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O ESPÍRITO FAMILIAR

Monsenhor HENRI DELASSUS


Doutor em Teologia

O ESPÍRITO FAMILIAR

no Lar

na Cidade

e no Estado

2
NIHIL OBSTAT:
Insulis, die 18 Septembris 1910.

H. QUILLIET,
librorum censor.

IMPRIMATUR:
Cameraci, die 19 Septembris 1910.

A. MASSART,
vic. Gen.
Domus Pontificiae Antistes.

Traduzido do do original francês: L'ESPRIT FAMILIAL


dans la Maison, dans la Cité e dans l'Etat
por Paulo Roberto Gomes Faraco
Société Saint-Augustin
Desclée, De Brouwer et Cie.
LILLE, 41, rue du Metz

3
À

JUVENTUDE

QUE ESPERA

QUE QUER

4
5
PR E F Á C I O

Chegamos à última crise, àquela na qual paramos de falar da saúde dos


governos, para nos ocupar apenas da saúde suprema da sociedade". Estas são
as primeiras palavras do prefácio com que Blanc de Saint-Bonnet encabeçou o
livro A RESTAURAÇÃO, escrito em 1850. Passou-se meio século desta previsão.
Aquilo que os espíritos superiores podiam ler então nas idéias que tinham
curso, nós lemos hoje nos fatos, nos acontecimentos ocorridos, mais ainda
naqueles que estão se preparando e que são iminentes. Chegamos à última
crise, àquela onde estaremos reduzidos a perguntar se a civilização não vai ser
carregada como um fiapo de palha numa tormenta, e se a sociedade não vai ser
aniquilada.
Uma revista inglesa, a Crusader, escrevia na mesma época: "Vemos
acumularem-se os sinais da grande e terrível luta na qual a Europa será dividida
em dois grandes campos: um para o ataque, outro para a defesa da liberdade
cristã. Nessa luta, as armas não serão somente intelectuais ou morais, mas
também materiais e físicas.
"Está próxima, com efeito, a hora em que a força brutal e a tirania cesariana
serão devoradas pelo socialismo que ronda as sociedades modernas. Nessa
hora, quando todos os poderes que vêm de Deus tiverem sido esmagados pela
Revolução, e que a seita, filha de Satã, quiser reinar no mundo, os povos cristãos,
forçados a defender seus altares e seus lares, poderão reagir livremente contra
as leis que se interpõem entre eles e as leis da Igreja de Deus... Então virá a
inevitável reação e a revolta contra a impiedade e a anarquia. Então a juventude
de cada região onde a Revolução tiver posto o pé, exclamará com os Macabeus:
"É melhor morrer combatendo do que ver a desolação do santuário"; e jogando ao
vento todos os cálculos humanos, ela formará em cada país uma falange de
homens pronta a defender até a morte as liberdades conquistadas pela Cruz,
pronta a se unir sob esse símbolo a seus irmãos de todas as raças e todas as
nacionalidades. Então as mulheres enviarão seus filhos e seus esposos ao
combate. Então os pais empunharão a espada para defender a fé de seus filhos
e a liberdade de seus altares".
Deus dar-lhes-á a vitória.
No livro intitulado A Conjuração Anticristã, demos, a respeito dessas coisas,
sem dúvida não a certeza, mas a esperança seriamente fundada. Sobre as
ruínas da Revolução deverão levantar-se novas construções. Compete à
juventude preparar-se para isso, pois é a ela que incumbirá essa obra. A
primeira preparação consiste em estudar as condições de existência, de vida e de
prosperidade que a sociedade humana reclama. Uma dessas condições é o
espírito familiar, que deve ser restaurado no lar, na cidade e no Estado.

6
7
CAPÍTULO I

COMO SE FORMAM OS ESTADOS

Plæclare scriptum est a Platone, non solum nobis


nati sumus... homines hominum causa esse
generatos ut ipsi inter se alii aliis prodesse
possent.
CICERO, DE OFFIC. I. 1

A verdade social é o oposto da utopia democrática.


A utopia democrática é a igualdade. A democracia sonha com um estado
social que considera apenas os indivíduos, e indivíduos socialmente iguais.
Não foi isso que Deus quis. Para convencer-nos disso, basta considerar o que
Ele fez.
Deus poderia ter criado cada homem como criou Adão, diretamente e
somente por Ele. Assim procedeu relativamente aos anjos. E no entanto, mesmo
aí Ele não quis igualdade! Fez com que cada anjo constituísse uma espécie
distinta, correspondente a uma idéia particular, e que fossem realizadas essas
idéias, graduando-as nos seres deles, assim como elas estavam graduadas no
pensamento divino.
Formando o gênero humano uma espécie única, a igualdade teria reinado
nele se todos nós tivéssemos recebido a existência diretamente das mãos do
Criador. Deus tinha outros desígnios. Ele quis que recebêssemos a vida uns dos
outros, e que assim fôssemos constituídos, não na liberdade e na igualdade
sociais, mas na dependência de nossos pais e na hierarquia que devia nascer
dessa dependência. 2

1
Platão escreveu com muito acerto que nascemos homens não somente por termos sido gerados por
homens, mas também para que possamos ser úteis uns aos outros. (N. do T.)
2
Cada anjo forma por si mesmo uma espécie distinta dos outros. A espécie humana, partindo da
unidade, decompõe-se em pessoas e recompõe-se em famílias ou em nações, pelo parentesco ou pela
afinidade.
"Uma nação é um conjunto de indivíduos provindos de diferentes raças, mas unidos por liames
complexos de família, cujos ancestrais historicamente agiram uns sobre os outros, submetidos às
seleções comuns. Ela compreende os vivos, e mortos em maior número, e a posteridade até o fim dos
séculos, porque a nação, de uma maneira necessária, tende à eternidade e à universalidade, isto é, a
8
Deus criou Adão; depois tirou do corpo de Adão a carne da qual fez o corpo
de Eva. Então abençoou o homem e a mulher e disse-lhes: "Sede fecundos,
multiplicai-vos, povoai a terra e submetei-a".
Deus criou assim a família; fez dela uma sociedade, e constituiu-a sobre um
plano bem diverso do da igualdade social: a mulher submissa ao homem e os
filhos submissos aos pais.
Encontramos, pois, nas próprias origens do gênero humano as três grandes
leis sociais: a autoridade, a hierarquia e a união; a autoridade, que pertence aos
autores da vida; a hierarquia, que torna o homem superior à mulher e os pais
superiores aos filhos; a união, que entre si devem conservar os que são
vivificados por um mesmo sangue.
Os Estados saíram dessa sociedade primeira.
"A família, diz Cícero, é o princípio da cidade e de alguma forma a semente
da República. A família divide-se, mesmo permanecendo unida; os irmãos, seus
filhos e os filhos destes, não tendo mais lugar na casa paterna, saem para ir
fundar, como tantas colônias, novas casas. Eles formam alianças; daí as
afinidades e o crescimento das famílias. Pouco a pouco as casas se multiplicam,
tudo cresce, tudo se desenvolve e nasce a República". 3
Bodin (século XVI), na sua obra Les Six Livres de la République, consagra,
no livro III, o capítulo VII à demonstração de "como a origem das corporações e
das comunidades veio da família". E Savigny, no seu Traité du Droit Roman,
também diz: "As famílias formam o germe do Estado".

Tais são exatamente as origens do povo de Deus. No ponto de partida,


Abraão funda uma nova família; desta família saem doze tribos e essas tribos
compõem um povo.
Deu-se o mesmo com os gentios.
Fustel de Coulanges, no seu célebre livro La Cité Antique, demonstrou como
em Hellas, assim como na Itália dos romanos, o Estado nasceu da casa

permanecer só e a cobrir o globo inteiro com a sua descendência.


"A nação que começa a se formar compreende raças diversas, em proporção diferente, repartidas de
uma certa maneira na hierarquia social. Desses indivíduos sai pouco a pouco um grupo mais
compacto. De geração em geração as descendências se conjugam, se ramificam e se conjugam ainda
ao infinito. A comunidade de sangue estabelece-se em toda a massa e não há indivíduo que não seja
um pouco parente de todos.
"Após quinze séculos, por exemplo, de existência da França, isto é, após quarenta e cinco
gerações, o número teórico dos ancestrais de cada contemporâneo é prodigioso, e o dos parentes
colaterais inconcebível. A partir da vigésima geração, isto é, a partir de 1200, o número de autores
diretos de cada indivíduo elevar-se-ia a mais de dois milhões, a metade dos quais para essa
vigésima geração. Para a quadragésima quinta chega-se a cerca de setenta milhões, cuja metade
representa os ancestrais de quadragésimo quinto grau. Esses números impossíveis provam a
prodigiosa repetição das mesmas pessoas nas diversas descendências do mesmo indivíduo, e a mais
prodigiosa quantidade de famílias nas quais ele teve antecessores. E se se leva em conta os
parentescos em linha colateral, para cada um dos ancestrais, os números tornam-se tão grandes
que não somente não significam mais nada, como também não se pode escrevê-los!
"Ora, essa composição infinita de aparentados feita pela obra de gerações, não se estendeu muito
além de certos limites no espaço. O parentesco é muito intenso entre indivíduos da mesma região,
menor fora da província, e muito fraco com os estrangeiros. As barreiras políticas, cada vez mais
altas até a fronteira da nação, impediram o estabelecimento de relações.
"A nação aparece assim como uma imensa família complexa, limitada por fronteiras. Os vivos são
solidários com os mortos e estes com o futuro. Seguramente esses laços são infinitamente tênues,
ameaçados sem cessar e rompidos pelo trabalho da reversão, mas são tão entrecruzados que a
trama permanece forte, no espaço e no tempo" (Vacher de Lapouge, L'Aryen, son Rôle Social.
Paris, 1899, in-8, p. 366-367).
3
A República , Livro I, 7.
9
doméstica. A fratria dos gregos (sociedade de irmãos), como a gens4 dos
romanos (sociedades de famílias saídas do mesmo tronco), não eram senão uma
família mais vasta, reunida sob um mesmo chefe que, em Roma, usava o nome
de pai, pater, em Atenas o nome de eupátrida, pai bom.
Na origem das civilizações assíria, egípcia e outras, encontra-se também
uma família ou algumas famílias que, inicialmente, se desenvolvem elas mesmas
e que vêem em seguida outras famílias virem se agrupar ao seu redor para formar
a tribo, depois, aglomerando-se, as tribos formarem as nações.
A fratria entre os gregos, a gens entre os romanos, não eram, como as
palavras aliás dão a entender, uma associação de famílias; era a própria família,
que reunia num feixe todas as famílias brotadas do seu tronco, que tinha
alcançado, através de sucessivas gerações, pela força das tradições, um
desenvolvimento que dela fazia um grupo social já numeroso. O que não impedia
que certo número de famílias estrangeiras viesse colocar-se sob a proteção
dessas famílias principais, tornar-se clientes destas e entrar na fratria ou na gens
por acessão. "Por aí se vê, diz Fustel de Coulanges, que a família dos tempos
mais antigos, com o seu ramo primogênito e seus ramos mais novos, seus
servidores e seus clientes, podia formar com o tempo uma sociedade muito
grande". Ela era mantida na unidade pela autoridade do chefe hereditário do ramo
primogênito.
Nos primeiros tempos da civilização helênica, algumas famílias importantes
dividem o país e o governo. Seus chefes usam o nome de reis. Esses reis são
agricultores. Ulisses, rei de Itaque, vangloria-se de ser hábil em ceifar a erva, em
traçar um sulco nos campos. Suas filhas vão quarar a roupa à beira do mar
Jônico. As ligações mais íntimas ligam esses chefes aos que os rodeiam.
É de um número indefinido de sociedades dessa natureza que a raça ariana
parece ter sido composta durante uma longa seqüência de séculos.
Vemos os grupos sociais se constituírem da mesma maneira nas origens de
nosso mundo moderno.
A família, expandindo-se, formou entre nós a mesnada 5 assim como ela tinha
formado a fratria entre os gregos e a gens entre os romanos. Os parentes
agrupados em torno de seu chefe, diz Flach 6 formam o núcleo de uma
corporação ampliada, a mesnada. Os textos da Idade Média, crônicas e canções
de gesta, mostram-nos a mesnada acrescida do patronato e da clientela, como
correspondendo exatamente à gens dos romanos". Em seguida, Flach mostra
como a mesnada, desenvolvendo-se por seu turno, produziu o feudo, família mais
ampliada, cujo suserano ainda é o pai; tanto que, para designar o conjunto de
pessoas reunidas sob a suserania de um chefe feudal, encontra-se
freqüentemente nos textos dos séculos XII e XIII, época em que o regime feudal
teve seu pleno desabrochamento, a palavra "família". "O barão, diz Flach, é
antes de tudo um chefe de família". E o historiador cita textos nos quais o pai é
expressamente considerado como semelhante ao barão, o filho ao vassalo.

4
Nome dado em Roma a um grupo de várias famílias descendentes de um mesmo ancestral. A gens
romana assemelhava-se ao clã primitivo. Seus membros usavam o nome gentilício, que era o indício
dos seus direitos políticos. Os chefes das gentes, na época primitiva, eram os patres ("pais"),
membros natos do senado. As gentes cresceram, passaram a compreender milhares de pessoas e,
em conseqüência dessa evolução, dissociaram-se a partir do fim da época real, permanecendo o
gentilício como único indício do antigo parentesco. As velhas gentes romanas formavam o
patriciado, distinguindo-se das gentes plebéias, que também chegaram a exercer importantes
funções públicas. (Grande Enciclopédia Delta Larousse, ed. 1978, vol. 7, p. 3038, verbete "gens" —
N. do T.).
5
Mesnie, Magnie: casa, família, como ainda hoje se diz "a casa de França".
6
Les Origines de l'Ancienne France.
10
"Um maior desenvolvimento da família dá origem ao barão de categoria mais
elevada". Do pequeno feudo brota o grande feudo. A aglomeração dos grandes
feudos formará os reinos.
Foi assim que se formou nossa França. Tanto a língua como a História o
atestam.
O conjunto de pessoas colocadas sob a autoridade do pai de família é
chamado: família. A partir do século X, o conjunto de pessoas reunidas sob a
autoridade do senhor, chefe da mesnada, é chamado: família. O conjunto de
pessoas reunidas sob a autoridade do barão, chefe do feudo, é chamado: família.
E veremos que o conjunto das famílias francesas foi governado como uma família.
O território sobre o qual se exerciam essas diversas autoridades, quer se tratasse
de um chefe de família, do chefe da mesnada, do barão feudal ou do rei, chama-
se, uniformemente, nos documentos: pátria, o domínio do pai. "A pátria, diz Franz
Funck-Brentano, foi na origem o território da família, a terra do pai. A palavra
estendeu-se ao senhorio e ao reino inteiro, sendo o rei o pai do povo. O conjunto
dos territórios sobre os quais se exercia a autoridade do rei chamava-se, pois,
"Pátria".
"Uma senhoria, escreve Seignobes, é um Estado em miniatura, com seu
exército, seus costumes, seu ban, que é a lei do senhor, seu tribunal. A França foi,
mais do que qualquer outro país, sobretudo no século X, dividida em soberanias
desse gênero. Não foi feito o cálculo: ele alcançaria certamente uma dezena de
milhar".

Em 989, um desses barões feudais, aquele que encarnava, da maneira mais


completa e mais poderosa, os caracteres que marcavam cada um deles, foi
guindado — sob o impulso próprio do movimento que impelia a França à
organização de suas forças vivas — ao pico do grupo social: Hugo Capeto tornou-
se rei. A realeza proveio, através do barão feudal, da autoridade que exercia o
pai de família.

Assim, em todo o lugar a civilização começou pela família. Lá e cá nascem os


homens entre os quais se desenvolve e age mais fortemente o amor paternal e
o desejo de se perpetuar por seus descendentes. Eles se dedicam ao trabalho
com mais ardor, impõem a seus apetites um freio mais contínuo e mais sólido,
governam sua família com mais autoridade, inspiram-lhe costumes mais severos,
que imprimem nos hábitos que seus descendentes são levados a adquirir. Esses
hábitos transmitem-se pela educação, tornam-se tradições que mantêm as
novas gerações nas vias abertas pelos ancestrais. A caminhada por essa via
conduz a família a uma situação cada vez mais alta; ao mesmo tempo, a união
que conservam entre si todos os ramos saídos do tronco primitivo dá-lhes um
poder que cresce dia a dia com o número de descendentes que se multiplicam e
com as riquezas que se acumulam pelo trabalho de todos.
Nesta situação eminente, esta família é objeto de atenção das que a
rodeiam. Estas pedem para se abrigar sob sua força, para aí encontrar proteção,
e em troca prometem-lhe assistência. Entre elas se encontram as que se sentem
estimuladas pela prosperidade que testemunham, e desejando-a para si mesmas,
deixam-se governar e instruir, esforçam-se em praticar as virtudes cujo exemplo
e resultado elas têm sob os olhos.
Tal é a origem histórica de todas as tribos, e a origem das nações é em tudo
semelhante: as tribos se aglomeram como se aglomeraram as famílias, e sempre
sob a ascendência de uma família principesca. O Contrato Social, que um belo
dia faz homens estranhos parecerem-se uns aos outros e os faz ligarem-se entre
si por um pacto convencional, não existiu senão na imaginação de Jean-Jacques

11
Rousseau; e se seus discípulos tentaram em algum lugar assim se constituírem
em Estado, sua sociedade fictícia não deve ter tardado em se dissolver. Nada
subsiste se não é feito pela natureza e segundo suas leis. Vimos essas leis agir
nas origens das civilizações grega e romana, como nas origens da civilização
moderna. Os missionários e os exploradores confirmam sua existência entre os
selvagens. Tanto entre estes quanto em qualquer outro lugar, não existe tribo
senão onde há um começo de organização, e esta organização a tribo recebe da
proeminência de uma família à qual as outras estão subordinadas.
É a hierarquia na sua primeira formação e a aristocracia no seu primeiro
estado.

Entre nós, em meio às ruínas acumuladas pelas invasões dos bárbaros,


não havia mais ordem, porque não havia mais autoridade. Sob a ação dos santos,
famílias elevaram-se, animadas pelos sentimentos que o cristianismo começava a
espalhar pelo mundo: sentimentos de abnegação pelos pequenos e pelos fracos,
sentimentos de concórdia e de amor entre todos, sentimentos de reconhecimento
e de fidelidade entre os protegidos. A hagiografia dessa época permite-nos
assistir por toda a parte a esse espetáculo de famílias que se projetam assim
sobre outras pela força de suas virtudes.
Acima de todas surge, no século X, a família de Hugo Capeto, que construiu
a França pela paciência do seu gênio, pela perseverança de seu devotamento,
pela continuidade de seus serviços. É necessário acrescentar: "E pela vontade e
pela graça de Deus". 7 Tão logo o conde de Maistre assinalou esta expressão da
Escritura: "Sou Eu que faço os reis", não deixou de acrescentar: "Isto não é uma
metáfora, mas uma lei do mundo político. Deus faz os reis ao pé da letra. Ele
prepara as raças reais; Ele as amadurece no meio de uma nuvem que esconde
sua origem. Elas aparecem assim coroadas de glória e de honra".
E Blanc de Saint-Bonnet: "Quando Aquele que sonda os corações e as
entranhas escolhe uma família entre todas as outras, Sua escolha é real e divina.
Essa família logo comprova a escolha (ainda que lhe reste a liberdade para
recolher ou dissipar seus dons), fornecendo mais legisladores, guerreiros e
santos do que as famílias mais nobres, se bem que, neste aspecto, estas últimas
já levem vantagem sobre as outras numa proporção prodigiosa". 8

7
As monarquias cristãs da Europa, diz Dom Besse, são todas obra de uma família. A França deve sua
existência política à família de Hugo Capeto. Hugo e seus ancestrais haviam fornecido múltiplas
provas de seu valor e de sua capacidade. Eles mereciam confiança. Sob sua proteção, as famílias
gozavam da paz necessária à sua conservação e ao seu desenvolvimento. Foi concluído um pacto
entre a casa dos Capetos e as casas que tinham autoridade sobre terras e famílias. Desse pacto
resultou o núcleo primitivo, que, com acréscimos regulares, devia atingir os limites do grande reino
de França.
Note-se bem: o pacto real não ligava a França a seus simples soberanos. A França estava unida à
família de Hugo Capeto, à dinastia capetíngea; e, como garantia de união, ela deu a essa augusta
dinastia o direito de usar seu nome; ela é para sempre a Casa de França.
O desenvolvimento extraordinário que sofreu o governo da França, sobretudo a partir do século
XVI, e a organização da vida de Corte diminuíram a ação direta da família real sobre a França. No
entanto, ela permaneceu considerável; mesmo sob Luís XIV e sob Luís XVI, a França tinha uma
família à sua frente. Isto é tão verdadeiro que Napoleão não hesitou um instante em entrar nessa
via. Ele carregou na sua ascensão todos os Bonapartes. Na Áustria, na Alemanha, na Bélgica, na
Inglaterra, ainda em outros lugares, uma família preside os destinos da nação. Essa família é
amada e respeitada como a primeira do país. Ela personifica suas tradições e suas glórias. Sua
prosperidade e a do país são uma só. Ela carrega em si as esperanças do futuro. Todos sabem disso e
vivem em paz.
8
No que diz respeito à santidade, basta, para convencermo-nos disto, percorrer qualquer Vida dos
Santos. Limitando-nos ao breviário, percebemos — a observação é de Blanc de Saint-Bonnet — que
as famílias nobres, reunidas, produziram mais de trinta e sete por cento dos santos, e apenas as
12
A obra que ela realiza atesta que a mão que a escolheu a sustenta e a guia.
"Partindo do nada, disse Taine, o Rei de França constrói um Estado
compacto que (no momento em que estoura a Revolução) abriga vinte e seis
milhões de habitantes e QUE É ENTÃO O MAIS PODEROSO DA EUROPA. Em
todo esse tempo ele foi o chefe da defesa pública, o libertador do país contra os
estrangeiros.
"Internamente, desde o século XII, com o elmo na cabeça e sempre pelos
caminhos, ele é o grande justiceiro, demole as torres dos malfeitores feudais,
reprime os excessos dos fortes, protege os oprimidos, abole as guerras
particulares, estabelece a ordem e a paz: obra imensa que, de Luís, o Gordo, a
São Luís; de Filipe, o Belo, a Carlos VII e Luís XI; de Henrique IV a Luís XIII e a
Luís XIV, continua sem interrupção.
"Durante esse tempo, todas as coisas úteis executadas por ordem sua ou
desenvolvidas sob seu patrocínio, estradas, portos, canais, asilos, universidades,
academias, estabelecimentos de piedade, de refúgio, de educação, de ciência,
de indústria e de comércio, levam sua marca e o proclamam benfeitor público". 9
Mignet, apesar da singular indulgência que mostra na sua Histoire de la
Révolution para com os homens que derrubaram a realeza, faz, de sua parte,
esta observação: 10
"A França foi obra da dinastia capetíngea, que trabalhou, durante sete
séculos, pelo estabelecimento desta preciosa unidade de território, de espírito, de
língua, de governo. Foi do próprio centro do país que a dinastia capetíngea partiu
para essa conquista de reunião. Paris, às margens do Sena, e Orleans, às
margens do Loire, foram seus pontos de partida; o Oceano, os Pirineus, o
Mediterrâneo, os Alpes, o Reno, seus pontos de chegada... Mas, sempre
marchando em direção a seu objetivo, a unidade de território e a unidade de
poder, a dinastia mostrou uma hábil moderação. Ela incorporou as províncias sem
as destruir, deixando-lhes os costumes civis sobre os quais repousavam suas
existências e uma parte dos privilégios de que gozavam". 11

famílias reais seis, isto é, mais de vinte por cento! Mesmo no século XVIII, em que a nobreza estava
tão decaída, as filhas de nossos reis eram santas e seus netos heróis.
Admitindo-se uma família nobre em cem famílias e uma família real ou principesca em duzentas
mil, teríamos esta proporção: o mesmo número de famílias produziu, na nobreza, cinqüenta vezes
mais santos do que no povo, e, nas casas reais, quatrocentas vezes mais do que na nobreza, ou vinte
mil vezes mais do que no povo.
O que são, diante desses fatos, as declamações da democracia, mesmo cristã, sobre as virtudes do
povo e os vícios dos grandes! Os néscios buscam argumento contra a instituição monárquica nas
desordens de Luís XV. Eles não pensam nas seduções das quais não cessou de estar cercado, e diante
das quais eles não teriam feito, eles, sem dúvida, melhor figura. Eles também não pensam na
inacreditável força de virtude que foi necessária a uma família, mergulhada durante oito séculos no
banho dissolvente das maiores prosperidades, para não cair no egoísmo, e para produzir ainda, no
fim desse período, a santidade.
9
Taine, L'Ancien Régime , p. 14 e 15.
10
Essai sur la Formation Territoriale et Politique de la France.
11
A propósito do nascimento de Filipe Augusto em 21 de abril de 1165, Luchaire notou com muita
precisão a que ponto o sentimento de unidade moral se traduzia desde aquela época na pessoa do
rei. Um estudante parisiense, Pierre Riga, contou a cena; ele mostrou a Casa do rei, no lugar do
atual Palácio da Justiça, rodeada de palacianos e de burgueses que aguardam febrilmente o parto da
rainha. É um filho! A rainha chora de alegria: a notícia voa de boca em boca; ela corre de uma
extremidade a outra da França com uma rapidez surpreendente, "porque, se bem que o quarto real
estivesse fechado, diz Riga, pessoas impacientes acharam um meio de olhar por uma fresta e de ver
o menino". Paris desperta na alegria; as ruas e as praças se iluminam. Trompetes soam nas
esquinas dos cruzamentos; os sinos repicam à toda força nas altas torres das igrejas. Um estudante
inglês, o futuro historiador Giraud de Barri, dormia profundamente quando foi acordado pelos
ruídos e pelas luzes da rua.
13
Quando se se refere à época do desmembramento do império de Carlos
Magno, vê-se sair do tratado de Verdum três Estados de importância mais ou
menos igual, formados cada um por elementos díspares, que se tornaram, com
o tempo, a França, a Alemanha e a Itália. Destes três Estados, somente um
chegou muito rapidamente à constituição de sua unidade; foi a França. No
começo do século XIII, a França, com Filipe Augusto, está na posse de sua
unidade nacional, existe como corpo de nação uno e homogêneo. Desde o fim
do século XIII, um século e meio antes de Joana d'Arc, Filipe, o Belo, deu uma
bela definição da idéia de pátria. As armas francesas acabavam de
experimentar, no dia 11 de julho de 1302, o terrível desastre de Courtrai. No dia
29 de agosto, de Paris, dirigindo-se ao clero da França, Filipe, o Belo, pinta-lhe a
situação do país, pedindo-lhe que contribua com subsídios para a defesa da
pátria: "Refleti bem, diz o rei aos prelados de seu reino, que se trata das vossas
conveniências, de cada um dentre vós, nas quais cada um de vós tem interesse;
assim, aplicando toda a vossa afeição, todos os vossos esforços na defesa desta
pátria que vos viu nascer — desta pátria pela qual a tradição venerada dos
ancestrais nos ensinou que era preciso combater, preferindo o amor a ela ao
amor de nossos próprios filhos — nós vos pedimos que venhais em auxílio com
os mais fortes subsídios de que possais dispor..."
Izoulet, professor no Colégio de França, expôs esta concepção do amor da
pátria: "O amor da pátria não é um sentimento simples e superficial, fácil de
improvisar. Não é um cogumelo que cresce em uma noite. É uma planta de raízes
profundas e lentas. O amor da pátria é uma complexa resultante de obscuros
componentes. A pátria mergulha sua tríplice raiz nas secretas profundezas dos
hábitos terrenos, das piedades domésticas e das emoções religiosas. Deus, o
solo e o lar são o tríplice ingrediente desse ditame.
"Que se pode, pois, esperar do patriotismo de um povo em que muitas
pessoas não pensam senão em abandonar a terra, em quebrar o lar, em renegar
a Deus? Quando a tríplice raiz seca, como poderia a planta deixar de definhar e
de morrer?"

Quanto à Alemanha e à Itália, oriundas, como a França, do império de Carlos


Magno, foi preciso que esperassem até o fim do século XIX para realizar a
unidade (e que unidade!) à qual uma e outra não cessaram de tender no curso de
suas histórias tão agitadas.

De onde vem essa diferença? Do fato de que na França foi melhor seguida a
lei da natureza. Foi a família capetíngea, foi a fixidez da dinastia real, fundada
sobre a lei sálica, que formou e manteve a unidade nacional. Foi graças a esse
princípio de hereditariedade, que em nenhuma outra parte se exerceu com tanta
continuidade e regularidade, que a realeza francesa pôde adquirir, no curso dos
séculos, as condições de força e de duração necessárias à realização da grande
obra nacional. 12

"Pulo de minha cama, escreve ele, corro à janela e vejo duas pobres velhas que, carregando cada
qual uma tocha acesa, gesticulavam e corriam como loucas. Pergunto-lhes o que há com elas:
"— Nós temos um rei que Deus nos deu, responde uma delas; um soberbo herdeiro real, pela
mão do qual vosso rei, o vosso, receberá um dia opróbrio e infelicidade!..."
Luchaire acrescenta: "As populações mais afastadas de Paris já tinham o sentimento — por vago
que fosse — da unidade moral do país francês; elas sentiam que faziam parte de um corpo cuja
cabeça era o rei de França. A correspondência de Luís VII está repleta de testemunhos dessa
solidariedade mais forte do que o liame feudal".
12
O fato reveste-se de um caráter providencial, que os verdadeiros historiadores não deixaram de
notar. Foi Deus, com efeito, nos Seus desígnios sobre a França, que permitiu que, nessa grande
linhagem capetíngea, na qual não se conta, durante mais de três séculos, um só príncipe adulterino,
14
CAPÍTULO II

OS ESTADOS DEVEM CONSERVAR


O MODELO FAMILIAR

Haec societas diligenter et sancte observata, nos


homines hominibus miscit et indicat aliquid esse
commune jus generis humani.
SENECA, Epist. XLVII 1

A família não é somente o elemento primeiro de todo Estado,ela se mantém


como seu elemento constitutivo, de tal sorte que a sociedade regular, tal como
existe, durante o tempo em que não tenha contrariado as leis da natureza, como
fez nossa França na Revolução, compõe-se não de indivíduos, mas de famílias.
Hoje,somente os indivíduos contam, o Estado conhece apenas cidadãos
dispersos; isto é contrário à ordem natural. Como muito bem disse Savigny: "O
Estado, uma vez formado, tem como elementos constitutivos as famílias, não os
não faltasse jamais o herdeiro direto do trono, de sorte que se viu, sem interrupção, desde Hugo
Capeto até Filipe, o Longo, o filho primogênito do rei defunto suceder regularmente seu pai.
Quando foi preciso, pela primeira vez, à falta de um herdeiro direto, impedir o acesso das
mulheres ao trono, que teriam podido, casando-se, levar a coroa da França para uma família
estrangeira e comprometer a unidade nacional, teve-se apenas que verificar a tradição e transformar
o fato providencial em lei positiva.
Uma vez bem estabelecido o modo de sucessão, o princípio de hereditariedade funciona por si
mesmo, provendo sempre o trono de um titular e mantendo na dinastia a grande tradição
monárquica.
Como observou muito bem o abade de Pascal, um dos principais objetivos da missão de Joana
d'Arc foi consagrar, da parte do céu, em Carlos VII, esse princípio salvador da hereditariedade
real: "Gentil príncipe, eu te digo da parte do Senhor que és o verdadeiro herdeiro de França. Eu te
digo que Deus tem piedade de vós, de vosso reino e de vosso povo". (A última frase, no original
francês: "Je te dis que Dieu a pitié de vous, de votre royaume et de votre peuple").
1
Essa sociedade, cuidadosa e santamente respeitada, mistura os homens aos homens, e indica ser
algo comum a lei do gênero humano. (N. do T.).
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indivíduos." Assim era outrora, e o que o demonstra de uma maneira bem sensível
é o fato de que nos recenseamentos da população a contagem era sempre feita
não por pessoas, mas por fogões, isto é, por lares; cada lar era considerado o
centro de uma família, e cada família era no Estado uma unidade política e
jurídica, assim como econômica.
Buisson disse um dia na Câmara: "O dever da Revolução é emancipar o
indivíduo, a pessoa humana, célula elementar, orgânica, da sociedade." Com
efeito, é exatamente essa a empreitada que a Revolução se impôs, mas essa
tarefa não leva a nada menos do que à desorganização da sociedade e à sua
dissolução. O indivíduo é apenas um elemento da célula orgânica da sociedade.
Essa célula é a família; separar seus elementos, praticar o individualismo, é
destruir sua vida, é torná-la impotente para cumprir seu papel na constituição do
ser social, como sucederia com o ser vivo a dissociação dos elementos da célula
vegetal ou animal.
Isto era tão bem compreendido em Roma, que o Estado romano primitivo
reconhecia apenas as gentes e que para se ter uma situação legal era preciso ser
membro de uma dessas corporações. "O filho de família emancipado, diz Flach, o
escravo liberto, os estrangeiros vindos a Roma em busca de asilo, deviam
submeter-se a um chefe de família".
Do mesmo modo na França, na alta Idade Média: "Nenhum lugar para o
homem isolado, diz o mesmo autor; se uma família vem a decair ou a dissolver-se,
os elementos que a compõem deverão agregar-se a uma outra. Não encontrar
semelhante asilo equivale à morte". Em todos os lugares a família é, nas boas
épocas da história dos povos, aquilo que, entre nós, a democracia, para nossa
infelicidade, fez o indivíduo ser: a unidade social.
Tanto no corpo social quanto no corpo vivo, para retomar a comparação de
Buisson, as células elementares não estão na mesma categoria, ainda que
igualmente provindas de uma célula primitiva. Há células primeiras, elementares,
que dão origem às células do sangue e às células dos tecidos. Assim também na
sociedade; as famílias, posto que oriundas de um mesmo ponto, são de condição
diversa e estão repartidas em três classes: o povo, a burguesia e a nobreza. Para
maior semelhança, a burguesia realiza, na sociedade, o papel do sangue no corpo
humano: ela sai do povo e alimenta a nobreza. Contrariamente ao que quer a
democracia, em toda a parte em que o progresso moral, intelectual, material
germina e se desenvolve, as desigualdades aparecem, acentuam-se, fixam-se nas
famílias e pouco a pouco constituem uma hierarquia, não de funcionários, mas de
casas.

Reencontramos aqui as grandes leis que Deus estabeleceu quando da


criação do homem, na sociedade primeira, a fim de que elas continuassem a
reger todas as sociedades humanas, qualquer que fosse o desenvolvimento que
elas tivessem.
"Há leis, diz Bonald, para as formigas e as abelhas. Como se pôde pensar
que não as havia para a sociedade dos homens, e que ela estivesse entregue aos
azares de suas invenções?" Rousseau pensou isto. Ele se esforçou em formular
para os Estados leis diferentes das dispostas pelo Criador; e os democratas, seus
discípulos, esforçando-se, segundo suas lições, em estabelecer os Estados sobre
a igualdade em oposição à autoridade, e sobre a independência recíproca em
oposição à união, só podem destruí-los, e destruí-los pela base.
Se os povos só são feitos de famílias vivas, e se as leis impostas por Deus à
família devem ser as leis de toda a sociedade, é necessário que os Estados
reproduzam neles alguma coisa do modelo primitivo. Todos os sábios estão de

16
acordo sobre esse ponto. "Os gregos e os romanos, diz o abade Fleury, 2
reputados pela sabedoria deste mundo, aprendiam a política governando suas
famílias. A família é a imagem reduzida do Estado. Significa guiar os homens que
vivem em sociedade".
"O governo da casa, diz Jean Bodin no segundo capítulo do primeiro livro de
sua obra, é um governo direto de vários sujeitos sob a obediência de um chefe de
família. A república é um governo direto de várias famílias e do que lhes é comum
com força soberana. É impossível que a república valha alguma coisa se as
famílias que são os seus pilares estão tão mal organizadas".
Leão XIII diz a mesma coisa: "A família é o berço da sociedade civil e é em
grande parte no recinto do lar doméstico que se prepara o destino dos Estados. 3
Alhures: "A sociedade doméstica contém e fortifica os princípios e, por assim dizer,
os melhores elementos da vida social: assim é que dela depende em grande parte
a condição tranqüila e próspera das nações". 4 É, pois, com razão que Bonald diz:
"Quando as leis da sociedade dos homens são esquecidas pela sociedade
política, elas podem ser reencontradas na sociedade doméstica".
Na nossa França, a sociedade conservou o modelo familiar até a Revolução.
No século XVIII, em 14 de fevereiro de 1774, o Parlamento de Provence podia
ainda escrever ao rei: "Entre nós cada comuna é uma família que governa a si
mesma, que se impõe suas leis, que vela por seus interesses. O oficial municipal
é o pai da comuna".

Ribbes, que estudou com tanto cuidado as comunas do Ancien Régime,


conclui: "As localidades são organizadas em famílias, os registros municipais são
em todos os pontos semelhantes aos livros domésticos; o lar tem seus ritos, as
localidades têm os seus. A idéia de família manifesta-se no mais alto grau no
sistema de administração, ela é ainda mais impressionante nas solenidades e nas
recreações públicas".
A própria monarquia havia conservado esse mesmo caráter. O governo era
essencialmente familiar. A mulher e o filho primogênito do rei estavam
estreitamente associados ao exercício do poder. O tesouro do Estado ficava sob a
vigilância da rainha e sob seu controle direto. O camareiro, que se denominaria
hoje ministro das finanças, era, por esse fato, seu subordinado. Assim também,
até nossos dias, na maior parte dos lares é a mulher que tem a chave do caixa. A
rainha aparece nos tratados concluídos com as potências estrangeiras.

