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RICARDO MOREIRA MIGON

CIDADE DE DEUS E DE DIREITOS:


Do Protagonismo Social ao Protagonismo Local.

Monografia de Conclusão do Curso de Graduação em Ciências Sociais da


Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Orientador: João Trajano Sento-Sé

Co-orientador: Paulo José Ribeiro Magalhães

Rio de Janeiro - 2008


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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO PÁG. 3

INTRODUÇÃO PÁG. 5

CAPÍTULO I PÁG. 16

CAPÍTULO 2 PÁG. 41

CAPÍTULO 3 PÁG. 52

CAPÍTULO 4 PÁG. 80

CONSIDERAÇÕES FINAIS PÁG. 104

CONCLUSÃO PÁG. 106


3

APRESENTAÇÃO

Este trabalho teve início em meados do ano de 2006, quando, em uma


palestra de apresentação do “Projeto Cidade de Deus de Desenvolvimento Local”,
ocorrida no auditório da Caixa Econômica Federal no centro do Rio de Janeiro,
mantive meu primeiro contato com a comunidade organizada e com os conceitos e
metodologias utilizados naquele empreendimento social em construção. A princípio
fiquei muito empolgado com o suposto e propagado ineditismo do projeto, que tinha
como conceito chave o “protagonismo local”, algo que a comunidade definia como
uma ação coletiva no sentido da exigência de direitos constitucionais, numa
interação direta com o Estado, as instituições e os representantes eleitos
(vereadores, deputados, senadores, etc.). Foi a possibilidade de estudar uma
iniciativa social “inédita”, que me levou a escolher aquele movimento social e o
projeto de Desenvolvimento Local da Cidade de Deus como temas da minha
monografia de conclusão de curso. Logo percebi, que não poderia ficar restrito ao
conceito de protagonismo local definido pela comunidade e fui tentar encontrar a
resposta para as seguintes perguntas: O que é “protagonismo local”? Quais as
origens deste conceito político? É mesmo algo inédito ou é resultado de
desdobramentos de ações realizadas ao longo de décadas pelos movimentos
sociais de base no Rio de Janeiro? Foi “criado” realmente, única e exclusivamente, a
partir de idéias formuladas por intelectuais da própria comunidade; foi uma
construção coletiva popular; ou resultado de uma síntese dialética entre o saber
local, o saber acadêmico e as tecnologias sociais construídas, ao longo de pelo
menos duas décadas por ONG’s, e pela sociedade civil organizada? Quais os
fatores históricos, sociais, políticos e econômicos que possibilitaram o “surgimento”
ou a “invenção” desta nova maneira dos pobres urbanos fazerem política? Quais os
limites do “protagonismo local” e como superá-los?

Eram muitas perguntas e poucas respostas. A maior dificuldade que enfrentei


foi a total inexistência de uma bibliografia que tratasse especificamente do conceito
de “protagonismo local”. Não encontrei nada sobre o assunto, pelo menos não
exatamente sobre este conceito. Tive que ir tateando o tema, buscando informações
sobre ONG’s e sobre os movimentos sociais urbanos. Precisei também conhecer um
pouco da bibliografia existente sobre a Cidade de Deus, sobre a gênese da
comunidade e o processo histórico ocorrido desde sua fundação.
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Outra dificuldade foi conciliar a pesquisa bibliográfica e a leitura com o


trabalho de campo e minhas outras atividades, acadêmicas, profissionais e pessoais.
Priorizei, num primeiro momento, o trabalho de campo, pois não podia perder a
oportunidade de observar, in loco, um projeto e um processo em plena construção.
Isso me possibilitou acompanhar, em tempo real, boa parte das discussões e dos
problemas enfrentados pela comunidade para realizar as metas do projeto. A
pesquisa bibliográfica e a leitura foram realizadas, em sua maior parte, depois da
observação no campo. Isso prejudicou um pouco a pesquisa e a organização das
minhas idéias. Cheguei na comunidade conhecendo muito pouco do assunto que
queria estudar, o que talvez tenha prejudicado o meu olhar sobre os acontecimentos
que então se desenrolavam. Acredito que tenha deixado passar uma série de
informações que não anotei por não julgar relevante na época. A maior parte da
leitura foi realizada já numa fase de distanciamento do meu objeto de estudo. O que
pude fazer foi tentar controlar o viés da pesquisa, pois estava me colocando – e
continuo a me posicionar - explicitamente a favor daquele projeto e daquelas
pessoas que havia conhecido durante as visitas à comunidade. Foi nesse momento
que precisei fazer o exercício intelectual de desconfiar das minhas certezas e
também das afirmações dos membros da comunidade e dos colaboradores do
projeto. A partir daí comecei a perceber que, o que antes parecia inédito e
autônomo, na realidade só estava acontecendo por que o cenário histórico, social,
político e econômico, possibilitou a eclosão daquele tipo de proposta. Pelo menos
esta é a minha interpretação.

Ao mesmo tempo, acredito que minhas constatações de maneira nenhuma


desvalorizam o papel histórico do movimento social que estudei. Não nego sua
importância e confesso que admiro o trabalho ora protagonizado pelos moradores da
Cidade de Deus. Meu trabalho enquanto cientista social foi procurar descortinar
algumas “verdades” que pareciam ter sido assimiladas com muita facilidade, o que a
meu ver criava uma espécie de “falsa consciência”. Confesso que hoje, tenho
algumas dúvidas sobre se esta “falsa consciência” pertencia a “eles”, ou - o que é
muito mais provável -, a mim.
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INTRODUÇÃO

Para iniciar este trabalho quero reproduzir na íntegra um artigo publicado no


jornal “O Globo” no final de 2007:

“Não adianta usar a favela como tema e botar a cabeça no travesseiro achando que tá fazendo
uma grande coisa. Um filme, um livro, um CD ou um programa de TV não muda a realidade
de nada. É óbvio que ajuda a mover as idéias na sociedade, essas, sim, mudam para o bem,
para o mal, mas apesar de isso ser muito de um lado, é muito pouco diante de questões
urgentes como a fome e a violência urbana. Pra falar de um assunto da moda, vou citar a bola
da vez: Tropa de Elite. É lógico que Tropa de Elite não vai mudar o Brasil. É até injusto botar
essa responsabilidade numa obra cinematográfica, pois sua função é outra, é discutir idéias e,
quem sabe, de quebra, dar uma forcinha pro cinema brasileiro; não é resolver problemas
reais”.

“Quem tem que resolver problemas reais são os governos pressionados por uma sociedade
atuante”.

“Se algum filme ou programa de TV resolvesse alguma coisa, “Pixote – A Lei do Mais Fraco”
tinha mudado a realidade dos meninos de rua no Brasil há décadas. Na época, o filme de
Babenco foi indicado ao Globo de Ouro como Melhor Filme Estrangeiro, fez um barulho
danado, e todo mundo sabe que não resolveu nem a vida do Fernando Ramos, O Pixote, que,
foi assassinado por PMs na favela de Diadema (SP), em agosto de 1987”.

“A verdade é a seguinte: ou a gente troca esse disco e a periferia se impõe virando


protagonista do modo de produção desses produtos ou a favela vai estar mais uma vez sendo
usada. Nem tô falando do Padilha, ok? Não lembro de tê-lo visto falando que o filme era um
instrumento político e tal. Ele se coloca como cineasta e ponto. O problema é quando a favela
é tema de livro na Zona Sul e o autor acha que tá fazendo alguma coisa pela favela e ainda
recebe dinheiro público para tal. Isso é o que, no sapatinho, a gente chama de “exploração do
bem”, ou seja, uma coisa tão absurda que nem existe! Nem se trata dos asfaltistas abrirem
seus coraçõezinhos (leia-se os cofres abarrotados), mas de a periferia ir abrindo seu espaço,
editando seus próprios livros ou fazendo parcerias, fazendo seus próprios filmes, seus
próprios programas de TV, ou, amigo, de boa intenção todo mundo sabe que o inferno ta
cheio”.

“Outro lugar que também tá cheio de gente bem-intencionada são as coberturas ou mansões
de frente pro mar. Só que o Monarco continua morando na Mangueira. Eu não tenho nada
6

contra as coberturas e mansões, tanto é que quero a minha também, afinal a nossa luta não é
pra dividir a miséria, mas a riqueza! O lance é que quando a “intelectualidade do bem” faz um
programa de TV defendendo o samba, o Monarco, coitado, fica com a merreca das vendas.
Todo mundo quer ser porta-voz da cultura da favela, todo mundo diz que a favela vai lucrar
com essa exposição na mídia, mas o dinheiro não chega na favela, irmão! Queria ver alguém
ser porta-voz daquele pianista fodão Nelson Freire sem ele lucrar o percentual majoritário na
parada! O barraco ia baixar nos salões mais chiques do mundo, e com razão! O fato é que
pimenta no cuzcuz dos outros é refresco”.

“Eu sou a favor de juntarmos as mãos para mudar a realidade, mas sem esquizofrenia e
oportunismo. Favela é favela, elite é elite. E quando o assunto for favela, não vem querer me
convencer que você entende mais do que nós. Não vai querer se dar bem em cima da nossa
foto. Porque depois de desatarmos as mãos, ao fim de uma reunião, cada um vai pra sua casa e
a vida fica bem diferente. Faz um tempão que a intelectualidade escreve dezenas de livros, faz
filmes e tem um monte de opinião sobre o que deve ser feito. Bacana. Mas quem de fato
começou a dar alguma espécie de solução para a favela foi ela própria. Movimentos como
AfroReggae, Nós do Morro, Observatório das Favelas, Bagunçaso, Cine Periferia, MCR, são
reconhecidos pelo poder público do Brasil e do mundo como iniciativas que criaram
oportunidades inéditas, nunca sequer imaginadas. E não eram, porque as “soluções” vinham
da intelectualidade endinheirada. Hoje, essas instituições, constroem modelos bem sucedidos
e já começam a criar um embrião de geração de intelectuais de favela. Isso mesmo. Temos
nossos próprios protopensadores pensando do nosso jeito. No primeiro ano pode até sair
meia-boca. No segundo, também. Mas no terceiro dá certo e se não der, se precisamos de 300
anos, tudo bem, já começou a contar”!

“Essas organizações criaram arduamente o conceito de “protagonismo social”, que significa


que a própria favela se remoeu e arranjou sua próprias soluções, e isso só foi possível porque
elas começaram a fazer as coisas do seu próprio jeito. Resumindo: se quiser me ajudar, irmão,
deixa eu fazer meu próprio show. A favela já esta bem grandinha em termos institucionais,
políticos e estéticos, ela já pode falar por si, e negociar com as outras instituições de igual pra
igual. Qualquer coisa diferente disso me parece e é tentativa de “infantilizar” a favela no
assunto mais difícil de todos: grana! Que é onde o bicho sempre pega e o coração dos
“intelectuais do bem” sempre aperta”.

“O bagulho é tão doido que o preto e pobre sempre apareceu na TV e nada muda. A novidade
mais importante dessa história é colocar os pretos pobres fazendo TV, cinema, teatro, livros e
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tudo mais. E assim tornar essa indústria cultural mais justa socialmente. Do contrário, é
enganação, não é justiça social, é apenas Justiça Visual ou até visual de justiça”.1

A escolha deste artigo é relevante por tratar de diversos temas que serão
abordados ao longo deste trabalho. Creio ser necessário, portanto, realizar uma
análise minuciosa do que está posto no texto acima, com o objetivo de descortinar
alguns conceitos e idéias que foram colocados pelo autor e, a partir daí, apresentar
os motivos que me levaram a escolher meu objeto de pesquisa, assim como
algumas das temáticas e hipóteses com as quais irei trabalhar.

Em primeiro lugar, quero dizer que sou nascido e criado na Zona Sul da
cidade do Rio de Janeiro. Nasci no Humaitá e morei em Copacabana e no Jardim
Botânico durante meus primeiros anos de vida. Dos quatro aos sete anos vivi em
Jacarepaguá. Aos oito, fui morar em Botafogo onde residi em um condomínio de
classe média até os 21 anos de idade. Mais tarde morei no Leme e no Bairro
Peixoto. Estudei em um dos mais conceituados colégios do Rio de Janeiro, o Santo
Inácio. Meu colégio mantinha uma creche no Moro Dona Marta e cheguei a participar
algumas vezes de visitas à comunidade para ajudar no trabalho realizado na creche.
Também participei de diversas festas organizadas pela escola, que tinham como
objetivo arrecadar fundos para a manutenção das ações sociais do colégio no morro,
as “famosas” FESOE’s (Feira de Solidariedade). Desde cedo percebi que muitos
pais contribuíam financeiramente e através de trabalho voluntário, por que
acreditavam que dessa forma o colégio seria bem visto pela comunidade do Dona
Marta, e, por conseguinte, seus filhos não seriam assaltados a caminho do colégio.
A solidariedade era grande, mas havia um interesse maior que era a segurança dos
seus filhos. Eu já conseguia entender, naquela época, que para aqueles pais, a
favela era um lugar de marginalidade e crime. Todos eles, inclusive os padres,
associavam a pobreza com a criminalidade. Eu nunca consegui ter certeza de que a
equação (pobreza+ favela = crime) fosse algo tão simples.

