Neiva e Alvarez (2014), os livros didáticos do texto presentes em Halliday e Hasan
(1976): mantêm a superfície textual como
compreendem o texto, quando constituído de
objeto de análise e procuram reformular o
linguagem verbal e linguagem não verbal,
conceito de coesão e complementá-lo com

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401
outros de natureza igualmente formal. Essa
tendência está presente nos trabalhos de
não verbais atuarem como âncora textual ou
Koch, Fávero, Beaugrande e Dressler [...] como objetos de discurso, referentes
(COSTA, 2000). processados não somente a partir da camada
linguístico-formal, mas também da camada
histórico-ideológica, que envolve, em especial,
Heine (2008-2015), pautada,
o conhecimento de mundo do interlocutor
sobremodo, no seu conceito de texto “como
(HEINE, 2011), construídos a partir da
evento dialógico, linguístico-semiótico”, já
interação discursiva.
vinha refletindo sobre essa questão desde 2008,
concordando, pois, com Costa (2000) sobre a De modo sucinto, faz-se menção à
referida crítica de que a LT possui um certo noção de coerência, entendida como a
apego ao texto enquanto código linguístico, compreensão de um texto, Na tradição, Koch
apesar dos seus avanços, no Brasil, (2006, p. 194) ressalta que “a coerência [...]
promovidos por Koch (2002, 2006, 2009), não está apenas no texto, nem tampouco apenas
Marcuschi (2001), e na Europa, por Kleiber, no autor ou nos leitores, mas na interação
Schnedecker e Ujma (1991), Kleiber, Mondada, autor-texto-leitor”. Heine (2011), embora
Dubois (1995), dentre outros. concorde com Koch (2006), pondera,
reconhece e registra que a noção de texto
Segundo Costa (2000), em geral, esses
presente na tríade anteriormente citada deixa,
linguistas procuram ampliar o leque dos
nas entrelinhas, uma concepção de texto
recursos de coesão, estabelecendo, de modo
enquanto cotexto, justamente por dar a ideia de
claro, a distinção entre a coesão referencial e a
segmentação dos referidos elementos. Essa
coesão sequencial, mas se limitam à superfície
tríade pode derivar a interpretação de que o
textual, o que os aproxima de Halliday e Hasan
texto é código linguístico e a ele se somam
(1976), para os quais a coesão textual limita-se
autor e leitor, o que caracteriza a manutenção
ao processo de decodificação. Assim pautados,
uma concepção de texto sob a perspectiva
excluem, incisivamente, por exemplo, os signos
formalista que excluía o sujeito no
icônicos, elementos constitutivos do texto, do
processamento textual. Heine sugere que a
processo de referenciação, que podem atuar, ao
coerência textual seja processada, tendo por
lado dos signos verbais, como âncoras textuais,
base, sobremaneira, os elementos constitutivos
anáforas e catáforas etc.
do caleidoscópio, pois permitem gerar sentidos
Essas reflexões são preciosas porque diferentes, a depender do ângulo de visão do
encorajam Heine ainda mais ao sustento de uma sujeito do discurso. Por exemplo, caso o leitor
nova fase da LT, aqui denominada se atenha ao contexto imediato (local, situação,
provisoriamente de Fase Bakhtiniana. suporte textual, a materialidade linguística, a
Alicerçada nesses princípios, a coesão, na Fase relação entre os interlocutores do discurso
Bakhtiniana, finalmente, passa a considerar os etc.), ter-se-á uma leitura que “apenas repete ou
elementos semióticos no processo de copia o que está dito no texto. Permanecer
referenciação, tendo como argumento a neste nível de leitura é agir como se o texto só
concepção de texto enquanto evento tivesse informações objetivas inscritas de modo
linguístico-semiótico, o que possibilita a transparente” (MARCUSCHI, 2003), mas caso
ocorrência de elementos verbais e elementos

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402
o leitor considere a camada linguístico-formal e pesquisa qualitativa, que tem como corpus
a camada histórico-ideológica imbricadas entre charges e tirinhas, extraídas da internet.
si, ter-se-á uma leitura:
3. Análises e discussão
[...] que considera as atividades inferenciais Seguindo os critérios definidos na
no processo de compreensão, isto é, as metodologia, será ilustrado apenas um exemplo
atividades de geração de sentidos pela para análise a fim de aplicar algumas das ideias,
reunião de várias informações do próprio consoante a Fase da Linguística Textual sob a
texto, ou pela introdução de informações e Perspectiva Bakhtiniana. É necessário registrar
conhecimentos pessoais ou outros não que se pretende pôr em foco questões
contidos no texto. É uma leitura do que vai
discutidas na tradição, a exemplo da concepção
nas entrelinhas; não se limita à paráfrase
nem fica reduzida à repetição. Este
de texto e dos processos de coesão e coerência,
horizonte representado pelas inferências pautando-se nos objetivos deste trabalho. Veja-
constitui o horizonte máximo da produção se a charge a seguir:
de sentido. (MARCUSCHI, 2003) (1)

Como já se mencionou anteriormente, o


texto, comparado a um caleidoscópio, pode
trazer à tona toda essa gama de sentidos e
leituras.
2. Abordagem teórica e metodológica
Pretende-se, nesta seção, apresentar os
procedimentos e critérios que vão nortear e que
já estão norteando a pesquisa em pauta, cujo
objetivo geral é a instauração de um novo
momento para a LT, denominado
provisoriamente de Fase Bakhtiniana, que traz
novos olhares, como a transcendência ao apego
ao código linguístico e a sugestão de uma nova
acepção de texto, lustram-se, a seguir, alguns Disponível em:
dos seus objetivos específicos: ampliar a https://amarildocharge.wordpress.com>. Acesso em:
concepção de referenciação a partir de 08 ago. 2015.
elementos semióticos; analisar a ocorrência de Na charge em foco, o processo de
elementos anafóricos e catafóricos por meio de referenciação se efetiva, tendo, sobretudo,
signos icônicos e por fim deixar claro que os como alicerce teórico a concepção de texto
aspectos sócio-históricos de cunho enquanto “evento dialógico, linguístico-
eminentemente axiológicos representam semiótico, falado, escrito, abarcando, pois, não
elementos constitutivos de qualquer texto, não somente o signo verbal, mas também os demais
sendo possível considerá-los uma espécie de signos no seio social (imagens, sinais, gestos,
dados que se somam do texto. Trata-se de uma meneios da cabeça, elementos pictóricos,

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403
gráficos etc)” (HEINE, 2012). Nessa do formalismo linguístico, sobretudo no que se
concepção, tenta-se eliminar a dicotomia refere ao tratamento do texto em sala de aula,
cotextoversus contexto, respectivamente o instigando os nossos colegas à busca de
contexto linguístico stricto sensu, e o contexto posicionamentos críticos que possam suprir, na
extralinguístico pragmático, haja vista a referida medida do possível, o ensino caótico que ainda
concepção de texto envolver, no mínimo, os perdura no nosso país, em especial nas escolas
elementos do caleidoscópio na sua totalidade. A públicas.
tese da tríade autor-texto-leitor pode trazer a
ideia de segmentação, apesar de Koch (2006)
não ter defendido essa tese, justamente pelo seu Referências
olhar sociocognitivista. Um dado a ser APOTHÉLOZ, D. Rôleetfonctionnement de
ressaltado é que o processo de coesão e l’anaphoredans la dynamiquetextuelle.
coerência se efetiva também a partir de signos Genève, Tese de Doutorado. Facultédeslettres
icônicos, que se imbricam com os signos de l’Université de Neuchâtel, 1995.
verbais, munidos de valores axiológicos. Por
exemplo, na charge em análise, a expressão, BAKHTIN, M. (VOLOCHINOV). Marxismo e
“Acho que a carga já está como prazo de filosofia da linguagem. 8. ed. Tradução de
validade vencida”, tem como lastro referencial Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São
a carga do caminhão, que contém a “Dilma”, Paulo: EdituraHucitec, 1997.
em situação de deteriorização. Portanto, não BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 4.
é possível excluir esses signos icônicos do ed. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo:
processo de referenciação, visto que eles podem Martins Fontes, 2003.
ocorrer seja como elementos anafóricos ou
BARROS, D. L. P de. Contribuições de
catafóricos, ou ainda como lastro referencial.
Bakhtin às teorias do texto e do discurso. In:
4. Considerações finais FARACO, C. A. et al. Diálogos com Bakhtin.
Em conclusão, não se pode deixar de 4. ed.Curitiba: UFPR, 2007.
ressaltar a importância singular dessas lacunas BEAUGRANDE, R. de.Newfoundations for a
que foram focalizadas neste artigo, porque elas science of text and discourse:cognition,
podem contribuir com o crescimento científico communication and freedom of access to
da Linguística Textual, aliás, as lacunas, em knowledge and society. Norwood, New Jersey:
qualquer área de pesquisa, promovem Ablex Publishing Corporation, 1997.
indubitavelmente avanços que trazem em seu
BENTES, A. C. Linguística textual. In:
bojo informações essenciais à busca de novas
MUSSALIM, F.; BENTES, A. C. (org.).
reflexões a favor do homem, enquanto
Introdução à lingüística: domínios e fronteiras.
inquiridor. O olhar para os signos icônicos, por
v. 1. São Paulo: Cortez, 2001. p. 101-142.
exemplo, demonstra avanços substantivos na
questão dos processos anafóricos e catafóricos, CHARAUDEAU, P.; MAINGUENEAU, D.
enfim na construção da tessitura textual de um Dicionário de análise do discurso. Tradução de
modo geral. Com essa pesquisa, almeja-se Fabiana Komesu. São Paulo: Contexto, 2004.
escrever um livro, que possa romper os muros

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404
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406
MULHERES NOS ANOS DOURADOS: REPRESENTAÇÕES
DISCURSIVAS DAS MULHERES, A PARTIR DO CORPO E DO
TRABALHO, NA REVISTA JORNAL DAS MOÇAS, DA DÉCADA
DE 50

Palmira Virgínia Bahia HEINE


Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS)
pavibheine@gmail.com

Resumo: O referido artigo objetiva, a partir da análise de reportagens que circularam


na década de 50 na Revista feminina Jornal das Moças, analisar o processo de
construção discursiva da feminilidade, a partir da disciplinarização do corpo e da re
lação das mulheres com o mercado de trabalho na época. Tendo como base a Análise de
discurso pecheutiana, que trabalha com a opacidade da língua, e recorrendo brevemente
a conceitos de Foucualt, pretende-se debater o fato de que os sentidos sobre a mulher e
feminilidade são moldados a partir de do funcionamento ideológico que normaliza os
sentidos sobre o feminino, colocando a mulher em condição de natural fragilidade e,
consequente submissão/desigualdade em relação ao homem.
Palavras-chave: corpo, mulher, trabalho, análise de discurso.

funcionamento da ideologia na constituição do


Introdução
sujeito mulher, com base na docilização do seu
O referido artigo objetiva, a partir da corpo, a partir da obediência a padrões que a
análise de reportagens que circularam na década faziam ser uma mulher “bela” ou uma “mulher
de 50 na Revista feminina Jornal das Moças, feminina” ou ainda não masculinizada pelo
analisar o processo de construção discursiva da trabalho fora de casa. Para procederemos à
feminilidade, a partir da docilização e análise, utilizaremos a Análise de Discurso de
disciplinarização do corpo feminino e da relação vertente francesa, com foco em Pecheux (1997)
da mulher com o trabalho na época. para mostrarmos como a feminiliddade é
A década de 50 do século XX foi um discursivizada, recorrendo, esporadicamente
período em que houve grande desenvolvimento também a algumas idéias de Foucault (1987)
econômico no Brasil, sendo um momento em sobre a disciplinarização dos corpos no
que as mulheres se inseriam ainda timidamente processo de constituição dos sujeitos.
no mercado de trabalho. No entanto, apesar De onde falamos?
dessa inserção, era claro o modo de

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407
Discurso materialista. Longe de ser um
Surgida na década de sessenta do século
acréscimo à teoria linguística como se fosse
XX, a Análise de Discurso de linha francesa,
possível unir língua de um lado e contexto do
mais precisamente a vertente pecheutiana,
outro, a Ad pecheutiana representa uma
pretendeu colocar para a linguística questões
mudança de terreno, ou seja, a instauração de
das quais ela tentava se esquivar, dentre elas, a
um novo espaço teórico que vai fazer convergir
questão do sentido e da historicidade como
língua, história e ideologia. Pêcheux redefine
base para a compreensão da linguagem, além de
algumas ideias saussurianas, redefine a noção
trazer à tona noções relativas ao sujeito e a
marxista de ideologia e retoma a noção de
ideologia.
inconsciente para criar um novo lugar, um lugar
Como as teorias linguísticas na época de entremeio.
não davam conta d e refletir sobre a questão do
Da teoria linguística, Pecheux (1997)
sujeito e do sentido, era necessário construir um
bebe na fonte estruturalista, recortando da
dispositivo teórico/analítico que pudesse
mesma a teoria Saussuriana, buscando ampliá-
contribuir para uma "mudança de terreno" que
la, a partir do questionamento da ideia de
fizesse “intervir conceitos exteriores à região da
homogeneidade e autonomia completas da
linguística atual”. (PÊCHEUX, 1997, p. 73).
língua proposta por Saussure. Pêcheux
Ao se constituir a partir do final da década de
reconhece que a língua é um sistema, dotado de
60, a AD materialista redefine noções
regras próprias, mas, pautando-se, sobretudo,
postuladas por Saussure e pelo materialismo,
na teoria do valor postulada pelo mestre
trazendo à tona a ideia de que o próprio sistema
genebriano, afirma que o próprio sistema
linguístico é constituído pela falha e equívoco,
linguístico não é completamente autônomo, e
costurando a intrínseca relação entre língua e
que a questão do sentido não se resolve levando
exterioridade.
em conta apenas as regras de combinação e
A instituição da Análise de Discurso oposição entre os signos presentes no próprio
(AD) na França se constitui como um sistema. Ao contrário: o sistema linguístico é,
entremeio, envolvendo três diferentes regiões ele mesmo, sujeito ao equívoco, uma vez que o
do conhecimento, quais sejam: o materialismo sentido das palavras pode sempre ser outro,
histórico, como a teoria das formações sociais e sempre desliza, sendo sempre marcado pela
suas transformações, compreendida aí a teoria metáfora. Daí a afirmação pecheutiana de que a
das ideologias; a linguística, como teoria dos língua "constitui o lugar material onde se
mecanismos sintáticos e dos processos de realizam os efeitos de sentidos" (Pêcheux,
enunciação ao mesmo tempo, e também a teoria Fuchs, 1997, p.172). Os sentidos são gerados a
do discurso, como teoria da determinação dos partir do modo como os sujeitos são
processos históricos. Além disso, alia alguns interpelados pela ideologia, pressupondo, assim,
princípios da psicanálise, principalmente a uma relação entre a língua e seu exterior.
noção de inconsciente, que será uma das bases Assim, a língua é o veículo no qual se
para a constituição do sujeito. materializam os efeitos ideológicos, é a partir
A noção de entremeio é extremamente dela que os sujeitos se constituem como tais,
importante quando se pensa em Análise de interpelados pela ideologia.

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408
ocupe determinado lugar na estrutura social,
Da teoria das ideologias, Pêcheux se
lugar este que é refletido no discurso. Não
debruça, inicialmente, sobre as ideias de
existe discurso sem ideologia, pois não há uma
Althusser, quando o referido teórica fala dos
relação direta entre realidade e linguagem, esta
Aparelhos ideológicos do Estado, concebendo a
última é opaca e marcada por fatores de ordem
ideologia como um elemento que se materializa
ideológica. É a ideologia que constitui os
na língua, sendo mola mestra na constituição
elementos do discurso. Não existe sujeito fora
dos sujeitos e dos sentidos. O autor se debruça
da ideologia, pois, para se constituir como tal, é
sobre o materialismo histórico, retomando a
preciso ser desde sempre interpelado, desde
noção de superestrutura ideológica. Ele não
sempre constituído por ela.
concebe a ideologia como simples conjunto de
ideias, mas afirma que esta tem uma Sendo assim, a língua, compreendida à
"materialidade específica", e que tal luz da discursividade não é um simples sistema
materialidade está relacionada à materialidade formal, mas é, ao contrário disso, marcada de
econômica; É a ideologia que faz com que o modo inexorável pela exterioridade que a
sujeito, sem se dar conta disso, possa ocupar constitui. Quando o sujeito enuncia, está em
um determinado lugar na esfera dos grupos jogo uma gama de sentidos que não são
sociais vigentes. originados nele, mas que são construídos
historicamente, derivados do já-dito. A
Da psicanálise, a partir de uma releitura
atividade discursiva pressupõe uma relação que
de Lacan, problematiza a noção de sujeito
não tem, de direito, início, uma vez que os
como constituído pelo inconsciente, deslocando
enunciados se ligam sempre a enunciados
a ideia cartesiana que concebia o sujeito como
anteriores, eles estão sempre em relação com o
marcado pela consciência total. O inconsciente
"já-la", com o pré-construído.
constitui o sujeito que não pode mais ser visto
como sujeito onipotente, do "penso logo O discurso sempre se conjuga a partir
existo", mas deve ser visto como marcado por do já-dito, sendo constituído a partir do
vozes e discursos sociais que estão interdiscurso, que funciona como a base, o pano
armazenados no inconsciente. O sujeito não se de fundo do processo discursivo, ou seja do que
dá conta que está sendo marcado pelo se chama de intradiscurso: o nível da
inconsciente e acredita que é a origem do dizer. formulação, o fio do discurso. Por interdiscurso
Pêcheux e Fuchs, desse modo, afirmam que a se entende o conjunto do todo complexo com
interpelação do indivíduo em sujeito se dá:(...) dominante (Pêcheux, 2009) de formações
de tal modo que cada um seja conduzido, sem se dar discursivas, ou seja, o conjunto de tudo o que já
conta, e tendo a impressão de estar exercendo sua foi dito e esquecido que constitui a base da
livre vontade, a ocupar o seu lugar em uma ou outra atividade discursiva. Assim, é possível afirmar
das duas classes sociais antagonistas do modo de que as formações discursivas derivam do
produção (PECHEUX e FUCHS, 1997, p. 166). interdiscurso e são dele dependentes, o que
O funcionamento da ideologia ocorre a permite a compreensão da ideia pecheutiana
partir do interpelar do sujeito, ou seja, a partir que todo discurso se conjuga a partir de um já-
do assujeitamento desse sujeito à língua e da dito.
interpelação do mesmo, fazendo com que ele Nas palavras de Pêcheux:

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409
ressignificar, resistir a esses já-ditos, colocando-
o processo discursivo não tem, de direito, se no jogo polissêmico da linguagem.
início: o discurso se conjuga sempre sobre
um discurso prévio, ao qual ele atribui o Todo discurso é ideológico, porque não
papel de matéria-prima, e o orador sabe que há discurso sem sujeito e não há sujeito sem
quando evoca tal acontecimento, que já foi ideologia. Então, é possível afirmar que os
objeto de discurso, ressuscita no espírito dos gêneros jornalísticos, dentre eles as
ouvintes o discurso no qual este reportagens, veiculam ideologias diversas,
acontecimento era alegado, com as funcionando como grandes instrumentos de
deformações que a situação presente difusão ideológica que têm como função
introduz e da qual pode tirar proveito.” "naturalizar" os sentidos e também
(PÊCHEUX,1997, p.77) homogeneizar as diferenças sociais,
pretendendo difundir a ideia de homogeneidade
Buscando afirmar o fato de que as e naturalidade das relações sociais.
estruturas linguísticas não podem ser vistas Algumas ideias de Foucualt (1987)
isoladamente como propunham as teorias também serão de interesse nesse artigo,
formais, Pêcheux mostra a importância de se principalmente as que dizem respeito aos
colocar em relação a língua com o que ele processos de docilização e disciplinarização dos
chamou de condições de produção. Assim, o corpos. A partir da dsiciplinarização, o sujeito
referido autor mostra que um mesmo fica submetido a formas de controle do corpo,
enunciado, palavra ou frase, pode ter seu sendo tais formas ligadas a uma determinada
sentido modificado a partir de condições de norma que visa controlar os corpos e,
produção diferentes. Ao comentar sobre as consequentemente, controlar os sujeitos. Assim,
condições de produção e o modo como estas através de exercícios de adestramento, o sujeito
interferem na geração de sentidos dos entra na normalidade e é discursivizado a partir
enunciados, Pecheux falando sobre o discurso de seu corpo.
de um deputado, afirma que o mesmo pode ter
sentidos diferentes em condições de produção Ao abordar a questão da disciplina, o
diversas, a depender do lugar que ele ocupa. referido autor chama a atenção para o fato de
que é através dela que o corpo dos sujeitos é
Como se pode notar, o sentido não está “fabricado”, tornando-se dócil e submisso às
nas palavras nem nos sujeitos, mas deriva das regras da sociedade. Assim, o modo de
posições ocupadas por tais sujeitos no discurso. construção do corpo também faz parte da
Os sujeitos, apesar de terem ilusão de que são construção do sujeito no jogo das relações
origem do dizer, efetivamente não o são. Ao sociais de poder. Desse modo, são esmiuçadas
contrário, os processos discursivos se realizam regras, regulamentos, normas, que, a partir de
através sujeitos, mas esses não são responsáveis inspeções sociais, objetivam fazer com que os
por criar intencionalmente sentidos, nem têm o corpos se adequem à “normalidade”. Segundo
poder de controlá-los. Os sujeitos não são os Foucault (1987) o controle do corpo:
primeiros a dizerem algo, eles se submetem aos
sentidos que já existem, mas também, podem implica uma coerção ininterrupta,
constante, que vela sobre os processos

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410
da atividade mais do que sobre seu Aquele que não seguir as normas, sofre
resultado e se exerce sobre uma sanções, é excluído, ridicularizado, mal visto ou
codificação que esquadrinha, ao ainda colocado à margem da sociedade. É a
máximo, o tempo, o espaço, os partir da sanção que os modos de coerção
movimentos. Esses métodos que tornam-se visíveis para os sujeitos. São criadas,
permitem um controle minucioso das portanto, técnicas de vigilância e controle dos
operações do corpo, que realizam a sujeitos, a fim de que se possa punir aquele que
sujeição constante de suas forças, e lhes não se adeque ao processo de adestramento.
impõem uma relação de docilidade- Dessa forma, os sujeitos são construções
utilidade são o que podemos chamar as derivadas das relações de poder que passam
“disciplinas” (FOUCAULT, 1987, p. também pela domesticalização dos corpos.
109). A partir do que foi abordado
anteriormente, interessa-nos observar os
A disciplinarização implica, então, o diversos modos de construção discursiva da
controle do corpo, dos gestos, dos movimentos mulher na década de 50 na revista Jornal das
e do espaço-tempo no qual os sujeitos se moças, observando o modo de funcionamento
inserem. A coerção é a base desse controle, ideológico sobre a feminilidade e analisando o
uma vez que o sujeito é coagido a se adequar às modo de construção dessa mulher, a partir da
normas pelo exercício e pelo controle dos domesticalização e docilização do seu corpo,
gestos, a partir da adoção de técnicas de principalmente no que se relaciona ao modo de
repetição e treinamento. Tais técnicas são andar. Para ser considerada uma “mulher de
adotadas por instituições diversas como família”, era preciso controlar o corpo, os
escolas, famílias, igrejas, oficinas, instituições gestos, andar de determinado modo, restringir-
militares, dentre outras. se à vida doméstica.. Isso já indica um
A rotina, por sua vez, é obtida através funcionamento ideológico que coloca a mulher
da repetição de exercícios e regras para a no seu devido lugar, classificando como belas
execução de uma tarefa, pressupõe treinamento ou elegantes aquelas que aprendessem as
mecânico para a homogeneização dos corpos. técnicas do “bom andar” e como moças de
Assim, os modos de agir, de realizar algo, a família, aquelas que não ocupassem
enumeração de passos e sua sequência de demasiadamente o espaço público, trabalhando
realização, são importantes para o em casa. Essas questões serão analisadas mais
estabelecimento da disciplina. Foucault (1987) adiante.
afirma ainda que a disciplina fabrica sujeitos, A revista como um veículo ideológico
adestrando-os. O adestramento é um modo de
Partimos do princípio, nesse artigo, de
se exercer mais facilmente o poder, e,
que as revistas fazem parte dos Aparelhos
consequentemente, de dominar os sujeitos de
Ideológicos do Estado, funcionando como um
modo mais efetivo.
dos elementos dos Aparelhos ideológicos da
O sucesso do adestramento e da informação. Althusser (1998) afirmava que os
disciplina, então, depende de uma relação Aparelhos ideológicos do Estado funcionam
hierárquica e de sanções normalizadoras. prioritariamente pela ideologia, enquanto que

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os Aparelhos repressivos do Estado funcionam incipiente no país -, as revistas influenciaram a
primordialmente pela violência.1 Assim, cabia realidade das mulheres de classe média de seu
aos Aparelhos ideológicos do estado a tempo (...)”. Sendo assim, os conselhos que
reprodução da ideologia dominante, que traziam sobre comportamento, vida doméstica,
funcionava como uma espécie de “cimento maternidade, dentre outros, eram seguidos à
social”, homogeneizando sujeitos. risca por aquelas que queriam ser bem vistas
socialmente. Surgida em 1914, a revista Jornal
As revistas femininas que circulavam na
das Moças circulou até 1961, com edição
década de 50, não eram simples veículos de
semanal, dirigindo-se, principalmente às moças
informação, mas funcionavam como elementos
da classe média brasileira.
difusores de ideologias, sendo utilizadas na
educação de mulheres da época. Essas revistas, Algumas observações sobre a metodologia
inclusive a que estaremos analisando, o Jornal A pesquisa em Análise de Discurso não
das Moças, traziam conselhos de moda, beleza, segue critérios positivistas, e a construção do
comportamento da mulher, propagandas de corpus não é algo feito previamente pelo
eletrodomésticos e móveis, dicas para ser uma pesquisador, mas constitui-se a partir de um
boa mãe e uma boa dona de casa, conselhos movimento de ir e vir, a partir do olhar do
para manter o casamento, receitas, novelas. A pesquisador sobre as materialidades. Assim, o
análise dos temas ali abordados já revela um corpus pode ser construído a partir de recortes
posicionamento ideológico que constitui a que possam ser úteis para o desenvolvimento da
noção de feminilidade nas referidas revistas: o pesquisa.
mundo feminino girava ao redor desses temas,
considerados “adequados” para as mulheres. Cabe lembrar também que a Análise de
Não há discussão sobre questões políticas, discurso possui um arcabouço
sociais ou econômicas, apesar do Brasil estar teórico/metodológico que confere elementos
passando por um grande período de para que o pesquisador saia da superfície
desenvolvimento econômico e social, na década lingüística e chegue ao processo discursivo, no
de 50. Assim, as revistas transmitiam a qual é possível observar além das estruturas
ideologia dominante sobre o que era “ser formais, quando o analista coloca o dito em
mulher”, colocando-as num lugar diferente dos relação ao não dito, e busca perceber os modos
homens. de funcionamento da ideologia e do
interdiscurso.
Segundo Bassanezi (2008, p. 609), as
revistas femininas funcionavam como: Assim, para este artigo, fez-se um
“conselheiras, fonte importante de informação e recorte de duas reportagens e uma propaganda
companheiras de lazer - a TV ainda era que circularam na década de 50 na Revista
Jornal das moças. O material escolhido versa
1
sobre os temas corpo e trabalho, que são fruto
Apesar de afirmar que os aparelhos ideológicos do
Estado funcionavam primordialmente através da
da reflexão, e foi submetido à relação entre o
ideologia, e os Repressivos funcionavam a partir da dito e o silenciado, a partir da percepção dos
violência, o autor deixa claro que tanto um quanto outro modos de funcionamento ideológico e das
possuem um duplo funcionamento: funcionam pela marcas deixadas pela ideologia na língua.
ideologia e pela violência.

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Exemplo 2: Mulher e o trabalho
O corpo e trabalho constituindo a
feminilidade na revista Jornal das moças
As revistas femininas serviam como
aliadas na educação das mulheres da época,
trazendo conselhos de comportamento,
ensinando como as mulheres deveriam se
comportar diante dos homens, se deveriam ou
não trabalhar, ensinando a cuidar dos filhos e a
manter um casamento. A repetição desses
temas revela um posicionamento ideológico de
constituição da imagem feminina: apenas alguns Fonte: Jornal das moças, outubro de 1952
assuntos eram permitidos em uma revista
feminina, outros, silenciados.
Exemplo 3: As mulheres e os homens no trabalho
A reportagem a seguir foi retirada da
Revista Jornal das moças de outubro de 1952.
Nela, ensinava-se às mulheres como andar com
elegância, a fim de se tornarem atraentes e
bonitas.
Exemplo 1: Como andar graciosamente

Fonte: Jornal das moças, outubro de 1952


No exemplo 1, a reportagem traz um
tom de conselho e lista os passos que devem ser
dados na direção de um andar elegante. O título
da mesma já indica o objetivo ali presente:
fornecer uma receita sobre como andar de
modo gracioso, tornado-se, portanto, atraente a
mulher que seguisse as regras ali propostas.
Podemos observar o funcionamento ideológico
que constitui a representação da mulher em
todo o texto, mas tal funcionamento se destaca
logo no trecho inicial: “a elegância de uma
mulher é marcada pela sua boa linha, harmonia
Fonte: Jornal das Moças, outubro de 1952 de toalete e também pelo seu modo de andar. A
importância desse fato não deve escapar a

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413
nenhuma mulher.” Chama a atenção no Trazendo à tona as ideias de Foucault (1987)
trecho, o uso do verbo deve, indicando uma sobre a disciplina, notamos que há no trecho em
ordem, da qual não se pode escapar. Tal verbo destaque todo um ritual que deve ser seguido
revela uma marca discursiva em relação ao sexo para alcançar o objetivo de ter um andar
feminino, indicando o modo pelo qual é preciso gracioso. O corpo é coagido a se tornar leve, os
agir para se tornar mulher, em outras palavras, pés devem estar em prefeito estado.
para que alguém se constitua mulher, deve O exemplo 2 é um anúncio de um curso
obrigatoriamente se preocupar com a estética, de Corte e Costura, direcionado para mulheres
coisa que não deve escapar a ninguém. A que se tornariam, com as aulas por
mulher, para ser considerada mulher de verdade correspondência ali oferecidas, modistas de alta
(disso não pode escapar), deve seguir os costura. No anúncio, há o seguinte enunciado:
ensinamentos sobre o “andar bem” presentes na “aprenda em sua própria casa, nas horas livres,
reportagem. É a ideologia que constitui, então, sem deixar suas ocupações habituais de lado.”
a ideia de mulher de verdade (indicando as Tal enunciado, remete ao funcionamento
coisas das quais ela não pode escapar), ideológico que recobria a representação
condicionando as mulheres a se colocarem na feminina na época: uma mulher poderia
posição daquelas que fatalmente se preocupam trabalhar, desde que não deixasse o seu
com a estética. Retomando as idéias de Pêcheux ambiente “natural”, ou seja, desde que não
(2009), a noção de mulher não equivale aqui, deixasse o lar e os afazeres domésticos. . O
àquela que é representante do sexo feminino, aparecimento da expressão “na própria casa”
apenas. O sentido de mulher é discursivizado, mostra a necessidade de manutenção feminina
ganhando, então, outras nuances: a mulher não dentro dos ambientes domésticos. Enunciados
é apenas o ser humano do sexo feminino, mas é anteriores como: “o trabalho fora de casa
aquela que se preocupa com a beleza, que anda masculiniza”, encontrado em revistas femininas
de determinado modo, que cuida dos problemas na década de 30 podem ser retomados do
estéticos (como vemos na imagem, uma perna interdiscurso na constituição dessa mulher que é
feminina, exposta aos cuidados estéticos, tema colocada em posição diferente da do homem,
que se repete na reportagem e durante toda a uma vez que não era natural que ela ocupasse
revista). as esferas públicas.
Retomamos também no exemplo 1, a O trabalho realizado em casa, no
ideia de Foucault (1987) sobre a domesticação entanto, era diferente do trabalho realizado fora
do corpo, uma vez que para alcançar um andar do ambiente doméstico. A saída da mulher do
gracioso, a mulher precisará seguir alguns ambiente doméstico era vista com desconfiança,
passos, elencados na reportagem: “Para ter seus uma vez que se acreditava que ela não poderia
movimentos livres, uma mulher deve ter as ocupar o mesmo espaço que antes era dedicado
pernas ágeis, os tornozelos leves, os pés em excluisvamente aos homens, considerados
perfeito estado. Durante a toalete, você fará provedores e donos legítimos do espaço
bem em esfregar os pés com uma escova, a público. Há também uma tentativa de controle
fim de ativar a circulação do sangue e do corpo, fazendo com que o mesmo ficasse
desembaraçar a pele das células mortas.”

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restrito ao lar, esquivando-se da ocupação de Como podemos observar a partir das
posições fora de casa. materialidades analisadas, a construção da
feminilidade na década de 50 passa pela
No exemplo 3, também relacionado à docilização do corpo da mulher e também pela
mulher e trabalho, há uma reportagem que inserção da mesma nos lugares “naturalizados”
mostra que em relação ao trabalho, mesmo pela ideologia: a esfera doméstica, a casa, a
quando o mesmo era permitido fora de casa, as cozinha. A supervalorização do discurso da
mulheres não poderiam ocupar as mesmas vaidade e da beleza como obrigações femininas,
posições dos homens, uma vez que poderiam mostra a construção ideológica de que o
gerar neles inconformidade e animosidade. O destino natural da mulher é o casamento e o lar.
fato de se afirmar que poderia haver
inconformidade masculina, caso as mulheres A partir do atravessamento do discurso
ocupassem posições de chefia, indica a científico sobre o cuidado com a saúde,
naturalização da desigualdade entre homens e constrói-se a ideia de beleza como fundamental
mulheres. O funcionamento da ideologia aí à mulher e, ao mesmo tempo, silencia-se a
diferencia homens e mulheres a partir da possibilidade de que ela tenha outras qualidades
posição que eles ocupam no trabalho, tais como o desenvolvimento intelectual. Assim,
construindo a ideia de que as mulheres devem a Revista funciona como instrumento de difusão
ser subalternas aos homens e não devem ser ideológica responsável por colocar os sujeitos
colocadas em posições de liderança ou chefia. nos seus “devidos lugares”, diferenciando
No trecho: “todavia reconhece-se que as homens e mulheres com base nas suas
mulheres como chefes não têm vida muito características físicas e sociais.
cômoda. Precisa-se reconhecer que na base da A colocação da mulher no ambiente
igualdade profissional, a mulher, como chefe, doméstico até mesmo no momento de exercer
enfrenta grande resistência de alguns uma atividade de trabalho indica o
subordinados”, nota-se uma contradição entre a funcionamento ideológico que diferenciava
pretensa igualdade entre homens e mulheres homens e mulheres, negando a estas a ocupação
citadas no enunciado e a real desigualdade da esfera pública, circunscrevendo-a ao domínio
construída na prática, já que a mulher, em cargo doméstico.
de chefia não teria vida fácil. A ideologia
funciona aí objetivando naturalizar a ideia de Referências
que as posições de chefia devem ser ALTHUSSER, L. Aparelhos ideológicos do
naturalmente ocupadas por homens e vedadas Estado: notas sobre os Aparelhos Ideológicos
às mulheres. Assim, quando se aceitava a saída do Estado. Rio De Janeiro: Edições Graal,
da mulher do ambiente doméstico para ocupar 1985.
um posto de trabalho, restringia-se o modo
BASSANEZI, C. Mulheres dos anos dourados.
como essa mulher iria ocupar tal posto,
In: PRIORE, Mary Del (Org.). Hstória das
controlando-a e disciplinarizando-a para que
mulheres no Brasil. 9 ed. São Paulo: Contexto,
ficasse submissa ao homem.
2008.
Considerações finais
BEAUVOIR, S. de. O segundo sexo.2 ed. São
Paulo, vol 2.: Difusão Européia de livors, 1967.

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415
FOUCAULT, M. Vigiar e punir: história da
violência nas prisões. 5. ed. Petropólis: Vozes,
1987.
GADET, F.; HAK, T. (Org.). Por uma análise
automática do discurso: Uma introdução à obra
de Michel Pêcheux. Campinas/SP: Editora da
Unicamp, 1997.
PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma
crítica à afirmação do óbvio. Trad. Eni P.
Orlandi et al., 2. ed., Campinas, SP: Unicamp,
1995.
_________. Análise automática do discurso
(AAD-69). In: GADET, Françoise; HAK,
Tony. (Org.). Por uma análise automática do
discurso. 3. ed., Campinas, SP: Ed. da
Unicamp, 1997, p. 61 - 105.
PÊCHEUX, M; FUCHS, C. A propósito da
análise automática do discurso: atualizações e
perspectivas. In: GADET; HAK (Org.). Por
uma análise automática do discurso. 3. ed.,
Campinas, SP: Ed. da Unicamp, 1997, p. 163 -
252

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416
A SUBJETIVAÇÃO DO PROFESSOR: UMA ANÁLISE
DISCURSIVA NO CADERNO EDUCACIONAL

Janete Abreu HOLANDA; Eliane Marquez da Fonseca FERNANDES


Universidade Federal de Goiás (UFG)
jneteholanda@hotmail.com
elianemarquez@uol.com.br

Resumo. Pretendemos analisar os modos de subjetivação do professor nos Cadernos


Educacionais do 5.º ano de Língua Portuguesa. Para análise, observamos os enunciados
ditos nesse material didático, explicitando a constituição do sujeito pelo discurso.
Buscamos nos apoiar teoricamente nos postulados de Foucault (2003, 2005, 2007, 2009).
Ressaltamos que não analisamos os ditos de forma linear e cronológica, mas o jogo de
suas relações, tentando compreender as regras, as práticas, as suas condições de
funcionamentos. Por meio de nossas análises, concluímos que a prática discursiva de
subjetivação do professor no Caderno ocorre a partir do poder e da governamentalidade.
Palavras-chave: dispositivo, discurso, sujeito, Poder.

Introdução
A Secretaria da Educação do Estado de Tivemos a oportunidade de fazer uma análise
Goiás, em 2013, elaborou e distribui um dos vários enunciados que se irrompiam neles.
“Caderno Educacional”1 destinado aos alunos e Porém, já nas primeiras páginas, começamos a
aos professores da rede pública estadual do ter muitos questionamentos em relação à
Ensino Básico de Goiás. Nele privilegia-se proposta apresentada. Um deles foi: Na prática
somente o estudo do gênero discursivo, em discursiva pedagógica, constituída por
cada capítulo. determinados poderes e saberes, como as
condutas sobre o sujeito professor são
estabelecidas? Que verdades são construídas
1 sobre o ensino de Língua Portuguesa?
O Caderno Educacional é um material didático
elaborado pela Secretaria de estado da Educação de Portanto, para podermos responder isso,
Goiás , composto por quatro cadernos, sendo que cada desenvolvemos o presente artigo para explicitar
um corresponde a um bimestre letivo. Este material é
direcionado ao 5º e 9º ano do Ensino Fundamental e 3º
a constituição do indivíduo preso a uma
ano do ensino médio. Os respectivos cadernos são identidade que lhe é conferida como própria, na
distribuídos bimestralmente pela rede estadual de prática escolar.
educação de Goiás.

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417
cada época, de cada momento em vários
Acreditamos que para alcançarmos o
lugares que possa ocupar no espaço discursivo,
nosso objetivo, é necessário primeiro traçarmos
assumindo uma posição enunciativa. Portanto,
uma discussão sobre concepções e noções de
“é no social que se definem as posições-sujeito,
Foucault a respeito de sujeito e subjetividade.
não fixas” (FERNANDES, 2012, p. 74).
2. Abordagem teórica e metodológica
E na dispersão, os sujeitos elaboradores
Fundamentamo-nos em Foucault (2003, do Caderno ocupam a posição de uma voz
2005, 2007, 2009), o qual insere seus trabalhos institucional. Na introdução desse material de
no campo discursivo e suas construções nossa análise, esse sujeito diz que “trata-se de
teóricas contribuem muito para esclarecer um material, deste tipo, produzido por esta
alguns aspectos que permeiam todo nosso Secretaria”, a qual aparece como a detentora do
estudo, como, por exemplo, as noções de saber, exercendo poder sobre os docentes,
poder, sujeito, subjetividade. sobre os alunos, mudando e buscando a
Selecionamos os discursos proferidos no melhoria dos indicadores educacionais. E a
Caderno do professor do Ensino Fundamental Secretaria, ao falar do Caderno Educacional,
do 5.º ano do quarto bimestre para fazermos a exerce a função de sujeito porta-voz, por
nossa descrição e interpretação. transmitir solicitações, por fazer declarações,
por tecer análises e por formular exigências. A
Ressaltamos que não analisamos os sua discursivização é um “ecoar” coletivo, pois
ditos de forma linear e cronológica, mas o jogo ela não fala apenas em seu nome. Ao produzir
de suas relações, tentando compreender as enunciados, ela torna visível o que estava
regras, as práticas, as suas condições de silenciado, estabelece credibilidade e
funcionamento. legitimidade. Isso pode ser bem observado com
3. Análises e discussão a produção dos enunciados seguintes, ditos na
introdução do Caderno: “O governo do Estado
3.1 Quem pode falar de Goiás, por meio da Secretaria de Estado da
Não abordamos aqui sobre um Educação (SEDUC) criou o ‘Pacto pela
indivíduo, ou sobre uma pessoa física, mas de educação (...)”a decisão da Secretaria pela
lugares sociais que os determinam e que são unificação do Currículo para todo o Estado de
mutáveis. Goiás (...)”. Com esses enunciados, a Secretaria
na função de sujeito porta- voz é autorizada a
O sujeito não corresponde a uma dizer sobre teorias e metodologias.
individualidade no mundo, e suas
enunciações revelam justamente essa E ao analisarmos os discursos
presença do exterior na subjetividade produzidos no caderno que compõem o corpus
manifestada pelos discursos materializados desta pesquisa, percebemos que os sujeitos
nos enunciados (FERNANDES, 2012, p. elaboradores estão submetidos aos limites
77). impostos pelo lugar de onde fala e deve seguir
certos ordenamentos. Por isso, não estão livres
Assim, o sujeito é algo em permanente em seu discurso, também devem seguir regras
construção através das práticas discursivas de discursivas postas pela instituição, pelo gênero

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discursivo, pelos sujeitos e pelo próprio sujeito intelectual, ao produzirem seus discursos
discurso, que se auto-controla. Assim, há uma no Caderno, fazem uma prescrição do currículo
“hierarquia discursiva”, pois os sujeitos de língua portuguesa.
elaboradores, ao enunciarem, precisam se Nesse processo há relações de poder,
submeter à ordem discursivo-social, à ordem porque o sujeito assume posições e marca
discursiva-institucional e à ordem discursiva do territórios.
gênero.
3.2. A relação de poder e a subjetivação do
E, citando as palavras de Foucault,
sujeito professor
Apoiamos na concepção de poder de
[...] o sujeito do enunciado é uma função
determinada, mas não forçosamente a Foucault (2005), o qual não o defende como
mesma de um enunciado a outro; na medida um fenômeno de dominação de uns sobre os
em que é uma função vazia, podendo ser outros, mas sim como uma ação de alguns
exercida por indivíduos, até certo ponto, sobre os outros e essas ações são denominadas
indiferentes, quando chegam a formular o por ele como micropoderes. As relações de
enunciado; e na medida em que um único e poder são exercidas não diretamente sobre os
mesmo indivíduo pode ocupar sujeitos, mas sobre suas ações – um campo de
alternadamente, uma série de enunciados, possibilidades. Assim, o poder atua diretamente
diferentes posições e assumir um papel de na condução das condutas dos sujeitos e nos
diferentes sujeitos. (2009, p. 105) próprios sujeitos que desejam a condução Ele
acredita que o poder é uma relação e circula em
Percebemos, então, que o lugar do cadeia na sociedade, por isso nunca está
sujeito é vazio, até ser ocupado por alguém localizado aqui ou ali. Portanto, o poder é um
com condições normatizadas por instituições processo cíclico, no qual o sujeito utiliza-se de
sociais e legais. Condições essas que, reguladas um dado saber para agir sobre o outro.
pelas práticas discursivas que emergem no Segundo Fernandes e Alves (2009, p.
tempo, legitimam a posição do sujeito. 115) “o poder, como prática cotidiana nas
Diante desse raciocínio, podemos relações entre os sujeitos, é um elemento forte
associar a posição ocupada pelos sujeitos na construção identitária do sujeito.” Mas como
elaboradores com a de Foucault (2005): a o exercício do poder constrói uma identidade?
posição do intelectual específico. Fazemos essa Se compreendermos o que Foucault
colocação, porque acreditamos que também coloca sobre o exercício do poder, ou melhor,
ocupam uma posição específica, politizam a as relações entre os sujeitos, podemos perceber
ação cotidiana de coletivos (professores) no bem que essas relações se dão em todas as
espaço escolar e podem facilmente empreender direções, cerca o sujeito, forma o sujeito, criam
discursos variados que se adaptem a sua subjetividade. “Assim, o poder não se
contexturas específicas de forma bem sútil, manifesta apenas como forma de ordem, lei,
produzindo saberes e verdades. repressão, mas ele proporcionado por um saber,
Nessa perspectiva, podemos perceber ou seja, exerce poder aquele sujeito que detém
que os sujeitos elaboradores, na função de

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o saber, aquele que é autorizado a dizer (
Também encontramos essa mesma ação
SOUZA, 2012, p. 44).”
em vários capítulos quando há a inserção do
Em relação à subjetividade, Fernandes tópico “O que devo aprender nesta aula”. Nessa
(2008, p. 78), nos esclarece que ela “é uma parte há enunciados como “Partilhar com os
construção histórica sob determinadas colegas as percepções de leitura de contos”,
condições, e [...] se dá na relação com o “Ler artigos descobrindo os aspectos
discurso. Uma vez que o sujeito é produzido implícitos”.
nas relações discursivas, há, portanto, uma
Para subjetivar o professor e ensinar
relação entre subjetividade e discurso”.
condutas consideradas adequadas, há uma
Portanto, o indivíduo torna-se sujeito à medida
seleção, silenciamentos, recorrências para
que o discurso o envolve em suas tramas. Nas
formular valores e regras aos docentes e
palavras de Paniago (2005, p. 127), “[é] o
àqueles que com eles convivem.
discurso que articula o cruzamento do poder e
do saber para produzir o sujeito e, assim, Constamos isso por meio dos
fabricá-lo”. Enfim, se o discurso é o lugar onde enunciados apresentados em algumas
saber e poder se articulam, é esse mesmo introduções de capítulo do Caderno
discurso que forma os sujeitos, sendo o sujeito Educacional: Professor (a), vamos trabalhar
resultado dessas relações. com o gênero romance (...) vale ressaltar,
também, que, antes de iniciar os estudos de
Ao analisarmos os enunciados ditos nos
qualquer gênero, é fundamental que você
quatro volumes do Caderno educacional,
estude e pesquise sobre suas características.
identificamos bem evidenciado a articulação do
Então vamos! Pesquise, estude e desenvolva um
poder na construção da subjetividade, pois,
rico trabalho sobre romance com suas turmas
observamos pelos enunciados a posição em que
de 9º ano. (5.º ano, 4º bimestre, p. 9); Professor
a Secretaria de Educação coloca-se perante os
(a), seja bem vindo (a) ao estudo do texto
docentes, posição essa que a própria escola
dramático (...), um gênero de grande relevância
legitima, ao se deixarem guiar por esses
social e cultural.(5.º ano, 4º bimestre, p. 39)
discursos.
Nesse jogo estratégico, as/os
O que encontramos na materialidade
professoras/es são posicionadas/os como
retirada dos capítulos são frases como: “a ideia
sujeitos “carentes”, que precisam de auxílio, de
aqui, professor (a), é saber o que os estudantes
ajuda e de amparo. Observando essas
podem produzir neste momento e o que
sequências discursivas selecionadas, verificamos
precisam aprender (...)” (material de apoio, p.
que o professor está sendo chamado para
11). Assim, nessa materialidade, percebemos a
trabalhar determinados gêneros, porém ele
“vontade” da condução da conduta do
precisa estudar e pesquisar antes. Deparamo-
professor e do aluno. Em outras palavras, a
nos com uma formação discursiva de
inclinação de alguns sujeitos determinando a
“despreparo” do professor, pois ao dizerem que
conduta de outros, mas nunca de forma
“é fundamental que ele estude” leva-nos a
“exaustiva ou coercitiva” (FOUCAULT, 2003,
compreendê-lo como um sujeito que carece de
p. 384).
esclarecimentos para exercer suas atividades.

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420
Com essa ressalva, leva-nos a perceber a
Constatamos ainda que o exercício do
construção de um sujeito professorcom
poder sobre o sujeito não ocorre de maneira
conhecimentos rudimentares e preparo aquém
negativa, pressionando-o, constrangendo-o a
para a tarefa que exerce.
realizar algo que não quer.
Além disso, outro aspecto a ser
O enunciado “Nesse momento,
identificado na sequência anterior é o
professor(a), você pode acrescentar outras
mecanismo de pessoalização, utilizado por meio
perguntas(...)” tenta mostrar ao sujeito
do emprego do verbo em primeira pessoa do
professor, de uma forma sutil e prazerosa,
plural. A recorrência dessa pessoa gramatical
como ele pode atuar na condução da atividade,
iniciando as orações instaura efeitos de
criando um discurso que normaliza sua conduta.
comprometimento com aquilo que se fala: o
sujeito autor busca legitimar o que diz. Com Também encontramos enunciados que
isso, ocorre a tentativa de apresentar um atualizam um processo de subjetivação docente
discurso inclusivo, no qual há a voz que se alicerçam em um tipo de discurso
institucional, há a voz dos sujeitos elaboradores pedagógico consagrado; constituir-se como
dizendo o que fazer. Mas, ao dizer “vamos” sujeito professor bem sucedido é seguir
mistura-se a voz institucional com a voz do determinados passos metodológicos. Vejamos
sujeito professor. Assim, constrói a ilusão de alguns desses dizeres no Caderno do 4.º
que o professor faz parte de forma ativa do bimestre: Professor (a), prepare o ambiente
processo. para receber seus alunos. Construa um clima
romântico. No centro da sala, coloque um
Assim, é apresentado ao sujeito
tapete com algumas almofadas (...) (p. 9);
professor como deve ser a sua prática: agir de
Professor (a), incentive os alunos a escreverem
acordo com sua responsabilidade social; tomar
bons capítulos de romance (...) Organize uma
decisões sempre pensando nos alunos; enfrentar
festa de lançamento (...) (p. 30). Por meio
os problemas com desenvoltura; avaliar-se e
desses enunciados, verificamos a presença de
avaliar o aluno com profissionalismo. Em
conselhos para o professor sobre como
outros enunciados como, “apresentamos,
conduzir e realizar as atividades propostas.
abaixo, também, pequenos conceitos dos
Porém essa prática discursiva compromete a
termos solicitados acima, que poderão somar-se
autonomia do sujeito-professor em seu
às suas pesquisas em relação ao estudo desse
exercício profissional. Percebemos pelos
gênero literário e auxiliá-lo (a) no momento de
enunciados que há comandos, ordens, por meio
sistematizar esta atividade. (4.º bimestre, p. 13),
do uso do imperativo.
apresentamos, abaixo, uma pequena síntese do
enredo dessa história, que poderá somar-se ás Porém, cabe a ele, usando as
suas leituras (...). ( 4.º bimestre, p. 25) partem orientações dadas, adequar-se, auto modelar-se,
do princípio de que os professores não possuem a fim de atingir objetivos propostos no início de
um conhecimento geral sobre o gênero em cada capítulo. A força dos verbos no
estudo, por isso “ensina” alguns conceitos para imperativo, “prepare”, “proponha”, “solicite”,
eles. “incentive”, iniciando as orações, perpassam
toda obra revelando um discurso de imposição,

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421
anunciado por alguém que está numa posição que o sujeito professor necessita: um fato
de saber/poder e que tem “autoridade” para verdadeiro no qual possa acreditar para se filiar.
fazê-lo. Ao mesmo tempo em que esse discurso Quando encontramos em todos os
propõe aos sujeitos-professores ações, são Cadernos enunciados que constroem condutas
verdadeiras regras que devem ser seguidas se ao sujeito professor, constrói sujeitos-
eles quiserem melhorar o desempenho de seu professores homogenizados, ou seja, a
aluno. construção em série. São verdadeiras práticas
Nesse processo, tenta-se construir o de subjetivação que, para Foucault (2007, p.
sujeito professor como um sujeito responsável 143)
por sua conduta e pela conduta dos alunos em
processo de aprendizagem. Porém essa (...) ‘fabrica’ indivíduos; ela é a técnica
subjetividade é aceita, porque expressa uma específica de um poder que toma os
“vontade” de serem sujeitos esclarecidos, indivíduos ao mesmo tempo como objetos e
como instrumentos de seu exercício.
indivíduos que conhecem, agem, participam e
transformam. Ao expressar as suas vontades, o
discurso analisado captura, interpela e seduz Ao verificarmos que no Caderno há uma
porque apresenta uma grande possibilidade de ação de uns sobre outros, gostaríamos de
se reconhecerem nas próprias práticas que brevemente apresentar a problematização das
veicula. relações de poder desenvolvida por Foucault,
com a questão da governamentalidade.
Assim, o sujeito professor ao ser
solicitado a dialogar, por exemplo, com o 3.3 Governamentalidade
seguinte enunciado “Professor, dialogue com Ao fazermos a inserção sobre esse
seus alunos sobre o ensino/aprendizagem doa conceito, queremos problematizar as técnicas
artigo de opinião”, percebemos que ele é de poder que visam a transformar os indivíduos
direcionado a estar muito atento ao em sujeitos governáveis.
desempenho do aluno e a construção de sua
aprendizagem. Os estudos foucaultianos da
governamentalidade assinalam uma conexão
Ao trazer para algumas atividades importante entre os modos de governar o outro
propostas no Caderno outras vozes de sujeitos e as formas de governo de si mesmo. Com base
autorizados pelo saber científico, entendemos nesse entendimento, gostaríamos de explorar
que o sujeito professor precisa estar apoiado em especialmente as práticas de
discurso científico. Esse mecanismo ocorre governamentalidade do outro, porque essa ação
porque é necessário que ele obtenha mais é uma constante no nosso corpus analisado.
credibilidade para ocupar uma posição que lhe
permita dizer ao aluno o que lhe é proposto. Podemos afirmar, então, que governar é
Um enunciado como “Professor (a), para sua uma ação de conduzir as condutas individuais e
informação, disponibilizamos no quadro a coletivas e as administrar, com sutileza e em
seguir um texto retirado do Ensinar e Aprender detalhe. Esse aspecto é bem evidenciado no
(...) sobre a origem do teatro” (Caderno do 4º “sumário” dos cadernos, porque há uma
bimestre, p.42) tem o efeito de verdade e é isso subdivisão nos capítulos indicada pela

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422
expressão “aula”. A exemplo, o capítulo
Dessa forma, o sujeito professor é
“Crônicas” é subdividido em 23 aulas. Dessa
levado a acreditar que, por meio de um
forma, o sujeito professor sob uma
sentimento, não deve ter qualquer dificuldade
administração de tempo e ação para cada aula,
para exercer bem a sua profissão. É isso que no
é governado. Portanto, para assegurar o seu
Caderno Educacional faz de diferentes
bom desempenho, o sujeito professor é
maneiras: incentivar e seduzir para que esses
submetido a um conjunto determinado de aulas
sentimentos sejam exteriorizados pelo sujeito
já planejadas para ele seguir.
professor.
A governamentalidade caracteriza-se
Essas atitudes são enunciadas para
como uma ação sobre a ação do outro, e nesse
ocorrer a normalização, a homogeneidade,
processo, entendemos que há um
“usando o coração” em suas ações e se “co-
direcionamento a determinados caminhos.
responsabilizando pelo ensino de uma proposta
Também acreditamos que a ação ocorre como
que a Secretaria decidiu unificar o Currículo
uma reação. Mas, nesse procedimento
para todo o estado de Goiás.
relacional, os sujeitos acabam se convencendo
de que estão sendo guiados apenas por suas Dessa forma, esses discursos mobilizam
próprias vontades e desejos. uma multiplicidade de técnicas para agir sobre a
ação dos sujeitos professores para fazer as suas
Nos enunciados ditos no Caderno
“liberdades” uma regulação.
Educacional notamos que esse se apresenta
como um manual de boas condutas Com isso, observamos que se trata de
pedagógicas, ou seja, como um modelo de um apelo às suas posturas adequadas e
regras e normas para se obter uma aula perfeita. exemplos de formas adequadas de
Nele encontramos a prescrição detalhada das relacionamento com estudantes. Mas, também é
condutas adequadas para o sujeito professor, dada ao sujeito professor “liberdade” para agir,
como constatamos isso no seguinte enunciado: quando encontramos o seguinte enunciado:
“Lembre-se de que o seu entusiasmo deve “Desta forma, poderão apresentar o que sabem
contagiá-los, portanto procure desenvolver sobre crônicas.” (Caderno do 2.º bimestre, p.9).
cada aula de forma agradável mostrando-lhes Portanto, com esse enunciado, o uso do verbo
quanto conhecimento eles poderão adquirir ao ‘poderão’ acrescenta ao sujeito professor a
longo desse estudo.”(Caderno do 2.º bimestre, possibilidade de ação.
p. 9). 4. Considerações finais / Conclusões
Trata-se de um discurso que coloca em Neste trabalho não tínhamos a pretensão
ação estratégias para conduzir condutas, de fazer julgamentos ou construir uma verdade
subjetivar e governar. No enunciado acima, há sobre o material analisado. Somente
indicações para os docentes, no exercício da preocupamo-nos em observar os mecanismos
sua profissão, há práticas que “não terão de subjetivação utilizados no discurso que
qualquer dificuldade” de exercer. Isso porque irrompem nos Cadernos Educacionais para
tais práticas dependem de sentimentos que eles subjetivar os sujeitos professores.
“já possuem”, que “se encontram dentro deles
mesmos”: afetos e emoção.

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423
enunciado ‘”professor (a)”, o qual já indica um
E nesse processo de subjetivação, o
distanciamento entre os sujeitos. Além disso,
discurso produzido está a serviço do poder,
chamou-nos muita atenção a formatação dos
dispõe de mecanismos para governar o sujeito
capítulos de cada Caderno. Ao observarmos o
professor, conforme a verdade estabelecida e
sumário, detectamos que estabelece a divisão
autorizada. E qual seria essa verdade construída
do estudo de um gênero em cada capítulo,
e autorizada? Por nossas análises, percebemos
sendo que para cada um propõe a divisão em
que o estudo a partir dos gêneros discursivos é
aulas como subtópicos dos capítulos.
a verdade que deve ser aceita e legitimada na
escola como uma proposta “inovadora” para o Portanto, a prática discursiva de
ensino de língua portuguesa, porém, no subjetivação do professor nos Cadernos ocorre
desenvolvimento das atividades no Caderno há a partir do poder e da governamentalidade, pois
ainda um ensino que privilegia o texto como um ao ministrar a aula, ele deve se comportar como
modelo a ser imitado. Assim, constrói-se uma um sujeito que obedece às regras teóricas e
prescrição para se fazer um texto. metodológicas estabelecidas. Assim, esse
material ao indicar isso, tenta normalizar os
Acreditamos que em seu discurso
sujeitos.
produz um tipo bem determinado de sujeito,
que deve obedecer a normas e agir de forma
homogeneizada. Referências
Também, a partir de nossas análises, GOIÁS. Secretaria de Estado de Educação.
apreendemos que se constrói a ilusão de o Caderno Educacional: 5º ano – quarto bimestre:
sujeito professor ser o detentor do saber. Língua Portuguesa. Educação Básica. Ensino
Porém, acreditamos que ele acaba sendo Fundamental e Médio. Goiânia: SEDUC, 2013.
somente um reprodutor de normas
estabelecidas. Esse aspecto é bem evidenciado FERNANDES, C. A.. De sujeito a
quando há em todos os cadernos analisados subjetividade na Análise do Discurso. In:
palavras imperativas, não deixando alguma SARGENTINI, V.; GREGOLIN, M. R. (org.)
possibilidade de ter uma conduta diferente da Análise do Discurso: heranças, métodos e
que é estabelecida no Caderno. Mesmo que objetos. São Carlos: Claraluz, 2008. p. 69-82.
tenhamos encontrado de forma predominante FERNANDES, C. A.; ALVES, José Antônio
esse recurso linguístico, também há momentos Junior. Mutações da noção-conceito de sujeito
em que se tenta, de forma sutil, amenizar essa na análise do discurso. In: SANTOS, João
ação de imposição, quando encontramos o Bosco (org.). Sujeito e subjetividade:
enunciado “vamos juntos” em alguns momentos discursividades contemporâneas. Uberlândia:
no caderno. Com essa forma de dizer, parece- EDUFU, 2009.
nos que os sujeitos professores são parceiros e
FOUCAULT, M. Estratégia, poder-saber.
bem próximos do sujeito enunciador. Assim, de
Organização e seleção de textos de Manoel
forma mais próxima, o sujeito professor pode se
Barros da Motta. Tradução de Vera Lúcia
tornar mais governável. Porém, essa
Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense
aproximação não é mantida em todos os
Universitária, 2003.
capítulos, pois encontramos muito recorrente o

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424
______. Microfísica do Poder. Organização e
tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro:
Edições Graal, 2005.
________. Vigiar e punir: nascimento da
prisão. Tradução Raquel Ramalhete. 33. ed.
Petrópolis: Vozes, 2007.
______. A arqueologia do saber. Traduzido
por Luiz Felipe Baeta Neves. 7. ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2009.
PANIAGO, M. de L. F. dos S. P. Práticas
discursivas de subjetivação em contexto
escolar. 2005. 246 f. (Doutorado em
Linguística)- Faculdade de Ciências e Letras –
câmpus de Araraquara, Universidade Estadual
Paulista, Araraquara, 2005.
SOUSA.W. K. M. V. O riso como estratégia
discursiva para o exercício do biopoder: a
sociedade que vive de rir e para rir. 2012. 127 f.
(Mestrado em Linguística). Faculade de Letras,
Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2012.

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425
PRESENÇA AFRICANA NO BRASIL: EFEITOS DE SENTIDOS
NOS DIZERES SOBRE O CORPO, A MÚSICA E A VOZ NA
CAPOEIRA BRASILEIRA

Georges Sosthene KOMAN


Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
georges_hi5@yahoo.fr

Resumo: Este artigo visa a analisar enunciados extraídos do Portal Capoeira em que
pode se depreender a construção discursiva acerca da capoeira e a partir da qual
construção se faz presente e/ou ausente as próprias características ligadas ao corpo, à
musica e a voz nesta prática cultural brasileira. Interessa-nos descrever e interpretar a
maneira como os enunciados sobre a capoeira se configuram na sociedade
contemporânea brasileira, levando em conta suas materialidades linguísticas e históricas.
Quais já-ditos estes discursos retomam, em que cadeias parafrásticas se inserem e quais
efeitos de sentidos produzem? Partiremos essencialmente das articulações da Análise do
Discurso (AD) para cumprir tal intento.
Palavras-chave: discursos; capoeira; presença africana; efeitos de sentidos.

de portais eletrônicos de alguns órgãos oficiais


Introdução
associados ao governo brasileiro tal como o
Este artigo é composto de algumas Ministério da Cultura (MinC) e o Instituto do
partes do nosso relatório com vistas ao exame Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
de qualificação em nível de mestrado pelo (IPHAN). O interesse em recorrermos a tal
departamento de Linguística da Universidade recorte discursivo reside no fato de que estes
Federal de São Carlos (UFSCar). Os resultados órgãos são lugares legitimados de produção e
finais poderão ser expostos apenas mediante a circulação de discursos sobre a cultura
redação final da dissertação e sua defesa brasileira. Levando em conta suas proveniências
prevista em março de 2016. Não obstante a (sites oficiais do governo brasileiro) e suas
parcialidade do nosso relatório de qualificação, atuações visando à valorização e à promoção da
o presente artigo não abdica da profundidade e cultura afro no Brasil. Os portais eletrônicos
da totalidade nas análises iniciais de sequências oficiais, cujos textos constituem nosso corpus,
discursivas retiradas do Portal Capoeira podem ser considerados como lugares
(www.portalcapoeira.com), haja vista que privilegiados de estruturas que formulam
nosso corpus é constituído de textos extraídos políticas públicas e que atuam para

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426
organizações de eixos temáticos, através de embalados pelo ritmo de instrumentos musicais.
reflexões, debates e formulações de A prática da capoeira pode ser vista como um
diagnósticos das demandas para implementação movimento de resistência cultural, camuflada
de grupos institucionais com propósito de em dança, devida às perseguições sofridas pelos
fomentar a visibilidade da capoeira. Em outros escravos, seja pela força do senhor de engenho,
termos, consistem em um ciclo, formado por representada na figura do feitor, seja pela força
identificação de problema (neste caso, a policial, até o final do século XIX. Assim, a luta
visibilidade e valorização da capoeira); logo virou arte, incorporando músicas e
formulação de alternativas; tomada de decisão; instrumentos, como o berimbau, pandeiro e
implementação; execução; acompanhamento e caxixi, de modo que ainda hoje encontremos
avaliação de resultados (SARAVIA, 2006). Tal diversos adeptos no Brasil e também no mundo
como aponta Fonseca, “as ações afirmativas são inteiro. Tal é o estatuto adquirido por este
políticas públicas destinadas a atender grupos movimento que, no dia 15 de julho de 2008, foi
sociais que se encontram em condições de registrado como o 14o bem imaterial do Brasil
desvantagem ou vulnerabilidade social em pelo Instituto Histórico e Artístico Nacional
decorrência de fatores históricos, culturais e (IPHAN)1 e pelo Ministério da Cultura (MinC),
econômicos” (2009, p. 11). Este empenho tornando-se assim um patrimônio cultural
político visa “garantir igualdade de brasileiro. Acrescentam-se a isso os fatos de
oportunidades individuais ao tornar crime a que o ofício dos mestres da capoeira foi
discriminação, e têm como principais incluído no Livro de Registro dos Saberes,
beneficiários os membros de grupos que destinado aos conhecimentos e modos de fazer
enfrentaram preconceitos” (CASHMORE, enraizados no cotidiano das comunidades, e o
2000, p. 31). Posto isto, pensamos ser de que a roda de capoeira foi incluída no Livro
conveniente abordar o assunto proposto com de Registro das Formas de Expressão,
um breve panorama de fatos essenciais sobre a destinado às manifestações artísticas em geral.
capoeira, fatos esses que auxiliam para a Com isto, a capoeira foi legitimada sob
compreensão da dinâmica que enriquece os a condição de “manifestação brasileira”,
dizeres que se formam a seu respeito. Ainda constituindo-se como um saber considerado
que não haja unanimidade quanto ao modo complexo por sua constituição de
como surgiu a roda de capoeira no Brasil, multilinguagens; e, no dia 22 de julho de 2009,
poder-se-ia, contudo, considerar que ela tem foi instituído o Grupo de Trabalho Pró
suas origens no século XVI, época em que Capoeira (GTPC)2 do Ministério da Cultura e
africanos eram escravizados e forçados com a finalidade de estruturar as bases do
violentamente a deixar seus países de origem
para trabalhar num sistema de produção
escravocrata, nas grandes lavouras da terra de 1
Conferir FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES.
que recentemente haviam se apossado colonos Disponível em: http://www.palmares.gov.br/?p=2744&lang=e
> acesso 06 de Junho 2015 > 12h30.
portugueses. Esses escravizados originários da
África trouxeram consigo os seus costumes, 2
Conferir o Portal MinC. Disponível em:
religiões e idiomas e, confinados nas senzalas http://www.cultura.gov.br/programas6//-asset_publisher
durante a noite, cantavam e dançavam HTI3dB7MSIaL/content/programa-pro-capoeira-
342422/10913 > acesso 06 de Junho de 2015 > 12h46.

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427
Programa Nacional de Salvaguarda e Incentivo particularmente importantes para sua
à Capoeira (Programa Pró-Capoeira). constituição e seu desempenho, quais sejam: a
voz e o corpo do capoeirista, visto que é
Já sob esta condição de patrimônio
através destes que se fundem elementos físicos
cultural e legitimado, a capoeira passou a
(batidas de palmas, canções, golpes e
contar com um cadastro nacional no
movimentos) com elementos abstratos
Departamento de Patrimônio Imaterial (DPI),
(enquanto manifestação artística e também
cujo objetivo é mensurar a dimensão do
espiritual), estes últimos tão históricos e
universo da capoeira no Brasil e no mundo,
políticos quanto os primeiros.
com vistas a subsidiar o encaminhamento de
novas ações de incentivo e salvaguarda da Para melhor compreendermos estes
capoeira, além de criar uma base dados pública enunciados que se formam e os discursos aos
sobre este tema. quais eles se filiam e cuja produção e circulação
ocorrem no seio de instituições que gozam em
A cereja do bolo ocorreu recentemente
princípio de grande legitimidade é que nos
quando, em novembro de 2014, a roda de
propomos a analisar sites de órgãos oficiais da
capoeira recebeu o título de patrimônio cultural
União e de outros portais atentos a assuntos
imaterial da humanidade pela Organização das
ligados ao nosso recorte temático (capoeira,
Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
corpo, musicalidade etc.).
Cultura (UNESCO)3
Vê-se dessa maneira que a capoeira 1. O Portal Capoeira
parece deixar de ser uma prática oculta e, em O site possui certas peculiaridades na
última instância, proibida, para se tornar objeto página inicial organizada sob a forma de
cuja visibilidade na sociedade passa a ser animação rítmica, ou seja, apresentada sob
incentivada e cujas especificidades devem ser forma de um vídeo que mostra a capoeira em
respeitadas, tendo em vista sua formação execução. Pode-se assistir no vídeo,
complexa. movimentos lentos acompanhados de canção e
instrumentos musicais. Além disso, há cinco
Esta complexidade reflete-se, então, nos
seções disponíveis e acessíveis aos usuários;
modos pelos quais os diversos dizeres a seu
esses cinco em acréscimo à página inicial. As
respeito se configuram: a capoeira pode ser
atualizações permanecem visíveis na página
vista ora como dança, ora como luta, jogo,
inicial; fato esse que possibilita o acesso rápido
esporte ou, ainda, como patrimônio imaterial.
para quem se interessa em notícias recentes.
Embora num primeiro momento possamos
Ademais, a página inicial permite aos usuários
pensar nestes dizeres como sendo heterogêneos
familiarizarem-se com a Equipe Portal
e independentes, podemos observar, já de
Capoeira, movidos por uma incondicional
início, que uns elementos se tornam alvos
paixão pela capoeiragem. Ao contrário da
página inicial, algumas seções e subseções
3
Conferir o Portal UNESCO OFFICE. Disponível em: oferecem itens com abertura a comentários de
http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/about-this- usuários. Parece desse modo, haver um espaço
office/singleview/news/capoeira_becomes_intagible_cultural_
para que a voz do público seja ouvida no
heritage_of_humanity/# > acesso 06 de Junho de 2015 >
12h54. interior do Portal Capoeira. O site conta com

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colaboradores especializados pois dentre os organizado de maneira hierárquica para chamar
vinte e nove membros do grupo, destacam-se a atenção do usuário e suscitá-lo a se deter
cerca de onze ligados à pratica da capoeira, atentamente na informação divulgada. A parte
como mestres de capoeira ou professores de imagética do texto mostra duas mulheres
capoeira. semelhantemente vestidas e executando
movimentos corporais bastante flexíveis e
Outro aspecto que se destaca na
equilibrados. Pose-se acrescentar a isso o título
observação do site é a composição dos textos
por dois elementos, a saber, a linguagem verbal que não aparece no trecho ora apresentado: 4º
e a linguagem imagética que auxiliam na leitura, Brasil Synchro Open: Dueto brasileiro
seja por rapidez, seja por contribuir por sua mostra sua "CAPOEIRA". O “Brasil synchro
clareza. Com isto, iniciamos a análise do Portal Open” é uma competição internacional de nado
Capoeira com o enunciado da figura1, exposta sincronizado patrocinado pelo Ministério do
sob a forma do sistema print do site em análise. Esporte e com recursos dos correios e de várias
Interessa-nos para esta análise, o texto que instituições oficiais do governo brasileiro.
aparece na figura, todavia, tendo em vista o Sabido isto, interessa-nos, em primeiro lugar,
esclarecimento do leitor, faremos considerar o local em que tal sequência se
eventualmente referência a alguns detalhes encontra e em seguida, levantar algumas
ausentes nesta captura de tela. Seguido da considerações indagativas, entre outras: o que é
página web em que se encontra essa seção, dito propriamente sobre a capoeira e como se
conforme pode ser consultado na nota de constrói esse discurso a partir do foco temático
rodapé correspondente. deste enunciado?

Figura 1: Dueto brasileiro 2. Abordagem teórica


A ideia inicial para a análise deste
discurso era recorrer às delimitações teóricas da
AD de linha francesa ainda que nessa sequência
de análises seja bastante baseada na concepção
do silêncio, cunhada à precursora da AD no
Brasil, Eni Orlandi (1997).
Segundo a proposta da pesquisadora, o
silêncio é o garante do sentido, portanto, mal se
conceberia um silêncio como ausência de
palavras ou um “vazio” da linguagem. Ao
contrário desse pensamento, o silêncio é
compreendido como uma matéria que significa,
ele estabelece com o sujeito um laço de modo
Pode-se claramente observar a inconsciente. É com base nas afirmações de Eni
disposição gráfica deste enunciado, marcada Orlandi que analisaremos o enunciado
por uma fonte de maior dimensão e uma apresentado acima.
sequência verbal igualmente chamativo pelo
fato de ser em negrito. Sendo um texto 3. Análises e discussão

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Notamos que o enunciado se encontra Enfatizamos os termos em negrito. Cada uma
no subtítulo “Curiosidade” do site, das sentenças merecerá tratamento específico
precisamente no item "Notícias/Atualidade" que sendo relacionadas entre elas a fim de
faz parte da grande seção “Capoeira”. Ainda depreender o efeito de sentido que elas
que não esteja na página inicial, esse enunciado produzem.
parece ser fácil de acesso com apenas três Observando a primeira, podemos
cliques respectivamente um clique em cada item deparar o sintagma sua capoeira. Além de
mencionado. Esta disposição mostra a maneira indicar de quem se trata efetivamente (dueto
como se buscou dar maior acessibilidade ao que
brasileiro, Luisa Borges e Maria Eduarda
foi enunciado e ainda possibilitar sua duração Micucci), conserva a marca de possessão, e
em relação a outros enunciados que tratam de deixa visível na sequência verbal uma “forte
assuntos mais ou menos similares. Todavia, tonalidade” pela qual se opera a enunciação
porque seria esse na “atualidade”? De certo ilustrada pelas letras de forma do próprio
modo, percebemos que o enunciador objetiva enunciado. A partir dessa observação,
causar no usuário estranheza mediante a distinguimos uma onda eufórica ao dizer dueto
exposição de “outros” modos de prática ou
brasileiro mostra sua capoeira. Uma das
subsídios da capoeira contemporânea. Ao
razões que justifica essa interpretação é o fato
entendermos “Curiosidade”, poderíamos a
de que a sentença dueto brasileiro mostra sua
priori pensar que se trata de aspectos
capoeira, seja em alguma medida confrontada a
relacionados à capoeira ainda não
uma outra sentença, que passa a seguinte
suficientemente conhecidos seja pela
informação: dueto ucraniano faz história.
criatividade proposta de novas práticas, seja por
Somente a partir desse índice podemos
eventual desinformação política. Além disso,
acreditar que existe nesse discurso o desejo de
nos é possível observar a inserção da capoeira
comparar a originalidade brasileira através da
no interior de um foco temático esportivo, que
capoeira à sensação histórica que produziu a
concerne principalmente o Brasil e a Ucrânia e
criatividade ucraniana por meio do dueto misto.
nesta esteira depreendemos a intenção do
Dessa forma, o enunciador consegue alçar a
sujeito-enunciador que é o de ressaltar um
capoeira numa dimensão sensacional e rara no
acontecimento grandíssimo e ao mesmo tempo
seio de uma empreitada esportiva até então não
raríssimo em que estes países supracitados
imaginada, o próprio título destaca a capoeira
estão envolvidos (para o âmbito deste trabalho,
em relação às letras que o formam “4° Brasil
o Brasil será nosso principal foco).
Synchro Open: Dueto brasileiro mostra sua
Com vistas a examinar esse texto do “CAPOEIRA”’; o sintagma “capoeira”
portal capoeira, parece-nos ser conveniente conforme dissemos, tem maior destaque nesta
dividí-lo inicialmente em duas de suas apresentação, sendo escrito em letras de forma
sentenças. Por um lado, Nado sincronizado: e ainda entre aspas. De modo resumido,
dueto brasileiro mostra sua capoeira, e por chegamos à ideia de que o enunciador objetiva
outro, Gingas, aús e pontapés. Os movimentos mediante este discurso criar um efeito de
típicos de capoeira foram parar na água [...]. sensação e ao mesmo tempo eufórico sobre a
capoeira, tal efeito nos leva a pensar que esse

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enunciado tem o caráter de exibir (valorizar?) a de identidade brasileira através da capoeira.
prática da capoeira. Nado sincronizado: Dueto brasileiro mostra
sua “CAPOEIRA”, pode ser reformulado das
Tendo sido aparentemente no interior de
seguintes maneiras; dueto brasileiro mostra “o
um discurso exibicionista, tentamos depreender
orgulho nacional”, demonstra “o destaque do
aspectos ligados à construção desse texto
Brasil em relação a outros países”. Ou ainda,
através o exame de certas distinções entre tipos
“O Brasil faz história” no domínio do nado
de capoeira que este enunciado aponta por meio
sincronizado pela capoeira; “A capoeira é uma
do silêncio. Articulando nossa reflexão desta
prática específica e exclusivamente brasileira”;
maneira, avançamos a ideia de que nesses
entre outras reformulações possíveis. Nesta
enunciados, uma vez que são unidades do
ótica, é questão de inscrever a capoeira numa
discurso, existem palavras atravessadas pelo
silêncio (ORLANDI, 1997, p. 70), denominado história sensacional e, ao mesmo tempo, até
pela precursora da AD no Brasil, o silêncio então inigualado no domínio do esporte,
fundador ou fundante. O silêncio de que fala a precisamente, na categoria dos esportes
autora “não é ausência de sons ou palavras”. aquáticos que enfatizam harmonia e coerência
Trata-se desse que é “o princípio de toda dos movimentos corporais. Ao resumir essa
significação”. Com base na proposta de Orlandi passagem, diríamos que o enunciado tende
(ibid.) observemos o fato de enunciar sua inserir a capoeira numa história do esporte no
capoeira - qual é essa capoeira? - a) é a Brasil, tal como indica o título do livro
capoeira do dueto brasileiro de nado organizado por Priore e Melo (2009)4 Soares e
sincronizado; b) é a capoeira do Brasil; c) é a Abreu (2009) dedicam um capítulo à saga da
capoeira praticada no Brasil; d) é uma/ a/ capoeira no século XX.
específica forma de capoeira; e) atualmente é/ a Ao mesmo tempo, podemos conceber
única/ a/ uma forma de capoeira vigente na este enunciado como a materialização do
sociedade em relação à sua forma antiga. De contato entre a ideologia e a língua. Tal como
acordo com Orlandi é aquilo que instala o limiar se encontra em Pêcheux (2010 [1969]), o
do sentido, quer dizer o silêncio como uma postulado de que o discurso é efeito de sentido
condição de produção de sentido. Direcionando entre interlocutores, o não dito regido pelo
nosso olhar para uma análise do não dito, o silêncio igualmente produz o sentido entre
leitor pode perceber a partir dos apontamentos interlocutores, porque “é história, e que, dada a
indagativos expostos acima, a possibilidade necessária relação do sentido com o imaginário,
deste enunciado de (re) criar efeitos emotivos e é também função da relação (necessária) de
sobretudo, de evidenciar a capoeira como língua e ideologia” (ORLANDI, 1997, p. 22-
ferramenta especificamente brasileira (em 23; grifo da autora). Logo, podemos pensar nos
relação às demais nações), além de inseri-la no efeitos de sentidos que este enunciado produz,
âmbito esportivo. Acompanhando de perto essa tendo em vista as relações entre formações
nossa interpretação, acreditamos que o que discursivas em que ele se inscreve. É também
parece ser divulgado do ponto de vista da
disposição (fácil acessibilidade) própria do 4
PRIORE, Mary Del; MELO, Victor Andrade de. (Orgs.).
enunciado no site é um incentivo à construção História do esporte no Brasil: do Império aos dias atuais. São
Paulo: Editora UNESP, 2009. 568p. il.

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necessário e imperioso nos debruçar sobre os pode depreender além da materialidade
efeitos contraditórios da produção de sentidos simbólica deste enunciado, uma materialidade
na relação entre o dizer e o não dizer. Essa histórica formada pelas relações sociais entre as
empreitada, segundo Orlandi “nos ensina determinadas FDs em meio às quais o sujeito
também que, embora seja preciso que haja discursivo prepara e formula seu falar,
sentido para se produzir sentidos [...]”, estes provocando desse modo, agitações nas filiações
não estão nunca completamente já lá. Eles do sentido nas práxis discursivas.
podem chegar de qualquer lugar e eles se Tomando esse discurso possibilitado
movem e se desdobram em outros sentidos pela FD que o rege, vemos a partir de uma
(1997, p. 24). visada parafrástica, que a invocação “capoeira”
Lembramos ainda que, pelo fato de as deixa de ser uma “luta” conforme designavam
FDs serem instâncias que determinam o dizer e os pressupostos expostos no primeiro capítulo,
que se configuram como matrizes da produção mas sim uma ferramenta esportiva e uma
do sentido, é possível identificar a regularidade garantia de construção da identidade brasileira,
discursiva em que se materializa o poderia-se considerar dentro da cadeia
posicionamento ideológico e, por conseguinte, parafrástica, a palavra “capoeira” é restringida
apreender o que este discurso determina que se do seu significado, ela é fechada do seu sentido,
pode e se deve dizer e os sentidos que ele ou seja, ela é isolada do seu caráter
produz sobre a capoeira. Para tanto, levantamos polissêmico, fato esse que consolida a
um ponto essencial para compreendermos a objetividade e a subjetividade dos processos
intervenção dos agentes históricos neste discursivos; “capoeira” ao ser evocado nesta
processo discursivo, qual sejam as condições de circunstância e desta maneira, pode designar “o
produção, pois acreditamos que a partir delas Brasil inteiro”, em razão do quadro esportivo
será possível mais bem identificar as FDs que no qual é inserida: competição internacional.
constroem sua regularidade. Dessa maneira, Em dueto brasileiro mostra sua capoeira,
voltemos ao referido pronunciamento de podemos detectar um caráter de identidade por
Getúlio Vargas acima exposto. Olhando de meio dos recursos linguísticos utilizados, ou
perto, observamos que o lema o esporte como seja, pelas escolhas lexicais, “brasileiro”, “sua”
política de Estado na era Vargas (Drumond, que mostram a maneira pela qual o dizer é
2009, p. 213), se (re) atualiza no jogo do determinado pela instância socio-ideológica, em
interdiscurso. Porquanto se percebe, como é meio à qual, as FDs impõem o que se deve
forte o sentimento nacional! O que confirma a dizer (PÊCHEUX, 2010 [1969]).
inscrição deste enunciado na rede de outros Tornemos nossa atenção à segunda
enunciados, ou seja, este discurso produz
sentença do texto em análise,
efeitos de sentido a partir do já-dito que ele
retoma e desdobra. Dessa forma, Dueto Rio de Janeiro/RJ – Gingas, aús e pontapés.
brasileiro mostra sua “CAPOEIRA” estabelece Os movimentos típicos de capoeira foram
um laço com a história e cria, por essa via, um parar na água...
espaço para uma memória discursiva na relação Temos algumas informações sobre o lugar onde
entre sujeitos inseridos na história. O leitor ocorre o evento, Rio de Janeiro; de que se

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trata? Competição de nado sincronizado; o que nacionais. Compreendido também como uma
parece estranho? Os movimentos típicos de construção heterogênea, esse discurso marca
capoeira foram parar na água... A um lugar de debate e de conflito entre outros
circunstância pode ser observada no discursos que o atravessam, constituindo uma
delineamento da sequência verbal que segue os colusão entre o interdiscurso e o intradiscurso
enunciados em destaque, isto é, 4° Brasil assumida pela cadeia parafrástica para fins de
Synchro open, e nesta mesma sequência identificar dizeres que apontam a capoeira
podemos ler: como “luta” e por esse meio operar pela (des)
identificação a estes. Isto se depreende através
A competição conta com nove países além do
dos referidos movimentos corporais, gingas, aús
Brasil e entre eles a Ucrânia trouxe uma
e pontapés. Na esteira dessa reflexão,
novidade: o dueto misto de Oleksandra Sabada
descartamos todo sentido literal, no objetivo de
e Anton Timofeyev. Os dois voltam à piscina
debruçarmos numa busca de efeitos de sentidos
no domingo e já entraram para a história como
efetivamente produzidos. Quer dizer,
a primeira dupla mista a se apresentar
colocamos em xeque a invocação Rio de
oficialmente no país.
Janeiro/RJ – gingas aús e pontapés, que auxilia
Essa sequência verbal apoia a ideia que para compreendermos o embate entre discursos
inscreve a capoeira no interior de uma novidade da tradição e da modernidade. Pois, ao (re)
no domínio do nado sincronizado, sendo uma apresentar Rio de Janeiro como lugar do
ferramenta peculiar ao Brasil e cujo acontecimento discursivo, o enunciador cria um
desempenho sensacional nesta esfera merece ser espaço para uma memória discursiva, ou seja, o
ostentado, em comparação à criatividade sujeito falante indica uma das cidades míticas
trazida por outrem. Gingas, aús e pontapés, são onde a capoeira se formou e teve impulso
a priori movimentos que determinam a inicial, baseada essencialmente nos movimentos
agilidade do corpo, quando da execução da corporais supracitados, que precisam de uma
capoeira. Porém, neste discurso depreendemos certa agilidade e força, que por sua vez, incidem
uma construção enunciativa em que o sujeito na brutalidade e, às vezes, fatais. Emprestando
enunciador busca deslocar e ao mesmo (des) as palavras de Soares e Abreu (2009, p. 246),
construir o pensamento sobre esses diríamos que “esta era a capoeira do século
“movimentos típicos de capoeira”. No mesmo XIX: uma capoeira bastante diferente daquela
gesto desconstrói o uso do corpo comumente que conhecemos hoje... com forte presença
conhecido na capoeira. A partir da palavra escrava e africana”.
“água”, observa-se, segundo o posicionamento
Assim, considerando o efeito de sentido
ideológico do enunciador, uma tendência a
devido da formação discursiva na qual esse
direcionar o olhar do usuário em outro terreno,
enunciado é produzido, pode-se pensar no
gingas, aús e pontapés. Os movimentos típicos
estabelecimento de forças entre a tradição na
de capoeira parecem aqui, responder a um fato
qual a capoeira foi formada em confronto com
extra-ordinário ou doravante os movimentos
atributos que lhe são conferidos pelo discurso
típicos – de capoeira – deveriam também parar
moderno, a saber, sua execução num terreno
na água, quer dizer, servir para outro âmbito,
que lhe “era” alheia antigamente.
ou ainda, ser utilizados para outros objetivos

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433
fragmentos de discursos anteriores, ou seja, se
Posto isso, compreende-se que a
constrói apoiando-se em dados alhures, somos
tradição da capoeira tipicamente “luta”, através
obrigados a direcionar nosso olhar para
das gingas, aús e pontapés, sofre uma
questões historicamente constituídas, isto é, a
desconstrução, ao entrarem em cena fatores de
presença dominante do gênero masculino e
ordem social e política cujos objetivos e
especificamente negro nessa prática
enfoques tendem a (re) orientar e (re)
controvertida à imagem da mulher e do branco
dimensionar essa prática segundo as novas
na mesma, e o discurso que desconstrói essa
demandas e exigências no domínio da
acepção histórica. Quer dizer, observamos a
mercantilização cultural. Paralelamente ao que
partir deste discurso um deslocamento do porte
acaba sendo dito, o uso do corpo através das
físico dos praticantes (ou seja, o correto seria, o
gingas e dos pontapés na capoeira (do dueto
porte físico de Luisa Borges e Maria Eduarda
brasileiro) é considerado como um elemento
Micucci), que produz o efeito suave, com mais
estético encarnado pela figura da “mulher”,
tranquilidade e, sobretudo harmonizado,
souplesse et douceur au rendez-vous! E, ao
segundo a coreografia à qual os movimentos
mesmo tempo, tomado para finalidade artística,
obedecem. Isto confere uma dimensão artística
pois obedece a uma ordem coreográfica. Vê-se
à capoeira em oposição à sua execução em que
desse modo um deslocamento de significados
a constituição do corpo podia ser depreendida
orquestrado pela formação discursiva à qual se
como luta. De modo paralelo, este fato orienta
filia o enunciado.
reflexões sobre o gênero dos praticantes;
De outro ângulo, se examinarmos, “os feminino, e sua etnia; brancas.
movimentos típicos de capoeira”, vemos que a
4. Considerações finais
construção frasal possui um sintagma nominal
definido pelo artigo “os” ao qual ainda sucede Em poucas palavras, se por um lado a
seu núcleo “típicos”, que em conjunto assinalam capoeira é trazida ao palco dos esportes
que não é qualquer movimento de capoeira, aquáticos e aí enxergada eufórica e
mas de movimentos de capoeira já presentes, já “possessivamente”, na medida em que isto
preestabelecidos, contudo, aqui a “guerra” não concorre para ostentar os ideais de construção
existe mais, não se trata mais da capoeira de de identidade brasileira, por outro, não é
escravos negros, aqui só há competição manifestado neste discurso a implicação
saudável e de noção de capoeira contra outra africana na constituição desta prática e ainda
noção. Com base nessa construção exterior ao menos o caráter cultural deste movimento faz
enunciado, produzem-se efeitos de contraste se ausente neste dizer. Almejamos na sequência
com sua própria estrutura, isto é, ginga, aús e deste trabalho trazer e analisar outros falares
pontapés evidencia uma evocação de um todo que circulam neste portal eletrônico, assim
por meio de uma parte, contudo, foram como dizeres presentes em outros sites
movimentos executados pelo dueto brasileiro, a enumerados nos passos anteriores deste
saber, Luisa Borges e Maria Eduarda Micucci. trabalho. Pois, acreditamos que somente ao fim
Logo, considerando esse enunciado atravessado destas análises que chegaremos aos nossos
pelo “já-dito” ou pelo “já lá” (Pêcheux 2010, resultados finais. O empreendimento futuro
[1969]), na medida em que ele recupera deste estudo, portanto, prevê dar continuidade

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às análises dos dados, seguidas de
interpretações com vistas a confirmar ou
infirmar nossa hipótese.
Referências
CASHMORE, E. Dicionário de relações
étnicas e raciais. São Paulo: Selo Negro,
2000.
DRUMOND, M. O esporte como política
de Estado: Vargas. In: PRIORE, M. del.;
MELO, V. A. de. (Orgs.). História do
esporte no Brasil: do Império aos dias
atuais. São Paulo: Editora UNESP, 2009.
FONSECA, D. J. Políticas públicas e
ações afirmativas. São Paulo: Selo Negro,
2009.
ORLANDI, E. P. As formas do silêncio:
no movimento dos sentidos. 4a ed.
Campinas: Editora da UNICAMP, 1997.
PÊCHEUX, M. [1969]. Análise
automática do discurso. In: GADET, F.;
HAK T. (Org.). Por uma análise
automática do discurso: uma introdução à
obra de Michel Pêcheux. Trad. Bethania S.
Mariani [et. al.] 4a ed. Campinas, SP:
Editora da Unicamp, 2010.
SARAVIA, E. O conceito de política
pública - Introdução à teoria da política
pública. In SARAVIA, E.; FERRAREZI,
E.(Org.). Políticas públicas; coletânea v 1
– Brasília: ENAP, 2006. 2 v.
SOARES, C. E. L; ABREU, F. J. de. No
caminho do esporte: a saga da capoeira no
século XX. In: PRIORE, M. del; MELO,
V. A. de. (Orgs.). História do esporte no
Brasil: do Império aos dias atuais. São
Paulo: Editora UNESP, 2009.

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REPRESENTAÇÕES DA CENSURA EM NAVALHA NA CARNE
DE PLÍNIO MARCOS: UMA ANÁLISE DISCURSIVA DAS
RELAÇÕES ENTRE TEATRO, REPRESSÃO E MÍDIA NO
BRASIL

Denise Aparecida de Paulo Ribeiro LEPPOS


Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
de_depaula21@hotmail.com

Resumo: Escrita em 1967, Navalha na carne coloca em cena três personagens excluídas que
vivem em um jogo de dominação que (re)produz a miséria moral das injustiças sociais que
sofrem. Inserida no contexto ditatorial, a obra era vista como uma afronta ao governo vigente
por utilizar uma linguagem marcadamente coloquial e as vezes obscena para retratar o mundo
marginalizado da qual suas personagens fazem parte. Desta maneira, o intuito desta
proposição é, com base na Análise do Discurso, empreender uma abordagem das
correspondências entre a constituição, a formulação e a circulação do discurso (Orlandi,
2012), a partir da qual consideraremos particularmente, as possíveis relações entre teatro,
censura e mídia neste contexto autoritário.
Palavras-chave: plínio marcos; teatro; censura; mídia.

predominantes de suas discursividades tal


Introdução
como o discurso religioso o fora para a
As práticas da sociedade contemporânea Idade Média. O poder de difusão das ideias
de apreensão e compreensão da vida estão religiosas e os artifícios empregados para
fundamentadas num processo de refinamento da isso eram notáveis: fosse pela arquitetura
abstração do mundo. Esse processo de das grandes catedrais; fosse pelo domínio
abstração do pensamento foi promovido por um editorial tanto da produção dos livros (os
amplo processo histórico-cultural, que monges escribas e iluminadores), quanto a
sua divulgação e venda aos fieis
contribuiu para o desenvolvimento das práticas
(FERREIRA, 2006, p. 21).
interpretativas textuais que desmaterializam os
objetos culturais, os textos verbais e não-
verbais e midiáticos. Como é sabido, as dramaturgias
brasileiras nascem à sombra da igreja católica,
Há discursos que perpassam determinadas por volta do século XVI, com o objetivo de
sociedades, caracterizando-se como fontes catequizar os índios e propagar a fé, sendo

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sagrado e o profano (PRADO, 2003, p. 21).
considerado por vários religiosos um
instrumento pedagógico.
Reiterando Prado (2003),
Padre José de Anchieta foi um dos sinteticamente, durante o período de domínio
poucos escritores de dramaturgia que teve português, “diríamos que o teatro brasileiro
algum reconhecimento escrevendo autos (antiga oscilou, sem jamais se equilibrar, entre três
forma de se compor uma obra teatral), visando, sustentáculos: o ouro, o governo e a Igreja
como já fora dito, a catequização indígena, católica” (PRADO, 2003, p. 27).
além de fazer a integração entre índios,
portugueses e espanhóis. Suas construções É nesse contexto político – ideológico que se
dramáticas partiam sempre de uma festividade institui o teatro no Brasil como prática
religiosa, como a celebração do santo padroeiro artística e não pedagógica ou evangélica
da aldeia. Valia-se de personagens que iam como antes, quando promovido pela Igreja.
desde homens até demônios encarnados, A construção da primeira casa de
espetáculos oficial do Brasil data de 1763 –
[...] além de figuras alegóricas, como o a Casa da Ópera, erguida no Rio de Janeiro
Temor e o Amor de Deus. A representação sob as ordens do vice-rei D. Antonio
completava-se com cantos e danças, nas Álvares, conde da Cunha. Ela viria
quais os índios, sobretudo os meninos, substituir os tablados construídos em praça
tomavam parte, e, ao que parece, com graça pública para encenação de autos e os salões
e alegria (PRADO, 2003, p. 20). do palácio do governador onde companhias
itinerantes se apresentavam à elite colonial.
(COSTA, 2006, p. 43).
Esse universo ficcional ao qual
celebravam possuía um caráter itinerante, uma
vez que em grande parte o espetáculo teatral Passados esses séculos de implantação
era realizado em forma de procissão, com do teatro no Brasil com a Igreja e seu posterior
paradas em lugares distintos e determinados por deslocamento para o campo artístico
alguma crença, sempre abordando temas propriamente dito, chega-se ao teatro do século
religiosos. XIX.
A partir do século XVII, esperava-se Já no início do século XX, a história do
que ocorresse um grande crescimento no teatro no Brasil foi marcada por dois
âmbito dramático fora das amarras da Igreja, paradoxos: i) liberdade, nesse momento a Igreja
porém não foi o que aconteceu, pois ela ainda já não conseguia mais exercer seu poder na arte
desempenharia um papel importante para o dramática; e ii) repressão, em relação a crise
desenvolvimento e propagação das artes política que assolava o país. E é durante a
cênicas, segunda metade deste mesmo período, que
surgirá uma nova conjuntura política e social,
[...] pelo menos até meados do século no interior da qual serão criadas novas
[XVIII]. Uma religiosidade difusa e mal condições de produção para o teatro brasileiro
compreendida infiltrava-se de resto em todas contemporâneo, a saber, a Ditadura Militar.
as atividades sociais da Colônia, esbatendo,
como em Portugal, as fronteiras entre o

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simples fato de fazê-lo existir (MENDES,
1. A dramaturgia pliniana: o “perigo” ao 2009, p. 15).
militarismo
Com o silenciamento1 das artes Plínio Marcos incomodava as
dramáticas durante os anos 1950 até meados autoridades da época, que concebiam suas
dos anos 1980, a forma encontrada para fugir obras uma afronta ao modelo social
da censura foi aquela do teatro de revista2, que conservador, de direita, e ao regime político
passaria a ser uma via privilegiada de expressão que vigorava nas décadas de 1960 e 1970, uma
dessa cultura popular. Inspirado nesta nova vez que, em suas peças encontravam-se
forma de fazer teatro, mas também no teatro de desveladas duras críticas à ordem imposta pelo
arena e do oprimido, Plínio Marcos apresenta militarismo. Por este motivo, participou
enredos diferentes dos convencionais, ativamente de órgãos da chamada imprensa
colocando em cena o vulgo e os outsiders alternativa, ficando conhecido como “repórter
sociais instaurando, assim, um discurso de um tempo mau”, por relatar fatos ocorridos
dramático crítico e progressista. Em Bendito durante os anos de chumbo.
maldito: uma biografia de Plínio Marcos Tendo em vista o fato de que em suas
(2009), Oswaldo Mendes descreve como o obras definitivamente não se aborda a “arte pela
dramaturgo era visto pelos sistemas arte”, é preciso considerar que seus textos
controladores das práticas e dos dizeres: visavam a uma abertura política e estética que o
autor promoveu no teatro brasileiro.
Plínio Marcos aos olhos do Sistema que
governou o país a partir de 64, era o Neste momento a tendência que se
‘perigo’, aquele cujas palavras tinham o descortina era a de uma produção teatral com
poder de abalar estruturas, costumes, maior racionalidade política, motivo pelo qual o
regimes... Por que a proibição paulatina e Estado passou a controlar de maneira mais
reiterada de sua obra? Muito rígida às práticas artísticas.
provavelmente, a resposta está na raiz da
dramaturgia do autor: ele mostra como Essa repressão fazia-se apoiada na ideia de
‘gente’ aqueles que normalmente são que a função fiscalizadora do Estado era
considerados ‘marginais’ e traz ao palco exercida em nome da coletividade, ainda que
uma nova classe integrada por indivíduos esta fosse, na verdade, a elite e, dentro dela,
até então ignorados pela saga teatral, aos os conservadores. Nota-se também que essa
quais devota solidariedade irrestrita pelo fiscalização poderia e deveria ser repressiva,
de modo a torná-la visível tanto para o
1 reprimido como para aqueles em nome de
Termo definido por Eni Orlandi em As formas do
silêncio: no movimento dos sentidos, na qual o silêncio quem se reprimia (COSTA, 2006, p. 85).
é tido como a própria condição de sentido, isto é, “o
indício de uma instância significativa” (2009, p. 68). Dado o funcionamento da censura, que
2
O teatro de revista surge em meados do século XIX no se assentava nesses recursos, os artistas tinham
Brasil como um novo gênero de teatro para burlar a que enviar suas obras à Brasília para que fossem
censura federal. A revista tinha como principal objetivo analisadas, avaliadas e julgadas pelo
mostrar e criticar, de forma cômica, os acontecimentos
político-sociais.

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Departamento de Censura Federal3, que em
Navalha na carne, como já dissemos
ampla medida não se guiava por uma percepção
anteriormente, foi censurada durante a ditadura
artística, cuja finalidade fosse a de julgar as
militar brasileira por colocar em cena três
propriedades estéticas das obras que lhes
personagens excluídas que vivem em um jogo
haviam sido submetidas, mas o principal
de dominação que (re)produz a miséria moral
objetivo era o de coibir qualquer tipo de
das injustiças sociais que sofrem, são elas:
manifestação que se considerasse ser contrária
Neusa Sueli (a prostitua), uma mulher sofrida
ao governo vigente. Para burlar o sistema
que vende seu corpo para sobreviver e sustentar
censório, muitos artistas criavam pseudônimos
seu companheiro; Vado (o cafetão), sujeito
e outros tantos se utilizavam de léxicos próprios
egocêntrico, malandro e símbolo da
do teatro para terem suas obras liberadas para
masculinidade e Veludo (o homossexual), um
publicações e/ou encenações.
pederasta que adorava provocar brigas e
2. Navalha na carne: a cisão moral e política perturbar a relação conflituosa entre Neusa e
Exposto isso, por quais as razões Vado. Na figura que se segue vemos as relações
históricas e ideológicas fizeram com que de poder exercidas pelas personagens, em que a
Navalha na carne fosse alvo da censura durante prostituta é subalterna ao seu cafetão e em
o período ditatorial? menor intensidade ao faxineiro homossexual.
Figura 1. Fotonovela Navalhava na carne -
Uma vez que a Análise do Discurso
personagens
concebe a discursividade como a instância
privilegiada de materialidade da ideologia,
responderemos a indagação considerando as
condições de produção e formulação do
discurso, no intuito de identificar os efeitos de
sentido nos dizeres (re)produzidos pelas
personagens de Plínio Marcos.
Nesse sentido, podemos pensar que é
nesse espaço ideológico e nas relações de
dominação que as formações discursivas se
reproduzem e se desenvolvem e, ao mesmo
tempo, delimitam aquilo que pode e o que não
pode ser dito, estabelecendo em que
circunstâncias e de que modos é preciso falar e
Diante de sua censura, o dramaturgo
calar.
Plínio Marcos recorrerá a certo expediente para
que ela pudesse ser publicada. Sua estratégia foi
a de empreender uma transposição de seu texto
gênero peça, para o de fotonovela que foi
3
O Departamento de Censura Federal tinha sua sede em considerada como um subgênero da literatura, a
Brasília, no 4º andar do BNDE (Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico) e foi criado para regular e
fotonovela conjuga imagens e texto verbal com
proibir qualquer discurso contra o governo vigente. uma narrativa simples e objetiva.

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presença da exclusão e da repressão, tal como
Definida pelo negativo, a fotonovela era
uma censura, desta feita é sofrida e imputada
mal vista pelos grandes escritores e intelectuais
pelas personagens, que ora são oprimidas ora
da época. Por isso, ela foi considerada como a
assumem o papel de opressoras.
própria “contraprova” da obra de arte. Segundo
Joanilho (2008, p. 533), “é uma maneira Ademais, foi censurada por vários
perversa e insidiosa de reproduzir valores motivos, dentre quais, o de apresentar palavras
culturais conservadores e individualistas”. e frases consideradas de “baixo calão” e que
remetiam a conotações sexuais, tais como:
A composição material da fotonovela,
“Ficou em cima de mim mais de duas horas”;
desde seu suporte até os recursos visuais
“Nós vamos trepar! [...] Mas você vai trepar
(tamanho de fonte e pontuação), servem para
comigo!”; “Fez ela pegar o esquentamento da
demonstrar, por exemplo, a fisionomia e a
outra”; “Filho da puta”; “Vovó das putas é a
compleição física das personagens e também
velha que te pariu”; “Porra”; “Miniteiro”; “Só
para sugerir a entonação de suas vozes, como
abrir a perna e faturar” etc. “Quando se entra
podemos observar na figura abaixo. Vado está
na análise do problema da obscenidade,
em pé, numa posição superior à Neusa Sueli,
penetra-se, também, no controvertido campo da
que está ajoelhada aos pés do seu homem
‘moral’ das palavras” (PRETI, 1983, p. 62).
implorando compaixão.
Por essas razões, Navalha na carne foi
Figura 2. Relação de poder e submissão
em Navalhava na carne considerada um atentado ao pudor daqueles que
lessem a fotonovela e/ou assistissem a
encenação da obra, pois ia contra os preceitos
religiosos, conservadores e moralistas de parte
da sociedade brasileira, que foram intensificados
e agravados pelo regime militar.
3. Considerações finais
Conjetura-se, assim, que o controle
histórico e social do dizer e a produção do
discurso em toda sociedade seja
Realizada numa época em que sua
[...] ao mesmo tempo controlada,
manipulação editorial foi extremamente
selecionada, organizada e redistribuída por
artesanal, o alto contraste das imagens confere certo número de procedimentos que têm por
à peça um aspecto sombrio, característico da função conjurar seus poderes e perigos,
marginalidade da obra e do contexto em que se dominar seu acontecimento aleatório,
vivia. De fato, as fontes e o tamanho do corpo esquivar sua pesada e temível materialidade
do texto servem para enfatizar uma série de (FOUCAULT, 2008, p. 8-9).
aspectos das falas das personagens, de modo
que as propriedades prosódicas de suas vozes Em uma sociedade o procedimento de
reiterassem facetas do caráter de cada um. interdição é muito comum e, nem tudo pode e
Ainda, observamos nessa mesma obra, a deve ser dito em qualquer lugar ou

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circunstância. Cada discurso produz um efeito
FOUCAULT, M. A ordem do discurso. Trad.
de sentido de acordo com a sua colocação, ou
Laura Fraga de Almeida Sampaio. 17. ed. São
seja, sua enunciação.
Paulo: Edições Loyola, 2008.
Sabe-se bem que não se tem o direito de MARCOS, P. Navalha na carne. São Paulo:
dizer tudo, que não se pode falar de tudo em Senzala, 1968.
qualquer circunstância, que qualquer um,
enfim, não pode falar qualquer coisa MENDES, O. Bendito maldito: uma biografia
(FOUCAULT, 2008, p. 9). de Plínio Marcos. São Paulo: Leya, 2009.
ORLANDI, E. Análise de discurso: princípios e
Dessa forma, concluímos que o controle procedimentos. 8. ed. Campinas: Pontes, 2009.
do dizer estende-se manifestamente pela
______. Discurso e texto: formulação e
dimensão moral no que tange à proibição de
circulação dos sentidos. 4. ed. Campinas:
peças, mas ao mesmo tempo liga-se
Pontes, 2012.
evidentemente à dimensão política. Tendo em
vista o caráter indissociável dessas duas PRADO, D. A. História concisa do teatro
instâncias, suas coerções e suas injunções, as brasileiro: 1570 - 1908. São Paulo: Edusp,
quais podemos relacioná-las constantemente: na 2003.
política, ocasião em que será focalizado o fato PRETI, D. A linguagem proibida: um estudo
de não se poder tratar de temas polêmicos e sobre a linguagem erótica. São Paulo: T. A.
contestadores da ordem, das hierarquias e das Queiroz, 1983.
divisões sociais e, na moral, ao falar de um
modo e não de outro, em uma relação
linguística, histórica e ideológica.

Referências
BERTHOLD, M. História mundial do teatro.
Trad. Maria Paula V. Zuraswki, J. Guinsburg,
Sérgio Coelho e Clóvis Garcia. São Paulo:
Perspectiva, 2001.
COSTA, C. Censura em cena: teatro e censura
no Brasil. São Paulo: EDUSP: FAPESP:
Imprensa oficial do Estado de São Paulo, 2006.
FERREIRA, L. C. Práticas de leitura
contemporâneas: representações discursivas do
leitor inscritas na revista Veja. 2006. Tese
(Doutorado em Linguística), Universidade
Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho
(UNESP), Araraquara, 2006.

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UMA ANÁLISE DO DISCURSO DAS TIRINHAS DA
MAFALDA: INTERDISCURSO E MEMÓRIA DISCURSIVA NA
CONSTRUÇÃO DO SENTIDO

Ana Michelle de Melo LIMA


Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN)
anamichellemelo@hotmail.com

Resumo: Partindo de uma abordagem discursiva da linguagem, objetivamos, neste


trabalho, realizar uma análise do discurso das tirinhas da Mafalda, verificando como
acontece a construção dos efeitos de sentido nesse enunciado. Nosso aporte teórico é a
Analise do Discurso de vertente francesa, a partir da contribuição de Michel Pêcheux
(1997) e Michel Foucault (2007) para a teoria do discurso. Nossa pesquisa destaca como
objeto de estudo, as tirinhas da personagem Mafalda. Justificamos essa escolha, pelas
condições de produção do discurso, as quais remetem a situações de diferenças sociais e
econômicas na sociedade, além de ser um enunciado discursivo que favorece a
construção de diferentes efeitos de sentidos. A metodologia enfatiza a teoria de Pêcheux e
Foucault a cerca do discurso, mobilizando categorias no processo de análise, tais como:
sentido, sujeito, discurso, formação discursiva, enunciado, memória discursiva,
interdiscurso e relações de poder-saber.
Palavras-chave: sentido; discurso; memória discursiva.

acontece a construção dos efeitos de


Palavras Iniciais
sentidosnesse enunciado, a partir das
A linguagem é um espaço discursivo contribuições de Michel Pêcheux (1997) e
que possibilita a comunicação entre os Michel Foucault (2007) para a teoria do
sujeitos, uma vez que seus discursos discurso. Para o processo de investigação
produzem sentidos distintos, tendo por base tomamos as categorias mobilizadas no
os fatores históricos, sociais. O sentido de um processo de análise, tais como: sentido,
discurso é fabricado perante determinadas sujeito, discurso, formação discursiva,
condições de produção, relacionadas com a enunciado, memória discursiva, interdiscurso
exterioridade, isto é, com a história. Nas e relações de poder-saber.Nossa pesquisa
palavras de Gregolin (2001, p.9) “o fazer destaca como objeto de estudo as tirinhas da
sentido se estabelece nos processos personagem Mafalda, em virtude das
discursivos que envolvem os sujeitos com os condições de produção do discurso, as quais
textos e ambos com a história”. remetem as situações de diferenças sociais e
Nesta perspectiva, objetivamos neste econômicas, uma vez que apresentam
trabalho realizar uma análise do discurso das discursos que favorece a construção de
tirinhas da Mafalda, verificando como diferentes efeitos de sentidos.

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efeito de sentido completamente distinto em
Em suma, faremos um percurso uma situação adversa.
teórico para ressaltar os pressupostos acerca
da teoria do discurso, ressaltando a produção Bebendo da teoria de Foucault
dos efeitos de sentidos. Posteriormente (2007/SP) destaca o discurso como:
realizaremos as análises, destacando o objeto
[...] Conjunto de enunciados que se apoia
investigado, isto é, duas tirinhas da na mesma formação discursiva, fragmento
personagem Mafaldaque remetem situações de história, unidade e descontinuidade na
de diferenças sociais econômicas, que própria história. Sistema de dispersão e de
favorecem a construção de efeitos de sentido repetição, não das formulações das frases
distintos. ou das proposições, mas dos enunciados.
Conjunto de enunciados que se apoia em
Percurso Teórico
um mesmo sistema de formação; é assim
O estudo sobre a linguagem que poderei falar do discurso clínico, do
desencadeia uma série de discussões e teorias discurso econômico, do discurso da
distintas, em que a Análise do Discurso história natural, do discurso psiquiátrico.
disponibiliza grandes nomes que se dedicam a
estuda-las, como Michel Pêcheux e Michel Partindo deste viés, os discursos são
Foucault. O estudo sobre o discurso sofreu produzidos pelos enunciados marcados pela
várias transformações ao longo da história, a dispersão, descontinuidade. Os enunciados se
partir de novos estudos desenvolvidos a cerca operam por conceitos e temas distintos, a
de problemáticas, nas quais os pesquisadores partir da regularidade, isto é, a ordem do
citados se enquadram, perfeitamente,nesse dizível, pois todo discurso é regulado,
quadro de transformações, ao lançarem novos regulamento, ou seja, apresenta a ordem do
olhares a partir de retomadas e discurso que constitui uma formação
deslocamentos. Tomando o estudo do discursiva. Desse modo, o discurso ganha
discurso ressaltamos as palavras de Pêcheux forma a partir do conjunto de enunciados que
(1997c, p. 160) ao caracteriza-lo como: remetem a uma formação discursiva, que
determina o que pode ser dito e não dito em
O sentido de uma palavra, expressão, um espaço discursivo.
proposição, não existe em si mesmo (isto A construção de sentido de um
é, em sua relação transparente com a
discurso está relacionada com o lugar
liberdade do significante), mas, ao
contrário, é determinado pelas posições histórico e social que se enuncia, ressaltando
ideológicas colocadas em jogo no a posição que o sujeito social ocupa para
processo sócio histórico no qual as operar um efeito de sentido e não outro. O
palavras, expressões, proposições são lugar que os sujeitos enunciadores se
produzidas. encontram no processo de discursivização
envolve a situação e o contexto
O discurso se produz a cerca de um operacionalizado, isto é, as condições de
sentido, a partir do momento que é produzido, produção do discurso. Diante disso, os efeitos
isto é, discursivizado, diante da posição do de sentido são fabricados a cerca da posição
sujeito que o emprega. O sentido de palavras que o sujeito ocupa, levando em consideração
e expressões pode mudar, pois não existe um aspectos histórico-sociais, tendo em vista que
sentido único, literal, esse fato pode ser pode desenvolver outro efeito de sentido, se
percebível a partir de discursos que ao serem relacionado a uma situação ou momento
construídos a cerca de um tema, em um diferente. (FERNANDES, 2005).
determinado momento, podem apresentar um

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estabelece estratégias discursivas em seu
Partindo pelos pressupostos de enunciado, na medida em que todo discurso é
Pêcheux (1997) a formação discursiva é tecido a cerca de vontade de verdade e desejo.
determinada pelas posições ideológicas (GREGOLIN, 2001).
colocadas em jogo no processo social
histórico em que as palavras, expressões e O interdiscurso é definido como fonte
preposições são produzidas. Perante este de memória, pois a relação que se estabelece
pressuposto, a formação discursiva se constrói entre os discursos em um gênero discursivo
atravésdo posicionamento do sujeito na éidentificada por meio da memória, quando
interação comunicativa, marcado pelo associamos o enunciado que foi
momento histórico e social que se estabelece. discursivizado com outro dito anteriormente,
Nas palavras de Pêcheux: que pode ser reconhecido pelas pistas
presentes. A memória discursiva em Pêcheux
Uma formação discursiva não é um (1990) é um conjunto complexo pré-existente
espaço estrutural fechado, pois é e exterior ao organismo, constituído por uma
constantemente ‘invadida’ por elementos série de tecidos de índices lisíveis, que
que vêm de outro lugar (isto é, de outras constitui um corpo sócio histórico de traços.
FD) que se repetem nela, fornecendo-lhe A memória se constrói diante dos elementos
suas evidências discursivas fundamentais existentes, exteriores (história), por meio de
(por exemplo, sob a forma de ‘pré-
acontecimentos que são relembrados e
construído’ e de ‘discursos transversos’).
associados aos discursos atuais.
(Pêcheux, 1990b)
(GREGOLIN, 2001).
Em suma, para Pêcheux a formação A memória discursiva se configura
discursiva é um espaço constantemente como o resgate da exterioridade, das relações
invadido por outras formações, que se com a história, percebidas através da memória
materializam por diferentes gêneros social e coletiva. A memória é operada ao ser
discursivos auxiliados por suportes distintos. retomada, resgatada, através de discursos
Pêcheux (1990) opera a ideia do pré- produzidos na atualidade, porém já
construído, os já ditos, que potencializa a discursivizados, o que possibilita ao sujeito
ideia de que não existe um discurso único, social a associar esse discurso a outro,
originário, puro, não somos donos de nossos levando em consideração que todo discurso
discursos ou a fonte deles. Os discursos ao quando produzido é marcado pela presença de
serem produzidos se relacionam com os já outros dizeres, que podem ser retomados a
existentes, uma vez que já foram qualquer momento. (GREGOLIN, 2001).
mencionados anteriormente, esses discursos Nesta perspectiva ressaltamos as palavras de
são chamados de ‘interdiscurso’, Foucault (2007/SP) ao afirmar que a
caracterizado como a relação que existe entre linguagem parece sempre povoada pelo outro
um discurso ao ser discursivizado com outro [...].
já dito.
Partindo da perspectiva de que o
Nesta perspectiva,o interdiscurso é interdiscurso é operado pelos enunciados ao
considerado como um espaço discursivo e serem discursivizados com os já ditos, isto é,
ideológico, no qual se desenvolvem as dizeres que circulam na história, Foucault
formações discursivas em função das relações (1991, p.21) salienta que “o novo não está no
de dominação, subordinação, contradição. O que é dito, mas no acontecimento de sua
interdiscurso é um campo de fabricação de volta”. Diante disso, os enunciados quando
discursos que relacionam o que é discursivizados não se configuram como
discursivizado com o pré-construído, em que discursos novos, em decorrência dos já ditos,

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pois não existem discursos originários, puros,
o que apresentará significado de novo será o Tomando as relações de poder na
acontecimento que esse discurso irá narrar. sociedade, destaca-se o lugar que os sujeitos
sociais ocupam no processo de comunicação,
Bebendo da tese de Foucault (2005) tendo vista que sua posição estabelece
partimos do pressuposto de que os discursos relações de poder na medida em que enuncia
ao serem fabricados estabelecem relações de lugares sociais distintos, marcados por
poder-saber, no qual são agenciados pelo correlações de força, e assim contribuem para
entrecruzamento das práticas discursivas dos a fabricação de uma viva vontade de verdade
sujeitos com os saberes e as instituições. inscritos em uma rede de memória.
Partindo deste viés, as relações de poder se (SANTOS, 2012).
materializam na medida em que os
enunciados são discursivizados, isto é, por Nesta perspectiva, as relações de
meio da ação discursiva, no qual buscam poder não se exercem como um sistema
sustentar seus discursos em uma vontade de fechado de disciplinas, mas como um
verdade. Para que os discursos transmitam conjunto coletivo, através do poder que
essa carga positiva, isto é,conceito de exerce de forma imaterial, pois a dominação
verdade, éutilizado estratégias discursivas por operante nesse processo materializa-se não
meio do saber em que os sujeitos se apoiam somente por instituições, mas por toda parte
para convencer e manipular, desencadeando o uma vez que ultrapassa os muros dessas
desejo de poder sobre o outro. Partindo sobre organizações. Em suma, a posição que os
o pressuposto de vontade de verdade, sujeitos ocupam na enunciaçãodesencadeia as
Foucault (2006, p. 20) destaca que: relações de poder por serem lugares distintos,
nos quais os discursos são fabricados a partir
Assim, só aparece aos nossos olhos uma do que pode ser dito e não dito, pois os
verdade que seria riqueza, fecundidade, discursos são selecionados, regulados por
força doce e insidiosamente universal. E uma ordem, que dará forma a construção de
ignoramos, em contrapartida, a vontade de sentido desses discursos, levando em
verdade, como prodigiosa maquinaria consideração as relações dos aspectos
destinada a excluir todos aqueles que, histórico-sociais com a linguagem para a
ponto por ponto, em nossa história,
produção de sentidos. (SANTOS, 2012).
procuraram contornar essa vontade de
verdade e recoloca-la em questão contra a Os efeitos de sentidos em Mafalda
verdade.
A linguagem é um espaço que está em
Assim sendo, os enunciados quando constante transformação, permite que se
discursivizados pelos sujeitos procuram estabeleça a comunicação social, seja por um
revestir de sentido as ações discursivas que discurso verbal ou não verbal. Os discursos
estabelecem na interação comunicativa, nascem através do diálogo com outros
impondo verdades em seus discursos, como discursos, uma vez que está relacionado com
anseio de exercer o controle, o poder, e assim o exterior, desenvolvendo a noção de
contribuir para a produção dos sujeitos interdiscurso, agenciado pelo pressuposto que
considerados como docilizados, fabricados a linguagem parece sempre povoada pelo
através da submissão e aceitação em virtude outro [...] como afirma as palavras de
das relações de poder que se estabelecem na Foucault (2007) ressaltando que os discursos
enunciação, as quais deveriam ser tratadas estão relacionados com outros dizeres, a partir
com um olhar mais crítico. do pré-construído que são resgatados através
da memória. Pêcheux (1990) pensa no
interdiscurso como fonte da memória, em

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virtude de que a memória é uma condição no menciona “quando eu vejo um pobre fico com
funcionamento discursivo na produção de o coração apertado”, demonstrando um
interpretação, isto é, para fabricação do sentimento de humanismo com o próximo,
sentido. também reflete uma tristeza por não ter a
solução do problema. O enunciado da
Para oestudo de investigação na
Mafalda,ao ser discursivizado, retoma a ideia
construção dos efeitos de sentido nas tirinhas
de interdiscurso, marcado pela relação que
da personagem Mafalda, destacamos as
estabelece através do enunciável com o pré-
categorias utilizadas para análise,sentido,
construído, isto é, os já ditos, mencionados
sujeito, discurso, formação discursiva,
em algum momento na história. Esses
enunciado, memória discursiva, interdiscurso
discursos já ditos são resgatados, retomados
e relações de poder-saber, com o suporte
através da memoria discursiva, que se
teórico de Michel Pêcheux (1990) e Michel
relacionam com o enunciado atual, como é
Foucault (2007) entre outros autores que
visto no discurso da Mafalda, o qual retoma
contribuíram. O objeto analisado configura-se
através da memoria um assunto que há muito
com a análise de duas tirinhas da personagem
Mafalda. tempo desperta fortes emoções e
discussões,como é o caso das desigualdades
A primeira tirinha em investigação socioeconômicas.
reflete um cenário comum na década de 60,
Os problemas socioeconômicos, isto é,
em virtude do posicionamento da sociedade
as desigualdades sociais, estão totalmente
com relação aos problemas sociais e
esquecidas, podendo ser percebível através
econômicos do país, juntamente com as forças
dafabricação do discurso da Mafalda,que
governamentais representados no discurso de
destaca as necessidades que a população
Susanita e totalmente questionados por
pobre necessita. Em seu discurso a garotinha
Mafalda, ao caracterizar-se como uma
afirma que “deviam dar casa, trabalho,
personagem questionadora, crítica e irônica.
proteção e bem-estar aos pobres”. Neste
Tirinha: 1 enunciado, Mafalda, ironicamente,salienta
que todo cidadão tem o direito de usufruir das
condições básicas de sobrevivência, como
casa, trabalho, como um sujeito de respeito
que têm direitos como também
responsabilidades. Ironicamente a menina
responsabiliza as entidades governamentais,
uma vez que estas têm a obrigação de impor
https://www.google.com.br/search?q=tirinha+da+mafal
uma postura de governo que se preocupe com
da sua população, que busca resolver, da melhor
forma possível, um problema que atinge
tantas pessoas.
Para a construção dos efeitos de
sentido, o discurso fabricado na tirinha por A formação discursiva da Mafalda ao
Mafalda reflete uma formação discursiva responsabilizar os dirigentes do país em razão
desenvolvida por uma minoria, isto é, das desigualdades econômicase sociais
pequena parte da população, que se preocupa retoma, através da memória discursiva,o
com a situação econômica e social de muitas pressuposto que a maioria dos governantes
pessoas que se encontram totalmente não se interessa pelo bem-estar de seu povo,
desamparadas. Essa preocupação é percebível ou o fatode tomar qualquer posicionamento
quando a personagem em seu discurso que contribua para melhorar a condição de

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vida da população, principalmente, em necessitadoscondições básicas de
período de ditadura militar como na época, no sobrevivência. A formação discursiva
qual prevalece um regime autoritário, disseminada por Susanitarevela a imagem da
ditatorial, opressor, que contribui para a sociedade que não tem qualquer interesse com
formação de uma sociedade oprimida. O tal problema, percebível através do
resgate da memóriaremonta a ideia de que desrespeito no enunciado da menina, ao
grande parte das administrações políticas não afirmar que os pobres não precisam de
apresentavaminteresse nos problemas sociais, “muito”, como casa, trabalho, bem-estar, isto
se dá através da exterioridade, isto é, os já é, o essencial para manter uma vida digna, e a
ditos, discursos já mencionados anteriormente solução para os pobres seria simplesmente
na história, que se relacionam com os atuais, esconde-los,ironizando, que o ideal seria tirar
fazendo surgir o interdiscurso. essa visão desagradável da sociedade e
continuar fazendo de conta que é um
Tomando o discurso da Mafalda,
problema que não existe.
perante as desigualdades socioeconômicas, é
percebível em sua discursivização um efeito O discurso de Susanita revela a
de sentido de ironia, ao se observar a luta por imagem dos sujeitos docilizados, através das
direitos iguais e a conformidade com a relações de poderque se estabelecem na
situação vivenciada pelo sujeito discursivo, sociedade, em decorrência de uma divisão
uma vez que este deveria estabelecer um social em que prevalece a vontade do mais
posicionamento mais crítico e contestador, forte. Partindo por este víeis, a sociedade é
diante de um problema que atinge de forma gerenciada por um governo opressor,
cruel e desumana tantas pessoas. A ausência autoritário, que contribui para a fabricação
de uma postura da sociedade em relação a das formações discursivas, de acordo, com o
esses problemas éuma confirmação em que acreditam e julga ser importante, isto é,
concordar com as desigualdades sua vontade de verdade. A posição de
socioeconômicas, agenciando a fabricação de Susanita como membro da burguesia social,
sujeitos docilizados, em virtude das destaca em seu discurso um efeito de sentido
formações discursivas que prevaleciam na de imposição, superioridade, ao se observar o
sociedade na década de 60, em decorrências tratamento que a menina estabelece com
das relações de poder. pessoas que são classificadas como pobres,
deixando claro, em seu enunciado, o
Nesta perspectiva, o posicionamento
incómodo que sente, junto com os demais que
que a sociedade reflete, em relação aos
compõe a burguesia, ao ver pessoas desse
problemas das
nívelsocial, desejo esse ironizado ao comentar
desigualdadessocioeconômicas, pode ser
que a solução para os pobres seria escondê-
identificado através do enunciado de Susanita,
los.
amiga de Mafalda, que é integrante da
sociedade burguesa e compartilha da mesma Desse modo, a tirinha investigada
formação discursiva a respeito dos problemas fabrica um fazer sentido de acordo com o
relacionados àclasse social menos favorecida, discurso enunciado pelo sujeito, através da
o que é percebível em seu discurso ao afirmar posição que ocupa no processo de
“pra que tudo isso? Era só esconde-los”. O discursivização, ligado ao que pode ser dito
enunciado de Susanita, discursivizado, ao ou não,desencadeando relações de poder
dialogar com Mafaldaenuncia indiretamente a tendo em vista o momento histórico e social.
obrigação que as entidades governamentais, Como defende Foucault (1999 S/P) “o
juntamente, com o apoio da sociedade têm de enunciado discursivo oportuniza a construção
providenciar para os mais do sentido ligado ao que pode ser dito, não

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dito e silenciado, já que o discurso é sempre zelar pelos direitos da população para que
controlado e selecionado por uma ordem do possam cumprir seus deveres com a
discurso”.O efeito de sentido do discurso da sociedade.
Mafalda é crítico, uma vez que a classe dos Grande parte da sociedade se mantém
menos favorecidossubmete-se a uma realidade indiferente e afastada de questões como a
adversa e com precárias condições de vida, a desigualdade, uma vez que acreditam não
qual deveria lutar por melhorias e direitos fazer parte do mesmo mundo de pessoas não
iguais. O efeito de sentido de ironia que o eleitas a oportunidades que poderiam fazer a
discurso da Mafalda produz se dá em virtude diferença em suas vidas. A ausência de
do lugar social que enuncia, caracterizada compaixão e vontade de ajudar o próximo por
como uma cidadã que se preocupa com a parte da sociedade, mantém a linha divisória
população fazendo surgir relações de poder. entre pobres e não pobres, uma vez que
O discurso de Susanita em oposição sustenta um problema que gera tanta dor e
ao da Mafalda opera um efeito de sentido de sofrimento, porém esquecido.O problema da
superioridade, imposição, indiferença, uma desigualdade econômica e social é tecido
vez que retrata a formação discursiva da entre um diálogo fabricado por Mafalda que
sociedade burguesa da qual faz parte, não se representa os sujeitos sociais, que produzem
interessando pelos problemas econômicos e uma formação discursiva a favor de encontrar
sociais, que produz uma barreira divisória, uma solução para tal descaso, através de
socialmente, entre pobres e não pobres, discursos críticos, contestadores. O senhor
perpetuando a triste realidade das que aparece na tirinha, dialogando com
desigualdades. O efeito de sentido de ironia, Mafalda, fabrica um discurso marcado pela
de indiferença e superioridade que o discurso displicência da sociedade burguesa com as
de Susanita fabrica ocorre em decorrência da desigualdades, problema presenciado
posição social que discursiviza, marcada constantemente em suas rotinas, contudo,
como membro da burguesia que não apresenta tratado como uma visão desagradável que não
qualquer interesse com os problemas da merece qualquer tipo de cuidado, e continua a
sociedade, semeando as relações de poder. ser ignorado e esquecido como se fosse algo
Nas palavras de Santos (2012, p. 42) “os normal.
sujeitos sempre enunciam a partir de um lugar Tirinha 2
institucionalmente legitimado e fazem
funcionar seus discursos, ocupando posições
sociais porque dinamizam relações de poder
com o desejo”.
A próxima tirinha investigada dá
continuidade aos discursos fabricados na
época, com relação às desigualdades
econômicas e sociais, cenário que perdura na
atualidade, propagando discussões ainda
calorosas sobre um problema que atinge uma https://www.google.com.br/search?q=tirinh
grande porcentagem da população que não a+da+mafalda
dispõem de qualquer contribuição dos Para a construção dos efeitos de
governantes, os quais possuem as ferramentas sentido os discursos operados na tirinha
necessárias para mudar esse quadro, uma vez através do diálogo que Mafalda estabelece
que usufruemdo poder máximo como com um sujeito que supostamente seria um
autoridade do país, e tem como obrigação amigo da família, reflete a preocupação que a

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personagem sente com os problemas presente discursiva no discurso da personagem. O
no mundo, ou seja, os problemas econômicos pressuposto abordado por Mafalda que
e sociais. A postura da menina representa a acredita, convictamente, que o mundo está
formação discursiva de uma pequena doente, como se pode perceber na imagem, na
porcentagem da sociedade, que como Mafalda qual a terra, o mundo, está de cama e requer
se sensibiliza com os problemas do mundo cuidados urgentes para melhorar. A atitude da
como, por exemplo, a desigualdade Mafalda é vista como algo sem sentido, coisa
econômica e social, que maltrata de forma de criança, pois a menina só tem seis anos de
assustadora a vida de muitos inocentes,por idade, e seu discurso em acreditar que o
falta de oportunidades, isto é, não obtiveram a mundo esta doente é ridículo, como se pode
chance de construir uma vida que dispõe do observar nas palavras do senhor recordando a
básico como, por exemplo, casa, comida, atitude da garotinha, “o mundo doente! esta
trabalho, para fazer parte, como membro, da Mafalda tem cada uma! Há, há, há”. O
sociedade e poder ter uma vida considerada discurso da Mafalda salienta a presença do
digna. interdiscurso, resgatado através da memória
O posicionamento de Mafalda como discursiva na medida em que Mafalda se
refere às doenças do mundo, aos problemas
defensora dos problemas do mundo pode ser
da sociedade, vistospela personagem como
perceptível no discurso fabricado através do
devastadores e fatais, os quais esta matando-
senhor que está em sua casa, que se despede
o. O enunciado de Mafalda fabrica um efeito
da garotinha, em suaspalavras destaca,“tchau,
de sentido crítico ao retratar os problemas
Mafalda! melhoras para o mundo”. O
socioeconômicos entre outros, como doenças
enunciado discursivizado pelo sujeito é
que está corroendo, matando o mundo.
marcado com um tom de ironia, sarcasmo,
piada, despertando a ideia de interdiscurso, O discurso da personagem é tratado
isto é, pré-construído, que relaciona o com descaso por não ter sentido, contudo,
enunciado discursivizado com outro já apesar de parecer ridículo pelo senhor que riu
mencionado na história. O discurso do sujeito da menina, ao se deparar na rua com um
pode ser relacionado com outro já existente garotinho magro, com roupas rasgadas,
através da memória discursiva. O enunciado despenteado, sem sapato, sujo, com um jornal
do senhor representa a formação discursiva de na mão, recordando a imagem de uma criança
muitos sujeitos sociais, resgatado através da sofrida que vive na rua, sem ter a quem se
memoria discursiva, uma vez que tratam com amparar, passando fome, frio. É um momento
indiferença os problemas econômicos sociais, de reflexão para o sujeito, pensando nas
como se seus olhos estivessem vedados para palavras da Mafalda em que o mundo estar
essa questãoe passam a acreditar realmente doente. Depois que se dá conta que a menina
que não existem. esta correta em se preocupar com as doenças
do mundo, se sente mal em virtude do
Mafalda em resposta ao amigo da
impacto da notícia, comuma expressão de
família respondeeducadamente e agradece
preocupado como pode ser observado.
com um “obrigado”, o qual reflete a esperança
da menina em solucionar esses problemas, Em suma, é percebível a expressão
como também sua angústia, preocupação. O que o senhor, amigo da família da Mafalda,
posicionamento da personagem destaca o exerce como se o que presenciou fosse uma
interdiscurso, em virtude da fabricação de um descoberta aterrorizante, e que jamais se deu
enunciado que representa todos que se conta de um problema perturbador como a
angustiam, mas que tem esperança de cena de uma criança que vive nas ruas,
melhorias, retomadoatravés da memória retratando o problema das desigualdades

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sociais. O posicionamento do sujeito como se às desigualdades econômicas e sociais,
não tivesse conhecimento da situação que o produzido por uma garotinha de seis anos que
rodeia todos os dias, se refere à máscara que não tem propriedade em fabricar um discurso
foi fabricada para vendar os olhos da que relate os problemas do mundo, em virtude
sociedade, através das formações discursivas que toda criança se preocupa somente com
de sujeitos que compõem a burguesia, que brincadeiras, e os adultos é quem exercem a
não exercem qualquer interesse em ajudar a tarefa de fabricar discursos que se interessam
solucionar o problema da desigualdade por questões importantes como as
socioeconômica, estabelecendo somente desigualdades.
indiferença e descaso. É notável que a maior O jogo de ironias que Mafalda reflete
parte da sociedade, como é o caso do amigo na tirinhamostra que uma criança possui
da família da Mafalda, requer um alerta para conhecimentos mais aguçado, amplo, com
despertar e tirar a venda dos olhos e enxergar propriedade na fabricação de sua formação
a realidade a sua volta. Nesta perspectiva, se
discursiva, em oposição aos adultos que por
destaca as relações de poder-saber fabricadas serem mais experientes, possuem uma carga
através das formações discursivas que se de conhecimento profundo, e deveriam se dar
exercem pela classe social burguesa, que conta de questões importantes como as
tratam como naturalidade questões como a desigualdades econômicas e sociais. A crítica
desigualdade social. da personagem reflete as relações de poder-
O personagem amigo da família da saber que se estabelecem na sociedade,
Mafalda se mostra tão abalado, que quando percebível através do comportamento do
chega ao trabalho relata sobre os problemas amigo da família da Mafalda, ao ficar
presentes na sociedade, com as mesmas assustado quando toma consciência dos
palavras de Mafalda, ao afirmar que o mundo problemas sociais e econômicos referindo-se
está doente. É percebível o espanto, o susto, a maior parte da sociedade que se mantém
que seus colegas de trabalho demonstram, na subordinada as formações discursivas que se
medida em que o discurso fabricado pelo fabricam, no qual defendem o pressuposto
sujeito apresenta um sentido estranho, que tudo está bem, em ordem, sem nenhum
incomum, em decorrência ao fato que o tipo de doença que possa ferir o mundo, como
mundo não fica doente. presenciado no discurso inicial do senhor
amigo da família da Mafalda.
Em suma, é notável que o enunciado
da Mafalda quando discursivizado, ao fabricar As relações de poder-saber também
a formação discursiva que o mundo está são notáveis, uma vez que o enunciado
doente e requer de cuidados e atenção, fabricado por Mafalda, isto é, uma garotinha
desperta uma atitude de risos, posicionamento de seis anos de idade, que não possui
que pode ser compreendido através da conhecimento suficiente para operar um
memória discursiva, ao resgatar o pressuposto discurso que trate de questões relevantes
que o discurso da menina é fabricado por uma como os problemas sociais e econômicos,
criança que possui muita imaginação, e como tratado com risos,uma vez que a menina
qualquer outra criança produz enunciados que discursiviza que o mundo está doente,
tem sentido apenas para si mesma, uma vez despertando a concepção que é um discurso
que a pouca idade não lhe permite possuir sem sentido, pois o mundo não fica doente.
conhecimentosamplos, vastos. Nesta Quando o enunciado passa a ser
perspectiva, o discurso da Mafalda é marcado discursivizado por um adulto, a reação de
com o efeito de sentido irônico, uma vez que quem participa do dialogo é completamente
denuncia os problemas do mundo em especial distinta, em virtude que um adulto é um

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sujeito que apresenta uma formação ampla, usufrui de condições básicas de
rica, com experiência. sobrevivência.
Partindo por este víeis, é percebível a Em oposição o discurso de Susanita
relação de poder que o discurso de um adulto produz um efeito de sentido de superioridade,
exerce sobre o discurso de uma criança, no indiferença, referente à formação discursiva
qual o sujeito que dispõe de uma formação da classe burguesa que a garotinha faz parte,
qualificada se apoia no saber para estabelecer no qual trata com rejeição os problemas
as relações de poder. Nesta perspectiva, se sociais econômicos, sem qualquer tipo de
destaca as correlações de força que se interesse. O discurso do amigo da família de
estabelecem entre o discurso da Mafalda, Mafalda produz um efeito de sentido de
marcado como brincadeira, piada, por ser sarcasmo, ironia, em referencia a formação
criança e não tem força suficiente para discursiva de Mafalda, em acreditar que o
convencer, uma vez que o senhor necessitou mundo está doente. O sujeito mantém seu
de ver um garotinho que vivia nas ruas para se posicionamento de riso, até se dá conta que o
dá conta. Em oposição, o discurso do senhor discurso na menina apresenta sentido.
foi tratado com mais respeito e aceitação, Desse modo, os discursos podem
despertando espanto, susto em seus colegas, produzir diferentes efeitos de sentido, uma
mas não o riso, apresentando uma carga de vez que se fabricam através dos enunciados,
força bem maior que o discurso da Mafalda. relacionados a questões históricas e sociais,
A posição que os sujeitos ocupam na
resgatados através da memória discursiva e
sociedade, estabelece através de seus interdiscurso, levando em consideração as
discursos as relações de poder. Como destaca condições de produção.
Santos (2012, p. 50) “os sujeitos vão se
marcar na superfície discursiva, construindo
suas próprias identidades, ocupando posições- Referências
sujeito, e sobretudo, estabelecendo relações
de poder”. FERNANDES, C. A. Análise do discurso:
Considerações Finais reflexões introdutórias. 2005.
Observamos, dessa forma, que os GREGOLIN, M. R. V. Análise do discurso:
enunciados fabricados nas tirinhas de Mafalda os sentidos e suas movências. 2001.
produzem efeitos de sentidos distintos, em NASCIMENTO, M. E. F.Sentido, Memória e
virtude das condições de produção do Identidade no Discurso Poético de Patativa do
discurso, relacionado a fatores históricos Assaré/ Recife: Bagaço, 2010.
sociais. Nesta perspectiva, a posição, o lugar,
que o sujeito ocupa no processo de NASCIMENTO, M. E. F. Processos de
discursivização, contribui para a produção dos subjetividade do sertanejo: de sol a chuva um
efeitos de sentido, percebível através do inclemente apego à religiosidade.
discurso de Mafalda que apresenta um efeito REVEL, J. Michel Foucault: conceitos
de sentido irônico, uma vez que seu essenciais. 2005.
enunciado é fabricado como uma das poucas
representantes da sociedade que apresenta um SANTOS, A. G. P. O espetáculo de imagens
posicionamento para lutar contra os na ordem do discurso: a política americana
problemas sociais econômicos, que maltrata nas lentes da mídia. – Brasília: editora kiron,
tantos inocentes que não tiveram 2012.
oportunidade de construir uma vida para

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A (RE) INVENÇÃO DO BRASIL E DO NORDESTE PELOS
CORDELISTAS “MAUDITOS”: UMA ANÁLISE DE DISCURSO
DO FOLHETO “A FARSA”, DE HÉLIO FERRAZ

Franklin Arruda de LIMA; Claudia Rejanne Pinheiro GRANGEIRO


Universidade Regional do Cariri (URCA)
limaarruda18@gmail.com; claudiarejannep@yahoo.com.br

Resumo: No ano 2000, eram comemorados os 500 anos de “descobrimento” do Brasil,


Na mesma época, jovens poetas de Juazeiro do Norte, Região do Cariri, sul do Ceara,
construíram um grupo/movimento com nome de Sociedade do Cordelistas “Mauditos”.
Publicaram, nesse ano, 12 folhetos de cordel, trazendo uma postura crítica sobre o
discurso do “descobrimento”, bem como temáticas novas para o cordel. Este trabalho
analisa, pois, a obra “A Farsa”, (2000) de Hélio Ferraz, com o objetivo de compreender
os mecanismos linguístico-discursivos de (re) invenção do Brasil e do Nordeste pelo
folheto. Nossos referenciais teóricos, além da Análise do Discurso Francesa, dos diálogos
e duelos entre Michel Foucault e Michel Pêcheux, são, também, os escritos sobre
tradições orais de Lemaire (2010) e autores dos Estudos Culturais como Hall (2014).
Palavras-chave: discurso; literatura de cordel; sociedade dos cordelistas “mauditos”; “a
farsa”, hélio ferraz.

oficiais e por grande parte das mídias. Por outro


Introdução
lado, foi construído um amplo movimento
Na virada do século XXI, no ano 2000, denominado “Outros 500”. Entidades da
eram comemorados os 500 anos do sociedade civil como sindicatos, movimentos
“descobrimento” do Brasil, cujo discurso de indígenas, de negros, de mulheres, dentre
que o país fora “descoberto” por uma outros, promoveram inúmeras manifestações,
civilização europeia atribuía a esta nação uma no sentido de questionar os discursos e os
imagem de descendentes europeus. Esses cânones da história oficial. Traziam, dos seus
discursos sintetizavam o que fora lugares de fala, outros dizeres no sentido de
historicamente difundido no País através dos recontar a história inserido-se na trama histórica
discursos oficiais, do discurso pedagógico, dos de forma diferente do que estava instituído
livros didáticos, na imprensa. Assim, por como discurso hegemônico. Nesta mesma
ocasião de tais comemorações, o discurso do época e fazendo coro com os movimentos
descobrimento era atualizado pelos discursos sociais e sob a insígnia “Agora são outros 500”,

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um grupo de jovens poetas de Juazeiro do rimados, que se configura como um dos
Norte-CE protagoniza um grupo/movimento, principais ícones de identidade do Nordeste
no intuito de também contar outras histórias. A brasileiro, com sua temática variada que vai
Sociedade dos Cordelistas “Mauditos” desde os temas tradicionais como narrativas
publicou, pelo Projeto SesCordel Novos heróicas, cangaço, temática religiosa, desafios,
Talentos, os seguintes folhetos: “Um passeio temas de literatura e história universais até
pela carniça” – Daniel Batata, A Saga de Fulana política, sátira de tipos humanos, erotismo,
de Tal –Camila Alenquer,”Fatos reais” – fatos do cotidiano. Está hoje profundamente
Edianne Nobre, tUpY oR nOt TuPy- Fanka arraigada no imaginário do Nordeste e, por
Santos, “O verdicto” – Fernandes Nogueira, Os conta das diásporas nordestinas, em diversas
quinhentos anos que invadiram o Brasil – regiões do Brasil, constitui-se, também como
Hamurabi Batista, “Se ligue vacilão!” – Júnior suporte material da cultura. De acordo com
Boca Maudita, Comemorar o quê? – Onofre Lemaire (2010, p.21):
Ribeiro, a Revolução dos mauditos – Orivaldo
Batista, Mentira tem perna curta – Salete Maria A introdução da tecnologia da escritura nas
da Silva, A verdadeira estória do descobrimento civilizações da oralidade permitirá
do Brasil – Wilson Silman e “A Farsa” - Hélio inicialmente criar um suporte eficaz para o
conhecimento se manter e ser salvaguardado
Ferraz.
de maneira diferente, sendo que ditar o
Para este trabalho, tomamos como conhecimento a alguém que sabe escrever
corpus de análise este último folheto, no intuito permite registrar o conhecimento num papel.
de demonstrar, por meio dos preceitos teórico-
metodológicos da Análise do Discurso A autora traz a questão da oralidade
Francesa, dentre outros autores, “que país é para discutir o folheto, visto que o considera
esse”, ou seja, com que formas linguístico- como o “produto tardio” de uma imensa gama
discursivas, o sujeito enunciador do folheto se de poéticas da oralidade, de cantoria, repente,
relaciona com esse espaço simbólico: o Brasil e, coco, embolada, histórias, “causos”, etc,
inserido neste, como significa a região faladas, cantadas, performatizadas, as quais,
Nordeste. movem-se, mudam se suporte, ressignificam-se.
1. O folheto: tecnologia movente, corpo de Tais histórias saem do corpo falante,
saberes, poderes/fazeres e subjetividades. performático, passa pelo escrito e retorna para
a oralidade, para o corpo, visto que o cordel é .
Os folhetos de cordel são pequenas “poesia para ser lida em voz alta” (Grangeiro
brochuras geralmente impressas em papel 2012, p.46). Essas folhas volantes, para além da
jornal, com número variado de páginas, sempre Literatura, foram, durante muito tempo, o
múltiplos de quatro: 8,16,32,48, etc, em geral “jornal do povo”, quando a comunicação não
de tamanho 15 por 11 cm, escritas em versos chegava facilmente a todos os rincões
rimados, contendo, normalmente, uma brasileiros e também sua “carta de ABC” do
xilogravura (gravura em madeira) na capa, povo”, visto que muitas pessoas se
juntamente com o nome do autor do folheto e alfabetizaram através delas. Constitui-se, assim,
as iniciais do autor da xilo. Trata-se de um tipo como porta-voz do povo para o povo, pois
de literatura escrita, geralmente em versos

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trazem dizeres/poderes/saberes/fazeres de Foucault no tocante, principalmente, à
textualizados tanto corpos moventes como no consideração do discurso como prática social.
corpo do papel quando do momento da Para Pêcheux tratava-se de “trazer para a AD o
escritura, configurando-se, assim, como que a teoria de Foucault tinha de materialista e
importante suporte da memória coletiva, sócio- revolucionária” (1990, p. 56), ou ainda como
histórica. disse Grangeiro (2013, p. 68), parodiando
Djavan, tratava-se, para Pêcheux, de
2. Sujeito, discurso e identidades
“foucautear o que há de bom”
A Análise do Discurso surgiu na França,
Assim, embora concordemos que o
na década de 60, com um grupo interdisciplinar,
sujeito também se define pelas suas posições de
a partir projeto encetado pelo filósofo Michel
classe, e ainda, que as ideologias existem e, em
Pêcheux, a princípio, articulando uma tríade
tempos hodiernos de fundamentalismos de todo
teórica: a Linguística, o Materialismo Histórico
gênero, são cada vez mais fortes, pensamos que
e a Psicanálise. Os conceitos de discurso e
essa não é a única forma e processo de
sujeito em Pêcheux estão diretamente
identificação do sujeito. Nesse sentido, é que
relacionados aos conceitos de ideologia e de
recorremos a Foucault e Hall.
luta de classes. Para o autor, o sujeito não é
autônomo, origem do seu dizer, ele traz Foucault (1997, 2012), por sua vez, diz
consigo um conjunto de dizeres ditos em outros que o sujeito é constituído, mas a filosofia até o
lugares, relativos à (s) formações discursivas século XIX quis colocá-lo como origem do seu
(correspondentes, na linguagem, às formações discurso. Ao longo da história, o sujeito foi
ideológicas) às quais se filia. De acordo com sendo destituído do seu lugar de origem visto
Pêcheux, (1995, p. 167): que passou por muitas “feridas narcísicas”: as
teorias de Freud (Psicanálise, cujo sujeito não é
(...) a forma-sujeito tende a absorver- só consciente), Marx (Economia, cujo sujeito
esquecer o interdiscurso no intradiscurso, seria constituído pela sua classe social),
isto é, ela simula o interdiscurso no Saussure (Linguística, cujo sujeito é
intradiscurso, de modo que o interdiscurso
sobremaneira influenciado pela sua língua).
aparece como o puro “já- dito” do
Assim, o sujeito contemporâneo não é mais
intradiscurso, no qual ele se articula por
“co-referência”. aquele de Descartes: “penso logo existo”. Para
Foucault (2012, p. 34):
O autor trata da forma-sujeito, ou seja, A unidade de uma formação discursiva não
o sujeito ideológico, mas aponta, no entanto, a é a manifestação majestosamente desenvolta
abertura da formação discursiva, trazendo o de um sujeito que pensa, que conhece e que
primado do interdiscurso (relações que os diz: é, ao contrário, um conjunto onde se
discursos estabelecem com outros, fazendo com pode determinar a dispersão do sujeito e sua
que o sujeito não seja totalmente “assujeitado”, descontinuidade consigo.
como em Althusser (1974). Quando assim
procede, logicamente guardando as devidas Assim, da concepção de sujeito em
vênias epistemológicas, aproxima-se das teses Foucault, depreende-se sua concepção de

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por regras tácitas ou abertamente aceitas;
discurso, como dizeres constituídos por tais práticas, de natureza ritual ou
saberes/poderes, como “um nó em uma rede” simbólica, visam inculcar certos valores e
(Foucault, 1997, p. 82), ou seja, diversos normas de comportamento através da
campos de saber/poder: o discurso econômico, repetição, o que implica, automaticamente;
médico político, dentre outros, vão constituindo uma continuidade em relação ao passado.
o sujeito em suas teias. Aliás, sempre que possível, tenta-se
estabelecer continuidade com um passado
A formação identitária desse sujeito
histórico “apropriado”. (primeiras aspas do
discursivo é semelhante àquele do qual fala
autor, segundas nossas).
Stuart Hall (2014), o qual demonstra que o
sujeito é feito de vários discursos, pois neste
mundo globalizado, é perpassado por muitas Nesse sentido, ser brasileiro é estar
diversas manifestações culturais. A chegada numa ordem de dizeres/saberes/poderes/ sócio-
cada vez mais rápida de informação dos historicamente construidos e repetidos, em
arredores do mundo aos olhos e ouvidos do determinados momentos, em diversos lugares
sujeito do século XX e XXI, o torna um sociais com um passado histórico apropriado. A
hibrido-cultural, de acordo com Hall (2014, p. pergunta é: apropriado para quem? Para todos
51): de forma idêntica? De acordo com
Alburquerque Jr (2004, p. 343):
(...) parece então que a globalização tem,
sim, o efeito de contestar e deslocar as Pensar a região como uma identidade é
identidades centradas e “fechadas” de uma perpetuar uma identidade forjada por uma
cultura nacional. Ela tem um efeito dada dominação. Devemos pensá-la, sim,
pluralizante sobre as identidades, como uma construção histórica em que se
produzindo uma variedade de possibilidades cruzam diversas temporalidades e
e novas posições de identificação, e espacialidades, cujos mais variados
tornando as identidades mais posicionais, elementos culturais, desde eruditos a
mais políticas, mais plurais e diversas; populares, foram domados por meios das
menos fixas, menos unificadas ou trans- categorias de identidade, como: memória,
históricas. caráter, alma, espirito, essência.”

Assim, na perspectiva de Hall Desta forma, o Brasil é um espaço


observamos que o sujeito constitui-se/é simbólico não homogêneo, significado de
constituído, também, em relação com a formas diversas em diferentes lugares de fala:
espacialidade, com os territórios, com a desde a “pátria amada” do Hino Nacional,
“culltura nacional”. Nesse sentido, o Brasil, passando pelo discurso romântico da Literatura
por exemplo, é um espaço simbólico que exalta a flora nacional como símbolo de
‘inventado’ usando a expressão de Hobsbawn e identidade: “ minha terra tem palmeiras onde
Ranger (1983, p. 10). Para os autores: canta o sabiá”, ou ainda o discurso
questionador do Movimento Modernista:
Por “tradição inventada” entende-se um “minha terra tem Palmares onde gorgeia o mar”
conjunto de práticas, normalmente reguladas

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que traz os sujeitos escravizados como
temática, mostrando as contradições do país. .Que quer dizer pau-brasil
Tinha pedras preciosas
Assim, analisamos, portanto, como o Ouro como não se viu
sujeito enunciador do folheto se constitui em Riquezas mais suntuosas
relação à “pátria amada Brasil”, como ela é Era um paraíso acá
significada, dita, ou seja, ‘inventada” ou E mande vir d’além-mar
reinventada pelo folheto em questão, bem como Toda turba ambiciosa
forma como o sujeito “brasileiro” insere-se e FERRAZ ( 2000, p. 03, 1 e)
constrói o espaço brasileiro a partir, também, da
singularidade nordestina. Com nativos tão pacatos
A Terra Tupiniquim
3. Terra Tupiniquim: “Cornucópia sem fim” Sem resistência de fato
Só facilitaria assim
A capa do folheto é uma xilogravura A Coroa Portuguesa
(figura 1), arte de entalhar a imagem na madeira Anexou com vileza
e através da tinta passar para o papel como uma A “cornucópia” sem fim
espécie de carimbo. A imagem traz o mapa do (ibid, p.03, 2 e)
Brasil ao contrário com a bandeira americana
fincada nele, criando rachaduras, imagem que Nessas duas estrofes, são criados dois
dialoga interdiscursiva/ intericonicamente com a espaços de enunciação: o acá (expressão do
cena da chegada do homem na lua.1, cujo ato de português de Portugal que significa “aqui”
fincar a bandeira em um território significa utilizada ironicamente para espacializar não
dominação sobre esse território. Do lado Portugal, mas o Brasil: “o paraíso, com nativos
direito, um quadro com o nome A Farsa pacatos, a Terra Tupiniquim, a cornucópia sem
inscrito em um pergaminho com uma pena nos fim”.
reporta à carta de Caminha, um dos primeiros
documentos sobre a terra e a Cruz de Malta, A expressão cornucópia vem do
símbolo de Portugal. Em um processo de latim cornu copiae que quer dizer "corno da
paralelismo semântico-imagético, o símbolo da abundância", ou chifre da abundância, assim
bandeira portuguesa aparece em um plano definido segundo o Dicionário Enciclopédico
menor ao da bandeira americana. A imagem já Ilustrado Larousse (2007, p. 305):
traz um tom de crítica à postura portuguesa
substantivo feminino
diante do Brasil, atualizada com a forte
1. mit. Vaso em forma de chifre, com frutas
presença econômica dos EUA no Brasil na e flores que dele extravasam profusamente,
época. Esse será, pois, o fio condutor do antigo símbolo da fertilidade, riqueza,
discurso do folheto, também na parte verbal: abundância, e que, hoje, simboliza a
agricultura e o comércio [Us. tb. em ornatos
1
Courtine apud Milanez (2013, p. 346), arquitetônicos, floridos etc.].
chamará de intericonicidade a relação interdiscursiva 2. p.ext. qualquer fonte de riqueza ou
que as imagens estabelecem com outras imagens. Não felicidade.
aprofundaremos tal questão por não se o foco do
presente trabalho a análise das imagens.

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Dar vivas e levar bolos
Assim, a representação da Terra Nesses tais 500 anos
Tupiniquim do folheto coaduna-se com o que
Chauí (1994, p. 21) vai denominar de ‘mito
Essa gangue americana
fundador do Brasil como “pais jardim” (ibid, p.
Como seu toque contamina
24), um país paradisíaco, de um povo “ordeiro
Compra a preço de banana
e pacífico”. A nossa matéria prima
Nesse sentido, se há um “acá” é porque E nos vende o resultado
há um “lá” : A Coroa Portuguesa que “anexou Seu produto no mercado
com vileza” as terras com “tal achamento” Nossa indústria arruína
(ibid, p. 03, 2 e) uma “Invasão mais vil” (ibid, (ibid, p. 06, 3 e).
p. 02, 3 e). Tais palavras são utilizadas, desta
forma, em substituição ao termo A força significativa da representação
“descobrimento” inscritos nos discursos dos novos exploradores do Brasil encontra-se
oficiais. no processo do neologismo “neo-tolos” e no
uso dos epítetos2 - mecanismo retórico pelo
As aspas, por sua vez, são sinais da
qual substitui-se uma forma por outra no intuito
heterogeneidade marcada da linguagem,
de se obter maior expressividade. Desta forma,
segundo Authier-Revuz (1990). Elas indicam a
a utilização dos termos “gangue americana”,
presença do “outro” das mais variadas formas
termo utilizado para grupos criminosos ou
no interior do discurso. No texto em questão,
“ladrões norte-americanos”, produzem o efeito
as aspas na palavra catequista colocam em
de sentido de maior força ideológica, um tom
questionamento o termo, denunciando, assim, o
mais ofensivo de repúdio e protesto.
papel da religião católica no processo de
dominação dos nativos brasileiros pelos “Neo-tolos” tem duas possiblidades
portugueses: interpretativas:
1) A atualidade da exploração: se os
Era fartura adoidado
Inclusive dos nativos portugueses “nos” fizeram de tolos no passado,
Que, se bem catequizados hoje são os americanos que o fazem e
Com os seus portes altivos... 2) Referência ao modelo econômico
Isso coube a Jesuíta neoliberal, de abertura do mercado nacional
Excelente “catequista” para as empresas multinacionais, a pouca
Fez guerreiro inofensivo
presença do Estado na economia,
(Ibid, p. 02, 2 e)
protagonizada, à época pelos governos citados,
no plano nacional, federal e ainda, no plano
Na perspectiva da atualidade da empresarial midiático.
exploração da Terra Tupiniquim, surge, pois,
outro sujeito:
2
1 Palavra ou frase que se junta a um nome de
Ladrões norte-americanos pessoa ou coisa para qualificá-los ou realçar a sua
Querem nos fazer “Neo-tolos” significação. 2 Alcunha, cognome. Dicionário
Enciclopédico Ilustrado Larousse, 2007, p. 403.

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457
Neste 22 de abril
3.1. Os que estão entre “nós” mas não são Festejar 500 anos
“nossos” (ibid, p. 06, 1 e)

Tio Sam é a forma portuguesa de Uncle


Sam, jogo de palavras com a sigla US, utilizada É, pois, desta forma, que o sujeito
pelos soldados na primeira guerra mundial, ao enunciador do folheto, agora na forma de um
receberem a sigla do país nos rótulos das “nós”, “nos”, “entre os nossos”, constitui-se
comidas. Aparece, também, no cartaz dessa como um sujeito coletivo, que vai nomeando, se
época, como um senhor de cartola com as cores diferenciando, denunciando inclusive aqueles
da bandeira americana, como dedo em riste e as que, mesmo estando “entre nós”, nãos são
inscrições: "I Want You for U.S. Army" ("Eu “nossos”. Mesmo se encontrando numa
quero você para o Exército dos EUA"). “mesma” espacialidade e temporalidade
nacionais, não se encontram em um espaço
Assim, segundo o folheto, a “cabroeira político passível de identificação para o “eu”,
do Tio Sam” é composta por políticos e oculto no terceiro verso da quarta estrofe da
empresários brasileiros: Roberto Marinho, página 05, visto que são “jagunços”, “cabroeira
ACM ou Antônio Carlos Magalhães, ruim”, mandados pelo Tio Sam.
denominado por seus opositores à época da
Ditadura Militar de “Toninho Malvadeza”, 3.2. Os que estiveram entre “nós” e são
adjetivo dessa vez atribuído ao então presidente “nossos”
da República: FHC, sigla para Fernando Retornando, pois, ao pensamento de
Henrique Cardoso que abre de vez as portas do Hobsbawn e Ranger (1983) de que a
país para as empresas multinacionais e para o construção da identidade, o sentimento de
neoliberalismo. pertencimento a uma “cultura nacional” por
ligação a uma tradição tem relação com “
Tio Sam entre os nossos tem estabelecer continuidade com um passado
Uns jagunços sem igual (...) histórico “apropriado”. Observa-se, nesse momento,
(ibid, p. 05, 3 e) o folheto trazer ícones de “outro Brasil”, o
Brasil “apropriado” ao enunciador do folheto:
São todos neo-liberais
o Brasil da Música Popular Brasileira,
Detentores do poder
Eu vou mencionar uns tais nominado no texto pela figura de Elis Regina,
Que nem vão surpreender cantora brasileira que interpretou autores como
Um é Roberto Marinho João Bosco, Aldir Blanc, Gonzaguinha, que
Mais ACM ou Toninho cantaram as dores e os amores do Brasil; O
E o malvado FHC Brasil de Anna Lins dos Guimarães Peixoto
(ibid, p. 05, 4 e). Bretas ou Cora Coralina, doceira de profissão,
poetisa e contista goiana, considerada um dos
Êita cabroeira ruim mais importantes nomes da poesia brasileira,
Já traçou todos os planos poética rica em motivos do cotidiano do interior
Montou um baita festim brasileiro; O Brasil das lutas pela libertação,
Lá com os americanos personificadas por Antônio Vicente Mendes
Pra enganar imbecil Maciel, ou Antônio Conselheiro, líder da

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458
Comunidade de Canudos, que questionou o
poder governamental com uma proposta de (…) Nosso movimento pretende, sob uma
trabalho e posse coletiva da terra; de José do ótica intertextual, utilizando vários códigos
Patrocínio – líder republicano e abolicionista; O estéticos, redimensionar a literatura de
Brasil de Chico Mendes, líder seringueiro que cordel para um campo onde todas as
defendia a a Floresta Amazônica e os (as) linguagens sejam possíveis. (...). (ibid:
contracapa do folheto).
brasileiros (as) que a habitam; O Brasil de
Herbert de Souza, o Betinho, sociólogo que
criou a campanha contra a fome; O Brasil de E o cordel, um dos ícones da cultura da
Paulo Freire, pedagogo e filósofo região vem afirmando outros ícones: “com rima
pernambucano, considerado um dos mais e ritmo de coco e maracatu, ritmos musicais da
notáveis pensadores da Pedagogia; O Brasil de cultura pernambucana:
Maria Rita de Sousa Brito Lopes Pontes Irmã
Dulce, ou Santa Dulce dos Pobres ou ainda “o Lanço o pólen da polêmica
Brote Nordeste nação
Anjo Bom da Bahia”, religiosa brasileira que
Na sisudez acadêmica
construiu grandes obras em benefício dos
Flor da pop-erudição
pobres e doentes daquele estado: Linguagem: toda vertente
Espontânea qual repente
Brasil de Elis, Conselheiro
Da gente de inspiração
Dragão, Dulce e de Betinho
(ibd. p. 08, 2 e)
Chico Mendes, Paulo Freire
Coralina e Patrocínio
Este protesto é legítimo
Que venham outros 500
E é “maudito” com “U”
(ibd. p. 08, 1 e)
Escrito com rima e ritmo
De coco e maracatu
(...)
3.3. Brote Nordeste Nação
Nesse espaço simbólico brasileiro, um
É o cordel que traz ainda, lançando o
enunciador, agora “eu” como sujeito oculto
“pólen da polêmica”, o sujeito cordelista
insere-se com os símbolos de outra identidade
nordestino que retoma momentaneamente a
brasileira: as singularidades de uma região do
identidade de “cabra-macho”, cabra-da-peste
Brasil: “Brote Nordeste”: uma “nação” dentro
com sua “peixeira na mão”, uma espécie de
da nação. Nação manifesta, antropofagicamente
“cangaceiro pós-moderno” para ironizar o fato
deglutindo “a sisudez acadêmica” das formas
ocorrido com o ex-presidente Bill Clinton e sua
artísticas, deglutindo a língua e sua gramática
secretária Mônica Lewinsky, que foi
quando assina “maudito” com “u” e não com
fotografada praticando sexo oral no presidente.
“l”, como manda a norma ortográfica,
Aqui, o sujeito declara sua independência, a
referindo-se, também ao manifesto dos
partir da castração simbólica do presidente dos
cordelistas mauditos, contidos em todos os 12
EUA.
folhetos produzidos na época:

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459
É cordel de línguas mil A princípio, o folheto traz a imagem do
A forma fixa sonora Brasil como “país-jardim’, como paraíso, cuja
Aviso: se cuida Bill “cornucópia sem fim” foi expropriada e
Feche o zíper sem demora apropriada de forma “vil” pela“ Coroa
Sou cordelista não brinque Portuguesa’. No segundo momento, o texto
Não sou Mônica Lewinsky atualiza esse sujeito explorador, colocando-o, à
Passo a faca, arranco fora! época como a “gangue americana”, ladrões
(ibid. p. 08, 4 e) norteamericanos que saqueam e pilham a
riqueza do país através das multinacionais e do
Figura 1 modelo econômico que “nos” faz “neo-tolos”.
Outro sujeito coletivo trazido pelo folheto são
os políticos e empresários brasileiros que
constituem uma “cabrueira ruim” a serviço do
“Tio Sam”.
Por fim, o sujeito enuncia, a princípio
por meio de um nós coletivo, como “povo
brasileiro “massacrado”, “estuprado”, mas que
tem referências de resistência como
Conselheiro, Patrocínio, dentre outros (as).
Aparece, em seguida, na forma de um “eu” –
poeta cordelista, nordestino que denuncia e
anuncia a independência simbólica, política e
artística por meio dos ícones da região: o coco,
o maracatu e o próprio cordel, fazendo brotar
um Nordeste e um Brasil nações apesar da
Considerações finais história de opressão.

Com a análise verificamos que o folheto


de cordel, como tecnologia oriunda das Referências
poéticas orais, carrega dizere/saberes/poderes,
ALBUQUERQUE JÚNIOR, D. M. de. A
configurando-se, ele próprio, como ícone da
Invenção do Nordeste e outras artes. São
cultura do Nordeste, como porta-voz e como
Paulo: Cortez, 2004.
suporte da memória coletiva, social e histórica.
Verificamos, ainda, que esse espaço simbólico ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos
“O Brasil” não tem, a priori, nenhuma essência ideológicos do Estado. Trad. J.J. Moura
imanentista, mas que foi Ramos. Lisboa: Presença. São Paulo: Martins
construído/constituído/inventado por uma rede Fontes, 1974.
de dizeres sobre, assim como o Nordeste. E o AUTHIER-REVUZ, J. Heterogeneidade (s)
sujeito enunciador, o qual, por sua vez, transita enunciativa (s). In: Caderno de Estudos
entre essas marcas identitárias. Linguísticos nº 19. Trad. Celene M. Cruz e

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

460
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461
O GÊNERO DE DISCURSO EPITÁFIO

Raquel Vaccari de LIMA


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)
vaccari.raquel@gmail.com

Resumo: Este trabalho tem por objetivo discutir as características do gênero de discurso
epitáfio, suas condições de produção, sua função e como eles circulam em nossa
sociedade. Nessa empreitada, recorreremos ao aparato teórico-metodológico da Análise
do Discurso, sobretudo às categorias de análise propostas por Dominique Maingueneau,
a saber: as cenas de enunciação, o interdiscurso e o ethos discursivo. Com isso pensamos
estar contribuindo com as práticas de ensino dos gêneros discursivos na disciplina de
Língua Portuguesa, principalmente no que diz respeito às apreensões de efeitos de sentido
dos discursos.
Palavras-chave: análise do discurso; gênero de discurso; morte; epitáfio.

tema esse que provoca um grande incômodo no


Introdução
ser humano, mas se for trabalhado de forma
Este artigo está voltado à análise e construtiva, dialogando com outras disciplinas,
discussão sobre algumas características do como a Filosofia, Sociologia, Antropologia e
gênero de discurso epitáfio, principalmente Psicologia, por exemplo, pode ser levado para
àquelas que dizem respeito à cenografia que o as aulas de Língua Portuguesa.
engendra, o interdiscurso que por ele perpassa,
a qual função ele se propõe e como ele circula 1. Desenvolvimento do artigo
em nossa sociedade. Tais discussões têm como A morte, como finitude da vida, é um
objetivo o emprego desse gênero, entre outros, tema que sempre incomodou o ser humano, o
nas aulas de língua portuguesa, principalmente que é compreensível, pois pesquisadores
no que concerne aos efeitos de sentido que afirmam que o temor à morte data do Homo
podem ser recuperados de um determinado Sapiens, acompanhando a humanidade até os
gênero discursivo. dias de hoje. No entanto, na atualidade, não há
um só meio de comunicação que não veicule a
A escolha do gênero de discurso epitáfio
temática da morte, fazendo com que nos
não é aleatória; ao contrário, ela se deve ao fato
deparemos com ela cotidianamente e muitas
de este gênero fazer circular um tema que se
vezes em tempo real.
presentifica todos os dias em nossas vidas por
meio dos canais de comunicação – a morte,

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462
afirmam a continuidade simbólica da vida após
Na realidade, a morte, de acordo com
a morte.
os dicionários, tem dois significados: como
finitude da vida e como passagem simbólica a 2. Abordagem teórica e metodológica
outros mundos: Céu, Reino dos Ceús, Hades, Com o objetivo de analisar os gêneros
Limbo, por exemplo. É melhor, então, ficarmos de discurso epitáfios como subsídio à
com a segunda opção – a morte é apenas uma compreensão de suas características, sua função
passagem a uma outra vida, sendo por esse viés e seu modo de circulação na sociedade,
que muitas sociedades, principalmente as recorremos ao aparato teórico-metodológicos
cristãs, veem a morte. da Análise do Discurso (doravante AD), mais
Nesse sentido, a grande maioria das precisamente às categorias cenas de enunciação,
civilizações se utiliza de alguns recursos para interdiscurso e ethos discursivo, propostas por
negar a finitude da vida, e o gênero de discurso Dominique Maingueneau.
epitáfio – inscrições sobre lápides tumulares – Isto posto, Maingueneau (2006, 2008a,
está entre eles. Considerando que nos 2013) afirma que não é exatamente com o
comunicamos através de um gênero de discurso gênero de discurso que os coenunciadores se
(BAKHTIN, 2003) e que estes são dispositivos deparam, mas com um quadro cênico
de comunicação sócio-historicamente variáveis constituído por uma cena englobante, uma cena
(MAINGUENEAU, 2007, p. 30), os rituais genérica e uma cenografia.
funerários também requerem seus gêneros
discursivos. No que concerne à primeira, esta
corresponde aos tipos de discurso que circulam
Isto posto, ressaltamos que, desde os nos setores sociais, como por exemplo, o
tempos primórdios, inúmeras sociedades têm o discurso político, o religioso, o jornalístico etc.
costume de inscrever sobre lápides tumulares Por sua vez, a cena genérica diz respeito ao
discursos, desde de pequenos enunciados gênero de discurso, como o panfleto, a crônica
compostos de uma linha a textos maiores, os jornalística, a missa, entre outros. Dito isto, a
chamados epitáfios, com a finalidade de cena englobante (tipo de discurso) produzirá
homenagear seus mortos. uma cena genérica (gênero de discurso),
Os suportes materiais dos epitáfios são, definindo, desse modo, o quadro cênico do
em sua grande parte, uma lápide tumular ou um discurso.
mausoléu, considerados suportes materiais, e, Todavia não é diretamente com o
por esse motivo, esses gêneros circulam na quadro cênico que o coenunciador se defronta,
sociedade nos ritos funéreos. mas com uma cenografia que engendra o
Destarte, somados a outros símbolos discurso, sendo ela responsável pela legitimação
cemiteriais, os gêneros de discurso epitáfio têm da enunciação. Destarte, a cenografia legitima
os objetivos principais de perpetuação da um gênero de discurso e por este deve ser
memória (ou memoração) do sujeito falecido legitimada, devendo ser concebida, ao mesmo
além de promover uma boa imagem. Ademais, tempo, como um quadro e como um processo.
o discurso da grande maioria dos epitáfios

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463
relações privilegiadas, cruciais para a
Nessa senda, a cenografia, por definir
compreensão dos discursos considerados.
uma situação de comunicação, requer, no
Assim temos a missa católica, o sermão, o
mínimo, em seu processo um enunciador, um
epitáfio, por exemplo. Ressalta-se que esse
co-enunciador, um ethos discursivo e um
espaço é definido pelo analista do discurso em
código linguageiro, elementos estes que irão
função dos objetivos de sua análise.
legitimá-la à medida que forem emergindo do
discurso como os mais apropriados à situação A categoria de análise ethos discursivo
de enunciação. Nesse contexto, então, a tem sua origem no ethos retórico de Aristóteles,
cenografia irá engendrar um discurso, ou como que foi reformulada por Ducrot (1987) sob uma
prefere Maingueneau (2008a), um perspectiva pragmática, chegando a
interdiscurso. Maingueneau (2008b), que o entende, grosso
modo, como um “tom”, associado a um fiador,
Abordado ao longo da história da AD
que pode ser depreendido no discurso pelo
como dialogismo, polifonia, heterogeneidades
coenunciador. Em suma, o ethos discursivo é
mostrada e constitutiva, entre outras
uma noção enunciativa construída no e pelo
nomenclaturas, o interdiscurso, segundo
discurso.
Maingueneau (2006; 2008a), tem primazia
sobre o discurso, e com essa afirmativa esse Perante o exposto, analisamos, a seguir,
autor pensa um interdiscurso por uma tríade: um gênero de discurso epitáfio, procurando
universo discurso, campo discursivo e espaço observar a cenografia engendrada pelo discurso,
discursivo. as cenas de enunciação que desta última
emergem, os interdiscursos que podem ser
O primeiro refere-se ao conjunto de
depreendidos pelos efeitos de sentido e o ethos
discursos de todos os tipos que interagem numa
discursivo passível de ser desvelado, para, em
conjuntura dada, sendo impossível delimitá-lo e
seguida, discutir-se as características do gênero
por isso mesmo de pouco importância para o
de discurso epitáfio e a qual função ele se
analista do discurso. Por conseguinte, é no
presta, além de seu modo de circulação.
universo discursivo que estão inseridos os
campos discursivos; são estes que interessam ao 3. Análises e discussão
analista. Para a análise e discussão, foi
Quanto ao segundo, o campo selecionado um epitáfio, cujo suporte material é
discursivo, diz respeito às formações uma lápide tumular que consta no Cemitério da
discursivas que se encontram em concorrência e Consolação, na cidade de São Paulo, SP.
delimitam-se reciprocamente em uma região O gênero de discurso epitáfio, em sua
determinada do universo discursivo. A título de grande maioria, se mostra por meio de uma
exemplo, citamos os campos religioso, político, cenografia pouco variada, mesmo porque sua
literário, etc. condição sócio-histórica de produção e o
Em relação ao espaço discursivo, ele é espaço onde ele circula – o cemitério –
concernente a um subconjunto do campo requerem discurso, em grande parte, com um
discursivo, ligando, pelo menos, duas maior grau de seriedade. Por isso, o corpus
formações discursivas, as quais mantêm escolhido para análise segue essa regra.

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464
Figura 1. Transcrição do epitáfio.
Perante o exposto, o enunciador, pelo
seu modo de dizer, corrobora para que o
coenunciador construa uma imagem discursiva
Tu és de Deus a eternidade, tu és a luz
que nasceu como uma flôr.(Sic)
desse enunciador, o ethos discursivo, que está
umbilicalmente ligado ao ato de enunciação.
Choro curvando-me a fronte para
chorar e soluçar… Vale, neste espaço, lembrar que:
Esperando do infinito azul nossas [...] mesmo que o destinatário nada saiba
almas se unir para nunca mais voltar. antes do ethos do locutor, o simples fato de
um texto estar ligado a um dado gênero do
Esse discurso é engendrado por uma discurso ou a um certo posicionamento
cenografia de diálogo. Observando-se o código ideológico induz expectativas no tocante ao
linguageiro utilizado, neste caso os pronomes ethos (MAINGUENEAU, 2014, p. 269).
retos e os verbos conjugados no presente do
infinitivo, denota-se que o enunciador dialoga
Assim, mesmo que não se saiba em que
com seu coenunciador, ressalvando que não se
contexto foi escrito esse discurso em análise, é
trata de sujeitos empíricos, de carne e osso, mas
possível observar algumas vozes, ou tons, que
de sujeitos que emergem da enunciação,
dele emanam, os quais, por sua vez, irão
portanto enunciativos.
proporcionar subsídios para que se possa
Devido às condições de produção e às construir um corpo enunciativo de um “fiador”
formações discursivas, constata-se que essa que assume o discurso.
cenografia faz parte de um quadro cênico
Assim, no Recorte 1 - “Tu és de Deus a
formado por uma cena englobante religiosa e
eternidade, tu és a luz que nasceu como uma
uma cena genérica fúnebre (não no sentido
flôr”, constata-se a voz de um fiador que
figurativo de tristeza, mas no sentido
assume sua crença num Deus, e, por isso
dicionarizado “relativo à morte”).
mesmo, há um tom religioso.
Considerando as formações discursivas
No Recorte 2 - “Choro curvando-me a
que se interagem e se confrontam, é possível
fronte para chorar e soluçar...” se presentifica
constatar mais de um discurso. Assim, alguns
um tom de tristeza, típico da grande maioria,
itens lexicais, como, por exemplo, “Deus”,
mas não de todos, dos discursos ligados à
“eternidade”, “almas”, escolhidos pelo
morte.
enunciador, remetem ao campo religioso,
enquanto outros, como “luz”, “flor”, “infinito E no Recorte 3 - “Esperando do infinito
azul” dizem respeito ao campo da poesia. azul nossas almas se unir para nunca mais
Destarte, há, pelo menos, dois discursos se voltar”, observa-se um tom de esperança de que
entrecruzando, formando um interdiscurso, mas há continuidade numa vida além da morte, já
há ainda um terceiro discurso que se dá a ver, que esse tom emana de uma voz que acredita
pelos itens lexicais “choro”, “soluçar”, “chorar” numa união de almas pós-vida.
– o discurso da saudade. Perante o desnudar desses vários tons, é
possível, então, associá-los à representação de

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465
um corpo enunciativo, o fiador do discurso, que outra vida, adotando, o enunciador, o ethos
atesta o que é dito. Desse modo, atribui-se ao efetivamente adequado a quem produz um
fiador, além de uma corporalidade, um discurso de epitáfio.
“caráter”. O gênero de discurso epitáfio que foi
Dito isso, por meio, agora, de uma analisado segue as características típicas desse
corporalidade, associada a um caráter, ambos gênero discursivo, uma vez que se observam
enunciativos, é possível desvelar não só um, nele formações discursivas que se interagem,
mas vários ethe, os quais se coadunam para formando, desse modo, um interdiscurso cujo
formar um ethos efetivo, resultado da interação tema que se destaca é o da morte. De maneira
dos vários ethos que se desvelam dessa análoga, sua cenografia encena um
cenografia. pseudodiálogo entre “vivos” e “mortos”, bem
condizente com o espaço social no qual esse
Retomando, então, os recortes,
discurso circula.
constata-se, no Recorte 1 - “Tu és de Deus a
eternidade, tu és a luz que nasceu como uma Outro ponto a ser destacado é o que se
flôr”, ethos de um enunciador que declara sua refere à função social desse discurso analisado.
crença num “Deus eterno”, ressalvando que o Após as análises, fica evidente algumas funções
termo “Deus” está linguisticamente marcado do discurso. Primeiramente constata-se o
por uma letra maiúscula, item lexical que objetivo de perpetuar a memória da pessoa
remete ao Deus bíblico, mais propriamente ao falecida e nesse túmulo sepultada, uma vez que
Deus dos cristãos, fato legitimado por nosso o enunciador a ela dirige seu discurso.
conhecimento de mundo. Uma outra função que se destaca é a de
No Recorte 2 - “Choro curvando-me a utilizar o discurso do epitáfio como um recurso
fronte para chorar e soluçar...”, desnuda-se um social de negar a finitude da vida, o que está
ethos sofrido, constatado legitimado pelo bem claro no exemplo analisado, até porque seu
contexto enunciativo pertencente ao gênero de código linguageiro legitima e avaliza esse
discurso epitáfio. discurso de negação da morte.
E por último, porém não menos Vislumbra-se também uma função
importante, no Recorte 3 - “Esperando do promocional, ou seja, o enunciador, em todo o
infinito azul nossas almas se unir para nunca seu discurso, afirma que a alma da pessoa nesse
mais voltar”, afirma-se um ethos esperançoso, túmulo sepultada habita, agora, o “Reino de
devido à crença do enunciador (lembrando Deus”. Assim, levando-se em consideração o
sempre: sujeito construído na enunciação) de conhecimento de mundo para compreender o
que as “almas” se unem em algum lugar que “não dito” pelo “dito”, sabe-se que, na cultura
está aquém da vida terrena. cristã, só é merecedor do “Céu” o bom cristão.
Por essa ótica, então, o enunciador promove
Após essas análises, conclui-se que o
uma boa imagem da pessoa falecida, ao afirmar
ethos efetivo que se desvela nesse discurso é o
que a “alma” desta no “Céu” se encontra.
de um ethos do bom cristão, positivo, ainda que
pesaroso diante da morte, mas que pensa a 4. Considerações finais
morte apenas como uma passagem para uma

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466
Trad. Luiz Carlos N. Silva. 4. ed. São Paulo:
Após as análises e discussões expostas
Record, 2010.
neste artigo, vislumbramos que o enunciador do
discurso dos epitáfios utiliza-se de formações CHARAUDEAU, P.; MAINGUENEAU, D.
discursivas de vários campos, as quais, neste Dicionário de Análise do Discurso. Trad.
caso, se interagem, para construir seu discurso Fabiana Komesu. 2. ed. São Paulo: Contexto,
de homenagem e promoção da boa memória de 2008.
uma pessoa falecida, além de, pelas vias da CHIAVENATO, J. J. A Morte: uma abordagem
depreensão dos sentidos, exaltar a vida sociocultural. São Paulo: Moderna, 1998.
simbólica póstuma.
KÜBLER-ROSS, E. Sobre a Morte e o Morrer.
Disso decorre que do discurso de Trad. Paulo Menezes. 9. ed. São Paulo: Martins
epitáfios desvela-se um ethos discursivo do Fontes, 2008.
enunciador correlato à imagem do cristão
devoto a um Deus, e, por isso mesmo, positiva MAINGUENEAU, D. Termos-Chave da
perante a morte. Análise do Discurso. Trad. Márcio V. Barbosa
e Maria Emília A. T. Lima. Belo Horizonte:
É possível afirmar, ainda, que os UFMG, 2006.
gêneros de discurso epitáfio são dispositivos de
comunicação que circulam num contexto ______. Gênese dos Discursos. Trad. Sírio
ritualístico da morte, e que são produtos sócio- Possenti. São Paulo: Parábola, 2008a.
historicamente constituídos, os quais fazem um ______. Cenas de Enunciação. Trad. Sírio
elo entre a sociedade palpável dos vivos com a Possenti e Maria C. P. de Souza-e-Silva. São
sociedade invisível dos mortos. Paulo: Parábola, 2008b.
Em suma, acreditamos que utilizar os ______. Doze Conceitos em Análise do
aparatos teórico-metodológicos da análise do Discurso. São Paulo, Parábola, 2010.
discurso na disciplina de língua portuguesa é
______. Análise de Textos de Comunicação. 6.
deveras produtivo à compreensão dos gêneros
ed. São Paulo: Cortez, 2013.
discursivos, e que, assim como outros discursos
ditos “da minoria”, os epitáfios não devem ficar ______. Discurso Literário. Trad. Adail Sobral.
de fora, já que vida e morte andam de mãos 2. ed. São Paulo: Contexto, 2014.
dadas.

Referências
BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal.
Trad. Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2003.
BECKER, E. A Negação da Morte: uma
abordagem psicológica sobre a finitude da vida.

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

467
CIÊNCIA SEM FRONTEIRAS NA UTFPR, CÂMPUS
FRANCISCO BELTRÃO: DISCURSOS A SEREM DESVELADOS

Carina Merkle LINGNAU


Universidade Estadual de Maringá (UEM)
carinadebeltrao@gmail.com

Resumo: Na Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) câmpus de


Francisco Beltrão até junho de 2015 quinze alunos participaram do Programa Ciência
sem Fronteiras, sendo que oito deles retornaram de países de língua oficial inglesa. O
objetivo deste trabalho é discutir em linhas gerais a proposta de pesquisa que irá analisar
os discursos dos egressos do Programa Ciência sem Fronteiras do Câmpus Francisco
Beltrão que estiveram em países de língua oficial inglesa. Como metodologia utilizaremos
levantamento bibliográfico, pesquisa documental, entrevistas narrativas (Bauer & Gaskel,
2002) e método arqueológico (Foucault). Nossas discussões terão suporte teórico em
Foucault (1982, 2008), Coracini (2007), Hall (1997,2003), Certeau (1982) entre outros.
Palavras-chave: Discurso; Ciência sem Fronteiras; UTFPR, Francisco Beltrão.

distribui seus campi em 13 municípios do


Introdução
estado do Paraná. Como primeira e única
A Universidade Tecnológica Federal do universidade tecnológica do Brasil ela vem se
Paraná (UTFPR) é uma instituição recente identificando com outras instituições
enquanto universidade, completando neste ano tecnológicas de países como França, Alemanha,
de 2015, apenas 10 anos de inserção no ensino EUA e Argentina (UTFPR, 2015b). Desde
superior. A UTFPR foi conhecida por seu 2012 os alunos da UTFPR têm participado do
ensino técnico desde 1909, momento de sua Programa Ciência sem Fronteiras, programa
fundação como a então denominada Escola de criado pelo governo federal em julho de 2011.
Aprendizes Artífices do Paraná. Em 1937 Até o momento, mais de 1600 alunos da
passou a ser chamada de Liceu Industrial do instituição participaram do Programa. No
Paraná e somente em 1942 conquistou o status câmpus de Francisco Beltrão até junho de 2015
de Escola Técnica de Curitiba. No ano de 1959 quinze alunos participaram do Programa
passou a ser instituição federal nomeada Escola Ciência sem Fronteiras, sendo que oito deles
Técnica Federal do Paraná para então, no ano retornaram de países de língua oficial inglesa.
de 1978 tornar-se Centro Federal de Educação Assim, por ser um Programa novo e com
Tecnológica do Paraná (CEFET-PR) até 2005, poucas pesquisas desenvolvidas a esse respeito
quando passou a ser universidade. A UTFPR no câmpus, este trabalho pode contribuir nas

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

468
pesquisadores do exterior que queiram se fixar
discussões sobre o Programa, as quais no no Brasil ou estabelecer parcerias com os
momento não estão acontecendo dentro do pesquisadores brasileiros nas áreas prioritárias
câmpus UTFPR, Francisco Beltrão. O objetivo definidas no Programa, bem como criar
deste trabalho é discutir em linhas gerais a oportunidade para que pesquisadores de
proposta de pesquisa que irá analisar os empresas recebam treinamento especializado no
discursos dos egressos do Programa Ciência
exterior (BRASIL, 2015a).
sem Fronteiras do Câmpus Francisco Beltrão
que estiveram em países de língua oficial Neste sentido podemos considerar o
inglesa. Programa Ciência sem Fronteiras como um
acontecimento na formação de ensino superior.
1. Programa Ciência sem Fronteiras
Fávero (20016, p.19) nos lembra que a
Pela primeira vez na história da universidade
educação brasileira estabeleceu-se um programa
de internacionalização em massa para sete tipos foi criada não para atender às necessidades
diferentes de sujeitos: alunos de graduação, fundamentais da realidade da qual era e é
alunos de doutorado, alunos de pós-doutorado, parte, mas pensada e aceita como um bem
jovens talentos, treinamento de especialistas em cultural oferecido a minorias.
empresas e pesquisadores visitantes.
De acordo com decreto 7642 de 2011 é Assim compreendemos que a
universidade brasileira foi criada para um
instituído o Programa Ciência sem Fronteiras,
limitado número de pessoas. Tanoas e Morilas
um programa que busca promover a
(2013, p.2) afirmam que
consolidação, expansão e internacionalização da
ciência e tecnologia, da inovação e da as universidades brasileiras já nascem
competitividade brasileira por meio do internacionais, pois o país não tinha
intercâmbio e da mobilidade internacional. A condições de formar profissionais na época.
iniciativa é resultado de esforço conjunto dos Assim, professores estrangeiros foram
Ministérios da Ciência, Tecnologia e Inovação recrutados para iniciar as atividades de
(MCTI) e do Ministério da Educação (MEC), pesquisa e ensino nas novas instituições.
por meio de suas respectivas instituições de
fomento – CNPq e Capes –, e Secretarias de No que diz respeito às áreas
Ensino Superior e de Ensino Tecnológico do contempladas pelo Programa Ciência sem
MEC. Fronteiras, temos:
O projeto prevê a utilização de até 101
Engenharias e demais áreas tecnológicas;
mil bolsas em quatro anos para promover
Ciências Exatas e da Terra;
intercâmbio, de forma que alunos de graduação Biologia, Ciências Biomédicas e da Saúde;
e pós-graduação façam estágio no exterior com Computação e Tecnologias da Informação;
a finalidade de manter contato com sistemas Tecnologia Aeroespacial;
educacionais competitivos em relação à Fármacos;
tecnologia e inovação. Além disso, busca atrair Produção Agrícola Sustentável;

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

469
Petróleo, Gás e Carvão Mineral;
Energias Renováveis;
quesito área específica a UTFPR fica em
Tecnologia Mineral; terceiro lugar para as bolsas de engenharia e
Biotecnologia; outras áreas tecnológicas. Dentre todas as áreas
Nanotecnologia e Novos Materiais; a UTFPR é a décima instituição a enviar alunos
Tecnologias de Prevenção e Mitigação de para o Programa Ciência sem Fronteiras
Desastres Naturais; (UTFPR, 2015a).
Biodiversidade e Bioprospecção; Figura 1. Revista Tecnológica UTFPR
Ciências do Mar;
Indústria Criativa (voltada a produtos e
processos para desenvolvimento tecnológico
e inovação);
Novas Tecnologias de Engenharia
Construtiva;
Formação de Tecnólogos (BRASIL,
2015b).

Considerando as áreas de interesse do


Programa Ciência sem Fronteiras a
Universidade Tecnológica Federal do Paraná
(UTFPR) está inserida no perfil delimitado pelo
Programa. Brasil (2012 a) destaca que

a Estratégia Nacional para Ciência,


Tecnologia e Inovação (ENCTI) destaca a
importância da ciência, a tecnologia e a
inovação (C,T&I) como eixo estruturante do
desenvolvimento do País e estabelece
diretrizes que irão orientar as ações
nacionais e regionais no horizonte temporal
de 2012 a 2015.
Em termos de preferência os Estados
Sendo assim, salientamos que é nesse Unidos é o país com mais alunos, seguido pela
período que os discursos dos egressos do Alemanha, Canadá, Reino Unido e França
Programa Ciência sem Fronteira da UTFPR, (UTFPR, 2015a).
Câmpus Francisco Beltrão, estão inseridos.
1.1. Ciência sem Fronteiras na UTFPR
A UTFPR é a primeira universidade
paranaense com mais alunos no Programa
Ciência sem Fronteiras. Depois vem a
Universidade Federal do Paraná (UFPR) e a
Universidade Estadual de Maringá (UEM). No

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

470
Figura 2. Ciência sem Fronteiras na UTFPR acumulada e capacidade administrativa
desenvolvida em décadas de operação de
tais programas; e (3) a atração global
exercida pela qualidade e amplitude do
sistema universitário norte-americano.

Assim, trabalhamos com um corpus que


passa pelas instâncias do saber, poder e
verdade, uma vez que está inserido na
instituição de ensino superior. Sobre isso Veyne
(2011, p.55) explica,

saber, poder, verdade: esses três vocábulos


impressionaram os leitores de Foucault.
Tentemos precisar suas relações mútuas.
Em princípio, o saber é desinteressado, livre
de todo poder, o Sábio está nas antípodas do
Político, por quem só tem desprezo. Na
realidade, o saber é frequentemente utilizado
pelo poder, que frequentemente lhe presta
auxílio. Bem entendido, não se trata de
erigir o Saber e o Poder como uma espécie
Nesse sentido, para o trabalho de de casal infernal, mas de precisar a cada
pesquisa que estamos desenvolvendo fizemos o caso quais foram suas relações e, em
recorte de analisar os discursos dos bolsistas primeiro lugar, se as tiveram, e por que
egressos do Programa Ciência sem Fronteiras vias.
que tiveram como destino país de língua
estrangeira oficial inglesa. Nesta tensão entre saber, poder e
verdade buscaremos nos discursos dos egressos
De acordo com Brasil (2012b), do Programa Ciência sem Fronteiras do
Câmpus Francisco Beltrão da UTFPR as
nos Estados Unidos, o processo de
questões a serem discutidas a posteriori.
internacionalização do ensino superior
continuará com o ritmo de ampliação
observado nas últimas décadas em todos os
seus aspectos. São três os fatores principais
que contribuem nessa direção: (1) consenso
sobre a importância da internacionalização
entre os diversos atores (governos,
academia, empresas) envolvidos no
planejamento, no apoio e na execução de
programas voltados para o intercâmbio e a
educação internacional; (2) massa crítica

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

471
Figura 3. Michel Luzza, egresso Ciência 2008), Coracini (2007), Hall (1997,2003),
sem Fronteiras, UTFPR, Francisco
Beltrão
Certeau (1982) entre outros.
Para Foucault,

A arqueologia busca definir não os


pensamentos, as representações, as imagens,
os temas, as obsessões que se ocultam ou se
manifestam nos discursos; mas os próprios
discursos, enquanto práticas que obedecem
a regras. Ela não trata o discurso como
documento, como signo de alguma coisa,
como elemento que deveria ser transparente,
mas cuja opacidade importuna é preciso
atravessar frequentemente para reencontrar,
enfim, aí onde se mantém a parte, a
profundidade do essencial; ela se dirige ao
discurso em seu volume próprio, na
qualidade de monumento. Não se trata de
uma disciplina interpretativa: não busca um
“outro” discurso mais oculto. Recusa-se a
ser “alegórica”. (FOUCAULT, 2014, p. 169
-170).

2. Abordagem teórica e metodológica


Dessa forma, buscamos na arqueologia
Buscando trabalhar com os pilares o desvelar dos discursos dos egressos do
Ciência, Tecnologia e Língua Estrangeira Programa Ciência sem Fronteiras da UTFPR,
centralizamos nossos esforços em com o apoio câmpus Francisco Beltrão.
da instituição e em especial do Departamento 3. Análises e discussão
de Relações Interinstitucionais do Câmpus
Francisco Beltrão (DERINT-FB) temos A pesquisa que estamos desenvolvendo
autorização para a realização da pesquisa no ainda está em fase de levantamento
câmpus e também autorização para acessarmos bibliográfico, elaboração de entrevistas e
os documentos relacionados ao Programa investigação em relação ao corpus do trabalho.
Ciência sem Fronteiras da instituição. Como Nesse sentido, não apresentamos
metodologia utilizaremos levantamento resultados da pesquisa, mas nos confrontamos
bibliográfico, pesquisa documental, entrevistas com um emaranhado de enunciados a serem
narrativas (Bauer & Gaskel, 2002) gravadas em organizados e analisados uma vez que estamos
gravador digital Sony ICD – PX440 e método lidando com instâncias do saber, poder e
arqueológico (Foucault). Nossas discussões verdade.
terão suporte teórico em Foucault (1982,

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

472
4. Considerações finais BRASIL. Programa Ciência sem Fronteiras.
Disponível em: <
A UTFPR, Câmpus Francisco Beltrão é
http://www.cienciasemfronteiras.gov.br/web/csf
um câmpus recente e sem pesquisas
>Acesso em: 30 set. 2015b.
desenvolvidas na área de análise do discurso em
relação aos egressos do Programa Ciência sem BRASIL. Ministério da Ciência, Tecnologia e
Fronteiras, portanto o trabalho de investigação Inovação. Estratégia Nacional de Ciência,
que estamos desenvolvendo evidencia Tecnologia e Inovação 2012-2015. Balanço das
contribuição significativa para a discussão sobre Atividades Estruturantes 2011. Brasília, DF:
internacionalização que tem sido amplamente MCTI, 2012a.
incentivada pela equipe gestora do câmpus. BRASIL. Ministério das Relações Exteriores.
Nesse sentido, Veyne (2011, p.25) nos Mundo Afora: Políticas de Internacionalização
diz que de Universidades, Brasília, MRE, n. 9, 2012b.

a cada época, os contemporâneos estão, FOUCAULT, M. Arqueologia do saber. Trad.


portanto, tão encerrados em discursos como Luiz Felipe Baeta Neves. 8.ed. Rio de Janeiro:
em aquários falsamente transparentes, e Forense Universitária, 2014.
ignoram que aquários são esses e até mesmo FAVERO, M. L. A. A Universidade no Brasil:
o fato de que há um. As falsas generalidades das origens à Reforma Universitária de 1968.
e os discursos variam ao longo do tempo; Educar em Revista, v. 1, p. 17-36, 2006.
mas a cada época eles passam por
verdadeiros. De modo que a verdade se TANOUE, A. D. ; MORILAS, L. R. . A
reduz a um dizer verdadeiro, a falar de internacionalização do ensino superior no
maneira conforme ao que se admite ser Brasil: um estudo de caso das políticas da
verdadeiro e que fará sorrir um século mais Universidade de São Paulo. In: 3a. Conferência
tarde. A originalidade da busca foucaultiana FORGES, 2013, Recife. Atas da 3a.
está em trabalhar a verdade no tempo. Conferência FORGES, 2013.
UTFPR. Ciência sem Fronteiras. Disponível em:
Assim, buscaremos identificar quais são
<http://www.utfpr.edu.br/estrutura-
os enunciados desvelados pelos egressos do
universitaria/diretorias-de-
Programa Ciência sem Fronteiras do Câmpus
gestao/dircom/noticias/noticias/ciencia-sem-
Francisco Beltrão e em que medida eles estão
fronteiras-2> Acesso em 30 set.2015a.
relacionados com o verdadeiro de sua época.
UTFPR. Revista Tecnológica. Ano 1. Número
1. Abril 2015. Disponível em:
Referências <file:///C:/Users/User/Downloads/revista-tec-
BRASIL. Decreto n. 7642, de 13 de dezembro 2015%20(1).pdf> Acesso em 30 set.2015b.
de 2011. Disponível em: VEYNE, P. Foucault: seu pensamento, sua
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011 pessoa. Trad. Marcelo Jacques de Morais. Rio
-2014/2011/Decreto/D7642.htm. Acesso em: de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.
30 set. 2015a.

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

473
ENGENHO: UM PRINCÍPIO DE AUTORIA

André da Costa LOPES


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)
dacostta@hotmail.com

Resumo: Este trabalho tem por objetivo discutir a noção de autoria no discurso literário
produzido no século dezessete em Portugal tendo como base as contribuições dos estudos
enunciativos-discursivos propostos pela Análise do Discurso, sobretudo as considerações
de Maingueneau (2008; 2010). Nossa discussão girará em torno do item lexical engenho,
considerado como palavra-chave e signo de pertencimento de uma semântica global do
discurso (MAINGUENEAU, 2008). A partir disso, consideramos possível vislumbrar um
vestígio de um princípio de autoria, visto que nos enunciados pertencentes ao campo
discursivo literário seiscentista o autor engenhoso é pensado como aquele que domina o
código de composição de forma excepcional.
Palavras-chave: discurso literário; autoria; discurso engenhoso barroco.

que, ao integrar a problemática da autoria a


Introdução
Análise do Discurso, este autor considera as
Este trabalho é um recorte de uma principais características da função-autor, mas
pesquisa de doutorado que se propõe a estudar as amplia quando engloba no conceito de
a noção de autoria e a constituição dos sujeitos autoralidade três dimensões de autor, a saber:
enunciadores em discursos de Antônio da
Fonseca Soares, poeta português do período autor-responsável, instância historicamente
barroco, sob o viés teórico-metodológico da variável, que responde pelo discurso, não
Análise do Discurso. A pesquisa é vinculada ao sendo nem o enunciador nem o produtor em
Programa de Pós-Graduação da Pontifícia carne e osso, mas uma instância híbrida que
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), abala essa distinção, válido para qualquer
tipo de discurso; autor-ator, aquele que
na linha de pesquisa Texto e discurso, nas
organiza sua existência em torno de uma
modalidades oral e escrita.
produção de discursos, que gere uma
Considerando a natureza sócio-histórica trajetória, uma carreira, variável segundo
da noção de autor/autoria, operamos, neste lugares épocas e posicionamentos; auctor,
estudo, principalmente com o conceito de autor enquanto correlato de uma obra, de
autoralidade (MAINGUENEAU, 2010), visto um opus (MAINGUENEAU, 2010, p. 30).

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

474
agudezas. Nesse sentido, Teixeira (2005, p. 47
1. Desenvolvimento do artigo apud Tesauro, 1741) considera o seguinte:
Considerando as especificidades do nos termos de Tesauro, a agudeza pode se
discurso literário, sobretudo o produzido no compor de simples palavras engenhosas,
século XVII em Portugal, jugamos plausível isto é, palavras metafóricas ou figuradas; de
pensar no item lexical engenho, como palavra- proposições engenhosas, como as sentenças,
chave e signo de pertencimento de uma figuradas e sutis; e de argumentos
semântica global do discurso, cujo conjunto de engenhosos ou conceitos inesperados e
restrições semânticas autoriza o que deve e o surpreendentes.
que não deve ser dito dentro de uma formação
discursiva (MAINGUENEAU, 2008). Nesse sentido, o item lexical engenho
(engenhoso), pode ser entendido como a
A produção discursiva literária barroca,
capacidade de produzir agudezas, mas também
entendida como engenhosa, era pautada na
denota um domínio do código de composição
reduplicação ou emulação de modelos
podendo ser considerado, nesse campo
consagrados, escritos por autoridades no
discursivo, como um princípio legitimador de
assunto, sejam elas originárias da antiguidade,
autoria.
do medievo ou contemporâneas.
2. Abordagem teórica e metodológica
Por ser pautada na modalidade verbal da
imitação (TEIXEIRA, 2005), a produção A breve reflexão sobre autoria deste
discursiva literária desse período não era vista artigo se alicerça sob os postulados teóricos da
como original, mas sim engenhosa, no sentido Análise do Discurso. Utilizaremos como
de que, dentro de um código de composição principais categorias de análise os conceitos de
“fechado”, podia-se produzir enunciados que semântica global do discurso e de autoralidade
superassem o modelo consagrado. Ademais, a forjadas por D. Maingueneau (2008; 2010).
tradição manuscrita ainda “concorria” com a De acordo com Maingueneau (2008),
impressa e, por esse motivo, prevalecia as uma semântica global do discurso tem por
regras das coletividades sem imprensa, nas objetivo apreender a construção de sentido de
quais as práticas discursivas eram muito um discurso considerando todas as dimensões
vinculadas à situação de comunicação. de seu sistema de restrições semânticas. Ela é
Num ambiente como esse, tratar da constituída pelos planos intertextual, lexical,
noção de autoria torna-se problemático, visto temático, pelo estatuto do enunciador e do
que o nome de autor se apaga no ato da destinatário, pela dêixis enunciativa, o modo de
enunciação, e a própria natureza dos enunciação e a coesão discursiva. Todos
enunciados, pautados na imitação de modelos, imbrincados e agindo de maneira dinâmica na
torna dificultoso encontrar uma instância produção dos sentidos. O ponto central de uma
subjetiva original. semântica global é, de fato, o sistema de
restrições semânticas das formações
Contudo, posicionar-se neste campo
discursivas. É esse sistema que delimita a rede
discursivo literário implica em ter a habilidade
de produzir discursos engenhosos, repletos de

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

475
do dizível de um discurso e sua relação com o falarem dele. Nesse sentido, ser auctor não
Outro (o interdiscurso). significa somente dominar o código de
composição de maneira magistral, mas também
Em se tratando de vocabulário, para
ser comentado. Ele precisa ter autoridade, mas
Maingueneau (2008), a palavra em si mesma
para isso deve ser autorizado. No século XVII,
(isolada) não constitui uma unidade de análise
circulavam pela Europa muitos manuais de
pertinente. Porém, um lexema pode representar
escrita que tinham por objetivo ensinar a
a “palavra-chave” de um conjunto textual.
produzir agudezas, havia também compilações
Sendo que o sistema de restrições do discurso
poéticas que selecionavam os autores mais
deve explicar o estatuto privilegiado dado a tal
engenhosos.
termo. Dentro de uma formação discursiva as
unidades lexicais tendem, portanto, a adquirir o A análise que segue tem como foco
estatuto de signos de pertencimento. esses manuais de agudeza e as compilações que
moldam a figura de um auctor: aquele capaz de
Nesse sentido, o autor posicionado no
produzir o discurso engenhoso, sendo ele
campo discursivo literário seiscentista deve
próprio engenhoso.
revelar-se engenhoso, a ele não cabe ser
original, como um autor romântico. Engenho 3. Análises e discussão
(engenhoso) nesse sentido ganha estatuto de No dicionário Bluteau (1728, p.117), a
signo de pertencimento numa formação palavra engenho é descrita na seguinte acepção:
discursiva que restringe qualquer ato criativo
que seja “original” e se apoia no principio da força natural do entendimento com o qual o
imitação arguta de modelos. homem percebe pronta e facilmente o que
Revela-se aqui a dimensão história da lhe ensina, aprende as sentenças e artes mais
dificultosas, inventa e obra muitas coisas.
noção de autor. Esta noção, em Maingueneau
Algumas vezes com a palavra engenho
(2010, p. 30), é constituída em três dimensões
significamos uma pessoa engenhosa, como
de autor, a saber: quando dizemos: os maiores engenhos da
antiguidade; ou fulano é um grande engenho
autor-responsável, instância historicamente
é um dos maiores engenhos desses tempos.
variável, que responde pelo enunciado, não
Esta palavra também é associada ao
sendo nem o enunciador, nem o produtor em
vocábulo latino acutè (agudo) nos seguintes
carne osso, mas uma instância híbrida que
usos: acutè aliquid conjicere: conjecturar
abala esta distinção; autor-ator, aquele que
alguma coisa com engenho; acutè dicere,
organiza sua existência em torno da
respondere, loqui, explicare aliquid: dizer,
produção de discursos, que gere uma
responder, falar, explicar alguma coisa com
trajetória, uma carreira, variável segundo
engenho; scribere acutè, compor com
lugares, épocas e posicionamentos; auctor,
engenho.
autor enquanto correlato de uma obra, de
um Opus.
Os sentidos possíveis dessa palavra
Maingueneau (2010) afirma que um revela que ser engenhoso pode significar uma
autor só será realmente um auctor se terceiros grande capacidade intelectiva. Também denota

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

476
a capacidade de escrever ou produzir agudezas, comentado e autorizado como modelo num
ou compor com engenho. manual retórico-poético de grande circulação.
Nota-se, ainda, que o item lexical Se os manuais retórico-poéticos
engenho desloca-se para uma prática discursiva, atestavam a autoridade do autor indiretamente
na qual ser engenhoso é mostrar-se conhecedor (aprovando-o como auctor), as compilações
dos rígidos códigos de conduta na corte. O poéticas o faziam diretamente. As marcas disso
sujeito precisa mostrar-se culto no falar e estão evidentes em elementos paratextuais
refinado nos gestos corporais. Enfim firmar-se como títulos ou prefácios. Por exemplo, nos
num ethos que nega qualquer tipo de afetação. cinco tomos da Fenix Renascida, notório
A esse respeito, vide os muitos manuais de cancioneiro do barroco português publicado
conduta social escritos em toda Europa. Um século XVIII, o título é o seguinte: Fenix
bom exemplo disso e ó livro A arte da Renascida ou obras poéticas dos melhores
prudência escrito em 1647, pelo jesuíta engenhos portugueses. No Postilhão de Apolo,
espanhol Baltasar Gracián. outro cancioneiro barroco, em seu longo título
lê-se o seguinte: Academia universal em qual
Contudo, nosso foco aqui se centra no
se recolhem os cristais mais puros, que os
item lexical engenho como um princípio de
famigerados engenhos lusitanos beberam nas
autoria. Para isso, vamos traçar algumas rápidas
fontes de Hipocrene, Helicona e Aganipe [...].
reflexões acerca dos manuais de escrita e das
compilações poéticas barrocas. Num campo discursivo, no qual a
retórica e a poética prescreviam modelos a
O famoso manual de escrita (sobretudo
serem imitados dentro de um código de
na Península Ibérica) A agudeza y arte de
composição fechado, ser engenhoso significava
Ingenho, de Baltazar Gracián (GRACIAN,
ter a capacidade de criar novidades por meio de
1944), por exemplo, discorria didaticamente
combinações surpreendentes. Nesse contexto,
sobre as várias modalidades de agudeza e
as palavras de Muhana (1997, p.50) são
ilustrava-as com obras dos poetas mais
relevantes:
engenhosos. Outro manual de escrita não
menos cultuado traz também em seu título a Nos seiscentos, como na Antiguidade, os
palavra engenho vinculada a palavra agudeza: Il catálogos de modelos fornecem a tópica
Cannochiale Aristotelico O` Sia Idéa Dell´ onde encontrar os argumentos relativos a
Arguta et Engenhosa Elocutione (TESAURO, cada assunto, as mais justas expressões
1670). para cada afeto, as mais eruditas e
O objetivo desses manuais era ensinar a deleitosas sentenças dos melhores autores –
desconsiderá-los é ignorar matéria da poesia
arte de criar agudezas e, consequentemente,
e esconder, sob a capa da inspiração, a
tornar possível o discurso engenhoso. No incapacidade de justificar o que se escreve.
campo discursivo literário, como vimos,
engenhoso era o autor capaz de criar agudezas.
O engenho, portanto, era marca de domínio do Nesse contexto, nos discursos nos quais
código de composição e figurar num desses o item lexical engenho pode ser considerado
manuais era, de certa modo, uma maneira de ser palavra-chave ou signo de pertencimento, pode-
se vislumbrar, no centro do sistema de

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

477
restrições semânticas, coerções que impedem o satírica etc. A despeito disso, como podemos
autor de ser original e inventivo. A este é constatar, o item lexical engenho ocupa uma
prescrita a tarefa de construir sentidos posição central, de signo de pertencimento, no
reduplicando modelos, combinando e que se refere à noção de autoria no discurso
recombinado o código de composição prescrito literário seiscentista.
nas artes retóricas e poéticas. Só assim poderá
4. Considerações finais / Conclusões
ser considerado auctor.
A breve reflexão sobre autoria
Desse modo, a recepção lerá os autores (autoralidade) exposta neste artigo pretendeu
mais engenhosos e os comentadores discorrerão contribuir para ampliar as discussões a respeito
sobre os autores mais argutos e engenhosos. desta problemática no campo da Análise do
Enfim, servirão de modelos para poetas e discurso. Além disso, considerando a dimensão
preceptores (nos manuais de escrita) os histórica e social da noção de autor é relevante
melhores autores, aqueles capazes de criar que se tenha em mente que o próprio nome de
agudezas com engenhosidade. autor mobiliza certas expectativas nos
Contudo, tal fato revela uma vocação coenunciadores, ou seja, mobiliza mecanismos
enunciativa (Maingueneau, 2008) que autoriza da função-autor (FOUCAULT, 1994) e
a posição do enunciador em certas zonas do revelam também, a partir do posicionamento do
discurso. Não basta apenas adquirir os textos autor e de comentadores posteriores, certa
ou modelos para ser capaz de produzir outros imagem de autor (MAINGUENEAU, 2010). É
enunciados a partir deles, ou de dominar o possível a partir de tais premissas evidenciar
código de composição. Trata-se de princípios de autoria que variam de tempos em
tempos e, com isso, evitar equívocos no que
um processo de ‘interpelação’ pelo discurso concerne a noção de autoria (autor) no campo
[...] definindo o que é necessário para poder discursivo literário.
enunciar, o discurso ‘filtra’ a aparição no
campo da palavra, de uma população Expandir tais reflexões para o âmbito
enunciativa distinta (MAINGUENEAU, escolar poderia gerar frutíferas contribuições,
2008, p. 130) haja vista que pouco se fala sobre tal assunto
nesse contexto. Via de regra, as discussões
Portanto, o engenho que singulariza o ficam em torno no narrador e do eu lírico,
autor engenhoso pode revelar uma competência categorias advindas dos estudos literários,
discursiva, no vasto campo discursivo literário espaço textual, desconsiderando-se a natureza
seiscentista. Embora os manuais retórico- discursiva da enunciação literária.
poéticos e as compilações poéticas revelem e
autorizem esses engenhos como modelos, nem
Referências
todos aqueles que se comprometem a estudar
os mauais de agudeza tornam-se autores BLUTEAU, R. Vocabulário portuguez e latino.
singulares e nem todos dominam todos os Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de
gêneros. Há aqueles que são modelos somente Jesus, 1712-1728. Disponível em: <http: /
nos sonetos, na poesia vulgar, ou na poesia /www.ieb.usp.br /online /index.asp>.

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

478
/Pwebrecon.cgi?BBID=376895>. Acesso em:
SYLVA, M. P. A fênix renascida ou obras
19 fev
poéticas dos melhores engenhos portugueses.
Dedicadas ao Excelentíssimo Senhor D. João.
III Tomo. Segunda vez impresso por Mathias
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che serue à tutta l‟arte oratoria, lapidaria, et
simbólica. Esaminata co‟ principij del diuino
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Emanuele Tesauro, patritio torinese. Torino:
Per Bartolomeo Zauatta, 1670. Disponível em:
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479
A FUNÇÃO ENUNCIATIVA DA TÁTICA BLACK BLOC:
QUESTÕES PARA ANÁLISE

Marcos Alves LOPES; Agostinho Potenciano de SOUZA


Universidade Federal de Goiás (UFG/Discens)
marcosalveslopes@gmail.com

Resumo: Este trabalho intenta analisar a tática Black Bloc pelo viés da arqueologia
foucaultiana. Para tal, o Black Bloc é compreendido como um enunciado, uma vez que se
trata de uma ação coletiva que possui uma materialidade específica (vestimenta preta e
anonimato) e é compreendido em relação a outros enunciados que compõem o amplo
arquivo de lutas sociais. As posições-sujeito presentes na tática tornam-se alvo das
análises, já que os lugares ocupados pelos sujeitos no Bloco diferem profundamente de
outras formas de participação política. Enfim, a função enunciativa, de acordo com a
arqueologia foucaultiana, será a base para uma possível análise do Bloco. Como
resultado, entendemos que os participantes se camuflam no anonimato na tentativa de
fugir ao controle dos corpos; a posição-sujeito Black Bloc é efêmera.
Palavras-Chave: enunciado; arquivo; posição-sujeito; black bloc.

respondidas ao longo desta reflexão: a) quais as


Introdução
relações entre os Black Blocs e os demais
Este trabalho procura analisar o grupos que usam da violência em protestos de
fenômeno Black Bloc diante da perspectiva rua?; b) trata-se de um movimento social
arquegenealógica foucaultiana. Em português, específico?; c) quais são os discursos que
Bloco Negro, representa uma formação em pretendem defender ou demonizar a prática
bloco cujos participantes usam roupas da cor Black Bloc?; d) de que maneira as posições
preta e reúnem-se para a atuação violenta e sujeito manifestam-se no bloco?
anônima em manifestações de rua (DEPUIS-
Com base na perspectiva
DÉRI, 2014). A iniciativa desta pesquisa surgiu 1
arquegenealógica , este trabalho não tem como
principalmente diante das grandes
manifestações ocorridas em 2013, no Brasil, 1
onde vários sujeitos vestidos de preto Enquanto na arqueologia Foucault (2008) trabalha
as questões pertinentes à dispersão e a regularidade
exerceram forte influência durante os protestos.
dos enunciados (enunciados que necessariamente
Diante deste cenário, algumas perguntas estão em relação a outros), na genealogia Foucault
foram elaboradas na tentativa de serem (2014) dedica-se ao estudo das relações de poder e
resistência. Tanto em uma, quanto em outra fase, a

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480
objetivo datar a origem exata do acontecimento grupos e/ou sujeitos que resistem mediante a
Black Bloc, mas relacioná-lo a outros força.
fenômenos, analisando os enunciados (um em Para Foucault (2008, p. 147), o arquivo
relação a outros) e as posições sujeito é o sistema que rege o aparecimento dos
existentes nessa tática. Foucault (2008), ao enunciados. Em outras palavras, “[...] é, de
pensar o próprio método, não parte de uma início, a lei do que pode ser dito, o sistema que
visão contínua ou sequencial dos fatos, mas os rege o aparecimento dos enunciados”. Os
compreende de uma maneira descontínua, de enunciados são diferentes de uma frase ou
modo que a dispersão e a regularidade dos proposição, uma vez que são concebidos como
acontecimentos históricos possam relacionar-se acontecimentos, diante da descontinuidade
através de uma série de discursos e práticas histórica, e possuem uma materialidade
sociais. Assim, o método arqueológico específica: “[...] o enunciado precisa ter uma
foucaultiano propõe “[...] considerar o substância, um suporte, um lugar e uma data.”
enunciado naquilo que ele tem de regular com
outros enunciados, fazendo emergir a Sendo assim, torna-se, pois, possível
singularidade das situações que ali se tomar as ações de rua promovidas pelos Black
produzem” (MILANEZ, 2009, p. 284). Blocs como um acontecimento enunciativo, já
que possuem materialidade, ocupam um lugar e
1. Breve descrição e análise do arquivo se modificam de acordo com as condições de
Ainda que panoramicamente, torna-se produção dos atos. Torna-se possível
relevante constatar que são diversas as considerar também o acontecimento Black Bloc
manifestações que se utilizaram da força como como parte de um arquivo amplo, já que as
forma de resistir à violência policial, ou como manifestações de rua, dispersas ao longo da
um modo específico de sustentar uma história, perfazem um campo de lutas sociais.
determinada causa. Essas manifestações Dos ataques de coquetel molotov
compõem um arquivo amplo de lutas de rua em promovidos pelas mulheres inglesas que
que a força é tomada como meio de resistência exigiam o sufrágio universal, no início do século
a uma determinada prática social e/ou XX, às manifestações pela redução da tarifa do
discursiva. Dessa forma, os Black Blocs transporte coletivo, no Brasil, constata-se a
inserem-se em uma série de práticas de lutas força como possibilidade de resistência à ação
sociais enunciadas a partir de atos violentos que policial e/ou forma de atingir os objetivos
expõem suas causas e reinvindicações. Assim, o pretendidos. O arquivo de violência em atos
recurso da violência em atos públicos compõe públicos é bastante extenso; entretanto, essas
um quadro bastante extenso e heterogêneo de práticas são aqui brevemente mencionadas.
Remonta à Alemanha, no início dos anos
questão central das problematizações foucaultianas 1980, as primeiras aparições de grupos que se
não é outra senão o sujeito, o sujeito discursivo. autodenominavam Black Bloc. Esses indivíduos
Sendo assim, o estudo arquegenealógico pretende teriam sofrido fortes influências do movimento
estudar a função enunciativa e, também, as relações autonomen, o qual lutava por causas
de governo de um sobre outros, as relações de poder anticapitalistas e antiautoritárias. As bases
e resistência.

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481
ideológicas dos autonomistas são variadas, o sinalizar que a luta não é contra a globalização,
que não exclui os anarquistas como agentes mas por outras formas de ação global.
principais do coro. Durante os anos 1980, Desse modo, a tática Black Bloc não
vários grupos autonomistas alemães faziam pode ser entendida diante da perspectiva
campanhas contra o pagamento de aluguéis, tradicional dos movimentos sociais, já que os
questionando a propriedade privada e buscando próprios integrantes definem-se como uma
novas formas horizontalizadas de organização. tática, não como um movimento social. Os
Além de protestar contra a hierarquia presente termos “estratégia” e “tática” estão intimamente
nos movimentos sociais tradicionais, relacionados, já que ambos perfazem o
participavam de atos em que a tônica era a luta vocabulário relacionado à guerra. Enquanto a
antiautoritária, ocupando edifícios, construindo “estratégia” relaciona-se às ações globais, a
bibliotecas e salas de reunião. Nessa direção, “tática” possui um caráter pontual de ação. Por
Dupuis-Déri (2014, p. 40) afirma que, isso, conforme Dupuis-Déri (2014), não é
[...] na verdade, o que diferencia essa tática possível afirmar que o Black Bloc se configure
[Black Bloc] de outras unidades de choque é como um movimento social organizado, uma
sobretudo sua caracterização visual – vez que muitos blocos são formados somente
roupas inteiramente pretas da tradição em ações específicas/pontuais, às vezes
anarcopunk – e suas raízes históricas e espontaneamente, em prol de causas
políticas nos autonomen, movimento antiautoritárias, anticapitalistas e de
autonomista em Berlim Ocidental, onde a alterglobalização, desfazendo-se em seguida.
tática Black Bloc foi usada pela primeira
vez no início dos anos 1980.
Vários ditos foram elaborados
anonimamente e distribuídos em suportes em
que o controle discursivo não é tão acirrado.
O caráter distintivo do Bloco Negro, Na internet, em blogs dispersos, alguns Black
então, pode ser notado a partir das vestimentas Blockers (integrantes do bloco) divulgaram o
de cor preta. Outra distinção considerável entre porquê do uso da tática. Um deles, ao explicar
a tática Black Bloc e as demais está no fato de a razão de quebrar símbolos capitalistas, trouxe
que cada indivíduo integra-se ao bloco de forma à tona a propaganda através da ação. Conforme
independente dos movimentos sociais postou um militante anônimo:
organizados. Não é exigido que os integrantes
façam parte de algum movimento ou grupo Propaganda pelo Ato [...] consiste
específico, mas que eles queiram basicamente na realização de uma ação de
espontaneamente integrar-se ao bloco, como grande visibilidade a fim de que esta se
mais um homem ou mulher vestida de preto, em torne referência e inspiração para outras
protestos de rua de caráter antiautoritários, ações semelhantes e/ou complementares
anticapitalistas e de alterglobalização - em implementadas por outros grupos e
oposição ao termo “antiglobalização”, de indivíduos. Ou seja, a pessoa faz algo que
acordo com o Centro de Mídia Independente incentiva o outro a fazer. (CMI, 2014).
(CMI, 2014), alguns movimentos preferem usar
o termo “alterglobalização”, como forma de

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482
todo custo, principalmente aqueles vestidos de
A tática Black Bloc, portanto, pode ser
preto. Segundo o autor, basta que o bloco de
compreendida como uma forma de
preto se reúna para que a ação policial venha à
propagandear as lutas sociais através da ação.
tona. Afinal, quem está autorizado a falar no
Segundo Dupuis-Déri (2014), os discursos
espaço público? Na perspectiva dos
contrários às práticas violentas em
manifestantes, a rua é o lugar de reivindicação
manifestação, fomentados pelos meios de
popular; luta-se para que as ruas não sejam
comunicação de massa, atribuem a
tomadas como espaço de prestígio de poucos e
irracionalidade da juventude como principal
para que as causas possam ser defendidas ali.
causa da violência. Em vários enunciados
coletados pelo autor, os discursos sobre os Para Foucault (2008, p. 122), uma
jovens estão postos como algo muito próximo determinada formação discursiva estipula o que
da insanidade, trazendo à tona uma suposta pode ou não ser dito em um lugar. Tal conceito
ignorância juvenil. Ora, qual é a legitimidade do remete ao “[...] princípio de dispersão e de
saber da juventude? A quem seria dada a repartição, não das formulações, das frases, ou
permissão de dizer sobre a educação ou sobre a das proposições, mas dos enunciados.” A cor
saúde desses sujeitos? Os jovens teriam preta, na formação discursiva religiosa, remete
credibilidade ao questionar o capitalismo e a ao oposto da paz. No mito bíblico, por
globalização? exemplo, uma pomba branca, representando a
paz, é lançada por Noé para detectar se o
Foucault (2013, p. 10), ao discutir sobre
dilúvio já havia acabado. Deslocada para o
a rejeição do discurso como forma de controle,
acontecimento Black Bloc, a cor preta toma a
considera que “[...] pode ocorrer que sua
conotação de reivindicação. Desse modo,
palavra seja considerada nula e não seja
torna-se possível entender como as formações
acolhida, não tendo verdade nem importância”.
discursivas entrelaçam-se constantemente. Na
Isso pode ser observado no discurso dos
música, por exemplo, não é diferente: o
jornalistas, que não se cansam de atribuir
segmento gospel geralmente traz a cor branca
adjetivos taxativos aos jovens Black Blockers,
como sinônimo de santidade, enquanto o preto
tais como incautos e insanos, conforme
é a cor mais enfatizada, na contramão da
constatou Dupuis-Déri (2014). Nesse ínterim, a
purificação cristã, no rock, Metal ou Black
propaganda pela ação torna-se uma resistência
Metal.
diante do controle do discurso sobre a
juventude, ou seja, o Black Bloc, diante da O acontecimento Black Bloc,
prática, enuncia a ausência de participação ativa enunciando a partir de uma materialidade de cor
dos jovens perante os problemas da polis, o preta, relaciona-se aos discursos de
que, em última instância, trata-se da resistência contestação. O corpo Black Bloc, como um
à ordem do discurso que rejeita/interdita os suporte à enunciação, traz a vestimenta da cor
saberes da juventude acerca das questões preta, de modo a reviver outros enunciados.
públicas. Foucault (2008, p. 110) afirma que “[...] um
enunciado tem sempre margens povoadas de
Conforme Dupuis-Déri (2014), nas
outros enunciados [...]”, ou seja, a escolha da
manifestações europeias há constantemente a
cor nos atos de resistência não ocorre apenas
tentativa policial de dispersar os manifestantes a

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483
como forma de camuflar os corpos, mas, como transversal. No bloco de Seattle, por
também, como manifestação do discurso de exemplo, em 30 de novembro de 1999, cerca de
contestação. 1500 indivíduos (a maioria estrangeira) fizeram
um ato de enorme proporção. Enquanto a
Segundo Dupuis-Déri (2014), os Black
polícia monitorava os pacifistas em frente à
Blocs apresentam-se em diversos atos de cunho
reunião da Organização Mundial do Comércio
antiautoritários. Quanto às lutas
(OMC), um Black Bloc foi formado em outro
antiautoritárias, Foucault (1995, p. 235)
ponto da cidade; com o intuito de dispersar o
assinala que “[...] são uma oposição aos efeitos
poderio policial, o bloco destruiu grandes
de poder relacionados ao saber, à competência
empresas, símbolos do capitalismo,
e à qualificação: lutas contra os privilégios do
“autorizando” ao mesmo tempo uma
saber.” Não aceitar a excludente ordem do
manifestação pacífica em frente à reunião da
discurso das ruas, onde alguns possuem o
OMC. Compreende-se, desta forma, que, em
privilégio do saber e a autorização de
Seattle, a tática Black Bloc configurou-se como
dizer/locomover, é também um questionamento
uma luta antiautoritária, uma vez que não havia
presente na tática Black Bloc, que, ao resistir às
um alvo apenas, o bloco de Seattle defendia os
ações policiais, procura pluralizar e ressoar as
manifestantes pacifistas e encampava uma luta
diversas vozes sociais nos espaços públicos.
contra o “governo da individualização”,
No entanto, para Foucault (1995), não questionando o império do saber/poder.
basta dizer que as novas lutas sociais são
Tal questionamento também ocorreu
antiautoritárias. A partir das lutas do final dos
durante os protestos de rua em junho de 2013,
anos 1960, o filósofo elabora algumas
no Brasil. Antes dessas manifestações, já se
características comuns entre elas; são, pois: a)
podia notar uma série de ações de rua contra o
lutas transversais, já que não estão limitadas a
um país; b) lutas imediatas, no sentido de aumento da passagem do transporte coletivo
por todo o país. Naquele momento,
criticar as instâncias de poder próximas aos
principalmente em março de 2013, vários
sujeitos participantes dos atos, e não lutas
segmentos da sociedade se juntaram aos
contra um único alvo; c) são lutas anárquicas, já
estudantes (ainda que de forma tímida) para não
que resistem ao exercício de poder de maneira
ampla, não somente contra o poder exercido permitir o reajuste do preço. Entretanto, como
é de praxe em solo brasileiro, a polícia agiu de
pelo Estado. Logo, “[...] são batalhas contra o
forma truculenta, como forma de interdição dos
‘governo da individualização’” (FOUCAULT,
discursos não autorizados. Dessa forma, o uso
1995, p. 235), ou seja, são reivindicações que
da força policial nas manifestações pode ser
questionam as diversas formas de separar o
notado como uma maneira de impedir que
indivíduo de sua relação consigo mesmo e com
algumas práticas sociais e/ou discursivas sejam
os outros.
discursivizadas no cenário público.
A tática Black Bloc não é limitada a um
A interdição, um dos procedimentos de
país, de modo que alguns Black Blocs são
controle do que deve ou não ser dito, impede a
convocados pela internet, e várias pessoas, de
criação dos discursos, pois nem todos estão
vários países, passam a compor o coro
autorizados a dizer sobre algo. Foucault (2013,
espontaneamente, o que caracteriza essa tática

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484
mesma de um enunciado a outro: na medida
p. 9) assinala que “[...] não se tem o direito de em que é uma função vazia, podendo ser
dizer tudo, que não se pode falar de tudo em exercida por indivíduos, até certo ponto,
qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, indiferentes, quando chegam a formular um
não pode falar de qualquer coisa”, Ainda, enunciado; e na medida em que um único e
segundo Foucault (2013), o discurso da política mesmo indivíduo pode ocupar,
e da sexualidade são lugares onde as grades do alternadamente, em uma série de
discurso são mais acirradas. A ação policial, ao enunciados, diferentes posições e assumir o
dispersar uma multidão com bombas ou gás de papel de diferentes sujeitos (FOUCAULT,
pimenta, age de forma a controlar os ditos e as 2008, p. 105).
práticas sociais, interditando aqueles não
autorizados, fechando ainda mais as grades do A partir de Foucault (2008), torna-se
discurso político. O que pode ser dito; por possível compreender como as posições sujeito
quem deve ser dito; e em que momento será são ocupadas, ou pelo mesmo indivíduo, ou por
dito? indivíduos diferentes, assumindo papéis de
Em março de 2013, quando as sujeitos distintos, de modo que o mesmo sujeito
contestações em torno do aumento da empírico possa ocupar vários lugares no
passagem do transporte público tomaram discurso. A tática Black Bloc exemplifica essa
bastante força, a população brasileira não função vazia: o professor, o médico ou
estava autorizada a dizer sobre o transporte, enfermeiro podem adentrar-se ao bloco,
muito menos a ocupar as ruas para questionar o compondo ou não um “grupo de afinidade”, e
preço da tarifa do ônibus. Ao defender a ocupar um lugar no Black Bloc. Não há
polifonia social, a prática Black Bloc propõe necessidade de que os membros do bloco sejam
adentrar o cenário de lutas antiautoritárias de militantes ativos no dia-a-dia, mas que ali,
modo que haja o questionamento do estatuto naquele ato de rua, ocupem um lugar entre os
do indivíduo e do império do saber. É possível homens e as mulheres do bloco.
sugerir, portanto, que a tática Black Bloc Conforme Foucault (2014) é
reivindica a queda do prestígio do saber, através imprescindível adotar uma “estratégia” como
da defesa das diversas vozes antiautoritárias pressuposto da ação do poder, já que essas
presentes nas manifestações de rua, e utiliza a relações manobram rumo à estabilização e o
força e o anonimato como formas de crescimento do exercício de poder. Ainda
resistência. segundo Foucault (2014, p. 380), “[...] o poder
2. Posições sujeito do bloco burguês pôde elaborar grandes estratégias, sem
que por esse motivo se precise supor um
Outro aspecto importante é a posição sujeito.” Em outros termos, o filósofo considera
sujeito dos membros dos Black Blocs. Para que as estratégias do poder não necessitam de
Foucault (2008), o sujeito do enunciado é uma um sujeito empírico específico, já que vários
função vazia, podendo assim ocupar lugares sujeitos podem ocupar distintas posições. Se o
discursivos variados. Para o filósofo, poder possui uma direção (não um sujeito), a
resistência também o faz. Dessa forma,
[...] o sujeito do enunciado é uma função
considerar o Black Bloc como uma resistência
determinada, mas não forçosamente a

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485
sem sujeito é incluir essa prática nas redes da também “aderiram” às vestimentas pretas e,
“estratégia sem sujeito”. Assim como não se ocupando o bloco com os trajes Black Blocs,
supõe um sujeito que teria elaborado as efetuam prisões, tiram fotos e formam um
estratégias do poder burguês, não há um sujeito arquivo de cada manifestante de preto.
suposto no Black Bloc. A resistência do bloco Depuis-Déri (2014, p. 200) afirma que a
não é, pois, uma resistência cujo significante infiltração policial ocorre “[...] quando os
seja atribuído a um sujeito empírico, mas uma protestos estão em andamento, com policiais à
“tática sem sujeito”. paisana alocados diretamente em meio aos
Considerando que o Black Bloc é uma manifestantes”. Os policiais ocupam a posição
construção contemporânea, torna-se sujeito de manifestante dando sequência ao
condescendente refletir sobre as construções monitoramento e às prisões de homens e
dessas identidades. De acordo com Bauman mulheres vestidos de preto. As posições sujeito
(2005, p. 18), fluidas dos Black Blocs permitem, então, que
sujeitos de vários lugares distintos ocupem o
“[...] em nossa época líquido moderna, o lugar de “amilitante” no bloco.
mundo em nossa volta está repartido em
fragmentos mal coordenados, enquanto De fato, nas sociedades de controle, o
nossas existências individuais são fatiadas poder e a resistência atuam de maneira tão
numa sucessão de episódios fragilmente invisível e sutil que se torna difícil delimitar até
conectados.” que ponto trata-se de relação de poder ou
resistência. As mesmas roupas pretas puderam
Assim como já houve na história da ser usadas por diferentes sujeitos, ocupando
humanidade identidades sólidas, os tempos outras tantas diversas posições sujeito, já que
atuais marcam um rumo oposto, as identidades no mesmo Black Bloc pessoas de
líquidas. Cada um que invente o próprio lugar posicionamentos contrários, ou mesmo
no mundo, afinal, “[...] a ‘identidade’ só nos é desconhecidas, podem estar lado a lado, até
revelada como algo a ser inventado” mesmo um policial disfarçado pode ingressar-se
(BAUMAN, 2005, p. 21). no bloco, desde que esteja vestido
adequadamente. Enfim, torna-se complexo
Nesse espaço de identidades fluidas, não afirmar categoricamente até onde vão os efeitos
se “é” Black Bloc, mas encontra-se nesta do poder/resistência nas sociedades de controle,
posição por “estar” no bloco. O “amilitante” já que ambos sutilizam-se ad infinitum.
Black Bloc renega a identidade do militante
tradicional, renuncia a uma posição-sujeito 3. Considerações finais
marcada pela hierarquia e submissão, buscando Este trabalho intentou analisar a função
outras formas de posicionar-se na arena social. enunciativa do fenômeno Black Bloc. Desse
A posição-sujeito dos integrantes do bloco não modo, a vestimenta preta, o anonimato e a
é rígida; ao contrário, permite que cada violência foram compreendidas como um modo
componente do bloco esteja ligado ao grupo singular de enunciar, trazendo à tona uma série
apenas durante o ato, desfazendo-se em de outros discursos relacionados à luta social.
seguida. Justamente por isso, muitos policiais

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486
Um arquivo foi levantado para que o BAUMAN, Z. Identidade. Tradução Carlos
acontecimento Black Bloc pudesse daí advir. Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
Assim, mediante uma série de enunciados, o 2005.
bloco foi compreendido como uma tentativa CENTRO DE MÍDIA INDEPENDENTE
(entre outras) de resistir à fala ou aos corpos (CMI). Estratégias tidas como anarquistas,
padronizados das cidades, além de denunciar, 2014. Disponível em:
através da prática do bloco, um saber <http://www.midiaindependente.org/eo/blue/20
interditado, o saber da juventude. 14/07/533714.shtml>. Acesso em: 20 jul. 2014.
Quanto ao controle dos corpos, o bloco DUPUIS-DÉRI, F. Black Blocs.Tradução
se propõe a não identificar seus integrantes, de Guilherme Miranda. São Paulo: Veneta, 2014.
modo a prezar pelo anonimato. Ressalta-se aí o
efeito de não espetacularização dos corpos FOUCAULT, M. A arqueologia do saber.
como forma de resistência à sociedade de Tradução Luiz Felipe Baeta Neves. 7 ed. Rio de
controle. Por outro lado, a posição sujeito Janeiro: Forense Universitária, 2008.
Black Bloc é efêmera, tal como ocorre com as ______. A ordem do discurso. 23 ed. Tradução
identidades líquidas propostas por Bauman Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo:
(2005). Nesse aspecto, o bloco está em Edições Loyola, 2013.
consonância com esse tipo de sociedade, uma
vez que as relações humanas ali se pretendem ______. Microfísica do poder. 28 ed. Rio de
passageiras, assim como se dá nas invencionices Janeiro: Paz e Terra, 2014.
contemporâneas. ______. Uma trajetória filosófica para além do
Sem pretender esgotar o tema Black estruturalismo e da hermenêutica. Tradução
Bloc ou dar conta do arquivo gigantesco de Vera Porto Carrero. Rio de Janeiro: Forense
lutas de rua, este artigo propõe novos olhares à Universitária, 1995.
contemporaneidade, diante de uma análise MILANEZ, N. A possessão da subjetividade:
foucaultiana, tornando essencial ressaltar a sujeito, corpo e imagem. In: SANTOS, J. B.
importância do estudo de fenômenos (Org.). Sujeito e subjetividade: discursividades
contemporâneos. Mesmo diante do risco de contemporâneas. Uberlândia: EDUFU, 2009.
análises apressadas, esses estudos são
fundamentais a quem não pretende dizer a
mesma coisa, da mesma forma, pois, como bem
diz Foucault (2014, p. 242), o papel do
intelectual contemporâneo não é dizer “o que
[os militantes] devem fazer! [...] é fornecer os
instrumentos de análise.”.

Referências

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

487
ENTRE PESOS E MEDIDAS: OS DISCURSOS SOBRE A
SILHUETA FEMININA NOS SÉCULOS XX E XXI

Michelle Aparecida Pereira LOPES


Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG)
mihpereira@yahoo.com.br

Resumo. Esta pesquisa de doutorado desenvolve-se junto ao Programa de Pós-graduação


em Linguística da UFSCar, linha “Linguagem e Discurso”. Objetivamos analisar como
os discursos sobre a silhueta feminina são produzidos e legitimados por dispositivos de
poder e saber que promovem objetivação/subjetivação sobre o corpo, entre os séculos XX
e XXI. Apoiamo-nos na Análise do Discurso, de linha francesa e na Semiologia Histórica
proposta por Courtine. O corpus se constitui de um arquivo de enunciados linguísticos,
imagéticos e multimodais, observados em diferentes áreas do saber. A partir das noções
foucaultianas de “dispositivo” e “bipoder”, pensamos nas práticas discursivas e não-
discursivas envolvidas na determinação de pesos e medidas ditos e vistos como ideais
para o corpo feminino, como uma tentativa de disciplinarização dos corpos.
Palavras-chave: discurso; corpo/silhueta; objetivação/subjetivação.

ficou mal vista. Por não ter sido bem sucedido,


Introdução
deixando obras mal conduzidas e inacabadas, o
Este capítulo apresenta a pesquisa de político passou a ser ridicularizado pela
doutoramento que vem sendo desenvolvida população que adotou o vocábulo silhouette
desde 2014 no âmbito do Programa de Pós- para nomear os formatos mesquinhos, rápidos e
graduação em Linguística, na linha Linguagem fugazes, fazendo alusão aos desenhos do
e Discurso, da Universidade Federal de São castelo do ministro.
Carlos, UFSCar.
Com o passar do tempo, o termo passou
O vocábulo silhueta originou-se na a designar também a fisionomia de uma pessoa,
França do século XVIII. Étienne de os desenhos em traços de perfil, executados
Silhouette,o ministro das finanças, tinha o seguindo-se a sombra projetada por um rosto
hábito de fazer desenhos da sombra das pessoas ou corpo. Tratava-se de um momento ímpar na
na parede de seu castelo. O político intentou cultura ocidental, já que a individualização
promover grandes reformas durante seu pormenorizada do parecer submetia-se à
mandato, no entanto, as reformas propostas não investigação e, assim, podemos considerar que
foram finalizadas e a administração do ministro

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488
naquele momento o traçado do corpo passou a que essas referências variam de tempos em
serconsiderado como o“corpo do sujeito”. tempos, reforçando-se, dissolvendo-se,
reformulando-se ao sabor do discurso. É ele
A silhueta como o contorno do corpo
quem engendra história, memória, práticas,
do sujeito é a acepção que nos interessa nesta
saberes e poderes que vão perpetuando ou
pesquisa. A partir de como se olha para ela e do
ressignificando os modelos que reconhecemos
que se diz sobre ela é que objetivamos analisar
como legítimos em cada momento.
as práticas discursivas e não-discursivas que
têm definido pesos e medidas tidos como ideias Para analisar a constituição de um
em nossa sociedade. padrão de silhueta feminina aceito pela
sociedade contemporânea, nossa pesquisa não
Para tanto, apoiamo-nos no arcabouço
pode perder de vista que ele é uma construção
teórico da Análise do Discurso de linha
histórica, emersa como resultado de uma
francesa, especialmente nos estudos
memória ressiginificada. Portanto, precisamos
focaultianos sobre a disciplinarização dos
considerar os discursos sincreticamente
corpos, a categorização dos mesmos por meio
materializados nas mais diversas esferas do
dos processos de objetivação e consequente
saber, como por exemplo, as tabelas da
subjetivação; e na Semiologia Histórica,
Medicina, as imagens da publicidade, entre
proposta por Jean-Jacques Courtine.
tantos outros.
Esta última nos oportuniza averiguar as
Dessa maneira, a Semiologia nos é
diferentes materialidades enunciativas, oriundas
pertinente, à medida que nos possibilita
das várias esferas do saber para, quem sabe,
observar a natureza semiológica do conceito de
conseguir chegar ao ponto,
enunciado em Michel Foucault ([1969] 2010).
àacontecimentalização que possibilitou as
Portanto, a pretensão deste estudo é
mutações do olhar permitindo que a maneira de
empreender uma leitura de um arquivo
se nomear a silhueta feminina, ouo corpo do
heterogêneo, composto por continuidades e
sujeito, fosse diferente em cada época.
descontinuidades, “segundo as relações e as
No jogo de ditos e não-ditos, de regularidades mantidas entre os discursos
práticas que permanecem e outras que se imersos na história” (FOUCAULT, [1969]
esquecem, de continuidades e descontinuidades, 2010).
o discurso vai alinhavando a linguagem, a
Conforme Braga (2015), “os discursos
sociedade e a história. Portanto, nossa pesquisa
que se expõem hoje aos nosso olhos não
acredita que há uma ordem de se olhar para o
trazem, no entanto, tamanho ineditismo”.
corpo, sua silhueta, seu peso e suas medidas,
Segundo a autora, todos aqueles que analisam o
inscrita na ordem do discurso.
discurso a partir de Michel Pêcheux, estariam
1.Além da sistematicidade da língua: o vivendo um “momento de deslocamentos,
discurso e a Semiologia rupturas e desafios”. Isso porque os discursos
As referências de beleza envolvem contemporâneos impõem ao analista não apenas
também os padrões de pesos e medidas do/para um caráter sincrético, mas também novos
o corpo adotados por uma sociedade. Sabemos oportunidades de análise, novas motivações.

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489
das formações discursivas que levariam o
A partir de 1968, analisar o discurso já
analista às formas indefinidamente repetíveis
não se limitava apenas à voz, estendia-se,
que os enunciados são.
ampliando-se também para uma análise da(s)
imagem(ns). A revolução audiovisual da década Assim, Courtine, atento à dimensão
de 1980 provocou uma dilatação no objeto até histórica do objeto, empreendeu a História do
então privilegiado pela AD. Os analistas Rosto, uma análise de como o rosto produziu
precisavam expandir as análises para além da sentido entre os séculos XVI e XVIII, a partir,
materialidade verbal do discurso, era preciso de acordo com Braga (2015), da perda da
atentar-se também para os traços publicitários fórmula da língua e ganho do paradigma da
que fizeram emergir novas composições expressão.
discursivas: uma mescla entre verbo e imagem. Há ainda, uma ampliação do projeto de
Fim da chamada “língua de madeira”, Courtine que muito nos interessa nesta
surgimento daquelas que podemos considerar pesquisa, a História do corpo. Nele, o analista
“línguas de vento”. do discurso nos mostra como o corpo deixou
A mudança de paradigma de análise, de ser meramente um pedaço de matéria,
para Courtine ([1992] 2006), parecia poder enquanto tinha a alma como protagonista, para
administrar a análise das representações produzir diferentes sentidos ao ser
compostas de discursos, imagens e práticas. discursivizado a partir de suas deformidades, ou
Segundo o autor, outros signos, em momentos históricos
distintos.
A transmissão da informação política,
Dissemos que a História do corpo nos
atualmente dominada pelas mídias, se
apresenta como um fenômeno total de interessa particularmente em nosso estudo
comunicação, representação extremamente porque a partir dela, traçamos nossa perspectiva
complexa pela qual os discursos estão metodológica. Assim como o fez Courtine, e
imbricados em práticas não verbais, em que mais recentemente a pesquisadora Braga,
o verbo não pode mais ser dissociado do também nós buscamos compreender a
corpo e do gesto, em que a expressão pela historicidade dos signos e das expressões
linguagem se conjuga com a expressão do corporais que suscitam sentidos para o corpo
rosto, em que o texto torna-se indecifrável feminino, sua silhueta, seus pesos e suas
fora de seu contexto, em que não se pode medidas.
mais separar linguagem e imagem
(COURTINE, [1992] 2006, p. 57). Nesse âmbito, cabe-nos traçar uma
análise que não seja somente discursiva, mas
também histórica, semiológica. Como diria
Para empreender um novo projeto de Braga (2015, p. 28), “análise de um corpus
análise, seria necessário estender o enunciado considerado em sua heterogeneidade, entre
foucaultiano para além de sua estrutura verbos e imagens, além de corpos e práticas.
linguística, já que “não era na sistematicidade Discursos”.
da língua que se colocava o problema do
discurso em Foucault” (BRAGA, 2015, 26-27).
Era preciso atentar-se à reconstrução histórica

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490
dispositivo como sendo o conjunto heterogêneo
2. Um dispositivo e suas práticas
composto não só pela massa discursiva, mas
No interior da linguagem, nenhuma fala, também pela não-discursiva, pelo dito e pelo
nenhum enunciado emerge solto, sem nenhuma não-dito, ou seja, o entrelaço dos elementos
ligação com os demais à sua volta. Os que o compõem. Por isso, poderíamos dizer
enunciados compõem uma urdidura, uma trama, que é impossível, a qualquer um de nós, escapar
uma rede de relações discursivamente da rede de um dispositivo.
costuradas, no seio social das relações de saber
Ao focarmos o nosso estudo, podemos
e de poder.
vislumbrar que há uma rede, ou um dispositivo,
Queremos dizer que, ao ser enunciado, que sustenta o(s) discurso(s) sobre a silhueta
um discurso carrega-se de sentido a partir dos neste início de século XXI.
demais ao seu redor. Os sentidos não são, no
Ao pensarmos na composição desse
entanto, estanques, visto que podem
dispositivo, poderíamos entrecruzar dizeres do
constantemente se (re)constituir, dado o
ontem e do hoje, continuidades e
momento histórico em que se (re)formulam e a
descontinuidades, consensos e resistências. Na
memória que resgatam.
rede desse dispositivo imbricam-se as técnicas
Ao pensarmos em rede constituinte e ao que ensinam a perder peso dos grandes veículos
mesmo tempo constituída pelo(s) discurso(s), midiáticos, os índices de massa corporal
pensamos, portanto, na noção foucaultiana de taxados pela medicina, as campanhas
dispositivo. governamentais dos diversos lugares do mundo
contra a obesidade, o plussize da moda que
O termo “dispositivo” aparece inicialmente, tenta recuperar um mercado consumidor há
na obra de Foucault na década de 1970, em muito tempo excluído por ela mesma; ainda, a
sua fase denominada genealógica, como alteração no modo de se organizar um
relativo à técnicas, estratégias e formas de
supermercado, com alimentos considerados
assujeitamento postas em ação pelas
saudáveis logo na entrada, as campanhas
relações de poder (FERNANDES JUNIOR;
MENEZES, 2014, p. 14). publicitárias focadas na diversidade da beleza
ou na beleza interior, as leis que regulamentam
os assentos para obesos e muitas outras
Na estratégia do pensamento situações dos nosso tempos. Não devemos,
foucaultiano, dispositivo é um termo técnico entretanto, pensar em cada uma dessas
decisivo, usado a partir do momento em que o situações isoladamente. Nossa proposta não é
filósofo, conforme Agamben (2009), começou a essa. Propomos pensá-las a partir do fio
pensar naquilo que nomeou de discursivo que as costura; dos sentidos que elas
“governabilidade” ou de “governo dos tentam apagar, dos novos sentidos que elas
homens”, tratando dos dispositivos permitem emergir nesse momento. Pensemos
disciplinares, de poder, de saber, de em “sistema de sua enunciabilidade, o sistema
sexualidade, de segurança. de seu funcionamento” (FOUCAULT, [1969]
Em seu livro História da sexualidade I: 2010, p. 147).
A vontade de saber (1999), Foucault define

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491
3. Entre pesos e medidas: um estudo sobre o A pesquisa seguirá buscando desvelar os
corpo feminino e sua silhueta enunciados que se perpetuaram, mantendo-se
na memória social, bem como quais os que se
Consoante ao que dissemos
apagaram. Dessa maneira, poderemos perceber
anteriormente, o dispositivo que suporta os
que há continuidades discursivas que seguem
discursos sobre a silhueta têm origem nos mais
produzindo sentido e outras que se
diversos campos do saber. Esses têm o poder
descontinuaram. Se há continuidades, quais
de legitimar o discurso dominante de sua área,
relações se estabelecem entre os sistemas de
criando consenso, mas suscitando também
enunciados de uma momento e os de outro?
alguma resistência.
Portanto, o que é descartado socialmente, deixa
Como o corpo feminino, ou sua silhueta, de fazer sentido, sendo substituído por outro.
foi discursivizado nos diferentes saberes ao
Estamos ainda à procura da
longo do século XX? Como esse corpo
acontecimentalização que produz a mudança,
produzia sentido anteriormente e como produz
ou seja, o apagar da memória de um sentido e o
sentido hoje? Os sentidos produzidos resgatam
emergir de outro(s). Ainda não temos como
memórias? Quais? Quais os consensos
informar, neste momento, o período exato do
produzidos? Quais as resistências?
século XX, em que isso acontece. Pelos estudos
Para tentar responder esses realizados até o momento, parece-nos que a
questionamentos, decidimo-nos pelo seguinte década de 1950 estabeleceu algumas alterações
percurso: inicialmente, coube-nos perguntar bastantes significativas no modo de se olhar o
quais os limites e as formas de dizibilidade dos corpo, conforme Vigarello ([2006] 2008, p.
discursos: no início do século XX, o que era 445-446),
possível falar sobre a silhueta? Qual saber se
legitimou tornando-se o domínio do discurso? O esporte, com sua aparente valorização da
vida saudável, torna-se um dos mais
Nesse trecho da pesquisa objetiva-se importantes espetáculos do século XX.
analisar como o corpo e sua silhueta foi Televisão e cinema, ainda por cima, novas
discursivizado nos diferentes saberes do início maneiras de ver depois de 1950, mais
do século XX, época de muitas inovações excitantes, mais variadas, dando
políticas, científicas e socioculturais.Isso quer definitivamente à encenação a sua dimensão
dizer que na dissipação de discursos próprios planetária: seu valor de espetáculo total.
daqueles tempos, as regularidades podem nos
oferecer traços que poderemos usar para se Nesse que será o segundo trecho da
pensar na silhueta feminina. Nossa intenção é pesquisa, nosso interesse é investigar como o
apresentar imagens da época, como por sistema de enunciados produzidos a partir da
exemplo, as que estamparam as revistas década de 1950 até a década de 1990,
femininas do período para, assim, analisar que organizou memórias cultivadas anteriormente
aquelas não apenas detalhavam características para (re)formular o padrão da silhueta feminina.
estéticas adequadas e inadequadas, como
também instauravam o julgamento social acerca No dito período, dois sistemas de
delas. enunciados parece-nos ter sido determinantes: i)

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492
aqueles oriundos do saber da medicina que
No enunciado em questão, diríamos que
passaram a associar peso docorpo e saúde – por
se atualizam os sentidos da associação entre
meio de categorias como a Tabela de Índice de
saúde e peso corporal, estabelecida
Massa Corporal (IM), usada e consultada até
anteriormente. O saber da Medicina considera
os dias atuais; ii) aqueles advindos do saber do
que o sujeito categorizado como obeso na
esporte que permitiram a associação entre
tabela de IMC, não esteja saudável e, sendo
corpo malhadoe beleza, pela qual os músculos
assim, o estado ampara-se nesse dizer para não
definidos ganham status de padrão a ser
efetivar a contratação. Tal atitude
incessantemente perseguido.
governamental estaria respaldada, ainda, no
Sabemos, no entanto, que ainda há saber do Direito, já que a Lei N. 10.261, de 28
muito que se pesquisar, já que a malha de outubro de 1968, Estatuto dos Servidores
discursiva acerca do corpo produzida a partir Públicos, impede a contratação de sujeitos tidos
da segunda metade do século XX é densa, como incapazes de executarem todas as funções
espessa e comporta muitos outros dizeres de que seus cargos exigem por não gozarem de
muitas outras áreas. Cabe a nós, buscarmos o(s) boa saúde. A obesidade, por ser considerada
nó(s) dessa rede, analisando o que entrava em uma doença, inviabilizou a contratação.
jogo para constituir sentidos nas variadas áreas
Por outro lado, é possível percebermos
do saber e, mais que isso, o que se apagou e
que o consenso abre brechas para a resistência,
quais outros sentidos se produziram.
pois uma das professoras aprovadas no
Em uma terceira parte de nosso trabalho concurso, insatisfeita com a justificativa para
nos deteremos neste início de século XXI. Será não contratação decide recorrer à justiça e
que a contemporaneidade tem mais consensos, processa o Estado de São Paulo. Em seu
à medida que parece sempre reafirmar dizeres e enunciado não vou ficar obcecada em
sentidos de um padrão estético para o corpo emagrecer por causa do cargo, porque o
feminino, e sua silhueta, anteriormente Estado está mandando2a professora mostra
constituídos; ou vem instaurar algumas estar resistindo à determinação de um padrão.
resistências, à proporção que vemos emergir
Cabe-nos ainda, apontar que nossa
discursos que buscam desfazer a associação
época vem apresentando indícios daquilo que
entre o peso do corpo e a sua beleza.
Foucault (2012 [1988]) chamou de “docilização
Os dizeres dessa nossa época aparenta- dos corpos”. Conforme o filósofo, o “poder
nos consensos quando nos deparamos com sobre a vida” intenciona, em um primeiro
enunciados do tipo Professor é impedido de momento, o adestramento e a ampliação das
assumir cargo público por ser considerado aptidões com vistas à docilidade e à integração
obeso1. em sistemas de controle eficazes e econômicos;
num segundo momento, baseado em processos
1
Manchete do site UOL em 15 de abril de 2014. biológicos que mantêm a vida, possibilitando ao
Disponível em: <
http://tnh1.ne10.uol.com.br/noticia/brasil/2014/04/15/29
6267/professor-e-impedido-de-assumir-cargo-publico-
2
por-ser-considerado-obeso>. Acesso em 25setembro. Trecho do corpo da reportagem do Site UOL, de 26 de
2014. abr. de 2014. Acesso Acesso em 25 setembro. 2014.

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493
Estado criar uma série de intervenções e nesta contemporaneidade, ditos de outras
controles reguladores, ou seja, uma biopolítica épocas, atualizando-os.
da população. Somam-se à pesquisa, ainda, os
Serão analisados, ainda, no terceiro conceitos de biopoder e biopolítica, também na
momento de nosso estudo, os acontecimentos esteira de Michel Foucault, que nos permite
discursivos que vêm resgatando, atualizando e pensar em como o Estado tenta garantir a
multiplicando os conceitos de corpo bonito, produção e a ascensão, por meio de políticas e
corpo saudável, corpo definido, estabelecendo estratégias pautadas na manutenção da saúde e
assim aquela silhueta feminina socialmente da vida, amparando-se em enunciados de
aceita na hodiernidade. diferentes materialidades advindos dos mais
diversos saberes.
4. Considerações para este momento
Neste capítulo de livro eletrônico do IV
Colóquio Internacional de Análise do Referências
Discurso, organizado pelo grupo de pesquisa BARTHES, R. [1969]. Elementos de
Labor, da Universidade Federal de São Carlos, semiologia. Tradução brasileira de
UFSCar, apresentamos nossa pesquisa de IzidoroBlikstein. 17 ed. São Paulo: Cultriz,
doutoramento que pretende observar o 2006.
dispositivo que rege a emergência das práticas
discursivas e não-discursivas que vêm definindo COURBIN, A., COURTINE, J.J.,
pesos e medidas do corpo feminino. Por isso, VIGARELLO, G. História do corpo: As
ao longo dessa exposição mostramos como a mutações do olhar: o século XX. Tradução e
pesquisa está sendo estruturada para cumprir revisão Ephraim Ferreira Alves. 4 ed.
nosso objetivo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.
Ressaltamos que nosso estudo COURTINE, J.J. Análise do discurso político:
fundamenta-se no pressuposto de que o o discurso comunista endereçado aos cristãos.
discurso alia-se à história e às práticas sociais, Tradução brasileira de bacharéis em Letras pela
gerando poderes capazes de estabelecer Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
padrões de conduta, inclusive para a maneira São Carlos: EdUFSCar, 2009.
como olhamos e nomeamos o corpo. ______. Decifrar o corpo: pensar com
É como se o discurso atasse corpo e Foucault. Tradução de Francisco Morás.
história, fazendo o primeiro impregnar-se de Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.
sentidos atualizados constantemente por uma FERNANDES, C.A. Discurso e sujeito em
memória. Michel Foucault. São Paulo: Entremeios, 2012.
Portanto, as análises do trabalho de FERNANDES JUNIOR, A, MENEZES, K.
doutoramento consideram a perspectiva (org.). Dispositivos de poder em Foucault:
semiológica dos enunciados articulada à noção práticas e discursos da atualidade. Goiânia:
foucaultiana de dispositivo para pensar na trama Gráfica UFG, 2014.
discursiva e não discursiva que traz à tona,

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494
FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de
Janeiro: Graal, 1979.
______. História da Sexualidade, I: A vontade
de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa
Albuquerque e J.A. Guilhon Albuquerque. Rio
de Janeiro: Edições Graal, 2012 [1988].
______. História da Sexualidade, 3: O cuidado
de si. Tradução de Maria Thereza da Costa
Albuquerque; revisão técnica de José Augusto
Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições
Graal, 2011 [1985].
GADET, F. & PÊCHEUX, M. A língua
inatingível. Tradução Betânia Mariani e Maria
Elizabeth Chaves de Mello. Campinas: Pontes,
2004.
REVEL, J. Foucault: conceitos essenciais.
Tradução de Maria do Rosário Gregolin, Nilton
Milanez, Carlos Piovezani. São Carlos:
Claraluz, 2005
VIGARELLO, G. As metamorfoses do gordo:
história da obesidade no Ocidente: Da Idade
Média ao século XX. Tradução de Marcus
Penchel. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.

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495
O CORPO LÍQUIDO NA CONTEMPORANEIDADE:
CONSUMO NARCÍSICO NO PÓS-MODERNISMO

Luana Alves LUTERMAN; Agostinho Potenciano de SOUZA


Universidade Estadual de Goiás (UEG)
luanaluterman@yahoo.com.br; apotenciano@uol.com.br

Resumo: Esta pesquisa promove estudo monumental do corpo para compreensão de seu
funcionamento na contemporaneidade. O aparato teórico-metodológico da investigação é
a Análise do Discurso de linha francesa. Como resultados, apontamos que o sujeito não
mais adéqua o produto ao corpo, e sim encaixa o corpo ao produto, conforme preconiza
Adorno (GHIRALDELLI JR., 2007). A apatia do sujeito é propiciada pela coisificação do
sujeito, passivo para se integrar ao objeto de consumo globalizado, cada vez mais rápido
e descartável (BAUMAN, 1999). Verificamos que, ainda assim, há um efeito de
autonomia, pois o sujeito, pela intericonicidade (COURTINE, 2005), ao supor uma
vivência real, experimenta um efeito de liberdade por meio das próprias sinestesias e
imagens internas.
Palavras-chave: corpo; sujeito; fragmentação; intericonicidade.

imagem de autossuficiência, como virtuosa


Introdução
principalmente para si.
O volume de evocações ao corpo leva à
Em condições de produção sócio-
autopromoção de si, marca indelével do
históricas marcadas pelos enunciados (verbo-)
narcisismo que ecoa nas produções enunciativas
visuais em demasia, o corpo clivado pelas
visuais infinitas. Elas direcionam ao efeito
imagens evidencia-se. Os regimes das
egocêntrico, apolíneo, de extrema valorização
visibilidades espetacularizam o corpo,
do eu. O reflexo adquire uma admiração
centralizam-no como foco de investimentos
estanque e os defeitos são anulados, apagados.
estéticos que nunca cessam.
O engodo que a sedução do corpo produz
distorce a condição do eu perante si próprio. 1. Corpo e razão: da Antiguidade Clássica
Há uma transformação de si, coisificação que ao século XX
torna a imagem virtual algo maleável, sem As divagações sobre o aparato biológico
falhas, ubíquo, superpotente. A projeção da que instaura como ontológica a presença
perfeição do eu, refletida para si mesmo, material do ser humano remontam à
promove um ethos narcísico que almeja a Antiguidade Clássica. Porém, uma história

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496
profunda sobre o corpo como objeto
Aristóteles (384 - 322 a.C.) colocou em
epistemológico e as perspectivas que o
xeque a ideia de Platão, ao afirmar que não o
delineiam é impossível. Courtine (2013, p.12)
cérebro, frio e úmido, poderia armazenar a
apropria-se dos dizeres de Deleuze (1996) para
alma, e sim o coração, posicionado no centro
afirmar que “convém manter-se ‘atento ao
do corpo, responsável pelos sentimentos, pelas
desconhecido que bate à porta’”. A proliferação
sensações e pelo intelecto. O exame meticuloso
de imagens irrompe uma modificação nos
do corpo humano permitiu tais considerações
sistemas de produção, recepção e circulação
anatômicas, taxonômicas. A estrutura do corpo
das coisas, caracterizadas pela volatilidade, com
e suas funções demonstram como o tema
envolvimento do corpo no processo
relacionado ao corpo instiga filósofos desde o
interacional. Os holofotes científicos atentam-se
período histórico anterior a Cristo. Para Platão
para a entidade icônica que também é anexada
e Aristóteles, a explicação para a presença de
nas ciências humanas: “o corpo, de fato, é uma
sinapses mentais materializa-se no e pelo corpo.
invenção teórica recente: antes da virada do
Trata-se de justificativas atreladas a fenômenos
século XX, ele não exercia senão um papel
biológicos que ainda não mobilizam o meio
secundário na cena do teatro filosófico onde,
social, mas demonstram como o corpo está
desde Descartes, a alma parecia exercer papel
associado à mente, inclusive sobrepondo-se a
fundamental” (COURTINE, 2013, p.12).
ela para que o intelecto possa funcionar
Portanto, o corpo é um objeto de pesquisa
(CASTRO; LANDEIRA-FERNANDEZ,
extremamente novo, documento que está
2011).
paulatinamente tornando-se história
monumental. Kant configura o sujeito como dotado
de três instâncias: sensibilidade (intuição
Ainda que bastante recentes, as
individual), entendimento (concepções
abordagens sobre o corpo podem ser
conceituais) e ideias (capacidade racional de
agenciadas a partir de uma história embrionária.
descrição dos conceitos) (GHIRALDELLI JR.,
Noções relacionais sobre corpo e alma estão
2007).
presentes na história desde a filosofia antiga.
Schopenhauer concebe uma autonomia
Sócrates (469 a.C. - 399 a.C) investe
individual, uma consciência romântica. Para ele,
valor na feiúra como quesito essencial para
é possível que o indivíduo aja e pense por si
centralizar o poder da alma, que está na mente,
mesmo. A performance, poder interior que se
não no corpo. Assim, Sócrates desliza dos
exterioriza, liberaria o indivíduo das irrupções
princípios helênicos e dos valores apolíneos, o
sociais. As coisas teriam existência própria, não
culto à forma, plena de equilíbrio e harmonia,
seriam efeitos de práticas discursivas e das
para construir um discurso favorável à alma, ao
leituras individuais. Daí outra concepção
intelecto, encantador. Para Platão (427-347
romântica, que torna imaculada a imagem das
a.C.), o corpo seria controlado pelo cérebro por
coisas em si, esteticamente percebidas pela
meio do logos, a parte mais imortal da alma,
intuição individual (GHIRALDELLI JR.,
conectada com a natureza (CASTRO;
2007).
LANDEIRA-FERNANDEZ, 2011).

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497
Para Courtine (2013, p.13), em No início do século XX, em 1911, o
consonância a Merleau-Ponty, a história taylorismo, em nome de uma administração
científica do corpo é finessecular (em relação científica do trabalho, ensina que as atividades
aos séculos XIX e XX): dos operários nas fábricas consistem em fazer
as tarefas de modo mais inteligente e com a
A verdade é que o despontar do corpo como máxima economia de esforço. Henry Ford,
objeto de saber data da virada do século. tendo em vista a produção em massa, instala em
Como o sugere Merleau-Ponty, “para sua fábrica, à mesma época, novos processos de
muitos pensadores, no final do século XIX,
trabalho, como a semiautomatização e as linhas
o corpo era um pedaço de matéria, um feixe
de montagem. O novo mecanismo
de mecanismos. O século XX restaurou e
aprofundou a questão da carne, isto é, a
administrativo aparenta ser democrático, mas
questão do corpo animado. Visto que o permanece execrando o trabalhador, que é
século XX, de fato, teoricamente inventou o disciplinado pelo corpo e pelo tempo em favor
corpo”. da produtividade nas fábricas. A indústria
moderna adota essa medida que regulamenta o
corpo para produzir mais e com qualidade
Concepções biológicas sobre o corpo
(GHIRALDELLI JR., 2007).
residiram como noções a respeito dos
fundamentos de sua existência, até o século A Escola de Frankfurt irrompe, nos anos
XIX. A abordagem fisiológica, anterior ao fim 1920, com uma proposta neomarxista que
do século XIX e início do XX, perscruta o encara o corpo como entidade submissa a
corpo como matéria dotada de funções, sem contínuas repressões e sublimações. Utiliza
necessariamente relacioná-lo aos mecanismos conceitos psicanalíticos para demonstrar que a
de seu funcionamento por meio de um domínio opressão é uma das condições para conter os
discursivo, repleto de estratégias e táticas impulsos e promover uma civilidade.
históricas. Horkheimer e Adorno consideram que uma
“sociedade administrada” constrói limites e um
Os Estudos sobre a histeria de Freud
autocontrole que sublimam instintos favoráveis
(1895 apud COURTINE, 2013), na área de
ao litígio. Porém, se a sublimação não ocorrer
psicanálise, inauguraram os estudos do corpo
de fato, por um investimento de si para a
com o postulado da reação corporal resultante
harmonia na convivência social, se a repressão
do inconsciente. Indícios da expressão corporal
for apenas social, exterior, um corpo pode
respondem à constituição de si. No campo da
rebelar-se contra outros e provocar um
filosofia, Edmund Husserl afirma que as
desequilíbrio, causado pela insatisfação de
significações são intrínsecas às manifestações
certas comunidades, não adaptáveis a regimes
corporais e, por isso, o corpo é retomado por
percebidos como injustos e perversos. O
Merleau-Ponty, que o considera como “a
sistema seria novamente opressor ao julgar
encarnação da consciência”. Na antropologia,
fracassados os resistentes ao governo de si e
Marcel Mauss observa as “técnicas do corpo”
bem-sucedidos os que aderiram à democracia.
pela homogeneidade actancial dos soldados
Horkheimer e Adorno defendem que há uma
durante a Primeira Guerra Mundial
higienização instintiva do homem, natural,
(COURTINE, 2013, p.13).