2
Opuscules I , p. 292.
3
Encíclica Sapientiae Christianae.
4
Encíclica Quod Multum.
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Os seis grandes oficiais da coroa, 5 que assistiam o rei em todos os atos de
poder, tinham tido, na origem, funções domésticas nitidamente marcadas pelos
próprios títulos de suas dignidades. O senescal, o condestável, o despenseiro, o
copeiro, o camareiro, o chanceler tomaram seus nomes dos diferentes serviços da
casa do rei, e sucedeu que o Palácio do Rei transformou-se pouco a pouco em um
seminário de homens de Estado.
Viollet, na sua Histoire des Constitutions de la France, definiu assim o caráter
de nossa antiga monarquia: "A autoridade do rei era semelhante à do pai de
família; assim, o poder patriarcal e o poder real são por suas origens parentes
muito próximos". E mais adiante, voltando à mesma idéia, diz ainda: "É manifesto
que o rei desempenha o papel de um chefe de família patriarcal".
Como o pai de família, o rei era a fonte de toda a justiça no reino. Summum
justitiae caput foi assim que Fulbert de Chartres definiu o rei no século XI. Cada
grupo natural, local ou profissional tinha organização e autoridade próprias: a
família tem seu chefe, a oficina seu mestre, a comuna seus magistrados, as
corporações seus síndicos, a Igreja seus bispos. A idéia de uma regra comum
estabelecida por um poder qualquer para o conjunto dos habitantes teria então
parecido uma monstruosidade. Cada grupo administra a si mesmo. Mas entre
essas liberdades e franquias locais, entre esses pequenos estados múltiplos e
independentes é preciso manter a harmonia, a paz, assegurar o respeito aos bons
costumes. É o papel mais importante do rei: ele é o justiceiro pacificador, o
apaziguador de discórdias, o guardião das liberdades e da paz pública, a qual veio
a ser chamada de paz do rei. Na origem esse papel foi exercido a fortes golpes
de espada. Harnulf chama Luís, o Gordo, de batalhador infatigável: "Luís, agora o
pacífico, com o cetro à mão, dá a cada um o seu direito". Mas logo o rei distribuiu
a justiça de maneira diferente. O rei escutava os queixosos como um senhor a
seus vassalos, como um pai aos seus filhos. Ele tratava seus súditos com inteira
familiaridade. "Todos os dias, diz Joinville, falando de São Luís, ele dava de comer
com abundância aos pobres, no seu quarto, e freqüentes vezes vi que ele próprio
cortava-lhes o pão e dava-lhes de beber". Seria um erro crer que esses traços
tenham sido particulares à magnífica bondade de São Luís; Roberto, o Piedoso,
entre outros, agia do mesmo modo. Foi uma tradição, entre nossos antigos reis,
mostrarem-se acolhedores e benfeitores, sobretudo em relação aos pequenos e
aos humildes".6

5
O senescal era o escudeiro que, na guerra, seguia seu mestre nas expedições, velando pela
instalação da tenda real. Na ausência do rei, ele comandava o exército. Essas funções derivam
hereditariamente das Casas de Rochefort e de Giuerlande; Luís VI diminuiu-lhes o alcance, Filipe-
Augusto suprimiu-as.
Quando Filipe-Augusto fez desaparecer o ofício de senescal, o condestável tornou-se o chefe do
exército, e o rei acrescentou-lhe dois marechais. O ofício foi suprimido por Richelieu.
O despenseiro velava pelo cozimento do pão. O ofício teve como titulares os maiores nomes da
França, entre outros o de Montmorency.
O copeiro tinha a administração dos vinhedos reais, e deles gerava os rendimentos. Ele teve a
intendência do tesouro real e a presidência da Câmara dos Condes. A partir do século XII essas
funções tornaram-se hereditárias na Casa de la Tour. Foram suprimidas por Carlos VII.
O camareiro dirigia o serviço dos quartos privados. Ele tornou-se o tesoureiro do reino, e nessa
qualidade estava colocado, como dissemos, sob as ordens da rainha. O encargo foi suprimido em
1445.
A origem do grande chanceler é religiosa e ao mesmo tempo doméstica. Os reis merovíngios
conservavam entre suas relíquias a pequena capa (chape) de São Martinho. Daí o nome de capela
(chapelle) dado aos lugares onde eram guardadas as relíquias dos reis. Os arquivos eram conservados
junto às relíquias. O chefe dos capelães foi o grande chanceler, que carregava constantemente no
pescoço o grande sinete real.
6
Eis o que Francisco I, no início de seu reinado, escrevia no cabeçalho da ordenação de 23 de
setembro de 1523:
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No século XIII o rei passeava a pé pelas ruas de Paris, e cada qual se
acercava dele e lhe falava sem cerimônia.
O florentino Francesco da Barberino registra sua surpresa de ver Filipe, o
Belo — cujo poder se fazia sentir até no fundo da Itália — passear assim em Paris
e cumprimentar com simplicidade as pessoas que passavam. É desnecessário
contrapor essa bonomia à arrogância dos senhores florentinos.
Segundo o testemunho do cronista Chastellan, Carlos VII "despendia dias e
horas a cuidar de homens de todas as condições, e assistia pessoa por pessoa,
cada qual distintamente".
Os embaixadores venezianos do século XVI atestam, em suas célebres
correspondências, que "ninguém é excluído da presença do rei e que as pessoas
da classe mais vil penetram ousadamente e à vontade no quarto íntimo". O rei
comia diante de seus súditos, em família. Cada qual podia entrar na sala durante
as refeições.
"Se há um característico singular nesta monarquia, escreve o próprio Luís XIV,
é o acesso livre e fácil dos súditos ao príncipe".
E de fato, apesar da multiplicação dos meios de transporte e do prodigioso
crescimento de uma cidade como Paris nas proximidades da residência real,
vemos o grande rei receber cada semana todos os pedintes que se apresentam,
por pobres e mal vestidos que sejam.
"Eu ia ao Louvre, escreve Locatelle em 1665, e aí passeava com toda a
liberdade, e, passando pelos diversos corpos da guarda, chegava a esta porta que
é aberta logo que nela se toca, e o mais freqüentemente pelo próprio rei. Basta
tocar levemente e em seguida se vos introduz. O rei quer que os súditos entrem
livremente".
Os acontecimentos que concerniam diretamente ao rei e à rainha eram para a
França inteira acontecimentos de família. A casa do rei era, no sentido próprio, "a
casa de França".
As Lettres d'un Voyageur Anglais sur la France, la Suisse et l'Allemagne
oferecem os mesmos testemunhos referidos acima. Eis algumas linhas da citação
que dela faz J. de Maistre em um de seus opúsculos:
"O amor e o apego dos franceses pela pessoa de seus reis é uma parte
essencial e tocante do caráter nacional... A palavra rei excita, no espírito dos
franceses, idéias de beneficência, de reconhecimento e de amor, simultaneamente
com aquelas de poder, de grandeza e de felicidade... Os franceses acorrem em

"Como prouve a Deus chamar-nos, na flor de nossa idade, como um dos seus principais mestres do
governo desse belo, nobre e digno reino de França, divina e miraculosamente instituído para a
direção e proteção de todas as suas classes: Especialmente para a conservação, elevação e defesa da
classe comum e popular, que é a mais fraca, e por isso a mais fácil de oprimir, e naturalmente tem
maior necessidade do que todas as outras de boa guarda e defesa, e singularmente o pobre comum
homem da França, que sempre tem sido doce, simples e gracioso em todas as coisas, e obsequioso
para com o seu príncipe, e senhor natural, que ele sempre tem reconhecido, tendo-o servido e
obedecido sem mudar, nem variar, preferindo sofrer a receber a dominação de outro príncipe. De tal
maneira que entre os reis da França e seus súditos tem havido sempre a maior aglutinação, liame e
conjunção de verdadeiro amor, natural devoção, cordial concórdia e íntima afeição do que em
qualquer outra monarquia ou nação cristã.
Os quais amor, devoção e concórdia bem conservados entre o rei e seus súditos sob o temor e o
amor de Deus (que sempre tem sido servido devotadamente na França) tornaram o reino florescente,
triunfante, temido e estimado por toda a terra... Ora, o verdadeiro meio pelo qual os reis podem e
devem perpetuar e aumentar esse amor consiste na justiça e na paz: na justiça, fazendo-a distribuir e
administrar pura, boa, igual e concisa, sem nenhuma acepção de pessoa e sem suspeita de avareza a
nossos súditos; em paz fora e dentro do reino: sobretudo na paz intrínseca fazendo viver o homem de
bem sob a ajuda e proteção de seu rei, em boa e amorosa paz comer seu pão e viver na sua
propriedade em repouso , sem ser humilhado nem atormentado sem propósito, que é a maior
felicidade, contentamento e tesouro que um rei pode conquistar para seu povo..."
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multidão a Versalhes, nos domingos e dias de festa, olhando o rei com uma avidez
sempre nova, e o vêem pela vigésima vez com tanto prazer quanto da primeira.
Eles o encaram como seu amigo, como seu protetor, como seu benfeitor".
"Antes da Revolução, diz também o general de Marmont, tinha-se pela pessoa
do rei um sentimento difícil de definir, um sentimento de devoção com um caráter
quase religioso. A palavra "rei" tinha então uma magia e um poder que nada
havia alterado. Esse amor redundava numa espécie de culto".
"Lembrai-vos de amar com ternura a pessoa sagrada de nosso rei, dizia em
1681 a seus filhos no seu livro de razão, 7 um modesto habitante de Puy-Michel
(Baixos Alpes), de ser-lhe obedientes, submissos e cheios de respeito às suas
ordens". Recomendações semelhantes encontram-se em outros livros de razão,
publicados por Charles de Ribbes; e as divisas das famílias senhoriais exprimem
freqüentemente os mesmos sentimentos.
Tais sentimentos jamais se manifestaram de maneira tão ruidosa como por
ocasião do nascimento de Luís XVI.
"Os gritos de Viva o Rei!, que começaram às seis horas da manhã, não foram
interrompidos até o pôr-do-sol. Quando nasceu o Delfim, a alegria da França foi a
de uma família. As pessoas paravam nas ruas, falando umas com as outras, sem
se conhecerem, e os conhecidos se abraçavam". 8

Aulard, historiador oficial da Revolução, forçado pelas realidades que se


impuseram à sua atenção, fala desta maneira do amor dos franceses pelo seu rei
e do seu apego à monarquia:
"Ninguém pensa em atribuir à realeza, ou mesmo ao rei, os males dos quais
nos queixamos. Em todos os cadernos 9 os franceses revelam um ardente
realismo, uma ardente devoção à pessoa de Luís XVI. Sobretudo nos cadernos
do primeiro grau, ou cadernos das paróquias, há um grito de confiança, de amor,
de gratidão. Nosso bom rei! O rei nosso pai! Eis como se exprimem os
trabalhadores e os camponeses. A nobreza e o clero, naturalmente menos
entusiasmados, também se mostram realistas" (Histoire Politique de la Révolution
Française, p. 2).
E mais longe (p. 7): "Se bem que o povo começasse a ter um certo
sentimento de seus direitos, longe de pensar em restringir todo esse poder real,
era nele que colocava toda sua esperança. Um caderno dizia que para que se
realizasse o bem bastava que o rei dissesse: "A mim, meu povo! ".
Os mesmos sentimentos perseveraram até em plena Revolução. Maurice
Talmeyr, na sua brochura "La Franc-Maçonnerie et la Révolution Française",
observou esses sentimentos:
"Durante dois anos a Revolução foi feita aos gritos de Viva o Rei! Em
seguida, a maioria dos próprios homens e mulheres arruaceiros, pagos para
ultrajar o soberano, são, diante dele, subitamente tocados pelo intransponível
amor de sua raça ao descendente de seus monarcas. Toda sua exaltação, na
presença dele, transforma-se, como em outubro de 1798, em respeito e ternura".
Talmeyr traz outros fatos em confirmação do que ele diz e chama o testemunho de
Louis Blanc.
7
O livro de razão, como era chamado na França o livro de família, era uma espécie de diário
familiar, mantido e atualizado pelas sucessivas gerações. O autor trata da matéria em detalhes no
capítulo IX, pp. 75 e 76. (N. do T.).
8
Campan, I, p. 89; III, p. 215.
9
Os "cahiers de doléance", literalmente "cadernos de queixas", constituíram um dos elementos
utilizados pela Revolução, em 1789, com a finalidade de depreciar a monarquia. Nesses cadernos, os
franceses deveriam anotar as queixas que tinham contra seus governantes. O resultado foi o inverso
do esperado, tantas as manifestações de amor pela Casa Real, não obstante todas as falsificações
produzidas pelos agentes da Revolução. (N. do T.).
20
Ele teria podido igualmente invocar o testemunho de Mme. Roland.
Testemunha do que se passava sob seus olhos, ela escrevia com desespero: "Não
se acreditaria o quanto os funcionários e os comerciantes são reacionários.
Quanto ao povo, está cansado; ele crê que tudo está acabado e volta para seu
trabalho. Todos os jornais democráticos se irritam com os vivas que acompanham
o Rei, cada vez que ele aparece em público".
É, pois, bem verdadeira a observação de Frantz Funck-Brentano: “Nada mais
difícil para o espírito moderno do que imaginar o que era, na França antiga, a
personalidade real e os sentimentos pelos quais seus súditos lhe estavam
ligados". Dizia-se comumente que o rei era o pai de seus súditos; essas palavras
correspondiam a um sentimento real e concreto da parte do soberano assim como
de parte da nação. "Chamar o rei de pai do povo , disse La Bruyère (que sempre
põe muita precisão em tudo o que diz), é menos elogiá-lo do que defini-lo". E
Tocqueville: "A nação tinha pelo Rei a um só tempo a ternura que se tem por um
pai e o respeito devido somente a Deus".
"A França é apaixonadamente monarquista", disse Mirabeau. E Michelet:
"Das entranhas da França brota um grito terno de profunda expressão: Meu rei!".
"A nação, diz Augustin Thierry, não havia sofrido por causa desse regime
(monárquico); ela mesma o quis resolutamente e com perseverança. Ele não
estava fundado nem na força nem na fraude, mas, ao contrário, era aceito pela
consciência de todos". 10 Assim, não se pode dizer que a nação quis libertar-se da
monarquia. A multidão de abstenções nas eleições durante todo o período
revolucionário, no qual de cem mil inscritos somente dez mil votavam, mostra bem
que a parte da nação desejosa da substituição do regime monárquico pelo regime
republicano foi insignificante. Sabe-se, ademais, que a maioria da Convenção não
se comprometeu com o voto que condenava Luís XVI à morte. Um dos votantes
não tinha vinte e cinco anos, um outro não era francês, cinco outros não eram
válidos ou inscritos, enfim, sete deputados votaram duas vezes, como deputados
e como suplentes de seus colegas. Ao invés de um voto de maioria, o veredicto
tinha uma minoria de treze votos. 11
Na Réforme Sociale de 1° de novembro de 1904, Funck-Brentano, falando da
função da realeza francesa, disse: "Saído do pai de família, o rei tinha
permanecido na alma popular, vagamente e sem que ela se desse conta disso,
como o pai junto ao qual vinham buscar proteção e abrigo. Em sua direção,
através dos séculos, tinham instintivamente dirigido os olhares em caso de aflição
ou de necessidade. E eis que, bruscamente, essa grande autoridade paternal é
derrubada. E corre no meio do povo da França um mal-estar, um pavor, vago,
irrefletido. Ó, os rumores sinistros! Eis os bandidos! e o pai não está mais
presente! O "grande medo" é a última página da história da realeza na França.
Não há nada de mais tocante, de mais glorioso para ela, não há nada onde

10
Augustin Thierry, Essai sur la Formation du Tiers-Etat, p. 89.
11
Depois dessa data fatal de 21 de janeiro de 1793, não houve nenhum fracasso nacional que não
tenha sancionado alguma ruína, se não definitiva, pelo menos muito durável, pois o dano dessa data
subsistiu até nossos dias. E não houve nenhum sucesso, nenhuma glória, nenhuma conquista,
nenhuma alegria nacional que não tenha tido os mais dolorosos dias seguintes. A seqüência de nossos
reis representa a mais admirável continuidade de um crescimento histórico, e o assassinato de um
deles dá o sinal dos movimentos inversos, os quais, apesar da multidão das compensações
provisórias, tomam, no seu conjunto, a forma de uma regressão. Para o progresso social, assim como
para os costumes, para a ordem política, assim como para a extensão territorial ou o número de
habitantes relativamente a outras nações da Europa, a França caiu abaixo do que era em 1793.
Primeiro fato! Segundo fato: com recursos admiráveis e incomparáveis meios, a França tende a
perseverar nessa queda, em razão dos mesmos princípios que a determinaram, faz cento e dezesseis
anos, ao regicídio. É, pois, verdadeiro, que cortando a cabeça de seu Rei, a França cometeu
suicídio.
21
apareça melhor o caráter das relações que, tradicionalmente, instintivamente,
tinham-se estabelecido entre o rei e a nação... 12
Foi ao espírito familiar da monarquia que a França em muito boa parte deveu
sua prosperidade. E essa prosperidade foi tal que a França era, sem contestação,
a primeira nação da Europa. O grande orador inglês Fox reconhecia-o, não sem
amargor, na Câmara dos Comuns, quando exclamava, em 1787:
"De Petersburgo à Lisboa, se se excetua a Corte de Viena, a influência da
França predomina em todos os Gabinetes da Europa. O Gabinete de Versalhes
apresenta ao mundo o mais incompreensível paradoxo: é o mais estável, o mais
constante e o mais inflexível que há na Europa. Após vários séculos, ele segue

12
Os mesmos sentimentos manifestaram-se na Restauração. Madame de Marigny, irmã de
Chateaubriand, estava em Paris em 1814, no momento da entrada dos Aliados. Ela anotava, dia a
dia, em finos cadernos, as notícias e os boatos da cidade . Assim que um caderno era completado, ela
o enviava a seus pais, na Bretanha. Esses cadernos acabam de ser publicados por M. J. Ladreit de
Lacharrière. Eis o relato que ela faz da entrada do conde d'Artois:
Terça-feira, 12 de abril — Levantei-me muito doente, mas decidida a fazer o impossível para ver o
Príncipe tão querido dos franceses. Tomei café para reanimar-me e, como guia das senhoritas Verpier,
cuja mãe estava muito indisposta, pus-me a caminho, com a esperança de poder entrar em Notre-
Dame; coisa que tentei inutilmente, mesmo com dinheiro que ofereci a um pobre homem que vigiava
uma pequena porta pela qual entravam os cônegos. Não sabendo que decisão tomar, sentindo-me
incapaz de permanecer de pé na rua durante cinco ou seis horas, retornei com minhas companheiras,
muito triste. Passando diante do estabelecimento de um comerciante de vinho, perguntei-lhe se ele
tinha uma janela sobre a rua e se ele queria alugá-la; ele ficou maravilhado. O negócio foi logo
concluído.
O afluxo de pessoas e de carros que iam a Notre-Dame era tão prodigioso que nele não se podia
fixar o olhar por muito tempo; fui obrigada a retirar-me da janela várias vezes; eu estava aturdida.
Entre as senhoras que não puderam encontrar lugar, percebi Mme. de Gois; chamei-a. Ela veio com
suas amigas ocupar uma janela que ainda estava por alugar e pagou-a. Notava-se, dentro dos carros,
belíssimos trajes, e mesmo mulheres a pé que estavam muito bem vestidas; quase todas portavam
flores de lis sobre os chapéus, ou em buquês que carregavam diante de si. Algumas tinham três flores
de lis bordadas em ouro sobre as mangas fofas.
O pavilhão branco drapejava sobre as torres de Notre-Dame, com o escudo da França. Enfim, ao
meio-dia soou o grande sino e soube-se que Monsieur estava na porta do bairro Saint-Denis. Um
numeroso destacamento da guarda nacional aguardava-o lá; a guarda atirou as armas aos pés do
príncipe, num transporte de respeito e de amor. Ele pareceu sensibilizar-se. Sua Alteza abraçou
alguns que ele reconheceu...
No meio dessa multidão de penachos brancos e de senhores de seu séquito, o conde d'Artois pôs-se
a caminho para Notre-Dame, mas a quantidade de pessoas que o interceptavam e as igrejas onde se
lhe ofereceu incenso entravaram e retardaram de tal forma sua passagem que eram duas horas e meia
quando ele chegou na rua onde eu estava, e que conduz à catedral.
À sua passagem sob o arco do triunfo da porta Saint-Denis, o grande sino soou de novo; mas à sua
aproximação da metrópole, todos os sinos repicaram; eles não podiam abafar as aclamações, a
música misturava-se-lhes. Não, jamais se poderá pintar esse entusiasmo. Poder-se-ia dizer que a
alegria havia transbordado, chorava-se, gritava-se pela sua felicidade; temia-se não ter forças de
suster-se para vê-lo passar, e eu me incluía entre estes. Mme. de Gois repreendeu-me fortemente por
minha sensibilidade; ela fez-me bem; eu resisti contra o mal-estar que experimentava, e lancei-me
irrefletidamente à sacada, tão feliz em lhe dar meu derradeiro suspiro. Deixei escapar a felicidade do
meu coração, meus votos por ele, meu enternecimento pela lembrança de seus infortúnios, ou melhor,
eu lançava todos esses sentimentos, porque estava fora de mim...
A santidade do lugar não pôde estancar os transportes das pessoas que estavam na igreja; as
abóbadas tremiam com as aclamações. Mas esse Príncipe religioso, logo que se começou a cantar o
Te Deum, voltou-se e fez sinais reclamando silêncio. Ao Domine salvum fac regem viram-se grossas
lágrimas correr de seus olhos.
Enfim, o cortejo retomou seu caminho, e, para nossa satisfação, fez ainda S.A. passar sob nossas
janelas, onde de novo estávamos com meio-corpo para fora, apaixonadas, gritando num derradeiro
esforço: "Viva Monsieur! Faça o céu que seja sempre feliz!" Nossos chapéus ornados de lis, nossa
ação, nossos lenços no ar foram fixados um momento pelos olhares do Príncipe, que nos
22
invariavelmente o mesmo sistema, e, no entanto, a nação francesa prossegue
como a mais ágil da Europa".
Dá-se que, com efeito, toda sociedade que conserva o espírito familiar, uma
vez que permanece submissa à lei natural, progride, por assim dizer,
necessariamente. "Nada na história, diz Frantz Funck-Brentano, jamais negou
essa lei geral: tanto quanto uma nação é governada segundo os princípios
constitutivos da família, tanto ela é florescente; no dia em que ela se afasta
dessas tradições que a criaram, a ruína está próxima. O que dá fundamento às
nações serve também para mantê-las".
Edmond Burke, nas suas Réflexions sur la Révolution Française, dirigia aos
franceses de 1789 sábias palavras. Quão pouca atenção se lhes deu! "Quereis
corrigir os abusos de vosso governo; mas por que criar novidades? Por que não
vos reatais a vossas antigas tradições?"

cumprimentou com aquela graça e aquele sorriso amável que não pertencem senão a ele.
Então, no cúmulo da alegria, não sabendo mais o que fazia, pareceu-me que eu não devia olhar para
mais ninguém, que nenhum outro objeto era mais digno de ser observado. Sentei-me para respirar, eu
sufocava, minha voz se extinguia, eu respondia apenas através de sinais.
Foi preciso pensar na volta para meu colégio. Propus às companheiras irmos a Notre-Dame e
darmos graças a Deus por nos ter conservado a família de São Luís... Entrei em casa extenuada de
calor e de fadiga, mas sobretudo sobrecarregada de felicidade e de alegria, tanto que não dormi.
23
24
CAPÍTULO III

A UNIÃO, LEI DAS FAMÍLIAS,


É TAMBÉM A LEI DOS ESTADOS

Quae domus tam stabilis, quae tam firma est


civitas quae non dissidiis funditus possit everti. 1
CICERO, De amicitia.

"Multiplicai-vos, disse o Senhor à primeira família, povoai a terra e submetei-


a". Os homens, ao se multiplicarem, somente puderam submeter a terra ao seu
império, quer dizer, o solo e as forças da natureza, as plantas e os animais,
enquanto conservaram a união entre eles. O homem isolado nada pode. A
associação fez tudo o que vemos: foi ela que produziu todas as riquezas que a
civilização possui atualmente. Tudo saiu do trabalho dos homens associados no
espaço e no tempo.
Sem união, não há associação, e se se tenta formar a associação, ela não
tarda a se dissolver. É a união que faz com que um conjunto se mantenha e forme
um todo. No momento em que ela é quebrada, a sociedade cai em ruínas. Nós
vemos a grande anarquia em que se debate nossa infeliz França. A Sabedoria
Divina havia-nos prevenido do que hoje nos acontece: "Todo reino dividido contra
si mesmo será destruído, e toda a cidade ou casa dividida contra si mesma não
poderá subsistir".
Ora, a união procede do amor. O amor é, pois, a primeira lei do mundo moral,
assim como seu correlativo, a atração, é a primeira lei do mundo físico. Uma e
outra põem a unidade na infinita variedade das coisas. "Assim como os astros
gravitam em suas órbitas porque constituem força e peso, disse Funck-Brentano, a
título de conclusão de seus estudos sobre a civilização e suas leis, assim o
homem vive em sociedade porque é inteligência e amor".
O amor começa por unir o esposo à esposa, os pais aos filhos. Mas logo
alarga o círculo de sua ação. Pelos casamentos que os filhos contraem, o
parentesco se estende e chama a si a afinidade, que não se contenta mais em
unir as pessoas, mas as próprias famílias. "A chama sagrada da amizade, diz
Jean Bodin, mostra seu primeiro ardor entre o marido e a mulher, depois entre pais
e filhos, e entre os irmãos, e entre estes e os parentes mais próximos, e entre os
parentes mais próximos e os aliados". 2
Continuando a irradiar-se longe de seu centro, a mesma chama cria essas
unidades superiores, que vimos tomar os nomes de Fraternidade, Gens, Mesnie,
Pátria, nomes todos que lembram que essas entidades sociais tiveram seu
1
Quão estável seja o lar, assim é firme o Estado, de modo que as discórdias não podem destruir seus
fundamentos. (N. do T.).
2
Liv. III, cap. VII.
25
princípio na família. A entidade social suprema, a nação, não é verdadeiramente
viva e vigorosa senão durante o tempo em que conserva e mantém em seu seio o
fogo sagrado, como aconteceu na antiga França.

A Revolução extinguiu-o, suprimindo o núcleo, quero dizer, a família real. Em


lugar de amor, em lugar de união, nada mais há entre nós além do antagonismo.
A França compacta, magnífica de coesão entre suas províncias, de unidade dos
sentimentos patrióticos de seus filhos, foi sucedida por uma desagregação de
homens e de coisas, de tal forma que parecemos aos olhos das outras nações
não ser mais do que uma poeira que o vento das revoltas e das guerras pode
dispersar num instante. 3
Como fazer parar essa ruína? Não respondemos a essa pergunta por nós
mesmo. Tomaremos emprestada uma palavra estrangeira, a palavra de um
homem que nem é da estirpe francesa, apesar de unido a ela pela naturalização e
pela conversão do judaísmo ao catolicismo. Ela parecerá mais isenta de
preconceitos.
"Como sair, pergunta ele, do espetáculo de nossas divisões, como retornar à
unidade necessária?" "Não existem dois caminhos: é retornar ao princípio que, no
século V, construiu a França".
"A um povo precipitado para fora do seu caminho, arrancado de suas
tradições e que morre, não se pode dar sangue, vida, patriotismo, entusiasmo,
senão reconduzindo-o, ligando-o de novo a seu princípio".
"O princípio gerador da nação francesa, que foi a monarquia cristã, foi
substituído de um golpe por um outro princípio. O homem sem dúvida nenhuma
mais capaz de fazer triunfar esse novo princípio, Thiers, então chefe do poder
executivo, propôs a esse respeito um ensaio sob uma imagem a que não faltavam
grandeza e sedução. Ele comparou a República, cujo só nome era para muitos
um espantalho, ao temido Cabo das Tormentas , no sul da África, tão famoso por
tantos naufrágios, e do qual os navios, durante muito tempo, não ousaram se
aproximar. Mas um navegador achou-se mais audacioso e mais confiante do que
os outros. Impondo, pois, ao terrível cabo um nome de melhor augúrio, o de Boa
Esperança , ele ousou tentar a travessia: a tentativa foi coroada de sucesso e o
Cabo das Tormentas permaneceu Cabo da Boa Esperança . E o ancião, tão hábil
quanto espirituoso, concluía desta maneira: Ousemos, senhores, tentar um novo e
leal ensaio da República; o que era o Cabo das Tormentas talvez seja igualmente
amanhã o Cabo da Boa Esperança . Eis que doze anos passaram (hoje quarenta,
melhor dizendo) e o ensaio proposto continua. Os que tinham interesse em
fiscalizar esse ensaio, em dirigir-lhe o funcionamento, a marcha, acharam-se não
somente senhores, mas senhores absolutos da França. Nada do que pode levar
ao sucesso, nem o poder, nem a riqueza, nem o gládio, nem a palavra, nem a
audácia, nem as aclamações, nem a devoção, nem a abnegação de numerosas
pessoas, nada faltou. Pois bem! Após doze anos (quarenta anos) de tentativa
completa, ininterrupta, na presença de uma França fracionada por toda a parte,
mais semelhante, em suas divisões, a um navio cujas pranchas se descolam 4 e se
destacam, do que a um povo de irmãos; contemplando com estupefação "a
religião expulsa da escola, a cruz arrancada dos cemitérios, os socorros espirituais
3
Tinha que ser assim, desde que a França ficou sem rei. A Review of Review (agosto de 1907, p.
120) fazia esta observação: "Todo o sistema de nosso governo de partidos tem por efeito aumentar e
avivar, de alguma maneira, aquilo que nos divide; daí a imperiosa necessidade de achar, como
corretivo e contrapeso, um órgão para exprimir e reforçar o que nos une. Eis a função que
nobremente preenche nosso monarca. Ele restaura os compromissos acerca dos quais todos os
homens de bem estão de acordo, mas dos quais se desviam facilmente as lutas de partido. A Grã-
Bretanha e a Irlanda são, pelo menos com seu rei, um reino unido".
4
A expressão, como se sabe, é de Gambetta.
26
negados aos soldados e aos doentes, os religiosos expulsos e dispersos, as
finanças malbaratadas, o exército desorganizado, a magistratura reduzida à
servidão, a indústria insuficientemente protegida, a agricultura empobrecida e sem
apoio, a propaganda anarquista tolerada, os funcionários cristãos destituídos ou
em desgraça; em resumo: no interior, a França tiranizada pelo espírito de facção;
no exterior, a França impotente e rebaixada"; 5 na presença de tal espetáculo
podemos dizer, com a mão na consciência, que o Cabo das Tormentas
transformou-se em Cabo da Boa Esperança?
"Não, a esperança está em outro lugar! Está no retorno nacional, necessário,
ao antigo princípio que, tendo criado a França, pode, apenas ele, reconstruí-la".
"Sim, é lá que se encontra refugiada a esperança! Porque onde se encontra o
princípio gerador da unidade, lá se encontra a renovação da pátria francesa!"
"Nada, com efeito, é tão forte na história de um povo quanto o princípio
gerador que foi sua fonte; nada é tão abençoado por Deus quanto a fidelidade no
conservar esse princípio. A nação judia deu disso memorável exemplo. Todos
sabem que na sucessão ilustre de seus reis encontra-se um que, filho degenerado
de David, tomou a peito, ao que parece, merecer o título de opróbrio e de carrasco
de seu povo, tanto ele se mostrou ímpio e cruel. Foi Manassés, o Nero do povo
hebreu. Ora, aconteceu que Deus, tendo pena dos gemidos das vítimas, interveio,
por um desses golpes de justiça que reboam na história. Ele abandonou o mau rei
a Assurbanípal e a seus assírios. Estes, tendo-o atado a duas correntes, levaram-
no cativo para a Babilônia. Não era o caso de aproveitar um fato tão oportuno
para modificar o governo hebraico, ou mudar a dinastia, ao menos para substituir o
rei ímpio, tornado cativo, proclamando o filho dele? Nada disso se fez. Fiel ao
princípio gerador de sua nacionalidade, o povo hebreu não julgou ter o direito de
modificar-lhe a essência: limitou-se a estabelecer um governo provisório; e assim
que, após longos meses de um duro cativeiro, passado nas lágrimas e no
arrependimento, Manassés, libertado pela mesma mão divina que o havia
precipitado nos ferros, reapareceu em Jerusalém, seu trono o aguardava, intacto;
a fidelidade de seu povo não havia mudado!"
"Então, Deus, o Qual também não muda, teve prazer em recompensar
magnificamente tão admirável fidelidade. Fê-lo mediante dois acontecimentos
particularmente providenciais. O primeiro foi a aparição de Judite, uma das
heroínas judias. Já senhores do rei, os assírios haviam-se vangloriado de se
tornarem incontinenti senhores do reino. Foi quando Judite, suscitada por Deus,
barrou-lhes a passagem. O segundo fato, não menos providencial, foi a ascensão
de Josias ao trono de David. Neto e segundo sucessor de Manassés, Josias foi
sem contestação um dos melhores reis de Judá, uma de suas glórias mais puras,
aquele de quem a Escritura fez este belo elogio: "A memória de Josias é como um
perfume de suave odor".
"Eis o que pode em favor da unidade, e para a felicidade de um povo, a
fidelidade ao princípio gerador de sua existência!"
"Perseverança na oração. Aceitação da penitência. Retorno à unidade. Tais
são, de acordo com a Bíblia e no domínio da ordem moral, as três condições
indicadas por Deus para a cura das nações".
"Cumprindo-as, a cura da França é moralmente certa. E se a cura se opera,
ver-se-á reaparecerem, com o retorno às crenças religiosas, o respeito por todos
os direitos, o desabrochar da honra, a prática de uma verdadeira liberdade, a
nobre ambição da glória, a proteção dos fracos, a segurança do comércio, o
entusiasmo da prosperidade, a busca de nossa união, numa palavra, tudo o que
5
Esse quadro foi traçado em 20 de outubro de 1883 por G. de la Tour, no Univers . Quantos traços
poder-lhe-iam ser acrescentados em 1910, e como todos os traços primitivos poderiam ser
exasperados!
27
contribuiu para fazer da França, durante séculos, desejados neste momento, o
mais belo reino depois do reino do céu".6

Para que a coesão exista no corpo social e lhe dê vida e prosperidade, não
basta que o amor ligue o soberano aos súditos e os súditos ao soberano; ele deve
unir os súditos entre eles pela dedicação das classes superiores às classes
inferiores e pelo serviço das inferiores às superiores.
A antiguidade não ignorou completamente esse dever, ou pelo menos
concordou que era necessário. Cícero diz que Rômulo deu aos senadores o nome
de "pais" para marcar a afeição paternal que eles tinham pelo povo.
Conhecemos a posição que ocupou na organização de Roma a clientela.
Essa instituição estabelecia relações determinadas e constantes entre um certo
número de pessoas do povo e uma gens dos patrícios. O chefe dessa gens , nas
relações com seus clientes, usava o nome de "patrão", criado para ressaltar os
sentimentos de paternidade relativamente a eles. Por seu turno, a qualificação de
cliente marcava naquele que a usava uma disposição habitual de estar pronto
para o serviço (cluere, ouvir, ter o ouvido aberto). As obrigações recíprocas
correspondiam às palavras. O patrão tinha o dever, a obrigação de ajudar seu
cliente com conselhos e crédito, de defendê-lo perante os tribunais, de sustentá-lo
com sua influência nos processos e litígios, e mesmo com armas, a fim de prover
às suas necessidades em caso de miséria. De sua parte, o cliente devia ao patrão
o respeito, obsequium , e a dedicação pessoal: dando-lhe o voto nos comícios,
armando-se e combatendo por ele, contribuindo no pagamento de seu resgate, no
dote de sua filha etc. Existia nisso, em uma palavra, uma troca regrada e contínua
de serviços. Estivesse ou não sempre presente essas relações a afeição, do
ponto de vista social o resultado era o mesmo.
Quando o feudalismo nasceu, a clientela havia desaparecido há séculos.
Como por efeito de um instinto natural, este encontrou-se baseado no mesmo
princípio da assistência mútua. O suserano devia prestar socorro e proteção a
seus vassalos, como o pai a seus filhos, assegurar-lhes justiça, manter a ordem e
a segurança no feudo, providenciar a subsistência dos necessitados. Em troca,
vassalos e proprietários deviam fidelidade e assistência a seu suserano na paz e
na guerra, e também em circunstâncias idênticas àquelas em que o cliente tinha
deveres para com seu patrão, por exemplo, no caso do casamento da filha do
suserano.
"A experiência quotidiana que o homem faz da exigüidade de suas forças, diz
Leão XIII, obriga-o e leva-o a associar-se a uma cooperação estrangeira. Lemos
nas Santas Escrituras esta máxima: "É melhor que dois estejam juntos do que
estarem sós, porque então eles tiram proveito de sua sociedade. Se um cai, o
outro o sustenta. Infeliz do homem só! porque cairá e não haverá ninguém para
levantá-lo". E estoutra: "O irmão que é ajudado por seu irmão é como uma cidade
forte". Desta propensão natural nascem as sociedades". 7 Antes de escrever estas
máximas nos santos Livros, Deus gravou-as no coração do homem; e é o que
explica como as instituições, repousando sobre os mesmos princípios, puderam
nascer espontaneamente na antiguidade pagã assim como no seio do
cristianismo.
Entre nós, desde a época merovíngia vê-se um certo número de pequenos
proprietários, chamados vassi, recomendarem-se a homens mais poderosos e
mais ricos, chamados seniores . Ao seu senior, que lhe dá um presente em terras,
o vassus promete assistência e fidelidade. Pela metade do século IX o movimento
se precipita, uma multidão de famílias suplica à família senhorial de tomá-las sob
6
Dieu a fait la France guérissable , pelo abade Augustin Lémann.
7
Encíclica Rerum Novarum.
28
sua proteção: Defendei-nos, defendei a terra que possuímos e aquela que ireis
conceder-nos, e nós vos prestaremos todos os serviços de um fiel vassalo. Foi no
século XIII que essa organização social, fundada na dedicação e nos serviços
recíprocos, atingiu seu apogeu. E foi também naquela época que a nação
francesa alcançou o mais alto grau de prosperidade, que ela pôde exercer sobre
todas as nações da Europa uma ascendência que não mais reencontrou.
A maioria dos historiadores assinalou que o regime feudal estabeleceu-se
entre quase todos os povos da Europa, sem que nenhum deles o tivesse tomado
emprestado de outro. E achou-se tão resistente que Le Play pôde observá-lo
ainda cheio de vida nas planícies orientais da Rússia. Eis o que ele diz: "As
relações da família com o senhor têm simultaneamente o respeito e a familiaridade
que reinam entre os filhos e o pai. Sua autoridade fornece ao camponês um ponto
de apoio para a conservação da propriedade. O senhor exerce a autoridade,
como fazia o suserano da Idade Média, pela manutenção do regime de comunhão
em família. Ele a protege contra a deterioração... O senhor concede recursos à
família em todas as circunstâncias em que seus meios de existência se achem
comprometidos, por exemplo, em caso de incêndio, de fome, de epizootia e de
doenças epidêmicas. E o senhor pode contar com o trabalho dos camponeses
para o sucesso de sua própria atividade".
Esse patronato que vemos estabelecer-se assim sob formas muito parecidas,
em tempos tão distantes e em tantos lugares, saiu evidentemente da família, é
uma extensão do seu espírito. A prosperidade da família, dissemos, tem seu
princípio na união, união proveniente da comunhão de afeições e de esforços. Foi
a visão dos felizes efeitos que produz essa união, que levou-a a espraiar-se além
dos limites da família e que fez nascer a clientela entre os romanos, o feudalismo
entre nós. Da família embrionária, se posso assim dizer, o espírito familiar
ampliou-se com o desenvolvimento que teve a família patriarcal, e daí ganhou e
animou a fraternidade, a gens , o feudo, e enfim as nações, que não podem, elas
também, viver e prosperar senão na união e pela comunhão dos esforços.
A Idade Média estava plenamente convencida disso. O espírito de proteção
penetrava-a tão perfeitamente que, ao mesmo tempo em que realizava o
feudalismo no campo, criava nas cidades mesnies urbanas, depois estabelecia
entre as cidades vizinhas as lignages das cidades francesas, as paraiges das
cidades lorenas, as geslachten das cidades flamengas etc., todos nomes que, por
si sós, bastam para mostrar o princípio de onde esses grupos saíram, o espírito
que lhes deu luz, posto que todas essas palavras são tomadas do vocabulário da
família. Cada um desses grupos tinha uma organização comum, de caráter
familiar e ao mesmo tempo militar, como o grupo feudal.É necessário conhecer
esses fatos, se se quer ter a exata dimensão do mal que ronda a sociedade atual
e do remédio que se lhe deve aplicar.

29
30
CAPITULO IV

DE ONDE VEM A PROSPERIDADE


E A DECADÊNCIA DOS POVOS

Amicitia et prosperas res dulciores facit, et


adversas communione temperat, et leviores reddit. 1
S.ISIDORUS, Lib. III. De summo bonno.

Nenhuma sociedade pode subsistir sem assistência mútua; socorro dos


grandes aos pequenos, serviços dos pequenos aos grandes: e é fato incontestável
que, para que essa assistência mútua seja eficaz, para que ela possa fazer
reinar a paz e a prosperidade numa sociedade, ela não deve ser ocasional, mas
constante, e que para ser constante ela deve ser organizada socialmente.
Nem sempre se compreendeu isto, tanto no seio da cristandade quanto na
antiguidade pagã; e sempre a paz social e os haveres que dela decorrem
seguiram as flutuações sofridas pela fidelidade aos deveres recíprocos. É preciso
acrescentar que a infidelidade sempre se manifestou primeiramente nos graus
superiores. As classes altas fecharam-se pouco a pouco no gozo dos bens que
sua situação proporcionava, e seguindo a mesma tendência, as classes
inferiores desligaram-se delas para acabar por se revoltar contra aqueles que
tinham sido durante séculos o seu sustento.
Um rápido olhar sobre a história antiga, depois sobre a história moderna, far-
nos-á assistir à reprodução, entre nós, de fases de decadência que a sociedade
pagã sofreu, e isto, pelo efeito das mesmas causas. Aproveitaremos, como já
fizemos, um tríplice estudo de Frantz Funck-Brentano, 2 que ele próprio deu em
contribuição entre outras obras, como também A cidade antiga , de Fustel de
Coulanges, e As origens da França antiga , de Jacques Flach.
"As mudanças que aparecem na constituição das sociedades, diz Fustel de
Coulanges, não podem ser efeito do acaso nem da força apenas: a força que as
produz deve ser poderosa, e, para ser poderosa, esta causa deve residir no
homem". É do coração do homem, com efeito, que saem as virtudes que elevam
e os vícios que rebaixam, e que, à força de rebaixar, fazem desaparecer os
Estados, tanto quanto as famílias. Em todos os povos, a época em que as
qualidades morais, de onde emanam as obrigações recíprocas, foram bastante
difundidas e entraram muito profundamente nos caracteres para penetrarem
também nos usos e costumes, constitui o tempo em que o povo mais brilhou na
sua força e no seu esplendor. Com o esquecimento dessas obrigações veio a
decadência. Sempre e em toda a parte, o princípio dessa decadência é
encontrado primeiramente na aristocracia. No momento em que ela negligenciou
seus deveres relativamente a seus clientes; no momento em que ela deixou de
levar-lhes afeição aos seus corações, e em conseqüência deixou de dar-lhes
assistência e proteção, os sentimentos que constituíam a autoridade dos patrões
se enfraqueceram e acabaram por extinguir-se no coração de seus inferiores.
Então uma aristocracia menos nobre sucedeu a uma aristocracia mais nobre,
1
A amizade torna agradáveis as coisas propícias e abranda, pela mútua participação, as adversas,
deixando-as mais suportáveis. (N. do T.).
2
La famille fait l'Etat. Grandeur et décadence des aristocraties. Grandeur et décadence des classes
moyennes. Da coleção "Sience et Religion", editada por Bloud & Cia.
31
porque os povos não ficam jamais sem aristocracia. Na França, como na
Grécia, como na Itália antiga, vimos a aristocracia feudal, em conseqüência do
esquecimento de seus deveres, ceder lugar a uma aristocracia imobiliária e esta a
uma aristocracia de dinheiro. As mesmas épocas históricas sucederam-se na
mesma ordem na antiguidade e nos tempos modernos: à medida que as tradições
cederam à ação do tempo e das paixões humanas, o regime patriarcal deu lugar
ao regime agrário, e este ao regime administrativo, logo dominado pelo dinheiro.
Na Grécia, desde que os Eupátridas vieram a olvidar seus deveres
relativamente a seus clientes, as crenças antigas, que constituíam a autoridade
deles na alma dos inferiores, extinguiram-se progressivamente. Restou como fonte
de influência apenas a propriedade imobiliária, que pôde pertencer tanto aos
plebeus quanto aos nobres. A legislação de Solon veio então dizer que os direitos,
as honras, as funções e as obrigações dos cidadãos seriam medidas segundo a
importância de suas propriedades imobiliárias. De sorte que a uma aristocracia
de sangue sucedeu uma aristocracia de proprietários.
Produziu-se logo uma outra revolução. Desde o tempo de Solon, o comércio
ateniense tomou impulso e logo estendeu-se longe. O proprietário do solo viu
sua importância decrescer diante da importância do negociante, para o qual os
navios traziam as riquezas longínquas.
Em Roma, essas transformações foram as mesmas. A classe dos
cavalheiros, homens de negócio, substituiu a antiga aristocracia, que
desapareceu.
Veremos as mesmas mudanças se produzirem na França.
Mas, antes, devemos descobrir quais foram as conseqüências disto entre
os povos antigos.

Durante todo o tempo em que as famílias patrícias viveram em suas terras,


cercadas de seus clientes, a miséria foi coisa desconhecida: o homem, em caso
de necessidade, era socorrido pelo seu chefe; aquele a quem ele dava seu
trabalho e sua dedicação devia socorrê-lo nas suas necessidades. Passou-se
diferentemente logo que a aristocracia de dinheiro tomou o lugar da aristocracia
imobiliária. Não houve mais liame permanente entre os pequenos e os grandes. O
pobre foi isolado e assim ficou: mais ninguém estava encarregado dele, mais
ninguém o conhecia, mais ninguém queria socorrê-lo. Foi então que Cícero
pronunciou aquela frase: "Ninguém é compassivo, a menos que seja um tolo ou
um leviano".3 E Platão dá-lhe razão: "Dando o pão a quem não o tem, perdeis
vosso bem, e ajudais esses infelizes a prolongar uma existência que não passa de
um fardo para eles".
Mas os pobres opuseram resistência. Eles organizaram uma guerra regular
contra os ricos. Usaram o direito de sufrágio para sobrecarregá-los de impostos,
para decretar a abolição das dívidas ou para operar confiscos gerais.
Plutarco conta que em Megare, depois de uma insurreição, decretou-se que
as dívidas seriam abolidas, e que os credores, além da perda do capital, seriam
obrigados a reembolsar os juros já pagos.
Em 412, a população de Samos massacrou duzentos ricos, exilou outros
quatrocentos e repartiu suas terras e casas. Em Corcyre, o partido dos ricos foi
quase inteiramente exterminado. Os que se tinham refugiado nos templos foram
emparedados e deixaram-nos morrer de fome. "Por toda a parte, como diz
Tucídide, foram vistas todas as crueldades, todas as barbáries, naturais a
pessoas que, impelidas por um sentimento cego de igualdade, encarniçam-se
impiedosamente contra os rivais". "Em cada cidade, escreve Fustel de
Coulanges, o rico e o pobre eram dois inimigos. Nenhuma relação, nenhum
3
Pro Murena.
32
serviço, nenhum trabalho os une. O pobre não podia adquirir a riqueza senão
despojando o rico; o rico não podia defender seus bens senão mediante extrema
habilidade ou pela força. Eles se encaram com olhar raivoso; havia em cada
cidade uma dupla conspiração; os pobres conspiravam por cupidez, os ricos por
medo. Não é possível dizer qual dos dois partidos cometeu mais crueldades e
crimes. Os ódios apagavam nos corações todo sentimento de humanidade.
Houve, em Milet, uma guerra entre ricos e pobres; estes tiveram vantagem
inicialmente e forçaram os ricos a fugir da cidade; mas, em seguida, lamentando
não ter podido degolá-los, pegaram os filhos deles, reuniram-nos em granjas e
esmagaram-nos sob as patas dos bois. Os ricos reentraram em seguida na vila
e tornaram a ser os patrões. Pegaram os filhos dos pobres, untaram-nos com
resina e queimaram-nos todos vivos".
Que acontece com a Grécia, outrora tão grande, nessa luta pavorosa? O
historiador Políbio no-lo diz: "Nos campos, a cultura das terras; nas cidades, os
tribunais, os sacrifícios, as cerimônias religiosas são abandonados. Os gregos
vivem em guerra civil há seis gerações. Ela tornou-se o estado habitual, regular,
normal do povo, no qual se nasce, vive-se e morre-se. Vêem-se cidades
permanecer desertas, e, para cúmulo da dor, os gregos não podem atribuir senão
à própria loucura as calamidades pelas quais são castigados".
A história da democracia romana oferece o mesmo ensinamento da história
da democracia grega. E se a luta não foi acompanhada de crises tão sangrentas,
é preciso atribui-lo a uma dupla causa. Em primeiro lugar, às conquistas de
territórios imensos feitas pelos romanos, cujas terras davam à plebe; em segundo
lugar, aos exércitos que, destacados nas fronteiras e em contínua luta contra os
bárbaros, devoravam boa parte de plebeus.

