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Josef Nadj faz da memória o seu duplo

Até 25 de Janeiro, o Mosteiro São Bento da Vitória, no Porto, recebe uma criação dupla de Josef Nadj. Mnémosyne
é uma exposição de fotografia mas também uma performance, em que o coreógrafo e artista visual nos atira para
as memórias e os acontecimentos por detrás de uma imagem. Gonçalo Frota

Josef Nadj pedala em cima de uma bicicleta. Segue por uma estrada por onde é normal
passarem automóveis, camiões, máquinas agrícolas, todo o tipo de veículos que possa ser
conduzido por algum tipo de afazeres à sua terra-natal, Kanjiza, na Voivodina, enclave de
língua húngara plantado em território sérvio. Foi de lá que Nadj saiu, primeiro para estudar em
Budapeste, depois para se sediar em França, em 1980, e por lá desenvolver uma linguagem
coreográfica incomparável em toda a criação europeia. Uma linguagem que não segue a
convenção daquilo a que habitualmente se designa por dança, mas que questiona, em
contínuo, a forma do corpo se dispor em cena. Aos poucos, essa linguagem foi abocanhando
outras como o desenho e a fotografia em particular. Mas já à partida trazia consigo resquícios
de uma formação em artes visuais e mímica.

Josef Nadj desenvolveu ma linguagem que não segue a convenção


daquilo a que habitualmente se designa por dança, mas que questiona,
em contínuo, a forma do corpo se dispor em cena. Aos poucos, foi
abocanhando o desenho e a fotografia BLANDINE SOULA
Quando Nadj se desloca de bicicleta no Verão de 2017, de volta de um passeio até ao rio Tisza,
há algo no chão que lhe prende a atenção: uma rã seca, esmagada, espalmada por um número
indefinido de rodas que lhe terão subtraído a vida. “Nesse dia, em que ia a passar por ali, parei
mesmo ao lado da rã, colhi-a, levei-a comigo e fotografei-a”, relata Nadj ao Ípsilon. Está
sentado no pátio do Musée des Beaux-Arts de Lyon. Acaba de apresentar a performance
incluída na programação da Bienal da Dança – e que agora se instala em conjunto com uma
exposição fotográfica no Mosteiro de São Bento da Vitória, Porto, até 25 de Janeiro –, um dos
acontecimentos maiores do calendário da dança europeia. A performance dura perto de meia-
hora e tem lugar em quatro sessões diárias numa caixa negra depositada no centro da
exposição também da sua autoria. Mnémosyne, título que dá abrigo aos dois momentos da sua
apresentação, vive desse diálogo entre a impressão estática das imagens a preto e branco que
preenchem uma sala rectangular não demasiado ampla e aquilo que acontece, sem uma única
palavra, no interior da caixa negra.

A  performance  dura meia-hora e tem lugar em quatro sessões diárias numa caixa negra depositada no
centro da exposição.  Mnémosyne  vive desse diálogo entre a impressão estática das imagens a preto e branco
que preenchem uma sala e aquilo que acontece, sem uma única palavra, no interior de uma caixa negra 

Nadj está sentado numa cadeira, o corpo pesa-lhe e as palavras saem-lhe igualmente
cansadas. Mas animam-se ao trazer de volta esse momento em que colocou a rã no centro da
sua objectiva e a prendeu numa imagem. “Foi só na foto que vi a força daquela presença. E
então rapidamente colhi todas as rãs que encontrei por terra e que depois associei aos meus
objectos quando comecei a fazer esta série de fotos encenadas.” Sim, porque a rã que
primeiro lhe captou o olhar não estava sozinha neste malfadado destino. E não escapou a Nadj
a “natureza muito expressiva daquele momento final das suas vidas”, porque apesar de
transformadas numa matéria quase fossilizada, a verdade é que o ser/objecto que vemos
fotografado junto a uma concha a peças de dominó ou uma pinha, diante de paredes rugosas,
da carcaça de um felino ou de um anzol, parecendo pegar no dedo de um mão humana ou
equilibrando-se impossivelmente em cima de uma placa giratória, parece sempre conservar
um sopro de vida e um movimento impositivo.