Durante toda a minha adolescência e juventude convivi com extremos. Meu


círculo de amizades era formado por gente muito rica, por pessoas de classe média
e por moradores de favelas, que conhecia das praias do Leme, Copacabana,

1
ATHAYDE, Celso. Justiça Visual. O Globo. Rio de Janeiro. 25.11.2007. Caderno Rio. Informe Publicitário:
“Central da Periferia”, p. 22.
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Ipanema, Leblon, São Conrado e Barra da Tijuca. Desde os dezessete anos


freqüento favelas, elas sempre me atraíram. Conheço as vielas, becos e ladeiras de
diversas, principalmente da Zona Sul e da Zona Norte da Cidade. Só para citar
algumas: Chapéu-Mangueira, Morro da Babilônia, Pavão-pavãozinho, Cantagalo,
Vidigal, Cruzada São Sebastião – que na verdade é um conjunto habitacional –
Santa Marta, Rocinha, Serro-Corá, Ladeira do Guararapes, Santo Amaro, Morro do
Salgueiro, Boréu, Chacrinha, Tuiutí, Mangueira, Morro dos Macacos, Andaraí, Morro
da Coroa, Mineira, etc. Em todos esses lugares, que conheci e frequentei pelos mais
diversos motivos – bailes Funk, Rodas de Samba, pra tomar cerveja em dia de
eleição, pra prestar solidariedade em casos de catástrofes naturais como enchentes
e deslizamentos, pra visitar conhecidos, jogar bola, etc. - sempre me interessei pela
vida dos moradores e principalmente pelas condições de vida das comunidades.
Algo que sempre me indignou foi a disparidade entre o meu nível de vida e o dos
meus amigos de colégio e de bairro; e o dos moradores das comunidades. Sempre
me interessei em conversar com aquelas pessoas e em procurar entender a
realidade delas. As diferenças sociais, tão evidentes em nossa cidade, sempre me
arrebataram com um sentimento de indignação e quando resolvi estudar Ciências
Sociais foi justamente para tentar entender melhor aquela realidade, e, se possível,
contribuir para a melhoria das condições de vida dos pobres e favelados do Rio de
Janeiro. É para isso que procuro estudar a fundo a realidade e as especificidades da
vida nas favelas. Acredito que o instrumental teórico é indispensável para que as
intervenções sociais nessas áreas possam ser feitas com qualidade e efetividade.

Dessa forma, voltando ao artigo de Celso Athayde, não tenho a menor dúvida
de que usar a favela como tema é algo importante e capaz de contribuir para a
transformação da vida concreta das comunidades faveladas. Boto minha cabeça no
travesseiro, toda noite, com a maior tranqüilidade.

Em segundo lugar, acreditar que “um filme, um livro, um CD ou um programa


de TV não muda a realidade de nada” é menosprezar por completo a força das
idéias e o que elas podem fazer para o bem ou para o mal. Um filme pode ser um
ótimo instrumento para a dominação – é só lembrarmos de Hollywood e das técnicas
nazistas de propaganda - ou um veículo de conscientização das massas para
atuarem no sentido de uma transformação positiva da sociedade. Na própria Cidade
de Deus, onde a CUFA - entidade da qual o autor é coordenador nacional -, possui
9

um núcleo importante; um filme, “Cidade de Deus”, foi capaz de mobilizar uma parte
da comunidade e de agregar políticas e ações que antes estavam desarticuladas.
Além disso, há uma contradição evidente no argumento do autor: se ele acredita que
um filme não possa mudar a realidade, por que a CUFA investe tanto em oficinas de
capacitação em audiovisual. Por que diz que ou “a periferia se impõe virando
protagonista do modo de produção desses produtos ou a favela vai estar mais uma
vez sendo usada” (sic!). Os livros são capazes de mudar vidas, trajetórias, idéias e
também atitudes, induzindo a realização de ações concretas na vida real e cotidiana.
Com relação aos CDs e aos programas de TV a constatação é a mesma: podem
funcionar como instrumentos de conscientização, de alienação ou simplesmente
como entretenimento.

O preconceito de Athayde, com o que chama de “intelectuais do bem”, não se


justifica. O que é engraçado, para não dizer trágico, é que o programa “Central da
Periferia”, que dá nome à coluna assinada por Athayde, é veiculado na maior
emissora de TV do Brasil, produzido com a ajuda de alguns “intelectuais do bem”,
entre eles o Antropólogo Hermano Vianna, e boa parte da equipe do programa, de
acordo com o conceito utilizado por Athayde, pode ser considerada uma elite. Pois a
grande verdade é que a televisão que se faz no Brasil é ditada por uma elite branca,
residente na Zona Sul e na Barra da Tijuca, e, por incrível que pareça, o grupo de
Athayde está intimamente ligado a ela.

Em terceiro lugar, tenho que concordar com a afirmação “Quem tem que
resolver problemas reais são os governos pressionados por uma sociedade atuante”.
Não há a menor dúvida de que a favela precisa se impor e atuar como protagonista,
não apenas na realização de produções audiovisuais e de livros, como, muito mais
importante, atuando na exigência de direitos, na formulação, acompanhamento,
avaliação e execução de políticas públicas. Mas a favela não irá conseguir isso
através de discursos segregadores e intolerantes. O discurso e a ação política dos
favelados precisa ser o da solidariedade, da união, da luta contra a fragmentação
dentro dos próprios movimentos sociais de base. Na ausência de um paradigma que
se contraponha à lógica neoliberal dominante, o possível é buscar a ampliação e a
radicalização da democracia, o fortalecimento dos movimentos sociais, a união em
torno de objetivos comuns como habitação, saneamento básico, trabalho e renda,
educação de qualidade e segurança pública, inclusive para os moradores de favela,
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não apenas para as classes mais abastadas. Não é através de um discurso do tipo
“Eu sou a favor de juntarmos as mãos para mudar a realidade, mas sem
esquizofrenia e oportunismo. Favela é favela, elite é elite” que se vai transformar a
realidade da favela e se conseguir parceiros para essa empreitada. O ressentimento
com o grupo social que Athayde chama de “elite intelectual endinheirada” não
contribui muito para o debate, muito menos para a ação. Eu, por exemplo, moro na
Baixada Fluminense há três anos e também sofro os efeitos desta época de
desemprego estrutural, salários rebaixados, flexibilização das relações de trabalho e
desmonte do Estado. Apesar do local onde moro não ser uma favela, é sabido que a
baixada Fluminense padece de problemas semelhantes aos das comunidades mais
pobres do Rio e de Janeiro e do Brasil, em especial a carência de serviços públicos
de qualidade, e o estigma. O fato é que não consegui manter o padrão de vida dos
meus pais, algo muito comum para jovens e adultos de hoje. Se o problema é morar
na Zona Sul e ser “endinheirado”, então me sinto ainda mais à vontade para falar de
favela. E quando Athayde argumenta que, “quando o assunto for favela, não vem
querer me convencer que você entende mais do que nós”, comete um erro primário.
Dizer que só quem mora em favelas conhece o assunto e pode dele falar, é o
mesmo que dizer que só um banqueiro pode falar de dinheiro e de investimento, já
que é ele que tem a grana. Seguindo esse raciocínio, como poderiam os pobres e os
favelados opinar sobre gastos e investimentos públicos, como poderiam propor
intervenções em suas localidades, se todas elas custam dinheiro! O fato de eu ter
tido a oportunidade de conhecer e andar por diversas favelas do Rio de Janeiro,
também não me autoriza a falar de favelas, muito menos a falar por elas. O que
pode me dar alguma legitimidade para tratar deste assunto é o fato de ter procurado
estudar e conhecer, a partir de trabalhos anteriores sobre o mesmo tema, a
realidade das favelas cariocas. A partir daí posso tentar dar minha contribuição ao
debate, sem nunca querer ser o dono da verdade. Até porque verdade não existe, é
sempre algo provisório. Minha pretensão neste trabalho é produzir uma interpretação
coerente, nunca uma verdade absoluta.

Em quarto lugar, quero dizer que quando Athayde fala que: “quem de fato
começou a dar alguma espécie de solução para a favela foi ela própria. Movimentos
como AfroReggae, Nós do Morro, Observatório das Favelas, Bagunçaso, Cine
Periferia, MCR, são reconhecidos pelo poder público do Brasil e do mundo como
11

iniciativas que criaram oportunidades inéditas, nunca sequer imaginadas”; esquece-


se que José Junior, por exemplo, a principal liderança do AfroReggae, nunca morou
em Vigário geral ou em outra favela qualquer. Nas palavras do próprio Junior, a
respeito de sua formação e vivência, isso fica evidente:

“Contei da minha formação, que era assíduo freqüentador de baile funk, que passei
minha infância no subúrbio, em Ramos e Bonsucesso, que depois morei no centro da cidade,
convivendo com várias pessoas ligadas à criminalidade e à prostituição2”.

Isso nunca o impediu de prestar relevantes contribuições à causa dos


favelados e principalmente à dos jovens excluídos e em situação de risco social. O
AfroReggae sempre buscou o apoio da intelectualidade e da classe artística.
Personalidades como Waly Salomão, Regina Casé, Hermano Vianna, Peter Fry,
Moema Miranda, Fernanda Abreu, Carlinhos de Jesus, Gabriel O Pensador, Lorenzo
Zanetti, Betinho, Gilberto Gil, Daniela Mercury, João Bosco, entre tantos outros,
contribuíram para dar visibilidade ao movimento e para a construção de uma extensa
rede de colaboradores: a FASE, a Ação da Cidadania, a Agenda Social Rio, Os
Médicos Sem Fronteiras, o Metrô Rio, a Cida (Agência Canadense para o
Desenvolvimento Institucional), Comunidade Européia, Cirque du Soleil, Embaixada
da Grã-Bretanha, Fundação Ford, etc (Cf. Junior, 2006, p.74-130). O grupo “Nós do
Morro” conta com a colaboração de diversas personalidades do meio artístico. Todos
estes movimentos procuram se articular com parceiros e apoiadores e contam com a
ajuda de pessoas de fora da favela para auxiliar na capacitação de seus integrantes.
Buscar ajuda externa para a capacitação dos moradores de favelas não significa
“infantilizar” ou menosprezar a favela. Pelo contrário, é uma atitude madura, de
quem reconhece que é necessário um mínimo de capacitação e conhecimento para
que o debate no espaço público seja travado em condições de igualdade com a
classe política, com as instituições e as empresas. Isso a própria CUFA faz, e muito
bem, o que torna ainda mais difícil entender o tom arrogante deste artigo. Além
disso, ser reconhecido pelo poder público do Brasil e do mundo, não significa
necessariamente a obtenção de recursos financeiros e muito menos a participação
efetiva na formulação e na execução de políticas públicas implementadas em
favelas. O exercício pleno da cidadania requer bem mais do que reconhecimento

2
JUNIOR, José. Da Favela Para o Mundo: a história do Grupo Cultural AfroReggae. Rio de Janeiro: Ediouro,
2006. p 40.
12

público; requer a construção de um capital social que dê voz às comunidades e


possibilite que elas possam impor algumas de suas demandas ao poder público,
negociar outras, ceder em parte delas. O debate democrático caracteriza-se pela
negociação. Todos precisam ceder em algum momento, estabelecer prioridades,
dialogar.

Em quinto lugar, preciso me referir aos conceitos de “protagonismo social” e


de “protagonismo local”, este último por ser o conceito chave deste trabalho, e o qual
pretendo discutir em profundidade. Athayde diz que: “essas organizações criaram
arduamente o conceito de “protagonismo social”, que significa que a própria favela
se remoeu e arranjou sua próprias soluções, e isso só foi possível porque elas
começaram a fazer as coisas do seu próprio jeito”. Minha hipótese é de que essa
“criação” é, na realidade, resultado de um processo histórico de luta e mobilização
das classes populares. O fato é que, apesar do “protagonismo social” ser, sem
dúvida, uma nova maneira dos moradores de favelas fazerem política, ele vem
sendo construído pelos pobres urbanos, ao menos desde a década de 1950, quando
tiveram origem os primeiros movimentos sociais de favela na cidade do Rio de
Janeiro. O que há de novo é que, num dado momento histórico, marcado pelo
processo de globalização neoliberal e pelo capitalismo avançado, os pobres urbanos
passaram ter voz. O “protagonismo social” é muito mais fruto da redução do
tamanho do Estado e da sua capacidade de investir e de elaborar uma política
social, do que propriamente resultado de uma “invenção” recente dos movimentos
sociais. Apenas nos últimos anos, já no século XXI, é que a chegada ao poder de
um governo de caráter progressista, efetivamente tem procurado incorporar as
classes populares na política e no processo decisório. Contudo, ao longo das
décadas de 1980 e 1990 o que se viu foi o Estado “passando a bola” para os
movimentos sociais e as ONGs, como forma de reduzir seus gastos com políticas
sociais, em conformidade com as diretrizes do chamado “Consenso de Washington”.
A diferença entre “protagonismo social” e “protagonismo local” é que, o primeiro, é
uma forma articulação e de trabalho social, que apesar de se realizar através do
protagonismo das classes populares - em articulação com artistas, intelectuais,
empresas, etc – depende fundamentalmente do apoio financeiro de empresas e
ONG’s, nacionais e internacionais, o que acaba tornando as políticas orientadas sob
esta ótica extremamente focais, pontuais. O conceito de “protagonismo local”
13

representa um amadurecimento do “protagonismo social”, na medida em que, é uma


maneira de fazer política, também baseada na ação dos moradores de favelas e
periferias, mas que buscam a solução de seus problemas através de um diálogo
direto com o Estado, objetivando influenciar nas políticas publicas e exigindo direitos
constitucionais. Isto não significa que entidades e comunidades guiadas pelo
conceito de “protagonismo local” não busquem parcerias com ONG’s ou empresas
privadas. A diferença está no fato de que instituições e comunidades orientadas pelo
princípio de “protagonismo local” percebem o Estado como uma instituição que
possui deveres constitucionais para com a sociedade, em especial para com os
pobres, e que é dever do Estado oferecer soluções para os problemas enfrentados
pelos moradores de favelas e periferias, soluções estas que levem em conta as
demandas, as opiniões e o saber local. Não é à toa que uma das principais
características do “protagonismo local” é buscar - a partir do sucesso de políticas
localizadas e pontuais -, a universalização destas práticas.