Na França, como na Grécia, como na Itália, a civilização começou e foi levada


ao seu mais alto ponto por uma aristocracia feudal, à qual sucedeu, dos dias da
Renascença até os dias da Revolução, uma aristocracia imobiliária. Atualmente,
temos essa aristocracia de dinheiro, que marcou o fim da civilização helênica e o
fim da civilização romana.
As origens de nossa civilização remontam ao século VI. O esforço civilizador
de então é proporcional à resistência à barbárie. A barbárie gera os tipos mais
monstruosos e ao lado deles vêem-se figuras resplandecentes da mais pura vida
cristã. Esse século e o seguinte, que surgem como os mais bárbaros de todos,
são a época na qual os santos florescem em maior número e exercem a ação
mais decisiva na orientação de nossa sociedade. Assim, Godefroy Kurth pôde
dizer na sua obra Origens da Civilização Moderna : "Em menos de um século,
todo o cenário do mundo foi renovado. São novos atores que ocupam o palco, é
um outro drama que se desenrola".
Deus havia lançado em nosso solo, ocupado há quatro mil anos pelos
bárbaros, populações jovens e abertas às nobres inspirações da Igreja, que as
esperava para educá-las. "Basta abrir os olhos, diz ainda Kurth, para ver com que
força os povos bárbaros eram arrastados pelas melhores tendências de sua
natureza ao seio da Igreja católica", tão logo o arianismo os solicitava.
E esses selvagens, cheios de paixões pagãs, mas também repletos de seiva
e de vigor, eram enxertados pela Igreja na vinha plantada pelo Divino Salvador.
Ela fazia circular em suas veias a caridade evangélica, isto é, o amor a Deus e o
amor ao próximo. O essencial era determiná-los a dizer uma vez, com convicção
e resolução: sou cristão; e muitos o eram, desde aquele momento até ao
heroísmo.
Quando os francos conquistaram a Gália, as cidades empobrecidas não
passavam de aglomerados de artesãos. O poder e a riqueza tinham-se deslocado

33
para os campos. Aí, em meio a imensos domínios, reinando sobre povos de
pobres e de escravos, grandes famílias viviam apenas para o prazer. Os francos
dividiram essas terras com a mesma avidez que presidira outrora a partilha dos
cavalos, das armas e dos tesouros. Cada qual estabeleceu sua morada no lote
que passara a ser seu e identificou-se com essa terra, transformada em sua
herança (Alod) e de seus filhos.
Tais foram as origens dos primeiros senhores. Alguns continuaram pagãos;
outros, após terem recebido o batismo, continuaram a colocar em suas relações
sociais uma odiosa crueldade. Mas
houve também famílias nas quais a graça de Cristo, encontrando um sangue
generoso, produziu as virtudes que fizeram delas nossa aristocracia, primeira na
ordem temporal e também no valor moral e guerreiro. Sob os auspícios da Igreja,
elas aprenderam a conhecer e a praticar os deveres em relação ao próximo, e a
caridade começou a estabelecer seu império entre nós. Todos os registros de
atos de emancipação que nos foram legados pelos primeiros séculos da Idade
Média atestam o pensamento religioso que os ditou: "Não é preciso prender com
cadeias aqueles que Cristo tornou livres pelo batismo, porque não há diferença de
condição a Seus olhos, pois somos todos unidos e iguais perante Ele".
As instituições sociais que então se ergueram nasceram desse espírito. "Não
foi de instituições envelhecidas de uma nação em decadência (os romanos), diz
o editor da obra econômica de Montchrétien; menos ainda dos hábitos
grosseiros de bandos a custo disciplinados (os germanos), que saiu a civilização
moderna, mas da força, da intensidade das afeições difundidas na população
inteira (pelos monges, bispos e santos), afeições que se transformam em
obrigações mútuas e costumeiras e, em conseqüência, em direitos recíprocos".
Vêem-se reaparecer aqui, mais depuradas e santificadas, as relações sociais
que admiramos na clientela romana e na clientela grega. Elas envolveram toda a
sociedade como uma imensa rede, não somente de grandes feudatários a
pequenos senhores e de senhores a vassalos, mas também de patrões a
operários. Conhecemos a bela legislação que Etienne Boileau deu às
corporações de operários no século XIII.
O século XIII constituiu o apogeu da aristocracia feudal e da grandeza da
França. Ela havia então estabelecido seu território e criado o gênio francês, feito
sobretudo de generosidade.

Sucedeu-a uma outra aristocracia. Essa substituição não ocorreu


subitamente, mas se deu pouco a pouco nas suas classes. Os bisnetos dos
primeiros senhores não tinham mais as virtudes impulsivas de seus ancestrais;
eles se "civilizavam" mais ou menos, no sentido ruim da palavra; e nessa medida
viam famílias que lhes eram estranhas aumentarem insensivelmente nas suas
fileiras: de sorte que se pode estabelecer entre o século XIV e o século XV o
surgimento da aristocracia chamada territorial para distingui-la da aristocracia
feudal. Esse segundo rebento, saído do tronco generoso da raça franca, não teve
o valor do primeiro. A primeira seiva é sempre a mais forte. Assim, enquanto esta
conservou seu vigor durante oitocentos anos, a outra pôde completar apenas um
percurso menor que a metade. Além disso, teve a infelicidade de chegar junto
com a Renascença, de ser mais tarde presa do absolutismo real e, enfim, de ser
inoculada pelo veneno filosófico.
No entanto, a França podia ainda gloriar-se dela e ela fez muito pela
grandeza do país em todos os sentidos.
A aristocracia territorial buscava de uma maneira contínua seus
componentes entre as famílias que se sobressaíam por longas tradições de
trabalho e de virtudes até atingir a generosidade de alma que faz a nobreza.

34
Quando não havia outra fonte de riqueza além da cultura, toda família rica era
rica apenas porque se tinha pouco a pouco enobrecido nos seus sentimentos por
uma longa prática das virtudes familiais, e desde então ela podia ser enobrecida.
Era uma família antiga, respeitável, uma boa família, segundo a expressão que
ficou. Para isso foi-lhe necessário educar e educar cada vez melhor uma longa
seqüência de gerações; e foi necessário que, nessa seqüência, não ocorresse a
fraqueza de nenhum dos elos da cadeia, porque então tudo teria que ser
recomeçado. Como disse Blanc de Saint-Bonnet: "Os séculos vinham colocar-se
como florões sobre sua coroa, e foi a mão do tempo que se apressou em sagrá-
la".
Essa segunda aristocracia viveu como a primeira, militarmente,
patriarcalmente e agricolamente, submetendo ao cultivo a terra adquirida por seus
pais, defendendo-a e espalhando ao redor dela a justiça, a bravura e o
desinteresse. Dessa maneira ela manteve o tríplice capital da nação: capital
material, capital intelectual e capital moral. Eis os termos que Taine usa para
falar disso: "O senhor é proprietário residente e benfeitor, promotor de todos os
empreendimentos úteis, tutor obrigatório dos pobres, administrador e juiz gratuito
da região, deputado sem paga junto ao rei, isto é, condutor e promotor, como
outrora, mediante um patronato novo, apropriado às circunstâncias".
Infelizmente, esses costumes salutares, esses laços de união e de afeição
que ligavam todos os cidadãos de alto a baixo da escala social relaxaram-se
imperceptivelmente. A política de Luís XIV obstinou-se em separar os gentis-
homens do povo, atraindo-os à corte e aos empregos. Crendo fortalecer-se, a
realeza destruiu com suas próprias mãos o fundamento sobre o qual estava
estabelecida. 4 Henrique IV fora melhor inspirado. "Ele declarou à sua nobreza,
diz Perefixe, que queria que cada qual se acostumasse a viver de seus bens, e
que para esse efeito ele estava bem à vontade, visto como gozavam de paz, que
fossem ver suas casas e dessem ordem de valorizar suas terras. Assim, ele os
aliviava de grandes e ruinosas despesas na corte, reenviando-os às províncias,
e ensinava-lhes que o melhor fundo que se pode construir é o de uma boa família.
Com isto, sabendo que a nobreza francesa era melindrosa no imitar o Rei em
todas as coisas, ele lhes indicava, por seu próprio exemplo, a supressão da
superfluidade nos trajes; porque ele ia ordinariamente vestido de tecido cinza,
com um gibão de cetim ou de tafetá sem cortes, passamanes ou enfeites. Ele
louvava os que se vestiam dessa maneira e ria-se dos outros, que carregavam,
dizia, seus moinhos e suas ramarias de árvores altíssimas nas costas ".
4
Bourdaloue lembrava assim aos senhores do grande século seus deveres.
"Aristóteles, o Príncipe dos Filósofos, não possuía nenhum princípio de cristianismo, no entanto
compreendia essa obrigação quando dizia que os reis, nesse alto grau de elevação que nos faz olhá-
los como divindades da terra, não são mais do que homens feitos para os outros homens, e que não
é para eles mesmos que são reis, mas para os povos.
"Ora, se isto é verdadeiro em relação à realeza, ninguém poderá acusar-me de levar, a esse
respeito, a coisa longe demais, se adianto que não se pode ser nada no mundo, nem se elevar, ainda
que pelas vias retas e legítimas, às honras do mundo, senão pela disposição de empregar-se,
interessar-se e consagrar-se e mesmo de devotar-se ao bem daqueles que a Providência faz
depender de nós; que um homem, por exemplo, revestido de uma dignidade, não é senão um súdito
destinado por Deus e escolhido para o serviço de um certo número de pessoas às quais ele deve
suas preocupações; que um particular que toma um encargo, desde então não existe mais para si, mas
para o público; que um superior, que um professor, não tem a autoridade à disposição senão
porque deve ser útil a toda uma nação, posto que, sem autoridade, ele não pode sê-lo. Praes, dizia
São Bernardo, escrevendo a um grande do mundo, pondo diante dos olhos deste a idéia que ele
devia ter de sua condição, praes non ut de subditis crescas, sed ut ipsi de te. Estais no lugar de
comando, e é justo que se vos obedeça. Lembrai-vos, porém, que essa obediência vos é dada a título
oneroso e que sereis prevaricador se não a fizerdes servir inteiramente em benefício dos que vo-la
prestam".
35
Sob Luís XIV, a nobreza recebeu outras lições e infelizmente deixou-se levar
por outros exemplos; sabemos quais foram as conseqüências.
"O afastamento físico, diz Tocqueville, produziu pouco a pouco entre os
senhores um afastamento de coração. Quando o gentil-homem reaparecia no
meio dos seus, ele revelava os desígnios e os sentimentos que tivera seu
intendente na sua ausência. Ele não via mais em seus arrendatários senão os
devedores dos quais ele exigia com rigor o que lhe cabia segundo a lei ou o
costume. Daí os sentimentos de rancor e de ódio. Além disso, por efeito desse
mesmo afastamento, toda a direção geral falhava, as terras caíam em deplorável
abandono. A nobreza logo formou uma casta, ciosa de seus títulos, ciumenta de
seus privilégios, e que não mais se justificavam, nem uns nem outros, em razão
da direção imprimida à vida da nação".
Quando estourou a Revolução, fazia já um século que cada classe vinha
caminhando à parte, entretendo e avolumando seus preconceitos e seus ódios
contra a classe que, antes aliada, se tornara rival.
É isto que explica, pelo menos em parte, o que aconteceu no campo.
Podemos observar que por toda a parte onde os proprietários imobiliários tinham
conservado o contato com seus arrendatários, o antagonismo de classes não se
manifestou. Testemunha isto o que se fez na Vandéia, em Anjou, em Poitou, na
Bretanha e na Normandia. Ao contrário, em toda a parte em que os senhores
administraram seus bens pelo intermédio de intendentes e onde, em
conseqüência, eram desconhecidos de seus arrendatários, em toda a parte, em
uma palavra, em que se perdeu o contato entre ricos e pobres, o antagonismo
social revelou-se com grande violência. Taine estabeleceu esse fato em várias
passagens de seus escritos.
A aristocracia imobiliária, assim caída, deu lugar, como em Atenas e em
Roma, à aristocracia de dinheiro, que a Revolução nos legou.
Segundo o visconde d'Avenel, 5 os riquíssimos de hoje, na França, o são doze
vezes mais do que os mais ricos personagens do Ancien Régime; eles são dez
vezes mais ricos ou vinte vezes mais numerosos do que os mais opulentos
príncipes dos tempos feudais. Há hoje na França 1.000 pessoas que têm
200.000 francos de rendas mobiliárias ou imobiliárias. Entre essas 1.000, há
350 que têm 500.000 francos de rendimentos. Dessas 350 podemos citar 120 que
dispõem anualmente de mais de um milhão de francos de receitas; 50 dentre elas
têm um orçamento normal de 3 milhões de francos; e dessas 50, há uma dezena
que tira de seus capitais uma soma superior a 5 milhões por ano. Não se
conhece ninguém da Idade Média que possa ser comparado aos 50 particulares
que formam as duas categorias mais altas. Há coisa pior para um povo do que a
destruição de seus exércitos e de suas frotas, a bancarrota de suas finanças e a
invasão de seu território; é o abandono de suas tradições e a perda de seu ideal.
A história de todos os povos aí está para no-lo atestar.

5
Revue des Deux-Mondes
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37
CAPÍTULO V
QUE DESTINO A ARISTOCRACIA DE DINHEIRO
RESERVA PARA SI E PARA A F RANÇA?

Inflammatur lucro avaritia, et non extinguitur.


Quasi gradus quosdam cupiditatis habet, et quo
plures ascenderit, eo ad altiora festinat: unde fit
gravis ruina lapsuro. 1
S. AMBROSIUS, De Naboth.

Nos nossos dias a suserania pertence ao ouro. Esse metal coloca aos pés
de seu possuidor todas as forças, não somente da França, mas do mundo.
Havia, sem dúvida, um grande poder nos séculos que precederam a Revolução,
mas ele encontrava uma rivalidade na aristocracia, que numerosas vezes o
suplantou. Hoje, o ouro quase passou ao estado de divindade; em toda a parte
ele comanda, em toda a parte é adorado.
Esse novo poder tomou dos poderes que o precederam apenas os abusos
nos quais tinham-se deixado levar.
"Os homens da Revolução, diz Vogue, 2 não duvidavam de que iriam abolir
todos os privilégios e assegurar o reino da igualdade.
"Na pressa do seu otimismo, não refletiam sobre uma lei da história: cada vez
que uma sociedade se desembaraça de antigas dignidades, de antigos poderes
espirituais e temporais, um senhor permanece, inexpugnável, o mais duro e o mais
sutil dos senhores, o dinheiro.
"Ele se insinua nas elevadas posições deixadas vazias, recolhe toda a
autoridade tirada de seus rivais, restabelece em seu benefício, sob outras formas,
dignidades e privilégios. Todos lhe obedecem, porque só ele concede tudo o
que dá valor à vida".
1
A avareza não é satisfeita, mas sim estimulada, pelo lucro. Tem como que algo da condição da
cobiça, pela qual, quanto mais cresce, por isso mesmo mais corre para o alto: por onde produz grave
destruição, em razão da qual há de cair. (N. do T.).
2
Un siècle, mouvement du monde de 1800 à 1900.
38
A aristocracia francesa deveu sua grandeza àquilo que havia feito a
grandeza das aristocracias antigas: a dedicação das classes dirigentes pelas
classes dirigidas, a afeição das classes dirigidas pelas classes dirigentes, a união
dos esforços para o maior bem de todos. Entre nós, como nas antigas
civilizações, a decadência foi a conseqüência natural da separação que se deu
entre a nobreza e o povo, que viviam cada qual sua vida, não mais se amando,
não mais se auxiliando mutuamente, não mais se conhecendo. A nobreza havia
desertado dos campos para ir perder-se na corte dos reis, e aí gastar em prazeres
e em luxo o dinheiro que o trabalho dos lavradores lhe obtinha. "Pode-se
permanecer ligado e afeiçoado, pergunta Tocqueville, a pessoas que não
significam nada pelos laços da natureza e que não mais são vistas? É sobretudo
nos tempos de privação que se percebe que os laços de proteção e de
dependência que outrora ligavam o proprietário rural aos camponeses estão
frouxos ou rompidos. Nesses momentos de crise, o governo central assusta-se
com seu isolamento e sua fraqueza; ele quereria fazer renascer para o momento
as influências individuais que ele destruiu; ele as chama em seu socorro: ninguém
vem, e ele se espanta em encontrar mortas as pessoas às quais ele próprio tirou
a vida". Alguns anos antes da Revolução, a nobreza quis reaproximar-se do povo;
era tarde demais. Fazia um século que cada classe vinha percorrendo seu
próprio caminho, aumentando, de geração em geração, os ódios e preconceitos
contra a classe rival que não mais conhecia, que não mais compreendia.
Sabemos o que resultou disso. A sociedade desmoronou em ruínas e em sangue.
O conde de Chambord quis persuadir ao que restava da aristocracia, de
retomar, tanto quanto as circunstâncias permitiam, seu papel providencial. "Não
cessarei, dizia, de recomendar a todos aqueles que permaneceram fiéis à nossa
causa, de habitar suas terras o mais possível, e de dar o exemplo de todas as
melhorias possíveis. É o verdadeiro e o único meio de destruir as prevenções
injustas, e de dar à propriedade imobiliária a parte de influência que lhe pertence,
e que seria tão útil que ela alcançasse na administração e na condução dos
negócios do país". Ele felicitava os que tinham "conservado, com a fé de seus
pais, o culto do lar e o amor ao solo natal". "As seduções revolucionárias, dizia,
exercem seus estragos sobretudo sobre as populações desamparadas por seus
protetores naturais. Rápidas aparições não substituirão jamais a afeição no
relacionamento, o desinteresse nos serviços, a adesão aos conselhos". Não foi
escutado tanto quanto deveria ter sido.

A burguesia tinha tomado o lugar da nobreza na sociedade. Ela conheceu,


ela conhece os deveres que essa situação lhe impõe?
As tradições de proteção, de um lado, de disciplina de outro, criadas pelas
antigas corporações, ainda se mantiveram na pequena indústria algum tempo
após a Revolução. Le Play fala com comprazimento das oficinas baseadas no
modelo das de outrora, que via ainda por volta de 1830. "Antes de 1830,
escreve, as oficinas parisienses já carregavam o vestígio das idéias subversivas
e dos sentimentos de ódio que as revoluções anteriores haviam feito nascer. No
entanto, pude observar então instituições e costumes que não perdiam em nada
para o que encontrei de mais perfeito, durante trinta anos, no resto da Europa: o
patrão e sua esposa, que conheciam, em todos os detalhes, a vida doméstica
de seus operários, e estes, que se preocupavam sem descanso com a
prosperidade comum. A solidariedade e a harmonia estavam presentes em todas
as relações do patrão e do operário. Em 1867, numa época em que eu dispunha
de numerosos meios de informação — ele era diretor da Exposição Universal —
procurei em vão, nas antigas oficinas, agora aumentadas e enriquecidas, alguns

39
vestígios dessas tocantes relações. Verifiquei, sobretudo, a falta da afeição e do
respeito".
A razão disto está indicada nestes termos por Funck-Brentano, em A Política:
"Aqueles que, oriundos das classes médias, chegam rapidamente à riqueza e às
honras, sem encontrarem neles os recursos para aí chegar, nem sempre
adquirem, por esse fato, o que somente a tradição e a educação desenvolvem: as
qualidades necessárias ao exercício de suas novas funções sociais. Criados nas
privações, eles possuem necessidades insaciáveis como sua ambição e seu
egoísmo: ganhar mais, chegar mais longe! Os que dependem deles, operários
ou empregados, permanecem como trampolins para suas fortunas ou vítimas de
suas ambições. Enfim, como não receberam pela educação, diríamos quase pelo
aprendizado, as qualidades morais próprias à sua situação elevada, vemo-los
cada vez menos delicados na escolha dos meios; sua moralidade se altera assim
como seu caráter e não valem mais do que seu instinto pelos negócios ou por
seu espírito de intriga. Na geração seguinte, o mal se apresenta. Os filhos não
podem receber de seus pais uma educação que aqueles mesmos não tiveram;
mas, por efeito da riqueza ou da posição que seus pais adquiriram, os filhos
procuram apenas a satisfação de seus gostos, de seus prazeres. Os caracteres
se degradam, e freqüentemente a terceira ou quarta geração acaba no hospital
ou numa casa de saúde, enquanto novas famílias, chegadas à fortuna da mesma
maneira, substituem as primeiras".
Em todos os pontos da França seria fácil colocar nomes sob cada uma das
fases desse quadro.
Quase não poderia ser de outra maneira.
A riqueza cuja fonte está na terra encontra aí os limites de sua ambição: a
que provém da indústria, do comércio, dos bancos, não conhece limites; tendo
chegado a ser milionária, ela aspira a ser bilionária, e sabemos que chega a sê-lo
várias e várias vezes. Nisso está todo seu objetivo, e, para alcançá-lo, ela
explora o homem como explora a matéria, em vez de amá-lo e servi-lo. O homem
se apaga aos olhos do capitalismo, ele não é mais do que um meio nas mãos
daqueles cujas faculdades, todas, são dirigidas para o objetivo que perseguem: a
fortuna.
A Revolução havia proclamado a igualdade de todos. Mas, observa Le Play,
tornando teoricamente o operário igual ao patrão, o patrão estava dispensado
relativamente àquele da obrigação moral de assistência e proteção.
Ela havia proclamado a liberdade de trabalho. A burguesia, rica de
experiência, de recursos e de capitais, podia trabalhar ou não trabalhar, de
acordo com a sua vontade; mas o operário ficava preso à necessidade implacável
do labor quotidiano. Com os privilégios da nobreza, a Revolução havia jogado
fora os privilégios dos operários, isto é, as regras e os costumes que, na
corporação, os protegiam. A burguesia, não vendo mais entraves à cupidez tão
natural do homem, tratou o operário como um utensílio do qual se tira tudo o que
se pode, sem maiores preocupações, seja com a sua saúde, seja com a sua
moralidade.
Ela assim procedeu, sem ser barrada pelas condições econômicas que,
outrora, se lhe teriam oposto. 3
3
Em nenhum lugar a mentira da liberdade se revelou mais abertamente do que na ordem econômica.
Sua miragem evanesce como um sonho tão logo a vida põe em contato indivíduos isolados. O
operário tem diante de si um patrão que lhe propõe um determinado salário. É louvável que o
operário o recuse? Não, as necessidades da existência, talvez uma família da qual cuidar,
obrigam-no a aceitar as condições que lhe são oferecidas.
O patrão também não é livre. Ele apreciaria, na maioria dos casos, retribuir convenientemente
seus empregados e operários. Apenas ele não pode, sendo prisioneiro de uma concorrência sem
limites. E ele se esforça em vão para ter acesso a toda sorte de expedientes para escapar aos efeitos
40
À falta de freio junta-se a falta de escrúpulos. A continuidade do trabalho e
da parcimônia, durante numerosas gerações, transmite a cada uma delas as
virtudes que começaram a prosperidade da família. Mas essas tradições não se
formam nas famílias que, ocupando-se da indústria, do comércio, dos bancos,
chegam rapidamente ao cume, mediante golpes de sorte. Vemo-las, como
acaba de observar Funck-Brentano — falando de maneira genérica, e salvo as
exceções que a virtude do cristianismo pôde produzir —, pouco desinteressadas,
pouco sensíveis à honra, pouco aplicadas aos nobres pensamentos que inspiram
a fé e a caridade cristãs; e, em conseqüência, mais hábeis em seus negócios do
que devotadas ao bem, aspirando a abandonar-se cada vez mais ao bem-estar,
ao luxo, aos prazeres que o dinheiro lhes permite obter.
Nessas condições, as boas relações sociais com aqueles cujo trabalho
serviu para elevá-los e continua a mantê-los em sua posição ou a nela crescerem,
são muito raras e muito fracas, para não dizer nulas.
Elas o são ainda por um outro motivo. Tocados pelo desejo de se enriquecer
sempre mais, os grandes industriais multiplicam suas indústrias ou
desenvolvem-nas em imensas proporções. Atraem para lá, ao redor deles,
populações cada vez mais numerosas. O contato do patrão com os operários
torna-se quase impossível: entre eles são encontrados mestres e contramestres, e
acima de todos, os acionistas, pois essas grandes empresas não podem
prosseguir sem grandes capitais tirados de numerosas bolsas. Pode-se pôr a
questão da proteção e sobretudo de paternidade para esses homens cujas ações
repousam no fundo de um cofre forte, e que de nenhum modo conhecem os
trabalhadores cujo labor dá valor a seus papéis?
Por todas essas razões, o burguês opulento também acabou por viver
separado do povo, como o gentil-homem dos últimos tempos. Ele terá
necessariamente a mesma sorte. Podemos mesmo dizer uma sorte pior: porque
em todas as épocas e entre todos os povos, a queda da aristocracia financeira,
industrial e comercial foi acompanhada de desordens mais violentas e mais
sangrentas do que as causadas pela suplantação da aristocracia feudal pela
aristocracia imobiliária.

Na Grécia, na Itália, na França, a aristocracia feudal, repousando sobre


sentimentos profundamente enraizados nas almas, manteve-se por longos
séculos. O homem inclina-se sem repugnância diante do que ele crê ser o
direito, ou do que suas opiniões lhe apresentam como estando muito acima dele.
Menos tempo durou a nobreza imobiliária, porque ela era menos sólida. Ela
era ainda muito sólida, porque também repousava sobre a opinião. As grandes
propriedades estavam há muito tempo na posse das famílias, constituíam o seu
patrimônio, levavam o seu nome, pareciam inerentes às próprias famílias. De
geração em geração os trabalhadores tinham visto ser transmitido de pai para
filho o domínio no qual viviam. Foi preciso o esquecimento dos deveres que esse
domínio impunha, para que pudesse surgir a idéia de despojar o proprietário de
suas terras.
A aristocracia de dinheiro não teve entre os antigos povos tão longa duração.
O rápido crescimento das fortunas adquiridas pela indústria, pelo comércio e pela
especulação, assim como sua instabilidade, não as recomendam ao respeito dos

dessa concorrência, e ele não é menos constrangido em sofrer os efeitos de sua lei. Lei implacável
que o coloca na impossibilidade material de dar a seus colaboradores uma remuneração condizente
com as condições da existência.
Assim, não é a independência, nem a liberdade, que o estado individualista engendra: é a servidão,
é a dependência: dependência do empregado relativamente ao patrão, dependência do patrão
relativamente à concorrência, dependência de todos relativamente às condições econômicas.
41
povos; menos ainda a fonte impura na qual várias se abeberaram. Enfim, a
desigualdade das condições que elas criam na mesma classe desencadeia as
cobiças e os apetites.
De maneira geral, o burguês pouco faz para apaziguá-las, não procura
aproximar-se da classe inferior, conhecer-lhe as aspirações e as necessidades;
ele foge do contato com suas misérias, longe de unir-se a ela para procurar
abrandar-lhe os sofrimentos, afastar o vício, restringir a pobreza.
Certamente, nesses últimos tempos um certo número de patrões deu ouvido
à voz da humanidade e da religião e fez grandes sacrifícios para a melhoria da
condição física e moral de seus operários. Encontram-se mesmo acionistas que,
nas assembléias, tomam a peito e em suas mãos seus interesses.
Todavia, não passam ainda de exceções.
O estado atual é este. Ao redor das fábricas amontoam-se multidões vindas
de todas as partes, desenraizadas dos campos que as viram nascer, arrancadas
dessa forma a todas as influências da família, da vizinhança, da paróquia.
Todos os laços que as retinham no bem, a honra da família, o respeito próprio em
relação aos que nos conhecem, a ação da religião através de suas instruções e
sacramentos, tudo isto é quebrado e logo substituído por outras influências: a
taberna, o jornal, o sindicato; a taberna, que corrompe o coração; o jornal, que
corrompe o espírito; o sindicato que acorrenta a vontade. O operário torna-se
assim muito facilmente e muito prontamente presa dos ambiciosos que adulam
seus piores instintos, dos escritores que espalham as idéias mais falsas, dos
camaradas através dos quais todas as sãs tradições são combatidas e
derrubadas, uma a uma. Os cérebros são invadidos pela dominação cega das
palavras: progresso, igualdade, liberdade, democracia; e as mãos seguram a
arma invencível do sufrágio universal.
Tudo isso não anda sem carregar consigo uma profunda desmoralização e a
desmoralização não tarda a produzir seu fruto: a pobreza. Os apetites devoram o
salário todos os dias; mais ele cresce, mais alimenta os apetites, e mais a
miséria se desenvolve.
Ela se abate sobre essas massas que, não mais tendo fé, nem lei, nem
fogo, nem lugar, não são contidas por mais nada, e estão dispostas a tudo para
alcançarem os gozos nos quais vêem seus patrões se fartarem.
Tocqueville escreveu: "É sempre com grande dificuldade que as classes altas
chegam a discernir claramente o que se passa na alma do povo. Quando o pobre
e o rico não têm praticamente mais interesses comuns, dificuldades comuns e
negócios comuns, essa obscuridade que esconde ao espírito de um o espírito do
outro torna-se insondável, e esses dois homens poderiam viver eternamente lado
a lado, sem jamais se compreenderem. É curioso ver em que estranha segurança
viviam todos os que ocupavam os estágios superiores e médios do edifício social
no exato momento em que a Revolução começava, e de ouvi-los discorrer
habilmente entre eles sobre as virtudes do povo, sobre sua candura, quando 1893
já estava sob seus pés".

Hoje a ilusão não é mais tão fácil. Para estar esclarecido, basta abrir os
jornais populares e os livros daqueles que são os únicos doutores ouvidos pelo
povo. Eles convencem que a condição do operário, na nossa sociedade, é pior do
que a do antigo escravo. Eles vão bem longe. "A propriedade, eis o roubo",
escreveu Proudhon. "O capital não passa de trabalho morto, escreveu Karl Marx,
e que, semelhante ao vampiro, só se anima sugando do trabalho vivo, e sua vida é
tanto mais alegre quanto mais ele sorve". "À medida que diminui o número dos
potentados do trabalho, escreve ainda, pela concorrência que fazem entre si,
aumentam as misérias, a opressão, a escravidão, a degradação, a exploração,

42
mas também a resistência da classe operária, sempre crescente e cada vez mais
disciplinada, organizada, unida pelo próprio mecanismo da produção capitalista.
Socialização do trabalho e centralização que chegam a um ponto que, não
podendo mais ser mantidas dentro do invólucro capitalista, rompem esse
invólucro em estilhaços. Soou a última hora da propriedade; os expropriadores
serão por sua vez expropriados".
E de que maneira se operará essa expropriação? Marc Stirmer di-lo: "Se
alguém se opõe à nossa marcha, como uma pedra no caminho, nós o faremos ir
pelos ares".
Essa catástrofe foi anunciada há muito tempo pelos clarividentes. Basta que
sejam lembradas as palavras de Le Play, Blanc de Saint-Bonnet, Donoso Cortez
etc.
Mas, ao lado dos clarividentes, quantos outros parecem tocados por essa
cegueira de que fala Pierre Leroux:
"Há homens verdadeiramente cegos, que não vêem nada nem pelo coração
nem pelo pensamento, que não vêem senão com os olhos do corpo. Se lhes
perguntardes: Babilônia ou Palmíria existiram e foram destruídas? Eles vos
responderão: sim; porque eles podem vos mostrar ruínas materiais, escombros
de edifícios enterrados nas areias do deserto..., mas se vós lhes disserdes que a
sociedade social está destruída, eles não vos compreenderão e rirão de vós,
porque eles vêem por todos os lados campos cultivados, casas e cidades cheias
de homens. Que dizer a esses cegos, senão o que Jesus dizia a seus
semelhantes: Oculos habentes, non vident”.
E no entanto, a Providência não lhes poupa os avisos.
"Quando uma sociedade não vê mais ou não quer ver o que deve fazer, diz
Alexandre Dumas Filho, essa Providência indica-lhe o caminho inicialmente
através de pequenos acidentes sintomáticos e facilmente remediáveis; depois,
persistindo a indiferença ou a cegueira, Ela renova Seus indicativos mediante
fenômenos periódicos, aproximando-os um dos outros cada vez mais,
acentuando-os cada vez mais, até alguma catástrofe de uma demonstração de
tal maneira clara que ela não deixa nenhuma dúvida sobre a vontade da dita
Providência. É então que a sociedade imprevidente se assusta, se amedronta,
grita contra a fatalidade, contra a injustiça das coisas".
Não é pouco provável que assistamos novamente às cenas horríveis que
desolaram a Grécia nos seus últimos tempos. Já temos o prólogo disso nas
greves que se multiplicam, que se alastram, que preparam a greve universal, à
qual o mundo operário todo se dispõe, e para a qual se organiza.
Mas toda a greve aumenta a miséria e toda a miséria maior atiça os ódios.
Em que abismo a greve geral fará cair a sociedade! E em que estado ela colocará
os espíritos e os corações! O judeu Henri Heine não profetizava às cegas quando
dizia: "Não está longe o dia em que toda a comédia burguesa na França terá um
fim terrível e em que se representará um epílogo intitulado: o reino dos
comunistas. Em Paris podem então passar-se cenas perto das quais as da
antiga Revolução pareceriam serenos sonhos de uma noite de verão".
Isto não seria apenas a ruína da burguesia, mas da pátria e da sociedade
inteira.
Por quê? Porque a lei das sociedades humanas terá cessado de ser
observada. Suspendei a lei da atração e o mundo cairá num terrível caos, os
astros se chocarão e se despedaçarão uns contra os outros. Suspendei no mundo
social a lei da harmonia entre as classes, e elas também se devorarão.
Nada pode salvar nossa sociedade de uma ruína irremediável, se não for o
restabelecimento dessa harmonia que Leão XIII mostrou como devendo ser a
salvação e à qual muito pouco numerosos patrões se têm dedicado. Afora isso,

43
todo outro meio é insuficiente. "Um, diz Monsenhor Ketteler, quer nos curar por
uma melhor divisão dos impostos, outro por diferentes categorias de caixas de
poupança, o terceiro pela organização do trabalho, o quarto pela emigração,
este pelo protecionismo, aquele pelo livre comércio, este outro pela liberdade das
associações de classe ou pela divisão do solo e da fortuna, este outro
precisamente pelos opostos, e outros ainda pela proclamação da República que
suprimiria toda a miséria e realizaria o paraíso sobre a terra. Esses meios têm,
certamente, maior ou menor valor, e alguns podem agir eficazmente; mas, para
curar nossas chagas sociais, eles não são mais do que uma gota de água no
oceano. A reforma interior de nosso coração, eis o que nos salvará. As duas
poderosas doenças do nosso coração são, de um lado, a sede insaciável de
gozar e de possuir, de outro lado, o egoísmo que matou em nós o amor ao
próximo. Essa doença atingiu tanto os ricos como os pobres. Que podem contra
isso uma nova divisão do imposto, ou das caixas de poupança..., enquanto
viverem esses sentimentos em nossos corações"? 4

4
L'un des six sermons prononcés à Mayence. Tradução de Decurtins.
44
45
CAPÍTULO VI

A SALVAÇÃO ESTÁ NO RETORNO


À PAZ SOCIAL

Spiritus humanus nunquam vivificat membra,


nisi fuerint unita; sic Spiritus Sanctus nunquam
vivificat ecclesiae membra nisi fuerint in pace
unita.1
S. AUG. De Civ. Dei.

A França, que havia precedido e guiado as nações modernas pelos caminhos


da civilização, foi a primeira a abandoná-los. Poderá ela reentrar nesses
caminhos? Como poderá fazê-lo?
Perguntaram um dia a Sócrates que remédio conviria ministrar aos males de
que os gregos sofriam. Ele respondeu: "Os gregos devem fazer o que faziam no
tempo em que eram felizes e prósperos". Leão XIII disse a mesma coisa: "Para
quem quer regenerar alguma sociedade em decadência, prescreve-se com
razão fazê-la retornar às suas origens". 2 Nas origens, nos tempos de
prosperidade e de felicidade, as relações entre as diversas classes da sociedade
estavam baseadas nos sentimentos que reinavam no lar familiar e que,
irradiando-se pouco a pouco, tinham acabado por constituir a nação.
À medida que esses sentimentos se enfraqueceram, afrouxaram-se os
vínculos naturais, quebrando-se depois, uns após os outros. E hoje, para que a
sociedade possa ainda subsistir, foi necessário substituí-los por vínculos artificiais,
por todo um conjunto de meios, imaginados e instituídos concomitantemente com
os abalos que se produziam na sociedade, para manter numa certa ordem os
diversos membros sociais, fazê-los corresponder-se entre si e dar ao Estado uma
vida fictícia.

1
O espírito humano jamais dá vida aos membros do corpo se não estiverem unidos; assim o Espírito
Santo nunca dá vida aos membros da Igreja, se não estiverem unidos na paz. (N. do T.).
2
Encíclica Rerum novarum.
46
Foi assim que nasceu o regime administrativo inaugurado por Luís XIV,
constituído pela Revolução, consolidado e fixado por Napoleão I.
"Esta nação, dizia o imperador, está toda dispersa e sem coerência; é preciso
refazer alguma coisa; é preciso lançar no solo alguma base de granito". As bases
que ele lançou foram as instituições administrativas. Não há nada de granítico
nelas. As instituições sólidas e duráveis são aquelas que reúnem os homens que
comungam as mesmas idéias, os mesmos sentimentos, os mesmos interesses.
O regime administrativo não tem nenhuma raiz nas almas; ele é inteiramente
feito de regulamentos rígidos, aplicados por homens que têm a inflexibilidade da
máquina da qual são apenas as engrenagens. A máquina administrativa rebaixa
tudo, tritura tudo, mesmo as consciências; mas não pode deixar de lhe acontecer
o que acontece a toda máquina: um dia ou outro ela voará em estilhaços. Já se
fazem ouvir de todas as partes e em todas as coisas sinistras explosões,
precursoras da catástrofe final.
Teremos a sorte das antigas sociedades? Desapareceremos nesse desastre?
Ou poderemos nos reconstituir? O cristianismo oferece-nos recursos que o
paganismo não conhecia.
Ele soube recolher os destroços das civilizações antigas, e animando-os
com seu espírito, fez surgir dessas ruínas a civilização moderna. Poderá ele
restaurá-la e nos dar a vida? Certamente pode, se nós quisermos.
Ele é a fonte pura da caridade, quer dizer, do mais poderoso princípio
gerador das afeições recíprocas, da dedicação, do respeito, da fidelidade, de tudo
que garante a estabilidade, de tudo que nossos antepassados tinham encerrado
nesta palavra: "A PAZ".
São Denis, o Areopagita, cujas idéias tiveram tão grande influência sobre a
Idade Média, no seu livro Des Noms Divers, cantou a caridade nestes termos:
"E agora honremos, pelo louvor de suas obras harmônicas, a paz divina, que
preside toda aliança. Porque é ela que une os seres; que os concilia e produz
entre eles uma concórdia perfeita; assim, todos a desejam, e ela restaura na
unidade a multidão tão diversificada deles; combinando suas forças
naturalmente opostas, ela coloca o universo num estado de regularidade pacífica.
"É por sua participação na paz divina que os primeiros dentre os espíritos
conciliadores estão unidos, primeiramente entre eles mesmos, depois uns aos
outros, enfim ao soberano autor da paz universal; e que, por um efeito ulterior,
unem as naturezas subalternas a elas mesmas, e entre elas, e com a causa
única da harmonia geral... Dessa causa sublime e universal, a paz desce sobre
todas as criaturas, está presente entre elas, e penetra-as, guardando a
simplicidade e a pureza de sua força; ela as ordena, ela aproxima os extremos
com a ajuda das melhores, e as une assim como pelos vínculos de uma mútua
concórdia".3
Esses pensamentos tão elevados haviam penetrado as almas. Citemos como
exemplo o preâmbulo da "caridade" com a qual o conde de Flandres, Balduíno
III, dotou, em 1114, a cidade de Valenciennes.
"Em nome da Santa Trindade, paz a Deus, paz aos bons e aos maus.
Falamos de paz, meus caríssimos irmãos, para vosso proveito. A paz deve ser
desejada, deve ser procurada, deve ser guardada, pois nenhuma outra coisa é
mais doce, nem mais gloriosa. A paz enriquece os pobres e honra os ricos; a paz
dissipa todo o medo, traz saúde e confiança. Quem poderia enumerar todos os
seus benefícios? As divinas Escrituras dizem em seu louvor: "Ó Deus, como são
belos os pés do mensageiro que anuncia paz e boa nova!" E posto que a paz é
tão louvável e que produz bens em abundância, amai-a, meus caros irmãos, de
todo o vosso coração, mantende-a em vosso pensamento, guardai-a com toda a
3
Cap. XI, tradução de Monsenhor Darboy.
47
vossa força, a fim de que, por ela, possais viver em honra e chegar à paz eterna,
da qual disse Nosso Senhor: "Eu vos dou a minha paz".
Na mesma época, a "confraria" dos comerciantes de tecidos da mesma
cidade publicava suas ordenações, que começavam assim: "Irmãos, nós somos
imagens de Deus, porque está dito no Gênese: "Façamos o homem à nossa
imagem e semelhança". Nós nos unimos nesse pensamento e, com a ajuda de
Deus, poderemos realizar nossa obra, se a dileção fraterna estiver difundida entre
nós; porque pela dileção do próximo, elevamo-nos àquela de Deus. Por isso,
irmãos, que nenhuma discórdia haja entre nós, segundo a palavra do Evangelho:
"Eu vos dou um novo mandamento: que vos ameis uns aos outros, como vos
tenho amado, e conhecerei que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos
outros".4
Reproduzindo esses documentos — que foram atos, e atos que produziram
durante séculos a razão de terem sido emitidos — queremos dizer que seja
necessário retornar ao feudalismo ou aos quadros estreitos das corporações de
outrora? Certamente não. Não se pode retornar às formas sociais do passado;
é coisa impossível, e nada há para lamentar. Mas o que é necessário, e o que
basta, é restaurar nos corações os nobres sentimentos que inspiraram as
instituições do passado, e na sociedade as relações que esses sentimentos
produziram. Desses sentimentos e dessas relações nascerão novas instituições,
conformes ao estado presente da sociedade.
Leão XIII não cessou de exortar a esse propósito. Comentando a palavra de
São Paulo aos Colossenses: "Mas sobretudo tende a caridade, que é o vínculo
da perfeição", ele disse: "Sim, na verdade, a caridade é o vínculo da perfeição...
Ninguém ignora qual foi a força desse preceito da caridade, e com que
profundidade, desde o começo, ela se implantou no coração dos cristãos, e com
que abundância ela produziu frutos de concórdia, de mútuo bem-querer, de
piedade, de paciência, de coragem! Por que não nos aplicaríamos em imitar os
exemplos de nossos pais? O próprio tempo em que vivemos não deve excitar-
nos mediocremente à caridade". 5
"Nós vos recomendamos, acima de tudo, a caridade sob suas formas
variadas, a caridade que dá, a caridade que une, a caridade que restaura, a
caridade que esclarece, a caridade que faz o bem pelas palavras, pelos escritos,
pelas reuniões, pelas sociedades, pelos socorros mútuos. Se essa soberana
virtude fosse praticada segundo as regras evangélicas, a sociedade civil se
conduziria bem melhor".6
"Para conjurar o perigo que ameaça a sociedade, nem as leis humanas,
nem a repressão dos juízes, nem as armas dos soldados seriam suficientes; o
que importa acima de tudo, o que é indispensável, é que se deixe à Igreja a
liberdade de ressuscitar nas almas os preceitos divinos e de estender sobre todas
as classes da sociedade sua salutar influência". 7
"Da mesma forma como no passado nenhuma força material pôde
prevalecer contra as hordas bárbaras, mas, bem ao contrário, foi a virtude da
4
O espírito de caridade, diz Luchaine, era muito desenvolvido em todas as corporações industriais e
comerciais, com mais forte razão quando elas se constituíam em confrarias. Não somente as
confrarias são, sob todos os pontos de vista, sociedades de socorro mútuo, mas uma parte de seu
tesouro comum é geralmente consagrada ao alívio dos infelizes. Grandes esmolas feitas no dia da
festa do patrono, convite a um certo número de pobres para a refeição da corporação, dinheiro
fornecido aos hospitais e leprosários, fundação de hospícios: tais são os usos beneméritos que estão
em prática na maior parte dessas associações (Manuel des Institutions Françaises, período dos
Capetos diretos, p. 368).
5
Encíclica Sapientiae Christianae.
6
Discurso ao Patriciado romano, maio de 1893.
7
Discurso aos operários franceses, 20 de outubro de 1889.
48
religião cristã que, penetrando seus espíritos, fez desaparecer sua ferocidade,
abrandou seus costumes e tornou-os dóceis à voz da verdade e da fé
evangélica; assim, contra os furores de multidões desenfreadas, não haveria
proteção segura sem a virtude salutar da religião, que, difundindo nos espíritos
a luz da verdade, insinuando nos costumes os preceitos da moral de Jesus Cristo,
far-lhes-á ouvir a voz da consciência e do dever, e porá um freio às
concupiscências antes mesmo que se ponham em ação e amortecerá a
impetuosidade das más paixões". 8
Conjurar o perigo da situação presente é apenas o primeiro serviço que o
retorno à caridade cristã pode nos conceder. Pertence-lhe ainda o
restabelecimento da sociedade na sua verdadeira constituição.
Ainda uma vez, não dizemos que seja necessário voltar aos sistemas das
castas do Egito ou da Índia, nem reconstituir o feudalismo, nem seguir os
métodos do Ancien Régime, mas é necessário compenetrar-se bem desta idéia:
que para escapar dos funestos efeitos do individualismo que, transformando
tudo em migalhas, reduz tudo à impotência, é absolutamente necessário refazer
as associações e organizá-las segundo a diversidade de seus fins e das funções
exigidas pela sociedade. Para alcançar esse objetivo basta a constituição de um
bom e saudável regime corporativo.
"Da mesma forma que no corpo humano os membros, apesar de sua
diversidade, se adaptam maravilhosamente uns aos outros, de modo a formar um
todo exatamente proporcionado e que poderíamos chamar de simétrico, assim, na
sociedade, as duas classes estão destinadas pela natureza a se unirem
harmoniosamente e a se manterem mutuamente em perfeito equilíbrio. Elas têm
imperiosa necessidade uma da outra: não pode existir capital sem trabalho, nem
trabalho sem capital. A concórdia engendra a ordem e a beleza; ao contrário, de
um conflito perpétuo só pode resultar a confusão das lutas selvagens”. 9
"Fazer cessar o antagonismo entre os ricos e os pobres, não é o único
objetivo perseguido pela Igreja; instruída e dirigida por Jesus Cristo, Ela dirige
Suas vistas para mais alto. Ela propõe um corpo de preceitos mais completo,
porque Ela ambiciona restaurar a união das duas classes até uni-las uma à outra
pelos vínculos de uma verdadeira amizade". 10
"A simples amizade será muito pouco; se se obedecem os preceitos do
cristianismo, é no amor fraterno que se opera a união de todos, ricos e pobres". 11
Reintegrada nos corações, essa caridade fixar-se-á por ela mesma nas
instituições, por pouco que se deseje isto.
"O que pedimos é que se cimente de novo o edifício social, pelo retorno às
doutrinas e ao espírito do cristianismo, fazendo reviver, pelo menos quanto à
substância , na sua virtude benfazeja e múltipla, e de tal forma que possam
permitir-lhe as novas condições do tempo, essas corporações de artes e de
ofícios que outrora, informadas pelo pensamento cristão, e inspirando-se na
solicitude maternal da Igreja, proviam as necessidades materiais e religiosas dos
operários, facilitavam-lhes o trabalho, cuidavam de suas poupanças e