O cuidado cénico de Josef Nadj é uma das marcas mais claras de um homem formado pelas Belas Artes de
Budapeste e que seguiu depois as pistas da mímica, do tai chi e do butô antes de chegar à dança contemporânea

“A transformação do seu estado parece acompanhar uma passagem de três para quase duas
dimensões”, reflecte Nadj, “algo que torna estes seres muito fotográficos e que apenas
ganham intensidade e densidade nestas encenações. Cada uma das cenas parece mostrá-las
como um intérprete diferente.” O cuidado cénico de Josef Nadj é, de resto, uma das marcas
mais claras de um homem formado pelas Belas Artes de Budapeste e que seguiu depois as
pistas da mímica, do tai chi e do butô antes de chegar à dança contemporânea.

Desde que se estreou em 1987 com Canard Pékinois, prato (Pato à Pequim) que Nadj imagina a
ser servido aos seus bailarinos durante um jantar que nunca chega a concretizar-se (a peça era
pretexto para uma tensão entre histórias pessoais como espelho imperfeito dos conflitos
geoestratégicos de uma Europa no século XX tomada por sucessivos espasmos políticos,
ideológicos e militares), que a sua linguagem singular veio à tona. Não demorou a tornar-se
evidente o quanto a memória e o passado de um filho de carpinteiro e neto de camponeses
levava para dentro das suas criações, num crescendo obsessivo que foi tornando também as
suas peças mais insondáveis, misteriosas e por vezes claustrofóbicas, aproximando-se cada vez
mais das pequenas formas e de uma forma de trabalhar o corpo humano como se lidasse com
marionetas, apagando-lhes os rostos e os mais claros traços de expressão.
Já sobre Canard Pékinois, havia de revelar, pendia a sombra da história da sua aldeia, Kanisza,
que alastrava para a criação ao recuperar a história de um grupo de teatro que ensaiava na
mesma sala em que Nadj treinava artes marciais e que acabaria por se suicidar antes de
cumprir o sonho de viajar até à China. Nadj voltou depois virtualmente à sua região em  Les
Corbeaux  (2010), peça inspirada nos corvos locais e que, na descrição da jornalista Rosita
Boisseau, “acrescenta um novo capítulo ao romance fantasiado da sua terra e da sua região”.
Em palco, ao lado do saxofonista Akosh Szelevényi, Nadj surgia banhado em tinta preta,
mimando movimentos observados aos corvos que conhecia da infância – ainda que a ideia
inicial lhe tenha surgido quando ensaiava solitário num teatro de Tóquio e se viu protagonista
de um dueto involuntário com um pássaro –, focando-se nos momentos de transição entre o
voo e a marcha, na aterragem e na descolagem. A fronteira entre o terreno e o aéreo (mas
também o etéreo), entre o humano e o animal, entre a realização e o sonho.

Mergulho na memória
Não escasseiam sinais para nos demonstrar que a relação de Josef Nadj com a memória é
dinâmica e não plana. Não se limita a um lugar de observador ou comentador, mas procura
nas suas criações perceber de que forma a memória é transformadora e/ou passível de ser
transformada. Isso é claro ao pensar em Dark Union, por exemplo, peça criada em 2017 a
partir do convite de Iztok Kovac, director artístico do EnKnapGroup, para que Nadj assinalasse
o 30.º aniversário da sua peça fundadora, Canard Pékinois. A ideia de Kovac, em concreto, era
a de que o coreógrafo e artista visual imprimisse nos corpos da sua companhia de dança um
dos segmentos de Canard Pékinois, mas ao remexer nos escombros do seu passado Nadj
preferiu isolar um dos motivos originais da peça – a união amorosa trágica, a falência inevitável
de uma felicidade inicial que se deixa aprisionar pelas armadilhas do tempo – e criar um novo
objecto.

O que fascina, o que desarma, o que comove em Mnémosyne é, no entanto, a relação que se estabelece entre a
exposição e a performance JOSEF NADJ
“É um mergulho na minha memória e uma readaptação para o presente”, resume ao Ípsilon.
“É assim que concebo aquela coreografia ao fim destes anos – uma versão completamente
nova, baseada nalguns dos mesmos motivos e nas raízes de Canard Pékinois.” Dark
Union  significou também o regresso provisório ao trabalho com elencos numerosos, em
contraste com a tendência crescente de Nadj para se dedicar a pequenos formatos, próximos
do mundo do teatro de marionetas, e cada vez mais baseados sobre a sua produção artística
de desenhos e fotografias – como agora acontece em Mnémosyne.