Para finalizar minha interpretação deste artigo, quero deixar bem claro que
admiro o trabalho da CUFA, de Celso Athayde e do MVBILL. A crítica que faço é de
caráter doutrinário, ideológico e estratégico. Não tenho a menor dúvida da
importância da formação de intelectuais oriundos das favelas; o que precisa ficar
explícito é que a “questão urbana” é um tema que não diz respeito apenas aos
favelados, pois afeta a sociedade como um todo. Como irei tentar mostrar ao longo
deste trabalho, os movimentos sociais urbanos precisam romper com a
fragmentação e as divisões internas, que são históricas, e buscar pontos comuns,
capazes de produzir consenso. Unidos serão mais fortes, terão mais voz e poderão
se impor ao Estado e às instituições parceiras em boa parte de suas reivindicações.
O que chama a atenção, é que apesar de haver uma certa homogeneidade entre os
pobres urbanos, expressa por demandas e reivindicações comuns – saneamento
básico, educação de qualidade, direito à moradia digna, segurança pública, direito
ao trabalho –, os movimentos sociais urbanos ainda são muito fragmentados, brigam
entre si e muitas vezes ocupam o mesmo espaço político. Além disso, minha
pesquisa indica que é preciso impregnar de política os movimentos sociais urbanos.
A lógica das políticas sociais ora implementadas é decorrente de um processo
histórico que esvaziou de sentido político as lutas dos movimentos sociais urbanos.
Isso só agora começa a mudar. É preciso mais do que investimento em arte e
14

esporte para que o enfrentamento das desigualdades e da exclusão social tenha


resultados práticos. É necessário também que haja uma superação do modelo de
políticas pontuais atualmente vigente. Os pobres urbanos precisam exigir a
universalização das conquistas obtidas por comunidades que conseguiram, ao longo
do tempo, um maior nível de organização do que a maioria das comunidades
excluídas.

Este trabalho será dividido em quatro partes. No primeiro capítulo analisarei


os aspectos globais da “questão urbana”, no contexto da crise do Estado-Nação e
dos Planos de Ajuste Estrutural do FMI, que atingiram a quase totalidade dos países
subdesenvolvidos, em especial o Brasil. Mostrarei que nas décadas de 1980 e 1990,
a cartilha do “Consenso de Washington”, seguida pela grande maioria dos países do
Terceiro Mundo, produziu os fenômenos da globalização da pobreza e da
favelização do mundo. Ao mesmo tempo, a ingerência do FMI e do Banco Mundial
na economia e na política interna dos países subdesenvolvidos, contribuiu para a
elevação do déficit habitacional e enterrou qualquer iniciativa estatal que procurasse
resolver a questão urbana pela via desenvolvimentista, ou seja, através de
investimentos públicos. Discutirei algumas nuances do conceito de cidadania no
Brasil e no mundo globalizado, a “revolução das ONG’s” e as conseqüências de todo
esse processo para os movimentos sociais de urbanos de base.

No segundo capítulo realizarei um estudo dos movimentos sociais de base no


Rio de Janeiro, e na Cidade de Deus, chegando até o momento da constituição do
Comitê Comunitário Cidade de Deus. Este grupo político, não por acaso, é contrário
ao grupo de Celso Athayde e MVBILL, e disputa com ele o direito de “falar pela
favela”. Irei fazer um histórico da construção do espaço social em Cidade de Deus,
desde sua origem no final da década de 1960, e, a partir daí, discutir as implicações
da forma de ocupação do território no processo de formação dos movimentos sociais
urbanos, especialmente naquela localidade.

No terceiro capítulo irei descrever o processo de construção do Comitê


Comunitário Cidade de Deus e da Agência de Desenvolvimento Local. Analisarei a
articulação entre os diversos atores envolvidos na construção de um projeto de
desenvolvimento local e realizarei algumas considerações a respeito dos conceitos
que orientam o projeto.
15

No quarto capítulo apresentarei meu trabalho de campo, alguns dados atuais


sobre a Cidade de Deus e os resultados sociais obtidos desde a implementação do
projeto. Para isso irei me ater a três temáticas que foram diversas vezes abordadas
nas reuniões das quais participei e que, de acordo com minha pesquisa, são comuns
aos pobres urbanos em geral: geração de trabalho e renda (sob a égide da
economia solidária), habitação (nos marcos da política neoliberal do Banco Mundial
e da nova política habitacional brasileira, tratando em especial do conceito de
“Habitação de Interesse Social” e das ações executadas na localidade conhecida
como Rocinha 2) e educação. Também irei tratar de um tema que até então era
considerado tabu, mas que ao longo da pesquisa acabou vindo à tona: a violência.

O conceito de “protagonismo local”, devido a sua importância para este


trabalho, será tratado implícita ou explicitamente, ao longo de todo o texto. Os
demais temas, na medida em que for julgando necessário, também poderão ser
discutidos de forma independente dos critérios que adotei para a divisão textual.
Sendo assim, a divisão deste trabalho em capítulos serve apenas como técnica de
organização das idéias.
16

CAPÍTULO 1

1 - A Globalização

A hipótese com que trabalho é de que processo de globalização, no contexto


do capitalismo avançado, produziu nos países subdesenvolvidos em geral, e no
Brasil, em particular, uma prática de política social que joga a responsabilidade pela
solução das desigualdades sociais para cima dos excluídos. O Estado minimalista,
configurado a partir da ideologia ocidentalista dominante, principalmente ao longo
dos anos 1980 e 1990, utilizou-se de estratégias de caráter estritamente financeiros,
para pregar a organização da sociedade civil como solução para as mazelas sociais.
Ao mesmo tempo em que ocorria o desmantelamento do Estado brasileiro, a
sociedade civil, principalmente após a Constituição de 1988, se organizava e
chamava para si uma responsabilidade que, no fundo, o Estado queria delegar a ela.
Sob a ótica do “custo-benefício” era muito mais interessante ao Estado brasileiro,
que as políticas sociais fossem formuladas e executadas por instituições “parceiras”.
Era mais barato e estas políticas ganhavam legitimidade por serem construídas “de
baixo para cima”. Assumiam também uma aparência democrática e caso não
dessem certo, a responsabilidade não seria dos políticos, nem do Estado, mas sim
das organizações que as executavam. Com isso o Estado brasileiro voltava todas
sua energias para a execução da política econômica, o que para ele era o mais
relevante. Ocorreu então um descolamento entre economia e política, a primeira
fortemente vinculada aos tecnocratas e à burocracia estatal. Para eles fazer política
social era simplesmente combater a inflação e criar um cenário interno de
estabilidade econômica, que seria capaz de atrair investimentos internacionais e de
gerar um ambiente econômico favorável ao capital. Os problemas sociais - segundo
a lógica que movia os economistas que estavam à frente da política econômica
naquela época - seriam resolvidos no rastro da estabilidade econômica. O mercado,
auto-regulado através de um mecanismo de “mão invisível”, no final das contas
efetuaria o ajuste necessário. No limite, o bem comum seria alcançado e todos
viveríamos numa sociedade justa e igualitária. Para garantir este ajuste, o governo e
a equipe econômica precisavam transformar o Brasil numa nação que tivesse
credibilidade internacional. Eram necessários superávits primários, redução de
custos, privatizações, enfim, redução do tamanho do Estado, diminuição de
investimentos estatais e uma política monetária austera. É óbvio que o esforço
17

dessa empreitada recaiu sobre as classes menos favorecidas: os trabalhadores de


classe média e os pobres. Era urgente cortar gastos e reduzir investimentos e uma
das áreas que mais sofreu cortes de verbas foi justamente a social. E isso num
momento de abertura da economia, de quebra e falência de diversas empresas
nacionais, incapazes de concorrer no mercado internacional. O passo seguinte foi a
desregulamentação da economia, o achatamento do salário do funcionalismo
público, a alteração da lei da previdência social, sempre no sentido de destruir as
políticas de bem-estar social vigentes desde a Era Vargas. Neste contexto, as
favelas e os pobres foram os que mais sofreram os efeitos dos cortes de gastos
governamentais na área social (não estou aqui me referindo aos trabalhadores rurais
por não serem objeto deste trabalho).

No mundo moderno, o global influencia o local e vice-versa. Não há como


pensar acontecimentos e fenômenos em âmbito local sem contextualizá-los. O fato é
que há um processo de globalização em curso. E esse processo é radical e
irreversível. Nos dizeres de Otávio Ianni:

“Ocorre que a economia-mundo, ou sistema-mundo, em toda a sua complexidade, não só


econômica, mas também social, política e cultural, sempre transcende tudo o que é local,
nacional, regional. Repercute por todos os cantos, perto e longe”3.
Globalizam-se conceitos, idéias, visões de mundo e práticas de intervenção
social. Após a queda do Murro de Berlim, o mundo fica marcado pela ausência de
um paradigma que se contraponha à ordem capitalista dominante. A orientação dos
organismos internacionais para os países do Terceiro Mundo foi: reduzir o tamanho
do Estado e reduzir os direitos sociais (que haviam sido duramente construídos
através da luta de trabalhadores do mundo inteiro). Governos nacionais de países
subdesenvolvidos, extremamente endividados nas décadas de 1980 e 1990,
acabaram se submetendo às imposições do capitalismo internacional, o que resultou
no agravamento da questão social e no aumento exponencial das desigualdades
sociais nestes países:
“Globalizam-se as instituições, os princípios jurídico-políticos, os padrões sócio-
culturais e os ideais que constituem as condições e os produtos civilizatórios do capitalismo.
Esse é o contexto em que se dá a metamorfose da “industrialização substitutiva de

3
IANNI, Octavio. Teorias da Globalização. 4ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997, p 40-41.
18

importações” para a “industrialização orientada para a exportação”, da mesma forma que se


dá a desestatização, a desregulação, a privatização, a abertura de mercados e a monitorização
das políticas econômicas nacionais pelas tecnocracias do Fundo Monetário Internacional e do
Banco Mundial, entre outras organizações multilaterais e transnacionais.” (Ianni, 1997, p. 48.)
A ONU apoiava e incentivava a “modernização” dos países subdesenvolvidos,
dentro dos moldes do ocidentalismo. O ocidentalismo nada mais é do que a difusão
e a sedimentação dos padrões sócio-culturais da Europa e dos Estados Unidos (Cf.
Ianni,1997, p. 76.). É óbvio que uma “modernização” encaminhada neste sentido, ou
seja, sob a égide do capitalismo ocidental dominante, só pode ocorrer a partir do
estabelecimento de limites e condições para a mudança social. A mudança social só
pode ocorrer dentro dos limites do capitalismo e da democracia ocidental. Para isso
deve-se procurar o estabelecimento de garantias e proteções contra idéias
revolucionárias, que põem em risco a ordem internacional vigente (Cf. Ianni, 1997, p.
78.). A fragmentação das políticas e dos movimentos sociais parece ter sido um dos
caminhos encontrados para garantir o controle social das massas.
Segundo Ianni, as “elites modernizantes e deliberantes”:
“Seriam os grupos que inovam, mobilizam, organizam, dirigem, explicam e põe em prática. O
povo, as massas, os grupos e as classes sociais são induzidos a realizar as diretrizes
estabelecidas pelas elites modernizantes e deliberantes. Daí a necessidade de alfabetizar,
urbanizar, secularizar, modificar instituições e criar novas, reverter expectativas e outras
diretrizes de modo a viabilizar a execução e dinamização dos objetivos e meios de
modernização, modernos, modernizantes” (Ianni, 1997, p. 79-80)
Fica evidente o caráter subalterno que é delegado às classes populares, de
maneira ainda mais radical em uma época dominada pela ideologia neoliberal, uma
vez que, apesar do neoliberalismo seguir os princípios do liberalismo clássico, o que
parece diferenciá-lo é justamente a escala em que se realiza. Enquanto o liberalismo
era hegemônico em apenas parte do mundo, na época da Guerra Fria; o
neoliberalismo, na ausência de um contraponto - especialmente após o
esfacelamento da antiga URSS e dos países do Leste Europeu - adquiriu um
alcance hegemônico global.
Nesse novo mundo, ainda em processo de construção, a indústria cultural
adquire o papel de difusora do ideário capitalista ocidental. Filmes, músicas, “bens
culturais” em geral, com o auxílio das novas tecnologias de informação e de
19

produção, transformam-se em instrumentos de propagação e enraizamento dos


valores ocidentais, em escala global:
“Em decorrência das tecnologias oriundas da eletrônica e da informática, os meios de
comunicação adquirem maiores recursos, mais dinamismos, alcances muito mais distantes.
(...) Em poucos anos, na segunda metade do século XX, a indústria cultural revoluciona o
mundo da cultura, transforma radicalmente o imaginário de todo o mundo. Forma-se uma
cultura de massa mundial, tanto pela difusão das produções locais e nacionais como pela
criação diretamente em escala mundial” (Ianni, 1997, p. 94.).
Neste cenário, o papel da opinião pública, dos partidos e dos movimentos
sociais, enfim, da política de modo geral, subverte-se. Tudo passa a depender de
como a mídia interpreta os fatos sociais. Fica muito mais difícil para o homem
comum perceber o que há por trás das notícias, dos acontecimentos que são
escolhidos para aparecer nos telejornais, nos temas que são colocados ao debate
público. Os meios de comunicação de massa passam a estabelecer o que é
relevante ou não. São capazes de nos fazer acreditar em quase tudo, como, por
exemplo, que o crescimento econômico ou a subida das bolsas de valores têm um
impacto real e imediato, para melhor, na vida concreta dos pobres e despossuídos:

“O partido, a opinião pública, o exercício do voto, a governabilidade, a estabilidade ou


instabilidade de regimes políticos, a magnitude ou irrelevância de fatos sociais, econômicos,
políticos e culturais, tudo isso passa a depender, em alguma escala, da forma pela qual a mídia
descreve e interpreta, fotografa e dilvulga, taquigrafa e codifica ou representa e imagina fatos,
acontecimentos, realizações, impasses, crises, perspectivas, narcotráfico, terrorismo, recessão,
desemprego, produtividade, prosperidade, golpe de Estado, revolução, contra-revolução,
guerra, comunismo, socialismo, islamismo, cristianismo, budismo, ocidentalismo,
orientalismo, neoliberalismo, capitalismo. Subvertem-se as condições de atuação e as
possibilidades de influência de partidos; igrejas; movimentos sociais; correntes de opinião
pública; processos eleitorais; análises da realidade social, econômica, política e cultural;
diretrizes e mensagens” (Ianni, 1997, p. 107-108.).
É evidente a força mobilizadora ou acomodadora que um filme pode ter nos
dias atuais. Na verdade sempre teve, só que agora atinge contingentes
populacionais nunca antes alcançados. Isso ficará bem claro, mais à frente, quando
formos tratar da maneira como se constituiu o Comitê Comunitário Cidade de Deus,
onde um determinado filme, “Cidade de Deus”, de Fernando Meirelles e Kátia Lund,
20

foi o grande catalisador de todo um movimento que se desenvolve a partir de então


naquela comunidade.