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498
responsável pela autopreservação do corpo. Os Não há violência nos manuais de civilidade. A
únicos eventos em que há a perda da técnica indolor de envolvimento com os
autopreservação são a morte e o gozo sexual padrões civilizatórios recrudesceriam a
(GHIRALDELLI JR., 2007). violência física medieval e, ainda que pela
apatia, conforme a leitura dos frankfurtianos, a
Marx afirma que o sistema capitalista
obediência possibilitaria a plena administração
gere o corpo, ao impor sob as mesmas regras
dos corpos. Para Elias, a repressão não é
tanto a manufatura quanto a força de trabalho a
violência investida pelo Estado, pois não é
serem consumidas. O fetichismo da mercadoria
necessária. Os sujeitos já sublimaram quaisquer
imprime valores aos produtos, que ganham vida
pulsões para viver em equilíbrio social e
e tornam passivos, mortos, os sujeitos. O
adquiriram, assim, o autocontrole
sujeito não mais adéqua o produto ao corpo, e
(GHIRALDELLI JR., 2007).
sim encaixa o corpo ao produto, que adquire
status imaculado. A apatia do sujeito, para Nietzsche não analisa o corpo como
Adorno, causa uma falta de percepção de que entidade única, independente, consciente de si,
um produto está vivo, reificado, e coisifica o isoladamente. Desapropria do corpo a
sujeito, passivo para integrar cegamente o importância de um sujeito consciente, mera
objeto de consumo. Para Freud, a repressão ilusão da linguagem. O corpo é múltiplo, não é
causada pela automação incitada pelo consumo uno, central. Corpo e paixão, assim como
é inconsciente, favorecida pelo ascetismo mente e razão, para Nietzsche, não devem ser
disciplinar que instaura o sujeito no século XX. associados. O corpo assume a racionalidade, ao
Para haver desenvolvimento social, pulsões do direcionar ações sociais, devido à sua
corpo, como prazeres e dores, são refreadas, visibilidade, que substitui regras morais ao
sublimadas. Para Marx e Freud, o ascetismo é sobrepor a elas regras estéticas. O corpo em
um dos fatores determinantes do evidência supera o sujeito e, ao disseminar seu
desenvolvimento no século XX. A economia poder de diversas maneiras, não exerce
das dores e dos prazeres, por meio da hegemonia de uma parte em relação a outras.
contenção dos instintos e das pulsões, hipótese Há uma cadeia de relações que reificam o corpo
repressiva, refreia pulsões para gerar em detrimento de sua unidade, de uma
desenvolvimento social, civilização racionalidade tal como a kantiana, metafísica,
(GHIRALDELLI JR., 2007). que destitui o cogito como acoplado ao corpo.
Não é o sujeito quem comanda o corpo, ou uma
Norbert Elias, na obra O processo
racionalidade, uma consciência que responderia
civilizatório, originalmente publicado em 1939,
a ações previamente calculadas, conforme a
mas reconhecido quando traduzido para o
filosofia moderna preconiza (GHIRALDELLI
inglês, em 1969, compara a sociedade medieval,
JR., 2007).
que utiliza a força física como legítima para o
controle da população, com a moderna, que Marx, Schopenhauer e Nietzsche
regula a conduta dos corpos pela docilidade, desassociam-se da filosofia metafísica ao
pela gestão de si, por normas como as dos considerar uma psicologia do corpo, talvez
manuais de etiqueta, de conselhos para o bom inclusive anulando a existência do sujeito,
comportamento, dos séculos XVII e XVIII. entidade analítica importante para os filósofos

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499
como Kant, por confrontar o ceticismo e Foucault (2006, p.80) rejeita a ideia de que
instaurar o racionalismo e o cogito. O corpo, Freud tenha desenvolvido um sistema capaz de
hoje, dita regras estéticas, devido à sua verificar as astúcias do inconsciente, porque “a
visibilidade, e escamoteia, ou releva, psicanálise jamais conseguiu fazer falar as
pressupostos morais. Os filósofos dos séculos imagens. [...] Não foi encontrada a unidade
XIX e XX instauram reflexões bastante entre uma psicologia da imagem que marca o
coerentes com a manipulação do corpo na campo da presença e uma psicologia do sentido
contemporaneidade (GHIRALDELLI JR., que define o campo das virtualidades da
2007). linguagem”. A inexistência de uma gramática
do imaginário atrapalha a análise do
A primeira metade do século XX, muito
inconsciente do sujeito, mas resolve uma série
atrelada aos pressupostos marxistas, confere ao
de questões a respeito das dicotomias
corpo uma rotina disciplinar emoldurada por
indivíduo/sociedade e alma/corpo tais como são
estratégias institucionais que normatizam como
concebidas no século XIX.
podem e devem ser os comportamentos. O
abrandamento das técnicas de controle dos A grande contribuição para
corpos nos anos 1950 e 1960 e o compreender o corpo parte de Foucault, que
reconhecimento do corpo como objeto de examina o funcionamento dos micropoderes nos
interesse científico têm o empecilho da falta de interstícios mais íntimos, especialmente a partir
uma estrutura para análise. O aparato teórico- do fim dos anos 1960 e durante os anos 1970.
metodológico linguístico não se aplica ao corpo As reivindicações representadas pelo enunciado
(COURTINE, 2013). “nosso corpo nos pertence!” esperam o
reconhecimento da pluralidade de gênero e
A psicanálise reinventa a relação entre
origens sociais/ étnicas. A ascese, privação das
corpo e alma, no sentido de que o corpo se
funde na alma. A investigação do inconsciente pulsões sexuais fundamentada pelo moralismo
cristão, é suspensa. Foucault repele a
promove, de alguma forma, pelos lapsos, a
concepção de Marx e de Freud, baseada na
construção de uma consciência do sujeito, o
subordinação do corpo às práticas repressivas
que, para Foucault, liberta a noção de
de um Estado hegemônico, que impõe uma
indivíduo, autônomo em relação à história.
opressão coletiva. A investidura sobre o corpo
A velha distinção entre a alma e o corpo, o expôs, não o inferiorizou.
que valia mesmo para a psicofisiologia do
século XIX, esta velha oposição não existe O corpo: superfície de inscrição dos
mais, agora que sabemos que nosso corpo acontecimentos (enquanto que a linguagem
faz parte de nossa psyché, ou faz parte os marca e as ideias os dissolvem), lugar de
dessa experiência ao mesmo tempo dissociação do Eu (que supõe a quimera de
consciente e inconsciente à qual a psicologia uma unidade substancial), volume em
se endereça, de tal forma que, no fundo, só perpétua pulverização. A genealogia, como
há psicologia (FOUCAULT, 2006, p.223). análise da proveniência, está portanto no
ponto de articulação do corpo com a
história. Ela deve mostrar o corpo
Na promoção da inconsciência, vêm à inteiramente marcado de história e a história
tona os traços de consciência do sujeito, mas

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500
arruinando o corpo (FOUCAULT, 1997,
p.22).
Porém, diferentemente de Elias, Foucault não
referencia uma apatia do sujeito, pois o poder
sobre si é exigido pelo sujeito, que exerce uma
Não há performance do corpo sem ação sem insurgência.
associação com a história. O sujeito não é
possibilitado à autonomia, pois as Elias estuda os filósofos frankfurtianos.
experimentações estão todas previstas. Daí um Contudo, apesar de manter o ideal de
processo de subjetivação sempre atrelado às displicência dos sujeitos em relação ao poder,
práticas discursivas já delineadas pela história, aproxima-se de Foucault (2003) ao
que não unifica o sujeito, mas apresenta uma compreender o poder como processo de
rede de variáveis definidas pelas condições de disciplinarização, hegemonia que dociliza o
produção dos discursos. corpo sem violência aparente e propaga uma
sanção normalizadora.
Foucault, em sua fase genealógica,
aproxima-se de Norbert Elias, pois as técnicas Haroche (2011) cita Elias ao referenciar
de disciplinaridade são integradas ao corpo sem o controle dos movimentos. As crianças são
repressão aparente, ainda que a aprendizagem interditadas ao toque e estimuladas a ver. A
do autocontrole não seja integralmente indolor, restrição dos gestos corporais previne a
pois refrear impulsos selvagens, animalescos, proximidade dos corpos e a espontaneidade
pela racionalidade, não é confortável. A “ação sensório-motora é vista, para evitar o contato
dos agentes da política do corpo” é normalizada físico pelo tato, a não ser pelo olho.
por “um conjunto extremamente complexo Na sociedade pós-moderna, a
sobre o qual somos obrigados a perguntar como ubiquidade é estimulada pelo gesto do olhar e,
ele pode ser tão sutil em sua distribuição, em muitas vezes, com a inscrição do corpo,
seus mecanismos, seus controles recíprocos, empiricamente, em instalações tridimensionais,
seus ajustamentos” (FOUCAULT, 1997, com o objetivo de estimular um efeito de
p.151). A ascese é um dos recursos de redenção liberdade pela performance corporal.
subjetiva para cumprimento de coerções
institucionais, como da moral cristã, da Igreja, 2. Corpo plural: a sociedade pós-moderna
do Estado. Assim também funciona a Nos anos 1970, uma crise de
psicanálise: pelo controle e repressão das paradigmas provoca a multiplicidade cultural. A
pulsões, pela confissão, para a normalização diversidade de posicionamentos é valorizada; a
dos corpos e, por conseguinte, da psyché. satisfação em curto prazo e a menor intensidade
Trata-se de uma tecnologia de controle que de preocupação com o futuro são
domina, mas não destrói fisicamente: eis o características da sociedade pós-moderna. A
biopoder, uma anátomo-política que rege os ansiedade é gerada pela realização cada vez
corpos pela docilidade e pela utilidade na mais desejada de obtenção de prazeres hoje. A
inserção social em um sistema capitalista de regra é consumir e ser feliz aqui, agora
produção voltada para o constante consumo. (LIPOVETSKY, 2004).
Ainda assim, o poder é exigido sobre si, A globalização cultural promove a
pois pela catarse é alcançado o equilíbrio. aproximação das distâncias, retroalimentada

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501
pela sociedade de consumo, gananciosa e Estado dissolve-se e a economia de mercado
sedenta de novidades em breves espaços de estipula novas normas éticas, jurídicas,
tempo. Simulacros virtuais pasteurizam tempo, políticas. Nada é estável, tudo pode mudar. Há
espaço e realidade. uma nova ordem ética, dissolvida pela fluidez
identitária.
Uma “aldeia global”, conforme
McLuhan, permeia uma conexão que leva à Há um princípio básico na vida líquida: a
homogeneidade, que se interessa por produtos descartabilidade é essencial para que haja o
semelhantes, além de ideias e informações, alcance da redenção. A substituição ocorre a
organizadas e harmonicamente efetuadas como partir da transformação de algo em lixo. Novas
fórmulas globais de atualização dos gostos identidades são assumidas e não é possível
semelhantes. Assim, transformam-se as práticas traçar tendências futuras: a inconstância e a
sociais, que exigem soluções imediatas para incerteza não preveem atitudes, que são,
necessidades voláteis (IANNI, 2003). inclusive, contraditórias. Esquecimentos e
apagamentos são corriqueiros: nada pode ser
A nova ordem social, pelo augúrio das
isento de se tornar indesejável. O que não se
novas tecnologias, fragmenta, rompe as
almeja hoje, amanhã pode ser objeto de desejo.
permanências culturais. Comportamentos são
dissonantes e podem ser descartados pelo A assimilação cultural da
esgotamento instantâneo, que, em pouco descartabilidade e da megalomania em uma
tempo, estipula o anacronismo. Por outro lado, sociedade que regulariza volumes gigantescos
desse modo, para Bauman (1999), uma de marcas, produtos e serviços está além do
subordinação de consumo causa uma pós-modernismo: os tempos hipermodernos
interdependência insalubre, com dominação de revelam um gosto pelo inchaço, pelas
empresas transnacionais que submetem o aglomerações, pelas parafernálias em fluxos
consumo intenso à satisfação. Grandes numericamente infinitos em tempo e espaço
corporações instauram suas coerções praticamente imensuráveis. Compulsões, vícios
comerciais e oprimem ao consumo exacerbado e excessos são comuns na sociedade
a população dominada. Apenas uma parte da hipermoderna. A transição da pós para a
população acessa bens. hipermodernidade acontece como quaisquer
mudanças atuais, cada vez mais líquidas e
Porém, com a massificação de
inescapáveis, além de rápidas. A dissolução de
mercadorias produzidas a baixo custo,
fronteiras, de burocracias; as privatizações; a
especialmente pela reprodução de grandes
acirrada concorrência entre as entidades que
marcas “made in China”, a acessibilidade
exercem importante função no Estado mínimo,
atravessa a fronteira entre elite e povo. A
neoliberal; o imperativo da mudança; a
qualidade industrial da réplica é tão semelhante
ansiedade exacerbada; o fim das utopias; as
em relação ao produto original que é difícil
contradições entre a (in)dependência e a
diferenciar da mercadoria pirata.
(in)segurança são definições do modelo de
Nenhuma economia é sólida, pois sociedade hipermoderna (LIPOVETSKY,
quantias são vulneráveis em mercado de ações e 2004).
o setor terciário sofre abalos inesperados. O

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502
moral e ético, em favor da estética de si e da
Traçar a identidade do sujeito na vida
própria existência, em deslumbramento
líquida é uma tarefa árdua e difícil. Qualquer
incessante pelo gozo corporal, egocêntrico e
categorização ou definição pode se tornar
hedonista; mas, por outro, as imagens internas,
obsoleta a partir de seu lançamento. Não há um
conforme Courtine (2005), responsáveis pela
padrão identitário: a fragmentação dos sujeitos
intericonicidade, decidem que caminho
constrói um cenário de desordem que evita a
percorrer, que relações fazer com a história,
paralisação em um contexto favorável à
quais atitudes assumir.
valorização da rapidez, e não da duração.
As imagens internas, arquivo individual
3. Corpo sem limites: efeito de liberdade
armazenado a partir da história, pela trajetória
pela imersão tecnológica
empírica de cada corpo e de cada estrutura
Um corpo destacado de seus limites, ao psíquica, proporcionam ao indivíduo, por meio
adquirir liberdade com efeito onipotente, da intericonicidade (COURTINE, 2005), os
capacidade recebida ainda que pelo efeito da percursos ditados pelo dispositivo, neste caso,
ilusão, percorre veredas não alcançadas pela com efeito tridimensional, que naturaliza e
materialidade, pela realidade. A projeção do eu adestra o corpo por práticas discursivas
o transforma em outro, sensação apaticamente altamente tecnológicas. O arcabouço de
desejada, sem profunda reflexão, para, possibilidades interdiscursivas é engrenado no
instantaneamente, ser descartada e ato de projeção do indivíduo pelo contato com
ansiosamente ser substituída por outro gozo as atividades diegéticas, relacionadas com o
físico. Feições ubíquas pela superposição de percurso único vivenciado pelas relações com o
aparelhos promotores de sensibilidade intensa arquivo pessoal, imagens internas armazenadas
são possibilitadas porque a tecnologia avançada pelo indivíduo.
não impõe empecilhos no trânsito actancial,
O medo e o arrepio, assim como a
identitário e material. Sem leis físicas, morais e
ansiedade, por exemplo, são efeitos sensoriais
éticas, o sujeito pode demonstrar afeição por
discursivos possibilitados por aparatos
discursos comumente interditados socialmente
tecnológicos dotados de odores, movimentos e
e, por processos dialéticos, assumir e volatilizar
múltiplas imagens, inclusive tridimensionais,
identidades num espaço sem limites, biônico.
como em filmes, montanhas-russas em parques
A trajetória cenográfica é situacional e de diversões, arte contemporânea, vídeo-games
individual. Toda a preparação discursiva que e livros infantis com efeitos 3D. O intradiscurso
transfere a memória social para a individual, (PÊCHEUX, 1997), a efetivação enunciativa do
conforme postula Nora (1993) pelo conceito sujeito, depende de um pré-construído
dos homens-memória, resgata a importância de (PÊCHEUX, 1997), “o que cada um sabe”, “o
uma memória empírica na experiência social. que cada um pode ver em uma dada situação”.
O dispositivo tridimensional possui a Pêcheux (1997) restringe-se a enunciados
estratégia de gerar efeitos de sentido favoráveis verbais; o dispositivo tridimensional é composto
à liberdade actancial do corpo, à experiência por elementos híbridos, verbais e/ou não
singular, inigualável. Por um lado, a memória verbais. Por isso, à luz dos conceitos de
discursiva é ativada para interditar os discursos intradiscurso e de pré-construído, de Pêcheux

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503
(1997), de imagens internas e de memória
O acúmulo de funções numa mesma
discursiva, de Courtine (2005), é preciso pensar
interface virtual retrata a sobreposição de
em categorias que agreguem a confluência
identidades que uma mídia tridimensional
psíquica com uma nova abordagem, relacionada
permite. A transição instantânea entre realidade
à interação com imagens, sons e/ou também
e virtualidade é tão impactante quanto a
signos verbais, sempre imbricados na
imersão em diferentes funções de uma mesma
ancoragem histórica (não há faculdade psíquica
materialidade mercadológica. A difusão de
sem as atribuições de sentido sociológicas,
ações sem limites, sem tempo e espaço
históricas). Há, assim, portanto, um efeito de
definidos, fragmenta o corpo, autômato padrão
liberdade do sujeito em relação às interações
apático e docilizado mediante o poder das
actanciais.
novas tecnologias, exigidas para o cuidado de si
4. Considerações finais no presente eternizado.
Qualquer alteração identitária pode Apesar do exame histórico, os corpos
significar uma mudança plena na constituição escapam da regularidade homogeneizante da
subjetiva. Moldar o corpo pode gerar obediência arquitetônica e irrompem outra
significativas transformações, dificilmente economia de ordem individual: a performance é
calculadas por uma previsão cujo resultado seja o subterfúgio da história, um meio de escape
exato. As incertezas imperam e os riscos são dos dispositivos anátomo-políticos que
gozos que demonstram a valorização perfazem o esquadrinhamento dos
egocêntrica do prazer instantâneo. O corpo é o comportamentos para normalização e
que há de mais íntimo e o efeito de liberdade obediência às regras de convivência e ação
propiciado pelas intervenções revela social. Afinal, apesar de perpassados pela
performances instauradoras do efeito da transversalidade dos dispositivos e pela
ausência de limites. vigilância, os corpos sentem de maneiras
A eternidade do instante é a ordem da diferentes e possuem imagens internas
ilimitada obtenção de manufaturas, a qualquer reconhecíveis socialmente, mas individuais na
preço. O dispêndio pode ter alto valor, seja pela medida em que a experiência de cada corpo é
dependência do ato de gastar, seja pela singular e intransferível.
contração de dívidas - porém, mais alto seria o
valor de não possuir. Não tem preço o fato de,
Referências
no presente, ter. O crédito garantido pelo
Estado “capitalista” desloca sua função de BAUMAN, Z. Globalização: as consequências
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fruição instantânea, a insegurança e o medo, primeiras observações do funcionamento
resultados decorrentes do ópio, droga que cerebral e das atividades mentais. 2011.
devasta após o encanto. Disponível em:

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Portugal: Ed. Veja, 1996. Disponível em: (AAD – 69). In: GADET, Françoise & Tony
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Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

505
A CARTA DE SEATTLE: REPRESENTAÇÃO E
(DES)COLONIZAÇÃO

João Paulo Tinoco MACHADO; Vânia Maria Lescano GUERRA


Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS)
faceafacejp@hotmail.com; vguerra1@terra.com.br

Resumo. A partir de uma proposta transdisciplinar e do método arqueogenealógico de


Foucault (2004, 2005, 2008), este trabalho estuda o processo identitário do indígena e
sua relação com o meio ambiente por meio do discurso do chefe Seattle, tendo como
aporte teórico a Análise do Discurso de origem francesa e a visada pós-colonialista de
Bhabha (1998). Com base em regularidades enunciativas e dispersões do discurso,
estudamos as diferentes formações discursivas e os efeitos de sentido possíveis que
perpassam a memória discursiva indígena e as representações de terra. Para isso, foram
recortados excertos da Carta do Cacique Seattle, líder sábio que orientou seu povo a
deixar a terra e não optar pelo confronto, no pronunciamento ocorrido em 1887.
Palavras-chave: Indígenas, Carta de Seattle, Discurso.

de organização social, com destaque à


Introdução
sustentabilidade socioambiental na expectativa
Muitos impactos ambientais como o de corrigir formas destrutivas da relação do
desmatamento, as queimadas, a degradação do homem com o ambiente natural.
meio ambiente ainda persistem uma vez que a
Os conflitos criados por essa nova
solução para esses entraves exige uma
configuração social são provenientes de uma
transformação não só nos meios de produção e
visão de desenvolvimento atrelado ao
consumo, mas de nossa própria organização
crescimento econômico em detrimento dos
social. Esses problemas geram, na sociedade, a
ecossistemas, da cultura e dos valores dos
produção de conhecimentos sobre a educação
povos indígenas (CARVALHO, 2013). Em uma
ambiental, criando uma expectativa necessária
sociedade que tem como prioridade o
em torno de práticas sociais que estão em
desenvolvimento econômico e o progresso, as
oposição à degradação permanente do meio
minorias étnicas são afetadas diretamente em
ambiente e do seu ecossistema. Sob a égide do
seus direitos mais básicos no que tange à
ambientalismo, observam-se as inter-relações
cultura, ao meio ambiente e ao próprio
do meio natural com o social, de modo a
território onde vivem. Tendo em vista essa nova
priorizar o desenvolvimento sustentável, a
realidade das populações indígenas que se
emergência de novos atores sociais, seus modos

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506
encontram alojadas no centro de mudanças
Diante do exposto, a escolha de uma
rápidas e contínuas nas esferas econômicas,
comunidade indígena como campo de pesquisa
políticas e sociais, neste trabalho tem-se como
justifica-se por acreditar que os indígenas
objetivo analisar, com base em regularidades
estabelecem, de forma mais direta e diferente, a
enunciativas e dispersões do discurso, as
relação homem x natureza x questões
diferentes formações discursivas, os
ambientais. Considerando a proposta teórica
interdiscursos e os efeitos de sentido possíveis
transdisciplinar e o método arqueogenealógico
que perpassam a memória discursiva indígena e
de Foucault (2004, 2005, 2008), esta pesquisa
as representações de terra. Para isso, foram
ancora-se nos pressupostos da Análise de
recortados excertos da Carta do Cacique
Discurso de linha Francesa da qual se destacam
Seattle, líder sábio que orientou seu povo a
os conceitos de sujeito, discurso, formação
deixar a terra e não optar pelo confronto, no
discursiva e memória discursiva, a partir de;
pronunciamento ocorrido em 1887.
Authier-Révuz (1990), Pêcheux (1988) e
Considerando que todo discurso carrega Coracini (2007, 2011). As discussões sobre
em seu bojo relações de saber/poder que representações e processos identitários
definem as regras e as formas de funcionamento encontram suporte na visão pós-colonialista de
das práticas discursivas em uma determinada Bhabha (1998). Convém destacar que não se
sociedade, trazemos algumas questões de trata de tomar tais teorias em sua íntegra, mas
pesquisa que procuram entender o surgimento “de puxar os fios de que necessitamos, para,
desse discurso como acontecimento: Quais com eles, tecermos a teia de nossa rede
fatos históricos e sociais possibilitaram uma teórica": esses fios são modificados e,
maior circulação do discurso do Cacique juntamente com o nosso olhar, não são mais os
Seattle? Como tais discursos atravessam os mesmos de antes. (CORACINI, 2011, p. 166).
sujeitos indígenas e quais situações decorrentes
1. A disciplina Análise de Discurso e os
incidem sobre os sujeitos? Qual a configuração
olhares teóricos
desse discurso no contexto atual, a partir das
comunidades étnicas, e a relação Interpretar discurso ou buscar
saber/poder/resistência que perpassa esse compreendê-lo é reconhecer as contribuições de
discurso? Foucault e Pêcheux, estudiosos que
construíram, com suas reflexões, as bases
Diante dessas questões, trabalhamos
fundamentais para a instituição da Análise do
com a hipótese de pesquisa de que a
Discurso como disciplina. No texto, com base
constituição identitária do indígena em pauta -
nas regularidades enunciativas, tomam-se as
em meio a um processo de constantes
concepções de formação e memória discursiva
transformações sociais - é constituída por meio
para problematizar o discurso da Carta de
de uma resistência, reação contra os efeitos da
Seattle sobre questões ambientais e o processo
globalização e os projetos de desenvolvimento
de constituição identitária dos indígenas.
priorizados pelo Estado. Há a recorrência aos
antecedentes históricos que formam a base de Constituída sob uma base teórica
sua cultura no que concerne ao convívio transdisciplinar, a Análise do Discurso surgiu
harmonioso com a natureza. no final dos anos 60, em um espaço conflituoso

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construído pela relação entre três domínios em que ressaltou seu amor pela natureza e de
disciplinares: a Linguística, o Marxismo e a toda vida sobre a terra. O discurso foi traduzido
Psicanálise. Com o objetivo de mostrar que a para a língua inglesa pelo médico Henry Smith e
relação entre a língua e o mundo não é uma publicado em 1887. Escolhemos a carta em
relação direta, a Análise do Discurso questiona língua inglesa para o nosso estudo, pois a
a Linguística pela historicidade que ela deixa tradução na língua portuguesa nos deixou
escapar. Considerando que “a história tem seu inquietos em relação às escolhas lexicais do
real afetado pelo simbólico” (ORLANDI, 2009, tradutor. Destarte, ao fazer o discurso o sujeito,
p. 19), a Análise do Discurso enfatiza que é na Cacique Seattle, se situa em uma posição que
relação da língua com a história que a primeira (re)produz efeitos interpretativos a partir do
produz sentidos, o que implica considerar a uso da lingua(gem) e ao ser constituído por ela.
língua não só como estrutura (língua), mas E por ele (re)produzir tais efeitos de
como acontecimento (história). É na relação interpretação, prática significativa que o sujeito
entre estrutura e fato que o sujeito se significa, exerce, não há controle de efeitos de sentido em
e desloca-se da posição de indivíduo para seu dizer (CORACINI, 2007).
sujeito pelo simbólico. Para Foucault (2005, p.
Seguindo os princípios dos estudos
105), o sujeito é um lugar determinado, ao discursivos, passemos as concepções de método
mesmo tempo vazio, que pode ser ocupado por e teoria elaborados por Foucault (2008) que
sujeitos diferentes. O lugar de que trata o autor partem do enunciado como “inesgotável à
não é definitivo, mas “variável o bastante para língua e ao sentido, podendo, assim ser
poder continuar idêntico a si mesmo, através de inúmeras vezes repetido”, mas, ao mesmo
várias frases, bem como para se modificar a
tempo, é um acontecimento singular. Cada
cada uma”. surgimento em um campo enunciativo tem nova
O sujeito de um enunciado fala de um feição. Dessa forma, o enunciado é uma
lugar histórico-social, um lugar institucional unidade fundamental para a análise do discurso,
reconhecido e autorizado, constituído pelas já que o discurso por ele se materializa.
posições ocupadas na sociedade. Desse modo, Foucault (2004) afirma que o discurso não se
o Cacique Seattle fala como líder das tribos restringe à manifestação do desejo, mas
Suquamish e Duwamish, respondendo ao constitui-se, também, em objeto do desejo e, em
Governador de Washington, Isaac Stevens, Arqueologia do saber (2008 [1969]) concebe o
quanto a proposta de comprar as terras discurso como prática oriunda dos saberes, suas
indígenas localizadas na região Puget Sound. O formações e suas relações com práticas sociais.
alvo era deslocar as tribos para uma reserva Para Orlandi (2009, p. 20), o discurso é
indígena e alojar estrangeiros que chegavam ao
constituído por ideologias, história do sujeito e
país, Estados Unidos da América. por “já-ditos” que se manifestam por meio da
Em 1854, dia 10 de janeiro, o língua, da materialização linguística do sujeito
governador reforçou a oferta da compra das que acredita ser seu e único o discurso que
terras oferecendo algumas garantias e articula. É pela ideologia que o indivíduo é
compensações em troca. Nesse mesmo dia o interpelado em sujeito de seu discurso, de modo
Cacique Seattle proferiu um discurso histórico, a oferecer ao sujeito sua realidade como

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evidência e, apagando, simultaneamente, a
Para Authier-Révuz (1990, p. 28), sob
relação da língua com a história, condição
as palavras sempre há outras palavras, outros
necessária para que os sujeitos e os sentidos
dizeres: "é a estrutura material da língua que
possam se significar. Isso implica considerar os
permite que, na linearidade de uma cadeia, se
dois tipos de esquecimentos, que constituem o
faça escutar a polifonia" existente em todo
sujeito, postulados por Pêcheux, pois o trabalho
discurso”. Daí emergem os indícios da
ideológico se faz pela memória e pelo
“pontuação do inconsciente”. E atravessado
esquecimento (1997, p. 173).
pela língua e pela história, o sujeito não tem
Na esteira foucaultiana, trazemos a controle sob a forma como os sentidos o
noção de sujeito como um lugar discursivo, afetam. Via intradiscurso, emergem resquícios
marcado pela heterogeneidade e a instabilidade de sua heterogeneidade constitutiva,de natureza
das diferentes formações discursivas que fragmentada, cindida, descentrada do sujeito.
perpassam seu discurso, de modo que “um Constituído pela linguagem e atravessado pelo
único e mesmo indivíduo pode ocupar em uma inconsciente, o sujeito significa seu dizer pela
série de enunciados, diferentes posições e exterioridade constitutiva de todo dizer, e
assumir o papel de diferentes sujeitos” remete ao outro, à alteridade por uma não-
(FOUCAULT, 2008, p. 196). É válido dizer coincidência do discurso consigo mesmo que
que em uma formação discursiva o sujeito fala traz por meio de sua fala, as palavras
do lugar que ocupa na sociedade. Não fala de pertencentes a um outro discurso e institui as
si, mas de um lugar que o “si” preenche nessa fronteiras entre um e outro.
sociedade - Cacique Seattle, expondo o que
Diante disso, podemos afirmar que o
essa ocupação social lhe permite dizer e o que
discurso pode ser abordado como estrutura e
ela exige que diga (PÊCHEUX, 1988).
acontecimento, simultaneamente, por se
Das formações discursivas nascem o estabelecer na tensão entre a língua e a história.
interdiscurso que se compreende como Trazer o acontecimento discursivo dentro da
fragmentos de discursos outros, de múltiplos Análise do Discurso implica trazer a
discursos de que compõem a memória materialidade linguística do enunciado e o
discursiva. O interdiscurso constitui-se, contexto sócio histórico no qual esse discurso é
portanto, de vozes outras que se (entre)cruzam produzido e que “abre para si mesmo uma
e, conforme Coracini (2007, p. 7), vozes que se existência remanescente no campo de uma
entrelaçam formando uma rede em que os fios memória [...]"; o discurso se abre "à repetição,
se entretecem. Essa rede constitui-se de valores, à transformação, à reativação” (FOUCAULT,
ideologias, culturas, crenças que levam os 2008, p. 32), de modo que não pode ser
sujeitos a ler o mundo de uma forma e não de pensada separadamente da noção de
outra, que induz os sujeitos a serem paradoxais, interdiscurso.
permitindo-lhes ser semelhantes e diferentes ao
Foucault destaca a noção de arquivo
mesmo tempo; para Coracini (2007, p.9),
que, sempre entrelaçado pela memória
tecido, tessitura, constrói-se e constrói o/no
discursiva, pode ser considerado como aquilo
sujeito, com marcas indestrutíveis de sua
que “faz com que tantas coisas ditas por tantos
singularidade.
homens, há tantos milênios, não tenham surgido

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apenas segundo as leis do pensamento”, ou de condições e limitações, “de seus cortes, de suas
acordo com as circunstâncias, que não sejam transformações, de modos específicos de sua
simplesmente a sinalização, no plano das temporalidade” (FOUCAULT, 2008, p. 133).
performances interlocutivas, do que pôde
2. Aspectos sociais e históricos
desenrolar "na ordem do espírito ou na ordem
das coisas”. (FOUCAULT, 2008, p. 146). O Temos observado, nas últimas décadas,
arquivo dá sentido ao que está sendo uma gama de discursivizações em torno da
enunciado, aquilo que possibilita retomar alguns noção da identidade, sobretudo, nesse início de
discursos, (re) significar outros, ocasionando o século quando houve uma ruptura significativa
desaparecimento/surgimento de alguns no com visões identitárias que traziam a identidade
tempo, constituindo-se como a garantia da como algo fixo, imutável e controlado. Bhabha
memória: “a memória é [...] sempre (1998, p. 20) ensina que o ponto teórico
esquecimento, pois é sempre interpretação de inovador e politicamente relevante atualmente é
algo que passou”, responsável pela a necessidade de passar "além das narrativas de
materialização dos discursos, inscrita sempre subjetividades originárias e iniciais" e de
em relações de poder (CORACINI, 2007, p. considerar aqueles momentos/processos que
16). são produzidos na articulação da diversidade
cultural. É esse entre-lugar conflituoso em que
E, a partir do nosso olhar interpretativo, o sujeito está inserido que produz formas de
é possível dizer que Seattle ao (re)produzir seus subjetivação específicas que nos levam à
enunciados por meio das formulações reflexão sobre a emergência de novas
anteriores, faz uma interpretação da sociedade perspectivas identitárias que se apresentam sob
fazendo contato com o passado, constrói o a forma de contestação, denúncia, reivindicação
sentido como sujeito na história e se insere no ou colaboração, o que implica na (re)elaboração
presente para que o fio discursivo seja mantido, da noção de identidade.
o que marca um domínio de memória.
Tendo em vista o rigor científico
Sob o olhar foucaultiano, temos o necessário para o processo analítico, vale
discurso como um lugar em que as relações de considerar aqui as concepções de
poder se exercem sendo, simultaneamente, representação, subjetividade e identidade;
instrumento e efeito de poder: o discurso Coracini (2007, p. 240) afirma que “[...] toda
produz poder e, também, se apresenta como o representação se constrói a partir das
lugar da resistência, da oposição, do outro do experiências pessoais"; no entanto "elas se
poder. Por considerar o discurso como um constroem a partir das experiências dos
objeto histórico, construção de uma outros”, daqueles que nos rodeiam e que nos
determinada época, o historiador afirma que o levam a certas crenças e valores, “que nos
discurso é “um conjunto de enunciados, na dizem quem somos". Tudo isso é mobilizado no
medida em que se apoiam na mesma formação bojo do contexto sociopolítico no qual os
discursiva [...]", o que significa que é histórico e sujeitos e seu inconsciente são alterados.
"fragmentado de história, unidade e
descontinuidade na própria história”; o discurso A partir do pensamento de Foucault
apresenta o problema de suas próprias (2004, 2005, 2008) e Coracini (2007),

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510
entendemos que o sujeito constrói-se no social
Bhabha (1998), numa visada pós-
e pelo discurso e, por isso se encontra em
colonialista, afirma que o colonizador não
constante (re) elaboração, transformando-se e
permite que o outro seja como ele é: assim o
sendo transformado pelo discurso outro, pelo
faz acreditar que sua cultura é ruim e que para
poder e, no caso específico dos indígenas, pela
se tornarem “melhores” devem se assemelhar ao
resistência ao processo de exclusão que
europeu colonizador. A narrativa revela o outro
historicamente vem sofrendo. Coracini (2011,
do “entre-lugar” aquele diferente do seu objeto
p. 147-8) tem comprovado em suas pesquisas
de imitação e marcado por uma identidade
que o sujeito é “cindido, clivado, heterogêneo,
parcial. Nessa esteira, a discussão sobre as
perpassado pelo inconsciente"; ele é perpassado
identidades se torna necessária para uma
"pelos mais recônditos desejos que, recalcados
compreensão das temáticas sociológicas,a partir
sob a ação do social, responsável pelos
do pensamento contemporâneo das ciências da
interditos, só irrompe via simbólico" ou seja,
comunicação e das ciências sociais. Antes desse
pela linguagem na interação verbal”.
período o que havia era a identidade como um
Bhabha (1998) garante que a identidade assunto secundário.
é sempre híbrida, fluida e instável,a partir de
Hoje essa discussão tem papel crucial
estudos sobre os sujeitos que estão nas margens
para autores como Castells (2005, p.169)
da nação. Como se pode verificar, não há como
aborda um panorama emoldurado pela
negar o papel fundamental da cultura para a
configuração da “sociedade em rede”, por ele
análise dos dados coletados, considerando o
denominada de “era da informação, cujas
aspecto transdisciplinar da Análise de Discurso
implicações econômicas e sociais “empoderam”
aqui proposto, como um campo epistemológico
as identidades”. Castells (2005, p.22) faz uma
crítico.
reflexão sobre o caráter múltiplo e fragmentário
Essas noções surgem adequadas a nossa da identidade e conclui que uma identidade,
proposta, na tentativa de refletir, por meio do cultural ou individual, pode sustentar múltiplas
discurso da Carta de Seattle, como o sujeito se identidades.
representa, marcado na/pela história,
É possível depreender que Castells
vivenciando um “entre lugar” (BHABHA,
(2005) aplaude uma perspectiva que organiza a
1998) conflituoso e contraditório, no qual
vivência de diferentes papéis sociais: “[...] a
(co)habita o desejo do outro, tanto do passado,
construção de identidades vale-se da matéria-
por meio da memória, quanto do presente pelo
prima fornecida pela história, geografia,
contato com a sociedade envolvente e todos os
biologia: essas instituições são produtivas e
“aparatos” que a atualidade proporciona: as
reprodutivas, pela memória coletiva e por
tecnologias da comunicação e o capitalismo
fantasias. E ainda pelos dispositivos que
diante da iminente globalização. Sujeito que, ao
atravessam as relações de poder e os valores
mesmo tempo, “convoca” o passado para o
religiosos. (CASTELLS, 2005, p. 23).
presente ou o nega, inconscientemente, com o
olhar sobre um presente que acredita ser “mais Dessa visão decorre a noção de
fácil para (con)viver”. representação que queremos trazer. Para nós,
as representações são determinadas “pelo

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511
colonizador”, portanto por quem detém o
Para fundamentar o que afirmamos,
poder, quem pode definir. Tendo em mente as
trazemos um recorte discursivo S1, em que
representações queo sujeito julga ter de si e do
notamos a força do sujeito ao responder às
outro e o desejo do outro que o move, assim
negociações em que ele estava envolvido com
como as representações que o outro tem sobre
os Estados Unidos da América. S1 expressa na
ele, elementos dos processos identitários,
carta seu compromisso em viver em paz com os
cremos que a representação pela relação de
colonizadores, bem como o de respeitar a
força e pela mobilidade de referências culturais,
cultura do "homem branco", e lhes pede em
de tradição, espaço-temporais e histórica
troca que respeitem seu povo e a natureza.
desloca(ra)m as identidades.
Ainda hoje suas palavras ecoam e fazem
3. O jogo identitário a partir da inspirar a luta pelos diretos do homem e o
representação de "terra" empenho dos movimentos ambientais. A
Apresentamos as representações que angústia expressa no discurso de Seattle é
perpassam o discurso do indígena Seattle (S1), impulsionada pelo constante movimento de
sobre a Terra enquanto Mãe protetora, seu identificações entre sua cultura e a do outro:
chão simbólico e cultural, lugar de abrigo e
SI – O presidente em Washington manda
proteção. Por seus valores simbólicos, as dizer que ele deseja comprar a nossa terra.
identidades estabelecidas pela cultura são Como é possível comprar ou vender o céu?
rebatidas sob as formas do mundo a terra? A ideia é estranha para nós. Se nós
contemporâneo, que priorizam a propriedade não somos os donos do ar fresco e do brilho
privada, o progresso e consumo desenfreado das águas, como podemos comprá-los?
característico do mundo pós-colonial em (Tradução nossa)
detrimento dos interesses dos grupos
minoritários.
[The President in Washington sends word
E como forma de resistência à that he wishes do buy our land. But how
globalização e aos modelos de desenvolvimento can you buy or sell the sky? the land? The
impostos pela sociedade capitalista, S1 deixa idea is strange to us. If we do not own the
rastros de sua subjetividade que denunciam a freshness of the air and the sparkle of the
terra como lugar simbólico, sagrado já que water, how can you buy them?]
representa as experiências vivenciadas no
passado, as memórias de um povo, lugar Ao iniciar o seu discurso, S1 (de)marca
mitológico dos ritos e da permanência da a voz do governador, por meio de um verbo de
tradição. Isso porque ao situar-se à margem da ligação, a saber, sends (manda). De acordo com
sociedade hegemônica, os indígenas encontram- Neves (2000), os verbos que constituem
se em posições desvalorizadas e estigmatizadas predicados, neste caso sends a word (manda
pela sociedade hegemônica e, portanto, dizer), exprimem uma ação em que outro
constroem “trincheiras de resistência” participante é afetado ou não.
(CASTELLS, 2005) pautando-se em princípios
e valores diferentes dos que permeiam as Neste caso, a resposta indignada de S1
instituições na sociedade. foi impulsionada pela situação que o

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512
governador de Washington criou, ao propor a possível vender o céu? a terra?”, em relação ao
venda da Terra do povo indígena. Em uma outro que o perturba, fere, exibe sua própria
negociação constante entre sua cultura e a do fragilidade e que é o "homem branco";
outro, o sujeito deixa resvalar, em seu dizer, importante pontuar que o discurso da Carta traz
memórias de um passado de respeito à natureza sempre esse sintagma "homem branco" em
e constitui-se pelo desejo de completude, de referência ao poder, ao governo, numa
unidade que será sempre uma promessa adiada perspectiva individualizada, não coletiva. O
de retornar “sob a forma de uma consciência discurso, portanto, se apresenta aqui como um
histórica: se apropriar, novamente, de todas espaço heterogêneo, atravessado por diferentes
essas coisas mantidas a distância pela diferença, vozes e o sujeito - cindido, clivado – se
restaurar seu domínio sobre elas e encontrar o apresenta como aquele que se encontra em uma
que se pode chamar sua "morada” negociação constante entre seus valores e os do
(FOUCAULT, 2008, p. 14). outro na tentativa de “harmonizar as diferentes
vozes” que atravessam seus dizeres em “busca
No decorrer dos tempos, todas as
de completude”, na ilusão de que podem ainda
práticas de significação (desmatamento para
ser o índio da origem.
plantio, industrialização, consumismo
desenfreado, implantação de grandes projetos Ao recorrer aos modelos tradicionais
por parte do Estado), no que tange à relação indígenas de convivência com o meio ambiente,
homem/natureza, se deram conflituosamente, S1 marca o encontro de memórias do passado
envolvendo sempre relações de poder, já que com suas condições atuais de existência
operam sempre entre a inclusão/exclusão. mediante transformações sociais, econômicas e
Especificamente, no que se refere a S1, a culturais que o afetam diretamente; ele oferece
cultura indígena (com)forma a identidade uma resistência aos modelos de
“nossa terra” ao dar sentido à sua experiência desenvolvimento priorizados pelo branco ao
como indígena e ao tornar possível ao sujeito trazer, em meio ao seu dizer, um fazer/viver
um modo específico de subjetividade. Assim, diferenciado que envolve atividades produtivas,
situado no espaço fronteiriço entre sua cultura e bastante diferentes daquelas professadas pelo
do outro, S1 denuncia no fio discursivo de “A branco.
ideia é estranha para nós” as condições em que A terra indígena é alvo de consumo
seu discurso é produzido em meio ao poder próprio e não vem ligada à
exercido pela sociedade envolvente, pelo chefe comercialização/geração de renda.Trata-se de
do poder norte-americano. E vem manifestar, a um saber/poder ligado aos saberes tradicionais
seu modo, resistência, ao questionar o sentido das populações indígenas, de modo geral; e, de
de terra para o branco e para o povo indígena.
modo específico, os saberes mobilizados na/pela
Nesse processo discursivo, o sujeito, ao memória discursiva de S1 pertencente à etnia
falar de si, ora alarga suas fronteiras ao incluir- indígena “Se nós não somos os donos do ar
se em um “nós” (“nossa terra”) que representa fresco e do brilho das águas, como podemos
seu povo, seus valores, aqueles que possuem comprá-los?”. No espaço indígena norte-
traços comuns aos seus; ora produz um efeito americano, essa etnia é considerada como
de distanciamento em seu dizer “como é aquela que mais domina/prioriza os valores

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513
tradicionais das comunidades indígenas em coletiva; políticos/indígenas – que “através de
oposição aos valores do "homem branco". lutas e afrontamentos incessantes as transforma,
reforça, inverte” (FOUCAULT, 2008, p.88).
Assim como muitos povos indígenas, o
povo do Cacique Seattle tem uma relação social Sob o choque do acontecimento, os
e cultural forte com a terra e tudo que está dizeres de S1 demarcam uma tensão nos limites
posto sobre ela; portanto, para os indígenas, o internos da formação discursiva cultural que
respeito e a valorização dos animais, pássaros, vem desestabilizar a unidade imaginária do
ar, vento, terra, do lugar onde seus sujeito, ao mobilizar saberes na tênue fronteira
antepassados foram enterrados, são percebidos de uma formação discursiva, o que vem
como sagrados. Por meio de coletas no mar os dificultar o sentimento de pertença, ou a busca
indígenas pescavam crustáceos e moluscos nas do lógico e único pertencimento.
águas locais e em Puget Sound, especialmente o No fio discursivo, o enunciado
salmão. A madeira de cerdo era usada para negativo,acompanhado de uma interrogativa e
tecer roupas à prova d'água e itens utilitários,
um operador condicional, “Se nós não somos
como, por exemplo, canoas e ornamentos
os donos do ar fresco e do brilho das águas,
cerimoniais. No passado, a terra do Cacique era
como podemos comprá-los?”, pela memória
conhecida como o "paraíso na Terra", região
discursiva, articula um dos maiores desafios do
que inspirou o seu discurso. Como uma das
movimento ambiental na contemporaneidade - o
características mais marcantes das populações
desmatamento - que perpetua o ciclo da
indígenas é a oralidade, esse conhecimento de
degradação a um ponto, na maioria das vezes,
sua cultura se perpetua de geração em geração
irreversível, ao afetar todo o ciclo natural
por meio de histórias, ensinamentos de seus
desencadeado pela natureza. Animais perdem
valores simbólicos, o respeito à natureza.
seu habitat e procuram outros espaços para
Identidades em conflito emergem nesse sobreviver, florestas são devastadas em prol do
embate – legitimadora/resistência – de modo progresso e cedem lugar aos grandes projetos, à
que as identidades, que são construídas pela criação de gado, à (mono)agricultura.
cultura, são contestadas sob particulares modos
Efeito de linguagem, o sujeito retoma
nos dias atuais. Muito mais do que uma
palavras alheias na ilusão de que estas lhe
oposição aos modelos de desenvolvimento
pertencem, e deixa emanar em seus dizeres
preconizados pela sociedade hegemônica, a
redes de filiações já-ditas sobre a relação
questão crucial a ser discutida é a existência de
homem/natureza acreditando ter o controle
um discurso em que o meio ambiente, as formas
absoluto de seu dizer e dos sentidos que este
tradicionais de convivência com a natureza, a
produz. A partir do enunciado negativo, que
inversão desse modelo pela ótica capitalista e o
mobiliza o outro, o estranho, o branco, no
desejo de certa completude estão inter-
discurso de S1, entendemos que emerge o
relacionados, sendo impossível ao sujeito puxar
silenciamento, ou seja, há uma voz que afirma
um fio sem deslindar outros. Trata-se de
que os indígenas são os donos da terra e que
relações de força entre instâncias divergentes –
eles jamais venderiam as terras. Afetado por um
comunidade indígena/branco; Terra-Mãe/Terra-
sujeito que divide, ou melhor, que tem que
Nação; propriedade privada/ propriedade
dividir seu espaço discursivo com o outro, o

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514
sentido se subjetiviza, toma-se heterogêneo,
BHABHA, H. K. O local da cultura. Trad.
bloqueando a tendência natural à
Myrian Ávila, Eliana L. de L. Reis, Gláucia R.
homogeneização do sentido.
Gonçalves. Belo Horizonte: Editora UFMG,
4. Considerações finais 1998.
Constatou-se nos registros analisados CARVALHO, J. P. de. O discurso indígena
que, em decorrência das inúmeras sobre as questões ambientais. 2013. 127 f.
transformações nas estruturas econômicas e Dissertação (Mestrado em Letras) -
políticas, os povos indígenas têm sua cultura e Universidade Federal de Mato Grosso do Sul,
identidade afetadas pelos modos de vida do Mato Grosso do Sul, 2013.
branco e, portanto, (re) significam suas práticas,
CASTELLS, M. O poder da identidade: a era
crenças e necessidades na contemporaneidade
da informação: economia. Sociedade e cultura.
situando-se no entre lugar conflituoso que, de
Trad. Klauss B. Gerhardt. São Paulo: Paz e
um lado, o coloca frente a frente com os valores
Terra, 2005.
da sociedade hegemônica ("homem branco") e,
de outro lado, o mantém em uma relação de CORACINI, M. J. A celebração do outro:
dependência e integração com a natureza, com arquivo, memória e identidade: línguas (materna
os valores culturais de seu grupo. e estrangeira), plurilinguismo e tradução.
Problematizamos sobre a construção e a Campinas: Mercado de Letras, 2007.
desconstrução da identidade do indígena por ______. História de vida e pobreza: por uma
meio da visada pós-colonial e argumentamos (intro)dução. In: ______. (Org.) Identidades
sobre o modo como o indígena colonizado é silenciadas e (in)visíveis: entre a inclusão e a
caracterizado pelo discurso do colonialismo exclusão. Campinas: Pontes, 2011, p.17-28.
ocidental, de forma depreciativa.
FOUCAULT, M. A ordem do discurso: aula
O colonizado é identificado pelo inaugural no Collège de France, pronunciada
colonizador como uma população degenerada; em 2 de dezembro de 1970. 10 ed. Trad. Laura
com base em teorias raciais, o colonizador F. de Almeida Sampaio. São Paulo: Loyola
justifica a conquista de uma nação em todos os (Trabalho original publicado em 1971), 2004.
seus aspectos sociais e culturais. Para Bhabha
(1998), o discurso constitui-se em uma das ______. Theatrum Philosophicum. Critique, n°
estratégias mais eficazes do poder e do saber 282.Trad. Elisa Monteiro. In: ______. Ditos e
colonial, pois se mostra ao outro, o diferente, Escritos II: Arqueologia das Ciências e História
como fonte de inspiração para a imitação, a dos Sistemas de Pensamento. Rio de Janeiro:
cópia e para a relativização da cultura Forense Universitária (Trabalho original
subalterna. publicado em 1970), 2005, p. 885-908.
Referências ______. Arqueologia do saber.7 ed. Trad. Luiz
F. B. Neves. Rio de Janeiro: Forense
AUTHIER-RÉVUZ, J. Palavras incertas: as Universitária (Trabalho original publicado em
não-coincidências do dizer.Trad. Cláudia C. R. 1969), 2008.
Pfeiffer. Campinas: Editora UNICAMP, 1990.

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515
NEVES, M. H. M. Gramática de usos de
português. São Paulo: Editora Unesp, 2000.
ORLANDI, E. P. Análise de discurso:
princípios e procedimentos. Campinas: Pontes,
2009.
PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma
crítica à afirmação do óbvio. 3. ed. Trad. Eni P.
Orlandi. Campinas: Editora Unicamp, 1997.
______. O discurso: estrutura ou
acontecimento. Trad. Eni P. Orlandi. Campinas:
Pontes, 1988.

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516
CORPO, INTERDIÇÃO E HETEROTOPIA: A NUDEZ DO
CORPO DA MULHER NO DISCURSO DA PROPAGANDA
TURÍSTICA OFICIAL BRASILEIRA

Karoline MACHADO; Regina BARACUHY


Universidade Federal da Paraíba (UFPB)
kalfreire@yahoo.com.br; mrbaracuhy@hotmail.com

Resumo: Nossa pesquisa de Mestrado objetiva analisar por que a nudez do corpo da
mulher brasileira é interditada no discurso da propaganda turística institucional e o
mesmo não ocorre nesse gênero quando se trata do Carnaval. Para atingir nossa meta,
utilizamos os pressupostos teórico-metodológicos da Análise do Discurso (AD), a partir
das ideias de Michel Pêcheux e, sobretudo, das contribuições dos trabalhos de Michel
Foucault, além de se apoiar nos estudos realizados por Jean-Jacques Courtine acerca do
corpo e da Semiologia Histórica da imagem. Este artigo constitui um recorte de um
tópico de nossa pesquisa, no qual discutiremos sucintamente sobre construção identitária,
sistemas de controle e interdição e espaços heterotópicos.
Palavras-chave: análise do discurso; corpo; identidade; interdição; heterotopia.

principal, diz respeito à superexposição da


Considerações iniciais
imagem de corpos seminus de mulheres.
A exposição do corpo seminu da mulher
Na contramão de toda essa acentuada
está em evidência na mídia, seja na televisão,
exposição do corpo da mulher na mídia, hoje,
internet ou em revistas, jornais e outdoors,
os órgãos oficiais trabalham no
encontramos em toda parte. Os meios de
reposicionamento da imagem do Brasil,
comunicação de massa repetem
interditando o corpo seminu no discurso
incessantemente essa adoração ao corpo.
turístico brasileiro e estabelecendo, assim, uma
As propagandas turísticas brasileiras nova ordem discursiva para o corpo da mulher.
oficiais que circularam principalmente nas
Tratar da imagem do corpo da mulher
décadas de 1970 e 1980 seguiram essa mesma
no discurso da propaganda turística brasileira é,
tendência de “espetacularização” do corpo
sobretudo, discutir sobre a identidade de um
propagada pela mídia. Mesmo com toda a
país rico em patrimônio natural, cultural e
diversidade de imagens presentes nessas
histórico. Importa-nos, então, analisar por que
propagandas, algumas regularidades discursivas
há a interdição da nudez do corpo da mulher na
chamaram a atenção e uma delas, senão a

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517
propaganda turística institucional e o mesmo em que as identidades da mulher brasileira
não ocorre em relação ao Carnaval. foram discutidas a partir de uma memória visual
que remontava ao sentido pejorativo do turismo
1. “Olha que coisa mais linda mais cheia de
sexual, que não é um seguimento turístico, mas
graça”: corpo, identidade e interdição
um crime de exploração sexual2.
A principal preocupação em nossa
Após a década de 1990, como forma de
Dissertação de Mestrado foi a de investigar
potencializar as campanhas contra o turismo
sobre a questão-problema que suscitou esta
sexual, o corpo seminu foi interditado no
pesquisa, apresentada a seguir: existe a
discurso turístico oficial brasileiro, estabeleceu-
interdição da nudez do corpo da mulher na
se, assim, uma nova ordem discursiva para o
propaganda turística e o mesmo não ocorre
corpo. Entretanto, não foi observada essa
nesse gênero quando se trata do Carnaval.
interdição no discurso sobre o Carnaval, tendo
Dessa maneira, percebemos que houve em vista a contínua superexposição do corpo
uma mudança significativa nos modos de seminu da mulher em desfiles carnavalescos.
discursivizar o corpo da mulher nas
Ressaltamos que, em ambas as épocas, o
propagandas turísticas brasileiras institucionais.
foco se deu sobre o corpo, seja expondo-o ou
Verificamos que no período entre as interditando-o, o importante é que ele foi e
décadas de 1970 e 1980, com o objetivo de continua sendo moldado para que se torne cada
promover o “Carnaval do Brasil” e de construir vez mais dócil e útil às relações de saber-poder
uma identidade brasileira no exterior, a e às vontades de verdade das instituições de
EMBRATUR1 fez uso em suas campanhas da poder vigentes. Nessa era da pós-modernidade,
discursivização de alguns estereótipos vivemos um período de intensificação do
brasileiros, dentre eles, senão o principal, de controle sobre os corpos, porém esse controle
textos verbo-visuais que enaltecem o corpo que nos aflige é imperceptível, ininterrupto e
seminu da mulher brasileira. desejado, pois ele visa ao bem-estar da
Observamos também que os sentidos se população, é a era do biopoder. O governo age
digladiam no interior dos discursos, produzindo como se estivesse a serviço dos governados.
representações sociais e efeitos identitários, Desde o século XVIII, já vivemos na era
pois as imagens e a memória, por meio de da governamentalidade, na qual o alvo do
movimentos de intericonicidade, fazem deslizar governo não é o indivíduo, mas o corpo
o dado e instauram o novo. Consequentemente, populacional, a forma principal de saber é a
os ecos das imagens produziram entrelugares economia política e os instrumentos técnicos
essenciais são os dispositivos de segurança, que
1
O Instituto Brasileiro de Turismo (EMBRATUR) “é a visam conduzir a população no tempo e no
autarquia especial do Ministério do Turismo responsável
2
pela execução da Política Nacional de Turismo no que A Política Nacional de Turismo, Lei nº 11.771/2008
diz respeito à promoção, marketing e apoio à (Art. 5º), apresenta como um de seus objetivos a
comercialização dos destinos, serviços e produtos prevenção e combate às atividades turísticas
turísticos brasileiros no mercado internacional” relacionadas à exploração sexual; e o Código Penal,
(Disponível em: <www.turismo.gov.br/turismo/o_ Decreto-Lei nº 2.848/1940 (Arts. 227 a 232), define e
ministerio/embratur/>. Acesso em: 30 set. 2014). pune os crimes de exploração sexual.

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518
espaço, com o objetivo puramente capitalista de inteiramente marcado de história e a história
gerar lucro, porém sem fazer-se mostrar. arruinando o corpo” (FOUCAULT, 2012b, p.
65). Assim, pretendemos “pensar com
2. “Olha que coisa mais linda mais cheia de
Foucault” – utilizando um termo de Courtine –
graça”: análise do discurso e metodologia
alguns pontos importantes sobre esse corpo
Utilizamos, para esse trabalho, os fabricado discursivamente e imerso na história.
pressupostos teórico-metodológicos da Análise
Porém, nem sempre esse corpo foi
do Discurso (AD), a partir das ideias de Michel
estudado dessa maneira. A irrupção do corpo
Pêcheux e, sobretudo, das contribuições dos
como objeto de estudo das ciências humanas é,
trabalhos de Michel Foucault, além de se apoiar
historicamente, recente. Foi a partir da
nos estudos realizados por Jean-Jacques
publicação de “Vigiar e punir”, no ano de 1975,
Courtine acerca do corpo e da Semiologia
que Foucault passou a evidenciar em seus
Histórica da imagem. Para a análise do corpus,
estudos essa articulação de saberes e poderes
utilizamos o método arqueogenealógico de
que agem sobre o corpo do indivíduo. Segundo
Foucault (2012a), que é capaz de escavar, da
Foucault (2013, p. 28-29), o corpo está
história, as condições de possibilidade que
permitem a emergência de discursos, a partir da mergulhado num campo político; as relações
análise da irrupção dos acontecimentos, das de poder têm alcance imediato sobre ele;
regras das formações discursivas e das rupturas elas o investem, o marcam, o dirigem, o
nas redes de memória. supliciam, sujeitam-no a trabalhos,
A Semiologia Histórica promoveu um obrigam-no a cerimônias, exigem-lhe sinais.
aprimoramento nas práticas de AD, Este investimento político do corpo está
ligado [...] à sua utilização econômica; é
proporcionando uma base de conceitos teóricos
[...] como força de produção que o corpo é
para pensarmos os discursos sincréticos da investido por relações de poder e de
mídia, que fundem diversas materialidades dominação; mas em compensação sua
(linguísticas e visuais), de tal forma que constituição como força de trabalho só é
pudemos, em nossa dissertação, trabalhar sua possível se ele está preso num sistema de
perspectiva no interior da análise da história do sujeição [...]; o corpo só se torna útil se é ao
corpo na propaganda turística brasileira, que mesmo tempo corpo produtivo e corpo
veremos na seção analítica. submisso. [...] Trata-se de alguma maneira
de uma microfísica do poder posta em jogo
Entretanto, precisamos esclarecer que o
pelos aparelhos e instituições.
corpo em questão não se trata apenas do corpo
orgânico, de carne e sangue, do corpo físico,
mortal, com suas funções biológicas e A manipulação do corpo é sempre o
fisiológicas, mas, acima de tudo, do corpo resultado dessas relações de poder, pois são
enquanto “superfície de inscrição dos sobre ele que se impõem as obrigações, as
acontecimentos”, principal preocupação da limitações, as proibições, as punições etc.,
genealogia foucaultiana, que analisa a objetivando torná-los dóceis, por isso o corpo é
proveniência “no ponto de articulação do corpo tido como “objeto e alvo de poder”. Assim, por
com a história”, mostrando “o corpo meio desse poder infinitesimal sobre o corpo,
até as posturas, atitudes e os gestos são

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519
disciplinados conforme as vontades de verdade Janeiro (RJ)”. Após a interdição do corpo
das instituições de poder. E, com técnicas mais seminu da mulher, o foco da imagem se deu nas
sofisticadas, vem tomando todo o corpo social. belezas naturais da praia, nas areias brancas, no
mar, no nascer do sol e no céu azul.
3. “Mulher brasileira em primeiro lugar”:
análise discursiva da propaganda turística Figura 1. Cartão-postal de 1980

Ao recuperarmos o percurso histórico


do Instituto Brasileiro de Turismo
(EMBRATUR), percebemos que, desde o
início, quando o órgão foi criado, em 1966, ano
que marca também o início da promoção
turística oficial do país e da preocupação de se
construir uma identidade brasileira no exterior,
houve um elemento que se sobressaía no
discurso das primeiras propagandas turísticas
oficiais: o corpo da mulher brasileira. Isso se
deve ao fato da EMBRATUR querer lançar ‘O
Carnaval do Brasil’ no exterior (ALFONSO, Fonte: ALFONSO, 2006, p. 126.
2006), como também ao uso de estereótipos
para divulgar o produto Brasil (SÁ, 2002).
Figura 2. Cartão-postal de 2014
Porém, ao longo dos anos, o Brasil vem
sofrendo com o agravamento do turismo
sexual, de tal maneira que, atualmente, como
forma de tentar coibir, ou pelo menos não
incentivar, esse tipo de crime, houve uma
interdição desse corpo seminu, de forma que ele
hoje não mais aparece nas campanhas ou então
é discursivizado de uma outra forma, coberto.
Essa mudança na forma como é
composta e discursivizada a propaganda
turística fica bastante perceptível quando
colocamos lado a lado um cartão postal do Rio
de Janeiro da década de 1980 e uma
propaganda turística da mesma cidade do ano
de 2014, como se pode observar nas Figuras 1 e
2. Na Figura 1, o cartão-postal do Rio de Fonte: #PARTIUBRASIL, 2014, p. 53.
Janeiro era a brasileira. Já na Figura 2, o cartão- Entretanto, a interdição do corpo
postal da cidade é a Praia de Ipanema, seminu não repercutiu no discurso sobre o
conforme consta na materialidade linguística Carnaval brasileiro, devido à contínua
“Praia de Ipanema: cartão-postal do Rio de ocorrência, em propagandas, filmes,

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520
reportagens e documentários sobre o Brasil, de Figura 4. Copa 2014: Videoclipe da Música Oficial
uma superexposição do corpo feminino seminu
em desfiles carnavalescos. O Brasil continua
sendo identificado como o país do Carnaval.
Na Figura 3, por exemplo, podemos
perceber que uma das patrocinadoras oficiais da
Copa do Mundo 2014, a empresa de serviços
financeiros Visa, não sofreu qualquer sanção do
país, ao colocar em uma de suas campanhas
publicitárias, a imagem de uma mulata seminua, Disponível em: <www.globo.com>.
com trajes carnavalescos, simbolizando a As duas produções midiáticas remetem
mulher brasileira e o Brasil, país sede no ano de à Copa Mundial de Futebol, sediada no Brasil,
2014 desse evento mundial. por isso a união do samba, futebol e Carnaval
Figura 3. Visa: Estamos loco, loco, locos! (leia-se mulheres sambando com pequenos
trajes). Podemos ver alguns símbolos que
singularizam a imagem do país, como as
mulatas seminuas sambando, vestidas com
fantasias carnavalescas, as cores verde e
amarelo e a bandeira brasileira. Essa é a
identidade que vai marcar esse lugar, esse é o
espaço que a mídia quer representar, o Brasil.
No Brasil, a permissão/proibição à
nudez é um assunto bastante polêmico. Os
biquínis brasileiros são considerados os
Disponível em: <www.facebook.com/VisaBR>. menores do mundo, enquanto que o uso do
Como também na Figura 4, onde temos topless na orla brasileira é proibido e pode até
uma imagem do videoclipe da música oficial da resultar em multa. Em contrapartida, no
Copa do Mundo no Brasil, “We are one”, Carnaval, a completa exposição do corpo nu é
cantada pelo americano Pitbull, juntamente com permitida e bastante aceitável.
a porto-riquenha Jennifer Lopez e a brasileira De acordo com o conceito de
Cláudia Leite, e que apresenta brasileiras com heterotopia de Foucault (2006), cada lugar
trajes sumários sambando. heterotópico possui suas regras de utilização,
por se constituir como um espaço
institucionalmente demarcado e estar inserido
no interior de uma dada cultura. Vale ressaltar
que essas regras fazem parte da vontade de
verdade do poder institucional vigente. Já a
utopia, segundo o filósofo, é entendida como
uma representação irreal da realidade.

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521
sistemas de controle, sobretudo a interdição,
Diante disso, podemos afirmar que o
que perpassam toda a ordem da vida cotidiana,
Carnaval é um espaço heterotópico, tendo em
são revogados durante o Carnaval, e essa
vista que é real, já que é uma festa popular que
permissividade abrange, inclusive, o discurso da
acontece com data certa e local demarcado;
propaganda turística oficial brasileira.
porém, é também utópico, pois ele representa
uma realidade fantasiosa e ritualística, na qual é Preocupamo-nos em mostrar que o foco
permitida a homens e mulheres uma liberdade sempre se deu sobre o corpo, seja expondo-o
de comportamento, de relacionamento e de ou interditando-o, o importante é que ele foi e
vestuário, que não é possível em outro continua sendo moldado às vontades de
momento; sendo, portanto, um espaço misto. verdade das instituições de poder vigentes.
4. Considerações finais
No discurso sobre o Carnaval brasileiro, Referências
a nudez não é interditada, porque ela existe em ALFONSO, L. P. EMBRATUR: Formação de
um espaço misto, entre a heterotopia e a utopia, imagens da nação brasileira. 2006. 139f.
a realidade e a fantasia, que encanta o Brasil e o Dissertação (Mestrado) – Universidade
mundo durante um curto período do ano. Estadual de Campinas, Campinas, 2006.
O espaço heterotópico do Carnaval FOUCAULT, M. A Arqueologia do saber.
também possui esse poder de reunir em um só Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 8 ed. Rio
local elementos desiguais, ou até mesmo de Janeiro, RJ: Forense Universitária, 2012a.
opostos, como do sagrado com o profano, do
sábio com o tolo, do elevado com o baixo, do ______. Microfísica do poder. 25 ed. São
grande com o insignificante, ou seja, qualquer Paulo: Graal, 2012b.
espécie de desigualdade é eliminada, todas as ______. Outros espaços. In: FOUCAULT,
barreiras hierárquicas são quebradas, há uma Michel. Estética: literatura e pintura, música e
livre convivência entre os homens. cinema. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense
Ou seja, pensando a questão em termos Universitária, 2006. (Ditos e escritos; III). p.
mais amplos, diríamos que a pesquisa apontou 411-422.
duas ordens discursivas para o corpo: numa, o ______. Vigiar e punir: nascimento da prisão.
sujeito vive regido por regras, normas e Tradução de Raquel Ramalhete. 41 ed.
interdições que hierarquizam as relações das Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.
pessoas em seu cotidiano; noutra, no período
SÁ, R. B. V. de. A imagem do Brasil no
carnavalesco, o sujeito vive em um mundo
turismo: construção, desafios e vantagem
paradisíaco, livre de amarras, é o momento dos
competitiva. São Paulo: Aleph, 2002.
prazeres ilimitados e oníricos. Há um confronto
entre a razão e a (des)razão, onde a ordem é a
(des)ordem. Assim, constatamos que o
Carnaval é um espaço heterotópico de
passagem, por isso a nudez é permitida no
tempo e no espaço carnavalesco, ou seja, os

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522
O QUE NOS REVELAM OS CARTAZES DAS
MANIFESTAÇÕES POPULARES, EM 2013, NO BRASIL?

Maria José MARIANO


Pontifícia Universidade Católica (PUC-Minas-CAPES)
maria.jose.mariano1@gmail.com

Resumo: Os meses de junho e julho de 2013 foram marcados por um intenso movimento
social no Brasil. Tal movimento se equipara, por exemplo, às “Diretas Já!”, na década
de 1980, ou ao Impeachment do presidente Collor, na década de 1990. A diferença entre
o que tem ocorrido atualmente e os movimentos passados são a forma de organização e
os objetivos que permeiam estas manifestações. Organizadas pela internet, sem nenhuma
liderança clara, as manifestações iniciaram-se às vésperas da Copa das Confederações
sediadas no Brasil. Para adequação estrutural dos estádios, investimentos nesta área
foram vultosos e intensificados, ainda que não fossem exclusivamente do governo. A
iniciativa privada também esteve imbricada em destinar investimentos, para lucrar com a
posterior exploração destes estádios.
Palavras-chave: manifestações; interdiscurso; sentidos; polifonia

Introdução
tarifa do transporte público. Esse transporte
Pode parecer insignificante dizer, mas o
público que, quase unanimemente, pode ser
setor publicitário tem investido em propagandas
considerado caótico em qualquer lugar da
bem elaboradas na divulgação de seus produtos,
federação, uma vez que o transporte público
a exemplo a Fiat, que lançou uma campanha
brasileiro não é de qualidade aceitável para tal
publicitária convocando os torcedores a irem
aumento passou a ser alvo de muitas críticas.
para as ruas. Nessa convocação, o povo seria
Este foi o estopim para que a grande massa de
como diz a música “a maior arquibancada do
brasileiros insatisfeitos se organizasse, via
Brasil” . Tal campanha, a meu ver, colaborou
internet, nas redes sociais, para manifestações
com a agitação, a incitação do povo.
no país inteiro. É inegável o poder
Em meio a este turbilhão de influenciador, de comunicação, de
acontecimentos com o evento da Copa das convencimento que as redes sociais exercem
Confederações, os investimentos em torno dele sobre as pessoas, fazendo-as despertar para um
e as campanhas publicitárias que exploram o sentimento de pertença que mobiliza à ação,
evento é anunciado um aumento de R$0,20 na

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523
parecendo uma doença virulenta que é
Os teóricos consultados para esse
disseminada instantaneamente.
trabalho preconizam conceitos que transitam
Pela primeira vez no século XXI, o nas interfaces das teorias enunciativas que
Brasil viu seu povo nas ruas reivindicando de compõem a AD. Assim, temos:
um a tudo, transporte de qualidade, maior
Enunciação: Em relação à língua pode
investimento na Educação e na saúde pública,
ser definida, de acordo com Benveniste,
aprovação de leis, veto de outras, entre muitas
como um processo de apropriação
outras necessidades. Um jargão gritado em
quando o locutor enuncia sua posição
muitas capitais e cidades pelo país afora marca
no discurso por meio de índices
bem essas manifestações: “O povo acordou”.
específicos e ou por meio de
Aquilo que era fruto de reclamações tímidas em
procedimentos acessórios;
conversas cotidianas tomou uma proporção
inimaginável. A voz do povo tem-se feito ouvir Interdiscurso: Os sentidos construídos
nestes últimos dias. são atravessados por ideologias e os
enunciados que constroem as
Nesse sentido, o presente texto busca
Formações Discursivas são perpassados
analisar o conteúdo enunciativo de alguns
por diferentes discursos produzindo os
cartazes que circularam pelas capitais brasileiras
interdiscursos;
durante as manifestações populares e que
agitaram o país ultimamente, para compreender Dialogismo: Todo discurso é
como são construídos os discursos de destinado a obter uma resposta
insatisfação, de reivindicação, do levante da interativa entre locutor e interlocutores;
população. Tendo em vista a riqueza linguística Polifonia: O entrelaçamento de textos
expressa nestes cartazes, a tentativa aqui é de dando formato ou novo significado a
identificar alguns pressupostos teóricos como outro texto.
enunciação, interação verbal, interdiscurso e
polifonia, trabalhados em disciplinas da AD. Para dar um rumo à análise que se
propõe neste trabalho, tomo uma citação de
Para este fim, proponho um Ducrot (1978, p. 163) que julgo importante
enquadramento teórico que norteará a análise para ligar o construto teórico ao contexto dos
dos enunciados baseado nos textos de enunciados a serem analisados, na qual ele
Benveniste (1989), de define o problema para sua pesquisa e que julga
Bakhtin(Voloshinov)(1992), Ducrot(1978) e ser propriamente um problema linguístico
Orlandi (2009). fazendo parte do que ele chama de “pragmática
Teoria e análise linguística”, a saber:
Como metodologia, usarei citações Não se trata mais do que se faz quando se
destes teóricos e comentários a respeito destas fala, mas do que se considera que a fala,
citações para o devido enquadramento, segundo o próprio enunciado, faz. Usando
mediante cada análise dos cartazes proposta um enunciado interrogativo, pretende-se
abaixo. obrigar, pela própria fala, a pessoa a quem
se dirige adotar um comportamento

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524
particular, o de responder, e, do mesmo
modo pretende-se incitá-lo a agir de uma
A enunciação é este colocar em
certa maneira se se recorre a um
funcionamento a língua por um ato
imperativo,etc.( DUCROT. 1978, p. 163).
individual de utilização.” [...] “É preciso ter
cuidado com a condição específica da
É justamente esse obrigar a adotar um enunciação: é o ato mesmo de produzir um
comportamento o que verificaremos ao longo enunciado, e não o texto do enunciado, que é
da análise: o que a fala faz, qual é seu poder de nosso objeto. Este ato é o fato do locutor
ação quando proferida em formas que mobiliza a língua por sua conta. A
interrogativas, imperativas, exclamativas...? relação do locutor com a língua determina
Quais efeitos ela produz no alocutário? No os caracteres linguísticos da enunciação.”
cartaz abaixo, como nos demais que serão “Enquanto realização individual, “a
analisados, vemos mais do que um convite à enunciação pode se definir, em relação à
língua, como um processo de apropriação”.
ação, vemos uma convocação. Numa
O locutor se apropria do aparelho formal da
verossimilhança com a página de um
língua e enuncia sua posição de locutor por
computador quando este apresenta erro no meio de índices específicos, de um lado, e
sistema, o cartaz incita a que todos vejam os por meio de procedimentos acessórios, de
erros no e do Brasil e convoca a quem lê para outro. (BENVENISTE.1989, p.82-85)
formatar o país. O emprego do verbo
“formatar” não ocorreu com o significado Figura 2 – Brasil nossa casa
convencional de dar novo formato a alguma
coisa, mas passou a ter um novo significado
específico para o contexto que é o de se
reformar, reconstruir o país. Interessante
verificar que no cartaz não há opção de
resposta (sim/não) como há numa página com
erro no sistema do computador quando você
pode adiar a resolução daquele problema para
um momento mais oportuno. No cartaz do
manifestante é como se não houvesse outro http://clamordauniversal.com/2013/06/os-50-
melhores-cartazes-das-manifestacoes-pelo-
momento oportuno, a “formatação” faz-se
brasil/
necessária no momento da enunciação.
Figura 1 - Erro no sistema O interdiscurso é todo o conjunto de
formulações feitas e já esquecidas que
determina o que dizemos. Para que minhas
palavras tenham sentido é preciso que elas
já façam sentido. E isso é efeito do
interdiscurso, é preciso que o que já foi dito
por um sujeito específico, em um momento
http://clamordauniversal.com/2013/06/os-50- particular se apague na memória para que,
melhores-cartazes-das-manifestacoes-pelo- passando para o “anonimato”, possa fazer
brasil/

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

525
sentido em minhas palavras. (ORLANDI, Figura 3 – Segurança
2001, p.33-34).

É sob a luz desse excerto que,


verificamos no cartaz acima, o apagamento de
um discurso reconhecidamente instituído no
mundo musical infantil, para o surgimento de
um novo discurso. Tem-se, então que,
anonimamente, o texto musical foi revestido de
novo sentido ao ser abordado, em seus versos
parafraseados, uma versão crítica de um http://clamordauniversal.com/2013/06/os-50-
melhores-cartazes-das-manifestacoes-pelo-
assunto tão sério que é a possibilidade de
brasil/
enxergar o Brasil como um país sem escolas, ou
seja, sem Educação. Da mesma forma que se Nesse cartaz, a incoerência entre o
registra o pouco investimento na Educação, em discurso emergente e o que lhe deu origem salta
contraposição aos altos investimentos na aos olhos de tal maneira que causa certa
reconstrução de estádios, a crítica se evidencia indignação à medida que provoca uma reflexão
também no verso que enfatiza a repressão sobre a situação real e antagônica entre o que
policial aos que tentam manifestar sua opinião diz a lei e o que se vê nas ruas. O uso do cinto
sob a forma de como veem a realidade. Neste de segurança é obrigatório no país desde,
interdiscurso, a casa passa a ser o país; o teto aproximadamente, 1997. O não uso gera multa
passa a ser escola; a expressão “não tinha nada” e perda de pontos na carteira para os infratores,
passa a ser “só tinha estádio”, o verso “ninguém tendo em vista que muitos testes afirmam que o
podia entrar nela não” transformou-se em uso do cinto de segurança diminui
“ninguém podia protestar não” e por fim o consideravelmente o risco de morte no trânsito.
verso “porque na casa não tinha chão” fechou No entanto, o que se vê no transporte coletivo
com a máxima “porque a PM sentava a mão”. é um amontoado de gente, de pé e se apoiando
Existe, pois o “ancoramento” de um texto em um no outro, desprovido de qualquer tipo de
outro texto, mas que transparece grande segurança. Será que um ônibus cuja função é de
oposição significativa que tem como base a transportar um número maior de pessoas não
exploração de rimas ou a proximidade sonora deve se encaixar nas mesmas regras estipuladas
de palavras distintas na discursividade para carros particulares? Será menos perigoso
desenvolvida. viajar em transporte coletivo a ponto de se
dispensar o uso do cinto de segurança? O
quadro caótico de insegurança no transporte
público foi o que permitiu a formulação do
cartaz, como também, a exigência de que a lei
seja aplicada a todos. O discurso revelado no
enunciado emergente não surgiu do nada ou de
um insight estéril; nasceu de um determinado
discurso efetivado na sociedade, do qual muitos

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526
outros devam, ou podem se originar em muitas personagem televisivo Chapolin Colorado “não
outras circunstâncias. Isso se faz quando o contavam com minha astúcia” que era sempre
indivíduo se apropria do uso da língua deixando usado quando ele ou alguém estava em algum
fluir sua fala que é a própria constituição da apuro e encontrava logo uma saída para o
enunciação. problema. Assim atualizado, o jargão passa a
fazer novo sentido quando aplicado em função
O ato individual de apropriação da língua das manifestações. É como se os manifestantes
introduz aquele que fala em sua fala... Este estivessem mandando um recado aos
é um dado constitutivo da enunciação. A governantes “vocês não esperavam por isso!”
presença do locutor em sua enunciação faz
“vocês não contavam com nossa astúcia”. O
com que cada instância de discurso
discurso que antes tinha um caráter meramente
constitua um centro de referência interno.
(BENVENISTE. 1989, p. 84) divertido, engraçado, irônico passa a ter novo
caráter crítico, sarcástico e provocativo com o
objetivo de encontrar uma resposta positiva às
Figura 4 – Povo astuto
insatisfações da população. O discurso também
revela que as manifestações não eram
esperadas, pegando os governantes de surpresa.
Desde as “Diretas Já!”, não víamos as pessoas,
de fato, tomando uma atitude, saído às ruas e
exigindo não só melhorias para seu país, mas
respostas às questões comuns, como “por que
há tanta corrupção?”. Os lideres e demais
autoridades do país governavam um Brasil
pacato com aquele “povo pacífico” e não
http://clamordauniversal.com/2013/06/os-50-
melhores-cartazes-das-manifestacoes-pelo-
esperavam que esse sentimento de insatisfação
brasil/ fosse tomar os rumos que tomou.
Segundo Benveniste “o homem não Figura 5 – Padrão FIFA
dispõe de nenhum outro meio de viver o
“agora” e de torná-lo atual senão realizando-o
pela inserção do discurso no mundo” (1989, p.
85). As manifestações que ocorreram em todo
país fez cumprir bem este papel de instaurar o
tempo linguístico de atuação do homem como
ser discursivo no mundo. Essa atuação do
homem, que se traduz no único meio de viver o
agora é a própria emergência da enunciação
que, por sua vez, se perpetua, se assim se pode
http://clamordauniversal.com/2013/06/os-50-
dizer, ou se repercute por meio dos enunciados. melhores-cartazes-das-manifestacoes-pelo-
Nesse sentido, é interessante perceber a brasil/
atualização discursiva traduzida no jargão do

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527
Por trás da capacidade que o discurso tem Todo discurso é dirigido para uma resposta
de por em cena outras vozes que não a de e não pode escapar à influência profunda do
sua enunciação – o que se relaciona com a discurso réplica previsto. [...] O locutor
representação do discurso outro, quer esta procura orientar seu discurso [...] para a
seja explícita ou dada implicitamente a perspectiva daquele que compreende, e
reconhecer – há a reconhecer a incapacidade entrar em relações dialógicas com alguns de
para o discurso de não trazer nele, fora de seus aspectos. Ele se introduz na
toda intenção ou consciência de fazê-lo, do perspectiva estrangeira de seu interlocutor,
outro discursivo. (REVUZ, 2011, p.8) constrói seu enunciado em um território
estrangeiro, sobre o fundo perceptivo de seu
Mais uma vez a teoria se confirma na interlocutor (BAKHTIN, 1978, p. 103-105).
análise do cartaz acima. Um possível discurso
“original” ou gerador do cartaz pode No cartaz a seguir, vemos o veemente
determinar ou evidenciar a exigência da FIFA- endereçamento do discurso atualizado aos
(Federação Internacional de Associações de governantes brasileiros. De um discurso
Futebol) com o padrão de excelência para todos primeiro, xucro e desnecessário, com palavrões
os quesitos necessários às boas partidas sendo usados corriqueiramente por muitos,
futebolísticas. Para se alcançar tais padrões, são quando insatisfeitos com alguma situação de
determinados prazos de cumprimento que caso negação ao atendimento de seus desejos ou
sejam desrespeitados, desqualificam o candidato pedidos tem-se o aparecimento de uma nova
a sediar o evento esportivo. Deixando emergir abordagem, precisa e objetiva, com teor
outras vozes dessa cena enunciativa, surge o imperativo e provocativo que transfigura na
dizer “Queremos hospitais padrão FIFA” necessidade urgente de investimentos no SUS
explicitamente usufruindo do dizer primeiro (Sistema Único de Saúde). A proximidade
para exigência de uma saúde de qualidade. O sonora entre o palavrão usado como pano de
que se revela neste pedido expresso no cartaz é fundo do discurso emergente e a sigla SUS que
que os padrões de exigência para a construção emerge no novo discurso é que propicia a
de hospitais, ou não existem, ou não são observação do próprio interdiscurso. É
considerados pelos governantes. Revela-se interessante como todo contexto semiótico que
também que as pessoas reconhecem as compõe o cartaz (a postura da moça, assentada
exigências da FIFA como sendo ideais para como se estivesse cansada, o nariz de palhaço
atender as necessidades da Saúde no Brasil. mostrando como se sente, as mãos postas como
Que o padrão FIFA é tão bom que deve ser se pedindo piedade e o dizer no cartaz) parece
adotado em outras áreas mais essenciais de exigir uma resposta imediata dos responsáveis
atendimento à população. Outra leitura possível pela Saúde no país. Vale lembrar que os R$0,20
é verificar um grau de ironia quando se constata fazem referência aos R$0,20 do aumento no
que os hospitais são de péssima qualidade e que transporte público que deu origem a toda
para com eles não se tem o mesmo olhar manifestação.
“generoso” que é destinado aos estádios.

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528
Figura 6 - SUS
BAKHTIN, M.(VOLOSHINOV). Marxismo e
filosofia da linguagem. Ed. 5, São Paulo:
Hucitec, 1992. p. 110-127.
BENVENISTE, E. O Aparelho formal da
enunciação. In: Problemas de Linguística Geral
II. São Paulo: Pontes, 1989:, p. 81-90.
DUCROT, O. Esboço de uma teoria
polifônica da enunciação. O dizer e o dito.
Campinas: Pontes, 1978, p. 161-218.

http://clamordauniversal.com/2013/06/os-50-
NICOLAU RUIZ, H. Música "Vem pra rua".
melhores-cartazes-das-manifestacoes-pelo- YouTube, publicado em 16-05-2013> Acesso
brasil/ em: 5 de julho de 2013.Disponível em:
<http://www.youtube.com/watch?feature=playe
Considerações Finais
r_embedded&v=SxMIwZZPlcM>
De maneira bem objetiva, este trabalho
ORLANDI, E. P. Análise do Discurso:
tentou evidenciar traços concernentes às teorias
princípios e procedimentos. Campinas: Pontes.
enunciativas em cotejo com as ocorrências nas
2001.
instâncias enunciativas deflagradas durante as
manifestações por mudanças sociais e políticas,
no Brasil, ocorridas em meados de 2013.
Seguindo as marcas enunciativas evidenciadas
nos enunciados foi possível confirmar que
nenhum discurso é criação de seu autor ou
locutor; em algum momento ele foi de outro
alguém do qual herdamos despretensiosamente
efeitos de sua fala sobre nossa memória e que
em situação oportuna vem à tona num discurso
próprio e aparentemente autoral.

Referências
AUTHIER-REVUZ, J. Alteridade, Dialogismo
e Polifonia-Dizer ao outro no já-
dito:interferências de alteridades – interlocutiva
e interdiscursiva – no coração do dizer. Revista
Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 46, n. 1, p. 6-
20, jan./mar. 2011.

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529
UMA LEITURA DISCURSIVA SOBRE OS MODOS DE
FUNCIONAMENTO DO SILÊNCIO NO LIVRO DIDÁTICO DE
LÍNGUA PORTUGUESA

Flágila MARINHO; Palmira HEINE


Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS)
flagila.eneb@gmail.com; pavibheine@gmail.com

Resumo: O presente trabalho busca refletir sobre o funcionamento do silêncio


constitutivo no Livro Didático de Língua Portuguesa. Para tanto, realizamos a análise de
dois módulos do livro. Embasado nos postulados da Análise de Discurso Pecheutiana,
sobretudo, na teoria do silêncio proposta por Orlandi (2007) procuramos discutir o modo
como o silêncio constitutivo demonstra posturas ideológicas por meio de filiações
discursivas. A metodologia deste trabalho está pautada nos pressupostos da Análise de
discurso, seguindo as etapas da superfície lingüística para o objeto discurso e, por fim,
para o processo discursivo. Os resultados apontam que o silêncio constitutivo é fonte de
filiações discursivas e ideológicas no que concerne à representação do negro, do branco
e do índio, sendo estes, discursivizados numa ideologia dominante de que o índio é o
“bom selvagem”; o negro é folclorizado; e o branco sempre ligado ao trabalho.
Palavras-chave: análise de discurso; leitura; silêncio; sentido; livro didático.

Introdução A leitura é, sem dúvida, um meio pelo


qual nos constituímos enquanto sujeitos. É o
O trabalho ora apresentado faz uma
espaço que temos de nos subjetivar, atribuindo
leitura discursiva sobre os modos de
sentidos a tudo e a todos. Como sujeitos sócio-
funcionamento do silêncio no Livro Didático de
históricos, somos convocados a interpretar
Língua Portuguesa (LD) de6º e 9º anos. O
continuamente e de variadas formas. A leitura
objetivo do mesmo é analisar o modo como o
está em tudo: nos textos verbais, não verbais,
silêncio sustenta a produção de sentido na
nos sons, nas cores, nos gestos, no silêncio,
leitura discursiva
atribuímos sentidos a tudo porque somos

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530
sujeitos simbólicos e não podemos nos furtar a significante e evidencia posturas ideológicas
sempre gerar sentidos (ORLANDI, 2012d). com as quais o LD se filia.
Para este trabalho realizamos uma 2. Abordagem teórica e metodológica
análise de como o silêncio constitutivo funciona É corriqueiro pensar o silêncio, inclusive
no LD a partir da observação de um módulo do no senso comum, como o nada, a passividade, o
livro. Gostaríamos de ressaltar que este trabalho lugar do vazio ou a simples ausência de sons.
faz parte de um estudo maior que faz uma Se o sujeito mantem-se em silêncio é como se
análise de outras formas de funcionamento do
ele deixasse de produzir sentidos, ocupasse uma
silêncio, como o fundador e o local posição vazia desprovida de simbolismo. Na
(ORLDANDI, 2007), todavia para este trabalho análise de discurso, este fato é reconfigurado e
focaremos no funcionamento do silêncio o silêncio não é o nada, mas é, ao contrário,
constitutivo. fonte inesgotável de sentidos. O silêncio
Para o trabalho com o silêncio significa e o fato de estarmos em silêncio não
constitutivo, nos pautamos no fato de que mais quer dizer que não estejamos produzindo
do que ensinar leituras e trabalhar com sentidos, uma vez que na AD o sujeito nunca
atividades de interpretação, o livro é um veículo deixa de produzir sentidos, ainda que esteja em
difusor de discursos, discursos que podem ser silêncio, como diz Orlandi (2007, p. 11), “há
afirmados e reafirmados em diversas práticas um modo de estar em silêncio que corresponde
sociais. Assim, como nos demais estudos sobre a um modo de estar no sentido”.
o silêncio, neste trabalho, ancoramo-nos na
O silêncio é a condição básica para
teoria do silêncio proposta por Orlandi (2007), constituição de sentidos. Há sempre silêncio nas
a fim de verificar o modo como o silêncio
palavras, e este não é o nada, mas, matéria
constitutivo pode ser percebido nesses manuais, significante, aliás, só há palavras porque há
por meio da observação de temas, da capa, dos silêncio. Os múltiplos sentidos que permeiam o
textos, entendendo o silêncio constitutivo como silêncio não são interpretáveis, não podemos
aquele que para dizer é preciso não dizer. Isso
interpretar o silêncio por meio de marcas
implica pensar que nunca falamos tudo; a formais na estrutura do texto, em verdade, ele é
linguagem é por natureza incompleta e o que compreensível e o modo como procuramos
fazemos são recortes, são gestos de leitura. Tão compreender o seu funcionamento acontece por
logo, quando atribuímos sentidos, sempre o meio de pistas, traços discursivos que nos
fazemos de um dado lugar, de uma posição indica que este silêncio significa de tal forma,
dada, o que implica pensar que sempre como assevera Orlandi (2007, p. 46): “É por
silenciamos outros sentidos. Assim, quando o meio de fissura, rupturas, falhas, que ele se
LD escolhe falar da miscigenação do Brasil mostra fugazmente”.
desta ou daquela maneira está silenciando
outras formas de representação e esse silêncio é Para ilustrar, vejamos o esquema
abaixo:

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531
Esquema 1: As formas do silêncio nunca se diz, todos esses modos de existir dos
sentidos e do silêncio nos levam a colocar que o
silêncio é ‘fundante’.” (ORLANDI, 2007, p.
14). Fundante porque é matéria significante e,
como somos sujeitos eminentemente
simbólicos, com ou sem palavras, estamos
condenados a interpretar. Ele funda sentidos,
sempre.
O silêncio local consiste no que é
proibido; é a chamada censura, o que é
impedido de dizer em determinada conjuntura.
Isso não implica pensar que o sujeito tenha
Elaboração: Flágila Marinho da Silva, 2014 consciência desse silenciamento, pois, em se
O silêncio fundador é aquele que existe tratando de uma sociedade hierarquizada, em
nas palavras e, também, as atravessa. É o que as relações de poder atravessam as relações
silêncio necessário, pois, na (ilusão da) sua sociais, esse silenciamento é uma construção
ausência, o discurso ficaria inteligível, já que histórica e constitui as posições dos sujeitos,
não é possível se dizer tudo. Como bem cita interpelando-os ideologicamente. Dessa forma,
Orlandi (2007 p. 69): “[...] a busca da o sujeito enquanto sócio-histórico-
completude da linguagem - o que implica na ideologicamente marcado sofre, ainda que não
ausência do silêncio – leva a falta de sentido tenha consciência, suas limitações discursivas
pelo muito cheio”. Dessa forma, o silêncio é em determinadas posições sociais. O silêncio
essencial para que as palavras possam fazer local trabalha com a interdição, mas, não
sentido, é essa relação com a incompletude da significa dizer que o sentido silenciado em um
linguagem que permite o silêncio significa determinado local não possa surgir em outras
sempre e de variadas formas. Não existem, condições de produção. E quando falamos em
portanto, palavras sem silêncio, o sujeito censura estamos pensando nesta enquanto
precisa de silêncio para que seu discurso seja materialidade discursiva, que implica considerar
compreensível. o linguístico e o histórico.

Esse modo de conceber o silêncio não Em relação ao silêncio constitutivo,


leva o sujeito para o nada, nem o deixa à podemos dizer que este é da ordem da geração
margem do processo de interpretação, mas traz dos sentidos, pois, ao apropriar-se de
o silêncio como sendo fundante: “Silêncio que determinadas palavras, apagam-se outras que
atravessa as palavras, que existe entre elas, ou poderiam gerar sentidos em outra direção,
que indica que o sentido pode sempre ser outro, fazendo evocar outras significações. É a
ou ainda que aquilo que é mais importante necessidade de dizer algo para evitar outros
dizeres e, assim, ofuscar a constituição de

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532
outros sentidos advindos de outras formações discurso lida com o seu corpus. Sendo assim,
discursivas e não desejados (é preciso se dizer vejamos agora, três momentos importantes na
‘x’ para não deixar dizer ‘y’). análise do corpus e que mostram bem o
caminho metodológico do analista do discurso.
Quando se enuncia de um dado lugar,
Tais etapas são possíveis de serem trilhadas ao
filiado a uma formação discursiva, regulada por
se utilizar desse arcabouço
uma formação ideológica, elegemos
teórico/metodológico da AD. O primeiro
determinadas palavras e com isso, silenciamos
momento consiste em passar de uma superfície
tantas outras que podem ser resgatadas por
linguística para chegar ao segundo momento
outros sujeitos em outras posições discursivas.
caracterizado como objeto discursivo e, por
Esse espaço do silêncio é de igual modo
fim, ao terceiro momento com a chegada ao
relevante para perceber a maneira como o
processo discursivo.
sujeito se inscreve no processo da
discursividade, suas redes de significâncias e a A título de ilustração, vejamos o
relação que este faz da língua com a história. O esquema abaixo:
silêncio constitutivo demostra como os sentidos Esquema 2: Etapas da metodologia em AD
são gerados a partir da inserção do sujeito em
suas formações discursivas. No livro que
analisamos, encontramos o silêncio constitutivo
funcionando nos módulos e com isso nos foi
permitido perceber a maneira como o LD se
filiou nas suas formações discursivas e Elaboração: Flágila Marinho da Silva Lima,
ideológicas para discursivizar a miscigenação 2014
do Brasil, uma vez que, ao dizer, o LD Como explicitado no esquema acima, o
silenciou outros dizeres, outro modo de dizer, e analista deve, diante da superfície linguística, ou
isso constitui sentidos. O silêncio constitutivo seja, o seu corpus bruto, procurar romper com
funcionou como indicador de filiações as evidências dos sentidos, como diz Orlandi
ideológicas por parte do LD. (2012a) é a “de-superficialização” para
Procuramos, aqui, discutir um pouco perceber a materialidade linguística e indagar-
sobre a noção de silêncio trazida pela se: onde se diz, porque se diz. Ainda segundo a
perspectiva discursiva, buscando mostrar o autora, nesse primeiro momento, procura-se dar
modo como o silêncio pode agir em diferentes conta do esquecimento nº 2 da ordem da
situações, no nosso caso, diferentes situações enunciação que traz a impressão de que o que
dentro do Livro Didático de Língua foi dito só poderia ser realizado daquela
Portuguesa. maneira. É preciso levar em consideração tudo
que está ali marcado na superfície discursiva e,
Em relação à metodologia nos pautamos por meio de pistas no fio do discurso, o sujeito,
também na maneira peculiar que a Análise de desnaturalizando o sentido, procura chegar ao

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533
segundo momento da análise – o objeto
3. O Silêncio constitutivo no Livro Didático:
discursivo.
para dizer é preciso não dizer
O segundo momento busca transformar
Vejamos, então, por meio dos exemplos
essa superfície linguística em objeto discursivo,
que colocamos a seguir como o silêncio
procurando as suas relações com a ou as
constitui sentidos nos módulos do LD ora
formações discursivas. Nesta ocasião, vale
analisado. Comecemos, então, pela capa do
refletir sobre o que se diz e o que não se diz, o
módulo do 6º ano.
que é dito neste discurso e em outros discursos
em outras conjunturas. Supera-se o Figura 01: Capa do módulo, 6º ano
esquecimento nº2 para dar lugar ao
esquecimento nº1 e mostrar a relação do sujeito
com os já ditos. Lembremos que esse objeto
discursivo não é dado, tal como foi a superfície
linguística, há um trabalho de interpretação.
Pois, a superfície já foi trabalhada,
desnaturalizada, esse caminho agora é o que
permite ao analista começar a compreender o
modo de funcionamento dos discursos. É nesse
trabalho que o analista começa a configurar seu
corpus, inclusive, por meio de recortes, estes
não entendidos como sequências discursivas
isoladas, mas como um lugar onde existe um
modo de funcionar do discurso e que pode ser
explorado. Consoante a Orlandi (1996), o
recorte é uma unidade discursiva, um elemento Fonte: Livro didático de Língua Portuguesa,
correlacionado de linguagem e situação. Coleção Diálogo 6º ano, p. 151

No terceiro momento, o analista Neste módulo, o livro procura trabalhar


procura relacionar as formações discursivas com a temática natureza. E, portanto, todos os
com a ideologia, buscando uma compreensão textos giram em torno dessa discussão. Como
mais ampla do processo de geração dos podemos perceber, a capa traz como tema
sentidos, para isso, ele busca as formações central “O papel de cada um”, certamente para
ideológicas, pois estas são as responsáveis pela se referir ao papel que cada um tem no que
constituição dos sentidos e dos sujeitos. Com concerne ao cuidado e à preservação da
isso, o analista chega ao processo discursivo natureza, tal discurso dialoga com gestos do
caracterizado como o mecanismo que permite interdiscurso (conjunto de já-ditos) como: cada
compreender o funcionamento da linguagem. um faz sua parte, todos somos responsáveis
pelo meio ambiente, é preciso cuidar da

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534
natureza, natureza é vida, dentre outros. Ainda escolhe o índio e não o branco ou o negro, isso
de acordo com o enunciado “O papel de cada constrói determinado efeito de sentido. É o
um”, é possível gerar um efeito de sentido de silêncio significando. Deste modo, temos a
que “cada um” refere-se a cada um que figura do negro e do branco silenciada na
constitui a sociedade brasileira e na discursividade da capa do módulo, o que gera
discursividade da capa esse “um” escolhido um efeito de sentido de que só o índio tem
para representar o cuidado e a preservação foi o consciência ambiental. Silenciando assim, que
índio. outros povos podem ter esse mesmo cuidado,
amor e valor para com as causas ambientais.
Há, pois, uma busca pela representação
da natureza, do natural, com isso, é possível ver Assim, outro silêncio constitutivo é o
um animal (urso), um pássaro (arara), parte de fato de o LD representar o índio de
um peixe, e de perfil a figura do índio. Este determinado modo e não de outro, destarte, ao
aparece com a fisionomia séria e com o rosto atrelá-lo, somente, à natureza, silencia, também,
voltado para os animais como se assim os o fato de que os índios já estão inseridos na
apreciasse. Diante dessa materialidade, sociedade, frequentando escolas e ocupando
podemos gerar alguns efeitos de sentido, como: espaços públicos, não sendo apenas aqueles que
o fato de o livro conceber o índio como parte ficam alocados em suas tribos e distanciados da
da natureza ou o índio como aquele que sociedade urbana.
preserva e cuida da natureza, isso porque é Como os sentidos não são retirados do
possível observar um globo na sua cabeça e nada, nem surgem do vazio, mas, se constituem
como, em AD, nada é por acaso e os discursos sócio-histórico e ideologicamente, e segundo
não são neutros e nem ingênuos, podemos Orlandi (2012a) a língua para significar se
inferir que este globo, representando o planeta inscreve na história, os discursos que atrelam o
terra, pode estar ligado ao já dito “ter índio ao natural, não acontecem de forma
consciência”, ou seja, o índio como aquele que aleatória, mas fazem parte de uma memória
tem consciência do valor que a natureza tem coletiva que tem um certo modo de conceber,
para a preservação da vida no planeta terra. ou seja, faz uma imagem do que é ser índio em
É importante notar que, na AD, sempre nossa sociedade. De acordo com Pêcheux
se enuncia de um dado lugar, em uma (2010 [1969]), o que funciona nos processos
determinada posição-sujeito, ao dizer algo discursivos é uma série de formações
outros ditos são silenciados, e esses não-ditos imaginárias e estas formações imaginárias estão
significam na sua forma, ou seja, no silêncio, diretamente ligadas às formações ideológicas,
pois segundo Orlandi (2007), há um modo assim, a imagem que fazemos do que é ser índio
peculiar de significar com silêncios que não é, pois, uma filiação ideológica. Não podemos
pode ser entendido da mesma forma de esquecer que o silêncio é significância, logo, o
significar com palavras. Assim, quando o LD, silêncio constitutivo é um meio pelo qual
ao buscar trabalhar com a temática natureza,

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podemos perceber as manifestações ideológicas essa miscigenação de raças que constituem a
nos discursos. sociedade pós-moderna do país. Pois bem, há
nessa discursividade o silêncio constitutivo do
Há o silêncio constitutivo também no
índio, silenciando o fato de o índio também faz
fato de o LD silenciar o branco e o negro no
parte do Brasil e da sociedade brasileira.
que diz respeito aos cuidados com a natureza.
Isso acontece no decorrer do módulo e não Vejamos, agora, a capa do módulo 3 do
exclusivamente na capa, visto que o módulo livro do 9º ano.
elege dois textos tidos como centrais para Figura 03: capa do módulo do 9º ano
desenvolver seu trabalho com a linguagem e
proporcionar reflexões acerca do tema.
Todavia, nenhum desses textos faz menção ao
papel do negro ou do branco como aqueles que
também devem ser os responsáveis pelos
cuidados com o meio ambiente.
Vejamos um fragmento de um dos
textos pertencentes, ainda, ao módulo do 6º
ano. O texto começa lembrando como era o
país antes da chegada dos europeus e que, a
partir dessa chegada o europeu tem deixado o
Brasil cada vez mais feio. O LD marca sua
posição discursiva quando diz: “a verdade, é
que nós, brasileiros, não tratamos bem da nossa
morada”, como podemos perceber na passagem
a seguir:
Figura 02: parte do texto “Brasil”
Fonte: Livro didático de Língua Portuguesa,
Coleção Diálogo 9º ano, p. 99
Refletindo sobe o enunciado: “As mil
Fonte: Livro didático de Língua Portuguesa,
faces do Brasil” (tema) podemos apreender que
Coleção Diálogo 6º ano, p. 151 esse promove uma memória discursiva de que,
apesar da base formativa do Brasil ter sido:
De acordo com essa passagem notamos índios, africanos e portugueses, outros povos
que o “nós, brasileiros” certamente não inclui o também fizeram parte desse processo de
índio, mas os demais que “fazem” parte da formação do país, inclusive, diversos imigrantes
sociedade e se constituíram como brasileiros. que por aqui passaram e tantos outros que aqui
Nesse caso encontramos aí, ainda que de forma
implícita, menção ao branco, aos negros e a

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536
inocente e nem natural, por isso lugar
ficaram. Todos, excepcionalmente, deixaram privilegiado de manifestação da ideologia
sua contribuição na formação cultural do Brasil. (BRANDÃO, 2012, p. 11).
No entanto, o LD elege a tríade base da
formação do Brasil para representar esse Como a língua não é inocente e o sujeito
processo histórico, isto é, o índio, o branco e o é sempre interpelado por ideologias, podemos,
negro. As imagens que compõem a abertura do por meio do aporte teórico metodológico da
módulo foram distribuídas de forma a resgatar AD, perceber modos de funcionamento desses
essa memória discursiva e histórica que ancora discursos. Nesse sentido cabe perguntarmos,
a ideia da formação do Brasil. É sabido que na então, porque o índio e o negro estão à
AD tudo é sentido e que diante de qualquer margem? Há, sem dúvida, o funcionamento de
objeto simbólico somos chamados a interpretar uma dada ideologia: a de que o homem branco
(Orlandi, 2012d), sendo assim, essas imagens europeu representou o verdadeiro avanço da
que estão próximas ao índio, ao negro e ao construção do Brasil. O europeu é superior aos
europeu não estão ai por acaso, mas nos outros povos representados na capa da unidade.
mostram uma maneira de funcionamento dos
discursos. Notamos que próximo ao índio Neste módulo, interessa-nos apreender
existem alguns elementos da natureza como: os sentidos gerados por meio do silêncio
árvores, folhas e pássaros, atrelando-o a esse constitutivo. Sendo assim, percebemos que o
espaço natural. O negro aparece próximo a módulo silencia a importância histórica e social
algemas, cadeados, correntes e o seu rosto do negro para o Brasil, sobretudo, no que
marcado pela luminosidade dando um efeito e concerne ao trabalho, pois, apesar de o negro
sentido de vida sofrida, a luta e a dor da fazer parte dos elementos da capa do módulo, o
escravidão, retratados, inclusive, pelo seu olhar mesmo vem atrelado ao seu processo histórico
de lamúria. O imigrante surge ao centro e de escravidão, na capa ele aparece à margem,
próximo dele há um retrato de família dando um seu rosto é representado pela metade, gerando
efeito de sentido de saudade já que muitos um efeito de que mais do que o índio (que
deixavam suas famílias para vir ao Brasil, também aparece à margem) está o negro,
também há próximo a ele a imagem de uma afastado, excluído.
roda simbolizando o trabalho remunerado. Nesse módulo temos a seção “texto”
De acordo com Brandão: que elege dois textos para leitura e
interpretação, assim, o texto 1 traz como título:
A linguagem enquanto discurso não “Histórias de mãe e filho”, um conto que traz a
constitui um universo de signos que serve história da família de Raquel (uma imigrante) e
apenas como instrumento de comunicação mostra basicamente o percurso que esta família
ou suporte de pensamentos; a linguagem de imigrantes faz até se fixar na cidade São
enquanto discurso é interação, e um modo Paulo, no Brasil. O texto traz discursos
de produção social; ela não é neutra, oriundos das relações familiares, do amor, da

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537
importância da leitura e do trabalho. Já no texto
2 intitulado “As leituras indígenas” traz
novamente a temática do índio, a partir de um
depoimento do indigenista Orlando Villas Bôas,
que narra um pouco de sua convivência com os
indígenas durante a expedição Roncador-Xingu.
Desse modo, os textos foram
direcionados para duas culturas, quais sejam: a
do imigrante e a do indígena. Estes ocupam,
por assim dizer, as posições principais já que Fonte: Livro didático de Língua Portuguesa,
estão dentro da seção “Texto” direcionada para Coleção Diálogo 9º ano, p. 111
o trabalho de leitura e interpretação. Com isso,
Deste modo, ao buscar refletir sobre os
os demais textos, que também procuram
imigrantes e o seu papel na construção da
abordar a temática, ficam apenas a título de
sociedade brasileira, bem como a importância
“ilustração” para que as outras seções como:
da cultura indígena para a natureza, o LD
“trabalhando a gramática”, “trabalhando a
silencia o papel social da cultura africana, que
linguagem”, dentre outras, possam dar conta do
de igual modo foi e é importante para a
trabalho com a estrutura da língua, o que
formação histórica do Brasil. Há também o
explicita que a parte destinada para reflexão da
silêncio constitutivo do trabalho, ou seja, o
linguagem e dos discursos fica por conta da
negro não aparece atrelado ao trabalho, pois ao
seção “texto”.
vincular a religiosidade, silencia o fato de eles
Por conseguinte, temos o silêncio terem efetivamente contribuído com o trabalho
constitutivo da figura do negro que aparece no para a construção da sociedade brasileira e que
decorrer do módulo, apenas, na seção desde a constituição do país a cultura negra foi
“Trabalhando a gramática” com o texto o alicerce para o progresso, enquanto que o
“Guardiã do divino” focando a crença religiosa módulo traz a ideia do negro folclorizado,
e a simplicidade da cultura africana. Como como se a única contribuição que eles tivessem
podemos notar na imagem que segue. dado à sociedade fosse a religiosidade.
Figura 04: Texto “O guardiã do divino” Nos dois módulos analisados, notamos
uma regularidade no discurso do LD no que diz
respeito aos discursos que atrelam o negro, o
índio e o branco. Com isso, temos o silêncio
funcionando como constitutivo, no qual um
dizer apaga necessariamente outros dizeres e
isso gera sentidos, conforme Orlandi (2007). O
que implica pensar que no módulo há um

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silenciamento em relação à construção de ideologias, e como todo processo discursivo
discursiva do Brasil no que tange a sua advém de já ditos filiando-se em formações
miscigenação. Pois, seus discursos ajudam a discursivas, por meio de regionalizações no
corroborar com uma determinada forma de interdiscurso, não seria diferente com os
perceber esses sujeitos ocupando sempre os discursos veiculados pelo LD. Dessa forma, no
mesmos espaços dentro da sociedade; lugares que concerne ao silêncio constitutivo, notamos
cristalizados pelos discursos dominantes e que que o LD silencia determinados modos de
precisam ser problematizados. Assim, temos representar o índio, o negro, e o branco.
nesse LD: o negro discursivizado como aquele Assim, ao escolher discursivizar o índio
que é genuinamente sincrético, apegado à sempre atrelado as suas aldeias, continuamente
religiosidade; o índio é tido como o “bom preso à natureza, ele silencia o fato de o índio
selvagem” sem inserção social, apesar de outros se inserir em outros espaços, frequentando
conhecerem a sua cultura frequentando suas escolas e ocupando cada vez mais lugares
aldeias, esse não é discursivizado, por exemplo, dentro da sociedade, não sendo mais, somente,
na cidade, em outras posições, ocupado outros aquele que vive distanciado da vida urbana.
lugares; e o europeu tido como a referência de
trabalho e progresso para o Brasil. O negro, por sua vez, é discursivisado
atrelado ao sincretismo, à religiosidade, à
4. Considerações finais simplicidade, silenciando também este presente
em outras esferas da estrutura social. O negro é
O propósito é que com este trabalho
silenciado, inclusive, no trabalho, lugar este
possamos alargar ainda mais espaços para
ocupado pelo branco que surge ligado ao
debates e pesquisas que fomentem o viés da
progresso, ao desenvolvimento. Com isso, o
leitura discursiva em suas diversas
LD corrobora com os discursos dominantes que
materialidades e nos mais diversos sítios
apesar de falar da miscigenação brasileira, da
discursivos. Isto porque não objetivamos a
construção sócio-histórica do Brasil, acaba
exaustividade em relação ao objeto empírico,
colocando cada um em seus “devidos” lugares.
ele é fonte inesgotável. Afinal, o discurso é um
Não há uma problematização desses discursos,
processo continuum e o que realizamos são
ou contrário, encontramos uma reafirmação
apenas recortes e análises de estados diferentes
ainda que silenciada. Afinal, o silêncio não fala,
(ORLANDI, 2012a).
mas, significa.
No que diz respeito ao silêncio
funcionando no módulo, quando buscamos
trabalhar com o silêncio constitutivo
Referências
(ORLANDI, 2007) foi por entender que o LD
mais do que uma ferramenta pedagógica para BELTRÃO, E. L. S.; GORDILHO, T. C. S.
agenciar o labor com a leitura e aspectos Diálogo: língua portuguesa, 6º ano. Ed.
gramaticais é um lócus de discursos, é difusor renovada. São Paulo: FTD, 2009.

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539
______. Diálogo: língua portuguesa, 9º ano. ______. Análise automática do discurso (AAD-
Ed. renovada. São Paulo: FTD, 2009. 69). In: GADET, F.; HAK, T. (Org.). Por uma
análise automática do discurso: uma
BRANDÃO, H. H. N. Introdução à análise do
introdução à obra de Michel Pêcheux. Tradução
discurso. 3. ed. rev., Campinas, SP: Editora
de Eni P. Orlandi. 4. ed. Campinas - SP: Ed.
Unicamp, 2012.
UNICAMP, 2010. p. 59-158.
ORLANDI, E. P. A linguagem e o seu
PÊCHEUX, M.; FUCHS, C.A. A propósito da
funcionamento: as formas do discurso. 4ª ed, 3ª
análise automática do discurso: atualização e
reimpressão. Campinas: Pontes, 1996.
perspectiva. In: GADET, F.; HAK, T. (Org.).
______. (Org). A leitura e os leitores. 2ª.ed. Por uma análise automática do discurso: uma
Campinas, SP: Pontes, 2003. introdução à obra de Michel Pêcheux. Tradução
______. As formas do silêncio: no movimento de Péricles Cunha. 4. ed. Campinas - SP: Ed.
dos sentidos. 6ª ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2010. p. 159-250.
Unicamp, 2007.
______. Análise de discurso: princípios e
procedimentos. Campinas, SP: Pontes, 2012a.
______. Discurso e leitura. 9. ed. São Paulo:
Cortez, 2012b.
______. Discurso e texto. São Paulo: Pontes,
2012c.
______. Interpretação: autoria, leitura e efeitos
do trabalho simbólico. São Paulo: Pontes,
2012d.
PACÍFICO, S. M. R. Argumentação e autoria
nas redações de universitários: discurso e
silêncio. Curitiba: Appris, 2012.
PÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou
acontecimento. Tradução de Eni. P. Orlandi.
Campinas, SP: Ponte, 1990.
______. Semântica e discurso. Uma crítica à
afirmação do óbvio. Tradução Eni Pulcinelli
Orlandi [et al.] Campinas - SP: Editora da
Unicamp, 2009.

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ANÁLISE DO DISCURSO E AUDIOVISUAL:
MATERIALIDADES PLURAIS EM FUNCIONAMENTO

Welisson MARQUES
Instituto Federal do Triângulo Mineiro (IFTM); Universidade de São Paulo (USP)
welissonmarques@iftm.edu.br

Resumo: A proposta deste artigo é discorrer sobre a materialidade midiática no imo da


Análise do Discurso contemporânea. O referencial teórico fundamenta-se nos
pressupostos teóricos da AD francesa e da Semiologia histórica. Enfocamos as
substâncias sonoras e, no que tange ao visual, damos especial ênfase ao corpo e aos
objetos presentes nas materialidades. Analisamos como o sujeito enunciador, no discurso
publicitário-institucional, significa o aprendiz brasileiro de língua inglesa e aspectos
atinentes à aprendizagem dessa mesma língua. Destacamos, em nossas conclusões, a
relevância de se agregar os dispositivos de que tratam a semiologia, em especial no que
tange às substâncias da expressão, da voz e dos objetos constitutivos do audiovisual com,
obviamente, a linguagem verbal.
Palavras-chave: discurso publicitário; mídia; som; intersonoridade.

agregam. Sobre o artefato sonoro, enfocaremos


Introdução
as substâncias constitutivas do som. No que
Este artigo alvitra discorrer sobre a tange ao visual e suas diferentes formas de
materialidade midiática no imo da Análise do manifestação, damos especial ênfase ao corpo e
Discurso contemporânea, contemplando o aos objetos presentes nas materialidades,
funcionamento do audiovisual, mais elementos que, ao nosso entender, merecem
especificamente na veiculação do discurso considerável atenção. De tal sorte, analisamos
publicitário de cursos de idiomas (língua como o sujeito enunciador, no discurso
inglesa), difundido no Brasil entre 2010 e 2013. publicitário-institucional, significa o aprendiz
Sendo assim, nosso referencial teórico- brasileiro de língua inglesa e aspectos atinentes
metodológico fundamenta-se nos pressupostos à aprendizagem dessa mesma língua.
teóricos da Análise do Discurso de linha Denominamos discurso publicitário-
francesa e da Semiologia histórica em institucional aquele veiculado nos meios de
articulação com noções recorrentes nas obras comunicação (televisão e internet) com fins
de Michel Foucault. Além dessa proposta publicitários e endossado pelos institutos de
principal, outros objetivos específicos a ela se idiomas (de língua inglesa).

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541
câmeras digitais e vídeos, as imagens que mais
Ao final, apresentaremos nossas
se aproximavam da realidade eram aquelas que
considerações, as quais apontam para a
possuíam maior valor como obra artística.
relevância de se agregar os dispositivos de que
Somente após o surgimento das academias de
tratam a semiologia, em especial no que tange
arte, no século XVI, que se expandiram os
às substâncias da expressão, da voz e dos
estudos de técnicas mais acuradas para o
objetos constitutivos do audiovisual com,
tratamento das imagens, tais como os efeitos de
obviamente, a linguagem verbal.
cores e luz sobre as pinturas, e cujo resultado
1. Som no discurso audiovisual foi um maior ganho de expressividade nesses
Em A dimensão sonora da linguagem materiais.
audiovisual, Ángel Rodríguez (2006) declara É nesse ponto que se encontra um grande
que a linguagem audiovisual compreende o paradoxo da linguagem audiovisual, pois ao
conjunto de formas de organização artificial da mesmo tempo em que a percepção das
imagem e do som utilizados para transmitir mensagens artificiais busca se parecer com a
ideias ou conceitos, devendo se ajustar à percepção da própria realidade, aumentando,
capacidade humana de percebê-las ou nesse sentido, o potencial de compreensão por
interpretá-las. Configura-se em “um parte daqueles a quem a mensagem se destina,
emaranhado complexo no qual convergem a por outro, com o desenvolvimento de novas
música e a língua (tanto a oral como a escrita) tecnologias para manipulação do som e
com toda a cultura iconográfica, literária e imagem, torna-se possível a criação de
dramática da civilização atual” (RODRÍGUEZ, mensagens cada vez mais complexas e
2006, p. 28). Dentre suas características há o abstratas, cabendo àquele que enuncia adequar
fato de sempre existir uma vontade prévia, ou (simplificar) sua mensagem de forma que a
seja, do enunciador, em estimular em outrem mesma seja compreensível. Assim, desde sua
determinadas percepções ou ações. No caso do origem, a mensagem audiovisual deve se
discurso publicitário, o propósito derradeiro do adequar àquele a quem se destina, para não se
enunciador é seduzir o enunciatário a adquirir tornar incompreensível, assim como ocorre com
seu produto. os sons da linguagem humana, ou melhor, sua
Outra característica desta forma de linguagem articulada. Aliás, há uma enorme
linguagem é sua semelhança com a situação diferença entre, por um lado, a capacidade do
natural, isto é, sua capacidade de simulação (ou homem de produzir sons e ruídos, e por outro
dissimulação) do real. Ou seja, busca-se expor lado, sua fala articulada. Apesar de ambos se
uma ideia ou situação que seja a mais parecida materializarem por meio do som, seus efeitos
possível com a realidade (RODRÍGUEZ, são distintos. Nesse sentido, irrompe uma
2006). No entanto, essa busca em imitar o indagação: qual é, então, a definição de som?
ambiente por meios artificiais não é recente. 2. Conceito de som e a Noção de
Desde a época medieval, as imagens trabalhadas Intersonoridade
pelos pintores eram valorizadas pelos efeitos de
Som é uma vibração no ar, ou seja, é um
veracidade que portavam, isto é, antes do
fenômeno físico, material, e na transmissão
advento da fotografia e mais recentemente das
audiovisual geralmente acompanha as imagens e

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determina o ritmo da publicidade: “É o aprendidos pela observação natural dos
resultado da percepção auditiva de variações fenômenos, como o crepitar do fogo ou o
oscilantes de algum corpo físico, normalmente barulho de um motor, e outros que dependem
através do ar” (RODRÍGUEZ, 2006, p. 54). da aprendizagem como é o caso do domínio da
Serve, pois, para acrescentar-lhe (à fala de uma LE. Nesse sentido, em nossa mente
propaganda) efeitos que o enunciador deseja vão sendo depositadas e acumuladas diferentes
produzir, seja ora para preparar o enunciatário formas sonoras que, de um modo ou de outro,
para o que vem na sequência (por exemplo, orientam os modos de escutar e interpretar os
para antever o “clímax” da propaganda), ora sons nas diferentes situações discursivas em que
para produzir coesão ao visual, ora para eles se fizerem presentes. De tal sorte, em
reforçar o desfecho etc., enfim, funciona para tempos em que o audiovisual impera e
dar os nós necessários na tessitura do corrobora massivamente na construção de
comercial. Assim como as vírgulas, pontos e identidades, caberia não apenas ao analista de
reticências do texto escrito, determinados sons discursos, mas ao historiador, filósofo,
funcionam como pontuação no audiovisual. sociólogo ou antropólogo não desprezá-lo.
Outrossim, se há palavras que funcionam para
Além da voz (in)articulada emitida da
dar coesão às narrativas, determinadas garganta de um falante e dos efeitos sonoros
vibrações acústicas se servem à cadeia sonora produzidos em computador, há também
como forma de sintaxe. Indo além, as determinadas trilhas sonoras que, conforme
substâncias do som podem até funcionar como assinalamos, evocam memórias. Cabe ao
palavras. Nesse sentido, uma trilha sonora pode analista verificar o sujeito que é trazido na
trazer peso ou leveza, gerar expectativa ou
associação dessas materialidades em
ansiedade, produzir medo ou excitação. Do consonância com o visual que as acompanha. A
mesmo modo que há uma história das imagens, famosa trilha sonora do filme Psicose (1960) de
concebemos uma memória dos sons. A Alfred Hitchcock, por exemplo, parece
memória, neste sentido, não concerne apenas à funcionar não como um signo, nem na via
linguagem verbal ou às imagens, mas também saussuriana – em virtude de possuir
aos sons e objetos. Ou seja, no interior das materialidade e não ser linguístico, nem na via
diferentes vibrações sonoras que alcançam a barthesiana, pois mesmo desprovido de
escuta, sejam elas acompanhadas da voz arbitrariedade, e constituindo-se de
articulada ou inarticulada, ou mesmo delas artificialidade, parece faltar-lhe a codificação
desacompanhadas – visto que há outros sons (comum aos sistemas de significação).
que não são necessariamente produzidos pelo Funciona, sem dúvida, como um enunciado cuja
aparato vocal –, subjaz uma memória social, emergência só lhe permite significar a partir de
sendo que ao emergirem na enunciação só vínculos da ordem da historicidade. Como
podem produzir determinados sentidos em materialidade simbólica inscrita na história, sua
virtude dessa memória que retomam. aparição ocorre para apontar para algo que lhe
A percepção das formas sonoras é é exterior, ou seja, para algo que a sucede (a
geralmente cultural e o seu reconhecimento se porção acústica) na sequência do audiovisual. É
organiza em grandes sistemas, alguns o indício de um acontecimento trágico. De

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543
modo análogo, no filme Tubarão (1975) do consegue associar o ex-piloto de corridas
cineasta Steven Spielberg, o som artificial Ayrton Senna ao tema da vitória? Por sua
criado e reproduzido antes dos ataques indicia a repetição, em todas as suas conquistas, esta
iminência de uma fatalidade. vinheta faz rememorar elementos que
bordejaram sobre este período da história.
Pelo poder que tem de recontar a história,
Dessa forma, verifica-se a possibilidade da
e mesmo recriá-la, a mídia audiovisual permite
escuta evocar imagens do imaginário social.
também o acoplamento de relevantes
acontecimentos históricos com determinados Diante do empreendimento desses
sons. Em outros termos, consegue efetuar a exemplos e do corpus que reclama dispositivos
junção de porções sonoras com acontecimentos mais precisos, faz-se necessário formalizar um
históricos. O resultado é que ocorre uma conceito que se mostra essencial para a análise
espécie de simbiose entre materialidades e do audiovisual. Este não diz respeito apenas ao
acontecimentos históricos, produzindo fato de um som evocar outro ou de uma
sentidos. Por exemplo, após a exibição do filme melodia rememorar outra; contudo, sem
Titanic, ocorrida em 1997 (e desde então), é desconsiderar essas possibilidades, concerne
quase impossível não vincular o fatídico evento também ao fato de um som ou melodia evocar
de 1912 ao filme dirigido por James Cameron e, ideias, imagens e objetos, acontecimentos
quiçá, à canção My heart will go on de Céline descontínuos e dispersos inscritos na história.
Dion. Na via oposta, esta música, quando Trata-se da intersonoridade. No exemplo do
escutada, mesmo que uma simples porção, tema da vitória, em sua escuta ou na simples
parece ter se integrado a uma espécie de ação de “pensá-lo” abre-se todo um leque de
memória1, que além de evocar o filme e talvez o possibilidades e perfila-se, em sua saturação,
acontecimento específico, indicia outros uma série de projeções na imaginação: o piloto
elementos possibilitados pelo que a película Ayrton Senna, seu carro de Fórmula 1, suas
criou (por exemplo, o clima de romance que tal vitórias no pódio, as competições, sua morte
sonoridade desperta em virtude da relação dos em 1994 etc. Este som associa-se a
personagens interpretados por Leonardo materialidades fora dele e estabelece-se uma
DiCaprio e Kate Winslet, evoca também a rede de imagens que constituem domínio de
imagem, ou melhor, a cena memorável dos memória.
personagens na ponta do navio etc.). Em outras Assim, sobre a memória dos sons, não se
palavras, em seu ressurgimento, é o discurso trata apenas de criar um novo conceito para o
que se sustenta pelo interdiscurso (memória), campo da Análise do Discurso, mas de trazer à
isto é, essas relações são construídas e disciplina um dispositivo que lhe falta, que é, ao
possibilitadas pela difusão em massa de objetos
nosso entender, essencial, especialmente se se
(como os filmes) ou produtos (propagandas) considerar tanto a ampla dimensão de
via audiovisual e não se restringem às trilhas transmissões cujo suporte é audiovisual, bem
sonoras. Por exemplo, no Brasil, quem não como a relevância que a junção de imagens e
sons exerce atualmente na produção de
1
Como se trata de uma memória social e coletiva, é subjetividades. Ademais, como atesta
preciso pontuar que essas incidências não são iguais Rodríguez (2006, p. 278): “o áudio não atua em
para todos e nem em todos os indivíduos.

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restrita ao universo dos jogos e do
função da imagem e dependendo dela; atua treinamento militar. (HAGEMEYER, 2012,
como ela e ao mesmo tempo que ela; nossos p. 16-7)
ouvidos não dependem de forma alguma de
nossos olhos para processar informação; atuam
em sincronia e em coerência com eles”. A despeito da restrição colocada por
Acrescentaríamos à “sincronia” e “coerência” Hagemeyer, isto é, da simulação tridimensional,
pontuadas pelo autor, que o som pode atuar em a possibilidade de espectadores experimentarem
desconexão com a imagem, com o intuito de ambientes tridimensionais é hoje uma realidade
causar outros efeitos de sentido, negando-a ou incontornável. Esta constatação é pertinente,
ironizando-a, por exemplo. Portanto, se outrora até mesmo para a Análise do Discurso, uma vez
a análise de imagens era tecnicamente mais que os modos que as materialidades se
fácil, deixando o som à deriva de interpretação, apresentam aos enunciatários são indissociáveis
atualmente com o recrudescimento de novos e interferem, de algum modo, nos efeitos de
artefatos e técnicas, os quais resultam em maior sentidos daí derivados: “a significação, ou
facilidade para trabalhá-lo, não cabe mais melhor, as significações, histórica e socialmente
colocar o visual à frente do sonoro em diferenciadas de um texto, qualquer que ele
pesquisas que tomam o audiovisual como seja, não podem separar-se das modalidades
objeto analítico. materiais que o dão a ler aos seus leitores.”
(CHARTIER [1994] 1998, p. 105). Apesar de
Partindo do pressuposto que não se pode Chartier tratar especificamente do livro, é certo
priorizar uma modalidade em detrimento de que essa relação se estende também a outros
outra, analisamos, neste artigo, o discurso tipos de suporte.
publicitário audiovisual de cursos de idiomas,
contemplando os efeitos de sentido produzidos Para concluir este tópico, é pertinente
a partir de suportes cujas telas sejam reiterar também que antes mesmo de se realizar
bidimensionais. Não trataremos, portanto, de a análise sonora, a própria mobilização ou
sentidos outros que possam emanar desses escolha de um som em detrimento de outro é
discursos caso sua manifestação ocorra por indicativo das posições mantidas pelo sujeito e
meio de possibilidades tridimensionais, comuns reforçam os lugares ocupados e sustentados por
em muitos aparelhos televisores: aqueles que endossam sua produção e
veiculação. Assim, não há como lançar de
A tecnologia audiovisual avança, contudo, antemão uma lista exaustiva, por exemplo, de
para a superação da própria noção de tela, uma tipologia de substâncias sonoras (ou
com o desenvolvimento de tecnologias em mesmo de traços antropológicos, quando do
três dimensões que permitem experimentar visual), isto é, a priori, como se fosse possível
de forma mais abrangente a situação antever todas as categorizações. É preciso, no
simulada. [...] É perfeitamente possível que mínimo, que o analista se sirva de um
pessoas conectadas em diferentes lugares instrumental metodológico que lhe permita
‘entrem’ em um ambiente virtual e contemplar de modo pertinente senão os
interajam, como em sites de relacionamento, diferentes domínios dessas materialidades, ao
mas a ilusão da presença física em três
menos, evidenciar o conhecimento de sua
dimensões ainda é uma simulação muito
existência. Sua exclusão seria, então, um

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procedimento arbitrário. Seguindo nessa pose, denuncia a altivez daquele que exige a
perspectiva, avançaremos, no tópico seguinte, fala acurada. Não é o norte-americano que
para as análises do corpus. definitivamente o faz, mas é algo próprio do
sujeito historicamente-construído que enuncia.
3. Análises e discussão
Agregado a um ligeiro tom irônico da
A peça publicitária ora analisada foi materialidade vocal e à força imperativa do
veiculada por uma escola de inglês presencial e verbal, o lugar físico em que os corpos se
tem o mesmo formato de outras peças já situam, quer sejam o estrangeiro em uma
veiculadas pela escola, isto é, mais uma vez o plataforma elevada e o brasileiro em lugar mais
aprendiz brasileiro deve demonstrar que sabe baixo, mais abaixo também dos estrangeiros
falar, caso contrário precisa “encarar as que o observam – falantes nativos da língua
consequências”. Logo, na ausência de palavras inglesa, conduzem-nos à inevitável compre-
na boca dos personagens, a roleta é novamente ensão de que o aprendiz brasileiro mantém um
girada e o apresentador com sorriso largo e ar lugar inferior ao sujeito estadunidense. As
de satisfação anuncia a punição: “ataque de posições físicas certamente indicam relações de
tubarão”. poder entre os sujeitos, os quais são
Figura 1. Fale ou encare as consequências representados nos corpos dos atores.
Na sequência das imagens em
movimento, e utilizando-se de efeitos especiais,
surge um tubarão de dentro do chafariz que
vorazmente engole o personagem inculto. A
destituição do saber é colocada em evidência e
ganha realce diante do sarcasmo da punição
dada por aquele que ocupa, sob a ótica do
Ora, diferentemente de outras vias em que sujeito enunciador, a posição-sujeito de falante
os pormenores parecem não receber tanta nativo. Isso se dá no timbre que efetivamente
importância, na perspectiva discursivo- reveste a materialidade vocal, cuja textura
semiológica os pequenos traços no campo do áspera induz a imagem do sujeito acerbo trazido
olhar (e também no da escuta) também do interior de sua garganta. Ademais, é possível
produzem sentido. dar-lhe sentidos pelas substâncias da expressão
Figura 2. Ataque de tubarão
facial, tais como as sobrancelhas elevadas, a
abertura generosa da boca, a qual coloca os
incisivos e caninos à mostra, além do olhar, que
conforme assegura Barthes ([1962] 1990),
funciona como um indício representativo das
emoções do sujeito, e o qual exprime sua total
satisfação.
Além das substâncias da expressão e dos
Assim, a posição ereta do rosto objetos que concorrem na produção de
levemente inclinado para o alto, aliada a sua sentidos, conforme verificamos, há uma ampla

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mobilização de substâncias sonoras que animam – do aprendiz com a língua alvo (língua
e dão sentido ao discurso publicitário inglesa), o qual somente pode contemplar tal
audiovisual. É por meio do funcionamento da objeto, e dele discorrer, dentro dos limites do
intersonoridade que as formas sonoras seu próprio discurso. Em outros termos,
indiciam, corroboram ou mesmo produzem, ao parece-nos que o sujeito, ao significar o
alcançarem a escuta, sentidos determinados. aprendiz, nessa tensa relação com a língua e
com a aprendizagem, e no compósito do
Conforme se verifica, o sujeito
audiovisual, situa-o em determinados lugares
enunciador denuncia, expõe e ridiculariza
produzindo efeitos de verdade que contribuem
aquele que não consegue se comunicar. Assim,
para o reforço da subserviência, sendo da
as verdades construídas no interior dessas
ordem do dado o fato de que apenas o
materialidades ao tratar sobre as relações do
brasileiro deve ter a iniciativa de se comunicar.
brasileiro com a língua inglesa indicam que o
Pensamos, neste caso, em situações que
brasileiro deve e precisa falar muito bem. Falar
fugiriam da “realidade” desse discurso, como
no sentido de se comunicar com rapidez, uma
por exemplo, ainda na pior das hipóteses (i.e., o
vez que as questões colocadas pelo estrangeiro,
aprendiz não conseguindo ser bem-sucedido na
vendedor de cachorros-quentes, ganham
comunicação), não poderia o americano
existência empírica em velocidade bem além do
“humilhá-lo” ou adverti-lo falando um bom
normal.
português?
Se se pensar por outra via, todos os
Não tentamos estabelecer aqui uma
dispositivos do discurso (os objetos
ordem do que poderia ou deveria ser dito. Os
mobilizados, o palco, a roleta; os elementos
discursos, então materializados na propaganda e
verbais, as perguntas do “apresentador”, o
pertencentes a uma formação discursiva –
silêncio dos estudantes etc.) são preparados não
com a perspectiva de sucesso do aprendiz, mas como aquilo que define o que pode e deve ser
dito –, fixam seus próprios limites, suas
sim de seu fracasso. É “obvio” que a
possibilidades, evidenciam as relações de poder
propaganda caminha para a punição do
em jogo na prática discursiva. No interior do
aprendiz mal-sucedido e não para seu
discurso são criadas “leis”, “regras”, “estatutos”
coroamento, até porque o discurso também se
enquadra em uma perspectiva de que certamente determinam modos de ação dos
2 sujeitos em suas diversas práticas. Do lado
espetacularização midiático-publicitária . Essa
avesso do que não deve ser (daquilo que a peça
“obviedade” do discurso é alheia ao que Veyne,
publicitária demonstra como não ideal, como
na esteira de Foucault ([1969] 1995), elucida
não fazer), compreende-se o como deve ser-
acerca do sujeito historicamente construído em
fazer. As relações de poder constituem o
relação ao seu objeto, ou seja, – nesta pesquisa
discurso sobre a língua. Como produto
vendável, é também instrumento de poder e
2
serve-se a tais relações (de poder), as quais
O que se sustenta é que se os aprendizes estivessem
perpassam o corpo e a carne (FOUCAULT,
vinculados a esse curso, eles não estariam passando por
esse constrangimento. Em outros termos, é uma 2003, p. 151). A ausência da língua na boca do
estratégia persuasiva com o intuito de conquistar novos sujeito evidencia a destituição de qualquer
alunos para o Instituto.

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poder. Portanto, o sujeito explicita quem o
Para se proceder a uma análise discursiva
exerce e, na via oposta, quem dele se encontra
de cunho histórico, não é possível tomar a
alijado.
forma sonora (ou objeto sonoro) destituída de
Seguindo a análise, verificamos, pelo sua historicidade. Verificamos que os sons
aparato visual, o lugar que o outro, como produzidos na propaganda, notadamente as
sujeito falante, ocupa para o enunciador. Além formas artificiais, se assemelham ou se
do riso que esgarça a boca do apresentador, a avizinham a outros. Isso possibilita a
mordida em seu próprio punho indicia o compreensão dos diversos sons que animam e
excesso de satisfação. O insucesso do aprendiz, dão sentido às propagandas de modo particular
em uma sociedade capitalista é, pois, motivo de e, sem dúvidas, ao discurso de modo geral.
zombaria e não ocorre de outro modo. Como
Percebemos, portanto, que há toda uma
declara Veyne (2009, p. 54): “o próprio
linguagem sonora em pleno funcionamento no
discurso é imanente ao dispositivo que se
discurso audiovisual, uma gama de sons
modela sobre ele e que o encarna na sociedade;
artificiais, muitos deles de curta duração que
o discurso faz a singularidade histórica, a
produzem diferentes sentidos, os quais não são
estranheza da época, a cor local do
efeitos de sentido produzidos ao sabor da mera
dispositivo”. O discurso inscrito na formação
intuição do analista. Indicam, no interior das
discursiva sobre a aprendizagem de língua
materialidades, especificidades do discurso que
inglesa do brasileiro “é” assim, e certamente
se ancora a uma memória para significar.
produz sujeitos que “pensam e agem” nessa
perspectiva.
Enfim, os lugares e modos como os Referências
objetos (produtos, pessoas) são posicionados na BARTHES, R. [1962]. A mensagem
propaganda significa atribuir-lhes e construir em fotográfica. In: COSTA LIMA, Luiz. Teoria da
torno deles um conjunto de sentidos com o Cultura de Massa. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e
intuito final de atingir os enunciatários, quer Terra, 1990. p. 303-316.
seja, vendendo o produto. No que tange ao
apagamento de questões que envolvem a CHARTIER, R. [1994]. A ordem dos livros –
aprendizagem diretamente, os sentidos que daí leitores, autores e bibliotecas na Europa entre
emanam demonstram que o sujeito, outra vez, os séculos XIV e XVIII. Trad. de Mary Del
negligencia o processo em detrimento do Priori. Brasília: Editora da Universidade de
produto. Em outras palavras, o que importa é o Brasília, 1998.
resultado final simplesmente. Ademais, como se FOUCAULT, M. [1969]. A arqueologia do
verifica, o curso de línguas, por meio do saber. 6. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense
discurso publicitário audiovisual, significa o Universitária, 1995.
aprendiz brasileiro de língua inglesa como
aquele que é inferior e que está sempre aquém _______. A verdade e as formas jurídicas. Rio
do “ideal”, merecendo, portanto, ser punido e de Janeiro: Nau Editora, 2003.
ridicularizado pela destituição do saber.
4. Considerações finais

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548
HAGEMEYER, R. R. História & audiovisual.
Coleção História &... Reflexões 15. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2012.
PSICOSE. Direção: Alfred Hitchcock. [S.l.]:
1960. 1 vídeo cassete (108 min), VHS, son.,
preto e branco.
RODRÍGUEZ, Á. A dimensão sonora da
linguagem audiovisual. Trad. de Rosângela
Dantas. São Paulo: Editora Senac São Paulo,
2006.
TITANIC. Direção: James Cameron. [S.l.]: Fox
Video, 1997. 1 DVD (194 min), son., color.
TUBARÃO. Direção: Steven Spierlberg. [S.l.]:
Universal Studios, 1975. 1 vídeo cassete (124
min.), VHS, son., color.
VEYNE, P. Foucault, o pensamento, a pessoa.
Trad. de Luís Lima. Lisboa: Edições Texto &
Grafia, 2009.

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549
A TERRA DA FELICIDADE, DA FÉ E DA PREGUIÇA:
RESULTADOS DE UMA PESQUISA SOBRE A BAIANIDADE NO
DISCURSO PUBLICITÁRIO
DE TURISMO

Reginete de Jesus Lopes MEIRA; Palmira HEINE


Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS)
gigikiss2006@hotmail.com

Resumo: O discurso é o efeito de sentido produzido na relação entre sujeitos afetados


desde sempre pela ideologia. Ele é disseminado a partir dos meios de comunicação que
são difusores de um jogo de símbolos que nos fazem retomar o construto histórico e
ideológico que permeiam os discursos. No texto publicitário de turismo sobre a Bahia, é
possível perceber que no discurso usado, não é feita somente a propaganda dos pontos
turísticos a serem visitados, mas também é vendida a imagem dos baianos. Desse modo,
este texto busca analisar o discurso construído na revista Viagem e Turismo, ponderando
sobre as características que foram encontradas numa análise prévia do corpus
representando a baianidade: a alegria, a preguiça e a religiosidade. Ele está embasado
no arcabouço teórico da Análise de discurso pechêuxtiana.
Palavras-chave: publicidade, discurso, preguiça, baianidade.

tempo que se tornaram ideias cristalizadas na


Introdução
sociedade. A Bahia é vendida nas agências de
A Bahia e os baianos têm sido turismo e na publicidade justamente pelo
caracterizados em diversas materialidades, material humano, pois além das praias e
inclusive nos gêneros publicitários a partir de paisagens deslumbrantes, o que se faz atrativo
estereótipos sociais que concebem certa ideia aos olhos dos turistas é também a alegria,
de baianidade, ou seja, o fato de que todos os simpatia, o molejo das mulheres e a
baianos são pessoas festeiras, alegres, hospitalidade do baiano.
religiosas, místicas, camaradas e, principalmente
Considerando que a imagem do baiano
preguiçosas porque não possuem disposição
é vendida discursivamente nesses anúncios de
para o trabalho. No entanto, percebe-se que
turismo como povo festeiro e preguiçoso, pode
essa imagem estereotipada foi construída a
se dizer que a mesma está baseada numa
partir dos discursos construídos ao longo do
ideologia que concebe a existência de povos

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550
inferiores a outros, ou seja, que os brancos são partir de um já dito, de uma rede de pré –
superiores aos negros no que diz respeito ao construídos (HEINE, 2012, p.49), procura-se,
trabalho, pois os últimos entraram na nossa então, observar a forma como os já-ditos sobre
história como escravos, assim sendo que os a baianidade se mostram nas propagandas e no
baianos são em sua maioria negros, logo são texto da revista, que características estão
povos inferiores a outros estados e culturas. silenciosamente ou mesmo explicitamente
Valendo-se desse cunho histórico, a publicidade reveladas nestas, e que estereótipos ecoam nos
utiliza discursos que trazem à tona os discursos veiculados por tais anúncios, trazendo
estereótipos já construídos pela sociedade, esta em si gestos do interdiscurso, ou seja, alguns
dissertação se propõe a analisar propagandas e recortes do interdiscurso que o analista traz a
o próprio texto publicitário presentes na revista tona dentro do processo interpretativo, ou
Viagem e Turismo da Editora Abril com base melhor dizendo, retoma o que já foi dito sobre
na Análise de Discurso de linha francesa, os baianos e o modo de ser dos mesmos.
conhecida como ADLF, com foco nas ideias de
1. Recorte metodológico
Orlandi e Pêcheux. Pretende-se também
explicitar o modo como o silenciamento de A Análise de Discurso pechêuxtiana
características que se relacionam com o povo possui um arcabouço teórico/metodológico que
baiano significa no processo discursivo da atende às necessidades para análise da
materialidade analisada. Objetiva-se, ainda construção discursiva do baiano a partir da sua
nessa dissertação, responder aos seguintes historicidade e da ideologia. Esta teoria busca
questionamentos: Quais as Formações interpretar os efeitos de sentidos gerados pelo
Discursivas e Ideológicas permeiam a discurso, ou seja, a partir do enunciado ou
construção da imagem do baiano nesses imagem veiculada em determinada
anúncios? Que gestos do interdiscurso são materialidade, faz–se a análise de sentidos
retomados com tais anúncios publicitários? De possíveis sob a ótica do leitor, neste caso o
que forma o anúncio publicitário, que por sua analista. Esses sentidos mapeados são
vez possui uma linguagem sedutora e também localizáveis na história e na ideologia, melhor
se constitui como veículo difusor de ideologias, dizendo, são discursos que foram construídos
vende a imagem do baiano trazendo à tona no percurso histórico, que possibilita a
efeitos de sentido construídos historicamente? interpretação dos discursos hoje. Isto porque, a
ADLF acredita que o discurso é sempre
É possível afirmar, a partir de uma
interpelado por outras vozes do inconsciente e
análise preliminar de anúncios veiculados em
estas outras vozes estão numa memória
sites que promovem o turismo na Bahia, como
discursiva, também chamado de interdiscurso,
site da Bahiatursa, por exemplo, que a imagem
que é onde situam os ditos, os não-ditos, os
do baiano vem sendo marcada historicamente
discursos esquecidos e os silenciados, como já
por estereótipos relacionados à sua forma de
explicitamos na seção teórica.
agir, falar e trabalhar, enfim, ao seu modo de
ser. Assim, partindo do pressuposto que Vale salientar que a dita preguiça, o
nenhum discurso surge aleatoriamente de modo apreço exagerado pela festa (uma negação ao
completamente isolado, mas sempre surge a trabalho) e o sincretismo religioso (vendo por
um lado, o fato de a religião africana não ter

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551
uma aceitação positiva pelos colonizadores, check in ( sumário da revista), Welcome (carta
logo a elite branca brasileira) são vistos de do editor), cartas ( opiniões e relatos dos
forma negativa pela sociedade e, no entanto, leitores), pergunte ( dúvidas dos leitores sobre
estão presentes na propaganda sobre a Bahia. as matérias da revista), responda ( respostas dos
Apesar de a festa e a preguiça serem, em leitores sobre perguntas de viagem da revista),
contextos discursivos, colocadas como propagandas publicitárias de produtos,
elementos negativos, tais características ainda cruzeiros, companhias aéreas e pacotes de
aparecem nas propagandas de turismo sobre a viagem, cartão postal ( relatos curtos dos
Bahia, caracterizando o povo baiano, isto leitores com fotos), tour (matérias publicitárias
porque o discurso propagandístico de turismo sobre destinos turísticos), e crônicas de
se apoia nas características que identificam o jornalistas e destinos de artistas famosos. Foi
discurso sobre o baiano, como se fosse este feito um recorte cronológico das revistas de
lugar de destino, uma fuga do que é dito 1995 a 2010, pois é justamente o período de
politicamente correto, obrigado pela sociedade criação da revista até os dias atuais, no entanto
capitalista. não foi possível encontrar todas as revistas
dentro deste período, sendo selecionadas seis
Outra explicação para o fato de que a
revistas para comporem o corpus.
alegria e a malemolência do baiano são
elementos centrais da publicidade, ressaltando 2. A terra da felicidade, da fé e da preguiça
que a propaganda publicitária da Bahia se difere No decorrer deste trabalho discutimos
de outros lugares é que: enquanto as paisagens, sobre os pressupostos teóricos em que se
construções monumentais e históricas são debruçam essa pesquisa e contextualizamos
vendidos no turismo, em se tratando de Bahia o historicamente a ideia da preguiça, da festa e da
jeito de ser do baiano é o atrativo na religiosidade no discurso sobre a baianidade.
propaganda turística, exaltando sua alegria, Aqui, serão feitas as análises das revistas,
cordialidade, a ginga e o modo faceiro de agir. levando em consideração a teoria da Análise de
Assim faremos uma análise saindo da superfície Discurso pechêuxtiana e as categorias
discursiva para ir ao processo discursivo como levantadas sobre a composição da baianidade.
diz Pêcheux, ou seja, partiremos do trabalho de
Esta sessão subdivide-se em três subseções,
desvelar a ideologia presente nos discursos, cada uma com a análise de recortes feitos sobre
indo para o objeto discursivo até chegar ao cada característica que representa a baianidade
processo discursivo. nas revistas Viagem e Turismo, como se pode
Para esta pesquisa, foram escolhidas as observar a seguir.
revistas Viagem e Turismo (VT) da Editora
2.1 “Sagrado e Profano, o baiano é
Abril, por ser veículo de renome e muitos terem
Carnaval” Gestos do interdiscurso sobre a
acesso devido à sua popularidade. A revista
festa e a alegria na construção da
Viagem e Turismo da Editora Abril, lançada em
baianidade.”
novembro de 1995, foi a primeira publicação
brasileira dedicada exclusivamente ao turismo. Já que os portugueses, senhores de
A Viagem e Turismo é composta por textos engenhos, tinham medo dos períodos de culto
publicitários e jornalismo de turismo como: ás divindades africanas, como forma de

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552
distanciamento étnico e receio por acreditarem
que se tratava de seitas ocultistas, os rituais nas
senzalas aconteciam como ocasiões de
liberdade dos negros, era o momento em que os
negros escravizados tentavam esquecer a
exploração que sofriam no regime escravocrata.
Vale ressaltar que, o discurso da festa
na construção da baianidade revela uma
ideologia de que a festa é elemento natural que
constitui o povo baiano e, consequentemente, a
baianidade. Assim, já ditos como: “Na Bahia,
tudo acaba em festa”, “O baiano é carnaval”
etc., circulam nacionalmente construindo a
imagem discursiva do baiano. Tal ideia também
silencia o gosto do baiano pelo trabalho e Fonte: Revista Viagem e Turismo Editora Abril, DEZ.
generaliza o gosto pela festa para todos os 2005
baianos.
Recorrente como o discurso da Na figura 1, aparece uma criança com
preguiça, a festa é muito citada, podemos dizer fisionomia alegre e sorridente com uma mochila
até mesmo que, na maioria das vezes, é de viagem. Abaixo aparece o enunciado “Quem
elemento constitutivo da propaganda de nunca sonhou em descobrir por que baiano vive
turismo sobre a Bahia. Além da festa, a ideia sorrindo? Sonhar é uma das melhores coisas da
frequente sobre os baianos é que os mesmos vida. Viajar também é. E com a CVC você
possuem a alegria inata, como se o povo baiano pode sonhar e viajar do jeito que quiser.
tivesse um diferencial a mais que outros povos Aproveite a chance de conhecer melhor a Bahia
e que a alegria faz parte do jeito “baiano” de e comece a sonhar com Salvador, Porto
ser, constituindo uma característica da Seguro, Trancoso e Costa do Sauípe. Sonhe
identificação baiana da qual já neutralizamos com o mundo, que a CVC leva você”. A figura
como discurso identitário. A seguir, são da criança reforça a noção de sonho, algo que
colocadas propagandas, retiradas das revistas pertence ao universo infantil, além de pertencer
que constituem o corpus desta pesquisa, que ao slogan da empresa de viagens CVC: “sonhe
corroboram com a venda da imagem de uma com o mundo, agente leva você”.
Bahia que vive o tempo todo em festa: É também observável que há uma foto
do centro histórico de Salvador, o Pelourinho,
elemento presente na publicidade sobre a Bahia.
O Pelourinho representa uma forte marca de
herança cultural da Bahia, relembra
historicamente o período colonial, os casarões
tombados como patrimônio cultural baiano com
suas ladeiras e grandes igrejas, símbolo da

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553
formulações do mesmo dizer sedimentado.
religiosidade. Na imagem, a questão da alegria A paráfrase está do lado da estabilização.
é, mais uma vez, enfatizada. No trecho “o Ao passo que, na polissemia, o que temos é
baiano vive sorrindo”, há uma generalização, deslocamento, ruptura de processos de
uma ideia estereotipada de que todo baiano é significação (ORLANDI, 2013, p. 36).
alegre, todo baiano vive sorrindo. Tal elemento
revela mais uma vez o funcionamento da
A partir dessa afirmação, consideramos
ideologia como algo que naturaliza sentidos: há
que a palavra “baiano” passou pelos processos
os “baianos verdadeiros” e os “falsos baianos”.
polissêmicos quando deixou de representar
Na primeira categoria, estão aqueles que vivem
apenas aquele que nasceu na Bahia, para
sorrindo, gostam de festa, gostam de dançar, e
significar aquele que é preguiçoso, alegre e
na segunda categoria, aqueles que não possuem
ocioso. É possível perceber uma regularidade
essas características.
no discurso da baianidade quando se trata do
A diferenciação entre os “tipos de gosto por festa e da alegria do baiano. A
baianos” também remonta ao construto repetição desses sentidos em outros trechos,
histórico, com o crescimento de Salvador e a numa sequência parafrástica, é visível em todas
construção do Polo industrial, o discurso que as revistas analisadas.
predominava era que existiam dois tipos de
2.2 Calma, não precisa ter pressa! A
baianos: o baiano negro e pobre era aquele que
preguiça no discurso sobre a baianidade
era preguiçoso, e o outro baiano de pele clara e
rico, era quem trabalhava de fato. Esta divisão Tanto nos anúncios de turismo, quanto
deve-se ao fato de haver uma divisão de bairros nos textos de cunho publicitário veiculados na
em Salvador, os bairros de classe média (Boa revista Viagem e Turismo que fizeram parte do
Viagem e Rio Vermelho) e os bairros populares corpus desta pesquisa, é possível perceber que a
(Baixa dos Sapateiros e Liberdade). Tal noção de baianidade é marcada pela
classificação tem raízes na diferenciação de indisposição para o trabalho, limitando os
classes, na tentativa de marcar a diferença entre baianos no estereótipo daquele que fica em
negros e brancos. rede, praia, e aos trabalhos informais, que não
exigem esforço físico nem intelectual para
Dessa forma, temos a noção de
serem realizados.
deslizamento dos sentidos proporcionado pela
paráfrase e polissemia, no quesito do vem a Além de evidenciar novamente que o
significar baiano. Como atenta Orlandi (2013): baiano é preguiçoso, por isso realiza atividades
de baixo esforço, essa formação discursiva de
Daí considerarmos que todo o que baiano já nasce artista também se
funcionamento da linguagem se assenta na materializa nas propagandas e no texto verbal
tensão entre processos parafrásticos e publicitário, conforme podemos observar a
processos polissêmicos. Os processos seguir.
parafrásticos são aqueles pelos quais em
todo dizer há sempre algo que se mantém,
isto é, o dizível, a memória. A paráfrase
representa assim o retorno dos mesmos
espaços do dizer. Produzem-se diferentes

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Figura 2
[...] as palavras, expressões, proposições
etc., mudam de sentido segundo as posições
sustentadas por aqueles que as empregam, o
que quer dizer que elas adquirem seu sentido
em referência a essas posições, isto é, em
referência às posições ideológicas [...]
(PÊCHEUX, 2010, p. 160).

Fonte: Revista e Viagem Turismo. 2005, p.3 Dessa forma, Pêcheux (2010) nos
esclarece que a depender da posição dos
Em “aqui suas férias vão ficar com
sujeitos que enunciam, as palavras mudam de
preguiça de acabar”, figura 03, retoma-se dos
sentido adquirindo novos significados, como é
gestos do interdiscurso, a formação discursiva
caso da palavra trabalho que explicitamos no
relacionada com a preguiça e o desgosto pelo
parágrafo anterior. Assim, notamos que o que é
trabalho tornando-o preguiçoso. Quanto à
exposto nestas propagandas é que as atividades
formação ideológica, podemos dizer que é a
realizadas pelos baianos não são enquadradas
ideia de inferiorização do povo baiano, a partir
no rol do trabalho verdadeiro, por envolver
da ideia de que baiano não trabalha. Tal
expressão de felicidade e prazer, já que como a
formação ideológica normaliza a ideia de que
própria descrição dicionarizada mostra, o
existem diferenças inatas entre os povos,
trabalho é relacionado com o esforço físico, a
retomando do interdiscurso sentidos de que há
preocupação e a aflição.
povos mais desenvolvidos e promotores do
desenvolvimento do que outros, neste caso, que Assim, Pêcheux (2010) afirma que o
os brancos são os povos superiores e sentido não se constitui isoladamente ou em
desenvolvidos e os negros são os inferiores e significados desvinculados das palavras,
atrasados. expressões ou proposições, mas a partir das
posições ocupadas pelos sujeitos em
Sobre formação ideológica, entendemos
interlocução e estas, são determinadas pelas
que, conforme Pêcheux (2010, p. 166), “[...]
condições ideológicas e históricas que
cada formação ideológica constitui um conjunto
envolvem o sujeito discursivo. Neste caso, a
complexo de atitudes e representações que não
noção de trabalho discursivizada pela maioria
são nem individuais nem universais, mas se
dos habitantes do Sul e Sudeste, é diferente da
relacionam mais ou menos diretamente a
noção de trabalho encontrada nos implícitos
posições de classes em conflito umas com as
presentes nos exemplos analisados. O sujeito
outras” assim, esse conjunto de ideias que
que produziu as propagandas aqui analisadas,
constituem o que é ser baiano, formam o
revela um posicionamento ideológico que
complexo de formações discursivas, que a partir
coloca os baianos como preguiçosos, sendo,
de uma formação ideológica de inferioridade
por isso diferenciados dos habitantes do Sul ou
dos baianos, permeiam e constituem os
Sudeste.
enunciados sobre a preguiça no discurso
turístico.

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555
chega a aproximar-se dessa quantidade de
DE ONDE VEM A IDEIA SOBRE A igrejas. O religioso e o profano sempre
caminharam juntos quando o assunto é Bahia,
PREGUIÇA BAIANA? local de grandes rituais católicos por causa da
1 Da resistência negra ao trabalho escravo no concentração de portugueses e escravos que
habitaram essas terras durante todo período
período escravagista e a ideia de que a colonial, a Bahia também comporta muitos
população negra baiana acabou herdando a terreiros de candomblé como já fora discutido
em capítulos anteriores. Desde o início da
característica de ociosa, preguiçosa; constituição do povo baiano, a religião católica
2: Do período de efervescência artística dos e o candomblé sempre cresceram juntos: a
primeira pelo seu processo na colonização que
tropicalistas baianos e não baianos que levaram mantinha a missão de evangelizar e converter
para o Sudeste a imagem da Bahia festeira e indígenas e africanos escravos, a última por sua
vez pelo processo de afirmação das raízes e da
preguiçosa como por exemplo Dorival Caymmi; luta da não aculturação do seu povo, como
afirma Mariano (2009) na citação a seguir:
3: Do forte período migratório de nordestinos,
na maioria deles baianos, para as regiões sul e Para alguns, as misturas foram um
resultado natural da convivência entre duas
sudeste, em formato de simulacro, atualizando tradições muito ricas - a ibérica, católica e a
o estereótipo já construído como baiano africana, principalmente com a religião dos
orixás nagôs – enquanto para outros, o
resistente ao trabalho, resultando numa já sincretismo foi um recurso que os negros
encontraram para salvaguardar suas
aceitação regional preconceituosa; tradições. Efetivamente, como a elite local
4: Do fato de que a Bahia possui a maior área ainda sonhava com o projeto civilizatório
que embranquecesse a Bahia, que
de extensão litorânea e reúne em seu território a expurgasse as referências e até a presença
dos negros, que se tornaram, de repente,
maior quantidade de praias paradisíacas (como imigrantes indesejáveis, as expressões
mostrado nas figuras acima), ambiente este que culturais de origem africana, como os
batuques, a capoeira, a forma de
favorece e estimula a preguiça. participação no Carnaval e a religiosidade
Quadro elaborado por Reginete de Jesus Lopes Meira. afro incomodavam. Essas expressões
chegaram a ser perseguidas policialmente
2.3 Uma igreja para cada dia do ano: na em diversas épocas, sendo uma das mais
Bahia tem… A religiosidade e a construção importunadas justamente a prática religiosa
discursiva do baiano (MARIANO, 2009, p.36).
Parece mito o ditado que diz “Em
Salvador há uma igreja para cada dia do ano”, De acordo com a citação acima, a
mas pelas estatísticas levantadas, Salvador relação sincrética dos baianos fomenta os

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discursos sobre a baianidade, pois se trata de do candomblé), Senhor do Bonfim (santo
um povo caracterizado como religioso e católico) refere-se a Oxalá (orixá do
místico. Basta assim lembrar as inúmeras candomblé) e etc. Assim amenizavam as tensões
comemorações que levam nome de orixás, entre negros e brancos no período colonial.
lavagens, os blocos afros com suas Toda a construção deste discurso possui uma
representações de pessoas vestidas como nos relação intrínseca com a ideologia, pois é ela
terreiros de candomblé, os filhos de Gandhi, que permite a geração de sentidos hoje e em
etc. qualquer momento da história, como contempla
Orlandi (2013) sobre isso ao dizer que
Para esta análise selecionaremos
enunciados imagéticos e verbais extraídos das O fato de que há um já –dito que sustenta a
revistas exploradas nesta pesquisa. Observemos possibilidade mesma de todo dizer, é
a seguir as sequências destacadas: fundamental para se compreender o
Figura 03 funcionamento do discurso, a sua relação
com os sujeitos e com a ideologia
(ORLANDI, 2013, p.32).

A partir do que foi exposto acima, vemos


que a observação do interdiscurso nos permite,
no exemplo, remeter ao dizer das sequências
citadas a toda uma filiação de dizeres, a uma
memória, e a identificá-lo em sua historicidade e
nos seus processos ideológicos. A partir dos
enunciados verbais e imagéticos acima podemos
Fonte: Revista Viagem e Turismo, 1997, p. 45 retomar as seguintes formações discursivas:
Todo baiano é religioso, místico e sincrético; A
Bahia possui uma magia inata (é a Terra da
Na figura 03, observamos a imagem de Magia), por isso é uma terra abençoada
uma Mãe de santo descrita como Mãe Bebé permanentemente por Deus e os orixás; Quem
com o tabuleiro de búzios, representando a vai à Bahia receberá as bênçãos dos orixás por
religiosidade baiana que possui fortes ser uma terra de pessoas essencialmente
características do candomblé religião africana. religiosas.
Na lateral da imagem temos o enunciado: “A O funcionamento ideológico que
respeitada Mãe Bebé, personagem de uma terra constitui o baiano com místico, dotado de
mágica, permanentemente abençoada por santos religiosidade. Mais uma vez, homogeneíza o
e orixás”. baiano e retoma a noção de que há baianos
Esse já dito construído historicamente verdadeiros (nesse caso, o verdadeiro baiano
justifica-se pelo fato de que os negros, para deve ser religiosos e ser sincrético). Tal
cultuarem seus orixás, faziam associações com característica constitui novamente as teias
os santos católicos, como por exemplo: Santa identitárias que compõem a baianidade,
Bárbara (santa católica) refere-se a Iansã (orixá

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557
tornando o povo baiano diferente de outros silenciada. Assim, fazer análise do discurso nos
povos. permite invadir os entremeios da história e da
ideologia para mapear o que é construído hoje,
3. Quase últimas considerações
enquanto discurso. Como também nos permite
É com este sentimento que escrevo estas refletir sobre a prática da linguagem
quase últimas palavras, digo quase últimas concebendo-a como um lugar de descoberta de
palavras porque a muito ainda a ser dito sobre a quem somos e o que somos.
baianidade. Na publicidade, ao mesmo tempo
que os sentidos são deslocados sobre preguiça,
festa e sincretismo, colocando-os como algo Referências
positivo e atraente para turistas, reproduz as ALMEIDA. L. S. de (org.); CABRAL, O.;
ideias de inferiorização do povo baiano, a partir ARAÚJO, Z. O negro e a construção do
da venda desses elementos como forma de carnaval no Nordeste – Maceió: EDUFAL,
construção discursiva da singularidade do povo 1996.
baiano, do estado da Bahia. São claramente
perceptíveis os fenômenos que ocorrem com o AMOSSY, R. O ethos na análise do discurso de
discurso no sentido do deslizamento dos Dominique Maingueneau. In: AMOSSY, R.
sentidos, do silenciamento de outros sentidos na (org). Imagens de si no discurso: a construção
tentativa de venda da imagem da Bahia de do ethos. São Paulo: Contexto, 2005a. p 16-17.
forma positiva, resultando aí no que chamamos AZEVEDO, T. de. Povoamento da Cidade do
de condições de produção necessárias ao Salvador. Salvador, Editora Itapoã, 1969.
discurso.
BAIANO. In: Minidicionário Ediouro da
Outro elemento visível foi o fato de que Língua Portuguesa – São Paulo, Ediouro, 2000.
os discursos sobre a preguiça, festa e
religiosidade estavam, na maioria das vezes GASTALDO, É. Pátria, Chuteiras e
inter-relacionadas, como se um discurso Propaganda: o brasileiro na publicidade da
necessariamente influenciasse a formação de Copa do Mundo. São Paulo: AnnaBlume/ São
outro. A noção de festa na maioria das vezes Leopoldo: Ed. Unisinos, 2002.
estava ligada a uma resistência ao trabalho, logo HEINE, P. Tramas e temas em análise do
intitulada como forma de preguiça, como discurso. Curitiba-PR: CRV, 2012.
também as festividades possuíam um cunho
KELLER, G. A. Conceptualização de Serra
religioso, melhor dizendo, uma característica
gaúcha no discurso turístico publicitário.
sincrética, pois se festejavam santos, orixás, ou
Dissertação (Mestrado em Letras, cultura e
podendo ainda citar que a alegria do baiano
regionalidade) Universidade de Caxias do Sul.
viria de uma terra “mágica”, abençoada por
Caxias do Sul, 2011
santos e orixás.
KRONES, J. M. Turismo e baianidade: a
Contudo, analisar, pois, a baianidade
construção da marca “Bahia”. Trabalho
pelo viés discursivo, implica conhecer a nossa
apresentado no III ENECULT – Encontro de
historia, não só contada pela classe dominante,
Estudos Multidisciplinares em Cultura, na
mas também conhecer a história que foi

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

558
Faculdade de Comunicação/UFBa, Salvador,
______. O discurso: estrutura ou
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Pêcheux. Tradução de Bethania S. Mariani- 4ª
ed- Campinas, SP, Editora UNICAMP, 2010.
______. A propósito da análise automática do
discurso: atualização e perspectivas. In
GADET, F.; HAK, T (Orgs.). Por uma análise
automática do discurso: uma introdução à
obra de Michel Pêcheux. Tradução de Bethania
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______. A análise de discurso: três épocas
(1983). In GADET, F.; HAK, T (Orgs.). Por
uma análise automática do discurso: uma
introdução à obra de Michel Pêcheux.
Tradução de Bethania S. Mariani- 4ª ed-
Campinas, SP, Editora UNICAMP, 2010.
______. Semântica e Discurso: uma crítica à
afirmação do óbvio. Tradução Eni P. Orlandi et
al. 4ª ed. – Campinas, SP Editora UNICAMP,
2009.

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

559
THESAURUS FEMININO/FEMINISTA EM CAMPANHA
ELEITORAL MATO-GROSSENSE

Andréia MELO
Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT1)
andreia.melo7@hotmail.com

Resumo: O presente artigo tem como objetivo explicitar o modo como o sujeito mulher
na/para política, por meio de sobreasseveração, circularam no suporte midiático,
internet, no ano de 2014, na campanha ao governo do Estado de Mato Grosso, que teve
como candidata a Srª Janete Riva, e como se filia numa (s) memória (s) Outra (s)-
interdiscurso- no interior dos enunciados aforizante. Para tal tomamos com pressupostos
teóricos a Análise do Discurso teórico pragmático interpretativo, Maingueneau (1989,
2008, 2014). Apoiamo-nos nas noções de aforização e hiperenunciador, levando em
consideração os provérbios e às doxas populares, que giram em torno deste sujeito
constituído de direitos, inscrevendo-a em práticas políticas que movimentam a
interpretação que produz efeitos de sentidos, por meios dos thesaurus que são
reconhecidos pelos alocutários. A enunciação estabelece nela mesma e no exterior dela,
na circulação do discurso midiático, uma tensão entre os discursos feminino vs
feminismo.
Palavras-chave: aforização, hiperenunciador, interdiscurso, política, mulher.

Introdução

Se eu me confirmar e me considerar
verdadeira, estarei perdia porque não saberei
onde engastar meu novo modo de ser – se eu
for adiante nas minhas visões fragmentárias, o
mundo inteiro terá que se transformar para eu
caber nele.
Clarice Lispector em A paixão segundo G.H

1
Doutoranda em Estudos de Linguagem pela Universidade Federal de Mato Grosso, Docente da Faculdade do
Pantanal – Cáceres MT, Servidora do IFMT – Campus Cáceres- MT.

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560
O interesse pelo tema deste artigo se Há aproximadamente 15 anos as
deu quando fomos provocados por enunciados, questões sobre o gênero 4 tonam-se destaque na
sobreasseverados2, pela candidata à mídia brasileira, a sua sexualidade, a militância
governadora do Estado de Mato Grosso Janete feminista (Marchas da Vadias, Movimentos das
Riva3, em textos verbais e multimodais Putas em São Paulo), Políticas Públicas para
produzidos pela mídia por meio de transcrição Mulheres em situação de vulnerabilidade,
de entrevistas e notícias que circularam em sites Políticas de cotas para mulheres na política (Lei
durante o processo eleitoral de 2014. O que Federal 9.100/1995), entre outros. É importante
mais nos chamou atenção foram os enunciados destacar que essas questões ou problematização
sobreasseverados pela candidata e aforizados ficaram mais evidentes, no Brasil, quando a
pela mídia, Eu, como dona de casa, mãe, maior a autoridade política, passa ser uma
administrarei com a sensibilidade de uma mulher a Presidenta Dilma Rousseff. A partir
mulher, com braços fortes; Cara de mulher, de de então a mídia produz o que podemos chamar
avó e assim será no governo; Com ternura de de um jogo midiático sobre um estado de coisa
uma avó e o pulso firme de uma mulher; O no mundo e à medida que o “assunto” se torna
Riva é bom de serviço, só que vocês não sabem produtivo os editoriais de revistas e de livros,
da professora que tem lá em casa, a coisa vai no Brasil, buscam refletir teoricamente,
mudar nesse Estado”, e em intertítulo Janete evidenciar, publicitar os percalços da/ para
quer sua “cara” no governo e o slogan É para constituição da subjetividade da Mulher, na
cuidar de Mato Grosso e o uso de provérbios política.
Precisamos dar o peixe, mas ensinar a pescar e Pesquisadoras brasileiras como a Profª
dar vara”, etc. Margareth Rago (UNICAMP), trilha este
caminho em seu livro A aventura de contar-se:
2
Essa extração não se exerce de maneira indiferenciada
Feminismo, escrita de si e invenções da
sobre todos os constituintes de um texto, pois, subjetividade, que ancorada nos estudos
frequentemente, o enunciador sobreassevera alguns de foucaultiano sobre o Cuidado de si e Escrita de
seus fragmentos e os apresenta como destacáveis. A si, substitui o relato historiográfico tradicional
sobreasseveração é uma modulação enunciativa que por narrativas pessoais e reconstitui
habilita formalmente um fragmento como candidato a
diferentes experiências de transformação
uma destextualização, ou seja, é uma operação de
destaque do trecho que é operada em relação ao restante política no Brasil, em que as mulheres
dos enunciados, por meio de marcadores diversos: de participaram, em especial, na ditadura revelando
ordem aspectual (genericidade), tipográfica (posição de formas plurais do feminismo em nosso país.
destaque dentro uma unidade textual), prosódica
(insistência), sintática (construção de uma forma Rago, reverbera discursos outros,
pregnante), semântica (recurso aos tropos), lexical como da pesquisadora Filosofa Judith Butler
(utilização de conectores de reformulação). (2003) que em sua obra Problemas de gênero:
(MAINGUENEAU, 2010, p. 11) feminismo e subversão da identidade, que ao
3
Janete Gomes Riva foi candidata à governadora no realizar uma releitura dos estudos de Michel
Estado de Mato Grosso no ano de 2014 pela coligação
Viva Mata Grosso (PSD/PTC/PTN/PEN/PRTB/SD) em
4
substituição à candidatura de José Riva (PSD), seu Estudos de Gênero no que se refrete ao feminino e
esposo, caçado por corrupção. masculino como um binômio.

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561
Foucault e Lacan, apresenta um novo ponto de genealogia foucaultiana. Ela afirma: “A crítica
vista, sob o aparato da genealogia5, às questões genealógica [...] investiga as apostas políticas,
do sujeito Mulheres em relação às designando como origem e causa categorias de
determinações de sexo/gênero/desejo, identidade que, na verdade, são efeitos de
colocados no campo discursivo das políticas instituições, práticas e discursos cujos pontos
feministas. de origem são múltiplos e difusos. A tarefa
dessa investigação é centrar-se – e descentrar-
O discurso para a autora atravessa e
se – nessas instituições definidoras: o
constitui os corpos, se acomoda em corpos; os
falocentrismo e a heterossexualidade
corpos na verdade carregam discursos como
compulsória”.
parte de seu próprio sangue. E ninguém pode
sobreviver sem, de alguma forma, ser Assim, podemos perguntar em que
carregado pelo discurso. Então, não quero categoria de mulheres está inscritas as
afirmar que haja uma construção discursiva de mulheres candidatas, levando em consideração
um lado e um corpo vivido de outro6. as investidas da mídia no processo de
destacamento de pequenas frases?
Butler (2013, p. 8 - 9) coloca em jogo a
noção de gênero, que segundo ela está 1. Provocações teóricas
enraizada ainda em um sistema Os enunciados midiáticos e as leituras
epistemológico/ontológico em que o discurso colocaram-me em um campo de tensão
binário que opõe masculino X feminino, homem particular, por ser mulher, filha, mãe, e ainda
X mulher, trata da identidade como fazer parte de uma matriarcal, na qual os
representação. Ela compreende que as noções enunciados proferidos, para não dizer
de gênero, sexo e identidade são problemáticas preferidos, pelas matriarcas eram: mulher deve
e devem ser investigadas ao modo da ser forte, independente, e ao mesmo tempo
cuidadora, deve cumprir com a obrigação da
5
A genealogia toma como foco o gênero e a análise casa, e se não puder cumpri-las deve pagar
relacional por ele sugerida precisamente porque o
alguém e saber dar às ordens, ou seja, deve-se
“feminismo” já não parece uma noção estável, sendo seu
significado tão problemático e errático quanto o de saber fazer coisas da casa para saber dar
“mulher”. [...] Além disso, já não está claro que a teoria ordens, enfim, a mulher deve ser a cuidadora e
feminista tenha que tentar resolver as questões da implicitamente gestora.
identidade primária para dar continuidade à tarefa
política. (Butler, 1990, p.9) Do mundo particular ao público os
6
Em entrevista realizada pelas pesquisadoras Irene populosos enunciados em torno da mulher,
Meijer e Baukje Prins, em uma rápida viagem da Butler sobre sua sexualidade, sua posição, seu
pela Europa, onde foi recebida pelo Departamento de posicionamento7, constrói uma grande teia
Estudos da Mulher, do Instituto de Artes da discursiva sobre o que é ser mulher na/para
Universidade de Utrecht. A entrevista está disponível do
site.<http://translate.google.com.br/translate?hl=pt-
BR&sl=en&u=http://www.parrhesiajournal.org/parrhesi
a01/parrhesia01_boucher.pdf&prev=/search%3Fq%3Dj
7
udith%2Bbutler%2Bperformativity%26biw%3D1366%2 Maingueneau ( 2008, p. 16) devido à incapacidade
6bih%3D663 em que se encontrar ou em definir Formação
Discursiva, propõe usar o temo posicionamento.

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562
política8. Diante dessa trama há discursos
Segundo o autor com a chegada dos
formadores de mulheres, incitando a doxa que
mídiuns audiovisual e o desenvolvimento da
circulam do privado ao público, tendo o último,
informática é que tomamos consciência desse
como suporte, o mídium.
papel crucial. Eles revolucionaram
Ao escolher a mídia para analisar os efetivamente a natureza dos textos e seu modo
discursos sobre mulheres na política, tem-se em de consumo, ou seja, quando tratamos do
vista que o meio não é neutro e determina, em mídíum de um gênero de discurso, não basta
grande parte, a forma e o conteúdo daquilo que levar em conta seu suporte material no sentido
se diz (e do que não se diz) a respeito do estrito (oral, escrito, manuscrito, televisivo etc.)
assunto. Para Dominique Maingueneau, "o é necessário também considerar o conjunto de
mídium não é simplesmente ‘meio’ de circuitos que organiza a fala, os dispositivos de
transmissão do discurso", na medida em que ele coerções.
"imprime um certo aspecto a seus conteúdos e
Nessa revolução, a fala deixa de ser,
comanda os usos que dele podemos fazer.. O
com efeito, um processo linear, isto é, uma
mídium não é um simples "meio", um
necessidade de se exprimir por parte do
instrumento para transportar uma mensagem
enunciador; seguida de uma concepção de
estável: uma mudança importante do mídium
sentido dado; posteriormente, a redação; a
modifica o conjunto de um gênero de discurso"
seguir, a busca de um modelo de difusão e
(MAINGUENEAU, 2008, p. 71-72).
finalmente, o hipotético encontro com um
Maingueneau em Tipos de Gêneros de destinatário. Na realidade, é necessário partir
Discurso9 afirma que todo texto pertence a uma de um dispositivo comunicacional que integre
categoria de discurso, gênero discursivo, e que logo de saída o mídium. Muitas mutações
os locutores dispõem de uma infinidade de sócias se manifestam por meio de um simples
termos para categorizar a imensa variedade dos deslocamento “midiológico”.
textos produzidos. Partindo desse princípio
Com o deslocamento “midiológico” na
destaca que existem denominações que não
sociedade contemporânea, em que os
pertencem ao léxico corrente, são próprias de
candidatos já não sobem em palanques em
certas profissões: os jornalistas, por exemplo,
praças, no qual seus interlocutores eram
utilizam um vocabulário específico, ensinado
reunidos por afinidades, inclusive ideológica, a
nos cursos profissionais: “primeira página”,
unificação de um auditório é impossível. Assim,
“chamada”, “lide”. O autor nos chama atenção
à mídia, passa então, por meio de seus
ao afirmar que tais categorias correspondem às
profissionais, os jornalistas, e publicitários,
necessidades da vida cotidiana e o analista do
pelos meios midiáticos acessíveis, como
discurso não pode ignorá-la.
internet, revistas e jornais impressos,
estabelecer um novo auditório para os
8
candidatos.
Uso política aqui em um conceito mais amplo. A
política inserida em todo contexto social, seja em casa O auditório passa ser heterogêneo,
ou em instituições governamentais. Em outros termos a todos têm acesso às informações e em qualquer
política é a arte ou ciência de governar. lugar, estratégias são criada para chamar à
9
Ver, Maingueneau (2008, p. 58-83)

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atenção de seus alocutários, estratégias
Como esta análise tem-se o objetivo
linguísticas como o uso iconográficos, técnicas
explicitar, brevemente, modo como o sujeito
sofisticadas de memorização como a
mulher na/para política, por meio da
versificação desempenham papel essencial
sobreasseverações se filia numa (s) memória (s)
nesse trabalho de estabilização dos textos;
Outra (s), no interior dos enunciados aforizante.
como ocorre na produção dos atuais slogans
publicitários que para serem memorizados, Para tal análise apresentamos as ordens
respeitam, geralmente a coerção poética ( enunciativas
“Coca-cola é isso ai”, Melhoral, Melhoral, é
melhor e não faz mal”)10, tropos, metonímias,
paratextos e provérbios.
A mídia exerce um papel importante, na
pulverização dos discursos políticos, da imagem
do politico e da política. Ela muda seus
recursos para aproximar seus locutores de seus
destinatários, cria-se um novo auditório, o
auditório universal, que coloca no jogo da
enunciação11 o enunciador, co-enunciador12 em
uma cenografia13 que mobiliza um Neste esquema, Maingueneau opõe-se,
Hiperenunciador .14 desta forma, enunciação aforizante e
enunciação textualizante, inscrita no horizonte
do gênero de discurso. Aquela, por sua vez, se
10
Maingueneau (2008, p. 74) o slogan “Melhoral, organiza em enunciação aforizante destacada
Melhoral, é melhor e não faz mal” pode ser analisado
por natureza e enunciação aforizante
com um quarteto de trissílabo (escansão ratificada pela
melodia, que dá seu ritmo do slogan), com presença de destacada de um texto. Elas se diferenciam da
versos com rimas agudas em –al, além das aliterações enunciação textualizante em vários aspectos
de –m e –lh. uma vez que ela se relaciona como o sujeito,
11
A enunciação levando-se em consideração a tipologia com facetas, aquelas que são pertinentes à
linguística e discursiva, ou seja, os gêneros discursivos e cena verbal, onde a responsabilidade do dizer
o funcionamento linguístico dos textos. Ver
Maingueneau (2008, p. 62-70). é partilhada e negociada. Na enunciação
12
O co-enunciador encontra-se no mesmo ambiente e aforizante não há posições correlativas, mas
estão se vendo uma ao outro, como o entrevistador. Ele
pode dar força à posição do enunciador, expressando sua
aprovação (com sua atitude e com comentários: Ah, que, por sua vez, deve legitimá-la, estabelecendo que
Veja só etc.). Maingueneau (2008, p. 75). essa cenografia onde nasce a fala é precisamente a
13
Por cenografia, amparados nas leituras de cenografia exigida para enunciar com convém, segundo
Maingueneau (1989; 2008), compreendemos como uma o caso, a política, a filosofia, a ciência ou para
configuração de uma cena de enunciação, por meio de promover sua mercadoria. Maingueneau (2008, p. 87-
gêneros de discursos, que por sua manifestação, em 88)
14
uma cena de enunciação leva os leitores a aceitarem seu É àquele que é convocado pelo locutor a participar de
lugar que lhe é consignado na cenografia. No caso da uma cena enunciativa com quem ele mostra estar de
política a cenografia é o mesmo a fonte do discurso e acordo, já que faz parte de uma mesma comunidade
aquilo que ele engendra; ela legitima um enunciado linguística.

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uma instância que fala definindo uma cena onde GOVERNO que circulou um dia do anuncio da
o locutor, um Sujeito jurídico e moral, fala a candidatura.
uma espécie de auditório universal, que não se
reduz a um destinatário localmente a)Nesse programa, as famílias receberão
especificado: a aforização institui uma cena de o auxilio por um ano e, nesse período,
fala onde não há interação entre dois receberão qualificação para caminharem
protagonistas colocados num mesmo plano. com suas próprias pernas. Precisamos
Assim, toda aforização intervém em uma dar o peixe, mas ensinar a pescar e dar
textualização: é uma encenação construída por vara.
outro locutor, um citador.
Para Maingueneau (2010, p.10) os Neste excerto identificamos um
enunciados destacados slogans, máximas, provérbio que não se dá na mesma maneira que
provérbios, títulos de artigos na impressa, um provérbio genuíno16, ou seja, apresenta
citações célebres e intertítulos se dividem mudança em sua estrutura sintática e semântica.
naturalmente em duas classes, a) frases que, de Vejamos:
maneira constitutiva, existem fora de qualquer Primeiro partimos pela localização do
texto: provérbios, slogan, divisas; b) frases que provérbio, sua localização no corpo do excerto
são destacadas de um texto: é o caso da lógica ocupa uma aposição de destaque, que sugere o
da citação. destacamento forte, pois está no final do
2. Da sobreasseveração à aforização: a enunciado, sobreasseverado pelo próprio
trama midiática. enunciador, que propicia à descontextulaização
e assim à aforização.
Para apresentação deste artigo,
limitarmo-nos nossa analise apresentando certas Segundo Maingueneau (2014) o
propriedades enunciativas que apresentam o provérbio é uma aforização destacada por
uso dos provérbios e tropos em dois excertos. natureza, e por excelência, um enunciado
Pata tal, mobilizamos os conceitos teórico- generalizantes, já que suspostamente já está
pragmáticos de aforização e hiperenunciador. aceito pelo alocutário, pela mediação de um
Para tal tomamos como corpus a notícia hiperenuciador que domina os dois
circulada no Jornal Eletrônico Jornal interactantes.
VGNews15 intitulada Condução Feminina - Esta mudança de estrutura sintática
JANETE QUER SUA “CARA” NO “mexe”, por meio da sobreasseveração à
aforização, no estatuto sintático do provérbio,
15 uma vez que em função do embreante em
<http://www.vgnews.com.br/listaprod.asp?lista=categori primeira pessoa do plural nós, Precisamos dar
a&tipo_id=5&prod_id=33480> :acesso 27.04.2015 às
23h . A mesma notícia circulou FOLHA MAX: Mas que
16
notícias fatos, sob o título de Janete promete gestão Maingueneau (2011, p. 46) diz que o provérbio tem
com, “ ternura e pulso firme” uma sintaxe própria, arcaizantes, como o emprego do
http://www.folhamax.com.br/politica/janete-promete- determinante zero, referência genérica de dêiticos,
gestao-com-ternura-e-pulso-firme/22154 ausência de marca verbal, e ligado a um estatuto
ideológico arcaizante.

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o peixe, mas ensinar a pescar e dar vara
Na enunciação aforizante, abaixo,
provoca uma mudança semântica. A aforização
apresentaremos outra característica da
proverbial insere um sujeito no sentido
sobreasseveração à aforização.
gramatical, EU-NÓS. É acompanhado por uma
operador argumentativo opositivo mas que b)Em função do perfil das mulheres,
direciona o processo de enunciação à esquerda Janete Riva lembrou que trocou o
do enunciado ocorrendo uma implicação entre slogan da campanha do esposo, o
dar e ensinar. O e exerce um papel importante deputado estadual “Chamei a equipe de
no enunciado, como uma adição ele introduz marketing e disse, Janete é Janete. É
um ato de asserção, aparentemente mãe, é braço, é proteção, por isso meu
acrescentando algo ao anterior, mas que, slogan é para cuidar de Mato Grosso,
estruturação da enunciação o e organiza uma como forma de proteção. O Riva é bom
escala argumentativa, na qual os argumentos de serviço, só que vocês não sabem da
não são apenas justapostos mas se intensificam, professora que tem lá em casa, a coisa
retomando a oração coordenada opositiva, ou vai mudar nesse Estado”,
seja, o instrumento vara ao estabelecer uma
relação como ensinar produz outro efeito de
sentido por meio do operador e. O escritura do A aforização textualizante destacada no
provérbio chinês é Dê um peixe a um homem texto brinca com o substantivo feminino
faminto e você o alimentará por uma dia. mulher, utilizando a metáfora professora, em
Ensie-o a pescar, e você o estará alimentando seu lugar.
pelo resto da vida. Um dos efeitos sentidos Paul Ricoeur, em A metáfora viva,
possíveis é que o partido deve dar o peixe, dar a propõe tratar o que era considerado uma
vara e ensinar a pescar. Não existe um ‘denominação desviante’ como uma ‘predicação
imperativo (tu, você), como vemos no impertinente’. Dessa maneira, a unidade do
provérbio em Dê, mas um nós. Um nós que tropo deixa de ser a palavra e passa a ser o
articulado a conjunção intensificadora e reflete discurso. Com efeito, Benveniste mostra que a
às tramas do discurso político que se metáfora e a metonímia são processos do
fundamenta em uma retórica. discurso. Para ele, é preciso distinguir os níveis
Maingueneau (2011, p. 45) diz que cabe de análise linguística: os da língua (o do
ao leitor perceber que há uma aforização fonema, o do morfema, o do lexema) e os do
proverbial. Ao anunciar um provérbio sem discurso. O que caracteriza a frase é ser um
nenhuma marca que o identifique como tal, o predicado. Com ela, deixa-se ‘o domínio da
locutor põe o leitor na posição de um membro língua como sistema de signos e se entra num
da comunidade que partilha um mesmo outro universo, o da língua como instrumento
Thesaurus17. de comunicação, cuja expressão é o discurso.
(...) A frase é a unidade do discurso’. Assim,
para Ricoeur, a relação de semelhança que
17
fundamenta a metáfora ‘deve ser compreendida
São enunciados que não têm um autor, um citante, como uma tensão entre a identidade e a
mas que é reconhecido por uma mesma comunidade
linguística, é o caso dos provérbios.

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diferença na operação predicativa posta em textualizantes, sobre mulher na/para politica
movimento pela inovação semântica’18. está sob a égide do proverbio bíblico da Mulher
Sábia. A mulher sábia edifica a sua casa, mas
Partindo dessa perspectiva há, ainda,
com as próprias mãos a insensata destrói o seu
uma quebra de expectativa por parte do leitor
lar (Provérbio 14.1), e, uma vez que, a mídia
no linear da enunciação mesma. Acredita-se que
não é neutra, ela constrói, o sujeito Mulher,
será empregado, considerando a cadeia
ainda sob um modelo ontológico o que
semântica, dentro do contexto em questão, de
contradiz a posturas feministas.
que se tem em casa é uma mulher, a mulher de
José Riva, já, que, a própria enunciadora é a
mulher dele e não uma professora.
Referências
Segundo Maingueneau (2008) o BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e
discurso político opera sobre dois planos subversão da identidade. Tradução de Renato
diferentes: ele se situa na confluência dos Aguiar. 5ª ed. - Rio de Janeiro: Civilização
discursos constituintes, sobre os quais se apoia Brasileira, 2013.
(invoca a ciência, a religião, a filosofia, etc), e
os múltiplos extratos da doxa coletiva. RAGO, M. A aventura de contar-se:
feminismo, escrita de si e invenção da
Assim, arriscamo-nos a dizer que no subjetividade. Campinas, SP: Editora da
texto fonte, por meio da sobreasseveração à Unicamp, 2013.
aforização textualizante há uma doxa coletiva
do que é ser mulher na política e/ou como é, e MAINGUENEAU, D. Frase sem texto.
deve ser a mulher na/para política. Mulher que Tradução Sírio Possenti, et ali. São Paulo, SP:
tem cara de mulher; Mulher que tem perfil de Parábola Editorial, 2014.
mulher; Mulher de família; Mulher esposa; __________. A aforização proverbial e o
Mulher terna; Mulher mãe; Mulher avó, feminino. IN: Fórmulas discursivas. São Paulo,
Mulher que ensina; Mulher professora, Mulher SP: Editora Contexto, 2011, p. 41-75.
valente; Mulher proteção; Mulher pulso firme;
Pulso firme de mulher, etc. ____________.Análise de textos de
comunicação. Tradução de Cecília P. de Souza-
3. Considerações finais e-Silva e Décio Rocha. 5ª Ed. São Paulo, SP:
Considerando que cabe ao leitor Cortez Editora, 2008.
perceber que há uma aforização proverbial, se __________.Cenas de enunciação. Org. Sírio
colocando na posição de um membro da Possenti; Maria Cecília Perez de Souza-e-Silva.
comunidade que partilha um mesmo Thesaurus, São Paulo, SP: Parábola Editorial, 2008.
acreditamos que o(s) discurso (s) constituinte
(s), estruturado pela mídia, por meio das FIORIN, J. L. Retórica: O estudo das figuras –
sobreasseverçações, ou seja, de aforizações A tensão resultante de uma predicação
“inadequada” põe em movimento a inovação
18
semântica no discurso. Revista Língua APS:
FIORIN apud Ricoeur, 2011. Reportagem online. Disponível em: <
disponibilizada pela Revista Língua Portuguesa
(online). Ed. 62.

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567
http://revistalingua.com.br/textos/62/artigo2489
90-1.asp>. Acesso em 15 set. 2015.

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568
ENTRE O DIZER E O JÁ-DITO NA FALA DE PROFESSORES
ENVOLVIDOS COM A METODOLOGIA DE ENSINO DA
LÍNGUA PORTUGUESA

Maria de Fátima Pereira MELO; Maria do Socorro Maia Fernandes BARBOSA


Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN)
fatimapmelo@hotmail.com; socorromaia@uern.br

Resumo: Inscrito no campo da Teoria da Enunciação, especificamente das não-


coincidências do dizer (NCD), propostas por Authier-Revuz (1990, 1998, 2004), este
trabalho tem como objetivo investigar como se representam as marcas linguístico-
discursivas das não-coincidências interlocutivas e interdiscursivas, através das quais se
realiza o desdobramento metaenunciativo da modalização autonímica, presente nos
discursos de professores envolvidos com a Metodologia de Ensino da Língua Portuguesa
(MELP). Consideramos, para tanto, o jogo de vozes sociais que se veem nas falas dos
sujeitos da pesquisa. Na computação dos dados, os resultados permitam vislumbrar a
reflexividade do sujeito em torno do seu dizer, lugar em que várias vozes são sobrepostas
e como tal, dizem respeito às não-coincidências que afetam o dizer.
Palavras-chave: não-coincidências; falas; professor de língua portuguesa.

surgem no discurso1 como uma adequação ao


Introdução
evento comunicativo sob as formas de
Em nossas relações sociais nos modalizações autonímicas, que vão desde o uso
constituímos, enquanto enunciadores, pelas de sinais gráficos aos comentários
circunstâncias históricas de nossos enunciados metaenunciativos ou o desdobramento reflexivo
que se manifestam e produzem sentidos em do sujeito em torno do seu dizer. Assim, a
meio aos já-ditos em um dado contexto social e modalização autonímica acontece quando o
em função da imagem que fazemos do nosso sujeito enunciador ao mesmo tempo em que faz
coenunciador a quem nos dirigimos, em um
determinado gênero discursivo.
1
Empregamos a palavra discurso não no sentido de
Nessa acepção, Authier-Revuz (1998) discurso com as implicações teóricas da Análise do
mostra que algumas composições enunciativas Discurso de origem francesa, mas de uma maneira
geral, como sinônimo de fala, uma vez que as
abordagens da pesquisa estão inscritas no quadro
epistemológico das Heterogeneidades Enunciativas,
propostas por Authier-Revuz (1998; 2004).

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menção de um dizer retorna reflexivamente dissonantes presentes em um discurso e de
sobre este dizer, transformando-o em processo dialogismo ou interação verbal, de onde vem o
de representação e constituição de um conceito de intersubjetividade, termo
enunciado que se estabelece na relação com a introduzido na Literatura, por Kristeva (1974)
alteridade2 pensada a partir do dialogismo como cruzamento de textos distintos. Esse
bakhtiniano e da psicanálise lacaniana. termo também se relaciona às apreciações de
Pêcheux (1995) sobre a interdiscursividade que
O princípio da alteridade sempre foi
marca o dialogismo dos discursos em relação a
defendido por Bakhtin (1981) como pluralidade
si mesmos.
e polissemia, fundadas na correlação entre
posições enunciativas e visão de mundo com Podemos ainda dizer que, os termos
base nas relações sociais entre o eu e o outro alteridade e polifonia representam o pequeno
em que o sujeito se reflete no outro e se refrata. “outro” do qual fala Lacan (2010, p. 245), o
Esse outro, com “o” minúsculo, não sujeito “capaz de fazer-se outro, e de chegar a
necessariamente se refere a uma relação face a pensar que o outro, sendo um outro ele mesmo,
face, mas, sobretudo, ao outro real ou pensa como ele,” em relação ao nosso
imaginário a quem o enunciador se dirige, ou semelhante a quem nos dirigimos.
ainda, aquilo que é dito de outros discursos, Finalmente, o “outro” das
pertencente ao campo do sentido construído. heterogeneidades enunciativas, propostas por
De outro modo, podemos dizer que, em Authier-Revuz (1990, 1998, 2004), que se
Bakhtin (1981) a alteridade representa as caracterizam pelo dialogismo e pela polifonia de
relações dialógicas que afetam um dizer e vozes sociais em relação à apropriação e
marca, na enunciação, a relação constitutiva do representação do discurso outro e a
sujeito com os outros discursos, aqueles dos já- autorrepresentação do sujeito nos diferentes
ditos, cujas palavras são sempre, diálogos, marcando uma dupla designação: “a
inevitavelmente, as palavras dos outros, de um lugar para um fragmento de estatuto
produzindo efeitos de sentidos em uma diferente na linearidade da cadeia e a de uma
interação verbal. Por conseguinte, “todo alteridade a que o fragmento remete”
discurso se mostra constitutivamente (AUTHIER-REVUZ, 1990, p.30).
atravessado pelos outros discursos”. Em outras palavras, ao transferir o
(AUTHIER-REVUZ, 2004, p.69). dialogismo bakhtiniano e a polifonia, não
Esse entendimento de que todo discurso intencional, lacaniana para a sua Teoria das
se mostra constitutivamente atravessado pelos Heterogeneidades Enunciativas, Authier-Revuz
outros discursos está ligado à ideia bakhtiniana (2004, p. 69) acrescenta que “todo discurso se
de polifonia de vozes sociais, ou vozes mostra constitutivamente atravessado pelos
‘outros discursos’ e pelo ‘discurso do Outro’”.
O outro, com “o” minúsculo, como condição
2
O conceito de alteridade, aqui empregado, não é o constitutiva de um dizer que atravessa todo
conceito de alteridade ducrotiana, na qual o sujeito é
discurso, pressuposto ou marcado no discurso.
múltiplo, desdobrado em interlocutores que falam, mas
o da alteridade representada pelas não-coincidências do O Outro, com “O” maiúsculo, como o sujeito
dizer. do inconsciente, cheio de palavras alheias,

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570
palavras saturadas de discursos incorporados, autonímica. Evidenciando, dessa forma, a
sujeitos divididos entre o real, o simbólico e o relação que o sujeito enunciador mantém
imaginário, em que a linguagem é o simbólico consigo mesmo (relação eu/Outro), com o
que representa o real em mediação com o sistema linguístico (reflexividade da palavra
imaginário, assim já pensava Lacan (2010). direcionada) e com os outros discursos
presentes em um determinado gênero
Convém observar, portanto, que
discursivo.
Authier-Revuz (1998, 2004) se apoia nas
concepções teóricas de Bakhtin (1981) e Lacan Essa constatação levou a autora a
(2010) sobre o sujeito na sua relação com a assinalar quatro campos de não-coincidências
linguagem, para formular os pressupostos das (doravante NCD) ou de heterogeneidades em
heterogeneidades enunciativas, cujas marcas que o dizer se representa como localmente
linguística-discursivas demonstram “posições confrontado com pontos em que alterados pela
enunciativas particulares a discursos, gêneros, modalização autonímica se desdobram,
sujeitos” (AUTHIER-REVUZ, 1998, p. 14). opacificando a língua sob as formas das não-
coincidências do dizer: NCD Interlocutiva,
De Bakhtin (1981), a autora extrai o
NCD do discurso consigo mesmo ou
que ela chama de duplo dialogismo: o que
interdiscursiva, NCD entre as palavras e as
precede de outros discursos e o que se dirige ao
coisas e NCD das palavras consigo mesmas).
outro coenunciador, vinculando-se ainda à
imagem de pluralidade ou de polifonia de vozes E é no campo das heterogeneidades
sociais sobrepostas em um discurso. Em enunciativas, especificamente no campo das
consequência, ao defendermos uma posição, NCD interlocutivas e NCD do discurso consigo
necessariamente, estamos correlacionando-a mesmo ou interdiscursivas que direcionamos
com outras posições valorativas, as quais nossa investigação que se filia às propostas do
determinam a alteridade que marca a Projeto de Cooperação Acadêmica: disciplinas
intersubjetividade na relação eu/outro, da Licenciatura voltadas para o ensino da
descentrando, desse modo, o sujeito de seu Língua Portuguesa (PROCAD), no qual estão
dizer. vinculadas três instituições de Ensino Superior
(IES): Universidade Federal do Maranhão
Pela via lacaniana, o descentramento do
(UFMA), universidade proponente do
sujeito em torno de seu dizer, advém da
PROCAD, Universidade de São Paulo, (USP)
categoria do imaginário, que põe em jogo a
associada I, Universidade do Estado do Rio
função do desconhecimento de um sujeito
Grande do Norte, associada II (UERN).
dividido entre o eu e o Outro centrado como
linguagem do inconsciente que assume a voz do Assim, o corpus da pesquisa em foco é
enunciador para em seguida se ausentar, constituído de quatro (4) excertos extraídos de
“encerrando a enunciação em um espaço de quatro (4) entrevistas (que compõem parte do
intenção, de interações, de representações” banco de dados do PROCAD) realizadas com
(AUTHIER-REVUZ, 1998, p.17), as quais se professores das disciplinas: Aproximação com a
ligam à reflexividade do sujeito em torno do seu Prática (UFMA), Metodologia do Ensino de
dizer, analisada pela autora não no plano da Língua Portuguesa (USP) e Didática do Ensino
estrutura sintática, mas da modalização de Língua Portuguesa (UERN).

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pontos mais polêmicos que identificamos em tal
Optamos por analisar o discurso de
contexto, como o perfil da disciplina MELP no
professores envolvidos com as disciplinas de
âmbito das três IES aqui estudadas, os autores
ensino de Metodologia da Língua Portuguesa
e bibliografias que embasam a prática de ensino
(MELP), materializado nas entrevistas
dos professores entrevistados, as questões
encontradas no Banco de dados do PROCAD,
relacionadas à Ementa das disciplinas, bem
porque estes trazem em seu âmago a
como a visão de língua enquanto linguagem
efervescência do momento em que se
natural e língua materna. São pontos abordados
implantavam os objetivos traçados por esse
que tendem a deixar a sua importância como
Projeto e recobrem a gama de interesses no que
pontos de vistas que promovem o encontro
diz respeito à MELP, o que postula um dizer
marcado com a realidade social dos sujeitos da
afetado pelo jogo de vozes sociais, como
pesquisa.
fenômeno de troca que revela toda carga
axiológica do discurso construído não a dois, E, assim, os efeitos de sentido
mas no coro de muitas vozes que se produzidos na fala desses sujeitos, em
contracenaram com as vozes do aqui e agora do decorrência da situação de produção específica
gênero entrevista. Vozes que dão vazão ao real do gênero entrevista, completam-se na
da língua sujeita às falhas, aos equívocos na intersubjetividade desses discursos e no
representação do discurso acontecendo, comprometimento desses discursos em relação
autorrepresentando-se em um modo de dizer às práticas e aos saberes que se dão em relação
outro que se articula com o real da história, à formação do professor de Língua Portuguesa
como expressões das relações humanas em um e à atuação docente do professor dessa área.
dado lugar social. Vale a pena, portanto, escutar essas vozes.
Afinal, enquanto enunciadores e profissionais
Levando em consideração a força dos
da educação, também estamos inscritos nessa
lugares sociais e dos sujeitos envolvidos nas
realidade social.
pesquisas do PROCAD, reconhecemos, ainda,
que a própria concepção de discurso nos remete Em face desse entendimento, suscitamos
à noção de fala enquanto evento enunciativo em o seguinte questionamento: Como se
efetiva atividade social. Impondo-nos, portanto, representam as marcas linguístico-discursivas
a uma análise qualitativa das marcas linguístico- das NCD interlocutivas e NCD do discurso
discursivas das NCD que emanam dos discursos consigo mesmo ou interdiscursivas, através das
desses sujeitos, enquanto eventos enunciativos quais se realiza o desdobramento
que são heterogêneos em sua própria metaenunciativo da modalização autonímica
constituição. Eventos que se desdobram em que aparecem na fala de professores de
várias realidades enunciativas sobre o ensino de Metodologia do ensino de Língua Portuguesa,
Língua Portuguesa e a formação do docente considerando, para tanto, o jogo de vozes
dessa área, estabelecendo, assim, uma sociais que se veem nos enunciados dos
acentuação valorativa ao sujeito e ao seu professores?
discurso. Em relação a esse questionamento,
E como tal, acenam, portanto, para uma acreditamos que analisar o discurso do
reflexão sobre esses dizeres, em relação aos professor de Metodologia do Ensino da Língua

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Portuguesa (MELP) sob a ótica das NCD, atravessadas por uma metafunção: a menção de
permite-nos considerar a representação que o um dizer e a reflexividade em torno desse dizer
enunciador tem do seu próprio dizer afetado por meio de marcas linguístico-discursivas as
pelo Não-UM, que remetem às relações quais funcionam como máscaras de proteção,
dialógicas do enunciador com sua fala e com a na tentativa de restaurar o Um, lá onde o
palavra do outro a quem ele se dirige, o que irá sentido aparece ameaçado, em função da
nos possibilitar um aguçamento teórico e imagem que o enunciador faz do outro a quem
metodológico sobre a questão das ele se dirige.
heterogeneidades enunciativas, especificamente
Essa dimensão das não-coincidências
nos campos das NCD interlocutiva e NCD do
interlocutivas vai além da relação face a face,
discurso consigo mesmo ou interdiscursivas, de
ela se constitui no jogo de vozes sociais que se
representações metaenunciativas,
veem nos enunciados dos professores
estrategicamente elaboradas por um sujeito que
entrevistados, cujas marcas linguístico-
tem “plena consciência de seu ato enunciativo:
discursivas permitem entrever as seguintes
ele para, olha, reflete e se distancia do seu dito”
categorias metaenunciativas representadas no
(BRITO, 2010, p. 15), tornando-se objeto da
corpus da pesquisa:
própria enunciação.
1.1 Injunção do dizer a uma só voz
Nesse propósito, procuramos mostrar o
descentramento do sujeito em torno do seu O conjunto das marcas linguístico-
dizer e uma abertura da linguística para outros discursivas, “digamos” e “vamos dizer assim”
campos teóricos no espaço metalinguageiro, encontradas nos excertos abaixo, representam a
aquilo que chamamos de discurso sobre o injunção do dizer a uma só voz, quando os
discurso ou a reflexividade do sujeito em torno sujeitos da pesquisa colocam em cena a
do seu dizer, relacionada às práticas discursivas emergência de um dialogismo interlocutivo na
que se dão na interação com o outro, no materialidade enunciativa do gênero entrevista.
empréstimo de palavras que se estudadas Nos excertos em que aparecem as marcas
isoladas de seu contexto, perdem a sua linguístico-discursivas acima citadas, a não-
significação social. Dessa maneira, quando coincidência interlocutiva é marcada pela
analisamos esses discursos, de fato estamos tentativa de conjurar um fato, ou seja, conspirar
analisando as heterogeneidades de vozes sociais algo através de uma coenunciação, conforme se
que cruzam esses dizeres. E, baseados na posicionem anterior ou posterior ao elemento X
fundamentação teórica aqui discutida, no item ao qual se referem.
subsequente procedemos à análise dos dados 1.1.1 Um “digamos” e um “vamos dizer
coletados para a presente pesquisa. assim” anterior ou posterior ao
1. Da situação específica do locutor com o referente X
seu interlocutor ou das não-coincidências No excerto abaixo, [1], o professor da
interlocutivas USP expõe seu ponto de vista em relação à sua
Nos excertos que seguem, observamos concepção de língua, bem como os autores e
que as não-coincidências interlocutivas teorias que dão sustentação ao ensino da
destacam-se por serem constitutivamente disciplina Metodologia da Língua Portuguesa.

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573
analisado, a injunção de vozes,
Analisando esse excerto, percebemos a
consequentemente, uma não-coincidência
presença da marca linguístico-discursiva
interlocutiva indicando que a palavra ou
“digamos”, anterior ao referente e se
expressão escolhida é razoavelmente adequada
caracteriza por um dizer suspensivo, que
à situação comunicativa, porém, entre o
precisa de um tempo para se concretizar e,
referente do seu dizer tem o outro no discurso
nesse espaço de tempo, observamos uma
do sujeito, tem uma interação entre os dois
abertura para a entrada do outro na
coenunciadores que precisa ser confirmada.
participação do ato enunciativo. Vejamos:
Vejamos o que diz o excerto:
[1] Bom, digamos que a língua possui três
[2] Não. A ementa ela é oficial, vamos dizer
dimensões [...] uma dimensão comunicativa,
assim. A gente não pode mexer de forma
uma dimensão cognitiva e uma dimensão
alguma, porque ela é documental, né? Ela tá
linguística, né?(PROF.USP)
lá no documento do PPC do Curso [...] Mas
o que nós podemos fazer é selecionar os
A NCD interlocutiva é observada, textos, né? E os conteúdos, a partir do que
nesse excerto, através da presença da marca de diz a Ementa.(PROF/UERN)
ajuste co-enunciativo, digamos, que constata a
conjuração de um fato, na categoria de No excerto [2], temos uma não
Injunção de vozes entre um eu e um nós e traz coincidência interlocutiva, através da injunção
a presença do outro para a enunciação, do dizer do professor à voz do entrevistador, ao
instaurando uma enunciação conjunta no empregar o futuro perifrástico “vamos dizer
comentário que será feito sobre as dimensões assim”, posterior à formulação: “Não. A
da língua. A Injunção do dizer a uma só voz ou Ementa ela é oficial”, o professor convida o
a suspensão do dizer ao querer do outro entrevistador a instaurar com ele um dizer e, ao
previne um risco de não transmissão de sentido, mesmo tempo, a aceitar essa afirmação
ou uma recusa de um dizer que ainda não foi conjunta. Nesse jogo, o futuro perifrástico
assumido em sua totalidade, recorrendo, perde sua função de futuro, pois a intenção aqui
portanto, à representação conjunta do ato é ajustar o enunciado se fazendo no aqui/agora
enunciativo. do ato comunicativo e assim, o entrevistado
Já no excerto [2], o professor da instiga o entrevistador a aceitar essa maneira de
disciplina Didática da Língua Portuguesa dizer, uma vez que o ato enunciativo já se
(PROF.UERN) discorre sobre suas impressões realizou.
em relação à Ementa enquanto referência para o Enfim, as reflexões em torno dos
planejamento da disciplina e as interferências do metaenunciativos “digamos” e “vamos dizer
professor na sala de aula, bem como, a assim” parte do pressuposto de que o não-Um
concepção de leitura e os autores e bibliografias é constitutivo de toda enunciação. E, como tal,
que embasam a sua prática de ensino. mostra a palavra ou expressão escolhida como
Em meio a tudo isso que esse professor razoavelmente adequada à situação
afirma, observamos a presença de um estatuto comunicativa. No excerto [1], estamos diante
metaenunciativo que assinala, no excerto de um dizer que precisa de um tempo, de um

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ajuste explicativo para dizer na emergência do trabalhos que têm como objetivo a educação à
aqui/agora que caracteriza o gênero entrevista, distância.
igualmente precisa da alteridade do outro ao Tal estratégia coloca em cena o
suspender localmente o dizer através do coenunciador, pois o entrevistado considera
imperativo “digamos”, enquanto que, no mais significativo que o entrevistador o
excerto [2], a injunção do dizer a uma só voz considere autor de trabalhos sobre a educação.
pode se configurar como um “vamos dizer Observemos o excerto:
assim” que representa um fato já consumado e
que precisa da aceitação do outro para validá- [3] Não, eu não tenho, porque eu fiz... deixa
lo. Enfatizamos, portanto, que, na composição eu te dizer, porque eu fiz mais para a
de seus pontos de vista, excertos [1] e [2] os educação à distância, não sabe? Foi um
discursos desses professores não são trabalho que eu fiz... (PROF/UFMA)
completamente admitidos pelos enunciadores,
que orientam seus discursos pela perspectiva do Esse fenômeno acontece, em parte, pela
outro a quem ele se dirige. característica do gênero discursivo em uso que
Assim, além das marcas linguístico- leva o entrevistado a subjetivar-se na sua
discursivas anteriormente estudadas, relação com o outro, explorando os sentidos
encontramos no corpus uma NCD interlocutiva construídos de sua enunciação, centrado na
que está relacionada à categoria, tomar em atividade explicativa do discurso pronunciado,
conta o não-Um, marcada na modalidade, apelo daí a persistência no emprego de construções
à boa vontade do outro, ou submissão do que submetem o dizer ao apelo e à
discurso ao querer do outro. Vejamos no compreensão do outro.
próximo item. Do exposto, percebemos que as NCD
1.2 Apelo à boa vontade do outro interlocutivas são atravessadas por marcas
explicitamente metaenunciativas completas que
No excerto abaixo, o professor submete admitem um “digamos”, um “vamos dizer
seu discurso à compreensão do entrevistador assim”, ou ainda, um “deixa eu te dizer”, cujas
quando responde que não é autor de livros representações enunciativas surgem no
sobre o ensino de Língua Portuguesa. (“Não eu aqui/agora da intenção do dizer, seja na
não tenho”), mas ao usar o metaenunciativo injunção de vozes ou no apelo à boa vontade do
“deixa eu te dizer”, o professor emprega essa outro.
marca linguístico-discursiva como uma forma
de preservar sua face3 positivamente e manter Daí a persistência no emprego das
sua autoimagem, enquanto autor de outros construções em que o sujeito o tempo todo
tenta controlar o seu dizer, mesmo que esse
dizer apresente pontos de trocas enunciativas
3
O termo “preservar a face” foi estudado por (Goffman) preenchidas pelos já-ditos, pois como nos diz
e é citado por Maingueneau (2008, p. 38) como um Authier-Revuz (2011), por traz da interlocução
termo que corresponde à “fachada social, a nossa há sempre um já-dito através da troca
própria imagem valorizante que tentamos apresentar aos
enunciativa. E, é no “sobrevoo
outros”, assunto que pretendemos estudar em trabalhos
posteriores. metaenunciativo,” parafraseando Authier-Revuz

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também: conhecimento que se faz. Não
(1998), das não-coincidências do discurso existe conhecimento em si. (PROF.USP)
consigo mesmo que procedemos as análises do
item seguinte.
Percebemos, no excerto [4] que ao
2. Em meio aos já-ditos as não-coincidências longo do seu dizer, o professor constrói uma
do discurso consigo mesmo ou marca de modalização autonímica que revela
interdiscursivas uma NCD do discurso consigo mesmo ou
No caso das não-coincidências do interdiscursiva ao se fazer de porta voz do
discurso consigo mesmo ou interdiscursivas, as discurso de Vigotsky, em: “Então, é como diz o
palavras que tomamos de empréstimo do Vigotsky”, assim... É..., manifestando em sua
“outro” são pontos fundamentais de fala uma outra maneira de dizer tomada como
heterogeneidades que representam o aqui/agora roupagem; Antes e independetemente, alguém
da enunciação de um eu que deixa passar a já falava em outro lugar. Esse outro lugar diz
intersubjetividade, interpretativamente ou respeito à outra época, a outro discurso teórico,
através de marcas linguístico-discursivas que mostrando a não propriedade da linguagem e a
distanciam o sujeito do seu dizer e o constitui sua especificação, um tipo de outro que marca
nas representações que esses enunciados têm do a fronteira entre o discurso do professor e o
seu próprio dizer, do não-Um que afeta todo discurso de “Vigotsky”, além de uma alusão
discurso. E, é essa alteridade estabelecida como aos discursos “nietzschianos”.
tipos de fronteiras entre o “eu e o outro”, que Esses já-ditos diversos designam pontos
veremos nos próximo tópico. de NCD do discurso consigo mesmo ou
2.1 Exterior apropriado ao objeto do dizer interdiscursivas que retomam a relação com o
outro como emergência da interação entre o eu
O excerto abaixo, apoia-se e o outro e constituição do sujeito que fala.
explicitamente em marcas linguístico- Levando em conta que todo discurso se
discursivas ou glosas metaenunciativas que constitui em meio aos já-ditos, em uma maneira
fazem um apelo aos discursos teóricos que vêm de dizer outra tomada como tipo de outro
de um campo exterior, testemunhando o discurso, em referência ao dialogismo e ao
dialogismo bakhtiniano que é ressaltado pela interdiscurso.
interação verbal entre o eu e o outro em um
território socialmente organizado. Vejamos o Observamos, aqui, não a representação
que diz o excerto quatro: do discurso outro sob a forma de um discurso
direto, mas uma autorrepresentação do dizer do
[4] [...] Então, é como diz o Vigotsky, professor sobre sua concepção de língua que
assim... É..., são duas coisas: o exógeno e o vem se juntar aos discursos de “Vigotsky” e
endógeno, que né, são intimamente ligados, “nietzschiano” para explicitar o que o professor
né. Uma coisa não pode ser sem a outra, né. tem de conteúdo a ser dito em relação à
O sujeito só se desenvolve pela interação, interação verbal. O professor faz ao mesmo
pela relação com o outro, né... [...] Então, tempo, uso e menção das palavras tomadas de
esse conhecimento né, que se faz
empréstimo de um outro lugar discursivo, com
basicamente... Isso é muito nietzschiano

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576
marcação da alteridade representada entre os
E, foi no viés das Heterogeneidades
enunciadores.
enunciativas, que fomos encontrar nessas falas
Do que foi exposto, podemos dizer que as não-coincidências do dizer, próprias da
os excertos contemplados nos permitiram modalização autonímica, como o ponto de
vislumbrar o entrecruzamento de vozes sociais, referência para constituição desses sujeitos
através das NCD interlocutivas e NCD do enunciativos, enquanto professores formadores
discurso consigo mesmo ou interdiscursivas. de professores, enquanto professores
Assim, pudemos evidenciar na interatividade pesquisadores que difundem experiências que
desses dizeres a natureza heterogênea da irão refletir lá na educação básica,
linguagem constituída na oralidade e aproximando, teoria/prática/teoria e que são
reproduzida na escrita. Com base nessas vivenciadas no “aqui/agora” do ato enunciativo.
colocações, partimos para as nossas São temas que ganham eloquência discursiva
considerações finais. em meio aos já-ditos que marcam as relações
Considerações finais sociais.

Entendendo o gênero entrevista como E, é no conjunto dessas informações


uma atividade que se realiza na interação apreendidas, que se percebe o caráter inovador
eu/outro, e como tal, reflete as NCD habitadas da pesquisa ao proporcionar subsídios para uma
no aqui/agora de certa situação social, fomos visão crítica no que concerne ao valor social
buscar, nessa polifonia de vozes sociais, as dado à heterogeneidade desses discursos.
representações metaenunciativas entre “o Um e
o outro, o dito e o não dito na fixação do Um”,
materializados nas marcas linguístico- Referências
discursivas de quatro (4) excertos coletados de AUTHIER-REVUZ, J. Alteridade, dialogismo e
quatro (4) entrevistas, advindas do Banco de polifonia - Dizer ao outro no já-dito:
dados do PROCAD/UERN, com professores interferências de alteridades – interlocutiva e
que lecionam as disciplinas envolvidas com a interdiscursiva – no coração do dizer. In: Letras
metodologia de ensino da Língua Portuguesa de Hoje, Porto Alegre, v. 46, n. 1, p. 6-20,
(MELP). jan./mar. 2011. Disponível em
Tratam-se aqui das falas de sujeitos que http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/
ocupam a posição enunciativa de professores de fale/article/view/9215. Acesso em 20/11/2014.
Língua Portuguesa, especificamente envolvidos ______Entre a transparência e a opacidade:
com a Metodologia de ensino de Língua um estudo enunciativo do sentido. Trad. L. B.
Portuguesa para a formação do futuro professor Barsiban & V. N. Flores. Porto Alegre:
de Letras-Português, o que nos permite EDIPUCRS, 2004.
vislumbrar o impacto dos efeitos de sentido
______Palavras incertas: as não coincidências
produzidos por essas falas, em relação aos
do dizer. Campinas: UNICAMP, 1998.
pontos mais polêmicos que identificamos no
contexto do perfil da disciplina MELP no
âmbito das três IES aqui estudadas.

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577
______Heterogeneidade(s) enunciativa(s). In:
Cadernos de Estudos Linguísticos. Campinas:
IEL/UNICAMP, n. 19: p.25-42, jul.; dez.1990.
BAKHTIN. (V. N. Volochínov). Marxismo e
filosofia da linguagem: Problemas
fundamentais do método sociológico na ciência
da linguagem. Trad. M. Lahud.; Y. F. Vieira.
2. ed. São Paulo: HUCITEC, 1981.
BRITO, M. A. P. Marcas linguísticas da
interpretação psicanalística – heterogeneidades
enunciativas e construção de referências. 2010.
213 f. Tese (Doutorado em Linguística
Aplicada). Universidade Federal do Ceará,
Fortaleza: CE. 2010.
KRISTEVA, J. Introdução à Semanálise. São
Paulo: Perspectiva, 1974.
LACAN, J. O seminário, livro 2. O eu na teoria
de Freud e na técnica da psicanálise. Rio de
Janeiro: Zahar, 2010.
MAINGUENEAU, D. Análise de Textos e
Comunicação. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2008.
PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma
crítica à afirmação do óbvio. Trad. Eni Pilcinelli
Orlandi et al. Campinas: UNICAMP, 1995.

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578
MÍDIA E RELIGIÃO: O USO DA INTERNET PELO PASTOR
SILAS MALAFAIA NO ACONSELHAMENTO SOBRE A
PUBLICIDADE DE “O BOTICÁRIO”

Mônica Santos de Souza MELO


Universidade Federal de Viçosa (UFV-CNPq)
monicamelo@ufv.br

Resumo: Esse trabalho é um recorte do projeto: “A midiatização do Discurso Religioso:


a tecnologia a serviço da religião” (CNPq-PQ-2014). Tal projeto aborda a articulação
entre os domínios midiático e religioso. Nesse artigo analisamos as estratégias
argumentativas adotadas em uma mensagem do Pastor Silas Malafaia, veiculada no seu
canal oficial do youtube, que trata da campanha publicitária da empresa “O Boticário”
para o dia dos namorados, campanha essa que gerou bastante polêmica por veicular
representações de relações homoafetivas. Nossa investigação adota como eixo teórico a
Análise Semiolinguística do Discurso, de Patrick Charaudeau, especificamente a
descrição das estratégias de captação, legitimação e credibilidade adotadas e conclui que
essas estratégias são articuladas a favor da tese defendida pelo locutor.
Palavras-chave: discurso religioso; mídia; semiolinguística.

cidadã, favorecendo a captação dos fiéis. Ao


Introdução mesmo tempo, tal situação impõe aos
Esse trabalho é parte do projeto representantes das instituições religiosas uma
intitulado “A midiatização do Discurso necessidade de adaptação do seu discurso às
Religioso: a tecnologia a serviço da religião”, novas situações de comunicação que se
financiado pelo CNPq (PQ-2014). Tal projeto apresentam. Abordamos, nesse artigo a relação
aborda um fenômeno de importância crescente entre mídia e religião, focalizando o fenômeno
em nossa sociedade: a articulação entre os que tem sido identificado como “midiatização
domínios midiático e religioso, que tem do discurso religioso”, responsável pelo
promovido a ampliação do espaço religioso surgimento de uma série de interações cujos
para além dos templos. O desenvolvimento e a formatos tentam adaptar o discurso religioso à
diversificação dos dispositivos midiáticos têm mídia, especialmente à rede mundial de
permitido a inserção da igreja nos lares, computadores (internet). Para isso, tomamos
promovendo a interação entre a instância de como eixo teórico a Análise do Discurso
produção do discurso religioso e a instância Semiolinguística de Patrick Charaudeau. Nesse

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estudo, nos centraremos na descrição das formal, mas de mudanças de caráter simbólico.
estratégias de captação, legitimação e Veremos, a seguir, como essa interseção se dá
credibilidade adotadas num mensagem do na mensagem analisada, iniciando pela definição
Pastor Silas Malafaia no seu canal oficial do do quadro enunciativo no qual essa se insere,
youtube em torno da campanha publicitária da para depois analisarmos as estratégias
empresa “O Boticário” para o dia dos argumentativas empregadas.
namorados, campanha essa que gerou bastante
2. O quadro enunciativo da mensagem de
polêmica entre o público em geral, por veicular
Silas Malafaia
representações de relações homoafetivas. O
vídeo postado pelo Pastor teve grande Silas Malafaia é presidente Assembleia
repercussão, tendo obtido mais de 590 mil de Deus Vitória em Cristo. É também
visualizações e serviu como um “ingrediente” a conferencista, sendo conhecido dentro e fora do
mais para fomentar as discussões a respeito do meio evangélico. Além disso, coordena e
tema. Fizemos, primeiramente, o download do apresenta o programa Vitória em Cristo, que
vídeo e sua posterior transcrição para em está há 30 anos no ar e é exibido para várias
seguida fazer a descrição e análise dos dados. A cidades do Brasil, todos os sábados, pela Rede
descrição e análise dos dados nos permitiram Bandeirantes, Rede TV e CNT. Possui canal no
verificar que a instituição, representada pelo youtube no qual publica programas de TV e
Pastor, afeta e é afetada pela mídia, recorrendo mensagens mais breves de aconselhamento
a novas formas de linguagem e assumindo uma moral, político e espiritual. No presente
configuração bem diferente da tradicional para aconselhamento, o Pastor Silas Malafaia critica
difusão das crenças e princípios ditados pela propagandas que incentivam o
igreja. homossexualismo.
1. A midiatização do discurso religioso Toda produção midiática envolve um
complexo processo enunciativo, tanto na
As mídias têm se tornado um dispositivo instância de produção quanto na instância de
importantíssimo para a promoção da religião e recepção. A partir de Charaudeau (2008),
das igrejas, dando a elas a visibilidade podemos descrever o ato de linguagem
necessária para que elas se consolidem. Trata-se subjacente à mensagem analisada. No circuito
do processo de midiatização do discurso externo da comunicação, temos o Eu-
religioso. Para Gasparetto (2011), a comunicante (Eu-c), que é composto dos
midiatização pode ser definida como “fenômeno elementos da instância midiática (o canal do
técnico-social-discursivo pelo qual as mídias se youtube com os componentes técnicos
relacionam com outros campos sociais, envolvidos em qualquer produção midiática- a
afetando-os e por eles sendo afetados” direção, a produção, por exemplo) e da
(Gasparetto, 2011, p. 16). Sendo assim, ao instância religiosa, isto é, a Igreja Assembleia
adotar a mídia como mecanismo de promoção, de Deus Vitória em Cristo, aqui representada
as igrejas são afetadas pelas características pelo pastor. No circuito interno, temos um
desse dispositivo, o que impõe novas práticas enunciador que se configura como um
discursivas e novas formas de diálogo com o mensageiro-aconselhador, que se dirige a um
fiel. Trata-se não apenas de alterações de ordem
espectador/internauta, o qual ele mesmo

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580
identifica ao longo de sua fala: “tô aqui pra mesma verdade, mas uma veracidade, que
dizer pra evangélicos, pra católicos, pra dependeria das representações socioculturais
espíritas, pra ateus, gente que acredita na partilhadas pelos membros de um grupo dado
família milenar(...)”. Temos, ainda, na instância em nome da experiência e do conhecimento;
de recepção, como interpretante, todo e assim, a existência de um dispositivo
qualquer internauta que se detenha diante da argumentativo não determina a forma particular
tela do computador, para assistir o programa. que assumirá a argumentação num texto, mas
essa depende dos fatores situacionais, isto é, da
Na articulação entre as instâncias de
influência determinada pela situação de troca e
produção e recepção nota-se que ocorre uma
pelo contrato de fala.
situação de assimetria típica do discurso
religioso. Isso se deve não só ao fato de se Verifica-se nessa definição a concepção
tratar de uma comunicação midiática, mas pragmática e dialógica da argumentação. Sob
também por haver uma desigualdade na relação esse ponto de vista, argumentação no
entre os planos espiritual (representado pelo aconselhamento teria como objetivo levar o
locutor-apresentador) e terreno (representado ouvinte a adotar determinada crença e, em
pelos internautas). Segundo Orlandi (1987), decorrência disso, um comportamento (o fazer-
esses dois planos são afetados por um valor crer e o fazer-fazer, respectivamente). Além
hierárquico, uma vez que o falante é um disso, o formato dessa argumentação seria
representante de Deus, que é imortal, eterno, ditado pelo público ao qual ela se destina.
onipotente, onipresente, onisciente, enquanto os Veremos, a seguir, como as estratégias
ouvintes são mortais e passageiros. discursivas adotadas refletem esse caráter
dialógico e pragmático da argumentação.
3. Procedimentos argumentativos e
estratégias discursivas 4. A noção de estratégia no âmbito da
A mensagem analisada tem como Teoria Semiolinguística
objetivo convocar o público em geral para se Para Charaudeau (2008), todo ato de
posicionar contra empresas que investem em linguagem se insere num projeto geral de
publicidades que incentivam as relações comunicação que é concebido por um sujeito
homossexuais, dentre elas a “O Boticário”. comunicante, o qual precisa organizar seu
Consiste num aconselhamento de ordem moral, discurso em função da situação em que se
pautado em princípios da igreja. encontra e de suas intenções comunicativas.
Como vimos, o ato de linguagem comporta
O gênero aconselhamento é
dois espaços: um espaço de restrições, que
predominantemente argumentativo.
compreende as condições mínimas às quais o
Entendemos, adotando a posição de
ato de linguagem deve satisfazer para que seja
Charaudeau (2010), que a argumentação é um
válido, e um espaço de estratégias, que
processo intersubjetivo, já que exige, além de
corresponde às possíveis escolhas que os
um sujeito que desenvolva uma asserção sobre
sujeitos podem fazer na mise en scène
uma tese, um outro sujeito que constitui o alvo
comunicativa, a fim de alcançar seu objetivo: a
da argumentação e a quem o sujeito que
identificação entre o interpretante e o
argumenta pretende levar a partilhar não a
destinatário.

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581
No âmbito da Teoria Semiolinguística, a 5. Estratégias de captação, legitimação e
noção de estratégia diz respeito, portanto, à credibilidade na mensagem do pastor Silas
margem de manobra de que o enunciador
5.1. Estratégias de Captação
dispõe para operar escolhas entre os modos de
organização do discurso e os modos de As estratégias de captação objetivam
construção textual, tendo em vista as restrições levar o interlocutor a aderir ao que é dito, não
situacionais e as instruções de organização necessariamente a partir de argumentos lógicos,
discursiva e formal que se lhes apresentam. mas a partir de apelos de ordem afetiva
Para Charaudeau (2009), há três tipos de (pathos).
estratégias, que se distinguem por sua finalidade No plano visual, destacamos, em
e que correspondem a um tipo de condição para primeiro lugar, o uso do plano médio, no qual
a mise-en-scene discursiva: as estratégias de desloca-se o foco do cenário para o locutor, o
captação, legitimação e credibilidade. Essas que direciona a atenção do espectador para
três modalidades de estratégia servem para este e para sua mensagem. Em segundo lugar,
construir uma identidade discursiva do sujeito, verificamos o uso do dispositivo enunciativo de
como veremos a seguir. Têm, portanto, a mostração, que é construído a partir de um
finalidade de convencer o interlocutor da enunciador real que se afirma como pertencente
posição de autoridade do locutor. ao mesmo universo que seu destinatário,
Como se trata de um discurso composto interpelando-o. O destinatário é construído
de estratos visual e verbal, cabe analisar essas como um sujeito individualizado. Estabelece-se
estratégias tanto no plano da enunciação verbal uma aparente ausência de mediação entre a
quanto da enunciação, nos termos de Lochard e cena representada e o sujeito observante,
Soulages (1993). privilegiando-se a transparência e o contato
individualizado. Esse dispositivo tem como
Soulages (1999) acredita que o modo de direcionamento típico o
conjunto das mensagens audiovisuais necessita direcionamento direto, que adota o contato
de instrumentos de análise que esclareçam as olhos-nos-olhos, que simula um diálogo entre o
formas de estruturação que nelas se elaboram.
enunciador e o espectador, sugerindo uma
Para esse autor, existem no interior do sistema proximidade entre eles.
icônico tipos de estruturação ou de
procedimentos que podem operar como No plano verbal, ocorre o uso de
instruções de sentido. Assim, os componentes linguagem coloquial, da modalidade alocutiva ,
das mensagens televisuais se comportariam de vocativos como “minha gente” e do uso do
como signos, capazes de veicularem valores pronome “nós”, que sugerem aproximação:
denotados e conotados. Descreveremos, em “nós somos a maioria.” e chamamentos como
linhas gerais, alguns aspectos referentes à “Deixa eu dizer uma coisa pra você”. Essas
composição visual e verbal da mensagem estratégias procuram simular uma familiaridade
analisada. que camufle a assimetria na relação entre os
parceiros, típica do discurso religioso, que se dá
em função de uma autoridade do locutor em
relação ao público. Além disso, adota-se uma

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atitude polêmica, na qual identificam-se
As estratégias de credibilidade visam a
possíveis adversários (os “pseudodemocratas”,
levar o interlocutor a acreditar que aquilo que o
aqueles que querem “ensinar crianças e jovens
falante diz é “digno de fé”. Dizem respeito,
o homossexualismo”), questionando suas
portanto, ao logos, ou seja, ao raciocínio
atitudes e ideias. Adota-se, ainda, uma atitude
expresso.
de sedução, pela qual o pastor assume uma
identidade de beneficiário (na mensagem em No plano da enunciação visual, verifica-
questão, a imagem do guardião da “família se uma imagem de seriedade, associada a um
milenar”). ritmo pausado de fala e tom de voz
predominantemente moderado. Destaca-se,
5.2. Estratégias de legitimação
ainda, o emprego do plano médio, que lembra
As estratégias de legitimação surgem os enquadramentos predominantes nos
da necessidade de criar ou de reforçar a posição telejornais e que sugere certa sobriedade,
de legitimidade do sujeito falante quando este contribuindo para reforçar uma imagem de
tem dúvidas quanto à maneira pela qual o outro seriedade do locutor.
percebe seu “direito à palavra”. Relacionam-se,
No plano da enunciação verbal,
portanto, à imagem de si construída pelo
constatamos que a estratégia de credibilidade se
locutor no discurso, ou seja, seu ethos.
materializa através da postura discursiva de
No plano visual, percebemos que o engajamento adotada pelo pastor, que
cenário em que o vídeo é ambientado é um representa uma tomada de posição diante da
escritório. Trata-se de um espaço de trabalho questão abordada. Esse engajamento aparece
que não se vincula à igreja sendo, portanto, um em afirmações nas quais se emprega a
espaço aparentemente neutro, que permite que modalidade elocutiva, tais como: “Eu sou
o enunciador ative sua imagem de cidadão, e contra. É um direito meu. Sou contra.” “Eu
não de pastor. tenho direito de preservar macho e fêmea.”
No plano verbal o pastor defende o seu Recorre, ainda, à modalidade delocutiva,
direito à palavra (assegurado pelo Estado através da qual tenta convencer o interlocutor,
democrático). Propõe uma inversão da imagem tanto da verdade de suas asserções, quanto de
atribuída a ele de pessoa intolerante e coloca-se sua sinceridade. Tal comportamento se verifica
na posição, ele sim, de vítima de intolerância na forma como define o “homossexualismo”,
de “pseudodemocratas” por manifestar sua como vimos acima.
opinião contrária ao comportamento Na busca da influência, que consiste em
homossexual. É o que depreendemos de fazer o outro partilhar um universo de discurso,
afirmações como: “Se estamos na democracia o pastor-enunciador recorre a procedimentos
pra todo mundo pensar a mesma coisa é argumentativos e outros meios proporcionados
ditatura do consenso. Ditadura de opinião.” “E pelo dispositivo enunciativo adotado e pelos
no Estado democrático de direito eu posso me modos de organização do discurso. Esses
expressar (...)”. procedimentos se definem a partir da seguinte
5.3. Estratégias de credibilidade tese: aqueles que acreditam na família milenar
devem boicotar empresas que fazem campanhas

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publicitárias que incentivam as relações um efeito de evidência e de saber para o sujeito
homossexuais. Para defender essa tese, adota que argumenta. Pode se basear num saber de
vários procedimentos argumentativos, dos quais senso comum (saber de crença) ou num
destacamos a comparação e a definição. conhecimento científico (saber de
conhecimento). O pastor recorre ao
O procedimento da comparação
procedimento da definição para promover uma
participa, ao mesmo tempo, das categorias de
construção aparentemente objetiva do mundo,
qualificação e quantificação. A comparação
mas que, de fato, representa saberes de crença.
participa da qualificação, porque quase sempre
Nesse sentido, ao dizer “homossexualismo é
as propriedades são focalizadas para que sejam
comportamento, não é condição. Essa é que é a
destacadas a semelhança ou a diferença entre
verdade.”, o pastor expressa uma visão não
elas; e participa da quantificação, porque ora se
universal, mas do segmento da sociedade o qual
comparam quantidades, ora se faz uma
representa. Sabe-se que o termo
comparação graduada de propriedades. No
“homossexualismo” traz uma conotação de
âmbito da argumentação, a comparação é
patologia, sendo uma nomeação descartada pela
utilizada para reforçar uma proposta. A
Organização Mundial de Saúde. Usando esse
comparação pode ser subjetiva ou objetiva. Na
termo, o locutor recupera, implicitamente, a
mensagem em questão, temos uma comparação
polêmica tese da “cura gay”, defendida por
subjetiva, definida a partir do domínio do ético,
algumas vertentes evangélicas. Por outro lado,
que classifica as ações humanas em termos do
ao acentuar que o “homossexualismo é
que seria certo ou errado. Nesse caso, o pastor
comportamento”, apela a outra vertente,
utiliza a comparação para distinguir dois grupos
segundo a qual, como qualquer
de pessoas: os “democratas” e os
comportamento, este também pode ser mudado.
“pseudodemocratas”. O primeiro grupo, do qual
o pastor faz parte, seria “a maioria” e teria, As estratégias de captação, legitimidade
segundo o pastor, o direito de expressar sua e credibilidade, em conjunto, possibilitam criar
opinião sobre qualquer comportamento. Já o uma imagem que autoriza o pastor a estabelecer
segundo, representaria um grupo de pessoas que um fazer ao seu destinatário: “Então eu quero
não admitem a expressão de opiniões que não conclamar (...) as pessoas de bem (...) pra
correspondem à sua. Assim, o primeiro grupo, boicotarem os produtos dessa empresa, como
que defende a “família milenar” estaria sendo agora O Boticário.”
vítima de intolerância por parte do segundo
Considerações finais
grupo.
A midiatização do discurso religioso é
A definição, procedimento também um fenômeno que permite aos representantes
adotado, é uma atividade de linguagem que da igreja se aproximarem dos fiéis, através de
pertence à categoria da qualificação e ao tipo recursos ligados ao estrato visual e verbal. Na
textual descritivo. Consiste em descrever os mensagem analisada, o pastor Silas recorre a
traços semânticos que caracterizam uma esses recursos, adotando estratégias de
palavra, num certo tipo de contexto. No âmbito captação, legitimação e credibilidade para
de uma argumentação, a definição é utilizada defender a sua tese de que a sociedade deve
com fins estratégicos: ela serve para produzir
preservar a estrutura tradicional de família.

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Ainda conclama o fiel a boicotar toda empresa
ORLANDI, E. P. A Linguagem e seu
que defenda relações homoafetivas. O grande
funcionamento: as formas do discurso. 2. ed.
número de acessos à mensagem e a repercussão
Campinas: Pontes, 1987
obtida são evidências de como a midiatização
tem se tornado um recurso eficiente no sentido MALAFAIA, S. Pr. Silas Malafaia Critica
de ampliar o espaço de atuação da igreja. Propagandas que Incentivam o
Homossexualismo. Vídeo (2min54s).
Disponível em:
Referências <http://www.youtube.com/watch?v=Rn8ETNo
CHARAUDEAU, P. Linguagem e discurso. s9g. Acesso em 03 jun. 2015
Modos de organização. SP: Contexto, 2008. PERELMAN, C. e OLBRECHTS-TYTECA,
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situacionais e construção textual. In: Martins Fontes, 1996.
MACHADO, I. L. e MELLO, R. (orgs.) SOULAGES, J-C. Les mises en scènes
Gêneros: reflexões em Análise do Discurso. visuelles de l’information. Étude comparée
Belo Horizonte: NAD/FALE/UFMG, 2004. France, Espagne, États-Unis. Paris: Nathan,
________. Identidade social e identidade 1999.
discursiva, o fundamento da competência
comunicacional. In : PIETROLUONGO, M.
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Contra Capa, 2009, p. 309-326.
______. O discurso propagandista : uma
tipologia. In: MACHADO, I. L. & MELLO, R.
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Janeiro: Nova Fronteira (Lucerna) 2010, p.57-
78.
GASPARETTO, P. R. Midiatização da
religião. Processos midiáticos e a construção
de novas comunidades de pertencimento. SP:
Paulinas, 2011.
LOCHARD, G. e BOYER, H. La
communication médiatique. Paris: Du Seuil,
1998.
LOCHARD, G. e SOULAGES, J-C. La
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______ . L’étude d’un genre televisuel: le “talk
show”. Rapport scientifique des equipes du
CAD. Paris: Université de Paris XIII, fev. 1993.

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585
DISCURSOS NA SAÚDE: PRODUÇÃO DE SENTIDOS DOS
PROFISSIONAIS SOBRE A DOENÇA TUBERCULOSE E O
DOENTE

Fernando MITANO
Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto – Universidade de São Paulo (EERP-USP)
fernando.mitano@usp.br

Resumo: Com este trabalho pretendemos trazer resultados parciais de pesquisa científica
que investiga, à luz das contribuições teórico-metodológicas da Análise de Discurso de
matriz francesa, a produção de sentidos dos profissionais de saúde sobre a doença
tuberculose e o doente. O discurso biomédico-“autoritário” tem caracterizado o processo
de tratamento, constituindo a forma do tratamento e de significação da doença para o
doente. Assim, objetivamos compreender os sentidos produzidos a partir desse processo
terapêutico.
Palavras-chave: discurso; sentidos; saúde; doença.

Introdução Tal enfermidade tem sido


compreendida como uma doença que ameaça a
A produção de sentidos sobre a doença
humanidade há vários anos e, na década de
e o doente depende do modo de produção
1990, foi declarada como uma emergência pela
existente em uma sociedade histórico-
Organização Mundial de Saúde (WHO, 2014).
ideologicamente determinada. Esses sentidos
Os profissionais que trabalham no combate à
são produzidos não só em referência às
doença, interpelados prelo discurso biomédico
formações discursivas responsáveis por
do paradigma dominante, encontram-se
determinar o que pode e deve ser dito a partir
assujeitados em uma formação imaginária do
de uma determinada posição numa conjuntura
que é a doença e o doente da TB, projeções
sócio-histórica dada (ORLANDI, 2013), mas
essas que “permitem passar das situações
também da memória. Assim, as palavras que
empíricas - aos lugares dos sujeitos – para as
constituem o dizer não são propriedade
posições dos sujeitos no discurso” (ORLANDI,
particular de quem diz. Nesse contexto o
2013, p. 43). O discurso, enquanto efeitos de
sujeito profissional de saúde embasado pela
sentidos entre os locutores (ORLANDI, 2013;
ideologia, atravessado por outros discursos, por
PÊUCHEUX, 2009), é perpassado por outras
vozes exteriores que o constituem, produz
vozes, que significam dentro das formações
sentidos sobre a doença tuberculose (TB) e o
discursivas nas quais os sujeitos se inscrevem
doente.
permitindo-lhes exercer um poder sobre o

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586
doente através dos procedimentos clínicos combater eficazmente essa doença. Estamos a
(exames) que classificam o indivíduo como falar de equipamentos laboratoriais para a
sujeito doente. Segundo Foucault (2014a, p. deteção de casos, recursos humanos
181) “o exame combina as técnicas de qualificados, infraestruturas adequadas, meios
hierarquia que vigia e as da sanção que de transporte, incluindo medicamentos que
normaliza. É um controle normalizante, uma sustentem todo o tratamento.
vigilância que permite qualificar, classificar e O Sistema Nacional de Saúde está
punir”. Os exames reforçam a ideologia que subdividido em três níveis de gestão: central,
interpela o sujeito em indivíduo e a formação provincial e distrital. A relação é de
discursiva interferindo na produção de
subordinação, ou seja, o nível distrital recebe
sentidos. Nesse contexto reflexivo, este artigo orientações do nível provincial e este, por sua
tem como objetivo compreender os sentidos
vez, do nível Central. Neste nível (Central) são
produzidos pelos sujeitos profissionais em produzidas ideias e planos para serem
relação à TB e o doente. executadas pelos dois níveis subsequentes:
1. Desenvolvimento do artigo províncias e distritos.
Compreender os sentidos produzidos O modo de produção dos serviços de
através do discurso num contexto da doença da saúde do país se insere no paradigma
TB requer a compreensão da dimensão do dominante da medicina, no qual o dente é
problema e das condições de produção, ou seja, alguém que procura a cura e, para isso, só lhe
dos sujeitos e sua situação, (ORLANDI, 2013; cabe a obediência. O profissional de saúde é o
PÊCHEUX, 2009). detentor do conhecimento biomédico capaz de
compreender o doente e curá-lo. Trata-se de
A TB é um problema de saúde pública
uma formação discursiva terapêutica que
principalmente para os 22 países que
inscreve discursivamente o doente como
contribuem com mais de 80% dos casos, dos
simples objeto de cumprimento de regras e
quais Moçambique faz parte, ocupando o 3º
passível de ser disciplinado para não espalhar a
lugar (WHO, 2014). Embora haja esforços
doença. A disciplina, como exercício de poder
para combater a doença, ela nunca deixou de
tem sido entendida como,
constituir uma ameaça para a saúde,
principalmente para países em uma técnica de poder que implica uma
desenvolvimento como Moçambique, onde os vigilância perpétua e constante dos
serviços sanitários ofertados continuam sem indivíduos. Não basta olhá-los às vezes ou
laboratórios para além da falta de profissionais ver se o que fazem está conforme a regra. É
qualificados. A TB é a segunda doença que preciso vigia-los durante todo o tempo da
mais causa mortes em Moçambique atividade e submetê-los a uma perpétua
(MOÇAMBIQUE, 2011). O país está em pirâmide de olhares (FOUCAULT, 2014b,
desenvolvimento, vizinho dos dois países mais p. 95).
afetados pela TB no mundo (África do Sul e
Zimbabwe). O índice de mortalidade pela TB é É no processo de poder que se
um dos mais elevados do mundo. A taxa de produzem determinados sentidos sobre doença
infeção de TB está aumentando cada vez mais, e doente, dependendo das formações
e o país está sem meios suficientes para

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discursivas e das formações ideológicas em que realização deste estudo só foi possível após a
os profissionais estejam inscritos. aprovação pelo Comitê Nacional de Bioética de
Moçambique e autorização do Ministro da
2. Abordagem teórica e metodológica Saúde.
Trata-se de um estudo qualitativo que Nosso corpus é constituído por recortes
recorre à abordagem teórica e metodológica da de entrevistas semiestruturadas aplicadas aos
Análise de Discurso (AD) de matriz francesa. sujeitos “coordenadores e “clínicos”. Desses
A AD permite interrogar os sentidos recortes, originaram as sequências discursivas
estabelecidos em diversas formas de produção sobre as quais nos debruçamos para efetuarmos
tanto verbais e não-verbais para a interpretação. as análises discursivas (CORTINE, 2009).
A AD, por meio da ideologia, produz Fizemos as análises do material bruto
evidências pondo o homem numa relação (entrevistas e suas condições de produção),
imaginária com as condições materiais da selecionando os recortes.
existência (ORLANDI, 2009). Nesse contexto,
a abordagem qualitativa é a mais apropriada 3. Análises e discussão
para elucidar os complexos processos de Fizemos as análises tendo em conta as
constituição da subjetividade, como as crenças, posições assumidas pelos sujeitos entrevistados
as experiências e as percepções, nos processos e suas condições de produção e as formações
individuais de tomada de decisão (HOLANDA, discursivas nas quais eles se inscrevem.
2006). Essa abordagem é importante e
imprescindível para este estudo, porque Recorte número 1
pretendemos analisar a produção de sentidos,
“A TB é um desafio…, porque nós estamos
que são subjetivos, e absolutamente individuais
aqui mas há áreas que nós não chegamos e
a partir duma realidade socio-histórica dada. Monapo é vasto, é desafio tanto para o
O estudo realizou-se em Moçambique, responsável do PNCT. É grande desafio
África, entre maio e agosto de 2014. para os BK negativo, porque quando a
Participaram quinze Profissionais de Saúde paciente tosse, aí aleluia” (Sujeito- gestor e
ligados ao programa Nacional de Controle da clínico)
Tuberculose (PNCT), que ocupavam as
As sequências discursivas “é desafio”,
posições de sujeito “gestor” e “clínico”
“é um grande desafio” produzem sentidos que
responsáveis pelo tratamento diretamente
remetem ao imaginário coletivo da doença TB
observado da TB, que consiste em o paciente
como perigosa e de fácil contágio, que ameaça
consumir os medicamentos na presença do
a vida da população, mas por outro lado
profissional da saúde. Os recortes analisados
produzem sentido de dificuldade do PNCT em
neste texto pertencem aos profissionais que
controlar a doença, como é bem denunciado
trabalham nos distritos da província de
pelas marcas linguísticas “há áreas que nós não
Nampula. Trata-se de distritos com deficiências
chegamos”. Essa falta de cobertura deve-se à
de profissionais qualificados, falta de meios
falta de profissionais qualificados, laboratórios,
para a detecção de casos de tuberculose, e com
meios de transporte e de limitados recursos
dificuldade de transporte. Todos esses
financeiros, (WHO, 2014; MOÇAMBIQUE,
profissionais da saúde recebem orientações de
2011).
como tratar o doente a partir da província. A

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Os sentidos produzidos sobre o doente Com ajuda do voluntário conseguimos
estão ancorados numa formação discursiva que manter o doente no sistema. O voluntário
entende o doente como debilitado, com tosse registra a quantidade de medicamento que
persistente, febre, sudorese noturna e ele forneceu ao doente, mas às vezes, nós
emagrecimento (BRASIL, 2011). Portanto, um próprios fazemos visitas e buscas
doente incapacitado que deve obediência ao imediatas. Nessas buscas perguntamos ao
cumprimento rigoroso da medicação. doente se o voluntário ofereceu a
medicação ou não e aí sabemos se ele
Observamos também que o sujeito recebe ou não. (Sujeito gestor).
profissional de saúde, valendo-se da memória
discursiva, “o saber discursivo que torna A sequência discursiva “com ajuda dos
possível todo dizer” (ORLANDI, 2013, p. 31), voluntários conseguimos manter o doente no
atualiza um discurso milenar da doença que sistema”, indicia como o poder e a vigia são
tem sido acompanhada de estigma e medo exercidos para com os doentes, por meio de
(WHO, 2014). agentes comunitários de saúde (ACS), os
voluntários. Por outro lado, as mesmas
Recorte número 2 sequências denunciam a importância de ajuda
“O doente com suspeita de TB é observado dos voluntários. É como aludem Terra e
numa consulta normal, é-lhe pedido o Bertolozzi (2008) que os agentes comunitários
exame de Bacilo de Koch (BK) quando o de Saúde no processo de adesão ao tratamento
BK é positivo o doente é acompanhado ao são importantes porque eles atuam como
sector do Programa Nacional Controle da indivíduos facilitadores ao viverem de perto o
Tuberculose”. (Sujeito-clínico) cotidiano da vida do doente. Salientamos que
os ACS são de grande importância para as
Observamos nesse recorte, o discurso comunidades, porque eles identificam os
médico-“autoritário”, representado pelas indivíduos sintomáticos respiratórios nas suas
sequências discursivas “é observado”, “é-lhe aldeias ou comunidades; encaminham os casos
pedido”, “é acompanhado”, em que o sujeito suspeitos às unidades sanitárias mais próximas;
profissional de saúde, interpelado pela orientam a coleta e encaminhamento do
ideologia, coloca o sujeito doente na posição de escarro; supervisionam o uso de medicamentos
incapacitado, que se deve submeter, conforme orientações fornecidas pela equipa
resignadamente, às ordens impostas pelo médica; fazem visitas domiciliares; fazem
Sistema Nacional de Saúde. anotações na ficha de acompanhamento do
Como defende Foucault (2014, p. 188) o doente; realizam a busca ativa de faltosos e dos
“exame está no centro dos processos que que abandonam a medicação para além de que
constituem o indivíduo como efeito e objeto de realizam ações educativas junto às suas
poder”. Como se pode ver, o exame para além comunidades (MOÇAMBIQUE – MISAU,
de classificar as pessoas confere o poder ao 2010a; BRASIL, 2011a; BRASIL, 2011b;
sujeito profissional de saúde em controlar o TERRA; BERTOLOZZI, 2008).
sujeito doente de TB. No recorte seguinte, A sequência discursiva “nós próprios
observam-se vestígios de exercícios de poder. fazemos visitas e buscas imediatas” deixa
evidente o exercício de poder-médico-
Recorte número 3
disciplinador exercido pelos profissionais de

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589
saúde e ACS aos doentes. Este poder é
confiado aos médicos, enfermeiros ou ACS que A submissão do sujeito ao processo
devem vigiar o doente ao longo do tratamento terapêutico não é plena e não é completamente
(FOUCAULT, 2014). A literatura que trata do pacífica, envolvendo resistências, como
tratamento da TB enfatiza que a equipa médica podemos observar no recorte a seguir.
para além de detetar a doença por meio de Recorte número 5
exame deve medicar e acompanhar a evolução
da doença e fazer visitas ao domiciliário se Aquele primeiro encontro, sim senhor, o
necessário (BRASIL, 2011a; MOÇAMBIQUE- doente ouviu, mas muito mal, porque ele
MISAU, 2010). estava mal e estava disposto para melhorar,
e ele toma medicamentos 1 mês, 2 meses e
A resistência em aceitar a doença tem começa a se sentir melhor, então é aí, onde
sido constatada por parte dos sujeitos temos que atacar mais para poder chegar ao
profissionais de saúde, como podemos observar fim de tratamento, porque essa melhoria
no recorte 4. engana muito aos doentes, porque dizem
(…) estou a fazer as minhas atividades.
Recorte número 4
A tomada de posição do sujeito doente,
“(…) a TB ainda é uma doença que é marcada por tentativas de resistência à
negligenciada infelizmente as pessoas só se
evidência ideológica segundo a qual não teria
apercebem que a doença já está a tomar
conta dele quando já está numa fase
direito à palavra, gera conflitos e embates com
avançada. E eu acho que ainda temos de os sujeitos-coordenadores e clínicos, que, de
difundir muito a informação sobre a TB. diferentes formas, tentam discipliná-lo, a fim
(Sujeito-coordenador e clínico). de torná-lo dócil e obediente. As sequências
discursivas “para poder chegar ao fim de
As marcas linguísticas “a TB é uma tratamento”, “porque dizem (...) estou a fazer
doença que é negligenciada” por um lado minhas atividades” (d)enunciam a posição de
produzem sentidos da não aceitação ou sujeito “doente de TB” que se rebele e tenta
desconfiança da doença logo aos primeiros romper com o lugar em que é colocado, o de
sinais e sintomas que aparecem, mas por outro mero paciente, classificado a partir de
lado indiciam a falta de procura dos serviços protocolos e instrumentos clínicos, advindos do
hospitalares aos primeiros sinais e sintomas. paradigma biomédico, espaço discursivo
Essa dificuldade de aceitar ou desconfiar da hegemônico, semanticamente estabilizado e
doença contribui para a chegada tardia à detentor de saberes e regras sobre o doente. É
unidade sanitária para a primeira consulta. preciso recordarmos que, para que o paciente
Observamos também um seja considerado curado, deve ser exigido a
cumprir rigorosamente a medicação durante um
reconhecimento por parte do sujeito
profissional de saúde do pouco envolvimento período de 6 meses sem interrupção. A prática
“implacável” de medicação permite reconhecer
dos serviços de saúde na divulgação da
informação sobre a doença junto à população. os doentes, acompanhar a evolução da doença,
verificar a eficácia dos tratamentos e descobrir
A marcas linguísticas deixam evidente o nosso
argumento acima: “e eu acho que ainda temos os casos análogos. Essas práticas constituem
“um privilégio no processo de vigiar e do
de difundir muito”.

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590
exercício do poder ao doente, (FOUCOUALT,
2014a). É importante notar que, durante esse COURTINE, J.J. Análise do discurso político:
período de tratamento o doente passa por o discurso comunista endereçado aos cristãos.
exames que verificam a existência do bacilo no São Carlos: EduFscar, 2009.
organismo. São esses exames que determinarão FOUCAULT, M. A Arqueologia do saber. 7ª
se o doente está aderindo ao tratamento ou não ed. Rio de Janeiro: Forense universitária, 2008
e se está tendo melhorias ou não, se está curado
_______. Microfísica do poder. Rio de Janeiro:
completamente ou não (MOÇAMBIQUE,
Paz & Terra, 2014a)
2011).
_______. Vigiar e punir: o nascimento da
3. Considerações finais / Conclusões
prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 42ª ed.
Os sujeitos profissionais de saúde Petrópolis, RJ: Vozes, 2014b.
identificam-se com as formações
MOÇAMBIQUE – MIINISTÉRIO DA
discursivas que colocam a doença TB
SAÚDE. Política e Plano Nacional de
como perigosa e desafiadora; o doente na
Controlo da Infecção para a tuberculose em
posição de sujeito incapacitado, que se
unidades sanitárias e ambientes
deve submeter, resignadamente, às ordens
conglomerados de Moçambique. Maputo:
impostas pelo Sistema Nacional de Saúde.
Ministério da Saúde, 2011.
A demora de aceitação da doença
MOÇAMBIQUE – MINISTÉRIO DA
e a resistência ao processo terapêutico por
SAÚDE. Plano Estratégico Nacional de
parte do doente jogam um papel
controlo da tuberculose em Moçambique para
importante na produção dos sentidos em
o período 2008 – 2012. Maputo, 2007.
relação ao doente e à doença
ORLANDI, E.P. Análise de discurso:
A forma de produção de sentidos
princípios & procedimentos. 11ª ed. Campinas,
influencia no tratamento do doente,
SP: Pontes, 2013
considerado como “inadimplente”.
PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma
crítica à afirmação do obvio. Campinas, SP:
Referências Unicamp, 2009
BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. TERRA, M.F; BERTOLOZZI, M.R.
tratamento Diretamente observado (TDO) ta Tratamento diretamente observado (DOTS)
tuberculose na atenção básica: protocolo de contribui para adesão ao tratamento? Rev.
enfermagem. Brasília - DF: Ministério da Latino –am Enfermagem, 2008, 16(4)?
Saúde, 2011a.
WHO. Global Tuberculosis control. Genebra,
BRASIL. MINISTÉRIO DE SAÚDE. Manual 2014.
de recomendações para o controle da
tuberculose no Brasil. Brasília - DF: Ministério
da saúde, 2011b.

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591
MÍDIA E RELIGIÃO: A CONSTRUÇÃO DE IMAGINÁRIOS
SOCIODISCURSIVOS DO PAPA FRANCISCO EM NOTÍCIAS
SOBRE A JORNADA MUNDIAL DA JUVENTUDE NAS
REVISTAS VEJA E CARTA CAPITAL

Dayane Sávia MONTEIRO; Mônica Santos de Souza MELO


Universidade Federal de Viçosa (UFV)
dayanesavia@yahoo.com.br; monicassmelo@yahoo.com.br

Resumo: A Igreja católica enfrentou crises, que teriam culminado com a renúncia do Papa
Bento XVI. Atualmente, a presença do novo Papa tem surpreendido a todos por sua
postura diferenciada. Diante da grande divulgação que a imagem do Papa Francisco tem,
propomos uma análise acerca dos imaginários sociodiscursivos desse líder presentes nos
discursos das revistas Veja e Carta Capital a fim de interpretar a divulgação dessas
imagens. Para tanto, nos baseamos nos pressupostos da Análise do Discurso (AD) e em
especial na Teoria Semiolinguística. Os dados iniciais permitiram verificar uma tendência da
revista Carta Capital em adotar uma postura mais crítica em relação à figura do sumo-
pontífice e a sua vinda ao Brasil na Jornada Mundial da Juventude e já na revista Veja é
possível perceber a construção de uma imagem predominantemente positiva.
Palavras-chave análise do discurso; teoria semiolinguística; imaginários
sociodiscursivos; mídia; papa francisco.

exercendo o cargo de sumo-pontífice, deixando


Introdução
não só os fiéis, mas o mundo todo surpreso.
A situação da Igreja Católica nos
Sendo assim, com um dos conclaves
últimos tempos tem sido marcada por
mais rápidos da história da Igreja, contando
polêmicas, revoltas e crises. Sabe-se que a
com a presença de 115 cardeais na Capela
igreja tem enfrentado sérios problemas e
Cistina, foi eleito o cardeal argentino Jorge
acusações tais como a pedofilia e os desvios de
Mário Bergoglio, hoje Papa Francisco, o “papa
dinheiro. Bento XVI, por exemplo, passou por
dos pobres” (como foi “nomeado” assim que
difíceis momentos em seu papado e embora não
anunciou a escolha do nome papal). A opção
se tenha conhecimento sobre as razões exatas
por esse nome, segundo o próprio Bergoglio, se
de sua renúncia, ele foi o primeiro papa da era
deu em homenagem a São Francisco de Assis,
moderna a renunciar depois de oito anos
santo reconhecido pela simplicidade e por

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592
renunciar a sua fortuna em benefício dos Brasil. Sua trajetória foi acompanhada de forma
pobres. intensa pelos holofotes brasileiros e mundiais
durante a Jornada Mundial da Juventude
Para uma melhor contextualização,
(evento católico criado por João Paulo II em
queremos pontuar que Jorge Mario Bergoglio,
1986), que, de acordo com o portal de notícias
segundo informações do site oficial do
JMJ - Rio de Janeiro-2013, contou com a
Vaticano, é argentino, nasceu em 17 de
presença de aproximadamente 3,7 milhões de
dezembro 1936 na cidade de Buenos Aires, é
jovens do mundo todo.
filho de imigrantes italianos, pertence à ordem
jesuíta, foi arcebispo de Buenos Aires e no ano Diante disso, e pensando na grande
de 2001 foi nomeado cardeal pelo então papa divulgação que a imagem do Papa Francisco
João Paulo II. teve e dos imaginários formulados em torno de
sua figura pela mídia, pelos fiéis e pela
Nesse sentido, é interessante mencionar
sociedade em geral, propomos uma análise
também que, ao aparecer em público pela
acerca da forma como esse tipo de mídia tem
primeira vez, o papa recém-eleito já chamou a
representado esse importante líder religioso e
atenção não só por sua aparência serena e
também a maneira como as pessoas têm
simples, mas também pelo seu comportamento.
recebido, debatido e consumido esse tipo de
Um exemplo foi a atitude de pedir aos fiéis que
imagem.
orassem por ele antes mesmo de lhes conceder
a bênção, fugindo dessa forma dos costumes e Para tanto, nos baseamos nos
protocolos cerimoniais da Igreja Católica. pressupostos teórico-metodológicos da Análise
do Discurso (AD) da linha francesa,
O novo papa, como tem sido bastante
sintetizados por: ORLANDI (1987, 1999),
ressaltado pelos meios de comunicação, ao
BRANDÃO (1986), e em especial na Teoria
contrário de seus antecessores, recusou
Semiolinguística em CHARAUDEAU (2006,
diversos benefícios papais, tais como roupas de
2008, 2012). Dessa forma, na primeira parte
luxo, anéis, o carro oficial do Vaticano para
desse trabalho apresentamos algumas noções
levá-lo à basílica em Roma, dentre outros
centrais da Teoria Semiolinguística, dando
direitos, mostrando-se humilde e despojado.
destaque aos Imaginários Sociodiscursivos.
Esse comportamento teria provocado várias
Posteriormente partimos para a análise e
especulações, dentre elas a possibilidade de uma
discussão dos dados e finalmente trazemos as
“nova igreja” com posturas mais modernas
considerações finais e referências bibliográficas.
quanto a questões polêmicas e desafiadoras
como a homossexualidade, o celibato 1. A Análise do Discurso
sacerdotal, o divórcio, o ordenado de mulheres Segundo Orlandi (1999), a palavra
dentro da Igreja Católica, o diálogo ecumênico discurso traz em si a ideia de percurso, de
e inter-religioso, dentre outros temas que vêm correr por, de movimento, sendo o objeto da
sendo cobrados ao longo dos tempos pela Análise do Discurso o discurso. Ou seja, esta
sociedade. teoria se interessa em estudar a “língua
Outro acontecimento de grande funcionando para a produção de sentidos”. Isto
repercussão na mídia foi a vinda do papa ao permite analisar unidades além da frase, ou seja,

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593
o texto. E sendo assim, a Análise do Discurso espaço externo temos os parceiros que são
considera que a linguagem não é transparente e chamados seres sociais e psicológicos que
procura detectar, então, num texto, como ele estariam externos ao ato, mas inscritos nele,
significa, enxergando-o como detentor de uma definindo os traços identitários (Sujeito
materialidade simbólica própria e significativa comunicante - EUc e Sujeito interpretante-
(ORLANDI, 1999, p.17). TUi).
1.1. A Teoria Semiolinguística 1.1.2. Os Modos de Organização do
A Teoria Semiolinguística elaborada Discurso
pelo linguista francês Patrick Charaudeau tem Os Modos de Organização do Discurso
como principal compromisso a articulação entre dizem respeito aos princípios de organização da
o situacional e o linguístico, atentando para a matéria linguageira. São eles: o enunciativo, o
intencionalidade do sujeito, que é consciente, descritivo, o narrativo e o argumentativo. O
ainda que seja situado socialmente. Outro ponto modo enunciativo tem uma função particular na
importante nessa teoria está relacionado ao organização do discurso. Ainda que sua
implícito. Para Charaudeau o sentido não diz vocação seja de dar conta da posição do locutor
respeito somente àquilo que é significado em relação ao interlocutor, ele também
explicitamente por uma combinação de intervém na encenação dos outros modos. Esse
vocábulos, mas também pelo não dito, por modo comanda os demais. O modo descritivo
aquilo que está implícito. identifica os seres do mundo enquanto o
narrativo nos permite construir a realidade a
1.1.1. O contrato de comunicação
partir do desenrolar das ações. Finalmente, o
Segundo Charaudeau (2008), todo ato modo argumentativo refere-se aos
de comunicação social supõe um contrato. Esse procedimentos usados pelo enunciador com o
contrato permite aos parceiros se reconhecerem intuito de fazer seu interlocutor compartilhar
por meio de traços identitários reunindo as determinado ponto de vista.
condições necessárias para a realização do ato
de comunicação. Dentro desse contrato há sim 1.1.3. Os Imaginários Sociodiscursivos
restrições, mas há também um espaço de Charaudeau (2006) explica que o
manobras onde o sujeito pode jogar com o conceito de imaginários sociodiscursivos vem a
discurso visando atingir de forma mais efetiva o partir do estudo das representações sociais.
seu objetivo para com o seu interlocutor. Segundo ele, os estudos das representações
sociais é relativamente recente nas ciências
Nesse sentido, Charaudeau (2008)
sociais e na filosofia. Pensar na realidade sem
propõe um quadro de enunciação onde
considerar a presença do sujeito pareceu
acontece a encenação da linguagem e os
sempre insuficiente.
sujeitos assumem papéis. Esse quadro ilustra
dois espaços, o interno e o externo. Dentro do Dessa forma nasce a ideia da
espaço interno temos os protagonistas da interpretação da realidade, construída em
enunciação que são os chamados seres de fala função da posição do sujeito, das condições de
internos ao ato, definindo os papéis linguageiros produção que partem do contexto social no
(Enunciador- EUe e Destinatário TUd). Já no qual ele está inserido. As representações sociais

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594
possuem, portanto, três dimensões a cognitiva experimentação. Já os saberes de crença visam
(organização mental da percepção), simbólica sustentar um julgamento sobre o mundo,
(interpretação do real) e ideológica (atribuição pautado em apreciações e avaliações e não no
de valores). As representações são, portanto, conhecimento sobre o mundo. Dessa forma,
formas de ver o mundo e de julgá-lo mediante inclui-se o saber de revelação – que diz
discursos que engendram saberes. Os saberes respeito ao movimento de adesão do sujeito a
seriam, pois, as ‘maneiras de dizer’. uma verdade e está ligado à doutrinas; e o
saber de opinião – referente aos
Charaudeau divide esses saberes em
posicionamentos do sujeito com relação aos
duas categorias: os saberes de conhecimento e
fatos do mundo. Esse saber se subdivide em
os saberes de crença. Os de conhecimento
opinião comum que seria aquela universal, a
visam estabelecer uma verdade sobre os
opinião relativa que diz respeito ao
fenômenos do mundo e vão além da
posicionamento de um sujeito ou grupo naquela
subjetividade e, dessa forma, uma razão
circunstância especifica e a opinião coletiva,
científica constrói a representação da realidade.
aquela que retrata a posição de um grupo em
Já os saberes de crença visam sustentar um
relação a outro grupo.
julgamento sobre o mundo. Aqui, é o sujeito
que vai ao mundo e não este que se impõe a ele. Retomando, o conceito de imaginário
Nesse sentido, Charaudeau (2006) pontua: trata-se, portanto, da imagem que interpreta a
realidade, que a coloca em um universo de
“À medida que esses saberes, enquanto significações. A partir das representações
representações sociais constroem o real sociais surge a hipótese de a realidade não ser
como universo de significação, segundo o apreendida enquanto tal, ou seja, a realidade
princípio de coerência, falamos de
nela mesma existe sim, mas não significa.
‘imaginários’. E tendo em vista que estes
Charaudeau deixa claro que o imaginário não é
são identificados por enunciados
linguageiros produzidos de diferentes verdadeiro nem falso. O imaginário é da ordem
formas, mas semanticamente reagrupáveis, do verossímil, ou seja, daquilo que sempre é
nós o chamaremos de ‘imaginários possivelmente verdadeiro.
discursivos’. Enfim, considerando que Nesse trabalho, como dito
circulam no interior de um grupo social, anteriormente, temos por proposta uma análise
instituindo-se em normas de referência por acerca da construção desses imaginários
seus membros, falaremos em ‘imaginários
sociodiscursivos no que compete à figura do
sociodiscursivos’”. (p.203).
papa Francisco com o intuito de interpretar a
divulgação/ repercussão dessas imagens. Os
Nesse sentido, os saberes de discursos analisados foram veiculados por meio
conhecimento visam, portanto, estabelecer uma de notícias dos sites das revistas brasileiras Veja
verdade sobre os fenômenos do mundo, e Carta Capital que têm por temática a vinda
independente da subjetividade do sujeito. Esses do sumo-pontífice ao Brasil para a Jornada
saberes englobam o saber científico, que é Mundial da Juventude em julho de 2013.
comprovado, demonstrado; e o saber de
experiência, que se orienta pela 2. Análise e discussão dos dados

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595
conhecer a verdade dos fatos e busca por
A seguir, trazemos algumas discussões a pontos de vistas e opiniões diferenciados do
respeito da análise dos discursos materializados mercado. Cidadão crítico que troca
nos textos das quatro notícias selecionadas para informações em seu ambiente de trabalho,
compor nosso corpus, veiculadas pelas revistas inspirando-se na liberdade de expressão,
transparência e independência da revista”.
Veja e Carta Capital em 2013, ano da vinda do
Papa Francisco ao Brasil. Primeiramente
trazemos questões relacionadas ao perfil de A revista Veja foi escolhida também por
cada revista, bem como mais detalhes sobre as sua grande circulação e também por ter um
notícias analisadas dando ênfase aos posicionamento político oposto ao da Carta
participantes da encenação discursiva. Capital, o que pode gerar pontos de vista
Posteriormente, apresentamos e discutimos diferentes e justamente análises mais
sobre os imaginários sociodiscursivos interessantes. Segundo o site da revista: “Veja é
encontrados nas notícias e finalmente abrangente, cobrindo desde o mundo da
discutimos sobre o posicionamento e a política, economia, internacional, até artes e
argumentatividade de ambas as revistas cultura, com uma linguagem clara e atraente,
seguidas das considerações finais e referências. gostosa de ser lida”. Sobre a tiragem e o
público a revista diz:
2.1. As revistas
O corpus desta pesquisa foi coletado em “Juntas, as plataformas de Veja contam com
um contexto virtual, especificamente nos sites uma audiência de 12 milhões de pessoas.
oficiais das revistas brasileiras Veja e Carta São 9,3 milhões de leitores na versão
impressa, 150 mil na versão digital, 2,5
Capital. Dessa forma, faz-se necessário
milhões de visitantes únicos no portal
discorrer, mesmo que brevemente, acerca do
Veja.com, 36 mil leitores no app Veja
perfil de cada uma delas. Notícias, por semana”.
A revista Carta Capital foi escolhida
por sua grande circulação, bem como por tratar 2.2. Os participantes do ato de comunicação
de temas da atualidade. Segundo o próprio site
da revista: “A CARTA CAPITAL é Como dito anteriormente, nesse artigo
considerada leitura obrigatória para todas as foram analisadas quatro notícias, sendo duas de
pessoas que buscam não apenas informação cada revista. A primeira notícia veiculada pela
exclusiva e qualificada, mas uma visão crítica revista Carta Capital tem por Parceiros (seres
dos acontecimentos da política, economia e sociais): Locutor (Eu comunicante): Gianni
cultura, no Brasil e no mundo”. Sobre o público Carta e por Receptor (Sujeito interpretante):
alvo, as tiragens e as assinaturas, a revista diz: Todo individuo que tiver acesso ao conteúdo
do site oficial da revista Carta Capital. Já os
“Hoje, a Carta Capital conta com uma Protagonistas (seres de fala) são: Enunciador
tiragem de 65 mil exemplares semanais (...) (EUe): Jornalista da revista e correspondente
atingindo uma audiência de mais de 230 mil em Roma. Destinatário (TUd): “O público
leitores, de acordo com os dados dos leitor é altamente qualificado e gosta de
Estudos Marplan/EGM. (...). O público conhecer a verdade dos fatos e busca por
leitor é altamente qualificado e gosta de

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

596
pontos de vistas e opiniões diferenciados do revolucionário porque sua linguagem é
mercado.” (segundo o próprio site da revista simples e objetiva (...)”.
Carta Capital). Os participantes da segunda
Nesse excerto é possível encontrar um
notícia se diferem somente no que tange ao
Imaginário de Crença de Opinião Relativa:
Locutor e ao Enunciador, já que a mesma foi
Imaginário de humildade e simplicidade do
assinada pela própria redação da revista.
Papa Francisco versus um Imaginário de
Já a primeira notícia da revista Veja tem ostentação e linguagem rebuscada dos papas
por Parceiros (seres sociais): Locutor (Eu anteriores.
comunicante): Helena Borges e Adriana Dias Ainda nessa notícia temos:
Lopes e por Receptor (Sujeito interpretante):
Todo individuo que tiver acesso ao conteúdo b) “Por essas e outras, o papa, consagrado o
do site oficial da revista Veja. Já os homem do ano pela revista mensal italiana
Protagonistas (seres de fala) são: Enunciador Vanity Fair, homenagem para a qual ele não
(EUe): As duas jornalistas da revista Veja dá certamente a mínima visto que é contra o
(correspondentes em Roma). Destinatário culto da celebridade (...)”.
(TUd): “Um público diverso, já que a VEJA é Aqui, temos também um Imaginário de
abrangente com uma linguagem clara e atraente, Crença de Opinião Relativa: Imaginário de
gostosa de ser lida”. (segundo o site da própria uma papa que se destaca e recebe homenagem
revista). Os participantes da segunda notícia se versus um Imaginário de um homem simples
diferem somente no que tange ao Locutor e ao que não se importa com títulos e homenagens.
Enunciador, já que a mesma foi assinada pela
própria redação da revista. Outro exemplo interessante encontrado na
primeira notícia diz:
2.3. Os imaginários sociodiscursivos
c) “Durante a coletiva na Santa Sé, o padre
Nesse momento do trabalho, a fim de Lombardi sublinhou que o papa Francisco (ele
ilustrar os imaginários sociodiscursivos criados/ prefere ser chamado de arcebispo de Roma),
difundidos pelas revistas, trouxemos trechos não é o primeiro Santo Padre a visitar o Brasil”.
das notícias destacando a presença dessas Nesse trecho detectamos também um
imagens relacionadas principalmente ao papa Imaginário de Crença de Opinião Relativa:
Francisco e aos brasileiros dado o momento de Temos um Imaginário de simplicidade, pois o
sua vinda ao Brasil. papa escolhe descer na hierarquia clerical ao
A primeira notícia veiculada pela revista optar por ser chamado de arcebispo, cargo esse
Carta Capital foi intitulada: Francisco levará inferior ao de sumo-pontífice.
seu conceito de “misericórdia” ao Brasil. No próximo excerto, encontramos imaginários
Nessa revista podemos encontrar alguns referentes ao papa e ao brasileiro:
imaginários como é possível perceber nos
exemplos abaixo: d) “‘O papa tem tudo a ver com o espírito
acolhedor do brasileiro’, finaliza o
a) “Chega ao Brasil, portanto, um papa embaixador”. Aqui temos primeiramente um
diferente de seus antecessores. Ele é Imaginário de Crença de Opinião Relativa:

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597
Uma imagem de um papa acolhedor e
No próximo excerto podemos verificar como a
carismático versus um Imaginário de Crença
revista enxerga/ divulga a figura do sumo-
de Opinião Comum: Imaginário muito
pontífice antes de sua eleição:
difundido de que o povo brasileiro é
hospitaleiro e acolhedor. b) “Ele [o papa] esteve no santuário de
Aparecida em 2007 (...) o então arcebispo de
E ao finalizar seu conteúdo a notícia aponta o
Buenos Aires o cardeal argentino Jorge
olhar de outros ‘grupos’ para a figura papal:
Bergoglio presidiu a comissão e redigiu o
e) “Certos grupos dizem que o papa reforça documento final de forte conteúdo social e
o conservadorismo da Igreja Católica. Ele político, enfatizando a ‘opção pelos pobres’
não aborda temas como o aborto, nesta região onde vivem mais de 40 % católicos
homossexualidade e direitos das mulheres”. do mundo”. Aqui, é notável um Imaginário de
Nesse excerto, conseguimos perceber um Crença de Opinião Relativa: onde reforça
Imaginário de Crença de Opinião Relativa: que o comprometimento do papa com os
o papa não é revolucionário e sim conservador. pobres vem antes mesmo de ele se tornar papa,
Porém, a revista traz outra voz que afirma: ou seja, não é um personagem criado
(...) Mas, como diz Lettieri, o acadêmico, “é especialmente para o papado.
claro que o papa não pode se tornar Nessa notícia também, a Carta Capital toca em
favorável ao aborto, um dogma da Igreja pontos contrários e/ ou imaginários negativos
Católica”. Aqui encontramos um Imaginário relacionados à vinda do papa ao Brasil, tanto
Sociodiscursivo de Crença de Revelação em relação aos gastos como ao seu estilo
tendo em vista que está relacionado aos peculiar, como é possível notar nos excertos
preceitos de uma doutrina onde não há abaixo:
discussões. Ou seja, nem mesmo o papa em seu
c) “O estilo informal do Papa causou
ofício pode mudar um dogma da Igreja.
problemas à organização durante sua chegada
A segunda notícia dessa mesma revista ao Rio de Janeiro nesta segunda-feira, quando o
foi intitulada Papa alerta para 'ídolos carro que o transportava ficou preso diversas
passageiros' durante missa em São Paulo. vezes em engarrafamentos em meio a uma
Nela, também foi possível encontrar alguns multidão de fiéis”.
imaginários, como por exemplo:
d) “Apesar de sua popularidade, o Papa chegou
a) “O primeiro papa latino-americano da ao Brasil em meio a protestos contra o alto
história, defensor de uma igreja mais custo de sua visita e da JMJ, estimados em 53
próxima aos pobres, também convocou os milhões de dólares (...)”. Aqui é possível
jovens a transmitirem valores de um mundo perceber que através de um Imaginário de
mais justo e solidário (...)”. Nesse trecho está Crença de Opinião Relativa: a revista
presente, portanto, o Imaginário de Crença de argumenta que a vinda do papa e a JMJ
Opinião Relativa: o papa é um homem simples renderam muitos gastos, o que, de certa forma,
em favor dos pobres. não condiz com a postura papal e sua luta pela

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598
humildade, pelos pobres e pela redução de ser acolhido pelos fiéis, de preferência bem
gastos. de perto”.
Já no final do texto, a notícia traz: Nesse trecho conseguimos perceber um
e) “A juventude que espera pelo Papa quer Imaginário de Crença de Opinião Relativa:
O papa é um homem corajoso, destemido,
mudanças para que a Igreja se modernize e se
ousado e até ‘teimoso’, carismático e popular.
aproxime dos novos tempos”. Aqui,
identificamos um Imaginário de Crença de Ao final da notícia temos:
Opinião Coletiva: O grupo (juventude que c) “O papa é seguidor e arauto dos nobres
espera pelo papa) considera O grupo (Igreja princípios franciscanos (não escolheu à toa o
Católica) como retrógrado e deseja que o nome que tem), praticante da ética rigorosa,
mesmo se modernize.
da simplicidade espartana. Francisco pautou-
Na revista Veja, também encontramos se por esses altos ideais durante toda a sua
alguns imaginários relacionados ao papa e aos vida religiosa e agora os pratica na cúpula
brasileiros. A primeira notícia foi intitulada O vaticana com uma intensidade até
significado de ter Francisco, o papa dos perturbadora para prelados
pobres, entre nós. No primeiro excerto temos: desacostumados”.
a) “Em sua tão aguardada visita ao Brasil, o Nesse trecho, percebemos um Imaginário de
papa jesuíta de alma franciscana, defensor Crença de Opinião Relativa: o papa é ético,
da humildade e das oportunidades aos simples e se compromete com os pobres assim
pobres espera que suas atitudes e palavras como São Francisco de Assis. Além disso, essa
motivem os jovens (...)”. Aqui, temos um personalidade o acompanha desde o início de
Imaginário de Crença de Opinião Relativa: sua vida religiosa, não é um personagem que ele
O papa é humilde e defende os pobres, ele não criou para o papado, assim como também
tem somente palavras, mas também atitudes de pontua a revista Carta Capital. Essa postura do
solidariedade e quer, dessa forma, ser exemplo papa deixa descontentes os membros da cúpula
para os jovens brasileiros. do Vaticano, pois os mesmos não estão
Ainda nessa notícia, a revista destaca a ousadia acostumados com esse tipo de atitude, ou seja,
de Francisco: há também aqui um imaginário de papa
renovador.
b) “A expectativa de que as manifestações
populares no Brasil não darão trégua, e talvez Assim, a revista reforça:
até recrudesçam, alçou a questão da segurança “Ao se apresentar assim no Rio de Janeiro, o
a primeiríssimo plano. Mas que fique claro: papa estará firmando uma imagem de
não é porque Francisco se sente ameaçado. pontífice popular, carismático e forte - o
(...) Ele resiste em mudar o roteiro que o perfil mais adequado para atrair à Igreja
coloca por mais de uma vez em picadeiros Católica os jovens brasileiros que vêm se
tumultuados - este pontífice gosta de desgarrando dela há anos”.
multidões e faz absoluta questão de acolher e Aqui conseguimos notar um Imaginário de
Crença de Opinião Coletiva: O grupo- jovens

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brasileiros- espera do grupo- Igreja Católica jeito brasileiro de resolver as coisas na
um papa popular carismático e forte. Se o última hora’, afirmou o arcebispo”.
grupo- Igreja Católica - apresenta um líder
Nesse trecho é possível notar que a revista
com esse perfil, o mesmo arrebanhará mais
reforça o sucesso do evento, destacando dessa
pessoas do grupo- jovens brasileiros.
forma que o saldo da vinda do papa foi positivo
A segunda notícia intitulada Papa deixa e encontramos também um Imaginário de
cheques de 60 mil reais para favela e Crença de Opinião Coletiva ligado ao tão
hospital enfatiza as doações realizadas pelo difundido ‘jeitinho brasileiro’ de resolver os
sumo- pontífice e também traz imaginários problemas.
relacionados aos brasileiros. No primeiro
3. Considerações finais
excerto temos:
Através dessa análise foi possível
a) “O papa Francisco deixou um cheque de 20 perceber que, ainda que o gênero notícia tenha
mil euros (cerca de 60 mil reais) para a por finalidade principal a informação, ele
população da favela da Varginha. Outro do principalmente através da descrição, assume
mesmo valor foi encaminhado ao Hospital São uma postura argumentativa visando formular
Francisco de Assis na Providência de Deus, imaginários e teses que possam ser aderidas por
onde uma ala para tratamento de seu leitor alvo.
dependentes químicos está sendo finalizada,
para ficar como legado da Jornada Mundial Nas notícias analisadas nesse artigo, por
da Juventude (JMJ 2013) para o Rio de exemplo, foi possível perceber que as revistas
Janeiro”. Nota-se aqui um Imaginário de adotam posturas diferenciadas ao elaborar a
Crença de Opinião Relativa: Francisco é um imagem do sumo-pontífice. Ainda que ambas
papa que se preocupa com os mais necessitados reforcem uma imagem positiva do líder católico
e que não fica somente nas palavras, mas de homem simples que vive em favor dos
também tem atos solidários. Sua vinda não pobres, elas se distinguem no que tange à vinda
envolveu somente gastos, mas também do papa ao Brasil e a JMJ. Enquanto a revista
doações. Veja aponta somente os benefícios de sua visita
tais como a sua proximidade com o povo, suas
A notícia finaliza seu conteúdo com doações e o sucesso do evento, a revista Carta
comentários sobre a realização e a organização Capital se mostra mais criteriosa trazendo
do evento em si: também aspectos negativos como os altos
b) “Presidente do comitê organizador da custos da vinda do papa ao Brasil bem como os
Jornada, o COL, dom Orani disse que o do evento e os conflitos causados no trânsito
encontro católico ‘superou as expectativas’ e devido à sua insistência em estar próximo ao
que o momento mais tenso foi a povo brasileiro.
transferência dos dois últimos eventos de
Guaratiba. ‘Era um sonho que tínhamos
(fazer a vigília e a missa de encerramento no Referências
Campo da Fé, que se tornou um lamaçal). Os
produtores ficaram chateados, mas existe um

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600
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601
GOVERNAMENTALIDADE, BIOPOLÍTICA E BIOPODER: A
PRODUÇÃO IDENTITÁRIA PARA O “CORPO VELHO” NOS
DISCURSOS DA REVISTA VEJA

Emmanuele MONTEIRO; Regina BARACUHY


Secretaria de Educação do Estado da Paraíba (SEDUC - PB)
Universidade Federal da Paraíba (UFPB)
emmanuelemonteiro@gmail.com; mrbaracuhy@hotmail.com

Resumo. Neste trabalho objetivamos analisar o “corpo velho” na mídia brasileira, a fim
de explicar como ocorre a relação saber-poder na produção de identidades de
inclusão/exclusão que resulta na espetacularização da posição sujeito
“superidoso”/“gerontolescente”, tendo como fio condutor as noções de biopolítica,
biopoder e governamentalidade. Fundamentamos nosso trabalho nos pressupostos
teóricos da Análise do Discurso da Semiologia Histórica da imagem. Nosso corpus é
composto por enunciados sobre a velhice, materializados na revista Veja. Entre os
resultados da pesquisa, constatamos que o corpo, do mesmo modo que a língua e a
linguagem, é gerido socialmente, funcionando como matriz produtora de sentidos, dando
suporte aos significados.
palavras-chave: análise do discurso; corpo velho; mídia.

mais tempo, tendo uma composição de renda


Introdução
que possibilita a eles continuar consumindo ou
O aumento sensível da população de aumentar o seu padrão de consumo, o que
idosos no Brasil provocou um crescimento do inclui o lazer como uma das prioridades. A
interesse nessa faixa etária, por parte da mídia. partir disso, o “corpo velho” passa a ser alvo do
A disseminação de discursos sobre a velhice interesse da mídia, que passa a produzir
tornou-se uma questão governamental e de discursos que giram em torno do sujeito idoso.
gestão das políticas públicas para a terceira
A preocupação com a longevidade do
idade.
“corpo velho”, sua saúde, sua relação com o
As políticas públicas propõem para os mundo, seus prazeres, sua sexualidade e suas
idosos modos de se governar, que culminam transgressões e interdições são focos de
com a aplicação de tecnologias de poder que interesse de nossa pesquisa de Doutorado, em
têm como alvo a manutenção da saúde e da que analisamos os discursos sobre o “corpo
vida. Os idosos, ao se tornarem mais longevos, velho”, as características que lhe são
consequentemente, tornar-se-ão produtivos por pertinentes e que constituem o seu percurso

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602
histórico. Isso vai ao encontro da ideia
foucaultiana de que, o corpo é, ao mesmo Assim, as análises do corpus serão
tempo, um invólucro, uma superfície que se realizadas, também, a partir da noção de
mantém ao longo da História. biopoder, compreendida a partir de Michel
Foucault, em seu livro História da
Objetivamos analisar o “corpo velho” na Sexualidade I: a vontade de saber, no qual
mídia brasileira, a fim de explicar como ocorre ele discute essa noção. Para o autor
a relação saber-poder na produção de supracitado, esse tipo de poder é exercido sobre
identidades de inclusão/exclusão que resulta na a vida do indivíduo.
espetacularização da posição sujeito
“superidoso”/“gerontolescente”, tendo como A noção de biopoder foi desenvolvida
fio condutor as noções de biopolítica, biopoder em 1970, após a firmação do conceito de
e governamentalidade. governamentalidade e a partir dos estudos
sobre o século XVII. Nessa época, em que o
Nosso corpus é composto por enunciados cuidado com a vida tornou-se uma preocupação
sobre a velhice, materializados na revista Veja. de Estado, o biopoder surgiu como uma
É necessário ressaltar que o “corpo tecnologia coerente de política.
velho”, nosso objeto de estudo, não é o corpo Um dos polos de biopoder é o da
do indivíduo, mas sim, um corpo na condição anátomo-política do corpo humano, cujo
de unidade discursiva, como “invólucro cerne é o corpo enquanto máquina, com ênfase
identitário”. Assim, trabalharemos com o na sua disciplinarização, na ampliação das
corpo, considerando sua existência histórica e aptidões físicas com o objetivo de aumentar a
seu status material, observando o momento de produtividade. Por isso, foi necessário investir
sua irrupção e as condições de produção dos na saúde do sujeito, pois dela depende sua
discursos sobre ele. produtividade. Desse modo, construir os corpos
Parafraseando o filósofo francês Michel para que eles atendam às exigências do
Foucault, por que esses dizeres sobre o “corpo capitalismo em fase de expansão e
velho” e não outros em seu lugar? É a partir daí consolidação, era a grande preocupação do
que a relação Análise do Discurso/ “corpo início do século XIX , como ainda é até hoje.
velho” toma forma e começa a se desenvolver. O segundo polo de biopoder tem como
foco o corpo – espécie. Esse segundo tipo tem
1. Biopoder e Biopolítica: a gestão social do como procedimentos, as políticas sociais
“corpo velho” relativas à natalidade e à mortalidade
Pensar, sob a perspectiva do discurso, o associadas ao aumento da longevidade, ao culto
“corpo velho” a partir da medicalização dos do corpo saudável, incluindo práticas
aspectos considerados negativos e da esportivas e o estímulo, principalmente da
potencialização dos aspectos considerados Mídia, à busca de técnicas médicas de
positivos, é ter como norte, as técnicas de rejuvenescimento.
biopoder sobre o corpo social. Com suas Dessa forma, as disciplinas do corpo e
positividades, elas são fruto das necessidades uma biopolítica da população formam os dois
de prolongamento da vida e do aumento da centros sobre os quais se desenvolveu a
produtividade e do consumo. organização do poder sobre a vida.

