Вы находитесь на странице: 1из 228

ANTROPOS

CG
o

As Confissões da Carne c o quarto c Liltimo volume da


Jlistaria da Sexualidade, obra cm que Michel l-oiicault sc
propôs a estudar a sexualidade humana desde a Aiiriguidade
clássica até aos primeiros séculos do cristianismo.
A elaboração definitiva de As Confissões da Carne, de
acordo com Frédéric Gros, responsável pela edição, pode
situar-se em 1981 e 1982. O livro foi editado em 2018,
LU
quando os herdeiros de Foucault consideraram reunidas as Q
HISTÓRIADASEXUALIDADE-IV
condições para a publicação do inédito, que concluía a <
Q
análise de A Vontade de Saber, O Uso dos Prazeres e O Cui- _i
dado de Si. < AS CONFISSÕES DA CARNE
O livro tem três partes. A primeira aborda os temas X
LU
"Criação, procriação", "(^ baptismo laborioso", "A segunda CO
penitência" e "A arte das artes"; a segunda, a "Virgindade e
< michel foucault
continência" "Das artes da virgindade" e "Virgindade e
Edição estabelecida por Frédéric Gros
conhecimento de si"; e a terceira, "O dever dos esposos" <
cc
"O bem e os bens do casamento" e "A libidinização do sexo". o
CO

ISBN 978-989-641-902-8

9 789896 419028

RELÓGIO D'ÁGUA RELÓGIO D'ÁGUA


História da Sexualidade I V

As Confissões da Carne
Michel Foucault

História da Sexualidade IV

Confissões da Carne
Relógio D'Água Editores
Rua Sylvio Rebelo, n.° 15 Edição estabelecida por
1000-282 Lisboa Frédéric Gros
tel.: 218 474 450
relogiodagua@relogiodagua.pt
www.relogiodagua.pt
Tradução de
Miguel Serras Pereira,
© Éditions Gallimard, Paris, 2018

Título: História da Sexualidade I V — As Confissões da Carne


Título original: Les aveux de la chair (Histoire de la sexualité. Vol. IV) (2018)
Autor: Michel Foucault
Edição estabelecida por Frédéric Gros
Tradução: Miguel Serras Pereira
Revisão de texto: Isabel Castro Silva
Capa: Carlos César Vasconcelos (www.cvasconcelos.com)
sobre fotografia do autor

© Relógio D Á g u a Editores, Fevereiro de 2019

Encomende os seus livros em:


www.relogiodagua.pt

ISBN 978-989-641-902-8

Composição e paginação: Relógio D'Água Editores


Impressão: Europress, Lda.
Depósito Legal n,°: 451624/19 Antropos
Advertência'

E m 1976, Michel Foucault publica — sob o título La volonté de


savoir^ — o primeiro tomo de uma Histoire de la sexualité cuja
contracapa anuncia uma próxima continuação em cinco volumes,
respectivamente intitulados: 2. La chair et le corps; 3. La croisade
des enfants; 4. Lafemme, la mère et Vhystérique; 5. Les pervers; 6.
Populations et races'. Nenhuma destas obras chegará a aparecer. Os
arquivos Foucault^ depositados na Bibliothèque nationale de France
(Département des manuscrits) dão a conhecer, contudo, que pelo
menos dois títulos {La chair et le corps^ e La croisade des enfants'')
tinham sido objecto de uma primeira redacção importante.

1 A presente tradução segue o texto editado por Frédéric Gros e mantém,


transpondo-os, os critérios por ele referidos na sua Advertência — tendo presente
a sua opção de fundo: "O nosso trabalho limitou-se ao estabelecimento do tex-
to." Assim, evitou-se tanto quanto possível a "sobretradução" ou a "correcção" na
versão portuguesa das asperezas, desvios das formas consagradas, concordâncias
aproximativas, etc, que a edição francesa contém, conservando as características
da redacção provisória de Michel Foucault. (N. T.)
2 Paris, Gallimard, "Bibliothèque des Histoires", 1976. [Tradução portuguesa de
Pedro Tamen: Michel Foucault, A Vontade de Saber, Lisboa, Relógio D'Agua,
1998. (N. m
3 Ou seja: A Carne e o Corpo; A Cruzada das Crianças; A Mulher, a Mãe e a His-
térica; Os Perversos; População e Raças. (N. T.)
4 Estamos a falar de quarenta mil folhas incluindo os manuscritos preparatórios
(cursos, conferências, artigos, etc), bem como as notas de leitura de Michel Fou-
cault. Estes papéis repartem-se por uma centena de caixas na cota N A F 28730.
5 Caixas L X X X V I I a L X X X I X .
6 Caixas X L I V e L I .
8 Advertência As Confissões da Carne 9

E m 1984, pouco antes da morte de Michel Foucault, são publi- Clássica até aos primeiros séculos do cristianismo. E a sua dis-
cados os tomos I I e I i r desta História da Sexualidade iniciada tribuição por três volumes, que formam um todo:
oito anos antes^ mas cujo conteúdo se afasta muito do projecto — O Uso dos Prazeres estuda de que maneira o comportamen-
inicial, como anunciam ao mesmo tempo o capítulo "Modifica- to sexual foi reflectido pelo pensamento grego clássico [...]. De
ções" de O Uso dos Prazeres ("Esta série de investigações aparece que maneira também o pensamento médico e filosófico elaborou
mais tarde do que eu previra e sob uma forma completamente di- esse "uso dos prazeres" — khrésis aphrodisión — e formulou
ferente..."') e o "prospecto" que acompanhou os volumes no mo- alguns temas de austeridade que se tornariam recorrentes em qua-
mento da sua publicação. O propósito de estudar o dispositivo tro grandes eixos da experiência: a relação com p corpo, a relação
biopolítico moderno da sexualidade (séculos xvi-xix) — parcial- com a esposa, a relação com os rapazes e a relação com a verdade.
mente abordado nos cursos do Collège de France — foi abandona- — O Cuidado de Si analisa esta problematização nos textos
do em proveito da problematização — através da releitura dos filó- gregos e latinos nos dois primeiros séculos da nossa era, e a
sofos, médicos, oradores, etc, da Antiguidade Greco-Romana — inflexão que sofre numa arte de viver dominada pela preocupa-
do prazer sexual na perspectiva histórica de uma genealogia do ção de si mesmo.
sujeito de desejo e sob ó horizonte conceptual das artes de existên- — As Confissões da Carne abordarão por fim a experiência da
cia. O tomo IV, consagrado à problematização da carne pelos Pa- carne nos primeiros séculos do cristianismo, e o papel que aí de-
dres da Igreja dos primeiros séculos (de Justino a Santo Agostinho), sempenham a heemenêutica*© a decifração pTOficadora>do desejo.
inscreve-se no prolongamento desta nova História da Sexualidade,
desfasada numa boa dezena de séculos em relação ao projecto ini- A génese deste último opus é complexa. Devemos lembrar que
cial e descobrindo o seu ponto de gravitação na constituição de na História da Sexualidade, no seu programa inicial, as práticas e
uma ética do sujeito. O "prospecto" de 1984 conclui como se segue: as doutrinas cristãs de confissão da carne deveriam ser objecto de
um exame histórico num volume intitulado A Carne e o Corpo^°.
De onde, por fim, um recentramento geral deste vasto estudo Tratava-se então de estudar "a evolução da pastoral católica e do
sobre a genealogia do homem do desejo, desde a Antiguidade sacramento da penitência depois do Concílio de Trento"". Um
primeiro balanço destas investigações fora apresentado por ocasião
7 L'usage des plaisirs e Le souci de soi, cuja impressão se conclui respectivamente a da lição de 19 de Fevereiro de 1975 no Collège de France'^ E m
12 de Abril e a 30 de Maio de 1984. Daniel Defert indica na sua "Chronologie" que
breve, todavia, Foucault decide remontar mais longe no tempo para
Pierre Nora leva a 20 de Junho a Michel Foucault, hospitalizado na Salpêtrière (onde
morrerá a 25), um exemplar de Le souci de soi (Michel Foucauh, (Euvres, edição retomar, na história cristã, o ponto de origem, o momento de emer-
estabelecida sob a direcção de Frédéric Gros, Paris, Gallimard, "Bibliothèque de la
Plêiade", 2015,1.1, p. X X X V I I I ) . [Traduções portuguesas de Manuel Alberto: O Uso
dos Prazeres, Lisboa, Relógio D'Água, 1998, e O Cuidado de Si, idem, 1998. (N. T.)] 10 M . Senellart, na notícia de La Volonté de savoir, faz-nos saber que Foucault en-
8 Não se pode falar, no entanto, de "vazio editorial": além do grande número de carara, de resto, dar por título a esse volume consagrado à penitência cristã moder-
artigos publicados entre 1976 e 1984 (reproduzidos em Dits et écrits, edição esta- na: Les Aveux de la chair [As Confissões da Carne (N. T.)] {OEuvres, t. I I , p. 1504).
belecida por Daniel Defert e François Ewald, Paris, Gallimard, "Bibliothèque des 11 Ibid., p. 627. Foucault adoptava já nessas primeiras investigações um recuo
Sciences humaines", 1994,4 vols.; reedição, colecção "Quarto", 2001,2 vols.), po- histórico importante a fim de medir a amplitude das transformações em causa,
de mencionar-se a edição das memórias de um "pseudo-hermafrodita" (Herculine remontando aos séculos xii-xiii (e citando, por exemplo, ó Concílio de Latrão de
Barbin, dite Alexina B., Paris, Gallimard, "Les vies parallèles", 1978) e Le désor- 1215 que regulamenta o sacramento da penitência).
dre desfamilles (Paris, Gallimard, "Archives", 1982) composto com Arlette Farge. 12 Les anormaux, edição de V. Marchetti e A . Solomoni, Paris, Gallimard, L e
9 Uusage des plaisirs, (Euvres, t. I I , pp. 739-748. Seuil, "Hautes Études", 1999, pp. 155-186.
10 Advertência As Confissões da Carne 11

gência de uma obrigação ritualizada de verdade^ de juma injunção mesmo ano, nos Estados Unidos, dá, na Universidade da Califórnia
de verbalização pelo sujeito de um dizer a verdade..sobre.si mesmo. (Berkeley) e no Darmouth College, duas conferências expondo na
É assim que, a partir dos anos 1976-1977, acumula um certo núme- sua grande generalidade conceptual estes mesmos ternas'^, e sobre-
ro de notas de leitura sobre Tertuliano, Cassiano, etc." Daniel De- tudo no quadro de um seminário em Nova Iorque com Richard
fert escreve a propósito do mês de Agosto de 1977: "Foucault está Sen nctt, apresenta, de maneira sem dúvida ainda esquemática, mui-
em Vendeuvre. Escreve sobre os Padres da Igreja e decide deslocar •'tã-s das articulações do que virão a ser As Confissões da Carné^.
nalguns séculos a sua história da sexualidade.'"" No quadro de um Encontramos, com efeito, nesse seminário desenvolvimentos sobre a
estudo sobre as "governamentalidades" no Collège de France ( l i - doutrina do casamento de Clemente de Alexandria, sobre a arte cris-
ções de 15 e 22 de Fevereiro de 1978'^), utiliza estas primeiras tã da virgindade (a sua evolução de São Cipriano a Basílio de Ancira,
leituras dos Padres para caracterizar o momento cristão da "gover- passando por Método de Olimpos), bem como o exame do sentido
namentalidade pastoral'"*: "actos de verdade" (dizer a verdade so- fundamental que toma para a nossa cultura, com Santo Agostinho, o
bre si mesmo) articulados em práticas de obediência. Estes resulta- conceito de libido — após a queda e no casamento^'. Pode pois dizer-
dos serão retomados e sintetizados no mês de Outubro de 1979 -se que, desde finais do ano de 1980, Foucault tem não só a intuição
para alimentar a primeira das duas conferências propostas no forte da arquitectura e das teses principais de As Confissões da Car-
quadro das Tanner Lectures na Universidade de Stanford'^. ne, como cumpriu já um trabalho importante de investigação das
O ano de 1980 constitui um momento decisivo da continuação das fontes, pelo menos no que se refere ao estudo dos rituais de penitên-
investigações que conduzem à escrita do manuscrito das Confissões. cia e dos princípios da direcção monástica.
Michel Foucault apresenta no Collège de France, nos meses de Feve- Podemos situar nos anos de 1981 e 1982 o momento da redac-
reiro e Março de 1980 — sem indicar nunca que ela tem o seu lugar ção definitiva do texto das Confissões. Para um número da revis-
numa história da sexualidade —, uma série de recolhas de dados ta Communications^'^, Foucault dá a ler em Maio de 1982 aquilo
históricos precisas e documentadas relativas às obrigações cristãs de que apresenta como "um extracto do terceiro volume da História
verdade na preparação do baptismo, os ritos de penitência e a direc- da Sexualidade"^^. No entanto, paralelamente, nos seus cursos no
ção monástica entre os séculos ii e iv da nossa era'^ No Outono do
19 Cf. a sua edição em Uorigine de 1'herméneutique de soi, edição de H.-P. Fru-
chaud e D . Lorenzini, Paris, Vrin, 2013.
13 Notas que se encontram na caixa X X I I . 20 O manuscrito destas conferências encontra-se na caixa X L . Agradeço a H.-P.
'14 "Chronologie", in M . Foucault, (Euvres, t. I I , p. X X V I . Fruchaud ter-me confiado a sua transcrição pessoal deste seminário que marca uma
15 Sécurité, territoire, population, edição de M . Senellart, Paris, Gallimard, L e etapa decisiva na elaboração de Confissões da Carne.
Seuil, "Hautes Études", 2004. 21 Encontra-se um momento deste seminário no texto intitulado "Sexuality and
16 Pela qual Foucault entende uma técnica de direcção dos indivíduos em vista da solitude" (publicado na London Review ofBooks, Maio-Junho de 1980, retomado
sua salvação. em Dits et écrits, texto n." 295).
17 As duas conferências serão editadas sob o título "Omnes et singulatim. Vers une 22 "Sexualités occidentales. Contribution à Thistoire et à la sociologie de la sexua-
critique da la raison politique" (cf., sobre este texto, a edição e a apresentação de lité", Maio de 1982, X X X V , coordenação de Ph. Aries e A. Béjin,
M. Senellart, in M . Foucault, (Euvres, t. I I , pp. 1329-1358 e 1634-1636). 23 " L e combat de la chasteté", edição de M . Senellart, in M . Foucault, (Euvres, t.
18 Du gouvernement des vivants, edição de M . Senellart, Paris, Gallimard, Le 11, pp. 1365-1379 e 1644-1648. Foucault "extrai" com este'artigo um capítulo com-
Seuil, "Hautes Études", 2012. O conteúdo destas lições (exceptuadas as primeiras, pleto da segunda parte (tivemos em conta as ligeiras correcções introduzidas por
consagradas a uma leitura do Rei Édipo de Sófocles) será reescrito, mas integral- Foucault no seu texto). E m Abril de 1983, Foucault ainda não encara fazer prece-
mente retomado no manuscrito definitivo. der As Confissões da Carne senão de um só opus consagrado à experiência antiga
12 Advertência As Confissões da Carne 13

Collège de France, Foucault opera de modo cada vez mais maciço de France, já só em termos marginais é evocado, como um sim-
a sua "viragem" antiga. O momento greco-latino, é certo, não ples ponto de fuga^l
fora até então completamente negligenciado, mas, entre 1978 e Pode pois dizer-se, retomando o conjunto do percurso a partir de
1980, encontrava-se reduzido ao papel de um contraponto, precio- A Vontade de Saber (1976), que, desde 1977-1978, o projecto de
so sobretudo para fixar os pontos de irredutibilidade das práticas uma história da sexualidade moderna (séculos xvi-xix) é abandona-
de veridicção e de governamentalidade cristãs (ou seja, as dife- do em proveito, num primeiro tempo (1979-1982), de um recentra-
renças entre: o governo da cidade e a governamentalidade pasto- mento orientado para uma problematização histórica da carne cristã
ral, a direcção da existência nas seitas filosóficas greco-romanas — através dos principais "actos de verdade" (exomologese e exago-
e a praticada nos primeiros mosteiros, o exame de consciência rese), das artes da virgindade e da doutrina do casamento entre os
estóico e cristão, etc). Ora, o que não era um simples contraponto Padres da Igreja dos primeiros séculos —, depois, num segundo
vai tornar-se cada vez mais um objecto de investigação em si tempo (1982-1984), de um descentramento na direcção das artes de
mesmo, consistente e insistente. A tendência manifesta-se a partir viver greco-romanas e do lugar que nelas ocupam os aphrodisia.
de 1981: o curso no Collège de France leccionado nesse ano é É no Outono de 1982 que terão tido lugar a entrega à Gallimard
inteiramente dominado pelas referências antigas (problemas do do manuscrito sobre a carne cristã e a transcrição dactilografada do
casamento e do amor dos rapazes na Antiguidade^'*), enquanto o texttf'. Pierre Nora recorda que nessa ocasião Michel Foucault o
ciclo de conferências dado na Universidade de Lovaina no mês de previne de que, no entanto, a publicação de As Confissões da Carne
Maio tenta ainda preservar um equilíbrio entre as referências não estará para breve, porque ele decidiu, encorajado por Paul Vey-
antigas e cristãs". E m 1982, o estilo propriamente cristão das ne; fazer preceder esse livro que acaba de mandar transcrever por
obrigações de verdade e outras asceses já não aparece no primei- um volume consagrado à experiência greco-latina dos aphrodisia.
ro plano nos seus grandes ciclos de conferências ou seminários A vastidão das investigações que acabamos de mencionar será de tal
além-Atlântico ("Dizer a Verdade sobre Si Mesmo" na Universi- ordem que Foucault desdobrará o seu livro nos dois volumes que
dade de Toronto em Junho^^ "As Técnicas de S i " na Universidade conhecemos: O Uso dos Prazeres e O Cuidado de Si. O trabalho e
de Vermont em Outubrtf^), enquanto, nos seus cursos no Collège a redacção destes dois tomos — enquanto, ao mesmo tempo, lança
ainda, no Collège de France, um novo campo de investigação: o
estudo da parrêsia^° — fá-lo-ão atrasar-se na releitura de As Confis-
dos aphrodisia (sob o título O Uso dos Prazeres). Cf., sobre a história deste texto,
a nossa notícia comum relativa a Vusage des plaisirs e Le souci de soi na edição
sões da Carne e talvez o tenham até desencorajado de encarar a sua
da "Bibliothèque de la Plêiade", in M . Foucault, (Euvres, t. I I , pp. 1529-1542.
24 Subjectivité et vérité, edição de F . Gros, Paris, Gallimard, L e Seuil, "Hautes
Études", 2014. 28 Uhermêneutique du sujet, ed. F . Gros,Paris,Gallimard, Le Seuil, "Hautes Étu-
25 Malfaire, dire vrai. Fonction de 1'aveu en justice, edição de F. Brion e B . Har- des", 2001.
court, Lovaina, Presses universitaires de Louvain, 2012. 29 No dossier conservado por Pierre Nora, que contém a versão dactilografada ori-
26 Dire vrai sur soi-même,ediç&o de H.-P. Fruchaud e D. Lorenzini, Paris, Vrin, 2017. ginal das edições Gallimard, há uma etiqueta colada dizendo: "Outubro de 1982."
27 Texto ["Les techniques de soi" (A^. T.)] retomado em Dits et écrits, edição de D . 30 Le Gouvernement de soi et des autres, ed. F . Gros, Paris, Gallimard, L e Seuil,
Defert e F. Ewald, Paris, Gallimard, 1994, n.° 2 6 3 . 0 mesmo se passa ainda cerca "Hautes Études", 2008; Le Courage de la vérité, ed. F . Gros, Paris, Gallimard, L e
de seis meses mais tarde com a conferência sobre " A Cultura de S i " na Univer- Seuil, "Hautes Études", 2009. Cf. também a série das lições dadas em Berkeley
sidade da Califórnia de Berkeley, em Abril de 1983 (La Culture de soi, ed. H.-P. (Universidade da Califórnia) no Outono de 1983 sobre a parrêsia: Discours et
Fruchaud e D. Lorenzini, Paris, Vrin, 2015). vérité (ed. H.-P. Fruchaud e D . Lorenzini, Paris, Vrin, 2016).
14 Advertência As Confissões da Carne 15

refundição.De Março a Maio de 1984, enquanto se conclui o traba- rios tipos: redigir as notas quando o manuscrito se limita a refe-
lho editorial relativo aos tomos I I e I I I , Foucault retoma, esgotado e renciar uma nota sem conteíído^^; acrescentar notas; completar
gravemente doente, a correcção da transcrição dactilografada de As brancos; rectificar frases gramaticalmente coxas, incorrectas ou
Confissões da Carne. Hospitalizado desde 3 de Junho na sequência comportando erros manifestos; corrigir erros em nomes próprios;
de uma indisposição, morre na Salpêtrière a 25 de Junho de 1984. acrescentar uma tradução às passagens citadas directamente em
Dispusemos assim, para estabelecer esta edição, do manuscrito grego, em latim ou em alemão^*^; acrescentar títulos de capítulo
do punho de Michel Foucault e da sua transcrição dactilografa- quando ausentes". Recorremos, para este trabalho de edição, às
da^'. Esta transcrição dactilografada, estabelecida pelas Éditions caixas de arquivos contendo as notas de leitura do próprio Fou-
Gallimard a partir do manuscrito, e enviada a seguir a Michel cault relativas aos primeiros Padres da Igreja dos primeiros sécu-
Foucault para correcção^^, tem numerosos erros: não pôde ser los'^. A qualidade dos trabalhos de Nfiehêi-Sénêllart^'^ prestou-nos
confiado, por razões de indisponibilidade, à secretária que habi- serviços imensos, bem como a da tese de Philippe Chevalier*".
tualmente dactilografava os seus textos e conhecia bem a sua ca- Agradeço a Daniel Defert e a Henri-Paul Fruchaud a sua releitura
ligrafia. Para estabelecer o texto, recorremos assim prioritaria- paciente e proveitosa do texto. A "bibliografia" final foi preparada
mente ao manuscrito de origem, tendo ao mesmo tempo em conta segundo os princípios da edição de Uusage des plaisirs e de Le
as correcções que Foucault tivera tempo de introduzir na transcri- souci de soi: não retoma, sob a forma de um "índice das Obras
ção dactilografada, pelo menos nas duas primeiras partes do tex-
Citadas", senão as obras mencionadas no corpo do texto. Deve, no
to". Modificámos a pontuação para tornar mais fluente a leitura
do texto, homogeneizámos as modalidades de referenciação e re-
tomámos os códigos de edição estabelecidos para os volumes I I e tido da citação, ou, mais classicamente, com três pontos [ . . . ] , indicando passagens
voluntariamente excluídas.
I I I da Histoire de la sexualité (Uusage des plaisirs, Le souci de
35 No entanto, quando as menções de nota correspondem a proposições demasia-
soi). Verificámos (e corrigimos em disso sendo caso) as citações. do gerais para ser possível determinar o seu conteúdo, indicámos simplesmente:
Os parênteses rectos que aparecem no texto impresso remetem [Nota vazia].
para intervenções da nossa parte^'*. Estas intervenções são de vá- 36 Não acrescentámos, todavia, as traduções quando o texto de Foucault fornecia
indicações suficientes para a compreensão da frase.
37 Quanto aos títulos, optámos pela sobriedade descritiva, excepto talvez no que
31 Esta encontra-se na caixa L X X X I V . Na mesma caixa, além disso, encontra-se se refere ao capítulo " A libidinização do sexo" — mas é o próprio Foucault quem
também uma pasta contendo onze folhas que retomam desenvolvimentos presentes fala, no corpo do texto, de "libidinização do acto sexual". Quanto às subdivisões,
no manuscrito principal. A leitura permite compreender que constituem como que um conservámos as presentes no manuscrito. Os títulos "O baptismo laborioso" e " A
fragmento separado de um conjunto mais vasto (cf. a primeira frase: "Mas esta exclu- arte das artes" são de Foucault. Encontram-se num projecto de plano (caixa X C ,
são deixa lugar..."; e a última: "De qualquer modo, que o pecador seja por si só..."). segunda folha da pasta 1).
32 A transcrição dactilografada conservada no Institut Mémoires de 1'édition con- 38 Encontramo-las principalmente agrupadas nas caixas X X I , X X I I e X X I V .
temporaine (Imec, Caen) não contém as correcções de Foucault. Verifica-se de cada vez, e para o conjunto dos Padres da Igreja, a consideração de
33 Encontram-se ainda algumas raras correcções na terceira parte do texto, mas uma literatura crítica importante, mas também o regresso sistemático aos textos
nem todas são do punho de Foucault. Quando Foucault, que não tinha necessa- de origem (as mais das vezes ou presentes na colecção "Sources chrétiennes" das
riamente diante dos olhos o seu próprio manuscrito, introduz correcções no texto Éditions du Cerf, ou directamente na Patrologie, grega ou latina, de J.-P. Migne).
dactilografado, mas na base de um erro de transcrição, retomámos as mais das 39 Cf. as suas notáveis edições de: Le Gouvernement des Vivants, La Volonté de
vezes a versão inicial. savoir, "Omnes et singulatim. Vers une critique de la pensée politique", «'Iseípora-
34 A excepção dos parênteses rectos que aparecem no interior das citações: reme- • bat de la;chásteté".
tem nesse caso para uma intervenção do próprio Foucault a fim de precisar o sen- 40 P. OievalieT, Michel Foucault et le christianisme, Lyon, E N S Éditions, 2011.
16 Advertência As Confissões da Carne 17

entanto, sublinliar-se que, como demonstram as caixas de arquivo consiste num exame crítico das relações entre "exomologese" e
das notas de leitura de Michel Foucault sobre os Padres da Igreja'*', "exagorese". É um estudo que se inscreve na estrita continuidade
as "obras citadas" representam tão-só uma pequena parte (sobre- dos últimos desenvolvimentos da última parte do texto, mas não
tudo no que se refere aos autores modernos) das referências lidas é possível saber se Foucault escreveu essas páginas e acabou por
e trabalhadas"^. Cumprindo o desejo dos detentores dos direitos de renunciar a incluí-las ou se as redigiu depois de ter dado para
autor, o texto não comporta notas do editor de comentário, de transcrição o seu manuscrito. O Anexo 3 é o aprofundamento de
reenvio interno para a obra de Foucault ou de erudição. O nosso uma anotação que aparece sob uma forma mais condensada no
trabalho limitou-se ao estabelecimento do texto. capítulo I I I ("A Segunda Penitência") da Parte I , a propósito da
Acrescentámos no fim do texto quatro anexos cujo estatuto é maldição de Caim, que estaria ligada sobretudo à sua recusa de
diferente. Os três primeiros correspondem a folhas que apare- confessar o crime. O Anexo 4 corresponde ao último desenvol-
cem em pastas separadas e colocadas fisicamente, no manuscrito vimento do manuscrito e da transcrição dactilografada. Preferi-
de Foucault, no fim da primeira parte das Confissões''^. O Anexo mos colocá-lo em anexo, porque anuncia temáticas que foram, na
1 é uma simples e breve reiteração de objectivos gerais ("O que realidade, desenvolvidas acima. Damo-nos conta de que os pará-
se trata de demonstrar...") e pode corresponder a um projecto de gralbs que passam a encerrar o livro depois de operada essa
introdução ou antes a um balanço para uso pessoal"". O Anexo 2 transposição assumem efectivamente uma feição conclusiva.
Os detentores dos direitos de autor de Michel Foucault conside-
41 Cf. a nota 38 supra.
raram estar perante as condições e o momento adequados para a
Al Sobre cada Padre da Igreja ou sobre cada prática precisa (baptismo, penitência, publicação deste inédito maior. Ele surge, como os três volumes
etc), encontram-se nas caixas referidas listas bibliográficas muito importantes. precedentes, na "Bibliothèque des Histoires" dirigida por Pierre
43 Encontram-se na caixa L X X X V . Com efeito, as caixas L X X X V e L X X X V I Nora. O "Prospecto" de 1984 indicava:
contêm realmente o manuscrito que serviu de base à constituição da transcrição
dactilografada das Éditions Gallimard, mas não seguem a sua ordem: encontramos
na caixa L X X X V os capítulos I I , I I I e I V da primeira parte, bem como a integra- TOMO 1: A Vontade de Saber, 224 páginas.
lidade da terceira parte. Na caixa L X X X V I , encontramos o capítulo I da primeira TOMO 2: O Uso dos Prazeres, 296 páginas.
parte, bem como a integralidade da segunda parte. Aí encoijtramos também, na
TOMO 3: O Cuidado de Si, 288 páginas.
primeira pasta, uma introdução e um plano de introdução, mas que correspondem
manifestamente ao projecto de La chair et le corps. Não é impossível que Foucault
TOMO 4: As Confissões da Carne (a publicar).
tenha a certa altura ponderado retomar os materiais trabalhados em vista de La
chair et le corpí para dar uma continuação às Confissões da Carne. Lemos, com O que está agora feito.
efeito, no texto das Confissões a seguinte frase: "Reservo para um último capítulo a
concepção de Santo Agostinho. Ao mesmo tempo porque constitui o quadro teóri-
co mais rigoroso que permite dar lugar simultaneamente a uma ascese da castidade FRÉDÉRIC GROS
e a uma moral do casamento. E porque, tendo servido de referência constante à
ética sexual do cristianismo ocidental, será o ponto de partida do estudo seguinte"
(cf. infi-a, p. 272). que Foucault tenha pensado em fazê-lo preceder de uma introdução. De facto O
44 O incipit de As Confissões da Carne pode parecer algo brutal ("O regime dos Cuidado de Si começava de modo igualmente brusco: "Corneçarei pela análise de
aphrodisia, definido em função do casamento, da procriação, da desqualificação um texto bastante singular..." ( M . Foucault, (Euvres, t. I I , p. 971). A longa "Intro-
do prazer e de um laço de simpatia respeitosa e intensa entre os esposos, foram dução" de O Uso dos Prazeres parece, com efeito, valer para o conjunto dos "três
pois filósofos e directores não cristãos que o formularam..."), mas não é seguro volumes, que formam um todo" ("Prière d'insérer" de 1984).
[CAPÍTULO I ]

[A formação de uma experiência nova]

L CRIAÇÃO, PROCRIAÇÃO
[11. O BAPTISMO LABORIOSO]
[III. A SEGUNDA PENITÊNCIA]
[IV. A A R T E DAS ARTES]
I

CRIAÇÃO, PROCRIAÇÃO

O regime dos aphrodisia, definido em função do casamento, da


procriação, da desqualificação do prazer e de um laço de simpatia
respeitosa e intensa entre os esposos, foram pois filósofos e direc-
tores não cristãos que o formularam; foi uma sociedade "pagã"
que se deu a possibilidade de aí reconhecer uma regra de conduta
aceitável para todos — o que não quer dizer efectivamente seguida
por todos, longe disso.
Esse mesmo regime, sem modificações essenciais, encontramo-
-lo na doutrina dos Padres da Igreja do século ii. Os Padres, aos
olhos da maior parte dos historiadores, não teriam encontrado os
seus princípios nos meios cristãos primitivos nem nos textos apos-
tólicos — exceptuadas as cartas fortemente helenizantes de São
Paulo. Esses princípios teriam de certo modo emigrado para o
pensamento e a prática cristãos, a partir de meios pagãos cuja hos-
tilidade era necessário desarmar mostrando formas de conduta já
por eles reconhecidas pelo seu elevado valor. É um facto que apo-
logetas como Justino ou Atenágoras fazem valer, aos imperadores
aos quais se endereçam, que os cristãos põem em prática, a propó-
sito do casamento, da procriação e dos aphrodisia, princípios que
são os mesmos que os dos filósofos. E , para acentuarem bem esta
identidade, empregam, quase sem os mudar, esses preceitos aforís-
ticos cuja origem as palavras e as formulações denotam facilmente.
22 Michel Foucault As Confissões da Carne 23

"Quanto a nós", diz Justino, "se nos casamos, é para criarmos os No fim do século ii, a obra de Clemente de Alexandria transmite,
nossos filhos; se renunciamos ao casamento, observamos continên- sobre o regime dos aphrodisia tal como o podia então acolher um
cia perfeita."' Falando a Marco Aurélio, Atenágoras usa referências pensamento cristão, um testemunho de uma dimensão completa-
sobretudo estóicas: domínio do desejo^ — "a procriação é para nós mente diferente. Clemente evoca o problema do casamento, das
a medida do desejo"^; rejeição de qualquer segundo casamento — relações sexuais, da procriação e da continência em vários textos:
"aquele que repudia a sua mulher para desposar uma outra é adúl- os principais são, em O Pedagogo, o capítulo X do livro I I , e tam-
tero", "todo o novo casamento é um adultério respeitável"*; descon- bém, mas em termos mais cursivos, os capítulos V I e V I I do mesmo
fiança perante o prazer — "desprezamos as coisas desta vida e até livro e [o capítulo V I I I ] do livro I I I ; no segundo Stromata, o capí-
os prazeres da alma"'. Atenágoras não se serve destes temas para tulo X X X I I e o conjunto do terceiro Stromata. Será antes do mais
indicar traços distintivos do cristianismo por oposição ao paganis- o primeiro destes textos que analisarei aqui, esclarecendo-o, quan-
mo. Trata-se antes de mostrar como os cristãos escapam às acusa- do for necessário, através dos outros. Assim, por uma razão: o
ções de imoralidades que lhes são endereçadas, e como a sua vida grande texto do terceiro Stromata é essencialmente consagrado a
é a própria realização de um mesmo ideal de moralidade, que, pelo uma polémica contra diferentes temas gnósticos. Esta desenvolve-
seu lado, a sabedoria dos pagãos reconheceu.* Quando muito, Ate- -se em duas frentes: por um lado. Clemente queria refutar aqueles
nágoras sublinha o facto de a crença dos cristãos na vida eterna e para os quais a desqualificação da matéria, a sua identificação com
0 desejo de se unirem a Deus constituírem para eles um motivo o mal, e a certeza da salvação para os eleitos tornavam indiferente
profundo e sólido de seguirem realmente tais preceitos — melhor a obediência às leis deste mundo, quando não devessem tornar obri-
ainda: de manterem intenções puras e de expulsarem de si até os gatória e ritual a sua transgressão; por um lado, procurava
próprios pensamentos das acções que condenam.'' demarcar-se também das numerosas tendências encratitas que,
reclamando-se de modo mais ou menos bem fundado de Valentim
ou de Basilides, queriam proibir o casamento e as relações sexuais
1 J U S T I N O , Primeira Apologia, 29,1.
ou a todos os fiéis, ou pelo menos aos que entendessem conduzir
2 [Transcrição dactilografada: o nascimento como razão de ser do desejo.]
3 "Hêmin metron epithumias hêpaidopoiia." uma vida verdadeiramente santa. Estes textos são evidentemente
4 "Ho gar deuteros [gamas] euprepês esti moilàieia." capitais para compreendermos, através da questão do casamento e
5 " [ . . . ] mekhri kai tôn tês psukhês hêdeôn." Todos estes textos se encontram na da temperança, a teologia de Clemente, a sua concepção da matéria,
Supplicatiopro Christianis,cap. 33. No seu artigo "Ehezweck und zweite Ehe bei do mal e do pecado. O Pedagogo, por sua vez, destina-se a um fim
Athenagoras" {Theologische Quartalschrift, 1929, pp. 85-110), K . V O N P R E Y -
SING insiste na semelhança entre as fórmulas de Atenágoras e as posições teóricas
muito diferente: dirige-se a cristãos depois da sua conversão e do
ou as atitudes de Marco Aurélio. seu baptismo — e não, como por vezes se disse, a pagãos a caminho
6 K . V O N P R E Y S I N G conclui assim o seu artigo: "Wir hojfen dargetan zu haben, da Igreja. E propõe-lhes uma regra de vida precisa, concreta e quo-
dafi die zwei Anschauungen des Athenagoras in Bezug aufdie Ehe nicht aus der tidiana^. Trata-se aqui de um texto que tem objectivos comparáveis
christlichen Umwelt, jedenfalls nicht aus ihr in erster Linie stammen. Stoische
aos conselhos de conduta que os filósofos helenísticos podiam dar
BeeinflUssung aufbeide Ansichten diirfte wohl anzunehmen sein" ["Esperamos ter
mostrado que as duas concepções do casamento desenvolvidas por Atenágoras não e a comparação entre eles pode, em tais condições, ser válida.
provêm do mundo cristão, pelo menos em primeira linha. Tanto para uma como
para outra, devemos supor sem dúvida uma influência estóica"], ibid., p. 110.
7 Cf. igualmente JUSTINO, Primeira Apologia, X V , sobre a condenação dos que 8 o Pedagogo corresponde a essa tekhnéperi bion [técnica de existência] da qual é
cobiçam uma mulher ou têm a intenção de cometer adultério. dito que é a sabedoria enquanto vela sobre o rebanho humano ( I I , ii, 25,3).
24 Michel Foucault As Confissões da Carne 25

Sem díívida, estes preceitos de vida não esgotam as obrigações dagogo sobre a vida de um homem com a sua mulher não define
do cristão e não o conduzem até ao fim da estrada. Tal como, pois somente uma condição provisória: são preceitos comuns que
antes de O Pedagogo, O Protréptico tinha por função exortar a valem em geral para todos os que são casados, seja qual for a medi-
alma a escolher o bom caminho, assim também, depois de O Pe- da do seu avanço rumo à gnose de Deus. E de resto o que O Peda-
dagogo, o mestre deverá ainda iniciar o discípulo nas verdades gogo explica quanto à natureza do seu próprio ensino vai na mesma
mais elevadas. Temos pois com O Pedagogo um livro de exercício direcção. O "Pedagogo" não é um mestre passageiro e imperfeito:
e de encaminhamento — o guia de uma ascensão em direcção a "Assemelha-se a Deus seu Pai [...], é sem pecado, sem faltas, sem
Deus que um outro ensino deverá depois prolongar até ao seu ter- paixões na sua alma. Deus sem mácula sob a aparência de um ho-
mo. Mas o carácter intermédio desta arte de viver cristã não auto- mem, servidor da vontade do Pai, Logos Deus, aquele que está no
riza que a relativizemos: se está longe de dizer tudo, aquilo que diz Pai, aquele que está sentado à direita do Pai, Deus também pela sua
não se torna nunca caduco. A vida mais perfeita, que um outro aparência."" O Pedagogo é pois o próprio Cristo; e aquilo que ensi-
mestre ensinará, descobrirá outras verdades; não obedecerá a ou- na, ou mais exactamente o que ensina nele e o que é ensinado por
tras leis morais. Muito precisamente, os preceitos dispensados por ele, é o Logos. Como Verbo, ensina a lei de Deus; e os mandamentos
O Pedagogo a propósito do casamento, das relações sexuais, do que formula são a razão universal e viva. As segunda e terceira
prazer, não constituem uma etapa intermédia própria de uma vida partes de O Pedagogo são consagradas a esta arte de nos conduzir-
média, e que seria seguida por uma etapa mais rude ou mais pura, mos cristãmente, mas nas últimas linhas do capítulo X I I I da primei-
própria da existência do verdadeiro gnóstico. Este, que vê com ra parte, Clemente declara o sentido que atribui a essas lições que
efeito o que o simples "aluno" não pode ver, não tem outras regras se seguirão: "O dever, por conseguinte, é, nesta vida, termos uma
para aplicar nestas matérias da vida quotidiana. vontade unida a Deus e a Cristo, o que é um acto recto em vista da
Tal é bem o que podemos, com efeito, ver nos Stromata, onde vida eterna. A vida dos cristãos, que estamos a aprender com o
nunca, a propósito do casamento. Clemente sugere para o "verdadei- nosso Pedagogo, é um conjunto de acções em conformidade com o
ro gnóstico" outros preceitos que não os de O Pedagogo. Se se re- Logos, a aplicação sem quebra dos ensinamentos do Logos, aquilo a
cusa absolutamente a condenar o casamento, a ver nele como certos que justamente chamámos a fé. Esse conjunto é constituído pelos
outros uma porneia, uma fornicação, e até mesmo a reconhecer preceitos do Senhor, que, sendo máximas divinas, nos foram.pres-
nele um difícil obstáculo na via de uma vida autenticamente religio- critos como mandamentos espirituais, úteis ao mesmo tempo para
sa, também não o torna uma obrigação: deixa abertas as duas vias, nós mesmos e para os nossos próximos." E entre tais coisas neces-
reconhece que cada uma delas, casamento e castidade, tem os seus sárias Clemente distingue as que se reportam à vida aqui na Terra
encargos e as suas obrigações^, e ao longo da reflexão ou da discus- — e se encontrarão nos livros seguintes de O Pedagogo — e as que
são acontece-lhe ora sublinhar o maior mérito daqueles que assu- se reportam à vida lá no alto, que podem descobrir nas Escrituras.
mem a responsabilidade de ter mulher e filhos, ora expor o valor de Um ensino esotérico, depois das Uções dadas a todos? Talvez'^. Mas
uma vida sem relação sexual'". Aquilo que podemos ler em O Pe-

11 C L E M E N T E D E A L E X A N D R I A , O Pedagogo, I , i i , 4', 1.
9 "Mias leitourgias kai diakonias", C L E M E N T E D E A L E X A N D R I A , Stromata, 12 É a hipótese apresentada por H . - I . M A R R O U , numa nota sobre esta passagem
I I I , xii. ( I , xiii, 1-103, 2). Cf. Le Pédagogue, Paris, Le Cerf, "Sources chrétiennes", 1960,
10 [Nota vazia.] pp. 294-295.
26 Michel Foucault As Confissões da Carne 27

nem por isso devemos deixar de ver, nestas leis da existência quoti- mendações de Clemente, deve ser descodificado a partir desse
diana, um ensinamento do próprio Logos; devemos, na conduta que Logos que é ao mesmo tempo princípio de acção recta e movi-
se lhes submete, reconhecer a acção recta que conduz à vida eter- mento de salvação, razão do mundo real e palavra de Deus que
na, e devemos, nessas acções rectas em conformidade com o Logos, chama à eternidade.
reconhecer uma vontade unida a Deus e a Cristo. A leitura de O Pedagogo, I I , x, reclama pois um certo número
Estas palavras que Clemente utiliza no momento em que vai de observações preliminares.
apresentar as suas regras de vida são muito significativas. Indi-
cam claramente o duplo registo a que devemos reportá-las: segun- 1. Habitualmente assinalam-se nele sobretudo citações explíci-
do o vocabulário estóico, estas regras de vida definem com efeito tas ou implícitas de moralistas pagãos, e sobretudo estóicos. Mu-
condutas convenientes (kathêkonta), mas também acções racio- sónio Rufo é sem dúvida um dos mais frequentemente utilizados,
nalmente fundamentadas nas quais o homem que as cumpre se embora não seja nunca nomeado. E é um facto que por quatro ou
reúne à razão universal (katorthômata); e, segundo a temática cinco vezes pelo menos, e sobre pontos essenciais, Clemente
cristã, definem não só os preceitos negativos que permitem ser-se transcreve quase palavra a palavra sentenças do estóico romano. E
acolhido na comunidade, mas a forma de existência que conduz à assim sobre o princípio de que a união legítima deve desejar a
vida eterna e constitui a fé'^ E m suma, o que Clemente propõe procriação'^; sobre o princípio de que a busca do prazer por si só,
nos ensinamentos de O Pedagogo é um corpus prescritivo em que ainda que no interior do casamento, é contrária à razão'*; sobre o
o nível das "conveniências" não é mais do que a face visível da princípio de que se deve poupar à mulher toda a forma indecente
vida virtuosa, a qual é por seu turno caminho para a salvação. A de relações'^; sobre o princípio de que, quando se tem vergonha de
omnipresença do Logos, que comanda as acções convenientes, uma acção, esta é uma falta'^ Mas nem por isso deveremos con-
manifesta a recta razão e salva as almas unindo-as a Deus, asse- cluir que Clemente se limita a interpolar neste capítulo um ensino
gura a solidariedade dos três níveis'". Os livros "práticos" de O que pedia de empréstimo a escola filosófica sem procurar dema-
Pedagogo que se abrem imediatamente a seguir a esta passagem siado dar-lhe uma significação cristã. Antes do mais devemos
pululam de precauções minuciosas cujo carácter de pura e sim- notar que as referências aos filósofos pagãos são aqui, como em
ples conveniência pode surpreender. Mas é necessário recolocá- tantos outros textos de Clemente, extremamente numerosas: pode-
-los na intenção global a que pertencem, e o detalhe dos ka- mos detectar empréstimos contraídos junto de Antípatro, de Hié-
thêkonta, em que parecem extraviar-se com frequência as reco- rocles e, sem dúvida também, das sentenças de Sexto; Aristóteles,
que não é igualmente citado, é utilizado com frequência, como de
resto o são naturalistas e médicos. Finalmente — o que do mesmo
13 " A aplicação sem quebra dos ensinamentos do Logos, aquilo a que justamente modo não é em Clemente excepcional —, Platão é um dos raros
chamámos a fé", O Pedagogo, I , xiii, 102,4.
14 Esta coesão entre kathêkonta, katorthômata e valor salvífico dos actos aparece
claramente em formulações como: "to mentol tês theosebeias katorthôma dVergôn
to kathêkon ektelei" (ibid., I , xiii, 102,3 ["O acto virtuoso, inspirado pela religião, 15 Ibid., I I , X, 90, 3, e MUSÓNIO R U F O , Reliquiae, X I V , [10-11], p. 71 (ed.
reahza pois o dever através dos actos", trad. M . Harl]); ou ainda: "kathêkon de Hense).
akolouthon en bio iheô kai Khristô boulêma hen, katorthoumenon aidiô zôê" (["O 16 Ibid., I I , X, 92,2, e MUSÓNIO R U F O , ibid., X X , [3-4], p. 64.
dever, por conseguinte, é ter-se uma vontade unida a Deus e a Cristo, o que é um 17 Ibid., I I , X, 97,2, e MUSÓNIO R U F O , ibid., X I I , [15-16], p. 63.
acto recto em vista da vida eterna", trad. M . Hari], ibid, l, xiii, 4 ) . 18 Ibid., I I , X, 100,1, e MUSÓNIO R U F O , ibid., X I I , [1-2], p. 65.
28 Michel Foucault As Confissões da Carne 29

expressamente citado e o único que o é largamente'^. Mas deve- 2. O segundo e o terceiro livros de O Pedagogo são pois uma
mos notar também que nenhum dos grandes temas prescritivos regra de vida. Sob a desordem aparente dos capítulos — a seguir
evocados por Clemente se apresenta sem o acompanhamento de à bebida, versa-se o luxo do mobiliário; entre os preceitos para a
citações escriturárias: Moisés, o Levítico, Ezequiel, Isaías, Ben vida comum e o bom uso do sono, fala-se dos perfumes e das
Sira. Mais do que um empréstimo maciço, e pouco elaborado, coroas, depois das peças de calçado (que devem ser para as mu-
contraído junto do estoicismo tardio, devemos antes ver neste ca- lheres simples sandálias brancas), depois dos diamantes pelos
pítulo a tentativa de integrar os preceitos efectivamente prescritos quais não devemos deixar-nos fascinar, etc. —, podemos reconhe-
entre os moralistas da época numa tripla referência: a dos natura- cer um quadro de "regime". Na literatura médico-moral da época,
listas e dos médicos, que mostra como a natureza os fundamenta esses quadros organizavam-se segundo diferentes modelos. Quer
e manifesta a sua racionalidade, testemunhando assim a presença sob a forma de agenda, seguindo mais ou menos hora a hora o
do Logos como princípio de organização do mundo; a dos filóso- curso do dia: assim o regime de Diocles, que toma o homem desde
fos, e sobretudo de Platão, o filósofo por excelência, que mostra os primeiros gestos a fazer no instante do despertar e o conduz até
como a razão humana pode reconhecê-los e justificá-los, testemu- ao momento de dormir, indica em seguida as modificações a in-
nhando que o Logos habita a alma de todo o homem; enfim, a das troduzir segundo as estações do ano, e por fim dá conselhos sobre
Escrituras, que mostra que Deus deu explicitamente aos homens as relações sexuais^'. Quer referindo-se à enumeração de Hipócra-
tais mandamentos — tais entolai —, testemunhando assim que tes, que constitui para alguns um quadro canónico: exercícios,
aqueles que lhes obedecerem se unirão com ele na vontade: ou sob depois alimentos, depois bebidas, depois o sono e finalmente as
a forma da lei mosaica, ou sob a forma das palavras crísticas^". relações sexuais^^.
Cada um dos grandes preceitos, que este capítulo X do segundo Quatember^^ sugeriu que Clemente, na sua regra de vida quoti-
livro formula, está pois submetido a um princípio de "tripla deter- diana, segue o ciclo das actividades do dia, mas começando pela
minação": pela natureza, pela razão filosófica, pela palavra de Deus. refeição da noite, e portanto pelos conselhos relativos à alimenta-
Sem dúvida, o conteúdo do ensino, a codificação, no que permite, ção, à bebida, à conversação, às maneiras de mesa; passa depois à
proíbe ou recomenda, está em conformidade absoluta, ressalvados noite, ao sono, e aos preceitos que se reportam às relações sexuais.
uns quantos pormenores, com o que era ensinado nos séculos ante- As observações a propósito das roupas e da galanteria reportar-se-
riores nas escolas filosóficas e particularmente estóicas. Mas todo o -iam à toilette da manhã, e a maior parte dos capítulos do livro I I I
esforço de Clemente é inserir esses aforismos conhecidos e corren- seria consagrada à vida diurna, aos servidores, aos banhos, à gi-
tes num tecido complexo de citações, de referências, ou de exemplos nástica, etc.
que os fazem aparecer como prescrições do Logos, que se enuncia No que respeita ao capítulo X , sobre as relações conjugais, Qua-
na natureza, na razão humana ou na palavra de Deus. tember propõe igualmente, apesar da desordem aparente do texto à

21 D I O C L E S , Du regime, in O R I B A S E [ORIBÁSIO], Collection médicale. Livres


19 Demócrito e Heraclito são citados uma vez; Crisipo sob o nome dos "estóicos" em incertains, ed. Daremberg, t. I l l , p. 144. .
geral. Platão é-o mais vezes, não contando aqui com as numerosas citações implícitas. 22 Esta lista encontra-se em HIPÓCRATES, Épidêmíeí, VI,'vi, 2. Existem também
20 Sobre a distinção dos dois ensinos: C L E M E N T E D E A L E X A N D R I A , O Peda- quadros de outros tipos.
gogo, I , vii, 60,2. Sobre a sua continuidade, ibid., I , x , 9 5 , 1 , e sobretudo I , x i , 96, 23 F. Q U A T E M B E R , Die christliche Lebenshaltung des Klemens von Alexandrien
3 ("Era por intermédio de Moisés que o Logos era Pedagogo") e 9 7 , 1 . nacA áem Padagogus, Viena, 1946.
30 Michel Foucault As Confissões da Carne 31

qual mais do que um comentador se mostrou sensível, um plano mento) e uma composição "referencial" que dá a estas prescrições
simples e lógico. Depois de ter fixado o fim do casamento — a de "regime" uma outra dimensão. Este deslocamento das referên-
saber, a procriação —, Clemente condenaria as relações contrana- cias permite-nos escutar sucessivamente as diferentes vozes atra-
tura; em seguida, passando às relações no interior do casamento, vés das quais o Logos fala: a das figuras da natureza, a da razão
encararia sucessivamente a gravidez, as relações infecundas e o que deve presidir ao composto humano, a de Deus falando direc-
aborto, antes de estabelecer os princípios da medida e da conve- tamente aos homens para os salvar (entendendo-se que as duas
niência a conservar nas relações matrimoniais. Através de numero- primeiras são também o Logos de Deus mas sob uma outra for-
sos rodeios e sobreposições, tal é em termos aproximativos a suces- ma). Esta sucessão permite assim fundamentar as mesmas prescri-
são de temas que encontramos no capítulo em causa. Mas é possível ções e os mesmos interditos (que são repetidos várias vezes no
ao mesmo tempo reconhecer nele um outro encadeamento que de texto) a três níveis diferentes: o da ordem do mundo, tal como foi
maneira nenhuma exclui este primeiro esquema. fixada pelo Criador, e da qual certos animais "contranatura" dão
O tipo de citações explícitas ou implícitas às quais Clemente dá um testemunho invertido; o da medida humana, tal como a ensina
sucessivamente preeminência pode servir aqui de fio condutor. a sabedoria do próprio corpo, e os princípios de uma razão que
Não que ele não tome o cuidado, ao longo de todo o texto, de en- quer permanecer senhora de si mesma^*; o de uma pureza que
trecruzar, segundo o princípio da tripla determinação, a autorida- permite aceder, para além desta vida, à existência incorruptível.
de das Escrituras, o testemunho dos filósofos e os dizeres dos Talvez seja necessário reconhecer aqui, ainda que sob as vestes
médicos ou naturalistas. Mas, de modo sensível, a acentuação que a envolvem, a tripartição, importante na antropologia de Cle-
vai-se deslocando ao longo do texto, a coloração das referências mente, entre o animal, o psíquico e o pneumático. Ainda que não
vai mudando. São primeiro as lições da agricultura e da história seja este o esquema subjacente, o capítulo obedece manifestamen-
natural que são invocadas (a regra das sementeiras, as "metamor- te a um movimento ascendente que vai dos exemplos depositados
foses" da hiena, os maus costumes da lebre) para explicar a lei na natureza a título de lição aos apelos que apontam aos cristãos
mosaica^". Depois os empréstimos são feitos sobretudo à literatura o fim de uma existência "semelhante" a Deus. E é ao longo de
médica e filosófica, a propósito do corpo humano, dos movimen- todo este caminho que se determina a economia das relações se-
tos naturais, da necessidade de manter o controle sobre os desejos xuais.
e de evitar os excessos que esgotam o corpo e turvam a alma". Por
fim, nas últimas páginas do capítulo, as citações das Escrituras, 3. A questão primeira que punham os tratados de conduta ou as
que nunca tinham estado ausentes do texto e serviam de contra- diatribes dos filósofos pagãos respeitava à oportunidade do casa-
ponto às outras referências, tornam-se predominantes (não sem mento: Ei gamêteon. O capítulo X trata a questão por preterição:
um ou dois regressos explícitos a Platão e implícitos a Musónio). indica desde as primeiras linhas que falará para as pessoas casadas;
Digamos que, neste texto complexo, há, sobrepostas uma à ou- depois, após um desenvolvimento que versa as relações sexuais
tra, uma composição "temática" (que vai da condenação das rela- durante a gravidez e as doenças que o seu excesso pode acarretar,
ções contranatura às recomendações de reserva no uso do casa- elide de novo a questão, dizendo que tal tema é discutido no tratado

24 C L E M E N T E D E A L E X A N D R I A , O Pedagogo, I I , x, 83, 3, a 8 8 , 3 . 26 Sobre o tema do Logos enquanto preside à ordem do mundo e à dos corpos e da
25/Wd.,n,x,89,I,a97,3. alma, cf. ibid., I , i i , 6,5-6.
32 Michel Foucault As Confissões da Carne 33

Sobre a Continência. Tratar-se-á de uma obra autónoma? Ou de tir desta adequação entre o valor do casamento e a finalidade
textos que figuram nos Stromatal Há dois conjuntos nos Stromata procriadora. Clemente pode definir as grandes regras éticas que
que é possível supor que constituam esse tratado, ou que reprodu- devem presidir às relações dos esposos: o laço entre estes não deve
zam pelo menos o seu conteúdo: a totalidade do livro I I I , que vi- ser da ordem do prazer e da volúpia, mas do "Logos"^"^; não se
mos ser uma longa discussão em torno do encratismo, comum a deve tratar a mulher como uma amante^", nem dispersar a semen-
várias tendências gnósticas, ou de certas formas "licenciosas" da te a todos os ventos^', mas observar antes os princípios de sobrie-
moral duaUsta; e mais verosimilmente o capítulo X X I I I e último dade — regras que os próprios animais respeitam^^ Trata-se de
do segundo Stromata, que é uma introdução ao livro I I I e que a si um laço que não deve romper-se; e, se o for, dever-se-á renunciar
mesmo se apresenta como devendo responder à questão tradicional a outro casamento enquanto o cônjuge ainda viver'^ O adultério,
nos debates da filosofia prática: deve-se casar?^'' E é para a análise enfim, é interdito e deve ser castigado^".
desta questão que remete precisamente O Pedagogo. A maior parte destes pontos — e sobretudo os que se referem
A resposta dada por esta passagem final do segundo Stromata às relações entre esposos — encontra-se em O Pedagogo, que os
não apresenta originalidade em relação à moral filosófica da épo- trata todavia muito mais extensamente. A continuidade e a homo-
ca. Se procura demarcar-se, não é dos princípios gerais dos filóso- geneidade entre os dois textos é manifesta: a diferença é que os
fos, mas antes da sua atitude real, cujo relaxamento a teoria não Stromata falam do próprio casamento e do seu valor em função da
corrige. No casamento, Clemente, neste texto dos Stromata como procriação, enquanto O Pedagogo fala da procriação como princí-
no de O Pedagogo, fixa a procriação de filhos como fim^l A par- pio de discriminação para as relações sexuais. Num caso, trata-se
da procriação como finalidade do casamento; no outro, tratar-se-á
27 "Zêtoumen de ei gamêteon", C L E M E N T E D E A L E X A N D R I A , Stromata, I I , sobretudo dessa mesma procriação na economia das relações e
xxiii, 137,3.
dos actos sexuais. O interesse principal do capítulo e a sua novi-
28 " [ . . . ] sunodos andros kai gunaikos hê prôtê kata nomon epi gnêsiôn teknôn
spora", ibid., I I , xxiii, 137,1. dade — pelo menos na literatura cristã, senão em toda a literatura
[Passagem rasurada por Foucault na transcrição dactilografada: " E , segundo um moral da Antiguidade — está em ter entrecruzado dois tipos de
procedimento de tipo inteiramente estóico, a partir desta definição pela finalidade. questões, dois debates tradicionais: o que diz respeito à justa eco-
Clemente encara sucessivamente: a questão de saber se se deve casar, em geral, e nomia dos prazeres — tema dos aphrodisia; e o do casamento, do
as condições que podem modular essa obrigação, impedindo que [não] se lhe dê
resposta única e válida para todos a todo o momento; as opiniões dos diferentes
seu valor e do modo de conduta no seu quadro, dado que o casa-
filósofos a esse respeito; o que faz de um casamento um bem: a saber que, dando mento se justifica pela procriação e se torna a partir daí possível
ao homem uma descendência, perfaz e consuma a sua existência; que proporciona definir sob que aspecto pode ser um bem (tese desenvolvida no
cidadãos à sua pátria; que assegura, em caso de doença, a solicitude da mulher e segundo Stromata e recordada em O Pedagogo). Sem dúvida, não
os seus cuidados; que proporciona socorros quando a velhice chega. Ao que se
é a primeira vez que se procura definir que género de conduta
acrescenta, a título de prova negativa, o facto de que não ter filhos é ou sancionado
pelas leis, ou condenado pela moral. O raciocínio de Clemente consiste em deduzir
o valor positivo do casamento do que pode haver de perfeição ou de utilidade no 29/tó., II, xxiii, 143,1.
facto de se ter uma progenitura. O que mostra que este é o fim do casamento no 30 Ibid.
sentido forte da expressão — que é a sua razão de ser e a sua justificação; mas 31/èid., I I , xxiii, 143,2.
também (e isso permanece implícito no texto) que a procriação não pode constituir 32/Wí/., I I , 144,1.
um bem digno de ser perseguido como fim a não ser na condição de se produzir no 33/Wí/., I I , xxiii, 145,1-3.
interior do casamento."] 34/Wá., I I , xxiii, 146,1-4.
34 Michel Foucault As Confissões da Carne 35

sexual os esposos devem ter; mas é, segundo parece, a primeira tratada num tal livro de conduta tem a sua importância. Primeiro
vez que encontramos desenvolvido todo um regime dos actos se- porque aqui vemos, segundo um processo que foi possível observar
xuais que não se estabelece tainto em função da sensatez e da entre os autores pagãos das épocas precedentes, que a questão das
saúde individuais, como sobretudo do ponto de vista das regras relações sexuais, dos aphrodisia, é agora fortemente subordinada à
intrínsecas do casamento. Havia um regime do sexo e uma moral questão do casamento: perdeu até mesmo a tal ponto a sua indepen-
do casamento: que se sobrepunham, é bem evidente. Mas, neste dência que o termo de aphrodisia não aparece neste texto de Cle-
texto de Clemente, temos uma nova conjugação dos dois pontos de mente. É a procriação, ou antes a conjunção procriadora que cons-
vista. O que se passa entre esposos, e que os moralistas da Anti- titui o termo geral sob o qual se vai colocar todo o capítulo. E m
guidade tratavam senão por preterição, pelo menos brevemente e seguida, temos aqui sem dúvida o primeiro texto em que as rela-
de bastante longe — contentavam-se com indicar regras de decên- ções sexuais conjugais são tratadas por si mesmas, em detalhe, e
cia e de prudência —, está em vias d© tornar-se objecto de preocu- como um elemento específico e importante da conduta. Uma vez
pação, de intervenção e de análise. mais, os filósofos tinham já formulado a maior parte dos preceitos
Sob o título um pouco enigmático de: "O que se deve distinguir que Clemente vai enunciar, mas situando-os numa ética global das
a propósito da procriação", o capítulo X do segundo livro de O relações entre esposos, numa regulação da maneira de viver quan-
Pedagogo versa de facto uma questão relativamente precisa. É do se é casado. Os Conjugalia praecepta de Plutarco dão conselhos
esta que é formulada desde a primeira linha do texto e que reapa- em vista do bom funcionamento geral dessa comunidade que o
rece na última: questão do momento, da ocasião, da oportunidade casal constitui; as observações a respeito das relações sexuais não
— kairos — da relação sexual entre pessoas casadas^^ Na medida são mais do que um elemento para essa vida que o casamento não
em que se trata de uma regra dos dias e das noites, este termo de deve impedir de ser filosoficamente válida. O Pedagogo fala pouco
kairos tem decerto o sentido estrito de "momento oportuno". Mas do casal, mas as relações sexuais entre os cônjuges são nele um
está longe de ser o único. No vocabulário filosófico e sobretudo objecto importante e relativamente autónomo. Pode dizer-se que
estóico, kairos refere-se ao conjunto das condições que podem fa- temos aqui o primeiro exemplo de um género, ou antes de uma
zer de uma acção sob outros aspectos permitida uma acção que prática que terá uma importância considerável na história das so-
tenha efectivamente um valor positivo. O kairos não caracteriza ciedades ocidentais — o exame e a análise das relações sexuais
uma oportunidade de prudência, evitando os riscos e os perigos entre esposos.
que poderiam tornar má uma acção indiferente; define os critérios Finalmente, a questão do kairos das relações conjugais permite
que uma acção concreta deverá preencher para ser boa. Enquanto ver como Clemente de Alexandria integra um código que recebeu
a lei separa o permitido do proibido entre todas as acções positivas, com efeito das filosofias helenísticas (e sem dúvida também de
o kairos faz o valor positivo de uma acção real. todo um movimento social) numa concepção religiosa da nature-
A questão que vai pois ser tratada neste capítulo de O Pedagogo za, do Logos e da salvação. Solução muito diferente, como vere-
é a de se fixarem as condições que dão valor positivo às relações mos, da proposta por Santo Agostinho — e é esta última que será
sexuais entre pessoas casadas. O facto de ser esta questão que é retida pelas instituições e a doutrina da Igreja Ocidental. Nesta
reflexão de Clemente sobre o kairos, seria um erro vermos o sim-
35 "Sunousias de ton kairon", C L E M E N T E D E A L E X A N D R I A , O Pedagogo, I I , ples enxerto, mais ou menos hábil, de elementos tomados de em-
x , 8 3 , 1 : " [ . . . ] Hopênika ho kairos dekhetai Ion sporon", ibid.,ll,X, 102,1. préstimo à moral corrente, e simplesmente tornados um pouco
36 Michel Foucault As Confissões da Came 37

mais exigentes ou austeros. O kairos da relação sexual defme-se dência que se tem, na sua vida e na sua venturosa fortuna, uma
pela sua ligação com o Logos. Não esqueçamos que, para Clemen- plenitude, uma satisfação"". O objectivo (skopos) da relação sexual
te, ao Logos se chama Salvador, porque inventou para os homens estaria pois na existência da progenitura; o fim (telos), na relação
"os remédios que lhes dão um sentido moral justo e os conduzem positiva com essa progenitura, na consumação que ela constitui.
à salvação", e isso colhendo a boa "ocasião"^*. Duas considerações que Clemente acrescenta logo a seguir e que
constituem a introdução do capítulo permitem talvez esclarecer o
* valor da distinção em causa.
Clemente compara de início o acto sexual às semeaduras. Metá-
Clemente parte da proposição de que as relações sexuais têm a fora tradicional. Encontramo-la em Atenágoras e nos Apologetas;
procriação por fim. Tese perfeitamente corrente. Encontramo-la era, ao que parece, corrente nas diatribes filosóficas nas quais ser-
nos médicos". Encontramo-la nos filósofos, quer sob a forma de via para ilustrar a regra de que a semente deve ser depositada no
uma ligação entre três termos — rejeição das relações sexuais fora sulco onde pode tornar-se fecunda. Mas Clemente utiliza-a além
do casamento e rejeição do casamento que não tenha na procriação disso para melhor marcar a diferença entre o que deve ser o "alvo"
o seu fim^** —, quer sob a forma de uma condenação directa de das relações sexuais e o que deve sèr o seu "fim". Alvo do agricul-
toda a relação sexual que não tenha por objecto a procriação^^. tor, quando semeia: obter o que comer; a sua finalidade: "ter uma
Nada, a este respeito, de particular, portanto, em Clemente de colheita", diz simplesmente o texto de Clemente, quer dizer, sem
Alexandria. Tal como não é traço particular seu a distinção, nas dúvida, conduzir os grãos a esse ponto do seu acabamento natural
relações de finalidade em geral, do "alvo" ou do "objectivo" que produz uma abundância de frutos. Esta comparação com as
(skopos) e do "fim" (telos). E m contrapartida, se está de facto no semeaduras mantém-se bastante elíptica; mas podemos supor que
"espírito" dos estóicos e na lógica das suas análises, parece, e é o autoriza a pôr por conta do "alvo" essa procriação de filhos da qual
mínimo que se pode dizer, não ter sido frequente a aplicação des- os filósofos tantas vezes mostraram que era útil aos pais, ou para
ta diferença ao domínio das relações sexuais. E , com efeito, o uso assegurar o seu estatuto, ou para lhes garantir sustento quando fo-
dessa distinção, no próprio texto de Clemente, conduz a um resul- rem velhos, e a pôr em contrapartida por conta dos "fins" alguma
tado que, à primeira vista, pode parecer sem significação muito coisa de muito mais geral e de menos utilitário — a saber, o acaba-
fecunda. O "objectivo" seria a "paidopoiia", a fabricação de filhos, mento que constitui para um ser humano o facto de ter uma des-
a progenitura no sentido estrito. O "fim", em compensação, seria a cendência"'. E , uma vez que é este fim que Clemente quer fazer
"euteknia", por vezes traduzida por "belos filhos" ou por "família
numerosa". Na realidade, é necessário dar à palavra um sentido
40 Na Ética a Nicómaco, 1,8,16, ARISTÓTELES diz que a felicidade da existên-
mais amplo: aquela refere-se ao facto de se encontrar na descen-
cia tem por marca três coisas: o "bom nascimento", a "beleza" e a "euteknia" que
é simétrica, do lado da descendência e do futuro, do que é a boa família, o bom
36 " [ . . . ] Epitêrôn men tên eukairiarí', ibid.,l,Xll, 100,1. nascimento, do lado da origem. Eurípides, no íon, utiliza a palavra nesse sentido:
37 [Nota vazia.] "Intercedei [...] a fim de que a antiga casa de Erecteu receba enfim, por um límpido
38 MUSÓNIO R U F O , Reliquiae, X I I (p. 64): os aphrodisia não se justificam a oráculo, uma rica posteridade" (versos 468-470).
não ser no casamento e quando têm por fim o nascimento de filhos. 41 Neste sentido, C L E M E N T E mais não faz do que tomar no sentido estrito a
39 O C E L O L U G A N O : não temos relações pelo prazer, mas para termos filhos (De afirmação estóica de que o facto de ter filhos [constitui] "a consumação", "o aca-
Universi natura, IV, 2). bamento" (teleiôtês) para um indivíduo.
38 Michel Foucault As Confissões da Carne 39

aparecer neste capítulo, analisando o kairos das relações sexuais, E contudo podemos falar de uma "semelhança" com Deus —
compreendemos que deixe de parte as utilidades pessoais e os be- aquela de que se trata na narrativa do Génesis: a semelhança que
nefícios sociais que o facto de se ter filhos pode proporcionai^^. era a do homem antes da queda, e que pode e deve tornar-se de
Que um tal fim não utilitário é bem aqui o tema de Clemente novo sua. Esta semelhança faz-se não pelo corpo, mas pelo espíri-
mostra-o a consideração que encadeia imediatamente com a metá- to e pelo raciocínio"^; é assegurada pela obediência à lei: "A lei diz
fora do semeador. Este não planta senão "por causa de si mesmo"; [...]: 'Marchai seguindo o Senhor [...].' A lei chama, com efeito, à
o homem, quanto a ele, deve plantar "por causa de Deus". Com isto. assimilação uma marcha que segue atrás; e esta assemelha-se, tan-
Clemente não entende designar o fim que orienta a acção, mas to quanto tal é possível."*^ Não é pois a procriação que em si mes-
antes o princípio que a atravessa e sustenta o tempo todo"l O acto ma e como processo natural é "à semelhança" da Criação, mas é-o
de [pro]criação deve ser feito "por causa" de Deus na medida antes a procriação, na medida em que tiver sido bem levada a cabo e em
do mais em que é Deus quem a prescreve ao dizer "Multiplicai- que tiver "seguido" a lei. E se a lei prescreve a conformidade com
-vos", mas também porque ao procriar o homem é "imagem de a natureza, é porque a natureza obedece a Deus"^.
Deus", e "colabora", por sua parte, "no nascimento do homem"*". Neste caminhar em direcção à semelhança, encontra então a
Esta proposição é importante para toda a análise de Clemente, sua possibilidade uma "sinergia" do homem e de Deus. Deus, com
uma vez que estabelece na procriação humana uma relação com efeito, criou o homem porque este era "digno da sua escolha",
Deus ao mesmo tempo próxima e complexa. Que o homem ao digno por conseguinte de ser por ele amado. Se teve de haver um
procriar seja "a imagem de Deus" não deve ser interpretado a par- motivo para a criação do homem, esse motivo consiste em que,
tir de uma semelhança imediata entre a criação de Adão e a pro- sem o homem, "o Demiurgo não poderia ter-se revelado bom"'°. A
criação dos seus descendentes. Sem dúvida, como Clemente expli- criação do homem é pois manifestação da bondade de Deus, tanto
ca noutro lugar*^ Deus, que se contentara com dar uma ordem como da sua presença. O homem, em contrapartida e por esse
para fazer aparecer os animais na Terra, amassara com a sua mão mesmo facto, oferece, por ser digno de ser amado, a possibilidade
o primeiro homem, marcando assim uma diferença essencial e de mostrar a sua bondade''. Ao procriar, o homem faz pois bem
uma maior proximidade entre Ele e esse ser criado à sua imagem. mais e coisa bem diferente de "imitar", segundo uma analogia
Mas isso não quer dizer para Clemente que a Criação tenha trans- natural, as capacidades do acto demiúrgico. Participa, completa-
mitido ao homem alguma coisa da essência da natureza ou da po- mente homem que é, na potência e na "filantropia" de Deus: pro-
tência de Deus: não há nada em nós que "convenha" com Deus"*. cria, com ele, homens que são dignos de ser amados de um amor
cuja manifestação foi a "causa" da Criação, e depois da Encarna-

42 C L E M E N T E não ignora estas vantagens e menciona-as nos Stromata.


43 A expressão não é heneka tou theou, mas dia ton theon. 47 "Kata noun kai logismon", ibid., I I , X I X , 102,6.
44 [ C L E M E N T E D E A L E X A N D R I A , O Pedagogo, I , x , 83,1.] 48 Ibid., I I , xix, 100,4.
45 Ibid., I , i i i , 7 , 1 . Deus fez o homem com as suas mãos: ekheirourgêsen. Esta di- 49 Erro dos estóicos, que, ao falarem da vida em conformidade com a natureza,
ferença entre a criação por meio de uma ordem dos animais e a fabricação manual não viram que teria sido necessário falar de conformidade com Deus {ibid., I I , xix,
do homem é um tema corrente na época, cf. Tertuliano. 101,1).
46 "Deus é rico em misericórdia para connosco, que não temos relação alguma 50 C L E M E N T E D E A L E X A N D R I A , O Pedagogo, I , iii, 7 , 3 .
com E l e , têi ousia, ê phusei, ê dunamei", C L E M E N T E D E A L E X A N D R I A , Stro- 51 Embora a edição francesa não o indique, devemos ler que é "a Deus" que "[o]
ffiaía, I I , x v i , 75,2. Todo o capítulo é dirigido contra os gnósticos. - homem ( . . . ) oferece ( . . . ) a possibilidade de mostrar a sua bondade". (N. T.)
40 Michel Foucault As Confissões da Came 41

ção. A "sinergia" do homem com Deus no acto procriador'^ não diência a estas diferentes lições pode dar à relação conjugal pro-
consiste somente num apoio de Deus à geração humana: trata-se criadora o valor de uma "sinergia" com Deus.
da consumação do que dizia uma fórmula anterior de Clemente: Podemos compreender melhor a distinção aparentemente um
"Deus recebe do homem aquilo que criara, o homem."'' pouco arbitrária que Clemente introduz entre o facto da progeni-
O capítulo X do segundo Livro de O Pedagogo coloca pois a tura que deve ser o "alvo" das relações sexuais e o valor da des-
análise "das distinções a fazer a propósito da procriação" sob o cendência que deve ser o seu "fim". Este constitui bem um acaba-
signo das relações complexas e fundamentais entre Criador e mento — teleiôtês — para o procriador, como os estóicos diziam:
criaturas. O conteiido dos preceitos, muito "quotidianos", que o procriador leva aqui a cabo aquilo para que a natureza o fez e
Clemente irá dar a partir daí pode bem ser idêntico, ou muito que o liga, através do tempo, aos outros homens e à ordem do
próximo de idêntico, aos ensinamentos dos filósofos pagãos, sem mundo. Mas esta "bela descendência", que com a ajuda de Deus o
que por isso estejamos perante uma espécie de abandono da regu- homem fez nascer, Clemente mostra que ela constitui para Deus
lamentação das relações sexuais a uma sabedoria estóica ou pla- um objecto digno de amor e uma ocasião de manifestar a sua bon-
tónica, aceite e autenticada por um consenso suficientemente dade. Subordinadas ao "alvo" da "fabricação de filhos", e depois,
amplo. Clemente sem dúvida recolheu a codificação e as regras além disso, a uma finalidade que se une à da Criação inteira, as
de conduta que formulava noutros lugares a filosofia que lhe era relações sexuais devem submeter-se a uma "razão", a um Logos,
contemporânea, mas repensou-as e integrou-as no interior de uma que, presente na natureza inteira e até mesmo na sua organização
concepção que toma o cuidado de lembrar, numas quantas frases, material, é também a palavra de Deus. Colocadas à cabeça da sua
no início deste capítulo e que põe em jogo, na procriação, as re- análise, a distinção e a articulação entre alvo e finalidade permi-
lações do homem com o seu criador, de Deus com as suas criatu- tem a Clemente inscrever solidamente a regra das relações sexuais
ras. Mas é necessário prestar atenção: Clemente de modo nenhum numa grande "lição da natureza": "Devemos atender à escola da
dá, por esse meio, um valor espiritual ao acto sexual (ainda que natureza e observar os sábios preceitos da sua pedagogia para o
no quadro da instituição matrimonial, ainda quando se proponha tempo oportuno da união."'" Lição da natureza que está no próprio
exclusivamente a fins procriadores). O que tem, para ele, um sen- ensinamento do Logos. "Lógica", poderíamos dizer, de uma natu-
tido para a relação entre o homem e Deus não é o acto sexual em reza que deve ser entendida num sentido muito amplo, e sob os
si mesmo, mas o facto de, levando-o a cabo, se seguir o ensina- seus diferentes aspectos: "lógica" da natureza animal, "lógica" da
mento, a "pedagogia" do próprio Logos. É a observância dos natureza humana, e da relação da alma racional com o corpo, "ló-
"mandamentos" que Deus prescreveu através da natureza, dos gica" da Criação e da relação com o Criador. São estas três lógicas
seus exemplos, das suas formas e das suas disposições, através da que Clemente, sucessivamente, desenvolve.
organização do corpo e das regras da razão humana, através dos
ensinamentos dos filósofos e das palavras das Escrituras. A obe-

52 C L E M E N T E emprega o verbo sunergein para designar a colaboração de Deus


na procriação e ekheirourgein para o seu papei na Criação. 54 Ibid., I I , X, 95, 3. Este tema da natureza "ensinante" e um tema estóico. Cf.
53 Esta fórmula, que se encontra no livro I , cap. I l l , 7,3, não se aplica à geração em por exemplo HIÉROCLES: "dikaia de didaskalos hê phusis" ( E S T O B E U , Flo-
particular, mas contribui para definir as relações de Deus, enquanto Criador, com o rilegium, ed. Meineke, p, 8). Mas é visível o deslocamento do sentido efectuado
homem, enquanto criatura através da qual Deus manifesta o seu amor. por Clemente.
42 Michel Foucault Confissões da Carne 43

1. Os exemplos que Clemente toma de empréstimo ao livro ani- Vez que a natureza tenha fixado o que um animal é, não pode
mal são lições negativas". A hiena e a lebre ensinam o que não se modificá-lo. Há, é certo, muitos animais nos quais alguns traços
deve fazer. A má reputação da hiena ligava-se a uma velha crença se alteram com o tempo. As estações frias e quentes modificam
— que se encontrava em Herodoro de Heracleia'* — segundo a a voz das aves ou o colorido das plumagens'^, mas isso é um efei-
qual cada animal dessa espécie tinha os dois sexos e desempenha- to de acções físicas e exteriores, sem que desse modo se transfor-
va alternadamente, de ano para ano, o papel do macho e da fêmea. ine a natureza do animal. Ora, que se passa com o sexo? Um in-
Quanto à lebre, passava por adquirir anualmente um ânus suple- divíduo não pode nem mudar de sexo, nem ter dois, nem também
mentar e para fazer dele, com os seus orifícios assim multiplica- ser de um terceiro que seria intermédio entre o masculino e o
dos, o pior uso". Aristóteles rejeitara estas especulações e, daí em feminino: tais coisas são quimeras que os homens imaginam, mas
diante, poucos eram os naturalistas que ainda lhes concediam às quais a natureza se recusa. Clemente refere-se aqui, de manei-
crédito. O que não quer dizer que se tivesse por isso deixado de ra implícita mas suficientemente clara, a uma discussão "clássica"
pedir à história natural daqueles animais lições de moral. Na épo- na época. A possibilidade das metamorfoses — do nascimento de
ca helenística e romana, a história natural encontrava-se submeti- vermes a partir de cadáveres, da formação de abelhas numa car-
da, com efeito, a dois processos, aparentemente contraditórios: caça de boi, ou de larvas no lodo — constituía aos olhos dos
uma filtragem do saber em função de regras de observação mais epicuristas a prova de que tais corpos não eram de origem divina;
estritas; e a preocupação cada vez mais marcada de decifrar um as transformações em causa eram, aos seus olhos, efeito de meca-
ensinamento nessa natureza na qual, segundo os filósofos, é dever nismos "autónomos"***. Distinguindo cuidadosamente a "estabili-
do indivíduo humano integrar-se. Uma maior preocupação de dade" das espécies e as alterações mecânicas de certos caracte-
exactidão e a busca da exemplaridade moral podiam andar a par. res. Clemente adere à posição de todos aqueles — aristotélicos,
Assim, o hermafroditismo alternante da hiena e as perfurações estóicos, platónicos — que queriam manter a marca de uma razão
anuais da lebre tornaram-se lendas, mas, através dos costumes criadora, ou a presença permanente de um Logos, nas especifica-
desses animais, os naturalistas podem apesar de tudo ler lições de ções do mundo animal*'. Mas é bastante verosímil também que
conduta. Como dizia Eliano, a hiena "mostra", não pelos discursos, Clemente pense no problema que evoca no capítulo I V do primei-
[mas] pelos factos, "como era desprezível Tirésias"'^. ro livro de O Pedagogo: a saber, o estatuto da diferença dos sexos
A maneira como Clemente refuta por sua vez a lenda, mas re- em relação ao mesmo tempo à vida eterna e ao estatuto na Terra
colhendo a sua lição moral, é interessante para a sua concepção dos homens e das mulheres. A solução proposta por Clemente é
das relações entre a natureza e a contranatura. A hiena, diz Cle- simples, ainda que não isenta de dificuldade: no outro mundo, não
mente, não muda de sexo de um ano para o outro, porque, uma haverá diferenças de sexo, "é somente aqui em baixo que o sexo
feminino é distinto do sexo masculino". Diferença fundada por
conseguinte no Logos que rege a ordem deste mundo, mas que
55 Por várias vezes, Clemente indica que lhe acontece falar por meio de exemplos
negativos: O Pedagogo, I , i , 2 , 2 , e I , iii, 9 , 1 .
56 [Cf. infra, n. 64, p. 44. Foucault anota: I V , 192, sem que saibamos a que cor- 59 Clemente segue de perto ARISTÓTELES, História dos Animais, I X , 632b.
responderá isso.] 60 Cf. por exemplo LUCRÉCIO, De rerum natura, 1,871,874, 898,928; I I I , 719.
57 Esta crença, referida por A R Q U E L A U , teria sido extraída do PSEUDO- 61 ORÍGENES evoca o mesmo problema no Contra Celsum; IV, 57. Faz valer que,
-DEMÓCRITO {Geoponica, X I X , 4; cf. OVÍDIO, Metamorfoses, X V , 408-410). se há transformações (do boi em abelha, do burro em escaravelho e do cavalo em
58 E L I A N O , Natura animalium, 1,25. vespa), essas mudanças seguem "vias estabelecidas" (hodoi tetagmenai).
44 Michel Foucault As Confissões da Carne 45

não impede que possamos aplicar o nome de seres humanos tan- ção ao mesmo tempo de efeito e de instrumento com uma falha
to aos homens como às mulheres; as mesmas prescrições valem moral. Se as hienas têm um corpo tão estranhamente disposto, é
pois para uns e para outras, bem como a mesma forma de vida: por causa de um vício. Um vício "de natureza", entendendo-se por
"uma assembleia, uma moral e um pudor; alimentação comum, "natureza" os caracteres próprios de uma espécie, mas que nem
laço conjugal comum; tudo é semelhante: a respiração, a vista, o por isso é menos absolutamente semelhante à falha moral que
ouvido, o conhecimento, a esperança, a obediência, o amor"*^. É podemos encontrar entre os homens: a lascívia. E é em função
a esta "vida comum", a este género comum que está para lá da desta falha que "a natureza" dispôs uma cavidade suplementar
diferença dos sexos, mas que não a anula, que a graça se endere- naqueles animais, fazendo com que eles possam servir-se dela
ça; é este género humano que será salvo e que reencontraremos para cobrições, também elas, suplementares. E m suma, à propen-
na eternidade, apagadas todas as diferenças de sexo. Ao recusar a são "excessiva" para o prazer, que caracteriza naturalmente a
ideia de uma alternância de sexo na hiena. Clemente reitera o hiena, a natureza respondeu por meio de uma anatomia excessiva
princípio da "naturalidade" da diferença macho-fêmea no quadro que permite relações "excessivas". Mas, ao fazê-lo, a natureza
das entidades específicas. O homem e a mulher são, e devem mostra que não é somente em termos de quantidade que devemos
portanto permanecer, segundo o Logos da natureza, distintos um falar de excessos: uma vez que a bolsa excedentária da hiena não
do outro, o que não os impede nem de pertencerem ao mesmo se encontra ligada por canal algum aos órgãos da geração, o exces-
género humano, nem de esperarem que o outro mundo os liberte so depara-se "inútil", ou mais exactamente cortado do fim que a
da "dualidade do seu desejo"*^ natureza fixou aos órgãos da geração, às relações sexuais, à se-
Existe contudo na hiena uma singularidade, que não se encontra mente e à sua emissão — a saber, a procriação. E , uma vez que a
em qualquer outro animal. Clemente descreve-a seguindo Aristó- finalidade é assim esquivada, é então uma actividade contranatura
teles, quase palavra a palavra*". Trata-se de uma excrescência de que uma tal disposição, ao mesmo tempo natural e excessiva, para
carne que desenha por baixo da cauda uma forma muito próxima o exagero, sucede que permite e encoraja. Temos portanto todo um
de um sexo de fêmea, mas o exame rapidamente mostra que a dita ciclo que vai da natureza à contranatura, ou antes o entrecruzar-se
cavidade não abre sobre conduta alguma — nem na direcção da incessante de natureza e de contranatura que dá às hienas um ca-
matriz, nem na do intestino. Esta particularidade anatómica, no rácter reprovável, inclinações excessivas, órgãos excedentários e
entanto. Clemente não a trata como Aristóteles. Este serve-se dela meios de destes se servirem "para nada"*'.
para explicar como observadores precipitados puderam deixar-se O exemplo da lebre é analisado por Clemente da mesma manei-
iludir pelo equívoco da aparência: julgaram ver dois sexos no mes- ra. Desta feita, todavia, não se trata de um excesso na ordem da
mo animal; ele, pelo seu lado, não vê nela mais do que a ocasião esterilidade, mas de um exagero na própria fecundação. Conti-
de um erro humano de interpretação. Clemente, esse, vê, na singu- nuando a seguir Aristóteles, Clemente põe de parte a fábula da
laridade anatómica em causa, um elemento que mantém uma rela- lebre como animal de ânus anual, e substitui-lhe a ideia da super-
fetação. Os animais em apreço são tão lúbricos que tendem a

62 C L E M E N T E D E A L E X A N D R I A , O Pedagogo, I , iv, 10,2.


63 "Epithumias dikhazousês", ibid., I , iv, 10, 3. 65 Reportando-se a esta contranatura que se manifesta naturalmente no "demasia-
64 ARISTÓTELES, História dos Animais, V I , 579b. Cf. também Da Geração dos do" (/jer/ííon). Clemente caracteriza a vida virtuosa pelo aperittotês (O Pedagogo,
Animais, I I I , 757a.
I , x i i , 98,4).
46 Michel Foucault As Confissões da Carne 47

acasalar incessantemente, não respeitando tão-pouco o tempo da conta dos interditos "enigmáticos" do profeta*'. Trata-se em suma
gestação e do aleitamento. A natureza deu à fêmea uma matriz para Clemente de mostrar que o próprio Logos que Moisés trans-
com duas ramificações, que lhe permite conceber com mais de um mitiu, de modo breve como lei, a natureza manifesta-o, em deta-
macho e também até antes de parir. O ciclo natural da matriz, que, lhe, era figuras que podemos analisar. Ao colocar diante dos seus
segundo a lição dos médicos, reclama a fecundação quando está olhos o exemplo de todos aqueles animais reprováveis, a natureza
vazia e recusa a aproximação sexual quando está cheia, vê-se as- mostra ao homem que enquanto indivíduo racional não deve tomar
sim perturbado por uma disposição da natureza que permite so- por modelo seres que não têm senão uma alma animal. Mostra-lhe
brepor de modo inteiramente "contranatura" a prenhez e o cio. também a que ponto de contranatura todo o excesso pode condu-
Este longo rodeio de Clemente através das lições dos naturalis- ir, segundo uma lei que é a da própria natureza. Por fim, permite
tas pode parecer enigmático, se o compararmos, por exemplo, com fundamentar as interdições globais, que encontramos tanto nos
a Epístola de Barnabé. Esta última, com efeito, evoca também o filósofos pagãos como nos cristãos — proibição do adultério, da
caso da lebre e da hiena — às quais acrescenta outros animais, fornicação, da corrupção de crianças —, em considerações sobre
como o milhafre, o corvo, a moreia, o pólipo, a vaca e a doninha, a natureza. Porque tal é sem dúvida um dos traços mais notáveis
mas reportando-se apenas aos interditos alimentares do Levítico. de todo este capítulo de Clemente, e desta passagem sobre a lebre
E faz destes interditos uma exegese imediata, e que era corrente na òva hiena em particular. Os filósofos não tinham parado de lem-
época**. A coberto do consumo destes animais, é o comportamen- |rar que a lei, que devia presidir ao uso dos aphrodisia, era lei de
to que manifestam ou que simbolizam que se vê, de facto, conde- latureza. Mas a maior parte das considerações que avançavam
nada: as aves de rapina significam a avidez no despojar dos outros, |feria-se à natureza do homem como ser dotado de razão e como
a lebre significa a corrupção de crianças, a hiena o adultério, a ler social (necessidade de ter filhos para os dias da velhice, utili-
doninha as relações orais. Clemente recorda, também ele, os inter- dade de se ter uma família em termos de estatuto pessoal, obriga-
ditos do Levítico; entende ver, também ele, nessas prescrições ção de fornecer cidadãos ao Estado, homens à humanidade). Cle-
alimentares o símbolo de leis respeitantes à conduta. Mas não se (nente, neste texto, elimina tudo o que se reporta ao ser social do
atém a esta exegese, recorda-a somente no início e no termo do homem; desenvolve considerações de naturalista a partir das quais
longo caminho que percorre através da história natural*^ Toma pode fazer aparecer aquilo que é sem dúvida o essencial do seu
contudo o cuidado, antes do mais, de recusar a explicação a que propósito:
ele mesmo chama "simbólica"** para a substituir por uma análise a) K natureza indica que deve haver coextensão exacta entre a
anatómica séria. E sublinha, no termo do seu desenvolvimento do intenção procriadora e o acto sexual.
tema, que só tais considerações de história natural podem dar b) Através dos jogos da contranatura que ela própria organiza,
,a natureza mostra que este princípio de coextensão é um facto que
podemos ler na anatomia dos animais e uma exigência que conde-
66 Cf. a nota 53 da edição da Épitre du Pseudo-Barmbé, por S. SUZANNE- na aqueles que lhe escapam.
-DOMINIQUE e FR. L O U V E L (Paris, 1979). c) Este princípio interdiz pois, por um lado, todo o acto que se
67 O Pedagogo, I I , x , 83,4-5; e I I , x , 94,1-4.
fizesse fora dos órgãos da fecundação — "princípio da hiena" —
68 Encontramos essas explicações na Epístola do Pseiido-Barnabé: '"Não come-
rás lebre.' Porquê? Tal quer dizer: não corromperás crianças e não incitarás gente
dessa espécie, porque a lebre adquire a cada ano um ânus mais" ( X , 6 ) . 69 C L E M E N T E D E . A . L E X A N D R I A , O Pedagogo, I I , x, 88, 3.
48 Michel Foucault As Confissões da Came 49

e, por outro lado, todo o acto que viesse acrescentar-se à fecunda- camente, refere o adjectivo aidoios, vergonhoso, aplicado aos ór-
ção levada a cabo — "princípio da lebre". gãos sexuais, ao substantivo aidôs, ao qual atribui sentido de reser-
Nunca os filósofos, que tinham no entanto querido colocar os va e de justa medida: "parece-me que, se a este órgão se chamou
aphrodisia sob a lei da natureza e tentado pôr de parte entre eles partes vergonhosas (aidoidion), foi sobretudo porque nos devemos
o que era contranatura, tinham colocado a tal ponto a sua análise servir desta parte do corpo com reserva (aidôs)"^'*. Esta reserva é
sob o signo da natureza — entendida como a que os naturalistas portanto a regra que deve presidir ao exercício do domínio da alma
lêem no mundo animal. sobre o corpo. Ora, em que consiste esse domínio? " E m fazer na
ordem das uniões legítimas somente aquilo que convém, que é útil
2. É também sob o signo da natureza, mas desta feita da natu- e que tem decência."" O primeiro dos adjectivos usados remete
reza do homem enquanto ser dotado de razão, que Clemente colo- para o que pertence por natureza a este género de relação, o segun-
ca o desenvolvimento seguinte. E entrelaçará agora, na voz de i do para o seu resultado, o terceiro por fim para uma qualidade ao
Moisés™ e no exemplo de Sodoma", o ensinamento dos mestres mesmo tempo moral e estética. E o que se vê assim designado é o
da sabedoria pagã, todos os que se esforçaram por regular as rela- que é recomendado pela própria natureza. Esta dá aqui exactamen-
ções da alma e do corpo — os filósofos estóicos, os médicos, e te a mesma lição que dava há pouco nas figuras de animais: posi-
Platão sobretudo: este é tido até por ter lido Jeremias e as suas i tivamente "desejar" a procriação, negativamente evitar as semea-
imprecações contra os homens "semelhantes aos cavalos no cio", duras vãs^*. Clemente retoma pois exactamente as proposições
uma vez que fala, também ele, dos corcéis indóceis da alma^^. fundamentais que escolhera e depois justificara em termos de his-
O princípio que Clemente aqui faz valer é o princípio, familiar í tória natural. Mas agora, tendo a espiral do desenvolvimento des-
aos filósofos, da "temperança", com os seus dois aspectos correla- í crito uma volta sobre si própria, retoma-as ao nível da ordem hu-
tivos: o domínio da alma sobre o corpo, que é uma prescrição na- mana. Repete-as aproximadamente termo a termo, mas num con-
tural, uma vez que é da natureza da alma ser superior e da natureza . t e x t o em que se utilizam os termos de Nomos (lei), Nominos (legí-
do corpo ser inferior, como o indica a localização do ventre que é ;« timo), Paranomos (ilegítimo), Themis (justiça), Dikaios (justo) e
como que o corpo do corpo ("é necessário dominar os prazeres e 1 Adikos (injusto)''''. Não é que se trate assim de opor a ordem huma-
também comandar como senhor o ventre e o que está abaixo de- na à da natureza, mas antes de mostrar como a natureza nela se
le""); e a reserva, a moderação com a qual cada um deve satisfazer manifesta. "Toda a nossa vida pode decorrer observando as leis da
os seus apetites depois de se ter tornado senhor deles. Muito logi- ^ ^ n a t u r e z a , se dominarmos os nossos desejos."''* O domínio que a

70 De facto, Clemente atribui a Moisés a tripla interdição da fornicação, do adul-


tério e da corrupção de crianças que é de facto a trilogia tradicional dos filósofos. 74/Wí/., n, X, 90,2.
71 Temos aqui um dos primeiros exemplos da interpretação "sexual" da história 'li 75 [Ibid., I I , X, 90, 3]. Sobre aidôs (reserva respeitosa) distinta de aiskhunê (ver-
de Sodoma. '"•' gonha) e sobre o facto de as partes sexuais requererem a primeira e não a segunda,
72 "Estão em tropel na casa da prostituta, semelhantes a cavalos bem nutridos que cf. O Pedagogo, I I , v i , 52,2.
correm para um lado e para o outro; relincham cada um deles ante a mulher do 76 Ibid., I I , X, 90,3-4. Sobre este ponto Clemente mistura o ensinamento de Platão
próximo", Jeremias, 5,7-8. e a lei de Moisés.
73 C L E M E N T E D E A L E X A N D R I A , O Pedagogo, I I , x , 90, 1. Deste princípio. 1 77 Cf. ibid., I I , X, 90,4; 9 1 , 1 ; 92, 2; 92, 3; 95, 3. Sobre o tema antignóstico de as
Clemente diz que é o princípio soberano, aquele que comanda todos os outros ordens de Deus serem boas e justas, cf. ibid., I , capítulos viii e ix.
iarkhikôtaton).
78/Wí/.,II,x,96,l.
50 Michel Foucault As Confissões da Carne 51

razão prescreve e que define as formas legítimas do comportamen- truos são bem, com efeito, uma substância impura*^ Mas, além
to é ainda uma maneira de se escutar o Logos que rege a natureza. disso, como dizia o médico Sorano, "a semente é diluída no sangue
A essa reserva, que manifesta o domínio da razão sobre os ape- e rejeitada por ele"*". Arrasta pois consigo a semente que nele se
tites do corpo. Clemente dá quatro formas principais. mistura, arrancando-a assim ao seu alvo que é a matriz, e ao seu
a. A primeira circunscreve as relações sexuais à mulher a que fim que é a procriação. Uma vez que a semente constitui para "as
cada qual esteja ligado pelo casamento. Disse-o Platão ("não la- razões da natureza" um receptáculo material e uma vez que detém
vrar pouco importa que campo feminino"), extraindo-o, segundo as forças que, desenvolvidas segundo a sua ordem racional, darão
Clemente, do Levítico ("Não terás comércio com a mulher do teu origem a um ser humano, não merece nem ser exposta ao contacto
vizinho, contaminando-te com ela", 18, 20). Mas desta regra, O das impurezas, nem ser destinada a uma expulsão brutal.
Pedagogo apresenta uma justificação que difere por completo da c. A interdição das relações durante a gravidez constitui a recí-
de Platão: na regra monogâmica. As Leis descobriam um meio de proca do princípio anterior. Porque, se devemos preservar a semen-
limitar o ardor das paixões e a humilhante servidão em que aque- te de toda a evacuação impura, do mesmo modo devemos proteger
las podiam manter os homens'''; Clemente, pelo seu lado, vê nela a matriz depois de esta ter acolhido a semente e iniciado o seu
a garantia de que a semente — da qual disse antes que continha as trabalho. Devemos respeitar o ritmo espontâneo que Clemente evo-
"ideias da natureza"*° e cuja fecundação, recorda-o de novo, se ca como se segue: vazia, a matriz deseja procriar, procura acolher
inscreve nas relações entre Deus e as suas criaturas — [não] vá a semente e a cópula não pode então ser considerada como uma
perder-se*' nalgum lugar sem honra. É um certo valor da semente falta, uma vez que corresponde a esse desejo legítimo*'. Aqui, uma
em si mesma, com o que contém e o que promete, com o que im- vez mais. Clemente ecoa um ensinamento médico perfeitamente
plica de sinergia entre Deus e o homem para alcançar o seu fim corrente: "nem todo o momento é favorável à semente projectada no
natural, que torna ilegítimo e "injusto" que alguém a confie seja a útero pelas aproximações sexuais", é no momento em que cessa o
quem for, excepto à esposa a que está unido. escoamento menstrual e em que a matriz se encontra vazia que "as
b. Outro princípio de restrição: a abstinência de relações sexuais mulheres são impelidas ao acto venéreo e o desejam"**. Esta alter-
durante as regras. "Não é conforme à razão contaminar com as nância nas disposições do corpo mostra bem, segundo Clemente, a
impurezas do corpo a parte mais fecunda do esperma, que breve- razão que preside à sua natureza, e define os justos limites de uma
mente pode tornar-se um ser humano, afogá-lo no vazamento turvo conduta temperante. Mas O Pedagogo desloca a significação deste
e impuro da matéria: é o germe possível de um nascimento feliz ritmo e da regra de temperança que dele se deriva. Os médicos
que é assim furtado aos sulcos da matriz."*^ Trata-se aqui de uma desaconselhavam durante a gravidez as relações sexuais "porque
prescrição de origem hebraica. Mas Clemente substitui o interdito
de impureza ao mesmo tempo num jogo de referências médicas
83 Clemente usa a palavra apokatharma [ibid.,11, x , 9 2 , 1 ] .
implícitas e na sua concepção geral da semente. Para ele, os mêns- 84 SORANO, Tratado das Doenças das Mulheres, I , x.
85 Clemente usa a palavra horexis que no vocabulário estóico designa o desejo
79 Os textos que Clemente cita encontram-se no livro V I I I de As Leis (819a-841e). como movimento natural (por oposição a epithumiá).
80 [ C L E M E N T E D E A L E X A N D R I A , O Pedagogo, I I , x, 83,3.] 86 SORANO, loc. cit., capítulo X . É também uma ideia médica que a mulher não
81 [Manuscrito: "vá perder-se".] pode efectivamente conceber se não desejar a relação sexual. De onde se concluía
82 O Pedagogo, I I , x , 92, 1. C f . também FÍLON, De specialibus legibus, I I I , que, se uma mulher concebesse após uma violação, era porque de certa maneira a
32-33. desejara.
52 Michel Foucault As Confissões da Carne 53

imprimem movimento em todo o corpo", e, pelos abalos que impri- um texto de Demócrito — "um homem nasce de um homem e é
mem no útero, "são perigosas durante todo o tempo da gravidez" arrancado dele" [fragmento 32 Diels] — com um versículo do
— sobretudo, nos últimos meses". Clemente, por seu turno, invoca Génesis — "é osso dos meus ossos e carne da minha carne" (2,
o facto de que, se a matriz se fecha durante a gravidez, é porque 23). Se o corpo é tão violentamente abalado na emissão da semen-
"trabalha na fabricação da criança", labor que leva a cabo "em si- te, é porque se encontra desligada dele e projectada uma substân-
nergia como Demiurgo"**. Enquanto dure esta elaboração e colabo- cia que contém em si mesma as razões materiais que permitirão
ração, toda a nova contribuição de semente mostrar-se-á excessiva: fazer um outro homem semelhante àquele de onde ela vem.
uma "violência" pois, que não seria "justo" querer impor. Durante Apercebemo-nos aqui da tendência, que era frequente na Antigui-
a gravidez, tudo o mais que se lhe acrescente é "demasiado". dade, de tornar a ejaculação simétrica do parto. Mas, citando
d. Mas se a "natureza" da mulher dita uma economia tão rigo- Adão, ao qual Deus acaba de arrancar uma costela durante o sono
rosa, que se passa do lado do homem? É sem dúvida seguindo o para dela fazer a sua companheira. Clemente evoca claramente a
fio desta interrogação que Clemente evoca um tema médico intei- "colaboração" de Deus nessa obra de carne puramente masculina.
ramente tradicional: a longa série dos males, doenças e fraquezas A prescrição de não abusar não diz pois respeito apenas à prudên-
que pode acarretar o uso demasiado frequente dos prazeres do cia dos corpos. O abalo necessariamente custoso da emissão de
amor. A este propósito. Clemente evoca as provas directas habi- semente remete para a indispensável gravidade dessa sinergia.
tualmente dadas e as provas indirectas, não menos costumadas: Destes grandes princípios de restrição nas relações sexuais,
vigor de todos os que, homens ou animais, se abstêm o mais pos- pode deduzir-se toda uma série de prescrições diversas que Cle-
sível de relações sexuais. Esta ideia banal. Clemente liga-a à pro- mente acumula sem muita ordem aparente. Umas proíbem o abor-
posição, também famosa, de Demócrito: a união sexual é uma to, outras recomendam que se não tenham relações sexuais duran-
"pequena epilepsia"*'. Sem ter sido retomada por todos os médi- te o dia, quando se sai da igreja ou de uma reunião, à hora da
cos, trafa-se de uma ideia que encontramos com bastante frequên- oração, mas somente à noite; outras prescrevem que não se trate a
cia na literatura médica: quer sob a sua forma estrita como em esposa como "prostituta"; outras excluem o casamento dos jovens
Galeno'°, ou sob uma forma mais ampla como em Rufo de Éfeso, e dos velhos. Tudo isto define de facto um código de temperança
que coloca "na família do espasmo" os "movimentos violentos" cujas conclusões, ainda que aconteça serem por vezes mais seve-
que acompanham o coito". Ora, a esta aproximação entre epilep- ras, são do mesmo tipo das que podemos encontrar entre os filó-
sia e acto sexual. Clemente dá uma significação precisa, que apoia sofos pagãos. E tal é com efeito a regra de temperança cujos
de resto [sobre] uma dupla referência que lhe permite entrecruzar princípios Clemente recorda várias vezes: o homem deve perma-
necer senhor dos seus desejos, não se deixar arrebatar pela sua
87 Ibid.
violência, não se entregar, sem controle da razão, aos impulsos do
88 C L E M E N T E D E A L E X A N D R I A , O Pedagogo, I I , x , 93, 1. A frase remete corpo'^. Trata-se do ideal daquilo a que Clemente chama noutro
explicitamente para os primeiros capítulos sobre a cooperação entre a criatura e o lugar o "casamento temperante"'^. Mas este princípio parece não
Criador no nascimento dos homens.
89 DEMÓCRITO, Fragmento'^ 32, ed. H . Diels.
90 G A L E N O , Comentário das Epidemias de Hipócrates, III,'i,tm que cita Demó- 92 C L E M E N T E D E A L E X A N D R I A , O Pedagogo, H, x, 89,2; 90,2-4; 93,2; 9 6 , 1 .
crito; cf. também De «fi/ítofôparííí/m, X I V , 10. 93 O "sôphrôn gamos". Não esquecer que o propósito de O Pedagogo é introduzir
91 R U F O D E ÉFESO, (Euvres, ed. Daremberg, p. 370. uma vida temperante ("sôphrôn bios", I , i , 1,4).
54 Michel Foucault As Confissões da Came 55

ser para ele o princípio último. Se cada qual deve permanecer te trata-o segundo uma argumentação também ela muito clássica.
"senhor de si", não é tanto para manter o justo equilíbrio e a ne- Procurando enterrar um pecado na sombra e na solidão, não se
cessária hierarquia entre as faculdades, como para garantir o res- atenua a sua gravidade, mostrando-se antes a que ponto se está
peito, o pudor, a reserva que reclama uma semente que forma o consciente da sua importância. O segredo manifesta a vergonha, e
receptáculo de "razões" imanentes à natureza e que é ocasião de esta constitui um juízo que a própria consciência assume. E se um
uma cooperação entre Deus e o homem. União na qual o ser racio- tal pecado não prejudica ninguém, a consciência continua presente,
nal respeita a alma que deve prevalecer sobre o corpo e a cons- como acusador e como juiz: é aquele mesmo que o comete que o
ciência que deve controlar os movimentos involuntários? Sim, sem pecado prejudica e é em benefício de si mesmo que aquele que o
dúvida. Mas o "casamento temperante" de Clemente respeita so- comete deve condenar-se. Encontramos estes raciocínios tanto em
bretudo aquilo que, passando através dele, vai do Criador eterno à Musónio'" como em Séneca''. Clemente retoma-os brevemente.
multiplicidade das criaturas futuras, e encontra na semente e na E todavia, é numa outra direcção que se encaminha a sua aná-
fecundação um momento material importante. É "a economia" lise — ou antes os temas que Clemente varia, de modo muito livre,
deste movimento, mais do que a estrutura do composto humano, em torno da questão da falta secreta. Evoca de início o tema da
que define o kairos das relações sexuais. noite e da luz. Por mais profundas que sejam as trevas que envol-
vem a falta, há sempre uma luz que as habita e ilumina aquilo que
3. O último movimento do texto é de longe o mais breve; elas escondem. Olhar de Deus ao qual nada escapa, e que consti-
desenha-se com as últimas recomendações acerca do casamento tui, sempre presente no mundo, uma luz espiritual? Sim, sem dú-
temperante, as mais ténues, mais exigentes que rodeiam as grandes vida, e os filósofos pagãos reconheceram a sua evidência.
proibições. Não usar palavras obscenas, evitar gestos licenciosos, Mas é também a luz que habita em nós e constitui a nossa cons-
não ter relações com prostitutas e recordar do mesmo modo — ciência. Fragmento do Logos que rege o mundo, que depõe em nós
aqui Clemente repete quase palavra a palavra um aforismo que se um elemento de pureza. Por referência a ele, a falta que se comete
podia encontrar já entre os filósofos — que se comete adultério não constitui somente uma desobediência, um atentado contra os
quando se age com a própria esposa como se esta fosse uma corte- princípios da razão, mas também uma contaminação. E a tempe-
sã. Com estas prescrições, entramos no domínio das faltas que es- rança não é simplesmente conformidade com uma ordem univer-
capam ao olhar dos outros e que se cometem sobretudo aos olhos sal, mas parcela pura dessa luz: não procuremos "dissimular-nos
da própria consciência de cada um. Pecados da sombra. Deve ter-se nas trevas, porque o pensamento habita em nós; [...] a noite ilumi-
presente que não estamos perante faltas de intenção, maus pensa- na os pensamentos castos; e foi aos pensamentos dos homens de
mentos, concupiscências e tentações que serão, num cristianismo bem que as Escrituras deram o nome de lâmpadas que nunca se
um pouco posterior, o elemento chave dos pecados da carne. Cle- apagam"'*.
mente não fala senão dos pecados que são sem carácter público. A Não podendo o puro ter contacto senão com o puro. Deus, se
noite e o silêncio envolvem-nos: não têm aparentemente por teste- contaminamos em nós a pureza do seu Logos, não pode deixar
munha e por juiz senão a consciência daquele que os comete — a
consciência do parceiro não parece aqui ter importância. O proble-
94 MUSÓNIO RUFO,Reliquiae, X I I , 1-2 e 7, p. 65.
ma do pecado sem outra testemunha que não a consciência própria 95 SÉNECA, Cartas a Lucttio, 82,8 e 16.
é ainda um tema muito frequente na literatura filosófica, e Clemen- 96 C L E M E N T E D E A L E X A N D R I A , O Pedagogo, I I , X, 99,6.
56 Michel Foucault As Confissões da Came 57

de se afastar de nós. Abandona-nos portanto à nossa vida de "perseguir uma vida à medida da dos anjos"". Podem assim
"corrupção". Pelo que Clemente entende ao mesmo tempo, em "cumprir-se as obras do Pedagogo" e cumprir-se a Palavra: "à
sentido metafórico, a vida do pecado e, em sentido estrito, uma imagem e semelhança"'"".
vida que está votada à morte. A intemperança corrompe: não É certo que, através destes temas da luz interior, do puro e do
porque atingiria a luz, que é em si mesma inacessível e não pode impuro, do corpo como templo do Cristo, e desta ascensão orien-
ser obscurecida, mas porque obriga a luz a abandonar o corpo ao tada para a incorruptibilidade e a vida eterna. Clemente toca em
seu destino mortal. O corpo intemperante apodrecerá porque temas que no século iii e sobretudo no século iv assumirão uma
Deus, abandõnando-o, o deixa no estado de cadáver'^, enquanto grande importância — em particular sob a influência do ascetis-
aquele que se mantém temperante se revestirá de uma "incorrup- mo monástico: tema da pureza rigorosa do pensamento e o tema
tibilidade", a do Logos que habita nele, e que o fará aceder à vida da virgindade de coração como condições da vida angélica. Mas
eterna. Éj|.devemos notar logo a seguir que a exigência de uma pureza do
Há nesta concepção da "temperança" em Clemente mais do que [«.pensamento, com uma renúncia que incide sobre os próprios dese-
a simples exigência de um equilíbrio bem governado entre o corpo K^jos, apenas é evocada no extremo fim do capítulo, numa única
e a razão. Mas também não se trata aqui, à maneira dualista, de frase. Devemos notar que Clemente não evoca então, como se fará
uma recusa radical do corpo como princípio substancial do mal. mais tarde, o arrancamento vigilante, constante e preliminar de
Trata-se não de um aprisionamento, mas de uma habitação do todos os mais pequenos desejos que podem formar-se no coração,
Logos no corpo, e a "temperança" consiste em fazer com que o mas sim a vontade de não nos deixarmos vencer por eles'"'. Deve-
corpo se torne ou continue a ser o "templo de Deus" e com que os mos notar que, imediatamente após esta última recomendação, ele
seus membros sejam e se tornem os "membros de Cristo". A tem- opõe à reprovação desta derrota o princípio da boa conduta, o
perança não é arrancamento ao corpo, mas movimento do Logos mesmo que evocara no início do capítulo e ao qual regressa no
incorruptível no próprio corpo, movimento que o conduz até essa fim: necessidade de semear tão-só no bom momento, quando o
outra vida onde, lá e somente lá, poderá viver-se a vida angélica, kairos o indica. Não opõe à obra da carne uma renúncia absoluta.
em que a carne inteiramente purificada já não conhecerá a dife-
rença dos sexos nem as relações que os unem. É nestes termos que
99 C L E M E N T E D E A L E X A N D R I A , O Pedagogo, I I , x , 100,3. "O abandono das
Clemente interpreta a passagem do Evangelho de Lucas sobre o obras de carne" {katargêsantes ta tês sarkos erga) não significa aqui o abandono
novo casamento das viúvas'*, que viria a ser objecto de numerosas da procriação; parece tratar-se de uma referência à Epístola aos Gálatas, em que
controvérsias: não vê nela, ao contrário de alguns outros, a ideia de as obras da came são enumeradas como a impudicfcia, a impureza, a dissolução,
a idolatria, a magia, as inimizades, as querelas — em suma, os principais pecados
uma distinção entre os "filhos do século" que tomariam marido ou
em geral (SÃO P A U L O , Epístola aos Gálatas, 5,19-21).
mulher, e aqueles que, não tomando nem marido nem mulher, 100 C L E M E N T E D E A L E X A N D R I A , O Pedagogo, I , i i i , 9 , 1 .
participariam na ressurreição; mas a ideia de que, a partir do ca- 101 "Não temos o direito de nos abandonarmos à volúpia nem de nos deixarmos
samento que é a lei deste mundo, o abandono das obras de carne ficar estupidamente à espera dos desejos sensuais, nem também de permitirmos
e a incorruptibilidade da qual nos revestimos assim nos permitem que nos impressionem demasiado os apetites contrários à razão, nem por fim de
desejarmos a polução" {ibid., I I , x , 102, 1). No entanto, no Stromata I I I , v i i . Cle-
mente exprimirá uma concepção muito mais exigente da relação com os desejos.
97/èíd.,II,x,100,1. A egkrateia dos pagãos consiste em não se submeterem aos desejos; a dos cristãos
98 Lucas, 20,27-37. reside no mê epithumein: vencer não só os desejos, mas também o facto de desejar.
58 Michel Foucault As Confissões da Carne 59