2 - Considerações Sobre os Conceitos de Cidadania e Sociedade Civil no


Mundo Globalizado
Os conceitos de “protagonismo social” e “protagonismo local” inserem-se na
lógica liberal, na medida em que o “protagonismo” para ser exercido efetivamente,
pressupõe a prática de uma cidadania ativa. Cidadania é um termo cunhado sob a
égide liberal, ou seja, é um conceito intimamente vinculado às visões liberais de
mundo, que dominam o ideário ocidental desde o século XVIII. No Brasil, em
decorrência da tradição ibérica, construiu-se uma adaptação do conceito de
cidadania, com diferenças fundamentais em relação à tradição anglo-saxônica. Por
aqui, o individualismo moderno parece ter sido suavizado e o indivíduo moderno foi
combinado com o princípio da obediência ao Estado, o que resultou numa espécie
de cidadania passiva (Cf. Vieira, 1997 p. 20-21)4. O Estado de direito, que se
procura construir no Brasil, a partir do processo de redemocratização iniciado na
década de 1980, é o Estado dos cidadãos. Contudo estes cidadãos cada vez mais
procuram romper com o “iberismo” e, dessa forma, adquirem cada vez mais uma
outra espécie de cidadania: uma cidadania ativa, participativa, conhecedora de
direitos e deveres, e engajada na luta pela realização de suas reivindicações. No
entanto, depois de duas décadas de políticas nacionais e internacionais que
buscavam a exacerbar o individualismo em nossa cultura, o Estado vem retomando
seu papel como o principal alvo das demandas da cidadania no Brasil. Segundo esta
perspectiva, é o Estado, pressionado pela sociedade civil, quem tem que resolver os
problemas sociais, e é a ele que recorrem os cidadãos quando querem garantir o
exercício de seus direitos. Apesar de algumas transformações, a cidadania no Brasil
não busca cortar o cordão umbilical que a une ao Estado. Nossos padrões culturais
e políticos não perseguem objetivos como o self-government. Ao invés de
importarmos modelos políticos e culturais que deram certo em outros países,
estamos construindo um novo tipo de cidadania, específico e adequado às
características de nossa formação social. O que se constrói hoje, em especial nos

4
VIEIRA, Liszt. Cidadania e Globalização. Rio de janeiro: Editora Record, 1997, p. 20-21.
21

movimentos sociais de base, é algo “para além” do conceito de cidadania clássico. O


“protagonismo local”, enquanto estratégia de ação política, procura estabelecer
novas formas de atuação dos cidadãos junto ao poder público, não necessariamente
vinculadas às concepções de representação política tradicionais. Uma das
qualidades positivas do “protagonismo local”, no meu entender, é sua contribuição à
construção de mecanismos mais efetivos e velozes de democracia direta, onde a
participação política dos cidadãos acontece através de uma interação, em tempo
real, com as instâncias governamentais. O “protagonismo local” pode ser visto como
conceito chave para a construção de uma nova cidadania, capaz de influenciar o
processo governamental de tomada de decisões. É bom lembrar que Rousseau não
vê espaço para a democracia indireta, na forma como concebe o contrato social. “A
soberania é a vontade geral, e vontade não se representa” (Vieira, 1997, p. 29). Não
estou defendendo nenhuma espécie de jacobinismo, mas a política, dada a crise de
legitimidade das instituições, em especial do Poder Legislativo, não pode, a meu ver,
ficar refém de partidos tradicionais, muito menos de uma democracia representativa,
que é, na realidade, muito mais formal do que efetiva. É preciso conjugar
democracia indireta e representativa, com alguns novos instrumentos e mecanismos
de democracia direta. E parece que a contribuição do conceito de “protagonismo
local” caminha justamente no sentido da construção de espaços públicos de
interação direta com o Estado, nos quais a sociedade possa vivenciar a democracia
de maneira radical.
Voltando à concepção tradicional de cidadania, que é a que prevalece no
debate atual, recorro à definição de T.H. Marshall. Para ele:
“A cidadania seria composta de direitos civis e políticos – direitos de primeira geração -, e dos
direitos sociais – direitos de segunda geração. Os direitos civis, conquistados no século XVIII,
correspondem aos direitos individuais de liberdade, igualdade, propriedade, de ir e vir, direito
à vida, segurança, etc. São os direitos que embasam a concepção liberal clássica. Já os direitos
políticos, alcançados no século XIX, dizem respeito à liberdade de associação e reunião, de
organização política e sindical, à participação política e eleitoral, ao sufrágio universal, etc.
São também chamados direitos individuais exercidos coletivamente, e acabaram se
incorporando à tradição liberal”.
“Os direitos de segunda geração, os direitos sociais, econômicos ou de crédito, foram
conquistados no século XX a partir das lutas do movimento operário e sindical. São os
22

direitos ao trabalho, saúde, educação, aposentadoria, seguro-desemprego, enfim, a garantia de


acesso aos meios de vida e bem-estar social. Tais direitos tornam reais os direitos formais”.
“Enquanto os direitos de primeira geração – civis e políticos – exigiriam, para sua plena
realização, um Estado mínimo, os direitos de segunda geração – direitos sociais –
demandariam uma presença mais forte do Estado para serem realizados. Assim, a tese atual de
Estado mínimo – patrocinada pelo neoliberalismo - que parece haver predominado sobre a
social-democracia nesta década – corresponde não a uma discussão meramente quantitativa,
mas a estratégias diferenciadas dos diversos direitos que compõem o conceito de cidadania e
dos atores sociais respectivos” (Vieira, 1997, p. 22.).
O Estado mínimo, resultado das forças políticas e econômicas que se
disseminaram mundialmente nas últimas três décadas, e, de forma mais aguda após
a queda do Muro de Berlim - como podemos deduzir a partir da definição de
cidadania de Marshall - não é capaz de garantir os direitos sociais, em especial o
direito ao trabalho, à saúde, à educação de qualidade, à moradia digna, ao
saneamento básico universalizado. Um Estado mínimo só é capaz de executar
políticas sociais particularistas e focais, nunca políticas universais, que atinjam a
população, principalmente a mais carente de recursos, como um todo. Faz-se
necessário ressaltar que “com seu desprezo pelos direitos sociais e pelo welfare
state, o liberalismo não resolveu o problema social, econômico e político da
desigualdade” (Vieira, 1997, p. 33).
É importante notar que o conceito de cidadania, e, em especial, a noção de
sociedade civil, reapareceram no debate teórico e político na década de 1980:
“Um dos fatores que fez ressurgir o debate sobre sociedade civil, fator este que está
intimamente ligado ao tema deste trabalho foi “o fortalecimento no Ocidente da crítica ao
Estado de bem-estar social, pelo reconhecimento de que as formas estatais de implementação
de políticas não são neutras, e o surgimento dos chamados “novos movimentos sociais”, que
centram sua estratégia não na demanda de ação estatal, mas na proposição de que o Estado
respeite a autonomia de determinados setores sociais”. Além disso, este renascimento se deve,
em parte, aos “processos de democratização da América latina e Leste europeu onde os atores
sociais e políticos identificaram sua ação como parte da reação da sociedade civil ao
Estado”(Vieira, 1997 p. 48).
Os novos movimentos sociais, em especial os urbanos, que são o tema deste
trabalho, orientam suas ações, no Brasil, na direção do Estado, pois este ainda é
visto como a instituição responsável, em última instância, pela solução da questão
23

social. Contudo, este movimento se faz de uma maneira diferente do que já foi no
passado. As demandas dos novos movimentos sociais tendem a, cada vez menos,
serem orientadas no sentido de práticas clientelistas tradicionais, que costumavam
submeter os movimentos sociais a uma relação de reciprocidade com os políticos
clientelistas. Este tipo de relação chegava ao fim quando o político clientelista
conseguia aquilo que queria: um mandato eletivo. Os novos movimentos sociais,
como pude perceber estudando um caso concreto na Cidade de Deus, não aceitam
mais ações políticas estatais implementadas “de cima para baixo”. Eles atuam num
sentido inverso, impondo suas demandas, negociando, cedendo em alguns pontos e
rejeitando políticas públicas que não respeitem as peculiaridades e prioridades
locais. Neste sentido, os novos movimentos sociais reagem ao Estado quando este
pretende impor intervenções sociais de maneira autoritária, sem consulta prévia à
população beneficiada.
Outra característica interessante dos novos movimentos sociais, ao menos do
que estudei mais de perto, é sua dimensão não-ideológica, ou, para melhor dizer,
eclética. Não percebi em nenhum momento nas reuniões do Comitê Comunitário ou
da Agência de Desenvolvimento local, uma concepção ideológica fechada. Pelo
contrário, na ausência de um paradigma que se contraponha ao capitalismo, eles
aceitam inclusive ações que os capacitem a inserir-se de forma competitiva no
mercado, como é o caso da capacitação em economia solidária e a formação de
cooperativas de trabalhadores, tema que será estudado mais à frente. O que pude
perceber foi um ecletismo ideológico. Eles parecem abertos a qualquer tipo de
proposta que possa resolver seus problemas concretos, independentemente da sua
origem ideológica. Neste sentido, concordo plenamente com a citação que Liszt
Vieira faz de Arato e Cohen, a qual reproduzo abaixo:
“Segundo Arato e Cohen, os movimentos sociais têm se apoiado em tipos ecléticos de síntese,
ligados à história do conceito de sociedade civil. Eles pressupõem, em diferentes
combinações, a divisão gramsciana tripartide entre sociedade civil, Estado e mercado, ao
mesmo tempo em que preservam aspectos-chave da crítica marxista à sociedade burguesa.
Reivindicam ainda a defesa liberal dos direitos civis, a ênfase dada por Hegel, Tocqueville e
outros à pluralidade societária, a importância dada por Durkheim à solidariedade social, e a
defesa da esfera pública e da participação política acentuada por Habermas e Hanna Arendt.
Nessa perspectiva, o fim último das revoluções não é mais a reestruturação do Estado a partir
24

de um novo princípio, mas a redefinição das relações entre Estado e sociedade, sob o ponto de
vista desta última” (Vieira, 1997, p. 49.).
Não estou com isso dizendo que os membros participantes dos novos
movimentos sociais, pelo menos daquele que foi estudado por mim, conheçam as
obras dos autores citados no trecho acima, ou que tenham uma consciência clara de
seu ecletismo ideológico. Pelo contrário: excetuando dois líderes comunitários com
os quais tive contato durante os meses em que estive na Cidade de Deus, nada me
leva a crer que os outros membros do Comitê Comunitário ou da Agência de
Desenvolvimento Local tenham noção da existência de alguns dos autores citados
acima. O que chama a atenção é o caráter pragmático desses movimentos, eles não
parecem muito preocupados com ideologias ou argumentações abstratas. O que
querem é a solução de seus problemas mais urgentes, e nisso tem logrado algum
sucesso. Mas o que não pode deixar de ser dito é que, no caso do movimento social
que estudei na Cidade de Deus, alguns dos parceiros do projeto - técnicos da
FINEP, da Caixa Econômica Federal, do Ibase, da incubadora de empreendimentos
econômicos solidários da PUC RJ - que ajudaram a comunidade a desenvolver a
metodologia do projeto e a escrevê-lo, com certeza conhecem boa parte da obra
exposta acima. São sociólogos, assistentes sociais, jornalistas, professores
universitários. Estes parecem ter construído, junto com a comunidade, um projeto
que é eclético no aspecto ideológico. São estes profissionais que parecem ter
impregnado o projeto e a cabeça dos moradores da comunidade com o ecletismo.
Ecletismo este que é uma marca de nosso tempo, um tempo de crise dos grandes
paradigmas, com exceção, é óbvio, do paradigma capitalista. Não podemos
esquecer também, que, como já foi dito anteriormente, o pensamento político e
social brasileiro carrega a marca do iberismo, e, portanto, ao longo de nossa história,
nenhuma das tradições de pensamento político ou social chegou aqui sem sofrer
algum tipo de modificação ou adaptação. Definitivamente, não somos um povo
adepto a purismos ideológicos. A única exceção à regra parece ter sido o marxismo,
e mesmo assim por algum tempo. Hoje, até mesmo os marxistas incorporam novos
conceitos oriundos de outras correntes ideológicas. Vide o que se convencionou
chamar de “socialismo do século XXI”.
Por serem ideologicamente ecléticos, os novos movimentos sociais, no Brasil
urbano, se aproximam, em muitos aspectos, da tradição individualista anglo-
25