Já em Orleães, cujo Centro Coreográfico Nacional Josef Nadj dirigiu durante 21 anos (de 1995 a
2016), “trabalhava a partir do quarto e do estúdio” numa escala solitária. “A cidade”, diz, “não
me inspirou.” Não devido a qualquer falha na relação entre o indivíduo e o colectivo, mas
porque Nadj aterrou e desfez a bagagem tal como a levava: “Cheguei lá e instalei o meu
universo. Não existe qualquer ruptura naquela que tem sido a minha obra até hoje.” Aquilo
que existe, então, é esse lugar solitário que o criador vem explorando, de um homem sem
rosto, que elimina os traços reconhecíveis e se apaga diante dos outros. Chegou a essa ideia da
máscara “para reforçar o movimento de marioneta do corpo”, mas o seu corpo mostra-se
também demasiado volumoso para esse pequeno teatro que criou, como se estivesse sempre
desajustado em relação ao mundo – àquele que o rodeia, mas também àquele que cria como
refúgio e que tem tanto de consolo quanto de desolação. E é nessa linha existencial que acaba
por se fazer acompanhar dos fantasmas de Beckett ou Kafka, evocados explícita ou
implicitamente nas suas peças.

Ao deixar o Centro Coreográfico Nacional de Orleães e instalar-se num atelier em Paris, Josef
Nadj prosseguiu e levou mais a fundo o interesse que vinha explorando nas pequenas formas –
por exemplo, em espectáculos como Pour Dolores  ou Paysage Inconnu, ambos apresentados
em Portugal nos últimos anos através da Companhia de Teatro de Almada, com lugar na
programação do Teatro Municipal Joaquim Benite ou do Festival de Almada. “É uma forma de
encontrar a grandiosidade num pequeno espaço, em que procuro reduzir ao máximo a
maneira como posso exprimir as minhas ideias”, justifica. “E também me interessa muito a
proximidade com o espectador – a pequena forma é necessariamente mais próxima.”

No humano, a imobilidade é anti-natura: se atingimos uma imobilidade perfeita, então atingimos a qualidade da
marioneta — o que é fascinante. Da marioneta ou da fotografia

Em Mnémosyne, a performance, estamos de facto bastante próximos de Nadj e do seu


“pequeno teatro de marionetas e objectos”, para o qual convocou as rãs e todo uma série de
objectos que podiam dialogar com o tamanho e a forma daqueles seres entre a vida e a não-
vida (e não a morte, porque não há propriamente um rasto trágico observável nas suas
figuras). Em Mnémosyne, a exposição, lidamos sobretudo com o equilíbrio entre movimento e
imobilidade, através do fascínio de Nadj pela “magia do instante” e influenciado pela sua
observação de pássaros: “Os grous e as garças-reais”, defende, “são os maiores mestres do
movimento. E o canto deles lembra-me sempre a sua agilidade e a sua elegância.” Há uma
procura de tudo isso nestes instantâneos fotográficos, mas também, uma vez mais, uma
pesquisa coreográfica na direcção da marioneta. “No humano, a imobilidade é anti-natura: se
atingimos uma imobilidade perfeita, então atingimos a qualidade da marioneta – o que é
fascinante. Da marioneta ou da fotografia.”

O que fascina, o que desarma, o que comove em Mnémosyne  é, no entanto, a relação que se
estabelece entre a exposição e a performance. Percorrendo primeiro a sala e demorando o
olhar nas imagens encenadas com as rãs, adentramos um mistério que tanto conduz para uma
visão cómica (e quase patética) da relação entre seres e objectos, quanto para algo de
perturbador e intrigante, como se precisávamos desesperadamente de uma chave para aceder
àquilo que Nadj nos mostra. Também para ele, na verdade, a objectiva serve para alterar o
olhar, graças “ao foco e ao detalhe”. “A objectiva vai mais além do olho e isso é apaixonante,
porque revela as faces escondidas das coisas, pouco a pouco.” As fotos são, portanto, uma
fonte de descoberta e não de explicação.