mas, à derrota que se sofre perante os aphrodisia, o princípio de tempo debatida'"' à qual Clemente dá uma resposta subtil: não foi
semeaduras boas e eficazes. A própria estrutura deste último pa- o facto de ter havido uma relação sexual que constituiu o pecado.
rágrafo põe frente a frente o facto de se estar "submetido aos Mas o de ela não ter tido lugar no bom momento, "quando tal con-
aphrodisia" e o facto de se não consentir em mais do que plantar vinha". Contra as ordens que lhes tinham sido dadas, Adão e Eva
as sementes'"^. Por fim e sobretudo, devemos notar que a palavra uniram-se demasiado jovens'"*. Infringiram, em suma, a economia
usada por Clemente, não só no início do texto quando define a do kairos, e ignoraram a lei do tempo. Crianças precoces e indó-
razão natural que preside às boas relações sexuais, mas nesse fim ceis, escaparam a essa razão que O Pedagogo justamente deve en-
de capítulo em que se trata do corpo como templo de Deus, e da sinar agora a uma humanidade que não pode ser regenerada excep-
veste de incorruptibilidade, continua a ser a mesma palavra por to na condição de se saber "criança". Tal foi a queda, conforme a
meio da qual os filósofos designavam a temperança: sôphrosunê. explica O Protréptico: o Adão infantil, "sucumbindo à volúpia" e
Dá sem dúvida a este termo uma significação diferente do simples deixando-se "seduzir pelos seus desejos", perdeu o seu estado de
domínio de si mesmo, das paixões e do corpo. Mas não lhe dá o infância; a sua desobediência tornou-o "homem", desprovido de
sentido de uma renúncia às relações sexuais — para a qual usa todo o apoio do Logos pedagógico'"^. Esta queda por precocidade
regularmente (e assim no terceiro Stromata) o termo de eunou- mostra bem que a geração não é má em si mesma, mas que só po-
khia. Trata-se, de facto, nesta temperança, de uma economia da dem sê-lo as condições em que se faz. Está inocente da falta de
procriação. Esta deve ser determinada pela razão natural das "se- \dão, e é por isso que é não só absolvida, mas também celebrada
meaduras humanas", mas é também e ao mesmo tempo a forma de nesta mesma passagem do terceiro Stromata; Clemente joga com a
uma colaboração entre Deus e o homem. A "coroa de vida", a tú- palavra génesis que se refere tanto à Criação como à procriação.
nica de imortalidade não podem ser o prémio de uma ruptura com Até mesmo depois do primeiro pecado, "a origem permanece san-
a referida economia — pode até dizer-se que o celibato é um acto ta" — ela através da qual "foram constituídos o mundo, as essên-
ímpio na medida em que suprime a "geração"'"'. Serão antes o cias e os seres naturais, os anjos e as potestades e as almas, os
prémio de uma fidelidade exacta ao que o Logos exige para que mandamentos, as leis e o Evangelho, e a gnose de Deus"'"*.
aquela economia alcance os fins que lhe estão fixados: a saber, O acto da procriação humana remete pois para o poder da Cria-
fazer filhos segundo uma "vontade santa e sensata"'"". ção no interior da qual se inscreve e do qual detém o seu próprio
Numa passagem do terceiro Stromata, Clemente comenta o tex-
to do Génesis sobre a queda do primeiro casal humano: a falta 105 E m De carne Christi, por exemplo, T E R T U L I A N O vê a origem da queda no
cometida terá consistido no acto sexual? Questão durante muito facto de a serpente se ter insinuado no corpo da mulher ainda virgem. Do que seria
Caim a descendência ( X V I I , 5).
106 "Thatton ê prosêkon ên, eti neoi pephukotes", C L E M E N T E D E A L E X A N -
D R I A , Stromata, I I I , xvii (P. G . , t. 8, col. 1205). Sobre o perigo, em geral, que
102 "Oiikoun aphrodisión hêttasthai [...]. Speirein de monon...", C L E M E N T E correm os jovens que o desejo inflama demasiado cedo, C L E M E N T E D E A L E -
D E A L E X A N D R I A , O Pedagogo, I I , x , 102,1.
X A N D R I A , O Pedagogo, I , i i , 20, 3-4.
103 C L E M E N T E D E A L E X A N D R I A , Stromata, I I , x x i i i , 141, 5. Esta posição
107 "Pais andrizomenos apeitheia", C L E M E N T E D E A L E X A N D R I A , O Pro-
não é para Clemente absoluta. Cf. a passagem sobre a possibilidade de cada qual
casar ou não casar. tréptico, XI, m,l.
104 "Semnôi kai sôphroni paidopoioumenos thelêmatr, ibid., I I I , V I I (P. G . , t. 8, 108 C L E M E N T E D E A L E X A N D R I A , Stromata, I I I , xvii (P. G . , t. 8, col. 1205).
coLllól). Clemente lembra que seria uma blasfémia condenar a génesis na qual Deus toma
parte.
60 Michel Foucault As Confissões da Carne 61

poder. Mas Clemente pensa-o também em função daquilo que na lo X do livro seguinte. O ciclo do sangue, do esperma e do leite
história do mundo constitui a réplica da Criação pelo Pai: a rege- com o Logos que os habita e que eles transmitem liga-nos forte-
neração por Cristo, pela sua Encarnação, o seu sacrifício e o seu mente ao parentesco de Deus.
ensinamento. No longo capítulo V I do primeiro livro, consagrado E quando O Pedagogo, enquanto ensino de Cristo, enquanto
ao uso da palavra "crianças", O Pedagogo desenvolve o tema do leite do qual Cristo nutre a nossa infância, nos diz qual é o kairos,
ensinamento de Cristo como leite nutriente"". Esboça toda uma o momento da procriação conveniente, é de facto no grande movi-
"fisiologia" do sangue nas suas metamorfoses: substância que mento da Criação ao Parto, da Origem à Regeneração que fixa a
contém em si mesma todos os poderes do corpo, o sangue-Logoí economia da geração.
aparece também sob duas outras formas: aquecido, agitado, escu-
ma e torna-se esperma, transmitindo assim à humidade da matriz * .
os princípios dos quais poderá nascer, por desenvolvimento, um
outro corpo; mas refrescado e penetrado de ar, o sangue torna-se O Pedagogo, como muitas vezes se disse, é testemunho pois de
leite na mãe e, sob essa forma, continua a transmitir à criança os uma grande continuidade com os textos da filosofia e da moral
poderes que habitam o corpo dos pais: o aleitamento é a continua- pagã da mesma época, ou de um período imediatamente anterior.
ção do acto através do qual a vida foi dada à criança pela fecunda- Trata-se da mesma forma de prescrição: um "regime" de vida que
ção; o mesmo sangue e os mesmos poderes, sob um outro aspecto, define o valor dos actos em função dos seus fins racionais e das
são-lhe transmitidos. Assim, depois de ter oferecido o seu sangue, "ocasiões" que permitem efectuá-los legitimamente. Trata-se tam-
Cristo dá aos homens-crianças o leite do seu Logos. Ensina-os, é bém de uma codificação "clássica", uma vez que nela encontramos
o seu pedagogo. Entre o sangue outrora derramado, na Paixão, e o os mesmos interditos (o adultério, o deboche, a contaminação das
leite que corre indefinidamente da sua Palavra, a procriação sus- crianças, as relações entre homens), as mesmas obrigações (ter em
cita esse povo dos "pequeninos" que o Logos engendra e regenera. vista a procriação de filhos no momento do casamento e das rela-
Esta passagem de O Pedagogo, em que Clemente faz a teoria ções sexuais), com a mesma referência à natureza e às suas lições.
do ensino que dará nos livros seguintes, não menciona o esperma, Mas esta continuidade visível não deve deixar crer que Clemen-
entre sangue e leite, salvo de modo muito passageiro. O essencial te tenha simplesmente inserido um fragmento de moral tradicio-
do texto incide sobre a regeneração e não sobre a origem. Mas, nal, completado por elementos adicionais de origem hebraica, no
por um lado, indica claramente o lugar da procriação na grande interior das suas concepções religiosas. Por um lado, reuniu num
"fisiologia" do Logos. Sublinha o parentesco e portanto a seme- mesmo conjunto prescritivo uma ética do casamento e uma econo-
lhança que nos liga assim a Deus: o "parentesco" pelo sangue, a mia detalhada das relações sexuais, definiu um regime sexual do
"simpatia" pela educação"" dos quais fala esta passagem próprio casamento — enquanto os moralistas "pagãos", ainda
completar-se-ão pela sinergia na procriação da qual fala o capítu- quando não aceitavam as relações sexuais senão no casamento e
em vista da procriação, analisavam separadamente a economia
dos prazeres necessários ao sábio e as regras de prudência e de
109 Sobretudo a partir de 34,3 (O Pedagogo, I , vi), onde comenta a Primeira Epís- conveniência próprias das relações matrimoniais. E , por outro la-
tola aos Coríntios, 3,2: "Dei-vos leite, e não alimento sólido."
do, deu uma significação religiosa a este conjunto de prescrições,
110 "Sungeneia dia to haima [...]. Siimpatheia dia tên anatrophên", C L E M E N T E
D E A L E X A N D R I A , O Pedagogo, I , v i , 49,4. repensando-o em termos globais na sua concepção do Logos. Não
62 Michel Foucault As Confissões da Came 63

importou para o seu cristianismo uma moral que lhe fosse estra- mesmo lapso de tempo, produzir-se-ão transformações capitais:
nha. Sobre um código já formado, constituiu um pensamento e no sistema geral dos valores, com a preeminência ética e religiosa
uma moral cristãos das relações sexuais, mostrando assim que não da virgindade e da castidade absoluta; no jogo das noções utiliza-
havia mais do que uma possível, e portanto que seria inteiramente das com a importância crescente da "tentação", da "concupiscên-
abusivo imaginar que foi "o" cristianismo que, por si mesmo e cia", da carne e dos "movimentos primeiros" que mostram não só
pela força das suas exigências internas, impôs necessariamente uma certa modificação do aparelho conceptual, mas também um
esse estranho e singular conjunto de práticas, de notações e de deslocamento do domínio da análise. Não é tanto o código que é
regras a que se dá o nome de "a" moral sexual cristã. reforçado, nem as relações sexuais que passam a ser mais estrita-
É que, seja como for, esta análise de Clemente mantém-se mui- mente reprimidas; é um outro tipo de experiência que pouco a
to distante dos temas que se encontrarão mais tarde em Santo pouco se forma.
Agostinho e que, esses, terão um papel muito mais determinante Esta mudança deve ser evidentemente ligada a toda a evolução
na cristalização "daquela" moral. Entre Clemente e Agostinho, há muito complexa das Igrejas cristãs que conduziu à constituição do
evidentemente toda a diferença entre um cristianismo helenizante, Império Cristão. Mas, mais precisamente, deve ser referida à ins-
estoicizante, inclinado a "naturalizar" a ética das relações sexuais, tauração no cristianismo de dois elementos novos: a disciplina
e um cristianismo mais austero, mais pessimista, que não pensa a penitencial, a partir da segunda metade do século ii, e a ascese
natureza humana senão através da queda, e afecta por conseguinte monástica, a partir do fim do terceiro. Estes dois tipos de práticas
as relações sexuais de um índice negativo. Mas não nos podemos não produziram um simples reforço dos interditos, ou levaram a
limitar à constatação desta diferença. E , sobretudo, não é em ter- introduzir nos costumes um maior rigor. Definiram e desenvolve-
mos de "severidade", de austeridade, de maior rigor no interdito, ram um certo modo de relação de si consigo mesmo e uma certa
que podemos avaliar a mudança que se produziu. Porque, se con- relação entre o mal e a verdade — digamos mais precisamente
siderarmos somente o código propriamente dito e o sistema dos entre a remissão dos pecados, a purificação do coração e a mani-
interditos, a moral de Clemente não é mais "tolerante" daquilo que festação das faltas escondidas, dos segredos, e dos arcanos do in-
se lhe seguirá: o kairos que legitima o acto sexual exclusivamente divíduo no exame de si, na confissão, na direcção de consciência
no casamento, em vista exclusivamente da fecundação, nunca du- ou nas diferentes formas de "confissão" penitencial.
rante as regras ou a gravidez, e nunca noutro momento do dia ex- A prática da penitência e os exercícios da vida ascética organi-
ceptuada a noite, não lhe abre vastas possibilidades"'. E , de todas zam relações entre o "fazer o mal" e o "dizer a verdade", retinem
as maneiras, as grandes linhas divisórias entre o permitido e o num mesmo feixe as relações de si consigo mesmo, com o mal e
proibido continuaram, no essencial e nas suas linhas gerais, a ser com a verdade, num registo que é sem dúvida muito mais novo e
as mesmas entre o século n e o século v"^. E m contrapartida, no muito mais determinante do que este ou aquele grau de severidade
adicionado ou subtraído ao código. Trata-se, com efeito, da forma
111 "Devemos de facto reconhecer que [a moral sexual de Clemente] é extrema- da subjectividade: exercício de si sobre si mesmo, conhecimento
mente rigorosa: os seus preceitos ultrapassam com frequência em severidade as de si por si mesmo, constituição do si mesmo como objecto de
posições que se tornarão tradicionais na Grande Igreja", J.-P. BROUDÉHOUX,
investigação e discurso, libertação, purificação de si inesmo e sal-
Mariage etfamille chez Clement d'Alexandríe, Paris, 1970, p. 136.
112 Um dos principais interditos "novos", o regime complexo e extensivo do in- vação através das operações que levam a luz ao fundo de si mes-
cesto, pouco será desenvolvido antes da Alta Idade Média. mo, e conduzem os segredos mais profundos até à luz da manifes-
64 Michel Foucault

tacão redentora. É uma forma de experiência — entendida ao


mesmo tempo como modo de presença a si e esquema de transfor-
mação de si — que então se elaborou. E foi ela que pouco a pouco
colocou no centro do seu dispositivo o problema da "carne". E , em
vez de um regime das relações sexuais, ou dos aphrodisia, que se
integra na regra geral de uma vida recta, passará a ter-se uma re-
lação fundamental com a carne que atravessa a vida inteira e
subjaz às regras que se lhe impõem.
[II]
A "carne" deve ser compreendida como um modo de experiên-
cia, quer dizer, como um modo de conhecimento e de transforma-
[O B A P T I S M O LABORIOSO]
ção de si por si, em função de uma certa relação entre anulação do
mal e manifestação da verdade. Com o cristianismo, não se passou
de um código tolerante perante os actos sexuais a um código se-
"Que cada um de vós seja baptizado para obter o perdão.""" O
vero, restritivo e repressivo. É noutros termos que devemos conce-
baptismo é até ao século ii "o línico acto eclesiástico que pode
ber os processos e as suas articulações: a constituição de um có-
assegurar a remissão das faltas""'.
digo sexual, organizado em torno do casamento e da procriação,
fora largamente iniciada antes do cristianismo, fora dele, a par Esta remissão, os autores do século ii associam-na em geral a
dele. O cristianismo retomou-a por sua conta, no essencial. E foi quatro efeitos produzidos pelo próprio acto do baptismo. Este la-
no decurso dos seus desenvolvimentos posteriores e através da va, apaga, purifica: a imersão retira as manchas. "Entramos na
formação de certas tecnologias do indivíduo — disciplina peniten- água, cheios de contaminações, e saímos dela carregados de fru-
cial, ascese monástica — que se constituiu uma forma de expe- tos.""* Impõe também uma marca: "a água do baptismo" é "o
riência que fez com que o código funcionasse de um modo novo e selo do filho de Deus""''; aqueles que o recebem encontram-se
o fez tomar corpo, de maneira completamente diferente, na condu- desse modo consagrados a Deus; trazem com eles o sinal da sua
ta dos indivíduos'". pertença e do compromisso que assumiram: como um selo no fi-
nal de um documento, o ferro que marca os animais do rebanho
E , para fazermos a história desta formação, é-nos necessário
ou a tatuagem no braço dos soldados"*. O baptismo, além disso,
analisar as práticas que a asseguraram. Não que pretendamos re-
constitui um novo nascimento: dá de novo a vida. Esta palingene-
traçar a génese de tais instituições bastante complexas, trata-se
somente de tentar fazer aparecer as relações que aqui se estabele-
cem entre a remissão do mal, a manifestação da verdade e a "des- 114 Actos dos Apóstolos, I I , 38.
coberta" de si. 115 A . B E N O I T , U Baptême chrétien au secondsiècle. Paris, 1953, p. 188.
116 Epístola do Pseudo-Barnabé, X I , 11.
117 H E R M A S , O Pastor, Similitude IX, 16,2-4.
113 [Passagem rasurada por Foucault na versão dactilografada: " E m breve o es-
118 Sobre as diferentes significações do selo, cf. F J . DÕLGER, Sphragis, Pader-
quema do código, da repressão e da interiorização dos interditos deixa de ser capaz
de dar conta desses processos que permitem precisamente aos códigos tomarem-se born, 1911. Segundo H E R M A S , aparece como a sigla de que alguém se serve para
condutas ou às condutas delinear códigos — a saber, os processos de 'subjectiva- poder entrar num lugar reservado: "hina eiselthôsin eis tên basileian tou theou"
ção'. A carne é um modo de subjectivação."] (Similitude XIX, 16, 4).
66 Michel Foucault As Confissões da Came 67

sia é por vezes representada como um segundo nascimento. De- apaga as contaminações e faz desaparecer as manchas que obscu-
pois do primeiro — aquele que, segundo Justino, se fez por "ne- recem a alma, impedindo a chegada da luz. Selo, marca o compro-
cessidade" e na "ignorância", a partir de uma "semente húmida", misso e a pertença, mas grava também o nome de Cristo — o seu
na "conjunção dos nossos pais" —, o baptismo "rejuvenesce-nos" nome, quer dizer, a sua imagem doravante presente na alma'".
fazendo-nos nascer de novo, mas desta vez na "livre escolha" e no Regeneração, faz aceder a uma vida de onde o mal está ausente e
"conhecimento": tornamo-nos assim os filhos de um Pai que é que é ao mesmo tempo a "verdadeira" vida e a vida da verdade.
"Pai e Senhor de todas as coisas"'". Era no mesmo sentido que Iluminação, enfim, dissipa as trevas que são tanto as do mal como
Santo Ireneu falava da "nova geração" que Deus nos concede e as da ignorância: enquanto o ensino recebido na catequese prepa-
que, pela fé, nos faz nascer da Virgem'^". Este renascimento é rava o espírito transmitindo-lhe essas verdades que ele deve acei-
igualmente descrito como acesso à vida para lá da morte. Na nos- tar, o baptismo coincide, ele mesmo, com a chegada da luz.
sa primeira existência, diz Hermas, recebêramos somente uma ' ; A ligação, no baptismo, entre resgate das faltas e acesso à ver-
natureza mortal; nela o homem não vivia senão na morte e como dade é pois, na época dos Padres Apostólicos e dos Apologetas,
que ele mesmo morto: da água ritual em que mergulha, regressará muito marcada. Ligação directa, uma vez que são os mesmos
vivo'^'. Por fim, o baptismo ilumina: derrama na alma uma clari- efeitos do baptismo que apagam as faltas e trazem a luz. Ligação
dade que vem de Deus e a enche inteiramente; as sombras imediata, uma vez que não é depois de as faltas terem sido perdoa-
dissipam-se, e a alma, ao mesmo tempo, abre-se à luz e penetra das que a luz é concedida como um suplemento, nem é depois de
nela: "Esta ablução chama-se iluminação porque aqueles que rece- a fé se ter formado por completo e adquirida a verdade que as
bem esta doutrina têm o espírito cheio de luz."'^^ faltas são remidas como que em recompensa. Será além disso uma
Sob estes diferentes aspectos, a remissão baptismal está ligada ligação "não reflectida" — quero dizer, será um bem tal que o
ao acesso à verdade. Antes do mais, porque o baptismo é dado no perdão das faltas e o conhecimento da verdade se produzam na
termo de um ensino: aprendem-se neste a doutrina e o conjunto alma sem que esta tenha de conhecer a verdade das faltas que
das regras que definem a "via da vida" por oposição à da morte'^'. cometeu e das quais pede perdão? O resgate das faltas e o acesso
O baptismo não será dado senão aos que "crêem verdadeiras as à verdade estarão, de uma maneira ou de outra, ligados ao conhe-
coisas que lhes ensinaram"'^". Mas há mais: cada um dos efeitos cimento das próprias faltas pelo próprio sujeito?
assim atribuídos ao baptismo é ao mesmo tempo um mecanismo A resposta deve ser matizada. Depende do sentido que devamos
de remissão e um procedimento de acesso à verdade. Purificação, dar a esse termo de metanoia, que os autores latinos traduzem por
paenitentia, e que é regularmente utilizado a propósito do baptismo.
"Aqueles", diz Justino, "que crêem na verdade dos nossos ensina-
119 J U S T I N O , Primeira Apologia, 6 1 . É de notar que este segundo nascimento é mentos e da nossa doutrina prometem viver assim. Ensinamo-los a
descrito através do vocabulário que caracteriza o acto virtuoso e a sabedoria.
120 I R E N E U , Adversas haereses, IV, 33,4.
rezar e a pedir a Deus, no jejum, a remissão dos seus pecados e nós
121 H E R M A S , O Pastor, Similitude / X , 16,3-5.
122 J U S T I N O , Primeira Apologia , 6 1 .
123 Didakhê, I-IV. Sobre o conteúdo e a forma desta catequese, ao longo do sécu- 125 Assim nos Excerpta ex Theodoto (86) [de C L E M E N T E D E A L E X A N -
lo 11, cf. A . TURCK,Évangélisation et catéchèse aux deuxpremiers siècles. Paris, D R I A ] : " A alma fiel que recebeu o 'selo' da Verdade, 'traz em si as marcas de
1962. Cristo'." Sobre esta relação selo-imagem-verdade, cf. F.-J. POSCHMANN, Pae-
124 [JUSTINO, Primeira Apologia, 61,2.] nitentia secunda, Bona, 1940.
68 Michel Foucault Confissões da Came 69

mesmos rezamos e jejuamos com eles"; depois, quando chega o facto ligada a um acto de conhecimento, a sunesis; mas esta não é
momento do baptismo, "sobre aquele que aspira à regeneração e se conhecimento no sentido de saber aprendido, de verdade desco-
arrepende das suas faltas passadas, pronunciamos na água o nome berta, trata-se de uma compreensão, de uma apreensão que permi-
do Pai" — e isso, a fim de que não continuem filhos da ignorância te que "se dê conta"'^*. Esta apreensão comporta três aspectos:
e da necessidade, mas antes o sejam de eleição e de ciência'". O devemos, deixando as acções cometidas outrora, remontar à su-
texto é claro: aquele que recebe o baptismo, que se torna filho de perfície do coração, convencer-nos de que eram más — más "dian-
eleição e de ciência, e cujas faltas são redimidas, é aquele que não te" de Deus'^', quer dizer, ao mesmo tempo, para com ele, contra
só recebeu os ensinamentos e deseja a regeneração, como também ele e sob o seu olhar; devemos compreender que temos agora de
se arrepende. Metanoia ou paenitentia são centrais no baptismo. nos afastar do mal e de pelo contrário nos apegarmos ao bem;
Mas esta metanoia não se organiza como uma prática peniten- devemos por fim autenticar a mudança, "humilhar" a alma que
cial desenvolvida e regulada — quer dizer, como um conjunto de pecou, "prová-la" agora que foi renovada, quer dizer darmo-nos a
actos obrigando o sujeito a tomar um conhecimento tão exacto nós mesmos e a Deus os sinais que atestam essa mudança"". E m
quanto possível das faltas que pôde cometer, a explorar no fundo torno da ruptura de vida e da renúncia-promessa que o postulante
da sua alma as raízes do mal, as suas formas escondidas, as fra- deve fazer no momento do baptismo, em torno desta metanoia, O
quezas esquecidas, a entregar-se, para delas se corrigir, a um longo Pastor de Hermas dá facto lugar a actos de verdade. São da ordem
trabalho em que se combinariam vigilância contínua e renúncia do reconhecimento mais do que do conhecimento: deixando-o
progressiva, e a infligir-se rigores punitivos proporcionados à gra- remontar ao coração, reconhecer o mal que se fez e dar os sinais
vidade das ofensas para tentar apaziguar a cólera de Deus. A pe- que permitam reconhecer que já não se é aquele que se era, que se
nitência que é requerida no baptismo — naquele pelo menos que mudou de facto de vida — que se foi lavado, marcado com o selo,
é descrito na época dos Padres Apostólicos e dos Apologetas — regenerado, impregnado pela luz.
não apresenta o carácter de uma longa disciplina, de um exercício Parece pois que, nesta concepção do baptismo, a relação entre
de si sobre si mesmo nem de uma tomada de conhecimento de si remissão dos pecados e acesso à verdade, por forte, directo e ime-
por si mesmo. Uma passagem de Hermas sobre este ponto é signi- diato que seja, não consiste simplesmente numa conversão da al-
ficativa. O anjo da penitência fala: "A todos os que se arrependem, ma, girando sobre si mesma, afastando-se da sombra, do mal, da
dou a inteligência. Nãoparece que o facto de quem se arrepende morte para se orientar para a luz que a inunda, e se abrir a ela. Não
é, em si mesmo, inteligência? [...] Porque o pecador compreende se trata simplesmente de uma ruptura, de uma passagem ou de um
que fez o mal diante do Senhor e o acto que cometeu remonta-lhe movimento da alma em que esta seria ao mesmo tempo actor da
ao coração, arrepende-se e deixa de cometer o vício; pelo contrá- sua própria conversão e agida pela bondade de Deus que apaga as
rio, põe todo o seu zelo em fazer o bem, humilha a sua alma e faltas das quais nos afastamos e concede à alma a luz da qual [ela]
põe-na 'à prova' uma vez que pecou. Vês pois que o arrependi- se afasta. A remissão dos pecados e o acesso à verdade exigem um
mento é um acto de grande inteligência."'^'' A penitência está de
128 PLATÃO, no Crátilo, explica que, na sunesis, a alma acompanha as coisas na
ua marcha {sumporeuestlxai, 412a-b).
126 J U S T I N O , Primeira Apologia,6\, 10. 129 H E R M A S , O Pastor, Mandatum IV, 2, 2: "Emprosthen tou kuriou"
127 H E R M A S , O Pastor, Mandatam ÍV,2,2.A palavra sunesis é traduzida por 130 [Ibid.] A palavra que Hermas emprega é basanizein, que se usa para designar a
inteligência. acção da pedra ou os meios utilizados para verificar que a testemunha fala verdade.
70 Michel Foucault As Confissões da Carne 71

elemento terceiro: a metanoia, a penitência. Mas esta não deve ser A preparação para o baptismo^^^
compreendida como o exercício calculado de uma disciplina. Não
está ligada a uma objectivação de si, mas antes a uma manifesta- O capítulo V I do De paenitentia parece dar àquele tempo de
ção de si. Manifestação que é ao mesmo tempo consciência e preparação uma importância e um valor operatório muito maiores
atestação do que alguém está em vias de deixar de ser, e da exis- do que aqueles que lhe eram atribuídos no passado. "Estaremos
tência regenerada segundo a qual vive já. É a consciência-atestação purificados pela razão de termos sido absolvidos? Por certo que
de uma passagem que não é simplesmente uma transformação, não. Estamo-lo quando, ao aproximar-se o perdão, a dívida da
mas uma renúncia e um compromisso. A metanoia não desdobra pena é saldada [...], quando por fim Deus ameaça, e não quando
a alma num elemento que conhece e num outro que deve ser co- perdoa." E um pouco mais longe, acrescenta: "Não estamos lava-
nhecido. Faz com que se conjuguem, na ordem do tempo, o que já dos para deixar de pecar, mas porque [...] estamos já lavados no
não se é e o que se é já; na ordem do ser, a morte e a vida, a mor- fundo do coração.""^ E m relação ao tehia de um acto baptismal
te que morreu e a vida que é a vida nova; na ordem da vontade, o que seria ao mesmo tempo purificação e remissão, Tertuliano pa-
desprendimento do mal e o compromisso com o bem; na ordem da rece efectuar um triplo deslocamento: no tempo, uma vez que o
verdade, a consciência de que pecámos deveras e a atestação de procedimento de purificação parece agora dever preceder ao mes-
que deveras nos convertemos. O papel da metanoia no baptismo mo tempo o perdão e o próprio rito da imersão; na operação puri-
não é ir procurar, no fundo da alma, o que ela é, para trazer os seus ficadora, cujo agente parece ser doravante o próprio homem agin-
segredos ao olhar da consciência ou os pôr diante dos olhos dos do sobre si mesmo; na própria natureza desta operação, em que^o
outros. É manifestar a "passagem" — o arrancamento, o movi- papel do exercício moral parece prevalecer sobre a força da ilumi-
mento, a transformação, o acesso — e manifestá-la ao mesmo nação. E m suma, a purificação, em vez de ser integrada no próprio
tempo como processo real na alma e como compromisso efectivo movimento que faz a passagem da alma para a luz e lhe garante a
da alma. A metanoia constitui assim um acto complexo que é remissão, toma a forma de uma condição preliminar. E , de resto,
movimento da alma acedendo à verdade, e verdade que se mani- no início desta mesma passagem, não diz Tertuliano que o homem
festa desse movimento. deve "pagar" a sua salvação pelo preço da penitência, e que é esta
que em troca do perdão Deus recebe?
* Trata-se de um texto que merece explicação. Tertuliano — e
nisso insiste muitas vezes'" — não entende contestar a eficácia do
Os textos que Tertuliano, na viragem dos séculos u e lii, consa- rito, nem fazer passar para o lado do homem que se purifica a si
grou ao baptismo são testemunhos de um certo número de mudan- mesmo o essencial da operação. O De baptismo dirige-se explici-
ças notáveis. Tanto no que se refere à preparação para o baptismo tamente contra uma seita de cainitas que se recusava a aceitar que
como à significação a dar ao rito e à sua eficácia.
"um pouco de água possa lavar a morte""". Tertuliano responde-
is l [Este " A " não será seguido por um " B " no manuscrito.]
132 'Won ideo abluimur, ut delinquere desinamus, sed quia desiimus, quoniamjam
corde loti í m / w « í " , T E R T U L I A N O , De paenitentia, V L
133 [Nota vazia.]
134 [ T E R T U L I A N O , De bap/wmo, I I , 2.]
72 Michel Foucault As Confissões da Carne 73

-lhes por meio de um "elogio da água", cujos valores espirituais, o mesmo sacramento apagará todas as suas faltas, sejam elas quais
manifestados nas Escrituras, recorda: água que foi a sede do Espí- forem, repelem o momento do baptismo a fim de poderem pe-
rito antes da Criação; água na qual Deus teve de combinar argila car"*. Ora, há nestas duas atitudes ao mesmo tempo presunção e
para moldar o homem à sua imagem; água que purificou a Terra orgulho. E , subjacentes, dois erros graves.
no Dilúvio, libertou os hebreus dos seus perseguidores egípcios, A presunção consiste em imaginarmos que, através do sacra-
foi dada a beber ao povo eleito, curou os doentes na fonte de Bet- mento, podemos coagir Deus; que o homem tem assim poder so-
saida'". Esta água, dotada de tais poderes na antiga lei, como seria bre ele e que lhe basta recorrer ao baptismo para obter de maneira
deles desprovida, agora que o Espírito Santo, inaugurando uma segura o perdão total e definitivo. É fazer da liberalidade de Deus
outra lei, sobre ela desceu para baptizar Cristo?"* A água do bap- "uma servidão". Tertuliano não supõe que aqueles que chegam ao
tismo retoma todas as funções que a Escritura prefigurara: cuida, baptismo com tais disposições insuficientes ou más não sejam
alimenta, liberta, purifica, permite moldar de novo o homem e faz efectivamente resgatados, não põe em questão a eficácia do rito.
da alma do baptizado o trono de Deus. Mas estas funções são Mas supõe que aqueles que vemos, posteriormente, recair, quebrar
agora integradas na economia da salvação. Tertuliano pode pois o compromisso que assumiram e regressar às faltas que foram
recordar desde as primeiras linhas do De baptismo o princípio de redimidas são precisamente os que assim "se introduziam no bap-
que a água baptismal lava os pecados, numa fórmula muito próxi- tismo". Puderam "enganar os homens", não escapam àquele que
ma da que encontrávamos no século i i : "Feliz sacramento, o da tudo vê: tornarão a cair. O resgate que o homem obtém no baptis-
nossa água que, lavando as contaminações da nossa cegueira de mo, devemos considerá-lo como efeito da liberalitas de Deus —
outrora, nos liberta para a vida eterna."'" ao mesmo tempo generosidade que perdoa e liberdade de perdoar.
O problema é pois o de sabermos qual o lugar e qual o sentido Logo no início do De paenitentia, Tertuliano dá da queda e do
desta purificação preliminar, da qual fala o De paenitentia, se é perdão uma interpretação muito significativa: Deus, depois de ter
verdade, como o diz o De baptismo, que é a água do baptismo que visto todos os crimes da temeridade humana dos quais Adão dera
tem o poder de lavar as nossas contaminações. j o exemplo, formulara uma condenação do homem, expulsara-o do
Uma reprovação que Tertuliano endereça a alguns dos que pe- ; Paraíso e submetera-o à morte. Mas retornara à misericórdia e
dem o baptismo pode guiar-nos. Ele critica com efeito os postulan- \ arrependera-se em si mesmo"'. O perdão que Deus concede aos
tes ao baptismo que se contentam com arrepender-se de algumas homens deve ser compreendido como um espécie de metanoia em
das faltas que cometeram — considerando que tanto é bem sufi- que Deus, livremente, decide suspender os efeitos da sua cólera.
ciente para que Deus perdoe todas as outras — e se apressam Tomar este efeito pelo efeito necessário de um rito ao qual o ho-
depois a pedir o baptismo. Outros, pelo contrário, procuram mem decidiria submeter-se — tal é a presunção.
retardá-lo o mais possível: sabendo que deixarão de ter o direito Quanto ao orgulho, consiste para o pecador que solicita o bap-
de pecar depois de terem recebido o sacramento, mas sabendo que tismo em confiar em si mesmo. Não se dá conta de que, sem ces-
sar, pode cair ou recair — antes do baptismo ou depois dele. Quem
135 Os poderes espirituais da água são recordados por T E R T U L I A N O no De bap- avança em direcção à luz não segue um caminho direito e fácil. É
tismo [ I I I , 2; I I I , 5; V I I I , 74; I X , 1; V, 5].
136 Sobre o baptismo de Cristo como fim da antiga lei e início da nova, cf. T E R -
T U L I A N O , Adversas Marcionem. 138 T E R T U L I A N O , De paenitentia, V I .
137 T E R T U L I A N O , De teí^tómo, 1,1. 139 " . . . Cum rursas adsuam misericordiam [...] irarampristinaram", ibid.,11.
74 Michel Foucault As Confissões da Came 75

como esses animais que acabam de nascer, quase cegos, tropeçan- preparação para o baptismo é o tempo em que aprendemos o res-
do a todo o momento e que se arrastam no chão'"". Deve ter pre- peito pela liberalitas de Deus graças à consciência que tomamos
sente também que Satanás, que se apoderou da alma dos homens quer da gravidade das faltas cometidas, quer do facto de que Deus
após a queda e que faz de cada uma delas como que a sua Igreja'"', teria podido não perdoar, e de que, se redime as faltas, é somente
não vê sem cólera que, pelo baptismo, dela será desapossado. Re- porque assim bem quer. Mas é também o tempo em que adquiri-
dobra pois de esforços, quer para evitar essa derrota, quer mais mos o sentimento de temor, o metus, quer dizer a consciência de
tarde para reconquistar esse lugar perdido'"^. O período que pre- que nunca somos inteiramente senhores de nós próprios, de que
cede o baptismo não deve ser pois um período de confiança arro- nunca nos conhecemos inteiramente e de que, na impossibilidade
gante em si mesmo. É pelo contrário o tempo "do perigo e do te- em que nos encontramos de saber de que queda somos capazes, o
mor"'"'. A esta necessidade do "temor" no caminho que conduz ao compromisso que assumimos é ainda mais difícil, ainda mais pe-
baptismo e na própria vida do cristão, Tertuliano concede uma rigoso. Insistindo sobre a necessidade da preparação para o baptis-
importância muito grande. Retoma aqui, é certo, um tema que lhe mo, e evocando a purificação que nela se deverá produzir, Tertu-
é anterior, mas atribui-lhe uma modulação particular. Já não se liano deixa intacto o princípio fundamental da remissão pelo
trata simplesmente do temor de Deus, no sentido em que, no A n - próprio sacramento, mas reestrutura uma relação com Deus e de
tigo Testamento, se devia temer a cólera de Deus se os seus man- cada um consigo mesmo no interior desse procedimento de resga-
damentos não fossem respeitados. Pela necessidade do metus co- te. Deus é ao mesmo tempo omnipotente e inteiramente livre
mo dimensão constante da existência cristã, ele entende tanto o quando perdoa; o homem que se submete ao procedimento do
temor de Deus como o temor de si mesmo — quer dizer, o medo resgate não deve estar nunca inteiramente seguro de si mesmo. A
que se tem da sua própria fraqueza, das falhas das quais se é ca- preparação para o baptismo purifica: não no sentido de poder, por
paz, das insinuações do Inimigo na alma, da cegueira ou da com- si só, assegurar o resgate, mas no sentido de conduzir pelo contrá-
placência que nos deixará surpreender por ele. Aquele que deverá rio a tudo esperar da livre generosidade de Deus para apagar pe-
ser baptizado deverá ter confiança, não em si mesmo, mas em cados dos quais nos desprendemos não só pelo arrependimento
Deus. A incerteza, não quanto ao poder de Deus, mas quanto à sua daqueles que cometemos, mas também por uma relação de temor
própria natureza, à sua fraqueza, à sua impotência, não deve que cada um de nós, de si para consigo mesmo, estabelece perma-
abandoná-lo. nentemente. Uma tal preparação não se limita a fazer-nos romper
Podemos compreender portanto a importância de um tempo de com o que cada um de nós era, mas deve ensinar cada um a
preparação para o baptismo, que não é simplesmente a iniciação desprender-se, de certo modo, continuamente de si mesmo.
nas verdades ou o ensino das regras de vida. Trata-se de um tempo Compreende-se assim a concepção, em parte nova, que Tertu-
que permite ao postulante não esperar, no orgulho e na presunção, liano faz da preparação para o baptismo. Acompanha a catequese,
um perdão total que Deus seria de facto coagido a conceder. A e o ensino das verdades e das regras, de um trabalho de purifica-
ção moral. E , inversamente, tende a organizar o movimento da
metanoia sob uma forma regulada desde o início da preparação.
140/Wd.,VI.
141 [Ibid., V I L ] Este período deve ser pensado como um tempo em que se apren-
142 Ibid. dem não só as verdades em que devemos acreditar, mas também a
143 Ibid., V I . penitência que devemos praticar. "O pecador deve chorar as suas
76 As Confissões da Carne 77
Michel Foucault

faltas antes do momento do perdão, porque o tempo da penitência erro [...], preparasse para o Espírito Santo que ia descer sobre o
é o do perigo e do temor. Não contesto àqueles que vão mergulhar santuário de um coração puro"'"*. Portanto, o que numa palavra
na água a eficácia do bem-fazer de Deus. Mas, para o alcançar, é nos ensina o baptismo de João é, diz o De baptismo, que a "peni-
necessário labor." Elaborandum e^í'*". Labor que tem a sua forma, tência precede; vem depois a remissão"'"'.
as suas regras, os seus utensílios, a sua ratio^'^^. É assim que Ter- Sobre esta disciplina penitencial prévia ao baptismo, Tertuliano
tuliano chama à disciplina da penitência, à qual deve submeter-se, dá muito poucos detalhes. Algumas regras negativas: não dar o
antes de mergulhar na água, o postulante ao baptismo: "Senhor, baptismo demasiado cedo, porque é sempre maior o perigo de o
concede aos teus servidores que conheçam ou aprendam da minha precipitar do que o de o retardar; não o conceder a não importa
boca a disciplina da penitência, nesse sentido em que é proibido quem, o que equivale a oferecer as coisas santas aos cães, aos
pecar aos próprios Auditores."'"* porcos pérolas; não o dar às crianças, nem às pessoas não casadas
Desta disciplina, no que tem de necessário, de regulamentado, cuja continência não seja certa. Algumas prescrições globais: "o
mas de simplesmente preliminar, Tertuliano encontra o modelo no pecador deve chorar as suas fahas antes do tempo do perdão"""; e
baptismo joânico. São sabidos os problemas extremamente difí- quando o momento do baptismo se aproxima, os que a ele vão
ceis — e as inumeráveis discussões — que levantava a existência aceder "devem invocar Deus por meio de orações fervorosas, de
desse baptismo anterior ao Salvador (e que por conseguinte não jejuns, de genuflexões, de vigilas"'". Mas o que é significativo são
podia assegurar a salvação), mas ao qual o próprio Salvador se as duas espécies de efeitos que Tertuliano espera desta disciplina,
submeteu. Baptismo puramente humano, uma vez que não faz com além da purificação propriamente dita da alma. Se é rigorosa e
que o Espírito Santo desça sobre a alma daqueles que o recebem, exigente, é porque deve constituir, para aquele que aspira à vida
baptismo dado por um Precursor cujo papel é anunciar Aquele que cristã, um "exercício". Contra o cristão, o Inimigo não desarma,
vem segundo a promessa, é necessário compreendê-lo como "o pelo contrário: encarniçar-se-á para o vencer, e o baptizado deverá
baptismo da penitência"'"^. E , se Cristo o recebe, não porque tenha ter-se habituado aos seus assaltos, às suas armadilhas, às suas se-
ele mesmo de praticar a penitência: é para mostrar que doravante, duções para poder resistir-lhe. Uma vez que é tão grave recair
no tempo novo, o baptismo marcará a vinda do Espírito Santo e depois de se ter sido absolvido uma primeira vez, o baptizado deve
por isso da luz e da salvação; mas é também para mostrar que o estar pronto para a luta e armado para triunfar sobre o Inimigo.
baptismo do Espírito deve ser precedido pelo baptismo da penitên- A penitência é essa preparação — treino das forças e aquisição da
cia, como o sacramento dos cristãos o foi pela missão de João. O vigilância — que permitirá não recair mais. Se a penitência, se a
Precursor "recomendava a penitência, que tem por alvo purificar metanoia deve fazer corpo desde o início com a preparação para
os espíritos, a fim de que a penitência, transformando, apagando e o baptismo, é porque é não só uma purificação, mas um exercício
banindo no coração do homem todas as contaminações do velho e um exercício que, se é indispensável para se ser resgatado, deve
ser útil também depois do resgate, e ao longo de toda a vida cristã.
144/ètó.,VI,9.
145 "Ceterum ratio ejus, quam cognito Domino discimus, certam formam tenet"
["De resto, a regra da penitência que conhecemos ao mesmo tempo que o Senhor, mibid.
está submetida a fórmulas certas", trad. E . - A . de Genoude], ibid., I I . 149 [ T E R T U L I A N O , De baptismo, X , 6.]
146/Wd.,VU. 150 T E R T U L I A N O , De paenitentia, V I .
U7Ibid.,ll. 151 T E R T U L I A N O , De baptismo, X X , 1.
78 Michel Foucault As Confissões da Carne 79

Desde as suas formas pré-baptismais, a penitência aparece como Estas análises de Tertuliano não são nem isoladas nem premo-
essa forma de exercício de si sobre si mesmo que deve ser coex- nitórias, ainda que tenham uma tonalidade diferente das do seu
tensiva à vida inteira do cristão. contemporâneo Clemente de Alexandria, e ainda que sejam mais
Mas tem igualmente um outro sentido que já encontrámos: é o elaboradas do que as de Justino.
preço a pagar pelo resgate. "Que cálculo, tão insensato como in- Precisamente na época em que Tertuliano escrevia desenvolvia-
justo, não se cumprir a penitência e esperar a remissão das faltas, -se uma instituição nova que tinha por papel organizar, regular e
quer dizer não pagar o preço e estender a mão para receber a controlar essa purificação anterior ao baptismo da qual falava o
mercadoria! O Senhor pôs este preço ao perdão: oferece-nos a De paenitentia. Trata-se menos sem dúvida de uma inovação radi-
impunidade em troca da penitência.""^ Pode parecer que Tertulia- cal do que de uma institucionalização, segundo um modelo que
no regressa nesta passagem à ideia de uma troca igual e portanto tende a dar uma forma geral às práticas de catequese e de prepa-
de um mecanismo coercivo: tendo o homem pago o preço devido. ração para o baptismo. Para esta instauração de um catecumenato,
Deus não teria senão de dar-lhe o perdão. Não é esse, no entanto, que ao longo do século iii assumiu cada vez mais as feições de
o sentido do texto. As moedas que se dão na penitência nunca te- uma "ordem", ao lado da dos baptizados, os historiadores reconhe-
rão o valor do que Deus dá em contrapartida — a vida eterna. E cem várias razões: a afluência dos postulantes, com o que isso
portanto a generosidade de Deus nunca será uma imposição. A podia comportar de enfraquecimento na intensidade da vida reli-
moeda da penitência não mede o valor da remissão obtida, atesta giosa; a existência das perseguições, acarretando o abandono da fé
a autenticidade do que é dado como pagamento. Não é encarada pelos que não estivessem suficientemente preparados; a luta contra
como uma unidade contabilística, mas como um elemento de pro- as heresias, implicando uma formação mais rigorosa tanto do pon-
va, ou antes que põe à prova. A continuação do texto mostra-o to de vista das regras de vida como dos conteúdos doutrinais. Ao
claramente: o vendedor, quando compramos, "começa por exami- que talvez devamos acrescentar o modelo das religiões de misté-
nar o dinheiro que lhe é dado, para ver se não terá sido corroído, rio, com o cuidado que nelas se punha na formação dos inicia-
abrasado, alterado; por isso nós cremos que o Senhor começa por dos'". O catecumenato constitui um tempo de preparação, bastan-
pôr à prova a penitência". Ao falar da penitência-retribuição, Ter- te longo (pode durar três anos), em que a catequese e o ensino das
tuliano não visa uma compra que faríamos a Deus, mas uma prova verdades e das regras se associam a um conjunto de prescrições
à qual, perante ele, nos submetemos. Probatiopaenitentiae. Trata- morais, de obrigações rituais e práticas, e de deveres. Além disse
-se de apresentarmos provas sólidas, tangíveis, autênticas da mu- — e é esse aqui o ponto a reter —, essa preparação é escandida
dança que se produz na alma, do trabalho que cada um de nós por procedimentos destinados a "pôr à prova" o postulante: quei
opera sobre si mesmo, do compromisso que assumimos, da fé que dizer, a manifestar aquilo que ele é, a atestar o "labor" que efectua
se forma. Como nos é dito um pouco mais longe, numa fórmula a dar testemunho da sua transformação e da autenticidade da suc
condensada, "a fé começa e reiterasse pela fé da penitência". O purificação. Estes procedimentos correspondem a essa "probatio'
termo de penitência designa assim duas coisas: quer a mudança da da qual Tertuliano fazia uma das significações da disciplina di
alma, quer a manifestação dessa mudança em actos que permitem
autenticá-la. Deve ser prova de si mesmo.
153 Tais são, em todo o caso, as quatro razões evocadas por [ A . T U R C K , Au3
origines du catéchuménat", Revue des sciences philosophiques et théologiques, t
152 T E R T U L I A N O , De/jaewtotfta, V I . 48,1964, pp. 20-31].
80 Michel Foucault As Confissões da Carne 81

penitência indispensável, segundo ele, à preparação baptismal. E desempenhando o papel de testemunhas e garantes"'. A inquiri-
mostram que a metanoia não deve ser compreendida somente co- ção parece ter incidido sobre dados exteriores: estatuto do postu-
mo o movimento através do qual a alma se volta para a verdade lante, profissão exercida — o que tinha por causa um certo núme-
desprendendo-se do mundo, dos erros e dos pecados, mas também ro de incompatibilidades —, maneiras de viver. Mas incidia tam-
[como] um exercício em que a alma se deve revelar com as suas bém sobre elementos interiores — e essencialmente sobre a rela-
qualidades e a sua vontade. É, em suma, a face institucional do ção do postulante com a sua antiga religião e sobre as razões que
princípio de que o acesso da alma à verdade não pode cumprir-se podiam dirigi-lo para a fé cristã. "Que comecem por ser conduzi-
sem que a alma manifeste a sua própria verdade: este é de certo dos aos doutores antes de o povo chegar. Que se lhes pergunte a
modo "o preço", para retomarmos a metáfora de Tertuliano, com razão por que buscam a fé. Que aqueles que os trazem prestem
o seu sentido muito particular, que a alma deve pagar para aceder testemunho a seu respeito a fim de que se saiba se são capazes de
à luz que por fim a encherá. escutar. Que se examine também a sua maneira de viver: — Tem
A Tradição Apostólica de Hipólito transmite o testemunho mais mulher? — É escravo? [...] Que se inquira sobre os ofícios e pro-
detalhado sobre o que podiam ser estes procedimentos do pôr à fissões dos que são trazidos para que os instruam.""*
prova, conforme eram praticados pelo menos no catecumenato Depois de terem sido recebidos como auditores, os catecúmenos
ocidental"". Descreve vários de entre eles precedendo o momento tinham de levar, durante um período que podia estender-se até três
terminal da "profissão de fé", quando o baptizado afirmava sole- anos, uma vida em que o ensino das verdades fundamentais estava
nemente, em resposta a uma tripla interrogação, que acreditava no associado a obrigações religiosas, mas também a regras de conduta,
Pai, no Filho e no Espírito Santo: aí, o próprio catecúmeno mani- a tarefas e a obras. No termo desse período, uma segunda inquiri-
festava a autenticidade da sua crença numa proclamação que teria ção tinha lugar, sob formas ao que parece bastante semelhantes às
por resposta, através da epiclese e da imposição das mãos, a vinda da primeira. A s testemunhas-garante são, também elas, interroga-
do Espírito Santo e a iluminação. O acesso à verdade e a manifes- das. Mas o exame incide agora sobre o próprio período do catecu-
tação da alma na sua verdade reuniam-se assim no próprio acto do menato: "Quando se escolhem aqueles que vão receber o baptismo,
baptismo. Mas A Tradição Apostólica indica e descreve com sufi- examina-se a sua vida: Viveram honestamente enquanto eram ca-
ciente pormenor outros actos do pôr à prova, que se escalonavam tecúmenos? Honraram as viúvas? Visitaram os doentes? Fizeram
ao longo da preparação para o baptismo. Tais actos podem boas obras de toda a espécie? Se aqueles que os trouxeram presta-
agrupar-se sob três grandes formas. rem testemunho por cada um deles: agiu assim, ouvirão o evange-

1. A inquirição interrogativa. Trata-se de um procedimento re-


155 Sobre este ponto, cf. M . D U J A R I E R , Le Parrainage des adultes aux trois
lativamente simples, que se desenrola segundo um jogo de pergun-
premiers siècles de 1'Église, Paris, 1962.
tas e respostas. Tinha lugar, senão em segredo, pelo menos com 156 HIPÓLITO, A Tradição Apostólica, 15-16. Os Cânones atribuídos a HIPÓ-
uma participação restrita: os "doutores", encarregados do catecu- L I T O insistem sobre o exame dos motivos que levam a abraçar o cristianismo, de
menato, o próprio postulante, e aqueles que "o tinham trazido". maneira a afastar aqueles que quisessem ludibriar: "examinentur omni cum perse-
verantia, et quam ob causam suum cultu respuant ne forte intrent illudendi causa"
["que aqueles que vêm à igreja para se tornarem cristãos sejam examinados com
muito rigor [...] pelo temor de que queiram entrar por escárnio", trad. R . - G . Co-
154 [Nota vazia.] quin] (cânone 10).
82 Michel Foucault As Confissões da Carne 83

lho.""'' Só depois os catecúmenos eram admitidos ao baptismo. Estes exercícios não se referem sem dúvida a uma forma de
Eram então submetidos durante algumas semanas — em geral as possessão semelhante à dos energúmenos'*^. A imposição das
que precediam a Páscoa — a uma preparação mais intensa: ora- mãos significaria uma transferência de poder: a substituição ao
ções, jejuns, vigílias cujo rigor devia ser testemunho da sua fé. Seria poder do Espírito Mau, que reina sobre a alma do homem desde a
a este período que Crisóstomo chamaria "o tempo da palestra""*. queda, do poder do Espírito Santo. O primeiro é destronado, desa-
possado, expulso dessa alma e desse corpo nos quais estabeleceu
2. A s provas de exorcismos. A imposição das mãos e o sopro a sua sede, e isto pelo poder daquele que é mais forte do que ele,
sobre o rosto são ritos antigos destinados a expulsar os espíritos mas não pode coexistir com ele, nem descer por conseguinte para
que se apoderaram do corpo e da alma de um homem. Estiveram penetrar numa alma da qual o outro não tenha sido já expulso'*'.
associados ao baptismo desde uma época muito antiga"'. Mas Mas o exorcismo é também uma prova de verdade: ao expulsar o
talvez não tenham tido sempre a extensão e a multiplicidade que Espírito do Mal, opera na alma a separação do puro e do impuro,
lhes conhecemos no século iv, quando são usados desde o início submete-a a um procedimento de autenticação como aquele a que
da entrada do postulante na ordem dos catecúmenos, e quando a se expõe um metal passando-o pelo fogo'*": expulsam-se os ele-
eles se recorre em várias ocasiões durante o tempo em que o cate- mentos que a alteram, mede-se o seu grau de pureza. As expres-
cúmeno se mantém auditor. E m contrapartida, A Tradição Apos- sões usadas pela tradição e pela fórmula citada por Santo Agosti-
tólica indica, já em finais do século ii, a exigência de um exorcis- nho indicam bem que o exorcismo "põe à prova", "mostra" e per-
mo solene pouco tempo antes de ser concedido o baptismo: mite "reconhecer". Constitui a seu modo um exame da alma.
"Quando se aproxima o dia em que devem ser baptizados, o bispo Daí as expressões que são regularmente usadas no século iv, e
exorciza cada um deles a fim de reconhecer se são puros (ut possit posteriormente, para designar estas práticas de exorcismo. Na Ex-
cognoscere si mundi sunt). Se algum se encontrar que não seja planatio symboli, nas quais Santo Ambrósio explica aos que vêm
puro, que seja afastado: porque não se aplicou o bastante à palavra receber o baptismo o sentido dos ritos a que foram submetidos, o
da doutrina da fé."'*° Na época de Santo Agostinho, um rito do autor coloca o exorcismo entre os "mysteria scrutaminum":
mesmo tipo tem lugar imediatamente antes do baptismo'*'. O pos- "Procurou-se saber se há alguma impureza no corpo do homem;
tulante despoja o cilício e põe os pés em cima dele — num gesto através do exorcismo, inquiriu-se da santificação não só do corpo,
que manifesta que se despoja o homem velho e que faz parte das mas da alma."'*' E o bispo Quodvultdeus, dirigindo-se aos que
práticas tradicionais de exorcismo. O bispo pronuncia as impreca- vão receber o sacramento, atribui o mesmo sentido ao exorcismo:
ções e, ao escutá-las sem se alterar, o catecúmeno mostra que está "Celebra-se sobre vós o exame e o diabo é extirpado do vosso-
livre de espíritos impuros. O bispo pronuncia então as palavras: corpo, enquanto é invocado Cristo, ao mesmo tempo humilde e
"Vos nunc immunes esse probavimus."
162 É a opinião de A . D O N D E Y N E , " L a discipline des scrutins dans TÉglise lati-
157 HIPÓLITO, A Tradição Apostólica, 20. ne avec Charlemagne", /fevMe d'histoire ecclésiastique, t. 28,1932.
158 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, Oito Catequeses Baptismais, catequese I I I , 8. 163 Sobre esta impossibilidade de coexistência numa mesma alma do Espírito
159 F. J . DÔLGER, Der Exorzismus im altchristlichen Taufritual: eine religions- Mau e do Espírito Santo, cf. ORÍGENES, //omi/íaí sobre os Números, V I , 3.
geschichtliche Studie, Paderbom, 1909. 164 Esta aproximação é muito frequente. Assim C I R I L O D E JERUSALÉM, Pró-
160 HIPÓLITO, A Tradição Apostólica, [20]. -Catequese, § 9.
161 S A N T O A G O S T I N H O , Sermão 216, Ad competentes, X I . 165 [SANTO AMBRÓSIO, £;íp/anaíío symboli, 1.]
84 Michel Foucault /^s Confissões da Carne 85

altíssimo. Vós pedireis então: põe-me à prova. Senhor, e conhece grega de exomologese'™: acto global pelo qual alguém se reconhe-
o meu coração."'** ce pecador. E a "confessio peccatonim" para a qual é convocado
aquele que quer fazer-se cristão não deve ser sem dúvida compa-
3. Finalmente, a confissão dos pecados que nem a Didakhê nem rada com a rememoração e a confidência detalhada e exaustiva de
a Apologia de Justino evocavam como exigência prévia ao baptis- todas as faltas, segundo as suas categorias, as suas circunstâncias
mo é pelo contrário regularmente mencionada desde o De baptis- e a sua gravidade respectivas; mas [devemos] antes [pensar n]um
mo de Tertuliano. "Aqueles que vão aceder ao baptismo devem acto'^' — ou em vários actos — através do qual ele se reconhece
invocar Deus por meio de orações fervorosas, de jejuns, de genu- icador, diante de Deus, e eventualmente diante de um sacerdote,
flexões, de vigílias. Preparar-se-ão para ele também pela confis- 'rata-se no essencial de se manifestar a consciência de se ter pe-
são de todos os seus pecados de outrora. E isto em memória do cado, de se ser pecador e a vontade, de deixar esse estado. Teste-
baptismo de João, do qual está dito que era recebido confessando munho de si mesmo sobre si mesmo, atestação da passagem, mais
os pecadosr^^^ Esta "confissão" é pois completamente diferente do que recolecção, através da memória e da narrativa, de "todas as
do interrogatório que abria e fechava o tempo durante o qual o faltas" efectivamente cometidas.
catecúmeno era auditor. Não é uma informação que os responsá- É o sentido que parece desprender-se de uma passagem do Dé
veis peçam sobre a vida e a conduta passadas de um postulante, é acramentis de Santo Ambrósio: "Quando te fizeste inscrever
um acto que este faz por si mesmo, entre os outros exercícios de [para ser baptizado], o sacerdote tomou lama e estendeu-ta sobre
piedade e de ascetismo. Tratar-se-ia de uma declaração detalhada os olhos. O que é que isto significa? Que tinhas de confessar o teu
e feita a um sacerdote de "todas as faltas" cometidas no passado? pecado (Jatereris), reconhecer a tua consciência (conscientiam
Tertuliano menciona somente que os cristãos de hoje devem regognoscere), fazer penitência das tuas faltas (paenitentiam gere-
regozijar-se por não terem de fazer, como no tempo de João, "uma re), quer dizer, reconhecer (agnoscere) a sorte da raça humana.
declaração pública das nossas iniquidades e das nossas vergo- Porque aquele que vem ao baptismo bem pode não declarar peca-
nhas"'**. Deveremos então compreender que o catecúmeno tinha do, pois leva a cabo, ao fazê-lo, a confissão de todos os seus peca-
de fazer o exame da sua vida passada, evocar na memória as suas dos, uma vez que pede o baptismo para ser justificado, quer dizer,
faltas, e reportar a sua confidência ou ao bispo, ou àquele que ti- para passar da falta à graça [...]. Nenhum homem é sem pecado;
vesse a seu cargo guiá-lo? E possível. E os textos mais tardios dão aquele que busca refúgio no baptismo de Cristo reconhece-se ho-
de facto a entender que, ao tempo, antes do baptismo, aquele que mem (agnoscit se hominem)!'"^
o solicitava tinha de fazer junto do bispo ou do sacerdote'*' um Texto importante. Primeiro porque nos permite dar conta da
acto particular no qual "confessava" os peCados em causa. amplitude do sentido que a palavra confessio assume: desde o
E m todo o caso, é necessário lembrar que o termo confessio tem acto através do qual se declara efectivamente uma falta determi-
então uma significação muito ampla — equivalente à da palavra nada até ao reconhecimento do facto que não se pode na qualida-
de de homem não se ser pecador. Mas também pela insistência em

166 [ Q U O D V U L T D E U S , 5ermoneí, 1-3, "De symbolo ad cathechumenos".]


167 T E R T U L I A N O , De baptismo, X X , 1. m Cf. infra.
168 [Ibid.] 171 [Manuscrito: "mas antes um acto".]
169 Cânones de HIPÓLITO (cânone 3). 172 S A N T O AMBRÓSIO, De sacramentis, I I I , 12-14.
86 Michel Foucault As Confissões da Came 87

mostrar que a passagem da falta à graça — que é carácter próprio a morte — pelo menos no sentido em que, após uma primeira
do baptismo — não pode cumprir-se sem um certo "acto de ver- geração que estava votada à morte, fazia "renascer" para uma vida
dade". Acto "reflectido" no sentido em que o catecúmeno é cha- que era a verdadeira vida. O baptismo era referido à morte, na
mado a manifestar explicitamente, sob a forma de uma atestação, medida em que libertava dela. Assim Hermas, a propósito das
a consciência que tem de ser pecador. Não há remissão, não há almas-pedras com as quais se constrói a Torre da Igreja: "Era-lhes
acesso salvador à luz, sem um acto no qual se afirma a verdade da necessário sair da água para receber a vida: não podiam entrar no
alma pecadora, que vale ao mesmo tempo como marca verídica da reino de Deus de outra maneira que não fosse rejeitando a morte
vontade de deixar de sê-lo. O "dizer a verdade sobre si próprio" é que era a sua vida anterior.""' Mas, a partir do final do século ii,
essencial neste jogo da purificação e da salvação. vemos desenvolver-se o tema de que o baptismo, se abre o acesso
De um modo geral, desde o final do século ii vemos o lugar à vida, deve ser ele mesmo uma morte; e se Cristo através da sua
crescente que ocupa, na economia da salvação de cada alma, a ressurreição anunciou esse "novo nascimento", mostrou na sua
manifestação da sua própria verdade: sob a forma de uma "inqui- própria morte o que era o baptismo. Este é uma maneira de morrer
rição" em que o indivíduo é o interlocutor de um questionário ou com e em Cristo. Produz-se assim na teologia baptismal a partir
o objecto de um testemunho; sob a forma de uma prova purifica- do fim desta época um regresso à Epístola aos Romanos e à con-
tória em que ele é alvo de um rito de exorcismo; sob a forma enfim cepção paulina do baptismo como morte: "Fomos sepultados com
de uma "confissão", em que ele é ao mesmo tempo o sujeito que Cristo pelo baptismo, para que, tal como ele ressuscitou dos mor-
fala e o objecto do qual fala, mas em que se trata para ele mais de tos [...], nós caminhemos numa vida nova."""
atestar que se sente pecador do que de fazer o levantamento exac- Tertuliano no De resurrectione carnis referia-se ao texto de São
to dos pecados que deverão ser remidos. Mas é claro que a prática Paulo: estabelecia o princípio de que morremos no baptismo per
da confissão baptismal não pode compreender-se na sua forma e simulacrum, mas per veritatem ressuscitamos na carne, "como
na sua evolução a não ser em relação com o desenvolvimento tão Cristo""'. Mas é sobretudo depois de Tertuliano, que não se lhe
importante da "segunda penitência" — a partir deste mesmo final refere nem no tratado sobre a penitência nem no que escreveu so-
do século II. bre o baptismo, que será desenvolvida esta relação do baptismo
A instituição do catecumenato, a vontade de submeter os postu- com a morte através da paixão de Cristo. Faz-se valer de uma série
lantes a regras de vida rigorosas, a introdução no jogo de procedi- de analogias: entre a imersão e a sepultura"*, entre a piscina e a
mentos de verificação e de autenticação não podem ser separadas
dos novos desenvolvimentos da teologia do baptismo, conforme
173 H E R M A S , O Pastor, Similitude IX, 16, 2. Como o faz notar A . B E N O I T , a
podemos observá-los a partir do século iii: há aqui todo um con-
morte, para Hermas, não tem lugar no baptismo, "o homem está já morto antes
junto em que a liturgia, as instituições, a prática pastoral e os do baptismo em consequência do seu pecado, e, pelo baptismo, acede à vida", Le
elementos teóricos se conjugam e se reforçam uns aos outros. Não Baptème chrétien au second siècle, p. 133.
se trata todavia de uma nova teologia baptismal, mas antes de uma 174 SÃO P A U L O , Epístola aos Romanos, 6,4.
acentuação nova. Esta é sensível particularmente em dois pontos: 175 T E R T U L I A N O , De ressurectione carnis, X L V I I (P. L . , t. 2, col. 862).
176 Sobre a relação entre a água e a morte, no baptismo, cf. P. L U N D B E R G ,
o tema da morte e o do combate espiritual.
IM Typologie baptismale dans 1'ancienne Église, Leipzig, 1942. Cf. SANTO A M -
A partir do momento em que o baptismo foi concebido como BRÓSIO, De sacramentis, I I I , 2: "quando te banhas e te levantas, há uma imagem
regeneração e segundo nascimento, comportava uma relação com da ressurreição".
88 Michel Foucault As Confissões da Carne 89

"forma da tumba"'", entre o triplo mergulho que se segue à pro- nar a sua vida. À homoiôsis tô theô que prometia àquele que dela
fissão de fé e os três dias que decorrem entre a crucifixão e a fosse capaz uma vida de luz e de eternidade, tende a substituir-se
Ressurreição'^*. Através destas analogias, despontam vários te- o princípio de uma semelhança a Cristo na sua paixão, e portanto
mas. Na primeira linha, encontramos a ideia de que o baptismo o de uma vida cristã posta sob o signo da mortificação.
deve ser acompanhado pelo dar a morte ao homem velho: é neces-
sário, segundo a Epístola aos Romanos, "crucificá-lo para que o 1. Este recentramento da concepção do baptismo em torno da
corpo do pecado seja destruído"'™. morte, ou pelo menos da relação morte-ressurreição, tem três con-
Baptismo "salobro e amargo", cuja prefiguração Orígenes vê na sequências no que se refere à ideia que devemos fazer da metanoia
travessia do deserto que teve de preceder o regresso à Terra Prome- indispensável ao baptismo. A primeira é que essa conversão da al-
tida'*". Mas uma vez que a antiga vida, da qual nos despojamos ma, esse desprendimento por meio do qual renunciamos ao mundo
crucificando-a, não era senão a própria morte, devemos conceber do pecado e nos afastamos da via da morte, toma cada vez mais a
pois o baptismo como a morte da morte. É o que explica Santo forma de um exercício de si sobre si mesmo que consiste numa
Ambrósio numa passagem importante do De sacramentis: após a mortificação — num dar a morte voluntário, aplicado, contínuo a
falta de Adão, Deus condenara o homem a morrer. Castigo temível tudo o que na alma ou no corpo possa prender-nos ao pecado. A
e sem remédio? Não, e por duas razões: porque Deus permitiu ao segunda é que uma tal mortificação não deve ter por lugar somente
homem ressuscitar; mas também porque a morte, como termo da o momento do baptismo, mas exige uma longa e lenta preparação
vida mortal, é também o termo do pecado: "Quando morremos, Não deve sequer terminar com a imersão redentora, mas terá de
deixamos de pecar." Assim, a morte, instrumento do castigo, torna- prosseguir através de uma vida de mortificação que só terá por ter-
-se, quando associada à ressurreição, um instrumento de salvação: mo a própria morte. O baptismo, como morte e ressurreição, já nã
"a condenação serve de benefício"; "as duas coisas estão a nosso marca simplesmente a entrada na vida cristã, mas é uma matri
favor: a morte é o fim dos pecados e a ressurreição é a reparação permanente dessa vida. Por fim, outra consequência ainda, a exigên
da natureza"'*'. O baptismo constitui pois como que uma inversão cia de uma "probatio", destinada a verificar tanto o desejo como
do sentido da morte: uma morte que faz morrer o pecado e a mor- capacidade de acesso à verdade do postulante, tenderá, conservand
te, e que por isso deve a esse título ser ardentemente desejada. esse papel, a dar um lugar cada vez maior a um conjunto de "pro
Mas há mais: esta morte no baptismo não deve somente enterrar vas" que são ao mesmo tempo exercícios de mortificação e de au
de uma vez por todas os despojos da vida que o cristão abandonou, tenticação da morte dada ao pecado — da morte dada "à morte d
deve marcar para sempre e ao longo de todo o seu curso a vida do pecado". A relação de si consigo, entendida como labor de si sobr
cristão. Este recebeu, com efeito, com o selo do baptismo, o sinal si mesmo e como tomada de conhecimento de si por si mesm
da crucifixão. É portanto à "semelhança" dela que deverá subordi- passa a ocupar assim um lugar cada vez mais marcado no process
global da conversão-penitência designado pelo termo de metanoia
177 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, X X V Homilia sobre o Evangelho de São João
( 3 , 5 ) , 2 ( P . G . , t . 59, col. 151).
2. Mas intervém um outro factor, com efeitos convergentes. E
178 GREGÓRIO D E N I S S A , Oratio catechetica magna, X X X V , 4 - 6 e 10.
179 SÃO P A U L O , Epístola aos Romanos, 6,6.
desenvolvimento, na teologia da falta e do baptismo, do tema d
180 ORÍGENES, Comentóno sobre São João, V I , 44. Inimigo presente na alma e reinando sobre ela. Não devemos, d
181 SANTO AMBRÓSIO, De sacramentis, I I , 17. facto, enganar-nos a esse respeito: a especificação das práticas d
91
90 Michel Foucault /^s Confissões da Carne

exorcismo e a sua multiplicação no período do catecumenato, bem Tal é o que vemos: tal como o tema da morte, implicado pelo da
como nos ritos que precedem imediatamente o baptismo, não tra- regeneração, do segundo nascimento, da ressurreição, se inflectiu
duzem o triunfo de uma concepção demonológica do mal. Assis- no sentido do da mortificação, assim também o da purificação que
timos antes a toda uma série de esforços no sentido da articulação, livra a alma das suas contaminações se inflecte no sentido da ideia
sobre a nova ideia de pecado original, da omnipotência de um de um combate espiritual. E cada uma destas duas inflexões atri-
Deus que aceita salvar e do princípio de que cada um é responsá- bui ao sujeito um papel cada vez mais importante: o baptismo
vel pela sua salvação. A concepção de Tertuliano respondia a esta deve ser preparado, acompanhado e prolongado por operações que
exigência: via.o efeito da queda não só no facto de o homem estar o sujeito exerce sobre si mesmo sob a forma da mortificação, ou
votado à morte, de a sua alma ter sido corrompida e a sua vida no interior de si mesmo à maneira de combate espiritual. Estabe-
abandonada ao mal, mas mais precisamente no facto de Satanás lece uma relação de si consigo complexa, árdua, cambiante. É
ter podido estabelecer o seu império sobre os homens, alcançando certo que a doutrina de maneira nenhuma admite que a omnipo- •
o fundo do coração daqueles. Como jurista, dir-se-ia que Tertulia- tência de Deus seja assim afectada ou limitada (ainda que tenha
no pensava mais numa posse entendida como jurisdição e exercí- sido bastante difícil construir teoricamente o sistema dessa omni-
cio de um poder do que como uma insinuação de entidades estra- potência frente à liberdade humana). Mas, atendo-nos ao propósito
nhas. O baptismo tinha então por efeito produzir uma "desposses- que agora nos ocupa, vemos a que ponto tais relações de si consigo
são" que tinha dois aspectos: o Espírito Santo podia encontrar a se tornaram indispensáveis para que o sujeito se encaminhe na
sua sede na alma liberta pela purificação; e o homem adquiria direcção da luz e da salvação.
uma força maior do que a dos demónios — podia resistir-lhes,
podia opor-lhes o seu comando. Da queda à salvação, era toda uma 3. Ora, tudo isto impele a uma outra mudança de tónica na dou-
relação de forças que intervinha e se invertia: nem o homem era trina do baptismo: mudança que se refere ao efeito do sacramento.
absolutamente coagido ao mal antes da vinda do Salvador, nem Sobre este ponto, serei muito breve, limitando-me a recordar, no
ninguém ficava incondicionalmente resgatado, depois do seu sa- que respeita ao início do século ni, as indicações de Orígenes, e,
crifício. Tudo era combate. Mas esse combate não enfrentava Deus no fim do século iv, as teses de Santo Agostinho'*^
com o princípio do mal: desenrolava-se entre o homem e aquele
que se revohava contra Deus, que queria apoderar-se da sua alma
e não podia suportar "sem gemer" que lha arrancassem.
É este tema do combate espiritual que, a partir do século iii, vai
dar um sentido particular tanto à preparação do baptismo como aos
efeitos que dele se esperam. A preparação deve ser luta contra o
Inimigo, esforço sem cessar renovado visando vencê-lo, apelo a
Cristo para que este socorra e supra a fraqueza do homem. Mas o
baptismo não dará nem segurança nem repouso: o Inimigo encarni-
çar-se-á tanto mais quanto mais se sinta desapossado; e, deixando 182 [Foucault garatuja aqui: O baptismo resgata / - ^ ^ ^ ' ^ ^ ^
de reinar na alma, tentará reintroduzir-se nela. O cristão, se não remissio cordis I Cf. História dos çiogmas / - Tudo isto converge em
estiver devidamente preparado para ser cristão, tornará a cair. problema do conhecimento de si."]
As Confissões da Carne 93

Este texto passou durante muito tempo por ser a prova de que,
no cristianismo primitivo, não existira outra penitência senão a do
baptismo, e por testemunho de que em meados do século ii fora
instaurado um segundo recurso para os pecadores já baptizados:
recurso único, solene, não repetível, do qual teria resultado por
transformações sucessivas a instituição penitencial. O meu propó-
sito não é evocar, nem de longe, as discussões que esta passagem
de Hermas levantou: manifestará a primeira atenuação importante
[III]
de um rigorismo primitivo? Formará uma crítica contra a lição
demasiado estrita de "certos doutores", que seria necessário saber
[A S E G U N D A PENITÊNCIA]
quem são? Assentará na distinção entre dois ensinos: o que é dado
antes do baptismo e o que é reservado aos baptizados aos quais é
possível anunciar a possibilidade de uma segunda penitência? Esta
O quarto Preceito do Pastor de Hermas é conhecido: "Ouvi cer-
última seria, na perspectiva de Hermas, um Jubileu que não devia
tos doutores dizerem que não há outra penitência senão a do dia em
ter lugar senão uma vez, ou um recurso que a parusia de Cristo
que entramos na água." Ao que o anjo da penitência responde: "O
tornava urgente, indispensável e necessariamente única'*"?
que ouviste é exacto. É assim. Aquele que recebeu o perdão dos seus
Retenhamos somente que a obrigação de uma metanoia, de um
pecados não deveria com efeito pecar mais, mas manter-se em san-
arrependimento-penitência, é incessantemente lembrada aos cris-
tidade. Mas pois que queres todas as precisões, indicar-te-ei também
tãos nos textos do período apostólico. É sem dúvida dito na Epís-
o seguinte, sem dar pretexto de pecado aos que acreditarem ou aos
tola aos Hebreus que "é impossível que aqueles que foram uma vez
que se ponham agora a acreditar no Senhor, pois que nem uns nem
iluminados, que provaram o dom celeste, que se tornaram partici-
outros têm de fazer penitência dos seus pecados: têm a absolvição
pantes do Espírito Santo, que saborearam a bela palavra de Deus
dos seus pecados anteriores. Foi pois unicamente para aqueles que
e as forças do mundo por vir e que contudo caíram, sejam renova-
foram chamados antes destes últimos dias que o Senhor instituiu
dos uma segunda vez sendo levados à penitência"'*'. Mas o texto
uma penitência. Porque o Senhor conhece os corações, e, tudo sa-
refere-se à unicidade do baptismo como acto de "renovação" total
bendo de antemão, conheceu a fraqueza dos homens e as múltiplas
do indivíduo. Não exclui nem a abominação das faltas nem o pe-
intrigas do diabo que fará mal aos servidores de Deus e exercerá
dido de perdão daqueles que receberam o baptismo: "Todas as
contra eles a sua malícia. Na sua grande misericórdia, o Senhor
nossas quedas e todas as faltas que cometemos sob a instigação de
comoveu-se perante a sua criatura, e instituiu esta penitência e
um desses adeptos do Inimigo, imploremos o seu perdão."'** Sú-
concedeu-me dirigi-la. Mas digo-to, continuou: se, depois deste cha-
mamento importante e solene, alguém, seduzido pelo diabo, comete
184 A tese do Jubileu, aceite no início do século xx, foi criticada por A . D ' A L E S
um pecado, dispõe de uma penitência só; mas se peca uma e outra
(UÉdit de Calliste. Étude sur les origines de la pénitence chrétienne. Paris, 1914),
vez, ainda que se arrependa, a penitência é inútil a um tal homem."'*' e depois por B . POSCHMANN (Paenitentia Secunda^Bom, 1940); foi retomada e
reelaborada por R . JOLY, em particular na sua edição de O Pastor (1958).
183 H E R M A S , O Pastor. Mandatum / V , 31,1-6. 185 SÃO PAULO, Epístola aos Hebreus, 6,4-6.
186 C L E M E N T E D E R O M A , Primeira Epístola, L I , 1.
94 Michel Foucault As Confissões da Came 95

plica que assume formas rituais e colectivas: "Na assembleia, sagem de uma Igreja de perfeitos a uma comunidade que reconhe-
confessarás as tuas fraquezas, e não irás à tua prece com uma ce em si a existência de pecadores e tem de se acomodar com ela.
consciência impura"'"; do mesmo modo aquando da reunião do Não é sequer sem dúvida a passagem de um rigorismo que admite
dia dominical, parte-se o pão, dão-se graças "depois de se terem somente a penitência baptismal a uma prática mais indulgente.
primeiro confessado os pecados, a fim de que o sacrifício seja Trata-se antes do modo de institucionalização desse arrependimen-
puro"'**. Neste arrependimento que cada um deve experimentar e to que se segue ao baptismo e da possibilidade de reiterar — total
manifestar, a comunidade inteira é chamada a tomar parte. Ou sob ou parcialmente — o procedimento de purificação (e até mesmo de
a forma de uma correcção recíproca: "A repreensão que nos diri- resgate) a que o baptismo dera uma primeira vez lugar. De facto,
gimos mutuamente é boa e muito útil: liga-nos à vontade de trata-se nem mais nem menos do que do problema da repetição,
Deus."'*' Quer sob a forma de uma intercessão de uns pelos ou- numa economia da salvação, da iluminação, do acesso à verdadeira
vida, que por definição não conheça senão um eixo do tempo irre-
tros, junto daquele que perdoa"". Quer sob a forma de jejuns e de
versível escandido por um acontecimento decisivo e único.
súplicas que é necessário fazer com aqueles que pecaram"'. E o
papel dos presbíteros é mostrarem-se "complacentes", misericor- Deixarei de lado a própria história desta institucionalização, e
diosos para com todos, e "reconduzir os extraviados""^. os debates de ordem teológica ou pastoral aos quais ela deu lugar.
Limitar-me-ei a encarar as formas tomadas, a partir do século iii,
O arrependimento e o pedido de perdão faziam pois parte intrín-
pela penitência "canónica", quer dizer, pelos recursos rituais orga-
seca da existência dos fiéis e da vida da comunidade, antes de
nizados sob a autoridade das Igrejas para aqueles que cometerem
Hermas ter feito anunciar pelo anjo ao qual ele fora confiado a
pecados graves e cujo perdão não poderia ser obtido somente pelo
instauração de uma outra penitência. Não devemos esquecer que a
seu arrependimento e somente pelas suas orações. Como poderá
metanoia não é uma simples mudança de atitude necessária ao
um baptizado obter de novo o seu perdão se infringiu os compro-
baptismo, não é somente conversão da alma que o Espírito produz missos que tomou e se se afastou da graça que recebera?
no momento em que entra nela. Através do baptismo, é-se chamado
Trata-se de uma reconciliação que era definida por referência
"à metonoífl""', que é ao mesmo tempo ponto de partida e forma ao baptismo. Não que fosse a sua repetição, porque o baptismo não
geral da vida cristã. O arrependimento a que os textos da Didakhê, pode ser reiterado. A graça que então nos foi dada foi concedida
os de Clemente ou de Barnabé chamam os cristão é o mesmo que de uma vez por todas, e as faltas redimidas foram-no definitiva-
acompanhara o baptismo: o seu prolongamento, o seu movimento mente, só podemos renascer uma vez"". Mas a "penitência" que
continuado. O problema que O Pastor põe não é por isso o da pas- acompanha o baptismo e à qual ele introduz, o movimento através
do qual o espírito se desliga dos seus pecados e morre nessa mor-
187 Didakhê, IV, 14. A Epístola do Pseudo-Barnabé, X I X , 12, retoma a expressão te e o perdão que Deus concede na sua benevolência podem ser
e acrescenta: "tal é a via da luz".
renovados. Não há segundo baptismo, por conseguinte"'; mas,
188 Didakhê, X I V , 1.
189 C L E M E N T E D E R O M A , Primeira Epístola, L V I , 2. Cf. também Didakhê,
X V , 3: "Recriminai-vos uns aos outros." 194 Esta ideia, que fora discutida a propósito dos relapsos e a propósito do baptis-
190 C L E M E N T E D E ROMA,Primeira Epístola,\yi, 1. mo dado para os heréticos, fora claramente rejeitada: "iterandi baptismatis opinio
191/Wd., I I , 4-6. vana", S A N T O AMBRÓSIO, De paenitentia, I I , ii, 7.
192 P O L I C A R P O , Epístola aos Filipenses, V I , 1. 195 Note-se que encontramos por vezes a expressão, mas num sentido metafóri-
193 Cf. as expressões como: "Deus deu a todos metanoias topon", "metanoias co e não ritual: C L E M E N T E D E A L E X A N D R I A , Quis dives salvetur, X L I I , 14
metaskhein" ( C L E M E N T E D E R O M A , Primeira Epístola, V I I , 5; V I I I , 5). (P. G . , t. 9, col. 649).
96 Michel Foucault As Confissões da Came 97

como dizia já Tertuliano, uma "segunda esperança", uma "outra curados?^"' Mas no livro I I do mesmo texto, a penitência é repor-
porta" à qual o pecador pode bater depois de Deus ter fechado a tada à ressurreição de Lázaro: "Se, perante o apelo de Cristo, fize-
do baptismo, "benefício repetido" ou melhor "aumentado" porque res a tua confissão, as barras serão quebradas, e todos os nós que
"devolver é mais do que dar" — paenitentia secunda'^^. Contra os te prendem serão desfeitos, ainda que seja forte o fedor do corpo
novacianos, far-se-á valer que esta última é necessária para não em vias de decomposição [...]. Vedes que os mortos voltam à Igre-
desesperar aqueles que já caíram e para não levar os que ainda não ja e que ressuscitam quando lhes é concedido o perdão dos seus
são cristãos a retardar o momento do baptismo"''. pecados."^»"
A relação da penitência com o segundo baptismo é marcada de E m suma, a salvação, que só pode ser obtida pelo baptismo
diferentes maneiras. Pelo princípio antes do mais de que tanto quando não se é ainda cristão, só a penitência a poderá permitir
aqui como ali é o Espírito Santo quem opera e perdoa as faltas; aos cristãos que voltem a cair depois do baptismo^"'. Portanto, dois
"Os homens pedem e a Divindade perdoa, [...] é o Poder soberano caminhos para nos salvarmos, eis o que o papa Leão repetirá na
quem concede os seus favores.""* O mesmo mistério e o mesmo esteira de Ambrósio^"*.
ministério, a autoridade exercida pelos sacerdotes é a mesma Esta analogia, tão fortemente marcada com o baptismo, explica
quando baptizam ou quando reconciliam: "Que diferença faz que o paradoxo de que, embora sendo, de certo modo, a "repetição" do
seja através da penitência ou através do baptismo que os sacerdo- baptismo (ou pelo menos de certos de entre os seus efeitos), a pe-
tes reivindiquem esse direito que lhes é dado?""' Do mesmo mo- nitência não seja repetível. Como aquele, ela é única: "Não há se-
do que a água do baptismo tinha por missão lavar as faltas ante- não um baptismo; do mesmo modo, não há senão uma penitên-
riores, pede-se às lágrimas da penitência que lavem as fraquezas cia."™'' Nada tem pois de surpreendente que tenha sido organiza-
que tiveram lugar após o baptismo^"". E , apesar da preocupação de da, pelo menos em certa medida, segundo o modelo do baptismo
reservar àquele o poder de fazer re-nascer, de re-generar, encon- e da sua preparação.
tramos o tema^o' da penitência que faz passar [da morte à vida]^"^ A penitência canónica tomou pouco a pouco a forma de um
O De paenitentia de Santo Ambrósio é significativo a este respei- "segundo noviciado"™*. A expressão "paenitentiam agere", usada
to. A penitência é de início referida ao episódio do Samaritano no para designar, de maneira muito geral, toda a forma de arrependi-
Evangelho de Lucas: como o homem ferido na estrada de Jericó, o mento (ainda que interior) à qual um pecador se aplica para obter
pecador pode ser salvo porque está ainda "meio vivo"; se estivesse o perdão das fahas (ainda que leves), é utilizada também para de-
completamente morto, que poderíamos fazer por ele? Deveremos signar a forma regular em cujos termos tudo se deve desenrolar no
fazer com que façam penitência aqueles que já não podem ser procedimento penitencial: sob a autoridade dos sacerdotes, com
um certo número de práticas definidas, num momento em que é
196 T E R T U L I A N O , De pae«!íe«í/a, V I I .
197 Assim SANTO AMBRÓSIO, De paenitentia, I I , i i . 203 SANTO AMBRÓSIO, De paenitentia, I , x i , 52; cf. anotação do mesmo tipo na
198 SANTO AMBRÓSIO, De Spiritu Sancto, I I I , 13. carta L V de SÃO CIPRIANO, capítulos 16 e 20.
199 SANTO AMBRÓSIO, De paenitentia, I , viii, 36. 204 SANTO AMBRÓSIO, De paenitentia,11, vii, 58-59.
200 Analogia muito frequentemente evocada. Assim por SANTO AMBRÓSIO na 205 SANTO AMBRÓSIO, carta X X V .
carta X L I , 12; ou em Enarratio in Psalmum J7,10-11. 206 SÃO LEÃO, carta [108].
201 SÃO C I P R I A N O , carta X V , 2. 207 SANTO AMBRÓSIO, De paenitentia, I I , x, [95].
202 [Manuscrito: "da vida à morte".] 208 [Nota vazia.]
I
98 Michel Foucault ' s Confissões da Carne 99

necessário e durante um tempo determinado^"'. A penitência as- particular da eucaristia)-". No entanto, até mesmo depois da re-
sim praticada não é simplesmente um acto, ou uma série de ac- conciliação, o ex-penitente não recupera o estatuto que anterior-
ções, é um estatuto^'". O penitente "torna-se" penitente segundo mente Unha. Continua, de certo modo, marcado: é-lhe impossível
regras às quais devem submeter-se não só os pecadores, mas tam- tornar-se sacerdote, são-lhe vedados os cargos públicos, bem como
bém os sacerdotes que regulam a mesma penitência^". certas profissões: ser-lhe-á recomendado que evite os litígios'^'".
A penitência eclesiástica "pede-se", "concede-se", "recebe-se". ÊJPenitência "segunda" por comparação com a do baptismo, esta
O cristão que cometeu um pecado grave — e decerto o relapso que pratica cuidadosamente regulamentada não é menos exigente. Pelo
sacrificou ou assinou um certificado de sacrifício — solicita do ontrário. Porque se trata de solicitar o que fora concedido uma
bispo a possibilidade de se tornar penitente; ou ainda é a isso im- vez e obter por excepção o efeito que uma graça oferecera já a
pelido pela exortação do sacerdote que está ao corrente da sua todos os baptizados. A penitência é mais estreita do que o baptis-
falta^'^. E é em resposta a este pedido que o bispo "concede" a no. Deus oferece este último a todo o homem que o reconhece e
penitência, que devemos pois conceber, no seu sentido fundamen- ferece portanto a remissão das faltas como uma "gratuita dona-
tal, menos como uma punição imposta do que como um recurso lo"; em contrapartida, o perdão, concede-o ao penitente como
ao qual o acesso e cujo desenrolar-se estão cuidadosamente regu- ruto do longo labor que aquele terá exercido sobre si mesmo^".
lamentados. A penitência começa por um ritual que comporta a s autores dos séculos iii e iv não reconsideram o princípio de que
imposição das mãos num gesto que se refere ao exorcismo e que ápreparação do baptismo não pode dispensar uma disciplina, mas
implora a bênção de Deus sobre os exercícios penitenciais. Estes "centuam bem, em contrapartida, que, na penitência, o pecador,
duram muito tempo: meses, anos. E , quando terminam, o peniten- que já recebeu a graça, deve assumir o encargo dos seus próprios
te é admitido à reconciliação no decorrer de uma cerimónia que pecados. É o princípio de Orígenes: apolambanein tas hamar-
constitui como que a réplica da primeira: o bispo impõe de novo tias^^^. E acontecerá, a despeito do princípio segundo o qual não
as mãos e o penitente é readmitido à "communicatio". Enquanto
dura, um tal estatuto implica práticas de ascese (jejuns, vigílias, 13 Sobre todos estes pontos, cf. R . G R Y S O N , "Introduction" ao De paenitentia
orações numerosas) e obras (esmola, socorro dos enfermos); com- de SANTO AMBRÓSIO (Paris, 1971, pp. 37 e sgs.) e Le Prêtre selon saint Am-
porta também interdições (assim, as relações sexuais entre espo- broise (Lovaina, 1968).
sos) e uma exclusão parcial das cerimónias da comunidade (em 214 Cf. SÃO LEÃO, carta 167.
215 PACIANO, carta I I I , 18: "Baptismus enim sacramentum est dominicae pas-
sionis: paenitentium vénia meritum conjitentis. Illud omnes adipisci possunt, quia
209 "Sacerdotibus Dei obtemperans", "operibus justis", SÃO C I P R I A N O , carta gratiae Dei donum est; id est, gratuita donatio; labor vero iste paucorum est qui
X I X , 1; "justo tempore", carta IV, 4. Sobre o sentido geral e o sentido preciso de post casum resurgunt, qui post vulnera convalescuni, qui lacrymosis vocibus adju-
"paenitentiam agere", cf. J . G R O T Z , Die Enhi'icklung des Busstufenwesens in der vantur, qui carnis interitu reviviscunt." ["O baptismo, com efeito, é o sacramento
vornicãnischen Kirciie, Friburgo, 1955, pp. 75-77. da paixão do Senhor: o perdão dos penitentes, o salário da confissão. O primeiro,
210 Paciano distingue os catecúmenos, os penitentes e os cristãos de pleno exer- todos podem obtê-lo, porque é um dom gratuito de Deus, quer dizer um perdão
cício. gratuito; mas o segundo é fruto do esforço do pequeno número dos que se voltam
211 Cf., por exemplo, SÃO C I P R I A N O , cartas X V e X V I . a levantar depois da queda, que retomam força depois das feridas, que se fazem
212 Sobre o papel do bispo nestes incitamentos à penitência, cf. PACIANO [carta I I I , socorrer por meio de gritos cheios de lágrimas, que revivem através da destruição
16]: o bispo "ad paenitentiam cogit, objurgat, crimen ostendit, vulnera aperit, su- da carne", tradução C . Épitalon e M . Lestienne.]
pplicia aeterna commemorat" ["... coage à penitência, reprova, mostra o crime, põe 216 Sobre este ponto cf. K . R A H N E R , ["La doctrine d'Origène sur la pénitence"],
a nu as feridas, lembra os suplícios eternos", tradução C . Épitalon e M . Lestienne]. in Recherches de science religieuse (t. 38,1950), p. 86.
100 As Confissões da Carne 101
Michel Foucault

há segundo baptismo, que se fale da penitência como do "baptismo é dado ver e julgar, vemos o exterior de cada um; quanto a sondar
laborioso."^" o coração, e a penetrar a alma, isso não podemos."^'* Argumento
Podemos dizer, sem entrarmos nos problemas da teologia sacra- que o inclina, mais do que à severidade, a uma indulgência que o
mentaria e da sua história, que a partir do século iii se torna sen- leva por vezes a reprovar-se a si mesmo-". Mas se teme, como
sível uma diferente acentuação na maneira como se descreve a todos fazem, que "espíritos incorrigíveis", "homens contaminados
metanoia ligada ao baptismo e a que é indispensável à penitência ou de adultérios ou de sacrifícios" venham corromper as almas
eclesiástica. Continua a tratar-se sem dúvida, nos dois casos, de honestas, pensa todavia que a tarefa não é tanto excluir aqueles
um arrependimento através do qual a alma se desliga dos pecados cuja sinceridade não é certa, como trabalhar na sua cura^^°. De
por que está manchada. Mas, a propósito do baptismo, é sobretudo resto, a reconciliação concedida neste mundo não vincula Deus.
a libertação, a aphesis, que é sublinhada; quanto à metanoia ne- Aquele que tudo vê, até mesmo os segredos do coração que nos
cessária à reconciliação, é sobretudo o trabalho que a alma exerce escapam, não fica comprometido a perdoar quando se quis
sobre si mesma e sobre as faltas que cometeu. enganá-lo abusando da indulgência dos seus: "O próprio Deus
julgará aquilo que não penetrámos bem, e o Senhor reformará a
* sentença dos seus servidores."-^'
Resta que continua a não ser possível acolher toda a gente sem
No desenrolar-se da penitência canónica os procedimentos des- precaução; é necessário reflectir e examinar. As atestações daque-
tinados a manifestar a vontade da alma penitente são numerosos. les que tinham aceitado enfrentar o martírio em benefício dos que
E apresentam diferenças notáveis em relação àqueles que são apli- tinham "caído" — ou por terem sacrificado, ou por terem assinado
cados para o baptismo e para a sua preparação. um certificado de sacrifício — não bastam, sobretudo quando to-
mam a forma de uma espécie de recomendação colectiva que vale
- A - para toda uma família ou uma casa. Mais ou menos espontanea-
mente, Cipriano adere, ao mesmo tempo que mantém a sua posi-
Podemos pôr num lugar à parte o recurso aos testemunhos ou ção de indulgência de princípio, à prática que se impôs e que pa-
às inquirições que permitem certificar o arrependimento e as boas rece ter sido codificada, sob a forma de regulamento, num opús-
disposições dos que pedem a sua reconciliação. A s cartas de São culo fixando aos responsáveis a conduta a assegurar^^^: examinar
Cipriano atestam, para o período que se segue às grandes perse- caso a caso a situação dos que pedem para ser acolhidos como
guições, a importância do problema, a dificuldade de descobrir o penitentes em vista de serem finalmente reconciliados; encarar as
equilíbrio entre rigor e indulgência, o ardor de alguns lapsi bus- intenções e as circunstâncias do acto {causae, voluntates, necessi-
cando ter de novo a paz da Igreja, e a obstinação por vezes posta tates); distinguir "aquele que por sua própria vontade se dispôs
em recusar-lha — seja como for, a aspereza das discussões. São
Cipriano reitera-o várias vezes: entre o perigo de reconciliar de- 218 "Cor scrutari et mentem perspicere non possumus", SÃO C I P R I A N O , carta
masiado depressa ou o de privar os pecadores de uma esperança, LVII,3.
219/Wd.,cartaLIX, 1 5 e l 6 .
a decisão será Sempre, de certa maneira, cega: "Tanto quanto nos
220 Ibid.
221 Ibid., carta LV, 18; cf. também L V I I , 3.
217 [GREGÓRIO D E N A Z I A N Z O , Discurso X X X I X , 17 ( R G . , t. 36, col. 356a).] 222 "[Libellus] ubi singula placitorum capita conscripta sunt", ibid., carta LV, 6.
102 Michel Foucault As Confissões da Carne 103

imediatamente ao sacrifício abominável, e aquele que depois de das perseguições. Mas o controle externo dos penitentes — que
ter resistido e lutado por muito tempo só por necessidade chegou não deixa de lembrar o que, por meio do interrogatório, da inqui-
ao acto deplorável; aquele que se entregou a si mesmo e aos seus, rição e do testemunho, era exercido sobre os catecúmenos — de-
e aquele que, avançando para o perigo só e por todos, preservou a sempenhou um papel relativamente acessório por comparação
sua mulher, os seus filhos e toda a sua casa"^". com um outro procedimento de verdade, muito mais central na
Parece ter sido previsto um outro exame, incidindo já não sobre penitência: esse através do qual o pecador reconhece ele mesmo
as circunstâncias da falta, mas sobre a conduta do pecador a partir os seus próprios pecados.
desse momento^^*, quer dizer no período em que, ou espontanea-
mente, ou segundo as formas canónicas, ele faz a sua penitência, - B -
manifesta o seu remorso e mostra a sua vontade de viver como
crente; "A porta do campo de Deus, que montem a guarda, mas É a estes procedimentos "reflectidos" que se reportam os ter-
armados de modéstia, mostrando que têm consciência de terem mos de confessio e também de exomologesis — correntemente
sido desertores"^^'; a quem não professe a sua desolação ("nec usados em latim, entre o século ii e o século iv^^*, com uma signi-
dolorem [...] manifesta lamentationis suae professione testantes") ficação equivalente. Seja como for, aquilo que um e outro desig-
deve ser recusada a esperança da comunicação e da paz^^*. nam precisamente é sujeito a discussão. Segundo as referências
Tendo em conta a dificuldade de um tal exame, as resistências escolhidas, certos historiadores insistem na existência de um acto
que as comunidades opunham ao retorno dos lapsi e a hostilidade definido através do qual o penitente reconheceria as faltas come-
que podiam suscitar as decisões pessoais, estas tinham de ser mui- tidas^™; outros sublinham que muitas vezes esses termos, e em
tas vezes tomadas colectivamente, sob a direcção do bispo e na particular o de exomologese, são uma maneira de designar o con-
presença dos fiéis. É o que testemunha uma carta dos sacerdotes junto dos actos penitenciais aos quais o pecador está vinculado-™.
romanos a Cipriano: é "um encargo facilmente impopular e um Parece de facto possível distinguir três elementos.
pesado fardo ter-se de, sem que o número ajude, examinar a falta
de um grande número, e estar-se só quando se pronuncia a senten-
ça [...]; não pode'ter grande força uma decisão que não pareça ter 228 " / í actus, qui magis graeco vocábulo exprimitur etfrequentatur, exomologesis
est" ["Este acto, que designamos mais habitualmente por meio de uma palavra gre-
reunido os sufrágios de um grande número de deliberantes"^^''. ga, é a exomologese", tradução E . - A . de Genoude], T E R T U L I A N O , De paeniten-
A importância destas práticas de exame estava ligada a uma tia, I X , 2. O termo, que encontrávamos já em Santo Ireneu (seis vezes sob forma
conjuntura particular: o que explica a dimensão que num dado verbal no Adversas haereses), é muito frequente em São Cipriano; encontramo-lo
ainda em Paciano nos finais do século iv.
momento assumiram. Sem dúvida não desapareceram com o fim
229 Assim A . D'ALÈS, L'£dií de Calliste, pp. 440 e sgs.
230 E . A M M A N , artigo "Pénitence" do Dictionnaire de théologie catholique, t.
223/Wd., carta LV, 13. X I I (1933); sob o termo "exomologese", colocava-se "o conjunto dos exercícios
224 Na carta X X V H , CIPRIANO refere-se a uma missiva de Luciano sobre "aque- penitenciais preparatórios da reconciliação eclesiástica"; B . POSCHMANN, Pae-
les cuja conduta após a sua falta tiver sido examinada". É ao mesmo exame tam- nitentia secunda, Bona, 1940); " . . . den ganzen Komplex der vom Siinder und von
bém que se refere a carta L V I , 5: "communicatio nostra examinatione concessa". der Kirche zu erfullenden Bussakte" ["... todo o complexo dos actos de penitência
225 Ibid., carta X X X , 6, endereçada pelos sacerdotes de Roma a Cipriano. que devem cumprir o pecador e a Igreja"] (p. 419). Era a interpretação de J . MO-
226 Ibid., carta LV, 23. RINUS: "exomologesis est actio exterior paenitentiae" (Commentarius historicus
227 Ibid., carta X X X , 5, endereçada a Cipriano. de disciplina in administratione sacramenti paenitentiae, 1682).
104 Michel Foucault \ Confissões da Carne 105

1. Primeiro devia ter lugar a exposição do pedido. O pecador j)referia "sem nada dizer a ninguém" chorar com o culpado sobre
que solicitava a penitência confiava ao bispo ou ao presbítero que ;.y suas faltas e interceder junto de Deus a fim de que este conce-
deviam conceder-lha tanto a sua vontade de se tornar penitente desse o perdão^". Entre o pecador e aquele que lhe concedia a
como as razões que tinha para tal. Exposição detalhada? Vimos, a penitência, havia pois lugar para uma entrevista privada — o q^g
propósito das apostasias e da prática da examinatio, que tal devia iiáo quer dizer que esta tivesse lugar todas as vezes e necessaria-
ser por vezes o caso. Podia fazer-se até apelo a testemunhos e a mente. Procedimento verbal, incluindo certos caracteres do reco-
certas espécies de inquirições: é a esta maneira de proceder que se nhecimento jurídico, na medida em que se tratava de apreciar a
aplica a expressão de tipo jurídico que encontramos em São C i - iiravidade de uma falta. É certo que nos aproximamos aqui, até
priano: exposita causa apud episcopum^^K Mas, exceptuadas estas c.:rto ponto, da forma da confessio oris tal como a encontraremos
conjunturas particulares, o pedido de penitência devia ser muito mais tarde no coração do rito penitencial e como um dos seus
mais discreto. Tratar-se-ia somente de uma confissão oral que se elementos principais. Mas com essa diferença fundamental que
exprimia em termos gerais, e talvez por meio da simples recitação consistia no facto de a declaração verbal das faltas ser aqui um
de um salmo de penitência?^'^ Podemos pensar que uma exposição simples preliminar da penitência, e de não ser sequer absoluta-
sucinta fosse necessária para indicar a natureza da falta, permitir ; mente necessária. Não constitui uma sua parte integrante nem
avaliar a sua gravidade, e talvez fixar o tempo, o "justam tempus", essencial.
que devia decorrer antes de se poder encarar a reconciliação^", j
Era então sem diívida que se decidia se a falta merecia o recurso 2. No outro extremo do procedimento penitencial, quando che-
à penitência, ou se se podia obter o perdão por vias menos rigoro- , gou o momento da reconciliação, parece de facto que se tenha
sas. E a prática a que verosimilmente se refere Cipriano no De dado lugar a um episódio, bem definido, de exomologese. É pelo
lapsis quando distingue daqueles que devem "fazer penitência", menos o que parecem indicar várias passagens da correspondência
porque sacrificaram ou assinaram os bilhetes, os que mais não de São Cipriano nas quais, evocando o que é necessário para a
fizeram do que ter tido essa ideia: estes últimos deverão "reconhecê- reconciliação dos lapsi, aquele indica regularmente a série: paeni-
-lo com dor e franqueza junto dos sacerdotes de Deus"^'". [É] tentiam agere, exomologesim facere e impositio manus^^^. Depois
também nela que pensa o biógrafo de Santo Ambrósio, quando o
louva pela indulgência com que acedia a ouvir os pecadores: mui-
235 P A U L I N U S [PAULINO D E MILÃO (N. T.)], Vita Ambrosii, [P. L . , 1.14, col.
tas vezes, em vez de desempenhar o papel de acusador público,
27-50].
236 SÃO C I P R I A N O , carta X V , 1: "Ante actampaenitentiam, ante exomologesim
gravissimi atque extremi delicti factam ante manum ab episcopo et clero in pae-
231 SÃO C I P R I A N O , carta X X I I , 2. Cf. J . G R O T Z , Die Entwicklung des Busstu- nitentiam impositam" ["Antes de qualquer penitência, antes da confissão maior e
fenwesens in der vornicãnischen Kirche, p. 82. da mais grave das faltas, antes da imposição das mãos pelo bispo e pelo clero",
232 Tal é a traço grosso a tese de E . GÕLLER, "Analekten zur Bussgeschichte tradução do cónego Bayard], X V I , 2: "Cum in minoribus peccatis agant pecca-
des 4. Jahrhunderts", Rõmische Quartalschrift, t. X X X V I , 1928. Cf. o que a este tores paenitentiam justo tempore, et secundum disciplinae ordinem ad exomolo-
propósito diz R . G R Y S O N sobre a prática penitencial em Milão no século iv, em gesim veniant, et per manus impositionem episcopi et cleri jus communicationis
Le Prêtre selon saint Ambroise, pp. 277 e sgs. accipiant" ["Quando se trata de faltas menores, os pecadores fazem penitência, o
233 [SÃO C I P R I A N O , carta IV, 4.] tempo prescrito, e, segundo a ordem da disciplina, são admitidos à confissão, re-
234 SÃO C I P R I A N O , De lapsis, X X V I I - X X V I I I ; sobre o sentido a dar a esta gressando depois à comunhão através da imposição das mãos do bispo e do clero",
passagem cf. J . G R O T Z , [p. 59]. tradução do cónego Bayard]. C L também cartas IV, 4; X V I I , 2.
106 As Confissões da Carne 107
Michel Foucault

de ter levado, durante o devido tempo, a vida de penitente, e antes :'o bispo, os sacerdotes e o povo chorando com ela, que tinha os '
de o rito de imposição das mãos ter marcado a sua reconciliação, cabelos desgrenhados, o rosto lívido, as mãos sujas, a cabeça co-
o pecador teria pois de fazer a exomologese. Tratar-se-á de uma berta de cinzas e humildemente curvada [...]. O seu peito desfeito
confissão verbal das faltas? Não parece ser o caso. É verdade que e o rosto com que seduzira o seu segundo marido, macerava-os,
São Cipriano não dá informação sobre este episódio do rito peni- descobria a todos a sua ferida e sobre o seu corpo empalidecido,
tencial: quando muito evoca a seu respeito, e de maneira sem dú- Roma em lágrimas contemplava as suas cicatrizes."-™ De maneira
vida em parte simbólica, o penitente no limiar, batendo à porta e muito menos explícita, e sem empregar o termo de exomologesis.
solicitando a entrada. Mas outros textos, anteriores ou mais tar- Santo Ambrósio refere-se provavelmente ao mesmo tipo de ritual
dios, permitem que façamos, da exomologese, uma ideia mais quando evoca a necessidade por parte do penitente de dirigir a sua
precisa. súplica a Deus, na igreja e na presença dos fiéis, sob formas que
No De pudicitia, tendo-se tornado montanista, Tertuliano des- ; lembram a suplicação antiga: "Recusas que testemunhas e pessoas
creve em termos positivos o pecador que leva até ao fim a sua vida ^ ao corrente se associem à tua prece quando se trata de apaziguar
de penitente sem ser nunca reconciliado: está "de pé diante das um homem e tens de procurar muitas outras pessoas e de lhes
portas; o seu estigma serve de exemplo aos demais; chama em seu suplicar que se disponham a intervir, quando tens de te abraçar
socorro as lágrimas dos seus irmãos"^". E m contrapartida, evoca, aos joelhos desse homem, quando lhe beijas os pés, quando lhe
em termos críticos, o penitente que é conduzido ao interior da apresentas os teus filhos ainda na ignorância da falta, para que
igreja para receber a reconciliação: é portador do cilício e da cin- também eles implorem o perdão do seu pai? E isso, recusas-te pois
za; veste roupas miseráveis; é tomado pela mão, introduzem-no na a fazê-lo na igreja?"^"" Ou ainda quando evoca, segundo o Evan-
igreja; prosterna-se publicamente diante das viúvas e dos sacerdo- gelho de Lucas, a mulher pecadora que beijava os pés de Cristo e
tes, agarra-se aos panos das suas vestes, beija o rasto dos seus os enxugava com os seus cabelos: "O que significam os cabelos,
passos; abraça-lhes os joelhos^'*. Temos sem dúvida aqui um re- senão que saibas que é inclinando toda a dignidade manifestada
lance dessa fase de exomologese que remata a vida de penitente e pelos indignos deste mundo que o perdão deve ser implorado:
precede o retorno à comunhão. Descrição cuja ênfase poderia ser deves prosternar-te tu mesmo no chão chorando; deves, jazendo
explicada pela hostilidade de Tertuliano. Mas a sua hostilidade por terra, provocar a misericórdia."^'"
incide sobre o facto da reconciliação, não sobre a abjecção a que
é adstrito o penitente. E outros textos muito mais recentes não dão 3. Mas os termos de exomologese ou de confessio não designam
uma imagem muito diferente desse momento em que o pecador é apenas este episódio terminal da penitência. Muitas vezes tam-
chamado, antes de ser reconciliado, a reconhecer publicamente a bém, referem-se a todo o desenrolar do procedimento penitencial.
sua falta. "Debaixo dos olhos da cidade de Roma", conta São Je- É nesse sentido que Santo Ireneu falava de uma mulher que, de-
rónimo a propósito de Fabíola, que, divorciada, tornara a casar pois de ter desposado as ideias gnósticas, regressara à Igreja e
antes da morte do seu primeiro esposo, "durante os dias que pre- passara o resto dos seus dias a "fazer exomologese", ou de um
cediam a Páscoa, ela mantinha-se nas fileiras dos penitentes, com

239 SÃO JERÓNIMO, carta 77,4-5.


237 T E R T U L I A N O , De pudicitia, I I I . 5. 240 S A N T O AMBRÓSIO, De paenitentia, I I , x (91).
238/Wd., X I I I , 7.
241/Wd., I I , viii (69).
108 109
Michel Foucault As Confissões da Came

herético que ora professava os seus erros, ora fazia exomologese^"-. A obrigação de fazer penitência e o estatuto no qual ela toma
É bem do mesmo modo pensando na acção penitencial no seu forma implicam, ao longo de todo o seu desenrolar, esses actos de
todo que Tertuliano evoca a instituição por Deus "da exomologese exomologese que a manifestam e a atestam: mostram-no textos
a fim de restabelecer o pecador na graça", e esse rei de Babilónia mais recentes do que o De paenitentia ou o De pudicitia de Ter-
que, durante sete anos, fizera exomologese^"'. tuliano. E insistem no valor demonstrativo das referidas práticas.
Se a penitência no seu todo pode ser dita exomologese, é que Através delas, trata-se não só de efectuar a penitência, mas de a
as expressões ptíblicas e ostentativas de arrependimento que são -rovar. Escrevia a São Cipriano um membro do clero da Igreja de
requeridas de maneira particularmente solene e com uma intensi- má a propósito dos apóstatas: " E tempo para eles de fazerem
dade muito marcada nos momentos que precedem a reconciliação penitência {paenitentiam agere), de mostrarem a dor que experi-
fazem igualmente parte da acção penitencial durante todo o tem- mentam por terem caído, de exprimirem a sua vergonha, de mani-
po em que ela se desenrola. A penitência, e é um dos seus aspec- festarem a sua humildade, de exibirem a sua modéstia."^"' O pró-
tos essenciais, deve constituir uma espécie de manifestação, de prio São Cipriano, chamando os relapsos à penitência, os convida
"confissão" renovada, atestando que foi cometido um pecado, que a essas manifestações em que os gemidos daqueles que pecaram
se reconhece ser-se pecador e que se está arrependido. Tal é o devem misturar-se às lágrimas dos fiéis^"*. E , no fim do século iv,
sentido que nos capítulos I X e X do De paenitentia Tertuliano dá continua a ser através de tais actos destinados a pôr à prova e pro-
à exomologese enquanto dimensão permanente da penitência. var que se caracteriza a prática da vida penitente: gemidos e lágri-
Esta, com efeito, não deve ser aplicada "somente na consciência", mas, diz Santo Ambrósio no início do De paenitentia^'''^; gemidos,
mas "deve efectuá-la também em acto". Este acto, que não é tanto lamentações, lágrimas, acrescenta um pouco mais adiante, subli-
um episódio da penitência como a sua vertente externa, a sua face
nhando que se trata aqui de uma expressão livremente consentida,
visível e manifesta, é a ele que deve aplicar-se o termo de exomo-
de uma espécie de confissão voluntária — mas no sentido de
logese. E por este designa-se uma "disciplina", uma maneira de
profissão de fé —, meios através dos quais os apóstatas tentam
ser e de viver, um regime que envolve "habitus atque victus":
fazer-se perdoar da renegação involuntária a que a tortura pôde
"Deve deitar-se debaixo do saco e da cinza, envolver-se o corpo
constrangê-los^"*. E Paciano, na sua Parénese, acentua que a ver-
em andrajos escuros, abandonar-se a alma à tristeza, corrigir com
dadeira vida de penitência, a que não se cumpre somente de modo
tratamentos rudes os membros culpados. [...] O penitente alimen-
nominal, encontra os seus instrumentos no saco, na cinza, no je-
ta habitualmente as orações por meio dos jejuns. Geme, chora,
clama noite e dia dirigindo-se ao Senhor seu Deus. Roja-se aos
245 " [ . . . ] utprobent lapsus sui dolorem, ut ostendant verecundiam, ut monstrent
pés dos sacerdotes. Ajoelha-se diante daqueles que são caros a
humilitatem, ut exhibeant modestiam", carta a Cipriano, X X X V I , 3.
Deus, encarrega todos os irmãos de intercederem pelo seu per- 246 "Quaeso vos,fratres, aequiescite salubribus remediis, consiliis obedite melio-
dão. Tudo isto, a exomologese fá-lo a fim de dar crédito à peni- rtbus; cum lacrymis nostris vestras lacrymas jungite, cum nostro gemitu vestros
tência."2"" gemitus copulate" ["Rogo-vos, meus irmãos, segui os nossos conselhos, aproveitai
do remédio salutar. Uni as vossas lágrimas às nossas lágrimas, os vossos gemi-
dos aos nossos gemidos", tradução do Pe. Thibaut], SÃO CIPRIANO, De lapsis,
X X X I I , 2.
242 SANTO I R E N E U , Adversas haereses, [1,6, 3; I I I , 4 , 3 ] .
247 SANTO AMBRÓSIO, De paenitentia, I , v, 22.
243 T E R T U L I A N O , De paenitentia, X I I .
248 "Confitentur gemitibus, confitentur ejulationibus, confltentur fletibus, conji-
244 T E R T U L I A N O , De paenitentia, I X , 3-6.
tentur liberis, non coactis vocibus", ibid., I , v, 24.
110 s Confissões da Carne 111
Michel Foucault

jum, na aflição, e na participação de um grande número nas ora- te se deve mostrar aos outros debaixo do saco e da cinza, prosterna-
ções que pedem o perdão do pecador^"". do, em lágrimas, suplicando que intercedam por ele, e chamando os
Os historiadores que contestaram a existência de um ritual de- fiéis, os clérigos e os sacerdotes a que chorem e gemam com ele. A
finido de exomologese, entre os actos de penitência e a reconcilia- penitência assim entendida é um rito público e colectivo.
ção, erraram, sem dúvida, dados testemunhos como os de São — O eixo do verbal e do não-verbal: de um lado, há a exposição
Cipriano. Mas não se enganavam quando sublinhavam que toda a necessariamente oral que o futuro penitente deve fazer àquele que
vida do penitente devia desempenhar também, através das diferen- o receberá na penitência; e, do outro, a série dos gestos, das atitu-
tes obrigações a que estava submetida, um papel de confissão. O des, das lágrimas, das vestes, dos gritos, por meio dos quais o que
penitente deve fazer "profissão" da sua penitência. Não há peni- pecou manifesta a sua penitência. Talvez proclame o que foi o seu
tência sem actos que têm por dupla função constituírem penas que pecado: mas essa enunciação faz ela mesma parte de todo um
o pecador inflige a si mesmo e manifestarem a verdade dessa pe- conjunto de expressões em que é o corpo por inteiro o elemento
nitência. Tertuliano empregava uma expressão significativa para principal.
designar esta exomologese que era inerente ao desenvolvimento — O eixo do jurídico e do dramático: de um lado, a penitência
penitencial: publicatio sup-^. deve começar pela exposição, ainda que sucinta, da falta, do que a
caracteriza e das circunstâncias que podem modificar-lhe a gravi-
Vemos pois que o perdão das fahas graves cometidas após o dade: torna-se assim possível determinar se dará lugar à penitên-
baptismo e o regresso à comunhão dos que caíram não podem ser cia, e quanto tempo a penitência durará antes da reconciliação.
obtidos sem a aplicação de todo um conjunto de procedimentos de Mas, no outro pólo, há manifestações dramáticas e intensas que
verdade. Procedimentos mais numerosos e mais complexos do que não obedecem a qualquer cálculo económico nem procuram
os prescritos a propósito do baptismo. A sua gama é larga, uma ajustar-se, da maneira mais estrita possível, à importância da falta
vez que vão das declarações que o pecador pode fazer no momen- cometida; obedecem pelo contrário a um princípio de ênfase, de-
to de solicitar a penitência às grandes expressões de humildade e vem ser o mais vigorosas possível.
de suplicação que têm lugar no limiar da igreja, antes da reconci- — O eixo do objectivo e do subjectivo: de um lado, encontra-
liação final. Todos estes procedimentos podem ser distribuídos ao mos a designação da falta, pelo menos nos seus elementos essen-
longo de eixos diferentes. ciais; do outro, o que as grandes práticas de exomologese têm a
— O eixo do privado e do público: do lado do privado, devemos manifestar não é tanto a falta em si mesma no que tem de particu-
colocar a confidência que aquele que pecou quer fazer ao bispo ou lar como o estado do próprio pecador, ou antes os estados que
ao sacerdote quando lhe pede que lhe conceda o estatuto de peni- nele se sobrepõem, se entrecruzam e entram em concorrência.
tente; do lado do público, todos os actos através dos quais o peniten- Cabe-lhe, com efeito, mostrar-se como pecador, simbolicamente
coberto pela sujidade e a contaminação da falta, enterrado nessa
249 "Sacco corpus involvere, cinere perfundere, macerare jejunio, moerore confi- vida do pecado que é a via da morte. Mas a intensidade visível dos
cere, multorum precibus adjuvari" ["envolver o corpo num saco, cobri-lo de cinza, actos penitenciais tem também por fim aute.nticar que está já a
consumi-lo pelo jejum, macerá-lo de sofrimento, obter auxílio por meio das ora-
ções de muitos", tradução de C . Épitalon e M . Lestienne], PACIANO, Parénese, desprender-se dessa vida e que a ela renuncia; as lágrimas que
XXIV. derrama sobre o seu pecado lavam-no dele; purifica-se pela suji-
250 [ T E R T U L I A N O , De paemte;ií/a, X , 1.] dade de que se cobre; humilhando-se mostra que de novo se levan-
112 s Confissões da Carne 113
Michel Foucault

ta e que é digno de ser de novo levantado^". A s manifestações da deixamos de poder reconhecer a aplicação de [dois] tipos de prá-
exomologese não procuram fazer aparecer [a falta] tal como foi ticas, duas maneiras de fazer aparecer a verdade: dizer a verdade
verdadeiramente cometida: visam fazer surgir em plena luz o pró- tia falta e manifestar o ser verdadeiro do pecador.
prio penitente, tal como é: verdadeiramente pecador, e já não o E , entre estas duas modalidades, a repartição não é igual: a
sendo verdadeiramente. enunciação verbal da falta não é requerida senão quando se trata
Podemos pois dizer que os procedimentos de verdade, na peni- dè determinar a penitência, de examinar se o pecador pode ser
tência eclesiástica dos primeiros séculos, se agrupam em torno de admitido a fazê-la e se merece ser reconciliado. "Dizer a falta",
dois pólos: um que é o da formulação verbal e privada — tem por fazer entrar, no elemento verbal, a confissão e o exame, exigir do
missão definir a falta juntamente com os caracteres que permitem pecador uma "veridicção" dos seus pecados não é necessário se-
apreciá-la e de definir de que modo pode o seu perdão ser conce- não antes do procedimento penitencial, e portanto, de certo modo,
dido; o outro, que é o da expressão global e pública, tem por mis- fora dele. E m contrapartida, a demonstração, ostentativa, gestual,
são manifestar, com a dramaticidade mais intensa possível, o ser corporal, expressiva, do que o pecador é faz intrinsecamente parte
pecador do penitente e ao mesmo tempo o movimento que o livra da penitência. Forma uma sua dimensão essencial e constante. O
da sua falta. Sem dúvida, encontramos aqui dois pólos entre os penitente tem menos de "dizer a verdade" sobre o que fez do que
quais se repartem as diferentes maneiras que manifestam, na pe- de "fazer a verdade" manifestando aquilo que é.
nitência, a verdade do pecador e do seu pecado. Não são duas A necessidade para a prática penitencial de não se efectuar se-
instituições independentes, nem duas práticas absolutamente es- não através das manifestações destinadas a expor à plena luz do
tranhas uma à outra; são vizinhas, interferem umas com as outras dia a verdade do penitente põe um problema: porque é que, depois
e por vezes misturam-se: havia de facto macerações secretas e de ter pecado, o pecador deve não só arrepender-se, não só impor-
exomologeses que se faziam em privado^'^; temos também os tes- -se rigores e macerações, mas mostrá-lo e mostrar-se tal como é?
temunhos de enunciações públicas e verbais das faltas cometidas Porque é que a manifestação da verdade faz intrinsecamente parte
por este ou aquele membro da comunidade^''. Mas nem por isso do procedimento que permite resgatar a faha? Porque é que, quan-
ído se "fez mal", é necessário fazer brilhar a verdade, não só do que
'se fez, mas também do que se é? A resposta é evidente: a partir do
251 Sobre o duplo sentido da manifestação penitencial, cf. T E R T U L I A N O : " É
momento em que a religião cristã se organizou em Igreja dotada
prosternando o homem no chão que a penitência o levanta de novo; acusando-o,
desculpa-o; condenando-o, absolve-o", De paenitentia, I X , 6; SÃO CIPRIANO: de uma forte estrutura comunitária e de uma organização hierár-
"que esses mesmos olhos, que erraram ao olhar as estátuas profanas, derramem lá- quica, nenhuma infracção grave podia ser perdoada sem um certo
grimas que dêem satisfação a Deus, e apaguem o seu crime", carta X X X I , 7; SÃO número de provas e de garantias. Do mesmo modo que não se
JERÓNIMO: "O ue pecados tais lágrimas não apagariam? Que manchas, ainda que
inveteradas, tais lamentações não lavariam?", carta 77,4.
podia admitir um postulante ao baptismo sem que previamente
252 Quando SÃO C I P R I A N O fala daqueles que simplesmente "pensaram" em
tivesse sido posto à prova pelo catecumenato — probatio animae
sacriíicar-se, evoca para eles a necessidade de o confessar ao sacerdote, fazen- -—, não se podem reconciliar aqueles que não manifestaram sem
do depois uma "exomologesis conscientiae" (De lapsis, X X V I I I ) . Parece tratar-se equívoco o seu arrependimento por meio de uma disciplina e exer-
aqui de uma confissão, e de uma manifestação de arrependimento que se dirige, em
cícios que valem como castigo no que se refere ao passo e como
privado e em segredo, directamente a Deus.
253 SÃO LEÃO condena em meados do século v o costume de se ler em público
compromisso no que se refere ao futuro. E necessário que prati-
a lista dos pecados cometidos pelos fiéis (carta 168). s quem a publicatio sui.
114 115
Michel Foucault .Confissões da Carne