8
Carta aos italianos.
9
Encíclica Rerum novarum. Na fábrica, como no ambiente doméstico, a matéria do contrato que
intervém entre o empregador e o empregado não é somente o trabalho a produzir, mas a pessoa
chamada a produzir. De onde segue que o contrato liga essas duas pessoas uma à outra. De onde
segue ainda que o vínculo formado é um vínculo moral que coloca um numa posição superior e o
outro numa posição inferior. Ora, justamente por existir um vínculo de superioridade, há obrigação
de proteção, de paternidade, de um lado, e de deveres filiais de outro, e aí está a razão pela qual as
questões que dizem respeito ao trabalho interessam simultaneamente à religião, à moral e à política.
10
Encíclica Rerum novarum.
11
Encíclica Rerum novarum.
49
economias, defendiam seus direitos e apoiavam, na medida desejada, suas
justas reivindicações". 12
Restabelecidas as corporações, não na sua antiga constituição, mas no seu
espírito, nesse espírito que Leão XIII acaba de descrever, elas muito
contribuiriam para o restabelecimento da "paz".
Um ilustre naturalista julgou poder dar a suas estudiosas observações esta
conclusão: A luta pela existência é a lei do reino animal. O estudo da história
permite afirmar com mais certeza que uma das principais leis da humanidade é o
"acordo pela vida".
Nosso Senhor Jesus Cristo impôs a prática desse acordo nestes termos:
"Tudo que quereis que os homens vos façam, fazei a eles". "Esta fórmula, diz o
Padre Gratry, tão curta e mais simples que a da atração, parece ser, como a lei
dos astros, um princípio completo, o princípio de uma ciência mais rica, mais bela,
mais importante que aquela do céu estrelado. Eis a lei primeira, a lei moral,
causa única de todos os progressos humanos". 13 De fato, a prosperidade se
estabelece e se desenvolve em toda a parte onde esta lei é observada, assim
nas nações como nas tribos, e nas corporações assim como nas famílias. Ao
contrário, a discórdia, a guerra, a ruína, fixam-se em toda a parte em que essa lei
deixa de ser respeitada.
O acordo pela vida tem sua primeira sede na família. É aí que ele
primeiramente se impõe com as mais evidentes razões e pelos mais fortes
sentimentos. "O amor provocado pelo vínculo do sangue, diz Jacques Flach, 14 a
comunhão de vida e de perigo, a necessidade de proteção em comum sob a
égide de um chefe, engendram a solidariedade familiar". As tribos se formaram
somente onde os mesmos sentimentos produziram o mesmo efeito, somente onde
a necessidade de se porem de acordo pela vida, irradiando-se além do lar
doméstico, atraiu as forças vizinhas e fe-las concorrer para um maior
desenvolvimento de ação e de vida. As nações não se formam de outra maneira.
Se tal é a lei da formação das sociedades, se o acordo pela vida é
exatamente a lei da humanidade, e se é exatamente na família que esta lei tem
seu início, assim que uma sociedade começa a se dissolver, que é necessário
para parar essa dissolução? Retornar ao princípio; fazer reviver a lei; e para
acender essa chama, retomar a fagulha do seu fogo, da morada familiar.15
Os franceses eram felizes e prósperos quando a família estava solidamente
constituída entre eles, quando o espírito de família animava a sociedade inteira, o
governo do país, da província e da cidade, e presidia as relações das classes
entre si.
Hoje, a família existe entre nós somente no estado elementar. Reconstituí-la
é obra fundamental, sem a qual toda tentativa de renovação será estéril. Jamais
a sociedade será regenerada, se a família não o for em primeiro lugar. "Ninguém
ignora, disse Leão XIII, que a prosperidade privada e pública depende
principalmente da constituição da família". 16
Balzac também disse: "Nada é sólido e durável se não for natural, e a coisa
natural em política é a família. A família deve ser o ponto de partida de todas as
instituições".
12
Aos operários franceses, 20 de outubro de 1889.
13
La Loi Morale et la Loi de l'Histoire , t. I, p. 11.
14
Les Organes de l'Ancienne France.
15
O autor vale-se aqui dos diversos sentidos da mesma palavra para tornar sua conclusão mais
precisa e literariamente mais bela, nela aglutinando a argumentação que vem desenvolvendo desde o
início da obra e a que acaba de expor neste capítulo. Em francês, foyer significa lar, lareira, foco de
luz, casa, morada, família , e em sentido figurado, centro, sede. (N. do T.).
16
Carta sobre a família cristã, 14 de julho de 1892.

50
CAPITULO VII

A REFORMA DEVE COMEÇAR PELA


RECONSTITUIÇÃO DA FAMÍLIA

Nostine, quod omne quod est, tamdiu manere


atque subsistere solet, quandiu sit unum, sed
interire atque dissolvi pariter, quando unum esse
desierit?1
BOETIUS, De Consol. IV.

"Não são as vitórias dos militares, diz Funck-Brentano, nem os sucessos dos
diplomatas, nem mesmo as concepções dos estadistas que conservam a
prosperidade e a grandeza das nações  e sobretudo que podem devolvê-las
quando perdidas  ; é a força de suas virtudes morais". Essa convicção, formada
no seu espírito pelo estudo aprofundado das diversas civilizações, é a conclusão
do seu livro La Civilisation et ses lois.
É ilusão perigosa crer que um homem, seja ele um gênio, possa, da noite
para o dia, tirar-nos da situação em que nos encontramos e devolver à França sua
antiga grandeza. A queda é profunda demais, e data de muito tempo: começou
há vários séculos. Esse homem poderia apenas levantar-nos e recolocar-nos no
caminho. Ora, não há outra via de salvação senão aquela das virtudes, das
virtudes morais e sociais, que se encontram na origem de todas as sociedades,
propiciando-lhes o nascimento e, em seguida, construindo sua prosperidade
através da concórdia e do auxílio mútuo.
Também não é suficiente que se obtenha dos indivíduos, por mais
numerosos que sejam, a prática dessas virtudes; é preciso que elas sejam
incorporadas às instituições. As virtudes particulares passam com os homens que
as praticam. As nações são seres permanentes. Se as virtudes são o seu
1
Desconheces que tudo quanto existe costuma durar e subsistir enquanto é uno, mas costuma
igualmente perecer e se dissipar quando a unidade se desfaz? (N. do T.).
51
sustentáculo e fundamento, devem ser perpétuas; e essa perpetuidade só pode
ser encontrada nas instituições estáveis.
A primeira dessas instituições, a mais fundamental, aquela que é de criação
divina, é a família. A família, dissemos, é a célula orgânica do corpo social. É nela
que se encontra o centro das virtudes morais e sociais; é dela que as vimos
espraiar-se e penetrar com sua força todos os organismos sociais e o próprio
Estado.
Passou-se dessa maneira com todos os povos que chegaram a uma
civilização.
Ora, a família não existe mais na França. Esta afirmação poderá
surpreender; mas ela espanta apenas aqueles que, vendo nosso país no seu
estado atual, jamais tiveram idéia do que ele era outrora e do que ele deve ser.
Em tempos idos, a família francesa, como a família da sociedade antiga,
constituía um todo denso e homogêneo, que se governava com inteira
independência relativamente ao Estado, sob a autoridade absoluta de seu chefe
natural, o pai, e na via das tradições e dos costumes legados por seus ancestrais.
Atualmente, a família está a tal ponto dependente do Estado que o pai não
tem mais nem mesmo a liberdade de educar seus filhos como sua consciência e
as tradições de família dizem que deve ser. O Estado se apodera deles, com a
vontade legalmente proclamada de fazer desses meninos crianças sem-Deus e,
conseqüentemente, sem-costumes. E os pais de família perderam de tal maneira
o sentimento do que eles são, que deixam acontecer!
É que não temos mais na França, acerca da família, a idéia que dela se tinha
outrora, a idéia que dela tiveram todos os povos que vivem e que progridem.
Nós não a percebemos mais senão como ela é na presente geração. Ela não
forma mais em nosso pensamento, e mesmo na realidade, com as gerações
precedentes e as gerações subseqüentes, esse todo homogêneo e solidário que
atravessava os tempos com sua viva unidade.
Em uma das conferências que proferiu no Oratório, monsenhor Isoard disse
acertadamente:
"A vida do indivíduo é una, mas a análise descobre nela três elementos, as
forças diversas de três tempos distintos. Esse homem já viveu em outras
existências. Ele tem o sentimento de ter vivido em seu avô, em seu bisavô. O
que eles pensaram, ele reencontra dentro de si mesmo. A vida de seus ancestrais
é o começo da sua, é sua primeira época.  A segunda, a presente, a vida
individual, é como uma eflorescência da primeira. Eu continuo a obra do meu
bisavô, acrescento ao seu pensamento; o que ele desejaria fazer, eu faço, eu
prolongo sua ação neste mundo.  Ah! viverei longamente sobre esta terra, na
qual já conto tantos anos de infância pelos meus antepassados, de adolescência
pelo meu pai, de maturidade por minha própria existência! É esta terceira vida
que ele ama, que ele contempla incessantemente. Ele viverá no filho, no neto, no
bisneto. Seu bisavô percebia-o de bem longe, na bruma, quando trabalhava,
conservava, entesourava. E ele, ele olha desse mesmo ponto de vista para a
frente: ele pensa, deseja, edifica para o bisneto, para aqueles que estão lá, tão
distantes, nos limites do horizonte. E, dessa forma, todo o homem que vive em
um tempo no qual reina o espírito de tradição é um em meio a numerosas
gerações. Ele vive nelas. Ele tem esse sentimento, de preparar sua própria vida
naqueles que o precederam, que ele continuará a viver por muito tempo
naqueles que virão após ele".2
2
O japonês Naomi Tamura, voltando de uma viagem aos Estados Unidos, publicou um livro sobre a
família. Ele explica que no seu país o casamento repousa sobretudo sobre a idéia de estirpe. "A vida
de um homem, diz ele, tem menos importância que a vida de uma família. Sob o regime feudal, o
castigo mais terrível era a extinção de uma família que existia há centenas de anos; e ainda nos
52
Em seguida ele relata um colóquio que tinha ouvido um mês antes entre
nosso Monsieur e seu capataz. Este dizia: "No último mês de dezembro fez
trezentos e quarenta e sete anos que nós estamos com Monsieur, e o outro
respondia: Nós , nós estávamos aqui antes de você; não sei exatamente o
número de anos, sei apenas que faz mais de seiscentos anos".  Monsenhor
Isoard assinala: "Eis aí dois homens nos quais ainda não foi esmagado,
torturado, um dos mais profundos, dos mais poderosos sentimentos do homem. É
este sentimento que faz o espírito de tradição, espírito que pode ser contrariado
na sua expansão, cujo esforço, por um momento, pode ser quebrado, mas que é
indestrutível, porque o homem é feito para a vida".
O Estado, nascido da Revolução que retirou da família francesa sua
independência, também elaborou leis para tirar-lhe essa coesão e essa
estabilidade. 3
Entre os numerosos sofismas que J. J. Rousseau, o doutor do Estado
revolucionário, o evangelista da sociedade moderna, tirou da pretendida bondade
inata do homem, encontra-se este: "Os filhos não permanecem ligados aos pais
senão pelo tempo em que têm necessidade dele para se conservarem. Logo que
essa necessidade desaparece, o vínculo natural se dissolve. Os filhos, livres da
obediência que devem ao pai, o pai, livre dos cuidados que devia aos filhos,
retornam todos igualmente à sua independência; se continuam a permanecer
unidos, não é mais naturalmente, é voluntariamente, e a própria família só se
mantém por convenção".4
Essas palavras rebaixam o homem ao nível dos animais. Aí, com efeito, o
vínculo se dissolve assim que cessa a necessidade. A Revolução, que quis fazer
entrar nos costumes, por suas leis, todas as idéias de Jean-Jacques, não deixou
de apoderar-se desta e dela tirou a lei do divórcio. Abolida pela Restauração,
essa lei antifamiliar foi promulgada de novo pela atual República, que a agrava a
cada dia.
A lei de 1884 5 fez esta restrição, que o artigo 298 do Código Civil, que proibia
em caso de adultério o casamento entre os cúmplices, tinha conservado.
A lei de 15 de dezembro de 1904 ab-rogou o artigo 298.
No dia 13 de julho de 1907, o interstício imposto aos divorciados para que
pudessem contratar novo casamento, foi abreviado, com antecipação do seu
início. No dia 5 de junho de 1908 uma nova lei tornou automática a conversão das
separações de corpos em divórcio, que, até então, era facultativa. Ao mesmo
tempo foi autorizada a legitimação dos filhos adulterinos e incestuosos.
Um projeto de lei que estabelece o divórcio por mútuo consentimento é objeto
de um parecer muito favorável na Câmara dos Deputados. 6
nossos dias todo japonês instruído crê que a extinção de sua estirpe é a maior calamidade que pode
tocar um ser humano.
3
Não somente as leis, mas quantas instituições parecem feitas para contribuir para o deslocamento
da família! Tomemos por exemplo as sociedades de auxílio mútuo; elas são certamente dignas de
encorajamento e de elogio. Elas põem em comum os riscos,para tornar seu peso mais leve, e as
economias, para aumentar-lhes a eficácia pela segurança. Mas é a individualidade que lhes serve de
base; elas ignoram a família. Nós temos sociedades de homens, sociedades de mulheres, e mesmo
sociedades de crianças. Elas não vêem na família uma sociedade indissolúvel, um todo compacto.
Elas quebram-lhe a coesão.
4
O Contrato Social , cap. II.
5
O promotor do divórcio é o judeu Naquet. Ele recebeu em 1884 as felicitações da Maçonaria. A
Loja de Bar-le-Duc escreveu-lhe: "É uma desforra do Estado sobre a Igreja, e um caminho para a
separação desses dois velhos aliados".
6
"A lei do divórcio, disse Paul Bourget, foi feita em nome dos direitos do indivíduo, contra o vínculo
da família. É inevitável que ela tenda cada vez mais a desatar esse vínculo até que acabe por
rompê-lo inteiramente. Todas as razões que foram válidas para autorizar o divórcio, são igualmente
válidas para sua indefinida extensão, e asseguro jamais ter compreendido que objeção os partidários
53
A lei de 13 de julho de 1907 trouxe um outro atentado à família,
enfraquecendo-lhe de novo a autoridade. Sem dúvida é necessário um chefe em
toda sociedade. O chefe da família é o homem; o apóstolo São Paulo limita-se a
lembrar, sobre esse ponto, a instituição divina. A nova lei decidiu que, qualquer
que seja o regime adotado pelos esposos, a mulher poderá administrar os
produtos do seu trabalho pessoal e as economias daí decorrentes, sem
autorização do seu marido.
Sem dúvida, havia mulheres que sofriam com isso; mas não se remediam as
desordens particulares mediante atentados contra os princípios.
Um dos órgãos da democracia cristã, o Le Peuple Français, felicitou os
legisladores por esse "retorno ao princípio superior do nosso direito, que é o
respeito à dignidade e à independência da pessoa humana", quer dizer, felicitava
o legislador pela introdução da democracia na família.
A Restauração, que havia anulado a lei do divórcio, tinha feito o trabalho
pela metade. Ela tinha deixado subsistir o casamento civil, outra invenção
revolucionária, cujo objetivo era retirar do casamento a sanção divina, e cujo
efeito era de retirar da família a coesão que lhe dão os vínculos selados pelo
próprio Deus.
Para rematar a desorganização da família, o Código Civil prescreveu a
partilha igual e em natureza, entre os filhos, dos bens móveis e imóveis deixados
pela morte do pai. 7 Os efeitos dessa lei são desastrosos, tanto para o Estado
quanto para a família; ela vem juntar-se ao divórcio e ao casamento civil para
obter que a família francesa não tenha mais, não possa mais ter a estabilidade
que lhe permitia outrora atravessar os séculos. E no entanto, essa estabilidade
se coaduna tão bem com a ordem desejada por Deus, que a encontramos
ensinada em toda a Bíblia.

O Evangelho permite-nos ler em dois sentidos a genealogia da Sagrada


Família de Nazaré, descendo de uma geração a outra, e subindo-lhe o curso.

do princípio individualista, do qual falam os autores de Duas Vidas , puderam encontrar na lógica
desse memorável escrito. (No romance Duas Vidas, Paul e Victor Margueritte acabavam de fazer-se
os apóstolos do "alargamento do divórcio").
"Esses romancistas tiveram o mérito não somente de corporificar suas teorias numa fábula
emocionante e forte, mas também de tirar as conclusões com uma singular nitidez. Estou persuadido
de que o essencial de seu projeto não tardará a entrar no Código, posto que num intervalo de tempo
muito curto será ultrapassado, e que essa oferta extra de facilidade irá assim se agravando até o dia
em que a lei do divórcio tiver manifestado a conseqüência que realmente traz consigo: a substituição
da Família pela União livre".
7
Os laços de família, tais como o Código os deixou subsistirem, são ainda estreitos demais para o
gosto da democracia. O relator do projeto de lei sobre a aposentadoria dos trabalhadores, Colin,
professor de direito em uma faculdade do Estado, pensa que é chegada a hora de dar à constituição
da família um novo golpe de picareta.
"Quanto à preocupação, diz em seu relatório, de manter os vínculos nas mesmas famílias,
preocupação que era dominante no nosso antigo direito, e da qual não souberam talvez libertar-se os
redatores do Código Civil, é evidente que ela não deveria ter nenhum peso nas preocupações de um
legislador que estabelece normas para uma sociedade na qual o triunfo das idéias democráticas não
se discute mais..."
Após considerações de ordem moral, ou melhor, imoral, Colin chega às conclusões práticas de seu
projeto, que são:
"1ª A supressão da herança colateral, a partir do quarto grau;
"2ª A redução dos direitos do cônjuge sobrevivente à metade da sucessão de seu consorte, devendo
a outra metade retornar ao Estado;
"3ª A proibição de qualquer devolução de linha paterna à linha materna, e reciprocamente, nas
sucessões deferidas aos ascendentes e aos colaterais..."
Assim, o Código Civil, que já havia desenraizado a família francesa, não realiza com suficiente
pressa sua obra de destruição.
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Maria e José, como ademais todos os hebreus, sabiam que eles compunham com
seus ancestrais uma só e mesma família, que remontava a David, como David
remontava a Judá, um dos filhos de Jacó, como Jacó remontava a Noé, o
restaurador da raça humana. De Noé tinham saído três grandes ramificações
que, a cada geração, produziam novos troncos; e cada um desses troncos
guardava religiosamente as genealogias, através das quais eles se ligavam ao
tronco comum.
Durante muito tempo foi assim na nossa França. Citemos, por exemplo,
essas linhas tiradas do livro de família de André d'Ormesson, conselheiro de
Estado no século XVII: "Que nossos filhos conheçam aqueles dos quais
descenderam de pai e de mãe, que sejam incitados a rezar a Deus por suas
almas, e a abençoar a memória dos personagens que, com a graça de Deus,
honraram sua casa e adquiriram os bens dos quais eles fruem".
Pierre de C. escreve, ainda mesmo em 1807: "Encontrareis, meus filhos,
uma série de antepassados estimados, considerados, honrados em sua região e
por todos os seus concidadãos. Uma existência honesta, uma fortuna medíocre,
mas uma reputação sem mancha: eis o capital que transmitiram, durante
quatrocentos anos, onze bons pais de família, que jamais abandonaram o nome
que tinham recebido, nem a pátria onde nasceram".
Por essa expressão "a família", não se compreendia, pois, como hoje,
somente o pai, a mãe e os filhos, mas toda a linhagem dos ancestrais e aquela
dos filhos por vir.
Para ser assim una e contínua através dos séculos, ela tinha não somente a
comunhão do sangue, mas, se posso dizer dessa forma, um corpo e uma alma
perpétuos. O corpo era o bem de família que cada geração recebia dos
antepassados como um depósito sagrado: ela o conservava religiosamente, ela se
esforçava para aumentá-lo, e ela o transmitia fielmente às gerações seguintes. A
alma eram as tradições, quer dizer, as idéias dos antepassados e seus
sentimentos, os usos e os costumes que daí decorriam.
Foi dentro dessa compreensão abrangente que a família se manteve na
França, como ademais por quase toda a parte, até a Revolução.
Uma lei escrita no coração dos franceses, consagrada por um costume muitas
vezes secular, assegurava a transmissão do patrimônio de uma geração a outra; e
um tríplice ensinamento, aquele dado pela conduta dos pais que os filhos tinham
diante de seus olhos, aquele das exortações, dos conselhos, das admoestações
que eles recebiam, e aquele dos escritos chamados livros de razão ou livros de
família, mantidos atualizados por cada geração, assegurava a transmissão das
tradições familiares.
Atualmente, os livros de razão não mais existem, nem mesmo na condição de
recordações, salvo apenas entre os eruditos; o patrimônio é considerado pelos
filhos apenas como uma presa a partilhar; e quantos há entre nós que poderiam
dar o nome de seus bisavós?
A família não existe mais na França. E aí está, para dizê-lo de passagem, a
explicação para os poucos resultados obtidos pelos padres e religiosos que
tiveram em mãos, durante meio século, o ensino primário e secundário de mais
da metade da população. Suas lições não encontravam mais, para se
sedimentarem, o fundamento sólido que as tradições de família devem colocar
na alma da criança.
Não somente a família não existe mais na França, mas não resta mais nada
da constituição social que a história viu sair da família entre todos os povos
civilizados. A família real foi decapitada; as famílias aristocráticas foram
dizimadas, e as que escaparam ao massacre e à ruína foram colocadas, pelas
leis, na impossibilidade de agir e mesmo de conservar sua posição. Enfim, as

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mesmas leis colocam as famílias burguesas e proletárias na impotência de se
elevarem de uma maneira contínua.
Nem em Atenas, nem em Roma, a sociedade, assim desmoronada sobre si
mesma, se levantou. O cristianismo dá-nos meios de regeneração de que as
sociedades pagãs não dispunham. Saberemos empregá-los?
Faz um século que nossos esforços têm fracassado. Por quê? Porque,
sofrendo a ação deprimente das leis e dos costumes, tirados dos sofismas de
Jean-Jacques, nós vimos apenas o indivíduo, trabalhamos sobre o indivíduo, em
vez de considerar a família e de conduzir nossos esforços para reconstitui-la. A
família reconstituída produziria de novo homens. É o grito geral: não temos mais
homens! Se não temos mais homens é porque não temos mais famílias para
produzi-los; e não temos mais famílias porque a sociedade perdeu de vista a
finalidade de sua própria existência, que não é obter para o indivíduo a maior
quantidade de gozos possível, mas proteger a germinação das famílias e ajudá-las
a se elevarem sempre mais alto.
A família, dissemos, tem dois suportes: o Lar e o Livro de família, na França
chamado Livro de razão. Esses dois suportes foram quebrados, um e outro, pela
lei: o primeiro diretamente, o segundo por via de conseqüência. A transmissão da
casa e do patrimônio que a envolve, formava entre as sucessivas gerações o
vínculo material que as ligava umas às outras. A esse primeiro vínculo juntava-se
um outro: a genealogia e as lições dos antepassados, consignadas no livro no
qual a genealogia estava fixada. O Código Civil opôs-se à transmissão da casa;
ele decretou a partilha igual dos bens móveis e imóveis: por aí, ele isolou todas as
gerações, tornou cada uma delas independente, e independentes daquelas que
a precederam e daquelas que estavam por vir; e para todas modificou pouco a
pouco a maneira de pensar relativamente à herança paterna. Não se vê na
herança senão uma fonte de prazeres pessoais. Outrora, era um depósito, um
depósito sagrado que se tinha a obrigação de transmitir como fora recebido.
O estado dos bens da família de Antoine de Courtois, cujo livro de razão foi
publicado por Ribbe, estava precedido dessas linhas, endereçadas aos filhos:
"Meus bem-amados, nós temos o gozo de nossos bens, mas podemos consumir-
lhe apenas os frutos. Nossos bens estão em nossas mãos para que trabalhemos
sem cessar para melhorá-los, e em seguida para que os transmitamos após nós
àqueles que nos seguirão no curso da vida. Aquele que dissipa seu patrimônio
comete um roubo horrível: ele trai a confiança de seus pais, desonra seus filhos;
melhor teria sido, para ele e para sua descendência, que jamais tivesse nascido.
Receai, pois, comer o bem de vossos filhos e cobrir vosso nome de opróbrio".
Esses sentimentos decorriam naturalmente do pensamento que todos
tinham no espírito, a saber: que o lar e o domínio patrimonial eram objeto de uma
espécie de fideicomisso 8 perpétuo; que não era permitido diminuir, que todos
deviam se esforçar para aumentar.
"Eu me vanglorio, escreve, no seu Livro de família, Pierre de Fresse de
Morival, que meus filhos se lembrarão com reconhecimento e jamais esquecerão
que sempre usei, relativamente a mim e para minhas necessidades pessoais, a
mais rigorosa economia; que, juntamente com minha cara e bem-amada esposa,
trabalhamos constantemente e sem descanso, durante todo o curso de nossa
vida, para a conservação de nossa pequena fortuna, e que, a nosso exemplo,
para reconhecer o que fizemos por eles e para secundar nossos desejos, eles
viverão em paz, cooperando mutuamente para o bem-estar recíproco deles".

8
Disposição testamentária pela qual o testador institui dois ou mais herdeiros ou legatários,
impondo a um (ou alguns) deles a obrigação de, por sua morte, transmitir ao(s) outro(s), a certo
tempo e sob certa condição, a herança ou o legado. (N. do T.).
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"Cada família de Judá e de Israel, diz a Sagrada Escritura, vivia em paz sob
sua vinha e sua figueira". 9 Era assim na nossa França, e para que assim fosse,
os filhos eram criados no pensamento de que, após a morte dos pais, o
patrimônio não podia ser dividido, e a casa paterna, asilo de paz consagrado
por tantas lembranças e virtudes, não podia ser vendido sem crime. O que
podia ser partilhado era o produto líquido do trabalho comum, para o qual tinham
concorrido os diversos membros da sociedade doméstica atual; mas a obra dos
ascendentes devia ser conservada intacta, para ser recolocada fielmente nas
mãos daqueles que, amanhã, nos séculos seguintes, continuariam a manter a
família que os primeiros autores tinham fundado. Se um de seus descendentes
violasse o pacto e dissipasse o bem comum, carregaria diante de sua
posteridade a vergonha de haver feito decair a família. "Nosso pequeno bem, diz
Pierre-César de Cadenet de Charleval, cresceu pouco a pouco pela boa
administração de nossos fundadores. É preciso reconhecer que o luxo não estava
tão difundido como no presente. O primeiro que se afastou desse uso foi meu
avô. Ele quis ir a Paris, e em um ano gastou 14.000 libras... Pouco a pouco o
luxo imperou, e não se fizeram mais capitais; hoje temos muita dificuldade de nos
manter com o que resta".
E Antoine de Courtois, que já citamos: "Enquanto este domínio estiver com a
família, ela sempre terá uma existência honrada. Não me detenho no pensamento
de que meus descendentes possam se ver na necessidade de vendê-lo. Vender
os campos paternos é renegar o nome dos pais e deserdar seus filhos".
Charles de Ribbe, que estudou numerosas famílias antigas nos documentos
que elas deixaram, e particularmente nos livros de razão, diz: "Na sua maioria
humildes na origem, elas se elevaram degrau a degrau; cada geração acrescenta
uma nova pedra ao edifício de sua fortuna. Elas trabalham energicamente, elas
se empenham em bem pensar e em bem agir, elas constróem boas casas (era o
nome então consagrado), casas paternas, honradas, e que são o centro de uma
dignidade respeitada por todos".
Com sua estabilidade, seu espírito de união, suas tradições de trabalho e de
vida austera, a casa paterna de outrora, na qual se formava uma longa série de
gerações de pessoas de bem, foi uma instituição eminentemente social e
verdadeiramente cristã. Assim, ela era objeto da veneração dos homens.
Hoje, a casa paterna não merece mais esse nome, porque ela não é mais a
sede permanente e durável da paternidade. Com a morte dos pais, ela é
vendida a preço que será dividido, como se ela não pertencesse à família, como
se nada fosse além de um hotel momentaneamente alugado. Com ela é vendido
o patrimônio. Por pequeno que seja, ele é objeto de reivindicações que se
apegam às menores parcelas; seus fragmentos se dispersam, como uma poeira
infecunda. Quanto mais filhos há, quer dizer, quanto mais moral é a família, mais
é impossível de fugir às conseqüências dessa irresistível liquidação. A família
fica condenada ao estado nômade, ela fatalmente perece. A cada trinta anos, em
média, uma liquidação forçada é executada. "Funcionando, diz Ribbe, à maneira
de uma foice, ela [a partilha obrigatória] corta a cepa do tronco doméstico".

9
Livro dos Reis, III, cap. IV, 25.
57
CAPITULO VIII
FAMÍLIAS-TRONCOS

Post obitum matris suae, Tobias, cum uxore sua


et filiis et filiorum filiis reversus est ad soceros suos
et curam eorum gessit, et ipse clausit oculos
eorum, et omnem hereditatem domus Raguelis ipse
percepit, vidit que quintam generationem, filios
filiorum suorum. Et completis annis nonagenta
novem in timore Domini, cum gaudio sepelierunt
eum. Omnis autem cognatio ejus, et omnis
generatio ejus in bona vita et in sancta
conversatione permansit, ita ut accepti essent tam
Deo quam hominibus, et cunctis habitantibus in
terra.1
TOBIAS, XIV, 14-17

O trabalho de observação ao qual Le Play se dedicou, durante tantos anos


e em tantos países, levou-o a estas conclusões.
Sempre houve, e ainda há atualmente no mundo, três regimes de família: a
família patriarcal, a família-tronco e a família instável .
Sob o regime patriarcal, que ainda é encontrado em quase toda a Ásia e em
certas montanhas da Europa, o pai guarda sob sua autoridade imediata os filhos,
noras e netos. A comunidade compreende até quatro gerações. Desde tenra
idade os filhos são marcados de uma maneira indelével pelas idéias, usos, hábitos

1
Depois da morte de sua mãe, Tobias partiu de Nínive com sua mulher, seus filhos e seus netos, e
voltou parar a casa de seus sogros. Encontrou-os em perfeita saúde, numa ditosa velhice. Teve para
com eles todas as atenções, e fechou-lhes os olhos. Tomou posse da herança da casa de Raguel, e viu
os filhos de seus filhos até a quinta geração. Morreu com alegria, tendo vivido noventa e nove anos
no temor do Senhor, e seus filhos sepultaram-no. Toda a sua parentela e toda a sua descendência
perseverou numa vida íntegra e santo procedimento, de modo que foram amados tanto por Deus
quanto pelos homens e por todos os seus compatriotas.
58
dos ancestrais, pelo espírito da estirpe. O lado ruim desse regime é a rotina, a
ausência de progresso.
A família-tronco mantém-se através das gerações como a família patriarcal,
mas ela tem mais flexibilidade e se presta melhor ao aperfeiçoamento.
Ela tem, como a família patriarcal, um duplo elemento de estabilidade e de
perpetuidade: um, material, o lar; outro, moral, a tradição.

O interesse que a família-tronco considera como maior e que ela coloca antes
de todos os outros é a conservação do bem patrimonial transmitido pelos
antepassados. A família é semelhante a uma colméia: novos enxames de abelhas
aí nascem e dali partem, mas a colméia não deve perecer.
Para mantê-la, os pais, a cada geração, associam à sua autoridade aquele de
seus filhos que julgam mais apto para trabalhar segundo o propósito deles, e a
continuar após sua morte a obra da família: o cultivo da propriedade familiar ou o
funcionamento da indústria. Este filho não é de direito o primogênito, ele o é
quase sempre de fato. O primogênito parece designado pela Providência, ele se
presta melhor a dar seu apoio ao pai, ele pode melhor cuidar da educação de seus
irmãos e irmãs. Ele se prepara desde cedo para as obrigações que lhe são de
alguma forma impostas pela vontade divina. No momento de seu casamento ele é
instituído herdeiro da casa e do domínio ou da oficina; ou melhor, ele é constituído
depositário para transmitir esses bens, após tê-los feito valorizar, à geração
seguinte. Em Provence, ele é chamado o sustentáculo da casa.2
Essa qualidade impõe-lhe os encargos de chefe da família. Ele tem a
obrigação de criar os irmãos mais jovens, de dar-lhes uma educação de acordo
2
Te voilà fort et grand garçon Eis-te homem quase feito,
Tu vas rentrer dans la jeunesse Vais entrar na puberdade;
Reçois ma dernière leçon Recebe minha última lição:
Apprends quel est ton droit d’ainesse. Saibas qual é teu direito de primogenitura.

Ainsi que mon père l’a fait Assim como meu pai procedeu,
Un brave aîné de notre race Um bravo primogênito da nossa estirpe
Se montre fier et satisfait Mostra-se orgulhoso e satisfeito
En prenant la plus dure place. Em tomar o lugar mais difícil.

Son épargne est le fonds commun, Sua economia é o patrimônio comum,


Où puiseront tous ceux qu’il aime; Do qual beberão todos aqueles que ele ama;
Il accroît la part de chacun Ele aumenta a parte de cada um
De tout ce qu’il s’ôte à lui-même. Com tudo aquilo que tira de si próprio.

Du poste où le bon Dieu l’a mis Do posto no qual o bom Deus o colocou
Il ne s’écarte pas une heure; Ele não se afasta um só momento;
Il y fait tête aux ennemis, Aí ele enfrenta os inimigos,
Il y mourra s’íl faut qu’il meure! Aí ele morrerá se for preciso!

Ainsi, quand Dieu me reprendra, Assim, quando Deus me chamar,


Tu sais, dans notre humble héritage Tu sabes, da nossa humilde herança
Tu sais le lot qui t’écherra Tu conheces o quinhão que te caberá
Et qui te revient sans partage. E que retorna a ti sem partilha.

Nos chers petits seront heureux, Nossos queridos filhos serão felizes,
Mas il faut qu’en toi je renaisse. Mas é preciso que eu renasça em ti.
Veiller, lutter, souffrir pour eux... Vigiar, lutar, sofrer por eles...
Voilà, mon fils, ton droit d’aînesse! Eis aí, meu filho, teu direito de primogenitura!
Victor de Laprade

59
com a condição da família, de dotá-los e de estabelecê-los com a economia
realizada ano após ano pelo trabalho de todos. Se o herdeiro morre sem deixar
filhos, um dos membros estabelecidos fora do lar deixa sua casa e retorna para
assumir os deveres de chefe. Esses deveres compreendem, além dos que já
mencionamos, a manutenção do lar e de suas dependências, a guarda do jazigo
dos ancestrais, a celebração dos aniversários religiosos etc. Tudo isso impõe-lhe
uma existência severa e frugal cujo exemplo é bom para iniciar as gerações jovens
na virtude.3
"Não se é digno de governar os homens, diz Bonald, quando não se percebe
a influência sobre os hábitos de um povo, quer dizer, sobre suas virtudes, de uma
lei que, constituindo cada família como a própria sociedade, aí estabelece de
alguma maneira a realeza pelo direito de primogenitura, e a indivisibilidade e
quase inalienabilidade do patrimônio pela necessidade de conveniência em que
estão os irmãos de pegar em dinheiro sua porção legítima, e de deixar na casa
paterna a integridade das posses. Essa casa foi a residência de meus pais, ela
será o berço dos meus descendentes. Aí vi a velhice sorrir para meus primeiros
trabalhos, e verei eu mesmo a infância ensaiar suas formas nascentes. Esses
campos foram cultivados por meus pais e eu mesmo os cultivo para meus filhos.
Lembranças assim caras, sentimentos tão doces ligam-se ao mais poderoso
gosto do coração do homem, o gosto da propriedade, e faz a felicidade do
homem, assegurando-lhe o repouso da sociedade; digo mais, asseguram a
perpetuidade. No país onde, pela igualdade das partilhas, a lei força os filhos a
venderem tudo o que poderia lembrar-lhes os pais, jamais há família; direi mais,
jamais há sociedade, porque a cada geração a sociedade termina e recomeça.
3
Edmond Demolins viajava um dia a bordo de um navio norueguês. Ele sabia que a propriedade do
camponês da Noruega é um pequeno reino que o pai transmite integralmente a um de seus filhos.
"Eu quis, conta Demolins, saber o que o capitão do navio pensava da partilha das sucessões no seu
país. Sua opinião me interessava tanto mais quanto nosso homem, não tendo sido designado herdeiro
por seu pai, parecia não possuir nenhuma razão pessoal para ser favorável à transmissão integral.
"No que concerne à sua sucessão, o pai, disse-me textualmente, faz o que lhe dá na cabeça . Ele
escolhe sozinho e sem controle aquele de seus filhos ao qual quer deixar seu barco de pesca e sua
propriedade rural.
 Nessas condições, disse-lhe eu, qual é o destino dos filhos que não herdam da propriedade?
 O pai ajuda-os a se estabelecerem, dando-lhes somas de dinheiro de que pode dispor.
 Ele dá a cada um deles uma soma igual?
Fiz essa pergunta a fim de saber se as idéias de partilha igual, tão caras aos franceses, excitariam
alguma simpatia no espírito de meu interlocutor.
Ele me olhou com espanto, depois respondeu: "Mas isso não seria justo. Os filhos não são todos
iguais: uns têm mais sorte ou mais qualidades do que os outros, e logram rapidamente obter uma
posição; para esses o pai dá pouco ou não dá nada, a fim de poder ajudar mais eficazmente os outros.
"Ademais, acrescentou, o sucesso na vida não provém do dinheiro de que se dispõe, mas das
qualidades pessoais. Tanto vemos ricos que se arruínam por sua incapacidade, quanto pobres que se
elevam à riqueza pelo trabalho. Um homem deve saber prover a si próprio".
Essa resposta me surpreendeu: ela coloca a questão no seu verdadeiro terreno. Com sua brutalidade,
nossa partilha igual não é, em cada família, senão uma fonte permanente de desigualdades. A
apreciação do pai é mais justa, porque ela pesa, para cada filho, as desigualdades da natureza. Ela
restabelece o equilíbrio e disso resulta dar a cada um o socorro proporcionado à sua necessidade. Ela
não rebaixa o pai ao papel de um simples caixa, mas eleva-o à dignidade de juiz e de eqüitativo
despenseiro da fortuna que soube ganhar ou conservar.
Nessas condições, o pai não é levado a limitar o número de filhos, porque ele não considera cada
recém-nascido como um credor que deve reclamar sua parte do domínio ou diminuir aquela de seus
irmãos e irmãs.
Interroguei o capitão a propósito da situação dessas últimas.
Elas não têm dote. "Em semelhantes condições, observo, uma francesa dificilmente encontraria um
marido.  Não conheço nenhum norueguês, respondeu o capitão, que se tenha detido por essa
consideração. Nós pensamos que um marido deve ser capaz de sustentar sua família".
60
"Aí, nenhum dos filhos tem interesse em permanecer perto de seus pais
para trabalhar gratuitamente para melhorar um bem do qual os irmãos, por
ocasião da morte do pai, retirarão tanto quanto ele. Os filhos, quando estão
com idade de trabalhar, deixam a casa paterna para procurar salários mais altos
em outras explorações agrícolas ou em estabelecimentos industriais. Os pais,
entretanto, avançam em idade e logo a velhice ou as enfermidades não mais lhes
permitem cultivar seu bem. Eles o vendem, pedaço a pedaço, na medida de suas
necessidades, ou o deixam depreciar; e desde que não mais estão nesta terra,
os filhos vêm partilhar o que resta, algumas vezes amaldiçoam seu pai pelo que
ele deteriorou do patrimônio, ou mais freqüentemente brigam entre si por essa
partilha; e os corações ficam ainda mais divididos do que retalhadas as
propriedades.
"E a mãe, se sobrevive ao esposo, a mãe, única autoridade que a infância
reconhece e que a juventude ainda respeita, que se tornará? Viúva de seu marido,
viúva de seus filhos, os quais, sem ponto de referência que os una, vão cada qual
para seu lado; ela vê o leito nupcial ser vendido, o berço no qual ela tinha aleitado
seus filhos, a casa pela qual ela deixou a casa paterna e na qual ela acreditava
terminar seus dias; ela fica isolada, sem consideração e sem dignidade,
abandonada ao mesmo tempo pela família à qual ela deu a vida, e por aquela da
qual ela a havia recebido.
"E os mais moços têm motivo para se felicitarem, tanto quanto se tem para
crer na igualdade das partilhas? Sem dúvida, em algumas famílias opulentas e
pouco numerosas, as primeiras partes são maiores; mas cada filho quer constituir
uma família; e esse bem inicialmente dividido em pequeno número, divide-se
de novo entre um número maior, e cedo ou tarde esse desmembramento cresce
em proporção geométrica. Entre os pequenos proprietários esse mal faz-se sentir
na primeira geração; cada qual, no entanto, permanece ligado à sua pequena
fração de propriedade, atormenta-se e extenua-se para dela retirar uma
subsistência medíocre, que teria obtido com menos esforço e mais proveito numa
outra profissão.
"A igualdade das partilhas dá um golpe mortal na propriedade. Que interesse
pode colocar um proprietário na aquisição e na melhoria de uma propriedade que
lhe causa tanto embaraço durante sua vida, e que deve, com sua morte,
desaparecer em frações imperceptíveis e ir engordar o patrimônio de uma família
estranha? Como ousaria ele se dedicar a especulações para melhorias que ele
pode não concluir e que ninguém depois dele continuará?"

