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I – INTRODUÇÃO
“Os homens são criadores de sentido e seus intérpretes, sendo os códigos de sentido que
dão significado às nossas acções e nos permitem conferir sentido às acções dos outros” (Lopes da Silva, 2002).
II – A NOÇÃO DE CULTURA
“A Cultura não se decreta, não se manipula como uma ferramenta habitual, uma
1
Relatório do Parlamento Europeu sobre as indústrias culturais na Europa (2007/2153 (INI)), Consideração A.
vez que releva de processos extremamente complexos e, na maior parte dos casos, inconscientes” (Cuche, 2004).
Em muitos dos debates e questões relativas ao sector cultural surgem, não raro, as noções de
Cultura Popular e Cultura de Elite, no âmbito das quais duas teses basilares se jogam:
Figura 1 - Concepts of Culture and its Importance to the Individual/ Associations with ‘Culture’
“Nesta sociedade de massa os próprios cidadãos tendem a diluir-se nela. A moda por exemplo exerce um poder
homogeneizante irresistível, poucos se atrevem a usar uma gravata que não tenha a cor do momento” (Lopes da
Silva, 2002).
Compreender as representações de Cultura junto dos cidadãos, qualquer que seja o seu
enquadramento – local, nacional, europeu, internacional – implica compreender o contexto
em que se encontram, designadamente os efeitos deste sobre as dinâmicas sociais sobre a
oferta cultural ao qual se encontram expostos. Neste sentido, a primeira nota prende-se com o
contexto político-económico da transição entre os séculos XIX e XX, designadamente o
processo de industrialização capitalista do final do séc. XIX, com consequente reconversão
dos modos de produção – ao nível da divisão do trabalho, da sua padronização e serialização –
e centralização dos mecanismos de decisão política e económica.
A par destes processos de natureza político-económica, diversos desenvolvimentos técnicos se
verificam neste período inter-secular, em particular o aumento do ritmo de inovação
tecnológica – tornado possível pelo aprofundamento do paradigma cientifico racional
Moderno – e a extensão e complexificação das redes de transportes que deles resultaram.
Intimamente articulada com estas duas dimensões, também a esfera social conhece dinâmicas
de transformação consideráveis, nomeadamente de êxodo rural e urbanização crescente, com
aumento da densidade populacional e aparente indiferenciação social, traduzidas para alguns
autores num processo de enfraquecimento das formas de coesão social que torna possível a
emergência da chamada sociedade de "massa" (Cuche, 2004)
Na sequências destes fenómenos, vários são os sectores e actividades transformadas,
destacando-se neste particular as que se prendem com a esfera cultural, designadamente a
Imprensa, o Cinema, a Rádio e, mais tarde, a Televisão, aos quais cabe a partir desse
momento a satisfação da procura e das necessidades culturais de grandes aglomerados
populacionais concentrados em espaços urbanos: numa expressão, é sobre estas empresas que
recai a responsabilidade de satisfazer – quando não de aproveitar para suscitar – a procura de
uma Cultura de Massa (Williams, 1992).
Em 1947, Adorno e Horkheimer substituem o conceito “Cultura de Massas” por “Indústrias
Culturais”, afirmando que o Cinema e a Rádio não constituíam uma Arte mas antes uma
Indústria, movida pelos mesmos princípios lucrativos e dedicada à mesma fabricação
padronizada de qualquer outra indústria: como atesta Adorno “os produtos são fabricados
mais ou menos segundo um plano, talhados para o consumo das massas e, em larga medida,
determinando eles próprios esse consumo” (2003). Na sequência deste processo de
industrialização, o sector passa a referir o “conjunto de empresas e instituições cuja principal
actividade económica é a produção de Cultura, com fins lucrativos e mercantis”, baseada na
divisão de tarefas e não na criatividade cultural, gerando uma oposição entre o que o bem
cultural, único e irrepetível, dotado de aura, ligado à noção de “Arte”, e os efeitos da
industrialização de determinadas áreas da Cultura (Castro Lima, 2007).
A partir da década de 60, uma nova perspectiva relativa às Indústrias Culturais aborda a
caracterização das mercadorias culturais: segundo Miège, embora cada produto cultural seja a
reprodução de um protótipo cujo lucro depende da geração e aproveitamento de economias de
escala, subsistem “mercados de raridades”, razão pela qual a industrialização da Cultura não
conduz invariavelmente à massificação, sem lugar à particularidade: o mercado satisfará,
assim, diferentes nichos culturais, produzindo para tal bens culturais distintos (2000).