Mas o que, do ponto de vista da história da experiência de si, foi Muito antes da instituição da penitência sacramental e da orga-
mais enigmático foi a maneira como se reflectiu sobre e justificou i,j/ação da confissão auricular, a Igreja Cristã estabeleceu o carác-
a obrigação para o pecador de dizer a verdade — ou antes de se fundamental da obrigação de verdade para quem pecou e como
manifestar a si mesmo na sua verdade — a fim de poder obter o ciiiidição de um resgate possível. Dizer a verdade sobre o seu
perdão dos seus pecados. Trata-se com efeito de uma obrigação in- próprio pecado, ou antes: manifestar na sua verdade o seu próprio
cessantemente afirmada. Não há perdão se não há exomologese, calado de pecador é indispensável para que o pecado cometido
reconhecimento pelo pecador da sua falta, manifestação externa, seja perdoado. A manifestação daquilo que é verdade é uma con-
explícita, visível desse reconhecimento: "Aquele que se confessa ao dição do apagamento daquilo que é verdade. Para pensar esta re-
Senhor escapa à servidão. [...] É não somente livre, mas justo; ora, lação e explicar esta necessidade, o cristianismo antigo recorreu a
a justiça reside na liberdade e a liberdade na confissão; aquele que vários modelos.
confessa é imediatamente absolvido."^'" E São João Crisóstomo
numa palavra: "Enuncia a tua falta: destruirás a tua falta."^'' É este 1. O modelo médico é utilizado com grande frequência: os pe-
princípio geral que subjaz às exegeses que Santo Ambrósio e São cados são nele representados como feridas ou chagas, a penitência
João Crisóstomo, cada um pelo seu lado, fazem da maldição de como um remédio. Tema ainda mais corrente por se poder apoiar
Caim. A sua falta, por grave que tenha sido, não era irredimível. tanto sobre a tradição hebraica da falta-ferimento como sobre a
Quando Deus [lhe pergunta] o que [tinha] feito do seu irmão, não é, f concepção grega das enfermidades da alma. A ideia de uma me-
bem entendido, que o ignore, era para lhe dar a possibilidade de í dicação penitencial é um lugar comum na pastoral cristã desde os
confessar. E o que o torna imperdoável é ter respondido: não sei. Tal 1 primeiros séculos^", e continuará posteriormente a sê-lo. Deve-
é o princípio da condenação eterna. Mais grave do que o parricídio mos todavia notar uma diferença. Quando a instituição penitencial
foi essa mentira, da qual Santo Ambrósio diz que era um "sacrilé- tiver tomado a forma do sacramento que lhe será definitivamente
gio"^'*. O "Não sei" do criminoso, a recusa da verdade é, da parte reconhecida no século xii, é o sacerdote, na medida em que detém
do pecador, a mais grave ofensa possível: não pode ser reparada. Ao o poder de absolver, que ocupará o lugar do médico. A necessida-
contrário de Caim, David, que confessa espontaneamente os seus de da confissão (confession) enquanto confissão (aveu) individual,
pecados, ele que era justo, é a imagem do penitente: a verdade que secreta e detalhada das faltas será então justificada pelo princípio
professa salva-o^'^. E se Adão e E v a não são condenados na Eterni- segundo o qual todo o doente deve com efeito revelar, àquele que
dade, é que também eles confessaram; segundo Crisóstomo, confes- o cuida, as enfermidades que esconde, as dores que experimenta,
saram até duas vezes os seus crimes: verbalmente, respondendo a as doenças de que sofreu. A manifestação daquilo que o pecador
Deus; nos seus gestos e nos seus corpos, escondendo a sua nudez^'*. é na sua verdade e dos segredos da sua alma constitui pois desse

254 [SANTO AMBRÓSIO, carta X X X V I I , 44.] 259 Cf. a título de exemplo: H E R M A S , O Pastor, Visão 7 , 1 , 9 e 3 , 1 ; Preceito IV,
255 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, [II Homilia sobre a penitência, 1]. 1,11; Preceito XII,6,2; Similitude V,l, A; Similitude VIII, 11,3; Similitude IX, 22,,
256 S A N T O AMBRÓSIO, Deparadiso, X I V , 7 1 : "non tam majori crimineparri- 5 e 28; T E R T U L I A N O , De paenitentia, V I I , x , 12; SÃO C I P R I A N O , cartas X X X ,
cidi [...] quam sacrilegii". Cf. também SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, X I X Homilia
7; X X X I ; LV, 7 e 15-17; De lapsis, [ X X V I I I ] ; SANTO AMBRÓSIO, Expositio
sobre o Génesis.
Evângela secundum Lucam, V, 2; X , 66; Enarratio in Psalmum 36, 14; De para-
257 S A N T O AMBRÓSIO, Apologia de propheta David, [ V I I I , 36-39]. •' diso, X I V , 70. Para o De paenitentia, cf. o índice da edição de Gryson (Sources
258 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, X V I I Homilia sobre o Génesis.
chrétiennes).
116 Michel Foucault iÇonfíssões da Carne 117

ponto de vista uma necessidade técnica^*". Mas no cristianismo | j juízo e determinar a satisfação a cumprir. No cristianismo
primitivo, não é o sacerdote que cuida das feridas. O único médico 'htigo, o sacerdote não desempenha o papel de juiz: é directamen-
a ser reconhecido na penitência é Cristo, quer dizer, o próprio e com Deus que o pecador tem de tratar — com um juiz portanto
Deus: "quanto ao pecado anterior, há alguém que pode trazer-lhe ao qual nada é possível dar a conhecer porque ele tudo vê^*". E
remédio: é aquele que tem o poder de fazer tudo"^*'. Ora, a este contudo é necessário mostrarem-se-lhe as faltas cometidas sem
médico será necessário que o pecador mostre as suas chagas e nada esconder^*'. Desta obrigação, pelos autores dos séculos iii-iv,
revele os seus males ocultos? Que poderá ser necessário dar a são dadas várias justificações. Uma delas é inteiramente tradicio-
conhecer àquele que tudo sabe? Não é sequer possível dissimular- nal: a confissão espontânea e sincera favorece o acusado no espí-
-Ihe as faltas que tenhamos podido cometer no segredo do nosso rito do juiz^**. A outra refere-se à ideia de que o diabo será um dia
coração^*^. Tal é pois o paradoxo desta cura pela penitência: quer perante Deus o acusador do homem: este último encontrar-se-á
que se manifestem, através de uma exomologese explícita e rigo- numa posição mais vantajosa se se antecipar à denúncia pelo seu
rosa, pecados que são todavia do conhecimento daquele que deve inimigo, se falar antes dele e expuser ele mesmo os crimes que
curá-los. E necessário expor diante dele aquilo que, de todas as podem ser-lhe reprovados^*^ Além disso, sendo Cristo o advogado
maneiras, não pode ser-lhe nunca escondido. A verdade é-lhe de- do homem junto de Deus e devendo servir assim de intercessor,
vida, não como uma necessidade, para que possa exercer o seu estabelece-se como regra que o pecador deve confiar-lhe a sua
poder e escolher os remédios apropriados, mas como uma obriga- causa confessando-lhe os seus pecados-**. Por fim, outro argu-
ção do lado daquele que quer curar-se. Trata-se, para o doente, não mento, talvez para nós mais estranho: aquele que confessa as suas
de tornar possível a terapêutica informando o médico, mas de faltas não só se justifica perante Deus, mas justifica o próprio
merecer a cura, pelo preço da verdade. Deus e a sua cólera contra a fraqueza dos homens: quem negasse
os seus próprios pecados estaria a querer fazer Deus mentir^*'.
2. O recurso ao modelo judicial, também ele muito frequente^*',
revela no fundo o mesmo paradoxo. Depois de a penitência sacra-
mental ter sido clara e nitidamente definida como um tribunal 264 "Frustra autem velis occulere quem nihilfalias: et sine periculo prodas, quod
onde o sacerdote deve desempenhar o papel do juiz (de um juiz selas esse jam cognitum" ["Seria vão querer dissimular Aquele que sobre nada
enganareis; e nada amscais em denunciar o que sabeis ser j á conhecido", tradução
que representa Deus mas cujas sentenças têm os seus efeitos no
Dom G . T I S S O T ] , SANTO AMBRÓSIO, Expositio Evangelii secundum Lucam,
céu), a confissão exacta, pelo pecador, das faltas que cometeu V I I , 225.
torna-se um elemento essencial do procedimento: é a partir dela 265 "Mora ergo absolutionls In confitendo est, confessionem sequitur peccatorum
— e sob a ameaça de uma mentira ou de uma omissão voluntária remissio", S A N T O AMBRÓSIO, carta X X X V I I , 45.
266 "In judiciis saecularlbus [...] quaedam tangit judicem miseratio confitentis",
invalidarem o sacramento — que o confessor poderá pronunciar o
SANTO AMBRÓSIO, De Caín et Abel, II, 9.
267 Assim SANTO AMBRÓSIO, De paenitentia, I I , vii, 53: "Si te ipse accusave-
260 Não é, evidentemente, a única justificação da confissão penitencial, mas é ris, accusatorem nullum timebls." Cf. também De paradiso, X I V , 7 1 .
constantemente evocada. 268 SANTO AMBRÓSIO, Expositio Evangelii secundum Lucam, V I I , 225: "Con-
261 H E R M A S , O Pastor, Mandatum IV, 1,11. fitere magis, ut Intervenlat pro te Chrlstus, quem advocatum habemus aput Pa-
262 Tema incessantemente repetido. Assim em T E R T U L I A N O , De paenitentia, X . trem"; ci. S A N T O AGOSTINHO, Discurso sobre o Salmo 66,1.
263 Presente em Tertuliano, assume grande dimensão em Santo Ambrósio e em 269 SANTO AMBRÓSIO, Apologia de propheta David, X , 53: "sl autem dixeri-
Santo Agostinho. mus quia non peccavimus, mendacem faclmus Deum".
118 119
Michel Foucault Confissões da Came

3. Mas, para dizer a verdade, estes dois modelos — o da medici- Ora, o martírio é, sabemo-lo, uma conduta de verdade: testemu-
na e o do tribunal —, que se tornarão mais tarde tão importantes nho da crença pela qual se morre, manifestação de que a vida
para organizar a confissão penitencial e lhe dar a sua forma, não neste mundo não é mais do que uma morte, mas que a morte, pelo
desempenham, ao que parece, no que se refere à obrigação de exo- seu lado, dá acesso à verdadeira vida, atestação de que esta verda-
mologese, mais do que um papel adjacente. A obrigação para o de permite enfrentar o sofrimento sem fraquejar. O mártir, sem ter
penitente de se manifestar, na verdade do seu estado de pecador e sequer de falar, e pela sua própria conduta, faz brilhar em plena
na autenticidade da sua penitência, funda-se muito mais profunda- luz uma verdade que, destruindo a vida, faz viver para lá da morte.
mente na relação com o martírio. Há duas razões para o facto de a Na complexa economia da conduta do martírio, a verdade afirma-
penitência se relacionar com o martírio. E m primeiro lugar, -se numa crença, mostra-se aos olhos de todos como uma força e
promete-se ao mártir o perdão dos seus pecados: o sangue que inverte os valores da vida e da morte. Constitui uma "prova" no
derrama lava as suas faltas. E se essa crença, que confessou uma triplo sentido em que exprime a sinceridade da crença de um ho-
primeira vez no baptismo, aceitar confessá-la uma segunda vez nos mem, autentica a força omnipotente daquilo em que ele crê, e
suplícios, estes constituirão um segundo baptismo, com os [mes- dissipa as aparências enganadoras deste mundo para fazer apare-
mos] efeitos de remissão das fahas que o primeiro^™. Por outro cer a realidade do além. Se a exomologese é tão importante na
lado, o socorro da penitência — esse outro "segundo baptismo" penitência, se faz corpo com ela nos ritos ptiblicos e ostentativos,
— foi, não sem graves discussões, concedido àqueles que tinham é porque o penitente deve dar testemunho como o mártir: exprimir
caído, escolhendo renunciar a afirmar a sua fé de preferência a o seu arrependimento, mostrar a força que lhe dá a sua fé e tornar
sofrer o suplício: a penitência, para eles, é uma maneira de se infli- manifesto que esse corpo que humilha não é mais do que pó e
girem a si mesmos, reafirmando assim a sua fé, o martírio ao qual, morte, e que a verdadeira vida está noutro lado. Reproduzindo o
por fraqueza, quiseram escapar. Este tema que aparece a seguir às martírio que não teve a coragem (ou a ocasião) de suportar, o pe-
grandes perseguições prolonga-se mais tarde. A penitência aparece nitente coloca-se no limiar de uma morte que se oculta sob as
então como substituto do martírio para a geração que já não encon- aparências enganadoras da vida, e de uma vida verdadeira que é
tra nesse perigo a ocasião de assim provar a sua fé. "Os mártires prometida pela morte. Este limiar é o da metanoia, ou da conver-
foram mortos", e, pergunta Santo Agostinho, "quem são os filhos são, quando a alma se vira por inteiro sobre si mesma, inverte
dos que foram mortos, senão nós mesmos? E como nos libertámos, todos os seus valores e muda completamente. A exomologese co-
senão dizendo ao Senhor: Vós rompestes os laços que me pren- mo manifestação pelo próprio penitente dessa morte que foi a sua
diam, eu oferecer-vos-ei em sacrifício uma vítima de louvor?"^^' vida e da vida a que acederá através da morte constitui a expressão
lautenticadora e exemplar, a prova da sua metanoia.
*" Pode dizer-se que, na prática da penitência antiga, a parte da
270 ORÍGENES fala do "baptismo do martírio" que é dado na perseguição (Exhor-
tatio ad martyrium, 30); diz no mesmo texto (39) que o sangue do martírio lava
"confissão" ("aveu") é ao mesmo tempo difusa e essencial. Difusa,
o pecado. T E R T U L I A N O fala do martírio como de um secundum lavacrum {De porque não se trata de um rito preciso, localizado no conjunto do
baptismo, 16) ou de um aliud baptismo {De pudicitia, 22). Cf. sobre este tema E .
E . M A L O N E , Martyrdom and Monastic Profession as a Second Baptism, Diissel-
dorf, 1951.
perseguições, podemos encontrar na paz o mento do martmo, porque se n
271 S A N T O AGOSTINHO, Discurso sobre a Segunda Parte do Salmo 101, 3. vamos a cabeça sob o gládio dos carrascos, trazemos o gladio espiritual
Mais tarde SÃO GREGÓRIO dirá: "Se bem que já não estejamos expostos às alma",//omito sobre o Evangelho, ffl, 4 ( R L . 76, col. 1089).
120 Michel Foucault

procedimento, ainda que em certos momentos a enunciação verbal


da falta seja sem dúvida requerida (assim quando alguém solicita
do bispo o estatuto de penitente). Essencial, porque se trata de uma
dimensão constante do exercício penitencial. Este deve, ao longo
do seu desenrolar, manifestar a verdade. Mais tarde, na penitência
medieval, a confissão {aveuf'^'^ tomará a forma de um "dizer-a-
-verdade", que será a enumeração dos pecados cometidos: aqui, é
a penitência completa que deve constituir um "dizer-a-verdade"
[IV]
— ou antes, uma vez que o papel da enunciação nela é singular-
mente limitado em proveito dos gestos, dos comportamentos, das [A A R T E DAS A R T E S ]
maneiras de viver, um "fazer-a-verdade": fazer verdade a meta-
noia — o arrependimento, a mortificação, a ressurreição para a
vida verdadeira. Mas este "fazer-a-verdade" essencial à penitência
direcção espiritual, o exame de si mesmo, o controle atento
não tem por missão reconstituir através da memória as faltas co-
pelo sujeito dos seus actos e dos seus pensamentos, a exposição
metidas. Não procura estabelecer a identidade do sujeito nem fixar
que deles faz a um outro, o pedido de conselhos a um guia e a
a sua responsabilidade, não constitui um modo de conhecimento
aceitação das regras de conduta que aquele propõe: tudo isto é
de si mesmo nem do passado de si mesmo, mas antes a manifesta-
uma tradição bastante antiga. Os autores cristãos não mascararam
ção de uma ruptura: corte do tempo, renúncia ao mundo, inversão
essa anterioridade nem renegaram o parentesco entre essas práti-
da vida e da morte. O penitente, diz Santo Ambrósio, deve ser
cas e os exercícios que eles mesmos prescreviam. São João Crisós-
como esse jovem que regressa a casa após uma longa ausência;
tomo recomenda o exame de consciência, reportando-se ao exem-
aquela que o jovem amara apresenta-se diante dele e diz-lhe: aqui
plo dos filósofos pagãos e citando Pitágoras^". O Manual de
estou, ego sum.. E ele responde-lhe: Sed ego non sum ego. Virá um
Epicteto pôde ser reproduzido por São Nilo como se se tratasse de
dia, na história da prática penitencial, em que o pecador terá de se
um texto cristão, dando uma regra de existência susceptível de
apresentar diante do sacerdote para lhe detalhar verbalmente as
formar, devidamente, a alma dos fiéis e de os conduzir à salvação.
suas faltas: ego sum. Mas, na sua forma primitiva, a penitência, ao
Dos mestres de conduta da Antiguidade aos guias da via ascética
mesmo tempo exercício e manifestação, mortificação e veridicção,
— chamada noutros lugares vida filosófica — há uma certa con-
é uma maneira de afirmar ego non sum ego. Os ritos de exomolo-
tinuidade. Todavia, as diferenças não devem ser negligenciadas.
gese garantem a ruptura de identidade.
A prática da direcção de vida cobriu entre os gregos e os roma-
* nos uma gama bastante ampla de procedimentos diferentes.
Encontramo-la sob a forma de relações descontínuas e circunstan-

272 E m francês, aveu e avouer significam "confissão" ou "confessar" no sentido


de reconhecer ou de declarar — por exemplo, em termos judiciais. Por outro lado,
,73 Não sem certo desprezo: « ^^^^^^^
confession (e, mutatis mutandis, o verbo confesser) refere-se, nomeadamente, à
costumes e faz-te sensato" (Prov., 6 , S A O JOÃO CKlí>
"confissão" como sacramento, como género literário ou registo de interlocução sobre São Mateus, 7 ( P . G . , t . 57, col. 263).
confessional, como crença ou fé que se professa ("confessa"), etc. (N. T.)
122
Michel Foucauii

ciais: Antifonte, o Sofista, mantinha um consultório aberto no qual


vendia aos que deles necessitavam conselhos de conduta sobre o cada um era completada por razões muito mais individualizadas.
modo de enfrentar situações difíceis^'''*; e os médicos respondiam ' O mestre era nelas um guia permanente para o discípulo: ao mes-
à procura daqueles que os solicitavam não só devido a males físi- ' mo tempo, ensinava-lhe pouco a pouco a verdade, ajudava-o a
cos, mas também a estados de mal-estar moral: os regimes que progredir no caminho da virtude, do domínio de si e da tranquili-
prescreviam eram métodos preventivos ou preceitos de higiene, dade de alma, punha à prova o seu avanço e dava-lhe no dia-a-dia
regras de vida que deviam assegurar o domínio das paixões, o conselhos de vida. Assim, entre os epicuristas, preparavam-se
controle de si, a economia dos prazeres, a equidade das relações conversas individuais, impunha-se aos membros da Escola uma
com outrem^'''. Mas as consultas podiam ser também actos de regra de franqueza, incitando cada um a expor a sua alma e a nada
amizade e de benevolência, sem retribuição: conversas, trocas de dela esconder, a fim de ser possível guiá-los eficazmente; só os
correspondência, redacção de um pequeno tratado em intenção de mestres mais sábios podiam encarregar-se desta direcção indivi-
um amigo em dificuldade. Estas formas episódicas de direcção dual dos discípulos, enquanto os outros tinham a responsabilidade
respondiam em geral a uma situação determinada: um revés de colectiva de um grupo^''*.
fortuna, o exílio, um luto podiam ser a sua ocasião, mas também A direcção, para se exercer, fazia apelo a todo um conjunto de
uma crise, uma passagem difícil, um momento de incerteza. Tal práticas diversas"'. Uma das mais importantes era o exame de
era o caso de Sereno quando expõe o seu estado a Séneca pedindo- consciência. Este figura, desde os pitagóricos, como peça capital
-Ihe o auxílio do seu diagnóstico e dos seus conselhos^''*. Tinha a num grande número de regras de vida. Mas nem sempre teve a
impressão de ter deixado de progredir no caminho da sabedoria mesma forma, nem sempre incidiu sobre os mesmos objectos e
estóica; movimentos opostos agitavam a sua alma, não a ponto de nem sempre se esperavam dele os mesmos efeitos^*". Sabemos
provocar "uma tempestade", mas com força suficiente para lhe dar pouca coisa sobre o exame pitagórico tirante os versos célebres
"como que um enjoo de mar"^". do Carmen aureum, dos quais só os dois primeiros representa-
Mas existiam também formas muito mais contínuas e muito riam a tradição mais antiga: "Não permitas que o doce sono se
mais institucionalizadas de direcção: tinham sobretudo lugar nas introduza sob os teus olhos antes de teres examinado cada uma
escolas de filosofia. Aí, a disciplina de vida colectiva imposta a das acções do teu dia."^*' Além do seu papel de prova no que se
refere ao progresso moral, este exame talvez fosse um desses
' 274 Cf. J . H A N I , "Introduction", in P L U T A R C O , Consolation à Apollonios, Paris,
exercícios de mnemotécnica que os pitagóricos cultivavam; valia
I 1972. também decerto como ritual purificador, para induzir sonhos fa-
275 "Devemos remeter para os outros, e não para nós mesmos, o discernimento 278 C f . I . H A D O T , Séneca und die griechisch-rõmische Tradiíion der Seelenlei-
das doenças da alma; não devemos encarregar como vigilantes os primeiros que
? tung, Beriim, 1969, pp. 64 e sgs.
apareçam [ . . . ] . Devemos fazer apelo aos outros: para que observem, para que nos
assinalem os nossos descaminhos", G A L E N O , Tratado das Paixões da Alma, V I , 279 Sobre estes exercícios múltiplos, cf. R R A B B O W , Seelenfuhrung. Methodik
; 23. der Exerzitien in der Antike, Munique, 1954.
276 "Dicam quae accidant mihi; tu morbo nomen invenies [...]. Rogo itaque, si 280 Exemplo: a discussão entre estóicos e epicuristas sobre o problema de saber
quod habes remediam" ["Vou indicar-te o que experimento: tu encontrarás o nome > se é necessário pensarmos nas desgraças que poderiam acontecer {praemeditatio
da doença [ . . . ] . Assim a tal te conjuro, se conheces um remédio...", tradução de R . ' malorum) para examinarmos de que maneira a elas reagiríamos.
Waltz], SÉNECA, De tranquillitate animae, 1,4 e 18. ^ 281 Os versos seguintes seriam mais tardios: "Começa pela primeira e percorre-
m "Non tempestatevexor sed náusea", ibid. *: i -as todas. E a seguir, se achares que cometeste faltas graves, repreende-te; roas, se
agiste bem, regozija-te."
124
Michel Foucauli As Confissões da Carne 125

voráveis e preparar um sono em que a Escola via uma prefigura- jiar a pensar nestas coisas todos os dias, várias vezes na medida do
ção da morte^*^. possível, pelo menos desde a aurora, antes do início das nossas
No grande desenvolvimento da filosofia helenística como direc- acções, e à noite antes de adormecermos. Quanto a mim, tomei o
ção de consciência, o exame da alma desempenha um papel con- hábito de meditar primeiro, de pronunciar a seguir em voz alta,
siderável. Constitui uma espécie de revezamento: uma muda onde duas vezes por dia, os conselhos que nos foram transmitidos como
o dirigido rende o director, uma charneira entre o período em que sendo de Pitágoras, porque não basta obter um estado de alma
alguém é dirigido e o momento em que deixa de o ser. E através i<Tual, mas tratar de curar também a gula e o deboche [...]. Entre
do exame que o discípulo ou o consulente pode aceder ao estado aqueles que são os seus próprios guias, devemos fazer apelo aos
de quem descobre o estado da sua alma ao seu director, a fim de outros: para que observem, para que nos assinalem os nossos des-
que este possa formar um juízo e determinar o remédio apropria- caminhos; mais tarde, para que nos observemos a nós mesmos
do. Começa assim o exame de Sereno quando este vai pedir auxí- sem pedagogo."-*"
lio a Séneca: "É-me menos fácil fazer-te conhecer em resumo do Neste papel de revezamento e de charneira, o exame de cons-
que no detalhe esta enfermidade da minha alma [...]. Dir-te-ei os ciência é orientado por um propósito e põe, em termos privilegia-
acidentes que experimento: a ti cabe dar nome à doença."^*^ É dos, uma questão: a do domínio de si. Se o dirigido se examina, se
também através do exame que o dirigido pode ele mesmo avaliar assinala cada uma das suas fraquezas, é bem para poder um dia
de que modo os conselhos do seu director agem sobre a sua alma tornar-se plenamente senhor de si mesmo e já não ter de recorrer,
e lhe permitem aperfeiçoar-se; é através dele que pode controlar num lance aziago, ao auxílio de outrem. Esta finalidade do exame
permanentemente se os segue como devido e se é capaz assim de de si surge claramente através da comparação de dois textos que,
adquirir a sua autonomia. E ainda o exame que, uma vez termina- um e outro, relevam da prática estóica: mostram, o primeiro, o que
do o tempo da direcção, lhe permite prolongar os seus efeitos e pode ser o exame no interior de uma relação de direcção, e o se-
exercer sobre a sua própria alma uma actividade permanente de gundo o que é naquele que alcançou a autonomia filosófica.
direcção. Este quádruplo papel do exame como abertura da alma Trata-se, para começar, da carta de Sereno a Séneca. Enquanto
a outrem, interiorização das regras de direcção, pôr à prova do seu avança passo a passo na filosofia estóica. Sereno pede auxílio ao
sucesso, e exercício de controle de si uma vez adquirida a autono- filósofo num momento em que experimenta como que um mal-
mia aparece claramente no tratado que Galeno consagrou às Pai- -estar: sensação de estar a deixar de avançar, temor de que o ape-
xões da Alma: "Devemos remeter para os outros, e não para nós go ao que é mal e ao que é bem se tenha incrustado de maneira
mesmos, o discernimento das doenças da alma; não devemos en- definitiva, impressão de estar imobilizado num estado que não é
carregar como vigilantes os primeiros que apareçam, mas velhos por completo liberdade nem por completo escravidão. E m suma,
unanimemente tidos por sábios, comprovados por nós mesmos, em não está doente nem de boa saúde^*^ O exame a que então se en-
muitas ocasiões, como isentos de tais doenças [...]. Devemos tor- trega Sereno para que Séneca possa intervir, diagnosticar e propor
remédios consiste em estabelecer uma espécie de balanço de for-
ças: quais são as que asseguram a estabilidade da alma, a sua
282 Sobre o valor mnemotécnico desta prática e o seu sentido como preparação pa-
ra o sono e para os sonhos, cf. H . J A E G E R , "L'examen de conscience dans les reli-
gions non chrétiennes et avant le christianisme", Numen, t. V I , 1959, pp. 191-194. 284 G A L E N O , Tratado das Paixões da Alma, V I , 22-24.
283 SÉNECA, De tranquillitate animae, 1,4. ' 285 "Nec aegroto nec valeo", SÉNECA, De tranqinllitate animae, 1, 2.
126 Confissões da Carne 127
Michel Foucault

calma, a sua independência? Quais são as que pelo contrário a oscilar a ponto de lhe causar como que um enjoo de mar. Temos
expõem à perturbação exterior e a colocam na dependência daqui- assim o quadro da "infirmitas" da alma através da consciência que
lo que lhe não pertence? O exame incide sucessivamente sobre o ela permanentemente toma de si mesma.
problema da riqueza, dos deveres públicos e da preocupação com No livro I I I do De ira, Séneca propõe o exemplo de um outro
a glória póstuma. Sobre estes três pontos, procede a uma separa- tipo de exame: esse que exerce todas as noites, antes de adormecer,
ção: de um lado, o que marca a capacidade por parte da alma de depois de apagadas todas as luzes. Trata-se então de fazer a inqui-
se satisfazer com o que está à sua disposição (uma casa suficiente, rição do dia, "perscrutando" como por completo se desenrolou.
alimentação simples, móveis que herdou), cumprir exactamente o Retoma os seus actos e as suas palavras e avalia-as: lembra que
que é dever do homem público (servir os amigos, os concidadãos, perdeu o seu tempo a querer instruir ignorantes, ou que, querendo
a humanidade), tomar em consideração as ocasiões em que se fala admoestar um dos seus próximos, lhe falou com tanta vivacidade
de coisas reais e presentes; mas, do outro lado, há o prazer que que o feriu mais do que o corrigiu. Estamos perante um exame
experimenta com o espectáculo do luxo ostentado, o entusiasmo claramente retrospectivo: orienta-se para acções definidas e tem
que por vezes o arrebata, as palavras que se empolam como se por propósito, "medindo-as de novo"^", separar as que foram más
quisesse acima de tudo que a posteridade falasse dele. í das que eram boas. Umas e outras devem assim receber "a sua
O exame de Sereno não incide pois nem sobre actos definidos, parte de elogio e de reprovação". É, aqui, o modelo judicial (e já
nem sobre um passado mais ou menos longínquo; não se trata nem não o médico) que está presente, como as palavras dizem sem
de fixar o quadro do que foi feito de bem ou de mal, nem de dar ambiguidade: cognoscit de moribus suis; apud me causam dico.
conta das faltas cometidas em vista do arrependimento. O olhar da Mas devemos notar que esta inquirição não conduz a uma conde-
consciência dirige-se para o presente, um presente que é encarado nação e a uma pena. Não há castigo, nem sequer remorso. Nem
como um "estado"^**, a acção daquilo que o leva quer a ficar em temor, por conseguinte, nem desejo de se dissimular a si mesmo
casa satisfeito com a sua sorte, quer a acudir ao fórum e a falar aí seja o que for. Porque aquele que se examina diz-se apenas: "Ago-
com uma voz que já não se pertence a si mesma. Mas o exame não ra perdoo-te"; "cuida de não recomeçares". Porque o modelo tal-
tenta procurar as causas de um tal estado: não mergulha em busca vez seja mais administrativo do que realmente judicial: a imagem
das raízes ocuhas do mal, tenta restituí-lo tal como se apresenta à latente no texto faz pensar menos num tribunal do que numa ins-
consciência, sob a forma das satisfações que experimenta ou dos pecção. Perscruta-se, examina-se, detecta-se, mede-se de novo^**.
movimentos que sente em si mesma. A repetição sistemática da Ora, os dois exemplos dados por Séneca indicam bem quais as
palavra placet é significativa: é o sentimento que a alma experi- acções que cada um deve reprovar-se: ter querido instruir pessoas
menta a propósito do que faz ou do que vê que constitui o objecto que não eram capazes de escutar, ter ferido aquele que se queria
específico do exame. Aquele constitui com efeito a maneira como corrigir. Não se ter portanto alcançado o alvo visado. Segundo
se manifestam à alma os movimentos que a agitam — e que, no um princípio característico deste estoicismo, é em função dos fins
caso particular de Sereno, a puxam simultaneamente em direcções ou dos alvos que podemos qualificar uma acção e declará-la boa
opostas, imobilizando-a no caminho do progresso e fazendo-a
287 "Facta ac dieta mea remetior", SÉNECA, De ira, I I I , 36.
286 " Illum tamen habitam in me maxime deprehendo" ["Contudo, a disposição na 288 Notar [no De ira, I I I ] expressões como: excatere diem, speculator, remetiri
qual as mais das vezes me surpreendo", tradução de R . Waltz], ibid. acta, scrutari totum diem.
128 129
Michel Foucault Confissões da Carne

ou má^*'. E foi por ter conhecido mal os princípios racionais da jjjo de uma retrospecção do passado ou da reactualização na
acção — inútil instruir os que nunca puderam aprender nada; ou memória das faltas das quais alguém se possa ter tornado culpado.
ainda: devemos ter em conta, quando falamos, a capacidade por Trata-se de reconhecer em si mesmo o elemento através do qual se
parte do interlocutor de receber a verdade — que Séneca cometeu ' pode conhecer Deus, esse cujo guia é Deus, esse que por conse-
"faltas" relativamente aos objectivos que visava. Outros tantos guinte pode conduzir até ele e que, desprendendo o homem do
erros, por conseguinte^'". E o papel do exame é permitir corrigi-' mundo exterior, com os seus ornamentos materiais, o reveste de
-los de futuro, fazendo aparecer as regras de conduta que foram uma beleza pura que o faz assemelhar-se ao próprio Deus™^. O
ignoradas. Não se trata de se reprovar o que se fez, mas de cons- conhecimento de si não é aqui, seja de que maneira for, um exame
tituir esquemas de comportamento racional para as circunstan-' de consciência, nem um mergulho nas profundidades de si mesmo,
cias futuras, dando assim à autonomia uma base de molde a fazê- trata-se de uma ascensão para Deus a partir da instância da alma
-la coincidir com a ordem do mundo, fazendo fazer entrar em que pode subir na sua direcção. Num espírito muito diferente.
acção os princípios da razão universal. Podemos dizer que o Santo Hilário recomenda ao cristão que reflicta cuidadosamente
exame do De ira, por retrospectivo e centrado nas faltas passadas sobre os seus actos™^ mas está a pensar sobretudo numa vigilân-
que seja, tem uma função de "programação": reconhecer, através
cia que permita não nos comprometermos com ligeireza numa
dos "erros" e dos objectivos falhados, as regras que permitirão
acção, prevermos os seus perigos e não a levarmos a cabo senão
assegurar o domínio das acções que se empreendem, e portanto
depois de aquela ter atingido o ponto de maturidade necessário;
o domínio de si mesmo.
reflexão prospectiva, por conseguinte, perfeitamente em confor-
.• . . . í midade com o que exigiam a filosofia corrente e muito em parti-
Estas práticas não foram imediatamente acolhidas no cristianis- cular os estóicos™", mas que não assume a forma de um exame
mo. Não é antes do século iv que vemos definir-se a obrigação e sistemático de si mesmo.
as regras do exame de consciência™', ou desenvolverem-se as O mesmo se pode dizer a propósito da direcção. O tema do
técnicas de uma direcção das almas. Os temas da filosofia antiga pastor que deve guiar o rebanho a caminho dos prados da salvação
impregnaram o pensamento cristão muito antes de neste penetra- e ao mesmo tempo cada uma das ovelhas está presente nas formas
rem os procedimentos próprios da vida filosófica. mais antigas do cristianismo. Mas não coincide com a ideia de
É certo que, a partir dos séculos ii e m, há numerosos textos que uma "direcção" que tomaria a seu cargo a vida de um indivíduo, a
sublinham a importância do conhecimento de si mesmo e de re- guiaria passo a passo, lhe prescreveria um regime específico, lhe
flectirmos sobre os actos a fazer ou os j á cometidos. Clemente de daria conselhos de conduta quotidiana, tomaria conhecimento, a
Alexandria, no início do terceiro livro de O Pedagogo, lembra que título permanente, dos seus progressos e exigiria uma obediência
"o maior dos conhecimentos é o conhecimento de si mesmo {to contínua e sem falha. Um texto de Clemente de Alexandria é a
gnônai hauton)". Mas não se trata de uma investigação de si mes-
292 C L E M E N T E D E A L E X A N D R I A , O Pedagogo, I I I , i , 1. Esta passagem
reporta-se ao tema platónico das três partes da alma, das quais a primeira, o logis-
289 Cf. E P I C T E T O .
íikon, é o homem interior guiado por Deus.
290 SÉNECA, De ira, I I I , 36.
293 SANTO HILÁRIO, R L . , t. 9, col. 556a-b. Cf. no mesmo sentido: S A N T O
291 Cf. J.-C. G U Y , artigo "Examen de conscience (chez les Peres de TÉglise)", do
Dictionnaire de Spiritualité,t. IV. AMBRÓSIO, In Psalmum David CXVIII Expositio, ?. L . , 1.15, col. 1308c.
294 Cf. E P I C T E T O .
130 Michel Foucault As Confissões da Came 131

este respeito significativo™^: sublinha a necessidade para aquele ^ 0 se desenvolveram no seu interior, através de formas e efeitos
que é rico e poderoso (para o qual, portanto, a entrada no paraíso novos, senão com o monaquismo: no interior das suas instituições
é singularmente difícil) de ter alguém que lhe preste auxílio, e usa e a partir delas. Que tais procedimentos da vida filosófica tenham
as metáforas tradicionais da direcção (um "piloto", um "mestre de sido aplicados no monaquismo nada tem de surpreendente. Desti-
ginástica"); esse guia falará com franqueza e rudeza, o que signi- nado a levar à vida perfeita — quer dizer, a "uma existência em
fica que deverá ser escutado ainda com mais temor e respeito. Mas que a pureza da conduta está associada ao conhecimento verdadei-
esta actividade de aconselhamento é somente um aspecto de um ro daquilo que é"™* —, o monaquismo pôde apresentar-se como a
papel mais complexo, fazendo com que aquele que "dirige" deva via filosófica por excelência: filosofia segundo Cristo™', filosofia
rezar, jejuar, entregar-se a vigílias, submeter-se a macerações, em pelas obras™". E os mosteiros puderam ser definidos como escolas
benefício do dirigido. É assim, junto de Deus, seu intercessor, seu de filosofia™'. É pois que então — quer na semianacorese como
representante, seu garante, tal como é, junto do pecador, um anjo era praticada no Baixo Egipto, por exemplo, onde alguns discípu-
enviado por Deus. Trata-se aqui de uma substituição ou pelo me- los vinham iniciar-se na vida do deserto junto de ascetas de reno-
nos de uma participação sacrificial que excede largamente a téc- me, quer nos cenóbios onde a vida comunitária se ordenava segun-
nica de direcção. Confirma-o o exemplo apresentado por Clemen- do regras gerais e estritas — a conduta dos indivíduos vai ser
te: este mostra-nos o apóstolo João a baptizar um jovem, a organizada segundo procedimentos complexos. Estes deram lugar
confiá-lo a seguir, durante a sua ausência, ao bispo local; e quan- à reflexão e elaboração, e à constituição de uma arte, da qual Gre-
do, ao regressar, depara com o neófito de novo caído no pecado, gório de Nazianzo dirá, recuperando o termo habitualmente utili-
reprova ao bispo a má vigilância exercida e dirige-se ao pecador: zado para designar a filosofia, que é tekhnê [tekhnônf°^, arte das
"Defender-te-ei junto de Cristo; se necessário, morrerei em teu artes: "Não sei em que ciência ou em que força poderia ele tomar
lugar, e de boa vontade, a exemplo do Senhor. Imolarei pela tua a a audácia de assumir uma tal prelatura. Na realidade, parece-me
minha vida."™* É assim que o reconduz à Igreja, derramando lá- ser a arte das artes, e a ciência das ciências que guiam o homem,
grimas com ele e partilhando os seus jejuns. O modelo, como ve- o mais diverso e o mais variável dos animais."™^ De modo cons-
mos, não é o do mestre que ensina ao seu discípulo como deve tante, e até à época contemporânea, a direcção dos indivíduos, a
este viver e conduzir-se: é o de Cristo que se sacrifica pelos ho- condução da sua alma, a orientação, passo a passo, do seu progres-
mens depois de eles terem caído e que intercede por eles junto de
Deus. A troca do sacrifício pelo resgate é aqui mais importante do 298 Cf. SANTO N I L O : "[Philosophia gar esiin] êthân katorthôsis meta doxês
que os procedimentos que permitem conduzir uma alma e fazê-la têsperi tou ontos gnôseôs alêthous", [Logos askêtikos, I I I , R G . , t. 79, col. 721].
progredir pouco a pouco™'. 299 [SÃO BASÍLIO, Constituições Monásticas, R G . , t. 3 1 , col. 1321a.]
300 ["Oí •ergõn philosophia", GREGÓRIO D E NAZIANZO, Discurso V I ( R G . , t.
De facto, as práticas de direcção e de exame de consciência que
35, col. 721), citado por I . H A U S H E R R , Direction spirituelle en Orient autrefois,
a filosofia antiga elaborara não foram acolhidas no cristianismo, e Roma, 1955, p. 57.]
301 [Nota vazia.]
295 C L E M E N T E D E A L E X A N D R I A , Quis dives salvetur, X L I . 302 [Manuscrito: tekhnê tekhnês, mas o texto de Gregório de Nazianzo diz: "tó
296 [Ibid., X L I , 13.] onti gar autê moi phainetai tekhnê tis einai tekhnôn kai epistêmê epistêmôn, to
297 Deve notar-se que, até mesmo depois de se terem desenvolvido as técnicas da polutropôtaton tôn zôôn kai poikilôtaton".]
direcção cristã, o modelo do sacrifício crístico nem por isso se apagará. Continua- 303 [GREGÓRIO D E N A Z I A N Z O , Discurso I I , 16, citado por I . H A U S H E R R ,
remos a encontrá-lo constantemente, mas com um lugar mais limitado. Direction spirituelle en Orient autrefois, p. 57.]
133
132 Michel Foucault Confissões da Carne

so, a exploração, em comum com eles, dos movimentos secretos e dispensar uma "direcção". Não pode dispensá-la se o monge
do seu coração serão colocadas sob o signo desta ars artium^°'^. se dispuser a levar, na solidão, a existência do anacoreta. E não
Sobre estas práticas de direcção e de exame, seguirei, de modo deve sequer dispensá-la quando se desenrola num mosteiro sob a
não exclusivo mas privilegiado, as informações dadas por Cassia- férula de uma regra comum. Num caso como noutro exige-se essa
no. Este não representa decerto as formas mais elevadas do pensa- relação singular que liga um discípulo a um mestre, o coloca sob
mento ascético, mas, por um lado, foi, com São Jerónimo, um dos um controle contínuo, o obriga a seguir a sua mínima ordem e a
principais veículos das experiências orientais no Ocidente; e, por confiar-lhe a sua alma, sem sombra de reticência. A direcção é
outro lado, não se contenta, tanto nas Instituições como nas con- indispensável a quem quer caminhar rumo à vida perfeita: nem o
ferências, com citar os feitos dos monges mais célebres ou trans- ardor individual da ascese nem a generalidade da regra podem
mitir as suas regras de existência. Expõe segundo a sua própria substituí-la.
experiência "a vida simples dos santos"; ao esquema das institui- Na sua décima oitava conferência, Cassiano refere-se, segundo
ções e das regras, acrescenta a exposição "das causas dos vícios o abade Piamun, à distinção dos monges segundo três ou antes
principais", bem como "a maneira de os curar". Menos do que "as quatro categorias™*. Às duas que condena — os sarabaítas e falsos
maravilhas de Deus", trata-se para ele de fazer conhecer "a correc- anacoretas surgidos há pouco tempo —, reprova essencialmente
ção dos costumes e a maneira de conduzir a vida perfeita"^"'. que recusem a prática da direcção. Os sarabaítas "não cuidam da
Testemunho pois que, entre as regras institucionais e os exem- disciplina cenobítica" e recusam "submeter-se à autoridade dos
plos mais edificantes, procura fazer conhecer uma maneira de anciãos"; "sem formação regular alguma, nem regra ditada por
fazer, uma prática com os seus métodos e as suas razões. E m su- uma sábia discrição", "nada desejam menos do que ser governa-
ma, para retomarmos uma expressão desenvolvida no início das dos. ..", entendem "permanecer livres do jugo dos anciãos a fim de
Conferências, a vida dos monges é aqui tratada como "arte" e conservarem licença plena na efectuação dos seus caprichos"^"'•
estudada como relação entre meios, alvos particulares e um fim Do mesmo modo, os falsos anacoretas, porque são desprovidos de
que lhe é próprio'°*. humildade e de paciência, não suportam ser "exercitados" (laces-
siti) por seja quem for"". O mau monge é aquele que não é dirigi-
do: é porque chega ao monaquismo com más intenções — qi^^r
I . O PRINCÍPIO DE DIRECÇÃO dar-se a aparência, mas não a realidade da vida monástica — l^e
1^ recusa deixar-se dirigir; e porque recusa essa direcção, os vícios
"Aqueles que não são dirigidos caem como folhas mortas." Este nele não fazem senão progredir"'.
texto dos Provérbios^°^ foi regularmente citado na literatura mo- É pois através da direcção que se entra na realidade da existên-
nástica em apoio do princípio segundo o qual a vida do monge não cia monástica. Aos que escolhem os "lugares cimeiros da anaco-

304 Assim a título de exemplo: [nota incompleta]. 308 A conferência anuncia três espécies de monges: cenobitas, anacoretas e sara-
305 J . C A S S I A N O , Instituições, "Prefácio", 7-8. baítas; mas no § 8 é-lhes acrescentada uma quarta.
306 J . C A S S I A N O , Conferências, I , 2. C f . também in Conferências, I I , 11, e I I , 309 [JOÃO C A S S I A N O , Conferências], X V I I I , 7.
26, a caracterização da vida monástica como ars e disciplina. Igualmente: Confe- 3WIbid.,S.
rências, X I V , 1; X V I I I , 2; X , 8. 311 "Não é suficiente dizer que os seus vícios não se corrigem; pioram pelo
307 [Provérbios, 11,14 (Bíblia dos Setenta).] pies facto de ninguém os excitar (a nemine provocata)", ibid.
134 As Confissões da Carne 135
Michel Foucault

rese", Cassiano aconselha que comecem por se pôr a si mesmos à episodicamente, a um director. Por outro lado, todavia, Cassiano,
prova na comunidade regular de um cenóbio^'^, que procurem como todos os autores da sua época, insiste no princípio de que
depois um mestre junto do qual possam aprender a solidão. Recor- toda a alma, seja qual for, tem necessidade de direcção^"; de que,
da um conselho de Santo Antão: para uma aprendizagem tão difí- até mesmo após prolongados exercícios e quando se tem já uma
cil, um único mestre não basta, é necessário, junto de vários, to- grande reputação de santidade, é possível que se recaia^'*; e de que
mar como exemplo as virtudes que cada um deles possui — "o os monges, até mesmo os mais rigorosos, experimentam, até ao
monge que deseja fazer provisão de mel espiritual deve, como uma fim da sua vida, a necessidade de ser dirigidos. E m duas ocasiões
abelha muito prudente, colher cada virtude junto daquele que a — nas Instituições e nas Conferências —, Cassiano recorda a
tornou mais familiar, e guardá-la cuidadosamente no vaso do seu grande santidade de Pinúfio: o respeito de que o rodeavam no seu
coração"^". convento tirava-lhe "a possibilidade de progredir na virtude da
Quanto àquele que quer entrar no cenóbio, começa por ser sub- submissão à qual aspirava"; em duas ocasiões, foge secretamente
metido à grande prova do limiar: fazem-no esperar à porta do |fara retomar noutro lugar a sua vida de noviço, sentindo-se deso-
convento onde suplica que o deixem entrar; mas, fingindo suspei- lado quando o descobrem e chorando por não poder terminar a sua
tar nele somente motivos interessados, os monges, durante dez vida nessa submissão que adquirira^". O certo é que, para Cassia-
dias, repelem-no, "acabrunham-no com injúrias e reprovações", a no, só pode ser chamado a comandar aquele que aprendeu a obe-
fim de porem à prova a sua intenção e a sua constância. Se for decer, e adquiriu, "por meio da formação recebida dos anciãos, o
admitido, a sua formação desenrola-se a seguir em duas fases. que deverá transmitir aos mais novos"; assim como a mais alta
Confiam-no num primeiro tempo a um ancião, que, "residindo à sabedoria, ou melhor, "o dom mais elevado" do Espírito Santo,
parte, não longe da entrada do mosteiro, tem a seu cargo os estran- consiste na possibilidade daquele que sabe ao mesmo tempo "di-
geiros e os hóspedes": aí, exercitam-no no serviço — famulatus Tigir bem os outros" e "fazer-se dirigir"^'*. O que caracteriza a
—, na humildade e na paciência. Após um ano inteiro, e se não santidade de um ancião não é que nele a aptidão para dirigir se
houver queixas a seu respeito, é integrado na comunidade, e con- tenha substituído à necessidade de o ser, mas o facto de o poder de
fiado a um outro ancião, encarregado de instruir e de governar
— instituere et gubernare — um grupo de dez jovens. Sobre a
315 Pacómio, na hora da morte, professa ter aceitado as admoestações até dos mais
duração deste noviciado, Cassiano não dá indicações, a sua medi-
pequenos (Fragments captes de la vie de Pacôme, traduzidos por R . D R A G U E T ,
da dependia sem dúvida das aptidões e dos progressos de cada um. in Les Peres du Désert, Paris, 1949, pp. 116-117).
Cassiano nada diz também da existência de uma relação de direc- 316 "Conheci monges que após grandes trabalhos caíram e acabaram na loucura,
ção entre os anciãos-"". Por um lado, nada indica de maneira pre- fpor terem contado com as suas obras e terem esquivado por razões falsas o manda-
cisa que os anciãos estivessem obrigados a recorrer, regular ou mento de Aquele que diz: Interroga o teu pai e ele te informará", SANTO ANTÃO,
R G . , t. 65, col. 88b [tradução in I . H A U S H E R R , Direction spirituelle..., p. 16]. A
I I Conferência, consagrada à discretio, cita uma série de exemplos de monges cuja
312 Tal foi o caso de Pafnúcio, cujas vida e lição são evocadas na I I I Conferência. obstinação em se dirigirem só eles a si mesmos conduziu à queda. Significativo
313 J . C A S S I A N O , Instituições, V, 4, 2. Pouco antes, em contrapartida, Cassiano entre todos é o exemplo do monge que, crendo-se fora de toda a tentação, dirige
considera, segundo o abade Pinúfio, que os cenobitas devem no interior da comu- com excessiva acrimónia um discípulo e, a título de punição, cai numa tentação da
nidade ligar-se a um único mestre, em vez de procurarem apoio em vários (IV, 40). qual só o socorro do abade Apolo pôde salvá-lo (§ 13).
314 Sobre este ponto cf. O. C H A D W I C K , John Cassien. A Study in Primitive 317 Instituições, I V , 30-31; Conferências, X X , 1.
Mo/wiíiCííWí, Cambridge, 1950.
'in Conferências, W,?,.
136 Confissões da Carne 137
Michel Foucault

dirigir os outros nele se manter ligado, fundamentalmente, à dis- I I . A REGRA DE OBEDIÊNCIA


posição pronta para aceitar uma direcção. O santo não é aquele •I
que "se dirige" a si mesmo: é aquele que se deixa dirigir por Deus. Qiíe a direcção suponha a obediência exacta do discípulo ao
Universalidade, pois, da relação de direcção. Ainda que haja stre não é evidentemente um princípio próprio no monaquismo
uma fase de iniciação à vida monástica em que a direcção deve 'stão. Na vida filosófica da Antiguidade, o mestre devia ser escu-
assumir uma forma densa, institucional, organizada por regras ^'o fielmente. Mas tratava-se de uma obediência ao mesmo tempo
comuns a todos os noviços, a vontade de aceitar uma direcção, a '"alizada, instrumental e limitada. Tinha com efeito um objectivo
disposição a deixar-se dirigir, é uma constante que deve caracteri- finido: devia permitir o libertar-se de uma paixão, o superar um
zar a vida monástica por inteiro^". Desta direcção, e da maneira "ó ou um desgosto, o sair de uma fase de incerteza (era o caso de
como deve exercer-se, Cassiano indica os dois aspectos principais. reno ao consultar Séneca), ou o alcançar um certo estado (de
— A direcção consiste num treino para a obediência, entendido quilidade, de domínio de si, de independência frente aos acon-
como renúncia às vontades próprias pela submissão à de outrem: íecimentos exteriores). Para alcançar tal fim, o director utilizava
"A preocupação e o objecto principal do seu ensino [trata-se do meios adequados, e a obediência requerida do discípulo incidia
mestre dos noviços], que tornará o jovem monge capaz de se elevar apenas sobre as formas necessárias de obediência. Finalmente, era
depois aos mais altos cimos da perfeição, será ensinar-lhe antes do uma submissão provisória que devia cessar assim que fosse alcan-
mais a vencer as suas vontades. Nisso o exercitando com aplicação çado o alvo visado pela direcção. A primeira não era mais do que
e diligência, cuidará sempre de lhe ordenar expressamente o que um dos instrumentos aplicados pela segunda, mas segundo uma
tiver observado ser contrário ao seu temperamento."^™ economia estrita que a limitava unicamente ao momento e unica-
— E , para se alcançar esta obediência perfeita e exaustiva, para mente aos objectivos em vista dos quais pudesse ser útil.
que possa operar-se este jogo de anulação-substituição (anulação « A obediência monástica é de um tipo completamente diferente.
da vontade própria, substituição da vontade de um outro), é indis- W'a) É em primeiro lugar global: não se trata de obedecer unica-
pensável um exercício: o exame permanente de si e a confissão mente, na medida em que essa submissão pudesse permitir alcan-
perpétua: "Para tal alcançar facilmente [a obediência perfeita e a çar um resultado, é necessário obedecer em tudo. Nenhum aspec-
humildade de coração], ensinam-se os iniciandos a não esconde- to da vida, nenhum momento da existência deveria escapar à
rem por falsa vergonha qualquer dos pensamentos que lhes cor- forma da obediência. Aquele que é dirigido deve conduzir-se de
roem o coração, mas, assim que aqueles nascem, a manifestarem- tal modo que a mais pequena das suas acções, até essa que parece
-nos ao ancião, e, ao ajuizarem deles, a não se fiarem na sua dever escapar mais à sua própria vontade, se submeta à vontade de
opinião pessoal, mas a crerem mau ou bom o que o ancião, depois quem o dirige. A relação de obediência deve atravessar a existên-
de o exammar, declarar tal."^^' cia até mesmo nas suas mínimas parcelas. Tal é a subditio, que
tem por efeito que em todas as suas condutas o monge deve agir
de modo a ser conduzido. Conduzido pela regra, conduzido pelas
ordens do abade, pelos ditames do seu director, eventualmente até
319 Na Regra de SÃO B E N T O , é dito dos monges: "ambulant alieno judicio et mesmo pelas vontades dos seus irmãos^^^, porque, se é verdade
império" (capítulo 5).
320 J . C A S S I A N O , Instituições, IV, 8.
321/ètó.,IV,9. 322 [ J . CASSIANO, Instituições, IV, 30.]
138 139
Michel Foucault Confissões da Carne

que estas não emanam de um superior ou de um ancião, têm esse ^il^siirdidade. Ainda que desprovida de sentido, uma ordem deve
privilégio de serem vontades de um outro. Não há pois que fazer .cr exaustivamente executada: assim fez o abade João, herói da
distinção entre o que se faz por si só e o que se faz por conselho obediência, quando o seu mestre o mandou regar durante um ano
de outrem. Tudo o que é feito deve obedecer a uma ordem. inteiro um pau seco plantado em pleno deserto.^" Prova de ime-
O officium do monge, diz São Jerónimo, é obedecer'^^. Deverá diatidade. Uma ordem deve ser cumprida imediatamente sem o
fazer portanto todas as coisas obedecendo a uma ordem expressa, rnínimo atraso: assim que é enunciada, prevalece sobre todas as
ou pelo menos segundo uma permissão concedida — "Todo o outras obrigações, quaisquer que sejam, nada há que não deva
acto que seja feito sem ter sido ordenado ou permitido por um ceder frente à actualidade do que é mandado. Assim esse monge
superior é um roubo e um sacrilégio que conduz à morte, e não a ocupado a recopiar as mais sagradas Escrituras, que se interrompe
nenhum proveito ainda que te pareça bom."-'^" "Os jovens não só no momento em que é chamado à oração; o seu estilete levanta-se
não se atrevem a sair da cela sem que o seu condutor o saiba e de imediato e a letra que estava a traçar fica incompleta^^*. Prova
consinta, como não presumem sequer a autorização daquele quan- da não-revolta: a injustiça de uma ordem, o que ela possa ter de
to à satisfação das suas necessidades naturais."^^^ E mais tarde contrário seja à verdade, seja à natureza, não deve impedir nunca
Doroteu de Gaza narrará o feito de um discípulo de Barsanúfio a sua execução. E então pelo contrário que a obediência assume o
que, esgotado pela doença, se reteve contudo de morrer enquanto seu mais alto valor. Acusado injustamente de uma falta que um
o seu mestre não lhe deu autorização para o fazer'^*. outro cometeu contra ele, Pafnúcio aceita a sua condenação e an-
b) Acresce que o valor desta obediência não está no conteúdo tecipa a penitência que lhe impõem'™. Patermuto, tendo entrado
do acto prescrito ou permitido. Reside antes do mais na sua forma no convento com o seu jovem filho, suporta com paciência ver os
— no facto de se estar submetido à vontade de um outro e de a maus-tratos que diante dele fazem a criança sofrer, e, assim que
acatar, sem atribuir importância ao que é querido pelo outro, mas o ordenam, precipita-se ele mesmo a atirar o filho ao rio''°.
retendo o facto de ser um outro quem quer. A esta vontade outra, •pmpreendida como não-resistência a tudo o que o outro quer e
o essencial é nada opor: nem a vontade própria, nem a razão, nem põe, a patientia faz do monge uma espécie de matéria inerte
algum interesse, ainda que pareça legítimo, nem a mínima inércia. as mãos daquele que o dirige. " E m nada diferir de um corpo
Importa aceitar "sofrer-se" inteiramente essa vontade, ser-se, no nanimado ou da matéria usada por um artista [...], como o artista
que a ela se reporta, como que dúctil e transparente. É o princípio
da patientia, que faz aceitar tudo o que o director quer e tudo su-' dá prova do seu saber-fazer sem que a matéria o impeça seja no
portar da sua parte. Cassiano, como as outras testemunhas da vida for de perseguir o seu propósito."-'-"
monástica, relata as provas mais célebres desta paciência. Prova de c) Por fim, a obediência monástica não tem outro objetivo além
si mesma. Não constitui a dependência de um momento, uma
323 ['Nec de majorum senientia judices, cujus officium est obedire", SÃO J E -
^tapa que seria finalmente coroada pelo direito a emancipar-se. Se
RÓNIMO, carta 125 ao monge Rusticus ( R L . , t. 22, col. 1081).] 327 J . C A S S I A N O , Instituições, IV, 24.
324 [SÃO BASÍLIO, De renuntiatione saeculi, 4 ( R G . , t. 3 1 , col. 363b), citado 328 Ibid., IV, 12.
por I . H A U S H E R R , Direcíío«ípínítte/te...,pp. 190-191.] 329 Conferências, XVm, 15.
325 J . C A S S I A N O ; Instituições, IV, 10.
330 Instituições, \y, 21.
326 D O R O T E U D E G A Z A , ["Vie de Dosithée", in (Euvres spirituelles. Paris, 331 SANTO N I L O , Logos askêtikos, capítulo X L I ( R G . , t. 79, col. 769d-772a)
S . C . , 1964, pp. 122-145].
[tradução in I . H A U S H E R R , Direction spirituelle..., p. 190].
140 141
Michel Foucauit .Confissões da Carne

o monge deve obedecer, é para aceder ao estado de obediência Sob os três aspectos seguintes, a obediência constitui pois um
Porque é que, na direcção, se põe tanta insistência em adestrar o ^exercício da vontade sobre si mesma e contra si mesma. Querer o
noviço no obedecer a alguém? E para o levar a "ser obediente", em qúe os outros querem, em virtude do privilégio intrínseco e formal
absoluto. A obediência não é simplesmente relativa a este ou àquele, que a vontade de outrem detém, porque vem de outrem: é a subdi-
é uma estrutura geral e permanente da existência. E portanto uma tio. Querer não querer, querer não se opor nem resistir, querer que
forma de relação de si consigo. Mas esta relação não consiste em em nada a vontade própria ponha obstáculo à vontade do outro: é
interiorizar de algum modo o mecanismo da direcção, tornando 2ipatientia. Não querer querer, renunciar à mínima das vontades
cada um de nós o seu próprio director e fazendo que nada de nós próprias: é a humilitas. E um tal exercício da obediência, em vez
mesmos escape à nossa vontade soberana. O estado de obediência, de ser um simples instrumento para a direcção, constitui com ela
pelo contrário, descobre a sua expressão na humilitas. Esta, em vez um círculo indissociável. A obediência é a condição inicial para
de ser uma estrutura fechada, como naquele que, obedecendo, que a direcção possa operar o seu trabalho — daí as provas de
aprendeu a ser o seu próprio amo, é uma "figura aberta"; faz com submissão às quais se expõe o postulante antes ainda de ter trans-
que o sujeito dê aos outros preensão sobre si mesmo. Na humildade, posto a porta do mosteiro; é o instrumento essencial da acção do
tenho consciência de ser tão pequeno que não só me reconheço in- director; é a forma geral da relação entre este e o dirigido; é final-
ferior a qualquer outro — e me sinto por conseguinte obrigado a mente o resultado a que a direcção conduz, resultado que põe o
preferir a sua vontade à minha e pronto a obedecer-lhe em tudo, por 'rigido em posição de aceitar indefinidamente, em lugar e vez da
mais pequeno que esse outro seja —, mas não concedo também ao a, uma vontade diferente. Ocupa assim o lugar de primeira entre
querer da minha própria vontade nem legitimidade nem justificação virtudes. Primeira, uma vez que é por ela que deve começar a
alguma. A obediência que é imposta aos monges não lhes promete instituição monástica e a formação dos noviços. Primeira também,
realeza alguma sobre si mesmos, mas uma humildade que não é porque está no princípio de todas as que a direcção pode fazer
senão a obediência tornada estado definitivo, disponibilidade per- florir naquele que quer encaminhar-se para a perfeição. Os mon-
manente perante qualquer outro, e relação incessante de si mesmo ges preferem-na, diz Cassiano, "não só ao trabalho manual, à lei-
consigo. É ao mesmo tempo o efeito do longo exercício da obediên- ' tura ou ao silêncio e ao repouso da cela, mas também a todas as
cia e a raiz, até mesmo no mais solitário, de toda a obediência pos- virtudes, a tal ponto que consideram dever fazer tudo passar a
vi]
sível. Não é surpreendente que Cassiano, ao fazer a lista dos sinais :guir a ela, e sentem-se felizes por sofrer pouco importa que da-
se;
da humildade, não considere senão as formas do "ser obediente": j^b de preferência a que pareça que de alguma maneira a transgre-
mortificar a sua própria vontade, nada esconder ao seu ancião, não áiram"3".
se firmar no seu próprio discernimento, obedecer sem azedume e I Compreende-se o lugar que Cassiano, no caminhar para a per-
praticar a paciência, não se afligir com as injúrias sofridas, nada feição, dá à humildade, entendida como estado permanente de
fazer salvo o que mandam a regra e os exemplos, contentar-se com obediência, aceitação de toda a submissão, vontade de não querer.
as coisas mais vis e olhar-se como sem mérito algum, proclamar-se
o último entre todos do fundo do coração, e nunca levantar a voz"^.
e dos seus próprios pensamentos, de tal modo que em nada se fie no seu propno
sentimento; mas em todas as coisas acate as decisões daqueles, e que so da sua boca
332 J. CASSIANO, Instituições, IV, 39. Cf. também Conferências, II, 10: "A pri-' queira conhecer o que deve tomar por bom, o que deve olhar como mau.
meira prova da humildade será deixar aos anciãos o juízo de todas as suas acções
333 J. CASSIANO, Instituições, IV, 12.
142 Michel Foucault s Confissões da Carne 143

e renúncia a toda a vontade. Este caminho tem por ponto de par- A direcção cristã, em contrapartida, tem por ponto de mira a
tida um sentimento negativo: o "medo de Deus", o temor dos seus renúncia à vontade. Assenta no paradoxo de uma obstinação em
castigos, o medo de, ofendendo-o, provocar a sua cólera. O ponto deixar de querer. A submissão ao mestre, que é o seu instrumento
de chegada é a "caridade", quer dizer, a possibilidade de agir "pe- indispensável, não conduz nunca ao ponto em que se pode estabe-
lo amor do próprio bem e pela alegria que a virtude dá""'*. Ora, do lecer a soberania sobre si mesmo, mas ao ponto em que, despojado
temor à caridade, a passagem efectua-se através da humildade na por completo da condição de mestre, o asceta já não pode querer
medida em que esta, renunciando a toda a vontade própria (e por senão o que Deus quer. E a tranquilidade da alma, que constitui,
conseguinte à vontade de escapar ao castigo), conduz a aceitar a no vocabulário de Cassiano, o equivalente da apatheia grega, não
vontade do outro como princípio de toda a acção (e na caridade, é consiste em ter-se podido estabelecer sobre os movimentos invo-
a vontade de Deus que é o princípio da acção)"^. A substituição do luntários uma dominação tão perfeita que já nada pode abalá-la a
temor pela caridade supõe, como preparação e como intermediá- partir do momento em que não se consinta em tal. Consiste em
rio, o exercício da obediência e a prática da virtude da humildade. que, tendo renunciado a querer por si mesmo, já não se deve a
É certo que a ascese pedida ao monge não se deixa resumir na própria força senão à de Deus, é na presença desta que se está. A
simples obediência: os jejuns, as vigílias, as orações, o trabalho, as vida contemplativa pode então começar.
obras de caridade são igualmente requeridos. Mas, para poder
conduzir a uma humildade em que a vontade própria tenha desa-
parecido, toda a ascese deve fazer-se na forma geral da obediência. I I I . O RECURSO A DEUS
Podemos assim medir a distância que separa a direcção cristã
da que tinha curso, por exemplo, entre os estóicos. O propósito da g. Para justificar a necessidade de uma direcção e a obrigação de se
segunda era no essencial o de estabelecer as condições de um phe obedecer, Cassiano dá uma razão que nada tem de novo nem de
exercício soberano da vontade sobre si mesmo. Tratava-se de con- inesperado. Ao longo de toda a sua existência monástica, aquele que
duzir o dirigido ao ponto de viragem em que ele se torna senhor aspira à perfeição deve evitar dois perigos: por um lado, o relaxa-
de si mesmo e do que dele pode depender. O que implicava que mento no que se refere às tarefas da vida ascética, as pequenas
aprendesse a distinguir o que releva da sua vontade e o que não é complacências quase imperceptíveis que podem conduzir a alma às
do seu domínio; e que arme essa vontade de uma razão que tem maiores fraquezas; e, por outro lado, um excesso de zelo que, por
por triplo papel traçar a linha divisória, definir a conformidade caminhos diferentes, conduz muitas vezes aos mesmos efeitos que o
com a ordem do mundo, e dissipar os erros de opinião acarretados relaxamento. "Os extremos tocam-se. O excesso do jejum e a vora-
pela desordem das paixões ou o excesso dos desejos"^. cidade têm o mesmo desfecho; as vigílias imoderadas não são me-
nos desastrosas para o monge do que o sobrepeso de um sono pro-
334 [/èirf., IV, 39.] longado. As privações excessivas, com efeito, debilitam, e reconduzem
335 Cf. o itinerário de Pafnúcio narrado na Conferência III. No cenóbio, tão "assí- ao estado em que estagnam a neghgência e a apatia.""^ Tema banal,
duo na humildade e na obediência", aprendera a mortificar todas as suas vontades
próprias; fugira depois para a solidão absoluta, na qual passava por "saborear quo-
tidianamente a delícia da companhia dos anjos". tiquité", Annuaire de VÉcole pratique des hautes êtudes, 5° section, t. L X X X V ,
336 Sobre o sentido dos exercícios estóicos, sobretudo em Marco Aurélio, cf. P. pp. 297-309.
HADOT, "Théologies et mystiques de la Grèce hellénistique et de la fin de TAn- 337 J. CASSIANO, Conferências, II, 16.
144 Michel Foucauli Confissões da Carne 145

o do perigo dos dois excessos e do princípio de que o homem, na sua caíram no momento em que o ardor do seu zelo os impeliu dema-
conduta, deve evitar o demasiado e o demasiado pouco. A sabedoria siado longe^"". Cassiano coloca sob a autoridade de Santo Antão
antiga desenvolvera-o com muita frequência. Para designar a capa- esta advertência visando o ascetismo imoderado: "Quantos deles
cidade de se encontrar a via entre os dois extremos, Cassiano empre- vimos entregarem-se aos jejuns e às vigílias mais rigorosas, pro-
ga o termo de discretio, como equivalente do grego diakrisis (ao vocarem a admiração pelo seu amor da solidão, lançarem-se num
mesmo tempo capacidade de distinguir as diferenças, aptidão para despojamento tão absoluto, que não teriam suportado reservar-se
decidir entre dois partidos e acto de juízo comedido). "Afastando-se sequer um dia de víveres [...]. Depois, subitamente, caíram na
igualmente dos dois excessos contrários, a discrição ensina o monge ilusão; não souberam dar a sua coroação à obra empreendida; ter-
a andar sempre por uma estrada real, e não lhe permite desviar-se minaram o mais belo fervor e uma vida digna de elogio por um
para a direita, numa virtude tolamente presunçosa e num fervor fim abominável."^^^ E o combate contra o excesso de ascetismo,
exagerado, que passam das marcas da justa temperança, nem para a Cassiano apresenta-o como mais rude e perigoso do que o outro.
esquerda, para o lado do relaxamento e do vício.""* Batalha difícil: " V i muitas vezes os que se tinham mantido surdos
A esta noção clássica, Cassiano, como os teóricos da vida mo- perante as seduções da gula caírem após jejuns imoderados; a
nástica da mesma época, dá uma importância fundamental. paixão que tinham vencido tirou a sua desforra aproveitando-se do
Consagra-lhe a segunda das suas Conferências, imediatamente seu enfraquecimento."^"^ E derrota particularmente temível: "Am-
depois de ter explicado, na primeira, o propósito e o fim da vida bas as guerras vêm do demónio; mas é mais grave a queda por um
monástica, e antes de encarar, nas seguintes, os diferentes aspectos jejum imoderado do que por um apetite satisfeito. Deste, podemos,
dessa existência, os seus combates e os seus deveres. A discrição em intervindo uma compunção salutar, regressar à medida da aus-
aparece pois como o instrumento primeiro do caminho para a teridade; do outro, é impossível."'''*
perfeição. "Lâmpada do corpo", sol que não deve nunca deitar-se Para esta ponta antiascética que anima todo o elogio da discri-
sobre a nossa cólera, conselho ao qual devemos submeter-nos até ção, há uma razão histórica bem conhecida: no século iv, a disci-
mesmo quando bebemos o vinho do espírito — nela "reside a sa- plina da vida monástica, as regras do cenóbio que se formulam,
bedoria, a inteligência também e o juízo, sem os quais não nos mas também as prescrições e conselhos que enquadram a solidão
será possível nem construir o nosso edifício interior, nem acumu- do deserto ou a semianacorese, foram — sobretudo no Baixo
lar as riquezas espirituais""'. Ora, este elogio da discrição, a que Egipto, de onde Cassiano extraiu o essencial das suas lições e dos
fazem eco muitas outras passagens das Conferências, tem uma seus exemplos — elaborados em reacção contra as formas selva-
coloração particular. É mais contra o excesso de zelo do que con-
tra a moleza que se dirige. O exagero figura aqui como o perigo
maior''"'. Todos os exemplos invocados são de monges que presu- ' 341 Assim Herão [que], ao cabo de cinquenta anos de deserto e de abstinência, ima-
gina que pode atirar-se a um poço e que os seus méritos o protegerão de todo o peri-
mem das suas forças e, demasiado confiantes no seu próprio juízo, go; os dois monges que querem atravessar o deserto sem provisões; aquele que quis
imitar o sacrifício de Abraão; ou esse outro célebre monge da Mesopotâmia, que
338/èW., I I , 2. "rolou numa queda lamentável até ao judaísmo e à circuncisão", ou ainda o mestre
339/Wd., I I , 4. . demasiado rigoroso apanhado pela tentação do seu discípulo [{ibid., I I , 5-8)].
340 Esta acentuação é mais nítida nas Conferências, consagradas ao caminho que 342 Ibid., I I , 2.
leva à contemplação, do que nas Instituições, nas quais se trata sobretudo da entra- 343 Ibid.,11,16.
da do iniciando no cenóbio.
344/Wd., I I , 17.
146 Confissões da Carne 147
Michel Foucault

gens, anárquicas, individuais e concorrenciais do ascetismo. Pe- do primeiro cristianismo, o zelo impelia cada um a cantar tantos
rante os eremitas isolados ou monges vagabundos, rivalizando em salmos quantos a sua força permitisse. Mas em breve se com-
justas ascéticas e em maravilhas taumatúrgicas, confrontando as preendeu que "a dissonância" e até mesmo a simples variedade
proezas das suas macerações, a regulamentação da vida monástica podem fazer germinar no futuro "o erro, a rivalidade e o cisma".
tinha por propósito fixar uma via média, acessível à maioria dos Os Pais Veneráveis reuniram-se então para fixar a boa medida:
monges e integrável em instituições comunitárias. O que se pedia mas foi um irmão desconhecido, introduzido entre eles, que, can-
à discrição era que determinasse essa via média e separasse as tando sozinho doze salmos e desaparecendo depois subitamente,
águas entre o demasiado e o demasiado pouco; mas também, de mostrou ao mesmo tempo qual o limite conveniente e que fora o
modo particular, que desse conta do que podia haver de excesso : próprio Deus a fixá-lo.
perigoso no impulso ascético, no ardor da busca da perfeição; que Narrativa banal esta, da instauração divina e miraculosa das
distinguisse o que podia imiscuir-se de fraqueza, de complacência, regras. Mas que assume aqui uma significação precisa. A hetero-
de apego a si mesmo na sede de levar os exercícios aos extremos; : nomia do homem é fundamental e não é nunca a si mesmo que
que reconhecesse os elementos do seu contrário sob as aparências ele deve recorrer para definir as medidas da sua conduta. Para
enganadoras da maior santidade. Na preocupação de uma justa tanto há uma razão: é que, desde a queda, o espírito do mal esta-
medida, de um modus convenientemente regrado da vida monás- beleceu o seu império sobre o homem. Não que tenha penetrado
tica, havia o cuidado de evitar a fraqueza e o excesso de rigor, mas xactamente a sua alma e que as suas duas substâncias se tenham
também, e talvez sobretudo, de detectar o que há de fraqueza es- isturado e confundido, o que teria retirado ao homem a sua l i -
condida em todo o excesso de maceração. rdade. Mas, com a alma humana, o espírito do mal tem ao
Esta mesma situação histórica explica uma outra inflexão do esmo tempo parentesco de origem e semelhança; pode pois vir
tema da discrição. Na concepção antiga, a capacidade de discernir mar lugar no corpo, ocupá-lo em concorrência com a alma e,
o demasiado e o demasiado pouco e a aptidão para observar a proveitando-se desta similitude, agitar o corpo, imprimir-lhe
medida na maneira de se conduzir de cada um estavam ligadas ao ovimentos, alterar a sua economia; assim enfraquece a alma,
uso por cada um da sua própria razão. Para um teórico da vida nvia-lhe sugestões, imagens, pensamentos, cuja origem é difícil
monástica como Cassiano'"', o princípio da medida não poderia tíe discernir; a alma ludibriada pode acolhê-los sem reconhecer
vir do próprio homem. Se o monge deve observar-se sem cessar e que lhe são inspirados pelo Outro que com ela coabita no corpo.
fazer incidir sobre si mesmo o olhar mais atento, não é na esperan- Aquele fica pois em posição de disfarçar os pensamentos que
ça de assim descobrir um princípio de justo equilíbrio: é antes dele vêm, de os fazer tomar por inspirações divinas e de ocultar,
para descobrir desse modo todas as razões para procurar o ponto sob as aparências do bem, o mal de que são portadores. Satanás
de apoio fora da sua própria consciência. O monge cristão não ,. é portanto o princípio de ilusão no próprio interior do pensamen-
pode ser nunca medida de si mesmo, por avançado que esteja na |to'"''. E , enquanto o sábio antigo podia apoiar-se na sua própria
estrada da santidade. Testemunha-o uma narrativa de Cassiano a razão contra o movimento involuntário das suas paixões, o monge
propósito da recitação dos salmos'"^. Nos tempos mais recuados cristão não pode encontrar recurso que seja seguro nas ideias que

345 Cf. igualmente São Jerónimo. 347 Sobre o modo [de acção] do espírito do mal sobre a alma do homem, cf. a VII
346 J. CASSIANO, Instituições, I I , 5.
Co/i/erêrtci<2, capítulos 7-20.
149
148 Michel Foucault As Confissões da Carne

liemos aos nossos anciãos todos os segredos da nossa alma, e


lhe parecem mais verdadeiras e mais santas. Na própria trama do
seu pensamento, corre sempre o risco de ser enganado. E a discri- ffi)rocuremos junto deles com toda a confiança o remédio dos nos-
ção, que deve permitir-lhe encontrar a via justa entre os dois pe- pos males e exemplos de vida santa."'"
rigos, não deve consistir no exercício de uma razão dominando as p Esta discrição que, como arte do discernimento e da medida, é
paixões que agitam o corpo, mas num trabalho do pensamento rindispensável para avançarmos a caminho da santidade, e que
sobre si mesmo esforçando-se por escapar às ilusões e logros que contudo nos falta, não só devido às nossas paixões, mas também
o atravessam. devido à força da ilusão que constantemente ameaça o nosso pen-
O mesmo é dizer que a discretio, que é indispensável para se samento, será unicamente a graça divina a conceder-no-la. Mas o
manter a via justa na conduta, não pode ser pedida ao próprio in- que no-la ensinará é a combinação da observação e da abertura da
divíduo. Contra as ciladas que assombram o seu pensamento, alma, é o exercício indissociável do exame e da confissão. E m
mascaram a origem e o fim das ideias que lhe vêm, é-lhe necessá- suma, aquilo que justifica a permanência de uma relação de direc-
rio um recurso exterior. Esse recurso é antes do mais a graça divi- ção é a necessidade de nos mantermos na via média entre os ex-
na. Sem a intervenção de Deus, o homem não é capaz de discrição: tremos por que continuamos em risco de ser atraídos e seduzidos.
esta "não é uma virtude medíocre a que a humana indústria possa 0 caminho justo só pode ser assegurado pelo uso de uma discri-
aceder ao acaso; só a podemos ter da liberalidade divina. [...] Po- ;ção cujo princípio não se encontra naturalmente no homem. Este
deis vê-lo, o dom da discrição nada é de terrestre ou de pequeno, terá de a receber de Deus, mas também de a adquirir através do
mas é um altíssimo dom da graça divina. Se o monge não puser exercício constante do olhar e do dizer-a-verdade sobre si mesmo.
todos os seus cuidados em obtê-lo [...], será a vítima designada das No interior da forma geral da obediência e da renúncia à vontade
ciladas e dos precipícios, e, até mesmo nos trilhos direitos e pla- própria, a direcção tem por instrumento maior a prática perma-
nos, tropeçará por mais de uma vez"'"^ Mas, se a discrição é nente do "exame-confissão", aquilo a que, no cristianismo orien-
graça, deve ser também virtude'"': uma virtude que se aprende. E 1 tal, se chama a exagoreusis: "Cada um dos subordinados deve, por
Cassiano define esta aprendizagem necessária por dois exercícios um lado, evitar manter escondido no seu foro íntimo seja que
ou antes pela conjunção permanente de dois exercícios. Por um movimento for da sua alma; por outro lado, abster-se de deixar
lado, é necessário operar-se sobre si mesmo um exame constante, soltar-se sem controle seja que palavra for e descobrir os segredos
é necessário observarem-se com cuidado todos os movimentos do seu coração àqueles de entre os irmãos que receberam a missão
que se desenrolam no pensamento: é necessário que não se feche de cuidar dos doentes com simpatia e compreensão."'^^
nunca "o olho interior" através do qual exploramos o que se passa
dentro de nós"°. Mas, por outro lado e ao mesmo tempo, é neces-
sário abrir-se a alma a um outro — ao director, ao ancião ao qual
se foi confiado —, é necessário que nada lhe seja escondido. "Ras-
gando o véu com que a falsa vergonha quereria cobri-los, manifes-

fàsÈBAÍiLlO, P. G . , t. 31, col. 985 [tradução I . Hausherr]. Sobre a « « g ^ -


348 J. CASSIANO, Co«/erêndas, I I , 1.
349 "Discretionis gratiam atque virtutem", ibid., I I , 26. reusis na espiritualidade oriental, cf. I . HAUSHERR, Direcnon sptntuellc... PP-
350 Ibid., I I , 2. 155 e sgs.
Kl,
150 151
Michel Foucault As Confissões da Carne

IV. O EXAME-CONFISSÃO qual Deus deverá ser acessível graças à pureza do coração''^ e
uma vez que nos encaminhamos para esse fim pela oração, a
Apesar de um certo número de traços comuns, esta técnica di- meditação, o recolhimento, a fixação do espírito em direcção a
fere bastante profundamente da rememoração dos actos passados Deus, a "cogitatio" constitui o problema principal. Forma de cer-
tal como a encontramos no De ira de Séneca. Não que uma tal to modo a matéria-prima do labor do monge sobre si mesmo. E ,
recolecção do dia no momento do sono tenha sido desconhecida se é verdade que as macerações do corpo, com um regime muito
da espiritualidade cristã. Encontramo-la aconselhada por São João estrito da alimentação, do sono, do trabalho manual, desempe-
Crisóstomo e em termos mais ou menos semelhantes aos dos filó- nham um papel capital, é na medida em que se trata por essa via
sofos antigos: "É de manhã que nos fazemos prestar contas das de se obter as condições para que o fluxo das cogitationes seja
nossas despesas pecuniárias; é à noite, depois da nossa refeição, tão ordenado e puro quanto possível. Como dizia Evágrio, "com
quando estamos deitados, e ninguém nos perturba nem nos inquie- os seculares, os demónios lutam e utilizam de preferência os ob-
ta, é então que devemos pedir contas a nós mesmos da nossa con- jectos. Mas com os monges, é o mais das vezes utilizando os
duta."'" Mas devemos notar que Cassiano nunca menciona uma pensamentos""^ O termo logismoi, utilizado pelos espirituais
tal contabilidade da noite entre as obrigações da vida monástica. gregos, aparece traduzido em Cassiano por cogitationes, conser-
E é verosímil que essa prática se tenha mantido menor por com- vando os mesmos valores negativos que lhe descobríamos em
paração como a exagoreusis propriaihente dita. Evágrio. A cogitatio de Cassiano não é simplesmente um "pensa-
Esta última tem por carácter mais manifesto incidir não sobre mento" entre outros, mas o risco que a alma virada para a con-
os actos passados, mas sobre o movimento dos pensamentos — templação corre de ser perturbada a cada instante. Assim enten-
que podem ser de resto a recordação de um acto cometido ou a dida, é menos o acto de uma alma que pensa do que a perturbação
ideia de um acto a executar'^". Mas é o pensamento em si mesmo, numa alma que procura apreender Deus. É o perigo interior.
a cogitado, que é o alvo do exame. Que a prática do exame na Contra ela deve exercer-se uma desconfiança incessante que dela
vida monástica esteja assim centrada mais no movimento do pen- suspeite e a examine.
samento do que no passado dos actos nada tem de surpreendente.
Por um lado, o sistema estrito de obediência implica que nada se
faça, que nada seja empreendido sem que tenha sido ordenado ou . O combate interior
pelo menos permitido pelo director; trata-se pois de tomar em
conta e de examinar, para o submeter, o pensamento do acto antes A perturbação que ela pode introduzir assume dois aspectos
de este último ter lugar. E , mais fundamentalmente, uma vez que principais. Primeiro, o da multiplicidade, da mobilidade, da desor-
o propósito da existência monástica é uma vida contemplativa na dem, aí onde a alma tem necessidade de ordem, de estabilidade,
de unidade sem movimento. Encaminharmo-nos para a contem-
plação única do ser único supõe que o pensamento se atenha so-
353 [SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, Que éperigoso para o orador e para o ouvinte
falar para agradar, 4.]
354 O carácter "gestionário" deste exame é, como em Séneca, muito marcado: "Exa- 355 J. CASSIANO, Conferências, 1,2-4.
minemos o que é em nossa vantagem e em nosso prejuízo [...]. Deixemos de gastar 356 EVÁGRIO PÔNTICO, Tratado Prático, 48. Sobre os logismoi em Evágrio, cf.
mal a propósito e tratemos de substituir os fundos úteis às despesas nocivas" (ibid.). A. GUILLAUMONT, "Introduction" in Traitépratique (Paris, 1971, pp. 56-63).
152 Michel Foucault Confissões da Carne 153

mente a esse fim e nunca se desvie dele. Tarefa extremamente di- deles estão contaminados e, como uma pena molhada, são mais
fícil. "De quem poderemos crer, ainda quando fosse de todos os pesados do que os outros e tendem a descer'*'.
justos e santos o mais eminente, que tenha conseguido, nos laços Podemos, a partir daqui, compreender a missão que Cassiano
deste corpo mortal, possuir imutavelmente o bem soberano, não se atribui ao exercício do exame. Explica-o, ou antes, fá-lo explicar,
afastando nunca da contemplação divina, não se deixando distrair pelos Padres a cujas conferências se reporta, por meio de três me-
um instante pelos pensamentos terrenos.""' Porque o espírito, na táforas. A do moinho'*^: tal como a água faz rodar a mó, sem que
sua agitação sem tréguas, nunca é completamente por sua vontade o moleiro possa fazer seja o que for, a alma é agitada por "uma
que se imobiliza sobre um objecto único, "é presa de uma mobili- onda contínua de pensamentos tumultuosos"; esse movimento que
dade perpétua e extrema""^. Ao núncio Germano, que perguntava a assedia, a alma não pode interrompê-lo; mas, tal como o molei-
porque é que, no esforço de nos elevarmos à contemplação, "os ro pode fazer moer bom ou mau grão, trigo, cevada ou joio, assim
pensamentos supérfluos se introduzem em nós contra a nossa von- também a alma deve, por meio do exame, proceder à triagem entre
tade, e, mais ainda, sem que demos por isso", o velho Moisés dá os pensamentos úteis e os que são "culpados". O centurião do
por resposta a repetição da própria pergunta: "É impossível, con- lívangelho é também uma boa comparação'*': o oficial vigia o
venho, que o espírito não seja atravessado por pensamentos múlti- iTiovimento dos soldados, diz a uns que vão e a outros que ve-
plos.""' E em todo o início da conferência que Sereno consagra à nham; do mesmo modo, deve o exame controlar o movimento dos
mobilidade do pensamento, o tema do movimento perpétuo do l^ensamentos, afastar aqueles que não queremos, guardar pelo
espírito retorna sem cessar: o nous [espírito] é sempre e sob for- contrário e dispor devidamente aqueles que possam combater o
mas variadas "cinético"'*". inimigo. Por fim, a comparação com o cambista que inspecciona
Mas há um outro perigo que vem misturar-se ao da instabilida- as moedas antes de as aceitar é ainda outra maneira de mostrar a
de, e que é sua consequência: a favor desta desordem e da rapidez função do exame'**. Vemos assim que este consiste numa vigilân-
do fluxo, apresentam-se pensamentos aos quais não se tem tempo cia permanente sobre o fluxo permanente e incoercível de todos
para prestar atenção e que se acolhem sem desconfiança. Ora, sob os pensamentos que se atropelam ao apresentarem-se à alma, e
o seu aspecto inocente, esses pensamentos podem, de facto, sem num mecanismo de selecção que permite distinguir os que pode-
que tal seja perceptível, ser perigosos, transmitir à alma sugestões mos acolher e os que devemos rejeitar.
nocivas ou introduzir até impurezas. Os pensamentos esvoaçam Para apreendermos a tarefa específica do exame, os desenvolvi-
no espírito como uma penugem que o vento agita, mas alguns mentos que Cassiano opera da metáfora do cambista são significa-
tivos. Quando lhe apresentam as moedas, o banqueiro tem por
357 J. CASSIANO, Conferências, X X I I I , 5. Igualmente, Conferência VII, 3: "Por tarefa "verificar": verifica a efígie e o metal. Na ordem das ideias,
vezes, sentimos que o olhar do nosso coração se dirige para o seu objecto; mas o
podem apresentar-se vários casos. Brilham como se fossem ouro
nosso espírito desliza insensivelmente dessas alturas, para se precipitar com um
ardor mais arrebatado nas suas divagações primeiras." (c o caso por exemplo das máximas filosóficas), mas são uma ilu-
358 [/Wí/., VII, 4.]
359Ibid.,l,\6-n.
360 Aeikinêtos kai polukinêtos. Utilizando estas palavras gregas {ibid., VII, 4), 361 [J. CASSIANO, Conferências, I X , 4.]
CASSIANO mostra bem que toma a ideia de empréstimo à espiritualidade orien- ?62/èid.,I,18.
tal. Encontramos em EVÁGRIO a caracterização do espírito como planômenos e 363/èid.,VII,5.
eukinêtos (capítulo 15 e capítulo 48 do Tratado Prático). 364/Wd., 1,20.
154 155
Michel Foucault , onfissões da Carne

são, o metal não é o que se pensava. Pode acontecer que, peio da ideia, a sua marca, aquilo que poderia alterar o seu
contrário, o metal seja puro — assim uma máxima tirada das Es- valor. Trata-se de testarmos "a qualidade dos pensamentos" —
crituras —, mas o sedutor em nós sobrepôs-lhe uma interpretação qualitas cogitationum^^'^ —, de nos interrogarmos sobre as profun-
falsa, como se um usurpador tivesse cunhado moeda imprimindo • didades secretas de onde saíram, as astúcias das quais podem ser
no metal uma efígie sem legitimidade nem valor. Pode também instrumentos e as ilusões que fazem com que nos enganemos nem
suceder que a moeda seja de bom metal e a efígie conforme, mas tanto nem somente sobre as coisas das quais eles são ideia — so-
vindo de facto de uma má oficina. É o caso quando Satanás nos bre a sua realidade objectiva, como se dirá mais tarde —, mas
sugere um princípio de acção que em si mesmo é bom, mas o uti- sobre eles mesmos: a sua natureza, a sua substância, o seu autor.
liza para um fim que nos é nocivo: pode sugerir-nos o jejum, não - ; Âo examinar os pensamentos com cuidado, ao operar a todo o
para aperfeiçoar a nossa alma, mas para enfraquecer o nosso cor- | momento a triagem entre os que devem ser acolhidos e os que
po'*'. Finalmente, uma moeda pode ser inteiramente legítima pelo | "devem ser rejeitados, o monge obediente e bem dirigido não con-
seu metal, a sua efígie, a sua origem; mas o tempo desgastou-a ou 1 dera o que é pensado nessas ideias, mas antes o movimento do
a ferrugem alterou-a: um mau sentimento pode ter-se incorporado 1 nsamento naquele que o pensa. Aquilo a que Cassiano chama os
numa ideia válida e alterar assim o seu valor (a vaidade pode i arcana conscientiae. Problema do sujeito do pensamento e da re-
misturar-se ao desejo de fazer uma boa obra). ^ lação do sujeito com o seu próprio pensamento (Quem pensa no
É bem uma questão de verdade pois a que se põe, através do meu pensamento? Não me terei de algum modo enganado?), e já
exame, às cogitationes que batem a alma no seu fluxo ininterrup- não questão do objecto pensado ou da relação do pensamento com
to. Mas não se trata de saber se temos uma ideia verdadeira ou o seu objecto. Quando pensamos no exame de tipo estóico, no qual
falsa, se formamos um juízo que é exacto ou não — tarefa que era se tratava de verificar a justeza das opiniões para melhor se asse-
a do exame estóico'**. E m suma, não se trata de saber se nos en- gurar a preensão da razão sobre o movimento das paixões, medi-
ganamos ou não, trata-se de fazer a triagem entre as ideias verda- mos a que distância está dela este pôr em questão o movimento do
deiras e falsas, entre as que são de facto o que parecem ser e as pensamento, a sua origem no sujeito e as ilusões de si sobre si
que iludem. O problema é o de saber se estamos a ser enganados. mesmo que pode fazer nascer.
O exame não consiste em reflectir para determinar se o jejum é ^
bom ou mau. Mas não sabemos se a chegada de uma semelhante ^
ideia no momento em que se apresenta não será um efeito do En-
|í2. A necessidade da confissão
ganador que, escondendo-se sob esse princípio salutar, prepara em
segredo a nossa queda. Se esta verificação dos pensamentos e esta triagem não assu-
O exame tem realmente pois por efeito operar uma discretio, missem mais do que a forma de um exame interior, haveria um
uma diferenciação que permite seguir o caminho recto. Mas esta paradoxo: de que modo, com efeito, aquele que se examina poderia
não separa as opiniões verdadeiras das opiniões falsas. Procura a reconhecer com toda a certeza a origem dos seus pensamentos,
como poderia estar seguro de não se enganar no valor que lhes
365 Ibid. atribui, quando o perigo de estar enganado — e de estar engando
366 Assim SÉNECA perguntava-se se tivera razão ao crer que se podia educar
toda a gente; ou que toda a verdade era boa fosse para quem fosse (De ira, I I I , 36). 367 A expressão encontra-se, entre outros, em J. CASSIANO, Irtstituições, V I , 11.
156 Michel Foucault Ks Confissões da Carne 157

sobre si mesmo — não foi esconjurado? Como seria mais seguro conjurar os embustes do sedutor interior'^'. Deste poder da confis-
o pensamento que se forma no exame do que aquele que é exami- são, como operador da discriminação, Cassiano dá várias razões.
nado? É aqui que se funda a necessidade da confissão — essa Hm primeiro lugar, a vergonha. Se se experimenta dificuldade
confissão que não devemos conceber como o resultado de um em confessar um pensamento, se este se recusa a ser dito, se pro-
exame que começaria por se fazer sob a forma da interioridade cura permanecer secreto, isso é sinal de que é mau. "O diabo tão
estrita, e que ofereceria a seguir o seu balanço sob a forma da subtil não poderá agir ou fazer cair o jovem a não ser atraindo-o,
confidência. Trata-se de uma confissão que deve estar o mais per- por orgulho ou por respeito humano, a esconder os seus pensa-
to possível do exame, deveria poder ser a sua vertente exterior, a mentos. Os anciãos afirmam com efeito que é um sinal universal
sua face verbal voltada para outrem. O olhar sobre si mesmo e o e evidente de um pensamento diabólico que coremos de o mani-
pôr em discurso aquilo que ele apreende não deveriam ser mais do festarmos ao ancião."'''^ Quanto mais um pensamento se esquiva,
que uma e a mesma coisa. Ver e dizer num acto único — eis o quanto mais tenta escapar às palavras que procuram captá-lo,
ideal para que deve tender o noviço: "Ensina-se aos iniciantes a mais, por conseguinte, deveremos encarniçar-nos em persegui-lo e
não esconderem por falsa vergonha nenhum dos pensamentos que confessá-lo exactamente. A vergonha, que deveria reter-nos quan-
lhes roem o coração, mas, assim que nascem, a manifestá-los ao tío se trata de cometer um acto, deve ser vencida quando se trata
ancião."'** de manifestar em palavras o que se esconde no fundo do coração:
Mas como poderá a confissão dissipar as ilusões, astúcias e enga- é uma marca indubitável do mal.
nos que assombram o pensamento? Como poderá a verbalização Se a ideia que vem do espírito do mal procura sempre manter-se
desempenhar um papel de verificação? É sem dúvida porque o an- enterrada na consciência, é por uma razão cosmo-teológica. Anjo
cião ao qual o sujeito se confia pode, usando da sua experiência, da da luz, Satanás foi condenado às trevas; a claridade do dia foi-lhe
discrição que adquiriu e da graça que recebeu, ver o que naquele interdita e ele já não pode sair dos recônditos do coração onde se
escapa a si mesmo e dar-lhe conselho e remédios. O Inimigo, que escondeu. A confissão, que o puxa para a luz, arranca-o ao seu
pode ludibriar o inexperiente e o ignorante, fracassará frente ao reino e torna-o impotente. Só na noite ele pode reinar. "Um mau
discernimento do ancião'®. Cassiano atribui um grande papel a es- pensamento produzido à luz do dia perde de imediato o seu vene-
tes conselhos do director, e mostra até a que efeitos negativos pode no. Antes ainda de a discrição ter proferido a sua sentença, a me-
conduzir uma direcção desastrada'™. Todavia, atribui também ao donha serpente, que tal confissão arrancou, por assim dizer, do seu
simples facto da exteriorização verbal um efeito de triagem e uma antro subterrâneo e tenebroso, para a arrojar à luz e oferecer em
virtude de purificação. Formar palavras, pronunciá-las, endereçá-las espectáculo a sua vergonha, apressa-se a bater em retirada."'" A
a um outro — e até certo ponto a seja quem for o outro, contanto ideia má perde a sua força de sedução e o seu poder de embuste
que seja um outro — detém o poder de dissipar as ilusões e de es- pelo simples facto de ser dita, de ser pronunciada em voz alta e de
sair assim da interioridade secreta da consciência.

368/Wí/., IV, 9. • 371 Significativo o conselho que Santo Antão teria dado aos solitários: registar
369 Ibid. numa tabuinha, como se tivessem de os mostrar a alguém, as suas acções e os mo-
370 Cf. a anedota do ancião que, com as suas recriminações excessivas, impele um vimentos da sua alma (SANTO ATANÁSIO, Vita Antonii, 55,9).
noviço ao desespero. Encontra a sua punição no facto de se tornar por seu turno 372 J. CASSIANO, Instituições, IV, 9.
vítima da tentação que assediava o jovem (J. CASSIANO, Conferências, II, 13). 373 J. CASSIANO, Conferências, I I , 10.
158 Michel Foucault As Confissões da Carne 159

Cassiano vai mais longe até. A formulação seria por vezes ex- paixão expulso do teu coração pela tua confissão salutar e que
pulsão material. Com a frase que confessa, é o próprio diabo que reconhecesses, por essa fuga manifesta, que o inimigo, uma vez
é expulso do corpo. Tal é a lição que deve extrair-se de uma me- descoberto, deixaria doravante de ter lugar em ti.""-'
mória do abade Serapião. E m criança, fora habitado pelo espírito Há pois na própria forma da confissão, no facto de o segredo ser
da gula e todas as noites roubava um pão; mas "corava ao revelar" formulado em palavras e de essas palavras se dirigirem a um ou-
ao santo velho que o dirigia os seus "roubos clandestinos". Por tro, um poder específico: aquilo a que Cassiano chama, usando um
fim, um dia, impressionado por uma exortação do abade Teão, não termo que constantemente voltaremos a encontrar no vocabulário
pôde impedir-se de rebentar em soluços. "Tira do seu seio, cúm- da penitência e da direcção das almas, a virtus confessionis. A
plice e receptador do seu furto, o pão que roubara [...], e produ-lo confissão tem uma força operatória que lhe é própria: diz, mostra,
diante dos olhos de todos. Prosternado por terra, confessa, pedin- expulsa, liberta.
do perdão, o segredo dos seus repastos quotidianos; implora, por Explica-se assim que a discrição — essa prática que permite
entre as lágrimas, as orações de todos, a fim de que o Senhor o desenredar as confusões, separar as misturas, dissipar as ilusões,
liberte de um cativeiro tão duro." E prontamente "uma lâmpada diferenciar no sujeito aquilo que vem dele mesmo e o que lhe é
acesa saiu do seu seio e encheu a cela de um cheiro de enxofre; a inspirado pelo Outro — não possa ser operada somente pelo exa-
infecção foi de tal ordem que mal foi possível aí continuar". Ora, me de si sobre si, mas que lhe seja necessária também, e simulta-
as palavras que, segundo o relato de Cassiano, o abade Teão pro- neamente, uma perpétua confissão. É necessário que o exame to-
nuncia no decorrer desta cena são importantes. Sublinham em me forma imediatamente ("assim que nascem os pensamentos")
primeiro lugar o facto de a libertação não ser directamente devida num discurso efectivo e dirigido a um outro. Este último, em po-
a palavras que o director tivesse pronunciado'''", mas às do culpado sição de exterioridade, poderá ser melhor juiz? Sem dúvida. Mas,
que confessa: "A tua libertação está consumada; sem que eu tenha sobretudo, o acto de discurso que lhe é dirigido efectua, pela
dito uma palavra, a confissão que acabas de fazer foi suficiente." barreira da vergonha, o jogo da sombra e da luz, e a expulsão ma-
Esta confissão trouxe à plena luz do dia o que estava dissimulado terial, a operação real da divisão. A indispensável discretio que
na sombra do segredo: é um jogo de luz. E é, ao mesmo tempo, por permite traçar, entre os dois perigos do demasiado e do demasiado
isso mesmo, uma inversão de poder: "O teu adversário conquista- pouco, o caminho recto que conduz à perfeição, essa discretio da
va a vitória; tu triunfas hoje sobre ele; e a tua confissão esmaga-o qual o homem, assombrado pelo poder de sedução do Inimigo, não
mais completamente do que ele mesmo te tinha abatido a favor do é dotado naturalmente, não poderá exercer-se com a graça de Deus
seu silêncio. [...] Enunciando-o, retiraste ao espírito de malícia o senão através da operação do exame-confissão: essa operação em
poder de te continuar a inquietar." E esta inversão de poder traduz- que o olhar de si mesmo sobre si mesmo deve associar-se inces-
-se numa expulsão material. E m sentido estrito, a confissão que santemente ao "dizer a verdade" a propósito de si mesmo. E então,
expõe à luz o espírito do mal fá-lo abandonar o seu lugar: "O Se- após esta discriminação, que incide permanentemente sobre a
nhor [...] quis que visses com os teus olhos o instigador dessa origem, a qualidade e o grão das cogitationes, que a alma já não
acolherá senão pensamentos puros, conduzindo somente a Deus
porque somente dele vêm. Tal é a puritas cordis, condição dessa
374 Há contudo um efeito indirecto, que o próprio Teão sublinha: o discípulo fora
convencido pelo sermão do velho sobre a gula e os pensamentos secretos [{ibid.,
11,21)]. 375 [J. CASSIANO, Conferências, I I , 11.]
As Confissões da Carne 161
160 Michel Foucault

frente uma tarefa indefinida: penetrar cada vez mais os segredos


contemplação que é o fim da vida monástica. No início do livro V
da alma; captar sempre, o mais cedo possível, até mesmo os pen-
das Instituições, Cassiano refere-se a um texto de Isaías, no qual o
samentos mais ténues; apoderar-se dos segredos, e dos segredos
Eterno promete a Ciro, seu servidor, "pôr de rojo as nações diante
que se escondem atrás dos segredos, ir o mais fundo possível na
de ti", "despedaçar as portas de bronze", "quebrar os ferrolhos de
direcção da raiz. Neste labor nada é indiferente, e não há limite
ferro" e dar-lhe "tesouros escondidos, riquezas enterradas" (45,
preestabelecido a respeitar. A prática do exame-confissão deve
1-3). Por meio de uma estranha inflexão do comentário, Cassiano
seguir uma linha de encosta que a inclina indefinidamente para a
interpreta estas portas derrubadas e estes ferrolhos quebrados co-
parte quase imperceptível do si mesmo.
mo o trabalho que devemos fazer sobre as "trevas negras dos ví-
Trata-se pois de outra coisa que não só o simples reconhecimen-
cios" para podermos "manifestá-los à luz do dia". Sob o efeito de
to verbal das faltas cometidas. A exagoreusis não é como uma
uma tal investigação (indagini) e de uma tal exposição (expositio-
confissão no tribunal. Não toma lugar num mecanismo de jurisdi-
ni), os "segredos das trevas" serão revelados, tudo o que nos sepa-
ção, não é uma maneira para aquele que infringiu uma lei de re-
ra da verdadeira ciência será abatido, e "mereceremos pela pureza
conhecer a sua responsabilidade a fim de atenuar o castigo. É um
do coração ser conduzidos ao lugar do refrigério perfeito""*.
trabalho visando descobrir não só ao outro, mas também a si
mesmo, o que se passa nos mistérios do coração e nas suas som-
A exagoreusis que se desenvolveu no monaquismo como práti-
bras indistintas. Trata-se de fazer cintilar como verdade aquilo que
ca de um exame ininterrupto de si ligado a uma confissão inces-
por ninguém era ainda conhecido. E isto de duas maneiras: trazen-
sante ao outro está portanto muito longe, apesar de certos traços
do à luz o que era tão obscuro que ninguém podia captá-lo; e
comuns, da consulta que encontrávamos na prática antiga, e da
dissipando as ilusões que faziam tomar a moeda falsa por autênti-
confiança que o discípulo do filósofo devia ter no mestre de ver-
ca, uma sugestão do diabo por uma verdadeira inspiração de Deus.
dade e de sabedoria. Antes de mais, o exame-confissão está ligado
E é desta passagem da obscuridade à luz, da mistura sedutora à
na sua permanência ao dever, também ele permanente, de obe-
separação rigorosa, que a própria libertação é esperada. Estamos
diência. Se tudo o que se passa na alma e até mesmo nos seus mais
na ordem não da jurisdição dos actos dos quais alguém se reco-
pequenos movimentos [deve ser revelado ao outro], é para permitir
nhece responsável, mas da "veridicção" dos segredos que alguém
uma obediência perfeita. Do mesmo modo que o acto na aparência
ignora em si mesmo.
mais indiferente, o pensamento mais fugidio não deve escapar ao
Por fim, se a exagoreusis inclina ao exame de si mesmo e sem
poder do outro. E consequentemente a obediência exacta em todas
tréguas, não é para que o si mesmo possa estabelecer-se na sua
as coisas tem por propósito impedir que alguma vez a interiorida-
própria soberania, ou sequer para que possa reconhecer-se na sua
de se feche sobre si mesma e possa, comprazendo-se na sua auto-
identidade. Desenrola-se permanentemente na relação com ou-
nomia, deixar-se seduzir pelas potências enganadoras que a habi-
trem: sob a forma geral de uma direcção que submete a vontade
tam. A forma geral da obediência e a obrigação permanente do
do sujeito à do outro; tendo por objectivo que o sujeito detecte no
exame-confissão andam necessariamente a par.
fundo de si mesmo a presença do Outro, do Inimigo; e tendo por
Além disso, este exame-confissão não incide sobre uma catego-
fim último o acesso à contemplação de Deus, numa completa pu-
ria definida de elementos (como actos, ou infracções), tem à sua
reza de coração. Quanto a esta pureza, ela mesma, não devemos
compreendê-la como restauração de si mesmo, ou como alforria
376 J. CASSIANO, fefiíííifõeí, V, 2.
162 Michel Foucault

do sujeito. É, pelo contrário, o abandono definitivo de toda a von-


tade própria: uma maneira de não se ser si mesmo, de não se estar
ligado por laço algum a si mesmo. Paradoxo essencial a estas
práticas da espiritualidade cristã: a veridicção de si mesmo está
fundamentalmente ligada à renúncia a si. O trabalho indefinido a
fim de se ver e se dizer a verdade de si mesmo é um exercício de
mortificação. Temos, pois, na exagoreusis um dispositivo comple-
xo em que o dever de se mergulhar indefinidamente na interiori-
dade da alma está acoplado à obrigação de uma exteriorização CAPÍTULO I I
permanente no discurso endereçado ao outro; e em que a busca da
verdade de si deve constituir um certo modo de se morrer para si
mesmo. Ser virgem

[I. VIRGINDADE E CONTINÊNCIA]


[II. DAS ARTES DA VIRGINDADE]
[III. VIRGINDADE E CONHECIMENTO DE SI]
É conhecida a importância, no século iv, dos textos consagrados
à virgindade. Entre os cristãos do Oriente, temos o tratado Sobre a
Verdadeira Integridade na Virgindade de Basílio de Ancira, o de
Gregório de Nissa Sobre a Virgindade, vários textos de João Cri-
sóstomo — Da Virgindade, Das Coabitações Suspeitas, Como
Observar a Virgindade —, a sétima Homilia de Eusébio de Emesa,
e a Exortação que Evágrio Pôntico endereça a uma virgem; a estes
podem somar-se, entre muitos outros textos, um tratado atribuído a
Atanásio, poemas de Gregório de Nazianzo, ou ainda uma Homilia
dirigida ao pai de família, cujo autor se manteve desconhecido'.
Entre os latinos, devemos incluir sobretudo Santo Ambrósio (JDe
virginibus, De virginitate, De institutione virginis, De exhortatione
yirginitatis, De lapsu virginis consecratae). São Jerónimo (Adver-
sus Helvidium, Adversus Jovinianum, a carta a Eustóquio), e Santo
Agostinho {De continentia, De sancta virginitate).
Esta multiplicidade de textos não significa o aparecimento nes-
ta época de um imperativo ou de uma prática de abstenção total e
definitiva de relações sexuais. De facto, a valorização da virginda-
de encontra-se atestada muito antes, segundo uma tradição que se
refere a esse famoso texto da Primeira Epístola aos Coríntios (7,1)
que estará, durante perto de dois mil anos, no.centro de todas as

1 [DOM DAVID AMAND e M.-CH. MOONS, "Une curieuse homélie grecque


inédite sur la Virginité", /íevue bénédictine, 63,1953, pp. 18-69.]
166 Michel Foucault As Confissões da Carne 167

discussões: "É bom que o homem não toque na mulher." Desta tensão de um tipo de comportamento já conhecido, pelo menos na
renúncia voluntária temos muitos testemunhos. Uns vêm dos pró- sua forma exterior, e já valorizado. Recordemos que os grandes
prios cristãos. É Atenágoras: "Cada um de nós conserva a única interditos citados pelos textos dos Padres Apostólicos ou dos Apo-
mulher que desposou [...]. Mas encontrar-se-iam muitos dos nos- logetas são os mesmos que eram proibidos pela moral pagã: adul-
sos, homens e mulheres, que até à extrema velhice vivem fora do tério, fornicação, corrupção de crianças'. Vemos pois que o
casamento na esperança de poderem unir-se mais a Deus. Se a cristianismo, ao longo do seu primeiro século de existência, pare-
virgindade aproxima de Deus, mas se ceder até mesmo aos pensa- ce veicular o mesmo sistema de moral sexual que a cultura antiga
mentos e aos desejos afasta dele, muito mais evitamos as acções que o precede ou o rodeia: as mesmas faltas sexuais, condenáveis
das quais até mesmo em pensamento fugimos."^ Tertuliano evo- por todos, a mesma recomendação "elitista", e para alguns, da
ca tantos "eunucos voluntários", tantas "virgens casadas com abstinência total.
Cristo"', que Santo [Ambrósio] poderá opor às sete infelizes A história da prática da virgindade, nos dois primeiros séculos
vestais da Roma pagã "o povo da integridade", "a plebe do pudor", do cristianismo, não consiste simplesmente na extensão de uma
e toda "a assembleia da virgindade"*: multidão que, [diz São recomendação "filosófica" de abstinência. A prática cristã
Cipriano], manifesta largamente a fecundidade da Igreja-mãe'. distinguiu-se de facto de dois tipos de conduta. No que se refere à
Mas há também os testemunhos exteriores. O de Galeno é interes- sabedoria pagã, deu ao princípio de continência uma outra signifi-
sante na medida em que, atestando o facto, não vê nele grande cação. Fixou-lhe outros efeitos ou outras promessas, deu-lhe tam-
coisa de novo: quando muito surpreende-se por um tão grande bém uma outra extensão, e sobretudo outros instrumentos. Mas
número de pessoas poder praticar uma abstinência que até então teve de desligar-se também de uma tendência que estava presente
fora sobretudo praticada por filósofos autênticos: "Os cristãos no próprio cristianismo, e que a tentação dualista sem dúvida reac-
observam uma conduta digna dos verdadeiros filósofos: vemos tivava: aquilo a que se chamou o encratismo. Esta tendência para
com efeito que desprezam a morte e que, movidos por certos pu- proibir toda a relação sexual a todo o cristão como condição indis-
dores, têm horror aos actos da carne. Há entre eles homens e mu- pensável da sua salvação esteve, com intensidades variáveis e sob
lheres que, durante toda a vida, se abstêm do acto conjugal. Há-os formas diferentes, constantemente presente nos primeiros séculos
também que, no governo e no domínio da alma, foram tão longe cristãos. Chegou a tomar, com Taciano e Júlio Cassiano, as feições
como os verdadeiros filósofos."* de uma seita, a constituir um dos traços fundamentais de certas
A virgindade ou a continência definitiva aparecem pois no sé- heresias (assim na gnose de Marcião ou entre os maniqueus), a
culo n como uma prática difundida entre os cristãos, mas sem que marcar a prática de certas comunidades, como atestam a Segunda
nada nisso haja aparentemente de específico: quando muito a ex- Epístola, apócrifa, de Clemente aos Coríntios ou ainda as acusa-
ções feitas, segundo Eusébio, a Pinito, bispo de Cnossos, que, sem
2 ATENÁGORAS, Legatio, capítulo X X X I I I . ter em conta "a fraqueza do grande número", queria impor "aos
3 TERTULIANO, De resurrectione carnis, L X I .
4 SANTO [AMBRÓSIO], carta 18 {ad Valentianum).
5 SÃO CIPRIANO, De habitu virgimim, 3. 7 Assim na Didakhê: "Não matarás, não cometerás adultério, não corromperás
6 [GALENO, Liber de sententiis politiae platonicae], citado por ADOLF VON crianças, não cometerás fornicação, não roubarás" (II, 2). Epístola do Pseudo-
HARNACK, Die Mission und Ausbreitung des Christentuins in den ersten drei -Barnabé: "Não cometas nem fornicação nem adultério; não corrompas as crian-
Jahrhimderten, Leipzig, 1906, [livro I I , capítulo V ] . ças" (XIX, 4).
168 Michel Foucault As Confissões da Carne

irmãos o pesado fardo da castidade"*; ou ainda a constituir uma seu corpo. E m suma, a interdição do adultério ou da corrupção de
linha de inclinação de pensamentos reconhecidos sob outros aspec- crianças, por um lado, e, por outro, a recomendação da virgindade
tos como ortodoxos: testemunho o escândalo e os debates suscita- não estão no prolongamento uma da outra. São dissimétricas e de
dos pelo Adversus Jovinianum de São Jerónimo. Ora, na crítica do natureza diferente. Ora, foi na elaboração da segunda e não no
encratismo, não se tratava de saber se a virgindade devia ser, ou reforço da primeira que se formou a concepção cristã da carne.
não, uma lei imposta a fosse quem fosse que quisesse salvar-se, Digamos numa palavra que, ao lado de um código moral dos
mas, uma vez que a recusa de toda a relação sexual não era uma lei interditos sexuais, que se manteve mais ou menos estável, se de-
incondicional, tratava-se de determinar que experiência privilegia- senvolveu, em termos completamente diferentes, uma prática
da, relativamente "rara" e positiva, devia ser a virgindade. singular: a da virgindade.
Há pois duas coisas importantes a considerar. O que o pensa-
mento cristão vai elaborar, até aos séculos v e v i , o que vai ser o
ponto maior da reflexão e o lugar das transformações, não é a tá-
bua dos grandes interditos, mas a questão da virgindade (e, como
veremos adiante, a economia interna do casamento). As proibições
essenciais continuam a ser o que são: é muito mais tarde que ve-
remos a redistribuição do seu sistema, com o aparecimento de
vastos domínios como o do incesto, da bestialidade, do "contrana-
tura". Mas, durante os primeiros séculos, tanto a parada teórica em
jogo como a questão prática dirão respeito ao valor e ao sentido a
dar a uma abstenção rigorosa e definitiva de toda e qualquer rela-
ção sexual (e até mesmo do que possa ser seu pensamento e seu
desejo). Mas, por outro lado, esta questão da virgindade não deve
ser considerada como um simples princípio de abstenção, que de
algum modo viesse completar os interditos particulares através de
uma recomendação geral de continência. Não devemos compreen-
der o ardor posto em exaltar e recomendar a virgindade como uma
extensão dos velhos interditos no domínio geral das relações se-
xuais: uma espécie de ir até aos limites que proibisse não só isto,
aquilo e também aquilo, mas, afinal de contas, tudo. A valorização
da virgindade, entre a abstinência parcialmente recomendada por
certos sábios antigos e a continência rigorosa dos encratitas, levou
a pouco e pouco à definição de toda uma relação do indivíduo
consigo mesmo, com o seu pensamento, com a sua alma e com o

8 [EUSÉBIO DE C E S A R E I A , História Eclesiástica, IV, 23,7.]