saxônica. Isso fica evidente no uso costumeiro de alguns jargões originários desta
tradição, como “autogestão”, “autonomia”, “empowerment”:
“A partir da década de 70, a noção de sociedade civil mudou consideravelmente”.(...)
“Expressões como autonomia, autogestão, independência, participação, empowerment,
direitos humanos, cidadania, passaram a ser associadas ao conceito de sociedade civil”.
“Não se trata mais de um sinônimo de sociedade, mas de uma maneira de pensá-la, de uma
perspectiva ligada à noção de igualdade de direitos, autonomia, participação, enfim, os
direitos civis, políticos e sociais da cidadania. Em virtude disso, a sociedade civil tem que ser
“organizada”. O que era um estado natural nos filósofos contratualistas, ou uma condição da
política moderna em Hegel e Marx, torna-se agora um objetivo para os ativistas sociais do
segundo e terceiro Mundos: a sociedade civil tem que ser construída, reforçada, consolidada.
Trata-se de meio e fim da democracia política.”
A sociedade civil transforma-se num “campo onde prevalecem os valores da solidariedade”.
“Esta perspectiva se aproxima da noção anglo-saxônica de “terceiro setor”, ou ainda de
movimento social ou organização não-governamental” (Vieira, 1997, p. 63.).
É importante notar que a disseminação dos conceitos de sociedade civil e
terceiro setor, a proliferação de Organizações Não-Governamentais em escala
global e as estratégias governamentais de “empoderamento” das classes populares,
produção de “capital social” entre os excluídos, fomento a um novo tipo de
“solidariedade social”; são todos contemporâneos do processo de globalização
neoliberal e ao mesmo tempo, e o que é mais interessante e dramático; essa nova
maneira de pensar a sociedade é contemporânea de um fenômeno perverso: a
globalização da pobreza. A medida em que o capitalismo se radicaliza e se impõe de
maneira cada vez mais hegemônica na sociedade global, aumenta em nível
planetário a concentração do capital. A contrapartida deste fato social é a exclusão
de enormes contingentes populacionais, que passam a se situar à margem desta
nova sociedade de consumo. Parece haver uma correlação entre o aumento da
pobreza, a disseminação das favelas pelo mundo inteiro, o processo de redução do
tamanho do Estado pelo qual passaram os países capitalistas desenvolvidos e
subdesenvolvidos, e a chamada revolução das ONG’s, que proliferaram
principalmente na década de 1990. Tudo isso em conformidade com a cartilha do
Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial, que ao longo de mais de duas
décadas impuseram práticas econômicas baseadas na crença de que o mercado,
por si só, seria capaz de realizar os ajustes necessários ao alcance do bem estar
26

social. Esta política jogou sobre os pobres urbanos a carga e a responsabilidade


pela solução de seus problemas, fora da tutela do Estado, que passaria a agir como
um mero capacitador e delegaria às ONG’s e à sociedade o compromisso com a
redução das desigualdades sociais.
“Estamos diante de uma nova revolução, fundada na microeletrônica, na informática e nas
telecomunicações, que desterritorializa o indivíduo, configurando um novo modo de vida. Em
seu rastro, já se percebe a tendência ao declínio do Estado-Nação, bem como a globalização
da pobreza e do desemprego, que torna descartável a maior parte da humanidade.
Simultaneamente, surgem condições mais favoráveis para a defesa dos direitos humanos e da
democracia” (Vieira, 1997 p.71.).
É este fenômeno que passarei a analisar agora com mais profundidade.
3 - Seguindo a Cartilha do FMI: A Globalização da Pobreza e a Favelização do
Mundo
Especialistas da ONU, que elaboraram recentemente o “Relatório sobre o
Estado das Cidades do Mundo” afirmam categoricamente que “o crescimento
econômico não leva automaticamente à assimilação das favelas”. Estima-se que
atualmente cerca de 1 bilhão de seres humanos vivam amontoados em favelas e a
previsão é de que este número chegue à 1,4 bilhão de habitantes em 2020!5
Segundo o urbanista, historiador e ativista político Mike Davis6:
“A Terra urbanizou-se ainda mais depressa do que previra o Clube de Roma em seu relatório
de 1972, Limits of Growth [Limites do crescimento], sabidamente malthusiano. Em 1950,
havia 86 cidades no mundo com mais de 1 milhão de habitantes; hoje são 400, e em 2015
serão pelo menos 550”.
“Com efeito, as cidades absorveram quase dois terços da explosão populacional global desde
1950 e hoje o crescimento é de 1 milhão de bebês e migrantes por semana” (Davis, 2006, p.
13.).
“Desde meados da década de 1980, as grandes cidades industriais do hemisfério sul –
Bombaim, Johannesburgo, Buenos Aires, Belo Horizonte e São Paulo – sofreram todas o
fechamento maciço das fábricas e a tendência à desindustrialização. Em outros lugares, a
urbanização desligou-se mais radicalmente da industrialização e até do desenvolvimento
propriamente dito, e, na África subsaariana, daquela suposta condição sine qua non da

5
SANTOS, Sinval Neves. Urbanização, sim; favelização, não. Revista Época, Guia Época Vestibular 2008, f. 3,
p. 4, set. 2007.
6
DAVIS, Mike. Planeta Favela. São Paulo: Boitempo, 2006. 272 p.
27

urbanização, o aumento da produtividade agrícola. Em conseqüência, é comum que o


tamanho da economia de uma cidade tenha, surpreendentemente, pouca relação com o
tamanho da sua população e vice-versa”.
“Alguns argumentariam que a urbanização sem indústria é expressão de uma tendência
inexorável: aquela inerente ao capitalismo do silício de desvincular o crescimento da
produção do crescimento do emprego. Mas na África, na América Latina, no Oriente Médio e
em boa parte do sul da Ásia, a urbanização sem crescimento, como veremos adiante, é mais
obviamente herança de uma conjuntura política global – a crise mundial da dívida externa do
final da década de 1970 e a subseqüente reestruturação das economias do Terceiro Mundo sob
a liderança do FMI nos anos 1980 – do que uma lei férrea do progresso da tecnologia” (Davis,
2006, p. 23.).
As afirmações de Davis, que são referendadas por um exaustivo número de
citações bibliográficas e fontes dos mais variados tipos, trazem ao debate alguns
pontos de extrema relevância: podemos concluir que o aumento da pobreza em
escala global, a marginalização de um enorme contingente da humanidade e a
favelização do espaço urbano mundial, são resultado muito mais de opções políticas
das instituições de Bretton Woods do que de causas estritamente econômicas. O
fenômeno da desindustrialização é decorrente dos Planos de Ajuste Estrutural
impostos aos países do Terceiro Mundo, que forçaram estes países a abrirem suas
economias ao capital internacional, sob pena de, não o fazendo, ficarem excluídas
da comunidade econômica internacional. Observa-se um descolamento entre o
aumento das cidades e o tamanho de suas economias. As cidades do mundo todo,
em especial nos países do Terceiro Mundo, continuam atraindo enormes
contingentes populacionais mesmo tendo deixado de ser as máquinas de geração
de empregos de outrora. Isso causado, em grande parte, pelas políticas de
desregulamentação agrícola e de disciplina financeira impostas pelo FMI e pelo
Banco Mundial (Cf. Davis, 2006, p.25.). Outra prova deste fenômeno é que a
urbanização no terceiro mundo continuou num ritmo muito acelerado (3,8% entre
1960 e 1993), ou seja, a urbanização aumentou mesmo durante os anos difíceis das
décadas de 1980 e 1990, “apesar da queda do salário real, da alta dos preços e da
disparada do desemprego urbano” (Davis, 2006, p. 24.). Conclui-se que “a
“superurbanização” é impulsionada pela reprodução da pobreza, não pela oferta de
empregos.” (Davis, 2006, p. 26.).
28

Ainda segundo o autor:


“Como resultado, o crescimento urbano rápido no contexto do ajuste estrutural, da
desvalorização da moeda e da redução do Estado foi a receita inevitável da produção em
massa de favelas. Um pesquisador da Organização Internacional do Trabalho (OIT) estimou
que o mercado habitacional formal do Terceiro Mundo raramente oferece mais de 20% do
estoque de residências e assim, por necessidade, as pessoas recorrem a barracos construídos
por elas mesmas, a locações informais, a loteamentos clandestinos ou às calçadas7. “O
mercado imobiliário ilegal ou informal”, diz a ONU, “forneceu terrenos para a maioria dos
acréscimos ao estoque de residências na maior parte das cidades do hemisfério sul nos últimos
trinta ou quarenta anos”.”8
Continuando, ele argumenta que:
“Os favelados, embora sejam apenas 6% da população urbana dos países desenvolvidos,
constituem espantosos 78,2% dos habitantes urbanos dos países menos desenvolvidos; isso
corresponde a pelo menos um terço da população urbana global”. (Davis, 2006, p. 34.).
E ainda:
“Embora algumas favelas tenham uma longa história – a primeira favela do Rio de Janeiro, no
morro da providência, surgiu na década de 1880 -, a maioria das megafavelas cresceu a partir
da década de 1960”. (Davis, 2006, p. 37.).
No Brasil, com o fim da Era Vargas e a redemocratização ocorrida no período,
aliado à política desenvolvimentista do governo JK, os entraves que impediam a
aceleração do processo de urbanização foram retirados. A ameaça implícita de
revolução possibilitou aos migrantes a possibilidade de obtenção de terra urbana e
de alguma infra-estrutura, em troca de votos. É importante, contudo, ressaltar que a
favela não era de maneira nenhuma o futuro urbano inexorável.
“No início de 1960, por exemplo, o novo Instituto Nacional de Ahorro y Vivienda [Instituto
Nacional de Poupança e habitação] de Cuba, encabeçado pela lendária Pastorita Núñez, deu
início à substituição das famosas favelas de havana (Lãs Yaguas, Llega y Pon, La Cueva Del
Humo e outras) por casas pré-fabricadas construídas pelos próprios moradores.(...) Em 1958,
quase um terço dos cubanos morava em favelas ou assentamentos de invasores. Assim, nos

7
Oberai, Population Growth, Employment and Poverty in Third-World and mega-Cities, p. 13.
8
UN-Habitat, An Urbanising World: Global Report on Human Settlements (Oxford, Oxford University, 1996),
p. 239.
29

anos de ouro da revolução houve um imenso esforço nacional para reassentar os pobres, ainda
que muitos projetos, em retrospecto, fossem adaptações maçantes do modernismo”9.
“Embora o compromisso da Cuba revolucionária com um “novo urbanismo” fosse
vanguardista, o ideal do direito do povo à moradia digna não era inédito no Terceiro Mundo
da época – final da década de 1950 e início dos anos 1960: Nasser, Nehru e Sukarno também
prometeram reconstruir as favelas e criar quantidade imensa de novas moradias. Além da
moradia subsidiada e do controle dos aluguéis, o “contrato com o Egito” de Nasser garantia
empregos no setor público a todos que concluíssem a escola secundária. A Argélia
revolucionária criou leis de atendimento médico e educação, universais e gratuitos, além de
aluguel subsidiado para os moradores pobres das cidades. Todos os Estados africanos
“socialistas”, a começar pela Tanzânia no início da década de 1960, iniciaram programas
ambiciosos de reassentamento de favelados urbanos em novas moradias de baixo custo. A
Cidade do México, nos anos de Uruchurtu, mobilizou os serviços de estrelas emigradas da
arquitetura, como Hannes Meyer, da Bauhaus, para projetar prédios de apartamentos para
trabalhadores sindicalizados e funcionários públicos, comparáveis, com vantagem, aos
modelos do norte da Europa. Enquanto isso, no Brasil, o presidente João Goulart e Leonel
Brizola, governador radical do Rio Grande do Sul, conquistaram amplo apoio para a sua idéia
de um “New Deal” urbano. E, adiante, naquela mesma década, Juan Velasco Alvarado,
ditador militar de tendência esquerdista do Peru, se aproximaria do fidelismo ao patrocinar
invasões em massa de terrenos urbanos e criar um programa estatal ambicioso párea melhorar
as barriadas (que ele rebatizou com otimismo de pueblos jovenes)”.
“Quase meio século depois, o progressista programa habitacional de Cuba foi desacelerado
quase totalmente pela austeridade do “Período Especial” que se seguiu ao colapso da União
Soviética, e a oferta de moradias arrasta-se com muita desvantagem em relação às conquistas
mais impressionantes do país na saúde e na educação. Além dos casos especiais de Hong
Kong e Cingapura, no mundo em desenvolvimento somente o Estado chinês, nas décadas de
1980 e 1990 conseguiu construir grande quantidade de habitações populares decentes (embora
até essa “revolução não decantada”, como diz o especialista urbano Richard Kirkby, esteja
bem longe da necessidade das dezenas de milhares de camponeses que vêm se mudando para
as cidades)”10.

9
Joseph Scarpaci, Roberto Segre e Mario Coyula, Havana: Two Faces of the Antillean Metropolis (Chapell Hill,
University of North Carolina Press, 2002), p. 199-203.
10
Richard Kirkby, China, em Kosta Mathéy (org.), Beyond Self-Help Housing (Londres, Mansell), 1992, p. 298-
9.
30

Na verdade, os governos do Terceiro Mundo, em geral, e do Brasil, em


particular, há muito tempo abdicaram de qualquer iniciativa séria no sentido de
resolver o déficit habitacional e de garantir moradias dignas para a população menos
favorecida. Por aqui, só agora, a partir da eleição do presidente Lula, é que o quadro
começa a mudar, embora ainda estejamos muito distantes de resolver a questão
urbana. Este governo, apesar de todos os seus defeitos, inclusive o de não ter
rompido com o modelo econômico neoliberal, está colocando na ordem do dia a
questão da casa própria e da garantia do direito de todos os cidadãos brasileiros a
morarem em condições salubres, com infra-estrutura urbana, transporte, coleta de
lixo e saneamento básico. Desde a extinção do BNH na década de 1980 não
tínhamos uma política habitacional como a que foi construída neste governo. A Nova
Política Nacional de Habitação - a partir da aprovação da lei 11.124 de 2005, que
criou o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS) e o Fundo
Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS) - procura conciliar os interesses
do mercado imobiliário com os das classes médias, por um lado; e os das classes
populares, por outro11, conforme o quadro abaixo:

Sistema Nacional de Habitação

Ministério das Cidades

Conselho Sistema
Nacional das Nacional de
Cidades
ANAHAB
Habitação

Câmara Técnica
de Habitação

Subsistema de
Subsistema de
Financiamento
Financiamento
Habitação de
Habitação de
Interesse Social
Mercado

Fonte: Política Nacional de Habitação. Versão Preliminar de 23.04.2004, p. 11.