Só que esse é apenas o início da experiência total – no Porto, a exposição está patente até 25
de Janeiro, enquanto as performances acontecem no período entre 17 e 20. Na black box  que
é também uma camera obscura, Nadj relaciona-se com alguns dos mesmos objectos que
encontramos nas fotos – lá está a rã, os pássaros, mas também um gato entrapado e aquele
que “se tivesse de escolher”, elege como o motivo central de Mnémosyne: o duplo. Um duplo,
vestido com a mesma indumentária e escondendo o rosto tal como o coreógrafo/bailarino
atrás de ligaduras, um duplo inerte, que vem de anteriores obras de Nadj e vinca aquilo que a
jornalista Marylène Albert aponta na primeira frase da nota de intenções para este díptico:
“Mnémosyne  para dizer a memória de um mundo: o mundo do coreógrafo e artista plástico
Josef Nadj.” Mas também para o espectador se projectar no seu próprio mundo.

“A fotografia, por excelência, permite um aprimoramento dos seres e dos objectos”, acredita o
autor. “E assistimos à diversidade e à riqueza criativa do universo através da imensidão do
espaço-tempo, porque há fósseis com mais de mil anos, criaturas que são mais antigas do que
os homens e as mulheres na Terra, mas também uma mistura de vegetais, minerais, diferentes
espécies animais…” E estas fotografias promovem essas relações, ludibriam a recta temporal e
trocam os lugares da cronologia.

Antes do disparo
Sem desvendar demasiado aquilo que se passa dentro da black box, interessa reter o quanto a
performance concorre para a história que precede o disparo do obturador da câmara
fotográfica. É por isso que estamos dentro de uma camera obscura, como se numa finta
ardilosa às regras espacio-temporais o criador nos permitisse aceder à história que está no
antes da fotografia. Daí que no final, quando as portas voltam a abrir-se e somos devolvidos
para a sala onde as imagens se encontram expostas, todos aqueles momentos passem a
contar, por contágio imediato, uma história precedente. E que, com a subtileza e a elegância
próprias do coreógrafo, se abra uma espécie de porta dos fundos – todo um passado que se
anuncia em cada foto, toda uma sugestão de que o presente cai demasiadas vezes no erro de
se bastar e desprezar o caminho que levou até ali.
“Quero, de facto, mostrar aquilo que se pode produzir, aquilo que pode acontecer antes,
durante a preparação de uma fotografia”, revela Nadj. “É essa a temática da performance,
para chegarmos ao instante do clique, da composição final, da foto escolhida. Quero que nos
faça pensar na composição sem estar isolada. É sempre preciso estabelecer uma relação com
tudo aquilo que se passa antes. No fundo, o disparo é o fim de um ciclo, de uma história.”
Depois, no final, cada um que se responsabilize pelas linhas que cose entre as imagens fixas e o
movimento que lhes está na origem. Mas, de forma não tão subterrânea quanto isso, somos
também colocados diante da evidência de que toda a encenação pode significar o culminar de
uma narrativa mas também a sua absoluta manipulação para fixar o efeito desejado. Mais uma
vez, e aqui sim de novo a subtileza é chamada à cena, Nadj convoca a ideia da oficialização de
um acontecimento quando dinamita o seu percurso.
Olhando, aliás, com um mínimo de atenção é possível detectar uma presença que não fazia
parte da composição final que vimos ser preparada diante dos nossos olhos. Manipulação ou
tão-somente a projecção das memórias ou “do desejo do figurante de entrar na imagem”. “Por
isso é que digo que o olhar da máquina é diferente do nosso, vê coisas que nós não vemos.”
Lugar de encontros
Para Josef Nadj, a dança deve funcionar como “um lugar de encontros”. É também
isso Mnémosyne. De uma forma diversa daquela que tem explorado em colaborações com o
artista plástico Miquel Barceló ou com os músicos Akosh Szelevényi e Joëlle Léandre. Com a
violoncelista francesa, figura cimeira da música improvisada europeia (e parceira de Carlos
‘Zíngaro’ em vários projectos), trabalhou na peça Penzum  (2017), a partir de um convite da
instrumentista para encontrarem caminhos comuns entre música e dança. Nadj aprecia na
música de Léandre não propriamente os atalhos abstractos, antes a sua qualidade “muito
dramática” e o “sentido da cena teatral” desenvolvido através de várias colaborações com
dramaturgos.