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603
os séculos XVIII e XIX, deu margem à
Este biopoder, sem a menor dúvida, foi constituição de uma economia do poder
elemento indispensável ao desenvolvimento centrada no corpo e na Medicina como
do capitalismo, que só pode ser garantido à alicerces de sua conformação estrutural.
custa da inserção controlada dos corpos no
aparelho de produção e por meio de um Foucault tornou pública em uma
ajustamento dos fenômenos da população conferência proferida na Universidade do
aos processos econômicos. (FOUCAULT, Estado do Rio de Janeiro, em outubro de 1974,
1999b, p. 132) a abordagem da biopolítica cujo foco é
Medicina Social. Essa conferência, proferida
Assim, Michel Foucault demonstra que por Michel Foucault no Brasil, foi publicada na
a evolução das tecnologias políticas ocorreu obra Microfísica do Poder, sob o título “O
antes do desenvolvimento das tecnologias Nascimento da Medicina Social”. É nessa
econômicas. Conforme as propostas desse sobreposição da Medicina com a biopolítica
autor, as tecnologias disciplinares, relacionadas que vai ser situado o “corpo velho”.
ao crescimento e à propagação do Capitalismo,
não teriam surtido efeito, caso não houvesse A outra perspectiva da noção de
uma disciplinarização dos indivíduos, biopolítica foi apresentada nas aulas do Curso
tornando-os dóceis e ordeiros. Isso implica no Collège de France, ocorridas de 1975 a 1976
dizer que as tecnologias disciplinares foram as e publicadas no livro Em Defesa da
condições sem as quais o Capitalismo não teria Sociedade. Nesse livro, Michel Foucault
se desenvolvido da maneira como ocorreu. questiona, de forma mais verticalizada, os
diversos fatores que propiciam as relações de
O uso das tecnologias não acarreta uma dominação nas sociedades modernas
negatividade na execução dos poderes, pelo ocidentais, sendo decisivo para a produtividade
contrário, as tecnologias do poder (biopoder) dos questionamentos acerca da biopolítica,
são centradas na vida, visando a um equilíbrio colocar a guerra como ponto de partida para a
global. análise política das relações de poder.
A noção de biopolítica surge nos A biopolítica, especificamente, diz
estudos de Foucault, a partir da observação de respeito à politização da Medicina, em que a
alguns acontecimentos fundamentais no século coletividade passa ser tomada como foco
XIX. Como efeito da industrialização e da principal, tornando as necessidades médicas da
urbanização, o corpo passou a ser considerado população, uma questão social.
uma propriedade privada, portanto,
responsabilidade de cada um nas sociedades A biopolítica conjura os corpos através
burguesas. Além disso, o processo de dos biopoderes. Isso ocorre devido à
industrialização demandava corpos dóceis, necessidade do Estado de não permitir que os
úteis e saudáveis. Por isso, passou-se a dar sujeitos idosos deixem de ser capazes de
mais importância à manutenção da saúde produzir, de serem economicamente viáveis e
através do esporte. socialmente ativos, em função da falta de
cuidados preventivos com a própria saúde. É a
Assim, a biopolítica, no século XIX, vai relação velhice / depreciação das capacidades
“fazer viver e deixar morrer” (idem, ibidem, de gerir a própria vida, bem como as de
p.287). O acontecimento do Capitalismo, entre produção e consumo, que vão fazer com que a

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604
biopolítica introduza, não apenas instituições outra maneira de se falar em identidades de
asilares, “mas mecanismos muitos mais sutis, inclusão, sem levar em consideração os fatores
economicamente muito mais racionais do que a que levam à exclusão identitária do “corpo
grande assistência (FOUCAULT, 2002, velho”. Assim, é importante verificar as
p.286)”. condições de possibilidades histórias que
permeiam a irrupção dessas identidades de
Dessa maneira, constituem-se práticas
exclusão e inclusão nos discursos midiáticos.
de biopolítica, a natalidade, a morbidade, as
incapacidades biológicas diversas – incluindo Courtine (2013, p.57), ao definir os
alguns aspectos da velhice –, os efeitos do procedimentos de análise do discurso sob a
lugar onde os indivíduos vivem. É a partir de perspectiva foucaultiana, afirma que “o
todos esses aspectos que a biopolítica vai material da linguagem (é) nada mais que um
incidir seus saberes sobre o “corpo velho” para dos rastros concretos da existência de um
definir onde seus poderes irão agir. dispositivo muito mais vasto e complexo que
Foucault denominou então ‘formação
Da perspectiva biopolítica, é preciso
discursiva’”. É a partir da determinação da
diminuir as taxas de mortalidade, prolongar a
formação discursiva que podemos distinguir os
vida e estimular a natalidade, pois sem essas
outros dispositivos específicos.
providências, a população envelhece muito
rápido e não há como sustentar, em termos Por isso, essa mudança na maneira de
previdenciários, essa pirâmide etária ao construir o método, introduzindo o conceito de
contrário. Por isso, é necessário preservar o dispositivo, abriu espaço para estabelecer a
equilíbrio interno da população, manter uma análise do poder, pois Foucault define dois
média etária, cujo gráfico se assemelhe a uma momentos da formação dos dispositivos. O
árvore de natal ou a um corpo de um bandolim. primeiro diz respeito ao predomínio do
Em suma, é preciso levar em conta a vida do objetivo estratégico e o segundo, à constituição
homem-espécie e assegurar sobre ele, não uma dos dispositivos em si.
disciplina, mas uma regulamentação para que o Foucault (2008, p.244) afirma que,
equilíbrio permaneça. entre os elementos discursivos ou não
A biopolítica atua através da aplicação discursivos, existem as trocas de posição, as
de biopoderes locais e se ocupa, em suma, da transformações no funcionamento dos
falta de capacidade produtiva e da inatividade discursos, certas alterações das relações de
dos sujeitos, seja devido à velhice ou às força que, racionalmente, usam, bloqueiam,
doenças, ou por qualquer “conjunto de estabilizam, determinam direções específicas,
fenômenos (...) que acarretam também numa função estratégica dominante, como em
consequências análogas de incapacidade, de um jogo, tendo como função, a princípio,
por indivíduos fora de circuito, de “responder a uma urgência”.
neutralização” (FOUCAULT, 2002, p. 291), na Perguntado sobre qual a função
proporção em que esses fenômenos se tornam metodológica do conceito de “dispositivo”,
preocupações políticas. Michel Foucault disse se tratar de
Cada estratégia de poder influencia
distintamente a constituição do panorama um conjunto decididamente heterogêneo
histórico do “corpo velho”, pois não existe que engloba discursos, instituições,

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605
organizações arquitetônicas, decisões
regulamentares, leis, medidas que delimitam os elementos de análise de
administrativas, enunciados científicos, nosso trabalho.
proposições filosóficas, morais, 2. A vontade de verdade e a produção de
filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito
discursos de inclusão/exclusão
são os elementos do dispositivo. O
dispositivo é a rede que se pode tecer entre A heterotopia identitária do sujeito
estes elementos (FOUCAULT, 2008, p. idoso nos discursos da mídia faz com que esse
244). sujeito, a partir dos processos de subjetivação e
exercícios de poder sobre o próprio corpo,
Assim, se aliássemos o dispositivo da relacione o dizer verdadeiro com os dizeres da
Mídia às tecnologias de governo do “corpo mídia. Os saberes sobre o corpo, desde os
velho”, como forma de arriscar minimamente vários lugares identitários proporcionados para
algo que seja distinto das “peças” já exploradas ele pela mídia, não o tornam um monopólio, e
por Michel Foucault, ainda correríamos o risco não impedem que esse corpo, situado dentro
de estarmos montando um quebra-cabeças já condições de possibilidades sócio-culturais,
desvendado por este pensador. passe a ser entendido como uma construção.
Desse modo, assumindo o método como Assim como o dizer verdadeiro também é uma
um direcionamento de trajetória ao alcance do construção estabelecida dentro da ordem
objeto pesquisado – o “corpo velho” – seria discursiva social contemporânea.
possível afirmarmos que o “dispositivo” A mídia, em relação à produção
mapeia a trajetória a ser percorrida durante o discursiva, nesse caso, atua como produtora de
desenvolvimento da pesquisa, mas também, um dizer verdadeiro sobre a velhice e o
constitui o fim para o qual aponta o objeto, envelhecimento. Os sujeitos idosos são o alvo
sendo, também, um operador metodológico que desse dizer por estarem inseridos em uma
nos auxilia na análise das práticas discursivas, cultura, que valoriza as tecnologias do biopoder
de poder e de subjetivação. e as assume como verdade. Assim,
O conceito de dispositivo funciona
como um veículo que estabelece um lugar para nessa cultura de si, nessa relação consigo,
a produção de sentidos a partir dos objetos a viu-se desenvolver toda uma técnica e toda
uma arte que se aprendem e se exercem.
serem investigados. Assim, no estudo dos
Viu-se que essa arte de si necessita de uma
discursos produzidos pela Mídia para o “corpo relação com o outro. Em outras palavras:
velho”, podemos observar, por exemplo, o não se pode cuidar de si mesmo, se
entrecruzamento dos dispositivos da segurança, preocupar consigo mesmo sem ter relação
da seguridade social, do dispositivo da verdade, com outro. E o papel desse outro é
de saber e poder, dispositivo da confissão, precisamente dizer a verdade, dizer toda a
dispositivo da seleção (normais / anormais), verdade, ou em todo caso dizer toda a
dentre outros. (CORAZZA, 2000). verdade necessária, e dizê-la de uma certa
forma(...) (FOUCAULT, 2010 d, p. 43).
O dispositivo é o veículo que se estende
nas redes da produção de sentidos, de saber e Quando é posta em cena a palavra
de poder, estabelecendo, desse modo, as bordas “aposentadoria”, os sentidos que ela
arregimenta apontam, prioritariamente, para

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duas imagens cristalizadas na memória social:
uma está relacionada à prática do hedonismo A liberdade trazida pelos saberes
em sua plenitude e a um ideal de felicidade; e a produzidos na contemporaneidade não é plena,
outra está relacionada à incapacidade produtiva por isso, para construir nosso corpo, nos
e a uma infelicidade latente. submetemos a uma produção discursiva que
define como identidade de inclusão o corpo
Uma celebração de uma segunda “perfeito”, sem as marcas do tempo.
“adolescência” após os 60 anos, a ideia de uma
aposentadoria feliz e prazerosa e de uma Se antes a velhice era considerada
“irresponsabilidade” quase utópica é uma apenas como um fato natural inevitável, agora,
construção da mídia na medida em que ela ela pode ser no mínimo mascarada, o que pode
propõe identidades de inclusão para a velhice. levar o “corpo velho” a passar por
É também mais que isso, pois a sociedade atual modificações por intermédio de cirurgias
elabora uma série de tecnologias que fornecem plásticas e pela prática de atividades esportivas
mecanismos de promoção dos cuidados de si, que se impõem ao olhar rígido, de formas
propondo uma moral ética e estética em que o contidas por um lado, e exacerbadas, por outro.
corpo não pode ser “lido” como velho e a “Dr. Hollywood”, o cirurgião das estrelas, diz
mente/alma do sujeito não pode deixar de ser qual a hora certa para recorrer ao bisturi
“higienizada”. Por isso, existem os discursos ”(Revista Veja, edição 2121, 15/06/2009).
do hedonismo e do culto ao corpo que estão na Esse exagero na produção de um corpo
base da produção de identidades pela mídia. jovem a qualquer custo, sustentado pela
Nas imagens a seguir, a grade de análise espetacularização dos discursos médico e
será baseada na tecnologia do biopoder, pois o econômico, e entrelaçamento destes com o
prolongamento da vida, a manutenção da saúde discurso da mídia, dão sustentação ao
e a preocupação estética pertencem ao regime enunciado: “O cirurgião das estrelas”, fazendo
discursivo do biopoder. deste, um exemplo de como a vontade de
verdade da mídia interpela o “corpo velho”
Figura 1 A geração sem idade - Capa da produzindo identidades de exclusão.
revista Veja edição 2121, 15/06/2009
Sobre essa questão, Foucault afirma que
o domínio e a consciência do seu próprio corpo
só puderam ser adquiridos pelo efeito do
investimento do corpo pelo poder: a ginástica,
os exercícios, o desenvolvimento muscular, a
nudez, a exaltação do próprio corpo... tudo isso
conduz ao desejo de seu próprio corpo através
de um trabalho insistente, obstinado,
meticuloso, que o poder exerceu sobre o corpo
das crianças, dos soldados, sobre o corpo sadio.
Mas, a partir do momento em que o poder
produziu este efeito, como consequência direta
de suas conquistas, emerge inevitavelmente a
reivindicação do seu próprio corpo contra o

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607
poder, a saúde contra a economia, o prazer os sujeitos idosos a maneira “correta” de
contra as normas morais da sexualidade, do envelhecer.
casamento, do pudor. (...) O poder penetrou no A segregação identitária, que exclui o
corpo, encontra-se exposto no próprio corpo
sujeito idoso, pode ser compreendida a partir
(FOUCAULT, 2008a, p. 146). do procedimento de controle que padroniza o
Os enunciados a seguir são fruto da que é jovem, belo e produtivo, qualquer outra
regulamentação dos discursos midiáticos sobre situação que fuja das características
a velhice e os “cuidados de si”, que perduraram consideradas como propícias, é colocada como
através dos séculos: “A ciência anuncia uma anormal.
certeza: comer pouco (mas pouco mesmo) No domínio constituído pelo “corpo
prolonga a vida, a saúde e a beleza. 6 receitas velho”, existe a necessidade de um controle
de pessoas entre 35 e 50 anos que parecem ter fundamentado nas disciplinas dos biopoderes,
parado de envelhecer”(Revista Veja, edição tal como vem acontecendo nas últimas décadas,
2121, 15/06/2009). Esses enunciados têm como especialmente com a exacerbação de uma
mote o gerenciamento da atividade alimentar, política do corpo jovem, quando da busca pela
marca, assim, uma atitude por parte do sujeito
manutenção da vida propiciando o
idoso que o deixaria mais próximo de um ideal acontecimento de enunciados como “Você quer
de juventude e beleza. envelhecer... assim... assim... ou assim?”,
Direcionados para o sujeito idoso, no conforme consta na imagem a seguir.
enunciado “comer pouco (mas pouco mesmo) Figura 21 Você que envelhecer... - Revista
prolonga a vida”, a atitude alimentar e o Veja 23/06/2010
discurso médico são articulados dentro das
formações discursivas que compõem o sistema
dos dispositivos midiáticos, tendo como
fundamento, o discurso científico, que coloca o
“corpo velho”, assim como o gordo, “um corpo
marcado pela falência moral e que, portanto,
deve ser corrigido, modificado e aperfeiçoado”
(PEREIRA, 2013, p.168).
Atualmente, o sujeito idoso, que não Tendo isso em mente, quando lemos a
pratica as “técnicas de si”, está fadado a ser matéria exposta anteriormente, observamos os
posto fora da margem estabelecida pelos seguintes enunciados: “Quem pode e gosta de
padrões de beleza divulgados pelos veículos cuidar da aparência consegue cruzar os 60
midiáticos, tornando-se, à vista da mídia, um muito bem – desde respeite os seus limites”.
corpo “anormal”. Mas o que é possuir um “MAIS OU MENOS LISO – Variações sobre o
corpo velho anormal? bisturi: Brigitte que nunca usou, Úrsula, que
Soa-nos estranho colocar a velhice usou demais e Helen que fez a coisa certa”. Os
como algo fora das regras, pois a regra é sujeitos, que são considerados “monstros” no
envelhecer, se considerarmos, apenas o aspecto sentido foucaultiano do termo, são justamente
biológico. Porém, o biopoder, através da aqueles que fugiram dos padrões de beleza
reverberação discursiva da mídia, propõe para normatizados pela mídia e que provocaram

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608
uma ruptura na ordem discursiva social da intervenção médica, que não diz respeito
manutenção da juventude. apenas à doença, mas à vida de maneira geral.
Dessa maneira, o “corpo velho” velho Sob outra perspectiva, observamos
(em oposição a um “corpo velho” jovem) é também o surgimento de discursos da mídia
posto na periferia discursiva da sociedade embasados por uma prática pedagógica de
devido às suas particularidades que o tornam manutenção da beleza, da juventude e da
diferente dos demais, pois o modelo de beleza longevidade. Há como meta, nesses discursos
corrente e espetacularizado é inatingível. produzidos para a velhice, criar um ideal de
Sempre que se acha que o limite está posto, ele felicidade próprio para os sujeitos que ocupam
estará além, causando uma ilusão, a ser a posição sujeito idoso e isso inclui o consumo
compreendida mais tarde no âmbito da também de imagens e desejos.
transgressão, que envolve não só a mídia, mas Verificamos que a Revista Veja serve
todo um conjunto de instituições que delimitam de suporte material para os discursos da mídia
normas para os sujeitos. sobre a velhice e o envelhecimento. Esses
3. Considerações finais discursos midiáticos promovem o controle
sobre o “corpo velho”, utilizando como técnica
No caminho que traçamos até aqui,
disciplinar, um “efeito manual”, que consiste
vislumbramos algumas perspectivas teóricas e
na forma como as revistas propõem
práticas para atingir o objetivo de analisar o
comportamentos, modos de viver.
“corpo velho” na mídia brasileira, a fim de
explicar como ocorre a relação saber-poder na As técnicas e tecnologias do biopoder e
produção de identidades de inclusão/exclusão da biopolítica para o “corpo velho” nos
que resulta na espetacularização da posição permitem entender que cada movimento do
sujeito “superidoso”/ “gerontolescente”/ corpo é culturalmente definido, sendo parte
”envelhescente”, tendo como fio-condutor as constitutiva dos saberes sancionados pelas
noções de Biopolítica, Biopoder e relações de poder presentes em nossa
Governamentalidade, mas não só. sociedade.
Seguimos os vestígios enunciativos As maneiras como o sujeito idoso
presentes nas memórias social, individual, utiliza o seu próprio corpo e se dispõe em
discursiva e coletiva. Constatamos que, a partir relação aos corpos dos outros é regulamentada
delas, podem-se fomentar construções e condicionada pelas condições social e
identitárias múltiplas e contraditórias acerca do histórica de produção dos saberes.
“corpo velho”.
Quando está em cena o corpo do idoso,
Referências
a biopolítica da mídia propõe uma coerção
invisível de consumir “saúde”, pois o discurso CORAZZA, S. M. A história da infância sem
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611
MULHER, ARTE E RESISTÊNCIA: UMA LUTA CONTRA
FORMAS INCESSANTES DE CONTROLE

Meire MORAES; Julia ALBUQUERQUE; Vinicius FRANÇÃO; Matheus LEITE; Fatima


WINTER; Helen VIEIRA; João MONTOVANI; et al
Escola Técnica Estadual Profº Basilides de Godoy (ETEC)
meirehmoraes@ig.com.br

Resumo: A partir do conceito de regime de signos (DELEUZE; GUATTARI, 1995),


criado com base na noção de enunciado (FOUCAULT, 2013), pretendemos
primeiramente compreender o motivo de existir uma minoria de mulheres atuando em
uma área – Tecnologia de Informação (TI) – a qual teve uma mulher como primeira a
desenvolver um algoritmo para ser implementado num computador; a seguir mostrar
como o corpo feminino se torna um local de experimentos cirúrgicos e numa espécie de
reservatório para acumular produtos cosméticos, através de um princípio de conexão que
desencadeia relações de cooperação entre forças econômicas, institucionais e
tecnocientíficas e, por fim, pensar no discurso literário como técnicas de resistência, para
nos reelaborar no interior de uma era da “convergência dos meios de comunicação”
(JENKINS, 2008), onde os sujeitos sofrem uma “modulação” (DELEUZE, 2013) como uma
moldagem auto-deformante que muda continuamente, quando deslocados para diferentes
espaços virtuais, constituídos por uma diversidade de discursos.
Palavras-chave: enunciado; mídia; controle; mulher; resistência.

mulher, a partir da leitura e discussão de textos


Introdução
literários, filosóficos e históricos.
Para Charles Baudelaire a imaginação
Começamos com a discussão de um
cria relações entre coisas que, aparentemente,
ensaio intitulado “Um teto todo seu”, de
não tem ligação. Tentamos realizar algo
Virginia Woolf, publicado em 1928, no sentido
semelhante ou próximo a esse pensamento, na
de estabelecer uma relação entre a realidade
biblioteca da escola ETEC Professor Basilides
das mulheres inglesas, nos séculos XVI e
de Godoy, com estudantes de diferentes cursos:
XVII, que por realizarem tarefas domésticas
ensino médio regular, ensino técnico em
permaneciam presas a esses afazeres sendo,
mecatrônica e informática integrado ao médio e
portanto, excluídas do mercado de trabalho e a
técnico em administração.
situação das mulheres atualmente que, apesar
Assim, iniciou-se a realização de rodas de atuarem no mercado, são minoria em cargos
de conversa as terças e sextas-feiras na mais rentáveis – “Gerente de engenharia:
biblioteca, cujo objetivo é instigar os Homens: 97%, Mulheres: 3%; Gerente de
estudantes a refletir sobre a atual realidade da

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612
Tecnologia de Informação (TI): Homens: 77%, enfermagem surge como extensão do trabalho
Mulheres: 23%” e maioria na área de doméstico: procriação, menor força muscular,
Enfermagem: “Homens: 4%, Mulheres: 96%” maior facilidade de expressar afeto.
(pesquisa realizada em março de 2013 e
No entanto, ao pesquisar a história da
publicada no blog da CareerBuilder) –, Ciência da Computação, notamos a presença de
profissão que demanda mais cuidado por lidar Ada Lovelace, uma figura importante e
com pessoas de saúde debilitada. singular que mesmo inserida na segunda
Após essa discussão foi possível metade do século XIX, contexto onde
verificar que Virginia problematiza as geralmente as mulheres se casavam e viviam
condições de vida das mulheres, por meio de para atender aos pedidos e gostos do marido,
um senso crítico e de uma originalidade, à desenvolveu o primeiro programa de
medida que cria uma ficção com o intuito de computador do mundo. Filha do poeta Lord
provocar o leitor ao mostrar a possibilidade de Byron e Annabella Milbanke, a qual vinha de
existir mais veracidade que ficcionalidade em uma família rica e cheia de títulos, Ada teve a
sua história: “Mentiras fluirão de meus lábios, oportunidade de estudar matemática de maneira
mas talvez possa haver alguma verdade no rigorosa, pois a mãe queria evitar um maior
meio delas, cabe a vocês buscar essa verdade e envolvimento da filha com a poesia, por ter
decidir se vale a pena conservar algo dela” tido problemas com Byron.
(WOOLF, 1928). Ao criar a programação, Ada
Pelo fato da escritora criar a partir de desenvolve conceitos importantes que,
uma relação com a realidade e atravessar futuramente, seriam aplicados naquilo que
fronteiras sem fechar o saber em si mesmo, receberia o nome de computadores. Nesse
como fica evidente em algumas passagens do sentido, Ada pensa em uma máquina de
ensaio: “De fato, a conversa esmoreceu por um propósito geral, que não desempenhasse apenas
momento. Sendo a estrutura humana o que é, uma tarefa preestabelecida, mas que pudesse
coração, corpo e cérebro misturados, e não ser programada e reprogramada para
contidos em compartimentos separados, como desempenhar uma gama ilimitada e mutável de
sem dúvida serão em mais um milhão de anos.” tarefas e, a partir desse salto conceitual, ela
(WOOLF, 1928), percebemos que poderíamos descobre que tal máquina podia processar e
relacionar conceitos filosóficos de Michel manipular não apenas números, mas também
Foucault, Gilles Deleuze e Félix Guattari, com qualquer peça de conteúdo, de dados ou de
os nossos questionamentos que se informação – música, texto, imagens, números,
sintonizavam aos de Woolf. símbolos, sons, vídeo – em formato digital.
1. Desenvolvimento do artigo A máquina de propósito geral pensada
por Ada passa a existir e recebe o nome de
A leitura e discussão do ensaio “Um
“Máquina Analítica”. A criação dessa máquina
teto todo seu”, da pesquisa realizada em março
inicia-se pelo matemático Charles Babbage
de 2013 e de alguns capítulos da obra “As
que, apesar de alguns conflitos, une-se a Ada
mulheres ou os silêncios da história”, de
para desenvolvê-la. A “Máquina Analítica” foi
Michelle Perrot, possibilitou pensar que ainda
desenvolvida a partir de uma combinação de
existe uma “destinação” às mulheres como as
inovações, as quais foram emprestadas de
tarefas domésticas e a família, visto que a

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613
outros campos. O fato de ser criada através de em um público feminino, de consumir modelos
uma combinação, faz com que essa máquina se de corpos “ideais” e produtos para “restaurar” a
torne o produto daquilo que Ada Lovelace, em pele.
seu ensaio sobre imaginação, havia chamado de
O desejo não é despertado apenas pela
“Faculdade de Combinar”1. sofisticação e sedução das imagens, mas
Porém, com a emergência do também pela própria estrutura do espaço
computador e, posteriormente, da internet, virtual. Como no mundo imaginário, os
outras combinações de inovações serão usuários podem se deslocar para diversos
realizadas de uma maneira não tão novas e lugares sem possuir, necessariamente, um
originais, como Ada registrou em seu ensaio, horário de ida e volta. Além disso, há
pois passaremos a encontrar organizações que possibilidade de compartilharem projetos,
reestratificam o conjunto, isto é, determinadas problemas, paixões com outros usuários, tudo
regras que controlam os discursos. Assim, esse isso é feito a partir de uma “não presença”, a
objeto tecnológico ganha um novo estatuto, qual não impede a ocorrência de uma sensação
pois a máquina que funciona por controle existencial. Tais características atraem e
numérico, substitui a prensa, isto é, o objeto é incitam o desejo dos usuários de entrar em
reportado a uma modulação que molda de contato com esse mundo virtual.
maneira contínua. Isso significa que esse objeto Nesse sentido, pretendemos
controla por meio de uma modulação que primeiramente compreender o motivo de
molda de maneira auto-deformante, a cada existir uma minoria de mulheres atuando em
instante, os sujeitos. uma área – Tecnologia de Informação (TI) – a
Essas novas combinações de inovações qual teve uma mulher como primeira a
desencadeiam uma “convergência dos meios de desenvolver um algoritmo para ser
comunicação”2, a qual provoca um bombardeio implementado num computador; a seguir
de imagens cada vez mais elaboradas e mostrar como o corpo feminino se torna um
sedutoras de corpos magros “perfeitos” e de local de experimentos cirúrgicos e
rostos não envelhecidos. Toda essa elaboração numaespécie de reservatório para
midiática é produzida para despertar o desejo, acumularprodutos cosméticos, através de um
princípio de conexão que desencadeia relações
de cooperação entre forças econômicas,
1
Em um ensaio de 1841, Ada perguntava: “O que é a institucionais e tecnocientíficas e, por fim,
imaginação? E a mesma respondia é a faculdade de fazer pensar no discurso artístico como técnicas de
combinações. Ela reúne coisas, fatos, ideias em resistência ou linhas de fuga, para nos
combinações novas, originais, infinitas e sempre em reelaborar no interior de uma era da
mutação.” (ISAACSON, 2014, p. 30). “convergência dos meios de comunicação”
2 (JENKINS, 2008), onde os sujeitos sofrem uma
Para Jenkins, convergência significa o fluxo de
conteúdos através de múltiplos suportes midiáticos, a “modulação” (DELEUZE, 2013) como uma
cooperação entre múltiplos mercados midiáticos e o moldagem auto-deformante que muda
comportamento migratório dos públicos dos meios de
continuamente, quando deslocados para
comunicação, que vão a quase qualquer parte em busca
das experiências de entretenimento que desejam diferentes espaços virtuais, constituídos por
(JENKINS, 2008, p. 27). uma diversidade de discursos.

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614
ponto inicial, mas, por poder ser compreendido
2. Abordagem teórica e metodológica como um sistema de diferenças que produz
Dois autores que nos mostram caminhos diferenças como consequência necessária.
para encontrar essas técnicas de resistência ou Pelo fato desses filósofos
linhas de fuga são Michel Foucault e Gilles desvincularem-se de pensamentos que se
Deleuze, no sentido em que é possível pensar limitam ao domínio da transcendência, o qual
numa sintonia entre os pensamentos filosóficos leva a busca de uma origem, e focarem seus
de ambos, por serem considerados criadores de estudos, pesquisas no plano da imanência, isto
filosofias da Diferença. Se de um lado, estava é, na realidade histórica, pensando a partir dos
Foucault refletindo e focando questões sobre a acontecimentos, de dados empíricos, ocorre
diferença e a alteridade em seus livros uma reciprocidade entre as filosofias de ambos,
“História da Loucura” e “O Nascimento da levando então Deleuze a verificar no conceito
Clínica”, visto que no primeiro o autor retrata a de enunciado, elaborado por Foucault, uma
história do louco, aquele que representa o renovação para a área da Linguística, e assim
diferente, o que escapa a regra, no segundo, o com base nesse conceito criar, em parceria com
enfermo ou doente se refere à alteridade em Félix Guattari, as noções de “agenciamentos de
relação ao homem saudável. Por outro lado, enunciação” e “regimes de signos” que junto
encontra-se Deleuze pensando “a diferença em com outros “conceitos-agenciadores” vão
si mesma e a relação do diferente com o compor uma pragmática menor:
diferente, independentemente das formas da
representação que as conduzem ao Mesmo e as Como Foucault bem aponta, os regimes de
fazem passar pelo negativo” (DELEUZE, 2006, signos são somente funções de existência
p.16). da linguagem, que ora passam por línguas
diversas, ora se distribuem em uma mesma
Sendo assim, ao questionar de que língua, e que não se confundem nem
modo uma cultura estabelece os limites entre o comuma estrutura nem com unidades dessa
normal e o anormal, e indo à busca de soluções ou daquela ordem, mas as cruza e as faz
para essas indagações através de uma descrição surgir no espaço e no tempo. É nesse
arqueológica em que analisa os afastamentos e sentido que os regimes de signos são
as dispersões discursivas, Foucault não agenciamentos de enunciação. (DELEUZE;
somente ultrapassa o pensamento habitual de GUATTARI, 1995, p. 102).
sua época, que se limitava a procurar as
origens, a percorrer de volta a linha dos O conceito de enunciado define-se a
antecedentes, a reconstituir tradições, como partir de quatro propriedades que delimitam
também passa a desintegrar a forma sua “função de existência”, a “função
tranquilizadora do idêntico. Essa desintegração enunciativa”. Esta coloca em jogo unidades
do efeito de conforto e segurança efetivado diversas, como é possível notar na citação
pelo idêntico também estava presente nas abaixo.
reflexões de Deleuze, quando cria uma filosofia
[...] e essa função, em vez de dar um
que converte os nossos hábitos de pensar ao
“sentido” a essas unidades, coloca-as em
elaborar conceitos, cujas definições não se relação com um campo de objetos; em vez
encontram mais naquela ordem de que o de lhes conferir um sujeito, abre-lhes um
mundo apresenta uma origem a partir de um conjunto de posições subjetivas possíveis;

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615
em vez de lhes fixar limites, coloca-as em
um domínio de coordenação e de Por encontrar-se em uma posição de
coexistência; em vez de determinar a
“minoria”3, ao lado dos negros, homossexuais,
identidade, aloja-as em um espaço em que
são consideradas, utilizadas e repetidas. crianças, loucos, doentes, a mulher permaneceu
(FOUCAULT, 2013, p. 129) por muito tempo destinada ao silêncio, devido
a um mandamento reiterado através dos séculos
A descrição das quatro direções que pelas religiões, pelos sistemas políticos e pelos
compõem a função enunciativa – “formação manuais de comportamentos, segundo Perrot
dos objetos”, “formação das posições (2005, p. 9). Porém, com o advento da
subjetivas”, “formação dos conceitos”, Revolução Industrial, episódio que contribui
“formação das escolhas estratégicas” – tanto para uma forte migração populacional nas
possibilita descobrir as regras que a controlam cidades de Londres e de Paris, quanto para uma
e que espécie de ato se encontra realizado por separação crescente entre o ambiente privado
sua formulação (oral ou escrita). Tais regras (domicílio) e o espaço público (ruas e grandes
são definidas por um conjunto cerrado de indústrias), começa a ocorrer uma quebra desse
relações múltiplas entre elementos não silêncio na medida em que o surgimento dos
discursivos (instituições, processos econômicos grandes espaços urbanos ou das cidades
e sociais, etc.), os quais não são estranhos ao garante a “construção de uma esfera pública
discurso pelo fato deste atualizar essas regras das mulheres, ou sua participação no espaço, na
enquanto prática singular. opinião, na comunicação” (PERROT, 2005, p.
262).
Os “regimes de signos” ou
“agenciamentos de enunciação” se aliam aos Junto com todas essas transformações,
“conjuntos de performances verbais que estão no contexto da Revolução Industrial também
ligados entre si no nível dos enunciados” ocorre avanços científicos misturados com uma
(FOUCAULT, 2013, p. 141), na medida em intensidade imaginativa, onde Ada Lovelace
que determinam as atribuições de produziu sua “Ciência Poética” (ISAACSON,
individualidade e suas distribuições moventes 2014). No entanto, os estudos científicos ainda
no discurso e explicam todas as vozes presentes estavam fortemente ligados ao modelo racional
em uma voz, ou seja, as palavras de ordem, e mecanicista newtoniano, o qual pode ser
atos de fala que se realizam no enunciado, em comparado à imagem de um deus monárquico
uma palavra. que regulava o mundo de cima, impondo nele
as suas regras divinas.
Assim, tanto Foucault quanto Deleuze e
Guattari buscam estabelecer relações de Esse modelo mecanicista incomoda
revezamento em um conjunto, numa Charles Babbage e os seus colegas de
multiplicidade de componentes rompendo, faculdade John Herschel e George Peacock,
portanto, com o estatuto de “pura idealidade” que estavam desapontados com o modo como a
atribuído aos discursos e trabalhando uma matemática vinha sendo ensinada na
análise que procura, nos discursos, um tipo instituição. Assim, segundo Isaacson (2014,
próprio de historicidade relacionada a todo um
conjunto de historicidades diversas. 3
Minoria no sentido de “minoritário como devir
3. Análises e discussão potencial e criado, criativo” (DELEUZE; GUATTARI,
1995, p. 56).

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616
p.31), eles formam um clube, chamado de de tentar conseguir apoio para a construção da
Sociedade Analítica, que fazia campanha para “Máquina Analítica”.
que a universidade abandonasse a notação de Ada traduz uma descrição detalhada da
cálculo legada por seu ex-aluno Newton,
máquina, escrita em francês, pelo engenheiro
baseada em pontos, e a substituísse pela Luigi Menabrea. Ao terminar e entregar a
notação inventada por Leibniz. Babbage, o mesmo lhe pergunta por que não
Babbage passa a trabalhar em uma tábua tinha escrito um artigo original sobre um tema
de logaritmos que estava cheia de discrepância, que conhecia tão intimamente. Na época,
na sala da Sociedade Analítica. Desse trabalho mulheres não costumavam publicar artigos
resultaram criações importantes como a linha científicos, pois a forma de produção do
de montagem, a grande inovação da era conhecimento realizada – modelo mecanicista e
industrial, a “Máquina Diferencial” que podia racional – apresenta um caráter particularista,
tabular qualquer função polinômica e oferecer racista e sexista, isto é, “pensa-se a partir de um
um método digital para aproximar a solução conceito universal de homem, que remete ao
para equações diferenciais e a “Máquina branco - heterossexual - civilizado - do
Analítica” que desempenha uma variedade de Primeiro Mundo, deixando-se de lado todos
operações diferentes com base em instruções aqueles que escapam deste modelo de
de programação que lhe fossem fornecidas. referência” (RAGO, 1998).
Para desenvolver a “Máquina Embora Babbage tenha aceitado
Analítica”, Babbage estudou o tear mecânico trabalhar ao lado de Ada e pedido para ela
inventado em 1801 por um francês chamado acrescentar mais anotações à descrição
Joseph-Marie Jacquard, que havia realizada por Menabrea, momento em que Ada
transformado a indústria de tecelagem de seda. explorou quatro conceitos4 que teriam
ressonância histórica quando o computador
Teares criavam um padrão ao usar ganchos surge, há uma discussão entre ambos e o
para erguer fios selecionados da trama, e matemático se comporta como um deus
então uma haste empurrava um fio de monárquico impondo suas regras divinas, ao
tecido por baixo. Jacquard inventou um
querer que Ada incluísse em seu texto uma
método que consistia em usar cartões com
perfurações para controlar esse processo arenga escrita por ele atacando o governo, sem
(ISAACSON, 2014, p. 35).
4
Os quatro conceitos são: 1) Uma Máquina de propósito
Os cartões perfurados possibilitavam geral que pudesse ser programada e reprogramada para
desempenhar uma gama ilimitada e mutável de tarefas.
que um número ilimitado de instruções pudesse 2) Qualquer conteúdo, dados ou informação podia ser
ser dado e que uma sequência de tarefas expressa em formato digital e manipulada por máquinas.
pudesse ser modificada. Ada ficou 3) A operação do computador podia agir sobre outras
entusiasmada quando viu a máquina, pela coisas além de números, desde que as relações mútuas
primeira vez, em um dos saraus noturnos fundamentais entre os objetos pudessem ser expressas
pelas relações da ciência abstrata das operações, sendo
organizados por Charles Babbage e ao perceber
possível assim compor uma peça musical e científica, o
que a invenção mecânica tinha potencial para que Ada define como “ciência poética”. 4) Sub-rotinas:
processar textos, música, imagens, além de sequência de instruções que desempenha uma tarefa
números, uniu-se a Babbage com a finalidade específica e loop recursivo: uma sequência de instruções
que se repete.

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617
citá-lo, por aquele relutar em continuar a
financiar o seu empreendimento. Desse modo, é necessário refletir sobre
a função autor nas técnicas, no sentido de
Ada se recusou a aceitar o pedido de verificar segundo que condições e sob que
Babbage, apesar de ele ter ficado furioso. formas Charles Babbage, Alan Turing, Bill
Nessa situação, não seria interessante e nem Gates e Steve Jobs se tornaram autores
favorável aparecer como autor do artigo, pois o conhecidos na área da informática e mulheres
establishment científico de sua época que desenvolveram os primeiros programas
desprezava a proposta de uma máquina como como Ada Lovelace, Grace Hopper, Jean
essa e porque não queria perder o financiador Jennings e Betty Snyder, personalidades tão
(governo). Porém, após o computador com importantes quanto os nomes masculinos
programa armazenado romper com a distinção citados acima, receberam um menor
entre números que significam coisas e números reconhecimento, fator que poderá ter
que fazem coisas, a autoria dos programas se desencadeando uma desigualdade de gênero, na
torna masculina mesmo tendo outras mulheres, área de Tecnologia de Informação (TI).
herdeiras intelectuais de Ada, como Grace
Hopper, Jean Jennings e Betty Snyder A história de indivíduos solitários
programando máquinas. Essa mudança de trabalhando no laboratório era substituída pela
autoria evidencia-se na fala abaixo de Jennings, realidade de equipes anônimas produzindo
quando ela e a amiga Snyder programam o avanços tecnológicos, assim, com o decorrer do
ENIAC, máquina do tamanho de uma sala. tempo, várias inovações são desenvolvidas
através de articulações, as quais possibilitam
Betty e eu fomos ignoradas e esquecidas relações de parceria e cooperação entre forças
depois da demonstração. Sentíamos que econômicas, institucionais e tecnocientíficas,
estávamos desempenhando papéis em um como os setores da Moda, da Medicina Estética
filme fascinante que de repente teve uma e da Indústria Farmacêutica, por exemplo, que
virada ruim, em que trabalhamos como passam a normatizar o modo de ser feminino
cãespor duas semanas para produzir algo por meio de mecanismos discursivos, os quais
realmente espetacular e depois fomos funcionam como “formas ultrarrápidas de
riscadas do roteiro. (ISAACSON, 2014, p. controle” (DELEUZE, 2013), no ciberespaço.
128).
As identidades femininas sofrem
Quando as regras mudam, isto é, entra constantes espécies de montagem e
em cena uma máquina programada para desmontagem, à medida que são deslocadas
desempenhar várias tarefas, com a finalidade para diferentes espaços virtuais e se deparam
de substituir diversas máquinas que com uma diversidade de discursos, que
desenvolviam vários trabalhos, aquele deus que estabelecem determinados padrões de beleza
regulava o mundo de cima, impondo nele suas como tipos específicos de corpo, cabelo, traje
regras, precisa agora obedecer a códigos de etc. Assim, esses seres humanos passam por
instrução, programados por mulheres. O deus processos de despersonalização, quando se
passa a obedecer aos códigos, mas não admite a tornam reféns do mercado. Essa
divulgação da autoria feminina, sendo assim despersonalização desencadeia sofrimento e
são os homens que retornam a função de autor. angústia, no momento em que não conseguem
atingir o corpo desejado. Isso ocorre porque a

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618
imagem idealizada, isto é, o corpo produzido cirúrgicos e numa espécie de reservatório para
nesses discursos, não condiz de fato com o acumular produtos cosméticos, como é possível
corpo real, e para tentar diminuir o sofrimento verificar na figura 1.
busca-se novamente uma solução no mercado: Figura 1: Perfil “Moda”
cirurgias plásticas, salões de beleza, etc., vira
um círculo vicioso.
No entanto, existe outro tipo de
despersonalização que ao buscar uma
coexistência com a escrita do Outro, ou seja,
uma sintonia entre aquilo que está escrito no
texto literário e leitor, no sentido do último
reconhecer no primeiro fragmentos de sua
própria cotidianidade, ocorre, segundo Eliane
Robert Moraes, uma amizade que, sendo tão
silenciosa quanto intensa, supõe a descoberta
Fonte: Extraído do Facebook (2012)
de um campo particular de afinidades eletivas
que se sustenta, sobretudo, no prazer da leitura. O link5 “fotos”, localizado abaixo da
Dessa maneira, é possível sentir tanto imagem da modelo materializada do lado
multiplicidades que atravessam o corpo quanto direito da página eletrônica (Figura 1)6, ao ser
intensidades que o percorre, pois há na escrita clicado mostra várias modelos vestidas e
um sujeito disperso, cuja pergunta pela autoria posicionadas de modo provocante e sensual.
ou pela originalidade é insuficiente. Os trajes que aparecem vestidos nas
3.1 Figuras, Imagens, Quadros e Legendas modelos, não apenas exploram as formas
corporais, como ocorre com a mulher
O corpo feminino vem sofrendo uma anunciada na primeira fileira, mas também da
série de transformações no decorrer do tempo. nudez corporal. Nota-se um vestido vermelho,
Do século XVI ao XVIII, às mulheres são cujo corpete e saia possibilitam o aparecimento
destinadas à obscuridade da reprodução e ficam da coxa e do colo nus da modelo; uma lingerie
excluídas ou fora de qualquer tipo de
bastante decotada; blusas que permitem
acontecimento que esteja relacionado à atuação mostrar ombros e colo nus; um tronco
no mercado de trabalho e a inserção na completamente nu em que apenas os seios da
produção de escrita científica ou literária. No modelo estão sendo cobertos pelos braços dela.
século XIX, embora exista, por um lado, tanto Todos esses trajes (vestidos, lingerie, blusas)
uma presença feminina, em locais que lhes
eram até então proibidos, quanto um estreito
5
caminho de produção de escrita, há de outro Os sistemas digitais são construídos por hiperlinks ou
lado, a moda que exerce sobre o corpo das links, cuja função é permitir o acesso fácil entre as
diversas páginas (navegação) e mesmo a movimentação
mulheres uma tirania a toda hora do dia, a cada rápida dentro de um texto longo.
mês de uma estação, segundo Perrot (2005). Já 6
Imagem retirada da dissertação de mestrado intitulada
nos séculos XX e XXI, o corpo feminino se A Era da Convergência: cooperação entre diferentes
torna um local para expor trajes que valorizam mídias na produção de identidades femininas
as partes íntimas, servir de experimentos contemporâneas, disponível em:
<http://base.repositorio.unesp.br/handle/11449/86534>.

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619
são confeccionados para um tipo de corpo molda de maneira auto-deformante, ao se
específico – magro e jovem – que pode ser deparar com novas reinvenções lançadas por
produzido pela “Medicina da Beleza” (NETO; instituições médicas e da moda que constroem
CAPONI, 2007), através de cirurgias plásticas novas normas de beleza feminina, como a
estéticas e pelos cosméticos que ajudam a produção de corpos magros “ideais” no caso da
rejuvenescer. Além de estarem vestidas com primeira instituição, e a confecção de trajes
roupas sensuais, as modelos apresentam sensuais para este tipo de corpo, em relação à
movimentos corporais (quadril e cabelos), que segunda.
produzem efeitos eróticos. As reinvenções lançadas pelas
Esse corpo sensual e erótico pôde ser instituições médicas e da moda se valem de
enunciado através dos links devido a um modelos que se repetem, apesar de criar novas
conjunto cerrado de relações múltiplas, como normas de beleza, devido à emersão de forças
formas do comportamento de uma mulher que, que permitem o desenvolvimento de avanços
ao se atentar as pequenas manifestações do dia tecnológicos. Trata-se de modelos, cujos
a dia, desenha um croqui do funcionamento de elementos são construídos a partir de um
um tear mecânico que encontra no distrito pensamento que apresenta algumas
industrial britânico, pois o tear lembrava a características como: de identidade e de
“Máquina Diferencial” que Babbage criou. semelhança, isto é, sob o conceito de “magro”
Após essa associação, Ada pensa que a reúne-se tudo aquilo que os magros têm de
operação da máquina não precisava ser igual, idêntico, deixando de lado todas as
limitada à matemática e aos números, assim possíveis diferenças; de analogia em que todas
poderia agir sobre qualquer coisa que pudesse as coisas às quais atribuímos um predicado são
expressar símbolos. Ao unir-se com Babbage, análogas, pois todas pertencem ao ser: o magro
Ada cria alguns conceitos de programação que “é” e de oposição que ocorre quando não há
seriam aplicados no computador futuramente. possibilidade de opor predicados que, “por
Assim, após ocorrer avanços tecnológicos, um natureza”, não se oponha.
grupo de mulheres desenvolve maneiras de Esse pensamento produz seres
codificar as instruções que diziam ao hardware despersonalizados, pois a cada instante que
quais operações realizar, durante a Segunda
impõem uma ordem mata o que há de criativo,
Guerra Mundial. Embora as pessoas que vivo e instável no interior de cada ser, há outro
estavam na linha de frente da programação tipo de despersonalização que pode ser
fossem mulheres, apenas homens foram encontrada em determinados discursos
reconhecidos no desenvolvimento da literários. No entanto, estes não matam a
computação moderna. criatividade e a vivacidade do ser, porque
Dessa maneira, essas formas de estabelecem uma relação entre tudo o que é
comportamentos, sistemas de normas, técnicas, diferente e até mesmo entre coisas
processos sociais e econômicos possibilitaram contraditórias e paradoxais. O ser e as coisas
o aparecimento de um objeto tecnológico que passam a ser vistos como uma teia, cujos fios
molda de modo contínuo, à medida que as não apresentam sinais de identidade,
identidades femininas sofrem, a cada instante, semelhança, analogia e nem oposição. No
um controle por meio de uma modulação que

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fragmento abaixo é possível verificar esses fios multiplicidades que atravessam o corpo quanto
diferentes que se entrelaçam. intensidades que o percorrem.
“Disse-lhes, no transcorrer deste ensaio, Virginia Woolf, Michel Foucault, Gilles
que Shakespeare teve uma irmã; mas não Deleuze, Felix Guattari são autores que nos
procurem por ela na vida do poeta escrita por ajudam a romper com fronteiras rigidamente
Sir Sidney Lee. Ela morreu jovem — ai de nós! demarcadas, pois nos mostram a possibilidade
Não escreveu uma só palavra. Está enterrada de estabelecer uma conexãoentre diferentes
onde os ônibus param agora, em frente ao áreas do conhecimento. Portanto, tais conexões
Elephant and Castle. Pois bem, minha crença é permitem refletir sobre a realidade da mulher, a
de que essa poetisa que nunca escreveu uma partir de uma abordagem interdisciplinar.
palavra e foi enterrada numa encruzilhada
ainda vive. Ela vive em vocês e em mim, e em
muitas outras mulheres que não estão aqui esta Referências
noite, porque estão lavando a louça e pondo os BAUDELAIRE, C. La reine des facultés.
filhos para dormir. Mas ela vive; pois os Disponível em:
grandes poetas nunca morrem, são presenças <http://cimartin.blogspot.com.br/2013/06/la-
contínuas, precisam apenas da oportunidade de reine-des-facultes-baudelaire.html> Acesso
andar entre nós em carne e osso”. (WOOLF, em: 27 set. 2015.
1928)
CAPRA, F. O Tal da Física. Uma exploração
Virginia encerra o ensaio “Um teto todo dos paralelos entre a física moderna e o
seu” mostrando que a vida e a morte coexistem. misticismo oriental. Tradução de Maria José
Há, portanto, uma presença mesmo na ausência Quelhas Dias. Lisboa: Editorial Presença,
física, pois a poetisa está no interior da leitora. 1989.
A escritora rompe com fronteiras rigidamente
demarcadas, tornando próximos termos que, CAPRA, F. A Teia da Vida. Uma nova
geralmente, são vistos como opostos e compreensão científica dos sistemas vivos.
distantes. Tradução de Newton Roberval Eichemberg.
São Paulo: Editora Cultrix.
4. Considerações finais
CAREERBUILDER. Pesquisa revela em quais
Como em nosso grupo de discussões profissões os homens ainda ganham mais que
participam pessoas de cursos diferentes e com as mulheres. Disponível em:
histórias distintas foi necessário atravessar <http://blog.ceviu.com.br/info/artigos/pesquisa
aquilo que é considerado regidamente -revela-em-quais-profissoes-os-homens-ainda-
demarcado, buscando trocar experiências e ganham-mais-que-as-mulheres/>. Acesso em
ideias, através de diferenças e divergências, as 27 jun. 2015.
quais possibilitaram esforços e projetos
conjuntos. Infelizmente, alguns estudantes não CASTELLS, M. A sociedade em rede. vol. 1.
conseguiram continuar participando das Tradução de Roneide Venâncio Majer. 11. ed.
discussões, pois permaneceram com suas São Paulo: Paz e Terra, 1999.
“verdades absolutas”, fechados em si mesmo,
impossibilitados assim de sentir tanto

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

621
DELEUZE, G. Diferença e repetição. GREGOLIN, M. R. Identidade: objeto ainda
Tradução de Luiz Orlandi e Roberto Machado. não identificado? In: ______ Análise do
2 ed. Rio de Janeiro: Graal, 2006. discurso: história, epistemologia, exercícios
analíticos. 2008. 337 f.Tese (Livre-docência
______. Foucault. Tradução de Pedro Elói
em Linguística) – Faculdade de Ciências e
Duarte. Portugal: Edições 70, 2005.
Letras, Universidade Estadual Paulista,
______. Post-Scriptum. Sobre as sociedades de Araraquara, 2008. p. 192-210.
controle. In: Conversações. Tradução de Peter
ISAACSON, W. Os inovadores. Uma biografia
Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 2013.
da revolução digital. Tradução de Berilo
DELEUZE, G; GUATTARI, F. Mil Plâtos: Vargas, Luciano Machado e Pedro Soares. São
capitalismo e esquizofrenia. vol. 2. Tradução Paulo: Companhia das Letras, 2014.
de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia
JENKINS, H. Cultura da convergência.
Leão. São Paulo: Editora 34, 1995.
Tradução de Susana Alexandria. São Paulo:
DÍAS, E. A filosofia de Michel Foucault. Aleph, 2008.
Tradução de Cesar Candiotto. 1. ed. São Paulo:
MORAES, E. R. Perverso e Delicado. Revista
Editora Unesp, 2012.
Cult. Edição Especial (Roland Barthes.
FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Subversivo e Sedutor), mar. 2006.
Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 8.ed.
NETO, P. P.; CAPONI, S. N. C. A
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013.
medicalização da beleza. Interface –
______. O que é um autor? In: MOTTA, M. B. Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu,
(Org.). Michel Foucault. Estética: Literatura e v.11, n.23, p. 569-584, set./dez. 2007.
Pintura, Música e Cinema. (Col. Ditos & Disponível em:
Escritos III). Rio de Janeiro: Forense <http://redalyc.uaemex.mx/src/inicio/ArtPdfRe
Universitária, 2013. d.jsp?iCve=180115440012>. Acesso em: 28
______. História da sexualidade I: a vontade mai. 2012.
de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa ORLANDI, L. (Org.). A Diferença. Campinas:
Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio Editora da Unicamp, 2005.
de Janeiro: Edições Graal, 1988.
______. Do enunciado em Foucault à teoria da
______. História da sexualidade II: o uso dos multiplicidade em Deleuze. In: TRONCA, I.
prazeres. Tradução de Maria Thereza da Costa (Org.). Foucault vivo. Campinas: Pontes, 1987,
Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio p. 11-42.
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PERROT, M. As mulheres ou os silêncios da
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RABINOW, P. & DREYFUS, H. Michel EDUSC, 2005.
Foucault. Uma trajetória filosófica. Para além
RAGO, M. Epistemologia feminista, gênero e
do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de
história. Masculino, Feminino, Plural.
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Florianópolis: Ed. Mulheres, 1998. Disponível
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em:<http://projcnpq.mpbnet.com.br/textos/epis

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622
temologia_feminista.pdf>. Acesso em: 27 set.
2015.

Referências do corpus da pesquisa


PERFIL MODA. Disponível em:
<http://www.facebook.com/pages/moda/24510
818276>. Acesso em: 12 jul. 2012.
WOOLF, V. Um teto todo seu. Disponível em:
<https://virginiawoolf.files.wordpress.com/201
2/03/um-teto-todo-seu-virginia-woolf.pdf>.
Acesso em: 27 set. 2015.

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PROCESSO DE SUBJETIVAÇÃO DO INDÍGENA EM
MATERIAL DIDÁTICO SUBSIDIADO PELAS NOVAS
TECNOLOGIAS

Icléia Caires MOREIRA


Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS)
icamoreira@hotmail.com

Resumo: Este trabalho tem por objetivo analisar, discursivamente, os possíveis efeitos de
sentido de estereotipação sobre o indígena (d)enunciados do guia didático “Cineastas
indígenas para jovens e crianças”. Mobilizamos a hipótese de que a representação
identitário-cultural do indígena, nesse arquivo, se dá pelo discurso do branco, como um
processo de subjetivação/identificação a respeito do sujeito indígena mediante o uso das
novas tecnologias. Para tanto nos valemos de uma epistemologia que compreenda o
marginalizado, pautamo-nos na perspectiva da Análise do Discurso de linha francesa
(PÊCHEUX, 1988), no artifício metodológico foucaultiano (1988, 1997, 2013),
especificamente o arqueogenealógico, em face dos mecanismos de monitoramento e
controle sobre o que é divulgado a respeito dos indígenas de diversas etnias e na
perspectiva teórico-culturalista de Castro-Gomes (2005).
Palavras-chave: Identidade; Subjetivação; Material didático, Entre-lugar.

guia didático “Cineastas indígenas para jovens e


Introdução
crianças”. Material didático constituído de um
Por meio de uma leitura transdisciplinar, guia, mais dois DVDs, organizado pelo projeto
pautada na perspectiva da Análise do Discurso “Vídeo nas aldeias”, distribuídos em escolas de
de linha francesa (PÊCHEUX, 1988), no ensino fundamental regular e publicizado na
artifício metodológico foucaultiano (1988, Web por meio do site da Ong (Organização não
1997, 2013), especificamente o governamental).
arqueogenealógico, em face dos mecanismos de
De forma específica, buscamos
monitoramento/controle e no assentamento
compreender como esse dispositivo pedagógico
teórico-culturalista de Castro-Gomes (2005).
voltado ao ensino público de nível fundamental
Este trabalho tem por objetivo analisar,
materializa em seus enunciados processos de
discursivamente, os possíveis efeitos de sentido
subjetivação do sujeito indígena via subsídio do
de estereotipação sobre o indígena
aparato tecnológico vinculado à produção de
(d)enunciados na materialidade linguística do

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624
vídeos. Além de observar como se dá o aos processos de subjetivação do sujeito
processo de escamoteamento do controle indígena no discurso didático vigente.
Estatal na produção da subjetividade dos povos Ao colocar em prática a investigação
indígenas descritos no guia. dos discursos que dão corpo ao aparato
Como vivemos submersos em um didático sobre o indígena por meio do artifício
espaço discursivo, heterogêneo, disperso teórico da Análise do discurso, essa pesquisa
(FOUCAULT, 2013), é na/pela linguagem torna-se relevante, haja vista que contribui para
articulada ao social que se dão as surgimento mais um olhar sobre a trama social
representações identitárias de si e dos (O) dos sentidos em relação aos sujeitos que
outros. Portanto, o sujeito (re)produz e é encontram-se nas chamadas periferias
(re)produzido por estratégias (micro)capilares existenciais.
que são mobilizadas pelos discursos, como
1. Entrelaçando fios teóricos
práticas que abalizam o governo de si e o dos
outros. É consensual que os sujeitos encontram-
se submersos em um contexto social constituído
A partir desse quadro, é possível
na/pela linguagem em que coabitam
articular que as instituições escolares funcionam entrecruzam-se e entrelaçam-se múltiplas vozes,
como espaço de formatação da representação dizeres e silenciamentos (CORACINI, 2010).
identitária dos sujeitos, cujos discursos tornam- Nesse espaço discursivo é que constituem as
se modos de subjetivação (FOUCAULT, 1997), representações identitárias dos sujeitos. Poderes
como “verdades irrefutáveis”. e saberes mobilizados de forma estratégica e
As práticas de subjetivação produzem (micro)capilar e abalizam o governo dos
identidades em constante mutação, ao mesmo sujeitos na malha social. Ou seja, a linguagem é
tempo em que discursos hegemônicos, imbuídos o lugar de celebração de formulações e
de saber-poder, que funcionam em movências sociais, históricas e ideológicas.
circularidade, procuram estabilizá-las e Por meio deste estudo, procuramos refletir
sedimentá-las conforme interesses ideológicos, sobre a emergência de uma rede de sentidos que
sócio-historicamente marcados. operam em conjunto e torna a escola, enquanto
Ante o exposto, mobilizamos a hipótese espaço institucional vinculada ao Estado,
de que a representação identitário-cultural do formatadora e normaliza identidades, via
indígena, nesse arquivo eleito como corpus da estratégias de saber-poder, que buscam
pesquisa, se dá pelo discurso do branco, como cristalizar determinadas representações dos
um processo de subjetivação/identificação a sujeitos na sociedade.
respeito do indígena mediante o uso das novas Dessa perspectiva, a distribuição de um
tecnologias. material didático constituído de uma guia, mais
A escolha dessa temática justifica-se dois DVDs, nas escolas de ensino público, e a
pelo ineditismo do gesto interpretativo, pela publicização deste na web, como um suporte de
atualidade do assunto, relevância social e veiculação de informações, a respeito de traços
escassez de produção científica no que se refere e marcas identitárias de seis etnias indígenas
(Wajãpi, Ashaninka, Kisêdjê, Ikpeng, Panará e

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625
Mbya-Guarani), funciona como um instrumento
Nesse curso, articulamos via Castro-
de construção da representação do próprio
Gomes (2005), que a palavra escrita é
sujeito-indígena, no imaginário social brasileiro.
instrumentalizadora da construção de leis e de
Nesta esteira, Castro-Gomez (2005) identidades, planeja programas, organiza a
discorre que reorganização global da economia compreensão do mundo no que se refere à
capitalista atualmente se apoia na produção das inclusões e exclusões, viabilizada por meio de
diferenças, não para celebrá-las, ou subverter o instituições legitimadas, neste caso as escolas, e
sistema, mas para contribuir com sua pelos discursos hegemônicos, materializados em
consolidação. O Estado funciona como uma tratados, manuais, ou guias didáticos,
instância central garantido a organização regulamentam a conduta dos atores sociais,
racional da vida humana, é um locus social estabelecendo fronteiras entre os sujeitos, o que
capaz de formular metas válidas a todos, analisa acarreta na construção de uma verdade que
desejos, interesses e emoções direcionadoras existe um “dentro ou fora dos limites definidos
dos sujeitos rumo a metas por ele definidas. por essa legalidade escriturária”.
Legitima suas as políticas reguladoras, O contexto da escrita permite criar um
cria perfis de subjetividade estatalmente campo de identidades viabilizadoras do projeto
coordenados, instituindo, dessa maneira, um moderno de governamentabilidade, os sujeitos
processo de “invenção do outro” por meio de que não se encaixem no perfil identitário
dispositivos de saber-poder que funcionam estabelecido, por meio de práticas
como o cerne da construção de representações subjetivadoras, acabam por ocupar o entre-
dentro de suas instituições, nesse caso em lugar da exclusão.
específico o ambiente escolar.
O discurso configura-se sob três
Em conformidade com Foucault aspectos, é produtor/(re)produtor de
(2013), articulamos que o sistema educacional conhecimentos e crenças via diferentes modos
torna-se então uma maneira política de manter de representação; é capaz de estabelecer
ou modificar a apropriação dos discursos relações sociais e cria, (re)força ou (re)constitui
do/sobre os sujeitos, vinculados por saberes e identidades.
poderes que eles trazem em seu bojo.
Desta forma, pode privilegiar certos
Deste modo, a distribuição de um sujeitos em detrimento de outros, por meio de
material didático, nas escolas de ensino público, acontecimentos discursivos situados em
sobre o sujeito indígena se constitui em um determinado momento histórico, que se
instrumento poderoso que tanto pode favorecer cristalizam pela ação da memória e latejam
a discriminação e a exclusão quanto a interdiscursivamente no dito (MARTINS,
ampliação dos limites humanos que abriguem, 2005).
cada vez mais, a diversidade a depender de
As filiações de sentidos permeadas de
quais discursos materializam-se nesse suporte,
inúmeras vozes no jogo da língua, historicizam-
que tipo de formações discursivas os
se em diversos pontos marcadas
mobilizam, no percurso (de)lineador da
ideologicamente pelas posições relativas ao
representação do indígena.
poder e emergem na materialidade discursiva

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626
efeitos que atingem os sujeitos apesar de sua
A produção do guia didático é um meio
vontade (ORLANDI, 2013).
em que sujeitos inscrevem-se via discurso,
A partir desse pressuposto, observa-se deixam sua marca. No momento em que o
que as relações entre: história, prática social e discurso ocorre, em seu acontecimento, dá-se o
linguagem têm construído a imagem do sentido, tal enunciação atualiza o já-dito,
indígena como um sujeito excluído, silenciado, causando novos efeitos de sentido, no entanto
ignorado por meio da ação de formações parte do que já está posto sobre a temática
discursivas e ideológicas, advindas do discurso indígena.
oficial, político, didático e jurídico brasileiro,
É preciso ter cuidado nesse processo de
que (re)legam-lhe o lugar da marginalidade
disseminação da diversidade cultural pelo
desde o processo de colonização (GUERRA,
discurso pedagógico, disponibilizado para
2012).
download na web, espaço midiático, para que
Com relação ao subsídio das novas não ocorra o revigoramento de representações
tecnologias, Pierre Lèvy (1999, p. 92) traz a preconceituosas desses sujeitos, o que
baila que o ciberespaço é definido como um reforçaria sua posição periférica na sociedade.
espaço de comunicação aberto pela
Ao observar o conceito de mídia de
interconexão mundial de computadores e das
Melo (2005) direcionando-o para o campo
memórias dos computadores. Deslocando-o
discursivo da Web, vemos que trata-se de um
para os discursos de linha francesa, podemos
espaço de fabricação, reprodução e
compreender o termo como um campo
disseminação de representações/simulacros
discursivo onde se realizam trocas simbólicas de
construtores de identidades em escala
todas as ordens entre os sujeitos. Trata-se de
planetária.
um novo suporte de representação dos sujeitos
que subjetiva a constituição identitária e Como o linguístico e o social são
organização/disponibilização do dito em rede. constitutivos de qualquer discurso e se
Um universo oceânico de informações materializam em enunciados dos quais emergem
abrigadas, onde os sujeitos “navegam e marcas linguísticas, permeadas pelas relações de
alimentam-se desse universo” (LÈVY, 1999). poder-saber, produtos histórico-sociais
baseados em determinadas condições de
Tal suporte tem ocupado um espaço de
produção (MASCIA, 2003). Observa-se que há
destaque na formação da esfera pública e
um escamoteamento do interesse Estatal em
deveria ser compreendido como um terreno em
cercear e controlar a produção desses materiais
que se possa criticar, romper com certos
didáticos, por meio do suporte financeiro, para
determinismos propostos pelos discursos
que o indígena seja constantemente visto como
hegemônicos, no entanto, conforme as
o “outro”, o “estrangeiro”, o “selvagem”.
informações nele disponibilizadas, pode também
vir a transformar-se em um espaço de reforço Valendo-nos das considerações de
da ideologia dominante, da exclusão das Castro-Gomes (2005) feitas a respeito dos
minorias (MELO, 2003) e estereotipação dos Manuais de urbanização para o corpus desta
sujeitos. pesquisa, o guia didático acaba por transformar-
se em uma espécie de “bíblia” capaz de

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mesmas paisagens? (Cineastas indígenas
direcionar os alunos, de ensino fundamental para Jovens e Crianças. Carta ao aluno.
regular das escolas públicas brasileiras, a 2010 p. 05.)
conhecer a representação identitário-cultural
dos sujeitos indígenas das seis etnias descritas
no material. Na materialidade linguística do excerto
analisado vemos, interdiscursivamente, que se
As práticas discursivas filiadas a digladiam formações discursivas: coloniais,
formações discursivas coloniais implementadas capitalistas, educacionais, religiosas e
por meio dessa taxonomia pedagógica, em lugar ambientais. No entanto, a que mais se sobressai
de incluir/unir, acaba por reforçar a separação no fio discursivo é a colonial. Por meio de um
entre branco e indígena. Conforme Quijano discurso dito de (in)clusão o enunciador utiliza-
apud Castro-Gomes (2005), funciona como um se do material didático como um instrumento
aparato legitimador de um imaginário poderoso favorecimento da discriminação e a
estabelecedor de diferenças incomensuráveis exclusão do indígena.
entre colonizador/branco e colonizado/indígena,
em que noções de “raça e cultura” funcionam Por meio de um gesto interpretativo, é
como dispositivos geradores de identidades possível notar marcas linguísticas de exclusão
opostas. que emergem da escritura. Sob o gênero
epistolar, o enunciador dirige-se ao sujeito-
2. Um gesto analítico: leitor, via uso do verbo “ter” conjugado em
O Recorte discursivo eleito, intitulado primeira pessoa do plural para delinear que
R1, faz parte da “carta aos alunos”, página 05, trata-se de uma equipe organizadora dos ditos
parte inicial do guia, voltado ao Ensino ali registrados e dar maior credibilidade às
Fundamental Público, “Cineastas indígenas para informações, juntamente com o substantivo
jovens e crianças”. Material didático abstrato “certeza”, a fim de convencê-lo que já
especializado, produzido pela Ong (organização conhecem tanto as indagações, quanto as
não governamental) “Vídeo nas aldeias”, com o respostas que irão surgir na mente do sujeito-
patrocínio da Unesco, em cumprimento das leis leitor ao ter contato com as informações
10.639 e 11.645 /08 que incluem no currículo constitutivas da representação do indígena no
oficial escolar a obrigatoriedade do estudo das guia em análise. Embora tal material traga em
histórias e culturas indígenas. seu bojo a ideia de inclusão das minorias no
cenário escolar, emergem do/no discurso
R1: Quando você começar a assistir aos marcas de representações sobre o indígena
filmes, temos certeza que muitas coisas irão ligadas a estereótipos e preconceitos.
passar pela sua cabeça: esses povos moram
A partir desse cenário, problematizamos
no Brasil, mas falam outras
que essas perguntas retóricas funcionam como
línguas? Adoram outros deuses? Estudam
em escolas nas florestas? Usam câmeras de estratégias para instigar o interesse de seus
filmar? Chinelos de dedo? Celular? Como destinatários ao conteúdo que se apresentará.
fazem suas casas? Como vivem nas São também direcionadoras da imagem
florestas e nos cerrados? Que marginalizada do indígena, demarcam a
outras gentes e animais habitam estas

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fronteira cultural, territorial e linguística entre efeitos de sentido de que os povos indígenas
brancos e indígenas. encontram-se na condição de hóspedes em sua
casa, são estranhos aos demais habitantes do
Funcionam como estranhamentos,
Brasil. A estes sujeitos é relegado ocupar o
desconhecimento dos povos que são marcados
entre-lugar, entre-espaço cultural e histórico,
na própria enunciação. Levantam a questão da
nem branco, nem brasileiro (GUERRA, 2010).
diferença religiosa e da maneira com que se
organizam as instituições escolares e ainda É-nos dado observar que a conjunção
considera “espantoso” ao branco saber que o coordenativa adversativa “mas”, marca uma
indígena faz uso de artefatos como chinelos e relação de desigualdade entre os seguimentos
aparatos tecnológicos, “câmeras” e “celulares” coordenados, coloca o segundo seguimento de
como se somente a ele fosse dado o direito a algum modo diferente do primeiro, de modo a
valer-se de tais materiais. implicar a manutenção em maior grau de um
dos membros coordenados (NEVES, 2010) e
É possível observar nas questões:
mobiliza uma oposição, aqui entendida como
“Como vivem nas florestas e nos cerrados?” e
estranhamento porque são “outras” línguas,
“Que outras gentes e animais habitam estas
“outros” deuses, configura-se mais uma vez via
mesmas paisagens?” que o discurso
recurso linguístico-discursivo, o processo de
pedagogizante, a partir das escolhas lexicais
exclusão do outro via fronteira linguística,
propostas, acaba por fomentar práticas
cultural e religiosa por considerá-lo diferente de
discursivas que cristalizam a imagem do
si. O sujeito indígena passa a ser o outro, uma
indígena como “selvagem”, primitivo, ser
espécie de estrangeiro, que não possui direito a
animalizado em fase de pré-civilizatória que
hospitalidade do branco no seio da sociedade
partilha com os animais o espaço florestal do
(GUERRA, 2010).
país (GUERRA,2010). Ajudam a manter uma
imagem negativa e preconceituosa do indígena Por meio de um processo de
na sociedade brasileira, como se fossem estereotipação dos traços identitário-culturais
inferiores aos demais sujeitos. do indígena, via discurso do branco, aqui
compreendido como discurso hegemônico, esse
Apontamos que no enunciado “esses
dispositivo didático, acaba por formatar,
povos moram no Brasil, mas falam outras
direcionar e construir identidades.
línguas?”, é mobilizado o pronome
demonstrativo “esse”, que segundo Neves Os vídeos, a própria constituição
(2010) é considerado uma palavra fórica por dialógica das cartas (ao aluno/ao professor), as
sempre estar vinculado a um processo de narrativas e as imagens relegam ao sujeito
referenciação. Tal dispositivo linguajeiro de indígena um entre-lugar sócio-histórico e
retomada, traz um distanciamento, uma ideologicamente marcado em que é visto como
fronteira cultural entre o branco e o indígena, “estrangeiro” em sua própria casa, o “exótico”,
delineia na linguagem, via ecos interdiscursivos passível “visitação”. Aquele a quem se deve
como indígenas são povos que se encontram do conhecer por força de lei. Assim há um reforço
lado de lá de fronteira, relega a eles um lugar à de uma visão equivocada do índio e de sua
margem da sociedade dita civilizada. Por meio cultura, há muito tempo latente no já dito da
do discurso pedagógico emergem possíveis sociedade brasileira, alimenta uma formação

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629
ideológica que o deslegitima como sujeito e materializadas em iniciativas como a do guia
silencia seu discurso. “Cineastas indígenas para jovens e crianças”,
parecem trair seus organizadores, uma vez que
São séculos de menosprezo e
têm colaborado para acentuar ainda mais a
inferiorização do indígena por parte da cultura
cultura branca como centro e as culturas
branca (MARTINS, 2005), que ecoam
indígenas como margem, o que vem a
interdiscursivamente produzindo uma
estabelecer e reforçar um desejo de que haja
identidade marcada pelo preconceito, pela
uma fronteira étnico-cultural entre ambos.
vulnerabilidade, aliada a uma política de
inclusão que acaba por funcionar às avessas, Considerações finais
processo pelo qual se constrói a subjetividade Por meio das considerações dispostas
do sujeito-índio perpassada de exoticidade e neste artigo, mobilizamos que o gesto analítico
marginalização. discursivo a respeito da representação do
A palavra escrita, no guia em análise, indígena, permite-nos tecer des-locamentos,
acaba por contribuir com construção de leis e reflexões críticas e problematizadoras que
de identidades, organiza a compreensão do levem a compreender o processo de
mundo quanto às inclusões e exclusões. A subjetivação da alteridade do sujeito indígena
escola, instituição legitimadora, regulamenta a em materiais didáticos disponíveis no espaço
conduta dos atores sociais, estabelecendo virtual e distribuídos no cenário educacional por
fronteiras entre os sujeitos, delineando o que foça de dispositivos legais. Além de possibilitar
Castro-Gomes (2005) chama de “dentro ou denunciar como são construídas
fora dos limites definidos por essa legalidade discursivamente as
escriturária” identificações/representações daqueles que o
discurso hegemônico insiste em posicioná-los
Dentro dessa perspectiva observa-se que
sempre do lado de lá da fronteira.
há um interesse Estatal de manter essa fronteira
étnico-cultural entre brancos e indígenas por Problematizar tais binarismos e como se
meio desse instrumento didático-pedagógico, organizam, nos ajudam a compreender e
que além de estar presente no espaço questionar a construção identitárias dos sujeitos
educacional, também encontra-se publicizado e suas significações imbuídas de saber-poder
na Web para download. O ciberespaço acaba que circulam na sociedade, além de poder
por funcionar como um veículo que propaga e observar como os efeitos de sentidos
legitima um imaginário, constituído pela voz do produzidos funcionam, produzindo e ratificando
branco sobre o indígena, estabelecedor de verdades, que procuram estabilizar a identidade
diferenças incomensuráveis entre dos sujeitos.
colonizador/branco e colonizado/indígena, em
que noções de “raça e cultura” funcionam como
dispositivos geradores de identidades opostas. Referências
É possível refletir, via gesto analítico, CASTRO-GOMES, S. Ciências sociais,
que as práticas discursivas ditas de inclusão, violência epistêmica e o problema da “invenção
muito presentes na sociedade hoje, do outro”. En libro: A colonialidade do saber:

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632
A CONSTRUÇÃO DO SUJEITO MULHER NA LEI MARIA DA
PENHA

Nívea Barros de MOURA


Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN)
niveabarrosmoura@hotmail.com

Resumo: A Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 – Lei Maria da Penha – é palco de


embates históricos, ideológicos e sociais que perduram até os dias atuais. Nesse sentido,
esse trabalho tem como objetivo analisar a linguagem enquanto lugar de conflitos e de
relações de poder. Como metodologia, faremos pesquisa bibliográfica sobre a Análise do
Discurso Francesa, embasada principalmente em Foucault, para compreender como no
discurso se efetiva a construção identitária e as formas de subjetividade de constituição
desse sujeito, assim como as categorias que serão mobilizadas no percurso analítico.
Nossa reflexão aponta para a revelação das relações de poder que formam esse discurso
jurídico representando a mulher como alguém que necessita de amparo legal para firmar-
se e constituir-se enquanto cidadã e sujeito de direitos.
Palavras-chave: lei maria da penha, mulher, sentido, discurso.

encontra grande resistência nas práticas e nos


Introdução
saberes que compõem o campo da aplicação e
O movimento feminista, nos anos 1970, efetividade das leis.
trouxe à tona a violência contra a mulher, até
O Brasil é um Estado indubitavelmente
então considerada um assunto do âmbito
inserido nas discussões acerca da violência
privado, e mostrou que ela decorre da estrutura
contra a mulher, e observando essa temática
de dominação masculina – interpretação que
como questão de direitos humanos, aprovou em
não estava presente nas práticas judiciárias de
7 de agosto de 2006, a Lei n° 11.340 –
enfrentamento à violência praticada contra
conhecida popularmente e até no meio jurídico
mulheres.
como Lei Maria da Penha – que fundamenta-se
A violência entre os gêneros é um em normas diretivas e consagradas na
fenômeno histórico, decorrente das relações de Constituição Federal brasileira de 1988. A Lei
poder assimétricas, constituindo, assim, afirma que toda mulher, independentemente de
hierarquias – visíveis ou não. Porém, incluir as classe, raça, etnia ou orientação sexual, goza
hierarquias de gênero no entendimento da dos direitos fundamentais e pretende assegurar
origem e desenvolvimento das violências a todas as oportunidades e facilidades para

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633
viver sem violência, preservar a saúde física e cada contexto discursivo. A exemplo, o sentido
mental e o aperfeiçoamento moral, intelectual e criado no texto histórico é produto da
social, assim como as condições para o intervenção do historiador que escolhe os
exercício efetivo dos direitos à vida, à documentos, extraindo-o do conjunto de dados
segurança e à saúde. do passado que depende de sua própria posição
na sociedade (FERNANDES; SANTOS, 2004,
Nestas breves linhas, investiga-se,
p. 23). Assim, as palavras e os enunciados
portanto, o contexto histórico do surgimento da
adquirem significações e produzem efeitos de
Lei Maria da Penha que “cria mecanismos para
sentido diferentes em cada um dos contextos
coibir a violência doméstica e familiar contra a
que são atravessados por práticas culturais e
mulher [...] e estabelece medidas de assistência
históricas específicas.
e proteção às mulheres em situação de violência
doméstica e familiar” (BRASIL, 2006, art. 1°), Para produzir o efeito de autoridade e
para assegurar-lhe as condições mínimas exigir seu cumprimento, o discurso jurídico
necessárias para o exercício efetivo de seus precisa fazer com que haja uma crença, ainda
direitos fundamentais. que de forma imaginária, em uma instituição
jurídica que dá proteção aos indivíduos, com
Não pretende-se analisar aqui a
normas estabelecidas, cuja inobservância
constitucionalidade da Lei, mas o discurso
produzirá sanção. A linguagem do Direito,
produzido por sua edição e seus efeitos de
caracteriza-se fortemente por essa espécie de
sentido a partir de então.
impressão de verdade, isto é, a certeza de que a
Para pensar sobre esse sujeito-mulher, decisão tomada é justa e a única cabível para a
objeto da lei, e de que forma ele é situação apresentada. Todavia, sentenças, leis,
discursivamente representado e significado pelo jurisprudências, entre outros, são mediadas pela
texto legal partimos do referencial teórico da interpretação, por uma multiplicidade de
Análise do Discurso Francesa, mais sentidos, pela presença inalienável do sujeito
especificamente dos conceitos foucaultianos de que diz ou escreve.
formação discursiva, discurso e práticas
Tomemos como exemplo a Lei n°
discursivas.
11.340/06 (BRASIL, 2006), objeto do nosso
A escolha do corpus justifica-se por estudo. Buscando uma interpretação legitimada,
considerarmos relevante a verificação do modo isto é, aceita socialmente e a possível aplicação
como se concebe institucional, legal e correta do dispositivo, o legislador conceitua o
discursivamente a mulher contemporânea em que seria violência moral descrevendo o que se
nossa sociedade: um ser frágil, que necessita de deve entender por este tipo de violência:
proteção especial em razão de um
posicionamento machista ainda presente em Art. 7º. São formas de violência doméstica e
nossa sociedade. familiar contra a mulher, entre outras:
1. A linguagem jurídica V – a violência moral, entendida como
qualquer conduta que configure calúnia,
Em termos gerais a linguagem é a difamação ou injúria.
representação do saber e do poder que permeia

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634
interpretadas da mesma forma por todos.
O primeiro problema observado pelo
Entretanto, todo discurso é subjetivo, no
jurista é como provar se houve ou não
sentido em que se trata de alguma concepção
violência. As provas que serão obtidas no
do homem sobre o mundo. Nas palavras de
decorrer do processo são permeadas por
Foucault (2014, p. 120)
interpretações realizadas pelos sujeitos-do-
direito, a partir do relato da suposta vítima e do [...] não há enunciado em geral, livre, neutro
suposto autor do fato; prováveis terceiros e, e independente; mas sempre um enunciado
por fim, testemunhas. Além desses, auxiliares fazendo parte de uma série ou se um
da justiça, juízes, advogados e promotores, conjunto, desempenhando um papel no meio
interpretando as provas colhidas, teremos, dos outros, neles se apoiando e deles se
portanto, uma interpretação de interpretações. distinguindo: ele se integra sempre em um
jogo enunciativo, onde tem sua participação,
Com efeito, a verdade do Direito é a por ligeira e ínfima que seja.
verdade de uma posição e não deixa de ser uma
interpretação. A diferença reside no fato de que
se trata de uma posição legitimada pela Nesse sentido, o texto jurídico, como
sociedade, pelo Estado, pela legislação em qualquer outra forma de linguagem, não é
vigência. É necessário, portanto, interpretar o transparente e tampouco homogêneo. Esse
fato como uma ação ou omissão que transgride efeito é posto pelas articulações entre os
a normalidade posta socialmente, a fim de que discursos e os poderes, responsáveis também
se constitua como um fato tipificado no âmbito pela dissimulação de sua existência, ou seja, por
do Direito. fazer parecer ao sujeito que ele é livre ao
escolher, ao decidir e ao dizer. Dessa forma,
Outro problema é que, diante do atado às relações de poder, o sujeito não é livre
conceito de violência moral, deparamo-nos com para interpretar de forma isenta em relação à
outros conceitos também imprecisos sua constituição subjetiva. Interpreta-se a partir
necessários à compreensão e à aplicação da de uma posição social. É por isso, por exemplo,
norma. Esses, ao serem determinados, também que para a família um filho infrator pode ser
remeterão a outros conceitos e, assim, caímos visto como um filho que cometeu um erro; mas,
em uma rede de interpretações e a essência não dificilmente, assim será visto pelo comerciante
é atingida, já que o significado torna-se outro e enganado.
assim sucessivamente. Dessa forma, a precisão
desejada pelo legislador, ao criar uma norma, 2. Percurso teórico e metodológico
esbarra na interpretação dos sujeitos-do-direito. Reafirmando o já dito, este estudo tem
Ao criar uma norma é como se o como objetivo analisar a linguagem enquanto
legislador pudesse determinar o sentido exato lugar de confrontos assimétricos de poderes, já
do texto e o leitor não participasse do processo que os sentidos são construídos na relação com
de construção dos sentidos do texto no ato de a exterioridade. Nossa base teórica é a Análise
leitura. É como se as palavras fossem do Discurso de vertente francesa – que
transparentes, trazendo consigo um sentido investiga a construção do sentido em diferentes
invariável que, ao serem lidas/ouvidas fossem enunciados. Buscaremos, nesse trajeto, discutir

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635
interdiscursivamente o modo como se concebe Lei Maria da Penha, pode traduzir essa
a mulher contemporânea em nossa sociedade. igualdade formal.
Para tanto, justifica-se a escolha da Lei 3. A construção discursiva da mulher na Lei
Maria da Penha, na qual se percebe essa Maria da Penha
influência já na própria alcunha dada a essa A Lei Maria da Penha é proferida a
referência legislativa. Em nenhum momento partir do espaço jurídico-legislativo, lugar de
existe, no texto legal, alusão ao nome “Maria da jogos de sentido, de ideologias de
Penha”, contudo, a referida Lei é assim discursividades, de formações ideológicas que
conhecida porque se refere à busca incessante se materializam em formações discursivas
de uma mulher vitimizada pela violência consideradas as condições de produção. Nesse
doméstica e familiar. sentido, os discursos legais são hierárquicos e
Anterior à Maria da Penha, as situações dominantes, porque são proferidos a partir de
de violência contra a mulher eram julgadas lugares de poder e em nome de um determinado
segundo a Lei n° 9.099/95 e grande parte dos saber.
casos era considerado crime de menor potencial
Da articulação dos processos
ofensivo, cuja pena ia até dois anos e os casos ideológicos com os fenômenos linguísticos
eram encaminhados aos Juizados Especiais surge o discurso. A linguagem, enquanto
Criminais (JECRIM). As penas, muitas vezes, discurso, é interação, um modo de produção
eram simbólicas, como cestas básicas ou social, ela não é neutra, inocente e nem natural,
trabalho comunitário, o que contribuía para por isso é o lugar privilegiado de manifestação
propagar um sentimento de impunidade. da ideologia. É um lugar de conflito, de
Como metodologia, adotamos a confronto ideológico, não podendo ser
pesquisa bibliográfica sobre a Análise do estudada fora da sociedade, uma vez que os
Discurso Francesa, embasada principalmente processos que a constituem são histórico-
em Foucault, para compreender como no sociais (BRANDÃO, 2002, p. 12).
discurso se efetiva a construção identitária e as A seu turno, a Lei Maria da Penha tem
formas de subjetividade de constituição do
como principal objetivo transformar a relação
sujeito mulher, assim como as categorias que entre vítimas e agressores, assim como o
serão mobilizadas no percurso analítico. processamento desses crimes, o atendimento
Em seguida, realizaremos a análise da policial e a assistência do Ministério Público
materialidade, observando a produção de nos processos judiciais. Entretanto, ela enfrenta
sentido no enunciado jurídico da Lei Maria da a violência enraizada em uma cultura machista
Penha, buscando enfocar as relações de poder, secular que mantêm a desigualdade de poder
o interdiscurso e as práticas discursivas. A presente nas relações entre os gêneros, cuja
Constituição Federal do Brasil de 1988 defende origem não está apenas na vida familiar, mas faz
a ideia de que homem e mulher são iguais, por parte das estruturas sociais mais amplas.
isso, pretende-se averiguar como o contexto Nesse sentido, a Lei evidencia também
histórico e social que propiciou o surgimento da uma ruptura com a memória discursiva
referente à família que, por sua vez, passa a ser

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636
reconhecida por outras formas de constituição
As representações da mulher são
que não seja apenas aquela pautada no
releituras de imagens guardadas na memória
casamento e na coabitação.
social, e essas imagens refletem nas
Para Orlandi (2007, p. 45), ressignificar representações atuais. Historiadores, filósofos e
a noção de ideologia a partir da linguagem é um sociólogos podem afirmar – a seu turno – o
dos pontos fortes da Análise do Discurso, ou tratamento da mulher como um sujeito
seja, a ideologia produz evidência e coloca o mentalmente inferior, bondoso e fisicamente
homem na relação imaginária com suas mais frágil que, consequentemente, precisa de
condições materiais de existência: é a condição proteção.
para a constituição dos sujeitos e dos sentidos.
Pelas formações discursivas, na relação
As formações discursivas dão sentido às
que as palavras mantêm com as outras palavras,
palavras e estes são efeitos das determinações
a palavra, dita posteriormente, interfere na
do interdiscurso. Portanto, o sujeito afetado
significação, possibilitando outros sentidos. O
pela língua e pela história produz o sentido.
mesmo acontece com nosso aparelho de
Portanto, para a Análise do Discurso, o memória, novos traços possibilitam novas
sujeito não é concebido como fonte do sentido significações para os traços já gravados, para
e não é senhor de suas escolhas: ora é encarado objetos.
como sujeito afetado pelas relações de poder,
Para Foucault (apud VULLU, 2011, p.
ora é encarado como sujeito que fala em nome
6-7), nenhum saber é neutro, pois é político.
de uma posição que ocupa. Em relação ao
Assim, toda espécie de saber acaba por gerar
sujeito, Foucault (2014, p. 115-6) considera
uma relação de poder. O exercício do poder
que ele não é idêntico ao autor de uma
opera sobre o campo de possibilidade onde se
formulação. É, na verdade,
inscreve o comportamento dos sujeitos ativos,
[...] um lugar determinado e vazio que pode ele coage ou impede, mas é um agir sobre
ser efetivamente ocupado por indivíduos vários sujeitos ativos. Todo ponto de exercício
diferentes, e esse lugar [...] é variável o de poder é um lugar de formação de saber,
bastante para poder continuar, idêntico a si enquanto, toda forma de saber constitui
mesmo, através de várias fases, bem como relações de poder. Portanto, o conhecimento é
para se modificar a cada uma. Esse lugar é uma forma de dominação (coercitiva ou
uma dimensão que caracteriza toda impeditiva) de determinado grupo sobre
formulação enquanto enunciado, outro(s), os detentores do conhecimento (em
constituindo um dos traços que pertencem nosso caso, o legislador) sobre os desprovidos
exclusivamente à função enunciativa e desse conhecimento e que estão excluídos dos
permitem descrevê-la.
lugares sociais a que pertencem aqueles que
Descrever uma formulação enquanto
operam a lei.
enunciado não consiste em analisar as
relações entre o autor e o que ele disse [...],
Temos, portanto, nas sociedades modernas,
mas em determinar qual é a posição que
a partir do século XIX até hoje, por um
pode e deve ocupar todo indivíduo para ser
lado, uma legislação, um discurso e uma
seu sujeito. (FOUCAULT, ibidem, p. 116)
organização do direito público articulado em

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637
torno do princípio do corpo social e da
delegação do poder; e por outro, um sistema
entendia que essa diferença era decorrente do
minucioso de coerções disciplinares que aspecto anatômico e fisiológico entre os sexos e
garanta efetivamente a coesão deste mesmo em decorrência dessa diferença natural se dava
corpo social. a inserção desses sujeitos na sociedade. O
Um direito de soberania e um mecanismo de discurso da igualdade rompeu com a ideologia
disciplina: é dentro destes limites que se dá até então cristalizada na sociedade.
o exercício do poder. [...] O que não quer
O papel do homem perante a sociedade
dizer que exista, de um lado, um sistema de
não mudou tão drasticamente quanto o da
direito, sábio e explícito – o da soberania –
e de outro, as disciplinas obscuras e mulher, o que acabou gerando um choque.
silenciosas trabalhando em profundidade, Algumas mulheres têm as mesmas atribuições
constituindo o subsolo da grande mecânica fora do ambiente doméstico que um homem, e
do poder. Na realidade, as disciplinas têm o o homem, por sua vez, passa a ter as mesmas
seu discurso. Elas são criadoras de obrigações – dantes apenas femininas – no
aparelhos de saber e de múltiplos domínios espaço do lar. Essa divergência pode aumentar
de conhecimento (FOUCAULT, 2000, p. o índice de violência perpetrada pela facilitação
189). do ambiente doméstico e/ou familiar. A
primeira lei brasileira que vislumbra a
Fica fácil perceber, com as palavras de possibilidade de punição para a violência física,
Foucault, que o conhecimento constitui uma sexual ou psicológica e dano moral ou
forma de dominação de um dado grupo sobre o patrimonial em desfavor, especificamente,
outro e com o discurso jurídico não é diferente. contra a mulher, é a Lei Maria da Penha.
Assim, o discurso sempre será selecionado, É notório que a Lei adere a um
controlado, ou seja, é aquilo que pode e deve posicionamento em favor da mulher frágil e
ser dito dentro das práticas discursivas. vitimizada, o que já pressupõe um homem
Assim, o sentido da Lei Maria da Penha agressor (art. 5°, III). Estabelece as várias
não está apenas nas palavras, mas em todo formas de violência (art. 7°) e ações articuladas
contexto sócio, histórico e ideológico que (art. 8°), reforça a imagem que o Poder Estatal
permeia essa legislação, por isso há várias possui da mulher, além de romper com uma
formas de dizer e de interpretar um mesmo prática até então “aceitável” na sociedade
objeto. Em relação a essa questão, vale dizer (GOMES; LOUZADA, 2015, p. 8)
que é comum encontrar posições interpretativas O comportamento violento passa a ser
distintas de um mesmo conjunto de normas entendido como problema que necessita de
jurídicas frente à um caso concreto, o que reeducação e recuperação do agressor (art. 45).
também ocorre com a aludida Lei.
Outro ponto importante é a liberdade
A diferença sexual está diretamente sexual. A Lei Maria da Penha legitimou uma
ligada à igualdade dos direitos nas relações de prática cada vez mais corriqueira: o sexo entre
gênero. Antes da Revolução Francesa não se marido e mulher não se trata mais de uma
questionava o tratamento diferenciado obrigação, mas de uma forma de expressar
dispensado ao homem e à mulher, porque se afeto. Isso posto, ela também previu casos de

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638
estupro inclusive na constância do matrimônio,
entre o casal. O interdiscurso é o lugar no qual o sujeito
produz um discurso dominado por uma
Assim, a existência dessa referência determinada formação discursiva e, se os
legislativa, em verdade, remonta, reflete objetos e as articulações que o sujeito
discursos anteriores que visam obter a enunciador se apropria lhe dão coerência, na
igualdade jurídica entre homem e mulher – “Lei Maria da Penha” há uma nítida
como o Estatuto da Mulher Casada – bem intenção de resguardar e proteger a mulher
como os discursos feministas que recusam a vitimizada contra o homem agressor. Os
supremacia do homem em face da mulher, poderes instituídos (Executivo, Legislativo e
deixando clara a visão sexista atribuída à mulher Judiciário) cedendo às ideologias feministas,
na sociedade. elaboraram e mantêm em vigência uma lei
atravessada por uma formação discursiva
4. Palavras finais até então contrária à formação dominante,
A desigualdade marca todas as de que o homem era superior à mulher.
sociedades e como não se pode pensar o social
sem o político e este, por sua vez, sem o poder, Como um discurso é formado por
surgindo, assim, as divergências de interesses. outros discursos, o discurso jurídico é
O Estado busca eliminar as diferenças constituído por outros discursos em especial
entre os indivíduos. A Lei n° 11.340 de 7 de pelos que formam a moral de uma sociedade. A
agosto de 2006 – popularmente conhecida desigualdade entre homens e mulheres, própria
como Lei Maria da Penha – trouxe, para a do sistema capitalista, culmina com a posição
legislação, a concretização do princípio jurídico superior do homem sobre a mulher, estando
da isonomia, qual seja, todos são iguais perante essa desigualdade velada pelo discurso da
a lei, mas para garantir essa igualdade os isonomia.
méritos iguais devem ser tratados de modo Nesse sentido, apesar da pretensa
igual, e as situações desiguais, desigualmente, já mudança impingida pela lei, os discursos que
que não deve haver distinção de classe, grau ou circulam em nossa sociedade não mudaram.
poder econômico entre os homens. Consideramos que a construção da imagem da
Entretanto, diante do estudo realizado mulher ao longo da história é marcadamente
observa-se a presença de resquícios, na Lei, dos estereotipada: as mulheres são seres fisicamente
discursos machista, patriarcalista e feminista. frágeis e que necessitam de proteção
Essa imagem do jurídico resulta do que é dito: a diferenciada. Assim, persiste na Lei Maria da
mulher teria conquistado seu espaço, igualdade Penha uma concepção sobre a mulher vinculada
de tratamento no mercado de trabalho e na a uma sociedade com ideologias machistas e
família. Entretanto, observa-se que essa que, por isso, concebe-a como a parte mais
caricatura muito se afasta daquela desenhada frágil na relação homem/mulher.
pela sociedade. Essa imagem da mulher parece-nos
Nas palavras de Gomes e Louzada relacionar-se a uma forma de imposição do
(2015, p. 9): poder e de controle dos homens e das próprias
mulheres sobre si próprias, já que a mulher

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639
também acaba por propagar o machismo,
ORLANDI, E. P. A Análise do Discurso.
independentemente de sua vontade,
Princípios e procedimentos. 7. ed. Campinas:
simplesmente por fazer parte da sociedade.
Pontes, 2007.
Assim, nossa reflexão aponta para esse discurso
jurídico que revela as relações de poder e as VULLU, É. M. Clareza e obscuridade no texto
ideologias que o formam representando esse legal. Diálogo e Interação, v. 5, p.1-14, ago.
sujeito mulher como alguém que necessita de 2011, Disponível em:
amparo legal para firmar-se e constituir-se <www.faccrei.edu.br/dialogoeinteracao/>
enquanto cidadã e sujeito de direitos. Acesso em: 30-ago-2015.

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Uberlândia: Entre Meios, 2004.
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Disponível em:
<http://dcm.ffclrp.usp.br/jornadaad/upload/Acir
%20Matos.pdf>. Acesso em: 12-ago-2015.

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DIÁLOGOS E DISCURSOS: A CONSTRUÇÃO DE SENTIDO
DA ESCRITA/REDAÇÃO CIENTÍFICA ATRAVÉS DE
VIDEOAULAS NA INTERNET

Simone Cristina MUSSIO


Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP/FCLAr); Faculdade de
Tecnologia de Jahu (FATEC-Jahu)
simussio@yahoo.com.br

Resumo: Alicerçado bakhtinianamente, este trabalho tem como objetivo perceber como
se dá a constituição do gênero videoaula a partir de cursos sobre escrita/redação
científica inseridos no Youtube, de modo a compreender como ocorrem as negociações de
sentido presentes neste tipo de produção web-audiovisual. Logo, galga destacar como a
formatação de tais aulas dialoga, a partir de enunciados concretos (verbais e não
verbais), com os traços de um fazer instrutivo-educacional, concernente à esfera didático-
pedagógica, bem como com o caráter mercadológico, sobreposto a uma esfera midiático-
comercial, dos enunciados materializados nas aulas, os quais têm como alvo a venda de
determinado produto (livros) ou serviços (aulas, cursos, palestras, etc.).
Palavras-chave: videoaulas youtubianas; escrita/redação científica; bakhtin.

partir dos cursos “Escrita Científica: produção


Introdução
de artigos de alto impacto” e “Método Lógico
Em razão do objeto deste trabalho ser para Redação Científica”, com o objetivo de
composto por videoaulas, inseridas em observar as negociações de sentido presentes
ambiente web, tendo, neste caso, o site do neste tipo de produção web-audiovisual.
YouTube como instrumento divulgador de tais
Como o vídeo, principalmente a partir
informações, nos debruçamos sobre a
da criação do YouTube, passou a ser mais uma
constituição do gênero discursivo videoaula
ferramenta de divulgação planetária para vários
youtubiana de escrita/redação1 científica, a
fins, sua intensa difusão perpassa pelos níveis
do aprende-se, do instrui-se, do conhece-se, do
1
Os termos “escrita” e “redação”, atribuídos na diverte-se, do comercializa-se, etc. Desse
denominação das aulas ministradas, são uma forma de modo, ao situar-se, hodiernamente, na internet
contemplarmos as duas variações linguísticas faz dela “um dos mais fantásticos exemplos de
mencionadas nas aulas sobre escrita científica, do construção cooperativa internacional” (LÉVY,
professor Valtencir Zucolotto, bem como nas de redação
científica, sob o comando do professor Gilson Volpato.
1999, p. 126).

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641
Nesse sentido, ancorando-nos sob o Como os processos virtuais e
prisma da filosofia da linguagem bakhtiniana, convergentes das linguagens, propiciados pelo
almejamos com essas reflexões perceber como a moderno meio digital da internet,
internet tem auxiliado fortemente para uma operacionalizam forças que se atualizam e se
total mudança nas práticas comunicativas e, sintetizam em mudanças nos sistemas de
consequentemente, educacionais. Ao contribuir ensino-aprendizagem no mundo
para novas formas de leitura, escrita e pesquisa, contemporâneo, intercambiando-se, assim, em
passa a promover também um novo acesso a novos espaços e artefatos educacionais e
aulas, por meio de videoaulas, as quais além de comunicacionais, podemos claramente observar
se posicionarem como um instrumento de como as diferentes esferas da atividade humana
Ensino Informal a Distância2 (EIaD), também estão ligadas ao uso da linguagem (BAKHTIN,
viabilizam diferentes estratégias de divulgação e 1997). Haja vista que o caráter e as formas das
comercialização de informações. linguagens, consoante Bakhtin e seu Círculo,
são intensamente multiformes, bem como as
1. Um diálogo web-audiovisual: O caso das
esferas que os sustentam, apropriamo-nos desta
videoaulas youtubianas
teoria dialógica do discurso com o objetivo de
perceber como o ciberespaço, em específico as
videoaulas de escrita/redação científica inseridas
2
Expressão denominada por nós para referir-se ao no YouTube, está povoado por uma
Ensino Informal a Distância (EIaD) através de multiplicidade de linguagens e vozes, as quais
videoaulas inseridas em sites de “cultura participativa”,
cujo objetivo é a disseminação de informações de
participam da construção de sentido deste
maneira informal, sem vínculos estritamente formais hodierno gênero digital.
com a academia. Cabe assinalar que a expressão As construções, interações e recriações
“cultura participativa” é utilizada, geralmente, para
descrever a aparente ligação entre tecnologias digitais
presentes neste gênero virtual contemporâneo
mais acessíveis, conteúdo gerado por usuários e algum comportam um encontro de inúmeras vozes que
tipo de alteração nas relações de poder entre os mantêm relações de controle, compreensão,
segmentos de mercado da mídia e seus consumidores. negociação com novas formas de ensino-
Assim, a compreendemos como uma forma aprendizagem, as quais visam não apenas à
proporcionada pelas novas tecnologias em que o usuário
disseminação de conteúdos, mas a finalidades
não apenas consome informações, mas as produz
também. No entanto, tendo em vista a teoria na qual outras (comerciais, promocionais, etc.).
estamos imersos, os estudos bakhtinianos, não estamos Desse modo, foi pensando no gênero
retratando o usuário (o outro), mesmo antes do apogeu
videoaula que observamos como o conceito de
das novas tecnologias, como um ser passivo e
inexpressível, uma vez que a compreensão e a aula, em decorrência das inúmeras inovações
responsividade são partes inerentes da linguagem. Essa tecnológicas existentes no mundo atual, vem
orientação para o outro - denominada de orientação sofrendo distintas alterações no decorrer do
social da comunicação discursiva – pressupõe que se tempo, de modo a possibilitar novos modos
leve em conta a interação sócio-hierárquica que permeia informais de aprendizagem e de divulgação de
a relação entre os interlocutores. Logo, as aspas são aqui
utilizadas justamente como uma forma de apartar este
conteúdos. Em razão desse fenômeno, o que
sinônimo de passividade. pretendemos com este trabalho é, alicerçado na
teoria de Bakhtin e seu Círculo, adentrar neste

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642
universo web-audiovisual, com o intuito de
Segundo Bakhtin (1997), não há limites
compreender como se constituem as videoaulas
para os gêneros, pois eles estão diretamente
de escrita/redação científica tendo em vista a
relacionados com as múltiplas atividades da
ascensão da web 2.0 em propiciar fartas
vida social. Nesse sentido, os gêneros
possibilidades de interação em ambiente virtual.
desenvolvem-se em proporção ao
2. A importância dos gêneros do discurso desenvolvimento das práticas humanas. Para
para a produção de sentido das videoaulas clarear melhor esta asserção, podemos citar
de escrita/redação científica inseridas na como exemplo o caso do e-mail (correio
internet eletrônico) como uma forma de comunicação
Com o desenvolvimento social e quimérica há algumas décadas. Porém, em
tecnológico, os gêneros do discurso se razão do desenvolvimento científico e
desenvolveram e conquistaram mais espaço no tecnológico, este tipo de comunicação virtual
cotidiano das pessoas. Conhecê-los e empregá- foi introduzido no cotidiano das pessoas e, em
los eficientemente no processo comunicativo é algumas situações, seu uso, hoje, tornou-se
de suma importância para o crescimento social imprescindível.
e intelectual dos sujeitos, uma vez que não Como cada esfera dessa atividade
podemos produzir nada linguisticamente se não comporta um repertório de gêneros do discurso
for através de algum gênero discursivo. que vai diferenciando-se e ampliando-se à
Levando em consideração os postulados medida que a própria esfera se desenvolve, as
bakhtinianos acerca dos gêneros do discurso, videoaulas na internet surgem devido às
entendemos a questão da videoaula como sendo complexidades e particularidades do mundo
uma ressignificação do conceito aula em vistas atual. Em razão dos gêneros emergirem
do avanço tecnológico instaurado juntamente com as necessidades e atividades
hodiernamente. De acordo com esta teoria, os socioculturais, por meio das evoluções
enunciados – organizados e agrupados – são tecnológicas, podemos asseverar que o
usados em toda e qualquer atividade humana, desenvolvimento tecnológico ampliou e
sendo essas atividades caracterizadas por desenvolveu os gêneros (orais e escritos) de
condições especiais de atuação e por objetivos forma significativa. Assim, na
específicos comumente associados a elas. contemporaneidade, vivemos em uma época
dominada pela “cultura eletrônica” (rádio,
Uma vez que a diversidade de gêneros telefone, televisão, computador e,
varia conforme as circunstâncias, o nível social especialmente, a internet), o que nos conduz a
e o relacionamento entre os sujeitos devem ser novas formas discursivas como:
também levados em conta. Como o sujeito teleconferências, videoconferências, chats, aulas
sempre faz uma escolha por um determinado virtuais, videoaulas, etc.
gênero, essa escolha é determinada em função
da comunicação verbal que se pretende Como Bakhtin discursa que um gênero
estabelecer, tendo como referência o seu intuito contém o outro, ressignificando-se, os novos
discursivo e a própria constituição dos seus gêneros criados, como, por exemplo, as
interlocutores. videoaulas, não são criações inéditas, visto que
se construíram a partir de outros gêneros já

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643
existentes. Isso nos remete à concepção Sendo também videoaulas sobre escrita/redação
bakhtiniana sobre a “transmutação” dos gêneros científica é um gênero pautado por questões
e à absorção de determinado gênero a partir do institucionais. É um discurso que para funcionar
surgimento de novos. necessita de alguns canais para aparecer. É
diluído por questões bem mais amplas do que
Uma vez que os gêneros do discurso são
apenas uma interação face a face que identifica
extremamente heterogêneos, suscitando, muitas
o primário e secundário. Dialoga com um
vezes, dificuldades para definir o “caráter
contexto histórico que define este tipo de dizer
genérico do enunciado”, retomamos a questão
através de injunções que asseveram aquilo que é
primária e secundária dos gêneros, sugerida por
necessário dizer. Por meio de acabamentos
Bakhtin, para, assim, refletirmos como no
específicos, é produzido através da relação com
decorrer do processo da formação dos gêneros
a escrita, bem como embebido por formas
secundários, estes absorvem e transmutam os
organizadas de circulação, de forma a propiciar
gêneros primários, que se compuseram em
a permanência do enunciado, o qual se compõe
circunstâncias de uma comunicação verbal
não apenas didaticamente, mas sob o crivo de
cotidiana. Como o gênero do discurso
determinados fins comerciais.
secundário está atrelado a comunicações
culturais consideradas mais complexas, a aula Logo, tendo em vista tais estratégias
expositiva é, pois, um gênero secundário, uma discursivas presentes neste tipo de gênero
vez que é o resultado de realizações linguísticas digital, é possível notarmos como o não verbal
concretas que estão embasadas no estudo e o verbal se mesclam para o exalar de sentidos
científico e seguem um roteiro estabelecido neste tipo de produção web-audiovisual.
anteriormente pelo professor que a ministra,
3. Análises e discussão
apesar de estar fundamentada no gênero
primário e de, muitas vezes, este gênero tornar- Amparando-nos nas características
se evidente em sala de aula. sobre os gêneros, reverberadas por Bakhtin e
seu Círculo, buscamos, neste momento, analisar
Todavia, cabe ressaltar que o gênero é algumas formas de composição do gênero
secundário não apenas devido às relações de videoaula youtubiano de escrita/redação
interação do momento, ele é secundário, científica, a partir dos cursos já mencionados:
também, tendo em vista questões históricas “Escrita Científica: produção de artigos de alto
mais amplas, questões essas que aludem à impacto” e “Método Lógico para Redação
forma de sua própria circulação. Tem, pois, um Científica”. Vamos a elas!
lugar na história, além de exigir um trabalho,
um refinamento. Fazendo menção às Observemos a imagem que segue
videoaulas, podemos notar como este é um representativa do cenário.
gênero que permanece, uma vez que está
inserido em plataformas digitais de vídeos,
como é o caso do YouTube. Assim, é
atravessado por tecnologias e agrega vários
outros gêneros, pois devido às suas
especificidades tem um acabamento diferente.

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644
Figura 1. Cenário de apresentação das entre elas, o olhar representa uma região
videoaulas de Escrita Científica importante no estabelecimento das relações
de alteridade.

Continuando nossa análise, com o


objetivo de compreender os sentidos suscitados
pelas mediações da linguagem não verbal
(através de imagens ilustrativas postas no
cenário das videoaulas em questão) que
acompanham as palavras no ritual da aula, bem
Fonte:
https://www.youtube.com/watch?v=CZR0ptp
como de levantar indícios de produção de
PaR0&index=2&list=PL3yYSVIdSmKk79G sentido, é interessante que nos atentemos a esta
n240Pr3NUNe8Os0S0 nova questão.
Neste ambiente, vemos a presença de Projetadas ao fundo de onde está
um professor que, enquadrado da cintura para situado o “professor-apresentador” das
cima, está trajado socialmente, com camisa videoaulas, há a presença de duas imagens: uma
social e gravata, porém de forma mais amigável, foto, branca e preta, da portaria da USP de São
devido à dobra das mangas da camisa, mas que, Carlos e a imagem da abóbada da igreja
apesar de apresentar-se através de um estilo conhecida como Catedral, localizada também
mais casual, não perde o caráter de no mesmo município, a qual é tida como um
circunspeção e credibilidade. Sentado atrás de patrimônio da cidade. Para somar-se a essas
uma bancada, o que lhe confere uma posição de imagens, há a presença de uma frase que diz
estaticidade, e falando diretamente à câmera, “Cidade da Tecnologia”, frase esta que devido
com o olhar atento ao lugar onde se pressupõe ao seu vigor acadêmico, tecnológico e industrial
estar o seu destinatário previsto, através do conferiu este título à cidade.
fenômeno dialógico, profere o seu discurso, o Somada a essa cena, há, logo no início
qual, ao ultrapassar as relações entre réplicas de da videoaula, uma fala do “professor-
um diálogo face a face, sustenta-se na dinâmica apresentador” em que este apresenta a
de múltiplas inter-relações responsivas formatação do seu curso, os lugares por onde já
cerceadas por variadas posições o apresentou (no Brasil e no exterior), bem
socioavaliativas. O diálogo, por ser quase como dá opções sobre as extensões de tempo
universal, perpassa todo o discurso humano, que tais aulas podem ser ministradas. Vejamos:
todas as relações e todas as manifestações da
vida humana, ou seja, tudo que tem um sentido
e um valor. Por essa razão, o olhar é tão “Esse é um curso que tem sido formatado,
importante. Nas palavras de Amorim (2004, p. produzido nos últimos 6 ou 8 anos, e eu
102): tenho ministrado já em várias unidades das
Universidades de SP e também em várias
Se considerarmos que a situação de outras universidades no país e também no
oralidade apresenta outras marcas que não exterior. Na maioria dos cursos, na maioria
apenas as linguísticas, acreditamos que, da vezes, a convite dos cursos de pós-

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645
graduação, são cursos que a gente pode
formatar pra 4 a 16 horas, não é? E nós Passando-nos à análise das videoaulas
temos oferecido em várias faculdades no sobre redação científica, de Gilson Volpato,
Brasil e também no exterior”. podemos ver também como a composição do
cenário, de maneira geral, cria trilhas de
Uma vez que nada é por acaso, tais sentidos para a compreensão da verbo-
construções são produzidas através de vozes visualidade. A presença do fundo verde, ao
presentes no discurso do professor, como decorar o ambiente onde o “professor-
também no próprio cenário de onde se fala, as apresentador” se coloca em posição central,
quais representam a entrada do contexto de decanta, assim, possibilidades de interpretação
enunciação no interior do enunciado, sendo o que dialogam com o discurso
extraverbal um elemento fundamental para instrutivo/mercadológico, o qual está
constituição da estrutura enunciativa. São vozes interceptado pelas esferas pedagógica e
de outros discursos que se misturam com a voz comercial. Observemos:
do sujeito que enuncia. Ou seja, ao mesmo Figura 2. Cenário de apresentação das
tempo em que o professor busca emitir videoaulas de Redação Científica
informações sobre as características da escrita
científica, há vozes, através do seu próprio
discurso, como também por meio das imagens
apresentadas, que enaltecem o lugar da
enunciação proferida: uma universidade de
renome, situada em uma cidade conhecida por
sua importância tecnológica. Por esse mesmo
motivo, tal curso é digno de ser ministrado em
inúmeras universidades do país, bem como do
Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=mg_xpd-
exterior. Dessa maneira, vemos que além da xk9c&index=1&list=PL838A236D33BA042E
voz que busca informar, há aquela que se
preocupa em engrandecer o discurso, bem A presença da coloração verde, posta
como aquela que visa difundir o produto (as em formato retangular horizontal, reproduz a
videoaulas) e/ou vender seus serviços imagem de uma lousa (objeto estereotípico para
(palestras, aulas, cursos, etc.). figurar cenas escolares), a qual representa um
ambiente estudantil, ou seja, uma sala de aula.
Compele-nos dizer aqui que A cor (verde), associada à reprodução de
constatamos, nesta breve e não exaustiva objetos representativos em uma sala de aula
análise, segundo uma concepção de discurso (lousa), funciona como um signo ideológico,
pautada no produto das relações dialógicas, pois seu entendimento atrela-se ao horizonte
uma possibilidade de compor a leitura da verbo- social e ideológico de um determinado tempo-
visualidade nos segmentos dos enunciados espaço, de um determinado cronotopo. Logo, a
apresentados (videoaulas youtubianas de escrita inserção deste simbólico material escolar
científica) através de um ambiente digital que, demonstra a clara preocupação dos produtores
por meio da dialogicidade e do entremeio de da videoaula em reproduzir um cenário já
linguagens, suscita sentidos e sentidos outros. conhecido e familiar a seus destinatários

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646
(“alunos-usuários”), ainda que se trate de uma utilizada para representar ambientes de ensino-
aula em vídeo, veiculada em outro suporte, a aprendizagem, como uma sala de aula.
internet. Afinal, na perspectiva dialógica Desse modo, sabendo que os signos
bakhtiniana, o sujeito constrói temporalidades e refratam e refletem parte de uma determinada
espacialidades e se constrói também realidade, sendo, portanto, resultado das
constitutivamente em relação a elas e por elas. interações linguageiras, estes estão ligados a
Através deste exemplo, podemos uma avaliação ideológica, já que, segundo
perceber como a videoaula youtubiana, ainda Bakhtin/Voloshinov (2006, p. 33), "tudo o que
que seja um gênero da atualidade, preocupa-se, é ideológico possui um valor semiótico".
através do extralinguístico, em materializar seus Em razão de o signo constituir-se como
dizeres na atualização do antigo (reprodução de um fenômeno do mundo exterior, este goza de
uma aula convencional). Segundo um aporte material, como uma cor, um som, um
Bakhtin/Voloshinov3 (2006, p. 128), movimento, dentre outras formas de
a fórmula estereotipada adapta-se, em materialização dos efeitos de sentidos
qualquer lugar, ao canal de interação social ideológicos alcançados no percurso das inter-
que lhe é reservado, refletindo relações sociais dos sujeitos. É justamente por
ideologicamente o tipo, a estrutura, os esse motivo que muitos teóricos, que se
objetivos e a composição social do grupo. inclinaram sobre as reflexões trazidas no
Marxismo e Filosofia da Linguagem,
Como todo signo é ideológico, uma vez propuseram o pensar sobre questões alusivas ao
que integra a realidade material humana, ele verbo-visual, já que o signo, coadunado aos
também pode assumir diferentes sentidos de propósitos do funcionamento discursivo da
acordo com a determinação/orientação verbo-visualidade, alavanca um leque de
ideológica a ele associada. Um pão, por estudos.
exemplo, do mesmo modo que se caracteriza Entretanto, depois de tais reflexões,
como um produto de consumo, pode, todavia, decorrentes deste viés ideológico-interpretativo,
ser transformado ideologicamente quando voltemos à análise do cenário da videoaula em
usado para representar o corpo de Cristo em questão. Observando os aspectos não verbais
cerimônias religiosas. Logo, um retângulo de deste gênero digital, cabe destacarmos também
pigmentação esverdeada pode designar a produção de sentido desencadeada com a
simplesmente uma figura geométrica, mas, sobreposição de livros ao fundo verde já
quando associado ao contexto escolar, pode mencionado. Ao considerarmos tal cena como
transformar-se em uma lousa, devido tal mostra representativa de uma sala de aula,
ferramenta pedagógica ser constantemente podemos inferir que tais livros, de autoria do
próprio “professor-apresentador” da videoaula,
representam os próprios ensinamentos que
3
Cabe aqui ressaltar que em razão dos autores serão ministrados durante as aulas. Assim como
especificados estarem sendo interpretados segundo uma
uma lousa repleta de informações é sinônimo de
mesma teoria de análise e, logo, por partilharem os
mesmos pressupostos teóricos, estão sendo referenciados ensino e aprendizagem, as capas de tais livros
duplamente através deste recurso gráfico: / . são exemplos críveis e verídicos dos

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647
ensinamentos a serem passados, os quais, por Figura 3. Término das videoaulas de
Redação Científica
serem escritos e publicados pelo próprio
professor que os apresenta, conferem a ele
prestígio e respeito.
No entanto, desta cena dialógica podem
também decorrer sentidos outros. Uma vez que
salientamos o caráter não apenas instrutivo, mas
comercial de tais aulas, podemos conceber que
os livros expostos ao fundo verde, liso, sem
ranhuras, contrastam com tal superfície, Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=mg_xpd-
ganhando, assim, destaque na cena. Desse xk9c&index=1&list=PL838A236D33BA042E /
modo, estando exibidos lado a lado, como em https://www.youtube.com/watch?v=HGgDI3Bgj2A&list
uma vitrine, simbolizam bens a serem vendidos =PL838A236D33BA042E&index=2
a “consumidores-alunos-usuários” que, ao se Tendo em vista o tempo-espaço da
apropriarem de tais videoulas, estão, a todo o videoaula e as diretrizes que auxiliam a sua
momento, impelidos e estimulados a exercerem produção, é importante destacarmos que além
seu poder de compra. Tal ação capitalista é de tais observações já apontadas, como a
ainda evidenciada quando, durante as aulas, o inserção de elementos que remetem à produção
professor menciona que determinados e à divulgação das obras publicadas por tal
ensinamentos por ele descritos se encontram professor, ao voltarmos à produção de sentido
nas obras por ele publicadas, bem como decantada na apresentação desta videoaula
quando, no final de cada videoaula, mediante (figura 2), vemos a presença de elementos
técnicas de edição, há a inserção de uma tela como uma cadeira, que, de modo quase
preta (como forma de destaque) apresentando, imperceptível, foi apresentada nesta videoaula
através de letras brancas, uma lista de livros de inicial como uma forma de transmitir serenidade
sua autoria que versam sobre o assunto exposto à apresentação, já que nela o “professor-
(a redação científica). Tal é a natureza apresentador” se exibe sentado apenas
comercial deste enunciado que a partir da discursando sobre o que será apresentado na
segunda videoaula, junto às obras do professor, sequência das videoaulas que compõe o seu
há também a inserção de um site indicando curso sobre o “Método Lógico para Redação
onde adquiri-las, como pode ser visto na figura Científica”. Com efeito, o professor sentado é
seguinte: sinônimo do professor institucionalizado, do
professor que atingiu a consagração e se instala
confortavelmente na sua cátedra. A inclusão de
tal peça na cena também confere centralidade
ao ambiente, pois traz o professor em posição
de destaque na aula, ocupando em primeiro

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648
plano4 o centro das atenções. Assim, instrutivo como intuito explicar o processo de evolução
e comercialmente, tem-se como foco aquele que da difusão das informações na internet. Nesse
representa o saber, por isso deve ser posto em sentido, a videoaula inserida na web (a partir da
evidência; e como consequência supõe-se que ascensão da web 2.0) ressignificou-se das
haja a venda da sua imagem, pois um bom videoaulas tradicionais, utilizadas anteriormente
professor ministra palestras, vende livros, etc. por meio de videocassetes e DVDs; logo,
Logo, a disposição dos elementos na cena passou a fazer parte das práticas educativas
também se faz proposital, uma vez que é o hodiernas, através do surgimento da internet,
profissionalismo do professor retratado por sua haja vista que a concepção de aula também já
imagem e ações (primeiro plano) que promove existia.
a venda de seus livros (segundo plano). No entanto, em razão das modificações
4. Considerações finais presentes na sociedade, hoje, a aula na internet
é apresentada através de um novo formato, que
Atualmente, devido à globalização
além de promover a propagação de informações
instaurada em todo o mundo, propiciada pela
e conhecimentos pode também se apresentar
revolução tecnológica informacional, o
como uma forma de divulgação científica,
comportamento da sociedade contemporânea
comercial e institucional, pois uma vez inserida
mudou. A globalização não apenas contribuiu
no YouTube (site de arquivamento de vídeo
com a internacionalização de mercados, com o
gratuito e aberto a usuários de todo planeta),
aprofundamento da integração social e
ela passa a ganhar notoriedade e um viés
econômica dos países, mas transformou o
mercadológico.
conhecimento da informação em um bem de
grande valor. Através da universalização do E é na articulação entre o verbal e o não
acesso aos meios de comunicação, novas verbal que a produção de tais videoaulas
ferramentas geradas pela informática passaram provoca efeitos de sentidos e a intersecção de
a exercer enorme influência nas pessoas, e a diferentes esferas da atividade humana na
internet assumiu sua face mais visível neste composição deste hodierno gênero digital.
contexto, situando-se em uma posição de Logo, esta conexão de linguagens e vozes pode
destaque e tornando-se uma importante ser compreendida como algo relativamente
ferramenta para a transformação e difusão do saliente, singular, coletiva, partilhada, implícita
conhecimento. e visível, tendo no ambiente virtual o respaldo
necessário para a compreensão deste gênero
Contudo, a internet foi dividida em eras,
web-audiovisual.
as quais, denominadas “Eras da Web”, têm

4
Planos, segundo Bernardet (1980), são sequências Referências
que constituem uma hierarquia de unidades do produto
audiovisual, tanto para o planejamento e realização AMORIM, M. O pesquisador e seu outro. São
quanto para a recepção e análise do seu significado. Paulo: Musa, 2004.
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São
Paulo: Martins Fontes, 1997.

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649
BAKHTIN, M.; VOLOSHINOV, V. N.
Marxismo e filosofia da linguagem: problemas
fundamentais do método sociológico da
linguagem. 12. ed. São Paulo: Hucitec, 2006.
BERNARDET, J. O que é cinema. São Paulo:
Brasiliense, 1980.
LÉVY, P. Cibercultura. São Paulo: Ed. 34,
1999.
VOLPATO, G, L. Curso método lógico para
redação científica. Disponível em
<https://www.youtube.com/watch?v=mg_xpd-
xk9c> Acesso em: 10 jul. 2013.
ZUCOLOTTO, Valtencir. Escrita Científica:
produção de artigos de alto impacto. Disponível
em
<http://www.youtube.com/watch?v=CZR0ptpP
aR0> Acesso em: 10 jul. 2013.

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650
ETHOS INDÍGENA E REFLEXÃO PÓS-ABISSAL NO
DISCURSO DA LEI 11.645/2008

Elizabeth Morena do NASCIMENTO; Eliane Marquez da Fonseca FERNANDES; Tânia


Ferreira dos SANTOS
Universidade Federal de Goiás (UFG)
elizabethmorena21@hotnail.com; elianemarquez@uol.com.br; taniaferreirarezende@gmail.com

Resumo: Este artigo trata especificamente de avaliar o discurso e os ideais que estão em
questão na lei nº 11.645/ 2008, que institui a obrigatoriedade do ensino de história e
cultura indígena na educação básica brasileira. A implementação dessa lei nos currículos
das instituições de ensino propõe romper com os paradigmas de práxis pedagógicas
desinformadas acerca das epistemologias dos povos indígenas, principalmente, no que
atine aos aspectos de ordem historiográfico e literário indígenas, sobretudo, do período
do séc. XIX, que incutiu no imaginário social e na ideologia das instituições brasileiras o
ethos depreciativo e genérico representativo do sujeito indígena.
Palavras-chave: colonialismo; ethos; povos indígenas; lei nº 11.645/2008; saberes.

sustenta no paradigma pós-abissal (SANTOS,


2009). Trata-se de uma alternativa emergente
Introdução de amalgamento dos conhecimentos, ou seja,
Na voz de Santos (2009), quando trata do entrecruzamento epistemológico dos dois
do binômio pensamento abissal e pós-abissal, polos. Na asserção desse, os movimentos
a impossibilidade de co-presença dos polos indígenas representam a mais convincente
Norte e Sul erige a exclusão e, emergência do pensamento pós-abissal. Ecoa
consequentemente, ao epistemicídio de outras de sua voz que, o reconhecimento da
culturas que não sejam as culturas ditas pluralidade de conhecimentos no paradigma
hegemônicas do centro europeu, logo, da da ecologia de saberes questiona a analítica
ciência moderna branca. Na proposta do das identidades que foram forjadas aos
autor, a alternativa de câmbios possíveis, isto sujeitos indígenas através da racionalização
é, de rompimento com um paradigma política de saber/poder encetada a partir do
centralizado no pensamento abissal se

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modelo vigente do centro europeu ao longo paradigma pós-abissal. Ao passo em que, no
do período colonial. segundo, temos a figuração da identidade do
A par disso, e, considerando o sujeito indígena brasileiro na primazia do
caucionamento da obrigatoriedade do ensino pensamento abissal, logo radicalizada em suas
da história e da literatura indígena nos distinções.
currículos escolares brasileiros, defendemos No que atine a perquirição do objeto,
neste artigo a legitimidade da lei nº 11.645/ adotamos aqui a metodologia qualitativa e o
2008, no cenário escolar como proposta pós-
método análise de documento e estudo
abissal, isto é, pensar as epistemes dos povos bibliográfico. Com base nos arcabouços
indígenas a partir da perspectiva da realidade teóricos, fundamentamos como categoria
espaço-temporal de tais sujeitos. A lei referida nuclear nos postulados de Bakhtin (2006),
visa, sobretudo, assegurar na prática Santos, (1999; 2009) e Foucault (1995), num
pedagógica a contextualização dos saberes constante interdiscurso com autores das
partindo do contexto sócio-histórico-cultural ciências sociais e linguísticas.
desses povos.
Em suma, este artigo se caracteriza por
Ademais, a lei não é casual, mas se apresentar a relevância do objeto a ser
sustenta numa polifonia que se apoia em uma investigado através da relação entre língua,
vontade de saber sobre os conhecimentos de sujeito e história articulada aos demais
sujeitos que foram negligenciados e que processos de interação, a saber: político,
tiveram suas vozes silenciadas durante social, cultural e ideológico, uma vez que não
séculos. A partir dos postulados referidos,
importa destacar que, este artigo se pauta nos há como dissociar o estudo do ethos desses
Estudos linguísticos, num constante diálogo aspectos. Na abordagem de organização
entre a Sociolinguística educacional e a dividimos este artigo em duas seções.
Análise do Discurso. Na primeira seção, apresentamos quem
Destarte, a relevância social deste artigo é o indígena figurado no pensamento abissal
se focaliza na questão da reflexão de tais do idealismo romântico. Na segunda,
disciplinas nos espaços sociolinguisticamente situamos os aspectos de ordem sócio-
complexos a partir da análise da lei de nº histórico-cultural que atinem à memória das
11.645/2008, e das produções discursivas comunidades indígenas que foram
veiculadas na cenografia literária, tal qual O colonizadas em solos brasileiros, com
Guarani, e que conferem uma focalização na representação desses povos a
representatividade aos povos indígenas partir da oficialização da lei de nº
brasileiros sob dois aspectos. 11.645/2008, como proposta do paradigma
pós-abissal.
No primeiro, temos a representação dos
referidos povos a partir de uma ecologia de Ressaltamos que é facultativo ao
saberes, conforme Santos (2009), no interlocutor se posicionar diante dos expostos

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escritos, compreendendo de antemão, que as estende-se a sua imagem. Cuja simbologia
mudanças nas esferas sociais são resultados elucida o lugar marginal do nativo na história:
da mudança de pensamento: de um distante do centro para identificar-se com o
pensamento abissal para um pós-abissal. espaço selvático e colonizado.
1. Quem é o indígena no pensamento Outrossim, os signos corporais
abissal do século XIX? representam na narrativa os imaginários
sociodiscursivos acerca dos indígenas e que
O séc. XIX na visão de alguns autores,
são iluminados pelos discursos coloniais.
tal qual Santos (1999), representa o período
Ademais, as conjecturas de saberes dos não
de contradições do projeto da modernidade,
indígenas na obra sobre o personagem estão
principalmente, quando se trata dos pilares de
ligadas à analítica da identidade que estes
regulação e emancipação. Na concepção do constroem do indígena por meio de seu nome
autor, o nível da emancipação no projeto da e que se estendem ao seu exterior, ou seja, à
modernidade é ambíguo, pois, seguiu-se com caracterização de determinados ethé do índio
base nos interesses do Estado liberal e de uma Guarani. Vejamos o excerto abaixo:
cultura elitista.
Era de alta estatura; tinha as mãos
No que diz respeito à “racionalidade delicadas; a perna ágil e nervosa, ornada
estético-expressiva, a autonomização e a com uma axorca de frutos amarelos,
especialização traduzem-se no crescente apoiava-se sobre um pé pequeno, mas
elitismo da alta cultura legitimada firme no andar e veloz na corrida.
socialmente pela sua associação à ideia de Segurava o arco e as flechas com a mão
‘cultura nacional”, então promovida pelo direita caída e, com a esquerda matinha
pensamento abissal do Estado liberal verticalmente diante de si um longo
(SANTOS, 1999, p. 80). Tal ambiguidade es- forcado de pau enegrecido pelo fogo
(ALENCAR, 2002, p. 32).
trutura as linhas abissais da corrente estético-
literária romanesca brasileira, que surgiu no A descrição dos atributos físicos do
Brasil no início do século XIX. Nesse índio no conjunto enunciativo é marcada de
contexto, surgiu O Guarani, obra indianista imediato por uma necessidade estético-
de José de Alencar (2002). literária de se criar uma imagem do
No campo semântico dessa narrativa, personagem por meio de um ethos já existente
Alencar (2002) criou nomes de valores num outro contexto sócio-histórico-cultural,
simbólicos em Tupi-Guarani, que até hoje ou seja, através da representatividade dos
gozam de enorme popularidade no Brasil, tal signos corporais estrangeiros. Vale ressaltar,
qual o nome do personagem nuclear, Peri que a aparência que figura a analítica da
(guar. junco selvagem), conforme aponta objetividade e subjetividade de Peri se
Dietzel (1979). É significativo atentar para o constitui a partir de uma competência
fato de que o valor simbólico do nome de Peri pragmática cultural alheia aos saberes sócio-
histórico-culturais dos indígenas brasileiros, o

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653
que nos leva aos gestos de interpretação de América do Sul se iniciou com o
que o autor optou criar em Peri uma empreendimento das companhias jesuítas. Em
corporalidade com efeitos de sentido O Guarani o empreendimento de doutrinação
referentes à realidade espaço-temporal do com vista à cristianização do nativo é notável.
centro colonizador. Parte o narrador, portanto, Trata-se, de ver como se instaura na obra a
de uma explanação que produz efeitos de representação da alteridade por meio da
sentido ambíguos no que diz respeito à conversão do índio no Eu do outro a partir
descrição somática do indígena na dos efeitos de verdade do saber eurocêntrico:
enunciação. No que atine ao ethos do nativo
discursivisado como selvagem na narrativa, O índio caiu aos pés do velho cavalheiro;
Alencar disserta que: que impôs-lhe as mãos sobre a cabeça. -
Sê cristão! Dou-te o meu nome. Peri
Assim, estes dois selvagens das matas do beijou a cruz da espada que o fidalgo lhe
Brasil, cada um com as suas armas, cada apresentou, e ergueu-se altivo e
um com a consciência de sua força e de sobranceiro, pronto a afrontar todos os
sua coragem, consideravam-se perigos para salvar sua senhora
mutualmente como vítimas que iam ser (ALENCAR, 2002, p. 366).
imoladas. O tigre desta vez não se
demorou; apenas se achou a coisa de A partir do excerto, nota-se que, a
quinze passos do inimigo, retraiu-se com ação de permuta do nome de Peri é a
uma força de elasticidade extraordinária, e estratégia utilizada no romance para culminar
atirou-se como um estilhaço de rocha, na mudança da formação ideológica do
cortado pelo raio (ALENCAR, 2002, indígena. Segundo Pêcheux (1997), os
p.35). sujeitos enunciadores são interpelados pela
ideologia, sendo, portanto, a ela assujeitados.
No início do enunciado vê-se, que há Em suma, para afirmar no discurso da
uma relação de equivalência entre homem e narrativa o ethos do ‘bom selvagem’, o autor
animal, que por sua vez, figura alteridade, realiza esse acontecimento interpelando Peri
todavia, estigmatiza o indígena. Comprova-se por uma ideologia dominante, tornando-o
pelo uso do adjetivo selvagem para se referir a sujeito do seu discurso ao submetê-lo às
ambos. Pelo emprego do adjetivo o narrador condições de produção impostas pela ordem
diz o que pensa de Peri: um selvagem que luta superior vigente na obra, ou seja, à ordem
com um animal de igual para igual. Desse representativa do centro colonizador.
modo, reconhece-se aqui que através das Emergindo do discurso a ilusão de autonomia
lentes do narrador, há momentos na obra em do sujeito Guarani.
que homem se funde em fera, e ambos se
tornam um só corpo na cena enunciativa. Enquanto necessidade estético-literária
a imagem do indígena Guarani na narrativa é
Na quarta parte da obra, o penúltimo
capítulo se intitula: Cristão. O princípio de refletida a partir dos desdobramentos de
catequização dos indígenas Guarani na alteridades e atende aos interesses do jogo de

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654
poder no romance, todavia, a visibilidade do
elemento colonizador na aparência de Peri no projeto romântico da modernidade foi
denuncia a ambivalência representativa do preenchida pelas formações imaginárias do
índio e invisibiliza os saberes, a memória, a colonizador europeu e com vista à exclusão
cultura e a identidade nacional dos indígenas do indígena a fim de se afirmar enquanto
na obra, e mais, na historiografia brasileira. humanidade universal, ao passo em que
Pois, a imagem que se forjou ao indígena no considerava o nativo particular, logo sub-
período do séc. XIX, cristalizou no humanidade.
imaginário social um ethos com efeitos de não 2. Quem é o indígena no pensamento pós-
verdades sobre a realidade dos povos abissal no discurso da lei de nº
indígenas em território brasileiro. Conforme 11.645/2008?
Santos (2009, p. 16):
A partir do século XX, nota-se
A exclusão social é sempre produto de consideráveis empreendimentos que assistem
relações de poder desiguais, estas aos interesses das comunidades indígenas na
iniciativas, movimentos e lutas são historiografia brasileira. Sobre um novo olhar,
animados por um ethos redistributivo no quiçá emancipatório para os povos que
sentido mais amplo da expressão, o qual sofreram epistemicídios ao longo da história,
implica a redistribuição de recursos Santos (2009, p. 20) engendra que a mecânica
materiais, sociais, políticos, culturais e para esse novo olhar parte da ecologia de
simbólicos e, como tal, se baseia, saberes, isto é, “pensar a partir da perspectiva
simultaneamente, no princípio da do outro lado da linha, precisamente por o
igualdade e no principio do
outro lado da linha ser o domínio do
reconhecimento da diferença.
impensável na modernidade ocidental”.
A partir do exposto de Santos (2009), Compreender essa mudança
compreende-se que a racionalidade do poder epistemológica no que diz respeito aos povos
colonial e suas estratégias de conquista pela indígenas é aceitar a diversidade cultural e a
dominação envolveram exclusão, violência e plurietnicidade, expressa no art. 215 da
auto-reconhecimento, o que reverberou na Constituição Federal de 1988, ao oficializar
negação de outras formas de saberes que não que: “O Estado garantirá a todos o pleno
seja a hegemônica, universal e visível da exercício dos direitos culturais e acesso às
Europa. Na acepção do autor, no pensamento fontes da cultura nacional, e apoiará e
abissal o reconhecimento da diferença existe, incentivará a valorização e a difusão das
todavia, nega-se a existência da diferença, manifestações culturais” (VILLARES, 2009,
pois ao negá-la, recusa-se o outro, e “é no p.16). Na primeira parte desse enunciado o
contato com o Outro indígena que a Europa ordenamento visa a proteger e assegurar os
vai ler a sua diferença para, em seguida, direitos dos povos indígenas, enquanto que na
querer suprimi-la” (CUNHA, 2007, p. 192). segunda a assertiva visa ao reconhecimento e
Constata-se que, a posição-sujeito do indígena a difusão cultural destes sujeitos. A fim de

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romper com a emergência de apropriação e
violência às comunidades indígenas e abrir-se Para Foucault (1995), o processo de
ao paradigma da ecologia de saberes, outros objetivação refere-se à constituição do
dispositivos legais foram mobilizados. sujeito-objeto, ao passo em que a subjetivação
refere-se ao sujeito no domínio da identidade,
Nesse sentido, além da afirmação da ou seja, aos processos identitários através dos
identidade nacional indígena e da recuperação quais os homens se veem enquanto sujeitos e
de espaços sociopolíticos de cada comunidade também como são percebidos enquanto tal
indígena no contexto do currículo escolar, a pelos outros em práticas discursivo-
lei 11.645/2008, apresenta um discurso de identitárias. Ao refletir sobre tal processo,
cunho sócio-histórico-político, cuja proposta afirmamos que a identidade do sujeito
focaliza a abertura para a pluralidade cultural, indígena que se busca legitimar na lei em
o reconhecimento e a aceitação às diferenças, discussão se gesta pelo reconhecimento da
e, sobretudo, à liberdade de ação das existência da alteridade nas práticas
comunidades indígenas. discursivas e não discursivas.
Destarte, a oficialização legal Em suma, os apontamentos da
11.645/2008, abre espaço para o discurso construção do pensamento pós-abissal na lei
sobre as transferências culturais no contexto 11.645/2008, destacados aqui reforçam a
das instituições escolares. Nessa perspectiva, identidade de sujeitos e não de títeres
a partir dos princípios da ecologia de saberes, literários. Na lei em questão, notamos que o
a proposta da lei busca a reconstrução do discurso constitucional supracitado traz o
pensamento tradicional dos índios, como os ideal de uma determinada forma de relação
saberes, a cultura, as crenças e a filosofia de social, que, por juridicamente válida deve
vida não explicada cientificamente e que resultar em práticas de conscientização
foram lançados na obscuridade, em virtude de presente e futura no tratamento para com o
terem sido julgados como irracional do ponto sujeito índio, atendendo as especificidades da
de vista da ciência moderna branca. realidade de cada comunidade indígena.
Em termos mais pragmáticos, essa lei Partir dessa afirmativa, cabe-nos, entre
se revela para a busca arqueológica dos várias a seguinte reflexão: a partir da lógica
saberes sócio-histórico-culturais dos povos de racionalidade do efeito de poder-saber do
indígenas a partir de suas memórias. Nesse Estado-sociedade-civil que imperou soberano
contexto, conforme Foucault (1995), o sujeito sobre a população colonizada nos séculos
é fruto das relações estabelecidas entre o anteriores, e que ainda hoje na pós-
saber, o poder e a ética, daí a nomeação:
posição-sujeito. Sobre a analítica que incide modernidade gera processos de subjetivação e
na construção do sujeito, o filósofo faz novas identidades, como caminhar na
menção aos mecanismos de objetivação e descolonização do campo de pensamento
subjetivação. partindo dos “direitos humanos como roteiro
emancipatório” (SANTOS, 2009), para além

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656
da influência de uma racionalidade numa dada cenografia espaço-temporal, mas
monopolizadora do pensamento eurocêntrico? que ainda perduram na visão de alguns
sujeitos da sociedade hodierna brasileira.
Nessa linha de raciocínio,
confirmamos com Santos (2009), quando Na concepção de Santos (2009), o
postula que é necessário romper com as linhas pensamento pós-abissal subsiste nas
abissais para que haja a emancipação do sociedades hodiernas, de modo sutil.
paradigma da ecologia dos saberes a fim de Conforme Foucault (1995), o poder encetado
compreendermos que os direitos humanos na contemporaneidade é mantido por redes
caminham no viés da diversidade sutis de micro-poderes, obliterando às escuras
epistemológica do mundo, logo no dialogismo as esperanças e suscitando ostracismo social
da ecologia de saberes. às claras. Assim sendo, a hermenêutica dos
3. Considerações finais jogos sutis em torno do exercício de micro-
poderes nos leva à reflexão de que o analista
Não propomos a desconstrução do texto
do discurso não visa à atingir o sentido tido
narrativo de O Guarani, mas a desconstrução
por excelência, mas engendrar interpretações
de práticas sociodiscursivas que estereotipam
concebidas na materialidade sócio-histórico-
saberes, cultura, conhecimentos e a memória
cultural.
dos povos indígenas brasileiros. As práticas
sociológicas e os efeitos de sentido de tal obra Ao concordar com o autor esperamos
impostas a partir da racionalização do que este artigo provoque a necessidade de
binômio saber/poder apropriadas do centro outros estudos, quiçá, outras interpretações,
europeu reverberam em repetições de pois quando discutimos sobre a obra O
estereótipos, que por sua vez resultam numa Guarani e a lei 11.645/2008, fizemos a partir
representação estigmatizada do sujeito-índio e dos pilares da Sociolinguística e da Análise
do Discurso porque acreditamos que a
no deslocamento da sua identidade nas
ecologia de saberes é um trampolim de
malhas sociais. Importa destacar que, a partir
alcance para a mudança do pensamento
da breve análise das produções de práticas
abissal para o pós-abissal.
discursivas, sociológicas e semiológicas
encetadas no espaço textual da obra, notamos Ademais somos cientes de que há
que estas estão ligadas à rede de memória, às muito por dizer e muito por interpretar sobre a
regras sócio-histórico-culturais que temática em voga.
determinam os acontecimentos dos
enunciados e os efeitos de sentido gestados
ALENCAR, J. O Guarani. São Paulo: Klick,
2002.
BAKHTIN, M.; VOLOCHINOV, V.N.
Marxismo e filosofia da linguagem. Tradução
Referências

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657
de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 12. modernidade. In: Pela mão de Alice. 8. ed.
ed. São Paulo: Hucitec, 2006. São Paulo: Cortez, 1999.
VILLARES, L. F. Direito e povos indígenas.
BRASIL. Presidência da república (2008).
Curitiba: Juruá, 2009.
LDB-Lei Nº 11.645, de 10 de março de 2008
(altera a lei Nº 9. 394, de 20 de dezembro de
1996, modificada pela lei Nº 10.639, de 9 de
janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e
bases da educação nacional, para incluir a
obrigatoriedade da temática “ História e
cultura afro-brasileira e indígena”. Disponível
em: <http: // www. planalto.gov. br/
civil_03/ato 2007- 2010/2008/lei/ L
11.645.html> . Acesso em: 17 dez. 2014.
CUNHA, R. A representatividade do outro
ameríndio em beautiful losers e gone indian.
In: FIGUEIREDO, E.; PORTO, M. B. V.
(Org.). Figurações da alteridade. Niterói:
EDUFF, 2007, p. 191-201.
DIETZEL, V. L. Configuração do índio em o
Guarani e em Iracema. In: Uniletras.
Universidade Estadual de Ponta Grossa. n. 20,
p. 85-109. Ponta Grossa: Uniletras, 1979.
FOUCAULT, M. O sujeito e o poder. In:
DREYFUS, H.; RABINOW, P. Michel
Foucault, uma trajetória filosófica: para além
do estruturalismo e da hermenêutica.
Tradução de Vera Porto Carrero. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 1995. p. 231-
249.
PÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou
acontecimento. Campinas, SP: Pontes, 1997.
SANTOS, B. de S. Para além do pensamento
abissal: das linhas globais a uma ecologia de
saberes. In: ______; MENESES, M. P. (Org.).
Epistemologias do sul. São Paulo: Cortez,
2009.______. O social e o político na pós-

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CORPO, DISCURSO E TRAVESTISMO NA CONSTRUÇÃO DA
PERSONAGEM CATIRINA

Fernando Augusto do NASCIMENTO; Ilza Galvão CUTRIM


Universidade Federal do Maranhão (UFMA)
fernandoteatro@hotmail.com; ilzagal@uol.com.br

Resumo: O teatro é uma linguagem artística, político-social capaz de suscitar


transgressões estéticas que contribuem para tornar evidentes temas polêmicos que
perfazem a história da humanidade. Ao longo da história do teatro, os espetáculos/peças
desempenharam um papel importante na problematização das (des)construções de
gêneros em cena. Este artigo apresenta uma análise do corpo performatizado em cena no
Auto do bumba-meu-boi, que compõe o folguedo no Maranhão, e sua (des)construção de
corpo/gênero masculino para o corpo/gênero feminino. Nossa discussão fundamenta-se
no conceito de performartividade de Judith Batler.
Palavras-chave: teatro; corpo; performatividade.

além de ser utilizada também no teatro oriental,


Introdução
na Ópera de Pequim.
O bumba-meu-boi é uma manifestação
Na Grécia Antiga, o travestismo era um
popular tradicionalmente representada nas
reflexo da relação de poder que excluía a
festas juninas do Maranhão.
mulher das principais atividades socioculturais.
Tal manifestação é enredada por O teatro era uma atividade intelectual
histórias, resultando em uma dramaturgia, mais exclusivamente masculina. As mulheres eram
conhecida como auto. Fazem parte do auto proibidas não só de encenar, como também de
vários personagens, destacando-se Catirina, que assistir a determinados espetáculos. Isso se
ao engravidar, deseja comer a lingua do boi de perpetua por longos séculos na história mundial
estimação da fazenda onde trabalha Chico, seu do teatro.
marido. Catirina, apesar de ser uma personagem
Na cena teatral brasileira, o travestismo
feminina, é encenada nos palcos dos arraiais
masculino sempre foi aceito, desde as origens
juninos, por um homem.
das primeiras manifestações teatrais até a
O travestismo em cena é uma prática atualidade. No século XIX, desenvolveu-se o
que surge com o teatro occidental, na Grécia apogeu do travestimo, influenciando as figuras
Antiga, e teve seu auge no teatro elisabetano,

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659
do ator-transformista e posteriormente as drag
queens, no século XX. (TREVISAN, 2002). [...] o corpo também está diretamente
mergulhado num campo político; as relações
Este artigo, resultado de uma pesquisa de poder têm alcance imediato sobre ele;
de iniciação científica (PIBIC-UFMA), elas o investem, o marcam, o dirigem, o
realizada no interior do Grupo de Pesquisa em supliciam, sujeitam-no a trabalhos,
Linguagem e Discurso do Maranhão, apresenta obrigam-no a cerimônia, exigem-lhe sinais.
uma discussão sobre o modo como a Este investimento político do corpo está
performatividade do corpo posto em cena no ligado, segundo relações complexas e
Auto do bumba-meu-boi vai (des)construindo o recíprocas, à sua utilização econômica; é,
corpo/gênero masculino para a construção do numa boa proporção, como força de
corpo/gênero feminino. produção que o corpo é investigado por
relações de poder e de dominação [...].
O método genealógico (FOUCAULT, Trata-se de alguma maneira de uma
1988; 2007; 2010), nos auxilia a compreender microfísica do poder posta em jogo pelos
como as discursividades e coerções sobre o aparelhos e instituições, mas cujo campo de
corpo vão sendo edificadas, a fim de validade se coloca de algum modo entre
entendermos os conceitos de corpo e gênero. esses grandes funcionamentos e os próprios
corpos com sua materialidade e suas forças.
1. Corpo e discurso produzindo sentidos (FOUCAULT, 2007, p. 25-26; 29).
O corpo é uma forma de discurso que
produz sentidos. Estudar o corpo, essa máquina A repressão histórica sobre o corpo
divina, “simples” e ao mesmo tempo complexa, perpassa pelos âmbitos espaciais e discursivos.
(GAIARSA, 1986) foi, em determinadas Instituições como a igreja, o estado, a justiça, a
épocas, tido como pecado. O corpo, ao longo escola influenciam a (re)construção
dos séculos, foi inferiorizado, dilacerado, comportamental e psicológica dos indivíduos.
higienizado, vigiado, pesquisado, desejado. Segundo Foucault (2010, p. 132), “em qualquer
Quando comparado à alma, era tratado como sociedade, o corpo está preso no interior de
sujo, repugnante e pecaminoso. Historicamente, poderes, que lhe impõem limitações, proibições
na cultura Ocidental, houve um discurso de ou obrigações”.
negação do corpo.
No teatro, o corpo, em alguns períodos
Para corrigir, organizar e disciplinar as da história, sofrerá um disciplinamento para
atitudes e os comportamentos do corpo, ele expressar-se em cena; já em outros períodos o
sofreu influências diretas decorrentes dos corpo será a matéria de transgressão estética e
panoramas políticos, econômicos, religiosos e problematizará discussões sobre sexualidade,
culturais que permeavam/permeiam o identidade de gênero, preconceitos etc.
desenvolvimento de cada sociedade, desde o
início da humanidade. Conforme destaca No Brasil, nas décadas de 60 e 70,
Foucault, o corpo passou por um processo grupos como o Dzi Croquetes são responsáveis
histórico de coerção: por renovar o teatro e a estética teatral, ao
expor no palco atores em performances que

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660
eram brincadas nas caravelas do
beiravam o hibridismo e ao problematizar descobrimento do Brasil e com elas alguns
padrões normativos de gênero e sexualidade. autos também eram encenados. A evolução
No Maranhão, o Auto do Buma-meu- desse folguedo novo aponta para várias
boi manteve a tradição de um ator travestir-se direções, inclusive as que podem ser
de mulher para representar a personagem identificadas como Bumba-meu-boi.
Catirina. (BORRALHO, 2012, p. 25-27; 31).

1.2 O bumba-meu-boi: travestimo na


Desde o início dessa manifestação
construção da personagem Catirina
popular no Brasil, em especial no Nordeste, há
O bumba-meu-boi tem suas origens mais notícias do travestimo inserido no contexto do
primitivas em diversas culturas milenares. O boi Bumba-meu-boi. Trevisan (2002) relata como a
é celebrado pelos povos de todo o mundo, relação de poder e o machismo inicialmente
compartilhando com o homem o espaço prevaleciam nessa manifestação artística:
terrestre desde a pré-história. (BORRALHO,
2012). A figura do boi foi divinizada e exaltada O famoso folclorista Luís da Câmara
em culturas como a egípcia, a grega, a Cascudo apontava o travestismo masculino
medieval, a renascentista até chegar em forma até na tradicional dança popular nordestina
de boi-brinquedo no Brasil, mais do bumba-meu-boi, de poderosa penetração
entre os índios aculturados, mas também
especificamente no Maranhão. Sobre essa
entre os mestiços, crioulos e mamelucos.
transição, Borralho (2012) destaca:
Apesar de incluir uma mulher cantadeira, o
bumba-meu-boi originário costumava ser
E nessa caminhada, o boi mitificado,
dançado apenas por homens, que se
divinizado, idolatrado e vai finalmente
fantasiavam para interpretar as figuras das
transformar-se ou confundir-se com o “boi-
damas presentes. O clima masculino era
brinquedo” dos jogos estrangeiros e de um
acentuado pela constante ingestão de
folguedo nacional. [...] Com o
cachaça, enquanto se dançava às vezes por
descobrimento do Brasil, as naus
oito horas seguidas. Cascudo atribuiu a
portuguesas que aqui aportaram trouxeram
origem de tal fato menos aos preceitos de D.
consigo esses autos, compostos por padres
Maria I, que proibiam mulheres no palco e
jesuítas [..] No Brasil, o contato com o índio
nas festas públicas, e mais à
e suas práticas rituais, que utilizavam a
“impossibilidade do auxílio mulheril nas
dança em todas as celebrações [...] tal
circunstâncias sociais em que nasceu o
mistura fértil, sem sobra de dúvidas,
auto”, ou seja, as zonas canavieiras e
proporcionou a geração de folguedos [...]
fazendas de gado nordestinas. (TREVISAN,
um deles é o que se fundamenta na relação
2002, p. 226).
direta como o Boi, agora uma alegoria, um
boneco, artefato de madeira animado, que se
espalha pelo Brasil em variadas formas de Os jornais maranhenses registram, já em
manifestação e nomenclatura específicas. 1820, as primeiras manifestações do folguedo
Mas é a própria bibliografia que informa com o nome de Bumba-meu-boi, geralmente
sobre o “Jeu de La Vachette”, na França e sendo representadas no interior do estado. Com
as “Tourinhas” portuguesas, que inclusive a aglutinação de histórias, causos e bailados,

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661
aos poucos foi sendo construída uma personagem Pai Francisco, escravo fugido e
dramaturgia específica, resultando no que marido de Mãe Catirina, sai à procura de
conhecemos hoje como auto. Essas histórias emprego, encontrando trabalho na fazenda do
eram contadas por fazendeiros, amo de boi, Amo, que nutre um apreço especial por um
vaqueiros durante seus descansos noturnos. novilho, de nome Mimoso. Catirina (Figura 1)
Borralho (2012) cita que: está grávida e deseja comer língua de boi, mas
não se trata de qualquer boi. Ela deseja a língua
O folguedo vai progressivamente do boi mais querido da fazenda e pede ao seu
estruturando-se e assumindo características marido Francisco, também conhecido como
de apropriação de componentes regionais negro Chico, para satisfazer seu desejo,
preciosos. Estabelece um ritual que se
justificando que, caso ela não coma a língua do
expande por todo o Estado e se observa até
boi, seu filho nascerá com a cara do animal.
hoje (com raras variantes) expresso no
calendário do folguedo. (BORRALHO,
Influenciado por Catirina, Chico sai à procura
2012, p. 33). do boi e mata-o. Mas, o fato é descoberto pelo
Vaqueiro que leva Chico para confessar o feito
ao Amo dono da fazenda. Chico é ordenado a
O enredo surge inicialmente do conto ressuscitar o boi, para isso entra em cena a
Vaqueiro que não mentia, que se caracterizará figura do Pajé-curador (ou um Dr. Veterinário),
posteriormente em “auto”, tal qual conhecemos que fica com a responsabilidade de ressucitar o
hoje, com a trama central entre as personagens boi. Borralho (2012, p. 61) afirma que esse
Pai Francisco, Mãe Catirina, Amo do Boi, o enredo é o “[...] esquema mais comum de
Boi, Vaqueiro etc.: encenação das ‘matanças’ dos conjuntos de
A “matança” ou comédia do boi é realizada ‘Bois da ilha’, dos conjuntos de ‘Zabumba’ e
a partir de um roteiro que é reconstruído a ‘Baixada’ sediados na ilha de São Luís.”
cada ano. Embora seja possível perceber-se Ressalta também que “[...] Por outro lado, é no
um esquema estrutural que se repete, quase interior do Estado que se encontra variações
sempre o mesmo, este funciona como um mais acentuadas”.
esqueleto dúctil, talvez mais flexível que os
roteiros utilizados na Commedia dell’ Arte.
Trata-se de um esquema que pode ser
considerado como a espinha dorsal, o
esqueleto, de uma ‘matança”. Suas variantes
de encenação podem ser encontradas de
formas diferentes nos diferentes sotaques e
sem a garantia de que permaneçam
ortodoxamente respeitadas. (BORRALHO,
2012, p. 60).

Nesse sentido, a matança se estruturará


na história que se conhece tradicionalmente no
Bumba-meu-boi do Maranhão, em que o

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662
Figura 1. Caracterização de
Catirina O texto transcrito acima é parte da fala
do brincante Seu Bentinho. Observamos que há
uma rejeição por parte dos participantes da
matança para interpretarem a personagem
Catirina, provavelmente reflexo do machismo
do “metié” em que o brincante estava inserido,
ou talvez pela presença das relações de poder
interferindo e reprimindo mulheres de
interpretarem a personagem, ficando a cargo de
homens encenarem o papel. Por outro lado, a
utilização de um homem interpretando a
personagem Catirina pode ser também que
ultrapasse a ordem do social para adentrar nas
questões estéticas e artísticas, por que não dizer
cômicas, recurso muito utilizado para atingir a
comicidade, o riso, por meio do caricato, do
Fonte: Martins, Wilson.
estereótipo feminino travestido no corpo
masculino, que se tornou uma constante no
A personagem Mãe Catirina, desde o teatro de São Luís. Sobre a simbologia da
surgimento do auto, sempre foi interpretada por personagem e sua caracterização Borralho
homens. Provavelmente, as primeiras (2012) cita:
encenações dessa personagem eram feitas por
populares que organizavam a matança. Composta por uma mulher madura, de
gravidez avançada mas que é esperta,
Mas antes que eu pudesse ser reconhecido sensual, dançadeira. Ela representa o
como Chefe de matança completo – ‘quando erotismo da figura simbólica feminina
a gente é completo a gente tem posição’ – revelado na demonstração de uma atividade
foi obrigado a experimentar o antes tão sexual positiva e no desejo incontrolável de
rejeitado personagem de Mãe Catirina. [...] ter o boi mais belo e cobiçado da fazenda,
eu era uma pessoa muito tímida. Eu não totem da comunicação, ícone da brincadeira
gostava daquilo, eu achava muito ridículo... e “prenda” de São João. Os gestos sensuais
E depois da primeira vez que eu fiz, na e a “descompostura” de sua dança apontam
segunda, eu já me dediquei, eu gostei muito, para isso. Por outro lado, simboliza a
passei a sair vestido de mulher. Eu gostava mulher forte que traz no ventre um rebento
muito de sair de Mãe Catirina. Tirava as “que nunca nasce” pois todo ano “tem que
matanças, acertava quem ia ficar tomando ter a esperança de um filho que vai nascer
conta de Pai Francisco, de curador, essas para ter a desculpa de matar o boi”.
coisas. E pegava o papel de mulher. (BORRALHO, 2012, p. 99).
(BORRALHO, 2012, p. 98).

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663
outros utilizam uma voz grave e trejeitos
No auto, as personagens são
beirando o masculino e feminino.
caracterizadas através de intensa maquiagem ou
máscaras, que representam personagens, Conforme afirma Butler (2003, p. 200),
constroem identidades. A personagem Catirina, o efeito do gênero é produzido pela estilização
por exemplo, representa a mulher negra, do corpo e deve ser entendido pela maneira
marginalizada, que tem as marcas da repressão como “os gestos, os movimentos e estilos
e do preconceito se materializando no corpo. corporais de vários tipos constituem a ilusão de
Conforme Damásio: um eu permanente marcado pelo gênero.”
Na montagem para compor Catirina, o
o corpo será pensado como lugar de
que prevalece é o estereótipo do feminino. Em
inscrição simbólica que refletirá posições
sociais na estrutura de todas as relações de todas as matanças do boi, os atores se
poder (seja de classe, gênero e raça, etc.), performatizam para assumir a identidade
sendo um campo profícuo para a leitura do feminina. Porém, essa identidade é uma
mundo social, na medida em que operaria a construção da mulher negra caricata, com
partir de uma lógica também dual, em que é acentuada maquiagem, vestida com roupas
fincado no processo de interiorização das coloridas, além de gestos que objetivam fazer a
disposições vigentes no social, e enquanto plateia rir. Cada matança de boi, ocasião em
tal apreende essas disposições e reproduz a que a personagem aparece, apresenta uma
ordem do mundo, sendo um legitimador da Catirina diferente. A personagem tem um
ordem binária existente. (DAMÁSIO, 2011, estereótipo “específico” que cabe a cada ator e
p. 214-215). diretor organizar para que o público identifique
no ator as características principais. Em
No teatro, o corpo é fundamental para algumas montagens há uma busca para alcançar
que se possa ter consciência de quanto é a performatividade de gênero de forma realista,
necessário conhecer seus limites e superá-los, enquanto em outras o ator não esconde suas
destaca Roubine (1987). características masculinas, pelo contrário,
utiliza-se de sua corporeidade para causar o riso
A personagem Catirina pertence ao
no espectador.
gênero feminino, é uma mulher; no entanto, é
sempre interpretada por homens. No Em dramas sociais que se tornaram
travestismo em cena o ator vai se ritos, a ação do gesto requer uma performance
performativizando, “anulando” seu corpo repetida. Essa repetição é, a um só tempo,
marcado por característica do gênero masculino reencenação e nova experiência de um conjunto
para aos poucos assumir o corpo e a identidade de significados já estabelecidos socialmente; e
feminina. Para isso, ele se utiliza da também é a forma mundana e ritualizada de sua
caracterização: o vestido, a peruca, a legitimação. (BUTLER, 2003, p. 200).
maquiagem ou máscara e a colocação de uma Em algumas apresentações do Auto do
barriga falsa auxiliam na construção do gênero Bumba-meu-boi não há uma obrigação dos
feminino. Alguns atores/intérpretes criam uma grupos para chegar de forma naturalista ao
voz mais aguda para a personagem, enquanto feminino nos palcos. O espectador geralmente

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664
não tem a ilusão de pensar que o ator é
BORRALHO, T. F. O teatro do boi do
realmente uma mulher; observa que é um
Maranhão – brincadeira, ritual, enredos, gestos
homem interpretando uma mulher. Isso liga o
e movimentos. São Paulo: USP/Escola de
ator ao público. O travestismo fica claro tanto
Comunicação e Artes. 2012.
para o ator quanto para o espectador. Por outro
lado, dentro da ficção, o público acredita que BUTLER, J. Problemas de gênero:
Catirina é uma personagem feminina (mulher). feminismo e subversão da identidade.
Não poderíamos, por exemplo, afirmar que no Tradução, Renato Aguiar. Rio de Janeiro:
auto haja uma relação não heteronomartiva, Civilização Brasileira, 2003.
pois no contexto dessa manifestação artística, DAMÁSIO, A. C. Botando corpo e
os espectadores acreditam, conforme o enredo (re)fazendo gêneros. In: Bagoas: revista de
(verossimilhança), que as personagens Catirina estudos gays, gênero e sexualidades.
e Pai Francisco compõem um casal Universidade Federal do Rio Grande do
heternormativo. Norte, Centro de Ciências Humanas, Letras e
4. Considerações finais Artes. - V. 5, n. 6 jan./jun. 2011. - Natal:
EDUFRN, 2011. p. 211–241. Disponível em:
Na esteira do método genealógico de
<http://www.cchla.ufrn.br/bagoas/v05n06bag
Foucault, buscamos compreender como se
oas06.pdf>. Acesso em: 20 jun. 2015.
constroem as discursividades sobre o corpo e as
coerções de que ele é objeto. FOUCAULT, M. História da sexualidade I: a
vontade de saber, tradução de Maria Thereza
Nos palcos do mundo, o travestismo
da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon
masculino era uma prática comum,
Albuquerque. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1988.
considerando-se a proibição da presença de
mulheres no palco. Essa prática se repete no ______. Microfísica do poder. Petrópolis, Rio
teatro brasileiro. de Janeiro: Edições Graal Ltda, 2010.
No teatro maranhense, de modo ______. Vigiar e punir: nascimento da prisão.
particular no Auto do Bumba-meu-boi, o corpo 34 e.d. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.
masculino se performatiza para assumir uma GAIARSA, J. A. O que é Corpo. 6. ed. São
identidade de gênero na figura da personagem Paulo: Brasiliense, 1986.
Catirina.
ROUBINE, J-J. A arte do ator.2 ed. São Paulo:
Essa performance é conseguida não Editora Jorge Zahar, 1987.
somente por meio de adereços como figurino,
maquiagem, como também pela TREVISAN, J. S. Devassos no paraíso: (a
(des)construção corporal e vocal realizada pelo homossexualidade no Brasil, da colónia à
ator, revelando o corpo como lugar de atualidade). 5' ed. Rio de Janeiro: Record,
materializaçao dos gêneros. 2002.

Referências

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LEITURA E DISCURSO: CONTRIBUIÇÕES DA ANÁLISE DO
DISCURSO PARA O ENSINO-APRENZAGEM DE LÍNGUA
PORTUGUESA

Jarbas Vargas NASCIMENTO; Paula Pinho DIAS


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP/ ITB)
jvnf1@yahoo.com.br; paulapdias@bol.com.br

Resumo: Aborda-se, no presente texto, a inter-relação leitura e discurso, tendo por base
pressuposto teórico-metodológicos da Análise do Discurso (AD). Busca-se, com isso,
propor uma reflexão acerca da leitura vista sob uma perspectiva discursiva que visa
colocar em relevância na prática de leitura o funcionamento discursivo do texto que
objetiva, essencialmente, abordar o que não é imediatamente visível nessa materialidade,
mas que a constitui. Entende-se que numa abordagem discursiva do texto, há uma
complexidade de processos inter-relacionados de ordem enunciativa, interacional,
histórico-social, cultural e ideológico que, embora não ditos, entram em jogo para
significar. Nesse sentido, focaliza-se algumas das características essenciais.
Palavras-chave: leitura; discurso; ensino.

costumam se caracterizar pelo aporte de


Introdução
estratégias relacionadas, geralmente, à
Ainda é pouco difundida nas escolas caracterização do gênero discursivo, ao tipo,
uma abordagem propriamente discursiva, variedade e modalidade da linguagem utilizada
aquela que cruza, transporta e desloca e ao estudo do vocabulário. Na verdade, tais
informações; que estabelece relações de aspectos são postos em relação de cooperação
contraste, aproximações, subversões, enfim, para a compreensão do texto, da “verdade do
tensionamentos entre as pistas linguísticas e os texto”, ou seja, daquilo que o conteúdo informa
componentes implícitos, informações ao leitor e que deve ser “corretamente”
discursivas que possibilitam estabelecer assimilado. Em geral, não se faz uma
diálogos e rupturas de fronteiras disciplinares abordagem de leitura que efetivamente
em busca de possibilidades de inteligibilidade do contemple o que está para além do texto,
que é por natureza lacunar no texto. propriamente dito. Seu funcionamento
As aulas de leitura em língua materna, discursivo ou é ignorado, ou é visto de forma
sobretudo nas escolas públicas nacionais, tangencial, limitado apenas a alguns aspectos do

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666
gênero. Ou seja, não é usual trabalhar aspectos coloca como importante recurso no
que focalizem componentes para além da desenvolvimento da proficiência leitora.
materialidade linguística.
Paradoxalmente, destacam-se hoje
1. Um breve olhar sobre a abordagem
diferentes modos para se pensar e problematizar
discursiva orientada pelo PCNEM e PCN+
a leitura. Têm-se concepções teóricas
preocupadas em compreender o processo Os Parâmetros Curriculares Nacionais
cognitivo; outras mais focadas nos aspectos para o Ensino Médio (PCNEM 2000, PCN+
textuais que determinam a leitura; têm-se, 2002) são exemplos de documentos que têm
ainda, vertentes mais socioantropológicas e promovido a discussão e a reflexão acerca do
históricas, que se voltam para a investigação ensino-aprendizagem de língua materna no
dos modos de ler em determinadas épocas em Brasil. Contudo, tais documentos1·, dada sua
função do aspecto cultural e da produção e natureza de apoio teórico à prática docente, não
circulação de textos. Ocorre também, já há podem garantir, por si só, a aplicação eficiente
algum tempo, o empenho de estudiosos que daquilo que propõem Constitui-se apenas num
buscam compreender, sistematizar e explicar a instrumento de orientação, que visa aproximar a
leitura do hipertexto, das mídias digitais, para prática pedagógica das teorias atualmente em
dar a conhecer as implicações desse novo voga as quais se encontram enraizadas em
espaço de leitura nos modos de ler. diferentes leituras da herança bakhtiniana
(ROJO, 2005). Em outras palavras, esses
Em consequência desses esforços documentos buscam orientar a prática docente,
difundem-se conceitos e olhares diversos, não é seu objetivo a operacionalização desses
lançados sobre a prática de leitura nas conhecimentos. É sabido que compete ao
instituições de ensino. Contudo, na abordagem docente procurar ter em vista essas orientações,
do fenômeno linguístico, há ainda muitas mas, sobretudo expandir sua compreensão
práticas que não focalizam adequadamente, ou teórica e estabelecer seu método de abordagem
mesmo, excluem o componente discursivo, com vista ao melhor desempenho de seus
perdendo com isso um forte aliado para o alunos, especialmente, frente à leitura dos
desenvolvimento da proficiência leitora. diferentes textos que circulam na sociedade.
Seguindo nessa direção, o presente No que tange especialmente ao ensino
trabalho busca somar-se a aos esforços que de língua, as informações desses documentos
buscam consolidar o espaço da leitura como têm caráter abrangente, pautados em
espaço privilegiado de aprendizado do pressupostos teóricos sobre linguagem, língua,
fenômeno linguístico, propondo uma reflexão discurso, que configuram resultados de estudos
acerca da leitura e sua inter-relação com o
discurso no ensino de língua. Para isso, busca- 1
Importa esclarecer que aqui se busca apontar, como
se especificar alguns aspectos essenciais do exemplo, esses dois documentos oficiais apenas para indicar a
discurso que podem servir como conhecimentos existência da preocupação voltada para melhoria do ensino de
norteadores para compreensão do língua, e que há a indicação da abordagem discursiva ainda
que de forma difusa. Não se discute, portanto, o aspecto
funcionamento discursivo do texto que aqui se crítico que tais documentos suscitam no que diz respeito ao
ensino de língua.

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667
recentes. E no que diz respeito ao discurso, a
Para que a abordagem do gênero seja
teoria que permeia primordialmente os
efetivamente produtiva em relação ao discurso,
documentos oficiais, é oriunda dos estudos de
é preciso aliar conhecimentos sobre um e outro.
Bakhtin sobre as concepções de linguagem,
Nas palavras de Maingueneau, “O gêneros dos
enunciado e gêneros do discurso2 (ROJO,
discursos constituem, de alguma maneira, os
2005), sendo estes últimos o eixo quase
átomos da atividade discursiva” (2015, p.66),
exclusivo da abordagem discursiva que, na
contudo, diz ele, que aqueles só adquirem
maioria das vezes, é utilizado como fórmula que
sentido quando integrados aos discursos que os
embora privilegie o aspecto do uso social e
constituem, uma vez que a relação gênero-
comunicativo, não atenta para o aspecto
discurso é de “reciprocidade”.
propriamente discursivo, em que o aprendiz é
levado à compreensão e reflexão sobre as A abordagem do discurso é um trabalho
dimensões constitutivas do fenômeno que exige, em primeiro lugar, o conhecimento
linguístico, mas a força social do discurso. de sua natureza, para que se possa olhar para
além dos aspectos essencialmente genéricos,
2. Gênero e Discurso
porque as regras de sua constituição articulam
O trabalho com o discurso permeia a significados e sentidos, rumo à exterioridade do
categorização dos diferentes gêneros que texto. Em outras palavras, o discurso é “o
circulam na sociedade, mas não só. Na verdade, espaço onde se desfazem os laços
a escolha do discurso como objeto de ensino- aparentemente tão fortes entre as palavras e as
aprendizagem implica numa mudança de coisas”, entre a linguagem e o mundo
perspectiva e de objetivos na abordagem e (FOUCAULT, 1986, p.56)
compreensão do fenômeno linguístico. Ao
3. A dinâmica do processo de leitura e o
invés do estabelecimento de práticas e de
discurso
objetivos gerais que visem apenas construção
de capacidades de reconhecer gêneros, é A leitura vista como prática de interação
fundamental conhecer a natureza do objeto e verbal desencadeia o (e é desencadeada pelo)
seu funcionamento para, então, reconhecer processo discursivo. Isto é, pela dinâmica que
como esse funcionamento opera em diferentes engloba simultaneamente a constituição dos
gêneros que organizam as práticas de sujeitos (produtor /leitor) que se identificam
compreensão e produção de textos. como interlocutores e o processo de
significação do(s) texto(s) e sua mobilização de
sentidos. Bem por isso, a construção/ recepção
2
de um texto, embora passem pelo conhecimento
Observa-se que embora o critério de agrupamento de gêneros
seja, nesses documentos oficiais, o das esferas em que eles
da superfície linguística, seguem em direção aos
circulam (conforme atesta a influência bakhtiniana) há uma efeitos de sentidos que emergem no espaço
relativa ambiguidade relacionada ao gênero resultante da discursivo constituído pelos interlocutores.
oscilação entre as noções de tendência textual e a de tendência
Nesse espaço há uma complexidade de
discursiva. Sobre a distinção/aproximação das noções gênero
textual e gênero discursivo leia Rojo (2005). processos inter-relacionados de ordem
enunciativa, interacional, histórico-social,
. cultural e ideológico que, embora não ditos,

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668
entram em jogo para significar. Saber ler, nesse linguística da frase, formando uma unidade
sentido, é saber o que o texto diz e o que ele completa submetida a regras de organização
não diz, mas que mesmo sem dizê-lo, faz parte vigente em um grupo social e dentro de uma
de sua constituição (ORLANDI, 2012). instituição é utilizada sob determinadas
circunstâncias. E essas regras governam o que
4. Características essenciais do Discurso
pode ser dito, quem diz e quem pode se
Por influência de diversas frentes das apropriar desse dizer, onde pode ser dito e por
ciências humanas reunidas algumas, que pode ser dito.
frequentemente, sob a influência da pragmática
O discurso também é contextualizado,
(MAINGUENEAU, 2013, 2015), a noção de
para que se possa atribuir a ele um sentido
discurso passou a ser utilizada para designar a
particular, o que não implica que esse sentido
unidade superior da comunicação verbal, sendo
seja claramente determinável. Seja como for, o
seu modo de existência, nessa perspectiva,
discurso, certamente, só se constrói tendo em
definido em função de suas características
vista suas coordenadas de tempo e espaço e
essenciais (MAINGUENEAU, 2015). Assim, o
modo de existência. Daí ser constituído por
que é hoje mais abrangente e que se encontra
aspectos histórico-sociais, mas também
em consonância com os estudos mais recentes,
culturais e ideológicos. Todos esses aspectos
nos permite elencar, em linhas gerais, algumas
permitem a formulação particular do que é
características do discurso: ser constituído por
essencialmente social
uma organização situada para além da frase; ser
contextualizado; ser assumido por um sujeito; Esse caráter indicial, que particulariza o
ser uma forma de ação; ser regido por normas; discurso cada vez que é atualizado em uma
ser interativo; ser (re)conhecido no nova situação de comunicação, permite que seja
entrelaçamento com o outros discursos atribuída a ele (o discurso) uma fonte de
(interdiscurso). referência pessoal que indica qual é a atitude
adotada em relação ao que se diz. , bem como a
Faz parte do conhecimento sobre o
relação que estabelece com seu interlocutor, o
discurso saber que sua organização está
que permite que seja modalizando, em um
situada para além da frase (o que não quer
determinado grau, a responsabilidade pelo que
dizer que ele não possa se manifestar em uma
se diz. Por isso é que se entende que o discurso
única frase ou expressão). Assim, quando se lê
é sempre assumido por um sujeito.
uma plaquinha anexada na parede de uma sala
de aula, p. ex. o seguinte enunciado, “É O discurso é também uma forma de
proibido o uso de celular”, sabe-se que não se ação, porque supõe sempre a troca explicita ou
trata apenas de mais um enunciado verbal implícita entre interlocutores, porque falar é
disposto na sala para ajudar o aluno a assimilar sempre uma forma de agir sobre o outro, não é
um conteúdo programático de uma disciplina apenas uma representação simbólica. É certo
qualquer. Trata-se uma interdição que tem uma que o discurso é um modo de representação,
fonte enunciativa que estabelece uma relação mas esse modo de representação orienta e é
com seu destinatário. Portanto, não se trata orientado por uma troca que caracteriza uma
apenas de uma frase, mas de uma informação prática. Assim, o primeiro movimento do leitor
que ultrapassa a dimensão da superfície para que essa troca ocorra é o

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669
(re)conhecimento do gênero discursivo, forma envolvidos pela atividade verbal, expectativas
mais concreta da atividade de linguagem relacionadas ao comportamento desses sujeitos
socialmente reconhecida. Além disso, essa troca frente a essa atividade. Se por um lado, o
(no caso, leitor e produtor) é regida por normas enunciador orienta suas ações tendo em vista
que asseguram a legitimidade do dizer, na um objetivo e as regras que o permitem falar o
medida em que orienta e é orientada pelo que que tem a dizer para determinado leitor, por
pode ou não ser dito, ou ainda, quem tem outro lado, para que o leitor (o enunciatário) se
autoridade para dizer o não o que diz. É nesse construa como tal, a partir do ato de leitura, é
esteio das relações intersubjetivas que as preciso que ele aceite as condições e os modos
identidades discursivas se constituem ao serem de relação que terá que estabelece para
constituídas pelo discurso. participar da dinâmica da construção de
sentidos.
Disso decorre o discurso ser regido por
normas, posto que, fundamentalmente, nenhum O discurso também é interativo, porque
ato de discursivo (assim como qualquer outro pressupõe uma atividade verbal que, nas
ato social) “pode ocorrer sem justificar, de uma palavras de Maingueneau (2015), é uma
forma ou de outra, seu direito de se apresentar interatividade, porque o discurso opera numa
tal como se apresenta” (MAINGUENEAU, perspectiva abrangente em relação às
2015, p. 28), sobre pena de se desautorizar por possibilidades de coordenação intersubjetivas.
si só. Isso ocorre desde o nível elementar de É, portanto, o caráter interativo (ou
constituição discursiva até o nível mais interatividade3) do discurso que possibilita a
concreto relacionado ao gênero que, como já interação pela linguagem.
mencionado, é a dimensão mais concreta do
Por fim, o discurso só mobiliza sentidos
discurso, cujas normas de sua constituição
na inter-relação com outros discursos. Isso
suscitam expectativas aos sujeitos envolvidos na
porque, para formular ou interpretar o menor
atividade verbal. É a concretude do gênero que
enunciado que seja, é preciso relacionar aquilo
viabiliza a relação entre o linguístico (do texto)
que se quere dizer (ou interpretar) a outras
e o social que permeia a constituição discursiva
informações (já enunciadas) conscientemente
da interlocução entre os homens. Desta forma,
ou não. O interdiscurso é o que fala sempre
o (re)conhecimento dos gêneros é determinante
alhures e antes (PÊCHEUX, 1988). Nenhum
para que se perceba de que maneira os
enunciado é formulado indiferente a outros
discursos se atualizam para significar. É na
dizeres, uma vez que todo enunciado é um elo
dimensão do gênero, portanto, que os discursos
na cadeia da comunicação verbal e não pode
ganham corporalidade social, posto que, em
separar-se dos elos anteriores, porque esses os
algum sentido, é pela história de seus gêneros
constituem provocando nele reações, respostas,
de discurso que se conhece a história de uma
ressonâncias (BAKHTIN, 2011). Dito de outra
sociedade, pois essa é, fundamentalmente,
caracterizada pelos lugares sociais e a fala ali
gerida. (MAINGUENEAU, 2015, p.70). 3
Em distinção ao termo interação, aproxima-se aqui a noção de
interatividade à capacidade do discurso de promover a coordenação
Dizer, portanto, que o discurso é regido entre os sujeitos , portanto esta relacionada a relação sujeito objeto. Já a
por normas, é dizer que ele suscita, nos sujeitos interação é vista como a atuação de um sujeito sobre o outro em relação
de mutualidade.

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670
forma, todo discurso é posto, já na sua
constituição, em relação com outros discursos, Figura 1 – Charge
que recuperados se entrelaçam a cadeia de
significados ajudando a mobilizar sentidos.
Todas essas características do discurso
aqui apontadas permeiam a noção de discurso,
de maneira que se configuram numa espécie de
invólucro comum, mesmo para posições
teóricas às vezes fortemente divergentes
(MAINGUENEAU, 2013, 2015). Cada frente
de pesquisa, no entanto, tende destacar (ou 5. Para além das palavras, o discurso
mesmo, apagar) uma ou outra característica, Quando o leitor se depara com esse
mas em todas, ainda que implicitamente, essas padrão estruturado de uso da língua ele pode
características estão presentes. A cada uma reconhecer, ou ser lhe dado a conhecer, que se
dessas características podem circunscrever trata de uma charge e que seu uso é recorrente,
categorias de análise, conforme a abordagem e sobretudo nos jornais. Associado a isso deve
os pressupostos teóricos a que se filiam os (ou deveria) perceber que a linguagem que a
diferentes estudos sobre esse objeto, o discurso. constitui textualmente é de duas naturezas
Aqui, dado o recorte proposto, nos interessa distintas, mas ali ambas se complementam. E
tratar brevemente dessas noções essenciais com que, portanto, para compreender o texto
a finalidade de mapear, em linhas gerais, o integralmente, deve associar as informações
funcionamento discursivo do texto, a fim de desses dois tipos de linguagem. Deve saber
chamar a atenção para relevância da abordagem também que tais informações, ao serem
discursiva na prática do ensino-aprendizagem. compartilhadas pelos membros de uma
Entende-se que conhecer as regras e condutas coletividade, permitem assegurar a
que orientam a utilização do discurso, bem comunicação entre produtor e leitor.
como a compreensão de suas implicações não é
apenas pertinente, mas fundamental para a No plano do texto, especificamente, é
abordagem da leitura que visa tornar o aprendiz importante que lhe seja dito que o texto nunca
proficiente em sua própria língua. diz tudo. Bem por isso, importa também
compreender, para além do que o texto pode
Feitas essas considerações, passa-se a querer dizer, como ele funciona em relação ao
especificar o funcionamento de cada uma das que diz. Daí a importância de compreender sua
características apontas frente ao texto. constituição discursiva, que é histórica, social,
“Carnaval é uma festa democrática4”, de Angeli; cultural e ideologicamente orientada. É preciso
publicado originalmente pela Folha de São que esse leitor aprenda a reconhecer a
Paulo. singularidade do uso da linguagem e, ao mesmo
tempo, o quadro geral que inscreve esse uso
particular em um domínio comum (ORLANDI,
4
Disponível em <esquerdafestiva.blogspot.com.2007_02_01 2012). Ler, nesse sentido, é compreender para
archive.html>. Acesso 18/07/2015.
além das palavras, o mundo. Esse mundo que se

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671
revela no texto, mas que o ultrapassa. Ou seja, entrelaçamento de significados para mobilizar
esse mundo que coloca em inter-relação as os sentidos. E o faz desde o título, seguido da
dimensões constitutivas do fenômeno imagem das duas personagens de diferentes
linguístico. E que mundo pode nos revelar o etnias e classes sociais vestindo a mesma
texto em pauta? Para que seja delineada uma fantasia e o segundo plano das imagens até a
possível resposta, passa-se em revista cada uma fala da personagem.
das características do discurso mencionadas. O modo pelo qual as identidades dos
5.1 O discurso para além da frase personagens são representadas nos pares de
oposição branca-madame / negra-empregada,
Quando se inicia a leitura do texto, o
vão mobilizando significados ideologicamente
leitor se depara inicialmente com o título
orientados para crítica sobre a desigualdade
“Carnaval é uma festa democrática”. Este é
entre as classes sociais numa sociedade
expandido pelo recurso da imagem associada à
“democrática”, em que os negros representam a
fala da personagem à esquerda que, ao lado de
classe dominada e os brancos os dominadores,
outra personagem, tem como imagem de fundo
ainda que estes últimos tenham absorvido parte
representado o momento em que os carros
da cultura dos negros, que é representada pelo
alegóricos começam a ser agrupados para
Carnaval, festa que se tornou representativa da
retirada da avenida: é a imagem que representa
cultura popular brasileira.
a dispersão, o fim do desfile. Ao se fazer essa
leitura inicial vem em mente um conhecimento 5.3 O discurso é assumido por um sujeito
já construído sobre o carnaval. Essa delimitação O ponto de vista assumido pelo sujeito
é empírica, tem a ver com a experiência de do discurso, da crítica humorística da charge, é
mundo do leitor. Mas a situação de enunciação indiciado pelo desvio entre o título do texto
não é, com efeito, um simples quadro empírico, “Carnaval é uma festa democrática” e pela fala
ela se constrói como um quadro cênico da da personagem “– Bem, Maria...a folia acabou!
enunciação (MAINGUENEAU, 2015) que Agora eu volto a ser a madame e você a
adquire sentido para o leitor na medida em que empregada”. Note-se que essa quebra de
a leitura vai se processando como uma expectativa é o que possibilita o risível que
cenografia entrelaçada ao conteúdo, cujo efeito caracteriza o humor da charge que oportuniza a
é a ruptura da expectativa que causa uma dupla crítica e que encaminha o leitor à reflexão. Mas
reação: a de achar o texto engraçado e a de também é reveladora de um ponto de vista que
refletir sobre o que esta sendo dito. denuncia o estado de alienação (representado
5.2 O discurso é contextualizado pelo caráter onírico da “festividade”) em que
vive a sociedade atual e que a impossibilita de
As determinações histórico-sociais estão
viver a experiência real da democracia nas suas
entrelaçadas a dois momentos: o momento atual
relações cotidianas, em que a desigualdade
com vista para o qual o texto se constitui
social é imperativa e se mantém de forma
(anunciado pelo título) e as determinações
consensual entre os grupos pelas formas de
histórico-sociais para onde a fala da
tratamento (“madame” “empregada”) que
personagem aponta. Nos dois casos embasados
caracterizam, para além da desigualdade, o
culturalmente. O texto sinaliza esse
domínio de um grupo sobre o outro. Esse ponto

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672
de vista é assumido por um sujeito que mobiliza de classe” sob a forma de democracia. Esse
sentidos em direção ao leitor a respeito do que desvelamento pode levar o leitor, inicialmente,
representa a democracia para o povo brasileiro. ao risível, dada a ruptura de expectativa
anunciada no título; mas no segundo momento
5.4 O discurso é uma forma de ação
propicia a reflexão e suas implicações: o leitor
O discurso é uma forma de ação, porque assume o comportamento da indiferença, ou
é um modo de que as pessoas dispõem não não. De qualquer forma o discurso cumpriu
apenas para representar o mundo pela uma de suas determinações: ser para além da
linguagem, mas para participar do mundo representação do mundo e das coisas, uma ação
colocando-se em relação com o outro. Assim, sobre o mundo e, especialmente, sobre as
ao se deparar com o objeto texto o leitor passa pessoas.
pelo (re)conhecimento genérico e suas
especificidades discursivas, entra no nível 5.5 O discurso é regido por normas
segmental de sua materialidade e encaminha-se A troca entre os interlocutores (no caso,
para além dele, em articulação com o leitor e produtor) se inscreve pelo primeiro
linguístico e as temáticas da vida cotidiana, o movimento de interação que é o
discurso evidencia a maneira como a reconhecimento do gênero discursivo,
organização do mundo se configura numa conformes já foi pontuado. Essa troca entre
contemporaneidade. No texto em pauta, a interlocutores (no caso, leitor e produtor),
organização do mundo se configura ao mesmo direcionada conjuntamente para o gênero e para
tempo em que se problematiza essa o discurso, é regida por normas que asseguram
organização, explorando significados outros a legitimidade do dizer, na medida em que
para “Carnaval” e “Democracia”. orienta e é orientada pelo que pode ou não ser
dito, ou ainda, quem tem autoridade para dizer
Esse sentido outro, no texto em pauta,
o não o que diz. Por outro lado, o que está ou
é mobilizado em direção à compreensão que
não autorizado a ser interpretado, e que
ultrapassa a significação socialmente
sentidos o leitor pode mobilizar para
compartilhada de que o Carnaval é uma festa
compreender o texto. É nesse esteio das
popular (no caso, do povo e não apenas de um
relações intersubjetivas que as identidades
grupo) conforme anunciado no título, portanto
discursivas se constituem ao serem constituídas
aberta para todos que queiram participar. E, por
entrelaçadas pelo discurso. Cada um dos pares
extensão, que nessa festa, independe das classes
tem seu papel definido e movimentos
sociais, todos são iguais, noção justificada pelo
demarcados para que se efetive a interação.
adjetivo “democrática”, conforme se lê no
Nesse sentido, é preciso (re)conhecer e
título. Contudo, no texto, a fala da personagem,
respeitar as normas discursivas para que se
em associação às imagens, atesta que a
mobilize sentidos a partir do texto. Passada a
experiência da democracia é fugaz, como o
fase inicial de reconhecimento do gênero, novas
tempo da festividade carnavalesca. Assim,
perguntas serão feitas: o que esta sendo dito?
sentidos outros vão se compondo, tendo em
Qual a pertinência do que está sendo dito? Por
vista a fala da personagem entrelaçada às
outro lado, o enunciador busca legitimar-se
imagens. Por exemplo, o de que a democracia
naquilo e por aquilo diz. Ele enuncia tendo em
realmente vivida se configura numa “ditadura

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673
mente um leitor virtual, de maneira que o leitor da cor da pele dos personagens e às
concreto precisa em alguma medida se embarcações ilustradas no segundo plano,
identificar com esse leitor, para que possa compõem o enquadramento dessa memória no
(re)conhecer as pistas linguísticas que momento atual entrelaçada ao passado histórico
concorrem para mobilização do efeitos de dos negros no Brasil e numa espécie de ditadura
sentido que o texto suscita. de classes/raça em que a sociedade experiência
a democracia não no cotidiano das relações,
5.6 O discurso é interativo
mas em circunstâncias especiais como é o caso
O discurso opera numa perspectiva do Carnaval, festa que na atualidade é
abrangente em relação às possibilidades de ação culturalmente prestigiada pela sociedade
intersubjetivas. Assim, além do conhecimento brasileira. Tem-se, assim, a presença de um
das normas que regem o discurso, é preciso interdiscurso através da fala de um personagem
considerar as condições e o modo como se com se inter-relaciona o silêncio da outra,
opera a leitura, porque “a leitura é o momento marca do discurso da submissão. Assim, o
crítico da produção da unidade textual, da sua discurso conservador dos valores da sociedade
realidade significante” (ORLANDI, 2012). escravocrata atualizado como sendo do grupo
Por isso, é preciso considerar o que para do senhor-empregador que historicamente goza
o aluno se apresenta (no texto) como mais de prestígio social e o grupo escravo-
significativo para, a partir disso, coordenar os empregada que são menos favorecidos se
desdobramentos que o orientam para a articulam para significar.
dimensão do discurso. Partindo, por exemplo, 6. Considerações finais
da palavra “Carnaval” e sua relação com a
Pensar a leitura numa perspectiva
palavra “democrática”, conforme se lê no título;
discursiva não é apenas adaptar procedimentos,
já é possível preencher as “incompletudes”
mas, sobretudo, é repensar e reinventar o
próprias do texto. Como também oportuniza
ensino de língua considerando conhecimentos
distinguir aquilo que não está dito, mas que, de
essenciais sobre o fenômeno linguístico, a fim
certa maneira, sustenta o que está dito, e
de enfrentar desafios impostos pela sociedade e
também aquilo que se pode levantar, a partir do
cultura contemporâneas que fazem emergir
dito, mas que nos limites do texto não está
irreversivelmente a necessidade e emergência de
autorizado para significar. Esse movimento é
instrumentalizar o aprendiz de língua para ser
uma atividade interativa, fundamental para que
um novo leitor: crítico de si mesmo e das ações
o processo de interação se estabeleça pelo
de seu semelhante no mundo. Implementar
discurso.
conhecimentos atuais sobre a prática de leitura
5.7 O discurso e o interdiscurso e sobre o discurso é um pequeno exemplo de
O interdiscurso, ou melhor, dizendo, as como leitura e o discurso devem se relacionar.
relações interdiscursivas nessa charge vão Cumpre ressaltar sobre isso que, numa
evocar a memória relacionada à servidão a qual perspectiva discursiva, a leitura é enfatizada
o negro esteve submetido historicamente e que como o momento da produção da realidade
se atualiza no texto pelo vocábulo “madame” e significante do texto e o conhecimento
“empregada” que, associados à representação discursivo sistematicamente orientado, a

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674
ferramenta que possibilita seu desvelamento.
ROJO, R. H. R. Gêneros do discurso e gêneros
Portanto, investir no trabalho de leitura,
textuais: questões teóricas e aplicadas. In.:
considerando o discurso, comporta o
MEURER, J.L., BONINI, A. e MOTTA-
entendimento de que a língua é um sistema que
ROTH, D. (org.). Gêneros: teorias, métodos,
se processa em uso, onde a articulação entre o
debates. São Paulo: Parábola, 2005, p. 184-
linguístico e extralinguístico é que tece a rede
207.
de significação que mobiliza os sentidos.

Referências
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal.
Trad. Maria Ermantina G. G. Pereira. 6. ed.
São Paulo: Martins Fontes, 2011.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria
de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros
Curriculares Nacionais (Ensino Médio).
Brasília: MEC, 2000.
______. Ministério da Educação. Secretaria de
Educação Média e Tecnológica. PCN+ ensino
médio: orientações educacionais
complementares aos Parâmetros Curriculares
Nacionais. Códigos e Linguagem e suas
Tecnologias. Brasília: Semtec, 2002.
FOUCAULT, M. A Arqueologia do saber. Rio
de Janeiro: Forense, 1986.
MAINGUENEAU. D. Discurso e Análise do
Discurso. Trad. Sírio Possenti. São Paulo:
Parábola, 2015.
________. Análise de textos de comunicação.
6. ed. Trad. Maria Cecília Souza e Silva. São
Paulo: Cortez, 2013.
ORLANDI, E. P. Discurso e leitura. 9. ed. São
Paulo: Cortez, 2012.
PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma
crítica à afirmação do óbvio. Trad. Eni
Pulcinelli Orlandi et al. Campinas: UNICAMP,
1988.

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675
“NAGAZAKI DO SILÊNCIO BARULHANDO NA INTIFIDA”:
UMA ANÁLISE DISCURSIVA DO CORDEL “TERRORISTA É
QUEM NOS U$A”

Joseph Bezerra do NASCIMENTO; Cláudia Rejanne Pinheiro GRANGEIRO


Universidade Regional do Cariri (URCA)
josephbezerra1@gmail.com; claudiarejannep@yahoo.combr

Resumo: O objetivo do trabalho é proceder a uma análise discursiva do folheto de cordel


“Terrorista é quem nos U$A”, verificando os mecanismos de constituição do sujeito na
contracorrente do discurso do governo americano, que representava os autores do ataque
às Torres Gêmeas como “terroristas”. Nossos referencias teóricos são: Análise do
Discurso Francesa, em autores como Michel Foucault (2000), que trata do sujeito
relacionado às disciplinas, inserida numa ordem do discurso, Michel Pêcheux (1997),
com a questão do interdiscurso e teorias acerca da cultura e identidades em autores como
Stuart Hall (2004). Serão analisados tanto os elementos linguísticos como imagéticos e os
efeitos de sentido decorrentes dessa relação intersemiótica, no intuito de verificar o
processo de constituição do sujeito nos entremeios dos (inter) discursos que o atravessam.
Palavras-chave: sujeito; discurso; cordel; terrorista é quem nos u$a, fanka santos.

empresarial World Trade Center nos Estados


Introdução
Unidos. Nesse período, em Juazeiro do Norte
No ano 2000, por ocasião das estava em pleno vigor a Sociedade dos
“comemorações” acerca dos 500 anos do Cordelistas “Mauditos”. Dentre tantos poetas,
Brasil, na cidade de Juazeiro do Norte, Região encontrava-se a poetisa Fanka Santos (no
do Cariri, sul do Ceará, surgiu um grupo que se folheto em tela assina como Fanka), autora de
autodenominou Sociedade dos Cordelistas um cordel que trazia uma visão crítica aos
“Mauditos”. Estes poetas traziam em seus EUA: “Terrorista é quem nos U$A”, na
folhetos questionamentos sobre temáticas contracorrente do discurso do governo
tradicionais do cordel: seca, cangaço, Padre americano e mesmo da maior parte da mídia
Cícero. Transgrediram a tradição com essas internacional que representava os autores do
ideias e trouxeram questões relativas a gênero, ataque como “terroristas”. Nesse sentido, o
etnia, classe social, sexualidade, dentre outras. objetivo do trabalho é verificar os mecanismos
Em 11 de setembro de 2001, ocorreu o ataque de constituição do sujeito, na teia dos
dos aviões às Torres Gêmeas do complexo dizeres/saberes/poderes. O sujeito-autor do

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676
si relações de determinação dissimétricas
folheto insere-se na tradição, no espaço (pelos “efeitos de pré construído” e “efeitos-
enunciativo do cordel, por meio do gênero transversos” ou “de articulação” expostos
folheto, da métrica (septilha, estrofes de sete mais acima), de modo que elas são o lugar
versos, uma das formas fixas do cordel) e das de um trabalho de reconfiguração que
rimas. Ao mesmo tempo transgride esse espaço constitui, segundo o caso, um trabalho de
ao trazer para o cordel elementos das recobrimento-reprodução-reinscrição ou um
expressões culturais urbanas como o grafite, a trabalho politicamente e/ou cientificamente
linguagem dos fanzines, as palavras de ordem produtivo. (grifos do autor).
dos movimentos sociais de esquerda, numa
relação interdiscursiva/intersemiótica entre os O autor coloca a problemática da teoria
dizeres/saberes/poderes e os seus suportes. materialista dos processos discursivos sob o
1. Discurso, sujeito e poder(es) signo das condições ideológicas de reprodução
e transformação. Embora nunca tenha
A Análise do Discurso surgiu a partir de abandonado a base marxista de ideologia e luta
uma tríplice aliança de teorias, a partir do grupo de classes, opera claramente um
em torno de Michel Pêcheux (2009), redimensionamento das teses althusserianas, no
articulando a Linguística, o Materialismo sentido da não-univocidade da formação
Histórico e a Psicanálise. Essa revolução discursiva, apontando para a sua
cultural dentro do estruturalismo foi e é heterogeneidade.
bastante importante para os estudos do
discurso, dos saberes, das ideologias, da Ao considerar a formação discursiva
linguagem materializada, sempre em constitutivamente hetrerogênea, desenvolve,
movimento, produzindo sentidos. Segundo este autor, um conceito elementar para a
Gregolin (2004), Michel Pêcheux travou com Análise do Discurso, o conceito de memória
Michel Foucault “diálogos e duelos” a partir, discursiva ou interdiscurso, ou seja, um
principalmente do conceito de formação conjunto de saberes e dizeres anteriormente
discursiva (fd) e discurso como prática. Para enunciados em outros lugares de fala, que
Pêcheux (2009, p. 197): possibilitam que nossas palavras façam sentido.
Esses saberes correspondem a algo falado
Podemos a partir de agora, retomar a anteriormente, em outro lugar, a algo “já dito”,
expressão práticas discursivas, já que mas que, a cada ato de enunciação é
dispomos, tanto no domínio das ciências ressignificado, ou seja:
quanto no da política (domínios esse não-
justapostos ou opostos, mas sim como O discurso-outro que, enquanto espaço
acabamos de ver, articulados), de indicações virtual de leitura ou presença virtual na
conceptuais indispensáveis. Sabemos que materialidade descritível, marca, no interior
toda prática discursiva está inscrita no desta materialidade, a insistência do outro
complexo contraditório-desigual- como lei do espaço e de memória histórica,
sobredeterminado das formações como o próprio princípio do real sócio-
discursivas que caracteriza a instância historico. (PÊCHEUX, 1983, p.55)
ideológica em condições históricas dadas.
Essas formações discursivas mantêm entre

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677
Foucault chama de “poder disciplinar”. Ele está
A consequência mais importante da
preso a uma ordem do discurso, de
teoria de Pêcheux para os estudos da linguagem
determinadas disciplinas por determinadas
em geral e particularmente para a Linguística é
instituições. Michel Foucault por sua vez
a ideia de que os sentidos não são fixos. De
elencou três modos de objetivação para explicar
acordo com a formação discursiva e com as
como os humanos transformam-se em sujeitos.
condições de produção, os sentidos sempre
O primeiro modo está relacionado ao estatuto
podem ser outros, num processo continuo de
de ciência, a materialização do sujeito
múltiplas possibilidades interpretativas. Para o
discursivo, através da filologia e linguística. O
filósofo:
segundo é a matéria do sujeito como forma de
Toda descrição está intrinsecamente exposta produção, visando à riqueza dentro da
ao equívoco da língua. E por isto todo economia. O terceiro modo está diretamente
enunciado é suscetível de tornar-se outro, ligado apenas à existência, historia natural ou
diferente de si mesmo, deslocar-se biológica (FOUCAULT, 1995). Foucault fala
discursivamente de seu sentido para derivar também de “práticas divisoras” como
para outro, desde que não haja proibição objetivações do sujeito, quando colocado em
explícita de interpretação própria ao relação com o outro. Afirma que essa relação
logicamente estável (PÊCHEUX, 1983, resolve aparecer nas relações de significações e
p.5). produções. No entanto, a teoria econômica e o
materialismo histórico não são suficientes para
É exatamente nestes pontos em que os explicar as relações de poderes. Segundo
trabalhos de Pêcheux aproximam-se do Foucault, o poder não estaria restrito apenas à
pensamento de Foucault. Este teórico já não uma instituição ou a um sistema unificado. Os
concebe nem o sujeito, nem o discurso, nem o micropoderes estão em todos os lugares, eles se
poder da mesma forma que Pêcheux. Embora capilarizam no tecido social:
tenha discutido bastante sobre o poder, o
principal objetivo do trabalho de Foucault não Pareceu-me que, enquanto o sujeito humano
foi analisar o poder em si, mas verificar os é colocado em relações de produção e de
mecanismos de constituição do sujeito, na significação, é igualmente colocado em
relações de poder muito complexas. Ora,
perspective arqueológica, ou seja, tomar um
pareceu-me que a história e a teoria
aconteciemento discursivo e analisá-lo econômica forneciam um bom instrumento
considerando-o como um “nó em uma rede” para estudar as relações de significação;
(1997, p. 42), ou seja, “escavando” os dizeres porém, para as relações de poder, não temos
enunciados em outros lugares, tanto no instrumentos de trabalho. O único recurso
momento historico atual quanto os que temos são os modos de pensar o poder
anterioremente enunciados e em outros lugares. com base nos modelos legais, insto é: o que
Assim, o mito da tradição identitária, o é legitimar o poder? Ou então, modos de
social “determina uma identidade” para que o pensar o poder de acordo com um modelo
sujeito afirme que pertence a ela. Desta forma, institucional, isto é: o que é o Estado?
o sujeito está preso a uma disciplina, uma (FOUCAULT, 1995, p.232)
ordem dos objetos, o sujeito está dentro do que

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do dizer/saber. O discurso é, pois, um
Stuart Hall (2004) compartilha dos
atravessamento de sabers/poderes/dizeres que
estudos de constituição do sujeito em Foucault.
estão/são disponibilizados na sociedade, apesar
Em seu livro “A identidade cultural na pós-
de uns terem características coercitivas, há
modernidade”, faz um esboço da mudança do
ainda, uma opção de questionamento ou
sujeito da modernidade para a modernidade
desidentificação. Apesar do sujeito ser
tardia, em cujo momento da filosofia moderna o
atravessado e constituído por essas relações,
sujeito ganha influências dos valores do
ele, não é , no entanto, tão determinado, tão
humanismo, racionalismo e antropocentrismo.
assujeitado. Se os poderes são vários e
A partir de tais influências, o sujeito consegue
mutáveis, há também espaço para resistências.
deixar de lado as presenças do feudalismo e
teocentrismo. No racionalismo, René Descartes Concordamos com a concepção de
considerava o sujeito fonte de seu saber, com a poder de Foucault acrescentando, no entanto,
famosa enunciação, “penso, logo existo”. que as relações de poder que perpassam o
discurso são muito assimétricas. Embora os
O sujeito pós-moderno, por sua vez,
poderes sejam difusos, não estão todos no
será multifacetado, não mais individualizado,
mesmo grau de possibilidades imperativas.
com ideias e saberes que brotam da mente, mas
Assim como há “poderes mais poderosos que
sim, locomove-se/constitui-se/é constituído nos
outros”, na Economia internacional das trocas
entremeios entre os dizeres, os saberes e os
simbólicas, para usar a expressão de Bourdieu
poderes. Hall traz também o conceito de
(1995), há práticas/moedas discursivas com
descentramento, postulando cinco fundamentos
maior poder de troca do que outras.
para explicar como no decorrer da história das
ciências humanas, o sujeito deixa de ser No caso em tela, trazido pelo folheto. O
centrado para ser descentrado. O primeiro acontecimento de 11 de setembro de 2001 não
fundamento que Hall postula em seu livro é representa apenas uma data no calendário, foi
concepção marxista de sujeito, sujeito este historicizada/discursivizada/materializada
determinado pelo meio em que se encontra exaustivamente na grande mídia, silenciando
inserido. O segundo refere-se à “descoberta” do outros acontecimentos como, fome, guerra
inconsciente por Freud. O sujeito não sendo civil, exploração, genocídio, os quais não
racional, Freud dizia que o sujeito era tiveram tanto destaque. Tais fatos corroboram,
construído por fatores simbólicos do pois, com o pensamento de Foucault (2012, p.
inconsciente. O terceiro corresponde à 23) quando afirma:
linguística, pois, não somos autores do discurso
que pronunciamos. O quarto a genealogia do Em toda sociedade a produção do discurso é
ao mesmo tempo controlada, selecionada,
sujeito moderno, novos conceitos de poderes se
organizada e redistribuída por certo número
destacam, que serve para ordenar uma conduta,
de procedimentos que têm por função
de acordo com a ordem do discurso. E o quinto conjurar seus poderes e perigos, dominar
se relaciona ao movimento feminista, que seu acontecimento aleatório, esquivar sua
transgrediu o patriarcado. pesada e temível materialidade.
Todos esses “descentramentos” têm
relações com o discurso, pois é a materialização

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folheto responde: Os iraquianos, palestinos,
É, pois, nesse processo de seleção,
além de outros espaços como, Bósnia, África,
controle, organização, distribuição e conjuração
Faixa do Oriente, as quebradas do sertão,
de poderes, entre memória e silenciamentos que
Colômbia, Cambodja, localidades, cujas
vamos encontrar as posições de sujeito no
populações, historicamente, sofrem com a
discurso do folheto.
intervenção americana.
3. USA e Intifada barulhando no cordel
Além disso, ocorre o efeito da letra S,
A capa do cordel (figura 1) é uma trazida em forma de cifrão, símbolo gráfico da
xilogravura (a arte de gravar desenhos em moeda, no caso em tela, utilizado como
madeira, arte historicamente presente no folheto metáfora linguístico-imagética do capitalismo,
de cordel). Apresenta um par de olhos cuja meta primordial é a acumulação de bens e
amedrontados, sugerindo medo. A máscara está capitais.
relacionada ao gás, elemento utilizado como
Nesse sentido, o discurso do folheto
arma nas guerras. E uma figura especular do
aponta para a busca de outras razões para os
olho mágico, com a imagem de uma cidade com
ataques, ao trazer à tona enunciados em geral,
vários prédios. Os olhos antecedem uma
silenciados pelas mídias e ditos em outros
imagem que estará no corpo do cordel. A
lugares de fala, como por exemplo, nos
caveira, a fome, cruzes em cemitérios, bombas e
movimentos sociais de esquerda, espalhados
armas. Todos esses elementos de destruição são
pelo mundo, à época dos ataques. O folheto
atribuídos ao governo americano. A princípio o
denuncia, portanto, não só os ataques
próprio título já nos direciona para essa leitura.
americanos dos tanques, das armas de guerras,
A assertiva “Terrorista é quem nos U$A” se
mas também, os ataques econômicos, como por
relaciona interdiscursivamente com outros
exemplo, a cobrança das dividas externas dos
discursos enunciados em outros lugares, pelo
Estados Unidos aos países da América Latina,
governo americano, nos veículos de
da África e do Caribe, a exploração da mão de
comunicação, por exempli, que atribuíam a
obra nesses países, pelas transnacionais. Nesse
insígnia de terrorista aos iraquianos e aos
sentido, o sujeito enunciador se identifica
palestinos. Uma análise dos pronomes e do jogo
politico-ideologicamente com os que sofrem
semiótico da formulação do título do folheto
com a intervenção americana, o que fica mais
apontam para a polissemia da palavra U$A, que
nítido pela presença, na epígrafe, das palavras
adquire, nesse contexto, dois sentidos:
de ordem dos movimentos, das passeatas da
1) Presente do indicativo do verbo usar; época, ocorridas em várias partes do Brasil:
2) USA, sigla inglês do nome dos Estados “Chega de bomba, chega de ataque, fora o
Unidos ( United States of America). imperialismo do Iraque!” além da construção
poética da estrofe:
Assim, o verbo “usar” concorda com o Os meus olhos Bagdá
pronome “quem”. Se há um “quem usa”, há Hiroxima espatifada
alguém que é usado, discursivizado aqui pelo Nagazaqui do silêncio
pronome “nos”. Desta forma, cabe a pergunta: Barulhando na intifada
“quem é usado pelos Estados Unidos? O Minha dor é Palestina

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680
Na Colômbia clandestina
D’uma paz toda rifada.
Se World Trade Center
Despencou caiu no chão
(FANKA, 2001, p.02, 4 e)
desenhando no cenário
A maior agitação
O enunciador assume um lado da Todo dia muito fome
batalha: “meus olhos Bagdá”, por meio da Antropofagia o home
adjetivação do substantivo “Bagdá”, Nas quebradas do sertão!
mobilizando a memória discursiva de Hiroxima (Ibid, p. 03, 6 e)
e Nagazaki, duas cidades japonesas destruídas
pelos EUA na segunda guerra mundial. A Desta forma, a condicional “se” que
Intifada foi uma espécie de levante dos prossegue com o enunciado “o Word Trade
palestinos contra a invasão dos israelitas. Center despencou, caiu no chão”, como mote,
Assim, a primeira página do cordel inicia com vai constantemente ser comparado a outro
uma palavra de ordem: “Bush, Sharon, yanques acontecimento, com o termo “lá na”, a construir
assassinos, viva a intifada do povo palestino”, dois espaços de enunciação distintos que
cujo enunciador, ao interpelar nominalmente o dialogam conflituosamente. O EUA exercem
então presidente americano e o primeiro- poder sobre outras nações, por isso o discurso
ministro de Israel, declara apoio ao povo do enunciador configura-se como um
palestino, assim como a diversas outras nações contradiscurso ao do governo americano.
e continentes em situações semelhantes, como a
África, Faixa de Gaza, as “quebradas do 3.1 Imagens
sertão”, dentre outros: Figura 1

Se Word Trade Center


Despencou, caiu no chão
Produzindo muito pranto,
Muita dor no coração,
Lá na África todo dia
Pela fome em demasia
Morre gente em legião.
(Ibid, p. 01, 2 e)

Se World Trade Center


Despencou caiu no chão
E deixou naquela imagem
A força de uma agressão,
Lá na faixa do Oriente
Muito embora resistente
Chora Gaza, a pervesão
(Ibid, p. 02, 3 e)

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681
Figura 2 4. Considerações finais
De acordo com a Análise do Discurso, é
o (inter) discurso que constitui o sujeito e o
“seu” discurso. Ele se move por e entre os
dizeres/saberes/poderes em acordos e conflitos
na sociedade. Nesse caso, o sujeito se constitui
por meio do gênero do discurso: o folheto de
cordel, transgredindo o próprio gênero,
trazendo a linguagem do grafite, dos fanzines,
desenhos, palavras de ordem. Ao proceder
assim, o sujeito se diz/é dito quanto às suas
identidades sociais. Parte de um lugar social, de
uma forma/tempo/espaço de estar/ser no
Figura 3 mundo: “as quebradas do sertão”. Por isso alia-
se a outras vozes/espaços como “África, Faixa
de Gaza, Camboja”, assumindo um lugar social
e político dos que se contrapõem ao discurso
do governo americano, colocando-se como
porta-voz de uma série de sujeitos coletivos. Ao
mobilizar teoricamente tais teorias a um
acontecimento/corpus como o folheto de cordel
nas suas hodiernas e multifacetadas formas,
podemos verificar a atualidade e pertinência dos
“diálogos e duelos” encetados pelos teóricos de
base dessa vertente com teorias de campos
próximos como a Sociologia, os Estudos
Culturais, no sentido de ampliar cada vez mais
Figura 4 tanto o repertório teórico quanto as
materialidades contemporâneas, cada vez mais
intersemióticas, cada vez mais multimoldais.

Referências
BOURDIEU, P. Economia das trocas
simbólicas. 6 ed. Säo Paulo : Perspectiva,
2005.
DREYFUS, D & RABINOW, P. O sujeito e o
Poder. In: Michel Foucault: uma trajetória

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682
filosófica. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1995.
FANKA. Terrorista é quem nos U$A. Projeto
SESCordel Novos Talentos. Juazeiro do Norte.
2001.
FOUCAULT, M. A ordem do discurso. Aula
inaugural no Collège de France, pronunciada
em 2 de dezembro de 1970/Michel Foucault;
22. Ed. Trad. Laura fraga de Almeida Sampaio.
(Leituras filosóficas). São Paulo: Edições
Loyola, 2012.
_________. Arqueologia do saber. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 1997.
GREGOLIN, M.R. Foucault e Pêcheux na
Análise do Discurso. Diálogos e duelos. São
Carlos. Editora Claraluz, 2004.
HALL, S. A identidade cultural na pós-
modernidade; tradução de Thomaz Tadeu da
Silva & Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro:
Lamparina, 2004.
PÊCHEUX, M. (1983). Papel da memória.
Tradução de José Horta Nunes. In: ACHARD,
P. Papel da memória. p. 49-57. Campinas:
Pontes, 1999.
_______. Semântica e Discurso: Uma crítica à
afirmação do óbvio. 4.ed. Tradução: Eni
Puccinelli Orlandi et al. Campinas, SP: Editora
da Unicamp, 2009.

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A INFLUÊNCIA DOS VERBOS INTRODUTORES DO DIZER
DO OUTRO PARA A CONSTRUÇÃO DO SENTIDO

Kaline Shirley da Silva NASCIMENTO; Maria do Socorro Maia Fernandes BARBOSA


Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN)
kalinenascimento@hotmail.com; socorromaia@uern.br

Resumo: Nesse trabalho, visamos investigar a influência dos verbos introdutores do


discurso citado para a construção do sentido, nas vozes que aparecem nos textos
finalistas de memórias literárias da Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o
Futuro (OLPEF) 2012. Nossa pesquisa é descritiva e interpretativa, de base qualitativa e
adotamos o método dialético. Consideramos para a análise o discurso citado, nas
modalidades do discurso direto e do discurso indireto. Para tanto, utilizamos como
fundamentação teórica os trabalhos de Maingueneau (1997, 2001, 2008). Assim, os dados
revelaram que os verbos introdutores, em sua maioria, exercem grande influência na
construção do sentido. Dentre eles, o verbo dicendi apresentou uso frequente e, em alguns
casos, demonstrou aparente neutralidade; em outros, influenciou no sentido do
enunciado.
Palavras-chave: discurso citado; verbos introdutores; memórias literárias.

que aparecem nos textos finalistas de memórias


Introdução
literárias da OLPEF 2012. Optamos por
Nesse trabalho, elegemos como corpus observar apenas as amostras que apresentam o
os textos finalistas de memórias literárias da uso do discurso direto e/ou indireto por
Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o aparecerem no texto de maneira mais explícita
Futuro (OLPEF) 2012. Trata-se de textos que o discurso indireto livre, e serem de mais
produzidos por alunos matriculados nos 7º e 8º fácil identificação.
anos de vários estados brasileiros e que revelam
Assim, esse trabalho poderá servir de
a memória de um lugar na perspectiva de um
reflexão para a prática docente e para o modo
antigo morador.
como se trabalha o discurso do outro em sala
Essa é uma pesquisa descritiva de base de aula. Sabemos que é comum professores
qualitativa e de cunho interpretativo. Adotamos tratarem o Discurso direto (DD), Discurso
o método dialético e objetivamos analisar a Indireto (DI) e o Discurso Indireto Livre (DIL)
influência dos verbos introdutores do discurso por questões puramente gramaticais, apenas
citado para a construção do sentido, nas vozes propondo a transformação do discurso direto

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684
em discurso indireto, por exemplo. Ainda se reprodução da fala, trata-se apenas de uma
realizam análises sem considerar o contexto em “encenação”. É no discurso citante que o
que esses discursos estão situados, a influência enunciador dará o seu tom pessoal, subjetivo,
deles para a construção do sentido e as valorativo e fará o recorte da enunciação citada.
possíveis intenções comunicativas do O enunciador ao optar por citar a fala de
enunciador ao trazer para o seu discurso a outra alguém através do DD, deixa claro para o leitor
voz e marcá-la. que não se responsabiliza por aquilo que está
Nos tópicos a seguir, fazemos uma sendo enunciado e marca aquelas palavras
breve discussão sobre o discurso citado direto, evidenciando que não se trata de palavras suas,
o discurso citado indireto e os verbos mas de outro alguém. Há também uma tentativa
introdutores do discurso citado, baseando-nos de reproduzir exatamente o discurso citado,
nos estudos de Maingueneau (1997, 2001, porém, sabemos que por mais que as palavras
2008). Além disso, analisamos a influência dos sejam as mesmas, o contexto passa a ser outro,
verbos introdutores do discurso citado para a a própria entonação pode ser diferente e, por
construção de sentido do enunciado e por isso, o discurso citado quando incorporado ao
último tecemos as nossas considerações finais. citante, adquire novos sentidos.
1. Discurso citado direto e discurso citado Além disso, acrescentamos ainda que a
indireto escolha por utilizarmos o discurso direto não é
feita de maneira despretensiosa, pois tanto pode
De acordo com Maingueneau (2001), o
ser uma estratégia discursiva, como até mesmo
discurso citado possui seu caráter subjetivo, as
uma influência do gênero do discurso.
falas citadas exercem sua função dentro da
Maingueneau (2008, p. 142) cita três motivos
narrativa e passam a ter um lugar definido. No
que podem levar o enunciador a optar pela
DD, o locutor da enunciação delega para um
citação através do DD: “criar autenticidade [...],
outro locutor a fala citada e mantém um certo
distanciar-se [...] ou mostrar-se objetivo, sério”.
distanciamento daquilo que cita. Entretanto,
quem cita poderá até alterar o sentido da Ainda assim, reiteramos que o DD é
enunciação citada, mesmo que reproduza as apenas uma tentativa de ser objetivo e fiel ao
mesmas palavras. Basta uma entonação que se relata. Entretando, apesar de mesmo no
diferente e o sentido poderá ser outro. caso de palavras realmente proferidas e da
citação constar de todas elas, a enunciação já
No caso do discurso direto,
não será mais a mesma e ocorre apenas uma
Maingueneau (2008) afirma que se trata de uma
menção ao que foi dito/escrito. A própria
simulação em resgatar as falas citadas, e de
maneira de relatar influencia na interpretação do
forma explícita, temos a diferenciação entre o
que está sendo citado e o enunciador insere o
discurso citante do discurso citado. No
seu tom pessoal. Pode ser também que o
entanto, esse autor esclarece que nem sempre
locutor opte por essa forma de citação
essa enunciação de fato ocorreu, pois ela pode
buscando um maior distanciamento entre o seu
ser imaginada, solicitada, suposta etc.
discurso e as palavras que estão sendo citadas.
Acrescenta que ainda que afirmemos ser
aquelas palavras citadas em DD uma

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Ao contrário do DD, no DI não citamos Ainda sobre os verbos introdutores, ao
as palavras relatadas fielmente, mas o acompanhar o DD, eles podem sequer
enunciador extrai e traduz conforme lhe indicarem um ato de fala. Maingueneau (2008)
convém o conteúdo da fala do outro com suas esclarece que a depender do verbo escolhido há
próprias palavras e seus acentos de valores. influência na interpretação de todo o enunciado.
Maingueneau (2008) critica a ideia que algumas Conforme Charolles1 (2008 apud Maingueneau,
pessoas ainda têm de que o discurso indireto é a p. 88), com exceção do verbo dizer que possui
tradução mecânica do discurso direto. O uma neutralidade aparente, os outros verbos
locutor, de forma autônoma, procura interpretar indicam vários pressupostos, tais como:
e reproduzir com suas palavras a enunciação de
outro. Com isso, há um espaço maior para a -alguns incidem sobre o valor de verdade do
subjetividade, pois há inúmeras maneiras de enunciado citado[...];
relatar as palavras do outro.
Nesse sentido, a escolha de que verbo -sobre a posição cronológica: replicar,
utilizar para introduzir o relato das palavras do repetir, concluir...;
outro será fundamental para a interpretação do
interlocutor, já que muitas vezes é ele quem
-sobre o ponto de vista atribuído ao
direciona a interpretação do enunciado. Além enunciador, face ao que diz: reconhecer,
disso, no discurso indireto é o verbo introdutor confessar...;
que esclarece que há um discurso relatado.
2. Verbos introdutores do discurso citado
-sobre uma hierarquia: ordenar, suplicar.
Existem diversas maneiras de
indicarmos na enunciação que há um discurso Por isso, é preciso atenção ao escolher o
citado e, em alguns casos, elas divergem introdutor explícito para marcar o discurso
quando se trata de um DD ou de um DI. citado, tendo em vista que a interpretação do
Um das maneiras de indicar a citação em enunciado pode ser direcionada pelo sentido do
DD é o uso de verbos que apontem para um ato verbo introdutor.
de fala. De acordo com Maingueneau (2008, p. Segundo Maingueneau (2008), há uma
143), esses verbos podem ser “colocados antes notável diferença entre o DD e o DI. No
do discurso direto [...], em oração intercalada primeiro caso, nem sempre ele vem
no interior do discurso citado [...] ou no final.” acompanhado de um introdutor explícito, e
Assim, a introdução do DD pode muitas vezes, são as marcas tipográficas que
ocorrer ao menos de duas formas: apenas com indicam que se trata de um discurso relatado,
o uso de marcas tipográficas que sinalize um conforme já apontamos. Ao contrário disso, o
descompasso entre o discurso citado e o DI é mais restrito, pois aparece em forma de
discurso citante ou com a presença de uma oração subordinada substantiva objetiva
introdutor explícito, como é o caso do verbo
1
introdutor. CHAROLLES, M. Exercices sur les verbes de
communication. In: Pratiques, nº 9, 1976.

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direta e é somente o verbo introdutor que introduz, em especial, nos casos do discurso
esclarece para o leitor que há um discurso indireto, pois o identificamos justamente pelo
relatado. Em muitos casos, o introdutor do DI é sentido do verbo, que indica outra enunciação.
um verbo dicendi, com vistas a indicar que há Na maioria das vezes, esses verbos são os
uma enunciação, já que nesse tipo de discurso chamados verbos dicendi ou de dizer. Vejamos,
as marcas tipográficas estão ausentes. abaixo, um exemplo com os verbos “ordenou”,
“dizia” e a expressão “falou de supetão”:
Além disso, outra maneira de
delimitarmos o discurso relatado, apontada por [01] Meu avô, tenente Antunes, forte como
Maingueneau (2008), é o uso de grupos aroeira e doce como jabuticaba, estava no
preposicionais (Segundo X, Para X, Conforme comando.
X) que indica uma mudança de ponto de vista. Eu tinha 7 anos quando ele me ordenou que
Esses introdutores, à semelhança de alguns o aguardasse no escritório. Temi que meu
verbos introdutores também não são neutros, avô houvesse descoberto que eu armara um
pois possuem enfoque subjetivo. alçapão para pegar canarinho. Ele dizia:
“Quem prende passarinho não entende nada
Diante do que expomos, vemos que ao
de beleza, tem aleijão na alma”. Com
citarmos palavras de outros em nossos minhas asas encolhidinhas, rumei para o
discursos, elas são acolhidas em uma nova escritório. Não tardou, ele chegou e falou de
enunciação e isso pode promover consideráveis supetão: “A partir de amanhã você será o
modificações no sentido do discurso citado, a carreiro da nossa comunidade, condutor dos
depender da escolha dos verbos introdutores. bois que transportam cana para o alambique
Em casos mais extremos, os próprios dizeres da fazenda”. (ML 10)
citados podem sofrer tanta influência da
subjetividade do enunciador ao ponto de chegar Em geral, os verbos dicendi são
a distorcê-los. definidos como aqueles que indicam uma
Portanto, salientamos o necessário elocução ou declaração, e para alguns
cuidado na escolha dos verbos introdutores ou estudiosos, são tidos como neutros. Temos na
grupos preposicionais, tendo em vista que esses amostra um (01), três verbos introdutores do
exercem influência na interpretação da discurso citado: ordenou, dizia e falou. A
enunciação citada. De tais escolhas, em alguns palavra “ordenou” possui uma carga semântica
casos, decorre a compreensão da enunciação. forte, pois não se tratava de um pedido, mas
sim de uma ordem, de uma recomendação que
No tópico seguinte, vejamos a análise da
deveria ser cumprida sem questionamento.
influência dos verbos introdutores do discurso
Denota a autoridade do mais velho (avô) e o
relatado para a construção do sentido.
respeito que o mais novo (neto) tinha pelo
3. A influência dos verbos introdutores do idoso, o poder e a validade da palavra desse
discurso citado para a construção do sentido idoso. De acordo com Charolles (2008 apud
Como vimos, uma das formas de Maingueneau), esse verbo expressa uma
identificarmos o discurso do outro explícito no hierarquia, ou seja, no contexto o avô está em
enunciado é observando o verbo que o uma posição superior à posição do neto.

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aparente neutralidade, conforme nos coloca
No segundo trecho, temos a introdução
Maingueneau (2008), funcionando apenas como
pelo verbo dicendi “dizia”, o qual consideramos
elementos de continuidade das histórias
que ele não é neutro e atribuímos para ele um
relatadas e como introdutor de um DI, mas sem
sentido semelhante ao do verbo “ordenou” que
muita interferência no sentido.
o antecede. Ele introduz o dizer do idoso, que
funciona como autoridade e denota sabedoria. Também observamos, na amostra três
(03), a presença do verbo dicendi “falasse” que
Por último, a expressão “falou de
funciona como elemento importante para o
supetão” introduz a voz do idoso que delega ao
leitor compreender a mudança da pessoa
neto importantes atribuições laborativas que
gramatical e a narração pela representação da
deveriam ser cumpridas no dia seguinte, sem
voz do entrevistado. Consideramos que a opção
direito à recusa ou questionamento. Essa
por continuar o relato em DD agrega maior
expressão reforça a fala do avô, que decide o
autenticidade ao que está sendo dito, conforme
destino de seu neto. O uso do DD nesse trecho
afirma Maingueneau (2008). Ainda verificamos
atribui ao dizer do idoso um valor ainda maior,
que esse verbo dicendi e seu cotexto são
pois o texto refere-se a uma época em que os
esclarecedores para compreendermos que esse
mais velhos eram ouvidos e obedecidos, e a voz
texto foi escrito baseado numa entrevista.
deles era superior e sábia. Vejamos, a seguir,
outros exemplos com os verbos “falar”, No corpus analisado, encontramos com
“falasse” e “contou”: frequência o verbo dizer como elemento
introdutor do discurso relatado. Selecionamos o
[02] Pois não me esqueço do domingo em caso abaixo para servir como ilustração:
que o acompanhei até o porão. Ele me
contou que na época de seu pai, meu bisavô [04] [...] Parafraseando o poeta, posso
Joaquim Antunes, ali era uma senzala e que dizer: “Oh! Saudoso riacho! Riacho
foram os escravos, sem receber um vintém, querido! Suas águas cristalinas já não
que ergueram a casa-grande. Trouxeram, de existem mais. Como estão poluídas! [...]”
longe e nos braços, pedras e madeiras (ML 12)
enormes. Muitos morreram de exaustão.
Falou-me da vergonha que sentia e da nossa
Temos na amostra acima, a presença do
dívida para com o povo negro. (ML 10)
verbo dicendi “dizer”, que de acordo com
[03] Não foi difícil fazer com que meu pai, Charolles (2008 apud Maingueneau), ele possui
Manoel Gomes, homem simples e humilde, uma aparente neutralidade e, de fato, o que
falasse da sua infância, e que infância! podemos perceber nessa amostra.
“Morávamos na Rua Portugal. Família Ainda sobre os verbos introdutores do
humilde, sem muitas condições. [...] (ML discurso citado, Charolles (2008 apud
20)
Maingueneau) aponta vários pressupostos para
eles, dos quais veremos o exemplo de um deles:
Ao contrário do que vimos na amostra
um (01), os verbos “contou” e “falou-me” [05] Nesse momento Cavinha silenciou e
aparecem na amostra dois (02) com uma notei seu olhar perder-se no tempo,

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caminhou em direção à capela e continuou: bem, para assim poder arrumar um bom
“Aqui está registrado um pouco da história marido e constituir família... (ML 19)
de Bariri que fui montando aos poucos,
como um verdadeiro quebra-cabeça. [...] Nessas amostras, temos o verbo “ouvia”
(ML 11)
como introdutor do discurso indireto. Por isso,
há uma tendência para que o locutor expresse
Na amostra em apreciação, temos o uso uma maior subjetividade, pois é com suas
do verbo “continuou” para introduzir o discurso palavras que ele relata as palavras do outro,
direto, o que além de estabelecer a continuidade conforme menciona Maingueneau (2008). Na
da narrativa, possibilita maior fluência. amostra seis (06), compreendemos que o verbo
Destacamos que esse verbo introduz o DD que “ouvia” é utilizado no sentido de escutar, já que
aparece na forma dos cinco parágrafos se refere às histórias que eram contadas e elas
seguintes. Segundo o autor mencionado, um eram escutadas com atenção pelos ouvintes.
dos pressupostos dos verbos introdutores é que Porém, na amostra sete (07), ao considerarmos
eles podem indicar a posição cronológica, e o cotexto, esse verbo recebe outros acentos de
consideramos que o verbo “continuou” é um valores. O narrador se refere à sua mãe como
exemplo disso, pois indica a sequência do relato uma mulher autoritária e que ditava regras.
no contexto observado. Nesse caso, o verbo adquire o sentido de
Outro verbo que encontramos foi o ordem, já que as palavras não eram apenas
vocábulo “ouvia” e transcrevemos a seguir duas escutadas, mas elas eram atendidas e gerava o
amostras a fim de tecermos comentários em cumprimento de ações relativas aos afazeres
relação ao sentido atribuído a ele no contexto domésticos.
em que está inserido: Sabendo que os verbos introdutores do
discurso relatado em alguns casos influenciam
[06] À noite, depois do banho de bacia e do
no sentido do enunciado, vejamos as amostras a
jantar à luz de lamparina, todos os
seguir com as palavras “cantávamos” e
moradores se juntavam no terreirão para um
dedinho de prosa. O que se ouvia era uma “brincávamos”:
sessão de casos e “causos”. [...] (ML 16)
[08] [...] No sítio ainda não tinha a luz
elétrica para ofuscar o brilho das estrelas e
[07] [...] Fiz até a quarta série porque meu nem da luz cintilante dos vaga-lumes. As
amado pai ajudou a convencer mamãe que crianças amavam capturar aqueles seres
seria muito importante para mim. [...] enigmáticos. Cantávamos a rima mágica
“Vaga-lume tem, tem, seu pai tá aqui, sua
mãe também.” [...] (ML 16)
Lembro-me dela, autoritária, ditando regras,
exigindo de mim, com 7 anos,
responsabilidade por todos os afazeres [09] [...] Aquela grande fogueira acendia
domésticos. Meus pais trabalhavam na meus olhos e aquecia meu corpo e nessa
lavoura, cabia a mim, todas as manhãs, roda brincávamos: “Ó Mariazinha, ó
pegar água na mina, cozinhar e lavar para Mariazinha, entre nessa roda ou ficarás
todos. Sempre ouvia que precisava cozinhar sozinha”, “Sozinha eu não fico nem hei de

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ficar...” “Boca de forno, forno, jacarandá... pois para mim não são mistérios. [...] (ML
dá...”. (ML 14) 12)

Na amostra oito (08), temos o verbo [11] — Vovó, eu queria ter nascido na
“cantávamos” como introdutor do discurso mesma época que a senhora! Adoro brincar
direto. As palavras em DD representam uma de boneca e pular corda na rua!
cantiga que as crianças entoavam ao caçar
vaga-lumes e o verbo determina que a letra não
se trata apenas de uma brincadeira, mas de uma Quando essas doces e sinceras palavras
melodia que eles entoavam ao brincar. Na soaram em meus ouvidos, meus olhos
amostra nove (09), temos o verbo brilharam de emoção; [...] (ML 13)
“brincávamos” também introduzindo o DD e ao
analisarmos o cotexto, não fica claro se o [12] Lembro-me de que ouvi uma voz doce
trecho entre aspas se trata de uma cantiga ou se que quebrou aquele silêncio: “Bernadete,
eram palavras apenas ditas no momento da Bernadete, venha cá ajudar sua irmã a fazer
brincadeira. No entanto, pelo contexto, a lida”. Era a minha amada mãezinha me
sabemos que se trata de uma música que chamando. (ML 18).
costuma embalar brincadeiras de criança.
Sendo assim, vemos que no primeiro caso fica Na amostra dez (10), temos o verbo
claro que se trata de uma cantiga que “cantada” introduzindo o DD que traz um
acompanha uma brincadeira, e o verbo trecho do hino à cidade de Teresina. Convém
introdutor utilizado colabora para a acepção destacarmos que esse verbo é usado de maneira
desse sentido. Já no segundo caso, ao escolher criativa e numa linguagem literária, pois
como introdutor o verbo “brincávamos”, não conforme verificamos acima, o narrador afirma
fica explícito que o DD é um trecho de uma que a cidade de Teresina é cantada pelo poeta.
cantiga de roda. Pelo sentido denotativo, o que é cantado é o
Nesse sentido, destacamos que escolher hino à cidade. Portanto, além de influenciar no
o verbo introdutor do discurso citado deve ser sentido do enunciado, o verbo contribuiu para
uma tarefa cuidadosa, pois dessa escolha muitas as características do gênero memórias literárias,
vezes decorre o sentido atribuído ao enunciado. uma vez que a partir do seu uso foi possível
incorporar a linguagem literária ao enunciado.
A fim de verificarmos a influência dos
verbos introdutores para a construção do Em relação à amostra onze (11), o
sentido do enunciado, selecionamos ainda do vocábulo “soaram” vem após o discurso direto
nosso corpus mais três (03) verbos diferentes, e já em outra oração. No DD temos as palavras
os quais transcrevemos nas amostras a seguir: da neta, e no parágrafo seguinte é a avó que
narra suas lembranças, inspirada pelo que ouviu
[10] Hoje, em meu ateliê cercado de plantas da neta.
e pássaros na cidade cantada pelo poeta,
“Teresa eternizada Teresina”, traço Ainda sobre a amostra onze (11), o
pinceladas dramáticas em telas brancas, verbo em destaque colabora de maneira
significativa para a atribuição de sentido do

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enunciado, pois é a partir do som das palavras Dizia (01) Influenciado pelo verbo
da neta que a avó aflora suas emoções e ordenou, tem sentido de
recorda os acontecimentos marcantes de seu autoridade e denota sabedoria.
passado. O verbo, além de despertar sensações
e emoções na narradora, assim como na Falou de Reforça a autoridade do mais
amostra anterior, colabora para tornar a supetão (01) velho, pois o seu dizer sequer
linguagem do texto mais literária. era questionado.
Assim como nos dois exemplos
anteriores, o verbo em destaque na amostra
Falar (02) Apresenta neutralidade
doze (12) colabora para a obtenção da
aparente e funciona como
linguagem literária. A narradora (mãe) faz uso elemento de continuidade.
da palavra “quebrou” para se referir ao silêncio,
no sentido de que ele cessou no momento em
que ela ordenou à Bernadete que fosse ajudar Contou-me Apresenta neutralidade
sua outra filha. Apesar do verbo “quebrar” (02) aparente e funciona como
significar partir ou romper, é mais comum ele elemento de continuidade.
ser utilizado em relação às coisas palpáveis e o
fato de ser usado em relação a algo abstrato
Falasse (03) Verbo de dizer que ajuda o
colabora para a construção da linguagem
leitor a compreender a narração
literária.
feita pela representação da voz
No intuito de esclarecermos mais sobre do entrevistado.
a análise da influência dos verbos introdutores
do discurso relatado para a construção do
sentido do enunciado, expomos abaixo o Dizer (04) Apresenta aparente
neutralidade e aparece em
quadro 1. Esse quadro é uma síntese das
diferentes posições no
análises desse tópico, com os verbos analisados, enunciado.
a amostra na qual ele está localizado e a
influência desse verbo para o sentido do
enunciado. Vejamos: Continuou (05) Indica posição cronológica e
Quadro 1 - Verbos introdutores e a expressa continuidade da
influência deles na construção do sentido narrativa.

Verbo e Influência na construção de Ouvia (06) O mesmo que escutar e


amostra sentido do enunciado funciona como elemento de
continuidade.

Ordenou (01) Expressa hierarquia.


Ouvia (07) Expressa ideia de ordem.

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691
Cantávamos Esclarece que o discurso citado
(08) além de representar uma Além disso, conforme já mencionamos
brincadeira, trata-se de uma anteriormente, Charolles (2008 apud
cantiga entoada pelas crianças. Maingueneau) afirma que os verbos
introdutores indicam alguns pressupostos. Em
nossas análises, identificamos que os verbos que
Brincávamos O verbo não esclarece se as introduzem o discurso citado apresentam
(09) palavras do DO eram regularidades em relação à influência no sentido
pronunciadas apenas em uma do enunciado. Com isso, apresentamos a seguir
brincadeira ou se era uma o quadro 2 que mostra os pressupostos
cantiga. Somente pelo
veiculados pelos verbos analisados nessa
contexto sabemos que se trata
de uma música.
investigação. Vejamos:
Quadro 2- Pressupostos dos verbos introdutores

Cantada (10) Usado no sentido conotativo,


pois se refere a uma cidade.
Pressupostos Verbos introdutores
Assim, colabora para o Indicam hierarquia. Ordenou, dizia, falou de
estabelecimento da linguagem supetão e ouvia.
literária, característica das ML. Funcionam como Falar, contou-me,
elemento de continuou e ouvia.
continuidade.
Soaram (11) Exerce grande influência no Verbo dicendi que Falasse.
sentido do enunciado, pois é o indica a mudança
som das palavras da neta que de narrador.
aflora as lembranças da avó.
Apresenta aparente Dizer.
Assim, também colabora para
a linguagem literária.
neutralidade
Colaboram para o Cantada, soaram e
estabelecimento da quebrou.
Quebrou (12) Utilizado no sentido de cessar o linguagem literária.
silêncio, auxilia na linguagem Colaboram ou não Cantávamos (colaborou
literária. com a clareza do para a clareza);
enunciado. brincávamos (não
Fonte: elaborado pela autora.
colaborou para a
Diante do exposto, constatamos que à clareza).
exceção dos verbos “dizer”, “falar” e “contar”, Fonte: elaborado pela autora.
que em algumas situações mantêm aparente Semelhante ao que aponta Charolles
neutralidade, o verbo introdutor do discurso (2008 apud Maingueneau), identificamos entre
citado exerce influência na construção do os verbos analisados os pressupostos que
sentido do enunciado e colabora para a indicam hierarquia e que apresentam aparente
compreensão do que está sendo dito. neutralidade. No entanto, conforme podemos
observar no quadro 4, encontramos em nossas

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análises mais quatro pressupostos diferentes quatro novos pressupostos assumidos pelos
daqueles já apontados pelo trabalho citado: verbos introdutores que são os seguintes:
funcionam como elemento de continuidade; funcionam como elemento de continuidade;
colaboram para o estabelecimento da linguagem colaboram para o estabelecimento da linguagem
literária; colaboram ou não com a clareza do literária; colaboram ou não com a clareza do
enunciado; verbos dicendi que indicam a enunciado; verbos dicendi que indicam a
mudança de narrador. mudança de narrador.
Dentre os novos pressupostos Por isso, destacamos a necessidade de o
identificados, destacamos o caso dos verbos professor mostrar ao aluno a importância da
dicendi que apesar de comumente serem vistos escolha do verbo introdutor do discurso do
com aparente neutralidade, em nossas análises outro para a construção do sentido do
verificamos que eles exerceram forte influência enunciado. Sendo assim, ressaltamos ainda, que
na construção do sentido do enunciado. Os é fundamental escolher o verbo adequado para
verbos “contar”, “respondeu” e “falasse” foram introduzirmos o discurso citado, sob pena de o
responsáveis por esclarecerem ao leitor que interlocutor construir sentidos contrários aos
haveria uma mudança na narração do texto, e pretendidos pelo locutor.
que a narração seria passada supostamente para
o entrevistado.
Referências
4. Considerações finais
MAINGUENEAU, D. Análise de Textos e
Em nossas análises, percebemos que Comunicação. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2008.
tanto o verbo influenciou no sentido do
enunciado, como o contrário também ocorreu. ______. Elementos de linguística para o texto
A maioria dos verbos introdutores do discurso literário. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
do outro influenciou de forma significativa para ______. Novas tendências em análise do
a construção do sentido do enunciado, e alguns discurso. 3. ed. Trad. Freda Indursky; revisão
contribuíram para o estabelecimento da dos originais da tradução Solange Maria Ledda
linguagem literária, própria do gênero Gallo, Maria da Glória de Deus Vieira de
discursivo memórias literárias. Mesmo nos Moraes. Campinas/SP: Pontes: Editora da
casos dos verbos dicendi e daqueles tidos como Universidade Estadual de Campinas, 1997.
neutros, vimos que eles foram importantes para
a construção do sentido.
Com isso, a partir do estudo de
Charolles (2008 apud Maingueneau),
encontramos em nossas análises dois
pressupostos dos verbos introdutores que
coincidiram com os já apontados por esse
estudioso: indicam hierarquia e apresentam
aparente neutralidade. Entretanto, destacamos
que identificamos em nossa investigação mais

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CORPO E RELAÇÕES DE PODER: OS SENTIDOS NO
DISCURSO DA INCLUSÃO DO SUJEITO COM DEFICIÊNCIA

Maria Eliza Freitas do NASCIMENTO


Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN)
elizamfn@hotmail.com

Resumo: Objetivamos, neste trabalho, analisar os efeitos de sentidos que circulam no


discurso sobre a inclusão do sujeito com deficiência, observando a construção do corpo
atrelada às relações de poder, usando como trajeto temático a inclusão no mercado de
trabalho. Nosso aporte teórico é a Análise do Discurso de vertente francesa, usando a
contribuição de Michel Pêcheux e Michel Foucault. Buscaremos, neste percurso, mostrar
como as práticas discursivas sobre o corpo com deficiência passaram por transformações
que resultam em novas práticas sociais, decorrentes da maneira como o sujeito com
deficiência é discursivizado.Nesta análise, percebemos um efeito de memória que desloca
o corpo com deficiência do lugar de segregação e anormalidade, para colocá-lo no
espaço de visibilidade de corpo feliz e produtivo, inserido numa nova ordem do discurso.
Palavras-chave: sujeito; deficiência; relações de poder; discurso; sentido.

transformações que resultaram em novas


Introdução
práticas sociais, decorrentes da maneira como o
Com destaque para a produção dos sujeito com deficiência é discursivizado.
efeitos de sentido nos discursos, este trabalho
O nosso objeto de investigação é o
explora as manifestações cotidianas imersas na
discurso da Revista Sentidos, uma produção
relação do discurso com a história. Dessa
midiática destinada à inclusão da pessoa com
forma, objetivamos analisar os efeitos de
deficiência. Usamos como corpus o enunciado
sentidos que circulam no discurso sobre a
discursivo da matéria de capa da edição 55,
inclusão do sujeito com deficiência,
publicada no ano de 2009.
observando a construção do corpo atrelada às
relações de poder, usando como trajeto Na análise da materialidade,
temático a inclusão no mercado de trabalho. observamos como as relações de poder
oportunizaram a criação de uma tecnologia
Nosso aporte teórico é a Análise do
política do corpo, por meio dos deslocamentos
Discurso de vertente francesa, usando os
históricos sofridos pelo corpo com deficiência,
autores Michel Pêcheux e Michel Foucault para
o qual sofreu os efeitos do poder de
mostrar como as práticas discursivas sobre o
normalização para ser considerado produtivo e
corpo com deficiência passaram por

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694
inserido no mercado de trabalho. Entretanto, o que a língua é considerada pela AD como
discurso é sempre ligado a procedimentos de opaca, sujeita ao deslize e a falhas, o sentido
controle e seleção do que pode ser dito. Com sempre pode ser outro, já que permite uma
isso, é possível perceber um efeito de memória série de equívocos que não podem ser medidos
que desloca o corpo com deficiência do lugar em sua totalidade.
de segregação e anormalidade, para colocá-lo Nessa dimensão, o discurso possibilita
no espaço de visibilidade de corpo feliz e perceber inúmeros efeitos de sentido que
produtivo, inserido numa nova ordem do circulam socialmente e se propagam em
discurso. diferentes contextos, movidos pelas condições
Também foi possível perceber as de produção. Assim, fazer uma investigação
movências de sentido para a deficiência e o dos processos discursivos inclui perceber o
trabalho na materialidade discursiva da discurso como prática, alicerçado em
RevistaSentidos, que por ser um suporte acontecimentos que se misturam e se
midiático, favorece a produção e circulação de transformam em efeitos de memória.
enunciados perpassados por uma ordem do que São esses enunciados que reclamam um
se pode dizer, em uma formação discursiva que
olhar aguçado sobre os efeitos de sentidos que
dita regras de comportamento, subjetivando os deles emanam, com a perspectiva de que esse
sujeitos com deficiência, construindo vontades sentido só pode ser compreendido no limiar da
de verdade, articulando memória e língua com a história. Nas palavras de Gregolin
esquecimento, controlando o seu fazer, o seu (2001, p. 9) “o fazer sentido é efeito dos
pensar e o seu sentir, compreendendo o processos discursivos que envolvem os sujeitos
trabalho como uma estratégia de com os textos e ambos com a História”. Esse
governamentalidade, de inclusão e sentido encontrado na relação da língua com a
transformação social do corpo com deficiência. história, oportuniza compreender o discurso
1. Discurso e efeitos de sentidos como efeito de sentido entre sujeitos, atrelado
às condições de produção as quais não se
A Análise do Discurso (AD) surge
restringem ao contexto da enunciação. Elas
como teoria interdisciplinar que estuda a língua
envolvem principalmente os sujeitos e a
em estreita ligação com a história, uma vez que
situação social; aspectos históricos, sociais e
o sentido se constitui na relação com o que está
ideológicos que envolvem o discurso, ou que
fora do interior linguístico, não para isolá-lo,
possibilitam a produção do discurso
mas para dialogar com o que foi dito antes,
(FERNANDES 2005) e interferem na
considerado como interdiscurso e com o que
construção dos efeitos de sentido nos processos
está sendo dito no intradiscurso. Dessa forma,
discursivos.
interessa para a AD, perceber o discurso como
objeto de estudo, pois ele está na ordem da Por isso, é possível entender que o
língua em funcionamento, no percurso dos sentido é móvel. Nas palavras de Pêcheux
sentidos que são produzidos em diferentes (2006, p. 53):
lugares sociais e se refletem historicamente,
perpetuando-se, deslocando-se, camuflando-se Todo enunciado é intrinsecamente
e jogando com os sujeitos que pensam serem os suscetível de tornar-se outro, diferente de si
donos do seu dizer. É nessa rede de sentidos

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695
mesmo, se deslocar discursivamente de seu
sentido para derivar para um outro. Tais relações de poder são analisadas
por Foucault como mecanismos de estratégias
Nessa ótica, é pertinente discutir a
de controle individual ou da população, agindo
efervescência desses sentidos nos caminhos da
como dispositivos que enfatizam os
história e do discurso, sem esquecer que há
deslocamentos apresentados no governo que
uma imensa produção discursiva ligada às
incide da morte para a vida. Isto é, do regime
relações de poder-saber que produzem
de governo da soberania, o qual era marcado
subjetividades para o sujeito.
pelo controle do corpo no que se refere ao
2. As relações de poder no discurso domínio do soberano de garantir o direito de
É importante destacar o discurso como morte, tendo os castigos como um espetáculo
uma instância de produção de sentidos, mas de suplícios para os corpos que não estavam na
também indagar como ele se configura como ordem, até o regime de governo caracterizado
um espaço de lutas. Recorremos a Foucault pelo poder disciplinar, que inicia o poder sobre
(1999), para entender que o discurso não é só a vida, há uma gestão de controle do corpo que
aquilo que traduz as lutas, mas é, ultrapassa os efeitos de um poder local.
principalmente, aquilo por que e pelo que se Desse modo, é preciso discutir essa
luta, o poder que se quer apoderar. Assim, é gestão de poder que promove o direito de vida,
que se observam as batalhas discursivas que já que diante disso, nota-se outras formas de
envolvem as relações de poder na história. estratégias de dominação do corpo. Os
Sendo assim, não se pode deixar de mecanismos de poder se voltaram não mais
contemplar as relações de poder que se para o castigo através da morte, mas para um
espalham na sociedade e são percebidas “poder destinado a produzir forças, a fazê-las
também nos discursos.Esses agem como crescer e a ordená-las mais do que a barrá-las,
promotores e controladores de saberes que dobrá-las ou destruí-las”. (FOUCAULT,
permitem interferir na forma de ver e dizer 2010a, p. 148,).
determinados objetos, fazendo com que se Esse regime de poder estava centrado
questione: “em uma sociedade como a nossa, no gerenciamento da vida, um exercício de
que tipo de poder é capaz de produzir discursos valorização positiva que marca sua gestão,
de verdade dotados de efeitos tão poderosos?” multiplicação e desenvolvimento da vida, da
(FOUCAULT, 2009, p. 179). raça, da população. É preciso manter o corpo
Essa resposta é conseguida quando se vivo, sadio, adestrado para as atividades
verifica que em toda sociedade a produção do exigidas na sociedade. A mudança para uma
discurso é selecionada, controlada, organizada tecnologia do poder sobre a vida desenvolveu-
e redistribuída por procedimentos que tentam se a partir do século XVII sob duas
esconder seus poderes e perigos. configurações: o poder disciplinar e o biopoder,
(FOUCAULT, 1999). Dessa forma, percebe-se ambas com um ideal de corpo que atendesse às
que os discursos são ferramentas usadas para a necessidades da sociedade capitalista. O
manipulação e fabricação de efeitos de verdade primeiro desses regimes vê o corpo como
que legitimam um dizer na produção de um máquina (adestramento, aptidões, forças, etc.)
saber, desencadeantes de relações de poder. centrado no poder das disciplinas anátomo-
política do corpo humano que configura o

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poder disciplinar; o segundo, baseado no uma série de aparelhos específicos de governo
corpo-espécie, no corpo transpassado pela e de um conjunto de saberes (FOUCAULT,
mecânica do ser vivo e como suporte dos 2009). Essa questão da governamentalidade é
processos biológicos (o nascimento e a aplicada ao Estado como responsável pelas
mortalidade, o nível de saúde, a longevidade, formas de poder disciplinar, mas também
etc.) é perpassado por uma biopolítica da podem ser sentidas em instituições como
população (FOUCAULT, 2010a). Interessa família, escola, igreja, etc. Fato que evidencia o
normalizar a coletividade, gerir a vida do corpo poder atrelado à produção de saberes e
social, através de políticas promotoras e espalhado por diversos lugares, constituindo os
controladoras do que se julga o bem-estar da micropoderes e também as diferentes formas de
população. resistência.
É possível, assim, falar que essas Essa noção de poder visa a um controle
mutações na tecnologia do poder são guiadas do corpo da população incluindo as minorias
pela concepção de governo, a qual se refere a sociais, que por muito tempo foram vítimas de
“gerir os Estados e o funcionamento da regimes de poder autoritário, sendo legadas à
política, gerir a conduta das pessoas – naquilo margem da história. Dentre esses grupos, o das
que elas faziam em termos de trabalho, lazer, pessoas com deficiência passou por uma gestão
saúde, higiene, etc.” (VEIGA-NETO, 2008, p. governamental que resgata uma valorização de
25). Dessa forma, a noção de respeito às diferenças, fazendo surgir uma rede
governamentalidade é produtiva e pode ser discursiva que opera com o sentido de que “ser
entendida como: diferente é normal”. Além disso, cria-se uma
série de mecanismos de governamentalidade,
o conjunto constituído pelas instituições, dos quais a lei de cotas, que abre espaço para
procedimentos, análises e reflexões, empresas contratarem sujeitos com deficiência.
cálculos e táticas que permitem exercer esta Essa lei aparece como uma estratégia de poder
forma bastante específica e complexa de
que controla os sujeitos em diferentes
poder, que tem por alvo a população, por
forma principal de saber a economia contextos, servindo de alicerce para as ações de
política e por instrumentos técnicas inclusão social, sem esquecer que tais ações
essenciais os dispositivos de segurança são discursivizadas em diferentes
(FOUCAULT, 2009, p. 291). materialidades.
A governamentalidade pressupõe ações Essas redes discursivas são produzidas
que irão conduzir o outro, guiar, controlar, ditar e circulam socialmente, construindo diferentes
normas, etc; como forma de garantir a ação de efeitos sobre o sujeito e a deficiência, como se
governar. É desenvolvida por relações de poder pode notar na análise do enunciado a seguir.
e dominação, vinculadas a estratégias que agem 3. Corpo e felicidade: caminhos que se
no controle e seleção das ações que são cruzam
consideradas importantes para a valorização da
vida, como campanhas, leis, etc. Realizamos uma análise do enunciado
discursivo que circulou na edição 55, publicada
As relações de poder centradas na vida em 2009, da Revista Sentidos. Nesse
aparecem como uma tendência produzida no enunciado, o discurso produzido possibilita um
Ocidente do governo sobre o outro que levou a gesto de interpretação de como o sujeito com

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deficiência é discursivizado em sua relação início do século XX que colocou a assistência
com o trabalho.A produção discursiva mostra aossujeitos com deficiência como uma
um caso de inclusão no mercado de trabalho de prioridade, tendo em vista que naqueles
um sujeito com Síndrome de Down. discursos predominavam a ideia de que não
podiam prover seu sustento pela sua força de
A matéria de capa favorece a um
trabalho. Além disso, responde também ao
enunciado que aponta as visibilidades e
saber médico que determinava a incapacidade
dizibilidades para esse sujeito, sendo possível
intelectual para esses sujeitos com Síndrome de
observar as singularidades e regularidades
Down.
nesse discurso.
Figura 1 Capa da edição 55-2009 Com os deslocamentos de sentidos do
ser deficiente para o ser diferente, é que o
enunciado,Sim, eu trabalho!pode marcar seu
aparecimento no discurso da inclusão. Assim,
responde à pergunta foucaultiana por que esse
enunciado e não outro em seu lugar? Sua
emergência se deu, pelas condições históricas e
das regras de formação que oportunizaram
afirmar que o sujeito com Síndrome de Down
pode trabalhar e realizar determinadas funções,
silenciando uma memória de dependência e
incapacidade intelectual, a qual remete ao
período de exclusão e aprisionamento.
Nesse enunciado, a cor amarela e o
Fonte: www.revistasentidos.uol.com.br tamanho das letras chamam a atenção do
sujeito leitor para esses deslocamentos e pede a
O enunciado verbal marca uma
atenção para se compreender o lugar do sujeito
manobra do poder que investe sobre o sujeito
com Síndrome de Down assumindo uma
com deficiência, colocando em evidência uma
função no mercado de trabalho. Também a
técnica de normalização tão presente no século
fotografia que compõe a imagem de capa
XXI. Ao afirmar: Sim, eu trabalho! Há uma
sinaliza para a construção do sentido. No
mescla de vozes que falam em nome desse
enunciado imagético, a deficiência está
sujeito, possibilitando a governamentalidade
marcada nos traços físicos do rosto, entretanto
sobre seu corpo e o resgate da memória.
a ênfase está no sorriso como indício de que a
Buscando no intradiscurso, elementos jovem está feliz por ter uma ocupação. Há um
do interdiscurso que aparecem ressignificados, contraste percebido pelo traço indiciário dos
é possível dizer que esse enunciado responde a braços cruzados, que sinalizam para um
uma voz que ressoa pela história através da acomodar-se na função que ocupa, atrás de um
memória discursiva que remete a sentidos balcão, como que reforçando o esconder da
sobre a deficiência em diferentes épocas. deficiência e de algumas limitações por ela
Existe, portanto, uma voz de resposta ao impostas. Esse fato reforça uma memória de
interdiscurso religioso e social do século XIX e exclusão para esses sujeitos, o que destaca que

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nem tudo pode ser dito em todos os momentos, imagem da capa, funcionando como legenda e
já que o sentido aqui é produzido para destacar reforço ao enunciado: Sim, eu trabalho!Ele
o lugar desse sujeito com deficiência no apresenta a palavra genérica pessoas,
mercado de trabalho. destacando que outros sujeitos com deficiência
também podem ocupar um lugar no mercado de
Assim, é do sujeito representado na
trabalho e serem felizes por executar uma
imagem de capa, o qual pode ser ocupado por
função. Assim, esse efeito de felicidade está
qualquer indivíduo com Síndrome de Down
presente simplesmente pelo fato de esse sujeito
que está incluído no mercado de trabalho, a voz
está incluído no mercado de trabalho, em
que diz: Sim, eu trabalho!O intradiscurso
detrimento de qual ocupação profissional
construído em primeira pessoa - eu - remete a
realizem.
um efeito de verdade de que é o próprio sujeito
que dá seu grito de independência por estar Destarte, vêm questões que retomam
trabalhando, como também responde a tantas um contra discurso no interior do discurso da
outras vozes que diziam: Não, você não pode revista. Qual é o sentido de trabalho que é
trabalhar. Elas ressoam das práticas históricas posto para esse sujeito? Como o enunciado está
de exclusão e segregação, nas quais a imerso em uma rede, ligado a outros
incapacidade e a anormalidade eram as enunciados para construir o sentido? Como
características principais do sujeito com resposta podemos afirmar que a produçãodo
deficiência. Com o enunciado marcado sentido na capa da revista tem relação com a
linguisticamente pelo pronome pessoal eu, o matéria presente no interior da revista e com o
efeito de sentido construído alia a estratégia de que é dito em outras edições, fazendo entrever
poder-saber a uma vontade de verdade, pois a as diferentes relações sobre a deficiência nesse
voz do sujeito marca o seu lugar no mercado de discurso. Por isso, é pertinente discutir os
trabalho, induzindo a uma possibilidade de que enunciados que compõem a matéria, como
a estratégia de inclusão está dando certo, forma de mostrar os sentidos sobre o trabalho e
favorece a técnicas de controle do risco social e a deficiência que ajudam na construção
da produtividade do corpo, por meio da discursiva do sujeito com Síndrome de Down.
normalização. Assim: A matéria é iniciada pela retomada da
a norma não tem por função excluir, voz do sujeito discursivo que ressalta o
rejeitar. Ao contrário, ela está sempre enunciado - Eu trabalho, em letras vermelhas
ligada a uma técnica positiva de que alertam para o chamamento da realidade
intervenção e de transformação, a uma vivida por sujeitos com Síndrome de Down.
espécie de poder normativo. (FOUCAULT, Essa cor faz parte das cores primárias, é intensa
2010b, p. 62). e forte, por isso provoca sensações. Ela é muito
usada como recurso gráfico da revista, sempre
O discurso em foco cria um efeito de buscando causar impactos para o que está
sentido de superação e felicidade, tanto pela sendo dito. Logo abaixo há outro enunciado:
ênfase no sorriso do sujeito, quanto pela para pessoas com Síndrome de Down,
retomada do enunciado verbal que compõe a trabalhar vai além de ter um salário, é ter
capa da revista: Pessoas com Síndrome de dignidade. (SENTIDOS, 2009).
Down, felizes por executarem uma função. O
intradiscurso, nesse enunciado dialoga com a

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“dignidade”, “orgulho”, “felicidade”,
O efeito de sentido provocado pelo “aceitação” e “superação”, pois enfatizam a
enunciado mostra a estratégia discursiva inserção no mundo do trabalho conseguida com
utilizada, pois o trabalho é sinônimo de o apoio da luta pela inclusão através da Lei de
dignidade, ou seja, é digno aquele que trabalha, Cotas, considerada como uma estratégia de
que está dentro dos padrões de normalidade governamentalidade, por ser um dispositivo de
defendidos pela sociedade. Isso faz ecoar o poder que age por meio da obrigatoriedade de
sentido por meio da retomada ao interdiscurso empresas públicas ou privadas oferecerem
de que “o trabalho dignifica o homem”, vagas de emprego para pessoas com
difundido através de várias práticas discursivas. deficiência.
Entretanto, é interessante retomar o que afirma
Foucault (2006, p. 259): Além disso, outro mecanismo de poder
que atua como estratégia de controle do corpo
se o homem trabalha, se o corpo humano é são instituições especializadas, as quais atuam
uma força produtiva, é porque o homem é como coadjuvante dessa colocação dos sujeitos
obrigado a trabalhar. E ele é obrigado no mercado de trabalho. Desse modo, a
porque é investido por forças políticas, instituição é um mecanismo de poder que atua
porque ele é capturado nos mecanismos de como ponte entre o empregado e o empregador,
poder.
garantindo o disciplinamento do corpo com
É isso que percebemos no discurso da deficiência e sua docilização para o trabalho.
revista: o trabalho é a estratégia de Nesta matéria a instituição que acompanha os
investimento do poder sobre o sujeito com sujeitos é discursivizada no enunciado da
deficiência. Dessa maneira, o labor é que revista Sentidos:
separa os sujeitos em produtivos e para inserir no mercado de trabalho pessoas
improdutivos, guiados por ferramentas de com síndrome de Down, existe uma
poder e saber que legitimam as práticas preparação, tanto da família, quanto da
discursivas. Assim, os casos de sujeitos própria pessoa, e da empresa que irá
discursivos que aparecem no interior da recebê-la. E foi com esse objetivo que a
matéria em pauta, destacam o sentido do Associação para o Desenvolvimento
trabalho para esses sujeitos com deficiência: o Integral do Down (ADID) foi criada há 20
orgulho de trabalhar e de ter carteira de anos. (SENTIDOS, 2009).
trabalho assinada.Essa produção de sentidos,
faz perceber, segundo Foucault (2007, p. 28- Essa instituição é responsável por
30), que “é preciso estar pronto para acolher orientar as empresas, sensibilizar os
cada momento do discurso em sua irrupção de funcionários e preparar o sujeito com
acontecimentos [...] buscar o projeto de uma deficiência para entrar no mercado de trabalho,
descrição dos acontecimentos discursivos como com assistência contínua. Age promovendo a
horizonte para a busca das unidades que aí se governamentalidade do sujeito, minimizando,
formam”. assim, a função do Estado no governo do outro.
Dessa forma, organiza táticas para disciplinar o
Nessa busca das unidades, percebemos corpo e promover sua normalização,
que o fio condutor do discurso será o efeito de constituindo-se em um micropoder que atua
sentido construído através das palavras

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700
usando diversas estratégias, dentre elas a normalidade numa sociedade segregada.
normalização desses sujeitos. Assim, o sujeito com deficiência ocupa uma
cena discursiva que favorece a um poder de
O poder disciplinar é o mecanismo de
normalização que coaduna outros
construção do sujeito que atende a uma
micropoderes, percebidos nas práticas
sociedade marcada pela necessidade de
discursivas que envolvem os sujeitos com a
normalização. Ele atua como força que se
história e criam vontades de verdade ligadas a
coaduna na fabricação da liberdade e
ideia de corpo feliz e produtivo.
independência do corpo com deficiência que
consegue realizar determinadas ações. Com
isso, promove a ilusão desse sujeito de realizar
Referências
por si atividades que antes não era possível
pela carga de dependência sofrida FERNANDES, C. A. Análise do Discurso:
historicamente. reflexões introdutórias.Goiânia: Trilhas
Urbanas, 2005.
Sendo assim, há uma retomada da
memória discursiva que desloca esse sujeito FOUCAULT, M. A ordem do discurso.São
com Down de um espaço de abandono e Paulo: Loyola, 1999.
reclusão, para uma inserção do seu corpo no ______. Diálogos sobre o poder. In: Ditos e
espaço de produção e acumulação do trabalho. Escritos IV. Rio de Janeiro: Forense
O efeito de sentido produzido aponta para a Universitária, 2006.
realização profissional ligada à felicidade de
estar incluído e poder realizar uma função. ______. A arqueologia do saber. 7. ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2007.
4. Considerações finais
______. Microfísica do Poder. 27 ed. São
O fio discursivo que perpassa o Paulo: Edições Graal, 2009.
discurso da RevistaSentidos aponta para uma
segregação no interior da deficiência, pois os ______. História da sexualidade I: a vontade
sujeitos discursivizado na matéria não são do saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2010a.
incluídos pelo seu esforço próprio, mas pelas ______. Os anormais. São Paulo: Martins
estratégias de governamentalidade e Fontes, 2010b.
disciplinamento do poder em diferentes
escalas. Há assim, um retorno a eventos do GREGOLIN, M.R. Análise do Discurso: os
passado, na resposta dada a voz de sentidos e suas movências. In: ______.
incapacidade que pairava no campo social CRUVINEL, M. F.; KHALIL, M. G. (Org.).
ligada ao sujeito com deficiência, porém, nesse Análise do Discurso: entornos do sentido.
retorno, o que é dito produz um reforço de Araraquara: Cultura Acadêmica, 2001.
continuidade, uma vez que é pela ação PÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou
disciplinar das instituições que essa inclusão acontecimento. Campinas: Pontes, 2006.
acontece.
REVISTA SENTIDOS. Editora Escala.Ano
O efeito de sentido de felicidade liga o VIII, EdiçãoNº 55, 2009.
corpo ao fazer, sentir e viver sua deficiência
VEIGA-NETO, A. Dominação, violência,
como um efeito de pertencimento e
poder e educação escolar em tempos de

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701
império. In: RAGO, Margareth e VEIGA-
NETO, ALFREDO (org). Figuras de Foucault.
Belo Horizonte: Autêntica, 2008.