/vs Confissões da Carne 171

primeiro texto, escrito por São Cipriano, data da primeira metade


do século III, calcula-se que O Banquete de Metódio de Olimpos
tenha sido escrito por volta de 271. Veremos que, pelo seu conteú-
do, faz charneira com os grandes textos do século iv.
O De habitu virginum de São Cipriano constitui, para o cristia-
nismo latino da primeira metade do século m, o tratado mais am-
plo consagrado à prática da virgindade. É certo que Tertuliano
abordara muitas vezes este tema da virgindade, mas os seus dife-
[I] rentes textos tratam sempre de um aspecto particular: trajes costu-
mados das jovens e das mulheres casadas no De virginibus velan-
[ V I R G I N D A D E E CONTINÊNCIA] dis; problema de um novo casamento das viúvas no tratado Ad
uxorem e dos viúvos na Exhortatio ad castitatem; penitência e
reintegração dos adúlteros no De pudicitia, escrito no período
Sobre a forma e o conteúdo desta prática antes do século iv, montanista. Podemos verificar que muitas das ideias desenvolvi-
conhecemos relativamente pouca coisa. Sabemos a sua extensão. das por Tertuliano voltarão a aparecer mais tarde: assim, o tema
Sabemos também que não assumia forma institucional através dos das bodas com Cristo, ou da virgindade como condição de apro-
votos nem de uma existência de tipo monástico. E m contrapartida, ximação das realidades espirituais.'" Mas devemos reter a sua
existiam, sobretudo entre as mulheres, círculos que se dedicavam reticência em conceder à virgindade, stricto sensu, um estatuto
a uma vida religiosa particularmente intensa e recusavam total- particular. O pequeno tratado sobre o Véu das Virgens é, deste
mente o casamento, ou, no caso das viúvas, qualquer segundo ca- ponto de vista, significativo. A tese é que as virgens, como as mu-
samento. Mas acontecia também haver raparigas, mais ou menos lheres casadas, devem usar o véu. Para isso são aduzidos três
impelidas pelas suas famílias', que levavam uma vida de virgin- conjuntos de argumentos. Uns apoiam-se nas Escrituras: foi como
dade em casa dos seus pais. É sem dúvida por isso que os docu- mulher que Eva foi criada; era do seio de uma mulher que o Sal-
mentos dos quais dispomos para o século iii dizem sobretudo vador devia nascer; foi como mulheres que as "filhas dos homens"
respeito à virgindade das mulheres e apresentam duas situações: a seduziram os anjos. Outros argumentos, mais singulares e que não
jovem em sua casa e o círculo das virgens. tornaremos a encontrar nos tratados posteriores sobre a virginda-
É em dois textos deste género que me vou deter. Um é latino, de, são tirados da natureza: após ter mostrado através das Escritu-
refere-se à vida de uma virgem no meio da sua família, é breve e ras que a mulher é mulher antes de ser virgem, Tertuliano, com
comunica essencialmente recomendações práticas. O outro é gre- efeito, explica que toda a virgem se torna mulher espontaneamen-
go, põe em cena um grupo imaginário de mulheres que cantam te e antes até do casamento. Torna-se mulher através da consciên-
entre elas louvores à sua virgindade. É o primeiro testemunho cia que toma de si mesma como mulher, pelo facto de se tornar um
desenvolvido de uma mística cristã da virgindade. Enquanto o objecto para "a concupiscência dos homens", e de poder "sofrer o

9 Voltaremos adiante a esta ideia de que a virgindade dos filhos tem um valor 10 Sobre o primeiro tema cf. TERTULIANO, De virginibus velandis, X V I . Sobre
sacrificial para o resgate dos pecados dos pais. o segundo, Exhortatio ad castitatem.
172 As Confissões da Carne 173
Michel Foucault

juia fica bem esclarecido numa passagem de O Véu das Virgens*^.


casamento": deixa de ser virgem "a partir do momento em que
Tertuliano pergunta-se nela se "a continência não prima sobre a
pode deixar de sê-lo"; por obra da corrupção que entra nos olhos
virgindade" — a continência praticada na viuvez ou exercida de
e no coração; "a pretensa virgem é já casada: o seu espírito é-o
comum acordo dentro do casamento. Do lado da virgindade, a
pela expectativa, a sua carne pela transformação!; enfim, pelo
graça que se recebe; do lado da continência, a virtude. Aqui, difi-
próprio movimento da natureza: desenvolvimento do corpo, mu-
culdade do combate contra a concupiscência; ali, facilidade de não
dança de voz, e tributo mensal: "Negai pois que seja mulher aque-
se desejar o que se ignora.
la que sofre os acidentes da mulher."" For fim a última série de
Vemos as duas tendências que se desprendem destes textos: por
argumentos é tirada por Tertuliano das exigências da disciplina: as
um lado, dar à abstenção das relações sexuais um valor geral, co-
mulheres casadas devem ser protegidas contra os perigos que as
mo meio de nos aproximarmos de uma existência santificada,
rodeiam. O véu assegura e simboliza esta protecção. Mas a virgin-
prelúdio desse momento em que a carne ressuscitada deixará de
dade não deverá ser igualmente protegida contra os ataques da
conhecer a diferença dos sexos'"; e, no quadro geral dessa absten-
tentação, contra os dardos dos escândalos, contra as suspeitas, os
ção, não conceder estatuto privilegiado ou posição de destaque à
murmúrios, a inveja?
virgindade no sentido estrito, ainda que se indique o seu lugar e a
A Exortação à Castidade, texto endereçado por Tertuliano a
sua especificidade. É de facto uma moral rigorosa da continência,
um irmão que enviuvara, parece, pelo contrário, reabsorver na
muito mais do que uma valorização espiritual da virgindade, que
virgindade um conjunto de condutas ou de estatutos diferentes.
atravessa estes textos de Tertuliano. Podemos até reconhecer neles
Mas, de facto, também aqui, a virgindade no sentido estrito não é
a resistência a toda a prática que desse sentido e estatuto particular
isolada como um modo de vida ou uma experiência particular. A
à virgindade das mulheres".
virgindade em geral é definida como "santificação", esta santifica-
""lEscrito em meados do século iii, o De habitu virginum endereça-
ção como vontade de Deus, e o que esta vontade quer é que, cria-
-se em contrapartida a mulheres que têm e devem ter o estatuto e
dos à sua imagem, nos assemelhemos a Deus. Há portanto três
a conduta de virgens, sem que intervenha aqui seja o que for [que
graus de virgindade: aquele do qual somos dotados à nascença e
se assemelhe a] uma instituição monástica. Trata-se de uma cate-
que, se o. conservarmos, nos permitirá ignorar aquilo de que nos
goria de fiéis suficientemente especificadas para ser possível
desejaremos libertar mais tarde; aquele que recebemos do segun-
interpelá-las enquanto tais'* e suficientemente avançadas na san-
do nascimento do baptismo e que se pratica quer no casamento,
tidade para que Cipriano lhes peça que se lembrem dos outros
quer na viuvez; por fim, aquele a que Tertuliano chama "monoga-
mia" e que, após a interrupção do casamento, doravante renuncia
ao sexo. A cada um destes três graus Tertuliano concede uma 13 TERTULIANO, De virginibus velandis, X . A mesma ideia em Ad uxorem, I , 8:
qualidade específica. Felicitas ao primeiro; virtus ao segundo; e a "Não cobiçar o que ignoramos, [...] nada mais fácil. A continência é mais gloriosa,
esta mesma virtus devemos no caso do terceiro acrescentar a mo- porque [...] desdenha daquilo que conhece por experiência."
14TERTULIANO,De cultufeminarum [A Moda Feminina],1,2.
déstia^-. Ora, o sentido a dar a estas qualificações e à sua hierar-
15 O que é particularmente sensível na passagem do De virginibus velandis, X ,
em que TERTULIANO critica tudo o que possa marcar exteriormente o estatuto
das mulheres virgens, quando há "tantos homens virgens", tantos "eunucos volun-
tários", e Deus nada lhes concedeu para os honrar.
11 TERTULIANO, De virginibus velandis, X I .
16 SÃO CIPRIANO, De habitu virginum, 3.
12 TERTULIANO, Exhortatio ad castitatem, X .
174 s Confissões da Carne 175
Michel Foucault

(entre os quais ele se conta) no momento de receberem a honra cia da virgem foi mais total do que as outras, pois que faz morrer
devida". Nem elogio da virgindade em geral, nem censura do que nela "todos os desejos da carne"^^. Conservando ao longo de toda
se passa, o texto apresenta-se, sob a forma de uma exortação, co- a vida a sua pureza intacta, a virgem começa ainda neste mundo a
mo um tratado prático: que "apresentação" deverá ser a das vir- existência que será reservada, após a morte, aos que se salvarem: a
gens? Significativamente, começa por um elogio da disciplina em vida incorruptível. "Vós começastes já a ser o que nós seremos um
geral, mais precisamente por uma fórmula que retoma outra, mui- dia. Possuís ainda neste mundo a glória da ressurreição e passais
tas vezes repetida, de Tito Lívio'*. Mas com uma variante. "Dis- pelo século sem vos contaminardes da corrupção do século. Quan-
ciplina, guardiã da fraqueza", dizia o historiador romano; "disci- do permaneceis castas e virgens, sois iguais aos anjos de Deus."^'
plina, guardiã da esperança", responde Cipriano, que assinala Assim, do baptismo à ressurreição, a virgindade passa através da
claramente a função positiva da disciplina na ascensão que conduz vida sem ser tocada pelas suas contaminações. Está ao mesmo
às recompensas divinas: "Guardiã da esperança, amarra da fé, tempo o mais perto que pode estar do estado de nascença — desse
guia do caminho salutar, alimento das boas disposições, mestra de estado em que se encontra a alma quando nasce para a existência
coragem, é ela que faz com que habitemos em Cristo e vivamos cristã — e o mais perto que se pode estar do que será a outra vida
apegados a Deus."" na glória da ressurreição. O seu privilégio de pureza é também um
Cipriano define a virgindade relacionando-a com a purificação privilégio no que se refere ao mundo e no que se refere ao tempo:
do baptismo. Este último fez de nós, do nosso corpo e dos seus ei-la já, de certa maneira, no além. Na existência das virgens,
membros, o templo de Deus. Estamos por isso obrigados a cuidar reúnem-se a pureza inicial e a incorruptibilidade finaP".
que nada de impuro ou sequer de profano possa penetrar nesse lu- Esta vida preciosa, Cipriano representa-a ao mesmo tempo co-
gar santificado. Cabe-nos sermos, de certo modo, os seus sacerdo- mo frágil — está exposta aos ataques do demónio^' —, e como
tes: tarefa que se impõe a todos, "homens e mulheres, rapazes e difícil — rude ascensão, suor e pena: "A quem persevera, é dada a
raparigas, sem diferença de idade nem de sexo"^°. Ora, em relação imortalidade, é oferecida a vida perpétua, e promete o Senhor o
a esta obrigação geral, a virgindade ocupa um lugar privilegiado. seu reino."^* Requer pois auxílio, encorajamentos, advertências,
Muito mais nitidamente do que Tertuliano, Cipriano isola o estado exortações^'. Cipriano nada evoca que se pareça com uma direc-
de virgindade, rodeia-o de louvores singulares e fá-lo desempenhar ção sistemática. Não é manifestamente uma regra de vida o que
um papel que lhe é próprio. "Flor do germe da Igreja, honra e or- propõe. Indica somente que fala como um pai^*. Mas sublinha
namento da graça espiritual, feliz disposição, obra intacta e incor- também que a virgindade não pode consistir apenas numa integri-
rupta. . ."^' Se a virgindade ocupa para Cipriano um lugar tão emi- dade do corpo^'. Ora, o conteúdo do texto pode surpreender. A s
nente, é por duas razões. Conserva intacta a purificação efectuada
pela água do baptismo. Prolonga e completa o que se passou nesse
22 Ibid.,23.
momento, quando o neófito se despojou do homem velho. A renún- 23 Ibid., 22.
24 Ibid.
17/Wá.,24. 25 Ibid.,3.
18 "Disciplina custos infirmitatis", TITO LÍVIO, História Romana, XXXIV, 9. 26Ibid.,2l. •
19 SÃO CIPRIANO, De habitu virginum, 1. 21 Ibid.
20IbU.,3. IZlbid.
21 Ibid. 29 Ibid., 5.
176 177
Michel Foucajj,^ , Confissões da Carne

recomendações dadas apresentam-se em vários conjuntos sucessi-


! a nianif'^^'-^?^^ e a afirmação do seu estado. Daí a seguinte reco-
vos: o primeiro reporta-se à riqueza (à única verdadeira riqueza
' niendação de São Cipriano, que em nada diverge do conjunto do
que está em Deus: não preferir a riqueza dos atavios, dos enfeites
'•texto, do qual é antes o ponto central: "Uma virgem não deve sê-lo
dos vestuários sumptuosos); o segundo reporta-se aos cuidados do
somente, é necessário que se compreenda e se creia que o é. Nin-
corpo e à galanteria; o terceiro reporta-se aos banhos, e aos locais
auém, ao ver uma virgem, deve duvidar daquilo que ela é."'* Re-
a não frequentar. É, pois, em suma, e o texto di-lo expressamente,
nunciando a todos os brilhos factícios que podem ser dados pela
de "apresentação", de "cuidados", de "enfeites" que é questão nes-
tes preceitos'". riqueza, os ornamentos e os cuidados, a vida de virgindade deve
fazer brilhar aos olhos de todos aquilo que é: a figura incorrupta
Mas a insistência mais ou menos exclusiva nestes temas explica- que não sai da mão do Criador senão para a ela tornar, tal como é,
-se facilmente pela concepção geral que Cipriano faz do estado de quer dizer, tal como Ele a fez.
virgindade. Se consiste com efeito na manutenção da pureza bap-
Não devemos pois enganar-nos aqui: neste breve conjunto de
tismal até à incorruptibilidade do outro mundo, o princípio a se-
conselhos endereçados a virgens — conselhos à primeira vista
guir é conservar esse estado, fora de todo o contacto, tal como era
bastante superficiais —, nestes simples preceitos de "apresenta-
na origem, tal como deverá ser no fim dos tempos. Uma série de >
ção", devemos ver o testemunho da importância particular que é
expressões disseminadas no texto deve reter a atenção: "Não te- j
reconhecida à virgindade feminina; o sentido espiritual que é
mas", diz Cipriano à virgem, "ser tal como és, por medo de que,
concedido à virgindade entendida como integridade total da exis-
no dia da ressurreição, o teu criador {artifex tuus) não te reconhe-
tência, e não simplesmente como continência rigorosa; finalmente,
ça""; ou ainda: "sede tal como Deus vosso criador vos fez; sede
o valor que se lhe atribui como forma absolutamente privilegiada
tal como vos instituiu a mão do Pai; que permaneça em vós o
da relação com Deus. Significações sem dúvida muito implícitas
rosto incorruptível""; ou enfim: "Mantende-vos o que começas-
mas que dão conta justamente do que pode haver de sucinto e de
tes a ser, mantende-vos o que sereis."" Para a virgem trata-se pois
aparentemente inessencial nas recomendações práticas de São
essencialmente de conservar essa semelhança que é o selo da
Cipriano.
Criação, que o pecado apagara e que o baptismo restabeleceu. O
estado de virgindade deve ser despojado de todos esses "ornamen- O Banquete de Metódio de Olimpos não introduziu o tema da
tos", "atavios", cuidados e embelezamentos através dos quais a p^irgindade no pensamento cristão; também não foi ele que marcou
criatura, contrafazendo a obra de Deus, tenta mascará-lo. Tal co- as primeiras diferenças entre esta virgindade e a continência pagã.
mo saiu da mão que a moldou, tal como será "reconhecida" no Mas aquele diálogo constitui, nos finais do século ni, a primeira
último dia, assim deve viver a virgem. E l a deve ser, neste mundo, grande elaboração de uma concepção sistemática e desenvolvida
da virgindade. Atesta, muito antes do desenvolvimento das insti-
30 "Continentia vero et pudicitia non in sola carnis integritate consistit, sed tuições monásticas, a existência de uma prática colectiva, pelo
etiam in cultus et ornatus honore pariter ac pudore" ["Mas o pudor não consiste
menos em círculos de mulheres, e dá testemunho do altíssimo
somente na integridade da carne; exige ainda a modéstia dos atavios e dos trajes",
tradução do Pe. Thibaut], ibid. valor espiritual que se lhe concedia. E certo que não encontramos
31 Ibid., n. neste texto a descrição desses métodos e procedimentos nos quais
32 Ibid.,l\.
33 Ibid., 22.
3A lbid.,5.
178 Michel Foucault s Confissões da Carne 179

os autores do século iv — de Basílio de Ancira a João Crisóstomo, no "porto seguro da incorruptibilidade"'*. Por fim, o discurso de
e de Ambrósio a Cassiano — insistirão para mostrar como se po- IVlarcela evoca, na economia histórico-teológica da salvação, a
de manter uma pureza rigorosa do corpo e da alma, do pensamen- ruptura que separa os dois últimos momentos da série anterior-
to e do coração, e que constituirão aquilo a que podemos chamar mente descrita. Antes de Cristo, Deus, um pouco como um pai
uma tecnologia da virgindade. Mas na charneira da espiritualida- confiando os seus filhos a pedagogos cada vez mais severos,
de alexandrina e neoplatónica do século iii e das formas do asce- conduzira-os à continência. Mas para a passagem desta à virgin-
tismo institucional do século iv, formula alguns dos temas funda- dade, que nos permite, a nós que fomos criados à imagem de Deus,
mentais da prática positiva da virgindade. Uma vez que a forma assemelharmo-nos a Ele e levarmos esta semelhança ao seu termo,
literária do Banquete permite a sobreposição de discursos diver- foi necessária a Encarnação, foi necessário que o Verbo revestisse
sos, mas também a sua sucessão num movimento contínuo e as- •A carne humana e que nos fosse assim proposto "um modelo de
cendente, e a indicação do momento decisivo pela designação de \a que seja divino"". O primeiro discurso do Banquete entrete-
um "vencedor", podemos determinar através da unidade flexível ,ce, pois, numa figura de ascensão única, os três movimentos (gra-
deste diálogo a diversidade dos pontos de vista e a existência de ça da salvação, transformação progressiva da lei, esforço de ascen-
uma linha de força. Porque, apesar de muitas repetições, trata-se 'são individual) que colocam a virgindade — e a virgindade cristã,
de outra coisa que não a simples sucessão de homilias exortando bem distinta da continência - - nesse cume da perfeição em que o
uma após outra à castidade. homem se aproxima ao máximo da semelhança a Deus.
No primeiro discurso, pronunciado por Marcela, a virgindade "~ Os segundo e terceiro discursos, os de Teófila e de Taleia, res-
está ligada a um triplo movimento de ascensão. Uma ascensão pondem-se um ao outro e constituem uma discussão a propósito
pessoal primeiro, que é descrita num estilo rigorosamente platóni- do valor do casamento. Mas estamos muito longe, na forma e no
co: a virgindade faz subir "em direcção às ahuras" o carro das conteúdo, do debate antigo ei gamêteon [sobre o dever do casa-
almas, "até que, escapando ao seu peso, elas saltem para lá do mento]. Teófila fala do valor do casamento, aceitando embora a
mundo" e se icem subindo "na abóbada celeste""; no termo dessa ideia de que o homem ascende através de degraus sucessivos em
ascensão, é dada à alma a contemplação do Incorruptível. Uma direcção à virgindade. Mas é que, para ela, ainda não chegou a
ascensão histórica, que, desde a origem dos tempos, faz a humani- hora "em que a luz se terá definitivamente separado das trevas"; o
dade aceder mais perto dos céus: é a série dos usos e das leis; número dos homens não foi ainda alcançado. Ainda que menos
quando o mundo estava vazio.e era necessário preenchê-lo, os precioso do que a virgindade, o casamento é útil e deve ser ainda
homens "desposavam a sua própria irmã" até Abraão ter "recebido praticado. Mas, vendo-o de mais perto, este direito do casamento
a circuncisão", que mostra bem que temos de nos separar da nossa Tião é somente uma concessão à falta de melhor e como solução de
própria carne; os homens tiveram depois várias mulheres, até lhes transição. Os argumentos que Metódio põe na boca de Taleia dão
ter sido dito que eram "garanhões com cio" e que "a fonte da sua uma significação inteiramente positiva ao casamento: estamos
água" não devia pertencer senão a cada um deles; depois, foi-lhes ainda, diz ela, sob o signo do "Crescei e multiplicai-vos". Ora,
ensinada a continência, e por fim agora a virgindade, "ensinamen- nesta multiplicação, que faz nascer a carne da carne, devemos ver
to supremo e culminante" que os faz desprezar a carne e repousar
36 Ibid., II e III.
35 METÓDIO D E OLIMPOS, O Banquete, Primeiro Discurso, I . 3T'Theionektupômabiou",[ibid.,W].
180 Michel Foucauh \ Confissões da Carne 181

de facto um acto de criação, de demiurgia'*. O texto de Metódio enceta ao propor que se não se fique pelo sentido imediato da
sublinha por sua vez três aspectos dessa demiurgia. Procriação do narrativa do Génesis.
corpo pelo corpo: é de cada um dos membros do homem que se O discurso de Taleia contrapõe-se ao de Teófila como a inter-
forma a semente "escumante e grumosa" que vai fecundar o cam- pretação espiritual à que se limita a ser literal. Não é que esta úl-
po feminino''. Mas também colaboração do homem com Deus no tima seja considerada falsa"', mas não é suficiente, porque o texto
próprio corpo, como o explica Teófila na longa comparação do da Bíblia apresenta mais do que o simples "arquétipo do comércio
corpo humano com a oficina em cujo centro trabalha o moldador entre os dois sexos"*"; e sobretudo porque, se vemos com razão na
divino, dando forma aos embriões, como se moldasse cera, "a narrativa do Génesis os "imutáveis decretos de Deus [que] assegu-
partir de algumas ínfimas gotas de semente", e elaborando assim ram harmoniosamente o perfeito governo do mundo"— e conti-
"a imagem, plenamente racional e dotada de alma, que Pele so- nuam ainda a assegurá-lo hoje —, não devemos esquecer que en-
mos". Na formação do embrião, na sua gestação, no desenvolvi- trámos agora numa outra idade do mundo em que as antigas leis
mento também do embrião após o nascimento, Deus desempenha da natureza foram substituídas por uma outra disposição."'
o papel do operário supremo. "Ho aristotekhnas.''^ É o texto desta nova disposição que devemos seguir. Metódio
Reconhecemos aqui facilmente temas vizinhos dos desenvol- encontra-o na Primeira Epístola aos Coríntios. É a partir dele
vidos em O Pedagogo de Clemente de Alexandria"'. Na procria- que devemos interpretar o Génesis. Mas Metódio recusa-se a ver
ção era descrita a conjunção da potência do Criador com o acto na relação entre Adão e Eva o simples anúncio ou sequer o mo-
da criatura. Poder-se-á assinalar uma influência directa de Cle- delo do que é doravante a união de Cristo com a Igreja."* Quer
mente sobre o autor do Banquetel De momento não é essa a ver na Encarnação uma verdadeira re-Criação, um remoldar de
questão. Como quer que seja, estes temas que fazem intervir uma ^dão. Este não estava ainda "seco" nem "duro" quando, ao sair
teologia da Criação, através de considerações médicas inspiradas das mãos daquele que o moldara, deparou com o pecado que se
mais ou menos directamente pelos estóicos, eram sem dúvida derramou sobre ele e o fez perder a sua forma. Deus formou-o
correntes no século in. É interessante vê-los aparecer neste início portanto de novo, depô-lo no seio de uma virgem e uniu-o ao
do Banquete: no discurso de Teófila, que decerto não será mais Verbo. Cristo retomou assim e assumiu Adão. Mas, por isso mes-
desqualificado do que qualquer outro dos sustentados por este ino, a ordem da corrupção foi abolida, a forma das uniões e dos
grupo de santas mulheres"^, mas se destina a ser "superado" por partos renovada: "O Senhor, que é a Incorruptibilidade vitoriosa
um movimento ascendente que o discurso seguinte de Taleia da morte, fez ressoar para a carne o cântico de alegria da ressur-
reição, sem permitir que ela de novo tornasse ao poder da cor-
38 "70 ek tôn osteôn ostoun kai hê ek tês sarkos sarx [...] hupo tou autou tekhni- rupção.""'
tou dêmiourgêthôsi", ibid., Segundo Discurso, I .
39 [Ibid., II]. E interessante notar que o prazer próprio da relação sexual é repor-
tado, como ao seu tipo, ao sono em que Deus mergulhou Adão, quando, de uma das 43 "Admito o plano em que assentaste a tua exposição, Teófila [...], seria impru-
suas costelas, tirou Eva. Justificação escriturária do gozo. dente desprezarmos por completo o texto tal como se apresenta", ibid., II.
40 Ibid., VI. 44 Ibid.,1.
41 Cf. supra, pp. 38-40.
45 "Heterô diatagmati tous prôtous tês phuseôs analusê titesmous", ibid.. Ter-
42 É de resto acolhido por "um rumor elogioso", "todas as virgens aprovavam o
ceiro Discurso, II.
seu discurso" (Terceiro Discurso, VII); e Taleia reconhece que "nada pode opor-se
46 Tal era a interpretação de origem.
à sua exposição" (ibid.. Terceiro Discurso, 1).
41Ibid.,Vll.
182 As Confissões da Carne 183
Michel Foucault
I
Metódio retoma então o texto do Génesis, do qual, no discurso (jo jejum. Deixemo-lo pois aos fracos. O que quer dizer, conclui
anterior, propusera uma interpretação literal, e como que natura- Metódio, sempre segundo a Epístola aos Coríntios, que a virginda-
lista. E mobiliza-o no campo das significações espirituais, primei- de não pode ser obrigatória: "aquele que é capaz de 'conservar a
ro no plano colectivo da Igreja com Cristo, depois no plano indi- sua' carne 'virgem' e nisso põe a sua honra 'faz melhor'; enquan-
vidual de um justo entre os justos — São Paulo, que encontramos to aquele que o não pode, e que a 'vota ao casamento' legítimo
assim retomado na interpretação de que era o fundador. Faz assim sem fraudes ignominiosas, 'faz' somente 'bem'"'^.
"ricochetear" sobre Cristo o que fora dito a propósito de Adão. Os Assim, os três primeiros discursos do Banquete fundam numa
termos da análise são importantes: marcam não o apagamento do perspectiva histórico-teológica o tempo da virgindade: trata-se
que mostrara a ordem da natureza, mas a sua transposição. O sono nem mais nem menos do que de uma idade do mundo aberta pelo
no qual foi mergulhado o primeiro homem — esse êxtase que fi- retomar do acto criador inicial na Encarnação. A virgindade assim
gurava, como vimos, o gozo do prazer físico — tornou-se agora a compreendida é por isso coisa bem diferente de um interdito refe-
morte voluntária de Cristo, a sua Paixão {Pathos). A Igreja foi rido a um dado aspecto do comportamento humano. Figura fun-
feita da sua carne e dos seus ossos e, esposa purificada pelo bem, damental na relação entre Deus e a sua criatura, é constituída pela
recebe no seu seio "a semente bem-aventurada e espiritual"**. O restauração salvadora de uma relação primeira agora transposta
êxtase de Cristo renova-se sem cessar: de cada vez que desce dos para a ordem dos actos, das procriações, dos parentescos e dos
céus para abraçar a sua esposa, esvazia-se e oferece o seu flanco laços espirituais. Os quatro discursos seguintes podem ser consi-
para que nasçam todos os que vêm ao baptismo"'. Mas o que se derados como formando por seu turno um conjunto: cantam esta
passa para a totalidade da Igreja passa-se também para a alma dos idade nova — o que ela é pelo lado da existência humana (são os
mais perfeitos que é fecundada por Cristo, do qual é a esposa vir- discursos de Teópatra e de Talusa), depois o que é pelo lado das
gem. São Paulo recebeu assim "no seu seio as sementes da vida", recompensas divinas (sexto e sétimo discursos de Ágata e de Pró-
esteve "em trabalho de parto" e "engendrou" novos cristãos'". cila); seguem o caminho da virgindade, da alma que a pratica à
Relativamente a estas uniões e a esta fecundidade, que são a salvação que a coroa. Aquilo a que Metódio chama o retorno em
forma espiritual da virgindade, o casamento já não é pois essa direcção ao paraíso".
necessidade da natureza da qual o discurso anterior falara) A intervenção de Teópatra, a quarta oradora, introduz a noção
referindo-se à necessidade de povoar o mundo. O "Crescei e ' importante de pureza, hagneia. Importante na medida em que se
multiplicai-vos" tem doravante uma outra significação". E , se o distingue da de virgindade. Com efeito, por comparação com o
casamento tem um lugar, é como uma concessão feita aos que são sentido histórico-teológico da virgindade anteriormente fixado, a
demasiado fracos: pensemos por exemplo em doentes aos quais pureza é a sua forma humana: o modo de existência das criaturas
seria necessário dar alimento, ainda quando tenha chegado o dia que escolheram o caminho da salvação quando chegou com o
Salvador o tempo da virgindade. Mas, por comparação com o
48 "To noêton kai makarion iperma",Terceiro Discurso, VIII. sentido tradicional da integridade física, a pureza tem uma signi-
49 Notar as expressões como: "Ho Khristos kenôsas heauton", ou: "proskollê- ficação evidentemente mais ampla. Devemos concebê-la antes de
theis tê heautou gunaiki".
50 Esta última expressão encontra-se em SÃO PAULO, Epístola aos Coríntios,
4,15.
52íbid.,Xiy.
51 METÓDIO D E OLIMPOS, O Banquete, Terceiro Discurso, VIII. 53 "Hê eis ton paradeison apokatastasis", Quarto Discurso, I I .
184
Michel Foucault Confissões da Carne 185

mais não como o simples resultado de uma abstinência voluntária: defeito"*". Podem já neste mundo de baixo tornar-se o templo do
vem de cima. E um dom de Deus, que oferece assim ao homem a Senhor; mas estão preparadas também para o momento em que
possibilidade de se proteger contra a corrupção: "Deus teve pieda- Cristo virá: "as nossas almas, com os nossos corpos que terão re-
de da nossa situação: vendo-nos incapazes de a suportarmos e de cobrado, irão sobre as nuvens ao encontro de Cristo, segurando as
dela nos levantarmos, enviou-nos do alto do céu o melhor e o mais suas lâmpadas [...], como estrelas inteiramente cintilantes do bri-
glorioso dos socorros, a pureza."'" Tesouro de pureza que o ho- lho de um esplendor celestial"*'. E no céu, explica Prócila comen-
mem em contrapartida deve cultivar e "exercer muito particular- tando o Cântico dos Cânticos, Cristo receberá as suas noivas: "Não
mente"". Devemos praticar esta pureza não numa idade particular deve a noiva ser inseparável daquele que a buscou, e portadora do
da vida, mas ao longo de toda a existência — da primeira à tercei- seu nome? Mas não deve achar-se intacta e imaculada, selada como
ra vigília: " E bom aceitar desde a infância o jugo das direcções um jardim de Deus onde crescem todas as plantas perfumadas com
divinas."'* Devemos praticá-la também em todo o seu ser, no cor- as delícias fragrantes do céu, para que só Cristo nele penetre para
po como na alma, na ordem das relações sexuais como na de todas colher essas flores nascidas de sementes incorpóreas?"*^
as outras aberrações". Deve ser por fim praticada não como uma Os três últimos discursos constituem o cume da ascensão. O
simples abstenção do mal, mas como uma ligação positiva a Deus: ^ mais importante é o oitavo, o de Tecla — que será aliás o premia-
uma maneira de nos consagrarmos a ele'*. Assim, Talusa descreve Í do, apesar da excelência de todos os outros. Não devemos esquecer
a virgindade como um selo poisado sobre o corpo e a alma: sobre S com efeito que Tecla era celebrada como a companheira de São
a boca, que se proíbe toda a palavra vã para já não cantar senão Paulo, nem que os Acta Pauli et Theclae eram um texto ao qual se
hinos a Deus; sobre os olhares, que se desviam "das seduções referiam regularmente os encratitas e todos aqueles que, entre os
corporais" e "dos espectáculos indecentes" para se voltarem para discípulos de Taciano, pregavam a abstenção rigorosa de toda a
as coisas de cima; sobre as mãos, que deixam cair os tráficos bai- relação sexual. O recurso à personagem de Tecla marca, em Me-
xos; sobre os pés, que já não deambulam mas avançam em frente tódio, a vontade de sublinhar o carácter pauliniano da sua tese, e
obedecendo ao comando. Sobre o pensamento, enfim: "Não alber- de retomar esta figura da primeira virgem-mártir num elogio da
go ideia v i l alguma, cálculo algum que seja deste mundo [...]. virgindade que não fosse um preceito de continência absoluta e
Medito dia e noite na lei do Senhor."'^ i incondicionada. Trata-se em suma de deixar à própria Tecla, mo-
Vem então o momento da recompensa. Esta é, desde esta vida, a delo das virgens cristãs invocado pelo encratismo, o cuidado de
descobrir um outro sentido na virgindade. Quanto ao facto de este
transformação das almas que se revestem da "Beleza ingerada e
discurso "capital" no sentido estrito ser o oitavo, a razão por que é
incorpórea [...], que é sem vicissitude, sem envelhecimento, sem
assim deixa-se compreender facilmente. A escatologia de Metó-
dio, com efeito, dava uma significação muito particular ao número
54 Ibid. oito. Apoiando-se nos sete dias do Génesis, e no calendário do
55 "Diapherontôs askein", ibid., V I . Levítico, com os sete dias de festa do sétimo mês, cuja observância
56 Ibid., Quinto Discurso, III.
57 Ibid., IV. «
58 Metódio emprega o termo eukhê (ibid.), mas não é certo que se refira a um 60 [Ibid., Sexto Discurso, I.]
voto institucional e ritiializado.
(>\Ibid.,lV.
59 Ibid., IV.
62 Ibid., Sétimo Discurso, I .
186 Michel Foucault As Confissões da Carne 187

é uma lei perpétua para todos os descendentes de Israel*', Metódio fe Até aqui, pois, nada de novo neste discurso de Tecla relativa-
calculava que o mundo devia durar sete milénios: os cinco primei- mente às oradoras anteriores, ainda que a insistência reiterada nos
ros eram os da sombra e da Lei; o sexto, que corresponde à criação temas platónicos assuma, nesta intervenção mais decisiva do que
do homem, era o da vinda de Cristo; o sétimo, o do Repouso, da as outras, um valor muito particular*^. Uma expressão contudo
Ressurreição e da festa dos Tabernáculos. Quanto ao oitavo milé- deve ser retida desde as primeiras linhas. Trata-se da comparação
nio, será o da eternidade*". Na oitava posição o discurso de Tecla que era corrente mas que no seu uso filosófico era mais estóica do
coroa todos os outros. Está como que no fim dos tempos: descobre que platónica, da vida com um teatro. Mas, enquanto esta metáfo-
a Eternidade. É o culminar e o fundamento de tudo o que foi dito. ra banal servia para designar sobretudo as ilusões fugidias da
Retoma, em termos mais platónicos do que nunca, a descrição existência ou o carácter de comédia de uma vida na qual não so-
já feita do movimento das almas que, se souberem guardar-se das mos mais do que um actor cujo papel está de antemão decidido™,
contaminações do mundo, subirão até às esferas do Incorruptível. enquanto Plotino evoca como um puro espectáculo de teatro, com
Tecla evoca as asas das almas que, alimentadas da seiva da pureza, mudanças de palco e de guarda-roupa, gritos e lamentações, os
"se tornam mais fortes" e cuja ascensão é ainda mais ligeira "por- morticínios e as guerras, enquanto fala do mundo como de um
que se habituaram dia após dia a voar para longe das humanas palco múltiplo em que "o homem exterior geme, se queixa e repre-
preocupações"*'. Evoca também "aqueles que perderam as suas senta o seu papel"", Metódio, pelo seu lado, fala do drama da
asas e tropeçaram nos prazeres" onde se "rolam"**, incapazes de verdade'^: este joga-se na ascensão rumo à realidade incorruptível.
um parto honrado. As almas que sobem. Tecla, como as que antes Dele são excluídos os que se mantêm apegados ao prazer; partici-
dela falaram, promete o acesso à incorruptibilidade: alcançam "os parh nele até ao fim os que pelo contrário buscam "os bens lá de
aléns do mundo para lá desta vida, vêem de longe o que ninguém cima". A virgindade é uma condição, ou antes, é, como forma
mais contemplou, os próprios prados da imortalidade — deslum- geral de existência, a condição para que este drama da verdade
brantes, as belezas das quais são ricos, as flores das quais estão seja levado até à própria Verdade. Mais do que uma comédia, é
cheios!"*''. E neste movimento efectuam essa semelhança a Deus uma liturgia em que as almas que tenham "vivido para Cristo
que a filosofia de inspiração platónica não se cansava de prometer como virgens verdadeiramente fiéis" desenrolam o seu cortejo em
às almas que se libertassem do mundo das aparências. Metódio,' direcção ao céu, deparam com o coro dos anjos que "vieram ao
dando à virgindade esta significação muito ampla de uma existên- seu encontro", cantando-lhes "palavras de boas-vindas", e as "con-
cia purificada e "inteiramente no cume"**, vê nela uma conjunção duzem" aos prados da imortalidade e lhes dão "o prémio da sua
com Deus. Parthenia = partheia.

69 De um modo geral, Metódio, nas suas outras obras, reivindica um platonismo


63 Esta passagem do Levítico, 23,39-43, é citada no Nono Discurso do Banquete. autêntico contra as tendências que se inspiram em Platão (cf. J . PARGÈS, Les
64 Encontram-se no Banquete muitos outros elementos (Jue recordam o valor do Idées morales et religieuses de Méthode d'Olympe, Paris, 1929).
número oito. Por exemplo, no Hino Final, os sete exemplos de pureza que se en- 70 Cf. EPICTETO, Manual, 17: "Lembra-te de que és actor de um drama que o
contram nas Escrituras, aos quais se acrescenta o martírio da própria Tecla. autor quer tal"; MARCO kURÈLlO,Pensamentos, X I I , 36. Cf. também CÍCERO,
65 [Ibid., Oitavo Discurso, I.] De finibus, III, 20.
66 [Ibid., II.] 71 PLOTINO, Enéadas, III, 2,15.
67 [Ibid] 72 "To drama tês alêtheias", METÓDIO D E OLIMPOS, O Banquete, Oitavo
68 "Koruphaiotaton [...] epitêdeuma", I . Discurso, I . A expressão retorna nos capítulos seguintes do mesmo discurso.
188 Michel Foucault As Confissões da Carne 189

vitória"''. Então, tudo o que viam, como que num sonho, sob a Apocalipse fala da ascensão ao céu, e portanto para fora do al-
forma de sombras, vêem-no agora, "belezas maravilhosas, radio- cance da serpente, da criança que nasce da mulher. Ora, Cristo
sas, bem-aventuradas"'": a própria Justiça, a própria Continência, desceu do céu para combater o Inimigo. Faz valer também uma
o próprio Amor, e a Verdade e a Sabedoria. E m suma, o oitavo regra de método: o Apocalipse é um texto profético, não deve-
discurso — discurso corifeu — reitera o movimento evocado pe- mos reportá-lo à Encarnação, que se produziu antes de ele ser
los discursos precedentes. Mas, enquanto estes prometiam a incor- escrito. Não pode por isso referir-se senão "ao presente e ao fu-
ruptibilidade, a imortalidade, a felicidade eterna, é a verdade que turo". E m suma, à interpretação segundo a descida passada do
é anunciada aqui: as virgens penetram até aos tesouros, e Deus, Espírito, Metódio substitui uma interpretação segundo a ascen-
em contrapartida, ilumina-as. são actual e futura em direcção a Deus. De facto, o que propõe
É neste sentido portanto que o discurso de Tecla anula todos os pela boca de Tecla não é uma exegese original. Propõe com
outros. Mas também os funda no sentido em que o tesouro de efeito que se veja na mulher, ataviada como a noiva que vai ser
verdade que vai agora descobrir se refere à própria virgindade. conduzida ao leito do rei, uma imagem da Igreja: o que era um
É assim que devemos compreender sem diívida os dois desenvol- tema corrente no século ni". A criança que dela nasce é portan-
vimentos que constituem o corpo do discurso de Tecla e cuja
to a alma do cristão, que chega à vida espiritual através do bap-
presença, neste ponto, pode surpreender: uma exegese do Apoca-
tismo. Mas porque é que essa criança é representada como um
lipse e considerações sobre o determinismo astral. Num caso,
varão? Porque os cristãos formam "um povo de homens", porque
trata-se de conceber de novo a virgindade do ponto de vista do fim
renunciaram às "paixões efeminadas", porque se "virilizam atra-
dos tempos e como forma da sua consumação; no outro, de a con-
vés do fervor". Transportam em si "a forma e a semelhança do
ceber de novo do alto do mundo e vista de certo modo como que
Verbo", o cristão verdadeiro nasce enquanto Cristo. Devemos
das esferas celestes mais elevadas.
pois decifrar essa figura da mulher no parto como uma imagem
A passagem do Apocalipse, comentada por Tecla, é a que des-
da fecundidade virginal da Igreja que faz nascer almas cuja vir-
creve "o grande sinal aparecido no Céu": a mulher em trabalho
gindade é selada pelo sinal de Cristo'*.
de parto, envolta em sóis, e o dragão que precipita sobre a Terra
a terça parte das estrelas. Uma interpretação sem dúvida tradi- , Quanto ao dragão, é, muito evidentemente, Satanás que deve-
cional devia ver aqui a representação da virgem, o nascimento de mos ver nele, Satanás não inimigo de Cristo, mas inimigo das al-
Cristo, o combate da serpente com a mulher e a promessa da sua mas, procurando surpreendê-las. As sete cabeças que o Apocalip-
derrota frente a Cristo". A este exegese, Metódio opõe-se aspe- se descreve opõem-se às sete virtudes e os dez cornos atacam os
ramente'*. Faz valer, contra ela, uma impossibilidade textual: o dez mandamentos: cornos acerados do adultério, da mentira, da

73 Notem-se os termos: parapempein, ta nikêtêria, tois anthesi stephtheisai 77 A exegese transpusera o tema hebraico da Aliança de Deus com o seu povo nos
{ibid., II). termos de uma relação entre Cristo e a Igreja. Santo Hipólito e Orígenes tinham
74 Ibid., III. assim feito da Igreja a esposa de Cristo.
75 Sobre a importância de não interpretar segundo o passadofigurasanunciadoras 78 Orígenes via a esposa de Cristo ora na Igreja, ora na alma do cristão. Metódio
(como os judeus fazem), ver o primeiro e o segundo capítulos do Nono Discurso. parece querer sublinhar pelo contrário que a Igreja, noiva e templo de Deus, é um
76 O termo "litigante", "quezilento", de que se serve para designar os defensores "poder em si, distinguindo-se dos seus filhos" e que a alma não pode nascer cristã
da interpretação que rejeita, indica a existência de uma discussão sobre o sentido
senão pelo poder da sua mediação e da sua maternidade. Sobre estes debates ecle-
deste texto do Apocalipse.
siológicos, cf. F.-X. ARNOLD.
190 Michel Foucault As Confissões da Carne 191

avareza, do roubo, indica Metódio, que de resto não leva mais repreensível" e que "Deus estima e glorifica a virtude". Todos
longe a enumeração. Não devemos pois buscar, nesta passagem do estes princípios são lembrados para dar lugar, no mundo em que
Apocalipse, a rememoração da vitória de Cristo, mas, segundo estamos, à liberdade cuja ausência tiraria todo o valor à castidade:
uma descodificação parenética, uma exortação à luta: "Não vos "Depende de nós fazer o bem ou o mal, e não dos astros; porque
atemorizeis pois perante as emboscadas e as calúnias da Besta; há em nós dois movimentos: o desejo natural da nossa carne, e o
equipai-vos corajosamente para o combate, armados com o 'elmo da nossa alma. São diferentes: daí os nomes que os designam:
da salvação', a couraça e as polainas: causar-lhe-eis um pânico virtude de um lado, perversidade do outro."*° O parentesco espi-
incalculável se carregardes sobre ela com muita resolução e bravu- ritual e o combate dos quais Tecla falava num desenvolvimento
ra, e ela recuará, quando vir os seus inimigos alinhados para a anterior podem de facto marcar esse tempo da virgindade, anun-
batalha pelo mais Poderoso do que ela."™ ciado pelas Escrituras e definido pela sucessão dos milénios, mas
Vista do milénio, a idade da virgindade é pois a da ascensão nem por isso deixa menos lugar à liberdade dos homens e à dis-
das almas rumo ao céu incorruptível. A própria virgindade assu- tinção, em termos de mérito, entre os que Deus salvará e os que
me aqui dois aspectos: o de um parentesco espiritual em que um se perderão.
papel central cabe à Igreja — esta, virgem fecundada pelo Se- As duas últimas oradoras do Banquete constituem o acompa-
nhor, eleva almas virgens, que a sua virgindade eleva ao céu; o de nhamento de Tecla e do seu grande discurso. A nona mantém a
um combate espiritual em que a alma deve lutar contra os inces- linguagem da parénese: exortação da alma a que se prepare para a
santes ataques do Inimigo. Esta mesma idade do mundo, o último festa que o sétimo milénio lhe promete. Como devemos "adornar-
desenvolvimento do discurso de Tecla permite vê-la numa pers- -nos com os frutos da virtude"? Como devemos "cobrir a fronte
pectiva de certo modo espacial: do alto do mundo e da sua ordem. com os ramos da pureza"? Como "ornar o nosso tabernáculo"?
De facto. Método introduz aqui uma discussão cujas estruturas e Para responder a estas perguntas, Metódio refere-se a um texto do
cujos elementos são nitidamente filosóficos. Trata-se de refutar a Levítico*'. Começar por tomar "belos frutos maduros": trata-se
opinião segundo a qual os astros fixariam o destino dos homens. dos frutos que cresciam já no paraíso na árvore da vida e dos quais
Deixemos de lado o problema de saber o que estava em jogo nes- o homem se apartara, trata-se hoje do fruto "que é cultivado no
te longo debate. Se ocupa o lugar que ocupa neste Banquete con- pomar do Evangelho". Depois "os penachos da palmeira": trata-se
sagrado à virgindade, é porque permite a Metódio sustentar que com efeito de purificar o espírito, de limpar a alma das poeiras da
Deus não é responsável pelo mal, que ele e todos os seres celestes paixão. Depois ramos de salgueiro, que significam a justiça. E por
que permanecem sob a lei do seu governo estão "fora do alcance, fim ramadas de anho-casto, que significam bem entendido a cas-
e de muito longe, da perversidade dos comportamentos terrenos", - tidade*^: coroamento de todas as virtudes. Mas, indicação impor-
que a existência de leis que obrigam e proíbem não é contraditó- tante, esta castidade não deve ser identificada com o celibato,
ria (o que seria o caso se o destino estivesse selado de uma vez porque pode ser praticada "pelos que vivem castamente com as
por todas), que existe uma diferença entre os justos e os injustos, suas mulheres", ainda que não atinjam contudo o cimo e nem se-
"um fosso entre os desregrados e os temperantes", que "o bem é
inimigo do mal, e o mal diferente do bem"; que "a maldade é
80 Ibid., X V I I .
81 Levítico, 23,39-43.
79 METÓDIO D E OLIMPOS, O Banquete, Oitavo Discurso, X I I . 82 Em grego o jogo de palavras é agninos — hagneia.
192 Michel Foucault Confissões da Carne 193

quer os ramos mestres da árvore como aqueles que se adstringi- ordenado: é um exercício da alma sobre si mesma*", que a trans-
ram a uma virgindade integral. Não deve também ser identificada porta até à imortalização do corpo*'. Relação da alma consigo
com a recusa da fornicação, nem com a abstenção pura e simples mesma em que se joga a vida sem fim do corpo.
de relações sexuais: a virgindade requer que até mesmo os desejos
e as cobiças sejam arrancados. A virgindade, como virtude e cume
de todas as virtudes, como preparação para a consumação dos
tempos, deve ser não uma rejeição do corpo, mas um trabalho
sobre a própria alma.
Enfim Domnina, a última interveniente, é encarregada de dis-
tinguir este labor da virgindade das obrigações anteriores, que
Deus impusera sucessivamente aos homens. Lei do paraíso, sim-
bolizada pela figueira, da qual Adão se afastou. Lei de Noé, sim-
bolizada pela vinha, que prometia ao homem o fim das suas des-
venturas e o regresso da alegria. L e i de Moisés, simbolizada pela
oliveira, cujo azeite reacende as lâmpadas. Ora, destas leis suces-
sivas, se o homem se afastou, foi porque Satanás soube ludibriá-lo
contrafazendo estas árvores e os seus frutos. Só a virgindade não
pode ser imitada, e Satanás por conseguinte não pode servir-se
dela para triunfar sobre o homem. Mas há neste discurso último
um elemento importante: é que a virgindade não se distingue das
leis de Adão, de Noé e de Moisés, como uma lei entre outras. Não
é uma lei. E é à Lei em geral, da qual a figueira, a vinha e a oli-
veira representam três formas, que ela se opõe. De um lado a L e i ,
do outro a virgindade que lhe sucede*'. Ora, esta ideia de que a
virgindade vem render a L e i é duplamente importante. Antes de
mais porque manifesta que, na mística de Metódio, a virgindade
não é objecto de uma prescrição. E um modo de relação entre
Deus e o homem, marca esse momento na história do mundo e no
movimento da salvação em que Deus e a sua criatura já não comu-
nicam pela Lei e a obediência à L e i . Por outro lado, porque a vir-
gindade não é simplesmente uma forma de submissão ao que foi

83 "Hê parthenia diadexamenê ton nomorí', METÓDIO D E OLIMPOS, O Ban- 84 "Hê ergazomenê tên psukhên askêsis",ibid., VI.^
quete, Décimo Discurso, I . 85 "Hê athanatopoios tôn sômatôn hêmôn hagneia", ibid.
As Confissões da Carne 195

carregado de valores espirituais particulares e capaz de instaurar


com Deus, com a imortalidade, com as realidades superiores uma
relação inalterável, tende a tornar-se não só um modo de vida cui-
dadosamente regulado, mas um tipo de relação de si consigo que
tem os seus procedimentos, as suas técnicas, os seus instrumentos.
De Tertuliano a Metódio, víramos a virgindade-continência
tornar-se um estado positivo de virgindade. É este estado que vai
elaborar-se no século iv como "arte da virgindade".
[11]
- A -
[DAS A R T E S D A V I R G I N D A D E ]
Um primeiro ponto refere-se à relação entre esta tekhnê da vir-
gindade e a prática pagã da continência. Questão que poderíamos
Não deveria estabelecer-se um corte demasiado marcado entre julgar "superada" nesta época, mas que retira o seu sentido e a sua
os primeiros textos e a grande época florescente dos tratados de actualidade do facto de a existência ascética se definir a si mesma
virgindade no século iv. Aqueles prepararam-na, destacando o como a "vida filosófica". No preâmbulo ao seu Tratado da virgin-
princípio da virgindade das prescrições de continência, dando-lhe dade, em que explica o plano que vai seguir, Gregório de Nissa
um estatuto particular, bem como uma significação espiritual po- indica que, para seguir "o bom método", depois de ter sublinhado
sitiva e intensa, e desenvolvendo um certo número de temas que os os inconvenientes da vida comum, descreveu "a vida filosófica"*'.
autores, de Gregório de Nissa a Agostinho, não vão ter senão de Não deve ser pois motivo de surpresa descobrirmos uma vontade
retomar, enriquecer ou remodelar. explícita de separar o mais nitidamente possível a virgindade dos
No entanto, a questão da virgindade, no século iv, inscreve-se cristãos da continência pagã, e ao mesmo tempo a reutilização de
num contexto que, numa medida importante, a vai modificar: de- um certo número dos temas através dos quais aquela se justificava.
senvolvimento da ascese, organização do monaquismo, aplicação De um modo geral, e sob reserva de algumas modulações particu-
de técnicas para o governo de si mesmo e dos outros, ordenamen- lares: uma recusa da virgindade que estava ligada no mundo pagão
to de um regime complexo da verdade das almas. Podemos carac- a um estatuto ou a funções religiosas; uma referência, sob a forma
terizar esquematicamente esta modificação recordando uma pas- de exemplo, às honras concedidas à virtude das mulheres; e um
sagem de Gregório de Nissa: "Do mesmo modo que certas artes, retomar dos debates sobre o casamento e a tranquilidade da alma.
nas outras profissões, foram inventadas para conduzir a bom ter- Certos autores cristãos negam muito simplesmente que os pa-
mo cada uma das tarefas que têm em vista, assim, ao que me pa- gãos tenham alguma vez atribuído honras à virgindade. É o que
rece, a profissão de virgindade é uma arte e uma ciência da vida sustenta Atanásio: "é só entre nós, os cristãos, que é honrada"**.
divina."** A virgindade, considerada já como estado privilegiado, Mais prudentemente, e em função de uma hierarquia histórico-

86 'To tês parthenias epitêdeuma tekhnê tis einai kai dunamis tês theioteras 87/Wd., Preâmbulo, 1.
zôês", GREGÓRIO D E NISSA, Da Virgindade, IV, 9. 88 ATANÁSIO, Apologia ad Constantium, 33 (R. G . , t. 25, col. 640).
196 As Confissões da Came 197
Michel Foucault

-religiosa, Crisóstomo reconhece que os gregos "admiraram e b a forma de uma rejeição ou de uma abstenção que a virginda-
veneraram" a virgindade. Põe-nos por isso acima dos judeus, que de pagã se apresenta aos olhos dos autores cristãos que não a reco-
dela se teriam afastado com desprezo — como o prova o seu ódio nhecem como sua. No início do De virginibus. Santo Ambrósio
ao Cristo nascido de uma virgem —, mas abaixo da Igreja de indica-o muito claramente. Se a virgindade pagã não é a dos cris-
Deus, que teria sido a única a pôr nela o seu zelo*'. Foram contu- tãos, é porque tem a forma de uma regra exterior para aqueles ou
do os Padres latinos que, em razão do seu meio^°, tiveram sobre- aquelas aos quais e às quais é imposta. A vestal tem de se manter
tudo tendência para tomar em linha de conta as práticas da conti- imperativamente virgem mas por um momento: trata-se de uma
nência pagã. São Jerónimo, em todo o caso, consagra todo o final questão de tempo que promete ao pudor dos jovens anos o impudor
do Adversus Jovinianum a referências pagãs: exemplo das virgens da velhice^'. Além disso, se respeita o seu compromisso, é por
que são honradas na Grécia e em Roma; evocações das viúvas gosto das honras, esperança de benefícios, medo de ser desconsi-
heróicas que se mantêm fiéis à memória do seu esposo e chegam derada e castigada. Assim, não oferece a sua virgindade, mas
a imolar-se sobre a sua sepultura; celebridade de algumas nobres vende-a. Será coisa melhor do que uma prostituição ou diferente
romanas cuja glória era a castidade; reflexões de moralistas como dela?'" A mesma ideia sob uma formulação aparentemente inversa
Teofrasto que recomendam que nos abstenhamos do casamento. em São João Crisóstomo. A virgindade dos pagãos não pode espe-
E , com mais ênfase do que rigor. São Jerónimo invoca sobre este rar recompensa alguma: "Para os gregos uma tal virtude é esté-
tema a opinião de Aristóteles, de Plutarco e do "nosso Séneca"^'. r i l . " ' ' Mas, se as virgens do paganismo nada podem esperar no
além, é porque a sua renúncia neste mundo não foi inspirada "pelo
É verdade que não deixa de marcar a diferença entre a virginda-
amor de Deus". Tratando-se de uma ordem ou de uma lei, aqueles
de cristã, que está associada a outras justificações, e a continência
que a observam não "podem esperar privilégio"'*.
dos pagãos, que não pode ter valor santificador: "O celibato sem
as boas obras não tem utilidade alguma, [...] pois que de outro
modo as virgens consagradas a Vesta e as sacerdotisas de Juno que 93 "Aetate non perpetuitate praescribitur", SANTO AMBRÓSIO, De virginibus,
não deviam casar poderiam ser incluídas no número das santas."'^ I,iv,15.
De resto, os autores cristãos em geral são muito mais discretos do 94 A mesma ideia em SANTO AMBRÓSIO, carta 18 (ad Valentianum). Eis como
ele descreve as vestais: "Vix septem vestales capiunturpuellae. En totus numerus,
que São Jerónimo nesta evocação daquilo que os antigos conside- quem infulae vittati capitis, purpuratarum vestium murices, pompa lecticae minis-
ravam como virtudes ou valores. Preferem sublinhar como os últi- trorum circumfusa comitatu, privilegia máxima, lucra ingentia, praescripta deni-
mos permanecem distantes da santificação cristã. O princípio que pudicitiae têmpora coegerunt" ["Sete vestais, somente sete jovens acorrenta-
desta diferença, a maioria dos autores coloca-a na forma de sim- das pela força ao seu estado! Tal é o número daquelas que a sedução das estreitas
tiras sagradas, o brilho das vestes de púrpura, o fausto de uma liteira rodeada por
ples interdito (do casamento ou das relações sexuais) que os pagãos
todo um cortejo de escravos, imensos privilégios, receitas consideráveis, e um ter-
dão ao privilégio da virgindade. Proibição definitiva ou provisória, mo legalmente fixado à sua continência, recrutaram para a sua condição", tradução
prescrição absoluta ou conselho de prudência, é essencialmente de Monseigneur Baunard].
95 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, Da Virgindade, IV, 2.
89 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, Da virgindade, 1,1. 96 Ibid., II, 2. É todavia de notar que Crisóstomo insiste muito na crítica da vir-
90 Tal é a opinião de F. D E VIZMANOS, Las vírgenes cristianas de la Iglesia gindade entre os heréticos inspirados pelo dualismo. A sua crítica torna-se então
primitiva, Salamanca, 1949. dupla: se todo o casamento é mau, a abstenção torna-se obrigatória e deixa de ter
91 SÃO imÓmUO, Adversus Jovinianum,!, A\A9. mérito; mas, abstendo-se em nome de um erro que injuria Deus, os heréticos come-
92 Ibid.,l,\\. tem na sua virgindade um pecado que será severamente punido.
198 Confissões da Carne 199
Michel Foucauli

No entanto, e a despeito do cuidado posto em distinguir a con- [Da Integridade da Virgindade] de Basílio de Ancira (capítulo
tinência pagã e a virgindade cristã, os autores do século iv contraí- X X I I I ) , na Homilia V I I (15-16) de Eusébio de Emesa, no De vir-
ram empréstimos relativamente importantes de regras de vida ginibus de Santo Ambrósio ( I , 6), em São Jerónimo no Adversus
inspiradas pela moral dos filósofos. E chegaram até mesmo a Helvidium (capítulo X X ) , na carta 22, a Eustóquio, e no Adversus
transpor directamente certos elementos seus. Dois sobretudo: a Jovinianum. Entre todos estes textos, o de Gregório de Nissa pode
crítica da vida matrimonial e o elogio da vida independente. servir de exemplo, na medida em que é construído segundo a exac-
ta retórica das diatribes pagãs sobre as vantagens e inconvenientes
A crítica do casamento é um lugar-comum da moral antiga, que do casamento. Não o dizendo explicitamente, Gregório de Nissa
os autores ascéticos do século iv reutilizaram sem lhe introduzi- retoma os três principais argumentos sobre os quais se apoiavam
rem muitas modificações. As moléstias do casamento — moles- os partidários da vida matrimonial: felicidade da vida no casal,
tiae nuptiarum — eram incansavelmente descritas, e sob uma satisfação de se ter filhos, vantagem de se estar rodeado pela fa-
forma muito iterativa, por todos os que discutiam a questão fami- mília na hora da doença ou da velhice. Felicidade da vida parti-
liar em todas as escolas filosóficas: devemos ou não casar? Teo- lhada? Ei-la incessantemente sob a ameaça da inveja, responde
frasto, que cita longamente São Jerónimo, não é senão um exemplo Gregório de Nissa, se é que chega a existir, e correndo a todo o
de tais banalidades, das quais vemos emergir três ou quatro temas momento o risco de ser destruída pela morte. Seja como for, a
principais. Incompatibilidade entre a vida filosófica e a existência idade, a velhice e o tempo arruínam-na pouco a pouco: passando
matrimonial: "não se pode amar uma mulher e ao mesmo tempo "como uma onda que desemboca no nada", a beleza não deixará
os livros"; defeitos intrínsecos — o seu ciúme, a sua avidez, a sua atrás de si "traço algum, recordação alguma, resto algum da sua
inconstância; a perturbação que trazem à alma e à existência do flor presente". Minada por dentro pelo temor da mudança, que
seu esposo; as preocupações com o dinheiro ("sustentá-las pobres impede que se aproveitem realmente os bens presentes, a felicida-
é bem difícil; suportá-las ricas é um tormento") ou a necessidade de da vida comum não é por isso mais do que uma aparência. Os
de vigilância; o pouco valor por fim que devemos conceder aos filhos? Mas há as dores de parto e os acidentes que muitas vezes
cuidados que podem fornecer-nos ou até mesmo aos descendentes o acompanham. Há os filhos que morrem precocemente, e muitas
que delas possamos esperar, por comparação com os amigos de vezes aqueles que sobrevivem são para os pais uma fonte de preo-
que saibamos rodear-nos ou com os herdeiros que possamos esco- cupações constantes. Sofrem de tristeza os que não têm filhos e os
lher com pleno conhecimento de causa''. que os têm, os que choram os seus filhos mortos e os que se la-
O desenvolvimento sobre as moléstias do casamento é uma mentam dos descendentes que sobrevivem. Quanto à velhice em
passagem quase obrigatória nos textos cristãos que tratam da vir- que os esposos devem ser socorro um para o outro, pensemos so-
gindade. Encontramo-lo, com maior ou menor prolixidade, no bretudo na viuvez que muitas vezes as fere ainda na juventude e
tratado Peri parthenias de Gregório de Nissa ( I I I , 2-7), no de João deixa as mulheres sem apoio e sem recursos'*.
Crisóstomo (em particular no capítulo X L I V e na longa série dos O elogio da vida fora do casamento é tão tradicional como a
capítulos L I - L X I I ) , no Peri tês en parthenia alêthous aplitorias evocação das "'molestiae nuptiarum", que são por assim dizer a
sua outra face. A existência emancipada dos laços matrimoniais é
97 [TEOFRASTO, Do Casamento, citado por SÃO JERÓNIMO, Adversus
Jovinianum, 1,47] 98 [GREGÓRIO D E NISSA, Da Virgindade, I I I , 2-7.]
200 í^s Confissões da Carne 201
Michel Foucault

por vezes representada pelos autores cristãos com inflexões próxi- e sobretudo, possibilidade para a alma de permanecer na sua pró-
mas das que empregavam os filósofos da Antiguidade, quando pria companhia, permitindo assim ao pensamento recolher-se ao
prometiam aos celibatários uma vida de tranquilidade e de calma. desligar-se de todos os objectos exteriores: "O celibatário, que
Crisóstomo, por exemplo, opõe à vida do casamento uma existên- vive em si mesmo, ou escapa a estas experiências [as do casamen-
cia "sem perigos" e "sem negócios"", uma vida em que o homem to], ou prevalece mais facilmente sobre a infelicidade, porque
não dependeria senão de si mesmo'°°. E descreve-a, pelo menos mantém o seu pensamento recolhido sobre si mesmo e não tem
nalguns dos seus aspectos, segundo os termos da sabedoria huma- preocupação que o distraia para outra coisa.""" Tal é o género de
na e da felicidade filosófica: "Não há perturbação na modesta vida que Gregório de Nissa pensa encontrar no profeta Elias ou em
morada [da que não se casou], todos os gritos são banidos da sua . João Baptista — quando um e outro se mantêm "afastados da en- '
presença; como num refúgio de paz o silêncio reina no seu cora- grenagem da vida humana" e se estabelecem "numa calma e numa
ção, e mais perfeita ainda do que o silêncio, a serenidade na sua serenidade perfeitas"'"*.
alma [...]. Que linguagem poderia exprimir a felicidade de que Esta descrição da virgindade como um estado de alma de tran-
goza uma alma assim disposta [...]? Acho-me aqui num embaraço quilidade e o recurso ao vocabulário filosófico da existência sere-
extremo, porque não posso compreender como quase todo o géne- , na têm qualquer coisa de paradoxal. Parecem, à primeira vista, em
ro humano, quando se lhe oferece uma felicidade na quietude e no contradição com o que os mesmos autores podem dizer sobre os
repouso de espírito, nisso não vê sequer um prazer, enquanto faz combates incessantes da virgindade e o seu parentesco com o
consistir no cuidado, nos sobressaltos e na inquietação o seu pra- martírio"". Parecem por outro lado indicar que há mais perigos,
zer maior!"'»' logo, mais provas, logo, mais mérito, na existência das pessoas
Assim o encorajamento à virgindade passa, pelo menos num casadas. Objecção que o próprio Crisóstomo evoca: "Não teria
certo número de textos, pelo elogio de uma vida "independente" direito a uma recompensa mais elevada aquele que, apesar de tal
com as vantagens que os filósofos lhe reconhecem. Nada de coac- constrangimento [o do casamento], segue o bom caminho? [...]
ções exteriores, "os pés" são "ligeiros, e livres de entraves", não se Com o casamento assume uma prova mais dura."'"* Esta ideia le-
têm os tornozelos atados'"^. Ausência de preocupação a propósito vava Clemente de Alexandria a dar ao casamento um valor moral
de todas as aparências que constituem o essencial do que se con- seguro, fazendo-o rivalizar em mérito com a virgindade'"'. Crisós-
sideram ser os bens do casamento — o nascimento, o renome fa- tomo, pelo seu lado, afasta a objecção sublinhando que os perigos
miliar, a glória, a situação em vista'°'. Fim dessas paixões que do casamento não podem contar para a salvação, uma vez que
perturbam a alma quando a agitam circunstâncias exteriores — quem se lhes expôs o fez de maneira inteiramente voluntária"".
"cólera, violência, juramentos, insultos, hipocrisia"'"*. Finalmente Esta referência ao tema da vida tranquila, que os filósofos ti-
t
nham podido desenvolver anteriormente, tem a sua importância. É
99 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, Da Virgindade, XLIV; 2^
100 "Kath'heauton ôn ho anêr", ibid. 105 GREGÓRIO D E NISSA, Da Virgindade, III, 9.
101 Ibid., L X V I I I , 1-2. Atente-se nos termos: apêllaktai tarakhês, ataraxia, hê mibid.,N\, 1.
euphrosunê tês outô diakeimenês psukhês, eukolia. 107Cf.í/i/ra,p.[243].
102/Wrf.,[XLIV,2]. 108 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, Da Virgindade, XLV, 1.
103 GREGÓRIO D E NISSA, Da Virgindade, IV, 4. 109 C L E M E N T E D E ALEXANDRIA, Stromata, III.
104 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, Da Virgindade, XLIV, 2. 110 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, [Da Virgindade, XLVI].
202 Michel Foucault Confissões da Carne 203

necessário, sem dúvida, neste período de desenvolvimento do da vida filosófica no sentido antigo da expressão: trata-se de uma
monaquismo e das instituições ascéticas, entrar em linha de conta tranquilidade indissociável do confronto permanente com o Inimi-
com o poder de apelo que a evocação destes valores tradicional- go. E devemos compreendê-la em dois sentidos: desprendimento
mente reconhecidos podia ter. Além disso, o tema da vida tranqui- em relação a tudo o que pudesse, vindo do mundo, ser causa de
la ocupa uma posição duplamente privilegiada: está no ponto de perturbação, e confiança nesse combate em que é a graça de Deus
encontro entre uma concepção tradicional das condições necessá- a dar a vitória. A continuidade do tema da "tranquillitas", do
rias ao conhecimento verdadeiro e à verdadeira felicidade, e a "otium", marca de facto a passagem de uma economia negativa da
concepção cristã do desprendimento radical deste mundo; mas abstenção e da continência a uma concepção da virgindade como
está também no coração de um problema interno ao cristianismo experiência complexa, positiva e agonística.
e que diz respeito ao estatuto da vida contemplativa, aos métodos
destinados a alcançá-la, e aos méritos que lhe são próprios. De - B -
facto, com ênfases diferentes, quase todos os autores cristãos con-
servam o princípio de que a vida da virgindade, fora das preocu- O estado de virgindade concebido como arte é regularmente
pações do mundo, é uma vida "tranquila". Santo Agostinho, no apresentado pelos autores do século iv como o efeito de uma esco-
Comentário do Salmo 132, evoca três géneros de vida através das lha livre e individual. Mas de uma escolha que se inscreve, no
três personagens de Noé, de Daniel e de Job; o primeiro simboliza entanto, pelo seu sentido e os seus efeitos, na história geral da
a actividade daqueles que têm a Igreja a seu cargo e devem garan- salvação do género humano.
tir a colheita; o terceiro simboliza os fiéis que servem Deus com A virgindade é uma escolha livre em três sentidos. E m primeiro
zelo. Quanto ao segundo, devemos referi-lo à existência dos que lugar, não pode ser feita por toda a gente. Só os que são suficiente-
renunciaram a viver com uma mulher, a fim de levarem a existên- mente fortes podem fazê-la: "a virgindade é para alguns", diz San-
cia monástica. A Noé é associada a figura de dois homens nos to Ambrósio, "e o casamento para todos""^ Não pode decorrer de
campos; a Job a de duas mulheres a trabalhar no moinho. A Da- uma ordem ou de coerção alguma. Numa homilia consagrada à
niel, a de dois homens deitados numa cama: assim são designados virgindade e dirigida aos pais de família, um autor desconhecido
aqueles que "amaram o repouso", aqueles que "não se misturam às recomenda aos pais que nada façam para contrariar os seus filhos
turbas" nem ao "tumulto do género humano", mas "servem Deus que queiram votar-se à virgindade. Encoraja-os a "persuadi-los a
na tranquilidade""'. fazerem-no", mas não quer que [a isso] sejam constrangidos'". E s -
Mas Santo Agostinho indica imediatamente que sentido deve te princípio da escolha sem coerção é tão importante que Santo
ser dado a esta tranquilidade da vida fora do casamento. Daniel, Agostinho o descobrirá caucionado pelo exemplo de Maria: uma
figura da castidade, estava "tranquilo", estava "em segurança", vez que no seu caso se tratava da Encarnação querida por Deus,
mas entre os leões. Estes são as figuras dos desejos que assaltam "poderia ter recebido a ordem de se manter virgem, a fim de que o
o coração e das tentações que o assediam. Daniel era chamado Filho de Deus pudesse tomar nela a forma do escravo", e contudo
"ví> desideriorum". À tranquilidade do seu estado devemos dar
um conteúdo muito diferente daquilo que podia constituir a calma
112 SANTO AMBRÓSIO, De virginibus, 1,7, 35.
113 Este texto foi publicado por DOM DAVID AMAND ("Une curieuse homélie
111 SANTO AGOSTINHO, DííCí/rso sobre o Salmo 132,4 (P. L . , t. 37, col. 1730). grecque inédite sur la Virginité", loc. cit.).
204 Michel Foucauh As Confissões da Came 205

a sua virgindade foi resultado de um "voto" e não de um "preceito", caracterizara a Antiga Aliança —, mas a uma nova forma de rela-
uma "escolha de amor" e não uma "necessidade de obedecer""*. ção entre Deus e os homens.
Livre escolha, enfim, por não ser prescrita por lei alguma como E chegamos aqui ao outro aspecto da virgindade: o que se re-
pode sê-lo a obrigação de amar a Deus ou de não cometer adulté- porta à salvação da humanidade e ao tempo do mundo. Eis, com
rio: "O Senhor não impôs a virgindade nem na lei da natureza nem efeito, o paradoxo: a virgindade não pode ser senão um acto livre
no Evangelho""'; "o Salvador não dá à continência o carácter obri- e individual, mas é um acto que comporta alguma coisa do drama
gatório de um preceito; deixa essa escolha às nossas almas""*. que se desenrolou entre os homens e Deus e que não terminou
A insistência neste carácter não obrigatório da virgindade en- ainda. A virgindade recebe o seu sentido desse passado, e assume
contra nos textos várias justificações — além do argumento de os seus efeitos nesse movimento ainda por vir. Escolha, e não lei;
que é bem necessário que alguns se casem para que possam nascer mas, tanto como libertação individual, figura do mundo ou antes
virgens"'. Tratava-se sobretudo de combater todas as formas de aspecto da sua transfiguração. Vimos já estes temas desenharem-
dualismo ou todas as correntes de inspiração gnóstica que faziam -se nos textos do século iii. Cipriano e sobretudo Metódio de
da abstenção da relação sexual uma obrigação rigorosa, não dei- Olimpos tinham formulado claramente alguns dos seus elementos
xando por conseguinte lugar nem ao casamento nem à procria- fundamentais. Mas podemos pensar que o desenvolvimento do
ção"*. Tratava-se também de pôr em realce o valor positivo da monaquismo os reforçou, que favoreceu a eleição de vários de
virgindade. E uma tese que reaparece com muita frequência: se a entre eles, modificando[-lhe] certas tónicas. E m todo o caso a ins-
virgindade fosse obrigatória, que mérito particular haveria em tituição monástica foi um lugar, ou pelo menos uma ocasião de
observá-la? Aquele que não rouba nem mata não merece ser hon- reflexão sobre este triplo aspecto da virgindade: estado profunda-
rado por isso: "Abster-se do que é proibido não é ainda a marca de mente diferente do do casamento, assimilado à vida no mundo, e
uma alma generosa e ardente; a virtude perfeita não consiste em requerendo uma prática, uma arte, uma técnica particular para
evitar os actos que nos valerão reprovação universal, consiste em produzir efeitos positivos; objecto de uma livre escolha individual
distinguirmo-nos através de uma conduta da qual nos poderíamos que nenhum preceito pode impor, nem a todos sob a forma de uma
abster sem com isso nos expormos a opróbrio.""' A virgindade lei, nem a alguns sob a forma de uma ordem; forma de vida em
vale muito mais do que a simples observação de um interdito. F i - que a empresa da salvação individual está profundamente mistu-
nalmente, em termos mais gerais, tratava-se de facto de sublinhar rada com a economia do resgate da humanidade.
que a virgindade não pertence a uma economia da Lei — a que O papel da virgindade na história da salvação é definido, pelos
autores do século iv, em função antes de mais do que eram o esta-
do paradisíaco e as relações entre o homem e a mulher antes e
114 SANTO AGOSTINHO, Da Virgindade, IV, 4.
115 BASÍLIO D E ANCIRA, Da Integridade da Virgindade, 55 (R G., t. 30, col. depois da queda. Está evidentemente fora de questão percorrermos
780). aqui, em pormenor, as longas discussões exegéticas que, de Oríge-
116 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, Da Virgindade, I I , 17. nes a Agostinho, incidiram sobre os dois primeiros capítulos do
117 Assim SANTO AMBRÓSIO, De virginibus, 1,7; EUSÉBIO D E EMESA, Ho-
Génesis — versículo 27 no primeiro caso e versículos 18-24 no
milia VI, 6.
118 Assim todos os primeiros capítulos do De virginitate de SÃO JOÃO CRISÓS- segundo. Gostaria de indicar somente como se punha a questão
TOMO. das relações entre a virgindade paradisíaca e a diferenciação dos
119 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, Da Virgindade, V I I I , 4. sexos na Criação.
206 Michel Foucauli Confissões da Carne 207

Que a diferenciação dos sexos seja obra de Deus, eis o que ne- mero dois'^^ E m todo o caso, para Gregório de Nissa ou João
gavam muitos movimentos de inspiração dualista. Mas reconhe- risóstomo, como mais tarde para Agostinho, a imagem de Deus
cem-no, em contrapartida, os autores reconhecidos pela Igreja: IO homem deve ser procurada na alma e não na dualidade dos
loucura, diz Santo Agostinho, que se pretenda cristão quem for tão sexos'^". Tese importante para toda a mística da virgindade: na
cego que defenda que "a diferença dos sexos é obra do diabo, e não medida em que a última é uma ascensão que torna semelhante a
de Deus"'^°. Antes ainda de ser narrada a formação de Eva no Deus, não é simplesmente, na sua significação espiritual, uma re-
segundo capítulo do Génesis, o texto sagrado indicava desde a núncia ao outro sexo. É um remontar, para lá da diferenciação dos
primeira menção da criação do homem ( I , 26-27) que Deus os sexos, para lá do próprio acto criador que a estabeleceu, na direc-
criara "homem e mulher". Esta passagem dava, portanto, sem i ção da unidade divina.
equívoco, autoridade à opinião segundo a qual a diferença dos Mas, se o estado paradisíaco comporta já a dualidade dos sexos,
sexos está presente desde a Criação. Mas levanta logo a seguir quais são o seu sentido e a sua função? Deveremos admitir que
uma dificuldade, na medida em que surge imediatamente após a houve relação sexual no paraíso antes da queda e, portanto, num
afirmação de que o homem foi criado à imagem e semelhança de estado perfeito de inocência? Aqui a resposta é universalmente
Deus. Como pôde Deus, sendo único, criar o homem à sua seme- ' negativa, quer se suponha, como Orígenes na esteira de Fílon, que
lhança ao mesmo tempo que na dualidade dos sexos? A esta ques- foi a relação sexual que, não podendo ser inocente em si mesma,
tão Fílon respondera distinguindo na criatura humana o que era à provocou a queda'^', quer se suponha que a primeira relação se-
semelhança do Criador e o que era marca da criatura: um, o ho- xual teve lugar após a queda e como sua consequência'^*. Mas
mem, era "semelhante pela sua unicidade ao mundo e a Deus"; esta inexistência de relações sexuais no paraíso não tem para todos
mas era também portador dos "caracteres das duas naturezas, não nem as mesmas razões nem a mesma significação. O jogo da exe-
todos, mas aqueles que é possível que uma constituição mortal í gese é circunscrito por dois textos: o do primeiro capítulo do Gé-
admita"'^'. Tal foi a direcção para que se orientou a exegese cristã. nesis ( I , 28), em que Deus, abençoando o homem e a mulher, lhes
Assim, Orígenes vê na dualidade uma marca de tudo o que foi diz que cresçam, se multipliquem e encham a terra; e o do segun-
criado: "As obras de Deus vão por grupos e estão unidas, como o do capítulo, em que Deus decide dar ao homem uma mulher para
céu e a terra, o sol e a lua; a Escritura quis mostrar que, do mesmo que esta lhe seja um auxílio semelhante a ele.
modo, o homem é uma obra de Deus e que não foi realizado sem Este tema do auxílio permite evidentemente reforçar a afirma-
o complemento e a união que lhe convinham."'^^ Jerónimo marca- ção segundo a qual o papel de Eva era o de ser companheira, não
rá, entre a semelhança a Deus e a dualidade dos sexos, mais dis- esposa. Segundo Gregório de Nissa, este "auxílio" deve ser com-
tância ainda: faz notar que o número dois, na medida em que
"rompe a unidade", não é bom; de resto, o único dia em cujo fim
123 SÃO mRÓniMO, Adversus Jovinianiim,\, 16.
Deus não disse que a sua obra era boa foi precisamente o segundo;
124 SANTO AGOSTINHO, De Genesi ad litteram, III, 22.
a narrativa do Génesis marca assim a significação desfavorável do 125 [FÍLON D E ALEXANDRIA, De opificio mundi, 151 e 167.]
126 E a opinião de Gregório de Nissa, que, como observa M. Aubineau (GREGO-
RIO D E NISSA, Paris, 1966, De la virginité, p. 420, nota 1), vê na atracção do
120 SANTO AGOSTINHO, De continentia, IX (23). prazer (hêdonê) a razão da queda, sem que tal prazer seja especificamente o prazer
121 FÍLON D E A L E X A N D R I A , De opi^aomtt/irfí, 151. sexual. Nem Crisóstomo, nem Jerónimo, nem Agostinho vêem no primeiro pecado
122 ORÍGENES, //omí7iaí sobre o Génesis, 1,14. um acto sexual.
208 Confissões da Carne 209
Michel Foucault

preendido como participação na contemplação da face de Deus desde o paraíso infinitamente reprodutível, mas de outro modo
que era, antes da queda, o único desejo de Adão'^'. Tal é tambéin, que não o da união dos sexos; e no entanto tinha a marca de uma
dir-se-ia, o que sugere uma passagem do tratado Da Virgindade de diferenciação sexual, que antecipava sem a determinar uma queda
Crisóstomo, explicando que a mulher é agora um obstáculo à vida por vir e a partir da qual aquela assumiria a sua função de repro-
espiritual do homem pela inversão do papel que era o seu antes da dução'". Estas estranhas especulações sobre o sexo paradisíaco
queda'^*. Mas, se tal é a função paradisíaca da mulher, põem-se mostram pois como, na espiritualidade da época, se dissociam a
duas questões. Que pode querer dizer o preceito "Crescei e • tinção dos sexos (criada por Deus) e a sua união (que só pode
multiplicai-vos"? Deveremos, como certos adversários que Gregó- intervir depois da queda e da separação de Deus), e como a repro-
rio de Nissa critica sem os nomear'^', supor que o género humano dução se desdobra numa multiplicação angélica e num nascimento
não podia crescer senão depois da queda e que esta teve pois algu- animal.
ma coisa de bom, uma vez que, "sem ela, a raça humana ter-se-ia Devemos ter agora em conta a outra vertente da especulação: a
ficado pelo casal primitivo"? Gregório de Nissa faz valer que não que considera já não a origem e a queda, mas o mundo de hoje e
há casamento entre os anjos, e que todavia "os seus exércitos cons- a consumação dos tempos. À primeira vista, a prática da virgin-
tituem miríades infinitas": é que há, para essa natureza angélica, dade apresenta-se como um regresso, para lá da queda, ao estado
um modo de multiplicação que, para nós, os humanos, não pode paradisíaco, quando o homem saía das mãos de Deus e era ainda
ser pensado nem formulado. E , contudo, é certo que há tal modo,
portador da sua imagem; assim, Gregório de Nissa fala da "res-
e que como ele devia ser o poder de multiplicação dado ao homem
tauração no seu estado primitivo da imagem divina actualmente
na existência angélica que era a sua quando saiu das mãos do
escondida pela contaminação da carne; tornamo-nos o que era o
Criador.
primeiro homem na sua primeira vida"'". Aquele que pratica a
Surge imediatamente a seguir a segunda questão: porque é que virgindade remonta de certo modo ao curso do tempo e restabe-
Deus, dando embora um modo angélico de reprodução ao casal lece nele o estado de perfeição primitivo'". Restabelece-a na sua
primitivo, o dotou de uma diferenciação sexual que esse modo de alma, onde reencontra, como um dracma perdido, a marca da
reprodução não supõe? A resposta está na presciência de Deus: divindade. Restabelece-a também arrancando-se à corrupção
Deus sabia bem que o homem se desviaria da via da rectidão e deste mundo e, por conseguinte, escapando a essa morte que san-
perderia o seu valor angélico. O mundo então não poderia vir a ser cionara a queda e que os nossos primeiros [antepassados] [não]
nunca nem povoado nem completado. Por isso, dispôs de antemão conheciam — ou por terem sido criados imortais, ou por Deus
o meio de "nos transmitirmos a vida uns aos outros", mas de um não ter permitido, antes da queda, que a morte transformasse em
modo que convém àquilo em que nos tornámos, agora que perde- acto a mortalidade da qual, na sua presciência, os dotara. "Depois
mos a semelhança com Deus: uma reprodução semelhante à "dos kr-
brutos e dos seres sem inteligência"'^". E m suma, o homem era 131 Também aqui, SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, na XVII Homilia sobre o Géne-
sis, é menos preciso do que Gregório de Nissa; mas admite igualmente uma exis-
127 GREGÓRIO DE NISSA, Da Virgindade, XII, 4. tência angélica, bem como a intervenção da reprodução Sexual após a queda a fim
128 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, Da Virgindade, X L V I , 5. Na X V Homilia sobre de evitar o despovoamento causado pelo reinado novo da morte.
o Génesis, 4, evoca também o auxílio, mas não lhe atribui função precisa. 132 GREGÓRIO DE NISSA, Da Virgindade, X I I , 4. O termo aqui utilizado para
129 GREGÓRIO DE NISSA, Da Criação do Homem, X V I I , 188a-b. designar o primeiro homem tal como sai das mãos de Deus é prôtoplaslos.
130/Wd., X V I I , 189d. 133 GREGÓRIO D E NISSA emprega o verbo palindromein.
210 Michel Foucauh As Confissões da Carne 211

de nos termos afastado da vida segundo a carne que é seguida Santo Ambrósio afirma que "aquele que conservou a sua castida-
necessariamente pela morte, devemos buscar um género de vida de é um anjo"'^'.
que não acarrete a morte na sua esteira: ora, tal é a vida na vir- E não é aqui somente num sentido metafórico, ou para designar
gindade.""" uma certa atitude da alma que se invoca o angelismo da virginda-
Assim, escolher o estado de virgindade e ater-se-lhe rigorosa- de. Este é substancial, atravessa a matéria, opera através do mundo
mente deve ser considerado coisa bem diferente de uma simples e transfigura as coisas. Não se limita neste mundo de baixo à ex-
abstenção que libertaria das perturbações, das paixões, das preo- pectativa de outro mundo: efectua-o realmente. Assim, Crisósto-
cupações, e de um modo geral dos males da existência quando se mo descreve a vida de Elias, de Eliseu e do Baptista, "esses autên-
vota, ou simplesmente cede, aos prazeres. É muito mais do que a ticos amantes da virgindade": "Se tivessem tido mulher e filhos,
prática de uma virtude que merecerá posteriormente a sua recom- não lhes teria sido tão fácil habitar o deserto [...]. Porque se ti-
pensa — ainda que lhas prometam mais belas do que às outras'". nham desembaraçado de todos esses laços, viviam na Terra como
A virgindade é pensada como uma mutação actual de existência. se estivessem nos céus, não tinham necessidade alguma de pare-
Opera no ser individual — corpo e alma — uma "revolução" que, 'es, de tecto, de leito, de mesa e de outras coisas dessa espécie; o
restabelecendo-o num estado de origem, o desprende dos seus seu telhado era o céu, o seu leito a Terra, a sua mesa o deserto. E
limites terrenos, da lei da morte e do tempo e o faz [aceder'^*] o que parece condenar os outros homens à fome, à esterilidade do
desde já à vida que não terá fim. A virgindade abre a existência deserto, era para esses santos homens fonte de abundância [...],
angélica. Eleva à incorrupção e à imortalidade os que contudo fontes, ribeiras, lençóis de água forneciam-lhes uma bebida suave
moram ainda entre nós: "Faz subir ao céu", diz Eusébio de Eme- e abundante; um anjo preparava para um deles uma mesa admirá-
sa, "e viver já neste mundo na companhia dos anjos."'" Ou, ainda, vel [...]. E João [...], não eram nem o trigo, nem o vinho, nem o
fazia descer sobre a Terra o princípio da existência celeste: "As azeite, mas gafanhotos e mel selvagem a alimentar a sua vida
virgens não podem ainda subir ao céu como anjos, porque a carne corpórea. Eis os anjos na terra! Eis a força da virgindade!"'""
as retém, mas têm pelo menos já neste mundo a grande consola- Mas na virgindade há mais do que esta interferência, de algum
ção de receberem o Senhor dos céus em pessoa, quando são san- modo espacial, do céu e da Terra. A virgindade dos indivíduos tem
tas de corpo e de espírito. Vês o alto valor da virgindade? Como também o seu lugar na economia dos tempos. Podem resumir-se
dá aos que vivem na Terra as mesmas condições de existência que os desenvolvimentos muito longos e muito numerosos desta ideia
aos habitantes dos céus? Não quer que os seres revestidos de um nuns quantos temas principais.
corpo sejam inferiores às potências incorpóreas e, por homens A história do mundo divide-se em duas partes. A do mundo
que sejam, torna-os émulos dos anjos."'^* E , opondo aos anjos ainda vazio, e a do mundo preenchido. No dia que se seguiu à
degradados que, devido à sua "intemperança", caíram no século Criação o mundo estava vazio, e era a proliferação sexual para os
as virgens que, graças à sua castidade, passam do século ao céu, animais, não sexual para os homens, que devia completá-lo e
conduzi-lo ao seu ponto de acabamento. A queda teve duas conse-
\34[Ibid.,3.] quências negativas: impediu a multiplicação não carnal dos ho-
135 [Nota vazia.] f;.
136 Manuscrito: "suceder".
137 EUSÉBIO D E E M E S A , Homilia V I I , 5. 139 "Castitas enim angelos fecit", SANTO AMBRÓSIO, De virginibus, 1,8.
138 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, Da Virgindade, X I , 1-2. 140 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, Da Virgindade, L X X I X , 1-2.
212 213
Michel Foucault j; c^onfissões da Carne

mens, e votou-os à morte. Sucede que a reprodução sexual tem virgindade como restituição da vida angélica no próprio interior
com a morte uma relação ambígua. É, como aquela, consequência do mundo e no próprio laço da carne'"".
da queda, mas repara incessantemente as devastações da morte- ' Tornou-se também necessária porque "o tempo é curto"'"'. Não
"Depois de, pela desobediência, ter tido lugar a introdução do está longe o momento em que Cristo tornará. Desta proximidade,
pecado e de Deus ter tornado os homens mortais, o Deus Todo- .cuja promessa foi um dos aspectos importantes da espiritualidade
-Poderoso, velando na sua sabedoria pela propagação do género do século IV, tiravam-se consequências negativas. Porquê preocu-
humano, concedeu que o género humano crescesse por meio da pação com o mundo, uma vez que ele está a acabar? Porquê cuidar
conjunção sexual."'"' É por isso que o Antigo Testamento nos das gerações futuras, a partir do momento em se fecha o porvir?
mostra os patriarcas casados e à cabeça de famílias numerosas; é l'orque não virarmos de imediato o nosso pensamento para essas
por isso que a virgindade — à excepção de certas figuras singula- realidades que são do além, mas estão tão próximas de nós?
res'"^ — não é nele objecto de honras especiais. Sob a lei da mor- ocupámo-nos até aqui com "coisas da infância"; chegou agora
te, o casamento era um preceito. Mas doravante já não é essa a lei momento de "abandonarmos todos os bens da Terra que são
que reina no mundo. Estamos agora na idade do mundo "pleno", Imente brinquedos de criança e de voltarmos os nossos pensa-
"acabado", a idade em que, como diz Crisóstomo, deixando a "pri- mentos para o céu, o esplendor e toda a glória da existência celes-
meira infância", o género humano entra na idade adulta'"^ Pois tal tial"'"*. À prática da virgindade alguns objectam que o género
foi a sabedoria de Deus. Enquanto os homens, ainda demasiado humano poderia então desaparecer por completo, cuidado que
próximos do seu nascimento e da sua falta, eram indóceis, ter- hoje não tem sentido: no momento em que vai produzir-se a apo-
-Ihes-ia sido impossível seguirem uma prescrição como a da vir- catástase, recordemos que, na Criação do mundo, quando o ho-
gindade. O Senhor levou-os pois a fazer "a sua aprendizagem" sob mem levava uma existência bem-aventurada, "não havia nem cida-
a lei do casamento. Mas eis que chegou o tempo da perfeição, o es, nem ofícios, nem casas"'"'. E reencontramos aqui a ideia de
tempo em que a prática da virgindade deve conjugar-se com um ' m papel positivo que a virgindade pode e deve desempenhar no
mundo que se completa. Conjugação que se tornou possível, que é acabamento do mundo. Uma passagem de Gregório de Nissa é
agora necessária e que é paradoxalmente fecunda. muito explícita sobre este ponto'"*. A virgindade é estéril. Mas
Tornou-se possível porque Cristo, tendo encarnado no seio de esta esterilidade não incide [senão] no nascimento carnal, que está
uma virgem, tendo conduzido ele mesmo uma existência de vir- ligado à morte de duas maneiras: primeiro porque é sua conse-
gindade perfeita e tendo feito renascer os homens pela geração quência, e em seguida porque é princípio de seres sucessivamente
espiritual do baptismo, não lhes propôs simplesmente um modelo votados à morte. Enquanto recusa da geração, a virgindade é pois
de virtude, mas deu-lhes também o poder de vencerem as revoltas uma recusa da morte, uma maneira de interromper esse encadea-
da carne, e abriu à própria carne a possibilidade de ressuscitar na mento indefinido, que começou no mundo quando a morte nele
glória. Depois da Encarnação e através dela, tornou-se possível a
144 [SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, Da Virgindade, XI.]
141 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, X V I I Homilia sobre o Génesis, cf. no mesmo 145 SÃO JERÓNIMO, Adversus Helvidium, capítulo 20 [citação de São Paulo,
sentido GREGÓRIO D E NISSA, De hominis opificio, XWH.
"Tempus breviatum est", 1 Coríntios, 7, 29].
142 Como Miriam citada por Gregório de Nissa, Atanásio, Ambrósio; Elias, citado
146 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, Da Virgindade, L X X I I I , 1.
por Metódio de Olimpos e Gregório de Nissa.
147/Wí/., XIV, 5.
143 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, Da Virgindade, X V I - X V I I , e [nota incompleta].
148 GREGÓRIO D E NISSA, Da Virgindade, XIV, 1.
214 Michel Foucault As Confissões da Carne 215

apareceu e que prossegue agora de geração em geração, quer dizer, ma função dupla: esconder, como devem ser escondidas as que
de morte em morte. "Pela virgindade, é fixado um limite à morte, não pertencem senão ao seu marido; e manifestar, como deve sê-
impedindo-a de continuar a avançar", aqueles que escolheram a -lo, o facto dessa pertença: "Esconde alguma coisa do teu interior,
virgindade "colocaram-se a si mesmos como uma fronteira entre para não mostrares a verdade senão a Deus, embora não mintas
a vida e a morte, e contiveram-na na incursão do seu avanço". É manifestando-te esposa; porque desposaste Cristo; ofereceste-lhe
assim interrompida a série que se abriu depois da queda. O poder a tua carne; casaste com ele na tua maturidade. Anda como o teu
da morte deixa de ter objecto sobre o qual exercer a sua actividade, noivo o quer. É Cristo quem quer o véu para as noivas e as esposas
e por isso não devemos ver na esterilidade física da virgindade um dos outros: por maioria de razão o há-de querer para as suas.""'
lento caminhar para a morte, mas um triunfo sobre ela e a chegada Mas em todo este texto o propósito de Tertuliano, como já vimos,
de um mundo onde a morte deixará de ter lugar. não é dar à virgindade um estatuto particular; trata-se pelo contrá-
A virgindade é pois ao mesmo tempo elemento de um mundo rio de a fazer entrar numa disciplina geral entre as diferentes for-
sem morte e germe desse mundo: fragmento neste mundo de baixo mas da continência e da castidade"^.
desse outro mundo e acesso à realidade celestial que ele constitui. Mais tarde, em compensação, o estatuto de esposa de Cristo
Mas é concebida também, no que se refere a tais realidades, como será reservado à virgindade e só a ela, não apenas como um privi-
maneira de travar e de estabelecer relações espirituais: é forma de légio, mas como uma experiência que tem um conteúdo particular.
união, modo de parentesco, princípio de fecundidade e de engen- Mas com duas significações possíveis: a virgem que está prometi-
dramento. Eis um dos traços mais característicos desta mística da a Cristo ora é a Igreja inteira, ora é a alma individual de quem
cristã da virgindade, e que a faz muito distante da concepção an- renunciou para sempre ao mundo. O Hino que remata O Banque-
tiga da continência. te de Metódio é a este respeito significativo. As virgens reunidas
A virgem é noiva e esposa. Este tema é muito antigo no cristia- cantam, cada uma em nome próprio, ao mesmo tempo que no de
nismo. Tertuliano formula-o várias vezes. E m A Ressurreição da todas elas, o refrão: "Para ti, guardo-me pura! / Com as nossas
Carne, evoca rapidamente os eunucos voluntários e as virgens lâmpadas radiosas / Seguras com a mão firme, / Esposo, ao teu
"casadas com Cristo"'"'. No tratado endereçado A Sua Mulher, encontro venho!" Mas são também membros do séquito da Igreja-
louva as viúvas que estão "alistadas nas milícias de Cristo" e que -Virgem, o seu canto anuncia a vinda de Cristo que a vai desposar:
preferem, a voltar a casar, "viver com Deus, dele só se ocuparem, "A ti, ó bem-aventurada jovem Esposa / Prestamos honra, nós, tuas
não o deixarem nem de noite nem de dia, transmitirem-lhe já o camareiras, / Cantamos-te, Igreja pura e virginal."'"
dote das suas orações [...]. Esposas de Deus neste mundo, estão O tema da alma individual que, na experiência da virgindade,
inscritas na família dos anjos""°. A ideia aparece também no pe- se torna esposa de Cristo parece desligar-se do tema eclesial sem
núltimo capítulo de O Véu das Virgens. Neste porte do véu, que que este desapareça — longe disso — e também sem que se apa-
era tradicionalmente marca do casamento, Tertuliano não se limi- gue o jogo dos reenvios simbólicos entre um e outro. E m todo o
ta a consentir, mas quer torná-lo regra até mesmo entre as mulhe-
res não casadas: será o sinal das núpcias com Cristo. Sinal que tem
; 151 TERTULIANO, De virginibus velandis, X V I .
152 Cf. as linhas que precedem a passagem citada, nas quais Tertuliano exorta
149 TERTULIANO, De resurrectione carnis, L X I . todas as mulheres ao porte do véu.
150 TERTULIANO, Ad uxorem, l, 4. 153 METÓDIO D E OLIMPOS, O Banquete, "Refrão e estrofe", X X .
216 As Confissões da Came 217
Michel Foucault

caso, a virgem como noiva do Senhor está constantemente presen- avanços que são outros tantos insultos ao seu noivo'*". E m suma,
te nos autores do século iv, quer pensemos em Gregório de Nissa o casamento com Cristo é exclusivo de qualquer outro, quer se
— "ela vive com o Esposo incorruptível""" —, em Basílio de trate de um casamento no sentido estrito, quer simbolicamente
Ancira"', em Eusébio de Emesa — "as virgens não são as servas das ligações com o mundo.
dos homens; são as esposas de Cristo""* —, em Ambrósio — "en- Estas núpcias espirituais não são assim designadas pelo simples
tre os candidatos ao reino celestial, avançaste como para desposar facto de se tratar de uma união. Inscrevem-se, como todo o casa-
o rei...""' —, em Crisóstomo — "não há esposo que se assemelhe mento, num sistema de trocas que constituem para cada um dos
ao da virgem, que seja igual ao seu, que dele se aproxime, por dois esposos tanto a recompensa esperada como o sacrifício ne-
muito pouco que seja""*. Sabemos as dimensões que este tema cessário. Que pode trazer a alma quando se propõe como a Des-
assumirá ao longo de toda a história da mística cristã, e como posada? A juventude? Será então o rejuvenescimento, a "renova-
dominará todo um seu aspecto. ção do espírito", operado pela conversão. A riqueza? Não serão
Gostaria somente de assinalar aqui, em termos extremamente bens terrenos mas "tesouros celestiais". O bom nascimento? Não
esquemáticos, algumas das direcções que tomará e que são já será o que a sorte reserva, mas o que se adquire pela virtude. F i -
indicadas no vigésimo capítulo do tratado de Gregório de Nissa nalmente a força e a saúde? Tratar-se-á das que se adquirem pela
sobre os dois casamentos. Há duas uniões possíveis mas absolu- força do espírito e pelo enfraquecimento do corpo'*'.
tamente incompatíveis: uma é o casamento segundo a carne, a Devemos compreender que esta união é sustentada por um im-
outra o casamento espiritual. Pelo primeiro, devemos entender a pulso que, se nada deve ter de físico, nem por isso é menos desejo
união física com um ser humano, mas também, de um modo ge- e amor; e que conduz a uma possessão e à presença real de um ser
ral, o apego ao mundo do qual o casamento propriamente dito é noutro: "Quando 'Cristo é tudo e está em todos' (Colossenses, 3,
ao mesmo tempo um elemento, uma causa e um símbolo. O casa- 11), é com razão que o amante da sabedoria possui o alvo divino
mento que abre o acesso às realidades espirituais e estabelece a do seu desejo, que é a verdadeira sabedoria, e que a alma apegada
ligação com elas não pode consumar-se senão através da renúncia ao esposo incorruptível possui o amor da verdadeira sabedoria que
ao primeiro. E , chamando "virgindade" a esta renúncia sob as é Deus."'*^ Deste mesmo tema do desejo espiritual, que Gregório
suas duas formas, particular e geral, Gregório de Nissa pode dizer de Nissa evoca como princípio da ascensão da alma. Crisóstomo
que ela é "colaboradora e provedora""' desse casamento espiri- desenvolve o outro aspecto, o movimento que atrai o Esposo para
tual. Basílio de Ancira confere à mesma ideia uma feição mais a beleza da alma virgem: "Sim, o olhar da Virgem oferece tanta
figurada: a virgem que está prometida ao Senhor é submetida beleza e atracção que desperta o amor não dos homens, mas das
com frequência às solicitações dos que não são mais do que ser- Potências incorpóreas e do seu Soberano." E é tão grande esta
vidores; mas não pode ser aceite a não ser que repudie todos os beleza interior que transfigura o próprio corpo e o ilumina, provo-
cando a forma oposta da cobiça física, o respeito: "Tal é a modés-
154 GREGÓRIO D E NISSA, Da Virgindade, III, 8. tia que envolve a virgem que até mesmo os debochados, ruboriza-
155 BASÍLIO D E ANCIRA, Da Integridade da Virgindade, 27.
156 EUSÉBIO D E EMESA, Homilias, V I , 16.
157 SANTO AMBRÓSIO, De lapsu virginis consecratae, V, 19. 160 BASÍLIO D E ANCIRA, Da Integridade da Virgindade, 37.
158 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, Da Virgindade, L X . 161 GREGÓRIO D E NISSA, Da Virgindade, X X , 4.
159 [GREGÓRIO DE NISSA, Da Virgindade, X X , 1.] 162 [Ibid.]
218 Michel Foucauh As Confissões da Came 219

dos e confusos temperam o seu próprio frenesim quando deitam à vida inteira, e que é capaz de a transfigurar. Da continência à
sobre ela um olhar atento [...]. O doce perfume da alma virginal, virgindade, há a viragem que faz de um conselho negativo e geral
penetrando as actividades dos sentidos, revela a virtude escondida uma experiência positiva e particular.
no interior."'*-' Finalmente essa união, que é o conteúdo do estado I A mística da virgindade está ligada a uma concepção da histó-
de virgindade, é fecunda — de uma fecundidade sem dor, cuja ria do mundo e da meta-história da salvação. Mudança importante
riqueza uma outra passagem de Gregório de Nissa evoca: "Com por comparação com uma perspectiva antiga: a que com efeito l i -
efeito, a concepção já não se faz na iniquidade, nem a gestação no gava as relações sexuais, o desejo, a procriação a um mundo natu-
pecado; o nascimento já não depende do sangue, nem do querer do ral, dos quais eram um elemento. Clemente de Alexandria
homem, nem do querer da carne, mas só de Deus. Assim acontece mantinha-se-lhe ainda fiel ao estabelecer entre procriação e Cria-
todas as vezes que concebemos, na fonte viva do coração, a incor- ção todo um conjunto de relações estreitas. Mas, através do tema
ruptibilidade do espírito."'*" da virgindade paradisíaca, vemos marcar-se um corte entre Cria-
Sei que este esquiço pode parecer demasiado esquemático ou ção e procriação — corte a partir do qual a actividade sexual de-
demasiado difuso. Tratava-se, sublinhando alguns traços impor- sempenha um papel na história do mundo: cabe-lhe impedir a lei
tantes da mística da virgindade no século iv, de mostrar que a da morte de triunfar por completo; cabe-lhe povoar a Terra, antes
muito intensa valorização de uma abstenção total, originária e de por seu turno desaparecer quando, com a Encarnação, o tempo
definitiva das relações sexuais não tinha uma estrutura de interdi- do resgate tiver chegado. A idade da virgindade, que é também o
to, não representa o simples prolongamento de uma economia re- do acabamento do mundo, encerra um tempo em que a Lei, a mor-
troactiva dos prazeres do corpo. A virgindade cristã é coisa muito te e a conjunção dos sexos estavam ligadas umas às outras. E a
diferente da forma radical ou exasperada de um preceito de conti- prática da virgindade assume assim um sentido totalmente dife-
nência que a moral filosófica conhecia bem na Antiguidade e que rente do das relações entre uma abstenção individual e os meca-
os primeiros séculos cristãos tinham herdado. nismos da natureza. Por fim, a mística da virgindade [introduz no
É verdade que vemos o tema da virgindade, no sentido estrito, domínio dos actos'*'] uma cesura que projecta na forma de figuras
desligar-se pouco a pouco de uma prescrição de abstinência se- espirituais um conjunto de movimentos, de conjunções, de liga-
xual, que é recomendada a todos com maior ou menor intensidade, ções, de gerações, que são o desdobramento termo a termo dos
sem ser obrigatória para ninguém. Mas, se se desliga dela, dela se desejos, actos e relações sexuais.
distingue também. Porque o princípio de continência tem de facto A valorização da virgindade é, portanto, muito diferente e mui-
a forma negativa de uma regra ou, pelo menos, de um conselho to mais do que a desqualificação ou a proibição pura e simples das
geral, enquanto a virgindade — testemunha-o já o diálogo de Me- relações sexuais. Implica uma valorização considerável da relação
tódio de Olimpos — designa uma experiência positiva e complexa, do indivíduo com a sua própria conduta sexual, uma vez que faz
que é reservada a alguns e sob a forma de. uma escolha. Escolha dessa relação uma experiência positiva que tem um sentido histó-
que não se reporta simplesmente a certo aspecto da conduta, mas rico, meta-histórico e espiritual. Que as coisas fiquem bem claras:
não se trata de dizer que houve uma valorização positiva do acto
sexual no cristianismo. Mas o valor negativo que lhe foi muito
163 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, Da Virgindade, L X I I I , 2-3.
164 GREGÓRIO D E NISSA, Da Virgindade, XIV, 3. Cf. também AMBRÓSIO,
De virginibus, 1,6. Í65 [Manuscrito: estas palavras estão rasuradas.]
220 Confissões da Carne 221
Michel Foucault

claramente concedido faz parte de um conjunto que dá à relação i^irgindade é uma luta penosa e incessante, enquanto o casamento
do sujeito com a sua actividade sexual uma importância com que é uma vida de facilidade — porto de abrigo e repouso, que a vir-
a moral grega ou romana nunca teria sonhado. O lugar central do gem, sempre no alto-mar, sofrendo as tempestades, não pode co-
sexo na subjectividade ocidental marca-se já claramente na forma- nhecer'*'. A rudeza do estado de virgindade é então comparada,
ção desta mística da virgindade. segundo duas metáforas que não param de recorrer através de toda
a literatura ascética da época, aos combates do soldado e aos exer-
Vemo-lo: os temas da virgindade como experiência espiritual cícios do ginasta. A virgem é uma cidade sitiada: tem de ter "um
estão no século iv, em autores como Gregório de Nissa, Crisósto- olho sempre aberto, uma paciência a toda a prova, muralhas robus-
mo ou Ambrósio, muito próximos no fundo dos que eram desen- tas, paredes exteriores e trancas, guardas vigilantes e corajosos";
volvidos por Metódio de Olimpos, ainda que difiram destes, ou os seus pensamentos "devem manter-se em pé de guerra" dia e
divirjam uns dos outros, em numerosos pontos de exegese. Mas a noite; devemos vê-la "fortificada" de todos os lados'™. Ou, ainda,
diferença mais sensível, e a mais importante do ponto de vista que é um atleta que tem de enfrentar um rival: "então, das duas uma",
aqui nos preocupa, refere-se àquilo a que Gregório de Nissa cha- deixará o estádio "ou bem cingida a coroa, ou depois de ter mor-
mava "a arte e ciência" [Da Virgindade, I V , 9], quer dizer, à vir- dido com a fronte o pó e a vergonha""'.
gindade como forma, técnica, instauração reflectida e aplicada da Claramente assim situada entre as práticas ascéticas, a virgin-
relação de si consigo. dade releva de um mesmo princípio que todas as outras: não pode
Que a prática da virgindade requeira esforço, que não seja sim- ser levada a bom termo sem a intervenção de um director. Metódio
plesmente uma abstenção decidida de uma vez por todas mas um de Olimpos limitava-se a evocar um círculo de mulheres entre as
labor constante, os autores do século iv não foram os primeiros a quais uma prevalecia sobre as outras — todas elas excelentes, to-
dizê-lo. Mas atribuíram a esse princípio um destino privilegiado, davia — pela sua doutrina e pelo seu exemplo. Cipriano, por seu
de três maneiras. Começaram por desenvolvê-lo amplamente. Ba- turno, exortava, dava conselhos, auxiliava com os seus pareceres
sílio de Ancira lembra a seu propósito que "o reino dos céus per- as que tinham escolhido essa via, sublinhava a importância de
tence aos violentos"'**. Crisóstomo sublinha que muitos "recuam uma disciplina que era entendida por ele como uma "observância"
à ideia destes esforços esgotantes que ela exige"'*'; reconhece "a das Escrituras nas quais a religião no seu todo completo tinha o
dificuldade da empresa", "o rigor destes combates, o pesado fardo seu alicerce. Diversas homilias insistem igualmente no papel do
desta guerra"'**. A partir daqui, é elaborada a oposição tradicional pai e da mãe relativamente àqueles de entre os seus filhos que ti-
entre os inconvenientes do casamento e a tranquilidade do estado vessem desposado o estado de virgindade"^ Gregório de Nissa,
da virgindade. Ao longo de todo o tratado de Crisóstomo, pode- • pelo seu lado, consagra todo o úkimo capítulo do seu tratado Da
mos descobrir uma oposição sob a forma de quiasma: o casamen- • Virgindade à necessidade de aprender junto de um mestre as re-
to é apresentado como causa de perturbações e de cuidados, en- gras desse estado.
quanto a virgindade assegura a limpidez serena da alma; mas a
169/Wd., XXXIV, 1-2.
170 Ibid., X X V I I , 1-2; cf. igualmente X X X V I I , 4.
166 BASÍLIO D E ANCIRA, Da Integridade da Virgindade, 4. 171 /Wd., X X X VIU, 1.
167 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, Da Virgindade, X X I I , 2. 172 Assim a homilia publicada por DOMDAVID AMAND D E MENDIETA, loc.
168/Wí/.,XXVn, 1.
cit.
222 Michel Foucault Confissões da Came 223