Na família solidamente estabelecida no solo, ou na fábrica, ou na casa de


comércio, as garantias de prosperidade fortificam-se à medida que cresce o
número de filhos, pois eles têm aptidões e qualidades diferentes e todos trabalham
para o bem comum. Alguns adultos permanecem na casa paterna. As filhas que
não se casam são a providência das crianças, o alívio dos enfermos, dos doentes
e dos anciãos, a alegria do lar, as guardiãs das boas obras e das sãs tradições.
De longe em longe, um descendente dotado de aptidões superiores se projeta
por seus talentos e suas virtudes acima da posição ocupada pela família, seja no
clero, seja na magistratura, seja no exército. Todos, os mais ilustres assim como os
mais humildes, comprazem-se em honrar a casa-tronco; eles aí retornam em
certos aniversários, mesmo dos lugares mais afastados. Dessa forma, eles
mostram ser a educação moral que receberam no lar paterno a causa do sucesso;
e mostram a seus descendentes a fonte das tradições de honra e de virtude à
qual as famílias dela derivadas deverão, elas também, a prosperidade. Cícero,
falando de Arpínio, disse: "Esta é minha verdadeira pátria e a de meu irmão
Quintus; aqui nascemos de uma família muito antiga; aqui estão nossos

61
sacrifícios, nossos pais, numerosos monumentos de nossos ancestrais. Vede
esta casa, nasci neste lugar. Não sei que encanto aí se encontra que toca meu
coração e meus sentidos".4
Quanto ao herdeiro da velha casa, ele oferece durante meio século a
educação, depois o estabelecimento de duas gerações, a de seus irmãos e a de
seus próprios filhos. Após ter por sua vez instituído e guiado o herdeiro , morre
feliz no pensamento de que todo o seu mundo está na via do bem e que a família
nele perseverará por tempo infinito.
Sua memória, aquela de seus pais e de seus antepassados, é guardada
piedosamente no lar paterno, no coração de seus descendentes e no livro de
razão. É igualmente guardada a totalidade das forças morais e materiais
acumuladas pelas gerações precedentes e destinadas a ainda se desenvolverem
pelo trabalho e pela virtude das gerações que virão, para fazer subir a família,
degrau a degrau, na hierarquia social.
Como assinalou muito bem o abade Pascal, "grupo primordial e necessário
da sociedade, a família estava assim solidamente constituída e defendida,
enraizada profundamente no solo, possuindo, graças ao sistema geral da
legislação escrita ou consuetudinária, sérias garantias de estabilidade e de
continuidade. Sob esse regime, a França estava povoada por famílias
profissionais que se transmitiam, simultaneamente com o amor da profissão,
aptidões inatas  a serem de alguma maneira exercidas  , e uma educação
especial haurida no aprendizado familiar, e isso em todos os níveis da sociedade:
famílias de camponeses, de artesãos, de tabeliães, de magistrados, de
diplomatas, de militares, e pode-se dizer que o país viveu até nossos dias dos
destroços dessas famílias profissionais". 5
A organização da família-tronco, boa para a sociedade, é boa para os
indivíduos. Ela distribui eqüitativamente as vantagens e os encargos entre os
membros de uma mesma geração. Ao herdeiro, em compensação aos pesados
deveres, ela confere a consideração ligada ao lar dos antepassados. Aos
membros que se casam fora da família, ela assegura o apoio da casa-tronco com
os encantos da independência que a família patriarcal não concede. Aos que
preferem permanecer no lar paterno, ela dá a quietude do celibato com as
alegrias da família. Para todos ela administra, até à mais extrema velhice, a
alegria de reencontrarem no lar paterno as lembranças da primeira infância. Ela
é igualmente boa e benfazeja para todas as classes da sociedade. Ela preserva
os mais ricos da corrupção, impondo-lhes severos deveres; ela fornece aos
menos abastados os meios de poupar seus rebentos das duras experiências da
pobreza.
4
De Lig., II, 1.
5
E mais adiante:
"Parece-me pouco científico negar a fecundidade da lei de hereditariedade, num tempo em que a
ciência demonstrou-lhe os efeitos, seja para o bem, seja para o mal, com um verdadeiro luxo de
argumentos tirados da experiência quotidiana. Qual! a história mostra-nos que se criam literalmente
raças de governantes, de combatentes, de diplomatas, de magistrados, que um dos grandes objetivos
da educação é precisamente desenvolver os bons germes depositados pela hereditariedade e eliminar
os ruins; e vós vos privaríeis dos benefícios de uma lei natural de tal poderio! Vós dizeis: a
hereditariedade é uma lei brutal e animal, que tende à formação de castas fechadas na ordem pública.
E eu respondo: a hereditariedade, pela continuidade que ela garante ao corpo social, é uma imitação,
ínfima sem dúvida, da perenidade divina; regrada, contida, modificada pelo espírito cristão, pelos
usos, pelos costumes, ele tende não à casta, mas à tradição profissional, coisa que, aos olhos de todo
o verdadeiro filósofo político, é um bem de primeira ordem. Compreendo perfeitamente que a
hereditariedade política e social seja repelida por aqueles que, como os socialistas, rejeitam a
hereditariedade econômica; mas, desde que se admite esta, que dificuldade se vê para admitir que a
hereditariedade social tende por ela mesma à juntar-se à hereditariedade econômica?" Philosophie
morale et sociale. Formes du pouvoir.
62
Esse regime constitui-se espontaneamente, com seus principais caracteres,
entre os povos sedentários, fecundos, dedicados a um trabalho assíduo.
Fundado sobre a própria natureza do homem, ele foi em toda a parte obra do
costume, não da lei escrita. Ele ainda existe entre quase todos os povos da
Europa. Apesar da lei da partilha forçada, ele ainda está representado na França,
sobretudo na vizinhança dos Pireneus, por admiráveis modelos. As famílias-
troncos contam-se ainda atualmente na França em dezenas de milhar, e no resto
da Europa, em dezenas de milhões, fazendo reinar nelas e ao redor delas, a paz,
a prosperidade e a verdadeira liberdade.
O feudalismo fora favorecido na sua evolução pelo regime que acabamos de
descrever. O regime feudal, com efeito, agrupava os senhores numa hierarquia
superior, no cume da qual se encontrava o suserano, assim como agrupava as
diferentes classes de proprietários sob a autoridade e a proteção dos senhores de
cada feudo. A propriedade do feudo e a função senhorial transmitiam-se àquele
dentre os filhos ao qual o pai se tinha associado durante sua vida. O herdeiro
devia tomar a seu encargo todas as obrigações de sua gente. Ele devia conservar
a memória dos ancestrais, dotar irmãos e irmãs, assegurar os haveres dos
descendentes, praticar, em uma palavra, todos os deveres impostos à uma
família-tronco agrícola e guerreira. O proprietário tinha no gozo de seu domínio
direitos análogos aos que o senhor feudal exercia sobre a propriedade de seu
feudo e ele os transmitia, nas mesmas condições, a um herdeiro livremente
escolhido.
A sociedade era assim tão sólida e tão estável quanto a família. Ela tinha uma
situação que nada podia abalar.
"A família dominante estava fixada ao solo por um feudo, diz la Tour du Pin
Chambly, a família serva por uma gleba, a família livre por uma renda anual paga
ao senhor do feudo: o mesmo solo carregava e nutria esses três troncos, não
como três árvores isoladas sem nenhuma relação que não fosse a sombra que
elas produzem, mas como três ramos cujas raízes estavam entrelaçadas de uma
maneira inseparável. Uma não sofria sem que as outras duas lhe viessem em
socorro, porque elas eram incapazes de viver uma sem a outra; direi mais, a vida
de uma era a vida da outra: esta protegia aquela, aquela alimentava esta". O
povo encontrava, nesse regime, as forças materiais e morais que
salvaguardavam a independência do território; ao mesmo tempo em que o
regime o mantinha numa poderosa e vivificante hierarquia, permitindo a todos os
talentos se desenvolverem, impedindo a desclassificação e suas conseqüências,
com as quais tanto temos sofrido.

O Código Civil matou a família-tronco 6 entre nós. Pela liquidação perpétua


que ele impõe, as grandes famílias foram condenadas a diminuir de geração em
geração, as famílias burguesas foram colocadas na impossibilidade de se
elevarem, e mesmo de se manterem durante muito tempo no ponto em que o
esforço de seus membros as havia feito chegar. As famílias operárias estão
encerradas na sua condição. 7 "Suponhamos, diz Le Play, que ao preço de uma
6
Celebrou-se pomposamente nestes tempos o centenário da promulgação do Código Civil. É o
mesmo que dizer que se celebrou o mais seguro elemento de dissociação de um povo, jamais
inventado.
Esse código foi feito para destruir as famílias, abolir a hierarquia, aniquilar as tradições locais e
isolar os indivíduos; aniquilar e destruir progressivamente todas as influências territoriais e
industriais em favor do capital anônimo e cosmopolita, quer dizer, do capital judeu. Ele carrega
hoje suas plenas conseqüências. Elas se traduzem por um enfraquecimento universal da moralidade
pública e pela ruína da nação.
7
Pode-se dizer que isto foi previsto por Napoleão. Em 6 de junho de 1806, ele escrevia ao seu irmão
Joseph, o rei de Nápoles: "Quero ter em Paris cem famílias, que tenham sido todas elevadas com o
63
economia longa e laboriosa, e graças à cooperação de um patrão benevolente, o
pai de família camponês, operário ou empregado, tenha chegado à plena
propriedade de sua habitação; a morte o atinge, e eis que logo os homens da lei
e do fisco intervêm, em nome da legislação que prescreve a partilha igual e em
natureza de todos os bens móveis e imóveis. Eles se introduzem no lar
doméstico, fazem o inventário; enfim, a própria casa é posta à venda. Tudo deve
ser recomeçado. A quem aproveita a venda? Aos filhos? De modo nenhum. Ao
fisco; aos homens da lei.8
"O Código, diz About, desfez talvez um milhão de fortunas no momento em
que elas começavam a ser construídas. O pai funda uma indústria e morre; tudo é
vendido e partilhado; a casa não sobrevive ao seu dono. Um filho tem coragem e
talento: com sua pequena parte do capital paterno, funda outra casa, é bem
sucedido, torna-se quase rico e morre; nova partilha, nova destruição; tudo deve
recomeçar, com novas taxas".

Existem entre nós, pelo menos legalmente, apenas famílias instáveis. O


espírito e o texto do Código Civil opõem-se a toda consolidação, a toda
perpetuação. Ele dedica à família apenas a idéia de uma sociedade momentânea,
que se dissolve com a morte de um dos contratantes. "Ao passo que outrora,
como diz Taine, havia uma porção de famílias enraizadas no lugar após cem,
duzentos e mais anos. Não somente na nobreza, mas também na burguesia e
no terceiro-estado, o herdeiro de uma obra devia ser o seu continuador...
Pequeno ou grande, o indivíduo não terminava nele mesmo; seu pensamento se
alongava em direção ao futuro e em direção ao passado, pelo lado de seus
ancestrais e pelo lado de seus descendentes, sobre a cadeia indefinida da qual
sua própria vida não era senão um elo... Quando, pela virtude da disciplina
interior, uma família tinha-se mantido reta e respeitada no mesmo lugar durante
um século, ela podia subir um degrau, introduzir algum dos seus na classe
superior".
Renan também disse:
"Um código de leis que parece ter sido feito para um cidadão ideal, que
nasce enjeitado e morre celibatário; um código que torna tudo transitório, no qual
os filhos são um inconveniente para o pai, em que toda obra coletiva e perpétua
está proibida, em que as unidades morais, que são as verdadeiras, são
dissolvidas a cada morte, em que o homem prevenido é o egoísta que trata de ter
o menos possível de deveres, em que o homem e a mulher são jogados na arena

trono e que permaneçam como as únicas consideradas. O que não for elas vai se dispersar por
efeito do Código Civil. Estabeleça o Código Civil em Nápoles; tudo o que não lhe estiver ligado vai
se destruir em poucos anos, e o que quiser conservar se consolidará".
No século XVIII, a rainha Ana tinha também aplicado aos irlandeses católicos a partilha igual e
forçada, conservando aos protestantes a faculdade de testar segundo as leis inglesas; e o solo da
Irlanda passou pouco a pouco às mãos dos lordes protestantes.
8
Os números também têm sua eloqüência. Le Play cita, no norte, seis lotes de terra, vendidos pelo
preço total de 36 francos: exigiram 758 francos e 85 centavos de taxas. No mesmo departamento,
lotes vendidos a 51, 58 e 55 francos, deram lugar a taxas que se elevam respectivamente a 210, 250
e 501 francos e 92 centavos. Em Pas-de-Calais, 37 ares de terra foram vendidos a 845 francos; as
taxas preparatórias elevaram-se a 1.862. Após muitos outros exemplos, ele diz: "Nós poderíamos
apoiar esses fatos com cem mil outros da mesma natureza. Eles se reproduzem sem cessar em cada
uma de nossas localidades".
Georges Michel demonstrou que, na venda das pequenas heranças, a soma das taxas é sempre
superior ao montante do preço de adjudicação. (Une iniquité sociale. Les frais des ventes judiciaires
d'immeubles ). A lei de 1884, é verdade, exonerou os imóveis de valor inferior a 2.000 francos de
certos encargos, mas as estatísticas oficiais estabelecem que as taxas de vendas judiciais são iguais,
se não mais altas do que antes. Há taxas e formalidades demais. Sobre 100 francos o fisco retém
antecipadamente 90 francos, de sorte que a parte dos homens da lei representa apenas 10%.
64
da vida nas mesmas condições, em que a propriedade é concebida não como
uma coisa moral, mas como uma coisa equivalente a um gozo sempre apreciável
em dinheiro, um tal código, digo, não pode engendrar nada além de fraqueza e
pequenez. Com sua concepção mesquinha da família e da propriedade, aqueles
que de forma tão triste pagaram as dívidas da falência da Revolução... prepararam
um mundo de pigmeus e de revoltados". 9
Se queremos que a França ainda tenha um futuro, nada mais fundamental,
nada mais necessário do que restituir à família francesa a faculdade de se
recolocar sob o regime da família-tronco, que tenha um lugar de trabalho perpétuo
(campo, fábrica, casa de comércio), encarregado de produzir não somente o pão
quotidiano, mas aquele dos velhos dias e o estabelecimento dos filhos, que
tenha também seu lar encarregado da educação das jovens gerações segundo as
tradições dos ancestrais. Desde que essa liberdade seja devolvida, um certo
número de famílias entrará por elas mesmas nesse caminho, e, após algumas
gerações, encontrar-se-ão muito naturalmente acima daquelas que permanecerão
na instabilidade.
A hierarquia social delinear-se-á de novo pelo próprio fato. A sociedade
fortalecer-se-á na mesma proporção e acabará por se reconstituir.
"Tudo na história, disse muito bem Paul Bourget, demonstra que a energia do
corpo social sempre esteve, como dizem os matemáticos, em função ou em
proporção com a energia da vida de família".

Não há nada a que a seita revolucionária deseje, na ordem social, mais se


opor, porque não há nada de mais contrário ao espírito democrático. Em
contrapartida, não há nada a que os espíritos esclarecidos devam se aplicar com
uma mais perseverante vontade.
Le Play retraçou os esforços desesperados das antigas e boas famílias, que
procuravam, por toda a sorte de meios, conservar o bem patrimonial. Esses
esforços são menores hoje, porque a tirania do Código se impõe cada vez mais.
No entanto, no ano de 1865, Larsonnier, membro da Câmara de Comércio de
Paris, e cento e trinta e um grandes manufaturadores ou comerciantes da capital
endereçaram ao Senado uma petição, da qual destacamos a seguinte passagem:
"Cremos que a influência da lei atual será fatal ao desenvolvimento industrial e
comercial da França... Nada é mais próprio para paralisar as forças da França
do que a dispersão indefinida de suas forças produtivas sob a ação dissolvente de
nossas leis de sucessão".
As Câmaras de Comércio de Paris, Roubaix, Bordeaux e diversas outras
cidades, fizeram ouvir queixas semelhantes. "As leis inglesas, diz a Câmara de
Roubaix, diferem essencialmente das nossas. O direito de testar oferece os
seguintes resultados: família mais numerosa; ausência de hesitação no fundar um
estabelecimento, pois ele não será dividido; obrigação para os jovens que não
têm senão uma parte mínima nos bens paternos de procurar fortuna, e, para aí
chegarem, ir ao exterior administrar as feitorias de seus irmãos, patrões ou
estranhos".
A pesquisa agrícola de 1869 está cheia de queixas de nossos agricultores
sobre a inferioridade a que nos condena nosso regime de sucessão. Uma
importante reunião de jurisconsultos formulou em 1883, ao congresso de Nantes,
a conclusão de seus estudos nestes termos:
"A lei civil deve à família e à autoridade paterna que a governa uma proteção
eficaz no que é indispensável à permanência das instituições domésticas. Os
jurisconsultos católicos pedem que a legislação assegure, ou pelo menos e
esperando melhorar, favoreça a transmissão integral do lar e a extensão da quota
9
Prefácio das Questions contemporaines.
65
disponível, à taxa proposta desde 1803 pelos conselheiros de Estado elevados
nas regiões à condição de família-tronco".
A opinião pública começa pois a entrever os tristes efeitos de uma das mais
perigosas aberrações dos homens do Terror.10 Projetos de lei foram preparados
para conjurar o mal que Robespierre, Pétion, Tronchet e os outros legisladores da
Revolução fizeram à família francesa e à própria nação. Mas esses projetos
foram levados, como tantas outras coisas, pelos acontecimentos de 1870. 11
Longe de retornar àquela situação, o regime atual agravou consideravelmente
as dificuldades já existentes para manter nas famílias o bem que as ajuda a se
perpetuarem.
Se os democratas cristãos tivessem empregado seu zelo para o bem do
povo, para esclarecer a opinião pública sobre essa questão, cujas conseqüências
morais, econômicas, políticas e sociais são tão graves, eles teriam seguramente
realizado melhor obra do que incitar o povo a exigir salários impossíveis e que,
ademais, aumentando, outra coisa não fazem senão produzir miséria maior, se
não são acompanhados de um aumento correspondente de moralidade.
"As numerosas classes que vivem de um salário diário estão interessadas, diz
Le Play, na chegada do regime da liberdade testamentária, mais ainda do que
aquelas que encontram em suas próprias posses todos os meios de trabalho.
Aqueles que, depois dessa reforma, adquirissem pela economia o lar doméstico
e os outros bens situados nos primeiros escalões da propriedade, não seriam
desencorajados, como o são hoje, pela perspectiva das liquidações que a partilha
forçada impõe. O operário laborioso e parcimonioso teria a garantia de unir à
posse de seus bens a emancipação de sua posteridade: ele seria, pois, mais
ardoroso em adquiri-los pelo trabalho e pela virtude. Sob as mesmas influências,
as gerações subseqüentes estariam, em geral, no nível alcançado pelo fundador
do lar, no caso em que elas não se elevassem mais alto, juntando a esse lar
algumas novas dependências".
Vários que desejam fixar o pequeno proprietário e seus filhos propuseram
constituir, como se fez outrora na América sob o nome de homestead, um bem de
família que uma lei tornaria impenhorável. Decretar a impenhorabilidade seria
esvaziar ou diminuir, no operário proprietário de sua casa, ou no camponês
proprietário de sua terra, a consciência da responsabilidade, e, mediante isso,
apequenar a virtude necessária para fundar uma família. Ademais, o primeiro
efeito da declaração de impenhorabilidade seria destruir o crédito do pai de
família. Ele não encontrará mais negociante de animais para vender-lhe uma vaca
a crédito, nenhum pedreiro para reparar sua casa se ele não pagar
antecipadamente. A lei impedirá o cultivador de tomar dinheiro emprestado, o que
poderia ser excelente: mas ela o colocará na impossibilidade de conseguir
instrumentos de trabalho ou algum gado que seja na entressafra.
Que grande negócio para um camponês conservar um teto, uma casa de
família, se não tem nenhum recurso para viver ali; uma terra, se não tem os meios
de valorizá-la!
É na alma e não na lei que é preciso pôr a força que dá às famílias a energia
necessária para se elevarem socialmente. Deve-se pedir à lei apenas que
levante os obstáculos que impedem essa força de funcionar.
10
A partilha forçada pertence à época mais sinistra da Revolução. Foi promulgada em 7 de março de
1793, com o propósito declarado de destruir, na família, a autoridade paterna; e, no país, todo o
espírito de tradição. Veja-se o Moniteur daquela data. Jamais se viu num povo civilizado interesses
tão grandes suprimidos por razões tão fracas quanto aquelas que foram dadas para destruir
instituições que datavam de vinte séculos.
11
Ver a respeito dessa questão: Les lois de succession appréciées dans leurs effects économiques
par les Chambres de Commerce de France, pelo conde de Butenval, antigo ministro
plenipotenciário, antigo conselheiro de Estado.  Paris, Secretariado das Uniões da paz social.
66
Permitindo ao operário fundar um lar, a reforma do código nesse sentido
permitiria também às famílias burguesas que crescessem, que se erguessem por
seus próprios bens. Mas, como observa Le Play, aí se encontra a objeção que,
no espírito dos democratas, se levanta contra ela. É que ela aproveitaria aos
ricos como aos operários, é que ela favoreceria o restabelecimento da hierarquia
na sociedade.

Seria preciso mencionar agora as conseqüências funestas, tanto do ponto de


vista moral quanto do ponto de vista nacional, que a lei da partilha forçada
carrega atrás dela?
As famílias não têm mais futuro. "Nenhuma nação européia, diz Le Play,
apresenta o lamentável espetáculo da liquidação perpétua que opera a partilha
forçada das heranças".
Não vendo mais futuro diante de si, as famílias não pensam senão em gozar
o presente.
Em 21 de janeiro de 1903, o tribunal de Lisieux, tendo que julgar um negócio
escandaloso, declarou a ação mal fundamentada com estes considerandos: "No
atual estado de nossos costumes, a definição do casamento, tal como a dava
Portalis, aparece hoje como longínqua. Num grande número de casos, a união
do homem e da mulher não é mais determinada por esta afeição recíproca que,
em 1855, o conselheiro Laborie proclamava como a essência do casamento; o
homem NÃO PROCURA MAIS, na mulher que ele desposa , A COMPANHEIRA
FIEL E DEVOTADA de sua existência e a mulher que sem cessar aspira a uma
emancipação mais completa e tende dia a dia a tornar-se igual ao homem, NÃO
VÊ MAIS, no esposo que ela aceita, um protetor, um sustentáculo natural, O
CHEFE DE UMA FAMÍLIA A FUNDAR; bem diferentes são as preocupações e
muitas uniões são hoje em dia baseadas apenas no interesse; em uma palavra, o
casamento tornou-se UM NEGÓCIO..."
Devíamos necessariamente chegar a esse ponto, no momento em que os
esposos são desenraizados, não tendo ancestrais, não devendo ter posteridade.
Não somente os esposos não têm mais apego, nem respeito, nem afeições
recíprocas, como também a autoridade paterna não mais existe. O menino sabe
desde cedo que seu pai está desarmado; que é a lei, isto é, o Estado, que lhe
atribuirá uma parte na herança, que ele pode libertar-se sem risco da autoridade
paterna, que ele pode viver por si mesmo, entregar-se a todas as desordens,
dissipar antecipadamente a herança e entregá-la a usurários que a reserva lhe
permite encontrar facilmente.
Dá-se de maneira inteiramente diversa na Inglaterra e na América.
É com estupor, dizia a Réforme Sociale, em 1893, que se terão lido na
França as disposições do testamento de Blaine, ilustre homem de Estado
americano. Uma cláusula desse ato deixa 250 francos a cada uma de suas
filhas e 125 francos a cada um de seus filhos. A fortuna do defunto se eleva a 4
ou 5 milhões de francos: é a viúva que recebe toda a fortuna.
Passado o primeiro momento de espanto, não poderíamos convir ser
interessante ver os filhos de um homem tão rico obrigados a trabalharem para
viver e para construir uma posição? Não é um espetáculo de moral diversa
daquele que nos apresentam nossos jovens ricos, dedicados à ociosidade pela
certeza que têm de que a sucessão paterna não lhes escapará? Ou ainda
daqueles nossos farejadores de dotes, para os quais o casamento não é de
nenhum modo a união de dois corações reunidos ou a escolha de uma mulher
moral e fisicamente mais bem dotada, mas unicamente a conquista de um belo
maço de cheques bancários.

67
Na América do Norte, as filhas, não tendo dote, são procuradas apenas por
suas qualidades; e os filhos, não contando com a fortuna paterna, trabalham.
Cada geração deve buscar sua própria subsistência: tal é a máxima colocada
em prática na Inglaterra assim como na América.

O código francês não pode entretanto chegar a destruir o instinto da


perpetuidade que está no fundo da natureza humana. Daí a sistemática
esterilidade dos casamentos, a fim de poder transmitir intacto, a um único
herdeiro, a propriedade, a casa de comércio, a fábrica. O lugar que o primogênito
ocupava na antiga sociedade foi tomado pelo filho único na nova sociedade. O
desejo de manter o bem de família permaneceu o mesmo do antigo direito; apenas
os meios para guardá-lo diferem. Mas os meios empregados hoje são tão
desastrosos quanto imorais. A família não tarda a se extinguir, por falta de
herdeiro que chegue à idade viril, ou mais prontamente ainda pelo mau
comportamento do jovem, mimado desde sua infância pela solicitude exagerada
dos pais que nada temem tanto quanto perdê-lo.
"Se as leis têm por efeito, diz Paul Leroy-Beaulieu, levar a maior parte da
nação a não ter senão um filho por família, é preciso convir que essas leis, por
sacrossantas que se as considerem, não somente ultrajam a moral, mas ainda
conspiram contra a grandeza nacional". Em 1815, os prussianos consideravam
que os aliados propiciavam aos franceses um destino doce demais: "Tranqüilizai-
vos, disse o plenipotenciário inglês, lorde Castebreagh, a França tem um regime
de sucessão que a enfraquecerá mais do que saberíamos fazer".
A profecia se realiza. Um deputado do Reichtag alemão observa esse fato
em 1889. Ele afirmava que, em vinte anos, a França, pelo só fato da inferioridade
dos nascimentos, encontrar-se-ia para sempre impedida de retomar sua posição
no mundo.

68
CAPÍTULO IX
FAMÍLIAS TRADICIONAIS

Interroga generationem pristinam, et diligenter


investiga patrum memoriam:
Hesterni quippe sumus, et ignoramus, quoniam
sicut umbra dies nostri sunt super terram.
Et ipse docebunt te, loquentur tibi, et de corde
suo proferent eloquia:
Nunquid vivere potest scirpus absque humore?
Aut crescere carectum sine aqua? 1
JOB, VIII, 8-11

Devolver aos pais de família a liberdade de reconstituírem um patrimônio, um


bem de família, transmissível de geração em geração, é apenas a metade da
tarefa a cumprir para recobrir novamente o solo francês de verdadeiras famílias
no sentido inteiro da palavra. A segunda tarefa é a de fazer renascer as
tradições.
A primeira não está em nosso poder senão indiretamente, através do
legislador; a segunda pode e deve ser obra de cada um em sua própria casa. A
abolição das leis revolucionárias depende de um grande movimento de opinião
pública. Mas cada qual pode reavivar entre os seus o espírito de família. Com
isso, proporcionará aos seus o maior bem que lhes possa fazer, e ao mesmo
tempo preparará a renovação da sociedade. Porque é preciso que existam
tradições sob as leis, para que elas tenham a força que lhes dá o assentimento do
coração, assim como é preciso educação familiar sob as tradições para sustê-las,
mantê-las, torná-las o princípio dos costumes, sem os quais as boas leis nada são,
contra os quais as más leis não podem nada.

1
Interroga as gerações passadas, e examina com cuidado a experiência dos antepassados:
por sermos ignorantes das coisas de ontem, nossos dias sobre a terra passam como a sombra.
Eles podem instruir-te, falar-te, e de seu coração tirar este discurso:
"Pode o papiro crescer fora do brejo,
e o junco germinar sem água?"
69
Há quarenta anos, em 15 de novembro de 1871, Emile Montégut escrevia na
Revue des Deux-Mondes: "Enquanto um vestígio de tradição uniu a nova França
à França antiga, as conseqüências da Revolução não puderam vir à tona. Mas
logo que a roda do tempo girou o suficiente para que não subsistisse nenhum
resquício de tradição, a hora da lógica soou; e as gerações contemporâneas,
criadas numa sociedade em que somente a revolução está de pé, escutam sem
admiração palavras que, trinta anos antes, lhes teriam enchido de horror e de
medo".
Desde 1871 a roda do tempo produziu quarenta novos anos, durante os quais
o espírito revolucionário acabou por triturar os últimos vestígios das tradições da
antiga França. E se, há quarenta anos, tinha-se chegado a escutar sem
admiração palavras que antes teriam enchido de horror e de medo, hoje
assistimos impassivelmente a atos que, na antiguidade pagã, teriam revoltado os
povos mais bárbaros. Em toda a extensão da França, as escolas nas quais se
ensinava às crianças a conhecer, amar e adorar a Deus, estão fechadas por este
motivo abertamente declarado pelos governantes: eles querem uma sociedade na
qual só haja ateus.
De onde vem essa impassibilidade? Do fato de que não há mais nos espíritos
idéias fixas, princípios solidamente ancorados nas almas, mas somente idéias
vagas e flutuantes, incapazes de porem energia nos corações. E por que, nos
nossos dias, as idéias flutuam assim? Porque as idéias-mães, as idéias-
princípios não foram impressas nas almas das crianças por pais que tivessem
sido, eles próprios, petrificados pelos ensinamentos dos antepassados, imbuídos
já dessas verdades pelos seus ancestrais. Em uma palavra, porque não há mais
tradições nas famílias.

Havia outrora, e por toda a parte, uma idéia quase religiosa ligada a essa
expressão "tradições de família", entendida em seu significado elevado, enquanto
designativa da herança das verdades e das virtudes, no seio das quais se
formaram os caracteres que forjaram a duração e a grandeza da casa.
Hoje, essa palavra não diz mais nada às novas gerações que chegam à vida.
Elas aparecem num dia para desaparecer no dia seguinte, sem ter recebido e sem
deixar após elas essa fonte de lembranças e de afetos, de princípios e de
costumes, que outrora passavam de pai para filho e faziam chegar as famílias
que lhes eram fiéis acima daquelas que os menosprezavam. Toda a família que
tem tradições deve isso, geralmente falando, a um de seus ancestrais, no qual o
sentimento do bem foi mais forte do que no comum dos homens e ao qual foi dada
a sabedoria e a vontade para inculcá-lo nos seus.
“A verdade é um bem, diz Aristóteles, e uma família na qual os homens
virtuosos se sucedem é uma família de homens de bem. Essa sucessão de
virtudes ocorre quando a família remonta a uma origem boa e honesta; porque
isso é próprio de um princípio que produz muitas coisas semelhantes a ele próprio;
é de alguma maneira sua obra formar seu semelhante. Quando, pois, existe numa
família um homem tão ligado ao bem que sua bondade se comunica a seus
descendentes durante várias gerações, segue necessariamente que é uma família
virtuosa".2
Todo o homem que quer fundar uma "família virtuosa" deve primeiro
persuadir-se de que seu dever não se limita, como quer J.J. Rousseau, a prover
às necessidades físicas de seu filho, tão longamente que este fique na impotência
de manter por si próprio sua vida corporal. Ele lhe deve a educação intelectual,
moral e religiosa. O animal tem a força pela qual ele socorre as necessidades
corporais de seus filhotes, e isto lhes basta. A criança, ser moral, tem outras
2
Fragmento conservado por Stobée.
70
necessidades, e é por isso que, além da força, Deus deu ao pai de família a
autoridade para regrar a vontade de seus filhos, fazê-los entrar na via do bem,
nela mantê-los e nela fazê-los progredir. Essa autoridade Deus a quis
permanente, porque o progresso moral é obra de toda a vida. E como, segundo as
intenções da Providência, o progresso deve se desenvolver e crescer de geração
em geração, é necessário que a família humana não se extinga a cada geração: o
vínculo familiar deve subsistir entre mortos e vivos, atar umas às outras todas as
filiações de uma mesma descendência, e isto entre as raças vigorosas que duram
séculos.
O pensamento do homem de bem não deve pois parar em seus próprios
filhos, ele deve ir além, sobre as gerações que seguirão e fazer com que aquilo
que é virtude se torne tradição entre elas.

Para isso pode contribuir grandemente o LIVRO DE RAZÃO. Começar esse


livro, ordenar ao primogênito que o continue e que faça a seu próprio filho essa
injunção, é o meio mais fácil e mais seguro de introduzir numa família as tradições;
entretanto, sob uma condição, a saber, que se terá por regra inviolável não fazer
alianças senão com famílias nas quais reinem as virtudes que se querem transmitir
aos próprios filhos.
"Aliar-se a uma família, diz Lacordaire, é aliar-se a bênçãos ou a maldições, e
o verdadeiro dote não é aquele que o notário lança nos seus assentos. O
verdadeiro dote é conhecido somente de Deus, mas, em certa proporção, podeis
também conhecê-lo através da memória dos homens. Perguntai-vos se o sangue
que vai se misturar ao vosso contém as tradições de virtudes humanas e divinas e
se ele foi longamente purificado nos sacrifícios do dever. Perguntai-vos se a alma
é rica de Deus. Retornai, tão longe quanto possível, na sua história hereditária, a
fim de que, tendo sido explorados todos os ramos, como uma mina atrás de vós,
saibais o quanto pesa diante de Deus essa geração que vos era estranha e que
vai se unir à vossa para formar apenas uma relativamente à vossa posteridade".

Charles de Ribbe empregou o melhor de sua vida para repor no lugar de


honra os livros de razão. Após ter editado os manuscritos de várias antigas
famílias, publicou diversas obras para dar ampla publicidade aos ensinamentos
que neles se encontram, e, finalmente, redigiu, segundo os modelos que tinha sob
seus olhos, Le Livre de Famille, para servir de modelo e assim auxiliar os pais de
família que quisessem pôr em prática o que havia sido praticado por nossos
ancestrais. Não conseguiríamos recomendar suficientemente a aquisição, a
leitura e a meditação desse livro; é dos poucos que podem contribuir
grandemente para imprimir à nossa sociedade degenerada um novo impulso em
direção ao bem.
Limitar-nos-emos aqui a dar algumas indicações.
O livro de razão é assim chamado porque nele se dá satisfação aos filhos e
aos filhos dos filhos, nas gerações futuras, da posição da família, de seus
antecedentes, de seus trabalhos, das idéias e dos sentimentos que a guiaram no
caminho da vida e dos costumes que devem assegurar a transmissão dos
mesmos sentimentos e das mesmas virtudes. Ele é o liame moral entre as
gerações, cujos elos, graças a ele, unem-se estreitamente numa comunidade de
idéias e de sentimentos.
O livro deve ser dividido em três partes, correspondentes às três fases da
existência da família. O passado, constituído pela genealogia e pela história do
tronco doméstico. O presente, constituído pelo governo atual. O futuro,
constituído pelos ensinamentos deixados pelos pais e ancestrais aos seus filhos e

71
netos. O livro de razão bem organizado contém assim um resumo de tudo aquilo
que constitui moral e materialmente a família.
Primeiro, a genealogia: "Que nossos filhos, diz André Lefèvre d'Ormessan,
que já citamos, conheçam aqueles dos quais descenderam de pai e de mãe". Por
que principalmente esse conhecimento? "Para que sejam incitados a rezar a
Deus por suas almas e a abençoar a memória dos que, com a graça de Deus,
honraram sua casa e adquiriram os bens dos quais fruem seus descendentes, e
que passarão às outras gerações, se agrada à bondade de meu Criador de dar
para isso Sua benção, como o suplico de todo o meu coração". Em outros termos,
a genealogia da família é a condição primeira para criar e manter o espírito de
família.
Tanto quanto possível, uma curta nota deve ser juntada a cada nome. Toda
família deve tender a ter uma história. O livro de razão é o guardião dessa história.
Os livros de razão publicados nesses últimos tempos mostram-nos, através dessas
curtas observações, como numerosas famílias modestas puderam, pela força dos
costumes, se perpetuar durante vários séculos na mesma região, com as mesmas
virtudes.

Após a genealogia vem o diário. Aí são sucessivamente registrados os atos


importantes da família: nascimentos, casamentos, mortes, com as informações
que cada um desses fatos comporta. O livro imobiliário, que recebe cópia dos
títulos de propriedade. O livro de contas e de negócios. A exposição dos métodos
de trabalho, que fornece o meio de melhorar a sorte da família através de uma
experiência doméstica sempre mais segura. Tudo isso faz sobressair aos olhos
dos filhos a fidelidade com que seus pais se conduziram no cumprimento de seus
deveres de estado, e os incita a manter, mais tarde, na educação de seus próprios
filhos e filhas, os bons costumes domésticos que testemunharam e cuja lembrança
o livro de razão guarda e transmite.

Os ensinamentos formam uma parte distinta apenas por exceção.


Normalmente, idéias, reflexões morais, são lançadas ao lado da menção dos
atos: observações e recomendações seguem a exposição dos fatos. Tira-se dos
fatos a ocasião de dizer aos filhos: Aí está a verdade, aí está o bem. Evitai tal
erro. Tende cuidado com essa falta. Esses avisos, freqüentemente formulados
com palavras tiradas da Sagrada Escritura, são curtos. Supõe-se que, dessa
forma, gravem-se melhor no espírito e entrem mais adiante nos corações. "Eu
gostaria, diz Antoine de Couston, chamar esse livro: A sabedoria da família. É
preciso que ele continue de geração em geração, que seja o depositário de
nossos êxitos assim como de nossos erros, de maneira que, transformando em
benefício dos que virão o bem e o mal dos que existem, ele ligue todas as
gerações umas às outras e não produza senão uma família sempre viva, sempre
animada do mesmo espírito. Do contrário, as gerações se sucedem rodando
sempre no mesmo círculo de ignorância e de erros".

Joubert exprimia bem a situação moral que resulta da falta de ensinamentos


tradicionais e que se tornou a nossa situação: "Poucas idéias fixas e muitas
idéias errantes, sentimentos muito arrebatados e nenhum sentimento constante,
descrença nos deveres e confiança nas novidades, espíritos decididos e
opiniões flutuantes, afirmação no meio da dúvida, confiança em si mesmo e
desconfiança em outrem, a ciência das doutrinas tolas e a ignorância das
opiniões dos sábios: tais são os males do século. Tendo sido destruídos os
costumes, cada qual inventa hábitos e maneiras segundo sua inclinação.

72
Deploráveis épocas aquelas em que cada homem pesa tudo segundo seu próprio
peso, e caminha, como diz a Bíblia, à luz de sua lâmpada". 3
É exatamente aí que nos encontramos. Havia, outrora, em cada casa, um
caráter próprio que a distinguia, e em virtude do qual se podia dizer: Reconhece-
se aí um membro de tal família. Esse caráter havia sido formado pelos
ancestrais e mantido pela tradição. Isto não existe mais, e eis a conseqüência:
enquanto viveram alguns dos representantes das antigas gerações, havia
sempre um clarão que iluminava a vida. Mas, à medida que desapareceram os
anciãos, cuja educação fora feita de tradições, os jovens se encontraram na
presença do vazio. Nada lhes resta a respeito das grandes verdades que
constituem a família e sobre aquelas que constituem a sociedade. Esses jovens
tornam-se pais de família em meio à invasão de um luxo espantoso e isso sob o
golpe de revoluções ameaçadoras, que acabam de destruir no coração do país
as últimas forças da vida.
Após as desordens do século XVI, uma multidão de pais modelares se
esforçaram, em seus lares, em defender seus filhos e seus empregados contra
o contágio do mal. Desta época datam os melhores livros de razão. Eles foram
os guias e os sustentáculos das nobres famílias que ilustraram a época de
Henrique IV e de Luís XIII.
Pudesse ser assim nos nossos dias! Não é temerário esperar por isso. Em
diferentes classes da sociedade recomeça-se a compreender a utilidade, a
necessidade das tradições.
No dia seguinte ao da morte de seu pai, o antigo redator do Petit Journal ,
Ernest Judet, publicou na primeira página do Eclair essas fortes palavras:
"Jamais eu compreendi tão bem a força da tradição, a lição da
hereditariedade, a carga que um ser lega a outro ser saído de si, e a
responsabilidade de nosso desenvolvimento conforme o espírito daqueles que já
nos formaram ao nos criarem!"
Conhecemos a profunda impressão que causou sobre o público a Etape de
Paul Bourget. Lemaître, Drumont, Soury, Barrès, Charles Maurras, etc., etc.,
fazem promoções no mesmo sentido.
Charles de Ribbe, que consagrou a melhor parte de sua vida a pesquisar, a
estudar e a editar as tradições familiares da antiga França, chega a esta
conclusão: "Reforçado por testemunhos que não podemos desejar mais
probantes e decisivos, que nos são fornecidos pela história dos lares modelos,
afirmamos que, sempre e em toda a parte, a maior soma de bens reais e sólidos
foi possuída de uma maneira estável pelas famílias que caminharam pelas vias
traçadas pelo próprio Deus (vias relembradas a cada geração pelos livros de
razão); que apenas essas famílias, após se terem elevado à prosperidade pelo
trabalho e pela economia, conseguiram, pela virtude, pelo poder da educação
seriamente cristã, triunfar sobre o vício e as causas fatais de queda que a
prosperidade adquirida não tarda a provocar".
Num livro intitulado Quelques réflexions sur les lois sociales, o duque
d'Harcourt faz uma observação sobre a qual não se chamaria suficientemente a
atenção das famílias. Falando dos sentimentos íntimos da classe aristocrática do
século XVIII, ele diz: "Sabemos que a irreligião ali reinava. Os dogmas eram
escarnecidos, as tradições ridicularizadas. Nos nossos dias, ao contrário, os
representantes dessas mesmas famílias são, em geral, religiosos". Ele pergunta
como se produziu essa mudança. "Foi visto, no fim do século passado, um
grande número de indivíduos que, por ódio à Revolução, tenham mudado seus
sentimentos? Não. Também não foram os filhos educados pelos espíritos fortes
que tiveram espontaneamente sentimentos piedosos, exatamente opostos aos de
3
Pensées de Joubert. Livro XVI.
73
seus pais; vimo-los, mas muito raramente. Essa transformação se explica muito
naturalmente pela SUPRESSÃO QUASE COMPLETA da descendência cética do
século passado. MUITOS DE NÓS SE EXTINGUIRAM; e para os outros eles se
perpetuaram, seja pela minoria que, mesmo na Corte, havia escapado ao
contágio, seja pelos colaterais obscuros, perdidos no fundo das províncias, que
ali tinham CONSERVADO, COM AS ANTIGAS TRADIÇÕES, as idéias religiosas
sem as quais as famílias não se perpetuam".
Possa esse memorável exemplo persuadir as famílias que querem se
perpetuar a restabelecer entre elas as tradições que edificaram a antiga
aristocracia! E por esse caminho, que se retome por toda a parte, nas famílias
cristãs, o uso dos livros de razão. Eles tiveram prestígio não somente na França,
mas na Itália, na Suíça, na Holanda, na Alemanha, na Polônia etc. Descobrem-
se traços deles um pouco por toda a parte, mesmo no Oriente, sob formas
diversas. Uma instituição nascida espontaneamente em tantos e tão diversos
países, não pode ser senão uma instituição inspirada pela própria natureza, ou
melhor, pelo Autor de nossa natureza. Tê-la abandonado ter-nos-á sido
extremamente funesto; retomá-la não nos seria menos favorável.