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702
A PEDAGOGIA DO SORRISO NA CENA MIDIÁTICA: UMA
ANÁLISE DO DISCURSO DA INCLUSÃO SOCIAL DO SUJEITO
COM DEFICIÊNCIA

Maria Eliza Freitas do NASCIMENTO


Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN)
elizamfn@hotmail.com

Resumo:A mídia contemporânea abre espaço para a produção de diferentes discursos.


Dessa forma,vamos analisaros enunciados midiáticos que discursivizam o sujeito mulher
com deficiência, observandoas redes de memória e a relação poder-saber. Seguimos a
trilha teórica da Análise do Discurso, buscando as vontades de verdade e os efeitos de
sentido que se instauram nos enunciados midiáticos. Para tanto, usamos como objeto de
análise o discurso da RevistaSentidos. Enfocaremos enunciados de capa, como forma de
perceber a visibilidade para o sujeito, marcada pela regularidade no discurso através do
sorriso no rosto que garante um efeito de felicidade, além dos braços que sinalizam uma
liberdade controlada. Esses traços possibilitam pelo viés da Semiologia Histórica,
compreender as manobras de controle e seleção dos discursos.
Palavras-chave: sujeito; deficiência; discurso; sentido.

Introdução Sendo assim, é pertinente fazer uma


análise do discurso da revista, como forma de
A produção dos discursos na sociedade
mostrar a construção dos efeitos de sentidos no
midiática oportuniza discutir diferentes
que se refere à produção discursiva do sujeito
materialidades, criadas para atender a um
mulher com deficiência. Iremos destacar a
público diverso que se identifica com o produto
construção discursivadesse sujeito, com
de consumo, seja ele físico ou simbólico. Nesse
destaque para o efeito de felicidade que
meio, surge a RevistaSentidos especializada em
perpassa o fio discursivo, observando uma
discutir assuntos relacionados as mais diversas
história do corpo que rompe com uma memória
deficiências, no tocante à inclusão social desses
do passado, ao propor outras visibilidades para
sujeitos. É uma publicação bimestral da Editora
o sujeito com deficiência.
Escala e aparece no meio midiático como um
espaço de discussão por meio de um discurso Para a realização desta análise, nos
de autoajuda ao enfocar casos de sucessos de baseamos os pressupostos teóricos-
sujeitos com deficiência nas mais diversas metodológicos da Análise do Discurso de
esferas sociais. vertente francesa, usando os autores Michel

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703
Pêcheux e Michel Foucault para mostrar como (doravante AD), especificamente a de vertente
os discursos são produzidos por meio de francesa, trilhou muitos caminhos nas
determinado controle e seleção do que pode ser investigações de diferentes objetos de estudos.
dito, de modo a responder à pergunta
Inicialmente os trabalhos em AD
foucaultiana “por que apareceu esse enunciado apresentavam uma nova forma de tratar
e não outro em seu lugar”? (FOUCAULT, questões relacionadas à língua, ao sujeito e à
2007). Essa resposta depende das regras História, surgindo como uma teoria
históricas de formação e transformação dos interdisciplinar, articulando a Linguística, o
enunciados, da escavação arqueogenealógica Marxismo e a Psicanálise.A partir do seu
que se possa realizar durante o percurso
surgimento, didaticamente apontado em 1969,
analítico. quando Michel Pêcheux publica a obra Análise
Sendo nosso objeto de investigação o Automática do Discurso, a teoria teve como
discurso da Revista Sentidos, vamos nos base construir um modelo de leitura. Segundo
debruçar nos enunciados discursivos das capas Courtine (2008, p. 12):
da edição 59, publicada no ano de 2010 e a
edição 73 do ano de 2013. Vamos discutir A análise do discurso na França estabeleceu
como nos discursos é possível perceber as como seu objetivo, convocando para tanto a
estratégias das relações de poder ao criar uma Linguística e a História, produzir leituras
‘objetivas’ da ideologia na materialidade
tecnologia política do corpo com deficiência,
dos discursos. A História garantia a
por meio de deslocamentos históricos, que constituição de seus corpora e a Linguística
colocam esse corpo como efeito de um poder legitimava as manipulações efetuadas sobre
normalizador. Assim, é possível perceber um os enunciados. Essa reunião de dispositivos
efeito de memória sobre o corpo que parte do científicos tinha, além disso, uma
lugar de segregação e anormalidade, para perspectiva crítica concebida sob os
colocá-lo no espaço de visibilidade de corpo auspícios do marxismo.
feliz e produtivo, inserido numa nova ordem do
discurso. Com a crise no interior desse modelo
predominantemente marxista, a AD integra
As discussões sob o viés da Análise do outras perspectivas teóricas, buscando entender
Discurso avançam para as questões da o discurso como estrutura, mas também como
Semiologia Histórica, as quais favorecem a se acontecimento, perpassado por uma memória
pensar a produção discursiva do sujeito mulher discursiva e pela influência de discursos que
por meio dos traços indiciários que ajudam na vem de outros lugares, na rede interdiscursiva.
construção do sentido no discurso midiático da
Revista Sentidos. Desse modo, os trabalhos em AD
buscaram parcerias com outras fontes teóricas,
1. Breve percurso da Análise do Discurso das quais o diálogo com Michel Foucault
Tomando por base a gênese do projeto aparece como profícuo. A entrada de Foucault
de Michel Pêcheux que nasceu das discussões na AD acontece,segundo Gregolin (2004),
produzidas por um grupo constituído por através do trabalho realizado porJean-Jacques
pensadores de diferentes formações, nomeado Courtine sobre a história das práticas
por Maldidier (2003) de “uma aventura a várias comunistas através da análise da
vozes”, as pesquisas em Análise do Discurso heterogeneidade constitutiva de sua

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704
discursividade, realizado sob o enfoque do sujeito se constitui ligado às tecnologias de
conceito de formação discursiva para a análise poder e saber, atravessados pelos eixos do ser-
do interdiscurso e das heterogeneidades. O saber, ser-poder e ser-si, compreendendo o
autor faz a releitura de A arqueologia do saber discurso como prática discursiva.
e propõe que se vejam as formações discursivas Além disso, outro percurso teórico que
como fronteiras que se deslocam. Desenvolve tem sido relevante é a contribuição da
também o conceito de memória discursiva que Semiologia Histórica,que aponta caminhos para
será fundamental para as análises dos a leitura de imagens, por meio dos traços
enunciados, nesses rumos seguidos pela teoria. indiciários que fornecem pistas para a
Desde então, as movências continuam construção dos sentidos nos diferentes
sendo percebidas nos diferentes caminhos que enunciados.
serão trilhados pelos analistas do discurso. Os É lançando mão dessas ferramentas
objetivos de cada pesquisa e o olhar teóricas que vamos nos debruçar sobre a
direcionado para o objeto marcam a interface leitura discursiva dos enunciados da Revista
do campo teórico que se espalha de forma Sentidos, observando como o corpo com
interdisciplinar. O diálogo com a Nova História
deficiência é construído nessa materialidade,
também foi promissor para a entrada dos com destaque para o sujeito mulher
discursos do cotidiano, promovendo a discursivizado nas capas da revista em
heterogeneidade no corpus de análise, movida diferentes edições. Vamos trazer ainda,
também pela separação entre ciência e política. questões de ordem teóricas, as quais possam
Nesse cenário, percebe-se de acordo aclarar a discussão em torno do enunciado.
com Foucault (2007), que as relações
2. A pedagogia do sorriso: efeito de
discursivas estão, de alguma maneira, no limite
visibilidade e relações poder-saber
do discurso: oferecem-lhe objetos de que ele
pode falar, determinam o feixe de relações que Sendo o discurso uma instância de
o discurso deve efetuar para falar de tais ou poder e um instrumento de luta, é possível
quais objetos, para poder abordá-los, nomeá- perceber como a mídia, enquanto instituição
los, analisá-los, classificá-los, explicá-los, etc. que promove e faz circular diferentes discursos
do cotidiano, coloca na ordem do que vai ser
Por meio das práticas discursivas, é dito diferentes objetos discursivos. Isso decorre
possível fazer uma leitura dos discursos do do espaço de interlocução e transmissão no
cotidiano, buscando discutir como as relações acesso à informação que a mídia assume na
de poder-saber, as vontades de verdade e os sociedade contemporânea. Através dela,
modos de subjetivação auxiliam na vontades de verdade são propagadas,
compreensão de como os sujeitos são influenciando formas de ver e dizer os
construídos nas diferentes esferas de produção acontecimentos.
e circulação dos discursos. Assim, as pesquisas
avançam não somente pelo caminho da fase O discurso ecoa a visibilidade que
arqueológica, mas também da genealogia do emana no dispositivo midiático, uma vez que
poder e da estética de si, resultado do diálogo pretende convencer e influenciar pelas
com Michel Foucault, cujos trabalhos se verdadesque faz circular. O discurso sofre as
pautam na proposta de compreender como o pressões do que pode ser dito, já que há uma

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705
ordem de controle e seleção que determina as Por meio do acontecimento da inclusão
dizibilidades e visibilidades para os diferentes novas práticas sociais são implantadas,
objetos discursivos. Isso produz um efeito de pressionadas pelas relações de poder-saber que
produção e circulação do discurso que coloca a legitimam a deficiência. Isso faz gerar as
visibilidade em cena. Segundo Gomes (2003, práticas discursivas que dão visibilidade ao
p. 75), “trazer à visibilidade é, simplesmente, acontecimento da inclusão e favorece a
mostrar o mundo do ponto em que ele deve ser estratégias de poder disciplinar e
visto e esse ponto, por si mesmo, já é governamentalidade. Neste caso, interessa
disciplinar: a educação da visão pela pensar o lugar da mídia como produção
determinação do visível”. Tal característica discursiva, que sedimenta a história do corpo
condiciona o olhar através das lentes que se com deficiência contada sob o olhar de um
propõe ao disciplinamento, fazendo erguer o suporte que produz os dizeres a partir da
controle sobre o dito, a partir do jogo visibilidade para a construção de certos
enunciativo. sentidos e não outros.
Nesse jogo midiático, o lugar do sujeito Destacamos então as práticas
com deficiência encontra espaço, tendo em discursivas da RevistaSentidos, uma produção
vista estar numa instância de poder que ressoa midiática destinada a discutir a inclusão da
de outros discursos. Dentre eles, o da inclusão pessoa com deficiência. Os enunciados
social do sujeito com deficiência que entra na produzidos nesse discurso expõem a inclusão
era das discursividades através dos discursos como uma estratégia perfeita do poder,
jurídico, pedagógico, midiático e outros que espelhando casos de sujeitos cujos corpos são
trazem à tona a visibilidade para esse sujeito, produtivos e economicamente ativos. Isso
pressionado por diferentes acontecimentos. aponta para uma vontade de verdade e uma
visibilidade para o sujeito mulher que ganha
A estratégia de inclusão social aparece
um notório disciplinamento e higienização do
ligada aos deslocamentos ocorridos desde as
corpo, se resgatada a memória de segregação e
duas grandes Guerras Mundiais, com a
abandono sofridas historicamente. Vejamos,
proposta de reabilitação - modelo médico até
assim, os enunciados da revista, observando as
chegar ao modelo social da deficiência -
relações de poder-saber e a construção do
alicerçado no saber que determina os direitos
das minorias. Assim, o poder público passou a sentido por meio da contribuição da
Semiologia Histórica, a qual segundo Courtine,
governar a deficiência promovendo
(apud Sargentini2011, p. 116),
deslocamentos em seu interior que gerou um
outro olhar sobre o sujeito e a própria é indicada como uma abordagem que leva
deficiência. Desse modo: em conta as contribuições de Foucault, da
história cultural, da antropologia histórica e
A inclusão social é o processo pelo qual a da semiologia para oferecer-nos uma
sociedade se adapta para incluir, em seus perspectiva de análise que se articula às
sistemas sociais gerais, pessoas com reflexões dos estudos do discurso.
necessidades especiais e, simultaneamente,
estas se preparam para assumir seus papéis Sendo assim, podemos fazer uma
na sociedade. (SASSAKI, 2002, p. 41).
leitura das imagens abaixo, observando como a
rede discursiva é construída e que traços

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706
indiciários são mais evidentes. Esses nos padrões sociais era considerado anormal e
enunciados ajudam a contar a história do monstruoso.
cotidiano desses sujeitos e como o discurso Esse fato se dava devido a concepção
está ligado aos procedimentos de controle e
de deficiência, ligada à invalidez e
seleção dos dizeres. incapacidade, fazendo perceberque sempre
Figura 1 Capa da edição 59-2010 houve um controle sobre o corpo anormal (com
desvios físicos ou psíquicos) de forma a
promover a exclusão. “Eram de fato práticas de
exclusão, práticas de rejeição, práticas de
‘marginalização’, como diríamos hoje”
(FOUCAULT, 2002, p. 54), que visavam a um
poder de normalização promovido pelo saber
médico-jurídico, através da prática do exame.
O anormal era considerado um monstro, sendo
compreendido como uma noção jurídica, já que
o monstro é definido pelo fato de que ele viola
as leis da sociedade e as leis da natureza
(FOUCAULT2002).
Fonte: www.revistasentidos.uol.com.br
Essa desconstrução com o ser anormal e
monstruoso vem da ruptura da história, no que
Figura 2 Capa da edição 73-2013 se refere aos deslocamentos nas relações de
poder e saber, as quais legitimam novas
práticas sociais. Nesse foco, a gestão da
deficiência passa a ser pautada nos dispositivos
de poder que enfocam um olhar diferenciado
para esses sujeitos.
A partir da emergência do discurso da
inclusão social do sujeito com deficiência,
houve um enfoque sobre as formas de governo,
as quais pressionaram a face da inclusão. Foi
sob o prisma da ruptura nas relações de poder
que promove a passagem de um poder centrado
na morte para outro que visa à vida, ou seja, da
Fonte: www.revistasentidos.uol.com.br soberania para um biopoder, que essa face da
É importante destacar que esses inclusão promoveu o disciplinamento do corpo
enunciados de capa produzem um discurso que e a gestão da população com deficiência.
promove visibilidades para o sujeito com Dessa forma existe um efeito do poder
deficiência. Se buscarmos o resgate da disciplinar que incide sobre o sujeito
memória discursiva, é possível perceber uma promovendo estratégias sobre o corpo que o
ruptura com sentidos construídos em outros higieniza, dociliza e adestra para a vida em
lugares históricos, pois o corpo que não estava sociedade. Não se pode negar que o poder

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707
sobre a vida provoca novas dizibilidades, as membro. O véu e as vestimentas indicam que é
quais são produzidas e reproduzidas nos a dança do ventre, considerada como a mais
enunciados de capa da RevistaSentidos, feminina e sensual dentre as danças, o corpo
fica em evidência como elemento de expressão,
Por meio desses efeitos do poder, o
comunicação e sensualidade. Neste caso, o
discurso da revista embarca numa construção
braço para o alto, faz um gesto da dança,
de efeitos de sentidos ligados à superação
ratifica a regularidade dos movimentos de
evitória para corroborar a alegria e autoestima
ondulação exigidos; no outro há a marcação da
desses sujeitos que por muito tempo foram
deficiência, pela ausência do membro como
segregados na sociedade.
forma de legitimar uma identificação corporal,
Ao realizarmos a leitura discursiva da de marcar o lugar da diferença, inclusive pelo
figura 1, observamos como o sentido é apagamento dos membros inferiores, que não
construído pelos traços indiciários, que por aparecem por não ser nele que está o sinal da
meio da Semiologia Histórica, permite superação. O jogo de cores e o efeito de
identificar índices corporais e exteriores, que sombra causado pelo véu compõe o conjunto
podem ser formas, marcas, traços, linhas e dos traços indiciários que constroem o sentido,
signos, os quais possibilitam destacar a ratificado pelo enunciado verbal: “a vitória dos
visibilidade para o sujeito mulher com amputados: um show de alegria e autoestima”.
deficiência. (SENTIDOS, 2010).
Observamos que nessa figura 1, a Desse modo, silencia uma memória
evidência recai sobre o braço como marca da discursiva ligada à incapacidade e à invalidez,
superação e da marcação da deficiência e o pois o sujeito mulher com deficiência conquista
sorriso no rosto, que garante o efeito de a possibilidade de realizar ações relacionadas
felicidade. Há uma promoção da visibilidade ao padrão de normalidade ao discursivizar um
pela arte como elemento de superação. A dança sujeito alegre e produtivo, promovendo, assim,
do ventre indica o lugar de liberdade e de uma reatualização de memória pelo espetáculo
possibilidade de realizar movimentos do corpo via dança do ventre. Há, assim, a
singulares. ativação de uma memória do presente,
No enunciado verbal, há uma expressão favorecendo ao aparecimento de uma “nova
que indica a espetacularização do corpo, “um série que não estava constituída enquanto tal e
show”, mas não o da dança, sim o da que é assim o produto do acontecimento, que
superação, que promove a autoestima e a desloca e desregula os implícitos associados ao
alegria da mulher com deficiência, a qual tem o sistema anterior”. (PÊCHEUX, 2007, p. 52).
corpo discursivizado como efeito de Esse efeito de visibilidade e resgate de
normalidade. A estratégia de visibilidade está memória é percebido também na figura 2, ao
no braço, ele marca a dança como um elemento discursivizar o sujeito mulher também ligada
rítmico que requer habilidade e agilidade de ao efeito de sentido de superação e felicidade.
mãos em diversos movimentos. Ao enfocar o ângulo da foto no corpo como
Com isso, o gesto do braço provoca um destaque na imagem, o discurso constrói uma
efeito de sensualidade mesmo diante da vontade de verdade que conduz a uma
marcação da diferença pela ausência do outro evidência de que os traços indiciários que

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708
ajudam na construção do sentido, estão nos memória discursiva aponta para um saber
braços, pernas e sorriso como um encontro do compartilhado de que toda pessoa feliz é
sujeito consigo mesmo. também sorridente, fato que mostra que “a
existência histórica de um gesto é retratada e
Vale destacar que o corpo em destaque
reconhecida ao longo dos tempos”.
corrobora um sujeito que não está nos padrões
(MILANEZ, 2011, p. 199).
sociais de normalidade. Com ênfase na
aparência física, ressaltada pelos os braços e Sendo assim, a pedagogia do sorriso
pernas curtos, devido ao nanismo, que ratifica como esse sujeito mulher é
caracteriza uma estatura inferior ao da média discursivizado, resgatando toda a historicidade
da população. Entretanto, a aparência física, sobre a pessoa com deficiência, ao evidenciar
marca o lugar da diferença, mas não aparece no outro enunciado verbal: a experiência de
como uma barreira na vida do sujeito. quem superou o preconceito e a insegurança
para seguir a carreira de modelo.
O fio discursivo é construído em torno
(SENTIDOS, 2013).
do enunciado verbal:Autoestima em alta
(SENTIDOS, 2013) criando um efeito de Percebe-se que no intradiscurso há um
sentido de supervalorização da imagem do retorno a eventos passados, por meio das
sujeito em detrimento da deficiência. Ao palavrassuperou e preconceito, revelando que
destacar a visibilidade para a autoestima, o houve uma luta histórica para assegurar a esse
discurso promove uma ruptura com a memória sujeito essa elevação na autoestima que
de incapacidade, tendo em vista que o sujeito possibilitou conseguir um lugar no mercado de
mulher ocupa uma posição no mercado de trabalho, na profissão de modelo. Sendo este
trabalho, graças a essa autoestima elevada, um campo de atuação que requer um padrão de
favorecendo assim, ao apagamento da corpo dentro de uma norma específica, fica
diferença do corpo. notória a posição de certas estratégias de poder
para promover essa inclusão. Assim, o sujeito
A estratégia discursiva na imagem
discursivo sofre os efeitos do poder de
aponta para o close dado na fotografia de um
normalização, através de várias técnicas de
sujeito real, produzindo assim uma vontade de
construção do corpo que esteja incluído numa
verdade que destaca a superioridade do corpo
sociedade que promove o discurso da
que mesmo pequeno, se constitui por meio da
diversidade, tornando o corpo produtivo.
autoestima em alta, corroborando que a ênfase
Assim:
nos membros superiores e inferiores, ou seja,
braços e pernas faz evidenciar que esse sujeito a norma não tem por função excluir,
mulher não está preso a convenções e rejeitar. Ao contrário, ela está sempre
limitações a que lhe foram impostas. ligada a uma técnica positiva de
Com isso, o traço indiciário é reforçado intervenção e de transformação, a uma
por meio do gesto de cabeça com o qual o espécie de poder normativo. (FOUCAULT,
2010, p. 62).
sujeito mulher faz ressaltar o sorriso como
marca da sua autoestima elevada. Esse gesto Desse modo, o close na imagem do
que mostra o sorriso despojado faz perceber o corpo mostra o lugar em que a deficiência foi
efeito de sentido de felicidade que perpassa produzida, porém superada, o que resultou na
todo o discurso da revista, uma vez que a

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709
visibilidade do sujeito mulher relacionada à ou dos dispositivos de governamentalidade que
autoestima e felicidade. Isso decorre do estão espalhados na sociedade.
discurso da inclusão está ligado a certos No discurso da Revista Sentidos, a
dispositivos de poder. Nota-se que os efeitos do
pedagogia do sorriso garante o lugar da
poder disciplinar e as estratégias de biopoder inclusão como estratégia de sucesso e
agem no modo de constituição do sujeitoem superação da deficiência. Desse modo, o
diferentes esferas sociais. sujeito mulher é construído nas artimanhas do
3. Considerações finais discurso que disfarça a segregação e as
dificuldades enfrentadas pelos sujeitos com
deficiência movidos através dos efeitos do
Refletir sobre as estratégias discursivas espetáculo midiático que compõem os
que são percebidas nos diferentes enunciados, enunciados de capa.
faz com que sejam observados os efeitos de
sentidos e as vontades de verdade que circulam
nos discursos. Nessa ordem, nem tudo pode ser Referências
dito, mas o que é dito marca o lugar da
instituição midiática ao veicular e discursivizar
certos objetos, no caso aqui, a deficiência. COURTINE, J-J. Discursos sólidos, discursos
líquidos: a mutação das discursividades
Ao promover um efeito de visibilidade contemporâneas. In: SARGENTINI, V e
para o sujeito mulher, a revista usa casos de GREGOLIN, M. R. (org) Análise do Discurso:
sucesso no tocante à inclusão e estimula a heranças, métodos e objetos. São Carlos: Clara
produção de um saber que coloca esse sujeito
Luz, 2008.
em um lugar de guerreiro que supera seus
limites e preconceitos para entrar na ordem ______. A arqueologia do saber. 7. ed. Rio de
social do corpo normal e produtivo. Janeiro: Forense Universitária, 2007.
Assim, o sujeito mulher com ______. História da sexualidade I: a vontade
deficiência é discursivizado de uma forma a do saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2010.
destacar o efeito de sentido de felicidade ______. Os anormais. São Paulo: Martins
provocado pela autoestima elevada e pela Fontes, 2002.
possibilidade de estar incluído na sociedade,
realizando as mesmas atividades dos sujeitos GOMES, M. R. Poder no jornalismo:
ditos normais. discorrer, disciplinar, controlar. São Paulo:
Hacker Editores, 2003.
Entretanto, os silenciamentos que
também são constitutivos do sentido nos GREGOLIN, M. R.Foucault e Pêcheux na
discursos, marcam uma ordem de invisibilidade construção da Análise do Discurso: diálogos e
para tantos outros sujeitos que não estão nessa duelos. São Carlos: Clara Luz, 2004.
mesma rota da inclusão. Desse modo, fica MALDIDIER, D. A inquietação do Discurso:
evidente que são as relações de poder saber que (re)ler Michel Pêcheux hoje. Campinas:
agem por meio de diferentes estratégias que Pontes, 2003.
garantem a inclusão desses sujeitos, seja por
meio da higiene do corpo, do disciplinamento

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710
MILANEZ, N. Materialidades da paixão:
sentidos para uma semiologia do corpo. In:
SARGENTINI, V; PIOVEZANI, C;
CURCINO, L. (Orgs.) Discurso, Semiologia e
História.São Carlos: Claraluz, 2011.
PÊCHEUX, M. Papel da memória. In:
ACHARD, P. et al. Papel da memória.
Campinas: Pontes, 2007.
REVISTA SENTIDOS. Editora Escala. Ano
IV, Edição Nº 59, 2010.
REVISTA SENTIDOS. Editora Escala. Ano
XI, Edição Nº 73, 2013.
SARGENTINI, V. Contribuições da
Semiologia Histórica à Análise do Discurso.
In: SARGENTINI, V; PIOVEZANI, C;
CURCINO, L. (Orgs.) Discurso, Semiologia e
História. São Carlos: Claraluz, 2011b.
SASSAKI, R. K. Inclusão: Construindo uma
sociedade para todos. 5.ed. Rio de Janeiro:
WVA, 2002.

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711
ARUANDA: O DISCURSO DE RESISTÊNCIA DO
DOCUMENTÁRIO PARAIBANO NA REINVENÇÃO DA
IDENTIDADE DO CINEMA NORDESTINO/NACIONAL

Cecília NORONHA; Regina BARACUHY


Universidade Federal da Paraíba (UFPB)
cecilianoronha2@gmail.com; mrbaracuhy@hotmail.com

Resumo: Este artigo objetiva fazer uma análise discursiva do documentário paraibano
Aruanda (1960) para entender como e por que esse discurso de resistência irrompeu
nesse momento histórico, ressignificando a identidade do cinema nordestino e nacional
das décadas seguintes. Desenvolveremos esse trabalho sob o enfoque da Análise do
Discurso, especialmente no que se refere aos estudos de Michel Foucault e sua
arqueogenealogia, dialogando com os estudos sobre Semiologia Histórica, propostos pelo
historiador Jean-Jacques Courtine (2009). Além disso, será levada em conta a Semiologia
Histórica desenvolvida pelo historiador Jean-Jacques Courtine (2009), com seu conceito
de memória discursiva e a noção de intericonicidade.
Palavras-chave: análise do discurso; cinema; corpo; semiologia histórica;
intericonicidade.

filmaram logo em seguida, nos anos 60 (Cinema


Introdução
Novo), passaram a considerar a temática
No batimento da materialidade híbrida abordada em Aruanda como uma “vontade de
do filme (estrutura) e do acontecimento verdade” que poderia servir para as bases de um
(história), presente no documentário Aruanda, cinema “genuinamente brasileiro”. Portanto,
propõe-se – a partir dos atravessamentos de não se trata de, simplesmente, analisar uma
vários discursos (incluindo o literário e o plasticidade já ressignificada no Cinema Novo,
antropológico) – uma reflexão em torno do envolta em fome ou miséria, mas sim
processo de reinvenção do cinema brasileiro. compreender como e por que determinados
Levando em consideração os conceitos enunciados apareceram no lugar de outros.
teóricos do filósofo Michel Foucault, pode-se 1. Desenvolvimento
dizer que o discurso cinematográfico de
Diante do caráter histórico do discurso,
Aruanda se tornou um comentário, atualizado
achamos por bem fazer uma comparação entre
por outros filmes que foram realizados
a materialidade de Aruanda e o filme de ficção
posteriormente. As gerações de cineastas que

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712
Tico-Tico no Fubá (1952), que é um drama Freyre, em particular de sua obra Casa Grande
musical, dirigido por Adolfo Celi, e produzido e Senzala (1933). Nela, Freyre apresenta uma
pela Companhia Cinematográfica Vera Cruz, de abordagem sociológica antirracista da formação
São Paulo. Essa produtora, assim como a da sociedade brasileira, valorizando a
Companhia Atlântida e suas comédias da miscigenação como algo importante para ser
Chanchad, no Rio de Janeiro, atingiram seu relatado e reverberado.
apogeu nos anos 50. Elas seguiam em suas É nessa efervescência literária e
produções os moldes do cinema hollywoodiano, sociológica da primeira metade do século XX
seja levando à risca a plasticidade onde podem estar os primeiros indícios da
cinematográfica americana, seja parodiando discursividade ressignificada e irrompida em
filmes estrangeiros. Aruanda. No dialeto bantu, a palavra que
Também consideramos necessário traçar empresta nome ao título do documentário
um parâmetro entre Aruanda e os filmes paraibano significa “terra prometida”,
lançados após sua irrupção. Nesse artigo, a semelhante à Canaã Hebraica. A peregrinação
produção escolhida para tal finalidade foi do ex-escravo negro e alforriado, Zé Bento, é
Barravento (1962), do cineasta baiano Glauber em busca desse pedaço de chão tão sonhado,
Rocha, um dos principais expoentes e que nos remete a uma memória do longínquo
disseminadores das ideias do Cinema Novo. discurso bíblico. No lugar onde é descoberta
uma relativa oferta de água, Zé Bento e seu clã
Temos, com isso, dois exemplos de
(mulher e dois filhos) se estabelece, fundando a
filmes pinçados dentro de trinta anos de
comunidade de Olho D´Água da Serra do
produção brasileira, entre as décadas de 1950
Talhado. Isolada em um chapadão desértico, no
até a de 1960. Um deles foi lançado antes e
remoto no Sertão paraibano, ela fica distante
outro depois da irrupção de Aruanda. Nesse
período, encontramos heterogeneidades, 277 Km da futura capital João Pessoa. O resto
do documentário, que tem cerca de meia hora
regularidades e singularidades, que constituirão
de duração, aborda a vida e sobrevivência nesse
a proposta de identidade para o cinema nacional
espaço rural, esquecido e apagado do mapa
pós 60.
social e geográfico do Brasil, formado por um
Para entender alguns atravessamentos grupo de caboclos e negros.
discursivos da temática abordada em Aruanda,
nos enveredamos ainda para o campo da 2. Um close na arqueogenealogia das
literatura. Nele, dedicamos um olhar especial ao imagens
discurso de dois romances regionais do Esse artigo é desenvolvido sob o
Modernismo Brasileiro, irrompidos na primeira enfoque da Análise de Discurso, levando em
metade do século XX. Um deles é Menino de consideração alguns conceitos das fases
Engenho (1932), de Zé Lins do Rêgo. O outro, arqueológica e genealógica do filósofo Michel
Vidas Secas (1938), de Graciliano Ramos. Foucault. Em especial, tomaremos o de
enunciado, memória e corpo. Porém, o fio
Ainda há espaço para uma incursão
condutor desta análise é o corpo, como
histórica rumo à discursividade encontrada no
superfície de inscrição e circulação de
estudo sociológico do pernambucano Gilberto
discursos.

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713
e não outro em seu lugar? (FOUCAULT,
A proposta é analisar os rastros da 2012a, p.33)
irrupção do discurso cinematográfico do
documentário paraibano Aruanda, sob a ótica A noção de enunciado considerada nesta
da produção dos efeitos de sentidos, em sua análise é aquela exposta por Foucault em A
transparência e opacidade. Para isso, Arqueologia do Saber (obra de 1969). O
investigamos as condições históricas e sociais enunciado tem uma materialidade, mas não é
que possibilitaram o seu surgimento, com seus uma simples frase. Ele tem uma abrangência
enunciados singulares. Apesar da materialidade muito mais ampla. Precisa ter sobretudo
do cinema ser híbrida, propomos nos ater ao historicidade para, assim, desempenhar uma
enunciado de cinco fotogramas de Aruanda função enunciativa. Em sua singularidade, ainda
(ver figuras de 1 a 5) como corpus deste artigo, remete a uma memória:
por uma questão de praticidade. Eles registram
as personagens do filme, encenadas por atores Não há enunciado que não suponha outros;
naturais (não profissionais, da própria não há nenhum que não tenha, em torno de si,
comunidade relatada na obra). Deixamos de um campo de coexistência, efeitos de série e
fora tanto o som como outros tipos de de sucessão, uma distribuição de funções e de
enunciados, a exemplo da luz, enquadramento e papéis. Se se pode falar de um enunciado, é
na medida em que uma frase (uma
angulação.
proposição) figura em um ponto definido,
No batimento da materialidade com uma posição determinada, em um jogo
(estrutura) e do acontecimento (história), enunciativo que a extrapola. (FOUCAULT,
vamos tentar entender, por meio desses 2012a, p.121)
enunciados selecionados, como se deu a
produção de novas “verdades”. “Verdades” tais Como também enfatiza Gregolin, para
que foram tomando contornos de resistência e Foucault há uma articulação dialética entre
propondo uma nova identidade para o cinema singularidade e repetição no enunciado:
brasileiro a partir da década de 1960.
[...] de um lado, ele é um gesto; do outro,
A teoria arqueológica, do filósofo
liga-se a uma memória, tem uma
Michael Foucault, segundo Gregolin (2004, materialidade; é único, mas está aberto à
p.85), o aproxima das teses da “nova história”, repetição e se liga ao passado e ao futuro
trazendo como efeito a centralidade da relação (GREGOLIN, 2004, p.88)
entre práticas discursivas e a produção histórica
dos sentidos. O método arqueológico define os
Esse mesmo enunciado, ainda segundo
próprios discursos enquanto práticas que
Foucault, entra ou pode se esquivar da
obedecem regras. Assim, a proposta é apanhar
docilidade sendo até mesmo “rebelde”:
o sentido do discurso em sua dimensão de
acontecimento. Foucault ressalta: [...] circula, serve, se esquiva, permite ou
impede a realização de um desejo, é dócil ou
A descrição de acontecimentos do discurso rebelde a interesses, entra na ordem das
coloca uma outra questão bem diferente: contestações e das lutas, torna-se tema de
como apareceu um determinado enunciado,

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714
apropriação ou rivalidade. (FOUCAULT,
2012a, p.128)
indícios podem estar na década de 1930,
especialmente na irrupção da literatura
regionalista brasileira, com temas do cotidiano
Descrever a singularidade de um nordestino, e na ascensão da Sociologia de
conjunto de enunciado é, ao mesmo tempo, Giberto Freyre?
descrever a dispersão de sentidos, detectando
regularidades. Para isso vamos utilizar o Vamos considerar ainda, para analisar
conceito de formação discursiva, segundo os cinco fotogramas de Aruanda, a noção de
Foucault: corpo, proposta por Foucault em Microfísica
do Poder (obra publicada em 1977). O filósofo
Sempre que se puder descrever entre um aponta o corpo como “estigma dos
certo número de enunciados, semelhante acontecimentos passados” e destaca que:
sistema de dispersão e se puder definir uma
ordem de regularidade (uma ordem, [...] sobre o corpo se encontra o estigma dos
correlações, posições, funcionamento, acontecimentos passados do mesmo modo
transformações) entre os objetos, os tipos de que dele nascem os desejos, os
enunciação, os conceitos, as escolhas desfalecimentos e os erros; nele também eles
temáticas, teremos uma formação se atam e de repente se exprimem, mas nele
discursiva. (FOUCAULT, 2012a, p.47) também eles se desatam, entram em luta, se
apagam uns aos outros e continuam seu
insuperável conflito (FOUCAULT, 2012b,
Para abraçar os conceitos de enunciado
p.65)
e formação discursiva, vamos, também levar em
consideração outras propostas foucaultianas,
como o arquivo. Na noção de arquivo que nos Na mesma obra, Foucault enfatiza
interessa, são contemplados o enunciado, também que a análise genealógica propõe
formações discursivas, conjunto de enunciados articular corpo e história. Diz ele:
(discurso), práticas discursivas, positividade
O corpo: superfície de inscrição dos
(que caracteriza unidade muito além do tempo e
acontecimentos (enquanto a linguagem os
das obras individuais):
marca e as ideias os dissolvem), lugar de
dissociação do Eu (que supõe a quimera de
Entre a tradição e o esquecimento, ele faz
uma unidade substancial), volume em
aparecerem as regras de uma prática que
perpétua pulverização. A genealogia, como
permite aos enunciados subsistirem e, ao
análise da proveniência, está, portanto, no
mesmo tempo, se modificarem
ponto de articulação do corpo com a
regularmente. É o sistema geral da formação
história. Ela deve mostrar o corpo
e da transformação dos enunciados
inteiramente marcado de história e a história
(FOUCAULT, 2012a, p.159).
arruinando o corpo. (FOUCAULT, 2012b,
p.65)
Dentro desse arquivo, vamos fazer um
“zoom” para a primeira metade do século XX A Semiologia Histórica tem dialogado
em busca de pistas sobre como irrompeu o com a Análise do Discurso por meio de
discurso de resistência de Aruanda. Alguns
deslocamento de conceitos. O foco deixou de

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715
ser apenas a abordagem dos textos escritos e
passou a incluir outras materialidades [...] toda imagem se inscreve em uma
discursivas, combinando elementos verbais e cultura visual, e essa cultura supõe a
não verbais. Vamos nos amparar também nesses existência junto ao indivíduo de uma
preceitos, em especial em uma noção chamada memória visual, de uma memória das
intericonicidade. imagens onde toda imagem tem um eco.
(COURTINE, 2013, p.43)
O historiador francês Jean-Jacques
Courtine foi quem desenvolveu a noção de Como pressuposto da intericonicidade,
intericonicidade, inserida na ideia da Semiologia Courtine leva em consideração o paradigma
Histórica. A intericonicidade resgata a noção de indiciário, já suscitado pelo também historiador
memória foucaultiana, deslocando-a para a rede Carlo Ginzburg em Mitos, Emblemas e Sinais
de imagens. Essa ponte nos ajudará a entender a (obra de 1989). Trata-se de um tipo de
teia que vincula a materialidade dos fotogramas Semiologia (diferente da Semiologia
de Aruanda, selecionados para este artigo, e os saussuriana dos signos linguísticos). É baseada
discursos das expressões artísticas e dos saberes no ajustamento de indícios depositados em
da primeira metade do século XX – em especial conjuntos significantes.
da literatura e da Sociologia.
Para articular as imagens umas com as
Sobre o conceito de memória discursiva, outras e reconstituir vínculos, Courtine propõe
Courtine escreveu: um olhar mais detalhado para os indícios e
[...]a ideia de memória discursiva implica rastros que outras imagens (internas e externas
que não existem discursos que não sejam ao sujeito, suscetíveis ao diálogo) podem ter
interpretáveis sem referência a uma tal deixado. É a partir desses rastros que é feita a
memória, que existe um “sempre já” do reconstrução da genealogia do objeto analisado
discurso, segundo a fórmula que nós em nossa cultura.
empregamos então para designar
interdiscurso. (COURTINE, 2013, p.43) Analisar imagens consiste assim em
referenciar tais indícios, já que estas
representações perdem seu sentido fora
Ao considerar a noção de memória desta genealogia dos indícios que as
discursiva na análise das imagens, Courtine não atravessam e as constituem. (COURTINE,
quis propor uma pesquisa iconográfica, 2013, p.45)
simplesmente. Afinal, esta seria estéril aos seus
propósitos já que ficaria limitada à mera
Ao fazer essa relação entre imagem e
descrição dos fatos. Ao contrário disso, o
memória, Courtine formula o conceito de
historiador quis entender a imagem como uma
intericonicidade. Ele entende que o sujeito tem a
espécie de espelho de uma dada atualidade,
capacidade de animar imagens inanimadas por
aspecto metodológico mais ligado à
meio da memória discursiva. Por isso relata:
interpretação. Sobre o assunto, ele observou o
seguinte: A intericonicidade supõe, portanto,
relacionar conexões de imagens: imagens

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716
exteriores ao sujeito, como quando uma
imagem pode ser inscrita numa série de
A literatura, portanto, faz parte desse
imagens, uma arqueologia, a maneira do
grande sistema de coação através do qual o
enunciado numa rede de formulações junto a
Ocidente obrigou o cotidiano a se por baixo
Foucault; mas também imagens externas,
dele mesmo, em ultrapassar os limites, em
que supõem a consideração de todo o
levantar brutal ou insidiosamente os
catálogo memorial da imagem junto ao
segredos em deslocar as regras e os códigos,
indivíduo, e talvez também os sonhos, as
em fazer dizer o inconfessável, ela tenderá,
imagens vistas, esquecidas, ressurgidas ou
então, a se pôr fora da lei ou, ao menos, a
até fantasiadas, que assombram o
ocupar-se do escândalo, da transgressão ou
imaginário. (COURTINE, 2013, p.43)
da revolta. Mais do que outra forma de
linguagem, ela permanece o discurso da
Ao mesmo tempo, Courtine supõe que o “infâmia”: cabe a ela dizer o mais indizível
corpo também pode ser suporte para essas – o pior, o que mais secreto, o mais
imagens, inclusive sob o ponto de vista da intolerável, o descarado. (FOUCAULT,
constituição dos sujeitos. 2003, p.221)

“[...] os desafios da decifração do corpo Vamos vasculhar o suposto


voltam a conservar à parte humana de nossa
atravessamento do discurso literário nos
existência sua densidade antropológica e sua
enunciados de Aruanda. Assim, consideramos
profundidade histórica, a elucidar o que nos
faz sujeitos.” (COURTINE, 2013, p.40) esse fato como sendo mais um motivo para
trazermos para esta análise a abordagem
foucaultiana sobre os homens sem fama.
Aruanda é um documentário que
discursiviza a vida dos homens “sem vozes”, 3. Luz, câmera, ação: um “zoom” na vida
relegados a uma periferia na ordem do discurso. dos homens infames
Por isso, vamos ainda nos remeter a um ensaio A fotografia do Nordeste “nu e cru”,
escrito por Foucault para o Les Cahiers du captada por uma câmera sem filtro e sem o uso
Chemin, em 15 de janeiro de 1977, cujo título é de rebatedores, revela a intensidade da luz do
“A Vida dos Homens Infames”. Ao longo do Sertão. Debaixo do sol escaldante, o negro
texto, o filósofo debruça suas análises sobre alforriado Zé Bento guia sua família (Figura 2)
uma exumação de arquivos de internamento do a um “num sei aonde”, em busca de qualquer
Hospital Geral e da Bastilha. terra mais fértil para plantar e sobreviver.
Foucault discorre sobre os homens sem A pele do personagem Zé Bento (Figura
fala. E, a partir do que se fala deles e de suas 1) é tornada ainda mais escura por um efeito
condutas, banidas da normatização, o filósofo contraluz (quando o objeto focado é colocado
traça as relações de poder de uma determinada entre a câmera e a fonte de iluminação). A parte
atualidade. Em seguida, faz um deslocamento da derme mais clara nesse fotograma aparece
desses registros no tempo para chegar à apenas na região no nariz, destacando o que
constituição de uma ética imanente ao discurso parece ser um brilho de suor. Um brilho sobre o
literário ocidental. olfato que fareja dias melhores na tão sonhada

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717
“terra prometida”, longe dos maus-tratos da trouxe uma certa autoestima ao povo brasileiro,
Senzala. alimentado pela abordagem sociológica
antirracista de Freyre; como algo válido de ser
Esse negro sofrido e sua família (Figura
relatado. E que, realmente, será reverberado
2), peregrinando sob um sol escaldante, tomam
como uma verdade daquela época.
as primeiras sequências de Aruanda. Revelam
as preocupações por um cinema autóctone e a Atravessamentos do discurso
busca de razões para a problemática do etnográfico estão também presentes em
miserabilismo. Tem nuances de manifesto, a Aruanda. Etnografia considerada aqui como
medida que parece propor um novo olhar para ciência que descreve os povos em seus
o sujeito brasileiro representado nas telas, um costumes, raça, religião e demais aspectos.
sujeito miscigenado, que passa pela herança do A temática do cotidiano nordestino,
sacrifício ao qual o escravo africano fora com suas problemáticas sociais e geográficas,
submetido. remonta ainda a uma memória do romance
O filho de Zé Bento (Figura 3), aparece regional modernista do século XX. As tragédias
com a pele mais clara, recebendo de forma que se passam no seio familiar são enredos para
frontal a incidência do sol. É como se estivesse as obras literárias de Menino de Engenho
iluminado ao encontrar, entre os galhos (1932), de Zé Lins do Rêgo, e Vidas Secas
ressequidos, um ninho de pássaros e ovos para (1938), de Graciliano Ramos.
refeição. Em Menino de Engenho, a história se
Essas três imagens externas retomam a passa, em sua maior parte, na região entre a
uma memória interna afetiva de outras imagens. Zona da Mata e Brejo, com clima mais ameno
Estamos falando de um discurso sobre temas e devido às proximidades do Litoral. O cenário é
problemáticas nordestinas. Esses temas podem o engenho, que tem uma relação de identidade
ser encontrados, por exemplo, em Casa Grande forte com o antigo regime escravocrata,
e Senzala, de Freyre. A obra acentua o regime latifundiário e monocultor da cana-de-açúcar. O
patriarcalista, monocultor, latifundiário e romance discursiviza o final do apogeu dos
escravocrata como ambiente formador da engenhos, com escravos recém-alforriados,
sociedade brasileira. porém obedientes aos seus patrões. A história
começa no Recife (PE), com uma tragédia no
Freyre reafirmou, em seus relatos sobre
núcleo familiar. O pai de Carlinhos, personagem
costumes e práticas, as condições de um País
infantil central da trama, mata a esposa com um
miscigenado. Uma nação com origens indígena,
tiro de revólver, em uma crise violenta de ira.
portuguesa e africana, que sedimentou, aos
poucos, uma espécie de identidade nacional. A Na violência física, mais uma vez,
herança negra, por exemplo, é apontada em aparece o ranço do patriarcalismo, em uma
Freyre com uma certa relevância étnica, em sociedade centrada na figura masculina.
especial no aspecto de doçura no falar e nos Carlinhos muda-se, por isso, para o engenho do
costumes. Nota-se assim que a miscigenação e avô paterno. O avô representa o senhor de
a pluralidade racial são ressaltadas como engenho, figura expressiva do Nordeste
valorosas, vestidas de uma visão otimista. Isso açucareiro. O menino vivencia o sofrimento

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718
com as secas e posteriormente as enchentes, personagem Zé Bento. A esse povo sem voz e
que arrasam propriedades. São as intempéries direitos restam as terras devolutas, aquelas que
climáticas que também são discursivizadas em os mais abastados não querem.
Aruanda, quando Zé Bento testa a terra para Aruanda traz um olhar específico sobre
verificar a possibilidade de água (Figura 4). a senzala e leva às telas do cinema brasileiro a
Também podemos observar em vida de homens infames. É a temática sobre o
Aruanda uma retomada discursiva de Vidas cotidiano nordestino que assistimos em seus
Secas, mesmo que as intenções e propósitos fotogramas, retomada da literatura e da
sejam diferenciados e ressignificados. Na obra Sociologia para entender a formação da
do romance regionalista, os personagens sociedade brasileira. Passa pela memória
flagelados, em busca de um local melhor para discursiva do latifúndio monocultor,
viver, passam por uma difícil peregrinação. É a patriarcalismo, escravidão e seus
tragédia familiar de miscigenados, mais uma vez desdobramentos.
fruto do sistema latifundiário e escravocrata. Na época de Aruanda, buscavam-se
Nesse sistema, as terras mais estéreis são novos caminhos para o cinema. Ou seja,
delegadas ao negros recém-libertos e, amadurecia-se o questionamento sobre o
consequentemente, à sua descendência cinema industrializado aos moldes estrangeiros,
miscigenada, condenada às bases de uma seguido pelo populismo das Chanchadas (no
pirâmide da desigualdade social. Rio de Janeiro) e pelo cosmopolitismo da
Em Vidas Secas, Fabiano (nordestino e Companhia Cinematográfica Vera Cruz (em
retirante), sua família – formada pela esposa São Paulo).
Sinhá Vitória, os filhos (identificados apenas A proposta discursivizada pelo
como “menino mais novo” e “menino mais documentário paraibano irrompe, então, na
velho”) – e a cachorrinha Baleia, caminham sob contramão do cinema brasileiro ficcional
o escaldante sol do Nordeste. Depois, predominante na época. Aruanda implica ainda
encontram uma casa abandonada e ali se o não-dito. Ou seja, seu discurso descarta
abrigam, esperando passar o período de seca. propostas como aquelas apresentadas no filme
A chuva chega, e com ela aparece o patrão, Tico-Tico no Fubá, da Companhia Vera Cruz.
dono da terra. Fabiano precisa trabalhar como Esse longa-metragem ficcional discursiviza o
vaqueiro para ter direito a permanecer por mais corpo dos personagens como verdadeiras
um tempo por aquelas bandas. A palavra “seca” inscrições de uma identidade americanizada (ver
no título da obra, tanto aponta para a condição figuras 6 e 7), como se fosse um objeto de
natural quanto para a falta de perspectiva das desejo do ideário de homens e mulheres
personagens. brasileiras. Personagens aparecem sempre bem
No filme Aruanda, a família de Zé maquiadas, impecavelmente vestidas cujas
Bento retoma a tragédia de Vidas Secas e silhuetas são suavizadas por uma iluminação
denuncia o flagelo na peregrinação pelo Sertão milimetricamente calculada.
árido com uma das poucas opções do escravo Já em Barravento, de Glauber Rocha, a
recém-alforriado. No fotograma (Figura 5), o discursividade de Aruanda é apreendida como
caminhar da família é conduzido pelo

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719
um saber temático “verdadeiro” para ser
reverberado no cinema da época. Tanto Figura 4. Mãos de Zé Bento em busca de terra fértil
figurantes como personagens no filme baiano
(ver figura 8) retomam em seus corpos uma
memória discursiva do gênero documentário
paraibano e o leva para o da ficção. Entra em
cena, de uma vez por todas, a temática
nordestina com um “zoom” na vida dos homens
infames.
3.1 Fotogramas
Figura 5. Peregrinação da família; Aruanda
Figura 1. Zé Bento; Aruanda

Figura 6. Durvalina e Zequinha; Tico-Tico no Fubá


Figura 2. Zé Bento e sua família; Aruanda

Figura 7. Personagens Branca, de Tico-Tico no Fubá


Figura 3. Filho de Zé Bento; Aruanda

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720
Figura 8. Personagem Firmino, de Barravento
FOUCAULT, M. A arqueologia do saber.
8.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2012a.
______Microfísica do poder. 25.ed. Tradução
de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições
Graal, 2012b.
______. Ditos e escritos, volume IV. Estratégia,
4. Considerações finais poder-saber. Manoel Machado. 2.ed. (orgs).
Rio de Janeiro – Forense, universitária, 2006.
Entendemos que o documentário
Aruanda (1960) – atravessado, especialmente, GREGOLIN, M. R. Foucault e Pêcheux na
pelos discursos da literatura e Sociologia da análise do discurso: diálogos e duelos. São
primeira metade do século XX, entre outros – Carlos: Claraluz, 2004.
consegue constituir as bases da nova identidade GINZBURG, C. Mitos, emblemas e sinais:
do cinema nacional de ficção. Morfologia e história. 3. ed. Tradução de
Aruanda toma contornos de resistência Federico Carotti. São Paulo: Companhia das
ao discursivizar a vida de homens infames, Letras, 1999.
inscrita nos corpos dos atores naturais (não
profissionais, oriundos da comunidade do
Talhado). Essa proposta temática irrompe na
contramão do cinema brasileiro ficcional
predominante na época, inspirado nos moldes
estrangeiros, com atores profissionais bem
maquiados e intervenções artificiais no espaço
cenográfico.
Ao longo da década de 1960, o discurso
cinematográfico de Aruanda será apreendido
como uma vontade de verdade pelos cineastas
do Cinema Novo, ansiosos por uma identidade
“genuinamente brasileira”.

Referências
COURTINE, J-J. Decifrar o corpo: Pensar
com Foucault; tradução de Francisco Morás, _
Petrópolis, RJ: vozes, 2013.

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721
O DESENVOLVIMENTO DE UMA SOCIEDADE DE
CONTROLE MORAL E O MARTELAR DA RESISTÊNCIA

Anderson NOWOGRODZKI DA SILVA


Universidade Federal de Goiás (UFG)
a.nowogrodzki@hotmail.com

Resumo: Este artigo busca descrever a complexidade inerente às relações de poder e


saber na sociedade, as regularidades que a permeiam e as possibilidades de resistência
como forma de constituição do sujeito discursivo, de sua liberdade, da contraposição de
valores de verdade, observando sua inscrição no dispositivo midiático. O postulado
teórico-metodológico com o qual se trabalha é a Análise do Discurso de linha francesa,
pautando-se nos textos de Foucault e de seus comentaristas, apoiando-se nas noções
basilares de Nietzsche. O sujeito do discurso, ainda que situado sociohistoricamente em
sociedades capitalistas, que reforçam o controle da moral, pode resistir por meio do
martelar, da reflexão, ir para além das limitações do “ter de ser” e alcançar as
possibilidades do “querer ser”, podendo cuidar de si, modificar-se constantemente, de
forma crítica.
Palavras-chave: poder; resistência; regularidades.

certo e o que é errado a uma dialética1


Considerações iniciais
maniqueísta, generalizando, desde a filosofia
Pensando o conceito de dispositivo grega até a doutrina cristã, no que diz respeito à
como aporte teórico-metodológico, propõe-se, relação entre bem e mal, positivo e negativo,
neste artigo, estudar e descrever práticas superior e inferior. Porém, a modernidade, em
discursivas e não discursivas relacionadas ao sua liquidez, como diria Bauman (2003), traz
modo como as sociedades se estruturam consigo uma conjuntura de complexidades,
baseadas no controle da moralidade, dos mudanças constantes, evidenciando-se a
corpos, e os movimentos de resistência que se multiplicação das microestruturas que
fundamentam na busca por uma transformação compõem a teia social, desestruturando e
de si em oposição ao controle do corpo alheio. fazendo aparecer um novo regime moral,
Há tempos, a humanidade se vê instável. Visualiza-se assim, pautando-se em
engendrada por discursos que reduzem o que é
1
Embate entre dois agentes opostos, que, nesse caso,
não se anulariam, mas se manteriam, enfrentando-se,
numa dependência mútua.

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722
Foucault (2000), o mundo a partir da atualidade
Apresenta-se, aqui, além de uma visão
do saber, de forma perspectiva, fala-se de um
sobre as regras morais e sua inscrição na
lugar e um tempo determinados. Portanto,
contemporaneidade, a possibilidade de
busca-se, no dispositivo midiático, observar
resistência do sujeito a uma tentativa de
regularidades e resistências, olhar para os jogos
governo do corpo-outro. É no desestabilizar do
de poder regidos pelos saberes correntes na
que é passível de sentido, dos paradigmas
contemporaneidade.
cristalizados, dos ditos regularizados, que o
Para que se possa caminhar pelos homem resiste ao controle em dado momento e
domínios da moralidade, ou do controle moral, toma decisões sobre si, construindo-se,
é preciso entender que sua esteira se moldando-se eticamente, segundo as
fundamenta nas relações de poder. Por isso, possibilidades decorrentes dos
faz-se essencial dizer que “poder”, segundo entrecruzamentos que o constituem.
Foucault (2008), pode ser tomado como um
Para analisar um objeto tão abrangente
conjunto de práticas discursivas, dos
como o controle moral dentro do dispositivo
mecanismos e dos procedimentos que atuam em
midiático, é preciso, antes, entender o que se
função da manutenção do próprio poder.
quer dizer com o termo “dispositivo”.
Pensar em relações de força, nesse Sargentini (no prelo) o caracteriza como um
sentido, implica em pensar nos sujeitos, que são conjunto heterogêneo que se organiza em uma
os efeitos de dada constituição. Olha-se, assim, rede de rupturas, descontinuidades, dispersões,
para o sujeito sócio-historicamente situado, regularidades, por meio de elementos
atravessado pela multiplicidade dos enunciados, discursivos e não discursivos. Deleuze (2005b)
composto pela pluralidade dos saberes que o considera os dispositivos como conjuntos
envolvem. multilineares, caóticos, de onde se podem
À medida que emergem novos recortar determinadas relações. O dispositivo
discursos, diferentes práticas surgem e os eixos possui uma tridimensionalidade alicerçada nas
da trama social se reestruturam, dando forma a formas de ver, nas possibilidades de dizer e nas
novos valores de verdade. O século XXI parece relações de poder.
estar fundamentado na domesticação dos Os corpos são, assim, observados como
corpos, pautando-se em diferentes discursos parte de uma máquina, regulamentados por
(ciência, religião, mídia, política). Os corpos práticas de objetivação. Ou seja, aprecia-se,
dóceis contribuem para a instituição de um neste texto, a maneira como uma costura entre
Estado de controle dos sujeitos, passando a elementos heterogêneos, de forma estratégica,
objetivar mais do que subjetivar. Agambem busca determinar o modo como o homem deve
(2009) contribui para essa afirmação na medida se portar, agindo moralmente, segundo regras
em que afirma que o capitalismo é um sistema trazidas à tona pela regularidade dos discursos,
que intensifica um processo de sendo possível a sua contraposição por meio do
“dessubjetivação”, dando forma a seres cuidado do próprio corpo.
automatizados pela tecnocracia.
Objetiva-se, ainda, pautando-se na
arqueologia foucaultiana, descrever as rupturas,

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723
as descontinuidades dos olhares para a moral
Nietzsche (2001) e Foucault (1995),
localizada em diferentes condições de
em relação aos conceitos de Eterno Retorno e
existência.
de poder microfísico, respectivamente,
Retomam-se, aqui, algumas noções de convergem para uma mesma inferência, ao
Nietzsche (2006), pensando em sua relação pensarem num olhar para a história, alicerçado
com os estudos e conceitos de Foucault no pela noção de descontinuidade e na estrutura
âmbito de uma perspectiva crítica. Inicialmente, cosmogônica nietzschiana de que não há gene
a Filosofia do Martelo2 define a direção deste ou telos, apenas um jogo de relações que
empreendimento como uma busca por fazer produz o devir3 contínuo.
estremecer o que é passível de sentido, refletir
1. Regimes de controle moral e suas
sobre o que é chamado de universal, questionar,
ressignificações históricas
como instiga, também, Foucault (1995). Dessa
forma, de acordo com Prado Filho (2006), Pensar a Nova História com Foucault é
utiliza-se a arqueologia foucaultiana como tarefa difícil, em razão de buscar a quebra de
aporte para entender os regimes de produção uma linearidade que parece comum e óbvia.
dos discursos, as diversas formas de ver em Felizmente, o óbvio é, acima de tudo, um
dado momento histórico, os saberes que universal desnecessário. Nada é tão axiomático
circulam e se colocam num processo de que não possa ser questionado. As certezas
mutação contínua. De acordo com Foucault tendem a limitar o olhar do observador a uma
(2003), é preciso olhar para o discurso e suas visão unitária.
relações, para os regimes de verdade e os A produção dos sentidos decorre dos
efeitos de realidade produzidos. Foucault fenômenos históricos. Segundo Foucault
(1995) utiliza, então, o conceito de Nova (1995), essa nova maneira de ver as relações se
História: pauta na preocupação com as minúcias que
Trata-se, portanto, em suas análises, de
permeiam os acontecimentos, na busca por
fazer foco sobre as relações de saber-poder, perscrutar os eventos microscópicos apagados
no sentido de compreender que efeitos de pela história arcaica.
subjetividade são produzidos em uma Passa-se, então, a observar as relações
sociedade, num certo tempo, ou, melhor de poder em meio a esse novo modo de olhar
dizendo, que formas de vida coletiva, que para a história.
modos de ser estão sendo historicamente
produzidos numa certa sociedade, que Pensando nesses conceitos, buscou-se
formas de sujeição e assujeitamento estão uma pluralidade de ditos sobre a constituição de
em jogo nessa cultura. (PRADO FILHO. uma moral em diferentes momentos históricos
2006, p. 30). como um elemento nas relações de poder.
A “moral” parece ser regularmente
2
Nietzsche usa a metáfora do martelo para demonstrar a tratada como um aglomerado de regras
necessidade de abrir os horizontes para novas fundamentadas na relação de sujeitos em
perspectivas, questionar o mundo que rodeia o homem,
deixar de erigir ídolos e fazer balançar o preconceito, a
3
inflexibilidade, o dogmatismo cego. Dinâmica, transformação contínua.

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sociedade, sendo um conjunto de possibilidades objetivo moral e estar em consonância com o
que determina o que é aceito, normalizado, e o seu lugar natural seria uma forma de alcançar
que é rejeitado, visto como anormal. essa satisfação. Pensando nessa visão em
Etimologicamente, a palavra deriva do latim e relação à contemporaneidade, percebe-se um
se associa, semanticamente, aos costumes de regime de verdades diferente, baseado na
um povo, o que leva à inferência de que a moral diversidade, no caos instaurado como algo
se constitui como regularidade discursiva, um positivo, que precede a possibilidade de escolha
entrecruzamento de práticas e dizeres que, a de outro lugar, que não pressupõe
partir de sua dispersão e incidência, criam determinações naturais.
valores de verdade entendidos em dado Em outro âmbito, contrapondo essas
momento como axiomas, como “bons perspectivas, o discurso religioso medieval traz
costumes” 4. em si uma carga dogmática, em que a moral se
Num percurso histórico breve, percebe- transforma em lei divina pautada na ameaça de
se que a moral contemporânea se difere em punição. O controle pelo medo se torna um
muito da moral que se inscrevia na Antiguidade elemento para a organização de uma sociedade
Clássica, com os gregos, na Idade Média, com a regrada e dócil. O homem se vê em meio a um
Igreja Católica, ou na visão iluminista, da enfrentamento maniqueísta do bem e do mal,
Modernidade. Não se deve confundir, aqui, esta precisando escolher, sob a ameaça da
separação, com uma divisão em caixas fechadas condenação, um caminho de “bons costumes”
da história, antes disso, busca-se um primeiro ou do “pecado”. A moralidade emerge, dessa
olhar para um percurso complexo. O que se forma, como uma missão dada por Deus ao
almeja neste estudo é olhar para parte da homem cristão. Entre cismas, reformas e
contemporaneidade e procurar entender como contrarreformas, a vontade de uma deidade se
se dá o controle moral e a resistência no vê como prêmio de um cabo de guerra, usado
dispositivo midiático. como aparato de manutenção do poder.
Na Grécia Antiga, o pensamento se Por último, e não menos relevante para
baseava em noções filosóficas cosmogônicas, essa observação das rupturas e dos
sendo a moral organizada pela noção de telos, enfrentamentos nas relações entre discursos e
em que as finalidades que os corpos possuíam e práticas dispersos na história, situa-se o homem
suas realizações plenas determinariam a ordem por-si. Não há que se atuar mais em função de
universal, ou seja, almejava-se a adequação ao um Cosmos ou de um Deus, mas em razão de
lugar natural como forma de contemplação do si, projetando-se, por meio da alteridade, no
divino, da boa vida 5. Enfim, para os gregos, outro. Bakhtin (2010) é fundamental para se
como afirma Foucault (1994), a felicidade é um pensar o sujeito em sociedade, empaticamente
constituído, olhando para o outro para que
4
Disponível em: <
possa se ver e, ao ver-se, mudar o seu modo de
http://www.significados.com.br/moral//>. Acesso em: 30 pensar, de existir e alterar suas relações,
de julho de 2015. fazendo-se cada vez mais fluido e, ao mesmo
5
Disponível em: < tempo, tornando-se responsável por suas ações.
http://www.mundodafilosofia.com.br/page7d.html//>. Pensa-se, então, na filosofia de Maquiavel, que
Acesso em: 26 de julho de 2015.

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725
coloca os interesses de uma classe em questão
Pensando nesse percurso, propõem-se
como objetivo moral, em detrimento do
descrever e analisar quatro enunciados que
sofrimento do outro, que não é visto como
representam as diferentes constituições da
igual, um sujeito por quem não se tem empatia,
moralidade, em diferentes épocas, sua retomada
em quem não se vê um reflexo 6.
na contemporaneidade e a possibilidade de
Não se busca, aqui, determinar o que é a resistência.
moral, se é certa ou errada. Pensa-se em olhar
2. A moralidade e a atualidade do saber:
para estas verdades e entender que, em
devir, relações de poder e ressignificações
diferentes conjunturas, emergem diferentes
regimes de visibilidade, possibilidades de dizer e O sujeito, aqui descrito, não é dono de
regras específicas que moldam a sociedade. seu próprio dizer, pensa-se em um sujeito
Mas estes saberes não atuam sozinhos. Se há constituído, que tem, em sua subjetividade, um
rupturas e mudanças contínuas, isso se deve aos efeito do atravessamento de diferentes saberes
jogos de poder que movimentam, com base em inseridos em relações de poder. Agambem
forças microfísicas, os rumos da história, como (2009) instiga a pensar em um sujeito de
vetores que apontam determinadas direções. múltiplas subjetivações, como o resultado de
um conjunto de funções. Busca-se descrever,
Na contemporaneidade, por outro lado,
aqui, um jogo de relações de poder em meio ao
potencializou-se o biopoder por meio da
dispositivo midiático, explorando as diferentes
revolução tecnológica (tecnocracia). As práticas
formas de controle moral correntes na
de higienização e medicalização foram
sociedade contemporânea e os dizeres que
catalizadoras de um processo de transformação
retoma. Para pensar na resistência, recorre-se à
dos discursos em relação ao cuidado com o
visão de Prado Filho (2006), em que o sujeito
corpo e a segurança se tornou uma vigília
está em constante movimento de
constante dos atos humanos, como afirma
transformação, subjetivando-se continuamente.
Foucault (2008), sendo uma medida preventiva
Ou seja, apesar da regularidade, a resistência é
para qualquer possibilidade de desvio de uma
possível.
conduta predeterminada estatisticamente.
Disciplinariza-se o corpo a partir de uma Olha-se, assim, para a noção de
biopolítica, criando regras para a vida humana discurso como uma base para a construção
em sociedade. Foucault (1979) afirma que o deste estudo, sendo fundamentada em Foucault
biopoder atinge a população, que é, também, o (1995). Trata-se de uma pluralidade de
instrumento para sua produção. Trabalha-se, enunciados que possuem sua raridade e estão
assim, a noção de governamentalidade como o dispersos nos acontecimentos e que estão
conjunto de elementos que possibilita a pautados em uma mesma formação discursiva.
edificação de uma biopolítica. Foucault (1995) define “enunciado” da seguinte
maneira:

À primeira vista, o enunciado aparece como


6
Disponível em: < um elemento último, indecomponível,
http://www.nicolaumaquiavel.com.br/o-principe- suscetível de ser isolado em si mesmo e
maquiavel//>. Acesso em: 26 de julho de 2015. capaz de entrar em um jogo de relações com

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726
outros elementos semelhantes a ele; como
um ponto sem superfície. mas que pode ser
Existem regras de formação que determinam a
demarcado em planos de repartição e em ordem do discurso.
formas específicas de grupamentos; como A emergência dos discursos se baseia
um grão que aparece na superfície de um em sua retomada constante, por meio de uma
tecido de que é o elemento constituinte; memória discursiva corrente na multiplicidade
como um átomo do discurso. (FOUCAULT, dos enunciados que circulam em teia, que são
1995, p. 90)
raros e estão dispersos em determinado espaço.
Pensar, por exemplo, no discurso religioso
Segundo Deleuze (2005a), o enunciado cristão e seus dez mandamentos basilares
não é visível, mas não está oculto, ele é (Figura 1) demanda um olhar para condições de
histórico. É a partir do enunciado que se almeja existência específicas, numa conjuntura social
observar o discurso, sua constituição, sua em que as técnicas de controle, a partir de um
emergência. De acordo com Foucault (1995, p. governo verticalizado, criam dispositivos que,
123), deve-se observá-lo como “[...] um correlacionando-se, dão forma a um regime
elemento em um campo de coexistência”. É moral que tende a controlar a população.
preciso evidenciar que a arquegenealogia Poder-se-ia pensar, na Idade Média, em liames
foucaultiana caminha pelos ditos, como entre o dispositivo religioso, em suas práticas
vestígios que são amostras, sinais de uma de adoração, e o dispositivo governamental, em
formação discursiva. É por meio desse olhar sua busca por controlar o modo de vida,
para a história e para as relações, que se almeja docilizando. Este entrecruzamento, em meio a
entender as possibilidades de existência em tantos outros, poderia ser o fundamento para a
dado momento: unificação de uma deidade durante o Cisma,
regulamentando a sociedade a partir da fé em
Analisar os discursos em tal perspectiva é um único deus, com regras específicas de cunho
efetivamente tentar reconstruir, para além
absolutista e um egocentrismo inquestionável,
das palavras, o regime dos olhares e a
que demandasse a vigilância constante de si e a
economia dos gestos próprios aos
dispositivos [...] (Courtine, 2013, p. 57) entrega a uma vida de asceticismo, evitando
desvios morais por meio da ameaça da
condenação.
Pautando-se em Courtine (2013), vê-se
que o controle moral está impresso numa Constatam-se, na dispersão desses
história dos corpos e dos regimes de enunciados, e em sua repetição, mesmo na
visibilidade, das relações que constroem contemporaneidade, práticas discursivas
diferentes verdades em diferentes épocas. O relacionadas à busca pelo controle dos corpos,
aparecimento da resistência só é possível em opondo-se ao controle sobre si. Os
razão das condições de existência dos mandamentos bíblicos podam a liberdade de
discursos. Isso pode ser observado em dizer, ir e vir, desrespeitar, matar, roubar,
diferentes ocorrências materiais linguístico- cometer adultério, mentir, amar e até mesmo
discursivas. Porém, é preciso enfatizar que, a desejar, determinando o que é certo e o que é
formulação dos sujeitos, dos enunciados e dos errado.
discursos não se baseia em arbitrariedade.

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727
Figura 1: Dez mandamentos criam reajustes nas relações de poder e dão
forma a novos regimes de visibilidade,
inscrevendo-se num jogo de conexões, de
mutações contínuas, de ordenação em meio ao
caos. A Figura 2 trás os dez mandamentos do
Satanismo, que apareceram por volta da década
de 1970, em consonância com o discurso
corrente, promovendo uma cisão com o
dogmatismo maniqueísta cristão, pautando-se
num discurso de horizontalidade nas relações de
poder, em que os seres humanos amam e
odeiam na medida em que se relacionam,
Disponível em: recorrendo a conceitos do existencialismo e do
<http://7todaverdade.blogspot.com.br/2013/06/os- marxismo, promovendo a busca pelo saber,
10-mandamentos-de-deus.html>. Acesso em: 29 de pensando empaticamente em relação ao outro.
julho de 2015.
Figura 2: Dez mandamentos do Satanismo
A partir de 1960, porém, os corpos
inscritos na pós-modernidade e em sua fluidez
se veem em meio a um ambiente opressivo,
agressivo e repressivo, que se opõe a uma
massa de dizeres sobre a liberdade, a paz, a luta
pelos direitos dos negros, das mulheres e dos
homossexuais. A intensificação dos movimentos
de contracultura e a proliferação das formas de
oposição ao controle dos corpos alheios se
tornaram a resistência a uma massa de discursos
regularizados pelas práticas discursivas do
cristianismo e seus reflexos na história. O
Movimento Feminista, por exemplo, tomou Disponível em:
para si práticas baseadas na nudez dos corpos, <http://slideplayer.com.br/slide/1237587/>. Acesso
em razão de demonstrar a busca pelo controle em: 29 de julho de 2015.
sobre si. O Movimento Negro potencializou a Na contemporaneidade, com o advento
prática de se assumir, o cabelo, a pele, o corpo, da tecnocracia, a sociedade se remodelou e,
desvencilhando-se da busca por um estereótipo baseada num conjunto de discursos e práticas
do colonizador. Enquanto os movimentos de inscritos no dispositivo midiático, teceu novas
contracultura geraram novas formas de vestir, formas de relacionar poder e saber, criando
deram visibilidade ao uso de drogas e ao sexo, novas maneiras de resistir e novos modos de
negando os padrões naturalizados de objetivar o corpo alheio. Dalmonte (2008)
medicalização dos corpos, da moda. Todas afirma que o dispositivo midiático cria um
essas movimentações e práticas promovem um conjunto de regras constituídas a partir de
abalo nas regularidades de dado momento,

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728
múltiplas relações. Essas regras se refletem na representante do Deboísmo é um bicho-
moralidade de dado período, sua função é preguiça adornado por elementos que remetem
estratégica na medida em que regulamenta aos santos católicos.
jogos de poder/ saber. Esse dispositivo acabou Figura 3: Onze sugestões do Deboismo
se tornando uma ferramenta para o olhar
constante sobre os corpos, dando forma a uma
sociedade de controle. Entende-se sociedade de
controle, segundo Foucault (2008), como um
processo de vigilância dos corpos, objetivando-
os, tratando-os como dados que corroboram
para a prevenção de possíveis práticas que
desviem das regras correntes em dado lugar
historicamente situado.
Uma sociedade de controle cria sistemas
de correção, atuando sobre a vida. Passa-se a
diferenciar o que é normal do que é anormal. A
normalização de determinados comportamentos Disponível em:
implica no estranhamento de outros. Isso é o <https://www.facebook.com/pages/Deboismo-
Igreja-dos-de-
biopoder, é o controle da vida e é o controle
Boas/1083622748319824?sk=photos_stream/>.
moral. Acesso em: 29 de julho de 2015.
Eis que na atualidade emergem duas Por outro lado, o “Tretismo” (Figura 4)
vertentes de resistência ao controle moral e à apresenta a retomada do discurso religioso
moralidade cristã, que vem sendo abalada há cristão, opondo-se a ele, e emerge como um
tempos pelo discurso científico e filosófico. movimento de resistência ao Deboísmo,
Por meio da rede social Facebook, trazendo verdades constituídas como
apareceram, como acontecimentos fluidos, o mandamentos para os ditos “tretistas”, que
“Deboismo” (Figura 3), pregando o cuidado de devem, por meio de uma postura reativa tomar
si, a preocupação consigo, evitando o patamar parte nas relações interpessoais do outro e
de axioma ao retomar os mandamentos bíblicos gerar a discordância. Em seu discurso retoma o
como sugestões. Deboísmo a partir de enunciados como “Nem
de humanas, nem de exatas, sou de tretas”. O
Enunciados como “Não sou de
símbolo do Tretismo é o bode, estereotipado
humanas, nem de exatas, sou de boas”
em diversas pinturas e no Satanismo como uma
demonstram o lugar em que o sujeito se coloca,
figura que remete ao demônio.
preocupando-se com seu próprio corpo e
opondo-se à preocupação com as relações entre
corpos alheios. Retoma, assim, os dizeres
bíblicos a partir de uma perspectiva
existencialista, fundamentando-se numa visão
nietzschiana de postura ativa. O símbolo

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729
Figura 4: Dez mandamentos do
Tretismo Pensa-se, assim, num sistema que não é
fixo, mas plural, rizomático, mutável, em que
saber e poder se entrelaçam na formação de
dispositivos, criando regularidades e
possibilitando resistências, obtendo, como
efeito, a subjetivação constante do sujeito em
uma trama de descontinuidades.
A ação sobre si é uma forma de o
sujeito se subjetivar a partir de sua ética,
podendo negar o controle moral, ocupando
novas funções na rede de saberes e poderes que
Disponível em: modelam a trama social.
<https://www.facebook.com/Tretismoo/photos_strea
m/>. Acesso em: 29 de julho de 2015.
Os dois movimentos de resistência se Referências
contrapõem mutuamente, criando uma paródia
AGAMBEM, G. O que é um dispositivo? In:
do cristianismo, em razão de exaltar o sujeito e
______. O que é contemporâneo? E outros
pôr fora a figura da deidade, o ídolo, como diria
ensaios. Chapecó, SC: Argos, 2009. P. 21-51.
Nietzsche (2006). As figuras três e quatro
trazem os mandamentos/sugestões das duas BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato
correntes, como enunciados que carregam responsável. Trad. Valdemir Miotello e Carlos
vestígios dos discursos que dão forma a elas. Alberto Faraco. São Carlos: Pedro & João
Estas poderiam ser práticas de poder que Editores, 2010, 160p.
contrapõem a sociedade de controle moral por BAUMAN, Z. Modernidade Líquida.
meio do controle de si. Tradução: Plínio Dentzien. Rio de Janeiro:
4. Considerações finais Zahar, 2003.
A partir da descrição, relação e COURTINE, J. J. Decifrar o corpo: pensar
entrecruzamento de enunciados nas com Foucault. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.
descontinuidades da história, em diferentes DALMONTE, E. F. Dispositivos midiáticos –
espaços, em diferentes tempos, pode-se atestar modos de mostrar, modos de olhar. In: XXXI
que a sociedade de controle moral se Congresso Brasileiro de Ciências da
ressignifica continuamente, principalmente na Comunicação, 2008, Natal. Intercom –
fluidez da contemporaneidade. A atualidade do Sociedade Brasileira de Estudos
discurso e das práticas se fundamenta na Interdisciplinares da Comunicação. Disponível
possiblidade de existência, impressa na em: <
organização da história. As diversas formações http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/20
discursivas e suas relações fazem aparecer 08/resumos/R3-0324-1.pdf>. Acesso em 10
diferentes regimes de verdade. julho de 2015.

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730
DELEUZE, G. Foucault. São Paulo: SARGENTINI, V. M. O. Dispositivo: um
Brasiliense, 2005a. aporte metodológico para o estudo do discurso.
In: SOUSA. K. M.; PAIXÃO. H. P.
______. O que é um dispositivo? In: ______. O
Dispositivos de poder/ saber em Michel
mistério de Ariana. Trad. Edmundo Cordeiro.
Foucault: biopolítica, corpo e subjetividade.
Lisboa: Vega, 2005b. (pp. 83-96).
(no prelo).
FOUCAULT, M. A Arqueologia do saber.
Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 7. ed.
Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1995.
______. Microfísica do poder. Organização e
tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro:
Edições Graal, 1979.
_______. História da sexualidade 2: o uso dos
prazeres. Jorge Zahar - RJ, 1994.
______. Sobre as maneiras de escrever a
história. In: FOUCAULT, M. Arqueologia das
ciências e história dos sistemas de pensamento.
(Col. Ditos e escritos, II). Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2000.
______. Mesa-redonda em 20 de maio de 1978.
In: FOUCAULT, M. Estratégia, poder-saber.
(Col. Ditos e escritos, IV). Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2003. (pp. 335-351).
______. Segurança, território e população.
Trad. De Eduardo Brandão. São Paulo: Martins
Fontes, 2008.
NIETZSCHE, F. Crepúsculo dos ídolos. Trad.
Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia
das Letras, 2006.
______. A Gaia Ciência. Trad. Paulo César de
Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1ª ed.
2001.
PRADO FILHO, K. Diversidade e diálogo:
reflexões sobre alguns métodos de pesquisa em
psicologia. In: ZANELLA, A. V. Interações,
vol. XII, n. 22. P. 11-38. Juldez 2006,
Universidade de São Marcos.

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731
DISCURSOS SOBRE A LEITURA E OS LEITORES EM
DECLARAÇÕES DE LIVREIROS POPULARES DE SÃO CARLOS

Camila Martins de OLIVEIRA; Luzmara CURCINO


Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
camioliveira26@hotmail.com; luzcf@ufscar.br

Resumo: O trabalho visa levantar e analisar certas representações de leitura do leitor da


atualidade por meio da análise do que dizem livreiros de bancas sobre seu público, sobre
os leitores que adquirem livros em bancas, sobre os livros que comercializam, sobre as
práticas de leitura que constatam, recomendam, valoram ao enunciarem, em especial, ao
responderem à aplicação de um questionário de entrevista semiestruturada, realizada no
ambiente de trabalho desses profissionais. O corpus é constituído de duas entrevistas com
dois livreiros de bancas de revistas e livros da cidade de São Carlos - SP, cujas análises
serão norteadas pelas reflexões da Análise de discurso e da História cultural da leitura.
Palavras-chave: representações discursivas da leitura; livreiros de banca; discursos
sobre a leitura.

levantaremos por meio da entrevista as


Introdução representações compartilhadas acerca da leitura
Pretendemos empreender um por meio da análise do que enunciam sobre as
levantamento de representações de leitura bem motivações dos leitores contemporâneos para a
específicas, advindas de entrevista aquisição e leitura de livros, dos rituais
semiestruturada, realizada com dois livreiros de realizados que definem o acesso aos textos
bancas de jornais localizadas na cidade de São lidos. Nossa análise dessa relação (comercial,
Carlos-SP, com vistas a compreender certas cultural e simbólica) entre livros vendidos em
representações que compartilham sobre as bancas de revistas, a partir do olhar dos
práticas de leitura de seu público consumidor livreiros que os comercializam, pode nos
da atualidade. Objetivamos, assim, levantar oferecer informações sobre o que, por que e
dados por meio das entrevistas e analisá-los de como se lê hoje, em especial no que diz
modo a apreender melhor certas projeções de respeito aos nichos de leitores concernidos
práticas de leitura que são compartilhadas na como o público de bancas. Assim podemos
atualidade pelos leitores, de modo geral, e em identificar alguns indícios que possam
particular pelos profissionais que atuam nesse contribuir para descrevermos o perfil do leitor
mercado, de modo específico. Para tanto, atual constituindo um repertório de
representações do leitor brasileiro na

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732
atualidade, em conjunto com outros A partir das entrevistas, organizamos nosso
pesquisadores do LIRE. corpus de enunciados a serem analisados e
faremos o cruzamento dos dados obtidos por
1. Objetivos
meio das questões abertas, de maneira a
Realizar um levantamento de responder a nosso objetivo geral de apreender
representações de leitores e de práticas de representações de leitura que sustentam,
leitura, a partir da realização e análise de autorizam e originam as práticas do público
entrevistas com livreiros, considerando os tipos leitor de que falam esses livreiros.
de livros e as formas de aquisição e leitura de
livros, na contemporaneidade. 3. Análises e discussão
Com as entrevistas realizadas e com a
Cotejar nossos dados com aqueles
realização inicial de um cruzamento de dados
obtidos por pesquisas sobre essa relação entre
(diretos e indiretos), buscamos levantar
livros lidos na atualidade.
regularidades quanto às percepções,
Refletir sobre os estudos da Análise do concepções e mitos sobre a leitura, para então
Discurso relacionados a alguns princípios da analisarmos o impacto dessas representações
História cultural, de modo a melhor partilhadas socio-culturalmente sobre as
compreender as injunções contemporâneas a práticas efetivas dos leitores. Assim,
certas práticas de leitura e não a outras. levantamos os discursos ‘autorizados’, de viés
2. Abordagem teórica e metodológica pedagógico ou comercial, que são empregados
como argumento para se referir à importância
Apoiamo-nos nas teorias da Análise do da leitura, de sua frequência e da necessidade
Discurso de linha francesa derivada dos de escolha do que ler, avaliando o que se diz
trabalhos dos filósofos Michel Pêcheux e sobre os leitores de bancas.
Michel Foucault, no que concerne a sua
abordagem das condições de produção e Os resultados iniciais dessa pesquisa
circulação dos textos, logo dos sentidos por referem-se aos dados obtidos com a entrevista
eles e a partir deles produzidos, assim como ao primeiro e segundo livreiro. Na primeira
também buscamos apoio em alguns princípios entrevista, observamos em suas declarações a
da História Cultural, desenvolvidos remanência de discursos sobre a leitura, alguns
especialmente acerca da história do livro e da respondendo a estereótipos mais difundidos
leitura, sobretudo aqueles descritos pelo acerca dessa prática, como dizer que “ler é
historiador e estudioso das práticas e viajar”, reiterados muitas vezes em campanhas
representações da leitura e do leitor, Roger publicitárias de incentivo à leitura, assim como
Chartier. alguns relativamente mais atuais, como a
afirmação de que para ser um bom leitor é
O corpus é constituído das respostas preciso ler de tudo um pouco. O responsável
dadas a uma entrevista realizada com dois pela banca que trabalha com livros usados diz
livreiros de banca da cidade de São Carlos, de que considera todos os tipos de leitura válidos
modo a avaliarmos diferenças e similitudes em até mesmo aqueles que são desconsiderados
suas declarações sobre seu público leitor por sua falta de prestígio simbólico como o da
consumidor e sobre suas concepções de leitura. leitura de romances sentimentais das coleções

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733
Júlia e Sabrina. Declara também que população da cultura de massa ou como se
atualmente nota as pessoas mais ausentes denomina na indústria cultural masscult, ou
quando o quesito é leitura, compartilhando o cultura popularizada. Estes são rotulados pelo
imaginário de que antigamente as pessoas liam entrevistado como um tipo de “literatura
mais. Assim, por meio do levantamento e descartável”, pois narram histórias de fantasias,
análise de discursos sobre a leitura manifestos que contém personagens fictícios como fadas,
no que dizem os livreiros acerca dessa prática, vampiros e príncipes encantados não
é possível classificar o que dizem conforme seu correspondendo ao mundo real e concreto em
pertencimento a diferentes formações que vivemos, portanto não possuindo um
discursivas que regulam o que é normal e caráter de prestígio ou de formação prestigiosa
verdadeiro sobre a leitura. para um sujeito leitor.
Já na segunda entrevista realizada, 4. Considerações finais / Conclusões
notamos que há dizeres semelhantes aos do Dando continuidade a nossas
primeiro livreiro, como na percepção de que análises, esperamos poder identificar
antigamente a população lia mais do que os outras características do perfil dessa
leitores de hoje e de que para ser um bom leitor comunidade leitora específica de
é necessário se informar, se inteirar sobre as consumidores de livros de bancas, a partir
notícias atuais, ler sobre diversos temas, não só do que dizem os comerciantes acerca de
os específicos de sua área profissional. No
seu público leitor e consumidor. Com
entanto, ao contrário da primeira declaração, o nossa pesquisa, esperamos, em conjunto
segundo entrevistado diverge quanto a sua com as demais pesquisas relacionadas ao
opinião de que tipo de leitura é considerada projeto geral ao qual este se filia, a saber,
válida ou não, recomendável ou não. A autora sobre as práticas vigentes de leitura na
Márcia Abreu, retrata bem essa questão na atualidade, contribuir para constituir um
citação abaixo: painel de representações do leitor
Uma concepção elitista de cultura torna brasileiro na atualidade. Com nossa
invisíveis as práticas de leitura comuns. A análise buscaremos refletir sobre as razões
delimitação implícita de um certo conjunto de reiteração de certos discursos sobre
de textos e de determinados modos de ler leitura, como e com base em que perfil de
como válidos, e o desprezo aos demais leitura é feita a comercialização de livros
estão na base dos discursos que proclamam populares, qual é o público alvo e suas
a inexistência ou a precariedade da leitura práticas concebidas por aqueles que
no Brasil. (ABREU, 2001, p.154). indicam títulos, que adquirem acervos,
enfim por suas ações como livreiros.
O entrevistado entende que a literatura Esperamos que com essa pesquisa
ficcional não agrega nenhum aspecto positivo possamos melhor nos situar teoricamente
para a vida pessoal do leitor, como os livros no campo de estudos da linguagem, com
denominados de best-sellers, que são as obras nossas leituras em Análise de discurso,
mais vendidas, apontados como os livros mais assim como cotejar esse conhecimento a
populares e que são consumidos pela alguns princípios da História Cultural da

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734
leitura, garantindo assim nossa entrada no
GREGOLIN, M. R. Caras e Você S.A:
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736
O SUJEITO TEMBÉ-TENETEHARA: A CONSTRUÇÃO DO
DISSENSO

Cristiane Helena Silva de OLIVEIRA; Ivânia dos Santos NEVES


Universidade Federal do Pará (UFPA)
cristiane_helena2007@hotmail.com

Resumo: Neste artigo falaremos do sujeito em Foucault como um ser historicamente


construído por discursos e saberes, e dentro dessa perspectiva traremos a discussão sobre
o sujeito indígena hoje, mais especificamente sobre a sociedade Tembé-Tenetehara que
vive no estado do Pará, aqui usamos duas entrevistas para mostrar o dissenso, partindo
da luta pelas terras indígenas do Alto rio Guamá (TIARG), onde, trataremos dos
tensionamentos discursivos entre os Tembé-Tenetehara e o governo, representado pela
FUNAI. Além, das sugestões dadas pela sociedade não-indígena que escolhe quando o
índio deve ser considerado indígena.
Palavras-chave: FUNAI; TIARG; sociedade; tembé-tenetehara.

uma função dispersa que pode assumir, dentro


Introdução
de um discurso, estatutos e lugares distintos,
Todos os indivíduos, quando inseridos não sendo ele o autor, causa ou origem da
nos jogos de poder da linguagem, assumem linguagem. Tomando estas considerações para
posições de sujeito na sociedade. Ao mesmo analisar como se produzem as subjetividade
tempo em que são enunciadores de sua cultura dos povos indígenas na atualidade, principal
e de sua história, também passam a ser interesse deste trabalho, fazemos a seguinte
enunciados pela linguagem. Neste trabalho, pergunta “Quem são eles, hoje?”. Mas, nossa
vamos tomar a definição de sujeito histórico pergunta não está fundamentada em uma
formulada por Michel Foucault (1995), para generalização, não acreditamos que os 305
quem, o sujeito, o indivíduo só se aproxima de povos indígenas de nosso país representam uma
si através de saberes. O discurso – como prática única sociedade, então, vamos nos dedicar
discursiva – pode ser definido pelo status do especificamente a compreender as práticas de
sujeito que fala, pelos lugares de onde fala e subjetivação de lideranças da sociedade
pela posição do sujeito enquanto fala. A partir indígena Tembé-Tenetehara, como eles se
disso, podemos afirmar que produzir autodefinem e como a FUNAI- Fundação
identidades está diretamente relacionado aos Nacional do Índio e a mídia local se empenham
dispositivos de poder adotados em nossa na definição do que representa uma liderança
sociedade. O sujeito em Foucault, na verdade, é Tembé-Tenetehara. Estes três diferentes

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737
enunciadores apresentam redes de memórias
Em 1964, seguindo o exemplo de outros
que se tencionam. Para isso, tomaremos um
países latino-americanos, instaura-se uma
acontecimento em especial, a invasão
ditadura militar no Brasil (1964 – 1985), a
promovida pelo fazendeiro Mejer na Terra
palavra chave desse governo era
Indígena Alto Rio Guamá-TIARG, apoiada
“desenvolvimento”. Em relação à Amazônia,
pelos militares, que durou mais de três décadas.
este projeto vinha acompanhado de interesses
Há diferentes versões sobre este mesmo
voltados ao desenvolvimento econômico do
acontecimento e podemos perceber, a partir
país e à integração da região. Estava incluída
delas, diferentes lugares de falas dos sujeitos
nos planos do governo a construção de duas
envolvidos. Selecionamos como corpus de
estradas: a Transamazônica e a Santarém-
nossa análise uma entrevista concedida, em
Cuiabá, que passavam dentro da floresta
2014, por Naldo Tembé, cacique da aldeia Sede
Amazônica e cortavam a região de norte a sul e
e do atual diretor da FUNAI/PA.
de leste a oeste. No entanto, não fazia parte
1. A terra e o sujeito Tembé-Tenetehara desse plano de desenvolvimento uma
Nos documentos oficiais, o que hoje preocupação com os direitos dos povos
compreendemos como Terra Indígena do alto indígenas. Na verdade, eles representavam um
Rio Guamá - TIARG começou a ser construída problema, era preciso afastá-los das
no ano de 1945, com um decreto de doação da construções, e para amenizar os danos que a
terra feito pelo interventor Magalhães Barata. presença indígena causava, foram criadas as
Ele atendeu uma solicitação do SPI- Serviço de “frentes de atração”, que visavam
Proteção ao Índio e doou a terra para os Tembé à“pacificação” dos indígenas, através de outros
e outros povos: Timbiras, Guajá, Kaapor e indígenas, e nesse processo os Tembé-
trabalhadores da região, segundo Neves; Tenetehara tiveram uma grande participação:
Cardoso (2015, p.25):
Sérgio Muxi, da aldeia Tekohaw conta que:
[...] aconteceu a criação da Reserva “À medida que a construção das rodovias
avançava pelo território paraense, nós
Indígena Alto Rio Guamá, concedida pelo
decreto nº 307 de 21 de março de 1945, no tínhamos que nos afastar, porque junto com
governo do interventor federal General estas construções vinham madeireiros,
Joaquim Magalhães Barata, com 279.892 garimpeiros e muita violência”. Elias
ha e um perímetro de 366.292,90 metros. Tembé, da Aldeia Cajueiro, explica que:
Esta Reserva foi destinada aos Tenetehara, “Eles nos levavam para trabalhar na
mas também incluía os Timbiras, Guajá, pacificação de outros povos indígenas, que
Kaapor e trabalhadores mestiços da região. viviam nos caminhos das rodovias. Isso
durou até mais ou menos 1979. Depois
voltei para o meu povo e decidi formar
Há na história da constituição da minha família.” (NEVES; CARDOSO,
TIARG, pelo menos duas versões, uma contada 2015.p.27)
pelo povo Tembé-Tenetehara, a partir de suas
narrativas orais e a outra contada pelos Os indígenas que eram cooptados pelos
documentos escritos da FUNAI, antigo SPI. militares, também serviam de mão de obra nas

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de novos colonos, vindos em sua maioria
intervenções desenvolvimentistas do governo, de outras regiões do país, intensificou o
isso causou muitos impactos nas sociedades processo de invasões na Reserva Indígena,
indígenas que vivem na região. Como acontece muitas vezes incentivadas pelo próprio SPI.
nos regimes de exceção, para a ditadura militar, (NEVES; CARDOSO, 2015. p.25-26).
o importante não era a preservação das
diferenças de uma nação, logo, quanto mais
A Ditadura Militar e os Tembé: a separação
homogênea fosse a identidade do país, melhor
Para controlar melhor as sociedades
seria o domínio, por parte dos militares. Então,
indígenas, durante a implantação dos
todos que se encaixavam no fator “diferente” grandes projetos de exploração na região
ao militarismo e estavam nos caminhos dos amazônica, a Ditadura Militar (1964-1985)
militares sofreram com essas imposições, pois transformou o SPI na Fundação Nacional
representavam obstáculos vivos. Os povos do Índio – FUNAI, que passou a ser
indígenas que viviam nas regiões por onde presidida pelo general Bandeira de Melo.
passaram as rodovias, assim como os que Nas suas primeiras ações, ele autorizou a
foram envolvidos no projeto de pacificação Companhia Agropecuária do Pará a invadir
sentiram na pele essas imposições militaristas. 11 mil hectares da Reserva. Esta atitude
Uma das primeiras atitudes foi a retirada dos abriu caminho para novas invasões, quase
todas com incentivos fiscais aos que
indígenas que viviam nestas terras, o processo
promovessem o desmatamento. (NEVES;
de retirada dos indígenas de suas terras se CARDOSO. 2015, p.27).
intensificou mais na ditadura militar, é nesse
período que o SPI é extinto para a criação da
FUNAI. Para princípios dos trabalhos, o Dentro desse contexto os indígenas
presidente da FUNAI autorizou a invasão de começam a ser acusados de não serem mais
uma parte do território indígena, com um plano indígenas. O enunciado “raça pura” passa a
de remuneração àqueles que devastassem a fazer parte do discurso do colonizador, mesmo
área, através do desmatamento, como afirma sendo ele próprio o responsável pela
Neves; Cardoso (2015): pluralidade étnica dentro das aldeias, não
levando em consideração que os Tembé são um
Os limites territoriais ainda não faziam povo com mais de 300 anos de contato com o
parte do cotidiano dos Tenetehara e eles, não índio. A partir, desse discurso muitos
assim como outros povos indígenas, indígenas passam a ser chamados, pelas
transitavam pela região sem rigorosas autoridades da FUNAI, de “caboclos” e passam
delimitações. A maioria deles, ao norte da a perder seus direitos à terra indígena:
Reserva, vivia na margem esquerda do rio
Guamá e foram transferidos para a margem Segundo o cacique Naldo Tembé, da
direita e houve a instalação do Posto Aldeia Sede: “O governo sempre quis
Guamá, onde atualmente se localiza a acabar com os povos indígenas. O tempo
Aldeia Sede. A fundação da cidade de todo nós somos acusados de não sermos
Capitão Poço, em 1961, desmembrada do mais índios e o tempo todo eles inventam
município de Ourém, tinha como objetivo novas maneiras de mudar nossa cultura!”.
intensificar a agricultura nesta região do Desde as primeiras ações do SPI, ficou
estado do Pará. Mais uma vez, a chegada evidente a intenção de transformar a

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739
Reserva em uma colônia agrícola,
integrando a população indígena aos processo de auto identificação dos Tembé-
moradores da região. (NEVES; Tenetehara.
CARDOSO, 2015, p.25). Mesmo tendo sido documentada em
1945, a TIARG (Terra Indígena do Alto Rio
Por várias vezes, o chefe de posto era Guamá) começa a ser demarcada fisicamente
responsável pelo tom preconceito atribuído aos em 1972 e este processo só é finalizado em
indígenas, que eram impedidos, inclusive, de 1976/77, quando funcionários da FUNAI
falar sua própria língua. Segundo Naldo começam a abrir as picadas (processo físico de
Tembé, em certo momento os indígenas foram demarcação). No entanto, o processo jurídico
tão reprimidos que chegou o momento de eles fica parado de 1977 a 1993, segundo a FUNAI,
mesmos não se identificarem como índios. a informação da época é que as cadernetas de
Campo haviam desaparecidos. A FUNAI de
Chegou determinado ponto que eles (os Belém retomou o processo e apenas em 1993
índios) proibiram a si mesmo de se ele foi homologado, já de acordo com uma
identificar como índio, pois na época índio
nova legislação. Segundo especialistas, as
era muito discriminado. Em determinado
momento cada chefe que passava por aqui terras mantiveram, quando observado pelas
dizia: “olha! Você tem que parar de falar fotos e pelos mapas, a mesma configuração
esse idioma, pois eu não sei, tens que falar geográfica, o mesmo formato, não mudou
o meu, por que esse é universal.” A partir absolutamente nada. No entanto, é no período
dai os antepassados foram deixando de de demarcação oficial da reserva, em 1976 que
falar nossa língua. (TEMBÉ, 2015)1 o maior problema de invasão ocorre, pois, é
nessa época, que em uma parte da TIARG, é
O fator identidade foi crucial na história criada a Fazenda de Mejer Kabacznik.
da colonização da Amazônia e do Brasil, pois 2. Tensões discursivas em torno da Fazenda
por diversas vezes é ela que vai traçar leis e Mejer
projetos específicos para um povo, uma classe,
etc. No caso dos Tembé, a autoafirmação A invasão da TIARG causada pela
identitária como indígena foi tão abalada que, ampliação da fazenda Mejer foi administrada
durante os anos de 1970 e 1980, eles próprios pela ditadura militar, puxada pelas politicas de
não se sentiam mais indígenas. Diante disso, incentivo e ocupação. Eles se instalaram
podemos afirmar que aos índios da Amazônia recebendo o lote no limite da área, sabendo que
foram negadas as transformações históricas era o limite da terra indígena. Segundo a
relacionadas à sua cultura e ao seu próprio FUNAI o proprietário Mejer recebeu licença de
território e a presença de colonos trazidos pelos ocupação para ficar em um ponto, mas
militares, assim como as práticas autoritárias simplesmente invadiu a área e abriu uma
do regime militar interferiram bastante no estrada de 24 km, ligando a propriedade dele à
área que hoje é conhecida como vila de
Livramento, no município de Nova Esperança
1 do Piriá.
TEMBÉ, Naldo. Entrevista I. [jan. 2015].
Entrevistador: Ivânia dos Santos Neves. Pará, 2015. 1
arquivo .mp3 (120 min.).

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740
como tudo aqui, nós não vamos ter um
Abaixo podemos ver o mapa da resultado muito bom, nesse aspecto. O meu
TIARG, a área laranjada é a Fazenda Mejer. De trabalho mesmo é tentar fazer com que os
índio entendam esse processo e possam
lá partiu a estrada que dividiu os Tembé por
eles mesmos não precisar de nós brancos
para sempre falar por eles, mas não é uma
Figura 1. Área da TIARG coisa fácil. Pois você: tem índios que não
tem essa noção do território. Tradições se
criam, eu queria saber: “por onde os índios
iam entre o Guamá e o Gurupi? Será que
iam?” eu cheguei a ter duvidas, que pra
mim sempre me pareceu que essa área ai
era não era uma área bem do Tembé, ela
me parece ter sido uma área mais de outros
índios que fizeram caminhos inversos, os
Tenetehara vieram do Maranhão e Kaapor
foram para o Maranhão de repente pode ser
isso, mas não temos dados que possam
levar a essa conclusão, tudo é muito dubio.
(BESSA, 2015l)2

No entanto, sobre o assunto os


indígenas afirmam que a construção da estrada
da Fazenda Mejer foi um obstáculo que os
separou por anos, as poucas vezes que os
Fonte: (NEVES; CARDOSO, 2015, P.25) habitantes do Guamá encontraram os do
Gurupi, foi por terem caminhado por fora das
décadas. terras indígenas.
Sobre isso, Juscelino Bessa, atual Segundo a própria FUNAI, o
coordenador da Funai/PA explica que essa proprietário Mejer abriu a estrada sem o
questão da separação é algo muito dúbio, pois conhecimento do órgão, e dos indígenas. Neste
não foi feito um estudo formal de ponto, começa o tensionamento no discurso
etnozoneamento, sendo assim, para ele é difícil que narra os fatos, pois, os indígenas afirmam
acreditar só no relato oral dos indígenas, tendo que no momento em que as obras da estrada
em vista, que os índios podem não ter começaram, algumas lideranças foram
realmente uma noção verdadeira de espaço: convocadas para assinarem uma autorização,
em troca de benefícios agrícolas, dada pelo
Essa questão da passagem que no livro é
tratada com uma ênfase, eu não sei se é
fazendeiro, e esta negociação teria sido
efetivamente por dentro da fazenda, pois
até hoje nós não temos claramente um BESSA, Juscelino. Entrevista II. [jan. 2015].
estudo (etnozoneamento) e nunca ficou Entrevistador: Cristiane Helena Silva de Oliveira. Pará,
muito claro isso. Eu me esforcei tanto por 2015. 1 arquivo .mp3 (31min 42 seg.).
esse etnozoneamento e parece que assim

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741
intermediada pela FUNAI, no entanto a FUNAI enfatizando os documentos escritos, ditos
declara que o que houve, na verdade, foi o oficiais.
processo que hoje denominamos de “Mitigação A segunda etapa foi realizada entre os
de Impactos”, pois, segundo o órgão, o que a dias 03 a 07 de junho de 2015, na TIARG,
FUNAI fez foi somente autorizar uma obra que quando colhemos dados através de entrevistas
já tinha começado. filmadas com as principais lideranças dos
3. O caminho para as conclusões Tembé-Tebnetehara, além da entrevista
concedida pelo cacique da aldeia sede, Naldo
Os procedimentos teóricos-
Tembé que concedeu uma gravação de 2 horas
metodológicos desta pesquisa pautam-se na
34 minutos e 19 segundos e oficinas de
perspectiva teórica proposta por Michel
desenho propostas para as crianças da aldeia
Foucault, em “Arqueologia do Saber”
Sede, localizada no município de Capitão Poço
(1969/2005), que estabelece um movimento de
– Rio Guamá. As oficinas tinham como intuito
regularidades e dispersões na constituição
a coleta de material para o documentário, ainda
histórica dos discursos. Tomam-se, portanto, as
não lançado, sobre uma das narrativas contadas
referências teóricas da análise do discurso para
por esse povo.
olhar a história do presente não como uma
regularidade, que levaria a supor que as As duas entrevistas seguiram um padrão
identidades indígenas estão presentes nos de liberdade, onde, cada entrevistado ficou à
setores da sociedade da mesma forma e pelas vontade para falar sobre os assuntos propostos.
mesmas razões, nem entende os discursos
4. O dissenso
como uma homogeneidade à parte das
transformações históricas. Como já tínhamos alertado
anteriormente, há no entorno da construção da
Utilizamos dados levantados em outros TIARG, pelo menos duas versões, uma contada
projetos do GEDAI durante o biênio 2013-2015 pelos indígenas e a outra é baseada em
para o inicio da pesquisa. As narrativas que documentos da FUNAI. Analisaremos, agora,
foram transcritas, assim como a documentação dois fragmentos de falas, o primeiro do
da FUNAI recolhidas nestes projetos. No Coordenador, baseado em documentos do
entanto, ainda foi preciso o trabalho de campo, órgão e o segundo o relato oral de um indígena:
tanto com o órgão governamental quanto com
os indígenas. Fragmento 1
A primeira etapa do trabalho de campo No fim da década de 80 e meados da
foi realizado foi no dia 29 de janeiro de 2015, década de 90, chegaram até o Guamá
constituído por uma entrevista dada pelo algumas lideranças que vieram pressionar o
diretor da FUNAI-PA, Juscelino Bessa que FUNAI para a saída da fazenda Mejer das
concedeu em uma gravação, depois transcrita, terras indígenas, pois o acordo feito não era
de 56 minutos e 22 segundos uma explicação bom. Os índios foram utilizados para o
sobre a constituição das Terras Indígenas do acordo da FUNAI, na época enganaram
dizendo para que eles assinassem um
Alto Rio Guamá e o caso da Fazenda Mejer,
documento. Era um acordo da permanência
do Mejer dentro da área indígena, pois na

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742
época não era dentro da área indígena, na um trabalho que já estava sendo feito. Os
verdade ele pediu autorização para passar a índios dizem que isso foi feito sem o
estrada. O advogado enrolou os indígenas. conhecimento deles, pode até ser que sim,
O acordo era ele passar estrada, colocar mas certamente não foi antes da estrada ser
portão na entrada e na saída e fazer uma aberta, foi depois, como uma tentativa de
outra estrada direto aqui para aldeia para mitigação. Isso pra nós fará toda a
fornecer as sementes do que nós diferença na questão de indenizar, pois, a
necessitávamos para o desenvolvimento. FUNAI vai ter que provar que eles abriram
Essa foi a proposta feita. a estrada sem nos comunicar e só depois foi
A FUNAI que deveria fazer a fiscalização celebrado um acordo para a continuidade,
do que havia sido prometido. Logo depois, como diz no documento, então esse é um
o Ministro da Reforma Agraria Jader ponto. Sobre esse assunto a gente não tem
Barbalho decreta a colônia indígena alto rio muita clareza, há um emaranhado de
Guamá e a colônia indígena alto Gurupi, versões provavelmente o que os índios
passando o corredor no meio, atravessando assinaram é uma outra situação que já foi
a área de um lado para o outro sendo a criada pelo próprio governo, dentro do
Cidapar. E a FUNAI agora como parte do desfecho da história da Gleba Cidapar, no
governo, descredencia o documento governo do Sarney, na época o ministro da
assinado pelos indígenas. (TEMBÉ, 2015)3 reforma agraria era o Jader Barbalho. Eles
criaram duas novas figuras chamadas
colônias indígenas e ai sim os índios foram
Fragmento 2 chamados a assinar. (BESSA, 2015)4
O Mejer recebeu licença de ocupação para
ficar em um ponto, mas simplesmente Duas versões de uma mesma história.
invadiu a área, depois da ação da FUNAI, Há um esbarrão quando se trata dos discursos
nós quantificamos em 9.250.000 hectares e de cada um destes enunciadores. Qual seria o
abriu uma estrada ligando a propriedade verdadeiro? O Primeiro fragmento recheado de
dele à área que hoje é conhecida como
gestos e entonações de voz diferentes, mas sem
Livramento (Pau de Remo). Pelos
documentos consultados vemos que o nenhuma citação de lei, baseado somente em
Mejer abre essa estrada sem conhecimento uma memória, no entanto rico em detalhes? Ou
da FUNAI, dos índios, quando o chefe de o segundo, que conta com um léxico mais
posto descobre a estrada, ele avisa a tratado de alguém com formação e baseado em
FUNAI e esta embarga, mas a estrada tinha documentos escritos, ou seja, a verdade
começado antes e numa tentativa que hoje ocidental? Talvez a resposta esteja nas
nós chamamos de MITIGAÇÃO DE entrelinhas que dizem muito mais do que foi
IMPACTOS a FUNAI faz um acordo com escrito, fatos que não aparecem em
o Mejer e fica dito nesse acordo “clausura documentos, ditos oficiais, por razões obvias,
primeira: A FUNAI autoriza a
CONTINUAÇÃO dos trabalhos...”
Autorizar continuação, significa que havia
4
BESSA, Juscelino. Entrevista II. [jan. 2015].
Entrevistador: Cristiane Helena Silva de Oliveira. Pará,
3
TEMBÉ, Naldo. Entrevista I. [jan. 2015]. 2015. 1 arquivo .mp3 (31min 42 seg.).
Entrevistador: Ivânia dos Santos Neves. Pará, 2015. 1
arquivo .mp3 (120 min.).

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tais como: em 1977 o chefe de posto relata o que a palavra escrita é canonizada, há uma
desaparecimento das cadernetas de campo e expectativa somente se considerar o dito
isso faz com que o processo da TIARG fique oficial, por isso há um avanço em relação ao
imóvel até 1993, quando elas são encontradas. silenciamento dos Tembé. Não fossem as
O então ministro Jader Barbalho, na época de possibilidades do nosso tempo presente, já
todo esse tensionamentos, tinha um parentesco teríamos uma única verdade estabelecida, a
com os donos da Fazenda Mejer. Diante desses verdade do oficial, da escrita, do cânone, nesse
dois discursos, e agora, onde estaria a verdade? caso, os documentos escrito da burocracia dos
órgãos governamentais e os indígenas seriam
O cacique da aldeia Sede, quando
mais uma vez os coadjuvantes de sua própria
avisado que muito do que ele estava falando em
história. Não podemos deixar de notar que,
entrevista não estava registrado em documento
durante a realização do trabalho de campo, o
algum, simplesmente respondeu “Na verdade
enunciador oficial, quando utilizou a oralidade
nunca apareceu, pois a versão indígena que é
e largou as amarras das letras, conseguiu passar
falada nunca foi considerada capaz de ser
mais autoridade discursiva do que o documento
registrada”.
que ele segurava em mãos. Seus gestos e sua
As memórias se contradizem e se entonação, estratégias da oralidade, nos
tencionam, os registros desta história também remetem a outras possibilidades do estudo da
se movimentam. Se durante a ditadura militar linguagem, que em nossa perspectiva foram
não havia possibilidade da versão indígena via compreendidas dentro da história em que foram
a público, hoje, esta situação mudou. A produzidas.
violência a que os povos indígenas são
Os indígenas foram somente a parte
submetidos passou a ser divulga nas redes
representada neste trabalho. A sociedade não
sociais e a repercussão internacional destes
acontecimentos já fez o governo brasileiro indígena construiu no entorno desses povos um
estigma que se tornou muito difícil de romper,
rever despejos no Mato Grosso do Sul.
apesar dos esforços. Percebemos que a
Ainda estamos longe de ver as questões produção do preconceito começa quando ainda
fundiárias resolvidas e as fronteiras das terras somos muito pequenos, na convivência com a
indígenas respeitadas. Lideranças indígenas família, a partir da programação midiática, na
continuam sendo assassinadas e o cacique escola. Nos livros didáticos, por exemplo, a
Naldo Tembé várias vezes já foi ameaçado de figura do indígena ainda é aquela da pintura de
morte. Pela construção histórica da Theodoro de Bry ou da gravura do livro de
colonização neste mais de cinco séculos, não Hans Staden, presa ao discurso do bom
podemos esquecer que nesse “mundo de selvagem ou do canibal, generalizada, sem
brancos” os marginais são os que mais sofrem marcar a heterogeneidade destas sociedades.
com os silenciamentos.
No final desse trabalho, é fácil observar
4. Considerações finais um pouco de como nossa sociedade trata
Concluiremos sem ter a certeza de aqueles considerados marginalizados, essa
quem detém a verdade, o que podemos parcela da população que sofre por ser
considerar um avanço, pois numa sociedade em

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744
“presenteada” com rótulos de bem vestir e
ONG, W. Oralidade e Cultura escrita.
como se comportar.
Campinas: Papirus, 1998.
Mesmo em um mundo dotado de
NEVES, I; CARDOSO, S. Patrimônio Cultural
governos democráticos e discursos embasados
Tembé-Tenetehara. Belém: IPHAN, 2015.
na igualdade, ainda não conseguimos, no geral,
perceber o indígena como ele é, mas sim como NEVES, I.; CORRÊA, M. Sentidos da pele
queremos percebe-lo. Aikewára: urucum, jenipapo e carvão. Belém:
Editora Unama, 2011.
Referências
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CHARTIER, R. A aventura do livro: do leitor
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JAUSS, H. R... et al. A literatura e o leitor:
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e o pós-moderno. Bauru, SP: EDUSC, 2001.

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745
“DIREITA COXINHA” E “ESQUERDA CAVIAR”: FÓRMULAS
E SIMULACROS NO DISCURSO POLÍTICO

Hélio de OLIVEIRA
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP/FAPESP)
helio.sjbv@gmail.com

Resumo: Este artigo analisa as ocorrências de duas formulações que circularam bastante
durante o período eleitoral, em 2014, e ainda se mantêm nas discussões acerca do atual
cenário político brasileiro, “direita coxinha” e “esquerda caviar”. O corpus é constituído
por textos de diversos gêneros, oriundos do campo jornalístico, tanto em suportes
impressos quanto em suas versões digitais, que de alguma forma retomaram, legitimaram,
reformularam ou recusaram as fórmulas em análise. O objetivo foi aproximar os
trabalhos de Krieg-Planque (2003, 2010) e os de Maingueneau (2008, 2015), o que
possibilitou a compreensão minuciosa do funcionamento da polêmica – e a consequente
produção de simulacros – tendo em vista que ser polêmica é uma das propriedades
essenciais de toda fórmula discursiva.
Palavras-chave: fórmula discursiva; polêmica; simulacro.

que contribuem para construí-los. Segundo a


Introdução
autora,
As fórmulas incomodam: sua circulação
pelo espaço social é permeada de polêmicas (de se a fórmula circula, é porque carrega nela
intensidade variável) e o fato de funcionarem interesses múltiplos, eventualmente
como referente social faz com que estejam no contraditórios. Mas também é porque o uso
centro das atenções. Em um território marcado da expressão constitui, nele mesmo, um
jogo (...) um valor de injunção" (2015,
por constantes disputas, como é o caso do
p.15).
campo político, fórmulas se impõem como
pretensa formulação de verdade, na tentativa de
produzir o (impossível) consenso. Observando esse aspecto teórico (e
também metodológico, na medida em que
Compreendidas, a partir de Krieg- aponta elementos que devem ser investigados
Planque (2010), como um significante de ao se "perseguir" possíveis fórmulas), as
extensão variável – relativamente conciso e expressões "direita coxinha" e "esquerda
cristalizado –, as fórmulas condensam caviar", por sua vez, circularam de maneira
interesses políticos e sociais, ao mesmo tempo intensa nas eleições para presidência do Brasil,

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746
em 2014, e ainda se mantêm nas discussões forma de coxa de galinha: coxinha. Esse
acerca do atual cenário político brasileiro, sentido cristalizado continua a funcionar no
designando as posições mais conservadoras ou universo discursivo brasileiro, embora suas
mais liberais no campo político, genericamente ocorrências como item culinário não sejam
chamadas de direita e esquerda. Ressalve-se manifestações da fórmula. Por outro lado, o
que o embate entre as posições político- contrário pode ser verdadeiro: nas ocorrências
ideológicas é antigo e complexo. Um da fórmula "coxinha", traços desse sentido
inventário detalhado da política brasileira pode "original" podem ser recuperados. Um exemplo
ser encontrado em Bobbio (1994). desse aspecto é uma postagem, feita da rede
social Instagram, em que um paulistano fica
Neste trabalho, as referências aos
parado sobre a ciclovia recém inaugurada na
posicionamentos políticos antagônicos serão
Avenida Paulista para tirar uma foto e reclama
feitas de maneira genérica, uma vez que a
que quase foi atropelado por um ciclista. A
análise se concentra no processo de
postagem, segundo os comentários no próprio
constituição das fórmulas e, de maneira mais
Instagram, criticava a ciclovia com base em
específica, em uma das propriedades essenciais
argumentos obtusos. Um dos comentaristas
(constitutivas) das fórmulas: seu caráter
escreve: "O espírito de fritura sempre ataca...",
polêmico. Essa propriedade permite identificar
numa referência ao salgadinho cujo nome
quando um significante deixa de funcionar, no
"definiria" o autor da postagem.
espaço social, com uma unidade lexical
"comum" e passa a apresentar um estatuto A origem da circulação de "coxinha"
formulaico, ou seja, seus sentidos são fora do campo culinário é incerta. Diversos
disputados, sua circulação se torna intensa e artigos recentes trataram do tema (fato que
começa a figurar em diferentes discursos, a manifesta o alçamento da fórmula à posição de
propósito de inúmeras questões que extrapolam referente social, outra de suas propriedades
seu campo de origem (OLIVEIRA, 2014). essenciais). Um dos artigos1 diz que recorreu a
"linguistas, rappers, policiais, 'coxinhas' e
A análise discursiva deve ser capaz de
'anticoxinhas' para tentar descobrir a origem do
identificar, quando é possível, um certo período
termo" (a circulação por diversos campos
"pré-formulaico" para uma dada palavra/termo,
discursivos é outro indicador do estatuto
pois entender esse processo de "transição" de
formulaico). Uma explicação está relacionada
"palavra" à fórmula elucida a natureza da
ao apelido dado ao vale-refeição que os
fórmula em questão.
policiais militares (PMs) recebiam, chamado
1. Supostas origens da "direita coxinha" e "vale-coxinha", pois o valor desse benefício só
da "esquerda caviar" era suficiente para comprar esse petisco, ao
É bem conhecido, no Brasil, o petisco invés de uma refeição completa. Isso também
servido em festas, além de em diversas 1
“Tipicamente paulistana, gíria "coxinha" tem
lanchonetes e padarias, feito de massa (de trigo
origem controversa”. Folha de São Paulo, 22/04/2014,
ou batata), recheado com carne de frango e frito Comportamento, disponível em:
em óleo vegetal. O nome desse "salgado", <http://www1.folha.uol.com.br/revista/saopaulo/sp22042
metaforicamente, vem de seu formato em 01209.htm> Acesso em 15 de setembro de 2015.

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explicaria o fato de os próprios PMs, com o time de futebol paranaense, para começar a ser
passar do tempo, serem chamados de evocado a propósito de vários temas polêmicos,
"coxinhas". Por outro lado, de acordo com então ele atinge a condição de fórmula. No caso
outro texto, 2 específico de "direita coxinha", esse caráter
polêmico é indicativo da inscrição da fórmula
O apelido foi inspirado nas coxas brancas num determinado discurso, aquele usualmente
dos homens arrumadinhos que usam chamado de "esquerda". O discurso de
bermuda ao tomar sol. O time Coritiba, por "direita", por sua vez, manifesta o mesmo
exemplo, ganhou o codinome ‘Coxa’ por
mecanismo enunciativo, denominando seu
causa da torcida, que era composta por
descendentes alemães em sua maioria e antagonista de "esquerda caviar". A identidade
tinham coxas brancas. de ambos, advém de uma relação mutuamente
constitutiva, como se verá no subtópico
seguinte.
Em ambos os casos, assim como em
diversos outros pesquisados, um traço se No que tange a "esquerda caviar", esta
mantém, a informação de que os coxinhas formulação não parece ter tido uma existência
modernos são "arrumadinhos", brancos e de pré-formulaica, mas já nasce envolta em
classe média ou alta – a grande maioria de polêmicas, poder-se-ia dizer, já surge a partir
classe social alta, conforme se lê a seguir 3. de uma relação polêmica. Na França dos anos
60, circulava a expressão socialisme
Engomados, bons moços, preocupados em champagne (socialismo champanhe), como
acentuarem suas diferenças do resto da forma de crítica aos intelectuais eropeus que se
sociedade. (...) Distinção, moda, lazer e apresentavam como representantes dos menos
consumo conspícuo fazem parte do universo favorecidos economicamente, embora
dos coxinhas.
estivessem sempre cercados de luxo. Duas
décadas mais tarde, o sintagma parece ter sido
Assim, a origem da fórmula está substituído por outro mais incisivo, a gauche
marcada pela sua inserção na dimensão caviar (esquerda caviar). Segundo a wikipédia,
discursiva do espaço social. Ou seja, quando o essa expressão surgiu como um neologismo
significante deixa de predicar um gênero político na década de 1980, sendo empregada
alimentício ou apenas se restringe a uma gíria pelos detratores do governo de François
que corresponde ao policial paulistano ou ao Miterrand.
Ao se considerar que esses termos
2
“Você sabe o que é um coxinha?” iG São Paulo, poderiam ter circulado no Brasil no final do
14/10/2013. Disponível em: século XX sem serem representativas das
<http://delas.ig.com.br/comportamento/> Acesso em 15 questões sulamericanas, pode-se aventar,
de setembro de 2015.
enquanto hipótese, que essas formulações não
3
“O surgimento dos ‘coxinhas’". Observatório da funcionavam como fórmulas aqui. Houve uma
Imprensa, 03/09/2013. Disponível em: ocorrência bastante comentada em 2009,
<http://observatoriodaimprensa.com.br/feitos- quando o jurista brasileiro Walter Fanganiello
desfeitas/_ed762> Acesso em 15 de setembro de 2015. Maierovitch publica em seu blog o texto

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748
"Battisti e a gauche caviar", como uma réplica conseguinte, o caráter constitutivo da relação
aos integrantes do Partido Verde francês, que interdiscursiva sempre se manifesta como
defendiam a não-extradição do ex terrorista polêmica, pois a própria gênese dos discursos
italiano Cesare Battisti, então sob custódia do acontece num processo de incompatibilidade
Brasil. Ainda assim, o evento discorreu, radical – que o autor denomina
principalmente, sobre o cenário político “interincompreensão regrada”.
francês.
Com efeito, a relação polêmica “baseia-
Ela pode ter ciculado antes, mas se numa dupla bipartição: cada polo discursivo
certamente o fez de maneira discreta, em recusa o outro, como derivando de seu próprio
círculos mais restritos, sem condensar em si a registro negativo, de maneira a melhor
pletora de questões que tem evocado nos reafirmar a validade de seu registro positivo”
últimos anos. Parece que "esquerda caviar" se (idem, p. 64). Isso significa que, a partir de
torna plenamente uma fórmula no espaço social cada sistema de restrições semânticas, são
brasileiro sob a égide de dois acontecimentos, definidos dois conjuntos de categorias
ambos em 2013: as manifestações de junho de semânticas opostas: o conjunto de dos semas
2013 (que se iniciaram na cidade de São Paulo reivindicados pelo discurso (os semas
e depois tomaram todo o país) e o lançamento positivos) e o conjunto dos rejeitados por ele
do livro "Esquerda caviar", publicado por (os semas negativos). Os semas são aqui
Rodrigo Constantino. entendidos como unidades de sentido que
refletem, segundo Maingueneau, “a exploração
A partir de então, e impulsionadas pelas
sistemática das possibilidades de um núcleo
últimas eleições, essas fórmulas circulam de
semântico” (p. 62).
maneira intensa, compondo um percurso –
unidade transgenérica caracterizada por Com efeito, entre as várias posições
Maningueneau (2015, p. 95) como unidade não enunciativas, não há dissociação entre enunciar
tópica, ou seja, um objeto de análise construído conforme com as regras de sua própria
a partir de uma dispersão, de trajetos formação discursiva e “não compreender” o
imprevistos que atravessam diversos gêneros e sentido de enunciados do Outro, pois cada
campos discursivos e cuja unidade é produto posição interpreta os enunciados de seu Outro
das hipóteses de trabalho do analista. traduzindo-os nas categorias do registro
negativo de seu próprio sistema. Evidencia-se,
2. Polêmica e simulacro
nesse ponto, um dos efeitos da relação
De acordo com Maingueneau (2008), a polêmica – o simulacro. Em outras palavras, o
identidade discursiva é definida a partir da Mesmo só compreende seu Outro através de
interdiscursividade, o que significa entender o um simulacro que dele constrói, de uma espécie
interdiscurso como tendo primazia sobre os de imagem distorcida na qual, o Outro jamais
discursos, ou seja, estes últimos não se se reconhecerá.
constituem independentemente de outros
O excerto a seguir é exemplar da forma
discursos, para serem depois postos em relação,
como o discurso da direita apresenta a si
“mas eles se formam de maneira regulada no
próprio (as palavras correspondem aos semas
interior do interdiscurso” (idem, p. 21). Por
característicos desse discurso e permitem

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749
inscrever esse fragmento no discurso típico da
direita) e também seu antagonista: Distinção do resto da população é a meta e
Trata-se de um verbete do "Dicionário a vida dos coxinhas. Eles estão bem longe
Informal"4: do mundo de onde vem a maioria daqueles
que protestam. É apenas justo que agora
eles caiam no ridículo aos olhos de muitos.
"COXINHA" Porque a gente brasileira finalmente
Co.xi.nha acordou e os coxinhas lá no fundo sabem
1. propenso ao trabalho e ao estudo que não passam de acomodados pedantes
2. Ativo, laborioso, diligente, dedicado, (...) 5
competente.
3. Aquele que dá valor ao mérito.
(...) Coxinha: muita massa e pouco conteúdo. 6
Ex: Antônio é considerado um coxinha
porque se reusa a usar a cota do governo
destinada a negros em concursos públicos, A autoproclamada diligência da direita
preferindo conquistar sua vaga por seus aparece nos enunciados acima como uma forma
próprios esforços, mérito e competência. de "distanciamento" da população mais pobre
que protesta por melhores condições. Nos
"panelaços" realizados nas capitais, madames
No excerto acima, "coxinha" é definido
ricas apareciam nas sacadas de luxuosos
com vários qualificadores positivos, entre eles
edifícios batendo panelas bem longe do restante
"trabalho" e "mérito" são retomados algumas
da população que, na maioria das vezes, nem
vezes. Além de se constituir positivamente,
toma parte nos protestos eminentemente de
esse discurso acerca do estereótipo da direta
direita, haja vista que algumas dessas
desenha, por assim dizer, seu Outro: quem é de
manifestações chegaram a pedir a volta do
esquerda se caracteriza por ser preguiçoso (no
regime militar no Brasil. A grande quantidade
extremo, vagabundo) e viveria dos recursos
de matéria jornalística publicada pela direita
públicos (como bolsa família ou programa de
nas mais diversas (e maiores) mídias do país,
cotas). Dito isso, afirma-se que essa alusão ao
aqui pode ser vislumbrada pelo enunciado
trabalho e ao mérito, associada à severa crítica
"muita massa" (mais uma alusão às coxinhas
aos programas de assistência sociais do
fritas) e "pouco conteúdo" (em diversos
governo em curso é um traço constante desse
momentos do debate público recente,
discurso que recusa o termo "coxinha" e, como
personalidades declaradamente de direita
no fragmento em epígrafe, tenta desestabilizar
o sentido pejorativo de "direita coxinha" e se
significar positivamente. 5
“O surgimento dos ‘coxinhas’". Observatório da
Dois outros excertos mostram como o Imprensa, 03/09/2013. Disponível em:
<http://observatoriodaimprensa.com.br/feitos-
discurso típico da esquerda define a fórmula: desfeitas/_ed762> Acesso em 15 de setembro de 2015.
6
Comentário de leitor. Disponível em:
4
Versão online disponível em: <http://observatoriodaimprensa.com.br/feitos-
<http://www.dicionarioinformal.com.br/coxinha/> desfeitas/_ed762> Acesso em 15 de setembro de 2015.
Acesso em 15 de setembro de 2015.

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750
veicularam mentiras ou argumentos pífios que
prejudicaram a recepção de suas demandas).
3. A circulação das fórmulas por textos
imagéticos (intersemióticos) Figura 01. Capa do livro "Esquerda Caviar"

Angermüller (2014) chama à atenção


para a diversidade de materiais com os quais os
analistas de discurso lidam em sua prática e
ressalta que "texto", aqui entendido como o
extrato material dos discursos, não se restringe
a conteúdos escritos, mas também orais e até
não-verbais. Antes disso, Maingueneau (2008)
também já assumia que o discurso deve ser
concebido como uma prática discursiva,
através da qual o sistema de restrições
semânticas torna os textos comensuráveis com
a “rede institucional” de um “grupo”, que a
enunciação ao mesmo tempo supõe e torna
possível. Em conformidade com isso, a prática Na figura 01, a foto que ilustra a capa
discursiva também pode ser pensada, de do livro "Esquerda Caviar" exibe uma silhueta
maneira mais abrangente, como uma prática em que se pode reconhecer o ex-líder cubano
intersemiótica que integra produções Fidel Castro, que esteve à frente de Cuba e da
pertencentes a outros domínios semióticos revolução cubana por muitas décadas,
(pictórico, musical etc.), dessa forma, “o reconhecido por sua postura política de
mesmo sistema de restrições que funda a esquerda. Na imagem, Castro aparece fumando
existência do discurso pode ser igualmente um charuto numa sala de estar luxuosa, com
pertinente para esses outros domínios” (idem). poltronas em estilo vitoriano e piso que
A prática intersemiótica deve ser considerada, aparenta mármore. A atmosfera da foto,
em consequência, como a manifestação de uma realizada em preto e branco, com uma luz
mesma semântica em outros planos que não o diáfana atravessando cortinas de renda,
estritamente linguístico-textual. contribui para o caráter "artístico" da imagem e
para sentidos relacionados à elitização do
A seguir, apresentam-se algumas
ambiente. Nessa composição, Fidel Castro
imagens em que é possível observar que os
desfrutaria placidamente dos frutos do
mesmos simulacros identificados nos
capitalismo que ele critica e combate. A
enunciados “reaparecem” aqui em outra
interpretação se confirma pela presença da
semiose.
palavra "hipocrisia" logo abaixo do título do
livro. Por seu valor altíssimo (em torno de
R$12.000,00 ao quilo), o caviar é evocado
como símbolo máximo da opulência, um
excesso imperdoável para aqueles que

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denunciam a fome no mundo. Assim, atribuir "ofensa" à direita geralmente composta por
essa predicação à esquerda (nessa fórmula, empresários e membros da elite social.
morfologicamente, "caviar" é um substantivo Vestígios desse processo de
com função de adjetivo, formando um interincompreensão atravessam ambos os
composto semelhante a "peixe-gato") é uma discursos e estão presentes em todos os seus
forma de desqualificar o discurso da esquerda, fragmentos, como uma cadeia de "DNA" que
um pretenso desmascaramento das marca suas identidades. Essa relação
"verdadeiras" intenções egoístas dos partidários constitutiva é extremamente produtiva e a
da esquerda. figura 02 ilustra de maneira exemplar a
produção de simulacros – aqui manifestos por
Talvez o autor ignore que quaisquer
meio de palavras que representam xingamentos
benefícios usufruídos por Fidel Castro vêm de
mútuos – a partir da grade semântica de cada
sua posição como líder máximo do país e não
um deles: uma coxinha e uma torrada coberta
simplesmente por ser de esquerda. De qualquer
de caviar se ofendem simultaneamente:
forma, tanto Castro como as outras
"petralha" vs. "tucanalha", "mensalão" vs.
personalidades citadas no livro correspondem a
"trensalão", "Estados Unidos" vs. "Cuba" e
um posicionamento político específico, mais
assim por diante.
ainda, a um simulacro produzido a partir do
discurso da direita. Figura 03. Charge de Latuff, 2014, Facebook

Figura 02. Charge de André Freitas, blog


"Trabalho de Sísifo"

O processo de constituição mencionado Apresenta-se a figura 03 para mostrar a


acima pode ser observado na figura 02, produtividade discursiva (assim como a
inclusive, o fato da direita ser chamada de produtividade lexical, comentada a seguir) das
"coxinha" pela esquerda, vem do mesmo fórmulas, a diversidade de temas nos quais ela
mecanismo de desqualificação do adversário: aparece e que ganham evidência a partir dela.
por ser um alimento barato, típico das camadas Retomando os outros excertos citados ao longo
sociais mais pobres, aparece como uma do trabalho, as fórmulas em questão participam
de discussões sobre a política assistencial,

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752
como bolsa família e outros programas sociais,
4. Considerações finais
discussão acerca das cotas raciais e, por
extensão, temas ligados às práticas racistas, A aproximação da noção de fórmula
política internacional (os casos de Cuba e com os trabalhos de Maingueneau permitiu
Estados Unidos), escândalos de corrupção e, no observar em minúcias um dos efeitos da
caso da figura 03, o machismo e a violência polêmica – a produção de simulacros a partir
contra as mulheres, além de muitos outros das restrições semânticas de ambos os
exemplos não citados. discursos, a direita conservadora e a esquerda
liberal, em termos genéricos.
É nesse âmbito que Motta e Salgado
(2011) afirmam que as fórmulas se assemelham Observou-se, também, que a gênese
a um "nó numa rede – não um ponto final, não das fórmulas “direita coxinha” e “esquerda
um ponto isolado, mas ponto nevrálgico, lugar caviar” é interdiscursiva, ou seja, funda-se
estratégico na dinâmica histórica". numa relação polêmica constitutiva da própria
identidade dos discursos no campo político
Essa constatação vai ao encontro de
brasileiro. Análises adicionais permitirão saber
Ebel e Fiala (1983), para os quais
se essas fórmulas tiveram origem numa
Em certo estado das relações de forças fórmula "anterior", nesse caso, "coxinha", a
sociais, surgem fórmulas em relação às partir da qual as duas fórmulas aqui analisadas
quais o conjunto de forças sociais e passaram a constituir contextos próprios.
locutores são coagidos a tomar posição, a
As fórmulas em questão comportam
defini-las, a combate-las ou aprova-las, mas
em qualquer dos casos, a fazê-las circular
uma densidade histórica que se presentifica em
de uma maneira ou de outra” (1983, p. sua circulação, apoiada em uma memória
174). interdiscursiva e voltada a novas construções
como “coxinhopanelopata”, deflagrando
polêmicas e obrigando os atores sociais a se
A produtividade discursiva está
posicionarem frente a elas.
associada à produtividade lexicológica das
fórmulas, tendo em vista as reformulações
encontradas no corpus. À guisa de exemplo, Referências
cita-se "esquerda champanhe", "esquerda
festiva", "esquerda de butique", "direita AGERMÜLLER, J; MAINGUENEAU, D;
mortadela", "direita chouriço", "coxinhopata", WODAK, R. The discourse studies reader:
"coxinhopanelopata", além do verbo mains currents in theory and analysis.
"coxinhar". Todos esses aspectos contribuem Amsterdam, Philadelphia: John Benjamins,
para o funcionamento de "esquerda caviar" e 2014.
"direita coxinha" como fórmulas discursivas, BOBBIO, N. Direita e esquerda: razões e
entretanto, uma linha de interpretação dos significados de uma distinção política. S.
dados sugere que a fórmula "principal" talvez Paulo: Unesp, 1994.
seja "coxinha", o que não impede que uma
fórmula dê origem a outras. FIALA, Pierre; EBEL, Mariane. Langages
xénophobes et consensus national em Suisse

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753
(1960-1980). Discours institutionnels et
langage quotidien, la mediatisation des
conflits. Neuchatel: Université de Neuchatel -
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KRIEG-PLANQUE, A. A noção de fórmula em
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sustentável": um operador de neutralização de
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Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

754
GERAÇÃO SELFIE, MÍDIA E LIBERDADE DE EXPRESSÃO:
UMA ANÁLISE DISCURSIVO-SEMIOLÓGICA

Hulda Gomides OLIVEIRA


Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
prof.hulda@hotmail.com

Resumo: Este texto é o registro das primeiras análises de nossa pesquisa de


doutoramento, que investiga a constituição do discurso de liberdade de expressão e sua
[re]configuração em sociedades democráticas pós o advento de mídias virtuais. A partir
do referencial teórico da Análise de Discurso de linha francesa, o que empreendemos
aqui é análise de trechos da Déclaration des Droits de l’Homme et du Citoyen, por nos
indicar como, a partir de processos históricos e semiológicos, constrói-se um discurso
sobre o sujeito da liberdade de expressão.
Palavras-chave: liberdade de expressão; sujeito.

expressão, partindo dos ideais registrados


Introdução
oficialmente na Déclaration des Droits de
O presente texto compõe uma parte de l’Homme et du Citoyen, uma vez que se trata de
nossa pesquisa de doutorado, que se encontra um dos ordenamentos jurídicos modernos
em fase inicial de escrita, intitulada “Geração importantes para a construção de práticas sobre
selfie, mídia e liberdade de expressão: uma tal fenômeno.
análise discursivo-semiológica”. O objetivo da
É importante notar que tanto a
tese é considerar elementos da conjuntura
revolução americana quanto a francesa são
política na França de 1789 no que diz respeito à
fundamentais para uma reflexão sobre a ideia
noção de liberdade de expressão, relacionando-
de liberdade na história do Ocidente, contudo,
os a movimentos atuais de [re]significação de
optamos por nos prender a apenas uma porque,
tal discurso, levando em conta a configuração
além de ser um recorte metodologicamente
de espaços virtuais de dizibilidades /
justificável (por questões de tempo e espaço), é
visibilidades na mídia contemporânea, em
também peculiar analisar o contexto francês,
outras sociedades democráticas (como a
uma vez que ele conta com a maioria dos
brasileira, por exemplo).
teóricos participantes do ideário iluminista,
Aqui nos interessa, mais empreendido no final do século XVIII.
especificamente, retomar a noção de sujeito
Ainda, é necessário ressaltar que as
que fundamenta os dizeres sobre liberdade de
discussões feitas aqui irão se pautar no diálogo

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755
com o quadro teórico da Análise do Discurso abordada como lugar de interação, as
mobilizada na França, no fim do século circunstâncias de enunciação se alteram, não se
passado. Trataremos, portanto, a Declaração a compreende mais o processo como sendo de
partir da compreensão pêcheuxtiana do texto emissão e recepção, mas sim como uma relação
como unidade complexa de ordem discursiva, interativa entre interlocutores, e os sentidos
ou seja, como “deslocamento nas redes de serão ali negociados pelos sujeitos em
filiações (históricas) de sentidos” (PÊCHEUX, interação.
1983:2007). Assim, toda a discursividade desta A hipótese que temos é a de que o
declaração será abordada aqui não como um sujeito pressuposto nas reivindicações por
documento estável a ser consultado, mas sim liberdade de expressão parece ser esse mesmo
como um monumento que nos conduz a uma “sujeito pleno” que intenciona expressar
memória, cronologicamente datada em 1789, livremente seus pensamentos. Consideremos os
mas discursivamente construída tanto antes seguintes artigos da Declaração:
quanto depois de tal cronologia, como um todo
resultante de articulações históricas das quais Art. 10º. Ninguém pode ser molestado por
ela é simbólica. suas opiniões, incluindo opiniões
1. O sujeito da liberdade de expressão na religiosas, desde que sua manifestação não
perturbe a ordem pública estabelecida pela
Declaração francesa dos direitos dos homens
lei. Art. 11º. A livre comunicação das
e dos cidadãos idéias e das opiniões é um dos mais
A historiografia dos estudos da preciosos direitos do homem. Todo cidadão
linguagem registra uma de suas principais pode, portanto, falar, escrever, imprimir
noções, a de linguagem, como resultante de três livremente, respondendo, todavia, pelos
perspectivas teóricas: a linguagem como abusos desta liberdade nos termos previstos
na lei.
expressão do pensamento; a linguagem como
instrumento de comunicação; e a linguagem
como lugar de interação. Em todas essas Os dois artigos se completam, uma vez
formas de compreensão permanece uma íntima que objetivam resguardar a livre expressão das
relação com a forma como se entende o sujeito, opiniões e ideias individuais. A liberdade em
ou os sujeitos, de linguagem. Quando a comunicar os pensamentos aqui é colocada
linguagem é tratada como expressão do como um daqueles direitos sagrados e
pensamento, temos pressuposto um sujeito que inalienáveis do homem. Na mesma linha, esses
expressa precisamente as ideias por ele direitos são necessários por serem naturais, são
construídas. A linguagem seria, assim, a aqueles direitos que não precisam ser
representação espelhada do que o emissor conquistados, porque fazem parte da essência
pensa. Quando se toma a linguagem como natural dos homens, antes precisam ser
instrumento de comunicação, novamente o protegidos na coletividade, em prol da ordem
esquema é baseado na troca direta e exata de pública e segundo a vontade geral (que é a lei).
um sujeito que irá emitir informações a um Depois de estabelecido este pressuposto natural
receptor, também pleno e com total controle do é que vem a descrição de como os cidadãos
que tem a dizer. Por fim, quando a linguagem é podem atuar na prática de tal direito. O natural

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756
é, então, convertido em legal, ou ainda, o atenção é exatamente como os sentidos são
indivíduo é interpelado, portanto, em sujeito de construídos entre e para os sujeitos. Por
direitos e sujeito a deveres. exemplo, com Foucault, o que nos instiga é
compreender como os seres humanos vão se
Esse sujeito aí pressuposto se ancora em
tornando sujeitos no mundo e desenvolvendo,
uma conjuntura filosófica que anuncia um
enfim, uma subjetividade em relação a si
sujeito de intenção. Aquele sujeito cartesiano,
próprios e em relação/sujeição aos outros. Em
ideal e desistoricizado, pois sua expressão é
certo momento o próprio Foucault reconhece
que garante sua existência no mundo,
que o que ele pretendia era, na verdade, “criar
independentemente de condições históricas e
uma história dos diferentes modos pelos quais,
simbólicas. Esta expressão o coloca como
em nossa cultura, um ser humano torna-se
sujeito de fala, de escrita e de impressão livres.
sujeito” (1995, p. 231). Ele mesmo afirma isso
E isto só é possível, pois admite-se um sujeito
em um artigo publicado em um livro de
pleno de consciência e que por isso mesmo é
Dreyfus e Rabinow (1995, p. 231):
capaz de expressar com precisão seus
pensamentos. Eu gostaria de dizer, antes de mais nada,
Isso nos remete ao título da declaração, qual foi o objetivo do meu trabalho nos
que se nomeia como Declaração dos Direitos últimos vinte anos. Não foi analisar o
do Homem e do Cidadão, assim, o texto fenômeno do poder nem elaborar os
fundamentos de tal análise. [...] Meu
diferencia “homem” e “cidadão”. Aqui
trabalho lidou com três modos de
novamente salta uma leitura possível: o homem objetivação que transformam os seres
é quem tem direitos naturais, inalienáveis e humanos em sujeitos.
sagrados; mas o cidadão, por sua vez, é quem
encarna tais direitos e deveres listados em
forma de lei, que passam a ser Instigado por preocupações
institucionalizados e, portanto, enquadram este semelhantes, Pêcheux também irá apontar uma
homem como cidadão, participante do corpo “mudança de terreno” dos estudos do discurso
social e que se dirige sempre “à conservação da que tem tudo a ver com novos modos de se
Constituição”. Aos poucos vai se desenhando a tratar o sujeito. Em sua crítica ao sujeito da
simbologia de um discurso que regra dizeres e psicologia social, ele indica como o sujeito se
ações, interpelando indivíduos em sujeitos a apresentava como aquele “mestre de sua
uma ordem; do natural ao ideológico; do morada”, [auto]centrado, que poderia ser
sagrado ao humano. Contudo, não se evidencia estudado em “uma cena fechada, a-histórica, na
que existe uma ilusão subjetiva, que qual a linguagem (palavras, textos ou
aparentemente constrói um sujeito livre, cheio discursos) é imediatamente identificada em
de direitos, honrado e protegido pelo Código. sequências ‘observáveis’ de ações (condutas ou
Não obstante, o que se constitui mesmo é um comportamentos) trocadas entre os
sujeito altamente interditado e interpelado protagonistas da interação” (PÊCHEUX,
ideologicamente. 1983:2007, p. 51). Esse mito psicológico ao
qual Pêcheux se refere entende, ainda, o sujeito
Essa noção de sujeito foi sempre muito como aquele que produz a língua por meio de
cara à Análise do Discurso, pois o que chama sequências evidentes, de conteúdo estável,

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757
desconsiderando o jogo de economia das na verdade, o que escapa. Essa relação com o
narrativas que nos leva a falar e calar. Outro é central, a palavra endereçada garante o
sujeito, visto que “não há sujeito verdadeiro
Pêcheux (1983:1998) está nesse
que se sustente a não ser aquele que fala em
momento traçando os contextos
nome da palavra [ao mesmo tempo em que] só
epistemológicos da Análise de Discurso na
existe sujeito na referência a esse Outro”
França. Para isso, apresenta a difusão dos
(LACAN, 1958, p. 16).
temas psicanalíticos (freudianos e lacanianos)
como ganhos à AD, na medida em que Podemos notar preocupação semelhante
pretende se firmar no conjunto das disciplinas em Althusser, quando chega a afirmar seu
de interpretação, que não esteja em busca de interesse pela fala do inconsciente. Talvez
um sentido hermenêutico, implícito, mas sim fosse possível dizer que o inconsciente fala, ao
de efeitos de sentidos construídos na “relação mesmo tempo em que a ideologia também fala
discursiva entre sintaxe e léxico no regime dos e faz calar:
enunciados, com o efeito de interdiscurso
induzido nesse regime, sob a forma do não-dito [D]epois de Freud é que começamos a
que aí emerge como discurso outro, discurso de suspeitar do que quer dizer o escutar, e
portanto o falar (e o calar); e que o “quer
um outro ou discurso do Outro” (PÊCHEUX,
dizer” do falar e do escutar revela, sob a
1983:2007, p. 53).
inocência do falar e do escutar, a
O sujeito da psicanálise fala e falha, e profundidade de uma fala inteiramente
isso é um legado fundamental à AD. Segundo diversa, a fala do inconsciente
Pêcheux, essa experiência singular da falha (ALTHUSSER, 1965, p.14).
produz um saber inconsciente, que submete o
sujeito à castração simbólica e, nesse Se com Lacan podemos compreender a
movimento, inscrevem-se significante e não plenitude do sujeito, com Althusser temos
significado, organizando nossos gestos e a não plenitude dos dizeres. Ambos apontam
palavras mais corriqueiros do cotidiano, que para uma ilusão referencial que se relaciona à
não serão nunca completamente observáveis e falsa plenitude dos enunciados. Existe, assim,
nem logicamente estabilizados. um jogo de palavras que propõe e formula, à
Diante disso, a partir das diversas e revelia, nomeações, questões e problemáticas,
válidas reflexões de Lacan, podemos sem que se perceba um trabalho de produção,
compreender que o inconsciente não é caótico e que interdita e recalca não-objetos. Só que
muito menos responsável por lapsos negativos ainda assim é possível enxergar mutações
do sujeito, é ele que organiza o nosso falar e o latentes em suas próprias condições de
nosso dizer. É preciso considerar os enunciados produção, basta, para isso, que se assuma um
efetivamente produzidos não mais como olhar renovado, agudo, atento aos sintomas,
casuais, fortuitos, frutos de um sujeito pronto não mais entendidos como resíduos, mas sim
que o produziu independente de um outro, cujo como fragilidade constitutiva e inevitável, uma
conteúdo produzido também já estaria dado. leitura sintomal, que relaciona textos presentes
Por isso, Lacan chega a propor que o sujeito é pela ausência de um no outro, mesmo que por
onde não pensa e pensa onde não é, e o real é, uma existência ainda alusiva. Na relação

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758
analista-objeto, o ver, o ler e o falar são, Quando estamos diante de algo que é simbólico
portanto, formas de não ver, de não ler e de não é porque se trata de algo interpretável e, dessa
falar, no limiar entre interpretar e descrever. maneira, distante da referencialidade. Há um
Não existe, assim, um mito religioso do [des]colamento entre significante e significado
sentido, desvendado por um sujeito fetichizado que nunca irá se resolver plenamente.
ou enfeitiçado por uma expectativa de sentidos Há de se considerar também que os
já construídos.
artigos da Declaração então referidos trazem
Percebemos, então, que esses dois marcadores adversativos que reconduzem
pensadores estão preocupados com a produção toda a condição de liberdade até ali constituída,
e leitura dos enunciados que são efetivados mas não apagam a soberania do sujeito.
pelos sujeitos. Entre sistematicidades e Respectivamente, “desde que” e “todavia”
dispersões, os dizeres assumem materialidades indicam, em alguma medida, cerceamentos da
significativas e, à medida que são algo, deixam liberdade em prol da força da felicidade
de ser outra coisa. O sujeito estaria, portanto, comum. Pois, o sujeito ali previsto seria esse
entre o falar e o calar, e, assim, todo dizer seria que tem plenas condições de organizar,
um não dizer, bem como todo ver seria também livremente, suas ideias, “desde que sua
um não ver. As esferas do inconsciente e da manifestação não perturbe a ordem pública”.
ideologia, trabalhadas por esses autores, ao De igual modo, este sujeito é livre para se
mesmo tempo, fazem calar e fazem falar, comunicar “respondendo, todavia, pelos abusos
organizando o lugar da nomeação e dando desta liberdade”. Em ambas as situações temos,
ordem, por fim, a um jogo de palavras. novamente, o sujeito como “senhor de si”,
capaz de controlar perfeitamente suas
Nesse jogo, existe uma ilusão
manifestações, indicando que é ele, portanto, e
referencial que parece querer resolver o
funcionamento dos enunciados; por um lado, nenhuma outra força política, ideológica ou
inconsciente, o responsável por organizar todas
na tentativa de instaurar um sujeito pleno,
as formas de expressão da subjetividade.
centrado, dono do seu dizer, cujos enunciados
são não endereçados, calando a possibilidade 2. Considerações finais
de haver formações do inconsciente. E, por Podemos dizer, portanto, que existe
outro lado, na pretensão de silenciar ou apagar uma rede de discursos que se tocam, se
interpelações ideológicas, históricas e materiais interpelam, se ressignificam, ou seja, os
da linguagem. Levando em conta tais reflexões, símbolos e dizeres criam alianças ou
é justamente este sujeito referencial que parece desigualdades, segundo condições de produção
estar previsto na Declaração: aquele que não é específicas, construindo enunciados diversos na
silenciado, que fala e comunica por direito grande teia de formulações de sentidos. Se
natural e precioso suas opiniões, as exprime e voltarmos à conjuntura política e filosófica da
as imprime sem falha. França de 1789, iremos perceber esse jogo
Ora, quando pensamos no interdiscursivo. É a partir de uma memória
funcionamento dos discursos, ou melhor, dos discursiva iluminista que a Revolução se
enunciados, estamos diante de algo que só se concretiza; as ideias ou ideais de liberdade,
dá entre o ideológico (político) e o simbólico. igualdade e fraternidade formam mais que um

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759
lema, antes, são constituintes de um
Considerando essas reflexões
interdiscurso que irrompe como um “sempre
embrionárias é que pretendemos recuperar, em
já” e irá possibilitar mais tarde uma série de
nossa tese, as discussões feitas neste texto
novos discursos. Neste trabalho destacamos,
sobre a noção de sujeito e os direitos à livre
portanto, a noção de liberdade de expressão
comunicação instituídos na Declaração
como um novo discurso possível a partir dessas
francesa. O objetivo é estabelecer articulações
condições de produção. Como saímos da
com os dizeres e práticas sobre liberdade de
“liberdade” à “liberdade de expressão” e como
expressão antes e hoje, podendo perceber
tais conceitos se complementam
interessantes relações de sentido, que indiquem
discursivamente? E ainda mais, o que
filiação ou aliança, ou mesmo, contradição ou
possibilita a construção desse discurso?
resistência entre tais temporalidades, mas que,
Se caminhássemos, enfim, para uma de qualquer forma, nos forneça elementos para
compreensão dos dizeres contemporâneos compreender como e por que é possível falar
sobre liberdade, expressão e sujeito: o que nós em liberdade de expressão na
entendemos por liberdade de expressão, contemporaneidade.
atualmente, tem resquícios desse sujeito
universalizante? Pensando em um
Referências
desdobramento ainda mais específico: as
mídias virtuais alteram nossos modos de ALTHUSSER, L. De “O Capital” à Filosofia
liberdade de expressão? de Marx. In: ______.; RANCIÈRE, J.;
Ora, o advento das mídias virtuais como PIERRE, M. Ler o Capital. Vol. 1. Rio de
possibilidade de participação efetiva dos Janeiro: Zahar Editores, (1965) 1979.
sujeitos no espaço público, de alguma maneira, FERREIRA, F, M (et. al.). Declaração dos
abre lugar para a configuração de novos direitos do homem e do cidadão. In: ______.
espaços de dizer. São materialidades que Liberdades Públicas. Trad. Marcus Cláudio
interferem na forma de exposição das (Textos Básicos sobre Derechos Humanos).
subjetividades, uma vez que lidam com espaços São Paulo: Saraiva, 1978.
públicos de circulação de falas, de escutas e de
dizeres. Essa nova esfera parece oferecer quase FOUCAULT, M. Sujeito e Poder. In:
que completa liberdade de vozes, que RABINOW, P; DREYFUS, H. Michel
circulariam sem censura e sem controle, mas, Foucault. Uma trajetória filosófica. Para além
simultaneamente, vivenciamos uma série de do estruturalismo e da hermenêutica. Trad.
dispositivos de cesura desse mesmo sujeito Vera Porto Carrero. Rio de Janeiro: Forense
individualista. A hipótese que nos move é a de Universitária, 1995, pp. 231 – 249.
que estaríamos construindo, discursivamente (a LACAN, J. As estruturas freudianas do
partir de processos históricos e semiológicos / espírito. In: _____. O Seminário: as formações
simbólicos), uma “geração selfie”, que produz a do inconsciente. Livro 5. Rio de Janeiro: Zahar
ampla “difusão” de discursos de liberdade de Editores, 1958.
expressão e, ao mesmo tempo, a alta
“proliferação” de discursos de intolerância.

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760
PÊCHEUX, M. Sobre os contextos
epistemológicos da Análise de Discurso. In:
Cadernos de tradução. Instituto de Letras:
UFRGS, n. 1, 2. ed. 1998.
______.; HAROCHE, C.; HENRY, P. A
semântica e o corte saussuriano: língua,
linguagem, discurso. In.: BARONAS, R.
Análise do discurso: apontamentos para uma
história da noção-conceito de formação
discursiva. São Carlos: Pedro & João Editores,
2007.
______. A forma-sujeito do discurso. In:
______. Semântica e discurso: uma crítica à
afirmação do óbvio. Trad. Eni Orlandi (et. al.)
4. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2009.

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761
AS PROJEÇÕES DE LEITURA E O PROCEDIMENTO
EDITORIAL DE ADAPTAÇÃO LEXICAL NAS VERSÕES
LITERÁRIAS CONDENSADAS PARA JOVENS EM FASE
ESCOLAR

Jessica de OLIVEIRA; Luzmara CURCINO


Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
jessikinta@yahoo.com.br; luzcf@hotmail.com

Resumo: O nosso trabalho de pesquisa que ora apresentamos foi conduzido a partir do
objetivo de traçar um dado perfil do leitor para o qual se destinam adaptações literárias
de clássicos da literatura, a saber, o público leitor jovem em fase escolar. Para tanto,
buscamos analisar estratégias de escrita empregadas na construção de quatro adaptações
das obras ‘A Moreninha’, de Joaquim Manuel de Macedo, ‘Dom Casmurro’, de Machado
de Assis, ‘Senhora’, de José de Alencar, e ‘A Escrava Isaura’, de Bernardo Guimarães,
todas da editora Rideel. Em nossa análise procedemos por comparação, cotejando tanto
as obras integrais com as suas respectivas adaptações, quanto comparando uma
adaptação às outras, levantando assim as estratégias de adaptação do texto original a fim
de apreendermos algumas projeções de práticas de leitura e de competências leitoras
pressupostas nesse processo de adaptação.
Palavras-chave: práticas de leitura na contemporaneidade; adaptações de clássicos
brasileiros; análise do discurso; história cultural da leitura.

Introdução A tradução e adaptação tornam-se o carro-


O processo de adaptação de obras para chefe do desenvolvimento do mercado
o público infanto-juvenil, no Brasil, de acordo editorial brasileiro, uma vez que a única
com Arroyo (1988 apud CARVALHO, 2010, forma de nacionalizar uma literatura sem
ter uma consolidada é apropriar-se de uma
p.2) iniciou-se de uma demanda escolar do
estrangeira e tentar dar uma feição
século XIX, momento em que era preciso brasileira à mesma. (CARVALHO, 2006,
alfabetizar uma parcela de alunos privilegiados p.45, apud ALBINO, 2011, p. 01)
sendo que a Literatura Brasileira estava em
processo de formação e, portanto, não tão
voltada para este tipo de público ainda, Desde então as adaptações ganharam
conforme Carvalho (2006), para quem,: várias coleções, edições, bibliotecas e
adaptadores que se consagraram nesta nova

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762
prática editorial. Atualmente cada vez mais partir da análise das estratégias de escrita
frequentemente o mercado livreiro nos empregadas nesse processo de reescrita das
apresenta adaptações de clássicos, valendo-se obras.
do status, ou seja, do valor simbólico adquirido
2. Abordagem teórica e metodológica
por essas obras ao longo da história e das
demandas de leitura, em sua maioria de origem Considerando que para o aumento da
escolar e com fins avaliativos, dessas obras que difusão da produção editorial de adaptações na
compõem os currículos escolares. Além disso, atualidade, junto ao público jovem, aliam-se
boa parte do repertório dessas obras adaptadas fatores históricos, econômicos e técnicos,
constitui-se de obras que já caíram em domínio buscamos, como dissemos, a partir de uma
público, o que do ponto de vista da captação de perspectiva de análise linguístico-discursiva,
publicações por parte da editora torna sua avaliar algumas mudanças formais sofridas
aquisição e produção mais barata, dispensando pelos textos, comparando os originais às suas
o pagamento de direitos autorais. versões adaptadas realizadas por uma mesma
editora, de modo a podermos identificar
Embora haja avanços significativos de regularidades nas técnicas de escrita dessas
estudos sobre o leitor brasileiro, e adaptações e, a partir delas, deduzirmos e
particularmente sobre o leitor de livros apreendermos representações discursivas do
literários, são ainda poucos os trabalhos que se público leitor a que se destinam.
debruçam sobre o leitor inscrito em outros
objetos culturais, especialmente aqueles mais Apresentaremos neste artigo parte de
populares. Este artigo justifica-se, assim, à nossa análise do corpus, constituído por dois
medida que pode contribuir para a ampliação exemplares da coleção Clássicos Rideel, a
da descrição do perfil do leitor brasileiro, saber, A escrava Isaura e A Moreninha, um
ocupando-se particularmente da análise de exemplar da Coleção José de Alencar,
adaptações, que são um produto editorial de Senhora, e um exemplar da Coleção Machado
massa, que visa atingir um público específico, de Assis em sua Essência, Dom Casmurro;
particularmente jovem, em fase escolar e todos da Editora Rideel os quais foram
popular, com finalidades pragmáticas bem comparados cotejando tanto as obras integrais
definidas. com as suas respectivas adaptações, quanto
comparando uma adaptação às outras,
Com o levantamento de trabalhos levantando assim as estratégias de
científicos que se debruçaram sobre questões adaptação/condensação do texto original mais
semelhantes, pretendíamos não apenas levantar frequentes.
hipóteses acerca do impacto (ou não) dessa
ação sobre as práticas de aquisição e leitura de Para a análise que nos propusemos,
livros no Brasil, especialmente entre o público partimos mais especificamente de um conjunto
jovem. Nosso trabalho, no entanto, buscou de reflexões sobre a leitura, promovidas por
compreender o reflexo desse aumento da professores e pesquisadores brasileiros acerca
produção de adaptações de obras clássicas que dos mitos sobre a leitura que frequentam nosso
indiciam a constituição ou fortalecimento de imaginário e que são reforçados pela mídia, por
um imaginário sobre o leitor jovem no Brasil, a vezes pela escola, enfim, pelo mercado

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763
editorial, e que sustentam a leitura das literatura textos do século XVII
adaptações como uma forma de apresentar a (Trovadorismo). No entanto, é natural que o
um leitor não suficientemente competente uma leitor perceba o uso de termos e expressões que
obra que só se lhe torna acessível graças à não são mais utilizados como mocetão
versão adaptada, seja porque ele é jovem e não presentes na obra machadiana, ao invés de
domina o léxico e a estrutura da narrativa, seja moleque e/ou menino, quedo em A moreninha,
porque ele não se interessa por se tratar de um no sentido de quieto, sem movimento, etc. O
texto que relata fatos de outra época e que está que percebemos ao aprofundarmos nossa
longe de sua realidade, seja porque ele não tem análise com as duas últimas obras que
tempo e ‘precisa’ saber do que o livro fala, com compuseram o corpus (A escrava Isaura e
finalidades pragmáticas como realização de Senhora) foi o fato de que, embora haja nos
avaliações etc. textos adaptados a atualização de palavras que
não são mais utilizadas, há também outra
Apoiamo-nos especialmente na Análise
ocorrência deste procedimento editorial que ao
de Discurso, no que concerne a sua abordagem
invés de alterar um léxico por outro, faz uso da
das formas de produção dos textos e de sua
atualização temporal da grafia de um léxico,
consequente interpretação, assim como nos
como exemplo a recorrência de cousa, dous,
mecanismos que fornece para a compreensão
doudos, trajo, contacto, encontradas na obra de
dos efeitos de sentido produzidos pelo emprego
José de Alencar.
de certas estratégias de escrita (escolhas
lexicais, estruturas frasais, recorrência em No início da pesquisa, quando
estruturas textuais suprimidas tais como o pressupúnhamos encontrar este procedimento
enxugamento de descrições, inserção de editorial, não imaginávamos que dentre todas
imagens etc.). Apoiamo-nos ainda em alguns as formas editoriais elencadas essa seria a
princípios da História Cultural concernentes menos frequente quantitativamente (a obra A
aos estudos sobre a leitura, em especial com escrava Isaura, por exemplo, apresenta apenas
base nas considerações de Roger Chartier, que três adaptações desse tipo), visto que as
vem se ocupando da história da leitura a partir adaptações são voltadas para um público
da análise dos objetos culturais que portam jovem.
textos. Duas são as maneiras encontradas pelos
3. A adaptação lexical e o imaginário da editores para solucionar a questão: manter no
competência leitora corpo do texto as ocorrências e explicá-las por
meio de notas de rodapé (todas as versões
a) A adaptação lexical referente à
adaptadas tem notas de rodapé) ou, no caso da
atualização cultural e temporal do léxico
atualização gráfica, aderi-las ao texto. Com a
Todas as obras que compõem o corpus identificação destes procedimentos, nos parece
foram publicadas no século XIX, no que se evidente a pressuposição de uma prática de
refere à temporalidade do léxico o leitor atual leitura segundo a qual, diante das dificuldades
não se encontra tão distante do texto integral, de vocabulário, o leitor recorre (ou deve
sobretudo se considerarmos que a escola traz recorrer) a notas de rodapé, que facilitariam sua
como componente curricular nas aulas de leitura, dispensando-lhe uma consulta a

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764
passagens ou diálogos inúteis, sem
dicionários, por exemplo, a qual no que se significado.
refere à linguagem de escrita de um autor nos E o fato de ser uma adaptação para crianças
parece bastante pertinente por dar ao leitor a ou adolescentes não é desculpa para não ser
oportunidade de conhecer diferentes formas de boa literatura. Não é a toa que os melhores
uso de um vocábulo, ao invés de simplesmente adaptadores são também escritores – ou
restringi-lo ao léxico atual utilizado. Vejamos seja, têm uma obra própria, original.
alguns exemplos desse recurso: (FEIJÓ, 2010, p. 44)

[...] decerto, que não espera casar-se com a A manutenção do léxico no corpo do
burra do sujeito; mas sofre atração do texto com o acréscimo de notas de rodapé ou
dinheiro. sua atualização gráfica são recursos editoriais
Burra: cofre para guardar dinheiro.
que representam o imaginário que os editores
(ALENCAR, 2009, p. 11, grifo nosso)
compartilham em relação aos leitores a quem
Era um monstrengo afetando formas dirigem seu texto, imaginário que pressupõe as
humanas, um homúnculo em tudo dificuldades de interpretação que um jovem
malconstruído, de cabeça enorme, tronco leitor pode encontrar em relação ao contexto de
raquítico, pernas curtas e arqueadas para emprego do vocábulo não mais utilizado, como
fora, cabeludo como um urso, e feio como no caso dos exemplos já mencionados acima
um mono. cousa, trajo, contacto, etc. No entanto, ao
Homúnculo: diminutivo de homem; longo da leitura as paráfrases utilizadas pelo
homem pequeno. próprio autor que permitem a este evitar
Mono: indivíduo feio. (GUIMARÃES, repetições indicam ao leitor uma suposta
2000, p. 14, grifo nosso)1
compreensão de sentido de um determinado
léxico.
Esse tipo de recurso é mais
abrangente se considerarmos que o criador b) A adaptação lexical referente à faixa
das notas de rodapé também é aquele que etária e competências de leitura
recria, de forma condensada, um clássico. pressupostas do público leitor jovem em fase
Mario Feijó, estudioso com posição escolar
favorável às adaptações afirma: Neste grupo são vários os recursos
utilizados pelo adaptador para a construção do
A narrativa resumida é uma nova narrativa, texto no que concerne ao imaginário que este
que tem de contar uma história com início, tem de seu público leitor. Por vezes, as
meio e fim. Tem de ser autossuficiente,
modificações são feitas em virtude da
completa, bem resolvida. Tem de ser a
mesma (conter o passado) e ser a outra condensação do texto integral, já que o
(estar contida na expectativa atual de adaptador, ao suprimir determinado fragmento
professores e leitores). Os cortes não de texto necessita fazer a junção de trechos
podem deixar pontas soltas, como distantes e utilizar, portanto, conjunções
específicas neste procedimento, e explicações
de um fato do enredo suprimido anteriormente
1
e que se torna necessário para a compreensão
Adaptado por Celso Leopoldo Pagnan

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765
Só depois de casado Leôncio começou a
do texto por parte do leitor, no decorrer do prestar atenção à beleza de Isaura. [...].
enredo. Enfim, as adaptações lexicais (GUIMARÃES, 2000, p. 11, grifo nosso)2
referentes à faixa etária não estão apenas no
nível morfológico de análise linguística, como
Em tais trechos nos parece que o
o procedimento descrito no item anterior, mas
adaptador, em virtude de seu imaginário
também no nível sintático.
referente ao desencadeamento de leitura como
As formas mais recorrentes neste tipo também de supostas dificuldades de
de adaptação são a inclusão de explicações compreensão encontradas por seus leitores,
sobre um fato, o uso de conjunções para a altera o tempo verbal do pretérito imperfeito
junção de diferentes trechos do corpo do texto para o presente, cuja transposição se deve à
restabelecendo-lhes uma dada lógica, a maior proximidade que se pode estabelecer
inclusão ou retirada de pronomes tônicos, a entre os interlocutores, narrador e leitor, em
mudança de tempo verbal, a mudança na forma função do tempo presente corresponder ao
de referenciar uma personagem, a inversão de tempo da enunciação. É possível perceber
ordem dos pronomes átonos, etc. também outros recursos editoriais nestes
Destacaremos alguns dos recursos mesmos fragmentos como a omissão de frases
editoriais acima de modo a exemplificar e explicativas, no caso, a referência às visitas de
promover uma discussão sobre o imaginário de Leôncio ao pai, e a eleição de apenas um
competências leitoras de jovens, que, por sua adjetivo quando se apresenta dois ou mais, no
vez, estão presentes nos discursos sobre a trecho original, como a escolha do adjetivo
relação jovem/leitura de clássicos adotados por beleza em detrimento de graça, ambos
uma editora e pelos seus adaptadores. Vejamos procedimentos com o objetivo de otimizar o
um exemplo de mudança de tempo verbal na tempo de leitura e condensar o texto,
obra A escrava Isaura: diminuindo-o fisicamente, ou facilitando o
reconhecimento de palavras ao empregar
Os dois mancebos chegavam de Campos, aquelas de domínio mais corrente.
onde Leôncio desde a véspera tinha ido ao Observaremos a seguir um recurso
encontro do cunhado. editorial bastante curioso, a inclusão ou
Só depois de casado Leôncio, que antes
omissão de pronomes pessoais:
disso poucas e breves estadas fizera na casa
paterna, começou a prestar atenção à
Quando eu referi a Escobar [...].
extrema beleza e às graças incomparáveis
(MACHADO DE ASSIS, 1994, p. 85, grifo
de Isaura [...]. (GUIMARÃES, 1988, p. 19,
nosso)
grifo nosso)

Na versão adaptada opta-se pelo uso do Quando referi a Escobar [...]. (MACHADO
presente do indicativo: DE ASSIS, 1994, p. 37)3

Os dois mancebos chegam de Campos,


onde Leôncio desde a véspera tinha ido ao 2
encontro do cunhado. Adaptado por Celso Leopoldo Pagnan
3
Adaptado por Nicélia C. Silva

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- A minha inconstância é natural, justa e, Nesses trechos, observamos a decisão
sem dúvida, estimável. Eu vejo uma de acrescentar ou retirar certos pronomes
senhora bela, amo-a não porque ela é pessoais do caso reto (eu e ela) o que se dá
senhora... mas porque é bela; logo, eu amo antes em função de uma adequação formal na
a beleza.[...] (MACEDO, s.d., p. 23, grifo frase ou mesmo sonora. O preenchimento ou
nosso) não com a forma nominal que poderia ser
dispensada pela marca morfológica de pessoa
manifesta nos verbos flexionados varia, de
- A minha inconstância é natural e justa. Eu
modo a precisar, evitando a ambiguidade, da
vejo uma senhora bela: amo-a, não porque
é senhora... mas porque é bela: logo, eu referência exata. Tal adequação formal ainda
amo a beleza. (MACEDO, 2000, p. 18)4 pode ser caracterizada no sentido de enfatizar a
enunciação das personagens, como é o caso dos
exemplos acima nas obras de José de Alencar e
- Pode confiar em mim sem susto o seu Joaquim Manuel de Macedo já que retratam
segredo, Aurélia, que mostrar-me-ei digno discursos diretos.
dessa confiança. (ALENCAR, 1997, p.37)
Outro recurso delimitado é a alteração
na referenciação das personagens. Isso ocorre
- Pode confiar em mim sem susto o seu sobretudo pela modificação da estrutura
segredo, Aurélia, que eu mostrar-me-ei textual, ou seja, quando se suprime um
digno dessa confiança.(ALENCAR, 2009, parágrafo que referenciava a fala de uma
p. 15, grifo nosso)5 personagem ou sua ação no enredo, o adaptador
necessita, no parágrafo seguinte, encontrar
-Mas para que, semelhante pressa?... não uma forma de explicar ao leitor de quem se está
me dirás Malvina? – replicou Leôncio com falando ou quem está falando para que o texto
a maior brandura e tranquilidade. – De que seja coerente. Vejamos o exemplo abaixo:
proveito pode ser agora a liberdade de
Isaura? porventura não está ela aqui bem? é - Permita Deus, que tal ocasião
maltratada?...[...].(GUIMARÃES, 1988, nunca chegue! – exclamou
p.47) tristemente dentro da alma a
rapariga, vendo seu senhor retirar-
se. Ela via com angústia e mortal
- De que proveito pode ser agora a desassossego as contínuas e cada vez
liberdade para Isaura? porventura é ela mais encarniçadas solicitações de
maltratada?... [...] (GUIMARÃES, 2000, p. Leôncio, [...]. (GUIMARÃES, 1988,
21, grifo nosso)6 p. 26, grifo nosso)

Dizendo isto, Leôncio retirou-se.


Isaura via com angústia e mortal
4
Adaptado por Celso Leopoldo Pagnan. desassossego as contínuas e cada vez mais
5
Adaptado por Celso Leopoldo Pagnan.
6
Adaptado por Celso Leopoldo Pagnan

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

767
encarniçadas solicitações de Leôncio. [...]
(GUIMARÃES, 2000, p. 14) 7 perde-se todo um conjunto de imagens que
permitem contextualizar as cenas, recriar
mentalmente os espaços e as personagens e
Dada a supressão da fala de Isaura em
intensificar a distinção de uma personagem
negrito, o editor faz a alteração do pronome ela
entre as demais, seja pela afirmação de sua
pelo nome próprio da personagem, de modo a
distinção, seja pelo tratamento específico
garantir a atribuição devida da ação a essa
destinado a ela rapariguinha. É curioso que
personagem. Um outro exemplo que nos
esta não tenha sido uma palavra submetida à
mostra não apenas uma falta de referenciação
mudança lexical ou à nota explicativa, uma vez
mas, também, uma forma bastante resumida de
que embora de compreensão geral, trata-se de
indicar personagens, mesmo implicando em
forma empregada em Portugal, ou forma
uma considerável perda semântica no que diz
arcaica de referência a moças no português
respeito ao cenário em que aparece a
brasileiro, com eventual emprego pejorativo em
rapariguinha:
certas regiões do país, uma vez que equivale a
[...] Eram de vinte a trinta negras, crioulas moças que se prostituem.
e mulatas, com suas tenras crias ao colo ou Todos os recursos exemplificados, que
pelo chão a brincarem em redor delas. se tratam daqueles mais recorrentes no nosso
Umas conversavam, outras corpus neste tipo de adaptação, retratam em
cantarolavam para encurtarem as longas
alguma medida certo imaginário de leitura e
horas de seu fastidioso trabalho. Viam-se
ali caras de todas as idades, cores e competências leitoras do jovem em fase
feitios, desde a velha africana, trombuda escolar. As representações discursivas
e macilenta, até a roliça e luzidia crioula, encontradas por meio deste tipo de adaptação
desde a negra brunida como azeviche até encontram-se inscritas nessas modificações
a mulata branca. feitas pelo adaptador em nome de uma fluidez
Entre estas últimas distinguia-se uma na leitura sequencial do texto que não demande
rapariguinha [...].(GUIMARÃES, 1988, p. ao seu leitor maiores esforços de compreensão,
38, grifo nosso) que não provoquem estranhamento frente a
formas e estruturas desconhecidas, que não
[...] Eram de vinte a trinta negras, crioulas entediem o leitor com descrições consideradas
e mulatas, com suas tenras crias ao colo excessivas ou dispensáveis frente ao propósito
ou pelo chão a brincarem em redor delas. da adaptação. Todos os procedimentos
Entre as mulatas, distingui-se uma retratados acima (como a inclusão de
rapariguinha, [...] (GUIMARÃES, 2000, operadores argumentativos com a função de
p. 18)8 conectores, a mudança do tempo verbal, etc.)
ocorrem devido à alteração da estrutura
As outras obras que constituem o sintática textual e visam reconstituir as relações
corpus também apresentam este procedimento lógicas de conexão de partes, sem para isso
editorial. Em nome do encurtamento do texto exigir do leitor um esforço maior, uma vez que
são empregados conectivos mais simples e
7
Adaptado por Celso Leopoldo Pagnan recorrentes em textos escritos ou orais da
8
Adaptado por Celso Leopoldo Pagnan atualidade.

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768
segundo a faixa etária e as competências de
4. Considerações finais
leitura pressupostas do público leitor jovem em
Em nossa análise constatamos que fase escolar. As formas mais recorrentes deste
vários sãos os procedimentos comuns adotados tipo de adaptação são: a inclusão da paráfrase,
pelos autores das adaptações das obras o uso de conjunções para a junção de diferentes
clássicas em questão, o que caracteriza uma trechos do corpo do texto, a inclusão ou
semelhança quanto à linha editorial do processo retirada de pronomes tônicos, a mudança de
de adaptação assim como a partilha de um tempo verbal, a mudança na forma de
imaginário em comum acerca do público alvo: referenciar uma personagem, a inversão de
jovens leitores em fase escolar, com finalidades ordem dos pronomes átonos, etc. Acreditamos
práticas, como realização de provas sobre obras que nem sempre essas intervenções são válidas
clássicas, e que se valem de práticas de leitura ou necessárias, como no caso das citações
que se caracterizam por um menor fôlego, pela abaixo ao substituir-se meter por colocar,
necessidade de consumo rápido e facilitado. ambos termos de uso corrente até hoje.
Constatamos e exemplificamos neste - D. Glória, a senhora persiste na idéia de
artigo certas adaptações lexicais, referentes à meter o nosso Bentinho no seminário? É
atualização temporal e cultural do léxico. O mais que tempo, e já agora pode haver uma
editor e o adaptador valeram-se de notas dificuldade. (MACHADO DE ASSIS,
explicativas no rodapé (como por exemplo, o 1994, p.3, grifo nosso)
termo requestar, para o qual encontramos
como sinônimo o termo no rodapé paquerar;
alcunha, que tem o mesmo sentido de apelido; - D. Glória, a senhora persiste na idéia de
colocar o nosso Bentinho no seminário? É
etc.), de modo a garantir a compreensão de
mais que tempo, e já agora pode haver
termos considerados arcaicos ou de uso pouco
alguma dificuldade, uma grande
frequente ou pertencente a registro linguístico dificuldade, talvez [...]. (MACHADO DE
que não condiz com aquele pressuposto ser do ASSIS, 1994, p.8, grifo nosso) 9
público alvo. Além disso, por vezes o
adaptador faz uso da atualização temporal da
Sobretudo no que diz respeito às
grafia de um léxico (como exemplo a
competências leitoras pressupostas acerca do
recorrência de cousa, dous, doudos, trajo,
público juvenil, elas refletem a crença de que
contacto, encontradas na obra de José de
certos textos são incompreensíveis hoje por um
Alencar) que do ponto de vista das
dado público e também não pressupõem a
intervenções de adaptação para um público
atuação de um professor mediador competente
atual poderiam ser consideradas legítimas
na condução da leitura da obra original. Certas
porque não impactantes sobre o enredo, na
dificuldades que o leitor pudesse encontrar na
mesma medida que as demais.
leitura seriam, como acreditamos, poderiam ser
Outra prática que também evidencia- superadas quando da sequência da leitura de
nos em certa medida o imaginário do adaptador um texto, graças ao enredo, e as dificuldades de
em relação ao público é a de adaptações
lexicais caracterizadas por uma adequação 9
Adaptado por Nicélia C. Silva

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769
ordem lexical, dadas as especificidades
______. Diferentes formas de ler. Disponível
temporais ou estilísticas de um escritor,
em:<http://www.unicamp.br/iel/memoria/Ensai
permitiriam a esse leitor de hoje, jovem, que
os/Marcia/marcia.htm>. Acesso em 10 de
não corresponde ao público idealizado quando
março de 2010.
da escrita da obra, o contato com essa
linguagem característica de um escritor, cujo ALBINO, L. C. D. Recriando Memórias: uma
enfrentamento poderia ser melhor empreendido análise da adaptação Literária de Memórias
ao se recorrer a recursos encontrados nessas Póstumas de Brás Cubas, de José Louzeiro. In:
versões como o uso de notas de rodapé, sem, XII Congresso Internacional da Abralic, 18 a
contudo, perder o acesso ao léxico que remete a 22 de julho de 2011, Curitiba. Disponível em:
um tempo e espaço, logo a uma cultura, assim <http://www.abralic.org.br/download/anaiseve
como aos fragmentos integrais de sequências ntos/cong2011/AnaisOnline/resumos/TC0577-
descritivas que, em um clássico, são tão 1.pdf>. Acesso em: 19 de junho de 2013.
relevantes para a significação da compreensão ALENCAR, J. de. Senhora. Rio de Janeiro:
da obra como um todo. Diante dessas Ediouro, 1997. (Biblioteca Folha, 19).
constatações, cabe-nos, como futuros
professores do ensino fundamental e médio ______. ______. Adaptação de Celso Leopoldo
fazer escolhas frente à oferta de certos produtos Pagnan. 2 ed. São Paulo: Rideel, 2009.
facilitadores de nossas tarefas e o impacto que (Coleção José de Alencar).
essas escolhas podem ter sobre a formação ASSIS, M. de. Dom Casmurro. Adaptação
leitora e humanística de nossos alunos. É Nicélia C. Silva. São Paulo: Ridell, 1994.
preciso que tenhamos lucidez quanto às (Coleção Machado de Assis em sua Essência).
decisões pedagógicas que empreendemos, e é
com esse compromisso ético que é preciso ______. Obras Completas de Machado de
buscar formas de conciliação e de promoção do Assis. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
encontro entre as obras de um tempo e de uma BRITTO, L. P. L. Leitores de quê? Leitores pra
comunidade distintas daqueles a que pertencem quê? In: Revista Aprendizagem, Curitiba, 2008.
os jovens leitores do presente, expostos a muita (mimeo)
informação e a pouca reflexão e ponderação no
______. Máximas impertinentes. Disponível
acesso a textos que desconhecem, de forma a
em:
lhes instigar a curiosidade, o interesse e não a
<http://www.leiabrasil.org.br/pdf/material_apoi
indiferença e a obrigação.
o/LuizBritto.pdf>. Acesso em 10 de março de
2011.
Referências ______; BARZOTTO, Valdir Heitor.
ABREU, M. Diferença e Desigualdade: Promoção X Mitificação da Leitura. In: Textos
preconceitos em leitura. In: MARINHO, ALB. Texto xerocopiado.
Marildes (org.). Ler e Navegar: espaços e CHARTIER, R. [1994]. A ordem dos livros –
percursos da leitura. Campinas: Mercado de leitores, autores e bibliotecas na Europa entre
Letras/Associação de Leitura do Brasil, 2001, os séculos XIV e XVIII. Trad. Mary Del Priori.
p. 139-157.

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770
Brasília: Editora da Universidade de Brasília,
1998.
______. Leitura e leitores ‘populares’ da
renascença ao período clássico. In: CAVALLO,
G.; CHARTIER, R. (orgs.) [1997]. História da
Leitura no Mundo Ocidental 2. Trad. São
Paulo: Editora Ática, (p.117-129), 1999.
______. Morte ou transfiguração do leitor. In:
CHARTIER, Roger. Os desafios da escrita.
SP: Editora da UNESP, 2002.
FEIJÓ, M. O prazer da leitura: como a
adaptação de clássicos ajuda a formar leitores.
São Paulo: Editora Ática, 2010.
GUIMARAES, Bernardo. A escrava Isaura. 15
ed. São Paulo: Ática, 1988. (Série bom livro).
______. Adaptação de Celso Leopoldo Pagnan.
São Paulo: Rideel, 2000. (Clássicos Rideel).
MACEDO, J. M. de. A Moreninha. Adaptação
Celso Leopoldo Pagnan. São Paulo: Riddel,
2000. (Coleção Clássicos Riddel).
______. Fundação Biblioteca Nacional.
Disponível em:
<http://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/livros_e
letronicos/a_moreninha.pdf>. Acesso em: 19
de junho de 2013.

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771
PODER E RESISTÊNCIA NO DISPOSITIVO DA MODA

Humberto Pires da PAIXÃO


Universidade Federal de Goiás (UFG)
paixaohumberto@hotmail.com

Resumo: O presente artigo busca refletir sobre o poder e a resistência no dispositivo da


moda. Se a moda se caracteriza como um poder ancorado em saberes em cuja trama se dá
a subjetivação de indivíduos, é importante questionar que poder é esse, bem como, em
consonância com Michel Foucault, olhar para as resistências e indagar acerca de sua
existência e de suas características intrínsecas. Pautando-se no viés teórico-metodológico
da Análise do Discurso francesa e nas reflexões proporcionadas pela leitura dos
trabalhos de Michel Foucault, pretende-se, com base em textos que circulam na mídia,
indagar sobre enunciados que foram se constituindo como um contradiscurso e como se
comportam no interior do dispositivo da moda.
Palavras-chave: poder, resistência, dispositivo, moda.

Falar de moda é, pois, mergulhar nas


Introdução tramas de um dispositivo que engendra
indivíduos a partir de determinadas formas de
Desde que se instalou no Ocidente
ser e de se comportar, frutos dos poderes e
como um de seus construtos mais inventivos,
saberes que lhe são inerentes. O vestir-se à
o que, para alguns autores, se deu no final da
moda é, assim, um ato pautado na aquisição
chamada Idade Média, a moda tem-se
de saberes específicos que proporcionarão ao
constituído, ao longo dos tempos, como um
indivíduo criar em/para si mesmo simulacros
poder que, amparado em saberes, contribui
de identidade por meio da sua exterioridade,
decisivamente para a construção de
de sua aparência para que, com esse
subjetividades. Lipovetsky (2009) chega a
passaporte, possa circular socialmente. Mais
equiparar sua força e seu poder a um império
do quealgo fútil e pertencente apenas ao
e, partindo dessa ideia, define a sociedade de
universo feminino – apesar de evidências em
consumo como estruturalmente tomada pelos
contrário –, ou mesmo algo pautado no
processos de moda, o que quer dizer que sua
superficial em detrimento do intelectual, o
forma de organização vem influenciando não
universo da moda merece atenção, pois, em se
apenas toda a lógica produtiva da indústria de
tratando de um dispositivo de alta
bens de consumo, mas também grande parte
produtividade para a sociedade de consumo,
das relações sociais, com a renovação,
ele parece, pelo menos em princípio, não
diversificação e estilização que lhe são
próprias. deixar escapar qualquer pessoa, quer se
encontre sob seu alcance imediato ou não.

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772
qual a concepção que o orienta? Ou o que ele
entende por esse termo? É importante que se
O presente artigo, originado das
diga que, contrariando o pensamento usual,
reflexões proporcionadas pela leitura de
Michel Foucault o entende não como uma
trabalhos de Michel Foucault, pretende, frente
substância ou uma qualidade, mas como
a uma retomada de alguns conceitos
relação ou “[...] uma prática social e, como
foucaultianos, colocar em evidência e
tal, constituída historicamente” (MACHADO,
investigar enunciados que puderam e foram
2011, p. X). A característica do poder, para
efetivamente ditos, constituindo saberes e
Foucault, é relacional, ou seja, é na relação
poderes no dispositivo/discurso da moda e,
entre sujeitos que se dá a luta, o embate, o
principalmente, enunciados que foram se
afrontamento que caracteriza o poder. Essas
constituindo como um discurso de resistência
relações de poder, ou relações entre sujeitos,
no interior mesmo desse dispositivo. Ou, dito
se definem como formas de agir que atuam
de outra forma, pretende-se analisar o
sobre as ações dos outros. Na obra História
contradiscurso que, paradoxalmente, a
da sexualidade I: a vontade de saber(1999),
sustenta e a caracteriza.
ele assim se pronuncia:
Dessa forma, amparando nos
postulados da Análise do Discurso francesa Parece-me que se deve compreender o
(AD), de cunho foucaultiano, buscaremos, poder, primeiro, como a multiplicidade de
senão respostas, pelo menos princípios de correlações de força imanentes ao
domínio onde se exercem e constitutivas
respostas, aos questionamentos: É possível
de sua organização; o jogo que, através de
resistir ao discurso/dispositivo da moda? Se o lutas e afrontamentos incessantes as
poder é hoje sutil, a resistência também se transforma, reforça, inverte; os apoios que
sutiliza? Como olhar para as resistências que, tais correlações de força encontram umas
assim como o poder, vem de “baixo” e se nas outras, formando cadeias ou sistemas
distribuem estrategicamente? ou, ao contrário, as defasagens e
contradições que as isolam entre si;
1. Notas sobre o poder e a resistência em
enfim, as estratégias em que se originam e
Michel Foucault cujo esboço geral ou cristalização
Com relação ao termo poder, Michel institucional toma corpo nos aparelhos
Foucault (2010a, p. 224-225)1chega a dizer, estatais, na formulação da lei, nas
numa entrevista de 1977, que é este o hegemonias sociais. (FOUCAULT, 1999,
p. 88-89).
verdadeiro foco de suas investigações: “Meu
verdadeiro problema é aquele que, aliás,
atualmente, é o problema de todo mundo: o Na contramão do pensamento
do poder”. Mas quando ele fala desse tema, filosófico ocidental, Michel Foucault evita a
oposição entre poder e negatividade e, nesse
1
sentido, o poder não deve ser identificado
Mais tarde, Michel Foucault dirá que é o sujeito, não com o mal ou visto como algo maligno, mas
o saber ou o poder, que constitui, assim, seu foco,
aquilo que o acompanha em sua trajetória filosófica:
algo produtivo, ou seja, que produz e, acima
“Meu objetivo [...] foi criar uma história dos diferentes de tudo, algo a ser exercido: “O poder não é o
modos pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos mal. O poder são jogos estratégicos.”
tornaram-se sujeitos. Meu trabalho lidou com três (FOUCAULT, 2010b, p. 284). Em Vigiar e
modos de objetivação que transformam os seres Punir, discorrendo sobre a sociedade
humanos em sujeitos.” (FOUCAULT, 2010c, p. 273).

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773
disciplinar, Foucault (2002, p. 161) explica entanto, ele considera como tal é uma síntese,
que devemos deixar de abordar os efeitos de um efeito ou mesmo um desdobramento dessa
poder em termos negativos (exclusão, rede de relações em que se cruzam os
repressão, recalque, censura etc.). “Na micropoderes: “[...] efeito de conjunto,
verdade o poder produz; ele produz realidade; esboçado a partir de todas essas mobilidades.
produz campos de objetos e rituais da [...] o poder não é uma instituição e nem uma
verdade. O indivíduo e o conhecimento que estrutura, não é uma certa potência de que
dele se pode ter se originam nessa produção.” alguns sejam dotados: é o nome dado a uma
situação estratégica complexa numa sociedade
Se Michel Foucault pensa o poder sob
determinada” (FOUCAULT, 1999, p. 89). Daí
a ótica da produtividade, se vê nele uma
falar em relações de poder, ao invés de poder
positividade, é porque não o trata no singular
no singular, uma vez que essas relações “[...]
e menos ainda considera o PODER com letras
supõem condições históricas de emergência
maiúsculas, mas de poderes no plural ou, mais
complexas e que implicam efeitos múltiplos,
precisamente, de micropoderes. Isso não quer
compreendidos fora do que a análise
dizer que ele tenha desenvolvido um aparato
filosófica identifica tradicionalmente como o
teórico a respeito do tema, nem mesmo um
campo do poder” (REVEL, 2005, p. 67).
livro dedicado exclusivamente ao tema ele
escreveu, entretanto, relaciona-se a ele, em Na análise das relações de poder,
contrapartida, uma analítica do poder, “[...] Foucault (2010c, p. 290-291)estabelece que,
uma série de análises, em grande parte apesar da legitimidade em buscar entendê-las
históricas, acerca do funcionamento do poder” no âmbito das instituições, “[...] é necessário,
(CASTRO, 2009, p. 323). Tal analítica não antes, analisar as instituições a partir das
indaga o que é o poder, mas como ele relações de poder, e não o inverso; e que seu
funciona, diferentemente das concepções mais ponto de apoio fundamental, mesmo que elas
correntes, concebe-o não como algo que se tomem forma e se cristalizem em uma
detém ou que se pode delegar, ou um instituição, deve ser buscado aquém.” E onde
obstáculo a ser transposto ou ainda algo que se situaria esse aquém? Que lugar é esse em
adviria de um ponto específico. Nas palavras que se situam essas relações de poder a ser
de M. Foucault (1999, p. 88-89): analisadas? A tais questionamentos, o filósofo
responde que tais relações se enraízam
Dizendo poder, não quero significar ‘o profundamente no nexo social e é no “[...]
Poder’, como conjunto de instituições e campo de correlações de força que se deve
aparelhos garantidores da sujeição dos tentar analisar os mecanismos de poder”
cidadãos em um Estado determinado. [...]
(FOUCAULT, 1999, p. 92), ou seja, é no
não o entendo como um sistema geral de
dominação exercida por um elemento ou âmbito das resistências que se deve buscar tal
um grupo sobre outro e cujos efeitos, por análise para que seja possível “cortar a cabeça
derivações sucessivas, atravessem o corpo do rei” e escapar da noção tradicionalmente
social inteiro. representada pelo par soberania-lei/político-
jurídico, que por tanto tempo dominou o seu
Incorreto seria pensar que, para entendimento no âmbito do pensamento
Foucault, não exista o poder. É fato que ele político. Tal representação do poder já não
não o pensa em termos contratuais/de direito encontra eco ou fornece respostas suficientes
ou de violência/de repressão. O que, no às sociedades modernas, pois,

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774
atravessa os aparelhos e as instituições,
sem se localizar exatamente neles,
[...] se é verdade que o jurídico pôde também a pulverização dos pontos de
servir para representar [...] um poder resistência atravessa as estratificações
essencialmente centrado na coleta e na sociais e as unidades individuais.
morte, ele é absolutamente heterogêneo (FOUCAULT, 1999, p. 88-92).
com relação aos novos procedimentos de
poder que funcionam, não pelo direito,
mas pela técnica, não pela lei mas pela As reflexões foucaultianas a respeito
normalização, não pelo castigo mas pelo das resistências revelam um tipo de poder
controle, e que se exercem em níveis e que, longe de ser uma potência infinita,
formas que extravazam do Estado e de aponta para uma espécie de ineficácia, já que
seus aparelhos. (FOUCAULT, 1999, p. não é ele algo do qual não se escapa, embora
86). se produza a todo momento, em todo lugar e
de forma complexa. Sob a analítica dos
E quanto às resistências? Se vivemos micropoderes, emerge uma analítica das
em meio a dispositivos que “vampirizam” as microlutas nas quais os sujeitos estão
instituições e redimensionam o envolvidos cotidianamente. Nessa
funcionamento do poder, para usar termos de perspectiva, talvez seja possível dizer que a
Michel de Certeau, torna-se urgente indagar resistência venha primeiro, não porque,
“[...] que procedimentos populares [...] jogam cronologicamente falando, seja anterior ao
com os mecanismos da disciplina e não poder, mesmo porque “[...] ela é coextensiva a
conforma com ela a não ser para alterá-los; ele e absolutamente contemporânea”
enfim, que ‘maneira de fazer’ forma a (FOUCAULT, 2011, p. 241), mas porque se
contrapartida [...] dos processos mudos que constitui como elemento prioritário, na ordem
organizam a ordenação sócio-política” das condições de existência do próprio poder.
(DECERTEAU, 2008, p. 41). Daí que “[...] não há relações de poder sem
As resistências, assim como o poder, resistências; que estas são tão mais reais e
também não são idênticas, nem estáticas e, mais eficazes quanto mais se formem ali
muito menos, entendidas estritamente como mesmo onde se exercem as relações de poder”
sinônimo de revolução ou revolta. Segundo (FOUCAULT, 2010c, p. 249).
Foucault (1999, p. 91), “[...] onde há poder há Como se pode notar, a possibilidade
resistência e [...] esta nunca se encontra em de delimitar e estancar um processo que
posição de exterioridade em relação ao defina o que é poder e o que é resistência nem
poder.” Sendo o poder o ato de governar a sempre se constitui como algo fácil ou mesmo
conduta dos outros e prever suas produtivo. Poder e resistência são móveis e
possibilidades de ação, isto é, uma relação de constituem-se como “lado de uma mesma
forças, pressupõe necessariamente os contra- moeda”, para usar outra expressão popular.
ataques, a resistência. Dessa forma: Mas se a resistência, hoje, se dá em volta
desse poder totalizador, não cala a boca e nem
Elas são o outro termo nas relações de cala na boca a pergunta: mas como resistir nos
poder; inscrevem-se nestas relações como dias atuais? Que material temos a disposição
o interlocutor irredutível. [...] Da mesma
para resistir? Ou ainda, utilizando as palavras
forma que a rede das relações de poder
de Tony Horta, “[...] qual é o material que
acaba formando um tecido espesso que

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temos à mão para elaborar uma ética de si, disciplinas em controles. Nas sociedades
individual, singular, que seja a expressão do disciplinares, apesar de um germe desse novo
único?” (HORTA, 2012, p. 161). poder que incide sobre a vida já ser passível
de entrar em funcionamento, o
2. Resistência, (bio)poder e moda
enclausuramento e a sisudez que lhe são
Retrocedendo um pouco na história, característicos impedem que opere de forma
no limiar dos séculos XVII e XVIII, segundo efetiva. É, pois, nesse ambiente “livre” e
M. Foucault, ganha terreno uma reviravolta mutante das sociedades de controle que ganha
com o surgimento da sociedade e do poder terreno outro tipo de poder: o biopoder. O
disciplinar e, mais adiante, no início do século político transforma-se, assim, em biopolítico.
XX, outra mudança toma forma e as De acordo com Negri (2003, p.107), “Fala-se
sociedades disciplinares são sucedidas pelas em biopoder quando o Estado expressa
sociedades de controle. No entendimento de comando sobre a vida por meio de suas
Deleuze (2010, p. 223-224), “[...] as tecnologias e seus dispositivos de poder.” A
disciplinas [...] também conheceriam uma vida em toda a sua extensão é o alvo
crise, em favor de novas forças que se constante desse novo poder, um poder que
instalavam lentamente e que se precipitariam atinge, por meio de sua ambiguidade em
depois da Segunda Guerra Mundial: controlar sem demonstrar tal controle, não
sociedades disciplinares é o que já não éramos somente os corpos, mas também a população:
mais, o que deixávamos de ser.”
Uma das grandes novidades nas técnicas
A moda encontra neste momento de poder, no século XVIII, foi o
histórico um terreno fértil para o surgimento da ‘população’, como
desenvolvimento e a fixação de seu império. problema econômico e político [...]. Os
A queda das transcendências políticas, morais governos percebem que não têm como
e religiosas, e o esfacelamento dos grandes lidar simplesmente com sujeitos, nem
sistemas de significação (SOARES, 2011) mesmo com um ‘povo’, porém com uma
talvez possam funcionar como uma base de ‘população’, com seus fenômenos
explicação ou reforço para a importância cada específicos e suas variáveis próprias:
vez maior que ela vem alcançando nos natalidade, morbidade, esperança de vida,
últimos tempos ou, no entendimento de fecundidade, estado de saúde, incidência
das doenças, forma de alimentação e de
Simmel (2008, p. 32), “[...] entre as razões por
habitat. Todas essas variáveis situam-se
que a moda domina tão fortemente a no ponto de intersecção entre os
consciência encontra-se também a de que as movimentos próprios à vida e os efeitos
convicções grandes, estáveis e indiscutíveis, particulares das instituições [...].
perderam, pouco a pouco, a sua força.” À (FOUCAULT, 1999, p. 28).
medida que o corpo torna-se o principal alvo
dessa sociedade disciplinar e de controle, as Numa ponta do alvo do biopoder
roupas aproximam-se mais do elemento encontra-se essa massa denominada
somático: menos tecido para a vestimenta, população e todas as suas particularidades
mais exposição física e, contraditoriamente, relacionadas a taxas de natalidade e
mais importância para a moda. mortalidade, na outra ponta estão os corpos
Há, portanto, uma mudança de sobre os quais esse poderio opera:
paradigma com a transformação das

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776
das “qualidades” joviais do elemento físico
que ela mostra.
O controle da sociedade sobre os
indivíduos não se opera simplesmente Daí não ser difícil encontrar, por
pela consciência ou pela ideologia, mas exemplo, uma íntima relação entre a moda e
começa no corpo, com o corpo. Foi no as práticas esportivas, supostamente
biológico, no somático, no corporal que, responsáveis pela manutenção da saúde e da
antes de tudo, investiu a sociedade beleza do corpo. Os artefatos atléticos têm
capitalista. O corpo é uma realidade bio- sido uma versão recente do que foi a
política. A medicina é uma estratégia bio- armadura no passado: “A vestimenta
política. (FOUCAULT, 2011, p. 80). semelhante à armadura, agora muitas vezes
fabricada com fibras sintéticas e moldada
Em tempos de predominância de um tanto em plástico como em couro, é
biopoder agindo sobre a população, moda e novamente sensacional.” (HOLLANDER,
corpo se entrelaçam na constituição do 2003, p. 73). O sportswear, bem como o
indivíduo moderno: “A roupa é uma segunda streetwear e o beachwear, são lados ou
pele que, recobrindo a primeira, compõe com tendências fashion que vão ao encontro dessa
ela a aparência final do sujeito” (CASTILHO; política centrada na aparência saudável. A rua
VICENTINI, 2008, p. 133). Parece plausível vai à academia e, em contrapartida, a
admitir que os elementos da moda academia invade a rua, comoafirma a matéria
reconfiguram, (re)atualizam ou reelaboram de um jornal: “Da academia para a rua”.2
determinadas partes do corpo, uma vez que o
Nesse contexto de extremo controle
corpo, na concepção de Svendsen (2010, p.
dominado pelo biopoder, não há como deixar
85), “[...] tornou-se objeto de moda
de pensar nas possibilidades de resistência.
especialmente privilegiado. Ele parece ser
Sob um manto cada vez mais “democrático”,
algo plástico que pode mudar constantemente
o poder se estende para fora das instituições e
para se adequar a novas normas à medida que
penetra nos corpos e mentes. Enquanto nas
elas emergem.” Mas que modelo de corpo é
disciplinas a relação entre poder e indivíduo
esse hoje projetado na/pela moda em
permanece estável, isto é, “[...] a invasão
consonância com seu tempo?
disciplinar de poder correspondeu à
O que se nota, já há algum tempo, resistência do indivíduo [...]”, na sociedade de
como parte de uma biopolítica que procura controle as resistências ganham nova
manter, prolongar, melhorar a vida é um roupagem, talvez possa dizer, inclusive, que,
investimento incisivo sobre a ideia de um assim como o poder se sutiliza, as resistências
corpo jovem, de juventude: “Seja jovem!”, também assim se comportam: “As resistências
“Mantenha sua juventude!” são slogans deixam de ser marginais e tornam-se ativas no
facilmente perceptíveis por todo lado e, em centro de uma sociedade que se abre em
especial, nas publicidades de moda. Dessa redes; os pontos individuais são
forma, usar menos tecido e mostrar mais a singularizados em mil platôs.” (HARDT;
pele torna-se uma prática de uma época NEGRI, 2010, p.44). Nas publicidades de
marcada por uma visibilidade extremada – moda, a ideia de rebeldia é trazida para o
uma visibilidade potencializada pelos
panópticos modernos. A imagem vale como a 2
DAacademia para a rua.Jornal O Popular. Goiânia:
tradução da realidade e sua validade depende OJC, 2014.

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centro da cena como forma de cooptação da consumidos. Diante de tais astúcias, o que se
juventude e promoção de produtos. percebe é também uma sutilização das
Ambientada num momento de transição resistências, que, assim como o poder, torna-
política, a peça publicitária (figura 1) cria se mais invisível, mas nem por isso menos
sentidos que perpassam o político e o fashion, onipresente. Isso parece confirmar nossa tese
numa (re)atualização da ideia de juventude e a respeito da resistência no dispositivo da
de seu poder de mudança, isto é, o que é moda; na verdade, trata-se de uma tese inicial,
contestatório e rebelde é reinvestido para a que merece ser desenvolvida e comprovada
venda de roupas. (ou não) ao longo de nossa pesquisa, mas que
pode ser descrita da seguinte maneira: a moda
é um dispositivo que congrega saberes,
Figura 1 – Revista Veja, 20/03/1985 poderes e sujeitos e a resistência é de alguma
maneira absorvida em proveito da
manutenção do próprio dispositivo.
3 Considerações Finais
O que intentamos neste artigo foi uma
breve reflexão acerca do funcionamento do
poder e da resistência no dispositivo/discurso
da moda. Partindo da explanação teórica
oferecida por Michel Foucault, buscamos
entender como essa relação se dá nos tempos
atuais por meio de textos que circulam na
mídia. Vale ressaltar que este trabalho buscou
aporte nos preceitos da disciplina Análise do
Discurso de orientação francesa, que tem
No interior do dispositivo da moda, a como parte de suas orientações o
relativização de valores e conceitos torna-se entendimento do tempo presente: o que somos
um imperativo e, por meio de intrincados e por que nos tornamos o que somos hoje.
processos, há uma espécie de naturalização
dessa amenização. O rosto do revolucionário Quanto à questão de ser ou não ser
Che Guevara serve de estampa para o biquíni possível resistir ao discurso da moda, o que se
no corpo da top model sem que se veja nisso constata com este trabalho é a intrincada
uma incoerência ou um desvio. Assim relação entre poder e resistência, que ocorre
também a consultora de moda publica em seu nas sociedades de controle, sob os efeitos de
blog dicas de como se vestir para ir às um biopoder. Isso quer dizer que a
manifestações de ruas, orientando os delimitação entre o que é poder e o que é
manifestantes a realizarem uma passeata mais resistência se pulveriza e uma tal divisão
estilosa. Em inúmeros exemplos, como na torna-se bastante complexa. O que não quer
figura 1, observa-se que as noções de dizer que não haja resistência, que o tempo de
contestação e de revolta, expressas muitas um poder sem fim tenha chegado e se
vezes nas vestimentas ou nas formas de uso instalado. Definitivamente, não é isso. As
de certas roupas, são reelaboradas e voltam resistências ocorrem, mas são cooptadas por
aos consumidores como elementos a serem esse (bio)poder que delas se retroalimentam.

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778
No campo da moda, aquilo que é visto como Albuquerque e J.A. Guilhon Albuquerque.
contestatório ou de protesto, acaba sendo Rio de Janeiro: Edições Graal, 1999.
incorporado pelo poder que dela faz uso para ______. Microfísica do poder. Tradução
venda de produtos ou padronização de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal,
comportamentos. 2011.
______. O sujeito e o poder. In: DREYFUS,
Referências Hubert; RABINOW, Paul. Michel Foucault,
uma trajetória filosófica: para além do
CASTILHO, K.; VICENTINI, C. G. O corte,
estruturalismo e da hermenêutica. 2. ed.
a costura, o processo e o projeto de moda no
Tradução Vera Porto Carrero e Gilda Gomes
re-design do corpo. In: OLIVEIRA, Ana
Carneiro. Rio de Janeiro: Forense
Cláudia; CASTILHO, Kathia (Org.). Corpo e
Universitária, 2010c. p. 273-295.
moda: por uma compreensão do
contemporâneo. Barueri: Estação das Letras e ______. Vigiar e punir: nascimento da prisão.
Cores, 2008. p. 125-136. Tradução Raquel Ramalhete. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2002.
CASTRO, E. Vocabulário de Foucault: um
percurso pelos seus temas, conceitos e HARDT, M.; NEGRI, A. Império. Tradução
autores. Belo Horizonte: Autêntica Editora, Berilo Vargas. Rio de Janeiro: Record, 2010.
2009. HOLLANDER, A. O sexo e as roupas: a
DAacademia para a rua. JornalO Popular. evolução do traje moderno. Tradução
Goiânia: OJC, 2014. Alexandre Tort. Rio de Janeiro: Rocco, 2003.
DE CERTEAU, M. A invenção do cotidiano. HORTA, T. Ensaios sobre a singularidade.
Tradução Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: São Paulo: Intermeios; Londrina: Kan
Vozes, 2008. Editora, 2012.
DELEUZE, G. Conversações. Tradução Peter LIPOVETSKY, G. O império do efêmero: a
Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 2010. moda e seu destino nas sociedades modernas.
Tradução Maria Lucia Machado. São Paulo:
ELLUS Jeans. São Paulo:Revista Veja,
Companhia das Letras, 2009.
Editora Abril, 1985. il.
MACHADO, R. Por uma genealogia do
FOUCAULT, M. Estratégia, poder-saber. In:
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MOTTA, M. B. (Org.). Tradução Vera Lucia
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Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense
Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal,
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NEGRI, A. 5 lições sobre império. Rio de
MOTTA, M. B. (Org.). Tradução Elisa
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Monteiro e Inês Autran Dourado Barbosa. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 2010b. REVEL, Judith. Foucault: conceitos
(Ditos e escritos, v.5). essenciais. Tradução Carlos Piovezani Filho e
Nilton Milanez. São Carlos: Claraluz, 2005.
_______. História da sexualidade I: a vontade
de saber. Tradução Maria Thereza da Costa

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779
SIMMEL, G. Filosofia da moda e outros
escritos. Tradução Artur Morão. Lisboa:
Edições Texto & Grafia, 2008.
SOARES, C. L. A educação do corpo e o
trabalho das aparências – o predomínio do
olhar. In: ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval
M.; VEIGA-NETO,Alfredo;SOUZA
FILHO,Alípio de.et al. (Org.). Cartografias
de Foucault. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.
p. 69-82.
SVENDSEN, L. Moda: uma filosofia.
Tradução Maria Luiza X. de A. Borges. Rio
de Janeiro: Zahar, 2010.

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780
A RETÓRICA REACIONÁRIA PRESENTE NOS DISCURSOS
MIDIÁTICOS SOBRE A EQUIPARAÇÃO TRABALHISTA AOS
DOMÉSTICOS

Diane Heire Silva PALUDETTO


Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
diane.hsp@hotmail.com

Resumo: Fundamentado no estudo das formas de persuasão e dos esquemas de raciocínio


implícitos na retórica como ciência histórica e social, consoante tratada por Marc
Angenot, o presente estudo analisa o papel da mídia na produção e circulação de sentidos
e na transformação das práticas discursivas acerca do trabalho doméstico no Brasil. A
partir desse embasamento é possível depreender recorrências argumentativas
pressionadas pela hegemonia discursiva desde a elevação do trabalho doméstico ao
status de profissão.
Palavras-chave: retórica; discurso; mídia; direito; trabalho doméstico.

entre a posição desse estudioso e a Análise do


Introdução
Discurso francesa.
Além do aporte da Análise do Discurso
Segundo Angenot (1989), há certas
(AD), com suas concepções de história e de
divergências epistemológicas entre os seus
sociedade que sublinham os conflitos que
estudos retóricos e a Análise do Discurso.
desenrolam em seu interior, seja sob a forma
Nesse sentido, ao discorrer sobre noções de
das lutas de classe, na esteira de Michel
discurso ou formação discursiva, o pesquisador
Pêcheux, seja sob a forma das micro relações
leciona que, enquanto para a AD o discurso
de poder, de que fala Michel Foucault, a análise
corresponde a uma instância de controle ou
do papel da mídia na produção e circulação de
determinação do dizer proveniente de uma
sentidos e na transformação das práticas
posição social, o discurso social, da forma
discursivas acerca do trabalho doméstico será
como é por ele analisado, consiste numa
observada também na esteira do que propõe
hegemonia discursiva que está aquém e além
Marc Angenot no tocante às suas formulações
das FDs. Além dessa diferença, há outras ainda
acerca do discurso social e da retórica como
relativas ao papel atribuído à sociedade e ao
ciência histórica e social, a fim de se identificar
sujeito na produção discursiva. Enquanto a AD
a atuação dos discursos nos consensos e nos
afirma que o sujeito é um efeito da sociedade,
conflitos sociais, ressalvadas as diferenças
Angenot sustenta que é preciso dar mais espaço

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781
ao sujeito do que a AD o faz, propondo, heterônomo, essas novas ideias que talvez
inclusive, que se ouça o que o sujeito tem a estejam às margens dos discursos reconhecidos
dizer, antes de lhe explicar social, política, como legítimos e centrais, ou seja, há de se
ideológica e historicamente porque ele diz o buscar o heterônomo, as descontinuidades, nas
que diz. Essa perspectiva, a propósito, parece ir dissidências.
ao encontro das teorias de Michel Foucault a Segundo Angenot (1989), a hegemonia
partir de 1980, quando reformulou seu
compõe-se de um repertório de temas que se
pensamento, concebendo ao sujeito uma impõem a todas as mentalidades e espíritos; a
autonomia relativa e não apenas como produto variedade de discursos parece saturar o campo
passivo das técnicas de dominação (poder) ou do dizível. E isso pode levar ao entendimento
técnicas discursivas (saber). de que o discurso social constitui a existência
Feitas estas considerações, o objetivo é do que não pode ser dito por ser tido como
investigar, a partir da análise do discurso absurdo, infame ou quimérico. Não se trata de
midiático sobre o trabalho doméstico no Brasil, simples divergências de opinião, mas de fatos
se há presença de discursos reacionários, fora do que seja impraticável, impensável, isto
conforme concebidos pelo teórico Marc é, fatos fora da aceitabilidade e da
Angenot. inteligibilidade que escapam à lógica da
hegemonia presente no discurso social.
1. Argumentação, persuasão e poder
Nessa linha de raciocínio, é preciso
Segundo Angenot (1989), a fusão da
medir a força de convicção e analisar os
retórica, da análise do discurso, da história das
mecanismos que permitiram passar de uma
ideias e das áreas das ciências sociais e
ideia para outra. Isso se faz a partir da análise
históricas é necessária para se identificar o que
dos discursos que circulam em uma dada
afetam as ideias, os discursos, as
cultura, em um estado de sociedade
representações e as crenças dos sujeitos
determinado e em um momento da história.
discursivos. O que interessa ao analista do
discurso social é a busca da causa das razões e Em contexto de retrospectiva histórica,
das convicções. quando se está diante de fundamentos
ultrapassados, irrelevantes ou ininteligíveis à
Nesse cenário, a análise do discurso
luz do que se considera racional, Angenot
midiático sobre o trabalho doméstico
(2012) ensina a direcionar o interesse não na
dependerá do questionamento sobre quais são
tese desvalorizada, mas no que a sustentava. O
as regras predominantes de cognição e de
foco deve estar no argumentável, no raciocínio
elaboração de discurso por trás de tudo o que
persuasivo.
fora escrito acerca do trabalho doméstico na
mídia brasileira, ou seja, qual é a tópica comum Ao se considerar, por exemplo, o
que funciona aquém dos argumentos e das discurso da superioridade antropológica e
narrações que se confrontam e polemizam. intelectual entre grupos étnicos, que sustentava
Deve-se buscar o que há de homogêneo e o que o movimento de escravização dos negros, não é
é acolhido como original, mas que na verdade é difícil concluir que a persuasão era movida pela
recorrente. Mas há também que se buscar o manutenção do poder exercido por parte da

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782
sociedade da época que possuía, cognitivo”. Contudo, é necessário verificar a
biologicamente, a dita superioridade, conforme lógica dos raciocínios do passado a partir de
se extraí de texto publicado no jornal A um sentido histórico. “É o conjunto de
Província de São Paulo (atual Estadão), em esquemas argumentativos e de abordagens
data de 28 de novembro de 1880: persuasivas que foram aceitas em algum lugar e
em um tempo dado por pessoas que a sociedade
Não é procurando mover á piedade, nem julgava sagazes e razoáveis”.
apelando para os sentimentos generosos do
paiz que os abolicionistas conseguirão abrir No trecho extraído e retratado acima, o
caminho á sua bandeira. Esse expediente é enunciador diz que nenhuma argumentação
antes um irritante por sua inopportunidade. seria capaz de destruir o fato de que as
Em definitiva, a preponderancia da raça vantagens de raça e de evolução seriam
aryana é fundada sobre condições naturaes, elementos positivos de força, e o faz sem se dar
que seria futil contestar: si conta de que ele próprio, o enunciador, nada
sociologicamente a sua posição é superior, faz além de argumentar. Assim, a linguagem
si ele é quem governa é porque com ella
materializa práticas discursivas de grupos de
estão a inteligência e o saber, é porque ás
interesses conflitantes, de forma que o que
suas mãos está confiado o fio das tradições
históricas da evolução humana [...]. Estas menos importa é que as construções
vantagens de raça e de evolução são argumentativas correspondam a fatos reais.
elementos positivos de força, que nenhuma Considerando-se a premissa de que a
argumentação póde destruir. A sciencia não história do trabalho doméstico no Brasil está
pôde ainda determinar experimentalmente
implícita na história do escravismo, a partir das
se as forças mentais do cérebro africano,
submetidas ás mesmas influencias do
análises dos textos e discursos que circulam na
mesmo ambiente social, em completa sociedade nota-se que perpetuam os discursos
igualdade de circunstâncias, pódem ou não que colocam a classe em estado marginal. É o
apresentar os mesmos resultados que se depreende, por exemplo, da análise do
intellectuaes e moraes que as do cerebro enunciado de uma leitora anônima do jornal
aryano. [...] O grosso da nossa população Estadão, publicado em data de 17/03/2015, a
escrava é caracterisada anatomicamente respeito de uma nova garantia legislativa em
pela sua menor massa de substancia prol da categoria dos trabalhadores domésticos,
cerebral; e esta condição anatomica de conforme segue in verbis: “É o fim da picada.
inferioridade é bem própria para abrandar Primeiro, proíbem a gente de ter escravos.
os rancores abolicionistas contra a parte da
Depois, obrigam a gente a pagar salário. Agora,
sociedade, que tem por si a vantagem
effectiva da superioridade intllectual. querem dar direitos a eles? O que vem a
seguir? Termos que tratar domésticas como se
fossem gente?”
Efetivamente, o foco não deve estar na
possibilidade de discutir a questão da tese É possível identificar uma forma velada
ultrapassada, no caso a da superioridade étnica, de argumentar em favor de uma certa ideologia,
mesmo porque “a imputação da irracionalidade já que não se sabe se se trata de um dizer
é muito facilmente aplicada ao passado irônico ou de um enunciado tão somente
impressionista, o que oculta um efetivo

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antagonismo daquele que enuncia. Nesse Quem teve esse animal, teve. Quem não teve,
sentido, se houve ironia, o enunciador não se nunca mais vai ter.”
fez claro se foi por reprovação à nova benesse O argumento do ex-ministro, como
garantida à categoria dos domésticos ou ao pedido de desculpas à categoria, por ter
próprio texto jornalístico. empregado o termo “animal” conforme
É recorrente, todavia, o discurso que também usava o economista britânico John
reifica o sujeito na posição de escravo, pois que Maynard Keynes1 em tratamento aos
este, mesmo na condição física de ser humano, empresários e investidores na ocasião da
era tido e tratado, tanto do ponto de vista social Grande Depressão, não foi suficiente para
quanto jurídico, como mercadoria, res, e, dissociá-lo do pensamento que perpetua uma
portanto, regulado pelo processo de exploração cultura escravocrata. Nas palavras da então
econômica e por formas de poder que Ministra da Secretaria para as Mulheres, Iriny
historicamente foram se configurando. Lopes (2011), “a declaração do economista e
ex-ministro Delfim Netto, que comparou as
Diante disso, observa-se esquemas
empregadas domésticas a animais em extinção,
argumentativos similares aos do passado
evidencia o quanto estamos distantes do
vindos daqueles que defendem a perpetuação
conceito de igualdade”.
de uma superioridade étnica, não do ponto de
vista biológico, mas cultural, vale dizer, é Revive-se também nesta situação o
possível apreender a existência de esquemas discurso escravagista, que revelava não apenas
argumentativos da mesma ordem, em que pese as condições de existência impostas ao sujeito
não haver meios racionais para se justificar escravo, mas como esse sujeito significava na
uma superioridade antropológica entre grupos sociedade, pois quando muito era comparado
étnicos. Se há discursos sobre o trabalho aos animas, mas jamais aos homens livres. A
doméstico que desprezam qualquer tipo de propósito, o naturalista Saint-Hilaire (apud
tratamento discriminatório, utilizando-se de CARDOSO, 2003, p. 164), em passagem pelo
argumentos em prol da equiparação plena, ao Brasil àquela época, fez a seguinte ponderação:
menos em matéria de direitos trabalhistas, não “Eles [escravos] fazem sentir aos animais que
é tão incomum como se poderia crer, encontrar
discursos que negam aos trabalhadores
domésticos a qualidade de seres humanos, 1
Em seu pedido de desculpas, Delfim Netto justifica o
ainda que sejam discursos velados por dizeres
emprego do termo "animal", usado pelo economista
ironizados. britânico John Maynard Keynes, criado durante a Grande
O ex-ministro Delfim Neto, ao discorrer Depressão, para descrever as motivações psicológicas de
empresários, consumidores e investidores. "Os
sobre a emergente ascensão social no país, economistas (eu, inclusive) usam corriqueiramente a
através de entrevista concedida em canal aberto expressão 'fazer nascer o espírito animal dos
de televisão, em abril de 2011, se referiu às empresários' como forma de despertá-los para
trabalhadoras domésticas da seguinte forma: oportunidades de investimento e não me lembro de
“Há uma ascensão social incrível. A empregada nenhum empresário que tenha se declarado ofendido ou
humilhado". Fonte: http://agenciapatriciagalvao.org.br/
doméstica, infelizmente, não existe mais. wpcontent/uploads/2011/04/estadaocom10052011_delfi
mnettopededesculpas.pdf

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784
os cercam uma superioridade consoladora de considerando-os todos como um todo
sua condição baixa”. hegemônico, faz-se interessante a busca pela
identificação da presença, no discurso
Discursos irônicos ou no sentido de
midiático acerca do trabalho doméstico no
lamentação por ter que tratar empregada
Brasil, de discursos reacionários.
doméstica como gente ou, mais expressivos,
que caracterizam essa trabalhadora como um Angenot concebe, na esteira de
animal, podem não ter base científica e, Hirschman (1991), os traços do que
portanto, deveriam ser tidos como aberrantes e denominam retórica reacionária, cujos
irracionais. Entretanto, repetem esquemas elementos argumentativos se baseiam nos
argumentativos e retóricos que visam, ainda efeitos de inocuidade, perigo e perversidade.
que ocultamente para alguns, a perpetuação da Ao trazer a discussão ao contexto do discurso
discriminação social por parte daqueles que midiático sobre as condições trabalhistas dos
buscam, na sociedade capitalista, resultados domésticos, depara-se com os seguintes
economicamente satisfatórios às classes que questionamentos: 1) As mudanças legislativas
estão sendo representadas. Nesse sentido, mudam efetivamente a natureza das coisas ou
parafraseando Michel Foucault, o que está em são inócuas? 2) As mudanças legislativas
jogo é a luta pelo poder, uma luta colocam em perigo alguns benefícios
genuinamente política. adquiridos? 3) A medida destinada ao
progresso da sociedade ou à eliminação de um
Nota-se daí, a partir da análise, um
dado mal traz um resultado contrário ao
retorno do mesmo. Então a questão é: esses
esperado?
discursos estariam no campo do hegemônico?
Ou, por serem aberrantes e irracionais por A partir de uma notícia publicada no
inexistir qualquer fundamento lógico que os Jornal Folha de S. Paulo, em data de 8 de maio
sustente, estariam eles no campo do de 2015, é possível identificar elementos de
heterônomo? Ao seguir a lição de Angenot, retórica reacionária baseada no perigo.
preocupando-se não com a tese inválida, mas Figura 1. Folha de S. Paulo. Mercado. 8
com os esquemas de argumentação, diria-se maio 2015
que estão no campo do hegemônico, porém,
não na qualidade de discursos centrais como
foram outrora, mas de discursos dissidentes,
pois demonstram a resistência contundente a
qualquer tentativa de melhora das condições
sociais dos trabalhadores domésticos no Brasil.
2. A retórica reacionária nos discursos sobre
o trabalho doméstico
Refletindo-se sobre a questão no campo
de discursos centrais versus discursos
dissidentes, considerando-se estes últimos
como resistências, mas, acima de tudo,

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785
Trata-se de matéria sobre a criação de
um fundo para depósito do valor mensal de
3,2% do salário do trabalhador, que servirá
como pagamento de uma eventual multa Figura 2. O Estado de S. Paulo. Economia
B3. 27 mar. 2013
rescisória no caso de demissão sem justa causa.
Se a demissão for por justa causa, o valor
depositado deverá ser revertido ao empregador.
Anteriormente à regulamentação da Emenda
Constitucional n. 72, ocorrida em data de 2 de
junho de 2015, os direitos ao Fundo de
Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), bem
como à multa rescisória por dispensa
imotivada, não faziam parte do rol de direitos
concedidos à categoria. Apenas
facultativamente o empregador poderia optar
em fazer os recolhimentos fundiários.
É, pois, flagrante na retórica utilizada na
notícia midiática, que existe risco em relação A retórica utilizada mostra que a medida
ao benefício adquirido. A propósito, segundo destinada ao que deveria ser um progresso, fará
Creusa de Oliveira (2015), presidente da com que efetivamente haja mudanças. Aliás,
Federação Nacional das Domésticas, “pode ter parece ser exatamente esse o apelo do
empregador que irá forjar a justa causa. Em vez enunciado: mostrar que a concessão de direitos
de beneficiar, nesse aspecto pode prejudicar a trará mudanças. No entanto, esse movimento
trabalhadora." será o contrário daquilo que é esperado, já que
não se trata de mudanças aparentemente
Também é comum nos veículos
benéficas à categoria. Ainda que se trate de
midiáticos, acerca da temática em estudo,
uma predição, um dizer sobre o futuro,
encontrar elementos de retórica reacionária
portanto, sem a dimensão determinante do
fundada no efeito perverso. A construção de
presente, existe um efeito perverso utilizado
“verdades” é um elemento significativo de
como elemento de persuasão, e é exatamente o
persuasão e busca do poder, já que essas
que fundamenta a retórica reacionária da
“verdades” podem ser aceitas pelo interlocutor.
matéria jornalística.
O recorte da notícia que segue é exemplo claro
dessa instalação de “verdades” pela imposição Os esquemas argumentativos
do poder, na medida em que utiliza, respaldados nos efeitos de perigo e
estrategicamente, instrumentos de pressão com perversidade, percebidos nas notícias
o propósito de instituir medo. anteriores, são recorrências pressionadas pela
hegemonia discursiva, conforme se infere, por
amostragem, de uma notícia sobre os avanços
legislativos advindos com a Constituição
Federal de 1988 em prol da categoria do

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786
trabalhador doméstico, até então amparado encadeamento das consequências prováveis das
apenas com os direitos aos recolhimentos medidas “progressistas” que enaltece. É o caso
previdenciários, anotação em CTPS e férias de de se pensar, por exemplo, se o sujeito do
20 dias úteis: discurso favorável à equiparação trabalhista
Figura 3. Folha de S. Paulo. Economia B1. plena aos domésticos tem ciência das
4 dez. 1988 consequências que a medida acarretaria e se a
sociedade quer, de fato, tais consequências.
A reflexão se faz a partir de
encadeamentos argumentativos, de forma que
uma ação ou um posicionamento, ainda que
desejados, automaticamente e fatalmente possa
desencadear um resultado não desejado,
provocando a renúncia do que a princípio seria
desejado.
Trazendo a reflexão para a problemática
do trabalho doméstico no Brasil, seguindo o
formato da discussão que Angenot apresentou
em relação aos casamentos ‘gays’, o argumento
da declinação fatal pode ser visualizado, a
Os veículos midiáticos, efetivamente, título de amostragem, a partir de um esquema
têm enaltecido discussões a respeito do futuro apresentado em três situações, aqui postas
da profissão tão logo uma benesse legislativa como (A), (B) e (C).
passa a vigorar. Na situação (A), a sociedade, em
Depreende-se, assim, que é esse o poder evocação aos ditames preambulares da
capaz de produzir discursos de verdade dotados Constituição Cidadã, clama pela igualdade e a
de efeitos tão poderosos. Daí se questionar, a justiça como valores supremos de um povo
partir dos ensinamentos de Michel Foucault, fraterno, pluralista e sem preconceitos. Mas o
como o poder que se exerce sobre o sujeito que se segue fatalmente à situação (A) seria a
trabalhador doméstico produziu o discurso situação (B): se a sociedade quer igualdade e
“verdadeiro” acerca do futuro dessa categoria justiça entre os povos, deseja também que
profissional. todas as categorias profissionais tenham as
mesmas garantias sociais e trabalhistas, o que
Além dos efeitos de inocuidade, perigo
implicitamente inclui a equiparação trabalhista
e perversidade, Angenot (2012, p. 7-9) ainda
aos domésticos. A questão a se saber é se essa
acrescenta um quarto elemento para dar conta
sociedade está disposta a suportar a situação
das estratégias mais recorrentes de toda
(C), que é arcar com as garantias legais
argumentação antiprogressista e reacionária,
majoradas ou renunciar a ter as benesses de um
intitulado inclinação fatal. Esse argumento
trabalhador doméstico à disposição. Deve-se
mostra ao sujeito, quando fala de determinada
aceitar o risco ou a ele renunciar. Aqui a
posição discursiva, que ele não domina todo o
sociedade hesita e, portanto, renuncia a se

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787
posicionar conforme a situação (A), já que se capitalistas. Tal feito é possível a partir do
estará diante de um encadeamento fatal. estudo das formas de persuasão e dos esquemas
de raciocínio legitimados e depois
Nota-se que o último posicionamento, o
marginalizados em uma sociedade. É preciso
da renúncia, se aproxima ao argumento
depreender as razões que encadearam as ideias
reacionário que claramente defende o
nos discursos, tornando-os convincentes, e os
tratamento desigual entre trabalhadores
argumentos utilizados pelos atores sociais para
domésticos e as demais categorias
defende-las.
profissionais, por simplesmente considerá-los
uma categoria profissional com natureza No presente artigo, assentado na análise
diversa daquelas que atuam no mercado retórica de Angenot, foi possível perceber a
corporativo. A diferença, contudo, está nos pressão da hegemonia discursiva, o eterno
esquemas argumentativos. retorno do mesmo, com a repetição de práticas
e esquemas argumentativos desde a
3. Considerações finais
constituição do trabalho doméstico como
A marginalização do trabalho profissão, constatação que também permite
doméstico advém do passado escravista depreender as tendências retóricas do porvir.
brasileiro, no qual a sociedade preconcebeu
classificações acerca do que teria valia e o que
não teria, segmentando o povo em classes Referências
sociais dominantes e dominadas. A PROVÍNCIA DE SÃO PAULO. Questões
O que hoje é visto como um passado de sociaes: os abolicionistas e a situação do paiz.
horrores, foi outrora apoiado pela sociedade Publicado em 28 nov. 1880.
escravagista e por uma de suas principais ANGENOT, M. Coupures cognitives, logiques
instituições, a Igreja cristã, altamente argumentatives et écart paradoxal.
permissiva em relação à prática da escravização Conferência realizada no Colóquio de Análise
negra, utilizando-se ela própria do trabalho do Discurso na cidade de Sherbrooke (Quebec,
escravo e se beneficiando com a sua Canadá), em 10 jun. 2015.
comercialização. Com a abolição da
escravatura, o imigrante branco foi escolhido _________. Hégémonie, dissidence et contre-
para o mundo industrial, excluindo-se os discours: réflexions sur les périphéries du
negros que povoavam a produção rural. E o discours social en 1889. 1989. Disponível em:
trabalho negro, especialmente o das mulheres, http://www.erudit.org/revue/etudlitt/1989/
foi empurrado para o emprego doméstico, v22/n2/500895ar.pdf>. Acesso em: 25 set.
advindo daí a herança de trabalho residual. 2013.
Nesse contexto, é importante se _________. La notion d’arsenal argumentatif:
investigar os instrumentos ideológicos que l’inventivité rhétorique dans l’histoire. 2012.
deram sustentação à discriminação jurídica e Disponível em: <http://marcan genot.com/wp-
social em face do sujeito trabalhador content/uploads/2011/12/La-noti on-darsenal-
doméstico, e como eles afetam o modo como argumentatif.pdf>. Acesso em: 25 set. 2013.
esse sujeito significa nas sociedades

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788
_________. Les dialogues de sourds: traité de PIOVEZANI, C.; SARGENTINI, V. Legados
rhétorique antilogique. Paris: Mille et Une de Michel Pêcheux: inéditos em análise do
Nuits, 2008. Tradução de Jocenilson Ribeiro. discurso. São Paulo: Contexto, 2011.
Revisão de Vanice Sargentini.
__________. O discurso social e as retóricas
da incompreensão : consensos e conflitos na
arte de (não) persuadir. Organização de Carlos
Piovezani. São Carlos: Edufscar, 2015.
CARDOSO, F. H. Capitalismo e escravidão no
Brasil meridional. Rio de Janeiro : Civilização
Brasileira, 2003.
FOLHA DE S. PAULO. Para especialistas,
demissão por justa causa de domésticos pode
crescer. Mercado. Publicado em 8 maio 2015.
FOLHA DE S. PAULO. Direitos sociais e alta
do mínimo reduzirão empregos para
domésticas. Economia, B1. Publicado em 4
dez. 1988.
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber.
Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2010.
________. A verdade e as formas jurídicas.
Tradução de Roberto Cabral de Melo Machado
e Eduardo Jardim Morais. Rio de Janeiro: Nau,
2005.
________. A ordem do discurso. Tradução de
Graciano Barbachan. Digitalizada: Coletivo
Sabotagem, 2004.
________. Microfísica do poder. Tradução de
Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 2007.
HIRSCHMAN, A. O. The rhetoric of reaction:
perversity, futility, jeopardy. USA: Harvard
College, 1991.
O ESTADO DE S. PAULO. Novos direitos
podem causar 815 mil demissões. Economia,
B3. Publicado em 27 mar. 2013.

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789
O DISCURSO OFICIAL DOS PCN-TEMAS TRANSVERSAIS
COMO ESTRATÉGIA DE GOVERNAMENTALIDADE DO
SUJEITO ESCOLAR

Louise Medeiros PEREIRA; Regina BARACUHY


Universidade Federal da Paraíba (UFPB)
louise_mp@hotmail.com; mrbaracuhy@hotmail.com

Resumo: Neste artigo, tomamos os PCN-temas transversais como objeto de investigação,


objetivando entender como este conjunto de documentos, produtos de uma prática política
de regulação social, produzem efeitos de verdade e quais os efeitos de poder que esta
prática induz. Quanto aos procedimentos analíticos, a pesquisa prioriza o
aprofundamento do diálogo entre as ideias de Michel Foucault e a Educação, visando
contribuir com os estudos sobre conceitos como cuidados de si, poder, verdade, saber e
suas implicações no universo pedagógico.
Palavras-chave: governamentalidade; biopolítica; pcn; temas transversais.

sujeitos e foram criados com a intenção de


Introdução
integrar, às áreas convencionais já existentes,
Desde o final da década de 1990, as seguintes temáticas sociais: ética, saúde,
diversas instâncias responsáveis pela educação meio ambiente, pluralidade cultural e
no Brasil vêm sendo orientadas pela proposta orientação sexual. Deste modo, tomamos PCN-
dos Parâmetros Curriculares Nacionais, que por temas transversais como objeto de
situarem-se como uma orientação oficial que investigação, pretendendo, com esta pesquisa,
busca padrões gerais de qualidade para a entender como este conjunto de documentos,
educação básica em todo o país, consideramo- produtos de uma prática política de regulação
los como uma prática política de regulação social, produzem efeitos de verdade e quais os
social. Esta se investe da pretensão de produzir efeitos de poder que esta prática induz.
o domínio do governo sobre as práticas
Quanto aos procedimentos analíticos, a
educativas, além disso, busca o controle e a
nossa pesquisa prioriza o aprofundamento do
regulagem das formas de (se) significar dos
diálogo entre as ideias de Michel Foucault e a
sujeitos brasileiros.
Educação, visando contribuir com os estudos
Os PCN-Temas transversais também sobre os cuidados de si, poder, verdade, saber e
são considerados instrumentos de suas implicações no universo pedagógico.
“governamento” das práticas educativas e dos Sendo assim, faz parte dessa reflexão

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790
reconhecer os PCN-temas transversais como absoluta não existe, ela é resultado de uma
um dispositivo de poder, que visa à sujeição construção sóciohistórica, logo, é relativa.
dos alunos de forma dócil e cooperativa às Neste âmbito, o autor explica que toda época
estruturas vigentes, por meio dos quais tem suas “vontades de verdade” e o que deve
instalam-se representações e se forjam receber enfoque não é o grau de veracidade de
diretrizes que orientam a criação simbólica das um discurso, mas os efeitos de poder. De
identidades. acordo com Ruiz (2004, p.22) “verdade e poder
se entrelaçam a modo de construção social. [...]
A verdade é constituída como uma forma
1. Efeitos de Poder e a Vontade de verdade eficiente de poder que concomitantemente
Segundo Foucault (2013), a verdade é legitima aqueles mecanismos de poder que
lei, e, portanto, emana autoridade soberana, instituem a formação da verdade”.
impondo aos indivíduos a obrigação de Os efeitos de poder que procedem do
submeter-se a ela sob pena de sanções. Ela, de discurso do Estado são bastante operacionais,
acordo com o filósofo, “[...] produz o discurso uma vez que penetram na sociedade de modo
verdadeiro que decide, transmite, e reproduz, argucioso com uma sutil autoridade. Esta
ao menos em parte, efeitos de poder”. fineza decorre do caráter relacional do poder,
(FOUCAULT, 2013, p. 279). Somos julgados, ou seja, de sua natureza microfísica, com base
condenados, classificados, obrigados a na qual o poder não deve ser analisado como
desempenhar tarefas e destinados a um certo uma entidade unitária, maciça, compacta, como
modo de viver ou morrer em função dos algo que se possa dividir entre aqueles que o
discursos verdadeiros. possuem e aqueles que não o possuem e lhe são
Assim, ao definir-se o verdadeiro, submetidos, mas, consoante Foucault (2013, p.
efetua-se sempre uma espécie de categorização, 284), deve ser analisado “como algo que
resultado de um construto social, selecionando circula, ou melhor, como algo que só funciona
e impondo um modelo comportamental em cadeia”.
considerado bom a que o sujeito deve aspirar. Assim, exercendo-se em rede, os
Esta categorização separa os sujeitos, uma vez “micropoderes”, dispersos, diluídos nas
que define quem é considerado bom, práticas sociais, constituem os discursos e
verdadeiro - aquele que desempenha tarefas em constrói vontades de verdade de parcelas da
função dos discursos verdadeiros – e aquele sociedade como se fosse a única forma natural,
considerado falso por não viver em função das verdadeira, melhor ou mais eficiente de
“leis” produzidas por este discurso. Daí constituição da sociedade. Conforme Ruiz
decorrem os efeitos de poder dos discursos (2004, p. 27):
verdadeiros.
ao estabelecer-se o verdadeiro, efetua-se,
Foucault afirma que (2013, p. 52), sempre, uma classificação, a qual permite
“cada sociedade tem seu regime de verdade, definir quem entra na categoria dos
sua ‘política geral’ de verdade: isto é, os tipos normais, do verdadeiro, do natural e quem
de discurso que ela acolhe e faz funcionar fica fora dela. Toda classificação é um
como verdadeiros [...]”, assim, a verdade construto social que define o campo do

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791
admissível e do rejeitável. Definindo,
classifica-se; classificando, separa-se; limites, cuja extensão abrange até os mínimos
separando, rejeita-se. Desse modo, define- espaços, tanto físicos quanto psicológicos. Isso
se aquilo que é considerado bom, caracteriza a sociedade atual da qual fazemos
verdadeiro ou melhor. Em contraste, parte – a sociedade de controle – cujos efeitos
destaca-se aquilo que se considera mau, das tecnologias biopolíticas nas nossas vidas
falso ou pior. são absolutos. Assim, a disciplinaridade nos
fixa em instituições e nos consome
É neste sentido que os enunciados do completamente no ritmo das práticas
discurso do Estado, como afirmado produtivas e sociais. Tais efeitos controladores,
anteriormente, sob a face da “impessoalidade”, disciplinadores permeiam inteiramente a nossa
detêm uma autoridade discursiva, que, consciência, uma vez que se estabelecem de
perpassando as relações de poder no corpo forma bastante sutil, ganhando aparência de
social, apresenta-se classificando, separando, naturalidade.
julgando e, paulatinamente, produzindo os De acordo com Revel (2005, p.55), essa
sujeitos, formas de pensar, de agir, enfim, de biopolítica implica não apenas uma gestão da
viver. Essa imposição do verdadeiro não se dá, população, “mas um controle das estratégias
normalmente, de modo impositivo, mas de que os indivíduos, na sua liberdade, podem ter
forma subliminar, indutiva, de modo que o não em relação a eles mesmos e uns em relação aos
dito da verdade oficial circula como um hábito outros”. Implica, assim, uma gestão da conduta
natural, não autoritário, que deve ser cumprido dos indivíduos, uma maneira como os
para que os mecanismos institucionais se problemas específicos da vida e da população
articulem eficientemente. (RUIZ, 2004) são colocados no interior de uma tecnologia de
No entanto, embora seja o Estado a governo. Se insere nesse contexto a forma de
instância mais visível e importante, Foucault governamento da população centrada em ações
(2013) esclarece que essas relações de poder de poder que visam gerir a população não
das quais estamos falando não se concentram apenas no nível de seus resultados globais, mas
exclusivamente em um único ponto, a exemplo geri-la em profundidade, em fineza e no detalhe
do Estado, a partir do qual tais relações se (FOUCAULT, 2013, p. 428).
espalhariam no corpo social. Ao contrário, elas Essa forma de governamento é
não emanam dele, mas distribuem-se denominada por Foucault de
microfisicamente, microscopicamente, governamentalidade, definida pelas formas
enraizando-se no conjunto da rede social de mais descentralizadas e difusas (mas não
modo quase invisível, o que o torna ainda mais necessariamente democratizadas) de poder
efetivo. exercidas pelo conjunto constituído pelas
1.1 Notas sobre a governamentalidade e a instituições como também pelos próprios
biopolítica sujeitos.
O atravessamento de relações de poder Sendo assim, o estudioso entende por
no corpo social, que explanamos no tópico Governamentalidade o esforço de criar sujeitos
anterior, faz o sujeito conviver o tempo todo governáveis através de várias técnicas
com uma vigilância ininterrupta, perpétua, sem desenvolvidas de controle, normalização e

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792
moldagem das condutas das pessoas. Portanto, formulações verdadeiras se revestem de um
a governamentalidade como conceito identifica poder politicamente eficaz, uma vez que é
a relação entre o governamento do Estado capaz de induzir os modos de comportamento,
(política) e o governamento do eu inibir condutas consideradas reprováveis,
(moralidade), a construção do sujeito estimular valores tidos como essenciais, enfim,
(genealogia do sujeito) com a formação do o poder da verdade esculpe o modo de ser do
Estado (genealogia do Estado) (FYMIAR, sujeito.
2009) Tendo em conta que os Parâmetros
Não são determinações explícitas e Curriculares Nacionais de Temas Transversais
autoritárias de governo nem regras do direito são originados a partir de uma política de
que dirigem a vontade dos sujeitos, mas, verdade socialmente instituída essa discussão
segundo Ruiz (2004), os próprios sujeitos nos leva a refletir sobre o modo como este
buscam a sintonia com os modos da verdade conjunto de documentos produzem efeitos de
para poder aceder às vantagens oferecidas pelo verdade e quais os efeitos de poder que este
poder vigente. Sendo assim, esta tecnologia de discurso induz e que atravessa o sujeito escolar.
poder que implica a verdade como elemento
2. Os PCN-Temas Transversais como
constitutivo,
instrumento de governamentalidade das
não busca a submissão forçada de sua práticas educativas do sujeito escolar
vontade, mas requer sua colaboração ativa; A elaboração dos Parâmetros
para tanto, o impacto de sua eficiência Curriculares Nacionais se inscreve no contexto
reside na capacidade de estimular as do advento da globalização, em que reformas
motivações individuais para aderir às
de ensino vinham sendo implantadas em
verdades estabelecidas como se fossem o
principal ou o único modo de
diversos países, assumindo o caráter de práticas
desenvolvimento pessoal. Seu poder políticas de regulação social, representando o
manifesta-se como capacidade de induzir e controle-regulagem do governo sobre as
produzir os modos de subjetividade. Seu práticas educativas. Conforme texto do
objetivo reside em conseguir subjetividades documento, os parâmetros deveriam ser
flexíveis que se adaptem de modo capazes de “orientar o ensino fundamental de
cooperativo aos objetivos do sistema com o forma a adequá-lo aos ideais democráticos e à
mínimo de resistência. (RUIZ, 2004, p. 26) busca da melhoria da qualidade do ensino nas
escolas brasileiras”. (BRASIL, 1998, p. 49,
Estes regimes, no qual a verdade se grifo nosso). Sendo assim, constituem uma
impõe e provoca seus efeitos de poder, política curricular que visa adequar/encaixar o
Foucault (2013) denomina de “Regime da ensino fundamental segundo os moldes do
verdade”. Neste, busca-se a flexibilização da Estado.
subjetividade com o máximo de cooperação e o Os PCN-Temas Transversais também
mínimo de resistência do sujeito, o qual está nascem como produtos de uma política
destinado a um certo modo de viver em função curricular e foram criados pela constatação de
dos discursos verdadeiros que trazem consigo uma lacuna nas disciplinas regulares no tocante
efeitos de poder. Consideramos, então, que as

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793
critério indica a preocupação de eleger
às temáticas sociais, isto é, constatou-se que o como Temas Transversais questões graves,
saber escolar não estava integrado aos saberes que se apresentam como obstáculos para a
do cotidiano social, o que caracterizava um concretização da plenitude da cidadania,
descompasso entre os objetivos anunciados afrontando a dignidade das pessoas e
para uma educação comprometida com a deteriorando sua qualidade de vida. (p.25)
formação do cidadão crítico, autônomo e
atuante e o que era proposto para alcançá-los O discurso que ecoa quando o
no currículo tradicional. Dessa forma, foram documento elenca os critérios para eleição dos
criados sob a justificativa de tratar de questões temas produz um “efeito de urgência”, que a
urgentes, de abrangência nacional, que não nosso ver, é consequência de uma preocupação
vinham sendo contempladas nas áreas já explícita do Estado com problemas da
existentes, mas que pela importância, deveriam população que envolve todos os elementos da
ser partes integrantes das áreas e não externos vida social. O Estado falha e tenta abarcar de
e/ou acoplados a elas. Em sua justificativa, forma “urgente” os problemas sociais que até
afirma-se que temas como a violência, a saúde, então não conseguiu resolver, através de um
o uso de recursos naturais, os preconceitos, são documento que aparece como solucionador das
diretamente relacionados com o exercício da urgências sociais, políticas, econômicas do
cidadania e que devem necessariamente ser país, as quais ele se refere como “questões
inseridos no currículo escolar. (BRASIL, 1997, graves”; “obstáculos para a concretização da
p. 23) plenitude da cidadania” - (R1).
Assim, na pretensão oficial, os temas A afirmação de que os temas
transversais não se constituem em novas áreas transversais “são questões que envolvem
ou disciplinas, mas um conjunto de temas que múltiplos aspectos e diferentes dimensões da
aparece, como já foi dito, transversalizados. No vida social” materializa essa forma de poder
entanto, entendemos que os PCN-TT surgem que se apresenta como promovedor da vida,
como se fosse uma nova disciplina que tivesse com foco na produtividade do corpo. De acordo
que ser criada com “urgência” a fim de com Foucault (2013, p. 291), esse novo
desenvolver capacidades para a participação mecanismo de poder permite extrair dos corpos
social ativa, tarefa que as disciplinas escolares tempo e trabalho mais do que bens e riqueza,
não conseguiram desempenhar. Vejamos o representa simultaneamente o crescimento das
recorte: forças dominadas e o aumento da força e da
eficácia de quem as domina. Diante deste novo
R1 paradigma de poder, que se opõe ao mecanismo
Muitas questões sociais poderiam ser
descrito pela teoria da soberania, emerge sua
eleitas como temas transversais para o
trabalho escolar, uma vez que o que os natureza biopolítica, que se refere a uma
norteia, a construção da cidadania e a situação na qual o que está diretamente em jogo
democracia, são questões que envolvem no poder é a produção e a reprodução da
múltiplos aspectos e diferentes dimensões própria vida. (HARDT, 2001). Este aspecto
da vida social. Foram então estabelecidos também é observado, ainda em R1, na
os seguintes critérios para defini-los e afirmação:
escolhê-los: “Urgência social” Esse

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794
biopolítica de governo dos indivíduos, através
Esse critério indica a preocupação de de um certo número de práticas disciplinares.
eleger como Temas Transversais questões Com efeito, além da disciplina dos corpos é
graves, que se apresentam como obstáculos necessário, segundo Foucault (1999), cuidar da
para a concretização da plenitude da
população como um todo. Dessa maneira, o
cidadania, afrontando a dignidade das
pessoas e deteriorando sua qualidade de
foco da biopolítica é a vida e os fenômenos a
vida. ela relacionados: a gestão da saúde, da
alimentação, da higiene, da sexualidade, da
natalidade, etc., na medida em que elas se
O que não está dito explicitamente neste tornaram preocupações políticas. (idem,
enunciado, mas produz efeitos de sentido é que ibidem)
a cidadania plena só é garantida através da
manutenção da qualidade de vida. Assim, o Assim, essa caracterização biopolítica e
não-dito evidencia a legitimidade da vontade de as estratégias de governamentalidade do sujeito
verdade do Estado, tomando o discurso da escolar, nos PCN-Temas transversais, pode ser
qualidade de vida como o verdadeiro. Isso é demonstrada em várias outras passagens do
reiterado nesse outro recorte, em que o documento introdutório sob análise, a exemplo
documento define como um dos objetivos do desses dois recortes abaixo:
ensino fundamental:
R3
R2 A abordagem do corpo como matriz da
Desenvolver o conhecimento ajustado de si sexualidade tem como objetivo propiciar
mesmo e o sentimento de confiança em aos alunos conhecimento e respeito ao
suas capacidades afetiva, física, cognitiva, próprio corpo e noções sobre os cuidados
ética, estética, de inter-relação pessoal e que necessitam dos serviços de saúde. [...]
de inserção social, para agir com O trabalho de prevenção às doenças
perseverança na busca de conhecimento e sexualmente transmissíveis/AIDS
no exercício da cidadania; Conhecer o possibilita oferecer informações científicas
próprio corpo e dele cuidar, valorizando e e atualizadas sobre as formas de
adotando hábitos saudáveis como um dos prevenção das doenças. Deve também
aspectos básicos da qualidade de vida e combater a discriminação que atinge
agindo com responsabilidade em relação à portadores do HIV e doentes de AIDS de
sua saúde e à saúde coletiva. forma a contribuir para a adoção de
condutas preventivas por parte dos jovens.

Através do recorte, observamos o poder


apropriando-se dos processos biológicos para R4
controlá-los e eventualmente modificá-los. Tomando-se como exemplo o caso do
Expressões como “conhecer o próprio corpo e trânsito, vê-se que, embora esse seja um
dele cuidar”, “adotar hábitos saudáveis” problema que atinge uma parcela
“aspectos básicos da qualidade de vida”, “agir significativa da população, é um tema que
com responsabilidade em relação à sua saúde e ganha significação principalmente nos
grandes centros urbanos, onde o trânsito
à saúde coletiva” apontam para uma estratégia
tem sido fonte de intrincadas questões de

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795
natureza extremamente diversa. Pense-se,
por exemplo, no direito ao transporte táticas do que leis, ou utilizar ao máximo as
associado à qualidade de vida e à leis como táticas. Fazer, por vários meios, com
qualidade do meio ambiente; ou o que determinados fins possam ser atingidos”.
desrespeito às regras de trânsito e a (FOUCAULT, 2013, p 418) Portanto, em vez
segurança de motoristas e pedestres (o de ser constituída por leis e de modo
trânsito brasileiro é um dos que, no mundo, autoritário, a finalidade do governo se delineia
causa maior número de mortes). Assim, a partir de um conjunto de técnicas que vão
visto de forma ampla, o tema trânsito agir indiretamente sobre as práticas educativas
remete à reflexão sobre as características
de forma aparentemente natural e bastante sutil.
de modos de vida e relações sociais.
3. Considerações finais
O cuidado com o corpo é novamente O Estado brasileiro, através dos PCN-
problematizado nos PCN-TT, conforme R3. “A Temas Transversais, buscam controlar e regular
abordagem do corpo como matriz da a vida social do sujeito escolar por dentro,
sexualidade...”; “respeito ao próprio corpo”, acompanhado-a e absorvendo-a. Funcionam,
“...contribuir para a adoção de condutas desse modo, como uma estratégia de
preventivas por parte dos jovens” representam governamentalidade do sujeito escolar,
a preocupação do Estado com a tarefa de produzindo efeitos de poder cuja função mais
cuidado de si do sujeito escolar, constituindo elevada é administrar a vida do sujeito,
um controle da maneira pela qual um indivíduo envolvendo-a em sua totalidade.
faz de si mesmo a matéria principal de sua
Em suma, os Temas transversais são
conduta moral.
tomados no documento como questões graves
Já em R4, o controle do Estado em e, portanto, como uma preocupação política,
relação ao sujeito escolar, que incide em seus sendo assim, devem ser solucionados a nível de
modos de pensar e de agir, é estabelecido a “urgência”. O documento em questão
partir de uma estratégia biopolítica, por meio apresenta-se e afirma-se, portanto, como
da governamentalidade, que visa solucionar o instrumento útil para a prática educativa que
problema do trânsito [...] que atinge uma contribui com aspectos básicos da qualidade de
parcela significativa da população. O objetivo, vida. Dessa forma, as estratégias mobilizadas
portanto, é conduzir a população de modo a para governar as práticas educacionais e o
assegurar uma disciplina e uma regulamentação sujeito escolar constituíram-se, conforme
da vida e dos processos biológicos, a fim de análise realizada, na ordem da biopolítica,
garantir a qualidade de vida e a qualidade do apoiando-se no biopoder. Essa forma de
meio ambiente, o controle do número de mortes governamento impõe ao sujeito escolar um
no trânsito e a consciência das aspirações da conjunto de técnicas normalizadoras que agem
massa populacional. diretamente sobre ele, controlando e gerindo o
Nessa perspectiva, o governamento do corpo, os hábitos, a mente, o tempo e o espaço
sujeito escolar não pretende ser realizado a ocupado por ele. Além disso, constatou-se que
partir de uma lei, de um modo impositivo, o discurso materializado nos Temas
“mas de dispor as coisas, isto é, utilizar mais transversais instala representações e forjam

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796
diretrizes que orientam a criação simbólica de
identidades.

Referências
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental.
Parâmetros curriculares nacionais: apresentação
dos temas transversais, ética. Brasília:
MEC/SEF, 1997. 146p.
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental.
Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e
quarto ciclos do ensino fundamental:
apresentação dos parâmetros curriculares
nacionais. Brasília: MEC/SEF, 1998. 436 p.
FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade:
Curso no Collége de France (1975-1976). São
Paulo: Martins Fontes, 1999.
______. Microfísica do poder. Organização e
Tradução de Roberto Machado. 27. ed. São
Paulo: Graal, 2013.
FIMYAR, O. Governamentalidade como
ferramenta conceitual na pesquisa de políticas
educacionais. In: Educação & Realidade. Porto
Alegre. V.34, n.2, Mai/Ago 2009.
HARDT, M; NEGRI, A. Produção biopolítica.
In: VARGAS, Berilo (trad.) Império. Rio de
Janeiro: Record, 2001.
REVEL, J. Foucault: conceitos essenciais. São
Carlos: Claraluz, 2005.
RUIZ, C. Os labirintos do poder. In: O poder
(do) simbólico e os modos de subjetivação.
Porto Alegre: Escritos Editora, 2004.

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797
DISCURSO, CORPO E REPRESENTATIVIDADE: NOVAS
MODALIDADES DE REPRESENTAÇÃO POLÍTICA NA
AMÉRICA LATINA

Maísa Ramos PEREIRA


Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
mr.pereira@ufma.br

Resumo: No presente artigo, destacamos, primeiramente, um fenômeno político recente


relativo à emergência de governantes que rompem com um certo padrão de corpo político
“masculino, branco, heterossexual”, com uma tendência à eleição de presidentes que de
alguma forma se assemelham ao povo que representam. A emergência de gestores
representativos de segmentos sociais que nunca se viram representados por um(a)
presidente da república permite-nos observar o quão excludente é o regime
“democrático”.
Palavras-chave: discurso; corpo; representatividade.

políticos contemporâneos não somente se


Introdução
assemelham, mas são oriundos das próprias
No presente artigo, destacamos, camadas populares que dizem representar.
primeiramente, um fenômeno político recente
Com base em noções da Análise de
relativo à emergência de governantes que
Discurso derivadas dos trabalhos de Michel
rompem com um certo padrão de corpo político
Pêcheux, na Antropologia Cultural e nas
“masculino, branco, heterossexual”
Ciências Políticas, discutimos o trabalho
(COULOMB, 2011), com uma tendência à
dispensado a construir determinadas imagens
eleição de presidentes que de alguma forma se
para os sujeitos políticos de nossa época. A
assemelham ao povo que representam. A
construção de identidade para um governante
emergência de gestores representativos de
não se dá de forma aleatória, mas depende da
segmentos sociais que nunca se viram
observância da própria sociedade objeto de
representados por um(a) presidente da
interesse daqueles que gerenciam os Estados. O
república permite-nos observar o quão
conhecimento sobre o outro se mostra
excludente é o regime “democrático”:
fundamental para a construção de uma imagem
passaram-se séculos até que pudessem chegar à
de si. Segundo Courtine, o poder político
presidência representantes com características
“esteve frequentemente atento ao
do povo, este que supostamente poderia exercer
desenvolvimento e às formas tomadas pela
sua soberania sob a democracia. Os sujeitos

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798
sociedade civil, dedicando-se e sonhando carregam sentidos, ainda que silenciosos (ou
domesticá-las” (COURTINE, 1995, p.229). não), reconhecidos e compartilhados por
Considerando que vivemos o chamado grupos sociais.
“paradigma da expressão”, entendemos que a No campo da política, a dedicação das
noção de “civilidade” da modernidade esteja assessorias ao cuidado com as imagens de seus
estreitamente vinculada ao domínio de si, ao clientes no que diz respeito a orientar a polir
controle das paixões, relacionados à arte de
dentes afiados, abrandar olhares, suavizar
governar. Muitos trabalhos (COURTINE, vozes, moderar gestos, evitar ou utilizar-se de
1995; COULOMB, 2011; ROSANVALLON, silêncios quando necessário, dentre outras
1998) dedicaram-se a descrever/interpretar esse orientações, remetem a práticas de contenção
sonho de domesticação política na Europa, corporal, que podem ser encaradas como um
portanto buscamos compreender como se dá governo de si, já que “o governo dos homens
esse processo em nossa realidade latino- não é dissociável do governo de si próprio”
americana, mais especificamente no Brasil e na (COURTINE, 1995, p.9).
Bolívia.
Em toda sua história, a Análise do
Neste trabalho, em especial, Discurso tem repensado o conjunto de seu
constituímos nosso corpus com o vídeo escopo teórico, suas problemáticas e,
intitulado “Discurso del Presidente Evo principalmente, seu objeto de estudo. Devido
Morales en la Ceremonia Ancestral”, que diz
ao refinamento das teorias do discurso,
respeito ao pronunciamento de posse do observou-se que a língua não poderia ser
presidente boliviano, em cerimônia que evoca isolada em si para o reconhecimento de práticas
rituais políticos ancestrais de povos originários discursivas, já que a materialização dos
da Bolívia, em janeiro de 2015, publicado pela discursos em circulação numa sociedade não se
TV Bolívia, no site www.youtube.com. dá exclusivamente por meio dela.
1. Abordagem teórica e metodológica Como os problemas não se reduzem a
uma materialidade linguística, faz-se necessário
No discurso político, diversas são as
ampliar o diálogo da AD com outros campos
variáveis que constituem a construção de
teóricos. Jean-Jacques Courtine afirma que:
determinada identidade em um
pronunciamento: a expressão facial do sujeito Para “fazer uma história” da análise do
que enuncia, a localização de seu corpo frente a discurso, bem como para fazer uma história
seus enunciatários (se presente em tribuna ou de qualquer ciência humana, não é preciso
por meio de um suporte midiático), a forma postular a independência e a neutralidade
como se veste e se comporta, o uso que faz de dos métodos, constituídas à distância do
sua própria voz e do próprio silêncio, dentre objeto estudado. Os métodos da análise do
outros elementos passíveis de análise. Os discurso são, à sua maneira e nas suas
problemas postos para o pesquisador não são transformações, um reflexo das mutações
do próprio objeto, nas suas modalidades de
de natureza estritamente linguística. A língua
existência material, nas suas percepções
veicula discursos e, com ela, a voz, o rosto, o
individuais e coletivas. Não fazemos a
corpo, os gestos, dentre outros elementos, mesma análise do discurso político quando

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799
a comunicação política consiste num resultados aos quais ele conduziu, das
comício que reúne uma multidão em torno dificuldades que ele encontrou, dos
de um orador e quando essa comunicação impasses nos quais ele se enredou. Parece-
toma a forma de shows televisivos, aos me, particularmente, que esse projeto
quais cada um assiste em domicílio. poderá administrar a análise das
Tampouco fazemos a mesma análise do representações compostas por discursos,
discurso independentemente das crenças, imagens e práticas (COURTINE, 2006,
das segmentações sociais e ideológicas, das p.56-57).
polêmicas antigas ou recentes; elas
exercem suas coerções sobre o discurso das
Partindo destas reflexões sobre a
ciências humanas, sobre as escolhas dos
sujeitos, sobre a definição dos objetivos e
articulação da AD com a História, o desafio
sobre a reprodução dos cortes formais posto para os pesquisadores é justamente o fato
(COURTINE, 2006, p.50). de que diversos são os médiuns pelos quais
discursos circulam. Sendo assim, a
preocupação com os desdobramentos das
Segundo o autor, particularmente na
teorias do discurso trouxe à tona novas
França, o afastamento de muitos trabalhos de
perspectivas que se impunham para o avanço
AD das questões político-sociais promoveu
das pesquisas, trazendo novos questionamentos
uma gramaticalização da área. A restrição a
teóricos: que seria da língua sem a voz que a
estudos cuja atenção se detém exclusivamente à
veicula e o corpo que a sustenta, por exemplo?
materialidade linguística denega uma série de
O entrelaçamento da Análise do Discurso com
fatores que, por sua vez, também são
outros campos teóricos, como a Antropologia
determinantes para o condicionamento da
Cultural e as Ciências Políticas, torna-se cada
atualização da língua pelo enunciador.
vez mais produtivo e norteador de novos
A questão da gramaticalização recai horizontes para as pesquisas.
sobre o problema de redução da espessura
Courtine é um dos estudiosos que se
histórica do discurso. Ora, se a AD
lança na empreitada de mais uma vez deslocar
supostamente se propôs a suprir cortes feitos na
questões teóricas: “como é que o corpo se
teoria linguística, atribuídos a Saussure,
tornou, em nossos dias, um objeto de
concernentes ao referente, ao sujeito, à história
investigação histórica?” (COURTINE, 2008,
e ao mundo, como concebê-la como uma teoria
p.7). A questão colocada em História do Corpo
que considere exclusivamente a língua como
é um ponto de partida para outros percursos
objeto para a descrição/interpretação de
teóricos que reiteram a centralidade dada ao
acontecimentos discursivos? Estes estão
corpo pelos trabalhos realizados pela
historicamente marcados nas mais diversas
Psicanálise no século XX.
representações sociais, instigando o analista a
debruçar-se sobre diferentes materialidades e A pesquisa histórica da referida obra
pensar novas metodologias para suas análises. aborda o “corpo material: corpo orgânico, de
carne e sangue, corpo agente e instrumento de
O projeto de uma análise dos discursos que práticas sociais, corpo subjetivo, enfim, eu-
restitui à discursividade sua espessura pele, envoltório material das formas
histórica não está, entretanto ultrapassado. conscientes e das pulsões inconscientes”
Mas, ele deve ser repensado em função dos

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800
(COURTINE, 2008, p. 10), tratando das
Para Marlène Coulomb (2011), ocorre
metamorfoses sofridas pelos corpos com
atualmente um processo de ruptura com o
observância das transformações do olhar de
passado: no Antigo Regime, a legitimidade do
seus expectadores. O olhar do homem comum,
corpo do príncipe dependia de sua carne e de
o olhar da medicina, o olhar das artes, uns
seu sangue, era inconcebível que um filho
regidos por ideologias dominantes, outros
“bastardo” exercesse o poder numa monarquia;
regentes de rupturas com tais ideologias.
com o advento da República, o corpo do
Estas diferentes visões sobre o mesmo representante ausentou-se e iniciou-se uma
objeto, compreendidas em um longo período nova época, a do lugar vazio, sendo que através
histórico, permitem vislumbrar um fio da escrita se exercia o poder político; com a
discursivo de noções que circulam sobre o Democracia, devolveu-se a centralidade ao
referente. O corpo enuncia? O que se diz sobre corpo político, sobretudo no fim do século XX
o corpo? O que seria um corpo ideal? Quais são - novas tecnologias promovem diversas formas
os traços físicos característicos de determinado de circulação de imagens. Neste último regime:
tipo psicológico? Embora não haja nenhuma
credibilidade ou comprovação científica sobre Desenvolve-se uma concepção de
julgamentos morais pautados em marcas ou representação fundada numa encarnação
sinais corporais, observamos como ainda identitária na qual os representantes menos
persistem retomadas das ideias dos séculos se identificam (ou simplesmente não se
identificam) com uma sensibilidade política
XVI, XVII, XVIII e XIX na sociedade do
do que representam uma categoria singular:
século XXI. Os corpos humanos estão sujeitos as mulheres, os jovens, os gays, as lésbicas
a julgamentos atravessados por práticas e outros LGBT, os negros, os filhos dos
discursivas que circulam em cada época. magrebinos e outras “minorias visíveis”. O
Tomando por base essas reflexões, corpo do “demos” nada mais é que o
questionamo-nos sobre qual seria a relação universalismo republicano e a abstração,
que é seu corolário. A pregnância desses
entre o recente fenômeno político da
corpos, que permaneceram durante muito
emergência de governantes que rompem com o tempo pouco visíveis e, até mesmo,
paradigma do corpo político “masculino, invisíveis na cena política, vai contribuir
branco, heterossexual” (COULOMB, 2011) para revelar o corpo dos representantes e
com uma tendência à eleição de presidentes vai revelá-lo como um corpo heterossexual,
que de alguma forma se assemelham ao povo masculino e branco, bem distante de sua
que representam. Podemos relacionar de neutralidade presumida (COULOMB,
alguma forma a chegada à presidência de Evo 2011).
Morales, Fernando Lugo, Rafael Correa, Hugo
Chávez, Lula, Dilma Rousseff, Barack Obama? O corpo masculino, branco,
Existe alguma similaridade que possa ser heterossexual, supostamente neutro, acaba por
categorizada entre os referidos presidentes? É revelar um segmento social historicamente
possível afirmar que há uma “tendência” em privilegiado, fato que começa a ser
voga para a eleição de presidentes? problematizado pelas sociedades regidas pela
democracia representativa. Aqueles que até

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801
pouco tempo monopolizavam e centralizavam que se sustenta a legitimidade e a credibilidade
as decisões políticas dos Estados passam a ter das novas modalidades de representação que
suas autoridades questionadas. Afinal, em que estão emergindo, especificamente no caso de
se funda a legitimidade da representatividade Evo Morales, enquanto presidente indígena -
dos sujeitos políticos? como são construídas discursivamente, como
são retomadas, reformuladas, transformadas e
A legitimidade pode ser conquistada ou
apagadas no corpus que adotamos.
atribuída, ainda que por força, usurpada, por
golpe de Estado, mas sempre será projetada na 2. Análise e discussão
identidade social do sujeito político: Pretendemos compreender o modo de
a legitimidade social é importante porque é funcionamento discursivo das falas públicas de
a que dá a toda instância de palavra uma Evo Morales com base em noções da
autoridade de dizer [...] é instituída em sua Antropologia Cultural, trazendo algumas
origem para justificar os feitos e os gestos noções da AD peucheutiana e das Ciências
daquele que age em nome de um valor que Políticas. Para tanto, delimitamos o corpus a
deve ser reconhecido por todos os membros partir da coleta de um dos pronunciamentos de
de um grupo. Ela depende, portanto, das posse do presidente Evo Morales, no ano de
normas institucionais que regem cada 2015, com especial atenção à construção de
domínio de prática social, atribuindo status uma relação de identificação com os
e poderes a seus atores. (CHARAUDEAU,
enunciatários a que se dirigiu. O
2008, p.65)
pronunciamento, coletado no canal youtube, é
intitulado de “Ceremonia Ancestral” e foi
Legitimidade diferencia-se também de publicado nesse sítio pela TV Bolívia. A
credibilidade, posto que esta seria uma seguir, apontamos algum trabalho inicial de
capacidade de dizer ou fazer, não estaria mais análise.
somente na esfera do direito de dizer; sendo
assim, tanto a legitimidade quanto a Historicamente, desde o século XIX,
credibilidade de um sujeito podem ser com o advento da República na Bolívia, o país
questionadas. Para legitimar-se, o sujeito é tem sido governado por presidentes homens e
interpelado por seu direito de dizer; para brancos, sendo que a população do país
credibilizar-se, o sujeito é questionado por sua descende predominantemente de povos
própria capacidade (CHARAUDEAU, 2008, p. indígenas de diversas etnias. Em 2005, pela
67). primeira vez, um político de origem indígena
chega à Presidência da República. Evo
Portanto, a legitimidade e a Morales, descendente do povo uru-aimará, líder
credibilidade são almejadas pelos sujeitos sindical cocalero, é reconhecido como defensor
políticos – em função de ambas, são do plantio e consumo de coca, planta mascada
construídos pronunciamentos; alcançadas, pelos seus ancestrais andinos. Tal sujeito
servem de sustentação para as práticas daqueles politico parece ser a própria encarnação de uma
que as reivindicam; questionadas, podem fazer identidade nacional boliviana. Com uma vida
desmoronar desde representantes a regimes de marcada por lutas e adversidades, Morales
governo. Neste artigo, buscamos analisar em

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802
carrega consigo uma história conhecida e ainda “Madre Luna”, “sagrada hoja de Coca”,
vivida por milhares de bolivianas e bolivianos. “espíritus protectores”, “ríos”, “montes”,
“bosques”, “Madre Tierra” e a Pachamama -
Ao assumir seu terceiro mandato, em
esta última, a divindade máxima dos povos
janeiro de 2015, Morales, além de pronunciar-
andinos. Entendemos que o domínio de
se na tradicional cerimônia de posse
conhecimentos sobre os valores dos povos
presidencial no Palácio Quemado, em La Paz,
indígenas da Bolívia, que por tanto tempo
sede do governo, pronunciou-se em uma
foram massacrados pela cultura branca
cerimônia que remete a uma sua ancestralidade
colonizadora, conferem uma forte autoridade e
indígena. Tal evento, filmado e convertido em
credibilidade ao presidente. Não se trata de um
um vídeo, publicado pela TV Bolívia, no canal
outro apropriando-se e tratando de valorizar a
youtube, constitui o corpus a que nos referimos
cultura indígena. Trata-se de um igual, que sabe
anteriormente. A cerimônia, chamada ancestral,
sobre o que está falando e para quem, um igual
foi realizada no sítio arqueológico pré-
que está ali na condição de representante,
colombiano de Tiwanaku, uma civilização
encarnando uma identidade nacional.
tomada como precursora dos incas, que exerceu
domínio sobre o território boliviano por mais Acrescentamos ainda que o presidente,
de cinco séculos. Com vestimentas filho dos uru-aimarás, tem o aimará como
características dos líderes dos povos originários primeira língua e o espanhol como segunda
dessa mesma região andina, Morales enuncia língua. Embora a maior parte da sua fala seja
aos presentes, antes de iniciar sua fala em em espanhol, inicia e finaliza seu
espanhol-boliviano, em algumas línguas pronunciamento em línguas indígenas; trata por
indígenas. “hermanos” os presentes; ressalta a importância
da valorização da identidade e das formas de
Às autoridades ancestrais, Morales
enuncia saudações e pedido de permissão para vivência dos povos indígenas; aborda uma
história de quinhentos anos de opressão sobre a
tomar a palavra. Dentre as entidades citadas
Bolívia por meio dos termos “oscuridad”,
pelo presidente boliviano, destacamos
“odio”, “racismo”, “discriminación”,
Pachacutec, lendária liderança do Reino
“individualismo”, problemas trazidos por
Tahuantinsuyo, mais conhecido como Império
“hombres extraños” sob a ideia de que
Inca. Pachacutec fundou um governo que se
deveriam “modernizar” e “civilizar” os
estendia da Colômbia à Argentina, sendo
indígenas. O presidente retoma uma memória
assim, é um nome muitíssimo conhecido e
que se faz presente nas vidas das pessoas de
ainda reverenciado por todos que conhecem a
nacionalidade boliviana, descendentes desses
história deste povo andino que vivia na
mesmos povos que foram historicamente
América do Sul antes de que chegassem os
massacrados e desumanizados pelos brancos
colonizadores espanhóis. Tal autoridade inca
invasores, afirmando que os colonizadores
remete à representação da resistência desses
desejavam que desaparecessem seu “pueblo”,
povos originários frente à invasão espanhola.
“idioma”, “música e “vestimentas”.
Além do pedido de permissão a
Diante de todas essas retomadas
Pachacutec, Morales pede licença à Cordilheira
históricas, Morales apresenta-se com
dos Andes e autoridades como “Padre Sol”,

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803
vestimentas características das autoridades
Sabemos que Evo Morales, presidente
ancestrais que evoca; está rodeado por
boliviano, constrói e tem sua identidade
apoiadores e/ou assessores indígenas e/ou
indígena construída por diversos meios: ele
descendentes de indígenas vestidos com trajes
mesmo, apoiadores e opositores. Pretendemos
indígenas; fala ao som de instrumentos de
centrar nossa pesquisa unicamente sobre seu
sopro andinos, que por vezes soam, como a
próprio dizer. O que Morales diz sobre si, sobre
anunciar seus dizeres; agradece a presença e o
sua identidade, sobre seu corpo, como se
apoio de “pueblos originarios”, “pueblos
apresenta, o que reforça, o que diz saber sobre
milenarios” e “movimentos sociales”, ao
sua cultura, dentre outras questões. A
finalizar seu pronunciamento.
valorização e o conhecimento sobre uma
“Aquí estamos para governar nosotros cultura ancestral andina remete ao triunfo de
mismos”, declara Evo Morales. Eleito por três uma memória há tempos rechaçada: aquela que
vezes, nos moldes da democracia atesta que, há séculos, havia uma civilização
representativa, Morales ressalta que pode avançada em termos políticos e científicos na
governar e acrescenta que “los índios” não América do Sul, que foi praticamente dizimada
estão somente para votar, mas para governar e por invasores sob o pretexto da instauração de
“mejor que ellos”. É recorrente na fala do civilização e do progresso. Em que medida este
presidente essa contraposição a um outro, novo presidente dá continuidade ou rompe com
estranho, invasor, que veio para causar a todas essas histórias, as oficiais e as
desarmonia daqueles que viviam em uma outra silenciadas? Em que medida diz e carrega em
relação com sua cultura milenar e com a seu próprio corpo as marcas da e a reverência à
natureza. sua ancestralidade? Quais são os efeitos de
Com base em Charaudeau (2008, p.67), sentidos propagados em seus dizeres, em sua(s)
entendemos que, por meio de tantos elementos língua(s), por meio de suas vestimentas, na
apresentados, referentes à atestação de origem, música que soa de fundo em suas cerimônias
formação e mandato do presidente boliviano, oficiais? Temos poucos, mas riquíssimos
haja a construção de uma legitimidade por elementos. Mais perguntas, menos respostas.
filiação, que se dá quando o sujeito é “bem Tivemos como pretensão fazer um breve ensaio
nascido”, seja em uma família tradicional, seja sobre uma pesquisa que se inicia...
em um grupo social do qual espere alguma
consideração; por formação, que diz respeito a
Referências
um nível mínimo exigido de titulação – esta
“confere” ao sujeito certa imagem de CHARAUDEAU, P. Discurso político. São
capacidade para atuar em determinadas Paulo: Contexto, 2008.
situações que se propõe a confrontar ou COULOMB, M. Pensamentos sobre o corpo, o
solucionar; e por mandato, quando a corpo pensado. Corpo, encarnação e
legitimidade é atribuída pela “tomada de poder representação política. In: V Seminário de
pelo povo”, nos moldes do regime democrático. Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em
Considerações finais Linguística e Ciclo de Palestras em Linguística.
São Carlos/SP, 2011.