Não existem dúvidas de que as Indústrias Culturais têm constituído o território da exploração
económica e empresarial da Cultura, algo que o crescimento exponencial de alguns dos
sectores atesta: como afirma Bentley, “se há cem anos menos de 10% das pessoas
trabalhavam no sector Cultural da Economia, em 1950, este percentual subiu para 15%. Nas
duas últimas décadas, houve uma explosão e, actualmente, cerca de 30% dos trabalhadores
das nações industriais avançadas encontram-se no sector cultural” (2004).
Várias são as razões apontadas para o fomento desta realidade: “prosperidade crescente do
Hemisfério Norte; aumento do tempo de lazer; crescimento dos níveis de alfabetização;
ligações entre os novos media de televisão e as novas preferências dos consumidores; e a
importância crescente dos equipamentos culturais (televisão, videocassete e computadores
pessoais) para os consumidores de bens industriais” (Hesmondhalgh e Pratt, 2005). Já no
final do séc. XX, outros factores instigaram o aumento da procura do lucro através dos
mercados culturais, tais como a abertura do mercado a grandes sectores da indústria cultural, a
sua constante e crescente desregulamentação, e a propagação de uma óptica de consumismo
(Morais Soares, 1999). Deste modo, o termo das políticas totalitárias e a posterior
implantação de regimes económicos liberais incentivaram a concorrência. Mas terá a
preocupação económica e tecnológica sido acompanhada da necessária atenção ao acesso,
educação e formação cultural dos cidadãos? Com efeito,
“os serviços de comunicação social audiovisual são, simultaneamente, serviços culturais e serviços económicos.
A importância crescente de que se revestem para as sociedades (…) garantindo designadamente a liberdade de
informação, a diversidade de opiniões e o pluralismo dos meios de comunicação social, a educação e a Cultura,
justifica a aplicação de regras específicas”2.
2
Directiva 2007/65/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, pág. 27.
É relativamente consensual que muitas das Indústrias Culturais parecem olhar para os bens
que produzem e transaccionam como se de quaisquer outros produtos se tratasse, investindo
no que gera lucro garantido e evitando projectos tidos por arriscados, dado não encaixarem no
modelo vigente de sucesso: neste âmbito Bustamante salienta a questão do elevado risco
financeiro envolvido na actividade das Indústrias Culturais, decorrente dos elevados custos de
produção e distribuição dos bens envolvidos (2002). O resultado é previsível: o investidor
pretenderá sempre o menor risco possível, apostando mais no mesmo e conduzindo a uma
maior massificação e inerente homogeneização da oferta.
A concorrência no mercado das Indústrias Culturais conduziu, como em tantos outros, a
dinâmicas de concentração económica, ainda que os efeitos destas não sejam os mesmos em
todas as áreas culturais – a título de exemplo, parecem não existir sociedades comerciais da
mesma envergadura no mundo da Pintura quanto as que operam no universo da Televisão.
Mas não será este fenómeno o fruto do facto de a primeira ser menos susceptível de suscitar a
obtenção de lucro fácil e imediato?
Os efeitos da conjuntura actual de Globalização não se fazem sentir apenas nas grandes
esferas: como afirma Giddens, “não é apenas mais uma coisa que ‘anda por aí’, remota e
afastada do indivíduo. É também um fenómeno ‘interior’, que influencia aspectos íntimos e
pessoais das nossas vidas” (2002). A questão reside em saber se orientará o cidadão para uma
Cultura global ou antes para uma maior e mais díspar oferta cultural, quer na sua quantidade,
quer na sua qualidade: mesmo reconhecendo que a introdução do novo produto cultural não
apaga o antigo, criando aquilo que apelida de “alternativas híbridas”, típicas das sociedades
multiculturais, Hall considera
“difícil negar que o crescimento das gigantes transnacionais das comunicações, tais como a CNN, a Time
Warner e a News International tende a favorecer a transmissão para o mundo de um conjunto de produtos
culturais standardizados, utilizando tecnologias ocidentais padronizadas, apagando as particularidades e
diferenças locais e produzindo, em seu lugar, uma ‘Cultura mundial’ homogeneizada, ocidentalizada” (1997).