Foto
DRA

Penzum, peça de 2017: Nadj e a violoncelista Joëlle Léandre escondem-se atrás de máscaras, ela toca, ele dança e
desenha numa tela gigante DRA
Penzum  recupera a ligação entre os dois explorada já em Sho-bo-gen-zo  (2010), mas aqui
inspira-se na obra poética do húngaro Attila József  e segue a prática musical de Léandre,
tendo a peça sido construída com base numa improvisação que nunca segue os mesmos
termos. Em palco, Nadj e Léandre escondem-se atrás de máscaras, ela toca, ele dança e
desenha numa tela gigante. É, na verdade, um bom exemplo de como a prática de Nadj nos
últimos anos documenta “uma alteração do terreno, mas em que o processo de trabalho e de
pesquisa se mantém o mesmo, assim como as problemáticas”. Penzum  é talvez o primeiro
momento em que a sua expressão no desenho e na fotografia, que costuma ausentar qualquer
figura humana, passou a relacionar-se também com o movimento e a presença
física. Mnémosyne  regressa a essa convergência e liga-a com um laço mais fino mas
igualmente inacabado.
Tal como ficou inacabado o Mnemosyne Atlas  do historiador de arte alemão Aby Warburg. É
precisamente daí que vem o título desta exposição / performance, dessa tentativa de
mapeamento de “vida posterior” de obras da Antiguidade e da “dimensão simbólica,
intelectual e emocional” que tais imagens adquirem ao reemergirem na arte europeia. No
fundo, como o passado se infiltra na criação presente. Ou como Josef Nadj não consegue
deixar de carregar todo esse lastro de referências e conflitos históricos de cada vez que cria
uma nova peça. Talvez por isso, afinal, o encontremos agora com um ar tão cansado, à entrada
do Musée des Beaux Arts de Lyon, quando puxa de um cigarro, ganhando fôlego para receber
a primeira pergunta. “Podemos começar?”. “Vamos a isso”, suspira Nadj.

https://www.publico.pt/2019/01/11/culturaipsilon/noticia/josef-nadj-quer-mostrarnos-existe-
olhar-1857039
Josef Nadj: de Beckett a Kafka
A obra do coreógrafo, com a linguagem dos clowns, da mímica e das marionetas,
encontra-se pejada de referências literárias. Tendo criado a partir de Büchner ou
Borges, a presença de Beckett e Kafka estende-se a muitas das suas
criações.Gonçalo Frota 11 de Janeiro de 2019,

Foto
Les Corbeaux (2010), espécie de romance fantasiado com a sua aldeia, Kanjiza, na Voivodina, enclave de língua húngara
plantado em território sérvio

Josef Nadj chegou a Paris em 1980 e no seu corpo levava a prática de artes marciais na
sua terra natal, Kanjiza (na actual Sérvia), e a formação em Belas Artes prosseguida em
Budapeste. Não sabendo exactamente o que fazer a esses primeiros alicerces ainda
frágeis, foi em busca de outras linguagens, passou pela escola de mímica Etienne-
Decroux e teve aulas com Marcel Marceau, referência fundamental dessa expressão.
Aos poucos, intui que o seu percurso terá de passar pela dança contemporânea e torna-
se intérprete de peças de Mark Tompkins, Catherine Diverrès ou François Verret.

Se é aí que estabelece a espinha dorsal da criação que começará a desenhar a partir da


estreia de Canard Pékinois, em 1987, afirmando uma linguagem coreográfica singular,
não tardará a abastecer-se das mais variadas referências literárias, cruzando-as
poeticamente com memórias da sua terra natal e com reflexões veladas sobre a História
europeia. Otto Tolnai, Gyula Kodolani ou George Büchner atravessam-se na sua
abordagem ao movimento, no caso deste último por via de uma leitura muito livre de
Woyzeck em Woyzeck ou l’Ébauche du Vertige (1994). Referindo-se ao texto de
Büchner como “um enigma colocado” há muito no seu caminho, Nadj explorava então
os quatro rascunhos deixados pelo dramaturgo alemão antes da sua morte aos 23 anos
que, apesar dessa condição pouco final, se tornaram uma peça fundamental do
reportório teatral contemporâneo. Do material inacabado, e respeitando a natureza dos
escritos de Büchner, Nadj faria uma matéria dançada fragmentária.