Para isso, dá várias razões, que se ordenam todas elas segundo o seu louco orgulho, num outro erro, iludindo-se na sua demência
o princípio geral de que em tal arte o erro é mais grave do que em sobre essa beleza para a qual o seu pensamento os inclinava."""'
qualquer outra: uma vez que o objecto que ela se propõe somos Tornamos pois a encontrar, nesta passagem que abre o último ca-
nós mesmos, e que, enganando-nos nessa matéria, causamos dano pítulo do tratado de Gregório sobre a virgindade, vários de entre
à alma e expomo-nos a morrer'". Que não nos possamos remeter os argumentos dos quais vimos que serviam para justificar a prá-
a nós mesmos explica-se antes de mais pelo facto de o estado de tica da direcção em geral.
virgindade e de as regras a observar não estarem inscritos na na- í Quanto ao papel do director, Gregório de Nissa opõe-no, com
tureza. Trata-se, de certo modo, diz Gregório, de aprender um insistência, à lição escrita, fazendo valer que, na arte da virginda-
"idioma estrangeiro". A virgindade, como género de vida {diagô- de, devemos ser guiados pelos "actos""*. Com efeito, acerca do
gê), tem, relativamente ao homem que segue a natureza, o carácter ensino que permite aprender este difícil estado, o texto é bastante
da "novidade""". Mas Gregório vai mais longe: a virgindade não elíptico. Fala essencialmente do papel do dador de exemplo"'.
está simplesmente em posição de ruptura com a natureza, é como Mas fala dele em dois sentidos alternados: por um lado, trata-se de
uma arte, à maneira por exemplo da medicina. Esta, seria impos- um modelo, de um "Cânone" para a nossa vida — Gregório
sível, inútil e perigoso aprendê-la cada um por si mesmo. Revelou- apresenta-o como um corifeu cujos gestos imitam os que o se-
-se progressivamente através da experiência, e as observações dos guem; mas, por outro lado, fala dele também como de um ponto
que nos precederam servem de preceitos para o futuro. Mas, exa- de orientação, de uma meta em cuja direcção os olhos se fixam,
minando o caso mais de perto, vemos que Gregório não se serve porque é nela que se pode ver o que é o estado de virgindade
da medicina como de um simples termo de comparação. Lembra quando enfim "abordou o porto da vontade divina": os que o al-
que a filosofia é uma arte de curar as almas — é uma cura de cançaram "mantêm a alma tranquila em paz e serenidade".
"toda a paixão que atinge a alma". E , como designou um pouco Mantêm-se impávidos longe da agitação das vagas, o esplendor da
antes o estado de virgindade como uma maneira filosófica divina, sua vida forma então como que sinais de fogo'*". Redescobrimos,
devemos pois compreender que esta arte é, em sentido estrito e pois, aqui, magnificado e levado ao seu ponto de consumação, o
pelo menos sob alguns dos seus aspectos, uma maneira de se pres- tema da tranquilidade virginal. Mas, no mesmo lance, o papel do
tar cuidado à própria alma"'. Esta arte, uma alma jovem não po- director, no labor, os exercícios e os combates que atravessam este
deria praticá-la só sem se expor aos erros: efeito da ignorância, estado e o sustentam, não aparece claramente, nem também as
mas também ausência de um princípio de moderação"*; entregue técnicas que emprega, as regras ou os conselhos que dá.
a si mesma, a alma corre perigo devido ao seu próprio ímpeto:
"Alguns abandonaram-se ao ímpeto venturoso que os arrebata
pelo desejo dessa vida nobre, mas, imaginando alcançar a perfei-
ção a partir do instante em que a escolheram, tropeçaram, devido

173 GREGÓRIO D E NISSA, Da Virgindade, XXlll, 2.


174 Ibid. Os que praticam a virgindade são por comparação com os que a não 177/Wd., X X I I I , 3.
praticam ainda alloglôssoi. 178 "Hê dia tôn ergôn huphêgêsis", ibid., X X I I I , 1.
175/Wd., X X I I I , 2. 179 Dá exemplos como uma luz acende outras {ibid., X X I I I , 5).
176 "Enkrateias metra", ibid., X X I I I , 1. 180/Wd.,XXIII,6.
(\5nfissoes da Carne 225

rica: apresenta-se como um texto prático. O que não quer dizer que
seja estranho aos temas que encontramos na espiritualidade do
século IV. Ao longo de todo o texto retorna a figura, indicada des-
de as primeiras palavras, do Cristo-Esposo'*': a ideia do casamen-
to, com a beleza da Desposada, o amor que tem pelo seu Senhor,
a fidelidade a que está obrigada, o desejo que deve ter de lhe
agradar, é longamente desenvolvida'*^. Encontramos também a
afirmação de que, pela virgindade, a alma se torna incorruptível e
[III] que assim pode levar desde este mundo a vida dos anjos'*'; faz-se
igualmente referência aos dois anjos, o do casamento inaugurado
[ V I R G I N D A D E E C O N H E C I M E N T O D E SI] por Adão, o do século futuro cuja semente foi lançada por Cristo
sob a forma da pureza virginal'*". O tratado de Basílio de Ancira
está, deste ponto de vista, em continuidade directa com os grandes
Esta direcção da vida virginal é, pelo contrário, muito explícita textos espirituais sobre a virgindade.
noutros textos. Tomarei exemplos de dois textos. Um é oriental, Mas o seu objectivo nem por isso passa a ser menos fixar meios
independente das instituições monásticas e endereçado a mulhe- reportados a um fim'*': trata-se não de ensinar os que já adquiri-
res: é o tratado Da Integridade da Virgindade, que figurou muito ram o conhecimento do bem, mas de mostrar àqueles que experi-
tempo entre as obras de Basílio de Cesareia, e que desde o princí- mentam amor por ele como atingir esse bem que desejam. Livro
pio do presente século é atribuído a Basílio de Ancira. Quanto ao de vida, por conseguinte, sem que defina um corpus sistemático
segundo exemplo, pedi-lo-ei de empréstimo aos capítulos que de regras: nenhuma referência é feita a instituições monásticas. É
Cassiano, nas Instituições e nas Conferências, consagra aos pro- somente indicado, nas primeiras linhas, que a obra se destina
blemas da pureza na existência monástica. Muito diferentes pois, àqueles que conceberam, graças ao bispo Letoio (ao qual Basílio
no seu contexto e na sua inspiração, são todavia os dois portadores se dirige), o amor do bem, mas nada sugere que se trate na circuns-
de um testemunho do desenvolvimento durante o século iv das tância de uma comunidade instituída'**. Só o desenrolar do texto
"técnicas de si" e do lugar que tomam na prática do estado de mostra, sem que nenhuma justificação ou explicação suplementar
virgindade. seja dada, que constitui prescrições de vida para as mulheres. Des-
te ponto de vista, está portanto próximo das obras práticas escri-
- I - i tas, na segunda metade do século, por Evágrio, pelo Pseudo-

Situa-se o texto de Basílio de Ancira em meados do século iv 181 BASÍLIO D E ANCIRA, Da Integridade da Virgindade, 1.
— antes de 358, em todo o caso. Ele mesmo evoca o seu contexto 182 Ibid., 24-29; 36-39.
desde as primeiras linhas, referindo-se ao desenvolvimento das 183/Wd., 2; 51.
práticas ascéticas (abandono dos bens, jejuns, macerações, como a ^;Í84/Wd., 54 e 55.
185/Wí/., 1.
de deitar directamente o corpo no chão). Mas demarca-se, com
186 Em todo o caso, indica também que os seus conselhos podem valer para lei-
uma insistência de resto frequente na época, da literatura panegí-
tores ocasionais.
226 Michel Foucault As Confissões da Carne 227

-Atanásio oú por Ambrósio. Distingue-se delas, no entanto, por se princípio do movimento, porque é a sede do prazer que atrai — o
apoiar em todo um conjunto de conhecimentos médicos que evoca que faz de resto com que a maior força, que está do lado masculi-
com um certo detalhe, e por elaborar a partir daí menos regras de no, se veja suavizada e mitigada pelo desejo de proteger. E m todo
atitude (embora se lhes refira) que técnicas, procedimentos, ma- o caso, nesta dinâmica natural (para a descrever, Basílio só bastan-
neiras de fazer ou maneiras de ser respeitantes à alma e ao corpo te remotamente alude às Escrituras, o plano de referência é pedido
nas suas relações. Mais do que ao traje e às frequentações, são as de empréstimo à história natural), vemos que a parte feminina
sensações, os desejos, as imagens, as recordações que formam o está numa posição "estratégica" privilegiada. Sede da atracção,
objecto do livro. Trata-se muito mais da questão da relação de si mas imóvel ela mesma, a mulher pode interromper este movimen-
consigo mesmo do que da atitude perante os outros ou da conduta to inscrito desde a origem na natureza. Tal é o papel da virgem:
no meio deles. E , quando Basílio sublinha a necessária renúncia a ser o ponto de ruptura neste processo geral de atracção.
todos os enfeites e a todas as formas de galantaria, recorre, a par Mas porque se imporia uma ruptura assim, quando, a termos de
do argumento conhecido (a mulher não pode agradar a Deus senão acreditar em Basílio, esta atracção não é senão efeito da vontade
tal como Deus a moldou'*'), [a um outro argumento]: todos esses de Deus? Porque as almas que, em si mesmas, são iguais e de
cuidados do corpo induzem na alma, não só dos espectadores, mas idêntica natureza, logo sem diferenciação sexual'**, são afectadas
daquela que se lhes presta, sensações, imagens, desejos. pelos movimentos dos corpos a que estão ligadas. Recebem de
A arte da virgindade, segundo Basílio de Ancira, apresenta dois certo modo a impregnação do seu sexo corpóreo, tornam-se mas-
aspectos. Comporta em primeiro lugar aquilo a que poderíamos culinas ou femininas e não podem aceder ao amor do Deus incor-
chamar uma tecnologia da separação ou do corte. póreo a não ser rompendo essas afecções. A esta ruptura Basílio
Interrupção, para começar, do desejo natural. Basílio explica a dá duas formas, que, uma e outra, embora de maneira diferente,
atracção dos sexos por um princípio geral que vale da mesma ma- «repousam sobre a ideia de uma certa equivalência entre o prazer
neira para os seres humanos e para os animais. Para povoar a como princípio de atracção entre os sexos, e o prazer como forma
Terra, Deus serviu-se de "germes prototípicos", aos quais deu a fgeral de obscurecimento ou de aumento de peso da alma através
possibilidade de se reproduzirem separando do corpo dos machos do corpo. Basílio começa por explicar que o prazer (hêdonê) é
um "segmento"; este constitui a fêmea à qual o indivíduo mascu- genericamente único, que devemos por isso não só dominar aque-
lino visa reunir-se. A esta tendência para a reunificação, Basílio dá ile que nos impele à união dos sexos, mas também todos os outros.
sucessivamente duas formas: a atracção mútua, que parece colocar E , uma vez que através dos cinco sentidos na direcção dos objec-
macho e fêmea em posição simétrica (ontologicamente, são as tos sensíveis, depois destes últimos, de regresso, na direcção da
duas partes de um mesmo indivíduo); e a pulsão do macho no alma, o fluxo de prazer não cessa de ir e vir, de se agitar e trazer
sentido da fêmea, que, por uma dissimetria "fisiológica", põe de a sua perturbação, devemos pois — e será essa uma parte capital
um lado o princípio de atracção, do outroa força do movimento. na arte da virgindade — vigiar essas saídas e esses canais, manter
A fêmea é como o íman; o macho como o metal. A mulher é pas- sob a nossa vigilância a porta dos sentidos. Devemos assegurar
siva, uma vez que é para ela que o macho se dirige; mas é também toda uma economia dos fluxos do prazer por meio de uma atenção

187 "Areskei de toiautê hoian autos autên plasai êthelêsen", ibid., 17. O raesrào 188 A questão da diferenciação sexual nas almas era uma velha questão. Assim
argumento aparecia em CIPRIANO, cf. supra pp. 175-177. % TERTULIANO [(Do Véu das Virgens, 7-8; Da Alma, 27, etc.)].
228 Aí, Confissões da Carne 229
Michel Foucault

incidindo, nos limites do corpo e do mundo exterior, sobre os ór- vigorosos, os seus movimentos movam a alma com demasiada
gãos da percepção e sobre aquilo que eles podem perceber. Eco- força. Por fim, mais geralmente ainda: evitar o contacto de todo o
nomia do olhar, que não deve orientar-se ao acaso para tudo o que corpo (como lugar de todos os contactos) com a alma. Este tema
os olhos podem captar; economia do ouvido, que não deve atender da separação entre alma e corpo, do seu isolamento recíproco,
a qualquer palavra que seja, mas antes ao que é útil aprender. reaparece ao longo de todo o texto sob diferentes formas: imagem
Trata-se, em suma, de um encerramento selectivo do corpo em da alma que deve fechar com cuidado as suas janelas, em vez de
relação ao mundo exterior, em função de um perigo intrínseco nos ser como essas prostitutas que as mantêm escancaradas e não pa-
movimentos do prazer que perturbam e de certo modo "sexuali- ram de nelas se mostrar""; do dono da casa que com cautela man-
zam" a alma. tém fechada a sua porta quando os soldados tentam penetrar
Ora, entre todos os sentidos que se trata de fecharmos pelo me- dentro dela em busca de alojamento"'; da água e do azeite que têm
nos parcialmente, há um ao qual Basílio dá um lugar central. É o de se conservar separados se não quiserem turvar-se"^. Que a al-
tacto. Ele explica este lugar com várias razões: o tacto é mais ma e o corpo permaneçam pois cuidadosamente separados uma
poderoso do que todos os outros sentidos para suscitar os prazeres do outro: mantendo-os a ambos "no seu lugar, na sua condição e
do sexo. É igualmente importante para o paladar (do qual Basílio em conformidade com o seu uso", far-se-á, entre eles, reinar a
parece fazer uma espécie de tacto), ora, o comer e beber contam-se paz"'
entre os factores mais importantes que estimulam os prazeres se- Mas estes diversos procedimentos de separação — relativos aos
xuais. Finalmente e sobretudo, o tacto funciona, para Basílio, co- sentidos e às coisas sensíveis, ao corpo e ao mundo e à alma e ao
mo a forma geral de todos os sentidos: é ele que, em cada um de- corpo — não são para Basílio mais do que um dos lados da arte
les, transporta até à alma a imagem das coisas exteriores cujas da virgindade. Todo um outro aspecto diz respeito à própria alma
espécies vêm tocar o corpo; é ele que as faz atravessar o corpo e e ao trabalho que ela deve efectuar sobre si mesma. Que a pureza
mover a alma. O tacto constitui de certo modo o suporte geral de do corpo nada é sem a da alma, é um tema muito tradicional a que
toda a sensibilidade corporal. E m cada forma de sensação está Basílio confere várias formas. A da dupla pureza: devemos prestar
mais ou menos presente, é mais ou menos activo, mais ou menos tanta atenção aos movimentos da alma como aos do corpo. Não se
determinante. Se, portanto, quisermos controlar o movimento dos pode ser considerado virgem senão sendo-o de alma e corpo: "Se
prazeres que corre ao longo dos canais dos sentidos, é no tacto que repelirmos por meio do jejum as paixões do corpo, mas deixarmos
devemos fazer incidir maior atenção. "Evitar os contactos": precei- a alma agitada pelo que lhe é próprio, a inveja, a hipocrisia e os
to que deve ser entendido no sentido preciso das palavras — Ba- movimentos das outras paixões, não tornaremos a abstinência do
sílio cita algumas das suas aplicações particulares: evitar os abra- corpo útil à virtude. E , se purificarmos a alma das suas paixões,
ços, os contactos entre homens e mulheres, ainda que de irmãos e mas deixarmos o corpo abandonado aos prazeres do ventre e às
irmãs se trate, ao passo que são sem perigo aqueles que têm lugar outras delícias, ainda que sem a desordem do impudor, não pode-
entre duas pessoas do mesmo sexo'*' —, mas que devemos enten-
der também de modo mais geral: diminuir a força do corpo, enfra-
190/Wí/., 15.
quecer a sua capacidade de repercussão, evitar que, demasiado
191 Ibid.
mibid.,46.
189 BASÍLIO D E ANCIRA, Da Integridade da Virgindade, 44-45. m Ibid., 41.
230 .Confissões da Carne 231
Michel Foucault

remos tornar a nossa vida perfeita na virtude.""" A da pureza de sempre misturado à alma e que segue os seus movimentos,
princípio da alma, que constitui o elemento primeiro e determi- encontrar-se-ia assim corrompido por ela e acompanhá-la-ia nos
nante por comparação com a integridade do corpo: "Porque, se a :'• seus sonhos"'. Devemos pois trabalhar sem descanso para apagar
alma for sem corrupção, o corpo conservar-se-á também sem ; tais imagens e lhes substituir, na cera da alma, por meio de medi-
corrupção; mas se a alma tiver sido corrompida pelos maus pen- - tacões, as figuras, os "caracteres" das coisas santas"*.
samentos, ainda que o corpo pareça permanecer sem corrupção, Mas devemos considerar também que na alma podem efectuar-
não acharemos pureza na sua ausência de corrupção, pois estará - -se actos. Não é necessário, para que haja acto, que este seja leva-
corrompido por pensamentos contaminados.""' Por fim, a propó- do a cabo pelo corpo. Basílio, no entanto, não se refere aqui a uma
sito da castração física, Basílio faz valer o princípio da intenção tíf concepção jurídica que faria equivaler a intenção completa à exe-
que constitui o pecado. Não só não há mérito em quem se torna ^ ' cução do próprio projecto. Utiliza uma fisiologia da alma segundo
fisicamente eunuco voluntário, mas é porque recusa assegurar ele ' - a qual todos os pensamentos viriam inscrever-se na "tábua" da
mesmo a virgindade da sua alma, e por isso consente no desejo • i ; alma como num quadro, do qual não se apagariam, ainda que os
sem se permitir o acto, que devemos considerá-lo pecador: "a recobrisse o esquecimento ou a desatenção. Todo o pensamento é
ablação das partes denuncia o adiíltero que se mutila", "desarmou-
H p i m acto, e continua a ser um acto na alma, na medida em que o
-se pois excluindo o instrumento do adultério, para que se não
seu desenho nela subsiste. Basílio recorre neste ponto à compara-
pense que fornica com o seu corpo, e contudo fornica em inten-
ção com os signos da escrita: aquele que os aprende inscreve-os na
ção""*.
sua alma e não precisa de escrever realmente para que as letras
Um trabalho específico de purificação da alma é portanto ne- fiquem gravadas na sua alma. Sem essa inscrição, como poderia
cessário, além de todas as abstenções, separações e encerramentos
I escrever quando o deseja? Do mesmo modo, os pensamentos
das quais a do corpo necessita. Basílio evoca em primeiro lugar a depositam-se como outras tantas marcas na alma. E , quando vier
questão da remanescência das imagens: os objectos que impressio- a morte, e a alma se libertar, então toda essa letra miúda dos pen-
nam os sentidos podem bem desaparecer, mas a sua imagem con- samentos, que até então se mantinham velados, surgirá em plena
tinua na alma. Fizeram como esses dardos inflamados que incen- luz. E nenhum dos actos de pensamento, ainda que de entre os
deiam o alvo em que se cravam, ou imprimem como sobre cera mais secretos, escapará ao olhar daquele que tudo vê. A alma que
uma marca que fica. É necessário, por isso, uma vez que não se quer permanecer virgem deve pois vigiar continuamente até mes-
podem ter sempre fechados os olhos do corpo, cuidar de não con- mo os movimentos mais secretos do seu pensamento.
servar semelhantes imagens. De nada serviria jejuar e enfraquecer * Finalmente, a pureza da alma não pode ser assegurada sem uma
o corpo, continuando a cultivar tais pensamentos. Que alma pode- vigilância constante sobre o que, no interior de si mesma, pode ser
ria dizer-se virgem se continuasse a abraçar aquele que ama "com causa de ilusão e enganá-la. A alma é sempre susceptível de se
as mãos incorpóreas do pensamento"? O, corpo, que se mantém deixar surpreender. Pode sê-lo pelo jogo das semelhanças e das
naturezas contrárias que se escondem sob espécies análogas. Lem-
\94 Ibid.
195 Ibid.Ai; cf. ibid.,13. ^
196 Ibid., 61. Contra o eunuquismo, Basílio faz também valer, a partir de consi- 197 Veremos, mais adiante, a importância desta questão da imagem no sono, da
derações fisiológicas, os restos de desejo que assombram o corpo e são ainda mais contaminação que acarreta no corpo, e da complacência que a provoca.
violentos por não poderem encontrar saída. ^
198 Ibid., 13.
232 233
Michel Foucault As Confissões da Carne

brando o adágio grego segundo o qual os vícios são vizinhos recônditos a alma é pois não só visível, como actualmente vista.
próximos das virtudes, Basílio reinterpreta-o a partir das astúcias Esse olhar, ou antes, esses olhares indefinidamente numerosos não
do demónio: à porta de cada virtude, o demónio colocou a porta, são os seus. A alma assegurará a sua virgindade se, tanto quanto
muito semelhante, do vício: julgamos bater à primeira, e é a outra lhe for possível, se esforçar por se ver a si mesma e velar sobre
que se abre. Assim, aqueles que queriam ser corajosos revelam-se tudo o que nela se passa, à maneira de todos os outros olhares que
temerários, e aqueles que queriam evitar a temeridade revelam-se percorrem sem obstáculo os seus segredos.
timoratos"'. Mas pode haver também engano devido à proximida- Na época em que Basílio de Ancira escreve, as instituições mo-
de: a alma crê amar o Senhor e deixa-se prender pelos seus servi- násticas estão em pleno desenvolvimento; mas, em termos mais
dores; ou ainda começa por amar a beleza de uma alma, mas, co- gerais, difundiu-se também toda uma prática regulada, reflectida
mo esta se manifesta através dos corpos que olhamos, das vozes e controlada de ascetismo. E difícil precisar a quem se destina ao
que escutamos, acaba por "amar, em vez da alma que fala, aquilo certo o tratado endereçado a Letoio. Mas os conselhos que dá e as
por meio de que ela fala"^°° — um pouco como se, em vez de gos- prescrições, não sistemáticas, que propõe incidem sobre os mes-
tarmos de um músico, fosse do seu instrumento que nos agradás- mos pontos essenciais que a direcção espiritual e o exame de
semos. consciência, conforme os encontraremos cuidadosamente descri-
Para uma tal vigilância sobre estes três pontos que já vimos tos em textos um pouco posteriores. Através deste tratado, vemos
como eram importantes na direcção de consciência — remanes- a prática da virgindade, que fora desligada do princípio de conti-
cência das imagens, movimentos espontâneos do pensamento, * nência e definida como uma experiência espiritual positiva,
ilusões e semelhanças —, Basílio dá uma justificação, um modelo organizar-se como um tipo de relação de si consigo, que se repor-
e uma sanção, no princípio da completa visibilidade da alma. Vi- ta não só ao corpo, como às relações do corpo e da alma, à aber-
sibilidade que é de certo modo materializada pelo quadro onde se tura dos sentidos, ao movimento dos prazeres através do corpo, à
inscrevem em marcas duradouras todos os movimentos que nela agitação dos pensamentos. Vemo-la abrir-se assim sobre um domí-
se produzem, mas visibilidade que se actualiza de três maneiras: nio de conhecimento interno em que se trata da sensação, das
no futuro, a morte libertará a verdade da alma e fá-la-á aparecer imagens e dos seus efeitos de remanescência, das actividades do
iluminada pela luz eterna; mas Deus pode permanentemente ver a pensamento, e de tudo o que na alma pode escapar quer aos ou-
nossa alma até ao fundo desta, não há seja que segredo for capaz tros, quer a si mesma, pelo efeito de uma ilusão ou da tenuidade
de lhe escapar^"'; e é também permanentemente que o anjo-da- do processo. Vemo-la enfim inscrever-se numa relação com o
-guarda vela sobre a alma: é para a [virgem-"^] o guia que deverá poder do outro e com o olhar que marca ao mesmo tempo uma
conduzi-la até ao Esposo^"'. E depois para lá dele, devemos pensar sujeição do indivíduo e uma objectivação da sua interioridade.
nos exércitos de todos os anjos e nos espíritos de todos os pais. Ao indicar estes processos a propósito do texto de Basílio de
Todos contemplam tudo e em toda a parte. Até aos seus mínimos Ancira, não pretendo que é aqui que os encontramos pela primei-
ra vez, nem decerto que foi aqui que se operou a transformação
199 Ibid., 36.
200 Ibid.
que lhe deu lugar. Detive-me um pouco nele apenas na medida em
201 Ibid.,27. que dá testemunho da existência, em meados do século iv e numa
202 [Manuscrito: "virgindade".] prática pastoral não definida, de uma técnica de si bastante elabo-
203 Ibid., 28. rada. Detive-me nele também porque nele vemos, em torno das
234 235
Michel Foucault j. confii.sões da Came

relações sexuais que o princípio de virgindade recusa, constituir- Conio os seus antecessores tinham feito para a virgindade, Cas-
-se todo um domínio (feito do corpo e da alma, de sensações, de siano distingue a continência da castidade. Nas Instituições, apoia
imagens e de pensamentos) sobre o qual se considera ser necessá- esta distinção no uso tradicional das palavras gregas e marca ao
rio intervir para que a exclusão das relações sexuais tome o senti- mesmo tempo a hierarquia de valores entre os dois termos: "Não
do espiritual positivo que dela se espera: o correlativo prático in- negamos que nas comunidades se encontrem também homens
dispensável de uma tal abstenção. Podemos constatar que não se continentes: é possível fazê-lo muito facilmente, reconhecemo-lo.
identifica nem com a totalidade do corpo nem com a da alma, Com efeito, são duas coisas diferentes ser continente — quer dizer,
atravessa-as a uma e a outra, da captação de um objecto pelos enkratês — e ser casto e, por assim dizer, passar a esse estado de
sentidos aos movimentos mais secretos do coração. integridade ou de incorrupção a que se chama hagnos, virtude só
concedida àqueles que se mantêm virgens na sua carne e no seu
- II - espírito, como foram [...] Jeremias e Daniel."^"'' Entre as duas no-
ções, há a diferença que vai do negativo ao positivo. De um lado,
A análise de Cassiano é muito diferente da de Basílio de Anci- abstenção externa em relação ao sexo, do outro, um movimento
ra. O seu quadro de referência é constituído pela prática monástica interior do coração: "A incorrupção da carne reside menos na pri-
— cenóbio para o texto das Instituições que se refere sobretudo vação de mulher do que na integridade do coração que conserva
aos iniciandos, e anacorese para as Conferências que relatam ex- sem corrupção a santidade pelo temor de Deus ou o amor da cas-
periências espirituais muito mais avançadas. Seja como for, os iidade."2t"
propósitos de Cassiano, as regras e as prescrições que avança Nas Conferências, Cassiano retoma mais longamente esta distin-
aplicam-se a uma forma de vida em que a renúncia a qualquer ção. Dá-lhe o mesmo valor fundamental: a continência é recusa,
forma de relações sexuais se operou já. Neste estádio, já não se rejeição (districtio); a castidade, força positiva que eleva e que se
trata de tomar em consideração os privilégios do estado de virgin- sustenta através do "deleite que toma da sua própria pureza"^"*.
dade sobre o do casamento, mas de desenvolver o que decorre Assim, os pagãos não são capazes senão de continência. Sócrates
dessa escolha prévia. Cassiano raramente emprega o termo de não era casto, ele que se abstinha de consumar o amor que experi-
"virgindade": a propósito de Elias e de Jeremias, que, "a usar do mentava pelos rapazes: fazia violência ao seu "desejo mau" e à
casamento, preferiram perseverar na virgindade"^""; e a propósito "volúpia do seu vício", sem os banir do seu coração^"'. Esta oposi-
das virgens loucas e das virgens prudentes, que são ditas umas e ção não está contudo isenta de uma certa ambiguidade. Cassiano,
outras virgens, porque não tiveram esposo, mas não praticando as com efeito, descreve o reinado da continência como um momento
primeiras mais do que a virgindade do corpo^"'. É o termo "casti- que deve durar todo o tempo enquanto subsistam os menores traços
dade" — castitas — que em Cassiano cobre a maior parte das de ardores carnais: "Enquanto resta alguma atracção pela volúpia,
questões ou dos temas que Gregório de Nissa, Basílio de Ancira, não se é casto mas íão-só continente [...]. Enquanto experimenta-
Crisóstomo e de uma maneira geral os Padres Gregos associavam
à prática da virgindade e às regras internas desse estado. 206 J. CASSIANO, Instituições, V I , 4.
207/fad.,VI, 19.
208 "Propriaeparitatis delectatione subsistit", J. CASSIANO, Conferências, X I I ,
204 J. CASSIANO, Conferências, X X I , 4.
10.
205 Ibid., X X I I , 6.
^9Ibid.,XE,5.
236 Miche! Foucault As Confissões da Carne 237

mos as revoltas da carne, reconheçamos [...] que permanecemos A castidade deve pois ser pensada em termos de estado e em
ainda sob o ceptro débil da continência, fatigados por constantes termos de combate: tranquilidade que já nada pode perturbar —-
combates, cujo desfecho continua a ser necessariamente duvido- mas que já não é "uma virtude humana ou que pertença à Terra;
so."^'" Por comparação com estes esforços da continência, a casti- assemelha-se antes ao privilégio do céu, ao dom particular dos
dade aparece como um estado terminal em que já não se têm de anjos"^'*; e também força de confrontação que requer, para poder
combater "os movimentos da concupiscência carnal"^"; é então, e triunfar, ardor e paixão, e um desejo que não deixa de ter paren-
só então, que a alma se pode tornar "a morada do Senhor", que não tesco com aquele mesmo que se esforça por combater. Para chegar
está nunca nos "combates da continência", mas "na paz da castida- à castidade, diz Cassiano num texto notável, "que cada um se in-
de"^'^. Ora, Cassiano insiste em toda a sua obra — e tal é precisa- flame [...] do mesmo desejo e do mesmo amor que se vêem no
mente o tema da X I I Conferência consagrada à castidade — no avarento devorado pela cupidez, no ambicioso que a sede das
facto de a luta contra os assaltos da carne não poder ser tida nunca honrarias trabalha, no homem arrebatado pela violência intolerá-
por definitivamente acabada. "Temos também um corpo, que é vel da sua paixão por uma beleza feminina, quando, no ardor de
uma pobre besta de carga."^" Aqueles não só recomeçam quando uma excessiva impaciência, anseiam por saciar o seu desejo"^".
os cremos vencidos, mas, como veremos, a sua ameaça tem para a Apesar de muitos pontos comuns com os grandes teorizadores
virtude um valor positivo: acontece-lhes ser efeito da beneficência da virgindade do século iv, a distinção que Cassiano estabelece
de Deus, que não quer que nos deixemos entorpecer na tranquiii- entre continência e castidade revela de facto uma paisagem bas-
dade da alma. De maneira que a castidade, como estado espiritual- tante diferente. Esta é dominada pelas noções de pureza de cora-
mente diferente da continência, constitui um ponto ideal em cuja ção e de combate espiritual, que adquirem sentido na especifici-
direcção devemos caminhar indefinidamente, sem termos a certeza dade da vida monástica da qual Cassiano se inspira seguindo
de o podermos alcançar por completo-'*. Mas Cassiano descreve-a Evágrio.
também por comparação com a continência (atitude negativa de
recusa) como uma força positiva que a redobra, a sustenta, a anima *
e transforma a simples abstenção em ascensão rumo a Deus: "Não
poderemos dominar nem banir o desejo das coisas presentes, se, no I . A pureza de coração. Para designar o estado de virgindade na
lugar dessas inclinações nocivas, que aspiramos a repelir, não lhes sua plenitude, Cassiano não recorre nunca ao vocabulário do noi-
fizermos suceder as salutares [...]. Queremos expulsar do nosso vado, que era tão constante de Metódio de Olimpos a Crisóstomo.
coração os apetites da carne: dêmos prontamente lugar às alegrias É verdade que utiliza por vezes termos que, até certo ponto, se
espirituais."-" aproximam daquele. Podemos relevar quatro de entre os princi-
pais. Cassiano fala da união que liga a alma a Deus^"*; da "fusão"
2 1 0 / è t ó . , X I I , 10. que a faz "afundar-se" nele-"; da entrada soberana do Senhor ne-
211 Ibid.,Xll, 11.
212 Ibid.
213/Wd., X I , 15. 216/Wd., X I I , 14.
214 Como veremos, só a graça pode permitir alcançá-lo, e as próprias tentações 217ftW.,XII,4.
são talvez uma graça. 218 Ibid., X, 8: "Deo jugiter inhaerere"
215/Wd., X I I , 5. 219 Ibid., I X , 18: "m illius dilectio resoluta atque rejecta."
238 Michel Foucauit As Confissões da Carne 239

la-^"; do movimento através do qual ele a toma e dela toma pos- possível a relação de conhecimento: que não haja perturbação no
se^^'. No entanto, não é a união sexual de dois indivíduos que olhar, nem sombra que escape à luz, nem mancha que ponha obs-
serve de modelo implícito ou explícito a esta experiência, mas o táculo à transparência. Em suma, à série virgindade-integridade-
acto de conhecimento considerado como relação entre olhar, ob- -ntípcias espirituais, que encontramos claramente desenvolvida em
jecto e luz. A alma ligada a Deus não é para Cassiano a noiva autores como Basílio de Ancira, Cassiano, à maneira de Evágrio,
enfim reunida ao esposo. É antes o olhar que não se distrai do substitui a série castidade-pureza de coração-contemplação.
ponto em que se fixou, e a ele se apega a ponto de nada mais ver. A relação da castidade com o conhecimento desenvolve-se en-
Quando fala da alma que se funde em Deus, Cassiano não pensa tão segundo dois eixos. Por um lado, a castidade aparece como
na esposa absorta na união espiritual, mas no acto de contempla- condição indispensável da ciência espiritual. A úhima, ninguém
ção que já não é mais do que uma só e a mesma coisa com o que pode pretender chegar se não praticar a castidade que dá a pureza
é contemplado. Quanto à presença de Deus na alma de que toma de coração. Desde o início das Instituições, Cassiano, ao dar a
posse sem que nada deixe escapar-se-lhe, não é à presença do Se- significação do traje monástico, mostra que o cinto (que marca a
nhor no leito nupcial que Cassiano a refere, mas ao raio de luz que vontade de destruir todos os germes de luxúria) testemunha o fer-
desce até dentro da alma e a ilumina, não deixando nela canto de vor do asceta "pelo progresso espiritual e a ciência das coisas di-
sombra algum. vinas dados pela pureza do coração"^^^. Mas é na X I V Conferên-
E que a vida monástica, cujas arte e disciplina Cassiano define, cia, a do abade Nesteros, que Cassiano dá a este tema toda a sua
tem por meta a contemplação. Aquele que renuncia ao mundo ""dimensão. O conhecimento espiritual exige a pureza do coração e
orocura chegar a esse "bem principal" que está estabelecido "na a castidade no sentido muito geral em que esta é incompatível com
teoria, quer dizer, na contemplação". Quando lhe tiver acedido, a a agitação dos pensamentos, o movimento desordenado da imagi-
alma não terá "outro alimento senão o conhecimento de Deus e a nação, e toda a preocupação pelas coisas do mundo: "Se quereis
alegria da sua beleza". A relação de conhecimento sustenta a rela- levantar no vosso coração o sagrado tabernáculo da ciência espiri-
ção da alma com Deus. E até mesmo no momento em que a rela- tual, purificai-vos da contaminação de todos os vícios, abandonai
ção se torna junção, fusão, posse, é ainda sob a forma de conheci- as preocupações do século presente. É impossível que a alma
mento, ou mais precisamente segundo o modelo do olhar e da luz, ocupada, ainda que ligeiramente, dos cuidados invasivos deste
que Cassiano a reflecte. Por conseguinte, a castidade não tem para mundo mereça o dom da ciência, ou seja fecunda em inteligência
ele o mesmo pape! que a virgindade entre os autores dos quais espiritual, ou retenha com firmeza as leituras santas que fez."^-'
anteriormente falámos. Para estes, tratava-se de conservar na alma Mas, de maneira muito mais precisa, a castidade como domínio
a integridade que lhe permite chegar ao Esposo sem ter sofrido das paixões carnais em sentido estrito é indispensável à ciência
nunca mácula. Para Cassiano, a castidade tem por papel assegurar espiritual. Esta, como um perfume, não pode subsistir num vaso
uma "pureza de coração" ou uma "pureza de espírito" que torna contaminado: "O vaso penetrado de cheiros repugnantes infectará
mais facilmente o perfume mais odorífero do que ele mesmo re-

220 Ibid., I X , 19.


221 Ibid., X I , 13: "Quem semel sua virtute possederit, non partem, sed totam ejiis 222 J. CASSIANO, /ní/i7«ifõeí, 1,11.
occupet mentem" ["Quando tomou posse de uma alma, não a possuiu somente em 223 J. CASSIANO, Conferências, XIV, 9. "É impossível que a alma que não é pura
parte, mas inteira", tradução de E . Pichery]. obtenha o dom da ciência espiritual" {ibid., XIV, 10).
240 Michel Foucauh As Confissões da Carne 241

ceberá alguma suavidade ou agrado; porque aquilo que é puro se Mas esta pureza do coração está ligada ao conhecimento segun-
corrompe mais depressa do que se purifica o que está corrompido do outra direcção muito diferente: a que se orienta, reflexivamen-
[...]. Se o vosso coração deseja pois respirar o seu perfume incor- te, para a própria alma, os seus recônditos e as suas profundezas.
ruptível, trabalhai primeiro com todas as vossas forças a fim de Por comparação com este conhecimento, a pureza não é simples-
obterdes do Senhor a pureza da castidade."^^" Por fim, devemos mente uma condição, mas simultaneamente um seu efeito. Não há
compreender que a castidade do corpo é a primeira forma de uma pureza de coração se a alma não velar atentamente sobre si mes-
série de "castidades" de que o espírito tem de se revestir para ma, surpreendendo os movimentos que nela se produzem e afas-
avançar a caminho do conhecimento espiritual sem jamais se se- tando tudo o que pode desviá-la da sua contemplação. Mas, inver-
parar delas. Devemos renunciar à fornicação do corpo se quiser- samente, é bem graças à pureza que o olhar interior pode penetrar
mos compreender as Escrituras, mas devemos manter-nos também os segredos do coração, iluminá-los e dissipar a sua obscuridade:
afastados dessa "fornicação" que são as cerimónias idólatras, as "Atravessando, assim, pela pureza do nosso olhar interior, as ne-
superstições pagãs, os augúrios, os presságios, e dessa outra forni- gras trevas dos vícios, poderemos manifestá-las à luz do dia, e
cação que é a observância da lei à maneira judaica, dessa outra seremos capazes de descobrir as suas causa e natureza."^^' Ora, o
ainda que consiste na heresia, dessa última enfim que faz com que que é importante notar nesta análise de Cassiano é que a luz assim
o pensamento se desprenda por pouco que seja de Deus sobre o trazida ao coração não o ilumina de uma vez só, expulsando dele
qual deveria manter-se sempre fixo. E , à medida que estas diferen- tudo o que de impuro possa acoitar. Dissipa as trevas no sentido
tes fornicações forem afastadas e que o espírito for casto neste em que faz aparecer o que se pode esconder nelas. Mas o que nelas
sentido cada vez mais espiritual, a significação da Escritura se esconde é impureza, e é dessa impureza que devemos libertar-
libertar-se-á dos seus mistérios e aparecerá com valores cada vez -nos pouco a pouco, por meio de um exame atento, uma vigilância
mais espirituais^^'. A castidade praticada e a compreensão da pa- que não afrouxa nunca, um remorso constante e a confissão que
lavra crescem simultaneamente em espiritualidade. A tal ponto dela fazemos. De tal maneira que, através de uma circularidade
que, passando ao limite, Cassiano acabaria por dizer, nas Institui- que está no centro deste ascetismo do conhecimento de si, quanto
ções, que a castidade, sob a sua forma perfeita, basta para a inteli- mais puros somos, mais luz temos para melhor nos conhecermos;
gência das Escrituras: evoca Teodoro, que devia o seu conheci- quanto mais nos conhecemos, mais nos reconhecemos impuros;
mento do Texto não tanto a uma "leitura estudiosa" — mal quanto mais nos reconhecemos contaminados, mais profunda-
chegava a saber umas quantas palavras do grego — "como unica- mente devemos fazer penetrar a luz que dissipa as trevas da alma.
mente à pureza do coração"^-*. .Evocando os grandes mestres espirituais, os que não se perdem em
"discussões ocas" mas têm a experiência e a prática da virtude,
Cassiano diz que a pureza "lhes trazia principalmente o seguinte:
224/W(/„XIV, 14e 16.
225 Ibid., XIV. reconhecerem-se cada vez mais enfraquecidos pelo pecado —
226 J. CASSIANO, Instituições, V, 33. Em V I , 18, João Cassiano dá uma formu- porque a compunção perante as suas faltas crescia de dia para dia
lação mais prudente: "É sem dúvida possível encontrar pessoas castas que não na proporção do seu progresso na pureza da alma —, e suspirarem
possuem a graça da ciência, mas é impossível possuir a ciência espiritual sem
constantemente do fundo do coração sentindo que nunca pode-
uma castidade completa." De facto, como o prova a continuação do exemplo de
Teodoro, é a graça de Cristo que concede à sua castidade ignorante a compreensão
dos mistérios da Escritura. 227/to., V, 2.
242 Michel Foucault As Confissões da Carne 243

riam evitar as manchas e as contaminações dos pecados, cuja 2. O combate espiritual. A referência ao combate espiritual
marca viam no detalhe minucioso dos seus pensamentos"-^^. não está ausente dos tratados de virgindade do século iv. Discre-
Numa passagem da Conferência sobre a oração, a alma é com- ta em Gregório de Nissa, é muito mais frequente em João Crisós-
parada a uma pena: as contaminações tornam-na pesada, a pureza tomo. Permite reportar o esforço característico da profissão de
assegura-lhe pelo contrário uma leveza ontológica que permite virgindade ao tema do mártir que, atravessando as provas, triun-
que o mais pequeno sopro a eleve na direcção do éter^^'. Estamos fa sobre elas e recebe a coroa"'. E m Cassiano, a noção de com-
aqui perante uma maneira de marcar a relação fundamental da bate não tem simplesmente um valor de referência, mas, em
castidade com a luz. Mas podemos ver como, na prática ascética, parte, comanda também a análise"^ Após a exposição das re-
esta relação assume formas complexas. A castidade é condição de gras da vida monástica, toda a segunda parte das Instituições
acesso a uma compreensão das Escrituras, uma abertura a um Cenobíticas se apresenta como um tratado do combate espiri-
sentido espiritual, uma recta direcção do espírito, uma imobilida- tuaP". Combate acerca do qual, incansavelmente, Cassiano su-
de do olhar da alma até à contemplação de Deus. Mas desta con- blinha, evocando um texto da Segunda Epístola a Timóteo (2,
templação não podemos aproximar-nos sem um conhecimento de 15), que deve ser conduzido devidamente e segundo as regras
nós mesmos que nos descubra nas nossas impurezas; e, por seu — legítimo-^'^. Quer dizer que a vida do monge, pelo menos en-
turno, de onde tiraria este conhecimento a sua luz e a sua força quanto não alcançou a tranquilidade da vida contemplativa, en-
senão do Verbo de Deus, que penetra em nós e nos descobre tal quanto é ainda vida activa, deve desenrolar-se como um comba-
como somos sem que sejamos capazes de o vermos por nós mes- te ininterrupto cujas armas e tácticas têm de ser aprendidas. As
mos? É assim que ele nos faz "sucumbir à nossa indagação e à Instituições formam o manual dessa aprendizagem. Expõem as
nossa exposição {indagini nostrae atque expositioni), e, 'quebran- regras gerais do combate, especificam as suas formas particula-
do assim as portas' da ignorância e 'rompendo os ferrolhos' dos res segundo os diferentes adversários a combater, e sublinham
vícios que nos excluem da verdadeira ciência, conduzir-nos-á aos por fim a necessidade de as adaptarmos às situações particulares
nossos 'mistérios secretos' e, segundo o Apóstolo, revelar-nos-á, e às forças de cada um. Disciplina geral que deve compor-se com
uma vez iluminados, 'os segredos das trevas e manifestar-nos-á os um princípio de "discernimento""\
pensamentos dos corações'""". Devemos conceber pois o duplo
processo de uma exposição à luz dos arcanos do coração que é ao
231 Cf. em particular SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, Da Virgindade, X X X V I I I . Ver
mesmo tempo condição e efeito do conhecimento de Deus e de um igualmente V I I , 17 e 22; I X , 24; LXXXIV, 3.
caminhar rumo à ciência espiritual que não pode fazer-se sem um 232 Esta noção de combate é central tanto em Pacóraio como em Evágrio.
conhecimento de si que ela torna possível. E , no ponto de articu- _^233 "Depois de termos composto quatro livros sobre as instituições dos mosteiros,
dispomo-nos agora [...] a travar o combate contra os oito vícios principais", J.
lação destes dois processos, a castidade.
CASSIANO, Instituições, V, 1.
234 As expressões respeitantes à "correcção" do combate são muito numerosas.
Assim, a título de exemplo, ibid., V, 17 e 18; V I , 5; V I I I , 5; IX, 2; X I , 19; X I I , 32.
235 Assim a propósito do combate contra a gula: "não é fácil a observância de
uma regra uniforme para o jejum. [...] Uma resistência física desigual, a idade ou
228 Ibid., X I I , 15. o sexo podem fazer variar o tempo, a quantidade e a qualidade do alimento; mas
229 J. CASSIANO, Conferências, IX, 4. a virtude interior de continência impõe a todos a mesma obrigação de se mortifi-
230 J. CASSIANO, Instituições, V, 2. carem",/Wd., V, 5.
244 245
Michel Foucault Confissões da Carne

De que tipo de combate se trata? Os termos usados por Cassia- Quem é este outro, e contra quem deve ser o combate travado?
no abrem um largo leque: colluctatio, agon, certamen, pugna, A segunda parte das Instituições (capítulos V - X I I ) enumera as
bellum. Os primeiros de entre estes termos fazem referência ao oito formas de combate necessárias e os oito adversários: gula,
combate do atleta que depara com um rival e deve, para o vencer, fornicação, avareza, cólera, tristeza, acedia, vanglória, orgulho.
ter seguido uma preparação, ter sido qualificado, e ter usado con- Reconhecemos aqui um esboço do quadro que se tornará mais
tra ele dos procedimentos regulamentares que o autorizam a final- tarde o dos sete pecados capitais^'*. Mas, tal como não devemos
mente receber a coroa. Mas os outros termos são tomados de em- confundir pecado capital e pecado mortal, não devemos ver nos
préstimo ao vocabulário da guerra: expulsar o inimigo, desarmar oito adversários designados por Cassiano uma espécie de código
os seus ardis, repelir o assalto das suas tropas. Por um lado, a luta dos actos a não cometer ou das leis cuja transgressão será punida.
espiritual reporta-se ao modelo atlético, pelo outro, ao modelo Nada aqui há de estrutura ou valor jurídico. Devemos ter presente
militar. De facto, não há descontinuidade entre o primeiro e o se- que esta lista de Cassiano deriva directamente de Evágrio. Ora,
gundo. Uma longa passagem desse capítulo V, que, dando as regras este não procurava traçar um quadro das faltas ou dos interditos,
do primeiro combate a travar (contra a gula), delineia o método queria estabelecer uma tipologia dos pensamentos. "Oito", dizia
geral da luta, é característico desta dupla referência. Começa por • ele, "são os pensamentos genéricos.""' E estes pensamentos, na
um exemplo de alusões à prática do atletismo e dos jogos: treino medida em que vêm agitar a alma, perturbar a sua tranquilidade
dos concorrentes, exame no termo do qual se aceitam os candida- ou toldar o seu olhar, são-lhe insinuados pelos demónios: daimo-
tos, método usado pelos lançadores de dardo, preparação e prática niôdeis logismoi. Não depende pois de nós, mas dos demónios que
dos pugilistas, etc.^'* Mas, insensivelmente, Cassiano passa ao te- nos assaltem. E de nós, em contrapartida, que depende o facto de
ma da batalha entre inimigos. O soldado substitui então o atleta: se demorarem ou não, suscitarem ou não paixões-"".
contra ele, "tropas", "coortes de adversários" que ele deve repelir Cassiano não emprega o termo "demónio" para designar os oito
do território; há inimigos no exterior, mas há também inimigos adversários contra os quais se subdivide o combate espiritual.
internos que o enfraquecem por meio de "lutas intestinas""^ Chama-lhes "espírito" (spiritus): espírito de gula, espírito de for-
O entrelaçamento destas duas metáforas faz aparecer duas com- nicação, espírito de avareza, etc. Os seus recursos à grande demo-
ponentes essenciais do combate espiritual. Por um lado, como nologia, que era tão importante no monaquismo egípcio, são bas-
prova atlética, este combate supõe exercício, treino, vontade de se i tante discretos. Mais do que nas Instituições, é nos textos mais
superar a si mesmo, trabalho de si sobre si, controle e medida das especulativos das Conferências que dá, não o sistema geral dessa
próprias forças. Ascese no sentido estrito do termo. Mas, como demonologia, [mas] as indicações indispensáveis à compreensão
guerra contra um adversário (e ainda mais inimigo incansável, do que são aqueles espíritos, quais são a origem e os modos de
susceptível de todos os ardis, do que rival num jogo honesto), a acção daquelas "forças adversas"-"'. Não devemos crer que pene-
luta desenrola-se contra um outro. Atlético, o combate impõe um
modo de relação de si consigo mesmo. Belicoso, é uma relação 238 Sobre a história destas listas dos pecados capitais, cf. A. GUILLAUMONT,
com um elemento irredutível de alteridade. ["Introduction" no volume I do Traité pratique d'Évagre le Politique, pp. 67
esgs.].
239 EVÁGRIO PÔNTICO, Tratado Prático, 6.
27,6 Ibid.,y, 12.
240 [Ibid.]
237/èíd.,V, 19-21.
241 [J. CASSIANO, Co/i/e/êncwí, VIII, 13.]
246 As Confissões da Carne 247
Michel Foucault

trem na própria alma e nela se instalem. Há decerto entre eles e a Vários caíram de entre os que se sentiam abrigados e porque se
alma humana parentesco e semelhança de natureza, mas a alma é criam abrigados. Mais precisamente, porque criam que essa pro-
impenetrável. Os espíritos não podem senão instalar-se o mais pró- tecção, era a si mesmos, aos seus exercícios, ao seu progresso e à
ximo possível dela, quer dizer, num corpo, e mais facilmente num sua força que a deviam. De facto, era a sua confiança que os expu-
corpo enfraquecido que lhes dá lugar. A partir desta inserção ma- nha, a sua segurança que os tornava frágeis. Aqueles contra os
terial, suscitam no corpo movimentos que, por seu turno, induzem quais o Inimigo já nada pode são os que sabem que nada podem
pensamentos, imagens, recordações, etc. Insidiosamente estes pen- contra o Inimigo se Deus não vier em seu auxílio: "A experiência
samentos fazem o seu caminho na alma ainda mais perigosamente e os testemunhos inumeráveis da Escritura persuadem-nos sobeja-
pelo facto de a sua origem se esconder, podendo cada um de nós mente que as nossas forças humanas, se não se apoiassem sobre o
imaginar que é de si mesmo que vêm. Mas não é tudo: o demónio socorro que só Deus pode der, não poderiam vencer tão poderosos
pode ver como reage a alma a tais insinuações. Não que o seu olhar inimigos, e que é a ele que devemos referir a cada dia toda a hon-
possa penetrar no interior da alma, mas, emboscado no corpo, pode ra das nossas vitórias."^"' A partir daqui os assaltos dos pensamen-
observar, pelos movimentos que nele se produzem, de que maneira tos maus iluminam-se de um valor completamente diferente: se se
a alma acolhe ou rejeita as sugestões que lhe faz. Pode portanto apaziguassem, ou até mesmo fossem sempre sem vigor, a alma
continuá-las, intensificá-las, modificá-las; pode também mudar in- não tardaria a adormecer na sua confiança em si mesma ou a
teiramente os seus ataques, tentar, depois de um "género" de pen- orgulhar-se da presunção de estar fora do seu alcance. Seria então
samentos, uma categoria completamente diferente, etc. Trata-se em que a força adversa poderia, por surpresa, vencê-la sem lhe deixar
suma de um jogo complexo entre a alma e o seu adversário, em que sequer a possibilidade de resistir. Há portanto um valor positivo na
os pensamentos são enviados, repetidos, aceites, de novo relança- permanência e na intensidade do combate. Devemos por isso ver,
dos por intermédio do corpo que lança e recebe movimentos. Nes- nesta perpétua e sensível ameaça do mal, um benefício. Logo, um
tes o Inimigo detecta sinais que guiam a sua acção, e é neles tam- efeito da beneficência de Deus. A guerra que nos atravessa, "digo
bém que a alma deve reconhecer os sinais da presença do seu que é o efeito de uma providência divina. [...] Assim, a guerra que
adversário. O combate espiritual é pois indissociavelmente con- uma disposição do criador acende em nós tem de certa maneira a
fronto com o outro, dinâmica de movimentos que passam da alma sua utilidade: excita-nos; força-nos a tornarmo-nos melhores; e se
ao corpo e inversamente, tarefa enfim de decifração procurando chegasse a acabar, veríamos suceder-lhe uma paz funesta"^"". Cas-
captar o que se esconde sob as aparências de si mesmo. siano acaba assim por lamentar os que são castos por natureza: a
Quanto ao termo "combate", se é idealmente definido pela tran- tepidez espia-os. "Livres da lei da carne, crêem não ter necessida-
quilidade da alma, a sua realidade é ambígua. Cassiano evoca de nem do labor da abstinência nem da contrição do coração. A
efectivamente a possibilidade de se chegar a um estado em que os sua segurança amolece-os, e nunca os vemos afadigarem-se a
assaltos do Inimigo, após tantos fracassos, terão enfim cessado. E buscar em vão ou a possuir a perfeição do coração, nem a purifica-
cita certas personagens santas que alcançaram esse cume. Mas, rem-se sequer dos vícios do espírito."-"' Paradoxo fundamental do
como já vimos^"^, tal estado não pode ser considerado nunca nem
como um direito adquirido, nem como uma posição inexpugnável.
243/Wd.,V, 15.
244/Wd., IV, 7.
242 [Cf. supra, pp. 2-36-237.] ^ 245/Wí/., IV, 17.
248 /vs Confissões da Carne 249
Michel Foucault

combate espiritual: só pode alcançar o seu termo continuando; se do bem, fazendo intervir as astúcias maléficas da ilusão, mas a
se interrompe, corre o risco de conduzir à derrota. As suas penas, vontade e a beneficência de Deus estão sempre presentes nos pe-
o seu labor, os seus sofrimentos são um bem indispensável. A sua rigos que a alma corre, ainda que esta, na sua cegueira, disso não
recompensa na tranquilidade seria um perigo temível. Não pode- se aperceba.
mos travá-lo sem nos fiarmos inteiramente em Deus, e quem re- De facto, e trata-se de um facto importante, na formação da
pousasse sobre essa força, sem se bater com todas as forças de si ética cristã, não é em torno da categoria de falta, ainda que alar-
mesmo, seria por ela abandonado-"*. gada, ainda que interiorizada, que o cristianismo desenvolveu as
Assim aparece o papel essencial da noção de tentação. Também tecnologias da alma ou de si mesmo, mas em torno da noção de
aqui, não foi a espiritualidade monástica a introduzir a sua ideia tentação, que é ao mesmo tempo uma unidade dinâmica nas rela-
complexa. Mas é certo que lhe conferiu um destino singularmente ções de si mesmo com o exterior, uma unidade táctica de recuo ou
importante e que em torno dela organizou alguns dos elementos de rejeição, de geração ou de expulsão, uma unidade de análise
mais decisivos da sua tecnologia. A tentação de maneira nenhuma que reclama, na reflexão de si sobre si mesmo, o reconhecimento
é uma categoria jurídica: não é nem uma faUa, nem o começo de do outro e das figuras interiores que o mascaram.
uma falta, nem sequer a intenção de a cometer. É antes de mais um O tema da castidade encontra-se assim enquadrado entre o prin-
elemento dinâmico nas relações entre o exterior e o interior da cípio de uma pureza de coração que o liga ao mesmo tempo ao
alma: é a insinuação na alma de um pensamento que lhe vem de objectivo da contemplação divina e à tarefa do conhecimento, e o
uma força diferente de si mesma. Não há tentação a não ser porque princípio de um combate espiritual que o liga, através da noção de
este pensamento está j á presente na alma, é pensamento desta al- tentação, à exigência da decifração do outro nos segredos da alma.
ma; mas é nela o traço de um movimento que vem de outro lugar,
o efeito de uma vontade estranha, é feita na alma de um rasto que ; *
remete para um outro. É em seguida um episódio dramático no
combate, uma batalha ou fase da batalha que pode ser ganha ou O combate da castidade é analisado por Cassiano no sexto ca-
perdida: a alma pode deixar-se surpreender e invadir por ela, ou pítulo das Instituições ("Do espírito de fornicação") e em várias
pelo contrário repeli-la e vencê-la; a tentação pode arrastar consi- de entre as Conferências: a quarta sobre "a Concupiscência da
go o desejo, ou pelo contrário suscitar a vontade ardente de a carne e do Espírito", a quinta sobre os "Oito principais vícios", a
afastar e de nos afastarmos dela. Por fim, é objecto de uma análi- duodécima sobre a "castidade" e a vigésima segunda sobre as
se necessária: porque, se a tentação é de facto um assalto contra a "Ilusões nocturnas". Figura na segunda posição numa lista de oito
alma, violento ou quase imperceptível, frontal ou insidioso, esse combates^"^, sob a forma de uma luta contra o espírito de fornica-
assalto pode vir do Diabo (não sem que Deus permita que o Ini- ção. Quanto a esta fornicação, subdivide-se por seu turno em três
migo possa assim perdê-la) ou pode vir de Deus (não sem que subcategorias^"*. Quadro de aparência muito jurídica se o aproxi-
Deus procure por esse meio pôr à prova a alma, exercitá-la e marmos dos catálogos de faltas como os que encontraremos quan-
reforçá-la, logo, salvá-la). No coração da tentação há sempre um
segredo por levantar: Satanás pode esconder-se sob as aparências
247 Os sete outros, como já vimos, são a gula, a avareza, a ira, a [tristeza], a acedia,
a vanglória e o orgulho.
246 Sobre tudo isto, cf. [nota incompleta].
248 Cf. infra, pp. 253-255.
250 As Confissões da Carne 251
Michel Foucauh

do a Igreja medieval organizar o sacramento da penitência segun- sobre aquele no qual se apoia. "A derrota do primeiro apazigua o
do o modelo de uma jurisdição. Mas as especificações propostas que se lhe segue; vencido aquele, este enfraquece sem mais la-
por Cassiano têm sem dúvida outro sentido. bor."^'^ No princípio dos outros, o par gula-fornicação, como "uma
Examinemos, para começar, o lugar da fornicação entre os ou- árvore gigante que estende até longe a sua sombra"-", deve ser
tros espíritos do mal. desenraizado. Daí a importância ascética do jejum como meio de
vencer a gula e de cortar prontamente o caminho à fornicação. Tal
1. Cassiano completa o quadro dos oito espíritos do mal através é a base do exercício ascético, pois é aqui que começa a cadeia
de agrupamentos internos. Estabelece pares de vícios que têm causal.
entre eles relações particulares (de "aliança") e de "comunida- O espírito de fornicação encontra-se também numa posição
de"^"': orgulho e vanglória, preguiça e acedia, avareza e ira. A dialéctica singular na sua relação com os últimos vícios e sobretu-
fornicação faz par com a gula. Por várias razões: porque são dois do com o orgulho. Com efeito, para Cassiano, orgulho e vanglória
vícios "naturais", que são inatos em nós e dos quais nos é por não pertencem à cadeia causal dos outros vícios. Longe de serem
conseguinte muito difícil desfazermo-nos; porque são dois vícios engendrados por eles, são provocados pela vitória que sobre eles
que implicam a participação do corpo, não só para se formarem, se obtém"": orgulho "carnal" perante os outros pela exibição que
mas para efectuarem o seu objectivo; porque, finalmente, há entre alguém faz dos seus jejuns, da sua castidade, da sua pobreza, etc;
eles ligações de causalidade muito directa: é o excesso de alimen- orgulho "espiritual" que faz crer que um tal progresso se deve
to que acende no corpo o desejo da fornicação^'". E , ou por estar
apenas aos méritos próprios"'. Vício da derrota dos vícios ao qual
assim fortemente associado à gula, ou pelo contrário devido à sua
se segue uma queda ainda mais pesada por nos fazer cair de mais
natureza própria, o espírito de fornicação desempenha, por com-
alto. E a fornicação, o mais vergonhoso de todos os vícios, o que
paração com os outros vícios entre os quais se conta, um papel
mais rubor causa, constitui a consequência do orgulho — castigo
privilegiado.
mas também tentação, provação que Deus envia ao presunçoso
Antes de mais, na cadeia causal, Cassiano sublinha o facto de para lhe lembrar que a fraqueza da carne continua a ameaçá-lo se
os vícios não serem independentes uns dos outros, ainda que cada a graça não vier em seu socorro. "Porque alguém gozou por muito
um de nós possa ser atacado, de modo mais particular, por um ou tempo da pureza do coração e do corpo, por uma consequência
outro^". Um vector causal liga-os uns aos outros: há de início a natural, [...] no mais fundo de si mesmo, glorifica-se em certa
gula, que nasce com o corpo e acende a fornicação; depois, este medida [...]. Mas o Senhor aparenta, para seu bem, abandoná-lo: a
primeiro par engendra a avareza, entendida como apego aos bens pureza que lhe dava tanta segurança começa a turvar-se; no meio
terrenos; a qual faz nascer as rivalidades, as disputas e a ira; do da prosperidade espiritual, ele vê-se vacilar.""* No grande ciclo
que resulta o abatimento da tristeza, que provoca o desgosto pela
vida monástica no seu todo e a acedia. Este encadeamento supõe
252/èíí/.,V, 10.
que nunca poderemos vencer um vício se não tivermos triunfado 253 [Ibid.]
254 Ibid.
255 J . CASSIANO, Instititíções, X I I , 2.
249/Wd.,V, 10.
256 J. CASSIANO, Conferências, X I I , 6. Ver exemplos da queda no espírito de
250 J. CASSIANO, Instituições, V, e Conferências, V. fornicação, devido à presunção e ao orgulho, in Conferências, I I , 13; e sobretudo
251 Conferências, V, 13-14. em J . CASSIANO, Instituições, X I I , 20 e 21, onde as faltas contra a humildade
252 •As Confissões da Came 253
Michel Foucault

dos combates, no momento em que a alma já não lutar senão con- Em contrapartida, não há limite na luta contra o espírito de forni-
tra si mesma, os aguilhões da carne fazem sentir-se de novo, mar- cação, tudo o que pode levar-nos a ele deve ser extirpado e nenhu-
cando assim o inacabamento necessário desta luta e ameaçando-a ma exigência natural pode justificar, neste domínio, a satisfação
de um recomeço perpétuo. de uma necessidade. Trata-se pois de fazer morrer inteiramente
Finalmente, a fornicação tem relativamente aos outros vícios uma inclinação cuja supressão não acarreta a morte do nosso cor-
um certo privilégio ontológico, que lhe confere uma importância po. A fornicação é entre os oito vícios o único que é ao mesmo
ascética particular. Tem, com efeito, como a gula, as suas raízes tempo inato, natural, corporal na sua origem e que é necessário
no corpo. Impossível vencê-la sem o submeter a macerações. En- destruir inteiramente como devemos fazer com esses vícios da
quanto a ira ou a tristeza se combatem "simplesmente pela indús- alma que são a avareza ou o orgulho. Mortificação radical por
tria da alma", ela não pode ser desenraizada sem "a mortificação conseguinte que nos deixa viver no nosso corpo libertando-nos da
corporal, as vigílias, os jejuns, o trabalho que quebra o corpo"-". carne. "Sair da carne permanecendo embora no corpo."^*' É a este
O que não exclui, pelo contrário, o combate que a alma deve travar para lá da natureza, na existência terrestre, que a luta contra a
contra si mesma, uma vez que a fornicação pode nascer de pensa- fornicação nos dá acesso. E "arranca ao Iodo terreno". Faz-nos
mentos, de imagens, de recordações: "Quando o demónio pela sua viver neste mundo uma vida que não é deste mundo. Porque é a
astúcia subtil insinuou no nosso coração a recordação da mulher, mais radical, trata-se de uma mortificação que nos traz, já neste
começando pela nossa mãe, as nossas irmãs, as nossas parentes ou mundo, a mais alta promessa: "na carne frágil", confere "a cidada-
certas mulheres piedosas, devemos o mais prontamente possível nia que os santos têm a promessa de possuir uma vez livres da
expulsar de nós essa recordação, temendo que, se nela nos demo- corruptibilidade carnal"^*^.
rarmos demasiado, o tentador tome disso ocasião para insensivel- Vemos pois como a fornicação, sendo embora um dos oito ele-
mente nos fazer pensar depois noutras mulheres."-'* No entanto, a mentos do quadro dos vícios, ocupa relativamente aos outros uma
fornicação apresenta uma diferença capital relativamente à gula. posição particular: à cabeça do encadeamento causal, no princípio
O combate contra esta última deve ser travado com mesura, pois do recomeço das quedas e do combate, num dos pontos mais difí-
não podemos renunciar completamente ao alimento: Devemos ceis, e mais decisivos, do combate ascético.
"prover às exigências da vida: [...] isto, por temermos que o corpo,
esgotado por nossa culpa, deixe de poder levar a cabo os exercí- 2. Cassiano na quinta Conferência divide o vício da fornicação
cios espirituais necessários"^". Esta inclinação natural pela comi- em três espécies. A primeira consiste na "conjunção dos dois se-
da, devemos mantê-la à distância, tomá-la sem paixão, não temos xos" {commixtio sexus utniisque); a segunda consuma-se "sem
de a arrancar: possui uma legitimidade natural; negá-la totalmen- contacto com a mulher" {absque femineo tactu) — o que valeu a
te, quer dizer, até à morte, seria "carregar a alma de um crime"-*". Onan a sua condenação; a terceira é "concebida pelo espírito e
pelo pensamento"^*'. Quase termo a termo a mesma distinção é
que devemos a Deus são sancionadas pelas tentações mais humilhantes, as de um retomada na décima segunda Conferência: a conjunção carnal
desejo contra usim naturae e da imundície de uma "paixão impura".
257 J. CASSIANO, Conferências, V, 4.
258 J. CASSIANO, instituições, V I , 13. 261 Instituições, y\, 6.
259/Wd.,V,8. 262 Ibid.
260 Conferências, y, \9. 263 Conferências, y, 11.
254 As Confissões da Carne 255
Michel Foucault

(carnalis commixtio), a que Cassiano dá aqui o nome de fornicatio mação de um acto sexual interdito: "Não sejas cobiçoso, porque a
no sentido restrito; depois a impureza, immunditia, que se produz cobiça leva à fornicação, abstém-te dos dizeres obscenos e dos
sem contacto com uma mulher, quando se dorme ou durante a olhares ousados, pois tudo isso engendra adultérios."^*'
vigília, e que é devida à "incúria de um espírito sem circunspec- A análise de Cassiano tem as duas particularidades seguintes:
ção"^*'*; enfim, a libido que se desenvolve nos "recônditos da al- não dar um lugar à parte ao adultério, que se insere na categoria
ma", e sem que haja "paixão corporal" {sine passione corporis)-^\ da fornicação em sentido restrito, e sobretudo não atender senão
Esta especificação é importante porque só ela permite compreen- às duas outras categorias. E m parte nenhuma, nos diferentes textos
der o que entende Cassiano pelo termo geral fornicatio, do qual em que evoca o combate da castidade, Cassiano fala das relações
não dá de resto qualquer definição de conjunto. Mas é importante sexuais propriamente ditas. E m parte nenhuma são considerados
sobretudo pelo uso que Cassiano faz destas três categorias e que é os diferentes "pecados" possíveis segundo o acto cometido, o par-
muito diferente do que podíamos encontrar em numerosos textos ceiro com quem é cometido, a sua idade, o seu sexo, as relações de
anteriores. parentesco que se possam ter com ele. Nenhuma das categorias
Existia com efeito uma trilogia tradicional dos pecados da car- que constituirão na Idade Média a grande codificação dos pecados
ne: o adultério, a fornicação (que traduzia a palavra grega porneia de luxúria aparece aqui. Sem dúvida Cassiano, dirigindo-se a
e designava as relações sexuais fora do casamento) e a corrupção monges que tinham feito o voto de renunciar a toda a relação se-
de crianças. São estas três categorias, em todo o caso, que encon- xual, não tinha de retomar explicitamente esse tema preliminar.
tramos na Didakhê: "Não cometerás adultério, não cometerás Devemos notar, contudo, que sobre um ponto importante do cenó-
fornicação, não seduzirás rapazes novos."^** São elas que encon- bio, e que suscitara em Basílio de Cesareia ou em Crisóstomo re-
tramos na carta de Barnabé: "Não cometas nem fornicação nem comendações precisas-™, Cassiano se contenta com alusões furti-
adultério, não corrompas as crianças."^*' Sucedeu com frequência vas: "Que ninguém, sobretudo entre os mais jovens, se demore
posteriormente que só os dois primeiros termos fossem retidos com outro, ainda que por pouco tempo, ou se retire com ele ou se
— designando a fornicação todas as fahas sexuais em geral e o dêem a mão.""' Tudo se passa como se Cassiano não se interes-
adultério as que transgridem a obrigação de fidelidade no casa- sasse senão pelos dois úkimos termos da sua subdivisão (concer-
mento^**. Mas de todas as maneiras era perfeitamente habitual ^nente ao que se passa sem relação sexual e sem paixão do corpo),
acompanhar esta enumeração de preceitos respeitantes à cobiça do
pensamento ou do olhar, ou a tudo o que pode conduzir à consu- 269 Didakhê, 111,3.
270 BASÍLIO DE CESAREIA, Exortação a Remmciar ao Mundo, 5: "Evita todo
o comércio, toda a relação com os jovens confrades da tua idade. Foge deles como
264/Wí/.,XII,2. do fogo. Numerosos são, por desgraça, aqueles que por seu intermédio o inimigo
265 Ibid. Cassiano apoia a sua tripartição numa passagem de [SÃO PAULO], Epís- incendiou e entregou às chamas eternas." Cf. as precauções indicadas nas Grandes
tola aos Colossenses, 3,5. Regras (34) e nas Regras Breves (220). Ver igualmente SÃO JOÃO CRISÓSTO-
266 Didakhê, n, 2. MO, Contre les détracteurs de la vie monastique (P. G . , t. 47, col. 319-386).
267 Epístola do Pseudo-Barnabé, X I X , 4. Um pouco acima (X, 6-8), a propósito 271 J . CASSIANO, Instituições, I I , 15. Os que infringem esta lei cometem uma
dos interditos alimentares, o mesmo texto interpreta a interdição de comer hiena falta grave e são suspeitos de "conjurationis pravique consilii". Serão estas pa-
como proibição do adultério, a de comer lebre como interdição da sedução de lavras uma maneira alusiva de designar um comportamento amoroso ou visarão
crianças, a de comer doninha como condenação das relações bucais. antes o perigo de relações privilegiadas entre membros da mesma comunidade? As
268 Assim SANTO AGOSTINHO, Sermão, 56,12. mesmas recomendações em Instituições, IV, 16.
256 257
Miche! Foucault As Confissões da Carne

como se elidisse a fornicação como conjunção entre dois indiví- no dizer que na carne deixa de produzir-se seja que movimento
duos e não concedesse importância senão a elementos cuja conde- for? E que se exerce sobre o próprio corpo um domínio total?
nação anteriormente não tinha mais do que um valor de acompa- Parece pouco verosímil uma vez que por outro lado insiste muitas
nhamento por comparação com a dos actos sexuais propriamente vezes na permanência dos movimentos involuntários do corpo. O
ditos.
termo que utiliza — perferre — refere-se sem dúvida ao facto de
Mas, se as análises de Cassiano omitem a relação sexual, se se esses movimentos não serem susceptíveis de afectar a alma e de
desenvolvem num mundo tão solitário e numa cena tão interior, esta não ter de os suportar.
não é simplesmente por uma razão negativa. É que o essencial do Quinto grau: "Que, se o assunto de uma conferência ou a con-
combate da castidade visa um alvo que não é da ordem do acto ou sequência necessária de uma leitura transmite a ideia de geração
da relação: reporta-se a uma outra realidade que não a da relação humana, o espírito não se deixe aflorar pelo mais subtil consenti-
sexual entre dois indivíduos. Uma passagem da duodécima Confe-
mento no acto voluptuoso, mas o considere com um olhar tranqui-
rência permite que nos apercebamos do que é esta realidade.
lo e puro, como uma obra bem simples, um ministério necessário
Cassiano caracteriza nela as seis etapas que marcam o progresso '
atribuído ao género humano, e não seja afectado pela sua lembran-
na castidade. Ora, como se trata nesta caracterização não de mos-
ça mais do que se pensasse no fabrico de tijolos ou no exercício de
trar a castidade ela mesma, mas de relevar os sinais negativos que
qualquer outro ofício."
permitem reconhecer os seus progressos — os diferentes traços de
Alcançamos, enfim, o último estádio quando "a sedução dos
impureza que sucessivamente desaparecem —, é-nos assim indica-
fantasmas femininos não causa ilusão durante o sono. Ainda que
do aquilo contra que nos devemos bater no combate da castidade.
não creiamos este engano culpado de pecado, é no entanto indício
Primeira marca dos ditos progressos: o monge, quando desper- de uma cobiça que se esconde ainda nas medulas"™.
to, não é "quebrado" por um "ataque da carne" — imougnatione Nesta designação dos diferentes traços do espírito de fornicação
carnali non eliditur. Portanto, ausência de irrupção na alma de
que se apagam à medida que a castidade progride, não há pois
movimentos que levem a melhor sobre a vontade.
relação alguma de si com um outro, não há acto algum, e nem
Segunda etapa: se se produzem no espírito "pensamentos volup- sequer a intenção de o cometer. Não há fornicação no sentido res-
tuosos" {voluptariae cogitationes), aquele não se "demora" neles. trito do termo. Deste microcosmos da solidão estão ausentes os
Não pensa naquilo que involuntariamente e contra si mesmo lhe dois elementos principais em torno dos quais girava a ética sexual
acontece então pensar"^.
não só dos filósofos antigos, mas de um cristão como Clemente de
O terceiro estádio chega quando uma percepção vinda dò mun- Alexandria — pelo menos no livro I I de O Pedagogo: a conjunção
do exterior deixa de poder provocar a concupiscência: o olhar de dois indivíduos (sunousia) e o prazer do acto (aphrodisia). Os
pode cruzar-se com uma mulher sem experimentar cobiça alguma. elementos postos em jogo são os movimentos do corpo e os da
Na quarta etapa, deixa de se experimentar, em estado de vigília, alma, as imagens, as percepções, as recordações, as figuras do
até mesmo o movimento da carne mais inocente. Quererá Cassia- sonho, o curso espontâneo do pensamento, o consentimento da
vontade, a vigília e o sono. E desenham-se aqui dois pólos que
272 o termo usado por Cassiano para designar o facto de o espírito se demorar deveremos efectivamente ver que não coincidem com o corpo e a
em tais pensamentos é immorari. A delectatio morosa será, mais tarde, uma das
categorias importantes na ética sexual da Idade Média.
273 Conferências, XII, 7.
258 Michel Foucault As Confissões da Carne 259

alma: o pólo involuntário que é quer o dos movimentos físicos, cação representativa (deixarmos de pensar nos objectos como
quer das percepções que se impõem, quer das recordações e das objectos de desejo possível). E finalmente desfazer a implicação
imagens que sobrevêm e que, propagando-se no espírito, investem, onírica (o que pode haver de desejo nas imagens todavia involun-
chamam e atraem a vontade; e o pólo da própria vontade que acei- tárias do sonho). A esta implicação, da qual o acto voluntário ou
ta ou repele, se afasta ou se deixa cativar, se demora, consente. De a vontade explícita de cometer um acto são a forma mais visível,
um lado, pois, uma mecânica do corpo e do pensamento que, ludi- rnas tão condenável que deve encontrar-se excluída quando o tra-
briando a alma, se carrega de impureza e pode conduzir até à balho ascético começa, a esta implicação do sujeito, ainda mais
polução; e, do outro, um jogo do pensamento consigo mesmo. temível por se produzir naquilo que nele é menos voluntário,
Encontramos aqui as duas formas de "fornicação" no sentido am- Cassiano dá o nome concupiscência. E contra ela que se orienta
plo que Cassiano definira a par da conjunção dos sexos e às quais o combate espiritual, e o esforço de dissociação, de desimplica-
reservou toda a sua análise: a immunditia que, na vigília ou no ção, que visa.
sono, surpreende uma alma incapaz de se vigiar e conduz, fora de Assim se explica o facto de, ao longo de toda essa luta contra o
todo o contacto com o outro, à polução; e a libido que se desenro- espírito de "fornicação" e pela castidade, o problema fundamental,
la nas profundezas da alma e a propósito da qual Cassiano lembra e por assim dizer único, seja o da polução — dos seus aspectos
a proximidade das palavras libido — libet™. voluntários ou das complacências que a chamam às formas invo-
O trabalho do combate espiritual e os progressos da castidade luntárias durante o sono ou no sonho. Importância tão grande que
cujas seis etapas Cassiano descreve podem então compreender-se Cassiano fará da ausência de sonhos eróticos e de polução noctur-
como uma tarefa de dissociação. Estamos muito longe da econo- na o sinal de que se atingiu o estádio mais alto da castidade. Volta
mia dos prazeres e da sua limitação estrita aos actos permitidos; com frequência ao tema: a prova de "que atingimos essa pureza
longe igualmente da ideia de uma separação tão radical quanto será que nenhuma imagem nos engane quando estamos em repou-
possível entre a alma e o corpo. Trata-se de um perpétuo labor so e nos distendemos no sono"^"", ou ainda: "Tal é o fim da inte-
sobre o movimento do pensamento (quer prolongue e repercuta os gridade e a sua prova definitiva: que nenhuma excitação voluptuo-
do corpo, quer os induza), sobre as suas formas mais rudimenta- sa sobrevenha durante o nosso sono, e que não tenhamos
res, sobre os elementos que podem desencadeá-lo, de maneira a consciência das poluções às quais a natureza nos constrange."^''*
que o sujeito nunca em tal se implique, nem mesmo através da Toda a vigésima segunda Conferência é consagrada à questão das
forma mais obscura e mais aparentemente "involuntária" da von- "poluções da noite", e à necessidade de "aplicarmos toda a nossa
tade. Os seis degraus segundo os quais, como vimos, a castidade força para nos livrarmos delas". E , por várias vezes, Cassiano evo-
progride representam seis etapas nesse processo que deve desla- ca algumas personagens santas como Sereno que tinham alcança-
çar a implicação da vontade. Desfazer a implicação nos movi- do um grau tão alto de virtude que não se achavam nunca expostas
mentos do corpo — é o primeiro degrau. Depois desfazer a im- a semelhantes inconvenientes"'.
plicação imaginativa (não nos demorarmos no que temos no
espírito). Depois desfazer a implicação sensível (deixarmos de
experimentar os movimentos do corpo). Depois desfazer a impli- 275 J. CASSIANO, Instituições, V I , 10.
276 Ibid., VI, 20.
277 J. CASSIANO, Conferências, VII, 1; X I I , 7. Outras alusões ao mesmo tema
274 Ibid., V, 11; e X I I , 2. Cf. supra, pp. 250-253. em J. CKSSlkUO,Instituições, II, 13; III, 5.
260 As Confissões da Carne 261
Michel Foucault

Dir-se-á que, numa regra de vida em que a renúncia a toda a gar durante o sono. Cassiano faz, apesar de tudo, notar que, por se
vida sexual era fundamental, é inteiramente lógico que um tal te- produzirem desse modo, nem todas são forçosamente involuntárias.
ma se torne tão importante. Lembrar-se-á também o valor conce- Um excesso de alimentação, pensamentos impuros durante o dia são
dido, em grupos mais ou menos directamente inspirados pelo pi- para elas uma espécie de consentimento, senão de preparação. Dis-
tagorismo, aos fenómenos do sono e do sonho como reveladores da tingue também a natureza do sonho que a acompanha e o grau de
qualidade da existência e às purificações que devem garantir a sua impureza das imagens. Aquele que é assim surpreendido erraria
serenidade. Por fim e sobretudo, devemos pensar que a polução da descarregando a causa sobre o corpo e o sono: "É sinal de um mal
noite se tornava um problema em termos de pureza ritual; e é pre- que lavrara interiormente, o qual não foi a hora da noite a fazer nas-
cisamente este problema que é ocasião da vigésima segunda Con- cer, mas que, enterrado no mais fundo da alma, o repouso do sono
ferência: pode alguém aproximar-se dos "santos altares" e [parti- faz aparecer à superfície, revelando a febre escondida das paixões
cipar no^'*] "banquete salutar", depois de se ter maculado durante que contraímos alimentando ao longo de dias pensamentos mal-
a noite?^™ Mas, se todas estas razões podem explicar a existência sãos."^*° E , por fim, resta a polução sem qualquer traço de cumplici-
de uma tal preocupação entre os teorizadores da vida monástica, dade, sem esse prazer que é prova de que nela se consente, sem o
não podem dar conta do lugar exactamente central que a questão acompanhamento sequer da mais pequena imagem onírica. Tal é,
da polução voluntária-involuntária ocupou em toda a análise dos sem dúvida, o ponto a que pode chegar um asceta que se exercite
combates da castidade. A polução não é simplesmente objecto de suficientemente: a polução não é mais do que um "resto" em que o
um interdito mais intenso do que os outros, ou mais difícil de ob- sujeito já não toma seja que parte for. "Devemos pois esforçar-nos
servar. É um "analisador" da concupiscência, na medida em que é por reprimir os movimentos da alma e as paixões da carne até que
possível determinar, ao longo de tudo o que a torna possível, a a carne satisfaça as exigências da natureza sem suscitar volúpia, de-
prepara, a incita e por fim a desencadeia, que é, no meio das ima- sembaraçando-se da superabundância dos seus humores sem qual-
gens, das percepções, das recordações da alma, parte do voluntá- quer prurido malsão nem suscitar o combate pela castidade-*'. Uma
rio e do involuntário. Todo o trabalho do asceta sobre si mesmo vez que não se trata senão de um fenómeno da natureza, só um poder
consiste em não deixar nunca envolver-se a sua vontade nesse ' que é mais forte do que a natureza pode livrar-nos dele: é a graça. É
movimento que vai do corpo à alma e da alma ao corpo e sobre o por isso que a não-polução é marca de santidade, o selo da mais alta
qual essa vontade pode ter preensão, para o favorecer ou para o castidade possível, benefício que podemos esperar, não adquirir.
deter, através do movimento do pensamento. As cinco primeiras Pelo seu lado, o homem não deve menos do que manter-se, no
etapas dos progressos da castidade constituem os desprendimentos que a si mesmo se refere, num estado de perpétua vigilância quan-
sucessivos e cada vez mais subtis da vontade no que se refere aos to aos menores movimentos que podem produzir-se no seu corpo
movimentos cada vez mais ténues que podem conduzir à polução. ou na sua alma. Velar dia e noite, de noite pelo dia e de dia pen-
Resta portanto a última etapa. A que a santidade pode alcançar: a sando na noite que virá. "Como a pureza e a vigilância durante o
ausência dessas poluções "absolutamente" involuntárias que têm lu- dia dispõem a ser casto durante a noite, assim também a vigilância
nocturna fortalece o coração e lhe prepara forças para que observe

278 [Manuscrito: "aproximar-se do", corrigido em 1982 ("O Combate da Castida-


de") por "participar no".] 280 J. CASSIANO, Instituições, V I , 11.
279/í>id.,XXII,5. 281/Wí/., V I , 22.
262 As Confissões da Carne 263
Michel Foucault

a castidade durante o dia."-*- Esta vigilância é a aplicação da "dis- A organização da instituição monástica e o dimorfismo que se
criminação" que já vimos-*" estar no centro da tecnologia de si estabelece assim entre a vida dos monges e a dos leigos introduzi-
mesmo tal como se desenvolveu na espiritualidade de inspiração ram, no problema da renúncia às relações sexuais, mudanças im-
evagriana. O trabalho do moleiro que separa os grãos, do centu- portantes. Conduziram, de modo correlativo, ao desenvolvimento
rião que reparte os soldados, do cambista que pesa, para as aceitar de tecnologias de si bastante complexas. Assim apareceram, nesta
ou rejeitar, as moedas, é o trabalho que o monge deve fazer sem prática da renúncia, uma regra de vida e um modo de análise que,
cessar sobre os seus próprios pensamentos a fim de reconhecer a despeito de continuidades visíveis, marcam em relação ao passa-
quais de entre eles são portadores de tentação. Um tal trabalho do importantes diferenças. E m Tertuliano o estado de virgindade
permitir-lhe-á separar os pensamentos segundo a sua origem, implicava uma atitude exterior e interior de renúncia ao mundo,
distingui-los segundo a sua qualidade própria, e dissociar o objec- completada por regras de apresentação, de conduta e de maneira
to que neles é representado do prazer que poderia evocar. Tarefa de ser. Na grande mística da virgindade que se desenvolve a partir
da análise permanente que cada um deve conduzir sobre si mesmo do século I I I , o rigor da renúncia (sobre o tema, já presente em
e, através do dever de confissão, em relação com os outros^**. Nem Tertuliano, da união com Cristo) inverte a forma negativa da con-
a concepção de conjunto que Cassiano faz da castidade e da "for- tinência em promessa de casamento espiritual. E m Cassiano, que,
nicação", nem a maneira como as analisa, nem os diferentes ele- de novo, é testemunha muito mais do que inventor, produz-se co-
mentos que faz intervir aqui e que relaciona uns com os outros mo que um desdobramento, uma espécie de retracção que abre
(polução, libido, concupiscência) podem compreender-se sem refe- toda a profundidade de uma cena interior.
rência às tecnologias de si por meio das quais caracteriza a vida Mas de maneira nenhuma se trata da interiorização de um ca-
monástica e o combate espiritual que a atravessa. tálogo de interditos, substituindo à proibição do acto a da intenção.
Trata-se da abertura de um domínio (cuja importância sublinha-
vam já textos como os de Gregório de Nissa ou sobretudo de Ba-
sílio de Ancira) que é o do pensamento, com o seu curso irregular
De Tertuliano a Cassiano deveremos ver um reforço dos "inter- e espontâneo, com as suas imagens, as suas recordações, as suas
ditos", uma valorização mais acentuada da continência completa, percepções, com os movimentos e as impressões que se comuni-
uma desqualificação crescente do acto sexual? Não é sem dúvida cam do corpo à alma e da alma ao corpo. O que está em jogo,
nestes termos que o problema tem de ser posto. então, não é um código de actos permitidos ou proibidos, é toda
uma técnica destinada a vigiar, analisar e diagnosticar o pensa-
282/è/d., V I , 23.
mento, as suas origens, as suas qualidades, os seus perigos, os seus
283 Cf. .sMjyra, PP, 143-149.
poderes de sedução, e todas as forças obscuras que podem
284 Cf., na Conferência X X I I , 6, o exemplo de uma "consulta" a propósito de
um monge que, sempre que se apresentava à comunhão, era vítima de uma ilusão esconder-se sob o aspecto que ela apresenta. E se o objectivo é de
nocttirna, e não se atrevia portanto a tomar parte nos santos mistérios. Os "mé- facto finalmente expulsar tudo o que é impuro ou indutor de im-
dicos espirituais", após inteiTogatório e discussões, diagnosticam que é o diabo pureza, não pode ser alcançado senão por meio de uma vigilância
quem envia essas ilusões para impedir o monge de aceder à comunhão que deseja.
que nunca desarma, uma suspeita contra si mesmo da qual cada
Abster-se era por isso cair na armadilha do diabo. Comungar era apesar de tudo
vencê-lo. Uma vez tomada esta decisão, o diabo deixou de ter razões para provocar um deve ser portador em toda a parte e a cada instante. E neces-
uma tal impureza proibitiva. sário que a questão se mantenha sempre posta de maneira a detec-
264 Michel Foucauit

tar tudo o que se pode esconder de "fornicação" secreta nos recôn-


ditos mais profundos da alma.
Nesta ascese da castidade, podemos reconhecer um processo de
"subjectivação" que relega para longe uma ética sexual centrada
na economia dos actos. Mas devemos sublinhar imediatamente
duas coisas. Esta subjectivação é indissociável de um processo de
conhecimento que faz da obrigação de buscar e de dizer a verdade
de si mesmo uma condição indispensável e permanente de seme-
lhante ética. Se há subjectivação, esta implica uma objectivação CAPÍTULO I I I
indefinida de si por si — indefinida no sentido em que, nunca
adquirida de uma vez por todas, não tem termo no tempo; e no
sentido em que deve ser levado sempre tão longe quanto possível Ser casado
o exame dos movimentos de pensamento, por ténues e inocentes
que possam parecer. Por outro lado, esta subjectivação sob a forma
de busca da verdade de si efectua-se através de relações complexas I . o DEVER DOS ESPOSOS
com os outros. E de várias maneiras: porque se trata de detectar I I . O B E M E OS BENS DO CASAMENTO
em si a força do Outro, do Inimigo, que em cada um se esconde [III. A LIBIDINIZAÇÃO DO SEXO]
sob as aparências de si mesmo; porque se trata de travar contra
este Outro um combate incessante do qual não se pode sair vence-
dor sem o socorro da Omnipotência, que é mais poderosa do que
ele; porque, enfim, a confissão aos outros, a submissão aos seus
conselhos, a obediência permanente aos directores são indispensá-
veis a este combate.
A subjectivação da ética sexual, a produção indefinida da ver-
dade de si mesmo, a instauração de relações de combate e de de-
pendência com o outro fazem pois parte de um conjunto. Estes
elementos foram progressivamente elaborados no cristianismo dos
primeiros séculos, mas foram ligados de novo, transformados,
sistematizados, por meio das tecnologias de si desenvolvidas na
vida monástica.
I
•Mil.*
o D E V E R DOS ESPOSOS


Não se encontram no cristianismo antigo tratados do casamento
como se encontram tratados da virgindade; a vida matrimonial
não é, enquanto tal, objecto de uma elaboração que faria dela uma
prática específica e uma "profissão" dotada de um sentido espiri-
tual particular. Não há arte, não há tekhnê da vida matrimonial, se
exceptuarmos o capítulo de O Pedagogo acima estudado [pp. 27-
-51], e que já vimos como estava próximo da moral antiga. O que
não quer dizer, decerto, que não haja reflexões sobre o próprio
princípio do casamento, sobre a sua legitimidade ou a sua aceita-
bilidade: todos os debates em torno do encratismo, todas as polé-
micas com os gnósticos e os movimentos dualistas são atravessa-
dos por esta questão do casamento; o [terceiro] dos Stromata de
Clemente de Alexandria, como vimos, transmite um testemunho
precoce sobre a extensão destes debates, que sob formas diversas
se prolongaram nas épocas seguintes. Mas, se a questão do "direi-
to" ao casamento e do seu valor relativo por comparação com a
continência estrita e o celibato é posta desde muito cedo, não de-
semboca todavia sobre a constituição de uma arte da existência
matrimonial. E significativo, por exemplo, que Tertuliano ponha o
problema do princípio do casamento no Adversus Marcionem —
quer dizer, num texto de contestação teórica contra um adversário
gnóstico — e que não dê conselhos sobre a vida matrimonial se-
268 269
Michel Foucault Confissões da Carne

não através dos textos que se reportam a maneiras de viver fora do Este texto é revelador de um movimento que faz refluir para a
casamento, virgindade ou viuvez {De virginibus velandis, Ad vida do mundo um conjunto de valores, de preocupações e de prá-
uxorem, Exhortatio ad castitatem). ticas que tinham tomado uma extensão particular na vida de asce-
É sobretudo no fim do século iv que vemos desenvolverem-se se. Novo rigorismo? Talvez. Mas que devemos ler na mesma medi-
as reflexões e os textos destinados a guiar os cristãos casados na da como uma difusão do ideal monástico e como um esforço para
sua vida conjugal e nas relações que mantêm enquanto esposos. limitar até certo ponto os seus efeitos; tratava-se de dar, perante ele,
Muito mais nitidamente do que antes, o casamento desenha-se uma intensidade religiosa a uma vida que não impunha semelhan-
como profissão cristã e as relações entre esposos tornam-se tam- tes rupturas. Desta transferência, vários grandes pastores, nos fi-
bém domínio de análise, de exercício, ao mesmo título, embora nais do século IV, foram ao mesmo tempo testemunhas e agentes.
com uma intensidade muito menor, que as relações de si consigo Formados na disciplina ascética, tendo praticado algum tempo o
mesmo na existência ascética. Esta evolução pode ser associada a
monaquismo, tinham podido, uma vez à frente de uma igreja, de-
vários fenómenos.
senvolver uma prática pastoral inspirada nessa primeira experiên-
Devemos ver nela, para começar, uma ligação com a valoriza- cia. Foi o caso de Basílio de Cesareia, de Gregório de Nazianzo, de
ção extrema da vida monástica e da renúncia radical ao mundo, ao Gregório de Nissa e do próprio Crisóstomo. E m condições muito
mesmo tempo um efeito e um contrapeso. Perante as formas de diferentes. São Jerónimo e Santo Agostinho, no Ocidente, desem-
ascetismo intenso que ameaçavam deslocar o centro de gravidade penharam um papel até certo ponto semelhante: favoreceram o
do cristianismo para fora das comunidades urbanas, para longe de desenvolvimento de uma pastoral que tinha por objectivo ajustar à
toda a vida pública, e para o lado de grupos restritos de eleitos, vida no mundo certos valores ascéticos da existência monástica,
houve, na segunda metade do século iv, um esforço, particular- bem como as práticas de direcção dos indivíduos.
mente sensível no Oriente, onde o monaquismo se desenvolvera, Ora, este fenómeno não pode ser separado das novas relações
no sentido de reforçar a significação religiosa da vida quotidiana, que se estabelecem na mesma época entre o cristianismo e o Im-
e atenuar assim o dimorfismo que ameaçava estabelecer-se nas pério. Cruzam-se então dois processos. Instituição de início reco-
modalidades da vida cristã. Já não bastava dizer que a continência nhecida, depois oficial, a Igreja Cristã ocupa cada vez mais fácil e
não era de preceito e que não era indispensável à salvação, era visivelmente funções de organização, de gestão, de controle e de
além disso necessário fazer aparecer como acessíveis os valores regulamentação da sociedade. E a burocracia imperial, pelo seu
àqueles que conduziam a vida do mundo, e portanto as regras a lado, procura aumentar cada vez mais, por cima das estruturas
que eles deviam submeter-se. João Crisóstomo insiste muitas ve- tradicionais, a sua influência sobre os indivíduos^. No ponto on-
zes na ideia de que não deve haver diferença fundamental entre a de estes dois processos se cruzam, vemos produzir-se o efeito
vida de asceta e a do homem casado: "Um homem que está no paradoxal seguinte: práticas e valores que tinham sido desenvolvi-
mundo não deve ter sobre o monge senão uma vantagem: a de dos ou identificados em modos de vida em ruptura explícita com
poder coabitar com a sua esposa legítima. Tem esse direito, mas, o mundo e a sociedade civil começam a intervir, não sem atenua-
de resto, tem o mesmo dever a cumprir que o monge."' ção e modificação, em formas institucionais sustentadas ou apoia-
I
1 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, V I I Homilia sobre a Epístola aos Hebreus, 4. Cf. 2 Sobre este ponto, cf. [J. DANIÉLOU e] H.-I. MARROU, Nouvelle histoire de
igualmente Contra os Inimigos da Vida Monástica, III, 14.
§'Église, Paris, 1963,1.1, p. 268.
270 As Confissões da Carne 271
Michel Foucault

das pela organização do Estado e das estruturas políticas gerais. Igreja — lhe deram uma capacidade de penetração muito maior do
Produz-se assim uma dupla pressão: uma vinda do reforço do ideal que a da filosofia da Antiguidade, ainda que sob as suas formas
ascético, fora das formas tradicionais da vida social e até mesmo populares. Também aqui, convém não forçar as coisas. O cristia-
contra elas; a outra vinda do apoio recíproco que as instituições nismo, sobretudo nas suas exigências morais quotidianas, não se
eclesiásticas e as estruturas do Estado são susceptíveis de se da- tornou, no início do século v, uma regra de vida reconhecida e
rem'. A vida dos indivíduos, no que pode ter de privado, de praticada por todos; nunca o foi de resto ao longo de toda a sua
quotidiano e de singular, acha-se assim tornada objecto, senão de história. Mas transportava uma exigência de universalidade, e esta
uma administração, pelo menos de uma preocupação e de uma apoiava-se num suporte institucional que fazia dele mais do que
vigilância que não são sem dúvida semelhantes nem às que po- um princípio geral (como podia sê-lo a ética estóica, por exemplo):
diam assegurar as cidades helenísticas, nem às que exerciam as uma possibilidade efectivamente instaurada de generalização in-
primeiras comunidades cristãs. definida.
Há aqui uma novidade que seria difícil contestar. Não é, no Nesta ética, o casamento — as relações entre esposos, a consti-
entanto, que se tenha produzido uma ruptura brusca. Um dos tra- tuição e a manutenção da família em torno do casal — constitui
ços mais marcantes desta pastoral da vida quotidiana é, em vários sem dúvida uma das peças essenciais. A primeira razão é que
pontos importantes, estar em continuidade com a moral filosófica entre a existência ascética e a vida no mundo a diferença mais
como a que pudemos encontrar em Plutarco, Musónio, Séneca ou sensível ligava-se ao casamento. "Estais grandemente enganados e
Epicteto. De tal modo que, até mesmo quando as referências explí- cometeis um erro pesado se acreditais que sejam exigidas do ho-
citas aos autores pagãos quase desapareceram — são muito sensi- mem do mundo e do monge duas coisas diferentes; a diferença
velmente menos numerosas e menos positivas por exemplo em entre eles está em que um é casado e o outro não; quanto a tudo o
Crisóstomo do que em Clemente de Alexandria dois séculos antes mais, estão submetidos a obrigações comuns."* Tratar-se-á por-
—, podemos notar a permanência ou a ressurgência de temas ca- tanto de definir, a propósito desta mesma diferença e onde ela in-
racterísticos da filosofia helenística. Mas, por um lado, estes temas tervém de maneira mais significativa — as relações sexuais entre
são reinscritos num contexto teológico particular, estão ligados a esposos —, o conjunto das regras e práticas que devem ser aplica-
valores e a práticas cujo ascetismo, por atenuado que esteja, se das para que a menos ascética destas duas formas de vida não
refere, apesar de tudo, de maneira mais ou menos directa, à exi- seja despojada de todo o valor religioso nem privada da esperança
gência geral de morrer para o mundo; articulam-se [por outro la- da salvação. Mas, por outro lado, o desenvolvimento da adminis-
do] sobre relações de autoridade de tipo pastoral. Por todas estas tração imperial e o apagamento progressivo dos poderes tradicio-
razões, os elementos comuns à moral filosófica da Antiguidade e nais davam à família, entendida como célula matrimonial, um
à ética cristã tiveram efeitos diferentes. Ao que se deve acrescentar papel cada vez mais importante: faziam-na aparecer como o ele-
que a extensão do cristianismo, a sua constituição como religião mento de base da sociedade e o ponto de articulação principal
de Estado e a importância das instituições eclesiásticas — afinal entre a conduta moral dos indivíduos e o sistema das leis univer-
de contas, o cristianismo foi a primeira religião a organizar-se em sais. E assim que chegamos ao seguinte resultado que à primeira
vista pode parecer paradoxal: entre a intensificação da ascese e a
3 Cf. sobre este apoio e os conflitos que lhe estão ligados, ibid., pp. 282 e sgs.
Cf., sobre o casamento, pp. 362-364. , 4 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, Contra os Inimigos da Vida Monástica, III, 14.
272 As Confissões da Carne 273
Michel Foucault

extensão das estruturas estatais, a célula familiar, as relações entre rtástica]; que escreveu o seu tratado Da Virgindade, por volta de
os esposos, a vida quotidiana do casal e até a sua actividade sexual 382, sob essa inspiração; que, tendo exercido diversos cargos pas-
tornam-se paradas em jogo importantes. torais, do diaconado em Antioquia ao episcopado em Constantino-
Não o eram já n'A República e n'As Leis, ou na Política de Aris- pla, o essencial da sua obra é (a partir de 386) consagrado à pre-
tóteles? É certo que sim. Mas num outro registo. O que mostra o gação e às homilias. E que por fim deu frequentemente conselhos
exame dos textos cristãos consagrados a este problema em finais sobre o modo de conduta a adoptar no estado do casamento: algu-
do século IV e no início do século v, é que, ao contrário do que se mas das suas homilias — em particular a vigésima sobre a Epís-
passava entre os gregos clássicos, e ao contrário também do que tola aos Efésios, a décima nona sobre a Primeira Epístola aos
deixam supor as interpretações correntes, não é enquanto podem Coríntios, a décima sobre a Epístola aos Colossenses, a quarta de
e devem ser procriadoras que as relações sexuais entre esposos se entre as que comentam o texto Vidi Dominum, finalmente as três
tornaram importantes. que pronunciou em Constantinopla imediatamente no início do
Reservo um último capítulo à concepção de Santo Agostinho. século V, e que são habitualmente chamadas as Três Homilias so-
Ao mesmo tempo porque constitui o quadro teórico mais rigoroso bre o Casamento^ — constituem verdadeiros pequenos tratados
que permite dar lugar simultaneamente a uma ascese da castidade do estado matrimonial. Neles é encarada uma multiplicidade de
e a uma moral do casamento. E porque, tendo servido de referên- questões muito concretas: como educar os filhos em vista do ca-
cia constante à ética sexual do cristianismo ocidental, será o ponto samento, como escolher esposa, como se deve desenrolar a ce-
de partida do estudo seguinte. No presente capítulo, estudarei a rimónia do casamento, que conduta manter em relação à mulher
arte da vida matrimonial tal como a podemos encontrar no fim do na vida de todos os dias, a que princípio de economia submeter as
século IV, na literatura homilética, que era um dos instrumentos relações sexuais, etc.
principais da actividade pastoral. E , para evitar a dispersão nessa Estes textos são muitas vezes opostos ao De virginitate, e às
literatura imensa, tomarei, por referência privilegiada, as homilias fórmulas depreciativas que aí se utilizam contra o casamento: longa
de Crisóstomo. Não sem sublinhar que pertencem, com as infle- descrição dos seus inconvenientes, afirmação constante da superio-
xões que lhe são próprias, a toda uma corrente. Muitas das ideias ridade da virgindade, tema de que tendo agora o tempo "chegado
que formula a propósito do casamento, poderíamos encontrá-las ao seu termo", "o momento já não é o de pensar no casamento"*. O
em contemporâneos por vezes próximos como Gregório de Nissa problema não é aqui avaliar a consistência do pensamento de Cri-
ou mais distantes como São Jerónimo. Algumas têm o seu ponto sóstomo. Recordarei somente, a título preliminar, um certo número
de partida em Orígenes. Não é portanto a um Crisóstomo funda- de proposições que encontramos claramente formuladas num texto
dor de uma nova ética do casamento que me referirei, mas a Cri- todavia tão ascético: que o casamento não pode ser considerado um
sóstomo como testemunha e exemplo de uma pastoral da vida dos mal em si mesmo (em tal caso, não haveria que honrar a virginda-
cônjuges que se achava já bastante desenvolvida na época em que de); que Deus, ainda que deseje que dele nos abstenhamos, de
ele escreve. Acrescentemos que Crisóstomo conheceu e praticou a maneira nenhuma o proíbe; que o bom casamento implica relações
vida monástica antes de regressar a Antioquia; que os textos que de amizade que assegurem a sua paz; que a mulher tem para com
escreveu nos anos que se seguiram ao seu regresso estão fortemen-
te marcados por essas práticas ascéticas — como o Adversus 5 São contemporâneas do De bono conjugali de SANTO AGOSTINHO (401).
oppugnatores vitae monasticae [Contra os Inimigos da Vida Mo- 6 [SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, Da Virgindade, LXXIII.]
274 Michel Foucault As Confissões da Carne 275

o marido deveres dos quais nem mesmo os legítimos cuidados da deixam os seus pais para se apegarem um ao outro e que um tão
mortificação podem dispensá-la'. Sejam quais forem as mudanças longo hábito tem a partir de então menos império do que esta de-
de tónica e até mesmo a temática nova que Crisóstomo desenvolve- cisão fortuita, reflectindo além disso que não se trata aqui de um
rá na sua pastoral do casamento, temos aqui as proposições de facto humano [...], Paulo, por conseguinte, escreveu: Eis o grande
charneira que permitem articular a segunda com os textos que mistério."^° Mistério cujas três formas visíveis uma das Homilias
cantam a renúncia definitiva ao casamento. sobre a Epístola aos Efésios indica claramente. Trata-se de uma
Nem por isso deixamos de poder relevar na sua pastoral dois força que, na natureza, é mais forte do que todas as outras forças:
grandes eixos de tensão. mais imperiosa, mais tirânica do que as que podem ligar-nos aos
O primeiro é caracterizado pela coexistência, na concepção do outros homens ou fazer desejar as coisas; epithumia, que parado-
laço matrimonial, entre uma teologia complexa das relações entre xalmente junta duas qualidades habitualmente incompatíveis: du-
a Igreja e Cristo, e uma sabedoria cujos preceitos estão muito pró- ração e vivacidade". E , por outro lado, trata-se de uma força que,
ximos daqueles que encontrámos em vários moralistas da Antigui- se aparece de súbito, estava escondida no fundo de nós mesmos;
dade pagã. está "dissimulada na nossa natureza", e não temos consciência
Esta tensão aparece claramente em certas passagens, como a da dela'^. Enfim, para designar a natureza deste laço. Crisóstomo
terceira Homilia sobre o casamento, que trata da força viva que emprega simuhaneamente dois termos, que encontramos ora
atrai mutuamente um homem novo e uma jovem, e da solidez do acompanhando-se, ora separadamente, em muitos outros dos seus
laço que se forma entre eles. O nascimento, um longo hábito de textos: sundesmos, a amarra, a cadeia que liga por meio da coer-
vida comum tinham até então ligado os filhos aos seus pais*. E ção ou pelo menos da obrigação dois indivíduos (Crisóstomo uti-
eis que, de súbito, na presença um do outro, um rapaz e uma rapa- liza muitas vezes a palavra desmos relacionando-a com o tema da
riga, esquecendo essas ligações, sentem nascer um laço mais forte servidão); e sumplokê, o entrelaçamento, a intricação que une duas
do que o anterior, apesar de tantos anos de familiaridade. Há aqui substâncias e dois corpos e tende a formar uma nova unidade.
como que o recomeço do que se passava na primeira idade, quan- Como pôde introduzir-se ocultando-se de nós, na nossa nature-
do, antes ainda de saber falar, a criança pequena sabia reconhecer za, uma força que triunfa sobre a própria natureza? Neste amor
os seus pais: "Assim o esposo e a esposa, sem que ninguém os que transporta o homem e a mulher um para o outro a fim de
tenha aproximado, os exorte, os instrua dos seus deveres, não têm constituírem uma união duradoura, neste "mistério" do qual falava
necessidade senão de se verem para ficarem unidos.'"' E , como São Paulo, Crisóstomo vê a marca da vontade de Deus.
se eles mesmos reconhecessem o carácter imperioso e o alto valor Da sua vontade primeiro como Criador". Foi a partir do ho-
deste laço tão súbito, os pais não experimentam com isso "nem mem e da sua própria carne que moldou a mulher. Saídos da mes-
desgosto, nem despeito, nem dor"; longe disso, dão graças. E , ma substância, Adão e Eva eram substancialmente unificáveis. E
referindo-se à Epístola aos Efésios, Crisóstomo acrescenta: "Pau-
lo, dando-se conta de tudo isto, considerando que os dois esposos 10 Ibid.
11 "Outôs pasês turannidos autê hê agapê turannikôtera", SÃO JOÃO CRISÓS-
TOMO, X X Homilia sobre a Epístola aos Efésios, 1.
7 Ibid.,1, I I , III, X L V I I , X L V I I I , LIV, L X X X V . 12 "Emphôleuôn tê phusei, kai lanthanôn hêmas", ibid.
8 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, III Homilia sobre o casamento, 3. 13 Este tema é desenvolvido em particular no início da X X Homilia sobre a Epís-
9 [Ibid.] tola aos Efésios, 1.
276 Michel Foucault As Confissões da Carne 277

os seus descendentes são ainda da mesma substância. "Nenhuma Crisóstomo prossegue dizendo que é da mesma maneira que Cris-
essência estrangeira pode pois penetrar na nossa." Ao longo de to "deixou o seu Pai para descer até à Igreja"'*: "Sabes agora que
todas as gerações, a humanidade manteve-se ligada a si mesma, e mistério é o casamento, de que grandes coisas é símbolo."" Esta
limitada à sua própria substância. Nesta relação com a unidade ideia vem de Orígenes'*. Faz do casamento a figura que represen-
primitiva, da qual o género humano partiu sem dela sair nunca ta de maneira sensível o laço que Cristo estabelece com a Igreja:
mais, o incesto desempenha dois papéis. Inevitável na origem dos é o Esposo, é a alma e é a cabeça; é ele aquele que comanda", ao
tempos, é ontologicamente valorizado, uma vez que refere todos passo que ela é a noiva; é o corpo da sua alma e o membro do seu
os indivíduos à identidade de uma só e mesma substância. Permi- corpo; deve obedecer-lhe. Ele veio até ela, por amor, quando os
tindo que "o homem desposasse a sua própria irmã, ou antes a sua homens a odiavam, a execravam, a insuhavam-°. Aceitou-a com
filha, ou antes ainda a sua própria carne"'". Deus construiu a todos os defeitos que podia ter, todas as contaminações das quais
humanidade como uma árvore; e deu-lhe a mesma beleza que às era portadora; mas, para velar por ela, para a ensinar, a esclarecer
grandes árvores: para ramos inumeráveis, uma só raiz. Por disper- e por fim a salvar. Como esposo perfeito, sacrificou-se por ela,
sos que os homens hoje estejam, mantêm-se através desta raiz tudo sofrendo e dilacerado mil vezes-'. Mas em contrapartida o
unidos e associados. Bem-aventurado incesto que nos tornou todos laço de Cristo com a Igreja serve de modelo a todo o casamento:
parentes. Mas a sua interdição hoje não está em contradição com é a mesma obediência que deve ligar a mulher ao homem; o mes-
aquele princípio primeiro. Não faz mais, pelo contrário, do que mo primado dele sobre ela; a mesma tarefa de educação, e a mes-
seguir a sua consequência e multiplicar os seus benefícios. Crisós- ma aceitação do sacrifício para a salvar. O laço matrimonial deve
tomo explica que, impedindo doravante os homens de desposarem o seu valor ao facto de reproduzir, à sua maneira, a forma de amor
as suas irmãs e as suas filhas, obrigando-os a virarem para o ex- que liga, o primeiro à segunda, Cristo à Igreja. "O lar é uma pe-
terior essa força que têm da sua origem comum, Deus faz com que quena Igreja."^^
a sua afeição se não concentre sobre um objecto único. O laço de Duplo fundamento teológico do laço entre marido e mulher: na
parentesco primitivo é de certo modo reactualizado com aqueles Criação, por um lado, e na Redenção, por outro, na unidade subs-
que não são nossos parentes imediatos. Não podermos desposar as tancial da carne por um lado e na Encarnação por outro, na origem
nossas irmãs força-nos a que nos liguemos com estranhos, quer dos tempos e na aproximação do seu fim. Isto permite a Crisósto-
dizer, a que nos re-liguemos com parentes desconhecidos". mo aproximar o valor do casamento do da virgindade. Ou, mais
Mas a força que liga homens e mulheres não é somente o rasto exactamente, não pensar o casamento como sendo apenas uma
de uma origem. É também a figura de uma outra união: a que liga incapacidade de uma vida de continência absoluta. E doravante
Cristo à Igreja. Redenção em vias de se cumprir, e já não Criação. possível dar directamente ao casamento um valor positivo, ainda
Depois de ter evocado o laço que se estabelece tão bruscamente
entre um homem e uma mulher, rompendo o longo apego aos pais,
I6[lbid.,4.]
17 [SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, III Homilia sobre o casamento, 3.]
18 [Cf. por exemplo ORÍGENES, Homilias sobre o Cântico dos Cânticos.]
U[Ibid.] 19 [SÃO PAULO, Epístola aos Efésios, 5,23.]
15 A proibição do incesto explicada pela obrigação da ligação a outrem não é 20 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, III Homilia sobre o casamento, 2.
própria nem a São João Crisóstomo nem aos autores cristãos. Encontramo-la em 21 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, X X Homilia sobre a Epístola aos Efésios, 2.
[nota incompleta]. 22 [Ibid., 6.]
278 Michel Foucauh As Confissões da Carne 279

que não seja tão elevado. A virgindade restitui o estado paradisía- monial surpreendentemente próximos dos que Musónio, ou Séne-
co realizando sobre a Terra uma vida angélica; o laço matrimonial ca, ou Epicteto, ou Clemente de Alexandria tinham tornado fami-
faz menos, sem dúvida, mas lembra a unidade de substância da liares. Certas inflexões são modificadas, a maior parte dos
Criação. A virgindade faz da alma a esposa de Cristo; o casamen- desenvolvimentos torna-se mais ampla, os valores da caridade
to, por seu turno, é a imagem da união da Igreja com o Salvador. passam a ser mais sublinhados. Mas são os mesmos temas funda-
Não devemos pois surpreender-nos vendo Crisóstomo, que o De mentais que encontramos.
virginitate faz facilmente passar por um detractor do casamento, — Princípio da desigualdade natural. Deus, ao criar primeiro o
prometer às pessoas casadas méritos e recompensas que são, tam- homem e ao dar-lhe a mulher "como auxiliar", segundo o texto do
bém, muito elevados. Uma vida de casamento, se obedecer aos Génesis, marcou bem que o homem ocupa a primeira posição, e
preceitos, "não é muito inferior à vida monástica; tais esposos que está destinado a comandar. Ele é a cabeça: "Representemo-
pouco terão a invejar aos celibatários"^'. Ou ainda: se usardes -nos o marido como ocupando o posto de chefe; a mulher, como
devidamente do casamento, "ocupareis o primeiro lugar no reino ocupando o lugar do corpo [...]. Paulo atribui a cada um o seu
dos céus, e gozareis de todos os bens"^". lugar; a um a autoridade e a protecção, à outra a submissão."^'
Esta promoção espiritual do casamento requer todo um desen- — Princípio de complementaridade, que dá um conteúdo posi-
volvimento de reflexões sobre a vida matrimonial; autoriza uma tivo a esta desigualdade, que permite fazê-la funcionar como um
arte das relações entre marido e mulher perante a telchnê da exis- princípio de ordem na vida conjugal, e assegurar o bom entendi-
tência virginal, arte que, sem nunca pretender atingir a mesma mento quando poderia ser ocasião de conflito: "Considerando
elevação, logra até certo ponto um equilíbrio comparativo com a que duas espécies de assuntos dividem a nossa vida, os assuntos
segunda. Ora, o que caracteriza estas regras da vida matrimonial públicos e os assuntos privados, o Senhor dividiu a tarefa entre o
é a sua grande proximidade daquelas que podiam encontrar-se homem e a mulher: a esta conferiu o governo da casa, àquele to-
entre os moralistas da época imperial, ou em Clemente de Ale- dos os assuntos do Estado." O homem lança o dardo; a mulher
xandria, a propósito do qual vimos tudo o que tomava de emprés- maneja a roca. Um participa nas deliberações públicas; a outra faz
timo daqueles. Neste sentido, temos a impressão de que a justifi- triunfar as suas opiniões em casa. Ele gere os dinheiros públicos;
cação teológica do casamento, permitindo evitar os excessos do ela educa os filhos que são a seu modo um "tesouro precioso".
encratismo e sobretudo as consequências do dualismo implícito Assim Deus evitou "dar as duas aptidões à mesma criatura", te-
na recusa de toda a conjugalidade, permitiu dar um fundamento mendo que um dos dois sexos fosse eclipsado pelo outro e pare-
a toda uma ética do casamento já corrente; e portanto continuar cesse inútil; não quis dar uma parte igual aos dois sexos, temendo
o movimento (já sensível em Clemente de Alexandria) de aclima- que essa igualdade engendrasse conflitos e que as mulheres ele-
tação da moral pagã do casamento no interior do cristianismo. vassem as suas pretensões ao ponto de disputarem aos homens o
E , com efeito (excepto num ponto capital, que teremos de analisar primeiro lugar; mas, conciliando a necessidade de paz com as
longamente mais adiante), a aha teologia da conjugalidade conveniências da hierarquia, fez da nossa vida duas partes das
articula-se, em João Crisóstomo, sobre preceitos de vida matri- quais reservou ao homem a mais essencial e a. mais séria, atri-
buindo à mulher a mais pequena e a mais humilde; de tal modo