“acrescentam às obras intelectuais uma mais-valia de carácter económico e que geram simultaneamente
valores novos para os indivíduos e para as sociedades (…) [incluindo] as indústrias tradicionais – como o
Cinema, a Música e a edição –, os Meios de Comunicação Social, e as indústrias do sector criativo (Moda,
Design), do Turismo, das Artes e da Informação”3.
Uma vez que a Cultura constitui o quadro de referência que confere sentido à experiência
humana, é absolutamente decisivo atender ao papel de (in)formação e educação da sociedade
desempenhado pelas Indústrias Culturais, o qual deve incluir o maior número de temas
3
Relatório do Parlamento Europeu sobre as indústrias culturais na Europa (2007/2153 (INI)), Consideração C.
possíveis nas matérias apresentadas, sem menosprezar qualquer raça, classe, género ou
preferências ideológicas. Deve pretender-se, pois, que as várias culturas, na sua acepção
inclusiva particularista, sejam representadas com igual justiça.
Mas não apenas os temas veiculados verificam a existência de pluralismo: o seu conteúdo e a
forma de os apresentar também se tornam extremamente relevante: de nada valerá a
abordagem de questões ligadas a minorias se as representarmos sempre de modo negativo ou
menor. O pluralismo cultural pressupõe a oportunidade de inclusão de tudo e todos, sob
diferentes formas, num constante combate à hierarquização da visibilidade – logo, da
igualdade de acesso à Cultura. Na ausência de igual volume de investimento publicitário em
eventos culturais de natureza popular e erudita, com diferentes níveis de visibilidade
mediática, estarão os cidadãos igualmente despertos para ambos, ou estará o acesso cindido
entre o vendável (e, como tal, ciclicamente vendável) e o eternamente secundarizado?
Adorno e Horkeimer apontavam ao mercado uma acção segundo uma lógica de dominação: a
transformação do cidadão em mero consumidor, alienado pelas lógicas próprias de
(r)estruturação social mas também pela natureza da oferta de conteúdos culturais das grandes
empresas (1947). Outros partidários da Teoria Crítica e de uma concepção da massificação
enquanto vector de empobrecimento cultural defendem que a visão puramente económica
deste sector não só reproduz a desigualdade existente como a promove, uma vez que a
concentração económica e a tendência para reproduzir o que já se mostrou rentável dará voz a
um sector preferencial da sociedade, atendendo mais às suas predilecções (Croteau, 2005).
Mesmo atendendo a heterogeneidade de entendimentos do conceito Indústrias Culturais –
uma vez que o mercado preferencial da música popular não será o mesmo da literatura erudita
–, assistimos dentro de cada um a défice democrático na disponibilização dos produtos
culturais: apontados para um público-alvo que garanta fluxos bem sucedidos de consumo, a
apresentação equitativa de alternativas é, geralmente, esquecida pelos oligopólios.
Croteau alerta para a responsabilidade social das Indústrias Culturais, agentes activos da
Democracia, no incentivo da participação cívica e fomento da elevação das literacias dos
cidadãos: recorda a propósito dos conteúdos dos Mass Media que o entretenimento light
suplanta cada vez mais a informação substantiva, os media de educação e as apresentações
culturais – ou seja, conteúdos essenciais para os processos democráticos (2005).
Todas estas mutações são consideradas contrárias à promoção da Cidadania e do
envolvimento democrático através da Cultura. Mas uma vez mais, esta visão é normalmente
contestada por todos quantos defendem o chamado Modelo de Mercado (Croteau, 2005). Para
os subscritores deste modelo, a única forma de obstar à “ditadura da Cultura elitista” consiste
no livre jogo da concorrência, onde não existe Cultura “boa” e Cultura “má”, no qual Cultura
Popular ou de Elite terão as mesmas oportunidades desde que iguais sejam os seus suportes
financeiros. Sabemos, contudo, não ser esta a realidade das Indústrias Culturais
contemporâneas: a “Cultura boa” será a rentável, a “má” a não vendável; não teremos critérios
elitistas a determiná-lo, mas sim critérios económicos; e não poderá ser sustentado que tal
representa a procura – logo, o resultado da procura democrática do público. Se o acesso à
Cultura se reduz ao que, após uma filtragem económica, é colocado no mercado, como
poderemos advogar a existência de uma oferta plural e de uma escolha informada?
Ainda que seja possível debater o grau de homogeneização cultural e a maior ou menor
capacidade dos públicos para alterar o status quo, é indesmentível a lógica de reprodução
associada à actividade das Indústrias Culturais: assistimos cada vez mais a uma produção
voltada para uma lógica de mercado em que “não só os produtos culturais, distribuídos em
grande número (…) são marcados por essas condições industriais de produção e de
marketing, como também todo o processo de criação cultural é profundamente marcado pela
lógica do lucro” (Breton e Proulx, 1989).