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804
COURTINE, J-J. Metamorfoses do Discurso
Político: Derivas da fala pública. São Carlos:
Claraluz, 2006.
______. História do corpo: as mutações do
olhar. O século XX. Vol. 3. [Trad. Bras.
Ephraim Ferreira Alves]. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2008.
_____. História do rosto. Lisboa: Teorema,
1995.
ROSANVALLON, P. Le peuple introuvable.
Paris: Gallimard,1998.

Vídeo:
“Discurso del Presidente Evo Morales en la
Ceremonia Ancestral”. Disponível em
<https://www.youtube.com/watch?v=gLITyW5
DsTE> Publicado por TV Bolívia.
www.youtube.com. Acesso em: 27 mar. 2015.

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805
RELAÇÕES DE VERDADES E PODERES NA E PELA
MATERIALIDADE FÍLMICO-DISCURSIVA DE “NARRADORES
DE JAVÉ”

Léa Evangelista PERSICANO; Antônio FERNANDES JÚNIOR


Universidade Federal de Goiás (UFG) / Regional Catalão (RC)
leapersicano@yahoo.com.br

Resumo: Esse texto, produto inicial de nossas reflexões decorrentes da pesquisa de


mestrado, pretende destacar alguns conceitos e relacioná-los à materialidade linguístico-
histórica de “Narradores de Javé” (2003), filme brasileiro. Este se trata de um objeto
cultural/simbólico que permite inúmeras leituras, dentre as quais destacamos certa
representação identitária (brasileira, nordestina) e as práticas discursivas que estão em
jogo no fazer histórico, procurando problematizar algumas naturalizações e inferindo que
são construções sócio-histórico-culturais e ideológicas. Fundamentamo-nos em conceitos
da Análise de Discurso (AD) embasada em Michel Foucault, Michel Pêcheux,
correlacionando com reflexões de analista(s) de discurso(s), historiador(es), autor(es) dos
Estudos Culturais, teóricos cinematográficos.
Palavras-chave: narrativas; discursos; identidades; construções; filme.

Xerazade, a última virgem casadoira do reino,


Introdução
durante inumeráveis noites, narra histórias
Ouvir, contar, ler e assistir a histórias maravilhosas para o rei Xariar, tentando
faz parte de nossa formação, consistindo em reavivar nele a fé no amor / mulheres e,
uma questão cultural. As histórias nos consequentemente, procurando dissuadi-lo de
acalmam, abrandam nossas ansiedades e criam matá-la, feito(s) que consegue alcançar.
vínculos emocionais, além de proporcionarem Quando Foucault (2000) se refere a essa
explicações para diversas questões do dia-a-dia, narrativa árabe, afirma que
ainda que muitas explicações sejam fantasiosas
(SCLIAR, 2007). contavam-se histórias até de madrugada
para afastar a morte, para evitar o momento
Em certo sentido, as narrativas podem em que o narrador se calaria. A narrativa de
adiar e afastar nosso encontro com a morte ou Xerazade é o denodado reverter do
tornar-se um meio de libertação, como assassínio, é o esforço de todas as noites
acontece na coletânea de contos intitulada Mil para manter a morte fora do círculo da
e uma noites, mundialmente conhecida. existência (FOUCAULT, 2000, p. 36).

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806
decorrentes de estereótipos, as quais
As narrativas podem representar
tencionamos problematizar no decorrer do
possibilidades de salvação para comunidades
mestrado.
inteiras, conforme retratado no filme brasileiro
Narradores de Javé (2003), objeto de nossa Nossa pesquisa se baseia na premissa de
pesquisa1. O enredo dessa obra, um objeto que representações identitárias são construídas
cultural / simbólico gira em torno da tentativa nos e pelos discursos, inclusive pelas memórias
da comunidade do Vilarejo de Javé, região discursivas, nas relações entre passado,
ribeirinha localizada no interior da Bahia- presente e futuro, trabalhados em vários planos
Brasil, de impedir a sua inundação, devido à narrativos, num misto entre ficção e realidades.
construção de uma usina hidrelétrica. Tais representações vinculam-se a certas
formações discursivas, bem como a
A comunidade de Javé é uma
determinadas verdades, poderes e práticas
comunidade de cultura oral e corre o risco de
discursivas, sendo concomitantemente produtos
ser extinta. Pretendendo salvar a terra,
e produtores de ficções / realidades, (des)
conservar as próprias lembranças e as de
identificações imaginárias e simbólicas.
antepassados, manter a integridade e,
consequentemente, sua “identidade”, essa NJ apresenta, por meio das personagens
comunidade local empenha-se para que as que se constituem narradoras, várias versões da
narrativas de origem do Vale de Javé e para a história de Javé e a personagem
permaneçam como cultura viva, podendo ser Antônio Biá tenta “costurá-las” em uma
tombadas pelo patrimônio histórico como única história e identidade únicas, do povoado / povo
saída para que não ocorra a referida inundação, de Javé (leia-se também Nordeste / nordestino,
segundo relata o narrador-personagem Zaqueu. brasileiro), o que praticamente não se realiza.
Com muito humor, simula exercer o ofício de
O filme consiste, para nossa pesquisa
escritor / intelectual / “historiador” a ele
em momento inicial, uma unidade de análise
imposto. E ao mediá-las, fingindo procurar
(texto) que possibilita ter acesso aos discursos,
pontos em comum entre as várias versões
influenciados por certas condições de
narradas, carregadas de subjetividades, também
produção, em dada rede de sentidos, isto é, uma
deixa nelas impressas as marcas de sua
materialidade linguístico-histórica, produto e
subjetividade, o que nos leva a questionar até
produtora de realidade(s). Na e pela trama
que ponto a História (de Javé) não passa de
fílmico-discursiva de Narradores de Javé, uma grande invenção.
doravante NJ, em que se destacam algumas
personagens, os narradores orais e um Nesse sentido, de acordo com
intelectual, o pretenso autor na escrita do livro Albuquerque Júnior (2007, p. 21),
(i)memorial com a(s) história(s) do Vale de
Javé, visualizamos determinada representação Objetos e sujeitos se desnaturalizam,
deixam de ser metafísicos e passam, pois, a
de brasilidade (especialmente a nordestina) e de
ser pensados como fabricação histórica,
brasileiro (como malandro), representações como fruto de práticas discursivas ou não,
que os instituem, recortam-nos, nomeiam-
1
Financiada pela FAPEG – Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de Goiás.

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807
nos, classificam-nos, dão-nos a ver e a
dizer. como operadoras de simbolização e de
memória social nos contextos culturais. Podem
ser recebidas / compreendidas segundo dois
Os pontos de vista dos narradores são
níveis diferentes, com regras de funcionamento
uma importante “chave” de leitura para o filme.
relativamente próprias, o semiótico (modo de
Os posicionamentos discursivos em muito se
significação próprio do signo linguístico) e o
divergem, se digladiam, mas também são
semântico (modo de significância engendrado
convergentes e até mesmo complementares.
pelo discurso) (BENVENISTE, 1969 apud
“Os homens inventariam a História através de
DAVALLON, 2007, p. 29).
suas ações e representações”, segundo
Albuquerque Júnior (2007, p. 19). Cada As imagens nos chegam “já como
narrador – Vicentino, Deodora, Firmino, mensagens “codificadas”, já representadas
Daniel, Gêmeo e o Outro, Pai Cariá – ao contar como algo significativo em vários modos”
sua versão dos e para os fatos, estabelece algum (TURNER, 1997, p. 53; grifo do autor), por
vínculo pessoal e / ou familiar com o passado e pertencerem a várias cadeias significantes,
com as figuras representativas desse passado, sendo uma das tarefas da análise de discursos a
os guerreiros / heróis (Indalécio, Indalício, compreensão, a interpretação (não a apreensão)
Indaleu, Mariadina, Oxum). e a problematização de alguns dos seus
sentidos, atividades pelas quais se produzem
Desse modo, pela materialidade em
outros sentidos.
questão, vemos também problematizado o
próprio fazer histórico, isto é, a escrita da Para reforçar essas reflexões, também
história, a chamada operação historiográfica; recorremos a Lotman (1978, p. 77), para quem
bem como o fazer artístico, em que o contar
uma história baseada em outra história “real”, As imagens criadas para o filme fazem
ou mesmo ao se contar uma história “real”, a parte da luta ideológica, da cultura, da arte
da sua época. Deste modo, [encontram-se
fronteira entre realidade e invenção se coloca,
ligadas] a numerosos aspectos da vida
porque há implicação de subjetividade no ato situados fora do texto do filme, e isto
de narrar (seja pela oralidade ou pela escrita), origina toda uma série de significações.
ato interpretativo por excelência.
NJ na relação com alguns conceitos NJ é, pois, um objeto cultural da década
Os objetos culturais podem ser a 1995-2005. Foi lançado em 2003 e documenta,
materialização “de uma conjunção, de um antes de tudo, o modo e as condições de
entrecruzamento, de uma síntese entre memória produção cinematográficas de seu tempo. Essa
coletiva e história” (DAVALLON, 2007, p. noção designa – conforme Pêcheux (1969)
27), abrindo possibilidades de controle da citado por Maingueneau (1998, p. 30) – tanto o
memória social, em que esse controle está meio ambiente material e institucional do
relacionado aos funcionamentos formal e discurso quanto as representações imaginárias
significante dos objetos. que os interlocutores fazem de sua identidade e
do referente de seus discursos; elas constituem-
As imagens representam a realidade, se por meio de já-ditos e de “já-ouvidos” (pré-
conservam a força das relações sociais e atuam

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808
construídos). se em roda, para contar e ouvir histórias,
quando se encontra(va) tempo para essa prática,
Como boa parte dos filmes brasileiros
destacando a riqueza inventiva dos contadores
produzidos à época, contou com verbas
de histórias e a rarefação dos mesmos nos
provenientes de Leis de Incentivo à Cultura e
ambientes e culturas.
ao Audiovisual, e com patrocínios de empresas
privadas (ou não). Seu principal meio de De acordo com Benjamin (1994), a
divulgação foram os festivais nacionais e experiência da arte de narrar está prestes a se
estrangeiros, outra característica do cinema extinguir e as pessoas habilitadas para esse fim
brasileiro do período, pois o mercado interno estão se tornando raras. As narrativas orais bem
de filmes é dominado por produções norte- como os narradores tradicionais têm se
americanas e suas empresas distribuidoras distanciado cada vez mais de nós (ou quem
(CAETANO et al., 2005). sabe nós deles), principalmente pelo advento da
modernidade, desenvolvimento e diversificação
Foucault (2006, p. 8-9) considera que
de forças produtivas / tecnologias, processo
em toda sociedade a produção do discurso acelerado de urbanização e circulação do
é ao mesmo tempo controlada, selecionada, gênero literário romance.
organizada e redistribuída por certo número
NJ é tão instigante de se ver e de ouvir
de procedimentos que têm por função
que, quando estamos diante da tela (do cinema,
conjurar seus poderes e perigos, dominar
seu acontecimento aleatório, esquivar sua da TV, do computador), nem percebemos o
pesada e temível materialidade. tempo passar. Em vários momentos, nos
pegamos em altos risos diante da atuação das
personagens ou mesmo tristes e pesarosos
O que propicia de certo modo, devido
diante do sofrimento de algumas, com o
aos tipos de financiamentos recebidos,
desenrolar da história, e acabamos nos
principalmente o incentivo estatal, o mote de
identificando com aquele povo / povoado,
NJ “encaixar-se” em uma sistematização de
sendo difícil estabelecer limites, se os há, entre
certos temas e motivos históricos correntes à
realidade e ficção.
produção cinematográfica de sua década. Além
disso, e talvez por extensão, essa obra ficcional Como bem pontua Albuquerque Júnior
possuir determinada representatividade e (2007, p. 25; grifo nosso),
relevância culturais (CAETANO et al., 2005),
sob alguns aspectos. a realidade além de empírica é simbólica, é
produto da dotação de sentido trazida pelas
NJ problematiza, de forma bem- várias formas de representação. A realidade
humorada, temática tão séria como a não é um antes do conceito, é um conceito.
expatriação de um povo de seu território,
ameaçado pela chegada do “progresso”, em luta Isto é, por tratar-se de uma produção
pela sobrevivência material e imaterial. Re- conceitual, em certa medida, também é uma
apresenta muito da vida de regiões mais ficção. Destacamos, consoante Turner (1997,
interioranas do país ou de anos atrás, em que é/ p.128-129; grifo do autor), que o cinema
era hábito entre familiares e vizinhos sentarem-

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809
não só dos grandes e nobres feitos do Vale de
não reflete nem registra a realidade; como Javé. O possuidor das mãos ora malditas, ora
qualquer outro meio de representação, ele santas de acordo com a utilização de
constrói e “re-apresenta” seus quadros da conhecimentos e habilidades que possuía no
realidade por meio dos códigos,
manuseio da escrita, oscilando entre a
convenções, mitos e ideologias de sua
cultura.
malandragem e a santidade, num entre-lugar,
uma terceira margem (ALBUQUERQUE
JÚNIOR, 2007). Estava sujeito a certas
Sendo assim, quando assistimos a um coerções e também tentava impô-las, para que
filme como NJ, não vemos propriamente os (se) exercesse seu papel com agilidade,
heróis que “fundaram” Javé, a partir de um criatividade, maestria e perfeição, podendo se
“mito de origem”, mas uma representação redimir frente à comunidade de Javé.
imagético-cinematográfica desses heróis, no
caso, pela ótica e encenação de personagens- A iminente inundação do Vilarejo e a
narradoras, a exemplo de Vicentino / Firmino/ tentativa de produção de um documento escrito
Indalécio, Deodora / Mariadina, com os quais constituíram, de certo modo, um acontecimento
elas se (des)identificam. histórico e discursivo. Como traz Albuquerque
Júnior (2007, p. 27),
Para Foucault (2005), o campo
associado dos discursos e dos enunciados é um acontecimento [...] começa a fazer
uma trama bastante complexa, constituído por sentido, começa a se tornar fato, começa a
séries, conjuntos, mecanismos de controle e ganhar contornos quando começa a ser
emergência, status (quem fala, de que lugar narrado, relatado. [...] Todo fato é, ao
institucional se fala, quais as percepções a mesmo tempo, natureza, sociedade e
partir desse lugar). Considerando esse último discurso, pois é materialidade, relação
social e de poder e produção de sentido.
aspecto, o status, interligado aos demais,
Antônio Biá seria, então, o porta-voz da(s)
verdade(s) construída(s) sobre as origens de Cada vez que é narrado, o “mito”
Javé, a pessoa habilitada para fazer circular Indalécio / Mariadina, que se considerava
certos discursos. A personagem que foi relacionado às origens do povoado, adquire
encarregada de escrever a(s) história(s) de Javé, nova roupagem e interpretação. Diversas são as
o intelectual “que ocupa uma posição relações construídas entre presente e passado,
específica, mas cuja especificidade está ligada numa espécie de projeção para o futuro (um
às funções gerais do dispositivo de verdade” lugar de destaque no pretenso livro). O fato
(FOUCAULT, 2007, p. 13) na comunidade histórico seria a chegada de Indalécio /
javelina (nordestina, brasileira). Mariadina ao Vale, já o discursivizado as
versões sobre a chegada deles.
Essa personagem era o único adulto que
na época sabia escrever “corrido e com arte”, Para Foucault (2005),
no povoado e redondezas. Deveria ser o
narrador na escrita, enquanto outras um enunciado é sempre um acontecimento
que nem a língua nem o sentido podem
personagens se tornam narradoras na oralidade,

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810
esgotar inteiramente. Trata-se de um
acontecimento estranho (p. 31) Para ele, o discurso se configura como
um conjunto de enunciados historicamente
não é em si mesmo uma unidade, mas sim determinados, sendo esses compostos por uma
uma função que cruza um domínio de série de regras / procedimentos característicos
estruturas e de unidades possíveis e que faz dessa ou daquela prática discursiva, igualmente
com que apareçam, com conteúdos determinada (FOUCAULT, 2005, 2006). As
concretos, no tempo e no espaço (p. 98). práticas discursivas relacionam-se a dado
campo enunciativo e é por meio delas que
Na trama cinematográfica, passa-se a mutuamente se produz e se exerce poderes-
maior parte do tempo tentando-se produzir um verdades, em variados níveis e diferentes
documento escrito. É uma tentativa de se pontos da trama social (FOUCAULT, 2007).
arquivar (não mais pela memória oral coletiva) Foucault (2005, p. 119) considera que
e (re)significar certos elementos das histórias e
das identidades, (re)inventando-se o passado o enunciado circula, serve, se esquiva,
por práticas discursivas correntes. O campo / permite ou impede a realização de um
jogo associativo permite aos discursos e desejo, é doce e rebelde a interesses, entra
enunciados relações possíveis entre o passado- na ordem das contestações e das lutas,
presente-futuro, atribuindo-lhes ao mesmo torna-se tema de apropriação ou de
rivalidade.
tempo uma memória e uma atualidade, um
caráter universal e singular, o ser / tornar-se
uma repetição (estrutura) e uma diferença O que, em certa medida, se confirma na
(acontecimento), conforme postulam Foucault e pela materialidade linguístico-histórica de NJ.
(2005) e Pêcheux (2006). Em vários momentos, há embates discursivos,
seja entre os narradores, entre esses e Biá, entre
A interdiscursividade, nas formações esse e outras pessoas da comunidade, entre
discursivas, remete certos sentidos a outros, a algumas dessas e os engenheiros / estrangeiros
partir do que produzem suas identidades, que chegaram ao vilarejo pelo evento da
devido ao fato de os sentidos se encontrarem construção da barragem. Variadas instâncias de
em uma cadeia significante. Os sentidos não enunciação emergem, assim como várias
estão postos no texto para serem desvendados; formas de ver e dizer, diferentes posições-
apesar do efeito de evidência, de ilusão sujeito são ocupadas, inúmeras forças se
referencial. Uma formação discursiva, segundo digladiam.
Foucault (2005, p. 83),
Os sentidos são influenciados pelas
determina uma regularidade própria de condições de produção em que se encontram
processos temporais; coloca o princípio de inseridos os grupos sociais, que não só os
articulação entre uma série de produzem e os interpretam, mas de certo modo
acontecimentos discursivos e outras séries os recebem “já-prontos”, “já-significados”.
de acontecimentos [...] se trata [...] de um Sendo assim, as representações simbólicas
esquema de correspondência entre diversas
desencadeiam “automatismos” que envolvem
séries temporais.
questões sócio-histórico-culturais e ideológicas

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811
presentes no imaginário coletivo desses grupos; brasileiro como marca de sua “identidade” e a
tais “automatismos” circulam na sociedade sob ocorrência sócio-histórica deles caracteriza-se
a forma de certos enunciados característicos, como um acontecimento discursivo. Ao que
“cristalizados”, popularmente denominados de completamos também como acontecimento
enunciados clichês ou estereótipos. histórico, pois, segundo Albuquerque Júnior
(2011, p. 30),
Grosso modo, a noção de clichê
associa-se às noções de lugar-comum, chavão, O estereótipo é um olhar e uma fala
estereótipo; o clichê atravessa gerações, circula produtiva, ele tem uma dimensão concreta,
entre diferentes estratos sociais, é repetido porque além de lançar mão de matérias e
pelos indivíduos e reforça certos sentidos e formas de expressão do sublunar, ele se
representações. Para Ferreira (2003, p. 71), materializa ao ser subjetivado por quem é
estereotipado, ao criar uma realidade para o
ao transcender as barreiras entre o que toma como objeto.
individual e a massa, se assemelha, na sua
sistematicidade [fórmula], a um cimento
que perpassa diferentes usos e estratos e
Nesse seu livro, A invenção do
garante um efeito coesivo na rede social. Nordeste e outras artes, publicado a partir de
sua tese de doutorado, esse historiador afirma
que “O Nordeste e o nordestino miserável [...]
Sutil, de fácil acesso, o clichê2 tem
são invenções [de] determinadas relações de
características que o aproximam do estereótipo,
poder e do saber a elas correspondente”
o qual apresenta a especificidade de comportar
(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011, p. 31).
a oposição plenitude / esvaimento3. Ao mesmo
Esse modo de ver e dizer o Nordeste /
tempo em que transmite a ideia de
nordestino relaciona-se a outra série de práticas
“congelamento” de sentidos, permite
(discursivas e não discursivas) ecônomicas,
deslocamentos e desvios, isto é, “transformação
sociais, políticas, artísticas.
no efeito de evidência que a fórmula exprime”
(FERREIRA, 2003, p. 72). Não temos segurança até o momento em
afirmar se a obra cinematográfica que
Destacamos as reflexões dessa analista
estudamos subverte ou reforça muitos dos
de discursos acerca dos clichês / estereótipos
discursos correntes à época de sua produção e
Todo brasileiro gosta de levar vantagem em
até que ponto isso ocorre, reforçando ou não a
tudo, O jeitinho brasileiro e Deus é brasileiro,
imagem do Nordeste e do nordestino /
pois ela reafirma que clichês / estereótipos
brasileiro como estereotipadas. O que por ora
como esses estão impregnados na memória do
enfatizamos, em sintonia com Albuquerque
2
Júnior (2011), é que a linguagem do cinema
Ferreira (2003) aproxima o conceito de clichê ao de não apenas representa o real, mas institui
discurso social, formulado por Angenot (1984).
3
Tendo por base Ferreira (2003, p. 70; grifos da autora), realidades.
“clichê e estereótipo convivem harmoniosamente no Assim, as questões identitárias não
mesmo campo semântico, apresentando nítidas zonas de
interseção [...] vão co-ocorrer no mesmo lugar e produzir
podem e não devem ser pensadas de forma
sentidos semelhantes, expressando características de isolada, naturalizada, deslocada. Nós as
imutabilidade, invariabilidade e cristalização”. compreendemos como decorrentes de práticas

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discursivas específicas, instauradoras de certos pelas personagens narradoras é uma questão
efeitos de verdades e poderes, relacionadas a complexa, principalmente para Antônio Biá,
determinados momentos históricos e seus que deveria mediá-las, sendo, entretanto,
regimes de verdades. O sujeito que em dado capturado e amordaçado pelo próprio suposto
contexto (da história geral) é centrado, tido saber-fazer.
como origem de seu dizer; em outro (da Essas reflexões, ancoradas nos estudos
história global) é descentrado, produzido nos e
foucaultianos, aproximam-se das discussões
pelos discursos. desenvolvidas pelos Estudos Culturais, quando
Como o historiador Albuquerque Júnior problematizam o conceito de identidade
(2011), mas enquanto analista de textos e enquanto produto cultural e discursivo4. Nesse
discursos em processo de constituição, sentido, segundo Hall (2006), a identidade
nacional não é inata ao sujeito, mas é formada e
Questionamos a própria ideia de transformada no interior da representação;
identidade, que é vista por nós como uma trata-se de uma ideia forçada, uma ficção.
repetição, uma semelhança de superfície,
que possui no seu interior uma diferença Identidades e culturas nacionais e / ou
fundante, uma batalha, uma luta, que é regionais são, portanto, modos de produzir
preciso ser explicitada. A identidade sentidos, comunidades imaginadas, narrativas
nacional ou regional é uma construção discursivas. Para Hall (2007, p. 108),
mental, são conceitos sintéticos e abstratos
que procuram dar conta de uma É precisamente porque as identidades são
generalização intelectual, de uma enorme construídas dentro e não fora do discurso
variedade de experiências afetivas. que nós precisamos compreendê-las como
(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011, p. 38). produzidas em locais históricos e
institucionais específicos, no interior de
No filme, a tentativa frustrada em formações e práticas discursivas
específicas.
compor o primeiro livro com as origens
heroicas de Javé – Odisséia do Vale de Javé:
Parte I – coloca em xeque, por assim dizer, a Precisamos não só compreendê-las, mas
naturalização / a obviedade / a evidência de principalmente problematizá-las. Ressaltamos
certos conceitos, como história, fato, memória, que enunciados e discursos identitários não são
documento, identidade, dentre outros. Com os tão modernos quanto aparentam ser. Constroem
quais relacionamos, a partir de leituras imagens simbólicas e posicionamentos sobre
realizadas, os conceitos de invenção, eles, numa conjugação entre passado-presente-
construção, produção, poderes, verdades, futuro, por meio de uma memória discursiva,
práticas discursivas de objetivação e que
subjetivação, caráter político, contexto sócio-
seria aquilo que, face a um texto que surge
histórico-cultural-ideológico.
como acontecimento a ler, vem restabelecer
Unificar de modo pacífico, em uma
única versão / identidade / verdade, as várias 4
versões / identidades / verdades apresentadas Em função dos limites deste estudo, não avançaremos,
por ora, nessa reflexão.

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813
os “implícitos” (quer dizer, mais
tecnicamente, os pré-construídos, narrativas e em consequência para a linguagem
elementos citados e relatados, discursos com os olhos, sobretudo, de pesquisador é
transversos, etc.) de que sua leitura perscrutar vários campos do saber, pois as
necessita (PÊCHEUX, 2007, p. 52; grifo do questões que os atravessam são históricas,
autor). sociais, políticas, econômicas, ideológicas. Por
isso, a interdisciplinaridade de nossa pesquisa
Há, inclusive, variações no modo de acerca de Narradores de Javé (2003), que
atuação dos discursos, conforme o lugar abre possibilidades de reflexão sobre vários
institucional de onde provêm, com múltiplos e aspectos, sem perdermos de vista que é uma
variados efeitos de sentidos, verdades e pesquisa no campo da linguagem e com o
poderes, práticas de objetivação e subjetivação. intento ser uma leitura, entre outras leituras
Sendo assim, representações identitárias e possíveis. Visamos, pois,
culturais são produzidas, no presente, via
retomada de temas e imagens do passado, na compreender o enunciado na estreiteza e
singularidade de sua situação; de
maioria das vezes cristalizadas sob a forma de
determinar as condições de sua existência,
enunciados clichês / estereótipos. de fixar seus limites da forma mais justa,
Considerações finais de estabelecer suas correlações com outros
enunciados a que pode estar ligado
Os discursos, assim como as narrativas, (FOUCAULT, 2005, p. 31).
nos constituem enquanto sujeitos histórico-
culturais que somos. Refletir sobre eles é de
Com a descrição-interpretação que
certo modo refletir acerca de nós mesmos, da
propomos, vislumbramos e esboçamos nessas
nossa e de outras histórias, da nossa e de outras
páginas, vemos a importância de problematizar
culturas, de identidades e singularidades; é
certas naturalizações, por exemplo, como as
rever valores, pontos de vista, relativizar e
que envolvem as identidades e o fazer
problematizar conceitos; promover abalos e
histórico, produtos de práticas discursivas,
quem sabe mudanças. Até então, tínhamos
relações de verdades e poderes, além de
como forte referência um posicionamento
algumas contradições sobre o que se cunhou de
teórico embasado na relação-comparação-
“modernidade”, “progresso”, bem como o
oposição, um binarismo, segundo o qual não
distanciamento entre oralidade e escrita, a
tem como pensar na “identidade” brasileira sem
superposição daquela por esta, dentre as quais
considerar a estrangeira (americana, europeia),
abordaremos em momento oportuno.
na “identidade” do nordestino sem pensar a dos
não nordestinos, a da mulher sem pensar a do Além disso, reforçamos a reflexão sobre
homem, a da oralidade sem pensar a da escrita, como objetos culturais / simbólicos, obras de
a da história oficial sem pensar a da não oficial, arte, como os filmes produzem sentidos, a
entre outras. partir de e em sua materialidade linguístico-
histórica, consistindo em um bólido de sentidos
Esse ponto de vista teórico anterior se
e representações, conforme Orlandi (2007),
desfaz, abrindo espaço para outros confrontos
verdadeiras máquinas históricas de saber-poder
teóricos, novas associações, como os esboçados
(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011). Por serem
nesse texto. Olhar para os discursos, para as

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polissêmicos, podem ser riquíssimos para
DAVALLON, J. A imagem, uma arte de
diversos tipos de abordagens, além de poderem
memória? In: ACHARD, Pierre et al. Papel da
ser utilizados em estratégias de ensino-
memória. Trad. José Horta Nunes. 2. ed.
aprendizagem não só sobre questões
Campinas-SP: Pontes Editores, 2007. p. 23-37.
concernentes às várias formas de linguagens,
discursos e suas relações com as culturas. FERREIRA, M. C. L. A antiética da vantagem
e do jeitinho na terra em que Deus é brasileiro.
O refletir sobre e a partir deles pode
In: ORLANDI, Eni Puccinelli (Org). Discurso
propiciar mudanças na própria prática (de)
fundador: a formação do país e a construção da
intelectual que exercemos. Seja enquanto
identidade nacional. 3. ed. São Paulo: Pontes,
professores de língua(gem), analistas de textos
2003. p. 69-79.
e discursos, sujeitos discursivos sócio-histórico
-culturais e ideologicamente construídos, no FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Org. e
exercício de uma postura política diante do Trad. Roberto Machado. 24. ed. Rio de Janeiro:
mundo e para com ele. Podendo essa pesquisa Edições Graal, 2007.
confirmar inclusive a importância das ______. A ordem do discurso. Trad. Laura
narrativas em geral nas nossas vidas e na nossa Fraga de Almeida Sampaio. 14. ed. São Paulo:
(trans)formação enquanto sujeitos. Cada um de Edições Loyola, 2006. (Leituras Filosóficas).
nós, em certa medida, temos / somos um pouco
de Xerazade (BENJAMIN, 1994). ______. A arqueologia do saber. Trad. Luiz
Felipe Baeta Neves. 7. ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2005.
Referências ______. O que é um autor? Trad. Antônio
ALBUQUERQUE JÚNIOR, D. M. de. A Fernando Cascais; Eduardo Cordeiro. 4. ed.
invenção do Nordeste e outras artes. 5. ed. São Lisboa: Vega, 2000. (Passagens).
Paulo: Cortez, 2011. p. 29-49. HALL, S. Quem precisa de identidade? In:
ALBUQUERQUE JÚNIOR, D. M. de. SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Identidade e
História: a arte de inventar o passado. Ensaios diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais.
de teoria da história. Bauru-SP: Edusc, 2007. p. Trad. Tomaz Tadeu da Silva. 7. ed. Petrópolis-
19-39. RJ: Editora Vozes, 2007. p. 103-133.
BENJAMIN, W. O narrador. Considerações ______. A identidade cultural na pós-
sobre a obra de Nikolai Leskov. In: ______. modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva;
Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre Guacira Lopes Louro. 11. ed. Rio de Janeiro:
literatura e história da cultura. Trad. Sérgio DP&A, 2006.
Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. LOTMAN, Y. Estética e semiótica do cinema.
197-221. (Obras escolhidas; v. 1). Trad. Alberto Carneiro. Lisboa: Editorial
CAETANO, D. et al. Cinema brasileiro 1995- Estampa, 1978. (Imprensa Universitária).
2005: ensaios sobre uma década. Rio de MAINGUENEAU, D. Termos-chave da
Janeiro: Azougue Editorial, 2005. análise do discurso. Trad. Márcio Venício

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815
Barbosa; Maria Emília Amarante T. Lima. Belo
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816
INTERDISCURSIVIDADE PRESENTE EM THE HOBBIT DE
J.R.R. TOLKIEN: CONTRIBUIÇÕES DA ANÁLISE DO
DISCURSO
Felipe de Oliveira Monteiro PINCELLI; João Marcos Mateus KOGAWA
Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)
felipe_firebrand@hotmail.com; jmmkogawa@gmail.com

Resumo: O objetivo deste artigo é analisar aspectos da interdiscursividade em The


Hobbit, escrito pelo escritor britânico John Ronald Reuel Tolkien e publicado em 1937,
sob a perspectiva da Análise do Discurso. Para tanto, nossa análise será guiada pelas
contribuições de Bakhtin , Fiorin e Foucault, tendo como ponto central o funcionamento
do interdiscurso na construção da obra.Para isso, procedemos a um recorte de trechos da
obra para determinar quais e em que medida outros discursos influenciaram sua
arquitetura. A análise desses trechos demonstrará que o universo construído por Tolkien
é composto por um mosaico que agrega literatura fantástica em geral, epopéia, contos
infantis do século XX entre outros.
Palavras-chave: análise do discurso; interdiscursividade; hobbit.

Tolkien utiliza vários elementos da


Introdução 1
literatura fantástica existente no século XIX
The Hobbit é uma obra que marcou a como por exemplo: The Wind in the Willows
literatura fantástica a partir de seu lançamento, de Kenneth Grahame; A Odisséia de Homero e
em 1937, quando J.R.R. Tolkien, pela primeira Pinocchio de Carlo Collodi. No decorrer desta
vez, publicou as aventuras de um Hobbit análise, iremos evidenciar, através do método
chamado Bilbo Baggins em seu percurso pela arqueológico de Michel Foucault, alguns dos
Terra Média. O texto foi escrito primeiramente discursos com o qual The Hobbit mantém
visando um público infantil, mas com o tempo relação e a partir dos quais, em certa medida, se
recebeu atenção de jovens e adultos. constitui.
1. O conceito de interdiscurso
O discurso pode ser definido como uma
1
Trabalho resultante de pesquisa de iniciação científica família de enunciados pertencentes a uma
voluntária sob orientação do Prof. Dr. João Marcos mesma formação discursiva. Para Foucault
Mateus Kogawa. A discussão aqui desenvolvida derivou (2010), o discurso consiste em um jogo que é
dos estudos feitos no quadro das discussões do Grupo de jogado através de signos, no qual os
Pesquisa CNPq/Unifesp Semiologia e Discurso
(vinculado ao Programa de Pós-graduação em Letras da
significados estão sempre em xeque, sempre
Unifesp – Guarulhos). por serem construídos, enquanto as peças que
os movimentam são os significantes. Sendo

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assim, Foucault classifica o jogo do discurso com a literatura, colaborando no entendimento
como sendo uma “troca”. Nas palavras de de seus efeitos de sentido.
Foucault, Em A Arqueologia do Saber, Foucault nos
O discurso nada mais é do que um jogo, de demonstra como os limites de um livro ou uma
escritura, no primeiro caso, de leitura, no obra não estão determinados pelas suas
segundo, e de troca, no terceiro, e essa próprias margens e seus limites físicos, mas
troca, essa leitura e essa escritura jamais sim por um campo complexo de discursos:
põem em jogo senão os signos. O discurso
se anula, assim, em sua realidade, Um romance de Stendhal ou um romance
inscrevendo-se na ordem do significante. de Dostoiévski não se individualizam como
(FOUCAULT, 1996, p.49) os de La comédie humaine; e estes, por sua
vez, não se distinguem uns dos outros como
Entidade não abstrata, mas concreta, o discurso Ulisses da Odisséia. É que as margens de
organiza-se materialmente, concretiza-se em um livro jamais são nítidas nem
enunciados que compõem agrupamentos que rigorosamente determinadas: além do título,
das primeiras linhas e do ponto final, além
obedecem a regularidades. Desse modo, os
de sua configuração interna e da forma que
efeitos de sentido das cadeias significantes lhe dá autonomia, ele está preso em um
emergem de seu pertencimento a esta ou aquela sistema de remissões a outros livros, outros
formação discursiva. Não há, para Foucault, textos, outras frases: nó em uma rede.
sentido a priori, mas movimentos de sentido (...)Por mais que o livro se apresente como
que se atualizam e se apagam construindo um objeto que se tem na mão; por mais que
assim uma rede de discursos e de formações ele se reduza ao pequeno paralelepípedo
discursivas. que o encerra: sua unidade é variável e
relativa. (FOUCAULT, 2008, p.26)
Como o discurso se encontra no meio social, e
não exclusivamente nos domínios da língua, é Bakhtin (2000, p. 279) afirma que os gêneros
necessário ultrapassar as barreiras linguísticas da linguagem são “tipos relativamente estáveis
para então examiná-lo.Tendo como objetivo de enunciados”. Ele também ressalta que o
analisar o imbricamento de formações estudo dos gêneros não pode ser feito de forma
discursivas presentes em The Hobbit, é separada das esferas da comunicação humana
importante ter em vista o método arqueológico nas quais eles estão inseridos. Desta forma, não
de Foucault. Para o filósofo francês, o podemos estudar os gêneros sem levarmos em
enunciado é a unidade elementar do discurso. consideração as atividades para as quais foram
A Análise do Discurso de linha francesa é um criados.
campo de estudo que oferece ferramentas
conceituais para a análise de acontecimentos O conceito de interdiscurso, segundo Fiorin
discursivos, ou seja, a língua em uso, na (2005) pode ser associado ao de dialogismo na
medida em que torna objeto de estudo a obra de Bakhtin. Além disso, Fiorin nota que,
produção dos efeitos de sentido por sujeitos embora as diversas vozes presentes em um
sociais através da materialidade da linguagem enunciado possam não estar presentes nele, um
inserida na história. Nesse sentido, a Análise dado enunciado pode se construir “(...) em
do Discurso pode estabelecer um diálogo fértil oposição à elas, em contradição com elas.”
(FIORIN, 2005, p.172). É importante ressaltar

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expressão, influenciar todo o seu aspecto
que o conceito de dialogismo não pode ser estilístico. (BAKHTIN, 2010, p. 88)
confundido com um dos significados da
palavra diálogo, que remete à “solução de Além disso, Faraco observa em Bakhtin o
conflito”, por exemplo. Faraco observa que "O conceito de forças centrípetas e centrífugas que
Círculo de Bakhtin entende as relações “Apontam para a existência de jogos de poder
dialógicas como espaços de tensão entre os entre as vozes que circulam socialmente”
enunciados" (FARACO, 2003, p. 66). Ou seja, (FARACO, 2003, p. 67). Ou seja, Bakhtin não
o dialogismo é tanto convergência quanto nega que não há uma neutralidade política na
divergência; ele pode ser tanto acordo quando circulação de vozes, mas, pelo contrário, um
desacordo; embate quanto complemento, etc. engajamento, uma adesão a uma ideologia. O
Acerca do que diz Bakhtin sobre dialogismo, discurso, em si, é uma construção pertencente
Faraco prossegue afirmando que “o Círculo de ao contexto social no qual foi produzido. Desta
Bakhtin entende as relações dialógicas como maneira, as ideologias presentes em um
espaços de tensão entre os enunciados", pois, discurso estão diretamente ligadas ao seu
"mesmo a responsividade caracterizada pela contexto político-social.
adesão incondicional ao dizer de outrem se faz
no ponto de tensão deste dizer com outros 2. O interdiscurso em The Hobbit
dizeres (Outras vozes sociais)” (FARACO, Segundo Fiorin (2005, p. 172)
2003, p. 67). Desta maneira, o dialogismo não interdiscursividade pode ser associada ao
pode ser visto como entendimento, solução de dialogismo definido por M. Bakhtin. É
conflito ou promoção de consenso, mas sim importante ressaltar que o conceito de
como “espaço de luta entre as vozes sociais”. dialogismo não está ligado à conversação face
Ou seja, a relação dialógica pode ser também a face, ou seja, um diálogo entre interlocutores,
de entrave, de combate, de conflito de vozes: mas sim entre discursos, pois “o interlocutor só
existe enquanto discurso” (FIORIN, 2005, p.
(...) todo discurso concreto (enunciação) 166). Sendo assim, todo diálogo possui uma
encontra aquele objeto para o qual esta relação entre o Eu e o Outro, pois o Eu, ou a
voltado, sempre, por assim dizer, identidade, é sempre estabelecida por oposição.
desacreditado, contestado, avaliado,
Em The Hobbit, o fenômeno da
envolvido por sua névoa, nu, pelo contrário,
iluminado pelos discursos de outrem que já interdiscursividade se dá logo no início de seu
falaram sobre ele. O objeto está amarrado e primeiro parágrafo:
penetrado por ideias gerais, por pontos
vista, por apreciações de outros e por In a hole in the ground there lived a hobbit.
entonações. Orientado para o seu objeto, o Not a nasty, dirty, wet hole, filled with the
discurso penetra neste meio dialogicamente ends of worms and an oozy smell, nor yet a
perturbado e tenso de discursos de outrem, dry, bare, sandy hole with nothing in it to
de julgamentos e de entonações. Ele se sit down on or to eat: it was a hobbit-hole,
entrelaça com eles em interações and that means comfort. " (TOLKIEN,
complexas, fundindo-se com uns, isolando- 1991, p.7)
se de outros, cruzando com terceiros: e tudo
isso pode formar substancialmente o Ao descrever uma toca, a narrativa nos
discurso, penetrarem todos os seus estratos traz a imagem de algo sujo e cheio de areia, ou
semânticos, tornar complexa a sua seja, de uma toca de animal. No entanto, tal

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imagem é logo desfeita quando, ao evocar a primeiro momento, como lugar para a
ideia de conforto materializada pelos verbos de construção do mito.
sentar-se e comer – ações típicas da classe Outra história que mantém relação com
média burguesa do início do século XX. Esse The Hobbit é a obra Pinóquio:
jogo entre semelhança x diferença entre o
espaço da animalidade x espaço da humanidade Centuries ago there lived – "A king!" my
é reforçado pela proximidade fonética de little readers will say immediately. No,
“Hobbit” com “Rabbit” (Coelho, em inglês). children, you are mistaken. Once upon a
Sob esse aspecto, a história faz emergir efeitos time there was a piece of wood. It was not
de sentido derivados das Fábulas de Esopo, em an expensive piece of wood. Far from it.
que personagens animais são humanizados. O Just a common block of firewood, one of
processo de negação do pertencimento da toca those thick, solid logs that are put on the
a um animal, aproxima, para negar, que se trata fire in winter to make cold rooms cozy and
warm. (COLLODI, ( s/d) p. 2).
de uma história animal, como são as de Esopo.
Ainda nessa linha de evidenciamento do Este primeiro parágrafo de Pinocchio
interdiscurso, Thomas Kullmann (2009, p.39) estabelece um vínculo estrutural inegável com
aponta que este parágrafo inicial de The Hobbit The Hobbit: a negação imediata de uma
tem relação interdiscursiva com um livro do sugestão. Esse efeito sugestivo é garantido pelo
início do século XX intitulado The Wind in the funcionamento mesmo do interdiscurso na
Willows, escrito por Kenneth Grahame. Logo medida em que se produz uma expectativa de
no início desta obra, é descrita a cena de um continuidade com determinado cânone – pré-
animal em processo de auto-limpeza. Assim construído para o discurso de O Hobbit –
como para o personagem de Tolkien, o espaço composto por histórias fantásticas, ou seja,
discursivizado para este animal produz um aquelas cujo personagem principal geralmente
efeito de sentido – possível pela descrição da é um rei, rainha, ou um animal. Sendo assim,
decoração – de adequação aos padrões da meia ambas as histórias tem também este ponto em
classe burguesa. Desse modo, a construção da comum: as duas heroificam um personagem
narrativa tolkiana se dá, em um primeiro que não tem nada de especial, nada do que se
momento, pela retomada às avessas de uma esperaria de um personagem principal de um
característica própria às fábulas: a conto de fadas, uma criatura pequena e
antropomorfização. Se, nos textos típicos de burguesa e um boneco de madeira.
Esopo e Grahame, o percurso é da animalidade Esta atitude, por sua vez, garante à história um
à humanidade, em Tolkien a lógica irônica com caráter metalinguístico, pois há um efeito de
ares cômicos trabalha com um efeito de sentido retorno paródico sobre si mesma quando, ao
de “manipulação das espectativas”: animal  retomar clássicos da literatura universal,
não-animal  Hobbit. Importante destacar que atribui-se valores do “como fazer” associados à
o resultado dessa lógica não é a produção da literatura fantástica. O trecho a seguir revela
humanidade, mas a de um ser com uma outra semelhança entre Pinocchio e The
características de animal e de homem. É o Hobbit a respeito da metalinguagem:
espaço do mito como síntese de oposições:
nem animal, nem humano porque animal e That would be no good, said the wizard, not
humano. O interdiscurso funciona, nesse without a mighty Warrior, even a Hero. I

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tried to find one; but warriors are busy
fighting one another in distant lands, and in definidos como um povo que ama a paz acima
this neighborhood heroes are scarce, or de tudo, também reforça a idéia de abdução.
simply not to be found. Swords in these É neste sentido que Tolkien discursiviza o
parts are mostly blunt, and axes are used
paralelo entre uma espécie de “cotidiano da
for trees, and shields as cradles or dish-
covers; and dragons are comfortably far-
vida real” justaposto a elementos de seu mundo
off (and therefore legendary). That is why I fantástico. Isso produz efeitos de sentido de
settled on burglary-especially when I unidade, pois, assim como o mundo real, é
remembered the existence of a Side-door. regido por regras e de certa forma coeso. Isso
And here is our little Bilbo Baggins, the permite que se construa um efeito de
burglar, the chosen and selected burglar. proximidade do leitor com a obra. Este efeito
So now let’s get on and make some plans.” de proximidade pode ser evidenciado de
(TOLKIEN, 1991, p. 20) maneira mais contundente se considerarmos o
Condado como análogo de uma cidade do
Desta vez, em vez de brincar com as palavras, interior inglês, onde todos se conhecem, nada
Tolkien agora parodia a situação em que de muito especial acontece e a vida é pacata.
encontra a literatura fantástica de sua época.
Histórias sobre heróis fantásticos, em jornadas Elementos de uma formação discursiva
épicas, caem em desuso. Uma das preferências fantástica estão justapostos com um discurso
de muitos autores do final do século XIX e do cotidiano (descrição das mobílias,
começo do século XX é o uso de heróis do vestimentas típicas do começo do século XX,
“mundo real” que são colocados em mundos preferências culinárias dos Hobbits, etc.) e o de
fantásticos. Em Alice no País das Maravilhas, polidez (as saudações, os cumprimentos, cartas
por exemplo, Alice, habitante do “mundo real”, de apresentação, etc). O exemplo a seguir
é abduzida para um mundo completamente mostra como elementos da vida moderna se
diferente e fantástico. No caso de Bilbo, apesar misturam com a fantasia:
de pertencer à Terra Média (mundo no qual o
If you have ever seen a dragon in a pinch,
universo de Tolkien acontece) ele possui
you will realize that this was only poetical
características muito semelhantes às de Alice, exaggeration applied to any hobbit, even to
como por exemplo, o fato de possuir uma Old Tooks great-granduncle Bullroarer,
estatura pequena (o que remonta a efeitos de who was so huge (for a hobbit) that he
sentido do “ser infantil”) e também pelo fato de could ride a horse. He charged the ranks of
ter sido colocado em uma aventura na qual ele the goblins of Mount Gram in the Battle of
não esperava entrar. Ou seja, da mesma forma the Green Fields, and knocked their king
que Alice, é como se Bilbo fosse abduzido Gol-firnbuls head clean off with a wooden
também, por sua vez, a um mundo fantástico. club. It sailed a hundred yards through the
Esse argumento é ressaltado pela própria air and went down a rabbit hole, and in this
descrição de Tolkien sobre o Condado, way the battle was won and the game of
Golf invented at the same moment.
descrevendo-o como um lugar afastado do
(TOLKIEN, 1991, p.18)
mundo dos homens, dos elfos, e também de
toda a escuridão que assolava a Terra Média. A Esta justaposição de discursos de formações
descrição do comportamento dos Hobbits, discursivas diferentes cria, por sua vez, um
efeito de paródia a partir do qual o livro produz

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um retorno sobre si mesmo e sobre a literatura eles finalmente falam de “negócios”. Deve-se
fantástica, como dissemos anteriormente. No notar aqui como a formação discursiva
trecho acima, podemos perceber novamente fantástica mistura-se com a FD dos negócios:
como “mundo real” e fantasia se misturam em
tom humorístico. Tolkien parodia o gênero Thorin and Company to Burglar Bilbo
fantástico, comparando a maneira pela qual o greeting! For your hospitality our sincerest
rei dos goblins intitulado Gol-firnbul é abatido thanks, and for your offer of professional
assistance our grateful acceptance. Terms:
na heróica batalha de Green Fields. Deve-se
cash on delivery, up to and not exceeding
notar aqui a semelhança entre a palavra “Golf” one fourteenth of total profits (if any); all
e o nome do rei: Golf-firnbul: Tolkien traveling expenses guaranteed in any event;
novamente brinca com a sonoridade das funeral expenses to be defrayed by us or
palavras assim como o fez com a palavra our representatives, if occasion arises and
“Hobbit”. the matter is not otherwise arranged for.
Thinking it unnecessary to disturb your
Outro uso interessante da paródia em The
esteemed repose, we have proceeded in
Hobbit se dá no seguinte trecho: advance to make requisite preparations,
and shall await your respected person at
I am so sorry to keep you waiting! he was the Green Dragon Inn, Bywater, at II a.m.
going to say, when he saw that it was not sharp. Trusting that you will be punctual.
Gandalf at all. It was a dwarf with a blue We have the honour to remain Yours deeply
beard tucked into a golden belt, and very Thorin & Co. (TOLKIEN, 1991, p. 25-26)
bright eyes under his dark-green hood. As
soon a the door was opened, he pushed
A carta de Thorin e seus amigos a Bilbo
inside, just as if he had been expected. He
hung his hooded cloak on the nearest peg,
envolve elementos de esferas discursivas
and Dwalin at your service! he said with a diferentes, incluindo novamente as fórmulas
low bow. Bilbo Baggins at yours! said the polidas, elementos da fantasia em geral e a
hobbit, too surprised to ask any questions linguagem de negócios do início do século XX.
for the moment. (TOLKIEN, 1991, p. 11) Segundo Kullmann (2009, p.41) “A fórmula
‘profundamente seu’ obviamente substitui
Os anões realmente querem é requisitar os ‘fielmente seu’ já que profundidade é uma das
serviços de Bilbo ao invés de oferecer seus principais preocupações dos anões
próprios serviços. O rompimento do que se mineradores”.
espera das fórmulas de cortesia, tão caras à
Aqui, novamente, há uma série de relações
classe média burguesa, é quebrado o tempo
interdiscursivas empregadas para gerar um
todo pelos anões. Bilbo, cujo comportamento e
efeito humorístico através de paródia. Nesta
estilo de vida são típicos dessa classe burguesa,
carta, temos também o uso de ironia. Apesar da
tem sua cortesia testada para além dos limites:
linguagem rebuscada e polida, a comicidade é
sua casa fica lotada de anões desconhecidos
um fator preponderante em The Hobbit:
que exigem muita comida; estes anões
primeiro, os anões não estavam colocando seus
continuam cada vez mais a extrapolar os
serviços à disposição de Bilbo, mas o contrário;
limites da cortesia de Bilbo que, por educação,
segundo, apesar de afirmarem que não queriam
não consegue dizer não. Até que, depois de
perturbar seu estimado descanso, é isto o que
uma recepção longa e dispendiosa para Bilbo,
eles mais fazem; terceiro, eles empregam a

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própria linguagem polida de Bilbo contra ele conhecimento, Bilbo percebe que não pode cair
mesmo para convencê-lo a se aventurar. Bilbo, nas armadilhas de Smaug, pois Smaug é
no entanto, possui uma inteligência mentiroso e até mesmo finge oferecer seu
característica dos heróis da epopéia, como dinheiro para enganar Bilbo.
Odisseu a tem na Odisséia e como se mostra Smaug deseja ansiosamente saber com
abaixo: que tipo de oponente está lidando, então,
Well, thief! I smell you and I feel your air. I apressa-se em fazer perguntas como seu nome,
hear your breath. Come along! Help de onde vem, etc. Este desejo de Smaug por
yourself again, there is plenty and to spare! saber o nome de seu oponente invisível
But Bilbo was not quite so unlearned in remonta à Odisséia, na qual Odisseu ilude o
dragon-lore as all that, and if Smaug hoped gigante Polifemo dizendo que seu nome é
to get him to come nearer so easily he was 'Ninguém' :
disappointed. No thank you, O Smaug the.
Tremendous! he replied. I did not come for Pois bem, Ciclope,pergunta-me o nome
presents. I only wished to have a look at famoso? Dizer-to vou; mas a ti cumpre dar-
you and see if you were truly as great as me o presente a que há pouco aludiste. Ei-
tales say. I did not believe them. Do you lo: 'Ninguém' é o meu nome; 'Ninguém'
now? said the dragon somewhat flattered, costumavam chamar-me não só meus pais,
even though he did not believe a word of it. como os mais companheiros que vivem
j Truly songs and tales fall utterly short of comigo (HOMERO,2001,p. 167)
the reality, O Smaug the Chiefest and
Greatest of Calamities, replied Bilbo. Vimos anteriormente que Bilbo
(TOLKIEN, p. 151) conhece as histórias fantásticas com bastante
habilidade, o que o torna capaz de se livrar das
Como pudemos perceber no decorrer da armadilhas de Smaug. Bilbo conhecia bem o
análise, Tolkien parodia o gênero fantástico o temperamento dos dragões, sempre irascível e
tempo todo. Como sabemos também, Smaug é tempestuoso, e dessa forma resolve responder
perigoso, portanto, Bilbo se decide por uma às perguntas do dragão com charadas. O dragão
abordagem mais indireta. Ao confrontar o aprecia a atitude de Bilbo e aceita participar.
dragão, o que se faz necessário a Bilbo é o Dessa forma, podemos perceber que Smaug
conhecimento de dragon-lore, ou seja, também tem conhecimento acerca das histórias
conhecimento que está, segundo Kullmann fantásticas e compartilha esse conhecimento
(ano), presente nas fábulas de dragões das com o leitor e com Bilbo. Daí seu aparente
histórias do gênero fantástico que, segundo apreço por Bilbo. Outra característica marcante
Gandalf (SD anterior) estão esquecidas há um da conversa entre Bilbo e Smaug é que Bilbo,
bom tempo. Smaug então representa o sabendo do temperamento arrogante e
conhecimento comum acerca de dragões: ele orgulhoso dos dragões, fala com bastante
faz tudo que um dragão comumente faz. E a gentileza ao dragão, elogiando seu tamanho,
maneira como Bilbo o confronta é justamente seu poder, seu ouro. O dragão por sua vez se
resgatando as histórias fantásticas, obtendo sente bastante contente com tais elogios, de
assim informações importantes sobre o dragão, Bilbo. Este jogo no qual Bilbo e Smaug se
ao mesmo tempo em que o evita diretamente enfrentam é um jogo disputado através de
para não ser morto. Armado com este conhecimentos literários acerca do que se pode

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ou não fazer contra um dragão. Porém, neste arrogância, após ter enganado o gigante
caso, apenas Bilbo tem a vantagem, pois ele Polifemo, revela seu nome, e então se torna
sabe o que está enfrentando, ao passo que alvo da fúria de Posseidon:
Smaug não.
Ouve, Ciclope! Se um dia, qualquer dos
Bilbo sabe que não pode mais atacar o mortais inquirir-te sobre a razão
dragão uma vez acordado, mas sabe também vergonhosa de estares com o olho vazado,
que não pode ser atacado por estar invisível, dize ter sido o potente Odisseu eversor de
portanto blefa com sua invisibilidade. Bilbo cidades, que de Laertes é filho e que em
age quase como que uma criatura sobrenatural, Ítaca tem a morada (HOMERO, 2001, p.
e por estar invisível parece estar muito mais 168)
forte do que realmente é. Mas Smaug não é
totalmente desprovido de armas: possui um Smaug, por sua vez, possui elementos
olfato muito bom, o que o permite identificar da arrogância em seu discurso, conforme se
parcialmente Bilbo, saber que ele é uma pode ver no trecho abaixo:
criatura viva e não um fantasma ou ilusão, etc.
Segundo Kullmann (2009, p. 42) um olfato
Thieves! Fire! Murder! Such a thing had
apurado não constitui uma característica
not happened since first he came to the
tradicional dos dragões em histórias do gênero Mountain! His rage passes description, the
fantástico. Kullmann no entanto, aponta que sort of rage that is only seen when rich folk
esta relação entre o dragão e o cheiro vem de that have more than they can enjoy
uma obra específica: Jack the Giant Killer, suddenly lose something that they have
escrito por Joseph Jacobs, onde se lê: "Fee, fi, long had but have never before used or
fo, fum!/ I smell the blood of an Englishman!" wanted. (TOKIEN, 2001,p. 148)
(JACOBS Apud KULLMANN, 2009, p. 42).
Aqui vemos como Smaug também é reproduz
Diferentemente da discursivização de valores historicamente associados à burguesia
Odisseu, Bilbo veicula valores tidos como vitoriana do final do século XIX. Ao perceber
arrogantes. Não revelando seu nome, que foi enganado, não é pelo tesouro perdido
demonstraa inteligência frente ao dragão. É que Smaug se enfurece, mas sim pela chacota
uma ironia presente na fala de Bilbo, quase da qual foi alvo. Outra evidência dos valores
como que fazendo chacota de Smaug, ao se ideológicos da burguesia vitoriana constitutivos
referir a este como “Smaug, the Tremendous”, de Smaug encontra-se no trecho abaixo:
“Smaug, the greatest of calamities”
(TOLKIEN,1991, p.202). Esta ironia, bastante I don’t know if it has occurred to you that,
presente na literatura vitoriana, é geralmente even if you could steal the gold bit by bit-a
usada pelas classes mais abastadas, de forma matter of a hundred years or so - you could
que se pode ser quase arrogante, mas sem sê-lo not get it very far? Not much use on the
totalmente, como quem “deixa uma ofensa no mountain-side? Not much use in the forest?
ar”. Em oposição a Odisseu, portanto, Bilbo Bless me! Had you never thought of the
mantém seu nome em segredo, pois revelar seu catch? A fourteenth share, I suppose, Or
something like it, those were the terms, eh?
nome verdadeiro pode gerar problemas, como
But what about delivery? What about
acontece em Odisséia. Odisseu, movido pela cartage? What about armed guards and

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tolls?” And Smaug laughed aloud. He had
a wicked and a wily heart, and he knew his enquanto ao mesmo tempo retoma as histórias
guesses were not far out, though he fantásticas de dragões e evita enfurecer o
suspected that the Lake-men were at the dragão.
back of the plans, and that most of the
Considerações finais
plunder was meant to stop there in the town
by the shore that in his young days had A análise do Hobbit nos permitiu ver como o
been called Esgaroth (TOLKIEN, 1991, p. discurso não é um elemento isolado, mas sim
160). que possui diversas interações com os mais
variados discursos. A partir dessa premissa,
Aqui podemos perceber que apesar de Smaug concluímos que The Hobbit mantém forte
ser um dragão e, portanto, um membro relação com os discursos presentes nos livros
exclusivo do mundo fantástico, ele possui um da literatura fantástica do final do século XIX e
raciocínio lógico, levando em conta toda a começo do século XX, os quais influenciaram
complicação que transportar todo o tesouro da Tolkien fortemente em sua escrita. Portanto,
montanha poderia resultar. Smaug poderia pudemos entender melhor como o método
muito bem ter se passado por um contador arqueológico de Foucault permite compreender
financeiro, calculando os gastos e os custos que os discursos não são únicos, mas
com transporte, guardas, eventuais despesas no recobertos por camadas antigas, provenientes
caminho, etc. Sabendo disso, agora ele tenta de discursos outros que se repetem e se
despertar o medo no coração de Bilbo. Isso só renovam.
se torna possível depois de Bilbo
acidentalmente se referir como “nós”,
revelando à Smaug que Bilbo estava aliado aos Referências
anões. E, como Smaug possui um
conhecimento que o permite se antecipar aos BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal.
anões através de seus medos e fraquezas (visto SP: Martins Fontes, 2010.
que o discurso sugere que ele vêm lidando há COLLODI, C. The Adventures of Pinnochio.
muito tempo com os anões) isso o permitia Disponível em:
amedrontar Bilbo, que por sua vez só pode http://fathom.lib.uchicago.edu/2/72810000/728
resistir aos encantos e argumentos do dragão 10000_pinocchio.pdf
porque escondeu sua verdadeira identidade, de
FARACO, C.A. Linguagem e Diálogo: as
outra forma teria sido destruído por Smaug.
Idéias Linguísticas do Círculo de Bakhtin.
Este trecho discursiviza o irracional e o
Curitiba: Criar Edições, 2003.
insólito. Duas posições de sujeito aqui estão
associadas com o jogo estabelecido entre o FIORIN, J. L. Interdiscursividade e
fantástico e o não-fantástico discursivizado intertextualidade. In: BRAIT, B. Bakhtin:
pelo dragão. Podemos perceber, portanto, como Conceitos-Chave. São Paulo: Contexto, 2005.
as atitudes de Bilbo perante o dragão mostram pp. 161-193.
como há reminiscências do discurso épico FOUCAULT, M. A Ordem do Discurso.
presente na Odisséia em The Hobbit, e como Tradução: Laura Fraga de Almeida Sampaio.
Bilbo, para enfrentar o dragão, retoma de 15ª edição. São Paulo: Edições Loyola, 1996.
maneira similar os atos de Odisseu,
escondendo seu nome, o lugar de onde vem

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825
______. Arqueologia do Saber. Tradução:
Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2008.
HOMERO. Odisséia. Tradução Carlos Alberto
Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.
Disponível em:
http://www.universidadedasquebradas.pacc.ufrj
.br/wp-
content/uploads/2013/08/ODISSEIA.pdf
KULLMANN, T. Intertextual Patterns in
J.R.R.Tolkien’s The Hobbit and The Lord of the
Rings.Publicado em: Nordic Journal of English
Studies. Vol. 8, No 2 (2009).
TOLKIEN, John Ronald Reuel. The Hobbit.
London: Harper Collins. 1991.
______. O Hobbit. Tradução: Lenita Maria
Rímoli Esteves. São Paulo, Martins Fontes,
2009.

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826
NARRATIVAS TENETEHARA

Josué Oliveira PINHEIRO FILHO; Ivânia dos Santos NEVES


josueopf@gmail.com; ivanian@uol.com.br

Resumo: Em grande parte dos trabalhos acadêmicos e das produções midiáticas,


observamos uma hierarquização do pensamento europeu em relação às culturas
indígenas. Frequentemente, há uma separação e uma rejeição em relação aos povos
indígenas, seus discursos sobre o mundo e sua relação com a natureza. Por isso, eles
sempre são colocados em um patamar inferior de cultura, que anula seus discursos, por
julgá-los como uma oposição à razão. Tomaremos como referência teórica as
formulações de verdade, loucura e procedimentos de exclusão propostas por Michel
Foucault (2000) e discutidas por Gregolin (2007), para analisar como a sociedade
brasileira classifica as narrativas indígenas. Recortamos como corpus de análise a
narrativa “Os gêmeos Mayra-Íra e Mucura-Íra e as onças: como nasceram os
Tenetehara” do povo indígena Tembé-Tenetehara. Vamos discutir as definições de
verdade, loucura e procedimentos de exclusão.
Palavras-chave: análise do discurso; tembé-tenetehara; amazônia; foucault.

“Depois de mais 300 anos de contato, só


agora tivemos nosso primeiro livro, o livro
da nossa cultura e da nossa história.”
Cacique Naldo Tembé – Aldeia Sede

har (a) (“aquele, o”), o que em tradução livre


Introdução
significaria algo como “ser íntegro, gente
Os Tembé-Tenetehara são indígenas verdadeira ou povo verdadeiro”. Apesar da
que se autodesignam como povo Tenetehara, diferenciação, Wagley e Galvão (1961)
que se diferenciam em dois subgrupos: os apontam que tanto os Guajajara quanto os
Guajajara do ramo Tenetehara- oriental Tembé se consideram como um só povo, o
(aldeados no Estado do Maranhão) e os Tembé povo Tenetehar, partilhando a mesma língua e
do ramo Tenetehara- ocidental (aldeados no a mesma cultural. Os Tembé participantes deste
Estado do Pará). De acordo com Gomes projeto de iniciação vivem entre as 12 aldeias
(2002), a autodesignação Tenetehar é composta ao norte da TIARG, na cabeceira do Rio
pelo verbo ten (“ser”), pelo qualitativo ete Guamá, entre as quais, as aldeias Sede,
(“intenso”, “verdadeiro”) e pelo substantivo

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827
Itaputyr’ e São Pedro se destacam pela maior Íra e Mucura-Íra e as onças: como nasceram os
infraestrutura (escolas, posto de saúde, etc.) e Tenetehara”, do povo indígena Tembé-
pelo maior número de moradores. Ao sul da Tenetehara do Alto Rio Guamá-TIARG.
TIARG, às margens do rio Gurupi, fazendo A função de transcrever as narrativas
divisa com o estado do Maranhão, existem orais da sociedade indígena Tembé, minha
outras 14 aldeias. primeira atividade na iniciação científica, foi
A pesquisa, tema desse artigo, é além de apenas registrar a história factual do
vinculada ao projeto de iniciação científica povo Tenetehara, consistiu em analisar os
“Narrativas Tenetehara: pluralizando discursos que circulam em torno dessas
verdades”, vinculado ao projeto “Astronomia narrativas, reconhecendo as diferentes relações
Tenetehara: pluralizando verdades”, aprovado de saberes sobre o mundo, com uma
pelo edital de Divulgação Científica do perspectiva de pluralizar os conhecimentos,
CNPq/2014, que prevê a elaboração de uma experiências sociais, culturais, historicamente
nova edição do livro “O Céu dos Índios produzidas e acumuladas pela humanidade. O
Tembé” (2000) e a animação “O nascimento de principal compromisso, embora no processo eu
Zahy”. As atividades da primeira etapa tenha sido convidado a rever as minhas
estiveram associadas aos registros, à próprias verdades, foi não colocar como
transcrição e à análise discursiva das narrativas superior uma verdade em relação à outra.
indígenas da sociedade Tembé-Tenetehara,
Notou-se, no levantamento de
foram colhidas a partir de gravações de informações sobre os Tembé, que na maioria
histórias contadas por lideranças e líderes dos trabalhos acadêmicos e nas produções
indígenas, que detém o conhecimento das midiáticas, existe uma hierarquização do
práticas orais de ensino. No segundo momento, pensamento europeu em relação às culturas
foi realizado um trabalho de campo na Terra indígenas. Frequentemente, há uma separação e
Indígena Rio Guamá-TIARG, dando uma rejeição em relação aos povos indígenas,
oportunidade de conhecer melhor as atuais seus discursos sobre o mundo e sua relação
condições de possibilidades históricas deste com a natureza. Nesta lógica, eles sempre são
povo. Também, neste segundo período, colocados em um patamar inferior de cultura,
realizou-se um levantamento sobre as que anula seus discursos, por julgá-los como
informações disponíveis sobre os Tembé na uma oposição à razão. Estas primeiras
internet. reflexões estiveram voltadas para uma
1. Desenvolvimento do artigo discussão sobre diferentes verdades e a
produção de conhecimento.
Tomou-se como referência teórica de
análise das narrativas, as formulações de Ao longo do processo de transcrições
verdade, loucura e procedimentos de exclusão das narrativas, uma tomou uma maior atenção,
propostas por Michel Foucault (2000) e a narrativa “Os gêmeos Mayra-Íra e Mucura-Íra
discutidas por Gregolin (2007), para analisar e as onças: como nasceram os Tenetehara”:
como a sociedade brasileira classifica as
narrativas indígenas. Como corpus de análise Zekwehe, Zekwehe, uma mulher
foi selecionada a narrativa “Os gêmeos Mayra- engravidou de Maíra, mas o pai aborrecido

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828
foi embora. O filho era um menino, e já na
barriga conversava com a mãe. Maíra-Ira para conhecer o pai, imaginei que o sujeito
pediu para ir procurar o pai. No caminho, a narrador teria omitido informações sobre a
mãe foi ferrada por uma caba e ficou história e não hesitei em transcrevê-las, com a
zangada com Maira-ira, e ele ficou muito seguinte redação: “o menino nasceu, cresceu e
triste e não falou mais com a mãe. Ela depois pediu para ir em busca do pai”. Na
continuou a caminhada, sem saber para história dos Tembé, porém, Mayra-Íra dialoga
onde ir. No caminho em contra com o com a mãe ainda no ventre, o que fugia da
Mucura, que lhe oferece abrigo da noite e minha racionalidade. A partir das formulações
da chuva, mas eles acabam dormindo
de Foucault, podemos pensar em abordagens
juntos e ela engravida de mais um filho, o
Mucura-Ira. Depois ela encontra uma onça
diferentes sobre esta questão:
velha que lhe avisa do perigo que ela corria
Penso na oposição razão e loucura. Desde a
naquela floresta, mas a mãe de Maria-Ira e
alta Idade Média, o louco é aquele cujo
Mucura-Ira acaba sendo morta pela onças
discurso não pode circular como o dos
da floresta, mas as crianças sobrevivem,
outros: pode ocorrer que sua palavra seja
graças a onça mais velha que os protege e
considerada nula e não seja acolhida, não
eles crescem mudando de formas, como de,
tendo verdade nem importância, não
pássaros, macacos, cobras, etc. Quando
podendo testemunhar na justiça, não
eles ficam grandes se vigam das onças que
podendo autenticar um ato ou um contrato,
mataram sua mãe e vão em busca do pai de
não podendo nem mesmo, no sacrifício da
Maira-Ira. Quando encontram o pai de
missa, permitir a transubstanciação e fazer
Maira-ira ele faz teste para que eles provem
do pão um corpo. (FOUCAULT, 2000)
que são filhos dele mesmo. Eles cumprem
toda as provas e o pai aceita-os como
filhos, e eles formam o povo Tembé. Foucault mostra que ao longo da
(Resumo da história narrada por Bêwãre historia o discurso do louco é sempre tratado
Tembé – Aldeia Sede – 2014) como não verdadeiro e não como outra forma
de pensar o mundo ou um novo conhecimento
em relação a questões ainda não explicadas, ou
já tendo uma hipótese ou uma explicação
julgável verdadeira a essas questões, a
sociedade não admite outra ou outras versões
sobre a explicação dessas indagações. Na
história Tembé-Tenetehara, há muitos
enunciados, que tomados sob uma ótica
ocidental estarão relacionados à presença do
irreal e inaceitável. Por isso estão associados ao
discurso da loucura, portanto uma inverdade
para a sociedade não indígena, onde esse
Imagem 01 Bêware Tembé discurso entra no sistema de exclusão mostrado
(foto: Shirley Penaforte)
por Foucault. Mas em oposição feita a esse
No começo da narrativa, na conversa de discurso de criação da humanidade temos o
Mayra-Íra com a mãe, quando o menino pediu discurso bíblico que explica a criação humana a

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829
partir de outra narrativa, Adão e Eva, definem verdades como aquilo que significa o
encontrado no livro de Gêneses, que segundo a real ou possivelmente real dentro de um
perspectiva cristã, deles se derivou toda a sistema de valores. Essas definições nos
humanidade, ou ainda. No mesmo livro, levaram a outra reflexão sobre as narrativas
encontra-se a história de um ser divino, que indígenas na sociedade “branca”, pois toda
assim como Mayra-ra foi concebido por uma história contada é nomeada como mito ou lenda
mulher escolhida e sobre poderes divinos e não história, e nos mesmos dicionários,
engravidou de um Deus, Maria e Jesus Cristo, encontram-se definições desses enunciados;
encontrados nos livros do Novo Evangelho. mito ou lenda são narrativas de caráter
Outra teoria para o criação do mundo seria a simbólico-imagéticos, relacionadas a uma dada
hipótese do Big-Bem, que é a teoria cultura, que procura explicar e demonstrar, por
cosmológica dominante e mais aceita entre a meio da ação e do modo de ser das
comunidade cientifica do desenvolvimento personagens, a origem das coisas (do mundo;
inicial do universo. Porém essas narrativas ou dos homens; dos animais; das doenças; dos
teorias são estabelecidas como verdades em objetos; das práticas de caça, pesca, medicina
nossa sociedade. entre outros; do amor; do ódio; da mentira e
das relações, seja entre homens e homens,
Para o pensamento ocidental, há uma
homens e mulheres e mulheres e mulheres,
separação entre os saberes produzidos pela
humanos e animais; enfim, de qualquer coisa
religião e os saberes produzidos pela ciência.
Nas cosmologias indígenas, esta divisão, fantasiosa que seja. São, portanto, inverdade.
muitas vezes não existe, pois seus saberes não Existe, nas narrativas Tenetehara, uma
são compartimentalizados. Mas, nossa temporalidade única que marca o inicio de suas
racionalidade ocidental ignora estas diferenças histórias, “zekwehe, zekwehe”, que em muitas
e apenas as nossas verdades se estabelecem traduções ficou como “era uma vez”,
como os saberes aceitos socialmente. Segundo reforçando o discurso do fantasioso nas
Foucault: narrativas Tembé, onde a tradução mais correta
seria “no tempo dos nossos ancestrais” ou “no
A verdade é deste mundo; ela é produzida tempo dos antepassados”. Segundo Neves;
nele graças a múltiplas coerções e nele Cardoso (2015, p. 77), as narrativas
produz efeitos regulamentados de poder.
cosmológicas organizam os saberes dos mais
Cada sociedade tem seu regime de verdade,
velhos:
sua 'política geral' de verdade: isto é, os
tipos de discurso que ela acolhe e faz
Para os mais velhos, vários aspectos da
funcionar como verdadeiros (Foucault,
vida cotidiana revelam a importância da
2000)
cosmologia tradicional. Os diferentes
momentos do ritual de vida obedecem às
A verdade é uma construção histórica dietas alimentares e estão associados à
do sujeito inserido em uma sociedade. Por isso organização dos astros no céu. Segundo os
não questionamos o que seria a verdade e sim ensinamentos de Verônica Tembé, o céu
quando e onde é verdade. Outras definições de precisa estar claro, aberto, para que a vida
verdades estão presentes nos dicionários que das crianças e dos jovens seja iluminada
pelas estrelas.Esta cosmovisão também está

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830
presente em suas histórias, sobretudo
naquelas que se constituem com a da enunciação, isto é, o momento histórico-
temporalidade Tenetehara, o “Zekwehe social inerente à produção de sentidos. Como
Zekwehe”. argumenta Gregolin (2004), a interpretação de
temas re-significados mostra que o discurso, a
Esta forma particular dos povos História e a memória constroem movimentos, e
indígenas narrarem suas histórias, apesar de esses movimentos se dão em um espaço de
ser, em relação a algumas ciências, considerada memória, fundamental para o funcionamento
uma inverdade ou mesmo uma tradução de do discurso. Como na narrativa “zahy”
loucura sobre a origem desse povo, para eles
[...] Quando amanheceu, Zahy tentou lavar
isso é a verdadeiro, pois historicamente esses o rosto no rio, mas, a tinta não saio de seu
discursos fazem parte de suas vidas. Por rosto e todos descobriram quem era a
exemplo, na mesma narrativa destacada: pessoa que visitava a mulher ao anoitecer .
“Zekwehe, Zekwehe, uma mulher engravidou “Meu próprio sobrinho” pensou a tia sem
de Maíra, mas o pai aborrecido foi embora. O acreditar no que estava acontecendo. Zahy
filho era um menino, e já na barriga conversava foi amaldiçoado pelos pais, pela anciã,
com a mãe. Maíra-Ira pediu para ir procurar o pelos Deuses e por sua tia, quem ele amava
pai. No caminho, a mãe foi ferrada por uma muito. Ele foi condenado a ser um astro
caba e ficou zangada com Maira-ira, e ele ficou celeste para toda a eternidade. Ele se
transformou na lua, para iluminar a noite
muito triste e não falou mais com a mãe[...]”.
escura e revelar os mistérios noturnos. Por
Diante desse efeito de sentidos, vimos que, isso que a lua possui manchas negras, por
analisar o discurso implica em interpretar os ser a tinta do jenipapo no rosto de Zahy e
sujeitos falantes, entender seu universo e na saída da lua chove, é Zahy ainda
compreender suas atividades sociais. Podemos tentando lavar o rosto.
ver também o discurso materializado em texto (Resumo da história narrada por Bêwãre
oral, face aos lugares ocupados pelos sujeitos Tembé – Aldeia Sede – 2014)
em interlocução, onde se nota o entrelaçamento
de diferentes discursos disperso no meio social, Nesta narrativa, encontramos o papel de
uma interdiscursividade, como nos mostra disciplinarização e a proibição do incesto, onde
Foucault: a narrativa funciona como o meio de educar os
mais novos da aldeia. Esse discurso implica na
Trata-se de compreender o enunciado na
exterioridade à língua, encontra-se no social e
estreiteza e singularidade de sua situação;
de determinar as condições de sua abarca questões de natureza não estritamente
existência, de fixar seus limites da forma linguística.
mais justa, de estabelecer suas correlações 4. Considerações finais
com os outros enunciados a que pode estar
ligado, de mostrar que outras formas de Assim como muitas histórias na
enunciação exclui (Foucault, 1995) sociedade não-indígena apresenta aspectos
educacionais e com uma visão sobre o mundo a
A relação do discurso com as condições partir de sua ótica cultural, os Tenetehara
de produção engloba tudo o que está no campo também constroem histórias sobre tudo o que

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831
os cerca, como forma de preservação do povo e
FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade:
toda as suas memorias.
curso no College de France (1975-1976).
A pesquisa com as narrativas Tembé Tradução de Maria Ermantina Galvão. São
apontou para uma reflexão de que a verdade Paulo: Martins Fontes, 2005.
não é uma, pois é diferente em sociedades
_____. A Microfísica do Poder. São Paulo:
distintas. Os saberes constituem a identidade de
Graal, 2007
um povo, a diversidade cultural é um conjunto
de experiências e inteligências em diferentes GREGOLIN, M. R. V. Foucault e Pêcheux na
áreas da vida, com o seu desenvolvimento Análise do Discurso: diálogos & duelos. São
histórico e sua singularidade. Carlos: Clara Luz, 2004.
Procuramos pluralizar a verdade nos NEVES, I.; CARDOSO, S. Patrimônio cultural
discursos analisados, compreender os múltiplos Tembé-Tenetehara. Belém: IPHAN, 2015.
pensamentos sociais sobre as narrativas e o céu NEVES, I. A Invenção do Índio e as Narrativas
Tenetehara e mostrar que os saberes indígenas, Orais Tupi. Tese de Doutorado. Campinas:
do povo Tembé, também são válidos como Unicamp, 2008
qualquer outro conhecimento da humanidade.
Por isso, procuramos legitimar esses SHIVA, V. Monoculturas da mente:
conhecimentos em publicações acadêmicas e perspectivas da biodiversidade e da
midiáticas, no intuito de divulgar e estabelecer biotecnologia. – São Paulo: Gaia, 2003.
uma outra forma de pensar a respeito do mundo
não apenas pela nossa “ótica cultural”, mas
aceitar uma outra versão para aquilo que é
contado sobre astros celestes, para que as
sociedades resistam à descriminação e
desenvolvam suas diferentes transformações
sem receio.

Referências
CORRÊA, I. Interseções de Saberes nos Céus
Suruí. Dissertação de Mestrado em
Antropologia. Universidade Federal do Pará,
2004
CORRÊA, I. et al. O Céu dos Índios Tembé.
Belém: Imprensa Oficial do Estado, 1999. 1ªed.
COUTO, M. E se Obama fosse africano? E
outras intervenções – Ensaios – São Paulo,
Companhia da Letra 2011.

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832
SER IDOSO EM MARINGÁ: ARTES DE EXISTÊNCIA E
TÉCNICAS DE SI

Daniela POLLA
Universidade Estadual de Maringá (UEM)
dani_polla@yahoo.com.br

Resumo: Este artigo descreve a forma pela qual o discurso da atualidade de Maringá-PR
faz falar sobre o que é ser idoso neste momento histórico. Com base nos pressupostos
teórico-metodológicos da análise de discurso foucaultiana, verifica-se que há uma série
de iniciativas, regulamentações, instituições nas quais o idoso de Maringá se constitui
como sujeito e como objeto de discurso. Desta forma, mostra-se que parece ser possível
descrever o funcionamento de um dispositivo da terceira idade.
Palavras-chave: idoso; técnicas de si; dispositivo.

total de 357.077 habitantes, sendo que os


Introdução
idosos correspondem a 43.294 deste total.
A população idosa é uma das que mais Importa também considerar o crescimento da
crescem ao redor do mundo. No aquário da expectativa de vida da população idosa
realidade, ocorre uma inversão da pirâmide maringaense, que era de 68,4 anos em 1991,
etária mundial. De acordo com a Organização passou para 73,1 em 2000 e alcançou os 76,1
das Nações Unidas, 6,9% da população anos em 2010.2
brasileira tem 65 anos ou mais, a projeção é de
Diante destes dados e do crescimento da
que até 2050 este número alcance a marca de
população idosa, verifica-se, em Maringá, uma
22,5%.1
série de iniciativas voltadas para os idoso, por
Por pensar a questão do idoso, exemplo, a criação do Conselho Municipal do
especificamente, na realidade da cidade de Idoso, vinculado à Secretaria Municipal de
Maringá, no Paraná, importa considerar os Assistência Social e Cidadania, o qual
dados desta população no município. De confecciona carteirinhas para os idosos (que
acordo com o Censo 2010, Maringá possui um
2
Dados disponíveis em:
1
Dados disponíveis em: http://www.gazetamaringa.com.br/maringa/conteudo.pht
<http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/econo ml?id=1394817;
mia/2014/07/13/internas_economia,437186/brasil-tera-a- http://www2.maringa.pr.gov.br/sasc/?cod=carteira-idoso;
9-populacao-de-idosos-do-mundo-ate-2050-segundo-a- http://kairos.srv.br/maringa/area00.html Acesso em: 24
onu.shtml>. Acesso em: 29 set. 2015. out. 2013.

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833
dão direito, por exemplo, ao desconto nas Conforme Polla (2013), a respeito da
passagens intermunicipais/interestaduais), objetivação de idoso contemporânea, pode-se
iniciativas como a Creche do Idoso (instituição observar que convivem na mídia duas
na qual os idosos passam o dia realizando objetivações, uma que seria “nova” e outra
diversas atividades e voltam para casa passar a “velha” ou “tradicional.” Permitindo mostrar
noite com suas famílias). que
Desta forma, importa lançar o olhar
A prática discursiva contemporânea a
para estes sujeitos, visando verificar se há um respeito do sujeito idoso caracteriza-se,
dispositivo que faz falar de determinada forma basicamente, por sua dimensão polêmica.
sobre esses sujeitos. Igualmente, é relevante Convivem, na mídia atual, as duas
verificar as formas pelas quais as práticas objetivações e subjetivações de idoso: a
discursivas da atualidade maringaense criam “nova” e a “velha”. Nesse sentido, destaca-
objetivações, subjetivações e circulam artes de se o fato de o Estatuto do Idoso objetivar,
existência dos idosos maringaenses.3 na maior parte de seu texto, o “velho”
idoso, devido ao fato de ser uma legislação
1. Ser idoso na atualidade protetiva, que visa a cuidar daqueles idosos
Muitos saberes e poderes que com saúde debilitada. Os meios de
atravessam as objetivações e subjetivações de comunicação, ao contrário, marcam mais a
idoso da atualidade tem se transformado. objetivação de “novo” idoso, isto é, aquele
que trabalha, faz uso das tecnologias e
Assim, é preciso perceber as rupturas no que é
procura manter-se belo. (POLLA, 2013, p.
ser idoso atualmente, e também perceber a 99).
“existência de acontecimentos discursivos,
descontinuidades nos discursos acerca dessa
faixa etária.” (POLLA, 2013, p. 11). O autor Pierre Vellas (2009, p. 08) também
coloca que “o idoso de hoje é ativo, criativo,
De acordo com Vellas (2009), são os dinâmico e intelectual”, bem como que “ele
idosos que colocarão os problemas na busca novas oportunidades para alteração do
atualidade, já que pode-se observar um novo seu estilo de vida, possibilitando mais
movimento demográfico, devido ao aumento da qualidade.”. Assim, para o autor, mais do que a
expectativa de vida e da diminuição da idade da própria velhice, o problema que estas questões
aposentadoria. Para o autor, colocam é “o destino que é dado às pessoas
idosas.” (VELLAS, 2009, p. 12).
O peso demográfico, cada vez mais
importante, das pessoas idosas vai alterar Dessa forma, importa pensar as questões
grande número de preconceitos, de relacionadas às formas como os idosos
situações estabelecidas. (VELLAS, 2009, constituem-se como sujeitos na atualidade. Isto
p. 13) para fazer falar as condições de possibilidade
para ser idoso “hoje”.
2. Análise de discurso foucaultiana para
pensar o idoso
3
Pesquisa em curso para a obtenção do título de
doutorado.

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834
discursos, um olhar atento. Observação que
Diante deste cenário, as contribuições
prova que
de Michel Foucault podem ser mobilizadas
para lançar o olhar sobre os idosos, suas formas a zona do que é dito apresenta
de objetivação, subjetivação e artes de preconceitos, reticências, saliências e
existência. Neste trabalho, particularmente reentrâncias inesperadas de que os
aquelas relacionadas ao que é ser idoso em locutores não estão, de maneira nenhuma,
Maringá-PR. consciente. (VEYNE, 1998, p. 252)
Inicialmente, importa perceber que as
questões abordadas na seção anterior tem Sendo que, quando se fala em discurso
condição de possibilidade na atualidade devido com Foucault, importa
a uma série de alterações nos saberes e poderes
não mais tratar os discursos como
que atravessam os discursos que circulam sobre conjuntos de signos (elementos
os idosos. Lembrando que na análise de significantes que remetem a conteúdos ou a
discurso foucaultiana não se fica aquém do representações), mas como práticas que
discurso e também não se vai além, trabalha-se formam sistematicamente os objetos de que
no nível do próprio discurso. Por isso, de falam. (FOUCAULT, 2008, p. 55)
acordo com Veyne (1998)
Desta forma, procura-se mostrar como
A palavra discurso ocorre tão naturalmente
para designar o que é dito quanto o termo as práticas discursivas constituem objetos de
prática para designar o que é praticado. discurso, por exemplo, o objeto idoso. Sendo o
Foucault não revela um discurso processo de objetivação compreendido como a
misterioso, diferente daquele que todos nós forma pela qual algo se torna um objeto a partir
temos ouvido: unicamente, ele nos convida do momento em que emerge nos discursos.
a observar, com exatidão, o que assim é Dito de outro modo, trata-se de “determinar em
dito. (VEYNE, 1998, p. 252) que condições alguma coisa pôde se tornar
objeto para um conhecimento possível”.
Desta forma, pensando com Foucault, (FOUCAULT, 2006, p. 235).
trata-se sempre de ficar no nível do próprio Além disso, com Foucault procura-se
discurso e observar atentamente o que é dito. mostrar como emergem as formas de
Isto porque, Foucault afirma que “não se vai subjetivação. Elas constituem os modos de
além para reencontrar as formas que ele dispôs relação de si consigo, das “tecnologias do eu”.
e deixou atrás de si; fica-se, tenta-se ficar no De acordo com Fischer (2012, p. 43), as formas
nível do próprio discurso.” (FOUCAULT, de subjetivação são “todos aqueles
2008, p. 54) procedimentos destinados a constituir
Mas, esta é uma observação que subjetividades, verdades de e sobre o sujeito”.
“escava” as camadas do discurso, mostrando a Para além dos modos de subjetivação,
forma pela qual o que se diz é dito e nenhuma busca-se fazer falar as técnicas de si, as formas
outra no lugar dela. Mas, é um olhar que pelas quais os próprios sujeitos constituem
investiga as condições de possibilidade dos saberes sobre si mesmos, por meio de uma

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835
realizado por sua formulação (oral ou
séries de procedimentos que acabam escrita). (FOUCAULT, 2008, p. 98)
constituindo uma estética de si, um
determinado modo de existência. Nesse
Para descrever enunciados é preciso ser
sentido, são
possível mostrar o funcionamento de uma
as técnicas de si, que permitem aos função enunciativa. Esta função de existência é
indivíduos efetuar, com a ajuda dos outros, constituída por um referencial, uma posição
um certo número de operações sobre seu sujeito, um campo associado e uma
corpo, seu prazer, seus pensamentos, suas materialidade.
condutas, seus modos de ser, de se
Sendo que o referencial de um enunciado
transformar a fim de alcançar um certo
estado de felicidade. (PORTOCARRERO, não tem um correlato tal como uma afirmação
2008, p. 426-427). teria ou não uma referência, mas está ligado a
um referencial. O qual não é constituído por
realidades, fatos ou seres, mas “de leis de
As técnicas de si constituem
possibilidade, de regras de existência para os
procedimentos, os modos pelos quais ocorre
objetos”. (FOUCAULT, 2008, p.103). Desta
um certo governo com vistas a um também
maneira, o referencial do enunciado
determinado fim. Elas são processos múltiplos
de constituir uma existência para si. As forma o lugar, a condição, o campo de
técnicas de si “propõem não só o conhecer-se, emergência, a instância de diferenciação
mas também o governar-se: autodecifrar-se, dos indivíduos ou dos objetos, dos estados
confessar-se ao outro, examinar-se, sacrificar- de coisas e das relações que são postas em
se.” (GREGOLIN, 2007, p. 48-49). jogo pelo próprio enunciado; define as
possibilidades de aparecimento e de
Lembrando que, com Foucault, trata-se delimitação do que dá à frase seu sentido, à
sempre de analisar com base na descrição dos proposição seu valor de verdade.
enunciados. Para o autor, o enunciado não pode (FOUCAULT, 2008, p.103)
ser equiparado a uma proposição, a uma frase,
o enunciado é uma função de existência. Já a posição sujeito constitui um lugar
Assim, vazio, que pode ser ocupado por indivíduos até
O enunciado não é, pois, uma estrutura certo ponto indeterminados para ser sujeito de
(isto é, um conjunto de relações entre certo enunciado. Por isto,
elementos variáveis, autorizando assim um
número talvez infinito de modelos O sujeito do enunciado é uma função
concretos); é uma função de existência que determinada, mas não forçosamente a
pertence, exclusivamente, aos signos, e a mesma de um enunciado a outro; na
partir da qual se pode decidir, em seguida, medida em que é uma função vazia,
pela análise ou pela intuição, se eles podendo ser exercida por indivíduos, até
"fazem sentido" ou não, segundo que regra certo ponto, indiferentes, quando chegam a
se sucedem ou se justapõem, de que são formular o enunciado; e na medida em que
signos, e que espécie de ato se encontra um único e mesmo indivíduo pode ocupar,
alternadamente, em uma série de
enunciados, diferentes posições e assumir o

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836
papel de diferentes sujeitos. (FOUCAULT,
2008, p.105).
Investiga o campo dos enunciados a fim de
entender os acontecimentos discursivos que
O campo associado de um enunciado possibilitaram o estabelecimento e a
não pode ser reduzido a ideia simplista de cristalização de certos sentidos em nossa
“contexto”. Ele mostra que determinado cultura. O acontecimento é pensado como a
enunciado tem sempre as margens povoados emergência de enunciados que se inter-
por outros tantos enunciados. Assim, “para relacionam e produzem efeitos de sentido.
quese trate de um enunciado é preciso Esse projeto teórico compreende o
relacioná-la com todo um campo adjacente.” enunciado em sua singularidade de
acontecimento, em sua irrupção histórica.
(FOUCAULT, 2008, p. 110). Este campo
(GREGOLIN, 2006, p.27)
adjacente é constituído, por exemplo, pela série
das outras formulações as quais se refere, com
as quais se relaciona. Desta forma, Assim, na análise enunciativa, parte-se de
uma perspectiva histórica para verificar como
Pode-se dizer, de modo geral, que uma as práticas discursivas formam os objetos dos
sequência de elementos linguísticos só é quais elas falam, de que forma constituem
enunciado se estiver imersa em um campo subjetivações e demarcam técnicas de si e artes
enunciativo em que apareça como elemento de existência. Desta forma, tento sido descritos
singular. (FOUCAULT, 2008, p. 111) a forma de objetivação de idoso na atualidade e
os pressupostos teóricos da análise do discurso,
Por fim, para que haja um enunciado é na próxima seção, serão abordadas as
preciso que ele tenha uma existência material. condições de possibilidade para falar de idoso
De acordo com Foucault, em Maringá-PR na atualidade.

A materialidade desempenha, no 3. Ser idoso em Maringá-PR


enunciado, um papel muito mais Conforme mencionado na introdução, o
importante: não é simplesmente princípio número de idosos em Maringá é cada vez
de variação, modificação dos critérios de maior. No Censo de 2010, 43.294 pessoas
reconhecimento, ou determinação de
tinham 60 anos ou mais. Diante disso, e das
subconjuntos linguísticos. Ela é
constitutiva do próprio enunciado: o
regulamentações como o Estatuto do Idoso,
enunciado precisa ter uma substância, um uma série de medidas, instituições, ações, tem
suporte, ura lugar e uma data. Quando condição de possibilidade na realidade
esses requisitos se modificam, ele próprio maringaense.
muda de identidade. (FOUCAULT, 2008, Um exemplo é o Conselho Municipal
p. 114)
dos Direitos do Idoso. Ele é um órgão
colegiado, consultivo, deliberativo, permanente
Sempre que for possível descrever um
referencial, uma posição sujeito, um campo
associado e uma materialidade, trata-se da
função enunciativa de um enunciado. Portanto,
a análise enunciativa

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837
mediante deliberação e autorização do
e paritário, vinculado à Secretaria Municipal de Conselho Municipal dos Direitos do Idoso
Assistência Social e Cidadania de Maringá.4 – CMDI, por meio de resoluções, em
O Conselho Municipal dos Direitos do projetos específicos de atendimento a
pessoa idosa.
Idoso controla a política de defasa dos direitos
da pessoa idoso. De acordo com Fernandes
(2009), Há ainda uma rede de instituições
destinadas ao atendimento dos idosos.
Em atenção à promoção e divulgação dos Composta, de acordo com Fernandes (2009)
direitos dos idosos, em 31 de outubro de por uma série de entidades não-
1997, foi criado o Conselho Municipal dos governamentais. Rede da qual importa destacar
Direitos do Idoso de Maringá (CMDI / a instituição Centro-Dia João Paulo II6. O
Maringá), pela Lei Municipal no. 4503,
centro é mantido pela Renovação Carismática
mas nesta data não entrou em
Católica e constitui-se em uma casa para idosos
funcionamento. Em 2001, a Secretaria
Municipal de Assistência Social e com renda baixa, na qual eles passam o dia e
Cidadania (SASC) constituiu uma voltam para dormir na sua residência a noite,
comissão solicitando a criação do conselho. com vistas a manter os vínculos familiares. O
(FERNANDES, 2009, p. 32) Centro-Dia João Paulo II recebe também
doações e realiza a campanha “Adote um
Vinculado ao Conselho Municipal dos Idoso” para angariar fundos para a casa.
Direitos do Idoso está o Fundo Municipal de Com a mesma metodologia de
Promoção aos Direitos do Idoso de Maringá atendimento, há também a “Creche para
(Fundo Pró-Idoso). Este fundo recebe verbas do idosos”, mantida por uma instituição particular
imposto de renda de pessoas físicas ou de Maringá-PR, ou seja, totalmente financiada
jurídicas, bem como de doações voluntárias ou pelos usuários. Definida em seu site7 como
mesmo de recursos públicos. De acordo com o “uma alternativa de convívio social
site da Secretaria Municipal de Assistência supervisionado para a terceira idade, de ambos
Social e Cidadania de Maringá5, os sexos, independentes ou semi dependentes”,
na instituição os idosos realizam uma série de
O Fundo Municipal de Promoção aos atividades durante o dia e voltam para suas
Direitos do Idoso de Maringá (Fundo Pró- residências à noite.
Idoso) foi criado pela Lei Municipal nº.
6.742 de 09 de Novembro de 2004, Assim, pode-se perceber que há em
regulamentada pelo Decreto nº.568 de 04 Maringá-PR uma rede de instituições, ações,
de Maio de 2007. É gerido pela Secretaria legislações municipais, fazendo falar sobre o
de Assistência Social e Cidadania – SASC, sujeito idoso na atualidade. Portanto, parece
haver o funcionamento de um dispositivo da
4
Informações disponíveis em:
6
<http://www2.maringa.pr.gov.br/sasc/?cod=conselho/14 Informações disponíveis em: <
> Acesso em: 30 set. 2015. http://rccmaringa.com.br/www/site/index.php?sessao=6e
5
Disponível em: < 6059f4a3m86e&id=16> Acesso em: 30 set. 2015.
7
http://www.maringa.pr.gov.br/fundoproidoso/> Acesso Disponível em: < http://www.lifeinga.com.br/creche-
em: 30 set. 2015. idosos> Acesso em: 30 set. 2015.

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838
terceira idade. Uma vez que, na análise de
discurso foucaultiana,
Referências
o dispositivo um dispositivo mistura, (...)
vivamente, coisas e ideias (entre as quais FERNANDES, S. O processo de constituição e
a verdade), representações, doutrinas, e funcionamento de um Conselho Municipal dos
até mesmo filosofias, com instituições, Direitos do Idoso: o caso do município de
práticas sociais, econômicas etc. Maringá-PR. 2009. 61 f. Dissertação (Mestrado
(VEYNE, 2011, p. 57). em Saúde Coletiva), Universidade do Estado
do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.
No entanto, para que seja possível FISCHER, R. M. B. Trabalhar com Foucault:
descrever efetivamente um dispositivo que faça arqueologia de uma paixão. Belo Horizonte:
falar sobre a terceira idade, Autêntica Editora, 2012.
mobilizando/construindo objetivações e
subjetivações de idoso, bem como as artes de FOUCAULT, M. A Arqueologia do Saber. 7
existência adotadas pelos idosos imersos neste ed. Rio de Janeiro-RJ: Forense Universitária,
dispositivo, há a necessidade de uma pesquisa 2008.
maior e mais profunda do que a possível para FOUCAULT, M. 1984 – O Cuidado com a
este artigo.8 Verdade. In: ______. Ética, sexualidade e
4. Considerações Finais política. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2006. (Ditos e Escritos; V)
Diante do exposto, mostra-se a
discursivização cada vez maior do objeto GREGOLIN, M. R. AD: Descrever-interpretar
“idoso”. Particularmente em Maringá-PR, uma acontecimentos cuja materialidade funde
série de iniciativas e instituições emergem na linguagem e história. In: NAVARRO, P. (org.)
atualidade, fazendo falar cada vez mais destes Estudos do Texto e do Discurso: mapeando
sujeitos e de suas artes de existência. conceitos e métodos. São Carlos: Claraluz,
2006. p. 19-34.
Desta forma, pode ser possível
perceber, em Maringá-PR, o funcionamento de POLLA, D. Objetivação e subjetivação do
um “dispositivo da terceira idade”. O qual faz sujeito idoso pelas lentes da mídia
falar de determina forma sobre os idosos e contemporânea. 2013. 112 f. Dissertação
nenhuma outra em seu lugar. Importa que os (Mestrado em Letras), Universidade Estadual
estudos discursivos voltem o olhar para a forma de Maringá, Maringá, 2013.
pelas qual as práticas discursivas enredadas PORTOCARRERO, V. Os limites da vida: da
neste dispositivo objetivam o sujeito idoso, biopolítica aos cuidados de si. In: JUNIOR, D.
bem como as formas de subjetivação e as M. A.; VEIGA-NETO, A.; FILHO, A. S.
técnicas de si adotadas pelos idosos imersos (orgs.) Cartografias de Foucault. Belo
neste dispositivo. Horizonte: Autêntica Editora, 2008. p. 419 –
430.
8
A referida pesquisa está em curso e refere-se ao estudo VELLAS, P. As oportunidades da terceira
de doutoramento da autora. idade. Maringá-PR: Eduem, 2009.

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839
VEYNE, P. Como se escreve a história:
Foucault revoluciona a história. Trad. de Alda
Baltar e Maria A. Kneipp. 4 ed. Brasília:
Editora Universidade de Brasília, 1998.

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840
SLOGAN: UM GRITO DE FORÇA, PODER E LIDERANÇA

Heder RANGEL
Universidade Federal de Alagoas (UFAL/Campus do Sertão)
hederrangel@uol.com.br

Resumo: Este trabalho deseja compreender o estabelecimento de slogans que os governos


brasileiros realizaram dos anos 1970 até os dias atuais. O posicionamento de nosso
movimento investigativo ancora-se na teoria da Análise de Discurso (AD), de origem
francesa (PÊCHEUX). Para consubstanciar este estudo, acrescentamos diálogos com o
conhecimento de outros teóricos que nos fazem verificar pontos circundantes e
entrelaçados de nosso pensamento. Tais como: Althusser, Bakhtin, Florêncio [et al.],
Mészáros, Orlandi e estudiosos da Comunicação, da Propaganda e do Marketing –
Figueiredo Neto, Sant’Anna, Predebon, Gracioso e Yanaze. Nossa intenção é a de
analisar os sentidos inerentes neste tipo de comunicação discursiva, como também
inserirmos um ponto de vista e/ou um olhar mais inquiridor sobre determinados
princípios.
Palavras-chave: análise de discurso; propaganda, slogan, liderança.

investigação que requer, entre outras demandas,


Introdução
a destreza de enveredar-se em meio a reflexões
O discurso é um dos nexos da atividade para além do texto, do conteúdo como língua
humana incorporada nas mais diversas exposta e também da linguagem formalizada.
situações sociais. Sua importância é tão grande
Portanto, é importante dizer que se
que muitos estudiosos repousam seus olhares
propor às possibilidades de uma leitura
investigativos sobre sua força, dimensão,
analítica da produção comunicativa consiste em
origem, funcionamento e demais aspectos a ele
inquirir sobre várias questões que podem
inerentes.
significar uma intromissão na vida das pessoas,
Traçar os (des)caminhos próprios e uma vez que as realizações se constituem
apropriados de uma análise discursiva em que fenômenos que parecem ser, à primeira vista,
seja necessário debruçar-se sobre alguma forma de caráter habitual e, meramente, corriqueiro.
de comunicação1 é, sobremaneira, uma

1
Entenda-se aqui toda manifestação comunicativa que é jornalismo, merchandising, promoção de vendas,
relacionada ao colegiado de comunicações de que fazem marketing, venda pessoal, relacionamento, ações
parte: publicidade, propaganda, relações públicas, cooperadas com o trade, patrocínio (NEVES, 2000).

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841
Deparamo-nos, cotidianamente, com Nossa intenção ancora-se na
essas formas de comunicação, e esse fato, de possibilidade de ampliar o leque de
certo ponto de vista, é tido como naturalizado conhecimento sobre o discurso.
por toda e qualquer sociedade capitalista. Interessa-nos analisar uma parte
Entendemos, pois, que os enunciados específica da propaganda, ou seja, o modo
colocados nas diversas formas comunicativas como são desenvolvidos, estabelecidos e
(des)velam vários propósitos que se constituem apresentados os slogans de governos
sob o funcionamento ideológico das posições brasileiros. Essa intervenção propõe-se
dos sujeitos e dos sentidos, justificando-se, entender melhor como se configura o discurso
pois, a necessidade de tentarmos analisá-los e, da propaganda – espaço de múltiplas
assim, entender as múltiplas superposições que proposições – que se faz, cotidianamente,
compõem a tecelagem social. atrelando-se aos ditames dos negócios, das
organizações e funcionalidades ideológicas,
Nosso ponto de partida é compreender
econômicas e sociais.
como são estabelecidos os slogans que os
governos brasileiros realizaram dos anos 1970 Por esse mesmo viés, trazemos uma
até os dais atuais (2015). definição do discurso da propaganda como
prática de vida dos seres sociais, que se situam
1. Um grito é sempre um sinal de alerta
dentro de uma sociedade capitalista. Assim,
Em geral, pelo que as escolas de esta investigação vincula-se aos conceitos de
comunicação apresentam, os propósitos deste comunicação discursiva, discurso, ideologia e
tipo de expressividade – o slogan - abrange subjetividade, tendo ainda a compreensão de
vínculos comunicativos, relações de que a linguagem é sempre não transparente.
pertencimento – o de fazer parte da assinatura Portanto, analisamo-la pela pauta do
do anúncio; parte da marca –, e, também por materialismo histórico, que vê, na existência do
um propósito mais amplo, entende-se, o slogan, encontro e do confronto, aspectos importantes
como um jeito de uma empresa relacionar-se para o entendimento de questões relacionadas
com o mundo em suas diversas às práticas sociais.
intencionalidades (FIGUEIREDO NETO,
Nessa perspectiva, propomos alguns
2007).
objetivos: verificar o modo de fazer
Acreditamos ser importante perscrutar propaganda – seus movimentos que ocorrem
esta questão por uma vertente de discussão que por entre objetividades e subjetividades sociais,
pode servir de paradigma a novos/outros seus cursos e recursos estratégicos, persuasivos
estudos relativos a duas grandes áreas do e de influência; possibilitar uma leitura
conhecimento social, a Análise de Discurso – analítica do corpus em foco; reconhecer traços
por intermédio de seus dispositivos teóricos- ideológicos que afetam os universos
analíticos - e a Comunicação, aqui neste discursivos constituintes das posições dos
trabalho, especificamente, pelo fomento da sujeitos e identificar marcas explícitas e
propaganda – em uma especificidade de implícitas, indicativas de um dizer e um não
posicionamento de um serviço governamental. dizer (re)veladores.

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842
complexo de relações verbais e não verbais
Este trabalho coloca-se, inicialmente,
interpostas socialmente – postulações que, a
como um instrumento de busca e compreensão
nosso ver, não ocorrem sem razão, sem sentido.
do que acontece em termos de
apreensão/interpretação/intermediação do Compreender por intermédio do
discurso da propaganda: de que maneira é discurso da propaganda tanto seus atributos
construída essa interferência discursiva no como fazendo parte de uma Memória
âmbito governamental? Discursiva que abrange todos os discursos já
realizados, quanto pelas possibilidades de uma
Entendemos que ao realizar essas
identificação para quem estabelece /
práticas são desenvolvidas forças de
(re)estabelece o que se deseja transmitir, como
convencimento e persuasão. Essas são questões
também pelo lado de quem o recebe, o que,
que registrar situações e comportments. No
muitas, parecem indicar, fazerem parte de
nosso entender, um assunto que pode ser mais
posturas diferenciadas sobre uma prática social.
aprofundado para uma melhor contribuição do
entendimento do discurso social. Convocamos as Condições de Produção
deste tipo de discurso e o que entendemos pelo
2. Abordagem teórica e metodológica
conceito de Esquecimentos estabelecidos pela
Nossa intenção é verificar o modo de AD, uma vez que tais categorias nos remetem
fazer propaganda, cuja produção ocorre por às relações de sentido, que se constituem
entre objetividades/subjetividades sociais e interdiscursivamente.
estratégias persuasivas de comunicação.
Entendemos que uma análise pressupõe Isso faz com que, pensando-se a relação da
observação, exame e injunção à crítica. Nosso historicidade (do discurso) e a história (tal
movimento analítico se dispõe por entre o como se dá no mundo), é o interdiscurso
que especifica, como diz M. Pêcheux
decurso de interpretação, uma vez que ele “está
(1983), as condições nas quais um
presente em toda e qualquer manifestação da acontecimento histórico (elemento
linguagem” (ORLANDI, 2004, p. 9). histórico descontínuo e exterior) é
Assim, a partir desta abordagem teórica, suscetível de vir a inscrever-se na
entendemos ser possível compreender a prática continuidade interna, no espaço potencial
da produção do discurso da propaganda – de coerência próprio a uma memória
(ORLANDI, 2000, p. 33).
sintoma do capital –pautada nas interlocuções
sociais e no exercício de um poder que utiliza
uma linguagem opaca, focalizada em conflitos, Para a AD, na perspectiva pecheutiana,
contradições, encontrando terreno fértil para existem as Condições de Produção amplas e
seu próprio desenvolvimento. restritas. Por amplas, compreendem-se os
grandes campos de circulação de sentido e
Em geral, a redação discursiva da neles se inscrevem a política, a justiça, a
propaganda é tida como adaptável e educação, a mídia etc, que constituem uma
caracterizada pela forte presença de adjetivos, abrangência social que, segundo Florêncio et
palavras plenas de vários significados; al., (2009, p. 65) “expressa as relações de
intercalada e entrelaçada num contínuo

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843
produção, com sua carga sócio-histórico- seguintes os slogans dos Governos Brasileiros
ideológica”. que vamos nos debruçar em nossa investigação:

Nossa análise envereda-se por esse


Figura 1. Governo Médici 1969/1974
vínculo discursivo na intenção de compreender
como se desenvolve a tessitura macro da
sociedade. Mesmo porque, dentro do ponto de
vista que comungamos – materialismo
histórico-dialético, tais condições são tidas
como fundantes de toda e qualquer práxis.
As condições de produção restritas Figura 2. Governo Collor
envolvem-se diretamente com a movimentação
particular das enunciações, que são específicas
de cada tipo de discurso ou de Formação
Discursiva.

Adentramo-nos pela reflexão de o dizer


constituir-se como tal, de uma e não de outra
maneira em determinadas (ir)regularidades
enunciativas; dito que se configura pelo Figura 3. Governo FHC
intradiscurso – “fio do discurso de um sujeito”
(FERREIRA, 2005, P. 18), isto é, a parte
perceptível dos significados/re-significados que
formam os discursos. Por esse viés tocamos nas
contradições sociais, aspectos dos sujeitos que Figura 4. Governos Lula 1 e 2
possuem escolhas e limites.
Nesse sentido, queremos pontuar nossas
convocações que, inicialmente, discutimos
nesta análise, o que não nos impede de trazer
ainda outros elementos, que podem
Figura 5. Governo Dilma 1
complementar a fundamentação teórica em
torno do objeto e corpus que ora observamos.
3. Um ponto de vista análitico
Capturamos a partir do corpus desta
pesquisa movimentos de pistas ideológicas que Figura 6. Governo Dilma 2
se constituem como não-ditos, ou seja,
implícitos e silenciamentos, que “se alojam nas
entranhas do discurso, à sombra das palavras”
(CAVALCANTE, 1999, p. 155). São os

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844
Com a intenção de enfatizar: para nós, a
propaganda constitui-se como um dos
Referências
sintomas do capitalismo, posiciona-se como
produtora de sujeitos e sentidos direcionados e ALTHUSSER, L. Aparelhos Ideológicos de
não transparentes – auxiliada pelo uso dos Estado: nota sobre os aparelhos ideológicos de
diversos tipos de linguagem. Essencialmente Estado (AIE). Rio de Janeiro : Edições Graal,
dentro de uma dada Formação Social de que 1985.
fazem parte as Condições de Produção do BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da
Discurso e as Formações Ideológicas do linguagem. São Paulo : Hucitec, 2004.
Capital.
CAVALCANTE, M. S. A. O. Implícitos e
Assim, nos é possível afirmar que nestes silenciamentos como pistas ideológicas. In
espaços discursivos existem movimentações Leitura: revista do Programa de Pós-Graduação
dialógicas (BAKHTIN, 2004), em que os em Letras e Lingüística : número 23 - temático
slogans aqui convocados estabelecem “uma : ANÁLISE DO DISCURSO - Maceió :
transformação na visão do sujeito e da Imprensa Universitária, UFAL, 1999.
linguagem submetidos às pressões sociais e
ideológicas” (FLORÊNCIO, 2002). FERREIRA, M. C. L. Linguagem, Ideologia e
(MÉSZAROS, 2004; VAISMAN 1989). Psicanálise. In: Fonseca-Silva, Maria da
Conceição e Santos, Elmo José dos. Estudos da
4. Considerações finais [Em suspenso] Língua(gem). Nº 1, Vitória da Conquista :
Este é um trabalho de pesquisa que está Edições Uesb, 2005.
sendo, inicialmente, desenvolvido. Ou em FIGUEIREDO NETO, C. A última impressão é
outras palavras: neste momento instaura-se a a que fica. São Paulo : Thomson Learning,
apresentação do corpus, que faz parte de um 2007.
ritual deste percurso investigativo. Ainda
estamos em fase de leituras e aprofundamento FLORÊNCIO, A. M. G. O enunciado e a
teórico e que deve ser concluída na intenção de polifonia em Bakhtin. In Leitura: revista do
avançarmos no aprofundamento de análise. Programa de Pós-Graduação em Letras e
Lingüística : número temático : DISCURSO:
Assim, gostaríamos que o frenesi HISTÓRIA, SUJEITO E IDEOLOGIA - n. 30
ensaiado por essas considerações sirva de (jul./dez. 2002) - Maceió : Imprensa
abertura para o conhecimento da complexa, Universitária, UFAL, 2002.
polêmica e fascinante prática do fazer
propaganda, numa tentativa de ensejarmos FLORÊNCIO, A. M. G. et al. Análise do
estudos e pesquisas que sejam úteis como fonte discurso: fundamentos & práticas. Maceió :
de debates sobre esta temática e, assim, tornar EDUFAL, 2009.
possíveis, essa e outras/novas leituras como MÉSZÁROS, I. O poder da ideologia. São
esforços que contribuam para um melhor Paulo : Boitempo Editorial, 2004.
entendimento da dinâmica discursiva da
propaganda dentro e fora do âmbito acadêmico.

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845
ORLANDI, E. P. As formas do silêncio: no
movimento dos sentidos. Campinas, SP:
Editora da Unicamp, 2007.
______. Interpretação; autoria, leitura e efeitos
do trabalho simbólico. Campinas: Pontes, 2004
______. Análise de Discurso. Princípios e
procedimentos. Campinas, São Paulo: Fontes,
2000.
PÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou
acontecimento. Campinas, SP : Pontes, 2002.

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846
AS RELAÇÕES DE SABER E PODER ANCORADAS PELO
DISCURSO HEGEMÔNICO NO GRAFISMO SENSUAL

Carla Andrea Pereira de REZENDE


Universidade de São Paulo (AD-GEPALLE/USP/RP )
carlarezendeadv@bol.com.br

Resumo: O presente trabalho se propõe a refletir sobre os processos éticos, estéticos e


políticos que envolvem a prática cultural da “Arte de Grafitar”, tomada como discurso,
sobre suas condições de produção, circulação e recepção. Objetiva-se analisar como se
constituem as subjetividades reveladas por meio do grafismo sensual em lugares privados
e públicos. Percebe-se, que os sujeitos implicados nestes movimentos buscam retratar a
especificidade da arte praticada por meio da qual, de forma velada, transbordam as
relações de saber e de poder em que estão inscritos. Esses sujeitos buscam vozes audíveis
e visíveis dentro e fora destes espaços de atuação na sociedade, promovendo a
desestabilização de algumas relações constituidoras do discurso hegemônico e ao mesmo
tempo indiciam novas formas de subjetivação e de relação social.
Palavras chave: discurso; relações de saber e poder; subjetividades.

circular as relações de saber e poder,


Introdução observando-se os lugares privados e públicos.
Este trabalho teve como objetivo geral O objeto de análise se constitui de um
analisar as práticas discursivas que têm como recorte das imagens de grafismo sensual
foco “as relações de saber e poder veiculadas pela mídia de massa e digital,
”relacionados com o tema das obras feitas pelo observando-se os lugares privados e públicos,
artista, especificamente na obra “late night in presentes: http://rowannewton.co.uk/artworks/
Rouge”. que exibe imagens de artistas do grafismo e faz
Os objetivos específicos consistiram em circular a “Arte de Grafitar”.
a) identificar quais as práticas discursivas sobre Ancora-se nos estudos em Análise do
os temas que reverberam e circulam na obra e, Discurso de matriz francesa e nos conceitos
aparecem nos enunciados das pinturas ; b) foucaultianos para análise da relação entre
analisar discursivamente quais os filtros dos saber/poder, discursos e sujeitos nessas formas
discursos e dos já-ditos emergem destas de expressão, principalmente nos conceitos de
práticas discursivas são representadas e fazem subjetividade, alteridade, formação discursiva.

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lugar social de onde ele “fala”, da realidade
Como os resultados preliminares deste
vivida pelo artista.
estudo, pretendem-se compreender, com maior
profundidade, as relações de saber e poder, Figura1. O Artista
regidas por discursos hegemônicos que
procuram, por meio de outros discursos,
excludentes, a constituição de uma sociedade
respaldada por valores da identidade em
detrimento da alteridade. Nesse sentido, pensa-
se em um sujeito que, devido à sua alteridade,
sempre escapará aos modelos, aos conceitos e
às normas impostas e justificadas pela razão.
1. Desenvolvimento
O artista Rowan Newton, pintor do sul
de Londres, viveu sua infância na região
metropolitana de Brixton, onde cresceu
rodeado por grafite e implicado nessa cultura
desde tenra idade. Desde a infância, sentia-se
atraído pela rua e pelo desejo de transformar
espaços improváveis em verdadeiras paisagens
de arte. Seu estilo reflete as dicotomias
existentes na paisagem do centro da cidade.
Rowan demonstra acentuada preferência para
pintar mulheres. Embora seus traços sejam
carregados de fortes pinceladas, ele não perde a O contexto de produção da obra
delicadeza e beleza singular nos contornos das A arte de rua em Londres oferece
figuras femininas. Costuma utilizar tintas mistérios, personagens emblemáticos e rixas
spray, acrílicos, e caneta, predominância de históricas. O que nasceu como manifestação
cores brilhantes em superfície de lona ou de artística marginal, hoje faz parte da paisagem
madeira. Seu trabalho é cheio de textura com da capital britânica, com autores de grafites
splatter, partículas que produzem efeitos de cujos nomes são internacionalmente
explosão e sensação de movimento rápido e um reconhecidos.
gotejamento que permite perceber uma
atmosfera vibrante; as camadas superpostas dão Os espaços intramuros e extramuros
a noção de profundidade em sua obra artística. são, para esses artistas, ambos igualmente
espaços públicos. A frequência deles aos
As análises da obra do pintor, neste espaços reservados é menor porque seu lugar é
trabalho, apontará que o contexto de produção especializado, específico, positivamente sujeito
influencia, interfere e determina certas ao arbítrio, mas isso em nada o torna menos
características das mesmas, levando em conta o público. Há artistas considerados institucionais,
que expõem regularmente, têm formação

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acadêmica e aprovação erudita, direcionam-se
Em entrevista à BBC Brasil, Joseph
há tempos à exploração das ruas, em
Epstein, um designer que se dedica a fotografar
performances, instalações e intervenções
imagens de arte urbana comentou que a sorte
urbanas, mas também em vertentes tradicionais
de cada artista varia em cada região da cidade e
do objeto artístico, às vezes pictóricas ou
que, muitas vezes, “as administrações
pictográficas. Levam consigo para a rua o
regionais pintam por cima dos grafites e
atelier, o mercado, a crítica, a história da arte e
tentam descobrir os autores, a fim de processá-
assim, o conceito de exposição.
los, mas em outros cantos, o trabalho deles é
Em Londres, o tráfego veloz de obras de valorizado e os administradores locais
rua pauta-se pela reflexão da realidade, os procuram até preservá-los’’(GARCEZ, 2012,
artistas urbanos são naturalmente militantes. p.53).
Segundo Schneedorf (2014, p. 2), Já o bairro de Brixton, no sul de
“expor na rua remete ao tradicionalmente Londres, onde viveu Rowan Newton, não
britânico conceito de artista como trabalhador costuma entrar nos guias turísticos da cidade.
social. Remete ao lugar comum, tanto na Considerada uma das mais pobres e violentas
acepção do simples quanto do comunal: ‘a da capital britânica, a região foi palco de
praça é do povo’”. protestos históricos contra a discriminação
Um dos mais célebres artistas urbanos racial em 1981, quando milhares de jovens
britânicos, Banksy, ainda hoje o nome mais negros entraram em confronto com a polícia,
conhecido do ofício, tem suas obras espalhadas colocando a área no centro da luta contra o
por diferentes pontos da cidade, mas, longe de racismo no mundo.
conviver pacificamente, ele se tornou pivô de A população de Brixton é composta
um duelo de artistas de rua. King Robbo, um parcialmente de imigrantes africanos e
mítico grafiteiro da cidade, teve um de seus caribenhos vindos em outros tempos em ondas
grafites adulterados pelo lendário artista da de deslocamento. Em busca de
cidade de Bristol e, desde então, vem se reconhecimento, surgem questões acerca da
dedicando a passar seus jatos de spray por cima identidade nacional. Nas narrativas literárias, o
de obras de Banksy ou criar obras suas em cima racismo e a lógica da rejeição e recriação da
das feitas pelo arquirrival (SCHNEEDORF, identidade em um novo lugar são temas
2014). marcantes, assim como a relação entre lar,
Embora tenha se tornado um cartão pátria e exílio.
postal da Londres moderna, a arte de rua lá Escritoras mulheres incluem, além de
ainda está muito associada à transgressão. Em meditações acerca da pátria, os problemas de
exposições semanais, elas delineiam gênero, em romances em que a figura da
comentários irônicos sobre o dia-a-dia mulher, a infância, o processo de
londrino, sobre a política do país e satirizam a envelhecimento são frequentemente
sociedade britânica e personalidades do país e tematizados.
não poupam nem mesmo a rainha e seus filhos
Brixton, conhecida como a “pequena
e netos.
Jamaica” dentro de Londres, integra o distrito

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de Lambeth e é a casa de boa parte da descrito como gentrificação (ou a “elitização”)
comunidade de origem afro-caribenha. da vizinhança. Por um lado, parte dos
britânicos comemoram a “descoberta” de
O processo que desumaniza a população
Brixton, por outro, moradores reclamam dessa
negra, fez com que o machismo sobre essas
“elitização” da região.
mulheres tivesse um impacto maior do que nas
demais, principalmente na mercantilização de Figura 2. O Artista e a Obra
suas vidas e corpos, além de sua afetividade.
Isso implica em sofrer uma dupla opressão
historicamente construída e a hegemonia de um
gênero sobre o outro.
Como consequências da negação do
papel da mulher negra e caribenha na formação
da cultura, há ainda hoje uma dificuldade em
reconhecer aquelas que estiveram presentes nas
lutas e movimentos sociais e ocuparam espaços
“privilegiados”. As heroínas e intelectuais
negras, são totalmente invisibilizadas nos
processos históricos.
A obra de arte de rua a ser analisada,
Após séculos de exploração, observa-se neste traalho, é uma pintura em grafite, do
hoje ainda uma rejeição à presença negra na artista inglês Rowan Newton, nomeada de Late
história e vida cotidiana, que exclui e Nights In Rouge, edição em madeira, de 88 x
discrimina, além de uma intensa erotização e 110 cm, 12 milímetros de espessura,
apropriação do corpo da mulher negra. contraplacado de bétula , assinado e selado
Recentemente, em face dessa realidade, pelo autor com o selo da galeria de arte Jealous
um grupo de mulheres negras viu a necessidade Prints.
de iniciar um debate em nível internacional Objetiva-se analisar, sob a perspectiva
sobre a situação da população afro descendente, da AD francesa e dos conceitos foucaultianos,
o racismo, discriminação e principalmente como essa forma de expressão provoca efeitos
questionar a identidade europeia imposta a esse de sentido constituintes de subjetividade. Para
povo. isso, observam-se as formações discursivas em
É nesse contexto que ganha notoriedade torno das relações de saber/poder que circulam
a arte de rua em Brixton, para onde Rowan entre os discursos da “Arte de Grafitar”.
Newton volta seus olhos e faz um trabalho de
valorização da arte popular com crianças da
comunidade, muitos deles descendentes da
cultura afro-caribenha.
Hoje, a região atravessa um curioso
processo de revitalização. O fenômeno é

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850
Figura 3. A Obra Figura 4. O olhar da Obra

O olhar da figura induz o expectador a


visualizar duas faces opostas, em uma delas, o
olhar que revela altivez, enfrentamento,
“Late Night In Rouge.” superioridade, na outra face, o olhar deixa
transparecer submissão, resignação e
2. Análises e discussão aprisionamento.
O nome da obra, “Late Nights In Ao aprofundar a pesquisa sobre as
Rouge” faz alusão a um possível atraso, à noite contribuições de Foucault para a construção do
e a um lápis de boca que, neste caso, foge sujeito, é importante conceituar, de alguma
totalmente ao convencional, vermelho, pois a maneira, o que o filósofo entende por
boca carnuda, os lábios volumosos e sensuais, linguagem para compreender como ele trata os
da figura da mulher, aparecem em tons de azul aspectos que constituem o discurso e o colocam
intenso, capturando imediatamente, o olhar do em movimento. Vez que, a linguagem como
expectador interlocutor pela exuberância. um instrumento que liga o nosso pensamento à
Os cabelos da mulher representada não coisa pensada, Foucault entende a linguagem
se distinguem do fundo preto do quadro nem como constitutiva do nosso pensamento e, em
por nuances, nem por texturas, são indefinidos, conseqüência, do sentido que damos às coisas,
sem delineamento, o que sugere que a cor é à nossa experiência, ao mundo. Segundo
negra. Foucault (2006, p. 305):
No rosto feminino representado, as A linguagem acaba por mostrar as coisas
cores quentes, vermelho e amarelo, brilhantes, como que apontando-as com o dedo, e na
sugerem pele morena, volume nos maxilares e medida em que elas são o resultado, ou o
maçãs do rosto, sobrancelhas grossas, traços objeto, ou o instrumento dessa ação; os
bem marcados. nomes [as palavras] não recortam tanto o

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851
quadro complexo de uma representação; exterior que o produziu, mas que, de algum
recortam, detêm e imobilizam o processo modo, bordeja os textos, recortando-os,
de uma ação. A linguagem “enraíza-se” não delimitando-os, tornando-lhes manifesto de
do lado das coisas percebidas, mas do lado ser ou, pelo menos, caracterizando-lho.[...]
do sujeito em sua atividade. A função autor é, assim, característica do
modo de existência, de circulação e de
funcionamento de alguns discursos no
Inseridos desde o nascimento vivemos
interior da sociedade (FOUCAULT, 2006,
num mudo que já é de linguagem, num mundo p.46- 46).
em que os discursos já estão circulando há
tempos e, por isso, nós nos tornamos sujeitos
derivados desses discursos. Para Foucault, o A intimidade do discurso com uma
sujeito de um discurso não é a origem formação discursiva, está ligado de acordo com
individual e autônoma de um ato que traz à luz Foucault (2000, p. 135), o discurso é “um
os enunciados, ele não é o dono de uma conjunto de enunciados, na medida em que se
intenção comunicativa, como se fosse capaz de apóiem na mesma formação discursiva; [...] é
se posicionar de fora desse discurso para falar constituído de um número limitado de
sobre ele. Foucault aponta que um tema liga-se enunciados para os quais podemos definir um
a outro tema: conjunto de condições de existência”. O autor
remete-se à historicidade do discurso no trecho:
As disciplinas organizando as <celas>, os
<lugares> e as <fileiras > criam espaços O discurso, assim entendido, não é uma
complexos: ao mesmo tempo arquiteturais, forma ideal e intemporal que teria, além do
funcionais e hierárquicos. São espaços que mais, uma história; o problema não
realizam a fixação e permitem a circulação; consiste em saber como e por que ele pôde
recortam segmentos individuais e emergir e tomar corpo em um determinado
estabelecem ligações operatórias; marcam ponto do tempo; é, de parte a parte,
lugares e indicam valores [...] A primeira histórico – fragmento de história, unidade e
das grandes operações da disciplina é então descontinuidade na própria história, que
a constituição de <quadros vivos> que coloca o problema de seus próprios limites,
transformam a multidões confusas, inúteis de seus cortes, de suas transformações, dos
ou perigosas em multiplicidades modos específicos de sua temporalidade e
organizadas [...] (FOUCAULT, 1996, não de seu surgimento abrupto em meio às
p.135). cumplicidades do tempo (FOUCAULT,
2000, p. 135).

Certamente construído segundo as


regras do enunciado e conseqüentemente a A definição de discurso em Foucault
questão porquê e como apreceu um permite entender que as práticas discursivas
determinado enunciado , e não outro em seu modelam nossas construções de mundo, de
lugar ?, indaga Foucault: compreendê-lo e de falar sobre ele. E ainda que
uma prática discursiva dependa da nossa
[...] à idéia de que o nome autor não vontade, essa não é suficiente para gerá-la e
transita, como o nome próprio, do interior fazê-la funcionar. Ela não é somente um ato de
de um discurso para o indivíduo real e fala, não é uma ação concreta e individual de

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pronunciar discursos, mas é todo um conjunto
de produção de enunciados. As práticas Figura 5. Boca Azul
discursivas são, conforme Foucault (2000, p.
136):

um conjunto de regras anônimas,


históricas, sempre determinadas no tempo e
no espaço, que definiram, em dada época e
para uma determinada área social,
econômica, geográfica ou lingüística, as
condições de exercício da função
enunciativa.
Os efeitos de sentido dessa leitura
O discurso é algo diferente, não se apontam para um sujeito constituído por forças
pode falar de qualquer coisa em qualquer que se travam em formações discursivas
época. As relações discursivas não são internas antagônicas que resgatam os fios de uma
ao discurso, não ligam entre si conceitos e memória da mulher negra, alijada de direitos,
palavras, ou seja, ao descrever a formação dos excluída da sociedade, fadada ao
objetos de um discurso, busca-se proximidade silenciamento, à submissão e os fios
dos relacionamentos que caracterizam uma discursivos que resgatam a mulher que luta
prática discursiva e não se determina a pelos seus direitos, reconhece seu lugar na
organização léxica e nem a semântica sociedade, ocupa uma função social.
(FOUCAULT, 2000, p.55). 3. Considerações finais
A transformação de indivíduo em Os resultados deste estudo,
sujeito moral moderno – ou seja, no processo compreender-se, com maior profundidade, as
pelo qual cada um aprende e passa a ver a si relações de saber e poder, regidas por discursos
próprio – sempre estão atuando também as hegemônicos que procuram, por meio de outros
práticas divisórias, que são elementos discursos, excludentes, a constituição de uma
constituintes de outro eixo: o do “ser-poder”. E, sociedade respaldada por valores da identidade
combinadas com essas, estão também em detrimento da alteridade. Nesse sentido,
determinadas disposições de saberes, que se pensa-se em um sujeito clivado que, ao se
engendraram para instituir o sujeito como um relacionar significativamente no mundo,
objeto de que se ocupam as ciências modernas. escapará dos modelos impostos por discursos
Foucault amarra coerentemente a subjetivação, hegemônicos produzidos por formações
de que resultou isso a que denominamos discursivas que circulam na sociedade de
‘sujeito moderno’. massa.

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853
Referências
FOUCAULT, M. O que é um autor? Vega:
Passagens, 2006.
_______. .A Arqueologia do Saber. Tradução
de Luiz Felipe Baeta Neves. 3. ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2000.
_______. A ordem do discurso. Tradução de
Laura Fraga Almeida Sampaio. São Paulo:
Loyola, 1999.
GARCEZ, B. A arte de rua em Londres. BBC
Brasil: Londres, 2012. Disponível em:
http://www.bbc.com/
portuguese/noticias/2012/06/120628_arte_na_rua_
galeria_bruno_vale.shtml. Acesso em: 10 jun 2015.
PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma
crítica à afirmação do óbvio. Campinas:
Pontes, 1998.
SCHNEEDORF, J. A lenda urbana de Banksy
no nomadismo e na absorção dos muros
expositivos. Revista PALÍNDROMO 2. Escola
de Belas Artes/UFMG, 2014. Disponível em:
http://ppgav.
ceart.udesc.br/revista/edicoes/2processos_artist
icos/2_palindromo_schneedorf.pdf. Acesso em:
10 jun 2015.

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IMAGEM E IMAGERIA EM 50 ANOS DE ENSINO DE LÍNGUA
PORTUGUESA NO BRASIL (1960-2010)

Jocenilson RIBEIRO1
Universidade Federal de São Carlos (LABOR/UFSCar)
jonuefs@gmail.com

Resumo: A finalidade deste trabalho é apresentar um trajeto de pesquisa desenvolvido na


ocasião do doutorado em estudos linguísticos e em ciências da linguagem. Trata-se de
uma pesquisa desenvolvida a partir do tema da recorrência de usos de imagens e textos
imagéticos em livros didáticos de língua portuguesa no Brasil. Partimos de uma
abordagem teórico-metodológica orientada nos estudos em análise do discurso e na
história da semiologia francesa. Após análise de 13 livros didáticos entre os anos de 1960
e 2010, concluímos que houve paulatinamente um aumento crescente da presença da
imagem nos livros, acompanhando teoricamente a ampliação do conceito de língua,
linguagem e texto na atualidade.
Palavras-chave: análise do discurso; imageria; livros didáticos; língua portuguesa.

manifestações no ensino. Esse fenômeno deve-


Introdução
se a algumas razões: seja de ordem política,
Recentemente concluímos uma pesquisa histórica, cultural e tecnológica; seja de ordem
de doutorado no Brasil, pelo Programa de Pós- teórica e científica, quando se passou a existir
Graduação em Linguística da Universidade nas escolas diversas práticas de leitura que
Federal de São Carlos, sob o tema recorrência extrapolam o texto verbal, a construção dos
de usos de imagens e textos imagéticos em sentidos dos textos verbais e não verbais e a
livros didáticos (LD) de língua portuguesa no constituição dos discursos materializados na
Brasil. Do levantamento de um conjunto de 13 língua e no conjunto de toda uma iconografia
LDs estudados, entre as décadas de 1960 e do imaginário na área de linguagens, códigos e
2010, constatamos que houve um progressivo suas tecnologias (BRASIL, 2002a, 2002b).
aumento das apropriações de imagens ao longo
Como procedimento metodológico,
dos anos e, mais recentemente, um certo
estabelecemos alguns percursos: a) desenvolver
discurso pedagógico voltado para suas

1
Uma versão mais completa desse artigo (em coautoria com Vanice Sargentini) com os detalhes da pesquisa, como os
processos de descrição, tabelas com quantitativo e quadros de termos, será publicada no 4º volume da REDIS – Revista
de Estudos do Discurso, da Universidade do Porto (Portugal), 2015. Disponível
em:<http://ler.letras.up.pt/site/default.aspx?qry=id05id1446&sum=sim>.

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855
um estudo epistemológico sob a égide da ainda, a presença da imagem como objeto de
história das ideias e das representações sobre os estudo e produção de significados na história
saberes em ciências da linguagem (CHISS; do homem. Nesse segundo viés, foi possível
PUECH, 1987, 1998, 1999; COLOMBAT; FOURNIER, construir a seguinte questão: quais saberes
PUECH, 2010; b) fazer um levantamento estiveram associados à apropriação do texto
quantitativo das imagens a partir do corpus, imagético em livros didáticos e em exames de
descrevendo a recorrência, ausência/presença, o avaliação brasileiros nos últimos cinquenta
número e os tipos de materialidades imagéticas anos de história do ensino de língua portuguesa
nos livros didáticos; c) levantar os principais no Brasil?
conceitos e noções presentes nos LD,
observando a recorrência e uso de conceitos Por outro lado, o trabalho com esse tipo
como língua, linguagem, texto, comunicação de objeto enfrentava e ainda enfrenta o
no entrecruzamento de campos teóricos da problema da nomeação, tendo em vista a
linguística moderna; d) estudar nos documentos diversidade de designadores para o mesmo
oficiais (leis, diretrizes educacionais, objeto, a imagem. Assim, em face da
parâmetros curriculares) as abordagens sobre a diversidade de nomenclaturas que levantamos
leitura da imagem e suas mutações ao longo ao longo das pesquisas, da descrição e análise
dos anos. do arquivo bem como da leitura da bibliografia,
optamos pela nomeação “imagem fixa”, “texto
Neste artigo, apresentaremos uma imagético” e, por último, “imageria” com um
síntese dos principais levantamentos realizados sentido mais amplo. No primeiro caso, foi
ao longo da pesquisa, com o propósito de preciso levar em consideração a natureza
estabelecer uma reflexão em torno da presença material e o suporte das imagens, por se tratar
da imagem no ensino onde cabe uma maior de uma materialidade mobilizada de outros
problematização desse objeto enquanto meios, impressa em livros didáticos, colorida
materialidade dos discursos. e/ou em preto e branco; já no segundo,
1 Sobre o objeto da pesquisa pensando-a como texto ao considerar que a
imagem também é lugar de materialização de
As questões sobre os usos, o tratamento sentidos constituídos na relação entre sujeito,
e a apropriação do texto verbo-imagético ou linguagem e história e, por isso, lugar
somente imagético no ensino levou-nos a primordial da produção, constituição e
investigar tal objeto em duas perspectivas: a circulação de discursos. Nessa perspectiva,
imagem enquanto objeto empírico e enquanto imagem também é texto.
objeto epistemológico. No primeiro caso, foi
preciso conhecê-la em seu aspecto material, sua Por fim, mobilizamos a noção de
presença real nos livros, os tipos de imagens, imageria2 para definir um conjunto quantitativo
características, relação com a palavra, seu lugar
nas páginas dos livros etc.; na segunda 2
Baseamo-nos particularmente nos autores Vianna
perspectiva, buscou-se conhecer sua função, os (2000; 2010), Renonciat (2011) e Wunenburger (2001)
saberes que nelas circulavam, os conceitos no para pensar na noção de imageria como um conjunto de
terreno das ciências da linguagem que imagens, não como um sinônimo de imagem.
Evidentemente, cada autor utiliza tal noção pensando em
(im)possibilitavam sua existência nos livros ou, questões distintas das nossas, mas o que há em comum é

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de imagens definido pela função que elas manequins, tabelas, gráficos, painéis,
assumem no interior do discurso pedagógico organogramas, mapas, fotos, infográficos,
(portanto, com fins didáticos) e, ilustrações em manuais didáticos) com
especificamente, no interior dos manuais de objetivos de ilustrar e facilitar o trabalho
ensino de língua e linguagem com propósitos didático do professor em sala de aula bem
fincados na leitura, na produção de sentidos. como o processo de ensino e aprendizado dos
Evidentemente, para essa definição, deve-se alunos a partir de imagens.
considerar a natureza pictórica das imagens não Ao pensarmos na noção de imageria em
por si só como se bastasse descrever seus livros didáticos, consideramos que há na
aspectos iconográficos, sígnificos e plásticos, história dos livros didáticos (principalmente os
mas principalmente ao levar em conta seus livros de língua, linguagem, literatura, história
usos culturais e históricos, para considerarmos, e artes) determinadas imagens que circulam
sobretudo, os sentidos que elas produzem a frequentemente, carregam saberes sobre a
partir de uma memória das imagens história do homem, legitimam discursos
(COURTINE, 2011; 2012), ou seja, é preciso autorizados a circular na escola enquanto
colocar as imagens em relação às outras, tal deslegitimam outros que ali são interditados.
como pensamos o discurso e o interdiscurso Por exemplo, faz parte de nosso repertório de
que o atravessa. imagens uma pintura renascentista cuja
A partir dos trabalhos de Vianna (2000, personagem apresenta um corpo “obeso” (se
2010), Wunenburger (2001, 2012) e Renonciat definida segundo os padrões estéticos de nossa
(2011), a expressão imageria pode ser época) sendo vinculada a textos clássicos de
concebida como um conjunto de imagens, nas literatura; mas esta mesma imagem
mais diversas especificidades genéricas, dificilmente aparece como ilustração de um
materialidades e suportes, que servem a um texto científico cujo tema emerge do discurso
dado objetivo e campo das práticas discursivas médico com orientações para o cuidado com a
e da constituição e difusão de saberes. Do saúde, redução de açúcares, prática de
ponto de vista genealógico, essa expressão exercícios físicos etc. Daí uma das questões de
começa a ser difundida com a atuação do ordem metodológica que nos colocamos é a
ministre de l’instruction publique (1868-1869), seguinte: por que determinadas imagens entram
Victor Duruy, no Segundo Império, na França. na ordem do discurso e outras são silenciadas?
O político e historiador francês queria que as Ou ainda: Por que um certo tipo ou gênero
paredes das escolas francesas fossem cobertas, textual/imagético são escolhidas a compor o
de cima abaixo, de imagens. Imageria escolar LD e não outras?
engloba todas as imagens e reproduções É nesse sentido que pensamos uma
gráficas e iconográficas (envolvendo quadros, imageria discursiva em livros didáticos
pinturas, estátuas, desenhos, maquetes, definida menos pela materialidade em si e mais
pela função pedagógica que determinadas
sua natureza complexa, funcional e relacional de tipos de imagens, trazidas de outros espaços e meios de
imagens que podemos definir como imageria médica,
imageria política, imageria eclesiástica etc.
circulação, assumem quando são deslocadas
para o interior do livro, possibilitando a

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construção e transmissão de valores de linguagem através de informações fiáveis de
compartilhados culturalmente nas sociedades. 3 ordens: a) as teorias antigas, os
conhecimentos que elas produzem e os
2 Sobre o campo teórico-metodológico
conceitos por elas elaborados; b) o modo como
Procuramos com este estudo os problemas foram postos e difundidos e,
desenvolver, por um lado, um trabalho que finalmente, c) os problemas mais gerais e
considerasse o aporte teórico-metodológico da fundamentais que se nos apresentam.
história tal como as pesquisas em ciências da
Nessa tarefa, cabe ao historiador dos
linguagem que seguem as orientações
saberes linguísticos e das representações
foucaultianas. Por outro lado, a pesquisa seguiu
linguageiras relativizar as análises e descrições
os procedimentos atuais de análise de objetos
sob pena de desconhecer a própria historicidade
de natureza plurissemiótica adotados nos
constitutiva dos fenômenos que ele se propõe
estudos do discurso, partindo da noção de
descrever. É preciso então desenvolver um
enunciado, discurso e arquivo caros ao campo
estudo histórico observando as continuidades e
da Análise do discurso no qual temos feito uma
as rupturas que são constitutivas do próprio
dupla articulação: um conceito de história a
fazer histórico para não cair nos riscos da busca
partir dos trabalhos de Michel Foucault; e uma
pela origem dos fatos e pela verdade da história
noção de semiologia histórica (GREGOLIN,
nem pela linearidade desses fatos como fizeram
2011; SARGENTINI, 2011) que considera a
os historiadores crentes numa história
natureza constitutiva do sentido a partir da
tradicional.
relação de imagens e palavras como fundante
da memória social e coletiva. Com a concepção de história
foucaultiana para compreender as mutações
Além disso, tecemos algumas reflexões
porque passam nosso objeto ao longo do tempo
no terreno da história e das representações
e no interior dos 13 livros didáticos analisados,
sobre a língua e a linguagem (COLOMBAT,
pensamos um dado saber no campo científico,
FOUNIER, PUECH, 2010; PUECH, 1999,
histórico ou cultural obedecendo a uma ordem
2005, 2006), procurando flagrar algumas
do discurso (FOUCAULT, 2001), que jamais
abordagens teóricas que, de certo modo,
está alheio ou imune às transformações
possibilitaram os usos da imagem na escola,
históricas porque passam todas as
sobretudo a partir da década de 1980, com o
manifestações de linguagem. A linguagem –
advento da internet e das novas tecnologias de
seja em sua semiologia verbal, seja imagética –
comunicação e informação aperfeiçoadas, de
é o lugar privilegiado das práticas discursivas
certo modo, pelo projeto de comunicação de
em que os sujeitos definem-se nas relações
massa (MORIN, 2007) desde os anos 1960 na
sócio-históricas. Nesse sentido, as
Europa e EUA.
determinações políticas e científicas para a
Sobre o trabalho do historiador das entrada, a manutenção, a permanência e o
ciências da linguagem, Colombat, Founier, apagamento de determinados objetos
Puech (2010) e Puech (1999, 2005, 2006) discursivos em livros didáticos respondem
afirmam que sua tarefa é então criar condições também a determinações históricas que
de reflexões sobre a epistemologia dos estudos

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modificam as relações de poder e saber em é o resultado de um modo de leitura que o
cada sociedade e em diferentes épocas. organiza, orienta sua constituição. Se se parte
do pressuposto de que as leituras variam
Em síntese, podemos dizer que levamos
conforme mudam o sujeito-leitor, para cada
em conta a noção de história, a natureza
sujeito há, pois, um modo de produzir o
semiológica do enunciado e o discurso como
arquivo; dito de outro modo, os arquivos de
promotor de uma ordem do dizer e do olhar que
análise variam conforme mudam o olhar de
permitem que os enunciados materializados em
seus analistas.
imagens produzam efeitos de sentido
específicos e diversos, possibilitando que Na perspectiva foucaultiana, o que não
determinados saberes constituam-se e nega a anterior, se o arquivo congrega um
perpetuem-se em uma dada época como regime conjunto de documentos, ele não é a soma de
de verdade em nossa sociedade contemporânea, todos os textos de uma data sociedade e cultura
tomando existência concreta no livro didático. postos à análise, mas o conjunto de
documentos monumentalizados ou esquecidos,
3 Procedimentos metodológicos de
dados a ver ou silenciados que uma sociedade
constituição do arquivo
produziu numa dada época, cuja totalidade é
Em Análise do Discurso (doravante inatingível. Assim, nas palavras de Foucault
AD) e na história das ideias linguísticas, nunca (2008, p. 147): “O arquivo é, de início, a lei do
foi uma atitude confortável definir um tema, que pode ser dito, o sistema que rege o
determinar os objetos, descrevê-los, interpretá- aparecimento dos enunciados como
los/ analisá-los, mobilizar o embasamento acontecimentos singulares. Mas o arquivo é,
teórico constitutivamente interdisciplinar, sem também, o que faz com que todas as coisas
que antes se concebesse o processo analítico de ditas não se acumulem indefinidamente em
construção e reconstrução do próprio objeto em uma massa amorfa.”
um movimento que atravessa teoria e
Desde os tempos de fundação da
procedimento analítico. Esse é um problema
Análise do Discurso, em que se debruçavam
diretamente relacionado à questão da
em grandes corpora de discursos políticos
constituição do arquivo. O trabalho de análise
predominantemente escritos, o trabalho com a
é, ao mesmo tempo, descritivo e interpretativo
produção do arquivo era um problema
na medida em que se procedia e ainda se
(GUILHAUMOU; DIDIER, 2010). E hoje
procede hoje com a constituição/construção e a
quando as transformações por que passou a AD
leitura/interpretação do arquivo chegando às
requerem atenção para uma diversidade de
análises das sequências discursivas.
linguagens, novos temas e hibridez de objetos,
A própria noção de arquivo, na história perguntamo-nos: como proceder com a questão
da AD francesa, carrega em si uma diversidade da constituição de um arquivo tão heterogêneo
de sentidos que, muitas vezes, carece de quanto complexo e desafiador?
elucidações. Na crítica de Pêcheux (2010, p.
Em nosso arquivo especificamente,
51), o arquivo é “[...] entendido, no sentido
enfrentamos inquietações desse tipo que
amplo, de ‘campo de documentos pertinentes e
orientaram um modo de construir um trajeto de
disponíveis sobre uma questão’”, portanto, ele
análise, identificando as regularidades no

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859
interior da heterogeneidade que lhe é pesquisa foi compreender como historicamente
constitutiva sem que deixássemos de as materialidades imagéticas foram abordadas
reconhecer a complexidade da questão e os nos LD, por extensão no ensino de linguagem
desafios que nos eram postos mediante tal (envolvendo língua, literatura, leitura),
complexidade de análise. Destacamos aqui 4 concorrendo com a linguagem verbal e quais as
dessas inquietações: principais abordagens teóricas engendraram as
mutações em seu tratamento.
1. A começar pelo enfrentamento da pouca
clareza conceitual “texto misto” – por vezes 4. Por fim, era preciso considerar o problema
confundido com texto sincrético, de ordem político-institucional, que envolvia
plurissemiótico, materialidade compósita, políticas de produção do livro, leis, orientações
multimodal, imagética, verbo-imagética – a e diretrizes de educação; ordem econômica
partir do qual optamos por texto imagético, (com os mercados editoriais), ordem acadêmica
imagem e imageria conforme explicitamos (com as teorias regentes a cada época que
anteriormente, não sem antes carregar com orientam o ensino e a formação do professor),
essas noções as implicações que tal escolha nos ordem técnica (avanço das tecnologias de
acarreta. produção de livros) e ordem cultural (uso de
novas linguagens, adventos de novas
2. O outro problema aparece com a diversidade
tecnologias, redes, internet etc.).
e riqueza semiótica presente nos livros
didáticos caracterizada pelo tamanho, funções, 4 Ideias sobre língua a linguagem nos livros
tipos, natureza material entre outras, por didáticos
exemplo: funções (ilustrativa, lúdica, Ao observar as transformações ou a
didatizante); tipos de textos verbais (textos manutenção do conceito de língua e linguagem
jornalístico, literário, instrutivos, gramatical), no conjunto dos LDs analisados, elaboramos no
imagéticos (fotografia, caricaturas, pintura, Quadro 1 (em anexo) um diagrama que
desenhos, fotograma, foto-escultura), verbo- expressa a presença e a predominância de
imagético (charges, quadrinhos, peça- alguns conceitos com base em um
publicitária etc.) e outros códigos (sinais de levantamento de termos-chaves mais
trânsitos, símbolos, setas, esquemas). recorrentes no arquivo analisado. Nosso
3. A terceira é de ordem temática: feito o objetivo é compreender a recorrência de
reconhecimento dessas implicações, seria campos teóricos, que definimos por ideias e
preciso delimitar um tema. Contudo, no LD há saberes sobre a língua e a linguagem
uma diversidade de temas que varia conforme (COLOMBAT; FOURNIER; PUECH, 2010),
os objetivos previstos nos conteúdos e na gestadas no terreno das ciências da linguagem.
construção dos saberes linguísticos, Sem objetivar uma homogeneização
metalinguísticos, estéticos etc. Da língua pela conceitual que enquadre cada livro em
língua à análise do texto literário, adotar um “correntes” teóricas herméticas, o diagrama que
tema no interior do livro didático é desprezar a aqui elaboramos permite apenas entender em
riqueza constitutiva que reside no interior dos quais concepções e aportes cada livro
livros. A única saída, portanto, conforme fundamenta alguns de seus conteúdos ou, pelo
definição de um dos objetivos de nossa

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860
menos, utiliza-se de terminologias e expressões
Assim, observamos que a gramática
que nos permitem associar a um dado campo de
normativa esteve quase sempre presente em
saber linguístico. O risco, porém, ocorre
todo o conjunto do arquivo, salvo nos
quando se busca entender tais conceitos como
momentos em que o livro não tinha o propósito
se fossem pertencentes a apenas um campo de
de ensinar o sistema linguístico, como é o caso
saber, quando, na verdade, esse processo é mais
de Para entender o texto: leitura e redação (de
complexo. Por exemplo, a ocorrência do termo
Platão & Fiorin, 1991), e dois dos três livros
“comunicação” nos livros da década de 1970 e
que compõem a coleção Abaurre (edição de
1980, no Brasil, não têm a mesma concepção
2005, literatura; edição de 2007, Produção de
daqueles produzidos segundo a proposta mais
texto), uma vez que o livro Gramática tem esse
recente. A adoção de um termo como
propósito específico. É interessante observar
comunicação, por exemplo, muitas vezes não
que os aspectos descritivos da língua (ao olhar
define necessariamente o pertencimento à
da gramática descritiva), em oposição à noção
teoria da comunicação, haja vista seus usos de
de prescrição, vão figurar com mais
modo vulgarizado até hoje. Não é à toa que, na
visibilidade nos LDs de 2003 e 2006,
coleção Abaurre por nós analisada, tal termo
promovendo uma discussão em torno das
ainda aparece. É preciso entender mais de perto
variedades linguísticas e adequação às diversas
a que domínio ele se filia. Em suma, o uso de
situações de uso da língua nas esferas sociais.
algumas rubricas teóricas pode ocorrer por
empréstimo, havendo um certo deslizamento Abaurre & Pontara (2006) afirmam no
entre domínios teóricos, diferentemente da texto de apresentação do volume:
adoção do conceito de semiologia ou semiótica,
que são mais raros nos livros didáticos atuais. Certamente você já se perguntou, em algum
momento da sua vida escolar, por que
Metodologicamente, o estudo para a precisa enfrentar tantas aulas de gramática.
construção deste diagrama(ver anexo) [...] Neste livro, vamos apresentar uma
desenvolveu-se quando fizemos um língua muito mais viva e próxima de seu
levantamento de alguns elementos modo de falar. Temos certeza de que boa
significativos em cada LD na ordem em que se parte das dificuldades enfrentadas durante
apresenta na edição, a saber: o estudo de gramática se deve ao fato de
que as estruturas e exemplos presentes
os títulos; nos livros são artificiais, criados para
a apresentação e/ou prefácio; ilustrar casos previstos pela gramática
o sumário/índice; normativa. [...] Achamos muito mais
produtivo (e divertido) estudar os textos
a forma como se manifesta no interior dos
com que convivemos no nosso dia-a-dia:
livros (por partes, unidades); tiras humorísticas, cartuns, editoriais de
o grau de importância dentro das unidades jornal, narrativas, crônicas,
(título de seção ou subseção); propagandas, etc. (grifos nossos)
os exercícios/tarefas;
a lista de referências.
Nas palavras das autoras, percebe-se
uma oposição ao propósito fatigante e pouco

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861
produtivo recorrente nos livros cujo interesse é 2000, quando o trabalho com múltiplas
prescrever regras artificiais e previstas pela linguagens parecem ganhar maior atenção na
gramática normativa. Afastando-se desse escola, sendo certamente a consequência de
projeto já ultrapassado, dizem elas, as autoras algumas determinações político-culturais
procuram marcar um novo conceito de ensinar relacionadas a outras questões como:
língua escrita e falada, isto é, aquela na qual os
falantes percebam-na como sendo uma língua I. perspectivas de ensino mais atuais atreladas
viva e próxima de seu modo de falar. Esta às políticas linguísticas, novas pedagogias e
afirmação produz um efeito orientado por uma reformulações no sistema de educação;
memória sobre a própria língua, aquela de que II. reformulação de currículos de Letras;
aprender língua é chato, cansativo, entediante;
a de que a língua portuguesa é repleta de III. uma nova entrada nas epistemes linguísticas
regras de difícil absorção etc. – um efeito de de cunho histórico-discursivo;
que a língua ensinada, conforme os moldes IV. reforma do Ensino Médio;
tradicionais, é inapreensível, uma vez que ela
V. reestruturação do Exame Nacional do
se configura como uma língua inatingível, ou
Ensino Médio – que tem um forte impacto
seja, uma língua de impossível acesso e sem
retroativo na prática docente, sobretudo no
equivalência no dia-a-dia dos falantes.
Ensino Médio;
Por outro lado, enquanto o conceito de
VI. preocupações com metodologias e
língua estava atrelado à noção de linguagem e
abordagens que contemplem novas tecnologias
cultura que se manteve nos livros até os fins da
(leiam-se os saberes sobre [e em torno de] as
década de 1980, a língua pensada na
Tecnologias de Informação e Comunicação),
sistematização do texto através da frase como
além de questões de ordens político-
sua unidade composicional menor passa a
institucionais que viemos defendendo neste
aparecer em todos os LDs editados na década
trabalho.
de 1990 (seja em primeiras edições ou
reedições). Podemos concluir que a
preocupação naquele contexto era desenvolver Não é exagero dizer que, do ano de
no aluno competências capazes de produzir e 2003 para os diais atuais, parece prevalecer
ler texto através da sistemática da língua culta. uma hegemonia conceitual sob o rótulo gêneros
Assim, os livros (re)editados em 1990, 1991, discursivos que parece dominar hoje e alhures,
1995 e 1997 fazem parte de um momento que nos estados e municípios brasileiros, uma
trazem em seus conteúdos a rubrica da política de ensino de linguagem nas escolas, em
linguística de texto, o que não significa que afinamentos com os agentes políticos e
outras abordagens não tenham marcado sua institucionais responsáveis pela elaboração de
presença, a exemplo das concepções fundadas políticas para o livro e o ensino.
na ideia de linguagem-comunicação, teorias Considerações finais
enunciativas e estudos de gêneros dos
discursos, em maior ou menor grau. Estes dois Diante dessas constatações, dissemos
últimos campos teóricos, de fato, adquirem que o processo de transformações dos LDs e a
maior presença nos LDs no início dos anos relação da imageria com os conteúdos e

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862
conceitos abordados ao longo dos anos podem porque circula uma memória que povoa
estar relacionados a três momentos (Quadro 3), enunciados do tipo: não se deve mais centrar-se
conforme discutimos acima e resumimos da nas descrições linguísticas. Daí porque, nas
seguinte maneira: palavras de Abaurre & Pontara (2006) na
Apresentação do volume Gramática, seu
 o da inexistência das imagens, ou seja,
desafio era “escrever um livro em que o
quando não havia qualquer preocupação
trabalho com a língua e com a gramática
com esta materialidade no ensino de
deixasse de ser uma apresentação cansativa de
linguagem no Brasil (destaque em amarelo,
descrições e regras.”
ou seja: um período que vai até a década de
1970); Livros didáticos analisados
 o da presença da imagem (destaque em 1967 – CEGALLA, D. P. Português. 4ª série
vermelho), quando, a partir dos anos 1980, ginasial. São Paulo: Companhia Editora
começou-se a notar um apelo do olhar para Nacional, 1967.
novas materialidades propiciado pelo boom 1977 – TUFANO, D. Estudos de Língua e
da comunicação de massa, pelo reflexo da Literatura. São Paulo: Moderna, 1977.
incorporação da teoria da comunicação aos
estudos linguísticos na década anterior e da 1978 – CEGALLA, D. P. Hora de
lei 5.692/71, ainda que, com a abertura comunicação. 7ªsérie. 2ª. Ed. São Paulo:
política, tenha havido uma recusa da Companhia Editora Nacional, 1978.
academia aos esquemas comunicativos; 1980 – MARINO, A.R. Estudos de Português
 o terceiro momento corresponde ao que para o 2º. Grau. São Paulo: Editora do Brasil
definimos acima por uso expressivo da S/A, 1980.
imagem(destaque em verde), configurando 1987 – PINO, D.; SCARTON G. Leitura,
um momento mais atual do ensino de língua e literatura. v.1. São Paulo: Saraiva,
linguagem, cuja preocupação das 1987.
abordagens têm se fixado de um modo mais
incisivo na exploração dos processos de 1990 – TUFANO, D. Estudos de Língua e
leitura de diversas imagens e materialidades Literatura. v. 1, 4. ed. São Paulo: Moderna,
compósitas. 1990.

Este momento mais atual se configura 1991 – FIORIN L.; PLATÃO F. Para entender
também como uma quase “imposição moral” o texto: leitura e redação. 3. ed. São Paulo:
do trabalho com os diversos gêneros sob a Ática, 1991.
vulgata de que é preciso apresentar ao aluno 1995 – MAIA, J. D. Língua, literatura e
toda uma imageria nos diversos materiais redação. v.1. 9. ed. São Paulo: Ática 1995.
didáticos a que ele tenha acesso no cotidiano,
1997 – TERRA, E.; NICOLA, J. Gramática,
ensinando-lhe a ler, descrever, analisar,
literatura e redação para o 2º. Grau. São
reconhecer os elementos linguísticos,
Paulo: Scipione, 1997.
pictóricos, plásticos e iconográficos como
constituintes dos sentidos. O efeito é moral

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865
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MANIFESTAÇÕES POPULARES E MÍDIA: UMA ANÁLISE DA
FORMAÇÃO IDEOLÓGICA PRESENTE EM CHAMADAS DE
REPORTAGENS

Tatiane Chaves RIBEIRO; Silvana MARCHESANI


Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas/Capes);
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas/ UFV)
tatianechaves@ymail.com; marchesani@ufv.br

Resumo: Este objetiva averiguar qual (is) formação (ões) ideológica(s) subjaz (em) em
chamadas de reportagens midiáticas sobre as manifestações populares ocorridas no
Brasil em junho de 2013. Como corpus, têm-se 22 chamadas retiradas dos sites dos
jornais Hoje e Nacional (Rede Globo) no período de 07 a 20 de junho de 2013. A teoria
foca-se na Formação Discursiva e sua interface com Formação Ideológica, Interdiscurso
e Sentido. Os resultados apontam:(i) uma mudança na maneira de denominar tanto os
protestos quanto os manifestantes à medida que situações de violência eram agregadas às
manifestações; (ii) os jornais deixaram de lado sua suposta neutralidade na notícia e se
posicionaram contra atitudes de violência e vandalismo por parte de manifestantes
deixando de resgatar o propósito das manifestações e as reduzindo apenas a esses atos.
Palavras-chave: formação discursiva, formação ideológica, manifestações, chamadas de
reportagens.

ideológica conduz seu discurso. Nesse âmbito,


Introdução
compreende-se ser impossível falar que exista
Sabe-se que todo discurso é perpassado, um discurso neutro, isto é, que não defenda
mesmo que de modo implícito, por outros nenhuma ideia.
discursos. Assim, pode-se afirmar que os
Esse é o caminho que Pêcheux (1990) e
sentidos construídos são atravessados por
Robin (1973) percorrem ao afirmarem, a partir
ideologias produzindo, dessa forma, os
dos estudos propostos por Foucault e
interdiscursos. Em outros termos, toda
amparados no materialismo histórico, que a
formação discursiva demonstra, através de
linguagem é uma forma de materializar a
aspectos como vocabulário, verbos,
ideologia e, por isso, precisa ser considerada
modalizadores e qualificadores, dentre outros
mediante os contextos discursivo e histórico-
aspectos, um posicionamento de seu
ideológico dos sujeitos os quais as produzem e
enunciador, ou seja, é possível verificar de qual
recebem. Para Pechêux (1990), por ser
lugar social ele enuncia e qual a formação

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constitutivo, o contexto de produção é essencial retiradas dos sites1 dos jornais Hoje e Nacional
para as significações. (doravante JH e JN, respectivamente) que,
embora pertençam à mesma emissora e,
Nesse caminho, e considerando que
portanto, tenham a base de suas linhas
toda formação discursiva demonstra ideologias
editoriais em comum, são tratados, também,
que a compõem, o uso de determinado
como concorrentes:
vocabulário em detrimento de outros termos
revela um posicionamento do sujeito as redações dos veículos das Organizações
enunciador frente a um discurso. Sendo assim, Globo são absolutamente independentes
um olhar mais atento de enunciados, umas das outras e competem entre si pelo
principalmente, no que diz respeito ao seu furo, pela reportagem exclusiva. (...) Em
vocabulário, possibilita apreender de qual lugar outras palavras, faz sentido a disputa por
social o sujeito responsável por aquele dizer assuntos exclusivos, faz sentido dar mais
enuncia. Em outros termos, apreende-se qual ênfase a determinados temas e não a outros,
ou quais formação(ões) ideológica(s) está (ão) mas não há mal algum na troca de
ali presente(s). informações sobre a dimensão de um
temporal ou a ocorrência de um assalto, por
Dessa forma, este trabalho visa analisar exemplo. (PRINCÍPIOS EDITORIAIS
como manifestações e protestos que ocorreram DAS ORGANIZAÇÕES GLOBO)
no Brasil, no mês de junho de 2013, foram
noticiados pela mídia. De modo mais Salienta-se que tais protestos
específico, buscou-se verificar qual (is) aconteceram, primeiramente, com o intuito de
formação (ões) ideológica (s) presente (s) em impedir o aumento das passagens de ônibus
chamadas de reportagens dos jornais Hoje e urbanos. Posteriormente, novas causas foram
Nacional (ambos da Rede Globo) as quais se agregadas às manifestações e estas tiveram
referiam às manifestações que estavam grande repercussão tanto nacional quanto
ocorrendo no país. Acredita-se que, por serem internacionalmente. Destaca-se, também, que o
jornais de grande audiência, as ideias e as contexto o qual o Brasil vivia era de um país
ideologias por eles defendidas e difundidas sede da Copa das Confederações (que se
contribuem para a formação de uma mesma iniciou no dia 15/06) e que, no mês seguinte,
opinião em grande escala e, portanto, não abrigaria outro evento internacional: Jornada
devem ser desconsideradas. Mundial da Juventude.
Para análise deste trabalho, foram O presente estudo é dividido em cinco
selecionadas vinte e duas (22) chamadas de (5) seções. Na primeira, abordam-se os
reportagens as quais tinham como foco os conceitos base para essa análise: formação
protestos que aconteceram em grandes capitais discursiva e formação ideológica. A segunda
brasileiras, a saber: São Paulo, Rio de Janeiro, seção trata da relação entre formação discursiva
Belo Horizonte e Brasília, no período de e interdiscurso. Já a terceira abrange a questão
07/06/2013 a 20/06/2013. Tais chamadas foram
1
Ressalta-se que as chamadas e suas reportagens foram
exibidas nos jornais antes de serem postadas nos
respectivos sites.

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da formação discursiva e a construção do
Em sua obra, Aparelhos Ideológicos do
sentido. Na seção seguinte, tem-se a análise dos
Estado, Althusser afirmou que “toda ideologia
dados obtidos e coletados no corpus e, por fim,
interpela os indivíduos concretos enquanto
as considerações finais.
sujeitos concretos” (ALTHUSSER, 1985, p.
1. Formação discursiva e formação 96). Para Pêcheux, “todos os indivíduos
ideológica recebem como evidente o sentido do que
A noção de Formação Discursiva ouvem e dizem, leem ou escrevem” (1995, p.
(doravante FD) foi introduzida por Foucault 157). Portanto, ao se basear em Althusser, o
(1969) e reelaborada por Pêcheux. Este, ao autor considera a interpelação do sujeito como
tratar de FD, considera que qualquer formação sujeito ideológico e é justamente essa
social pressupõe a existência de posições interpelação que faz o sujeito pertencer a um
políticas e ideológicas organizadas em grupo social.
formações que possuem entre elas diversas 2. Formação discursiva e interdiscurso
relações. As formações ideológicas, por sua
No final dos anos de 1970, Pêcheux
vez, “incluem uma ou várias formações
passou a considerar a FD interligada ao
discursivas interligadas, que determinam o que
interdiscurso. Neste, há uma relação com o que
pode e deve ser dito” (CHARAUDEAU;
está sendo dito (formulação) e com o já-dito
MAINGUENEAU, 2004, p.241).
(construído), ou seja, um saber discursivo que
A FD permite que os sujeitos de um determina o que é importante no processo
mesmo grupo histórico e social concordem ou enunciativo. Este conceito está, portanto, ligado
não com o sentido atribuído às palavras. Nesse à memória discursiva dos sujeitos e é
âmbito, pode-se dizer que a FD tem influência constituído por dizeres anteriores.
na Semântica, uma vez que as palavras
De outra forma, pode-se afirmar que os
adquirem outro sentido quando mudam de FD.
sentidos construídos são atravessados por
Na formulação proposta por Pêcheux, ideologias e os diversos enunciados, que
baseada em Althusser (1985), a FD demonstra constroem as formações discursivas, são
o assujeitamento e a interpelação do sujeito perpassados por diferentes discursos,
enquanto sujeito ideológico. Althusser defende produzindo, assim, os interdiscursos. É nesse
a existência dos Aparelhos Repressivos do aspecto que se assegura que todo enunciado é
Estado (ARE) e dos Aparelhos Ideológicos do constitutivamente dialógico. Segundo Bakhtin,
Estado (AIE). Estes são representados por
instâncias como religião, escola, família, mídia, a orientação dialógica é, bem entendido,
política, dentre outros e têm por função um fenômeno característico de todo
massificar a ideologia e marcar sua onipresença discurso (...). Em todos os caminhos que
na sociedade. Além disso, os AIE objetivam o levam a seu objeto, o discurso encontra o
discurso de outrem e estabelece com ele
“mesmo resultado: a reprodução das relações
interação viva e intensa. Somente o Adão
de produção, isto é, das relações de exploração mítico, abordando com o primeiro discurso
capitalista” (SARFATI, 2010, p.112) e cada um mundo virgem e ainda não dito, o
AIE faz isso à sua maneira. solitário Adão, poderia verdadeiramente

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870
evitar absolutamente essa reorientação
mútua em relação ao discurso de outrem, então, determinado pelas posições ideológicas
que se produz no percurso do objeto no processo sociohistórico em que as palavras
(BAKHTIN apud CHARAUDEAU; são produzidas. As palavras não existem em si
MAINGUENEAU, 2004, p.161). mesmas, elas mudam de sentido segundo
posições sustentadas por aqueles que as
Através das FDs e dos interdiscursos empregam. Independentemente, pois, do
nelas presentes, o sujeito marca sua posição entendimento do texto o essencial é
enunciativa e isso torna possível depreender a compreendê-lo como discurso produzido.
formação ideológica ali constituída. Para 3. Formação discursiva e sentido
Pêcheux e Fuchs (1975), o posicionamento do
sujeito pode ocorrer de forma inconsciente ou Como dito acima, o sujeito, através do
consciente. seu dito, assume um posicionamento social e
ideológico. No ato da enunciação, ele não
No posicionamento inconsciente, define apenas a posição do eu, mas também a
nomeado de esquecimento 1 ou esquecimento posição do tu. Assim sendo, o próprio sujeito é
ideológico, o sujeito do discurso tem a ilusão constitutivo do ato de produção da linguagem,
de “apagar” o que já foi dito por outrem, ou ele é um coprodutor do texto e não um simples
seja, tudo que alude ao exterior de sua decodificador.
formação discursiva e se considera a origem do
discurso. Assim, ao produzir um discurso, ele Por meio dos sujeitos, o sentido
se apropria do já-dito assujeitando-se, uma vez materializa-se na enunciação e este é
que, no processo enunciativo, este sujeito construído na materialidade linguística do
poderá representar um conjunto de vozes que texto. Maingueneau afirma que “o sentido é um
correspondem à sua memória discursiva. mal-entendido sistemático e constitutivo do
espaço discursivo” (1989, p.120), ou seja, o
Já o posicionamento consciente, sentido é construído a partir das enunciações
denominado esquecimento 2, pertence ao que constituem o discurso. Assim, os sujeitos
âmbito enunciativo, segundo Pêcheux (1995) e, constroem identidades e ocupam lugares
nele, o sujeito seleciona o que e como será dito sociais.
e pressupõe, por exemplo, a escolha de
vocabulário e a organização sintática do texto Dessa forma, os sujeitos, ao se
produzido. O sujeito entende que só existe uma identificarem com diferentes formações
maneira de dizer as coisas e tem a ilusão de que discursivas, posicionam-se de maneira
suas construções enunciativas terão apenas um inconsciente. Por essa razão, o sentido não é
sentido o qual será apreendido por seu sempre o mesmo, uma vez que o que tem
interlocutor. determinado significado em uma formação
discursiva, pode não ter em outra.
Segundo Pêcheux (1995), o
interdiscurso é que especifica as condições nas No discurso, o sentido é, portanto,
quais um acontecimento histórico emerge na construído e as palavras não existem isoladas,
exterioridade desse discurso, pois um discurso elas mudam de sentido a partir de
aponta para outros que se enredam. O sentido é, posicionamentos sustentados pelos próprios
sujeitos que as utilizam. Compreender os

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871
sentidos de um texto não é simples e nem se “TV Globo faz reportagens sobre
reduz a uma análise de estrutura da língua. É manifestações desde o início. Direito de
muito mais complexo, pois requer protestar e se manifestar pacificamente é
conhecimento sobre as condições de produção, um direito dos cidadãos ” (JH- 14/06)
o contexto socioistórico, os ditos e os não-
“Manifestações no Rio terminam com atos
ditos.
de vandalismo e três feridos” (JN- 14/06)
5. Análise dos dados
“Manifestantes protestam em frente ao
As chamadas que serviram como corpus Mané Garrincha na estreia da Copa das
para essa análise são as seguintes: Confederações” (JN- 15/06)

“Protestos contra aumento do ônibus “Oito mil pessoas protestam contra preço
terminam em confusão em capitais” (JH- da passagem de ônibus em BH” (JN-
07/06) 15/06)
“SP: protesto contra aumento de passagens
causa nova confusão” (JN- 07/06) “Governo de SP promete não usar balas de
borracha durante protestos” (JH- 17/06)
“Protesto contra aumento de passagem de
ônibus provoca tumulto no RJ” (JN- 10/06) “Reunião em SP acerta compromisso para
evitar confronto e violência” (JN- 17/06
“Pancadaria marca protesto contra o valor
da passagem no Rio de Janeiro” (JH- “Manifestantes sobem no teto do
11/06) Congresso Nacional, em Brasília” (JN-
18/06)
“Polícia procura manifestantes que
praticaram atos de vandalismo no RJ” (JN- “Grupo de manifestantes ocupou teto do
11/06) Congresso Nacional, em Brasília” (JN-
18/06)
“Manifestantes voltam a enfrentar policiais
em São Paulo” (JN- 11/06) “Grupo coloca fogo em caminhão de
transmissões da Rede Record” (JN- 18/06)
“SP vive terceiro protesto em seis dias”
(JH- 12/06) “Grupo ataca policiais e prédio da
Assembleia Legislativa no Rio” (JN-
“SP: protesto contra aumento no transporte 18/06)
dá lugar ao vandalismo” (JH- 12/06)
“Grupo tenta invadir sede do governo do
“São Paulo vive quarta manifestação” (JH- estado de SP após passeata” (JN- 18/06)
14/06)
“Polícia procura baderneiros que se
“Protestos desta quinta são marcados por infiltraram em protesto pacífico em SP”
excessos da polícia e vandalismo” (JN - (JH- 20/06)
14/06)

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872
relação ao seu alocutário. “É na linguagem e
Um olhar mais atento sobre as
pela linguagem que o homem se constitui como
chamadas permite-nos observar que, à exceção
sujeito” (BENVENISTE, 1989, p.228). Ainda
de duas, as demais se encontram com verbos no
para o autor, é através da subjetividade do
tempo presente. Koch (2002), apoiada em
discurso que se apreende o seu sentido. Assim,
H.Weinrich, relata que os verbos conjugados
temos que
no presente fazem parte de um grupo de
sistemas temporais2 através dos quais o o sentido da frase é de fato a idéia que ela
enunciador apresenta um mundo comentado a exprime; este sentido se realiza
seu destinatário. O uso dos tempos formalmente na língua pela escolha, pelo
“comentadores” adverte o ouvinte de que o fato agenciamento de palavras, por sua
enunciado o afeta diretamente e tal discurso organização sintática, pela ação que elas
exige sua resposta. (Koch, 2002). Dessa forma, exercem umas sobre as outras. Tudo é
as chamadas indicam um comportamento dominado pela condição do sintagma, pela
comunicativo de compromisso e engajamento e ligação entre os elementos do enunciado
destinado a transmitir um sentido dado,
“convocam” os destinatários a uma atitude
numa circunstância dada. (BENVENISTE,
receptiva e atenta ao que está sendo 1989, p. 230)
transmitido.
Ressaltaremos em particular, nas Apreender o sentido, então, implica
análises das manchetes veiculadas, a utilização reconhecer as marcas do discurso. Dentre as
das vozes ativa e passiva e seus efeitos de marcas, pode-se, segundo Benveniste (1989),
sentido. Para Bechara (2006), no viés da destacar as vozes verbais. Em relação aos
gramática tradicional, vozes verbais (ativa, verbos presentes nas chamadas, é possível
passiva e reflexiva) são a forma em que se observar que tanto os termos “protesto (s)”
apresenta o verbo para indicar a relação que há quanto “manifestantes” ou “manifestações”
entre ele e seu sujeito. No entanto, levando em estão sempre acompanhados de verbos na voz
consideração o processamento enunciativo e o ativa. São observadas as seguintes construções
enunciador, abordaremos, para este estudo, as com o uso de “protesto (s)”: “Protestos contra
vozes verbais além da conceituação tradicional, aumento do ônibus terminam em confusão em
sobretudo sob a perspectiva enunciativa. capitais” (JH – 07/06), “SP: protesto contra
A enunciação, segundo Benveniste aumento de passagens causa nova confusão”
(1989), é a própria produção do enunciado e (JN – 07/06), “Protesto contra aumento de
define-se como um eu que institui um tu num passagem de ônibus provoca tumulto no RJ”
determinado momento (aqui-agora), produz (JN– 10/06), “SP: protesto contra aumento no
marcas no discurso e situa o sujeito/locutor em transporte dá lugar ao vandalismo” (JN –
12/06). (grifos nossos)
2
Quanto aos vocábulos “manifestantes” e
Segundo H. Weinrich, os tempos nas situações
comunicativas não têm vínculo com o tempo (cronos) e,
“manifestações”, observam-se as seguintes
por isso, se dividem em dois grupos ou sistemas ocorrências: “Polícia procura manifestantes que
temporais com diferentes empregos e funções. (KOCH, praticaram atos de vandalismo no RJ” (JN–
2002)

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11/06), “Manifestantes voltam a enfrentar momento e que destaca o lado ruim do referido
policiais em São Paulo” (JN – 11/06), acontecimento, já que está associado a
“Manifestações no Rio terminam com atos de “excessos da polícia e vandalismo” que
vandalismo e três feridos” (JN– 14/06), remetem a protestos de forma negativa.
“Manifestantes protestam em frente ao Mané Em outra chamada, “Pancadaria marca
Garrincha na estreia da Copa das protesto contra o valor da passagem no Rio de
Confederações” (JN – 15/06), “Manifestantes
Janeiro” (JH – 11/06), ao vocábulo “protesto”
sobem no teto do Congresso Nacional, em é, também, associado um sentido negativo:
Brasília” (JN – 17/06), “Grupo de pancadaria, uma vez que aquele foi,
manifestantes ocupou teto do Congresso novamente, marcado por algo ruim. O valor
Nacional, em Brasília” (JN – 18/06). Nesse negativo associado ao termo “protesto (s)” é
segmento, percebe-se que, dado o uso da voz ratificado quando se observam (nas chamadas
ativa, toda responsabilidade dos fatos relatados citadas acima) suas consequências: confusão,
pelas manchetes (e, posteriormente, pelas nova confusão, tumulto. (grifos nossos)
reportagens) e de suas consequências (boas ou
ruins) são atribuídas aos próprios atos e/ou aos Já na chamada “Grupo tenta invadir
responsáveis por eles (manifestantes) e, dessa sede do governo do estado de SP após
forma, os jornais se esvaecem de qualquer passeata” (JN- 18/06), nota-se que o termo
ligação com o que é relatado. (grifos nossos) “após” desvincula a invasão à passeata (que se
torna algo positivo). Nesse sentido, o vocábulo
Em todo o corpus, há apenas uma “passeata” é tomado como oposto a “protesto
construção na voz passiva relacionada aos (s)” e passa a ser sinônimo de “protesto
termos em questão: “Protestos desta quinta são pacífico” (“Polícia procura baderneiros que se
marcados por excessos da polícia e infiltraram em protesto pacífico em SP”- JH –
vandalismo” Nesta chamada, colocam-se como 20/06). Dessa forma, nota-se que, quando
principal característica dos protestos naquele desvinculado de carga negativa (marcada,
dia os excessos da polícia e o vandalismo, muitas vezes, pela violência), o termo
ambos podendo estar relacionados ou não. (JN “protesto” vem acompanhado da palavra
– 14/06). “pacífico”. (grifos nossos)
Observa-se que o sentido da frase Tal fato se opõe ao que ocorre nas
decorre do modo como as palavras e chamadas “Manifestações no Rio terminam
expressões são dispostas nas manchetes: “são com atos de vandalismo e três feridos” (JN-
marcados”, na voz passiva, não deve ser 14/06) e “SP: protesto contra aumento no
compreendido apenas como se referindo a um transporte dá lugar ao vandalismo” (JN- 12/06).
sujeito que sofre uma ação, mas como um O fato de as manchetes utilizarem as
sentido/significado no discurso que remete ao construções verbais “terminam” e “dá lugar”
acontecimento (protestos). Dessa forma, esse deixa transparecer que as manifestações e os
acontecimento é único e, por essa razão, protestos estão ligados ou associados a atos de
passível, no momento da enunciação, de um vandalismo, pois são finalizados por eles. É
significado que se ancora na referência do diferente com o que ocorre com o fato
acontecimento (protestos) daquele exato noticiado no parágrafo anterior em que a

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874
invasão ocorre após a passeata, ou seja, a direito dos cidadãos” (JN – 14/06). Nessa
passeata não terminou em invasão, já que esta chamada, fica claro o posicionamento do jornal
ocorreu depois o que sugere um intervalo entre (e da emissora) em repúdio à violência e a
a passeata e a invasão. associação dessa aos protestos, visto que os
termos “protestar” e “manifestar” são
Nota-se, ainda, que o termo
acompanhados da palavra “pacificamente”.
“manifestantes” ganha, também, uma
conotação negativa nas referidas manchetes. Nesse segmento, pode-se perceber o
Observa-se que nas chamadas em que tal embate de duas formações ideológicas: uma
vocábulo é empregado ele está associado a por parte dos sujeitos que participavam dos
atitudes que, muitas vezes, são reprovadas referidos atos e para os quais manifestação e
socialmente: “Polícia procura manifestantes protesto são algo bom. Outra por parte da mídia
que praticaram atos de vandalismo no RJ” (JN a qual associava manifestação e protesto a
– 11/06), “Manifestantes voltam a enfrentar confusão, tumulto, pancadaria e atos de
policiais em SP” (JN- 11/06), “Manifestantes vandalismo e fazia uso do termo “pacífico”
sobem no teto do Congresso Nacional, em quando não havia confusão, etc.
Brasília” (JN – 17/06). As referidas atitudes são Quando se observa cronologicamente as
atribuídas aos manifestantes através de chamadas, nota-se que os jornais mantêm sua
construções linguísticas na voz ativa: formação ideológica de renúncia a atos
“praticaram atos de vandalismo”, “sobem no
violentos e de aceitação ao fato de os cidadãos,
teto do Congresso”, “voltam a enfrentar enquanto tais, possuírem o direito de
policiais”. exprimirem suas opiniões, de forma pacífica,
Sabe-se que essas manifestações ou acerca dos acontecimentos (fato que pode ser
protestos tiveram grande repercussão, inclusive observado na chamada do JH “TV Globo faz
internacionalmente. Houve, também, uma reportagens sobre manifestações desde o início.
recusa por parte de muitos sujeitos em aceitar Direito de protestar e se manifestar
que manifestações ou protestos fossem algo pacificamente é um direito dos cidadãos”). No
ruim (como estava sendo noticiado) e sim uma entanto, à medida que os fatos vão se
atitude válida e positiva para o país. Tal fato agravando, as responsabilidades pelos atos
gerou mais atos de violência nos quais, por deixam de ser generalizadas, ou seja, atribuídas
exemplo, carros de emissoras de televisão a todos os manifestantes para se tornarem
foram queimados (“Grupo coloca fogo em próprias de um grupo de sujeitos. Grupo esse
caminhão de transmissões da Rede Record” – que estava “no meio” dos manifestantes.
JN 18/06). Novamente, puderam-se notar Observa-se que os sujeitos os quais praticavam
chamadas (e, consequentemente, reportagens) atos que são negados socialmente (enfrentar
em que é possível perceber esse jogo polícia, vandalismo, pancadaria, invasão, etc.)
manifestações e protesto: bom ou ruim? foram assim denominados:
Associados à violência ou não? Tem-se como
exemplo a chamada “TV Globo faz reportagens Manifestantes praticaram atos de
sobre manifestações desde o início. Direito de vandalismo (JN- 11/06) /voltam a enfrentar (JN -
protestar e se manifestar pacificamente é um 11/06) /protestam (JN -15/06) /sobem no teto (JN -
17/06); (grifo nosso)

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Grupo de manifestantes ocupou teto (JN - chamadas, de algo negativo, haja vista na
18/06); (grifo nosso) chamada da última data analisada, o termo
protesto vir seguido do vocábulo pacífico.
Grupocoloca fogo (JN -18/06)/ ataca
policiais (JN -18/06) /tenta invadir (JN -18/06) 6. Considerações finais
(grifo nosso) Em nossa memória discursiva, os
termos “protesto”, “manifestação” e
Baderneiros infiltraram em protesto
pacífico (JH -20/06) (grifo nosso) “manifestantes” remetem à busca por melhorias
em algum aspecto ou segmento social ou à
Concomitante a essa variação de violência, confrontos e mortes. Sendo assim, os
denominação dos sujeitos, os protestos eram interdiscursos que perpassam por esses
associados a: confusão (JH- 07/06) / nova vocábulos, podem se revestir de conotação
confusão (JN – 07/06)/ tumulto (JN – 10/06)/ tanto positiva quanto negativa de acordo com o
pancadaria (JH – 11/06)/ vandalismo (JN – 12/06; contexto em que são produzidos e recebidos.
14/06) (grifos nossos)
Considerando que uma FD determina o
que pode e deve ser dito, nota-se que os
Percebe-se, assim, que à medida que os
enunciados em questão (chamadas)
“resultados” dos protestos sofriam uma
estabeleceram o lado negativo e agressivo dos
gradação (confusão, tumulto, pancadaria, atos
protestos como o que deveria ser ressaltado, ou
de vandalismo), os grupos responsáveis por tais
seja, é o que deveria ser dito sobre as
resultados sofriam uma restrição:
manifestações. Tal fato embasa uma formação
manifestantes, oito mil pessoas, grupo de
ideológica resultante de diferentes vozes que
manifestantes, grupo, baderneiros. Em outros
constroem o discurso midiático ali presente.
termos, o lado negativo dos protestos começou
a ter responsáveis mais claros ou específicos, Nesse segmento, pode-se afirmar que,
ou seja, não eram todos os manifestantes, mas nas chamadas, por trás de uma discreta repulsa
sim um grupo, baderneiros, etc. à violência oriunda dos protestos, tem-se a voz
de um poderoso AIE (mídia) que, como já foi
Essa mudança de nomeação dos sujeitos
dito, é responsável por formar opiniões e
pode ser percebida como uma estratégia
visava, possivelmente, assujeitar o
midiática para a preservação de sua face, uma
telespectador a ir contra o que estava sendo
vez que, sujeitos- telespectadores que
noticiado (no caso deste trabalho: protestos), ou
participavam das manifestações, mas não
seja, induzir o telespectador a posicionar-se e,
estavam envolvidos com violência ou
sem que ele perceba a indução, agir como se
vandalismo já se mostravam insatisfeitos com a
fosse essa a sua escolha. Essa voz buscou
generalização que o termo manifestantes vinha
destacar os aspectos negativos dos fatos
sofrendo.
narrados como se, nas manifestações, não
Deve-se ressaltar que, apesar dessa tivesse ocorrido nada de positivo e não
restrição e consequente atribuição mais houvesse ganhos com elas. Dessa forma,
específica sobre quem promovia tais atos nos sobressaiu, nas chamadas, a ideia do
protestos, estes não foram desvinculados, pelas politicamente correto a qual traz a ideologia do

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876
que é certo e classifica a manifestação como
BECHARA, E. Moderna Gramática da Língua
errada e almeja, assim, convencer o sujeito-
Portuguesa. 37.ed.rev.e ampl.16ª, Rio de
telespectador a não agir daquela forma ou,
Janeiro: Lucerna, 2006.
ainda, a nem se manifestar.
BENVENISTE, E. Problemas de Lingüística
Pôde-se notar, também, que as
Geral I. Campinas: Pontes Editores, 1989.
características dos jornais interferiram na
quantidade de chamadas e matérias. O JH, CHARAUDEAU, P.; MAINGUENEAU, D.
como é transmitido próximo ao horário do Dicionário de análise do discurso. São Paulo:
almoço (13h20min às 13h50min), tem uma Contexto, 2004.
natureza mais leve e talvez, por isso, percebe- FOUCAULT, M. Arqueologia do saber (Trad.
se uma ausência de mais notícias sobre os de L. F. Baeta Neves). Petrópolis, Ed. Vozes,
protestos. A parte mais “pesada” do jornal 1971 (Título original: L’arquéologie du savoir,
ficava a cargo das manifestações que tinham 1969).
suas reportagens revezadas com notícias sobre
variedades, emprego e, principalmente, Copa KOCH, I. G. V. Argumentação e linguagem.
das Confederações. O JN, por sua vez e dada 8ªedição. São Paulo: Cortez, 2002.
sua maior audiência por causa do horário em MAINGUENEAU, D. Novas Tendências em
que é transmitido, teve um espaço maior Análise do Discurso. Campinas: Pontes &
dedicado aos protestos, mas sem desvencilhá- Editora da Unicamp, 1989.
los de seu lado negativo.
PÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou
Isso posto, infere-se que as chamadas e, acontecimento. Trad. Eni Orlandi. Campinas,
consequentemente, suas reportagens, ao SP: Pontes, 1990.
deixarem de relevar as razões que mobilizaram
as diversas reivindicações e ações dos ______. Semântica e discurso: Uma crítica a
manifestantes que foram às ruas, bem como afirmação do óbvio. Tradução Eni P. Orlandi et
suas conquistas, direcionaram o olhar do all. 2 ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp,
sujeito-telespectador para um aspecto dos 1995.
protestos apenas (violência e vandalismo) PÊCHEUX, M.; FUCHS, C. A propósito da
revelando a ideologia da mídia em questão e análise automática do discurso: atualização e
estimulando, assim, os posicionamentos desses perspectivas (1975). In: GADET, F.; HAK, T.
sujeitos. (orgs.). Por uma análise automática do
discurso. Uma introdução à obra de Michel
Pêcheux. 3. ed. Campinas: Unicamp, 1997, pp.
Referências 163-187.
ALTHUSSER, L. (1918). Aparelhos PRINCÍPIOS Editoriais das Organizações
Ideológicos de Estado: nota sobre os aparelhos Globo. Disponível em:
ideológicos de Estado (AIE). 2 ed. / Tradução http://g1.globo.com/principios-editoriais-das-
de Walter José Evangelista e Maria Laura organizacoes-globo.html. acesso em
Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Edições 24/07/2013
Graal, 1985.

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877
SARFATI, G-É. Princípios da análise do
discurso. São Paulo: Ática, 2010.
ROBIN, R. História e Linguística. São Paulo. .
Trad Editora Cultrix Ltda. 1973

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LABORATÓRIO ARQUIVOS DO SUJEITO – LAS: PROJETOS
E PESQUISAS

Ariana ROSA; Érica LIMA; Juciele Pereira DIAS; Luiza CASTELLO BRANCO;
Sabrina Sant´Anna RIZENTAL; Ulisses GOMES
Universidade Federal Fluminense (UFF-LAS-CAPES/PNPD)
las_uff@yahoo.com.br

Resumo: Este artigo apresenta o Laboratório Arquivos do Sujeito (LAS – Departamento


de Ciências da Linguagem – UFF), em sua proposta de depreender, discutir e analisar a
subjetividade em suas mais diversas materialidades textuais, orais, visuais e digitais. Sob
coordenação colegiada das pesquisadoras Bethania Mariani, Vanise Medeiros e Silmara
Dela Silva, e tendo como perspectiva teórico-metodológica a Análise de Discurso, em
interface com outros campos de saber (Psicanálise e História das Ideias Linguísticas),
desde 2010 o LAS desenvolve a construção de um arquivo sobre o sujeito na
contemporaneidade como base de estudos e pesquisa, produzindo conhecimento que
resulta na organização de livros, publicação de artigos, e orientação de graduação e pós-
graduação (mestrado, doutorado e pós-doutorado).
Palavras-chave: LAS; Discurso; História das Ideias Linguísticas; Psicanálise; pesquisa.

Sem memória e sem projeto, simplesmente não há saber.


(AUROUX, 1992)

Mariani, projeto que dá sustentação teórico-


1. Um pouco sobre o LAS metodológica às atividades do Laboratório.
A proposta de participação em grupo Em sua constituição, o LAS contou com
no IV Colóquio Internacional de Análise do financiamento do CNPq para o projeto de
Discurso (IV CIAD) constituiu-se como um desenvolvimento do site, e com o apoio do
modo de dar visibilidade ao Laboratório Instituto de Letras da UFF, que cede o espaço
Arquivos do Sujeito (LAS) e de fazer circular (sala 410B) como sala de permanência de seus
a produção de conhecimento realizada a partir docentes e como sede. Assim, o Laboratório
das pesquisas desenvolvidas por seus encontra-se na Universidade Federal
membros docentes e discentes. Fluminense, vinculado ao Departamento de
Ciências da Linguagem e ao Programa de
O Laboratório Arquivos do Sujeito foi Pós-graduação em Letras/Estudos da
criado em 2009 no âmbito do projeto Linguagem; Teoria e Análise Linguística;
Arquivos sobre o sujeito nacional: Discurso e Interação. Coordenado pelas
discursividades na sociedade e na cultura Professoras Doutoras Bethania Mariani,
contemporânea, coordenado por Bethania Vanise Medeiros e Silmara Dela Silva, o

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

879
Laboratório desenvolve projetos no campo da
Análise do Discurso, da História das Ideias
2. Projetos coletivos
Linguísticas e da Psicanálise. Atualmente
integram o Laboratório as pesquisadoras e Dos projetos coletivos do Laboratório,
pós-doutorandas Carolina Padilha Fedatto, destaca-se o Projeto Humanidades
Juciele Pereira Dias e Luiza Kátia A. Castello (FAPERJ/edital 14/2013) intitulado
Branco, que contam com financiamento Divulgação Científica em Análise do
CAPES-PNPD. Também colaboram com o Discurso: divulgação e investigação com
desenvolvimento das pesquisas doutorandos, base nas novas tecnologias. As atividades
mestrandos e graduandos (Iniciação realizadas pelas pesquisadoras e
Científica) vinculados a projetos do Programa colaboradores no escopo do projeto permitem
de Pós-graduação em Estudos da Linguagem interfaces teóricas com seus respectivos
da UFF. projetos em andamento na medida em que
também há a proposta de formação de jovens
As pesquisadoras que coordenam o
pesquisadores, já que o projeto visa à
Laboratório integram o grupo de pesquisa
construção de uma Enciclopédia Audiovisual
Grupo de Teoria do Discurso (GTDis/CNPq
de Conceitos de Análise do Discurso. Em
– com início em 2008, coordenado por
grupo são realizadas reuniões que contribuem
Bethania Mariani, este grupo realiza
não só pela discussão de textos teóricos, como
encontros anuais promovendo diálogos entre a
também pelos cursos de treinamentos sobre a
Análise de Discurso e a Psicanálise, e, no ano
gravação e edição de vídeos.
de 2014, teve sua primeira edição com
palestrantes franceses). As pesquisadoras Os vídeos resultantes dessas
integram, ainda, o Grupo Discursividade, gravações, que compõem a enciclopédia,
Língua e Sociedade (CNPq), juntamente com serão alocados no site Ufftube, da UFF, e
colaboradores do LAS. Dos trabalhos também poderão ser acessados através do site
desenvolvidos no Laboratório, resultam do LAS. Site que contou com a participação
organização de livros, publicação de artigos dos pós-doutorandos Carla Moreira, Juciele
em coletâneas e periódicos na área do Dias e Maurício Beck para ser implementado
discurso, bem como orientação de diversas em 2013. O site do LAS tem funcionado
monografias de conclusão de curso de como um espaço de armazenamento e de
graduação e especialização, dissertações e divulgação do arquivo resultante da pesquisa
teses ao longo dos últimos cinco anos, além deste projeto, bem como das pesquisas dos
de trabalho de supervisão a pós-doutorandos. projetos de outros pesquisadores e
Há ainda o Grupo Discursividade, colaboradores do Laboratório.
Subjetividade, Historicidade (CNPq), 2.1. Projeto de Pesquisa CAPES-PNPD
coordenado por Bethania Mariani e Vanise Institucional
Medeiros, cuja área de concentração é Análise
de Discurso e História das Ideias Linguísticas, O projeto O brasileiro hoje: língua,
a que pesquisadores do LAS, bem como cultura e novas relações sociais, processo nº
orientandos com pesquisa em 007096/2011-96, foi aprovado e
desenvolvimento a ele se integram. implementado sob supervisão da Profª Drª
Bethania Mariani, Professora Titular do
Departamento de Ciências da Linguagem

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

880
(GCL) da Universidade Federal Fluminense
(UFF), coordenadora do Laboratório Arquivos
No primeiro campo é realizado um
do Sujeito (LAS/UFF). Os pós-doutores
mapeamento de como os jovens brasileiros se
vinculados ao projeto estão integrados às
representam e são representados em situações
atividades do LAS, colaboram,
de confronto com a lei simbólica, em
eventualmente, com o Departamento de
situações de perigo, em situações de
Ciências da Linguagem (GCL), e, atualmente,
impunidade. O estudo teórico e metodológico
podem orientar IC a partir de iniciativa
é realizado a partir de acontecimentos em
pioneira da PROPPI-UFF. O referido projeto
circulação na mídia eletrônica oficial e
foi contemplado com duas bolsas
alternativa, de jornais e revistas e em sites de
institucionais, e, inicialmente, teve como
compartilhamento como Youtube, Facebook.
pesquisadoras Ana Paula El-Jaick e Carla
Outra questão norteadora diz respeito a como
Barbosa Moreira (2011-2012). Em dezembro
esse sujeito se representa/se posiciona frente
de 2012, Ana Paula El-Jaick desligou-se do
às práticas sociais existentes e como se
projeto para assumir cargo de docência na
subordina/resiste às políticas públicas que
Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
visam incluí-lo de alguma forma. Nessa
Juciele Pereira Dias, recém-doutorada pela
direção, busca-se compreender como o
Universidade Federal de Santa Maria
discurso da inovação afeta esse sujeito,
(UFSM), em substituição, assumiu a vaga em
interpelando-o como aquele que tem de estar
01 de janeiro de 2013 sem interrupção até
(se) reinventando no ritmo (tempo/espaço) da
hoje. Em fevereiro de 2014, Carla B. Moreira
inovação tecnológica, administrativa, jurídica,
desligou-se do projeto por ter sido aprovada
urbana, social. Já no segundo campo é feito
para o CEFET-BH. A vaga em questão foi
um mapeamento do modo como as políticas
assumida por Fernanda L. Lunkes, recém-
de línguas para promoção e difusão da Língua
doutorada pela UFF, que iniciou suas
Portuguesa interferem na (re)definição de
atividades em 01 de março de 2014. Em 31 de
diretrizes e metas para o ensino, bem como
janeiro de 2015, Fernanda Lunkes desligou-se
nas propostas pedagógicas para o ensino-
do projeto por ter sido aprovada no Instituto
aprendizagem da Língua Portuguesa nas
Federal do Paraná. Em seu lugar, assumiu
escolas e no modo de circulação dos saberes
Luiza Castello Branco (março/2015),
sobre essa língua no espaço digital. São
passando a desenvolver pesquisa como pós-
discutidas as tensões e contradições que
doutoranda, ao lado de Juciele Pereira Dias.
suscitam a relação entre políticas de línguas,
O projeto de pesquisa acima bem como é problematizado o imaginário de
apresentado se constitui em torno da seguinte língua nacional nos manuais de ensino de
questão: na sociedade que cada vez mais se língua, mapeamento de práticas e análise de
organiza em rede (LEGENDRE, 2001), como discursos sobre a difusão e o processo de
os brasileiros jovens representam sua posição ensino-aprendizagem da Língua Portuguesa,
social tendo em vista o cotidiano incluindo as redefinições, perspectivas e
sociocultural? Esta questão, conforme discussões que as diferentes políticas de
definido no projeto de pesquisa, tem sido línguas demandam tendo em vista os Acordos
desenvolvida em relação a dois campos de e Práticas dos países da CPLP. No início da
atuação: 1) Análise de Discurso e Psicanálise; pesquisa, pretendeu-se chamar a atenção para
2) História das Ideias Linguísticas. a falta da promoção da Língua Brasileira e de

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

881
todas as demais línguas designadas como contemporâneo e seus arquivos", realizada em
"Língua Portuguesa"; para a falta de 03 de novembro de 2013, no Instituto de
visibilidade das outras línguas faladas nos Letras (UFF), organizada pelos pós-
países da CPLP; para a falta de investigação e doutorandos Maurício Beck, Carla Barbosa e
promoção de saberes sobre as línguas; o que Juciele Dias sob a supervisão de Bethania
parece constituir-se como um problema de Mariani, com a participação de pesquisadores
ordem política, social e cultural, apontando de várias instituições nacionais. Dessas falas
para uma tensão entre a memória de resultou um livro (no prelo) com os artigos
colonização (MARIANI, 2004) e a atualidade enviados. Para 2016, está prevista uma nova
Jornada para contemplar a próxima etapa
Conforme previsto no projeto, era
desse estágio pós-doutoral, e também a
necessário tornar visível e público o
organização de um livro a partir dos artigos
andamento das pesquisas. Para tanto, o
apresentados.
Boletim dos pós-doutorandos do LAS passou
a ser escrito e publicado em 2013. Trata-se de Com o objetivo de promover a plena
um periódico indexado sob o ISSN 2318- inserção de pós-doutorandos da UFF nas
7581, intitulado Boletim Semestral atividades de pesquisa, pós-graduação e
(http://www.uff.br/las/index.php/boletim). inovação, contribuir para a sua qualificação,
Este boletim tem como objetivo divulgar o particularmente na sua capacidade de
andamento das atividades de pós- formação de jovens pesquisadores, e fomentar
doutoramento para a sociedade, construindo a vinda de pós-doutorandos para a UFF, a
uma prática de "prestação de contas" do Pró-Reitoria de Pós-Graduação, Pesquisa e
investimento de recursos públicos em Inovação apresentou o programa "Apoio a
pesquisas científicas e tecnológicas na área Pós-Doutorandos da UFF, Pós-Doc-UFF"
dos Estudos da Linguagem. O periódico com o objetivo de conceder bolsas de
também funciona como um espaço de iniciação científica para apoiar a participação
reflexão teórica sobre a formação dos pós- de alunos de graduação da UFF em projetos
doutorandos em relação à instituição desenvolvidos pelos pós-doutorandos
acadêmica. Em seu segundo ano, o Boletim já (http://www.editais.uff.br/362). Dessa forma,
conta com seis edições publicadas no site do a pós-doutoranda Juciele Dias submeteu e
LAS, e uma edição referente a julho- teve aprovado seu projeto de IC, contemplado
dezembro 2015 está em preparação. Dentre os com uma bolsa (Edital PROPPI/UFF:
pós-doutorandos que participaram estão Carla http://www.proppi.uff.br/novo/proppi-
Barbosa, Juciele Dias, Fernanda Lunkes, divulga-resultados-das-bolsas-de-iniciacao-
Luiza Castello Branco (projeto CAPES-PNPD cientifica-para-apoio-aos-pos-doutorandos).
Institucional); Maurício Beck e Ana Maria Em abril de 2014, foi oficializado o início da
Carnevale (projeto FAPERJ encerrado em atividade de orientação de iniciação científica
2014); Eliana de Almeida (pós-doutoranda de Drielle Cristina da Silva, aluna proponente
sênior do Projeto CNPq); Carolina Fedatto na disciplina de Linguística III, do curso de
(projeto CAPES-PNPD/Prêmio Tese). Esse graduação em Letras da UFF. Este projeto de
estágio pós-doutoral resultou também em IC foi contemplado em 2015 com a renovação
organização de eventos, dentre os quais da bolsa da graduanda até dezembro do
ressaltamos a "Jornada O indizível, o respectivo ano.
ininteligível e o imperceptível: o sujeito

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882
Bethania Mariani e Elizabeth Chaves de
Melo. De modo geral, trabalhando junto ao
Como modo de promover o diálogo
grupo de AD, em HIL buscamos
entre as pesquisas do grupo do LAS, foram
compreender, discursivamente, questões que
iniciadas pelos pós-doutorandos atividades de
circunscrevem as produções de saber sobre a
organização de grupo de estudos com o
língua(gem) e os efeitos de sentido dessas
objetivo de ler e discutir sobre textos filiados
produções na história, nas relações cotidianas,
às áreas de Análise de Discurso e História das
em um batimento entre memória e atualidade.
Ideias Linguísticas. A proposta de trabalhar
em grupo visa atuar na formação de jovens O grupo de leitura em Poesia e
pesquisadores, e integrar ICs, mestrandos, Psicanálise, coordenado pela Profª Drª Eliana
doutorandos e ex-orientandos do LAS, em de Almeida (UNEMAT), foi inaugural nas
encontros periódicos. atividades do Laboratório em 2015. A
proposta foi de promover leituras em Análise
As atividades do grupo de estudos em
de Discurso e em Psicanálise (o cronograma
Análise de Discurso teve seu início com
proposto incluía vários teóricos: Pêcheux,
Maurício Beck (2011), prosseguiu com
Henry, Gadet, Freud, Lacan, Foucault, Milner,
Fernanda Lunkes (2014), e continua em 2015
Nazar, Leite, Mariani) que instanciassem
sob a responsabilidade de Luiza Castello
discutir um possível entre esses campos de
Branco com a proposta de promover leituras
saber para se pensar o lugar do poético na
sobre a teoria formulada por Michel Pêcheux
língua.
e um coletivo de intelectuais em torno desse
filósofo, (França, anos 60 e 80), e sobre esta 3. Projetos Individuais dos Pesquisadores
teoria desenvolvida no Brasil por Eni Orlandi do LAS e de alguns membros discentes
e outros pesquisadores em diferentes Os pesquisadores do LAS também
universidades. No ano de 2015, foi proposto desenvolvem, além do projeto coletivo já
um cronograma de leituras de textos teóricos apresentado, projetos individuais. A
de Eni Orlandi com o objetivo de situar pesquisadora Bethania Mariani tem sob sua
conceitos e noções teórico-metodológicas responsabilidade os projetos As jovens
dessa teoria no Brasil. discursividades cariocas e as mídias
O grupo de estudos em História das alternativas (prêmio Cientista do Nosso
Ideias Linguísticas teve início em 2013, Estado – FAPERJ) e Discursos em farrapos e
proposto por Juciele Pereira Dias em parceria outros discursos: sobre o ordinário de sentido
com doutorandas do LAS, com o objetivo de na mídia (CNPq – Pq1C); Vanise Medeiros é
estudar a constituição das teorias linguísticas, responsável pelos projetos Língua e sujeito
questões sobre língua(gem) e suas diferentes na discursividade sobre a língua: glossários
formas de circulação na sociedade. brasileiros (prêmio Jovem Cientista do Nosso
Inicialmente, foram realizadas leituras de Estado – FAPERJ), Glossários
textos resultantes de pesquisas do programa contemporâneos: a inscrição na língua
Histoire des Idées Linguistiques, da França; e, (CNPq – Pq2), e Formas de dizer, formas de
a partir do final de 2014, foi proposto um mostrar: a inscrição da violência na
cronograma para leituras de capítulos da obra sociedade contemporânea e das formas de
Língua Inatingível, de Françoise Gadet e resistir; Silmara Dela Silva coordena o
Michel Pêcheux, traduzida ao português por projeto Do acontecimento jornalístico às

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883
práticas discursivas: o sujeito no discurso da integram às pesquisas desenvolvidas no
e na mídia (prêmio Jovem Cientista do Nosso Laboratório.
Estado – FAPERJ). Ao lado das atividades de O trabalho intitulado (...) remediado
pesquisa, Bethania Mariani também faz parte está: implicações do processo de significação
do Comitê de Assessoramento (CA) do de greve na relação entre o Poder Legislativo
CNPq, Silmara Dela Silva é vice e o Poder Judiciário a partir da Constituição
coordenadora da Pós-Graduação em Estudos Federal de 1988 foi desenvolvido por Ulisses
da Linguagem da UFF e coordenadora do GT da Silva Gomes no Mestrado em Estudos de
de Análise do Discurso da ANPOLL. Linguagem da Universidade Federal
Recentemente, em 2013-2014, Vanise
Fluminense (2015), sob a orientação da Profª
Medeiros concluiu estágio de pós- Drª Bethania Mariani.
doutoramento sênior na França, na Université
Sorbonne Nouvelle III, com bolsa CAPES. O objetivo da pesquisa, analisar se há
Dentre os eventos organizados pelo e como se realiza a inscrição da imagem dos
Laboratório, frutos das pesquisas, poderes no discurso jurídico, foi possível
apresentamos dois que se caracterizam pela devido à perspectiva teórico-metodológica do
cooperação entre diferentes laboratórios, tanto LAS, principalmente no que se refere à
no âmbito nacional quanto internacional. No interface da Análise do Discurso com a
ano de 2014, em outubro, houve o evento Psicanálise, o que permitiu uma leitura
"Laboratórios em cooperação: relações entre discursiva de texto de leis, da Constituição
Brasil e França", envolvendo a participação Federal (CRFB/88) e de decisões judiciais.
dos laboratórios de Paris III – Sorbonne O corpus da pesquisa constitui-se de
Nouvelle, do Rio de Janeiro – LAS/UFF, de dois textos de decisões judiciais do Supremo
Ribeirão Preto – El@dis -FFCLRP/ USP, e de Tribunal Federal (STF) em mandados de
Santa Maria (RS) – Corpus/UFSM, evento injunção que têm por objeto o exercício do
sob a coordenação de Amanda Scherer direito de greve do servidor público (MI 20-
(UFSM), Bethania Mariani (UFF), Lucília 4/1998 e MI 712-8/2007).
Sousa (FFCLRP/USP), Silmara Dela Silva
(UFF), Vanise Medeiros (UFF), Verli Petri A partir da noção de categorização,
(UFSM). Em agosto de 2012, o LAS trazida por Pêcheux (1988), formulada pela
organizou "I Jornada Enlace entre teoria freudiana da sexualidade infantil
Laboratórios" com a participação dos (FREUD, 1905, 1913, 1930), e com as noções
laboratórios da UFSM (Corpus – Laboratório discursivas de silêncio (ORLANDI, 1992),
de Fontes de Estudo da Linguagem), da USP- repetibilidade (INDURSKY, 2011), juridismo
RP (El@dis – Laboratório Sujeito e Rede (LAGAZZI, 1988), e denominação
Eletrônica: Sentidos em Movimento), e da (MARIANI, 1996) / nomeação (FEDATTO,
UFF (LAS – Laboratório Arquivos do 2011), pensou-se a noção de categorização
Sujeito). jurídica, espécie do gênero categorização
discursiva.
Na sequência, apresentamos pesquisas
de quatro dos discentes membros do LAS (a Tomou-se por categorização jurídica o
primeira concluída e as três últimas em processo de denominação qualificada pelo
andamento), que participaram da IV edição do discurso jurídico e que se efetiva com a
CIAD, apresentando o modo como se atribuição de direitos e deveres, que polariza e
enquadra objetos e sujeitos. Neste processo,

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884
os sentidos são determinados por meio dos Rosa Silva, colaboradora do grupo LAS e
textos de lei, da Constituição e/ou de decisões bolsista da CAPES, que desenvolve um
judiciais, e impostos aos sujeitos pelos estudo na linha de pesquisa de Teorias do
instrumentos de coerção dos aparelhos de Texto, do Discurso e da Interação, sendo
Estado. orientada pela Profª Drª Bethania Mariani.
Essa perspectiva teórica permitiu ler a O trabalho de Ariana Rosa, intitulado
inscrição de "direito de greve do servidor provisoriamente de Análise do discurso
público" na CRFB/88 como um processo de político nos pronunciamentos televisionados
ressignificação de greve, i.e., discursivamente, dos presidenciáveis 2014, está em fase inicial
quando a CRFB/88 traz para o corpo de pesquisa (2015-2016), e tem como objeto
normativo do Estado o objeto "greve", de estudo o discurso político e seus efeitos de
ressignifica-o como "direito de greve", que sentido. Essa investigação foi motivada por
deixa de ser somente um instrumento de luta uma inquietação em relação aos gestos
do trabalhador e passa a significar como uma políticos na contemporaneidade que, mesmo
benesse do Estado, sujeita ao controle. com a falta de ética e com a corrupção
frequentes, conseguem atualizar discursos a
No processo estudado, a greve do
partir de uma memória discursiva, na tentativa
servidor público é prevista pela CRFB/88,
de manipular o eleitor a fazer determinadas
mas seu exercício está condicionado à edição
escolhas que lhes favoreçam.
de norma regulamentadora ainda não
produzida pelo Legislativo. A pesquisa se sustenta na perspectiva
da Análise de Discurso proposta por Michel
O silêncio do legislador não é sem
Pêcheux e introduzida no Brasil por Eni
sentido. A falta de atributos da categoria
Orlandi. O corpus a ser analisado se compõe
"direito de greve" cria no sujeito pragmático –
dos textos orais produzidos nos debates
dominado pela injunção à significação, pela
políticos dos principais presidenciáveis do
imperiosa necessidade de homogeneidade
ano de 2014 (Dilma, Aécio e Marina),
lógica – uma demanda de sentidos. Assim, o
transmitidos pelos canais de televisão aberta:
sujeito servidor público, representado por sua
Globo, Record, SBT e Bandeirantes. Uma das
entidade de classe, leva ao Judiciário sua
questões dentre outras a ser observada é a de
demanda por sentido instrumentalizada pelo
que modo, a partir da materialidade linguística
mandado de injunção.
presente na produção dos enunciados dos
Questionando as noções de candidatos, os sentidos sobre "política",
democracia, representação e resistência, "sociedade", "cidadania" são constituídos
concluiu-se que as decisões judiciais nesses discursos.
analisadas não só buscam trazer atributos para
Pensando ainda as formações
a categoria "direito de greve", mas também
ideológicas presentes nesses discursos, a
significam o próprio Poder Judiciário na
pesquisa busca dar visibilidade a sentidos pré-
medida em que, no ato de decidir, o STF
construídos que significam o eleitor como
delineia os limites de suas atribuições em face
alguém facilmente manipulável. Além disso,
do Legislativo.
pretende compreender de que maneira a
Neste segundo trabalho, apresentamos população, com pouco esclarecimento e
a mestranda em Estudos de Linguagem da interesse por política, é construída como
Universidade Federal Fluminense Ariana da

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885
interlocutora nesses debates eleitorais. Que
imagem se constrói do outro eleitor, quando
O trabalho de Sabrina Sant´Anna
se pronunciam determinadas propostas? Qual
Rizental intitulado Refugiados – um olhar
é o lugar discursivo de onde os candidatos
além dos estereótipos: as perspectivas de
falam e o lugar imaginário atribuído ao
interação na linguagem do controverso 'Novo
eleitor?
Mundo', realizado sob a orientação da Profª
O objetivo geral da pesquisa é analisar Drª Vanise Medeiros e coorientação da Profª
as formas de dominação presentes no discurso Drª Maria Del Carmen Daher, está situado na
político brasileiro, tentando mostrar como se linha de pesquisa Teorias do Texto, do
estabelece a relação de poder entre os sujeitos Discurso e da Interação, do Programa de Pós-
desse processo. Os objetivos específicos são: Graduação em Estudos de Linguagem da
analisar os discursos produzidos nos Universidade Federal Fluminense. O objetivo
pronunciamentos orais dos principais da pesquisa é investigar os discursos dos e
presidenciáveis do ano de 2014 (Aécio, Dilma sobre os refugiados que vivem no Brasil, com
e Marina); refletir sobre os efeitos de sentido enfoque no contexto da cidade do Rio de
construídos entre os interlocutores; descrever Janeiro. Em agosto de 2015, o governo
o funcionamento dos mecanismos e recursos confirmou o número de 8.400 refugiados
linguísticos que possibilitam aos discursos reconhecidos e 12.666 solicitações de refúgio
políticos uma construção persuasiva e pendentes de análise. Pouco mais de 3.000
dominadora; analisar como são construídos os imigrantes, entre solicitantes e refugiados,
imaginários sobre os sujeitos através desses vivem na capital carioca.
discursos.
Mas quem é o refugiado aos olhos dos
O Brasil é uma oportunidade de vida. brasileiros? O que se diz sobre ele? Que saber
Esse terceiro trabalho se inicia por esse slogan comum define a palavra "refugiado" e qual
que dá a ver a pesquisa da mestranda Sabrina posição é facultada a este sujeito no espaço
Sant´Anna Rizental, colaboradora do grupo que adota para reconstruir sua vida?
LAS e bolsista CAPES. Esse é o slogan da
Com base nos teóricos da Análise do
campanha de sensibilização anunciada em 19
Discurso, bem como no de outras áreas que
de agosto de 2015 pelo Ministério da Justiça,
dialogam com o tema do refúgio – psicologia,
cujo objetivo é "esclarecer a sociedade
sociologia, filosofia, entre outras – a pesquisa
brasileira sobre os compromissos
pretende apresentar uma reflexão sobre os
internacionais do país e a importância do
efeitos de sentido despertados pelo
refúgio no mundo, mostrando também que o
"refugiado", em função da memória, da alusão
país garante o acolhimento, a assistência e a
aos vestígios da história e da maneira como
integração destes imigrantes". Três dias após
determinada sociedade constrói, de acordo
este anúncio, veiculando a imagem de 'país
com seu próprio imaginário, os contornos
acolhedor', conforme o Ministério da Justiça,
desse outro, por vezes, ameaçador.
a página do UOL Notícias publica reportagem
com o seguinte título: "Muçulmanos estão Essa pesquisa se propõe a evidenciar a
entre principais vítimas de intolerância forma como o refugiado se percebe
religiosa no Rio". assujeitado à língua e às condições de
produção desse espaço, antes mesmo de
iniciar o seu processo de constituição como

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sujeito discursivo. Recém-chegado à cidade do Pará: uma análise discursiva
eleita para reconstruir sua vida, ele se desenvolvido na linha de pesquisa de Teorias
encontra "sujeito à", e os sentidos são do Texto, do Discurso e da Interação, é o da
produzidos por sua simples presença e pelo mestranda em Estudos de Linguagem da
papel que lhe é atribuído de acordo com os Universidade Federal Fluminense Érica Lima,
efeitos do simbólico e da ideologia local, sem colaboradora do grupo LAS e bolsista da
considerar a sua própria historicidade. CAPES, orientada pela Profª Drª Silmara Dela
Silva. Em fase inicial de pesquisa, com
A seguir, dá-se a ver parte do objeto de
sustentação teórica na Análise de Discurso de
estudo da pesquisa pelo recorte feito dos
Michel Pêcheux, tem como proposta
dizeres de Charly Kongo, refugiado da
compreender os efeitos de sentido que o
República Democrática do Congo, em evento
discurso do Instituto Federal do Pará/Campus
realizado no Ministério Público do Trabalho
Rural de Marabá (CRMB) produz sobre si, o
do Rio de Janeiro, em homenagem ao Dia
campus, o campo e o sujeito que habita esse
Mundial dos Refugiados:
espaço como um "modelo diferenciado de
À primeira vista, ninguém é capaz de 'fazer educação'" apagando os conflitos
distinguir um refugiado de um brasileiro. internos e externos. Para tanto, analisa as
É isso que faz do Brasil uma grande designações para os "sujeitos do campo", bem
nação. Mas basta que nos ouçam, que como os processos de identificação em
vejam nossos documentos, que descubram relação a esses dizeres, a partir dos
de onde viemos, e então as coisas mudam, documentos institucionais, como o Plano de
as diferenças aparecem. [...] Só pelo fato Desenvolvimento Institucional do Instituto
de sermos africanos, somos considerados Federal do Pará, o Projeto Político
analfabetos, pensam que não temos Pedagógico do Campus, Projetos Políticos
cultura ou formação, que somos
Pedagógicos dos Cursos ofertados, e os
ignorantes. Pelo fato de sermos árabes,
pensam que somos terroristas... se somos instrumentos pedagógicos do Campus Rural
colombianos, somos traficantes. [...] de Marabá.
Porque somos estrangeiros, refugiados, 4. Considerações Finais
ficamos com as piores funções e
condições de trabalho. [...] Pedimos ajuda Esse texto enquanto suporte material
para que não sejamos tratados como busca fazer circular e dar a saber/ver a
escravos e que não nos explorem. produção científica do LAS. Esse gesto de
interpretação inscreve-se numa tomada de
Nesse sentido, as palavras que posição ética e política (PÊCHEUX, 1990)
Zygmunt Bauman inseriu em uma de suas preocupada com dar visibilidade às práticas
obras parecem simbolizar, nesse momento da institucionais do nosso processo de produção
pesquisa, o cerne da questão proposta: "Seu de conhecimento linguístico no Brasil, e com
Cristo é judeu. Seu carro é japonês. Sua pizza o modo como nos compromissamos com a
é italiana. Sua democracia, grega. Seu café, pesquisa e atividades a ela relacionadas.
brasileiro. Seus algarismos, arábicos. Suas
letras, latinas. Só o seu vizinho é estrangeiro".
Referências
O quarto trabalho Os 'sujeitos do
campo' nos documentos do Instituto Federal

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

887
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Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

888
NOVOS LEITORES NA REDE: PECULIARIDADES DO
EXERCÍCIO DA FUNÇÃO AUTOR NAS MENSAGENS
COMPARTILHADAS NO FACEBOOK

Pâmela da Silva ROSIN


Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
pamelasilvarosin@gmail.com

Resumo: Dentre a produção e a circulação de conteúdos diversos na web, possibilitadas


pelas inovações das Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação, voltamos nosso
olhar aos compartilhamentos de ‘frases’ destacados de textos oriundos do campo literário
que figuram nos sites de redes sociais, as quais intitulamos de mensagens compartilhadas.
Para compreendermos seu funcionamento nesse novo meio, mobilizamos pressupostos
teórico-metodológicos da Análise do Discurso de linha francesa, juntamente com alguns
princípios e conceitos da História Cultural de leitura que nos permitem descrever as
formas peculiares de exercício e de validação da função autor na construção e recepção
dessas mensagens manifestas pelos comentários dos leitores acerca de seus
posicionamentos sobre a autenticidade dos textos.
Palavras-chave: frases de autores; autoria; novo leitor; análise do discurso; história
cultural da leitura.

estavam relativamente estabilizadas na cultura


Introdução impressa.
A influência das novas Tecnologias
Com a produção e circulação de textos
Digitais de Informação e Comunicação
nesses novos meios, isto é, na web, somos
propiciaram mutações significantes em nossas
testemunhas de uma mudança sem precedentes
práticas cotidianas. No ambiente virtual
que nos inscreve num regime discursivo
vivenciamos mutações, nas práticas de leitura e
distinto, e cujas implicações podem ser
escrita, de ordens diversas. Os textos, antes
sintetizadas, por um lado, na necessidade de
veiculados sob a forma impressa, e agora
manutenção e de transposição de regras
disponíveis na tela, sofrem uma certa
próprias da ordem do impresso para essa nova
‘homogeneização’, uma vez que textos
ordem virtual; por outro, na necessidade de
diversos são recebidos pelos mesmo meio,
reconstrução de regras, modelos, hábitos,
desafazendo a forma material que permitiriam
práticas de produção e acesso aos textos.
distingui-los e categorizá-los, produzindo, sem
dúvida, uma quebra nas hierarquias que já

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

889
Dessa forma, é na relação com um novo Trabalho de Conclusão de Curso)2, nas quais
objeto, a tela, que nos possibilita a ascensão valemo-nos da análise de aspectos da produção
aos textos, sejam novos ou antigos, que e circulação de mensagens nas páginas de
emergem práticas de leitura e de escrita compartilhamento do Facebook3 e nos
peculiares em sua singularidade. Voltamos, comentários dos leitores acerca da atribuição de
portanto, nossa atenção às ‘frases’ que circulam autoria. Nesta pesquisa, que atualmente
em páginas e perfis de sites de redes sociais, desenvolvemos, consideramos a expansão de
tais como Facebook, em que é comum a nosso corpus de análise, tendo em vista três
produção e compartilhamento de mensagens questões primordiais: primeiro, a emergência
oriundas de textos literários atribuídos a de páginas destinadas ao compartilhamento de
autores conhecidos e contemporâneos, enunciados destacados nas redes sociais,
preferencialmente, da área da literatura. O principalmente aquelas destinadas às ‘frases’
compartilhamento e a produção dessas de Caio Fernando Abreu e Clarice Lispector; o
mensagens buscam, dentre outros objetivos, lançamento significativo de livros de frases sob
sinalizar, a respeito de quem as emprega, um a forma de coletâneas no mercado editorial
determinado ethos, isto é, uma representação de brasileiro4; além dos comentários e publicações
si, seja um estado de espírito, seus interesses e destinadas a polêmicas a acerca da atribuição
até mesmo seus interesses hipotéticos de
leitura. Do conjunto dessas práticas,
focalizamos as formas de exercício da função 2
autor que é manifesta tanto em certas variações Detivemo-nos à análise de mensagens compartilhadas
em dois momentos. Primeiro em nossa pesquisa de
formais e discursivas dos textos como nas Iniciação Científica intitulada: Práticas de escrita e de
declarações presentes nos comentários dos leitura na rede: uma análise de mensagens
leitores que validam ou recusam a atribuição de compartilhadas e dos procedimentos de sua formulação
autoria nesse ambiente. e circulação linguístico-discursivas. Bolsa CNPq –
Processo N. 138935/2012-2 vigência de agosto de 2012
Desse modo, esboçaremos, neste artigo, a julho de 2013; e, posteriormente, no Trabalho de
algumas considerações acerca do exercício Conclusão de Curso intitulado: “Eu não disse isso”:
peculiar da autoria nessas ‘frases’ as quais uma análise do funcionamento de autoria nas
mensagens compartilhadas de Caio Fernando Abreu e
intitulamos de mensagens compartilhadas.
Clarice Lispector, apresentado ao curso de graduação em
Partimos não somente dos resultados obtidos Bacharelado em Linguística da Universidade Federal de
em nossa pesquisa atual de mestrado, São Carlos, como requisito para obtenção do título de
desenvolvida juntamente ao Programa de Pós- Bacharel em Linguística, em dezembro de 2013.
Graduação em Linguística (PPGL)1 na
3
Em nossas pesquisas anteriores nos dedicamos à análise
das mensagens compartilhadas da página O Mundo de
Universidade Federal de São Carlos, mas Caio Fernando Abreu e Clarice Lispector disponível em:
também, dos resultados obtidos em nossas <https://www.facebook.com/mundodecaioeclarice?fref=t
pesquisas anteriores (Iniciação Científica e s>
4
Destacamos as As Palavras (2013) e O Tempo (2014),
ambos lançados pela editora Rocco que se dedicam a
seleção de frases da obra de Clarice Lispector, e em
relação a Caio Fernando de Abreu, destacamos #Caio
1
Mestranda em Linguística; Bolsista CNPq processo Fernando Abreu de A a Z (2013), lançado pela editora
(134333/2014-4) Folha.

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890
suspostamente equivocada de autoria às tanto para elaboração quanto para o
mensagens. compartilhamento de informações, sejam eles
em formato de texto verbal ou imagético, em
Assim, este artigo será estruturado em um curto espaço de tempo. Dente os sites de
três partes, num primeiro momento redes sociais, voltamo-nos mais
apresentaremos as especificidades de especificamente, para o site de rede social
construção das mensagens compartilhadas e as Facebook, em que observamos um fenômeno
páginas de compartilhamento que compõem bastante atual e frequente em nossa sociedade:
nosso corpus de pesquisa; posteriormente o emprego de ‘frases’ de autores conhecidos,
abordaremos, a articulação teórica entre a preferencialmente da área da literatura, na
Análise do Discurso e a História Cultural da composição dos perfis e murais dos usuários.
Leitura de modo a ressaltarmos a importância Essas ‘frases’ são compostas de enunciados
de seus princípios para nossa análise e destacados de textos literários que sofrem
desenvolvimento de nossa pesquisa; por fim, processos de seleção, destacamento e
apresentaremos alguns exemplos extraídos de adaptação, sendo acrescidos de imagens que
nosso corpus de modo a tecermos algumas visam à construção de textos sincréticos. Além
considerações a respeito do funcionamento da disso, nos processos de seleção observamos
autoria nas mensagens compartilhadas. uma certa predileção temática sinalizada,
1. As ‘frases’ literárias: processos de mesmo que indiretamente, pelos produtores das
constituição das mensagens compartilhadas páginas de compartilhamento que compõem o
nosso corpus, a saber, O Mundo De Caio
Os dispositivos tecnológicos, Fernando de Abreu e Clarice Lispector6; Caio,
principalmente a tela de computadores, Tati e Clarice: o que me diz7; e Trechos de
smartphones e tablets, tornaram-se livro, Livros8, que se voltam para três temáticas que,
cinema, teatro, revista, jornal, espaço para em certa medida, se aproximam de temáticas
encontro em amigos, para discussão de recorrentes no campo de recepção da
assuntos de cunho político e religioso, etc. A autoajuda: a) mensagens de
cada inovação tecnológica, é notório as
modificações em nossas práticas diárias, como informações e criação de conteúdo de modo
também em nossas práticas de leitura e escrita. colaborativo, o que a diferencia da Web 1.0, cuja criação
Assim, considerando esse fenômeno geral, de conteúdo construía-se de modo offline. Essa nova
observamos mais atentamente o impacto da forma de interação é possibilitada pelos recursos
criação dos sites de rede sociais em nossas existentes, tais como sites, blogs, microblogs, wikis,
redes sociais, etc.
formas de relacionamento online e de trocas 6
Disponível em
simbólicas que incidem em mutações de nossas <www.facebook.com/mundodecaioeclarice. >
práticas de leitura e escrita. Acesso em: 24 set. 2015
7
Disponível em
A criação desses sites, possibilitada pela <https://www.facebook.com/pages/CAIO-TATI-E-
Web 2.05, permitiu a ampliação de espaços CLARICE- O-QUE-ME DIZ/236767866381944.>
Acesso em: 24 set. 2015.
8
Disponível em <
5
A Web 2.0 caracteriza-se pelo modo de interação dos https://www.facebook.com/TrechosDeLivrosFans/?fref=t
usuários, em tempo real, consistindo na troca de s >Acesso em: 24 set. 2015.

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891
autoconhecimento, refletindo a busca e a dos leitores10 internautas acerca das mensagens
motivação de conhecimento pessoal; b) compartilhadas, verificamos que estes
mensagens de cunho religioso, relativas à comentam como podem e como devem
busca espiritual ou cujo conteúdo refira-se à reiterando ou recusando a atribuição de autoria
palavra Deus; c) mensagens de desses enunciados destacados, como
aconselhamento sobre relacionamentos tanto apresentaremos posteriormente.
do campo amoroso quanto da amizade, em que 1.1 Caio e Clarice destacados: as páginas de
seu conteúdo aborda questões de suas compartilhamento
desilusões e conquistas.
É crescente o número de páginas que se
Figura 1. Exemplo de mensagens de cunho
religioso dedicam aos procedimentos de produção e
circulação de ‘frases’11, isto é, das mensagens
compartilhadas na Web, principalmente nos
sites de redes sociais, como Facebook12. Em
nossa análise nos dedicamos às páginas O
Mundo De Caio Fernando Abreu e Clarice
Lispector; Caio, Tati e Clarice: o que me diz e
Trecho de Livros, que se ocupam da postagem

10
Empregamos o termo ‘novo leitor’ no título deste
trabalho para nos referirmos aqueles leitores “que, em
Mensagem Compartilhada 1 Disponível em: diferentes períodos da história, tiveram acesso a textos
<http://migre.me/rBW1W >Acesso em: 15 set.2015 que não lhes tinham sido originalmente destinados, por
pertencerem a grupos sociais distintos daqueles dos
A mudança na forma de circulação e
produtores dos textos e dos leitores por estes visados.
formulação dessas mensagens não é o único Assim, esses textos, oriundos de um espaço cultural
fator que contribui nas formas de apropriação9 muitas vezes elitizado cujos valores, modelos e formas
que fazem seus leitores. Certas alterações de de interpretação eram, em alguma medida, estranhos a
suporte de veiculação e na composição dos leitores populares, mas por razões de produção e
circulação editorial inesperadas, chegaram às mãos
textos podem afetar o modo como são destes seus novos leitores. (CURCINO, 2012, p. 2)”.
recebidos e também podem alterar seu estatuto Para maior aprofundamento conferir Hébrard (2009),
literário de origem. Assim, nos comentários disponível em:
<www.livrohistoriaeditoral.pro.br/pdf/Hebrard4.pdf>.
Acesso em: 10 de Abr. 2009.
11
Os enunciados destacados de textos literários não têm
sua circulação restritas às páginas do site de rede social
9
Para o historiador cultural Roger Chartier (2001) o Facebook. Numa busca rápida, por exemplo, pela extinta
termo apropriação permite duas dimensões etimológicas, rede social Orkut, (http://orkut.google.com/) em que
aquela em que apropriar-se de um texto é ainda é possível ter acesso, até setembro de 2016, pode-
influenciar/participar de sua formulação, produção e se ter acesso a comunidades voltadas a Clarice Lispector
circulação, de algum modo, e por outro lado, diz respeito em que há tópicos dedicados à postagem de trechos ou
à recepção (interpretação) dos textos por parte dos frases da obra da autora.
12
leitores, que os tomam como podem e devem, segundo as Em nossa pesquisa trabalhamos com páginas de
ordens históricas e culturais que regulam a produção e a compartilhamento oriundas apenas do site de rede social
interpretação dos textos/discursos. Facebook.

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892
de mensagens atribuídas aos autores citados dá na própria descrição da página, disponível
(Caio Fernando Abreu e Clarice Lispector), no na aba ‘sobre’: “A Clarice Lispector é o meu
caso das duas primeiras páginas, como lado fofo. A Tati Bernardi é a minha revolta. E
também, no caso da terceira página, a autores o Caio Fernando Abreu? Ah, o Caio
contemporâneos e consagrados da literatura simplesmente me conhece e sai contando de
brasileira ou a autores que suas obras mim”, em que a junção desses três autores,
obtiveram um relativo sucesso editorial. recaí, como é sinalizado na descrição dos
leitores que apreciam e compartilham essas
A página O Mundo De Caio Fernando
mensagens, na construção do eu-leitor. A
Abreu e Clarice Lispector tem sua primeira
página conta, com 5.763 publicações e 5.887
publicação datada de 20 de dezembro de 2011,
likes. Por fim, a página Trechos de Livros não
tendo como proposta, dedicar-se à postagem de
se dedica somente à publicação de mensagens
mensagens compostas de frases atribuídas aos
dos autores mencionados anteriormente,
dois autores que a nomeiam, contando, desse
expandindo suas publicações a ‘frases’
modo, com um acervo de 1.278 mensagens
oriundas de livros que possuem um relativo
compartilhadas publicadas, das quais, em
sucesso editorial e também de nomes
muitos casos, há a publicação repetida das
consagrados da literatura, entre outros. Além
mesmas. A página encerra, em 21 de dezembro
disso, ela não se restringe apenas à veiculação
de 2012, suas postagens temáticas exclusivas
de conteúdo no Facebook, em que sua criação
voltadas aos dois autores em questão.
data de 2012, anteriormente, em 2011 realizava
Atualmente conta com 82.110 likes que
publicações na rede de microblogs Twitter, e
indiciam o número de pessoas que seguem e
também conta com um website14 em que são
aprovam o conteúdo que é postado pela página,
disponíveis informações que complementam as
de modo a demonstrar uma espécie de
publicações realizadas pela página. O número
afinidade com aquilo que é veiculado e
de likes gira em torno de 1 milhão, sendo a
produzido. Em nossa pesquisa, buscamos em
página que conta com o maior número de
nossa seleção de páginas, aquelas que dentre as
curtidas dentre aquelas por nós analisadas. O
características por nós observadas, tivesse o
fluxo de postagens é contínuo, de modo a
maior número de alcance sinalizada pelo
contar com 8956 publicações15, no entanto,
número de likes recebidos.
dentre essas mensagens há publicações
A segunda página que compõem o nosso repetidas e em muitos casos de assuntos
corpus de pesquisa, Caio, Tati e Clarice o que diversos, tais como promoções, propagandas e
me diz, criada em 24 de outubro de 2011, não anúncios de lançamentos de filmes de
se dedica somente a postagem de mensagens adaptações literárias.
atribuídas aos dois autores citados, mas
também, a mensagens baseadas em frases de
Tati Bernardi13. A justificativa pela escolha, se que possibilitou um amplo espaço de circulação para os
seus textos. No cinema e na TV, respectivamente, se
destacam o filme Meu passado me condena e a série
13
Tati Bernardi é escritora, blogueira e roteirista. Em sua Aline exibida pela Rede Globo.
14
conta no microblog Twitter (@tati_bernardi) escreve Disponível em: <www.trechosdelivros.com.br>
15
para 124 mil seguidores e também mantém seu blog Os dados aqui apresentados referem-se ao período de
(http://www.tatibernardi.com.br/blog/) há sete anos, o agosto de 2015.

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compreendemos que a produção dos textos e
sua interpretação não são dão por gestos
2. Teorias contemporâneas para o estudo da individuais e exclusivamente subjetivos, mas
leitura: diálogos entre a Análise do Discurso dizem respeito a práticas e a representações
e a História Cultural da Leitura coletivas as quais estão suscetíveis a injunções
Para analisarmos as formas materiais de de ordens diversas, tais como social, histórica e
formulação e composição das mensagens cultural, regendo toda e qualquer produção
compartilhadas que circulam no ambiente discursiva, autorizando, impondo ou até mesmo
virtual da Web, nas páginas de redes sociais fomentando, de um lado, o que dizer, as formas
como apresentamos anteriormente, legítimas de dizer, as posições sujeito daqueles
mobilizamos duas teorias contemporâneas de que tomam a palavra devem tomar, e de outro
estudo da leitura. De um lado, uma teoria os modos legítimos de interpretar e avaliar
linguística contemporânea da leitura, a Análise aquilo é dito, de se posicionar e exercer a
do Discurso de linha francesa, e de outro, uma função de autor, partindo de regras sociais,
teoria histórica contemporânea da leitura, a históricas e culturais. Portanto, é a função do
História Cultural da leitura, pois tanto seus analista do discurso levantar e descrever essas
propósitos fundadores quanto seus arcabouços formas de produção do dizer, isto é, dos
teóricos nos dão subsídios necessários ao enunciados acerca da leitura de forma direta ou
desenvolvimento de nossa análise, nos indireta, discutindo suas condições de
possibilitando acendermos às representações16 emergência. Dessa forma, é a partir da junção
das práticas de leitura e escrita da atualidade da desses dois campos que encontramos subsídios
comunidade leitora esboçadas tanto na necessários para a descrição das mensagens
produção e compartilhamento das mensagens compartilhadas e para o estudo da leitura, dada
quanto nos comentários a respeito do exercício a complexidade desse objeto de estudo.
peculiar da autoria, isto é, da atribuição Tanto a Análise do Discurso como a
equivocada a autoria a esses enunciados. História Cultural da leitura desde de sua
A articulação teórica entre esses dois origem, voltaram-se para a compreensão da
campos do saber é justificada, uma vez que leitura, isto é, de sua história, das coerções a
que são submetidas, das razões de suas
16
A concepção de representação, neste artigo, não se eventuais mudanças, de seu funcionamento
restringe à palavra, mas a proposta do historiador discursivo.
cultural Roger Chartier, que se apoia para seu
desenvolvimento em outros dois conceitos, prática e 3. Regimes de autoria nas mensagens
apropriação. O conceito de representação nos permite compartilhadas
acendermos às práticas de leitura e escrita, que não se
dão de forma transparente e direta, já que é através de
Segundo o filósofo Michel Foucault, a
nossas fontes, isto é, dos indícios materiais mobilizados ‘função autor’, dentro de uma dada sociedade, é
sob a forma de representações que podemos descrever compreendida como uma das funções
certas práticas que são atravessadas por discursos, reguladoras dos discursos que circulam. Dessa
constituindo assim, algo da ordem do simbólico. Desse forma, em sua reflexão sobre o funcionamento
modo, para Chartier, nunca estamos diante das práticas
efetivas, mas de suas representações, e como tal devem
sociohistórico dos discursos, Foucault (1992)
ser descritas e analisadas. nos alerta para o fato de que há sempre uma

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894
“ordem” que se estabelece sobre “o que” e
Nas mensagens compartilhadas o
sobre “como” enunciamos, de modo que, não
funcionamento da autoria baseia-se em duas
se pode falar de tudo, não se pode falar de
fontes de observação. A primeira está contida
qualquer forma. Este princípio, estende-se
na constituição e produção desses enunciados
também ao fato de que não é qualquer sujeito
que, para possibilitar sua circulação nesse
que é autorizado a enunciar, mesmo que aquilo
ambiente, demanda a atribuição de autoria
que enuncia esteja na ordem do enunciável,
permitindo assim que estes enunciados se
daquilo que pode ser dito.
diferenciam de outros que circulam no mesmo
Em nossa análise, partimos dessa ambiente. A segunda fonte de observação
concepção filosófica e história da autoria e do consiste nos comentários dos leitores que
pressuposto de sua mutabilidade para validam ou recusam a atribuição de autoria
descrevermos e analisarmos as formas de dessas mensagens, pautando-se em indícios das
exercício da autoria relativas tanto à produção linguísticas que permitam justificar ou recusar
como à circulação das mensagens a atribuição de autoria assinalada pelos
compartilhadas. Para tal, apoiamos nos produtores das mensagens.
pressupostos de Michel Foucault acerca da
Para observarmos o funcionamento da
‘função autor’ e também das considerações
autoria nesse ambiente, apresentamos um
realizadas por Roger Chartier acerca da história
exemplo extraído de nosso corpus de pesquisa
dessa categoria discursiva.
publicado em 26 de setembro de 2012 na
Para Foucault (1992), a ‘função autor’ página O Mundo de Caio Fernando Abreu e
não se restringe a um nome qualquer, mas é Clarice Lispector:
compreendida como uma função, e por esse
(Mensagem Compartilhada 02) Só o que
motivo, pode ser assumida por sujeitos está morto não muda.
distintos. Dessa forma, a função autor (cf.
CHARTIER,2012) se caracteriza por não ser
nem universal e nem atemporal, dada a
dependência que assume com os sujeitos que
são inseridos numa determinada sociedade e
num determinado momento histórico. Na
internet, as formas de regulação de atribuição
de autoria são bastante fluidas, no entanto,
observamos que alguns textos demandam o
exercício dessa função para que assim possam Mensagem Compartilhada 2 Disponível em:
circular nas páginas de compartilhamento de http://migre.me/rxbpR Acesso em: 15 set.2015
modo a não serem tomados como um discurso
cotidiano, qualquer. Logo, “a função autor é, (Comentário 01): Vou relatar um erro de citação
assim, característica de modo de existência, de aqui nesta página:
circulação e de funcionamento de alguns Que bom que você gostou (da frase final)
discursos no interior de uma sociedade.” do meu poema Mude:
(FOUCAULT, 1992, p. 46). "Só o que está morto não munda".

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895
Que, aliás, não é de Clarice Lispector. com prefácio de Antonio Abujamra17. Não são
apenas esses fatores que garantam a qualidade e
Esse poema começa assim: reconhecimento da autoria do poema, a
Mude, mas comece devagar, porque a gravação por Pedro Bial também é um fator
direção é mais importante que a que atesta sua qualidade, pois a divulgação por
velocidade. diversos meios e por nomes reconhecidos da
cultura brasileira permitem que ganhe
Se puder, veja o poema todo, assim como o circulação e garantam assim, o ‘status’ de
vídeo e o livro Mude, publicado pela
autor. A constituição da autoria prevê um
Pandabooks, com prefácio de Antonio
Abujamra, e à venda nas maiores livrarias.
funcionamento institucional de seleção de
textos a que se pode atribuir autoria e também
Além disso, tal poema também já foi uma série de procedimentos de validação que
publicado por Pedro Bial na faixa 4 do CD permitem que, um conjunto desses textos e de
Filtro Solar.Detalhes em escritores sejam reconhecidos como ‘autores’.
http://Mude.blogspot.com No processo de produção de certos textos, há a
demanda de conhecimento necessário para se
/// Para o poeta, o importante é encantar o escrever textos ‘autorais’ e posteriormente,
coração do leitor. Mesmo que este suponha para defendê-los como tal, de modo que ao
ter sido encantado por Clarice Lispector. E elencar as instituições que outorgam esse título
o vídeo Mude pode ser visto aqui:
e que se ocupam de valorizá-lo, sustenta o
http://www.youtube.com/watch?feature=pl
ayer_embedded... funcionamento discursivo dessa função. Assim,
esses elementos, para o autor, são suficientes
/// Flores e estrelas... no reconhecimento de sua obra e em sua
Onde foi que você viu que é de Clarice? validação como autor.
Pois quero passar a informação correta Desse modo, qual o fator que motiva a
também a essa pessoa, para evitar que tal
atribuição de autoria de um texto a um
erro de autoria seja ainda mais
disseminado. determinado autor e não outro? Dentre as
Solicito que se faça uma correção, em explicações possíveis, aquela relativa ao
respeito aos seus leitores, e aos leitores de reconhecimento nacional do nome do autor
Clarice. pode ser aplicada a esse caso. O nome de autor
Clarice Lispector é reconhecido e amplamente
O leitor que comenta a mensagem divulgação o que se difere do nome de autor
atribuída a Clarice Lispector se identifica como Edson Marques, o que propicia a escolha da
Edson Marques, relatando através de diversas figuração de um nome não outro, pois o nome
fontes, um erro na atribuição de autoria. Dentre de autor não é um nome próprio qualquer, é um
as fontes utilizadas para justificar e validar seu nome que se atribui a uma gama de textos os
questionamento há blogs, sites e livrarias em quais designamos como obras (cf.
que constatam que o poema em questão é de FOUCAULT, 1992).
sua própria autoria, uma vez que é publicado
17
por uma editora reconhecida, além de contar Conhecido como autor e diretor de teatro, além de
apresentar o programa Provocações na TV Cultura.

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896
4. Considerações finais Referências
Neste artigo, apresentamos algumas BURKE, P. O que é a História Cultural?. Rio
considerações acerca do exercício peculiar da de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
autoria na web, especificamente no que diz CHARTIER, R. ______. O que é um autor?
respeito às mensagens compartilhadas das Revisão de uma genealogia. São Carlos:
páginas de compartilhamento do site de rede
EdUFSCar, 2012.
social Facebok, O Mundo De Caio Fernando
de Abreu e Clarice Lispector, Caio, Tati e ______. Aula inaugural do Collège de France.
Clarice: o que me diz e Trechos de Livros. In: ROCHA, João Cezar de Castro (org.) Roger
Observamos, particularmente um comentário Chartier - A força das representações: história
de reinvindicação de autoria, em que os e ficção. Chapecó: Editora Argos, (p. 249-285),
elementos que composição do próprio 2011.
enunciado podem orientar para este ______. Textos, impressão, leituras. In.:
reconhecimento ou para sua recusa. HUNT, L. A nova história cultural. São Paulo:
Mesmo com as atribuições equivocadas de Martins Fontes, 2001.
autoria na internet e os discursos acerca da ______. A ordem dos livros: leitores, autores e
falta de veracidade de sua atribuição, ainda se bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e
faz importante que essas mensagens recebam a XVIII. Brasília: Editora da Universidade de
atribuição de autoria, o que permite que sejam Brasília, 1999.
tanto compartilhadas como comentadas,
garantindo assim, nesse espaço, sua circulação, ______. A aventura do livro: do leitor ao
tendo em vista que um fragmento de texto que navegador: conversações com Jean Lebrun/
seja atribuído a um autor que não é Roger Chartier. São Paulo: Imprensa Oficial do
reconhecido não possui o mesmo espaço de Estado de São Paulo/ Editora UNESP, 1998.
circulação nesse meio de um texto atribuído a COLÓQUIO DA ALED BRASIL, 4., 2014,
um autor famoso e reconhecido por meio da São Carlos. Anais eletrônicos... v.1, n.2. São
crítica literária e outros meios que o valide Carlos: UFSCar. Disponível em: <
como tal, como Caio Fernando Abreu e Clarice http://www.revistaaledbr.ufscar.br/index.php/re
Lispector, neste caso. vistaaledbr/article/viewFile/51/46> Acesso em:
Desse modo, o emprego de nomes de 29 set. 2015
autores reconhecidos em uma determinada CURCINO, L. Velhos novos leitores e suas
cultura torna o fragmento de texto memorável, maneiras de ler em tempos de textos
dignificando seu compartilhamento, afastando eletrônicos. In.: Revista ESTUDOS
assim de um discurso qualquer, do cotidiano, e LINGUÍSTICOS, São Paulo, 41 (3): p. 1013-
seu compartilhamento por parte dos leitores 1027, set-dez 2012. Disponível em:
desse meio atribui a seus internautas, um <http://gel.org.br/estudoslinguisticos/volumes/
determinado ethos, um estado de espírito e seus 41/el.2012_v3_t09.red6.pdf>. Acesso em: 15
interesses. de Set2013.
FOUCAULT, M. Arqueologia do Saber. 7ª ed.

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

897
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014.
________. A Ordem do Discurso: aula
inaugural do Collège de France, pronunciada
em 2 de dezembro de 1970. 22ª edição. São
Paulo: Edições Loyola, 2012.
______. O que é um autor? Trad. António
Fernando Cascais. 3ª ed. Vega,1992.
HÉBRARD, J. Pode-se fazer uma história das
práticas de leitura na Época Moderna? Os
novos leitores revisitados. 2004. Disponível
em:
<http://www.livroehistoriaeditorial.pro.br/pdf/
Herbrad4.pdf>. Acesso em: 10 de Abr. 2009.
MAINGUENEAU, D. Frases sem texto. Trad.
Sírio Possenti [et al.] – 1.ed. São Paulo:
Parábola Editorial, 2014.

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

898
OS PROBLEMAS DA DEMOCRACIA NO PÓS-DITADURA1

Israel de SÁ
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
israeldesa@gmail.com

Resumo: O debate em torno da democracia torna-se cada vez mais evidente na


contemporaneidade e, no Brasil, ganha destaque desde o final da década de 1970, com o
processo de distensão do regime militar, e, especialmente, a partir da segunda metade dos
anos 1980, com o fim da ditadura. Neste artigo, procuramos refletir sobre os efeitos de
sentido e os deslocamentos sofridos pelo termo (e pelo conceito) ‘democracia’ no Brasil
do pós-ditadura, tendo como objetivo principal a compreensão de nosso processo
histórico atual. Para que isso seja possível, observaremos aspectos de constituição de
memórias daquele período e do que resta da ditadura.
Palavras-chave: democracia; ditadura militar brasileira; memória.

Introdução
Com o fim da ditadura militar, em Em meados da década de 1970, o
1985, e a consequente passagem do governo governo do então presidente Ernesto Geisel
brasileiro para as mãos de civis, alardeou-se o alardeou e deu início ao processo de distensão
retorno da democracia, marcada por todo um do regime militar, uma abertura que seria
processo de redemocratização – até mesmo ‘lenta, gradual e segura’, uma transição,
entre eleições indiretas e diretas para coordenada pelos militares, para a democracia.
governadores e presidente – e redefinição das Foi preciso, então, uma década para dar cabo
instituições. Nesse percurso, contudo, pouco se ao processo, para amarrar todas as negociações
questionou a respeito do que é tomado como – que incluía, entre elas, a Lei de Anistia –,
democracia, quais os efeitos de sentido e os para livrar militares e ‘conexos’ de punições
deslocamentos que sofre o termo (e o próprio futuras, para, enfim, construir um processo
conceito) em diferentes posicionamentos e democrático como aos militares conviria. O
espaços que o reivindicam. É sobre esse ano de 1984 foi, portanto, o ano da luta pela
aspecto que discutiremos, brevemente, neste democracia, com manifestações por todo o país
texto. pelas eleições diretas; 1985, o ano da transição
para o governo civil, ainda com o voto indireto
1
Uma versão deste artigo está como seção da tese intitulada Memória discursiva da ditadura no século XXI:
visibilidades e opacidades democráticas.

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899
transmitidos pelos ancestrais, ou das
de um colégio eleitoral para a eleição de monarquias absolutas dirigidas por um rei
presidente da República; 1989, finalmente, o de direito divino, nas quais a sucessão dos
ano em que a sociedade retomou o poder de dirigentes depende do pertencimento à
decisão política, com as eleições diretas para as mesma família. O povo, numa democracia,
diversas instâncias dos poderes executivo e não corresponde a uma substância
legislativo. A democracia renascia no Brasil. ‘natural’. Não só quantitativa, mas também
Mas, qual democracia? qualitativamente, ele é diferente da família,
do clã ou da tribo – nos quais o que tem
Interessante é observar que a primazia é o vínculo de parentesco –, assim
democracia – o termo ‘democracia’ –, nas como de toda entidade coletiva definida
sociedades modernas, é reivindicada por todos, pela presença de um traço como a raça, a
desde os adeptos de regimes totalitários a religião ou a língua de origem. Fazem parte
governos libertários. Vale lembrar, por do povo todos os que nasceram sobre o
exemplo, que os militares que derrubaram o mesmo solo, os quais se acrescentam os
governo de João Goulart em março de 1964, o que foram aceitos pelo primeiro. No seio de
uma democracia, ao menos teoricamente,
fizeram, segundo eles próprios, em nome da
todos os cidadãos são iguais em direitos,
defesa e do restabelecimento da democracia, todos os habitantes são iguais em
também de acordo com eles, perdida durante o dignidade.
governo de Jango, e batizaram seu ato de
“revolução democrática de 1964”, sustentada
A democracia, por princípio, então, se
por manifestações organizadas e financiadas
distingue das sociedades tradicionais e das
pela elite brasileira, como a emblemática
monarquias absolutas pelo fato de que estas
Marcha da Família com Deus pela Liberdade,
fundam seus valores no seio do pertencimento
ocorrida, a primeira delas, em 19 de março
à família, à religião e, até mesmo, à raça, e
daquele ano na cidade de São Paulo.
atribui graus de hierarquia no interior da
Para sustentar a reflexão, é preciso, sociedade, que são marcados por tais fatores.
primeiramente, entender o que é democracia, Nessas sociedades, portanto, a marca é a da
mesmo em sentido amplo, para, em seguida, diferença – ‘por pertencer a tal família ou
compreender aquilo que é reivindicado como grupo, distingo-me do outro’. A democracia,
democrático pelos diversos governos. Todorov contudo, é bem o contrário disso, sua marca é a
(2012, p. 15-16) afirma que: da igualdade, e a diferença, quando ela aparece,
porque ela nunca está ausente, é tomada pela
De saída, a democracia é, no sentido inclusão – ‘embora diferentes, somos todos
etimológico, um regime no qual o poder
iguais em direitos, formamos uma sociedade na
pertence ao povo. Em outras palavras, a
população inteira escolhe seus qual somos todos cidadãos’.
representantes, os quais, de maneira Como é possível observar, pela
soberana, estabelecem as leis e governam o descrição de Todorov daquilo que é
país durante um período de tempo decidido democrático, os governos de exceção e
de antemão. Nisso a democracia se ditatoriais, ainda que apelem pela busca e/ou
distingue das sociedades tradicionais, que
restauração da democracia, não o são e se
dizem se submeter a princípios
distanciam ainda mais dela por inúmeros

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900
fatores, entre os quais: a ascensão ao poder por organizada em partidos políticos, e [que] se
meio de golpe e a derrubada de um governo manifesta no processo eleitoral de escolha dos
geralmente eleito pelo ‘povo’, não pela escolha representantes, na rotatividade dos governantes
livre da sociedade; a eleição de um inimigo e nas soluções técnicas para os problemas
interno – no caso do Brasil, os ‘comunistas’ – econômicos e sociais” (CHAUÍ, 2008, p. 67).
que rompe com a igualdade de direito entre os Pensando nisso, Chauí contrapõe uma
cidadãos. Além disso, há, ainda de modo verdadeira democracia, uma sociedade
bastante claro, outro traço agudo inerente ao democrática que “institui direitos pela abertura
democrático que escapa aos regimes ditatoriais, do campo social à criação de direitos reais, à
como o militar brasileiro: o pluralismo. ampliação de direitos existentes e à criação de
novos direitos. Eis porque podemos afirmar
A democracia se caracteriza não só por um que a democracia é a sociedade
modo de instituição do poder ou pela verdadeiramente histórica, isto é, aberta ao
finalidade de sua ação, mas também pela tempo, ao possível, às transformações e ao
maneira como o poder é exercido. A
novo” (2008, p. 69). Um governo democrático,
palavra-chave aqui é pluralismo, pois se
considera que os poderes, por mais ou seja, um regime político democrático é
legítimos que sejam, não devem ser todos bastante distinto, portanto, de uma verdadeira
confiados às mesmas pessoas nem sociedade democrática, e é esta última que de
concentrados nas mesmas instituições fato interessa, porque se uma sociedade é
(TODOROV, 2012, p. 17). democrática, seu regime político também o
será, contudo o inverso nem sempre é
Durante o regime militar, a centralidade verdadeiro.
do poder do Estado nas mãos do presidente – Para refletir, então, sobre a suposta
ou, de modo mais amplo, nas mãos do próprio democracia atual, pós-ditadura, no Brasil é
regime – era manifesta, e evidenciada, por preciso também notar ‘o que resta da ditadura’
exemplo, pelos casos de fechamento do e que está amarrado a diversas instâncias: à
Congresso e de cassação de deputados eleitos sociedade, à política, às relações sociais.
quando havia divergência entre os poderes Tomemos, para isso, três fases de um processo
executivo e legislativo. A figura do de passagem do ditatorial ao suposto Estado
militar/presidente era mais marcada e central democrático:
que a do governante dos regimes políticos
legitimamente democráticos, eleitos pelo voto Um processo de democratização pode ser
direto do povo, uma vez que a distribuição de [...] dividido em três fases: A da
tarefas entre os diferentes setores da política e a liberalização ocorre quando o regime
inscrição real da oposição são empecilhos à autoritário começa a fraquejar e sinaliza
uma intenção de realizar mudanças
centralidade de um ‘homem forte’.
políticas. A transição ocorre quando novos
Importante é também observar, atores políticos são incorporados ao
contudo, que essa democracia, que é liberal, é processo de tomada de decisões, visando
por vezes “reduzida a um regime político preparar a pólis para eleições
eficaz, baseado na ideia de cidadania multipartidárias. A consolidação
democrática é um processo de

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fortalecimento de instituições e
aprofundamento das instituições e da (pobres, negros, homossexuais), o acesso
cultura democrática. Esta consolidação é precário a bens básicos (educação, saúde,
alcançada quando a democracia torna-se saneamento básico etc.) são alguns dos
tão legítima e profunda, sendo muito aspectos que demonstram esse processo
improvável que venha a ser golpeada inacabado.
(ZAVERUCHA, 2010, p. 66).
A sociedade brasileira é uma sociedade
que conheceu a cidadania por meio de uma
Essa divisão trifásica tem efeito figura inédita, a do senhor (de escravo)-
heurístico, embora seja metodologicamente cidadão, e que a concede como privilégio de
problemática. Desse modo, sua aplicação serve classe; ainda hoje é possível perceber marcas
apenas para exemplificar e não tem, ainda, fortes desses privilégios de classe, porque nessa
caráter analítico. É preciso considerar que as sociedade diferenças e assimetrias sociais e
duas primeiras refletem quase exclusivamente pessoais são imediatamente transformadas em
o processo político/eleitoral, enquanto a última desigualdades, e estas, em relação de
deve ser considerada de forma mais abrangente, hierarquia, mando e obediência (CHAUÍ, 2008)
tomando além dos direitos políticos, que são os que configura impedimento à consolidação
mais visíveis e, portanto, os mais propagados, democrática.
também os civis e os sociais. Desse ponto de
vista, é possível tomar a sociedade brasileira O sistema de governo brasileiro pós-
atual e compreender que ainda está aquém da ditadura, tido como democrático, envereda para
consolidação democrática. um regime de vigilância frequente e, com isso,
de violência institucional recorrente. O juiz
Por um esforço de observação, italiano Serge Portelli mostra que esse é um
notamos, de modo retrospectivo, que o dos problemas da democracia atual em todo o
processo de liberalização tem início com a mundo e também uma de suas grandes
distensão ‘lenta, gradual e segura’ iniciada por ameaças: trata-se “de uma sociedade de
Geisel e finalizada por Figueiredo e a segurança absoluta, de tolerância zero, de
transição, com o início do processo de prevenção radical, de prisão preventiva, de
redemocratização, quando os militares desconfiança sistemática em relação ao
passaram o bastão do Estado para os civis, estrangeiro, de vigilância e de controle
‘autorizando’ eleições indiretas, e generalizado” (apud TODOROV, 2012, p. 63).
posteriormente diretas, para presidente. A A violência e o controle refletem, portanto, o
consolidação democrática, contudo, ainda autoritarismo social presente no Brasil, fator
parece fora do alcance nacional – e, de forma que torna débil os princípios democráticos de
menos pessimista, ainda ‘em processo’ –, uma igualdade e de liberdade (CHAUÍ, 1994).
vez que a luta por direitos sociais e civis é
permanente no país e inscreve, É nesse ponto que os traços da ditadura
inevitavelmente, as exclusões populares: as de outrora recobrem seu espaço no presente:
desigualdades sociais (fome, pobreza,
[...] acreditamos que uma ditadura se mede
desemprego etc.), a violência policial que
(por que não?, tenhamos coragem de dizer
atinge de forma mais explícita as minorias que medir uma ditadura é uma boa ideia).

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Ela se mede não por meio da contagem de
mortos deixados para trás, mas através das passado recente. E parece estar claro que o
marcas que ela deixa no presente, ou seja, apagamento e o silenciamento do passado tão
através daquilo que ela deixará para frente. patente no século XX e início do XXI é reflexo
Neste sentido, podemos dizer com toda dessa semidemocracia da qual fazemos parte,
segurança: a ditadura brasileira foi a uma democracia presente no âmbito político-
ditadura mais violenta que o ciclo negro eleitoral, e outra possível mas ainda distante no
latino-americano conheceu (TELES; âmbito social e dos direitos civis. O fato de que
SAFATLE, 2010, p. 10). apenas 25 anos após o início do processo de
democratização é que foi oficializada a
As marcas da repressão ainda estão por possibilidade de dizer o passado e refletir sobre
toda a parte, explicitados pelos papéis das os dados no presente indica também marcas da
polícias e do exército, cuja Constituição de ditadura e aspectos de uma democracia
1988 lhes dá poder de se colocarem fora da lei fragilizada.
para garanti-la em caso de ‘desordem social’ e
No ano de 2010 o Brasil voltou seu
‘perigo interno’ (cf. ZAVERUCHA, 2010).
olhar para os crimes do passado quando abriu
Isso, ainda, vai mais além: o autoritarismo,
um processo de revisão da Lei de Anistia no
como vimos, inscreve uma tradição hierárquica
Supremo Tribunal Federal, que optou por não
e de desigualdade, que cria espaços nada
modificar a lei e impediu o julgamento de
democráticos de dizer e, mesmo, de
torturadores. Em 2012, o governo federal
participação na vida pública.
instalou a Comissão Nacional da Verdade para
É momento propício de se observar a analisar os crimes cometidos pelo Estado
grande continuidade do novo regime liberal durante o período ditatorial e buscar
com a ditadura militar, em termos de informações sobre os desaparecidos políticos.
domínio de classe e de aparato repressivo – Esses dois acontecimentos entraram no jogo do
por exemplo, com a permanente marca da dizer, que permitiu o confronto discursivo entre
impunidade. Sem o desmantelamento do diversas, e difusas, visões do período.
aparato repressivo montado (ou reforçado)
na ditadura não se poderá minimamente O mais importante, por fim, é que de
falar em democracia; sem a punição de todos os lados, também entre aqueles que
torturadores tampouco. Pode se dizer que preferem esquecer e aqueles que querem
do ponto de vista das instituições políticas lembrar2, produz-se uma memória – ou
o Brasil é uma democracia liberal, na qual memórias – do período ditatorial brasileiro. E o
há liberdade de organização e de expressão. debate que ocorria apenas em espaços
Mas fica sempre mais claro para amplos marginais ganha voz também em espaços
setores sociais o fato de que tudo não passa
de uma encenação do poder político. Ainda
mais hoje quando a crise das 2
Obviamente, esta dicotomia não é tão clara quanto
paradigmáticas democracias liberais é parece e remete a uma multiplicidade pouco homogênea
patente (DEL ROIO, 2014, p. 12). de dizeres. Contudo, tomá-la dessa forma, aqui, é
importante para entender um conflito em torno da
produção da memória e que mesmo quando se luta pelo
Esse aspecto reflete também a luta pela silêncio – pelo apagamento – produz-se uma memória do
memória e pela possibilidade de dizer o que se diz e também do que se silencia.

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centrais de debate público e no discurso oficial.
Trata-se, então, de um fenômeno memorial – a
produção de uma memória da ditadura militar
brasileira – que possibilita a debate entorno do
período e, além dele, da própria democracia.
Nesse debate, portanto, abre-se caminho,
também, para a consolidação da democracia.

Referências

CHAUÍ, M. Convite à Filosofia. São Paulo:


Ática, 1994.
______. Cultura e democracia. Crítica y
emancipación: revista latinoamericana de
Ciencias Sociales, año 1, n. 1, Buenos Aires:
CLACSO, p. 55-76, 2008.
DEL ROIO, M. Prefácio. In: PINHEIRO,
Milton. Ditadura: o que resta da transição. São
Paulo: Boitempo, 2014, p. 7-13.
TELES, E.; SAFATLE, V. O que resta da
ditadura: a exceção brasileira. São Paulo:
Boitempo, 2010.
TODOROV, T. L’abus de la mémoire. Paris:
Arléa, 1998.
ZAVERUCHA, J. Relações civil-militares: o
legado autoritário da Constituição brasileira de
1988. In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir.
O que resta da ditadura: a exceção brasileira.
São Paulo: Boitempo, 2010, p. 41-76.