23 Ibid., 9.
24 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, VII Homilia sobre a Epístola aos Hebreus, 4. 25 [SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, X X Homilia sobre a Epístola aos Efésios, 1.]
280
Michel Foucault As Confissões da Carne 281

que as necessidades da existência no-la façam honrar, sem que a


rância deve ser respeitada: é tudo o que toca o pudor. Conselho de
inferioridade do seu ministério lhes permita entrarem em revolta
prudência que os moralistas antigos também davam'": "Deixai-lhe
contra o seu marido"^*.
por muito tempo os seus temores pudicos, não os expulseis brus-
Para que esta complementaridade possa funcionar devidamente,
camente [...]. Respeitai de início a sua reserva; não imiteis a pre-
não convém que o homem despose uma mulher mais rica do que
cipitação desregrada de certos homens; sabei esperar longamente,
ele. Porque aquele que desposa uma mulher afortunada toma "um
acabareis por ficar bem.""
soberano", se escolhe uma mais pobre, pelo contrário, encontra
— Princípio da permanência do laço e da reciprocidade das
nela "uma auxiliar, uma aliada [...]. O embaraço que a sua pobre-
obrigações. Depois de estabelecido de uma vez por todas, salvo
za causa à esposa inspira-lhe toda a espécie de cuidados e de
em caso de adultério'^ o laço do casamento não pode ser desfeito.
atenções em relação ao marido, a obediência, uma submissão
Mas é ainda necessário compreendermos bem que não é somente
perfeita, e suprime todas as causas de disputas"^'.
o facto de a mulher ser casada que constitui uma relação sexual
— Princípio do dever de ensino ligado ao respeito do pudor. •
como adúltera. Não é assim que julgam as leis, é verdade. Mas "a
Uma vez que é a cabeça, o marido deve guiar a mulher, servir-lhe
lei de Deus" afirma-o, diz Crisóstomo, que de novo a este propó-
de educador e formá-la nas virtudes. "Que, rodeando-a de um
sito redescobre as concepções de autores como Musónio". "Mui-
piedoso respeito desde a primeira noite em que ela entrou em sua
tos imaginam que alguém só se torna adúltero pela sedução de
casa, ele lhe ensine a temperança, a modéstia, a doçura, a levar
uma mulher pertença de um marido. E eu pretendo que seja quem
uma vida sempre honesta, a não amar o dinheiro, a praticar a filo-
for que, sendo casado, tem relações culpadas e ilícitas com uma
sofia cristã, a não carregar de ouro as suas orelhas, o seu rosto, o
mulher, ainda que uma mulher pública, uma serva, uma qualquer
seu pescoço."^* "Aproveitai para lhe traçardes regras de conduta,
pessoa não casada, comete um adultério. Com efeito, não é somen-
do tempo em que a vergonha, à semelhança de um freio, a impede
te da pessoa desonrada, mas também do autor da sua desonra a
de se queixar, de reclamar [...]. Que tempo poderia ser mais bem
qualidade que constitui o adultério."'* E ainda: "Se a tua mulher
escolhido para a educação de uma mulher do que aquele em que
veio a ti, se deixou o seu pai, a sua mãe e toda a sua família, não
ela ainda se ruboriza diante do seu marido, e não deixou de o te-
é para que a ultrajes, para que a substituas por uma v i l cortesã.""
mer? Usai da ocasião para lhe traçardes o seu dever, e de qualquer
Este laço intangível, e que até mesmo uma relação episódica com
maneira, de boa vontade ou contrariada, ela obedecer-vos-á."^^
uma escrava macula, compreende-se que a morte não possa
Podemos vê-lo: se faz parte do direito e do dever do marido ensi-
desfazê-lo inteiramente. Sobre o novo casamento, Crisóstomo tem
nar a sua esposa, há em contrapartida um domínio em que a igno-
a mesma posição de reprovação prudente que a maior parte dos

26 Cf. SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, III Homilia sobre o casamento, 4. O mesmo


30 Cf. capítulo "A Casa de Iscómaco", em O Uso dos Prazeres. [Tradução de
tema no tratado Sobre o Casamento Único, 4. Numa nota sobre este último texto,
Manuel Alberto, Lisboa, Relógio D'Água, 1998. (N. T.)]
B. Grillet aproxima esta passagem do texto de XENOFONTE: "A divindade adap-
tou desde o princípio a natureza da mulher aos trabalhos e aos cuidados do interior, 31 Ibid., 7.
a do homem aos do exterior", Económico, V I I , 21. 32 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, X I X Homilia sobre a Primeira Epístola aos Co-
ríntios, 2.
27 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, III Homilia sobre o casamento, 4.
33 Cf. supra, I Parte, p. 27.
28 [SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, X X Homilia sobre a Epístola aos Efésios, 7.]
29 Ibid., S. 34 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, I Homilia sobre o casamento, 4.
35 Ibid.
282 Michel Foucault As Confissões da Carne 283

autores cristãos e que vários autores neo-estóicos. Não é absoluta- vontade de não ter com ela mais do que um só e o mesmo pensa-
mente proibido (sobretudo no caso de se ser jovem) voltar a ca- mento; e consciência de que a união definitiva não poderá produ-
sar'*. Mas mais vale, apesar de tudo, "esperar a morte, permane- zir-se senão na vida futura. E , a partir do momento que tal é o
cer fiel aos compromissos, manter a continência, ficar junto dos objectivo final do casamento, a vida neste mundo conta pouco e o
filhos, e merecer assim uma parte mais abundante nas bondades marido acha-se pronto a sacrificar, a esse fim, a sua própria vida:
de Deus"". "Desdenhei de tudo para não ver mais do que as qualidades da tua
— Princípio de um laço afectivo que constitui ao mesmo tempo alma, que estimo acima de todos os tesouros [...]. Foi por isso que
a meta e a condição permanente do bom casamento. Se devemos me apeguei a ti; é por isso que te amo e te prefiro à minha própria
escolher com tanto cuidado aquela com quem haveremos de casar vida, porque a vida presente nada é; mas dirijo-te as minhas súpli-
(uma grande parte da I I I Homilia sobre o casamento é consagrada cas, as minhas recomendações, e faço tudo para que nos seja dado,
a definir os princípios desta escolha), é que é necessário podermos depois de termos passado a vida actual num amor mútuo, conti-
amá-la: tomando a que devemos tomar, "não ganharemos somente nuarmos ainda reunidos e venturosos na vida futura [...]. A tua
o não termos de a repudiar jamais, mas ainda o amá-la com uma afeição agrada-me acima de todas as coisas, e nada me seria tão
ternura profunda"'*. Uma passagem do pequeno tratado Sobre o penoso como ter fosse no que fosse um outro pensamento que não
Casamento Único (que dataria da mesma época que o tratado so- o teu. Ainda que tenha de perder tudo, tornar-me mais pobre do
bre a virgindade) propõe sobre esta afeição, da qual faz de resto que Irus, correr os perigos mais extremos, tudo sofrer, nada me
um dos pontos positivos do casamento, uma interpretação muito custará, nada temo, contanto que possua o teu amor."*" E o texto
terra-a-terra: o homem ama aquilo de que é senhor, e sobretudo termina, de modo muito característico, com a fórmula que é exac-
aquilo de que é o único e primeiro senhor; tal é o caso das vestes, tamente a inversa daquela que, em Xenofonte, iniciava um discur-
dos móveis. Por maioria de razão, deverá ser assim quando se tra- so análogo. Neste considerava-se que o marido deveria dizer à
ta da mulher ("o bem mais precioso para o homem"). Quando sa- esposa que, se a escolhera e se os pais dela lha tinham dado, fora
bemos que somos o seu primeiro e exclusivo possuidor, recebemo- em vista do bem da sua casa e dos seus futuros filhos"'. E m Cri-
-la com "solicitude", "afeição", "benevolência"'^ É evidentemente sóstomo, o marido somente deseja ter filhos depois de essa reu-
uma outra tonalidade que encontramos nas homilias mais tardias. nião das almas, prefigurando a união no além, se ter realizado:
E em particular nesse discurso fictício endereçado à jovem esposa "Desejarei ter filhos, quando tiveres ternura por mim."*^
por um marido cristão ideal. A afeição não se refere aí a uma re- O respeito destes princípios deve constituir, segundo Crisósto-
lação de posse e de domínio, mas a uma certa forma de relação de mo, o fundamento de uma regra de vida matrimonial, de um
alma a alma, que comporta vários aspectos: reconhecimento das "saber-ser casado". Assim será assegurada a tranquilidade da al-
qualidades de alma da mulher; desejo de conquistar a sua afeição; ma, ao passo que os amores exteriores, e esses, sobretudo, que se
podem encontrar junto das prostitutas, estão necessariamente en-
36 O novo casamento com uma mulher repudiada é um adultério, porque o repúdio venenados. Com aquelas, com efeito, "tudo é amargura e dano":
não desfaz o laço, SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, II Homilia sobre o casamento, 3.
37 [Ibid., 4.]
38 [SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, III Homilia sobre o casamento, 2.] 40 [SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, X X Homilia sobre a Epístola aos Efésios, 8.]
39 Prothumia, philia, eunoia: SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, Sobre o Casamento 41 [XENOFONTE, Económico, capítulo VIL]
Único, 5. 42 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, X X Homilia sobre a Epístola aos Efésios, 8.
284 As Confissões da Carne 285
Michel Foucault

despesas, humilhações, sortilégios e filtros; "Se buscais o prazer, dem feri-lo. Felo contrário, aquele que trata ligeiramente e sem
fugi das cortesãs". E m contrapartida, em tua casa, junto da tua reflexão este único assunto, ainda quando a praça pública seja
mulher, "encontras ao mesmo tempo prazer, segurança, recreio, para ele sem tempestade, não verá, ao voltar para sua casa, mais
respeito, consideração e boa consciência [...]. Quando tens à mão do que recifes e rochedos perigosos.""*
uma fonte de água límpida, porquê buscares um charco lamacen- WiKalon ho gamos, dizia já o tratado Da Virgindade. Tão belo e
to?"*' A esta paz da alma correspondem a boa ordem e a prospe- tão importante que Crisóstomo (que de resto encoraja os pais a
ridade da casa: "Quando um general organizou fortemente o seu não se oporem aos seus filhos quando estes querem renunciar ao
exército, nenhum inimigo ousa atacá-lo: o mesmo se passa aqui; mundo) considera que os adolescentes devem ser preparados
quando a mulher, os filhos, os servidores, concorrem em vista do para o casamento. Uma parte da I X Homilia sobre a Primeira
mesmo fim, reina na família uma concórdia perfeita [...]. Velemos Epístola a Timóteo é consagrada a este tema. "A rapariga jovem
pois com grande cuidado sobre as nossas mulheres, os nossos fi- deve sair da casa paterna para casar, como um atleta sai da pa-
lhos, os nossos servidores.""* O laço entre os esposos constitui, lestra, formada e exercitada.""' Esta preparação é a que deve ser
para a ordem geral da casa, um modelo que os filhos e os servido- dada a almas e corpos "difíceis de domar" e que requerem " v i -
res por seu turno retomam. De tal maneira que, se aquele laço for gilantes, preceptores, professores, guardas e governadores""*. A
sólido, e se se apoiar no amor, na medida, no respeito, na autori- parte essencial desta preparação consistirá em impedir os rapa-
dade reconhecida, todos em redor disso poderão beneficiar: "Co- zes e as raparigas de terem relações sexuais antes do casamento.
mo deverão ser os filhos nascidos de pais tão virtuosos; os escra- E por duas razões: porque "o que está cheio de reserva antes do
vos adstritos ao serviço de tais senhores; enfim, tudo o que deles casamento está-lo-á bem mais depois; e aquele que, antes do
está próximo! [...] E m geral, os servidores moldam-se pelos seus casamento, frequentou as cortesãs fará o mesmo depois de casa-
senhores, afectam as suas paixões, amam o que os ensinaram a do"; mas também porque, reservando-se assim para essa relação
amar, rezam como eles, vivem como eles."*' "A casa, ordenada a do casamento, que será a primeira, cada um dos dois esposos
partir e em torno de um laço conjugal elaborado ele mesmo com terá pelo outro "uma afeição mais viva'**'. Preparação para o
base em tais regras éticas, poderá constituir o abrigo cuja necessi- amor através da castidade; mas seria imprudente que esta se
dade o homem experimenta contra as agitações do mundo exte- prolongue muito no tempo: "Casemo-los cedo."'" Ou, como Cri-
rior. "Um casamento segundo as regras não é assunto de somenos sóstomo diz noutro lugar: "Vendo como arde essa fornalha,
importância; e mil infortúnios aguardam aqueles que não usam
dele como convém [...]. Com efeito, o esposo que se conforma às i 46 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, II Homilia sobre o casamento, 1.
leis conjugais encontra na sua casa, na sua mulher, uma consola- 47 [SÃO lOÃO CRISÓSTOMO, I X Homilia sobre a Primeira Epístola a Timó-
teo, 2.] A relação entre o exercício da preparação para o casamento e o combate
ção, um asilo contra todos os males, públicos ou outros, que po-
atlético dos que escolheram a virgindade aparece claramente na V Homilia sobre
a Primeira Epístola aos Tessalonicenses, 3. Antes do casamento os filhos são
43 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, I Homilia sobre o casamento, 5. Cf. também na como uma matéria inflamável. E necessário velar por eles como "por virgens
terceira destas Homilias, 9: "Se conduzirmos assim os nossos esforços, não haverá enclausuradas" (I Homilia sobre Ana, 6].
nem divórcio, nem suspeita de adultério, nem motivo de ciúme, nem batalhas, nem 48 [SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, IX Homilia sobre a Primeira Epístola a Timó-
querelas, mas saborearemos todas as doçuras da paz e da concórdia." teo, 2.]
44 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, X X Homilia sobre a Epístola aos Efésios, 6. 49 Ibid.
45 Ibid., 9. ^mUbid]
286 As Confissões da Carne 287
Michel Foucault

esforcemo-nos [...] por ligá-los em conformidade com a l e i de procriação. Porque foi, pergunta na I I I Homilia sobre o casamen-
Deus, nos laços do casamento."" to, que Deus deu aos homens esta instituição? "A fim de que evi-
Como vemos, quando Crisóstomo, temperando certos aspectos temos as fornicações, a fim de que reprimamos a nossa concupis-
dos seus primeiros escritos, confronta com a virgindade a família cência, a fim de que vivamos na castidade, a fim de que nos
conjugal convenientemente organizada, e quando faz dela u m lu- tornemos agradáveis a Deus contentando-nos com a nossa própria
gar de tranquilidade privada oposto às agitações públicas e sus- mulher."'" Noutros textos. Crisóstomo põe efectivamente a pro-
ceptível de conduzir ao bem que buscamos, nada há aqui que, no criação entre os fins do casamento, mas numa posição secundária
seu princípio, seja especificamente cristão. Todos estes temas es- e a título somente provisório. É a tese do De virginitate: "O casa-
tevam já formados. Não devemos decerto ignorar que Crisóstomo mento foi por certo dado em vista da procriação, mas muito mais
os reinscreve em referências propriamente cristãs: a hierarquia ainda para apaziguar o fogo do desejo inerente à nossa natureza.
"natural" entre o homem e a mulher, ele reporta-a à Criação; nas Paulo atesta-o quando diz: Tara evitar a fornicação, que cada um
virtudes do casamento, vê a promessa de recompensas futuras — tenha a sua mulher', não diz: para fazer filhos. E quando convida
"desta maneira, aqueles que amam a Deus poderão agradar ao (marido e mulher) ao retomar da vida comum, não é para que te-
Senhor, passar virtuosamente toda a vida presente, e obter por fim nham numerosa descendência."" Mas as Homilias sobre o casa-
os bens prometidos"'^; e as prosperidades de uma vida conjugal 'mento não dizem coisa muito diferente: "Há duas razões pelas
bem governada são para ele o efeito de uma bênção". quais o casamento foi instituído: a fim de que sejamos continentes,
Há contudo uma diferença — e é capital — que impede de co- e afim de que sejamos pais. Mas, destes dois motivos, é o da con-
locar Crisóstomo e todos os que fazem as mesmas análises que ele tinência o mais importante"'*; e, depois de ter explicado as razões
no século IV na simples continuidade de Clemente de Alexandria desta importância e os motivos que fizeram com que Deus instau-
e, por maioria de razão, dos moralistas da Antiguidade. Trata-se rasse o casamento, conclui que este não tem senão um fim, e um
da questão das relações sexuais no interior do casamento. E , mais só: impedir a fornicação. Assim, no termo da análise, a procriação
precisamente, da recusa de fazer da procriação um dos fins essen- desapareceu. Por fim, encontramos também em Crisóstomo a re-
ciais do casamento, juntamente com a afirmação de que as rela- cusa de estabelecer uma correlação teológica entre casamento e
ções sexuais são, entre esposos, objectos de obrigação. procriação. O primeiro pode ser perfeitamente válido sem dar lu-
gar a nascimento algum, e de resto, sem a vontade de Deus, não
O casamento não tem por fim a procriação. Com efeito. Crisós- seria por si mesmo capaz de povoar a Terra. Quanto à segunda.
tomo não diz as coisas assim. Deparamos com três séries de for- Deus poderia perfeitamente assegurá-la sem passar nem pelo ca-
mulações. Numas, enumerando os fins pelos quais Deus instaurou samento nem pelos laços do corpo".
o casamento, ele contenta-se com não fazer menção alguma da
54 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, III Homilia sobre o casamento, 5. Ou ainda: "O
51 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, L I X , Homilia sobre o Génesis, 3 (R G., t. 54, casamento não é nunca louvado por si mesmo, mas por causa da fornicação, das
col. 517-518). tentações, da incontinência". Da Virgindade, X X X I X .
52 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, X X Homilia sobre a Epístola aos Efésios, 9. Cf. 55 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, Da Virgindade, XIX.
igualmente: "Usai com moderação do casamento, e ocupareis o primeiro lugar no 56 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, I Homilia sobre o casamento, 3.
Reino dos Céus", VII Homilia sobre a Epístola aos Hebreus, 4. 57 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, Da Virgindade, XV. O exemplo de Abraão prova
53 [SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, III Homilia sobre o casamento, 9.] que o casamento em si mesmo não determina a procriação.
288 Michel Foucault As Confissões da Carne 289

Esta dissociação é importante se nos lembrarmos da insistência tem, em Agostinho e nos seus sucessores, o mesmo sentido que
com que fora sublinhado em toda a cultura helénica o laço entre o entre autores anteriores, sejam estes pagãos como Musónio ou
casamento e a paidopoiia, a fabricação de filhos: recordemos o cristãos como Clemente de Alexandria.
Pseudo-Demóstenes dizendo que as esposas são feitas para darem A dissociação entre casamento e procriação é traçada por Cri-
descendência legítima e que o estado de casamento se reconhece sóstomo a partir da história geral do homem, da sua queda e da sua
por se procriarem filhos próprios; recordemos também todos os salvação. Faz valer, com efeito, que a procriação é anunciada no
filósofos que faziam da procriação o fim essencial do casamen- Génesis justamente no momento da criação do homem — "Crescei
to'*. A posição de Crisóstomo é de molde a surpreender, quando e multiplicai-vos"''° — antes portanto da da mulher, antes da queda,
pensamos que Clemente de Alexandria retomara, como uma evi- antes da morte e da dor que a sancionam. É pois anterior à institui-
dência, essa tese antiga'^ mas de forma que surpreenda igual- ção do casamento. Que pode então significar esse preceito dado por
mente quando pensamos que muito cedo, e de uma maneira geral Deus ao homem solitário? Sabemos que Gregório de Nissa vê nele
no cristianismo a partir de Agostinho, a procriação vohará a apa- o anúncio de uma geração que se operaria à maneira angélica e
recer no primeiro plano da teologia do casamento e da ética se- teria permitido povoar o paraíso como o céu está povoado de anjos.
xual; será definida, ao lado do sacramento e da fidelidade, como Crisóstomo vê-o antes como um anúncio e uma promessa: a funda-
um dos bens do casamento e como a primeira das finalidades le- ção, desde a criação do homem, de uma possibilidade que será
gítimas que o acto sexual entre esposos pode propor-se. Crisósto- efectuada mais tarde*'. E sê-lo-á após a queda. Por causa desta?
mo será uma excepção? Marcará simplesmente um episódio, um Não, pelo menos, directamente, mas de modo indirecto, uma vez
instante de flutuação que a doutrina e a prática não irão reter? que a queda provoca a morte e que é a título de compensação que
Excepção, por certo que não: porque, de Orígenes até ele, o casa- a progenitura é dada ao homem. Mas devemos ter presente ainda
mento foi encarado não em função dos seus fins procriadores, mas que não se destina a preencher uma Terra que a morte despovoaria
na sua posição hierárquica por comparação com a virgindade e rapidamente, mas a dar ao homem juntamente com o pensamento
com o celibato voluntário; foi a questão da continência, e não dos das gerações futuras a imagem quer de uma imortalidade da qual
filhos, o ponto essencial do debate. Crisóstomo deve ser conside- fora destituído, quer de uma ressurreição que o salvaria. E a pro-
rado como pertencendo a toda essa corrente de pensamento que criação como imagem da imortalidade perdida que a primeira das
tem São Jerónimo por testemunha no Ocidente, e o problema que três Homilias sobre o casamento evoca: "Quando não havia espe-
se lhe pôs foi o seguinte: como estabelecer uma pastoral das rela- rança de ressurreição [...], Deus deu aos homens esta consolação da
ções conjugais (que deixa de poder ser dispensada em nome de paternidade de maneira a que aqueles que morriam pudessem so-
uma valorização unilateral do ascetismo) a partir de uma moral da brevivesse em imagens vivas."*^ A X V I I I Homilia sobre o Génesis
continência? E , se esta corrente constitui ela mesma um episódio, faz da procriação uma figura da promessa de que a vida viria de-
este último é importante; porque foi aqui que a questão das rela- pois da morte: no momento em que infligia aos homens "o castigo
ções sexuais no interior do casamento foi reelaborada; e, devido a terrível da morte". Deus mostrou como amava a humanidade —
ele, a proposição de que a procriação é um fim do casamento não

60 Génesis, 1,28.
58 Cf. supra, p. 27. 61 [Nota vazia.]
59Cf.ííí/7ra,pp.27-28. 62 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, I Homilia sobre o casamento, 3.
290 Michel Foucauit As Confissões da Came 291

como era philanthrôpos — ao conceder-lhe "a sucessão dos filhos sentido, pode dizer-se que é uma consequência da queda, como a
como uma imagem da ressurreição"*'. A procriação no sentido fí- procriação carnal. Mas, enquanto esta é uma consolação, o casa-
sico do termo não tem pois sentido a não ser reportando-se a estas mento é uma maneira de pôr um limite aos desejos do corpo: um
duas referências que se situam uma e outra às portas do tempo. E sinal de paragem contra os excessos a que a queda deu livre cur-
não tem outro papel senão produzir imagens que vemos bem que so. As Homilias sobre o casamento não modificam no essencial
não teriam razão de ser antes da queda, e que deixam de a ter tam- aquilo que, mais de uma década mais cedo, o De virginitate ex-
bém a partir do momento em que chega o tempo da ressurreição. A punha a propósito do "momento meta-histórico" do casamento,
procriação fez o seu tempo. E o preceito do "crescei e multiplicai- do seu papel sob a lei hebraica, e da função que ainda hoje tem a
-vos" que fora formulado desde que o homem fora moldado por exercer. Quando muito atenuam um pouco a insistência que Cri-
Deus, e que por conseguinte domina o tempo, deve carregar-se de sóstomo pusera na "condescendência" de Deus, ao conceder o
um sentido novo: é às gerações espirituais, mais belas do que as do casamento como essa alimentação que se dá a crianças demasia-
corpo, que doravante devemos aplicar-nos*". do fracas para suportarem um regime adulto, como uma medica-
Quanto ao casamento, se está ligado, também ele, à queda, não ção amarga a que temos de nos submeter quando estamos no
é do mesmo modo. Enquanto a "muhiplicação" se funda ontolo- momento de força máxima da doença**. O casamento é apresen-
gicamente no acto criador, e está, por isso, pelo menos a título de )• tado sobretudo como limite e como lei. "Foi a partir do dia em
possibilidade, presente desde o paraíso, e se foi a queda a dar-lhe que se introduziu a concupiscência que se introduziu o casamento
a sua realidade material — bem como a sua função de imagem que refreia a incontinência, e leva o homem a contentar-se com
relativamente às realidades espirituais —, o casamento, esse, es- uma mulher."*'' Enquanto a procriação era uma possibilidade pré-
tava totalmente ausente de uma condição humana que ainda não via que se tornou, após a queda, uma consolação, o casamento é
conhecera a queda. O texto do De virginitate é muito explícito uma lei que tem a sua razão de ser na revoUa, posterior à queda,
sobre este ponto: "Moldado por Deus, o homem viveu no Paraíso, do corpo contra a alma e que tem por fim subjugar os desejos
e sem que de modo algum se pusesse a questão do casamento."*' daquele. É por isso uma "roupa de servidão". Reencontramos as-
Deus, contudo, criara a mulher antes da queda, para que ela fosse sim a estranha formulação que figura no tratado Sobre o Casa-
a companheira do homem. Mas companheira, no sentido de auxi- mento Único. Diz-se neste último que o casamento não pode
liar (boêthos), não de esposa: "Ainda então o casamento não pa- chamar-se "casamento" em consequência da união sexual, porque
recia necessário. De facto, não se via dele rasto, ambos o dispen- toda a fornicação mereceria receber então esse nome; o que ca-
savam."** O casamento aparece com a queda, com "a corrupção racteriza o casamento é o facto de a mulher se contentar com um
da morte, a maldição, o sofrimento, as penas da vida"*'. Neste homem e um só™. Na sua essência, o casamento é limitação.

63 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, XVIII Homilia sobre o Génesis, 4.


64 [Nota vazia.] 68 Ibid., X V I e XVII.
65 "Gamou lagos oudeis ên": SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, Da Virgindade, XIV, 3. 69 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, I Homilia sobre o casamerito, 3. Sobre a ideia de
66 "Kai oude houtôs tio gamos anankaios einai edokei", ibid. Sobre a questão do que a lei está para o pecado como o remédio está para a doença, cf. Da Virgindade,
sentido a dar a essa função de auxiliar que a mulher tinha antes da queda: [cf. supra, X V I I , 3.
pp. 207-208, e ín/ra, pp. 317-325]. 70 "Dia to stergein heni tên gamoumenên andri", SÃO JOÃO CRISÓSTOMO,
67 [/Zjiâ'.,XIV,5.] Sobre o Casamento Único, 2.
292 Michel Foucault As Confissões da Carne 293

Esta definição do papel do casamento é importante. Em vez de cer paradoxal, a aproximação entre casamento e virgindade, a
situar o laço matrimonial num.a economia geral, natural ou social, definição de um tema que lhes é comum — a economia da concu-
da procriação, situa-o (pelo menos hoje, uma vez que a Terra está piscência —, ainda que não lhe dêem a mesma solução, leva a es-
povoada.e os tempos chegaram) numa economia individual da tabelecer como obrigação estrita para cada um dos dois esposos o
epithumia, do desejo ou da concupiscência. Neste sentido faz co- ter com o outro relações sexuais. Mas por certo sob certas reservas
municar a ética do casamento com a preocupação do ascetismo e e num quadro regulamentar.
a preocupação da continência até mesmo mais rigorosa. O casa- No início da X I X das Homilias sobre a Primeira Epístola aos
mento é uma maneira, a par ou antes abaixo da virgindade, de Coríntios João Crisóstomo expõe as obrigações recíprocas dos
solucionar a questão da concupiscência; esta encontra-se tanto no esposos quanto às relações sexuais. Comenta aí a frase de São
coração da moral do casamento como dos procedimentos ascéti- Paulo: "Que o marido dê à mulher o que lhe deve, e assim a mulher
cos entre aqueles que renunciaram a todo o laço matrimonial. A ao seu marido (7, S)."" Crisóstomo apresenta estas obrigações es-
concupiscência é o objecto comum às regras do estado de casa- sencialmente como o dever de não se introduzirem no casamento
mento e à tekhnê da profissão de virgindade. uma abstenção e práticas de renúncia que não convêm senão à as-
O que distingue todavia as regras do casamento das "técnicas" cese de uma vida votada à continência. Uma vez escolhido o casa-
da segunda não é simplesmente o facto de serem mais tolerantes e mento como forma de vida, não é permitido a um dos cônjuges
de permitirem com uma só pessoa aquilo que o estado de virgin- procurar levar dentro dele o outro modo de existência. Ou a casti-
dade exclui com seja quem for. E também o serem de tipo jurídico. dade rigorosa, ou o casamento. Sem dúvida, a simetria entre os ti-
E de várias maneiras. Enquanto a virgindade, como já vimos, é de pos de existência não é perfeita: porque se à castidade não é per-
conselho mas nunca de preceito, enquanto está excluído que seja mitido fazer excepção sob seja que forma for, certas abstenções,
obrigatória, o casamento, esse, é uma obrigação para todos os que em contrapartida, podem ter lugar no casamento. Abstenções ri-
não podem alcançar a perfeição do estado virginal. O casamento tuais e de carácter obrigatório'^ Abstenções voluntárias também:
é em si mesmo uma lei. Mas cria também obrigações. E obriga- mas devem ser sempre decididas de comum acordo, e não resultar
ções que se referem ao que é precisamente a razão de ser do casa- da decisão de somente um dos cônjuges; e, de qualquer maneira,
mento: a saber, a economia da concupiscência. Porque quem se não devem ser nunca definitivas; "se quiserdes abster-vos de acor-
casa para poder "limitar a uma só pessoa" o seu desejo, obriga-se do com o vosso cônjuge, que seja por pouco tempo"''.
com efeito a essa unicidade da relação; mas obriga-se também Quanto à natureza ou à forma dos actos requeridos, tendo em
perante o cônjuge a permitir-lhe satisfazer com uma pessoa e uma conta as recomendações de pudor ou de reserva que Crisóstomo
só o seu próprio desejo. Uma vez que a economia da concupiscên- faz muitas vezes, não dá indicação alguma. Nem preceitos a res-
cia é o propósito comum aos dois cônjuges quando se casam, é de peito da procriação possível, nem indicações sobre os tempos
facto necessário que cada um deles desempenhe o papel que o oportunos, nem sobre as práticas sexuais interditas. Na I V Homi-
outro espera dele, para alcançar esse propósito. Deste modo, o fim
da "limitação" da concupiscência que todo o casamento se propõe
tem por consequência necessária a aceitação recíproca do acto 71 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, X I X Homilia sobre a Primeira Epístola aos Co-
nntios, 1.
sexual para que cada um dos dois encontre no casamento o asce-
72 Ibid.
tismo temperado que nele procurava. De maneira que pode pare- 73 Ibid.
294 Michel Foucault As Confissões da Carne 295

lia sobre a Epístola aos Romanos, Crisóstomo entrega-se a longas mos conduzidos; mas por muitas razões —• e entre outras pelo
considerações sobre os pecados de Sodoma, sobre a interversão facto de a "isotimia" implicar uma igualdade de indivíduos livres'"
dos papéis entre homens e mulheres, e sobre a inversão das leis da —, este tema da escravatura permanece relativamente alusivo'' e
natureza; no entanto, ao que parece, não é a práticas conjugais que metafórico. E m contrapartida, a ideia de uma apropriação traz
se refere, mas no essencial à passividade e à prostituição masculi- consigo a de uma dívida: aquele cujo corpo se tornou propriedade
nas, ou às relações sexuais entre mulheres. Seja como for, nem do outro deve-lhe alguma coisa — a saber, o uso desse corpo.
nesta homilia, nem naquela que comenta a Primeira Epístola aos Crisóstomo faz notar que São Paulo emprega, para designar esta
Coríntios, parece impor aos cônjuges um tipo de relação sexual obrigação, a expressão opheilomenên timên e que opheilê se refere
determinado e justificável porque susceptível de ser fecundo. Não à dívida. O dever entre esposos é uma dívida. E é este tema
é a morfologia da relação que é para ele determinante, mas um jurídico-económico que leva Crisóstomo a falar de fraude a pro-
princípio de igualdade formal e jurídica. Enquanto, em todos os pósito dos que se furtam a tal dever. Devemos sem dúvida notar
outros planos, há diferença e hierarquia entre o homem e a mulher, que a explicação por ele apresentada é estranhamente coxa: "não
enquanto não têm as mesmas aptidões naturais, enquanto a mulher me roubais", diz Crisóstomo, "se eu consentir que me tomeis um
deve temer o seu marido e obedecer-lhe, no plano das relações objecto que me pertence, mas tomá-lo pela força a alguém que o
sexuais, em contrapartida, não deve haver desigualdade alguma. não consinta é roubar". De um princípio que tal poderíamos espe-
"Que em todo o outro lugar a vantagem seja do homem, mas em rar que se deduzisse a liberdade para cada um dos cônjuges de
matéria de continência, não"; neste ponto, não deve distinguir-se poder recusar-se ao outro. Mas, se tivermos presente que o casa-
"o mais ou o menos: o direito é o mesmo" [ibid]. Crisóstomo usa mento efectuou uma transferência de propriedade, vemos que,
aqui um vocabulário evidentemente político e jurídico. Recusa a para Crisóstomo, aquele dos dois que se recusa ao outro usa de
pleonexia (o "mais poder", o "mais força" de um lado do que de violência para com ele: toma, ou retoma, pela força aquilo de que
outro); estabelece o princípio de isotimia (igualdade dos privilé- o casamento fizera proprietário o outro. É por isso que, muito lo-
gios). As obrigações que fixa aos esposos constituem portanto gicamente, nos é dado como exemplo de semelhante fraude o caso
uma espécie de igualdade política quanto às relações sexuais: os das mulheres que, sem o consentimento do seu marido, decidem
direitos de um fixam os deveres do outro. praticar a castidade. Cometem uma falta grave contra a "justiça"'*.
No entanto, não é apenas sobre uma simetria no poder de deci- O modelo da propriedade da dívida é bastante importante em
são e uma comunidade de vontade que Crisóstomo funda este Crisóstomo. Utiliza-o várias vezes, entrelaçando com insistência o
sistema de obrigações. A sua forma é a de uma igualdade política. tema das trocas económicas do casamento com o princípio da
O seu fundamento é o de uma propriedade. Retomando o texto de transferência de propriedade do corpo. Por vezes faz valer a dupla
São Paulo, segundo o qual o corpo do homem não lhe pertence, confusão que, no casamento, faz de dois corpos um só ser, e de
mas à mulher, e reciprocamente, faz da obrigação de um cônjuge duas fortunas um único bem: "Não sois mais do que um mesmo
não se recusar ao outro a consequência de uma apropriação míítua
dos corpos que se operaria no casamento. Apropriação que pode
74 Sobre o casamento como laço entre dois indivíduos livres, cf. [nota incom-
criar duas situações, segundo se acentue o facto de haver proprie-
pleta].
dade, ou o facto de esta apropriação incidir sobre o corpo de seres 75 Ibid.
humanos. Neste último caso, é ao modelo da escravatura que so- 76 "Meizona tês dikaiôsunês amartian."
296 297
Michel Foucault As Confissões da Carne

ser, uma mesma vida, e falais ainda do teu e do meu! [...] Deus dos cônjuges torna-se senhor e possuidor do corpo do outro, na
tornou-nos coisas comuns mais necessárias do que as riquezas."^^ medida em que pode dominar a sua concupiscência. E , recusando-
Por vezes também faz valer que, se o marido pode considerar co- -se a fazê-lo, um cônjuge torna-se responsável pelas perturbações
mo seu o dote da mulher, esta pode assumir justificadamente que que a concupiscência do outro possa produzir. Estas perturbações.
o corpo do seu marido lhe pertence. "Não é estranho que o dote Crisóstomo descreve-as de duas maneiras. Desordem doméstica,
que ela te traz seja objecto de toda a tua solicitude, e que evites , dissensão, desorientação na casa familiar: o bom ordenamento das
cuidadosamente tudo o que possa diminuí-lo, e que esses tesouros,' pessoas e das coisas que vimos repousar sobre a unidade do casal.
muito mais preciosos do que um dote, quero eu dizer, a continên- | Crisóstomo mostra que depende em parte do respeito e da justiça
cia e a castidade, bem como a tua própria pessoa [...], tu os esban- nas relações sexuais. "Grandes males nascem" quando a última é
jes e os corrompas?" A esta analogia dote da mulher/corpo do transgredida, "as fornicações, os adultérios; as desordens domésti-
marido. Crisóstomo acrescenta imediatamente a seguinte observa- cas são as suas consequências"; o marido frustrado dos seus direi-
ção que mostra melhor ainda a que ponto semelhante comparação tos "suscita querelas e causa mil aborrecimentos à sua mulher"™.
é inadequada à sua própria concepção da dupla propriedade mú- Mas, mais profundamente, é da perturbação na alma do outro, dos
tua: "Se te sucede tocares no dote da tua mulher, é ao teu sogro seus desejos, das suas tentações, das suas dificuldades em dominá-
que tens de prestar contas; mas, se atentares contra a castidade, -las, que se torna culpado aquele que recusa nas relações conjugais
será Deus a pedir-tas. Deus que instituiu o casamento e de quem o equilíbrio da justiça. Porque o casamento colocou-o em posição
tens a tua esposa."'* De facto, a partir do momento em que o nas- de contribuir para a salvação do seu cônjuge. No fundo da apro-
cimento de uma progenitura deixa de aparecer no horizonte do priação dos corpos, há a seguinte transferência: já não é aqui o
casamento, o laço entre a conjunção física e a circulação dos bens 1 objectivo de uma progenitura comum que justifica a "dívida dos
não pode ser mais do que da ordem de uma analogia mais ou me- corpos" implicitamente contraída pelos esposos quando se casam;
nos bem fundada. Devemos reter contudo do recurso que a ela faz
mas a responsabilidade de cada um frente aos pecados do outro.
Crisóstomo a sua vontade de marcar bem a presença de uma obri-
O "fruto" que está então em causa é espiritual: é a salvação de
gação de tipo formal e jurídico. Há para ele um direito interno ao
cada um através do outro. Quiasma salutar. Crisóstomo pode em-
casamento, absolutamente simétrico entre os dois cônjuges, e que
pregar, neste ponto preciso, a palavra agapê no seu sentido duplo
decorre da propriedade mútua dos corpos.
de amor conjugal e de caridade.
Mas porque é que Crisóstomo pensa o casamento como trans- É necessário reconhecer que, sobre este tema, o tratado Da
ferência de propriedade, mais do que como união, fusão, constitui- Virgindade não representa exactamente as mesmas posições que
ção de um só ser — tema que evoca várias vezes mas que não as homilias anteriores. Nele Crisóstomo insiste já sobre a obriga-
seria susceptível de fundamentar um laço de tipo jurídico? Preci- ção em que a mulher se encontra de não se furtar, ainda que por
samente porque o corpo depois da queda é o lugar dos excessos da razões de continência, ao dever conjugal: "A mulher que é conti-
concupiscência; e porque quem se casa para pôr limites a tais ex- nente contra a vontade do seu marido não só se vê privada das
cessos pede depois ao outro que assegure essa limitação. Cada um recompensas da continência, como é responsável pela conduta
adúltera do seu marido e terá a prestar por esta mais contas do que
' 77 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, X X Homilia sobre a Epístola aos Efésios, 9.
78 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, I Homilia sobre o casamento, 4. 79 [SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, X I X Homilia sobre a I Epístola aos Coríntios, 1.]
298 As Confissões da Carne 299
Michel Foucault

ele. Porquê? Porque foi ela que o impeliu para o abismo do debo- ímais tardias, este cumprimento do dever não é um resto inevitável,
che ao privá-lo da união legítima."*" Mas, a esta obrigação, dá um que continua a ser necessário observar entre esposos depois de se
sentido extremamente limitado: concessão a uma necessidade físi- terem despojado de todos os outros aspectos da vida de casamen-
ca que reclama a indulgência e à qual não se deve opor uma recu- to; tem um duplo valor: espiritual, uma vez que manifesta um laço
sa unilateral*'; mas está fora de causa atribuir um valor espiritual de caridade, e moral, uma vez que assegura no casal um bom en-
a semelhante concessão: "Não é cumprindo, enquanto esposa, os tendimento que se repercute em toda a ordem da casa. A partir do
seus deveres conjugais que a mulher poderá salvar o seu marido, momento em que o casamento é pensado como uma profissão, um
mas praticando abertamente a vida do Evangelho; o que muitas estado que merece e reclama uma tekhnê específica, então a rela-
mulheres, de resto, realizaram ainda que fora do casamento."*^ ção conjugal deixa de ser uma imposição residual à qual não te-
O auxílio que os esposos podem trazer-se um ao outro não passa mos o direito de nos subtrairmos; é um elemento no labor pela
por aqui, ainda que tal deva ser conservado: "Não retiro absoluta- salvação mútua.
mente [à mulher] todo o concurso nas coisas espirituais — nem
Deus o quer! —, afirmo somente que o fornece não no exercício Uma vez mais. Crisóstomo não é tomado aqui pelo inventor
do casamento, mas quando, embora continuando fisicamente sua desta maneira de analisar as relações conjugais e o estado de ca-
mulher, excede a sua natureza para se elevar à virtude dos homens samento. É a testemunha de um pensamento do qual muitos ele-
bem-aventurados."*' A relação entre esposos, neste tratado em mentos se encontram já em Orígenes. E , como este deu alguns dos
que a vida de casado é apresentada nos seus inconvenientes, surge princípios fundamentais aos quais se referirão posteriormente as
como aquilo que deve, apesar de tudo, subsistir depois de alguém instituições da vida monástica, formulou da mesma maneira clara-
se ter desligado suficientemente do casamento, e estar com a sua mente alguns dos princípios da ética e da espiritualidade cristãs do
mulher "como não a tendo"*". E m contrapartida, nas homilias casamento, antes que este nas suas formas concretas desse lugar a
reflexão e prescrições específicas*'.
80 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, Da Virgindade, XLVIII, 1. As homilias de Crisóstomo, em todo o caso, manifestam a exis-
81 Ibid., L X X V : "A concupiscência é um instinto natural que, por isso, tem direi- ^ tência de uma pastoral da vida casada em que as relações sexuais
to a uma grande indulgência, e um dos esposos não tem poder de fmstrar o outro
contra a sua vontade."
estão fortemente ligadas a essa noção de opheilê, de debitam — de
82 Ibid., X L V I I , 2. Neste texto, a expressão para to suneinai — "na relação se- dever-dívida —, que se tornará no cristianismo uma categoria fun-
xual" — não deveria sem dúvida ser traduzida por "cumprindo os seus deveres damental para pensar, justificar, codificar e distribuir segundo um
conjugais". O que força e limita o seu sentido. Trata-se de todas as relações se- sistema de regras as relações conjugais. No curso da Idade Média
xuais, quer a mulher nelas cumpra o seu dever ou procure satisfação.
será construído um imenso edifício jurídico que faz aparecer os
83 [Ibid., X L V I I , 1.] Notar o texto: "hotan mê ta tou gamou prattê alia menousa
têi phusei gunê". A mulher deve continuar mulher "pela natureza", "fisicamente",
esposos como sujeitos de direito em relações complexas de dívi-
mas não é "a prática das coisas do casamento" que terá valor salutar. Parece estar- das, de reclamações, de aceitações e de recusas. Tanto pelo menos
mos aqui perante a oposição entre o estado em que devemos continuar e a prática
que teria ou não um valor. Não se trata da oposição que será posteriormente tão im-
portante na jurisprudência penitencial entre reclamar e conceder o dever conjugal. 85 Cf., em particular, os fragmentos sobre a Primeira Epístola aos Coríntios, pu-
84 [Ibid., L X X I V - L X X V ] GREGÓRIO D E NISSA, no seu tratado Da Virginda- blicados no Journal of Theological Studies, t. I X (1908), que tratam da questão
de, evoca também ele a dívida — ophlêma, mas indicando que é alguma coisa de da dívida, e o capítulo XIV, 24, dos Comentários sobre São Mateus, que trata do
baixo — tapeinon (V) ou de vão, de estéril — psukhron (VIII). marido que torna a sua mulher adúltera não realizando os seus desejos.
300 301
Michel Foucauh As Confissões da Carne

como os grandes interditos sexuais, este código contribuirá para a ainda e sempre o da relação consigo; acrescendo que, no caso do
juridificação da prática sexual, ao mesmo tempo que dará acesso •casamento, esta relação não se soluciona sem a relação com o ou-
à autoridade da instituição religiosa sobre as relações mais secre- tro. E é ainda necessário lembrar que, no caso da virgindade mo-
tas entre esposos. Ora, o que é importante sublinhar, se quisermos nástica, há uma forma de relação com o outro igualmente indis-
fazer a história desta estranha noção, é que ela não deriva (excepto pensável: é o laço de direcção.
de modo secundário, lateral, e porque aí, retrospectivamente, des- 1 A simetria entre a arte da vida monástica e a arte da existência
cobriu como que uma estrutura de apoio previamente disposta) da matrimonial não deve ser sobrestimada. As diferenças, bem enten-
ideia de que o casamento tem por fim a procriação. Pelo contrário, dido, são inumeráveis. E , sobre o tema preciso da concupiscência,
foi quando o pensamento cristão desligou o casamento desse fim devemos com efeito constatar que a ascese monástica dará lugar a
que lhe era tão facilmente reconhecido desde a Antiguidade pagã práticas de constante vigilância de si, de decifração dos seus pró-
que uma tal noção começou a desenvolver-se claramente. O tema prios segredos, de pesquisa indefinida nas profundezas do cora-
escatológico de um fim dos tempos em que já não é necessário ção, de elucidação do que pode ser ilusão, erro e engano relativa-
pensar numa progenitura foi sem dúvida fundamental. Mas não mente a si mesmo; ao passo que os preceitos da vida matrimonial
teria bastado por si só para constituir o suporte dessa noção, se o tomarão muito mais a forma de uma jurisdição do que de uma
casamento, frente ao monaquismo, à vida de virgindade e à arte de veridicção, e que o tema da dívida dará lugar a um trabalho inces-
a conduzir, a Igreja, nos seus vínculos cada vez mais numerosos e sante de codificação e a uma longa reflexão sobre a jurisprudên-
profundos com a administração do Estado e a sociedade imperial, cia. O dimorfismo é já aparente em textos como os de Crisóstomo;
não tivesse desenvolvido uma pastoral da existência conjugal, des- e sê-lo-á cada vez mais, marcando em profundidade a maneira de
tinada a conduzi-la e a mostrar como se conduzir nela. E esta arte reflectir e regular os comportamentos sexuais no Ocidente: em
da vida matrimonial ordena-se em torno da mesma questão que a termos de verdade (mas sob a forma de um segredo no fundo de
da vida de continência: como gerir, combater, vencer, numa luta si mesmo a elucidar indefinidamente se se quiser ser "salvo"), e
que é indissociável da própria vida, a concupiscência? De uma em termos de direito (mas tanto sob a forma de um direito de dí-
maneira que só à primeira vista é paradoxal, é a epithumia, o de- vida e de obrigações como sob a do interdito e da transgressão).
sejo, a concupiscência, que constitui a "matéria-prima" que deve Esta dimorfismo está ainda longe de ter desaparecido, ou pelo
ser tratada pelas artes da vida monástica e as da vida casada. Com menos esgotado os seus efeitos. Mas parece-me que na sua origem
uma diferença: é que, num caso, é consigo só e sob a forma do não devemos ver a sobreposição no cristianismo de um anterior
combate espiritual com os seus próprios "pensamentos" (no senti- direito do casamento e as formas mais recentes de uma renúncia
do amplo do termo) que cada um deve agir, para não lhe dar saída completa ao mundo. Foi o movimento no sentido de constituir, no
alguma possível (constituindo de certo modo a polução involuntá- exercício do poder pastoral, uma tekhnê da vida conjugal — infe-
ria durante o sonho a forma "mais pura" dessa impureza, à qual só rior à da vida monástica, mas não heterogénea a esta — que con-
Deus pode pôr definitivamente termo); e, no outro caso, existe duziu ao mesmo tempo a fazer da concupiscência de cada um dos
efectivamente uma saída legítima, ainda que "concertada", mas dois esposos (e não da progenitura comum) a forma essencial da
devemos ver bem que uma tal legitimidade se liga ao facto de relação conjugal e a organizar entre essas duas solidões o cruza-
cada um dos cônjuges permitir assim ao outro escapar às tentações mento das responsabilidades e o encadeamento de uma dívida.
da sua própria concupiscência. Quer dizer que o tema é com efeito Até mesmo na forma dual do casamento, o problema fundamental
302
Michel Foucault

e o daquilo que cada um deve fazer com a sua própria concupis-


cência; é portanto a relação de si consigo. E o direito interno do
sexo conjugal foi de início organizado como uma maneira de gerir
através do outro esta relação fundamental de si consigo.

II

O B E M E OS B E N S DO C A S A M E N T O

A virgindade é superior ao casamento, sem que o casamento


seja um mal nem a virgindade uma obrigação: esta tese geral,
Santo Agostinho recebeu-a de uma tradição já claramente forma-
da antes dele. E l a atravessa toda a sua obra; e ele expõe-na de
maneira explícita nos dois grupos de textos que teve ocasião de
consagrar aos problemas do casamento e da virgindade: nos pri-
meiros anos do seu episcopado, quando tinha de discutir tanto as
teses de inspiração maniqueísta (no De continentia, cerca de 396)
como as proposições de Joviniano (no De bono conjugali, 401, ou
no De sancta virginitate, 401); depois no momento das suas polé-
micas anti-pelagianistas, cerca de quinze anos mais tarde, quando
se apoia na superioridade da continência estrita e completa, reco-
nhecida pelos seus adversários do momento, e singularmente por
Juliano de Eclana, para afirmar contra elas que a concupiscência
é um m a F .
Uma passagem do De sancta virginitate situa bem, pelo menos
em termos negativos, o princípio geral. Este é o mesmo que, com
inflexões talvez diferentes e outros gumes polémicos, podemos

86 Muitos outros textos tratam dos mesmos temas: sermões, tratados que cor-
respondem a questões pastorais precisas {De bono viduitatis, 414), a posições ju-
rídicas (como o De conjugiis adulterinis, 419, a propósito do privilégio paulino).
s Confissões da Came 305
304 Miche] Foucault

encontrar em Gregório de Nissa, João Crisóstomo ou no Adversus por aqueles que, legitimamente, teriam podido casar: "Pode pois
Jovinianum de Jerónimo. "Alguns que tinham o desejo da virgin, buscar-se uma esposa, mas vale mais não o fazer."'°
dade pensaram que era necessário detestar o casamento tanto co- __ Esta superioridade da virgindade, não devemos compreendê-
mo o adultério; outros, que defendiam a união matrimonial, pre- -la como o benefício que poderia dar na vida do mundo. Traz
tenderam que a continência perpétua, por excelente que fosse, não consigo uma certa "tranquilidade", ao passo que o casamento,
tinha mais mérito do que a castidade conjugal. Como se a vanta- necessariamente, está ao serviço do "tempo presente"? Talvez seja
gem de Suzana devesse tornar-se humilhação de Maria ou a van- verdade, embora devamos ter em conta os diversos combates da
tagem ainda maior de Maria tornar-se condenação de Suzana."" : vida de continência. Mas erraríamos querendo evitar o casamento
Contra estes dois erros, um dos quais condena o casamento e o simplesmente para não nos submetermos à "aflição das preocupa-
outro não lhe prefere a virgindade, Agostinho faz valer que o ca- ções terrenas"", das quais a virgindade está livre. Se é preferível
samento e a virgindade não se distinguem como o mal do bem, fugir aos inconvenientes do casamento, não é por perturbarem o
nem se aproximam um do outro como dois bens equivalentes; repouso da alma, é porque a desviam do que deveria ser o seu
devem ser medidos e separados como um menor bem por compa- objecto; "forçam a pensar nas coisas de Deus menos do que o
ração com um bem maior. Duas elevações, numa mesma paisa- devido para se adquirir essa glória que não será feito de todos"'^.
gem, mas das quais uma é muito mais alta do que a outra: "Que É sem diívida possível encontrar, no laço matrimonial, a possibili-
aqueles que não querem o casamento não lhe fujam, pois, como de dade de uma "santidade conjugal"; mas esta é "menor por causa
um pântano de pecado, mas que o superem como uma colina boa das preocupações dadas pelo pensamento dos prazeres mundanos.
mas inferior, a fim de irem repousar-se na montanha bem mais É toda essa atenção da alma que se despende em encontrar o ne-
aha da castidade."** cessário para contentar um marido que a cristã que não é casada
Desta concepção geral de dois bens desiguais, Agostinho tira economiza e concentra na sua intenção de agradar a Deus"''.
conclusões que, enquanto tais, estão em conformidade com a dou- — Se o privilégio da virgindade está ligado a esta possibilidade
trina já construída. Indiquemo-las rapidamente para podermos, a de concentrar e de dirigir a 'Hntentio animi", é que o seu fim con-
seguir, marcar melhor o que constitui a elaboração própria de siste em estabelecer uma certa relação com Deus, que é incompa-
Santo Agostinho. tível com o estado de casamento. A ausência de corrupção que
— Uma vez que o casamento não é um mal, de maneira nenhu- caracteriza a vida dos anjos, que recompensará os eleitos e que
ma pode ser proibido; nem a virgindade, seja qual for a sua exce- permite ver Deus face a face, é a isso que tende a vida de virgin-
lência, imposta. A frase do Apóstolo, "se estás livre do laço con- dade: "Manter a sua carne virgem e abster-se por piedade de toda
jugal, não busques uma esposa"*', não deve ser compreendida a relação carnal é fazer obra angélica; é propor-se, numa carne
como uma proibição, mas como um conselho. Como poderia a corruptível, uma incorruptibilidade perpétua." Apresentando na
virgindade ser dita "santa" se não fosse mais do que a observância sua carne "alguma coisa que já não é carne"'", aqueles que se
de uma lei editada para todos, e se não fosse livremente escolhida
90 SANTO AGOSTINHO, De sancta virginitate, X V (15). •
91 [/Wá., XIII (13).]
87 SANTO AGOSTINHO, Oe sancta virginitate, X X (19) 92/Wd., X I V (14).
88/èicí.,XVIII(18). 93 SANTO AGOSTINHO, De bono viduitatis, X I X (23).
89 [I Coríntios, 7, 27.] 94 [De sancta virginitate, XIII (12).]
306 As Confissões da Came 307
Michel Foucauli

votam a uma continência perfeita prefiguram de certo modo um tekhnai, era evidente que o ponto forte, ou o elemento de referên-
além no qual o casamento já não existirá. cia, era constituído pela virgindade como o estado mais perfeito a
— Nessa outra vida, a virgindade que tem mais méritos recebe- que é possível aceder nesta existência. O próprio Crisóstomo, que,
rá recompensas mais ricas. Como Cipriano ou Atanásio, Agosti- justamente na época de Agostinho, delineava uma regra da vida
nho'' retoma a parábola das sementes do Evangelho de São Ma- conjugal, não evita referi-la à arte difícil da continência, que con-
teus (alguns grãos produzem cem, os outros sessenta e outros serva para ele, não só, bem entendido, a sua superioridade ética e
trinta somente), e aplica-a aos méritos e recompensas comparados ontológica, mas também um privilégio metodológico: define a boa
da virgindade e do casamento. Propõe a este respeito, de resto, conduta do casamento como a menos má gestão possível de um
várias interpretações possíveis: que a virgindade produz cem, a desejo contra o qual as pessoas casadas não têm a força ou a cora-
viuvez sessenta e o casamento trinta; ou ainda o martírio cem, a gem necessária para empreenderem uma luta radical.
virgindade sessenta e o casamento trinta; ou ainda o martírio Os textos de Santo Agostinho não seguem exactamente a mes-
acompanhado pela virgindade cem, a virgindade e o martírio se- ma direcção.
parados um do outro sessenta. Agostinho não quer, sem dúvida, Em primeiro lugar porque a acentuação se desloca no sentido do
atribuir demasiada importância a estes cálculos simbólicos: "Os casamento. Não devemos contudo enganar-nos, porque já vimos
dons são demasiado numerosos para que possamos reduzi-los a que Agostinho não considera nunca o casamento como equivalen-
todos a três graus." Mas devemos admitir entre eles uma diversi- te—e ainda menos como preferível — a uma virgindade autenti-
dade: seria grande a audácia dos homens se quisessem ser eles a camente praticada. É, e continuará a ser sempre, de valor menor.
decidir e a fixar aqui a Deus as suas opções. "Resta, todavia, com Mas é a este "menor" que Agostinho atende e cuja significação, até
toda a evidência, que estes dons são numerosos na sua diversidade certo ponto, repensa. Por um lado, tenta definir o que há de valor
e que os melhores são úteis não para o tempo presente, mas para directamente positivo no casamento: o lugar que tem, e que talvez
a eternidade.""" tenha tido sempre, na Criação; o fundamento que encontra na co-
Nenhum destes pontos pode ser considerado especificamente munidade eclesiástica; o que leva a que o valor "menor" do casa-
de Santo Agostinho. Todavia, no uso que ele faz destes temas, mento não deva ser compreendido como a diminuição, a degrada-
surgem de imediato diferenças consideráveis. ção parcial do aho valor da virgindade; tem por si mesmo o seu
valor próprio, ainda que este não seja o mais elevado. Por outro
Numa palavra podemos dizer que, falando do casamento ou da lado, faz o essencial da sua reflexão "técnica" incidir sobre o ca-
virgindade, Atanásio, Gregório de Nissa, Basílio de Ancira ou samento, as regras que nele devem ser observadas e a conduta a ser
Crisóstomo se propunham sobretudo definir modos de vida, des- nele mantida. O que não quer dizer que não encontremos, sobre a
crever os combates, perigos e recompensas de cada um deles, prática da castidade, indicações numerosas e precisas — nos ser-
ajuizar do seu valor relativo, marcar o seu lugar respectivo no in- mões'"' ou ainda em certas polémicas anti-pelagianistas"* mais do
terior da comunidade cristã. Além disso, nesta comparação das

97 Em particular os sermões 205-211. Cf. sobre este ponto L . VERHEIJEN, Nou-


95 Ibid., X L I V (45)-XLV (46). velle approche de la Règle de saint Augustin, BégroUes-en-Mauges, 1980, pp. 153-
96 Ibid., X L V I (46). Cf. Quaestiones in Evangelium secundam Matthaeum, I , IX, -200.
onde Agostinho propõe a segunda das interpretações aqui indicadas. 98 Assim no Contra Julianum, I I I .
308 Michel Foucault As Confissões da Carne 309

que no De sancta virginitate, onde o elogio da castidade, contra os - I -


discípulos de Joviniano, prevalece sobre a arte e a maneira de vi-
ver em continência. Mas é a propósito do casamento — no De Não é necessário ser-se virgem, ou renunciar ao casamento, ou
bono conjugali, e mais tarde no De nuptiis et concupiscentia, ou praticar uma continência absoluta para se pertencer à comunidade
no Contra Julianum — que Agostinho desenvolve uma telchnê e cristã, ainda que a Igreja reserve à virgindade um lugar de eleição:
regras de conduta próprias a uma [forma] de vida. Podemos falar, Agostinho repete-o depois de muitos outros, insistindo particular-
até certo ponto, de uma inversão do primado metodológico em mente na ideia de que, por valioso que seja o casamento, por santa
benefício do casamento e da tekhnê, da arte de nos comportarmos que possa ser a virgindade, o que prevalece ainda sobre ambos é
que é própria do estado matrimonial. o estarem reunidos numa só comunidade e coexistirem na unidade
Mas o essencial não está, sem dúvida, para Agostinho na defi- da Igreja. O conjunto é ainda mais belo do que o mais belo dos
nição comparada de dois tipos de existência. E o que o distingue seus elementos: "O corpo dos fiéis [...] forma os membros de
da maior parte dos seus predecessores ou contemporâneos é o seu Cristo e o templo do Espírito: e designa aqui, bem entendido, os
objectivo último: definir o quadro geral que permite pensar ao fiéis dos dois sexos. Há aqui, pois, pessoas casadas e pessoas não
mesmo tempo o exercício da virgindade e o do casamento, a sua casadas, com uma distinção de mérito todavia, uma vez que certos
positividade respectiva e a sua diferença de valor. Através da hie- membros prevalecem sobre outros, mas sem que nenhum esteja
rarquia que separa virgindade e matrimonialidade, através das separado do corpo [...]. Se uma criatura tomada à parte é melhor
condutas diversas que se impõem a uma e a outra, o que Agosti- que tal outra, todas elas, tomadas no seu conjunto, são melhores
nho constrói é a teoria de conjunto da qual as duas relevam. Numa do que seja qual for em particular."'' Mas, se a coexistência da
palavra: para lá da comparação entre a virgem e os esposos, entre virgindade e do casamento é mais bela do que a virgindade isola-
o continente e os cônjuges, já largamente desenvolvida antes dele, da, é porque não basta dizer que o casamento é, também ele, um
Agostinho faz aparecer, não uma terceira personagem, nem uma bem, mas atenuado e um pouco menor: pois não deixaria então de
figura compósita, mas o elemento fundamental que se reporta aos ser subtracção à excelência da virgindade. Temos de supor que há
dois outros: o sujeito de desejo. entre eles outra coisa mais do que uma sobreposição simples: uma
Antes de analisar a constituição de uma teoria da concupiscên- correlação que tem sentido e valor — uma correlação que faz com
cia no capítulo seguinte, estudaremos neste o primeiro aspecto que, se o casamento encontra na virgindade um suplemento, esta
evocado — a acentuação que se desloca no sentido do casamento descobre nele um complemento. Os modos de vida podem bem ser
e a definição de um "bem" positivo, que, sem lhe permitir preva- distintos nas comunidades de cristãos, mas deve haver na comuni-
lecer sobre a virgindade, o fundamenta no seu valor próprio. Este dade constituída pela Igreja um laço necessário entre casamento e
deslocamento marca-se, em Agostinho, numa concepção da Igreja virgindade.
como corpo espiritual, na exegese dos textos bíblicos relativos à , De Orígenes ou Metódio de Olimpos a Crisóstomo ou Jeróni-
Criação e à existência antes da queda, na elaboração, por fim, de mo, nunca a virgindade foi dissociada de certas modalidades de
um sistema de regras susceptíveis de fazer intervir, na vida dos união espiritual. E r a definida pela recusa de todo o "casamento",
esposos e nas suas relações, o bem que é próprio do casamento. fosse este institucional, ligando a um ser humano, ou esse que em

99 SANTO AGOSTINHO, De bono viduitatis, V I (8-9).


310 As Confissões da Carne 311
Michel Foucauit

geral liga ao mundo da carne. Mas esta renúncia tinha por corre- O início imediato do De sancta virginitate é sobre este ponto
lativo — ao mesmo tempo efeito e condição, recompensa e caução significativo, sobretudo se o considerarmos à luz do vasto conjun-
— um laço com Cristo. A alma virgem era a noiva ou a esposa de to de sermões que têm por tema a Igreja-Virgem'"°. Um imenso
Cristo; e, desta união, devia nascer uma infinidade de frutos espi- tecido de relações espirituais e de parentescos que excedem os do
rituais. sangue são aí representados; casamento e virgindade, virgindade
E m Santo Agostinho, as relações entre virgindade, casamento e e maternidade não aparecem nunca dissociadas; a sua implicação
fecundidade espiritual são muito mais complexas. Ao mesmo tem- recíproca é lembrada constantemente por expressões como: "virgi-
po porque revestem outras formas que não somente a da correla- nali conubio spiritualiter conjugatus", "virginum sponsus", "vir-
ção virgindade-núpcias com Cristo; e sobretudo porque estão im- ginitas fecundationem non impedit, [...] fecunditas virginitatem
plicadas no conjunto das relações de Deus com a sua Igreja, da non adimit"^°\
Igreja com Cristo, de Cristo com os fiéis, e de cada um destes com Para nos atermos a indicações esquemáticas, podemos desenhar,
o todo da comunidade. Além da escansão que isola as virgens re- da maneira seguinte, as relações numerosas e emaranhadas que
lativamente aos outros fiéis, além das diferenças de estatuto que esta passagem menciona. Cristo é, pois, filho de uma Virgem'"^;
marcam as pessoas casadas, as que o não são ainda, as que são dela, nasceu física, corporalmente; e não por meio da simples pre-
viúvas, as que levam uma vida de continência, as que se lhe con- servação de uma integridade que um homem "teria podido violar",
sagraram por meio de votos, além da questão das formas e das mas como fruto de uma virgindade que, voluntariamente, se vota-
regras de vida. Santo Agostinho faz aparecer, através de tudo o S ra à união com Deus""; virgem ele mesmo, é o esposo da Igreja,
que deve constituir a Igreja como realidade espiritual e única, re- também ela virgem, que se ligou a ele por meio de uma união es-
lações que supõem ao mesmo tempo virgindade e casamento, piritual; mas é também e mais particularmente, nessa Igreja, o
núpcias e integridade, maternidade ou paternidade e castidade esposo das virgens a que o unem núpcias virginais'"". Maria, a mãe
absoluta. Já não se trata então de caracteres que poderiam afectar eternamente virgem de Cristo, não o é simplesmente no corpo, mas
indivíduos e designá-los como virgens, ou cônjuges, ou pais, mas é-o também espiritualmente, uma vez que se votou a Deus e fez
de um tecido cerrado de laços espirituais em que cada um dos nascer Cristo na sua vontade, servindo assim de modelo a todas as
elementos é ao mesmo tempo, por referência aos outros, virgem e almas que, consagrando a Deus a sua vontade, fazem Cristo nascer
esposo, progenitor e filho. Assim, virgindade e matrimonialidade, em si mesmas'"'. Ora, todos os que fazem a vontade de Deus são,
a este nível, não se opõem como dois modos de vida alternativos, já na Terra, irmãos de Cristo que veio mostrar essa vontade e o
mas conjugam-se como aspectos permanentes e simultâneos das caminho para a seguir; a Virgem é, pois, igualmente irmã de Cris-
relações que formam a Igreja como unidade espiritual. Concebi- to'"*. Mas temos de considerar que é também filha de Cristo, por-
dos nestes termos, e sob a forma de virgindade fecunda ou de ca-
samento virginal, não há diferença de valor entre virgindade e 100 Em particular os sermões [138,188,191, 192,195,213].
casamento. Mas é sobre o fundo desta concepção das relações 101 SANTO AGOSTINHO, De sancta virginitate, II (2).
espirituais entre Deus e o homem através da Igreja que Santo 102 Ibid.
Agostinho vai fundar e explicar a hierarquia que devemos respei- 103 Ibid., IV (4).
104 Ibid., II (2).
tar entre virgindade e casamento entendido no sentido carnal.
105 Ibid., V (5).
106 Ibid.
312 313
Michel Foucault s Confissões da Came

que todos aqueles que crêem nele são seus filhos e merecem ser mos pode ser considerado superior ou inferior ao outro. Ora, desta
assim chamados, como diz São Mateus, "os filhos do esposo""". A implicação recíproca do casamento e da virgindade nas relações
Igreja, quanto a ela, é "a virgem de Cristo", unida a ele de maneira espirituais. Santo Agostinho não tira a conclusão de uma identida-
espiritual'"*; corporalmente, não pode ser chamada virgem senão de de valor espiritual entre a virgindade corporal e o laço matri-
quanto a alguns dos seus membros, não o sendo quando conside- monial. Pelo contrário, aos jovinianistas como mais tarde a Juliano
ramos aqueles de entre os fiéis que são casados"". Esposa-virgem de Eclana, opõe o princípio de uma hierarquia estrita. E que, com
de Cristo, a Igreja é mãe dos cristãos porque é ela que o faz nascer efeito, para ele, a virgindade física pode bem representar a virgin-
no Espírito ao acolhê-los no baptismo""; mas, na medida em que a dade espiritual; as virgens são, de facto, no mundo, a manifestação
comunidade dos santos constitui o corpo místico de Cristo, for- das relações virginais que produzem os frutos espirituais; é que a
mando-os, gestando-os, é também mãe de Cristo, como o são virgindade do corpo não pode existir realmente e merecer o nome
aqueles "que fazem a vontade do Pai"; "a Igreja entre os santos que de virgindade a menos que seja sustentada e animada pela virgin-
possuirão o reino de Deus é, segundo o espírito, inteiramente mãe dade do coração ou do pensamento: "Não é de si mesma, mas de
de Cristo"'". E devemos acrescentar ainda que toda a alma piedo- ser consagrada a Deus, que a virgindade tira a sua honra. Mantém-
sa individualmente tomada é filha de Cristo, uma vez que foi dada -se na carne, mas é por meio de uma religião e de uma devoção
à luz a partir das núpcias deste com a Igreja, irmã de Cristo, uma plenamente espiritual que é mantida, de tal maneira que a própria
vez que tal como ele cumpre a vontade de Deus"^, e mãe de Cris- virgindade da carne é espiritual, votada e conservada como o é por
to, uma vez que o fez nascer nela, sendo, à imagem de Maria, meio da continência e da piedade. Do mesmo modo que ninguém
aquela que faz o que o Pai quer'". faz do seu corpo um uso impuro senão depois de ter concebido
Santo Agostinho descreve, pois, uma rede de relações espiri- essa malícia no seu espírito, assim também ninguém mantém a
tuais que se reproduzem e se invertem, fazendo de cada um dos pureza no seu corpo senão depois de ter implantado a castidade no
quatro elementos do conjunto — Cristo, Maria, a Igreja, as almas seu espírito.""" "Nesta condição, a virgindade física produzirá as
— virgens e cônjuges, genitores e filhos. Casamento, fecundidade, gestações das quais é capaz e que lhe são prometidas; em si mes-
virgindade não definem a posição ou a qualidade intrínseca de um ma, dará à luz Cristo; pelo seu exemplo, suscitará esse mesmo
de entre eles, mas permitem descrever as diferentes relações que Cristo no coração dos outros; e dará à luz na Igreja uma nova
simultaneamente cada um mantém com todos os outros. Podemos descendência de Cristo apelando às almas para que se convertam."
por isso dizer que, no sistema das relações espirituais, casamento E m contrapartida, o que o casamento produz não são frutos
e virgindade não podem ser dissociados (e a sua não-dissociação é espirituais. Da união física do homem e da mulher não nascem
manifestada pela sua fecundidade), mas que nenhum dos dois ter- cristãos mas somente seres humanos; estes não podem tornar-se
membros de Cristo e filhos de Deus a não ser por meio da opera-
107/ètó., V I (6) (Mt., 9,15). ~ ção espiritual do sacramento: "Aquelas que na vida conjugal en-
108 Ibid. gendram segundo a carne, tornam-se mães não de Cristo, mas de
109 Ibid. '
Adão."'" E portanto possível dizer que, do papel de Maria ao
110/Wrf.,II(2);V(5).
111/Wd., V I (6).
112 Ihid.,Y (5).
114/Wd.,VIII (8).
113 Ibid.
115 [Ibid.,yi (6).]
314 Michel Foucauit As Confissões da Carne 315

mesmo tempo virgem e mãe de Cristo, as mulheres que recusaram lo. Colocou indissociavelmente casamento e virgindade no nível
o casamento e se consagraram a Deus tomaram um aspecto: a das relações que constituem a unidade espiritual da Igreja. Seja
virgindade, tanto corporal como espiritual. Mas não é possível qual for o lugar inferior que o casamento deve ocupar na vida
dizer simetricamente que as mulheres que casaram e tiveram fi- deste mundo, há uma figura do casamento espiritual que não pode
lhos retomaram a maternidade física e espiritual de Maria: porque ser dissociada da virgindade. O que mostra que o casamento não
a Virgem fez nascer Cristo pela operação de Deus; a mulher casa- é um bem menor pela sua própria forma, mas antes pelo que o
da dá nascimento, por efeito da natureza, a seres humanos que não levou na história da nossa queda a ser o que é neste mundo.
são cristãos. E só essa virgindade de coração que a liga a Cristo na De onde a pergunta: que se passou com as relações de casamen-
Igreja e a faz oferecer a Deus os seus filhos lhe permite ser espi- to por efeito da queda? Deveremos admitir que não havia antes da
ritualmente mãe: "Neste santo parto cooperam também as mães, queda mais do que uma forma de união espiritual — que a virgin-
fazendo com que aqueles que deram à luz como ainda não cristãos dade reproduzira neste mundo à sua maneira? Não teremos de
se tornem aquilo que elas bem sabem não ter podido dar à luz admitir que o casamento, com a união física que comporta, existia
corporalmente: só para isso contribuem, no entanto, tornando-se já? E que seria esse o casamento não introduzido, mas modificado
também elas virgens e mães de Cristo, quer dizer, na fé que opera pela queda?
sobre a caridade.""* Não há pois simetria entre a virgindade e a
fecundidade carnal. Ou ainda, transpondo-se e manifestando-se - II -
na carne, o laço entre a virgindade e as núpcias espirituais desfaz-
-se, e o casamento, a procriação segundo a carne não podem ser Como Orígenes, a maior parte dos exegetas cristãos tinha nega-
considerados como a herança da maternidade de Maria, enquanto ! do que tivesse havido relações sexuais no paraíso e que o primeiro
a castidade das que, no seu coração e no seu corpo, fizeram voto casal tivesse podido, antes da queda, procriar fisicamente a seguir
de renunciar ao casamento é efectivamente neste mundo, como a a uma conjunção carnal. Assim, Gregório de Nissa admitia que os
Virgem, consagrada a Deus. As mulheres casadas não teriam en- humanos tivessem recebido desde a sua criação o direito e a pos-
tão por que dizer às virgens: "Vós sois virgens, nós somos mães: sibilidade de se multiplicarem: não por efeito contudo de uma re-
que a vossa virgindade intacta vos console de não terdes filhos; lação sexual, mas de uma operação que não conhecemos — como
que o benefício de os termos compense a nossa virgindade perdi- não conhecemos a que povoara o céu de anjos, fazendo-os proli-
da.""' ferar em miríades. Por que razão, então, fora a diferença dos sexos
Assim, Agostinho de certo modo alargou, e multiplicou, temas marcada desde a Criação, e dada ao homem e à mulher a ordem
que lhe eram anteriores: o da virgindade como união com o Espo- de se multiplicarem? É que, respondia Gregório de Nissa, Deus
so e o da Igreja noiva de Cristo. Teceu todo um conjunto de rela- sabia, na sua presciência, que o homem viria a cair: fora-lhe assim
ções que unem, de modo espiritual, virgindades igualmente espi- dado antecipadamente um meio através do qual poderia perpetuar
rituais; descreveu os frutos inumeráveis destas núpcias que, não a sua espécie para lá da morte que viria a ser a sua condenação"*.
sendo embora corporais, são contudo mais do que um puro símbo- Neste tipo de exegese, vemos o acto sexual como fazendo parte da
queda e das suas consequências. Pertence a um bloco que com-
116/Wíí.,VII(7).
Ullbid. 118 GREGÓRIO D E NISSA, De hominis opificio, XVII.
316 As Confissões da Carne 317
Michel Foucault

preende o primeiro pecado, a morte e a procriação. Depende da seja inacessível à concupiscência'^". Agostinho depara então com
desobediência inicial, uma vez que foi esta que determinou a sua õ mesmo problema que os seus predecessores: que sentido dar,
realização (na existência do primeiro casal) e até mesmo a sua nessa existência sem faha, sem morte e sem cobiça, às seguintes
possibilidade (na presciência de Deus); está ligado à procriação, afirmações do Génesis: que Deus criou o homem e a mulher (1,
que é o seu fim e razão de ser; está ligado à morte, uma vez que é 27), que lhes disse que crescessem e se multiplicassem (1, 28) e
uma das formas dessa corrupção que priva os homens da sua que o Criador quis na mulher dar uma auxiliar ao homem (2, 18)?
imortalidade e uma vez que se destina a compensar os seus efeitos. Como evitar referir este tema da auxiliar ao do nascimento de uma
Por fim, é indissociável da cobiça, epithumia: foi com efeito o progenitura que derivaria da diferença dos sexos? E como, a partir
desejo que provocou a queda — o desejo em geral, a cobiça pelo daí, não dar um lugar à procriação sexual na existência de imorta-
prazer e não o apetite sexual'"; é o gosto pelos prazeres da Terra lidade sem corrupção que era a do paraíso?
mais do que pela contemplação de Deus que introduz a corrupção Agostinho, como os seus predecessores, faz valer os recursos da
e a morte; é a vontade de se perpetuarem que impele os homens a interpretação espiritual. Formalmente, todavia, a sua posição é
procriar. O acto sexual faz por isso parte, a título quer de conse- ambígua; ou, mais precisamente dizendo, tolera as duas interpre-
quência, quer de meio, de um conjunto de quatro elementos — o • tações, uma vez que diz que estes textos do Génesis podem ser de
desejo, a queda, a morte, a procriação — que o acarretam ou o igual modo compreendidos "spiritualiter", o que autoriza, por
reclamam. conseguinte, pelo menos por preterição, a que os interpretemos
Neste interpretação que era tradicional na sua época, Agostinho "carnaliter". Mas, de facto, Agostinho não desenvolve senão a
vai efectuar um deslocamento e uma dissociação. Vai fazer re- significação espiritual. O "auxílio" que a mulher deve trazer ao
montar, senão a conjunção sexual pelo menos a sua possibilidade homem, interpreta-o como uma relação de comando e de submis-
legítima, do mundo decaído à existência paradisíaca, tal como saía são. Assim, a relação que se estabelece sobre a diferenciação do
das mãos do Criador. Mas tal só podia ser aceite na condição de homem e da mulher não passa pelo sexo em si mesmo. Casta
essa conjunção sexual se desprender de tudo o que pode constituir conjunctio. Quanto ao crescimento e à multiplicação, Agostinho
para ela os estigmas da existência decaída. Esta requalificação interpreta-os como devendo ser os dos frutos espirituais: "alegrias
meta-histórica da relação conjugal, com todas as dissociações que inteligíveis e imortais", diz o primeiro texto do De Genesi contra
implica, Agostinho só por etapas a levou a cabo. Manichaeos^^', ou "boas obras do louvor divino"'^^, diz o segundo.
O De Genesi contra Manichaeos, redigido pouco depois do seu O ponto mais difícil de uma interpretação semelhante é de fac-
baptismo, está ainda próximo das teses de Gregório de Nissa ou de to o sentido preciso a dar ao tema do auxílio que o homem recebeu
Crisóstomo. O homem paradisíaco, com o seu corpo de barro, é da mulher. Porque é que a contemplação de Deus não bastava a
Adão para produzir os inumeráveis frutos da alegria? Porque teria
nele descrito como dotado de qualidades celestiais que o tornam
ele necessidade de outro alguém para cantar os louvores de Deus?
incorruptível, o libertam de toda a necessidade física, o poupam a
Agostinho, no De catechizandis rudibus, propõe uma interpreta-
todos os movimentos desordenados da alma e fazem com que ele
i> . <
119 Gregório de Nissa não supõe que a primeira falta foi sexual: tratava-se somen- 120 SANTO AGOSTINHO, De Genesi contra Manichaeos, I I , 7 (8) e I , 19 (30).
te de um abandono ao prazer em geral. Cf. M. AUBINEAU, nota à tradução do De 1 121 [/Wí/., 1,19(30).]
sancta virginitate, p. 420. í 122 [/Wúf., I I , 11(15).]
318 Michel Foucault As Confissões da Carne 319

ção por meio das relações de glorificação e de imitação. Se Deus análise do bem do casamento implicam de facto o privilégio de
pode tirar glória do homem, é na medida não por certo em que o uma das hipóteses, que Agostinho apesar de tudo quer, no plano
segundo é moldado no barro, mas na medida em que se lhe asse- da exegese, considerar como igualmente plausíveis sem ter de as
melha; e em que se lhe assemelha não só por ter sido moldado à sondar mais: não há exame aprofundado de cada uma delas, não
sua imagem, mas porque, voluntariamente, imita, com a sua razão, há parecer definitivo sobre uma ou outra. A passagem apresenta-
a sabedoria de Deus. Da mesma maneira, o homem por seu turno -se pois como a indicação das diferentes e "numerosas" interpre-
é glorificado pela mulher se a mulher o segue, o imita e reproduz tações que foram dadas do crescimento e da multiplicação ordena-
o exemplo de sabedoria que ele lhe dá. E Deus glorifica-se ainda das ao primeiro casal antes da queda. Interpretação pela procriação
mais porque por seu turno a sua imagem se torna modelo'^'. Como física mas não sexual, esta hipótese aproxima-se da sugerida por
no De Genesi contra Manichaeos, Agostinho não exclui absoluta- Gregório de Nissa — mas este referia-se à multiplicação enigmá-
mente a interpretação carnal e material que admitia as relações tica dos espíritos angélicos. Agostinho toma três modelos de pro-
sexuais antes da queda. Não a supõe directamente; mas, ao apre- criação não sexual, e que dizem os três respeito a corpos — e a
sentar a interpretação espiritual, toma o cuidado de notar que corpos neste mundo: a criação por Deus do primeiro homem e da
aquilo que esta exclui é a ideia de que a mulher antes da queda primeira mulher; a formação do corpo de Cristo no seio da Vir-
tivesse podido ser para o homem uma auxiliar a propósito da gem; e, por fim, exemplo que deve falar aos próprios descrentes, a
"concupiscência carnal": como poderia tê-lo sido nesse sentido, reprodução das abelhas. Estas três procriações foram operadas ou
quando o corpo de ambos não era ainda corruptível? É bem visível operam-se ainda sine concubitu, e por um bem-fazer {múnus) de
que, nesta exegese, permanece lugar livre para relações sexuais Deus. Seguindo a lição destes exemplos, podemos pois supor, com
sem concupiscência, e para uma proliferação que não tivesse de alguns, que Deus podia fazer com que o primeiro casal procriasse
compensar a mortalidade dos corpos. Mas tal possibilidade, Agos- fisicamente sem relação sexual.
tinho deixa-a passar inteiramente sob silêncio: não se lhe refere A segunda interpretação é bem conhecida: é a que entende esta
nunca. E é a partir dos textos posteriores que retrospectivamente multiplicação num sentido "místico e figurado"; a multiplicação
descobrimos que o silêncio dos textos desenha aqui como que em que era proposta — ao mesmo tempo prescrita e prometida — re-
eco outras interpretações possíveis. presentava de facto o progresso do espírito e a abundância da
O início do De bono conjugali tem de particular oferecer um virtude. E m tal caso, não teria havido nascimento real antes da
jogo destas interpretações sem querer escolher explicitamente en- queda; depois de esta ter acarretado a morte, a descendência teria
tre elas. Veremos todavia que o próprio conteúdo do livro e a sido dada ao homem para que este pudesse, apesar de tudo,
perpetuar-se. É a interpretação que já encontrávamos em Gregório
123 SANTO AGOSTINHO, De catechizandis rudibus, X V I I I , 29: "Fecit illi etiam ' de Nissa.
adjutorium feminam [...] ut haberet et vir gloriam de femina, cum ei praeiret ad A terceira hipótese, que Santo Agostinho cita como sustentada
Deum, seque illi praeberet imitandum in sanctitate atque pietate, sicut ipse esset por alguns, é sem dúvida menos corrente. A Criação teria dado ao
gloria Dei, cum ejus sapientiam sequeretur." ["Depois, para o ajudar, criou a mu-
homem um corpo, não espiritual, mas animal; a esse título ele
lher [...]. Tinha em vista que para si o homem fizesse da mulher um título de glória,
quando avançasse diante dela direito a Deus e se oferecesse à sua imitação por seria susceptível de morrer; mas, se não tivesse intervindo a falta,
meio da santidade e da piedade, tal como ele mesmo seria um título de glória para se o homem se tivesse mantido sempre na obediência, esta morta-
Deus, quando imitasse a sua sabedoria", tradução de G . Combès.] lidade não se teria nunca tornado uma morte; os humanos teriam
320 Michel Foucault As Confissões da Carne 321

acedido directamente ao seu destino espiritual; em suma, teriam É esta terceira interpretação que se encontra finalmente retoma-
passado sem intermédio do paraíso terrestre onde dispunham do da e desenvolvida no De Genesi ad litteram (cuja redacção come-
mundo ao paraíso celestial onde Deus é contemplado face a face. ça pouco tempo depois do De bono conjugali, mas que será termi-
Mortais escapando à morte, animais de razão e de inocência, os nada muito mais tarde), depois no X I V livro de A Cidade de Deus,
homens teriam podido pois perfeitamente gestar, e gestar à manei- e nos textos antipelagianistas, que dele são mais ou menos con-
ra dos animais, quer dizer, através da relação sexual — etiam per temporâneos. O terceiro capítulo do livro I X do De Genesi ad li-
concubitum —, até que, segundo a palavra, a Terra se enchesse de tteram comenta a passagem, ou antes a frase das Escrituras (Gé-
uma descendência que não se destinaria a substituir os antepassa- nesis, 2,18) em que Deus diz, falando do homem: "Far-lhe-ei uma
dos, mas a sobrepor-se-lhes. Nesta interpretação, a relação sexual, auxiliar semelhante a ele." E uma vez mais a natureza desta auxi-
no sentido físico e animal mais estrito, torna-se portanto plena- liar que põe o problema da existência possível das relações sexuais
mente possível no paraíso: não é nem a consequência nem a causa no paraíso. No livro I I I , capítulo 21 do mesmo texto. Santo Agos-
da queda; é inscrita na natureza humana pelo próprio acto criador. tinho comentara o "Crescei e multiplicai-vos". "Embora" esta or-
Está desligada por isso quer da falta, quer da concupiscência. Es- dem, explicara ele, "pareça" não poder ser realizada senão através
tará na mesma medida desligada da morte? do concubitus, podemos conceber "outro modo" de multiplicação:
Poderíamos crer que sim, após um exame apressado, uma vez não comportaria a concupiscência da corrupção, e seria o efeito de
que o aumento dos seres humanos se faria sem que a morte inter- um sentimento de piedade. O que esta passagem deix,a na sombra
viesse, e até à concorrência de um povoamento adequado da Terra. é a questão de sabermos se este "outro modo" exclui o concubitus
Procriação sem óbito, multiplicação que nenhuma perda travaria. (e é portanto uma dessas operações misteriosas às quais o Senhor
No entanto, devemos notar que, antes da exposição das três possi- pôde e continua sempre a poder ter recurso) ou se se trata de um
bilidades interpretativas que evoca, Agostinho enuncia uma pro- concubitus que teria essa particularidade, surpreendente para
posição que não parece ser uma das opiniões que podem ser sus- aqueles que não conhecem senão o homem decaído, de não ser
tentadas e o foram efectivamente, mas antes um princípio geral: acompanhado de concupiscência, mas de um movimento da alma
através do pecado, os homens revestiram a condição da morte, e completamente diferente'^". Esta incerteza é removida, sem dúvida
não pode haver união sexual {concubitus) senão entre corpos mor- possível, no livro I X do De Genesi.
tais. Ora, é este princípio geral que encontramos nas três interpre- Qual poderá ser a natureza do auxílio a que Deus destinava a
tações, sob reserva de uma modulação particular no caso da ter- mulher? Cinco vezes ao longo deste [livro'"], reaparece a mesma
ceira: aqui, com efeito, o concubitus está ligado à possibilidade da resposta: "para engendrar filhos" ( I I I , 5), "para a procriação" (V,
morte, à mortalidade, que faz parte da natureza humana tal como 9), "para a geração" ( V I I , 12), "para a gestação de filhos" ( V I I I ,
foi criada; é, por isso, na sua possibilidade, anterior à falta, que 13), "para a descendência" ( X I , 19). O mesmo é dizer que Agosti-
introduz simplesmente a condição efectiva da morte para o género nho abandona aqui inteiramente a ideia de que um tal auxílio seria
humano. Numa tal interpretação, antes da emergência da falta, da
corrupção e da morte, antes dos laços que as prendem uma à outra,
124 Sobre esta passagem, cf. o comentário de P. Agaêsse e A. Solignac in CEuvres
a mortalidade e a relação sexual estavam originária e simultanea-
de saint Augustin, t. 49, De Genesi ad litteram (VIII-Xll), Paiis, Desclée de Brou-
mente presentes, implicadas uma e outra na animalidade da cria- wer, Bibliothèque augustinienne, 1972, pp. [516-530], nota 42.
tura. 125 [Manuscrito: "capítulo".]
322 323
Michel Foucault As Confissões da Carne

de ordem espiritual e teria por objectivo contribuir para as alegrias exemplo de alguns homens rectos, é em si mesma qualquer coisa
da contemplação ou da oração'^*. Ora, como nada no versículo em de belo, e que por fim os homens que teriam nascido dos primei-
questão do Génesis autoriza directamente esta afirmação, é sobre ros pais teriam sido, sem a falta destes, ao mesmo tempo imortais
o raciocínio que Santo Agostinho a estabelece. Ou antes, sobre e justos? Portanto, a proliferação é em si mesma (e não por com-
dois raciocínios. Um dos quais procede por eliminação'^'. Para pensação da morte) um bem. E que melhor meio para constituir à
que, no paraíso, poderia ter servido a mulher? Para o trabalho da superfície do mundo uma tal societas, do que o nascimento de
terra? Por certo que não, porque então o trabalho não era necessá- gerações sucessivas "a partir de um só homem"?
rio, e fosse como fosse um outro homem teria sido mais eficaz. Por meio desta muhiplicação a partir de um tronco linico, a
Para que o homem não estivesse só, pudesse viver e falar com al- humanidade pode cobrir a superfície da Terra tanto quanto Deus
guém (convivere e colloqui)! Também não, porque é bem sabido o quis, e conservar a unidade com que o seu Criador desde a ori-
que o melhor companheiro do homem é ainda um homem, e que, gem quis marcá-la. O décimo quarto livro de A Cidade de Deus,
se para a tranquilidade desta relação entre companheiros, certa consagrado às consequências do pecado original e à concupiscên-
desigualdade fosse necessária, teria bastado entre estes dois ho- < cia, começa precisamente por este tema. A multiplicidade-unidade
mens um pacto apoiado na precedência do que fora criado primei- do género humano, a humanidade como societas ligada pela seme-
ro. Nem para a sociedade, nem para o trabalho: o auxílio da mu- lhança e o parentesco em relações de paz aparecem, antes de toda
lher não podia reportar-se senão aos filhos. O outro raciocínio a falta e toda a queda e toda a morte, como o fim que Deus visava
consiste em mostrar os benefícios de uma descendência para os desde a Criação: "Querendo Deus não só unir os homens numa só
primeiros homens e de um povoamento de toda a Terra'^*. Deve- sociedade através da semelhança da natureza, mas também graças
mos notar que Agostinho não se serve directamente do texto aos nós do parentesco, reuni-los numa harmoniosa unidade nos
"Crescei e multiplicai-vos" para fazer da procriação paradisíaca a laços da paz, instituiu a humanidade a partir de um só homem.
simples aplicação de tal preceito. Quer mostrar que antes da que- Esta humanidade em cada um dos seus membros não devia mor-
da, fora da morte, e independentemente da preocupação de substi- rer."'^'
tuir os que desaparecem, a proliferação do género humano era já E m resumo, sendo os três dados escriturários fundamentais a
de buscar. Muhiplicando-se, com efeito, a humanidade aumenta a este respeito a criação de dois sexos distintos, a prescrição de cres-
beleza da Terra. E como não teria sido a multiplicação de homens cimento e de multiplicação, finalmente a adjunção da mulher a
justos, antes da queda, um muito grande ornamento se reflectir- título de auxiliar para o homem, os exegetas anteriores parecem
mos sobre as quatro' coisas seguintes: que as próprias espécies ter feito incidir o essencial do seu esforço sobre os dois primeiros;
animais aumentam a beleza do mundo inferior, que os homens até o seu propósito era evitar não só a presença do acto sexual, mas a
mesmo corrompidos levam ainda a melhor sobre os animais, que sua própria possibilidade antes da queda; para isso era necessário
uma humanidade de numerosos pecadores, mantidos na paz pelo que referissem a "mais tarde" o uso de uma diferenciação dos se-
xos cujos efeitos e sentido deviam continuar virtuais até à queda;
era necessário que dessem à multiplicação uma significação espi-
126 O que não quer dizer que, no casamento, a mulher não possa desempenhar o
papel espiritual. Trata-se aqui do seu destino originário.
ritual; e, por conseguinte, o terceiro elemento só podia ser deixado
127 SANTO AGOSTINHO, De Genesi ad litteram, IX, 5,9.
\2iIbid.,lX,9,14 e 15.
129 SANTO AGOSTINHO, A Cidade de Deus, XIV, 1.
324 Michel Foucauit As Confissões da Carne 325

na vagueza: o auxílio da mulher continuava a ser um tema sem da descendência. Relação sexual e geração deixam de pertencer em
conteúdo preciso. E m contrapartida, para Agostinho, é esse ele- termos unívocos e necessários à economia da queda. Têm já lugar,
mento que serve de ponto de apoio à análise. Tentando circunscre- juntamente com o casal dos dois primeiros humanos queridos por
ver tanto quanto possível a significação a dar àquele auxílio, ten- Deus, na ordem de uma Criação ainda não alterada pela queda.
tando definir o que poderia ser, fora de toda a queda e antes da Desta tese, Agostinho não se afastará nunca mais. Tornamos a
queda, a relação homem-mulher, procurando o que podiam ser a encontrá-la largamente exposta no X I V livro de A Cidade de
forma e o propósito da sua associação, Agostinho, através de elimi- Deus. Deus criou os primeiros humanos, "homem e mulher"; ins-
nações sucessivas, é levado a dar uma significação "física", "corpo- creveu "o seu sexo na carne"; e isso "para engendrarem filhos e
ral", "carnal" à ordem dada ao primeiro casal de se multiplicar, e por esse meio crescerem, muhiplicarem-se, encherem a Terra";
um valor imediatamente actualizável à diferenciação originária dos criou-os pois "como nós vemos e reconhecemos hoje entre os ho-
sexos. Do facto de o ajudante dado ao homem ter sido esse "outro" mens a diversidade dos sexos""'. Tornamos a encontrá-la igual-
que é a mulher — quer dizer, não só um ser que se lhe assemelhe, mente nos escritos antipelagianistas, sem que nunca os diferentes
não só alguém que lhe seja inferior, mas alguém cuja semelhança- contextos polémicos, ou a necessidade de responder às objecções,
-inferioridade tome a forma da diferença de sexo —, Agostinho tenham modificado o seu fundo: " E a diversidade dos sexos
deduz que essa alteridade tinha por função auxiliar o homem a reporta-se aos órgãos daqueles que engendram, e a sua união
fundar e a desenvolver sobre toda a Terra uma societas: uma mul- reporta-se à procriação dos filhos, e a própria fecundidade
tiplicidade de indivíduos ligados entre eles por uma identidade de reporta-se à bênção do casamento.""^
natureza e um parentesco de origem. Não foi para compensar os Mas, se a união dos sexos tinha direito de cidade no paraíso, no
limites da morte que a muhiplicidade dos nascimentos sucessivos, primeiro casal, a que sistema de regras deveremos submetê-la no
segundo Agostinho, se introduziu na história do mundo, mas devi- mundo de hoje?
do com efeito ao privilégio originário de uma "sociedade" como
ornamento e beleza do mundo. É em função das relações do ho- - III -
mem com os homens que a mulher lhe é adjunta a título de auxiliar.
Quem semeia, com o género humano, a raça dos seus companhei- Tenha sido ou não a primeira grande sistematização cristã da
ros inumeráveis tem necessidade da fecundidade de uma terra"°. vida conjugal e das suas relações internas, o De bono conjugali
O "casamento" do primeiro casal implicava para Agostinho ou- manteve-se em todo o caso como a referência essencial da teologia
tra coisa que não somente uma relação espiritual; supunha pelo moral do casamento para o cristianismo medieval e moderno"'. A
menos a possibilidade de uma conjunção física, desenhada pela ~ teoria dos fins e dos bens do casamento será reportada à sua auto-
diferenciação originária dos sexos e prometendo a procriação física ridade. Bens do casamento que asseguram o valor, a par mas

130 "Propter quid aliud secimdum ipsum quaesitus est femineus sexus adjutoi; 131 SANTO AGOSTINHO, A Cidade de Deus, XIV, 22. À objecção segundo a
nisi ut serentem genus humanum natura muliebris, tamquam terrae fecunditas, qual a Escritura não menciona a união sexual antes da queda, Agostinho responde
adjuvarei" ["Por que outra razão Deus dotou o homem de uma auxiliar de sexo que a queda interveio demasiado cedo após a Criação; ou que Deus ainda não or-
feminino semelhante a ele, senão para que a natureza da mulher, como uma terra denara ao primeiro casal que se unisse.
fértil, o secundasse na sementeira do género humano", tradução de P. Agaêsse e A. 132 SANTO AGOSTINHO, De nuptiis et concupiscentia, II, 5 (14).
Solignac], SANTO AGOSTINHO, De Genesi ad litteram, IX, 9,15. 133 [Nota vazia.]
326 Michel Foucault As Confissões da Carne 327

abaixo, da continência: a progenitura, a fé que une os cônjuges, o Referindo-se a uma diferença filosófica tradicional, Agostinho
sacramento que os marca de modo indelével. Fins do casamento, distingue o que é desejável por si mesmo, e o que é desejável por
que codificam "o uso" do casamento e que permitem definir as outra coisa que não por si mesmo, quer dizer, por um desses fins
relações sexuais proibidas e permitidas: a procriação e o remédio que não têm necessidade de se referir a qualquer outro. Traça o
para a concupiscência. quadro seguinte. Fim por si mesma: a sabedoria (sapientia); bem
Este edifício teórico é bem conhecido. Seria evidente e comple- que se refere a esse fim: o saber (doctrina), que não se deseja por
tamente inexacto dizer que os seus elementos fundamentais não se si mesmo mas a fim de se alcançar a sabedoria. Fim por si mesma:
encontram em Santo Agostinho — encontramo-los em numerosas a saúde (salus); bens que se lhe referem: beber, comer, dormir.
passagens da sua obra"". Erróneo também pretender que não cor- Quanto ao casamento, que, como o saber, o alimento, o sono, não
respondem ao texto do De bono conjugali. O final do tratado, que é o próprio fim de si mesmo, a que bem se refere? À amizade que,
resume o seu conjunto, é muito explícito: "O casamento é pois um tal como a saúde e a sabedoria, é desejável por si mesma"*.
bem em todos os povos e em toda a humanidade porque é o lar da Todo o De bono conjugali se coloca sob o signo da seguinte
geração dos filhos e o pacto de uma casta fidelidade. Mas no povo noção que aparece desde as primeiras linhas do texto: a amizade
de Deus acrescenta a esses títulos a santidade do sacramento [...]. é um fim que exerce sobre o homem uma força considerável, de-
Os bens do casamento resumem-se pois inteiramente em três pa- vido à sua própria natureza: o indivíduo com efeito é um "elemen-
lavras: os filhos, o pacto de fidelidade, o sacramento.""' E , numa to", uma "parte" do género humano, e é, em si mesmo, enquanto
outra passagem, Agostinho evoca com efeito os dois fins que serão homem, um ser social"'. A amizade liga-o a esse conjunto do qual
regularmente citados mais tarde: "liberorum procreandorum cau- ele naturalmente faz parte; e o casamento é desejável, na medida
sa" e "infirmitatis invicem excipiendae causa"^^^. Devemos reco- em que permite formar, multiplicar e estabelecer solidamente tais
nhecer que esta formulação esquemática não dá bem conta nem do laços de amizade.
movimento dos textos nem das refundições importantes que Agos- Nada de muito novo neste tema. É perfeitamente familiar na
tinho trouxe à concepção do casamento, à análise que dele pode- filosofia antiga. E está também presente em muitos autores cris-
mos fazer e por fim ao sistema das regras que devem presidir à tãos: encontrámos uma sua versão nas homilias de Crisóstomo.
conduta dos esposos. Contudo, é a partir desta concepção da societas e da amicitia que
Agostinho, como já vimos, dá ao casamento uma dupla caução: Agostinho elabora a sua teoria do casamento e das relações conju-
a da origem, uma vez que faz parte da Criação; a da Igreja, uma gais, e nela introduz um certo número de elementos decisivos.
vez que faz parte das formas espirituais que a constituem. É por- Essencialmente sobre três pontos: sobre o papel do casamento na
tanto um bem — aliquid boni^^\m em si mesmo, o que quer economia geral da salvação; sobre a natureza do laço conjugal;
dizer que não o é só por comparação (melhor que o mal da forni- sobre o princípio de regulação das relações sexuais entre esposos.
cação), o casamento não é no entanto um bem por si mesmo.