Ora, o sector das Indústrias Culturais não pode ser olhado como mero produtor de bens a
transaccionar: como bem aponta Castro Lima, existe uma incontornável dimensão simbólica,
pelo que ambas as realidades devem ser consideradas aquando da formulação de políticas
públicas nesta área (2007). Neste sentido, devemos incluir todas as particularidades culturais,
negando a ideia de uma Cultura única ou de Massas: a Cultura universal verdadeiramente rica
e enriquecedora da Cidadania passa obrigatoriamente pela inclusão do particular.
Podemos elencar quatro das áreas que muitos têm por essenciais para a alteração da
predominância do valor económico da Cultura ante o seu valor simbólico: a regulação do
sector, o serviço público de media, o apoio estatal e o fomento da literacia cultural.
4
Declarações de Azeredo Lopes: http://www.publico.pt/Media/presidente-da-erc-acusa-servico-publico-de-
televisao-de-imitar-a-concorrencia-privada_1434853
publicitárias em absoluto56. Deste modo, apenas funcionando fora da “lógica de mercado” se
torna possível zelar, incondicionalmente, pelo Serviço Público.
c) O apoio à Cultura
As políticas públicas devem, de igual forma, direccionar-se no sentido do apoio às áreas
culturais que não se apresentem como nichos de lucro imediato. Falamos daquilo que Teixeira
Coelho apelida de políticas relativas à Cultura alheia ao mercado: aquelas que representam os
modos culturais que não se inserem no mercado tal como é caracterizado (1997).
Ao tenderem para a homogeneização, as Indústrias Culturais menosprezam determinados
sectores, como o do Teatro. Em alguns casos, práticas culturais tidas como marginais são
elevadas ao patamar das demais, recaindo sobre elas iguais atenções, quer por parte dos
agentes económicos, quer, consequentemente, no que se refere ao público em geral: é o caso
dos blues ou do hip-hop. Mas esperar por esta possibilidade sem a impulsionar de forma
directa parece insuficiente para todos aqueles que, munidos de meios e plataformas e da
obrigação de uma democratização cultural, devem zelar pela integração dos cidadãos.
A existência de programas estatais e municipais que cubram diversos sectores e géneros, o
cumprimento da Lei da Televisão e da Rádio e, em especial, a existência de verdadeiro
Serviço Público ao nível dos media parecem ser os primeiros instrumentos a utilizar para que
se cumpra uma verdadeira intervenção cultural em Portugal. Claro que o incentivo público ao
mecenato privado (nomeadamente através de deduções fiscais) relativo a áreas normalmente
esquecidas, apresentadas sob formas inovadoras que rompam com estereótipos culturais,
também constitui uma forma de alterar a situação actual. Todos estes exemplos poderiam ser
aprofundados, e outros deveriam ser apresentados, mas o limite da dimensão deste trabalho
impede nesta fase esse enriquecimento empírico.
d) A literacia cultural
Estudos demonstram que apenas classes literadas acedem a determinados sectores da
sociedade – o que reforça a ideia de muitos autores da Escola de Frankfurt, segundo os quais
o actual sistema incentiva a distinção de classes, como outrora acontecia com as elites de
corte. Schiller acredita que o “information gap” apenas reproduz as desigualdades classistas
já existentes, reflectindo a
5
É o caso de Espanha: em 2010, a TVE deixou de ser financeiramente suportada pela publicidade
http://www.publico.pt/Media/televisao-publica-espanhola-entra-em-2010-sem-publicidade_1415849
6
É também o caso de França: existindo já uma redução dos horários em que os spots publicitários poderão ser
apresentados, Sarkozi anunciou a supressão de toda a publicidade nos canais televisivos de Serviço Público até
2012 http://www.euractiv.com/en/infosociety/eu-reviews-public-tv-funding-france-abolishes-ads/article-178302
“existência de um grupo de privilegiados económica e educacionalmente, com acesso a meios e a fontes de
informação sofisticados, em contraponto a uma imensa maioria que continua a poder aceder apenas a
informação de fraco valor, ao “infolixo” e ao entretenimento de massa, de produção barata e apelativa”
(Morais Soares, 1999),
VIII – Bibliografia
Autores:
7
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