74
CAPÍTULO X

AUTORIDADE DO PAI  SANTIDADE DA MÃE


CULTO DOS ANTEPASSADOS

Quis filius quem non corripit pater? 1


AD HAEBR. XII, 7.

Supra modum mater mirabilis, et bonorum


memoria digna, singulos filios hortabatur, repleta
sapientia.1.a
II MACH., VII, 20.

Qui timet Dominum honorat parentes.1.b


ECCLI, III, 8.

A permanência do lar familiar e a manutenção do livro de razão são, por assim


dizer, os sustentáculos exteriores da família. O que está no seu âmago, o princípio
de vida, é a autoridade do pai, a santidade da mãe e o culto dos antepassados.
Sabemos o quanto era absoluta a autoridade do pai de família em Atenas e
em Roma. Já o dissemos, o pai, entre os seus, era rei, tinha a dignidade e o
poder da realeza, e esse poder ia ao ponto de conter o direito de vida e de morte.
Entre nós o pai jamais pronunciou sobre os filhos a pena capital, mas era o
primeiro juiz deles. Ainda no século XVIII o pai conserva o direito de privar seu
filho da liberdade, fosse ele maior, fosse ele casado, e o soberano não hesita
em colocar seu poder à disposição do pai justiceiro. É a história dos avisos
reais.2 Esse direito era admitido por todos, mesmo por aqueles que sofriam suas
1
Qual é o filho a quem seu pai não corrige? (Hebreus, XII, 7).
1.a
Particularmente admirável e digna de elogios foi a mãe que encorajava cada um de seus filhos,
cheia de sabedoria (II Macabeus, VII, 20).
1.b
Quem teme o Senhor honra seus pais (Eclesiástico, III, 8).
2
As "lettres de cachet", literalmente, "cartas com o selo, sinete ou lacre real", eram documentos do
rei que continham ordem de prisão ou de exílio, sem julgamento. (Le Petit Robert 1, Dictionnaire
alphabétique et analogique de la langue française; Dictionnaires LE ROBERT, Paris; Nova edição,
revista, corrigida e atualizada em 1990, p. 232. - N. do T.).
75
conseqüências. A autoridade paterna era considerada como sendo de uma
essência superior às outras, e por isso era tão profundamente respeitada. "O
príncipe dá ordens a seus súditos, diz Jean Bodin, no livro em que ele expõe os
princípios de toda sociedade, 3 o mestre ao discípulo, o capitão aos soldados...
Mas dentre todos esses não há, excetuado o pai, nenhum ao qual a natureza dê
algum poder de ordenar que seja a verdadeira imagem do grande Deus soberano,
pai universal de todas as coisas". Imagens de Deus sobre a terra: era
exatamente esta a idéia que os filhos tinham de seus pais. Encontramos por
toda a parte pensamentos semelhantes ao que segue, de Etienne Pasquier:
"Devemos considerar nossos pais como deuses na terra, que nos são dados não
somente para nos intermediar a vida, mas para nos fazer felizes através de uma
boa nutrição e uma sábia instrução".
São Francisco de Sales, escrevendo a uma de suas sobrinhas, diz a mesma
coisa: "Eis-vos, pois, junto do senhor vosso pai, que olhais como uma imagem do
Pai eterno; porque é nessa qualidade que devemos honra e reverência àqueles
dos quais Ele se serviu para nos produzir".
Uma autoridade de caráter tão religioso inspirava respeito e tornava fácil a
obediência, estimulava a abnegação pela família e mantinha a concórdia entre os
filhos.
Quebrada no século XVIII pela corrupção dos costumes, a autoridade paterna
foi quase destruída pela Convenção.
No momento em que os homens imbuídos do espírito de Jean-Jacques
Rousseau, que pretende que o indivíduo e não a família seja a unidade social,
tiveram em suas mãos o poder de legislar, apressaram-se em abolir o poder
paterno relativamente aos maiores de vinte e um anos e em enfraquecê-lo perante
os mais jovens. "A voz imperiosa da razão, proclamava um desses legisladores,
se fez ouvir. Não há mais poder paterno. Um homem não deveria ter poderes
diretos sobre um outro, ainda que fosse seu filho". 4 A um século de distância
tínhamos ouvido palavras equivalentes na tribuna, por ocasião da discussão das
leis sobre a liberdade de ensino. Assim que o socialismo estiver no poder
transformará esses propósitos em leis. Benoît Malon, no livro Le Socialisme
Intégral, diz: O importante é abolir radicalmente a autoridade do pai e seu poder
quase real na família. A igualdade, com efeito, não será perfeita senão sob essa
condição. Os filhos não valem tanto quanto os pais? Por que dar-lhes ordens?
COM QUE DIREITO? OBEDIÊNCIA NÃO MAIS, SEM O QUE NÃO SE TERÁ
IGUALDADE!"
Agora, o pai está diante de seus filhos na situação em que estaria diante de
seus súditos um soberano privado dos meios de reprimir a rebelião. A literatura
age no mesmo sentido da lei, ela combate sem descanso a velhice e a idade
madura através de assertivas que a razão desmente. A própria escola, pelos
conhecimentos que oferece na ordem das coisas materiais, persuade os filhos de
que eles têm uma verdadeira superioridade sobre seus pais, os quais os ignoram,
e os dão-lhes uma espécie de supremacia na família.
Assim, a autoridade paterna não é senão a sombra do que ela era antes da
Revolução. Tocqueville augurava isso para a sociedade doméstica: "Penso, diz,
que à medida que as leis e os costumes se tornem mais democráticos, as relações
entre pais e filhos tornar-se-ão mais íntimas e mais doces; sendo menor a
presença da regra e da autoridade, maiores serão a confiança e a afeição, e me
parece que o laço natural se estreita enquanto o laço social se desata". 5

3
Les Six Livres de la République, cap. IV.
4
Cambacérès. Moniteur de 23 de agosto de 1793.
5
T. II, 3ª parte, cap. VIII.
76
Os fatos são contrários a essas previsões, as quais, ademais, a razão não
podia admitir. Hoje todos deploram a ruptura dos laços familiares e suas
conseqüências, que são: o desaparecimento do respeito e da obediência entre
os jovens, sua emancipação, e, como conseqüência, uma extrema corrupção dos
costumes privados e dos costumes públicos; enfim, a decadência da raça e a
sociedade francesa colocada em perigo. Nas classes inferiores o mal se revela
com cinismo. Le Play, no livro L'Organisation du Travail, traz em testemunho os
quadros pungentes traçados por Pénart, no seu discurso de reentrada na corte
de Douai, em 1865; por Bougeau, no seu discurso no Senado, em 23 de março
de 1861; e por Legouvé: Les Pères et les Enfants au XIX ème. Siècle. Quanto o
mal se agravou ainda mais na última metade do século! Nas classes superiores,
as aparências são mais bem mantidas, mas a realidade não é melhor. Fortalecida
pelo direito à herança, a juventude se revolta freqüentemente contra a disciplina
do lar; ela pretende gozar na ociosidade e na libertinagem a riqueza criada pelo
trabalho dos antepassados.

É pois soberanamente urgente restaurar a autoridade paterna. Nenhuma


outra possui títulos mais legítimos, nenhuma outra é tão necessária.
O poder do pai é o que, na ordem natural, oferece no mais alto grau os
caracteres de uma instituição divina. Ele se classifica acima do poder do
soberano, cujo papel se limita a dirigir uma sociedade sobre a qual ele não pode
reivindicar direitos que ele teria adquirido da natureza: ao passo que a autoridade
atribuída ao pai é uma conseqüência legítima dessa dignidade natural, que é a de
continuar a obra da criação, reproduzindo seres que têm o sentimento da ordem
moral, e que podem ser elevados ao conhecimento e ao amor de Deus.
Revestida de uma legitimidade tão alta, essa autoridade se impõe pela
necessidade de assegurar a existência da mulher e dos filhos, impotentes para se
conservarem a si mesmos. Ela se impõe ao amor paterno, a mais durável e a
menos egoísta das afeições humanas, porque o pai percebe bem que, sem ela,
é-lhe impossível educar os filhos que carregam no coração a mancha original.
Ela se impõe, enfim, pelo serviço que ela oferece à sociedade, ao recolher e ao
transmitir, pela educação, o tesouro das verdades morais e de experiências
acumuladas durante os séculos. Assim, a autoridade paterna foi por toda a
parte, se não o é entre nós na hora presente, considerada como uma das bases
da ordem social, necessária a todos os povos e a todos os tempos, como um dos
elementos invariáveis da constituição social.
Ribbe diz de Le Play que de todas as auscultações às quais ele se dedicara
no corpo social, de todas as análises que fizera sobre os diversos elementos que
constituem a sociedade, haviam sobressaído a seus olhos, como conclusões
absolutamente demonstradas pela experiência, que se as sociedades se formam
segundo a imagem das famílias de que se compõem, as famílias são aquilo que
delas fazem as autoridades paternas. "Devolvendo ao pai sua autoridade,
restauraremos, dizia ele, o ministro de Deus na ordem temporal". "Quanto mais
progredirmos, dizia ainda, mais verificaremos ser necessário devolver à família
sua autonomia. Nos nossos dias só podemos evidentemente constituir maus
governos, com homens entregues ao erro. Nossa salvação só pode vir da única
autoridade que, nesse estado de erro profundo, permanece, em virtude da lei
natural, devotada a seus subordinados. A autoridade paterna obterá aquilo que
está acima das forças de toda autoridade pública" (12 de julho de 1871).

À autoridade do pai deve juntar-se a santidade da mãe.

77
"Feliz o homem ao qual Deus deu uma santa mãe!", disse Lamartine. 6 Ele
foi dos que tiveram essa felicidade, e jamais se cansou de reconhecer a dívida de
reconhecimento de que ela era credora, "por haver observado diariamente o
pensamento desse filho para voltá-lo para Deus, assim como se procura
descobrir a fonte do riacho para dirigi-lo em direção ao campo no qual se deseja
fazer reflorescer a relva nova". 7
Quantas outras mães imprimiram profundamente, na alma de seus filhos, o
respeito, o culto, a adoração de Deus, virtudes das quais elas eram para eles,
pela pureza de suas vidas, a imagem viva! "A minha, diz ainda o poeta, tinha a
piedade de um anjo. A beleza de seus traços e a santidade de seus
pensamentos lutavam juntas para se realizarem uma pela outra". 8
Mãe, a mulher cristã santifica o filho homem; filha, ela edifica o homem pai;
irmã, ela melhora o homem irmão; esposa, ela santifica o homem esposo.
"Quero fazer de meu filho um santo", dizia a mãe de Santo Atanásio.
"Mil vezes obrigado, meu Deus! por nos terdes dado por mãe uma santa",
exclamavam por ocasião da morte de Santa Emília, seus dois filhos, São Basílio e
São Gregório Nazianzeno.
"Ó meu Deus! devo tudo à minha mãe", dizia Santo Agostinho.
Por reconhecer ter sido por sua mãe tão profundamente impregnado da
doutrina de Cristo, São Gregório, o Grande, fez pintar sua mãe, Sílvia, a seu lado,
trajada com veste branca, com a mitra dos doutores, estendendo dois dedos com
a mão direita, como para abençoar, e segurando na mão esquerda o livro dos
Santos Evangelhos sob os olhos de seu filho.
Quem nos deu São Bernardo, quem o fez tão puro, tão forte, tão abrasado
de amor por Deus? Sua mãe, Aleth.
Mais próximo de nós, Napoleão I disse: "O futuro de um filho é obra de sua
mãe". E Daniel Lesueur: "Quando se é alguém, é muito raro que não se o deva
à sua mãe". Ó meu pai e minha mãe, que vivestes tão modestamente, disse
Pasteur, a vós devo tudo!
Teus entusiasmos, minha brava mãe, tu os passastes para mim. Se sempre
associei a grandeza da ciência à grandeza da pátria, é porque estava impregnado
dos sentimentos que me havias inspirado. A alguns que o felicitavam de ter tido
desde cedo o gosto pela piedade, o santo cura d'Ars dizia: "Após Deus, é obra
de minha mãe".
Quase todos os santos retrocedem as origens de sua santidade às suas
mães.

Elas viram, em seus filhos, segundo o belo pensamento de Lamartine:

6
Lamartine, Harmonies Poétiques, III, 9. Apesar dos desvios de sua imaginação, Lamartine sempre
guardou a lembrança de uma educação cristã que sua mãe lhe havia dado. Mais de dois anos antes de
sua morte, ele se ajoelhou, na semana da Páscoa, na Santa Mesa ao lado de sua mãe. Como disse J.
de Maistre: "Se a mãe se impôs o dever de imprimir profundamente sobre a fronte de seu filho o
caráter divino, pode-se estar mais ou menos seguro de que a mão do vício jamais o apagará
inteiramente".
A lembrança de uma santa mãe acompanha por toda a parte o homem virtuoso! Ozanam, falando
de sua mãe, dizia: "Quando sou bom, quando faço alguma coisa pelos pobres que ela tanto amou,
quando estou em paz com Deus ao Qual ela tão bem serviu, vejo que ela me sorri de longe.
Algumas vezes, se rezo, creio ouvir sua oração que acompanha a minha, como fazíamos juntos, à
noite, ao pé do crucifixo. Enfim, freqüentemente, quando tenho a felicidade de comungar, assim que
o Salvador vem me visitar, parece-me que ela O segue no meu miserável coração, como tantas vezes
ela O seguiu, levado em viático, a casas de indigentes".
7
Cours familier de littérature, 1ª conversação, p. 9.
8
Idem.
78
Um servidor a mais para servir o Grande-Mestre,
Um olho, uma razão a mais, para conhecê-Lo,
Uma língua a mais no coro infinito,
Pelo qual, de século em século, Ele deve ser bendito!

Podemos acrescentar: os grandes homens, também eles, foram feitos por


suas mães.
O bispo Castulf, numa carta a Carlos Magno, recorda-lhe a lembrança de
sua mãe Berta e lhe diz: "Ó rei, se Deus todo-poderoso vos elevou em honra e
em glória acima de vossos contemporâneos e de todos os vossos predecessores,
devei-o sobretudo às virtudes de vossa mãe". 9
"É sobre os joelhos da mãe, disse J. de Maistre, que se forma o que há de
mais excelente no mundo".
Ela é no lar essa chama resplandecente da qual fala o Evangelho, espargindo
sobre todos a luz da fé e os fogos da caridade divina. Cabe a ela fazer viver na
família o pensamento da soberania de Deus, nosso primeiro princípio e nosso
último fim; o pensamento do amor e do reconhecimento que devemos ter por
Sua infinita bondade, o temor de Sua justiça, o espírito de religião que nos une a
Ele, a lei dos costumes castos, da honestidade dos atos e da sinceridade das
palavras; o pensamento da dedicação e do mútuo auxílio; o pensamento do
trabalho e da temperança.
Quantas famílias chegaram assim, através das mulheres, ao mais alto grau
de consideração e de prosperidade, e também quantas famílias decaídas foram
reerguidas por elas!
No século XVI, Luís Gonzaga estava às vésperas de falir; sua mulher
Henriette de Clèves toma o governo do lar doméstico e restabelece a ordem na
sua administração. Uma outra, Jeanne de Schomberg, irmã do segundo dos
marechais desse nome, verificando a ruína de seu marido, diz: "Verei eu mesma e
examinarei todos os nossos negócios com cuidado, segundo a capacidade que
Deus me dará para isso, e antes de começar a trabalhar nisso, farei uma pequena
elevação de meu coração ao Espírito Santo para pedir-Lhe o dom do conselho e
da força, a fim de agir com toda a prudência e firmeza". Santa Joana de Chantal
foi introduzida, por seu casamento, numa casa "cujos negócios estavam muito
complicados". Começou, já no dia seguinte ao de suas núpcias, a reparar o mal.
"Ela se acostumou a levantar-se de madrugada; e já havia posto ordem na casa
e enviado seus empregados ao trabalho quando seu marido se levantava..."
Todas as classes apresentam-nos exemplos semelhantes.
"Na família operária, diz Augustin Cochin, a figura dominante é a mulher, é a
mãe; tudo depende de sua virtude e acaba por se modelar por ela. Ao marido, o
trabalho e os ganhos da casa; à mulher os cuidados e a direção interna; o marido
ganha, a mulher economiza; o marido nutre os filhos, a mulher sozinha os educa;
o marido é o chefe da família, a mulher é a união da família; o marido é a honra da
família, a mulher a benção".

A feliz influência da mulher cristã estende-se bem além do lar doméstico.


"Deus, diz o visconde de Maumigny, suscitou entre nós essas numerosas
gerações de mulheres piedosas, às quais nós devemos nosso caráter nacional,
como Roma deve o seu aos seus grandes pontífices. Ele nos deu as Clotildes e
as Batildes, as Radegondes e as Blanches, as Isabelas e as Joanas, e, nesses
últimos séculos, piedosas rainhas dignas delas. As pastoras rivalizam com as
princesas. A virgem de Nanterre e a de Vaucouleurs, Germaine de Pibrac e
Benoîte du Laus, toda uma legião de santas mulheres de todas as condições e
9
Cartulf. Instructio epistolaris ad Carolum regem. Migne Patrol. lat. T. XCVI c. 1363.
79
de todos os níveis, fazem penetrar por toda a parte a doce influência de Maria,
seu modelo.
"Assim, enquanto a salvação da Itália vem, antes de tudo, de seus grandes
Pontífices, para nós vem sobretudo do apostolado das mulheres. No último século
(XVIII), reis e magistrados, sábios e mesmo pontífices, estavam adormecidos; mas
as mulheres permaneciam heroicamente fiéis. E quando os homens diziam:
"Não conheço esse homem, Seu reino não é deste mundo!", as mulheres
silenciosamente seguiam Cristo e seu Vigário até o Calvário.
"Devemos a nossas mães e a nossas irmãs a essência de honra e de
devotamento cavalheiresco que constitui a vida da França. Devemos-lhes a fé
católica. Discípulas da Rainha dos Apóstolos e dos Mártires, as mulheres
passaram os seus corações para os corações de seus filhos.
"As mulheres na França são a alma de todas as boas obras: do Tesouro de
São Pedro como da Propagação da Fé; e foi o sopro de suas mães e de suas
irmãs que levou à Roma os defensores da Santa Sé. Conheço mais de um jovem
que estaria entre os zuavos se tivesse seguido os desejos secretos de sua mãe:
não conheço nenhum que uma mãe cristã tenha impedido de estar entre eles. 10
O pai podia fraquejar, jamais a mãe; jamais, nem antes, nem durante, nem
depois. Um filho mutilado era seu orgulho, e quando, diante do cadáver do mártir,
Deus dizia-lhe no fundo do coração: Teu filho está comigo, a gratidão apagava sua
dor. Mais que o sangue de seu filho, ela amava sua glória.
"Maria, modelo delas, Maria havia ensinado a essas mães como se sacrifica
um filho único a Deus e à Igreja. "Não, dizia Pio IX ao narrar essas sublimes
imolações, a França, que produz tais santas, não perecerá!"
"Na primeira vez que a heróica viúva de Pimodan viu o Papa, não lhe disse:
"Ó, Santo Padre, restitui-me meu marido!"; ela lhe disse: "Ó, dizei-me que ele está
no céu!" E quando Pio IX respondeu: "Eu não rezo mais por ele", ela não
perguntou mais nada; porque ela compreendeu que ela era viúva de um mártir, e
isto lhe bastou.
"As mulheres são a alma de tudo quanto comoveu a França, e, por seu
intermédio, o mundo. Em Castelfidardo, os zuavos combatiam sob os olhos de
suas mães, presentes em seus pensamentos, e sob os muros do santuário onde
a Rainha dos Mártires gerou o Rei dos Mártires. Todos, marchando contra o
inimigo, repetiam essa frase: "Minha alma para Deus, meu coração para minha
mãe, meu corpo para Lorette". A honra da batalha é canalizada para suas mães,
para Maria, que a todos inspirou. Como os cavaleiros de outrora, como os
vandeanos de mais tarde, foi sobre os joelhos de suas mães que eles
apreenderam a morrer por Deus, pela Igreja e pela pátria".
Num belo estudo publicado na Défense Social e de 16 de abril a 1º de agosto
de 1903, sob o título O Progresso , Favière observa que a civilização moderna se
liga, por suas origens, à antiguidade greco-latina. "O Evangelho, diz ele, as
diferencia, mas as une por causa de suas afinidades. Essa afinidade provém do
fato que Grécia e Roma, contrariamente ao que se passava no Oriente, não
tinham excluído a mulher da vida social, de sorte que o gênio feminino tinha tido
participação no desenvolvimento de suas civilizações, que, por isso, foram mais
aptas que as civilizações do Oriente para receber o enxerto evangélico".
Os germânicos, quando se estabeleceram no império, levaram consigo o
respeito supersticioso que tinham pela mulher. A Igreja purificou esse sentimento,
reservou para a pureza dos costumes o primeiro nível na estima dos homens, e
abrindo assim sobre o mundo todos os tesouros do coração e da inteligência da
mulher, dobrou os recursos e o campo de ação do progresso.

10
Isto foi escrito em 1862, quando os zuavos pontifícios vertiam seu sangue em defesa da Santa Sé.
80
"Foi da mulher, diz Favière, que as nações cristãs receberam o dom da
piedade, é delas que têm essa faculdade das emoções comunicativas que
enternecem as multidões, esses súbitos e irresistíveis despertares que às vezes
erguem os povos acima deles mesmos, de seus interesses comerciais e de seu
repouso, para precipitá-los na via das aventuras sublimes que constituem as
grandes etapas da Humanidade. Que povo sabe melhor disto do que o nosso?
Não foi somente pelo coração que a mulher se associou à obra do progresso; não
foi somente pelo calor e pelo movimento que ela lhe comunicou, que ela veio a
elevar a civilização cristã acima do que o mundo tinha visto; o progresso não foi
menos bem servido por sua inteligência. A inteligência pronta e instintiva da
mulher tem, sobre o mundo moral, olhos cuja penetração não é igualada pela
inteligência masculina... Ela cultiva na família o senso do bem, ela lhe dá a
compreensão das verdades primeiras, ela as ensina por seus atos, por seus
julgamentos, pelas manifestações de sua estima e de sua censura."
Há bem poucos homens entre nós que, de dois séculos a esta data, mesmo
sem o querer, não se deixaram enlaçar pela Revolução. As mulheres, ao contrário,
têm o instinto da verdade como o da caridade. Toda apostasia, toda
pusilanimidade, toda fraqueza de espírito ou de coração encontra nelas juízas
inflexíveis. Elas amam a Igreja e a Pátria, Cristo e Sua Mãe; elas os amam mais
do que a elas mesmas, mais do que às riquezas, mais do que a seus próprios
filhos. Vimos isto, há pouco, em Mentana e em Castelfidardo. E esse amor lhes
confere posição de ciência. Elas são entre nós o firme apoio da sociedade e da
Igreja. A Revolução sabe-o bem. Ela conhece o número de irmãos, de filhos e de
maridos preservados, desviados das sociedades secretas por simples operárias,
por simples camponesas. Sem trégua, o revolucionário é atormentado por essa
guerra feminina. Daí suas queixas, suas conspirações para perverter o coração
da mulher. Mas as mulheres de França tornaram-se aguerridas por cem anos de
lutas incessantes!

O espírito de família engendra o que com muita razão se chamou de culto dos
ancestrais e dele se nutre.
Esse culto existiu entre as nações pagãs, mas logo degenerou. Ele está
vivo nas sociedades cristãs, e nós o vemos, na China, constituir quase toda a
religião.
Entre os pagãos, ele não deve ter consistido, inicialmente, senão de
sentimentos de gratidão: dos filhos pelo pai que os havia educado, e da família
pelo antepassado que havia construído sua condição social, que lhe tinha dado a
lição e o exemplo das virtudes morais em razão das quais prosperara.
Pouco a pouco, à medida que se distanciava a imagem venerada do
fundador, ela tomava um aspecto mais misterioso e produzia nos corações
sentimentos de um caráter mais religioso.
Logo eles se traduziram num culto propriamente dito. Ofereciam-se ao
ancestral sacrifícios sobre sua tumba, e dizia-se-lhe: "Deus oculto, sede-nos
propício!"
Ademais, um altar era erguido no lar da casa familiar. Carvões iluminados ali
brilhavam noite e dia. Eles simbolizavam a alma da família, o espírito da família
recebido dos ancestrais e sempre vivo nela. Infeliz da casa em que o braseiro
viesse a se extinguir! O fogo não devia parar de queimar sobre o altar senão
quando a família tivesse perecido inteira. Braseiro extinto, família extinta, eram
expressões sinônimas.
O cristianismo não destruiu nada do que brotou naturalmente da alma
humana. Mas tudo purificou. Ele quer, assim, que guardemos religiosamente a

81
lembrança dos autores de nossos dias, que conservemos suas lições e seus
exemplos e que os façamos passar às gerações seguintes.
Mas, além disso, a santa Igreja quis que permanecêssemos em comunhão
com nossos ancestrais, como o pai e a mãe, os irmãos e as irmãs que nos
precederam no mundo superior. Ela quer que rezemos por eles e que os
invoquemos, que corramos em seu socorro e que tenhamos confiança no deles,
sobretudo para nos mantermos no caminho no qual eles nos colocaram e pelo
qual nos guiam.

82
CAPÍTULO XI
RECONSTITUIÇÃO DO CORPO SOCIAL

Tunc totum reipublicae corpus robo[...] sui


integritate vigebit, tunc optimae compositionis
specie venustabitur, et elegantis pulchritudinis
decorem induet, si singula quaeque locum teneant
sortita decenter, si fuerit officiorum non confusio,
sed distributio.1
S.CHRYSOST. In Policraticio. Lib. I

Em um de seus últimos estudos sobre a família, La Tour du Pin disse com


muita razão:
"A família deve sempre ser considerada como uma entidade moral, econômica
e social persistente, cuja perpetuação há de ser preparada pela educação 
protegida pela legislação  e secundada pela organização da sociedade". 2
Eis a verdade que é preciso restabelecer nos espíritos, eis o que é preciso
fazer reentrar nas instituições, se se quer reconstituir a sociedade sobre sua
verdadeira base.
Quando as famílias forem assim reformadas na França, a hierarquia social se
restabelecerá por ela mesma. Pela prática mais ou menos perfeita, mais ou
menos prolongada das virtudes tradicionais, as famílias se sobreporão umas às
outras. Bem em baixo permanecerão aquelas que continuarão a viver o dia-a-
dia, sem previsão para o futuro; acima, aquelas que saberão dirigir seus sentidos
para a poupança; mais alto, aquelas que, pelas poupanças acumuladas, terão
adquirido a propriedade; superiores a todas, aquelas que, gozando da
independência relativamente às necessidades comuns, que lhe é conferida pelos
bens já adquiridos, compreenderão que elas devem desde logo se dedicar a seus
irmãos e se consagrar ao bem público.
1
Então, revigorado na sua integridade, o bem comum florescerá por inteiro; então o esplendor da
perfeita ordem será aformoseado, e a honestidade revestir-se-á de bela perfeição, se cada qual de per
si realizar dignamente a função que lhe foi destinada, se houver repartição — e não concentração —
das obrigações. (N. do T.).
2
Association catholique, 15 de outubro de 1897.
83
Spencer tem razão quando caracteriza a ascensão do ser social, assim como
a do ser individual, pela passagem da homogeneidade indefinida à
heterogeneidade definida. As diferentes classes, segundo as quais uma
população se eleva nas vias do trabalho e da poupança, da justiça e da honra, da
caridade e da santidade, não são, bem se vê, estabelecidas e impostas
arbitrariamente por um poder extrínseco às famílias e aos indivíduos, como o
queria fazer crer a democracia: elas nascem do jogo da liberdade na massa da
nação. Elas começam a se desenhar desde o próprio nascimento de toda
sociedade, e elas se acentuam dia a dia pelo bom ou mau uso do livre arbítrio e do
que disso resulta. Sempre e por toda a parte, distinguem-se do populacho os
homens do povo que têm mais ardor e perseverança no trabalho e mais
moderação na satisfação de suas necessidades. Entre estes crescem as famílias
nas quais as tradições de trabalho e de moderação, respeitadas e seguidas
durante várias gerações, conduziram à propriedade. Elas constituem a burguesia.
Acima delas, a classe das que, não querendo fruir de seus bens como egoístas,
se dedicam ao bem público.
"Se bem que a nobreza fosse, mesmo na França, o patrimônio de algumas
famílias, diz Bonald, ela era o objeto e o termo dos esforços de todas as famílias,
pois todas deviam tender a se enobrecerem, isto é, a passar do estado privado ao
estado público, porque é razoável e mesmo cristão passar de um estado no qual
se está ocupado apenas a trabalhar para si, a um estado no qual, desembaraçado
da preocupação de adquirir uma fortuna, visto como se a supõe realizada, o
homem é destinado a servir os outros, servindo o Estado. Uma família, na França,
saída do estado de infância, e do tempo em que ela depende de outras famílias
para suas primeiras necessidades, propunha-se o enobrecimento como objetivo
ulterior de seus projetos. Uma vez aí chegada, aí se fixava. O indivíduo, sem
dúvida, podia avançar em grau, de tenente tornar-se marechal de França, e de
conselheiro tornar-se chanceler; mas esses graus, se não eram iguais, eram
semelhantes; as funções, por serem mais abrangentes, não eram diferentes: a
família não podia receber dessa realidade um caráter diferente, ela não podia
perdê-lo senão por prevaricação. Nos governos populares, uma família não pode
aspirar senão a enriquecer, a enriquecer mais, mesmo quando é opulenta.
Jamais ela recebe um caráter que a consagra especialmente ao serviço do
Estado, e mesmo as funções públicas às quais o cidadão rico é passageiramente
elevado constituem apenas um meio para a família especular com mais proveito
em favor de sua fortuna. Não se é capaz de harmonizar duas idéias, quando não
se vê a extrema diferença que deve resultar para o caráter de um povo e para os
sentimentos que constituem a força ou a fraqueza das nações dessa disparidade
total em suas instituições".3

A classe dos que consideram o bem público mais que o próprio, foi sempre
chamada aristocracia, a classe dos melhores, aristoi, denominação tão honrosa
quanto justa. A Revolução fez dessa palavra e da coisa que ela exprime um
objeto de horror: ela tinha suas razões para isso e nós temos as nossas para não
compartilhar desse sentimento.
Observemos primeiramente, com Blanc de Saint-Bonnet, que compreendida
em lato senso, a aristocracia, num povo, se compõe de todas as pessoas de
bem, de todos os que se consideram ser melhores do que o grosso da nação.
Existe aristocracia bem no meio do povo: é a que se forma pelo trabalho, pela
poupança, pelo freio que sabe pôr a seus apetites. E há povo nas classes
altas: as famílias que por seus vícios se deformam, se destróem e tornam a cair
na multidão.
3
Législation primitive. Discurso preliminar.
84
Mas o que geralmente se entende por essa palavra "aristocracia" é o conjunto
das famílias que, por uma longa tradição de virtudes, de nobres sentimentos e
de serviços prestados ao país, se elevaram ao cume da hierarquia social.
A democracia coloca-se como adversária dessa aristocracia. Ela se esforçou
para aniquilá-la, e para tanto confiscou, faz um século, os direitos adquiridos nos
séculos precedentes. Hoje ela quereria impedi-la de renascer; esta a razão pela
qual faz leis para que as famílias-troncos não mais possam se reconstituir, elas
que são as únicas em que as tradições podem se transmitir e em que os méritos
podem se acumular pelos esforços contínuos de uma seqüência de gerações.
Mas tirar assim dos homens o grande estímulo para o bem, não lhes permitir de
endereçar seus olhares para o futuro e de nele ver sua descendência crescer e
se elevar pelo impulso que eles terão dado, é aniquilar de vez a natureza humana,
fixar a sociedade na inércia, e ao mesmo tempo reduzir o agregado humano à
condição de manada. Aí, com efeito, todas as cabeças são iguais, a hierarquia
não poderia se produzir, porque não há liberdade e, conseqüentemente, méritos,
posição adquirida por esses méritos.

Mais do que a aristocracia, a democracia é adversária da nobreza.


Confundimos freqüentemente as duas coisas; elas são distintas. A aristocracia
que existe numa nação não forma necessariamente uma nobreza no Estado. A
nobreza é uma classe que tem seu lugar marcado no governo do país. É o
conjunto das famílias cuja elevação de sentimentos e posição adquirida por
longos méritos são reconhecidas publicamente pela Autoridade soberana, que,
contando com a dedicação dessas famílias, as emprega no serviço gratuito ao
país.4 Essa investidura é a nobilitação.
A partir do século XV, o enobrecimento pelo rei veio constantemente, como
diz um contemporâneo de Luís XII, "dar coragem e esperança aos da classe média
de chegarem, praticando coisas virtuosas e árduas, ao dito estado de nobreza...
Esperança que faz com que cada um se conforme com o seu estado e não tenha
ocasião de maquinar contra os outros, sabendo que, por meios bons e lícitos,
pode alcançar o estado de nobreza e que se exporia ao perigo se quisesse aí
chegar por outro caminho... A facilidade para isso é tal que vemos todos os dias
alguns da classe popular e numerosos da classe média subir os degraus até à
nobreza".
Uma observação que não devemos negligenciar é esta: quando o rei torna
nobre burgueses enriquecidos ou funcionários, é sempre na qualidade de
senhores deste ou daquele lugar, marcando assim a nobreza como uma função
social, relativamente a um determinado grupo de habitantes do reino.
4
No Ancien Régime, somente a nobreza devia prestar o serviço militar e devia servir "a suas
expensas". Os soldos, sempre mínimos, eram apenas um complemento. Cada campanha
representava para o oficial a venda de um campo, comprado por um camponês. Foi por isso que no
início da Revolução a nobreza estava mais ou menos arruinada e havia quatro milhões de
camponeses proprietários.
Essa idéia de que a defesa nacional pertencia exclusivamente à nobreza era tão rigorosamente
aplicada que toda ocupação que pudesse tornar-se imprópria a esse fim era-lhe proibida. Ela não
podia, sem indignidade, dedicar-se ao comércio ou à indústria. Um nobre podia apenas cultivar ou
fazer cultivar suas terras; mas não podia fazer senão isso, porque devia, durante toda sua vida,
manter-se à disposição do Rei, como soldado ou oficial.
Esse sistema, aplicado durante longas gerações, teve o efeito de desenvolver a um ponto
extraordinário, por atavismo, na nobreza francesa, as qualidades militares.
Pode-se dizer que a nobreza continuou a ser recrutada para o exército e que hoje a grande maioria
dos oficiais, mesmo não titulados, fazem parte da nobreza: cada vez mais, com efeito, famílias se
especializam na profissão militar; e, no Ancien Régime, todas essas famílias seriam enobrecidas
depois de um longo período de tempo: quatro gerações de oficiais conferiam a nobreza de ofício; e
quase sempre a nobilitação se produzia antes da quarta geração por causa dos feitos de guerra.
85
Famílias verdadeiramente aristocráticas podem não ser enobrecidas, e o rei
pode, por abuso, nobilitar famílias que não se enobreceram por si mesmas.
"Não é necessário crer, diz de Maistre, se quisermos exprimir-nos com
exatidão, que os soberanos podem nobilitar . Há famílias novas que se lançam
pouco a pouco na administração do Estado, que se desembaraçam da igualdade
de uma maneira notável, e se elevam dentre as outras como as árvores
resguardadas na mata destinada ao corte. Os soberanos podem sancionar essas
nobilitações naturais; a isso se limita o seu poder. Se eles contrariam um
número grande demais dessas nobilitações, ou se eles se permitem de levar seus
plenos poderes longe demais, trabalham para a destruição de seus Estados. A
falsa nobreza foi uma das grandes chagas da França". 5
No momento não existe mais nobreza na França, pelo menos enquanto
classe social. Ela se reconstituirá. É o segredo de Deus, dos acontecimentos e
do tempo. É permitido a esse respeito desejar e apoiar esse desejo com a
observação de que a nobreza brilhou em toda a Antiguidade, que ela reapareceu
com mais brilho do que nunca entre os povos modernos, que na França ela
viveu quatorze séculos e que foi a glória do nosso país, que ela construiu a
grandeza do país durante mil anos, ao passo que a democracia o colocou no
estado em que o vemos.
Taine, no primeiro volume de sua obra sobre a Revolução, lamentou o
desaparecimento da nobreza. "Graças à sua fortuna e à sua posição, o homem
dessa classe está acima das necessidades e das tentações vulgares. Ele pode
servir gratuitamente; ele não tem que se preocupar com dinheiro, em prover as
necessidades de sua família, em construir seu caminho. Ele pode seguir suas
convicções, resistir à opinião estridente e malsã, ser o servidor leal e não o vil
adulador do público. Conseqüentemente, enquanto que nas classes médias ou
inferiores, o principal impulsor é o interesse, para ele o grande motor é o orgulho;
ora, entre os sentimentos profundos do homem, não há outro que seja mais
próprio em se transformar em probidade, patriotismo e consciência; porque o
homem altivo tem necessidade de seu próprio respeito, e para obtê-lo ele é
induzido a merecê-lo. Sob todos esses pontos de vista, comparai a "gentry" e a
nobreza inglesas aos políticos dos Estados Unidos". 6 Em seguida, Taine mostra
como a educação dada ao nobre, o meio no qual ele se encontra, suas relações, o
conhecimento que adquire sobre os homens e as coisas lhe permitem, se é bem
dotado, ser um homem de Estado antes dos trinta anos.

Leão XIII, o Papa que nossos democratas têm a audácia de apresentar


como o inspirador de suas belas doutrinas, recebendo o patriciado romano no mês
de janeiro de 1897, dizia:
"Nossa caridade não faz nem deve fazer acepção de pessoa; mas ela não
será passível de repreensão se põe em vós sua complacência, precisamente em
vista da posição social que vos foi assinada por um fato aparentemente fortuito,
mas, em verdade, por uma clemente disposição do Céu . Como recusar uma
deferência particular ao brilho do nome, a partir do momento em que o divino
Redentor mostrou, na prática, de o ter em estima! Certo, em sua peregrinação
terrestre Ele adotou a pobreza e jamais a riqueza como companhia; não
obstante, Ele quis nascer da estirpe real .

5
Considérations sur la France, p.49.
6
As classes ricas de uma sociedade não podem cumprir seu dever social senão quando o Estado
torna-lhes possível esse cumprimento. Os homens dessa classe não podem utilizar sua instrução,
seu tempo disponível, sua fortuna e sua boa vontade em benefício do Estado senão quando o Estado
se presta a isso, como ele fazia na França e como ainda faz na Inglaterra.
86
"Não é para adular um orgulho tolo, que Nós vos lembramos essas coisas,
caros filhos; mas sobretudo para vos reconfortar nas obras dignas de vossa
posição. Todo indivíduo, toda classe de indivíduos tem suas funções e seu valor
próprios, e é do conjunto de todos que brota a harmonia da sociedade humana.
No entanto, é inegável que, nas instituições privadas e públicas, a aristocracia
do sangue é uma força especial, como a fortuna, como o talento. Se houvesse
nisso dissonância com as disposições da natureza, tal fato não teria sido, como o
foi em todos os tempos, UMA DAS LEIS MODERADORAS DOS
ACONTECIMENTOS HUMANOS. Por isso, julgando conforme o passado, não é
ilógico inferir que, quaisquer que sejam as vicissitudes do tempo , um nome ilustre
não deixará jamais de ter alguma eficácia para quem sabe usá-lo dignamente".
Leão XIII terminou seu discurso com essas palavras: "Mantende os olhos
abertos para os acontecimentos que amadurecem e jamais percais de vista que
no meio do fermento crescente das concupiscências populares, a franca e
constante virtude entre as classes mais elevadas é um dos mais necessários
meios de defesa".
Em janeiro de 1903, Leão XIII diz ainda: "Se Jesus Cristo quis passar Sua
vida privada na obscuridade de uma humilde morada e como filho de artesão; se,
na Sua vida pública, amou viver no meio do povo, fazendo-lhe o bem de todas as
maneiras, quis entretanto nascer de estirpe real, escolhendo Maria por mãe, como
pai adotivo José, ambos descendentes da estirpe de David. Hoje, na festa de
seus esponsais, poderíamos repetir com a Igreja essas belas palavras: Maria
mostra-se-nos brilhante, saída de uma estirpe real.
"Assim, a Igreja, pregando aos homens que todos são filhos do mesmo Pai
celeste, reconhece como uma condição providencial da sociedade humana a
distinção das classes; por isso ela ensina que só o respeito recíproco dos direitos
e dos deveres, e a caridade mútua proporcionarão o segredo do justo equilíbrio,
do bem-estar honesto, da verdadeira paz e da prosperidade dos povos".
Em 1872 Pio IX havia dito o mesma coisa:
"O próprio Jesus Cristo amou a aristocracia, Ele também quis pertencer à
nobreza por Seu nascimento e descender da estirpe de David". Lembra-nos o
Soberano Pontífice que quando era ainda jovem um príncipe romano Lhe havia
exposto "o papel da nobreza na sociedade". "Agora, diz Pio IX, esclarecido por
uma longa experiência e pela luz do soberano Pontificado, declaro QUE ESSES
PRINCÍPIOS SÃO VERDADEIRAMENTE CATÓLICOS". 7
Como, nessas condições, pôde a França se desfazer de sua nobreza? É
preciso dizer que a nobreza se desfez a si mesma. A partir do século XIV, a
partir da Renascença, começou a se produzir no seu interior um rebaixamento
moral que prosseguiu de maneira quase contínua. Com a chegada do século XVIII
não se via mais a nobreza preencher, na França, os deveres de uma verdadeira
aristocracia; e foi por essa razão que a Revolução pôde derrubá-la. "A nobreza
francesa, disse de Maistre, não deve atribuir senão a ela mesma todas as suas
desgraças".8
Teria sido necessário recolocar nas almas o antigo espírito, a antiga
dedicação. A França teria então assistido a uma evolução, em lugar de sofrer
uma revolução. Adaptando-se às condições presentes da sociedade, o antigo
espírito teria feito avançar pelos caminhos de um verdadeiro progresso a
sociedade que vemos retroceder. Liberada que está aos impulsos da massa, ela
cede à quantidade, como o corpo ao mais forte peso; ela desce os degraus da
civilização, ela reentra na barbárie.