134 Assim no De nuptiis et concupiscentia, I , 1 (1) e I , 21 (23). No Contra Ju-


lianum, V, 46, temos à exposição clássica dos "dois fins" e dos "três bens". 138 "Propter amicitiam sicut nuptiae vel concubitus", ibid., IX (9). Sobre o "vel
135 SANTO AGOSTINHO, De bono conjugali, X X I V (32). concubitus", cf. infra, PP.32S-330.
U61bid.,y\{f>). 139 "Homo tiumani generis pars est et sociale quiddam est humana natura", ibid
137 Ibid., III (3). 1(1).
328 Michel Foucault As Confissões da Carne 329

1. Quando Crisóstomo, em textos plenamente contemporâneos deixarão de ter o seu lugar, uma vez que a cidade celeste admitirá
do De bono conjugali, via no casamento uma maneira de estabe- somente relações espirituais. E a que é evocada por várias vezes
lecer entre os homens um laço de sociedade, designava assim uma noutras passagens"*': trata-se então da situação actual do género
utilidade a que poderíamos chamar episódica. O casamento tinha humano. Agostinho caracteriza-a por um facto e uma tarefa. O
o seu papel entre queda e salvação: depois da primeira, para repa- estado de coisas é um povoamento já bastante abundante: foi asse-
rar as destruições da morte ou delas consolar os homens; antes da gurado, e continua ainda a sê-lo, por um grande número de pessoas
segunda, cuja iminência hoje torna doravante inútil a multiplica- que, casadas ou não, não praticavam a continência; oferecendo as-
ção dos humanos. O valor do casamento pertence para ele a um sim uma grande "provisão de sucessões". A tarefa: é a que consiste
tempo que é o da lei e da morte. Um tempo que se conclui. em ligar a partir de tantos seres humanos santas amizades, e em
O De bono conjugali articula de um outro modo os momentos formar assim, pouco a pouco, através de todas as nações, um "vas-
da história humana e a necessidade da societas. Numa palavra: to parentesco espiritual", uma "sociedade santa e pura". O presente
desprende esta da sua função episódica e do seu estatuto provisó- deve pois ser pensado menos na urgência do que na longa duração;
rio. Torna-a uma constante e já não um momento; mas a esta menos como um termo iminente do que como um equilíbrio a
constante, o drama das relações entre Deus e o homem traz modi- deslocar lentamente. O De bono conjugali não anuncia a entrada
ficações capitais. numa idade da virgindade, em que o casamento, até então necessá-
Já o vimos: se o ser humano foi criado "homem e mulher", foi rio, deverá ser abandonado; mostra antes, mantendo embora, bem
em vista de uma societas cuja necessidade estava inscrita na pró- entendido, o horizonte do fim dos tempos, a existência de um pe-
pria natureza de indivíduos destinados a pertencer ao género huma- ríodo, o nosso, no qual a proliferação do género humano, graças às
no. A "societas" não esperou pelo castigo da morte para se tornar uniões físicas, será como que a matéria necessária à multiplicação
necessária e fazer do casamento um bem. Mas estará ainda inscri- de parentescos espirituais. Virgindade e matrimonialidade poderão
ta no nosso presente? Terá na hora da Encarnação suficiente futuro achar-se portanto associadas, cada uma delas no seu lugar, de acor-
para recomendar o casamento? O seu papel natural não pertencerá do com o princípio de que o conjunto em que se compõem é ainda
doravante ao passado? O De bono conjugali evoca bem, com efeito, mais belo do que a mais bela das duas.
o momento em que a proliferação do género humano deixará de ser Agostinho redefine assim, em profundidade, a escansão que era
requerida: " A ciência será destruída' [...]. Do mesmo modo, esta de maneira bastante geral reconhecida antes dele: momento da vir-
procriação de mortais que é o fim do casamento deixará de existir, gindade paradisíaca, na inocência que precede a queda; depois,
enquanto a continência, que é desde este mundo uma forma anteci- tempo do casamento e da fecundidade, sob a lei da morte; depois,
pada da vida dos anjos, permanecerá eternamente."'"*" Uma formu- regresso à virgindade, quando chega a salvação e o tempo se acaba.
lação como esta está muito próxima, até mesmo nos seus termos, A escansão que se desenha no De bono conjugali é muito diferente:
das de Crisóstomo, de Gregório de Nissa ou de Basílio de Ancira. não faz alternar num ciclo virgindade e casamento; marca antes as
Mas devemos distinguir no tema do "tempo da continência" duas diferentes maneiras de constituir a societas, que é, em qualquer ca-
ideias diferentes. A que é evocada no texto precedente: trata-se na
realidade do fim dos tempos, em que, com efeito, as relações físicas
141 Assim em XIV (32), ibid.: "Na nossa época, é melhor, de todos os pontos de
vista, e mais santo não buscarmos uma descendência carnal [...] e submetermo-
140/bií/.,VIII(8). -nos espiritualmente ao único esposo, Cristo."
330 Michel Foucault As Confissões da Carne 331

so, o "fim" do género humano. Houve de início a possibilidade, no 2. O privilégio concedido à societas permite dar uma caracteri-
paraíso, de uma societas ao mesmo tempo corporal e espiritual; veio zação do casamento centrada na noção de laço. O casamento é
depois o tempo em que os homens propagaram a raça, uns "venci- antes de mais uma associação, e como tal um elemento de base da
dos pela paixão" (yicti libidine), os outros — os Patriarcas — "con- sociedade. Ora, deveremos compreender que este laço recebe o seu
duzidos pela piedade": os últimos, se lhes tivesse sido permitido, valor do acto natural da procriação que permite em formas legíti-
ter-se-iam mantido continentes; mas se casaram e "se reclamavam mas, ou de uma estrutura jurídica que compromete os cônjuges um
filhos no seu casamento, era em vista de Cristo, para distinguir a sua com o outro? O laço matrimonial será condição de um parentesco
raça, segundo a carne, de todas as nações"'''^ Hoje, a distinção é ou efeito de um "pactum"! A análise do De bono conjugali é mais
outra: já não entre a proliferação ímpia e a procriação santa, mas complexa do que a simples escolha entre estes dois termos.
entre os que se votaram às relações espirituais e os que, não poden- Não devemos minimizar o papel da procriação e da descendên-
do aceder à continência, continuam a povoar a Terra. Uns e outros cia na problemática agostiniana do casamento. Veremos mais
preparam a cidade futura: os primeiros multiplicando as relações adiante a sua importância. E é um facto que, se não houvesse pro-
espirituais; os segundos vergando-se à lei do casamento único que genitura, e por isso sucessão nas gerações, o género humano não
figura simbolicamente a unidade vindoura da sociedade celestial'"'. poderia, nos seus elementos contemporâneos e sucessivos, estar
Por fim, o quarto tempo é o desta cidade ela mesma. Nela, a multi- ligado segundo a modalidade de uma connexio societatis^'^'^. Se
plicidade já não será a da proliferação dos seres humanos, resultan- encararmos o género humano na sua totalidade e no seu destino, a
tes das suas conjunções; e a unidade já não será a dos casais adstri- necessidade do casamento não pode ser pensada sem a progenitu-
tos a não praticarem mais do que um só casamento. A multidão das ra. Mas, tomado em si mesmo, e como instauração de uma relação
almas reunir-se-á e não terá mais do que um só coração e um só entre duas pessoas, o laço matrimonial não pode ser considerado
espírito na unidade de Deus. Todas as relações, doravante espiri- como dependente da progenitura e da procriação. Por si mesmo, o
tuais, convergirão só na sua direcção; e é assim que, depois da "pe- casamento constitui o primeiro elo da sociedade, e esse laço não é
regrinação" deste mundo, a societas a que estava destinado o género menos forte do que o do nascimento, como o Criador o mostrou
humano encontrará a sua realidade final na unidade da cidade celes- "ao tirar a mulher do homem" e "ao marcar mais ainda a força da
te. Agostinho já não refere, pois, o valor do casamento a esse bem sua união através da costela que extraiu de um para formar a ou-
absoluto da virgindade que marcava o estado inicial da humanidade tra"'"'. Antes ainda de toda a procriação, o casamento é por si
e o ponto último do tempo; refere-a ao fim universal e constante da mesmo um bem, na medida em que estabelece entre o marido e a
societas. E , se o casamento nem sempre teve a mesma forma, nem mulher uma relação que tem o triplo carácter de ser "natural", de
o mesmo papel, nem as mesmas obrigações, se nem sempre se opôs juntar dois sexos diferentes'"*, e de constituir como elemento de
do mesmo modo à virgindade, é que antes e depois da queda, antes base da sociedade uma conjunção de amizade e de parentesco'"'.
e depois da vinda do Salvador, o género humano não caminhou da Segue-se pois que, se a procriação prolonga este laço — e, em
mesma maneira rumo à cidade futura.
mibid.jii).
145 Ibid.
146 "Naturalis in diverso sexu societas", ibid., III (3).
142/Wrf., X V I I (19) e X I X (22). 147 "Amicalis quaedam et germana conjunctio", ibid., I (1). Notar que esta con-
143/ètó., X V I I I (21). junção é aqui definida pela relação de obediência e de comando.
332 333
Michel Foucault As Confissões da Carne

certas condições, está bem que seja assim —, não é dele condição de cada um dos esposos a ter relações físicas com o outro; mas
e a sua ausência não o compromete. E Agostinho apresenta dois Agostinho, pelo menos numa das duas citações que dela faz,
testemunhos de que assim é. O casamento existe entre pessoas atribui-lhe uma significação de certa maneira negativa: exprimiria
idosas, ainda que a estas seja impossível procriar, ou que os seus a proibição de violar o pacto conjugal, como acontece "quando, ao
filhos tenham j á morrido; em qualquer dos casos, o laço subsiste, apelo da sua própria paixão, ou ao da de outrem, o esposo tem
independentemente da progenitura'"*. Do mesmo modo, o casa- I relações com uma outra mulher, ou a mulher com um outro ho-
mento não pode ser desfeito quando, contraído em vista de se te- mem"'". Não-traição, mais do que posse: tais laços são da ordem
rem filhos, permanece estéril a despeito dos esposos'"'. idaifides.
A esta relação o De bono conjugali dá regularmente o nome de 1 Ordem que não é estranha ao direito, bem entendido, e muitas
pactum ou defoedus, cujas conotações jurídicas são evidentes"". vezes se conjuga com ele"", mas que apesar de tudo não lhe pode
Examinando as coisas de mais perto, Agostinho desenvolve a sua ser reduzida — como prova imediatamente o exemplo de fides
análise em dois registos. Refere-se, com efeito, ao tema de um laço 1 dado por Agostinho: que, num negócio, se trate de um punhado de
que receberia uma caução institucional ou das regras de direito, ou ' palha ou de uma montanha de ouro pouco importa, a fé que ga-
da lei divina; ora, o direito civil é invocado como revelador a pro- rante a honestidade é exactamente a mesma e tem o mesmo valor.
pósito da forma do laço matrimonial: assim, a lei romana manifes- É necessário compreendermos que & fides sustenta a convenção,
ta o carácter exclusivo deste laço, uma vez que proíbe o marido de que se manifesta na exactidão com que aquela é observada, mas
tomar uma segunda esposa enquanto a primeira viver"'; ora, as que não é da mesma natureza que ela. E , do ponto de vista das
leis religiosas fazem valer princípios justos que as regras da socie- faltas que podem ser cometidas no que se lhe refere, não tem os
dade ignoram: assim impedem —diferentemente das leis civis — mesmos efeitos que a convenção tal como a garantem as leis.
o novo casamento de um esposo cuja mulher cometeu aduhério"-. Agostinho, em três exemplos, mostra claramente que para ela a
Mas Agostinho faz entrar em jogo também o pactum num outro fides não se identifica com o pactum — pelo menos, se entender-
registo, o das relações entre as almas e entre os corpos: apego das mos este último num sentido puramente jurídico. Estes três exem-
almas que constitui entre os esposos — e independentemente do plos têm por quadro o adultério, que é ao mesmo tempo uma ca-
ardor físico, muitas vezes até mesmo com uma intensidade inversa tegoria do direito e um atentado à fides. Pareceria à primeira vista
da sua — um ordo caritatis; mas também laço físico, no sentido que a condenação do adultério manifesta a adequação entre o laço
de cada um dos dois cônjuges reservar o seu corpo para o outro. jurídico e o apego da fidelidade. Ora, cada um dos exemplos cita-
Na famosa passagem da Primeira Epístola aos Coríntios — "o dos por Agostinho mostra o seu desfasamento.
corpo da mulher não está em seu poder, mas no do marido, e de — Suponhamos uma mulher que deixou o seu esposo por um
modo semelhante o corpo do marido não está em seu poder, mas amante: ruptura de fidelidade. Mas haverá daí em diante para ela,
no da mulher" (7, 4) —, vê-se geralmente a afirmação do direito e para a sua moralidade, alguma diferença conforme se mantenha
148 Ibid., III (3).
153 [/Wd., IV (4).]
149/Wd., V I I (7) e X V (17).
154 Notar a propósito deste princípio de não-traição a expressão de AGOSTINHO:
150 Sobre este tema, cf. [nota incompleta].
"Cui fidei tantum júris tribuit Apostolus, ut eam potestatem appellaret" ([Subli-
\5\De bono conjugali, VII (7).
152 Ibid. nhado por M. F. "O Apóstolo atribui a estafidelidadeum tal carácter de justiça que
lhe chama poder", tradução de G. Combès]), ibid., IV (4).
334 335
Michel Foucault As Confissões da Carne

ou não fiel ao seu amante? Do ponto de vista do pactum jurídico, I simples obrigação de direito. Elementos positivos: as afeições da
não há qualquer diferença, uma vez que o único pactum existente I alma, os compromissos que se reportam a si mesmo, o respeito
— o que a ligava ao seu marido — foi quebrado. E todavia pode- devido ao outro; mas também modulações da faha, que permitem
mos dizer que, sendo embora desonesta, a mulher o será menos se , hierarquizar entre elas condutas que a forma da lei assimilaria,
se mantiver apegada ao seu cúmplice do que se de novo mudar de i Desta fé, Agostinho não faz um traço próprio do casamento
amante. Mas será mais honesta se aquele por quem abandonar i cristão. Pode constituir um bem do casamento em "todos os po-
aquele for o seu marido, para junto do qual regresse. A fides, como I vos" e "entre todos os homens""*. E m contrapartida, o que não
aqui vemos, modula a falta segundo graus que a transgressão do pertence senão à união dos cristãos é ser um "sacramento". O
pactum não conhece. sentido que esta palavra toma no De bono conjugali talvez não
— Imaginemos agora um homem e uma mulher que vivem i seja muito fácil de captar, na medida em que não se trata eviden-
juntos; não procuram ter filhos — sem nada fazerem de criminoso I temente do "sacramento do casamento", tal como este será enten-
em vista de impedir um nascimento; assumiram o compromisso 1 dido muito mais tarde no cristianismo medieval, e também na
da fidelidade e a ele se atêm com efeito pelo menos até à morte de i medida em que no entanto Agostinho o aproxima do "sacramento
um deles. A esta união que nenhum acto jurídico sustenta — e que l da ordem", tal como é conferido pela ordenação de um clérigo.
é portanto concubinato — podemos dar o nome de "casamento" a Mas a própria maneira como a aproximação se opera, bem como
partir do momento em que a fidelidade seja nela respeitada. A uma citação que Agostinho toma de empréstimo à Primeira Epís-
simples fides pode pois do ponto de vista da moralidade ter os ;• tola aos Coríntios, permite que distingamos aquilo que faz do ca-
mesmos efeitos que teria um pactum reconhecido pela lei. samento cristão um "sacramentum".
— Seja finalmente um homem e uma mulher que não são casa- O texto escriturário diz que "a mulher não deve separar-se do
dos. Têm uma ligação transitória. O homem, pelo seu lado, não seu marido, e que, se se separar, deve ou manter-se sem tornar a
' espera senão uma ocasião que o faça encontrar uma mulher rica e •* casar ou reconciliar-se com ele" ( I Cor., 7, 10-11). Para Agostinho
respeitável. Mas a mulher, essa, entende permanecer fiel ao seu ^ esta passagem ilustra o sacramento e não a fidelidade — a que São
amante; e, depois de abandonada guarda continência. Não pode- Paulo se referiria ao falar do poder que cada um dos esposos exer-
\s dizer que não pecou, pois teve relações fora do casamento. ce sobre o corpo do outro. É que a fidelidade supõe a reciprocida-
' Mas poderíamos chamar-lhe adúltera? E se nada tiver feito, ao de (daí a palavra pactum que se lhe aplica, ainda que na condição
' longo de toda a sua ligação, a fim de não ter filhos, não prevalece- de se lhe dar um valor que não é o jurídico); quando um dos côn-
rá sobre "bom número de matronas", que não são adúlteras mas , juges desfaz esse laço, como poderia ainda continuar a impor-se o
não se servem do casamento senão para satisfazerem a sua concu- simples dever de fidelidade? Ao passo que, se a mulher está sepa-
^ piscência? rada do seu marido — Agostinho não está a pensar evidentemente
Estes exemplos'" mostram bem a não-coincidência da fides na mulher adúltera, mas naquela que tivesse deixado o seu marido
com o que seria um vínculo puramente jurídico. Ainda quando após o adultério deste, ou naquela que ele tivesse repudiado —, o
parece ter a mesma forma e as mesmas consequências — a propó- sacramento retira-lhe o direito de contrair uma outra união. O
sito do adultério —, introduz elementos que são irredutíveis a uma casamento com o laço exclusivo que estabelece com uma pessoa e

155 Encontramo-los nos capítulos IV e V. 156 De bono conjugali, X X I V (32).


336 As Confissões da Carne 337
Michel Foucault

só uma continua a obrigar cada um dos cônjuges, ainda quando 3. Devemos voltar agora a essa questão da progenitura, que pa-
um deles o tenha, por sua própria iniciativa, desfeito. Trata-se de rece tornar-se bastante secundária a partir do momento em que a
certo modo de uma marca pessoal. Tal é o sentido da aproximação essência do casamento cristão se define pelo laço de fidelidade e
operada entre o casamento e a ordenação. Esta é evocada por pela marca do sacramento. Agostinho diz explicitamente e por
Agostinho somente sob um dos seus aspectos: uma vez consagra- várias vezes que a progenitura é um dos três "bens" do casamento
do, aquele que recebeu o sacramento da ordem pode de facto não ; — um dos elementos que, mantendo o casamento num lugar abai-
ter recebido rebanho, ou pode de facto ter sido demitido do seu xo do da continência, permitem reconhecê-lo como bom, se não
cargo, mas nem por isso deixa de continuar ordenado ou o sacra- por si mesmo, pelo menos em si mesmo.
mento de o marcar para sempre'". Ora, esta marca de onde pode- i No entanto as formulações do De bono conjugali, como as dos
ria vir? Por certo que não de um laço jurídico que não é susceptí- textos posteriores, dão a este terceiro bem uma posição particular.
vel de impor ao indivíduo uma coerção que subsista uma vez Por um lado, com efeito, Agostinho diz — e mostra através das
desfeito o laço. Por certo que também não de uma fidelidade que suas análises — que é menos importante do que os outros. "No
implique uma reciprocidade das vontades. Mas de uma marca, de nosso casamento a santidade do sacramento tem mais valor do que
um selo imposto por Deus e que liga o indivíduo ao seu estado de a fecundidade do seio.""' É menos consthutivo do casamento do
casamento, enquanto o próprio Deus não chamar a si o seu cônju- que os outros dois bens, uma vez que a ausência ou o desapareci-
ge. "Na Cidade do nosso Deus, onde, desde a primeira união de mento da progenitura não dissolve o casamento e inversamente
duas criaturas humanas, as núpcias se revestem de um carácter não pode ser a intenção de fazer filhos a transformar uma ligação
quase sagrado, o casamento, depois de legalmente concluído, não em casamento"'°. Mas, por outro lado, abundam as afirmações,
pode ser desfeito de qualquer outra maneira que não a morte de dizendo que a procriação é o propósito, e até mesmo o único pro-
um dos esposos.""* pósito do casamento. E m todas as nações o casamento tem o mes-
E m suma, o laço do casamento tal como é descrito no De bono mo propósito: a procriação de filhos'*'; a geração é aquilo que
conjugali distingue-se de um laço jurídico de duas maneiras: pela , causou que as núpcias fossem instituídas'*^.
"fidelidade" e pelo "sacramento". Uma e outro podem ser ditos A explicação deve sem dúvida ser procurada na relação entre
"bens" do casamento na medida em que não se limitam a assegurar estas duas noções de "bem" e de "fim" do casamento. Se nos lem-
o que cada um pode procurar por si mesmo, mas fazem entrar cada brarmos da teoria geral dos bens'*', compreenderemos facilmente
um dos dois esposos numa societas. Uma sociedade na qual a sua como a progenitura pode ser considerada um bem do casamento a
alma e o seu corpo estão ligados pelo apego da fidelidade. Uma par do sacramento e da fidelidade. O casamento, como se recordará,
sociedade na qual Deus os faz participar individual e definitiva- é um fim desejável, mas como meio para outro fim, que, esse, vale
mente através da marca indelével do casamento que lhes impõe.
159/Wd., XVIII (21).
160 Ibid., X X I V (32). Vimos em contrapartida que uma ligação que comporta
157 Ibid., X X I V (32), cf. também V I I (6): "Usque adeofoedus iílud initum nuptia- compromisso de fidelidade, sem que haja intenção de progenitura, pode ser dita
le cujusdam sacramenti res est, ut nec ipsa separatione irritumfiat"(e a continua- connubium.
ção) ["O contrato social é a tal ponto sagrado que nem mesmo a separação pode
161 /Wd., X V I I I (22).
rompê-lo", trad. G. Combès].
\62 Ibid.
158/Wd., X V (17). 163 Exposta em X V I (18), cf. supra, pp. [325-327].
338 Michel Foucault As Confissões da Carne 339

em si mesmo: a amizade ou o laço que apega naturalmente os hu- proles que faz com que a "conjunção" de dois indivíduos no casa-
manos uns aos outros enquanto partes de um mesmo género huma- mento se dobre de um acto entre homem e mulher. Mas seria erróneo
no. A progenitura é uma maneira de ligar os indivíduos e por isso reduzir a análise de Agostinho à pura e simples sujeição da relação
de produzir ou desenvolver a societas. Mas devemos imediatamente sexual à possibilidade e à obrigação de fazer filhos. Longe de encon-
sublinhar que não opera esse laço no casamento como o sacramen- trarmos nele um bloco unitário constituído pelo casamento, a relação
tum ou a fides. Estes iíltimos são caracteres próprios do laço matri- sexual e a procriação (como era o caso entre certos morahstas da
monial; fazem intrinsecamente parte dele. A progenitura não pode época helenística e romana, ou em Clemente de Alexandria), pode-
ser mais do que um efeito do casamento, uma das suas consequên- mos constatar um certo número de dissociações e de desfasamentos.
cias. E o laço matrimonial, que forma em si mesmo um elemento da Devemos sublinhar primeiro a maneira como o De bono conju-
sociedade, encontra na primogenitura um meio de desenvolver para gali volta à questão da impureza das relações sexuais'*'. As prescri-
lá de si mesmo as relações necessárias a essa sociedade. A progeni- ções do Levítico tinham muitas servido aos autores cristãos para
tura é um "objectivo" que o casamento deve propor-se em vista de mostrarem que toda a relação física trazia em si alguma coisa do mal
um fim que alcança noutro lugar no seu próprio ser de laço indelé- e da falta, uma vez que reclamava ritos de purificação, até mesmo
vel entre indivíduos. Mas devemos acrescentar que, sem a procria- entre esposos legitimamente casados. Ao que Agostinho responde
ção, o laço do casamento não seria por si só suficiente para que por meio de dois argumentos. Um é de alcance geral: o que é impu-
pudesse desenvolver-se uma sociedade à escala do género humano: ro não é, de si, um pecado: as regras das mulheres são impuras, e os
o primeiro casal teria ficado só no mundo. Podemos dizer pois que cadáveres também; onde está a falta? O outro argumento é específi-
a proles é em si mesma um bem do casamento, uma vez que liga os co da relação sexual: a semente é, sem dúvida, impura. Mas é-o
indivíduos; que não é uma sua condição indispensável, uma vez que como tudo o que é ainda grosseiro, imperfeito, mesclado de elemen-
o casamento pode existir sem ela; que é um seu objectivo, uma vez tos que devem desaparecer para [que] a forma definitiva e perfeita
que é um meio para o casamento de aceder ao seu fim, a sociedade; apareça. De modo que, assim compreendidas, as prescrições do
que é até mesmo "o único" objectivo do casamento, por oposição ao Levítico não designam a impureza do acto sexual em si mesmo, mas
sacramento e à fidelidade (que fazem, esses, parte intrínseca do laço a da semente; não se reportam senão àquilo que a semente deve
matrimonial) e em função do seu carácter indispensável para a uni- despir de si mesma antes de atingir a sua finalidade; por fim, têm
dade dos indivíduos no interior do género humano. um valor simbólico: mostram ao homem que deve "purificar-se des-
Mas o papel da procriação no casamento é ainda complicado pelo sa vida informe, revestindo a forma da doutrina e da ciência"'**.
facto de não poder ser dissociado do estatuto das relações sexuais. . Assim, Agostinho, justificando embora as práticas rituais, evita dar
Não só, certamente, porque estas relações são indispensáveis à pro- - ao acto sexual em si mesmo uma valorização negativa. Conserva-o
les, mas porque a determinação da progenitura como fim serve de no estatuto natural que lhe dá a sua utilidade para o desenvolvimen-
princípio regulador das relações sexuais: "A continuidade da socie- to do género humano: "o que o alimento é para o indivíduo, a união
dade faz-se através das crianças, único fruto honesto, não da união [concubitus) é-o para a saúde do género humano"'*'.
{conjunctio) do marido e da mulher, mas do seu comércio carnal
(concubitusY^. Com efeito, para Agostinho, é bem a necessidade da
165/Wd., X X (23).
mibid.
164 [De bono conjugali, 1(1).] 167/Wd., X V I (18).
340 341
Michel Foucauit As Confissões da Carne

Que o acto sexual não seja em si mesmo mau não significa que fim "natural" do casamento, mas da consequência do laço pessoal
seja sob todas as suas formas e em todos os casos aceitável. Agos- que ele estabelece e da ordem das obrigações a que compromete.
tinho faz intervir várias formas de limitações. Umas pertenciam j á Esta tomada em consideração da concupiscência do outro, do au-
à moral antiga. As outras são mais específicas da doutrina cristã. xílio que é necessário prestar-lhe em vista da sua salvação, funda
As primeiras são as que, de um modo geral, prescrevem a "tempe- o dever conjugal. É significativo que o texto de São Paulo a respei-
rança" e a rejeição de toda a forma de "excesso". Ora, como se to do corpo da mulher que está no poder do marido e do do mari-
define a temperança? Pela manutenção no "uso natural"'**. E este do que está no poder da mulher não seja comentado por Agostinho
uso natural é, para Agostinho como para a tradição antiga, o acto como a expressão de um direito de posse do qual o acto sexual
sexual quando tem a forma que permite eventualmente a procria- seria consequência directa'". Se um dos esposos pode reclamar o
ção. Mas, relativamente a este uso natural, podem ser cometidos
corpo do outro, e se este não pode recusar-lho, não é que seja seu
dois tipos de faltas, entre as quais Agostinho não marca uma se-
senhor e soberano, mas é que se trata para si mesmo de escapar ao
paração muito nítida, embora marque entre elas uma grande dife-
risco de cair no pecado: "Devem-se também, para evitarem as
rença moral. Por um lado, há o simples "excesso" quantitativo; é
relações interditas, uma espécie de servidão recíproca que seja um
aquele a que nos entregamos indo "para lá da necessidade da
apoio mútuo da sua fraqueza.""^ E m suma, cada um deles deve
propagação": gestos feitos e prazeres tomados que não são sim-
esse serviço, essa servidão, não em função do domínio do outro
plesmente os que requer o acto sexual "natural", mas que o acom-
sobre o corpo do cônjuge, mas da sua fraqueza relativa ao seu
panham ou o preparam. Por outro, há os actos contranatura, que
próprio corpo.
são definidos pelo uso de uma parte do corpo da mulher que a t a l '
Deste princípio, Agostinho extrai certas consequências gerais já
não é destinada'*'. As primeiras de entre estas faltas não são mui-
bem conhecidas: ninguém pode votar-se à continência perpétua
to consideráveis. A s segundas, em contrapartida, são muito graves.
sem o consentimento do outro. Estabelece a hierarquia, que terá
Sob reserva desta hierarquia, Agostinho condena-as numa fórmu-
tanta importância mais tarde e suscitará tantas dificuldades: a re-
la que poderíamos encontrar entre os filósofos da Antiguidade: "A
lação conjugal que se faz em vista da procriação é completamente
honra conjugal é a castidade na procriação."'™
isenta de pecado; a que é consumada "para satisfazer a concupis-
Mas faz intervir também outros princípios de regulação do acto
cência" constitui uma faka venial; quanto aos actos que se come-
sexual. Esses mesmos a que se referia Crisóstomo na mesma épo-
tem fora ou contra os laços do casamento (fornicação ou adulté-
ca. Abrem a possibilidade de legitimar entre os esposos actos se-
rio), ou ainda os que, no casamento, são contrários à natureza, são
xuais que não têm fim procriador: na condição de cada um dos
pecados mortais. Mas Agostinho vai muito mais longe na codifi-
dois parceiros não ter em vista senão evitar ao outro pecados
cação das relações entre esposos. É que a própria ideia de um
maiores — aqueles que cometeriam ou fora do casamento, ou os
pecado venial ligado à relação quando esta se destina a satisfazer
que seriam contra as regras da natureza. Aqui já não se trata do
somente a concupiscência não é clara. Por que razão o dever con-
jugal não se destinará a fazer com que, independentemente até da
168 A temperança tem por papel "redigere" o prazer, a delectatio, "in usum natu-
ralem",ibid.,Xm{\%).
171 Sobre uma outra citação deste mesmo texto e a sua interpretação como regra
169 Ibid., XI {12).
mibid. de fidelidade, cf. .wpra, p. [337].
172 De bono conjugali, V I (6).
342 As Confissões da Carne 343
Michel Foucault

procriação, se torne possível dar à concupiscência do outro um Apóstolo.""* Parece possível compreendermos que a relação con-
modo de se satisfazer sem cair em faltas talvez mais graves? É jugal, se for realizada por uma e pela outra parte devido à concu-
necessário por isso introduzir uma distinção entre aquele que re- piscência de cada um dos dois esposos, sai das regras estritas do
clama que lhe seja prestado o dever conjugal e aquele que o presta. casamento e pode por isso tornar-se uma coisa grave. Pode no
O último, pelo menos na medida em que aceite para evitar ao seu entanto manter-se dentro dos limites de indulgência do venial com
cônjuge cair numa falta mais grave, não comete ele mesmo qual- uma condição: que os cônjuges se atenham ao que é honesto (quer
quer falta, ainda que venial, uma vez que tudo o que faz é aplicar dizer, aos gestos delimitados pela vontade de procriação, ainda
uma regra que deriva do estado de casamento'". Mas aquele que que tal vontade não esteja presente) ou de um modo geral ao que
o reclama? A posição de Agostinho parece menos clara. Por um pertence "ao casamento": quer dizer, o nascimento possível de
lado, fala de pecado venial"* para aqueles que estão "sob o jugo uma progenitura e o cumprimento do dever.
da concupiscência", e, portanto, ao que parece, para aqueles que De facto, o De bono conjugali delineia aqui os primeiros rudi-
reclamam o dever para outros fins que não a procriação. Mas, por mentos de uma jurisprudência das relações sexuais entre esposos
outro lado, evoca a tolerância que o Apóstolo concede aos que que, sobretudo na segunda metade da Idade Média e até ao século
manifestam uma insistência abusiva em reclamar o dever"': se- xvin, assumirá uma importância considerável. Constituir-se-á as-
riam eles por conseguinte a cometer um pecado venial. Devere- sim um código extremamente complexo da sexualidade conjugal.
mos compreender então que aqueles que reclamam o dever com a Para que este se desenvolva, será necessário todo um conjunto de
intenção de evitarem o risco de um pecado mortal não cometeriam condições sociais e culturais. Será necessário também que sejam
qualquer pecado, mas seriam assim tão inocentes como os que o redesenhadas, ou pelo menos completamente elaboradas algumas
prestam? — o que parece difícil em si, mas constitui a única solu- das proposições que o De bono conjugali contém ainda. Essas
ção compatível com a ideia do pecado venial contraído por aqueles proposições referem-se à maneira como o casamento transmuta
que o pedem com demasiada insistência. Quanto aos dois esposos •' qualitativamente as relações sexuais e o prazer a que dão lugar.
que, nos termos de um consentimento mútuo, reclamam um do ' Duas séries de passagens em particular são significativas. Umas
outro o dever conjugal, o texto de Agostinho a seu respeito é difí- reportam-se à moderação da libido. Logo na abertura do tratado,
cil de interpretar. Segue-se imediatamente à proposição que des- é dito que "o laço conjugal transforma em bem o mal de concupis-
culpa de todo o pecado o cônjuge que presta o dever para evitar ao cência". E esta transformação é explicada pelo papel de modera-
outro o pecado: "Se contudo os dois esposos estão sob o jugo de ção interna que seria desempenhado, precisamente lá onde a volú-
uma tal concupiscência, fazem alguma coisa que em nada perten- pia é mais intensa, pela intenção de procriar: "O laço conjugal [...]
ce ao casamento. Mas se, pelo contrário, têm mais atracção, na sua comprime a volúpia nos seus impulsos, põe uma espécie de pudor
união, pelo que é honesto do que pelo que é desonesto, quer dizer, no seu ardor e tempera-os por meio da paternidade. Mistura-se,
mais atracção pelo que pertence ao casamento do que pelo que não com efeito, não sei que gravidade às efervescências da volúpia
lhe pertence, têm para desculpar as suas fraquezas a garantia do quando, no momento em que o homem e a mulher se unem, pen-
sam que vão tornar-se pai e mãe.""' Mais longe, Agostinho acen-

173/èW.,X(lI).
174/Wí/., X I (12). 176[/Wd.,X(ll).]
175 Ibid. 177 Ibid., III (3).
344 Michel Foucault As Confissões da Came 345

tua ainda a mesma ideia de que o bom uso da conjugalidade O emprego aqui desta palavra explica-se por uma passagem ante-
constitui um freio para a concupiscência; chega a dizer que, bem rior em que os "sacramentos proféticos" são as marcas visíveis se-
temperado, o prazer no casamento poderá já de maneira nenhuma gundo as quais a salvação futura se escondera antes da vinda do
ser "libido". Passa-se, diz Agostinho, com o concubitus a mesma Salvador. Os profetas eram portadores desses sinais; a sua conduta
coisa que com o alimento: "O uso de um e outro não se dá sem um mostrava em si mesma o selo da vontade de Deus. Desenha-se aqui
prazer carnal {delectatio carnalis), prazer que, medido e reduzido a concepção do "sacramento", tal como é evocada no mesmo texto
pela temperança à sua satisfação natural, não pode ser olhado co- a propósito do casamento cristão. E parece possível dizer-se que o
mo uma concupiscência {libido)''"^ casamento dos Patriarcas, e é essa a sua superioridade por compa-
Nas Retractationes"^, Agostinho voltará a esta passagem, fazen- ração com os de hoje, era inteiramente um "sacramentum": o sinal
do valer que não falou de um apagamento da libido pelo casamento, em cada um de um parentesco espiritual presente e por vir.
mas quis dizer que o uso da libido, se for bom e correcto, não será Podemos dizer em termos esquemáticos que, no casamento dos
ele mesmo uma libido. Esta precisão ou esta correcção concordam profetas, o sacramento apaga todo o traço de concupiscência, en-
bem com a teoria da concupiscência que ele terá entretanto desen- quanto, no casamento dos cristãos de hoje, aquela é atenuada, di-
volvido. Mas não parece estar efectivamente presente no De bono minuída e modificada. Mas a possibilidade e a forma desta modi-
conjugali. O princípio segundo o qual não há relação sexual sem ficação mantêm-se enigmáticas, o que torna evidentemente
concupiscência desde a queda, estando a diferença moral apenas no bastante incertos vários elementos da codificação que Agostinho
uso, não se encontra na análise do De bono conjugali. Prova-o uma entende fazer das relações sexuais entre esposos. E uma economia
segunda série de textos: estes referem-se aos Patriarcas, cujas irre- da concupiscência no casamento que ainda falta. Ou, noutros ter-
gularidades relativas à monogamia sabemos que puseram bastantes mos, a definição do laço do casamento e das regras de vida que
problemas aos exegetas cristãos. Estes Patriarcas, segundo Agosti- devem caracterizar o estado matrimonial não pode completar-se
nho, quando se casavam, quando procriavam, "não eram vencidos sem uma teoria da libido. Enquanto o ponto central das preocupa-
pela concupiscência"'*". Experimentavam por certo um prazer na- ções e das análises era a virgindade ou a continência, eram sufi-
tural, como hoje os santos da nova aliança experimentam prazer cientes regras de abstenção no quadro de uma economia da pure-
comendo pão; mas nada havia neles da "concupiscência irracional e za. Mas, a partir do momento em que é necessário definir, tocando
criminosa". É que, sabendo que a procriação era necessária para os seus fundamentos, uma tekhnê da vida e das relações conjugais,
que nascesse a raça do Senhor, e que a sua descendência pertenceria é uma teoria da concupiscência e uma economia do desejo o que
à "economia profética" {dispensatio propheticd), o seu desejo {desi- nos faha. E Agostinho estabelecê-la-á por meio de uma definição
derium) era espiritual. Para explicar a forma espiritual deste desejo, da diferença introduzida na relação sexual pela queda; por meio de
Agostinho emprega um termo importante: o de sacramento. O de- uma especificação das formas próprias da libido no homem caído;
sejo dos profetas "estava de acordo com o sacramento da época"'*'. por meio da distinção estrita entre a libido e o uso da libido. Aca-
bará assim por dar os fundamentos ao mesmo tempo de uma
concepção geral do homem de desejo, e de uma jurisdição fina dos
178/Wd., X V I (18).
actos sexuais que uma e outra marcarão profundamente a moral
179 [Retractaãones, 11,22 (21)].
180 De bono conjugali, XIII (15). do Ocidente cristão.
181/èW., X V I I (19).
As Confissões da Carne 347

contenta com "apoderar-se do corpo inteiro, exterior e interior-


mente; abala o homem inteiro, unindo e misturando as paixões da
alma e os apetites carnais para abrir caminho a essa volúpia, que
é a maior de todas as do corpo, de tal maneira que, no momento
em que alcança o seu auge, toda a lucidez bem como aquilo a que
poderíamos chamar a vigilância do pensamento são quase aniqui-
ladas". A conclusão deixa-se extrair com facilidade: "Que amigo
da sabedoria e das alegrias santas {sapientiae sanctorumque gau-
[Ill]
diorum) que leve a vida conjugal não preferiria, se pudesse, gerar
filhos sem esse 'desejo' {libido)?'^^^ Atente-se na formulação: os
[A LIBIDINIZAÇÃO DO SEXO]
"amigos da sabedoria" que desejariam desembaraçar-se desta en-
fermidade e de semelhante violência são sem dúvida tanto os pa-
gãos que tentaram praticar a virtude como os cristãos que buscam,
A conjunção física dos sexos, quando se faz no casamento
além da sabedoria da sua fé, as alegrias celestiais. Agostinho indi-
dando-se por fim a procriação, é pois, como diz o De bono conju-
ca claramente que se refere a uma concepção secular que faz do
gali, isenta de falta: ihculpabilis^^^. Deveremos ir mais longe?
acto sexual um acontecimento físico com efeitos tão perigosos,
Vimos que tinha o seu lugar, na criação do ser humano, antes
para o corpo e para a alma, que dele é desejável abstermo-nos
da falta e da queda, ainda que não tivesse então realidade: era a '
tanto quanto possível. Talvez tenha em mente o texto do Horten-
obra de Deus que a destinava à constituição de um género humano '
sius que de resto cita no Contra Julianum^^'^: "O que produz a
como "sociedade". No casamento de hoje, tem ainda esse papel,
volúpia, não é demasiadas vezes a ruína da saúde? [...] Quanto
uma vez que é necessária à procriação; e esta procriação constitui
mais violentos são os seus movimentos, mais inimigos são da fi-
um dos fins e um dos bens da conjugalidade. Por conseguinte, não
losofia [...]. Quem se entrega a esta volúpia, rainha de todas as
poderemos considerá-la um bem — um bem originariamente dis-
outras, não se põe numa impotência radical de cultivar o seu espí-
posto por Deus e mantido depois da queda? Não nos arriscaremos
rito, de desenvolver a sua razão e de alimentar pensamentos sé-
a ser levados a passar do bonum conjugale ao bonum sexualel
rios? Não está nela esse abismo que tende incessantemente, noite
Uma breve evocação, na Cidade de Deus, do que o acto sexual e dia, a produzir em todos os nossos sentidos essas violentas co-
é na sua forma e no seu desenrolar-se permite-nos cingir o proble- moções cujo segredo pertence às volúpias levadas ao extremo?
ma. Agostinho retoma aí muito fielmente a descrição clássica do Que homem sábio não preferiria que a natureza nos tivesse recu-
paroxismo sexual com os seus três pontos essenciais: um abalo sado todas as volúpias?" Eis colocada a seguinte ahernativa. Ou
físico do corpo que não é possível dominar, uma comoção da alma devemos admitir que a humanidade, ao sair perfeita das mãos do
que é arrebatada contra vontade pelo prazer, um eclipse final do (líriador, conhecia já este transporte dos sentidos, esta fraqueza da
pensamento que parece aproximá-lo da morte. "O desejo {libido) alma, esta pequena epilepsia que assume as feições da morte; o
através qual são excitadas as partes vergonhosas do corpo" não se

182 [SANTO AGOSTINHO, De bono conjugali, X (11).] 183 [SANTO AGOSTINHO, A Cidade de Deus, XIV, 16.]
184 SANTO AGOSTINHO, Contra Julianum, IV, 72; cf. também ibid., V, 42.
348 Miche] Foucauh As Confissões da Carne 349

que é contraditório com a soberania de uma criatura à qual as seu género é o fogo vital; a sua espécie, os movimentos genitais; o
outras deveriam ser submetidas. Ou devemos esquivar o que há de seu modo, a acção conjugal; o seu excesso, a intemperança da
enfermidade vergonhosa neste acto e não ver nele mais do que forniGação."'** E , a partir daí, era-lhe fácil marcar o ponto ético de
aquilo que teve de natural desde a fundação do género humano. separação das águas: pelo seu género e pela sua espécie, aquele
Ou já na origem, o corpo humano manifestava uma fraqueza in- apetite é obra do próprio Criador ao moldar o corpo humano; não
trínseca, um mal que fazia parte da sua natureza. Ou as volúpias pode a tal título ser uma faha; pelo seu modo, releva da vontade
de hoje prolongam até nós uma inocência que ele tem do seu esta- humana, e se esta seguir o modo que lhe foi fixado, quer dizer a
do primeiro. É esta alternativa que Agostinho acusa os pelagianis- conjugalidade, é inocente; por fim, é somente nos seus excessos,
tas de terem artificialmente construído quando colocam a escolha quer dizer quando a vontade é má, que podemos falar de mal. É
entre um maniqueísmo que denuncia o mal inerente à Criação, e a portanto o excesso que define o que é condenável.
sua própria tese, que vê nas relações entre homem e mulher após Esta noção de excesso é importante. Ao mesmo tempo porque
a queda o simples efeito de um apetite natural — adpetitus natu-
deixa intacta a própria natureza do desejo, fazendo com que o mal
ralis^^^ —, que evitam o mais possível designar pelos termos de
comece apenas com o "de mais"; e porque permite uma grande
libido, de concupiscência'**.
flexibilidade na determinação dos actos que podem manifestar que
De facto, não se tratava nem para os pelagianistas, em geral, o limite foi "ultrapassado". Ora, tal era uma das categorias éticas
nem para Juliano de Eclana, em particular, de inocentar todas as mais frequentes na Antiguidade, formando oposição à temperança e
relações sexuais a coberto da sua natureza primeira e de em qual- à moderação; fora retomada muitas vezes em toda a moral cristã. E
quer caso as admitir. Agostinho reconhece a prática de continên- devemos sublinhar que Agostinho a ela recorreu no De bono conju-
cia dos seus adversários'*'. Mas o que é decisivo neste debate é a gali: o comércio carnal, o concubitus, quando é utilizado como
determinação do ponto a partir do qual e em nome do qual se condição necessária da geração, é, segundo este texto nos diz, "sem
opera a delimitação entre o que se pode aceitar e o que é necessá- falta". Mas é somente dentro desse limite que releva do casamento e
rio recusar nas relações sexuais. Por onde passa a linha divisória a
do seu bem. Se comporta algo mais, se vai "além dessa necessida-
partir do momento em que não se trata de recusar todo o acto se-
de", já não pertence à razão, mas à concupiscência (//èzJo)'*'. Pode-
xual como mau, e a partir do momento em que não nos queremos
mos assim supor que o mal começa com o excesso; que, antes desse
contentar com dizer que o toleramos contanto que tenha lugar no
limite, não há ainda libido, e que pode haver pois uma naturalidade
interior do casamento?
que, quando se mantém não excessiva, não pode dizer-se má.
E conhecida a posição de Juliano de Eclana. Dava do apetite Na elaboração que Agostinho empreende posteriormente, e so-
natural que opera nas relações sexuais uma caracterização muito bretudo a partir de 412-413, trata-se para ele ao mesmo tempo de
em conformidade com toda uma tradição filosófico-médica: "O
escapar à alternativa que os pelagianistas tentavam construir, e
livrar-se de uma ética do não-excesso"". Se o primeiro aspecto do
185 SANTO AGOSTINHO, De nuptiis et concupiscentia, II, 7 (17).
186 AGOSTINHO faz com frequência esta acusação de resto pouco exacta a Ju-
liano de Eclana, no De nuptiis et concupiscentia {loc. cit.) e no Contra Julianum. 188 [SANTO AGOSTINHO, Contra Julianum, III, 26.]
187 AGOSTINHO serve-se desse facto para concluir que os próprios pelagianis- 189 SANTO AGOSTINHO, De bono conjugali, X {U).
tas são obrigados a reconhecer em si mesmos o mal da concupiscência {Contra 190 Sobre a discussão do tema pelagianista do excesso, cf. em particular SANTO
Julianum). AGOSTINHO, Opus imperfectum, IV, 24.
350 Michel Foucauh As Confissões da Carne 351

seu esforço é evidentemente capital para o desenvolvimento da moral, articulando-se sobre as noções de consentimento e de
teologia cristã, o segundo é essencial na história da nossa moral. uso, afastará numa certa medida os temas da impureza e do ex-
Ao pôr num lugar tão alto na Criação e entre os fins actuais do cesso para fazer entrar em jogo modelos jurídicos. É desta ela-
casamento a procriação conjugal, desligara em certa medida a boração que devemos tentar reencontrar o desenho geral de
relação sexual da desqualificação ético-religiosa da impureza. acordo com os textos escritos no decorrer da polémica com os
Mas, ao deslocar a linha divisória, e ao inscrever uma certa forma pelagianistas e Juliano de Eclana, ou pelo menos durante esse
de mal no próprio acto sexual, tornava-o portador de uma negati- período: O livro X I V de A Cidade de Deus, o De nuptiis et con-
vidade muito mais essencial do que o simples limite exterior do
cupiscentia, o Contra duas epistulas Pelagionorum, o Contra
excesso. A imensa discussão com os pelagianistas que Agostinho
Julianum, bem como o Opus imperfectum.
vai conduzir durante mais de quinze anos introduz-nos num siste-
ma de moral e em regras de conduta nos quais as duas grandes
- I -
categorias fundamentais para a Antiguidade e o cristianismo pri-
mitivo — a impureza e o excesso — vão, não por certo desapare-
cer, mas começar a perder uma parte do seu papel preponderante No seu Contra duas epistulas Pelagionorum, Agostinho expli-
e organizador. ca que não podemos imaginar senão sob quatro formas o uso das
relações sexuais no paraíso: os humanos cedendo ao seu desejo
Para escapar à alternativa pelagianista ou, mais geralmente,
sempre que este se apresenta — o que está excluído, porque seria
para se desprender de igual modo de uma desqualificação global
tornar escravos criaturas de Deus; os humanos refreando os seus
pela impureza e de uma delimitação puramente exterior pelo
desejos e combatendo-os até ao momento conveniente — o que é
excesso, Agostinho teve de levar a cabo duas operações: definir
igualmente incompatível com a felicidade paradisíaca; os huma-
no interior do acto sexual uma linha divisória anterior ao exces-
nos, no momento necessário, ao sabor da sua vontade, e segundo
so, que pudesse marcar o mal que lhe é inerente; mas definir
as previsões de uma justa prudência, fazendo surgir o desejo-
também o mecanismo através do qual a queda pôde introduzir
uma tal disposição numa naturalidade do acto sexual que até -libido que leva à relação sexual e a acompanha; os humanos,
então não a conhecia. Teve, em suma, de estabelecer o aconteci- enfim, na ausência total de libido, fazendo obedecer sem dificul-
mento meta-histórico que redesenhou o acto sexual na sua forma dade os órgãos da geração, como qualquer outro membro do cor-
originária de maneira a doravante fazê-lo comportar necessaria- po, às ordens da vontade"'. Só as duas úhimas possibilidades po-
mente esse mal que podemos constatar com os filósofos antigos dem ser retidas como conciliáveis com a beleza e a bondade da
quando vemos como se desenrola: reencontrar aquilo a que po- obra de Deus; e ainda assim, quanto à penúltima, Agostinho não
deríamos chamar a "libidinização" do sexo paradisíaco. Teve parece cedê-la aos seus adversários excepto a título de concessão.
também de definir uma teoria da concupiscência — da libido Deixemos de momento de parte o sentido de uma tal concessão. A
— como elemento estrutural interno do acto sexual tal como relação sexual no paraíso é pois definida de preferência por Agos-
actualmente o conhecemos. E foi a partir daí que Agostinho tinho como um acto do qual a libido é excluída pelo menos naqui-
pôde delinear uma moral da conduta sexual que já não está po- lo que comporta de força coerciva.
larizada pelo tema da virgindade e da continência, mas centrada
no casamento e nas relações obrigatórias que comporta; e esta 191 SANTO AGOSTINHO, Contra duas epistidas Pelagionorum, 1,17 (34).
352 Michel Foucault As Confissões da Carne 353

movemos as mãos e os pés quando assim queremos em vista de


Ora, se supusermos a ausência da última, em que consistiria o
actos próprios desses membros, sem resistência alguma, com uma
acto sexual? Num movimento natural e espontâneo cujo desenro-
facilidade que admiramos em nós como nos outros, sobretudo
lar-se nada vem perturbar? De maneira nenhuma. O texto di-lo
entre os artesãos dos diversos ofícios, nos quais uma arte mais
sem ambiguidade: trata-se, bem pelo contrário, de um acto cujos
hábil acorre em auxílio de uma natureza demasiado fraca e dema-
elementos são na sua totalidade colocados sob o controle exacto e
siado lenta? E não creríamos que, na obra da geração [...], tanto
sem falha da vontade. Tudo o que nele se passa, o homem podia
estes membros como os outros pudessem obedecer ao homem a
querê-lo, e com efeito queria-o. A relação sexual sem libido é in-
um sinal da sua vontade?""* O homem, na conjunção sexual do
tegralmente habitado pelo sujeito voluntário. Esta concepção não
paraíso, não o imaginemos como um ser cego transportado por
è neste texto que aparece pela primeira vez. Agostinho evocou-a
movimentos cuja inocência está garantida justamente na medida
com frequência. Assim já no De Genesi ad litteram, pelo menos a
em que lhe escapam; mas como um artesão reflectido que sabe
título de hipótese: "Porque não acreditar que estes primeiros ho-
; servir-se das suas mãos. Ars sexualis. Se a falta lhe tivesse deixado
mens, antes do pecado, podiam comandar os órgãos da geração a
; tempo para tanto, teria sido, no Jardim, um semeador aplicado e
fim de procriarem filhos, como comandavam os outros membros
i sem paixão. "O órgão destinado a esta obra teria semeado o cam-
que a alma move sem embaraço algum e sem o aguilhão do prazer
po da geração como agora a mão semeia a terra.""' O sexo para-
para os aplicar a alguma tarefa?""^ A ideia é desenvolvida mais
disíaco era dócil e razoável à maneira dos dedos da mão.
longamente no livro X I V de A Cidade de Deus. Apoia-se sobre
De facto, parece bem que Agostinho tenha sido levado no cur-
quatro conjuntos de referências. Sobre o que se passa no corpo
so da sua discussão com Juliano a atenuar a ideia de uma relação
humano, no qual a vontade pode comandar os braços e as pernas,
sexual que teria o mesmo desenrolar-se voluntário que um gesto
"todos os membros constituídos por ossos rígidos, como as mãos,
da mão, e que teria perdido posteriormente a possibilidade de se
os dedos, os pés"; mas também, e Agostinho tem o cuidado de o
controlar, como punição da queda. O exemplo de movimentos do
fazer notar, os membros "que não têm senão carnes e nervos", ou
corpo que não têm a forma de gestos voluntários que nem por
até mesmo órgãos internos como os pulmões, dos quais fazemos
uso voluntário para respirar ou gritar"'. Sobre o que se passa entre
os animais, que Deus tornou capazes de moverem a sua pele na
196/iW., 23,2.
zona que uma mosca acaba de picar"*. Sobre o que podemos cons-
197 Ibid., Ti, 3. Notemos a reutilização da tradicional metáfora das sementeiras.
tatar em certas pessoas, que são capazes, quando querem, de me- Clemente de Alexandria, como muitos outros, empregava-a para significar a neces-
xer as orelhas ou o cabelo, reproduzir o canto dos pássaros, trans- sidade de fecundar o sulco bom. Agostinho emprega-a para caracterizar a procria-
pirar, chorar, simular a morte e nada sentir dos golpes que lhes ~ ção paradisíaca, no que esta teria de voluntário do lado do homem, de honroso e
não de doloroso do lado da mulher. O tema é desenvolvido ao longo de todo o De
sejam aplicados"'. E por fim sobre a habilidade que os artesãos
nuptiis et concupiscência, I I , 14 (29). A semente humana teria sido semeada sem a
têm de fazer os gestos que a sua profissão torna necessários: "Não menor paixão vergonhosa, "obedecendo" os órgãos genitais "ao gosto da vontade,
tal como a segunda [semente: os grãos de trigo] é lançada sem a menor paixão ver-
192 SANTO AGOSTINHO, De Genesi ad litteram, I X , 10 (18). gonhosa, pelas mãos do camponês [...] E em seguida o Criador [...] teria agido a
193 SANTO AGOSTINHO, A Cidade de Deus, XIV, 24. No De nuptiis et con- seu gosto na mulher, tocando as sementes de homens — coisa que ainda agora faz
cupiscentia, I I , 31 (53), Agostinho cita também o exemplo da bexiga e da urina. —, tal como dispõe a seu gosto das sementes de trigo na terra, assim concebendo
194 SANTO AGOSTINHO, A Cidade de Deus, XIV, 24,1. as venturosas mães sem volúpia libidinosa e tendo os seus partos sem gemidos
195 Ibid., 24,2. doridos".
354
Michei Foucault Confissões da Came 355
"AS

isso foram inscritos entre as consequências da queda e a preocu que atinge a materialidade do corpo através da estrutura do sujeito
pação por parte de Agostinho de não imaginar no dia que se se como vontade de si sobre si. E r a ligeira a obrigação que Deus
guiu à Criação um corpo fundamentalmente diferente do nosso impusera aos homens ao proibir-lhes o fruto. Mais grave ainda,
inclinaram-no a admitir antes na origem uma actividade sexual por conseguinte, a sua revolta. E , depois de uma tal desobediência.
que teria podido ser desencadeada ou interrompida à vontade, que Deus, na sua bondade, não quis que ela fosse um castigo definitivo,
não teria portanto escapado às ordens que lhe fossem dadas pela nem o abandono do homem a forças espirituais ou materiais que
razão, mas que, nesse quadro, poderia ter tido um desenvolvimen- o dominassem para sempre. Quis que fosse muito exactamente
to próprio. Tal era a terceira hipótese que concedia aos pelagia- : ajustada à falta, e tanto às forças do homem como à possibilidade
nistas na sua resposta à sua carta, e que aceitará bastante facil- da salvação. Fez com que fosse a reprodução no homem da deso-
mente nos livros I V e V do Contra Julianum: podia bem haver bediência que levantara o homem contra ele. O castigo-conse-
antes da queda "movimentos carnais"; os sentidos podiam ser quência da falta não se inscreve entre a alma e o corpo, entre a
"estimulados"; mas esta estimulação estava "submetida ao impé- matéria e o espírito, mas no próprio sujeito doravante em revolta
rio da vontade""*. contra si mesmo (corpo e alma incluídos). O homem decaído n ã o
Quer se tenha tratado de um gesto voluntário ou de um "movi- caiu sob uma lei ou uma força que o subjugam inteiramente; uma
mento carnal" controlado pela vontade, de todo o modo as rela- cisão marca a sua própria vontade que se divide, se vira contra s i
ções sexuais não comportavam, na Criação, esse abalo que hoje mesma e escapa ao que ela mesma pode querer. É o princípio,
arrebata o corpo e a alma, caracterizando a sua actual "libido"^'^: fundamental em Agostinho, da inoboedentia reciproca, da deso-
esta consiste não nalguma impureza substancial, não num certo bediência em contrapartida. A revoUa no homem reproduz a revol-
exagero da sua violência, mas precisamente na forma involuntária ta contra Deus.
do movimento. O ponto decisivo, o que separa, no que se refere às A partir deste princípio, poderá compreender-se a transforma-
relações sexuais, a Criação da queda, e por onde, por conseguinte, ção introduzida no acto sexual? Temos de nos reportar à exegese
deverá passar a linha divisória moral, é pois aquele onde o invo- que Agostinho propõe da primeira passagem do Génesis que se
luntário faz irrupção no lugar e na vez do voluntário. reporta à questão do sexo após a desobediência dos homens e o
Neste ponto, devemos reconhecer a marca da falta original e da castigo de Deus, uma vez que, logo que cometem a faha, é um
queda — ou, mais precisamente, da redefinição das relações de gesto de pudor que os primeiros humanos efectuam: "Abriram-se
obediência e de domínio entre si e si mesmo que delas dependem. os olhos aos dois; viram que estavam nus e, cosendo folhas de f i -
Lembremos rapidamente como Agostinho define esta mudança gueira, fizeram para si umas cintas."^"" A comparação das inter-
pretações que Agostinho sucessivamente propôs desta passagem é
198 SANTO AGOSTINHO, Contra Julianum, IV, 62.
significativa. No De Genesi contra Manichaeos^°\ despertar
199 Quanto ao uso deste termo, aproximadamente equivalente em AGOSTINHO deste pudor é definido como a passagem de uma "simplicidade"
ao de concupiscentia, devemos notar que o encontramos usado ou no sentido mui- que equivale a inocência a uma perversidade que afecta o próprio
to geral do desejo do que se não tem (pode ter um valor positivo: concupiscência |í olhar e que é traduzida por ele. Sobre a sua nudez, o homem e a
pelas coisas espirituais), ou no sentido de movimento da carne tal como se podia
manifestar sob o controle da vontade no paraíso (uso muito mais [raro], mas ates-
tado no Contra Julianum, IV, 62), ou as mais das vezes no sentido de movimento
200 Génesis, 3,7. .
involuntário provocado pela atracção sexual. 201 Cf. também SANTO AGOSTINHO, De nuptiis et concupiscentia, I ,
356 357
Michel Foucault As Confissões da Carne

mulher lançam "olhos perversos" porque, já e doravante habitados lei dos membros resiste à lei do espírito"^"" e porque é a "conse-
pelo mal, reconhecem assim o que perverte agora toda a natureza quência da transgressão do preceito"-"'.
humana e faz corar o seu orgulho — o seu "orgulho astucioso" É esta interpretação da abertura dos olhos como apreensão de
quer dizer, o próprio princípio da falta em que caíram^°^ Na rela- uma realidade nova que encontramos retomada nos textos poste-
ção dos olhos que acabam de se abrir com o sexo que deve cobrir- riores. O livro X I V de A Cidade de Deus é muito explícito acerca
-se, o último aparece como a manifestação de uma depravação deste ponto. Não devemos imaginar que os humanos antes do pe-
global da natureza humana. cado fossem cegos. Eva não vira "que o fruto era bom para comer"
Mais tarde, no De Genesi ad litteram, Agostinho insiste na e agradável à vista? Podiam pois ver o seu próprio corpo. Mas
necessidade de não darmos simplesmente a esta abertura dos teremos de admitir que com efeito dirigiam os seus olhares sobre
olhos a interpretação figurada de uma perda da inocência. Deve- o seu sexo? Não, porque este estava coberto pela "veste da graça"
mos compreender que houve descoberta, por um olhar que — veste que fazia com que, por um lado, os seus membros não se
preexistia, de uma realidade física: e esta realidade, ela, era nova, revohassem contra a sua vontade e que, por outro lado e por con-
não devendo senão à queda a sua existência. Este "alguma coisa", seguinte, eles não lhes prestassem atenção e não procurassem co-
sanção da faha e manifestação primeira das suas inumeráveis nhecer o que essa veste podia esconder^"*. Mas, com a falta e a
consequências, não é evidentemente o sexo, já presente e já visto; graça que se retira, o castigo aparece: é a "desobediência em
é o seu movimento, cuja involuntária espontaneidade para os dois contrapartida", a reprodução física, no corpo e muito precisamen-
não houvera ainda lugar de constatar. Um tal movimento está liga- te através do sexo, contra a vontade humana da insurreição por
do ao olhar de duas maneiras: provocado por ele e espectáculo meio da qual o homem se erguera contra Deus. Ora, esta revolta
para ele. "A partir do momento em que transgrediram o preceito, atrai para si o olhar e a atenção: "Para ferir a sua desobediência
totalmente despojados dessa graça interior que tinham ofendido por reciprocidade {reciproca inoboedientia), produziu-se um mo-
por um gesto de arrogância e por orgulhoso amor do seu próprio vimento inteiramente novo de impudor corporal que tornou a sua
poder, deitaram os seus olhos sobre os seus corpos (membra) e nudez indecente, fez com que eles a notassem e os encheu de con-
fusão {fecit adtentos redditque confusos^''. Sob o regime da
sentiram um movimento de concupiscência que lhes era desconhe-
graça, a inatenção do olhar e o uso voluntário do sexo estavam
cido {eaque motu eo quem non noverant, concupiverunt)."^'^^ E
ligados, fazendo com que este fosse visível sem correr nunca o
deste movimento, os primeiros humanos não podem deixar de
risco de estar nu. A queda, em contrapartida, liga a atenção dos
corar, porque é esse mesmo "movimento carnal que impele os
olhos e o involuntário do movimento, fazendo com que o sexo
animais a acasalar", porque é a manifestação de que doravante "a
esteja nu, mas com uma tal vergonha, um tal sentimento de humi-

202 "Os seus olhos abriram-se; e então viram que estavam nus, mas com olhos * 204 [SANTO AGOSTINHO, 5eTOião 162,12.]
perversos, aos quais essa simplicidade, indicada pela palavra nudez, parecia ver- 205 SANTO AGOSTINHO, De Genesi ad litteram, X I , 32 (42). Note-se que, se-
gonhosa. E como já não eram simples com 'folhas de figueira, fizeram para si
gundo Agostinho, no gesto do pudor primeiro não devemos ver uma consciência
umas cintas', como para se cobrirem e esconderem a simplicidade da qual corava
clara, mas o efeito de um "instinto obscuro" {occulto instinctu).
o seu orgulho astucioso", SANTO AGOSTINHO, De Genesi contra Manichaeos,
II, 15,23. 206 "Non adtenti, ut cognoscerent quid eis indumento gratiae praestaretur", SAN-
TO AGOSTINHO, A Cidade de Deus, XIV, 17 (39).
203 SANTO AGOSTINO, De Genesi ad litteram, X I , 31 (41).
207 [/Wd., XIV, 17(39-40).]
358 As Confissões da Carne 359
Michel Foucault

lhação seguindo-se a um orgulho tão enganador que leva a que se nela invisível, e sem dúvida também para conservar o tema já evo-
procure torná-lo, a ele, sinal e efeito da revolta, fisicamente invisí- cado do pudor perante o desejo recíproco, Agostinho acrescenta na
vel. Numa palavra, o sexo "surge", levantando-se na sua insurrei- mesma passagem: "O homem e a mulher coraram, ou cada um por
ção e oferecendo-se ao olhar^°*. É para o homem o que o homem si, ou um pelo outro."^'" A mulher vela aquilo que provoca o movi-
é para Deus: um rebelde. Homem do homem, que se erige diante mento que o homem tem de esconder; e este deve esconder aquilo
dele e contra ele, como Adão, homem de Deus, sentiu que devia que provoca o movimento escondido na mulher. De todas as ma-
esconder-se após a sua desobediência. neiras, a visibilidade do órgão masculino está no centro do jogo.
Podemos então definir isso, esse "alguma coisa" que, com a E devemos, além disso, notar que o mesmo jogo manifesta a
queda, modificou o uso inocente do sexo que teria sido possível no entrada do homem no reino da morte. Morte que se reporta à gra-
paraíso. Não é um órgão novo — a distinção dos sexos preexistia , ça de Deus que lhe é retirada; morte também neste mundo, uma
e a falta não a tornou má^°'; não é um acto — tinha já o seu lugar vez que a mortalidade se torna doravante uma doença fatal; morte,
e a sua função, e essa função, conserva-a ainda. É a forma invo- enfim, como veremos, porque é através do papel indispensável da
luntária de um movimento que faz do sexo sujeito de uma insur- união sexual no nascimento que o pecado original se transmite de
reição e objecto do olhar. Visível e imprevisível erecção. geração em geração. No movimento involuntário do sexo e na vi-
Registemos, por certo, o facto de a libido assim concebida se sibilidade que lhe está ligada, o homem deve reconhecer a morte:
caracterizar essencialmente pelo sexo masculino, as suas formas e . "Neste movimento de revolta que se eleva na carne contra a alma
as suas propriedades. É originariamente fálica. Agostinho dá-se rebelde e que os obrigou a cobrir a sua nudez, sentiram essa pri-
bem conta da objecção possível e tenta encontrar o traço simétrico, meira morte em que a alma se vê abandonada por Deus."^" Ante-
na mulher, do movimento indecente que envergonhou o homem riormente, a maior parte dos exegetas via na morte física a expli-
assinalando-lhe a revolta presente em si mesmo, logo a sua degra- cação, senão do aparecimento dos sexos, pelo menos do seu uso.
dação: "Não foi um movimento visível que a mulher velou; aquilo Para Agostinho, o acto sexual não tem por que esperar o apaga-
que o homem experimentava, experimentou-o ela mesma, ainda mento das gerações para se exercer, mas o involuntário que dora-
que de maneira mais secreta; ambos velaram da vista do outro vante o habita significa uma morte espirhual da qual o fim suces-
aquilo que cada um deles experimentava." E talvez por sentir o que sivo das existências terrestres é também uma manifestação. O
tinha de artificial esta simetria levando a mulher a velar o que é corpo que escapa à vontade do homem é também um corpo que
morre: a retirada da graça subtrai-o ao seu domínio ao mesmo
208 Nesta passagem, AGOSTINHO não retoma a indicação do De Genesi ad lit- tempo que actualiza a morte^'^.
teram sobre o olhar indutor de concupiscência. Os olhos aqui não fazem mais do
que constatar. Nos dois livros Sobre a Graça de Jesus Cristo e o Pecado Original,
sublinha sobretudo que antes da queda não havia razão para se sentir vergonha: 210 ibid., IV, 62. Cf. igualmente V, 23.
"Aquilo que Deus fizera não devia inspirar confusão alguma ao homem, que não 211 SANTO AGOSTINHO, A C/í/ade de Deus, X I I I , 15. Cf. Sermão 179, 4: "Os
tinha por que corar do que Deus julgara a propósito criar nele: esta nudez primitiva nossos primeiros pais, depois de terem pecado,fizeramcintas para cobrir as partes
do homem não feria nem o olhar de Deus nem o do próprio homem", II, 34. vergonhosas do corpo, que nos dão a vida e ao mesmo tempo a morte"; Discurso
209 Cf. no Contra Julianum, III, 16, a afirmação de que a distinção entre os sexos sobre o Salmo 9,14: "As portas da morte" deverão talvez interpretar-se "como os
não seria má; ainda que hoje os homens se encontrassem a tal ponto dominados sentidos do corpo e os olhos que se abriram no homem depois de ter provado o
pela concupiscência que todos os seus actos sexuais se fizessem contra as leis e as fruto proibido".
regras, "a condição dos corpos, como Deus os criou", continuaria a ser a mesma. 212 SANTO AGOSTINHO, A Cidade de Deus, XIV, 15, 2.
360 361
Michel Foucault As Confissões da Carne

A este movimento que atravessa e transporta todos os actos irrupção brusca; nos homens da sua descendência, manifesta-se
sexuais, que os torna ao mesmo tempo visíveis e vergonhosos, e tanto por quebras importunas como por movimentos inconvenien-
que os liga à morte espiritual como à sua causa, à morte física tes. O involuntário do sexo decaído é a erecção, mas é igualmente
como ao seu acompanhamento — a este movimento ou, mais a impotência. Uma passagem de A Cidade de Deus di-lo clara-
exactamente, à sua forma e à sua força involuntárias —, Agostinho mente. Enquanto os outros órgãos, nas suas funções respectivas,
dá o nome de libido. É ela ^ue marca o que há de específico nos estão ao serviço do espírito e podem ser "movidos por um sinal da
actos sexuais do homem decaído; ou, utilizando os termos de um vontade", o mesmo não acontece com o sexo: "Até mesmo aqueles
outro vocabulário: a libido não é um aspecto intrínseco do acto que se entregam a essa volúpia não se sentem comovidos a seu
sexual que lhe estaria ligado analiticamente. É um elemento que a gosto, quer nas suas relações conjugais, quer nas vergonhas da
falta, a queda e o princípio de "reciprocidade de desobediência" impureza. Essa emoção por vezes produz-se importunamente sem
lhe associaram sinteticamente. Circunscrevendo este elemento, ter sido querida. Por vezes engana o ardor do desejo: a alma arde
fixando o seu ponto de emergência na meta-história, Agostinho de cobiça, o corpo permanece gelado. Assim, coisa estranha, não
estabelece a condição fundamental para a dissociação desse "blo- é somente à vontade de engendrar que a paixão se recusa a obede-
co convulsivo" em cujos termos se pensavam o acto sexual e o seu cer, mas à própria paixão de gozar."^" O que Agostinho traduz por
perigo intrínseco. Abre um campo de análise e ao mesmo tempo , meio de uma fórmula notável: a libido é suijuris^^*.
desenha a possibilidade de um "governo" das condutas de um Mas a forma do involuntário, Agostinho vê-a também na im-
modo completamente diferente do da alternativa entre a abstenção
possibilidade de dissociar o acto sexual destes movimentos que
ou a aceitação (mais ou menos concedida de bom grado) das rela-
não se controlam e da força que os arrebata. Por sábios que possa-
ções sexuais.
mos ser, por justo e razoável que seja o fim que nos propomos na
conjunção dos sexos, por maior conformidade que nisso mostre-
- II - mos com a lei de Deus e o exemplo dos Patriarcas, não podemos
fazer com que ela se produza sem esses abalos dos quais não so-
A queda provocou pois aquilo a que poderíamos chamar a libi- mos senhores e que marcam a presença inextirpável da libido no
dinização do acto sexual: quer admitamos que este, sem a falta, ser humano. Não há intenção recta, não há vontade legítima que
poderia desenrolar-se sem libido alguma; quer suponhamos que possa romper, neste mundo, o laço travado entre ela e o uso dos
teria feito entrar em jogo uma "libido" muito diferente da que co- órgãos sexuais Até mesmo no casamento, o acto conjugal "não
nhecemos agora, uma vez que obedeceria exactamente à vontade. depende da vontade, mas de uma necessidade sem a qual todavia,
A libido, em todo o caso, manifesta-se hoje sob a forma do in- na procriação dos filhos, é impossível alcançar-se o resuhado que
voluntário. Aparece nesse suplemento que se levanta para lá da essa mesma vontade busca"-". O que explica que o fim do casa-
vontade, mas que não é mais do que o correlativo de uma deficiên- mento possa ser bem conhecido de todos, que a sua celebração
cia, e o efeito de uma degradação.
Este estigma do involuntário no acto sexual posterior à falta 213 Ibid., XIV, 16; cf. no De nuptiis et concupiscentia, II, 35 (59), uma alusão ao
toma dois aspectos principais. Há em primeiro lugar todas as de- excesso de rapidez ou de lentidão através do qual os órgãos sexuais decepcionam

cepções através das quais o sexo pode frustrar as intenções do a vontade.


214/Wd., 1,6 (7).
sujeito. E m Adão, o sexo rebelde anunciara-se por meio de uma
215/Wd., 1,8 (9).
362 Michel Foucault As Confissões da Carne 363

possa bem ser solene, enquanto ainda assim o acto legítimo dos ad Simplicianum^^^, é antes de tudo no corpo — num corpo ferido
esposos, "embora aspirando a ser conhecido, não faria corar me- pela morte e dominado pelo princípio do mal — que põe o ponto
nos a ser visto"^'*. A distinção entre conjunção sexual e movimen- de origem dos movimentos da concupiscência: o seu carácter in-
to da libido, que a reflexão e a exegese permitem em teoria esta- voluntário está ligado ao facto de serem carnais, no sentido de
belecer, escapa em contrapartida à vontade e não pode ser marcarem o poder do corpo sobre a alma. Mas, a partir dos textos
realizada na prática. A esses órgãos destinados à procriação desde seguintes — e sobretudo do De Genesi ad litteram —, é na própria
a origem, mas abalados desde a queda por movimentos dos quais alma que procura colocar o princípio da concupiscência e o ponto
não podem livrar-se, os homens, observa Agostinho, dão o nome de partida involuntário que a atravessa. Uma passagem de A Cida-
de "natureza"^". de de Deus, que precede imediatamente a análise dos movimentos
"Natura", "sui júris". Deveremos então compreender que a li- sexuais, fixa o quadro geral da explicação^". Agostinho lembra o
bido releva de uma natureza estranha ao próprio sujeito, que se princípio de que não pode haver falta sem que esta tenha sido
lhe impõe como um elemento exterior, e que a queda desapossou precedida de uma vontade má. Ora, esta vontade, fonte de todo o
de certo modo o sujeito da sua própria carne, a ponto de esta agir pecado, origem da primeira faha e portanto da queda, consiste
sem ele? Pelo que não se lhe poderia imputar o que nela se passa? num movimento da alma que, afastando-se de Deus, se afeiçoa a
Deveremos considerar que a libido está fora do sujeito? Se é uma si mesma e nisso se compraz. É o movimento, livremente efectua-
natureza, como não pedir dela contas a Deus — e ser-se portanto do pelos dois primeiros humanos, que introduziu no mundo a
levado ou a vê-la como criação de um Deus mau, como os mani- concupiscência e os seus movimentos involuntários. A natureza
queístas fazem, ou a nada nela reconhecer, como fazem os discí- humana torna-se assim depravada. Mas que sentido dar a esta
pulos de Pelágio, que seja intrinsecamente mau? E m suma, se é "depravação"?^^" O que fora moldado por Deus e acabava de sair
sui júris, como pode essa natureza ser imputada ao sujeito? Para das suas mãos terá podido ser alterado pelo homem? Como pode-
responder a estas questões, Agostinho teve de definir por um lado rá pois uma falta voluntária de uma alma livre ter por consequên-
as relações da libido com a alma (o que assegura o princípio da cia movimentos involuntários num corpo cuja natureza foi fixada
imputabilidade) e a fixar por outro lado o estatuto da libido por por Deus? A explicação proposta por Agostinho apoia-se nas duas
referência ao pecado (o que permite estabelecer o que pode ser faces do acto criador. Houve criação de uma natureza; mas essa
imputado). criação fez-se a partir de nada. Quer dizer que é de Deus somente
que o homem tem ser em vez de ser nada: é da sua omnipotência
1) Sobre o primeiro ponto, o pensamento de Agostinho evoluiu. e- só dela que tem o seu ser, e, ao afastar-se da vontade de Deus,
Muito esquematicamente podemos dizer que, até às Quaestiones afasta-se disso que precisamente o faz ser. Não devemos ver, pois,
na natureza depravada, a alteração do que foi feito por Deus, mas
216 SANTO AGOSTINHO, A Cidade de Deus, XIV, 18. Agostinho explica da
a degradação do ser que dele temos, e que se marca cada vez mais,
maneira seguinte o facto de não se admitir que os filhos sejam testemunhas das
relações sexuais dos seus pais — relações semelhantes contudo àquelas das quais 218 Sobre este tema, cf. o artigo de A. SAGE, "Le péché originei,dans la pensée de
nasceram {ibid.). Cf. também o De grafia Christi et de peccato originali; a relação saint Augustin", Revue d'études augustiniennes, t. 15,1969.
conjugal não se dá sem um "movimento animal {bestialis motus) do qual cora a 219 SANTO AGOSTINHO, A Cidade de Deus, XIV, 13-15.
natureza humana", I I , 38 (43). 220 SANTO AGOSTINHO, De nuptiis et concupiscentia, I , 32 (37). Agostinho
217 SANTO AGOSTINHO, De nuptiis et concupiscentia, 1,6 (7). fala de mutatio naturae.
364 Michel Foucault As Confissões da Carne 365

à medida que o abandonamos para nos comprazermos em nós e miserável sob as ordens daquele a quem obedecera ao pecar,
mesmos. "O vício não podia depravar senão uma natureza tirada muito longe de adquirir a liberdade que desejara. Por sua própria
do nada. Ser uma natureza vem-lhe de ter sido feita por Deus; vontade, morreu no seu espírito; morrerá a despeito de si mesmo
decair do seu ser, de ter sido feita de nada. A sua degradação, é no seu corpo."-^^
verdade, não aniquilou o homem totalmente, mas, descendo para Não devemos por isso fazer passar a linha que separa o volun-
si mesmo, ele tinha menos ser do que quando aderia àquele que é tário e o involuntário algures entre a alma e o corpo, ou entre a
soberanamente. Abandonar Deus, com efeito, para se ser em si natureza e o sujeito. Foi no interior do sujeito que, desde a origem,
mesmo, quer dizer para se comprazer em si, ainda não é ser nada, passou. Melhor: não devemos imaginar duas regiões que uma
mas é aproximar-se de não ser mais do que isso."^^' fronteira separaria; trata-se de uma vontade cujo afastamento vo-
Ao afastar-se de Deus, e recusando-se a obedecer-lhe, o homem luntário daquilo que a mantém no ser a deixa existir no que tende
pensava tornar-se senhor de si mesmo: cria libertar o seu ser. Não a aniquilá-la — o involuntário. A comparação com a sexualidade
faz mais do que decair de um ser que não se sustenta senão da animal é esclarecedora. Agostinho reporta-se-lhe no Opus imper-
vontade de Deus. A revolta posterior do corpo é a consequência fectum. Juliano de Eclana fizera valer que os animais conhecem a
desta vontade que, querendo o seu ser próprio, se afasta do que a cobiça sexual, e que não se pode negar que Deus seja neles o autor
fez ser, o faz cair quando procura elevar-se, e o enfraquece quando desses movimentos: ou temos de reconhecer que uma tal concu-
crê tender para o domínio de si. O involuntário da concupiscência piscência é naturalmente boa, ou que Deus criou voluntariamente
não deve ser pensado como uma natureza que se opõe ao sujeito, o mal. Agostinho responde dizendo que o mal da concupiscência
ou o encerra, ou o arrasta para baixo. Não é o corpo livre de todo não existe entre os animais, não porque seria voluntária, mas por-
o controle e escapando à alma, é antes de mais o menos ser, a que o involuntário que a caracteriza não é neles uma revolta, não
falta de ser do sujeito a cuja vontade sucede querer o contrário do marca a cisão entre os desejos da carne e os do espírito. "A con-
que queria. Vontade virada contra si mesma, vontade dissociada, cupiscência da carne é um castigo enquanto exerce o seu império
por uma falha de ser que ela mesma quis ao querer ser por si mes- sobre o homem, não enquanto exerce o seu império sobre os ani-
ma. No movimento da libido que dobra e acompanha o acto sexual mais, porque nos últimos a carne não cobiça nunca contra o espí-
sem poder dissociar-se dele, não devemos ver o surgimento de rito."^" Os actos sexuais entre os animais bem podem ter a mesma
uma natureza exterior ao sujeito, e que, desembaraçada da sua forma, mas não relevam da mesma concupiscência. Ou, antes, o
influência, faria agir as suas próprias leis sem que ele pudesse que é próprio da concupiscência humana consiste no facto de a sua
fosse o que fosse para o impedir; mas antes a cisão que, dividindo semelhança com a dos animais ser o efeito de uma revoha e de
o todo do sujeito, o fez querer o que ele não quer. "Uma justa con- uma divisão de si contra si mesmo que são inteiramente estra-
denação seguiu-se pois à falta; e tal que o homem destinado, se nhais] à natureza animal. O sujeito não foi encerrado pela queda
tivesse obedecido, a gozar de uma carne espiritual viu o seu pró- , numa "natureza" animal que teria as suas próprias leis. O involun-
prio espírito tornar-se carnal. Por orgulho, comprazera-se em si tário da concupiscência, que toma a forma dos movimentos ani-
mesmo. Mas, em vez de se tornar mais completamente seu senhor, mais, é inscrito, por obra da queda, na estrutura actual do sujeito.
ao entrar em desacordo consigo mesmo, sofreu uma servidão dura
222/Wd., XIV, 15,1.
221 SAmO AGOSTINHO, A Cidade de Deus,XW, 13,1. 223 SANTO AGOSTINHO, Opus imperfectum, IV, 38.
366 Michel Foucault As Confissões da Carne 367

Tocamos aqui num ponto importante na história da subjecti- pecado"^^". Mas, se caracteriza a estrutura da vontade, parece
vação do sexo e da formação do homem de desejo. Agostinho muito difícil imputá-la como se imputaria um pecado a quem o
não é evidentemente o primeiro, nem entre os autores cristãos tivesse cometido.
nem de um modo geral entre os autores da Antiguidade, a ter A vontade poderá ser culpada de ser o que é? Mas se o não é,
marcado com o selo do involuntário o desejo sexual. Tal era até, como acusar, a título de pecado, o que dela vem e não é senão o
como já vimos, um lugar-comum. Mas esse involuntário era efeito da sua natureza? A propósito do pecado original e do bap-
definido ora como uma instância ou uma parte da alma, cujos tismo, os tratados antipelagianistas desenvolvem muito ampla-
movimentos se tratava de limitar ou de dominar os movimentos mente este debate. Está fora de questão retomarmos aqui essa
conservando o privilégio hierárquico dos outros, ora como uma longa argumentação, trata-se apenas de mostrar nesta acção do
"paixão" — um pathos — que, vindo do corpo, ameaçava com- pecado original e dos pecados o papel que Agostinho faz desem-
prometer a soberania da alma sobre si mesma. Ora, a análise de penhar a concupiscência e o modo como abre lugar ao princípio
Agostinho não faz da concupiscência nem uma potência especí- jurídico da imputabilidade.
fica na alma, nem uma passividade que limite o seu poder, mas A concupiscência é dha "pecado", mas "segundo uma certa
a própria forma da vontade, quer dizer, daquilo que faz da alma maneira de falar"^^'. Ora, de que maneira de falar se trata ao
um sujeito. Não é para ele o involuntário contra a vontade, mas certo?
o involuntário da própria vontade: aquilo sem o que a vontade Antes do baptismo, a lei do pecado pode ser dita, em cada alma,
não pode querer, excepto precisamente o socorro da graça, que pecado actual, merecendo a esse título o castigo que espera os que
só ela pode libertá-la dessa "enfermidade" que é a própria forma não puderam ser baptizados. Desta actualidade, Agostinho dá vá-
do seu querer. rios esquemas de explicação. Um pode ser dito originário e sin-
Compreendemos a partir daqui porque é que o facto para a crónico: em Adão "existem todos os homens no estado de semen-
concupiscência de ser sui júris não é exclusivo da sua imputabili- te"; obras de Deus, tais sementes não comportam mal algum, mas
dade ao sujeito: é na medida em que é "de nossa vontade" que é, participaram no acto da falta e, por conseguinte, não permanece-
por isso mesmo, sui júris; e inversamente a nossa vontade não ram estranhas à condenação. Nascem pois portadoras desse peca-
pode escapar à concupiscência a não ser renunciando a ser sui do, em cujos acto e castigo tomaram parte^^*. Um outro esquema
júris, e reconhecendo que não pode querer o bem excepto pela é o da ressurgência permanente. Agostinho ilustra-o através do
força da graça. A "autonomia" da concupiscência é a lei do sujeito exemplo, que cita muitas vezes, da oliveira. Uma oliveira pode ser
quando este quer a sua própria vontade. E a impotência do sujeito com efeito domesticada pelos cuidados do jardineiro, mas nem por
é a lei da concupiscência. Tal é a forma geral da imputabilidade isso dará menos origem a oliveiras bravas cujos frutos são tão
— ou antes, a sua condição geral. amargos como se nada se tivesse passado^^'. O mesmo sucede com
a humanidade: o baptismo bem pode ter regenerado os indivíduos,
2) Mas esta possibilidade de imputação deve ser precisada. Com
224 SANTO AGOSTINHO, De nuptiis et concupiscentia, 1,23 (25).
efeito, as análises anteriores mostram que a concupiscência não é
225 Ibid.
uma potência autónoma na alma, nem uma força que viria do ex- 226 SANTO AGOSTINHO, Opus imperfectum, V, 12.
terior afectar a sua fraqueza. É da alma, nesse sentido muito pre- 227 Cf. SANTO AGOSTINHO, De nuptiis et concupiscentia, I , 32 (37) e I I , 34
ciso de ser constitutiva da forma actual da sua vontade: é "lei do (58): Contra Julianum, V I , 15.
368 Michel Foucault As Confissões da Carne 369

os que nascem deles continuam sob a lei do pecado: continuam Mas podemos ver também nas teses de Agostinho formar-se um
marcados pela actualidade da primeira faha. outro tema talvez mais importante ainda, porque não ficaria ligado
Mas encontramos também em Agostinho um outro esquema que somente à teologia cristã. Inscreveu-se, por razões que terão de ser
é o das reactualizações sucessivas e do seu encadeamento. Para posteriormente examinadas, como uma das constantes do pensa-
dizer a verdade, não se trata de um esquema exclusivo dos outros, mento ocidental a propósito do sexo. Trata-se do tema de um laço
mas antes de um seu desenrolar-se no tempo. Não pode haver nas- fundamental e indissociável entre a forma do acto sexual e a estru-
cimento, com efeito, sem conjunção sexual dos pais; e esta, ainda tura do sujeito. Segundo o esquema agostiniano, se todo o indivíduo
que tenha lugar no casamento e visando os fins que a este foram que chega ao mundo é sujeito de concupiscência, é porque nasceu
fixados, não pode efectuar-se sem os movimentos involuntários de uma relação sexual cuja forma comporta, com absoluta necessi-
dos quais vimos que constituíam o primeiro estigma da queda. E dade, a parte vergonhosa do involuntário na qual se lê o castigo da
esta concupiscência, marca ainda hoje da primeira falta, transmite primeira falta. Inversamente, se não é possível um uso do casamen-
a toda a alma que vem a este mundo a forma que a caracteriza, a to, ainda que em vista dos melhores fins, sem que entrem em jogo
lei do pecado que antes do baptismo existe nela como pecado em na relação sexual esses movimentos que não podemos dominar, é
acto. Esta argumentação que Agostinho retoma com muita fre- porque todo o homem nasce desde a queda como sujeito de uma
quência é importante na história da teologia moral e da ética cristã. vontade concupiscente. E m suma, a verdade daquilo que o homem
Dois temas essenciais dela se destacam, com efeito. Um diz é como sujeito manifesta-se na própria forma a que está submetido
respeito ao lugar da concupiscência sexual. Para Agostinho, esta todo o acto sexual. Esta forma, por conseguinte, embora portadora
não foi a causa efectiva da falta original, não foi mais do que sua da marca de uma falha, de um defeito, de um acontecimento origi-
consequência. Mas é, através da cadeia temporal de todos os actos nário, não deve ser referida a uma natureza estranha, mas antes à
sexuais que fazem nascer as gerações sucessivas, o suporte da estrutura do próprio sujeito. Enquanto, na concepção platónica, o
actualidade em cada homem do pecado original. Estamos lembra- desejo é portador da marca de uma divisão que põe cada um de nós
dos de que era uma questão debatida (continuará de resto a sê-lo em busca de um parceiro (seja do mesmo sexo ou do outro), e o
posteriormente) a de sabermos se não deveríamos entender em defeito é pois a marca do outro, aqui o "defeito" é a degradação e o
termos sexuais o consumo pelos primeiros humanos do fruto proi- menos ser que são devidos à falta e que se marcam no próprio sujei-
bido. Agostinho acaba por colocar o acto sexual no centro da to através da forma fisicamente involuntária do seu desejo.
economia do pecado original e das suas consequências, mas a tí- A libido, no sentido em que Agostinho emprega com frequência
tulo de veículo permanente da sua actualidade através das gera- o termo sem mais precisões, quer dizer a forma sexual do desejo,
ções humanas. Está, relativamente a essa faha inicial e determi- é portanto o laço trans-histórico que liga a faha originária da qual
nante, numa posição de consequência que não se apaga e de causa é consequência à actualidade desse pecado em todo o homem. E
sempre renovada. E será somente no fim dos tempos, quando o é, além disso, em cada um de nós, a maneira como se encontram
homem tiver sido libertado do corpo de morte que deve à sua pró- ligadas uma à outra a forma involuntária do acto sexual e a estru-
pria falta, que desaparecerá do mundo esta concupiscência sexual tura "enferma" do sujeito.
através da qual se actualiza em cada um a primeira faha. Termos
nascido do sexo dos nossos pais liga-nos, através do tempo, à faha 3) Actualidade em todo o homem do pecado original, a concu-
dos primeiros de entre eles. piscência é pois "de certa maneira" um pecado. É-lhe imputável e
370 Michel Foucault As Confissões da Carne 371

é condenável nele. É ela que justifica a danação dos que morrem xado de ser ela mesma um pecado, continua a ser aquilo que liga
sem baptismo. o pecado original (do qual é estruturalmente efeito) aos pecados
Qual é então o efeito do baptismo? Por certo que não apagar a actuais (cujo princípio é geneticamente).
concupiscência, da qual vemos bem que subsiste não só entre os Sob que forma subsiste? Como a projecção, a sombra produzida
cristãos em geral, mas também entre os mais santos, como subsis- pela queda da qual é de certo modo a consequência analógica.
tia do mesmo modo entre os próprios Patriarcas, quando, obede- Pelo facto de a queda ser degradação do ser, a concupiscência é ela
cendo à injunção de Deus, tinham de gerar descendentes^^*. O que mesma fraqueza e enfermidade. No vocabulário médico que é
o baptismo apaga, eis que uma passagem capital do De nuptiis et correntemente utilizado na literatura cristã para designar o peca-
concupiscentia o explica claramente: é o "reatus" dessa concupis- do, Agostinho, quando quer fazer valer a diferença das noções,
cência — o facto de ela poder ser imputada ao indivíduo seu por- utiliza de preferência os termos de ferida ou doença para falar do
tador e de constituir para ele uma culpabilidade actual: "A concu- próprio acto do pecado, e os termos de disposição {affectio ou
piscência da carne é remida no baptismo, não de maneira a deixar valitudo) ou de fraqueza (languor) para falar da concupiscência.
de existir, mas de maneira a deixar de ser imputada como peca- Uma passagem das úhimas páginas do De nuptiis et concupiscen-
do."^^' É portanto uma operação de tipo jurídico que o baptismo tia mostra bem este jogo de vocabulário: "As feridas (vulnera)
opera sobre a concupiscência do sujeito na medida em que esta é infligidas ao corpo fazem manquejar os membros ou tornam difí-
nele a presença actual do pecado original. Apaga o que nesta pre- ceis os seus movimentos [...]. A ferida a que chamamos pecado
sença constitui a culpabilidade actual, mas mantém a vigência [aqui Agostinho refere-se ao pecado original] fere a própria vida,
daquilo que forma a estrutura permanente do sujeito. Depois do da qual o homem vivia segundo a justiça [...]. Assim, através des-
baptismo, a concupiscência já não pode ser considerada por si te grave pecado do primeiro homem, a nossa natureza presente
mesma um pecado em acto no sujeito. Mas permanece como "lei nele conheceu a degradação {in deterius commutata): não só se
do pecado", quer dizer, como o que incansavelmente impele o su- tornou pecadora, como engendrou ainda pecadores. E contudo
jeito a cometer o pecado se lhe não resistir. "Nos regenerados já esta enfermidade ela mesma, que destruiu a força de bem viver,
não é ela mesma um pecado."^'" No entanto, podemos continuar a ; não é seguramente uma natureza, mas um vício (non est utique
chamar-lhe "pecado" por duas razões"': porque vem do pecado e i natura, sed vitiuní); como por certo um mau estado de saúde, para
porque, vitoriosa, comete o pecado. Até mesmo depois de ter dei- • o corpo (mala in corpore valetudo), não é de maneira alguma uma
substância ou natureza, mas um vício; e as mais das vezes, embo-
228 A propósito de Abraão, AGOSTINHO diz que Deus lhe devolveu a fecundida- ra nem sempre, as disposições doentias dos pais são de certo modo
de que perdera, para gerar Isaac, mas não a concupiscência, que continua a ser no transmitidas pela geração e manifestam-se no corpo dos filhos.""-
corpo o que era. Enquanto Juliano de Eclana cria poder extrair da tese agostiniana
Mas o elemento correlativo e indissociável desta enfermidade
a proposição de que Deus deveria ter devolvido a Abraão uma concupiscência de-
clarada todavia má, ou que Isaac nascera fora de toda a concupiscência. Contra Ju- que caracteriza a concupiscência é a força dos movimentos da
lianum, III, 23. Cf. igualmente SANTO AGOSTINHO, Opus imperfectum,^, 10. mesma concupiscência. Aquilo por que é fraca, como a vontade do
229 SANTO AGOSTINHO, De nuptiis et concupiscentia, 1,25 (28); cf. igualmen-
te Opus imperfectum, V, 10.
230 [SANTO AGOSTINHO, De nuptiis et concupiscentia, I , 23 (25).] Cf. o reto- 232 Ibid., I I , 34 (57). Esta passagem desenvolve as indicações do livro I , 25 (28).
mar desta tese no Contra Julianum, V I , 60. Juliano de Eclana criticara estes dois textos e AGOSTINHO responde-lhe no Con-
231 SANTO AGOSTINHO, De nuptiis et concupiscentia, 1,23 (25). tra Julianum, V I , 53-56, e no Opus imperfectum, V I , 7.
372 Michel Foucault As Confissões da Carne 373

sujeito sobre si mesmo, e também aquilo por que é forte, como - III -
presença no sujeito da vontade má. A imputabilidade, o reatus que
faz da concupiscência uma culpabilidade em acto, foi efectiva- Os efeitos e consequências da teoria agostiniana da concupis-
mente apagada pelo baptismo, mas não a presença activa dessa cência foram evidentemente consideráveis. Gostaria somente de
concupiscência. Até mesmo naquele que foi regenerado, ela conti- sublinhar um seu aspecto que se reporta ao governo das almas e à
nua a agir de alguma maneira {agit aliquid). E qual é a forma conduta sexual dos esposos em particular. Trata-se da sua "juridi-
desta actividade, senão "os desejos maus e vergonhosos"?^" Sobre ficação" ou antes da introdução de elementos que permitiam pen-
a presença da concupiscência no coração dos homens, as proposi- sar em formas de tipo jurídico práticas, regras, prescrições e reco-
ções fundamentais de Agostinho são demasiado conhecidas para mendações, que tinham sobretudo [sido] reflectidas segundo as
que seja necessário retomá-las aqui. formas da ascese espiritual e das técnicas de purificação da alma.
Lembremos somente que vê, nessa presença, o princípio de um Centrando a sua análise da concupiscência não já sobre o proble-
combate espiritual que só poderá alcançar termo definitivo no dia ma do puro e do impuro, da alma e do corpo, da matéria e do es-
em que nos tivermos libertado do "corpo de morte" que é hoje o pírito, da paixão e do domínio de si, mas sobre o do voluntário e
nosso. Mas lembremos também que este corpo de morte não é um do involuntário ou mais exactamente da própria estrutura da von-
elemento material do qual nos tivéssemos tornado prisioneiros de- tade, era bem num sistema de referências jurídicas que se inscre-
pois da queda. Caracteriza a nossa própria maneira de querer, e via. Empreendia a tarefa seguinte, à qual o cristianismo ocidental
nenhum pecado pôde ser cometido por nós sem nós; a nossa vonta- durante tantos séculos se dedicará e à qual (ou à impossibilidade
de, em todos os casos, esteve nisso implicada. Que o pecador não da qual) ficará a dever no século xvi a grande fractura da Reforma,
procure refugiar-se por trás da desculpa de não ter sido ele a agir, a saber: pensar o pecador como sujeito de direito; ou, como diría-
mas a concupiscência nele, pois semelhante discurso provaria so- mos num outro vocabulário: pensar simuhaneamente e [segundo]
mente que não se conhece a si mesmo: "Quando é do conjunto: co- uma só forma o sujeito de desejo e o sujeito de direito. As duas
ração que decide e corpo que efectua, que ele mesmo é constituído, noções sem dúvida mais importantes para esta juridificação foram
imagina ainda que não é de si mesmo que se trata.""" Recordemos a de consentimento (consensus) e a de uso (usus).
por fim que, uma vez que a concupiscência pertence à própria estru-
tura da nossa vontade decaída, que esta por si mesma não pode l.ODe nuptiis et concupiscentia^^^ distinguira cuidadosamente
querer senão segundo a forma da concupiscência, que uma e outra a imputabilidade — o reatus — da concupiscência e do pecado. A
não se enfrentam nunca como dois elementos estranhos inimigos primeira estabelecia-se através do carácter actual da concupiscên-
um do outro e que são forçados a sobrepor-se, mas estão ligadas cia como pecado original em todo aquele que viesse ao mundo; e
numa natureza que é a da queda, a concupiscência jamais poderia era ela a ser suprimida pelo baptismo, não sem que a própria con-
ser vencida no combate espiritual sem a intervenção da graça divina. cupiscência subsistisse. No caso do pecado, as coisas são diferen-
tes: o acto, uma vez cometido, desaparece, mas o seu reatus per-
manece. Distinção em que Juliano de Eclana não via senão uma
dialéctica que punha em jogo "a recíproca de todos os contrários":
233 "Agit autem quid nisi ipsa desideria mala et turpia", SANTO AGOSTINHO,
De nuptiis et concupiscentia, 1,27 (30).
234/Wd., 1,28 (31). 235/Wd., 1,26 (29).
374 Michel Foucauh As Confissões da Carne 375

não via com efeito a possibilidade de ser suprimido o reatus da diz uma outra passagem do Contra Julianum: "O espírito faz o
causa — a concupiscência — sem que fôssemos levados a apagar bem quando se recusa a consentir na concupiscência má, mas este
também o do pecado ou que pudéssemos incriminar o pecado sem bem ainda não é perfeito, uma vez que os maus desejos ainda não
fazer da concupiscência da qual ele procede um mal substancia] desapareceram; quanto à carne, forma o mau desejo, mas, enquan-
no ser humano. A resposta que lhe dá Agostinho no V I livro do to não obtém o consentimento do espírito, não atinge a perfeição
Contra Julianum^^^ permite situar precisamente o ponto onde se do mal e não chega sequer a ser parte das obras condenáveis."^"
forma, relativamente à concupiscência, a imputabilidade do peca- Numa primeira aproximação, esta noção de consentimento po-
do. Até mesmo depois do baptismo, a concupiscência continua de parecer não muito diferente da que podemos encontrar na espi-
presente — em acto, uma vez que o baptismo não apagou senão o ritualidade da qual, na mesma época, Cassiano era testemunha no
aspecto jurídico que a tornava condenável. Mas que quer dizer Ocidente. Afinal de contas, o labor ascético que prescrevia tinha
"em acto"? Por certo que não que seja sempre activa, sempre ma- entre os seus temas principais o do consentimento: acolher ou não,
nifesta, e sem cessar insistente sob a forma de desejos prementes, aceitar ou recusar os desejos que se apresentavam ao espírito se-
uma vez que lhe acontece estar "adormecida", sem objecto algum gundo neles se reconhecesse uma inspiração divina ou a do mal.
que venha solichar a cobiça. Assim, um homem tímido é actual- No entanto, este consentimento não tem por completo a mesma
mente tímido, ainda que nada tema por nada haver a temer. A con- forma nem os mesmos mecanismos. Trata-se, em Cassiano, do
cupiscência pode estar pois presente tão só como "qualidade". Mas acesso ao interior da alma de elementos — ideias, imagens, suges-
pode tornar-se, a partir daí, em acto como actividade: sob a forma tões de acção — sobre cujo valor e cuja origem é necessário que
de um desejo que pôde ser suscitado por um objecto. Não é ainda nos interroguemos. O problema é o de abrir ou fechar as portas da
pecado, quer dizer elemento imputável, porque, embora tendo mu- alma, de rejeitar o que nela pôde introduzir-se e pode corrompê-la,
dado de forma — de disposição geral, tornou-se um desejo activo de a proteger, pois, para que ela possa enfim dirigir para as coisas
—, continua a ser esse estigma do pecado original cujo reatus foi eternas o olhar claro da contemplação. O consentimento, nele,
suprimido. Mas, inversamente, até mesmo enquanto disposição obedece sobretudo ao modelo do limiar: comporta um exterior e
que se torna activa, nunca domina inteiramente a alma, nunca um interior; assegura uma triagem, abre-se ou fecha-se; acolhe,
impõe um acto qualquer que seja. Para que este possa ter lugar, é expulsa. E de novo encontramos aqui a forma tradicional da sepa-
necessário que intervenha um acto específico da vontade. Por for- ração entre o puro e o impuro.
te que seja o movimento da concupiscência, e na própria medida E m Agostinho, o consentimento tem uma outra forma e um
em que esta é a forma da vontade — por degradada que esteja do outro modo de acção. Há para isso uma razão fundamental: en-
ser que tinha de Deus —, não pode tornar-se um acto sem o acto quanto numa espiritualidade como a de Cassiano desejo e vontade
próprio da vontade. Não pode haver pecado sem esse suplemento são duas instâncias diferentes, a concupiscência para Agostinho
— por ínfimo e invisível que possamos imaginá-lo — que faz com pertence à própria forma da vontade. O consentimento não é, se-
que queiramos o que a concupiscência quer. Tal é o consentimen- gundo ele, a aceitação, pela vontade, de um elemento estranho; é
to; é este que torna possível a imputação de um acto que tem ori- uma maneira para a vontade de querer, enquanto acto livre, o que
gem numa concupiscência que, ela mesma, não é imputável. Como quer enquanto concupiscência. No consentimento — e dir-se-ia a

236 SANTO AGOSTINHO, Contra Julianum, V I , 60. 237 Ibid., III, 62.
376 377
Michel Foucault As Confissões da Carne

mesma coisa do seu contrário, a recusa —, a vontade toma-se a si cado grave, das relações sexuais fora do casamento, sob a forma
mesma por objecto. Quando consente, não quer simplesmente o quer do adultério se ao menos um dos parceiros for casado, quer
que é desejado, não quer simplesmente o que é querido no desejo. da fornicação se nenhum dos dois o for; recomendação de não
Quer essa vontade que tem a forma da concupiscência, dá-se a si praticar as relações conjugais em certas circunstâncias — no mo-
mesma enquanto fim, enquanto vontade degradada. Quer-se a si mento da oração ou em certos períodos do ano^'*; condenação
mesma concupiscência. De modo recíproco, o não-consentimento extremamente severa, como crimes abomináveis, de todo o acto
não consiste em vencer o desejo rejeitando da alma a representa- sexual que se fizesse contra o uso natural — produzindo-se este
ção do objecto desejado, mas não o querendo como o quer a con- quando o homem não se serve do "órgão feminino destinado à
cupiscência. Esquematicamente: o consentimento, em Cassiano, e procriação""'; reprovação de todos os "excessos" a que poderiam
noutros que lhe são próximos, incide essencialmente sobre o ob- entregar-se os esposos quando, respeitando esse uso natural, vão
jecto — objecto do desejo que expulsamos como objecto da repre- além do que é estritamente requerido por ele: pecados ligeiros.
sentação, para que não se torne objecto da vontade. O consenti- Este perfil geral das interdições não é diferente do que se conhecia
mento e a recusa em Agostinho desenrolam-se no interior da já e que os moralistas não cristãos apresentavam havia muito tem-
própria vontade, no movimento através do qual ela se quer, ou se po pelo menos a título de recomendações prementes.
não quer, tal como é. O sujeito toma-se aí como objecto da sua Mas Agostinho retoma todo este conjunto, sistematiza-o e
própria vontade, propondo-se querer como não querer a forma funda-o em torno da noção de uso. Usus. Trata-se de facto de uma
concupiscente da sua vontade degradada. O consentimento como noção complexa que Agostinho encontra já utilizada, mas à qual
elemento indispensável à constituição de um acto imputável como dá uma significação muito mais precisa. Por uso do casamento,
pecado não é pois simplesmente a transformação de um desejo em entendiam-se as relações sexuais entre esposos, ao mesmo tempo
acto real; não é sequer simplesmente a aceitação desse desejo no porque era o casamento que tornava legítimo um acto que fora
pensamento, sob a forma de representação recebida. É um acto da dele era condenável, e porque tal acto consistia no exercício de um
vontade sobre si mesma — e sobre a sua forma mais do que sobre direito assim adquirido por um esposo sobre o corpo do outro. O
o seu objecto. Quando o sujeito consente, não abre as portas a um uso do casamento tinha portanto um sentido ao mesmo tempo
objecto desejado, constitui-se e sela-se a si mesmo como sujeito institucional e corporal, jurídico-físico: os esposos servem-se de
desejante: a partir de então os movimentos da sua concupiscência um direito servindo-se de um corpo.
passam a ser-lhe imputáveis. O consentimento — e tal é a razão Agostinho introduz nesta noção já formada uma dimensão no-
do papel central que desempenha em Agostinho e que desempe- va. No acto sexual entre esposos, não se utiliza simplesmente se-
nhará mais tarde — permite determinar o sujeito de concupiscên- gundo ele o direito do casamento e o corpo do outro, os esposos
cia como sujeito de direito. servem-se da sua própria concupiscência. O problema com efeito
era o seguinte: a partir do momento em que o acto sexual e a pro-
2. Esta estrutura do sujeito de direito-sujeito de concupiscência criação após a queda não podem fazer-se sem movimentos de
tem efeitos importantes sobre a codificação das relações conju- concupiscência involuntários e por conseguinte vergonhosos, po-
gais. Poderá fazer-se valer, e ter-se-á razão, que Agostinho modi-
ficou muito poucas coisas no conteúdo das prescrições que eram 238 [Nota vazia.]
admitidas antes dele ou na sua época: interdição, sob pena de pe- 239 SANTO AGOSTINHO, Opus imperfectum, V, 17.
378 Michel Foucault As Confissões da Carne 379

deremos evitar deduzir que toda a relação conjugal é em si mesma mos fazer um uso bom ou mau: e é aqui que se situa a possibilida-
má? Como poderemos dizer que o casamento é um bem se o acto de do pecado. A importância desta concepção aparece quando a
que legitima é em si mesmo um mal? Ou não podemos sustentar a comparamos com as proposições de Juliano. Aparentemente, são
tese de que o casamento é positivamente um bem (e não simples- exactamente simétricas e inversas, dizendo Juliano: "Aquele que
mente um mal menor quando comparado com a fornicação); ou [...] conserva o modo legítimo usa bem do que é bom; aquele que
não podemos manter a proposição de que o mal da concupiscência o não conserva usa mal desse bem; finalmente quem, por amor da
acompanha necessariamente toda e qualquer relação sexual. Ora, santa virgindade, despreza todos os modos, ainda que legítimos,
a noção de usus permite precisamente conservar estas duas teses, esse recusa o que é bem para alcançar o que é melhor." E Agosti-
mas na condição de operarmos duas dissociações: na relação con- nho: "Aquele que observa o modo da concupiscência usa bem do
jugal, entre o movimento da libido e o acto da vontade; e neste mal; aquele que não o observa usa mal do mal; aquele que [...]
acto de vontade, entre o consentimento que poderíamos dizer despreza o próprio modo legítimo recusa-se ao uso do mal para se
"objectivo" dado a esse movimento em si mesmo (e que não pode- aplicar ao que é mais perfeito."^"" Sob a correspondência termo a
mos não acehar, uma vez que é inseparável da relação sexual) e o termo das duas formulações, devemos reconhecer uma dissimetria
consentimento ou o não-consentimento subjectivo dado a essa profunda: para Juliano, a partir do momento em que o prazer toma-
concupiscência como forma de vontade: pode-se, com efeito, nesta do nas relações sexuais é um bem disposto pelo próprio Deus na
relação sexual, querer satisfazer a concupiscência, quer dizer, que- Criação, não pode ser senão bom recorrer a ele, contanto que sob
rer essa forma degradada de querer, ao querer gerar filhos, evitar as formas ordenadas pela providência e desenhadas pela natureza;
ao outro cônjuge cair na fornicação. Na relação conjugal, se o o pecado começa no desvio ou no extravasamento. O uso do qual
desenrolar-se do acto sexual não é modificável na sua estrutura de fala no seu texto é pois a modalidade do acto físico, a sua forma (e,
concupiscência, o consentimento, pelo seu lado, é modificável; sob este aspecto. Juliano mantém-se de facto no quadro de uma
permanece livre. O usus é pois uma certa modalidade de jogo , moral do excesso). Para Agostinho, a partir do momento em que o
entre consentimento e não-consentimento. Pode fixar fins que se- , mal da concupiscência é "encontrado na natureza humana", o pon-
jam tais que o sujeito não se quererá a si mesmo como sujeito to decisivo deve ser situado nos fins perseguidos, quer dizer, na
concupiscente no momento em que comete um acto cujas condi- própria forma da vontade; é ela que determina o valor do acto físi-
ções de realização implicam a concupiscência. co^"': e com Agostinho entramos numa moral sexual centrada num
Esta concepção traz consigo várias consequências. sujeito jurídico. E m Juliano, é o pecado (o acto excessivo) que de-
Abre a possibilidade de pensar a relação sexual como inevitavel- termina o mal e o faz aparecer. E m Agostinho, o mal é prévio e
mente associada a um mal, quer dizer, a uma concupiscência que é está inevitavelmente inscrito na relação sexual; mas o pecado que
o efeito directo da primeira faha e o primeiro castigo visível que dele deriva distingue-se dele o suficiente para não ser nunca seu
ela recebeu, mas de pensar ao mesmo tempo nas relações sexuais, resuhado necessário e constituir um acto imputável.
quando se levam a cabo, um acto específico de vontade que, segun-
do queira ou não a forma da concupiscência, será ou não mau, será
ou não pecado. Tal é o sentido da formulação célebre que será re- 240 SANTO AGOSTINHO, Contra Julianum, III, 42.
241 Notar que Juliano fala daquele que conserva "o modo legítimo" (trata-se da
petida durante mais de um milénio: nas relações conjugais,
forma do acto sexual); e Agostinho daquele que observa "o modo da concupiscên-
servimo-nos de todos os modos de um mal; mas desse mal pode- cia" (trata-se da forma da vontade).
380 As Confissões da Carne 381
Michel Foucault

Assim, a ideia de um uso da concupiscência, que Agostinho dricular o desenrolar-se dos actos sexuais entre esposos e definir
insere na análise do acto sexual entre o uso justificado do casa- o que é permitido, proibido, sob que condições, em que ocasiões.
mento e o uso natural do corpo, permite pensar o indivíduo — Agostinho, é certo, não desenvolve muito estas possibilidades.
quer dizer, cada um dos dois cônjuges — como formando um su- Sê-lo-ão, e muito mais tarde, não de resto como simples desenvol-
jeito único de desejo e de direito: é bem "o mesmo", enquanto vimento lógico, mas quando todo um conjunto de outros processos
sujeito (e não por sobreposição de duas naturezas, ou por um exílio tiverem, na sociedade e na Igreja medievais, reforçado a importân-
da alma num mundo estrangeiro), que age na necessidade do dese- cia das relações de tipo jurídico. Não deixa de ser verdade que
jo e na liberdade do bem e do mal. Mas devemos ver bem que, encontramos na análise agostiniana da concupiscência a matriz
apesar desta unidade do sujeito, o desejo continua a ser um mal e teórica que permitirá tais desenvolvimentos. As relações conjugais
o seu uso continua a ser independente. Pode acontecer que se faça que, sob as recomendações de conjunto do comedimento, do pudor
um uso absolutamente não concupiscente da concupiscência, mas ou do respeito e através da finalidade geral da procriação, conti-
esta nem por isso será suprimida. Acontece com muita frequência nuavam a ser assunto privado e secreto darão lugar a regras inu-
que se use da concupiscência em vista somente dela mesma de tal meráveis e a uma casuística desenvolvida acerca da maneira de aí
maneira que ela parece tudo vencer, mas este uso nem por isso se exercerem os direitos de cada um e de aí se cumprirem os seus
será menos um acto específico e imputável. Ora, através precisa- deveres. O cristianismo medieval — sobretudo a partir do século
mente desta irredutibilidade, vemos abrirem-se possibilidades xni — será sem dúvida a primeira forma de civilização a desen-
muito amplas de juridificação das relações entre os esposos. Se o ' volver a propósito das relações sexuais entre esposos regras tão
acto sexual fosse em si mesmo e naturalmente um bem, a codifi- prolixas. Às regras do casamento, às da troca ou da transmissão de
cação destas relações poderia [fazer-se] simplesmente em função bens na aliança, às regras de comportamento mútuo entre os côn-
da forma que se considera "natural": sendo o restante excesso, juges, que encontramos na maior parte das sociedades sob formas
abuso, transgressão dos limites, passagem para o lado do contra- variadas e com mecanismos de imposição muito diversos, acres-
natura. Permaneceríamos assim numa moral da natureza. Se a centa a seguinte singularidade: uma codificação muito precisa dos
relação sexual se definisse somente pelo mal ou pela contamina- momentos, das iniciativas, dos convhes, das aceitações, das recu-
ção que traz consigo, a codificação far-se-ia em função de um sas, das posições, dos gestos, das carícias, eventualmente, como
ideal de continência completa e o valor dos comportamentos veremos, das palavras, que podem ter lugar nas relações sexuais.
hierarquizar-se-ia por referência a ela: estaríamos numa ética da O grande dimorfismo que marcara a vida antiga — separando
pureza. Finalmente, se supuséssemos que o mal do desejo poderia essas relações sexuais das quais se fala, que se contam e que são
ser reabsorvido pouco a pouco pelo exercício da vontade que o forçosamente exteriores ao casamento, e as da matrimonialidade
controla e limita, estaríamos ainda no registo das prescrições de que escapam ao olhar e ao discurso —, esse grande dimorfismo
sabedoria. Mas a dissociação, no acto sexual, entre o mal da libido desaparece. Fala-se, pelo menos na prática da confissão, tanto, se
e a possibilidade de nos servirmos dela bem ou mal permite codi- não mais, das segundas como das primeiras. O sexo no casamento
ficar os comportamentos sexuais em função desses usos, dos fins passa então a ser objecto de jurisdição e de veridicção.
que se dão, das circunstâncias que os modificam, etc. São os dois Mas por enquanto tudo isto, em Agostinho e na sua época, não
fins reconhecidos como legítimos — a procriação, o evitar o pe- são mais do que possibilidades. No imediato, o que talvez tenha
cado ao outro — que vão servir assim de fio condutor para qua- sido ainda mais importante foi que, com a ideia da concupiscência
382 Michel Foucault As Confissões da Carne 383

como mal, era possível juntar, num mesmo tema de combate espi- é possível: é possível tanto sob a forma da teoria e da especulação
ritual, o exercício da virgindade e a prática do casamento. Nos dois como sob a forma prática do exame individual, quer pelo outro,
estados é do mesmo mal que se trata, é a mesma renúncia à forma quer por si mesmo. E , sob estas últimas formas, não é simplesmen-
concupiscente da vontade que se exige: sendo a diferença que, no te [recomendada], mas obrigatória. Operou-se assim uma recom-
casamento, o não-consentimento passa por uma certa forma de posição em torno daquilo a que poderíamos chamar, por oposição
uso da qual a virgindade habilmente se afastará. Os dois estados à economia do prazer paroxístico, a analítica do sujeito da concu-
definem-se como práticas não demasiado diferentes frente à con- piscência. Aqui ficam ligados, por meio de laços que a nossa cul-
cupiscência da qual há agora uma teoria susceptível de justificar tura alongou mais do que desatou, o sexo, a verdade e o direito.
ambos, com a sua diferença de valor mas também o seu laço in-
trínseco. E sobretudo podemos ver que, numa concepção assim, as
noções de consensus e de usus não servem para definir directa-
mente as relações entre esposos. Não fundamentam a sua codifi-
cação senão através do consentimento (ou do não-consentimento)
que cada um concede à sua própria libido, ou através do uso (bom
ou mau) que cada um faz da sua própria libido. Quer dizer que
toda a regulação das condutas sexuais pode doravante fazer-se a
partir da relação que cada um deve manter consigo mesmo. A
problematização das condutas sexuais — quer se trate de saber o
que são na verdade ou de definir o que deveriam ser — torna-se o
problema do sujeito. Sujeito de desejo, cuja verdade não pode ser
descoberta senão por ele mesmo no fundo de si mesmo. Sujeito de
direito, cujas acções imputáveis se definem e repartem como boas
ou más segundo as relações que ele tem consigo mesmo.
Numa palavra, podemos dizer que o acto sexual no mundo an-
tigo é pensado como "bloco paroxístico", unidade convulsiva em
que o indivíduo se afundava no prazer da relação com o outro, a
ponto de mimar a morte. Deste bloco não se punha a questão de
fazer a análise, era necessário somente ressituá-lo numa economia
geral dos prazeres e das forças. Este mesmo bloco foi dissociado,
no cristianismo, por regras de vida, por artes de condução de si
mesmo e de condução dos outros, por técnicas de exame ou pro-
cedimentos de confissão, por uma doutrina geral do desejo, da
queda, da falta, etc. A unidade, no entanto, recompôs-se, já não em
torno do prazer e da relação, mas do desejo e do sujeito. Recompôs-
-se em termos tais que a difracção permanece e que a sua análise
ANEXOS
Anexo 1

O que se trata de demonstrar:

1. Existe um núcleo prescritivo relativamente constante no cris-


tianismo. Este núcleo é antigo. E formou-se antes do cristianismo.
Encontra-se claramente atestado entre os autores pagãos da época
helenística e romana.

2. É este núcleo que encontramos sem modificação maior nos


Apologetas do século ii. Clemente de Alexandria integra-o na sua
teologia de inspiração platónica, bem como num conjunto de pre-
ceitos morais de inspiração estóica.

3. É a nova definição das relações entre subjectividade e verda-


de que vai dar a este núcleo prescritivo antigo uma significação
inédita, e trazer à concepção antiga dos prazeres e da sua econo-
mia modificações importantes.