11
Ministério das Cidades – Secretaria Nacional de Habitação. Política Nacional de Habitação. Versão
Preliminar de 23.04.2004 (veiculação restrita). Intranet Caixa Econômica Federal. Acesso em: 28.03.2008.
31

Esta “nova política habitacional” concilia a lógica do mercado com a


perspectiva de que, este mesmo mercado deixado livre, não foi capaz de resolver a
questão urbana, em especial o problema do déficit habitacional. Segundo o
Ministério das Cidades:

“O déficit quantitativo tem se ampliado nas faixas de renda até 2 salários mínimos
representando, em 2000, cerca de 4,2 milhões de moradias, enquanto mostra-se com
certa retração nas faixas acima de 5 salários mínimos, isto é, em 1991, o déficit nesta faixa
de renda representava 15,7% do total e, em 2000, passou para 9,5%”.

Além disso:

“O número de domicílios com deficiências urbanas, sanitárias e de infra-estrutura é da


ordem de 10,2 milhões de moradias situadas em áreas que necessitam de intervenções
integradas de habitação, regularização fundiária e saneamento. A dimensão desta faceta do
problema demonstra que a questão habitacional precisa ser enfrentada de forma articulada
com as políticas urbana, fundiária e de saneamento”.

E ainda:

“O acelerado crescimento das favelas na última década e a sua proliferação em cidades


de porte médio e pequeno são indicadores importantes do agravamento do problema
habitacional no país e da necessidade de se equacionar uma estratégia abrangente para
enfrentá-lo” (Ministério das Cidades, 2004, p. 4.).

A estratégia de enfrentamento da questão urbana requer, portanto,


investimento estatal com foco nas classes populares, ou seja, naquela parcela da
população que não tem renda suficiente para conseguir financiamentos e pagar
prestações e que estava, há quase duas décadas, excluída da possibilidade de
acesso a moradia digna. Conforme pode ser notado no quadro acima, a política
nacional de habitação divide-se em dois subsistemas: o Subsistema de
Financiamento de Habitação de Mercado e o Subsistema de Financiamento de
Habitação de Interesse Social. Neste trabalho, interessa particularmente o
Subsistema de Financiamento de Habitação de Interesse Social, pois, com recursos
oriundos do orçamento deste subsistema é que estão sendo construídas 618 casas
na localidade conhecida como Rocinha 2, a partir da reivindicação do movimento
social de base da Cidade de Deus, que é o objeto deste trabalho.
32

O Subsistema de Financiamento de Habitação de Interesse Social é


constituído de acordo com o quadro abaixo:

Subsistema de Habitação de Interesse Social


Recursos Onerosos Recursos não Onerosos

Conselho Curador Ministério das Cidades


Conselho
União / OGU Nacional das
FGTS / Orçam. Programa Cidades

FNHIS Plano Nacional de HIS


Agente Operador (Fundo de Aval, de
Recursos Recursos ñ Nacional Subsídio e de Equal. de
exigíveis exigíveis taxas = *) Conselhos
Estado/ Estaduais
Orçamento
Agente Operador FEHIS Estadual
Plano Est. de HIS
Estadual 1, 2, n (*)

Agente Operador F Metrop Município/ Conselhos


HIS (*) Orçameno Municipais
Agente Operador FMHIS Municipal
Municipal 1, 2, n (*)
Plano Munic. de HIS

Recursos
Recurso
p/ Planos, Programas e Projetos
s p/ Agente Promotor 1,2,n
subsídio
financia
Beneficiário final
Sistema de Fundos
mento Agente Financeiro 1,2,n Estrutura Institucional
Fontes de Recursos

Fonte: Política Nacional de Habitação. Versão Preliminar de 23.04.2004, p. 20.

Em primeiro lugar, é importante dizer que uma das principais premissas da


Nova Política Habitacional - em conformidade com a Constituição Federal que
estabelece que a moradia é um direito do cidadão, e com o Estatuto das Cidades,
que submete a propriedade à sua função social – é a gestão democrática, com
participação popular, controle social e transparência nas decisões e procedimentos
implementados. Ao mesmo tempo, o Estado estabelece como premissa o seu papel
de agente indispensável na resolução da Questão Habitacional. Após praticamente
duas décadas, o problema da moradia volta a ser tratado como política de Estado,
tendo inclusive papel destacado na geração de emprego e renda para os setores
menos favorecidos da população brasileira. Esta nova postura estatal favorece a
participação cidadã na proposição de políticas na área de desenvolvimento urbano.
33

Amplia ainda, na medida em que descentraliza a política habitacional – embora a


União continue com a “chave do cofre” – a possibilidade de aproximação entre os
cidadãos e as agências governamentais responsáveis pela execução dos projetos e
empreendimentos voltados às classes populares.

Conforme pode ser visto no quadro da página 30, os recursos para a


habitação de Interesse Social provém do Fundo Nacional de Habitação de Interesse
Social e hoje conta com diversas fontes: o OGU – Orçamento geral da união, FAT –
Fundo de Amparo ao Trabalhador, FDS – Fundo de Desenvolvimento Social, FAR –
Fundo de Arrendamento Residencial e FGTS – Fundo de Garantia por Tempo de
Serviço, bem como com uma grande diversidade de programas voltados às classes
populares12 (Gouvêa Werneck, 2007, p. 24-25.).

Nesta nova política habitacional, os estados e municípios são chamados à


responsabilidade para participarem do processo enquanto agentes promotores do
desenvolvimento urbano e da resolução da questão habitacional. A partir da
assinatura de um termo de adesão ao SNHIS, estados e municípios passam a ter
acesso a recursos do FNHIS, ao mesmo tempo em que se comprometem a criar
fundos estaduais e municipais de financiamento da habitação de interesse social, e
ainda, os conselhos estaduais e municipais de habitação, que devem se constituir
em fóruns onde a sociedade terá a chance de dialogar com o poder público de
maneira democrática, em busca dos recursos necessários para a garantia do direito
a moradia digna. Os municípios, em conformidade com as diretrizes da Constituição
da República de 1988, tem um papel muito importante na execução desta nova
política, embora poucos deles já tenham aderido ao novo sistema, criado os fundos
municipais ou mesmo os conselhos municipais de habitação. A proximidade do
poder público municipal com o cidadão parece não estar sendo capaz de garantir a
efetividade desta política, uma vez que falta capacidade técnica aos municípios para
a execução de projetos habitacionais. Muitos municípios, além disso, utilizam o
conselho como fachada, já que sua simples existência dá uma aparência
democrática ao poder local. O que ocorre na realidade é que, muitas vezes, mesmo
após a criação do conselho municipal, as decisões continuam sendo tomadas entre
quatro paredes. Apesar das potencialidades e dos avanços, ainda resta um longo

12
GOUVÊA WERNECK, Raquel Dantas. Conselho Municipal de habitação: Limites e Potencialidades Frente
aos Marcos Legais da Política de Habitação de Interesse Social. Monografia de conclusão de curso de
especialização em Política Social e Desenvolvimento Urbano. Universidade de Brasília, 2007.
34

caminho a percorrer para a realização de uma política urbana socialmente mais justa
(Cf. Gouvêa Werneck, 2007.).
Contudo, os avanços incorporados à nova política habitacional, em especial a
criação do Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social, são decorrentes
muito mais de mudanças nas diretrizes do Banco Mundial - que no início do século
XXI, começa finalmente a admitir que o mercado não é capaz de, por si só, resolver
a questão habitacional no Terceiro Mundo – do que de uma política autônoma e
soberana, gestada pela sociedade brasileira através do debate público e
democrático. Não há como negar a ingerência do Banco Mundial na formulação
desta nova política. Um documento que obtive comprova que, em dezembro de
2001, ou seja, a um ano do final do segundo mandato do Presidente Fernando
Henrique Cardoso, uma oficial do Banco Mundial fazia propostas ao Sr. Amaury Bier,
Secretário Executivo da Secretaria de Política Econômica, ditando regras sobre
como deveria ser encaminhada a proposta da Nova Política Habitacional, inclusive
estabelecendo diretrizes e propondo mudanças na forma de atuação de uma
Agência do Governo Federal. Muito do que está neste documento entrou na lei que
definiu a Nova Política Habitacional, já no governo Lula. Reproduzo este documento
na íntegra e me reservo o direito de não revelar a fonte:

10 de dezembro de 2001
Dr.Amaury Bier
Secretário Executivo
Secretaria de Política econômica
Ministério de Finanças
Esplanada dos Ministérios, bloco, 4 andar, saIa 428,
70048-900 Brasília, DF BRASIL,

Prezado Dr. Bier,

Segue atachada a nota técnica preparada por nosso pessoal considerando nosso trabalho
proposto como a contribuição para uma Política Habitacional Nacional junto com a CAIXA, SEDU e
outros parceiros.

A mensagem principal da nota é que enquanto o governo do Brasil iniciou reformas


importantes no setor habitacional, assuntos importantes precisam ser endereçados. Dados disponíveis
indica que há uma escassez significativa de unidades habitacionais. Quase 75% dos pretendentes a
mutuários não podem dispor de habitação formal, o acesso ao crédito está fora das suas possibilidades
e a ida para a habitação informal é prevalecente. Isto impacta negativamente no crescimento,
rendimentos fiscais assim como no desenvolvimento global do setor urbano no Brasil. Os subsídios
para compra da casa promovem a construção de casa terminada. Eles também são usados em uma non-
targetted fashion e dificuldades na oferta da terra, construção e regulamentação urbana impedem a
disponibilidade de moradia para grande parte dos brasileiros, notadamente os mais pobres.
35

No lado financeiro, o sistema parece ser fragmentado e fundou principalmente por


impostos assinalados e subsídios transversais em lugar de através de poupanças privadas.
Além disso, há a alto nível de não-execução dos empréstimos com garantia hipotecária
concentrado na principal instituição de financiamento habitacional, Caixa Econômica
Federal.

O governo ordenou reformas importantes para fazer o sistema mais flexível e


eficiente. Em particular tem:

 fortalecido a garantia (1) mas ainda há resistência judiciária contra despejo


 risco de construção reduzido para casas (2)
 facilitou o desenvolvimento de uma política municipal urbana
 criou um subsídio federal novo mirado para habitação de interesse social (3)
 saída de alguns empréstimos velhos (esqueletos) para re-capitalizar CAIXA
 gama mais flexível de ferramentas para o mercado de capital (MBS, bonds) inclusindo a
securitização de recebíveis CPI-indexed credit feitas por developers

Porém, serão requeridas reformas adicionais para assegurar a sustentabilidade e


patrimônio líquido requerido pelo governo. Uma política habitacional nacional detalhada
necessita reformas mais profundas/adicionais. O processo requer uma cooperação ativa
entre as agências envolvidas no setor, notavelmente SEDU, o Ministério da Fazenda, o
Banco Central, depois de consultar vários grupos de profissionais, enquanto analisando e
desembaraçando seus interesses respectivos, e construindo um consenso sobre a sucessão
e extensão de reformas.

Como nós mencionamos antes, o Banco Mundial começou um diálogo com a CAIXA
e foi firmado prover ajuda detalhada nos seguintes assuntos:

 Mercados mais eficientes - terra e habitação: acesso melhor a terra, sub-divisão e zoneamento,
melhor o sistema de inscrição, códigos de edificações e infra-estrutura, uso de terra pública,
regulamentação urbana, processos das licenças de construção. As dificuldades atuais encorajam a
residencia informal.

 Foco na política habitacional de interesse social e nas necessidades dos grupos de baixa-renda com
subsídios orçamentários direcionados. A oferta tem que ser reconciliada com vários segmentos da
demanda. Incluindo o alojamento progressivo e a melhoria de casa. Uma melhor coordenação e
divisão de tarefas se faz necessário entre as esferas federais, estaduais e municipais, e os
investidores privados. Áreas de progresso incluem o uso de terra pública, política de aluguel social
e a tributação sobre a moradia.

 Acompanhar a transição dos sistemas habitacionais. O SFH ainda é dominante mas


segmentado, ineficiente e aleijado. Apesar dos impostos salariais e dos subsídios
transversais (4), só financia 20% da demanda. Um fator externo são as altas taxas reais
de mercado. Alguma estabilização macro-econômica é preciso para reavivar mercados
de hipoteca. Ainda, também é preciso desenvolver a infra-estrutura para mercados de
hipoteca primários, como um instrumento melhor de mobilizar poupanças. Nossas
observações iniciais e preliminares nesta área indicam as seguintes preocupações:

• Para o crescimento do mercado hipotecário precisa de reforçar a garantia e separar o público


alvo dos subsídios daqueles passíveis de suportar o mercado hipotecário (incluindo o preço do
funding e condições creditworthness, até para aqueles cujos pagamentos forem ajudados por
subsídios).

• O SBPE é negativamente afetado por regulamentos perversos e complexos, qualidade de


crédito pobre e um sistema socialmente regressivo. Sua revivificação requer várias reformas.
36

• O FGTS gera baixo retorno como um fundo providente de habitação, não são bem
distribuídos os subsídios entre os membros e para os mutuários, e geralmente dá perdas à
CAIXA como o fornecedor dos subsídios. Seu público alvo é habitação para baixa renda. A
liquidez deste fundo poderia ser canalizada de uma maneira mais abrangente e lucrativa.

• FCVS precisa ser re-locado fora da CAIXA. A exposição de dívida crescente do


FVCS necessita ser monitorado mais de perto. Alguma contabilidade e desincentivo
regulador precisam de mudanças.

• A mobilização para a utilização voluntária de poupança para os financiamentos habitacionais


dependem de uma reforma jurídica, regulamentadora e estrutural de taxas no aspecto MBS, a
elegibilidade dos investidores e a intermediação das companhias de securitização.

• Novos esquemas de poupança e micro-finanças deverão ser desenvolvidas, incluindo créditos


de consumidor relacionados por companhias financeiras, securitização de recebíveis
imobiliários criados pelos developers.