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904
A CENSURA AO CORPO FEMININO EM LA MAJORITÉ
OPPRIMÉE PELA PERSPECTIVA BAKHTINIANA

Bárbara Melissa SANTANA


Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP)
barbaramelissasantana@gmail.com

Resumo: O presente trabalho se propõe a analisar a censura ao corpo feita no curta


metragem francês La Majorité Opprimée mediante a perspectiva dos estudos discursivos
do Círculo de Bakhtin. Há como objetivo tratar da censura ao corpo como problemática
social que se dá em razão da desigualdade arraigada nos parâmetros patriarcais da
sociedade contemporânea. Para tratar da censura no curta metragem, foi elencado como
corpus recortes de cena, no intuito de retratar claramente excertos da obra fílmica e
explorar seus aspectos verbovocovisuais. A questão patriarcal e machista é tratada a
partir do método dialético dialógico bakhtiniano, partindo da valoração do signo
ideológico e o diálogo das ideologias que refletem e são refratadas no signo com os
discursos e sujeitos, com base na dialética do Círculo.
Palavras chave: Círculo de Bakhtin; sujeito; gênero (masculino e feminino); ideologia;
análise do discurso.

explorada pela diretora Eleonore Pourriat é


Introdução
feita de forma ácida e incorpora vozes
A produção do curta metragem La feministas, que criticam a desigualdade de
Majorité Opprimée1 se inscreve como resposta gêneros e sua naturalização cultural. A inversão
aos parâmetros patriarcais e machistas da dos papéis de gêneros é o meio pelo qual é
sociedade contemporânea. A obra apresenta um ironizada a aceitação social das cenas que
quadro às avessas, em que o homem e a mulher desfavorecem e desrespeitam a mulher no
trocam de papéis sociais: a mulher, que cotidiano.
tradicionalmente cuida dos filhos, é substituída
Com base na crítica fílmica
pelo homem e é apresentada como a provedora
supramencionada, há como objetivo a análise
do lar, papel que pelo sistema patriarcal, cabe
do espaço social da mulher na obra e na
ao homem. A inversão dos papéis de gêneros
sociedade contemporânea. Pretende-se,
portanto, abordar a formação do sujeito
1
Link de acesso ao curta metragem La Majorité feminino na contemporaneidade no que se
Opprimée: refere à autonomia da mulher, assim como
>https://www.youtube.com/watch?v=bHJqNpJ8xAQ<

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apontar demais aspectos da problemática, como tradicionalismo patriarcal e critica a
a culpabilização da mulher mediante a censura naturalização da hierarquia existente entre
ao corpo. homens e mulheres.
Para cumprir com os objetivos Na obra, o homem, personagem
elencados, calcamo-nos no método dialético- principal, resiste à hegemonia patriarcal, como
dialógico do Círculo de Bakhtin, com mostra a Figura 1, criticando um colega que
fundamentação nos estudos do sujeito e sua passou a vestir burca em obediência à sua
formação responsível e responsável, em esposa. A voz machista, neste caso, é
conjunto com a noção de signo ideológico e as incorporada pela imagem feminina, que
valorações nele/por ele refletidas e refratadas representa na obra, o homem. O corpo
no movimento dialógico contínuo/infinito. feminino que aqui é encenado pelo corpo
masculino, é censurado e velado. A mulher é
A reflexão do curta, mediada - e
protegida/ controlada pela burca, para que não
possibilitada no gênero escrito – pelos recortes
seja exposta a outros homens. A exposição do
de cena elencados, é analisada como enunciado
corpo, na cena da Figura 1 é evitada por
verbovocovisual, termo que designa o
questões religiosas que pregam a dominação
enunciado que dispõem de aspectos verbais
patriarcal da mulher. Assim, a mulher deve ser
(geralmente inerentes ao texto escrito), vocais e
coberta e respeitar aquele que por ordens
visuais, que em geral são músicas, videoclipes,
divinas, deve respeitá-la e possuí-la. A mulher
filmes e demais enunciados midiáticos. Essa
não tem o direito de agir conforme seus
categoria enunciativa é analisada pelos mesmos
desejos, pois pertence a um patriarca.
termos que, pela teoria bakhtiniana, analisamos
o enunciado verbal e os gêneros escritos. Figura 1- A personagem principal
Assim, ao analisar o enunciado verbivocovisual questiona o amigo sobre o uso da burca
La Majorité Opprimée, é levado em
cosideração todos os aspectos visuais e sonoros
do texto, sendo que seu sentido se dá em
conformidade com a totalidade de seu tom
emotivo-volitivo e seus elementos
translinguísticos.
1. O corpo feminino censurado:
contextualização
La Majorité Opprimée, por meio da
inversão de gêneros, remonta à desigualdade Ao censurar o corpo feminino pois ele
recorrente e institucionalizada historicamente pode despertar o desejo de outros homens, é
na cultura contemporânea. A inversão um modo de concretizar a ideia de que a
escandaliza e salienta as injustiças cotidianas mulher é um objeto de desejo. A mulher é
que permeiam e formam a mulher como coisificada.
sujeito. A obra francesa representa o embate de No sistema patriarcal, antes de ser
vozes sociais que hoje confrontam o humana, a mulher é objeto: ela pertence a, ela é

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casada com e é filha de. Antes de ser mulher,
A ideologia machista é incorporada nas
ela é parte acessória de um patriarca e essa
palavras da de Marion, a esposa, no ato de
condição a desprovê de direitos de escolhas e
censura à roupa e às escolhas do marido. O
liberdade de ser.
estupro, nesse caso, é o resultado da insinuação
Figura 2- A mulher, que representa a voz do homem, e não um ato errado e inadmissível
machista no sistema patriarcal, censura o
modo como o homem – que representa a
do grupo vandalizado de mulheres.
mulher - se veste O homem, além de vítima, é culpado.
Na sociedade matriarcal retratada no curta, o
homem é ensinado e cobrado a calar-se ao ser
assediado por uma mulher e se estuprado, é
culpado por ter provocado o desejo daquela que
a estuprou. Esse quadro às avessas é uma
metáfora da realidade contemporânea feminina
em diversas culturas regidas por um sistema
patriarcal.
O curta é, portanto, uma resposta e uma
Em La majoritée Opprimée, o homem antitese ao modelo patriarcal no qual se insere a
protagonista da história é estuprado após reagir sociedade contemporânea – ponto a ser
ao assédio de um grupo de mulheres, depõe em aprofundado no próximo tópico – e salienta
uma delegacia e passa por avaliação médica. A fatos cotidianos de injustiça social incutidos na
Figura 2, assim como a Figura 3, retratam a questão da desigualdade de gêneros e o
cena em que a esposa da vítima de estupro o desfavorecimento da mulher na sociedade.
busca no hospital para levá-lo para casa. Na Ao inverter os papéis sociais de gênero,
cena, a esposa censura a roupa do marido e o Eleonore Pourriat salienta determinados atos
culpa suas roupas, e consequentemente ele, cotidianos que diminuem, desrespeitam e
pelo ocorrido. degradam a mulher. De modo geral, se pode
Figura 3- A crítica à camiseta curta, condizer que sociedade está educada e treinada
chinelos e bermuda antes do joelho fazem a ver naturalmente a desigualdade de gêneros e
referência à censura às roupas femininas consentir com o desrespeito à mulher. A
insinuantes
naturalização do desrespeito e a fragilização da
imagem feminina é tratada como um assunto
corriqueiro, como se não consistisse em um
problema opressor e injusto de ordem social
que abrange instituições familiares, educadoras,
políticas e de saúde.
A desigualdade, a injustiça e o
desrespeito são naturalizados e
institucionalizados. Com ressalvas a casos
particulares, nas famílias e escolas, a imagem

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907
masculina é valorizada em detrimento à responsabiliza por possíveis assédios e
feminina, os meninos são ensinados a serem estupros, pois recusou a proteção familiar – que
“machos”, enquanto as meninas são treinadas a vem via controle e censura.
serem delicadas, bonitas e consequentemente, A culpabilização da mulher é
submissas. instituicionalizada, assim como demais atos e
Pelos parâmetros machistas, é esperado fatores que desrespeitam a integridade e o
do homem que deseje a mulher, pressuposto direito básico feminino. A menina cresce com a
que o tornaria heterossexual e viril, o modelo consciência (patriarcal) de que não pode usar
masculino perfeitamente patriarcal, enquanto shorts curto porque pode ser desrespeitada, não
espera-se da mulher que seja uma adulta que se pode andar sozinha à noite pois pode ser
case, tenha filhos e cuide de sua família. Nesse violentada e não pode assumir os riscos de ser
modelo, cabe à mulher preservar-se, pois um estuprada.
homem “de família” não se casa com uma A mulher é então censurada e induzida
mulher vulgar e uma mulher que age conforme a velar-se, como se essa escolha se tratasse de
seus pr´pprios desejos pode desonrar sua uma escolha própria, enquanto é há uma
família. indução patriarcal desse ato. A mulher, como
Assim, o corpo feminino deve ser sujeito, ao vivenciar na esfera da vida, os
preservado para que socialmente, a mulher seja discursos patriarcais, é formada por essa
aceita e respeitada. Nesse sentido, a mulher é ideologia de cunho machista.
cuidada/ protegida pela família que a passa à A incorporação do conjunto de valores
guarda de um marido (homem provedor). Pela machistas forma esse sujeito, que vive
ideologia patriarcal, a quebra desses valores arraigado à arena em que os contradiscursos
gera uma imagem indesejável da mulher, que dialogam e rebatem o patriarcado e o
desrespeita sua casa (sua família ou seu machismo.
esposo).
Quebrar as regras, desvelar o corpo e A censura ocorre a par à culpabilização
desrespeitar os paradigmas patriarcais são atos da mulher. Em caso de assédio ou violência
que podem trazer riscos à mulher. Ao mostrar o sexual – que seriam decorrentes da transgressão
corpo, ela pode despertar o desejo de outros às censuras – a mulher assume a culpa por ter
homens, ser assediada ou estuprada. Se provocado/ ocasionado o incidente. O homem
assediada ou estuprada, a mulher é culpada, que estupra, assedia ou violenta é absolvido de
pois ela provocou o assédio e a violência seu ato e desresponsabilizado, já que a mulher
sexual. é o objeto (a ser) possuído. Em uma sociedade
de bases machistas, o homem é
De um ponto de vista, esse conjunto de deliberadamente a figura mais forte e
considerações sobre o núcleo familiar gera um determinante.
quadro em que a família e o esposo controlam e
censuram a mulher pois são protetoras e
querem cuidar dela. Se desobedecidos, esses
núcleos protetores, a mulher assume riscos se

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908
Figura 4 – A mulher responde à sensação
de injustiça da vítima de estupro aos discursos machistas e patriarcais. Em um
censurando-lhe o direito de protestar movimento espiral e constante, essa resposta é
contra a desigualdade de gênero uma antitese (T2/ N1) à tese patriarcal (T1). A
T1 é o pressuposto patriarcal que permeia
discursos e sujeitos a partir da valoração
ideológica do signo, enquanto La Majorité
Oprrimée é a antitese, que é T2 (tese 2, que é a
resposta à T1) e N1 (negação 1) pois responde e
confronta a T1.
A dialética se dá em movimento
constante e multidirecionado. As respostas são
infinitas, despertam e resgatam ideologias
passadas assim como incitam e provocam
respostas futuras. Ante esse quadro que
O assédio é culpa da mulher assim interminável, a obra dirigida por Eleonore
como a violência sexual e as consequências da Pourriat é concretizada como uma T2/ N1 à tese
violência, são consideradas “frescuras” ou inicial patriarcal. De um ponto de vista
manifestações de histeria. Na Figura 4, na cena panorâmico, se observa o embate de vozes
em que o casal protagonista deixa o hospital, o machistas disseminadas na fala, nível social da
homem se mostra indignado com a naturalidade língua em embate com vozes feministas que
que seu caso de estupro é tratado e em meio a refutam o tradicionalismo patriarcal e
dor sofrida no ato, ele reclama da desigualdade contestam esse discurso.
e opressão sobressalentes na sociedade
patriarcal. A esposa, Marion, responde que a Em uma arena em que ideologias se
opção de usar vestimentas insinuantes foram chocam e vivem em constante embate, cabe
dele e que portanto, ele não deve reclamar. ressaltar que o curta metragem francês é uma
das possíveis T2/ N1 existentes.
“Então não ouse reclamar” é o
enunciado que copula as reflexões aqui Conclusão
desenvolvidas e as transfere à realidade sócio Calcados na hipótese inicial de que a
cultural em que convivemos. Na ótica sociedade patriarcal atribui a culpa à mulher e
patriarcal, onde o homem é empoderado em censura o corpo feminino, refletimos sobre a
detrimento da autonomia feminina, que é disposição dos papéis sociais dos gêneros na
desprovida até de seu direito de refutar o sociedade atual com base na crítica e inversão
padrão opressor vigente ou sofrer/ ter reações abordadas em La Majorité Opprimée. A troca
emocionais negativas ante quadros que dos estereótipos de gêneros no curta salienta as
degradam o corpo e a figura feminina. disparidades entre gêneros e ironiza a aceitação
2. Dialética dialógica do Círculo: Confronto cotidiana desse quadro.
entre machismo e feminismo Com base na dialética do Círculo,
De acordo com a dialética do Círculo de confirmou-se o caráter responsivo da obra
Bakhtin, o filme francês se dá como resposta francesa, que ressoa como uma das vozes que

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909
confronta a hegemonia machista, incorporada BAKHTIN. M. M. (1929). Problemas da Poética
na esfera midiática no discurso feminista. O de Dostoievski. São Paulo: Forense, 1997.
sujeito mulher, nesse caso, é analisado como
aquele que se forma em diálogo com os ___. (1992). Estética da Criação Verbal. São
discursos e valorações que o constroem e essa Paulo: Martins Fontes Editora, 2011.
construção é constante, interminável. ___. (1975). Questões de Literatura e de
Estética. São Paulo: UNESP, 1993.
A análise se estendeu pelas questões de
gênero no contexto atual, com ênfase na ___. Freudismo. São Paulo: Perspectiva, 2001.
censura ao corpo feminino, sob a luz da teoria ___. Para uma filosofia do ato responsável. São
bakhtinana sobre o signo ideológico e o sujeito. Carlos: Pedro e João Editores, 2010.
Mediante as reflexões realizadas, é realçado o
quadro de injustiça social que delineia a BARROS, D.L.P.; FIORIN, J.L. Dialogismo,
Polifonia, Intertextualidade: Em torno de
problemática da desigualdade de gêneros e
Bakhtin. São Paulo: EDUSP, 1999.
confirma-se o pressuposto de que censura ao
corpo feminino é um vetor da ideologia BERENI, L.; CHAUVIN, S.; JAUNAIT, A.;
patriarca. REVILLARD, A. Introduction aux Gender
Studies. Bruxelas : De Boeck, 2008.
A proibição do corpo é a ponte que leva
à censura às reações emocionais, desejos e BOURDIEU, Pierre (1999). A Dominação
direito indiscutível de livre arbítrio. Ao coibir- Masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
se o corpo, metaforicamente adverte-se o BRAIT, B. (Org.). Bakhtin, dialogismo e
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discursiva do curta ultrapassa os limiares do ___. Introdução. Alguns pilares da arquitetura
gênero e dialoga com o cotidiano e suas bakhtiniana. In BRAIT, B. (Org.).
facetas. A reflexão discursiva e bakhtiniana do
corpus é uma ponte ao ato responsivo Bakhtin: Conceitos-Chave. São Paulo:
responsável e instaura-se como reflexo e Contexto, 2005.
refração da sociedade em geral e as diversas ___. (Org.). Bakhtin: Conceitos-Chave. São
vozes que a constituem. Paulo: Contexto, 2005.
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911
SEGMENTARIDADE MOLECULAR, CONHECIMENTO DE SI
E PREPARAÇÃO PARA A MORTE EM “A OBSCENA SENHORA
D.”, DE HILDA HILST

Jorge Alves SANTANA


Universidade Federal de Goiás (UFG); Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG)
jorgeufg@bol.com.br

Resumo: Hillé, a obscena Senhora D, de Hilda Hilst (2001) chega aos seus sessenta anos.
Não vivencia de modo submisso, no entanto, a velhice e a morte através dos tradicionais
biopoderes contemporâneos (DELEUZE; GUATTARI, 1999; 1995; FOUCAULT, 2001).
Tal senhora exercita um olhar transversal sobre si mesma e as outridades que a perfazem
como agente psicossocial. Ao contrário de apenas meditar estoicamente sobre sua
condição (FOUCAULT, 2006; 2007), desloca-se para um contexto existencial no qual a
coexistêncica crítica (BAUMAN, 2007) possa lhe permitir subjetivações rizomáticas.
Palavras-chave: hilda hilst; a obscena senhora d; envelhecimento; conhecimento de si;
morte.

objetivar a construção de redes de coexistência


Introdução
psicossociais mais complexas e heterogêneas.
Acompanharemos aqui a narrativa poética
Observaremos também como a
de Hilda Hilst, A obscena Senhora D, que nos
subjetivação proteiforme e em constante
apresenta uma personagem em processo de
evolução meditam e vivenciam suas condições
envelhecimento, ou já na velhice instalada.
intersistêmicas movidas pela certeza da
Esse quadro será perspectivado, proximidade das mortes psicofísicas e sociais
predominantemente, pela condição em que a que perfazem o caminho natural e histórico
subjetividade em curso observa-se a si mesma para o ser humano, nessa fase de sua evolução.
como pessoa idosa, as suas relações Veremos que tais meditações e exercícios
interpessoais e os lugares e tempos nos quais sobre, predominantemente, velhice e finitude
está imersa; também com a finalidade de tentar serão envoltos ainda por exercícios de
construir estratégias de enfretamentos às resistências e efetivações de estratégias
características contraprodutivas que tais estados estéticas e políticas frente à condição da
lhes impõem. Tais enfrentamentos parecem velhice perspectivada pelos ativos mecanismos

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de vigilância e de controle, advindos de certa
Homens e mulheres envelhecidos são
biotecnologia contemporânea.
colocados em um quadro em que suas
Das corporeidades obrigadas ao pessoalidades singulares são diluídas por uma
envelhecimento rede de comportamentos perspectivados por
Em A obscena Senhora D, temos Hillé, valores e conceitos cientificizados; sendo, pois,
uma mulher que, ao completar sessenta anos, aparentemente conhecidos e passíveis de
isola-se em sua casa de uma anônima vila. controle pelos membros de sua rede de
Acabara de perder o companheiro Ehud, mais convívio e, principalmente, por órgãos e
jovem que ela, e rompe ostensivamente as instituições responsáveis por representá-los de
relações sociais com os habitantes do lugar, modo oficial e, portanto, de sistematicidade
instalando-se como que absurdamente no vão compreensível e operatória. Assim, sobre
da escada de sua sala. Cultiva suas velhice normativa, acompanhamos as reflexões
reminiscências e insiste em manter uma postura do geriatra Matheus Papaléo Neto:
crítica em relação à população do lugar, que
A grande heterogeneidade entre os idosos,
deseja readaptá-la à rede cotidiana e consensual decorrente, de um lado, da maior ou menor
de vivências de tal sociedade. O “D” que lhe influência dos fatores extrínsecos referidos
serve se alcunha significa derrelição: e, de outro, da grande extensão do período
abrangido pela velhice, torna difícil definir
Vi-me afastada do centro de alguma coisa numa população de pessoas idosas, aquelas
que não sei dar nome, nem por isso irei à que podem ser consideradas normais, tanto
sacristia, teófaga incestuosa, isso não, eu para fins de pesquisa quanto para a prática
Hillé também chamada por Ehud A diária. Esta dificuldade de definir o que é
Senhora D, eu Nada, eu Nome de Ninguém, normal em geriatria conduziu ao conceito
eu à procura da luz numa cegueira de envelhecimento normativo. Já que o
silenciosa, sessenta anos à procura do normal não pode ser adequadamente
sentido das coisas. Derrelição Ehud me definido, é impossível selecionar “pessoas
dizia, Derrelição - pela última vez Hillé, idosas normais” como controle ou como
Derrelição quer dizer desamparo, material para estudo dos efeitos da idade.
abandono, e porque me perguntas a cada Assim, a expressão envelhecimento
dia e não reténs, daqui por diante te chamo normativo representaria o processo natural
A Senhora D. D de Derrelição, ouviu? de desenvolvimento em fases avançadas da
Desamparo, Abandono (HILST, 2001, p. vida (PAPALÉO NETO, 2012, p. 11).
18).

O geriatra segue nos alertando sobre o fato


Hillé está inserida, de certa forma, no que de que tal normatividade é dividida em
os campos de estudos e pesquisa da primária, aquela inerente a toda humanidade, e
Gerontologia, particularmente a social, e da em secundária, aquela que diz respeito à
Geriatria, usualmente denominam de velhice velhice percebida de modo singular no campo
normativa. Neste sentido, há como que uma de uma vivência influenciada por fatores
padronização de características psicossociais de externos e que varia de acordo com as pessoas
uma faixa etária humana. e os contextos nos quais estão inseridas. Este

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segundo conceito nos é muito útil para
Assim, Hillé subverte toda a ordem
acompanharmos aqui os desdobramentos da
conhecida e cultivada que se tem, de modo
subjetividade ficcionalizada por Hilda Hilst.
padronizado, sobre a mulher que envelheceu e
a quem não se permite condição de autonomia,
Uma velha, obscena e estranha senhora à seja de que natureza for esta autonomia.
procura da coautoria de seu corpo sem Como acompanhamos antes, a personagem
órgãos sente-se enviuvada de seu amante jovem, sente
em seu corpo a chegada do declínio psicofísico
inclemente, volta-se para si mesma com a
Hillé, protagonista de A obscena Senhora finalidade de questionar a eficácia dos consolos
D., parece assumir com galhardia o lugar social que as tradições metafísicas, principalmente
que os habitantes da pequena vila em que mora aquelas da metafísica da religião positiva,1
lhe impõe. É uma velha estranha que não se poderiam lhe conferir em tal situação de crise
enquadra em nenhum parâmetro identitário e existencial.
relacional conhecido ou, se conhecido, aceito
pela comunidade local. Quando o jovem A condição de subjetivação classificada
companheiro Ehud morre, se é que tal como estranha pela outridade oficial
personagem realmente teve existência real em acompanha, pois, a consolidação desta velhice
sua vida, ela se encerra em sua casa e cessa os que se aparta das representações apaziguadas
contatos convencionais com a vizinhança, que normalmente tentamos construir para
como mencionamos acima. controlar tais contextos.

Apesar de tal isolamento, ou talvez Hillé é configurada como uma velha


justamente por ele, a população a avaliará estranha, como observamos várias vezes nas
como personalidade atípica da rede interpessoal reações dos moradores que tentam entrar em
que conforma o tecido social local. As posturas contato com ela, com o objetivo de readaptá-la
da velha senhora são tidas como inusitadas, à ordem estabelecida. O próprio Ehud, com a
exóticas e descontroladas para o padrão oficial, função de representar a opinião pública ao
pois a senhora: não visita os vizinhos, não dá redor, chama-lhe a atenção o tempo todo para o
satisfação de sua vida reclusa, aparece à janela fato:
para assustar as crianças, usando máscaras
escuta, Hillé, aqui na vila, está me ouvindo
monstruosas, tira a roupa para as pessoas que Senhora D?
tentam invadir seu espaço íntimo, enfrenta sim
padres e médicos com a incredulidade
questionadora que agora lhe é típica, xinga as
pessoas que lhe oferecem auxílio em suposta 1
A separação entre religião natural e religião positiva é
hora de desamparo e vocifera com todos que a refletida por Arthur Schopenhauer (2002) em seu estudo
querem reinserida na normalidade sobre a morte. Para ele, a primeira estaria vinculada ao
tranquilizadora da pequena comunidade. natural sentimento humano diante das grandezas
desconhecidas; enquanto a segunda já representaria as
instituições humanas criadas para sistematizar e
controlar tal sentimento primário.

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então escuta, aqui na vila me perguntam
por você todos os dias, eles me veem trazer metafísicos de Hillé, chama-a incessantemente
o leite, a carne, as flores que eu te trago, para as tais coisas da realidade cotidiana.
querem saber o porquê das janelas No entanto, tal cotidiano, como a vida
fechadas, tento explicar que a Senhora D. é
sexual, a vida da ordem da casa, a vida da
um pouco complicada, tenta, Hillé,
algumas vezes lhes dizer alguma palavra,
higiene íntima, a vida dos contatos produtivos
você está me ouvindo? com as demais pessoais, parece que está
te amo, Hillé, está escutando? obliterado pela nova condição de
Sim (HILST, 2001, p. 18). excentricidade criada e cultivada pelos desejos,
dúvidas e resistências pessoais e políticas de
Ehud, personagem também criada pela Hillé.
imaginação vigilante da protagonista ou figura Ao lado da alegoria do discurso
que realmente existiu em sua vida, funciona reintegrativo e reeducativo que o morto Ehud
aqui como o panóptico2 que vigia, avalia, pune, pode de fato representar, observamos como
controla e se encarrega de reordenar a vida esta narrativa também se preocupa em marcar
desafiadora que Hillé assumiu. Ao mesmo quase que de modo realista as demais figuras
tempo em que funciona como polo dialógico que auxiliam na montagem do enredo. As
para os questionamentos vivenciais e próprias pessoas da vila entram nesse teatro
dialógico, que também é teatro de
enfretamentos de projetos de vida
2
diferenciados, protagonizado por uma velhice
A ideia do panóptico como mecanismo de controle estranha e segmentos majoritários de agentes
pessoal/coletivo acompanha os estudos foucaultianos,
que aqui são mais perspectivados pela fase
sociais que preconizam determinados meios e
genealógica do pensador; fase esta preocupada em modos tradicionais de produtividade de bens
observar, descrever e compreender os dispositivos simbólicos.
sócio-políticos de controle biotecnológico em relação
ao corpo humano e suas relações sociopolíticas. Em Vejamos como tais agentes conservadores
particular, aqui, seguimos a obra Microfísica do poder se portam diante das supostas diatribes da
(2001). No entanto, tal conceito é encontrado com velhice que deseja ser singularizada:
maior sistematicidade arqueológica nos estudos que o
autor faz sobre o surgimento de dispositivos prisionais senhora D, senhora D, olhe, dois pãezinhos
como prisões, clínicas, hospícios e afins, como é o para a senhora, fui eu mesma que fiz, sou
caso do estudo de Vigiar e punir: nascimento da
sua vizinha, se lembra? olhe senhora D, não
prisão (1987), principalmente no capítulo III, do
Panoptismo. Também nos esforçamos para seguir as
pode se trancar assim, a morte é coisa que
reflexões da última fase dos estudos foucaultianos, no não se pode dar jeito, né, o senhor Ehud
que ela diz respeito às preocupações em se ficaria triste lhe vendo assim, tá morto né, a
compreender como as identidades transversais são morte vem pra todos, a senhora também
educadas a tomar conta de sua própria formação podia colaborar com a vizinhança né, essas
pessoal, de acordo com sistemas de auto- caras que a senhora anda pondo quando
conhecimento, que na verdade são altamente dirigidos resolve abrir a janela assustam as minhas
por dispositivos molares (das instituições mais visíveis crianças, ai ai senhora D não faz assim
e centralizadoras do controle político-social), como se agora, isso é coisa de mulher
acompanha na coletânea de aulas que é A
desavergonhada, ai que é isso madona, tá
hermenêutica do Sujeito (2004).

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mostrando as vergonhas pra mim, ai ó
Antônia, ó Tunico, só quis dar o pão pra ela Um fato particular da linguagem estética3
e olha como ficou, tá pelada, ai gente, que marca essa separação é a espécie de
embirutou, credo nossa senhora, é caso de
construção em anacoluto que o relativo fluxo
polícia essa mulher quem te mandou,
Luzia, entrar na casa da mulher, hem, quem de consciência narrativa nos oferece.
te mandou? se ela ficou pelada tá na casa Percebemos, assim, como forma e conteúdo são
dela, volta pra casa mulher, que pão que realidades intrinsecamente amalgamadas, sem
nada, não tá vendo que o demo tomou que uma destas dimensões tenha independência
conta da mulher? porca, exibida cadela, ontológica em relação a outra.
ainda bem que é só no pardieiro dela que
mostra as vergonhas é nada, e as caretonas Trata-se de temas que são justapostos e
que exibe na janela, alguém tem o direito mesmo hibridizados, como que se não
de assustar osotro assim? houvesse uma ligação causal estrutural entre
he he Luzia, teu traseiro também assusta eles. Por exemplo, logo após os fragmentos
muita gente teu cu também, tua faccia citados acima, que tratam de uma quase
tua boca repelente sem dente também
referencial relação entre a protagonista e a
credo a vizinhança endoidou
comunidade local, vemos que o ambiente
olha a freira passando
olha o doutor com a madama dele semântico desloca-se para a certa dimensão
olha o cuzaço da madama do doutor interior da protagonista.
Diante da vila, das casas quase coladas, Nestes planos de escrita que não
entre as gentes sou como uma grande porca conseguem controlar a si mesmos, via
acinzentada, diante de muitos a quem
objetivação de seu autor empírico e/ou textual,
conheci sou uma pequena porca ruiva,
perguntante, rodeando mesas e cantos,
e que parecem estar em construção constante,
focinhando carne e ossatura, tentando vemos que os assuntos diferenciam. Que
chegar perto do macio, do esconso, do campos semânticos heterogêneos envolvem-se
branco luzidio do teu osso (HILST, 2001, uns com os outros, criando um contexto de
p. 32-33). polivalência semântica vigoroso. Vejamos: ao
primeiro fragmento citado acima, teremos
Através do longo, porém necessário, afecções e sentimentos da velha Illé em relação
fragmento exposto, observamos que o à vida sexual que tinha com Ehud.
confronto entre Hillé e a comunidade local é O rapaz a procura com avidez para que
explícito e tende a chegar a nível crítico. Cada façam sexo de várias formas, enquanto ela já
lado desta relação de enfrentamentos assumirá sente sua força física diminuída, seja em função
suas crenças, valores e comportamentos e a de suas condições fisiológicas, seja em função
síntese dialética apaziguadora não será
atingida. Ou seja, uma velhice atípica, entre 3
Sobre a estética da linguagem hilstiana, convém
outras configurações de subjetivações humanas lembrarmos que seu texto realmente alarga as
possíveis, encontra-se em irremediável possibilidades linguísticas. Neste campo, havemos de
separação das imagens oficiais que certa ficar atentos à radical liberdade criativa que é tomada
comunidade conseguiu construir sobre a em relação à ortografia, à pontuação, à morfologia, à
sintaxe e, sobretudo, àquela a-significância típica, que
velhice ideal para as suas relações cotidianas. lhe marca diferentes e complexos campos semânticos.

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de sua vontade de direcionar esforços para
Tal estranheza nos faz buscar apoio nas
compreender as supostas bases metafísicas e
reflexões de um dos mais argutos pensadores
materiais que movimentam sua vida.
da contemporaneidade que é Zygmunt
Ehud, tendo existência real no contexto Bauman.4 Em seu conjunto de obra, este
vivenciado na narrativa ou existindo como pensador nos ajuda a refletir sobre como nossos
metáfora do panóptico policialesco e comportamentos, predominantemente urbanos
normatizado, é o marcador constante para a e civilizados, são orientados para a construção
contradição ética e jurídica do projeto de de lugares de normalidade padrão e de suposta
velhice independente que Hillé tenta construir, anormalidade comportamental e existencial que
mesmo que isso possa lhe acarretar a falência deve ser contida, desconstruída e remanejada
psicofísica final, que é a morte. Ehud, com a finalidade de se atingir a produtividade
paradoxalmente, também funciona como de capitais (econômicos em sua contrapartida
dispositivo que possibilitaria a efetivação do financeira de base e de variadas outras ordens
desejo erótico, capaz de dar continuidade à vida simbólicas) aceitos, mantidos, reproduzidos e
da pessoa envelhecida que, naturalmente, ainda vigiados.
é movida pelo básico princípio do prazer.
Para Bauman a coexistência humana
Também ao lado do fragmento literário ocorre em intricadas redes sociais, nas quais os
citado acima, vemos que junto às falas e agentes sociais possuem lugares definidos por
reações da vizinhança, que estranha e cria a compartimentações de produção e de controle
estranheza da velhice de Hillé, surgem as de seus desejos. Tais funções são coletivamente
lembranças construídas pelas memórias em reconhecidas e possuem estruturação e
relação a sua família. A mãe, o pai, a infância funcionalidade territorializadas de modo
são retomados pelos acordes do coração e pelas estável.
sensações desmedidas que envolvem a mulher
Assim, as identidades fixadas não fogem
em sua tentativa de construção da velhice, na
ao conjunto de características que lhes
qual ela tenha condição de ter participação
configuram o perfil de modo apriorístico.
ativa.
Agentes adultos agem de acordo com os
Questões biografemáticas também dão a modelos comportamentais permitidos. Pessoas
tonalidade desta intricada narrativa. E idosas devem agir como tais construtos de
acompanhamos certo esvanecimento referencial características lhes orientam e lhes permitem
de situações e ações que mais responder às agir. Fora de tais esquemas identitários de
duvidas criadas, no colocam mais dúvidas ações e de vivências, as subjetivações
sobre o destino da senhora em crise de naturalmente (por sua ontologia constitutiva)
readaptação ao seu autoritário e voraz meio de
convívio. Hillé, com a contribuição de seu
comportamento resistente, está
4
indubitavelmente colocada na condição da Apoiamo-nos aqui, nos livros A vida fragmentada:
velhice estranha. ensaios sobre a moral pós-moderna (2007) e O mal-
estar da pós-modernidade (1998), para refletirmos
sobre subjetivações perspectivadas pela outridade, em
necessária e dialética condição de coexistência.

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em curso são colocadas na condição e
O segundo caso, o da existência ao-lado-
elementos estranhos à ordem.
de, supõe maior proximidade com os demais
A coexistência, nos casos da composição agentes sociais. As negociações de vida
de conjunto com elementos diferentes, causa conjunta já se aprofundam mais e nos sentimos
situações de crise tanto para o indivíduo na necessidade de conhecer, compreender e
considerado como estranho, quanto para a interagir com valores, crenças e projetos de
organização de coexistência que é colocada vida das pessoas com as quais nos
frente a frente com o suposto conflito que, se relacionamos, seja de modo temporário ou de
não resolvido, pode lhe causar perturbações modo mais regular. Nosso olhar já é obrigado a
pontuais ou até mesmo sistêmicas. abranger um campo maior da vivência com
Ainda com Bauman, tal coexistência outras pessoas. E esse olhar nos exige também
apresenta-se como graduada em níveis certo respeito em deixar intacto o conjunto de
diferenciados, tais como: a do estar-ao-lado-de, diferenças que perfaz o outro agente que está
ao estar-com e ao estar-para. Tais níveis são em nossa perspectiva de diálogo necessário
conformados pela possibilidade de tanto para sua sobrevivência quanto para a
comprometimento de um agente social com os nossa.
demais agentes sociais. Grosso modo, no O terceiro caso de existência já supõe um
primeiro caso, as relações seriam semelhantes grau de simpatia e de empatia no qual somos
àquelas nas quais nos vemos juntos com as até capazes de nos despojarmos de nossa
demais pessoas, mas com as quais não individualidade, mesmo que de caráter
mantemos relações de intimidade e de acordos transversal, para realmente assumir a
sólidos em relação à nossa produtividade de integralidade constitutiva da pessoa alheia.
capitais variados. Bauman nos alerta para o fato de que tal caso é
O compromisso interpessoal é frágil, um tanto idealizado, pois supõe o esvaziamento
como nos casos em que caminhamos no meio individual em prol do preenchimento em si dos
de uma multidão por um espaço público significados constitutivos dos outros com os
qualquer. Vemos as demais pessoas que quais nos relacionamos. Longe da comunhão
caminham como nós e ao nosso lado, porém, mística ou amorosa romântica, tal encontro se
não somos obrigados a compreender em daria naquele plano existencial no qual nos
profundidade quais são seus planos, suas encontramos intensamente com outros
estórias de origem e formação, seus desejos e indivíduos e juntos somos capazes de encontrar
afins. Assim, torna-se relativamente fácil uma síntese interpessoal na criação de
precavermo-nos contra seus comportamentos universos existenciais conjuntos, nos quais
inesperados, pois tais pessoas que conformam a confrontos são reduzidos aos níveis mínimos
multidão, pela falta da interação necessária, não possíveis.
nos alterarão as condições vivenciais nas quais Refletindo sobre os deslocamentos
acreditamos e estamos inseridos, mesmo que de subjetivos de nossa protagonista Hillé,
modo provisório. observamos que tais possibilidades de
coexistência pessoal/coletiva são configuradas

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como de modo rizomático.5 Tais níveis são lhes trazem presentes supostamente
múltiplos, heterogêneos, conectados, por vezes apaziguadores, como vimos em fragmento
a-significantes e com cartografias variáveis. acima, mas os espanta, por exemplo, expondo-
lhe sua nudez física envolta em desordens de
Há, nos parece, um instante em que Hillé
higiene, de beleza e de ordem.6 Grita e profere
parece ter tido contatos significativos com a
palavrões e maldições diante de possíveis
população da pequena vila. Prova disto é que as
processos de medicamentalização e de
pessoas insistem em procurá-la, como que para
positivas soluções místicas que os moradores
resgatarem laços de convívio que existiram. No
da vila tentam, em vão, lhe impor. Ou seja,
entanto, tais laços não demostram que havia
antes de mergulhar de vez em seu mundo
envolvimento profundo entre os atores do
interior, a velha senhora tenta construir meios
suposto processo dialógico. Estão, pois, como
de contato com os alienados agentes sociais
que subjetividades em formação ao-lado-de.
que lhe querem retirar as possibilidades para
Assim, os vínculos de simpatia e empatia,
construção de condições alternativas para sua
quando colocados à prova, são facilmente
velhice.
rompidos. Mesmo que um dos lados, a
população que estranha a velha senhora, insista Para a vizinhança, realmente Hillé é uma
em afirmar que tais vínculos tenham sido velha obscena e enlouquecida. Aí, por um lado,
sólidos e ocasionasse o equilíbrio interpessoal talvez consigamos perceber traços daquela
da comunidade. convivência do ser-para-o-outro. Convivência
disposta na radicalidade comportamental que
Por outro lado, mesmo com os
existe na capacidade de a outridade também ser
enfrentamentos e resistências à comunidade
capaz de pensar a si mesma como que por seu
que lhe bate à porta, a velha Illé comporta-se
avesso. Através da exposição da vida absurda,
como uma pessoa produtiva. Sua produtividade
aparentemente é distópica no sentido de que ela da vida invertida, da vida grotesca, da vida
exposta em suas profundezas da falta de
articula estratégias de ação que chocam os
condições de bem-estar possível, parece ocorrer
hábitos de seus vizinhos. Ela não desativa,
como que um desejo de se construir
como deveríamos esperar, seus contatos com a
engenharias para produções nas quais a pessoa
curiosa e intrometida vizinhança. Ao contrário,
realmente deseja se ver inserida.
mostra-se singularmente disposta em suas
iniciativas de sensibilizar tal vizinhança para a 6
percepção de sentidos, que talvez nem ela A condição de desordem, de falta de higiene e de
beleza é uma constante descritiva e judicativa em
própria saiba ao certo quais são, mas que traz representações negativas da velhice. Zygmunt Bauman
novidades e surpresas ao contexto. (1998), retomando reflexões freudianas sobre pulsões,
desejos e interdições éticas e morais, trata das
Hillé meticulosamente constrói, com esse consequências dos excessos exigidos por tal tripé de
intuito de desconstruir a tranquilidade e ordem condições idealizadas que baseia a evolução de nossas
da vizinhança, máscaras assustadoras. Abre a civilizações. Bauman nos faz pensar que tais excessos,
janela e assusta as crianças que insistem em ocasionados pela busca de idealidades morais e éticas,
brincar em sua porta. Ela recebe vizinhos que talvez sejam fatores que criam as nossas sensações de
medo diante do desconhecido ou daquelas situações em
que não temos controle rigoroso das variáveis
5
Deleuze; Guattari, 1995. funcionais.

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919
Nesse plano, a aversão à comunidade Os mecanismos sociopolíticos de
cotidiana e conservadora, ainda incapaz de controle, vigilância e reprodução, através do
compreender os móveis que constrói o tal panóptico interiorizado7 por cada agente social
cotidiano supostamente apaziguado e que conforma a população vizinha de Hillé, não
aparentemente capaz de produzir meios de conseguem referencialmente destruir esta
satisfação pessoal e interpessoal real, pode ser pessoa tida como estranha. Tal insucesso
vista como uma linha de força capaz de advém do fato que, ao menos por parte da
construir como que uma pedagogia reversa. protagonista, houve a tentativa de construção
Pedagogia aparentemente escatológica proposta daquela coexistência do ser-para-o-outro.
por uma suposta velha enlouquecida que Mesmo que condição utópica, e no caso
deseja, paradoxalmente, mostrar a sua em sua dimensão até mesmo invertida no
comunidade novas propostas de construção de campo da simpatia e empatia, vemos que a
lugares sociais para a velhice. Principalmente narrativa encaminha-se mais para a dinâmica
para a velhice do corpo feminino, do encontro interpessoal do que para a do
historicamente maltratado por vigorosas e desencontro, que a morte final de Hillé parece
atuais convenções culturais e políticas. indicar.
Considerações finais Assim, acompanhamos como uma
O lugar da subjetivação estranhada é narrativa literária é capaz de nos oferecer dados
consolidado, apesar das reflexões acima, nos estéticos, políticos e pragmáticos no que diz
três níveis de coexistência que discorremos. E respeito a processos de subjetivação. Hilda
o solo comum de tais níveis pode ser sentido Hilst trata, nessa narrativa, do campo
pelos modos de produtividade, de produção existencial de um corpo feminino que se volve
pontual e de circulação de produtos, em suas sobre si mesmo e sobre os dispositivos
dimensões de capitais de várias naturezas, psicossociais que seu meio constrói, de modo
colocados pelos agentes sociais presentes nos
núcleos accionais da narrativa.
A subjetivação vista como individualidade 7
A reflexão foucaultiana sobre o panóptico moderno e
produtiva é, ainda, colocada fora da perspectiva contemporâneo vai, de certo modo, ao encontro da
esperada pelo contexto relacional no qual se reflexão sobre poderes de expressão molar e
está inserida. No caso, Hillé envelheceu, moleculares, proposta por Gilles Deleuze e Félix
Guattari (1996). Aos primeiros, corresponderiam os
enviuvou-se, isolou-se de modo desejado ou dispositivos institucionais, discursos, de variadas
imposto, quebrou os vínculos com pessoas e organizações coletivas, entre outros que mantêm
com instituições de sua coletividade. A determinada estrutura de produção, de saberes e de
comunidade conservadora, que não aceita poderes; enquanto aos segundos, corresponderiam os
dispor-se em dialogismo negociado em bases valores, crenças e sentimentos que os dispositivos
constroem e que são internalizados pelos agentes
equitativas, não tem mais acesso fácil ao seu sociais. Assim, não é mais preciso uma sociedade com
campo existencial e é, ao mesmo tempo, ainda meios explicitamente concentrados e visíveis de
obrigada a conviver com ela. mecanismos de controle, pois tais mecanismos já fazem
parte da constituição parcial subjetiva que produz um
dos planos da individualidade transversal.

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920
histórico, para o enquadramento de
BEAUVOIR, S. de. A velhice. Tradução Maria
comportamentos.
Helena Franco Martins. Rio de Janeiro: Nova
Diante disso, percebemos como a velha Fronteira, 1990.
Hillé luta criticamente por fazer parte da
BOURDIEU, P. Razões Práticas: sobre a teoria
construção constante desses espaços subjetivos.
da ação. Tradução de Mariza Corrêa.
Se, aparentemente a narrativa nos traz um final
Campinas: Papirus, 1996.
melancólico, senão trágico, ela também nos
apresenta modos de comportamentos e de DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs:
valores heterogêneos que são capazes de capitalismo e esquizofrenia. Tradução de
mobilizar as ordens impostas. Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa.
Vol.1. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995.
Velhice, corpo feminino, morte,
coexistência psicossocial e espacialidade de _______. Mil platôs: capitalismo e
ação crítica, desterritorializante e esquizofrenia. Tradução de Aurélio Guerra
ressignificativa são, pois, temas que Neto et al. Vol. 3. Rio de Janeiro: Editora 34,
observamos nessa instigante narrativa literária. 1996.
Tal dado nos possibilita, sobretudo, ______. Mil platôs: capitalismo e
observamos nossas realidades contemporâneas esquizofrenia. Tradução de Suely Rolnik.
factuais, bem como nossas razões práticas, com Vol.4, São Paulo: Editora 34, 1997.
a finalidade de também agirmos sobre tais ELIAS, Norbert. A solidão dos moribundos
realidades. Essas não mais se atêm apenas aos (Seguido de Envelhecer e morrer). Tradução de
dispositivos molares, como instituições, valores Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
e diretrizes que outrora condensavam em si 2001.
tanto conhecimentos quanto poderes, mas em
realidade moleculares; ou seja, aquelas FOUCAULT, Michel. A Hermenêutica do
existencialidades nas quais conhecimentos e Sujeito. Tradução de Márcio Alves da Fonseca
poderes estão diluídos e também se encontram e Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins
imbricados nas tessituras das subjetivações em Fontes, 2006.
constante curso. _______. Microfísica do poder. Organização e
tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro:
Edições Graal, 2001.
Referências
_____. O corpo utópico, As heterotopias. Le
BAUMAN, Z. A vida fragmentada: ensaios corps utopique, Les hétérotopies.Tradução de
sobre a moral pós-moderna. Tradução de Salma Tannus Muchail. Edição bilíngue. São
Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógio D’Água Paulo: N- 1 publications, 2013.
Editores, 2007.
_____. Vigiar e punir: nascimento da prisão.
_______. O mal-estar da pós- Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis:
modernidade. Tradução de Mauro Gama e Vozes, 2002.
Cláudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1998.

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921
GUATTARI, G. Caosmose. Tradução de Ana
Lúcia de Oliveira e Letícia Cláudia Leão. São
Paulo: Ed. 34, 1992.
HILST, Hilda.
_______. A obscena senhora D. São Paulo:
Globo, 2001.
PAPALÉO NETTO, M. “O Estudo da velhice
no Século XX: histórico, definição do campo e
termos básicos.” In: FREITAS, E. Viana; PY,
Ligia; NERI, Anita Liberalesso et al. Tratado
de Geriatria e Gerontologia. Rio de Janeiro:
Guanabara & Koogan, 2012.
SCHOPENHAUER, A. Metafísica do amor e
Metafísica da morte. Tradução de Jair Barboza.
São Paulo: Martins Fontes, 2000.

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922
YES, WE CAN X OBAMA FOR AMERICA: O DESLOCAMENTO
DA IMAGEM POLÍTICA DE BARACK OBAMA NAS CAPAS DA
NATIONAL REVIEW

Antonio Genário Pinheiro dos SANTOS


Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
gennaryo@yahoo.com.br

Resumo: Com inscrição nos pressupostos teórico-metodológicos da análise do discurso


de tradição francesa, pretende-se com o presente artigo analisar o trabalho discursivo da
mídia e a produção do espetáculo de imagem no acontecimento da política norte-
americana, considerando os lugares discursivos e as posições-sujeito que foram
reservadas ao presidente Barack Obama nos pleitos eleitorais de 2008 e de 2012. Trata-
se de, no espaço da discursividade e a partir dos estudos foucaultianos e pecheutianos,
analisar a operação de sentido nas capas da revista americana National Review,
atentando para os jogos de imagens e o cerceamento discursivo que fabricaram a imagem
política do presidente Barack Obama a partir de diferentes trajetos de discursividade e,
sobretudo, na esteira da evidência e do silenciamento.
Palavras-chave: discurso; acontecimento discursivo; mídia.

que incitam o resgate de memória e permitem


Introdução
analisar o deslize do sentido e a fabricação de
No escopo da produção discursiva do imagem política no espaço da irrupção do
sentido e da efetividade múltipla de seus efeitos acontecimento discursivo.
e, ainda, ao se inscrever no cenário teórico-
Considerando os estudos de Foucault
metodológico da Análise do Discurso de
(2005, 2006) e de Pêcheux (2008) acerca do
tradição francesa, o presente estudo tem como
sentido, do discurso, do acontecimento, bem
objetivo analisar o trabalho discursivo da mídia
como aqueles de Courtine (2011), sobre a
e a produção do espetáculo de imagem no
leitura das imagens, traz-se a análise de
acontecimento da política norte-americana,
materialidades midiáticas – capas da revista
considerando as posições-sujeito e os trajetos
americana National Review – atentando para os
de subjetividade que foram reservadas ao
jogos de imagens e o cerceamento discursivo
presidente Barack Obama nas campanhas
que inscreveram a imagem política do
presidenciais de 2008 e de 2012. Trata-se de,
presidente Barack Obama a partir de diferentes
no espaço da discursividade, problematizar a
trajetos de discursividade, mas na esteira da
produção e a mobilidade de dizeres na mídia

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923
qualquer referência a uma origem
evidência e do silenciamento. Desse modo, esse supostamente determinável ou a qualquer
estudo propõe que ao discursivizar o pleito sistema de causalidade entre as palavras e
eleitoral de 2008, a mídia reservou à Obama as coisas [...] considerar o discurso como
uma imagem política ligada a efeitos de acontecimento é aceitar que é ele que funda
positivação, profetismo, salvação e esperança, a interpretação, constrói uma verdade, dá
enquanto que em 2012, o sujeito discursivo foi rosto às coisas. Por isso o discurso é objeto
trazido à evidência segundo trajetos de de disputa, em vista do poder que, por seu
negatividade e descrédito, associado ao intermédio, se exerce. (NAVARRO, 2004,
p. 108).
martírio e à falha.
1. Acontecimento discursivo: efeitos de Assim sendo, no escopo da edificação
controle e didatização do olhar do acontecimento discursivo, o olhar para a
A investigação sobre a questão do discursividade – especialmente no espaço de
sentido implica considerar o discurso como o midiatização e virtualidade em que se encontra
que demanda ocupação de posições-sujeito e a a sociedade contemporânea – deve considerar
produção de múltiplos efeitos de sentido. Tem- as condições de produção do dizer atentando
se, então, o discurso como o espaço de para a constituição do documento em
dispersão cuja estrutura e acontecimento monumento, já que resulta do esforço das
incidem sobre a produção de sujeitos marcados sociedades históricas para tentar construir
social, política e historicamente. Em Discurso: imagens de si próprias. Desse modo, a
estrutura ou acontecimento? Pêcheux (2008) transformação de um evento histórico em
propõe que não se encontra o real, mas se acontecimento discursivo está atrelada ao
depara com ele e é nesse encontro que fervor das práticas discursivas de instituições
operações táticas de saber e de poder são legitimadoras – neste caso, a mídia – que
materializadas e podem ser lidas na perspectiva mobilizam determinadas vontades de verdade,
de uma leitura das condições de produção do cerceadas e inscritas em circuitos de poder. É
dizer. preciso, então, ir mais longe, visto que ele – o
documento-monumento – “é o testemunho de
O discurso funciona, portanto, numa
um poder polivalente e, ao mesmo tempo, cria-
zona de tensão e segundo rigorosas regras de
o” (LE GOFF, 2003, p. 472).
aparição que apresentam, objetivamente, sua
possibilidade de produção, de circulação e de Em sua Arqueologia do saber, Foucault
evidência. Seu caráter de repetível e de (2005, p. 234), ao tratar da posição da história
irrupção convoca o sujeito a assumir posições diante da novidade do discurso como prática e
determinadas, a defender uma subjetividade dispersão, defende que é preciso atentar para as
marcada, a se projetar para o outro por se ligar relações que lhe servem de suporte e de revelar
a uma identidade ao mesmo tempo singular e a densidade e complexidade que há nessa
regular. Nesse sentido, conjuntura discursiva. Essa seria, segundo o
autor, a oportunidade de trazer que somar um
Considerar o discurso como acontecimento “enunciado a uma série preexistente de
significa abordá-lo na sua irrupção e no seu enunciados é fazer algo complicado e custoso
acaso, ou seja, despojá-lo de toda e que implica condições e que comporta regras”.

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924
discurso, assegurando que nem tudo pode ser
Disso, tem-se que a leitura dos
dito em qualquer circunstância e, ao mesmo
discursos não pode se restringir à sua colocação
tempo, instaura a pergunta foucaultiana
ou relação a um contexto, uma situação ou um
fundamental: por que este enunciado e não
motivo, mas de considerá-los no que eles têm
outro em seu lugar? É a partir disso – e ainda
de articulação, de transformação e de tática. Ao
na perspectiva dos trabalhos de Foucault com a
contrário, trata-se de envolver as regras que
inquietação sobre a ordem do discurso – que se
permitem sua irrupção e mobilidade, regras
considera a operação dos regimes de
essas que transgridem e ultrapassam um
discursividade oportunizados na materialidade
universo lógico de construção. E nesse cenário
do dizer, neste caso, na edificação do
o enunciado ocupa lugar singular.
acontecimento discursivo da eleição
Para Foucault (2005), considerar o presidencial norte-americana.
enunciado e suas relações com a exterioridade
Desse modo, é importante considerar
é entender que o discurso não é, por sua vez,
que os efeitos de controle do discurso se
fruto de uma manifestação majestosa de um
efetivam tanto a partir da fecundidade de seu
sujeito que pensa, conhece e é senhor de seu
exterior – com a interdição, segregação da
dizer, mas um lugar onde podem ser
palavra e a vontade de verdade – como na
determinadas tanto a dispersão do sujeito como
dinamicidade interna de sua ocorrência – o
a sua descontinuidade em relação a si mesmo,
comentário, a função autor e a disciplina. O
num processo de articulação e discursividade.
primeiro grupo de procedimentos encontra o
O enunciado está, assim, inscrito num trajeto
discurso no que ele tem de jogo entre o desejo e
de equivocidade, de deslize e de repetibilidade.
o poder e mobiliza sua filiação institucional,
O enunciado traz, ainda, a possibilidade sua exterioridade constitutiva e sua
do acontecimento discursivo, pois instaura historicidade, enquanto que o segundo acena
ordens e regimes de dizeres numa articulação para determinados princípios: de classificação,
com a história. Isso marca, sobretudo, aquilo de ordenação, de distribuição, os quais tratam
que pode ser dito, discursivizado, trazido à tona de outra dimensão do discurso: a do seu
– e não outra coisa em seu lugar – num acontecimento e do acaso de sua irrupção.
determinado momento histórico e segundo um (FOUCAULT, 2006).
jogo de relações e associações que ultrapassam
A ordem do discurso, portanto, permite
o terreno do previsível e se vinculam à
que o dizer seja interditado visto que não se
possibilidade. Os enunciados se multiplicam e
pode falar de tudo, nem dizer tudo, em
se acumulam haja vista não existir enunciado
qualquer momento ou lugar. O discurso está
livre e independente, mas enunciados em
sempre reclamando sua própria inscrição num
articulação com outros, neles se apoiando e
espaço e tempo histórico determinado. A
fazendo parte de modo a constituírem séries e
produção do discurso está alicerçada em
conjuntos de enunciados (FOUCAULT, 2005).
práticas de saber, por isso a palavra precisa
Nesse sentido, a polícia discursiva se manter uma vinculação com uma legitimidade,
constitui e funciona pela operacionalização dos num laço que a ela assegure autoridade e
procedimentos e mecanismos de controle do sentido e nisso a mídia se apresenta como a

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925
medida de todas as coisas (SILVERSTONE, vivenciava um cenário de caos que apresentou
2005). a gritante necessidade da comunidade
internacional por uma liderança que fosse
No bojo dessas relações, e considerando
capaz de realinhar as relações cambiais, de
a questão da midiatização e o regime no qual se
assegurar o desenvolvimento econômico, de
inscrevem as discursividades contemporâneas,
fortalecer as relações comerciais entre os
é importante trazer as condições de mobilidade,
muitos países, de aliviar a tensão nas questões
de filiações, de associações que o enunciado
diplomáticas e, por fim, de restabelecer a
oportuniza quando da sua inscrição no espaço
ordem mundial.
da produção de imagens. Trata-se de considerar
o imbricamento entre uma ordem do legível e A partir dessas condições sócio-
uma ordem do olhar a partir da inscrição históricas, a operação midiática engendrou um
discursiva dessa relação, atentando para os trajeto de discursividade que oportunizou a
efeitos de acúmulo, raridade, singularidade e subjetivação do então candidato Barack Obama
regularidade atrelados às materialidades como símbolo da esperança e como único
discursivas de agora. capaz de promover o equilíbrio e a ordem
mundial no campo da paz, da economia e da
É a partir disso que se volta para os
política. Em contrapartida, em 2012, as
enunciados Yes, we can e Obama for America
condições de produção do dizer apontavam
que triunfaram, respectivamente, nas
para os efeitos de dúvida, de descrédito e de
campanhas presidenciais norte-americanas de
falha que enxertavam a proposta de
2008 e de 2012. Enunciados estes que foram
continuidade de um governo democrata em
discursiva e estrategicamente operados pela
solo americano.
mídia para reservar, no espaço do espetáculo de
imagem política, diferentes posições-sujeito ao Ao produzir esse acontecimento
presidente americano Barack Obama. Essa discursivo, a mídia fabricou um espaço de
operação se deu num jogo íngreme de imagens políticas deslocadas e isso no escopo
manobras do dizer e do fazer ver, o qual do trabalho com efeitos de memória. De
oportunizou articulações de memória, exigindo salvador, de profeta dos novos tempos, o
certa conversão do olhar e da atitude para poder sujeito discursivo passou a vendedor de sonhos,
reconhecê-la e considerá-la em si mesma símbolo de martírio e de negatividade. Nesse
(FOUCAULT, 2005). sentido, a mídia operou sobre a produção e o
deslocamento da imagem política de Barack
1.2 Acontecimento discursivo: visibilidade e
Obama, fabricando um espetáculo de evidência
deslocamento de imagem política
e visibilidade. Nas palavras de Gomes (2003, p.
O acontecimento discursivo da sucessão 77):
presidencial nos Estados Unidos da América
mobilizou, em 2008, um trajeto de esperança É por conta da visibilidade que as mídias
ligado a efeitos de salvação e religiosidade que assumem um papel crucial como disciplina
diziam respeito à tensão projetada pela e controle, portanto, como
deflagração da crise econômico-financeira promotoras/mantenedoras de escalas de
valores, como vigilantes. Temos que pensá-
internacional. Naquele momento, o mundo
las em seu duplo papel: aquele pelo qual

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926
expõem a todo momento os conflitos é
também aquele pelo qual definem a esfera posições, discutir e ler a realidade, isto é, o
de equilíbrio em que esses conflitos se recorte de real que se oferece. E, nesse espaço,
diluíram. Enquanto mostram, as mídias a leitura do discurso torna-se dependente das
disciplinam pela maneira do mostrar, redes de memória e dos trajetos sociais nos
enquanto mostra ela controla pelo próprio quais ele irrompe. Deve-se considerar que só
mostrar. “por sua existência, todo discurso marca a
possibilidade de uma desetruturação-
O acontecimento discursivo foi, reestruturação dessas redes e trajetos”
portanto, edificado no bojo das estratégias (PÊCHEUX, 2008, p. 56).
midiáticas em torno do dizer, as quais 2. Yes, we can e Obama for America: uma
evidenciaram a efetividade de um cerceamento proposta de análise de imagens deslocadas
e as manobras de uma polícia discursiva no que
tange ao que poderia e deveria ser dito, trazido Observando as condições de produção
à visibilidade em detrimento do que deveria ser do acontecimento discursivo das eleições
silenciado, apagado. Trata-se, nessas presidenciais americanas de 2008 e de 2012, é
condições, de um trabalho de seleção, de possível observar o trabalho com diferentes
montagem, de interdição e, sobretudo, de ilusão regimes de dizibilidades no que tange à
de controle do dizer, do sentido e de seus fabricação das posições-sujeitos reservadas a
efeitos. Barack Obama. Desse modo, no espaço da
produção do sentido, pode-se ler que se no
Nesse trabalho, o processo de primeiro pleito o democrata teve sua imagem
discursivização é a chave para política positivizada, no segundo, sua
acontecimentalizar a história. Aquilo que é subjetivação foi conduzida por regimes de dizer
retomado, dito, discursivizado, trazido à negativadores.
visibilidade, inscrito na ordem da novidade e
Figura 1. The Imperial President
do ineditismo, que circula em diferentes meios
técnicos e dispositivos midiáticos, produz
efeitos de verdade, de crível e necessário à vida
de todos. Disso tem-se, por exemplo, as
manchetes breves, os artigos reveladores, a
notícia que se transveste em spots e vinhetas de
última hora, matérias jornalísticas que incidem
sobre a veracidade e obrigação da leitura,
enfim, mercadorias que se transformam em
vedetes do espetáculo, conforme assinala
Castro (2006).
O acontecimento é o produto dessa
batalha em torno do dizer. Ele é fabricado,
inscrito num jogo íngreme de poder e de www.nationalreview.com
controle que, na agressividade de sua irrupção, Na figura acima, pode-se notar a
convoca os sujeitos sociais a tarefa de assumir afirmação da posição de comandante imperial,

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927
símbolo da autoridade e centralidade de um leitura que podem ser mobilizados pelo detalhe,
governo liderado por um só. Na capa, Obama traços e indícios da imagem (COURTINE,
ocupa um lugar discursivo que denota efeitos 2011) e, ainda, pela recorrência a questão da
de capacidade e de autonomia na condução de memória, pode-se estabelecer uma relação de
uma missão – o governo e todas as suas diálogo entre a figura 1 e as respectivas
implicações – sendo apresentado como uma materialidades que se apresentam a seguir:
totalidade a ser contemplada. Figura 2. Capa Newsweek 9/11/12
O efeito de memória que pode ser mobilizada a
partir dos indícios das vestimentas, do rosto
sério e do boton de sua campanha em 2008,
inscreve a imagem de Obama como o
presidente imperial, cuja marca de governo
seria a centralidade da América como berço
regulador da política e da economia mundial.
Nessa perspectiva, o sujeito discursivo passa a
ocupar a posição de chefe supremo, de líder
cuja incumbência, considerando as condições
históricas de irrupção do acontecimento, volta-
se não somente para as dificuldades e
problemas enfrentadas na América, mas Fonte: www.newsweek.com
aquelas que dizem respeito a comunidade
internacional.
A partir do que é expresso na Figura 3. O pequeno príncipe
materialidade verbal, é possível observar a
subjetividade de Obama se inscrevendo numa
dualidade – haja vista a relação estabelecida
entre The Imperial President e His Discontents
– a qual, ao polemizar a posição do presidente
diante dos descontentamentos enfrentados no
seu governo, produz efeitos de uma resistência
e de enfrentamento no que tange à posição
política do democrata e a visibilidade de sua
imagem internacional. Trata-se de uma
estratégia discursiva para subjetivar Obama sob
efeitos de dificuldade e de desafio, acentuando
as marcas de um regime discursivo de Fonte: www.littleprinceopera.com
negatividade que, mais adiante, vão preencher
todo o espaço do acontecimento.
Por outro lado, percorrendo o espaço do A figura 2 apresenta Obama em
deslize do sentido e observando os trajetos de vestimentas historicizadas como sendo da

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realeza ou de natureza militar, sendo elas engendra efeitos de gratidão, de otimismo e de
tipicamente usadas por imperadores, reis e simplicidade, assim como exposto na obra de
monarcas que comandavam lutas armadas, Antoine de Saint-Exupéry. Essa relação
conquista de territórios e que permaneceram à corrobora, por exemplo, a justificativa
frente como representante ou referência de um apresentada pelos democratas para a reeleição
Estado de Governo. Nessa capa – assim como de Obama pela defesa de que é necessário mais
na figura 1 – Obama ocupa a posição de chefe- tempo para se alcançar um estado de plenitude
maior, estabelecendo uma relação de diálogo na América e de que o caminho para tanto não
com os efeitos de sentido mobilizados pela é fácil, embora seja totalmente possível,
materialidade verbal – “A conquista de Obama: conforme estabelece o enunciado Obama for
um general de sorte ou um mestre do jogo?” – America.
que retoma o cenário das revoluções e das Ao observar o regime de discursividade
grandes conquistas que aconteceram no período e os efeitos de sentido que são mobilizados na
que se estende da alta a baixa Idade Média. subjetivação de Obama, é possível notar a
Na respectiva figura, a manta – de operação da mídia para produzir um espetáculo
punhos, lapela, ombros e abotoamento em de imagens. Tenta-se adestrar o olhar e decidir
detalhes dourados – e a espada ocupam o o trajeto de leitura do acontecimento pela
mesmo corpo que o terno preto com o realce da efetividade de uma vontade de verdade que
gravata vermelha. Enquanto as origens do produz efeitos de evidência, seleção, recorte,
primeiro remontam às cortes francesas e ao mas também, de esquecimento, ilusão, de
uso, no passado, pelas realezas européias e/ou ficcionalização do real. É, portanto, na
“generais de sorte”, o segundo não só remete a efetividade do trabalho da polícia discursiva
formalidade no mundo dos negócios, mas que se pode notar estratégias de interdição e de
também resgata a memória dos casinos segregação do dizer que oferece o dado a ver
americanos, como peça comumente usada pelos no espaço do recorte e da ilusão de controle do
“mestres do jogo”. discurso.
No espaço das condições de Figura 3. The Inspector
possibilidade do dizer que caracteriza Obama
como o presidente imperial, a figura 3 toca na
questão da temporalidade, produzindo efeitos
de aproximação e distanciamento, de diálogo e
de ruptura. Isso porque, de um lado, se retoma
a historicidade da obra O Pequeno Príncipe, na
qual o pequeno herói com sua sensibilidade,
candura e percepção cria laços entre as pessoas,
decifra os segredos do céu, diminuindo as
distâncias e fazendo o mundo parecer menor e
melhor.
Há, nesse entremeio, o trabalho com
uma subjetividade positiva: aquela que www.nationalreview.com

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929
Ao ocupar a posição de inspetor, de
fiscal com o uso das vestimentas e dos
acessórios que caracterizam o personagem
Sherlock Homes, o sujeito discursivo tem sua
subjetividade trazida sob os efeitos de
acuidade, talento, eficiência e perspicácia que
denotam sua capacidade de enxergar o detalhe,
de decifrar os casos mais complexos e de
mostrar as soluções para aquilo que se
apresenta como complicado.
A operação de visibilidade oferece aqui
um recorte de real propondo ler a imagem
política do democrata no espaço de uma
sensibilidade incomum para os problemas que www.nationalreview.com
se apresentam. Trata-se da tentativa de se
evidenciar a agudeza da perpcepção dos Na figura 4, é a sua condição de cidadão
sentidos de Obama, especialmente da visão e do mundo que se evidencia. Na capa, Obama
da audição, marcando-o como aquele que aparece como se estivesse ao centro de um
consegue enxergar, perceber e mensurar grupo de pessoas que celebram e festejam sua
problemas, situações e desafios, além dos titularidade de citizen of the world num efeito
limites da percepção de uma pessoa comum. de sentido de que ele seria não apenas um
produto da democracia Americana mas, um
É a partir dessa discursividade que a político de perspectiva universal. No tecido
mídia mobiliza o enunciado yes, we can verbal do brasão que ocupa o centro da figura,
enxertando uma vontade de verdade ao trazer tem-se o jogo metafórico com os dizeres da
que, uma vez ocupando tais posições-sujeito, bandeira americana In God we trust dando
Obama seria o o único capaz de promover a lugar a In Barack we trust, seguido de
mudança e a transformação do cenário político- President of the world. Assim, pode-se ler o
econômico-finaceiro mundial. efeito de que a imagem de Obama – produto da
Figura 4. Citizen of the World confiança de todos – é trazida no espaço da
necessidade da comunidade internacional e não
apenas dos americanos.
Por outro lado e considerando o lugar
discursivo de oposição da revista National
Review no cenário político norte-americano,
pode-se ler que essa caracterização de cidadão
do mundo também comunga com a proposta de
que o democrata, uma vez divorciado dos
ideiais, desafios e questões internas, estaria na
posição de representante de questões

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930
internacionais e, portanto, não mais voltado
para o cenário político-econômico nacional.
Em contrapartida, é importante
mencionar que todas essas posições-sujeito que
denotam, por sua vez, efeitos de positividade,
eficácia e heroismo, são, em 2012, silenciadas
e/ou negadas. Considerando as condições de
produção que promoveram a irrupção do
acontecimento naquele momento, trata-se não
mais de produzir efeitos de centralidade,
capacidade e autonomia mas de evidenciar o
caráter de falso profetismo, de falha na gestão e
de desnudamento daquele que se apresentou ao
mundo como um herói esperado por todos. www.nationalreview.com
Desse modo, o sujeito discursivo
permanece ocupando um espaço de visibilidade As figuras 5 e 6 são atravessadas por
na cena midiática mas, agora, a partir de um uma vontade de verdade que se apresenta como
novo regime de dizibilidades. São esses os crível na revelação da intimidade daquele que
efeitos de sentido que podem ser trazidos a antes se constituíra como presidente imperial e
partir das capas a seguir: como símbolo da confiança de todos na
Figura 5. False Prophet condução do bem estar dos Estados Unidos da
América e da comunidade internacinal. O
trajeto de leitura das figuras imputa efeitos de
uma imagem política que oscila de positividade
à negação. Na figura 5, o sujeito discursivo tem
sua imagem mobilizada no espaço do falso
profetismo o que, consequentemente, atrela sua
subjetividade a efeitos de mentira, falsidade,
incapacidade e negação de poderes superiores.
Assim, não ocupando mais a posição de
homem da providência, Obama é agora o
homem comum que “joga” com a palavra para
ludibriar o outro. Não se trata mais de trazê-lo
como símbolo da esperança, mas de apresentá-
www.nationalreview.com lo no espaço de uma revelação anunciada que
Figura 6. Exposed
oportuniza efeitos de negatividade.
Em adição, a figura que traz Obama
num pedestal, sem as roupas formais
tipicamente usadas pelo presidente e como se

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estivesse conduzindo ou prestes a conduzir A mídia encontra na fortuidade do
uma fala pública, produz um efeito de discurso e na inscrição do poder e do saber o
intimidade. Na figura 6, a permanência da espaço necessário para produzir verdade e agir
gravata, do relógio e da roupa íntima, bem na esteira do controle do dizer. Assim, é a
como do posicionamento de seu corpo diante partir das condições de produção dos pleitos
do microfone, denuncia o “trabalho de eleitorais norte-americanos de 2008 e de 2012
desnudamento” do sujeito, isto é, uma vez que se pode observar a operação da mídia para
submetido a minúcia de uma visibilidade, a fabricar o espetáculo de imagens políticas e
subjetividade do democrata é “exposta”, sob o para subjetivar o democrata Barack Obama.
efeito de uma realidade ou de uma constatação: Esse sujeito discursivo teve sua imagem
aquele que ocupou discursiva e midiaticamente política trabalhada em diferentes regimes de
as mais variadas posições-sujeito é agora discursividade midiática, a qual empreendeu
trazido na intimidade de sua vida de homem efeitos de oscilação e deslocamento: de
comum. positividade à negação, de capacidade à falha,
de heroismo a falso profetismo.
Tem-se em 6, o sujeito discursivo
submetido ao exame de si, ainda ocupando a
posição de presidente, mas despido das Referências
posições que lhe foram reservadas no espaço de CASTRO, V. J. de. A publicidade e a primazia
visibilidade pública. Ele não se apresenta mais
da mercadoria na cultura do espetáculo. In:
como símbolo da esperança – aquela que COELHO, Cláudio Novaes Pinto. CASTRO,
fomentou a produtividade do enunciado yes, we Valdir José de. Comunicação e sociedade do
can – e, enquanto político comum que é “desse espetáculo (Orgs.). São Paulo: Paulus, 2006.
mundo”, volta-se para um ideal de
continuidade de governo, tendo sua COURTINE, J-J. Discurso e imagens: para
subjetividade realinhada para as questões uma arqueologia do imaginário. In:
políticas internas e ligadas à possibilidade do SARGENTINI, Vanice. CURCINO, Luzmara.
enunicado Obama for America. PIOVEZANI, Carlos. (Orgs.). Discurso,
semiologia e história. São Carlos: Claraluz,
3. Considerações finais 2011.
No espaço do acontecimento discursivo FOUCAULT, M. A ordem do discurso. São
da eleição presidencial norte-americana e Paulo: Loyola, 2006.
considerando a ação da mídia em produzir o
espetáculo de visibilidade e recorte do real, é ________. A arqueologia do saber. 7. ed. Rio
possível considerar o trabalho com estratégias de Janeiro: Forense Universitária, 2005.
discursivas que convocam o sujeito a ocupar GOMES, M. R. Poder no jornalismo:
determinadoes posições e não outras em seu discorrer, disciplinar, controlar. São Paulo:
lugar. Essa operação, incide sobre a retomada Hacker Editores. Edusp, 2003.
de memória, sobre a produção de verdade e
sobre a discursividade que engendra o trabalho LE GOFF, J. Documento e monumento. In: LE
midiático. GOFF, Jacques. História e memória.
Campinas: UNICAMP, 2003.

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NAVARRO-BARBOSA, P. O acontecimento
discursivo e a construção da identidade na
História. In: SARGENTINI, Vanice.
NAVARRO-BARBOSA, Pedro. Foucault e os
domínios da linguagem: discurso, poder,
subjetividade. São Carlos: Claraluz, 2004.
PÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou
acontecimento. Trad. Eni Puccinelli Orlandi.
Campinas, SP: Pontes, 2008.
REVISTA NATIONAL REVIEW. Covers
Archives. 1 Janeiro 2012. Disponível em:
<http://www.nationalreview.com>. Acesso em:
29/6/2015.
REVISTA NEWSWEEK. The Obama
Conquest. 11 novembro 2012. Disponível em:
<http://mag.newsweek.com>. Acesso em
29/06/2015.
SAINT-EXUPÉRY, A. O pequeno Príncipe.
São Paulo: Agir, 2008.
SILVERSTONE, R. Porque estudar a mídia?
São Paulo: Loyola, 2005.

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933
MOBILIDADE URBANA E DISCURSO: A CIDADE EM
MOVIMENTO

Camila Tavares dos SANTOS; Ilza Galvão CUTRIM


Universidade Federal do Maranhão (UFMA)
camila-tavares@live.com; ilzagal@uol.com.br

Resumo: Este trabalho centra sua atenção no lugar do sujeito do discurso a partir do
tema mobilidade urbana, na cidade de São Luís-Maranhão. A entrega de 250 ônibus
novos para a melhoria do transporte coletivo da capital maranhense é um dos
acontecimentos que produz nosso objeto de análise. Ao entregar os ônibus, a prefeitura
municipal fez uma campanha de divulgação na mídia local. Analisamos, neste artigo, uma
entrevista com o prefeito da cidade no jornal O Imparcial e uma propaganda veiculada
na TV. Destacamos, em nossas análises, os lugares e os status de onde os sujeitos –
entrevistado e narrador da propaganda – enunciam e os efeitos de sentidos resultantes de
seus discursos.
Palavras-chave: discurso; cidade; mobilidade urbana; sentidos; mídia.

falta de planejamento, por exemplo, têm


Introdução
causado prejuízos a moradores de várias
Determinados discursos sobre a cidade cidades brasileiras.
se materializam em enunciados que emergem
Muitos reclamam que em horários de
em um dado momento histórico e, dependendo
pico o tempo gasto em deslocamento de casa
da posição dos sujeitos, de suas formações
para o trabalho costuma durar o dobro do que
discursivas são moldados, coordenados,
normalmente deveria durar.
reformulados. Isso implica dizer que o olhar
não é livre, ele está submetido a regimes de Em São Luís, Maranhão, essa realidade
verdade (FOUCAULT, 2008), que ditam o que não é diferente. O crescimento populacional, o
pode e deve ser visto ou dito por uma desenvolvimento urbano, o aumento no número
sociedade em uma dada época. de automóveis geram na cidade vários
conflitos, como a disputa pelo espaço entre
O que é dito sobre a mobilidade urbana
veículos, e entre pessoas e veículos; conflito
na contemporaneidade vem sendo moldado por
político, que envolve os interesses e as
uma série de acontecimentos ligados à
necessidades dos atores; conflito entre os atores
locomoção e circulação de pessoas e bens. O
do trânsito. (SILVA, 2009)
desenvolvimento desenfreado das cidades, a

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934
e a quantidade de automóveis em circulação era
Para solucionar alguns conflitos, a
considerada baixa. (IBGE, 1970) Entre os anos
prefeitura municipal elaborou o Plano
de 1980 e 1990, a cidade passou por um
Estratégico de Melhorias para o Trânsito para
processo migratório e ampliou sua expansão
adequar os usos do espaço e melhorar a
para além do núcleo central. (PRAZERES,
mobilidade. Esse Plano visa a beneficiar
2009).
condutores, pedestres e usuários do transporte
coletivo. Dentre as ações já realizadas, a Hoje, a expansão é ainda mais visível e
prefeitura de São Luís destaca intervenções em tenta atender as necessidades de uma população
várias ruas e avenidas da capital e a compra de que já alcançou o número de um milhão de
ônibus novos para o transporte público. habitantes. Com o processo expansionista, as
distâncias se ampliaram e as dificuldades em
Em seu discurso de divulgação dessas
termos de mobilidade também.
obras, a prefeitura faz uso da mídia (TV, rádio
e jornais impressos) a fim de dar visibilidade Particularmente no que diz respeito às
ao seu trabalho. Que discursos são produzidos vias e ao transporte público, São Luís tem sido
pelo poder público nessas mídias? Que efeitos alvo de muitas reclamações da população. O
de sentido produzem? Essas perguntas ano de 2013, por exemplo, foi marcado por
orientam nossas reflexões no espaço deste várias manifestações, que interditaram avenidas
artigo. em protesto às condições de trafegabilidade e
aos serviços prestados pelo transporte público.
Este trabalho é parte da pesquisa de
Iniciação Científica, intitulada São Luís: Nesse setor, a frota de ônibus em
identidade e espaço urbano, realizada no atividade tornou-se insuficiente para atender à
interior do Grupo de Pesquisa em Linguagem e demanda. A superlotação e o tempo de
Discurso do Maranhão-GPELD. rodagem dos ônibus (existem ônibus com mais
de quinze anos ainda em atividade) são as
1. São Luís: uma cidade em expansão
reclamações mais frequentes.
A mobilidade cruza o cotidiano de uma
No início de 2015, a prefeitura
cidade, constituindo-se em um dos
municipal entregou uma frota com 250 novos
acontecimentos que estabelecem estreita
ônibus. A medida apresentava-se como
ligação com o dia-dia dos sujeitos que nela
cumprimento a uma série de exigências
habitam.
previstas em um acordo judicial firmado entre a
A mobilidade, em São Luís, passou por Prefeitura e o Ministério Público após uma
várias mudanças em sua configuração, desde greve dos motoristas de ônibus da capital que
sua fundação, em 1612 até a atualidade. A culminou com o aumento das tarifas de ônibus.
capital concentrou-se em torno do forte São
Para tornar público o cumprimento
Luís, hoje Palácio dos Leões, região central da
desse termo, a Prefeitura de São Luís promoveu
cidade. Sua expansão ainda demonstra, entre os
na mídia local a divulgação desse
anos de 1960 e 1970, uma concentração em
acontecimento.
bairros próximos ao centro. Nesse período a
população era estimada em 205 mil habitantes

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935
consideraremos aqui como o usuário do
Analisamos, em um primeiro momento,
transporte púbico, ora reproduzem uma prática
um enunciado do prefeito da cidade, em
de quem administra as condições da
entrevista publicada no dia 11 de junho de
mobilidade – que consideraremos como o
2014, no jornal O Imparcial. Em seguida,
poder público.
analisamos uma propaganda promovida pela
prefeitura, no primeiro semestre de 2015, em O discurso, para Foucault (2008), é uma
que o discurso da mobilidade produz um jogo prática social que se ampara na linguagem, na
de saberes conjugados entre população e história, para se efetivar. Os enunciados surgem
administração pública. Fazemos um recorte do como fontes inesgotáveis de produções de
enunciado que reproduz a fala oficial, na voz efeitos de sentido, pois nascem de acordo com
de um narrador. Nossa abordagem teórica o contexto, significam e podem ser
fundamenta-se nas discussões da Análise do interpretados seguindo os parâmetros de quem
Discurso, que investiga a produção social de os enuncia, para quem os enuncia, quando e
sentidos realizada por sujeitos inseridos em um como os enuncia. Um enunciado está sempre
contexto histórico, por meio da materialidade ligado a outros, não existindo um enunciado
das linguagens. (GREGOLIN, 2007). exclusivo e original. Cabe ao analista do
discurso procurar, desvendar e encaixar as
2. Discursos, sujeitos e sentidos
peças das condições de produção do discurso,
Como toda capital em expansão, São tendo como fundamento a história e o social.
Luís vem sendo atravessada por discursos
As condições de produção dos discursos
como o da mobilidade urbana. A mobilidade é
que analisamos situam-se em dois momentos:
algo característico das cidades e refere-se à
greve de motoristas de ônibus e o investimento
facilidade de deslocamentos de pessoas e bens
da prefeitura de São Luís em questões relativas
no espaço urbano. Tais deslocamentos são
à mobilidade como uma resposta à greve e à
feitos por meio de veículos, vias e todo um
pressão popular.
conjunto formado por uma infraestrutura que
implica em boas condições de vias, calçadas, O jornal O Imparcial, de 11 de junho de
acessibilidade, dentre vários outros elementos 2014, publicou a seguinte entrevista com o
que possibilitam o ir e vir cotidiano. prefeito de São Luís:
(MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2005).
Entrevista com o Prefeito de São Luís – R$
A mobilidade não é apenas uma 480 milhões para mobilidade urbana.
característica das cidades, é um direito
O Imparcial – Nos últimos dias, a cidade
constitucional do cidadão. Na maioria dos enfrentou uma greve de ônibus de mais de
centros urbanos brasileiros, esse direito esbarra 10 dias. A prefeitura desde o início
em problemas de uma sociedade que se intermediou a negociação. Por fim, um
expande sem o auxílio de novas políticas de acordo judicial determinou o aumento da
mobilidade. passagem, mas uma série de exigências
terão de ser cumpridas. Como a prefeitura
Os discursos sobre a mobilidade ora
irá se comportar para que todos os pontos
reproduzem uma prática social de quem vive os
problemas de deslocamento – que

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936
do acordo sejam cumpridos e qual será a previsse, em curto prazo, uma ação de
consequência para quem não cumprir? renovação dessa frota, com oferta de
ônibus novos. A renovação prevista no
Edivaldo – A população é testemunha de
acordo que firmamos nos permitirá uma
que, desde o princípio das negociações,
recomposição inédita de mais de metade da
assumimos postura e discurso alinhados
frota, considerando somente nossa gestão
aos interesses dos mais de 700 mil usuários
à frente da Prefeitura de São Luís. Creio
do transporte público em nossa cidade.
que a população quer um serviço de
Sempre condicionamos o estabelecimento
qualidade e isso nós exigimos e
desse acordo ao atendimento de questões
fiscalizaremos.
urgentes relacionados à renovação da
frota e à qualidade do serviço dispensado à O Imparcial – Prefeito, em relação à
população. Haveremos de permanecer em mobilidade urbana, o que tem sido feito e o
estado de vigília para cumprimento e que será feito para melhorar o trânsito?
efetividade deste que foi um acordo
Edivaldo - Entendemos ser este um dos
homologado pela Justiça do Trabalho. Na
maiores desafios colocados à nossa gestão,
ocasião, a Prefeitura exigiu a garantia da
a exemplo do que enfrentam vários outros
contrapartida empresarial, com
municípios brasileiros. Lançamos
investimentos e melhorias substanciais no
recentemente um Plano Estratégico que,
sistema, como a renovação da frota com
em linhas gerais, visa melhorar nosso
500 novos ônibus, dentre os quais 250
trânsito com medidas a serem articuladas
deverão estar circulando ainda este ano,
em curto, médio e longo prazo.
além de reforço de veículos nas linhas
Objetivamente, queremos alcançar maior
especialmente nos terminais de integração
fluidez no trânsito. Para isso, iremos
nos horários de maior intensidade de
alterar as condições de tráfego em
passageiros e o cumprimento das ordens de
algumas vias, com a implantação, por
serviço em sua plenitude garantindo 100%
exemplo, de faixas exclusivas para ônibus
da frota em circulação. Importante frisar
em parte dos corredores, como Centro/Anil
que mesmo com o realinhamento de tarifa
e Cohama/São Francisco, o que deverá
São Luís permanece entre as menores
reverter em real ganho de tempo nos
tarifas praticadas no país.
deslocamentos em nossa cidade.
O Imparcial – Existe uma reclamação
geral quanto à qualidade do transporte
Conforme Foucault (2008, p. 59), “as
público. O aumento da passagem trará
essas melhorias? O senhor acredita que
posições de sujeito se definem pela situação
terá a população ao seu lado neste que lhe é possível ocupar em relação aos
momento? diversos domínios ou grupos de objetos”. Esse
ponto de vista nos leva a pensar no lugar social
Edivaldo – Exatamente por conta disso
como ponto de construção da prática
insistimos desde o início em uma discussão
referendada nos anseios daqueles que
discursiva, que não aponta para uma unidade de
usufruem diariamente deste serviço. A sujeito homogênea, contínua, representada por
frota que nos atende é considerada uma um único lugar social, já que o sujeito, assim
das mais antigas do Brasil. Nosso como o discurso, é disperso. O lugar social se
posicionamento na mesa de negociações manifesta nos “diversos status, nos diversos
foi firme para a garantia de um acordo que lugares, nas diversas posições que o sujeito

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pode ocupar ou receber quando exerce um longo prazo. Objetivamente, queremos
discurso, na descontinuidade dos planos de alcançar maior fluidez no trânsito.
onde fala” (FOUCAULT, 2008, p. 61). Para isso, iremos alterar as condições
de tráfego em algumas vias...
O lugar social do sujeito da entrevista é
marcado por diversos status: B: Representante do executivo + poder
público:
A: Representante do executivo + a
equipe de governo, marcado pelo uso de um  Na ocasião, a Prefeitura exigiu a
nós inclusivo: garantia da contrapartida empresarial,
com investimentos e melhorias
 [nós] assumimos postura e discurso
substanciais no sistema, como a
alinhados aos interesses dos mais de
renovação da frota com 500 novos
700 mil usuários do transporte público
ônibus...
em nossa cidade.
C: Representante do executivo +
 [nós] Haveremos de permanecer em
empresários:
estado de vigília para cumprimento e
efetividade deste que foi um acordo  ... mesmo com o realinhamento de tarifa
homologado pela Justiça do Trabalho. São Luís permanece entre as menores
tarifas praticadas no país.
 Exatamente por conta disso [nós]
insistimos desde o início em uma D: Representante do Executivo +
discussão referendada nos anseios Cidadão:
daqueles que usufruem diariamente  A frota que nos atende é considerada
deste serviço. uma das mais antigas do Brasil.
 A renovação prevista no acordo que Considerando o discurso como um
[nós] firmamos nos permitirá uma espaço de exterioridade em que se desenvolve
recomposição inédita de mais de uma rede de lugares distintos, a dispersão do
metade da frota, considerando somente sujeito nos enunciados acima destacados
nossa gestão à frente da Prefeitura de assume status próprios daquele que responde
São Luís. não somente ao repórter de um jornal, como
 a população quer um serviço de também ao povo. Nessa condição, em A o
qualidade e isso nós exigimos e sujeito assume o lugar do representante do
fiscalizaremos. poder executivo e também da equipe de
governo, ou seja, ele se inclui como parte de
 Entendemos ser este um dos maiores um grupo que trabalha em nome do povo e que
desafios colocados à nossa gestão... [os responde aos anseios da população.
desafios da mobilidade]
O uso de verbo na 1ª pessoa do plural,
 Lançamos recentemente um Plano nós (assumimos, Haveremos de permanecer,
Estratégico que, em linhas gerais, visa insistimos, o acordo que firmamos nos
melhorar nosso trânsito com medidas a permitirá, exigimos e fiscalizaremos,
serem articuladas em curto, médio e

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

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Entendemos, Lançamos, queremos alcançar lucrando com uma tarifa que está abaixo das de
maior fluidez no trânsito, iremos alterar as outras cidades.
condições de tráfego) materializa essa marca de Em D, o sujeito coloca-se no lugar de
inclusão (eu: prefeito + o outro: equipe de representante do poder executivo e cidadão, ao
governo), numa reafirmação de um fazer uso de um nós inclusivo (eu:
compromisso assumido pela equipe eleita para representante do poder executivo + o outro:
trabalhar para o povo em prol da mobilidade
população que faz uso do transporte público): A
urbana. frota que nos atende é considerada uma das
O Sujeito de A pretende demonstrar mais antigas do Brasil. Como prefeito, ele
que não se omite em momentos de crises, que pretende justificar que, ao assumir a prefeitura,
procurou negociar com os empresários de já recebeu uma frota de ônibus antiga. Ao
empresas de ônibus, e que assumiu “postura e empregar nos atende, se inclui com os usuários
discurso alinhados aos interesses dos mais de dessa frota, como herdeiro de um sistema de
700 mil usuários do transporte público” da transporte que não oferece boas condições de
“nossa cidade.” e que permanece em “estado trafegabilidade
de vigília para cumprimento e efetividade deste No segundo momento de nossas
que foi um acordo homologado pela Justiça do análises, destacamos uma propaganda
Trabalho”. veiculada na TV e no rádio pela prefeitura de
Em B, o sujeito coloca a prefeitura São Luís. A propaganda, do latim propagare,
como sujeito principal (a Prefeitura exigiu a significa propagação ou divulgação de
garantia da contrapartida empresarial). Ela é determinada informação, ideia, nome. A
o órgão oficial a fazer a exigência necessária propaganda da prefeitura é uma propaganda
para que o acordo seja cumprido. Ao dar institucional. Asseguradas por lei, as
destaque para a prefeitura municipal, o sujeito, propagandas institucionais são uma espécie de
representante do poder executivo, assume, prestação de contas dos atos governamentais e
diante dos empresários, que é dever do órgão da aplicação do dinheiro público. Elas têm por
competente cumprir esse papel. Ele, enquanto objetivo informar sobre o início de programas,
chefe do executivo, aparece como coadjuvante de conclusão de obras, de previsões
dessa tarefa. orçamentárias. É uma forma de interação entre
o Governo e a população, fornecendo uma
O sujeito se coloca no lugar de C
imagem aprazível para obter maior cooperação,
(Representante do executivo + empresários), ao
credibilidade, e motivação popular em torno do
(re)produzir um discurso muito conhecido dos
programa de governo. (SANT’ANNA, 1990).
empresários do setor de transporte coletivo para
justificar o reajuste da tarifa: “mesmo com o A propaganda veiculada pela prefeitura
realinhamento de tarifa São Luís permanece de São Luís esteve na mídia nos meses de
entre as menores tarifas praticadas no país.” março e abril de 2015, após a aquisição de
Esse enunciado tenta mostrar à população que, ônibus novos. Ela combinava a voz de um
diante dos reajustes que outras cidades narrador e a voz de moradores locais sobre as
brasileiras vêm sofrendo no setor de transporte mudanças que a compra de ônibus estava
público, os ludovicenses ainda estariam promovendo. Destacamos apenas a voz do

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

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narrador. Os colchetes indicam o turno de fala necessária à manutenção e transformação dos
dos moradores: saberes.” (VOSS, 2011, p. 43).

Prefeitura faz a entrega de 250 ônibus O sujeito narrador da propaganda fala


novos aos usuários de transporte coletivo. do lugar do poder público: a Prefeitura
Municipal. Esse estatuto é espontaneamente
A prefeitura de São Luís está garantindo o aceito; há dois turnos de fala: do narrador e da
cumprimento da entrega de 250 ônibus
população entrevistada. Ou seja, não ouvimos
novos aos usuários de transporte coletivo.
Diariamente 400 mil pessoas já estão apenas o poder público falando; o povo
percebendo o conforto e segurança na sua também tem voz na propaganda. Como
mobilidade. narrador, ele informa o ouvinte/telespectador
sobre o cumprimento de um acordo firmado
[…]
com a população, ao entregar 250 ônibus. Para
Todos têm equipamentos de acessibilidade referendar esse discurso, afirma que a
para cadeirantes. quantidade de pessoas atendidas por essa nova
[…] frota (400 mil) já está vivendo a melhoria em
sua mobilidade.
É com atitude e responsabilidade que a
Prefeitura de São Luís vem cumprindo seus A imagem que o narrador produz é de
compromissos correspondendo a grandes uma prefeitura responsável, atuante, que
necessidades da nossa população. responde às expectativas da população, quanto
[…] às questões relativas à mobilidade. A prefeitura
se preocupa com o bem-estar da população,
Prefeitura de São Luís, capital de todos os
maranhenses. sem excluir ninguém – Todos [os ônibus] têm
equipamentos de acessibilidade para
cadeirantes. Esse enunciado marca o discurso
Para Foucault (2008), os diferentes da inclusão, referendado pelo slogan da
modos de produção de enunciados estão prefeitura: São Luís, capital de todos os
associados aos modos de inserção do sujeito maranhenses.
que enuncia, ou seja, ao lugar de fala, aos
lugares institucionais, à situação. Esse enunciado reflete uma prática
discursiva que produz saberes sobre São Luís
Ao se referir ao lugar de fala, Foucault como uma cidade que é administrada em prol
(2008, p. 57-8) propõe algumas perguntas, de um bem comum: a mobilidade.
como: quem fala? Qual é o estatuto dos
indivíduos que têm – e apenas eles – o direito 4. Considerações finais
regulamentar ou tradicional, juridicamente A mobilidade tem sido produzida,
definido ou espontaneamente aceito, de proferir discursivamente, como um caminho para uma
semelhante discurso? O lugar institucional diz cidade oferecer melhor qualidade de vida a seus
respeito ao lugar de onde se obtém o discurso. habitantes.
“Os lugares institucionais que relacionam
sujeito e discurso funcionarão como Em nossas análises, a mobilidade na
legitimadores da verdade inerente ao discurso e cidade de São Luís está associada ao transporte

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

940
coletivo e suas boas condições de uso. Após .php/estudosdalinguagem/article/view/88. 2007
manifestações de populares, que interditaram <Acesso em 20 de julho de 2014>
ruas e avenidas pedindo ônibus novos, e após IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e
um período de greve de motoristas condutores Estatística. Anuário estatístico do Brasil 1936.
de ônibus que fazem o transporte público, a Rio de Janeiro: 1970.
prefeitura entrou em acordo com os
empresários do setor de transporte e o resultado LACROIX, M. L. L. São Luís do Maranhão:
foi a aquisição de uma frota de ônibus novos. corpo e alma. São Luís: 2012.
A fim de divulgar o sucesso dessa MINISTÉRIO DAS CIDADES. Mobilidade
negociação, o prefeito municipal utiliza a mídia urbana é desenvolvimento urbano. Brasília:
local. Em uma entrevista ao jornal O Imparcial Ministério das Cidades, 2005. Disponível em:
– jornal que dá apoio a seu partido político – o <http://www.polis.org.br/uploads/922/922.pdf.
prefeito assume vários lugares de fala, Acesso em 19 jul 2015.
representados aqui por A, B, C e D. Em cada PRAZERES, M. G. N. Na trilha da
um desses lugares, ele revela status diferentes: modernização: uma análise da mobilidade dos
representante do executivo + a equipe de bondes elétricos em São Luís do Maranhão. In:
governo, representante do executivo + poder ALCÂNTARA JÚNIOR, J. O.; SELBACH, J.
público, representante do executivo + F. (Org.). Mobilidade Urbana em São Luís. São
empresários, representante do Executivo + Luís: Edufma, 2009. p. 25-67. Disponível em:
Cidadão. <http://www.gepfs.ufma.br/livros/LIVRO%20
No segundo momento das análises, o ELETRONICO%20MOBILIDADE%20URBA
sujeito narrador fala, na propaganda oficial, do NA.pdf>. Acesso em 12 mai 2015.
lugar do poder público, que é um lugar SANT’ANNA, A. Propaganda: teoria, técnica
institucional que cumpre suas promessas. e prática. 7. ed. São Paulo: Thomson Learning,
Nesses diferentes status, sujeitos e 1990.
sentidos se constituem. O sujeito alinha seu SILVA, J. R. C. Os desafios para o uso do
discurso com o discurso do poder público, da automóvel no espaço urbano de São Luís. In:
população, dos empresários produzindo ALCÂNTARA JR, J. O.; SELBACH, J. F.
sentidos e refletindo lugares afetados por (Orgs.). Mobilidade urbana em São Luís. São
relações de poder. Luís: EDUFMA, 2009. p. 71-84. Disponível
em:
<http://www.gepfs.ufma.br/livros/LIVRO%20
Referências ELETRONICO%20MOBILIDADE%20URBA
NA.pdf>. Acesso em 28 set 2015.
FOUCAULT, M. A arqueologia do saber.
Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. 7. ed. Rio de VOSS, J. O conceito de formação discursiva de
Janeiro: Forense Universitária, 2008. Foucault e o tratamento de objetos da mídia:
sobre a responsabilidade social na publicidade
GREGOLIN, M. R. Identidade: objeto ainda
impressa brasileira. 2011, 140f. (Dissertação
não identificado? Disponível em:
em Letras). Programa de Pós-graduação em
http://www.estudosdalinguagem.org/seer/index

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

941
Letras. Universidade Estadual de Maringá,
2011.

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942
OS PRINCÍPIOS DA TUTORIA DE ÁREA E O PAPEL DO
TUTOR NA CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO PROFESSOR

Cássia Rodrigues dos SANTOS; Agostinho Potenciano de SOUZA


Universidade Federal de Goiás (UFG/Discens)
casssiarodrigues25@hotmail.com; apotenciano@uol.com.br;

Resumo: Este trabalho busca apresentar algumas reflexões acerca do ensino de formação
continuada no Brasil, para, em seguida, discorrer a respeito dos princípios da "Tutoria de
área" e do papel do tutor na constituição do sujeito professor. Para tal, são considerados
os conceitos de tutoria e tutor, bem como o de sujeito. A ideia é demonstrar de que modo
a formação continuada in loco, por meio de seus princípios, possibilita a inserção do
professor como sujeito ativo no processo de capacitação. Tal inserção é orientada pelo
tutor por meio do "cuidar de si", situação na qual o professor reflete sobre a própria
prática de modo a promover mudanças que alcancem a aprendizagem do aluno.
Palavras-chave: formação continuada; tutoria de área; tutor; sujeito professor.

dizer que a maioria deles é oferecida ao


Introdução
professor para aprofundar o conhecimento em
Nas últimas décadas, cresceu o número áreas específicas, mas que não necessariamente
de estudos que se intitulam como sendo de atendem às necessidades em sala de aula.
"formação continuada" e que oferecem Talvez isso decorra do fato de que não há um
alternativas para melhorar a prática do envolvimento direto entre formador e o outro,
professor em sala de aula, bem como sua no caso o professor, e falta consideração do
valorização profissional. Neste sentido, várias conhecimento e dos contextos de trabalho.
são as discussões acerca dos conceitos de Pois, esse modo de formação, não leva em
formação continuada no meio educacional que conta que
ora se apresentam como sendo estudos
presenciais em cursos oferecidos pela [...] o que é específico, no mundo social, é
secretaria, ora em plataformas on line, à o fato de os significados que o caracterizam
distância. Até mesmo estudos coletivos e serem construídos pelo homem, que
reuniões escolares se enquadram nessa interpreta e reinterpreta o mundo a sua
volta, fazendo, assim, com que não haja
terminologia.
uma realidade única, mas várias realidades
No que concerne ao impacto desses (MOITA LOPES, 1995, p. 331).
cursos na formação dos professores, pode-se

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943
colocado no processo de formação continuada e
Quando se propõem estudos que não
é corresponsável pelo seu próprio ensinamento.
consideram o sujeito e suas práticas como
Ao buscar uma formação continuada, ele, o
ponto de partida e as várias realidades e
professor, ocupa-se consigo mesmo, em relação
necessidades dos grupos de estudo, acaba-se
às falhas da pedagogia, considerando que é
por apenas informar mais algum conhecimento
preciso corrigir essas falhas por meio de uma
que, provavelmente, o professor desconheça ou
formação.
tenha dúvidas, ou ainda, que ao final leve na
bagagem mais algumas "receitas" a serem Por essa razão, neste trabalho, nos
aplicadas e reaplicadas que, por vezes, não dispomos a apresentar de que modo os
modificam suas práticas. princípios de tutoria de área podem ser
análogos aos da Hermenêutica do Sujeito de
De certo modo, essas formas de ensino
Foucault. Aspectos observados por nós, por
acabam por instruir de alguma maneira, pois
meio da experiência e prática de tutor em um
sempre ocorrerão mudanças no discurso, já que
projeto de tutoria de área desenvolvido no
o professor passa a acreditar em novas teorias,
Estado de Goiás.
sem apresentar, contudo, mudanças em suas
práticas. Na verdade, as teorias e modelos não 1. Tutoria de área
são suficientes para preparar adequadamente o Tutoria é uma metodologia de formação
profissional, tornando-se, segundo Moita Lopes oferecida ao professor com o objetivo melhorar
(1995) um grande equívoco, pois o sua prática em sala de aula através de reflexão
conhecimento é um processo, no qual, o no exercício da função. Essa metodologia é
professor e o aluno-professor precisam se desenvolvida in loco, ou seja, o tutor, um
engajar para obter uma prática de construção de profissional mais "maduro", se desloca até o
conhecimento, aspecto muitas vezes, esquecido ambiente escolar e lá
nas formações continuadas.
Sob essa perspectiva, entendemos que a [...] reconhece e valoriza as competências
do tutorado para, assim, desencadear o
Tutoria de Área e o trabalho do tutor podem se
processo de aprendizagem e agregar novos
caracterizar como um tipo de formação que conhecimentos, de caráter prático e
procura evitar essa simples transposição e modelar ao contexto em que está atuando
aplicação teórica pelo professor em sala de (FUNDAÇÃO ITAÚ SOCIAL, 2014a).
aula. O modo como a formação in loco é
projetada possibilita o estudo de determinadas
De acordo com dados do site da
teorias, mas partindo da prática do professor.
Fundação Itaú Social (FIS) o programa de
Primeiro, que ao propor determinado estudo, o
Tutoria é um dos resultados do projeto-piloto
tutor precisa partir de um diagnóstico e das
"Excelência em Gestão Educacional", realizado
necessidades reais do professor para depois
em parceria com a Secretaria de Educação do
apresentar algum tipo de estudo. Muitas vezes
Estado de São Paulo com o objetivo de
o trabalho é centrado na construção e
desenvolver metodologias de gestão e
desconstrução das concepções que o professor
supervisão do trabalho pedagógico que
tem em relação ao ensino de Língua
fortalecessem o compromisso da direção,
Portuguesa. Nesse sentido, o professor é

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944
coordenação, corpo docente e das famílias dos questões fundantes para a construção do sujeito
alunos. bem integrado ao papel de cidadão na
construção social. Tal percepção nos permitiu
O Projeto teve inspiração na Reforma
vivenciar e testemunhar no dia a dia com os
Educacional de Nova York, reconhecida pelos
professores experiências que julgamos ser um
avanços nos índices de aprendizagem e
"cuidado de si" conduzido pelo nosso papel de
desenvolvido a partir de estratégias do governo
tutor. Assim, tentamos explorar esse olhar na
americano. Com base no que foi visto lá, foram
seções que se seguem.
realizadas adaptações de tais estratégias ao
contexto brasileiro. Assim, entre os anos de 2. Tutor: o que é?
2009 e 2011 o projeto-piloto em "Gestão Mentor, um sábio e fiel amigo de
Educacional" foi desenvolvido em dez escolas
Ulisses, é um personagem pouco importante na
pertencentes à Diretoria de Ensino Leste 3 da obra Odisseia, de Homero, responsável por
rede estadual de São Paulo. cuidar do filho de Ulisses, Telêmaco. Homero
Em 2009 foi implantado o programa de o apresenta como sendo um adulto experiente
tutoria na rede estadual paulista e a que acompanha Telêmaco em sua jornada em
transferência da tecnologia social foi realizada busca do pai. Durante a narrativa, Mentor vai
por meio da Secretaria Estadual de Educação. assumindo vários papéis em relação ao jovem
Posteriormente, a partir de 2012, o projeto foi rapaz, sendo, muitas vezes, orientador,
estendido a Goiás através de uma parceria entre professor, conselheiro, guia, padrinho, amigo
o Governo do Estado e a Fundação Itaú social. mais velho, tutor e mentor. E muito das
características atribuídas a esse personagem,
Em maio de 2012, iniciamos nossa
como sabedoria, cuidado, podem fazer
experiência enquanto formadora, atendendo 12
referência ao que se entende, atualmente, em
escolas da regional de Trindade (cidade do
relação ao termo "tutor".
interior de Goiás), atendendo 75 professores de
Língua Portuguesa da rede estadual de ensino. A partir dessa obra, o nome mentor
E todo processo consistia em recebermos a passou a figurar como sendo aquela pessoa
formação dos tutores da FIS, que vinham para mais experiente e que possui a competência
Goiás a cada 15 dias. Nós, tutoras de área, para orientar os mais jovens e inexperientes em
reaplicávamos os protocolos aprendidos suas jornadas. Assim,
durante esses estudos junto aos professores nas
escolas. O projeto-piloto durou cerca de três [...] mentores são guias. Eles nos conduzem
anos e os resultados foram bastante ao longo da jornada de nossas vidas. Nós
satisfatórios. acreditamos neles porque eles estiveram lá
anteriormente. Eles incorporam as nossas
Nesse período, além da formação da esperanças, iluminam o caminho que
FIS, realizamos estudos sobre a questão do estamos prestes a percorrer; interpretam
sujeito em Foucault (2010). Pudemos notar que sinais misteriosos, nos previnem de perigos
parece haver uma relação entre a proposta de ocultos e mostram satisfações inesperadas
tutoria e os estudos sobre o cuidado de si, ao longo do caminho (DALOZ, apud
BELLODI, 2005, p. 69).
referidos por Foucault. Ambos abordam

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945
No entanto, normalmente, ela é uma função
No que concerne ao campo educacional,
atrelada ao papel do professor e que pode ser
a palavra "mentor", ao longo dos anos, também
realizada, tanto de forma coletiva, quanto
veio sofrendo variações no tocante a
individualmente. Por este motivo, compreende-
nomenclatura. No momento, um dos termos
se que
mais utilizados para designar o mesmo que
mentor é a palavra tutor, etimologicamente de [...] tutor e tutoria são dois conceitos
origem latina, significa "guarda, defensor, complementares que significam o conjunto
protetor". das atuações de orientação pessoal,
acadêmica e profissional formulado pelos
Para Vieira (2011), o termo tutor, em
professores com a colaboração dos alunos e
educação, teve diferente papéis ao longo da da própria instituição (VIEIRA, 2011, p. 5).
história, mas que pode-se atribuir a Platão a
prática de tutorial, e que construiu um ensino
baseado na relação de diálogo cujo objetivo era Ao considerar todos esses aspectos,
fazer nascer a sabedoria. Era um tipo de pode-se afirmar que novas competências e
diálogo que se baseava em questionamentos habilidades são esperadas desse sujeito tutor
feitos entre Platão, Sócrates e seus discípulos e para que possa exercer essas novas funções e
que serviam como orientação. Já na Idade papéis, dentre elas, o tutor de área, por
Média, para a aristocracia, o tutor é aquele que exemplo.
assume o papel de educador contratado pelas 3. Abordagem teórica e metodológica
famílias ricas para ser encarregado da educação
Na sua organização geral, a tutoria tem
das crianças.
alguns princípios nos quais o tutor se apoia
Mas, vale destacar que, naquele para desenvolver o trabalho de formação com o
período, o papel do tutor era mais amplo do tutorado e que são: Aprendizagem na prática;
que aquele desempenhado na atualidade. Já Parceria; Customização; Protocolos e
durante os anos sessenta, foram criados combinados; Intencionalidade e transparência;
programas de educação nacional com intuito de Foco na aprendizagem dos alunos. Desses
diminuir o insucesso dos alunos, especialmente princípios pode-se depreender a construção de
nas universidades. Os programas consistiam em um sujeito professor que não é meramente
designar os alunos mais velhos e mais receptor de informações, já que ele faz parte do
capacitados, em termos de conhecimento, para processo de formação e precisa "ocupar-se de
ajudar aqueles com mais dificuldades. Criaram- si" para conseguir obter o ensinamento.
se, assim, os sistemas de monitoria.
Partindo dessa ideia, pode-se dizer que
Nos anos oitenta houve várias esses princípios de tutoria se relacionam ao
experiências de tutoria que receberam diversos "cuidado de si", conjunto de práticas
nomes: monitoria, tutoria entre estudantes, pesquisadas por Foucault (2010), que tiveram
tutoria intraclasse, tutoria interclasse (alunos de grande importância na Antiguidade clássica. O
classes mais avançadas ajudavam os alunos dos cuidar de si diz respeito ao termo grego
níveis iniciais), entre outros. Assim como para epiméleia heautou e em latim, cura sui. Isso
o termo tutor, há várias definições para tutoria. quer dizer que

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946
proficiência, à medida que conhece e se
[...] o princípio de que se deve 'ocupar-se reconhece. E a partir desse avanço, o tutor deve
consigo', 'cuidar de si mesmo' está sem sair de cena e deixá-lo acreditar que foi capaz
dúvida, aos nossos olhos, ofuscado pelo de avançar sozinho.
brilho do gnôthi seautón. É preciso lembrar
que, porém, que a regra de ter de conhecer Por fim, o cuidar de si também diz
a si mesmo foi regularmente associada ao respeito ao outro, nesse caso em específico,
tema do cuidado de si. Na cultura antiga, de tem-se na outra ponta, a aprendizagem do
ponta a ponta, é fácil encontrar aluno. Assim, à medida que o professor reflete
testemunhos da importância conferida ao e avança em termos de mudança de prática, a
'cuidado de si' e de sua conexão com o tema aprendizagem do aluno será uma consequência
conhecimento de si (FOUCAULT, 2010, p.
de tal reflexão.
443).
4. Tutoria de área como o "cuidado de si
Em relação a essas ideias e ao papel mesmo"
daquele que orienta (mestre/tutor) a "cuidar-se Iniciemos nossa aproximação entre
de si", Sócrates diz que existem três coisas tutoria e o cuidado de si pelo princípio da
importantes: "Aprendizagem na prática", que diz respeito ao
fato de que o adulto aprende "a partir da
[...] é uma missão que lhe foi confiada pelo experiência e da reflexão sobre a sua prática".
deus, e não abandonará antes do último
Segundo o Guia (2014a), com base em
suspiro; é uma tarefa desinteressada, pela
qual não pede nenhuma retribuição,
pesquisas, o adulto à medida que se sente
cumpre-se por benevolência; enfim, é uma desconfortável em relação ao que já domina
função útil para a cidade (FOUCAULT, tem a necessidade de buscar novos
2010, p. 443). conhecimentos que o ajudem a promover
mudanças. Mas se ele receber um suporte para
Esses aspectos que podem ser lidar com os erros e o sentimento de frustração,
relacionados ao papel do tutor dentro da tutoria acabará por aprender mais intensamente. Como
de área, já que este deve-se pautar nas mencionado, essa aprendizagem ocorre no
premissas de que ele é um par mais avançado cotidiano escolar e na sala de aula, local onde o
que está na escola para ajudar o professor a professor coloca em prática o seu saber. Assim,
"cuidar-se de si". E esse cuidado diz respeito ao ao participar de cursos de formação, o
nível de satisfação pessoal do professor em professor que recebe orientações técnicas e
relação ao trabalho que desempenha e reflexão [...] consegue se apropriar melhor desses
acerca da própria prática. Assim, este é um conteúdos ao aplicá-los no seu cotidiano,
trabalho, no qual, o tutor precisa estabelecer ao vivenciar erros e acertos, ter espaço para
parceria, pois é preciso haver confiança para refletir sobre o que não deu certo, tentar de
conduzir o pensamento e a prática do outro. novo, fazer ajustes, adaptações
Além disso, há a customização que passa pelo (FUNDAÇÃO ITAÚ SOCIAL, 2014a).
"conhecimento de si", aspecto que leva o
profissional a avançar em termos de

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947
completam as prescrições práticas, enquanto as
Nesse aspeto, o tutor, enquanto par mais
cartas (90-91) de Sêneca expõem claramente
avançado - mais maduro - é o responsável por
que os
observar, modelar e levar o profissional a
refletir e ao mesmo tempo estimulá-lo a não [...] discursos verdadeiros de que
desistir diante dos obstáculos, pois o "cuidar de precisamos só concernem àquilo que somos
si" tem uma função de luta, na qual "é preciso em nossa relação com o mundo, em nosso
fornecer ao indivíduo as armas e a coragem que lugar na ordem da natureza, em nossa
lhe permitirão lutar durante toda a sua vida". dependência ou independência quanto aos
(FOUCAULT, 2010, p. 447). acontecimentos que se produzem. Não são,
de forma alguma, uma decifração de nossos
O que possibilita o confronto com esses pensamentos, de nossas representações, de
obstáculos são os discursos nossos desejos (FOUCAULT, 2010, p.
449).
[...] lógoi, entendidos como discursos
verdadeiros e discursos racionais. (...). O
equipamento de que precisamos para Isto equivale dizer que é refletindo
enfrentar o porvir é um equipamento de sobre a prática a partir de uma base teórica que
discursos verdadeiros. São eles que nos o tutorado será capaz de "livrar-se dos maus
permitem afrontar o real (FOUCAULT, hábitos". Assim, o tutor é o responsável por dar
2010, p. 449). o aparato que leve o tutorado a reconhecer as
suas dificuldades e a detectar pontos de
A esse respeito colocam-se três atenção. À medida que há o desconforto em
questões: a questão da natureza; o modo de relação a uma situação real, o tutor pode ajudar
existência em nós desses discursos verdadeiros; o tutorado a reencontrar o caminho, já que ele
questões técnicas sobre os métodos dessa é o par mais avançado. Além de que esse é um
apropriação. bom meio de se estudar as teorias discutidas na
academia e a transposição teórica para a prática
A questão da natureza solicita como do professor.
principal aspecto a necessidade dos
conhecimentos teóricos. Segundo os A segunda questão diz respeito
epicuristas, a importância de se exatamente ao modo de existência em "nós
desses discursos verdadeiros" e que eles são
[...] conhecer sobre os princípios que regem necessários ao porvir e que possamos recorrer a
o mundo, a natureza dos deuses, as causas eles quando necessário. É preciso repensar as
dos prodígios, as leis da vida e da morte é, experiências e tirar proveito delas, aprender
do seu ponto de vista, indispensável a fim com os erros, de modo que eles sejam
de se preparar para os acontecimentos comparados a um medicamento ao qual
possíveis da existência (FOUCAULT,
recorremos para evitar que uma má prática
2010, p. 448).
continue a se repetir.

.Quanto a esse mesmo ponto, os Nesse sentido, o formador também pode


estoicos atribuíam mais importância aos ser aquele que funciona como um
dógmata, aos princípios teóricos que medicamento, um amigo seguro "cuja presença

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948
útil na adversidade nos traz socorro"
Ao considerar esses aspectos, vê-se que
(FOUCAULT, 2010, p. 450), e leva o tutorado
é necessário que o professor tenha junto dele
a refletir acerca dos problemas existentes e a
um par que seja capaz de levá-lo a perceber as
pensar em meios para solucioná-los. É claro,
suas dificuldades cotidianas, apresentar-lhe o
entretanto, que as dificuldades que porventura
conhecimento teórico, mostrar-lhe as
o tutorado apresente não podem ser
possibilidades do como fazer, para depois,
simplesmente apontadas pelo tutor, é preciso
sozinho, ser capaz de colocar em prática.
que ele seja levado a perceber por meio de
Aspecto que também corrobora a ideia de que
estratégias e que ao final seja capaz de pensar
"não se pode ocupar-se consigo sem a ajuda de
em uma solução em conjunto com o tutor.
um outro" e, neste sentido, o papel do tutor é de
O que é apresentado pelo tutor deve formador e não informador, pois o professor
servir para formar a prática do tutorado e não precisa de um par mais maduro que o oriente,
apenas ser visto como mera transmissão de mas sem julgamentos pré-concebidos. O que
informação, do contrário, pode não ocorrer a será possível apenas por meio do
apropriação do ensinamento. Sêneca afirma estabelecimento de uma parceria.
que, em relação aos conselhos dados por
O princípio de "Parceria" é a base para
Demetrius, é "preciso segurá-los com as duas
que ocorra a formação continuada, pois ele se
mãos (utraque manu) sem jamais soltar; mas é
sustenta na confiança, honestidade e o respeito
preciso também fixá-los, atá-los (adfigere) e
mútuo entre tutor e tutorado. E ser parceiro não
conseguir finalmente, por uma meditação
significa
cotidiana, que os 'pensamentos salutares se
apresentem por si mesmos'". Nesse aspecto, o [...] ser condescendente ou passivo em
"cuidar de si" tem uma função de luta relação ao que o tutorado traz ou faz. O
constante. tutor, sendo um formador, é parceiro na
O papel do formador é o de estabelecer, medida em que não abre mão da
responsabilidade de questionar e dar
juntamente com aquele que recebe a formação,
feedback, de introduzir conceitos e
as verdades que guiaram e guiarão a sua prática estratégias novas para o tutorado, de
em sala de aula. Torna-se necessária uma estimular o seu desenvolvimento
(FUNDAÇÃO ITAÚ SOCIAL, 2014a).
[...] absorção de uma verdade dada por um
ensinamento, uma leitura ou um conselho,
e o que assimilemos até fazer dela uma Por essas razões, a parceria é um
parte de nós mesmos, até fazer dela um processo no qual se requer disposição de ambos
princípio interior, permanente e sempre parceiros para rever suas práticas e transformá-
ativo de ação. Em uma prática como esta las. Para que ocorra de fato uma parceria, é
não encontramos, pelo movimento da necessário que o formador considere o sujeito e
reminiscência, uma verdade escondida no se posicione ao lado dele, não como aquele que
fundo de nós mesmos; interiorizamos
tem algo pronto a oferecer, mas a construir
verdades recebidas por uma apropriação
sempre crescente (FOUCAULT, 2010, p. junto por meio do diálogo.
450).

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de se avaliarrem os marcos de avanço, tanto
A construção do diálogo entre os
por parte do tutorado, quanto do tutor. Assim,
parceiros é o que vai ditar o modo como
os registros dos encontros entre os parceiros
ocorrerá o ensinamento. E aqui pode-se discutir
são de extrema relevância no processo de
a terceira questão em relação aos discursos
formação continuada, até mesmo porque são
verdadeiros e as técnicas sobre o método de
eles que delineiam os feedbacks a serem dados
apropriação do ensinamento. Neste aspecto, a
ao longo da formação. Aspectos como esses
memória tem papel relevante, não por
mencionados é que vão possibilitando a
simplesmente recobrar as experiências, mas por
constituição do sujeito professor com práticas
ser capaz de estabelecer uma progressão no
mais eficazes, dando, assim, um caráter de
tocante à aprendizagem. Do mesmo modo, a
customização a formação continuada in loco.
escuta também tem grande importância, de
ambos os lados. Pois, ao tutor/tutorado não E a customização é o grande diferencial,
basta apenas ser um bom observador, é preciso porque, embora a tutoria se trate de uma
desenvolver a escuta ativa. Escuta, que assim formação continuada, ela precisa ser adequada
como em Plutarco ou em Fílon de Alexandria, à realidade e necessidades de cada tutorado.
possui uma regulamentação como: "a atitude Por meio da customização, o tutor será capaz
física a tomar, a maneira de dirigir a atenção, o de atender as especificidades de cada tutorado e
modo de reter o que acaba de ser dito" e em a partir da observação construir um diagnóstico
algum momento, saber fazer uso do dito/ouvido que será o ponto de partida para a elaboração
em favor da formação do tutorado. de um plano de formação de tutoria. Plano que
atenda aos seus pontos positivos e pontos de
Igualmente à escuta, a escrita também
atenção em relação aos eixos de gestão, prática
tem o seu papel e conservar cadernos de
de sala de aula, avaliação e planejamento.
apontamentos sobre os assuntos tratados nos
Aspectos que só serão possíveis de serem
encontros de tutoria e dos assuntos importantes
desenvolvidos, após o estabelecimento da
"(que os gregos chamavam de hypomnémata) a
confiança, pois o "cuidar de si" pressupõe o
serem relidos de tempos em tempos para
enfrentamento de fraquezas e fortalezas.
reatualizar o que continham" (FOUCAULT,
Assim, o tutor precisa propor ações que tenham
2010, p. 451). É através da escuta ativa e de
uma intencionalidade clara e transparente, mas
anotações de pontos relevantes que o tutor,
sem imposições. O cumprimento dos
num processo de apropriação, consegue
combinados é uma máxima entre os parceiros.
compor o seu pensamento em relação ao
tutorado e, a partir disso, torna-se capaz de No que concerne aos "Protocolos e
fazer colocações pontuais nos momentos combinados", o Guia (2014a, p. 9) assevera que
adequados. Registrar os combinados a serem a integridade e manutenção da parceria exige
desenvolvidos por ambos é uma maneira de um "compromisso de tempo, energia e esforço
estabelecer o compromisso previamente de ambas as partes", isto porque, toda relação
firmado. necessita de combinados e protocolos básicos
para que se sustente. E no caso da tutoria,
Além disso, a composição de um
apesar dos combinados serem firmados no
registro daquilo que vai sendo estabelecido na
início da parceria, eles precisam ser
parceria pode servir de retomada no momento

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rememorados e reforçados ao longo do trabalho tutorado tenha consciência do processo de
em conjunto. Assim, formação e de que o seu avanço depende da sua
própria apropriação e consequentemente do
[...] esses combinados e protocolos resultado da aprendizagem do aluno.
oferecem a estrutura básica para que a
relação de tutoria seja um ambiente seguro Sob essa perspectiva, a tutoria trabalha
para o tutor e tutorado discutirem dilemas, com intuito de aprimorar os conhecimentos,
receios, problemas, tomarem decisões, reflexão e prática do tutorado, mas com "foco
darem e receberem feedback (FUNDAÇÃO na aprendizagem dos alunos". A tutoria parte
ITAÚ SOCIAL, 2014a). do princípio de que todo aluno tem o direito de
aprender e para que isto ocorra é necessário
Daí decorre a grande importância dos investir na formação do profissional, pois o
registros, prática de que o tutorado se apropria professor é o grande responsável por garantir
a partir do próprio exemplo do tutor. esse direito do aluno, propiciando-lhe altas
expectativas de aprendizagem (GUIA DE
Quanto á "intencionalidade e
TUTORIA DE AREA, 2010, p. 9). Esse
transparência", pode-se dizer que é um
aspecto pode ser caracterizado como o
princípio que rege as ações da tutoria, pois cada
princípio que sustentou o ensinamento de
movimento do tutor deve ser planejado de
Sócrates a Alcebíades: o fato de que "cuidar de
modo a "alinhar com o tutorado as
si" é uma "função útil para a cidade"
expectativas, responsabilidades/papéis das
(FOUCAULT, 443), pois à medida que o
partes e combinados", assim, ele será capaz de
professor se ocupa consigo mesmo, com sua
compreender de que modo ocorrerá o seu
formação, ocupa-se também com o aluno e a
desenvolvimento, tornando-se corresponsável
sua aprendizagem e, consequentemente, com a
pela sua própria aprendizagem. Dessa forma, o
sociedade.
sujeito vai se apropriando da verdade e esta
passa a se vincular a ele. No entanto, vale 5. Considerações finais
esclarecer que, O percurso seguido até o momento nos
leva a algumas reflexões importantes acerca do
[...] não se trata de descobrir uma verdade
no sujeito nem de fazer da alma o lugar em processo de formação continuada e de como os
que, por um parentesco de essência ou por princípios da tutoria de área e o papel do tutor
um direito de origem, reside a verdade (...). contribuem para a constituição do sujeito
Trata-se, ao contrário, de dotar o sujeito de professor. Compreendemos que a formação in
uma verdade que ele não conhecia e que loco é um processo capaz de levar o professor a
não reside nele, trata-se de fazer dessa "cuidar de si", por meio da busca por uma
verdade aprendida, memorizada, verdade que será capaz de promover mudanças
progressivamente aplicada, um quase- em sua prática em sala de aula.
sujeito que reside soberanamente em nós
(FOUCAULT, 2010, p. 451). Entendemos que essa mudança só é
possível porque a tutoria de área promove a
inserção do professor como sujeito ativo no
Por esta razão, as ações de tutoria
processo de capacitação. E essa inserção é
devem ser intencionais e claras para que

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951
realizada pelos princípios: Aprendizagem na (Coleção Temas em psicologia e educação
prática; Parceria; Customização; Protocolos e médica).
combinados; Intencionalidade e transparência; FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito.
Foco na aprendizagem dos alunos. Princípios TRAD. Márcio Alves da Fonseca e Selma
que, inclusive, regem a conduta do tutor, que, Tannus Muchail. 3. ed. São Paulo: Martins
diante do professor, assume a postura daquele Fontes, 2010.
que tem a função de "orientar, aconselhar e
construir junto". O tutor abandona a posição FUNDAÇÃO ITAÚ SOCIAL. Guia de tutoria
daquele que informa e passa a ser aquele que de área. 2014a. Disponível em:
forma e ajuda a construir as verdades que <http://www.fundacaoitausocial.org.br/temas-
guiam o trabalho do tutorado em sala de aula, de-atuacao/gestao-
pois o trabalho entre ambos é assentado na educacional/tutoria/tutoria.html>. Acesso em:
parceria, confiança, transparência e, 02 de nov. de 2014.
principalmente, na intencionalidade. Ao FUNDAÇÃO ITAÚ SOCIAL. Tutoria de área.
considerar o sujeito, o tutor respeita as 2014b. Disponível em:
diferenças e propõe um estudo que atenda as <http://www.fundacaoitausocial.org.br/temas-
necessidades individuais. de-atuacao/gestao-
Nesse sentido, a tutoria de área se educacional/tutoria/tutoria.html>. Acesso em:
apresenta como uma formação diferenciada das 02 de fev. de 2015.
diversas formas de educação continuada MOITA LOPES, L. P. A auto-formação
oferecidas no meio educacional, pois além de continuada do professor: o professor
atender a formação do profissional, ela visa à pesquisador. In: Anais do seminário novos
aprendizagem do aluno, já que o professor rumos para uma política de formação de
reflete a partir da própria prática. professores. Faculdade de Educação/UFRJ,
Portanto, aprender na prática, é "cuidar 1995.
de si" para, posteriormente, ocupar-se com o VIEIRA, R. E. O que significa “ser tutor” e
outros. Nesse sentido, "ocupar-se consigo não tutoria na atual sociedade da Informação e na
é, pois, uma simples preparação momentânea educação a distância. In: XI Colóquio
para a vida; é uma forma de vida" internacional sobre gestão universitária na
(FOUCAULT, 2010, p. 446). O que equivale América do Sul e II Congresso internacional
dizer que a tutoria de área com seus princípios IGLU. Florianópolis, dez. 2011.
e a postura do tutor atendem a formação
continuada do sujeito professor de forma
contínua e significativa.

Referências
BELLODI, P. L. Mentoring na formação
médica. São Paulo: Casa do psicólogo, 2005. -

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952
PODER E RESISTÊNCIA: UMA ANÁLISE DA FANPAGE
DIÁRIO DE CLASSE – A VERDADE

Cristhiane Gomes dos SANTOS; Agostinho Potenciano de SOUZA


Universidade Federal de Goiás (UFG)
cristhianeg@hotmail.com; apotenciano@uol.com.br

Resumo: A questão que discutimos neste trabalho é uma fanpage criada por Isadora
Faber, estudante catarinense, em 2012, na rede social Facebook para denunciar tudo que
considerava insatisfatório em sua escola. Em pouco tempo, suas análises alcançaram
grande repercussão. Nosso objetivo é lançar um olhar discursivo sobre a relação entre
poder e resistência observada a partir de um recorte de postagens da fanpage “Diário de
Classe – A Verdade”. Para tal, tomamos como objeto de análise duas postagens de
diferentes datas. Refletimos acerca da relação entre poder e resistência e, além disso,
apresentamos a noção de micropoderes. Para isso, procuramos traçar uma linha de
estudo em que se entrecruzassem as noções de poder e resistência. Os resultados da
análise apontam uma fluida relação entre ambas as noções, no embate entre poderes.
Palavras-chave: poder; micropoderes; resistência.

redes sociais requer olhos atentos daqueles que


Introdução
se dedicam a estudar os fenômenos da
Nos últimos anos, temos vivenciado o linguagem, pois é no ambiente virtual, através
surgimento de um inestimável número de redes da interação propiciada por esse meio, que os
sociais, umas de maior sucesso, outras nem indivíduos têm se expressado com frequência
tanto. Orkut, Twitter, Formspring, Flickr, na contemporaneidade.
Facebook, Tumblr, Instagram, Whatsapp,
Nesse universo, em que é possível uma
Tinder, entre tantas outras redes, surgiram para
infinidade de ações, tornou-se comum a criação
atender às necessidades comunicacionais
de sites ou fanpages com o intuito de realizar
contemporâneas. A maciça ocupação das redes
denúncias e/ou requerer direitos, ou seja, a
sociais por indivíduos das mais distintas
internet tornou-se um espaço em que é possível
camadas da sociedade possibilita a emergência
exercer práticas de poder e resistência. Assim,
de novas formas de comunicação e, também,
a relação entre poder e resistência é uma das
novas questões para o campo de estudos que
envolve a linguagem. Desse modo, o presente
estudo torna-se relevante na medida em que
percebemos que essa intensa produção nas

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953
questões que nos intriga e nos motiva à
1. Diário de Classe – A Verdade: uma visão
reflexão nesse artigo1.
panorâmica
Em julho de 2012, Isadora Faber,
Segundo Pierre Lévy (1999, p. 11), o
estudante catarinense, criou uma fanpage na
crescimento do ciberespaço2 resulta de um
rede social Facebook para denunciar tudo que
movimento internacional de jovens ávidos para
considerava insatisfatório em sua escola e, em
experimentar, coletivamente, formas de
pouco tempo, conseguiu grande visibilidade.
comunicação diferentes daquelas que as mídias
Acreditamos que os enunciados produzidos por
clássicas nos propõem. Ao observarmos a
Isadora Faber constituem valioso material
intensa produção escrita via Facebook – da
porque compõem um discurso que se atreve a
mera reprodução de textos de autores
questionar as relações de poder. Assim, este
consagrados aos comuns textos com temas
artigo está centrado nas contribuições teóricas
relativos à vida íntima dos usuários –, o que
de Michel Foucault (1977; 2012; 2015),
vemos são indivíduos interessados em
baseando-se na observação da existência de
participar socialmente. O ambiente digital
micropoderes e da relação fluida entre poder e
possibilita que os indivíduos falem / escrevam
resistência.
e sejam ouvidos / lidos e, por isso, é urgente
Como nosso objetivo é refletir sobre a pensar nessas novas formas de interação
relação entre poder e resistência na fanpage surgidas no ciberespaço e, principalmente, nas
“Diário de Classe – A verdade”, tomamos possibilidades de interação propiciadas pelas
como objeto de análise duas postagens de redes sociais.
Isadora Faber, todas fruto do primeiro ano de
Em 2012, Isadora Faber, que na ocasião
funcionamento da fanpage.
tinha treze anos, estudante da Escola Básica
Desse modo, em um primeiro momento, Maria Tomázia Coelho, situada em
apresentamos as condições de produção da Florianópolis – Santa Catarina, criou uma
fanpage “Diário de Classe – A verdade”. Num fanpage na rede social Facebook e iniciou uma
segundo momento, discutimos sobre a noção de série de denúncias sobre tudo que considerava
micropoderes e a relação entre poder e insatisfatório em sua escola. Merenda de má
resistência. Em seguida, é feita uma análise de qualidade, estrutura física inadequada, aulas
um recorte dos enunciados produzidos por consideradas mal elaboradas, faltas
Isadora Faber, no intuito de compreender a injustificadas de professores, dentre outros
emergência desse discurso de resistência.

2
O ciberespaço, define Lévy (1999, p. 17), é o
novo meio de comunicação que surge da
interconexão mundial dos computadores,
1
Este artigo é parte de uma investigação maior, especificando não apenas a infra-estrutura material
cuja questão central incide sobre a análise das da comunicação digital, mas também o universo
práticas discursivas que possibilitaram a oceânico de informações que ela abriga, assim
participação social de Isadora Faber, criadora da como os seres humanos que navegam e alimentam
fanpage Diário de Classe – A verdade. esse universo.

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954
problemas, ilustraram as denúncias feitas pela Então, sua irmã mostrou-lhe uma reportagem
adolescente. na internet cujo assunto era uma menina
escocesa de nove anos que tinha criado um
Segundo relata no livro que narra sua
blog para falar da insatisfação com a merenda
trajetória (FABER, 2014, p. 35), a inquietação
de sua escola e, assim, havia se tornado sucesso
de Isadora em relação aos problemas da escola
mundial. Martha Payne, estudante escocesa,
pública começou em 2010, quando uma de suas
criou o blog Never Seconds para criticar a
irmãs, que cursava a 8ᵃ série na mesma escola
pouca quantidade e baixa qualidade da merenda
que ela, conseguiu uma bolsa de estudos e foi
em sua escola. E assim, buscando inspiração na
para uma escola particular. Ao chegar à nova
coragem da escocesa, surgiu a ideia da fanpage
escola, a irmã de Isadora teve sérios problemas
Diário de Classe: A Verdade.
para se adaptar à nova rotina de estudos: o
professor de inglês só falava em inglês com a Em entrevista à “BBC Brasil”, em 01 de
turma e o professor de matemática passava setembro de 2012, Isadora disse que resolveu
cerca de dez páginas de lição a cada aula, criar a página porque percebeu que se Martha
dentre outros fatores. A adolescente teve muita Payne falou da merenda e obteve resultados
dificuldade, chorava muito, até que conseguiu positivos, ela teria muitas coisas além da
se adaptar à nova realidade. No ano seguinte, merenda para denunciar, pois sabia que sua
Isadora quis conhecer aquela realidade de perto escola tinha mais problemas. E deu certo.
e visitou a escola da irmã. Saiu de lá Criada há pouco mais de dois anos, a página
impressionada, pois percebeu que apesar da Diário de Classe – A Verdade é acompanhada
escola em que a irmã estudava contar com uma por internautas de vários países e conta
estrutura física menor, era muito mais atualmente com cerca de 638.254 seguidores.
organizada e limpa que a Escola Básica Maria No entanto, tanto a escocesa quanto a
Tomázia Coelho. brasileira tiveram que se manter firmes diante
Quando criou a fanpage, em 2012, de represálias dentro e fora da escola. Martha
Isadora já não aguentava mais ver os problemas Payne teve o apoio de seus professores, mas o
de sua escola serem tratados como normais. Conselho de Educação da Escócia proibiu que
Afora outros percalços, sentia-se muito ela continuasse postando fotos da merenda em
indignada por não aprender nada na aula de seu blog e proibiu os professores de
matemática e atribuía isso à bagunça da turma e comentarem o assunto em sala de aula. Isadora
ao aparente descaso do professor. Com a ajuda Faber teve que enfrentar a ira de professores,
de uma amiga, Melina, procurou o professor coordenadores, da diretora da escola, das
dessa matéria e conversou sobre o que achava merendeiras e até de colegas de classe, pois a
que devia mudar em suas aulas, mas as aulas maioria dos funcionários da escola e dos alunos
continuaram do mesmo jeito. Então, procurou a ficou insatisfeita com as atitudes dela e tentou
direção da escola e nada foi feito também. impedir que a menina continuasse com as
críticas. Além disso, quando a página
Ainda de acordo com seus relatos
idealizada por ela tornou-se conhecida
(FABER, 2014, p. 40), Isadora, muito
mundialmente, Isadora e sua família passaram a
insatisfeita, foi para casa e conversou com sua
sofrer duras perseguições por pessoas que
irmã mais velha sobre o que lhe incomodava.

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955
julgavam um absurdo uma aluna da escola
2. A relação entre poder e resistência
pública aventurar-se a falar de seus professores
e a expor problemas de sua escola. Num dos Foucault tratou das noções de poder e
ataques mais graves, a casa de Isadora foi resistência e as considerou em todos os objetos
apedrejada, ocasião em que sua avó, uma de investigação aos quais se dedicou: não com
senhora de mais de 60 anos, foi atingida por a intenção de formular uma teoria, mas voltado
uma pedra. para uma analise fragmentária, considerando
formações, transformações, relações e
Isadora Faber concedeu entrevistas para
correlações entre enunciados. Roberto
importantes veículos de informação, foi notícia
Machado, no texto que introduz a obra
em jornais nacionais e internacionais e
Microfísica do poder (FOUCAULT, 2015),
participou de palestras e conferências em todo
afirma que Foucault não elaborou uma teoria
o Brasil. Atualmente, ela cursa o 1° ano do
geral do poder, pois, para esse filósofo,
ensino médio em uma escola particular de
Florianópolis. A frequência das postagens na [...] Não existe algo unitário e global
fanpage diminuiu consideravelmente, pois hoje chamado poder, mas unicamente formas
ela se ocupa com outras atividades e não lhe díspares, heterogêneas, em constante
sobra muito tempo. Em 2013, fundou com a transformação. O poder não é um objeto
ajuda de outras pessoas a ONG Isadora Faber, natural, uma coisa; é uma prática social e,
cujos objetivos vão desde a realização de como tal, constituída historicamente
projetos educacionais até a inclusão digital para (MACHADO, in FOUCAULT 2015, p.
comunidades escolares carentes. Em 2014, 12).
lançou o livro Diário de Classe – A verdade: a
história da menina que está ajudando a mudar Não há como definir características e
a educação no Brasil, que narra sua trajetória. nem tentar buscar a essência do poder, pois,
segundo Foucault, o poder não é algo fixo e
A atitude desta adolescente surpreendeu
que possui um dono; ao contrário, o poder é
a tantas pessoas porque ela escolheu cobrar
circulante e pode emergir de diferentes pontos,
seus direitos, em vez de apenas calar-se e
rompendo com a ideia de que o poder emana
conformar-se diante das explicações dos
do Estado. Dessa forma, para Foucault, o poder
gestores de sua escola. Isadora contrariou as
não existe, o que existe são relações de poder.
estatísticas, que insistem em dizer que os
O poder é luta, afrontamento, relação de força,
alunos da escola pública não querem aprender,
situação estratégica e, além disso, o poder não é
provou que é possível mudar o panorama da
um lugar, que se ocupa, nem um objeto, que se
educação brasileira e mostrou ao Brasil que um
possui.
filho teu não deve fugir à luta. Como veremos
nas próximas seções, a fanpage “Diário de Como Foucault considera a noção de
Classe – A verdade” serve para exemplificar poder a partir de práticas, a construção de uma
que as relações humanas estão imersas em teoria que se ocupasse em definir o poder
relações de poder e, também, para refletir sobre acabaria por ser reducionista. Assim, podemos
a fluidez da relação existente entre poder e dizer que Foucault propõe uma analítica do
resistência na visão foucaultiana. poder e não uma teoria sobre o poder, pois,

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956
mecanismos de poder que funcionam fora,
abaixo, ao lado dos aparelhos de Estado a
Se tentarmos construir uma teoria do poder, um nível muito mais elementar, quotidiano,
será necessário sempre descrevê-lo como não forem modificados (FOUCAULT,
algo que emerge num lugar e num tempo 2001, p. 149).
dados, e daí deduzir e reconstruir a gênese.
Mas se o poder é, na realidade, um
conjunto de relações abertas, mais ou Sendo assim, o Estado não detém o
menos coordenadas (e, de fato, mal poder, pois, como já foi dito, não é possível
coordenadas), então o único problema tomar posse do poder. Além disso, esse filósofo
consiste em se munir de uma rede de chama a atenção para a necessidade de se
análise que torne possível uma analítica das pensar na potencialidade dos mecanismos de
relações de poder (FOUCAULT, [1980?], poder que circundam o Estado formando o que
apud DREYFUS; RABINOW, 1995, p. ele chama de micropoderes, pois, para ele, as
202).
relações de poder se prolongam além dos
limites do Estado.
Para Foucault, existem micropráticas de
poder, de modo que qualquer relação humana Foucault defende que o poder, esse
está imersa em relações de poder, de modo de ação sobre a ação dos outros, deve ser
micropoderes. Ou seja, para ele, o Estado não é compreendido como uma relação de disputa
a fonte central do poder e, por conseguinte, o que produz saberes, ou seja, uma relação que
poder não emana apenas dos aparelhos não se exerce apenas num viés negativo.
ideológicos do Estado, o que nos permite Assim, Foucault propõe uma reflexão sobre o
afirmar também que o Estado não seria capaz lado positivo do poder, compreendendo a
de constituir todas as possíveis relações de positividade do poder não como antônimo de
poder. Assim, as análises foucaultianas negativo, mas sim como produtividade. Para
indicaram que os poderes periféricos não foram Foucault, o poder organiza as relações dentro
confiscados e absorvidos pelo Estado, de tal da sociedade e não representa só opressão, mas
forma que os poderes se exercem em níveis também produção. Sendo assim,
variados e em pontos diferentes da rede social, [...] O exercício do poder pode
e nesse complexo os micropoderes existem perfeitamente suscitar tanta aceitação
integrados ou não ao Estado. (FOUCAULT, quanto se queira: pode acumular as mortes
2015, p. 15). Nas palavras de Michel Foucault, e abrigar-se sob todas as ameaças que ele
possa imaginar. Ele não é em si mesmo
[...] Eu não estou querendo dizer que o uma violência que, às vezes, se esconderia,
aparelho de Estado não seja importante, ou um consentimento que, implicitamente,
mas me parece que, entre todas as se reconduziria. Ele é um conjunto de ações
condições que se deve reunir para não sobre ações possíveis esquivar sua pesada e
começar a experiência soviética, para que o temível materialidade (FOUCAULT,
processo revolucionário não seja Michel. O sujeito e o poder. In:
interrompido, uma das primeiras coisas a DREYFUS, Hubert; RABINOW, Paul.
compreender é que o poder não está 1995. p. 243.).
localizado no aparelho de Estado e que
nada mudará na sociedade se os

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957
discurso, com o objetivo de separar,
Dessa forma, não é possível comparar, distribuir, avaliar, hierarquizar,
compreender o poder numa perspectiva tudo isso faz com que apareça pela
primeira vez na história essa figura
maniqueísta, pois é um equívoco acreditar que
singular, individualizada – o homem –
o poder só serve à repressão, opressão, como produção do poder. Mas também, e
imposição de limites ou castigo. Na visão ao mesmo tempo, como objeto de saber
foucaultiana, o saber gera poder e o poder gera (FOUCAULT, 2015, p. 26).
saber, ou seja, o poder não é fixo e está
intimamente ligado à produção de saberes. Nas
Onde há poder há resistência, ou seja, o
palavras desse filósofo,
poder precisa da resistência para existir, isso
[...] se o poder só tivesse a função de porque o poder pressupõe a resistência. A
reprimir, se agisse apenas por meio da relação entre resistência e poder, na perspectiva
censura, da exclusão, do impedimento, do foucaultiana, é uma relação fluida. Michel
recalcamento, à maneira de um grande Foucault reconhece a existência de
super-ego, se apenas se exercesse de um micropráticas de resistência, pois, para ele, não
modo negativo, ele seria muito frágil. Se há poder sem recusa ou revolta em potencial
ele é forte, é porque produz efeitos (FOUCAULT, 2003, p. 384). Ou seja, assim
positivos a nível do saber. O poder, longe como não há um dono do poder, não há um
de impedir o saber, o produz dono da resistência, pois da mesma maneira
(FOUCAULT, 1979, p. 148).
que o poder se manifesta em diferentes pontos
– ligado ou não ao Estado -, a resistência
Ao observarmos os enunciados da também pode se manifestar em diferentes
fanpage Diário de Classe – A Verdade, pontos e de diferentes maneiras.
percebemos a positividade do poder de que fala
Foucault, pois, embora Isadora Faber tenha No texto “O sujeito e o poder”
sofrido tentativas de interdição, ao assumir um (FOUCAULT, 1995, p. 231-249), Foucault
discurso de resistência, ela produziu saberes. analisa as relações de poder a partir das formas
Ou seja, ao reagir ao descaso com a educação, de resistência às oposições que se
ela adentrou numa ordem do discurso que desenvolveram nos últimos anos (oposição do
questiona uma relação de poder e transformou poder dos homens sobre as mulheres, dos pais
a possível repressão em produtividade. Isadora sobre os filhos, do psiquiatra sobre o doente
rejeitou o silenciamento e produziu um mental, da medicina sobre a população, da
discurso em prol da qualidade do ensino administração sobre o modo de vida das
público que ecoou na educação brasileira, o que pessoas) e afirma que estas oposições geraram
demonstra que o poder, ou a resistência a ele, lutas antiautoritárias, transversais e imediatas,
tem a capacidade de produzir saberes. Para lutas que questionam o estatuto do indivíduo e
Foucault, o poder é produtor de que são contra os privilégios do saber. Foucault
individualidade: conclui que o principal objetivo dessas lutas é
atacar uma forma de poder e não uma
O adestramento do corpo, o aprendizado do instituição de poder. Assim, pensando no nosso
gesto, a regulação do comportamento, a objeto de pesquisa, podemos considerar que
normalização do prazer, a interpretação do Isadora Faber também tentou atacar uma forma

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958
de poder e não uma instituição de poder – a uma tensão entre poder e resistência que surge
escola -, pois sua resistência percorreu um no ambiente escolar e é transposta para o
caminho que questionou a invalidação das ambiente virtual, numa tentativa de alcançar
reivindicações de estudantes adolescentes visibilidade.
oriundos da escola pública. Ou seja, ela
questionou uma forma autoritária de poder que 3. Reflexões sobre o discurso de resistência
tenta dificultar / inviabilizar os privilégios do de Isadora Faber
saber àqueles que são objetivados e O exercício de poder se dá por meio do
considerados desinteressados pela educação. discurso e toda atenção volta-se para os
Para Foucault, não existem relações de discursos que são produzidos a fim de
poder cuja resistência seja impossível, pois a questionar as relações de poder. Sobre isso,
resistência é inerente ao poder. Além disso, Foucault afirma que:
assim como o poder não está localizado em um
ponto, a resistência também não está, de modo [...] em toda sociedade a produção do
discurso é ao mesmo tempo controlada,
que a fanpage Diário de Classe – A Verdade,
selecionada, organizada e redistribuída por
nosso objeto de estudo, representa um ponto de certo número de procedimentos que têm
resistência na rede social. Foucault (1995, p. por função conjurar seus poderes e perigos,
235) propõe três tipos de lutas que, grosso dominar seu acontecimento aleatório,
modo, resumiriam as tensões entre poder e esquivar sua pesada e temível
resistência, são elas: materialidade (FOUCAULT, 2012, p. 8).

Geralmente, pode-se dizer que existem três


tipos de lutas: contra as formas de
Assim, para Foucault, as interdições
dominação (étnica, social e religiosa); revelam a ligação do discurso com o desejo e o
contra as formas de exploração que poder, isso porque o discurso não é
separam os indivíduos daquilo que eles simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os
produzem; ou contra aquilo que liga o sistemas de dominação, mas aquilo porque,
indivíduo a si mesmo e o submete, deste pelo que se luta, o poder do qual nos queremos
modo, aos outros (lutas contra a sujeição, apoderar. Assim, as sociedades tentam
contra as formas de subjetivação e controlar o que é dito a fim de não permitir que
submissão). Acredito que na história qualquer um, a qualquer momento e de
podemos encontrar muitos exemplos destes qualquer maneira, entre na ordem do discurso.
três tipos de lutas sociais, isoladas umas
das outras ou misturadas entre si Segundo Foucault (1977, p. 127), o
(FOUCAULT, [1980?], apud DREYFUS; poder age sobre os corpos para torná-los
RABINOW, 1995, p. 235). politicamente dóceis e economicamente úteis.
Qualquer indivíduo que rejeite essa ação está
Consideramos que Isadora Faber exercendo numa microprática de resistência.
utilizou a rede social Facebook para travar uma Sendo assim, ao utilizar o Facebook para
luta contra formas de dominação social e questionar o descaso com que a escola em que
também contra a sujeição, ambas exercidas via estudava era tratada, Isadora Faber exerceu
educação escolar, neste caso. Temos, então, uma microprática de resistência. Mas até que

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959
ponto essa ação pode ser encarada apenas no ser ocupado por nenhum outro enunciado, pois,
viés de uma prática de resistência? Ao sair do conforme Foucault (1987, p. 32), o enunciado é
anonimato e tornar-se conhecida, Isadora, a único e está ligado a enunciados que o
nosso ver, exerce também uma forma de poder, precedem e o seguem.
passa a ter seu discurso validado e consegue Em 14 de julho de 2012 (Figura 1),
que muitas de suas reivindicações sejam Isadora fez esta postagem:
atendidas. Ela passa a ser respeitada não só
pela instituição de ensino, mas também pelos Figura 1 – Postagem de 14 de julho de 2012
órgãos fiscalizadores que por muito tempo
foram negligentes com aquela instituição.
Assim, na fanpage em estudo temos um claro
exemplo do imbricamento entre poder e
resistência.
Segundo Paniago (2005, p. 82), no
contexto escolar, não são apenas os professores
e diretores que exercem o poder, pois os
estudantes e os pais também o exercem. Isadora
assumiu o poder de dizer suas opiniões por
escrito.
Outra noção importante para a
compreensão do discurso de Isadora Faber diz
respeito ao conceito de enunciado. Foucault Fonte: FABER, Isadora. Diário de Classe –
formula a seguinte questão sobre o enunciado: A verdade: a história da menina que está
que singular existência é esta que vem à tona ajudando a mudar a educação no Brasil.
Belo Horizonte: Editora Gutenberg, 2014.
no que se diz e em nenhuma outra parte?
p. 47.
(FOUCAULT, 1987, p. 31) Assim, é preciso
pensar porque surge determinado enunciado e Temos aí um trecho da música “Ouça o
não outro, pois, nas palavras de Foucault, que eu digo, não ouça ninguém”3. Isadora
completou dizendo que o refrão que utilizou
[...] Não se busca, sob o que está esclarecia sobre a criação da fanpage. O verso
manifesto, a conversa semi-silenciosa de ouça o que eu digo, não ouça ninguém resume,
outro discurso: deve-se mostrar por que não de certo modo, a resistência de Isadora, pois
poderia ser outro, como exclui qualquer enquanto muitas pessoas a seu redor diziam
outro, como ocupa, no meio dos outros e
relacionado a eles, um lugar que nenhum
3
outro poderia ocupar (FOUCAULT, 1987, Ouça O Que Eu Digo, Não Ouça Ninguém é
p. 31). um álbum da banda de rock brasileira Engenheiros
do Hawaii, lançado em 1988. Esse disco é
caracterizado por letras com críticas ao futebol
Dessa maneira, tentamos compreender brasileiro, à política, à economia etc. Fonte:
porque os enunciados de Isadora tomam força e <http://pt.wikipedia.org> acesso em 05 de out. de
surgem ocupando um espaço que não poderia 2014.

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960
Figura 2 – Postagem de 14 de julho de 2012
que ela não deveria continuar fazendo as
denúncias, ela posicionou-se contrária a
possibilidade de calar-se.
Ainda nessa postagem, a adolescente
demonstra indignação com o fato de tentarem
silenciá-la e diz que os regimentos internos
deveriam punir os maus, numa alusão ao fato
de ter sido chamada pela diretora da escola e
ser acusada de estar infringindo o regimento
interno da escola ao expor os problemas da Fonte: FABER, Isadora. Diário de Classe –
instituição. Isadora considera que os maus são A verdade: a história da menina que está
os alunos que depredam a escola e não ajudando a mudar a educação no Brasil.
cumprem com suas obrigações escolares. Belo Horizonte: Editora Gutenberg, 2014.
Sabemos, pois, que os problemas da educação p. 47.
não se resumem à classificação de bons e maus, 4. Considerações finais / Conclusões
os que atrapalham e os que ajudam, pois essa é
uma questão complexa que, por hora, não será Defendemos a ideia de que Isadora
debatida por nós. Assim, numa clara ação de Faber exerceu uma prática de resistência ao
resistência, Isadora utiliza seu discurso para ousar questionar políticos e os responsáveis
confrontar os responsáveis pela escola. pela gestão da escola. Assim, a adolescente
passou a representar um perigo para uma
Na figura 2, temos uma postagem sociedade que espera que da escola emerjam
também do dia 14 de julho de 2012. Nela, corpos politicamente dóceis e economicamente
Isadora dirige seu discurso aos senhores úteis, como defendeu Foucault em Vigiar e
candidatos que mostram, segundo ela, escolas Punir (1977). Todavia, como afirmamos em
de cenários em suas campanhas políticas. Ao nossa análise, há um imbricamento entre as
afirmar que as escolas mostradas no período noções de poder e resistência, pois é possível
eleitoral são escolas que não correspondem à afirmar que a prática de resistência de Isadora
realidade da educação brasileira, a adolescente pode ser compreendida também como um
critica a política brasileira que, em geral, não exercício de poder.
trata a educação como prioridade. Esse
enunciado liga-se ao enunciado da Figura 1 Constatamos que o uso da internet
(estou mostrando o que de fato é a pura possibilita o rompimento da distribuição dos
realidade), ou seja, o discurso de resistência de indivíduos no espaço, pois permite que eles
Isadora declara-se contra a possível farsa em estejam em espaços antes proibidos. Isadora
propagandas eleitorais brasileiras. Faber representa não só a existência de práticas
de resistência, mas também a existência de
micropoderes, pois sua voz ecoa provando que
o poder é descentralizado na sociedade de
controle. Para Foucault (1977, p. 132), na
disciplina, cada elemento se define pelo lugar

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961
que ocupa na série e pela distância que o separa
DREYFUS, H.; RABINOW, P. Michel
dos outros. A sociedade, em geral, esperava
Foucault, uma trajetória filosófica: para além
que Isadora ocupasse seu lugar de aluna e não
do estruturalismo e da hermenêutica. Tradução
tentasse se aproximar daqueles que
de Vera Porto Carrero. Rio de Janeiro: Forense
hierarquicamente tinham uma posição
Universitária, 1995.
privilegiada. Isadora Faber não corresponde ao
que Foucault chama de corpo dócil. FABER, I. Diário de Classe – A verdade: a
história da menina que está ajudando a mudar a
Na sociedade de controle, em que o
educação no Brasil. Belo Horizonte: Editora
poder é exercido de modo sutil, ocorre uma
Gutenberg, 2014.
pulverização da resistência, pois essa prática
passa a ser exercida de modo também sutil e FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da
pulverizado. Assim como o poder se manifesta prisão. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1977.
sutilmente no controle, a resistência age no ______. História da Sexualidade I: A vontade
mesmo sentido. A fanpage “Diário de Classe – de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa
A verdade” demonstra a resistência de Isadora Albuquerque e J.A. Guilhon Albuquerque. Rio
Faber a diferentes práticas de poder, pois as de Janeiro: Edições Graal, 2001.
reivindicações de sua fanpage foram inúmeras
e referiam-se a diversas áreas (educação, saúde, ______. Omnes et Singulatim: uma crítica da
transporte de qualidade, segurança, acesso à razão política. In: ______. Estratégia, poder-
cultura etc.), representando, assim, a saber. Organização e seleção de textos de
pulverização da resistência. Manoel Barros da Motta. Tradução de Vera
Lúcia Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense
Entretanto, concluímos que, conforme Universitária, 2003, p. 355-385.
Foucault defendeu, a relação entre poder e
resistência é fluida, não sendo possível ______. A ordem do discurso: aula inaugural
delimitar onde começa um e onde termina o no College de France, pronunciada em 2 de
outro, pois um pressupõe a existência do outro. dezembro de 1970. 22ª.ed. São Paulo: Loyola,
A fanpage criada por Isadora Faber representa, 2012.
pois, a priori, uma prática de resistência em um ______. Microfísica do poder. Rio de Janeiro:
gênero recente, a fanpage. Além disso, tal Edições Graal, 2015.
página demonstra a positividade do poder, que
permite a produção de saberes, tendo em vista LÉVY, P. Cibercultura. São Paulo: Editora 34,
que. Isadora conseguiu numa ação de 1999.
resistência, ter voz e visibilidade, a partir do PANIAGO, M. L. Práticas discursivas de
lugar de estudante de uma escolar pública, num subjetivação no contexto escolar. Tese de
ambiente em que a maioria está acostumada Doutorado. Faculdade de Ciências e Letras –
com a passividade. UNESP-Araraquara, 2005.

Referências

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EDUCAÇÃO, TERRITÓRIO E PROCESSOS IDENTITÁRIOS: O
DISCURSO OFICIAL X O DISCURSO KINIKINAU

Daniele Lucena SANTOS


Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS)
lucena.ufms@hotmail.com

Resumo: Ao lançar olhar sobre a condição de exclusão em que os Kinikinau se encontram,


vivendo em terras alheias, lutando pelo reconhecimento étnico e territorial, partimos da
hipótese de que a escola da aldeia para esse povo é concebida, em especial, como um
microterritório Kinikinau. Posto isso, este trabalho tem como objetivo problematizar o
processo de constituição identitária do indígena e analisar, discursivamente, como são
construídas as representações de educação, escola e território que se presentificam no
discurso das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Indígena na
Educação Básica (2012) e no discurso do povo Kinikinau. Para o desenvolvimento deste
trabalho mobilizamos a perspectiva da Análise de Discurso de linha francesa, com base no
método arqueogenealógico foucaultiano (2008, 2012), e a dos estudos culturalistas (HALL,
2005).
Palavras-chave: educação, escola e território; processos identitários; kinikinau.

Introdução Escolar Indígena na Educação Básica, que tem


como intuito gerir a estrutura, a gestão e
As pesquisas no âmbito indígena têm
funcionamento das escolas nas aldeias.
ganhado status, grandes transformações vêm
Entretanto, se lançarmos olhar para a realidade
ocorrendo por meio da mobilização desses
das escolas indígenas perceberemos que as
povos, e, com isso, instaura-se um novo
políticas educacionais, sobretudo as instituídas
cenário de luta pela garantia de seus direitos.
por essas diretrizes, não estão sendo eficazes, e
Diante disso, a legislação brasileira busca
não estão garantindo plenamente o direito a
acompanhar as reivindicações que permeiam o
essa educação diferenciada intercultural que
movimento indigenista, em especial, no campo
respeite as práticas culturais de cada
escolar.
comunidade.
Visando garantir o exercício dos
Em consonância a recorrente
direitos a uma educação escolar diferenciada,
transformação do contexto indigenista, por
foram lançadas em 2012 as Diretrizes
volta de 1997, ressurgem os Kinikinau ao se
Curriculares Nacionais para a Educação
autodeclararem dessa etnia, apesar de terem

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963
sidos considerados extintos por pesquisadores discurso oficial das diretrizes e o discurso dos
como Darcy Ribeiro (1970; 1998) e Cardoso de Kinikinau, visando uma discussão sobre os
Oliveira (1976) na década de 1970. possíveis efeitos de sentidos gerados.
Os Kinikinau residem desde 1940 na A partir desse quadro, mobilizando um
Aldeia São João, próxima a cidade de olhar discursivo sobre os Kinikinau, essa
Bonito/MS, em território Kadiwéu, dividindo pesquisa justifica-se pela relevância social, pela
com eles e com os Terena o cotidiano daquele escassez em pesquisas voltadas às questões
espaço, incluindo a educação e a escola. indígenas, em especial, a esse tripé: educação,
escola e território.
Se autodeclararem Kinikinau foi uma
decisão impulsionada pela proposta de 2. Abordagem Teórica
instalação de uma escola na Aldeia São João A linguagem na perspectiva da Análise
que, atendendo a demanda da comunidade, em do Discurso, doravante AD, é ampla, abarca o
que a maioria é Kinikinau, foi denominada linguístico e o extralinguístico, transcende a
Escola Municipal Indígena Koinukunoen1. noção de instrumento de comunicação. Para a
Sem terra, os Kinikinau suportam de AD, a linguagem enquanto discurso é
forma submissa a humilhação imposta pelos movimento, funcionamento, percurso, é
Kadiwéu, no entanto, confiam à escola a concebido como um fato social, uma
esperança de se libertarem e alcançarem o imbricação entre sociedade e exterioridade,
reconhecimento territorial. logo é histórico-social. Portanto, “o lugar
privilegiado de manifestação da ideologia”
Diante disso, partimos da premissa de
(BRANDÃO, 2012, p. 11). Como o sujeito
que o território e a escola estão intrinsicamente
nessa perspectiva, é “descentrado”, se constitui
ligados, e de que ambos ultrapassam as
concepções limítrofes de terra, de expansão no/pelo discurso (ORLANDI, 2009), a
linguagem passa a ser lugar de conflito, de
territorial e de espaço educacional em que
tensão.
valores e conhecimentos universais são
transmitidos a comunidade. Imbricada a relação Linguagem e exterioridade se articulam
terra-escola, nossa hipótese é que a escola da intrinsicamente por meio de uma relação que
aldeia é concebida pelos Kinikinau, em corrobora a função social assumida pela língua,
especial, como um microterritório em que a o que nos leva a refletir sobre as escolhas
“democracia” se estabelece oportunizando discursivas do sujeito. Na busca em relacioná-
momentos de construção identitária quando a las, o processo de referenciação se faz presente,
língua Kinikinau é ensinada, quando valores e já que a língua aqui é estudada, avaliada pelo
saberes desse povo são transmitidos aos alunos. viés funcionalista, considerando as “condições
de produção” (ORLANDI, 2009, p. 30), ou
Com base na importância imputada à
seja, o momento e as circunstâncias de
escola, e nessa esteira de políticas, nos
produção de um determinado enunciado, para
propomos analisar as representações de
que então o analista consiga extrair os efeitos
educação, escola e território que perpassam o
de sentidos deste discurso. Deste modo, esse
processo está condicionado a “atividade
1
Koinukunoen significa Kinikinau.

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964
discursiva” (KOCH, 2005, p. 34), já que está representante desse povo e professor na escola
no bojo das escolhas e ações enunciativas do da aldeia, momento em que narra as lutas
sujeito. Então, o processo de referenciação enfrentadas por seu povo.
linguística possibilitará analisar as escolhas No percurso de um gesto analítico...
discursivas e os processos referenciais que se
fazem presentes e que colaboram para a As Diretrizes Curriculares Nacionais
“construção da coerência/coesão textual e para a Educação Escolar Indígena na Educação
discursiva”, explica Cavalcante (2014, p. 53). Básica (2012), construídas em um contexto de
reivindicações e transformações políticas, têm
De forma sucinta, pautando-nos nas por objetivo garantir o funcionamento, a
relações de saber-poder e utilizamos o método estrutura e gestão da educação e das escolas
arqueogenealógico de Foucault (2008, 2012),
indígenas, permitindo a cada povo a liberdade
que permite ao analista problematizar os de mobilizar suas práticas identitárias na
processos de subjetivação dos sujeitos e sociedade. Portanto, essas diretrizes,
escavar os enunciados em busca de configurando-se como um dispositivo, uma
regularidades que façam emergir a ordem das rede de poderes, que vincula-se a outros
escolhas discursivas desse sujeito. Pois, “é discursos “está sempre em movimento, sempre
preciso então rachar, abrir as palavras, as frases em mudança, sempre em formação”.
e as proposições para extrair delas os (CORACINI, 2007, p. 119).
enunciados”. (DELEUZE, 2005, p. 61).
Em face disso, é interessante ressaltar
Como procedimento metodológico para que esse documento enquanto arquivo,
a coleta de dados, utilizamos entrevistas e entrelaça-se com resultantes estratégias e
narrativas de fatos e histórias dos Kinikinau conhecimentos, fazendo com que uma rede de
que foram gravadas e transcritas, com formações discursiva se conserve em uma
autorização dos sujeitos. Dessas entrevistas sociedade. Para Zoopi-Fontana (2005, p. 97)
foram selecionados recortes que, conforme no “todo arquivo responde a estratégias
documento oficial, a nossa visão, permitiu um institucionais de organização e conservação de
gesto de analítico ao qual nos propomos, ainda documentos e acervos, e que por meio delas, de
que sintético. gestão da memória de uma sociedade”.
3. Análise Discursiva As representações de educação, escola e
Buscando apreender um gesto analítico território que buscamos analisar nesse
selecionamos quatro recortes, sendo que os documento, ainda que num sumário gesto
intitulados R1, R2 e R3 foram retirados do interpretativo, constituem-se no bojo da
documento oficial das diretrizes e o R4 de uma sociedade brasileira, que, embasada em uma
entrevista realizada em 11 de outubro de 2013, “nova política”, direciona os discursos sobre
na UFMS, campus de Aquidauana, com o igualdade, diferença, inclusão, exclusão entre
SP12, falante da língua Kinikinau, outros que vem ganhando status,
estabelecendo, como um jogo de poder,
2
Sujeito Professor Kinikinau, formado em 2014 pela
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul/ Unidade “Povos do Pantanal” e atualmente leciona na escola da
de Aquidauana pela Licenciatura Intercultural Indígena aldeia.

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965
ambiental e territorial, respeitando as
instituições que visam legitimar o indivíduo lógicas, saberes e perspectivas dos
como sujeito. próprios povos indígenas. (p. 35)
Diante de uma rede de instituições
como, por exemplo, escolas, prisões e igrejas, o É nos dado a observar, por meio deste
sujeito é moldado pela sociedade da qual faz artigo, a função regulamentadora do
parte, caso contrário poderá ser questionado documento, que se inicia com o verbo “zelar”,
por sua conduta. Com isso, o sujeito é esclarecido por Bechara (2010, p. 1150) como
obrigado a entrar na “ordem do discurso”. verbo que manifesta o sentido de “cuidar”,
(FOUCAULT, 2012) “administrar”, e que traz em seu interdiscurso a
Apesar de essas diretrizes terem sido visão do branco sobre o indígena, atribuindo a
criadas pela necessidade de um diálogo mais ele a incapacidade de dirigir sua “própria”
efetivo entre o governo e os próprios indígenas, escola e modos de ensino-aprendizagem. Esse
objetivando promover justiça, igualdade, verbo, assim como outros que permeiam o
interculturalidade e respeito às diferenças, documento, advém da formação discursiva
emergem novas discussões sobre a proposta de governamental, pois remete à organização, à
educação e escola que estão sendo ofertadas ordem. Porém, rastreamos, via materialidade
nas comunidades. linguística, outras formações discursivas como
a pedagógica, ambiental e colonial.
Propomo-nos problematizar o discurso
desse documento que se apresenta a sociedade A expressão “diferenciada” ancora
indígena como um instrumento de controle para possíveis sentidos como de aquele ou aquilo
que de seus direitos e, sobretudo seus deveres, que não é igual, comum, além disso, carrega
seja cumpridos. Analisar o discurso de um outras vozes, a voz do branco. Pois, o que é
documento, a escrita que corrobora a verdade e rotulado como normal e adequado seria o do
a ordem, chamada por Castro-Gómez (2005, p. branco, a educação e a escola propostas e
81) de “palavra escrita” é o que tem promovido realizadas por ele. Posto isso, as escolas
a construção de (des)identidade(s) e a indígenas especificadas por meio desse
organização de discursos modalizadores sobre adjetivo, que apesar de ser escolhido para
inclusão e exclusão. denotar algo positivo e edificante, em seu
interdiscurso retratam sentido depreciativo,
A proposta norteadora de uma educação pois sugerem uma “civilidade” a qual o
escolar indígena diferenciada é contradita pelo indígena deve adaptar-se. De maneira geral, os
objetivo em tratar os índios com igualdade. O brancos servem como parâmetro, que, por sua
recorte VIII, novamente enumerado por VII vez, distingue o outro.
provavelmente por um equívoco, expressa que
as diretrizes devem: Logo, a preposição “com” condiciona
critérios a serem seguidos para o
R1: Art. 2º VIII - zelar para que o direito desenvolvimento dessa proposta educacional,
à educação escolar diferenciada seja caracterizadas pelas expressões “qualidade
garantido às comunidades indígenas com social” e “pertinência pedagógica, cultural,
qualidade social e pertinência linguística, ambiental e territorial” que
pedagógica, cultural, linguística,

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966
recategorizam a educação escolar indígena se arrasta desde seus antepassados, e que está
proposta pelo governo. enraizada no discurso de inclusão, mas que
permite outras possíveis interpretações. O
Nesse contexto, a educação escolar
verbo respeitar, de acordo com Bechara (2011,
indígena colocada à disposição desses povos
p. 1007) produz sentido de “considerar”, em
por meio de uma escola que se configura como
contrapartida a busca pelo verbo aceitar (op.
um mecanismo de revitalização de suas
cit. p. 221) que designa “concordar” “admitir”
culturas, tradições e línguas, seguindo as
nos faz refletir sobre essa multiplicidade de
condições impostas pelo governo, tem por
interpretações. Salientamos que esse respeitar
objetivo ofertar conhecimentos universais,
transita entre seu sentido de “considerar” a
aproximando os indígena de outras culturas e
cultura do outro, do indígena, e o sentido de
saberes, mas de modo que suas especificidades
“não exterminar”. (GUERRA, 2010, p. 63)
sejam reafirmadas, sem prejuízos as
comunidades. Em consonância as questões sobre
(in)(ex)clusão lançamos olhar para a possível
A representação de educação
representação de escola abarcada no discurso
caracterizada como diferenciada é oferecida
oficial.
com uma maquiagem aos índios, isto é, há
apenas uma transposição do sistema R2: Parágrafo único: A Educação Escolar
educacional do branco. Sugere-se que a Indígena deve se constituir num espaço de
educação é exclusiva aos brancos, aos comuns, construção de relações interétnicas
e essa diferenciação, apesar de buscar a orientadas para a manutenção da
inclusão desses povos, reforça o discurso pluralidade cultural, pelo reconhecimento
excludente. de diferentes concepções pedagógicas e
pela afirmação dos povos indígenas como
Encontramos, então, um discurso de sujeitos de direitos. (p. 36)
(in)(ex)clusão perpassando essas diretrizes, do
qual os documentos oficiais precisam valer-se
para demonstrar à sociedade hegemônica a No excerto “espaço de construção de
capacidade de colocar esses povos em relações interétnicas” emerge a representação
“harmonia” com a sociedade do branco. No de escola como um espaço físico que prioriza
entanto, há uma contradição, já que ao enunciar as construções de relações interétnicas pautadas
“respeitando as lógicas, saberes e perspectivas na transmissão de conhecimentos e saberes. O
dos próprios povos indígenas” o documento verbo dever trazido no imperativo afirmativo
promove um deslocamento de efeitos de “deve” corrobora o caráter de obrigatoriedade
sentidos, no qual mantem o indígena em lugar dessa proposta educacional, que de acordo com
de exclusão, à margem, ao legislar que esses o recorte precisa ser “orientada” para garantir o
sujeitos se preservem dentro de suas êxito. Tal tarefa fica sob a responsabilidade do
perspectivas linguísticas, culturais e governo, que tem a soberania em governar os
tradicionais. sujeitos constituidores de uma determinada
sociedade.
O verbo no gerúndio “respeitando” traz
à baila uma ação que se dá constantemente, que A escola como já mencionada, trata-se
de uma das mais antigas instituições. Desde a

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967
colonização, a doutrina educacional instituída
O sistema institucional, em especial a
pelos missionários no Brasil realizava,
escola, enquanto fomentadora do processo
imbricada ao processo colonizador, um
educacional para Foucault (2012, p. 41) “é uma
agenciamento das práticas discursivas desses
maneira política de manter ou modificar a
sujeitos, visto que “o sujeito se constitui
apropriação dos discursos, com os saberes e os
no/pelo discurso”. (ORLANDI, 2009).
poderes que eles trazem consigo”. Visto que a
No passado a educação era imposta aos escola é concebida como um mecanismo de
índios, e num árduo processo eles deveriam, de resistência veiculadora de “saber-poder”
acordo com os objetivos das missões, (FOUCAULT, 2012), ela também é
abandonar suas práticas e adequar-se a responsável por moldar, recortar os sujeitos de
sociedade hegemônica a fim de se constituir uma sociedade.
como sujeito. Isso caracterizava o processo
Diante disso, a assertiva “afirmação dos
civilizatório. Entretanto, mesmo num clima de
povos indígenas como sujeitos de direitos”
hostilidade por parte dos índios, os
confere a ilegalidade desses indivíduos em
missionários conseguiram catequizar alguns
terras brasileiras. Logo, a escrita, que até então
índios, mas bastava que eles voltassem à
para os índios era algo desnecessário, pois se
convivência com os outros índios para que
tratava de comunidades de tradição oral,
retornassem aos seus costumes e crenças.
tornou-se imprescindível, o que poderia
(SECAD, 2007, p. 10).
legitimá-lo como sujeito. Castro-Gómez (2005,
Diante disso, vendo que suas estratégias p. 81), afirma que a escrita no período do
não alcançaram o êxito esperado, mudanças século XIX era um instrumento de
coercitivas foram realizadas. A primordial fora “civilização”.
a construção de uma proposta escolar que
Dada a natureza da escrita, enquanto
abolisse a “integração”, termo que maculou a
disciplinar e condicionadora das identidades, é
imagem da sociedade brasileira, para dar
por meio dela que o indivíduo é legitimado
espaço à “inclusão”. A proposta de uma
como sujeito. Tornar os índios sujeitos de
educação que aproximaria os indígenas do
direitos nos remete, novamente, ao discurso de
branco, e proporcionaria igualdade, ensino,
integração que permeia esse documento.
conhecimentos e práticas universais
respeitando as diferenças foi delegada a escola. Não obstante, a questão territorial está
intimamente ligada a garantia de uma educação
Paralelo a esse discurso, a escola passou
e uma escola diferenciada. As diretrizes
a ser um direito institucionalizado, que poderia
afirmam que é de direito dos povos indígenas
ou não ser requisitado nas comunidades
um território próprio para o desenvolvimento
indígenas. Ou seja, para ter acesso a todos esses
de suas práticas e que é elemento básico:
recursos os índios precisavam curvar-se ao
sistema, e aceitar a governabilidade. Portanto, a R3: Art. 4º I - a centralidade do território
escola veicula-se como um sistema de controle, para o bem viver dos povos indígenas e
ao qual o sujeito deve se adequar para fazer para seus processos formativos e, portanto,
parte de um determinado grupo. a localização das escolas em terras
habitadas por comunidades indígenas,

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ainda que se estendam por territórios de
diversos Estados ou Municípios contíguos; rastrear as representações de terra, educação e
(p. 36) escola que emergem do discurso desse povo.
Neste recorte, o sujeito pesquisado narra
A expressão “centralidade” advinda da a luta pelo reconhecimento étnico e territorial e
palavra centralização se refere a “ação de o respaldo da escola nesse processo.
centralizar, concentração de poder” O enunciador durante seu discurso o
(BECHARA, 2011, p. 400). Neste caso, logo interrompe, silencia-se. Essas interrupções
faz-se necessário interpretar também o termo representadas pelas reticências refletem a sua
“território”, que designa “terreno extenso, área busca, por meio da memória discursiva, pelo
geográfica”. (BECHARA, 2011, p. 1089). “melhor” dizer. Há uma constante negociação
Diante disso, o efeito de sentido da entre díspares valores que o permeiam e que
expressão “centralidade do território” traz à refletem um sujeito clivado, cingido,
baila a importância desse espaço, enquanto descentrado, tal como na perspectiva discursiva
terra, para a formação desses indígenas. Porém, da AD, em que o sujeito é falho e suas palavras
ao deslocarmos esse sentido observamos que a são “porosas”, cabendo deslizes, falhas e
importância de reafirmar a necessidade de se múltiplas interpretações, explica Authier-
ter um território, de se afirmar como dono, Révuz (1998, p. 26), observe:
como possuidor é discurso do branco,
imbricada a uma formação discursiva R4: [...] depois dessa luta conseguimos
capitalista. esse reconhecimento... a nossa
identidade...[...] até a cédula [...] de
A representação de território para o identidade pra... pra ser como Kinikinau...
branco está atrelada a concentração limítrofe de é... o que nos falta agora é só o território...
terras, de poderio, posse, que, por sua vez, então a escola pra gente foi... um grande
abrem caminhos políticos e econômicos em caminho... é o primeiro passo para o nosso
uma sociedade extremamente capitalista como reconhecimento...[...]
a nossa.
Oposta a representação de terra para o No início, a anáfora encapsuladora
branco está a representação de terra para o “dessa luta”, que, de acordo com Cavalcante
índio. Concebendo-a como mãe, provedora de (2014, p. 80), tem como função uma “retomada
sua existência e seu equilíbrio, a relação de resumitiva”, faz referência a busca pelo
pertencimento é inefável. reconhecimento étnico e territorial dos
Kinikinau. Logo, os dêiticos “nossa”, “nosso”,
A representação de terra, que se “a gente”, corroboram o sentimento de
presentifica no discurso Kinikinau, em face ao coletividade desse povo, mas, em seguida,
discurso sobre a educação e escola, propicia desloca o sentimento de pertença quando o
uma viagem que hibridiza o novo e velho, o enunciador afirma que alcançaram a “cédula
passado e o presente. [...] de identidade”. Essa anáfora indireta, com
Em face disso, selecionamos um recorte função de “introduzir um novo referente” e de
visando, por meio de um gesto analítico, “dar continuidade a relação referencial”
(MARCUSHI, 2005, p. 58) por meio da

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expressão “nossa identidade”, manifesta outras a escola é a representação de um microterritório
vozes que se presentificam nesse discurso, a Kinikinau em terras Kadiwéu, em que “esse
voz do branco3. reconhecimento”, expresso pela anáfora
indireta, torna-se possível. Posteriormente, o
Em face disso, observamos a presença
marcador discursivo “então” com “função
do interdiscurso do branco, imbricado à
argumentativa” (CASTILHO, 1996, p. 427),
formação discursiva governamental, sendo que,
marca o início de um novo período, para
para ele o que vale é o documento de
retornar o assunto que foi interrompido pela
identidade da FUNAI. A presença da conjunção
introdução de uma explicação, e vislumbra o
comparativa “como” na expressão “pra ser
referente “a escola”, recategorizada pela
como Kinikinau” traz à baila o conflito
anáfora direta “um grande caminho” pautada
identitário, a constante negociação, pois, para
num processo de “progressão tópica”
ser Kinikinau há a necessidade de legitimação
(CAVALCANTE, 2014, p. 62).
por parte de uma instituição governamental,
com isso, o sentimento de pertença fica Apesar de estar associada a instituição
consorciado ao Estado e não, somente, ao governamental e consolidada a perspectiva de
indígena. “identidade legitimadora” (CASTELLS, 2001),
o nome da escola grafada em língua indígena
A representação de território para os
Koenukunoen mobiliza uma interpretação
Kinikinau ultrapassa a concepção de terra, de
distinta de escola. Os Kinikinau compreendem
solo para plantio e criação de gado. No
que o âmbito escolar, enquanto território em
momento em que SP1 afirma que “o que nos
que a “democracia” se estabelece
falta agora é só o território”, fazendo uso do
oportunizando momentos de (des/re)construção
item lexical “só” não com sentido excludente,
identitária quando a língua Kinikinau é
atribui ao território o papel basilar de
revitalização para o povo. Entretanto, constata- ensinada, quando valores e saberes desse povo
junto aos conhecimento universais são
se a formação discursiva capitalista imbricada
transmitidos aos alunos, é o que os fortalecerá,
ao interdiscurso do branco, pois, a demarcação
que ampliará a visibilidade diante da sociedade
de terras, a posse é uma necessidade primária
hegemônica na busca por seu território. Esse
do branco.
mecanismo de resistência veiculado pelo
Diante do exposto, podemos concluir “saber-poder” (FOUCAULT, 2012) é que
que o enunciador concebe o território como molda os sujeitos de uma sociedade.
lugar que engendra identidades, em que
Nesse sentido, toda a historicidade
pessoas, culturas e saberes são cultivados;
constitutiva dos Kinikinau está estritamente
ambiente de pertencimento, e que, em plano
relacionada ao processo identitário desses
secundário, proporciona a subsistência. Com
sujeitos, já que as identidades culturais são
isso, a falta desse território que norteia o
complexas, “instáveis” e “provisórias” (HALL,
processo identitário de um povo é suprida pela
2005). Posto isso, o sujeito Kinikinau é
presença da escola. Mais que um espaço físico,
perpassado por inúmeras identidades e que, por
sua vez, todas num constante processo de
3
Utilizamos o termo “branco” para caracterizar todos
aqueles que não se autodeclaram indígenas (Hall, 2005).

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970
imbricação, o constituem, e logo, se mesclam a
Observamos, portanto, que a escola é o
história, as vozes e a outros sujeitos.
caminho pelo qual os Kinikinau optaram seguir
4. Considerações Finais de forma estratégica a fim de alcançar seu
Ao lançar olhar sobre a situação de território, ou seja, escola e território são
exclusão, observamos que a imagem que indissociáveis mediante essa situação. A nossa
busca-se criar desses documentos oficiais é de hipótese de que a escola é concebida como o
proteção e garantia dos cumprimentos dos microterritório e um elemento estratégico para
direitos das comunidades indígenas, com isso reaver suas terras confirmou-se.
se “vestem” de um discurso dito de inclusão
social. Em contraponto, constatamos, com base
Referências
na análise inicial, que as representações
emergentes do discurso dessas diretrizes estão AUTHIER-RÉVUZ. J. Palavras incertas: as
condicionadas a recorrente regulamentação dos não-coincidências do dizer. Campinas: Editora
povos indígenas, a intenção de integrá-los e de da Unicamp, 1998.
conferir as comunidades um lugar excluso à BECHARA, E. Dicionário da Língua
“sociedade branca”. Portuguesa. 1ª. ed. Rio de Janeiro: Editora
Por meio das análises, contatamos que Nova Fronteira, 2011.
esse povo apesar de estar à margem da BRANDÃO, H. H. N. Introdução à análise do
sociedade, luta incansavelmente para reaver discurso. 3ª. ed. rev. Campinas, SP: Editora da
suas terras, e mune-se de todas as Unicamp, 2012.
possibilidades para se fortalecer e superar a
exclusão. BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais
para a Educação Escolar Indígena na Educação
Diante disso, as representações que Básica, 2012. Disponível em:
emergem de seu dizer sobre território, escola e http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com
educação se apresentam de forma muito _content&id=17576&Itemid=866.
próxima a dos brancos, em face de uma
fronteira que mais aproxima às relações CASTELLS, M. O poder da identidade: a era
interpessoais, interculturais e interétnicas, que da informação: economia. Sociedade e cultura.
separa, mesmo que essa aproximação se mostre Tradução Klauss Brandini Gerhardt. São Paulo:
conflituosa. Logo, essas representações estão Paz e Terra S.A., 2001.
permeadas pelo interdiscurso do branco. CASTILHO, A. T.; BASÍLIO, M. (orgs.).
O fato de estarem em condição Gramática do Português Falado. Campinas:
diaspórica, mas se manterem ativos na busca Editora da Unicamp/FAPESP, v. IV, 1996,
pelo reconhecimento territorial, por meio da p.423-451.
escola, demonstra a tomada de poder e jogo de CASTRO-GOMES, S. Ciências sociais,
entrelaçamento que esse povo faz entre seus violência epistêmica e o problema da “invenção
valores e os valores do branco, numa do outro”. In: LANDER, Edagar (orgs). A
interpelação que os possibilita ganhar colonialidade do saber: eurocentrismo e
visibilidade e espaço na sociedade hegemônica. ciências sociais. Perspectivas latino-americas.

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972
A POLÊMICA DOS EFEITOS DE SENTIDO DO DISCURSO DA
EDUCAÇÃO INCLUSIVA E DA EDUCAÇÃO BILÍNGUE PARA
ALUNOS SURDOS

Marcos Roberto dos SANTOS


Universidade do Estado do Amazonas (PPGLA/UEA)
marcosroberto_ils@hotmail.com

Resumo: O presente trabalho visa analisar os efeitos de sentido do discurso acerca do


tema Inclusão Social produzido por Surdos e por ouvintes. Para a realização deste
trabalho foi realizada pesquisa bibliográfica de autores que abordem sobre Educação
Bilíngue para Surdos como Ronice Quadros (2004), Márcia Honora (2012). Também foi
realizada pesquisa documental de fontes primárias como as legislações sobre a Educação
Inclusiva e a Educação específica para Surdos. A análise dos dados coletados foi baseada
no referencial teórico-metodológico da Análise do Discurso francesa, tal como proposta
por Pêcheux e desenvolvida por Orlandi (2012).
Palavras-chave: discurso; educação inclusiva; educação bilíngue.

milita em busca de defesa de seus direitos e


Introdução
conquistas de espaço na sociedade. Os
Atualmente o termo Inclusão Social tem movimentos sociais surdos tem um papel muito
sido alvo de muita propagação no cenário importante para isso, pois através deles
brasileiro desde a década de 1990. No contexto acontecem alterações nos principais
da Educação de Surdos, este processo é motivo documentos norteadores da Educação Especial,
de muitas polêmicas e discussões, uma vez que novos estudos, novas leis e etc.
o Ministério da Educação lança políticas de
Apesar de todo esse avanço na
uma educação para surdos direcionadas ao
Educação de Surdos do Brasil e
ensino regular. Já a Comunidade Surda se
consequentemente no Estado do Amazonas,
mantém em uma posição contrária a essa,
ainda há um longo caminho a ser percorrido
dando ênfase à uma educação específica para
para que possamos alcançar o nível educacional
Surdos, tendo como principal língua de
tão almejado pelos surdos. Historicamente, o
instrução a Língua Brasileira de Sinais -
processo educacional para estes alunos foi
LIBRAS.
marcado por um intenso massacre cultural e
A Comunidade Surda Brasileira hoje se desrespeito de sua identidade. Sendo assim,
encontra muito organizada politicamente e este artigo tem como principal objetivo

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973
identificar as relações dialógicas do período filósofo Aristóteles exerceu uma influência
Oralista, que teve início na década de 1880 e significativa no processo de marginalização dos
seu fim na década de 1960, com o modelo de Surdos, arraigada inclusive nos dias de hoje em
inclusão educacional proposto pelo Ministério algumas sociedades. Ele dizia que a fala era o
da Educação para os alunos surdos na que proporcionava ao indivíduo a condição de
atualidade. Para isso será realizado um estudo humano, para ele a audição era o sentido mais
sobre o percurso histórico da Educação de importante para o sucesso educacional das
Surdos no contexto mundial e brasileiro, pessoas, por isso os surdos eram proibidos de
também será feita uma investigação dos receberem instruções educacionais.
documentos legais que embasam os pilares da (HONORA, 2014)
Educação Especial para Surdos no Brasil e no Após três séculos, na Idade Média,
Estado do Amazonas e um estudo reflexivo dos durante o feudalismo, destaca-se a grande
impactos causados por essas propostas de influência da Igreja Católica sobre o Estado.
educação inclusiva no cotidiano escolar dos Nesse período, os surdos não poderiam se
alunos surdos. casar, receber heranças e foram considerados
1. As tramas discursivas que formaram a pela Igreja seres impuros, cheios de pecados
historicidade da Educação para alunos por terem dificuldades de cumprir com os
Surdos sacramentos católicos, principalmente a
confissão. Na Idade Moderna, por influência de
Para que possamos iniciar a discussão
Santo Agostinho, a Igreja começou a ficar
sobre as influências do período do Oralismo até
incomodada com essa situação dos surdos, foi
os dias atuais na educação para surdos, é
quando organizou um estudo com os monges
necessário fazermos uma reflexão mais
beneditinos, os quais faziam voto de silêncio
detalhada do percurso histórico das abordagens
educacionais para estes alunos. para não difundirem os segredos da Bíblia, para
serem instrutores de surdos. Por isso, os
A historicidade da educação para surdos primeiros registros de alfabeto manual foram
é marcada por um grande desrespeito e encontrados dentro de mosteiros. (HONORA,
desvalorização da cultura e identidade surda. 2014)
Desde a Antiguidade, os surdos, assim como os
A partir deste momento a situação dos
deficientes1, sofreram muita discriminação e
surdos começa a mudar para melhor, até que o
até mesmo foram mortos por não se
educador alemão Samuel Heinicke começou a
encaixarem nos padrões sociais vigentes, visto
divulgar estudos com estratégias de ensino
que nesse período havia uma valorização do
fundamentadas na oralidade. Até então, o
belo, do perfeito, principalmente no Império
professor surdo francês Michel L’Eppé já
Grego e Romano. Foi nessa época que o
atuava em Paris com a utilização de sinais
1 metódicos na educação de alunos surdos. A
Os pesquisadores Ronice Quadros e Carlos Skliar citam
os surdos como diferentes e não como deficientes, pois Europa teve um grande interesse pelos estudos
são usuários de uma outra língua e partícipes de outra de Heinicke, logo após, este interesse se
cultura. Cognitivamente não apresentam nenhum déficit espalhou por todo o mundo.
cognitivo por ser surdo, diferentemente do que pregavam
no período Oralista.

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974
surdos adquirissem a linguagem oral. Essa
Por causa desse interesse, foi
percepção foi comprovada nos estudos
organizado um Congresso em Milão, na Itália,
comparativos de Stokoe entre surdos de pais
na década de 1880 que discutiria as
ouvintes e surdos de pais surdos. Ele pôde
metodologias de ensino para estes alunos.
detectar que os surdos que utilizavam sinais
Tendo como pilar a teoria da retórica de
sempre eram superior, em relação acadêmica,
Aristóteles, a qual privilegiava a fala oral, neste
aos surdos de pais ouvintes, inclusive na leitura
Congresso foram votadas algumas resoluções
oro-facial.
que desvalorizavam a língua de sinais, sendo
estigmatizada como uma condição de cunho A partir disso deu-se início então ao
patológico. Neste Congresso havia apenas período da Comunicação Total, o qual teve
pessoas ouvintes e a partir deste momento os inicio na década de 1960 e fim na década de
países passaram a adotar medidas de proibição 1980. Neste período, os professores e alunos
da língua sinalizada, visto que essa surdos deveriam usar todas as formas de
possibilitaria ao surdo um “retardamento” comunicação possível, ou seja, fala e sinais ao
cognitivo. Honorato (2014, p. 57) destaca que mesmo tempo.
dentre as determinações deste Congresso foi Como resultado desse período, os
considerado que “A fala é incontestavelmente surdos continuaram tendo uma subeducação e
superior aos sinais e deve ter preferência na insucesso profissional, pois ainda que se
educação dos surdos; O método oral puro deve utilizasse sinais, essa estratégia não permitia o
ser preferido ao método combinado.” uso de uma estrutura própria da Língua de
Assim, deu-se início então ao período sinais, mas seguia a ordem literal da língua
do Oralismo, o qual desconsidera a Língua de oral.
Sinais e dá a ela o status de linguagem apenas, A partir do final da década de 1980 e
e ainda uma linguagem que pode oferecer início de 1990, estudos na Europa introduziram
perigo para o desenvolvimento cognitivo dos o enfoque bilíngue na educação para surdos. O
surdos. No oralismo, o principal objetivo era bilinguismo vem com uma proposta de inserir o
que os surdos se “curassem” da surdez para que surdo primeiramente na comunidade surda para
pudessem ser integrados à sociedade ouvinte. depois ser inserido na sociedade ouvinte. Na
No campo da educação, as aulas eram todas esfera eduacacional, Quadros & Schimiedt
oralizadas, os sinais eram proibidos, há (2006, p. 18) afirmam:
registros de que estes alunos tinham até as
mãos amarradas. Educação bilíngüe envolve, pelo menos,
duas línguas no contexto educacional. As
Esse período de trevas para a educação
diferentes formas de proporcionar uma
dos surdos teve inicio no fim da década de educação bilíngüe a uma criança em uma
1880 e perdurou até a década de 1960, foi escola dependem de decisões político-
quando diante de tanto insucesso na educação o pedagógicas. Ao optar-se em oferecer uma
linguista americano Willian Stokoe percebeu educação bilíngüe, a escola está assumindo
que a Língua de Sinais, ao contrário do que uma política lingüística em que duas
pregava o oralismo, não provocava um atraso línguas passarão a co-existir no espaço
cognitivo, mas era um auxílio para que os escolar, além disso, também será definido

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975
qual será a primeira língua e qual será a
segunda língua, bem como as funções que foi silenciada pela cultura hegemônica ouvinte.
cada língua irá representar no ambiente Este silêncio foi rompido com a luta dos surdos
escolar. pela conquista de seus direitos, principalmente
em meios legais. O principal documento que
Neste sentido, no campo educacional, o fundamenta e deu início a todo esse processo
bilinguismo para alunos surdos tem como de inclusão social é uma declaração que
filosofia considerar a Língua de Sinais como a resultou de um Congresso em Salamanca, na
primeira língua do aluno e a língua de Espanha, em junho de 1994. Esta Declaração
instrução, já a língua oral assume a função de proclama que:
segunda língua na modalidade escrita. Podemos
Aqueles com necessidades educacionais
perceber que as tramas que tecem o percurso especiais devem ter acesso à escola regular,
histórico da educação para surdos são marcadas que deveria acomodá-los dentro de uma
por diferentes enfoques e expressivos Pedagogia centrada na criança, capaz de
momentos de marginalização. satisfazer a tais necessidades. Escolas
regulares que possuam tal orientação
No Amazonas, a comunidade surda
inclusiva constituem os meios mais
passou por todas essas mudanças. Na capital eficazes de combater atitudes
Manaus, em 1982 foi fundada a Escola discriminatórias criando-se comunidades
Estadual Augusto Carneiro dos Santos, a única acolhedoras, construindo uma sociedade
escola específica para alunos surdos do Estado. inclusiva e alcançando educação para
Ela teve seu início com base em metodologias todos; além disso, tais escolas provêem
oralistas, em que todo o foco educacional era uma educação efetiva à maioria das
voltado para o ensino da fala. É interessante crianças e aprimoram a eficiência e, em
que essa instituição passou por todos os última instância, o custo da eficácia de todo
principais pilares norteadores da educação de o sistema educacional.
surdos – oralismo, comunicação total e
bilinguismo. Atualmente, ela está passando por Baseados neste documento, começou
uma mudança no currículo escolar para se um movimento mundial para que todas os
adequar ao bilinguismo. alunos que apresentassem uma necessidade
educacional especial fossem matriculados nas
Além da escola bilíngue, o Estado
escolas de ensino regular. O objetivo é
também se dispõe da proposta de educação
contribuir para que estes alunos não fiquem
inclusiva, onde prepara uma escola com salas
segregados em escolas específicas, mas que
de recurso multifuncional para atender alunos
tenham socialização com pessoas que não tem
com dificuldades de aprendizagem, deficientes
deficiência.
e surdos. A funcionalidade destas modalidades
educacionais para surdos serão estudadas de No Brasil, uma grande vitória para a
forma mais detalhada adiante. Comunidade Surda foi a aprovação da Lei
10.436 de 24 de Abril de 2002 que afirma:
2. Aspectos Legais da Educação Inclusiva
Como vimos no anteriormente, a Art. 1o É reconhecida como meio legal de
história da educação de surdos por muito tempo comunicação e expressão a Língua

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976
Brasileira de Sinais - Libras e outros
recursos de expressão a ela associados. Assim, neste Decreto encontramos de
Parágrafo único. Entende-se como Língua maneira bem explicitada que além da oferta de
Brasileira de Sinais - Libras a forma de educação através do ensino regular, há também
comunicação e expressão, em que o sistema a oferta de classes ou escolas bilíngues. As
lingüístico de natureza visual-motora, com classes bilíngues são salas de aula dentro do
estrutura gramatical própria, constituem um espaço de uma escola regular, mas neste sala os
sistema lingüístico de transmissão de idéias conteúdos são ministrados em Libras, e a
e fatos, oriundos de comunidades de
interação com os ouvintes acontecem no
pessoas surdas do Brasil.
momento de entrada, saída e intervalo. As
escolas bilíngues são instituições onde podem
Assim, a Língua Brasileira de Sinais estudar surdos e ouvintes, mas estas adotam
passa a ser reconhecida como língua oficial, uma proposta pedagógica na qual a Língua
composta com o mesmo estatuto linguístico das Brasileira de Sinais atuará como a principal
línguas orais. A partir dessa Lei, oficialmente, língua de instrução e a Língua Portuguesa
muitos direitos foram conquistados tanto na assumirá a função de segunda língua na
área educacional, como no campo da saúde, modalidade escrita.
segurança e no cotidiano dos surdos.
No Amazonas não existem classes
Em 22 de Dezembro de 2005, foi bilíngues, apenas uma escola bilíngue, citada
aprovado o Decreto 5626 que regulamenta a anteriormente, a Escola Estadual Augusto
Lei 10.436/02 e a Lei da Acessibilidade Carneiro dos Santos que atende alunos do
10.098/00, o qual afirma que: primeiro ao nono ano, há também o Instituto
Philipo Smaldone, a qual atende também do
Art. 22. As instituições federais de ensino
responsáveis pela educação básica devem
primeiro ao nono ano, é uma instituição que
garantir a inclusão de alunos surdos ou com teve início na Itália, administrada por freiras e
deficiência auditiva, por meio da se espalhou por alguns países. No Brasil este
organização de: instituto está presente em quatro Estados: Pará,
Amazonas, Paraná e Distrito Federal. O
I - escolas e classes de educação bilíngüe,
abertas a alunos surdos e ouvintes, com
enfoque educacional no Instituto é a abordagem
professores bilíngües, na educação infantil oralista, lá os sinais não são bem aceitos. Na
e nos anos iniciais do ensino fundamental; cidade de Parintins – AM há uma escola
pertencente a prelazia de Parintins chamada
II - escolas bilíngües ou escolas comuns da
Áudio Comunicação Padre Manna, a qual
rede regular de ensino, abertas a alunos
surdos e ouvintes, para os anos finais do
atende alunos das séries iniciais ao quinto ano,
ensino fundamental, ensino médio ou é baseada na proposta oralista e atualmente está
educação profissional, com docentes das num processo de transição para o bilinguismo.
diferentes áreas do conhecimento, cientes Como se pode perceber, em todo o
da singularidade lingüística dos alunos Estado há escolas específicas para surdos em
surdos, bem como com a presença de
apenas dois municípios. Nas outras cidades e
tradutores e intérpretes de Libras - Língua
Portuguesa. até mesmo nestas duas, o Governo oferece a
educação voltada para o ensino regular através

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977
às formações ideológicas nas quais essas
das Salas de Recurso que os alunos com posições se inscrevem.
dificuldades de aprendizagem, deficientes e
surdos frequentam no contraturno das aulas
Como já foi mencionado, há dois
regulares.
extremos em que ouvintes e surdos se
3. A formação discursiva da comunidade posicionam com opiniões contrárias. A maneira
surda acerca da Educação Inclusiva em que cada grupo dará sentido ao termo
Refletir o processo educacional dos inclusão social estará relacionada ao modo
alunos surdos atualmente exige uma reflexão como estes sujeitos foram interpelados pelo
mais sistematizada para a compreensão do meio, passando assim a comporem suas
fenômeno. Os surdos militam por um modelo formações discursivas.
educacional que vá ao encontro das suas Se as formações discursivas
especificidades e possibilitem uma formação determinam o que pode e deve ser dito dentro
positiva da sua construção identitária e cultural, de uma formação ideológica, discutiremos
baseadas em torno de sua língua visual- agora o discurso da educação inclusiva para
espacial: a Língua Brasileira de Sinais. Essa surdos e a sua relação com discurso do período
militância tem como fundamento a oralista.
asseguridade e a defesa das classes e,
Honora (2014) cita que Aristóteles ao
principalmente, as escolas bilíngues.
propagar a teoria da retórica era categórico em
Por outro lado, encontra-se o Ministério dizer que a fala oralizada é o que dá ao
da Educação defensor das políticas de individuo sua condição de humano, pois é a
Educação Inclusiva. O objetivo destas políticas grande responsável pelo desenvolvimento
é a inserção dos alunos com necessidades cognitivo. Isso foi base para as discussões no
educacionais especiais nas salas regulares, visto Congresso Milão, onde ao terem sua língua
que, nesta perspectiva o ensino especial é uma silenciada, eram considerados pessoas doentes,
forma de segregação. com déficit cognitivo e precisavam estudar em
Com base em todo o estudo já realizado institutos para pessoas com outros
neste trabalho, temos uma bagagem de comprometimentos, em regime de internato.
conhecimentos já necessários para que seja Ao fazer uma relação dialógica entre o
feita uma análise no efeito da produção de discurso do oralismo e da educação inclusiva,
sentido da palavra “Inclusão”. Para Orlandi pode-se perceber uma interdiscursividade, no
(2012, p. 42): sentido de que ambas consideram que a surdez
impede o surdo uma evolução na hierarquia
Consequentemente, podemos dizer que o social, visto que tanto para o oralismo quanto
sentido não existe em si mas é determinado
para a educação inclusiva, o meio que
pelas posições ideológicas colocadas em
possibilita este crescimento é a comunidade
jogo no processo sócio-histórico em que as
palavras são produzidas. As palavras ouvinte.
mudam de sentido segundo as posições Sabemos que o termo “deficiente
daqueles que a empregam. Elas “tiram” seu auditivo” tomou força mundialmente após o
sentido dessas posições, isto é, em relação Congresso de Milão com o início do período

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oralista, uma vez que vários médicos e aceita, isso significa que ainda é considerada
profissionais da área da saúde decidiram criar uma língua incompleta e a Língua Portuguesa
técnicas e procedimentos de cura para a surdez. ainda encontra-se numa posição superior,
Dessa forma, não havia uma valorização da incapaz de ser substituída pela Língua de
surdez enquanto diferença cultural, estes se Sinais.
encaixavam apenas como pessoas com Portanto, quando Orlandi (2012) nos diz
deficiência.
que as palavras mudam de sentido de acordo
No período oralista, a Língua de Sinais com quem produz o enunciado, podemos
não era aceita e reconhecida como um sistema compreender o porquê da resistência dos
linguístico, a comunicação dos surdos era movimentos sociais surdos com as políticas da
considerada gestos e mímicas. Desde 24 de educação inclusiva, uma vez que as formações
Abril de 2002, existe a Lei 10.436 que discursivas não estão desconectadas do
reconhece a Libras como língua oficial da contexto histórico, social e cultural, motivo
comunidade surda brasileira que diz: pelo qual durante séculos os surdos foram
submetidos às dominações hegemônicas
Art. 3o As instituições públicas e ouvintistas.
empresas concessionárias de serviços
públicos de assistência à saúde devem 4. Considerações finais
garantir atendimento e tratamento Apesar de todo o avanço no campo das
adequado aos portadores de deficiência
políticas de ações afirmativas existentes
auditiva, de acordo com as normas legais
atualmente no Brasil, a educação inclusiva para
em vigor.
surdos ainda é motivo de muitas discussões e
Parágrafo único. A Língua Brasileira de entraves entre grupos de ouvintes e de surdos.
Sinais - Libras não poderá substituir a Ao produzir um enunciado sobre este tema, o
modalidade escrita da língua portuguesa.
efeito de sentido para o ouvinte é a
Assim, se esta Lei trata sobre os possibilidade de socialização e
aspectos culturais e linguísticos que contribuem compartilhamento de culturas. Já quando quem
fundamentalmente para a formação da produz o enunciado é o surdo, o efeito de
subjetividade surda e, a priori desvia a surdez sentido toma um caráter mais negativo do que
para uma visão sócio-antropológica, neste positivo, pois a forma com que foi interpelado
terceiro artigo é utilizado o termo “deficiente pelo meio propiciou que ele faça parte desta
auditivo”, o que dialoga com a formação formação discursiva e não de outra.
discursiva da surdez enquanto deficiência. Partindo desta formação discursiva da
Outro ponto que merece atenção é no parágrafo comunidade surda e da visão sócio-
único que afirma que a Libras não substitui a antropológica da surdez, é possível identificar
modalidade escrita da Língua Portuguesa. É de relações discursivas entre o oralismo e a
conhecimento que, desde o final da década de educação inclusiva, uma vez que a ideologia de
1970, as línguas de sinais não são ágrafas, pois contato entre surdos e ouvintes são
foi desenvolvido o SignWriting, o qual registra fundamentais para a constituição destes
graficamente todos os fonemas destas línguas. sujeitos.
Se Libras é uma língua, mas sua escrita não é

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979
Sendo assim, pensar em uma educação
inclusiva para alunos surdos é levar em
consideração a opinião do próprio sujeito do
processo de ensino e aprendizagem e pensar em
um processo em que eles tenham a
oportunidade de compartilhamento de
experiências e saberes uns com os outros, de
forma com que sejam ativos construtores de
sua autonomia, capazes de afetarem e serem
afetados pelo meio.

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Agosto de 2015. Disponível em:
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Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

980
A FORMAÇÃO DISCURSIVA EM MATÉRIAS
JORNALÍSTICAS SOBRE A MULHER VÍTIMA DE VIOLÊNCIA
DOMÉSTICA

Rafaella Elisa da Silva SANTOS; Sérgio Nunes de JESUS


Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Baiano (IFBAIANO); Universidade Federal da
Bahia (UFBA); Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Rondônia (IFRO);
rafaella.santos@folha.com.br; sergio30canibal@gmail.com

Resumo: Apesar da institucionalização de direitos de gênero, a violência doméstica


ainda é discurso circulante no Brasil. Com vistas a identificar as formações discursivas
(FD) que sustentam os dizeres que a legitimam, com aporte teórico-metodológico da
Análise do Discurso, foram selecionadas duas reportagens sobre o assassinato de um
homem, ex-marido de vítima de violência doméstica, em Joinville. Observou-se o
funcionamento de duas FD, sendo que em nenhuma delas a mulher é significada como
protagonista de sua própria história. Assim, ainda que tenha fala na reportagem, o
espaço a ela reservado é pequeno, o que revela que os dizeres dos sujeitos-jornalistas
encontram-se revestidos pela ideologia patriarcal. A filiação discursiva dos sujeitos
envolvidos a configura apenas como uma violência qualquer, a vender prestígio ao
jornalista, ao construir o ethos de justiceiro social.
Palavras-chave: violência doméstica; análise do discurso; matéria jornalística.

em suas vidas laborais, financeiras ou sexuais.


Introdução
Devido a isso, eles constroem sentidos que os
- Em briga de marido e mulher, não se revestem de isenção nos desvios nos percursos
mete a colher, diz o ditame popular. E, por de suas vidas, muitas vezes, imaginários.
muitos anos, essa “receita” de bem-viver em
A relação marital é revestida por
sociedade foi seguida à risca e, como
embates de poder. Um dos polos do binômio
consequência, os embates domésticos
recebe um nome especial: a lexia “marido” não
continuaram circunscritos ao lar. Seguindo a
é apenas indicadora de homem casado, mas traz
máxima religiosa – cristã – de que a mulher é a
implicações ideológicas perceptíveis no
responsável pela manutenção das relações
afrontamento com a outra lexia resultante do
maritais, edificando sua casa, muitos homens
matrimônio. Ao ser chamada de “mulher”,
atribuem às suas esposas a responsabilidade por
vocativo normalmente acompanhado pelo
quaisquer efeitos colaterais da relação, ou
pronome possessivo “minha”, a mulher é
ainda, por problemas individuais ou insucessos

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tomada como aquela que é possuída, destituída portanto, não qualificam as demandas das
de autonomia e liberdade. Existe alguém para mulheres como direitos inerentes a seu gênero,
legitimar a sua existência. Embora haja uma em um movimento de apagamento dos
palavra específica que denote a condição de ser problemas enfrentados por elas na sociedade.
feminino casado – “esposa” – raramente no Em virtude dessa divisão nada
cotidiano, as mulheres são assim chamadas. equânime de papeis na relação marital, os
É importante não deixar escapar o homens, na condição de sujeitos plenos de
vocativo, encaixando-o meramente na categoria direitos, fazem do corpo feminino o espaço de
linguística, pois, conforme Jesus (2008, p. 62- sua satisfação, não apenas sexual, mas,
63), “todo e qualquer ato inerente à linguagem sobretudo, psicológica, no sentido de concebê-
carrega em si indícios de subjetividade”. lo como o espaço de grito de suas frustrações,
de regulação de sua saúde mental, ou seja, é
Deve-se, ao invés disso, portanto,
através do corpo feminino que o homem
observar os movimentos que as palavras em
resgata a sua virilidade e estabiliza as suas
questão trazem na construção da relação
emoções, ‘domesticando’ a mulher,
marital. Dessa forma, trilhando os passos de
direcionando-a no caminho por ele desejado.
Bourdieu (2007), o chamamento do ser
feminino mais usual carrega em si a marca da Em 2006, foi constituída a Lei n.º
diferença existente entre os envolvidos, e 11.340, conhecida como Lei Maria da Penha,
denuncia a língua enquanto um sistema com o intuito de coibir os atos violentos
simbólico, ou seja, um sistema que regula o motivados por questão de gênero. Entretanto,
poder, a sujeição de um indivíduo pelo outro. em estudo preliminar intitulado “Violência
contra a mulher: feminicídios no Brasil”, o
Percebe-se, então, para além de
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada –
questões exclusivamente linguísticas, que o
IPEA (2013) demonstrou que a referida lei não
supracitado vocativo indica que o casamento
promoveu grande impacto na redução da taxa
ultrapassa as barreiras das afetividades e abarca
de feminicídios no Brasil, sendo que as regiões
questões de gênero e permite a apenas um dos
Nordeste, Centro-Oeste e Norte apresentam as
sujeitos o exercício pleno da subjetividade, da
maiores taxas de homicídios de mulheres por
autonomia e da liberdade. À mulher, pelo fato
questão de gênero. O IPEA alerta que no país
de ser mulher, são negados a humanidade, o
uma mulher morre a cada 1,5 hora.
usufruto de suas desejos e singularidades.
É importante, assim, compreender como
A mulher é, então, esvaziada de sua
a mulher e a violência por ela sofrida são
humanidade e suas demandas não são
significadas, sobretudo no que diz respeito às
consideradas relevantes. Santos (2011)
instituições. Esse é o propósito desse trabalho,
evidenciou que as questões exclusivamente
com foco em uma das instituições mais
femininas não constituem interesse dos sujeitos
importantes da contemporaneidade: a mídia. A
e, portanto, não se configuram em sentidos que
violência doméstica sofrida pela mulher é
circulam livremente na sociedade. Dessa
analisada, com vistas a identificar os sentidos
maneira, os sujeitos não mencionam
assumidos pela imprensa e como se dá essa
especificamente os direitos da mulher e,
assunção, ou seja, as formações discursivas às

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quais os sujeitos-jornalistas encontram-se rede semântica e os fios interdiscursivos que
filiados, com observância nas condições de permitem que aquela ação se materialize, ou
produção desses discursos. seja, a região de contradições e semelhanças
com as quais o sujeito mantém relação para
Foram escolhidas duas reportagens
legitimar a violência doméstica. Assumir
veiculadas pela mídia televisiva, a respeito do
sentidos é um gesto interpretativo, conforme
mesmo fato – o assassinato do ex-marido
Orlandi (2007), na qual o sujeito filia-se –
agressor pelo atual marido de mulher vítima de
inconscientemente – a uma das inúmeras
violência doméstica, após o registro de dez
possibilidades semânticas, mas sem domínio de
boletins de ocorrência –. As reportagens são do
fazê-lo. Logo, interpretar é um gesto de
programa Cidade Alerta, da Rede Record, e do
apagamento, na qual os demais sentidos sobre a
Jornal do meio-dia, da RIC TV, afiliada da
mulher e sua função e direitos no casamento
Record em Joinville, local do homicídio. A
são “esquecidos”, deslegitimados.
perspectiva teórica é a Análise do Discurso.
A mulher, então, é significada como um
Violência Doméstica: uma questão
ser menor, que carece de ‘adestramento’ e que
discursiva
deve estar sempre disponível para servir. Trata-
Para além do sofrimento físico e se, portanto, de significar o matrimônio como
psicológico, pode-se apreender a violência uma relação de dependência física, emocional e
doméstica como discurso, palco de conflito de social, na qual a mulher e o homem são
instâncias ideológicas, ou seja, como efeito de significados de maneira diferenciada. Então,
sentidos, e entender o agrupamento masculino mulher e homem não são na perspectiva
como uma formação social marcada pecheutiana, indivíduos corporais, físicos, mas
ideologicamente pelo entendimento de instâncias discursivas, o que Pêcheux (2009)
matrimônio como uma relação de poder, denomina de forma-sujeito.
domínio do homem sobre a mulher.
A forma-sujeito é fruto da identificação
A violência doméstica é uma instância plena do sujeito com a formação discursiva
linguageira reguladora, da qual emana posições (FD) que o constitui e o domina. Por FD
de sentidos que estabelecem o que pode e deve entende-se o que determina o possível de ser
ser dito/feito e por quem. Assim, a violência dito em determinadas condições de produção. É
doméstica configura-se como uma assunção do um elemento da formação ideológica que
sujeito a uma rede de sentidos que orienta o seu legitima os sentidos assumidos e diz respeito a
dizer e o seu fazer em sociedade e constrói um posições conflitantes. As formações ideológica
arcabouço semântico que legitima a vida social e discursiva são marcadas pela diferença e pela
e organiza a relação marital. pluralidade semântica e, portanto, os sentidos
A violência doméstica é a no interior de uma FD encontram-se dispersos.
materialização de ideologias às quais o sujeito Nem sempre o sujeito se identifica
se filia para emergir significações acerca da plenamente com a FD que o domina, e a
mulher. Assim sendo, pode-se afirmar que os tomada de posição pode revelar a
sentidos são ideologicamente determinados. Ao contraidentificação desse sujeito em relação à
violentar uma mulher, o sujeito evidencia a sua FD na qual se encontra inscrito. Desse modo,

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sujeitos podem legitimar apenas a agressão
Violência Doméstica: Formações Discursivas
verbal e psicológica, rejeitando a agressão
e o gênero jornalístico
física, enquanto outros, sob a mesma FD,
identificam-se plenamente com ela, O gênero selecionado é a reportagem
legitimando sentidos que permitem todo e jornalística, pois os discursos dos corpora se
qualquer tipo de violência contra a mulher. revestem de um pré-construído que atribui a
Compreende-se, então, que uma FD mantém eles um efeito de verdade, fazendo com que o
relação com o seu exterior, reconfigurando-se público assuma os dizeres emergidos como
constantemente a partir do interdiscurso. sendo espelhos da realidade e independentes.
Assim, discorrer acerca da violência sobre a
Branca-Rossof (2008) acredita que o
mulher nesses espaços discursivos implica a
gênero também é determinante no
construção de uma imagem do sujeito-
estabelecimento dos sentidos possíveis para
jornalista como alguém informado, mas que,
condições de produção específicas. Assim, a
além disso, se importa com aqueles que sofrem.
depender do gênero no qual o discurso circula,
as significações emergidas podem ser O gênero influencia o modo como os
diferentes, pois os gêneros limitam o que pode sentidos emergem: determinadas lexias não são
e deve ser dito; o gênero, portanto, integraria as possíveis, nem mesmo estruturas sintáticas
condições de produção do dizer e, em conjunto complexas, pois interfeririam na compreensão
com a noção de FD, estabelece o campo do de alguns telespectadores, reduzindo a taxa de
dizível. Então, os gêneros textuais implicam na audiência. Assim, o gênero impacta a
circulação dos discursos, afetando também a emergência de sentidos e o fio do discurso.
estabilização dos sentidos na sociedade. Apesar de os programas jornalísticos
Entendem-se, então, gêneros em uma serem transmitidos via TV, para análise em
perspectiva bakhtiniana (2003), que os questão, eles foram obtidos nas páginas web
configura como sendo práticas sociais dos programas. Ressalta-se Orlandi (2006) ao
necessárias para organização dos discursos, afirmar que a mudança de materialidade muda
conforme as necessidades e especificidades das o discurso, ainda que o texto seja o mesmo.
atividades humanas, constituídos por Destarte, os efeitos de sentido gerados pelos
enunciados inter-relacionados, e que devem ser discursos na web são diferentes. Destacam-se
compreendidos como sendo relativamente três razões: o estado emocional do espectador:
estáveis. É relevante a compreensão da por não estarem assistindo toda a programação
circulação dos sentidos na sociedade, a partir do jornal, mas apenas a uma matéria específica,
de um gênero (a reportagem jornalística) que existe um equilíbrio maior entre razão e
procura construir o ethos, ou seja, a imagem emoção. Normalmente, o sujeito procurou
discursiva, de isenção e comprometimento com especificamente pela reportagem ou a escolheu
a verdade. Esse efeito de sentido influencia a aleatoriamente no site. Ele, assim, não ficou
emergência de sentidos outros acerca da sujeito às chamadas realizadas pelos programas
violência doméstica, contribuindo para a a fim de sensibilizar o espectador e, com isso, a
reconfiguração das fronteiras das FDs. carga emocional envolvida é menor. A segunda
razão diz respeito à atenção do espectador.

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Defronte à TV e sujeitos a discursos
Ainda em relação aos títulos das
audiovisuais, ficam mais conectados ao jornal.
matérias, é interessante notar uma discrepância
Na web, sua atenção é dispersa e a navegação
entre eles. O título do RIC TV indica que a
pode ocorrer por meio de diversos links, através
ação violenta ocorreu um dia depois de a vítima
de diversas abas abertas ao mesmo tempo e,
registrar o último boletim de ocorrência. Já no
portanto, a adesão é menor.
site do Cidade Alerta, a informação indica que
A terceira razão diz respeito ao layout a violência ocorrera minutos após o registro em
da matéria e à rede de textos com os quais ela delegacia. Essa discrepância ocorre mesmo no
apresenta relação. Embora seja a mesma site do programa de âmbito nacional, pois em
apresentada na TV, ela tem um novo layout, texto informativo abaixo do vídeo, há a
um título e uma lide, que orienta o agora leitor- indicação de que “horas antes do crime, ela fez
telespectador quanto ao que irá encontrar; a última denúncia”. Pode-se entender que a
“guia” a emergência de significações por esse Record significa o jornalismo a partir de FD
sujeito; tenta novas estratégias para captar o diversa daquele que permite a emergência de
internauta e com isso, convertê-lo em possível sentidos pelo jornalista do RIC TV.
audiência. Converte-se em novo discurso.
A formulação do título também deixa
O nome da atração jornalística da rastros dessa diferente filiação ideológica. Em
Record ganha destaque no layout da página “Homem ataca ex-mulher a facadas minutos
virtual e configura-se como um grande produto após a vítima registrar boletim de ocorrência”,
da emissora. A logomarca do programa, então, o destaque do Cidade Alerta é a agressividade
“disputa” espaço com a matéria e notícia, a do homem. O homem encontra-se em foco; a
informação, logo, não parece ser configurada, violência, independente de sua tipologia, é o
no programa de âmbito nacional com a mesma elemento norteador do discurso do jornalista. O
relevância que no jornal catarinense. fato de a violência ser direcionada a uma
A logomarca do Cidade Alerta revela-se mulher encontra-se em segundo plano. Já no
mais importante, pois até mesmo o tamanho da site do RIC TV, o título “Mulher fez boletim de
fonte das abas em relação ao título da matéria é ocorrência contra ex-marido um dia antes de
destoante. Quanto ao tamanho do título, pode- ataque em Joinville”, o sujeito da matéria é a
se também destacar a desproporcionalidade em mulher-vítima de violência. A violência
relação ao vídeo da matéria. Um título de uma doméstica é o assunto da reportagem e,
matéria jornalística é importante para esse portanto, o jornalista demonstra estar filiado a
gênero, pois é o foco de atração do espectador. uma FD que significa a agressão contra a
Assim, ao conferir ao vídeo um destaque mulher como um problema. Há então um
maior, a informação-resumo fica em segundo embate ideológico na comparação dos títulos.
plano. Consequentemente, ao reafirmar o A matéria do Jornal do Meio-dia tem
audiovisual como prioridade, como polo de duração de 02min20seg. Inicia-se com a frase
atração do espectador, o sujeito-jornalista “Agressão contra a mulher”, que dará a tônica
reafirma a sua filiação discursiva. da reportagem. A fala inicial do âncora dura
aproximadamente 29seg. Seu discurso está
voltado para a violência sofrida pela mulher e a

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consequência – a morte do ex-marido. O centro
Embora a filiação discursiva aponte
da fala é a mulher. Embora a lei não seja citada
para uma FD que signifique a isenção do
textualmente, a medida protetiva é mencionada
sujeito-jornalista no ato de informar, há, no
sob um viés positivo. O ex-marido é
discurso do Jornal do Meio-dia, a emergência
significado como sujeito que viola a dignidade
de sentidos que significam o jornalismo como
humana da mulher, bem como infringe a
responsável por alertar, conscientizar a
sacralidade da maternidade. O jornalista filia-se
população e, com isso, ao jornalista é atribuída
a sentidos que entendem a mulher como vítima,
à função de defender e atuar na sociedade para
pessoa a ser defendida, intocável, sobretudo,
além do ato de informar. Assim, o apresentador
pela condição de mãe, filiação a FD religiosa-
burla as regras jornalísticas, desliza seus
cristã. Eis a fala do âncora:
sentidos para uma FD que o reconfigura e se
Agressão contra a mulher. Mais um caso coloca como sujeito dotado de opinião,
que terminou em morte em Joinville. responsável pela emissão do posicionamento
Continua preso o homem que, para do programa. A partir dessa filiação, o
defender a esposa do ex-marido, acabou apresentador reveste-se dessa posição e finaliza
tirando a vida dele. Mesmo com vários a matéria com a frase “Alguns boletins de
Boletins de ocorrência e medida protetiva, ocorrência: quanta covardia” (grifo nosso).
o homem fazia ameaças constantes à
mulher, que era mãe dos filhos dele. A A matéria do Cidade Alerta, por sua
polícia tenta apurar como tudo aconteceu e vez, tem duração de 09min26seg. O espectador,
se foi mesmo legítima defesa. Essa matéria, assim, espera que o nível de informações dadas
nós vamos acompanhar aqui na tela seja mais profundo e traga novidades sobre o
comigo. Vamos lá (RIC TV RECORD, andamento do dilema da vítima. De início, é
2014). possível notar que antes de a matéria começar,
há publicidade. O espectador deve esperar 15
Após a fala do apresentador, há uma segundos para poder apertar o espaço “pular
pequena narração da repórter para introduzir a este anúncio”. Essa parte obrigatória, com
fala da mulher vítima de violência doméstica. É tempo equivalente à metade de uma
importante ressaltar que a repórter não aparece, propaganda na televisão, anuncia uma filiação
o que gera efeito de sentido de isenção. O fato mercadológica do programa Cidade Alerta.
de não aparecer apaga a presença do sujeito- A matéria inicia com a fala do
jornalista, ainda que esteja presente apresentador Marcelo Rezende, com duração
constantemente na matéria, seja sua voz ou por de 03min26seg, na qual o jornalista além de
meio da sua edição. Esse apagamento traz à informar ao espectador a ação que motivou a
tona a mulher como centro da reportagem e o reportagem, assume a posição de defensor da
entendimento de jornalismo como instrumento classe oprimida. Logo, o jornalista é
de informação da realidade, sem interferência significado a partir de uma FD que o define
direta do posicionamento do jornalista. A como aquele que deve, a partir de seu discurso,
reportagem segue com o depoimento da mulher denunciar os problemas de quem não tem voz e
e do delegado responsável pelo caso. a partir daí contribuir para a resolução dos

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problemas. Abaixo, segue um trecho da fala mesmo com o poder de finalizar o sofrimento
inicial do apresentador: da população desfavorecida, não o fazem. Ele
se coloca na posição de analista crítico da
Dez, dez boletins de ocorrência; esse é o situação demonstrada na reportagem, ainda que
número exato das queixas dadas, das não a tenha mostrado, e coloca a justiça como
queixas dadas por Andreia à polícia. Ela alvo de suas opiniões. Dessa maneira, a
fez dez boletins de ocorrência. A justiça, a
violência contra a mulher não é a tônica, mas a
justiça, que é cega, surda, muda e
insensível, fez o que sempre faz: deu a tal relação entre a sociedade e a justiça.
medida protetiva, a tal medida protetiva Embora a lei não tenha sido citada
que dizia que Reinaldo não podia se textualmente, o apresentador coloca-se em
aproximar. Eu tô começando a descobrir, e posição de contrariedade, ao criticar a “medida
eu não sei se você concorda, que a justiça
protetiva”. Em verdade, esse sentido não é
brasileira não é só cega, surda e muda; bate
direcionado à lei especificamente, mas emerge
no coração da justiça a mais absoluta
insensibilidade, a mais absoluta falta de como possibilidade de fazer ruir as bases da
respeito com o próximo, porque um juiz ao estrutura judicial, a credibilidade da população
determinar uma medida protetiva e ao saber na justiça. Com isso, gera um efeito de sentido
que essa mulher já tinha caminhado várias de descrença e faz com que a população
vezes à delegacia... eu não estou julgando o acredite que inexiste um trâmite legal
juiz porque é ele que ganha do meu específico e não configure a Lei Maria da
imposto pra me julgar, né! A justiça vive às Penha como um documento legítimo, fruto de
custas do cidadão sem fazer o mínimo de lutas das mulheres ao longo dos tempos.
esforço ou a parte de tentar entender o
drama de um cidadão. E Andreia tinha ido O apresentador, para legitimar a sua
dez vezes. Será que a pessoa que assina filiação ideológica desqualifica, portanto, a
uma medida protetiva não sabe que ali tem justiça, personificando-a: a justiça então é
uma mentira? E se Andreia está aqui significada como insensível, desrespeitosa e
chorando é porque ela está viva. Quando preguiçosa. A matéria, então, não é sobre
Reinaldo vai entrando e Clodomar acorda, violência doméstica; ela demonstra o embate
que estava em casa acorda, com os gritos ideológico existente entre o sujeito-jornalista e
da mulher... Bem, foi assim que começou
a justiça, um embate em que um deseja ocupar
(CIDADE ALERTA, 2014).
o lugar de prestígio institucional do outro, ou
seja, o jornalista significado como justiceiro.
Observam-se exaustivas repetições e a
valorização das emoções, características típicas A matéria prossegue com uma
do jornalismo sensacionalista, entendido como simulação-resumo da história de Andreia e
“imprensa que se apropria de elementos Reinaldo – vítima e agressor, com duração de
populares historicamente destinados aos 02min38seg. Ela é feita em tons sóbrios, sob
segmentos menos favorecidos da população” narração do apresentador Marcelo Rezende e
(GOMES, 2010, p. 26). O apresentador, então, em uma perspectiva bastante explicativa. A
constrói uma visão maniqueísta da sociedade explicação sugerida pela encenação é quase
em que há aqueles que sofrem e aqueles que, infantil devido ao alto grau de correlação entre
a narração e a ação, o que sugere que o sujeito-

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Organograma 1: Formações discursivas
jornalista constrói discursivamente o seu
espectador como sendo um indivíduo de baixa
intelectualidade e capacidade de compreensão.
Como consequência, pode-se entender que o
jornalista é entendido como aquele que além de
defender, é a consciência da população.
A simulação corrobora a faceta
melodramática do Jornalismo Popular e tem
como objetivo criar o efeito de representação
do povo pela imprensa.
À simulação, segue-se a fala de
Andreia, a partir de entrevista concedida à
repórter, que não aparece. Esse trecho advém
da reportagem original do Jornal do Meio-dia,
do RIC TV, inclusive com o depoimento do Percebe-se que o programa Cidade
delegado. Logo depois a repórter entra ao vivo, Alerta não se encontra filiado à formação
dialoga com o Marcelo Rezende e novamente ideológica feminista, portanto, seus dizeres não
entrevista o delegado, que não dá nenhuma dizem respeito a significações que
informação nova sobre o caso. compreendam a mulher como ser violentado
Interessante notar que Andreia, com dez por um homem opressor, mas vincula-se a uma
boletins de ocorrência registrados, teve direito FD que legitima seus dizeres sobre a violência
a apenas 34 segundos de fala, o que reforça o como um elemento social contra o qual o
sentido de que a protagonista da reportagem jornalista, enquanto sujeito consciente da
nunca foi a mulher nem a violência sofrida por realidade e crítico da estrutura governamental,
ela, mas o apresentador, que se coloca como bem como das instâncias judiciais legitimadas
paladino da justiça. As FD assumidas nas pelo Estado e tem a responsabilidade de alertar
reportagens podem ser assim esquematizadas: e defender a população brasileira. Não quer
isso dizer que os sujeitos do Cidade Alerta não
assumam sentidos contrários à violência
doméstica. Esse entrecruzamento é
demonstrado pela seta pontilhada entre as FD,
que indica que os sentidos da FD vinculada à
formação ideológica feminista podem deslizar
e reconfigurar as fronteiras da outra FD com a
qual ela mantém relação. Entretanto, esse
intercambiamento não é suficiente para afirmar
que o sujeito do Cidade Alerta é interpelado
por outra FD, já que suas principais
significações pertencem à esfera da FD
jornalismo-paladino da justiça.

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luta do movimento feminista, por não
Por outro lado, o programa Jornal do
assumirem sentidos que constituam a mulher
Meio-dia transita entre as duas FD descritas e
como vítima e centro do embate ideológico que
pertence ao universo semântico da formação
movimenta a sociedade.
ideológica feminista. Embora não seja um
programa feminista, o sujeito-jornalista assume O Jornal do Meio-dia encontra-se
sentidos que constroem a mulher como vítima filiado a duas FD que permitem sentidos que
de um grave e recorrente problema social e ao configuram o sujeito-jornalista como possuidor
mesmo tempo constitui o jornalismo como da função de informar, mas também o legitima
espaço de informação, mas também como como justiceiro social. O Cidade Alerta, por
espaço de enfrentamento das estruturas sua vez, não assume sentidos que legitimam a
patriarcais, ao colocar a mulher no centro, mulher como protagonista, reforçando o
como protagonista. A violência doméstica, patriarcalismo que organiza a sociedade e
então, pertence à esfera discursiva do sujeito- concebe o sujeito-jornalista como paladino da
jornalista do programa da afiliada da RIC TV. justiça. Embora haja por parte dos dois
veículos de comunicação o deslizar de sentidos,
Considerações
em que ora informam, ora defendem, eles não
A violência doméstica é um grave se significam como defensores das mulheres,
problema social. Aos poucos, as mulheres estão da igualdade de direitos e da dignidade
encontrando espaços de lutas e conquistas, em humana. Mesmo quando a mulher está no
um movimento de valorização da mulher e centro da reportagem, a sua voz ainda é a
estancamento das feridas constituídas pelas menos ouvida, gozando de poucos segundos na
chagas sociais. Entretanto, apesar de a Lei programação. A autoridade policial e/ou um
Maria da Penha, primeiro documento jurídico homem tem mais espaço que a vítima.
constituído especificamente com o intuito de
Dessa maneira, duas são as FD que
barrar as agressões sofridas pelas mulheres, não
organizam os dizeres nos discursos analisados.
ter se mostrado suficiente para conter o
A violência doméstica ainda não é tema
sofrimento feminino, nem mesmo os
importante para a imprensa. A violência pela
feminicídios, a lei configura-se em importante
violência configura-se em temática mais
intrumento por institucionalizar a luta do
interessante aos veículos jornalísticos. A
movimento contra a violência doméstica, bem
mulher, na imprensa, ainda não é protagonista
como legitimar a dignidade humana da mulher.
de sua própria história de sofrimento.
Esperava-se que o gênero jornalístico,
revestido da imagem de isenção e
credibilidade, contribuísse para a divulgação Referências
das dores femininas, em um movimento de BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In:
investir na informação como precaução de _____. Estética da criação verbal. 4. ed. São
feminicídios e na divulgação da lei como forma Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 261-337.
de coibir atitudes violentas. Todavia, a análise
demonstrou que os veículos jornalísticos BRANCA-ROSSOF, S. Formação discursiva:
analisados não contribuem plenamente com a uma noção excessivamente ambígua? In:

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989
BARONAS, R.; KOMESU, F. (Orgs.).
ORLANDI, E. Análise do discurso: princípios
Homenagem à Michel Pêcheux: 25 anos de
e procedimentos. 4.ed. Campinas: Pontes,
presença na Análise do Discurso. Campinas:
2006.
Mercado de Letras, 2008. p. 127-148.
_____. Interpretação: autoria, leitura e efeitos
BOURDIEU, P. Sobre o poder simbólico. In:
do trabalho simbólico. 5. ed. Campinas: Pontes,
_____. O poder simbólico. 10. ed. Rio de
2007.
Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. p. 7-16.
PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma
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crítica à afirmação do óbvio. 4. ed. Campinas:
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Editora da UNICAMP, 2009
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20
04-2006/2006/Lei/L11340.htm>. Acesso em: RIC TV RECORD. Mulher fez boletim de
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facadas-minutos-apos-a-vitima-registrar-
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22 set. 2014. humanos direitos?: a emergência de sentidos
sobre direitos humanos em uma comunidade do
GOMES, C. G. O povo refletido no espelho:
Orkut. Dissertação (Mestrado em Estudo de
contrato de comunicação no jornalismo popular
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Salvador, 2011. Disponível em:
Linguagens). Universidade do Estado da Bahia,
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Dissertação (Mestrado em Linguística).
Universidade Federal de Rondônia, 2008.

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

990
A EMERGÊNCIA DE PROPOSTAS DE REGULAÇÃO DA
MÍDIA NO BRASIL: UMA ANÁLISE DO DISCURSO POLÍTICO
MIDIATIZADO PELA FOLHA DE SÃO PAULO

Wilson Ricardo Barbosa SANTOS


Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
wilson-ricardo@uol.com.br

Resumo: Nos últimos cinco anos, as propostas de controle e regulação da mídia têm
invariavelmente emergido como um tema de discussão no embate político-partidário
eleitoral presidencial brasileiro. Ao dialogar com a Análise de discurso de linha francesa,
em especial com o percurso de Michel Pêcheux e as contribuições de Michel Foucault à
disciplina, este trabalho analisa as condições de emergência da questão no Brasil, por
meio da construção de um corpus em torno da noção foucaultiana de arquivo. Discutimos,
assim, o modo como a Folha de São Paulo midiatizou o discurso político sobre o tema, de
2010 a 2015, sobretudo os modos como se estabilizaram sentidos em torno de enunciados
cujos sentidos são recorrentemente debatidos, como o controle social da mídia, a
regulação da mídia, a democratização da mídia e a regulação econômica da mídia.
Palavras-chave: discurso midiático; discurso político; análise do discurso; censura;
memória.

de estabelecer certas formas de controle do


Introdução
dizer em nossa sociedade.
Na circulação midiática do discurso
Neste sentido, diferentemente do que se
político eleitoral presidencial brasileiro, um
passou na Argentina, por exemplo, os efeitos
problema que tem sido colocado em pauta
práticos de tais discussões em um contexto
refere-se a propostas de regulação da própria
brasileiro foram bastante ligeiros nos últimos
mídia. Quando esta questão aparece como um
cinco anos, assim como o estabelecimento
tema de embate, sua circulação pela grande
efetivo de projetos de lei e propostas de
mídia brasileira, de cunho tradicional, revela
regulação. No país platino, uma série de
espessos embates entre políticos e jornalistas.
concessões midiáticas foram reordenadas, para
Trata-se, assim, de conflitos discursivos que
que vozes outras além daquelas já presentes
colocam em xeque a legitimidade de tais
nos meios hegemônicos de grande circulação
propostas, instaurando uma incessante luta para
pudessem deter maior visibilidade; também,
que se dite quem são aqueles que têm o direito
foram estabelecidos meios de transmissão para

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culturas autóctones, em um movimento de força em diferentes graus ao longo do regime,
resgate de memória de determinados grupos tais sentidos sobre uma possibilidade de que se
sociais está buscando silenciar autoritariamente a
propagação de determinadas informações em
Pensando a atuação das grandes
um contexto brasileiro retornaram nesta
instituições midiáticas brasileiras, pudemos
circulação.
verificar que sentidos que imputam um caráter
de censura a tais propostas são retomados, o Neste sentido, referir-nos-emos a tal
que evidencia o embate pela legitimidade ou fenômeno enquanto propostas de controle
não de tais propostas. Neste sentido, ainda devido à falta de terminologia mais adequada
tomando como exemplo o que se deu na para designar o problema. De fato, isso mostra
Argentina, houve discussões na esfera jurídica como a linguagem dita determinados recortes
para debater a constitucionalidade (ou não) de do real com o qual lidamos: ao denominar tais
determinadas cláusulas presentes na Ley de propostas como controle ou censura, ainda que
Medios, conflito que se estendeu por tal exemplo seja bastante sucinto e
basicamente três anos até que fossem extremamente caricato em relação à situação
legitimadas. No Brasil, dados como a ausência social da qual estamos diante, claramente nos
de novas medidas legais mostram-nos que os posicionaríamos de maneira diferente em
efeitos discursivos de tais práticas foram relação à problemática. Ao adotar a perspectiva
indubitavelmente distintos nos dois casos, o da Análise do Discurso francesa, por outro
que evidencia a importância de analisar este lado, interessou-nos antes descrever como tais
acontecimento quando se objetiva descrever sentidos estão sendo constituídos que advogar
como se constituem determinadas práticas em favor do valor de verdade de alguns deles.
discursivas no Brasil. O embate político presidencial eleitoral
No entanto, o tratamento midiático dado midiatizado, assim, é um importante lugar para
à questão do controle da mídia nos interessa observar como se estão comentando tais
não para que analisemos quais seriam, de fato, propostas, bem como quais são as leituras
os efeitos práticos destes acontecimentos em possíveis de serem realizadas nestes grandes
um contexto brasileiro. Antes de tudo, o dado veículos. Certamente, as possibilidades de
que se nos apresenta fundamentalmente é a luta interpretação do discurso político dentro de
que se está engendrando pelo valor de verdade uma sociedade têm íntima relação com o modo
de dizeres como o controle social da mídia e pelo qual o sujeito se posiciona diante de tais
pela sua legitimidade. Neste sentido, pensando emergências. Assim, ao analisar como este
que o Brasil recentemente passou por uma conflito se constrói discursivamente,
ditadura militar em que a censura foi um problematizamos as possibilidades de leitura
procedimento de controle exercido de forma que se colocam para este sujeito; afinal, nas
institucionalizada, este é um dos potenciais sociedades conforme as conhecemos hoje, o
campos de sentido que são estabilizados trabalho simbólico da mídia tem um importante
quando tais propostas são comentadas por tais papel na divulgação de tais devires sociais,
mídias. Ou seja: depois de passado um período construindo simbolicamente uma mediação
de 21 anos em que a censura obteve grande entre o homem e a realidade. Esta construção

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discursiva, com efeito, pode tomar teores de (2008) como pivô; também, discutimos as
um acontecimento discursivo (PÊCHEUX, contribuições de Michel Foucault (2008 e
2008; FOUCAULT, 2008). 2010) para a disciplina em sua recepção
brasileira.
Assim, para tecer uma análise desta
questão em um contexto brasileiro, elencamos Neste sentido, a noção de
os principais resultados obtidos na dissertação acontecimento discursivo é central para tratar
intitulada A emergência de propostas de confluências entre os estudos dos autores que
regulação da mídia no Brasil: uma análise do pautam a concepção de discurso por nós
discurso político midiatizado pela “Folha de adotada. Ainda que se trate de um diálogo que
São Paulo”. Neste percurso, tomamos como não pode ser realizado sem esforços e
objeto de pesquisa reportagens a respeito da percalços, tal conversa entre os pensadores
questão do controle da mídia que circularam na permitiu-nos criar um dispositivo de análise
Folha de São Paulo (doravante FSP) em sua que toma esta circulação não apenas em seu
versão para assinantes, de janeiro de 2010 a conteúdo, mas em sua relação com as
janeiro de 2015. Uma vez que este é um dos condições de emergência, ou seja, com as
veículos de maior circulação e alcance no diferentes modalidades de controle do dizer e
Brasil, a primeira pergunta de pesquisa que se do dizível que existem em nossa sociedade.
nos colocou foi: como a própria mídia massiva Assim, em vez de tomar como
tratou tais propostas, sobretudo considerando-
pressuposto sujeitos intencionais plenamente
se sua circulação em veículos como a FSP, conscientes dos efeitos de seus dizeres,
portadores de grande número de concessões e relacionamos tais possibilidades de leitura do
prestígio em nossa sociedade? Mais do que discurso político a constrangimentos que a
isso: quais são as leituras autorizadas por esta história e a ideologia infletem na produção dos
instituição? Certamente, estamos diante de um dizeres e de subjetividades.
importante fragmento de nossa história
contemporânea, que evidencia seus contornos Neste sentido, o trabalho de Michel
nos recursos linguístico-discursivos utilizados, Pêcheux (2008) mostra-nos os contornos de
mostrando como se deveu lutar pelo valor de espetáculo que o discurso político midiatizado
verdade dos enunciados controle social da tomou, a partir de efeitos ideológicos
mídia, a regulação da mídia, a democratização possibilitados pela própria natureza do
da mídia e, mais recentemente, a regulação funcionamento das línguas naturais. Com
econômica da mídia. efeito, na leitura realizada pelo autor a respeito
do resultado das eleições presidenciais
1. A noção de arquivo e a construção do francesas de 1981, em que a frente socialista
corpus em torno de um acontecimento obteve uma vitória inédita, Pêcheux mostra
discursivo como a mídia construiu um grande espetáculo
Conforme a reflexão inicial permite em torno de tal acontecimento, como se se
entrever, dialogamos diretamente com a tratasse de uma “supercopa de futebol eleitoral”
Análise do Discurso de linha francesa, mais em terras francesas. De fato, a espessura
especificamente com as discussões que histórica deste difícil conflito foi maquiada por
tomaram o pensamento de Michel Pêcheux uma circulação que conferiu importantes

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993
contornos a tal embate, sobretudo nos efeitos nestas sociedades podem realizar determinadas
da circulação de determinados dizeres. leituras.
O primeiro teor espetacular que a mídia Michel Foucault, por sua vez, além de
conferiu a tal evento se refere ao modo como o fundamentar o modo como como concebemos a
enunciado on a gagné [ganhamos] circulou: história, também nos oferece importante
sendo oriundo de comemorações de torcidas de ferramentas para tratar mais especificamente a
futebol na França, este enunciado porta construção de um corpus de análise. A partir
propriedades lógicas que fazem Pêcheux visada metodológica construída na Arqueologia
questionar sua estranha emergência para do saber (2008), a emergência de um dizer – e
designar e comentar tal acontecimento. A um nenhum outro em seu lugar – mostra o quão
resultado de uma partida de futebol, por rarefeitos são os enunciados: dentre todas as
exemplo, não se fazem perguntas senão a mais possibilidades de comentar tais
evidente: quem, afinal, venceu? acontecimentos, apenas algumas delas e não
outras foram realizas; cabe ao pesquisador,
Ainda, suas propriedades prosódicas
assim, construir subsídios para delimitar a lei
distanciam-no dos teores de uma palavra de
de rarefação destes enunciados, evidenciando
ordem, afastando-o de características de um
aspectos de “sua existência singular e limitada”
discurso político de cunho combativo, criando,
(idem, p. 126).
assim, determinada afabilidade nos efeitos de
sua circulação. Isso, de certa maneira, favorece Com efeito, para Foucault a enunciação
certa despolitização deste enunciado e, por é um acontecimento que nunca se repete, e
conseguinte, dos problemas que se sempre que realizada exclui uma gama de
engendraram para que sua emergência fosse enunciados que ali poderiam ter sido ditos.
possível. Neste sentido, o modo como tal grito Neste sentido, ainda que o autor não
se realizou (a partir de uma toada em dó-dó-dó- direcionasse suas interrogações diretamente à
sol-dó, juntamente ao modo como este dizer Linguística ou aos problemas que uma teoria
estabilizou determinadas propriedades lógicas) do sentido coloca, sua preocupação com a
inscreve-o em uma característica que noção de enunciado é fundamental à visada que
contemporaneamente se exacerbou na construímos para tratar a língua e o discurso:
circulação do discurso político midiatizado: o por ser a enunciação um acontecimento raro, o
surgimento de uma fala sem origem claramente funcionamento do sentido em sociedade se dá
verificável, a partir do funcionamento de sempre de modo a emprenhar os enunciados de
línguas de vento, sobrepujando os teores de significação (idem, p. 136).
uma retórica realizada por uma produção vocal O modo como o sentido se constrói,
forte e grave, acompanhada de uma assim, tem relação direta com este gesto
gestualidade brusca que corrobora a força da irrepetível. Ainda que uma enunciação não
voz, por exemplo. A mídia, assim, tem um possa acontecer novamente, a função
importante papel no modo como tais enunciativa descrita por Foucault mostra que os
acontecimentos se relacionam à história e, enunciados, por outro lado, comportam
sobretudo, no modo como os sujeitos inseridos possibilidades de repetição, retomada ou
mesmo apagamento. Quando um dizer é

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comentado, assim, com o fim de multiplicar os exegese e, também, a potenciais silenciamentos
sentidos que nele residem, estamos diante de e à forte interdição: para que se cumpra a
retornos que o transformam: o acontecimento função enunciativa, assim, uma unidade de
desta volta instaura relações de sentido entre os significação deve portar esta existência
enunciados que não podem ser descritas pela material, seja ela verbal, imagética, gestual ou
lógica, pela gramática ou por teorias que têm mista, que a torne sujeita a “acontecer”
como escopo um sujeito intencional, totalmente novamente, ainda que isso possa ser, inclusive,
consciente dos efeitos de seus dizeres. proibido.
A partir destes elementos, assim, Tratada neste texto datado de 1969, a
Foucault estabelece as bases da função função enunciativa é, assim, um dos
enunciativa (idem, p. 99-119). A primeira importantes pilares de análise que pautaram a
delas, a propriedade referencial, postula que investigação realizada em nossa dissertação de
todo dizer emergente deve tomar um ponto de mestrado. Ainda que tal discussão também
apoio já bem assentado arbitrariamente para tenha aberto margem para que analisássemos a
estabelecer seus sentidos: desta maneira, circulação massiva de imagens na mídia,
enunciados cujos teores de cientificidade estão sobretudo a partir das contribuições de Jean
sendo construídos podem ser associados a Jacques-Courtine (2009 e 2013) ao refletir
grupamentos primeiros como a gramática, a sobre a importância dos textos de Michel
filosofia, a história natural, etc. Posteriormente, Foucault para os estudos discursivos, deter-nos-
segundo o autor, todo enunciado inscreve-se emos a seguir exclusivamente em alguns
em um domínio associado de enunciados que a enunciados verbais que se apresentaram na FSP
si estão relacionados; assim, não há enunciado para tratar a questão do controle da mídia.
emergente que não estabeleça relações com
2. O tratamento das propostas de controle
dizeres outros, ou mesmo que aponte para a
da mídia no Brasil pela FSP de 2010 a 2015
emergência de dizeres futuros.
O ano de 2010, que compreende a
Em seguida, evidenciando a primeira corrida presidencial presente no
preocupação do filósofo em estabelecer uma corpus por nós construído, foi um importante
teoria que também trate a subjetividade, a momento para a discussão de tais propostas. De
terceira propriedade relaciona-se à capacidade fato, o primeiro dado importante que
de o enunciado ser preenchido por posições verificamos é a presença da questão na FSP
enunciativas de sujeito; não há, assim, como um forte tema nos anos de 2010 e 2014,
enunciados que não tenham relação direta com períodos em que o embate partidário e
o modo como sujeitos se posicionam frente a presidencial esteve em evidência na sociedade
história, sendo esta uma função sempre vazia, brasileira. Ainda que muitos dos textos por nós
que pode ser ocupada por diferentes falantes, analisados tenham emergido em um período
ou mesmo imputada a si. alhures ao eleitoral, as eleições presidenciais
Finalmente, a materialidade repetível foram um importante momento para debater a
de um enunciado evidencia o modo como os questão, de modo que muitos dos dizeres então
dizeres estão sujeitos à reativação, à realizados foram posteriormente comentados:
proliferação de sentido pelo comentário ou pela

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(1) O único controle que existe é o controle No excerto acima, há a volta do
remoto. Sou contrária ao controle do enunciado realizado por Dilma Rousseff, o
conteúdo. No que se refere a controle controle remoto; neste sentido, esta coluna é
social é impreciso. Não existe controle uma resposta direta a outro texto de autoria da
social que não seja público […]. (Dilma secretária nacional de comunicação da Central
Rousseff, então candidata à presidência do Única dos Trabalhadores e coordenadora-
Brasil, 22/07/2010 – Dilma nega ter geral do Fórum Nacional pela Democratização
apoiado pontos polêmicos de programa, da Comunicação (do texto da FSP, 12/06/2013
sublinhadas nossas)1 – TENDÊNCIAS/DEBATES: Uma lei para
expressar a liberdade)3, Rosane Bertotti, o que
A referência de Dilma Rousseff a um mostra uma consonância de posições
controle que é o controle remoto inscreve-se enunciativas entre Dilma Rousseff e aqueles
em domínios associados que primam pela que defendem que não se deve haver controle
autonomia do sujeito inscrito em tal conjuntura da mídia. De fato, vemos filiações de Dilma
para decidir quais mídias interpretar, tomando Rousseff a tais propostas apenas em anos
como referencial este objeto relacionado à eleitorais: em 2010 por um breve período, com
televisão. Neste enunciado primeiro, Dilma o controle social da mídia e, mais
Rousseff isenta-se de comentar os significados recentemente, com a regulação econômica da
de tais propostas, aludindo ao campo do humor mídia no embate político de 2014.
para desestabilizar os sentidos autoritários que
Ainda, outros gestos de designação
se colocam quando se as associa à censura.
emergem para estabelecer tais propostas. Na
Este dizer é retomado quando da defesa contra
reportagem Lula quer ministro para abrir
o autoritarismo presente em tais propostas, uma
“canal de diálogo” com a mídia (16/03/2010)4,
posição enunciativa recorrentemente
por sua vez, há a tentativa de estabelecer-se
estabilizada pela FSP:
bases comuns entre o governo e a mídia e,
(2) A depender da proposta defendida pelo obviamente, a rememoração de constantes
FNDC, em cada cidade haveria um comitê conflitos entre o ex-presidente e os veículos.
com o poder de monitorar a atividade de Tomam-se tais conflitos como um já-lá (“A
jornalistas e veículos de comunicação. Em relação de Lula coma imprensa desde que
oposição a esse ímpeto autoritário, chegou ao poder nunca foi amistosa”), um
concordamos com a presidente Dilma efeito de evidência bastante opaco sobre a
Rousseff, para quem o único controle relação destes dois componentes; mais adiante,
admitido para a imprensa é o controle tais dizeres anteriormente construídos são
remoto. (Daniel Pimentel Slaviero,
novamente retomados, quando se cita que a
presidente da Associação Brasileira de
Emissoras de Rádio e televisão, 27/06/2013
ideia do ex-presidente é “não só de dialogar
– Mitos e realidade sobre a mídia com os empresários mas também transmitir o
brasileira, sublinhadas nossas)2 pensamento do presidente acerca de críticas
feitas pela mídia contra seu governo (do texto
da FSP, grifos nossos). O embate entre
políticos e jornalistas, assim, apresenta-se

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como um tema de discurso neste espaço, e a embate entre jornalistas e políticos não se
realização da reportagem pela FSP demonstra restringe ao ex-presidente, e, também, que esta
nuanças da posição que esta instituição é uma preocupação do partido em seu novo
midiática constrói e, com efeito, das empreendimento político de eleger a candidata.
possibilidades de leitura que são autorizadas no Além desta reportagem que mostra
gesto desta enunciação. como se debateram os efeitos de sentidos do
Neste sentido, no título desta dizer “canal de diálogo”, enunciado que se
reportagem, as aspas em “canal de diálogo” realizou apenas uma vez no corpus
mostram uma marca de heterogeneidade congregado, outros enunciados tratados
discursiva para realçar a distância que o substancialmente foram a democratização da
enunciador midiático coloca em relação aos mídia, a regulação da mídia e a regulação
dizeres do então presidente: este elemento econômica da mídia. Na FSP, estes dizeres
linguístico coloca o discurso do outro puderam designar tais propostas de controle e
marcando-o como tal, para mostrar que tal regulação por breves períodos antes que fossem
termo, na verdade, refere-se a outros sentidos, relacionados à possibilidade de censura. Neste
com os quais este enunciador midiático não sentido, a circulação interdita destes
parece estar de acordo. Argumentando nesta enunciados e seu tratamento evidencia que há
mesma direção, o uso do verbo volitivo quer diferentes maneiras de dizer-se o mesmo: dada
mostra as fundações de um desejo, relacionado a sua circulação pouco afável, outros recursos
a certa urgência de abrir um “canal de foram mobilizados pelos proponentes de tais
diálogo” – estabilizando-se o sentido, assim, medidas, ainda que, basicamente, se tratasse
de que tal canal estava anteriormente fechado, “da mesma coisa”. Ao passo que as propostas
e buscando-se maneiras de iniciar certo acordo giraram em torno da possibilidade de
em tal embate (talvez, inclusive, uma trégua?). estabelecer-se a partir da diferença, a sua
circulação na FSP, no entanto, busca criar
Exemplificando um gesto recorrente
evidências de que se está falando, na verdade,
quando a FSP comentou estes dizeres
do mesmo:
primeiros, os enunciadores midiáticos, assim,
lutam para que tal dizer seja tomado em um (3) Durante as eleições, o presidente Lula
sentido outro: ainda que os sentidos de um queixou-se da grande imprensa.
dizer como canal de diálogo colocam sejam Além disso, alguns de seus ministros
distintos dos que realiza, por exemplo, o patrocinaram eventos para discutir novos
enunciado controle social da mídia, esta marca controles sociais da mídia ao sugerir que a
de heterogeneidade reforça como tais legislação atual não seria suficiente para
enunciadores veem de forma distinta a garantir um fluxo democrático de
significação destes dizeres. Neste mesmo texto, informações. (do texto da FSP, 25/11/2010
não gratuitamente, tal questão será tomada – TV Cultura debate liberdade de
também centrando-se na figura de Dilma imprensa, grifos nossos)5
Rousseff: [a equipe de Lula tem debatido
estratégias para tentar melhorar a reação de (4) […] Semântica O PT baixou ordem
Dilma com a imprensa”, mostrando que tal interna: a expressão “regulação da mídia”

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será substituída por “democratização da
mídia”. O objetivo é evitar que se relacione possibilidade de que estaria havendo censura da
a ofensiva petista à censura. (do texto da mídia.
FSP atribuído a Vera Magalhães, Considerações Finais
17/04/2013 – Painel, negritas do original)6
Tornou-se recorrente, assim, que antes
Fundamentalmente, assim, os sentidos de imputar sentidos relacionados à FD(censura
que tal circulação faz aparecer se realizam a da mídia) a tais enunciados a FSP desse espaço
partir de duas formações discursivas (doravante para os proponentes destas medidas, criando,
FD), cujas fronteiras estão em constante antes de uma pluralidade efetivamente dita,
mudança, sobretudo devido às interpretações determinados efeitos de tal realização. Um
que a FSP autoriza e insta a realizar. Na exemplo bastante emblemático neste sentido é
primeira delas, que designamos como a o texto de Rosane Bertotti, já comentado, em
que predomina a FD(controle da mídia),
FD(controle da mídia), os enunciados em
imediatamente contraposto por um texto que
questão podem e devem ser interpretados a
estabiliza os sentidos da FD(censura da mídia).
partir do dado absoluto e irrefutável de que não
se pode falar que tal proposta é uma censura; Estamos diante, assim, de formações
assim, tal dizer não estaria em domínios discursivas que não são homogêneas e
associados comuns aos sentidos da censura tampouco regulares, pois permitem a filiação
período ditatorial, de modo que se evita utilizar de sujeitos díspares a tais enunciados. Neste
tal termo, justamente para que não sejam sentido, nesta circulação realizada pela FSP, foi
evocados tais sentidos na constituição do saber possível que aparecessem, ainda, diferentes
específico a esta FD. Já na FD(censura da leituras da constituição a partir destas duas
mídia), por sua vez, traz-se uma memória do formações discursivas, o que evidencia a
período ditatorial – muitas vezes não apenas espessura do conflito discursivo: foi possível
em um contexto brasileiro – para justificar que que se falasse de duas realidades distintas
a emergência de tais enunciados é apenas uma mesmo quando se tratou do texto legal
forma de não dizer algo que na conjuntura atual soberano no Brasil, um gênero em que a
seria transgressor: que haverá, de fato, censura estabilidade de sentidos é grande e, logo, deixa-
da mídia (como houve outrora). se pouca margens a equívocos e diferentes
interpretações.
Temos, ainda, constantes deslocamentos
de uma FD a outra, o que evidencia o caráter
fundamentalmente instável destas Referências
circunscrições de sentido. Os contornos
definidos pela circulação realizada por parte da COURTINE, J-J. Análise do discurso político –
FSP, neste sentido, mostram-nos aspectos de o discurso comunista endereçado aos cristãos.
como a significação destes enunciados está São Carlos, SP: EDUFScar, 2009.
sendo colocada em pauta e, ainda, os modo ______. Decifrar o corpo: pensar com
como foram estabilizadas a partir de contornos Foucault. Tradução de Francisco Morás.
autoritários, uma vez que se relacionou a Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.
interpretação destes enunciados sobretudo à

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

998
<http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/po25
FOUCAULT, M. A Ordem do Discurso. 13a
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Painel. Disponível em
Luis Felipe Baeta Neves. 7ª. edição, 3ª.
<http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/1042
reimpressão, Rio de Janeiro, RJ: Forense
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acontecimento. Tradução de Eni P. Orlandi – 5a
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Mitos e realidade sobre a mídia brasileira.
Disponível em
<http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/116
055-mitos-e-realidade-sobre-a-midia-
brasileira.shtml>. Acesso em 22/03/2015.
3. FOLHA DE SÃO PAULO. 12/06/2013 –
TENDÊNCIAS/DEBATES: Uma lei para
expressar a liberdade. Disponível em
<http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/113
546-uma-lei-para-expressar-a-liberdade.shtml>.
Acesso em 02/07/2013.
4. FOLHA DE SÃO PAULO. 16/03/2010 –
Lula quer ministro para abrir "canal de
diálogo" com a mídia. Disponível em
<http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc160
3201007.htm>. Acesso em 15/10/2013.
5. FOLHA DE SÃO PAULO. 25/11/2010 – TV
Cultura debate liberdade de imprensa.
Disponível em

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

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A CONSTRUÇÃO DISCURSIVA DO NORDESTE A PARTIR DA
SECA EM LIVROS DIDÁTICOS DE GEOGRAFIA

Leandro Nascimento SÁTIRO; Palmira HEINE


Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS)
leandro.satiro@bol.com.br

Resumo: O livro didático é um espaço de produção de significados inscritos por códigos


de uma determinada cultura. Dessa forma, a proposta deste trabalho não é buscar uma
verdadeira representação do Nordeste, mas tentar compreender os efeitos de sentido
gerados pelos discursos materializados nos livros didáticos a partir da Análise do
Discurso de Linha Francesa Pechetiana, uma vez que esta dialoga com várias áreas.
Sabe-se que em análise de discurso não se utiliza pesquisa de cunho quantitativo, uma vez
que a ela não importa a contagem de dados ou a análise de estatísticas sobre fenômenos
discursivos. Sendo assim, este trabalho trata-se de uma pesquisa de caráter qualitativo,
em que os dados serão analisados levando em conta os fenômenos teóricos da ADLF.
Será aqui analisado, um capítulo do livro didático Projeto Radix, do 7º ano, da rede
pública escolar, que trata do Nordeste brasileiro, sob a perspectiva da ADLF.
Palavras-chave: discurso; livro didático; nordeste; seca; ideologia.

Introdução Assim, a ADLF torna-se um instrumento


de fundamental importância para a investigação
A partir de 1938, o livro didático passa
aqui proposta. Gregolin (1995, p 13) considera
a circular por todo o espaço brasileiro,
que empreender a análise do discurso significa
carregando em sua estrutura discursos
“tentar entender e explicar como se constrói o
produzido por sujeitos diversos, que ocupam as
sentido de um texto e como esse texto se
mais diferentes formações discursivas. Como
articula com a história e a sociedade que o
afirma Tonini (2002, p. 120), o livro torna-se
produziu. O discurso é um objeto ao mesmo
um espaço de produção de significados
tempo linguístico e histórico, entendê-lo requer
inscritos por códigos de uma determinada
a análise desses dois elementos
cultura. Dessa forma, o livro didático não é
simultaneamente.”
simplesmente uma transmissão de
conhecimentos, mas um difusor de ideologias. Por isso, a proposta deste trabalho não é
buscar uma verdadeira representação do

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1000
– ou seja, a partir de uma posição dada em
Nordeste, mas tentar compreender os efeitos de uma conjuntura sócio-histórica dada –
sentido gerados pelos discursos materializados determina o que pode e deve ser dito.
nos livros didáticos a partir da Análise do (ORLANDI, 2013, p. 43)
Discurso de Linha Francesa Pechetiana, uma
vez que esta dialoga com várias áreas. Segundo a citação acima, o sujeito
Sabe-se que em análise de discurso não enunciará a partir de uma posição social
se utiliza pesquisa de cunho quantitativo, uma construída pela história e pela ideologia e, esta
vez que a ela não importa a contagem de dados posição social lhe permitirá enunciar este e não
ou a análise de estatísticas sobre fenômenos aquele discurso. Assim, podemos também
discursivos. Sendo assim, realizar-se-á uma afirmar que o sujeito não é a origem do
pesquisa de caráter qualitativo, em que os discurso, mas o constrói a partir de uma rede de
dados serão analisados levando em conta os já ditos, repetidos regularmente. Ele é
fenômenos teóricos da ADLF. Será aqui essencialmente ideológico e histórico, pois está
analisado, um capítulo do livro didático Projeto inserido num determinado lugar e tempo. Para
Radix, do 7º ano, da rede pública escolar, que que esse discurso seja produzido, ele se
trata do Nordeste brasileiro, sob a perspectiva apropria da língua, e ela se torna um veículo de
da ADLF. manifestação ideológica, gerando efeitos de
sentidos diversos. Dessa forma, segundo Heine
1. Um percurso teórico
(2012)
A Análise do Discurso de Linha Francesa
(ADLF) surge numa tentativa de compreender “Linguagem e ideologia são vinculados
os efeitos de sentidos possíveis no discurso, estreitamente e não existe discurso que não
fazendo assim uma crítica ao formalismo seja marcado pela ideologia. Toda e
qualquer palavra enunciada carrega uma
linguístico que concebia a língua como uma
carga ideológica que tem relação com a
estrutura fechada em si mesma e também à posição ocupada pelo sujeito que enuncia.”
Pragmática, que concebe a língua como (HEINE, 2012, p. 21)
simples interação entre sujeitos intencionais e
que o sentido é originado no contexto imediato.
Nos trabalhos de Michel Pêcheux, um dos Assim, de acordo com Heine
principais expoentes da ADLF, percebe-se uma (2012), não há língua sem sujeito e não há
nova forma de entender a língua e o sujeito: um sujeito sem ideologia, logo, somos interpelados
sujeito assujeitado à língua e à ideologia, todo tempo pela ideologia, pois ela é a nossa
interpelado pelas formações discursivas. forma de relação com a realidade. Como dito
no parágrafo anterior, o sujeito fala a partir de
Assim, aquilo que é dito pelo sujeito vai uma rede de pré-construídos que constituem
gerar sentidos diversos, pois estes dependem da um complexo de todas as formações
posição ideológica que o sujeito ocupa, sendo discursivas chamado interdiscurso. Esse
que este, falará a partir de formações complexo com dominante que agrupa os ditos,
discursivas, que como afirma Orlandi (2013) não-ditos, esquecidos e silenciados é a base
para a retomada de determinados discursos e
A formação discursiva se define como silenciamentos.
aquilo que numa formação ideológica dada

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1001
que o silêncio é fundante (ORLANDI,
Propomos chamar interdiscurso a esse 2007, p.14).
“todo complexo com dominante” das formações
discursivas, esclarecendo que também ele é
submetido à lei de desigualdade-contradição- Dessa forma, podemos afirmar que a
subordinação que, como dissemos, caracteriza o linguagem não é capaz de dizer tudo. É
complexo das formações ideológicas” (PECHEUX, necessário um olhar atento para aquilo que não
2009, p. 149) foi dito, aquilo que não está claramente
observável. Afirma Orlandi (2007, p. 23) que
Nessa perspectiva, o entendimento do
se a linguagem implica silêncio, este, por sua
conceito de interdiscurso torna-se de extrema
vez, é o não-dito visto do interior da
importância para uma melhor compreensão da
linguagem. Não é o nada, não é o vazio sem
Análise do Discurso de Linha Francesa, uma
história. É o silêncio significante. Essa
vez que todo discurso é construído e carregado
incompletude também é significante, é ela que
de enunciados já ditos e esquecidos que
permite o movimento dos sentidos, ou seja, o
constituem o dizer, é nele que se constituem as
sentido pode ser sempre outro a partir do
relações de alianças, contradições, confrontos
silêncio.
das FDs. Dessa forma, o interdiscurso segundo
Orlandi (2013, p.31) é definido como aquilo Podemos perceber esses já-ditos e esses
que fala antes, em outro lugar, silêncios quando analisamos os discursos
independentemente. Ou seja, é o que construídos nos livros didáticos de Geografia a
chamamos memória discursiva: o saber respeito do Nordeste. Em alguns momentos, o
discursivo que torna possível todo dizer e que olhar de estranhamento sobre essa região é
retorna sob a forma do pré-construído, o já-dito retomado, reafirmando uma imagem construída
que está na base do dizível, sustentando cada a partir do outro. A ideia de um Nordeste seco
tomada da palavra. e marcado pelas misérias retoma a imagem de
uma região abandonada e sem capacidade de se
Essa tomada de palavra, implica ao
desenvolver. Um olhar que não é novo, mas
mesmo tempo a geração de diferentes sentido
perpassado por outras vozes. Como afirma
por meio do que Orlandi (2007) chama de
Albuquerque (2011)
silêncio, este entendido aqui enquanto matéria
significante, o real da significação.Na rede dos “São essas imagens que impregnam o
pré-construídos, no momento da enunciação, próprio Nordeste em construção, Nordeste
alguns discursos são silenciados e este silêncio das “áreas sedentas e implacáveis, onde o
é então, elemento necessário para a geração de amor violento do sol trazia o vasto campo
sentidos. fendido” (ALBUQUERQUE, 2011, p. 75)

Silêncio que atravessa as palavras, que Assim, a partir da análise da imagem do


existe entre elas, ou que indica que o Nordeste sob o viés da análise do discurso
sentido pode sempre ser outro, ou ainda pechetiana, pretende-se nesse artigo, observar a
que aquilo que é mais importante nunca se ideologia que perpassa a discursivização do
diz, todos esses modos de existir dos
Nordeste nos livros didáticos e identificar as
sentidos e do silêncio nos levam a colocar
formações discursivas que envolvem essa
discursivização.

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1002
de ideologias, que estão estreitamente ligadas à
2. Livro Didático: um difusor de ideologias.
relação de poder. Logo, o livro didático não
apresenta uma neutralidade, uma vez que o
O livro didático dentro do processo
autor desse material não está separado
educacional é um importante instrumento, uma
totalmente desse objeto. Ele transporta para ali
vez que pode ajudar na construção de
aquilo que pode e deve ser dito, aquilo que é
uma consciência sobre as pluralidades
permitido se exposto de acordo à formação
culturais, utilizando para isso uma política
discursiva a que esse sujeito pertence. Afinal de
cultural comprometida com a difusão dos
contas, o livro didático é uma ferramenta
valores das diversas culturas. Por outro lado,
política-ideológica, e, portanto, como afirma
esse mesmo instrumento pode manter
Lima (2013)
preconceitos e fortalecer valores culturais
hegemônicos, através da política do “Materializa um discurso que estará sempre
silenciamento, que segundo Orlandi (2007) atrelado à ideologias diversas. Haverá
nestes discurso “ditos” verdadeiros,
“se define pelo fato de que ao dizer algo, tendências para inclinação de olhares e
apagamos necessariamente outros sentidos pensares de discurso predominantes, de tal
possíveis, mas indesejáveis, em uma forma, que alunos e professore toma-os
situação discursiva dada.” (ORLANDI, como verdadeiros. (LIMA, 2013)
2007, p. 73)
Observa-se então que o livro didático é
Assim, o livro didático é um espaço um instrumento que veicula discurso, o torna
onde são difundidos aspectos políticos, real e palpável. Os sentidos passam a ser
culturais, científicos, valorativos, de gênero, determinados pela posição ideológica ocupada
etnia, papel social, dentre muitos outros, que pelo sujeito que o escreve. As palavras
caracterizam determinada formação discursiva adquirem esse ou aquele sentido a depender da
a qual determinada sociedade, grupo ou classe posição daquele que a emprega. Dessa forma,
se identifica. Segundo Tonini (2002) esse discurso passa a ser uma realidade que o
aluno ou até mesmo o professor o tomam como
“O livro torna-se um espaço de produção
de significados inscritos por códigos de
verdadeiro e único.
uma determinada cultura. Para traduzir os 3. Análise do corpus: Nordeste, uma região
códigos pelos quais esses significados discursivisada por meio da seca
foram produzidos, para descrever seus
efeitos de sentido, o livro didático deve ser Aqui será analisado o capítulo 7 do
visto como um discurso, pois, como tal, é livro didático Projeto Radix, de Valquíria Pires
produzido culturalmente.” (TONINI, 2002, e Beluce Bellucci (2009), por tratar da região
p. 120) Nordeste. Tomamos como ponto de partida a
primeira página desse capítulo, onde observa-se
elementos da representatividade do Nordeste.
Assim, o livro didático não pode ser
visto apenas como um mero transmissor de
conhecimento. Ele é, antes de tudo, um difusor

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1003
Figura 1. Projeto Radix – Raiz do conhecimento estereótipo nasce de uma caracterização
grosseira e indiscriminada do grupo
estranho, em que as multiplicidades e as
diferenças individuais são apagadas, em
nome de semelhanças superficiais do
grupo. (ALBUQUERQUE, 2011, p. 30)

Dessa forma, o que acontece é a criação


de uma realidade diferente da que existe, são
formados quadros mentais a respeito da
realidade. Assim, existe também uma
legitimação de formas de dominação e poder de
um grupo sobre o outro a partir de repetições
regulares de determinados discursos.
Um conjunto de características, papéis,
emoções, habilidades, interesses, etc são
atribuídos a todos (ou à maioria) dos
Daremos aqui uma importância a três membros daquela categoria. Os indivíduos
desses elementos: o discurso da estereotipia, o do grupo estereotipado são assumidos
silenciamento das diferenças individuais e a como semelhantes uns aos outros, e
recuperação dos discursos da inferioridade e do diferentes dos outros grupos, neste
determinismo geográfico. conjunto de atributos.” (HEWSTONE e
GUILES, 1997, apud JESUS).
O texto que introduz o capítulo é
formado por uma parte verbal e uma parte
Em uma outra página, o livro traz um
imagética: uma poesia de Corumbá Venâncio e
mapa das sub-regiões do Nordeste. Aí, são
José Guimarães, que tem como título Último
apresentadas características que diferenciam
Pau de Arara e o desenho de um gado,
essas regiões. Aparece uma tentativa de
mostrando as costelas magras, o solo rachado,
apresentar as especificidades dessa região.
um sol escaldante e uma vegetação formada por
Entretanto, no decorrer do livro, essas regiões
árvores de galhos retorcidos e um cacto.
são esquecidas. Todo o Nordeste é apresentado
Observamos aqui o discurso da como uma região árida. As individualidades
estereotipia, onde todo o Nordeste é são deixadas de lado. Ou melhor dizendo,
homogeneizado, ou seja, existe aí a ideia da silenciadas.
supergeneralização. Como afirma
Albuquerque:

O discurso da estereotipia é um discurso


assertivo, repetitivo, é uma fala arrogante,
uma linguagem que leva à estabilidade
acrítica, é fruto de uma voz segura e
autossuficiente que se arroga o direito de
dizer o que é o outro em poucas palavras. O

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1004
Figura 2. Projeto Radix – Raiz do conhecimento Figura 3. Projeto Radix – Raiz do conhecimento

Fonte: Projeto Radix – Raiz do conhecimento

Começam então a aparecer expressões


como: “O fenômeno da seca no Sertão”, “A
seca e seus efeitos”, “Seca e movimento Fonte: Projeto Radix – Raiz do conhecimento
populacional do Nordeste”, A indústria da
seca”. Nesse momento são recuperados O Nordeste é apresentado como uma
discursos já ditos antes sobre o Nordeste. É o área marcada por calamidades. É comum
que conhecemos como interdiscurso, entendido vermos nos livros didático o retrato de um
aqui como “aquilo que fala antes, em outro Nordeste atrasado, e que, por conta dessa
lugar, independentemente.” (Orlandi, 2013, característica, torna-se inferior se comparado a
p.31). qualquer outra região. Segundo Albuquerque
(2011)
O primeiro é o discurso da
inferioridade. O Nordeste não tem condições de “(...) o próprio discurso regionalista
se desenvolver, pois não apresenta condições nordestino o mostra (o Nordeste) como
favoráveis para isso. Na página 161 é possível uma grande região rural, devastada pelas
observar isso de forma clara: caminhões-pipa calamidades, configurando seu
realizando distribuição de água, distribuição de ‘regionalismo de inferioridade’.”
cestas básicas para populações que passam por (ALBUQUERQUE, 2011, p. 57).
dificuldades na época das secas.
Por fim, observamos a retomada do
discurso do determinismo geográfico,
associando a saída dos moradores do Nordeste
ao fenômeno da seca. O retorno dessas famílias
só poderá ocorrer depois de um período de
chuvas, que molhará aterra e permitirá o
desenvolvimento da agricultura. A natureza
passa a controlar e determinar o

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1005
comportamento das sociedades. Podemos
A partir de tudo que foi exposto
perceber isso na fala de Albuquerque (2011)
anteriormente, podemos perceber que a
“O antigo regionalismo, inscrito no interior construção discursiva do Nordeste a partir da
da formação discursiva naturalista, seca é marcada por silenciamentos e
considerava as diferenças entre os espaços estereótipos, inscritos na materialidade verbo-
do país como um reflexo imediato da visual desse gênero discursivo: o livro didático.
natureza, do meio e da raça. As variações O silenciamento de uma região heterogênea,
de clima, de vegetação, de composição marcada não só pela seca e pobreza, mas
racial da população explicam as diferenças também por áreas úmidas e industrializadas,
de costumes, hábitos, práticas sociais e mostra as relações de poder que perpassam as
políticas. Explicavam a psicologia, enfim,
práticas discursivas no livro didático de
dos diferentes tipos regionais.”
(ALBUQUERQUE, 2011, P. 53)
geografia em questão. Já os estereótipos,
revelados pelas imagens, como o gado magro,
o cacto e pessoas formando filas para
Nesse caso, a seca provoca receberem água e cestas básicas, criam um
consequências diretas sobre a população que efeito de homogeneização através da
vive no Sertão. Durante as secas mais cristalização de uma memória social.
prolongadas, a falta de água prejudica os
camponeses, sobretudo os pequenos
proprietários rurais, que perdem suas lavouras Referências
de subsistência e os pequenos rebanhos. Sem
condições de sobreviver com o sustento da ALBUQUERQUE JÚNIOR, D. M. de. A
terra, muitas famílias abandonam o campo e invenção do Nordeste e outras artes. 5ª ed. São
migram para outras áreas fugindo das secas. Ou Paulo. Cortez, 2011.
seja, se há chuva, há progresso. Se há seca, está HEINE, P. Tramas e temas em Análise de
implantada a condições para o atraso. Esse é o Discurso. 1ª ed. Curitiba, Paraná.Editora CRV,
discurso determinista, onde acontecimentos são 2012.
determinados e devem ser como são e como
JESUS, É. T. de. O Nordeste na mídiae os
serão em virtude de certas leis ou forças que
estereótipos linguísticos: estudo do imperativo
façam com que necessariamente assim sejam.
na novela Senhora do Destino. 2006. 104 f.
Enfim, o Nordeste brasileiro no livro Dissertação (mestrado). Universidade de
didático em questão, é construído baseado num Brasília. Brasília, 2006.
discurso repetitivo visto a partir do olhar do
LIMA, F.M.S. A leitura numa perspectiva
outro. Este por sua vez, caracteriza essa região
discursiva: reflexões sobre o trabalho com
de acordo aquilo que a sua formação discursiva
leitura e a constituição do sujeito imaginário
permite. Assim, a relação do dito com o não-
no livro didático de língua portuguesa. In:
dito passa a se materializar sócio-
Revista Pandora Brasil, nº 58, 2013.
historicamente através de diferentes sentidos
gerados pelo apagamento de outros.
4. Considerações finais

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1006
ORLANDI, E. P. Análise de Discurso:
princípios e procedimentos. 11ª edição.
Campinas, São Paulo. Pontes Editores, 2013.
_______. As formas do silêncio: no
movimento dos sentidos. 6ª ed. Campinas, São
Paulo. Editora da Unicamp, 2007.
TONINI, I. M. Identidades capturadas: gênero,
geração e etnia na hierarquia territorial dos
livros de Geografia. 2002. 130 f. Tese
(Doutorado). Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. Porto Alegre, 2002.