4. Estas modificações incidem menos sobre a separação entre


permitido e defendido do que sobre a análise do domínio dos
aphrodisia e sobre o modo de relação que o sujeito é chamado a
ter com eles. Não foram por isso tanto a lei e o seu conteúdo que
mudaram, mas a experiência, como condição de conhecimento.
As Confissões da Carne 389

perante a qual se humilha para mostrar como é indigno de nela


permanecer; ruptura com o seu próprio corpo que é abandonado à
fome, à miséria, à ausência de cuidados; choque entre a vida e
morte, uma vez que quem se coloca como Lázaro no limiar do
túmulo se opõe à morte do corpo que assim aceita a vida eterna
da alma, que é o seu prémio. Neste jogo das descontinuidades,
rupturas e entrechoques, a verdade vem à luz sob a forma de uma
manifestação. Não são as faltas cometidas que aparecem nos seus
Anexo 2 detalhes, com as suas condições e a parte de responsabilidade do
seu autor; é o próprio corpo do pecador, o corpo pecador, tal como
a primeira falta o marcou: votado à morte, contaminado de impu-
rezas, trabalhado por necessidades que não pode satisfazer. E esta
manifestação não é simplesmente revelação de uma figura oculta:
Podemos pois pensar que o cristianismo dos cinco primeiros é posição à prova para o sujeito, ou antes do próprio sujeito. Prova
séculos definiu duas modalidades regulares e distintas segundo as em dois sentidos: uma vez que, praticando o rigor de tal exercício
quais o indivíduo teria de se manifestar "em verdade" para se l i - tão duramente e durante tanto tempo quanto possível (ou pelo
vrar do mal: por um lado, um grande rito penitencial, único, glo- menos até ao termo fixado), o pecador "ganhará" a sua reconcilia-
bal, reportando-se ao conjunto da sua existência, e metamorfo- ção; e como um metal submetido à prova do fogo, as impurezas
seando por vezes em termos definitivos toda a sua vida; por outro, que se misturavam à sua alma desprender-se-ão dela e serão calci-
uma prática contínua de exame e de vigilância que tenta recaptu- nadas no ardor posto pelo penitente contra si mesmo. A exomolo-
rar e dizer os movimentos profundos da alma. Por um lado, uma gese do penitente é uma dupla manifestação (da renúncia ao que
aleturgia na qual o "fazer-a-verdade" dos gestos, das atitudes, das se é e do ser de contaminação e de morte a que se renuncia) como
lágrimas, das macerações e das formas de vida parece prevalecer prova purificadora de si sobre si.
largamente sobre as formulações do discurso; por outro, uma ale- No longo trabalho da sua vida como uma "arte" que se aprende
turgia na qual o "dizer-a-verdade" parece impor uma verbalização e que se exerce, o monge submete-se também ele à prova da renún-
o mais exaustiva possível dos segredos da alma. À "exomologese" cia a si. Mas num outro sentido e por outros meios. Na medida em
como manifestação do ser pecador pode opor-se a "exagoreusis" que se desprendeu já do mundo, não é sob a forma da descontinui-
como enunciação dos movimentos de pensamento. Oposição que dade e da ruptura que tem de fazer aparecer a verdade do mal; mas
parece justificar-se tanto do ponto de vista da tecnologia própria antes sob a forma de uma tripla continuidade: vigilância ininter-
de cada uma destas práticas, como do ponto de vista do seu con- rupta sobre si mesmo, os seus pensamentos, o seu curso espontâ-
texto institucional. neo, o seu movimento insidioso; manutenção de uma relação de
A técnica da exomologese do penitente assenta no ordenamento, direcção que o obriga ao mesmo tempo a falar e a escutar, a con-
na intensificação brutal e na exposição à luz de um conjunto de fessar e a submeter-se; humildade perante todos e obediência rigo-
descontinuidades: ruptura com a vida anterior, cujas formas e rosa à regra da comunidade. A manifestação própria à exagoreusis
marcas se abandonam; afastamento do penitente da comunidade. passa pela linguagem; consiste num discurso obrigatório, tão fre-
390 Anexos As Confissões da Carne 391

quente e tão completo quanto possível endereçado àquele que está comunitária convoca como ascese os exercícios de obediência e
encarregado de dirigir a conduta do que confessa: tem por objecto em que a prática da direcção deve determinar as vias comedidas e
principal o que se esconde no fundo da alma, e que aí se esconde justas da ascese.
ao mesmo tempo porque se trata dos primeiros entre os primeiros Veremos adiante que limites dar a esta oposição e que correcti-
movimentos da alma, ainda tão ténues que corremos o risco de se vos convém introduzir nela. Ainda que relativizada, ainda que re-
escaparem ao olhar se não lhes prestarmos uma atenção penetran- ferida a um conjunto que integra os seus elementos, será contudo
te, e porque se trata dos incitamentos do Sedutor que se dissimula necessário que a tenhamos presente. O dimorfismo, nas socieda-
sob formas enganadoras. A exagoreusis tem pois por tarefa dizer des cristãs, entre a vida do século e a da regra foi um fenómeno
a verdade, mas como resultado de actos de conhecimento que no demasiado constante e demasiado importante para não ter tido,
fundo de si mesmo iluminam o inapercebido e apreendem a pre- neste ponto como noutros, consequências decisivas. E de facto
sença do Outro. A renúncia a si toma aqui, por isso, uma forma muitas das grandes modificações que vão sofrer os procedimentos
muito particular: trata-se de fazer incidir sobre si mesmo uma de penitência entre os séculos vi e xvii têm a sua origem nas prá-
atenção contínua, o mais detalhada e aprofundada possível. Mas ticas que vigoravam sobretudo em meio monástico: foi dos con-
não para se saber o que se é no fundo, não para apreender a forma ventos que chegou a partir do século vii a penitência tarifada e
autêntica, primitiva e pura de uma subjectividade, mas para se le- privada; foi nos conventos que se praticaram esses exames de
rem nos arcanos mais profundos da alma os embustes do Maligno, consciência regulares e sistemáticos que a devotio moderna difun-
para se renunciar por conseguinte a participar pelo querer em to- diu nos meios laicos; foram ainda as ordens religiosas os princi-
dos esses movimentos que são outras tantas tentações, para se pais agentes da extensão da direcção das consciências — que seria
abandonar toda a vontade pessoal em benefício das vontades de um fenómeno tão notável nos séculos xvi e xvii. Na importância
Deus e das lições do director. crescente assumida pelas técnicas de exame (de si mesmo e dos
Digamos, esquematizando enormemente, que a exomologese outros) e pelos procedimentos de verbalização das faltas, e na di-
própria do estatuto penitencial se refere a um "já não ser" que, nos minuição correlativa da parte do "fazer-a-verdade" por compara-
confins da vida e da morte, promete o outro mundo através da ção com o "dizer-a-verdade", as instituições monásticas desempe-
renúncia ao real; e que o exame-confissão da vida monástica visa nharam um papel decisivo. Foram, durante mais de um milénio, o
um "já não querer" que, do fundo da alma, expulsa o outro através núcleo, senão permanente, pelo menos com frequência muito in-
da formulação da verdade. tenso, da arte das artes, do regimen animarum; elaboraram-no,
Além disso, cada uma destas duas práticas parece ter o seu lu- difundiram-no, por vezes dilataram-no; aconteceu que ele lhes
gar institucional próprio. A dramaturgia penitencial encontra o fosse tomado de empréstimo e que se tentasse utilizá-lo em con-
seu lugar numa comunidade de fiéis em que se trata de estender corrência com elas e para limitar a sua influência. Contribuíram
àquele que caiu uma segunda tábua de salvação, mas de tal manei- muito para o aumento considerável da propensão para o discurso
ra que à falha possa responder uma esperança de perdão, ao mes- e para a vontade de saber que caracteriza a experiência de si mes-
mo tempo que o brilho manifesto da satisfação fará eco ao escân- mo e dos outros nas nossas sociedades. E , quando se ouvir dizer
dalo da falta. O exame-confissão, quanto a ele, teria antes o seu no século xvn — e em termos um tanto duvidosos do ponto de
lugar numa vida monástica em que o objectivo da contemplação vista do dogma — que confessar é uma maneira de dirigir as
torna necessário o controle do pensamento, em que a existência consciências, poderemos dizer que a exagoreusis prevaleceu sobre
392 As Confissões da Carne 393
Anexos

a exomologese — ou que passou pelo menos a recobri-la em gran- inútil porque, retornando dos seus pecados, chora, e porque con-
de medida.' cluiu um pacto eterno com Deus."^
Em todo o caso, a história das relações entre o "fazer-o-mal" e No entanto, se quem se torna monge não tem de se fazer, em
0 "dizer-a-verdade" no Ocidente cristão não poderia ser escrita acréscimo, penitente, utilizam-se elementos dos ritos penitenciais
sem se referir à existência destas duas formas, às suas diferenças, no interior da vida monástica. Os textos de Cassiano, e sobretudo
à sua tensão e ao lento movimento que acabou por privilegiar uma as Instituições que se referem às práticas do cenóbio, são sobre
a expensas da outra, quando, no curso do século x v i e mais ainda este ponto muito claras: são descritas neles formas que são pró-
ao longo de todo o século xvii, a questão do governo dos indiví- prias da penitência, e a expressão "publice paenitere" repete-se
duos se tornou, tanto do ponto de vista político como do ponto de várias vezes, sem que, bem entendido, se trate de assumir o esta-
vista religioso, um problema maior. tuto de penitente. Assim, Pafnúcio, que aceita, por espírito de hu-
mildade, ser acusado injustamente de uma falta grave, é submetido
- II - a um tratamento inteiramente semelhante ao que podia ser evoca-
do por Tertuliano, Ambrósio ou Jerónimo a propósito das penitên-
Seria erróneo todavia imaginarmos que temos aqui duas práti- cias públicas: "Afasta-se no mesmo instante da igreja [...]; sem
cas sem interferências e relevando de dois conjuntos institucionais tréguas, expande-se em lágrimas e orações, triplica os seus jejuns,
radicalmente separados. As coisas são mais complicadas: primei- e rebaixa-se ainda mais profundamente perante os homens [...].
ro porque o exame das instituições mostra como as práticas se Durante cerca de duas semanas, põe-se assim aos pés de todos, na
sobrepõem e se misturam; em seguida porque, atendendo às pró- maior contrição de espírito e de corpo; até então, no sábado e no
prias práticas, podemos reconhecer não só elementos, mas tam- domingo acorria à igreja de manhã muito cedo, não para receber
bém um fundo que lhes é comum. a santa comunhão, mas para se prosternar à porta e implorar em
súplicas o seu perdão."^ Mas, aquém destas grandes manifesta-
1. É certo que o estatuto monástico era exclusivo do estatuto de ções destinadas a satisfazer os pecados graves, encontramos o
penitente, e isso tanto mais que o monge aparecia de maneira cada testemunho de outras práticas, intermédias entre a confissão e a
vez mais nítida como aquele que levava a vida penitencial por tentação e as exomologeses solenes e duradouras. Cassiano enu-
excelência. "Quando se trata do monge que renunciou ao mundo e mera de resto uma série de faltas que requerem um acto peniten-
ao seu serviço, e que prometeu servir sempre Deus, porque se lhe cial preciso e determinado de antemão: partir casualmente um
imporia a penitência? [...] Para o monge, a penitência pública é recipiente de barro, enganar-se ainda que levemente ao cantar um
salmo, responder duramente, inutilmente, recalcitrantemente, obe-
decer com negligência, preferir a leitura ao trabalho, demorar-se
1 O jogo de oposição e de complementaridade entre exomologese e exagoreusis
aparece claramente nesses movimentos de penitentes que tiveram tanta importân-
cia sobretudo no sul da Europa a partir do século xiv (cf. 1. MAGLI, Gli uomi- 2 [FAUSTE DE RIEZ, Discours aux moines sur la pénitence (R L., t. 58, col.
ni delia penitenzia, Bolonha, 1967). As manifestações penitenciais ostensórias 875-876), citado in C. VOGEL, Le pêctieur et la pénitence dans TEglise ancienne.
combinavam-se neles com uma prática intensiva da confissão oral e da direcção. Paris, 1966, p. 131.]
Assim também entre os penitentes franceses nosfinaisdo século xvi, e em dife-
3 J. CASSIANO, XVIII, 15. Notar a expressão "locum paenitentiae suppliciter
rentes movimentos da Contra-Reforma em que se desenvolviam simultaneamente
postulavit" para significar que Pafnúcio pediu a penitência. Trata-se da forma tra-
técnicas de direcção e manifestações ascéticas.
dicional para se solicitar o estatuto, o lugar de penitente.
394 Anexos As Confissões da Carne 395

depois da sinaxe em vez de regressar à cela, falar com alguma Deus^ Mas dela dá também uma definição muito geral, que se
pessoa secular fora da presença do ancião, etc.'* Para designar a refere aos resultados não só de tais práticas, mas de todos os exer-
sanção prevista, Cassiano emprega a expressão "penitência públi- cícios espirituais da vida monástica. A penitência é então caracte-
ca", ainda que não se trate, segundo parece, senão de um certo rizada como um estado, o estado que o monge deve procurar al-
número de elementos tomados de empréstimo à grande dramatur- cançar: "consiste em doravante não se cometerem mais pecados"^.
gia da penitência canónica: afastamento, gesto de súplica, atitude Este estado tem as suas marcas — a saber, que o coração se en-
de humildade^ ("Na reunião geral dos irmãos para a sinaxe, im- contra livre daquilo que o inclina aos seus pecados —, e essa
plorará o seu perdão prosternado por terra durante todo o tempo marca (indicium) tem ela mesma sinais que permitem reconhecê-
do ofício, não o obtendo antes de, por decisão do abade, lhe ser -la: a própria imagem das faltas se apagou dos arcanos do coração
ordenado que se levante"*). e, por "imagem", não devemos entender somente o deleite que
Temos aqui o esboço de toda uma disciplina monástica na qual experimentamos ao pensar nela, mas também o simples facto de a
se reúnem as manifestações ostensórias dos ritos penitenciais e o recordarmos'". A penitência é então essa pureza do coração que o
controle dos gestos e dos pensamentos numa relação contínua e exame, a humildade, a paciência, a obediência, a discrição, a con-
incondicionada de obediência. A importância desta sobreposição fiança nos anciãos, a aplicação posta também em nada lhes dissi-
é dupla. mular podem, com a graça de Deus, produzir na alma. E , uma vez
Manifesta em primeiro lugar o sentido "penitencial" que, de que a contemplação, que é o fim da vida monástica, não é possível
modo cada vez mais insistente, será dado à instituição monástica. a não ser por uma tal pureza do coração, vemos que a penitência,
Organizar uma arte disciplinada da contemplação pela via da hu- entendida não só como procedimento de remissão mas como esta-
mildade, da submissão ao outro e da purificação do coração — tal do purificado constantemente mantido, acaba por coincidir em
é o objectivo que parece ter sido originalmente dado ao cenóbio''. suma com a própria vida monástica.
E Cassiano não diz que o fim {finis) nem que a meta {destinatio) Esta deve ser incessantemente movida à confissão das faltas, às
da existência monástica seja conduzir a uma vida de penitência. manifestações penitenciais, à descoberta dos segredos do coração
Vemos todavia destacar-se, através dos seus textos, o princípio de e à abertura da alma. Discurso perpétuo: "Por todo o tempo, pois,
uma coincidência. Com efeito, dá por um lado à noção de penitên- que a penitência dure [...], é necessário que as lágrimas de uma
cia um sentido estreito, quando fala dela como do conjunto dos confissão humilde, caindo sobre a nossa alma como uma chuva
procedimentos no termo dos quais as faltas podem ser remidas por benfazeja, nela venham extinguir o fogo vingador, aceso na nossa
consciência."" Mas é isso mesmo que deve permitir purificar o

4 J. CASSIANO, Instituições, IV, 16.


5 Na versão latina que SÃO JERÓNIMO dá das regras de Pacómio, encontra- 8 É a estes actos penitenciais que CASSIANO se refere quando escreve: "Dum
mos também as expressões "aget paenitentiam publice in collecta, stabitque in ergo agimus paenitentiam, et adhuc vitiosorum actuum recordatione mordemur"
vescendi loco", Praecepta et Instituía, VI, in Dom A. BOON, Pachomiana Latina, (Conferências, XX, 7) ["Por todo o tempo, pois, que dura a penitência e que senti-
Lovaina, 1932. mos o remorso dos nossos actos viciosos", tradução Dom E ! Pichery].
6 J. CASSIANO, Instituições, IV, 16. 9 Ibid., XX, 5 ("consiste em doravante não se cometerem mais os pecados dos
7 No entanto, o monaquismo sírio parece ter insistido tio aspecto penitencial quais nos arrependemos ou dos quais a nossa consciência experimenta o remorso").
da vida monástica (cf. A, VOÔBUS, [History of Ascttism in the Syrian Orient, 10 Ibid.
Lovaina, 1958]). nibid.,XX,l.
396 As Confissões da Carne 397
Anexos

pensamento, até nos seus recessos mais profundos, de tudo o que o caso para o abade; o qual por seu turno deve exercer o seu direi-
pode suscitar a tentação, constituir os seus primeiros germes ou to soberano de julgar. Comporta também um princípio de propor-
deixar subsistir os seus últimos rastos. Esquecimento, portanto, e cionalidade: "É pela gravidade da falta que deve medir-se a exten-
silêncio do coração. Nesta potente pulsação da confissão e do es- são da excomunhão ou do castigo; esta gravidade é remetida para
quecimento, a vida monástica revela aquilo que é: a vida penitente o juízo do abade." Comporta uma distinção precisa que separa as
por excelência; penitência (exercício) para a penitência (estado) faltas públicas daquelas "cuja matéria é escondida": as últimas
— entendendo-se que tal estado não é nunca outra coisa senão a devem ser reveladas somente ao abade e a alguns anciãos capazes
firmeza num combate que reclama a permanência do exercício. de "cuidarem das suas próprias feridas e das dos outros". Compor-
Ora, esta tendência para conceber a existência monástica como ta por fim um princípio de correcção progressiva (as punições não
a própria prática da vida de penitência acompanhou uma evolução são as mesmas conforme o culpado tenha mais ou menos de quin-
institucional cuja importância histórica foi considerável. A disci- ze anos; a reincidência modifica a pena; o abade verbera o delin-
plina cenobítica, as relações de hierarquia e de obediência, as re- quente e deve velar muito particularmente sobre ele)'''.
gras de vida comum e de comportamento individual deram cada Numa palavra: a instituição monástica, na medida em que se
vez mais lugar a práticas que poderíamos dizer intermédias (entre apresentava como lugar de vida penitencial permanente, mobili-
os grandes ritos penitenciais e o discernimento perpétuo dos pen- zou todo um conjunto de procedimentos susceptíveis de garantir a
samentos); trata-se de práticas, de resto jurídicas e regulamentares, remissão do mal — expulsando-o, corrigindo-o ou curando-o.
que tendem a definir um código em que sanções determinadas são i Num extremo encontramos as formas rituais e ostensórias da exo-
associadas a infracções precisas. Para dizer a verdade, este desen- ! mologese; num outro as técnicas de exame e de confissão no dis-
volvimento aparece quando muito esboçado em Cassiano, para o curso de exagoreusis; e entre os dois os métodos destinados a
qual se trata sobretudo de mostrar como até mesmo às mais pe- punir em função de um código que define a gravidade das faltas e
quenas falhas correspondem actos de satisfação ao mesmo tempo dos castigos proporcionais. Entre a manifestação da verdade atra-
duros, públicos e humilhantes. Vemos assim um hebdomadário vés dos "factos e gestos" do estatuto penitencial (espécie de veri-
que faz penitência pública por ter deixado escapar três lentilhas'^; -ficaçãó) e a sua enunciação numa relação permanente de direc-
São Jerónimo refere do mesmo modo que, nos três mosteiros de ção (yeri-dicção), a regra monástica faz aparecer o que se tornará
mulheres dirigidos por Paula, os excessos verbais eram sanciona- mais tarde, no cristianismo ocidental, a forma mais importante da
dos pela exclusão da mesa comum e a estação de pé à porta do relação entre o mal e a verdade, entre o "fazer-o-mal" e o "dizer-
refeitório'^. Mas a comparação entre as Instituições cenobíticas e -a-verdade" — a saber, a jurisdição.
a Regra do Mestre ou a de São Bento mostra a importância cres-
cente destas codificações punitivas que estabelecem entre falta e 2. Inversamente, seria do mesmo modo inexacto não vermos do
penitência uma relação bastante diferente das anteriores. Esta re- lado dos leigos senão as formas solenes da penitência pública. Tam-
lação comporta primeiro uma avaliação da falta: pelos prebostes bém entre eles, como entre os monges, havia toda uma gradação de
de que início deviam começar por repreender, antes de remeterem práticas diversas que iam das formas canónicas que marcavam a
pertença à ordem dos penitentes às modalidades finas da direcção.
12 J. CASSIANO, Instituições, IV, 20.
13 SÃO JERÓNIMO, carta 107,19. 14 Regra de SÃO BENTO, XXIV, XLIV, XLVI; cf. Regra do Mestre, XIV.
398 As Confissões da Carne 399
Anexos

Devemos começar por notar a diferença, indicada desde a ori- conteúdo. Daí o conselho de São Leão, de prudência humana: se
gem, entre as faltas graves que põem em questão a purificação do está bem, diz ele, que quando alguém cometeu uma falta não se
baptismo e as pequenas falhas quotidianas que mostram como esta- recuse a corar diante dos homens, há contudo pecados que mais
mos ainda afastados da perfeição conclusa. As três grandes "que- vale não tornar públicos porque isso poderia servir os inimigos
das" que tinham suscitado, no século ii, as longas discussões sobre daqueles que publicamente os confessam'^. Pomério irá ainda mais
a penitência eram a idolatria, o homicídio e o adultério. Posterior- longe na Vita contemplativa, [uma vez que] recomenda aos que
mente, o sistema dos pecados e a distinção entre aqueles têm neces- coram de confessar as suas faltas que se imponham a sua própria
sidade da penitência canónica e aqueles para os quais ela não era penitência e se afastem por si mesmos da comunhão'^ Seja como
necessária complicaram-se muito. Desenharam-se dois eixos de for, será um sistema binário (falta pública — penitência pública;
distinção: o do público e do escondido, por um lado; o do grave e falta privada — penitência privada) que os teólogos da época ca-
do leve, por outro. Por um lado, vemos afirmar-se a ideia de que a rolíngia farão valer, apoiando-se na autoridade de Santo Agostinho.
publicidade da penitência, além das suas funções de humilhação e A outra distinção estabelece-se entre pecados graves e faltas
de manifestação do pecador, deve ter por papel corresponder à pu- leves. Os primeiros, de início definidos pela tríade idolatria-
blicidade da falta: o exemplo deve compensar o escândalo. Mas, -homicídio-adultério, foram alargados e sistematizados de manei-
inversamente, se a falta tiver sido secreta, e se ninguém tiver tido ra mais ou menos aproximativa como infracções ao Decálogo".
ocasião de se escandalizar com ela ou de nela deparar com um mau E Cesário, o bispo de Aries, apresenta, através de diferentes ser-
exemplo, o brilho de uma exomologese espectacular acarreta o ris- mões, uma lista que se pode resumir assim: sacrilégio, apostasia e
co de efeitos nocivos. Daí a ideia de que à falta escondida deve superstição; homicídio; adultério, concubinagem, fornicação; es-
corresponder antes uma penitência "privada". "Devemos", diz Santo pectáculos sangrentos ou lascivos; roubo; falso testemunho, perjú-
Agostinho, "acusar diante de todos os pecados cometidos diante de rio e calúnia^". Destes grandes pecados, distinguem-se as faltas
todos; e mais secretamente os que foram cometidos de maneira
mais secreta"'^. E é no mesmo espírito que São Leão, um pouco n Ibid.
mais tarde, criticará a prática (talvez local) de ler publicamente a 18 POMÉRIO, Devito contemplativa, II, 7 (R L., t. 59, col. 451-452).
lista das faltas cometidas pelos pecadores'* e recomendará que o 19 Ao expor as três formas de penitência — a que precede o baptismo, a que
detalhar dos pecados somente se faça numa confissão secreta. Os <' deve caracterizar a vida inteira, e a que deve corresponder a faltas graves, SANTO
AGOSTINHO, no sermão 351 (7), diz [da última] que ela deve ter lugar "pro
argumentos apresentados nos séculos v-vi a favor de formas de pe- illis peccatis [...] quae legis decalogus continent" [tradução: "para os pecados
nitência que não sejam públicas são de resto interessantes na medi- contidos no Decálogo"]. No sermão 352 (8), falando ainda desta terceira forma
da em que mostram claramente uma desafecção relativa ao tais ritos de penitência, diz que se refere aos ferimentos graves: "Talvez seja um adultério,
solenes, uma repugnância perante a sujeição a humilhações seme- um homicídio, um sacrilégio; em todo o caso, é uma matéria grave e uma ferida
perigosa, mortal, pondo era perigo a salvação."
lhantes e uma tendência a reportar para o último momento da vida
20 Cf. C. VOGEL, La discipline penitentielle en Gaule, Paris, 1952, p. 91. Esta
a aceitação de um estatuto penitencial que perde assim todo o seu lista dos pecados mortais não deve evidentemente ser confundida com os pecados
capitais que relevam de um outro tipo de análise, uma vez que se trata de definir
a raiz, "o espírito" que pode conduzir ao pecado. Esta definição de oito "espíritos
15 "Corripienda sunt secretius quae peccantur secredus", SANTO AGOSTI- maus" foi inicialmente de tradição monástica. Encontramo-la em Evágrio e Cas-
NHO, Sermão 72 (P. L., t. 38, col. 11). siano. Cf. A. GUILLAUMONT, "Introdução" ao Tratado Prático [áe EVÁGRIO
16 SÃO LEÃO, carta 168. PÔNTICO].
400 Anexos As Confissões da Carne 401

leves ou quotidianas, as que nos arriscamos a cometer sem quase "concede" a penitência, impõe as mãos, decide da reconciliação
nos darmos conta, ou às quais pelo menos não atribuímos por que o bispo se deve preocupar com o mal cometido, procurar
vezes importância. Era a propósito das faltas leves que São Cipria- conhecê-lo, e velar pela sua expulsão; mas antes como alguém que
no recomendava que se procurassem os sacerdotes, que se lhas tem de velar a cada instante pela existência de todos e pela sua
confessassem "com toda a brandura e cumplicidade" e expondo- vida quotidiana. De onde o segundo princípio: aquele que está à
-Ihes o fardo da consciência a fim de que eles lhe dessem remé- cabeça da comunidade — chame-se-lhe bispo ou sacerdote — de-
dio^'. Ora, para estas faltas de importância menor não é requerido ve ser como um pastor para o seu rebanho, tomando conta de
o recurso ao estatuto penitencial; podem aplicar-se meios diversos. [todos] e de [cada um] individualmente, e esforçando-se por
Toma-se por referência então a célebre lista dos meios de remissão conhecê-los até ao fundo da alma. Como diz São Gregório, no
que Cassiano lembrava na vigésima conferência: caridade, esmola, início do século vi, o mais importante não são os pecados que são
lágrimas, confissão, aflição do coração, emendas de vida, inter- visíveis e conhecidos por todos, são as faltas escondidas; há muros
cessão dos santos, conversão dos outros, perdão das ofensas. Mas, que é necessário atravessar e portas secretas que é necessário
sobretudo, considera-se que é tarefa do sacerdote escolher a satis- ãhnf\ se é requerido ao pastor que examine cuidadosamente a
fação a cumprir em função quer da falta, quer do pecador, como conduta exterior dos fiéis, é a fim de descobrir assim o que o co-
um terapeuta: "Uma vez que os homens pecam de maneiras tão ração deles pode encerrar de abominável e de criminoso^^.
diferentes, como não compreender que não podem ser curados da A relação de direcção e a prática do exame-confissão não estão
mesma maneira, uns pelo ensino, os outros pela exortação, outros pois exclusivamente reservadas à instituição cenobítica, ainda que
pela tolerância, outros pela repreensão?"^^ tenha sido neste que receberam no século iii a sua elaboração mais
Vemos assim desenhar-se no interior da comunidade dos leigos complexa; e no contexto das perseguições, São Cipriano insistira
o papel do sacerdote como guia de vida e director das almas. A sobretudo, por um lado, nas tarefas gerais de ensino e no auxílio,
ars artium que seguramente se desenvolveu de uma maneira ao na vigilância, nos encorajamentos relativamente aos relapsos^*.
mesmo tempo mais intensa, mais reflectida, mais cuidadosamente Santo Ambrósio põe igualmente, e de maneira muito clara, o dever
teorizada no meio monástico não se manteve estranha às funções de ensino na primeira linha do ofício episcopal:
"episcopi pro-
do bispo (ou do sacerdote) no que se refere aos crentes que tinha a prium múnus docere populum"^\s é significativo que, no
seu cargo. E isso em função de dois princípios. Um é que a vida início do século vi, Gregório, o Grande, abra a sua Regula pasto-
cristã na totalidade deve ser uma vida de penitência; a metanoia, ralis por meio de uma referência explícita a Gregório de Nazianzo,
essa transformação que acompanha o baptismo, não é o acto de
ura momento: deve percorrer a vida inteira, submetendo-a à "hu- 24 GREGÓRIO, O GRANDE, refere-se aqui a um texto de Ezequiel que será
bastante citado a propósito da direcção da consciência e dos métodos de exame:
mildade perpétua da súplica"^^ Não é pois tão-só como aquele que
"fiz um buraco na muralha e surgiu-me uma porta" (8,8).
25 GREGÓRIO, O GRANDE, Regra Pastoral, livro I, capítulo 9.
21 SÃO CIPRIANO, De lapsis, XXVIII (R L., t. 4, col. 488). Notar contudo que 26 Assim SÃO CIPRIANO, cartas VIII, XXX, XLIIl. Ou ainda, a propósito da
até mesmo no caso das faltas leves São Cipriano parece indicar que se deve tomar reintegração dos relapsos: "Examinar a conduta, as obras e os méritos de cada um;
por um tempo o estatuto de penitente, segundo oritualcanónico (cartas XVI, 2, e fazer entrar em linha de conta a natureza e a qualidade das faltas... Resolver por
XVII, 2). meio de um exame atento a outorga dos pedidos que nos são endereçados" (carta
22 POMÉRIO, De vita contemplativa, II, 1. XV).
23 SANTO AGOSTINHO, 5e/-mão, 351. 27 SANTO AMBRÓSIO, De officiis ministrorum, 1,1.
402 403
Anexos As Confissões da Carne

parecendo assim indicar que o papel do bispo ou do sacerdote, fiéis como vida de penitência, e de exigir incessantemente, como
como o do abade ou do ancião no mosteiro, é dirigir almas: "A preço do mal, a extensão dos procedimentos de verdade — exo-
arte de conduzir as almas é a arte das artes, a ciência das ciências. mologese ou exagoreusis.
Quem não sabe que é incomparavelmente mais difícil curar as
feridas das almas do que as dos corpos"^*; ninguém pode dizer-se - III -
médico se não conhecer os remédios; "e no entanto alguns não
receiam tomar a qualidade de médico das almas sem conhecerem É muito anterior ao cristianismo a ideia de um poder que se
as regras desta ciência divina-^." exerceria sobre os homens da mesma maneira que, sobre o reba-
E m suma, pode-se abordar a análise das práticas penitenciais, nho, a autoridade do pastor. Toda uma série de textos e de ritos
ou mais precisamente das relações entre o fazer-o-mal e o dizer- muito antigos se referem ao pastor e às suas ovelhas para evocar o
-a-verdade, de duas maneiras: segundo uma perspectiva "técnica" poder dos reis, dos deuses ou dos profetas sobre os povos que têm
ou "praxeológica", que faz aparecer dois procedimentos distintos, por tarefa guiar.
a da exomologese e a da exagoreusis; segundo uma perspectiva No Egipto, na Mesopotâmia, o tema do pastoreio (divino ou
institucional, que faz aparecer um continuum de práticas, em que real) parece ter sido claramente marcado, embora mantendo-se
estes dois esquemas se sobrepõem, se combinam e desenham f i - bastante rudimentar. Na cerimónia da coroação, os faraós rece-
guras intermédias. Dualidade pois dos procedimentos de verdade, biam as insígnias do pastor^". O termo "pastor" fazia parte da ti-
dualidade das formas de aleturgia, ou das maneiras para o cristão tulatura dos reis babilónios e assírios, para marcar ao mesmo
de fazer de si mesmo — do seu corpo e da sua alma, da sua vida tempo que eram os [mandatários''] dos deuses e que tinham de
e do seu discurso — o lugar de emergência da verdade do mal do velar, por eles, pelo bem do rebanho'^ Mas, entre os hebreus, a
qual quer purificar-se. Mas também gradação das práticas instituí- temática do pastoreio é muito mais ampla e complexa. Cobre uma
das e dos ritos, gradação nas formas de comportamento que são grande parte das relações entre o Eterno e o seu povo. Yahweh
impostas aos indivíduos, e que devem responder ao mal através de governa conduzindo: marcha à cabeça dos hebreus quando estes
um conjunto de condutas que vão das macerações públicas e sole- saem da cidade, e, por meio do seu poder, "condu-los aos prados
nes à confissão secreta e quase perpétua. da sua santidade"". O Eterno é o pastor por excelência. A refe-
As duas grandes formas de aleturgia são portanto aplicadas, rência ao pastor caracteriza a monarquia de David, na medida em
sustentadas e aproximadas uma da outra por um campo institucio- que esta se legitima por ter recebido de Deus o encargo do reba-
nal que, apesar da diferença de estatuto entre vida secular e vida nho^''; este encargo caracteriza também o papel daqueles que,
regular, apresenta uma certa unidade. A que é constituída pela postos à frente do povo, lhe comunicaram a vontade de Yahweh e
existência de um tipo muito particular de poder. Poder que é espe-
cífico às Igrejas cristãs e do qual dificilmente, sem dúvida, se
30 H.FRANKFORT, La/?oya«íeeí/eíDí"eía:, Paris, 1951, p. 161.
encontrariam equivalentes noutras sociedades e religiões. Poder
31 [Manuscrito: "mandantes".]
do qual uma das funções mais importantes é conduzir a vida dos 32 C. J. GADD, Ideas of Divine Rule in the Ancient East, Londres, 1948.
33 Êxodo,15,13.
34 PH. DE ROBERT considera que David beneficiou da titulatura pastoral; os
28 [GREGÓRIO DE NAZIANZO, Discurso 11,16.]
outros reis só colectivamente eram chamados pastores e para serem designados
29 GREGÓRIO, O GRANDE, Regra Pastoral, livro I , capítulo 1.
como "maus pastores" (Les Bergers dlsrael. Genebra, 1968, pp. 44-41).
404 Anexos As Confissões da Carne 405

se deixam por ele guiar a fim de bem conduzirem as ovelhas: atende: não é o rei pastor dos homens? Sabemos que, ao aplicarem
"Conduziste o meu povo como um rebanho pela mão de Moisés e a este tema o método da divisão, os interlocutores de O Político
de Aarão."" falham. E falham porque a actividade própria do pastor sobre o
Marca igualmente a promessa messiânica; aquele que há-de vir rebanho — alimentá-lo, cuidar dele, conduzi-lo ao som da música,
será o novo David; por oposição a todos os maus pastores que ou compor as uniões fecundas — pode designar as funções do
dispersaram as ovelhas, aquele que há-de vir será o pastor único, padeiro, do médico ou do ginasta, mas não pode caracterizar apro-
designado por Deus para reconduzir até ele o seu rebanho. priadamente aquele que exerce um poder político. Ou antes, se-
Na Grécia Clássica, o tema do poder pastoral parece ter ocupa- gundo a lição do mito, é necessário distinguir as fases do mundo.
do, em contrapartida, um lugar menor. Os soberanos homéricos Quando este girava sobre o seu eixo num certo sentido, cada espé-
eram efectivamente designados como "pastores dos povos", mas cie era guiada pelo seu génio-pastor; o rebanho humano, por seu
sem que nisso houvesse muito mais do que o vestígio de uma an- turno, era guiado pela "própria divindade": tudo era fornecido aos
tiga titulatura ritual. Mas mais tarde os gregos não parecem ter homens em matéria de alimentação e eles voltavam à vida depois
estado muito inclinados a fazer da relação entre o pastor e as suas da morte. Afirmação significativa: "Uma vez que a divindade era
ovelhas o modelo das relações que devem atar-se entre os cidadãos o seu pastor, não tinham necessidade de constituição política."*"
e aqueles que os comandam. O termo "pastor" não faz parte do Mas, quando o mundo passa a girar no outro sentido, uma vez que
vocabulário político nem em Isócrates, nem em Demóstenes'*. o deus-pastor se retirara, os homens têm necessidade de ser dirigi-
Excepções: os pitagóricos, no que alguns crêem reconhecer uma dos: não todavia por um pastor humano, mas por alguém capaz de
influência oriental e até mesmo especificamente hebraica, outros ligar os elementos da cidade como os fios de um tecido. Cabe-lhe
pelo contrário um simples lugar-comum". E por certo Platão, A fazer com tantos indivíduos diferentes um pano sólido. O homem
República, As Leis e O Político. Nos dois primeiros destes textos, político não é pastor, é tecelão. Platão não exclui pois por comple-
o tema do pastor é relativamente acessório: serve para fazer a crí- to a personagem do pastor, mas divide o seu papel: por um lado,
tica moral das teses de Trasímaco'*, ou para definir a função de repele-o para o passado de uma história mítica, por outro, para as
certos magistrados subordinados''. E m contrapartida, ocupa uma actividades auxiliares do médico e do gimnasiarca. Mas dispensa-
posição central em O Político. Quando neste se trata de indagar -o quando se trata de analisar a cidade real e o papel daquele que
qual a definição da arte "real" de comandar, é à sua figura que se exerce o poder. A política, na Grécia, não é assunto de pastores.
Teremos de esperar pela difusão de temas orientais na cultura
35 Salmos, 77,21 [O salmo diz o "teu" e não o "meu povo"]. helenística e romana para que o pastoreio apareça como a imagem
36 O facto é ainda mais impressionante em Isócrates, dado que a descrição do
adequada para representar as formas mais altas do poder: "a tare-
bom magistrado no Areopagítico lhe atribui várias funções e virtudes que noutros
lugares pertencem à temática do pastor. fa do pastor é tão elevada", diz Fílon de Alexandria: "atribuímo-la
37 A primeira opinião é a de Grube, na sua edição dos Fragmentos de Arquitas. A justificadamente não só aos reis, aos sábios, às almas de uma pu-
segunda é a de A. DELATTE no seu Essai sur la politique pythagoricienne. Paris e reza perfeita, mas também ao Deus soberano''". Na literatura
Liège, 1922. Os textos do Pseudo-Arquitas citados por Estobeu aproximam nomos
política da época imperial, o poder do príncipe é por vezes retéri-
e nomeus e chamam a Zeus Nomios.
38 PLATÃO, A República, livro L 343-345.
39 PLATÃO, As Leis, livro X: os pastores são opostos aos "animais de rapina", 40 PLATÃO, o Político, 271e.
mas distinguem-se dos senhores. 41 FÍLON DE ALEXANDRIA, De agricultura, 50.
406 Anexos As Confissões da Carne 407

do ao do pastor: quer para manifestar o apego recíproco que deve dade, o rebanho: "Assobiarei para os reunir."** Com ele ausente,
ligar o soberano e o seu povo'*^, quer para exaltar a preeminência os animais não podem senão dispersar-se. Ao contrário do funda-
daquele que prevalece sobre os seus súbditos do mesmo modo que dor de império ou do legislador, o pastor não deixa a sua obra
o pastor sobre os seus animais"*'. para trás.

* 2. Guiar. O que é próprio do pastor não é fixar os limites de


uma pátria, nem conquistar novas terras. A sua residência é o seu
Esqueçamos por um instante lugares e cronologias. Não procu- percurso; atravessa os prados, conduz às fontes, faz o seu caminho
remos saber que lugar e que sentido a figura do pastor pode ter no deserto. Amon, o deus pastor dos povos do Egipto, "conduzia
tido nas diferentes culturas em que a vimos aparecer. Tomemo-la as gentes em todos os caminhos", "guiava o rei pelo tempo todo
como um tema que circula no mundo helenístico e romano, no em cada uma das suas excelentes empresas"*''. O pastor é o se-
momento em que o cristianismo se vai apossar dele e dar-lhe, pela nhor das transumâncias. Quando exercem o seu poder, os outros,
primeira vez na história do Ocidente, uma forma institucional. na sua maioria, mantêm-se "em cima"; ele anda "à frente": "Ó
Que tipo de poder era pois representado na figura do pastor? Deus, quando saías à cabeça do teu povo.. ."** O que remete para
várias diferenças essenciais: o seu poder não tem a sua razão de
1. Reunir. O seu poder consiste numa relação essencial com a ser aí onde está; é finalizado por um alhures e um mais tarde.
multidão; exerce-se sobre o número (ainda que inumerável), mais Poder que tem a forma de uma missão. Não consiste em pôr a lei
do que sobre a superfície. Outros constroem o edifício de um E s - de uma vez por todas, mas em fixar a meta e em escolher a cada
tado, de uma cidade, de um palácio com alicerces sólidos. Ele instante, segundo as circunstâncias, o melhor caminho. Um poder
reúne uma massa: "Aquele que dispersou Israel reuni-lo-á; guardá- que indica. Por fim, em vez de vergar os povos à sua própria von-
-lo-á como um pastor o seu rebanho.'**"* Esta reunião tem dois tade, o pastor mostra-lhes o caminho que ele mesmo toma; dá o
operadores. A unicidade, porque é porque está só, e é único, que o exemplo e dirige-os menos por meio de um poder que faz tremer
pastor faz a unidade das ovelhas, "submetendo os povos" à sua do que por uma certa força singular, e um pouco misteriosa. Um
vontade única; o pastor soberano faz com que "os homens leais poder que arrasta.
avancem todos ao mesmo passo"*^ E a acção instantânea: é a sua
voz, o seu gesto que fazem nascer, a cada instante, da multiplici- 3. Alimentar. "Companheiro fulgurante que participa no pasto-
reio de Deus, que toma conta do país e o alimenta, pastor de abun-
dância."*' O pastor não é o que cobra o tributo, ou acumula os te-
42 DIÃO CRISÓSTOMO, Discursos, I.
souros. O seu papel é tornar prósperos os animais dando-lhes
43 Fílon de Alexandria refere que, para Calígula, "não sendo os pastores de ani-
mais eles mesmos nem bois, nem cabras nem carneiros", ele mesmo, pastor da largamente de comer e de beber. Faz viver, não no sentido amplo em
espécie humana, devia com efeito pertencer a uma outra espécie ainda superior,
quer dizer, divina e não humana (citado por R VEYNE, Le Pain et le Cirque, Paris, 46 Zacarias, 10,8.
1976, p. 738). Sobre a metáfora do príncipe que não é um boieiro, mas um touro 47 In S. MORENZ, La Religion des Égyptiens, Paris, 1962, p. 94.
no meio do rebanho, cf. DIÃO CRISÓSTOMO, Discursos, II. 48 Salmos, 68, 8.
44 Jeremias, 31,10. 49 R. LABAT, Le Caractere religieux de la royauté assyro-babylonienne, Paris,
45 C. J. GADD, ideas of Divine Rule in the Ancient East, p. 39.
1939, p. 352.
408 Anexos As Confissões da Carne 409

que os bons governos enriquecem o Estado, mas no sentido preciso de de cada um. O que quer dizer, em primeiro lugar, que deve ter
em que assegura, cabeça a cabeça, o sustento de todos: "Graças à em conta tanto quanto possível a mais pequena das diferenças: o
tua boca benfazeja, ó meu pastor, todos vão ansiosamente em direc- pastor dos homens não deverá nunca esquecer que "entre eles como
ção a ti."^° É princípio nutriente. Os sofistas, e Trasímaco com eles, entre os actos, há dissemelhanças, além de que nenhuma coisa hu-
enganavam-se, quando criam que o poder do pastor era, como qual- mana, por assim dizer, se mantém estável". O que quer dizer tam-
quer outro, egoísta, não visando "noite e dia" senão utilizar os ani- bém que a lei, como imperativo geral imposto do mesmo modo a
mais em seu proveito — boa carne ou negócio interessante: "o que todos, não é por certo para o pastor das multidões "o procedimento
assim se representavam não era um pastor", este não deve ter outra de governo mais correcto". O que quer dizer finalmente que aquele
preocupação que não seja proporcionar ao rebanho a melhor das não pode desempenhar o seu papel de pastor a não ser aproximando-
condições possíveis". Maldição também dos reis de Israel, que não -se de cada ovelha; tendo em conta a sua idade, a sua natureza, a sua
pensaram antes do mais e somente no seu povo: " A i dos pastores força e a sua fraqueza, o seu carácter e as suas necessidades, deve
que se apascentam a si mesmos. Acaso não é o rebanho que os pas- "prescrever-lhe com exactidão o que lhe convém", a ela e a ela só".
tores devem apascentar?"'^ A relação do pastor com as suas ovelhas Tal é sem dúvida um dos traços mais característicos da modalidade
tem portanto três caracteres: pelo objectivo visado, deve ser produ- pastoral do poder: este tem a seu cargo o rebanho inteiro, mas deve
tora de abundância — ou pelo menos de vida ou de sobrevivência; modular os cuidados a dar a cada uma das cabeças que o compõem.
pela sua forma, é da ordem do zelo, da aplicação, eventualmente da Poder sobre multiplicidades que unifica e ao mesmo tempo poder
preocupação e da dor''; por fim, o seu efeito está numa espécie de de decomposição que individualiza. Omnes et singulatim, segundo
identificação global entre a gordura dos rebanhos aos quais nada uma fórmula que continuará a ser por muito tempo aquilo a que
falta e a riqueza de um pastor que não pensa senão neles. O poder poderíamos chamar o "paradoxo do pastor", o desafio maior que a
sobre... parece tornar-se numa atenção a... que justifica e acaba por pastoral do poder deverá incessantemente relevar.
envolver todos os seus efeitos de autoridade''*.
5. Salvar. A tarefa última do pastor é fazer com que o rebanho
4. Velar. A atenção do pastor estende-se a todos; mas a sua arte é regresse são e salvo. A salvação neste caso comporta quatro tare-
lançar um olhar particular sobre cada um. Onde o rei não veria mais fas essenciais: fazer escapar o rebanho aos perigos que o ameaçam
do que súbditos indiferentemente submissos, o magistrado cidadãos no lugar onde está, e que o forçam a ir buscar refúgio alhures, e
iguais, o cratismo pastoral esforça-se por apreender a individualida- ' assim a fixar a partida oportuna, a despertar os animais adorme-
cidos, em suma, a chamar — "Deixar-vos-ei sair de entre os povos
50 Citado iWd., p. 232. e congregar-vos-ei de todos os países por onde fostes dispersos."'*
51 PLATÃO, A República, livro I . Cf. Crítias, 109b; na Atlântida, os deuses,
Afastar os inimigos que possam apresentar-se pelo caminho,
enquanto pastores, eram os "provedores de alimento" do gado humano.
52 Ezequiel, 34,2. mantê-los à distância como fazem os cães de guarda, defender''^.
53 "Ó Rei, que velas quando todos os homens dormem e procuras o que é bom
para o teu gado". Hino egípcio, citado por S. MORENZ, La Religion des Égyp-
tiens, p. 224. 55 PLATÃO, O Político, 294a-295c.
54 DIÃO DE PRUSA, ao falar do soberano-pastor, diz que este não age em vista 56 Ezequiel, 20, 34.
de si mesmo, mas do bem dos homens, que não participa nas riquezas e nos praze- 57 Sobre o pastor que monta guarda com os seus cães, cf. PLATÃO, A República,
res, mas na epimeleia e nos phrontides. Discursos, I .
III,416aeIV,440d.
410 Anexos As Confissões da Carne 411

Saber evitar os perigos da estrada, as fadigas, a fome e as doenças, 6. Prestar contas. A iminência da fome e da morte, a necessi-
pensar as feridas e sustentar os mais fracos, em suma, cuidar'^ dade de uma protecção incessante, o cuidado da salvação domi-
finalmente, encontrando o bom caminho, garantir o regresso de nam as relações das ovelhas e do pastor; excluem que este seja
todos os animais ao redil, reconduzi-los. O bom pastor deve salvar alguma vez inocente das desgraças que lhes acontecem; a menor
todos os animais, mas também a mais pequena ovelha que esteja das suas faltas — negligência, avidez, egoísmo, rigor excessivo
em perigo. E aqui que o paradoxo do pastor se torna uma prova — arrisca-se a conduzir os animais à sua perda: "Se forçasse a sua
decisiva. Porque há casos em que, para salvar a totalidade do re- marcha um único dia, morreria todo o rebanho."*' Falta que o
banho, é necessário excluir o animal cuja doença ameaça infestar pastor pagará ele mesmo imediatamente, porque, se se extraviar o
todos os outros — é necessário "fazer uma selecção entre os ele- rebanho, é a si mesmo que se perderá; e terá fome por sua vez, se
mentos que são sãos e os que o não são, os que são de boa raça e o reduzir à fome: "os pastores foram insensatos... por isso não
os que não são de boa raça", prestar cuidados a uns e despedir os prosperaram e os rebanhos da sua pastagem dispersaram-se"*^.
outros, não conservar a não ser "o que há de são e de não conta- Mas terá também de prestar contas das suas faltas àquele que lhe
minado"''. Mas há o caso inverso, e é talvez aí que a singularida- entregou as ovelhas para que ele as conduzisse. Ambivalência do
de do poder pastoral se distingue melhor do papel do magistrado poder pastoral: é total, tem de velar sobre todas as coisas e de o
ou do hábil soberano: os últimos sabem que será sempre necessá- fazer até ao detalhe; o pastor assume o encargo de tudo o que diz
rio salvar a cidade, o Estado, o império, ainda que este ou aquele respeito ao rebanho, o seu poder é indiviso enquanto se exerce,
tenham de perecer em vista da salvação de todos. O pastor, pelo uma vez que o seu único limite e a sua única lei é o bem dos pró-
seu lado, está pronto, por um só que esteja sob ameaça, a fazer por prios animais. Mas chega o momento em que é necessário prestar
um instante como se o resto não existisse. Para o pastor, cada uma contas de tudo. O pastoreio é um poder que nasce de manhã e
das suas ovelhas é sem preço, o seu valor não é nunca relativo. morre com a noite: um poder de "trânsito" não só pelo seu objecto,
Moisés, no tempo em que era pastor de Jetro, perdera um dos seus mas também pela forma segundo a qual se delega e se restitui. O
cordeiros, partira em sua busca, encontrara-o junto a uma fonte pastor não recebe o rebanho senão para o devolver. Ainda que
("não sabia que era porque tinhas sede que fugiras; deves estar seja rei, só o tem a seu cargo por ter sido escolhido: "Trouxeste-me
cansado"); trouxera-o sobre os seus ombros e Yahweh, ao vê-lo, do meio das montanhas, chamaste-me para ser o pastor dos ho-
dissera: "Uma vez que tens piedade do rebanho de um homem, mens, confiaste-me o ceptro da justiça."*' Das suas faltas, ser-lhe-
serás o pastor do meu rebanho, o pastor de Israel."*" Entre a sal- -ão pedidas contas, e, se perdeu o rebanho, será punido por isso.
vação de todos e a salvação de cada um, imperativos absolutos um Yahweh perguntará: "Onde está, pois, o rebanho que te fora con-
e outro, o poder pastoral multiplica obrigações inconciliáveis. fiado, as ovelhas que te foram confiadas?"** E , vendo que os
pastores falharam, dir-lhes-á: "Dispersastes e afugentastes as mi-
nhas ovelhas, não vos ocupastes delas; por isso, irei eu ocupar-me

58 Graças ao pastor, os animais não sofrem fome nem sede, "o sol e o calor não 61 Génesis, 33,13.
os atingem", [Isaías, 49,10]. 62 Jeremias, 10,21.
59 PLATÃO,>lí Leis, 735a-736c. 63 Prece de Assurbanípal II à deusa Isthar, citada por PH. DE ROBERT, loc. cit.,
60 Comentário rabínico do Êxodo, citado por PH. DE ROBERT, Les Bergers p. 14.
dlsraèl, p. 47. 64 Jeremias, 13,20.
412 Anexos As Confissões da Carne 413

de vós, devido à maldade das vossas acções."*' O poder do pastor maneira para eles de se comportarem. O cristianismo, como Igre-
está tomado numa longa rede de responsabilidades em que as fal- ja, instaurou um poder geral susceptível de "conduzir a conduta"
tas estão ligadas quer a sanções imediatas, quer a punições diferi- dos homens: poder muito diferente daqueles que o mundo antigo
das; está submetido a "contas" perpétuas — enumeração dos ani- podia conhecer, fosse esse poder o do príncipe sobre o Império, ou
mais confiados e reconduzidos, cálculo dos vivos e dos mortos, o do magistrado sobre a cidade, do pai sobre a "família", do patro-
contagem dos erros, das inabilidades, das negligências. no com a sua clientela, do Senhor com os seus servidores ou es-
Misturei, eu sei, contra todo o método, muitas coisas díspares: cravos, do chefe de escola com os seus discípulos. E se o cristia-
Platão e a Bíblia, os deuses do Egipto e os reis da Assíria. É que nismo pôde, de maneira bastante rápida, inserir-se na organização
se tratava somente de mostrar que, ao falarmos dos deuses, dos da "romanitas", foi talvez em parte por trazer consigo tais proce-
reis, dos profetas, ou até mesmo dos magistrados como de pastores dimentos de poder: bastante novos e específicos para não serem
à cabeça do seu rebanho, não celebramos somente o seu poder ou imediatamente incompatíveis com os que já existiam, bastante
a sua bondade através de uma metáfora familiar, mas designamos eficazes para darem resposta a todo um conjunto de necessidades
também uma certa maneira de exercer o poder. Ou, pelo menos, recentemente aparecidas. O poder pastoral tornou-se uma institui-
designamos um conjunto, sem sistematicidade mas não sem coe- ção ao mesmo tempo global (que se reporta em princípio a todos
rência, de funções próprias de um certo tipo de autoridade. Ainda os membros da comunidade), especializada (pois tem objectivos e
que desligada dos contextos religiosos políticos nos quais assumia métodos próprios) e relativamente autónoma (ainda que esteja l i -
o seu valor profundo, a imagem do pastor tinha a sua lógica. gada a outras instituições com as quais interfere ou sobre as quais
se apoia).
* Está fora de questão resumir aqui, ainda que brevemente, o
processo desta institucionalização. Trata-se de indicar apenas al-
Duplo acontecimento considerável para o mundo antigo: o cris- gumas das modificações que o cristianismo trouxe à temática
tianismo é a primeira religião que nele se organiza como Igreja. E anterior do pastoreio: as que permitem compreender a importância
esta Igreja define o poder que exerce sobre os fiéis — sobre cada concedida às confissões da carne. Quer dizer, as que tendem a
um e sobre todos — como um poder pastoral. fazer do pastoreio um governo dos homens através da manifesta-
Longe de ser no cristianismo uma maneira de representar este ção da sua verdade individual. Têm dois aspectos principais que a
ou aquele aspecto do poder, a figura do pastor recobre pelo con- patrística latina faz aparecer claramente.
trário todas as formas de governo eclesiástico: todas se justificam
pelo facto de terem, a exemplo do Cristo-pastor e sob a sua condu- 1. O primeiro diz respeito à natureza e à forma que ligam o
ção, de levar o rebanho humano (incluindo a mais pequena ovelha) pastor ao rebanho inteiro e a cada uma das ovelhas.
até ao prado eterno. E não se trata de uma simples metáfora, mas a. Na temática antiga do pastoreio, o pastor deve ao rebanho o
da introdução de instituições e procedimentos destinados, através seu zelo, a sua atenção, a sua vigilância e as suas vigílias, a sua
de toda a sociedade, a regularem a "conduta" dos homens; o termo dedicação: relação de beneficência, necessária à sobrevivência do
deve ser entendido no sentido das palavras: maneira de os dirigir, rebanho. No cristianismo, é a própria vida do pastor que deve po-
der ser oferecida ao rebanho e pelo rebanho: ele defende-o contra
65 Jeremias, 23,2. os lobos, dá a sua existência por ele; e é por meio do seu sacrifício
414 Anexos As Confissões da Carne 415

que as ovelhas acedem à vida eterna''*. Segundo o modelo crísti- para o pastor de ser tão puro e tão perfeito quanto possível: " E s -
co, a morte do pastor, ou pelo menos a sua morte neste mundo, é tando obrigado pelo seu cargo a retirar do coração dos outros o
a condição da salvação do rebanho. Relação sacrificial em que o que possam ter de impuro, não deve ter impureza alguma no seu
pastor se troca contra todos e cada um, ganhando assim o seu próprio coração."" Mas importância também para não cair no
próprio mérito através do gesto que salva os outros*'. pecado de orgulho, e na cegueira do desconhecimento das suas
b. A reciprocidade entre o pastor e o rebanho obedecia antes do próprias fraquezas, de não se atribuir superioridade alguma e até
cristianismo a um princípio de causalidade global: gordura do re- mesmo de conservar sempre presentes no espírito as suas próprias
banho, riqueza do pastor; miséria do gado, pobreza do seu senhor. imperfeições'^: servidor de todos, pescador entre os outros, e
Na forma cristã do pastoreio, a reciprocidade já não é simplesmen- mesmo com mais gravidade do que os outros, uma vez que terá de
te da ordem da causalidade, mas da identificação; e estabelece-se reconhecer as suas fraquezas nos pecados do rebanho.
além disso ponto por ponto; o sofrimento de cada ovelha é uma e. O que faz com que o pastor não deva tirar nem orgulho algum
dor que o pastor experimenta; os seus progressos são o seu aper- por ter sido designado, nem razão alguma por exercer uma domi-
feiçoamento próprio. A compaixão do pastor é uma identidade nação {potestasf^. Seguindo o exemplo de São Gregório, deve
imediata: experimenta, "no fundo do coração, a enfermidade das tremer quando se vê encarregado da condução das almas, apreen-
almas fracas"; regozija-se com "o avanço dos seus irmãos como são que não deve nunca perder de vista se quiser esconjurar "o
com o seu próprio"**. orgulho, os pensamentos ilícitos, os pensamentos importunos e
c. O pastor cristão não tem somente de prestar contas por cada iníquos". E seria, contudo, pecado esquivar-se a esse dever e dei-
animal, mas por cada falta, por cada queda, por cada passo. No dia xar as ovelhas sem pastor'"*.
temível, os pecados das ovelhas ser-lhe-ão reprovados como pró- Entre o pastor cristão e o seu rebanho, a economia própria do
prios, se [não] tiver podido*' preveni-los por meio do seu ensino, pecado e da salvação, o contágio e a multiplicação das faltas, a
da sua vigilância, do seu rigor ou da sua caridade. Até mesmo troca dos sacrifícios, a vigilância sobre si mesmo que não pode
aqueles que renegaram, até mesmo os "lapsi" poderão fazer valer separar-se nunca da solicitude para com os outros estabelecem
contra o pastor não terem sido apoiados, encorajados, munidos de laços muito mais numerosos, complexos e sólidos do que os que
ensinamentos e de conselhos salutares'". encontramos na temática antiga do pastor. E , sobretudo, a indivi-
d. O pecado do pastor está no centro da relação que ele mantém dualidade do laço desempenha agora um papel essencial: devido à
com o rebanho: as suas próprias faltas acarretam os passos em comunicação directa que se estabelece entre cada acto de cada fiel
falso das ovelhas (e agravam-se mais por isso); e os pecados do
71 GREGÓRIO, O GRANDE, Regra Pastoral, livro II, capítulo 2.
rebanho acumulam-se na sua culpa. Importância, por conseguinte,
72 SANTO AMBRÓSIO, De officiis ministrorum, livro II, capítulo 24. Felizmen-
te Deus deixa sempre algumas imperfeições nos justos "a fim de que, no meio do
66 Evangelho de São João, 10,11-18. esplendor das virtudes que lhes valem a admiração de todos, a contrariedade que
67 SÃO JERÓNIMO,carta58: "Aliorum salutemfac lucrumanimae tuae" lhes causam as suas imperfeições os mantenha de cabeça baixa".
68 GREGÓRIO, O GRANDE, Regra Pastoral, livro I , capítulo 49. Cf. também o 73 Ibid. Ambrósio refere-se aqui à Primeira Epístola dé São Pedro, 5, 3.
livro II, capítulo 2: "olhar como seu bem próprio e seu benefício próprio o bem e 74 GREGÓRIO, O GRANDE, Regra Pastoral, livro II, capítulo 2; e livro I , capí-
o benefício do próximo". tulo 6: "Aqueles que a sua humildade leva a que fujam da condução das almas não
69 [Manuscrito: "se tiver podido".] são na verdade humildes excepto quando não resistem obstinadamente à ordem da
70 SÃO CIPRIANO, carta XLIII, cf. também carta VIII. • Providência que a tal os comete."
416 Anexos As Confissões da Carne 417

e o mérito do pastor, e através da problematização do próprio pas- palavra. E depois não pode tratar-se de comunicar somente a dou-
tor que já não é por meio de qualquer direito de natureza ou de trina: aquilo que ensina deve aparecer e impor-se na sua vida, na
instituição o "bom" pastor, mas, como todos os outros, um peca- sua conduta, na sua virtude; ele deve ser como um rosto vivo da
dor cujas faltas cada ovelha deverá temer. , verdade que prega'^ Por fim, não pode ensinar toda a gente da
mesma maneira: os espíritos dos auditores são como as cordas de
2. O cristianismo reclama do pastor uma forma de saber que uma cítara, diferentemente retesadas: não podem ser tocados da
excede largamente a habilidade ou a experiência que a tradição mesma maneira; é frequente que sejam prejudiciais a alguns pro-
atribuía aos pastores dos homens. No coração da actividade pasto- cedimentos que são proveitosos para outros: não podemos instruir
ral, a Igreja inscreveu um imperativo de verdade, ou antes, um os homens como as mulheres, os ricos como os pobres, os alegres
conjunto de imperativos. como os tristes".
Imperativo de rigor doutrinal. Se não conhecer ele mesmo a Imperativo do conhecimento dos indivíduos. Aquele que guia a
verdade, e não lhe estiver incondicionalmente apegado, o pastor comunidade deve, pois, conhecer cada um, e cada um deve poder
conduzirá o rebanho à sua perda: "Não é possível que os sacerdo- confiar-se-lhe: quando são atacados pela tentação, os fracos têm
tes, uma vez que são os primeiros guias, percam as luzes da ciên- de poder procurar asilo no seio do seu pastor, "como os filhos no
cia sem que aqueles que os seguem fiquem vergados sob o peso do seio da sua mãe"*°. Mas é também necessário que o pastor descu-
pecado que os oprime."'' E deve velar incessantemente por que os bra, ainda que a despeito de eles mesmos, o que aqueles dissimu-
membros da comunidade continuem ligados a essa verdade e por lam ou se dissimulam a si mesmos. Segundo as palavras de Eze-
ela; porque é a verdade que os une, o erro que os separa, quiel, atravessar a muralha, e abrir as portas escondidas*': quer
dispersando-os longe do caminho, e tornando por fim necessária dizer, "examinar a conduta exterior" dos pecadores a fim de
a sua exclusão; ao pastor compete reconduzir as "ovelhas que ba- "descobrir por ela o que eles escondem no seu coração de mais
lem errantes" e que as heresias e o espírito de seita tenderão a criminoso e mais detestável"*^. A extorsão das verdades voluntá-
separar'*. ria ou involuntariamente escondidas faz parte das relações do
Imperativo de ensino. Pastor da verdade, o pastor deve fornecer pastor com as suas ovelhas.
a todos o alimento espiritual sob a forma da boa doutrina. "Epis- Imperativo de prudência. Por mais apegado que esteja às coisas
copi proprium múnus docere", dizia Santo Ambrósio logo no iní- celestes, o pastor nada deve ignorar ou negligenciar das realida-
cio do De officiis ministrorum. Mas este ensino é mais complexo des: deve "aplicar-se sempre a examinar todas as coisas, a fazer
do que uma simples lição. E m primeiro lugar, porque o pastor cuja
ciência nunca é inteiramente completa tem de aprender ao ensi- 78 Os que não praticam o que ensinam "destroem por meio dos seus costumes
corruptos o que se esforçam por estabelecer por meio das suas palavras"; são como
nar": a verdade revela-se para ele no zelo e na caridade da sua pastores que bebem uma mesma água clara, mas a corrompem com os seus pés su-
jos e não deixam às ovelhas mais do que uma água enlameada, SÃO GREGÓRIO,
75 GREGÓRIO, O GRANDE, ibid., livro I, capítulo 10. O GRANDE, Regra Pastoral, livro I , capítulo 2.
76 SÃO CIPRIANO, carta XLV; cf. também a carta de DIONÍSIO, bispo de Lida: 79 São Gregório estabelece também na Regra Pastoral trinta e seis distinções que
"reconduzir ao seu verdadeiro pastor o género humano acorrentado por múltiplos é necessário ter em conta para bem se instruírem os fiéis.
erros, o rebanho de Cristo que se dispersara" (in Cartas de São Jerónimo, t. IV, p. 80 [Ibid., livro I, capítulo 4.]
159, carta 94). 81 Ezequiel, 8,8.
77 SANTO AMBRÓSIO, De officiis ministrorum, 1,1. 82 GREGÓRIO, O GRANDE, Regra Pastoral, livro II, capítulo 9.
418
Anexos

um discernimento justo e exacto do bem e do mal, saber estudar


os tempos, os lugares, as maneiras e as pessoas, quando se trata de
dizer ou de fazer alguma coisa"*'. Deve [aplicar-se] para não sol-
tar as suas palavras "no ar"*"*, não ser nem demasiado indulgente
nem demasiado severo*', não fazer, quando castiga, como esses
lenhadores desastrados a quem o machado foge das mãos e vai
ferir os seus companheiros**. Sem nada perder da sua fidelidade
à pura doutrina, sem "se desprender da contemplação das coisas
mais elevadas", é necessário que o pastor não esqueça "as neces-
sidades do próximo" e "condescenda com as necessidades mate- Anexo 3
riais dos seus irmãos"*'.
O pastoreio é, pois, um laço de formação e de transmissão da
verdade. O saber-fazer do pastor — essa familiaridade com as "Enuncia a tua falta a fim de destruíres a tua falta", diz São João
coisas, em que se misturavam antecipação e vigilância — torna-se Crisóstomo, na segunda das Homilias sobre a penitência.
na Igreja Cristã um saber muito mais preciso e complexo, com E lembra-te que Deus, depois do crime, interrogou Caim. Não
regras e métodos; é que, na relação do pastor com as ovelhas, a que tivesse necessidade da sua resposta para saber o que a voz do
verdade tornou-se um operador decisivo, sob a dupla forma de sangue clamava já sobre a terra. Queria somente que o assassino
uma conformidade doutrinal, que é necessário conhecer e fazer dissesse: sim, matei. Pedia-lhe que, pelo menos, reconhecesse:
conhecer, e de segredos individuais que é necessário descobrir, homo homologeis tauta^^. E é porque Caim se recusa a reconhe-
que se trata eventualmente de castigar e de corrigir, que é, em todo cer, é porque afirma "não saber", que Deus vai puni-lo. Duas ex-
o caso, necessário ter em conta. pressões utilizadas por São João Crisóstomo merecem ser retidas.
Porque Caim não foi o primeiro a dizer a sua falta. Deus recusa-se
não directamente a perdoar-lhe o seu acto, mas a "acolhê-lo na
metanoia": o que quer dizer que a ausência de confissão retira a
Caim a própria possibilidade de se arrepender, de se converter, de
se afastar (ou ser afastado) do crime cometido; era necessário que
dissesse o crime para dele se desprender. Além disso, e por conse-
guinte, o que Deus vai castigar é menos o próprio homicídio do
que a impudência de Caim*'. Termo importante, o de anaideia:

88 O termo aqui utilizado é, como veremos, um termo que tem um sentido ao


83 Ibid., livro II, capítulo 1. mesmo tempo preciso e complexo no procedimento peniteiícial. Na XIX Homilia
84 SANTO AMBRÓSIO, De officiis ministrorum, 1,1. sobre o Génesis, 2, a reinterpretação do texto bíblico a partir das práticas peniten-
85/fóí/.,II,24. ciais é mais explícita ainda: Deus, hiatros [médico], queria que a falta de Caim
86 GREGÓRIO, O GRANDE, Regra Pastoral, livro II, capítulo 9. fosse apagada dia tês homologias tou ptaismatos [pelo reconhecimento da falta].
87 Ibid., livro II, capítulo 1; livro II, capítulo 5. 89 Deus reprova a impudência muito mais ainda do que o pecado.
420 Anexos As Confissões da Carne 421

reporta-se à temeridade da mentira manifesta; à ausência de arre- A Caim se cala, a tradição patrística opõe muitia§,.yezes
pendimento a propósito do crime cometido; à contradição que faz duas outras personagens, Eva e David, que reconheceram ambos a
com que Caim tenlia vergonha de confessar o que não teve vergo- sua falta. Na mesma segunda Homilia sobre a penitência. São João
nha de fazer; à afronta por fim feita a Deus que oferecia ao crimi- Crisóstomo evoca, depois do silêncio de Caim, as confissões de
noso a possibilidade de ser perdoado'". O impudor da não- David. De facto, traça, em torno de cada uma das duas figuras,
-confissão desloca assim o crime contra Abel no sentido de uma dois ciclos da verdade e da falta que se opõem termo a termo.
ofensa a Deus; pelo menos a falta contra a verdade que era devida Caim conhecia a sua falta; David, pretende Crisóstomo, não co-
a Deus recobre a falta contra o sangue que o ligava ao irmão. nhecia a sua; e, para estabelecer tal facto, que nada justifica no
Ora, em que consiste o castigo desta impudência? A lei do san- texto bíblico, evoca uma concepção "filosófica" da paixão: a alma
gue reclamava, sem dúvida, a morte do culpado. Mas Caim, e tal deve guiar o corpo como a alma conduz o carro; se estiver ofus-
será justamente a sua punição, continuará em vida. O seu castigo cada por alguma paixão, ou se se embriagar, ou até mesmo se
será ser na terra a lei encarnada — nomos empsukhos: terá de andar simplesmente afrouxar a sua atenção, já não saberá para onde vai,
pelo mundo como uma "lei viva", uma-"estela em marcha" selada e o carro vacilará na lama. Foi assim com David que, embriagado
sobre o seu próprio silêncio, mas que faz ressoar, "mais estrondoso pela paixão, não soube que estava em vias de pecar. Outra diferen-
do que uma trombeta", o mugido da voz. Phônê: a palavra é signi- ça: é Deus quem se apresenta a Caim, Deus todo-poderoso e a
ficativa. É a mesma que foi utilizada para designar a voz do sangue quem nada escapa; é tão só Natan quem se apresenta a David.
de Abel a secar nos sulcos do arado: uma vez que não houve con- Natan é um profeta como David, não tem qualquer preeminência
fissão para o fazer calar, é ainda esse grito que se faz ouvir no sobre ele. Dir-se-ia um médico que quer tratar outro; e David teria
castigo de Caim. Mas, quanto a este grito do sangue, a voz, a phônê podido muito bem, considera Crisóstomo, repeli-lo dizendo-lhe:
que ressoa na boca de Caim apresenta duas diferenças. Não reclama "Quem és tu? Quem te enviou?... Que audácia te move?..." E m
a morte contra a morte; diz, pelo contrário, a todo o homem deste todo o caso, nenhuma autoridade, nenhuma coerção pode ter im-
mundo: não faças o que eu fiz. E , além disso, não se trata aqui da pelido David a falar contra a sua vontade. Melhor: Caim tinha de
voz do sangue derramado e do cadáver abandonado; é uma voz que responder a uma pergunta que designava já o seu crime: onde está
faz agora corpo com Caim. Por se ter esquivado à confissão que a Abel? David, por seu turno, ouve que se lhe propõe uma fábula:
teria suspendido, tornou-se ele mesmo a lei que não se cala: aquele um rico para poupar o seu próprio rebanho mata a ovelha de um
que o matasse seria sete vezes maldito. Caim foi tomado pela lei; pobre que não tinha outro bem. A fábula, como podemos ver se-
não pode desligar-se dela; percorrerá o mundo a gemer — stenôn gundo Crisóstomo, tinha duas funções: prova posta ao juízo do rei,
—, fazendo assim ressoar indefinidamente o grito da lei, que ne- apólogo a decifrar em vista da identificação do culpado. A prova,
nhum discurso de confissão (homologid) veio interromper". David responde pronunciando ele mesmo a sentença: "O homem
que tal fez merece a morte." Quanto ao enigma, é efectivamente
90 O elemento da vergonha e do impudor no acto e na confissão está no cen- Natan quem o resolve: és tu o homem que tal fez; mas David acei-
tro da economia cristã da penitência. Na XIX Homilia sobre o Génesis, 2, Caim é
caracterizado por [três] adjectivos: agnômôn, anaisthêtos, anaiskhuntos [ingrato,
insensível, impudente]. grande para ser perdoado. Mas esta confissão não vale, porque não foi feita a tempo
91 Na XIX Homilia sobre o Génesis, 3, Crisóstomo releva que Caim faz uma con- — en kairô. Este problema do momento é igualmente importante na doutrina e na
fissão precisa — meta akribeias — quando disse: julguei o meu crime demasiado prática da penitência.
422 Anexos As Confissões da Carne 423

ta imediatamente a designação e ocupa por si mesmo pela confis- procedimento judicial. O dizer-a-verdade, a "veridicção", assume
são o lugar que Natan lhe aponta: "Pequei contra o Eterno." Nas os seus efeitos remissivos no quadro da relação com uma jurisdi-
suas duas respostas, à prova e ao enigma, David opõe-se a Caim; ção — relação que desloca para o sujeito que é culpado e que fala
este negara a lei que o unia [ao seu irmão] (não sou o guarda do a instância que acusa e a que julga.
meu irmão); e, quando acabara por reconhecer a envergadura do Eva é a outra figura regularmente oposta a Caim. Na X V I I Ho-
seu crime e pedira ele mesmo a sentença de morte, já não o fizera milia sobre o Génesis (5), Crisóstomo faz de Eva e de Adão peca-
no bom momento — en kairô —, pedia-o retrospectivamente, de- dores que confessam. Esta confissão tem duas formas. Uma forma
pois de ter sido denunciado pela voz do sangue. David, esse, co- verbal quando Adão e depois Eva, após terem por um momento
meçara por dizer a lei, pronunciar a sentença, e condenar-se a si tentado esconder-se, respondem a Deus que os chama e reconhe-
mesmo ainda antes de o saber; depois, uma vez descoberta a ver- cem que, com efeito, comeram do fruto proibido (Crisóstomo faz
dade, aceitara por si mesmo a sentença que acabava de pronunciar. notar que, se Deus perguntou ao homem: Comeste? E à mulher:
Assim feita "no bom momento", a confissão de David aparece com Porque comeste?, se solicitou pois deles confissão, em contrapar-
as suas duas faces, a da sentença formulada e aceite, a da falta tida à serpente, cujo pecado é irremissível, não estende sequer
reconhecida, e com mais mérito ainda por não se tratar de afastar essa tábua de salvação, e diz tão só: Uma vez que fizeste isso, serás
a severidade de uma sentença por si mesma de antemão decidida. maldita)''. Mas esta confissão verbal era precedida de uma outra,
Assim analisada através do adultério de David, ou antes, da versão que não passava pelas palavras, mas ao mesmo tempo pela cons-
cuidadosamente modificada que dele dá São João Crisóstomo, a ciência e pelo gesto. Assim que comeram o fruto, Adão e E v a
confissão surge como não sendo apenas o reconhecimento de que sentem-se nus, têm vergonha e procuram cobrir-se. Esta interpre-
se cometeu uma falta, mas também a adesão profunda à sentença tação da vergonha como uma forma de confissão é importante e
que a condena'^. Segundo uma temática essencial à penitência esclarece aquilo que [Crisóstomo] descreve como sendo, na X I X
cristã, o pecador que confessa como David é ao mesmo tempo o Homilia, a impudência, a anaideia de Caim. Ao dar a um tal pu-
seu próprio acusador e o seu próprio juiz: "Tiveste a grandeza de dor valor de confissão. Crisóstomo quer dizer, em primeiro lugar,
alma de confessar a tua falta... Formulaste a tua própria senten- que a confissão não é simplesmente comunicação ao outro daqui-
ça." Se o perdão é a resposta imediata à confissão, é porque esta lo que cada um já sabe por si mesmo, mas é antes de mais desco-
não é simplesmente o enunciado exacto dos factos, mas também berta interior. Quer dizer também que a confissão é um gesto que
ao mesmo tempo esconde e mostra, mais precisamente que mostra
porque retoma por sua conta os elementos que constituem um
ao querer esconder. Esta vontade de esconder autentica a consciên-
cia de que fizemos mal, e o gesto que mostra manifesta que não
92 Nesta exegese de Samuel 2, 11, o papel que Crisóstomo atribui à ignorância
de David é capital, uma vez que é ela que lhe permite pronunciar uma sentença
ainda mais "pura", ainda mais "rigorosa" e justa pelo facto de David não saber que 93 Na edição francesa, esta passagem entre parênteses contém vários desvios
é visado pela fábula de Natan e de não ter sequer consciência [de ter] cometido da norma. Como noutros casos, procurou-se não a "normalizar" na tradução. No
um pecado com Betsabé: o que torna a sua confissão uma descoberta. Ora, esta entanto, parece preferível transcrever aqui a redacção original do trecho em causa:
ignorância da natureza do acto que cometeu é acrescentada ao texto bíblico por "(Chrysostome fait remarquer que, si Dieu a demande à Vhomme: As-tu mangé?
Crisóstomo. Deveremos ver aqui um eco da tragédia grega? Ou, mais geralmente, Et à la femme: Pourquoi as-tu mangé? si donc il a sollicité d'eux des aveux, en
do valor concedido ao esquema daquele que condena um culpado que acabará por revanche au serpent, dont le péché est irrémissible, il ne tend pas cette planche de
se revelar como sendo ele mesmo? salut, et il dit seulement: Puisque tu as fait cela, tu serás maudit.)" (N. T.)
424 Anexos As Confissões da Carne 425

tememos revelar a todos essa consciência. É, pois, necessário que que se refere necessariamente a Deus. É significativo que Santo
no centro da confissão entre em jogo este pudor. Sem vergonha de Ambrósio, ao comentar a mesma passagem do Génesis (4, 9-15)
se ter pecado e, por conseguinte, sem desejo de o esconder, não que São João Crisóstomo, afirme como ele que Deus puniu em
haveria confissão, mas apenas um pecado impudente. Mas, se uma Caim quem não disse a verdade mais do quem matou o seu irmão.
tal vergonha fizer com que nos escondamos a ponto de não querer "Non tam majori crimine parricida quam sacrilegit."^'^ Onde
confessar, e se, como Caim, negarmos o nosso próprio crime, en- Crisóstomo falava de impudência, Ambrósio fala de sacrilégio.
tão a própria vergonha se tornará impudência. Não que haja entre os dois uma diferença de severidade. A anai-
Porque Adão e Eva tiveram essa vergonha que não tem vergo- deia, em Crisóstomo, designava a infracção à relação de "pudor"
nha de confessar, a sua falta não é irredimível. E , se a sua falta que o pecado faz contrair perante Deus; e é esta infracção que
acarretou a queda dos homens, o seu pudor, que descobre escon- Ambrósio, no vocabulário jurídico latino, designa como sacrile-
dendo, é como que a primeira forma do que aparecerá como res- gium. Um pouco mais tarde. Santo Agostinho dará à não-confissão
gate. Perante a serpente e Caim, que são da raça da maldição, de Caim uma significação na aparência muito diferente. Também
Adão e Eva, como David, são postos na árvore genealógica da ele sublinha que a pergunta posta por Deus nada mais é do que
salvação. E isso por terem confessado. Vemos, nesta exegese de uma prova oferecida a Caim para que eventualmente ele se possa
Crisóstomo, desprender-se a seguinte ideia sem dúvida fundamen- salvar através dela; porque Deus sabia bem o que fora feito. Mas,
tal no cristianismo: que o pecado, no próprio momento em que ao responder "Não sei", Caim deu de certo modo a primeira figu-
infringe a vontade de Deus ou a sua lei, faz com que se contraia ra da recusa por parte dos judeus de ouvirem o Salvador. Caim
uma obrigação de verdade. Esta tem dois aspectos: devemos rejeita o apelo a reconhecer a verdade do Evangelho. Um diz fal-
reconhecer-nos como autores do acto cometido e reconhecer que samente que ignora o que a voz do sangue grita e que Deus lem-
esse acto é mau. Tal foi a obrigação de verdade a que Caim se bra. Os outros negam falsamente o que o sangue de Cristo grita e
esquivou através do "Não sei" que acrescentava ao crime de san- que as Escrituras tinham anunciado. "Fallax ignoratio, falsa ne-
gue contra o seu irmão um crime de verdade contra Deus. Foi à gatio.'"^^ Mas, ao deslocar assim da confissão das faltas para a fé
mesma obrigação que Adão, Eva, David se submeterem, resgatan- no Evangelho a lição de Caim, Santo Agostinho não modifica no
do assim por meio da obediência ao princípio do dizer-a-verdade fundamental o que diziam as Homilias sobre a penitência ou o De
a desobediência à lei. No coração da economia da faUa, o cristia- paradiso. Liga fortemente e por meio de um laço explícito o que
nismo pôs o dever de dizer-a-verdade. Mas as exegeses de São Crisóstomo e Ambrósio, no texto em questão, deixavam no estado
João Crisóstomo, que estão aqui a título de exemplo e de primeira implícito: a saber, que a obrigação de verdade em relação às faltas
indicação, mostram bem que este dever de verdade não tem sim- é profundamente aparentada à obrigação de verdade relativa à
plesmente um papel instrumental no procedimento de perdão: um Revelação. O dizer-a-verdade e o crer, a veridicção sobre si mesmo
meio de o obter, ou de atenuar a pena. Assim que o crime é come- e a fé na Palavra são ou deveriam ser indissociáveis. O dever de
tido, é de imediato contraída uma dívida de verdade em relação a verdade, como crença e como confissão, está no centro do cristia-
Deus. Esta dívida é tão essencial, tão fundamental que, se for sal-
dada, qualquer pecado, por mais grave que seja, poderá ser remi-
do; mas, se for esquivada, não só se mantém a falta cometida, co-
94 [SANTO AMBRÓSIO, De paradiso, XIV, 71.]
mo se cometerá uma outra necessariamente mais grave, uma vez 95 SANTO AGOSTINHO, Contra Faustum, XII, 10.
426 Anexos

nismo. Os dois sentidos tradicionais da palavra "confissão"'* co-


brem estes dois aspectos. A "confissão" é, de um modo geral, o
reconhecimento do dever de verdade.
Deixarei de lado, bem entendido, o problema no cristianismo do
dever de verdade compreendido como fé, para não considerar se-
não o dever de verdade compreendido como confissão" e assu-
mindo os seus efeitos numa economia da falta e da salvação. Mas
as relações entre estes dois aspectos deverão ser incessantemente
evocadas. E isso na precisa medida em que será sempre necessário
sublinhar que o "dizer-a-verdade" da falta ocupa no cristianismo Anexo 4
um lugar sem dúvida muito mais importante e desempenha nele
em todo o caso um papel muito mais complexo do que na maior
parte das religiões — e estas são numerosas — que requerem a Mas o problema central não está aqui. Está na necessidade de
confissão dos pecados. Pelo menos, por comparação com as reli- pensarmos a possível relação sexual anterior à queda fora da cate-
giões gregas e romanas, o cristianismo impôs aos seus fiéis uma goria da corrupção. Esta, com efeito, tal como era utilizada pela
obrigação de "dizer-a-verdade" sobre si mesmos infinitamente maior parte dos predecessores de Agostinho, estabelecia entre a
mais imperiosa na sua forma e mais exigente no seu conteúdo. morte dos indivíduos e a conjunção dos sexos ao mesmo tempo
É através destas novas regras de "veridicção" que devemos ten- uma comunidade de essência e uma causalidade recíproca: impu-
tar compreender o que no cristianismo foi dito a propósito da ra, a relação sexual era uma forma de corrupção, tal como a mor-
carne. te, uma vez que é destruição do corpo. O acto sexual podia, pois,
ser pensado como um dos efeitos dessa corrupção que feriu os
homens quando a morte lhes foi imposta a título de castigo. E ,
inversamente, podia considerar-se que, transmitindo a impureza
aos corpos, atingia a sua incorruptibilidade e os expunha à destrui-
ção. A redefinição fundamental operada por Agostinho consiste
em desfazer esta categoria global da corrupção dissociando, por
um lado, o morto da mortalidade e, por outro lado, a conjunção
dos sexos de um estado corrompido do corpo.
Que o primeiro casal não teria morrido se não tivesse pecado, é
o que mostra claramente, segundo Agostinho, o texto do Génesis (2,
17): "No dia em que o comeres [ao fruto proibido], morrerás." E
96 Enquanto regularmente, ao longo das páginas anteriores, a palavra portuguesa assim depois e por causa da transgressão que a morte se produz, mas
"confissão" traduz o "aveu" francês, aqui, como na passagem imediatamente se-
como interviria uma possibilidade já formada, que não tivesse en-
guinte, traduz a palavra francesa "confession", que, entre outros usos, designa o
sacramento da penitência — a confissão feita ao sacerdote confessor. (N. T.) contrado ainda, antes desse acontecimento, as condições para se
97 Aqui "confissão" traduz de novo o francês "aveu". (N. T.) realizar. No caso em que tivesse sido a própria possibilidade da
428 Anexos As Confissões da Carne 429

morte e não a sua realização a ficar a dever-se à falta. Deus não teria dade hoje era, pois, mutatis mutandis, regresso a esse estatuto de
falado de uma sucessão temporal, mas de uma implicação necessá- origem. Ora, Agostinho admite ao mesmo tempo a possibilidade
ria; teria dito "se comerdes dele, morrereis". Devemos, pois, conce- de uma relação física real e a manutenção da virgindade da mu-
ber que o homem, ao sair das mãos do Criador, trazia em si a possi- lher: "O esposo teria fecundado a esposa sem o aguilhão de uma
bilidade da morte: como um corpo absolutamente são, e que não foi paixão sedutora, na serenidade da alma e na integridade perfeita
atingido por forma alguma nem de doença nem de envelhecimento, do corpo. Se a experiência não no-lo pode mostrar, nem por isso
pode ser dito mortal. Mas é num sentido diferente que dizemos estar há razão para o pormos em dúvida; porque essas partes do corpo
exposto a morrer um corpo doente. Tal foi o caso da humanidade teriam sido não excitadas por um ardor perturbante, mas usadas
depois da queda: "Esta vida, não digo somente desde o nascimento, segundo as necessidades por um poder senhor de si. Assim, a se-
mas desde o primeiro instante da nossa concepção, que outra coisa mente teria podido ser comunicada à esposa conservando nela a
é senão uma espécie de doença incipiente que fatalmente nos con- sua virgindade, como hoje o fluxo menstrual pode produzir-se
duz à morte?"'* Devemos, por isso, distinguir entre a mortalidade e sem atingir a virgindade. Porque é pela mesma via que uma coisa
a morte, ou antes, devemos definir a mortalidade anterior ao pecado é introduzida e a outra rejeitada."'"" Teremos de voltar, mais
como condição ontológica do homem tal como foi criado. Longe de adiante, à significação desta efusão fecundante que teria sido ab-
marcar um defeito, era susceptível de marcar a sua virtude e a sua solutamente voluntária e se faria sem ruptura do hímen. O que
sabedoria, a partir do momento em que permanecesse em suspenso devemos sublinhar aqui é que a relação sexual se faz sem "corrup-
a título de condição geral enquanto o homem seguisse fielmente a ção" física. E por corrupção devemos entender ao mesmo tempo o
lei de Deus. E devemos definir a mortalidade posterior ao pecado atentado à integridade corporal da mulher e a violência de um
como o caminhar efectivo da morte durante uma vida inteira cuja movimento que transporta involuntariamente o corpo do homem.
falta original faz, para todos os homens, uma espécie de longa doen- Todos estes fenómenos que fazem escapar o corpo ao domínio
ça. A mortalidade da condição humana não é o efeito de uma cor- da alma, que o atravessam de movimentos sem controle, que o
rupção, ainda que tenha chegado um dia em que todos os homens, ferem como que de doença e o destroem em parte, de tudo isto que
fatalmente, morrem da corrupção dos seus corpos". anuncia a fatalidade da morte e a prepara, o primeiro casal teria
Por outro lado e simetricamente, Agostinho dissocia, da corrup- podido, unindo-se embora os seus membros, manter-se livre. Po-
ção, o acto sexual pelo menos no seu princípio e na sua possibili- dia conhecer "um casamento honrado" e "um leito imaculado"'"'.
dade originária. Uma passagem de A Cidade de Deus é sobre este Mas, uma vez dissociada esta categoria geral da corrupção que
ponto particularmente significativa. Na preocupação de manterem ligava a relação sexual à morte e à impureza, o problema é o de
o princípio de uma existência paradisíaca incorrupta, muitos exe- sabermos o que podia ser a relação dos sexos entre mortais para
getas negavam toda a relação física entre Adão e Eva antes da sua os quais a morte não era ainda inevitável, e nos quais a falta não
falta. A humanidade anterior à queda era, pois, virgem, e a virgin- introduzira ainda a impotência, a fraqueza, as paixões e todas as
doenças do corpo e da alma. E m suma: é necessário fazer-se a
98 SANTO AGOSTINHO, De Genesi ad litteram, IX, 9,16-17. teoria das relações entre o acto sexual e a concupiscência.
99 Quando Agostinho fala da necessitas mortis, quando diz que todos os ho-
mens são morituri, dá um sentido forte e preciso a estas expressões: trata-se de
distinguir esse inevitável futuro dos homens caídos do estatuto de homo mortalis 100 SANTO AGOSTINHO, A Cidade de Deus, XIV, 26.
dado aos nossos primeiros pais. 101 [Epístola aos Hebreus, 13,4.]
índice das obras citadas

A BÍBLIA'

Antigo Testamento

Génesis
Pp. 53,58,181-182,185,205-206,279, 289,317, 321-322, 355,411,425,
, 427
Êxodo
Pp. 403,410
Levítico
Pp. 28,46,50,186,191,339
Samuel
R 422
Salmos
Pp. 404,407
Provérbios
P 132
Isaías
R 410
Jeremias
Pp. 48,406,411-412
Ezequiel
Pp. 28,401,408-409,417

1 Michel Foucault não se atém nunca a uma só tradução: pode citar a tradução
de Louis Segond, a da Bíblia de Jerasalém (Paris, Éd. du Cerf, 1977) ou a dos
tradutores de tratados patrísticos.
432 índice das obras citadas 433
As Confissões da Carne

Zacarias P. G. Patrologice cursus completus. Series Grceca, edição de J.-P. Mig-


P.407
ne, Paris, 1857-1866.
Apocalipse
P. L . Patrologice cursus completus. Series Latina, edição de J.-P. Mig-
Pp. 188-190
ne, Paris, 1844-1865.
B. A. "Bibliothèque augustinienne". Paris, Desclée de Brouwer.
Novo Testamento
(E. C. São João Cristóstomo, CEuvres completes, tradução em francês
Evangelho de São Mateus sob a direcção de M. Jeannin, Bar-le-Duc, L . Guérin & C=, édi-
Pp. 306,312 teurs, 1863-1867.
Evangelho de São João (E. T. CEuvres de Tertullien, Paris, L . Vives, 1852.
P.414
Actos dos Apóstolos SANTO AGOSTINHO
P.65 De bono conjugali, texto estabelecido e traduzido em francês por G. Com-
Paulo, Primeira Epístola aos Coríntios bès, B. A., 1948.
Pp. 60,165,181-183,213,281,304, 332,335 Pp. 273,303,308,318,321,325-344,346,349
Paulo, Epístola aos Gálatas De bono viduitatis, texto estabelecido e traduzido em francês por J. Saint-
P.57 -Martin,B.A., 1939.
Paulo, Epístola aos Efésios Pp. 303,305,309
Pp. 274,277 De catechizandis rudibus, texto estabelecido e traduzido em francês por
Paulo, Epístola aos Colossenses G. Combès e A. Farges, B. A., 1949.
Pp. 217,254 Pp. 317-318
Paulo, Epístola aos Hebreus De conjugiis adulterinis, texto estabelecido e traduzido em francês por G.
Pp. 93,429 Combès, B. A., 1948.
Primeira Epístola de São Pedro R303
P.415
De continentia, texto estabelecido e traduzido em francês por J. Saint-
-Martin,B. A., 1939.
Pp. 165,206,303
AUTORES ANTIGOS^
Contra duas epistulas Pelagionorum, texto estabelecido e traduzido em
francês por F.-J. Thonnard, E . Bleuzen e A. C. De Veer, B. A., 1974.
Abreviaturas
P351
C.U.F. "Collection des Universités de France" ("Collection Budé"), Pa- Contra Faustum, P. L . , tomo 42.
ris, Les Belles Lettres. R425
S. C . "Sources chrétiennes". Paris, Éditions du Cerf Contra Julianum, texto traduzido por Abade Burleraux, in CEuvres com-
pletes de saint Augustin, sob a direcção de Monsieur Poujoulat e Abade
Raulx, Bar-le-Duc, 1864-1872,17 volumes, tomo X V I , 1872.
2 Menciona-se para cada obra a tradução ou edição que Michel Foucault consultou
habitualmente. No entanto, muito pontualmente, poderá referir-se a outra fonte — por Pp. 308, 326,347-349,351,354,358,367,370-371, 374-375,379
exemplo, para Santo Agostinho: Monsenhor Péronne et ai. Paris, L. Vives, 1869- La Cité de Dieu, texto traduzido em francês por G. Combès, B. A., 1959-
-1878; ou para São João Crisóstomo: Padre Bareille eia/.. Paris, L. Vives, 1865-1873, -1960.
ou ainda: Padre Joly, Nancy. Bordes Frères, 1864-1867. Há que dizer que as citações Pp. 321,323,325,346-347,351-352,357,359-365,428-429
podem ter sido reformuladas por Foucault a partir do texto latino ou grego (de resto, Discours sur les Psaumes, P. L . , tomos 36 e 37.
não hesita em se referir directamente à Patrologia, grega ou latina, de Migne). Pp. 117-118,202,359
434 índice das obras citadas As Confissões da Carne 435

De Genesi ad litteram, texto estabelecido e traduzido em francês por P. De lapsu virginis consecratae, P. L . , tomo 16.
Agaesse e A. Solignac, B. A., 1972. Pp. 165,216
Pp. 207, 321-322,324,352,356-358,363,428 De officiis ministrorum, P. L . , tomo 16.
De Genesi contra Manichaeos, in CEuvres completes de saint Augustin, Pp. 401,415-416,418
tomo I I I , tradução em francês por Monsieur Péronne et al.. Paris, L . De paenitentia, texto estabelecido e traduzido em francês por R. Gryson,
Vives, 1873. S.C., 1971.
Pp. 316-317, 356 Pp. 95-97,99,107,109,115,117
De grada Christi et peccato originali, texto traduzido em francês por J. De paradiso, P. L . , tomo 14.
Plagnieux e F.-J. Thoiinard, B. A., 1976. Pp. 114-115,117,425
R362 De sacramentis, texto estabelecido e traduzido em francês por Dom B.
De nuptiis et concupiscentia, texto traduzido em francês por F.-J. Thon- Botte, S. C , 1961.
nard, E . Bleuzen e A. C. De Veer, B. A., 1974. Pp. 85,87-88
Pp. 308,325-326,348,351-352,355,361-363,367-373 De Spiritu Sancto, P. L . , tomo 17.
Opus imperfectum, P. L . , tomo 45. R96
Pp. 349,351, 365,367, 370-371, 377 De virginibus, P. L . , tomo 16.
Quaestiones in Evangelium secundum Matthaeum I , P. L . , tomo 35. Pp. 165,197,199,203,211
R306 In Psalmum David CXVIII Expositio, P. L . , tomo 15.
Retractationes, texto estabelecido e traduzido em francês por G. Bardy, R 129
B. A., 1950.
R344 SANTO ANTÃO
De sancta virginitate, texto estabelecido e traduzido em francês por J. Apophtègmes des Peres, P. L . , tomo 65.
Saint-Martin, B. A., 1939. R 135
Pp. 165,303-306, 308, 311-314
Sermons, P. L . , tomo 38. ARISTÓTELES
Pp. 82,254,357,359,398 Éthique à Nicomaque, texto estabelecido e traduzido em francês por R.
-A. Gauthier e J.-Y. Jolif, Lovaina-Paris, Publications universitaires de
SANTO AMBRÓSIO Louvain, 1958-1959.
Apologia de propheta David, texto traduzido em francês por M. Cordier, R37
S. C , 1977. Histoire des animaux, texto estabelecido e traduzido em francês por P.
Pp. 114,117 Louis, C.U.F., 1964-1969.
De Caín et Abel, P. L . , tomo 14. „ Pp. 43-44
P 117 Génération des animaux, texto estabelecido e traduzido em francês por R
Enarrationes in Psalmos Davidicos, P. L . , tomo 14. Louis, C.U.F., 1961.
Pp. 96,115 R44
Explanatio symboU, texto estabelecido e traduzido em francês por Dom
B. Botte, S. C , 1961. SANTO ATANÁSIO
P.83 Apologia ad imperatorem Constantium, P. G., tomo 25.
Expositio Evângela secundum Lucam, texto estabelecido e traduzido em R 195
francês por Dom G. Tissot, S. C , 1956-1958. Vita S. Antonu, P. G., tomo 26.
Pp. 115,117 R157
436 índice das obras citadas As Confissões da Carne 437

ATENÁGORAS C L E M E N T E DE A L E X A N D R I A
Supplicatio pro Christianis (Supplique au sujet des chrétiens), texto esta- Excerpta ex Theodoto, P. G., tomo 9.
belecido e traduzido em francês por G. Bardy, S. C., 1943. R67
R22 Le Pédagogue, texto traduzido em francês por H.-I. Marrou e M. Harl, S.
Legado, texto estabelecido por W. Schoedel, Oxford, Clarendon Press, C , 1960.
1972. Pp. 23-30,32-35,38-40,42,44-53,55,57-60,128-129,180,257
Pp. 166 Le Protreptique, texto estabelecido e traduzido em francês por C. Mondé-
sert,S.C., 1949.
BARNABÉ, PSEUDO-BARNABÉ Pp. 24,59
Épttre, texto traduzido em francês por Irmã Suzanne-Dominique e Fr. Quis dives salvetur, P. G., tomo 9.
Louvei, in Les Écrits des Peres apostoliques. Paris, Éd. du Cerf, 1979, Pp. 95,130
tomo III. Les Stromates (11), texto estabelecido e traduzido em francês por C. Mon-
désert, H.-I. Marrou e O. Staehlin, S. C , 1976.
Pp. 46,65,94,167,254
Pp. 23,32-34,38,58
Les Stromates (III), P. G., tomo 9.
BASÍLIO DE ANCIRA
Pp. 24,32, 38,57-59,201,267
De 1'intégrité de la virginité, P. G., tomo 30; traduzido em francês por A.
Vaillant, in São Basílio, De virginitate. Paris, Institut d'études slaves, C L E M E N T E DE ROMA
1943. Première Építre, texto em francês por Irmã Suzanne-Dominique, in Les
Pp. 165,199,204,216-217,220,224-226,228-233 Écrits des Peres apostoliques. Paris, Éd. du Cerf, 1979, tomo I .
De renuntiatione saeculi, P. L., tomo 31.
R93
R 138
BASÍLIO DE CESAREIA SÃO CIPRIANO
Constitutions monastiques, P. G., tomo 31. Correspondance, texto estabelecido e traduzido em francês por Cónego
Pp. 131,149 Bayard, C.U.F., 1925.
Exhortation à renoncer au monde, texto in P. L . , tomo 31. Pp. 96-98,101-105,109,112,115,400-401,414,416
R255 De habitu virginum, P. L . , tomo 4.
Grandes régies, P. G., tomo 31. Pp. 166,171,173-177
R 255 De lapsis, P. L . , tomo 4.
Régies breves, P. G., tomo 31. Pp. 104,109,112,115,400
R 255
CIRILO DE JERUSALÉM
SÃO BENTO Procatéchèse, texto traduzido em francês por A. Faivre, Lyon, J.-B. Péla-
La Régie, texto traduzido por A. de Vogue, S. C , 1972. gaud,1844.
Pp. 136,397 R83

CÍCERO DEMÓCRITO
Definibus, texto estabelecido e traduzido em francês por J. Martha, C.U.F., In Die Fragmente der Vorsokratiker, texto estabelecido por H. Diels e W.
1928-1930. Kranz, Berlim, Weidmann, 1903.
R 187 R52
As Confissões da Carne 439
438 índice das obras citadas

PSEUDO-DEMÓCRITO EUSÉBIO DE CESAREIA


Histoire ecclésiastique, livros MV, texto estabelecido e traduzido em fran-
In Geoponica sive Cassiani Bassi scholastici de re rusUca eclogae, texto
estabelecido por H. Beckh, Leipzig, Teubner, 1895. cês por G. Bardy, S. C , 1962.
R42 R 168

DIÃO CRISÓSTOMO [DIÃO DE PRUSA] EUSÉBIO DE EMESA


Discours 1-11, texto estabelecido e traduzido por J. Cohoon, Cambridge, Homélies, in Clavis Patrum Graecorum. Ab Athanasio ad Chrysosto-
MA, Harvard University Press, Loeb Classical Library, 1932. mum, texto estabelecido por M. Geerard, Turnhout, Brepols, 1974.
Pp. 406,408 Pp. 165,199,204,210,216

DIDAKHÊ EVÁGRIO PÔNTICO


Texto traduzido por R.-F. Refoulé, in Les Écrits des Peres apostoliques. Traité pratique, texto estabelecido e traduzido em francês por A. e C. Gui-
Paris, Éd. du Cerf, 1979, tomo I . llaumont, S. C , 1971.
Pp. 66, 84,94,167,254-255 Pp. 151-152,165,245,399

DIOCLES FAUSTE DE RIEZ


Du regime, in Oribase, Collection médicale. Livres incertains, tomo I I I , Discours aux moines sur la pénitence, P. L., tomo 58.
texto traduzido em francês por U. Bussemaker e Ch. Daremberg, Paris, R393
J.-B. Baillière, 1858.
R29 FÍLON DE A L E X A N D R I A
De opificio mundi, texto estabelecido e traduzido em francês por R. Arnal-
DOROTEU DE GAZA dez. Paris, Éd. du Cerf, 1976.
Vie de Dosithée, in CEuvres spirituelles, texto estabelecido e traduzido em Pp. 206-207
francês por Dom L . Regnault e Dom J. de Préville, S. C , 1964. De specialibus legibus, texto traduzido em francês por S. Daniel e A.
R 138 Moses, Paris, Éd. du Cerf, 1970-1975.
R50
ELIANO De agricultura, texto traduzido em francês por J. Pouilloux, Paris, Éd. du
De natura animalium, texto estabelecido e traduzido em francês por M. Cerf, 1961.
Dacier, Paris, Impr. Auguste Delalain, 1827.
R405
R42

"GALENO
EPICTETO
Commentaire aux Épidémies d'Hippocrate, in Opera omnia, ed. C. G.
Manuel, texto estabelecido e traduzido em francês por A. Jagu e J. Soui-
Kuhn, Leipzig, Cari Cnobloch, 1821-1833, tomo X V I I .
Ihé, C.U.R, 1950.
R52
Pp. 121,187
De utilitate partium, in Opera omnia, ed. C. G. Kiihn, Leipzig, Cari Cno-
EURÍPIDES bloch, 1821-1833, tomo IV ; tradução francesa de Ch. Daremberg, CEu-
Ion, texto estabelecido e traduzido em francês por L . Parmentier e H. Gré- vres anatomiques, physiologiques et médicales de Galien, Paris, J.-B.
goire, C.U.F., 1959. Baillière, 1856.
R37 R 52
440 índice das obras citadas As Confissões da Carne 441

Traité des passíons de Vâme et de ses erreurs, in Opera omnia, ed. C. G. HIPÓCRATES
Kuhn, Leipzig, Carl Cnobloch, 1821-1833, tomo V; tradução francesa de Épidémies, in CEuvres completes, tomo V, texto traduzido por E . Littré,
R. Van der Helst, Paris, Delagrave, 1914. Paris, J.-B. Baillière, 1846.
Pp. 122,125
R 29

GREGÓRIO, O GRANDE SANTO HIPÓLITO


Homélies sur TÉvangile, P. L., tomo 76.
Canons, texto estabelecido e traduzido em francês por R.-G. Coquin, in
Pp. 118-119
Patrologia Orientalis, tomo 31/2, Paris, Firmin-Didot, 1866.
Le Pastoral, texto estabelecido e traduzido em francês por Abade Boutet,
Pp.81,84
Paris, Desclée de Brouwer et Lethielleux, coU. "Pax", 1928.
Tradition apostolique, texto estabelecido e traduzido em francês por Dom
Pp. 401-402,414-418
B. Botte, S . C . , 1946.
Pp. 80-82
GREGÓRIO DE NAZIANZO
Discours 1-3, texto estabelecido e traduzido em francês por J. Bernardi,
IRENEU DE LYON
S . C . , 1978.
Adversus haereses, P. L., tomo 7.
Pp. 100,131,402
Pp. 66,103
GREGÓRIO D E NISSA
ISÓCRATES
De la création de Thomme, texto traduzido em francês por J. Laplace, S.
Aréopagitique, texto estabelecido e traduzido em francês por G. Mathieu,
C , 1943.
R 208 C.U.R, 1942.
Oratio catechetica magna, texto em francês por A. Maignan, S. C , 1978. R404
R88
De la virginité, texto estabelecido e traduzido em francês por M. Aubi- JOÃO CASSIANO
neau, S. C , 1966. Conférences, texto estabelecido e traduzido em francês por E . Pichery, S.
C , 1955-1959.
Pp. 194-195,199-201,207-210,213,216-218,222-223
Pp. 132-135,139-140,142-145,147-149,151-154,156-159,224,234-240,
HERMAS 242,245, 247,249-254,256,260,395
Le Pasteur, texto estabelecido e traduzido em francês por R. Joly, Paris, Institutions cénobitiques, texto estabelecido e traduzido em francês por
S . C . , 1968. J.-C. Guy, S. C , 1965.
Pp. 132, 134-142, 146, 155-157, 160, 224, 234-235, 239-245, 249-253,
Pp. 65-66,68-69, 87,92,115-116
255,259-262, 393-394,396
HIÉROCLES D E A L E X A N D R I A SÃO JOÃO CRISÓSTOMO
Fragments, in JEAN STOBÉE, Florilegium, ed. A. Meineke, Leipzig, Commentaires sur saint Matthieu, in CE. C, tomo 7.
Teubner, 1856-1864, tomo III. R 299
Pp. 27,41 Contre les ennemis de la vie monastique, in CE. C, tomo 2.
SANTO HILÁRIO Pp. 268, 271
In P. L . , tomo 9. Homélie Vidi Dominum, in CE. C, tomo 6.
R 129 R273
442 índice das obras citadas
As Confissões da Carne 443

Homélies sur Anne, in CE. C, tomo 5.


SÃO JERÓNIMO
P.285
Adversus Helvidium De perpetua virginitate B. Mariae, P. L., tomo 23.
Homélies sur TÉpítre aux Colossiens, in CE. C , tomo 11.
Pp. 165,199,213
P.273
Adversus Jovinianum, P. L . , tomo 23.
Homélies sur la Épitre aux Corinthiens, in CE. C, tomo 9.
Pp. 165,168,196,198-199,207, 304
Pp. 273,281,293-294, 297
Lettres, texto estabelecido e traduzido em francês por J. Labourt, C.U.F.,
Sur la Épitre aux Corinthiens. Fragments, in Journal of Theological
1949-1963.
Studies, IX, 1908 (éd. C. Jenkins).
Pp.299 Pp. 107,112,138,165, 168,199,396,414,416
Homélies sur TÉpitre aux Éphésiens, in CE. C, tomo 9.
Pp. 273-281,283-284,286,296 JUSTINO
Homélies sur TÉpítre aux Hébreux, in CE. C, tomo 9.
Apologies, texto traduzido em francês por L . Pautigny, Paris, A. Picard et
Pp. 268,278,286
íils, 1904.
Homélies sur la l" Építre aux Thessaloniciens, in CE. C, tomo 11.
P. 285 Pp. 22,66,68,84
SÃO LEÃO
Homélies sur la F= Építre à Timothée, in CE. C, tomo 11.
Lettres, P. L . , tomo 13.
P. 285
Pp. 97,99,112,398
Homélies sur TÉvangile de saint Jean, in CE. C, tomo 8.
P.88
LUCRÉCIO
Homélies sur la Genèse, in CE. C, tomo 5.
De rerum natura, texto estabelecido e traduzido em francês por A. Ernout
Pp. 114,208-209,212,286,289-290,419-420,423
e L . Robin, C.U.F., 1920-1928.
Trois homélies sur le mariage, in CE. C, tomo 4.
R43
Pp. 273-274,277,280-282,284-287,289,291,296
Homélies sur Ia pénitence, in CE. C, tomo 5.
MARCO AURÉLIO
Pp. 114,419,421,425
Pensées, texto estabelecido e traduzido em francês por A.-I. Trannoy,
Homélies sur saint Matthieu, in CE. C, tomos 7 e 8.
C.U.R, 1925.
P. 121
R 187
Qu'il est dangereux pour Vorateur et pour Tauditeur de parler pour plaire,
in CE. C, tomo 3.
METÓDIO DE OLIMPOS
P. 150
Le Banquei, texto estabelecido e traduzido em francês por H. Musurillo e
Sur le mariage unique, texto estabelecido e traduzido em francês por B.
. V.-H. Debidour, S. C , 1963.
Grillet e R Etdinger, S. C , 1968.
Pp. 171,177-178,180-187,190-193,215
Pp. 280,282,291
Huit catéchèses baptismales, texto estabelecido e traduzido em francês
MUSÓNIO RUFO
por A. Wenger, S. C., 1957.
Reliquiae, texto estabelecido por O. Hense, Leipzig, Teubner, 1905.
R82
Pp. 27,36,55
De la virginité, texto estabelecido e traduzido em francês por B. Grillet e
H. Musurillo, S. C , 1966.
O C E L O LUCANO
Pp. 165, 196-197, 200-201, 204, 208, 210-213, 216, 218, 220-221, 243,
De universi natura, ed. F. W. A. MuUach, Paris, A. Firmin-Didot, 1860.
273,285,287,290,298
R36
444 índice das obras citadas As Confissões da Carne 445

ORÍGENES PLATÃO
Commentaire sur saint Jean, livre VI, texto estabelecido e traduzido em Cratyle, texto estabelecido e traduzido em francês por L . Méridier, C.U.F.,
francês por C. Blanc, S. C , 1970. 1931.
R 88 R69
Contra Celsum, texto estabelecido e traduzido em francês por M. Borret, Les Lois, texto estabelecido e traduzido em francês por A. Diès e E . des
S. C , 1976. Places, C.U.F, 1951-1956.
R43 Pp. 50,272,404,410
Exhortatio ad martyrium, texto traduzido em francês por G. Bardy, Paris, Le Politique, texto estabelecido e traduzido em francês por A. Diès, C.U.F.,
J. Gabalda, 1932. 1935.
R 118 Pp. 405,409
Homélies sur le Cantique des cantiques, texto traduzido em francês por La Republique, texto estabelecido e traduzido em francês por E . Chambry,
Dom O. Rousseau, S. C , 1954. C.U.F., 1931-1934.
R277 Pp. 272,404,408-409
Homélies sur la Genèse, texto estabelecido e traduzido em francês por H.
de Lubac e L . Doutreleau, S. C , 1976. PLOTINO
R 206 Ennéades, texto estabelecido e traduzido em francês por E . Bréhier,
Homélies sur les Nombres, P. G., tomo 12. C.U.R, 1924-1938.
R83 R 187

OVÍDIO POMÉRIO
Métamorphoses, texto estabelecido e traduzido em francês por G. Lafaye, De vita contemplativa, R L., tomo 59.
C.U.R, 1965. R399
R42
QUODVULTDEUS
PACIANO DE BARCELONA Sermones 1-3, texto estabelecido por R. Braun, Turnhout, Brepols, 1953.
Lettres, P. L . , tomo 13. R 84
Pp. 98-99
Parénèse, P. L . , tomo 13, tradução francesa in C. VOGEL, Le Pécheur et RÈGLE DU MAÍTRE
la pénitence dans VÉglise ancienne. Paris, Éd. du Cerf, 1969. Texto estabelecido e traduzido por Adalbert de Vogiié, S. C , 1964.
R 110 R 397

PACÓMIO RUFO D E ÉFESO


Praecepta et Instituía, in Dom A. Boon, Pachomiana Latina, Lovaina, CEuvres, ed. C. Daremberg e C. E . Ruelle, Paris, Imprimerie nationale,
Bibliothèque de la Revue d'histoire ecclésiastique, 1932. 1879.
R394 R52

PAULINUS SÉNECA
Vita Ambrosii, P. L . , tomo 14. De ira, texto estabelecido e traduzido em francês por A. Bourgery, C.U.F.,
R 105 1922.
Pp. 127-128,150,154
446 índice das obras citadas As Confissões da Carne 447

Lettres à Lucilius, texto estabelecido e traduzido em francês por F. Pré- TITO LÍVIO
chac e H. Noblot, C.U.F., 1945-1964. Histoire romaine, tradução francesa sob a direcção de M. Nisard, Paris,
P.55 Firmin Didot frères, 1839.
De tranquillitate animae, texto estabelecido e traduzido em francês por R. R 174
Waltz, C.U.F., 1927.
Pp. 122,124-126 XENOFONTE
Économique, texto estabelecido e traduzido em francês por P. Chantraine,
SORANO C.U.R, 1949.
Traité des maladies des femmes, in Corpus Medicorum Graecorum, t. IV, Pp. 280,283
Leipzig, 1927; tradução francesa de F. J. Hergott, Nancy, Impr. Berger-
-Levrault, 1895.
Pp. 51-52 AUTORES MODERNOS

TERTULIANO A.p'ALÈS
Adversus Marcionem, texto estabelecido e traduzido em francês por A.-E. UÉdit de Calliste. Étude sur les origines de la pénitence chrétienne. Paris,
de Genoude, in CE. T, tomo 1. Beauchesne, 1914.
Pp. 72,267 Pp. 93,103
De baptismo, texto estabelecido e traduzido em francês por F. Refoulé e
DOM D. AMAND E C. MOONS
M. Drouzy, S. C , 1952.
"Une curieuse homélie grecque inédite sur la virginité adressée aux pères
Pp. 71-72,77,84,118
de famille", Revue bénédictine, L X I I I , 1953.
De carne Christi, trad. A.-E. de Genoude, in CE. T., tomo 1.
Pp. 165,203,221
P59
De cultu feminarum, texto estabelecido e traduzido em francês por M.
E . AMMAN
Turcan, S. C , 1971.
Entrada "Pénitence", Dictionnaire de theologie catholique. Paris, Letou-
R173
zey et Ané, 1933, tomo X I I .
Exhortatio ad castitatem, trad. A.-E. de Genoude, in CE. T, tomo 3.
R 103
Pp. 171-172,268
De paenitentia, texto estabelecido e traduzido em francês por P. de La- A. BENOÍT
briolle, Paris, Picard, 1906. Le Baptême chrétien au second siècle. La theologie des Pères, Paris, PUF,
Pp.71-79,96,108-112,115-116 1953.
De pudicitia, texto traduzido em francês por P. de Labriolle, Paris, Picard, Pp. 65,87
1906.
Pp 106,109,118,171 J.-R BROUDÉHOUX
De resurrectione carnis, trad. A.-E. de Genoude, in OE. T, tomo 1. Mariage et famille chez Clement d'Alexandrie, Paris, Beauchesne, 1970.
Pp. 87,166,214 R 62
Ad uxorem, trad. A.-E. de Genoude, in CE. T, tomo 3.
Pp. 171,173,214,268 O.CHADWICK
De virginibus velandis, trad. A.-E. de Genoude, in CE. T, tomo 3. John Cassien. A Study in Primitive Monasticism, Cambridge, Cambridge
Pp. 171-173,215,268 University Press, 1950.
R 134
448 índice das obras citadas As Confissões da Carne 449

A. D E L A T T E J. GROTZ
Essai sur la politique pythagoricienne, Paris et Liège, Bibliothèque de la Die Entwicklung des Busstufenwesens in der vornicãnischen Kirche,
Faculte de Philosophie et Lettres de l'Université de Liège, 1922. Fribourgen-Brisgau, Herder, 1955.
P.404 Pp. 98, 104

F. J. DÕLGER R. GRYSON
Der Exorzismus im altchrisílichen Tau/ritual: eine religionsgeschichtli- Le Prêtre selon saint Ambroise, Lovaina, Éd. Orientalistes, 1968.
che Studie, Paderborn, F. Schõningh, 1909. Pp. 99, 104
R 82
Sphragis, Paderborn, F. Schõningh, 1911. J.-C. G U Y
R65 "Examen de conscience (chez les Pères de TÉglise)", Dictionnaire de Spi-
ritualité. Paris, Beauchesne, t. IV, 1961.
A. DONDEYNE R 128
"La discipline des scrutins dans TÉglise latine avant Charlemagne", Revue
d'histoire ecclésiastique, X X V I I I , 1932. I . HADOT
R83 Séneca und die griechisch-rômische Tradition der Seelenleitung, Berlim,
De Gruyter, 1969.
R. DRAGUET R 123
Les Pères du Désert, Paris, Plon, 1949.
R 135 R HADOT
"Théologies et mystiques de la Grèce hellénistique et de la fin de l'An-
M. DUJARIER tiquité", Annuaire de TÉcole pratique des hautes études, 5.^ secção, t.
Le Parrainage des adultes aux trois premiers siècles de VÉglise, Paris, L X X X V , 1970.
Éd. du Cerf, 1962. R 142
R81
A. VON HARNACK
H. FRANKFORT Die Mission und Ausbreitung des Christentums in den ersten drei
La Royauté et les Dieux, trad. J. Marty e P. Krieger, Paris, Payot, 1951. Jahrhunderten, Leipzig, J. C. Hinrichs, 1906.
R 403 R 166

C. J. GADD I . HAUSHERR
Ideas of Divine Rule in the Ancient East, Londres, Oxford University Direction spirituelle en Orient autrefois, Roma, Pont. Institutum Orienta-
Press, 1948. lium Studiorum, 1955.
Pp. 403,406 Pp. 131,135,138,139,149

E . GÕLLER H. JAEGER
"Analekten zur Bussgeschichte des 4. Jahrhunderts", Rômische Quartals- "Uexamen de conscience dans les religions non chrétiennes et avant le
chrift,XXXVl, 1928. christianisme", Numen, V I , 1959.
R 104 R 124
450 índice das obras citadas As Confissões da Carne 451

" R. L A B A T K. VON PREYSING


Le Caractere religieux de la royauté assyro-babylonienne. Paris, Librai- "Ehezweck und zweite Ehe bei Athenagoras", Theologische Quartals-
rie d'Amérique et d'Orient, 1939. chrift, CX, 1929.
R407 R22

R LUNDBERG R QUATEMBER
La Typologie baptismale dans Vancienne Église, Leipzig, Éd. A. Lorentz, Die christliche Lebenshaltung des Klemens von Alexandrien nach dem
1942. Pãdagogus, Viena, Verlag Herder, 1946.
R 87 R29

I. M A G L I R RABBOW
Gli uomini delia penitenzia, Bologne, Capelli, 1967. SeelenfUhrung. Methodik der Exerzitien in der Antike, Munique, Kõsel-
R392 -Veriag, 1954.
R 123
E. E. MALONE
K. RAHNER
Martyrdom and Monastic Profession as a Second Baptism, Diisseldorf,
"La doctrine d'Origène sur la pénitence", Recherches de science religieu-
Vom christlichen Mysterium, 1951.
se, X X X V I I , 1950.
R 118
R99
H.-I. MARROU E J. DANIÉLOU
PH. DE ROBERT
Nouvelle histoire de TÉglise, Paris, Le Seuil, 1963.
Les Bergers dlsraêl. Genebra, Labor et Fides, 1968.
R 269
Pp. 403,410-411

S. MORENZ A. SAGE
La Religion des Égyptiens, trad. L . Jospin, Paris, Payot, 1962. "Le péché originei dans la pensée de saint Augustin", Revue d'études au-
Pp. 407-408 gustiniennes, XV, 1969.
R363
J. MORINUS
Commentarius historicus de disciplina in administratione sacramenti A. TURCK
paenitentiae, Anvers, 1682. Évangélisation et catéchèse aux deux premiers siècles. Paris, Éd. du Cerf,
R 103 1962.
R66
J. PARGÈS "Aux origines du catéchuménat", Revue des sciences philosophiques et
Les Idées morales et religieuses de Méthode d'Olympe, Paris, Beauchesne, théologiques, XLVIII, 1964.
1929. R79
R 187
L. VERHEUEN
B.POSCHMANN Nouvelle approche de la Règle de saint Augustin, Bégrolles-en-Mauges,
Paenitentia secunda, Bona, P. Hanstein, 1940. Abbaye de Bellefontaine (Vie monastique, VIII), 1980.
Pp. 67,93,103 R307
452 índice das obras citadas

P. V E Y N E
Le Pain et le Cirque, Paris, Le Seuil, 1976.
P.406

F. D E B. VIZMANOS
Las vírgenes cristianas de la Iglesia primitiva, Madrid, La Editorai Ca-
tólica, 1949.
R 196

C.VOGEL
La Discipline penitentielle en Gaule, Paris, Letouzay et Ané, 1952.
R 399
Le Pécheur et la pénitence dans VÉglise ancienne. Paris, Éd. du Cerf,
1966.
R393

A. VOÔBUS
History ofAsceticism in the Syrian Orient, Lovaina, Secrétariat du Corpus
Scriptorum Christianorum Orientalium, 1958.
R 394
Advertência, por Frédéric Gros 7

I. [A formação de uma experiência nova] 19


I. Criação, procriação 21
[II. O baptismo laborioso] 65
[III. A segunda penitência] 92
[IV. A arte das artes] 121

II. [Ser virgem] 163


[I. Virgindade e continência] 170
[II. Das artes da virgindade] 194
[III. Virgindade e conhecimento de si] 224

III. Ser casado 265


I . O dever dos esposos 267
II. O bem e os bens do casamento 303
[III. A libidinização do sexo] 346

Anexos
Anexo 1 387
Anexo 2 388
Anexo 3 • 419
Anexo 4 427

índice das obras citadas 431

Вам также может понравиться