7
Discours de N.-S.-P. le Pape Pie IX, t. I, p. 122.
8
Considérations sur la France, p. 151.
87
Se aprouver a Deus desviar-nos desse declive, no momento em que se
reorganizar nossa sociedade talvez se perceba a necessidade de reconstituir
como nobreza o que restará em termos de aristocracia, isto é, de famílias que
terão sabido subtrair-se ao contágio de todos os males que nos devoram. A
fonte da soberania está em Deus, mas o depósito dela no soberano não pode ser
exercido inteiramente apenas pelo soberano; todo chefe tem necessidade de
lugares-tenentes. Estes devem ser funcionários sem raízes, ou homens cercados
de respeito, com uma fortuna que lhes garanta a independência, a conduta e a
capacidade? A questão toda se resume nisso. Se as famílias que se
aristocratizam permanecem isoladas umas das outras, se elas não formam um
corpo que tenha recebido uma investidura, não agirão junto ao povo senão de
uma maneira individual, e, por isso, toda a ação social deverá vir do poder, o que
representa um grande perigo de despotismo. A nobreza constituída é um corpo
protetor para o povo, relativamente ao soberano, como também para o soberano,
relativamente à multidão. Esta é a razão pela qual toda nação que quer
conservar suas liberdades deve ter uma nobreza, assim como todo poder deve
ter uma nobreza para possuir apoios.
Colocando-se sob outra perspectiva, Taine disse: "Não se pode suprimir a
aristocracia sem perigo. Em todas as sociedades que existiram houve sempre
um núcleo de famílias cuja fortuna e consideração são antigas. Suprimida pela
lei, a aristocracia se reconstitui na prática, e o legislador pode apenas escolher
entre dois sistemas: aquele que a deixa desprotegida, ou aquele que lhe propicia
lucros; aquele que desserve o serviço público ou aquele que a aglutina em seu
favor; e ele fornece excelentes razões para demonstrar que esse último partido é
sobejamente preferível.
O melhor governo é o que dá pleno curso ao desenvolvimento da natureza
humana, mantendo aberta a entrada da nobreza à burguesia pelas nobilitações
legítimas, e a entrada da burguesia aberta ao povo por institutos que favoreçam
a formação do capital e consagrem seus direitos.
"Se houvesse no campo e em cada cidadezinha, diz Bonald, uma família à
qual uma fortuna considerável, relativamente à de seu vizinho, assegurasse uma
existência independente de especulações e de salários, e essa espécie de
consideração de que gozam junto aos habitantes rurais a antiguidade e a
extensão das propriedades territoriais; uma família que tivesse simultaneamente,
no seu exterior a dignidade, e na vida privada muita modéstia e simplicidade; que,
submissa às leis severas da honra, desse o exemplo de todas as virtudes ou de
todo o decoro; que aliasse às despesas necessárias do seu estado e a um
consumo indispensável, que já é uma vantagem para o povo, essa beneficência
diária que, no campo, é uma necessidade, se é que não constitui uma virtude;
uma família que estivesse unicamente ocupada com os deveres da vida pública,
ou exclusivamente disponível para o serviço do Estado; pensemos no que não
resultaria de vantagens, para a moral e o bem-estar dos povos, dessa
instituição que, sob uma forma ou outra, tão duradouramente tem existido na
Europa, mantida pelos costumes, e à qual só falta o regulamento das leis?" 9
"Essas autoridades sociais, diz Le Play, resolvem certamente o grande
problema, que consiste em fazer reinar a paz pública sem o recurso da força.
Para alcançar esse objetivo, todas elas empregam os mesmos meios: dão o bom
exemplo à sua localidade, inspirando a seus servidores, operários e vizinhos o
respeito e a afeição. Quando elas agem com toda a liberdade, elas criam
sociedades estáveis e prósperas; mas quando são paralisadas pelos governos e

9
Pensées de Bonald.
88
pelas constituições escritas, elas não podem mais conjurar nem as revoluções,
nem as decadências". 10

No presente momento a nação francesa não é mais, propriamente falando,


uma sociedade, porque não se encontra mais nela a organização social que, em
todas as civilizações, fez de uma multidão uma sociedade. A massa é ainda
mantida em uma certa coesão pela malha dos funcionários que a cerca por todos
os lados; mas a vida se esvai, e não há pessoa que não esteja assustada com
os sinais de morte que se multiplicaram nesses últimos anos, em toda a ordem de
coisas.
É o coração que morre por último, e o coração da França é a elite de seus
filhos, compostos de todos os que guardaram alguma coisa do espírito dos
antigos.
O coração é o clero, padres seculares e religiosos, que não se deixaram
ganhar pelo espírito do século, que conservam a doutrina e a apresentam na sua
pureza, e que pregam a santidade tanto pelo exemplo quanto pela palavra. Elas
são do clero, do bom quinhão do Senhor, essas mulheres admiráveis que,
consagrando-se a Ele, se colocaram a serviço de Suas criaturas desamparadas,
as mais necessitadas e as mais sofredoras.
Esse coração é esta parte da nobreza, que permaneceu fiel à fé, aos
princípios de honra e aos sentimentos da caridade cristã.
Esse coração é a burguesia virtuosa: essa parte do exército e da
magistratura, da indústria e do comércio que permanece unida de espírito e de
coração ao catolicismo, que guarda sua alma aberta aos grandes sentimentos,
fechada ao ceticismo e à cupidez.
É nessa elite que a sociedade pode atualmente ter esperança, é desse
coração que a vida retomará posse de todo o corpo, se ele se mostrar
suficientemente vigoroso para enviar com movimento contínuo, por todo o
organismo, o sangue puro e vivificante cujos restos ele conservou. Quantos
esforços são feitos para paralisá-lo e mesmo corrompê-lo!
Idéias revolucionárias, ao menos por seus princípios, insinuaram-se no clero
a pretexto de piedade pelo povo e de amor pela justiça; e outras idéias, mais
radicalmente opostas à Fé cristã, foram-lhe apresentadas sob o manto de uma
ciência sedutora.
De outra parte, com infatigável perseverança, que continuou ao longo de
todo um século, o clero viu serem-lhe suprimidos, um após outro, todos os meios
de ação, nestes compreendidos até, para os mais fiéis ao dever, o pão do corpo
necessário à atividade da alma.
Seduções de um outro gênero constituem o estado de sítio da nobreza: as do
prazer e as da agiotagem para abastecer o prazer.
Os militares e os magistrados vêem-se envolvidos por uma rede de espiões e
de delatores, que não lhes deixam outra liberdade que não a de executar as
ordens da franco-maçonaria.
A indústria e o comércio periclitam, todas as fortunas estão ameaçadas, e,
com as fortunas, caem as situações de onde podem emanar sobre o povo as
salutares influências.

E no entanto, apesar de todos os entraves e de todas as perseguições,


apesar mesmo das defecções e dos desencorajamentos que são próprios das
perseguições, é preciso, é mais necessário do que nunca que a elite se
mantenha e aja. Que aja primeiramente sobre si mesma, cada um se esforçando
para tornar-se melhor; depois sobre seu círculo de convivência: o padre na
10
Réforme Sociale, cap. LXIV.
89
paróquia, o pai na sua família, o patrão na sua oficina, o capitão na sua
companhia, cada um sobre todos os que ele pode atingir, a fim de desenvolver o
núcleo de aristocracia que Deus, não desejando que sofrêssemos a sorte de
Sodoma e Gomorra,11 nos deixou.
Que o pai de família se lembre de que a queda pesa sempre sobre os filhos
dos homens, e que use da autoridade com que Deus o investiu para reencaminhar
as almas, discipliná-las e educá-las. Que ele conduza seus olhares para além
dos berços que o cercam, e que faça tudo o que estiver no seu poder para
perpetuar seu espírito na sua descendência, tão longe quanto ela vá.
E, da mesma forma, que todos os que a Providência colocou em posição de
destaque, por pouco elevada que seja, ponham toda a sua alma e todas as suas
forças em fazer descer a verdade e o bem sobre os que eles vêem mais abaixo.
Foi por isso que Deus criou as alturas: para que elas recebam dEle, com a
finalidade de que as derramem nos vales, os dons de Sua infinita Bondade. É
dEla que provém todo o bem, mas Ele quer canais. Felizes aqueles aos quais Ele
concede essa honra. "O princípio da hierarquia, diz São Denis, o Areopagita, no
tratado da Hiérarchie Ecclésiastique,12 é a Trindade, fonte de vida, bondade
essencial, causa única de tudo, e que, na efusão do seu amor, comunicou a
todas as coisas o ser e a perfeição". Na Hiérarchie Céleste seu pensamento se
completa desta maneira: "A ordem hierárquica importa em que uns sejam
purificados e que outros purifiquem; que uns sejam iluminados e que outros
iluminem; que uns sejam aperfeiçoados e que outros aperfeiçoem, e que assim
cada qual tenha seu modo de imitar a Deus".
Aqueles aos quais Deus deu a luz, têm o dever de difundi-la; aqueles que, por
Sua graça, guardaram a pureza de costumes, têm o dever de trabalhar para
propagá-la; aqueles que, em qualquer ordem que seja, tenham chegado à
perfeição, devem ajudar seus irmãos a alcançá-la. Isto é imitar a Deus, imitá-Lo
no mais nobre de Seus atributos, a Bondade, a qual, dizia Santo Tomás de
Aquino, é difusiva do que nela se contém.
Cabe ao povo imitar essa bondade nas famílias, ao nobre nas suas terras, ao
industrial nas suas fábricas, ao padre no seu aprisco.
Numa discussão havida em 1886, na Academia de Ciências, sobre a questão
social, Ravaisson indicou a solução nesses termos: "Que as classes superiores
renovem, e se possível com mais força, a tradição da antiga generosidade, da qual
saiu para todos os lugares, mas talvez mais na França do que alhures, tudo o
que se fez de grande: ver-se-á brotar dessa reforma uma sociedade unida e, por
conseguinte, durável. Na minha opinião, a única solução que pode ser dada ao
que se chama questão operária, e mais genericamente questão social, é uma
reforma moral que restabeleceria a reciprocidade da dedicação e dos serviços,
reforma de que deve resultar uma nova educação dada à nação, educação cujo
empreendimento pertence às classes superiores, mas começando por elas
mesmas".13
O grande erro dos democratas que têm verdadeiramente no coração piedade
do povo, é o de querer educar todos os homens ao mesmo tempo, através de
regras e de leis. Isto jamais se pôde fazer. A força do homem está na sua alma,
as leis são apenas um freio, um liame exterior, incapaz de estimular a vida. A
vida vem de Deus. Os primeiros a aproveitarem os benefícios da Redenção e da
civilização devem estender a mão aos outros, ajudá-los a segui-las, conduzi-los
pouco a pouco em direção ao bem: "Que o primeiro dentre vós seja o servidor de

11
Isaías, I, 9.
12
Cap. I.
13
Na Réforme Sociale, 1º de junho de 1886.
90
todos".14 Essa via é seguramente menos rápida que a da legislação, mas somente
ela pode conduzir ao objetivo. O objetivo é a elevação de todos, a extensão das
classes superiores à toda a nação pela dilatação das aristocracias, pela
generalização do capital das virtudes que o criam. É preciso chamar isso de
"democracia"? Evidentemente não, pois o povo é chamado a fazer parte da
aristocracia, e assim não pode ser esclarecido ou socorrido senão pelos que já
chegaram a ser melhores, em uma palavra, pela aristocracia.

14
Mateus, XX, 27.
91
92
CAPÍTULO XII
A FRANÇA. SUAS ORIGENS E SUA MISSÃO.

Ego tuli te de pascuis ut esses dux super


populum meum, fecique tibi nomen grande. Et
ponam locum populo meo et plantabo eum.
Suscitabo semen tuum post te, et firmabo regnun
ejus, et stabiliam thronum regnis ejus in
sempiternum. Ego ero ei in patrem, et ipse erit mihi
in filium. Qui si inique aliquid gesserit, arguam eum
in virgam virorum et in plagis filiorum hominum.
Misericordiam autem meam non auferam ab eo.1
II REG., VII, 8-15.

Tu, ó Jeová, reinas eternamente;


Teu trono subsiste de geração em geração.
Por que nos esquecerias para sempre,
Nos abandonarias por toda a duração de nossos dias?
Faz-nos retornar a Ti, ó Jeová! e nós retornaremos;
DÁ-NOS NOVAMENTE DIAS COMO AQUELES DE OUTRORA. 2

Os dias de outrora! recordemo-los. Renovemos em nossos corações, num


espírito de reconhecimento e de oração, a lembrança das misericórdias que Deus
manifestou por nós desde nossas origens.
Eco da tradição conservada por Hincmar, Surius, Marlot e outros, Baronius
assim faz o relato dessas origens:
1
Eu te tirei das pastagens onde apascentavas tuas ovelhas para fazer de ti o chefe de Meu povo de
Israel e fiz o teu nome comparável ao dos grandes da terra. Preparei um lugar para o Meu povo de
Israel e coloquei-o nele. Suscitarei depois de ti a tua posteridade e consolidarei o seu reino, e firmarei
para sempre o seu trono real. Serei para ele um pai e ele será para Mim um filho. Se ele cometer
alguma falta, castigá-lo-ei coma vara de homens e com açoites de homens, mas não lhe retirarei a
Minha graça. (2 Rs. [2 Sam.], 7, 8-15).
2
Oração de Jeremias, no fim de suas Lamentações .

93
"Na capela do palácio dedicado a São Pedro, estavam sentados São Remi,
Clóvis e Santa Clotilde, rodeados de clérigos que haviam acompanhado o
Pontífice, e dos oficiais do Rei e da Rainha. O prelado transmitia ao Rei
ensinamentos salutares e lhe inculcava os mandamentos evangélicos. Para
confirmar a prédica do santo bispo, Deus quis mostrar visivelmente o que Ele diz a
todos os fiéis: 'Quando dois ou três estão reunidos em Meu nome, Eu estou no
meio deles'.
"Subitamente, com efeito, uma abundante luz, mais brilhante do que a do sol,
encheu toda a capela e ouviram-se ao mesmo tempo estas palavras:
"A PAZ ESTEJA CONVOSCO. SOU EU, NADA TEMAIS: PERMANECEI NO
MEU AMOR.
"Em seguida, após essas palavras, a luz desapareceu e um odor de uma
inacreditável suavidade perfumou o palácio, para provar com evidência que o
autor da luz, da paz e da suavidade tinha estado ali, porque, excetuado o bispo,
nenhum dos assistentes tinha podido vê-Lo, posto que estavam ofuscados pela
claridade da luz. Seu esplendor penetrou o Santo Pontífice, e a luz que este
irradiava iluminava o palácio com mais brilho do que os archotes que o
aclaravam...
"Um milagre digno dos tempos apostólicos, para servir-me das expressões de
Hormisdas, sucedeu a essa aparição, como contam Aimoin e Hincmar, bispo de
Reims; falo da ampola do santo crisma, trazida do céu por uma pomba, e que
serviu para sagrar Clóvis e, a seu exemplo, todos os reis de França, seus
sucessores".3
"Através desses deslumbrantes prodígios, prossegue o grande historiador da
Igreja, Deus quis manifestar claramente de que peso (quantae molis erat) era a
conversão do rei dos Francos e de seu povo". 4
A miraculosa conversão dos francos seguiu a do rei. A pedido de São Remi,
Clóvis foi falar aos francos.
"Mas antes que ele tivesse tomado a palavra, o poder divino toma a dianteira,
e todo o povo exclama a uma voz: 'Nós rechaçamos os deuses mortais, piedoso
príncipe; estamos prontos a seguir o Deus imortal anunciado por Remi'. A essa
notícia, o Pontífice, cheio de alegria, ordena se prepare o banho sagrado. Todo o
templo está perfumado por um odor divino, e Deus concede aos assistentes uma
graça tão grande que eles crêem estar perfumados por odores do céu". 5
Baronius acrescenta:
"Instruído acerca da via de Deus, o rei entrou com a corajosa nação dos
francos pela porta da luz eterna. Ela creu em Cristo e tornou-se uma nação santa,

3
Eis o que conta Hincmar: "Estávamos no batistério. O clérigo que levava o crisma, embargado pela
multidão, não pôde chegar até às fontes batismais; ia faltar o crisma. São Remi pôs-se logo em
oração, e eis que, de repente, uma pomba mais branca do que a neve apareceu, carregando em seu
bico uma ampola cheia de um crisma sagrado, que o venerável bispo derramou nas fontes batismais;
no mesmo instante espalhou-se um odor mais suave que todos os perfumes que se tinham vertido".
Tal era, desde o século IX, a tradição remigiana. Na sagração de nossos reis, as unções eram feitas
com um crisma preparado sobre a patena de ouro do cálice de São Remi, ao qual se adicionava uma
gota do bálsamo contido na Santa Âmbula, retirada com a ajuda de uma agulha de ouro.
A Santa Âmbula foi quebrada em 8 de outubro de 1793 por Philippe Rühl, deputado do Baixo-
Reno, no pedestal da estátua de Luís XV, na Praça Royale. Mas na véspera do dia em que sua
destruição foi ordenada, Seraine e Philippe Hourelle, como consta de uma depoimento autêntico,
retiraram, com ajuda da agulha de ouro, o mais que puderam do bálsamo miraculoso, ocultaram-no
em papel e o conservaram. Esses fragmentos permitiram reconstituir a Santa Âmbula, que foi
empregada como outrora para a sagração de Carlos X.
4
T. VI, p. 464. Ano 499, XVIII.
5
Ibid., p. 462, XX; edição de Veneza.

94
um povo de aquisição, a fim de que nele fosse anunciado o poder dAquele que
os chamou das trevas para Sua admirável luz".
É uma lenda, dir-se-á; mas Deus não pode fazer prodígios? Não tinha ele
razão suficiente de fazê-lo para consagrar e alistar em Seu serviço o povo que
Ele queria tornar Seu braço direito? E enfim, como negar um prodígio narrado por
graves e santos historiadores, implicitamente afirmado pelo testemunho do
Papa Hormisdas, que escreve a São Remi mencionando que milagres iguais aos
dos tempos apostólicos produziram-se na França, confirmados pela Santa Âmbula
e pelo dom de curar escrófulas, testemunho por assim dizer sancionado pelo
próprio Cristo, que mais tarde chamará o rei de França de "filho primogênito do
Seu Sagrado Coração"!
"A partir daí, diz monsenhor Pie, uma grande nação, uma outra tribo de Judá
começou no mundo. Os pontífices de Roma, segundo os bispos da Gália, não se
enganaram a esse respeito. Através da obscuridade profunda que lhes havia tão
duradoura e dolorosamente encoberto o mistério do futuro, eles logo saudaram
o novo astro que se levantava no Ocidente e conceberam presságios que não
eram enganosos".
Um historiador, daqueles que são os menos dispostos a ver nos
acontecimentos humanos a intervenção divina, Th. Lavalée, igualmente disse:
"A conversão de Clóvis foi um acontecimento imenso, ela iniciou a grandeza
dos Francos e da Gália. Desde esse momento, esse país torna-se o centro do
catolicismo, da civilização e do progresso. Desde esse momento ele assume a
magistratura do Ocidente, a qual não deixará de exercer".
Os papas e os bispos vislumbraram desde os primeiros dias essa gloriosa
carreira e a profetizaram.
O Papa Anastácio II escreveu a Clóvis:
"Louvamos a Deus que tirou do poder das trevas um tão grande príncipe, A
FIM DE PROVER A IGREJA DE UM DEFENSOR e o ornou com o elmo da
salvação para combater Seus perniciosos adversários. Coragem, pois, caro e
glorioso filho, a fim de atrair sobre vossa sereníssima pessoa e sobre vosso reino
a proteção celeste do Deus todo-poderoso; que Ele ordene a Seus anjos que vos
guardem em todos os vossos caminhos, e vos dê por toda a parte a vitória sobre
os vossos inimigos".6
E São Remi, antes de morrer, diz Baronius, inspirado pelo Espírito Santo, à
maneira dos patriarcas, deu à França uma benção consignada no seu testamento,
confirmada pela assinatura dos bispos (São Vaast, São Médard, São Loup), cujos
termos são os seguintes:
"Se meu Senhor Jesus Cristo dignar-se de ouvir a prece que faço todos os
dias pela casa real, a fim de que ela persevere na via em que dirigi Clóvis PARA O
ENGRANDECIMENTO DA SANTA IGREJA DE DEUS, possam as bênçãos que o
Espírito Santo derramou sobre sua cabeça pela minha mão pecadora
aumentarem pelo mesmo Espírito sobre a cabeça de seus sucessores! Que dele
saiam reis e imperadores que farão a vontade do Senhor através do crescimento
da Santa Igreja e que serão, pelo seu poder, confirmados e fortificados na justiça.
Possam eles aumentar cada dia seu reino, conservá-lo e merecer reinar
eternamente com o Senhor na Jerusalém celeste!"
Santo Ávito, bispo de Viena, que não tinha podido assistir ao batismo de
Clóvis, escreveu-lhe também uma carta "na qual não se sabe, diz Godefroid Kurth,
o que é preciso mais admirar: a elevação da linguagem, a justeza da perspectiva

6
Devemos dizer que a carta do Papa Anastácio II a Clóvis, ainda que não traga nenhum caráter
interno de suposição, (além disso ela é por demais curta para oferecer muita percepção à crítica),
deve ser tida como suspeita por causa de sua proveniência. Ela é, com efeito, referida pelo sábio
Jérôme Viguier, autor de documentos fabricados (Ver Clovis , por Godefroid Kurth).
95
ou a inspiração sublime do pensamento": "...De toda vossa antiga genealogia
nada quisestes conservar além de vossa nobreza, e desejastes que vossa
descendência começasse em vós todas as glórias que ornam um alto nascimento.
Vossos antepassados vos prepararam grandes destinos: vós desejastes preparar
maiores para os que viriam após vós... Posto que Deus, graças a vós, vai fazer
de vosso povo inteiramente o Seu, muito bem!, oferecei uma parte do tesouro de
fé que enche vosso coração a esses povos estabelecidos além de vós, e que,
vivendo em sua ignorância natural, não foram ainda corrompidos pelas doutrinas
perversas (o arianismo); não temais em enviar-lhes embaixadores e advogai
junto a eles a causa de Deus, o Qual tudo fez pela vossa". 7 É, diz Kurth, o
programa do povo franco que está aqui formulado. Quem, a quatorze séculos de
distância, vê desenrolar-se no passado o papel histórico desse povo, então
encoberto pelas trevas do futuro, parece ouvir um vidente de outrora predizer a
missão de um povo de eleitos. A nação franca foi encarregada, durante
séculos, de realizar o programa de Ávito: ela levou o Evangelho aos povos
pagãos, armada simultaneamente com a cruz e a espada, e mereceu que seus
trabalhos fossem inscritos na história sob este título: Gesta Dei per Francos. 8

Ao mesmo tempo em que lhes foi dada por Deus, indicada pelo papa e pelos
bispos, a missão de serem no mundo os defensores da Santa Igreja foi conferida
aos reis dos francos pelos imperadores romanos.
Ainda que exilado no Oriente, o império romano conservou durante muito
tempo seu prestígio no Ocidente. De tal maneira que Clóvis não se creu seguro
de suas conquistas senão quando recebeu do imperador Anastácio o título e as
insígnias de patrício, cônsul e augusto. Em sua alegria, como conta Gregório de
Tours, ao tomar posse solenemente de sua nova dignidade em Saint-Martin de
Tour, ele fez cunhar, para distribuir ao povo, moedas com a efígie de Anastácio,
com esta divisa no reverso:

Victoria Augusto, Regi, viro illustri Clodoveo.


— Vitória a Clóvis, Augusto, Rei, homem ilustre.

Desde esse dia Clóvis foi pois igualmente investido, em nome do Imperador,
da dupla missão de proteger a Igreja e os pobres. E desde então essa missão foi
sempre olhada como a herança mais preciosa dos soberanos da França.
Conferindo o patriciado aos reis merovíngios, os imperadores do Oriente lhes
diziam:
"Como não podemos nos desincumbir sozinhos da carga que nos é imposta,
concedemo-vos a honra de fazer justiça às igrejas de Deus e aos pobres,
recordando-vos que prestareis contas ao Soberano Juiz". 9
Quando, pouco a pouco, os laços do Oriente e do Ocidente se romperam, os
Papas, em nome "de Pedro, presente em Roma na sua carne " e com o
consentimento dos romanos, deram sozinhos esse mandato. Gregório III investiu
no patriciado Carlos Martelo, título que a morte não lhe permitiu aceitar, mas que
passou a Pepino e a seus filhos. É isto que explica por que razão o Papa foi
consultado para a eleição de Pepino ao trono da França. Três anos após sua
sagração, Estêvão lhe escrevia nestes termos em nome de São Pedro e do seu:
"Pedro, apóstolo, chamado por Jesus Cristo, Filho de Deus vivo, e comigo a
Igreja católica, apostólica, romana, mestra de todas as outras, e Estêvão, bispo
de Roma:
7
A. Avitus, Epist., 46 (41).
8
Clovis, p. 355.
9
Ozanam, Civilisation Chrétienne.
96
"A vós, homens excelentíssimos, Pepino, Carlos e Carloman, todos os três
reis; aos bispos, abades, duques, condes, a todos os exércitos e a todos os
povos dos francos.
"Eu, Pedro, por Deus mandado a esclarecer o mundo, escolhidos como meus
filhos adotivos , a fim de que defendais contra seus inimigos a cidade de Roma, o
povo que Deus me confiou e o lugar onde repouso segundo a carne . Concito-
vos, pois, a que liberteis a Igreja de Deus, que me foi recomendada do Alto; e
peço-vos urgência, porque Ela sofre grandes aflições e opressões extremas...
Rogo-vos e conjuro-vos, como se estivesse presente diante de vós; porque,
segundo a promessa recebida de Nosso Senhor e Redentor, distingo o povo dos
Francos dentre todas as nações... Emprestai aos romanos, emprestai a vossos
irmãos todo o apoio de vossas forças, a fim de que eu, Pedro, cobrindo-vos
com meu patrocínio neste mundo e no outro, erga tendas para vós no reino de
Deus".10
Assim, os francos são irmãos dos romanos não somente como todos os
católicos enquanto filhos espirituais de Pedro, mas como seus filhos adotivos,
como concidadãos, título que outros Papas nos dão.

Mais tarde, Adriano escrevia a Carlos Magno:


"Nestes tempos difíceis que são vossos e meus, a Igreja de Deus e de São
Pedro será elevada mais alto que nunca, a fim de que as nações que virem essas
coisas exclamem: Senhor, salvai o Rei e atendei-nos no dia em que Vos
invocarmos . Pois eis que um novo Constantino, Imperador cristianíssimo,
apareceu entre nós".11
Leão III, vinte e cinco anos mais tarde, realizava essas aspirações e coroava
Carlos Magno.
No dia de Natal do ano 800, enquanto assistia à Missa, o Papa, sem que a
cerimônia tivesse sido anunciada, colocou de improviso a coroa imperial sobre a
cabeça do grande monarca, e o revestiu com o manto dos Césares, sob as
aclamações do Senado e do povo romanos, que gritaram por três vezes: "A
Carlos, piíssimo augusto coroado por Deus; ao grande e pacífico imperador dos
romanos, longa vida e vitória".
Então Carlos Magno prestou este juramento:
"Em nome de Cristo, eu, Carlos, me comprometo diante de Deus e de SEU
APÓSTOLO PEDRO a proteger e a defender essa santa Igreja romana, mediante
ajuda do Alto, tanto quanto souber e puder“. Além disso, em seu testamento, o
grande imperador recomendou, acima de tudo , a defesa da igreja a seus filhos.
O que Anastácio tinha escrito a Clóvis, o que Estêvão escreveu a Pepino,
Gregório IX repetiu na sua carta a São Luís:
"O Filho de Deus, cujas leis o mundo inteiro executa, e cujos desejos os
exércitos celestes apressam-se em obedecer, estabeleceu sobre a terra diversos
reinos e diversos governos para o cumprimento dos conselhos celestes. Mas,
como outrora entre as tribos de Israel a tribo de Judá recebeu privilégios muito
particulares, assim o reino de França foi distinguido entre todos os povos da terra
por uma prerrogativa de honra e de graça.
"Da mesma forma como aquela tribo jamais imitou as outras nas suas
apostasias, mas, ao contrário, venceu, em numerosos combates, os infiéis, assim
o reino de França jamais pôde ser abalado na sua devoção a Deus e à Igreja;

10
Ozanam acompanhou a publicação desta carta com as seguintes reflexões:
"Ao citar a carta escrita pelo papa Estêvão em nome do apóstolo São Pedro, limitei-me às
passagens mais decisivas. A crítica moderna não mais permite considerar esta carta como uma
trapaça religiosa, nem mesmo como uma vã prosopopéia" (Etudes Germaniques, t. II, p. 250).
11
Ozanam, Civilisation Chrétienne.
97
jamais deixou perecer no seu seio a liberdade eclesiástica; jamais consentiu que a
fé cristã perdesse sua energia própria; mais que tudo isso, para a conservação
desses bens, reis e povos não hesitaram em se expor a todas as espécies de
perigos e a derramar seu sangue.
"É pois manifesto que esse reino abençoado por Deus foi escolhido pelo
nosso Redentor para ser o executor de Suas vontades divinas. Jesus Cristo
tomou-o sob Sua posse, como a uma aljava da qual freqüentemente tira flechas
escolhidas, que lança com a força irresistível do Seu braço, para a proteção da
liberdade e da fé da Igreja, o castigo dos ímpios e a defesa da justiça". 12
Antes dele, Honório III chamara a França de "muro inexpugnável da
cristandade"; Inocêncio III dissera: "Os triunfos da França são os triunfos da Sé
Apostólica"; e Alexandre III: "A França é um reino abençoado por Deus, cuja
exaltação é inseparável da da Santa Sé".
Para abreviar, cheguemos a Leão XIII, que resume assim nossa história: "A
nobilíssima nação francesa, pelas grandes coisas que realizou na paz e na guerra,
adquiriu, relativamente à Igreja Católica, méritos e títulos para um reconhecimento
imortal e para uma glória que jamais se extinguirá". — "À medida que ela
progredia na fé cristã, vimo-la subir gradualmente a essa grandeza moral que
alcançou como potência política e militar". — "Em todos os tempos a Providência
comprazeu-se em confiar aos braços valentes da França a defesa da Igreja, e
quando Ela a via cumprir fielmente sua missão, não deixava de recompensá-la
mediante um aumento de glória e de prosperidade. Ah! pedimos ao Céu com
insistência, possa a França de hoje, por sua fé religiosa, mostrar-se digna da
França do passado! Possa ela permanecer fiel às grandes tradições de sua
história, e assim trabalhar para sua verdadeira grandeza!" 13
12
Labbe, Collection des Conciles , t. XIV, p. 266.
13
Encíclica Nobilissima Gallorum gens. — Encíclica Au milieu des sollicitudes. — Discurso aos
peregrinos franceses, 8 de maio de 1881.
— Se a distinção entre as ciências naturais e as ciências morais, judiciosa e fortemente assinalada
pelo professor Grasset num célebre livro (Les Limites de la Biologie , pelo doutor Grasset, 1 volume,
Alcan.), deve ser mantida da maneira mais estrita, diz Paul Bourget, isto não constitui motivo para
renunciar à comparação entre os últimos resultados dessas ciências. Reservamo-nos o direito de
assinalar, a propósito desses resultados, analogias que adquirem, quando chegam à identidade, o
mais alto valor de verificação. Ora, conhecemos a doutrina de Claude Bernard sobre a vida, esta
nutrição dirigida: "A vida, escreveu ele, é a criação. O que não é essencialmente do domínio da vida,
o que não pertence nem à física, nem à química, nem a nenhuma outra coisa, é a idéia diretriz dessa
evolução vital... Em todo o germe vivente há uma idéia criadora que se desenvolve e se manifesta
pela organização. Durante toda a sua vida, o ser vivente permanece sob a influência dessa mesma
força vital criadora , e a morte chega quando ela não pode mais se realizar... É sempre a mesma
idéia vital que conserva o ser, reconstituindo as partes vivas, desorganizadas pelo exercício, ou
destruídas pelos acidentes e doenças..." (Ver a Introduction à la Médecine Expérimentale, edição de
Sertillanges, M. Levé, 17, rua Cassette). Estudando, como ele fez, a história dos povos em todas as
civilizações, o abade Pascal verificou com que surpreendente exatidão essa fórmula se aplica às
grandezas e às decadências de todos os países... Modificai-lhe alguns termos, a fim de passar da
ordem da biologia para a ordem da história. Esquecei por um momento a frase de Bernard e lede
esta: "Um povo é uma criação contínua. O que é essencialmente do domínio desse povo, o que não
pertence a nenhum outro, é a idéia diretriz que se desenvolve e se manifesta pela organização.
Durante toda a sua vida, esse povo permanece sob a influência dessa mesma força nacional criadora,
e sua morte chega quando ela não pode mais se realizar... É sempre essa idéia nacional que
conserva esse povo, reconstituindo as partes vivas, desorganizadas pelos abusos, ou destruídas pelos
acidentes exteriores e pelas Revoluções..." Não há nessa série de afirmações uma verdade que não
seja de experiência histórica, assim como não havia uma verdade, na série das afirmações de
Bernard, que não fosse de experiência biológica. É apenas um paralelo, mas de que alcance. Pascal
vai medi-lo para nós.
Esse princípio da idéia diretriz domina sua pesquisa com aquilo que ele qualifica, com Bossuet,
de seqüência de nossa história, sentido de nossa vida nacional, função étnica, ele diz, ele, "a
98
A cada renovação de reinado, a sagração do rei vinha selar de novo a aliança
firmada entre Cristo e a França, tão freqüentemente registrada em cartório, por
assim dizer, pelos soberanos Pontífices.
A sagração dos reis foi um privilégio reservado durante muito tempo à França.
Nenhum imperador romano, nem Constantino, nem Teodósio, pediu à Igreja
consagração religiosa. Chegado o momento em que a Providência quis ter na
França reis protetores da Santa Sé e propagadores da Fé católica, São Remi,
como um novo Samuel, deu a unção ao fundador da monarquia francesa.
Foi apenas muito mais tarde que a Espanha quis ter, também ela, o rei ungido
com o Óleo santo. A Inglaterra e depois as outras nações da Europa expressaram
em seguida o mesmo desejo.
Mas a sagração dos reis de França conservou um cerimonial particular. Seria
demasiado longo reproduzi-lo, bastando que se assinalem seus pontos principais.
Antes de celebrar a missa da sagração, o prelado consagrador lembrava ao
rei seus deveres:
"Como hoje, excelente príncipe, ireis receber a unção santa e as insígnias da
realeza por nossas mãos, e como (ainda que indigno) ocupamos o lugar de Cristo,
nosso Salvador, é bom que vos advirtamos a respeito da responsabilidade que
ireis assumir. Essa posição é ilustre, mas cheia de perigos, de trabalhos e de
solicitudes. Considerai que todo o poder vem do Senhor Deus, pelo Qual os reis
reinam e os legisladores decretam as leis justas , e que vós também dareis contas
a Deus do rebanho que vos é confiado.
"Primeiramente guardai a piedade, prestai culto a Deus, vosso Senhor, com
todo o vosso espírito e com um coração puro. Defendei constantemente contra
todos a religião cristã e a fé católica , que professais desde vosso berço. Rendei
aos prelados e aos demais sacerdotes a honra que lhes é devida. Administrai
invariavelmente a justiça, sem a qual nenhuma sociedade pode durar muito tempo,
recompensando os bons e castigando os maus. Defendei contra toda opressão
as viúvas, os órfãos, os pobres, os fracos. Mostrai-vos com uma dignidade real,
suave, afável, cheia de benignidade para com os que se aproximem de vós.
Conduzi-vos de tal maneira que pareçais reinar não em vosso interesse, mas no
interesse do povo inteiro , e aguardai não da terra, mas do Céu, a recompensa de
vossas boas obras".
O príncipe prometia defender a fé católica, o poder temporal das igrejas
confiadas à sua guarda e de fazer justiça a todos. 14
O povo aceitava essa promessa e, por seu turno, ligava-se a ele.

vocação da França". Ele é cristão. Reconheceis, nessa última palavra sua fé numa Providência. Mas
se ele se ativesse à atitude positivista, ao determinismo puramente naturalista, ele não raciocinaria
de outra maneira. É um dos casos mais notáveis do completo acordo entre as instituições tradicionais
e as conclusões de ordem experimental, quando se trata das leis das sociedades. Que um ateu
declarado, ou — posto que o ateísmo não é um estado de espírito científico — que um agnóstico
irredutível queira considerar o fenômeno francês como um simples produto da Natureza Social, e
descobrirá que esse produto se caracteriza pelos dois princípios diretores que são o credo
hereditário dos tradicionalistas. A França nasceu e viveu católica e monarquista. Seu crescimento e
sua prosperidade estiveram na razão direta do grau em que ela esteve unida à sua Igreja e ao seu
Rei. Todas as vezes que, ao contrário, suas energias foram exercidas contrariamente a essas duas
idéias diretrizes , a organização nacional foi profundamente, perigosamente perturbada. De onde
esta imperiosa conclusão: a França não pode deixar de ser católica e monárquica, sem deixar de
ser a França — da mesma sorte que um fígado não pode deixar de produzir a bile sem deixar de ser
um fígado, um estômago de secretar o suco gástrico sem deixar de ser um estômago. Essas simples,
essas grosseiras assimilações são apenas o enunciado de uma lei que domina a metafísica mais
comum. Os filósofos cartesianos conferiram-lhe uma expressão, também ela axiomática, quando
afirmaram que "todo ser tende a perseverar no seu ser". É o mesmo que dizer que dois mais dois
são quatro e que a linha reta é o caminho mais curto entre dois pontos.

99
O Pontífice perguntava ao povo se ele queria se submeter a esse príncipe e
obedecer às suas ordens. Somente após a resposta unânime do clero e do povo
o bispo pedia a benção de Deus sobre a cabeça do príncipe. Ele lhe devolvia a
coroa e a mão da justiça, retiradas de sob o altar, 15 como se lhe fazia notar; o
arcebispo fazia-o sentar-se ao trono, dizendo-lhe:
"Sê firme e guarda o Estado que recebes da sucessão paterna e que te é
delegado pelo direito hereditário, pela autoridade de Deus todo-poderoso e pela
tradição de todos os Bispos e dos outros servidores de Deus; que o mediador de
Deus e dos homens te estabeleça sobre esse trono real, mediador do clero e do
povo; e que Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei dos reis e Senhor dos senhores, te
confirme sobre o trono desse reino e te faça reinar com Ele em seu reino eterno".
Todo o direito cristão era expresso nessas palavras: 1º — o direito humano do
príncipe, hereditário; 2º — o direito humano do povo que aprovava a transmissão
da coroa ao herdeiro legítimo; 3º — o direito divino que investia o príncipe "pela
autoridade de Deus todo-poderoso e pela tradição dos bispos"; 4º — a realeza
soberana e eterna de Cristo.
Ao poder humano, que não vem dEla, mas que Ela confirma, como Ela
confirma o contrato que entre si fazem os esposos, a Igreja junta alguma coisa,
como ela junta ao matrimônio de direito natural a graça do sacramento. Essa
alguma coisa era uma missão e um dom: a missão que vimos ser conferida pelos
Papas e pelos imperadores romanos, o dom sobrenatural exposto no que segue.

O Rei de França era sagrado com o Santo Crisma, o mais nobre dos Santos
Óleos, aquele que é empregado na sagração dos bispos. Assim que outros reis
pediram à Igreja que também os sagrasse, Ela quis aplicar apenas o óleo dos
catecúmenos.
O rei era ungido primeiramente na cabeça, como o bispo, para mostrar que,
assim como o bispo tem a primeira dignidade no clero, o rei de França tinha a
preeminência sobre todos os soberanos. Era ungido nas mãos, como o sacerdote,
não para o ministério do altar, mas para a força a ser exercida contra os inimigos
da Igreja e de seu povo, e também, como veremos, para conferir-lhe o dom da
cura. Era ungido nos ombros "para carregar o fardo dos negócios, da paz e da
guerra". Era ungido nos cotovelos "para torná-los invencíveis a seus inimigos".
A unção santa assim praticada fazia o rei.
Sabemos que Joana d'Arc chamava Carlos VII apenas de "gentil delfim" antes
que ela o tivesse levado sagrar em Reims.
A unção santa dava à França a pessoa do rei, de tal sorte que o rei pertencia
mais ao país do que a ele mesmo. Após os Estados da Igreja, a realeza da França
era a mais desimpedida dos laços terrenos, podemos dizer a mais espiritualizada.

14
Suger dizia, desde o século XII: "na coroação, o Rei abandona sua espada, o exército secular, e
cinge o gládio eclesiástico para a punição dos maus". "Historicamente, diz Paul Bourget, o Rei,
aceitando a investidura da Igreja, afirma sua vontade de manter a mais preciosa conquista da
civilização romana sobre os bárbaros, essa unidade moral, essa pax romana transmudada para pax
christiana por um mistério dessa sublime alquimia impressa por toda a parte no universo, para quem
sabe pensar. Mas se o Rei, para dar a seu poder a consagração religiosa, submetia-se assim à Igreja,
a ela se submetia sem que essa Igreja o obrigasse. Ele era sagrado Rei — hereditariamente —,
quer dizer, ele se afirmava como o chefe nacional, por direito de nascimento, de ma outra unidade,
a unidade cívica, separada do mesmo império romano, e assegurada em sua autonomia pelos usos,
costumes, por leis específicas.
15
Os que quiseram derrogar esse cerimonial não foram felizes em seu reinado. Carlos Magno
recebeu a coroa por seu filho, Luís, o Bonachão; Luís, o Bonachão, deveria deixá-la cair de sua
cabeça. Napoleão tomou ele próprio a coroa e colocou a da imperatriz sobre a cabeça de Josefina:
Josefina foi repudiada algum tempo depois e o poderoso imperador morreu descoroado numa ilha
perdida no meio do oceano.
100
O rei era mais verdadeiramente o pai de seu povo do que de seus próprios filhos.
Ele devia sacrificar estes àquele, e ele sabia fazê-lo, como as lápides de mármore
de Versalhes testemunham. Ou melhor, seus filhos não mais lhe pertenciam,
eram "os filhos da França".
A unção santa conferia ao rei um certo caráter de santidade, não dessa
santidade que torna o homem capaz de ver a Deus tal qual Ele é nos Seus
esplendores eternos, mas daquela que estabelece relações particulares entre
Deus e tal ou qual de suas criaturas. Foi Santo Tomás de Aquino que as qualificou
com este nome: santidade. 16 E ele dá como prova de sua existência o que
aconteceu no batismo de Clóvis, e o que Deus tem renovado de século em século
até nossos dias.
"Encontramos, diz ele, uma prova dessa SANTIDADE nas gestas dos francos
e do bem-aventurado Remi. Encontramo-la na Santa Âmbula trazida do alto por
uma pomba para servir na sagração de Clóvis e de seus sucessores, e nos sinais,
prodígios e diversas curas operadas por eles" (De Reg. Princ., II-XVI).
São Tomás quer referir-se aqui ao poder dado aos reis de França de curar
escrófulas. 17
É um fato constante, apoiado pelo testemunho de um grande número de
teólogos, de historiadores e de médicos, que os reis legítimos de França gozaram
desse privilégio. O venerável Guibert, abade do mosteiro de Saint-Marc à
Nogent-sur-Coucy, na diocese de Laon, uma das luzes da França no início do
século XII, fala dessa prerrogativa nestes termos:
"Que direi do milagre diário 18 que VEMOS se operar por nosso mestre o rei
Luís? EU VI aqueles que têm escrófulas no pescoço ou em outras partes do
corpo, se comprimirem em multidão ao redor dele, a fim de que ele os tocasse,
marcando-os com o sinal da cruz; eu estava ao lado dele e queria impedi-los,
mas ele, com sua bondade natural, estendia-lhes afetuosamente a mão e fazia
sobre eles o sinal da cruz com muita humildade". Ele acrescenta que o rei Filipe,
pai de Luís, havia inicialmente exercido, "com a mesma facilidade esse glorioso
poder". "Ignoro, aduz, que tipo de faltas fizeram-no perdê-lo". Guilherme de
Nangis conta que ao pronunciar as palavras usuais: O rei te toca, o rei te cura,
ditas para a cura dos escrofulosos "acerca dos quais Deus concedeu aos reis de
França uma graça singular", o rei São Luís tinha o costume de ajuntar o sinal da
cruz, porque desejava que a cura fosse atribuída ao sinal salutar da Redenção. O
que continuou a ser observado dali para a frente. Estêvão de Conty, sábio monge
de Corbie em 1400, na sua história manuscrita do rei de França diz: "Est veritas
quo innumerabilis sic de hac infirmitate fuerunt sanati per plures reges Franciae".