• Fortalecimento institucional da CAIXA foi seguido pela sua recente re-capitalização


de utilizando melhor as garantias e ferramentas de scoring. A reconciliação de um
mandato de banco habitacional federal com rentabilidade pode requerer mudanças
estruturais. Seus produtos de crédito permanecem muito presos a fundos de dívida
pública específicos, falta de competição e perícias de recuperação de crédito. A
CAIXA pode ser um melhor catalisador de cultivar mercados de hipoteca privados e
um canal remunerado de subsídios, do que um gerente dominante de fundos de
dívida pública e hipoteca de varejo. A agência de administração - EMGEA - de
patrimônio recebido da CAIXA precisa de fortalecimento e autonomia.

Nós estabelecemos um relacionamento profissional com a CAIXA e a esta nota fixa fixaria a fase para
continuarmos nosso diálogo. Nós sugestionamos uma missão breve em janeiro para discutir os
assuntos elevados na nota e uma missão de duas semanas no início de março com diversos consultores
internacionais. Isto permitiria tempo para preparar várias notas sobre a política até o fim de abril.

Sinceramente

Cecíle Ramsay
Diretor suplente
Brasil - Unidade de Administração Rural
América Latina e a Região Caribenha

(1) Graças a ações hipotecárias extrajudiciais, e o uso de uma ação de reforço de garantia
(2) Ativos habitacionais podem ser separados legalmente do patrimônio líquido de fomentador e na comissão
independente inclusive representantes de casas de cliente é responsável pela verificação do desenvolvimento do
processo
(3)Infra-estrutura em terra provida por municipalidades e construindo materiais para auto-construção/comunidades.
(4) Principalmente o FGTS e o SBPE.
(5) Liberalize taxas de juros reguladas mais íntimo comercializar níveis, troque a um índice de CPI, simplifique
regulamentos e isenções de limite sobre investimentos elegíveis, limite o nível de economizar isenção fiscal mas
estenda a interesses de empréstimo adicionais, poupanças a longo prazo isentas de reservas estatutárias.
enfrente “individualize” um crédito contratual de acordo com as poupanças acumuladas (então com uma possível
ligação com subsídios públicos).

Cecíle Ramsay era, à época, oficial principal de operações do Banco Mundial


no Brasil e costumava chefiar missões que tinham o objetivo de avaliar projetos de
37

desenvolvimento urbano em execução e de pressionar o governo brasileiro a seguir


as diretrizes do banco.13
A justificativa para a ingerência em assuntos internos, que dizem respeito aos
interesses nacionais, é sempre a de cooperação e parceria, jargões comuns no
linguajar do Banco Mundial e do FMI. Este documento é uma prova contundente de
que o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso permitia a ingerência
destas instituições na política interna brasileira. O governo Lula, na medida em que
não rompeu com a política econômica do governo anterior, reproduz as mesmas
práticas anteriores. A verdade, no entanto, é que a ingerência do FMI e do Banco
Mundial na política interna brasileira havia começado muito antes deste episódio:
“Quando os governos do terceiro Mundo abdicaram da batalha contra a favela na década de
1970, as instituições de Bretton Woods – com o FMI como o “mau policial” e o Banco
Mundial como o “policial bonzinho” – assumiram um papel cada vez mais predominante na
determinação de parâmetros para a política habitacional urbana. Os empréstimos do Banco
Mundial para desenvolvimento urbano aumentaram de meros 10 milhões de dólares em 1972
para mais de 2 bilhões de dólares em 198814. E, entre 1972 e 1990, o banco ajudou a financiar
um total de 116 programas de oferta de lotes urbanizados e / ou de urbanização de favelas em
55 países15. É claro que em termos da necessidade isso não passou de uma gota num balde
d’água, mas deu ao Banco enorme influência nas políticas urbanas nacionais, além de uma
relação de patrocínio direto com as ONGs e comunidades faveladas locais; também permitiu
ao Banco impor as suas próprias teorias como ortodoxia mundial da política urbana”.
“Melhorar as favelas em vez de substituí-las tornou-se a meta menos ambiciosa da
intervenção pública e privada. Em vez da reforma estrutural da pobreza urbana imposta de
cima para baixo, como havia sido tentado pelas democracias sociais da Europa no pós-guerra
e defendido pelos líderes revolucionários nacionalistas da geração dos anos 1950, a nova
sabedoria do final da década de 1970 e início da de 1980 exigia que o Estado se aliasse a
doadores internacionais e, depois, a ONGs para tornar-se um “capacitador” dos pobres. Em
sua primeira interação, a nova filosofia do Banco Mundial, influenciada pelas idéias do
arquiteto inglês John Turner, insistia numa abordagem de oferta de “lotes urbanizados”
(fornecimento de infra-estrutura básica de água e esgoto e obras de engenharia civil) a fim de

13
http://www.sobral.ce.gov.br/boletim/2000/b_novembro2000/21.htm. Acesso em 25/05/08.
14
S. Sethuraman, “Urban Poverty and the Informal Sector: A Critical Assessment of Current Strategies”, artigo
para discussão da Organização Internacional do Trabalho (OIT), Genebra, 1997, p. 2-3.
15
Cedric Pugh, “The Role of the World Bank in Housing”, em Aldrich e Sandhu, Housing the Urban Poor, p.
63.
38

ajudar a racionalizar e melhorar as habitações construídas pelos próprios moradores.


Entretanto, no final da década de 1980, o Banco Mundial defendia a privatização da oferta de
habitações já prontas, e logo tornou-se o megafone institucional mais poderoso dos programas
de Hernando de Soto, economista peruano que advoga soluções microempresariais para a
pobreza urbana”(Davis, 2006, p.79.).
“Na década de 1970, o casamento intelectual de Robert McNamara, presidente do Banco
Mundial, com o arquiteto John Turner foi algo inusitado. O primeiro, é claro, fora o principal
planejador da Guerra do Vietnã, enquanto o segundo já fora o maior colaborador do jornal
anarquista inglês Freedom. Turner partiu da Inglaterra em 1957 para trabalhar no Peru, onde
se encantou com o gênio criativo que viu em funcionamento nas moradias de invasores de
terrenos”.
“Turner, contudo, em colaboração com o sociólogo William Mangin, foi um divulgador e
propagandista eficientíssimo e proclamou que as favelas eram mais uma solução do que um
problema. Apesar de sua origem radical, o programa básico de Turner de construção por conta
própria e incremental e legalização da urbanização espontânea era exatamente o tipo de
abordagem pragmática e de baixo custo que Mcnamara preferia para a crise urbana”.
“Em 1976, ano da primeira conferência do UN-Habitat assim como da publicação de Housing
by People: Towards Autonomy in Building Enviroments [habitação pelo povo: rumo à
autonomia na construção de ambientes], de Turner, esse amálgama de anarquismo com
neoliberalismo tornara-se uma nova ortodoxia que “formulava um afastamento radical do
fornecimento público de habitações, favorecendo projetos de lotes urbanizados e a
urbanização da favela in loco”. O novo Departamento de Desenvolvimento Urbano do Banco
Mundial seria o maior patrocinador dessa estratégia. “A intenção”, prossegue Cedric Pugh,
“era tornar a moradia acessível às famílias de baixa renda sem o pagamento de subsídios, ao
contrário da abordagem da habitação pública pesadamente subsidiada”16 (Davis, 2006, p. 80).
“Elogiar a práxis dos pobres tornou-se uma cortina de fumaça para revogar compromissos
históricos de reduzir a pobreza e o déficit habitacional” (Davis, 2006, p. 81.).
A biografia de um indivíduo talvez não seja capaz de explicar totalmente sua
visão de mundo e suas ações concretas. Mas é interessante notar que as idéias de
John Mcnamara (um típico homem de ação norte-americano), combinadas à
ortodoxia liberal - que preconiza que cada um deve cuidar de si e que o papel do
Estado não é resolver os problemas sociais, já que o mercado é capaz de ajustar as

16
Pugh, “The Role of the World Bank in Housing”, p. 64.
39

distorções e dar a cada um de acordo com suas capacidades - foram capazes de se


casar com as de um homem que teve uma história de vida bem diferente; John
Turner, ex-militante radical anarquista. As idéias de Macnamara, que já naquela
época preconizava a redução de gastos governamentais na área social,
encontraram no anarquismo de Turner um par perfeito. Um Estado que gasta pouco,
que abre mão de setores da economia e que negligencia as políticas de bem-estar
social é exatamente o que se chama hoje em dia de “Estado mínimo”. Ora, a
ideologia anarquista é contra qualquer forma de Estado, uma vez que o Estado seria
um instrumento de dominação e de restrição das liberdades. A concepção do Estado
mínimo se aproxima muito da utopia anarquista da abolição do Estado. O Estado
mínimo seria um passo para o alcance do maior objetivo do movimento anarquista,
que é a destruição do Estado. Para completar o quadro e garantir a convergência
entre os ideais de Turner e MacNamara, não podemos esquecer que tanto o
liberalismo quanto o anarquismo possuem concepções de ordem semelhantes, já
que pressupõem que o mercado é capaz de regular a vida social e que os
indivíduos, agindo livremente, são a maior garantia do alcance do bem comum. É
sempre bom lembrar que anarquia não significa caos ou desordem. Para os
anarquistas, o mercado e a livre iniciativa dos indivíduos garantiriam o ordenamento
e a integração social. É nesse sentido que a concepção anarquista de ordem e o
ideário neoliberal do Estado mínimo podem perfeitamente coexistir. O resultado
desse casamento intelectual foi o abandono por parte dos governos das Nações
pobres, de seus compromissos históricos com a redução das desigualdades sociais
e a redução dramática dos investimentos em habitação popular. Além disso, a partir
da década de 1990, o FMI e o Banco Mundial, passaram a contornar os Estados
nacionais e a apoiar projetos habitacionais de maneira fragmentada, agindo através
de ONGs, diretamente em nível local.
“Do lado do Banco Mundial, o aumento do papel das ONGs correspondeu à reorientação dos
objetivos do banco na presidência de James Wolfensohn, financista e filantropo de origem
australiana cuja década no cargo começou em junho de 1995. Wolfensohn, segundo o
biográfo Sebastian Mallaby, chegou a Washington como autoproclamado consertador do
mundo, “buscando reviver a energia messiãnica do Banco de McNamara” e fazendo das
“parcerias” e da redução da pobreza os novos pontos centrais do seu programa de ação.
Solicitou-se aos governos do terceiro Mundo que envolvessem as ONGs e os grupos de defesa
40

na preparação dos Documentos de Estratégia de Redução da Pobreza (Derp) que o banco


passou a exigir como prova de que a ajuda realmente atingiria o público-alvo”.
“”Embora alguns críticos mais antigos tivessem aclamado essa “virada participativa” do
banco Mundial, os verdadeiros beneficiados perecem ter sido as grandes ONGs e não o povo
local”(Davis, 2006, p. 83.).
“Apesar de toda a retórica retumbante sobre democratização, construção por conta própria,
capital social, e fortalecimento da sociedade civil, as verdadeiras relações de poder nesse novo
universo das ONGs são parecidíssimas com o clientelismo tradicional. Além disso,..., as
ONGs do Terceiro Mundo mostraram-se brilhantes na cooptação dos líderes locais assim
como na conquista da hegemonia do espaço social tradicionalmente ocupado pela esquerda.
Ainda que haja algumas exceções louváveis – como as ONGs combativas tão úteis na criação
dos Fóruns Sociais Mundiais - o maior impacto da “revolução das ONGs / sociedade civil”,
como admitem até mesmo alguns pesquisadores do banco mundial, foi burocratizar e
desradicalizar os movimentos sociais urbanos”17 (Davis, 2006, p. 85.).
Esta afirmativa de que a proliferação das ONG’s acabou esmorecendo os
movimentos sociais e tornando-os mais pacíficos, coincide com os dados que
encontrei sobre a história dos movimentos sociais de base na Cidade de Deus. Na
realidade, o efeito da revolução das ONG’s para os movimentos sociais urbanos,
pelo menos no caso da Cidade de Deus, foi muito mais o controle social da “revolta”,
do que a garantia de acesso a direitos ou a melhoria das condições de vida da
comunidade.

17
Imparato e Ruster, Slum Upgrading and Participation, p. 255.
41

CAPÍTULO 2
1 – Os Movimentos Sociais de Base: Das Origens à Constituição do Comitê
Comunitário e da Agência Cidade de Deus de Desenvolvimento Local

Procurei estudar o Comitê Comunitário e a Agência de Desenvolvimento


Local da Cidade de Deus, a partir da análise do processo histórico de construção e
desenvolvimento dos movimentos sociais urbanos no Brasil. Neste ponto, trabalho
com a hipótese de que a fragmentação dos movimentos sociais, no caso específico
da Cidade de Deus, é resultado da forma como se deu a ocupação do conjunto
habitacional, desde seus primórdios. Nos anos 1980 e 1990 dois novos fenômenos
contribuíram para manter e até ampliar a fragmentação dos movimentos sociais
naquela localidade: a proliferação das ONG’s e a ascensão dos traficantes de
drogas como lideranças locais. Uma das justificativas que ouvi dos membros do
Comitê e da Agência, e também de colaboradores externos do projeto de
desenvolvimento local – justificativa esta, que, segundo eles, explicaria a disputa
entre a CUFA e o Comitê Comunitário pelo mesmo espaço político – é a de que a
CUFA aceita práticas assistencialistas e se engaja em campanhas paliativas como o
“Criança Esperança”, da Rede Globo de televisão. Segundo a minha pesquisa, este
argumento não serve para explicar a divisão interna verificada nos dias de hoje na
Cidade de Deus. Como irei tentar mostrar, a principal fonte de divergência entre os
dois grupos políticos é a oposição entre as estratégias utilizadas por cada um dos
grupos para lidar com a questão do tráfico de drogas na comunidade. Descarto
desde logo a hipótese de fragmentação decorrente de práticas assistencialistas por
parte da CUFA. Só para citar um exemplo, entre outros: em dezembro de 2007, o
Comitê do Projeto ODM (Objetivos de Desenvolvimento do Milênio) da
Superintendência Regional do Rio de Janeiro, da Caixa Econômica Federal, realizou
uma campanha de arrecadação de Kits de lanche, entre os empregados da
empresa, para as crianças da comunidade de Rocinha 2, localizada na periferia da
Cidade de Deus. As contribuições foram feitas em dinheiro e arrecadadas em
diversas unidades da empresa, totalizando R$ 5.201,10. Acontece que “por motivo
de força maior” o evento de entrega dos Kits não pode ser realizado. Tratando-se de
uma comunidade dominada pelo tráfico de drogas pode-se imaginar qual o motivo
de força maior. O dinheiro foi então usado para compra de material escolar para as
42

crianças da Rocinha 218. E o Comitê Comunitário aceitou. Fica claro que o Comitê
Comunitário também aceita o assistencialismo. Não estou criticando, até por que
toda política social precisa de uma dose de assistencialismo, o problema é saber a
dose certa e não deixar que este tipo de prática desvirtue o movimento. Portanto, a
cizânia entre o Comitê Comunitário e o grupo do MVBILL não decorre da aceitação
de práticas assistencialistas, já que ambos os grupos se beneficiam deste tipo de
prática. A questão é muito mais complexa e tem a ver com as estratégias destes
grupos e a forma com que pretendem levar a imagem da Cidade de Deus para fora
dos limites da comunidade.
Passo agora a descrever o processo de formação dos movimentos sociais de
base no Rio de Janeiro, em particular, na Cidade de Deus.