Ainda assim, seriam as obras de Kafka e de Beckett a revelar-se de forma mais


persistente no seu trajecto. Mesmo ao partir da obra da escritora húngara Géza Csáth
para criar Comedia Tempo (1990), o elenco de figuras masculinas imprecisas de fato e
chapéu pretos parecia saído directamente de um ensaio de À Espera de Godot. Mas a
claríssima marca desse universo chegará depois de passar também pela obra do escritor
argentino Jorge Luis Borges em Les Commentaires d’Hababuc (1996), com a sua
homenagem para oito intérpretes a Beckett, intitulada Le Vent dans le Sac (1997).
Voltava a Vladimir e Estragon, de Godot, mas evocava também a presença de Winnie,
de Dias Felizes, graças a uma actriz enfiada num vaporoso vestido a lembrar a prisão de
areia (do quotidiano) que soterra a personagem.

Sobre Le Vent dans le Sac, escrevia-se então que as personagens “esgotam o seu tempo
com acções absurdas e proezas inúteis”, sendo descritos como elementos da sintaxe
beckettiana “sacos de juta, uma árvore ou figurinos pretos”. À Folha de São Paulo, Nadj
afirmava, em entrevista, que a leitura de Divina Comédia de Dante fez também parte da
preparação de autor e elenco para a peça (sabendo da admiração de Beckett pelo livro
de Dante), frisando que o autor irlandês “tinha certas angústias na sua vida e na sua
obra que não tentamos contornar”. “Tentamos desenhar as figuras de palhaços de
Beckett, coloridas com humor negro e com a angústia diante do ser, do tempo, do lugar
e do destino do homem”.

É sobretudo tudo quanto diz respeito a uma presença desorientada, deslocada e


mergulhada em memórias distantes e fugidias dos intérpretes que Nadj se relaciona
com peças como Godot, Dias Felizes ou Fim de Partida, parecendo largar as
personagens num espaço que não existe, um lugar sem cabimento no mundo. “É a
clareza das palavras, essa qualidade de Beckett se exprimir para se dirigir ao nada, ao
quase nada, ou às coisas insignificantes”, é isso que lhe interessa, esclarece Nadj
questionado pelo Ípsilon. “Acaba por abrir outros espaços de reflexão e a exigência da
escrita mantêm-se sempre até chegar à negação da palavra. Beckett vai até aqui.”

Essa “negação da palavra”, que encontramos nos vários Actos sem Palavras do autor
irlandês, relaciona-se também com a linguagem dos clowns, da mímica e até das
marionetas que tanto seduzem Josef Nadj – e que são também a direcção para onde se
encaminha a criação de pequenas formas que tomou conta da sua obra mais recente.
Daí que seja fácil encontrar vestígios do universo beckettiano em Paysage Inconnu
(2014) ou em Mnémosyne (2018) – a exposição / performance que agora ocupa o
Mosteiro São Bento da Vitória, no Porto –, nos ambientes criados mas também na
absoluta meticulosidade da sua interpretação.

Depois de Beckett inspirar Le Vent dans le Sac, Josef Nadj virou-se para outra das suas
maiores referências literárias (que considera quase omnipresente), o checo Franz
Kafka. Les Veilleurs (1998) era então uma coreografia inscrita num “universo negro,
mecânico onde os elementos do cenário e os homens de chapéu preto entram uns pelos
outros, como se os objectos ganhassem alma ou como se os humanos se tornassem
objecto”. Em Mnémosyne, também os objectos parecem vivos e os seres esvaídos de
vida adquirem a qualidade dos objectos. No fundo, o diálogo de Nadj com a literatura é
ininterrupto. Nalguns momentos, acontece simplesmente que a influência aparece sob
a forma de homenagem oficial. Nos outros, há que sujar um pouco as mãos e descobrir
onde se colam as recorrentes figuras e os constantes ambientes “roubados” à literatura.

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