Guiart, o poeta-soldado, canta assim essas curas:

Somente pelo toque


Sem emplastro sob as roupas
Coisa que outros reis não podem fazer.
16
A venerável Catarina de Emmerich, falando da instituição, na quinta-feira santa, da santa
Eucaristia e dos sacramentos da Ordem e da Extrema Unção, acrescenta: "Ele (Jesus) falou-lhes
(aos apóstolos) de diferentes unções, em particular daquelas que se fazem nos reis para sagrá-los, e
disse-lhes que mesmo os maus reis que foram sagrados receberam dessa cerimônia uma virtude
particular".
17
É a São Marculfe, vulgarmente chamado Marcoul, que os reis de França eram devedores desse
maravilhoso privilégio. Ele era bretão, de família nobre; distribuiu seus bens aos pobres e viveu como
eremita e como missionário na diocese de Coutances. Pediu a Chilbert I a terra de Nanteuil,
próxima a essa idade, para ali edificar um mosteiro. Morreu aproximadamente na metade do
século VI, no dia 1º de maio.
18
Esse poder não estava limitado aos dias da sagração.
101
O monge Ives de Saint-Denis deixou o relato das últimas palavras de Filipe, o
Belo, moribundo, a seu filho primogênito: "Diante do confessor, sozinho,
secretamente, ensinou-lhe como ele devia fazer para tocar os doentes, e ensinou-
lhe as palavras santas que tinha o costume de pronunciar quando os tocava.
Semelhantemente, disse-lhe que era com grande reverência, santidade e pureza
que ele devia assim tocar os enfermos, limpo de consciência e de mãos".
André du Laurens, que o livro de razão publicado por Charles de Ribbes
mostrou dentro da moldura de uma família tão honesta e tão cristã, sendo primeiro
médico de Henrique IV, apresenta seu testemunho nestes termos: "Não é uma
coisa maravilhosa, que uma doença rebelde e freqüentes vezes incurável seja
perfeitamente curada pelo simples toque dos reis cristianíssimos e por algumas
palavras pronunciadas por suas bocas?” 19
Luís XIV e Luís XV operaram ainda curas de escrófulas: a esse propósito
remanescem numerosos depoimentos. O bolonhês Locatelli e um alemão, o Dr.
Nemeitz, contam ter visto no Louvre os doentes atacados de escrófulas
organizados em duas longas filas. Luís XIV repousava a mão sobre cada um
deles dizendo: "Deus te cure". Depois, ele os abraçava. Havia ali às vezes
oitocentos infelizes atingidos por essas doenças repugnantes. Para chegar ao
fim, observa o narrador, era preciso mais do que coragem.
A todos esses testemunhos aduzamos o de um amigo de Voltaire, o marquês
d'Argenson. Diz ele em suas Memórias : "Na sagração do rei em Reims, um
homem de Avesnes, que tinha escrófulas terríveis, foi se fazer tocar pelo rei. Ele
sarou completamente. Ouvi dizer isso. Ordenei se fizesse um processo e
informação de seu estado precedente e subseqüente, tudo bem legalizado. Isto
feito, enviei as provas desse milagre ao senhor Vrillière, secretário de Estado da
província (I,201)".
Enfim, temos sob os olhos um duplo relato do que ocorreu na sagração de
Carlos X, um, feito pelo Ami de la Religion, edição de 9 de novembro de 1825 (T.
XLV, p. 401), o outro por Tablettes du Clergé, edição de novembro de 1825.
Várias pessoas tinham sido de opinião de que se suprimisse essa cerimônia
para não dar pretexto às zombarias da incredulidade, e se deu ordem de dispersar
os escrofulosos. Eles se lamentaram, o rei enviou uma soma em dinheiro para
distribuir entre eles. Eles disseram que não era aquilo que eles queriam. O
abade Desgenettes, então cura da paróquia das Missões Estrangeiras, mais tarde
cura de Nossa Senhora das Vitórias, que estava hospedado em São Marcoul,
vendo a desolação dos doentes, foi advogar a causa deles, e o rei anunciou sua
visita para o dia 30 de maio, no hospital. Os doentes foram visitados por Noël,
médico do hospital, e por Dupuytren, primeiro cirurgião do rei, a fim de não se
apresentarem senão os doentes verdadeiramente atingidos pelas escrófulas.
Restaram cento e trinta. Eles foram apresentados sucessivamente ao rei
pelos doutores Alibert e Thévent de Saint-Blaise. O rei tocou-os, pronunciando a
fórmula tradicional". O primeiro doente curado foi uma criança de cinco anos e
meio, Jean-Baptiste Camus; ela apresentava quatro chagas. O segundo, uma
menina de doze anos, Marie-Clarisse Faucheron; ela era portadora de uma chaga
escrofulosa na face desde a idade de cinco anos. O terceiro, Suzane
Grévisseaux, com onze anos de idade; ela apresentava chagas e tumores
19
A peregrinação a Corberry, na diocese de Laon, que o rei fazia após a sagração, passava-se assim:
os monges iam processionalmente ao encontro do rei; eles lhe colocavam entre as mãos a cabeça de
São Marcoul, que o príncipe carregava pessoalmente até a igreja e recolocava sobre o altar. No dia
seguinte, após ter ouvido missa e rezado, o rei tocava o rosto dos doentes, fazendo sobre eles o sinal
da cruz e pronunciando estas palavras: "O rei te toca, Deus te cura". Os doentes deviam fazer uma
semana de jejum e de retiro.

102
escrofulosos. O quarto, Marie-Elisabeth Colin, com nove anos de idade,
apresentava várias chagas. O quinto, Marie-Anne Mathieu, com quinze anos,
tinha um tumor escrofuloso e uma chaga no pescoço. Redigiu-se ata dessas
curas e se aguardou cinco meses antes de conclui-la e publicá-la, a fim de se ter
certeza de que o tempo confirmaria as curas. "São Marcoul não pôde obter mais
curas, observa um historiador da abadia, como aconteceu ao próprio Jesus, por
causa da incredulidade dos doentes".
O sábio papa Bento XIV creu no privilégio dos reis de França, assim como
São Tomás de Aquino. Ele mostra que há graças miraculosas, que não são
concedidas em razão da santidade daquele do qual são o instrumento, e depois
acrescenta: "Citemos, por exemplo, o privilégio que têm os reis de França de
curar as escrófulas, não por uma virtude que lhes é inata, mas por uma graça que
lhes foi dada gratuitamente, assim que São Marcoul a obteve de Deus para todos
os reis de França".

A missão que a França devia cumprir através de seus reis, como já vimos,
descia do coração de Deus para o coração dos papas e dos bispos; a boca dos
pontífices a confiara aos reis, e a conduta quatorze vezes secular dos soberanos a
imprimira no coração dos franceses.

103
A lei sálica foi, desde o primeiro dia, a expressão viva dessa missão. 20 Eis
aqui o primeiro prólogo da lei:
"A ilustre nação dos Francos, constituída pela mão de Deus, forte na guerra,
firme nos tratados de paz, profunda no conselho, de uma nobre estatura, de uma
beleza primitiva de sangue e de forma, cheia de coragem, de prontidão e de
entusiasmo, recentemente convertida à fé católica e isenta de heresia; quando ela
estava ainda no estado bárbaro, procurando a ciência sob a inspiração de Deus,
desejando a justiça e guardando a piedade segundo seus costumes, ditou a lei
sálica pela voz dos grandes, seus chefes eleitos dentre diversos, de nomes
Wisogast, Bodogast, Salegast, Wodogast, os quais, em três assembléias reunidas
nos lugares chamados Salachem, Bodochen e Widochem, após haver discutido
cuidadosamente as origens de todas as causas e tratado de cada uma em
particular, decretaram o seguinte julgamento.
"Mas desde que, pela graça de Deus, o rei dos Francos, grande e invencível,
Clóvis, recebeu o batismo católico, o que não mais convinha no pacto foi
lucidamente corrigido tanto pelo rei vencedor quanto por Childebert e Clotaire.
"VIVA CRISTO, QUE AMA OS FRANCOS"! que o Senhor Jesus Cristo guarde o
reino deles e encha os chefes com Sua luz e Sua graça; que Ele proteja seus

20
Os trabalhos mais sérios da erudição contemporânea estabelecem que a redação latina da lei
sálica foi inicialmente promulgada por Clóvis, antes de sua conversão ao cristianismo, isto é, do ano
481 ao ano 496; e que o rei, após sua conversão, de 497 a 511, acrescentou um certo número de
títulos; o que fizeram, a seu exemplo, seus sucessores. O precioso manuscrito 4404 da Biblioteca
Nacional, publicado por Pardessus, é tido como o texto mais antigo e mais completo da lei sálica.
Ela foi redigida e promulgada, segundo todas as probabilidades, na Toxandrie, nessa parte norte da
Bélgica, entre Escaut e o Baixo-Reno, onde Julien permitiu aos sálicos residirem.
A lei é precedida de dois prólogos, acrescentados após a conversão de Clóvis, um grande, e um
pequeno, seguidos de um epílogo. O grande prólogo, Gens Francorum, é reproduzido, diz
Laferrière (Histoire du droit français, tomo III, p. 78 e seguintes), em onze manuscritos, dos quais
vários são anteriores à revisão de Carlos Magno, e o relato que ele contém é confirmado por um
outro prólogo, Placuit atque convenit, mais simples na expressão, idêntico pelos fatos, o qual
acompanha o grande prólogo em cinco dos onze manuscritos.
Esse grande prólogo se encontra numa compilação do século VIII, a coleção dos Gesta
Francorum. Alguns críticos acreditaram poder atribuir a paternidade desse admirável monumento
histórico ao compilador do século VIII. O próprio caráter do documento não deixa essa hipótese de
pé. Carlos Magno revisou sua lei sálica. Resta, dessa lei revisada, lex emendata , uns cinqüenta
manuscritos conhecidos. A obra de Carlos Magno não alterou a de Clóvis; ela somente acrescentou
novas disposições, tornadas necessárias pelo estado dos costumes e pelos interesses da Igreja e da
sociedade. O grande prólogo foi chamado em um dos mais antigos manuscritos Laus Francorum, e
é exatamente o nome que merece. Nada foi escrito de mais honroso à nossa raça. "Sentimos ao lê-
lo, diz Ginoulhiac (Histoire générale du droit français, 1884, p. 143), que ainda estamos numa época
vizinha da conquista, sob a influência das vitórias recentes de Clóvis e da derrota dos romanos. É,
ademais, o que nos ensina o próprio redator do prólogo, com estas palavras: Ad catholicam fidem
NUPER conversa, que indicam por sua redação uma época próxima da conversão de Clóvis ao
catolicismo".
Dispomos apenas de textos latinos da lei sálica; é provável, entretanto, que a primeira redação
tinha sido feita na língua franca, mas essa redação deve ter sido oral e não escrita. Os francos, antes
do século VIII, não tinham língua escrita. Aí está, para mencionar de passagem, o que explica a
raridade dos documentos relativos às nossas origens. Quando a escola hipercrítica, com seu desdém
pelas tradições, rejeita as lembranças mais bem estabelecidas, com este único argumento de que não
há documentos, ela esquece que os francos não escreviam, mas conservavam em cânticos a memória
de seus fundadores e dos acontecimentos marcantes da vida nacional. Somente aqueles que
possuíam a língua latina podiam fixar pela escrita seu pensamento, e estes eram então em número
muito pequeno. Como quer que seja, e para não fugirmos do nosso as sunto, diremos com o
historiador do direito francês Laferrière, inspetor geral das Faculdades de Direito: "É preciso olhar
os prólogos e o epílogo da lei sálica como documentos autênticos" (Histoire générale du droit
français, 1884, p. 70) (Semana Religiosa de Rouen).
104
exércitos, sustente sua fé e conceda à sua piedade a alegria, a felicidade, a paz
e a perenidade de sua soberania!
"É esta raça de homens, com efeito, que, pouco numerosa ainda, mas valente
e forte, nos combates sacudiu e retirou de sua fronte o jugo tão duro dos romanos;
são os Francos que, após sua admissão ao batismo, procuraram e cobriram de
ouro e de pedras preciosas os corpos dos santos mártires que os romanos tinham
mutilado com a espada, abandonado às chamas ou jogado aos animais ferozes
para serem devorados".
Um pouco mais tarde, a Igreja da França pediu, na própria oblação do Santo
Sacrifício, a graça para que os franceses sempre fizessem as obras que sua
vocação lhe impunha:
"Deus todo-poderoso e eterno, que, para servir de instrumento à Vossa divina
vontade no mundo, e para o triunfo e a defesa de Vossa Santa Igreja,
estabelecestes o império dos Francos, iluminai sempre e em toda a parte seus
filhos com vossas luzes divinas, a fim de que conheçam o que devem fazer para
estabelecer Vosso reino no mundo, e que, perseverando na caridade e na força,
realizem o que conheceram que devem fazer, por Nosso Senhor Jesus Cristo..." 21

Não foi somente no santo altar que a França exprimiu o sentimento inato de
sua sublime missão. Em uma de suas canções de gesta, ela se gloriava de que
Deus tenha feito coroar pelos anjos seu primeiro rei, para ser Seu oficial.

O primeiro rei de França, Deus o fez por Sua ordem


Coroar pelos seus anjos dignamente, cantando;
Depois mandou-o ser na terra Seu oficial.

No mistério de Orléans, ela mesma se definia assim:

É o reino que sustém


A Cristandade e a mantém!

Um de seus adágios marcava a necessidade da união do sacerdote e do rei,


ou, como se diz hoje, da Igreja e do Estado, para o cumprimento dessa missão e
para evitar a infelicidade que resultaria de sua separação:

Casamento em família
Da Igreja e das flores de lis.
Quando um ou outro partir,
2
Cada um deles se ressentirá. 2

21
Esta oração foi tirada de um missal do século IX. Suas origens remontam ao século VII. (Dom
Pitra, Histoire de Saint Léger, Introdução, p. XXII).
22
Guilherme de Nangis, na Chronique de Saint Louis, explica de maneira curiosa e profética o
simbolismo do brasão da França.
"Visto como Nosso Pai Jesus Cristo quer especialmente iluminar acima de todos os outros reinos o
reino de França com Fé, Sabedoria e Cavalaria, os reis de França se acostumaram a levar em suas
armas a flor de lis pintada com três folhas, assim como se eles dissessem a todo o mundo: Fé,
Sabedoria e Cavalaria estão, pela provisão e pela graça de Deus, mais abundantemente em nosso
reino do que em outros. As duas folhas que formam asas significam Sabedoria e Cavalaria, que
guardam e defendem a terceira folha, que está no meio delas, mais longa e mais alta, através da qual
a Fé é compreendida e significada, porque ela é e deve ser governada pela Sabedoria e defendida pela
Cavalaria.
105
As moedas que os reis mandavam gravar, e que o povo tinha diariamente nas
mãos, eram feitas com a expressa intenção de manter no público o pensamento
do papel reservado à França e de induzi-lo a render graças ao divino Rei. 23

Lia-se em nossas moedas de ouro:


Christus vincit, Christus imperat, Christus regnat.

E nas nossas moedas de prata:


Sit nomen Domini benedictum.

E mais cristamente ainda, naquelas de Filipe-Augusto:


Sit nomen Domini nostri Dei Jesu Christi benedictum.

Em outras:
Lilium elegisti tibi.

"Cristo vence, Cristo impera, Cristo reina; — Que o nome de Jesus Cristo,
Nosso Senhor e nosso Deus, seja bendito. — Ele reservou o lis para Si".

Jesus reservou para Si o reino das flores de lis!


Isto, que nossos reis se alegravam em reconhecer assim publicamente, o
divino Salvador havia mandado dizer pelo Arcanjo a Joana d'Arc. 24 Ele o rediz, nos
nossos dias, a Marie Lataste: "O primeiro soberano da França sou Eu". 25 Isto
significa que Ele não renunciou a essa soberania, que Ele não nos rejeitou, que
Ele não nos quer abandonar à infeliz sorte que procuramos quando nos
separamos dEle;26 e que no Seu Poder e na Sua Sabedoria infinitos, Ele quer
dispor as coisas para que retomemos Seu jugo e que reconheçamos de novo a
dignidade à qual Ele quis nos chamar desde nossas origens.
Assim se cumprirão as profecias sobre a existência da França até o fim dos
tempos. "Os Francos, escreveu Agathon desde os tempos de Justiniano, brilham
por sua fé entre todos os povos cristãos. Seu império será muito grande, muito
firmemente estabelecido: ele terá uma existência toda divina". 27
Assim, enquanto essas três graças de Deus estiverem fortemente e ordenadamente juntas no reino de
França, o reino será forte e firme; e se sucede que elas sejam retiradas do lugar e separadas, o reino
estará em desolação e em destruição".
O reino está em "desolação e em destruição". Por quê? A partir do século XVIII a Sabedoria real
deixou de governá-lo e a Cavalaria deixou de defender a Fé.
23
A Cruz é, sem contestação, o signo mais característico de Jesus Cristo e de Sua realeza; como o
diz a Igreja após David: Regnavit a ligno Deus.
As primeiras moedas cunhadas por nossos reis no começo do século VI apresentam esse signo
augusto. Desde então a cruz não deixou de ocupar em nossas moedas o lugar de honra, no campo do
reverso. Percorrendo nossas coleções de medalhas, públicas ou privadas, examinando os sous de ouro
e os triens de prata e os oboles da primeira e da segunda dinastia de nossos reis, e as moedas de
ouro, de prata, de cobre e de couro da terceira dinastia, em todas veremos a cruz, apresentada sob
todas as formas.
24
Wallon, t. I, p. 92. Edição in-12.
25
Oeuvres, t. III, p. 405.
26
O galicanismo foi a primeira e principal causa da Revolução. A independência do poder secular,
proclamada pelo primeiro artigo da Declaração de 1682 tornou-se a base de todas as constituições
modernas.
27
"Jamais houve monarquia, diz Le Bret, que tenha durado tanto tempo no seu esplendor, nem que
no estado em que se encontra não possa prometer ais glória e felicidade que a da França; porque,
ainda que sua sorte tenha sido freqüentemente agitada por furiosas tempestades que foram
geralmente suscitadas ou pela inveja de seus vizinhos ou pela própria malícia de seu povo, não
obstante Deus sempre a ergueu acima da borrasca e a tornou mais forte do que era anteriormente,
tanto que um assinalado personagem deste século disse com razão:
106
Tais são nossas origens, nossas tradições, os títulos de nobreza que nos
haviam colocado à testa das nações e que aí nos recolocavam após nossas
quedas. Alguns anos após sua assunção ao trono, Henrique IV, vendo o
embaixador da Espanha espantado com a prosperidade da França e com a
transformação de Paris, disse-lhe: "O PAI DE FAMÍLIA NÃO ESTAVA PRESENTE,
mas tudo prospera quando Ele cuida de seus filhos".
No momento presente nós renunciamos a essas tradições, e foi isto que
produziu nossa ruína. "Infelizes os povos que renegam seu passado, exclamou
um livre-pensador, de espírito muito moderno, Viollet-Leduc. 28 Não há futuro para
eles". Com efeito, é o espírito de um povo que mantém sua vida. E esse espírito
se compõe dos sentimentos hauridos nas mesmas fontes religiosas, da glória
recolhida nos mesmos campos de honra, do amor às antigas instituições.
Por isso, Leroy-Beaulieu pôde dizer: "O dia em que a França, para obedecer
às intimidações do anticlericalismo, tiver covardemente abdicado de suas funções
de grande nação católica, será para nós o sinal da decadência definitiva, da
derrota irremediável, preparada por mãos francesas. A política do anticlericalismo
é, para a França, uma política de suicídio nacional".
Isso nós vemos em demasia.

"Magna regni Gallorum fortuna, sed semper in malis major ressurrexit".


"Devemos esperar que ela jamais possa ser enfraquecida, enquanto nossos reis continuarem a
manter a religião no seu brilho, a amar seus povos e a fazê-los partícipes da felicidade que Deus lhes
dá" (Traité de la souveraineté du Roy , L. I, cap. I).
28
Prefácio do dicionário de arquitetura.
107
108
E PÍ LO G O

Nulla gens esta ita sollicita circa regem suum


sicut apes. Unde regi incolumi omnibus mens
una est;
Amisso rumpere fidem, constructa que mella
rumpere;
Et si moritur, moriuntur et ipsae. 1
S. CHRYSOST. In policratio, Lib. VII.

Qualquer que seja o estado a que estejamos reduzidos, não cessemos de ter
esperança. Há castigo naquilo que nós sofremos. Mas se Deus pune, Ele não se
arrepende de Seus dons. Um dia ou outro, Ele recolocará a França nas vias de
sua juventude. Várias pessoas têm o pressentimento de que isto acontecerá logo.
Edouard Drumond, apesar de seu pessimismo habitual, terminava seu artigo
de 27 de julho de 1905 com essas palavras: "Podemos perfeitamente conceber, na
seqüência dos acontecimentos que não tardarão a se produzir, uma reconstituição
dos elementos franceses, dos elementos de estirpe ao redor de um chefe que
personifique essa estirpe".
O patriotismo, na falta da lei, abre os olhos a muitos publicistas acerca das
condições necessárias à nossa vida nacional. O estudo aprofundado da história
da França, das causas que construíram sua prosperidade e sua preponderância
no mundo, e daquelas que redundaram na sua decadência, convenceu-os de que
os destinos de nosso país estão intimamente ligados aos do catolicismo, e de que
apenas uma coisa pode nos dar, juntamente com a vida, a posição que nos
pertence: retemperar a alma francesa no espírito do passado. Mirabeau deu todo o
argumento da Revolução nessas poucas palavras: "É preciso descatolicizar a
França para desmonarquizá-la, e desmonarquizá-la para descatolicizá-la". É
sempre a mesma palavra de ordem.
"Apenas o cristianismo, diz o positivista Taine, pode travar o resvalamento
insensível através do qual, e com todo seu peso original, nosso povo retrograde
em direção ao fosso; e o velho Evangelho é ainda hoje o melhor auxiliar social".
1
Na verdade, ninguém é tão cuidadoso como as abelhas acerca de suas coisas. Por isso que a
incolumidade da rainha constitui para todas um desígnio comum; e se esta morre, em razão da
quebra da fidelidade ou da perda do mel acumulado, morrem todas. (N. do T.).
109
E Brunetière:
"É uma ilusão crer que triunfaremos com um vago liberalismo da ação
combinada do jacobinismo e da franco-maçonaria... São cegos os que não
vêem que sendo o programa de nossos adversários a descristianização da
França, fugimos do combate e abandonamos a pátria se fingimos crer que a luta
se fere em outro lugar".
Num livro que acaba de publicar, Le Sentiment Religieux en France, Lucien
Arréat, que coloca todas as religiões no mesmo nível e parece não seguir
nenhuma delas, é levado a reconhecer isto (p. 27): "A alma francesa carrega a
marca do catolicismo, isto não é contestável". E um pouco mais longe (p. 31):
"O declínio da religião católica pôde parecer para nós uma enorme vantagem,
enquanto as esperanças da escola enciclopedista brilharam diante de nossos
olhos e a sorte de nossa pátria não estava colocada em perigo. Passados
quarenta anos, não é mais assim, de maneira nenhuma; nossas agitações
desordenadas conduziram-nos a uma crise funesta, a uma dessas batalhas que
mudam o destino das nações".
E ainda: "A ruína das idéias tradicionais freqüentemente decide o retorno a
um estado inferior, não somente nas classes dirigidas, mas ainda naquelas que
têm o verniz da mais alta cultura" (p. 91).
Léon Daudet terminava recentemente um artigo intitulado Les Chemins de
Damas2 [Os Caminhos de Damasco] com estas linhas:
"A verdade é que os franceses de hereditariedade católica, que os desafetos
do catolicismo que se julgam os mais distanciados da crença de seus ancestrais,
estão separados dele apenas por uma tênue cortina, que eles tomam por um muro
blindado... Essa tênue cortina, que separa da fé os homens de temperamento
católico, jamais foi tão flutuante quanto na nossa época, na qual, de um lado a
superabundância das noções, a superatividade intelectual provocam e necessitam
de crises do sensível, — de outro lado a causa da Religião e aquela da Raça
aparecem como inseparáveis. Esta a razão pela qual o caminho de Damasco
jamais foi tão freqüentado, tão transitável. Prevejo que muitos de nossos
contemporâneos nele transitarão de automóvel. O gosto desenfreado da
velocidade aplicar-se-á até mesmo à conversão".
Quase toda semana encontramos essas idéias expressas em jornais, em
revistas, em livros, fato que nos teria deixado muito admirados há alguns anos. A
verdade expressa por L. Veuillot torna-se cada vez mais evidente aos olhos de
quem sabe ver:
"O tempo do meio-termo passou; não há futuro no mundo senão para os
socialistas como Proudhon, ou para os católicos como nós, porque o mundo
chegou a um ponto no qual ele deve perecer ou renascer. Todas as coisas
intermediárias serão esmagadas pela destruição ou rejeitadas com desdém pela
reconstrução" .

Para quando, essa reconstrução? Nossas orações podem apressar a hora. 3

2
La Libre Parole , número de 12 de abril de 1903.
3
A Santa Igreja encorajou, desde antes do século XIII e em Roma mesmo a oração pelo rei de
França.
Em Saint-Louis-des-Français lê-se em cada um dos pilares que fronteiam a porta de entrada:
QUICUNQUE ORAT PRO REGE FRANCIAE HABET DECEM DIES INDULGENCIAE, A PAPA
INNOC. IV. Quem rezar pelo rei de França ganha dez dias de indulgência, concedida pelo papa
Inocêncio IV.
São Tomás de Aquino recolheu esta inscrição e a inseriu na Suma Teológica e no Livro de
Sentenças (in Supp. XXV, art. III, ad. 2 et in IV sent. Dist. XX, q. 1, art. III).
A mesma inscrição encontra-se em Saint-Claude des Bourguignons.
110
Um corpo não pode existir sem cabeça; e o corpo social, não menos que um
outro corpo, não pode viver, e sobretudo se reconstituir, sem a influência da alma
que, da cabeça, aciona os outros membros.
Há mais de um século a França está decapitada. Por que, pois, espantar-
se com o estado de decomposição em que ela se encontra?
Se Deus tem piedade de nós, parece que Sua primeira obra de misericórdia
será de recolocar, no cimo da pirâmide que as famílias constituem em toda
sociedade, a família que, durante tantos séculos, tem sido a primeira, e que por
um trabalho lento reuniu em torno dela os elementos da nacionalidade francesa, 4
petrificando-os com suas mãos possantes para fazer deles um só povo, e neles
vertendo sua alma cheia do pensamento que Clóvis recebeu do céu no dia de seu
batismo.
Buffet, presidente da Assembléia Nacional, gostava de dizer a seu filho acerca
de seus últimos dias:
"Uma dúvida, uma dúvida profunda e crescente não pára, faz alguns anos, de
nos atormentar. Após tantas infelicidades passadas, diante de tantas crises
presentes e de outras tantas que se preparam, fico hoje a me perguntar se a
França ainda pode ser salva...
"Creio, entretanto, que a salvação ainda é possível. Mas eis a última certeza
de minha vida: se a França deve ser salva, ela não o será senão pela monarquia".
Não por uma monarquia qualquer, como se quis de 1871 a 1875, mas pela
verdadeira monarquia francesa e cristã; nas condições, todavia, que as
ocorrências do século presente reclamam.
Lur-Saluces disse com acerto:
"O papel do rei de França não poderia consistir em tentar essa obra absurda
que seria desastrosa se não fosse impossível, e que consistiria em querer forçar
um país a reviver sua vida às avessas. Não se pára a evolução de um povo como
a de um corpo vivo qualquer; o papel do poder é o de regularizá-la e dirigi-la sem a
entravar, de maneira a torná-la fecunda.
"A monarquia é um centro fixo. Eu não poderia melhor compará-la do que a
um desses eixos que, sem estar imóveis, permanecem no mesmo lugar, enquanto
evoluem. Restabelecido esse pivô, a antiga evolução, regular e feliz, poderá
recomeçar". 'Juntos e quando quiserdes, retomaremos o grande movimento de
1789'. Esse convite do conde de Chambord à França traça, ao que me parece, o
programa da realeza futura".
Monsenhor Gerbet, nos seus Esquisses de Rome Chrétienne [Esboços da
Roma Cristã] lembra um fato cuja reprodução, deve-se esperar, ainda veremos.
Falando sobre a basílica Ulpiana, diz:
"Nessa mesma basílica, Constantino convocou uma assembléia do povo
romano. O Imperador colocou-se na abside... Dali fez-se ouvir uma das
proclamações mais solenes cujo texto a História conservou, aquela que anunciou
oficialmente os funerais do mundo pagão e o coroamento cristão do novo mundo.
"Do alto dessa tribuna, Constantino dirigiu estas palavras à assembléia:
4
"A história de meus antepassados, disse com inteira verdade o conde de Chambord, é a história da
grandeza progressiva da França".
Sua política hábil e invariável nos deu Berry sob Filipe I; Normandie e Touraine sob Filipe-
Augusto; Languedoc sob São Luís; Champagne e Lyonnais sob Filipe-o-Belo; Dauphiné sob Filipe
VI; Limousin, Saintonge, Angoumois, Aunis e Poitou sob Carlos-o-Sábio; Guyenne sob Carlos VII;
Bourgogne, Provence, Anjou, Maine sob Luís XI; Bretagne sob Carlos VIII; Bourbonnais, Marche e
Auvergne sob Francisco I; Metz, Toul e Verdun sob Henrique II; Navarre, Béarn, Périgord, o condado
de Foix sob Henrique IV; Alsace, Roussillon, Artois sob Luís XIII; Flandre, Franche-Comté,
Nivernais sob Luís XIV; Lorraine, Corse sob Luís XV; Algérie sob Carlos X.
Tal foi a obra da Monarquia.

111
"As funestas divisões dos espíritos não podem ter um fim feliz, enquanto um
raio da pura luz da verdade não iluminar aqueles que estão cobertos pelas trevas
de uma profunda ignorância. É preciso, pois, abrir os olhos das almas. É dessa
maneira que deve morrer o erro da idolatria. Renunciemos a essa superstição que
a ignorância gerou e que o contra-senso alimenta. Que o Senhor único e
verdadeiro, que reina nos céus, seja o único a ser adorado..."
"...Então a voz do povo explodiu e fez ouvir durante o espaço de duas horas
estas exclamações:
"Infelizes dos que negam Cristo! O Deus dos cristãos é o único Deus! Que
os templos sejam fechados e que se abram as igrejas!
"Aqueles que não honram Cristo são inimigos dos Augustos! Aqueles que
não honram Cristo são inimigos dos romanos! Aquele que salvou o Imperador é
o verdadeiro Deus!
"AQUELE QUE HONRA CRISTO SEMPRE TRIUNFARÁ SOBRE SEUS
INIMIGOS!"5
Um dia ou outro, um príncipe dirá à França: "As funestas divisões dos
espíritos não podem ter um fim feliz, enquanto a pura luz da verdade não tiver
iluminado os ignorantes... É preciso abrir os olhos das almas". Como
Constantino, ele pedirá essa luz ao Vigário de Jesus Cristo; e como o povo
romano daquele tempo, o povo francês exclamará: "O Deus de nossos pais é o
único Deus! Que as lojas sejam fechadas e que as igrejas se abram. O povo que
honra Cristo sempre triunfará sobre seus inimigos!"
A partir desse dia, mas apenas desse dia, a REVOLUÇÃO terá deixado de
existir e começará a RENOVAÇÃO. Ela começará não somente para a França,
mas para a Europa e para o mundo.
No dia das grandes peregrinações a Paray-le-Monial, milhares de cristãos,
belgas, americanos, ingleses, italianos, assim como franceses, levam ao céu, a
uma só voz, esta súplica:

Deus de clemência,
Ó Deus vencedor,
Salvai Roma e a França
Por vosso Sagrado Coração.

Por que essa oração, que associa num mesmo pensamento a salvação de
um povo e a independência da Santa Sé, era comum aos peregrinos de todos os
povos? Não é por se encontrarem em todos o sentimento da missão dada à
França e o instinto secreto do papel que ainda é chamada a desempenhar essa
nação privilegiada, costumeira nos reerguimentos repentinos?
"Aí está uma afirmação que não sofre desmentido, escrevia naquela época
monsenhor Pie; além dos montes, aqueles que esperam e aqueles que temem o
restabelecimento da ordem cristã no mundo, estão de acordo em não julgar esse
fato possível e realizável senão através da França. Quando e como? perguntar-
me-eis. Esta não é a questão, e é o segredo somente de Deus.

5
Leibnitz já exprimia, há dois séculos, esse desejo: "Se nós fôssemos suficientemente felizes para que
um grande monarca tomasse a peito os interesses da religião, para atribuir todas as descobertas
presentes e futuras ao louvor do Mestre supremo do universo e ao crescimento do amor divino, que
não seria sincero em nós se não contivesse também a caridade relativamente ao homens,
avançaríamos mais em dez anos na glória de Deus e felicidade humana como não faríamos por outra
maneira em vários séculos".

112
113
ÍNDICE DAS MATÉRIAS

CAPÍTULO I
COMO SE FORMAM OS ESTADOS

A verdade social é o oposto da utopia democrática: a igualdade. —


DEUS, nas origens, estabeleceu a sociedade humana sobre a autori-
dade, a hierarquia e o dever da união.— A família é o princípio da cida-
de: entre os assírios, os egípcios, os hebreus, os gregos e os roma-
nos. — Entre os povos modernos. — Formação da França. — Ação
contínua da família real. — Providência especial da qual ela gozou.
— Sanção divina dada à lei sálica ........................................................... 9

CAPÍTULO II
OS ESTADOS DEVEM CONSERVAR
O MODELO FAMILIAR

O Estado tem por elementos constitutivos, não os indivíduos, mas


as famílias. — Elas são as células elementares do corpo social . — As
leis impostas por DEUS à família devem ser as leis de toda a socieda-
de. — Palavras de Bonald, Bodin, Leão XIII. — O governo da França
foi essencialmente familiar. O rei, a rainha, os grandes oficiais. — O rei
tinha o papel de um chefe de família patriarcal. — Ele era realmente
pai: conduta de São Luís, de Francisco I. Testemunho dos estrangei-
ros. — O Louvre e o Palácio de Versalhes abertos a todos. — Amor
dos franceses pelo seu rei até em plena revolução. — Testemunhos.
— A prosperidade da antiga França deveu-se ao espírito familiar da
monarquia ............................................................................................... 17

CAPÍTULO III
A UNIÃO, LEI DAS FAMÍLIAS,
É TAMBÉM A LEI DOS ESTADOS

À afeição dos súditos ao soberano deve juntar-se a união dos súdi-


tos entre si. — A união procede do amor. — Em nossos dias, na
França: antagonismo. —Como remediar isso? — Palavras de Augus-
tin Lémann. — A união social entre os antigos; entre nós na Idade
Média; entre os estrangeiros ................................................................ 25
114
CAPÍTULO IV
DE ONDE VEM A PROSPERIDADE
E A DECADÊNCIA DOS POVOS

Nenhuma sociedade pode subsistir sem a assistência mútua dos


grandes aos pequenos e dos pequenos aos grandes. — Sempre e em
toda a parte, o esquecimento dessa obrigação produziu-se primeira-
mente entre os grandes. — Três aristocracias se sucedem entre nós
como entre os antigos: aristocracia feudal, aristocracia territorial, aris-
tocracia de dinheiro. — Elas têm cada vez menos o sentimento de
seus deveres. Elas terminam sempre por esquecê-los. — Daí a deca-
dência, a ruína e uma pavorosa guerra civil entre os gregos, entre os
romanos. — Nossa aristocracia feudal talhada pela Igreja. Sua obra.
— Nossa aristocracia territorial. Seus méritos. Sua decadência. Sua
ruína ........................................................................................................ 31

CAPÍTULO V
QUE DESTINO A ARISTOCRACIA DE DINHEIRO
RESERVA PARA SI E PARA A FRANÇA?

Nos dias presentes a soberania pertence ao ouro. — Como a bur-


guesia pôde tomar o lugar da nobreza. — Tradição de patronato de
uma parte, de disciplina de outra, mantidas durante algum tempo. —
Causas de seu desaparecimento: enriquecimento rápido demais, au-
sência de tradições. — A liberdade do trabalho favorece a exploração
do homem. — A irreligião afasta todo escrúpulo. — Conseqüências:
aglomerações de operários que não têm mais entusiasmo, nem lei,
nem fé, dispostos a tudo. — Terríveis ameaças para um futuro próxi-
mo. — Palavras de monsenhor Ketteler ............................................... 39

CAPÍTULO VI
A SALVAÇÃO ESTÁ NO RETORNO À PAZ SOCIAL

Poderá a França reentrar nas vias da civilização? — Sim, se re-


tornar àquilo que construiu sua felicidade e sua prosperidade. — Aqui-
lo que o espírito cristão produziu uma vez, pode produzir de novo. —
Restabelecer o reino da paz pela caridade. — Palavras de Leão XIII.
O acordo pela vida deve espraiar-se da família para toda a sociedade ... 47
CAPÍTULO VII
A REFORMA DEVE COMEÇAR PELA
RECONSTITUIÇÃO DA FAMÍLIA

Precisa-se de um homem. — Ele poderia apenas nos levantar e nos


recolocar no caminho. — A primeira etapa será a reconstituição da fa-
míia. — A família não existe mais na França. — Nem mesmo temos
mais a idéia do que ela deve ser. — Axioma de J.-J. Rousseau: os fi-
lhos não estão ligados a seus pais senão enquanto eles têm necessi-
dade dele para se conservarem . — É a família humana rebaixada ao
nível da família animal. — A família humana é permanente na seqüên-
cia de suas gerações. — A genealogia de CRISTO. — As genealogias

115
da antiga França. — A antiga família francesa tinha, além da comuni-
dade do sangue, a transmissão das tradições familiares e do patrimô-
nio. — A Revolução decapitou a família real, dizimou as famílias aris-
tocráticas e colocou as famílias burguesas e proletárias na impossibili-
dade de se elevarem de uma maneira contínua. — Extratos de livros
de razão .................................................................................................. 53

CAPÍTULO VIII
FAMÍLIAS-TRONCOS

Três regimes de família: família patriarcal, família-tronco e família ins-


tável. — Regime da família-tronco superior às outras. Seu duplo ele-
mento de estabilidade e de perpetuidade: o lar e a tradição. Transmis-
são, ordinariamente, ao primogênito, da dignidade de chefe da família e
do encargo de sustentar a casa. — Seus deveres. — Palavras de Bo-
nald, Victor de Laprage, Edmond Demolins. — Vantagens que esse
regime traz para a sociedade, para a família e para os indivíduos. —
Como ele se estabeleceu entre nós. — O Código Civil matou-o. —
Palavras de le Play, About, Renan. — Para que a França tenha um fu-
turo, é preciso que as famílias possam se recolocar sob esse regime.
— Queixas e reclamações das Câmaras de Comércio. — A seita revo-
lucionária opõe-se a essa reforma. — O governo atual agrava ainda a
situação. — Medidas insuficientes propostas pelos democratas cristãos.
— Desmoralização introduzida pelo Código na família francesa. — Isto
ocorre diferentemente na Inglaterra e na América. — Sinistra advertên-
cia infelizmente realizada ......................................................................... 61

116
CAPÍTULO IX
FAMÍLIAS TRADICIONAIS

Dever dos pais de reavivar nos seus o espírito de família. — As tra-


dições são necessárias para dar às leis o assentimento do coração; e é
preciso educação sobre as tradições para delas fazer o princípio dos
costumes. — O espírito revolucionário esmaga as tradições da antiga
França. É isto que explica nossa impassibilidade. — DEUS deu ao ani-
mal a força para prover às necessidades de seus filhotes. Ao homem
Ele deu, além disso a autoridade, para adestrar a vontade seus filhos.
— Essa autoridade, Ele a quis permanente como a própria família. — A
escolha das alianças. — O livro de razão. — Suas três partes: a gene-
alogia, o diário, os ensinamentos tradicionais. — Conseqüências so-
ciais do abandono das tradições familiares. — Desaparecimento das
famílias que abandonam suas tradições ............................................... 73

CAPÍTULO X
AUTORIDADE DO PAI — SANTIDADE DA MÃE
CULTO DOS ANTEPASSADOS

A autoridade do pai em Atenas, em Roma, entre nós até o século


XVIII. — O pai de família venerado como imagem do Padre Eterno. —
O espírito de Jean-Jacques, a Convenção e o Código Civil fizeram-na
desaparecer. — Tocqueville acreditou que isto era um bem. — Os fatos
dizem o contrário. — Urgente necessidade de restaurar a autoridade
paterna, a mais legítima e a mais necessária ......................................... 79

Feliz o homem a quem DEUS deu uma santa mãe. — Palavras de


Lamartine e Ozanam. — A mãe de Santo Atanásio. — Santa Emília,
mãe de São Basílio e de São Gregório Nazianzeno. — A mãe de San-
to Agostinho. — A mãe de São Gregório Magno. — A mãe de São
Bernardo. — A mãe de Napoleão I. — A .mãe de Pasteur. — A mãe
do Santo Cura d'Ars. — A mãe de Carlos Magno. — Palavras de J.
de Maistre. — Mães de família que restabeleceram o governo em
seus lares. — A mulher na família operária. — Ação social da mulher
francesa. — As mães dos zuavos pontifícios. — Palavras de Favière.
— As mulheres em face do espírito revolucionário ............................... 82

O culto dos antepassados engendrado e nutrido pelo espírito de fa-


mília. — Entre os pagãos. — Entre os católicos ................................... 85

117
CAPÍTULO XI
RECONSTITUIÇÃO DO CORPO SOCIAL

Ela exige a reconstituição da família: entidade moral, econômica e


social persistente. — Novamente as famílias se hierarquizarão como
outrora. — Palavras de Bonald. — Aristocracia e nobreza. — Existe
aristocracia em todas as classes sociais. — A democracia se opõe à
constituição da aristocracia em nobreza. — A nobilitação na antiga
França. — Suas vantagens sociais. — Palavras de Taine, Leão XIII,
Pio IX. — Que será feito da nobreza no futuro? — Sentimento de Tai-
ne, Bonald, le Play. — A vida não se extinguiu no coração da França.
— Que o padre na sua paróquia, o pai na sua família, o patrão na sua
oficina, o capitão na sua companhia, se apliquem em desenvolver o
núcleo de aristocracia que DEUS nos deixou. — Que cada qual faça
descer a verdade e o bem de seu coração sobre seus irmãos. Aí está
a verdadeira solução para a questão social ............................................. 87

CAPÍTULO XII
A FRANÇA. SUAS ORIGENS E SUA MISSÃO.

As origens da França. — O batismo de Clóvis e dos francos. — Re-


lato de Baronius. A Santa Âmbula. Palavras do cardeal Pie e de Th.
Lavalée. — Carta do Papa Anastácio II a Clóvis — Testamento de
São Remi. — Carta de Santo Ávito, que traça o programa do povo fran-
co. — Missão dada a Clóvis pelo imperador Anastácio. — Confir-
mada aos reis de França pelos Papas Gregório III, Estêvão, Adriano,
Leão III, Gregório IX. — Palavras de Honório III, Inocente III, Alexandre
III, Leão XIII. — A sagração particular dos reis de França. Ela sela de
novo, a cada início de reinado, a aliança pactuada entre CRISTO e
eles. — Descrição da sagração e seus ensinamentos. — A unção
fazia o rei. Palavras e conduta de Joana d'Arc. — A unção conferia um
certo caráter de santidade. — Poder de curar escrófulas. Testemunhos
de São Tomás de Aquino e de Bento XIV, dos historiadores e dos mé-
dicos. — A missão da França, marcada na lei sálica, nas canções de
gesta, nas moedas. — Promessas de existência providencial em face
da fidelidade a essa missão ................................................................... 97

EPÍLOGO

Em que situação nos encontramos? — Não percamos a esperança.


Palavras de Taine, Drumont Brunetière, Lucien Arréat, Léon Daudet,
Buffet, Lur-Saluces. — Orações pelo rei de França, indulgenciadas
pelos Papas, e gravadas nas colunas das igrejas de Roma. — Cena
grandiosa na basílica Ulpiana. Vem um outro Constantino! O mundo o
aguarda ................................................................................................... 111

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