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1007
O CORPO INDÍGENA NO TELEJORNALISMO PARAENSE

Arcângela SENA; Ivânia NEVES


Universidade Federal do Pará (UFPA)
arcangelasena@hotmail.com; ivanian@uol.com.br

Resumo: Desde o início da programação televisiva, no Brasil, os telejornais começaram


a se constituir como um significativo formador de opinião entre os brasileiros. Neste
trabalho, vamos analisar a presença indígena em três edições do telejornal local exibidas
pela TV Liberal, afiliada da Rede Globo, em Belém, no Pará. Procuraremos observar
suas práticas discursivas, seus movimentos de regularidades e dispersões e as redes de
memórias dos sujeitos históricos que colocam em circulação os discursos comprometidos
com o sistema colonial e suas atualizações. Tomaremos o corpo indígena apresentado
nestes jornais como objeto central de nossa análise. Para isso, vamos considerar os
processos de intericonicidade (COURTINE, 2011) e. os conceitos de história descontínua
e acontecimento, formulados por Foucault (2014).
Palavras-chave: Telejornalismo; indígena; Discurso.

tecnológicas e de processos comunicacionais e


Introdução atinge diretamente as representações e
Os acontecimentos midiatizados identidades dos grupos sociais, fazendo circular
envolvendo povos indígenas no Brasil, discursos nos espaços abertos pelas recentes
materializados em notícia, são povoados por tecnologias que convivem com as novas e
redes de memórias estabelecidas a partir de tradicionais formas de produzir sentidos. As
diferentes condições de possibilidades sociedades amazônicas são parte integrante
históricas. Ainda no século XVI os discursos desse cenário, inseridas nessa nova e difusa
sobre estas sociedades se insurgiram através da fase da globalização.
literatura ou de iconografia de viagens cheios Esta artigo envolve a compreensão de
de desdobramentos morais e filosóficos, em aspectos da produção da notícia em telejornais
suportes como cartas, relatórios internos ou locais, isso significa que se consideram os
descrições idealizadas do habitante da América modos de fazer e os critérios de noticiabilidade
para as sociedades europeias daquela época. empregados nas pautas relacionadas aos
Na contemporaneidade a materialidade indígenas. Para nortear a pesquisa, são tomadas
do corpo indígena ideal é atualizada pela como referências as definições de história
intrínseca relação entre sociedade e mídia. Uma descontínua e de acontecimento, formuladas
relação que passa por transformações por Michel Foucault (2014) e os aspectos de

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1008
intericonicidade (COURTINE,2011) que
Num telejornal, por exemplo, não
circulam no telejornalismo do Pará; analisando
podemos perder de vista a reflexão sobre a
como se constroem os processos de
circulação de saberes, que Foucault distingue
silenciamento, interdição, exclusão e
de ciência. O material produzido para o
visibilidade do sujeito histórico indígena no
telejornalismo é contado pela voz de um
telejornalismo local, a partir de recorrências e
repórter e atrás da câmera, há a visão do
dispersões presentes na prática discursiva, de
cinegrafista, que já marcam as opções destes
construção da notícia.
dois profissionais, mas durante o processo de
1. Reverberações e acontecimentos de uma edição, existem ainda as definições de escolha,
TV na Amazônia da imagem, dos trechos de entrevistas, dos
Mesmo com o advento da internet e as sons. Tudo é editado, recortado, fragmentado,
possibilidades de interação digital, a televisão num processo discursivo de geração de
possui uma relação que não pode ser ignorada sentidos. Tudo depende de quem conta o fato,
de “grande proximidade (de intimidade do lugar contado e para quem se conta, e claro
mesmo) entre as pessoas e a TV” (FRANÇA, as vozes que constituem os sujeitos históricos e
2006, p.9). Os anos são outros, as formas de as táticas de procedimentos alinham o discurso
relacionamento com o dispositivo também se numa ordem.
adaptaram aos novos tempos, mas o caráter Para Foucault (2013) é a “ordem do
ordenador, disciplinar são renovados, discurso” que estabelece as possibilidades e
atualizados e sustentados pelas correlações de organização do real. Além de possuir uma
forças estabelecidas entre os sujeitos históricos. função normativa e reguladora, esta ordenação
Talvez, por isso, a televisão, seja a do que se estabelece como representação do
mídia que mais recebe críticas na história e real, age por meio da produção do saber, de
também um dos principais alvos de estudiosos práticas discursivas e estratégias de poder. O
e pesquisadores. discurso, portanto, não é “transparente ou
neutro” como se pretende no jornalismo, mas é
Tanto sucesso da televisão, na condição um dos lugares onde o poder pode ser exercido
de um significativo dispositivo de produção de das formas mais temíveis (FOUCAULT, 2013,
identidades, está relacionado ao acesso fácil, p. 10-11)
próximo e a esta multiplicidade de linguagens:
sonoras, verbais e videográficas. Correia e Temos, então de falar da produção do
Vizeu (2008) afirmam que os brasileiros discurso “sobre si mesmo”, com práticas
acreditam mais na mídia do que no Governo. acompanhadas de uma produção e veiculação
Segundo eles, uma pesquisa realizada no país de saberes sobre os próprios sujeitos históricos
aponta que 56% dos brasileiros têm a televisão produtores de mídia e consumidores de mídia.
como principal fonte de informação. O Isso também nos permite entender o sucesso da
telejornal, portanto, seria uma referência, televisão.
“muito semelhante ao da família, dos amigos, As imagens veiculadas pela televisão
da religião e do consumo” (CORREIA e mobilizam e pontuam, em muitas formas, a
VIZEU, 2008, p. 12).

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1009
vida e as ações de milhares de pessoas. A TV do Amaral vai propor uma identidade nacional
produz representações, identidades. associada aos povos indígenas.
Kellner (2001) afirma que na sociedade É fundamentalmente importante
contemporânea a questão da identidade é cada entender essa relação que se estabelece da
vez mais mediada pela mídia, e a televisão ordem do discurso (Foucault, 2013) televisivo
“integra os indivíduos numa ordem social”. com os sujeitos sociais. Com o passar dos anos,
a televisão também assumiu um papel
Para Gregolin (2007), a mídia, de uma
denunciador dos problemas sociais e, em
maneira geral, como “dispositivo social, produz
algumas situações, transformou-se em fonte das
deslocamentos e desterritorializações.” A mídia
soluções possíveis.
massiva ultrapassa fronteiras identitárias e
aumenta a possibilidade de novos Assis Chateaubriand talvez não pudesse
interlocutores e de novas identidades. Entender imaginar a dimensão interacionista que aquela
esses deslocamentos e desterritorializações nova tecnologia teria na vida dos brasileiros.
requer a compreensão da história da televisão A televisão instalada na Amazônia, no
de maneira descontínua, conforme as Pará em meados de 60, ganha força na década
proposições de Foucault (2014). de 70 sob o governo militar. Tudo pensado, a
O programa de estreia da televisão partir da política quando se intensificavam as
brasileira foi “TV na Taba”. “Durante a ações governamentais, com o intuito de
inauguração foi cantado o hino1 da televisão integração e de ocupação geográfica. À época a
brasileira, que lembra os indígenas” (KLEIN, capital paraense, Belém, onde se instala a TV,
2008, p 49), mas num discurso que remonta e contava com cerca de dez cinemas que
atualiza os discursos empregados em mostravam chanchadas nacionais, filmes norte-
dispositivos de controle, utilizados à época da americanos e europeus. Havia também
colonização do Brasil. cineteatros que apresentavam números de
teatro de revista. O novo dispositivo
Assis Chateaubriand foi um dos grandes
representava uma nova ordem do discurso.
mecenas do modernismo brasileiro. O nome da
TV Tupi, o primeiro programa, a telenovela A televisão começa a ganhar lugar de
Aritana (1978), de certa forma estão associadas destaque na casa e na vida das pessoas. O
ao discurso modernista. A geração de Tarsila telejornal passa a estabelecer possiblidades de
organização do real. Um real discursivo que se
constitui de redes de memórias e não pode ser
1 compreendido dissociado dela. Pensar os
“Vingou, como tudo vinga no teu chão Piratininga, a
cruz que Anchieta plantou; pois dir-se-á que ela hoje critérios de noticiabilidade, os valores notícia
acena por uma altíssima antena, em que o cruzeiro no jornalismo e em especial, no telejornal, não
pousou e te deu num amuleto o vermelho, o branco e o pode estar desassociado dos acontecimentos
preto das contas do teu colar e te mostra num espelho o
descontínuos, das redes de memórias que
preto, o branco e o vermelho das penas do teu cocar.” (
Letra de Guilherme Almeida e composição de Marcelo atravessam os sujeitos de mídia e se constituem
Tupinambá) (KLEIN, p.48,2008) nas representações do real e nas práticas

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1010
discursivas que norteiam a circulação de discurso, que ele definiu como
sentido da sociedade. Intericonicidade. De acordo com autor:
Trabalhar a perspectiva de um telejornal A intericonicidade supõe, portanto, dar um
na Amazônia envolve pensar o telejornalista tratamento discursivo às imagens, supõe
com suas constituições históricas e considerar as relações entre imagens que
principalmente os atravessamentos que se produzem os sentidos: imagens exteriores
inserem no seu corpo físico e psicológico e as ao sujeito, como quando uma imagem pode
teorias que norteiam o processo de fazer a ser inscrita em uma série de imagens, uma
notícia nos embasam entender esse profissional arqueologia, de modo semelhante ao
e suas sujeições. enunciado em uma rede de formulação, em
Foucault; mas também imagens internas,
O sujeito amazônico é atravessado por que supõem a consideração de todo
construções que atualizam uma herança conjunto da memória da imagem no
colonial. “Uma identidade complexa e indivíduo e talvez também os sonhos, as
multifacetada” (GREGOLIN, 2008), que sofre imagens vistas, esquecidas, ressurgidas ou
com as condições históricas que se apresentam. fantasiadas que frequentam o imaginário
Contudo apesar da mobilidade identitária, “o (COURTINE, 2011, p.160).
passado não deixa de se deslocar”
(FOUCAULT, 2014). Como aponta Courtine (2011), as
imagens estão inseridas em uma rede de
Nascer na Amazônia, trabalhar ou viver
memórias, que nos remetem a outras imagens,
nela é estar constantemente imbricado nas
tanto as imagens vistas ou apenas imaginadas.
relações de memória dos discursos sobre um
Entendemos que as imagens que circulam nos
tempo-espaço muito complexo. O telejornal,
telejornais paraenses sobre os povos indígenas
com suas variadas formas enunciativas,
só podem ser construídas, por fazerem parte de
interage com os conceitos e sentidos regionais,
uma rede de memórias historicamente
nacionais e internacionais atravessados sobre a
construída e, como aponta Courtine (2005;
região.
2011), podem ser inscritas em uma série de
2. Entre discursos, memórias e imagens: imagens.
Narrativas do telejornalismo paraense –
Com base nessa noção de
Abordagem teórica e metodológica
intericonicidade, entendemos que a memória
Apoiaremos-nos nas formulações sobre das imagens que constituem os sujeitos de
análise do discurso, propostas por Michel mídia é importante nos critérios de seleção e
Foucault e nas reflexões teóricas sobre teorias escolha do que será notícia na televisão. É
do jornalismo. Aliado ao método arqueológico, ponto fundamental na atualização, exclusão ou
proposto por Michel Foucault (2008) em “A interdição de assuntos que carregam a
Arqueologia do Saber”, vamos utilizar o representação do real e se fundamentam na
conceito de Intericonicidade, formulado por linguagem icônica da televisão.
Courtine (2005; 2011). A partir de “A
Em seus estudos Foucault estabeleceu a
Arqueologia do Saber”, ele propôs uma
categoria de análise que relaciona imagem e produção da história dos “diferentes modos de

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1011
transformações), diremos por convenção,
objetivação/subjetivação do ser humano em que se trata de uma formação discursiva.
nossa cultura” (GREGOLIN, 2008 , p.8), a (FOUCAULT, 2014, p.47)
partir de três modos de objetivação que o
transformam em sujeito: as práticas Essas formações estão na ordem do
discursivas, as práticas disciplinares e as discurso da produção da notícia telejornalística.
práticas subjetivadoras. São os valores notícias que dão conta de vozes
Essas relações constituem, portanto, o outras, encadeadas nos critérios de
sujeito produtor de mídia e se estabelecem para noticiabilidades jornalísticas (TRAQUINA,
além do domínio do Estado e da Instituição. 2005) e que estabelecem as redes de memórias
Uma relação de poder, saber e ética que o envolvidas e constituídas a partir de condições
estabelecem dentro de um conjunto de controle da sociedade.
arquitetônico e o transforma num corpo útil Mas, é nesse sistema relacional de
para as condições de possibilidades históricas, sentidos que faz do espaço do telejornal um
determinantes na manutenção do poder. contexto também comunicacional,“...A
Os enunciados de um telejornal trazem comunicação tem lugar em um ambiente físico,
à tona as diferentes vozes que se constituem social e mental partilhado...Um telejornal
historicamente num corpo institucional e isso é sempre apresenta definições dos seus
vivenciado em todas as formas de participantes, dos objetivos e dos modos de se
materialidades que circulam na redação e comunicar explicitamente” (GOMES, 2007, p.
passam desde a produção, momento em que se 25). Deve-se levar em consideração a
formula o que poderá servir como notícia, até a interpretação dos componentes e sujeitos que
apresentação do material no ar. participam do processo de produção e
construção da notícia.
A pauta indígena disputa, nos
telejornais, espaço com outros assuntos. 3. Análises e discussão: Movências históricas
Normalmente só rende (utilizando a linguagem Neste artigo começamos a desenvolver
da redação) os conflitos por terra, os problemas a análise de três reportagens exibidas pela TV
de saúde, ou então acontecimentos que Liberal, emissora, afiliada à Rede Globo de
evidenciam de alguma forma um discurso de Televisão, em Belém, no Estado do Pará. O
pouco valor sobre a subjetividade desses povos trabalho ainda está em construção.
e que de novo nada trazem no seu enunciado.
Sobre essas regularidades discursivas, Foucault A TV Liberal começou a transmitir seu
afirma, sinal 14 meses antes do previsto pelo contrato
de concessão, em abril de 1976. O objetivo era
No caso em que se puder descrever, entre assegurar sua filiação à Rede Globo de
um certo número de enunciados, Televisão, que até então estava associada à TV
semelhante sistema de dispersão, e no caso Guajará, canal 04 em Belém. Hoje, a emissora
em que entre os objetos, os tipos de é a que detém, na maioria dos horários, o maior
enunciação, os conceitos, as escolhas
índice de audiência, segundo pesquisa do
temáticas, se puder definir uma
IBOPE (2014).
regularidade (uma ordem, correlações,
posições e funcionamentos,

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1012
Figura 1: Abertura Jogos Indígenas
O primeiro material que analisamos foi
levado ao ar no dia 05 de setembro de 2014.
Relata a abertura dos IV Jogos tradicionais
indígenas. Exibida no Bom dia Pará, da TV
Liberal. A reportagem tem duração de 1´37”.
Os Jogos indígenas reúnem, todos os
anos, etnias de várias partes do Brasil, mas a
distribuição do assunto pelo jornalista rendeu
apenas 01 (uma) sonora, em todo o material
que foi ao ar. Na primeira cena, temos o que
chamamos de cabeça da matéria, quando o
apresentador chama o material que será
exibido, explicando, de maneira suscita o que Os indígenas aparecem com roupa de
será mostrado. futebol e o texto do repórter diz o seguinte: “ O
esporte, que nasceu na Inglaterra foi a
O texto já atualiza o regime colonial, a
primeira modalidade dos jogos indígenas, hoje
partir do olhar do sujeito produtor de mídia,
de manhã”. Aqui, evidenciamos a recorrência
que no caso, não é quem fez a reportagem, mas
das relações discursivas entre o presente e a
o editor de texto, um jornalista que fica na
memória do passado. A imagem do indígena
redação e está encarregado de editar (cortar e
descaracterizado, sem cocar, sem arco e flecha,
colar) a matéria de maneira que ela se
são fatores preponderantes para a escolha e
“compreensível” à sociedade. Essa
seleção de quem irá ser entrevistado. Neste
compreensão que compartilha sentidos, está
momento da reportagem, nenhum indígena é
atravessada pelas relações de poder que o
convidado a falar. Faltam os elementos
constitui e pelas condições de possibilidades
icônicos que possibilitaram um atravessamento
históricas que ele evidencia. O texto diz o
da memória para “identificar” o indígena.
seguinte: “Nos jogos tradicionais indígenas, o
futebol foi a modalidade que abriu as competições, O texto da reportagem também sugere
na praia de Marudá, nordeste do Estado. A Quarta um imbricamentos com as questões colônias do
edição dos jogos reúne índios de 13 etnias em 06 sujeito indígena que se utiliza de táticas,
dias de disputa.” estratégias enunciativas para dar-se a ver e estar
O futebol aparece como elemento em cena. Os elementos icônicos da memória
principal na leitura do jornalista. Algo que colonial estão presentes na imagem e no dizer
efetiva o caráter disciplinar da atuação jesuítica do indígena Ubiranan Pataxó: “Nós como
no Brasil. O indígena foi docilizado, seu corpo Pataxó, tivemos o privilégio de receber o povo da
está em acordo com as regras e costumes do Alemanha, com muito carinho. Chegamos aqui,
branco. O critério de noticiabilidade levou em também na praia de Marudá, com nossas energias
positivas do Pataxó e de encontrar os parentes né,
consideração a proximidade do momento que o
vê outras tribos né, as nossas tradições. ”
País vivia, a Copa do Mundo, encerrada 02
(dois) meses antes da reportagem ir ao ar.

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1013
Figuras 2: Abertura dos Jogos Indígenas funcionários de uma empresa terceirizada
da Eletrobrás. Ficaram reféns dos índios
mundurucu, durante três dias foram
capturados às proximidades de uma Aldeia
Indígena, quando faziam pesquisas para
verificar a viabilidade da construção de
barragens nos rios da região. (trecho da
reportagem)

As unidades do discurso nos remetem a


arquivos enunciativos que se constituem, a
partir de redes de memória, acerca da
A segunda reportagem analisada fala da construção do texto. A narrativa coloca o
libertação de biólogos reféns de indígenas indígena na situação de criminoso
Mundurucus, produzida em 24 de junho de desconsiderando as subjetividades dos fatos e
2013. Foi ao ar no Jornal Liberal, 1ª edição, principalmente as condições de possibilidades
que vai ao ar, a partir do meio dia. históricas vivida pela sociedade como um todo.
Durante nossa pesquisa, nos periódicos A cena, utilizada pela emissora de um
antigos, uma reportagem exibida no jornal A cinegrafista amador, mostra os indígenas de
Província do Pará, em setembro de 1961, canoas chegando à cidade. o texto da repórter
encontramos uma matéria muito semelhante à diz, “No sábado, os reféns foram levados para
exibida no telejornal, sobretudo pela Jacareacanga. Imagens de celular, feitas por
recorrência do discurso da violência indígena. um cinegrafista amador mostram o momento
Àquela época, havia toda uma negociação de da chegada dos biólogos na cidade”.
sentido em torno da reportagem de um
pesquisador feito refém por indígenas e que
fora encontrado morto, dias depois de seu
desaparecimento entre os indígenas. Na
imagem, a fotografia traduz o selvagem
violento.
52 anos depois, a matéria exibida no
telejornal, que envolve pesquisadores e
indígenas retoma o indígena antropófago,
desprovido de moral e alheio às leis dos
brancos, apresentados nas primeiras cartas
envidas aos reis europeus.

Os reféns foram libertados, no final da


tarde de ontem, depois de uma reunião com
representantes da Funai, secretaria geral
da Presidência da República e Ministério
da Justiça. Os três biólogos são

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1014
Figura 4: Frames da reportagem
"Libertação biólogos"- Junho 2013 atravessam o sujeito produtor de mídia no
momento da escrita, da revisão do texto, da
edição e da entrega do produto final à
sociedade.
Figura 4: O povo estava aqui para falar com
eles. Mas quando chegaram, os indios já
começaram a disparar

A última reportagem a ser analisada,


mostra um conflito entre indígenas Tembé e
colonos, numa área do Alto Rio Guamá. Foi
exibida, no dia 02 de dezembro de 2014, no
Jornal Liberal 2ª edição. Esse telejornal ocupa
o lugar de maior prestígio na emissora, para Figura 5: Eles chegaram a disparar contra
nós
uma programação local. Está entre a novela das
18h e o Jornal Nacional, um espaço
considerado para a televisão “nobre”, porque
tem um lugar de penetração nos lares das
pessoas considerado alto.
Os discursos estão atrelados as embora
atrelados a uma rede de memórias, se
modificam. Isso significa, para Foucault (2014)
a descrição dos estados institucionais de onde
partem as modalidades enunciativas. As
recorrências enunciativas emergem e produzem A matéria começa e termina com os
sentidos que se juntam as redes de memórias Tembé armados. São silenciadas as
dos cidadãos. diferenciações dos fatos e as subjetividades
desses povos.
Na maior parte dessas matérias os
Figura 6: Frame reportagem "Indios Tembé"
indígenas aparecem como violentos e o tema
conflito é recorrente. Na reportagem o poder de
fala está institucionalizado na sequencia de
imagens, na posição de fala e o tempo que se
dá a cada sujeito histórico, envolvido no relato
jornalístico.
São os critérios de noticiabilidade, os
valores notícias que se juntam a constituições
de sentido e as redes de memória que

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1015
ser evidenciada pelo jornalista de TV, entre
outros. A herança do discurso colonial está
presente na seleção da pauta, no
enquadramento, no texto, na seleção de
imagens e no lugar que a reportagem irá ou não
ocupar no espelho do telejornal, desde a
institucionalização do telejornalismo, no caso
em questão, o paraense. Há um discurso sobre a
Amazônia e sobre os povos indígenas
atravessado pela ideia de integração presente,
4. Considerações finais / Conclusões mesmo que numa leitura subliminar, na
No contexto contemporâneo, a memória do sujeito produtor de mídia.
materialidade histórica do corpo indígena, O telejornalismo ao veicular notícia das
construída e constituída pela intrínseca relação sociedades indígenas constrói e põe em
entre sociedade e mídia é constantemente circulação diferentes sentidos sobre esses
atualizada por essa mesma relação. Uma povos, suas identidades e culturas. Mas, antes
relação que passa por transformações de pensarmos o telejornal é preciso entender
tecnológicas e de processos comunicacionais e aspectos do dispositivo televisão e as relações
que atinge diretamente as identidades dos simbólicas que a envolve.
grupos sociais, fazendo circular discursos nos
espaços abertos pelas recentes tecnologias que
convivem com as novas e tradicionais formas
de produzir sentidos. Referências
Nesse cenário de transformações de CAPARELLI, S. Televisão e capitalismo no
processos comunicacionais e tecnológicos, a Brasil. Porto Alegre: L&PM, 1982.
temática indígena disputa espaço na pauta do CORREIA, J. C.; VIZEU, A. E. A construção
telejornal com outras temáticas de interesse da do real no telejornalismo: do lugar de
sociedade e, portanto, dos produtores do segurança ao lugar de referência. In: VIZEU,
telejornalismo. A partir de dispersões e de Alfredo (org.). A sociedade do telejornalismo.
regularidades discursivas (FOUCAULT 2014), Petrópolis: Vozes, 2008.
os meios de comunicação atualizam redes de
memórias sobre as sociedades e o CUNHA, M. Índios no Brasil. São Paulo:
telejornalismo funciona como um espaço Claroenigma, 2012.
privilegiado de produção de sentidos sobre FERREIRA, R. C. M. SUCESSO NO RÁDIO E
estas sociedades. NA TELEVISÃO, O PROGRAMA DE
AUDITÓRIO NÃO MORRE: uma análise do
A nudez ainda é retomada como marca Programa Carlos Santos na TV. Unama, 2011.
indenitária e, em grande medida, determina o Disponível em
processo de seleção e escolha, inclusive nos http://www.unama.br/mestrado/comunicacao/2008
critérios técnicos, que justificam a ; acessado em 05.07.15
noticiabilidade, tais como luz, ângulo, figura a

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1016
FOUCAULT, M. Arqueologia do saber. 8.ed. POLLAK, M. Memória, esquecimento e
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014. silêncio. In: ESTUDOS HISTÓRICOS. Rio de
Janeiro, v. 02, n.03, 1989.p.03-15.
______. Vigiar e punir. 20.ed. Petrópolis:
Vozes, 1999. NEVES, I. A invenção do índio e as narrativas
orais Tupi -- Campinas, SP : [s.n.], 2009.
______. A ordem do discurso. 23.ed. São
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FRANÇA, V.; OLIVEIRA, L. de (Org).
Acontecimento: reverberações. Belo Horizonte,
2012, Parte 1 e 2.
GOMES, I. Questões de Método na análise do
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identificado?. Estudos da língua(gem). In.
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TRAQUINA, N. Teorias do Jornalismo. A
tribo jornalística – Uma comunidade
interpretativa transnacional. V. II.
Florianópolis: Insular, 2005.

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1017
UMA PERSPECTIVA DIALÓGICA DO DISCURSO DA MÍDIA
BRASILEIRA SOBRE A MACONHA

Carolina Gonçalves da SILVA


Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (FCLAr - UNESP/CAPES)
carol_gse@yahoo.com.br

Resumo: O trabalho apresentado propõe uma análise dialógica do discurso da mídia


brasileira sobre a maconha, a partir de uma perspectiva bakhtiniana e de conceitos como
língua, signo, enunciado, sujeito, responsividade, diálogo e ideologia. Busca-se
compreender as mudanças sociais que ocorrem nesse momento histórico a partir da
materialidade linguística do discurso da mídia impressa, aqui representado pelos
enunciados verbo-visuais de revistas da grande mídia que trouxeram a maconha na capa
na última década. O cotejamento do corpus principal com outros textos de diferentes
datas, gêneros e esferas deve possibilitar um retrato do momento atual da discussão sobre
a maconha no Brasil, ajudar a perceber a mudança pela qual passa esse discurso, bem
como esclarecer o conflito ideológico travado na polêmica sobre a planta.
Palavras-chave: discurso; diálogo; mídia; ideologia; maconha.

trama a todas as relações sociais em todos


Onda verde os domínios. É portanto claro que a palavra
O papel da mídia, suas estratégias e será sempre o indicador mais sensível de
seus efeitos tem interessado aos estudos todas as transformações sociais, mesmo
linguísticos, principalmente aos do discurso daquelas que apenas despontam, que ainda
talvez porque o gênero jornalístico, uma vez não tomaram forma, que ainda não abriram
caminho para sistemas ideológicos
que ocupa lugar de privilégio na sociedade, cria
estruturados e bem formados. [...] A
consensos e, consequentemente, revela palavra é capaz de registrar as fases
ideologias dominantes favorecidas por dado transitórias mais íntimas, mais efêmeras
momento histórico, atrelado a circunstâncias das mudanças sociais.”
sócio-políticas específicas. A análise dialógica (BAKHTIN/VOLOSHINOV, 2006, p. 40)
do discurso permite, então, que se
compreendam as nuances de sentido que os As capas de revistas e jornais ou os sites
signos adquirem em cada contexto, espaço e de notícias na internet registram essas fases
tempo, pois na concepção do círculo, transitórias e nos permitem compreender tais
As palavras são tecidas a partir de uma mudanças bem como as preocupações mais
multidão de fios ideológicos e servem de urgentes de uma sociedade ou, pelo menos, de

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1018
um grupo social. Entre elas, a maconha tem materialidade dos enunciados, descrever e
ocupado lugar de destaque e aparece interpretar.
recorrentemente como um dos assuntos de Através das relações entre língua,
interesse da mídia brasileira - talvez motivada ideologias, sujeitos e condições sócio-históricas
pela onda de movimentos de mudança nas leis estabelecidas no discurso da mídia,
sobre drogas, principalmente a maconha, em identificaremos os argumentos e as vozes
vários pontos do globo, mais recentemente no
sociais que dão corpo a esse conflito e
vizinho Uruguai. investigaremos a maneira como se
Surgem, então, os questionamentos que materializam em nosso corpus.
norteiam este estudo: como a mídia impressa Pretendemos não só descrever o
brasileira aborda a questão da maconha
momento atual da questão da maconha, mas
atualmente? Quais ideologias sustentam tal também fazer um breve percurso histórico que
discurso? Ele tem mudado ao longo da última possibilite provar nossa tese de que passamos,
década? Se sim, em que sentido? Se não, quais atualmente, por um momento de
forças impedem esse movimento? ressignificação do signo nesse constante
Nossa pesquisa, ainda em fase inicial, processo de construção de sentidos. Não
se voltará aos enunciados verbo-visuais deixaremos de lado as transformações nas
(BRAIT, 2013) que constituem matérias de estruturas socioeconômicas às quais essa
capa de revistas brasileiras (de grandes grupos evolução na língua está diretamente associada,
midiáticos) que trouxeram a maconha como como se lê em Marxismo e Filosofia da
tema central, na última década. Um olhar Linguagem:
superficial ao corpus leva a crer que não há
consenso sobre a questão que, apesar de não ser A evolução da própria língua como
assunto recente, tem tido destaque talvez material ideológico, como meio onde se
reflete ideologicamente a existência, uma
inédito na grande mídia. O único ponto
vez que a reflexão da refração da existência
consensual parece ser de que é chegado o
na consciência humana só se efetua na
momento de se debater a questão, mesmo em palavra e através dela. É impossível,
esferas mais rígidas, como a da lei. evidentemente, estudar a evolução da
Durante a pesquisa, em 2015, o língua dissociando-a completamente do ser
Supremo Tribunal Federal julga a social que nela se refrata e das condições
socioeconômicas refratantes.”
inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei
(BAKHTIN/VOLOSHINOV, 2006, p.199)
Antidrogas (2005), o que pode culminar na
descriminalização do porte da maconha para
uso pessoal e no estabelecimento de critérios de Um olhar dialógico
distinção entre usuário e traficante. Assim, a Para abarcar a complexidade da questão
mudança de valoração social do signo já atinge da maconha no Brasil, buscamos na perspectiva
os discursos oficiais, abalando hegemonias e bakhtiniana do discurso os conceitos e ideias
evidenciando, na forma de polêmica, o conflito que embasarão nossas análises e reflexões.
ideológico, que buscaremos identificar na Entre eles, voltamos nossa atenção ao

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1019
enunciado, ao sujeito, à alteridade, à ideologia bakhtiniana da língua e, também, como
e ao diálogo. A propósito, é a dialogia, tal elementos centrais de nossa análise.
como concebida pelo Círculo que adotamos Logo, nos interessa identificar quem são
como fundamentação teórico-metodológica. os sujeitos produtores desse discurso, o que e
Mais do que uma escolha, essa como enunciam, como interpretam, respondem
orientação teórica parece atender às demandas e incorporam discursos outros, como refletem e
do corpus, pois somente analisando o diálogo refratam a realidade sobre a qual enunciam,
entre as múltiplas vozes que constituem um qual o cronotopo que caracteriza essa realidade
discurso seria possível perceber, em toda sua e, principalmente, a interação entre todos esses
complexidade, o conflito ideológico que aspectos.
caracteriza o embate trazido nos enunciados
Tal abordagem, nos levará a
verbo-visuais das revistas que constituem nosso interpretações mais ricas acerca do discurso
corpus principal e, então, buscar as razões da sobre a maconha no Brasil. Ao priorizar esse
mudança do discurso sobre a planta no Brasil, cotejamento de textos e vozes sociais como
questionamento central de nosso estudo, nas forma de atingir uma visão holística do
estruturas socioeconômicas. fenômeno social estudado, adotamos um
O diálogo se faz presente, inclusive, na método dialógico para desenvolver esse estudo
articulação e relação intrínseca entre os de cunho qualitativo, interpretativo sobre
conceitos trabalhados, constituintes do eventos dinâmicos e complexos, que não nos
processo de produção de sentidos. A ideia de permitem falar em resultados finais e
sujeito, para nos limitarmos a apenas um conclusões, mas em hipóteses e constantes (re)
exemplo, é diretamente vinculada à interpretações possíveis da realidade. Afinal,
enunciação, que “é o produto da interação de “cotejar textos é a única forma de desvendar os
dois indivíduos socialmente organizados” sentidos” (GERALDI, 2012, p.29) e dar
(BAKHTIN/VOLOSHINOV, 2006. p. 114). A ouvidos a mais vozes, caminhando rumo a
enunciação pressupõe, então, um diálogo entre “uma penetração mais profunda no discurso,
sujeitos, inseridos em um dado contexto sócio- sem silenciar a voz que fala em benefício
histórico, que dá sentido a esse emaranhado de de um já dito que se repete constantemente”
vozes sociais que compõem o discurso. (GERALDI, 2012, p.27).
Assim, “o Círculo destaca o sujeito não Partindo de sua superfície, ou seja, de
como fantoche das relações sociais, mas como sua materialidade linguística - e levando em
um agente, um organizador de discurso, conta a produtiva dimensão verbo-visual dos
responsável por seus atos e responsivo ao enunciados analisados - identificaremos os
outro” (SOBRAL, 2005, p.24). Esse sujeito signos mais representativos das ideologias que
ativo, responsivo e responsável é socialmente constituem esse discurso, bem como suas raízes
constituído e ideologicamente posicionado, nas estruturas socioeconômicas, sempre em
uma vez que seu discurso é constituído por relação com os sujeitos e as vozes que
suas valorações e sua visão de mundo. Mais dialogam em seu interior.
uma vez, sujeitos, ideologia, condições sócio-
históricas aparecem juntos na concepção

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1020
diversidade deste corpus, será possível
Analisaremos esses elementos
identificar diversas vozes provenientes de
constitutivos dos enunciados veiculados por
diferentes esferas, que trazem consigo suas
cada um dos exemplares de nosso corpus
respectivas interpretações da realidade e do
principal, identificando, assim, o momento
mundo.
atual do discurso da mídia sobre a maconha.
Em seguida, ampliaremos o diálogo com o Além deste corpus principal, que nos
corpus auxiliar para compreender a evolução da possibilita fazer um retrato do momento atual
questão ao longo da última década e, da questão da maconha no país, recorremos a
consequentemente, afirmar nossa hipótese de um corpus auxiliar que permitirá perceber se a
que atualmente, essas relações de materializam questão tem enfrentado resistências, mudanças,
na forma de polêmica. passado por momentos de polêmica ou
consenso ao longo dos últimos dez anos. Para
Finalmente, por meio de nosso corpus
isso, consideraremos parte desse corpus
auxiliar, buscamos estender o diálogo, também,
auxiliar outros exemplares que trouxeram o
a textos de outras esferas, momentos e gêneros,
tema na capa na última década disponíveis on-
como revistas de outros anos, a legislação
line, representantes do discurso dominantes na
vigente sobre o assunto e um projeto de lei que
mídia da época (levantamento que ainda não
versa sobre um possível futuro para a questão
foi concluído); a Política Nacional de Drogas,
no país. Pretendemos, com essa variedade,
de 2005, representante do discurso oficial sobre
compreender os movimentos que constituem os
a planta vigente no país; o Projeto de Lei
sentidos desses enunciados, em suas ligações
7270/2014, de Jean Wyllys, uma resposta a
com enunciados precedentes e subsequentes da
esse discurso e, finalmente, a edição de Junho
comunicação, afinal “cada enunciado é um elo
de 2015 da revista National Geographic,
da cadeia muito complexa de outros
representante do discurso internacional sobre a
enunciados” (BAKHTIN, 2010, p.291).
maconha.
Múltiplas vozes
4. Reflexões iniciais
O corpus principal dessa pesquisa é
Uma vez finalizada a delimitação do
constituído por revistas brasileiras
corpus e dos conceitos teóricos a serem
representantes da grande mídia impressa. Entre
utilizados, o momento seguinte de nossa
elas estão os números 2293 e 2347 de Veja, de
pesquisa é de início das análises. Pretendemos
dezembro de 2012 e novembro de 2013,
apresentar aqui apenas algumas reflexões e
respectivamente; o número 258 da revista
impressões motivadas pelo primeiro olhar mais
Galileu, de Janeiro de 2013; o exemplar de
analítico ao corpus.
número 748 da Carta Capital, de 15 de Maio
de 2013; as revistas Superinteressante Especial Nossa hipótese é de que passamos por
Maconha, de 27 de Janeiro de 2014 e a edição um momento de rompimento com o consenso,
338 de Outubro de 2014, além da revista de questionamento do já-dito - entendido como
Rolling Stones, de março de 2014. senso comum. Consequentemente, graças ao
movimento que mantém em diálogo vozes da
Esses exemplares representam o diálogo
infra e da superestrutura, a mudança afeta,
atual estabelecido na mídia e, graças à

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1021
também, o discurso oficial sobre a maconha no possível afirmar que o fenômeno chamado de
Brasil. “green rush” nos Estados Unidos não é isolado,
mas parte de um movimento de mudanças nas
Trata-se do momento em que as esferas
questões relacionadas à maconha ao redor do
de atividade produtoras de ideologias
mundo. Entre os países que adotaram regimes
dominantes passam a absorver as vozes
menos repressivos como Holanda, Portugal,
marginais para incorporá-las, ressignificá-las e,
Canadá, Israel e Espanha, está também o
então, exercer novamente controle sobre elas
Uruguai, que mais recentemente trouxe para a
através do discurso oficial e de uma nova
América Latina a necessidade de discutirem-se
proposição baseada nos discursos antes
as ineficientes políticas de combate às drogas.
marginais. Esse movimento não acontece,
Entendemos que esse fato é um marco no
entretanto, sem resistência e
percurso histórico da questão e insere o Brasil
interincompreensão (MAINGUENEAU, 2005),
no que podemos chamar de um momento de
pois cada esfera valora o signo “maconha” de
mudança nos rumos dessa discussão.
uma maneira, de acordo com suas ideologias e
interesses. A mudança não se trata, entretanto, de
uma mera passagem do status de tabu ao de
Esse embate de vozes favorece a
consenso ou aceitação social de uma possível
identificação das diferentes forças que agem
legalização, mas acreditamos que a
nesse discurso, pois é na polêmica que se
transformação seja de silenciamento para
revelam mais claramente as palavras do outro
polêmica. É possível encontrar em nosso
no discurso do eu. A polêmica é, a propósito,
corpus diferentes vozes e posicionamentos
um conceito recentemente agregado a nosso
ideológicos que compõem tão complexo
estudo, pois somente agora podemos afirmar
discurso, antes tratado como imoral ou ilegal.
que é em forma de polêmica que os enunciados
analisados se relacionam. Necessitaremos, O único consenso é de que é chegado o
momento de se trazer a questão, antes
portanto, de mais subsídios teóricos sobre a
associada a contextos marginais (como
questão, encontrados, por exemplo, em Gênese
periferias, grupos de jovens, artistas), às esferas
dos Discursos, de Maingueneau (2005). Nosso
privilegiadas, como a medicina, a política e a
objetivo é apontar, na superfície do discurso, os
mídia.
elementos que explicitam essa disputa pela
valoração “verdadeira” do signo, as ideologias Não se trata, entretanto, de mera
que o constituem e as mudanças sociais que incorporação de vozes da infra na
essa polêmica representa. superestrutura, mas de uma ressignificação
dessas vozes ainda segundo ideologias
Considerando o discurso de cada revista
dominantes. Afinal, os veículos da grande
integrante do corpus, as discussões que
mídia ainda se apoiam no discurso de lugares
circulam em diferentes esferas – seja em
privilegiados, como o da medicina - que vê nas
conversas cotidianas ou nos julgamentos do
propriedades médicas da planta (principalmente
STF sobre a descriminalização da planta -, a lei
no CBD, Canabidiol) uma nova forma de lidar
antidrogas e os projetos de lei que versam sobre
com a questão -, apagando vozes que não
a planta, bem como o momento de mudança
servem aos interesses das ideologias
nas políticas de drogas internacionais, é

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1022
hegemônicas, uma vez que não podemos
Enfim, são múltiplas vozes
desconsiderar essas relações de poder de base
constituintes desse complexo discurso, que
socioeconômica.
encontra na materialidade da língua sua forma
Segundo o Círculo, é impossível de concretizar-se, lembrando-nos sempre de
compreender a evolução da língua sem levar que a palavra é arena de embates ideológicos,
em consideração as estruturas socioeconômicas espaço de luta de classes e de construção de
e sua expansão. sentidos: THC, CBD, Cannabis, maconha,
droga, remédio, planta, lucro, vício, tratamento,
A evolução semântica na língua é sempre recreação, crime? Longe de buscar uma
ligada à evolução do horizonte apreciativo
resposta única, nosso trabalho busca identificar
de um dado grupo social e a evolução do
horizonte apreciativo – no sentido da
não apenas oposições semânticas, mas conflitos
totalidade de tudo que tem sentido e ideológicos e mudanças sociais que deles
importância aos olhos de um determinado advém.
grupo – é inteiramente determinada pela 4. Algumas considerações
expansão da infraestrutura econômica
(BAKHTIN/VOLOSHINOV, 2006, p.139). Adotar uma perspectiva dialógica sobre
o discurso é passar a ver não só a língua, mas a
Assim, nosso trabalho não pode deixar vida, como um diálogo infindável; é estar
de focalizar a importância do fator econômico atento às múltiplas vozes que nos constituem,
nesse processo de construção de sentidos. Para num movimento constante. Assim, quaisquer
nós, o álibi que viabiliza enxergar a maconha, respostas são sempre temporárias, quaisquer
antes imoral e ilegal, como remédio tem origem verdades são parciais. Essa complexidade que
na superestrutura e em interesses econômicos, parece dificultar nosso trabalho é, na verdade, o
como os da poderosa indústria farmacêutica, que possibilita compreender os fenômenos
além da possibilidade de aumento da sociais com alguma profundidade,
arrecadação de impostos para os governos desconstruindo as “verdades únicas” e
através da legalização e taxação da maconha apontando maneiras possíveis de se entender o
como produto, por exemplo. discurso e o mundo.

Ao mesmo tempo em que algumas No combate às versões únicas, a


vozes se fazem ouvir com mais clareza, outras, polêmica é reveladora e torna ainda mais
ainda que aparentemente silenciadas, revelam- explícito o conflito ideológico na materialidade
se nas entrelinhas do não-dito e trazem à tona da língua. A partir dela, percebemos que, no
outras formas de refletir e refratar o mundo. O Brasil, o discurso sobre a maconha, como
ponto de vista do usuário recreativo, por veiculado pela mídia, vive um momento de
exemplo, não é o foco do discurso da mídia, rompimento com o consenso e, quando
mas aparece como uma das vozes silenciadas confrontado com discursos de outras esferas,
pelos discursos dominantes, que revelam, deixa ver que vozes antes marginais circulam
mesmo enquanto tentam combater, visões agora pelas esferas privilegiadas da mídia
opostas. mainstream, da lei e da medicina.

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1023
Nosso corpus nos lembra que tal Referências
mudança tem raízes socioeconômicas, que BAKHTIN, M./ VOLOCHINOV, V.N..
reafirmam e reproduzem valores do Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. M.
capitalismo, como a prosperidade econômica, o Lahud, Y. F.Vieira. São Paulo: Editora.
lucro e a competição e que não necessariamente Hucitec, 2006.
tal mudança significa um grande passo de
libertação. Não se trata, portanto, de caminhar BRAIT, B. Olhar e ler: verbo-visualidade em
rumo à legalização da planta ou à discussão perspectiva dialógica. Bakhtiniana, São Paulo,
sobre os direitos individuais à liberdade e à v. 8, n 2, p.43-66, 2013.
escolha, nem sobre as consequências de uma BRASIL. Política Nacional sobre Drogas.
política repressiva que atribui valoração ao Brasília: Presidência da República, Secretaria
sujeito usuário de acordo com sua raça ou Nacional Antidrogas, 2005.
aparente condição socioeconômica; tampouco
de falar sobre as consequências do uso de BRASIL. Projeto de Lei PL nº 7270, de 25 de
quaisquer drogas, mesmo as aparentemente Fevereiro de 2014, que dispõe sobre o controle,
inofensivas, ou da importância da educação no a plantação, o cultivo, a colheita, a produção, a
combate aos potenciais problemas relacionados aquisição, o armazenamento, a comercialização
ao uso indiscriminado de drogas. e a distribuição de maconha e seus derivados, e
dá outras providências. Disponível em:
Trata-se de imprimir na língua as http://www.camara.leg.br/sileg.
valorações hegemônicas de um dado grupo
social, trata-se de incorporar discursos antes GERALDI, J.W. Heterocientificidade nos
marginais às vozes de poder, que visam se estudos linguísticos. In: Palavras e
manter na mesma posição hierárquica. Não se contrapalavras: enfrentando questões da
trata apenas de uma nomenclatura - ganja, metodologia bakhtiniana. Organizado pelo
maconha, erva, droga, THC, CBD -, mas de Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso –
percebermos na língua os jogos de poder, o GEGE. São Carlos: Pedro & João Editores,
conflito ideológico e os processos de 2012.
construção de sentido no e do discurso. MAINGUENEAU, D. Gênese dos discursos.
Nossos próximos passos são investigar Trad. de Sírio Possenti. Curitiba: Criar, 2005.
tais vozes e ideologias, traçar um percurso REVISTA CARTA CAPITAL. São Paulo:
histórico da questão na mídia na última década Editora confiança, n.748, 15 de Maio de 2013.
para, só então, confrontá-lo com nossas
REVISTA GALILEU. São Paulo: Editora
observações sobre o momento atual aqui
Globo, n.258, Janeiro de 2013.
expostas e, assim, afirmar a mudança e o
conflito através de marcas de polêmica na REVISTA ROLLING STONE BRASIL. São
superfície dos enunciados, ao mesmo tempo em Paulo: Editora Spring, n. 90, Março de 2014.
que estabelecemos relações entre sujeitos, REVISTA SUPERINTERESSANTE. Edição
discursos, momentos históricos e questões Especial A Revolução da Maconha. São Paulo:
socioeconômicas. Editora Abril, 27 de Fevereiro de 2014

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REVISTA VEJA. São Paulo: Editora Abril,
n.2293, 31 de Outubro de 2012. Disponível em:
http://veja.abril.com.br/acervodigital/home.asp
x
REVISTA VEJA. São Paulo: Editora Abril,
n.2347, 13 de Novembro de 2013. Disponível
em:http://veja.abril.com.br/acervodigital/home.
aspx.

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1025
A PÓS-MODERNIDADE E O SUJEITO VIRTUAL

Edilene Paiva Costa e SILVA; Maria Couto da SILVA


Universidade Federal de Goiás (UFG)
edilenepcsjornalista@gmail.com

Resumo: Este trabalho analisa as influências da sociedade pós-moderna e da cibercultura


na construção do sujeito virtual. A partir dos aspectos determinantes da pós-modernidade e
dos fundamentos da cibercultura, discute as influências que determinam o sujeito na
contemporaneidade e no meio virtual e como esse sujeito é evidenciado no discurso.
Utiliza-se uma postagem do facebook em que, por meio da análise do discurso, avalia os
elementos preponderantes para a caracterização do sujeito virtual na pós-modernidade. O
estudo possibilitou a identificação de um sujeito fluido, misto de tecnologia e estesia, cujas
características determinantes são a “destemporalização, dessubjetivação e
desferencialização.
Palavras-chave: pós-modernidade; sujeito virtual; mídias sociais; análise do discurso.

demarcada na modernidade. Lemos (2002) alia


Considerações Iniciais
esse novo panorama pós-moderno ao
A pós-modernidade acarretou mudanças surgimento de nova fase econômica movida
radicais de paradigmas nas esferas sócio- pelo pós-industrialismo e incremento dos
culturais, assim como impulsionou a inserção meios de comunicação.
do homem na vida virtual pelo
desenvolvimento tecnológico resultante dos A ideia de pós-modernidade aparece na
avanços nos campos da telemática. segunda metade do século XX com o
advento da sociedade de consumo e dos
No século XVII, a modernidade mass media, associado à queda das grandes
caracterizou-se pela crescente racionalização da ideologias modernas e de ideias centrais
vida social, industrialização, separação das como história, razão, progresso. Agora, os
diferentes instâncias como ciência, arte e campos da política, da ciência e da
moral, burocratização das instituições e pelo tecnologia, da economia, da moral, da
individualismo. Contudo a pós-modernidade filosofia, da arte, da vida quotidiana, do
pôs fim ao império da razão sustentada pelos conhecimento e da comunicação vão sofrer
princípios modernos, consolidando uma uma modificação radical (LEMOS, 2002,
p.67).
sociedade que se funda no presente, rompendo
a noção de linearidade histórica e progressista

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1026
sujeito virtual, utiliza-se uma postagem retirada
A economia pós-industrial, que se
de uma página pessoal do Facebook.. E
iniciou nos Estados Unidos nos anos 40 e 50,
aplicou-se uma pesquisa qualitativa-
contribuiu para a produção e o engendramento
explicativa, como procedimento metodógico,
de novos bens de consumo, acirrados
referenciada pela análise do discurso,
posteriormente na terceira fase do capitalismo,
cuja globalização possibilitou o fortalecimento A sociedade sofreu um impacto pelo
das micro políticas voltadas para um incremento e popularização da internet e
consumismo sem fronteiras e em constante possibilitou a construção de um sujeito em
expansão. Nesse contexto surgem as novas uma nova dimensão virtual. O artigo propõe
tecnologias digitais que inserem o homem em caracterizar, em linhas gerais, este sujeito
uma sociedade midiática, modificando, virtual, assim como a influência da pós-
inclusive, as formas de comunicação e relações modernidade e da cibercultura nessa emergente
sociais, por meio de novos códigos de ordem social. E pode ser a alavanca para
linguagem. outras pesquisas, tendo em vista que aborda um
tema pertinente a múltiplos contextos
Este estudo propõe a análise dessa nova
disciplinares e possibilita ampliar a
configuração da sociedade e dos sujeitos que
compreensão da sociedade contemporânea.
participam dessa era da informação, definida
por Santanella (2008) como “estética das Pós-modernidade: a nova cara da realidade
linguagens líquidas ou estética da informação”, Reduzir a concepção de pós-
e avalia as circunstâncias que redimensionaram modernidade a um momento histórico que se
a cultura e produziram as relações sócio- delineou em substituição a modernidade é
interativas na contemporaneidade. estreitar o olhar para uma fresta de um amplo
Assim, o desenvolvimento desse panorama de análise que abrange uma nova
trabalho está referenciado pelas análises de configuração da sociedade.
Lemos (2002), Santanella (2008), Lyotard Ao se propor uma análise sobre a pós-
(1988, 2009), Jameson (1985), Bauman (2001) modernidade, duas vertentes de pensamento
e Harvey (2007) no que tange às concepções dividem essa discussão. Uma tendência, com
de pós-modernidade. Quanto às vertentes do visão mais otimista, atribui à pós-modernidade
estudo da mídia, cibercultura e virtualidade uma renovação intelectual, novas dimensões
considera as bases epistemológicas de Lemos filosóficas e diferentes subjetividades para a
(2002), Santanella (2008), Lyotard (1988, compreensão do mundo contemporâneo. Por
2009), Jameson (1985), Bauman (2001) e outro lado, os pensadores com tendência
Harvey (2007), Sodré (2002), Virilio (1993), marxista recusam essa conjuntura pós-
Castells (1999) e Maffessoli (2006). Para a moderna, pela justificativa de que aceitar o seu
compreensão da construção do sujeito, incremento seria legitimar a organização
recorremos às concepções de Pêcheux (1983) e capitalista estabelecida. Dessa maneira, é
Bakhtin (1986). fundamental discorrer sobre pontos de vista
Para exemplificar a influência dos diferentes, já que o tema abarca diversas
parâmetros pós-modernos na caracterização do dimensões, a fim de evitar o maniqueísmo

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1027
reducionista de enquadrá-lo como atributo definitivos como antes eram propostos,
positivo ou negativo para a vida em sociedade. equivale a um dinamismo provindo de um
cenário cibernético e informacional, em que a
O termo pós-moderno, conforme
linguagem adquire importância e fundamento
explica Lemos (2002), surgiu na década de 30,
para o saber que passa a ser capitalizado. Nesse
no contexto da crítica literária, inicialmente
momento histórico, em questão, a Ciência,
como referência a uma antologia de poesia
segundo lyotard (1988), equipara-se a um
espanhola e hispano-americana de Frederico
potencial quantitativo de informação.
Osnis. Mais tarde, em 1959, Irwing Howe faz
“Descobriu-se que a fonte de todas as fontes
alusão ao nome em seu artigo ¨Sociedade
chama-se informação e que a ciência - assim
de massa e a ficçã pós-moderna”,
como qualquer modalidade de conhecimento –
relacionando-o à decadência literária pela
nada mais é do que um certo modo de
inserção da literatura na sociedade de massa.
organizar, estocar e distribuir certas
Aliado a isso, o nome foi associado às
informações. (LYOTARD, 1988, P.9). Em
transformações econômicas que alavancaram a
oposição ao “espiritual” ao “divino”, preconiza
economia pós-industrial.
a ciência “como um conjunto de mensagens
Na visão de Lyotard (1988), o conceito possível de ser traduzido em “quantidade (bits)
de pós- modernidade está intimamente ligado de informação”.
às dimensões atribuídas ao saber científico.
Na dimensão do fluxo do saber
Para o autor, o conhecimento científico na
científico, há uma equivalência de mercado.
modernidade significava um romper com as
Lyotard (2009) enfatiza que há uma relação
algemas da ignorância; ou seja, compreendido
entre os produtores de saber com os
em uma dimensão emancipatória, para
utilizadores do saber que deverá ser
possibilitar ao homem uma inclusão no mundo
da razão, conforme os ideais iluministas. considerada:
Entretanto Lyotard (1988) atribui à Esta relação entre fornecedores e usuários
contemporaneidade uma negação dessa do conhecimento e o próprio conhecimento
concepção, “o pós-moderno, enquanto tende e tenderá a assumir a forma que os
condição da cultura nesta era caracteriza-se produtores e os consumidores de
exatamente pela incredulidade perante o mercadorias têm com estas últimas, ou seja,
metafísico filosófico-metafísico, com suas a forma valor. O saber é e será produzido
pretensões atemporais e universalizantes” para ser vendido e ele é e será consumido
(LYOTARD, 1988, p. 8). Assim, a pós- para ser vendido para ser valorizado numa
modernidade se caracteriza, sobretudo, por nova produção: nos dois casos para ser
trocado: ele deixa de ser para si mesmo seu
deslegitimar essas grandes narrativas modernas
próprio fim; perde “seu valor de uso”
das ciências que condicionavam o progresso ao (LYOTARD, 2009, p. 4).
saber científico, uma vez que este seria uma
maneira de desvencilhar dos dogmas, mitos e
superstição. Tais mudanças de paradigmas e grande
parte das transformações sociais são atribuídas
Com isso, o valor da ciência se desloca ao redimensionamento da estrutura econômica,
para outros referentes, agora não estáticos e

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1028
principalmente pela intensificação do mercado instrumentais rígidos, impostos anteriormente.
globalizado. Jameson (1985) avalia que a Esse mundo de fluidez está diretamente
sociedade se reconfigurou radicalmente em vinculado ao consumo, que se contrapõe aos
diversos aspectos, além da mutação da atributos da solidez e necessidade.
realidade em imagens, da fragmentação do
tempo em presentes, da imposição do O consumismo hoje, porém, não diz mais
capitalismo exacerbado. Segundo Jameson respeito à satisfação das necessidades –
(1985), a economia capitalista, desde a nem mesmo as mais sublimes, distantes
(alguns diriam, não muito corretamente,
modernidade, já havia delineado uma
“artificiais”, “inventadas”) necessidades de
condição social que iria favorecer a expansão identificação ou a autossegurança quanto à
mundial do capitalismo em sua fase atual, “adequação”. Já foi dito que o spiritus
devido ao surgimento de: movens da atividade consumista não é mais
o conjunto mensurável de “necessidades”
novos tipos de consumo, obsolescência articuladas, mas o desejo – entidade muito
programada, um ritmo ainda mais rápido de mais volátil e efêmera, evasiva e
mudanças na moda e no styling, a caprichosa, e essencialmente não
penetração da propaganda, da televisão e referencial [...].o desejo tem si mesmo
dos meios de comunicação em grau até como objeto constante, e por essa razão
agora sem precedentes e permeando a está fadado a permanecer insaciável,
sociedade inteira, a substituição do velho qualquer que seja a altura atingida pela
conflito cidade e campo, centro e província, pilha dos outros objetos (físicos ou
pela terceirização e pela padronização psíquicos) que marcam seu passado
universal, o crescimento das grandes redes (BAUMAN, 2001, p. 96).
de auto-estradas e o advento da cultura do
automóvel — são vários dos traços que
pareciam demarcar uma ruptura radical Na pós-modernidade, as relações com o
com aquela sociedade antiquada de antes tempo e o espaço também sofreram bruscas
da guerra, na qual o modernismo era ainda alterações, se comparadas com a modernidade.
uma força clandestina. (JAMESON, 1985, Esta preconizava um tempo linear, histórico e
p.26). o espaço bem definido e delimitado no que
tange à direção, forma e volume; entretanto
Para explicar a emergente condição Lemos (2002) explica que na pós-modernidade
social, que se vincula aos princípios do prevalece uma “compressão do espaço e do
capitalismo, Bauman (2001) utiliza o tempo, onde o tempo real (imediato) e as redes
conceito de “modernidade líquida” . Explica telemáticas
que líquidos são os desejos, os valores, o desterritorializam (desespacializam) a cultura”
tempo, o espaço, enfim nada adquire uma (LEMOS, 2002, p 72), acarretando intenso
consistência na contemporaneidade. Enfatiza impacto nas outras esferas da sociedade.
que os padrões socioculturais de referências
que eram consistentes na modernidade, nesta Na análise de Bauman (2001), as
nova ordem se liquefizeram e desvincularam os noções para demarcar a passagem do tempo
indivíduos dos arcabouços racional- perderam o sentido, já que vigora somente o
presente, a concretização momentânea. “O

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1029
tempo instantâneo e sem substância do mundo
A sociedade pós-moderna é marcada
do software é também um tempo sem
pela abrangência das novas tecnologias em
consequências. “Instantaneidade” significa
todas as instâncias da vida social, com papel
realização imediata, “no ato” – mas também
preponderante das mídias virtuais que se
exaustão e desaparecimento do interesse”
evidenciaram nesse contexto, a partir da
(BAUMAN, 2001, p. 150).
popularização da internet.
Essas alterações que implicam na
As primeiras experiências com o uso da
compressão tempo-espacial possibilitadas pelo
internet surgiram durante a guerra fria nos
uso da tecnologia e mudanças na vida social, na
Estados Unidos da América, em 1969,
ótica de Harvey (2007), foram motivadas pelas
denominada inicialmente Arpanet. O intuito
bases político-econômicas que possibilitaram,
era criar um aparelhamento de armazenamento
inclusive, maior flexibilização de “acumulação
de dados para preservar as informações
do capital”. O tempo e o espaço passam a ser
importantes para o país. Consistia em um
condições prioritárias na dinâmica do
sistema do Departamento de Defesa Americano
capitalismo que se baseia nos modelos de
que se incorporou posteriormente às
acumulação flexível. A expansão capitalista
universidades e centros de pesquisa. A partir de
globalizada provocou essa mudança na
1980, iniciou-se a expansão da internet para
intervenção tempo/espaço para atender as
os outros países, mas apenas as universidades e
novas formas de consumo e economia baseada
os centros de pesquisa científica tinham acessa
no fluxo contínuo do capital.
à rede. Na década de 1990, com o surgimento
Em variados contextos podem ser das diversas provedoras da rede, cidadão
avaliados os paradigmas que permeiam a comum passou a ter acesso à internet que se
sociedade pós-moderna: o hedonismo, a expandiu em todos os contextos da vida em
dispersão dos valores, os múltiplos papéis sociedade. Na contemporaneidade a
sociais, o agorismo, a efemeridade, a virtualidade movimenta uma gama enorme de
virtualidade, a fusão do tempo e espaço sem informações, proporcionada pelas mídias e
linearidade, tudo se dissipa e embaralha como incorpora uma cultura característica desse
um jogo de espelhos em que a multiplicidade meio. Segundo Levy (1999) há uma cultura do
de imagens e visões se sucedem e não se ciberespaço que envolve, não somente a
individualizam. E quando o sujeito tenta ver a interconexão em rede com suas peculiaridades,
si mesmo, não reflete somente uma única face. mas também valores, práticas atitudes e modos
E a cultura que sombreava as certezas deste de pensar característicos do ambiente virtual,
sujeito, agora o faz flutuar pelas múltiplas essa cibercultura, para Lemos (2002) consiste
dimensões e interfaces da mídia. Por isso é em
importante compreender melhor quem são
esses habitantes, caminheiros da pós- uma configuração sócio-técnica onde
modernidade e a cibercultura que os conduz. haverá modelos tribais associadas às
tecnologias digitais, opondo-se ao
Cibercultura e os valores flutuantes individualismo da cultura do impresso,
moderna e tecnocrática. Com a
cibercultura, estamos diante de um

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1030
processo de acelaração, realizando a abranger as mais vastas extensões jamais
abolição do espaço homogêneo e percebidas (geográficas ou planetárias), ao
delimitado por fronteiras geopolíticas e do mesmo tempo revela-se arriscado, já que a
tempo cronológico e linear, dois pilares da ausência da percepção imediata da
modernidade (LEMOS, 2002, p.77). realidade concreta (...) engendra um
desequilíbrio perigoso entre o sensível e o
inteligível, que só pode provocar erros de
Sodré (2002) associa a cibercultura a
interp retação tanto mais fatais quanto mais
uma tecnocultura, que considera uma nova os meios de teledetecção e
ordem de sociabilidade, ressalta que, pela telecomunicação forem performativos, ou
influência da economia e com o implemento melhor: videoperformativos (VIRILIO,
das novas tecnologias de comunicação, a 1993, p. 23).
tecnocultura transformou as formas tradicionais
de comunicação, “implica um novo tipo de Essa nova estrutura de organização
relacionamento do indivíduo com referências tempo e espaço interferem em múltiplos
concretas ou com o que se tem convencionado contextos da sociedade, para Castells (1999) o
designar como verdade, ou seja, uma outra espaço é constituído por fluxos, determinantes
condição antropológica” (SODRÉ, 2002, p.27). de práticas sociais. Os fluxos são “seqüências
O ciberespaço, ambiência dessa cultura intencionais, repetitivas, e programáveis de
de rede, prevê relações próprias de tempo e intercâmbio e interação entre posições
espaço que impõe percepções e alterações na fisicamente desarticuladas, mantidas por atores
maneira de sentir e pensar do sujeito virtual. sociais nas estruturas econômica, política e
Para Virilio (1993), o tempo e o espaço na simbólica da sociedade” (CASTELLS,1999,
virtualidade se misturam, o real se torna p.501).
obscuro pela construção do tempo instantâneo, Quanto à ideia de abrangência e
é um tempo-matéria da virtualidade que acelera totalidade na virtualidade, Levy (1999) aponta
a realidade. Constituem construtos sociais, um paradoxo, uma vez que “a cibercultura
visto que há uma desterritorialização pelo mantém a universalidade ao mesmo tempo que
ubiquidade, o homem está no imediatatismo em dissolve a totalidade”. Direciona-se para a
todos os lugares, acarretando uma substituição composição de uma comunidade mundial por
das relações humanas face a face que passa a meio da globalização, da condensação das
ser mediada pela máquina: redes de comunicação e transporte, contudo a
A substituição da interação presencial pela unicidade se rompe por manter um contato e
mediação eletrônica implica a interação efetivos entre as pessoas. Nesse
representação instantânea do espaço, sentido, “o ciberespaço torna-se um imenso ato
subtraindo a realidade sensível de um de inteligência coletiva, sincrônica,
processo de co-produção. A observação convergindo para o presente, clarão silencioso,
direta dos fenômenos visíveis é substituída divergente, explodindo como uma ramificação
por uma teleobservação na qual o de neurônios” (LEVY, 1999, p.250).
observador não tem mais contato imediato
com a realidade observada. Se este súbito O sujeito virtual pós-moderno
distanciamento oferece a possibilidade de

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1031
ideal-tipos” (MAFFESSOLI, 2006, p. 37).
No ciberespaço convergem diferentes
Esses sujeitos apresentam um grande
possibilidades interativas e circulam inúmeros
sentimento coletivo, pois são “formas vazias”
discursos que, por meio destes, é possível
que possibilitam “qualquer um reconhecer-se e
identificar um sujeito virtual imbuído de
comungar com os outros”, visto que, na visão
paradigmas constituídos pelo momento
maffessoliana, esse tribalismo é favorecido pela
histórico-sócio-cultural da pós-modernidade.
estética comum.
Nesse espaço virtual, a cibercultura
As redes sociais presentes na internet
condiciona o sujeito a se inserir
exemplificam esse espírito de coletividade, as
incessantemente no mundo virtual. Lemos
comunidades virtuais agregam sujeitos que se
(2002) ressalta a tendência desse sujeito de se
associam pelas afinidades, por pertencerem ao
desvincular do meio social:
mesmo grupo seja de opinião ou sentimentos
O usuário interativo da cibercultura nasce comuns. Este sujeito também não é fixo a um
do desaparecimento do social (Baudrillard) só grupo e pode migrar para outro com muita
e da implosão do individualismo moderno. facilidade. Além disso não está vinculado a
Homens e máquinas (nanotecnologias, nenhuma certeza e tem a sua disposição uma
próteses) tornam-se quase isomórficos, variedade de padrões e referências
simbióticos, indiferenciados. O tribalismo, impossibilitando-o de manter suas convicções
o presenteísmo e o hedonismo das por muito tempo. O motivo de tanta
comunidades virtuais abalam a rigidez das inconstância, conforme Bauman (2004),
formas sociais modernas (partidos, classes, deve-se ao fato de que o sujeito contemporâneo
gênero). A cibercultura seria a inclusão de
vive um momento insólito e de constantes
pequenas catástrofes em meio à infra-
estrutura tecnológica mundial.Tudo isso em
mudanças. Assim como o momento é fluido os
tempo real e instantâneo. (LEMOS, 2002, sujeitos também adquirem características
p. 81). fluidas. Utiliza a metáfora do líquido para
explicar esse sujeito:
Em oposição ao sujeito da modernidade Estamos agora passando da fase “sólida”
que era centrado, uno, racional, Maffessoli modernidade para a fase “fluida”. E os
(2006) retrata o sujeito da pós-modernidade líquidos são assim chamados porque não
como “pessoa” que vive a lógica da socialidade conseguem manter a forma por muito
e emocionalidade em tribos, unidas não por tempo e, a menos que sejam derramados
uma ideologia, mas pelo vínculo estético, no nun recipiente apertado, continuam
sentido etimológico de uma faculdade comum mudando de forma sob a influência até
de sentir, captar sensações. Consiste em um mesmo das menores forças. Num ambiente
sujeito coletivo, apoiado pelo neotribalismo, fluido não há como saber se o que nos
espera é uma enchente ou uma seca – é
nas “comunidades emocionais”. “A ênfase
melhor estar preparado para as duas
incide, então, muito mais sobre o que une do possibilidades. Não se pode esperar que as
que separa. Não se trata mais da história que estruturas quando (se) disponíveis durem
construo (...). Podem existir heróis, santos, muito tempo (BAUMAN, 2004, p. 28)
figuras emblemáticas, mas são de certa maneira

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1032
Bauman (1997) ressalta uma Sujeito no discurso
fragmentação na construção do sujeito pós- Condicionado pela cibercultura, esse
moderno relacionada à vivência do tempo sujeito se evidencia em seus discursos
presente, da instantaneidade, que produz a presentes nas redes virtuais, tendo em vista
falta de linearidade temporal e a multiplicidade que, na perspectiva de Pêcheux (1995), o
das referências, circunstâncias essas sujeito se constitui por meio do discurso, e este
relacionadas à sociedade de consumo. O é permeado por uma carga ideológica.
capitalismo promove uma ideologia do Entretanto é importante destacar que, segundo
consumo em que, de maneira automatizada, o Bakhtin (1986), o signo se realiza no processo
sujeito em seu cotidiano é movido pelo social e “todo signo ideológico, e portanto
consumo uma vez que sua vida, rastreada pelo também o signo linguístico, vê-se marcado pelo
consumo, é “orientada pela sedução, por horizonte social de uma época e de um grupo
desejos sempre crescentes e quereres voláteis social determinados” (BAKHTIN, 1986, p.44).
– não mais por regulação normativa” Assim, cada época e em determinado estágio de
(BALMAN, 2001, p.99). desenvolvimento da sociedade, o corpo social
Em suma, o sujeito, para Gumbrecht volta-se para um grupo de objetos que lhes são
(1998), é abalizado pela “destemporalização, atribuídos um valor particular. Esses objetos
dessubjetivação e desferencialização” que geram signos e discursos que circulam
“tornaram-se agora condições estruturais socialmente. Bakhtin (1986) considera que o
amplamente institucionalizadas (de fato quase signo adquire um caráter ideológico quando
globais)”. Na destemporalização os sujeitos, constitui índice social de valor, ou seja, valor
diante das múltiplas representações e do social. Esses princípios justificam o fato de que
presente dilatado, tendem a ficar “cada vez em determinado contexto e época certas
mais relutantes (mais do que capazes) em formações discursivas estão em maior
identificar origens e pontos terminais para as evidência.
histórias, em procurar originais, como uma Influenciado pelo momento histórico-
base para cópias, e em buscar autenticidade cultural da sociedade pós-moderna, evidencia-
como um contraste para a artificialidade” se um sujeito discursivo que se caracteriza pela
(GUMBRECHT, 1998, p. 23), com isso o identificação com as formações discursivas
tempo não é propulsor de mudanças e relacionadas ao consumo capitalista e ao
“enfraquece o aspecto de ação” necessário à
apoderamento dos recursos tecnológicos. Ao
subjetividade, gerando, então, uma ser assujeitado pela ideologia do consumo e
dessubjetivação. Como observadores do pelo aparato tecnológico, o sujeito virtual é
mundo, os sujeitos perdem sua capacidade de levado a usufruir do espaço midiático e a
aprofundar nas representações, embora estejam consumir a cibercultura. Retomando Balman
disponíveis para serem assimiladas sem (2001) acerca da “modernidade líquida”, o
nenhuma reflexão, contudo são representações autor ressalta que nesta era tudo flui
sem narrativas de desenvolvimento, a rapidamente, por isso nada é duradouro, nem
consequência desse fenômeno é a mesmo os valores, a ideologia, os discursos,
desreferencialização.

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1033
Figura 2: Postagem recorrente nas páginas
tendo em vista a lógica do consumo pessoais do facebook
ininterrupto.
Nas redes sociais o sujeito, de maneira
quase compulsiva, ora se apropria dos
discursos que estão à disposição na mídia, ora
se engaja a um ideal ou a uma discussão
proposta pela rede social, publicando paráfrases
ou comentário sobre temas atuais e gerando
novos discursos. Contudo não esgota jamais a
sua possibilidade de se chegar à satisfação e
logo se identifica com uma outra formação
discursiva, pois no ciberespaço também
prevalece a instantaneidade e a fluidez.
Consequentemente ocorre um cenário
onde predomina a forma- sujeito-fluido, em Fonte: https://www.facebook.com - 15/06/2015
que os discursos vagueiam momentaneamente, Esta postagem, divulgada pela rede
renovando-se, a cada instante, na plataforma social facebook, faz alusão a um comercial
virtual. Na ânsia consumista de estar exibido em horário nobre pelas emissoras de
conectado, o sujeito sente necessidade de TV, durante o mês de junho. A propaganda -
consumir novas formações discursivas e se promovida pela empresa “O boticário”, famosa
identifica com aquelas mais recorrentes nos pela venda de produtos cosméticos no Brasil,
discursos ali inseridos. Evidencia-se abaixo um como perfumes, maquiagem, cremes – refere-se
exemplo desse sujeito-fluido, imerso na ao “dia dos namorados”. O comercial chamou a
cibercultura: atenção por conter, entre as cenas de
Figura 1: Página do facebook namorados, um casal homossexual: um homem
oferece um presente a outro homem, compondo
a imagem com um texto e trilha musical
românticos.
Após a divulgação na TV, a propaganda
foi postada no facebook, compartilhada e
comentada por um grande número de usuários.
No post, o enunciador 1, que se apropriou do
discurso já divulgado na mídia, apoia a atitude
do boticário de manter no ar a publicidade,
mesmo após ter sido criticado por grupos
Fonte: https://www.facebook.com - 15/06/2015 religiosos e tradicionalistas da sociedade
brasileira, pela presença de um casal gay como
personagem da propaganda.

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1034
contexto, a partir da popularização da internet,
A alternância dos sujeitos do discurso
introduzindo outras formas de interação e de
se manifesta, de tal forma que o discurso do
comportamento, por meio das redes sociais.
outro é apropriado pelo sujeito, à medida em
que ele identifica com a formação discursiva de O sujeito pós-moderno adquiriu
repúdio ao preconceito e à homofobia que se atributos e comportamentos, resultantes de
expressa por meio do enunciado: “O novos valores e concepções inseridos por uma
posicionamento da marca foi elegante e não sociedade de consumo e tecnológica que se
retrocedeu diante de tanta intolerância e consolidou pela expansão do capitalismo. A
desrespeito em nome de Deus”. O inserção no ciberespaço e a assimilação da
compartilhamento da postagem pelo locutor 1 cibercultura transformou a vida social. As
obteve uma atitude responsiva de outros pessoas estavam enraizadas em um tempo que
usuários que também o compartilharam. se processava em circunstâncias de
continuidade e historicidade bem demarcadas,
Segundo Bakhtin (1986), o enunciado
prevendo um passado, presente e futuro que se
no contexto da interação é resultado de um
sucediam de maneira linear. Ocupavam um
diálogo social, em que há a manifestação das
espaço limitado, mensurável, ocupado pela
vozes presentes no discurso. Esse discurso é,
presença física. Com a internet e a virtualidade
portanto, exterior ao sujeito. Nessa postagem o
proporcionou
repúdio ao machismo resulta das vozes sociais
que defendem a igualdade de gêneros, a recusa Na esfera cultural, foram derrubadas as
à homofobia, ao preconceito etc. Contudo as certezas, as subjetividades, a solidez, a
referenciações do sujeito virtual não são fixas, individualidade, os limites que delimitavam o
uma vez que este é movido pela tempo e o espaço. Inseriram esse homem em
instantaneidade e pela efemeridade, logo se uma coletividade abstrata, unida por elos
apoia em outras que surgem momentaneamente virtuais e instantâneos, com múltiplas
nas redes sociais. Apoiado em paradigmas referências que se perpetuam nos momentos
estéticos, no sentido da troca contínua de presentes, em vácuos que se preenchem
sensações, o sujeito não se apoia em referências momentaneamente.
fixas, nem em uma moral universalizante. Do ponto de vista da análise do sujeito
Assim, esse sujeito, que se caracteriza virtual, interpelado pela ideologia do consumo,
na pós-modernidade pelo consumo em massa, pelo culto ao presente e pelas relações sócio-
pelo imediatismo, pela valorização do tempo comunicativas nas redes sociais, identifica-se
presente, está disponível nas redes sociais para um sujeito fluido, misto de tecnologia e
se identificar com as múltiplas representações estesia, cujas características determinantes são
fluidamente consumidas e constantemente a “destemporalização, dessubjetivação e
substituídas por outras no ciberespaço. desferencialização.
Considerações finais A proposta desse trabalho em conhecer
esse sujeito não se esgota em uma só pesquisa.
A sociedade pós-moderna inseriu as
Contudo, pode ser a alavanca para novas
novas tecnologias em todas as vertentes
pesquisas, incide como em um ponto de partida
sociais. As mídias virtuais surgiram nesse

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1035
para outras análises que se proponham
LYOTARD, J.-F. O pós-moderno. Trad.
aprofundar na investigação de um sujeito
Ricardo Corrêa Barbosa. Rio de Janeiro de
cingido por uma sociedade sociedade
Janeiro: José Olympio, 3 ed , 1998. 16-26,
complexa, em constante renovação em suas
1985. Cebrap São Paulo
mais variadas vertentes.
LEMOS, A. Cibercultura, tecnologia e vida
social na cultura contemporânea. Porto
REFERÊNCIAS Alegre: Sulina, 2002.
BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de MAINGUENEAU, D. Análise de textos de
Janeiro: Zahar, 2001. comunicação. trad. de Cecília P. de Souza-e-
_______. Identidade. Rio de Janeiro: Zahar, Silva, Décio Rocha. 5. Ed. São Paulo: Cortez,
2004. 2008.

________. O mal estar da pós-modernidade. MARCUSCHI, L. A. O hipertexto como um


Rio de Janeiro: Zahar, 1997. novo espaço de escrita em sala de aula.
Linguagem & Ensino, Pelotas, v. 4, n. 1, p. 79-
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da 111, 2001.
linguagem. Michel Lahud e Yara Frateschi
Vieira (trad.). 3. ed. ,São Paulo: Hucitec, 1986. ORLANDI, E. P. Análise de discurso:
Princípios e procedimentos. ed. Campinas, SP:
CASTELLS, M. A sociedade em rede - A era Pontes, 2003.
da informação: economia, sociedade e cultura.
São Paulo: Paz e Terra, 1999, v.1. PÊCHEUX, M. A Análise de Discurso: três
épocas (1983). In: GADET, F.; HACK, T.
GUMBRECHT, H. U. Modernização dos (org). Por uma análise automática do discurso.
sentidos. Trad. Lawrence Flores Pereira. São Uma introdução à obra de Michel Pêcheux.
Paulo: Editora 3. 1998. Campinas: Ed. Unicamp, 1997.
HARVEY, David. (2007). Condição pós- ______. Semântica e discurso: uma crítica à
moderna: uma pesquisa sobre as origens da afirmação do óbvio. 2 ed. Campinas, SP:
a
mudança cultural. 16 . ed. São Paulo: Edições Editora da UNICAMP, 1995.
Loyola.
VIRILIO, P. O espaço crítico e as perspectivas
JAMESON, F. Pós-Modernidade e Sociedade do tempo real. Rio de Janeiro: Editora 34,
de Consumo. Novos Estudos, 12, p.16- 1993.
26.junho1985. Disponível em
http//scribd.com/doc/53755636/Fredric –Pós-
Modernidade-e Sociedade-de-consumo.
Acessado em julho de 2014.
LEMOS, A. Cibercultura, tecnologia e vida
social na cultura contemporânea. Porto
Alegre: Sulina, 2002.

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EM TEMPOS DE SELFIE... RETRATOS PARA A
CONSTRUÇÃO DO SUJEITO CELEBRIDADE NA MÍDIA

Francisco Vieira da SILVA; Regina BARACUHY


Universidade Federal da Paraíba (UFPB)
franciscovieirariacho@hotmail.com; mrbaracuhy@hotmail.com

Resumo: Nossa pesquisa de doutorado, ainda em fase de desenvolvimento, trata de


analisar os discursos que circulam na mídia, mais precisamente no site Ego, a respeito da
vida íntima do sujeito celebridade. Amparados nos pressupostos teóricos da Análise do
Discurso, a partir de um diálogo entre as ressonâncias de Michel Foucault e Michel
Pêcheux, objetivamos examinar os modos através do qual os discursos do/no site Ego
espetacularizam a intimidade do sujeito celebridade. Este artigo constitui um recorte de
um tópico de nossa pesquisa, na qual discutiremos a emergência da selfie como um
espaço de visibilidade, a partir do qual as subjetividades contemporâneas são
construídas, mais especialmente a constituição discursiva do sujeito celebridade.
Palavras-chave: análise do discurso; intimidade; selfie; celebridade; mídia.

com o sufixo ie.2Em linhas gerais, essa palavra


Considerações iniciais
significa uma fotografia que alguém de tira de
Em novembro de 2013, diversos si mesmo, por meio de determinados
veículos midiáticos noticiaram que o respeitado dispositivos tecnológicos como smartphones e
dicionário Oxford, o mais extenso da língua webcams, e depois posta numa rede social.
inglesa, havia incorporado mais um novo Tendo em vista que os dicionários estão
verbete: a palavra selfie1 – formada a partir da intrinsecamente relacionados aos usos que
junção do vocábulo self (eu, a própria pessoa)

2
Para se ter uma ideia da dimensão que esse
termo abarca, se considerarmos o prazo curto em que ele
1
Dentre os vários sítios eletrônicos que começou a aparecer na mídia, uma pesquisa com o
divulgaram esse fato, ver, por exemplo: vocábulo selfie, nos mecanismos de busca do Google,
http://veja.abril.com.br/noticia/vida-digital/selfie-e-nova- gerou, em agosto de 2014, mais de sessenta e três
maneira-de-expressao-e-autopromocao. Acesso em 11. milhões de resultados.
dez. 2013.

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1037
fazemos da língua, já que se voltam para a Assim, notícias como Jovem viciado em selfies
catalogação e o minucioso exame do léxico, tentou se matar por não conseguir a ‘selfie
essa inserção de um novo vocábulo parece-nos perfeita’3, Jovem de 16 anos tem morte
sintomática para pensarmos sobre algumas cerebral após fazer selfie e cair de uma altura
questões que margeiam a produção de de 20 m de altura4, Obama participa de ‘selfie’
discursos sobre si na mídia. Além disso, não no velório de Nelson Mandela5 e Selfie pós-
deixamos de atentar para o fato de o dicionário sexo é a nova moda de exibição6, dentre outras
constituir-se uma °política de regulação das alardeiam para um quadro no qual ser visto é
línguas”, conforme registra Auroux (1992), o um aspecto tão preponderante que acaba por
que nos autoriza pensar a inscrição desse sobrepujar a própria vida do sujeito e solapar
vocábulo como uma estratégia de saber em situações ritualísticas. Além disso, a selfie
torno da língua, calcado, principalmente, em permeia situações antes reservadas à esfera
condições históricas e sociais circunscritas. íntima, tal como atesta a prática da selfie pós-
sexo no título da notícia anteriormente
Imersos imaginariamente na pretensa
expresso.
univocidade do sentido que o dicionário evoca,
é preciso problematizar as condições de A guisa de exemplificação, podemos
possibilidade responsáveis pela emergência citar a série fotográfica intitulada Technically
desse vocábulo como um acontecimento Intimate, do artista Evan Baden. As fotos
discursivo, como “a palavra do ano”. Isso selfies, a partir de um dado enquadramento,
demanda traçarmos um trajeto a partir do qual permitem-nos ter a sensação de estar espiando
poderemos vislumbrar o funcionamento
discursivo da selfie na mídia, de modo a
constituir todo um cenário que se engata às
inflexões de uma formação histórica marcada
sobremaneira pelo paradigma do espetáculo.
Nesse aspecto, é relevante considerar
uma variedade de discursos emergentes da
mídia digital, que sinalizam para o 3
Disponível em:
entroncamento da selfie com determinadas <http://canaltech.com.br/noticia/saude/Jovem-viciado-
situações insólitas e comportamentos em-selfies-tentou-se-matar-por-nao-conseguir-a-selfie-
obsessivos, os quais fornecem indícios do que perfeita/>. Acesso em 26. jun. 2014.
4
Disponível em:
estamos nos tornando uma cultura do <http://tnh1.ne10.uol.com.br/noticia/mundo/2014/06/14/
exibicionismo; noutras palavras, esses fatos 302433/jovem-de-16-anos-tem-morte-cerebral-apos-
denunciam os modos através dos quais as fazer-selfie-a-20m-de-altura>. Acesso em: 26. jun. 2014.
5
subjetividades contemporâneas são delineadas. Disponível em:
<http://oglobo.globo.com/blogs/pagenotfound/posts/201
3/12/10/obama-participa-de-selfie-no-funeral-de-nelson-
mandela-517733.asp>. Acesso em 21. jun. 2014.
6
Disponível em:
<http://www.tecmundo.com.br/instagram/53547--selfie-
pos-sexo-e-a-nova-forma-de-autoexposicao.htm>.
Acesso em: 13. jun. 2014.

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1038
através da fechadura.7 Tem-se, em tais fotos, isso é que a atual publicização de fotografias,
uma certa crítica aos resquícios de intimidade as quais expõem momentos importantes da
de quem, de fato, clama por ser visto. A vida dos sujeitos, como as travessuras da
intimidade, nesse caso, é perfomatizada, infância, as aventuras da adolescência, ou ainda
mediante uma remissão a um dado de desejo de aspectos estritamente relacionados à
invasão, mais precisamente da criação de uma intimidade, como o suposto término de uma
cenografia íntima, a ser burlada pelo sujeito relação sexual, dentre outras, congrega-se a
que observa a série fotográfica. uma mutação na ordem do dizível que embasa
a emergência desses discursos nos dias de hoje.
1. Algumas palavras sobre o fenômeno da
selfie Refletindo sobre a fotografia, Sontag
A atualidade do fenômeno da selfie (2006) afirma que um de seus primeiros usos
obriga-nos a pensar historicamente na relação envolvia os ritos familiares, coadunando,
do sujeito com a fotografia, no transcorrer do assim, com o posicionamento de Perrot (2010),
tempo. Nessa direção, urge argumentar que a anteriormente citado. Aquela autora compara
fotografia insere-se, desde sua invenção no que “durante um siglo al menos, la fotografía
século XIX, como uma via de acesso à de bodas há formado parte de la ceremonia
rememoração, de maneira diametralmente tanto como las fórmulas verbales escritas”
distinta da foto digital, marcada sobremaneira (SONTAG, 2006, p.22). Tal associação
pela obsolescência e rápida descartabilidade, permite-nos asseverar que a foto assume um
conforme delata uma das epígrafes desta seção. lugar de destaque na vida privada do sujeito, a
partir do instante no qual é preciso ser visto,
No caso das fotografias de família, por registrando determinados momentos para a
exemplo, de acordo com a perspectiva posteridade. Após a popularização das câmeras,
defendida por Perrot (2010, p.195): “[...] os retratos de viagem proliferam-se nessa
preservam instantes. [...] De outro lado, cadeia imagética que emoldura a subjetividade
sucedem-se no álbum em séries que permitem do sujeito que se fotografa. Com o
perceber o decurso do tempo, a evolução da desenvolvimento das tecnologias digitais, o ato
criança que cresce, a família que se perpetua de fotografar-se ganhou uma dimensão
por meio de casamentos, nascimentos e estrondosa, prioritariamente em função das
batismos.” O que queremos argumentar com câmeras embutidas em aparelhos de telefonia
móvel e das diversas técnicas de edição e
manipulação de imagem nelas presentes. Junte
a essa aparelhagem tecnológica a possibilidade
de exibir essas fotos de maneira indefinida na
web e temos uma epidemia febril e coletiva,
7
Disponível em:
<https://aoquadrado.catracalivre.com.br/dia-a-dia/serie-
fotografica-mostra-bastidores-de-selfies-erotica-como-se-
observadas-por-um-buraco-de-
fechadura/?utm_source=FB_dicadigital&utm_medium=s
eriefotoseroticasfechadura_24jul15&utm_campaign=mid
iassociais>. Acesso em: 27. jul. 2015.

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1039
para a qual o registro imagético da fotografia é filtros, de enquadres, de inúmeros recursos
item indispensável para o reconhecimento no técnicos de manipulação.10 Consoante
olhar do outro.8; em síntese, “[...] qualquer um acrescenta Zielinski (2013), devido à espantosa
pode fotografar, a qualquer momento” (CRUZ redução do tempo entre a tomada da foto e sua
& ARAÚJO, 2013, p.268). reprodução, todos podem ver imediatamente
qual era a sua aparência há apenas alguns
Depreendemos, com isso, que o sujeito
segundos e, com isso, preparar-se para a foto
da atualidade mantém uma relação umbilical
posterior. Além disso, conforme lembra
com as tecnologias portáteis, o que explica o
Eugenio (2006), a “boa foto” é a que mimetiza
uso exacerbado da parafernália eletrônica quase
a fluidez identitária pleiteada pelos que nela
como uma extensão dos membros, conforme
figuram.
vaticinava Marshal Mcluhan nos anos de 1960.
Ao aludirmos à foto digital, é premente atentar 2. A selfie e a constituição de si
para o fato de essas fotografias estarem A pose estática da foto analógica abre
destituídas de toda uma aura que atrelava a espaço para o retrato descontraído de hoje. Já
prática do fotografar-se a uma certa não temos mais o olhar meticuloso do fotógrafo
imutabilidade, pois repete “mecanicamente o de outrora tomando uma certa distância do
que nunca mais poderá repetir-se objeto fotografado, senão sermos fotógrafos de
existencialmente” (BARTHES, 1984, p.13). nós mesmos e decidirmos como devemos ser
Esse ineditismo estável da fotografia,9 ao nosso
vistos.
ver, precisa ser revisto frente à quantidade
significativa de fotos tiradas pelo sujeito. Nesse A foto selfie pode ser concebida como
ínterim, a fotografia postada numa rede social um espaço heterotópico no qual as
dificilmente foi a primeira a aparecer na subjetividades contemporâneas são construídas,
câmera, pois muitas outras são deletadas ou numa relação que não remete a um trabalho do
mesmo editadas, a partir da utilização de sujeito consigo mesmo para transformar-se
(FOUCAULT, [1981] 2010), mas sobretudo a
uma exposição exonerada de uma prática em

8
Estima-se que no ano de 2012 foram
produzidas cerca de trezentos e oitenta bilhões de
10
fotografias. Fonte: <http://papodehomem.com.br/todo- Faz-se necessário lembrar, amparando-se em
mundo-tira-foto-igual-no-instagram/>. Acesso em: 28. Foucault ([1975b] 2006c), que práticas semelhantes à
jun. 2014. manipulação das imagens no seio das tecnologias digitais
9
Isso não implica atestar a falta de subsistem na pintura fotogênica, típica da segunda
regularidades na selfie ou noutras fotografias postadas na metade do século XIX. Através de uma série de técnicas,
web, principalmente no Instagram. Pelo contrário, há que visavam imbricar a pintura e a fotografia, há a
verdadeiros modismos em torno de determinadas poses proposição de novas relações entre ambas. Nas palavras
que dão a ver certas partes do corpo como os pés e as de Foucault ([1975b] 2006c, p.353), tem-se “uma
mãos, ou mesmo paisagens paradisíacas como o pôr do abertura da fotografia pela pintura que convoca e faz
sol. transitar por ela imagens ilimitadas”.

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1040
Figura 2. Selfie de Fiorella Mattheis
que se deveria olhar para si mesmo, “volver
para si os olhos, jamais perder-se de vista, ter-
se sempre sobre os olhos” (FOUCAULT,
[1982a] 2006b, p.267), presente no ascetismo
dos antigos e dos cristãos. Difícil precisar se
essa exposição está atrelada a uma conduta
ética e moral a partir da qual o sujeito acederia
a uma verdade sobre si mesmo. O máximo que
se pode entrever são alguns indícios que nos
permitem conjecturar que o sujeito inscreve-se
discursivamente nos dizeres produzidos em
relação às fotografias de si, tangenciando-se
subjetivamente com elas, delineando uma
espécie de escrita de si, nos termos de Foucault Figura 3. Selfie de Veridiana Freitas
([1983] 1992), conforme destacaremos a
seguir.
3. Selfies do sujeito celebridade na mídia
Pretendemos entrever, a partir de uma
memória imagética, determinadas práticas que
antecedem a fotografia de si, principalmente se
levarmos em consideração a ligação entre a
selfie e o espelho, as quais nos permitem
introduzir a discussão sobre a exibição de si no
paradigma da foto numa linha que enreda a teia
discursiva a que o sujeito celebridade está
Num primeiro momento, pode parecer
aninhado. Analisemos, pois, a série enunciativa
insano dispor numa sequência duas fotografias
formada a partir das imagens a seguir:
de belas mulheres contemporâneas
Figura 1. A madrasta e o espelho acompanhadas de uma imagem que nos reporta
à bruxa das histórias infantis, notadamente à
madrasta da Branca de Neve, em frente ao
espelho. Por outro lado, quando associamos
essas imagens num domínio de memória, tal
como preconiza Courtine (2011), agenciam-se
determinados sentidos que se entrelaçam e dão
a ver sujeitos que se relacionam com o espelho,
em diferentes conjunturas temporais e
espaciais.
Historicamente, o espelho liga-se a um
desejo do sujeito com nuances narcisísticas,

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1041
haja vista, por exemplo, a megalomania da desejo. Nessa via, é pertinente atentarmos para
madrasta de Branca de Neve em ser a mulher uma rede de discursos que irão sugerir para o
mais bela de todo o reino. Numa última fato de o espelho refletir aquilo que o sujeito
instância, o espelho remete-nos à vaidade, ao insiste em desterrar. Vêm à tona, então, os
olhar hedonista, a uma construção imagético- discursos de combate aos transtornos
imaginária de si, a uma ânsia em ter uma beleza alimentares, como anorexia e bulimia, em sua
insuperável, reconhecida e, sobretudo, grande maioria, baseados no saber médico, para
verbalizada pelo outro – no caso, o espelho os quais o espelho constitui o elemento que irá
(WITZEL, 2011). Nesse ínterim, o espelho evidenciar ou reacender os sintomas dessas
constitui um mecanismo a partir do qual o patologias.
sujeito joga com os espaços, com as dimensões Ao realocarmos nosso olhar sobre o
corporais. fenômeno da selfie, ancoramo-nos nessas
De acordo com Foucault ([1984] 2006a, particularidades anteriormente descritas em
p.415), o espelho pode ser considerado uma torno da imbricação do sujeito com o espelho,
heterotopia, na medida em que “é a partir do entendido aqui como um campo de
espelho que eu me descubro ausente no lugar visibilidade. Ademais, não nos parece fortuita a
em que estou porque me vejo lá longe”. Dessa recorrência da foto selfie em espaços como
maneira, o espelho engendra deslocamentos do quartos, closet e banheiros, o que vem
ponto de vista espacial, pois recria outros corroborar nossas constatações iniciais a
espaços, os quais são indispensáveis para a respeito da acentuada exposição da intimidade
constituição da subjetividade do sujeito na no interior de certas práticas discursivas e não-
relação consigo mesmo e com o seu corpo. discursivas. Nesse ínterim, o espaço em que o
Seguindo nessa linha argumentativa, fazemos sujeito fotografa-se revela determinadas
referência à psicanálise de orientação posturas típicas de um dado momento histórico,
lacaniana, segundo a qual o espelho funciona cujos saberes apontam para o ato de mostrar-se,
como uma alegoria para esclarecer a construção para o ser visto.
psíquica do eu. Para Lacan, a criança descobre Algumas regularidades enunciativas, do
no espelho uma espécie de unidade imaginária ponto de vista da imagem, são percebíveis na
de um corpo que, na realidade, são apenas foto selfie, denotando práticas que inscrevem o
sensações múltiplas e dispersas (NASIO, sujeito na sua vinculação com as tecnologias.
1993). A ilusão de inteireza do eu, nessa Se o enunciado sempre representa uma emissão
perspectiva, é de substancial importância no de singularidades, de pontos singulares que se
processo de construção da identidade. distribuem num espaço correspondente
Entendemos, portanto, que o espelho (DELEUZE, 2005), flagramos no enunciado
aparece numa série heterogênea de imagético da selfie uma dada regularidade, qual
posicionamentos, mas uma regularidade seja: a posição estável com que o sujeito exibe
desponta nesse fio discursivo: o espelho como a câmera. Tal peculiaridade tem sido uma
um mecanismo a partir do qual o sujeito volve constante nesse tipo de foto, de maneira a
um olhar para si, numa ligação indissolúvel denotar uma espécie de metalinguagem do ato
com a imagem do corpo, atravessada pelo fotográfico (“a foto da foto”), ao mesmo tempo

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1042
em que assinala uma relação de dependência construção do sujeito celebridade na mídia,
desse sujeito com os dispositivos tecnológicos, levando em consideração o contínuo desvelar
os quais são inalienáveis no processo de da intimidade desse sujeito. Aqui remetemos à
exibição de si, pensando aqui nas curvas de constatação de Sibilia (2008) acerca das
visibilidade teorizadas por Deleuze (2005). (ex)intimidades em tempos de hiperexposição,
Esses dispositivos, por sua vez, inserem os na medida em que o sujeito celebridade,
sujeitos que o utilizam num campo de fabricado e mantido pelo dispositivo midiático,
visibilidade, a partir do qual eles são dados a necessita continuamente encenar, a partir dos
ver. discursos sincréticos da/na web, facetas de uma
intimidade que se faz pública.
É imperioso mencionar o nó incestuoso
da selfie com o discurso da corpolatria (ver, Convém pensarmos nos
principalmente, a figura 2). Com efeito, muitas desdobramentos que o fenômeno da selfie
das selfies que viram notícia apontam para suscita nos diversos setores da sociedade o que
corpos sarados, destituídos de quaisquer inclui, por exemplo, as relações interpessoais,
referências à gordura, envoltos pelo apelo ao enredadas pela visibilidade, tão característica
fitness. Para tanto, tem sido cada vez mais dos dias de hoje. Desse modo, o ser visto como
comum nestas notícias, tomando o site Ego condição indispensável para a existência do
como objeto de estudo, a utilização de termos sujeito, de que falava Debord (1997), já nos
específicos relacionados ao corpo considerado anos de 1960, parece-nos cada vez mais atual.
em forma, tais como: “gominhos”, “abdômen Nesse sentido, a invisibilidade, para muitos
trincado”, “sequinho(a)”, “veias saltadas”, entre sujeitos, atraídos pelo fragor do espetáculo,
outros. Os sujeitos que ostentam tais corpos seduzidos pelas vitrines midiáticas, constitui
podem eventualmente tornar-se celebridades da uma ameaça, um espectro do qual é preciso
web, cujo sucesso faz com que migrem para fugir.
outros holofotes da mídia, vide as páginas das
revistas de fitness, por exemplo. Voltando o
foco para a selfie, acreditamos que ela Referências
materializa o olhar do sujeito sobre si, sobre o
seu corpo, não prescindindo do olhar de AUROUX, S. A revolução tecnológica da
outrem, pois este é de essencial relevância na gramatização. Trad. Eni Pulcinelli Orlandi.
lógica que rege o paradigma da visibilidade. Campinas: Editora da Unicamp, 1992.
Nas palavras de Sontag (2003), a foto é como BARTHES, R. A câmera clara: notas sobre a
uma máxima, um provérbio, uma citação, tendo fotografia. Trad. Júlio Castañon Guimarães.
em vista que “oferece um modo rápido de Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
apreender algo e uma forma compacta de
COURTINE, J.J. Discurso e imagens: para uma
memorizá-lo” (p.23).
arqueologia do imaginário. In: PIOVEZANI,
4. Considerações finais C.; CURCINO, L.; SARGENTINI, V.
Discurso, semiologia e história. São Carlos:
Neste texto, discutimos a emergência da Claraluz, 2011. p. 145-162.
selfie como um espaço de visibilidade para a

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1043
2010. (Coleção Ditos e Escritos, v.VI). p.348-
CRUZ, N. V.; ARAÚJO, C. L. Transcendendo
351.
o cotidiano: uma análise de fotografias de
famílias produzidas pela Cia de Fotos no NASIO, J. D. Cinco lições sobre a teoria de
Flickr, MATRIZes, São Paulo, ano 7, n. 2, p.65- Jacques Lacan. Trad. Vera Ribeiro. Rio de
80, jul./dez. 2013. Disponível em: Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993.
<http://www.matrizes.usp.br/index.php/matrize PERROT, M. Os ritos da vida privada
s/article/view/295>. Acesso em: 04. jun. 2014. burguesa. In: _____. História da vida privada,
DEBORD, G. A sociedade do espetáculo. Trad. 4: da Revolução Francesa à Primeira Guerra.
Estela S. Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, Trad. Denise Bottmann & Bernardo Joffily.
1997. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p.193-
262.
DELEUZE, G. Foucault. Trad. Claudia S.
Martins. São Paulo: Brasiliense, 2005. SIBILIA, P. O show do eu: a intimidade como
espetáculo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
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2008.
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M.; ______. (Orgs.). Culturas jovens: novos SONTAG, S. Diante da dor dos outros. Trad.
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Ed., 2006. p.158-176. Letras, 2003.
FOUCAULT, M. ______. A escrita de si. ______. Sobre la fotografía. Trad. Carlos
In:_____. O que é um autor? Lisboa: Gardini. Cidade do México: Santinllana
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______. Outros espaços. In: ______. Estética: WITZEL, D. G. Práticas discursivas, redes de
literatura, música e cinema. Trad. Autran memória e identidades do feminino: entre
Dourado Barbosa. Rio de Janeiro Forense princesas, bruxas e lobos no universo
Universitária, 2006a. (Coleção Ditos e Escritos, publicitário. 2011. 217 f. Tese (Doutorado) –
v. III). p.264-298. Programa de Pós-Gradução em Linguística e
Língua Portuguesa, Universidade Estadual
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Paulista Júlio de Mesquita Filho, Araraquara,
Márcio Alves da Fonseca & Salma Tannus
2011.
Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2006b.
ZIELINSKI, S. Ser offline e existir online,
______. A pintura fotogênica. In: ______.
Contemporânea, Salvador, v. 11, p.34-48,
Estética: literatura, música e cinema. Trad.
jan./abril 2013. Disponível em:
Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro
<http://www.portalseer.ufba.br/index.php/conte
Forense Universitária, 2006c. (Coleção Ditos e
mporaneaposcom/article/view/8491/6097>.
Escritos, v. III). p.346-356.
Acesso em: 05. jan. 2015.
______. Da amizade como modo de vida. In:
Repensar a política. Trad. Ana Lucia P.
Pessoa. Rio de Janeiro: Forense Universitária,

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1044
A RELAÇÃO ENTRE MÍDIA E POLÍTICA NO BRASIL

Luciana Gomes da SILVA; Marlon Leal RODRIGUES


Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS)
lucianagds@gmail.com

Resumo: Em 2014, ano de eleições presidenciais, o discurso da mídia brasileira dava


enfoque às denúncias de corrupção na Petrobras, sobretudo as revistas semanais de
informações que caracterizam-se por fazer uma leitura mais detalhada da notícia. Deste
modo, este artigo pretende analisar os discursos das capas de Época (edição 850), Veja
(edição 2390) e Carta Capital (edição 817) para compreender suas posições ideológicas.
A escolha das publicações justifica-se devido Época e Veja pertencerem a importantes
conglomerados de mídia e Carta Capital ser uma revista independente. Os resultados
apontam que, as revistas constroem a notícia de acordo com suas posições ideológicas.
Palavras-chave: discurso midiático; mídia impressa; análise do discurso.

Desta forma, este trabalho pretende


Introdução
analisar os discursos das capas de Época
No Brasil, a convergência tecnológica (edição 850), Veja (edição 2390) e Carta
no setor de comunicação, tendência no cenário Capital (edição 817) para assim compreender
mundial, assume características e sentidos suas posições ideológicas.
particulares, devido ao histórico domínio do
A escolha destas publicações justifica-
setor por grupos familiares e pelas elites
se devido Época e Veja pertencerem a
políticas.
importantes conglomerados de mídia,
Porém, a concentração do controle das Organizações Globo e Grupo Abril,
comunicações ultrapassa a dimensão respectivamente, e Carta Capital ser uma
econômica, pois as sociedades contemporâneas revista mais independente.
dependem da mídia para a construção do
O primeiro tópico tratará do cenário da
conhecimento público.
mídia no Brasil e suas principais
Em 2014, ano de eleições presidenciais, características. No segundo será abordada a
o discurso da mídia brasileira, sobretudo das relação entre mídia e política no Brasil e suas
revistas semanais de informações, foi, consequências. No terceiro será exposto o
essencialmente, sobre as denúncias de aspecto metodológico. E o quarto e último item
corrupção na Petrobras. apresenta os resultados das análises.

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1045
reprodução dos oligopólios da propriedade
1. O cenário da mídia no Brasil
cruzada em nível local e regional (LIMA, 2006,
A convergência tecnológica no setor de p. 98-103).
comunicação, tendência no mundo globalizado,
De acordo com Lima (2006, p. 104), há
tem como consequência a concentração da
50 anos as Constituições brasileiras têm
propriedade, que provoca a consolidação de um
restringindo a propriedade de empresas
reduzido número de megaempresas mundiais
jornalísticas e de radiodifusão por parte de
do setor, os chamados Global Players. No
pessoas jurídicas, sociedades anônimas por
Brasil, este cenário assume características
ações e estrangeiros, com o intuito de
particulares, devido ao histórico domínio do
identificar com facilidade os proprietários e
setor por poucos grupos familiares e pelas
impedir o controle do setor pelo capital
elites políticas locais. Além disso, por meio da
estrangeiro. Porém, o autor aponta como uma
expansão vertical e cruzada da propriedade, as
das consequências negativas da norma o
Organizações Globo vêm mantendo uma
controle do setor por pessoas físicas, neste
posição hegemônica de um único grupo
caso, por empresas familiares.
nacional (LIMA, 2006, p. 93).
Ademais, segundo Lima (2006, p. 108)
Segundo o autor (2006, p. 101), a
é comum políticos, ou suas famílias, estarem
concentração vertical integra as diferentes
no comando de grupos de mídia em diferentes
etapas da cadeia de produção. É o caso das
regiões do Brasil.
Organizações Globo, em que se tem um único
grupo controlando as diferentes etapas da De acordo com o autor (2006, p. 106),
cadeia de produção e distribuição de programas antes da Constituição de 1988 o presidente da
de televisão até sua veiculação, República era o responsável por decidir sobre
comercialização e distribuição. Fazem parte da as concessões de serviços de radiodifusão no
empresa gravadora, rede de TV, jornais, Brasil. Assim, durante anos, essa prerrogativa
revistas e emissoras de rádio. legal foi usada como “moeda política”.
Consequentemente, o vínculo entre as
Os principais conglomerados de
comunicações e as elites políticas,
comunicação do Brasil se consolidam por meio
principalmente em nível regional, deixou raízes
da propriedade cruzada na área do mass media.
profundas no país.
Neste tipo de propriedade, um mesmo grupo
integra diferentes tipos de mídia do setor de Deste modo, apesar da regulamentação,
comunicação, como: TV aberta, TV por é comum a estreita relação entre mídia e
assinatura, rádio, revistas, jornais, telefonia e política no Brasil. Expressões como
provedores de internet. “coronelismo eletrônico” e “cartórios
eletrônicos” ainda são empregadas para
Existem, ainda, dois tipos de
caracterizar a tentativa de políticos de exercer,
concentração da propriedade no país: a
por meio da mídia que possuem o controle do
concentração horizontal, que é a
eleitorado (LIMA, 2006, p. 107).
monopolização que se produz dentro de uma
mesma área do setor, como a televisão – paga
ou aberta, e o monopólio em cruz, que é a

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1046
o processo democrático. As distorções de
2. A relação entre mídia e política poder provocadas pelo desequilíbrio
histórico entre os sistemas privado, público
Nas últimas décadas, a política vem e estatal (de radiodifusão), pela
sofrendo influência da globalização e do modo concentração da propriedade em boa parte
de vida capitalista, “centrado no indivíduo provocada pela ausência de normas que
aquisitivo, na hipervalorização do mercado e impeçam a propriedade cruzada – e pela
do econômico, no cidadão como consumidor” vinculação dos grandes grupos de mídia
(LIMA, 2006, p. 63). Já a mídia, do Brasil e do com lideranças políticas regionais e locais
mundo, vivencia um momento singular, com o são alguns dos problemas que impedem a
democratização de nossa mídia. E sem ela
avanço de novas tecnologias.
não haverá diversidade e pluralidade de
Segundo Rubim, “a comunicação informações, vale dizer, opinião pública
sempre foi percebida e utilizada como mero autônoma e, portanto, democracia plena
instrumento do campo político”. Para (2006, p. 63).
exemplificar a afirmação, o autor cita os jornais
do período da Revolução Francesa e os 3. Abordagem teórica e metodológica
pasquins políticos lançados no Brasil, no século
Este artigo busca analisar dos discursos
XIX. Pois, “tais publicações caracterizam-se
das capas de Veja, Época e Carta Capital à luz
(...) como extensões da (dinâmica) política e
da Análise do Discurso Pecheutiana (ADP). E
somente nessa operação (instumentalizada)
para uma analise nessa perspectiva faz-se
podem ser analiticamente elucidadas”
necessário observar a inserção social e política
(RUBIM, 2000, p. 19).
do sujeito que está elaborando o discurso, bem
Portanto, a ligação entre comunicação e como as intenções e os resultados pretendidos.
política não é recente, não sendo, também, uma
Considerando o contexto social em que
peculiaridade da comunicação midiatizada.
o sujeito do discurso atua. Deste modo, ao
Rubim (2000, p. 19) retoma a Grécia Clássica
analisar o discurso jornalístico é importante
para lembrar a origem dessa relação. Pois, é em
refletir sobre seu efeito de objetividade,
Atenas, do século 5 a.C., que surge, ao mesmo
construído principalmente devido à escrita
tempo, a reflexão sobre política, retórica e
jornalística em terceira pessoa. Esse texto
prática política, uma vez que, a obra Política,
característico contribui para manter o mito da
de Aristóteles, inaugura a reflexão sobre esta
imparcialidade jornalística, a que os sujeitos
nova área do saber. Já a retórica, inventada
leitores são submetidos. Porém, ao analisar
pelos sofistas, surge como técnica de
enunciados produzidos pelo discurso
convencimento pelo acionamento de
jornalístico é possível apreender as posições
procedimentos discursivos.
ideológicas dos veículos de comunicação,
A comunicação midiatizada assume difundidas de forma sutil.
algumas especificidades ao relacionar-se com a
Os discursos de capa das revistas
política, como ressalta Lima:
semanais de informações, frequentemente,
(...) o que realmente está em jogo quando tratam de temas políticos, econômicos e
se trata das relações entre mídia e política é sociais. E para fazer com que estes discursos

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1047
circulem com credibilidade, as publicações dão crença de que jornais, revistas entre outros são
espaço a especialistas, entrevistam meros transmissores de informação.
personalidades com know how e utilizam No decorrer de 2014, Veja evidenciou
dados institucionais e estatísticos. sua posição ideológica em relação à Dilma
Além disso, apesar deste artigo não Rousseff e ao seu partido, o PT, através de seus
fazer a analise imagética das capas, é discursos de capa. As reportagens mais
importante destacar que o recurso visual nesse recorrentes traziam “denúncias” contra pessoas
tipo de mídia ultrapassa o caráter meramente ligadas ao PT e ressaltavam os problemas que a
ilustrativo. As imagens ajudam a construir os presidenta enfrentava naquele momento.
efeitos de sentido.do texto. Figura 1. Edição 2390 de Veja
4. Os discursos por trás das notícias
Os indivíduos “acreditam” nos discursos
que circulam nos veículos de comunicação,
pois transmitem credibilidade. E, assim, o
discurso midiático continua sendo fonte de
informação e difusor de ideologias. Para a
Análise do Discurso, o “lugar” de onde o
sujeito fala constitui o que diz. Portanto, o
discurso pode adquirir significado e
importância distintos. Isso ocorre devido a
relação de forças, que é outro fator de
funcionamento das condições de produção.
De acordo com Orlandi:

(...) a sociedade é construída por relações A capa da edição 2390 de Veja destaca
hierárquicas, ou relações de força, o depoimento do Ex-diretor da Petrobras, Paulo
sustentadas no poder desses diferentes Roberto Costa, sobre o esquema de corrupção
lugares, que se fazem valer na na estatal.
“comunicação” (2013, p. 39).
(01) Exclusivo
A autora explica (2013, p.40) ainda que, (02) Escândalo da Petrobras
“esses mecanismos de funcionamento do
(03) “O delator fala”
discurso repousam (...) nas formações
imaginárias”. (04) O nome dos políticos envolvidos no
megaesquema de corrupção: governadores,
Portanto, a credibilidade que os senadores, deputados federais e um ministro
veículos de comunicação ainda exerce na
maioria dos indivíduos de uma sociedade (05) O dinheiro sustentava a base aliada do PT no
Congresso
apoia-se nesse conceito, principalmente, devido
ao mito da imparcialidade jornalística. E da

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1048
(06) Houve propina na compra da refinaria de
No enunciado (08), a palavra
Pasadena
“depoimento” causa um efeito de sentido de
imparcialidade e “exclusivo” o de prestígio
No jornalismo, utiliza-se o enunciado para a publicação.
(01) quando determinado veículo de
comunicação dispõe de informação privilegiada O enunciado (09) causa dois efeitos de
e inédita. É o chamado “furo de reportagem”. O sentido: o de traição por parte do ex-diretor e
termo é comum no jornalismo investigativo. O de que há algo por trás da delação.
enunciado (01), também, agrega credibilidade Figura 2. Edição 850 de Época
para a publicação já que a palavra “exclusivo”
significa único, pessoal e privado.
O enunciado (03) causa um efeito de
imparcialidade, pois quem está “falando” é o
delator e não Veja. Distanciando, assim, seu
discurso da notícia.
Porém, nos enunciados (04), (05) e (06),
que são trechos do depoimento, a posição
ideológica da revista, contrária ao governo
petista, torna-se evidente. Tendo em vista que,
utiliza apenas os trechos que reforçam sua
posição ideológica.
Assim como Veja, Época mostra-se
contrária à reeleição de Dilma Rousseff através
dos discursos de capa, durante o ano de 2014. Durante o período de campanha para o
Relaciona a crise na Petrobras ao seu governo segundo turno das eleições presidenciais de
ou à sua figura. 2014, a revista Carta Capital publicou um
editorial, assinado por Mino Carta, declarando
Na edição 850, o enunciado (07) retoma apoio à candidata do PT a reeleição, Dilma
a memória discursiva do Mensalão e relaciona- Rousseff.
o à corrupção na Petrobras, aproximando os
dois escândalos e seus envolvidos. Como se
fosse uma repetição, uma prática comum.

(07) A Petrobras e o Mensalão


(08) Um depoimento exclusivo revela o elo entre os
dois esquemas
(09) Por que o ex-diretor Paulo Roberto Costa
decidiu abrir o jogo

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1049
Figura 3. Edição 817 da Carta Capital
isenta de Carta Capital, na verdade, é um
discurso de apoio ao Governo Dilma.
Diferente de Veja e Época, a revista
transmite de forma positiva o julgamento dos
envolvidos na corrupção da Petrobras.
4. Considerações finais / Conclusões
Tanto a política quanto as eleições
passaram por mudanças significativas quando
inscritas na nova sociabilidade. Especialmente
devido ao deslocamento da rua para a televisão.
É nesse novo espaço que organizam-se debates
entre os candidatos e que são transmitidas as
propagandas eleitorais.
Nos veículos analisados neste artigo
Na edição 817, a capa de Carta Capital (Veja, Época e Carta Capital) é possível
aborda a corrupção na Petrobras, porém de identificar discursos “disfarçados” de notícias.
forma mais isenta. Porém, cabe ressaltar que as revistas semanais
de informação “assumidamente” não são
(10) Petrobras
imparciais, pois sua principal característica é
(11) O escândalo e a eleição fazer uma leitura dos acontecimentos da
(12) O vazamento seletivo da delação premiada do semana.
ex-diretor da estatal presta-se ao jogo político
Portanto, pode-se concluir que, os
rasteiro
discursos que circulam nestes veículos
(13) Mas o Ministério Público e a Justiça tentam evidenciam suas posições ideológicas em
proteger a operação e transformá-la em um marco à relação a cada candidato e/ou partido, no
corrupção período das eleições presidenciais de 2014.

Os enunciados (10) e (11) relacionam as


eleições presidenciais de 2014 às denúncias de Referências
corrupção envolvendo a alta cúpula da LIMA, V. A. de. Mídia: Crise política e poder
Petrobras e alguns políticos. E assim, questiona no Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu
se o escândalo irá influenciar o resultado das Abramo, 2006.
eleições. A palavra “escândalo” usada nesse
contexto causa um efeito de sentido mais ORLANDI, E. Análise de Discurso: princípios
“leve” que a palavra corrupção. e procedimentos. Campinas, SP: Pontes
Editores, 2013.
Porém, ao analisar os enunciados (12) e
(13) observa-se que a aparente postura mais RUBIM, A. A. C. Comunicação e política. São
Paulo: Hacker Editores, 2000.

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1050
NOMES E APELIDOS: A SUBMISSÃO DA MULHER AO
DISCURSO MIDIÁTICO DA MODA

Melissa Magalhães dos Santos SILVA;


Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR)
melissamagalhaes.ss@gmail.com

Resumo: Este capítulo trata de assuntos como a submissão da mulher aos discursos
midiáticos da moda. Onde iremos observar como objeto de estudo, que no caso são as
mulheres participantes do programa Esquadrão da Moda tem apelidos atribuídos à elas
para que sejam ridicularizadas e queiram se reescriturar para voltarem a se sentir como
sujeito.
Palavras-chave: escravidão; submissão; moda; nomeação; apelidos.

pessoas e não por iniciativa própria. No


Introdução
programa os apresentadores avaliam o estilo de
Com as constantes mudanças na moda cada participante, tentando ajudá-los a
como sendo algo passageiro e que gira em melhorar sua aparência.
torno da aparência, e com a migração dos
Durante esses programas, as
programas de moda para os canais abertos
participantes, em sua maioria recebem apelidos
através da realização de versões para o público
e predicações, desse modo nos perguntamos:
brasileiro, vemos grandes repercussões
esses apelidos produzem que sentidos para as
acontecerem. Esses programas são do estilo
participantes do programa? Qual é (são) o(s)
reality show1, voltados para situações em que
propósito(s) de se nomear os participantes com
as pessoas têm que se enquadrar em padrões da
esses apelidos? Pretendemos analisar esses
moda. Os programas são apresentados por ex-
apelidos para entender o porquê de um grupo
modelos e consultores de moda, em que as
de pessoas precisar nomear alguém com tais
pessoas, muitas vezes, são inscritas por
apelidos. Isso serviria para mostrar que a moda
familiares, mas, também podem se inscrever
está acima do estilo que aquela pessoa escolheu
voluntariamente, embora a maioria das vezes
e que faz com que ela se sinta bem se vestindo
os participantes sejam inscritos por outras
daquela maneira (para mostrar que a pessoa
seria mais feliz se aderisse ao que está
1
(Ing. / riáliti-shôu) SM. Telev. Programa de televisão que vendendo nas vitrines). Nomear uma pessoa
procura simular a realidade do cotidiano de um grupo de com apelidos pode fazer com que ela se sinta
pessoas previamente selecionado, permitindo ao espectador
acompanhar o desenrolar das situações decorrentes do tão deslocada do resto da sociedade a ponto de
convívio entre elas.

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1051
querer mudar o seu jeito de se vestir somente acontecimento de linguagem se faz pelo
para não ser mais significada por aquele funcionamento da língua.” (2001,p. 11).
apelido, submetendo-se então à moda, ou seja, A enunciação foi tratada pelos
escravizando-se. E os programas de TV têm um linguistas Émile Benveniste e Oswald Ducrot
papel fundamental, exercem forte influência na que a definem de formas diferentes. A partir da
formação de ideias, no estilo de vida das maneira como esses linguistas definem a
pessoas.
enunciação, Guimarães(1995) propõe um
1. Desenvolvimento do artigo conceito de enunciação estabelecendo um
diálogo com a Analise de Discurso francesa ao
Temos por objetivo com este projeto
relacionar o conceito de interdiscurso com a
estudar como as nomeações na forma de
enunciação:
“apelidos”, e as predicações produzem sentidos
para as mulheres em um programa televisivo de A enunciação é deste modo, um
moda intitulado “Esquadrão da Moda”. Essa acontecimento de linguagem perpassado
análise proposta, tomando como objeto as pelo interdiscurso, que se dá como espaço
nomeações em programas sobre moda, de memória no acontecimento. É um
possibilitará que observemos como se da acontecimento que se dá por que a língua
submissão à moda através da maneira como as funciona ao ser afetada pelo interdiscurso.
mulheres são designadas por apelidos. É, portanto, quando o indivíduo se encontra
interpelado como sujeito e se vê como
Buscaremos também observar como os identidade que a língua se põe em
nomes são dados a essas mulheres fazendo com funcionamento. (Guimarães, 1995, p. 70).
que suas identidades sejam alteradas por meio
de uma imagem negativa que lhes é atribuída Posteriormente, Guimarães vai
através dos apelidos empregados, como o especificar a enunciação como um
sujeito-participante passa a se sentir mal e a acontecimento de linguagem em que
realmente acreditar que há algo errado na
maneira como ela se veste, pois precisa seguir ...não é o sujeito que temporaliza, é o
os padrões impostos pelas outras pessoas, pelo acontecimento. O sujeito não é assim a
programa, e pela ideia de consumismo, de que origem do tempo da linguagem. O sujeito é
elas precisam sempre estar comprando coisas tomado na temporalidade do
para se manterem bem vestidas. acontecimento. (GUIMARÃES, 2002, p.
12). enuncia-se enquanto ser afetado pelo
2. Abordagem teórica e metodológica simbólico e num mundo vivido através do
Para a realização desta pesquisa em que simbólico (Guimarães, 2002, p.11).
temos como objetivo compreender como e
quais os sentidos se constituem para as Para Guimarães, o acontecimento:
mulheres em um programa de moda a partir de
nomeações (apelidos) que são atribuídas a elas, ...é acontecimento enquanto diferença na
o conceito de enunciação, tal como propõe a sua própria ordem. E o que caracteriza a
Semântica do Acontecimento, é fundamental. diferença é que o acontecimento não é um
fato no tempo. Ou seja, não é um fato novo
Segundo Guimarães, “A enunciação, enquanto

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1052
enquanto distindo de qualquer outro Consideraremos cada episódio do
ocorrido antes no tempo. O que caracteriza
programa televisivo a ser analisado como sendo
como diferença é que o acontecimento
temporaliza. Ele não está num presente de um texto, isto é, uma unidade de sentidos, tal
um antes e de um depois no tempo. como define Guimarães (2011). Deste modo,
(Guimarães, 2002, p.11-12). analisaremos a transcrição das falas do
programa.
A língua e o sujeito são dois elementos Outro conceito importante para o nosso
importantes para a constituição da enunciação, trabalho e que será desenvolvido ao longo da
mas, também, temos um terceiro elemento que pesquisa é o conceito de cena enunciativa. Nela
complementa ambos, elemento este que é a temos uma caracterização de que aquele que
temporalidade. fala ou aquele para quem se fala não são
pessoas, mas, uma “configuração específica do
Para Benveniste (1988), o tempo na
agenciamento enunciativo para aquele que fala”
enunciação é centrado no sujeito e não o
(Guimarães, 2002, p. 23) , ou seja, eles são
contrário, porém, de acordo com Guimarães,
“lugares constituídos pelos dizeres e não
podemos perceber que quem é tomado pela
pessoas donas de seu dizer” (Guimarães, 2002,
temporalidade é o próprio sujeito para se
página 23).
constituir como tal.
Dois outros conceitos importantes são a
Nos episódios do programa de moda, as
nomeação e a designação uma vez que
nomeações das mulheres através de apelidos
analisaremos os apelidos como nomes e estes
atribuem sentidos a elas. Desse modo, os
designam as mulheres, atribuem sentidos a elas.
sentidos desses nomes se constituem no
acontecimento, através do recorte de um A nomeação é o funcionamento semântico
memorável no presente do acontecimento que pelo qual algo recebe um nome. A
projeta um futuro, isto é, o que se pode designação é o que se poderia chamar de
interpretar sobre sujeito- mulher no episódio do significação de um nome, mas não
programa de moda. enquanto algo abstrato. Seria a significação
enquanto algo próprio das relações de
É importante destacar que, dentro desta linguagem, mas enquanto uma relação
perspectiva: lingüística (simbólica) remetida ao real,
exposta ao real, ou seja, enquanto uma
Os falantes não são os indivíduos, as relação tomada na história. (Guimarães,
pessoas que falam esta ou aquela língua. Os 2002, p. 09)
falantes são estas pessoas enquanto
determinadas pelas línguas que falam.
Neste sentido falantes não são as pessoas O modo de nomear é também um
na atividade físico-fisiólogica, ou psíquica, elemento que constitui a designação, ou seja,
de falar. São sujeitos da língua enquanto quando se dá um nome a alguém ou algo você
constituídos por este espaço de línguas e esta à atribuindo sentidos,designando aquela
falantes que chamo de espaço de pessoa ou objeto. Sendo assim, observamos
enunciação. (Guimarães, 2005, p. 18) uma relação entre as nomeações dadas
enunciações de maneira que essas nomeações

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1053
designam as mulheres nomeadas. A designação recortado? Partiremos, então, das reflexões de
é definida. Assim, precisamos analisar como Guimarães (2002) sobre o nome próprio para
ele está relacionado com outros nomes analisarmos os apelidos.
presentes no texto e funcionando dentro da Se pensarmos no funcionamento
textualidade. morfossintático dos nomes próprios iremos ver
Guimarães (2002) realiza um estudo dos que eles são uma construção tal que um
nomes próprios de pessoa e, a partir desse sobrenome determina um nome, de forma que o
estudo, buscaremos realizar uma reflexão sobre funcionamento do nome próprio de pessoa é
os apelidos enquanto nomeações dadas às construído por uma determinação.
pessoas, mas que, em certa medida se diferem Dessa forma podemos pensar que ao
do funcionamento dos nomes próprios.
enunciar um apelido para o participante do
Segundo o autor a designação de nome próprio programa, o apresentador esta repercutindo
nos leva a pensar que o nome está relacionado todo um espaço de memória histórico dentro do
a uma coisa, isto é, que se teria um “nome interdiscurso para conseguir o efeito de sentido
único para um objeto único” (Guimarães, 2002, que ele quer.
p. 33), Porém, sua análise mostra que os nomes
próprios são uma construção, que têm uma Cada episódio será tratado como um
história e que identificam o sujeito: texto diferente no qual analisaremos na cena
enunciativa, os sentidos que são definidos para
Dar um nome próprio é falar segundo a as participantes. A cena enunciativa “é assim
deontologia do espaço enunciativo de uma um espaço particularizado por uma deontologia
língua. Para o nosso caso, só o locutor-pai específica de distribuição dos lugares de
pode nomear, sendo-lhe negado o direito de enunciação no acontecimento.” (Guimarães,
não nomear, de não dizer (instalar) o nome
2002, p. 23).
do filho. E esta nomeação se dá segundo as
regularidades dos procedimentos de Para isso utilizaremos como
determinação dos nomes de pessoa. É nesta instrumento de análise, inicialmente, a noção
configuração própria do espaço enunciativo de reescrituração.
de uma língua, o Português por exemplo,
que o nome próprio de pessoa tem sua A reescrituração é uma operação que
história, pela qual ele ao se construir e significa, na temporalidade do
reconstruir enunciativamente trabalha a acontecimento, o seu presente. A
identificação do indivíduo que se nomeia, reescrituração é a pontuação constante de
sem que ele próprio tenha escolhido seu uma duração temporal daquilo que ocorre.
nome. (Guimarães, 2002, p. 41-42) E ao reescriturar, ao fazer interpretar algo
como diferente de si, este procedimento
Mas, e no caso dos apelidos que serão atribui (predica) algo ao reescriturado
objeto de nossa análise? Eles são nomes, (Guimarães, 2002, p. 28).
porém, atribuem outros sentidos ao sujeito
nomeado. Como isso se dá no funcionamento A análise das reescriturações leva a ao
enunciativo? Quais são esses sentidos domínio semântico de determinação (DSD) do
produzidos, considerando o memorável que é nome analisado e que representa o que a

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1054
palavra designa no aconteceimento você só precisa achar que você ou a pessoa a
enunciativo. qual você esta inscrevendo não se vestem bem.
Depois de inscrito dois consultores de moda
Com isso, esta pesquisa tem como
Isabela Fiorentino e Arlindo Grund vão
objetivo analisar a designação de mulheres
encontrar a pessoa que foi escolhida para
através deapelidos que supomos estarem
participar do programa e dão a ela um cartão
significando-as como fora dos padrões da
vale-presente no valor de dez mil reais para que
moda, tomando como referencial teórico a
ela compre roupas novas junto com a presença
Semântica do Acontecimento. Para tanto,
dos consultores durante o programa.
selecionamos alguns episódios de um programa
semanal intitulado “Esquadrão da moda” no Em primeiro lugar, contextualizaremos
qual mulheres ganham apelidos antes de o episódio a ser analisado. Nesse episódio
passarem por uma transformação em seu transcrito abaixo a locutora começa o programa
“visual”, tais como “perua”, “seguidora do falando de diversas participantes que já
Darth Vader”, entre outras. passaram pela ‘transformação’, diversas
participantes que foram classificadas como fora
Nesses episódios esses apelidos pelos
do contexto de moda definido pelos
quais as mulheres são nomeadas serão
apresentadores e que precisariam de
observados através da análise do procedimento
modificações em seus estilos, e conseguiram se
de reescrituração nas cenas enunciativas
tornar pessoas que se vestem “melhor”. Logo
(Guimarães, 2002) buscando-se compreender, a
no inicio do programa a locutora atribui um
partir dos domínios semânticos de
apelido a participante, que passa a ser chamada
determinação, quais sentidos são atribuídos a
de cafoninha, e em seguida são apresentados
elas.
motivos pelos quais a moça se enquadra em
Esperamos, com isso, compreender a uma situação cafona.
especificidade do funcionamento dos apelidos
Em seguida, depois da contextualização
como uma forma de nomeação distinta dos
identificaremos os apelidos e suas
nomes próprios e sua importância para a
determinações.Vejamos o recorte:
submissão do sujeito a moda, sua identificação
a certos padrões de beleza. Recorte dos primeiros “00:01min. até
4. Resultados Esperados. 01:26min.”
[Parte do programa apresentado em cores,
Nosso corpus será constituído por com infantilização ao aparecer a
alguns recortes feitos das transcrições dos personagem do episódio em questão.]
episódios selecionados do programa Locutora: Pelo esquadrão da moda já
“Esquadrão da moda” exibido no canal aberto passaram vários tipos de cafona. A
de televisão SBT aos sábados à noite. dançarina periguete, a Lady Gaga cor-
de-rosa. A importadora do
Trata-se de um programa de moda Cafonaquistão. A doutora onça. A
apresentado pelo canal aberto SBT, em que seguidora do Darth Vader e muitas,
você pode se inscrever ou inscrever outras muitas outras donas de guarda-roupas
pessoas para participarem, para se inscrever destrambelhados. E para dar continuidade

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1055
nessa dura jornada do esquadrão da moda o
capítulo de hoje vai contar a história de roupas de uma cor só, sentidos rememorado
uma boneca. pela nomeação “Lady Gaga cor-de- rosa”.
Era uma vez... uma linda bonequinha CA- Também são rememeorados outros sentidos
FO-NI-NHA, mas, ainda assim lindinha, com a nomeação “Lady Gaga” que é o nome
lindinha! Só que de um dia para o outro, artístico de uma famosa cantora da atualidade,
sem mais nem menos, ela começou a ter conhecida por vestir figurinos diferentes do que
atitudes estranhas. é considerado “normal” pela moda.
Desse modo, vemos como os apelidos
Nesse primeiro recorte, identificamos rememoram certos sentidos e, assim, designam
inúmeros apelidos atribuídos as outras a mulher nomeada atribuindo-lhe sentidos
participantes do programa: dançarina pejorativos.
periguete; Lady Gaga cor-de-rosa.,
importadora do Cafonaquistão, doutora onça,
seguidora do Darth Vader. Essas nomeações Referências
são reescrituradas por totalização pela
reescritura “donas de guarda-roupas BENVENISTE, É. Da Subjetividade da
destrambelhados”. Essse funcionamento pode Linguagem. In: BENVENISTE, É. Problemas
ser represerntado no seguinte DSD: de Linguística Geral. 5. ed. Campinas, SP:
Pontes, 1988. p. 284-293.
Lady Gaga cor-de-rosa., BECHARA, E. Minidicionário da Língua
dançarina periguete; Portuguesa: Atualizado pelo novo Acordo
Donas de guarda-roupas Ortográfico. Editora Nova Fronteira, 2009, p.
destrambelhados ˧2 756
importadora do Cafonaquistão,
doutora onça, GUIMARÃES, E. O que é Texto. Análise de
seguidora do Darth Vader Texto. Campinas: Editora RG, 2011, p. 19-29
______. Semântica do acontecimento – Um
A nomeação “donas de guarda-roupas Estudo Enunciativo da Designação. SP: Pontes,
destrambelhados” determina os sentidos das 2002;
outras nomeações ao reescrevê-las por ______. Os Limites do Sentido – Um estudo
totalização, significando os sujeitos que Histórico e Enunciativo da Linguagem. SP:
possuem roupas “desorganizadas”. Ou seja, Pontes, 1995.
esses sujeitos mulheres são signficadas como
pessoas que possuem roupas estralhas, que não ______. Enunciação e História. In: E.
formam um conjunto de roupas “harmônico”. Guimarães (org.). História e Sentido na
Linguagem. Campinas: Pontes, 1989, p. 71-79.
Alem disso, as proprias nomeações
reescrituradas remememoram sentidos que LIPOVETSKY, G. O Império do Efêmero – A
destacam alguma característica considerada de moda e seus sentidos nas sociedades modernas.
“mau-gosto”, como por exemplo, vestir-se com São Paulo, Companhia das Letras, 2009. P.238-
278.
2
Esse símbolo significa “dertermina”

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1056
LLAGOSTERA, A. Monografia: normalização
do documento eletrônico. Campinas, 2008.
Página 40-42.

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1057
O PROFESSOR (DES)VALORIZADO: ATRAVESSAMENTOS
MÚLTIPLOS NOS PROCESSOS DE OBJETIVAÇÃO DO
SUJEITO

Odália Bispo de Souza e SILVA


Universidade Federal de Goiás (UFG)
odaliabispo@yahoo.com.br

Resumo: De acordo com a perspectiva teórica na qual se filia este estudo – a Análise do
Discurso de linha francesa –, o discurso não existe sem uma história que o constitui. É
nesse viés histórico que nossa proposta objetiva explorar, em meio ao trajeto temático, os
jogos de memória que são postos em funcionamento na construção de imagens sobre o
professor brasileiro. A repercussão de discursos em torno da (des)valorização do
professor, a proliferação de campanhas nos veículos midiáticos incentivando a busca pela
profissionalização docente, especialmente nos primeiros anos desta década, incita-nos a
pensar, nos moldes foucaultinanos, na singularidade da emergência desses enunciados.
Nesse sentido, analisaremos fragmentos discursivos partindo do princípio de que surgem
apoiados em práticas e saberes que possuem estreita relação com outros temas, imbuídos
de toda historicidade que os constitui.
Palavras-chave: professor; discurso; história.

as inquietações norteadoras dos nossos


Introdução
movimentos aqui: quais são as condições de
Neste estudo, partimos do princípio de existência a que certas configurações sobre o
que existem relações complexas que sustentam professor estão submetidas? Como surgem
o entrecruzamento entre linguagem, sociedade determinados discursos para responder a que
e história nos processos de semantização do urgência histórica? De que maneira os saberes,
sujeito professor. Em cada época, conforme as tomados como efeitos de verdade e
sociedades e os sujeitos que as constituem, os provenientes dos mais variados campos, são
ditos sobre professor se (re)configuram. Nossa acionados e negociados para a construção de
proposta investigativa centra-se no sentidos para esse sujeito?
reconhecimento de que as condições de
Em vista disso, abordaremos
emergência dos enunciados são determinadas
enunciados sobre o professor brasileiro a partir
por fatores de ordem histórica e pelas funções
de alguns trajetos temáticos. Nosso movimento
que exercem no interior de práticas, discursivas
e não discursivas. É nesse ínterim que emergem está alicerçado na intenção de, na esteira de
Michel Foucault, pensar o momento

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1058
contemporâneo, considerando-se que dele (des)valorizado. Enfatizaremos os elementos
nasce a possibilidade de interrogarmos sobre a nos quais se apoiam determinadas
atualidade. Não estando interessado em materialidades discursivas que enunciam,
apresentar uma visão geral e sistemática da muitas vezes de forma apelativa, o convite à
sociedade e da história, nem fornecer receitas valorização da profissão.
ou teorias da totalidade social, as indagações de De acordo com a perspectiva teórica na
Foucault, ao contrário, voltam-se para os
qual se filia nossa pesquisa – a Análise do
sujeitos, para os saberes e para o poder, Discurso de linha francesa – o discurso não
tomando-os como investimentos históricos. existe sem uma história que o constitui. É nesse
Com isso, Foucault está empenhado em traçar viés histórico que nossa proposta objetiva
um diagnóstico do presente. Isto é, o olhar de explorar, em meio ao trajeto temático, os jogos
Foucault manteve-se, sempre, atento aos de memória que são postos em funcionamento
elementos responsáveis pela constituição da na construção de imagens sobre o professor
subjetividade moderna, procurando, conforme brasileiro. A repercussão de discursos em torno
destaca Deleuze (2005, p. 123), “qual é a nossa da (des)valorização do professor, a proliferação
luz e qual é a nossa ‘verdade’ hoje? Que de campanhas incentivando a busca pela
poderes é preciso enfrentar e quais são as profissionalização docente, especialmente nos
nossas possiblidades de resistência hoje [...]”? primeiros anos desta década, nos incita a
Através das histórias epistemológicas contadas pensar, nos moldes foucaultinanos, na
por Foucault, entendemos que as revoluções da singularidade da emergência desses
modernidade possuem estreita relação com a enunciados. Na nossa imersão teórico-analítica,
mudança do objeto. Logo, é interrogando procuraremos investigar de que maneira o tema
acerca da natureza dos novos objetos que da valorização do professor – que embora tenha
nascem ou são construídos que podemos emergido também em outras épocas, é tomado
compreender a nossa época. aqui como um discurso contemporâneo – se
Embora não seja considerado por relaciona com outros temas como o professor
muitos representantes da crítica como transgressor, o professor vocacionado, o
historiador, as palavras de Hayden White professor despreparado, o professor motivado,
acerca do que nomeia como o fardo do o professor combatente, que mesmo sendo
historiador parecem-nos bastante apropriadas também contemporâneos, alcançam, conforme
para descrever a tarefa que Foucault procura o arquivo que recortamos para este estudo,
desenvolver em sua obra: “o historiador pontos de culminância em diferentes épocas.
contemporâneo precisa estabelecer o valor do Desse modo, ainda que nosso foco não seja
estudo do passado, não como um fim em si, exatamente o de encontrar soluções para os
mas como um meio de fornecer perspectivas problemas de nossa época, acreditamos que
sobre o presente que contribuam para a solução reconhecer a existência de determinadas
dos problemas peculiares ao nosso tempo”. práticas discursivas e não discursivas no
(WHITE, 1994, p. 53). Nesse sentido, o recorte contexto social, político e histórico dos últimos
temático em torno do qual iniciaremos nosso anos conduz-nos a um olhar aguçado para
percurso analítico consiste na expressão tão nossa realidade e oferece-nos subsídios para
contemporânea quanto recorrente dO professor compreendermos os processos de significação,

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1059
especialmente, da profissão professor, estrutura essa matéria de outro modo: não os
considerando-se as formas como isso séculos, os povos ou as civilizações, mas as
comparece objetivado nos discursos. práticas”. (VEYNE, 2008, p. 347). É necessário
reconhecer que, em cada época, emerge um
1. Discurso, Sujeito e História
conjunto de práticas que engendra o que deve
Tomamos, neste estudo, os discursos ser considerado como verdadeiro, como bom,
como o elemento que faz funcionar os como adequado.
enunciados e as relações que lhes são inerentes.
São essas práticas que, por intermédio
Concordamos com o posicionamento de
de enunciados efetivamente ditos e das
Fischer (2001, p. 199) para quem, analisar os
estratégias de funcionamento discursivos,
discursos numa perspectiva foucaultina,
constituem o saber de uma época e criam os
consiste em “dar conta de relações históricas,
objetos. Há, para Foucault (2008a, p. 47), uma
de práticas muito concretas, que estão vivas nos
superfície de emergência dos objetos a qual
discursos”, sendo, então, fundamental
deve ser demarcada para que se possa
considerar o caráter de dispersão e de
estabelecer fronteiras sociais que sugiram sua
regularidade dos enunciados. Em sua análise
emergência, sua transformação e, inclusive, seu
arqueológica, Foucault põe em evidência traços
desaparecimento. Visto dessa forma, a
discursivos que evidenciam a possibilidade de
possibilidade de se apontar novas condições
reconstituição de regras que determinam os
para o estatuto dos objetos resulta do fato de
limites, os modos de dizer, bem como de
que eles só podem aparecer nas práticas
conservar, de reativar e de se apropriar dos
discursivas que os criam, os enformam e os
sentidos, conforme o momento histórico de
transformam. É por intermédio dessas práticas
irrupção dos enunciados. Desse modo, existem,
que se torna possível delimitar os domínios de
“na densidade das práticas discursivas, sistemas
que instauram os enunciados como sua diferenciação e definir o que o torna, de
certa forma, nomeável e descritível. Torna-se,
acontecimentos (tendo suas condições e seu
pois, necessário perseguir a movimentação dos
domínio de aparecimento) e coisas
enunciados, conforme suas regras de
(compreendendo sua possibilidade e campo de
aparecimento, nas iniciativas linguísticas
utilização)”. (FOUCAULT, 2008a, p. 146).
praticadas por sujeitos historicamente
A proposta de Michel Foucault a partir determinados. A posição que adotamos para
da ideia de que os enunciados são nossa análise toma, de um modo amplo e geral,
performances verbais em função enunciativa é como objeto o professor que ora se caracteriza
que se considere para a análise discursiva, como (des)valorizado, ora como transgressor,
conforme destaca Gregolin (2006, p. 95), a ora como combatente, etc. É, pois, o
noção de prática que permite ao analista dinamismo das práticas discursivas e a
perseguir “a movimentação dos enunciados, singularidade dos acontecimentos discursivos
sua movência nos atos praticados por sujeito que colocam em funcionamento, a partir de
historicamente situados”. Paul Veyne, em variadas e incontáveis relações, as regras de
Foucault Revoluciona a História, afirma que a formação dos objetos.
história da qual trata Foucault “não deixa de
lado a sociedade, a economia, etc., mas

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1060
Sustemos uma noção de arquivo e de A perspectiva foucaultiana de práticas
memória que não diz respeito apenas a acervos discursivas não está desvinculada da noção de
institucionais grandiosos ou a profusos saber que põe em jogo um conjunto de
conjuntos de dados guardiões das grandes elementos inerentes às possibilidades de
histórias. Concebemos o arquivo como “a lei emergência e de delimitação dos discursos.
do que pode ser dito, o sistema que rege o Colocando-nos na condição de analista e
aparecimento dos enunciados como munindo-nos desse aparato teórico que nos
acontecimentos singulares”. (FOUCAULT, permite pensar o caráter interdiscursivo dos
2008a, p. 147). A memória, por sua vez, enunciados, que nos autoriza a fixar um olhar
consiste no lugar de funcionamento da história, descritivo para eles, situando-os entre a
uma vez que, conforme destaca Fernandes estrutura e o acontecimento, é que propomos
(2012, p. 96), “cabe a ela explicitar as uma reflexão em torno da emergência e da
condições, o lugar e o momento em que proliferação de alguns ditos que nos convocam
discursos foram produzidos e rearticulados a à valorização do professor. Nosso
outros discursos no presente, além de projetá- posicionamento ancora-se na percepção de que
los para o futuro”. uma análise discursiva se dá sobre a
materialidade de sentidos, considerando-se que
Milanez e Santos (2010, p. 48), numa
os discursos não podem escapar das fronteiras
perspectiva foucaultiana, afirmam que a ligação
históricas que condicionam sua emergência.
que se estabelece entre história e a vida está “na
Partimos, pois, do princípio de que, conforme
prática da vida, nas práticas discursivas, que
Sargentine (2010, p. 102), existe uma “fresta
nos possibilitam estar com os pés no presente e
por onde podemos olhar sua singularidade a
olhar para a exterioridade, para o passado e o
cada tempo histórico e a necessidade de partir
infinito”. Nossa tarefa constitui-se, nesse
dos detalhes de práticas discursivas e não de
sentido, em reconhecer que o discurso possui
universais”.
como prerrogativa central colocar em
funcionamento os enunciados e as relações; a 2. Análise e Discussão
análise de discursividades deve sustentar-se por Iniciaremos nosso trajeto de análise a
esse olhar que objetiva dar conta das relações partir do que comparece materializado nas
históricas, das práticas que estão vivas nos metas propostas pelo Plano Nacional de
discursos. Para Foucault (2008a, p. 54/55), Educação – doravante PNE – elaborado para
[...] o discurso não é uma estreita superfície atender a demandas de mudanças na educação
de contato, ou de confronto, entre uma brasileira no período de 2011-2020 e que foi
realidade e uma língua, o intricamento sancionado em 25 de junho de 2014. O texto
entre um léxico e uma experiência; [...] propõe 20 metas que evidenciam a atenção
analisando os próprios discursos, vemos se dispensada à importância de o governo colocar
desfazerem os laços aparentemente tão a Educação como foco da gestão. Interessa-nos,
fortes entre as palavras e as coisas, e especialmente, as metas 15, 16, 17 e 18 que são
destacar-se um conjunto de regras, próprias dedicadas à valorização dos profissionais da
da prática discursiva.

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1061
sistemas de ensino e, para o plano de
educação1 que, conforme o teor do documento, Carreira dos (as) profissionais da educação
contribui, significativamente, para a melhoria básica pública, tomar como referência o
na qualidade da educação em todos os níveis. piso salarial nacional profissional, definido
em lei federal, nos termos do inciso VIII do
Meta 15: garantir, em regime de art. 206 da Constituição Federal.
colaboração entre a União, os Estados, o (PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. LEI Nº
Distrito Federal e os Municípios, no prazo 13.005, DE 25 JUNHO DE 2014).
de 1 (um) ano de vigência deste PNE,
política nacional de formação dos
profissionais da educação de que tratam os A evidência da temática da valorização
incisos I, II e III do caput do art. 61 da Lei dos profissionais da educação, nessas metas,
no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, ocorre por meio da descrição de ações voltadas
assegurado que todos os professores e as para a melhoria das condições de trabalho
professoras da educação básica possuam desses profissionais: garantia de formação
formação específica de nível superior, inicial e continuada, condições salariais dignas,
obtida em curso de licenciatura na área de mudanças nas estruturas das secretarias de
conhecimento em que atuam. educação, implementação de planos de carreira.
Meta 16: formar, em nível de pós- Consideramos fundamental salientar que a
graduação, 50% (cinquenta por cento) dos
escolha, para nossas análises, desse texto, que
professores da educação básica, até o
tem caráter documental, resulta da nossa
último ano de vigência deste PNE, e
garantir a todos (as) os (as) profissionais da compreensão de que seu processo de
educação básica formação continuada em constituição possui estreita relação com dizeres
sua área de atuação, considerando as e práticas inerentes ao momento histórico-
necessidades, demandas e político que estamos vivenciando.
contextualizações dos sistemas de ensino.
A própria construção do referido
Meta 17: valorizar os (as) profissionais do
magistério das redes públicas de educação
documento só pode ser viabilizada a partir de
básica de forma a equiparar seu rendimento intenso diálogo com as mais variadas esferas
médio ao dos (as) demais profissionais com sociais. As pesquisadoras Márcia Ângela da S.
escolaridade equivalente, até o final do Aguiar e Leda Sheibe (2010, p. 79) destacam a
sexto ano de vigência deste PNE. realização de dois eventos mais abrangentes
Meta 18: assegurar, no prazo de 2 (dois) que tiveram como finalidade central buscar a
anos, a existência de planos de Carreira “construção de novas bases para a organização
para os (as) profissionais da educação da educação nacional e para informar o plano
básica e superior pública de todos os nacional de educação [...]: a Conferência
Nacional de Educação Básica (Coneb), em
1
Embora estejamos interessados especificamente nos 2008, e a Conferência Nacional de Educação
processos de significação pelos quais passaram a (Conae), em 2010”. As autoras, em
profissão professor, temos consciência de que, ao tratar consonância com vários outros críticos do
dos “profissionais da educação” o documento faz Plano, evidenciam o fato de que essas
referência a todos os profissionais que estão envolvidos
com o processo educativo que atuam nas instituições e
conferências, que embasaram a criação do PNE
sistemas de ensino: os professores, especialistas e 2011-2020, “tematizaram, de forma expressiva,
funcionários de apoio, técnico administrativos.

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1062
a formação e a valorização dos profissionais da professor, parece-nos que a temática da
educação” (AGUIAR; SHEIBE, 2010, p. 79). valorização do professor surgiu como “um nó
na rede” que adquire relevância em relação a
Obviamente não estamos interessados
outros temas que constituem os processos de
aqui numa discussão que recupere a viabilidade
significação desse profissional: o professor
ou a qualidade das metas propostas pelo PNE;
desqualificado, o professor desmotivado, o
interessa-nos, sobremaneira, uma reflexão, nos
professor transgressor, o professor combatente,
moldes foucaultianos, que contemple o caráter
etc.
de acontecimento que permitiu a emergência
desses enunciados-propostas, em conformidade É nesse sentido que destacamos,
com sua inscrição histórica, social e política parafraseando Gregolin (2007, p. 167), que “a
que envolve, a um só tempo, os sujeitos e as discursividade é um acontecimento” e o
práticas que os engendram. A questão discurso, por sua vez, emerge “no interior de
formulada por Foucault (2008a), indagando uma série de outros discursos, com os quais
acerca da existência de um dado enunciado e estabelece co-relações, deslocamentos,
não outro em seu lugar, norteia, de certo modo, vizinhanças”. Considerando-se as metas 15 e
nosso posicionamento, uma vez que a temática 16, observamos que a ênfase recai sobre o
da valorização docente que, embora tenha sido empenho do governo com a formação dos
suscitada em vários outros momentos da professores da educação básica – seja formação
história da educação brasileira, adquire específica na área em que atuam, seja a
relevância exatamente nessa conjuntura. formação continuada por meio do incentivo à
Compreendemos, pois, que esses enunciados, pós-graduação. Contrariamente a isso, podemos
que compõem o discurso da valorização apontar para a coexistência do tema da
docente tão recorrente nesse início de década, desqualificação do professor tão recorrente, nos
ecoam modos de conceber o professor dias atuais, em pesquisas inerentes ao campo
brasileiro que estão em estreita relação com educacional e na mídia. Nesse sentido, Nilson
outros ditos – e com outras práticas – que, José Machado é categórico:
mesmo atuais, tiveram seus pontos de
culminância em diversos momentos da história Existe um aparente consenso com relação
da sociedade brasileira. ao fato de que a educação brasileira é de
má qualidade. Os mais variados
Acompanhamos, especialmente nesses indicadores [...] parecem tornar tal fato
últimos anos, a proliferação de dizeres que, de indiscutível. [...] Os diagnósticos costumam
algum modo, representam uma imagem, uma ser renitentes: as condições materiais da
identidade muito específica para o professor maior parte das escolas são precárias, a
brasileiro. Foram veiculadas pela mídia formação e a dedicação de muitos
contundentes e polêmicas notícias nas quais o professores deixam a desejar, os
professor ora é tomado como vítima, ora é currículos são inadequados [...] (Grifos
nossos. MACHADO, 2007, p. 277)
constituído como um verdadeiro vilão da
problemática inerente aos pífios índices de
desempenho da educação brasileira. Em meio a As palavras de Machado estão
tantas formas de significar e responsabilizar o relacionadas a afirmações do tipo: “A

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1063
sociedade não pode aceitar a desqualificação
Considerando-se a singularidade dos
dos professores”2, “Espera-se que a educação
enunciados e tendo em vista que eles emergem
no Brasil resolva, sozinha, os problemas sociais
nas mais variadas cenas enunciativas,
do país. No entanto, é preciso primeiro
estabelecendo inúmeras relações, é que estamos
melhorar a formação dos docentes, visto que o
propondo pensar o aspecto discursivo do texto
desenvolvimento dos professores implica no
do PNE, especificamente das metas voltadas
desenvolvimento dos alunos e da escola”3; “O
para a valorização do professor.
desenvolvimento dos professores é uma
Compreendemos, pois, que, ao situarmos esses
precondição para o desenvolvimento da
ditos em determinados campos discursivos,
escola”4. Em perspectiva semelhante à análise
colocando-os em relação com outros, mesmo
de Machado, Azevedo, em Educação Pública:
que de campos distintos, evidenciamos seu
o desafio da qualidade, critica a ideia de que,
caráter de dispersão: buscamos ver o que foi
nas sociedades modernas, o indivíduo tem se
dito, mas também o que foi silenciado e
transformado no homo economics e a escola
esquecido nas relações que constitui as práticas
tem funcionado como o local que responde às
“muito vivas” dos sujeitos.
demandas do mercado econômico, tornando-se
a mercoescola. O autor aponta para o fato de Nessa perspectiva, os enunciados não se
que profissionais das mais variadas áreas, confundem com palavras, frases e proposições.
especificamente no setor econômico, têm Conforme aponta Deleuze (2005, p. 29),
atuado no âmbito educacional como suportes retomando o pensamento foucaultiano, os
técnicos, indicando soluções para os problemas enunciados são formações que somente se
que lhe são inerentes. Segundo o pesquisador, destacam de seu corpus quando os objetos da
proposição, os significados das palavras têm
educadores, dirigentes políticos, mídia e, sua natureza transformada, distribuindo-se,
nos últimos tempos, economistas, dispersando-se na espessura da linguagem. A
empresários, consultores empresariais e palavra do enunciado situa-se, conforme o
técnicos em planejamento têm ocupado boa
próprio Foucault, “no nível do ‘diz-se’”.
parte do espaço dos educadores, emitindo
receitas, soluções técnicas e, não raro, (FOUCAULT, 2008a, p. 138). A temática da
sugerindo a incompetência dos educadores valorização do professor é, pois, depreendida a
para produzir soluções que empolguem a partir de uma dada materialidade – por isso a
qualificação do ensino. (AZEVEDO, 2007, língua é tomada como a possibilidade material
p. 7) de suporte discursivo –, mas sem perder de
vista o fato de que, por intermédio da função
2
Título de reportagem veiculada no blog Palavra da enunciativa, o enunciado, que reside na
Presidenta veiculada em 01/02/2010. Disponível em: exterioridade da linguagem, emerge e se
http://apeoesp.wordpress.com/2010/02/01/a-sociedade- materializa em condições dadas, envolvendo os
nao-pode-aceitar-a-desqualificacao-dos-professores/
3
Notícia disponível em
sujeitos e a história.
http://www.brasilescola.com/educacao/educacao-no- A temática da valorização docente, nas
brasil.htm
4 metas 17 e 18, diz respeito à questão salarial e
Frase que compõe a notícia disponível em
http://www.brasilescola.com/educacao/educacao-no- ao plano de carreira da profissão. Esses
brasil.htm. elementos parecem se configurar, entre as

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1064
queixas dos professores, os de maior destaque: volta” responsáveis por fornecer aos
os salários que recebem não são dignos e a enunciados, conforme a relação que
carreira não possui atrativos, considerando-se estabelecem com outros enunciados e com as
outros profissionais com mesmo nível de especificidades temporais de sua emergência, o
formação. Tendo em vista que estamos caráter de novidade.
tomando os processos de significação do Estamos propondo que a “novidade” no
referido documento, partindo de um olhar que
discurso da valorização do professor possui, na
se desloca para além dos signos e palavras, para atualidade, pontos de articulação com
além da materialidade linguística, remontemos acontecimentos diversos, próprios desse início
a Michel Foucault ao explicar em sua aula de década. Inúmeros eventos que ocorreram na
inaugural do Collége de France, pronunciada contemporaneidade no âmbito educacional,
em 2 de dezembro de 1970, sobre os sobretudo políticos, poderiam ser retomados
procedimentos internos de controle e de aqui, uma vez que representam práticas sociais
delimitação do discurso, especificamente, ao que, sendo discursivas, são também geradoras
tratar do comentário. Para Foucault, de discursos. Destacamos um acontecimento
a repetição indefinida dos comentários é bastante emblemático da luta pela valorização
trabalhada do interior pelo sonho de uma do professor que, por sua relevância midiática,
repetição disfarçada: em seu horizonte não pelos efeitos que provocou, merece, a nosso
há talvez nada além daquilo que já havia ver, ser rememorado. Trata-se do depoimento
em seu ponto de partida, a simples da professora Amanda Gurgel, proferido em
recitação. O comentário conjura o acaso do maio de 2011, durante uma sessão na
discurso, fazendo-lhe sua parte: permite-lhe Assembleia Legislativa do Rio Grande do
dizer algo além do texto mesmo, mas com a Norte, que, defendendo a causa da valorização
condição de que o texto mesmo seja dito e e melhorias salariais para sua classe
de certo modo realizado. [...] O novo não
profissional, tornou-se uma espécie de heroína
está no que é dito, mas no acontecimento
nas redes sociais. Retomaremos, pois, alguns
de sua volta. (FOUCAULT, 2009, p. 25/26)
elementos do pronunciamento de Amanda
Gurgel, buscando ler, no arquivo discursivo
Nessa perspectiva, não importa se há ou que elencamos para nossa análise, indícios do
não um texto fundador. Importa considerar que funcionamento da memória que fazem soar a
os comentários emergem como possiblidade ideologia e a historicidade inerentes aos atos de
de: i. dizer o que estava articulado linguagem.
silenciosamente no texto primeiro; ii. dizer pela
primeira vez aquilo que já havia sido dito; iii. Assim, ao enunciar, a posição-sujeito
repetir aquilo que não havia jamais sido dito. ocupada por Amanda Gurgel é exatamente a de
(FOUCAULT, 2009. p. 25). Assim, o que professora que, colocando em funcionamento
buscamos não é exatamente encontrar o texto uma série de saberes acerca da vivência
primeiro ou o mais importante, mas sim uma cotidiana desse profissional, dá ao seu discurso
interface entre o que é dito e aquilo que faz um caráter de verdade, ressoando como o
com que esse dito pareça sempre novo; discurso mobilizador da valorização do
buscamos recuperar os “acontecimentos de sua profissional docente. Entendemos, numa

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1065
perspectiva foucaultiana, que o sujeito é
A posição de professora, conhecedora
produzido em cada época, em função de
de fato do problema, fez com que o discurso
dispositivos e discursos inerentes àquele
enunciado por Amanda Gurgel tenha se
momento, conforme as determinações próprias
constituído como um acontecimento marcante
às descontinuidades históricas. Para Sousa
e, por conseguinte, alcançado adesão dos
(2013, p. 129), o que é enunciado pertence ao
companheiros de profissão e, sobretudo, o
domínio dos saberes que exige uma ampla
propagado destaque em diversos veículos
capacidade “da qual dependem os sujeitos para
midiáticos. A caráter de verdade do que ela
relacionar enunciados de esferas e momentos
enuncia possui estreita relação com essa
diferentes”. A pesquisadora, problematizando a
posição, uma vez que é a pessoa autorizada,
temática da inovação, propõe uma reflexão em
como é reforçado no seu próprio discurso, a
torno do “lugar ocupado por quem pode falar e
falar dos parcos salários da categoria. São
fazer inovação no país” e aponta como questão-
elementos como esses que constituem os
problema a necessidade de se pensar, numa
processos historicizados de significação da
análise de cunho discursivo, “as condições
profissão professor. Partimos do princípio de
impostas a um sujeito qualquer para que ele
que a materialidade linguística que constitui o
possa introduzir-se, funcionar, servir de nó na
texto das metas 17 e 18 do PNE, se tomada na
rede sistemática do que nos cerca”. (SOUSA,
sua exterioridade, no seu caráter discursivo, só
2013, p. 129/130).
pode comparecer em função dos
Amanda Gurgel inicia seu depoimento acontecimentos e das práticas que, tal como
fazendo referência aos algarismos que esse depoimento da professora Amanda Gurgel,
compõem o seu salário: “um nove, um três e nesse contexto sócio-histórico, fazem ecoar um
um zero que é meu salário base, R$930,00” e, convite à valorização do professor.
em seguida, reforça a posição que ocupa ao
Tendo em vista que os dados por nós
enunciar.
selecionados para análise neste capítulo
Assim minha fala não poderia partir de um coadunam com nossa hipótese de que, nesses
ponto diferente desse, porque só quem está primeiros anos da nossa década, temos
em sala de aula, só quem está pegando três acompanhado a proliferação de discursos que
ônibus por dia pra chegar ao seu local de convocam à valorização do professor,
trabalho, ônibus precário inclusive, é que apresentaremos a seguir um trecho de sentença
pode falar com propriedade sobre isso. proferida pelo juiz Eliezer Siqueira de Sousa
Fora isso qualquer colocação que seja feita Júnior da 1ª Vara Cível e Criminal de Tobias
aqui, qualquer consideração que seja feita Barreto no Estado do Sergipe em um processo
aqui é apenas para mascarar uma verdade,
judicial no qual o autor é um aluno,
que é uma verdade visível a todo mundo,
que é o fato de que em nenhum governo, representado por sua mãe, que processa um
em nenhum governo que nós tivemos no professor por ter-lhe tomado um celular durante
nosso Estado (Rio Grande do Norte), na a aula. De acordo com os autos do processo, o
nossa cidade, no nosso país a educação foi reclamante pede indenização por danos morais
uma prioridade. Em nenhum momento. para “reparar seu sentimento de impotência,
(AMANDA GURGEL, 2011) revolta, além do enorme desgaste físico e

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1066
emocional”. O juiz atesta seu julgamento são o produto da manifestação da consciência
posicionando-se da seguinte maneira: social dos sujeitos e dialogam, discordam,
concordam, expressando as diferentes posições
Assim, diante de todos os elementos ocupadas por aqueles que enunciam, bem como
probatórios colhidos nos presentes autos, a pluralidades dos valores sócio-culturais.
não merece prosperar a pretensão encartada Assim, o sujeito discursivo reproduz, no campo
na inicial: a uma, porque o aparelho celular
linguístico e conforme os vários espaços
foi tomado pela utilização indevida de seu
dono, no caso o Autor; a duas, porque esta histórico-sociais, o conflituoso jogo das
má utilização foi praticada em outros relações que envolvem, a um só tempo, o
momentos, o que é corroborado pelos sujeito e as tensões concernentes à sua vida
depoimentos prestados pelas pessoas social. Visto dessa forma, a partir do discurso
arroladas pelo Requerido, vale dizer, da sentença deferida pelo juiz Eliezer Siqueira
também docentes da escola; a três, porque de Sousa Júnior, podemos apontar elementos
se houve alguma demora na restituição do que indicam o posicionamento de um sujeito
aparelho, a mesma se deveu pela mesma que, ao enunciar, reporta-se a outros ditos, a
demora dos Responsáveis Legais pelo outros lugares enunciativos.
Autor em se apresentarem para receberem
o celular; a quatro, ainda que houvesse Ao afirmar, por exemplo, que “julgar
algum excesso temporal, este não causou procedente esta demanda é desferir uma
nenhum abalo moral ao Autor, pois o bofetada na reserva moral e educacional deste
mesmo não utiliza seu aparelho para país, privilegiando a alienação e a contra-
trabalhar, estudar ou qualquer outra educação” o enunciador evidencia um diálogo
atividade, exceto para mero deleite e lazer, com discursos outros que compactuam com a
o que não caracteriza, a meu sentir, nem
ideia de que é o professor, com ações firmes –
dano moral nem suposto abuso de direito
por parte do Reclamado; e a cinco, porque
não permitindo o uso do celular durante as
julgar procedente esta demanda é aulas –, o responsável por garantir a educação
desferir uma bofetada na reserva moral dos sujeitos e salvarem-lhes da alienação. Os
e educacional deste país, privilegiando a enunciados que constituem a sentença apontam
alienação e a contra-educação, as para um locutor que, não sendo “um adão
novelas, os “realitys shows”, a bíblico” (BAKHTIN, 2000, p. 319), reproduz,
ostentação, o “bullying” intelectivo, o em sintonia, com esse momento histórico e que
ócio improdutivo, enfim, toda a massa faz emergir esse tipo de discurso, enunciados
intelectivamente improdutiva que vem outros que expressam o desprezo pela tão
assolando os lares do país, fazendo às perversa tendência à desvalorização da
vezes de educadores, ensinando falsos
profissão docente.
valores e implodindo a educação
brasileira. (Grifos nossos. SENTENÇA do 3. Considerações Finais
processo nº 201385001520, p. 5)
A partir da descrição dos enunciados,
reiteramos que uma análise situada entre a
Considerando-se a característica descrição e a interpretação deve colocar “as
polifônica dos enunciados, para usarmos uma coisas efetivamente ditas” na condição de
expressão bakhtiniana, as vozes compreendidas “coisas relacionadas”. Nesse sentido, a

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1067
observação daquilo que é dito, tomando-o na
BIZARRO, R.; BRAGA, F. Ser professor em
sua perspectiva discursiva, incita-nos a uma
época de mal-estar docente: que papel para a
mirada para os enunciados sobre o professor
universidade? Revista da Faculdade de Letras –
brasileiro, considerando-se seus aspectos
Língua e Literaturas. II Série, Vol. XXII, Porto,
histórico-sociais. Isso implica uma descrição e
2005, p. 17-27.
análise das práticas discursivas e não
discursivas que, ao mesmo tempo em que se BURKE, P. Abertura: a nova história, seu
ligam, de algum modo, às determinações passado e seu futuro. In: BURKE, P. (org.) A
históricas, as constituem e escrita da História: novas perspectivas. Trad.
(re)distribuem/(re)organizam os saberes que Magda Lopes. São Paulo: UNESP, 1992, p. 7–
objetivam e subjetivam o sujeito professor no 37.
Brasil. CARDOSO, S. H. B. A questão da referência:
Logo, se podemos reconhecer uma das teorias clássicas à dispersão de discursos.
tendência à convocação da valorização docente Campinas, SP: Autores Associados, 2003.
nos mais variados discursos, provenientes das CARVALHO, A. F. de. História e
mais diferentes esferas, é porque encontramos Subjetividade no pensamento de Michel
ecos em práticas muito vivas que circundam o Foucault. 2007. 242 f. Tese (Doutorado) –
universo educacional e fazem emergir Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
significados para o sujeito docente e o trabalho Humanas. Departamento de Filosofia,
por ele desempenhado. A noção de Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.
(des)valorização emerge numa rede de
significados possíveis em que há COURTINE, J-J. Análise do discurso político:
atravessamento inevitável entre campos o discurso comunista endereçado aos cristãos.
semânticos diversos. São Paulo: EDUFSCar, 2009.
FOUCAULT, M. Resposta a uma questão. In:
Ditos e Escritos VI. Tradução Ana Lúcia
Referências Paranhos Pessoa. Organização e seleção de
AGUIAR, M. A. S.; SHEIBE, L. Formação e textos Manoel Barros da Mota. Rio de Janeiro:
Valorização: Desafios para o PNE 2011/2020. Forense Universitária, 2010. p. 3-24.
Revista Retratos da Escola, Brasília, v. 4, n. 6, GUILHAUMOU, J. Linguística e História:
p. 77-90, jan./jun. 2010. Disponível em: percursos analíticos de acontecimentos
<http//www.esforce.org.br> discursivos. Trad. Roberto Leiser Baronas e
AZEVEDO, J. C. de. Educação pública: o Fabio César Montanheiro. São Carlos: Pedro &
desafio da qualidade. João Editores, 2009.
BARONAS, R. L. Análise do Discurso: GUILHAUMOU, J.; MALDIDIER, D. Efeitos
apontamentos para uma história da noção- do arquivo. A análise do discurso no lado da
conceito de formação discursiva. São Carlos: história. In: ORLANDI, E. P. (Org.). Gestos de
Pedro & João Editores, 2007. Leitura. Campinas, SP. Editora da Unicamp,
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Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.
MILANEZ, N.; SANTOS, J. J. Geometria
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Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007
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MILANEZ, N; GASPAR, N. R. (Orgs.).
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SAVIANI, D. Escola e Democracia. 20ª ed.
São Paulo. Cortez Editora/Autores Associados.
1998.

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1069
O DISCURSO PUBLICITÁRIO E A IMAGEM FEMININA NO
DIA INTERNACIONAL DA MULHER

Secleide Alves da SILVA; Ivanaldo Oliveira dos SANTOS


Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN)
sicleide.silva@hotmail.com

Resumo: Este trabalho apresenta um recorte de uma pesquisa desenvolvida, em nível de


Mestrado, no Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL) da Universidade do Estado
do Rio Grande do Note (UERN). Fundamentando-se na Análise do Discurso e nas
contribuições e Michel Foucault, se propõe a descrever/interpretar como os mecanismos
da relação saber/poder contribuem, através das práticas discursivas da publicidade, para
tornar os corpos femininos dóceis, passíveis de terem suas atitudes e identidades
moldadas. A pesquisa aponta que o Dia Internacional da Mulher é geralmente esvaziado
de sua historicidade. Nas materialidades publicitárias ancoradas na data do dia 8 de
março, o sujeito mulher é discursivizado a partir dos saberes socialmente constituídos,
sendo apresentadas às mulheres posições de sujeito ideais, interferindo dessa forma na
constituição das subjetividades femininas.
Palavras-chave: discurso; imagem feminina; publicidade.

docilizados, a partir de uma série de técnicas e


Introdução
procedimentos sutis que incidem diretamente
Sob a perspectiva da Análise do sobre a formação da subjetividade dos
Discurso Francesa (AD), este trabalho se indivíduos.
acentua no objetivo de descrever/interpretar
Esta pesquisa se firma dentro de uma
como os mecanismos da relação saber/poder
operação teórica metodológica da arqueologia
cooperam, através das práticas discursivas da
abordada por Foucault, como forma de
publicidade, para tornar os corpos femininos
descrição e análise dos discursos, reconhecendo
dóceis, passíveis de terem suas atitudes e
o valor do arquivo historicamente constituído
identidades moldadas.
sobre a mulher na sociedade, e que se
O conceito de docilização é proposto presentifica nas páginas da revista Veja através
por Michel Foucault (2010) e se refere às das peças publicitárias analisadas.
formas como as relações de saber e poder
Assim, abordamos o trajeto temático
atuam no sentido de produzir sujeitos capazes
corpo feminino e docilização, a partir do qual
de serem moldados, submetidos, aperfeiçoados,
procuraremos perceber, em seu espaço de

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1070
produção discursiva, a produção de sentidos sua constituição histórica não é exatamente
sobre a imagem da mulher a partir dos eixos esta, embora as lutas das operárias americanas
beleza, domesticidade, boa forma e tenham uma grande e significativa
modernidade. contribuição.
1. Dia Internacional da Mulher: a A instituição da data oito de março para
historicidade perdida no tempo esse dia deve-se provavelmente a diversos
movimentos encabeçados por mulheres em
A história das mulheres ao longo das
busca dos seus direitos no decorrer do século
épocas é repleta de lutas, lutas pelos seus
XX, como mostra Eva Blay (2001).
direitos enquanto cidadãs, enquanto seres
humanos, enquanto mulheres. A existência de A autora aponta que esses movimentos
uma data criada especialmente para as foram se intensificando cada vez mais em
mulheres é motivo de muitas críticas, há até diversas partes do mundo, por motivos e em
quem veja nisto mais uma forma de datas diferentes. Na Rússia, por exemplo, no
preconceito e discriminação. No entanto, é ano de 1817, no dia 8 de março (23 de
importante que se observe as bases em que se fevereiro no calendário Juliano, que era
assentam a instauração desta data, o Dia adotado na Rússia a essa época), mulheres
Internacional da Mulher, a fim de que, operárias saíram às ruas em uma greve,
compreendendo os movimentos históricos aí movimento que prenunciou a revolução de
envolvidos, se possa ter uma visão clara da sua 1917. O dia 8 de março foi, na década de 60,
real importância nas lutas em prol dos direitos com frequência escolhido para as
femininos. comemorações do dia da mulher, mas ainda
não era uma data oficial.
A instituição desta data é fruto das lutas
e dos movimentos, como os já citados Foram muitas as lutas travadas pelas
anteriormente, encabeçados por mulheres que mulheres ao longo da história, lutas estas que
não se conformavam em ser subjugadas e tiveram consagrado o seu direito de
oprimidas. A ausência desse conhecimento manifestação pública pela ONU em 1975,
implica em uma compreensão distorcida do quando este órgão instituiu oficialmente o dia 8
motivo desta data, a exemplo do que se é de março como o Dia Internacional da Mulher.
mostrado todos os anos através das No entanto, ao nos depararmos com
materialidades das mídias e em especial na essa data na contemporaneidade, a vemos na
publicidade.
maioria das vezes esvaziada de toda essa carga
As histórias sobre a origem do Dia histórica, sendo referendada somente como um
Internacional da Mulher geralmente remetem a data para se presentear, para se homenagear a
criação dessa data ao famoso desastre ocorrido mulher por sua beleza, por suas qualidades de
em uma indústria têxtil nos Estados Unidos, em mãe e de esposa, principalmente nos anúncios
1911, cerca de 130 mulheres operárias publicitários. Movimentos acontecem em volta
morreram em um incêndio. No entanto, do mundo neste dia, mas muito pouco sabemos
voltando o olhar para os acontecimentos deles, pois essa data, assim como várias outras
históricos em torno desta data, percebe-se que

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1071
de nosso calendário, está cada vez mais sendo históricos, os quais precisam ser considerados
“consumida pela sociedade de consumo”. para se perseguir a produção dos sentidos.
Observando-se os acontecimentos Do ponto de vista da materialização da
históricos que concorreram de formas diversas memória no fio do discurso, Orlandi (2002)
para a instituição desta data, vemos que ela, explica o funcionamento discursivo apontando
antes de ser somente um dia festivo, como que é no jogo entre memória e atualidade que
comumente parece ser, é uma data que remete a os sentidos se instauram, os dizeres significam
uma longa jornada de lutas. Lutas de mulheres segundo sua constituição histórica, da qual
que corajosamente, a despeito das interdições participam outros dizeres que lhes servem de
que pesavam sobre a figura feminina nas base e os recursos linguísticos e
diferentes épocas da história, se atiraram na extralinguísticos dos quais o sujeito enunciador
busca pela igualdade de direitos entre homens e lança mão no momento de sua produção.
mulheres entre os seres humanos. Atenta aos anseios do público feminino,
A data do dia 8 de março, por toda a sua a publicidade constrói discursos com base nas
carga de sentidos constituídos historicamente imagens socialmente desejáveis pelas mulheres
ao longo dos movimentos que antecederam a em a cada época, adequando esses desejos aos
sua instituição oficial, deve ser pensada como objetivos das empresas, criando anúncios que
um marco para as discussões em torno dos se apresentam de forma bastante sedutora aos
direitos das mulheres e pela lutas contra as consumidores, despertando-lhes o desejo.
diversas formas de discriminações e Figura 01: Publicidade O Boticário, Veja,
humilhações a que muitas mulheres ainda hoje 8 de março de 2006
estão expostas, como a violência física e moral.
É uma data em que se deve primar pela
igualdade social entre homens e mulheres
enquanto seres humanos, enquanto cidadãos.
Não se pode negar que há entre homens e
mulheres diferenças biológicas que devem ser
respeitadas, mas que não devem servir de
impulso para discriminação ou inferiorização
de uns em relação aos outros.
2. A Publicidade no Dia Internacional da
Mulher: a docilização do corpo feminino
disfarçada de homenagem. Nesta peça publicitária a empresa O
No jogo de produção de sentidos, entra Boticário apresenta uma homenagem ao Dia
em cena as posições de sujeito ocupadas pelos Internacional da Mulher através da criação da
sujeitos discursivos e demarcadas sócio edição comemorativa do perfume Tarsila
historicamente (FOUCAULT, 2009). Os Rouge, referindo-se à famosa pintora
dizeres são sempre inscritos em acontecimentos modernista brasileira Tarsila do Amaral.

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1072
base em outros, o que carateriza o caráter
A peça é composta por enunciados
interdiscursivo da linguagem. Com efeito, na
verbais e não verbais que se complementam e
propaganda, a presença de um já-dito torna-se
concorrem para orientar a produção de
mais nítida uma vez que, para a produção de
sentidos. Na página à esquerda, lê-se os
sentidos, é, na maioria das vezes, necessário
seguintes dizeres: TARSILA DO AMARAL,
que os seus receptores conheçam esse discurso
UMA DAS PRIMEIRAS BRASILEIRAS A
fundador do qual parte o texto para poder
ACREDITAR QUE VOCÊ PODE SER O QUE
associá-los, mesmo que inconscientemente.
QUISER. Mais abaixo, ao lado da pintura
Manteau Rouge, vem o texto: Tarsila do Nesta materialidade, o produtor
Amaral foi uma pintora que revolucionou, discursivo retoma formulações artísticas do
mesmo dentro de um grupo de inovadores. O século passado operando um deslocamento de
“Manteau Rouge” (Manto Vermelho) é seu sentidos através desta retomada capaz de
auto-retrato, criado após um jantar em Paris – seduzir o sujeito mulher para o consumo de seu
em homenagem a Santos Dumont. Ela surgiu produto.
de vermelho, envolvente, marcante. E sua Essa sedução se dá de forma simbólica.
imagem foi motivo de inspiração também para As mulheres são envolvidas pelo anúncio
O Boticário na criação de Tarsila Rouge. através de toda a sua formulação, envolvendo
Conservadores, modernistas e moderados. tanto o que é explicitado no texto quanto o que
Ninguém consegue ficar indiferente à atitude fica implícito, pois de acordo com Orlandi
de quem é única. Assim como você. (2002), naquilo que se diz, está contido
Logo na página à direita, tem-se a também aquilo que não se diz, mas que
figura de uma mulher vestida em vermelho, à também está constituindo o sentido de suas
semelhança do autorretrato pintado por Tarsila, palavras, ou por oposição ou por concordância.
segurando um frasco do perfume Tarsila Retomando os dizeres iniciais do
Rouge. Bem acima, no canto da página, enunciado Tarsila do Amaral, uma das
encontra-se a logomarca da empresa o primeiras brasileiras a acreditar que você
Boticário com o enunciado Você pode ser o que pode ser o que quiser, observamos que o
quiser. enunciador aborda a identidade de Tarsila
É possível observar o trabalho da como uma pioneira, uma das primeiras
memória na produção discursiva. O produtor da brasileiras, uma mulher a frente do seu tempo,
materialidade em questão constrói seu discurso de personalidade marcante. Busca dessa forma
a partir de elementos presentes na memória atrair a atenção das mulheres através da
coletiva, trazendo as discursividades referentes identificação com a figura de mulher que é
à Tarsila do Amaral, personalidade importante representada pela pintora.
do cenário cultural do modernismo do século No enunciado você pode ser o que
XX no Brasil, na forma de um interdiscurso quiser, que também está presente logo abaixo
com o texto do presente. da marca O Boticário, o enunciador opera um
Não há discursos totalmente inéditos, jogo de sentidos com as palavras “querer” e
pois o sujeito sempre constrói o seu dizer com “poder”, no qual uma equivale a outra.

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1073
da mulher, o perfume Tarsila Rouge, associado
Estimulando a transformação do corpo
ao poder feminino.
como meio para expressar a individualidade, o
discurso publicitário envolve as mulheres em A cor do frasco do perfume, assim
uma rede significante do “poder/querer”, como da roupa, o vermelho, já conota esta
construindo ou reproduzindo imagens sedução, pois o vermelho é tido como a cor da
identitárias em torno de um mundo de sonhos paixão. Aqui, o produtor apela para o ideal de
onde tudo é possível. beleza e vaidade feminina.
O enunciado Você pode ser o que O anúncio atinge as consumidoras de
quiser, por exemplo, leva-nos a pensar que o duas formas: através da identificação destas
sujeito controla o seu querer, através de uma com a identidade feminina apresentada,
suposta autonomia construída pela mídia. O fazendo-as perceberem-se dentro da posição de
sujeito passa assim a ter a impressão de que sujeito propagada e por isso o consumo do
controla seu corpo, suas vontades. produto oferecido vem a ratificar essa postura
identitária da mulher; por outro lado, pode
No texto ao lado da pintura Manteau
haver uma desidentificação da mulher
Rouge, a figura de Tarsila é descrita como uma
consumidora com a identidade oferecida pelo
mulher revolucionária, envolvente, marcante,
anúncio, mas esta apresenta-se de forma tão
características que são socialmente legitimadas
sedutora, que as mulheres passam a ansiar esta
como atributos desejáveis às mulheres. O
identidade para si, e o consumo daquele
Boticário busca mostrar através de seu discurso
produto se apresenta como capaz de
que tais características serviram de inspiração
proporcionar esta mudança. A publicidade
para a criação do produto anunciado em
interfere assim na maneira como os sujeitos
homenagem ao Dia Internacional da Mulher,
lidam com o corpo, como aponta Coelho
mas deixa claro que estas características não
(2003).
são exclusivas da Tarsila, mas sim de usuárias
de seus produtos. Os discursos da publicidade funcionam
assim como mecanismos de disciplinarização
Nos dizeres “Conservadores,
dos corpos (Foucault, 2010), pois ao apresentar
modernistas e moderados. Ninguém consegue
determinadas posturas identitárias como sendo
ficar indiferente à atitude de quem é única.
a norma, o padrão, faz com que os próprios
Assim como você”, retoma-se o discurso
sujeitos busquem assumir posturas que os faça
presente na sociedade sobre a beleza,
se perceber dentro da ordem instituída, não
atratividade feminina, o seu poder de sedução.
correndo o risco de ficar à deriva no corpo
No entanto, de acordo com a discursividade da
social.
peça analisada, não é qualquer mulher que tem
esse poder de atração, mas aquelas que usam o Os sentidos são produzidos a partir da
produto mostrado. leitura do texto verbal em relação ao que é
mostrado através das imagens, pois na
A imagem da mulher em destaque é
publicidade, o texto verbal e o imagético se
estereotipada, apresentando uma mulher
complementam, ela
branca, muito bela, sedutora e, como motivo
desse efeito vem no centro da figura, nas mãos

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1074
utiliza a imagem em complementaridade Antes de lançar seus produtos ao
com o enunciado linguístico para público, as empresas costumam fazer pesquisas
apresentar – tornar presentes – as de mercado a fim de saber quais são as
qualidades de um produto e conduzir assim necessidades e as aspirações de seus possíveis
o leitor a se recordar de suas qualidades, consumidores. As empresas, ao criarem seus
mas também a fazê-lo se posicionar em produtos, já tem em vista o tipo de público que
meio ao grupo social dos consumidores se quer atingir. É o exame detalhado do perfil
desse produto; a se situar, a se representar dos consumidores. Através desse exame torna-
esse lugar . (DAVALLON, 1999, p. 28) se possível a criação de saberes que permitirão
a constituição de formas específicas de se
O discurso produz então saberes que trabalhar esses indivíduos.
reforçam imagens femininas já cristalizadas no
É aí que entra em cena a técnica da
imaginário social. Essas imagens chegam às
sanção normalizadora. O poder disciplinar da
mulheres como símbolos da vida feminina
norma age, através da publicidade, no sentido
ideal, fazendo com que elas passem a buscar
de introjetar nos sujeitos a consciência de
atingir esse ideal. Para Buitoni (2009) a mídia
determinadas formas de comportamento, as
direcionada às mulheres não pretende
quais são associadas ao consumo de
modificar o comportamento destas no sentido
determinados produtos. Se o sujeito não se
de criar novas posturas identitárias, mas sim de
percebe com as características adequadas para a
reforçar os estereótipos já existentes na
posição que ele deseja assumir, ele mesmo se
sociedade, lhes reforçando.
autocorrige, na tentativa de se encaixar na
Observa-se na publicidade da empresa forma-sujeito que lhe é apresentada e que ele
O Boticário a ação do poder disciplinar sobre o considera ideal para si. O poder atua então
corpo feminino. Através das produções criando uma normatização dos
discursivas de anúncios deste tipo, os sujeitos comportamentos dos sujeitos, no caso estudado
são convocados a agir de determinadas aqui, das mulheres.
maneiras a fim de se atingir os resultados que o
Assim, a publicidade utiliza imagens
farão entrar dentro dos padrões que lhes são
simbólicas femininas a fim de “criar uma
apresentados como socialmente legítimos.
associação entre os produtos oferecidos e certas
Podemos relacionar duas técnicas características socialmente desejáveis e
disciplinares (FOUCAULT, 2010) específicas significativas, a fim de mostrar que é possível
que entram em cena através dos discursos da vir a se tornar certo tipo de pessoa [...] usando
publicidade e que servem tornar o corpo aquele produto” (KELLNER, 2001, p.318). É o
feminino dócil, ou seja, que colabora para que que pode ser observado na peça abaixo, da
as mulheres ajam conforme o mercado de empresa Ford, como uma homenagem prestada
consumo espera e necessita para a sua por esta empresa ao público feminino.
manutenção. É a técnica do exame e da sanção
normalizadora.

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1075
Figura 2: Publicidade Ford, Veja, 09 de
março de 2005. (ou itens) a ela associados, mas que se
traduzem também como descrições das
qualidades do carro, pois estas características
são nomeadas com termos próprios da
linguagem automotiva. Vejamos quais são:
Design arrojado; De 0 a 100 atividades em
menos de 24 horas; Motor mais potente:
trabalha fora e cuida das crianças;
Econômica: sabe administrar como ninguém as
finanças de casa; Maior índice de satisfação:
quem vive com uma está 100% feliz; Versátil:
se diverte no campo ou na praia; Maior
Neste anúncio o enunciador produz seu capacidade: aguenta todo o peso da jornada
discurso criando uma íntima identificação da dupla; e Garantia por toda a vida.
mulher com o produto apresentado, no caso, o Há uma completa identificação do
carro. A homenagem feita ao Dia Internacional produto apresentado com a mulher, a qual
da Mulher se traduz na listagem de representa no anúncio as mulheres
características dessa mulher que são consumidoras daquele produto. Através da
compatíveis às do carro. publicidade, o produto é personificado e o
O enunciado inicial do anúncio possui sujeito é objetificado, ou seja, as características
os seguintes dizeres: Listamos com orgulho os humanas são atribuídas ao objeto e as
itens originais de fábrica. Mas, atendendo a características daquele objeto são mostradas
pedidos, não vamos revelar o ano de como sendo também humanas. Conforme
fabricação. Essa listagem dos itens originais de aponta Coelho (2003, p. 38),
fábrica se refere tanto aos itens do modelo de
Características humanas são atribuídas aos
carro apresentado quanto às características produtos, criando um vínculo entre uma
femininas da mulher apresentada no anúncio. O determinada mercadoria e os consumidores
discurso sobre a vaidade feminina é aqui que se identificam com essas
retomado quando se coloca “não vamos revelar características. Mediante essa
o ano de fabricação”, pois é típico de uma identificação, o consumidor relaciona-se
parcela das mulheres não querer revelar a com a mercadoria como se ela fosse
idade, buscando parecer sempre mais jovem. produzida para ele.
No centro da peça publicitária está a
figura de um carro com a mulher ao seu lado. A No anúncio em questão, a identidade
mulher apresentada possui um corpo feminina é aborda como uma identidade
compatível com o que se apresenta geralmente dinâmica, remetendo a figura da mulher
como padrão na mídia, com um visual moderno moderna à capacidade feminina de desenvolver
e demonstra um aspecto feliz. Apontando na diversas atividades. Essa postura identitária
direção da mulher, que é objeto de homenagem apresentada na materialidade em questão é
neste anúncio, há uma série de características reforçada nos dizeres que se encontram na parte

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1076
inferior da página esquerda do anúncio: “A modelo de mulher ideal, transmitindo a
Ford é a montadora com o maior de número de ideologia do consumo como meio de alcançar a
mulheres entre seus clientes: mais de 50%. mesma felicidade e sucesso da mulher retratada
Prova de que nenhuma outra marca consegue na peça.
acompanhar tão bem a vida corrida que as Conforme coloca Fernandes (2005, p.
mulheres levam com tanto charme. Vê-se aqui 92), “na relação do sujeito com a língua e com
mais uma vez uma identificação entre a marca
a história, por trás das palavras ditas, o não-
apresentada e a mulher. dito produz sentidos que não podem ser
Nessa materialidade publicitária o ideal controlados e que não se encerram em si”. A
de imagem feminina apresentado é o ideal da línguagem não é transparante, os sentidos dos
mulher apontada por Fujisawa (2006) como discursos muitas vezes são estabelecidos por
multifuncional, aquela que consegue se aquilo que está ausente. Dessa forma, na
desdobrar em diversas funções, assumindo propaganda da Ford acima, ao enunciar listar as
identidades multifacetadas enquanto, mulher, características da mulher atual, o que o locutor
profissional, mãe, administradora do lar. Essas quer realmente enfatizar é a semelhança das
qualidades são associadas à imagem da mulher mulheres com esse modelo de carro gerando
moderna, dinâmica, que é ansiada por uma uma identificação do público feminino com
grande parcela da população feminina. Vale esse produto.
questionar se realmente “todas” as mulheres
No caso do anúncio publicitário, todo o
desejam isto? Será que acumular tantas funções movimento de instauração de efeitos de
é o sonho das mulheres? sentidos a partir da materialidade apresentada
Ao associar a imagem da mulher só é possível através da infiltração do
moderna com a figura do modelo de carro interdiscurso no intradiscurso, ou seja, da
apresentado, cria-se no público consumidor a retomada daqueles discursos socialmente
expectativa de que somente este modelo serve, construídos sobre a mulher moderna e que
como é sugerido pelo anúncio, às necessidades estão presentes na memória social para a
dessa nova mulher. Vemos que mesmo interpretação dos dizeres presentes.
assentado no discurso sobre a Observa-se que esses discursos em
multifuncionalidade da mulher moderna, o torno da imagem e da identidade feminina que
ideal de beleza feminina ainda persiste nesse são apresentados na publicidade e na mídia não
anúncio, pois, como aponta Gregolin (2007), a se apresentam com pretensões de se criar novas
instalação de representações novas não apaga a mulheres. O que eles fazem é “pegar” as
coexistência dos sentidos tradicionalmente identidades femininas que existem socialmente
constituídos, como um “nó em uma rede” cada e transportá-las para suas práticas discursivas.
enunciado se relaciona a outras formulações, Ao fazer isto, as identidades são ressignificadas
com outros movimentos que se cruzam e e moldadas conforme os interesses das
constituem identidades pela reativação da empresas anunciantes, buscando atingir a
memória discursiva. subjetividade das mulheres na sociedade de
Toda essa imagem retratada no anúncio forma que estas passem a sentirem-se
da Ford aparece como uma forma simbólica do insatisfeitas consigo mesma e tenham

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1077
necessidade de consumir os produtos poder em volta dos discursos sobre as mulheres
oferecidos pelas empresas para se sentirem constituem saberes que por sua vez servem à
completas, modernas, autênticas participantes instauração de mecanismos que atualizam as
da sociedade contemporânea. formas como o poder se distribui no tecido
social, aprimorando cada vez mais a sua
Há por trás de toda essa produção
eficácia.
discursiva da publicidade em torno da imagem
feminina uma série de relações, de jogos de 3. Considerações finais
forças que se instauram no fio dos discursos, Ao analisar o nosso corpus a partir do
permitindo a circulação ou não de trajeto de sentido corpo feminino e docilização,
determinados saberes sobre a mulher. Assim, percebemos que as imagens femininas
não é por acaso que, mesmo se tratando do Dia
geralmente veiculadas na publicidade referente
Internacional da Mulher, as identidades ao dia 8 de março estão ancoradas em figuras
femininas apresentas tendem a exibir para o estereotipadas da mulher, sendo o ideal de
público não as imagens das mulheres como as beleza sempre perseguido. Aparece também a
que contribuíram para a instauração desta data, figura da mulher ligada à domesticidade, à
mas uma imagem simbólica da mulher ideal ao saúde e boa forma, a mulher multifuncional e
padrão da sociedade capitalista de consumo. capaz de dar conta de sua dupla jornada.
Esses discursos tendem a convergir para Partindo dos saberes presentes na
uma docilização dos corpos femininos na sociedade contemporânea sobre a mulher, a
sociedade, pois consegue, através de práticas publicidade apresenta às mulheres
discursivas extremamente elaboradas, moldar consumidoras imagens socialmente desejáveis,
as subjetividades de uma grande parte das fazendo com que se identifiquem a tal ponto
mulheres, as quais sentem cada vez mais com as imagens femininas apresentadas que
necessidade de consumir, contribuindo para a passem ansiar as posições apresentadas. Dessa
manutenção da sociedade de consumo. forma, as mulheres tendem a moldar suas
Esses efeitos de sentido dos discursos atitudes e comportamentos na tentativa de
publicitários, a exemplo dos que aqui foram conseguir se assemelhar ao que, por intermédio
analisados, só são possíveis graças ao trabalho da publicidade, elegeu como um ideal a ser
da memória discursiva. Pois, de acordo com alcançado.
Orlandi (1999, p. 64), “a memória – o De acordo com o que lhes é mostrado
interdiscurso, como definimos na análise de
nas peças publicitárias, uma das formas de
discurso – é o saber discursivo que faz com alcançar esse ideal é consumindo os produtos
que, ao falarmos, nossas palavras façam associados a essas imagens. A sociedade
sentido. Ela se constitui pelo já-dito que capitalista de consumo encontra nisto uma
possibilita todo o dizer.”. Assim, a publicidade poderosa arma para se manter.
recorre aos saberes constituídos socialmente
sobre a mulher, incorporando esses saberes em
suas práticas discursivas, gerando uma rede de Referências
discursividades em que saber e poder se
imbricam, se complementam. As relações de

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1079
REFORMA AGRÁRIA E DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO: O
SILENCIAMENTO CONSTITUTIVO SECUNDÁRIO NO
DISCURSO OFICIALIZADO

Sóstenes Ericson Vicente da SILVA


Universidade Federal de Alagoas (PPGLL/UFAL)
sericson1@hotmail.com

Resumo: O presente trabalho consiste em um primeiro momento da pesquisa “O


silenciamento da reforma agrária no discurso oficializado”. A problemática que suscitou
esta investigação foi identificada quando, analisando o silenciamento da reforma agrária
em documentos oficiais do governo brasileiro, propusemos que o silêncio constitutivo
pode ser entendido sob dois momentos (primário e secundário). Mobilizamos agora nossa
investigação para o processo no qual o discurso jurídico produz efeitos de sentido
distintos, ajustados aos interesses do capital. Recuperamos a constituição do silêncio da
reforma agrária com ênfase no primeiro mandato do governo Dilma (2011-2014),
extraindo nosso corpus a partir de documentos legais. Até o momento, identificamos que a
distinção entre as duas perspectivas do silêncio constitutivo, anteriormente propostas,
apresenta maior acentuação em seu momento secundário, o que implica na produção de
sentidos alinhados ao discurso do desenvolvimento agrário, em seus múltiplos
desdobramentos.
Palavras-chave: silenciamento; discurso oficializado; reforma agrária; desenvolvimento
agrário.

homogeneizadas sob a expressão “reforma


Introdução
agrária”, que carrega o ideológico das
Sabemos que o avanço do domínio do contradições que se constituem no que torna
capital sobre o campo não se deu sem resposta implícito e no que silencia.
dos sujeitos sociais aí constituídos. Todavia, a
O presente trabalho consiste no início
partir do século XX, o papel do Estado
da pesquisa intitulada “O silenciamento da
brasileiro vai se tornando mais expressivo na
reforma agrária no discurso oficializado”. A
simulação de que é sua responsabilidade
problemática que suscitou a necessidade desta
equacionar os abismos que separam os grandes,
investigação foi identificada quando da
médios e pequenos produtores e os
realização da nossa Tese de Doutorado.
trabalhadores do campo. As reivindicações dos
Naquela ocasião, analisando o silenciamento da
movimentos sociais do campo são

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1080
reforma agrária em documentos oficiais do
1. Abordagem teórica e metodológica
governo brasileiro, propusemos que o silêncio
constitutivo, “que nos indica que para dizer é As etapas iniciais do nosso trabalho
preciso não-dizer (uma palavra apaga consistem, especificamente, em um processo
necessariamente outras palavras)” (ORLANDI, no qual instrumentos e técnicas de pesquisa são
2007, p.24), pode ser considerado sob dois requisitados, compondo um momento
momentos1 (primário e secundário). imprescindível na apreensão do objeto no
processo de pesquisa, tornando-se ponto de
No caso da reforma agrária, tendo em
partida para o momento de exposição dos
conta o período do Brasil República, em seus
resultados aos quais chegamos. Este processo
distintos momentos históricos, o discurso
de pesquisa e, posteriormente, de exposição,
oficializado tem silenciado a luta dos
inicia sua definição a partir do momento em
movimentos sociais contra a propriedade
que explicitamos de qual Análise do Discurso
privada (ao que chamamos silêncio constitutivo
(AD) estamos tratando, enquanto filiação
primário). Todavia, mais recentemente, o
teórico-analítica. Tal distinção, no nosso caso,
discurso oficializado também tem silenciado a
toma por referência os estudos inaugurados por
possibilidade de tal reforma, o que
Pêcheux e, isto nos leva a considerar a proposta
consideremos como silêncio constitutivo
de articulação de três regiões do saber, com o
secundário. Mobilizamos agora nossa
propósito de ressignificar a relação
investigação sobre a constituição do silêncio da
contraditória entre língua e discurso, pondo em
reforma agrária com ênfase no primeiro
relação o materialismo histórico, a linguística e
mandato do governo Dilma (2011-2014),
a teoria do discurso, “atravessadas e articuladas
extraindo nosso corpus a partir de documentos
por uma teoria da subjetividade (de natureza
legais.
psicanalítica)” (PÊCHEUX; FUCHS, 1997,
O texto documental aqui é tomado p.163).
como exemplar de discurso, em sua
A particularidade do nosso objeto de
materialidade horizontal (intradiscurso). A sua
investigação requisita considerar que o aparato
especificidade institucional nos fará considerá-
político-burocrático do Estado moderno, nos
lo, a partir do que ele nos permite conhecer a
termos apresentados por Mészáros (2009,
priori, como materialidade do discurso
p.107) representa um instrumento eficaz de
oficializado.
regulação da exploração da classe trabalhadora
Nosso percurso analítico requisita e de ordenamento social, constituído no
remetê-lo para a Formação Discursiva (FD) que domínio político conduzido pela classe
o regula, na filiação ideológica na qual se economicamente dominante. No processo de
inscreve, sendo este o processo significativo ordenamento societário implementado no/pelo
condutor da formulação do corpus de nosso Estado, aqui apreendido com base na AD, as
estudo, em seu caráter instável e provisório. Formações Ideológicas (FI) assumem posição e
contribuem para a reprodução/contraposição da
1 ordem.
Lembramos que no padrão marxiano, “momento tem
além de um sentido cronológico, também o significado
de ‘forma’, de instauração’” (TONET, 2013, p.65).

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1081
Quadro I – Documentos oficiais segundo
Neste trabalho, utilizamos os Tipo de Legislação e Palavras-chave -
Brasil, 2011-2014
dispositivos do Sistema de Legislação do
Ministério da Agricultura (SISLEGIS), Palavras- Reforma Desenvolvimento
hospedado no sítio chave Agrária Agrário
www.agricultura.gov.br/legislacao/sislegis. O
referido Sistema é de domínio público e sua Tipo de
Legislação
atualização encontra-se suspensa desde abril
deste ano. Nele constam Leis, Decretos, Decreto 10 30
Portarias, Medidas Provisórias, entre outros, Lei Ordinária 14 08
publicados desde o ano 1824. Nossa consulta
encerrou em março de 2015 e considerou o Medida 04 01
Provisória
período de 01 de janeiro de 2011 a 31 de
dezembro de 2014, em função da nossa Portaria 573 752
proposta de estudo. Resolução 124 155
Dentre os parâmetros para a pesquisa, Total 725 946
que o SISLEGIS disponibiliza, utilizamos
Fonte: SISLEGIS, 2015.
apenas três: tipo de legislação (atos de
legislação primária como Decreto, Lei Tais procedimentos, no entanto, são
Ordinária, Lei Complementar, Decreto-lei e aqui tomados como etapas necessárias à
Medida Provisória), data de publicação e composição do corpus a ser trabalhado em um
palavras-chave. Os demais critérios eram campo de teorização, no qual serão
número e data de assinatura dos documentos. considerados dispositivos teórico-analíticos,
No Quadro I, apresentamos uma síntese dos deslocados da concepção hegemônica de
resultados obtidos, conforme as palavras-chave ciência e de metodologia. Como Marx aponta:
“reforma agrária” e “desenvolvimento agrário”. “a investigação tem de apoderar-se da matéria,
Nele podemos observar um predomínio de em seus pormenores, de analisar suas diferentes
documentos que tratam de Desenvolvimento formas de desenvolvimento e de perquirir a
Agrário, sendo necessário considerar que esta conexão íntima que há entre elas. Só depois de
demonstração não exclui repetições, ou seja, concluído esse trabalho é que se pode
documentos que tratam das duas palavras- descrever, adequadamente, o movimento real”
chave em estudo. Como não estamos tratando (MARX, 2010, p.28).
de uma questão meramente quantitativa, nosso Entendemos que a organização
interesse se volta ao movimento de ascensão da institucional de um conjunto de documentos
legislação sobre Desenvolvimento Agrário em legais é um gesto de interpretação, decorrente
face da diminuição da legislação sobre de um posicionamento político-ideológico, que
Reforma agrária, em seus efeitos de sentido. se propõe a direcionar “os sentidos,
estabelecendo uma temporalidade e produzindo
uma memória estabilizada” (NUNES, 2008,
p.82). Tomado em sentido amplo, o arquivo é
apreendido como “campo de documentos

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1082
pertinentes e disponíveis sobre uma questão”
Desse modo, o que se recupera, através
(PÊCHEUX, 1997, p.57). Por sua vez, a noção
do acesso ao SISLEGIS, é apenas o documento
de arquivo apresentada por Foucault (2010,
em si e não os elementos históricos presentes
p.147) – “a lei do que pode ser dito” –, não o
na conjuntura em que foi organizado, o que
entende como um depositário estático de
implica apagar as suas relações causais e
documentos e enunciados. Como aponta
mediações com a esfera econômica, política,
Amaral, ao considerar o arquivo com uma
social e ideológica, ao longo do processo
formação discursiva, trata-se de um “espaço
histórico em suas contradições. A nossa
discursivo [...] em que são articulados os
oposição a este caráter temporal tem por
enunciados que produzem sentidos; no caso
fundamento a crítica à história linear e à
específico da função social do arquivo, tem-se
abordagem tradicional, na qual o historiador
a produção da memória coletiva” (AMARAL,
apenas recupera os documentos para, a partir
2014, p.13). É próprio, portanto, desse espaço
deles, estabelecer os “fatos históricos”, para
se apresentar como fechado, organizado,
uma exposição coerente, como apontado por
homogêneo, completo em si mesmo.
Amaral (2014, p.5).
No caso do SISLEGIS, são diversos os
A estrutura dos documentos legais é
elementos constitutivos que apontam para a sua
fundamental para atestar a sua legalidade e
finalidade em imprimir regularidade,
serve de critério de verdade para seus leitores,
temporalidade e forma na apresentação dos
reforçada pelo fato de que, no nosso estudo, as
documentos que o compõem. Esta condição
materialidades foram publicadas no Diário
colabora para que, ao localizar os documentos a
Oficial da União (DOU), sendo, portanto,
partir de determinada palavra-chave, o leitor
consideradas oficiais e válidas em todo o
tenha acesso também a sua repetição e
território nacional, ainda que por si só a lei não
regularização, aspectos fundamentais na
seja suficiente para conferir oficialidade,
constituição da memória discursiva. A
enquanto efeito de sentido. A força da lei é
memória discursiva constitui então no
afirmada na imposição dos atos que emprega
intradiscurso a abertura para o atravessamento
(“sanciono”, “faço”, “com força de lei”) e se
do discurso-outro, enquanto presença virtual na
orienta para os que devem cumprir os seus
materialidade descritível da sequência,
desígnios, os destinatários. O referido Diário
marcando, “do interior desta materialidade, a
constitui também um arquivo através do qual a
insistência do outro como lei do espaço social e
União (o Estado) oficializa diversos tipos de
da memória histórica, logo como o próprio
documento.
princípio do real sócio-histórico” (PÊCHEUX,
2008, p.55), abrindo possibilidade para O desenvolvimento do processo
interpretar. É neste sentido que consideramos histórico-social brasileiro, especialmente no
os documentos disponibilizados pelo que diz respeito à agricultura, vai conferir
SISLEGIS, nas suas irrupções, nos equívocos e novas determinações que irão se materializar na
silenciamentos, nos domínios das sequências produção de sentidos de focalização no
discursivas (SD) de onde são analisados. mercado (interno/externo) e na resposta às lutas
sociais do campo. Nesse segundo plano,
considerando o Brasil República, assumem

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1083
maiores contornos o silenciamento da reforma
2. Análises e discussão
agrária e a judicialização dos conflitos pela
posse da terra. Para condução da análise, consideramos
uma rede de Sequências Discursivas (SD) em
Com base em Orlandi, consideramos
suas condições de produção, que com base em
que o silêncio pode ser distinto em:
Orlandi, compreendem fundamentalmente os
a) o silêncio fundador, aquele que existe sujeitos e a situação. No caso deste estudo, o
nas palavras, que significa o não-dito e que campo discursivo de referência se inscreve no
dá espaço de recuo significante, produzindo discurso jurídico, entendendo que sua base
as condições para significar; e b) a política “nasce de uma fonte em um momento histórico
do silêncio, que se subdivide em: b 1) definido” (ORLANDI, 2009, p.30). Neste
silêncio constitutivo, o que nos indica que sentido, o discurso é considerado como
para dizer é preciso não-dizer (uma palavra “ideologicamente marcado, logo regulável,
apaga necessariamente outras palavras); e b submetido à história” (ORLANDI et al., 1998,
2) o silêncio local, que se refere à censura
p.16).
propriamente (àquilo que é proibido dizer
em uma certa conjuntura) (ORLANDI, Segundo Filippi (2005), a promulgação
2007, p.24). da Lei de Terras, em 1850, teve como objetivo
a formalização da posse da terra no Brasil pós-
Por sua vez, o silenciamento implica colonial, inaugurando a estrutura jurídico-
uma política do silêncio, definida “pelo fato de institucional de manutenção das grandes
que ao dizer algo apagamos necessariamente propriedades fundiárias no país, momento
outros sentidos possíveis, mas indesejáveis, em importante de composição das bases sobre as
uma situação discursiva dada” (ORLANDI, quais o discurso jurídico vai se constituir.
2007, p.73). Por esses termos, “a política do Trata-se, por esse prisma, de uma estratégia
silêncio produz um recorte entre o que se diz e legal para impedir os escravos libertos e os
o que não se diz” (idem, ibidem). No caso imigrantes de ocuparem a terra.
específico da reforma agrária, o silêncio Analisando o que chamou de “as três
constitutivo primário pode produzir sentidos frentes da luta de classes no campo brasileiro”,
diversos, trazendo para os movimentos sociais especificamente no contexto dos anos 1960,
do campo a reforma agrária como mediação Guimarães (2011, p.93), em seus termos,
para um projeto de sociedade livre da identificou no Brasil: 1. A luta de todo o
propriedade privada, como também a reforma campesinato contra as várias modalidades da
agrária enquanto finalidade última da luta pela opressão e da espoliação imperialista; 2. A luta
terra, o que resolveria e encerraria a questão, do campesinato contra as sobrevivências do
mantendo intocada a base da propriedade pré-capitalismo e contra os latifundiários; e 3.
privada da terra, ainda que nas mãos de muitos A luta dos assalariados e semiassalariados
donos. Os sentidos produzidos pelo que rurais contra os patrões, grandes proprietários
consideramos silêncio constitutivo secundário de terra. Reconhecendo as necessárias
são, todavia, o foco da análise que faremos a distinções, entendemos que o Estado precisou
seguir. responder à luta do campo, momento em que

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1084
destacamos a repressão às Ligas Camponesas, agricultura voltada, prioritariamente, para o
designação inicialmente atribuída pelo Estado e abastecimento interno.
seus agentes à organização dos movimentos Face às contradições entre a
dos trabalhadores do campo, caracterizados expansão/desenvolvimento da agricultura
como comunistas. brasileira e o empobrecimento dos agricultores
Por estes termos, as Ligas Camponesas e trabalhadores rurais, em meados de 1984,
“consideravam a reforma agrária radical como surgiu e se territorializou o Movimento dos
princípio estratégico da luta camponesa e foi Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST),
com esta tese que saíram vencedores, apesar de ressignificando os diversos movimentos sociais
minoritários, no I Congresso Nacional de silenciados pela repressão da Ditadura. Este é o
Lavradores e Trabalhadores Agrícolas, ocorrido mais expoente movimento social de luta pela
em Belo Horizonte em novembro de 1961, com terra e reforma agrária do país, com a
a bandeira ‘Reforma Agrária na lei ou na perspectiva de que a ocupação de terra é uma
marra’” (GUIMARÃES, 2011, p.33). No que ação política de luta e resistência dos
coube ao Estado, a primeira possibilidade (na trabalhadores sem-terra ao processo de
lei) se colocava como estratégia para impedir a expulsão/expropriação, originado pelo
realização da segunda (na marra). Este é o desenvolvimento do capitalismo no campo.
momento em que identificamos o silêncio Com base nos pressupostos
constitutivo primário, que pela lei procurou
apresentados pela Constituição Federal de
silenciar a luta armada. 1988, o Estado inicia a implementação de um
Nesse movimento, as expressões vão plano de desenvolvimento, a ser reforçado nas
sendo substituídas e passam a significar a partir décadas seguintes. Na Lei nº 7.739, de 16 de
desse processo de circulação de sentidos por março de 1989, que dispõe sobre a organização
diferentes filiações discursivas: aquisição ao da Presidência da República e dos Ministérios,
invés de posse, colonização ao invés de em seu art. 3º denomina Ministério da
dominação/exploração dos nativos, são alguns Agricultura e no art. seguinte estabelece: “são
exemplos de operação do silêncio constitutivo transferidas para a área de competência do
primário. É nessa conjuntura que situamos o Ministério da Agricultura as matérias
Decreto-Lei nº 1.110, de 09 de julho de 1970, relacionadas com a reforma e o
com a criação do Instituto Nacional de desenvolvimento agrário, bem assim o
Colonização e Reforma Agrária - INCRA Programa Nacional de Irrigação – PRONI,
(BRASIL, 1970). Nestes termos, não se tratava mantidas as atribuições do Instituto Jurídico
da reforma agrária reivindicada pelos das Terras Rurais – INTER” (BRASIL, 1989,
movimentos sociais, mas de uma estratégia que grifo nosso). Legal representante da agricultura
sob este argumento iria promover um patronal, o Ministério da Agricultura passaria a
reordenamento do campo, para bloquear o responder também pela reforma agrária, antes
acirramento dos movimentos sociais e atender de responsabilidade exclusiva do INCRA.
aos requisitos da grande produção rural, que Reforma agrária e desenvolvimento agrário,
estaria ampliando a sua capacidade exportadora assim considerados, não constituem sinônimos
e regulando o desenvolvimento de uma e mantêm forte articulação com as condições

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1085
de cultivo (daí a importância do PRONI ser presente já na legislação da década de 1960,
requisitado dentro de um mesmo enunciado) e agora substitui a palavra “reforma”. O Estado
de posse/ocupação da terra, sob os auspícios do não separou o antigo Ministério da Agricultura
INTER. Posteriormente, o fato de o nome do e Reforma Agrária, tornando-o Ministério da
Ministério ter passado a ser “Ministério da Agricultura e Ministério da Reforma Agrária, a
Agricultura e Reforma Agrária”, através da reforma, o que tinha de incômodo na formação
Medida Provisória nº 150 (de 15 de março de discursiva, na qual a forma-sujeito Estado se
1990), diz mais do que explicita e esconde os inscreve, agora é silenciada em favor do
sentidos através dos quais a reforma agrária “desenvolvimento”.
está sendo requisitada. Os dizeres se põem em agitação e no
O ano de 2001 constitui um marco para campo discursivo vão circulando sentidos que
nosso estudo, momento em que ocorreu o apontam para o incômodo que a reforma
desmembramento do Ministério da Agricultura agrária vai trazendo, à medida que as novas
e Reforma Agrária (MARA) em Ministério da expressões da agricultura brasileira vão se
Agricultura, Pecuária e Abastecimento consolidando. É nesse momento que situamos o
(MAPA) e Ministério do Desenvolvimento silêncio constitutivo secundário, uma vez que
Agrário (MDA), através da Medida Provisória nessa conjuntura não se trata mais de dizer
nº 2.213/37, de 31 de agosto de 2001. A reforma agrária para não dizer fim da
referida Medida Provisória aponta que o propriedade privada, agora se põe a
principal objetivo do MDA consiste na necessidade de não dizer as duas coisas, ao
“promoção do desenvolvimento sustentável do mesmo tempo, e em seu lugar constituir um
segmento rural constituído pelos agricultores novo modelo produtivo, melhor ajustado aos
familiares” (BRASIL, 2001). De modo interesses do capital – a agricultura familiar.
esquemático, temos a partir daí: Na especificidade do que trata o
Ministério da Agricultura e Reforma presente estudo, destacamos que são alguns dos
Agrária (MP nº 150, de 15/03/1990). elementos constitutivos das condições de
Ministério da Agricultura, Pecuária e produção do discurso em tela: a continuação do
Abastecimento (MP nº 2.213/37, de Partido dos Trabalhadores (PT) no poder,
31/08/2001). Ministério do período iniciado em 2002, com o primeiro
Desenvolvimento Agrário (MP nº mandato do governo Lula; o apoio dos
2.213/37, de 31/08/2001) movimentos sociais do campo ao governo
Dilma; o crescimento da produção agrícola
Trata-se, todavia, de um processo que brasileira; a diminuição das desapropriações de
remonta a meados do século passado, que em terra para a reforma agrária. Em sentido
diferentes momentos históricos vai assumindo restrito, identificamos a necessidade legal de
expressões distintas, ainda que ajustadas aos inclusão dos gastos com reforma agrária e
princípios mercantis inaugurados pela agricultura no orçamento anual; os acordos
“Revolução Verde”, em seus desdobramentos econômicos com representantes dos setores
para o reordenamento da produção agrícola produtivos e com representantes dos
brasileira. A expressão “desenvolvimento”, movimentos sociais do campo e dos

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1086
R$ 210.000,000,00 (Lei n° 12.384,
agricultores; os pressupostos legais 03/03/2011).
relacionados às matérias em questão.
Em síntese, dos 725 documentos que
SD 2 - Fica o Poder Executivo autorizado a
tratavam sobre “reforma agrária”, 14 emitir até 27.623.774 (vinte e sete milhões,
correspondiam a Leis Ordinárias; e dos 946 seiscentos e vinte e três mil, setecentos e
documentos que tratavam sobre setenta e quatro) Títulos da Dívida Agrária
“desenvolvimento agrário”, 08 correspondiam para atender ao programa de reforma
a Leis Ordinárias, totalizando os 22 agrária no exercício de 2014, nos termos
documentos analisados para a extração do do § 4º do art. 184 da Constituição, vedada
nosso corpus, aqui apresentado em 05 SD. A a emissão com prazos decorridos ou
opção pelas Leis Ordinárias, maioria da inferiores a 2 (dois) anos. (Lei nº 12.952,
composição das SD analisadas neste estudo, se 20/01/2014, Cap. V, art. 9º).
deu por sua amplitude, uma vez que
complementam as normas constitucionais que É bastante expressiva a distância entre
não foram regulamentadas por Leis os valores estabelecidos, cabendo ressaltar que
Complementares, Decretos legislativos e no segundo caso identificamos um limite
Resoluções. Lembrando que devem ser orçamentário, sem garantia de que haveria um
aprovadas por maioria simples, ou seja, pela “mínimo” assegurado para as despesas, uma
maioria dos presentes à reunião ou sessão da vez que estamos tratando de orçamento. O
Casa Legislativa respectiva no dia da votação mesmo valor das cifras ao longo dos quatro
(LENZA, 2006). anos indica, nos dois casos, a manutenção das
ações governamentais. Todavia, se
São implicações deste processo as
considerarmos a possibilidade de
mudanças legais, como também a definição de
transformação dos assentamentos da reforma
investimentos financeiros na agricultura. Ainda
agrária em áreas de agricultura familiar, o valor
que o primeiro ano do mandato do governo
de até R$ 27,6 milhões destinados
Dilma tenha um orçamento definido no Plano
aparentemente à reforma agrária pode não estar
Plurianual do governo anterior, observamos
implicando um aumento das áreas
que foram mantidas as mesmas cifras na
desapropriadas.
previsão de orçamento anual federal ao longo
do período 2011-2014, tanto no que diz De fato, o desenho do projeto brasileiro
respeito à agricultura familiar (R$ 210 para a produção agrícola pode ser observado
milhões), quanto para a reforma agrária (até desde anos anteriores. Vejamos que, segundo o
27,6 milhões), conforme verificamos nas SD a Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
seguir: (IBGE, 2009), no Censo Agropecuário
realizado nos anos 2006/2007, o primeiro a
SD 1 - Abre crédito extraordinário, em retratar a realidade da agricultura familiar,
favor do Ministério do Desenvolvimento quando analisada a relação entre o número de
Agrário, no valor de R$ 210.000.000,00 estabelecimentos da agricultura familiar e o
(duzentos e dez milhões de reais), para o
tamanho do território que eles ocupam,
fim que especifica. [...] 0351
AGRICULTURA FAMILIAR – PRONAF:
observamos que 84,4% dos estabelecimentos

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rurais brasileiros estão dentro do perfil diminuição dos conflitos no campo parecem
“estabelecimentos da agricultura familiar”, e atestar para uma condição de estabilidade
ficam com apenas 24,3% do território ocupado econômica, social, política e ideológica. O
no campo brasileiro. Os outros 15,6% dos Estado procurou então reforçar um quadro de
estabelecimentos representam a agricultura agricultura pujante, enquanto simulou combater
“não familiar”, onde se insere o agronegócio, os efeitos destrutivos da esfera da produção e
que por sua vez, fica com 75,7% das áreas as suas implicações para a vida no campo.
ocupadas. Vemos, portanto, a dimensão da Agronegócio e agricultura familiar,
concentração de terra no país, uma vez que resguardadas suas distinções, compõem então a
cerca de 15% dos proprietários de terra prioridade no que diz respeito à agricultura
concentram mais de 75% da área produtiva brasileira, ajustada segundo a perspectiva do
brasileira. O Movimento dos Pequenos “desenvolvimento sustentável”.
Produtores (MPA) destaca outro dado não
menos importante: a geração de emprego no SD 3 - Projetos de assentamento florestal,
campo. Segundo o MPA, a agricultura familiar projetos de desenvolvimento sustentável
(considerada pelo Movimento como ou projetos de assentamento
agroextrativista instituídos pelo Instituto
camponesa) mantém “12,3 milhões de pessoas
Nacional de Colonização e Reforma
ocupadas no campo, o que corresponde a Agrária - Incra; (Lei nº 12.512, 14/10/
74,4% de todos os empregos gerados na área 2011, Cap. I, art. 3).
rural. Já o agronegócio mantém 4,2 milhões de
pessoas ocupadas, apenas 25,3% dos empregos
no campo” (MPA, 2010). Na SD anterior, ainda que seja
apresentada uma condição de poder do INCRA,
Segundo estimativas da Confederação observamos que os assentamentos/projetos de
Nacional da Agricultura e Pecuária no Brasil que trata a referida Lei dizem respeito a
(CNA), em 2013, o agronegócio deveria “assentamento florestal”, “projetos de
responder por 23% do Produto Interno Bruto desenvolvimento sustentável” ou “projetos de
(PIB) do país, representando 21 milhões de assentamento agroextrativistas” instituídos pelo
hectares de soja, 14 milhões de hectares de INCRA. A conjunção coordenativa “ou”, para
milho, 7 milhões de hectares de cana-de-açúcar além de ligar duas expressões, põe em questão
e 1 milhão de hectares de algodão. Levando em um limite, demarcando a impossibilidade de
consideração a projeção da CNA para 2014, “a que outros tipos de assentamentos e outros
colheita de grãos vai beirar 200 milhões de projetos, que não se afinem à proposta de
toneladas - um novo recorde -, a expectativa é “desenvolvimento sustentável”, tenham
de alta superior a 3%, para R$ 438 bilhões, condição de se beneficiar do que trata a lei em
novamente com a colaboração das carnes, para questão. Destacamos que o predomínio da
as quais o cenário para exportações é positivo” “sustentabilidade” (florestal, agroextrativista)
(CNA, 2013). assume a dianteira da proposta estatal, sendo
Os dados apresentados, quando incorporado pelo INCRA, enquanto
considerados à luz do crescimento econômico modalidade de assentamento, requisitando,
da produção agrícola brasileira e da suposta

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inclusive, uma força de trabalho especializada, refere à agricultura nos marcos da legislação
como vemos a seguir: em discussão:

SD 4 - Cargos de Analista em Reforma e SD 5 - A participação do segurado especial


Desenvolvimento Agrário, de Analista em sociedade empresária, em sociedade
Administrativo e cargos de Nível Superior simples, como empresário individual ou
do Quadro de Pessoal do Instituto Nacional como titular de empresa individual de
de Colonização e Reforma Agrária - responsabilidade limitada de objeto ou
INCRA (Lei nº12.708, 17/08/2012, Cap. âmbito agrícola, agroindustrial ou
IV, Seção I, art.76). agroturístico, considerada microempresa
(MP nº 619, 06/06/2013, art. 16, § 12).
O reordenamento da agricultura
brasileira tem exigido, para além de mudanças É predominante na legislação, que em
na legislação e nos investimentos financeiros, a tese trataria da proposta de reforma agrária, a
formação de força de trabalho qualificada para apresentação das diretrizes de fortalecimento
atuar em um contexto de constantes do mercado, como se tal reforma já tivesse sido
transformações. Dentro da proposta estatal de feita ou como se não fosse mais necessária.
“desenvolvimento” para os diversos segmentos Pelo que entendemos, o que ainda respinga na
da agricultura assume destaque na SD acima a legislação é apenas um resquício do “uso da
questão do “analista em Reforma e terra” e não mais de sua posse
Desenvolvimento Agrário”. A aparente “democratizada”. A unidade produtora familiar
supressão da expressão “agrária” após a palavra comparece como a aposta para o fortalecimento
“Reforma” poderia indicar uma estratégia de empresarial da agricultura, nos limites do que
evitar repetição, em função da designação diferencia a “pequena” da “grande produção”, a
“Desenvolvimento Agrário”. Todavia, chama partir da lógica do mercado. Trata-se, portanto,
atenção o fato da ordem em que as expressões de um momento importante no silenciamento,
comparecem, uma vez que não se trata de no que entendemos por silêncio constitutivo
“analista em Desenvolvimento e Reforma secundário, enquanto novas formas de não
Agrária”. Em linhas gerais, o discurso dizer, a partir do silêncio constitutivo primário.
oficializado vai deslocando a “reforma” agrária Trata-se de uma resposta a um segundo
e em seu lugar passa a significar o momento em que as pressões dos movimentos
“desenvolvimento” agrário, tratando-se de um sociais pela reforma agrária já não se tornam
processo em que o desenvolvimento agrário se tão acirradas, possibilitando ao Estado o
fortalece, enquanto a reforma perde força. O desenvolvimento de uma nova política de
atendimento às determinações do mercado é silêncio, desta vez silenciando não somente o
silenciado, sob a aparência de que o Estado, a que já vinha sendo silenciado no primeiro
partir dele mesmo, assumiu a responsabilidade momento, mas também o que ali foi possível
com a formação de quadro. A SD a seguir, dizer.
entretanto, nos ajuda a entender a 3. Considerações finais
materialização da FI do Capital, no que se
A questão da terra é constitutiva nos
interesses do Estado no seu dever autoatribuído

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1089
de legislar sobre as relações sociais e atribuições do Ibra e do Inda. Brasília, DF:
econômicas do campo, desde o momento mais 1970.
inicial da colonização. Estudando o ______. Lei nº 7.739. Dispõe sobre a
silenciamento da reforma agrária no discurso organização da Presidência da República e dos
do governo brasileiro, como foco no primeiro Ministérios. Brasília, DF: Presidência da
mandato do governo Dilma, identificamos uma República, 1989.
transição para o predomínio do que
consideramos inicialmente “momento” ______. Medida Provisória nº 150, de 15 de
secundário, produzindo sentidos alinhados ao março de 1990. Cria o Ministério da
discurso do desenvolvimento agrário, em seus Agricultura e Reforma Agrária. Brasília, DF:
múltiplos desdobramentos. Anteriormente, no Presidente da República, 1990.
silêncio constitutivo primário, para não dizer ______. Medida Provisória nº 2.213-37. Altera
“luta dos movimentos sociais do campo contra a última organização da Presidência da
a propriedade privada”, o Estado disse “luta República (Lei nº 9.649, de 27 de Maio de
pela Reforma Agrária”. Por sua vez, no 1998). Brasília, DF: Presidência da República,
silêncio constitutivo secundário, não se trata 2001.
mais de dizer “reforma agrária” para não dizer
“luta dos movimentos sociais do campo contra ______. Lei n° 12.384, de 03/03/2011. Abre
a propriedade privada”, agora se trata de não crédito extraordinário, em favor do Ministério
dizer as duas coisas, ao mesmo tempo, e em do Desenvolvimento Agrário, no valor de R$
seu lugar, apresentar o desenvolvimento 210.000.000,00 (duzentos e dez milhões de
agrário, enquanto novo modelo produtivo reais), para o fim que especifica. Brasília, DF:
ajustado aos interesses do capital. Embora com GP, 2011.
contornos legais demarcados desde 2001, tal ______. Lei nº 12.512, de 14/10/2011. Institui
silêncio tem assumido o momento o Programa de Apoio à Conservação Ambiental
predominante no discurso oficializado, ao e o Programa de Fomento às Atividades
longo dos governos do PT, e desde o primeiro Produtivas Rurais [...]. Brasília, DF: GP, 2011.
mandato do governo Dilma, há uma tendência
______. Lei nº12.708, de 17/08/2012. Dispõe
de sua intensificação.
sobre as diretrizes para a elaboração e execução
da Lei Orçamentária de 2013 e dá outras
Referências providências. Brasília, DF: GP, 2012.

AMARAL, M. V. B. A dialética do arquivo: ______. M. P. nº 619, de 06/06/2013. Autoriza


“pensar para trás”, entender o presente e mudar a Companhia Nacional de Abastecimento a
o futuro. Revista Conexão Letras. Vol. 9, n.11. contratar o Banco do Brasil S.A. ou suas
Porto Alegre: PPGL/UFRGS, 2014. p.11-22. subsidiárias para atuar na gestão e na
fiscalização de obras e serviços de engenharia
BRASIL. ______. Decreto-Lei nº 1.110. relacionados à [...]. Brasília, DF: GP, 2013.
Criação do Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária (Incra), absorvendo as ______. Lei nº 12.952, de 20/01/2014. Estima a
receita e fixa a despesa da União para o

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1090
exercício financeiro de 2014. Brasília, DF: GP, Agropecuário confirma: agricultura
2014. camponesa é a principal produtora de
alimentos do país. (18/02/10). Disponível em
CONFEDERAÇÃO NACIONAL DA
http://mpabrasiles.wordpress.com/2010/02/18/c
AGRICULTURA E PECUÁRIA – CNA. CNA
enso-agropecuario-confirma-agricultura-
prevê altas do PIB do campo em 2013 e 2014.
camponesa-e-a-principal-produtora-de-
Disponível em
alimentos-do-pais/. Acesso em: 21/03/2015.
http://www.aviculturaindustrial.com.br/noticia/
cna-preve-altas-do-pib-do-campo-em-2013-e- NUNES, J. H. O discurso documental na
2014/20131212084548_L_875. Acesso em: história das ideias linguísticas e o caso dos
12/03/2015. dicionários. Alfa, São Paulo, 52, 2008, p.81-
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FILIPPI, E. E. Reforma agrária: experiências
seer.fclar.unesp.br/alfa/article. Acesso em
internacionais de reordenamento agrário e a
09/05/2014.
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Alegre: Editora da UFRGS, 2005. ORLANDI, E.P. As formas do silêncio – no
movimento dos sentidos. 6. ed. Campinas, SP:
FOUCAULT, M. A arqueologia do saber.
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Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. 7. ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2010. ORLANDI, E. et al. Vozes e Contrastes.
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INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA
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Agropecuário 2006/2007. Brasília, DF: IBGE, PÊCHEUX, M. Ler o arquivo hoje. In:
2009. ORLANDI, Eni Puccinelli (org.). Gestos de
Leitura: da história no discurso. 2. ed.
LENZA, P. Direito Constitucional
Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1997.
esquematizado. 10. ed. São Paulo: Editora
Método, 2006. ______. O Discurso: estrutura ou
acontecimento. Trad. Eni P. Orlandi. 5. ed.
GUIMARÃES, A. P. As três frentes da luta de
Campinas/SP: Pontes Editores, 2008.
classes no campo brasileiro – 1960. In:
STÉDILE, João Pedro (org.). A questão agrária ______; FUCHS, C. A propósito da análise
no Brasil – o debate tradicional: 1500-1960. 2. automática do discurso: atualização e
ed. São Paulo: Expressão Popular, 2011. perspectivas (1975). In: GADET, F; HAK, T.
(orgs.). Por uma análise automática do
MARX, K. O Capital – crítica da Economia
discurso: uma introdução à obra de Michel
Política. (1867). 27. ed. Rio de Janeiro:
Pêcheux. Campinas, SP: Editora da Unicamp.
Civilização Brasileira, 2010. Vol. 1.
1997.
MÉSZÁROS, I. A crise estrutural do capital.
TONET, I. Método Científico: uma abordagem
Trad. Francisco Raul Cornejo et al. São Paulo:
ontológica. São Paulo: Instituto Lukács, 2013.
Boitempo, 2009.
Site: www.agricultura.gov.br/legislacao/sislegis
MOVIMENTO DOS PEQUENOS
AGRICULTORES – MPA. Censo

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

1091
A REPRESENTAÇÃO DE ANNA KARIÊNINA NO GÊNERO
FÍLMICO

Tatiele Novais SILVA


Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP-Araraquara)
tatiele_ns@hotmail.com

Resumo: O presente artigo propõe estudar a questão dos valores ideológicos e como este
influenciam na construção estética e no estilo constituintes dos discursos presentes no
gênero fílmico. Para tanto, analisa-se o discurso da obra fílmica Anna Karenina, de 2012,
levando em consideração a caracterização verbo-voco-visual do gênero fílmico. O estudo
está fundamentado na filosofia da linguagem do Círculo de Bakhtin, por meio das
concepções de gêneros do discurso, diálogo e sujeito conforme as ideias do Círculo. Por
meio do estudo é possível a compreensão dos elementos que compõe o gênero fílmico e a
construção do sujeito Anna Kariênina na obra estética.
Palavras-chave: círculo de bakhtin; sujeito; anna kariênina.

linguagem do Círculo de Bakhtin, Voloshinov


Introdução
e Medviedev.
Este artigo tem como objetivo estudar
Os estudos do Círculo de Bakhtin
as particularidades pertencentes ao gênero
acerca da linguagem propõem uma reflexão
fílmico e sua construção estética. Para tanto é
sobre o discurso como dialógico. O discurso é
analisado o discurso da obra fílmica Anna
constituído por sujeitos, produzido mediante
Karenina (2012), a obra em questão é uma
ações humanas e em contextos históricos e
releitura do romance Anna Kariênina de Toltói.
culturais. Ao se estudar o discurso, leva-se em
Neste trabalho, contudo, abordaremos como
consideração, os fatores linguísticos e os
objeto de estudo apenas a releitura para se
extralinguísticos (os contextos extraverbal dos
refletir sobre a questão do gênero fílmico e
quais nascem os fatores linguísticos), os quais
acerca da composição do sujeito feminina Anna
o constitui e o afirma como tal. O gênero
Kariênina na obra1. A fundamentação teórica
fílmico em sua arquitetônica envolve o diálogo
deste artigo está calcada na filosofia da
entre os elementos verbo-voco-visual que estão
interligados na constituição deste gênero e
1
Apesar de não abordamos o romance, utilizamos a influenciam na produção de sentido dos
escrita dos nomes dos personagens a partir da tradução enunciados.
direta do russo para o português presente na edição de
2009.

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1092
2. O acabamento estético da obra O estilo apresentado pela obra fílmica
está relacionado com o fato de o gênero da obra
O filme, como gênero, integra
permitir que determinadas maneiras de
elementos dos gêneros primários (como a
apresentação do discurso seja possível, por
oralidade do cotidiano) e lhes dá acabamento
exemplo, a obra fílmica Anna Karenina (2012)
estético, por isso pode ser visto como
apresenta os elementos relacionados ao cenário
complexo, sendo, então, gênero secundário.
do filme semelhante a representação do cenário
Sua arquitetônica leva em consideração uma
como o típico do teatro.
série de elementos organizados para sua
composição, sendo eles a música, as imagens Essa incorporação de elementos
dos sujeitos e do cenário, o arranjo dos próprios de outro gênero só é possível porque
diálogos e o aparato tecnológico, o foco, a as características estáveis e particulares ao
encenação, o figurino, a gestualidade, as cores, gênero fílmico possibilitarem esta incorporação
entre outros. Esses elementos são essenciais ao material visual e estético da obra.
para a composição da forma, do estilo e do O acabamento da obra estética está
conteúdo do gênero fílmico, pois eles o relacionado com o aspecto composicional que
caracterizam arquitetonicamente. A interação contribui para o surgimento de particularidades
das diferentes manifestações de linguagem que pertencentes a obra estética. O ato criativo
compõem esse gênero colabora para a envolve o processo de transposição do
representação de valores culturais nessa forma conteúdo em que a obra fílmica se baseia o
artística. romance Anna Kariênina de Tolstói. Essa
O acabamento estético da obra está transposição passa pelo processo de adequação
relacionado aos elementos que compõe o ao gênero, o conteúdo será então reelaborado e
gênero, sendo eles a forma o conteúdo e o recriado conforme o material pertencente ao
estilo. Ao refletir sobre o gênero fílmico, mais gênero fílmico.
especificamente sobre obra Anna Karenina O autor-criador incorpora à releitura
(2012) surge a questão do estilo e como ele não apenas os valores que permeiam a obra
interfere na representação do conteúdo e da matriz como também os valores que o
representação do conteúdo e sujeito na
constroem como autor e suas concepções sobre
narrativa fílmica. Segundo Bakhtin: arte. Uma nova obra é elaborada de acordo com
[...] Todo estilo está indissoluvelmente o discurso da época de produção e de acordo
ligado ao enunciado e às formas típicas do com o arranjo do visual, do roteiro e da música.
enunciado, ou seja, aos gêneros do Ao assumir o papel de criador, o autor
discurso. Todo enunciado – oral e escrito, passa a incorporar em seu discurso uma
primário e secundário e também em
linguagem que reflete e refrata não só a sua voz
qualquer campo da comunicação discursiva
como também um conjunto de vozes sociais
(rietchevóie obschênie) – é individual e por
isso pode refletir a individualidade do que compõem o âmbito social ao qual está
falante (ou de quem escreve), isto é, pode inserido. Essas vozes favorecem e contribuem
ter estilo individual. (BAKHTIN, 2006, no ato artístico que se torna caracterizado por
p.265) estilo individual por causa da maneira como se

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1093
dá à criação e o modo como se dá o trabalho valores sociais são confrontados pela posição
com a linguagem no processo da construção do de adúltera da personagem. Em termos legais
discurso estético. Como autor, o sujeito Anna é esposa de Kariênin que nega lhe
ressignifica e interpreta o mundo a seu modo, conceder o divórcio, contudo, ela vive com
ao considerar todo o contexto de criação da Vrónski.
obra (sua ideologia). Conforme Bakhtin: O trecho a ser discutido trata da
Todo enunciado é um elo na cadeia aparição de Anna na ópera, a ópera representa o
discursiva. É a posição ativa do falante espaço social para aristocracia. Devido a sua
nesse ou naquele campo do objeto e do postura como sujeito, Anna é aconselhada a
sentido. Por isso cada enunciado se não freqüentar este espaço por Vrónski, o
caracteriza, antes de tudo, por um personagem tem consciência de que o grupo
determinado conteúdo semântico-objetal. A social o qual antes a personagem era parte
escolha dos meios lingüísticos e dos agora não mais a aceita por suas ações.
gêneros de discurso é determinada, antes de Contudo, Anna o confronta afirmando que não
tudo, pelas tarefas (pela idéia) do sujeito do se envergonha de suas escolhas e decidi ir à
discurso (ou autor) centradas no objeto e
ópera. Podemos perceber por meio da situação
no sentido. È o primeiro momento do
como os sujeitos são afetados pelo ato do
enunciado que determina as suas
peculiaridades estilístico-composicionais. adultério em sua constituição que foge as
(BAKHTIN, 2006, p.289) convenções sociais. Ser adúltero passa a
compor estes (Vrónski e Anna) como sujeito.
As peculiaridades da obra decorrem de A personagem produz os seguintes
sua construção artística em momentos enunciados antes do episódio na ópera ao
históricos que favorecem determinados valores, confrontar Vronsky, “Não tenho vergonha do
essas particularidades só são possíveis que sou ou do que fiz/ Você tem vergonha de
mediante a relação entre os elementos verbo- mim?”. Após a ida à ópera novamente em
voco-visual próprio do gênero fílmico. diálogo com o parceiro Anna diz “Se você me
amasse, teria me trancado e me impedido de
3. Análises e discussão ir!”.
Pensar as relações entre os sujeitos por Por meio dos enunciados produzidos
meio da linguagem possibilita identificar os pela personagem percebe-se como a relação
valores ideológicos, éticos e morais do sujeito e com “os outros” presentes no espaço da ópera e
seu grupo social. Os valores são ligados aos os embates entre as posturas e ideologias dos
discursos e é por meio do signo ideológico que sujeitos vão interferir no sujeito Anna
é possível visualizar valores humanos, por Kariênina. Em um momento anterior ao
exemplo, o adultério como ato é condenado acontecimento a personagem declara não ter
pelos sujeitos e pelas relações que denunciam vergonha de suas decisões e após o episódio da
seus valores que diz respeito à este ato. ópera toma conhecimento de si e de sua
Com intuito de compreender as relações posição no grupo social que antes era parte e
que compõe o sujeito Anna Kariênina, aborda- agora a excluí.
se um trecho expressivo da obra fílmica em que

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1094
espaço da ópera e como os enunciados
Pode-se pensar conforme a concepção
produzido por esses personagens produzem
de sujeito do Círculo que antes da ida à ópera a
sentido e constituem o sujeito Anna Kariênina.
personagem pode ser vista com um sujeito
O trecho a seguir é a transcrição da conversa
incompleto, ela é ciente de suas ações, mas não
entre Vária e Vrónski na qual os sujeitos
consciente das reações que elas podem causar
entram em confronto ao falar sobre Anna:
mediante a posição de adúltera diante de seu
grupo social. Após o confronto com “os outros” — Vai chamar Anna?
presentes na ópera e que reagem ao fato de a — Oh. Alexei. Gosto muito de...
personagem ser considerada adúltera, Anna — Pelo amor de Deus!
como sujeito pode-se ser vista em sua — Ana não é uma criminosa
completude. — Eu a chamaria se tivesse violado a lei,
mas ela violou as regras
Esses “outros” vão reafirmar a (Anna Karenina, 2012, Cap.17)
personagem como adúltera e fazê-la consciente
de sua posição como tal, assim como excluir
Por meio da conversa percebe-se que
ela como membro desse grupo social e fazendo
Vária mantém a posição de excluir Anna,
Anna Kariênina tomar consciência de não
quando Vrónski defende Anna a personagem
pertencimento ao espaço social que antes
apresenta o seguinte discurso “Eu a chamaria se
ocupava por causa de sua condição de adúltera.
tivesse violado a lei, mas ela violou as regras”.
No fotograma seguinte pode-se observar O enunciado produzido por Vária tenta
a recepção de Anna ao se dirigir ao camarote justificar a exclusão de Anna por causa de seus
do teatro, a reação dos sujeitos da cena é de atos e retoma os valores e as regras do círculo
espanto e indignação ao mesmo tempo em que social o qual os personagens estão inseridos. O
abrem espaço enquanto personagem se desloca, discurso retomado no enunciado da
como forma de evidenciar e excluir o sujeito. personagem dialoga com valores de seu grupo
Figura 01 social, o ato de condenar presente no enunciado
de Vária pode ser visto um ato que reflete a voz
do grupo social e seus valores que
transparecem por meio do sujeito.
O fragmento seguinte representa o ápice
do conflito na ópera. O julgamento de valores
em relação à Anna vai ser materializado no
verbal por meio da voz de uma senhora que
verbaliza as ações e pensamentos das pessoas
no que diz respeito a Anna. Esse ato revela a
contradição entre o ser e o parece, pois ao
mesmo tempo que ela enuncia o que podemos
Para a compreensão da temática do pensar como o julgamento de seu grupo social,
adultério e das relações de alteridade na obra seu marido tenta a silenciar e evitar os olhares
será abordado a fala de alguns personagens no alheios, olhares estes que condenam Anna e

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1095
também condenam o escândalo e a exposição camarote apenas em companhia de Princesa
da senhora. Myagkaya e de um rapaz.
Percebe-se que neste excerto a No plano visual Anna acaba separada e
condenação da personagem pela condição de excluída de todos os outros como nota-se por
adúltera ocorre por meio da exclusão social meio da Figura 4, a exclusão ocorre por meio
como na passagem apresentada anteriormente. do verbal e do visual que se complementam
A visão tida é do sujeito feminino como para ilustram a situação da personagem. O
rebaixado por seus atos, dando ao sujeito a sujeito percebe e assume ao ser excluído sua
completude de sua faceta adúltera mediante os condição de adúltero mediante os valores
valores sociais do grupo que ela se insere. sociais em embate por meio de enunciados
Segue a passagem: outros que vão cercá-la no espaço da ópera.
Figura 02
— Isto é uma desgraça.
— Calma, querida,uma simples cortesia.
— Todos estão olhando.”
— Deixe-os olhar!
— Traga minha capa.
— A que ponto chegamos?
— É um insulto à decência.
— Leve-me para casa.
— Calma. Eu imploro, querida.
— Foram apenas algumas palavras.
— Eu tenho algumas palavras para pessoas
com quem não quero ficar lado a lado.
— Ela se atreve a agir como uma qualquer
na frente de todos.
(Anna Karenina, 2012, Cap.17)
Figura 03
Após esse acontecimento a sequência de
fotogramas seguintes vão apresentar uma
platéia que observa o que acontece de maneira
semelhante a quem assiste a uma ópera como
se observar nas figuras 2 e 3, pode-se pensar
que o observar dos sujeitos é um olhar punitivo
de um grupo social que condena o sujeito e o
excluí. O gênero fílmico permite se pensar nos
elementos verbal e visual que se
complementam e são importantes para se
compreender as relações presentes no discurso
e a composição do sujeito Anna kariênina que
acaba no final da sequência isolada no

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1096
Figura 04
a relação seja concebida de forma legal
mediante o casamento.
A personagem Betsy retoma o discurso
e os valores de seu grupo social, por meio dos
enunciados “Alexei, você entende porque ela
deve se divorciar”, “O casamento vai resolver
tudo” e “Como você viu ela não é.” Percebe-se
que os estes enunciados retomam o casamento
e o divórcio legitimados mediante as regras da
sociedade em questão, a aristocracia russa. O
discurso de Betsy assim como das outras
personagens mencionados anteriormente
questionam a posição de Anna, dialogam e
Como sequência que finaliza o representam a sociedade que condena o ato do
acontecimento na ópera ocorre a seguinte adultério como sujeitos que se colocam na
conversa entre Vrónski e Princesa Betsy a posição de julgar e fazer a personagem se situar
respeito da situação de Anna, após mediante suas ações como não aceitáveis ao
presenciarem a personagem ser condenada pela dialogarem com o discurso social que condena
senhora por ser adúltera: o adultério.
Os sujeitos se influenciam de forma
— Alexei, você entende porque ela deve mútua como pode-se observar por meio dos
se divorciar personagens e dos trechos citados, eles
— O casamento vai resolver tudo estabelecem uma relação na qual opiniões e
— Quando é que vai ser?
valores são postos em destaque. Essas relações
— No que me diz respeito, ela já minha
esposa permitem identificar e compreender os valores
— Como você viu, ela não é. presentes nos enunciados produzidos pelos
(Anna Karenina, 2012, Cap.17) sujeitos e como sua constituição é permeada
pelos valores ideológicos da sociedade ou do
grupo social ao qual pertencem.
Os valores ideológicos em embate na
fala dos personagens permitem a compreensão O “eu” sempre se constituí no outro e a
de como os valores de um permeiam o outro, partir do outro, conforme o tempo e espaço e a
como ecos em suas ações que contrapõe sociedade que ocupa. O “eu” não se reconhece
valores sociais e individuais que compõe os na sua totalidade, pois é o outro que tem essa
sujeitos. Podemos notar diferentes visões do visão. O confronto com “os outros” por meio
que é ser uma esposa presente nos enunciados, da ação de Anna Kariênina de ir á ópera
a de Vrónski que considera Anna sua esposa permite este representado se reconhecer, pois
por viverem juntos e a de Betsy que diz que antes apresenta uma visão em relação a suas
Anna não é esposa de Vrónski tendo como escolhas que depois vai ser desconstruída para
argumento para tal afirmação o acontecimento o surgimento de outra visão por meio do
na ópera, ou seja, para ser esposa é preciso que episódio da ópera.

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1097
Um sujeito representa não só um BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal.
indivíduo como também determinado grupo São Paulo: Martins Fontes, 2006.
social no qual está inserido. Os discursos FARACO, C. A. Autor e autoria. In: BRAIT,
analisados evidenciam relações humanas, B. (Org.). Bakhtin – Conceitos-Chave. São
baseadas em valores relacionados ao casamento Paulo: Contexto, 2005.
como instituído social por meio de regras que a
personagem transgride e que vai afetá-la em GERALDI, J.W. Sobre a questão do sujeito.
suas relações com os “outros” do seu meio PAULA, L. de; STAFUZZA, G. (Orgs.).
social, se constituindo como o sujeito adúltero. “Círculo de Bakhtin: teoria inclassificável”.
Volume 1. Série Bakhtin – Inclassificável.
4. Considerações finais Campinas: Mercado de Letras, 2010, p.279-
O estudo da temática do adultério como 292.
ela está representada na obra analisada colabora MACHADO, I. A. Gêneros Discursivos. In
para se compreender a composição da BRAIT, B. (Org.). Bakhtin: Conceitos-Chave.
personagem feminina Anna Kariênina e os São Paulo: Contexto, 2005, p.151-166.
discursos ideológicos que estão envoltos as
suas ações e como elas são vistas pelo grupo MARCHEZAN, R. C. Diálogo. In BRAIT, B.
social o qual a personagem está inserida. (org.). Bakhtin – outros conceitos-chave. São
Paulo: Contexto, 2008, p.115-131.
O estudo da composição dos sujeitos
em diálogo com o estudo da temática colabora SOBRAL, A. Do dialogismo ao gênero: as
para a compreensão dos elementos que compõe bases do pensamento do círculo de Bakhtin.
a arquitetônica do gênero em sua forma, Campinas, São Paulo: Mercado das Letras,
conteúdo e estilo. Refletir sobre as questões 2009.
aqui propostas permite o entendimento de TOLSTÓI, L. Anna Kariênina. Tradução:
como as formas de representação por meio do Rubens Figueiredo. São Paulo; Cosac Naify,
gênero fílmico apresenta um estilo próprio que 2009.
afeta a composição estética da arquitetônica da
obra e dos sujeitos representados no discurso.

Referências
ANNA Karenina. Direção: Joe Wright. UK:
Universal Pictures, 2012. DVD(129 min.).
BAKHTIN, M. M. (VOLOSHINOV).
Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo:
Hucitec, 1997.
___. Discurso na vida e discurso na arte.
Mimeo (Circulação restrita para fins
acadêmico), s/ referências.

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1098
“FLÁVIO DINO FALA SOBRE ALIANÇAS POLÍTICAS NO
JMTV2”: INTERDISCURSOS, MEMÓRIA E HISTÓRIA EM UMA
ENTREVISTA POLÍTICO-ELEITORAL

Thayane Soares da SILVA


Universidade Federal do Maranhão (UFMA)
thayanesds@gmail.com

Resumo: Neste artigo analisa-se uma entrevista com o então candidato a governador do
Maranhão pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB), Flávio Dino, veiculada na mídia
durante as eleições estaduais de 2014. Investigamos as condições se configuram como
terreno propício para a emergência do discurso político eleitoral com a associação do
candidato ao comunismo a partir de um domínio de memória. São mobilizados conceitos e
princípios teóricos da Análise do Discurso francesa, de base foucaultiana, além dos
métodos utilizados nas pesquisas em Semiologia Histórica (PIOVEZANI FILHO;
CURCINO & SARGENTINI, 2011).
Palavras-chave: Flávio Dino; PCdoB; discurso político; comunismo.

palanque à TV e outras mídias. O


Análise do Discurso, Mídia e transformações
desenvolvimento e expansão da mídia
do discurso político
(impressa e eletrônica), dos veículos de
Sabemos que a AD se configurou, em comunicação em massa (TV, celular, internet) e
seu primeiro momento, como um campo de das instituições modernas, fez insurgir uma
articulação entre Linguística, Marxismo e reorganização espaço-temporal que possibilitou
Psicanálise que vinha sendo construída por aos sujeitos sócio-históricos uma intensa
intelectuais que nutriam um interesse especial mobilidade discursiva na pós-modernidade
pela investigação dos efeitos de sentido (geralmente demarcada a partir da segunda
produzidos a partir das campanhas políticas da metade do século XX). Momento pensado por
época, feitas principalmente através dos alguns como a modernidade líquida, em que as
pronunciamentos públicos e panfletos. relações são marcadas sobretudo pela fluidez
Transformações sociais resultantes do com que ocorrem (BAUMAN, 2005).
processo de globalização e do desenvolvimento Courtine (2011a) aponta a televisão
das tecnologias de comunicação foram como “agente mais visível” das mutações
mudanças fundamentais para que a operadas sobre a cena política contemporânea.
comunicação política fizesse o caminho do Ainda segundo o autor, na década de 80 há a

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1099
confirmação dos novos poderes da aparência, e
Nesse contexto hodierno de uma
nos anos 90 há a transformação da convicção
sociedade midiática na qual a política se
em uma certeza de que uma imagem, um gesto
apresenta como um espetáculo de embates
vale mil palavras no espetáculo político.
discursivos, focalizamos neste trabalho a
É partir dessas transformações espetacularização gerada pela mídia acerca de
incessantes que os estudiosos da AD, através de um acontecimento: a participação de um
muitos debates teórico-metodológico, candidato do Partido Comunista do Brasil nas
percebem e pensam a necessidade de fazer eleições estaduais no Maranhão de 2014. Uma
funcionar uma AD que considere o sincretismo das questões que guiam a investigação feita
do discurso político contemporâneo inserido neste artigo são: que condições se configuram
nessas novas práticas de comunicação como terreno propício para a emergência desse
audiovisual. A AD tem proposto reflexões discurso político eleitoral com a associação do
constantes para a compreensão dos diversos candidato Flávio Dino (PCdoB) ao comunismo
acontecimentos discursivos (religiosos, a partir de um domínio de memória? Para
culturais, mitológicos, etc.) em diferentes tentar respondê-la, consideramos ser de grande
materialidades (verbais e não-verbais) à medida importância uma reflexão, mesmo que breve,
que as sociedades se transformam social, sobre o contexto sócio-histórico da inserção e
econômica e culturalmente. ascensão do candidato na cena política
Sobre este fato é necessário atentar ao maranhense.
que defende Sargentini (2011) sobre os 1. Flávio Dino e eleições no Maranhão
sentidos também serem produzidos pela
Depois de finalizar a graduação em
materialidade e pela forma de circulação dos
direito pela Universidade Federal do Maranhão
discursos, para não limitar as análises dos
em 1991, Flávio Dino voltou à mesma
discursos políticos atuais ao material
universidade para trabalhar como professor
linguístico das campanhas eleitorais. Nesse
após ser aprovado em concurso público em
sentido a Semiologia Histórica tem sido um
1993. Em outro concurso Flávio Dino
importante aporte, resultante dos trabalhos de
concorreu ao cargo de juiz federal, o qual
Courtine, para investigações da AD que se
exerceu por 15 anos no Maranhão chegando a
preocupam com a relação entre discurso e
ser presidente da Associação Nacional dos
história e envolvem análises de textos
Juízes Federais e secretário geral do Conselho
sincréticos.
Nacional de Justiça, o que fez seu nome
Os estudos sobre a mídia também aparecer na mídia em nível nacional. O então
podem estabelecer diálogos bastante produtivos ex-juíz federal, que havia sido filiado ao PT de
com a AD, segundo Gregolin (2007). A autora 1987 a 1994, filiou-se ao partido PCdoB em
propõe um diálogo entre os estudos da mídia e 2006 com vistas a concorrer às eleições a
o campo da AD já que o objetivo deste é deputado federal pelo Maranhão, ao qual foi
entender a produção social dos sentidos, por eleito no mesmo ano. Este é o momento no
meio de materialidades (verbais ou não- qual o candidato ingressa na vida política.
verbais) instauradas por sujeitos históricos.

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1100
político João Castelo. Em 2010, na reta
Em 2008 Flávio Dino se lança em final da campanha para o governo do
campanha nas eleições municipais de São Luís, Estado, obteve um bom desempenho nas
intenções de voto, alcançando o segundo
em coligação entre PCdoB e PT. Naquele
lugar na disputa eleitoral.
momento, alguns dos adversários de Flávio
Dino que mais se destacavam nas pesquisas
como João Castelo, Clodomir Paz e Raimundo O ano de 2014 foi marcado como
Cutrim valeram-se das “prévias experiências último ano do governo de Roseana Sarney, que
administrativas e de gestão pública (por eleição havia sido vitoriosa nas eleições estaduais de
ou indicação para cargos de confiança) e as 2010, em um mandato iniciado logo após ter
acionaram com o propósito de dar consistência voltado ao cargo em 2009 por decisão do
e confiabilidade aos seus discursos e Tribunal Superior Eleitoral que destituiu do
propostas.” (BORGES, 2008, p.12). Assim, poder o então governador Jackson Lago por
apesar de veicular naquela campanha a auto- denúncias de irregularidades durante as
imagem de um candidato novo, que estava eleições de 2006.
aliado a Lula e preparado pela sua formação O cenário político-eleitoral maranhense
acadêmica, conhecimento das leis e dos de 2014 foi marcado pelo embate dos
caminhos de obtenção de recursos, o candidato candidatos que figuravam à frente da disputa:
foi apresentado pelos oponentes como Edison Lobão Filho (PMDB), apoiado pela
inexperiente, comunista, sarneysta e inimigo então governadora, e Flávio Dino (PCdoB).
dos mais velhos e das Igrejas (BORGES, Flávio Dino já havia sido candidato a
2008). Essa não veio a ser uma disputa governador do estado em 2010, quando perdeu
vitoriosa para Flávio Dino, mas foi importante as eleições em primeiro turno para Roseana
para o caminho político do candidato “que Sarney; já em 2014 o candidato angariou novas
passou de 4% das intenções de voto no início alianças com partidos de oposição e ex-aliados
da campanha para 34% dos votos” (GOMES, ao governo do estado, o que indicava uma
2008, p.19), disputando o segundo turno com maior expectativa de vitória.
João Castelo.
Durante o período eleitoral as
Sobre essa jornada política percorrida propagandas políticas, notícias e entrevistas
por Flávio Dino de 2006 a 2010 e seu destaque com os candidatos colocaram em discussão
no cenário político da capital Maranhense, alguns temas que estavam mais em evidência,
Moura (2013, p. 39) comenta: como a segurança pública, por causa do então
recente destaque nacional e internacional dado
Na eleição de 2006, Flávio Dino foi o à crise no Complexo Penitenciário de
quarto candidato mais votado em todo
Pedrinhas; mudança, em razão da luta que os
Maranhão. Durante seu mandato foi eleito,
pelo site Congresso em Foco, um dos candidatos de oposição assumiam como apelo
melhores parlamentares do país, por quatro para o fim da chamada “oligarquia”, referente
anos consecutivos. A boa avaliação de sua ao duradouro comando da família Sarney no
atuação na Câmara Federal o habilitou a estado; e aquele que nos chamou atenção para a
disputar a prefeitura de São Luís, em 2008, investigação que propomos: o tema religião. A
perdendo a disputa no segundo turno para o fé cristã veio a ser um tema bastante produtivo

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1101
por razão da presença de um candidato do
É a partir dessas discussões da relação
Partido Comunista do Brasil no pleito.
da mídia com a produção de sentidos e da
Apesar de já ter tido destaque nacional observação dos jogos identitário no cenário
por outros papéis políticos como os de político maranhense durante as eleições de
deputado federal e ex-presidente da Embratur, 2014 que este trabalho se propõe a investigar
Flávio Dino apareceu na mídia por diversas também a produção e circulação social dos
vezes através de suas próprias entrevistas, discursos e interdiscursos que emergiram na
debates e nas campanhas de seus opositores mídia a partir da associação do candidato
sendo discursivizado como “o candidato Flávio Dino à memória do comunismo.
comunista”.
2. Discurso, enunciado, formação e práticas
No espetáculo político-eleitoral de 2014 discursivas
no Maranhão a identidade do candidato do
Para Foucault (2014, p.132-133), o
PCdoB como comunista não aparecia como
discurso é “constituído de um número limitado
uma marca de sua propaganda política, mas, ao
de enunciados para os quais podemos definir
mesmo tempo, percebemos que essa identidade
um conjunto de condições de existência” e há
foi evidenciada pelo próprio candidato em
sempre um princípio de dispersão que os rege.
alguns momentos, por exemplo, logo após a
Esse princípio de dispersão refere-se à
vitória nas eleições quando “‘Ele homenageou
construção de um discurso a partir de vários
o pai, Sálvio Dino, 84, que teve o mandato de
outros, dispersos em diferentes textos de
deputado estadual cassado em 1964 "sob a
diversas materialidades, em distintos momentos
acusação de ser comunista’. ‘Nós vencemos,
da história.
pai, os comunistas venceram.’" (CAMPANHA,
2014); ou também em entrevistas, como a A partir do conceito foucaultiano de
analisada a seguir, e em debates nos quais o discurso acima citado entendemos o enunciado
candidato viu-se apresentado através das como unidade mínima dos acontecimentos
palavras do entrevistador como um comunista e discursivos, que emerge sempre em conexão
ateu. com outros enunciados e pertencem a uma
mesma formação discursiva (FD).
Assim, Flávio Dino apareceu em alguns
jornais, blogs e nas campanhas de seus Como já abordado no tópico anterior a
adversários políticos como um “comunista do produção dos discursos na pós-modernidade
mal”, sem religião, enquanto em suas acontece de forma bem intensa no espaço
entrevistas e em jornais de esquerda (como a midiático. E segundo Gregolin a mídia pode ser
Carta Capital e Fórum) apareceu por vezes entendida como prática discursiva
como um “comunista cristão”. Essa associação (GREGOLIN, 2007), o que para Foucault
de Flávio Dino à memória de um “comunismo (2014, p.143) relaciona-se a:
do mal” gerou efeitos de sentido também no
discurso do candidato Lobão Filho, por um conjunto de regras anônimas,
exemplo, que em alguns momentos encerrou históricas, sempre determinadas no tempo e
no espaço, que definiram, em uma dada
sua fala nos debates televisivos fazendo os
época e para uma determinada área social,
agradecimentos em forma de oração.

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1102
econômica, geográfica ou linguística, as
condições de exercício da função enunciados analisados - a entrevista, no intuito
enunciativa. de compreender o que deve e o que pode ser
dito nesse gênero, as instituições que regulam
seus dizeres. A entrevista como gênero
Pensando a partir de Foucault, a
discursivo pertencente ao domínio jornalístico;
construção de efeitos de sentido na mídia não
é uma prática social bastante comum em época
se dá de qualquer maneira, ao acaso, não
de eleições que envolve atores sociais
corresponde à mera expressão. Sobre isso
(entrevistadores/repórteres/apresentadores e
assevera Foucault (2010) na obra A ordem do
candidatos/entrevistados), contexto enunciativo
discurso, na qual reflete sobre esse sistema de
e uma fala que os autoriza.
controle e delimitações no qual os discursos se
constituem e afirma que: Gregolin (1997) ressalta que a situação
(concreta), o contexto real e o esquecimento
[...] em toda sociedade a produção do são elementos, do domínio do real e do
discurso é ao mesmo tempo controlada, imaginário, que constituem as condições de
selecionada, organizada e redistribuída por produção de um dizer. Nesse sentido, a
certo número de procedimentos que têm
intertextualidade é constituinte do texto
por função conjurar seus poderes e perigos,
dominar seu acontecimento aleatório, jornalístico em diferentes níveis e a construção
esquivar sua pesada e temível dos sentidos no jornal acontece nas dimensões
materialidade. (FOUCAULT, 2010, p.8-9). do sujeito da escrita, do destinatário e dos
textos exteriores.
Ao nos inserir na ordem do discurso, No caso em análise a entrevista se
nos filiamos a determinadas regras, expondo apresenta não na forma escrita, mas na
relações que correm dentro de um discurso e materialidade imagética de um jornal televisivo
perpassam um campo de memória. Podemos de grande audiência no Maranhão. O Jornal do
questionar então: Quais efeitos de sentido Maranhão em seu horário de 2ª edição
emergem dos mecanismos discursivos que (JMTV2), exibido às 19 horas a todo território
constituem o discurso político-eleitoral desse maranhense1, apresentou uma série de
candidato do PCdoB em sua participação nessa entrevistas intitulada “Eleições 2014” com os
entrevista? Quais efeitos de sentido emergem candidatos ao cargo de governador do estado.
dos mecanismos discursivos que constituem o No dia 22 de agosto o candidato Flávio Dino
discurso jornalístico nessa entrevista? Quais foi entrevistado, data decidida por meio de
pré-construídos e interdiscursos irrompem na sorteio. A TV Mirante ocupa a posição desse
superfície desse discurso político-eleitoral? “sujeito da escrita”, representado pelo repórter
3. “Flávio Dino fala sobre alianças políticas
no JMTV2” 1
O jornal também foi exibido ao vivo para todo o
território nacional através do portal da internet G1
No intuito de entender essas questões e
Maranhão: G1 MARANHÃO. Flávio Dino fala sobre
as questões sobre as condições de possibilidade alianças políticas no JMTV2. Disponível em: <
e de produção desses discursos cabe observar o http://g1.globo.com/ma/maranhao/eleicoes/2014/noticia/
gênero discursivo no qual se encontram os 2014/08/flavio-dino-fala-sobre-aliancas-politicas-no-
jmtv2.html>. Acesso em: 10/08/2015.

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1103
da emissora Sidney Pereira e a âncora do Jornal meio das vozes de outros enunciadores que são
do Maranhão, Amanda Couto. No caso esse retomadas e reformulações:
“sujeito da escrita” na entrevista televisiva
trata-se do sujeito em posição privilegiada de “[...] memória como estruturação de
veículo de opinião que elabora as perguntas materialidade discursiva complexa,
previamente e determina o tempo e regras da estendida em uma dialética da repetição e
da regularização: a memória discursiva
entrevista, no caso 6minutos e 30segundos, dos
seria aquilo que, face a um texto que surge
quais os últimos 30 segundos são reservados como acontecimento a ler, vem restabelecer
para que o candidato resuma suas propostas os ‘implícitos’ (quer dizer, mais
prioritárias de governo. tecnicamente, os pré-construídos,
O domínio de canais midiáticos por elementos citados e relatados, discursos-
transversos, etc.) de que sua leitura
parte de famílias de políticos famosos no Brasil
necessita: a condição do legível em relação
é uma prática comum, podemos citar como ao próprio legível.” (PECHÊUX, 2007,
outros exemplos: família Magalhães, na Bahia p.52).
e a família Collor, em Alagoas. E uma
informação que pode passar despercebida por
um telespectador/internauta que não conhece a Podemos entender por meio dessa
cena política e midiática do Maranhão é o fato memória, que é social, a retomada das vozes de
da TV Mirante ser um canal televisivo que outros enunciadores na entrevista jornalística
pertence a familiares de José Sarney, que vem sendo analisada. O discurso tem como
importante político maranhense. Essa particularidade de sua construção atualizar
informação é pertinente à medida que pode outros discursos, que acontece até para no caso
afetar a construção das leituras do telespectador em análise, através da citação, por exemplo.
da construção da enunciação, formulação das Como a entrevista aconteceu ao vivo
questões que acontecem na entrevista. em um jornal televisivo, o enunciador, apesar
Quanto a esse destinatário na situação de poder formular previamente e controlar o
concreta imediata de enunciação, é a Flávio tempo da enunciação, não pode, por exemplo,
Dino em sua posição sujeito de candidato do editar as respostas do entrevistado. Segundo o
PCdoB que as perguntas se dirigem, por vezes Portal G1 Maranhão (2014a): “Durante as
em sua posição de cidadão (não) religioso, mas entrevistas, serão abordados temas relativos às
podemos considerar também o telespectador candidaturas, pontos dos programas de governo
como destinatário, pois ele, também na posição apresentados e temas da atualidade”.
de possível eleitor do candidato, construirá sua Antes de iniciar a entrevista a âncora
leitura do enunciador e enunciatário a partir da Amanda Couto (AC) apresenta a série de
entrevista televisionada. entrevistas e passa a palavra ao repórter Sidney
O conceito de “Memória Discursiva” é Pereira (SP) que deu início à sua fala falando
relevante para a compreensão da outra do tempo e das regras da entrevista, como
dimensão desse diálogo: a conexão que a estabelecido previamente:
entrevista em análise estabelece com textos Regras
anteriores e exteriores (e até posteriores), por

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1104
Antes de cada entrevista, os apresentadores governador de todos e esse é nosso
deixarão claro que a TV Mirante não compromisso, garantir que a lei seja
poderá usar trechos da entrevista em cumprida, o nosso programa é a nossa
qualquer outro telejornal, assim como o referência. E há um aspecto muito
compromisso dos candidatos de não exibir importante, eu não sou candidato de um
trechos em seus programas eleitorais. partido, eu sou candidato de nove
Se algum candidato se considerar ofendido partidos.”
por um dos seus opositores nas entrevistas,
a direção da emissora poderá conceder
direito de resposta a esse candidato, de um Houve uma intervenção inesperada do
minuto, dentro do mesmo jornal, no dia entrevistador que tentava já iniciar a segunda
seguinte. Caso um dos candidatos se recuse pergunta, causando uma confusão de vozes. O
a participar da entrevista, os outros serão candidato então pede para concluir sua fala
entrevistados da mesma maneira. O fazendo um gesto ameno com a mão ao seu
candidato ausente não terá compensação. interlocutor como pedindo calma.
(G1 Maranhão, 2014)
Figura 1. Entrevista: discurso direto.
A primeira pergunta feita ao candidato Fonte: G1 Maranhão, 2014a.
é precedida com uma introdução em forma de
citação do estatuto do PCdoB:

SP: O estatuto do Partido Comunista do


Brasil é muito claro eu anotei, candidato:
“Os mandatos eletivos alcançados sob a
legenda do PCdoB pertencem ao coletivo
partidário. A atuação dos comunistas está a
serviço de um projeto político partidário,
segundo norma própria do comitê central.”
Isso significa que se o senhor for eleito, o Podemos perceber através desse
senhor vai ter que submeter as suas primeiro questionamento que se instaura um
decisões ao comitê central, vai ser assim? interdiscurso, através da citação, que aciona
FLD: Claro que não. Pelo contrário. Na uma memória discursiva ligada ao comunismo
verdade nosso mandato, se acontecer, que do PCdoB e a atuação de seus militantes. A
eu espero que aconteça, será de todos os pergunta é precedida de uma afirmação na
maranhenses. Na verdade o nosso objetivo forma de discurso direto, que junto aos dizeres
é fazer uma grande aliança, uma grande
cria um efeito de autenticidade das palavras.
união em favor do Maranhão. O que nosso
estatuto diz é que os partidos políticos, que Esse discurso direto, como é enunciado em
são garantidos e assegurados pela uma materialidade visual, no vídeo, não possui
Constituição, têm a sua importância na marcas de identificação como temos na escrita
democracia. Mas nem um governador pode (aspas, dois pontos), mas pode ser percebido
ser governador de um pequeno grupo, de pela imagem do repórter segurando e
uma família ou de um partido... [confusão apontando para um papel (Figura 1), à medida
de vozes] Mas você tem que ser [confusão que fala, onde lê o trecho do estatuto como
de vozes], você tem que ser de... Só anotado por ele mesmo (eu anotei).
concluir, Sidney... Você tem que ser

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1105
enunciatário sobre o “único” sentido já
O trecho “é muito claro eu anotei,
estabelecido no dizer do enunciador.
candidato” remete a imagem do enunciador,
que atravessado pela formação discursiva de Em sua resposta o enunciatário nega a
jornalista/instituição midiática, aciona algumas interpretação da citação (“Claro que não. Pelo
estratégias para se construir como sujeito contrário.”) como enunciada pelo enunciador e
imparcial e sério que busca as “fontes” (eu aponta outro sentindo que se situa na sua
anotei), como instituem os princípios do verdade (“[o estatuto] diz é que”) de sua
jornalismo. posição como candidato do PCdoB e possível
governador do Estado (repetição da expressão
Além disso, o enunciador tenta conferir,
“Na verdade”).
através do seu dizer (“é muito claro”) uma
objetividade ao interdiscurso que aciona na No trecho “O que nosso estatuto diz é
citação. Essa objetividade conferida ao texto do que têm a sua importância na democracia.”
estatuto do PDdoB nos faz lembrar das formas Percebemos que o uso do pronome possessivo
de esquecimento do qual trata a AD e que se de primeira pessoa do plural evoca a inserção
tornaram princípios dos estudos na área. do candidato na coletividade do partido e
Segundo Michel Pêcheux (1969), nosso dizer é localiza o partido dentro de um grupo maior
atravessado por dois tipos de esquecimentos. O dos partidos políticos com um todo, como
primeiro é da ordem da constituição do sujeito percebemos pela passagem de singularidade do
e do sentido o qual podemos notar pelos efeitos partido (“nosso estatuto [do PCdoB]”) para
de neutralidade acionado por algumas uma afirmação seguida de uma oração
estratégias do enunciador; e o esquecimento explicativa (os partidos políticos, que são
número 2 que é da ordem da formulação, que garantidos e assegurados pela Constituição)
se dá quando sujeito esquece que há outros que retoma a memória sobre a legalização dos
sentidos possíveis. É também chamado de partidos perante a Constituição. Em especial o
esquecimento enunciativo, e sugere que existe processo histórico de legalização do PCdoB é
uma relação termo a termo entre o que é dito, o marcado por cisões e polêmicas que até hoje
que é pensado e a realidade referida. Ou seja, produz debates entre historiadores.
quando se diz “é muito claro” se constrói esse Na conclusão da fala do candidato, nos
sentido de que a linguagem é transparente, livre chama a atenção o trecho “o nosso programa é
de equívocos ou que não há outros sentidos a nossa referência” como evocação de um
possíveis para o que está enunciado no estatuto interdiscurso, nomeando e retomando o
do partido. programa de governo e, não negando, mas re-
A citação é seguida por outra afirmação localizando o estatuto do PCdoB num espaço
na qual o entrevistador interpreta o dizer do de importância para a democracia brasileira, e
PCdoB e cria um efeito de fechamento dessa não como referência para os objetivos de
interpretação, o que percebemos no trecho mandato. O último trecho nessa resposta: ‘eu
“Isso significa que”. A interrogação é feita não sou candidato de um partido, eu sou
assim mais através de afirmações, pois ao final candidato de nove partidos” é acompanhado de
o que se tem de fato é apenas um pedido de um gesto amplo do candidato com as mãos
confirmação ou negação (vai ser assim?) do (Figura 2).

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1106
discursos, em diferentes textos, em distintos
Nele também são resgatados aspectos
momentos da história. A filiação partidária de
sócio-históricos exteriores ao contexto
Flávio Dino se tornou midiaticamente mais
imediato de enunciação referindo-se à já
produtiva nas eleições estaduais no Maranhão
comentada maior expectativa de vitória advinda
de 2014 também em razão de sua candidatura
do número significativo de novas alianças
nas urnas ter sido apresentada na mídia como
partidárias angariadas pelo candidato nas
estatisticamente mais forte que na eleição
eleições de 2014.
anterior. Mas a construção desse discurso se
Sabendo que não é possível dar conta de forma antes, em outro lugar, quando outros
toda essa dispersão através de analises, não discursos sobre o comunismo, sobre
analisamos aqui exaustivamente todas as capitalismo e sobre democracia se fizeram
perguntas e respostas da entrevista. Procuramos presentes em nossa história.
perceber, através dessa primeira parte da
Percebeu-se na entrevista que as
análise de uma pergunta e uma resposta que
questões feitas ao candidato tiveram temas
compuseram a entrevista, como o discurso é
mais relacionados às suas estratégias e
sempre atravessado e se constrói a partir outros
parcerias políticas que aos seus projetos de
vários que estão dispersos e são retomados,
programa de governo. Os temas destacados
transformados a partir de um domínio de
foram: diretrizes do PCdoB, alianças
memória. Essa memória, conforme Foucault
partidárias, religião e política. Além de
(2014), também é esquecimento porque ela é
estabelecer um interdiscurso com o estatuto do
uma história construída pelos poderes que são
partido, com a legalidade dos partidos
sempre regulados por vontades de verdade que
instituída no texto da Constituição, acionando
ditam o que é necessário ser lembrado e o que
sentidos sobre a democracia. Notamos outra
não é.
conexão com o interdiscurso da oposição à
Figura 2 Entrevista: "eu sou candidato de família Sarney que é introduzida pelo candidato
nove partidos". Fonte: G1 Maranhão, através de uma oração adversativa (“Mas nem
2014a.
um governador pode ser governador de um
pequeno grupo, de uma família ou de um
partido”).

Referências
BAUMAN, Z. Identidade. Entrevista a
Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
4. Considerações Finais Editor, 2005.
A associação do candidato Flávio Dino BORGES, A. S. São luís: eleições 2008 na
ao comunismo durante a campanha eleitoral de capital maranhense. Peças novas para um velho
2014 não aconteceu ao acaso. Pensamos que a jogo. 2008. Disponível em: <
discursivização do candidato como comunista http://www.fundaj.gov.br/index.php?option=co
se faz a partir de uma diversidade de outros m_content&view=article&id=2355%3Asao-

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1107
luis-eleicoes-2008-na-capital-maranhense- candidatos-ao-governo-do-ma.html>. Acesso
pecas-novas-para-um-velho-jogo- em: 10/08/2015.
&catid=58&Itemid=414> . Acesso em: GREGOLIN, M. R. V. A tipologia textual e a
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vence e encerra ciclo de poder dos Sarney. Congres International des Linguistes, Paris,
Folha de S.Paulo, 05 out. 2014. Disponível em: 1997.
<http://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/10/ ______. Análise do discurso e mídia: a
1527756-oposicao-no-ma-dino-vence-e- (re)produção de identidades. Comunicação,
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2007.
COURTINE, J.J. As metamorfoses do homo PÊCHEUX, M. Análise Automática do
politicus. In: In: PIOVEZANI, Carlos. Discurso (1969). In: GADET F.; HAK, T.
SARGENTINI, Vanice. (Org.). Legados de (Orgs.) Por uma Análise Automática do
Michel Pêcheux: inéditos em Análise do Discurso: uma introdução à obra de Michel
discurso. São Paulo: Contexto, 2011a. Pêcheux. Trad. de Eni P. Orlandi. Campinas:
COURTINE, J-J. Discurso e imagens: para Unicamp, 1990.
uma arqueologia do imaginário, in SARGENTINI, V. Análise do Discurso e
PIOVEZANI FILHO, C.; CURCINO, L.; Semiologia: enfrentando discursividades
SARGENTINI, V. M. O. Discurso, semiologia contemporâneas. In CURCINO, L.;
e história. São Carlos: Claraluz, 2011b. PIOVEZANI, C.; SARGENTINI, V. (org.).
FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Discurso, Semiologia e História. São Carlos:
Trad. Luis Felipe Baeta Neves. 8a. ed. Rio de Claraluz, 2011.
Janeiro: Forense-Universitária, 2014. ______. In PIOVEZANI FILHO, C.;
______. A ordem do Discurso. São Paulo: CURCINO, L.; SARGENTINI, V. Discurso,
Edições Loyola, 1995. semiologia e história. São Carlos: Claraluz,
2011.
G1 MARANHÃO. Flávio Dino fala sobre
alianças políticas no JMTV2. G1 TRUFFI, R. "Se o senhor for eleito, vai
MARANHÃO, 22 ago. 2014a. Disponível em: implantar o comunismo no Maranhão?". Carta
<http://g1.globo.com/ma/maranhao/eleicoes/20 Capital, 25 ago. 2014. Disponível em:
14/noticia/2014/08/flavio-dino-fala-sobre- <http://www.cartacapital.com.br/blogs/carta-
aliancas-politicas-no-jmtv2.html>. Acesso em: nas-eleicoes/se-o-senhor-for-eleito-vai-
10/08/2015. implantar-o-comunismo-no-maranhao-
5998.html>. Acesso em: 12/07/2015.
______. JMTV 2ª Edição terá entrevistas com
candidatos ao governo do MA. . G1
MARANHÃO, 18 ago. 2014b. Disponível em:
<http://g1.globo.com/politica/eleicoes/2014/ma
/noticia/2014/08/jmtv-1-edicao-vai-entrevistar-

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1108
A ARGUMENTAÇÃO EM CRIMES VIA TELEFONE: UMA
PERSPECTIVA SEMIOLINGUÍSTICA

Welton Pereira e SILVA; Mônica Santos de Souza MELO


Universidade Federal de Viçosa (UFV)
weltonp.silva@hotmail.com; monicassmelo@yahoo.com.br

Resumo: O presente trabalho objetiva analisar a argumentação de base racionalizante,


bem como os argumentos de orientação patêmica e as imagens de si construídas no
discurso em dois textos oriundos de gravações de interações telefônicas entre um
criminoso e uma vítima em dois tipos distintos de crime praticado via telefone: uma
gravação de golpe do falso sequestro e uma gravação de golpe da recarga premiada. A
análise do corpus foi orientada, principalmente, pelos postulados teóricos e
metodológicos da Teoria Semiolinguística do Discurso (CHARAUDEAU, 2012) e pelo
Tratado da Argumentação: a Nova Retórica (PERELMAN; TYTELCA, 2005). Este
trabalho faz parte de um projeto maior, atualmente em desenvolvimento, que se intitula A
argumentação em crimes via telefone: uma perspectiva semiolinguística.
Palavras-chave: argumentação; emoção; ethos; discurso criminoso; semiolinguística.

Introdução Dessa forma, na primeira parte do nosso


trabalho, apresentamos o nosso corpus de
Os golpes do falso sequestro e os golpes
pesquisa e os dois tipos de crime aqui
da recarga premiada são dois crimes
analisados. Posteriormente, trazemos um breve
considerados de fácil realização, visto que os
referencial teórico e a metodologia por nós
envolvidos na prática criminosa não precisam
seguida. Por fim, apresentamos, na terceira
se expor em demasia, pois executam todo o ato
parte, a análise dos dados. Nossos resultados
criminoso através do telefone. Devido à
apontam para uma recorrência maior de
facilidade de realização, casos envolvendo a
argumentos baseados em relações de causa e
aplicação desses golpes são bastante comuns e
consequência no golpe do falso sequestro e de
uma análise discursiva a respeito dos
argumentos pragmáticos no Golpe da Recarga
argumentos utilizados pelos criminosos com a
Premiada. Além disso, foi observado que, no
finalidade de convencer as vítimas acerca da
primeiro tipo de golpe, a emoção que o sujeito
veracidade de suas informações se faz
argumentante pretende evocar é o terror, o
pertinente.
medo, enquanto que no segundo, é a alegria, a
felicidade. Quanto ao ethos, observa-se uma

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1109
predominância do ethos de potência nos à vida do ente querido sequestrado para fazer
discursos dos supostos sequestradores e do com que a vítima aceite efetuar o pagamento do
ethos de competência nos golpes da recarga falso resgate, cujo valor é equivalente a uma
premiada. Os resultados parecem estar quantia que os criminosos julgam ser de fácil
alinhados às finalidades de cada situação de aquisição. Em 2007, de acordo com Linhares
comunicação. (2007), o valor médio pedido era de cerca de
quatro mil reais.
1. O Golpe do Falso Sequestro e da Recarga
Premiada Já nos golpes da recarga premiada, nos
deparamos com um modus operandi diferente.
No presente trabalho, nos debruçaremos
Primeiramente, a vítima recebe uma mensagem
sobre o corpus de pesquisa que é constituído
do tipo SMS em seu celular afirmando que a
por dois textos oriundos de gravações de golpes
mesma foi vencedora em algum concurso ou
telefônicos. O primeiro deles é advindo de uma
promoção e que, para reclamar o prêmio, deve
gravação interceptada pela Polícia Civil do Rio
efetuar uma ligação para o número remetente
de Janeiro e disponibilizada, na modalidade
da mensagem. Caso a vítima o faça e entre em
online, pela revista Veja. O golpe do falso
contato com o criminoso, este se passará por
sequestro é considerado um crime de extorsão,
um representante de alguma empresa e tentará
visto que neste tipo de crime, conforme Angher
persuadir a vítima a efetuar uma transferência
(2004, p. 483), o criminoso procura fazer com
bancária para uma conta fornecida por ele.
que a vítima lhe entregue o valor monetário
desejado através de coerção e grave ameaça. É interessante ressaltar que estamos
Por sua vez, o golpe da recarga premiada é analisando tentativas de crime, já que, no caso
considerado um crime de estelionato. Este tipo do golpe do falso sequestro, não temos acesso
de crime é definido no artigo 171 do Código ao desfecho da interação e, no golpe da recarga
Penal Brasileiro como a ação de premiada, percebemos que a vítima estava
ciente do golpe. Devido a isso, os discursos
obter, para si ou para outrem, vantagem analisados não provêm de crimes consumados,
ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou embora a tentativa seja, de igual modo, passível
mantendo alguém em erro, mediante de punição e considerada, também, uma prática
artifício, ardil, ou qualquer outro meio
criminosa.
fraudulento (ANGHER, 2004, p. 486).
Por estarmos estudando discursos
Nos golpes do falso sequestro, o provindos de atos criminosos, consideramos o
criminoso que faz a ligação se passa por um presente trabalho como pertencente à área da
sequestrador que tem um parente da vítima que Análise do Discurso Forense, por sua vez,
atendeu o telefonema sob seu poder. Durante a ligada à Linguística Forense. Essa área de
negociação, é comum os criminosos fazerem pesquisa multidisciplinar se debruça sobre
uso de pistas dadas pelas próprias vítimas, de fenômenos linguísticos relacionados a práticas
modo a tornarem sua história mais crível. de natureza legal e “em sentido mais amplo,
Como veremos adiante, os supostos podemos dizer que a Linguística Forense é a
sequestradores se valem de ameaças constantes interface entre linguagem, crime e lei”
(OLSON, s/d, p. 02. Tradução nossa). Apesar

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1110
disso, a Linguística Forense não possui uma processo de troca e nos ajudam a compreender
metodologia própria, estando mais para a a maneira como o locutor procura influenciar
aplicação de determinadas teorias linguísticas à seu interlocutor. O logos diz respeito à
resolução de problemas envolvendo a utilização de argumentos de cunho
linguagem em contexto forense. Nossos racionalizante. Para entendermos melhor essa
pressupostos teórico-metodológicos são questão, nos basearemos nas classificações de
oriundos da Teoria Semiolinguística do técnicas argumentativas que Perelman e
Discurso, sobre a qual discorremos no próximo Tytelca descrevem em seu Tratado da
item. Argumentação, no qual postulam sobre sua
Nova Retórica. De acordo com esse novo ponto
2. Argumentação, emoção e ethos discursivo
de vista acerca da retórica, o sujeito que
A Teoria Semiolinguística, postulada argumenta, o orador, deve procurar fazer com
por Patrick Charaudeau, considera que os que o seu destinatário, o público, adira às suas
estudos que se debruçam sobre o discurso teses. Segundo os autores, o objetivo da prática
devem levar em conta não apenas o fenômeno argumentativa consistiria em:
linguageiro, mas o contexto material, social e
histórico no qual a interação se realiza, bem provocar ou aumentar a adesão dos
como as identidades sociais e discursivas dos espíritos às teses que se apresentam a seu
sujeitos envolvidos na interação. Dessa forma, assentimento: uma argumentação eficaz é a
o analista deve levar em conta a situação de que consegue aumentar essa intensidade de
adesão, de forma que se desencadeie nos
comunicação, que Charaudeau define como o:
ouvintes a ação pretendida (ação pretendida
conjunto de condições situações ou abstenção) ou, pelo menos, crie neles
situacionais não enunciadas que uma disposição para a ação, que se
determinam em parte o sentido do ato de manifestará no momento oportuno
linguagem e que fariam deste um objeto de (PERELMAN; TYTECA, 2005, p. 50).
troca contratual entre as duas partes
envolvidas (CHARAUDEAU, 2010, p. 07). Por sua vez, o pathos seria a capacidade
que certos enunciados têm de despertar
A situação de comunicação ditará as determinadas emoções no interlocutor e o ethos
“regras” do contrato a ser seguido, no entanto, pode ser compreendido como a imagem de si
há uma espécie de espaço de estratégias no qual construída no e pelo discurso do sujeito
o sujeito pode se valer de determinadas enunciador.
estratégias discursivas para alcançar a Quanto às classificações dos sujeitos na
finalidade de seu ato de linguagem. Essas são Teoria Semiolinguística, Charaudeau postula
divididas em estratégias de legitimidade, não a existência de dois, mas de quatro sujeitos
ligadas ao ethos, de credibilidade, ligadas ao envolvidos na troca comunicativa. Dois deles
logos e de captação, ligadas ao pathos. estão presentes no “espaço do dizer”, o espaço
Importadas da Retórica Clássica, essas noções, do discurso propriamente dito. Ali, o sujeito
embora separadas por questões metodológicas, enunciador (EUe) produz seu ato de linguagem
estão interrelacionadas em um constante de forma a influenciar o sujeito destinatário

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1111
(TUd). Além desse espaço interno, do dizer, a separação entre as dimensões do logos, do
encontra-se na situação de comunicação o pathos e do ethos, apesar de sabermos que as
espaço externo, o espaço material que circunda três se inter-relacionam no discurso, pois como
a troca comunicativa. Aqui, o sujeito nos diz Lima (2006):
enunciador se materializa no sujeito
comunicante (EUc), ser social, empírico, e o Desse modo, por uma questão
sujeito destinatário, por sua vez, se concretiza metodológica essas dimensões foram
no sujeito interpretante (TUi), também um ser apresentadas separadamente, porém elas
estão interligadas, mesmo que haja em
empírico, possuidor de uma identidade social.
alguma circunstância a preponderância de
O TUi é, na verdade, qualquer pessoa que uma ou de outra. Se em uma circunstância
receba o enunciado proferido por EUe. poderia haver a preponderância da
Além das relações entre os sujeitos, a dimensão da construção de imagens, em
situação material, da finalidade e do propósito outra poderia haver o destaque da dimensão
patêmica ou da demonstrativa (LIMA,
do ato de linguagem, a Teoria Semiolinguística
2006, p. 158. Grifos da autora).
também trabalha com os Modos de
Organização do Discurso. Esses modos podem
ser entendidos como formas de estruturação da Assim, dependendo da natureza
matéria linguística. Aqui, trabalharemos, discursiva, determinadas dimensões serão mais
sobretudo, com o Modo de Organização salientes que outras, no entanto, as três são
Narrativo que dita a forma como os sujeitos praticamente indissociáveis. Esclarecida essa
podem organizar seu discurso de forma a questão, passamos à análise propriamente dita.
convencer alguém a respeito de alguma coisa. 3.1 Os argumentos logicizantes no discurso
Para a Teoria Semiolinguística, no processo criminoso
argumentativo, o sujeito enunciador deve sair
de uma asserção de partida (uma premissa) até Os argumentos de base logicizante, ou
uma asserção de chegada (conclusão), passando seja, pautados sobre alguma relação lógica, ou
pelas asserções de passagem (argumentos, quase lógica, por parecerem trazer um
provas) (CHARAUDEAU, 2012). raciocínio objetivo, foram analisados de acordo
com a nomenclatura de Perelman e Tytelca
Algumas dessas noções serão melhor (2005). Esses autores elaboraram uma extensa
explicadas na próxima seção, na qual lista de técnicas argumentativas que podem ser
analisamos o corpus de pesquisa. utilizadas por um sujeito argumentante que
3. Análises e discussão dos dados: procura influenciar seu auditório, seu
recorrências discursivas interlocutor.
A seguir, trazemos algumas discussões Em nossa análise foram observadas
a respeito da análise dos discursos doze (12) ocorrências deste tipo de argumento
materializados nos dois textos selecionados no texto referente ao golpe do falso sequestro e
para compor nosso corpus. Por uma questão oito (08) referentes ao golpe da recarga
metodológica, visando à facilitação da análise e premiada, sendo que a técnica argumentativa
à organização do material apresentado, fizemos do vínculo causal foi a mais saliente no

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1112
primeiro texto, com sete ocorrências, e o sentimento de insegurança e a possibilidade de
argumento pragmático foi o que teve uma o sujeito sofrer algum tipo de violência devido
representação maior no segundo texto, com ao fato de ser um ganhador de um prêmio em
quatro ocorrências. O vínculo causal expressa dinheiro. Esse argumento só tem valia se o
uma relação de causa e consequência, conforme contexto sócio-histórico for levado em conta
podemos observar no exemplo abaixo: pelo sujeito destinatário que poderá interpretar
essa advertência como um conselho. Se a
a) Se a senhora começar com gritaiada e interação ocorresse em algum lugar cujos
não sei o que tem, não sei o que tem, eu níveis de violência fossem extremamente
vou desligar o telefone e vou matar a baixos, talvez esse argumento não tivesse tanta
Fernanda. valia.
Além do vínculo causal, o argumento
Observe que há, no excerto acima, uma pragmático, que procura explicar algo no que
ocorrência do procedimento argumentativo da diz respeito ao uso prático, também teve uma
dedução condicional, onde a partícula “se” presença destacável nos dois textos aqui
expressa a condição a ser ou não seguida, pois, analisados:
caso a vítima tome a ação X, essa ação poderá
desencadear uma ação Y em resposta. No caso, c) Quanto a senhora tem, entendeu? Pra
se a vítima não se acalmasse para que a gente liberar a Fernanda agora?
negociação continuasse a ocorrer, o sujeito
enunciador que se diz um sequestrador mataria Observe que nessa passagem do golpe
sua filha. Nos golpes da recarga premiada do falso sequestro, o suposto sequestrador faz
ocorrem três ocorrências desta técnica uso da modalidade alocutiva para interrogar a
argumentativa. Como exemplo, trouxemos o
vítima a respeito do valor monetário disposto
excerto abaixo: no momento da interação, explicando que essa
quantia serviria para a libertação de sua filha. A
b) Lembrando bem: não comenta com
finalidade pragmática é, portanto, ressaltada. É
ninguém por medida de segurança, tá
interessante ressaltar que, no início da
certo?
interação, os criminosos não dispunham do
nome da filha da vítima, que foi cedido por esta
Nessa parte da interação, parece ser de logo no início da conversa telefônica. Em posse
interesse do criminoso, que se passa por um desta informação, os criminosos passaram a
representante da empresa de telefonia Oi, que a utilizar o nome da filha da vítima durante o
vítima não entrasse em contato com ninguém, restante da negociação.
para que o golpe não ficasse em risco de ser
descoberto. Assim, ele afirma que, por medidas No golpe da recarga premiada, ocorrem
de segurança, seria interessante que a vítima algumas situações nas quais a finalidade de
não comentasse com ninguém acerca da uma determinada ação também foi ressaltada:
premiação. Para corroborar seu argumento, o
sujeito enunciador se vale de certos imaginários
sócio-discursivos que representam o

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1113
3.2. Terror e Alegria: os argumentos
d) Leva quantos minutos até o caixa patêmicos
eletrônico do banco do Bradesco pra tá
confirmando o valor de cem mil? Das várias emoções possíveis de serem
evocadas através do discurso e da recorrência
aos imaginários sócio-discursivos, notamos
Na interação referente ao golpe da
duas principais ocorrências em nosso corpus:
recarga premiada, o criminoso precisa fazer
no golpe do falso sequestro, dada a natureza da
com que a vítima se dirija a uma agência
interação, sua finalidade e seu propósito
bancária para que ocorra a transferência de um
comunicativo, a emoção que os sujeitos
valor monetário para uma conta bancária
enunciadores parecem querer despertar em
fornecida pelos criminosos. No entanto, de
suas vítimas é o terror, o medo. Assim, em
forma a ludibriar a possível vítima do golpe, o
diversos momentos, o argumento toma a forma
sujeito enunciador que se passa por um
de ameaça à vida do familiar supostamente
representante da empresa que fornecerá o
sequestrado, como podemos observar abaixo:
prêmio afirma que a ida até a agência bancária,
ou ao caixa eletrônico, servirá para que a e) Não comunica nada com ninguém. Se
vítima confirme o valor de cem mil reais, você, terceiro ou segundo ou sequer o
referente à suposta premiação, conforme aparelho que eu não sei se é dela ou de
podemos ver no exemplo acima. quem que é que tá com ela aqui. Se
Caso a vítima tivesse determinados tocar, entendeu? E alguém falar,
conhecimentos referentes ao funcionamento entendeu? Sobre alguma coisa, eu
bancário, poderia notar que todo o processo de MATO ela, a senhora tá me ouvindo?
premiação poderia ser feito sem sua
intervenção direta. Observe que o sujeito enunciador
Podemos observar que a recorrência enfatiza o verbo “matar”, ênfase representada
maior de argumentos do tipo vínculo causal no pela transcrição em caixa alta, e ainda faz uso
golpe do falso sequestro e de argumentos da modalidade alocutiva ao final do enunciado
pragmáticos no golpe da recarga premiada está para se certificar de que a vítima compreendeu
de acordo com as respectivas situações de seu requerimento. Assim como aconteceu no
comunicação. Esses dados parecem apontar, no exemplo b acima, o criminoso tentou garantir
primeiro caso, para uma preocupação do que a vítima não entrasse em contato com outra
criminoso em esclarecer quais os riscos pessoa, de modo a não colocar em risco o
corridos pela vítima caso ela não cumpra as desenvolvimento do golpe. No entanto,
exigências feitas por ele. No segundo caso, enquanto no golpe da recarga premiada o
como o sujeito enunciador não deseja ameaçar, sujeito enunciador se mostrou preocupado com
mas ludibriar a vítima, sua preocupação maior a segurança da vítima, aqui, dada a natureza da
parece ser a de explicar para o sujeito interação discursiva, esse silêncio foi
destinatário o porquê de ele precisar tomar assegurado pela ameaça à vida da filha
certas atitudes pedidas pelo criminoso, daí o supostamente sequestrada.
uso do argumento pragmático.

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1114
No golpe da recarga premiada, o sujeito Como vimos anteriormente, os
enunciador procura, em primeiro lugar, criminosos em ambos os golpes constroem
despertar alegria, felicidade, euforia no sujeito para si identidades discursivas distintas de suas
destinatário, para isso, afirmando que o mesmo identidades sociais. No golpe do falso
foi ganhador de uma quantia em dinheiro: sequestro, o sujeito enunciador cria para si a
imagem de um sequestrador e no golpe da
f) Ok, meus parabéns campeão, recarga premiada, ele se mostra como um
comemora, faz a festa, a Oi tá entrando representante da empresa de telefonia Oi.
em contato agora. Essas identidades discursivas demonstram
determinados ethé que variam de uma situação
Como podemos perceber, o sujeito de comunicação para outra. No golpe do falso
enunciador que se passa por um representante sequestro, por exemplo, encontramos quatro
da empresa de telefonia Oi afirma que a mesma recorrências da construção de imagens de si
entrará em contato com a vítima e que esta referentes a um ethos de virtude e quatro
deve se alegrar. O apelo a uma determinada referentes ao ethos de potência. Apesar de
emoção é, portanto, explícito. Além disso, os parecer não condizente à situação de
imaginários sócio-discursivos também comunicação, o ethos de virtude parece ser
intervêm na possibilidade de uma emoção ser construído de modo a fazer com que a vítima
evocada e sentida, e, como nos lembra confie, até certo ponto, no criminoso, já que
Charaudeau (2010): este garante que devolverá a filha
supostamente sequestrada, caso a vítima aceite
o desencadeamento do estado emocional negociar:
(ou a sua ausência) o coloca [o sujeito
destinatário] em contato com uma sanção g)Vou dar uma palavra pra senhora de
social que culminará em julgamentos homem, que eu também, eu tenho
diversos de ordem psicológica ou moral família.
(CHARAUDEAU, 2010a, p. 30).

Na passagem acima, a expressão


Assim, o sujeito destinatário, em “palavra de homem” corresponde à ideia de
determinado estado emocional, poderá estar alguém virtuoso, honrado, que cumprirá sua
mais disposto a acreditar nos argumentos do promessa. No entanto, em vários momentos,
criminoso, visto que suas representações esse mesmo sujeito enunciador constrói para si
sociais lhe informam que determinadas a imagem de um criminoso cruel, que possui o
promoções empresariais podem fornecer poder (ethos de potência) de cumprir com suas
prêmios monetários aos clientes e que essa ameaças:
premiação representa, por vezes, uma mudança
de vida. h)Se a senhora começar com gritaiada e
não sei o que tem, não sei o que tem, eu
3.3. As máscaras no discurso: a questão do vou desligar o telefone e vou matar a
ethos Fernanda.

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1115
Observe que o trecho utilizado para 4. Considerações finais
ilustrar a construção do ethos de potência é o Conforme pudemos observar, nas
mesmo que utilizamos para demonstrar o uso situações comunicativas referentes ao golpe do
do argumento logicizante do vínculo causal, o falso sequestro e ao golpe da recarga premiada
que exemplifica o que já dissemos antes a que nos propomos a analisar, os sujeitos
respeito da interrelação entre as instâncias do enunciadores de valem de diferentes estratégias
logos, do pathos e do ethos. discursivas de modo a atingirem seus objetivos.
No golpe da recarga premiada, o que Observamos que as técnicas
encontramos é a predominância do ethos de argumentativas utilizadas, bem como as
competência, já que o criminoso deseja emoções pretendidas e as imagens de si
demonstrar para a vítima que ele é um construídas, estão de acordo com a finalidade
funcionário da empresa responsável pela de cada uma das situações de comunicação
suposta premiação: aqui analisadas. No golpe do falso sequestro,
observou-se a predominância de argumentos do
i) Aqui, nós da opera- da Oi não
tipo vínculo causal, a tentativa de despertar
trabalhamos com nenhum tipo de
medo e terror na vítima e a construção, em
documentos pessoais dos clientes
igual número, de ethos de virtude e de
ganhadores.
potência. No golpe da recarga premiada, a
técnica argumentativa mais utilizada foi a do
Observe que o sujeito enunciador se argumento pragmático, a emoção que os
insere no conjunto de funcionários da empresa criminosos pareceram querer despertar na
Oi, buscando construir para si o ethos de um vítima foi a alegria, felicidade e o ethos de
profissional que representa a empresa. Para competência foi o mais recorrente.
convencer de forma ainda mais efetiva o sujeito
destinatário, o criminoso também constrói para Assim, tanto os argumentos pautados
si um ethos de virtude. Encontramos quatro em raciocínios logicizantes, relacionados ao
ocorrências da construção dessa imagem logos, quanto os argumentos patêmicos e os
discursiva: ethos discursivos construídos corroboram a
tentativa, por parte dos criminosos, de
j) Você nunca passe nenhum tipo de convencer as vítimas acerca das veracidades de
documentos pessoais por telefone, por suas afirmações.
motivo de segurança

Referências
Assim como no golpe do falso
sequestro, o criminoso do golpe da recarga ANGHER, A. J.. Código Penal – Código de
premiada se valeu de uma imagem virtuosa, de Processo Penal – Constituição Federal. São
alguém preocupado com a segurança da vítima, Paulo: Editora Rideel, 2004.
como uma estratégia discursiva. Possivelmente, CHARAUDEAU, P. Um modelo sócio-
uma forma de fazer com que a vítima não comunicacional do discurso: entre situação de
venha a desconfiar do golpe.

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1116
comunicação e estratégias de individualização.
In STAFUZZA, Grenissa; PAULA, Luciane de
(org.). Da análise do discurso no Brasil à
análise do discurso do Brasil. Edufu:
Uberlândia, 2010.
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organização. São Paulo: Contexto, 2012.
LIMA, H. M. R. de. Na tessitura do Processo
Penal: a Argumentação no Tribunal do Júri.
2006. 260 f. Tese (Doutorado em Estudos
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2006.
LINHARES, J. Terror pelo telefone. São Paulo,
Veja: 1996. p. 38-45, 21 fev. 2007. Disponível
em <http://veja.abril.com. br/
210207/p_038.shtml>. Acesso em 11 abr.
2015.
PERELMAN, C. e OLBRECHTS-TYTECA,
L. Tratado da Argumentação – A Nova
Retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
OLSON, J. What is Forensic Linguistics?
Disponível em: <thetext.co.uk/docs /what_is.
doc>. Acesso em 25 abr. 2015.

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1117
OS DISCURSOS SOBRE A MESTIÇAGEM NAS LETRAS
BRASILEIRAS: LÍNGUA, RAÇA E VOZ

Allice Toledo Lima da SILVEIRA


Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
allicesilveira@gmail.com

Resumo: O presente estudo tem por objetivo abordar o percurso histórico da formação
das letras brasileiras nos séculos XIX, XX e XXI tomando a mestiçagem como elemento de
análise na constituição da ensaística, da literatura e dos estudos linguísticos no Brasil. A
partir do método arqueológico apresentado por Michel Foucault em A arqueologia do
saber (2008), nos propomos a perceber as continuidades e as descontinuidades nas
articulações discursivas que enquadram o mestiço tanto como personagem quanto como
símbolo de brasilidade no período citado. Enfatizaremos também as análises dos
discursos sobre a língua, a raça e a voz nas obras selecionadas para o corpus de análise
de modo a reconhecermos as articulações discursivas que silenciam, vozeiam ou negam a
presença da mestiçagem nas letras brasileiras.
Palavras-chave: mestiçagem; língua; discurso.

Brasil: Iracema, Macunaíma, Gabriela Cravo e


Introdução
Canela e tantos outros. Nosso objetivo é
A relevância da mestiçagem na história reconhecer as identidades e as diferenças
da formação do Brasil é inegável. O mito das (FOUCAULT, 2008) nos discursos sobre a
três raças, por exemplo, exaltado no século XX mestiçagem na formação e nas transformações
por intelectuais como Gilberto Freyre, das letras brasileiras - Estudos da Linguagem,
apresenta um resumo da formação cultural, Literatura e Ensaística – durante os séculos
linguística, étnica e social do país. Das misturas XIX, XX e XXI. Tal empreendimento analítico
entre índios, brancos e negros surgem os se realizará no diálogo entre a Análise do
cafuzos, mulatos, e caboclos, os mestiços Discurso e a História das Ideias Linguísticas,
brasileiros. Das misturas entre as línguas somando-se também os Estudos Bakhtinianos
indígenas, a língua portuguesa da metrópole e ao aporte teórico. Reconhecer primeiramente a
as línguas africanas surgem algumas das mestiçagem enquanto signo ideológico
condições de emergência do português (BAKHTIN, 2006) é saber que, a priori,
brasileiro. A literatura brasileira constrói suas nenhuma palavra possui significado: eles são
bases em cima de personagens icônicos que construídos na interação verbal. A passagem da
retratam a variedade étnica que constitui o noção de mestiçagem como sinônimo de

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1118
falência da nação brasileira no século XIX para deste recorte, optamos por enfatizar o método
orgulho no século XX chegando a ser sinônimo arqueológico foucaultiano, visto que nossa
de homogeneização étnica e cultural no século intenção neste momento é recuperar algumas
XXI é demonstrativo de como os sentidos de das continuidades e descontinuidades nos
um signo ideológico refletem e refratam as campos de saber supracitados.
condições de uma situação social em um
1. Análises e discussão
determinado período histórico. Observar as
continuidades e descontinuidades, como nos Os estudos sociais do século XIX eram
propõe Foucault em sua Arqueologia do Saber, predominantemente influenciados pela teoria
nos discursos sobre a mestiçagem na produção das raças e a teoria evolucionista, ambas
acadêmica e literária brasileira é parte essencial originárias da Europa. A perspectiva corrente
do trajeto analítico de identificação das de constituição do brasileiro era a da fusão de
formações discursivas, das modalidades três raças: a branca, a negra e a indígena. Essa
enunciativas e da formação de conceitos que fusão de raças, no entanto, não sinalizava
vozeiam ou silenciam o caráter constitutivo da qualquer benefício ao desenvolvimento do país:
mestiçagem nas letras brasileiras. a superioridade da raça branca estava ameaçada
pela mistura com as raças negras e indígenas,
Nossa escolha por perceber as ambas inferiores na escala evolutiva. O
continuidades e as descontinuidades no tema da mestiço, portanto, acumulava qualidades
mestiçagem nas letras brasileiras nos propicia a
negativas de negros e índios, ameaçando
adoção do método arqueológico de análise irremediavelmente a predominância das
proposto por Michel Foucault em A qualidades positivas da raça branca.
arqueologia do saber (2008); ou seja, a busca
por empreender, em meio à dispersão de As primeiras formulações sobre a
enunciados, “o projeto de uma descrição dos mestiçagem da cultura brasileira estão
acontecimentos discursivos como horizonte presentes na produção bibliográfica de Nina
para a busca das unidades que aí se formam” Rodrigues, Silvio Romero e Euclides da
(idem, p. 29). A seleção inicial do corpus de Cunha, cujas obras ensaísticas são precursoras
análise compreende os três principais campos da antropologia, das ciências sociais e dos
de saber que caracterizam as letras brasileiras: estudos literários no país. Esses estudos sobre a
os estudos sobre a linguagem, os estudos formação do brasileiro e da língua portuguesa
literários e os estudos ensaísticos produzidos falada no Brasil reconheciam a origem indígena
no Brasil nos séculos XIX, XX e XXI. Assim, e incluíram pela primeira vez a presença do
elegemos um recorte de nosso corpus que, negro na constituição da identidade brasileira e
embora sucinto, condensa o trajeto analítico na língua falada no Brasil. Naquele momento, o
que pretendemos traçar, convergendo teoria e negro já pertencia à sociedade brasileira como
objeto em mesma tensão e convertendo suas cidadão livre, participando da vida social e
discussões a uma mesma alçada – econômica do país, o que determinou uma
caracteríctica, afinal, cara aos textos poéticos, reavaliação ideológica de sua posição na
como são os dois objetos – um texto de Manuel sociedade pelos intelectuais da época (ORTIZ,
Bandeira e um de Oswald de andrade – que 1994).
mobilizaremos em nossa análise. Para a análise

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1119
de Gilberto Freyre, o mestiço assumiu
As primeiras referências científicas
características positivas que legitimavam o
acerca da influência das línguas africanas no
negro e o índio como formadores da identidade
português falado no Brasil estão nos trabalhos
e da cultura brasileira, englobando todos os
de Macedo Soares, João Ribeiro e Nina
brasileiros dos mais variados tons de pele e
Rodrigues, publicados em meados do século
classes econômicas. Ao afastar os fatores
XIX. Nina Rodrigues, em Os africanos no
biológicos dos fatores culturais, o caráter
Brasil, afirma que:
mestiço do brasileiro deixa de ser negativo e
Não tem crédito a errônea suposição de que passa a ser positivo, o que, segundo Ortiz
fosse quase nula a influência das línguas (1994), permite definir mais claramente os
pretas no falar brasileiro, quando muito se contornos da identidade brasileira que começou
limitando a legar ao português alguns a ser desenhada no século XIX.
termos africanos. Menos nessa riqueza de
No campo dos estudos linguísticos,
vocabulário do que nas construções
sintáticas e modos de dizer, se deve buscar
houve também diversos deslocamentos
a origem de numerosos desvios populares temáticos e teóricos no debate sobre a
brasileiros do genuíno português da velha influência de línguas africanas e indígenas na
metrópole. (2010, p. 135) língua portuguesa falada no Brasil. Esses
deslocamentos, segundo Bonvini (2008) se
A presença das línguas pretas na língua desenvolveram nos planos linguístico e
falada no Brasil gerava “numerosos desvios ideológico. Em um primeiro momento,
populares brasileiros do genuíno português da motivados pela independência do Brasil em
metrópole”. A ideia de que a mistura das 1822, fazia-se necessária a legitimação de uma
línguas pretas com a língua branca impedia o língua brasileira, diferente da língua portuguesa
funcionamento correto do puro português de da metrópole: a língua nacional. Assim sendo,
Portugal corrobora com a noção então corrente era necessário marcar a diferença por meio da
de que as qualidades negativas da raça negra pesquisa de elementos autóctones de origem
maculavam nossa cultura e a formação africana e indígena que acentuavam o caráter
genealógica do povo brasileiro. Não se pode brasileiro da língua falada no país,
negar, entretanto, que a simples inclusão dessas empreendimento que contou com a
línguas, na perspectiva erudita e nas primeiras contribuição de grande parte dos intelectuais
investigações sobre as origens do português do brasileiros cuja formação não contemplava os
Brasil, é de fundamental importância para o estudos linguísticos.
desenvolvimento da ideia de nacionalidade dos Em contraponto à visão negativista do
próximos séculos. século XIX, é possível observar um grande
Ao longo do século XX, a influência deslocamento ideológico, referente a essa
dos estudos culturalistas norte-americanos na questão, na literatura brasileira do século XX,
antropologia brasileira possibilitou uma em que pairam vários discursos sobre a voz do
guinada de posicionamento ideológico quanto à mestiço, geralmente caracterizado como um
identidade nacional, especialmente após a “falar gostoso”, como no seguinte excerto de
publicação de Casa grande e senzala. Na obra Evocação ao Recife de Manuel Bandeira:

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1120
contribuem para a compreensão da formação de
Me lembro de todos os pregões: identidades ao longo do tempo em que há um
Ovos frescos e baratos vozeamento ou um apagamento da figura do
Dez ovos por uma pataca mestiço enquanto símbolo de brasilidade, como
Foi há muito tempo...
é o caso do poema de Manuel Bandeira:
A vida não me chegava pelos jornais
nem pelos livros
enquanto a língua falada do povo é a língua
Vinha da boca do povo na língua certa do Brasil, a variedade padrão falada no
errada do povo Brasil herdada do português europeu nada mais
Língua certa do povo é do que a imitação da “sintaxe lusíada”. Essa
Porque ele é que fala gostoso o colocação é uma clara alusão ao movimento de
português do Brasil valorização do mestiço como identidade
Ao passo que nós nacional do século XX, época em que o poema
O que fazemos foi publicado.
É macaquear
A sintaxe lusíada (grifos nossos) 2. Considerações finais / Conclusões
Analisar discursivamente a história das
Ou então no poema Pronominais de letras brasileiras é também recuperar as
Oswald de Andrade: relações que esta estabelece com outras
formações discursivas que a constitui e que por
Pronominais ela são constituídas: a ciência, a antropologia, a
religião, a história, entre outras. Essa
Dê-me um cigarro recuperação não tem o propósito de
Diz a gramática
esgotamento, mas sim de compreender os
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
enunciados que nos propomos analisar na
Mas o bom negro e o bom branco singularidade de sua situação.
Da nação brasileira Jean-Jacques Courtine refere-se também
Dizem todos os dias a esta questão no seguinte trecho de Decifrar o
Deixa disso camarada corpo: pensar com Foucault:
Me dá um cigarro (grifos nossos)
De modo algum esta formação discursiva
Esses discursos sobre a voz do mestiço se encontra em estado natural à superfície
são também discursos que geram sentidos dos textos; ela não se confunde com um
acerca da língua brasileira e de como ela gênero de discurso que uma classificação
atravessa o tempo sendo marcada pela presença de época teria preestabelecido; ela não é
uma expressão de um século, ou de um
da mestiçagem: o povo brasileiro - mulatos,
período, muito menos de um autor. Sua
cafuzos, mamelucos, enfim, mestiços – fala configuração de conjunto, sua duração e
gostoso a “língua errada do povo”, a “língua desdobramento no tempo, as unidades que
certa do povo”, contradizendo a gramática a compõem e que são outros tantos
herdada do português europeu quanto às vestígios que ela deposita ao longo dos
colocações pronominais como em “me dá um textos e das imagens, tudo isso precisa ser
cigarro”. Do mesmo modo, também construído. Então, e somente então,

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1121
podemos nos situar verdadeiramente no
domínio do discurso, no âmago de sua BOVINI, E. Línguas africanas e o português
“arqueologia”. (2013, p. 24 – 25) falado no Brasil. In África no Brasil. A
formação da língua portuguesa.
Para seguir um possível caminho que
FIORIN, J. L.; PETTER, M. São Paulo:
nos leve à resposta da pergunta fundamental de
Contexto, 2008.
Michel Foucault ao pensar a análise do campo
discursivo – por que este enunciado e não outro DA MATTA, R. A casa e a rua: espaço,
em seu lugar? – é necessário assumir o cidadania, mulher e morte no Brasil. 4ª ed. Rio
“emaranhado de compatibilidade e de Janeiro: Editora Guanabara Koogan S.A,
incompatibilidade conceituais” no discurso, 1991.
que é justamente o lugar de aparecimento dos COURTINE, J.J. Decifrar o corpo: pensar com
conceitos (2008, p. 68). A mestiçagem, como Foucault. Petrópolis: Vozes, 2013.
observamos na breve exposição anterior,
adquire significações e conceituações distintas CUNHA, C. Língua portuguesa e realidade
ao longo dos três séculos em que é abordada no brasileria. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro,
campo das letras brasileiras. Em cada uma 1981.
dessas épocas e dos lugares teóricos em que CUNHA, E. da. Os Sertões. São Paulo: Editora
aparece, há continuidades e descontinuidades Brasiliense S.A., 1985
entre as séries enunciativas, a correlação dos
enunciados e os esquemas retóricos que as FIORIN, J. L.; PETTER, M. África no Brasil.
formam enquanto conceito. Observar essas A formação da língua portuguesa. São Paulo:
continuidades e descontinuidades pode nos Editora Contexto, 2008.
levar a compreender por que, por exemplo, o FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. 7ª
mestiço na literatura do século XIX é um ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.
reflexo do insucesso racial brasileiro e na
FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala.
literatura do século XX a forma mais autêntica
Editora Record, Rio de Janeiro, 1998.
de brasilidade.
HALL, S. A identidade cultural da pós-
modernidade. Rio de Janeiro: DP&A Editora,
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ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. Princípios de Lingüística Geral como
____________. Marxismo e filosofia da Fundamento para os Estudos Superiores da
linguagem. 12ª ed. São Paulo: Hucitec, 2006. Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Briguiet.
(Reimpr. em 1942).
BANDEIRA, M. Estrela da Vida Inteira. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.

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MUNANGA, K. Rediscutindo a mestiçagem no
Brasil. Identidade Nacional versus Identidade
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NARO, A. J.; SCHERRE, M.M.P. Origens do
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21. Disponível em
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OLIVEIRA, H. L. L. Jorge Amado e a
Releitura da formação identidária brasileira.
Uma leitura em A tenda dos milagres: por um
outro conceito de mestiçagem. In. Dossier
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Revista lusófona de línguas cultura e tradição.
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PERES, D. O. O papel da prosódia na
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PINTO, E. P. O português do Brasil. Textos
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RIBEIRO, J. A língua nacional. São Paulo: Ed.
Nacional, 1933.
RODRIGUES, N. Os africanos no Brasil. Ed.
Universidade de Brasília: Brasília, 1982.

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

1123
GOVERNAMENTALIDADE, CORPO E IMAGEM: A
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO FUMANTE EM CAMPANHAS
ANTITABAGISTAS NAS EMBALAGENS DE CIGARRO
Claudemir SOUSA; Regina BARACUHY
Universidade Federal da Paraíba (UFPB / PROLING/ CIDADI)
claudemir201089@hotmail.com; mrbaracuhy@hotmail.com

Resumo: Este artigo analisa a constituição do sujeito fumante em campanhas


antitabagistas presentes nas embalagens de cigarro. Ancoramo-nos na teoria da Análise
do Discurso (AD), em diálogo com a arquegenealogia de Michel Foucault. A metodologia
utilizada é a abordagem qualitativa, de cunho descritivo-interpretativo. O nosso corpus é
constituído por 18 enunciados antitabagistas, divididos em 3 séries enunciativas, quais
sejam: os riscos do tabagismo à saúde do sujeito fumante; os riscos do tabagismo passivo
à saúde; e tabagismo e impotência sexual. Concluímos que a gestão da vida da população
tem como objetivo final torná-la mais produtiva e menos onerosa ao Estado. Resistir a
esse governo implica em ser punido por doença e morte.
Palavras-chave: Análise do Discurso; Sujeito fumante; Campanhas antitabagistas.
no ordinário do sentido” (PÊCHEUX, 1990,
p.48).
Introdução Embora sua preocupação não tenha
sido a dedesenvolver uma teoria ou disciplina
O campo escolhido para realizar este
do discurso, Foucault contribuiu com suas
estudo é o da Análise do Discurso (AD) e suas
ideias paraa ampliação do escopo teórico da
ressonâncias no Brasil, com foco na
AD. Nosso trabalho situa-se numa vertente da
arquegenealogia de Michel Foucault.Na
desse campo teórico que “compartilha com a
chamada terceira época (1980-1983), Michel
perspectiva arqueológica foucaultiana, a
Pêcheux ampliou as fronteiras a aprofundou
preocupação de considerar as condições
os diálogos.Segundo Gregolin (2004: 64) é “o
históricas de existência dos discursos em sua
momento de encontro com a Nova História
heterogeneidade” (FERNANDES, 2007, p.
(influência de Michel de Certeau, Pierre Nora,
47).
dentre outros) e de aproximação das teses
foucaultianas”, por influência de Jean Os estudos de Foucault objetivaram
Jacques-Courtine, que vão marcar a criar uma história dos diferentes modos pelos
heterogeneidade que constitui o edifício quais, em nossa cultura, os seres humanos
teórico da Análise do Discurso. A partir de tornaram-se sujeitos, ou seja, criar uma
então, aAD volta suas análises também para história dos modos de
os discursos do cotidiano. “É preciso se por objetivação/subjetivação que transformam os
na escuta das circulações cotidianas, tomadas seres humanos em sujeitos. Ele fez isso em
três momentos distintos das suas análises, que

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1124
foram denominados, para fins didáticos, como devem ser analisadasem contraposição às
as três épocas de Foucault: na primeira, formas de resistência. Ele acredita que as lutas
chamada de arqueológica, o alvo são os pelo poder são transversais, imediatas, porque
modos de investigação que tentam atingir o objetivam o inimigo mais próximo,
estatuto de ciência e que produzem a questionando a individualização, a
objetivação do sujeito; a segunda, conhecida fragmentação da vida, ao mesmo tempo em
como genealógica, é o momento em queo que afirmam o direito de ser diferente. Elas
autor se voltou para a objetivação do sujeito giram em torno da questão “quem somos
nas “práticas divisoras”, ou seja, pelos modos nós?” (FOUCAULT, 2009) e recusam as
de objetivação que tentam dividi-lo em seu abstrações que não reconhecem as
interior e em relação ao outro, tais como: o individualidades, bem como as cientificidades
louco e o sadio, o criminoso e o bom,etc.Por que determinam quem somos.
fim, em um terceiro momento, caracterizado Essa discussão é pertinente para nosso
como a fase da “ética e estética de si”, ele trabalho, pois nos possibilitará verificar como
analisouas práticas de constituição do sujeito o discurso antitabagista propõe formas para o
com os estudos sobre os modos de sujeito fumante cuidar de si, munido de um
subjetivação (FOUCAULT, 2009). discurso da saúde, que em nossa época goza
Ao mobilizar os conceitosde de um poder de verdade e por isso deixa uma
Foucaultno interior da AD, J.J.Courtine margem mínima para o fumante resistir ao
trouxegrandes contribuições para esse campo, poder normalizador, já que isso implicaria ser
promovendo deslocamentos teórico- punido por inúmeras doenças e pela morte.
metodológicos.Os trabalhos daquele autor
1.Tabagismo e os riscos de doença e morte
possibilitam estudar,não apenas os feitos dos
para o sujeito fumante
grandes homens,mas sobretudo os homens
infames (FOUCAULT, 2006, p. 211). Seus Os enunciados1 dessa série alertam
estudos se voltam para o presente, para os riscos de acometimento por doenças
problematizando as transformações nas cancerígenas e cardiovasculares. Neles,
práticas discursivas e nas reorganizações das cruzam-se os discursos médico e estético,
relações de saber-poder. promovendo o governo da população por
meio de saberes e poderes legitimados por
Foucault assinala a preocupação em instituições e órgãos de Estado que controlam
considerar a condição histórica de produção o funcionamento do discurso antitabagista, ao
do enunciado. O aporte teórico desse autor é mesmo tempo em que constroem identidades
de grande utilidade para nossas análises, pois para o fumante.
tratamos da constituiçãodo sujeito fumante,
pensando a identidade como uma construção
discursiva, que se instaura em um dado
momento histórico, fruto das relações sociais,
definida em oposições, tais como o são e o
doente, o jovem e o velho. A “identidade e a
diferença são inseparáveis” (SILVA, 2000, p. 1
Todas as imagens estão disponíveis em:
75). www.inca.gov.br/tabagismo/publicacoes/brasiladverten
ciassanitariasnosprodutosdetabaco2009b.pdf. Acesso
Para esse autor, as relações de poder em 23/03/2015.

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1125
sujeito exemplifica um risco ao qual qualquer
Figura 1: INCA
fumante está exposto, criando-se, assim, um
efeito de lição de moral, um retratodo lado
negativo do tabagismo.
Nesses enunciados, o fumante também
é discursivizado como um sujeito na
iminência da morte, numa época em que um
dos maiores anseios é a longevidadee em que
existem muitos recursos para ajudar a
prolongar e melhorar a vida. A morte é um
reverso desse desejo, um temor para a
sociedade. O consumo do cigarro é um fator
que aumenta os riscos da morte, sendo posto
do lado contrário a esses anseios
contemporâneos.
Hoje é proibido morrer, pois o
biopoder (FOUCAULT, 2005a) assumiu a
responsabilidade pela gestão da vida da
população.Não se submeter a ele acarreta a
subtração da vida, cuja responsabilidade é
única e exclusiva daquele que resiste. No
Esse discurso sugere ao sujeito formas saber biológico, o corpo do homem é um
para cuidar do corpo e evitar a degradação sistema feito de órgãos interligados, cuja
física. O sujeito autorizado a produzir este função é, após o nascimento, crescer,
tipo de verdade coloca a voz do Ministério da reproduzir-se e morrer, mas a morte para o
Saúde como a instituição de onde provém tal fumante resulta da não observância às regras
discurso.Mesmo sendo de épocas distintas, há de conduta construídas socialmente, uma
uma regularidade entre esses enunciados, punição, um efeito da disciplina. Essa morte
caracterizada pelo alerta para uma diversidade tem ação moralizante, incidindo diretamente
de doenças que o sujeito fumante é em seu corpo, que agora não tem nenhuma
susceptível de contrair. utilidade para a sociedade.
Neles, o sujeito é governado e ao Busca-se o efeito do medo, recorrendo
mesmo tempo é instado a governar a si a imagens de horror, motivado principalmente
mesmo (FOUCAULT, 2005b), pois, pelo que ameaça e provoca repulsa. Para
atualmente, ocigarroé considerado um fator de Courtine (2008), as preocupações mais
risco para a saúde. Há uma especificação intensas e persistentes da vida são os medos.
minuciosa desses riscos, que não se atém só à Temos, na contemporaneidade, uma
superfície visível do corpo, passa pelos órgãos infinidade de medos, alguns desencadeados
respiratórios e circulatórios também.O por acontecimentos, sustentados por crises,
fumante é discursivizado perecendo de um mas existe também “uma produção, uma
mal pelo qual é o responsável, cabendo a ele gestão, uma encenação e uma difusão do
abandonar o cigarro.O sofrimento de um pavor” (2008, p. 18) por meio de palavras,

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1126
narrativas e imagens que circulam em são perpassados por questões morais, no
aparelhos de informação disseminando medo. sentido que Foucault (1998) concebe essa
Uma forma de governo pelo medo. noção:um conjunto de regras de conduta
propostas aos indivíduos e aos grupos por
Para criar o efeito de horror e de medo,
intermédio de aparelhos prescritivos e
as imagens são cuidadosamente trabalhadas.
instituições diversas. É o discurso médico que
A circulação dessas imagens elabora formas
apregoa ao fumante regras de conduta moral e
de dominação políticas e psicológicas sobre
também técnicas de si.
os sujeitos que somos. Para Bauman (2005), a
vida líquida é vivida em meio a incertezas e Por meio das técnicas de si, o sujeito
medo crescentes, que nos perseguem por fumante é conduzido a um domínio da arte de
todos os lados. Assim, sendo o medo um traço existência, que Foucault (1998) compreende
psicológico dominante do indivíduo e da como práticas refletidas e involuntárias
coletividade na idade democrática, as através das quais os homens, não somente se
instituições que produzem o discurso de fixam regras de condutas, como também
combate ao tabagismo nos advertem e nos procuram se transformar, modificar-se em seu
governam pelo medo. ser singular e fazer de sua vida uma obra que
seja portadora de certos valores estéticos e
2. Os riscos do tabagismo passivo à saúde
responda a certos critérios de estilo.
Figura 2: INCA O discurso antitabagista propõe
maneiras de evitar danos à própria saúde e à
de outros indivíduos, como forma de agir
moralmente. O cuidado com o corpo pode ser
praticado “por meio de um longo trabalho de
aprendizagem, de memorização, de
assimilação de um conjunto sistemático de
preceitos e através de um controle regular da
conduta” (FOUCAULT, 1998, p. 28).Essa
constituição de si como sujeito moral implica
em “modos de subjetivação”, que
compreendem as maneiras pelas quais o
indivíduo é chamado a se reconhecer como
sujeito de uma conduta moral, associadas a
formas de cuidado de si, pelas quais o
indivíduo estabelece relações consigo.
Assim, nesses enunciados são
propostas para o sujeito fumante formas de
Os enunciados dessa série apresentam cuidar de si e do outro. Para tanto, são
os riscos do tabagismo passivo para a saúde mobilizados alguns discursos sobre a
de crianças e de bebês em gestação. Na infância.Essa fase da vida é marcada pela
materialidade discursiva há uma relação entre dependência em relação a um adulto, do qual
vítima e vilão, e nela o sujeito fumante é se esperam atitudes como responsabilidade e
discursivizadocomo vilão. Esses enunciados maturidade. Sabendo dos riscos a que expõe

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1127
outras pessoas, espera-se que o adulto em uma cultura visual, que põe em
fumante se responsabilize por promover o funcionamento o imaginário de uma
tabagismo passivo e tome as devidas coletividade, pois nos remetem a questões
providências para evitá-lo. morais, religiosas e políticas de nossa cultura
que os atravessam. O sujeito fumante emerge
Esses enunciados não alcançariam o
como uma ameaça para a vida da espécie ao
mesmo efeito se retratassem adultos sofrendo
promover adoecimento de crianças e mortes
porque convivem com a toxidade da fumaça,
de bebês pelo tabagismo passivo.
pois, como alguém responsável, ele teria o
dever de se afastar daquilo que prejudica sua 3.Tabagismo e impotência sexual
saúde. Já a criança nem sempre tem essa
possibilidade de escolha, ficando a cargo de Figura 3: INCA
outra pessoa decidir por ela. O fumante
precisa aprender algumas técnicas para agir
sobre si, transformar-se, subjetivar-se
(FOUCAULT, 1998).
Sobreo o fumanterecai a
responsabilidade pelos danos causados à
saúde de crianças e bebês. A falta de governo
de si (FOUCAULT, 2005b) impede que o
fumante consiga governar o outro pelo qual é
responsável. O biopoder (FOUCAULT,
2005a) assume a função de regular seus atos e
combater as agressões que o não fumante
sofre.
Dessa forma, esses enunciados
sugerem ao sujeito fumante formas de
controle das suas condutas para evitar causar
o adoecimento de outros sujeitos. Nos
enunciados cuja temática são os males do
tabagismo passivo à saúde de bebês o discurso
clínico sugere, entre outras formas de cuidado
de si e do outro (FOUCAULT, 2005b), o Nos enunciados que põem em relação
abandono de substâncias tóxicas durante a tabagismo e impotência sexual,a
gestação. materialidade verbal e imagética faz o
Esses enunciados ganham respaldo em discursodeslizar para o riso.Essesenunciados
nossa sociedade, pois no ocidente o aborto, encontram eco em uma sociedade como a
dentro de certas condições, é considerado um nossa sociedade que se obstina a falar do
crime e também é condenado pelas sexo(FOUCAULT,1999).A ideia de virilidade
instituições religiosas. Assim, o discurso que masculina povoa o imaginário social. É
perpassa tais enunciados possibilita construir considerado viril o homem forte, corajoso,
para o sujeito fumante a imagem de um vigoroso e procriador. O corpo que destoa
criminoso.Esses enunciados estão inscritos

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1128
desse ideal é considerado desprezível, pois social dependem das formas individuais de
um corpo impotente não procria. autocontrole.
Witzel e Kogawa (2014) afirmam que O corpo impotente é construído por
o ideal viril é algo que tradicionalmente poderes e saberes institucionais, que lhe
caracterizou o homem quanto à sua imprimem marcas singulares e tornam o
capacidade reprodutiva vinculada à sua honra, indivíduo, sujeito de uma identidade. Em
dignidade e força e colocou os covardes, nossa época, conforme Milanez (2009),
impotentes, afeminados ou sodomitas no lado embora o corpo do qual necessitamos seja
dos desprezados e repulsivos. Os autores aquele que foge às disciplinas para viver seus
chamam atenção para a relação etimológica prazeres e paixões, não podemos fazer tudo o
entre “virtude” e “viril(idade)”, que derivam que queremos sem seguir os rituais dos
do latim virtus, para caracterizar a virilidade lugares e das relações entre os sujeitos. A
como uma fabricação discursiva de um corpo associação do sexo ao prazer (e da sua falta ao
dotado de qualidades. desprazer), “revela uma sociedade que ainda
não ultrapassou os limites do corpo para
Ao caracterizar o sujeito fumante
considerar seus prazeres, colocando o corpo
como um corpo impotente, o discurso de
como fonte para um único tipo de prazer, pois
combate ao tabagismosustenta que esse corpo
toma uma noção tradicional de prazer ligada
é improdutivo. Esse discurso agencia
aos prazeres físicos” (op. cit., p. 21). O
identidades e diferenças (SILVA, 2000),
homem impotente é aquele que não está mais
como o viril e o impotente.As marcas que
sujeito à destemperança do sexo, não tem
definem esse sujeito estão impressas em seu
controle sobre os desejos nem domínio de si.
corpo. São biológicas, mas sua identidade é
sócio-historicamente construída por meio de Nesses enunciados, as expressões dos
discurso, podendo ser reinventada. atores fazem com que o sentido, que seria de
horror, deslize para o riso, diante do fantasma
Para Witzel e Kogawa (2014, p. 153),
da impotência que ronda o sujeito fumante.
“a partir do século XX, a Medicina participa,
Ferreira (2014) afirma que os temas
em larga escala, da definição e da constituição
relacionados às genitálias humanas sempre
subjetiva da virilidade”, fazendo-a deixar de
foram assunto e motivos de risadas. Por isso
ser questão anatômica e acolhendo-a em meio
acreditamos que em vez de causar horror,
à turbulência e crise da virilidade.Os diversos
esses enunciados causam riso. Esperava-se
saberes médicos “convocam o sujeito a
que um efeito de degradação na genitália
preocupar-se com o corpo e, de maneira
masculina ferisse a sua vaidade, causando
bastante contundente, com o desempenho
impacto negativo na imagem que retrata essa
sexual, entendendo-o como forma de
situação, o que não ocorre.
realização individual” (idem). Com isso, os
indivíduos são também convocados a 4. Considerações finais
reconhecerem-se como sujeitos de uma Na atualidade, o sujeito fumante é
sexualidade e a desenvolverem exames de si discursivizado como um corpo anormal,
(FOUCAULT, 1999), a confessarem suas doente, vivendo na iminência da morte. Um
práticas sexuais, que devem ser normalizadas corpo sexualmente impotente, um sujeito que
pelo saber médico, pois o controle político e representa ameaça para toda a população, pois

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1129
possibilita o adoecimento e a morte de outros contemporâneas. Trad. Carlos Piovezani. In:
indivíduos por meio do fumo passivo. SARGENTINI, Vanice; GREGOLIN, Maria
do Rosário (Orgs.). Análise do discurso:
O combate ao tabagismoobjetiva
heranças, métodos e objetos. São Carlos, SP:
manter a vida da população saudável, para
Claraluz, 2008, p. 11-19.
que ela possa ser mais produtiva, evitando
gasto com eventuais tratamentos de saúde em FERNANDES, C. A. A noção de Enunciado
decorrência do consumo de cigarro. O em Foucault e sua atualidade em Análise do
governo da população ancora-se em saberes e Discurso.In: ______; SANTOS, JoãoBôsco
instituições, tais como o saber da Medicina, Cabral dos (Orgs.). Percursos da Análise do
que em nossa época tem função Discurso no Brasil. São Carlos, SP: Claraluz,
normalizadora na vida da população e nas 2007.
instituições jurídicas, que agenciam o discurso FERREIRA, J. M. “Estar sendo ter sido” e
antitabagista e controlam o seu modo de “Cartas de um sedutor”: o sujeito diante da
circulação. morte.In: MILANEZ, Nilton; PESSOA-
As imagens do horror colocam a morte BRAZ, Analiz; GAMA-KHALIL, Marisa
como um tabu, um temor que deve ser Martins. Outros corpos, espaços outros.
interditado do processo de construção de Vitória da Conquista, BA: Labedisco, 2014, p.
nossas subjetividades. O discurso que 92-103.
perpassa tais enunciados leva ao cuidado do FOUCAULT, M.História da Sexualidade 2: o
sujeito fumante consigo próprio e também uso dos prazeres. Trad. Maria Thereza da
com o outro, pois ele deve evitar morrer e Costa Albuquerque. 8.ed. Rio de Janeiro:
matar outros eventuais fumantes passivos. Graal, 1998. 232 p.
O discurso antitabagista é perpassado ______. História da Sexualidade 1: a vontade
por um discurso da estética, que induz a de saber. Trad. Maria Thereza da Costa
manter o corpo segundo os padrões Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque.
considerados saudáveis na 13. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1999. 155 p.
contemporaneidade, em que os sujeitos
anseiam por longevidade e temem morrer. ______. Aula de 17 de março de 1976. In:
Resistir implica em ser punido por doenças e, ______. Em defesa da sociedade: cursos no
num caso mais extremo, pela morte. A Collège de France (1975/1976). Trad. Maria
impotência sexual emerge como um elemento Ermantina Galvão. 4. ed. São Paulo: Mantins
derrisório, um fantasma que assombra a Fontes, 2005a, p. 285-315.
virilidade do fumante.
______. História da sexualidade 3: o cuidado
de si. Trad. Maria Thereza da Costa
Referências Albuquerque. 8. ed. Rio de Janeiro: Gaal,
2005b. 246 p.
BAUMAN, Z. Identidade. Entrevista a
Benedetto Vecchi. Trad. Carlos Alberto ______. A vida dos homens infames. In:
Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, Estratégia, Poder-Saber. Trad. Vera Lucia
2005. Avellar Ribeiro. 2. ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2006 (Ditos & Escritos
COURTINE, J-J.Discursos sólidos, discursos IV), p.203-222.
líquidos: a mutação das discursividades

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1130
______. O sujeito e o poder. In: DREYFUS,
H. L. RABINOW, P. Michel Foucault. Uma
Trajetória Filosófica. Para além do
estruturalismo e da hermenêutica. Rio de
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GREGOLIN, M.R.V. Foucault e Pêcheux na
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Carlos, SP: Claraluz, 2004.
MILANEZ, N. Corpo cheiroso, corpo
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PÊCHEUX, M. O Discurso: estrutura ou
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SILVA, T. T. da. A produção social da
identidade e da diferença.In:______ (Org.);
HALL, S.; WOODWARD, K. Identidade e
diferença: a perspectiva dos estudos culturais.
Trad. Tomaz Tadeu da Silva. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2000, p. 73-102.
WITZEL, D. G.; KOGAWA, J. M. M.
Respostas a uma urgência: a medicalização da
virilidade no século XX. In: ANTONIO, F. J.;
MENEZES, K. S. (Orgs.). Dispositivo de
poder em Foucault: práticas da atualidade.
Goiânia: Gráfica UFG, 2014. 240p.

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

1131
RELAÇÕES INTERDISCURSIVAS NA PRODUÇÃO DE
SENTIDOS SOBRE A EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA PELOS
PROFESSORES FORMADORES DO NEAD/UESPI
Raimundo Isídio de Sousa
Universidade Estadual do Piauí (UESPI)
risidios@yahoo.com.br

Resumo. Discutiremos sobre os modos como os sujeitos professoresformadores do Núcleo


de Educação a Distância da Universidade Estadual do Piauí – NEAD/UESPI constroem
discursos acerca da Educação a Distância - EaD, a partir das relações interdiscursivas e
dos efeitos de sentido que mobilizam na institucionalização das diretrizes do Programa
EaD. Neste estudo, Pêcheux (2009, 2010), Orlandi (2013) e Courtine (1999, 2009) são as
bases teóricas sobre discurso, sujeito discursivo e interdiscurso.O corpus é oriundo de
entrevistas com 6 professores da Uespi. Em análises,constata-se que os professores
instauram os efeitos de que a Educação a Distância depende da modalidade presencial
para legitimar-se, ratificando o pré-construído de essa modalidade se “parecer” com a
presencial para ter qualidade.
Palavras-chave: educação a distância; professores formadores; interdiscurso.

Introdução 1) Como o sujeito professor formador


Partindo da concepção de que discurso movimenta-se interdiscursivamente na EaD?
são efeitos de sentido entre locutores 2) Que efeitos de (des)identificação os sujeitos
(Pêcheux), discutiremosacerca dos modos instauram por meio do interdiscurso e que
como os sujeitos professores formadores do relação estabelecem com as diretrizes da
Núcleo de Educação a Distância da política do governo federal para a EaD?
Universidade Estadual do Piauí – Uespi
constroem discursos acerca da educação a Dividimos este artigo em quatro partes:
distância para legitimá-la a partir de sua prática a primeira trata do aparato legal acerca da EaD
didático-pedagógica. Para tanto, procuram no Brasil, bem como a atuação da Uespi na
apoiar-se nas diretrizes do Programa de EaD e oferta dos cursos nessa modalidade; a segunda,
em suas experiências de trabalho nessa do discurso, da ideologia, do sujeito discursivo,
modalidade e, especialmente, na modalidade da formação ideológica, da formação discursiva
presencial convencional. e do interdiscurso,; a terceira, da análise dos
recortes discursivos e a quarta, das
Centraremos este estudo em duas considerações finais.
questões:

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1132
1 Considerações acerca da Educação a Por meio da Portaria nº 873, de 7 de
Distância no Brasil e na Uespi abril de 2006, o Ministério da Educação
autoriza, em caráter experimental, a oferta de
A EaD no ensino superior tem-se
cursos superiores a distância nas Instituições
consolidado e se aprimorado no Brasil
Federais de Educação Superior.
principalmente desde 2005. A Lei nº 9.394, de
20.12.1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Com o Decreto nº 5.800, de 08.06.2006,
Educação (LDB) a conceitua assim: é instituída a Universidade Aberta do Brasil
(UAB), sendo responsável pela viabilização de
Art. 1º Educação a distância é uma forma cursos tanto de Bacharelados, Licenciaturas,
de ensino que possibilita a auto- Tecnólogo e Especializações quanto de
aprendizagem, com a mediação de recursos extensão e de aperfeiçoamento, por intermédio
didáticos sistematicamente organizados,
das Instituições Públicas de Ensino Superior-
apresentados em diferentes suportes de
informação, utilizados isoladamente ou IPES.
combinados, e veiculados pelos diversos A UAB é uma espécie de universidade
meios de comunicação (Lei nº 9394/96 - despersonalizada (se assim existir) que se
LDB) (grifos nossos) materializa nas IPES, porque ela própria não
oferta cursos, não operacionaliza encontros
Nove anos após a promulgação da LDB, presenciais, nem diploma nem certifica alunos.
o governo, após algumas iniciativas de
A Uespiofertacursos a distânciadesde
regulamentação, edita o Decreto nº 5.622, de
2009 por meio do Sistema Universidade Aberta
19.12.2005, regulamentando o artigo nº 80 da
do Brasil (SISUaB). Iniciou com o curso de
Lei nº 9.394.
Licenciatura Plena em Letras/Espanhol,
O Decreto estabelece que: atualmente oferta 7 em nível de graduação e 14
em nível de especialização em 33 polos de
Art. 1o apoio presencial.
§ 1o A educação a distância organiza-se
segundo metodologia, gestão e avaliação Como em muitas IPES, as discussões
peculiares, para as quais deverá estar acerca da EaD, no momento do
prevista a obrigatoriedade de momentos credenciamento, foram poucas e o que se
presenciais para: vislumbrou em grande parte foi o fomento, a
I - avaliações de estudantes; UaB repassa bolsas para as IPES destinadas aos
II - estágios obrigatórios, quando previstos coordenadores, professores, tutores, bem como
na legislação pertinente; recursos para custeio e capital.
III - defesa de trabalhos de conclusão de
curso, quando previstos na legislação No geral, observamos que a EaD
pertinente; provoca uma discussão acerca dos processos
IV - atividades relacionadas a laboratórios educativos, constituindo desafios para as IPES
de ensino, quando for o caso. (grifos especialmente na forma de conceber a
nossos) educação, pois a EaD requer mudanças na
prática do professor, pois ele necessariamente

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

1133
deve utilizar as tecnologias, usar as plataformas
Segundo Valadares (2011, p. 105),
de ensino, além de “conviver” com outros
sujeitos: os tutores a distância1. o aluno tem de ter a liberdade de gerir a
A EaD está imbuída do princípio de sua aprendizagem, porque é ele que
abertura dos muros das IPES para a aprende, mas também deverá saber que a
comunidade, o que significa uma forma de liberdade pressupõe responsabilidade
(destaques do autor).
inclusão social. No entanto, a abertura de novos
espaços e a mudança de paradigmas na
educação superior frente à modalidade de Por outro lado, rompe o paradigma
educação a distância causam, de certo modo, hegemônico de que ensinar é transmitir
incertezas. Nesse aspecto, esse olhar conhecimentos, como bem acentuam as
desconfiado que os professores tinham, tem ou contribuições de Vigotsky, Piaget e Paulo
terão provoca instabilidade na dinâmica que o Freire, os quais não serão referência teórica
sistema exige. Por outro lado, essa modalidade para este estudo, considerando a perspectiva da
ainda se encontra em consolidação, ou melhor, AD que estamos adotando.
num estado de transição. Entre os vários sujeitos que
No bojo das discussões, iniciam-se operacionalizam a EaD está o professor
várias pesquisas e trabalhos sobre a EaD para formador, a quem cabe disponibilizar a
se compreender como se dão os processos de disciplina no ambiente virtual de
ensino-aprendizagem nesse sistema. Santos aprendizagem. É ele que prepara as atividades,
(2009, p. 291), por exemplo, afirma que ela é posta-as na plataforma, acompanha-as, propõe
um sistema que “a metodologia é centrada no as avaliações e atribui as notas.
aluno”. O sujeito professor formador, de certa
Nesse sentido, o professor apenas é um forma, legitima as ações de ensino e
mediador de aprendizagem entre o aluno e o aprendizagem dos estudantes.Na maioria das
conhecimento, o que pressupõe que haja vezes, é “substituído” pelo “professor-tutor”.
interação entre os participantes, mas a Em outro âmbito, há o sujeito
responsabilidade do professor parece estar mantenedor-fomento - a Coordenação de
deslocada, uma vez que o tutor desempenha o Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
papel do professor na condução e na oferta das – CAPES2 -,queaprova os projetos dos cursos e
disciplinas em muitas IPES. garante o fomento. Ele é um ente fiscalizador e
A EaD atribui muita responsabilidade regulador do sistema e está no nível da base
aosujeito estudante, chegando alguns econômico-jurídica. Além da CAPES, há
pesquisadores a concebê-la como uma
modalidade que proporciona a autorregulação e 2
Órgão do Ministério da Educação responsável pelo
autoaprendizagem.
acompanhamento, avaliação e reconhecimento dos
programas de mestrados e doutorados do país, bem como
1
É responsável pelo acompanhamento das atividades de do fomento aos Programas de Educação a Distância -
forma on-line ou presencial dos estudantes. Em algumas EaD e de Formação de Professores da Educação Básica
IPES, ministra aulas presenciais. – PARFOR.

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1134
também os sujeitos mantenedores em nível sendo a exterioridade (na história dos sujeitos,
estadual ou municipal: as secretarias de na sociedade, nas condições de produção etc.)
educação dos estados e as prefeituras, conforme aporte para a construção de sentidos e estes não
sejam a propriedade do polo de apoio estão delimitados, fechados em si, mas fazem
presencial.3 parte de um conjunto de possibilidades
enunciativo-discursivas, implicadospelo lugar
Fazendo parte da parceria, temos os
social onde estão inscritos os sujeitos. Em
sujeitos ofertantes dos cursos, que são as
outras palavras, os sentidos são construídos no
IPES, que tem autonomia na metodologia dos
espaço discursivo que projetam os sujeitos a
cursos.
partir da formação ideológica e da formação
A seguir, trataremos das categorias da discursiva a que os sujeitos pertencem ou se
análise do discurso que nortearão este estudo. inscrevem.
2 Análise do discurso: alguns conceitos Nesse sentido, falar de discurso é trata
2.1 O discurso da linguagem no nível não meramente
linguístico, embora este seja necessário, mas na
São muitos os conceitos de discurso. instância do social enasrelações intersubjetivas.
Faliamo-nos ao que Pêcheux apresenta como
efeitos de sentido entre interlocutores, por 2.2 A ideologia e o sujeito discursivo
envolver tanto os sujeitos quanto os sentidos Pêcheux (2009) considera que a
numa relação sócio-histórica e ideológica. ideologia é condição necessária para a
Os efeitos de sentido superam ou constituição do sujeito e dos sentidos; sem ela,
modificam asnoções de mensagem, de emissor não há sujeito, logo não há discursos e/ou
e receptor tão difundidas em alguns momentos práticas sociais sem elementos ideológicos.
da linguística, pois aquelessão da ordem da Orlandi afirma que
enunciação, instância que instaura o eu e o
outro aqui e agora. No entanto, uma enunciação é o gesto de interpretação que realiza essa
pode resgatar outras enunciações. relação do sujeito com a língua, com a
história, com os sentidos [...] não há
O discurso é um objeto simbólico e, discurso sem sujeito. E não há sujeito sem
porque não dizer, abstrato que produz efeitos ideologia. (ORLANDI, 2013, p. 47)
nos interlocutores na medida em que o sentido
não está necessariamente atrelado ao que é dito, A autora, em concordância com
mas ao como o dizer é articulado pelos sujeitos, Pêcheux, propõe o sujeito discursivo numa
levando-se em consideração as condições de relação com a língua, com os sentidos, com a
produção. Também faz parte do discurso os história e com a ideologia.
imbricamentos ideológicos.
Cabe ressaltarmos que a AD não se
O discursopossibilita a interação entre reporta ao sujeito gramatical ou mesmo ao
os sujeitos na busca pelos efeitos de sentidos, sujeito cartesiano, que é a fonte e a razão do
saber. Esses são tidos como sujeitos-centro,
3
Espaço físico que possibilita os encontros físico- fontes, origens de discursos, de saber; são
presenciais e outras atividades acadêmico-pedagógicas.

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1135
homogêneos porque o exterior não é a instância
Observamos que o sujeito em AD é um
necessária para constituí-los. Por outro lado, o
sujeito plural, coletivo, que retoma pré-
sujeito discursivo é um efeito social, não é a
construídos do interdiscurso, sendo interpelado
fonte do saber, nem é o centro do dizer. Não é o
pela ideologia e inscrito em uma formação
dono do sentido, nem poderia ser, porque não
discursiva para que tenha sentido seu dizer.
tem o controle do dizer, embora muitas vezes
tenha a ilusão de ter. Ele simplesmente 2.3 Formação Ideológica (FI) e Formação
participa do processo histórico da construção Discursiva (FD)
dos sentidos. A FD e a FI são processos
Segundo Orlandi, indispensáveis aos estudos da Análise do
Discurso. Michel Pêcheux afirma que essas
A forma sujeito histórico que corresponde formações envolvem todos os atos
à da sociedade atual representa bem a linguageiros. Segundo o autor, a FD é
contradição: é um sujeito ao mesmo tempo
livre e submisso. Ele é capaz de uma aquilo que, numa formação ideológica
liberdade sem limites e uma submissão sem dada, isto é, a partir de uma posição dada
falhas: pode tudo dizer, contanto que se numa conjuntura dada, determina o que
submeta à língua para sabê-la. Essa é a base pode e deve ser dito (articulado sob a forma
do que chamamos assujeitamento. de uma arenga, de um sermão, de um
(ORLANDI, 2013, p. 50). panfleto, de uma exposição, de um
programa etc. (PÊCHEUX, 2009, p. 147).
A constituição do sujeito da AD passa
pelas condições de produção do discurso, pois
Para Pêcheux, a FD é a materialização
elas instauram o outro no discurso, já que o
da ideologia em termos linguísticos ou não. É
sujeito enuncia a partir do lugar que ocupa
na FD que está a possibilidade de interpelação
numa formação social, considerando o papel
do outro, através daquilo que é mostrado e
que representa. Nesse âmbito, o sujeito é capaz
também por meio daquilo que é ocultado,
de criar representações do outro e de si mesmo,
interditado ouvisibilizado. Ela é parte da
baseando-se no lugar que eles ocupam no
formação ideológica. De acordo com Pêcheux,
interior das práticas sociais.
Nesse contexto, as palavras, expressões, proposições etc.
mudam de sentido segundo as posições
As palavras não são só nossas.Elas sustentadas por aqueles que as empregam,
significam pela história e pela língua.O que o que quer dizer que elas adquirem seu
é dito em outro lugar também significa nas sentido em referência a essas posições, isto
“nossas” palavras.O sujeito diz, pensa que é, em referência às formações ideológicas
sabe o que diz, mas não tem acesso ou (PÊCHEUX, 2009, p. 146).
controle sobre o modo pelo qual os
sentidos e constituem Isto quer dizer que a FI pode ser
nele.(ORLANDI,2003, p.32)
definida como as posições sociais. Ela domina

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1136
o saber e o dizer do sujeito que está atreladoa de outros sujeitos situados em outros lugares e
determinado grupo, classe, sociedade, pois é posições. Essa relação entre as FD na forma de
retomada instaura o Interdiscurso.
a ideologia que, através do “hábito” e do
“uso, está designando, ao mesmo tempo, o 2.4 O Interdiscurso e sua constituição
que é e o que deve ser, e isso, às vezes, por Interdiscurso é
meio de “desvios” linguisticamente
marcados entre a constatação e a norma e entendido como aquilo que fala antes, em
que funcionam como um dispositivo de outro lugar, independentemente. Ou seja, é
“retomada de jogo” (PÊCHEUX, 2009, p. o que chamamos de memória discursiva.
146) (grifo do autor). (ORLANDI, 2013, p. 31).

Dessa forma, podemos depreender que a Um rápido exemplo: ao falarmos sobre


materialidade da língua não tem domínio de o PT, por exemplo, acionamos, em nossa
suas funções e não contribui senão para ser memória discursiva,diversas relações
utilizada como objeto das Formações interdiscursivas: discursos positivos, discursos
Ideológicas. A base linguística, nesse caso, não negativos, discursos que tentam se neutralizar
sustenta sozinha toda a instância do processo sobre determinados temas etc., mas é fato que
discursivo; para a língua ter sentido, necessita não podemos falar acerca do PT sem nos
de um funcionamento, de um processo, que é o reportarmos a outros discursos já conhecidos. É
processo discursivo. a esse aparecimento do discurso que já existe
Para Pêcheux e Fuchs, a FI é no interior de um discurso éo interdiscurso.
Pêcheux (2009) diz que o interdiscurso
[...] cada formação ideológica constitui um
é constituído por dois elementos: pré-
conjunto complexo de atitudes e
construído e articulação (ou processo de
representações que não são nem
‘individuais’, nem ‘universais’, mas se sustentação).
relacionam mais ou menos diretamente a O pré-construído
posições de classes em conflito umas com
as outras (PÊCHEUX; FUCHS 2010, p. corresponde ao “sempre-já-aí” da
163). interpelação ideológica que fornece-impõe
a “realidade” e seu “sentido” sob a forma
A noção de FD remeteao funcionamento da universalidade (o “mundo” das coisas”)
discursivo e é neste que podemos verificar as (PÊCHEUX, 2009,p. 151).
(des)regularidades que, por sua vez, nos levam
aos posicionamentos sociais, às ideologias. O pré-construído são os discursos que já
foram veiculados e que também já foram
Mesmo que pensemos as FD como
significados. São os discursos postos e
forma de estabelecimento de regularidades do
habilitados a serem (re)utilizados em uma
dito, elas não são isoladas em seu interior, mas
determinada formação discursiva seja para
estabelecem relação com outras FD, pois todo
ratificá-lo, seja para negá-lo, seja para
discurso é intercambiado com outros discursos
contrapô-lo etc. O fato é que esse já-aí

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1137
discursivo dá subsídios para que novos
3 A interdiscursividade dos sujeitos e o dizer
discursos surjam. Ele é uma “matéria-prima”.
acerca da EaD
A articulação é aquilo que
3.1 Considerações sobre o corpus e os
constitui o sujeito em sua relação com o sujeitos
sentido, de modo que ela representa, no O corpus que utilizamos é parte
interdiscurso, aquilo que determina a integrante da pesquisa de orientação PIBIC
forma-sujeito (PÊCHEUX, 2009, p. 154).
Uespi desenvolvida no período agosto/2014 a
agosto/2015. Trata-se de discursos de
Ela pode ser compreendida como a professores formadores obtidos por meio de
íntima relação do sujeito com o pré-construído. entrevista, gravada e depois transcrita.
Dito com outras palavras: o sujeito marca sua
posição ideológica a partir mesmo da Os sujeitos da pesquisa foram seis
articulação, isto é, no momento da interação do professores formadores do NEAD/UESPI,
sujeito com outros sujeitos, com já-ditos, já- sendo um de cada curso: Licenciatura Plena em
sabidos, já-aí (pré-construídos), evidencia(m)- Letras/Português, Inglês, Espanhol, Pedagogia,
se a(s) formação(ões) discursiva(s)do sujeito. Ciências Biológicas e Bacharelado em
Administração Pública. Os critérios para a
O interdiscurso, em suma, constitui-se escolha desses sujeitos foram: a) ser professor
de um conjunto de já-ditos (pré-construídos) e efetivo; b) ter ministrado disciplina no primeiro
de a se dizer, ou melhor, dizendo-se semestre dos cursos; c) ter disponibilidade para
(articulação). colaborar com a pesquisa.
Para Courtine, Todos os sujeitos assinaram o Termo de
Consentimento e autorizaram a publicação de
O interdiscurso como preenchimento seus discursos para fins de pesquisa.O perfil
produtor de um efeito de consistência no
geral deles está descrito no Quadro 1a seguir.
interior do formulável e o interdiscurso
como oco, vazio, deslocamento, cuja Quadro 1: Perfil dos sujeitos
intervenção ocasiona um efeito de
inconsistência (ruptura, descontinuidade, Sujeitos Pós-graduação Tempo/ Tempo
divisão) na cadeia do reformulável em /Outros
(COURTINE, 1999, p. 22). EAD
AA Especialista em 35
Com efeito, vemos que o interdiscurso
Alfabetização anos
possibilita dois modos de operação: como -
Psicopedagogia
preenchimento ou oco, vazio, deslocamento.
Ele está no nível do formulável ou do RT Mestre em 28
reformulável, o que evidencia certa Educação; anos
verticalidade no espaço discursivo que resgata Doutor em
as memórias do sujeito nas realizações Ciências 2 anos
enunciativas. Sociais

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1138
A Especialista em
Ed. Especial; 04 anos O aluno precisa ser autogestor da sua
10
Libras; Mestre aprendizagem, o aluno precisa do outro pra
anos
em Educação poder aprender, o aluno precisa organizar
seu tempo e a forma como estuda e ele
N Especialista em 06 20
precisa fazer uso das ferramentas que a
Matemática meses anos
tecnologia oferece pra gente e de uma
MC Especialista em 23 forma positiva (A) (grifos nossos)
Língua e anos
Literatura Os sujeitos professores desses excertos
Inglesa e Norte 04 anos pertencem a uma Formação Discursiva
Americana institucional a favor da autoformação e
KB Especialista em 22 autogestão da aprendizagem por parte do aluno,
Recursos anos conforme podemos observar pelo efeito da
08 anos deontização. Nesse sentido, se o aluno não
Humanos
estiver enquadrado com essas características
Percebemos que boa parte dos identitárias necessariamente não conseguirá
professores possuem experiência com a EaD e pertencer à EaD.
todos têm bastante tempo de serviço com
práticas pedagógicas ou com outras formas de Esses sujeitos estão condizentes com o
atividades trabalhistas, o que enseja que discurso de teóricos da EaD e do próprio
possuem discursos que possam estar fundados discurso do governo federalcomo se fosse o
na construção de uma memória em que estão discurso da verdade acerca da sujeito estudante
articulados pré-construídos acerca de ensino. dessa modalidade, sustentando assim o efeito
do pré-construído ou já-ditos, o que
3.2 A deontização do sujeito estudante EaD: desencadeia um efeito de uma generalidade ou
um dever-ser universalidade sobre o dito. Nesse sentido,
A relação interdiscursiva percebida está percebemos a interpelação ideológica desses
caracterizada pelo pré-construído acerca do que sujeitos ao retomar o dizer inscrito no art. 1º da
é o sujeito estudante confirmada nos discursos lei nº 9.394/1996 que trata do conceito de EaD.
dos professores: No segundo recorte,percebemos a
condição de interação com o outro no processo
A gente vê [...] nós vemos toda a
de aprendizagem. Isso reforça teses
importância da Educação a distância,
mas sempre vendo que na Educação a pedagógicas sobre a construção do
distância o alunotemuma conhecimento, pautada na própria formação
responsabilidademuitomaior, porque ele, acadêmica do sujeito professor formador desse
ele,ele é formador, eleé autoformador, discurso, conforme podemos perceber no
ele se autofor... ele busca a autoformação”. quadro 1 do subitem 3.1.
(R.T.) (grifos nossos)
3.2 Relações assimétricas entre Ensino
Presencial e EaD

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1139
necessário para que os discursos tenham
Os sujeitos professores mobilizam
sentido.
discursos que instauram uma assimetria entre
as modalidades de ensino. Inicialmente Continuando a esfera da relação
apontam a EaD numa dimensão social que o assimétrica entre EaD e presencial, os sujeitos
próprio contexto da criação da Lei instituidora professores manifestam-se:
da EaD dispõe, conforme abaixo:
[...] não há nada mais importante do que o
Ela proporciona [...] o acesso às pessoas à presencial, o contato com palavras às vezes
educação [...] (K.B.) a gente não diz o que a gente quer dizer ou
que a gente vai dizer pessoalmente, né? [...]
A gente não pode se iludir achando que a
[...] é para suma importância desse alunado Educação a Distância ela, ela responde a
que não tem uma, um acesso à educação todas as questões de uma sala de aula
[...] na forma de ensino regular [...] é uma presencial. (A)
modalidade irreversível [...] é uma
modalidade que há uma parceria interativa
entre professor e aluno que tem rendido A educação a Distância tem uma grande
muito [...] (N) (grifos nossos) importância principalmente no momento
atual em que vivemos em que o trabalhador
muitas vezes não dispõe de tempo pra
[...] mas nem todoestudante pobre de seguir aulas naquela, naquele determinado
classe menos favorecidas tem acesso ao período do dia. (RT)
ensino regular, e o ensino a distância ele
veio pra na verdade atender toda essa
demanda, tanto de quem tem acesso como As pessoas que praticam a Educação a
de quem não tem [...] (N) (grifos nossos) Distância são pessoas que não têm muito
tempo nem condições, né? de ir pra uma
universidade regular e trabalham. A
Os sujeitos professores percebem a EaD maioria são casados, tem filhos, tem
como efeito de uma prática compensatória para família (MC)
ampliar a quantidade de estudantes no ensino
superior. É uma política do governo federal Nos recortes supra, os sujeitos
estendida e materializada nas IPES. Vemos um professores movimentam uma ordem
caráter também assistencialista no discurso dos discursiva de poder atribuída à modalidade
professores quando perfilam o aluno como presencial. Se retomarmos o art. 1º do Decreto
pobre e aquele que não têm acesso ao ensino nº 5.622/2005, veremos que há uma
regular superior. obrigatoriedade de a EaD equiparar-se ao
Dessa forma, os sujeitos professores presencial em algumas atividades, o que deixa
constroem sentido interdiscursivamente, pois claro que a EaD é uma modalidade
retomam e incorporam já ditos em seus semipresencial.
discursos acerca do sujeito estudante da EaD e Nesse sentido, os sujeitos professores
da própria modalidade. Esse mecanismo é supervalorizam o presencial, elencando

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1140
pode ter um monitor para tirar suas dúvidas
algumas características baseadas e na educação a distância ele não vai ter um
principalmente nas suas práticas pedagógicas. professor, esse professor à disposição dele
Reforçam o pré-construído de que a EaD é para (MC)
suprir lacunas deixadas pela pouca quantidade
de oferta de carga horária no ensino presencial. Consideramos que MC assim como
Quando o sujeito professor A diz que outros sujeitos professores idealizam a
“A gente não pode se iludir achando que a modalidade EaD e o aluno EaD balizados na
Educação a Distância ela, ela responde a todas memória discursiva sobre construtos
as questões de uma sala de aula presencial. elaborados sobre as modalidades de educação,
(A)”, instaura o pressuposto de que o ensino o que leva a dizer que os sentidos estão
presencial é suficiente para tal. Mais uma vez, a afetados interdiscursivamente pela formação
assimetria entre presencial e EaD é postulada, o discursiva em que se inscrevem tais sujeitos.
que reafirma o pré-construído de queesta Parece que eles normatizam a EaD em seus
modalidade depende do presencial. discursos e instauram verdades sobre ela. É o
que podemos chamar de acionamento
No recorte a seguir, o sujeito professor
ideológico da discursividade.
tratada EaD como opção, diferentemente dos
sujeitos professores que atribuem essa Noutro aspecto, o sujeito professor AA,
modalidade a indivíduos pobres, casados, que no recorte a seguir, desconstrói o pré-
não têm possibilidade de estudar na construído de que, na EaD, não precisa de
modalidade presencial. muito tempo para se estudar. Vejamos:
Embora a gente tenha uma percepção muito errada
E é também uma modalidade, é uma opção
de que o,o, a Educação a Distância ela leva menos
de modalidade, porque existe também
tempo; pelo contrário, a experiência que eu tive é
muita gente que prefere o presencial,
que trabalhar com Educação a distância você tem
prefere ta lá perto do professor, né? Então,
que estar muito mais tempo disponível com o aluno
nesses parâmetros, a gente tem que
do que um, do eu trabalhar com ensino presencial
reconhecer que ela é indispensável e ao
[...] (AA)
mesmo tempo é dispensável no sentido de
existirem pessoas que não se adequam, né? O sujeito professor desse recorte se
(AA) institui como próprio sujeito enunciador,
interpelado pela memória histórico-discursiva
Em outro posicionamento, MC traz para legitimar seu dizer, inscrevendo-se dessa
pressupostos que tendenciam a dizer que a EaD forma na “posição-sujeito” que define como
não é boa, reforçando pré-construídos acerca da sujeito de saber e sujeito enunciador. A marca
modalidade presencial, conforme abaixo: que mostra a identificação enunciativa é a
forma “eu” que, para Courtine (1999, p. 20),
A princípio é muito bom. [...] ela tem os pode afetar a eficácia do assujeitamento. É
seus entraves na educação a distância, né? como se houvesse uma (des)identificação do
Porque o aluno, ele às vezes, na sala de sujeito com FD, por outro lado, dizemos que
aula, na educação no ensino regular, você esse procedimento pode direcionar o sujeito a
tem um professor para tirar sua dúvida. Ele

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1141
outra FD, ou seja, o sujeito está regrado pela estudar na modalidade presencial convencional,
FD que o domina. no entanto, normalizam-no como sujeito
autorregulador e autoaprendente, pelo fato de
O sujeito enunciou como conhecedor do
haver a maior parte das aulas na plataforma, ou
que está dizendo, falando num processo de
melhor, de não “ter um professor, esse
consciência do dizer diante da necessidade de
professor à disposição dele” (MC).
resgatar a memória. Mesmo assim pertence a
uma FD. Nesse aspecto, os professores
deontizam o sujeito aluno investindo-se na
4 A propósito de uma conclusão
posição de sujeito político (governo federal)
A EaD ainda não se constitui como para idealizar um dever ser, dever-fazer para o
modalidade de educação independente nem se aluno EaD, instaurando o poder e
poderia pensar numa autonomia, mas hierarquizando,de uma forma mais positiva, o
ressaltamos a fase de transição que perpassa a ensino presencialem detrimento da educação a
modalidade, numa interferência constante distância.
comparativa entre o que é a distância e
presencial.
E nesse ínterim, o sujeito professor Referências
formador projeta o aluno EaD a partir do aluno BRASIL. Ministério da Educação. Lei de
da modalidade presencial, sem muitas vezes Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei
pensar em características e peculiaridades entre n. 9.394/96, Portaria 873/2006 e Decreto
eles. Também mobiliza discursos que remetem 5.800/2006. Disponíveis em:
à formação discursiva do governo federal http://www.planalto.gov.br/ccivil_03?Leis?L93
presente na lei e demais instrumentos 94.htm.Acesso25.ago.2015
normativos da EaD. Às vezes, falam como se COURTINE, J. J. O Chapéu de Clémentis.
fossem representantes do próprio governo, bem Observações sobre a memória e o
como apresentam normas e instauram verdades esquecimento na enunciação do discurso
sobre o aluno e sobre a modalidade EaD. político. In: INDURKY, Freda. (org.). Os
No bojo das manifestações dos sujeitos múltiplos territórios da análise do discurso.
professores formadores, vemos o Porto Alegre: Editora Sagra Luzzato, 1999
estabelecimento de relações interdiscursivas ______.Análise do Discurso Político: o
que retoma já-ditos e pré-construídos acerca do
discurso comunista endereçado aos cristãos.
que é EaD e do que projetam para o aluno São Paulo: EdUFSCar, 2009
dessa modalidade, evocando discursividades
que acionam práticas ideológicas de ORLANDI, E. P. Linguagem e seu
identificação de pré-construídos desfavoráveis funcionamento – as formas do discurso. 2
à EaD. ed.São Paulo: Pontes, 1987
O aluno EaD é visto estereotipado por _______.Análise do Discurso. Princípios e
alguns sujeitos formadores como pobres, Procedimentos. Campinas, SP: Pontes, 2003,
pessoas casados, que não têm condições de 2013

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1142
PÊCHEUX, Michel. Semântica e Discurso:
uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas:
Unicamp, 2009
______.; FUCHS, Catherine. A propósito da
análise automática do discurso: atualização e
perspectivas (1975). In: GADET, F.; HAK, T.
(Orgs.). Por uma análise automática do
discurso: uma introdução à obra de Michel
Pêcheux. Trad. Bethânia S. Mariani et al.
Campinas: Editora da UNICAMP, 2010
SANTOS, E. Educação online para além da
EAD: um fenômeno da cibercultura. X
Congresso Internacional Galego-Português de
Psicopedagogia. Anais. Braga: Universidade do
Minho, 2009

VALADARES, J. Teoria e Prática de


Educação a Distância. Lisboa. UAberta.

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1143
OS GÊNEROS DE RISO: UM ESTUDO DO RISO COMO
ENUNCIADO

WaldêniaKlésia Maciel Vargas SOUSA; Eliane Marquez da Fonseca FERNANDES


Universidade Federal de Goiás (UFG)
waldeniaklesia10@hotmail.com; elianemarquez@uol.com.br

Resumo: Examinamos o riso à luz dos estudos da Análise do Discurso francesa, com
recorrência a Mikhail Bakhtin. Mobilizamos as noções de enunciado e gênero. Tomamos
o enunciado como materialidade discursiva, possibilitando efeitos de sentido em uma
situação enunciativa, envolvendo sujeitos em interação em um dado momento sócio-
histórico.O riso, sendo materialidade, é compreendido como gênero, exercendo funções
na cena enunciativa. Em síntese, analisamos o funcionamento do riso como enunciado
relativamente estável, observando a sua função nasenunciações e efeitos de sentido
decorrentes.Visamos a suprir a necessidade de estudar a linguagem não verbal
comumente relegada a complemento de textos verbais. Contudo, não objetivamos
construir uma classificação definitiva dos risos, pois cada enunciado é singular.Palavras-
chave: enunciado; gênero; riso.

aparecimento do riso é controlado por


Introdução
discursos e exerce uma função a cada irrupção.
Estudos sobre o riso evidenciam que em Aprende-se a rir, ou não, por meio de
cada época o riso emerge desempenhando mecanismos do discurso.
funções e representações sociais que podem,
As representações e funções são
inclusive, ser objeto de exercício de poder
delimitadas pelo discurso que permeia a
(MINOIS, 2003). Isso posto, não podemos
sociedade de cada época (MINOIS, 2003).
tomá-lo como uma manifestação humana
Além de demonstrar felicidade, alegria e bem-
natural como o fazem teorias psíquicas, pois o
estar, o riso está relacionado a práticas sociais,
riso é social e histórico, portanto é discursivo.
tais como a política, a educação, a economia e
Analisando as ocasiões nas quais o riso está
a saúde, dentre outras, conforme sustentado por
presente e também os enunciados que
Sousa (2012). Desse modo, observa-se que a
controlam e estimulam os momentos nos quais
sociedade atual já está habituada a rir por
devemos rir, bem como observando o mal-estar
diversos motivos e em decorrência
causado por um riso que emerge em uma
dissodeixamos de refletir sobre o riso como
situação inapropriada, percebe-se que o
linguagem que apresenta possibilidades de

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efeito de sentidos e também sobre a sua valorização, apresentam-se várias vertentes de
representatividade no processo de comunicação estudo do riso e os autores que se incumbem de
humana. Costuma-se relegar a ele, por explicar tal fenômeno apoiam-se em teorias
inúmeras vezes, um papel complementar nos distintas: discursivas, linguísticas, históricas,
processos linguísticos, porém, um riso, sociais, psicológicas, biológicas, entre outras.
acompanhado ou desacompanhado de textos O objetivo é explicar o riso e sua influência no
verbais, pode exercer funções e ser comportamento humano, bem como asua
compreendido pelos sujeitos em interação, ou crescente valorização. Para exemplificar,
ser resposta a outros dizeres ou, ainda, destacamos os estudos de Bergson (2001), que
responder a outros risos. Entendemos que a empreende uma busca sobre os aspectos sociais
materialidade do riso não é linguística e por que envolvem tanto o riso quanto os motivos
isso mesmo devemos dar a esse aspecto uma que o provocam. Esse autor delineia funções
atenção especial. para o riso na sociedade, porém, detém-se a
explicar tal fenômeno como inato ao ser
Para empreendermos essa
humano.
pesquisaretomamos Bakhtin/Volochinov
(2006) e Bakhtin (2003), que destacam os A obra de Bergson (2001)nãoé o
aspectos sociais e históricos que constituem a primeiro estudo sobre o assunto, mas obtém
linguagem, bem como destacamos a noção de repercussão por abordar o assunto do ponto de
enunciado elaborada pelos estudos vista social. O autor afirma que rir é humano
bakhtinianos, com especial enfoque ao conceito ese prolifera facilmente quando os sujeitos
de gênero do discurso, fundamental para esse estão reunidos em grupo, ou seja, o riso é
trabalho, pois nos ajuda a pensar nos efeitos e contagioso e tem conexão com o social. O ato
funções do riso nas situações enunciativas, de rir se manifesta em sua plenitude quando o
analisando seu estatuto de enunciado, ser humano está acompanhado, como se uma
entendendo-o como uma materialidade pessoa contaminasse ou estimulasse a outra a
relativamente estável presente no cotidiano, nas rir. Bergson afirma:
diversas situações sociais.Percebemos, assim, o
riso como material semântico exercendo Não saborearíamos a comicidade se nos
funções, constituindo, dessa maneira, gêneros sentíssemos isolados, o riso precisa de
de riso, ou melhor, risos relativamente eco. [...] Nosso riso é sempre um riso de
estáveis.Selecionamos, para este trabalho, o um grupo. [...] Por mais fraco que o
programa eleitoral da candidata Dilma suponham, o riso esconde uma segunda
Rousseff que foi transmitido no dia vinte e três intenção de entendimento, eu diria
de agosto de dois mil e catorze, referente ao quase de cumplicidade, com outros
primeiro turno das eleições presidenciais. No ridentes, reais ou imaginários. Quantas
corpus analisamos os diversos risos que vezes já não se disse que o riso do
emergem, seus efeitos de sentido e suas espectador, no teatro, é tanto mais largo
funções na cena enunciativa. quanto mais cheia está a sala (2001, p.
4-5).
1. Breves considerações sobre o riso
Há um excesso de risos na sociedade Entendemos que em situação de
atual (MINOIS, 2003). Diante de tal interação um riso responde ao outro e vão

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constituindo mutuamente. No entanto, é relação a quando deve ou não rir, correndo o
preciso que tais indivíduos partilhem dos risco de ser motivo de riso para os demais
mesmos valores discursivos. Assim, uma das componentes do grupo social. A partir de tais
funções do riso é agregar os sujeitos. afirmações, remetemo-nos à Análise do
Salientamos que o “eco” a que se referem os Discurso, pois a prática do riso está carregada
estudos de Bergson reiteram a noção de de valores discursivos, bem como é capaz de
interação evocada por Bakhin (2006), no qual a infundir o medo, logo é pleno de exercício de
comunicação humana é estabelecida por poder. O riso, na atualidade,ainda causa temor
processos de interação verbal, há nesse caso, na população e esse comportamento destacado
outra possiblidade de interação, que ocorre por por Bergson (2001) também é constantemente
meio do riso, que se dissemina mais facilmente observável nos dias atuais, pois as pessoas não
quando os indivíduos estão reunidos, querem ser motivo de riso e de ridicularização,
interagindo. exceto quando as pessoas não o fazem
propositalmente, quando são profissionais do
Bergson (2001) afirma que rir é
humor. Por fim, percebemos que Bergson
fundamentalmente humano. Contudo, nós
(2001) faz relevantes apontamentos acerca do
acreditamos que, longe de ser uma
riso e sua obra ainda hoje é importante para
manifestação da mente humana ou ser algo
compreender esse fenômeno social.
natural, o riso é uma prática cultural, situada
historicamente, por isso, consideramos que Minois (2003) destaca que no momento
valores negativos ou positivos são agregados a histórico atual há um misto de vários tipos de
ele. Não se pode rir em qualquer lugar, em riso encontrados em períodos históricos
qualquer situação. Essas restrições indicam que anteriores e, dentre tais práticas, podemos citar
o riso é discursivo e nosso estudo caminha o riso profano do carnaval da Idade Média, o
nessa perspectiva. Não rimos por acaso, riso de zombaria presente na sociedade romana,
aprendemos a rir e essa escolha é determinada o riso festivo entre outros. Mediante a isso,
discursivamente. Por isso, é preciso cautela entendemos que a função do riso se modifica e
com a afirmação de que o riso é humano, se pluraliza ao longo do tempo, pois, se
incorrendo o risco de confundi-lo com algo anteriormente o riso ajudava a estabelecer uma
inato ou com uma capacidade psicológica do distinção entre as classes sociais e a manter a
inconsciente sobre a qual o sujeito não tem ordem social, tal como ocorrera na sociedade
controle. Os estudos de Bergson apontam para romana (MINOIS, 2003), atualmente, o ato de
o riso como função social, tendo uma utilidade. rir exerce diversas funções tais como promover
Entendemos, esse aspecto como importante o bem estar, representa felicidade, torna o
para pensar que o riso estácarregado de valores sujeito mais bonito, é uma norma da boa
discursivos, pois, para ele, “o riso deve ter uma educação, está presente na publicidade entre
significação social” (BERGSON, 2001, p. 6). outros efeitos que irrompem em cada situação
enunciativa.
De acordo com Bergson (2001, p. 15), o
riso é “uma espécie de gesto social. Pelo medo 2. Enunciado, gênero e riso
que inspira, o riso reprime as excentricidades”. Para os estudos acerca da linguagem,
Observamosnessa afirmação uma função destaca-se a obra Marxismo e filosofia da
controladora do riso, que molda o sujeito em linguagem (BAKHTIN/VOLOCHINOV,

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1146
2006).Nessa obra, o autor toma como
parâmetro a obra de Saussure para demonstrar Os estudos bakhtinianos revolucionam
as lacunas deixadas pelo objetivismo abstrato, o modo como o entendimento do processo pelo
expressão adotada por Bakhtin ao referir-se à qual os sentidos são estabelecidos, sendo
teoria saussuriana.Destaca-se nessa retomada a construídos durante o processo de interação. De
noção de signo linguístico concebido por acordo com Bakthin (2006, p. 43), “realizando-
Saussure (1996) como uma união arbitrária se no processo da relação social, todo signo
entre o significado e o significante e, portanto, ideológico, eportanto também o signo
imutável. Bakhtin/Volochionov (2006) propõe linguístico, vê-se marcado pelo horizonte social
outra acepçãopara o signo, entendendo que ele de época e de um grupo social determinados”.
tem uma significação mutável, à qual ele Delineia-se a dimensão histórica para a
denomina de tema e está estritamente linguagem.
relacionado às condições sócio-históricas Para Bakhtin (2003), a comunicação
imediatas ao ato de linguagem. Assim, a humana funciona por meio de enunciados que
concepção de língua é determinada pela são realizados por sujeitos sob determinadas
ideologia do cotidiano, bem como pela história condições enunciativas e são por meio das
e o sujeito torna-se inerente aos estudos da enunciações concretas que o discurso emerge,
linguagem. Os estudos bakhtnianosutilizam a pois ele “sempre está fundido em forma de
denominação de signo ideológico em enunciado pertencente a um determinado
contraposição ao signo linguístico saussuriano, sujeito do discurso” (BAKHTIN, 2003, p. 274).
estabelecendo que os sentidos, isto é, o tema da Portanto, língua, discurso e enunciado estão
enunciação, são gerados na ação comunicativa, inextrincavelmente relacionados no processo
ou melhor, na interação entre os sujeitos. Esse interacional.
é um novo paradigma os estudos linguísticos,
O enunciado apresenta algumas
incluindo aquilo que o Curso de linguística
características importantes elencadas por
geral (1996) havia desfocado ao instaurar a
Bakhtin, dentre elas podemos destacar a
Linguística como ciência.
dependência mútua, isto é, a margem de um
Assim, o lugar onde a ideologia se enunciado está povoada por outros enunciados,
materializa é no signo que emergena interação pois o enunciado não é um todo independente.
social, ou melhor, durante o processo de De acordo com Bakhtin (2003, p. 297),
comunicação entre os sujeitos
(BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2006). Em enunciados não são indiferentes entre si
síntese, o pensamento bakhtiniano entendeque nem se bastam cada um a si mesmos;
o significado está relacionado à história e aos uns conhecem os outros e se refletem
sujeitos falantes envolvidos no processo de mutuamente uns nos outros. Esses
interação que estão imersos na ideologia do reflexos mútuos lhes determinam o
cotidiano. O posicionamento de caráter. Cada enunciado é pleno de ecos
Bakhtin/Volochinov (2006) é importante, pois e ressonâncias de outros enunciados
coloca o sujeito no patamar de fundamento dos com os quais está ligado pela identidade
sentidos da língua e não como um indivíduo da esfera de comunicação discursiva.
passivoque se apropria dela sem a perspectiva Cada enunciado deve ser visto antes de
de modificá-la. tudo como uma resposta aos enunciados

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precedentes de um determinado campo: trabalho, atos simbólicos de um ritual,
ela os rejeita, confirma completa, cerimônias, etc.), dos quais ela é muitas
baseia-se neles, subentende-os como vezes apenas o complemento,
conhecidos, de certo modo os leva em desempenhando um papel meramente
conta. auxiliar.

A partir desse exposto, compreendemos Bakhtin (2003) concebe o enunciado


que o riso é linguagem, é pleno de efeitos de como a unidade a partir da qual os gêneros
sentido que emergem na interação entre os emergem nas situações sociais, exercendo
sujeitos. Cada riso relaciona-se a outros, funções. Na obra Estética da criação verbal
respondendo ou refutando enunciados, (2003) o autor apresenta detalhadamentea
retomando ou reatualizando tais enunciados. O teorização acerca dos gêneros, que já se
riso é um signo ideológico, ou melhor, uma delineara na obra Marxismo e filosofia da
materialidade semiótica integrante da linguagem (BAKHTIN/ VOLOCHINOV,
linguagem humana. Tomemos como exemplo o 2006, p. 42):
riso característico do personagem Papai Noel,
figura natalina que tem um riso reconhecível, em conexão como o problema da
que simboliza o natal, personagem que traz a enunciação e do diálogo, abordaremos
alegria às crianças por meio de presentes. Se também o problema dos gêneros
um sujeito enuncia esse tipo de riso, logo nos linguísticos. A este respeito faremos
remetemos ao natal, ao Papai Noel e aos simplesmente a seguinte observação:
enunciados a ele relacionados. Com isso, cada época e cada grupo social têm seu
podemos perceber que o riso, assim como repertório de formas de discurso na
enunciados linguísticos, tem suas margens comunicação sócio-ideológica. A cada
povoadas por outros risos, outros ditos e outras grupo de formas pertencentes ao mesmo
materialidades. Não basta, para estudar a gênero, isto é, a cada forma de discurso
linguagem humana, analisar os ditos verbais, social, corresponde um grupo de temas.
pois o verbal e o não verbal compõem as
diversas materialidades às quais os sujeitos É definitivamente no processo de
recorrem para se comunicar. De acordo com interação, que os gêneros emergem. Em outras
Bakhtin (2006, p. 126), palavras, a situação social e os sujeitos
envolvidos na interação determinam a irrupção
[a] comunicação verbal entrelaça-se dos gêneros. Igualmente, é na interação que se
inextrincavelmente aos outros tipos de estabelece o tema da enunciação, ou melhor, os
comunicação e crescem com eles sobre efeitos de sentido. Os sujeitos se comunicam
um terreno comum da situação de por meio de enunciados que emergem no
produção. Não se pode, evidentemente, processo histórico e se tornam “tipos
isolar a comunicação verbal dessa relativamente estáveis” (BAKHTIN, 2003, p.
comunicação global em perpétua 283). Desse modo, os gêneros são formatações
evolução. Graças a esse vínculo de enunciados reconhecidas quedifundem-se
concreto com situação, a comunicação nas múltiplas esferas sociais e são formas às
verbal é sempre acompanhada por atos quais os sujeitos do discurso recorrem no
sociais de caráter não verbal (gestos do processo de comunicação. Na atualidade, a

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comunicação engloba uma série de materiais texto. Enfim, os enunciados assumem formas
semióticos e o riso está em destaque, diversas, portanto, é plausível afirmar que o
entretantonão pode ser qualquer riso, mas um riso é um enunciado e delineia diversas
que seja adequado àquela situação, pois será funções, apresenta efeitos de sentidos em cada
anormal se em uma reunião formal de negócios esfera social em que circula, constituindo
um sujeito rir alto, gargalhar, porque pode ser assim, gêneros de riso. Para confirmar nossa
considerado inapropriado. No entanto, também hipótese, apresentamos a seguir a análise de
não é normal um riso contido em uma alguns risos.
apresentação de humor, porqueé esperado que
3. Gêneros de riso
os sujeitos estejam propensos ao riso
abundante. O sujeito que não ri em uma Para analisar e observar as noções
apresentação de espetáculo de humor pode até apresentadas anteriormente selecionamos o
mesmo ser motivo de riso dos colegas, por programa eleitoral da candidata Dilma
interpretarem que ele não compreendeu a Rousseff, veiculado na televisão em canais
piada. abertos no dia vinte e três de agosto de dois mil
e quatorze. Esse dado foi selecionado porque
Bakhtin ainda destaca uma os dizeres acerca da atual presidente afirmam
característica fundamental do enunciado: que ela quase não ri e o pouco riso que emerge
exercer uma função. Essa função está faz com que haja a interpretação de que ela é
relacionada aos outros elementos já uma mulher séria e até antipática. No entanto,
mencionados: o sujeito, a situação e o
nas campanhas vê-se o contrário. É importante
momento histórico. Nas palavras do autor perceber cenas escolhidas para o vídeo que
(BAKHTIN, 2003, p. 283-284), mostram a candidata em interação com os
eleitores ou visitando uma obra do governo,
[cada] esfera da comunicação conhece
pois nessas situações ela sorri, distanciando-se
seus gêneros, apropriados à sua
da imagem de mulher séria e sisuda que os
especificidade, aos quais correspondem
meios de comunicação salientam. Os risos que
determinados estilos. Uma dada função
emergem em meio às diversas situações sociais
(científica, técnica, ideológica, oficial,
têm efeitos diferentes. Em cada momento é um
cotidiana) e dadas condições,
novo enunciado que se delineia e alguns risos
específicas para cada uma das esferas
são esperados, são enunciados tipificados
da comunicação verbal, geram um dado
relacionados às situações de produção.
gênero, ou seja, um dado tipo de
enunciado relativamente estável. No programa eleitoral da presidente
Dilma Rousseff, candidata à reeleição, o riso
Pensando na perspectiva de que um emerge e se materializa em diferentes
enunciado tem materialidade, essa não precisa gradações, assim, não é o mesmo riso. Outro
ser da ordem da língua, mas da linguagem, que fator importante é entender que o riso está
inclui gestos, cores, símbolos etc. Trocam-se relacionado a uma dada situação e pode ser
risos como trocam-se enunciados. A noção de interpretado levando-se em consideração as
enunciado não pode se limitar a uma frase ou a condições de produção e a posição dos sujeitos
um texto, a questão é mais complexa e abarca em interação, pois analisando o riso como
outros aspectos que já listamos ao longo deste enunciado, percebemos que os sentidos são

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gerados conforme quem ri, para quem se ri, em por parte dos interlocutores para com esses
que condições se ri e as funções pretendidas risos cordiais, isto é, para com esses gêneros de
por esse riso. riso. Delimitamos, portanto, que esse é o
gênero de riso que emerge na situação de
É importante analisar também a posição
interação. Já nas cenas que mostram a
que o sujeito ocupa e a imagem que ele deseja
candidata observando uma obra, o riso tem o
transmitir. Ocupando a posição de candidato
propósito de mostrar orgulho pelas suas
político, espera-se que o riso tenha a função de
conquistas e também alegria por ter realizado
demonstrar cordialidade, simpatia entre outras
tais ações. Assim, o riso ao cumprimentar não é
funções que o riso pode ter. Sobre a função dos
o mesmo riso de orgulho. São situações
gêneros, Marcuschi (2008, p. 159, grifo do
enunciativas distintas e os gêneros de riso que
autor) afirma: “os gêneros não são entidades
emergem, bem como suas funções,são outras.
formais, mas sim entidades comunicativas em
que predominam os aspectos relativos a No início do programa eleitoral temos
funções, propósitos, ações e conteúdos”. O riso um pronunciamento de Dilma e ao falar das
abundante de Dilma durante o período eleitoral conquistas dos jovens e de como devemos
apresenta funções, dentre elas, mostrar que ela pensar e planejar o futuro, a presidenciável
é tanto competente quanto receptiva aos sorri manifestando a alegria que sente pela
eleitores, construindo então uma imagem possibilidade de os brasileiros poderem ter um
positiva por meio do riso. futuro de sucesso, mediante as realizações
ocorridas durante seu mandato. Esse é outro
No programa eleitoral, temos cenas
riso, diferente daqueles que apresentamos nas
mostrando a presidente rindo ao cumprimentar
análises anteriores, constituindo-se como outro
os possíveis eleitores e interagindo com
enunciado. O programa, criado pelos
cidadãos beneficiados por algum programa
marqueteiros,tem um clima agradável no qual
governamental e também visitando obras
riso alegre cabe perfeitamente. Desse modo, é
concluídas ou em construção. Em situações de
evidente que o riso é um enunciado, tem uma
interação já observamos que Dilma ri
materialidade interpretável, suscita respostas,
mostrando uma receptividade para com quem
exerce funções, apresenta efeitos de sentido e
fala e também demonstrando simpatia, pois é
emerge relacionado a uma situação
esse tipo de riso que predomina nessas
enunciativa, estabelecendo, portanto, gêneros
condições, portanto, entendemos que as
de riso.
situações em que cumprimentamos a alguém
conhecido ou a quem acabamos de conhecer No programa aparecem algumas
emerge o riso cordial, cujo efeito é de se pessoas tirando fotos em companhia da
mostrar simpático e receptivo, como norma de presidente e nesses momentos ela está sempre
boa educação. Entendemos que ao retribuir o sorrindo, mostrando-se novamente simpática e
riso, o sujeito interlocutor desse enunciado, que receptiva. O riso da presidente-candidata
se materializa em forma de riso, tem uma responde ao riso dos sujeitos que riem para ela.
atitude responsiva, pois “toda compreensão é No entanto, para criar essa imagem de
prenhe de resposta e, de uma forma ou de simpatia, inferimos que há uma escolha
outra, forçosamente a produz” (BAKHTIN, proposital de momentos de riso. Essa também é
2003, p. 290). Espera-se uma responsividade outra situação de interação, pois nas fotos

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espera-se que o sujeito ria, sem que isso tenha sempre relacionado a uma situação enunciativa,
efeitos, tais como alegria ou cordialidade, em dado momento histórico, exercendo uma
sendo um sorriso automático para tirar a função.
fotografia. Esse já é outro gênero de riso. Por fim, nosso objetivo não é construir
Já nos segundos finais do programa, uma classificação estática e definitiva dos
Dilma faz um novo pronunciamento que gêneros de riso existentes, pois cada enunciado
apresenta um riso contínuo, porém de forma é único. As análises objetivam subsidiar as
moderada, que é continuidade daquele riso práticas de leitura e interpretação em múltiplas
simpático dos políticos para se relacionar materialidades, tornando os leitores mais
cordialmente com os eleitores, estabelecendo competentes, bem como objetivamos valorizar
uma imagem positiva para a presidente. as materialidades semióticas presentes no
Delineia-se desse modo a gradação do riso, ora cotidiano da sociedade atual, que está cada vez
mais amplo, ora mais contido. Cada riso se mais prenhe de materialidades não verbais e
insere em possibilidades diferentes de que demandam grande esforço para análise.
interpretação, pois pertencem a gêneros
Referências
diferentes.
BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In:
Por fim, nesses exemplos, podemos ______. Estética da criação verbal. Tradução
perceber que há uma tentativa de controle do francês por Maria Ermantina Galvão;
acerca do riso, não se pode rir de tudo, de revisado por Marina Appenzeller. São Paulo:
qualquer forma e em qualquer circunstância. Martins Fontes, 2003, p. 279-325.
Infere-se que um candidato à presidência deve-
se mostrar cordial, tranquilo, simpático e BAKHTIN, M./VOLOCHINOV. Marxismo e
confiante, mas ao exagerar no riso, pode Filosofia da Linguagem. Traduzido por Michel
mostrar-se desequilibrado, exagerado. Cada Lahud e Yara Frateschi. 12. ed. São Paulo:
função está relacionada a uma situação e aos Hucitec, 2006.
efeitos de sentido que emergem do processo de BERGSON, H. O riso: ensaio sobre a
interação em uma dada época. significação da comicidade. Tradução de Ivone
4. Considerações finais Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes,
2001.
Com essa breve análise, evidenciamos a
existência de outras formas de enunciado e o MARCUSCHI, L.A. Produção textual, análise
riso é uma delas. O riso é linguagem e tem de gêneros e compreensão. São Paulo:
efeito na interação entre os sujeitos. Esses Parábola Editorial, 2008.
efeitos não se resumem a entender o riso como MINOIS, G. História do riso e do escárnio.
inato ao ser humano ou a apenas demonstrar a Tradução Maria Helena Ortiz Assumpção. São
felicidade do sujeito, pois não rimos apenas Paulo: UNESP, 2003.
quando estamos felizes. O riso é discursivo.
Aprendemos a rir e essa necessidade de incluir SAUSSURE, F. Curso de Linguística Geral.
o riso no cotidiano gera e estabiliza esses Traduzido por Antônio Chelini et al. São
enunciados, que por sua vez, se organizam em Paulo: Cultrix, 1996.
gêneros. O riso, sendo enunciado, pode
também se organizar em gêneros de riso,

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1151
SOUSA, W. K. M. V. O riso como estratégia
discursiva para o exercício do biopoder: a
sociedade que vive de rir e para rir. 2012 125 f.
Dissertação (Mestrado em Letras e
Linguística), Faculdade de Letras,
Universidade Federal de Goiás, Goiás, 2012

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ENSINO DE PORTUGUÊS: PRÁTICAS URGENTES

Agostinho Potenciano de SOUZA


Universidade Federal de Goiás (UFG/Discens/FAPEG)
apotenciano@uol.com.br

Resumo: Este texto entrelaça o histórico da disciplina Língua Portuguesa com o percurso do
narrador, como professor dessa disciplina, ancorando seu fazer e pensar em alguns mestres.
Contar o percurso, tanto o da disciplina, quanto o do professor, acompanhado de reflexões sobre
o fazer profissional, tem por objetivo registrar um tempo histórico e suas ofertas e escolhas e,
com isso, sugerir aos profissionais da área um posicionamento crítico e produtivo no seu
trabalho. A metodologia da exposição é um estudo histórico da disciplina, uma narração da
experiência de professor de Língua Portuguesa e a apresentação das ideias teóricas básicas que
fundamentam o saber sobre o ensino de Língua Portuguesa. Como resultado, este artigo mostra
que as práticas de leitura e de escrita é que constituem o saber necessário para as atividades
diárias do cidadão, mais que o dominante ensino escolar da língua padrão.
Palavras-chave: ensino; língua portuguesa; formação profissional; leitura; escrita.

Brinca na poeira, brinca!


Aprecio a tua presença só com os olhos.
Vale mais a pena ver uma cousa sempre pela
primeira vez que conhecê-la,
Porque conhecer é como nunca ter visto pela
primeira vez,
E nunca ter visto pela primeira vez é só ter ouvido
contar.

Fernando Pessoa (Alberto Caeiro)

talvez um apelo, para que aquele que ouve


1. Vivências e experiência
também tenha a sua experiência e o que contar.
Contar uma experiência é como ver a
Fazer um percurso narrativo é como
coisa pela primeira vez. É mais que trazer
contar a viagem feita, com os olhos brilhando
informação, é algo mais do que conhecer sem
pela humilde epopéia de ter vivido tantos fatos,
nunca ter visto pela primeira vez, é modular o
convivido com tantas pessoas e ter chegado
que viu procurando a sabedoria. Por isso, o
aqui, tendo muito para contar. Talvez mais
narrador de uma experiência traz um convite,
pelas ideias vividas que pelos fatos em si, estes

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só fazem força real para os que possuem raízes distingui-las, a fim de transformar as vivências
nesse mesmo campo de ação. As idéias, porém, em experiências”. Para isso, resume essa
é que movem mais palavras, tanto as próprias relação:
quanto as alheias. O ganho que transborda é
uma organização, uma espécie de mapa de [...] toda vivência quando conectada à ideia
caminhos percorridos por mim e por muitos torna-se experiência. A idéia ilumina,
outros professores, cuja história também vou expande, redimensiona o acontecimento.
narrar de alguma forma, artesanalmente: Ela é a chave para a compreensão e
experimentação do passado, do presente e
do futuro. A ideia é origem, começar
O grande narrador terá sempre suas raízes sempre novo e nunca de novo (não se
no povo, em primeiro lugar nas camadas repete, não redunda em sentido; a idéia
artesanais. Mas assim como essas como sendo origem produz novos e
abrangem os artífices camponeses, intermináveis sentidos) (PEREIRA, 2006,
marítimos e urbanos, nos mais diversos p. 74).
estágios do seu desenvolvimento
econômico e técnico, também se graduam A correlação entre os dois conceitos
muitas vezes os conceitos, nos quais é será o percurso dessa história, pois o caminho
transmitido o resultado de sua experiência percorrido foram vivências conectadas em
(BENJAMIM, 1994, p. 214).
diálogo com muitas ideias lidas, ouvidas,
conversadas. Essa formulação, como narrativa,
De fato, um professor é um artífice, pois uma sequência de ações e de personagens, é a
possui o desafio de encontrar, em cada sala de transmissão de uma experiência em diálogo
aula, alunos diferentes dos alunos da outra sala, com as múltiplas vivências dos ouvintes, que
dos alunos do ano anterior. E, sabemos muito sentirão o apelo para tecerem suas ideias, ou
bem, em cada turma os alunos não são nem um seja, cambiar vivências em experiência.
pouco iguais... Entretanto, não é este conceito
O tempo desta narrativa não chega a um
de artífice que a maior parte dos fatos de hoje
século, pois os estudos para a profissão de
possibilita ao professor. Sob o comando de
professor de Português não passam de noventa
programas, de livros ou apostilas didáticas que
anos institucionais. O histórico da disciplina
o incumbem de executar tarefas, quase como a
Língua Portuguesa é caracterizado pelos
de um operário de linha de montagem, cujo
documentos oficiais de referência e,
resultado deve ser visto em notas e escores de
principalmente, pelo perfil desenhado pelas
mérito, a arte de ser professor está definhando,
práticas, pelos mestres, colegas e pesquisadores
para que tenham lugar instrutores de alta
que, nas últimas décadas, dedicaram-se a
produtividade.
descrever seus valores, suas importâncias, seus
A noção de experiência, um conjunto encantos, entre críticas e utopias. Nesse
dos saberes que constituem cada ser humano, percurso inscreve-se o narrador, sua viagem
pede complementação com a de vivência. pela disciplina, dela se apropriando, e fazendo
Estudando essas noções em Benjamim, Pereira dessa lide o seu ofício.
(2006) conclui que é tarefa da educação “saber
2. Histórico da disciplina língua portuguesa

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1154
disciplina também é um agente do pensar a
A vivência é um dos fios com que
disciplina.
tecemos o conhecimento, o fio mais
pragmático, mais concreto, feito de ações: o Para pensar e fazer de modo mais
fazer. O outro fio é o das teorias, das idéias dos consciente e crítico seria significativo buscar
pensadores que argumentam sobre o tema, dos por informações sobre os elementos que
que pesquisam e tiram conclusões, dos compõem o quadro da disciplina: o livro
analistas intelectuais, tecedores de abstrações, didático (LD), os professores, os documentos,
de visão mais ampla, de cruzamento de teorias: os objetivos da educação escolar, as ideologias.
o pensar da disciplina, a experiência. Todos esses constituintes influenciam a teoria e
Naturalmente, não se pensa a disciplina fora do a prática da disciplina com que convivemos
lugar escola, e ela é posta ao lado de várias todo dia.
outras disciplinas, estabelecidas historicamente O que mais fica da vivência tida pelos
como o quadro de formação básica do brasileiros quanto ao ensino de LP é o uso do
conhecimento que o cidadão deve adquirir no livro didático. Nele estão as leituras feitas e os
meio escolar. Nem sempre o pensar interage de modos de ler, os ensinamentos gramaticais e o
modo significativo com o fazer. Com rigor dos exercícios e regras, as poucas práticas
frequência, os que pensam não são os que de escrita, quase sempre modeladas e áridas.
fazem, ou, pior, olham o que é feito apenas com Um olhar sobre a história do LD, conforme
um olhar estrangeiro, frequentemente Soares (2002), pode levar-nos a ver
condenatório. permanências seculares e novas buscas
No Curso de Licenciatura em Letras, o também. Da época do descobrimento até o
campo teórico estudado, de certa forma é o século XVIII, o material escolar era muito
pensar a disciplina. Com frequência, muitos “catequético”: ler, copiar e aprender, repetir
dos conteúdos ficam distantes da prática sem discutir. Pelo século XIX, esse modo de
pedagógica própria do ensino básico. Cursos de ver o LD continua, mas algo novo surge: ler
licenciatura têm o objetivo de formar seus obras exemplares, imitar a língua dos que
alunos para a profissão de professor – algo que ficaram como clássicos – surgem as antologias
parece obscuro para o fazer dominante nesses escolares, com textos para leitura, algumas sem
cursos. Por uma conclusão lógica essa trabalhos com a gramática, outras com alguns
finalidade teria que transpassar todos os fazeres exercícios formais. A mais utilizada por mais
dessas instituições. de setenta anos foi a Antologia Nacional (1895-
1969) de Fausto Barreto e Carlos de Laet,
Lançar um olhar sobre a história, tanto a
composta por textos de autores clássicos.
pessoal, quanto a coletiva, já que são
inseparáveis, seria um bom procedimento para Nos anos finais da década de 1950, pela
verificar como os contrários acima têm situação social diferente a cada década, com a
percorrido um caminho muito lento, justamente crescente urbanização, o aumento populacional,
pelo distanciamento um do outro. É preciso a nova ordem do capitalismo, a busca mais
aproximar o fazer e o pensar. E o passo inicial democrática pela escola, surge um novo LD:
é acreditar que o agente que dá aula da texto, seguido de perguntas pontuais;
gramática, com muitos exercícios estruturais.

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As décadas de 80 e 90 verão os LD de LP se estudo das humanidades, mesmo que ainda
colorirem, quase que cumprindo a sina da permaneça a noção de leitura e imitação dos
invasão do modo de se fazer revistas, mais bons escritores, de modo especial no trato da
agradáveis aos olhos, mais chamativas: língua, como flor do Lácio. Dá-se ênfase ao
tirinhas, fotografias, pinturas alegram as vistas bem falar e ao bem escrever, à imitação dos
desse novo LD. Ali também estão textos bons escritores. Nos últimos cinquenta anos,
retirados de jornais, propagandas, panfletos... ao abandonar o caráter antológico dos estudos
Acabou-se a exclusividade dos autores da disciplina, ocorre a presença de textos não-
clássicos, aliás, eles quase desaparecem. É bom literários, com ênfase na língua como
não esquecer que o LD é uma mercadoria, comunicação e expressão – esse chegou a ser o
precisa circular no mercado, persuadir nome de muitas capas de LD. A língua como
compradores, garantir o consumo... comunicação, expressão oral e escrita, torna-se
mais próxima do uso das ruas e das casas dos
O agente mediador do LD é o professor.
alunos. Inicia-se, no último quartil do século
Por vários séculos, é uma figura de autoridade,
passado, nas universidades, a pesquisa sobre as
muitas vezes severa. Comanda as ações em sala
questões do ensino de LP, com a divulgação
de aula e os alunos, temerosos, obedecem. São
em artigos e livros dos resultados dessas
considerados competentes para saber usar o
investigações e reflexões.
LD, por isso, até os anos 50 do século XX,
quase não há orientação de como usar o LD. Na esfera do governo federal, em 1985,
Depois disso, o professor é conduzido em foi criada uma Comissão Nacional para o
detalhes de como deverá proceder ao uso do Aperfeiçoamento do Ensino/Aprendizagem da
LD - o que demanda profissionais preparados Língua Materna. No ano seguinte, o relatório
menos para projetos pessoais e mais seguidores Diretrizes para o Aperfeiçoamento do
dos projetos alheios. Ensino/aprendizagem da Língua Portuguesa
(Decreto N.º 91.372) acentua a necessidade de
Os conteúdos da disciplina sofrem
“democratização do saber e da cultura
muitas modificações, pelo que nos mostra
socialmente privilegiados”. Em 19 tópicos, a
Razzini (2001), desde os séculos da
comissão expõe o tema e faz “recomendações”
colonização, pautados por um ensino paralelo
sobre: a denominação da disciplina (“língua
ao ensino de latim, herança medieval, com
portuguesa ou português”); a valorização da
ênfase nos estudos gramaticais e alguma leitura
língua de cultura (em oposição ao conceito de
dos clássicos, seguida da retórica e da poética.
língua culta); formação dos professores (uma
No Império, a partir de 1837, a disciplina
das prioridades nacionais, com denúncia do
Português se desenvolve com: a) Gramática:
“aviltamento salarial da profissão”);
morfologia, sintaxe, etimologia ((filiada à
metodologias (compreensão dos textos,
gramática latina); b) Retórica: regras para o
reflexão sobre a língua e sobre o fenômeno
bem falar e escrever, imitação dos mestres; c)
literário); livro didático; livros de consulta;
Poética: poesia lírica, épica e trágica, leitura de
obras literárias; pesquisa no ensino de LP.
textos de autores clássicos.
No final dos anos 90, o MEC produz os
Do final do século XIX até meados do
PCN (1998), os quais tornaram-se a referência
século XX, algumas críticas são feitas ao

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oficial para o ensino básico e são, hoje, a depois, quando adultos. Estamos deixando de
configuração da disciplina LP e das demais lado práticas corroídas e nos empenhando em
disciplinas. Desse modo, a leitura e a releitura indagar qual conteúdo serve de fato para a vida
dos PCN tornam-se o principal instrumento do dele, qual o modo de trabalhar esse conteúdo
pensar teórico para o fazer do professor de LP. para que o aluno fique sabendo fazer uso desse
A partir da noção de linguagem como interação conhecimento.
entre os falantes, os parâmetros sugerem que
3. Histórico de um professor de português
cada agrupamento de professores (do estado, de
uma regional, do município, de uma escola) Qual a finalidade de toda a ação de uma
defina, a partir dos PCN, como irá fazer seu vida neste campo de trabalho? Em cada ação, a
trabalho em Língua Portuguesa. Os conteúdos seta atirada quer atingir o alvo, mesmo que não
devem ser pensados em uma relação de uso e passe de probabilidade de acerto. Esse o
reflexão, de modo que a leitura, a produção cotidiano de quem se posta em uma sala com
oral, a produção escrita e a análise lingüística alunos, na espera do plantio de um bem: será
sejam conhecimentos entrelaçados, de modo que esses estiveram aqui e não levaram nada
que o aluno tenha a competência discursiva, para a sua jornada? Levei alguns frutos.
que inclui a competência linguística e a
estilística, com o objetivo de compreender a Como aluno, antes do curso superior,
cidadania como participação social, “de aprendi em livros didáticos da Língua
maneira crítica, responsável e construtiva”. Portuguesa, os quais traziam vinculação de
análise lógica do latim com os estudos da
Em 2002, o MEC produz dois sintaxe do Português. A leitura em sala de aula
documentos para o Ensino Médio: Parâmetros estava sempre vinculada às perguntas do LD,
Curriculares Nacionais: Ensino Médio e PCN+ muito pontuais e pouco interpretativas. A
Ensino Médio. Esses dois volumes terão, em leitura boa não era atividade escolar, naquela
2006, uma retomada reflexiva e crítica em um escola-internato. Os livros eram para o tempo
novo documento feito para todas as áreas: livre, finais de semana e férias: sorte grande de
Orientações Curriculares para o Ensino Médio. ir à biblioteca e escolher, ler e fazer companhia
Destaca-se, agora, em nossa disciplina, a de leitura das quase oitenta obras de Julio
formação do leitor de literatura e as Verne com os colegas. Livros da infância e da
possibilidades de mediação do professor, tanto juventude não me faltaram. Na sala de aula,
para a experiência literária, quanto para a porém, era apenas tempo de gramática e de
consciência da construção coletiva do trabalho alguma pouca composição.
com a língua que usamos.
O Curso de Letras fica na memória pela
Uma palavra tem chegado, nas duas sua parte melhor: a professora Maria da Glória
últimas décadas, com possibilidades de levar- colocou seus alunos para conhecerem um autor
nos a um olhar de metacompetência sobre a do modernismo lendo suas obras e fazendo
disciplina: o letramento. Temos o desafio de resumo e comentários de cada um dos livros. Li
verificar se os saberes das áreas, as habilidades os romances do “ciclo da cana-de-açúcar” de
e competências que privilegiamos são, de fato, José Lins do Rego, aos vinte anos, imergindo
úteis à vida social dos nossos alunos, agora e em narrativas envolventes e adquirindo uma

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experiência estética que era auxiliada por
A seguir, por dezoito anos, tive a
leitura de teoria da narrativa, do estilo, dos
felicidade de trabalhar no Colégio de Aplicação
gêneros e por ensaios pontuais a respeito do
da Universidade Federal de Goiás. Os colegas
autor e do romance de 30. Aí está a parte forte
de Português que ali estavam, e os das demais
da minha formação como professor de
disciplinas, todos eles proporcionaram-me
Português, a imersão na literatura para a
importantíssimos aprendizados: o primeiro
descoberta da complexidade da vida humana, a
deles é o trabalho em conjunto (programas,
atenção à arte de contar com palavras que
modos de dar aula, projetos de leitura, uso da
enleiam a experiência alheia à minha vivência.
biblioteca, conselhos de classe, coordenações
Ao assumir salas de aula, como de área – tudo isso produz melhor qualidade), o
professor no ginásio e no clássico, permaneci segundo é o da criatividade na disciplina, com
uns cinco anos preso ao livro didático, autonomia. O LD, enquanto era o programa em
cumprindo as tarefas que ele me atribuía. Com muitas outras escolas, no Aplicação não passa
isso, para dar aula, aprendi, de fato, as teorias de um auxiliar do trabalho em sala de aula.
da gramática estudada durante nove anos no Com frequência, o material didático é outro,
primário e no secundário, então, com pouco preparado pelo professor. As atividades de
proveito. No secundário, porém, as leituras de ensino cuidam da leitura, da escrita e da
clássicos brasileiros eram o projeto dos meus gramática, sem que um desses campos se afaste
alunos, que passaram a conhecer grandes do outro, sem o domínio de um sobre os
nomes do modernismo lendo suas obras e demais. Liam e falavam do que tinham lido,
falando delas para os colegas. escreviam e corrigiam as questões gramaticais
Na década de 1970, o LD adotado no apontadas pela leitura do professor, às vezes
colégio onde trabalhei por quatro anos chegou à consultando o colega ou o livro de gramática.
exaustão: todo ano a mesma cena, o mesmo Paralelo a esse trabalho no Aplicação,
texto, as mesmas perguntas, a mesma teoria passei, por cinco anos, pela atividade
gramatical e exercícios. Dois anos antes, em profissional das estrelas - professores que
outro estabelecimento, o LD era Interpretação brilham sob o holofote da comunicação de
de Textos, de Magda Soares, que oferece um massas, com microfone e salas com centenas de
processo crescente no aprendizado de ler alunos. De posse de apostilas novas a cada mês,
textos, tornando cada lição uma retomada da o programa era tornado espetáculo, na medida
anterior e um passo à frente na leitura eficiente. do possível. Não diferente dos livros didáticos,
O contraste entre as duas práticas, uma esse material me punha na mão os estilos de
monótona e a outra dinâmica, provocou-me época, seus autores, alguns textos deles, como
uma pesquisa que resultou na proposta de um amostra. Minha função era desempenhada,
método de leitura que contemplasse atividades contando um pouco da vida dos autores,
de análise, síntese e criação – um modo de dar narrando graciosamente os principais livros de
ao leitor uma autonomia de leitura, sem cada época, lendo algum texto seguido de
perguntas pontuais que direcionam e perguntas que caiam no vestibular – como esse
minimizam o processo interpretativo. era o grande motivador, eles seguiam a aula
toda de uma voz só, a do professor. Isso era um

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contraste para mim: no Colégio de Aplicação, leitura, produção de textos, oralidade, análise
eram 35 alunos, eles apresentavam as leituras linguística e leitura literária; ora levando textos
feitas e, principalmente, eu era o professor de e discutindo o trabalho pedagógico, em seus
Português de todos os conteúdos: leitura, diversos aspectos, os projetos, as sequências
escrita, gramática. No cursinho era professor didáticas, as práticas de ensino que
apenas de literatura. Ficava muito clara a contemplam os estudo dos gêneros e a busca do
diferença entre a produção de uma aula feito de aprendizagem pelo fazer do aluno.
expositiva, de voz única, e a outra aula Sobretudo, acompanhando esses alunos em
participada por muitas vozes: nesta, a estágio, nas escolas estaduais, observando e
aprendizagem deixava de ser um mistério e era direcionando ações de intervenção, com
ouvida. projetos de leitura e projetos de escrita.
Pela necessidade de saber mais Tal atividade não tem como ser avaliada
literatura, saí do cursinho, fui fazer mestrado de maneira clara, pois, no ano seguinte, os
em Teoria Literária. O mestrado me fez ver alunos vão para o campo de trabalho e ficam
ainda mais a importância da literatura como envolvidos pela tarefa de dar conta do livro
conteúdo do ensino do professor de Português. didático, num trabalho solitário. As condições
Ao voltar para o Aplicação, pelos acréscimos de trabalho nas escolas atrofiam esses desejos
que o mestrado me dera, com mais dois de acontecimentos épicos que a leitura pode
colegas, fizemos novo programa de ensino da proporcionar, acomodando os profissionais em
literatura no ensino médio, mudando a linha de uma rotina pouco produtiva para os alunos e,
estudo através dos estilos de época, para uma como consequência, desgastante e sem alegria
linha de leitura de gêneros: poesia, narrativa para os professores.
curta e teatro no primeiro ano, romance no Poderia ser diferente. Temos o ouro, a
segundo, livros do vestibular no terceiro. Com formação do leitor de literatura, e, talvez, sem
isso, a leitura literária torna-se o conteúdo da as condições da lavra, a mina fica sem
literatura, tirando o defeito da linha de estilos exploração. Por isso, procuro conduzir projetos
de época, que deixa de lado o projeto da leitura de leitura que envolvam os estagiários, de
de obras. Ficou claro para nós que, tanto no modo que aumentem seu repertório de clássicos
fundamental quanto no ensino médio, a leitura e, já encantados pela experiência estética,
literária é a principal estratégia para promovam projetos de leitura na escola. É
desenvolver as habilidades da língua e dar necessário que essa nova geração de
formação ao aluno. professores de Língua Portuguesa descubra
Há vinte anos, o convite de tornar-me como faz um bem coletivo, para os alunos e
professor de estágio na Faculdade de Letras para o próprio professor, afastar-se da ditadura
redirecionou-me: tantos anos de práticas no do livro didático e das avaliações sob pressão
ensino básico devem ser úteis para eu enfrentar de médias melhores, e trabalhar com projetos
esse desafio e fazer esse trabalho de formação. de leitura e projetos de escrita.
Ora frisando os documentos oficiais que
direcionam as atividades do professor de
português, os conteúdos distribuídos entre

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linguagens, com esse potencial de continuar as
4. Os mestres de um professor de
indagações, aceitar algumas explicações e
português
negar outras, investigar o que nossa imaginação
ainda quer conhecer.
Como ato de justiça, além de dar créditos a
muitos colegas com quem divido meu Outro mestre, apropriando-se de
aprendizado, faço, para finalizar esta narração, palavras alheias, mostra-nos que a linguagem
um tributo aos mestres que mapearam o tem uma dimensão de alta performance, é
caminho para que eu chegue ao alvo ou erre constitutiva:
menos. Um conceito básico da teoria do A função primordial da linguagem em
discurso vem de Bakhtin: Humboldt é, pois, no sentido justo que
traçamos, não propriamente a de transmitir
aos outros nossas experiências, mas a de
As influências extratextuais têm uma
‘constituí-las’. A expressão que corre por
importância especial nas primeiras fases da
toda a obra de Humboldt é “Bildung”: por
evolução do homem. Essas influências se
meio da linguagem o homem“ ‘dá forma’
envolvem na palavra (ou outros signos), e
(bildet) ao mesmo tempo a si mesmo e ao
tal palavra é a dos outros, e, acima de tudo,
mundo, ou melhor, torna-se consciente de
a da mãe. Depois disso, a “palavra do
si mesmo, projetando um mundo no
outro” se transforma, dialogicamente, para exterior (FRANCHI, 1977, p. 12).
tornar-se “palavra pessoal-alheia” com a
ajuda de outras “palavras do outro”, e
depois, palavra pessoal (com, poder-se-ia A linguagem é uma atividade, por ela o
dizer, a perda das aspas). A palavra já tem, sujeito se constitui, bem como dá forma a suas
então, um caráter criativo (BAKHTIN,
experiências, ao que sabe do mundo e de si
1982, p. 405).
mesmo. Por ela, interpretamos, reavaliamos e
organizamos nossas informações, não de modo
É pela linguagem que fazemos nossas unilateral, mas conforme cada contexto. A
construções sobre o mundo, não como origem linguagem possibilita tanto o significar lógico,
em nós mesmos. Do alheio ao próprio, o quanto o pensar analógico, que dá suporte ao
processo de tornar pessoal a palavra do outro é devaneio, à metáfora, aos universos
o modo como se constitui a apropriação do imaginários. Certamente esta “função
conhecimento, da ideologia, do imaginário. Tal primordial”, a de constituir nossas experiências
percepção nos auxilia a entender que nos e a nós mesmos, Carlos Franchi passou a
inserimos numa série histórico-social de Geraldi e a Britto, dois discípulos dele que,
entendimento do mundo, como herdeiros de após suas pesquisas de doutorado, nos dão mais
ideias, tecnologias, comportamentos. Tal dois pilares: a) o acesso à leitura e escrita; b) o
processo, porém, não nos retira a possibilidade direito de ter um projeto das próprias aulas.
criativa, o espírito dialético que insta todas as Tais conceitos mudam as práticas. Essa é a
coisas e saberes ao movimento das competência nova do professor de Português:
contradições, das incompletudes. E daí a novas levar seus alunos a constituir suas experiências
formulações. Somos sujeitos construídos pelas pela linguagem, mais que comunicar ou

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1160
conhecer o funcionamento das estruturas da discursos, se realizam as ações linguísticas e a
língua. interação com os outros. Essa é a grande virada
do conceito de professor de português pela qual
lutam esses professores da Unicamp, junto com
Britto, no papel de pesquisador do outros colegas, nestas últimas quatro décadas.
modo como é ensinada a disciplina Língua Os resultados ainda não se tornaram
Portuguesa nas escolas, verifica que as aulas generalizados, infelizmente, com prejuízo na
são gastas para o ensino da chamada norma formação básica dos alunos. Geraldi já previa
culta ou língua padrão. Critica essa tradição e essas dificuldades e aponta um detonador
aponta o cerne da nossa finalidade para que o fundamental nesse processo:
aluno consiga a competência de acesso aos
bens de sua língua materna:
[...] a articulação das propostas com as
atividades concretas não é mecânica: ela
[...] não faz sentido insistir que o objetivo passa pelo projeto político que, explícita ou
da escola é ensinar o chamado português implicitamente, dá sentido às atividades
padrão. O papel da escola deve ser o de concretas de nosso cotidiano. E é este
garantir ao aluno o acesso à escrita e aos projeto que precisamos construir e que
discursos que se organizam a partir dela estamos, na verdade, construindo. Às vezes
(BRITTO, 1977, p. 14). sem saber qual, ao alienarmos o nosso
direito de construir nossas aulas para nos
tornarmos meros executores de aulas
Após uma vasta análise de como os elaboradas por outros. Reivindicamos para
professores estão envolvidos em uma tradição cada professor o direito de construir suas
gramatical insuficiente para ser o ensino da aulas, e através delas dizer a sua palavra
língua, Britto retoma sua proposta de que o (GERALDI, 1984, p. 6).
professor considere que todas as práticas de
leitura e de escrita sejam prioridade em suas
aulas: Cada professor precisa construir um
projeto de atividades concretas para que seus
alunos atinjam o alvo deste campo do saber, a
Tal conclusão se justifica por três pontos leitura e a escrita – são essas as finalidades
centrais: 1. A relação do sujeito com a dessa disciplina. Cuidando de sua formação, o
linguagem, destacando-se a importância professor estuda as teorias que o auxiliam na
das noções de trabalho e de criatividade; 2. condução e no ensino das habilidades de ler,
O funcionamento da linguagem e as ações para crescer em sua autonomia de elaborar
linguísticas; 3. As práticas pedagógicas em
projetos de leitura. Um das razões para essa
uma perspectiva sociointeracionista
(BRITTO, 1977, p. 154).
maior valorização da experiência literária é o
argumento de Antonio Candido sobre a
Literatura como fator indispensável de
É na leitura e na escrita que os alunos humanização:
podem realizar o trabalho com a linguagem,
pois é nesses dois lugares que se constituem os

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Entendo como humanização (...) o processo BAKHTIN, M. Estética da criação verbal.
que confirma no homem aqueles traços que Trad. do francês por Maria Ermantina Galvão
reputamos essenciais, como o exercício da Gomes Pereira. São Paulo: Martins Fontes,
reflexão, a aquisição do saber, a boa 1992.
disposição para com o próximo, o
BENJAMIM, W. O narrador: observações
afinamento das emoções, a percepção da
complexidade do mundo e dos seres, o sobre a obra de Nikolau Leskov. Tradução de
cultivo do humor (CANDIDO, 1995, p. Sérgio Paulo Rouanet. In: Obras Escolhidas.
249). Vol. I – Magia Técnica, arte e política. 7. ed.
São Paulo: Brasiliense, 1994.
É bem provável que um leitor BRASIL. Parâmetros curriculares nacionais
experiente, que já frequentou assiduamente 3° e 4º ciclos: língua portuguesa. Brasília:
essa arte, reconhecerá esse efeito das obras que MEC/SEF, 1998.
leu, na medida em que essa leitura contribuiu BRASIL. Orientações curriculares para o
para sua construção de um olhar mais Ensino Médio. Brasília: MEC/SEB, 2006.
compreensivo e aberto para a natureza, a
sociedade e o semelhante. BRITTO, L. P. L. de. A sombra do caos: ensino
de língua X tradição gramatical. Campinas:
Essa narração, sem tanta evidência, Mercado de Letras/ALB, 1997.
gostaria de ter sido de um tom épico sobre esse
acontecimento de ser um professor de CANDIDO, A. O direito à literatura. In:
Português. Essa experiência, com as marcas da ______ Vários escritos. 3. ed. São Paulo: Duas
mão de um artesão de aulas de Português que cidades, 1995.
promovessem a formação de leitores, poderia FRANCHI, C. Linguagem: atividade
servir de reflexão sobre as vivências do meu constitutiva. Almanaque. São Paulo:
ouvinte, constituindo ideias que moverão novas Brasiliense, p. 9-26, 1977.
práticas de leitura, sobretudo. Talvez, assim,
você partilhe comigo o prazer de ver, pela GERALDI, J. W. O texto na sala de aula:
primeira vez, uma criança ou um adolescente leitura & produção. Cascavel: Assoeste, 1984.
concentrado na leitura de um livro literário, PEREIRA, M. A. Saber do tempo: tradição,
permitindo uma forma de conhecimento que só experiência e narração em Walter Benjamin.
a literatura possui. Ou, então, debruçado sobre Revista Educação & Realidade. Porto Alegre:
uma folha de papel, escrevendo sua apropriação FE/UFRGS v. 31(2): p. 61-78, jun./dez. 2006.
da língua, construindo sua experiência de
RAZZINI, M. P. G. O espelho da nação: a
escrita. Bom para nós e para ele, pois “Vale
Antologia Nacional e o ensino de português e
mais a pena ver uma cousa sempre pela
de literatura (1838-1971). Tese de doutorado.
primeira vez que conhecê-la” (Caeiro).
Campinas: Unicamp, 2001.
SOARES, M. Português na escola: história de
Referências
uma disciplina curricular. In: BAGNO, M.

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1162
(org.) Linguística da norma. São Paulo:
Loyola, 2002, p. 155-177.

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1163
REPRESENTAÇÕES DE TERRA, TERRITÓRIO EXCLUSÃO E
PROCESSOS IDENTITÁRIOS NO DISCURSO KINIKINAU12.

Claudete Cameschi de SOUZA; Celina Aparecida Garcia de Souza NASCIMENTO


Universidade federal de Mato Grosso do Sul/UFMS
claudetecameschi@gmail.com; celina_ufms@hotmail.com

Resumo: Objetivamos problematizar representações no processo identitário no discurso


kinikinau. Para tanto, analisamos em um recorte como são construídas as representações
sociais de terra, território e exclusão que constituem o discurso do documento indígena, e
recorremos ao método arqueogenealógico de Foucault (1988) para refletir as relações de
força e poder. Enquanto resultado, o kinikinau busca no passado a história do povo,
excluído socialmente, para reivindicar a terra originária, vislumbrando um “bem viver”.
Palavras-chave: povos indígenas, discursos, resistência e poder.

Grupioni (1995, p.19), “os índios não são


Introdução
apenas diversos entre nós, são também
Refletir as representações de terra, diversos entre si”.
território, exclusão e processos identitários
Objetivamos interpretar representações
construídas via discurso dos kinikinau nos leva
de terra, território e exclusão na constituição
a abordar a subjetividade do indígena por meio
identitária do indígena kinikinau a partir do
de sua cosmovisão e de seu posicionamento
discurso do "Ipuxowoku Hou Koinkunoe
político, vez que implica em interpretar, via
(Conselho do Povo Kinikinau): Carta do Povo
materialidade linguística e regularidades
Kinikinau". Para tanto, propomos analisar
discursivas, como ele se representa, como
como são construídas as representações sociais
representa o outro – outra etnia e o branco –
de terra, território e exclusão que constituem o
como compreende as representações
discurso do documento indígena, a partir dos
construídas pelos outros – indígenas e brancos
postulados discursivos, do processo de
- no decorrer da história de seu povo e suas
referenciação linguística e dos estudos
experiências de resistência, pois, conforme
culturalista, tendo como base a interpretação

1
.Este artigo integra as pesquisas que vem sendo realizadas no Projeto de pesquisa Koinukunoen: língua e cultura,
desenvolvido, sob a coordenação da Profª Drª Claudete Cameschi de Souza, pelos pesquisadores dos grupos de
pesquisa: “História do ensino, cultura e constituição identitária na Região Aquidauana”; e “Povos do Pantanal: aspectos
linguísticos, discursivos, fronteiriços, culturais e identitários”UFMS/CNPq.
2
Este texto será publicado integralmente em Cadernos de Linguagem & Sociedade, vol. 16 (2), 2016.

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1164
de regularidades enunciativas que nos
Com o advento da Guerra da Tríplice
autorizem esquadrinhar, por meio da
Aliança - Guerra do Paraguai - ocorrida entre
materialidade linguística, os efeitos de sentido,
1864 e 1870, houve uma grande perda de
as formações discursivas e os interdiscursos
territórios indígenas. Após a guerra, os
que habitam o discurso do indígena kinikinau.
Kinikinau se perderam e se dispersaram,
Nesse sentido, optamos pelo recorte teórico
espalharam-se entre outros povos e, com o
transdisciplinar, fundada na Análise de
passar dos anos, desapareceram. Santos e
Discurso –AD -, nos estudos culturalistas, na
Souza (2014, p. 3) dizem que, diante de
Linguistica Aplicada e no método
inúmeras perseguições que vinham sofrendo
arqueogenealógico de Foucault para
por parte dos criadores de gado e também por
problematizar os processos de subjetivação do
parte de outros grupos indígenas, os Kinikinau
sujeito e os modos por meio dos quais ele
foram se deslocando com maior constância, o
significa seu dizer.
que resultou na perda de inúmeros membros e,
1 Da Historicidade dos Kinikinau por fim, a constatação do desaparecimento. No
Entanto, ainda segundo as autoras, antes de
Remanescentes da nação Chané-Guaná, serem dados como extintos, os Kinikinau
os Kinikinau, segundo Castro (2010, p. 71-7), abrigaram-se em outras terras, após serem
viveram entre os séculos XVI e XVIII na expulsos de suas terras tradicionais. È o que
região da América Meridional mais conhecida afirma Couto (2005, p. 28).
como Gran Chaco. Com a chegada dos
europeus naquela região, o medo se instala e, Dez anos se passaram e a luta pelo
os povos indígenas que habitavam a região reconhecimento étnico e por direitos
intensificaram alianças em busca de proteção. originários à cultura, língua, conhecimentos
Os kinikinau estabeleceram alianças com os tradicionais e à terra, empreendida pelos
Terena, também remanescente da nação kinikinau continua, em meio a lutas de outros
Chané-Guaná, e com os Mbayá-Guaicuru, povos sul-mato-grossense, como os Guarani,
Kadiwéu. Tais alianças nem sempre foram Kaiwá e Terena, com conflitos violentos entre
constantes e fieis, como, por exemplo, aquelas índios e brancos, como a morte de Oziel
estabelecidas com os Kadiwéu, pois, apesar de Gabriel, em maio de 2013, noticiados e
serem aliados, a rivalidade e o conflito foram denunciados pela mídia nacional e
sempre fortes entre eles. internacional. Nesse contexto é que no período
de 6 a 9 de novembro de 2014, na Terra
Aliados, Kinikinau, Kadiwéu e Terena, Indígena de Nioaque, realizou-se a Primeira
entre outros povos, partem em busca de novos Assembléia do Povo Kinikinau:
territórios para sobreviverem. Essa fuga “Koixunakowoti hou koinukunoen wiopônoti
presume-se que foi necessária, pois os índios unati koikuti – Povo Kinikinau fortalecendo a
estavam padecendo em meio às perseguições e identidade na luta pelo bem viver”3, com o
ameaças. Transposto o Rio Paraguai e
adentrando terras brasileiras, o povo kinikinau 3
Todas as informações sobre o evento e inclusive o
foi se acomodando na região do Brasil Central, documento final de criação do Conselho Kinikinau,
mais a Oeste, no então estado de Mato Grosso. objeto de análise deste texto, encontram-se
disponibilizadas em http://www.cimi.org.br/site/pt-

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1165
objetivo de expor, mais uma vez, a situação análise. Ressaltamos que dada a abrangência
vivenciada pelos kinikinau que, sem território de temas que compõem o corpus e o espaço
demarcado, vivem em terras alheias. Desse reservado a esse texto, optamos por trazer aqui
evento resulta o texto "Ipuxowoku Hou um recorte, considerando as regularidades,
Koinkunoe (Conselho do Povo Kinikinau), sentidos e temas: terra, território, exclusão e
Carta do Povo Kinikinau", no qual a voz de processos identitários, a partir da perspectiva
um enunciador representa as diferentes vozes foucaultiana, marcando as relações de força no
kinikinau que ecoam o grito de liberdade, interior desses recortes.
reconhecimento e respeito aos direitos sobre o Na atualidade, no mundo capitalista e
território originário, em movimento discursivo neo-liberal em que vivemos, a todo instante
único, singular que nos propomos interpretar. nos deparamos com novos desafios que se
Emergem, portanto, nesse contexto, as impõem à sociedade nacional influenciando a
condições de produção do discurso do produção dos discursos e a constituição
Ipuxowoku Hou Koinkunoe que reitera nossa identitária dos sujeitos nela inseridos. Fato que
concepção de discurso enquanto estrutura e impulsiona o movimento discursivo dos
acontecimento inscrito na língua e na história, sujeitos em relação a diferentes manifestações
articulado à redes de memória. identitárias. Nessas condições de produção
2 Da interpretação das Vozes dos Kinikinau irrompe o discurso do documento final da
Assembleia Kinikinau que se apresenta como
Constituindo-se como um espaço
lugar de resistência ao poder dominante ao dar
privilegiado, no qual os kinikinau reivindicam
origem a formas de resistência coletiva frente à
seus direitos e reconhecimento étnico,
opressão, causada por agentes sociais da
fazendo-se ouvir via discurso, traçando novas
sociedade hegemônica, pelo Estado e por
configurações e estabelecendo no interior do
próprio documento “unidades, conjuntos, outras etnias.
séries, relações” (FOUCAULT, 2008, p. 07), o Nossa tarefa como analista de discurso
documento Ipuxowoku Hou Koinkunoe, “consiste em problematizar os enunciados
sintetiza a saga vivenciada pelos kinikinau concretos em sua historicidade, descrevendo e
desde o Gran Chaco, passando pela travessia analisando os fatores que permitiram que esses
do Rio Paraguai, a chegada e permanência em enunciados se inter-relacionassem, se
solo brasileiro, marcada por perseguições e negassem, se excluíssem, se substituíssem”
fugas, dispersando-os, sobretudo após a Guerra (SOUZA, 2011, p. 112) construindo sentidos
do Paraguai, e, levando-os a viverem móveis, pois emanam de uma série de
submergidos entre outras etnias ou até enunciados. A respeito da opacidade da língua,
identificando-se como tal, como aconteceu em da linguagem, Romão (2011, p. 121), afirma
relação aos terena. Esse é o objeto de nossa que é condição inerente da própria língua que
por não ser domesticada tende a estabilizar “o
br/?system=news&action=read&id=7836 e sistema da própria língua de outro modo, qual
http://racismoambiental.net.br/2014/10/28/1a- seja, colocando em movimento o risco de um
assembleia-do-povo-kinikinau-de-6-a-911-terra- sentido vir a ser outro, fazendo bordar sombras
indigena-nioaque-aldeia-cabaceiras/, acessados em 13 nas beiradas das palavras e dos dizeres,
de fevereiro de 2015.

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1166
marcando-as como instáveis e passíveis de p. 31), um enunciado é sempre acontecimento,
outra direção, sempre”. Nesta direção, os pois abre espaço para sua inscrição na
enunciados são aqui analisados considerando memória por ser capaz de repetição,
sua exterioridade, as relações que mantém com transformação e reativação, porque está ligado
os já-ditos, com discursos outros na tentativa ao interdiscurso, a outros enunciados que
de apreender sua irrupção enquanto vieram antes e depois dele ou, nas palavras de
acontecimento. Orlandi (2009, p. 30): “aquilo que fala antes,
em outro lugar, independentemente”.
Nesse sentido, faz-se desejado e
necessário considerar o entendimento das Por arquivo compreendemos aquilo que
relações estabelecidas entre os elementos determina o que pode e deve ser dito. Um
intradiscursivos e interdiscursivos, procurando sistema que concebe o enunciado enquanto um
uma maneira de se pensar o histórico e o acontecimento singular e que faz com que
político como parte do processo simbólico que alguns discursos circulem, permaneçam ou
constitui o sujeito (GREGOLIN, 2001, p. 13). desapareçam no tempo. Está submetido às
Nessa reflexão, o sujeito não existe a priori, relações de poder e, como onde há poder há
mas é uma função no discurso, “é aquele que resistência, nas palavras de Coracini (2007, p.
pode usar determinado enunciado por seu 17), arquivo é também “o lugar da resistência
treinamento, em função da ocupação de um do sujeito a esse mesmo poder”.
lugar institucional, de sua competência
Adotando os dizeres de Althier-Revuz
técnica” (ARAUJO, 2011, p. 97), podendo (1998, p. 186), entendemos que é por meio da
assumir diversas posições em uma heterogeneidade do discurso que se faz
determinada formação discursiva. possível apreender os interdiscursos que
Formação discursiva, neste texto, esta habitam um texto, a relação entre o discurso e
compreendida como um sistema de relações os elementos pré-construídos que foram
entre objetos, tipos enunciativos, conceitos e produzidos em outro momento histórico, em
estratégias de modo que tais elementos tendem outros discursos. O sujeito não tem controle
a permitir a passagem da dispersão para a sobre o modo como os sentidos o afetam e,
regularidade entre os enunciados. Foucault portanto, é produzido pela linguagem e clivado
busca compreender quais os poderes e perigos pelo inconsciente, dividido, cindido,
que os discursos carregam, quais saberes e descentrado; segundo a autora, “na forma de
verdades se escondem em meio a uma não-coincidência consigo mesmo”. È
agrupamentos discursivos tão familiares. nesse jogo discursivo de representações que
Desse ponto de vista, o discurso não é buscamos apreender os processos identitários
transparente, neutro, mas está intimamente vivenciados pelos kinikinau no documento em
ligado ao desejo e ao poder, uma vez que o análise.
sujeito fala a partir de um lugar Guerra (2012, p. 35), a partir dos
institucionalmente reconhecido e em constante postulados foucaultianos, defende que
tensão entre conflitos e contradições, “entender as práticas identitárias a partir do
estabelecendo uma ordem própria por meio de jogo de representações, é entender quais os
regras que o delimitam. Para Foucault (2008, discursos que constituem e conferem

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1167
junto a nossas terras e nosso povo, nossa
existência histórica ao sujeito”, como o sujeito língua, costumes, história e organização
se representa em relação ao outro, a alteridade própria. Durante muito tempo fomos
que o constitui em um determinado contexto forçados a ficar na invisibilidade, por força
sócio-histórico. da ação de posseiros, fazendeiros e do
próprio Estado Brasileiro. Retalharam
Por considerar que as identidades são nossas terras e desmembraram nosso povo,
construídas discursivamente é que Hall (2003) como forasteiros fomos obrigados a
afirma a necessidade de abordá-las a partir dos iniciarmos migrações forçadas.
espaços institucionais e históricos em que são Procuramos abrigo e fomos acolhidos por
produzidas, no interior de práticas discursivas nossos irmãos Terena e Kadiwéu.
particulares que contribuem para definir uma
determinada identidade e/ou reforçam as A progressão referencial, introduzida
diferença entre um e outro. O que nos leva a por meio do enunciado Nós, Povo Kinikinau,
interpretar que a questão identitária carrega em para nós Koinukunoen, reunidos na Aldeia
seu bojo uma dimensão política e histórica, Cabeceira, produz efeito de sentido de
simultaneamente, uma vez que só é silenciamento, marcado pela pausa discursiva e
questionada em relação a outras identidades e pela retomada do turno, direcionando o
ao ser questionada, desloca, desestabiliza discurso do geral “Nós, Povo Kinikinau”, que
outras identidades pelo simbólico, pelos sugere a representativa de todo o povo
valores, pelas crenças, pelas “comunidades de Kinikinau, para o particular, a
indivíduos que acreditam” (BAUMAN, 2005, representatividade daqueles que se fazem
p.17) e que atribuem a ela determinado sentido presentes no evento Assembleia Kinikinau
por meio da linguagem sendo, portanto, para nós Koinukunoen reunidos na Aldeia
construída e reconstruída constantemente, Cabeceira. Considerando que o silencio é
conforme se pode constatar no discurso do constitutivo do dizer (ORLANDI, 2002), ao
documento, também denominado de Carta retomar o turno, o enunciador deixa marcas de
kinikinau. um discurso de senso comum entre indígenas
Trazemos, a seguir, um recorte do de que, quem fala a língua indígena de seu
trecho em que inicia a carta propriamente dita, povo é mais índio do que aquele que não mais
marcada pelo uso de “nós’ e ‘nossos”, em que a domina, (re)afirmado com a introdução do
o enunciador fala representando todos os termo Koinukunoen, na língua kinikinau que,
Kinikinau. segundo os kinikinau e os pesquisadores,
significa kinikinau; homem valente, guerreiro,
R1 - Nós, Povo Kinikinau, para nós instituindo aí “uma discursividade silenciada”
Koinukunoen, reunidos na Aldeia (ORLANDI, 2002, p. 53) e aflorando, pela
Cabeceira, terra indígena Nioaque, nos opacidade da linguagem, .a FD da história e da
dias 06 a 09 de novembro de 2014, por academia.
ocasião da 1ª Assembleia do Povo
Kinikinau, viemos a público expor nossa O enunciado de R1 inicia-se com o
situação. Nós Koinukunoen somos pronome nós, que, conforme Brandão (1998) é
originário desta terra, vivemos durante inclusivo: eu+você. O uso desse pronome pelo
séculos em nossos territórios e cultivamos enunciador, não só traz para o discurso todos

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os kinikinau presentes no acontecimento lado de dentro dos valores simbólicos da
discursivo e que nutrem entre si uma relação sociedade hegemônica e quem está fora,
de subjetividade, mas também o sentimento de instituindo a base das relações de poder.
pertença fortemente marcado pelo uso dos (VALIENTE, 2013).
pronomes possessivos nosso, nossas e pelo uso As condições de produção da
dos verbos na primeira pessoa do plural em Assembleia kinikinau, presentes no discurso
todo o recorte. Aliás, em todo o texto objeto de
do documento em análise, traz, no fio
análise e interpretação. Assim, considerando que o intradiscursivo, a representação das
lugar a partir do qual o sujeito enuncia é circunstâncias que culminaram na situação de
constitutivo dos sentidos de seu dizer, enunciação desse discurso: o descaso, a
salientamos que o enunciador do documento exclusão social4, a segregação estabelecida
fala a partir da posição que ocupa na pela relação de contato com o branco e outros
organização social kinikinau: é uma liderança, povos indígenas, apreendida via materialidade
representante do e no movimento kinikinau, linguística pelas expressões fomos forçados [...]
posição sustentada pelo poder que incide da por força da ação de posseiros, fazendeiros e do
própria organização social de seu povo. próprio Estado Brasileiro [...] como forasteiros
O discurso do Ipuxowoku Hou fomos obrigados a iniciarmos migrações forçadas,
Koinkunoe, contido em R2, se faz político a pelo uso verbos retalhar e desmembrar, que
partir do momento que se torna o lugar de luta produzem o efeito de divisão, deslocamento,
pelo poder, pelo direito à fala em nome de uma amputação de seus membros, despedaçados
parcela de pessoas, de uma coletividade. pelos golpes sofridos pelas perseguições que
Adquire, dessa forma, o povo kinikinau certa rasgaram os sentimentos, dilaceraram a cultura
visibilidade perante a sociedade, o campo e os afastaram de seu território originário
político e o Estado. Caracteriza-se como uma (FERREIRA, 2010, p. 565, 786 e 1499).
afirmação política de uma identidade indígena Discurso forte que, com a introdução
coletiva que se quer instaurada, reconhecida e da terceira pessoa do plural, reafirma que a
respeita em seus direitos, sobretudo, à terra, ao ação dos verbos incide sobre o outro, o branco;
território originário, em meio a conflitos e enquanto o nós kinikinau em fomos forçados
tensões entre o Estado e o povo. [...] fomos obrigados recebem a ação praticada
Passado e presente entrecruzam-se em pelo outro. O que confere ao discurso o efeito
R2 e produzem o efeito de sentido de que o de sentido do discurso da vitimização, que, por
enunciador busca, no passado, formas sua vez, emana o efeito de sentido de que os
alternativas de lidar com os conflitos atuais no kinikinau foram e estão sendo sacrificados por
que diz respeito ao território, sobretudo, em interesses alheios, interesses da sociedade
forma de oposição. O discurso do documento
questiona o modelo de desenvolvimento do 4
A exclusão social no Brasil “afeta uma população de
governo dentro de uma lógica que parece mais de 40 milhões de brasileiros em condições de
natural, aceitável, mas exclui/inclui/exclui, pobreza e miséria, sem acesso à educação adequada, à
delimita fronteiras, estabelece espaços entre ascensão social nem aos meios de comunicação de
um e outro, distingue quem se encontra do massa, a não ser como meros consumidores
(SCHOLLHAMMER, 2010:168).

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1169
hegemônica e do Estado. Nesse momento, segundo, como podemos depreender por meio
deflagra-se o conflito, institui-se a fronteira do uso do pronome possessivo nossos que,
discursiva que também é histórica, social e conforme Neves (2000, p. 477), “remete ao
cultural: de um lado aqueles que se incluem todo includente (coletividade, classe, grupo); o
nos valores simbólicos da sociedade substantivo indica o incluído”. Tanto o
envolvente e, do outro aqueles que são enunciador como os outros povos indígenas
excluídos por serem diferentes. partilham dos mesmos valores simbólicos e
refletem um forte elo de identidade grupal,
Há um embate de valores simbólicos
constituindo o outro lado, o daqueles que estão
assinalado pelo movimento discursivo do
excluídos dos valores simbólicos da sociedade
recorte que, no final de R2, em Procuramos
hegemônica e que, incluídos, em fomos
abrigo e fomos acolhidos por nossos irmãos
acolhido, juntos são excluídos pela sociedade e
Terena e kadiwéu, sugere uma amenização,
Estado brasileiro.
mas que cumpre a tarefa de marcar o
destinatário desse enunciado: nossos irmãos 3. Das reflexões finais
terena e kadiwéu. A ordem de nomeação das A análise permitiu observar como o
etnias é a mesma ordem de abrigo recebida discurso e as relações de poder estão
historicamente pelo povo. Tem-se nessa imbricadas, apresentando-se como uma relação
expressão a formação discursiva da família. O de forças entre o Estado e o povo kinikinau.
enunciador, ao incluir-se entre outros povos,
Legitimado pelo lugar que ocupa na
não fala mais somente em nome dos kinikinau, organização social do povo, o enunciador é
mas dos terena, dos kadiwéu e de todos os investido de um poder. O poder de falar, de
irmãos indígenas, representa e dá existência a tomar a palavra em nome de toda uma
esses povos que, em contrapartida, o coletividade, do povo kinikinau, utilizando-se
legitimam pelo próprio evento (Assembleia do do discurso para representar a cosmovisão do
Povo Kinikinau) que o investe do poder de povo, com suas peculiaridades, conflitos e
falar, afinal, é esse evento que fala por ele, que crenças, assegurando, dessa forma, à situação
lhe prepara um lugar. de enunciação o caráter inseparável das
Ao falar em nome dos irmãos condições de produção que culminaram em seu
indígenas, o enunciador busca gerar por meio acontecimento.
do discurso efeitos de sentido significativos de Concebendo as formações discursivas
proximidade. Estabelece uma relação entre como espaço de mobilidade e instáveis,
enunciador e outros povos indígenas os nossos constatamos que o discurso do documento é
irmãos por meio de um elo de co- atravessado por FD heterogêneas (histórica,
pertencimento, de identificação com a mesma mitológica, religiosa, familiar, entre outras), e
formação ideológica que a sua, logo, com a que, os interdiscursos, jurídico, político e do
formação ideológica do povo kinikinau, Estado, marcam a fala do enunciador e põem-
sobretudo no que diz respeito à terra, ao se em relação direta com a exterioridade, com
território. Há o sentimento de pertencimento a memória discursiva e com as condições em
do enunciador aos povos indígenas, fazendo que esse discurso é produzido. No imaginário
com que o primeiro se sinta importante para o do enunciador habita um Estado autoritário,

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1170
dominador, descompromissado, desleal e Petrobrás. São Paulo: Fundação Editora da
conivente com ações que causam prejuízos às UNESP, 1998.
comunidades indígenas, não cumpre as leis CASTRO, I. Q. de. De chané/guaná a
que os amparam e procuram normalizar uma Kinikinau: a construção da etnia ao embate
identidade hegemônica, desconsiderando a entre o desaparecimento e a persistência. 2010,
diversidade étnica dos povos indígenas em 347 p. Tese (Doutorado em Ciências Sociais),
nosso país. Daí a necessidade de afirmar e
Universidade Estadual de Campinas. 2010.
reafirmar que estamos aqui! Estamos aqui e
exigimos a devolução de nosso território tradicional. CORACINI, M. J. A celebração do outro:
arquivo, memória e identidade: línguas
Por fim, constatamos que o discurso
(materna e estrangeira), plurilinguismo e
documento apresenta marcas de exclusão
tradução. Campinas: Mercado de Letras, 2007.
social do kinikinau, sobretudo no anseio de ser
ouvido pelo poder estatal. Insurgem nesse COUTO, V. G. C. A língua Kinikinau: estudo
movimento discursivo, identidades que se do vocabulário e conceitos gramaticais. 2005.
contrapõem: a do Estado como legitimadora e Dissertação (Mestrado em Letras)
a de resistência dos kinikinau, estigmatizados Universidade Federal do Mato Grosso do Sul,
pelo poder dominante que, expõem as Câmpus de Três Lagoas, 2005.
intricadas relações de poder entre o Estado e o FERREIRA, A. B. H. Mini Aurélio: o
povo indígena e marcam o ambiente de tensão, dicionário da língua portuguesa. 8. ed.
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além das vertentes sociológica e formalista da
linguística. In: BARONAS, Roberto Leiser &
MIOTELLO, Valdemir. Análise de discurso:
teorizações e métodos. São Carlos: Pedro &
João Editores, 2011, p. 103-114.

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1172
OS RASTROS DAS RELAÇÕES PODER X SABER NO
DISCURSO ESPÍRITA: NORMA E VANGUARDA

Letícia de Faria TAVARES; Maria de Lourdes Faria dos Santos PANIAGO


Universidade Federal de Goiás (UFG)
ltavares.22@gmail.com; lurdinhapaniago@gmail.com

Resumo: Este artigo discute o surgimento, no século XIX, do Espiritismo como ciência,
refletindo sobre as condições, especialmente as sociais e econômicas, que permitiram que
determinados discursos ligados ao Espiritismo fossem elevados ao estatuto de verdade
científica. Tomam-se os escritos de Michel Foucault como principal embasamento teórico,
notadamente a complexa relação que esse filósofo estabelece entre poder saber e verdade.
Palavras-chave: verdade; saber; poder; espiritismo.

Wantuil (1978, p.5) “evidenciaram a


Introdução
comunicação dos supostos mortos com os
As dúvidas do ser sobre o destino que vivos da Terra, revelando-nos um novo mundo
seguiria após a sepultura sempre causaram de conhecimentos até então semiocultos aos
inquietação, curiosidade, sobretudo, discursos homens”. Não vamos discutir neste artigo a
que irromperam acompanhados de fenômenos veracidade ou não dos eventos e sim os
físicos, não provocados, segundo relatos, por discursos que surgiram em torno deles.
seres viventes. Tais relatos se perdem na
O que nos interessa aqui são as
história da humanidade. Nos interessam os
condições de possibilidade para que o discurso
discursos surgidos na esteira das ocorrências
registradas no século XIX, fenômenos que sobre a manifestação ou não dos chamados
mortos pudesse emergir naquele momento e ser
pareciam responder ao “silêncio que separa o
discutida. Os sentidos não têm lugar único e
ser e o não ser, o conhecido e o desconhecido,
aqui nos acumpliciaremos aos estudos de
o aqui e o lá, a presença e a não presença, o
Foucault para entender como a verdade é
saber e a ignorância” nas palavras de Del Priori
construída a partir das relações de poder e de
(2014, p.09). Pancadas, ruídos misteriosos,
como estas verdades formam subjetividades.
rappings, noises e knockings (sons de
Consideramos a importância de entender como
arrastamento, barulhos e batidas), produzidos
a história, com seus contornos, com suas
diretamente nas paredes, objetos como mesas,
relações em rede, num dado momento, faz o
cestas, sons que respondiam a perguntas
sujeito aparecer e mostrar quem ele é. Não
apontando as letras de um alfabeto, a chamada
“telegrafia espiritual”, que nas palavras de existe a origem do dizer, não obedecemos a

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1173
uma intenção do dizer, vamos em busca das que permitem que determinado enunciado seja
condições de emergência, das táticas e dos considerado, ou não, verdadeiro.
procedimentos discursivos a partir dos quais Cada sociedade possui seu “regime de
estabelecem-se os efeitos de sentido. E é para verdade”, sua “política geral” de verdade e é
esse lugar de emergência que precisamos olhar, produzida a partir de múltiplos elementos,
sabendo que não poderemos nos desvencilhar sempre a partir do poder, uma vez que sem ele
das miudezas dos acontecimentos, que nos
a verdade não existe. Cada sociedade acolhe e
mostrará os deslocamentos, as mutações que faz funcionar tipos de discursos como
incidem sobre os campos discursivos. verdadeiros, a partir de mecanismos e
Para dar substância a esta proposta instâncias que os sanciona ou não e assim
trabalharemos o cenário no qual esses discursos como há técnicas e procedimentos valorizados
irrompem, num século em que pode-se para a obtenção da verdade, há também a
presenciar a “conquista audaciosa do planeta valorização de quem pode ou não dizer o que
pela economia capitalista, conquista realizada funciona como verdadeiro.
por sua classe característica, a ‘burguesia’, e Foucault chama ao funcionamento
sob a bandeira de sua expressão intelectual desses discursos de “economia política” da
característica, a ideologia do liberalismo” sem verdade (2008, p.13); a verdade é centrada
deixar de mencionar “[...] o descontentamento
explosivo dos pobres”, ou ainda que “[...] nas na forma do discurso científico e nas
ciências e nas artes, as ortodoxias do século instituições que o produzem; está
XIX estavam sendo demolidas”. submetida a uma constante incitação
(HOBSBAWN, 2014, p.24-7). Essas são as econômica e política (necessidade de
trilhas que seguiremos para entender as verdade tanto para a produção econômica,
relações poder x saber na produção da verdade quanto para o poder político); é objeto, de
que surge com o discurso do mundo dos várias formas, de uma imensa difusão e de
mortos, compilados na obra O Livro dos um imenso consumo (circula nos aparelhos
de educação ou de informação, cuja
Espíritos, publicada a 18 de abril de 1857,
extensão no corpo social é relativamente
objeto de discussões por parte da ciência, da grande, não obstante algumas limitações
filosofia e da religião. rigorosas); é produzida e transmitida sob o
1. Verdades que produzem subjetividades controle, não exclusivo, mas dominante, de
alguns aparelhos políticos ou econômicos
Foucault busca investigar a verdade e as (universidade, exército, escritura, meios de
características de sua “economia política” comunicação); enfim, é objeto de debate
como algo que é deste mundo, nele é político e de confronto social (as lutas
produzida, graças a múltiplas coerções e neste “ideológicas”).
mundo produz efeitos regulamentados de
poder; poder esse que por sua vez, por meio de Consideramos importante para estas
seus mecanismos, produz verdades. A verdade reflexões, a posição que o autor assume em
que produz subjetividades, o tipo que pode ser relação ao intelectual e seu funcionamento
reconhecido por um conjunto de procedimentos dentro do dispositivo de verdade (p.13): suas
especificidades, seja da posição do intelectual

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1174
em sua classe, definida pelo autor, como classe se liga a outras formas de poder (FOUCAULT,
do “pequeno burguês a serviço do capitalismo”, 1997, p.19). Nessa relação que não acaba “não
seja de suas condições de vida e de trabalho, ou é possível que o poder se exerça sem o saber,
ainda ligada à sua condição intelectual, as não é possível que o saber não engendre
exigências políticas a que se submete ou não. poder”. (2001, p.142). O saber é em si, uma
Participa das lutas desse regime de verdade. construção histórica, fabrica ele mesmo suas
Combate em torno do estatuto da verdade e do verdades, e a verdade produz subjetividade:
papel econômico-político da verdade dentro da tanto o poder pode ser produtivo, quando seu
sociedade, inscritos em termos de vínculo com o saber também o é.
verdade/poder. E ainda sobre a verdade, esta Os discursos se encadeiam em teias e
para Foucault (2008, p.114), é acontecimento, nas pequenas irrupções vemos os
fruto das relações de poder que atravessa o acontecimentos surgirem e ressignificarem. A
corpo social. Não é “encontrada, mas suscitada, seguir perseguiremos as condições históricas e
provocada por rituais, atraída por meio de sociais que propiciaram o surgimento de
ardis, apanhada segundo ocasiões como discursos revestidos de saberes do outro mundo
estratégia e não método”. As relações de poder, como verdades.
“não podem em absoluto, ser dissociadas do
discurso, porque não se estabelecem nem 2. Condições históricas, econômicas e sociais
funcionam sem a produção, a circulação e e suas relações com o discurso religioso na
acumulação de certos discursos” (PANIAGO, produção de verdades
2005, p.122). Vamos nesta sessão destacar o conjunto
Verdade e poder, para Foucault, estão de objetos que em suas lutas e afrontamentos
intimamente condicionados de modo que não nos permitirá analisar o processo de
seja possível haver o exercício do poder fora de acontecimentalização dos discursos na sua
uma economia de discursos de verdade que, condição de singularidade, mas também de
funcionem dentro e a partir desta dupla repetição, como pontos numa rede de formação
exigência: somos submetidos pelo poder à de discursos de verdades. Estes objetos fazem
produção da verdade e só podemos exercer o parte dos domínios da economia, da política e
poder por meio da produção da verdade. da religião, e neles encontramos as formações
discursivas que em suas linhas nos levam a
Outro ponto importante é entender entender a organização dos chamados discursos
como o poder faz com que o saber lhe seja da espiritualidade, na atualização da memória
subordinado, como faz o saber servir aos fins do cristianismo, marcada por forças como o
do poder. Nessa perspectiva, Foucault (2008, capitalismo e o socialismo, na sua tensão com a
p.141) destaca a articulação entre poder e saber, burguesia e seu pensamento anticlerical.
afirmando que o poder efetivamente cria Examinamos o século com suas contradições e
objetos de saber. O saber por sua vez, o aparecimento do discurso espírita, que tem
desencadeia efeitos de poder; nenhum saber é seu marco na publicação de O Livro dos
construído sem um sistema de comunicação, de Espíritos em 19 de abril de 1857.
registro, de acumulação, de deslocamento.
Tudo isso constitui-se em forma de poder, que

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1175
contradições que permeiam essa malha
Nosso século é o século XIX. Um
discursiva.
século que foi marcado pela herança das
revoluções francesa e industrial, trazendo As doutrinas vigentes ainda têm como
consigo não só a luta de classes, como as claro o poder das classes médias e essas ainda
estudou Marx (que chegou a afirmar que a luta reproduzem um discurso muito próximo dos
de classes era o motor da história), mas discursos das classes mais abastadas que visam
também as heranças do iluminismo e suas à manutenção do poder dos capitalistas, ecoam
consequências. o discurso utilitarista e as adaptações das
antiquadas doutrinas do direito e da lei natural,
Todas essas mudanças se configuram
nesse panorama, aparece também o pensamento
em novas condições possibilidade do
socialista, que contudo não foi inicialmente
surgimento de discursos apontando para o
pensado para ecoar nas classes mais baixas e
progresso da humanidade e um progressivo
sim nas mais altas, nas quais se supunha,
afastamento do clero, bem como o surgimento
estivessem os homens mais bem formados, que
dos capitalistas e dos trabalhadores, dando
ao tomar contato com esse jeito de pensar o ser
condições de possibilidade ao surgimento de
humano, a ele adeririam prontamente. Os
uma massa de discursos que prontamente foram
discursos flutuam do humanismo clássico ao
divididos em liberais e conservadores,
ideal liberal, formação da burguesia como uma
fortalecendo instituições políticas e com seus
força produtiva e do proletariado como a
valores instituindo novas verdades.
expressão de novas forças sociais ainda
Mudam as relações sociais e aparecem, conservadoras, mas muito mais flexíveis do
de acordo com Hobsbawn (2013 (1977) p. que os modelos anteriores de hegemonia dos
372), na esteira das práticas burguesas, novos poderes do clero em uníssono com a nobreza.
modos e meios de produção, dando voz a um
No embate entre os ideais socialista e
proletariado já nos meados no século XIX.
capitalista surgem de um lado os discursos que
Palavras como distribuição em oposição a
clamam por justiça social e pela extinção da
produção marcavam o discurso daqueles que
propriedade privada, do outro lado as
contestavam o liberalismo defendido por
condições de melhoria da vida dos pobres por
Ricardo1, discursos convivendo com outros
meio do aumento da produção e da riqueza. Se
discursos que incluíam na mesma frase
o socialismo muito tinha em comum com o
economia política clássica e ideologia liberal; a
cristianismo dele se afastava na questão dos
constatação de que o capitalista explorava o
seus objetivos. Enquanto para o socialismo o
trabalhador ao lado da formação do socialismo
importante era os meios de produção mudarem
mostram essas correlações de forças, as
de mãos, para o cristianismo nascente e ainda
não transformado pela idade média, o
importante era distribuir os bens dentre todos,
1
David Ricardo (1792-1823), economista inglês que não importando quem os produzia. (ENGELS,
criou a teoria geral do valor como trabalho, escreveu em F e LUXENBURGO, R. 2011). No socialismo
1817, Princípios da economia política, obra que marca a rede que sustentava o discurso, seu
apogeu da ideologia liberal. Hobsbawn (2013 (1977) p. dispositivo de poder, estava nas relações entre a
368)

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1176
consciência política do papel do proletariado na esconjurar algumas práticas ligadas ao
regulação de suas vidas e para o cristianismo, o catolicismo como religião tradicional e
dispositivo de poder estava na força da majoritária. Com as publicações espíritas
recompensa na vida futura. ressurge o discurso do inquisidor na tentativa
de silenciar as vozes das verdades que estavam
Tanto o discurso socialista quanto o
sendo construídas. Acontece o Auto de fé de
capitalista se opunham a um saber que tinha na
Barcelona em que foram queimadas dezenas de
escatologia religiosa a ideia de Deus com o
livros e revistas espíritas. Mesmo fazendo parte
papel de absorção do real em oposição às
de um mesmo regime enunciativo, cristianismo
escatologias seculares que tinham como
e anticlericalismo, são posições filosóficas que
absoluta a representação do real, substituindo
fizeram, no seu controle do dizer, fazer
Deus pela razão. As consequências desses
aparecer outras forças, se opunham ao discurso
discursos se dão no afastamento de ambas as
cristão, católico e hierarquicamente organizado.
correntes do clero, que passa a enfraquecer seus
elos com a aristocracia, antes e com a burguesia O movimento espírita florescia na
depois. De acordo com Hobsbawn ([1977] Europa com publicações regulares que se
2014, p.341) “se havia uma religião florescente espalhavam por diversos países quando se deu
entre a elite no final do século XVIII, esta era a o auto de fé de Barcelona, em 186. Seu
maçonaria racionalista, Iluminista e organizador e divulgador, o professor Rivail,
anticlerical”. Essa descristianização dos sob o pseudônimo de Allan Kardec cuidava da
homens e das classes instruídas teve um efeito organização dos textos, palestras de
benéfico, pois na emergência do divulgação, cartas aos associados da Revista
contradiscurso, encontrou-se a possibilidade Espírita e é ele quem responde ao auto de fé.
fazer cessar os julgamentos por bruxaria, os Observe-se o texto publicado na Revista
autos de fé2, processos por heresia. Espírita, em dezembro de 18613 sobre Auto de
fé de Barcelona, o questionamento entre o que
Não se poderia afirmar, contudo, que
as instituições podem e fazem em relação aos
esses discursos teriam sido suficientes para
novos sentidos encontrados nos discursos
religiosos, ligados à publicação de livros
2
Durante os séculos V a XV a Igreja Católica instituiu
espíritas, em texto redigido por Allan Kardec:
as Cruzadas e a Santa Inquisição, um tribunal que tinha o
objetivo de realizar julgamentos a fim de separar os Agora, abstração feita da qualificação dada
cristãos dos hereges. Qualquer um que não aceitasse as aos livros queimados, examinaremos o fato
regras impostas, pela Igreja, não aceitasse Jesus Cristo em si. Pode a jurisprudência admitir que
como seu salvador, seria queimado vivo num auto de fé: um bispo diocesano tenha uma autoridade
cerimônia em que os réus eram obrigados a participar, sem apelo e possa impedir a publicação e a
antes de sua condenação. Era iniciado com um sermão, circulação de um livro? Dirão que a lei de
os réus tinham que pedir perdão por seus crimes, sem imprensa determina o que deve ser feito
direito à defesa, caminhavam em direção a um pátio onde neste caso. Mas determina essa lei que os
eram queimados (vivos). JÚNIOR, Demercino José
Silva”. O Auto de fé "; Brasil Escola. Disponível em
3
<http://www.brasilescola.com/historiag/o-auto-fe.htm>. Disponível em
Acesso em 13 de setembro de 2015. http://ipeak.net/site/busca_janela_conteudo.php?sec=rote
iro&id=5187&idioma=1 consultado em 30/08/2015.

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1177
livros, por piores e mais perniciosos que
sejam, devem ser lançados ao fogo com tal das cidades continuava profundamente devota e
aparato? Nela não encontramos nenhum supersticiosa.
artigo que justifique ato semelhante. Além O que chama a atenção é que os dois
disso, os livros em questão foram
discursos convivem em nome da necessidade
publicamente declarados. Um comissário
declara livros à alfândega, porque poderiam
porque para as classes ditas pensantes era
estar na categoria assinalada pelo Art. 6.º e necessário manter uma forte e ingênua
passam pela censura diocesana. O governo moralidade por meio de dispositivos de
poderia proibir-lhes a circulação, e a coisa disciplina voltadas para os exércitos que
estaria acabada. Os sacerdotes deveriam precisavam ser dóceis para travar as batalhas a
limitar-se a aconselhar aos seus fiéis a que eram chamados. Assim, continuavam a
abstenção de tal ou qual leitura, se a circular discursos de obediência e
julgassem contrária à moral e à religião, subserviência com a “certeza” da recompensa
mas não se lhes deveria conceder um poder em outra vida, após a morte. Teoricamente isso
absoluto, que os torna juízes e carrascos. poderia perfeitamente ser feito pelo
agnosticismo e o ateísmo, os filósofos
O evento foi isolado em sua irrupção demonstravam a todo tempo que havia uma
como um discurso que ressignifica um gesto de moralidade “natural” (nobres selvagens) bem
intolerância religiosa. As classes mais baixas e como os altos padrões pessoais do livre-
mesmo mais medianas não foram, contudo, pensador individual como linhas de conduta
afetadas pelo movimento de decadência das melhores do que o cristianismo. Não era,
ideias religiosas, a essas classes os livros contudo, de se desprezar a permanência de um
estavam muito longe e os sermões dos tipo de dispositivo de poder para tornar dóceis
sacerdotes eram um discurso muito distante de não só os trabalhadores pobres bem como a
ser ouvido: própria classe média, apoiadas nas crenças da
religião organizada hierarquicamente, com base
o campesinato francês permanecia fora de em castas sacerdotais.
qualquer linguagem ideológica que não se
expressasse em termos da Virgem, dos Na esteira do jogo entre a submissão à
Santos e da Sagrada Escritura, para não religião ou ao agnosticismo, ou simplesmente
mencionarmos os deuses e os espíritos mais ao anticristianismo, relata Hobsbawn (2013),
antigos que ainda se escondiam debaixo de houve, na França, muitas tentativas de criar-se
uma fachada levemente cristã. uma moralidade anticristã que equivalesse à
(HOBSBAWN ([1977] 2014, p.341) cristã: pseudorreligiões com bases racionalistas
não cristãs, “culto do ser supremo”
Observa-se que para essas classes o (Robespierre em 1794, inspirado em
discurso cristão permanece como parte de sua Rousseau), a “religião da humanidade” de
memória discursiva. Entre eles, ainda para Comte e os saint-simonianos, todas mantendo o
Hobsbawn, que os discursos anticristãos mecanismo do ritual e do culto. A emergência
circulavam na França de então, como ligeiras desses discursos mostra a força desse
agitações, a massa da pobreza desqualificada antagonismo, bem como abre o espaço da ação
do intelectual na formação das verdades.

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1178
Embora essas alternativas tenham sido formações discursivas no governo das
abandonadas como práticas, permaneceu a populações, quando aparecem as cidades e suas
intenção de estabelecer uma moralidade leiga novas necessidades. A perspectiva de que as
oficial, desta vez substituindo os sacerdotes igrejas demoraram muito a entender essas
pelos professores e/ou uma instituição do novas linhas no universo dos discursos aí
Estado (instituere civitatem), conforme Cícero gerados, estão inscritas naquilo que não era
e Salústio, como cita o autor, mesma obra visível, na ordem do não dito. Pelo menos para
(p.343), e na “instituição da moralidade do as igrejas, pelo menos não naquele momento.
Estado” (instituere civitatum mores). Aqui, nessa fratura do discurso religioso, em
Permanecia assim a fratura no discurso consonância com a irrupção de discursos
religioso entre livre-pensadores, católicos científicos a se colocarem como opção ao
(maioria), protestantes e judeus devotos. E o antigo e superado discurso do sacerdócio
Espiritismo que chegava, como ciência e não organizado, começam a ser ouvidas as vozes do
como religião. Talvez a principal fratura se dê além, mais em consonância com o pensamento
na falta de informação a respeito da religião. iluminista e racionalista. No texto de
Não havia precedentes para tal indiferença, introdução de O Livro dos Espíritos (doravante
ignorância e distanciamento em relação à LE), Allan Kardec alerta para a condição de
religião organizada, conforme relata novidade do discurso espírita que exigia
Hobsbawn: mesmo uma nova palavra que desse conta dos
novos sentidos: "Para as coisas novas
Grande parte deste alijamento se devia ao necessitam-se de palavras novas, assim o que
absoluto fracasso das tradicionais igrejas quer a clareza da linguagem para evitar a
estabelecidas em lutar com as confusão inseparável do sentido múltiplo dos
aglomerações – as grandes cidades e os
mesmos vocábulos” (ALLAN KARDEC,2009,
novos estabelecimentos industriais – e com
as classes sociais – o proletariado – p.7). Parece para o autor era imperioso deixar
estranhos a seus costumes e experiência. muito marcado que mesmo sendo o velho
[...] As igrejas estabelecidas, portanto, discurso espiritualista, não é mais o mesmo.
negligenciavam essas novas comunidades e Trata-se agora do Espiritismo, que como
classes, abandonando-as (especialmente convém a uma novel ciência, precisa dar a
nos países católicos e luteranos) quase que conhecer seu nome, objeto de estudo e
inteiramente à fé secular dos novos objetivos: “como especialidade, O Livro dos
movimentos trabalhistas, que mais tarde Espíritos contém a Doutrina Espírita; como
iria captura-las, já no fim do século XIX. generalidade, ele se prende à doutrina
[...] A classe trabalhadora como grupo era
espiritualista da qual apresenta uma das fases.
indubitavelmente menos atingida pela
Tal a razão porque traz no seu cabeçalho as
religião organizada do que qualquer outro
núcleo de pobres na história mundial. palavras: filosofia espiritualista”. Não há
(HOSBSBAWAN, 2013, p.345-6) nenhuma palavra remetendo ao termo religião.
Um livre pensador, acostumado à
Essa observação do autor nos remete a reflexão, Allan Kardec, fez questão de não ligar
um problema que foi comum a outras as respostas dos Espíritos à religião. A
apresentação de O Livro dos Espíritos diz

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1179
muito daquilo que a dupla ciência/filosofia que à observação de fatos, que remetem ao universo
ali se anuncia, deverá corporificar: do discurso da ciência, com sua metodologia de
investigação, num universo de racionalidade
em que discursos de verdade devia estar
Filosofia Espiritualista vinculados ao novos poderes em confronto com
O Livro dos Espíritos a religião tradicional: a economia, a realidade
social e o livre pensamento.
contendo os princípios da Doutrina Espírita
sobre a imortalidade da alma, natureza dos 3. Considerações finais
Espíritos e suas relações com os homens, as
leis morais, a vida presente, a vida futura, e o Esses trechos que destacamos de o LE
futuro da Humanidade segundo o tiveram o condão de demonstrar o discurso da
ensinamento dado pelos Espíritos superiores ciência desenhando o que se prendia como
com a ajuda de diversos médiuns. verdade, cada fenômeno investigado a partir de
uma causa, lógica, que não esteja em desacordo
compilados e ordenados por Allan Kardec.
com a ciência então conhecida, colocando-se
(capa da obra O Livro dos Espíritos, 2009). dentro da ordem do olhar da ciência, a partir de
práticas sociais.
Alguns elementos ainda para entender Nossa intenção foi demonstrar no curto
como é importante construir essa verdade como espaço deste trabalho que o surgimento do
ciência: primeiramente, Allan Kardec organiza Espiritismo se deu como a construção de uma
as palavras que nomeiam a ciência nova e os verdade em um tempo que a ciência era a
seus elementos, se não novos, agora com resposta aos desafios da vida, nos seus aspectos
emergência em novo sentido. Por exemplo: econômicos e sociais. E ainda sobre a verdade,
Alma: “Cremos mais lógico tomá-la em sua esta que Foucault (2001, p.114), definiu como
acepção mais vulgar, por isso chamamos acontecimento, fruto das relações de poder que
ALMA ao ser imaterial e individual que reside atravessa o corpo social, que não é “encontrada,
em nós e sobrevive ao corpo” (p.8). Depois: mas suscitada, provocada por rituais, atraída
princípio vital: “princípio da vida material e por meio de ardis, apanhada segundo ocasiões
orgânica, qualquer que lhe seja a fonte, e que é como estratégia e não método”. O poder que
comum a todos os seres vivos, desde as plantas chega por meio das comunicações espirituais, a
até o homem”. verdade por ele suscitada, não estão fora do
discurso, nele funcionam, nele são produtivas,
Nesses enunciados vemos a lógica circulam e acumulam discursos outros.
como dispositivo não só de inteligibilidade,
bem como de ciência positiva, o que pode ser
observado em toda a linha temática investigada Referências
“Lembraremos primeiro, em poucas palavras a
série progressiva dos fenômenos que deram KARDEC, A. O Livro dos Espíritos. Araras:
nascimento a esta doutrina. O primeiro fato IDE, 2009.
observado foi o de objetos colocados em COURTINE, J.J. Decifrar o corpo: pensar com
movimento”. Observe-se que o autor se refere Foucault. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.

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1180
ENGELS, F e LUXENBURGO, R.
Contribuição para a história do cristianismo
primitivo. São João del-Rei: Estudos
vermelhos, 2011.
FOUCAULT, M. Resumo dos cursos do
Collège de France (1970-1982). Tradução de
Andréa Daher. Consultoria de Roberto
Machado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997
_____. Microfísica do poder. Rio de Janeiro:
Edições Graal, 2008.
_____. A Arqueologia das ciências e história
dos pensamentos. (IN) Ditos e escritos II. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 2000.
_____. “Mesa redonda em 20 de maio de
1978”. In FOUCAULT, M. Estratégia poder-
saber. (Col. Ditos e Escritos IV). Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2003, p.335-
351.
HOBSBAWN. E.J. A era das revoluções 1789
– 1848. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2013.
_____. A era do Capitalismo 1848- 1875. Rio
de Janeiro: Paz e terra, 2014.
PANIAGO, M. de L. F dos S. Práticas
Discursivas de subjetivação em contexto
escolar, 2005. Tese. Faculdade de Ciências e
Letras, Campus Araraquara. UNESP,
Araraquara, 2005.

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1181
DISCURSOS FUNDACIONALES E IDENTIDADES
NACIONALES EN ARGENTINA

María Alejandra VITALE; Ana María CORRARELLO; Ana Laura MAIZELS; Florencia
MAGNANEGO
Universidad de Buenos Aires (UBA)
alejandravitale@filo.uba.ar

Resumen: Este trabajo sintetiza resultados del Proyecto de Investigación “Discursos


fundacionales e identidades nacionales en Argentina y Sudáfrica” (MINCyT/DST). En el
marco de la corriente de estudios retóricos denominada retórica constitutiva y retomando
el análisis del discurso, se centra en la alocución que Eva Perón pronunció en 1947 para
anunciar la sanción del voto femenino y en tres discursos de Hebe de Bonafini, de 1983,
1989 y 1994, que han tenido un carácter constitutivo en Argentina.
Palabras clave: retórica constitutiva; eva perón; hebe de bonafini.

amplio conjunto de discursos clave que sirvan


Introducción
al estudio de los principios discursivos de dos
Nuestro Proyecto, “Discursos sociedades políticas ubicadas en el Atlántico
fundacionales e identidades nacionales en Sur y contribuir a los estudios internacionales
Argentina y Sudáfrica”, iniciado en 2014 y con sobre la "retoricidad" de la formación de la
una duración de tres años, propone una identidad nacional (MERCIECA, 2010) y la
investigación comparativa de los discursos denominada "retórica constitutiva"
fundacionales que estructuran la identidad (CHARLAND, 1987 y 2001).
nacional en Argentina y Sudáfrica durante el
Durante el primer año, el grupo
período 1912-1994. 1 En el marco de la crítica
argentino analizó performances oratorias en los
retórica y retomando el análisis del discurso, el
foros legislativos y ejecutivos, es decir, una
objetivo es doble: identificar y caracterizar un
retórica oficial. El segundo año, en curso,
aborda una retórica pronunciada por mujeres y
1
El Proyecto es subsidiado por el Ministerio de Ciencia una retórica que llamamos "desde abajo", dado
Tecnologia e Innovación Productiva, Argentina, y el que la formación de la identidad nacional se
Department of Science and Technology de la República
basa también en formas retóricas con
de Sudáfrica. Es dirigido por la Prof. Dra. María
Alejandra Vitale (Universidad de Buenos Aires) y el frecuencia autogeneradas y no reguladas de
Prof. Dr. Philippe-Joseph Salazar (University of Cape antemano. Por ello, en este trabajo nos
Town, República de Sudáfrica). referimos al discurso que Eva Perón pronunció

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1182
el 23 de septiembre de 1947 para anunciar la ilocucionarios y perlocucionarios” (2006, p.
sanción del voto femenino y a tres discursos de 172). Laurent Pernot (2013, p. 113), por su
Hebe de Bonafini, fundadora de las Madres de parte, destacó también el valor performativo de
Plaza de Mayo, que han tenido un carácter la palabra en el mundo romano, en el sentido de
constitutivo en Argentina. que “es por sí misma una acción que produce
eficacia y produce una situación nueva. Sirve
2. Abordaje teórico-medológico
para dar órdenes, para prometer, enunciar
El poder performativo otorgado al reglas” y, mal empleada, puede provocar
lenguaje se remonta a la antigüedad. Manfred resultados funestos. De allí que la
Kraus (2012) recuerda que en Gorgias los comunicación, especialmente la efectuada en el
poderes del logos son comparados con las ámbito público, fuese controlada y sometida a
drogas medicinales, el encantamiento mágico o las jerarquías.
la fuerza física, lo que puede crear, eliminar o
Este poder performativo de la palabra
modificar las emociones e en ella. Barbara
es recuperado en los tiempos actuales por la
Cassin señala que el efecto retórico sobre el
corriente de los estudios retóricos que se
comportamiento del oyente fue para los sofistas
conoce como retórica constitutiva. El término
solo una parte de lo que ella llama “efecto
‘retórica constitutiva’ fue acuñado por James
mundo”, una concepción del discurso como
Boyd White (1985) con referencia a la
productor del mundo, en tanto el discurso hace
capacidad del lenguaje para crear la identidad
ser. Por ello, Cassin (2008, p. 72) remite al
colectiva de una audiencia. El término fue
título del libro de Austin (2003) Cómo hacer
retomado y difundido por el académico
cosas con palabras y afirma: “el discurso
canadiense Maurice Charland (1986), quien,
sofístico no es solo una performance en el
revisitando a Kenneth Burke (1969), focaliza la
sentido epidíctico del término, sino un
performativo con todas las de la ley, en el noción de identificación como término clave
para la retórica. La noción de identificación
sentido austiniano; es demiúrgico, fabrica el
permite repensar el efecto retórico a la vez que
mundo, lo hacer acaecer”.2
rechaza la idea de un sujeto trascendental que
En esta línea, Gerardo Ramírez Vidal ocuparía el lugar de la audiencia, que existiría
(2006) explica que Isócrates concibió el antes, de modo independiente del discurso. La
lenguaje como una facultad ergástica, esto es, idea central de la retórica constitutiva según
productiva, porque sirve para producir y es guía Charland es que las audiencias existen por el
de nuestras acciones y pensamientos. Esta discurso, en el sentido en que son construidas
facultad no constituye una virtud de la palabra por él, lo que implica examinar como efecto
como algo accesorio sino como su propia retórico lo que Louis Althusser (1974) ubica
esencia. Y agrega: “En términos modernos, como el proceso clave de la ideología: la
Isócrates estaría hablando de los actos de habla constitución de un sujeto. 3

2
Sobre este punto en los sofistas, ver McKomiskey
(2002); sobre el poder del lenguaje para actuar en y
3
transformar el mundo político-social, ver López Eire Sobre la retórica constitutiva ver también Sloane
(2002, 2005). (2001).

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1183
Volviendo a la afirmación de En el marco de su reflexión sobre el
Aristóteles, que retoma la de Sócrates, de que papel central de las narrativas y de la memoria
no es difícil alabar a los atenienses delante de pública en la construcción retórica de las
los atenienses (Ret. 1, 9 1367b), la retórica identidades, Bruner retoma los tres tipos de
constitutiva se pregunta cómo estos llegan a la historia distinguidos por Friedrich Nietzsche
experiencia de ser atenienses. Charland analiza (1980): la historia monumental, anticuaria y
así la construcción retórica del pueblo crítica. La historia monumental construye un
québécois. Recuerda que en 1967, el año del pasado digno de ser imitado que se usa como
Centenario de Canadá, se formó en Quebec una un incentivo para la acción en el presente; la
nueva asociación política, el Mouvement historia anticuaria consta de un registro
Souverainité-Association (MSA), que, en puramente cronológico, pero aún es
francés, la lengua mayoritaria de Quebec, llamó profundamente selectiva a causa de que es
a la independencia de Quebec de Canadá y imposible registrar cada detalle relevante de un
declaró: “Nous sommes des Québécois”. Hasta acontecimiento histórico. La historia crítica,
el momento, los habitantes de Quebec se finalmente, se enfrenta a las historias
habían llamado “Canadiens français”, por ello monumentales y anticuarias con el objetivo de
Charland interpreta que aquella fue una señalar injusticias sobre qué omiten y cómo
instancia fundamental de la retórica realizan las omisiones.
constitutiva del pueblo québécoise, que dio
Bruner sostiene que los líderes públicos
existencia a un nuevo sujeto político. La apelan a la historia monumental para crear
existencia de este sujeto político, con su apoyos masivos a sus políticas y obtener
identidad nacional, sería presentada como legitimidad para llevar a cabo ciertas acciones.
justificación para la creación de un nuevo Asimismo, considera que dichos líderes
Estado. intentan fabricar una base común sobre quién
Michael Bruner (2002), por su parte, es “el pueblo”, que pueda movilizar a la
focaliza la dimensión retórica de la ciudadanía, especialmente en tiempos de crisis.
construcción de la identidad nacional en Dana Anderson (2007) es otra autora
momentos específicos en los que articulaciones que se inserta en la corriente de la retórica
en competencia colisionan en el proceso de constitutiva. Destaca que esta corriente ha
negociación discursiva sobre qué significa ser focalizado el modo en que los oradores
parte de una nación determinada.4 Destaca así
construyen la identidad de su audiencia, y en
que la dimensión retórica de las identidades este sentido operan una “conversión” retórica
nacionales es políticamente significativa de dicha identidad, pero que ella, en cambio,
porque los diferentes tipos de identidades considerará cómo los oradores construyen sus
colectivas conducen a diferentes formas de propias identidades a través de una
comunidad, a diversos tipos de relaciones “conversión” que se oriente a persuadir a la
locales e internacionales. audiencia. Retomando la noción de êthos,
aborda cómo la propia “conversión” de la
4
Bruner explora los casos de Alemania Occidental en identidad de un orador puede llevar a la
1988, de Rusia en 1993 y de Canadá en 1995. “conversión” de la identidad de su audiencia y

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alcanzar así una consubstancialidad –término
En las décadas previas a 1947 se sumaron más
tomado de Burke (1969)- entre ambos. En este
de treinta proyectos tendientes a impulsar el
proceso se observa la tensión entre
derecho al voto femenino, pero ninguno de
fusión/división, que es propia de lo que
ellos llegó a debatirse en las instancias
Anderson llama dialéctica constitutiva.
parlamentarias. El primero data del año 1911,
3. Análisis y discusión impulsado por el diputado socialista Alfredo
Eva Perón pronunció, en el balcón de la Palacios que, incluso, es anterior a la Ley
Casa de Gobierno, el 23 de septiembre de 1947, Sáenz Peña, de 1912, por la cual se
un discurso para anunciar públicamente la democratizan los métodos de elección en
sanción de la ley del voto femenino, que ese Argentina, al instituirse el voto secreto,
mismo día habían firmado su marido, el obligatorio y universal para los ciudadanos
presidente Juan Domingo Perón, y el Ministro argentinos varones, mayores de dieciocho años.
del Interior, en el marco de una celebración Sin embargo, con la Ley Saénz Peña no se
popular llevada a cabo en la Plaza de Mayo. pudo evitar el fraude político que, durante la
Dicha ley permitió a las mujeres votar por década del treinta, la denominada “Década
primera vez en las elecciones presidenciales de Infame”, permitió que sectores conservadores
1952, que llevaron a Perón a su segundo tomaran el poder hasta el golpe militar de 1943,
período presidencial. acontecimiento que posibilitará la llegada al
poder de Juan Domingo Perón, tres años
En la República Argentina, el reclamo por después, en 1946, por la vía democrática. La
la igualdad de derechos cívicos de las mujeres, campaña de Eva Perón para lograr la ley de
entre ellos el sufragio femenino, tiene su origen voto femenino está enmarcada en este contexto
en las militantes socialistas y anarquistas de y se proyecta hacia las elecciones de 1952, en
principios del siglo XX, entre quienes se las que la mujer votará por primera vez.
destacan Elvira Rawson de Dellepiane, Cecilia
Grierson y Alicia Moreau de Justo. Por otro Si bien Eva Perón llevaba adelante un
lado, sectores femeninos de la oligarquía reclamo compartido, tanto con las dirigentes
nacional también estuvieron a favor del voto de liberales de izquierda como con las de la
la mujer, pero con una impronta de selectividad oligarquía, su discurso se instala como
que no cuestionaba la injusticia de un orden fundacional porque instaura, por primera vez,
social instaurado que postergaba a la mujer, un nuevo destinatario: interpela políticamente a
cuesionamiento que sí estaba en la base de los la mujer y a todas las mujeres, construyendo
mensajes de Eva Perón. En aquel sector se una conciencia cívica pero manteniendo la
incluyen Victoria Ocampo, Susana Larguía, condición insustituible que le corresponde
María Rosa Oliver, quienes habían fundado en como “columna básica del hogar”, es decir, el
1936 la Unión de Mujeres Argentinas.5 espacio simbólico que se genera incorpora a la
mujer en la escena política pero sin perder de
vista los valores espirituales ni los roles de
género tradicionalmente asignados.
5
Con anterioridad, en 1932, Carmela Horne había
fundado la Asociación Argentina para el Sufragio En el discurso de Eva Perón, el lugar
Femenino. de la mujer frente a la promulgación de la ley

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de voto femenino se construye a partir de la destinatarias y la enunciadora y acortar las
dicotomía amigo/enemigo. En el marco de esta distancias entre Eva Perón y las “legiones de
construcción, el discurso de Eva Perón propone mujeres” que la acompañan. Eva Perón se
la conquista del derecho al voto como la construye así como portavoz y representante de
“victoria”, no sólo sobre la desigualdad de la ese colectivo al afirmar: “Recibo en este
mujer, sino también sobre los que denomina instante, de manos del Gobierno de la Nación,
“los intereses creados de las castas repudiadas la ley que consagra nuestros derechos cívicos.
por nuestro despertar nacional”. Es interesante Y la recibo, ante vosotras, con la certeza de que
notar que la construcción del enemigo no recae lo hago, en nombre y representación de todas
en la figura del “hombre” como en los las mujeres argentinas”.
discursos feministas radicales sino en un Pero, por otro lado, Eva Perón
enemigo político (no de género): el enemigo construye a las mujeres con el apelativo “mis
del peronismo. La ley entendida como queridas compañeras”, usando el vocativo
“victoria” es un paso en el marco de una lucha partidario “compañeras” propio del peronismo.
más amplia: la “guerra” contra la oligarquía, Este deslizamiento en la construcción de las
que se refuerza por el componente polémico mujeres tiende a la identificación del colectivo
que Eva Perón despliega en su discursividad. “mujeres” como “mujeres peronistas”,
La oligarquía es metaforizada como asimilándolas así al proyecto justicialista.
espacio de “amenaza y de sombras” a la vez
A partir de este marco la mujer es
que Eva Perón construye la figura del enemigo designada como sujeto cívico-social, como
como “antiargentino”, “ventrílocuo” (voz de “mujer consciente”, “mujer emancipada”,
los intereses ajenos a la patria), “falsos “mujer fortalecida”, “mujer de valor y tesón”.
apóstoles”, “antidemócratas” y “parásitos”. Otras designaciones se inscriben en una
Estos no solo son los enemigos del pueblo sino memoria religiosa que inscribe tanto a Eva
también los enemigos de la mujer. Perón como al resto de las mujeres en la “fe de
En relación con las mujeres, Eva Perón Dios”, e incluyen en ese proyecto mesiánico a
se asigna el êthos dicho de “reivindicadora la Patria y a Perón, quien es denominado
infatigable de los derechos esenciales de las “nuestro Líder”.
mujeres”; esta reivindicación es funcional al Diversos investigadores han observado
imaginario de “misión” que reviste la tarea que el discurso de Eva Perón (y el discurso del
político-social de Eva Perón. peronismo sobre la mujer en esta etapa) si bien
La enunciadora construye primero a su introduce grandes avances en el rol social de
audiencia como “mujeres de mi patria”, las mujeres lo hace a partir de una apelación a
colectivo involucrado en la sanción de la ley. valores tradicionales en relación con los roles
Sin embargo, a medida que avanza la genéricos tradicionales (cfr. PERRIG, 2008;
alocución, se producirá un deslizamiento de ese BIANCHI, 2000). En este sentido, la mujer
colectivo amplio hacia otros más acotados. Por debe participar en el movimiento peronista
un lado, la utilización de “hermanas mías”, de asumiendo su rol desde el hogar (el espacio
un cariz filial y, por lo tanto, afectivo, tiende a privado) asociado a las tareas femeninas y la
propiciar la identificación entre las imagen de mujer que se construye está

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vinculada, asimismo, con características recuperador de nuestro jefe y líder, el general
también tradicionalmente asignadas a la mujer: Perón”.
la maternidad, la protección de la familia, el Se repite así la ambivalencia de la
acompañamiento del varón, la pasión y la construcción de la mujer con mayoría de edad
perseverancia, entre otras. cívica, a la vez que subordinada al Jefe y al
En el discurso que anuncia la ley del Líder, el general Perón, en el deslizamiento
voto femenino, y en relación con estas nombrado donde las mujeres son construidas
observaciones, se manifiestan retóricamente los con la identidad de mujeres peronistas.
valores tradicionales vinculados con el género Por otra parte,frente a la “guerra” que
en la metáfora del “bordado” y de la hace el enemigo, la mujer es la “misionera de la
“fecundidad”. En efecto, Eva Perón afirma:
paz”. La mujer ayudará en la “guerra” desatada
El voto que hemos conquistado es una contra los “enemigos de la Patria”, y dada la
herramienta nueva en nuestras manos. Pero equivalencia que establece el discurso entre la
nuestras manos no son nuevas en las Patria y Perón, se trata también de los enemigos
luchas, en el trabajo y en el milagro de Perón. De esta manera, se prepara a las
repetido de la creación. ¡Bordamos los mujeres para el nuevo rol que tendrán en las
colores de la Patria sobre las banderas próximas elecciones de 1952, rol decisivo a la
libertadoras de medio continente! hora de optar por la reelección del general
Perón. Ello llevó a la socialista Alicia Moreau
Las mujeres son construidas como de Justo a considerar el logro del voto
agentes de una lucha que conquistó el voto, femenino como “una maniobra política y no
pero a la vez el voto es asimilado al bordado, como una conquista social”.
actividad estereotipadamente femenina. Eva Treinta y seis años después del discurso
Perón remite a una historia monumental, al de Eva Perón que anuncia el voto femenino, el
pasado de la Argentina, cuando en las guerras jueves 8 de diciembre de 1983, se produjo la
de la Independencia del siglo XIX las mujeres última Marcha de la Resistencia de las Madres
bordaron las banderas del Ejército Libertador. de la Plaza de Mayo bajo la dictadura militar
De esta manera, quedan ubicadas en un iniciada en 1976 y Hebe de Bonafini pronunció
segundo plano respecto de los hombres, los en la Plaza de Mayo un discurso constitutivo de
luchadores, y en el presente de enunciación es un nuevo sujeto político en la democracia. Dos
el general Perón quien es construido como un años antes, el grupo de madres de detenidos-
nuevo libertador de la Argentina, de modo que desaparecidos que había empezado a
las mujeres se ubican implícitamente como sus organizarse para reclamar por sus hijos se
ayudantes. La mención al “milagro repetido de creaba como asociación con Hebe de Bonafini
la creación”, por otra parte, apela al estereotipo al frente de su Comisión Directiva.
de las mujeres como madres. Eva Perón agrega:
“Y votaremos con la conciencia y la dignidad Después de siete años de dictadura, en
de nuestra condición de mujeres, llegadas a la los comienzos de lo que se denominó la
mayoría de edad cívica bajo el gobierno “primavera democrática”, el discurso de
Bonafini es fundacional porque define una

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nueva lucha y un nuevo sujeto político que
acompañe ese proceso. Cada vez que sepamos que los Jefes de las
Fuerzas Armadas que actuaron en represión
Cuatro actores configuran su están ocupando algún puesto, tenemos que
escenografía enunciativa: las Madres y el denunciarlo. Y no es para desestabilizar, es
pueblo argentino, por un lado, el Gobierno y porque realmente le corresponde a un
los militares, por el otro. El “nosotros” se pueblo que ha sufrido durante siete años
amplía y se reduce. Diferencia o integra. La esta brutal represión.
primera reflexión de Bonafini define las
acciones del pueblo, en 3° persona, en relación La cita anterior articula mediante el
con la lucha de las Madres. El pueblo no solo argumento del nexo causal una serie de hechos:
acompaña, sino que también entiende esa el pueblo sufrió la represión, por lo tanto, el
lucha. El significado de la última marcha en pueblo puede denunciarla y el pueblo eligió al
dictadura está dado, entonces, por esa gobierno, por lo tanto, el pueblo puede exigirle.
consubstancialidad con el pueblo: “Este último De esta manera, la legitimidad del nuevo sujeto
jueves con la dictadura en la Casa de Gobierno, colectivo deriva no solo de su carácter de
después de largos siete años de lucha, ha tenido soberano democrático, sino también de haber
un gran significado porque nos ha acompañado sido el blanco de la represión. Pasado y futuro
todo el pueblo argentino que ha entendido la se superponen en la configuración de la
lucha de las Madres”. audiencia construida en el discurso de Hebe de
Hay una insistencia en ampliar el Bonafini. La elección democrática que anticipa
colectivo de identificación -“alcanzar entre “que realmente este país empiece a caminar ese
todos”, “con el aporte de todos”, “pedimos a camino que todos ansiamos” en un futuro
todos”, “entre todos la tenemos que alcanzar”- cercano es reafirmada, pero relativizada por el
y en convocar a la unidad por encima de las imperativo de no olvidar ni perdonar. La
ideologías. Las Madres no se diferencian, se cláusula adversativa introducida por “pero”
funden con el pueblo en un nosotros ancla al sujeto, denominado “compañeros”, con
programático que reclama, enuncia consignas, la consiguiente connotación de peronismo o de
prescribe, dispone límites y se encamina hacia militancia de izquierda, en un pasado que se
una meta: la cercana democracia que se proyecta aún en tiempos democráticos y la
configura simultáneamente como objetivo y acción de “exigir” sutura ambos planos:
como potencial quimera: “alcanzar entre todos,
Hemos elegido un Gobierno, hemos elegido
realmente, esta democracia de la que tanto se más de 300 hombre entre diputados y
habla”. senadores, a ellos tenemos que exigirles lo
La democracia se vincula con la mismo que al Doctor Alfonsín, para que
desarticulación del aparato represivo y con la realmente este país empiece a caminar ese
participación. El pueblo se configura como un camino que todos ansiamos. Pero,
compañeros, no debemos olvidar ni
sujeto protagonista que denuncia activamente.
perdonar, porque esto que pasó no se olvida
El haber soportado la represión durante siete ni se perdona. Los pueblos que olvidan no
años lo legitima: tienen historia.

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de la apertura en relación con la apropiación
De esta manera, el camino hacia la meta
colectiva del espacio y la persistencia de la
es el mismo y es otro, la lucha se retoma, pero
memoria: “Esta novena Marcha de la
simultáneamente es otra, como evidencia el
Resistencia tuvo una convocatoria abierta como
enunciado “empieza nuevamente la otra lucha”.
la casa, abierta como nuestras heridas. Por eso
La defensa de la vida y de la libertad como
vinieron todos. Gracias, compañeros, por
objetivo principal vinculado con las
entender que esta Plaza está abierta siempre,
condiciones durante la etapa represiva (“para
porque ya es de todos nosotros”.
defender la vida y la libertad, que es lo más
importante”) es resignificada a través de una La construcción de ese espacio es
reformulación correctiva en el epílogo del paralela a la configuración del sujeto colectivo,
discurso: “Las Madres seguiremos defendiendo nuevamente denominado “compañeros”, en un
la vida y la libertad, pero la vida y la libertad deslizamiento donde “todos” son peronistas o
del otro, que eso es lo más importante que militantes de izquierda. La soledad de las
tenemos que empezar a defender”. Madres se convierte en acompañamiento.
Primero, la ausencia física de los desaparecidos
Así, la construcción colectiva se
se vuelve presencia movilizante en la
reafirma a través de la apelación al valor de la
organización de las Madres. Luego, esa
solidaridad como un concepto que atraviesa los
presencia se multiplica en los “compañeros”
discursos y constituye una nueva forma de
asistentes a las nuevas marchas:
identificación política: “Tenemos que saber
muy bien qué significa la palabra ‘solidaridad’; Cuando por primera vez en 1981, hicimos
que en este país los milicos hicieron que nos nuestra primera Marcha de la Resistencia y
olvidáramos. ¡Hoy somos todos solidarios, caminamos 24 horas sin parar,
compañeros, juntos hasta vencer!”. absolutamente solas, pero solas en
Nuevamente, Hebe de Bonafini utiliza el presencia física porque nos movilizaban,
vocativo “compañeros”, con lo que construye a nos movían los 30000 desaparecidos,
su audiencia como peronista o militante de estaban aquí, en la Plaza, presentes, como
izquierda. están hoy. Hoy multiplicados por ustedes;
jamás las Madres estuvimos solas.
La dictadura había desarticulado a
través del sistema represivo los lazos sociales Este segundo discurso encuentra a las
básicos de solidaridad. En ese marco, una Madres ante nuevas circunstancias, las antiguas
constante en los discursos de la titular de consignas, como “No olvidaremos, no
Madres de Plaza de Mayo es la convocatoria a perdonaremos”, sostienen la unidad ante la
reorganizar vínculos y reconstituir redes. La multiplicidad de reclamos particulares y se
plaza, en este sentido, aparece como espacio resignifican ante conflictos coyunturales:
simbólico de inclusión y de unidad.
En efecto, en el discurso de la 9° Espero que esta unidad se muestre hoy en
Marcha de la Resistencia, del 6 de diciembre de la Plaza donde cada uno llegó con su
pancarta, con su cartel, con su reclamo.
1989, cuando el presidente ya era el neoloiberal
Porque vino por un solo compromiso, ese
Carlos Saúl Menem, se repite el lugar común que asumimos las Madres desde el mismo

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día que se nos llevaron a nuestros hijos.
Pero hoy, con mucha más fuerza. No con el pueblo porque este las comprendía y
olvidaremos, no perdonaremos. Ese acompañaba, en 1989 las Madres se integran a
compromiso está cargado de contenido la movilización popular y se subordinan a lo
porque no vamos a olvidar todo lo que pasó que el pueblo indique: “Compañeros, hemos
en este país. Porque vinieron la Triple A y asumido la responsabilidad de trabajar codo a
ahí también estaba Luder, y ahora acá lo codo, de luchar, de organizar, de movilizarnos
tenemos, en el gobierno de Menem. junto a nuestro pueblo, adelante, cuando sea
necesario y en el lugar que el pueblo indique”.
Por otra parte, la “actitud de sospecha” Se retoma la imagen espacial del
frente al gobierno radical de Raúl Alfonsín, que camino, pero el foco no está puesto en la meta
era evidente en el discurso de 1983, en 1989, sino en las características del proceso de lucha.
durante la presidencia de Carlos Menem, se La reflexión se concentra en la esencia de la
hace netamente confrontativa. En efecto, praxis política a llevar adelante. En este punto,
Bonafini agrega: “Y esta Marcha hoy sí nos las Madres y los “compañeros” se funden en un
encuentra frente a esta ley de vergüenza, este nosotros profundamente político, antisistema,
indulto que nos tiró el doctor Menem, por la desligado de la gestión pública, que reivindica
espalda, peor que una cuchillada artera…”. la vinculación entre ética, política y
La identidad construida sentimiento: “Hagamos la política pero con
discursivamente se renueva permanentemente ética (…) hacemos de la ética la política y de la
en cada coyuntura histórica. En el ‘83 se trata política, la ética”.
de una “nueva lucha”, en el 89 de un “nuevo Hebe de Bonafini construye a su
surco”, signado por el indulto que Menem le audiencia a través de la vía emotiva, apelando a
dio a las Juntas Militares que habían sido las motivaciones afectivas del vínculo entre la
condenadas a cadena perpetua durante el agrupación y el pueblo que se afirma sobre la
gobierno de Alfonsín. La metáfora se verdad, la confianza:
multiplica e incluye instrumentos novedosos –
“un arado nuevo”- y nuevos sujetos – “una idea Siempre hemos dicho la verdad a nuestro
de Madre nueva” y otros “que siembren”. pueblo. Cuando estamos tristes, cuando
Nuevamente se afirma un modo solidario de estamos con bronca, cuando no sabemos,
entender la política y la construcción de cuando no queremos… nunca les hemos
identidad política, pero en este caso, la acción engañado. (…) El sentimiento es lo que nos
de las Madres aparece en función de los mantiene vivas. Es lo que nos hace vivir,
objetivos del pueblo: “Queremos que otros amar la vida. Por eso amamos tanto a
siembren, que otros recojan, para nosotras no nuestro pueblo.
queremos nada. Nunca vamos a aceptar un
cargo público. Queremos trabajar para nuestro Por otra parte, identifica a los 30000
pueblo”. desaparecidos con los compañeros de lucha del
presente. De esta manera, establece un puente
De esta manera, se repiensa el rol de la
entre la historia y la lucha vigente y la 3°
asociación y su vínculo con el pueblo. Si en la
persona, en pasado, deviene 1°, en presente. Se
“primavera democrática” las Madres se fundían
produce, entonces, una amalgama entre

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tiempos y sujetos políticos: “Ellos no están organizaciones y su relevancia. La
físicamente pero lo que ellos quisieron, quieren reformulación explicativa se desentiende de la
y lo que queremos todos, lo vamos a llevar interpretación literal, el pedido de liberación
adelante como sea y cueste lo que cueste, con vida de los secuestrados, y adquiere un
porque para eso estamos nosotras aquí”. significado antisistema. Se cumple así el
sentido polisémico de las frases según señala
La transformación subjetiva de la
Krieg-Planque (2009), en el que inciden las
audiencia es determinada a través de
polémicas.
imperativos que establecen como modelo a los
hijos; las Madres, en tanto, aparecen como La frase “Aparición con vida”
garantes de su legado: constituye en el discurso de Bonafini una
reacción ante la imposición del sistema
La vida de ellos, tan rica, y de tanto represivo instalado por los militares. En efecto,
ejemplo nos tiene que servir a todos. No ante la indefinición y la incertidumbre de la
alcanza cuando los recuerdan, no alcanza entidad del “desaparecido” – ni vivo ni muerto,
cuando ponen los nombres en los carteles,
según declaraciones del general Videla6- la
no alcanza que digan aquí estudió tal o
trabajó cual. Hay que imitarlos, no nos afirmación de la consigna “Aparición con vida”
vamos a cansar de decirlo. supone una definición y una toma de posición
entre alternativas: “¿Qué quieren, vivos o
muertos?”, increpa Bonafini a sus compañeros:
Cinco años después, el 8 de diciembre
de 1994, también bajo un gobierno de Carlos Aparición con vida tiene vigencia hoy
Menem, en la 14° Marcha de la Resistencia, porque todavía desaparecen compañeros.
Hebe de Bonafini dedica su discurso a Porque el año pasado desaparecieron Bru,
historizar y reinterpretar las consignas de la Nuñez, Guardati. Y esa consigna tiene
agrupación. Entre ellas, “Aparición con vida”, vigencia hoy para tantos que son
la primera, “Juicio y castigo a los culpables”, desaparecidos también del sistema. Y
de 1982, y otras como “Cárcel a los “Aparición con vida” como
genocidas”, “La resistencia continúa”, “No cuestionamiento al sistema represivo que
utilizaron los milicos. Cuánto quiere decir
claudicaremos, no nos callaremos, no
“Aparición con vida”. (…) Cuando muchas
negociaremos”, “Resistir es combatir”, “No organizaciones no querían pedir “Aparición
olvidaremos, no perdonaremos” a partir de con vida”, yo les decía: “¿Qué quieren,
1983. Las últimas son “Luchar siempre, vivos o muertos?”, decían: “Vivos”; pero
retroceder jamás”, “Solidaridad y lucha o cuando llegábamos a los acuerdos para las
hambre y represión”, “Cabeza clara, corazón marchas, “Aparición con vida” no aparecía.
solidario, puño combativo” y “Resistencia y
lucha hoy para la victoria de mañana”.
Cada una es actualizada en función de
6
las nuevas circunstancias, pero también se En 1979, en una conferencia de prensa, Videla afirma:
"Le diré que frente al desaparecido en tanto este como
recupera y explica su sentido original. Así, por
tal, es una incógnita, mientras sea desaparecido no puede
ejemplo, Hebe de Bonafini recuerda lo resistida tener tratamiento especial, porque no tiene entidad. No
que fue la consigna “Aparición con vida” en las está muerto ni vivo...está desaparecido".

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Y nos costó imponerla en la sociedad, y
hoy “Aparición con vida” se registra en lucha, resistencia, solidaridad son los tres
todo el mundo y sobre todo en valores que reaparecen en las consignas
Latinoamérica. históricas. Sus enunciados los yuxtaponen y
producen una síntesis que interpela -más allá de
Como afirma Hebe de Bonafini, y como las organizaciones vinculadas a los Derechos
sostiene Krieg-Planque (2009) de las frases, la Humanos- al pueblo que acompaña a las
consigna Aparición con vida” circuló y migró a Madres: “Y, compañeros, tengan la plena
otros países. seguridad de que nada de esto lo hicimos solas.
Jamás a nadie se le puede pasar por la cabeza
Por otra parte, la reparación económica que las Madres estamos solas. Esto lo hicimos
ofrecida por el gobierno de Menem en el ‘94 y entre todos desde el primer día…”
su aceptación por parte de algunas de las
Madres produce una división interna que se Hebe de Bonafini cierra el discurso con
proyecta a la sociedad. El sujeto construido por la lectura de un poema escrito por un hijo
el discurso de Hebe de Bonafini se define secuestrado “para reivindicarlos a ellos, como
entonces no solo por la lucha y el “puño reivindicación de los que murieron en los
combativo”, sino también en torno a la campos de concentración torturados, con la
resistencia, a no negociar, ni claudicar, a no esperanza de que nosotros hoy estuviéramos
retroceder jamás: “No nos van a domesticar, aquí.” La imagen presentada, del hijo que vive
porque nos quieren domesticar de muchas dentro del vientre de su madre, que le habla,
maneras. Por eso luchamos todos los días, que la acompaña y que le presenta un futuro de
jamás vamos a retroceder”. esperanza, articula pasado, presente y futuro. El
lugar común del origen de la vida se reelabora
Se trata de establecer un límite, de como origen de la historia de lucha de las
mantener con determinación una posición, de Madres junto al pueblo, que amalgama
“plantarse”, en términos de Bonafini.: “Para las ausencias y presencias, hijos y madres. Del
Madres la palabra retroceder no existe. Nos lugar privado, madres, del rol de género
plantamos hace muchos años, casi 18, aquí en tradicional, las Madres se apropian del espacio
esta Plaza”. Ese tópico se reitera en el discurso público, la Plaza, y asumen la lucha política
ya no para hacer referencia a la historia de las como resistencia frontal.
Madres, sino en presente y ampliado a un
nosotros de la resistencia que incluye “a todos”. Conclusiones
Una vez más se convoca discursivamente al La retórica constitutiva de Eva Perón y
otro; se resignifica la resistencia en clave de Hebe de Bonafini en Argentina comparten
colectiva: “Llegamos a lo que queríamos, la dos características fundamentales. En primer
Plaza de todos, los trabajadores, los lugar, la construcción sinecdótica de la
estudiantes, las Madres y las consignas. Aquí audiencia, donde una parte es presentada como
estamos plantados para no retroceder”. el todo. En la alocución de Eva Perón, se trata
En una retórica sinecdótica donde de las mujeres, que luego de ser invocadas en
“todos” son los trabajadores, los estudiantes y su conjunto quedan sustituidas por las mujeres
quienes adhieren a las consignas de las Madres, peronistas; en Hebe de Bonafini, se trata del
pueblo, que es presentado primero como

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1192
unidad y como “todos” para luego deslizarse a
KRIEG-PLANQUE, A. “A noção de fórmula
los peronistas y militantes de izquierda. En
em análise do discurso: quadro teórico e
segundo lugar, ambas oradoras usan
metodológico”. São Paulo: Parábola, 2010.
estereotipos de lo femenino vinculados al
ámbito de lo privado, del afecto, de la LÓPEZ EIRE, A. Poéticas y Retóricas griegas.
maternidad, entre otros, que son articulados con Madrid: Síntesis, 2002.
una fuerte apuesta al accionar en el ámbito _____ Sobre el carácter retórico del lenguje y
público y la lucha política. Por ello cabe de cómo los antiguos griegos lo descubrieron.
profundizar en este aspecto desde una México: UNAM, 2005.
perspectiva de género, tarea aún pendiente para
nuestro equipo de investigación. MAINGUENEAU, D. Frases sem texto. Trad.
Sírio Possenti [et al.] – 1.ed. São Paulo:
Parábola Editorial, 2014.
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28-45.

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

1193
OS QUE ESTÃO CHEGANDO E OS QUE ESTÃO SAINDO: AS
REPRESENTAÇÕES DE LEITURA DE ALUNOS DO PRIMEIRO E
DO ÚLTIMO SEMESTRE DO CURSO DE LETRAS DE UMA
UNIVERSIDADE PÚBLICA E DE UMA UNIVERSIDADE
PRIVADA

Renata Maria Cortez da Rocha ZACCARO; Luzmara CURCINO


Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR)
renatacortez@uol.com.br; luzcf@hotmail.com

Resumo: Esta pesquisa tem como objetivo levantar, por meio de um diálogo entre as
teorias da História Cultural, com base nos trabalhos de Roger Chartier e da Análise do
Discurso de linha francesa, baseada nos trabalhos de Foucault, os pertencimentos às
formações discursivas de alunos do primeiro e do último semestre do curso de Letras de
uma universidade pública e de uma universidade privada, investigando as práticas e as
representações de leitura dos sujeitos, por meio de um questionário, que visa verificar nos
gestos, nos hábitos, nas maneiras de ler, nas modalidades de interpretação e nos
interesses dos sujeitos analisados, as continuidades e descontinuidades nos discursos
entre os grupos, buscando as diferenças ou semelhanças entre alunos que estão
começando o curso e os que estão concluindo a licenciatura.
Palavras-chave: leitura, representações, análise do discurso

diferenças e semelhanças, continuidades e


Introdução
descontinuidades nos discursos dos alunos que
Esta investigação tem como objetivo estão começando o curso e os que estão
delinear um perfil das representações sobre as concluindo a licenciatura, levando em
práticas de leitura de alunos do Curso de consideração que esses discentes serão
Letras, por meio do diálogo entre as teorias da professores da disciplina de Língua Portuguesa.
História Cultural e da Análise do Discurso.
Com base nessas teorias, o intuito é buscar os 1.Desenvolvimento
pertencimentos às formações discursivas de A investigação se dará em pequenos
alunos do primeiro e do último semestres do grupos, buscando as práticas que os
Curso de Letras, de uma universidade pública e caracterizam e os modos como representam
de uma universidade privada, buscando suas práticas e não em análises da sociedade

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

1194
como um todo. Segundo Orlandi (1999), a
2. Abordagem teórica e metodológica
delimitação do corpus não tem como objetivo a
exaustividade em relação ao objeto, que é O suporte teórico-metodológico vem da
inesgotável. A escolha dos grupos a serem Análise do Discurso de linha francesa, baseada
investigados justifica-se pelo embasamento nos trabalhos de Foucault, principalmente em
teórico da História Cultural, segundo a qual, a sua fase arqueológica, em interface com a
pesquisa deve se dar em pequenos grupos ou História Cultural, da qual Roger Chartier é
comunidades, buscando as práticas que os representante, sobretudo nos trabalhos
caracterizam e os modos como representam relacionados à leitura e às representações de
suas práticas e não análises da sociedade como leitura. Chartier se dedica a historicizar a
um todo. leitura e as representações da leitura ao longo
do tempo.
A pesquisa é composta de um
questionário com 33 perguntas, contendo Uma das vertentes da Análise do
questões objetivas e abertas, além de um ‘grupo Discurso, segundo Sírio Possenti (2001), diz
focal’ (de aproximadamente 10 alunos), ao qual respeito aos discursos sobre a leitura,
serão feitas 6 questões abertas, de modo a dedicando-se à circulação dos textos: que
estabelecer uma conversa coletiva e breve e textos “circulam em quais espaços em quais
sobre a leitura. Os sujeitos responderão a épocas e por quais razões” (p.20). Nesse tipo de
questionários com perguntas que envolvem a pesquisa, investiga-se que tipo de autor circula
imagem que os estudantes têm de si mesmos preferencialmente em um espaço e qual autor é
como leitores e a imagem que fazem dos evitado. Quais são as leituras de prestígio e
futuros alunos com quem trabalharão no quais são rechaçadas. Segundo Possenti, essa
Ensino Fundamental, levando a uma reflexão vertente da AD trata de questões como “o que
sobre as representações das futuras práticas na seria ou não bom ler, em cada idade e em cada
escola, como professores que serão no futuro, e grupo...” (p.21). Para o autor, a Análise do
sobre como veem como leitores os alunos que Discurso é um conjunto de teorias sobre as
terão. restrições que o discurso sofre. Uma das facetas
do controle se dá na circulação dos textos, que
Os alunos ingressantes serão
tipos de textos circulam em determinados
entrevistados no primeiro semestre do curso e
lugares e em outros não. A seleção de gêneros
os concluintes, no segundo semestre, já que se
e temas, segundo Possenti, é uma forma de
trata do último período do Curso de Letras.
controle. A Análise do Discurso também
Orlandi (1999) deixa claro que o corpus investiga o controle dos sentidos que podem ou
de uma pesquisa, na Análise do Discurso, nasce não ser atribuídos aos textos e como as
de uma construção do próprio analista, sendo instituições determinam os sentidos admitidos.
delineado pela pergunta que a pesquisa busca
A História Cultural e a Análise do
investigar. Para a autora, a definição do corpus
Discurso podem ser articuladas, porque buscam
está ligada à análise que será feita no trabalho,
descrever e interpretar a produção, a
pois, de acordo com Orlandi, “decidir o que faz
formulação, e a circulação dos textos, logo, dos
parte do corpus já é decidir acerca das
discursos mediante o reconhecimento das
propriedades discursivas.”(p. 63).

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1195
linguagens como materialidade significantes e enunciados e que o analista deve ser capaz de
de sua relação com a história e com a cultura. compreender com seu dispositivo de análise.
Enfim, ambas adotam o princípio de que as Com base nesse pressuposto, a primeira análise
formas simbólicas são culturais e históricas. do corpus deve ser superficial, buscando o
modo como o discurso a ser investigado se
3. Análises e discussão
textualiza, no processo de enunciação, em que
Segundo Orlandi (1999), a Análise do o sujeito se marca nas maneiras como diz, no
Discurso é uma disciplina que não apresenta que se diz e em nas circunstâncias em que diz.
uma metodologia pronta, já constituída O segundo passo, é a busca do processo
formalmente, já que a AD parte do princípio de discursivo, que, a partir dos vestígios
que o discurso é heterogêneo e não há como encontrados, remete o texto a um discurso,
usar um método único, na análise de explicitado por suas regularidades, filiando-o a
materialidades tão diversas. Ao mesmo tempo uma Formação Discursiva. Nesse momento da
em que é um dispositivo teórico, presta-se a análise, busca-se a historicidade no dizer e a
dispositivo metodológico também. Com base ideologia que o determina.
nesse fato, a AD é considerada um dispositivo
Orlandi (1999) deixa claro que, para o
teórico-metodológico, pois a teoria e o método
analista, o texto não é um fim em si mesmo,
andam juntos neste tipo de pesquisa. O objetivo
mas um fato discursivo, que permite chegar à
e o objeto de cada pesquisa definem a
memória da língua, como um objeto simbólico.
metodologia a ser usada. As análises devem se
O texto é apenas a materialidade que garante o
realizar de modo profundo, buscando-se as
acesso ao discurso. Feita a análise e alcançado
posições e filiações do sujeito a uma ideologia
o processo discursivo, não é sobre o texto que
ou a uma formação discursiva, ou seja, voltam-
falará o analista, mas sobre o discurso. O
se todo o tempo à teoria, para analisar o objeto
da pesquisa. Orlandi (1999) deixa claro que o processo discursivo que dá ao analista as
indicações do que ele necessita, para
analista do discurso deve construir o próprio
compreender as produções de sentido
dispositivo de análise, de modo personalizado,
particularizando, de acordo com os objetivos de Os métodos usados nesta pesquisa serão
seu trabalho a mobilização de um ou outro delineados na busca da verificação dos
conceito. É necessário que o analista estabeleça discursos a respeito da leitura e as
a relação com outros enunciados, refletindo representações que alunos do primeiro e do
sobre suas condições de produção, a que último semestre do Curso de Letras fazem da
memórias se referem e a que ideologias se leitura e de si como leitores. As análises
filiam. De acordo com Foucault (1997), a buscarão examinar se há descontinuidades nas
questão que deve acompanhar as análises é representações dos grupos analisados ou os
“que singular existência é esta que vem à tona mesmos discursos são proferidos, depois dos
no que se diz em nenhuma outra parte?” (p. 31- anos de formação na universidade, como
32). enunciados que têm força de verdade e acabam
por se cristalizar como senso comum.
Orlandi (1999) afirma que não há uma
verdade oculta por trás do texto, há sim gestos Trata-se de uma análise não da leitura
de interpretação que o constituem os em si, mas das representações simbólicas que

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1196
os indivíduos fazem da leitura, de si e dos SILVA, Ceris Salete Ribas da. Leituras do
outros como leitores. As teorias nas quais se Professor. Campinas, SP: Mercado de Letras:
apóia esta pesquisa buscam a origem e a Associação de leitura do Brasil – ALB, 1998.
remanência de certos discursos no meio p.23-60.(Coleção Leituras no Brasil)
escolar, ou seja, se os discursos são repetidos BENEVIDES, Araceli Sobreira. A leitura e a
ou renovados. No processo de busca dessas formação docente: a trajetória da prática da
continuidades e descontinuidades,
leitura de alunos/as do curso de Letras.
descreveremos e interpretaremos a produção e Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
a circulação desses discursos. Centro de Ciências Sociais Aplicadas.
4. Considerações finais Programa de Pós-Graduação em Educação.
Natal, 2005.
Nunca estamos diante de um fato em si,
nem da realidade. O que se observa sempre é a BRANDÃO, Maria Helena H. Nagamine.
mediado pelo discurso, pela representação Introdução à Análise do Discurso. Campinas:
simbólica. Espera-se, por meio deste trabalho, Editora Unicamp, 2013
recolher, dos alunos do Curso de Letras e BRITO. L.P.L. O leitor interditado. In Contra o
futuros professores leitor, as representações consenso: cultura escrita, educação e
compartilhadas por eles sobre como se veem participação. Campinas: Mercado de Letras,
como leitores e sobre a leitura. Além de buscar 2003. (p. 143-164)
as representações simbólicas, também serão
analisados os modos de construção dessas CAVALLO, G; CHARTIER, R. (orgs.)
representações. História da Leitura no Mundo Ocidental I. São
Paulo: Ática, 1998.
Por meio da articulação entre a
linguagem e a história que se constroem as CEALE. http://www.ceale.fae.ufmg.br/.
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Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

1199
SENTIDOS DE CIÊNCIA E DE CIENTISTAS EM DIÁLOGOS
DO BEST-SELLER “ANJOS E DEMÔNIOS”

Bruna ZILLI; Luciana MASSI


Instituto de Química - UNESP Araraquara (IQ/CAr)
Faculdade de Ciências e Letras - UNESP Araraquara (FCL/CAr)
zillibruna@gmail.com; lucianamassi@fclar.unesp.br

Resumo: Considerando o distanciamento da população em geral em relação à ciência,


nesta pesquisa investigamos discursivamente os sentidos de ciência e cientista que
emanam do oitavo capítulo do best-seller “Anjos e Demônios”, de Dan Brown, que já
vendeu 40 milhões de cópias no mundo todo. Partimos da identificação de visões
distorcidas de ciência e de cientistas, presentes na literatura de educação em ciências. Em
seguida, através da Análise de Discurso, reconhecemos o papel do interdiscurso, das
condições de produção e das formações ideológicas e discursivas nas falas de um mesmo
personagem, que afirma e nega ao mesmo tempo essas visões. Assim, a análise discursiva
revelou uma multiplicidade de sentidos e interpretações não captadas pelas visões
distorcidas, mostrando sua fecundidade para investigar visões de ciência e de cientistas.
Palavras-chave: Ciência; Cientistas; Anjos e Demônios; Literatura.

conhecimento sobre ciências em uma


Introdução variedade de situações complexas da vida
(OECD, 2014, p. 231).
Dados nacionais e internacionais
apontam para um distanciamento da população
em geral em relação a ciências e para grandes No Brasil, o quadro é ainda pior: o país
dificuldades em sua aprendizagem. Os obteve resultados abaixo da pontuação média
resultados do Programme for International geral, sendo que apenas 0,3% dos estudantes
Student Assessment (PISA) de 2012, brasileiros apresentam alto desempenho em
levantados junto a 65 países e economias que ciências e 55,3% obtiveram uma baixa
compõem a Organisation for Economic Co- performance nessa área, ou seja, “podem, no
operation and Development (OECD), mostram máximo, apresentar explicações científicas que
que apenas 9,6% dos alunos apresentam alto são óbvias e que seguem uma dada evidência
desempenho nessa área, o que significa que: explícita” (Ibid., p. 231). Esse resultado sobre
as dificuldades no ensino de ciências se associa
São capazes de identificar, explicar e a um distanciamento da população em geral em
aplicar o conhecimento científico e o relação a esse conteúdo. No Brasil, em

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1200
pesquisa citada em artigo de Toledo (2014), Demônios”, de Dan Brown, considerado
realizada na cidade de Salvador e em diversas literatura de entretenimento e que já vendeu 40
cidades do Estado de São Paulo, pelo milhões de cópias no mundo todo.
Laboratório de Estudos Avançados em Considerando a pluralidade de sentidos e
Jornalismo (Labjor) da Universidade Estadual concepções sobre ciência, adotaremos como
de Campinas (Unicamp), mostrou esse primeiro nível de análise uma referência da
distanciamento: a grande maioria dos área de educação em ciências que através de
entrevistados, entre jovens e adultos, não um amplo trabalho sintetiza as principais
conhecia nenhuma instituição que fazia ou visões distorcidas de ciências (GIL PÉREZ et
fomentava pesquisa no Brasil e apenas a al., 2001). A partir dessa identificação, que nos
minoria da população tem o hábito de assistir permite definir o corpus da pesquisa,
programas ou ler notícias sobre ciência e adotaremos os conceitos basilares da Análise
tecnologia. de Discurso para levantar os sentidos
associados à ciência e ao cientista.
Nesse contexto, buscando enfrentar esse
distanciamento, têm surgido pesquisas na área 1. Visões distorcidas de ciências e
de educação em ciências que propõem o uso da características essenciais do trabalho
literatura, como uma maneira de ensinar científico
ciências e aproximá-la da população. Em Revisando os principais autores da área
algumas dessas pesquisas, os autores
de educação em ciências que discutem sobre a
(RAMOS; PIASSI, 2013; GOMES; PIASSI, natureza da ciência (FERNÁNDEZ et al., 2002;
2011; SANTOS; PIASSI, 2011; JUNIOR; GIL PÉREZ et al., 2001; LEDERMAN et al.,
PIASSI, 2011) têm utilizado referenciais 2002), é possível estabelecer alguns consensos
linguísticos tanto da Análise de Discurso como sobre o que não é ciência e quais são as
da Semiótica para analisar as obras e defender características essenciais do trabalho científico.
que a articulação entre ciência e literatura pode Sendo assim, Gil Pérez e colaboradores (2001),
promover a compreensão sobre conteúdos pautados nos principais epistemólogos da
científicos e sua epistemologia. Porém, ciência e após realizarem amplos
percebemos que a maioria das pesquisas aborda levantamentos bibliográficos e empíricos
obras de ficção científica, que já atrai um (obtidos junto a professores de ciências),
público interessado ou familiarizado com a propuseram um conjunto de visões distorcidas
ciência; poucos textos exploram a visão de sobre a ciência e o cientista: 1) visão empírico-
ciência ou do cientista veiculadas nas obras e a indutivista e ateórica, segundo a qual a ciência
grande maioria dos trabalhos as analisa para é produzida exclusivamente a partir da
avaliar seu potencial didático, considerando sua experimentação que parte da observação neutra
adoção em sala de aula como um recurso e sem fundamentação teórica; 2) visão rígida,
didático. Mesmo quando não sugerem obras de segundo a qual existe um único Método
ficção científica, os pesquisadores trabalham Científico (com letras maiúsculas) de produção
com clássicos da literatura que não são leituras da ciência e que fornece um caminho infalível
corriqueiras e contemporâneas. Assim, neste para obtenção da verdade; 3) visão
trabalho analisaremos as visões de ciência e de aproblemática e ahistórica que não considera o
cientista presentes no best-seller “Anjos e

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1201
contexto de produção do conhecimento ou seja, o pensamento divergente assume um
científico e que ele surge em resposta a um papel tão importante quanto as perspectivas
problema que carrega as marcas de seu tempo; acumulativas na produção do conhecimento
4) visão exclusivamente analítica, que científico; 4) cada pequeno trabalho de áreas
considera a produção da ciência a partir de específicas deve produzir resultados que
pequenos trabalhos de áreas específicas, apontem para uma coerência global do
ignorando que seus resultados só tem valor em conhecimento científico vigente até aquele
relação ao conjunto de conhecimentos momento, considerando o papel e as diferenças
científicos produzidos até então em diferentes entre leis e teorias nesse processo; 5) a ciência
áreas; 5) visão acumulativa de crescimento tem um caráter social, cultural e humano que
linear, segundo a qual a ciência se desenvolve está diretamente envolvido com a produção
em um movimento crescente e contínuo, sem deste conhecimento.
vivenciar momentos de retorno e ruptura, como
2. Conceitos basilares da Análise do
aqueles apontados pela história da ciência; 6)
Discurso
visão individualista e elitista sobre o cientista
que produz ciência, erroneamente identificado Segundo Michel Pêcheux (1997), as
como um gênio, homem, branco e europeu, que condições de produção representam o estudo da
trabalha sozinho; 7) visão socialmente neutra, ligação entre as “circunstâncias” do discurso:
que desconsidera as relações entre ciência,
tecnologia e sociedade presentes em toda a É impossível analisar um discurso como
um texto, é necessário referi-lo ao conjunto
produção do conhecimento científico.
de discursos possíveis, a partir de um
Sabendo que essas visões não refletem a estado definido de condições de produção
forma e o contexto de produção da ciência, (PÊCHEUX, 1997, p.77).
nem quem a produz, Gil Pérez e colaboradores
(2001), concordando com Lederman e Os conceitos de inter e intradiscurso
colaboradores (2002), elencam quais seriam as foram formulados por Pêcheux no livro
características essenciais da natureza da ciência “Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação
e do trabalho científico, a partir de consensos do óbvio” (1995), sendo o interdiscurso,
estabelecidos pelos epistemólogos entendido da seguinte maneira:
contemporâneos. Sendo assim, cinco
Algo que fala sempre antes, em outro lugar
características foram estabelecidas: 1) e independentemente, isto é, sob a
pluralismo metodológico, pois recusar a dominação do complexo das formações
existência de um único e mitológico Método ideológicas (PÊCHEUX, 1995, p. 162).
Científico não implica em dizer que a ciência
não tenha vários métodos aceitos pela Assim, o interdiscurso delimita o
comunidade científica para validar o espaço discursivo e ideológico no qual se
conhecimento que ela produz; 2) existe uma desdobram as formações discursivas em função
natureza empírica que sustenta o conhecimento de relações de dominação, subordinação e
científico, no entanto ela não é desvinculada de contradição. Já o intradiscurso se encontra no
teorias e modelos explicativos para a realidade nível da formulação e representa o fio do
concreta; 3) a ciência tem um caráter tentativo,

Universidade Federal de São Carlos - São Carlos, São Paulo, Brasil - 2 a 4 de setembro de 2015.

1202
discurso, o funcionamento do discurso em era um tipo de matéria criada a partir do nada.
relação a ele mesmo. Isso provaria a Teoria do Big-Bang, bem como
o envolvimento divino na criação do universo.
Por fim, as marcas da ideologia
Leonardo Vetra desenvolveu tal substância em
presentes nos discursos, levam à determinação
conjunto com sua filha, Vittoria Vetra, também
da formação ideológica e, consequentemente,
cientista do CERN, sendo que ambos
da formação discursiva dos discursos; Pêcheux
prometeram manter a mais nova criação em
(1995) define essas noções:
segredo absoluto, por se tratar de um material
As palavras, expressões, proposições, etc., altamente explosivo e que fora desenvolvido
mudam de sentido segundo as posições sem o consentimento do CERN. Além de
sustentadas por aqueles que as empregam, Leonardo e Vittoria, outros três importantes
o que quer dizer que elas adquirem sentido personagens compõem o enredo: o
em referência a essas posições, isto é, em simbologista religioso americano Robert
referência às formações ideológicas nas Langdon e Maximilian Kohler, representando o
quais essas posições se inscrevem. diretor-geral do CERN. Além de Leonardo
Chamaremos, então, formação discursiva
Vetra, representantes importantes da Igreja
aquilo que, numa formação ideológica
Católica, como o Papa, são assassinados e a
dada, isto é, a partir de uma posição dada
numa conjuntura dada [...] determina o que história do livro se desenvolve no sentido de
pode e deve ser dito [...] (PÊCHEUX, desvendar os motivos que levaram às mortes. O
1995, p. 160, grifo do autor). desfecho da trama mostra que tais assassinatos
estão todos interconectados.
A partir do referencial discutido
3. Análises e discussão
anteriormente definiu-se o oitavo capítulo
O best-seller “Anjos e Demônios”, como o corpus deste trabalho, considerando
escrito no ano de 2000, por Dan Brown, é principalmente sua diversidade em termos de
considerado uma obra de literatura de visões distorcidas. Nele é narrado o momento
entretenimento que aborda o contexto de em que Kohler e Langdon caminham pelos
produção de uma descoberta científica prédios do CERN, em direção ao apartamento
confrontando aspectos sobre ciência e religião. onde se encontrava o cadáver de Leonardo
O livro tem início a partir do Vetra. Maximilian Kohler recorre a Robert
assassinato de um importante cientista do Langdon na tentativa de solucionar o
CERN (Conseil Européen pour la Recherche assassinato de Vetra, pois este tivera seu corpo
Nucléaire), chamado Leonardo Vetra. O marcado com um símbolo que Langdon
CERN, citado nesta ficção, é uma organização estudava. Enquanto ambos caminham pelo
real, europeia, que desenvolve pesquisas CERN, Kohler apresenta a Langdon algumas
nucleares, localizada na Suíça. Vetra era padre características desse núcleo de pesquisa, dos
quando jovem e posteriormente tornou-se cientistas que lá trabalham e em meio a isso,
cientista, e, desde então, buscava conciliar surgem questionamentos de Langdon em
ciência e religião, o que o levou a desenvolver relação à origem da vida, confrontando as
uma substância denominada “antimatéria”, que ideias de Kohler sobre este tema. A seguir,
serão discutidas as visões de ciências presentes

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em cada trecho do capítulo e, em paralelo, ciência, a ponto da pergunta de Langdon ser
serão apresentadas as análises discursivas recebida como óbvia. Ao ser questionado sobre
desses trechos. a língua comum entre os sujeitos desse mundo,
Kohler responde com expressões como
3.1 Apresentação do CERN a Langdon
“naturalmente” e “universal” que revelam a
O capítulo tem início com a descrição vinculação a uma formação ideológica distinta
física dos prédios do CERN, dos diversos da de Langdon. Ao completar que todos falam
espaços que os circundam e dos cientistas que inglês, ao mesmo tempo em que identificamos
lá desenvolvem pesquisas. Nesse contexto, uma visão elitista de ciência, temos mais
surgem os diálogos entre Kohler e Langdon: indícios da materialização desta formação
ideológica em uma formação discursiva típica
Temos mais de 3.000 físicos aqui. O CERN dos cientistas, analisada em detalhes por
sozinho emprega mais da metade dos
Coracini (1991). A análise desse trecho sob a
físicos de partículas do mundo, as mentes
mais brilhantes do planeta: alemães, perspectiva da formação ideológica vinculada a
japoneses, italianos, holandeses, todos, essa visão individualista e elitista aponta para o
enfim. Nossos físicos representam mais de importante fato de que, em geral, os próprios
500 universidades e 60 nacionalidades. cientistas apresentam e disseminam visões
Langdon estava impressionado. - E como distorcidas de ciência que contribuem para seu
se comunicam? - Em inglês, naturalmente. distanciamento da população.
A língua universal da ciência (BROWN,
2009, p. 26). Ao mesmo tempo, é importante
considerar a condição de produção deste
discurso. Diante da ocorrência de um
Podemos observar que o trecho assassinato nas dependências do CERN ainda
apresenta uma visão elitista e individualista de sem suspeitos claros, de modo que todos os
ciência, em que, como já explicitado cientistas também estão sendo analisados por
anteriormente, os conhecimentos científicos Langdon como possíveis suspeitos, Kohler, na
são associados a obras de gênios isolados, posição de diretor, portanto representante de
sendo o trabalho científico reservado a todo o CERN, valoriza nessa fala seu instituto e
minorias especialmente dotadas (GIL PÉREZ seus integrantes. Esse aspecto é fundamental,
et al., 2001). Na fala de Kohler, a impressão é pois articula essa visão distorcida a uma
que todos aqueles cientistas considerados condição de produção específica, podendo
brilhantes vivem isolados, em núcleos ou sugerir uma concordância parcial ou contextual
centros de pesquisa como o CERN e, além em relação a essa visão. Nesse mesmo sentido,
disso, utilizam-se do inglês para se no nível do intradiscurso, acrescentamos o fato
comunicarem. Ou seja, entende-se que para ser de que Kohler aponta para uma grande
um cientista, além de pertencer a um mundo quantidade de cientistas trabalhando juntos e,
isolado, deve-se obrigatoriamente falar a língua portanto, nega uma visão individualista do
inglesa. cientista.
Esse trecho evidencia a formação 3.2 Langdon e Kohler discutem sobre a
ideológica de Kohler totalmente vinculada à origem da vida

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Langdon era só perplexidade (BROWN,
No mesmo capítulo, enquanto Langdon 2009, p. 27, grifo do autor).
e Kohler ainda caminhavam, Langdon observa
que na camiseta de um dos cientistas do CERN Podemos notar no trecho descrito uma
estava escrito: “SEM TOE, SEM GLÓRIA!”. visão descontextualizada e socialmente neutra
Ele, então, questiona Kohler a respeito do que da ciência, que segundo Gil Pérez e
seria “TOE”. Kohler explica que são as iniciais colaboradores (2001), trata-se de uma ciência
para Theory of Everything (Teoria sobre Tudo). que desconsidera as relações entre ciência,
Novamente aqui identificamos a linguagem tecnologia e sociedade presentes em toda a
hermética e os sentidos cristalizados da ciência produção do conhecimento científico e que
que revela uma formação discursiva específica. passa uma imagem de cientistas como “seres
Segundo Possenti (2004) nos discursos da acima do bem e do mal” (Ibid., p. 133). Na
ciência, como conseqüência de um longo passagem apresentada, nas falas de Kohler,
trabalho histórico, as palavras têm uma leitura entendemos que a ciência é o único caminho
unívoca. para a compreensão do mundo e do universo,
desconsiderando-se, como mencionado por Gil
Para explicar a TOE, Kohler esclarece a
Pérez e colaboradores (2001), as relações
Langdon o que seria a Física de Partículas;
complexas que a permeiam, como a religião ou
Langdon demonstra não conhecer o assunto.
a sociedade e suas crenças como um todo. Esse
Surge, então, neste contexto, o seguinte
distanciamento da sociedade já estava apontado
diálogo:
no trecho anterior em relação ao cientista, mas
Os homens e mulheres do CERN estão aqui aqui se reveste de uma comparação,
para encontrar respostas para as mesmas superioridade e legitimação dessa formação
perguntas que o homem vem fazendo desde ideológica e discursiva em relação a outras
o começo dos tempos. De onde viemos? De formações possíveis, segundo Kohler: “A
que somos feitos? ciência acabou fornecendo respostas para quase
- E as respostas estão em um laboratório de todas as perguntas que o homem pode fazer”
Física? (BROWN, 2009, p. 27).
- O senhor ficou surpreso?
- Fiquei. Essas respostas parecem pertencer Além disso, o trecho aponta para um
mais ao domínio do espiritual. interdiscurso que permeia a fala de Kohler ao
- Senhor Langdon, todas as perguntas rebater a colocação de Langdon de que essas
algum dia foram espirituais. Desde o perguntas seriam espirituais e não científicas.
princípio dos tempos, a espiritualidade e a Apesar de não explicitar essa relação, a fala de
religião preencheram as lacunas que a Kohler dialoga diretamente com discursos
ciência não compreendia [...] Logo será místicos e religiosos, que no senso comum
provado que todos os deuses são falsos
costuma ter autoridade para responder
ídolos. A ciência acabou fornecendo
respostas para quase todas as perguntas que perguntas como “de onde viemos? de que
o homem pode fazer. Restam apenas somos feitos?”. Kohler nem sequer ressalta
algumas poucas, que são as esotéricas. De esse ponto e parte de um “já-dito” de que essas
onde viemos? O que estamos fazendo aqui? são questões da ciência. Assim, estabelece um
Qual o sentido da vida e do universo?

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interdiscurso com o senso comum e o discurso visão individualista e elitista do cientista.
místico e religioso. Assim, suas falas em diferentes momentos
afirmam e negam as visões distorcidas de
Por outro lado, se a superioridade da
ciências. Esses movimentos contraditórios
ciência em relação a outras formações
foram observados tanto no interdiscurso quanto
discursivas a afasta da sociedade, a sua
no intradiscurso.
preocupação em responder perguntas tão
fundamentais e intrinsecamente ligadas à vida Outro aspecto importante revelado na
do ser humano, a aproxima da sociedade. análise é o papel da condição de produção. Ao
Assim, através da análise é possível identificar articular a visão distorcida presente na
contrapontos nessa fala que, ao mesmo tempo, enunciação do sujeito à sua condição de
afasta e aproxima a ciência da sociedade. produção foi possível relativizar esses sentidos
cristalizados, mostrando que um mesmo
Além disso, é importante destacar a
personagem pode revelar sentidos polissêmicos
condição de produção desse discurso, pois o
sobre ciência e de cientista.
possível motivo do crime era religioso o que
pode motivar essa comparação. Kohler faz Assim, concluímos que, mesmo se
questão de destacar uma superioridade da constituindo em um importante ponto de
ciência em relação à religião nesse contexto em partida e referência, as visões distorcidas de
que, supostamente, a primeira está sendo ciências, que vem sendo amplamente utilizadas
atacada pela segunda em represália a tentativa na área de educação em ciências para
de Vetra de responder questões pertencentes à discussões acerca da natureza da ciência,
religião e não à ciência. Esse conceito podem ser ampliadas e relativizadas através da
novamente contribui para a relativização da análise discursiva. Isso indica que essa análise
identificação das visões distorcidas a partir da pode trazer uma importante contribuição para o
condição de produção do discurso analisado. avanço dessas discussões epistemológicas da
ciência.
Nesse mesmo sentido de relativização,
e no nível do intradiscurso, foi possível Por fim, destacamos que este recorte é
observar que no início da fala de Kohler, ele um primeiro esforço de análise dessa obra.
contrapõe uma visão elitista de ciência ao Nosso objetivo de compreender os efeitos de
incluir as mulheres do grupo de cientistas do sentido sobre ciência e cientistas veiculados em
CERN, talvez até na tentativa de valorizar o um livro vendido para mais de 40 milhões de
fato de que o cientista assassinado tinha uma pessoas só poderá ser plenamente atingido com
filha, Vittoria Vetra, que, assim como ele, uma análise mais ampla (de toda a obra) e em
também era uma importante cientista do diferentes níveis (personagens, narrador e
CERN. autor) que será realizada na continuidade desse
estudo. No entanto, acreditamos que esta etapa
4. Considerações finais / Conclusões
inicial aponta para a fecundidade da proposta e
De maneira geral, pudemos identificar da abordagem teórica e metodológica adotada.
contrapontos nas falas de Kohler que afastam e
aproximam, ao mesmo tempo, a ciência da
sociedade, e que ora reforçam ora negam uma

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