2 - Histórico

Conforme diversos estudos realizados sobre a Cidade de Deus, sabe-se que


a formação desta localidade se deu no final da década de 1960, fruto de uma política
habitacional elitista, fundamentada na remoção forçada das populações faveladas e
a instalação destas coletividades em conjuntos habitacionais afastados dos centros
urbanos. Segundo Mike Davis, entre 1965 e 1974, foram removidas de favelas no
Rio de Janeiro 139 mil pessoas (Cf. Davis, 2006, p. 110.).
Os pobres do Rio de Janeiro, dentre todas cidades brasileiras, foram os que
mais sofreram com a política de remoção de favelas:
“No Rio de Janeiro, onde atingiu níveis inigualáveis em todo o país, a
erradicação de favelas iniciou-se com a construção de parques proletários no início
da década de 1940, durante o governo Vargas, mas só veio a se firmar como política
sistemática de remoção de favelados para conjuntos habitacionais na década de 60,
durante o governo Carlos Lacerda19” (Zaluar, 1985, p.64.).
É preciso dizer, contudo, que a política de remoção de favelas não é um caso
especificamente brasileiro, pelo contrário, ao mesmo tempo em que ocorriam por
aqui, as remoções também eram implementadas como política de Estado em
diversos países subdesenvolvidos espalhados pelo mundo:

18
Email interno distribuído aos empregados da Caixa Econômica Federal, vinculados à Superintendência
Regional Rio de Janeiro Centro. 19 dez 2007.
19
ZALUAR, Alba. A Máquina e a Revolta: as organizações populares e o significado da pobreza. São Paulo.
Brasiliense, 1985.
43

“Nas décadas de 1960 e 1970, por exemplo, as ditaduras militares do Cone Sul declararam
guerra às favelas e campamientos que viam como centros de potencial resistência ou como
simples obstáculos ao aburguesamento urbano. Assim, escrevendo sobre o Brasil pós-1964,
Suzana Taschner diz: “o início do período militar caracterizou-se por uma atitude autoritária,
com a remoção compulsória de assentamentos de invasores com a ajuda das forças de
segurança pública”. Evocando a ameaça de um minúsculo foco urbano de guerrilheiros
marxistas, os militares arrasaram favelas e expulsaram quase 140 mil pobres dos morros que
dominam o Rio20. Com o apoio financeiro da United States Agency for International
Development (Usaid), outras favelas foram demolidas mais tarde para abrir espaço à expansão
industrial ou para “embelezar” as fronteiras das áreas de renda mais alta. Embora as
autoridades fracassassem em seu objetivo de eliminar todas as “favelas do Rio em uma
década”, a ditadura deflagrou conflitos entre os bairros burgueses e as favelas e entre a polícia
e a juventude favelada que continuam a vicejar três décadas mais tarde”21 (Davis, 2006, p.
114.).
“Desde a década de 1970, tornou-se lugar comum para os governos do mundo todo justificar
a remoção de favelas como um modo indispensável de combater o crime. Além disso, as
favelas costumam ser consideradas uma ameaça simplesmente por serem invisíveis para a
vigilância do Estado e, com efeito, estarem fora do panóptico” (Davis, 2006, p. 117).
Sem dúvida, os programas de erradicação de favelas no Rio de Janeiro
estavam ligados a uma prática preventiva do governo ditatorial, que considerava as
favelas cariocas possíveis focos de resistência ao regime militar e núcleos de
insubordinação, onde os revolucionários comunistas podiam buscar abrigo e formar
novos revolucionários entre as classes.populares. Pela dificuldade de entrar
naquelas comunidades em busca de insurgentes, o governo optou pela remoção das
populações faveladas para conjuntos habitacionais, construídos de preferência em
terrenos planos, com ruas amplas e bem delimitadas, nas quais as forças de
segurança poderiam entrar com facilidade. Enfim, a remoção significava, aos olhos
da ditadura, recolocar as classes populares sob o controle do Estado, ou seja, trazê-
las para dentro do panóptico, fortalecendo, dessa forma, o controle social.
Ao mesmo tempo, o governo militar sofria pressões oriundas do setor da
construção civil, que via nos terrenos da zona sul ocupados por favelas, um enorme

20
Taschner, “Squatter Settlements and Slums in Brazil”, p. 205.
21
Michael Barke, Tony Escasany e Greg O’Hare, “Samba: A Metaphor for Rio’s Favelas”, Cities, v. 18, n. 4,
2001, p. 263.
44

potencial para a realização de lucros extraordinários. Às empresas da construção


civil interessava, em primeiro lugar, construir na Zona Sul, em terrenos
extremamente valorizados, para as classes média e alta. Ao mesmo tempo, também
era interessante construir os novos conjuntos habitacionais para onde os favelados
seriam removidos (Cf. Zaluar, 1985, p.65). As empresas da construção visualizavam
a possibilidade de ganhar dos dois lados, ainda mais que, inicialmente, as
habitações populares seriam construídas com fortes subsídios estatais, o que
reduzia o custo de oportunidade e o risco de inadimplência.
Outro fator importante, que “autorizava” o regime a implementar a política de
remoção de favelas, era o fato do governo não precisar mais dos votos dos
favelados. Como não havia mais eleições diretas, os políticos e os militares se
sentiam à vontade para executar qualquer tipo de política autoritária (Cf. Alba, 1985,
p.65.).
“Entre 1962 e 1965, quando Lacerda deixou o governo, quatro grandes conjuntos
habitacionais foram construídos ou tiveram sua construção iniciada pela recém criada
COHAB com o auxílio da Aliança para o Progresso, como resposta à revolução cubana: Vila
Aliança, com 2.187 unidades habitacionais (o primeiro a ser terminado), Vila Esperança, com
464 unidades, Vila Kennedy, com 5.509 unidades, e Cidade de Deus, o único próximo à Zona
Sul da cidade, com 6.658 unidades” (Zaluar, 1985, p. 66).
Cidade de Deus foi a localidade escolhida para abrigar os favelados
removidos da Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro:
”Lá vieram a se reunir ex-moradores de 63 favelas localizadas nos mais diferentes
pontos da cidade, embora o maior número (70%) tenha vindo apenas de seis delas: Praia do
Pinto (19,2%), Parque Proletário da Gávea (15,2%), Ilha das Dragas (14,5%), Parque do
Leblon (7,3%), Catacumba (7%) e Rocinha (6,3%), todas da zona Sul da cidade. Suas escolas
de samba, blocos, times de futebol, associações de moradores, comissões de luz esfacelaram-
se e não puderam ser reconstituídos nos conjuntos. Seus grupos de amigos, suas redes de
vizinhos e de parentes ficaram dissolvidos pela cidade, inalcançáveis pela distância” (Zaluar,
1985, p. 71.).
O maior problema, resultante da forma de ocupação do território na Cidade de
Deus, foi que os moradores não foram alocados de acordo com seu local de origem,
e sim de acordo com a sua renda e em alguns casos de acordo com o contato que
tinham com pequenos funcionários da COHAB ou com políticos influentes:
45

“Como resultado, num mesmo conjunto habitacional passaram a conviver ex-


moradores de inúmeras favelas sem nenhum contato anterior” (Zaluar, 1985 p. 70).
Tramas sociais rompidas, redes de solidariedade desfeitas; este foi o impacto
da política de remoção de favelas na vida concreta dos habitantes da Cidade de
Deus. Essas redes não se reconstroem da noite para o dia. Como resultado ocorreu
a fragmentação do espaço social, algo que veio a refletir na configuração dos
movimentos sociais da localidade, nas disputas entre as associações de moradores,
nas rivalidades entre as agremiações recreativas e aquelas associações. Com o
passar do tempo, verificou-se a reconstrução de redes de solidariedade, só que
agora fragmentadas, delimitadas no espaço urbano. A Cidade de Deus foi retalhada
em zonas de influência. Nenhuma organização social de base conseguiu, até hoje,
representar a comunidade como um todo:
“A representação da localidade é uma das mais importantes na ideologia do pobre urbano
desta cidade. E a localidade tem divisões e subdivisões territoriais, tanto mais precisas quanto
mais tiver organizações que unam, mobilizem e façam o nome do povo do local. Cidade de
Deus tinha no início da década de 80 três associações de moradores, uma escola de samba,
quatro blocos de carnaval, dois de enredo e dois de empolgação, e vários times de futebol”.
“As três associações de moradores, embora disputem a liderança e a representação de todo o
conjunto, têm suas áreas de influência mais ou menos demarcadas. A associação de
moradores dos blocos de apartamentos Gabinal Margarida, cujos moradores tentam afastar a
indesejada identificação com o mal-afamado conjunto Cidade de Deus, mobiliza apenas estes
moradores e não procura rivalizar com as duas outras associações para representar o conjunto.
O Conselho de Moradores de Cidade de Deus, ou COMOCID, a mais antiga das associações
(foi fundado em 1968) tem sua sede na praça principal e, embora reivindique a liderança de
todo o conjunto, na prática concentra sua atuação nas áreas em que as redes de relações
pessoais de seus diretores lhes dão acesso: nas ruas adjacentes à praça principal, nas quadras
próximas à estrada principal e na quadra 13. Sua principal rival, a Associação de Moradores
de Cidade de Deus, fundada em 1980, funciona num prédio construído pela COHAB junto a
uma grande área de esportes para funcionar como clube, mas que nunca foi usado como tal.
Nem as associações de moradores parecem, portanto, escapar completamente da lógica da
divisão territorial que marca atividade das quadrilhas e, diferentemente, das agremiações
carnavalescas” (Zaluar, 1985, p. 175.).
O que explica essa subdivisão territorial em áreas de influência é, portanto, a
forma de ocupação do solo e das habitações nos primórdios da Cidade de Deus.
46

Existiam três categorias de moradores: os inscritos, os removidos e os invasores.


Foram estas categorias que determinaram a ocupação do território, a construção do
espaço social e a representação simbólica que os próprios habitantes da Cidade de
Deus passaram a ter de si mesmos e de sua vizinhança:
“Em relação a este aspecto, Licia Valladares (1978), em pesquisa anteriormente realizada no
mesmo bairro, verificou a existência de um sistema hierárquico na distribuição de habitações,
adotado pela COHAB, que consistia na distinção das moradias segundo a origem dos futuros
moradores. A classificação adotada baseava-se nas seguintes categorias, a saber: “removidos”,
“inscritos” e “invasores”. Por esta lógica a categoria “removidos” designava os moradores que
foram retirados de diferentes favelas localizadas originalmente na Zona Sul da Cidade do Rio
de Janeiro. Os moradores removidos das favelas, muitas vezes contra a própria vontade, eram
os primeiros a chegar ao Conjunto Habitacional, no entanto, não tinham poder de escolha da
localização ou do tamanho da nova moradia. Enquanto, os “inscritos” eram funcionários
públicos, em sua maioria da Polícia Militar, cadastrados previamente na COHAB, por isso,
com poder de escolha das melhores casas. No extremo, estava a categoria dos “invasores”,
alocados nas triagens, oriundos das favelas extintas por enchentes ou incêndios dos mais
variados lugares do Rio de Janeiro que invadiram residências ainda não ocupadas ou
inconclusas e/ou terrenos vazios22” (Teixeira de Mello, 2007, p.10-11.).
“Tais categorias foram assimiladas pelos moradores, tornando-se um complexo sistema de
significação, cujo sentido associava-se à delimitação de fronteiras simbólicas em relação à
construção social do espaço” (Teixeira de Mello, 2007, p.11.).
É importante relatar que a história dos movimentos sociais urbanos de base
começa na década de 1950, muito antes da construção da Cidade de Deus, e está
intimamente ligada à intervenção do Estado e da Igreja Católica nas comunidades
faveladas:
“Os conselhos de moradores foram criaturas da Fundação Leão XIII, que na década de 50
começou a fundá-los a partir da favela da Praia do Pinto no Leblon. Naquela época, o projeto
assistencialista da Fundação tinha por finalidade promover a “elevação moral e cultural” dos
favelados através da “participação organizada” e “do próprio esforço do favelado”, buscando
finalmente “integrá-lo à sociedade” (Valla, 1981). Ao conselho cabiam a organização dos
grupos para o “trabalho cooperativo”, bem como o controle e a proteção do local contra os

22
TEIXEIRA DE MELLO, Edir Figueiredo de Oliveira. Cidade de Deus: Histórias e Trajetórias. 2007. 52 p.
Projeto de Tese de Doutorado em Ciências Sociais. UERJ. Rio de Janeiro.
47

marginais. Poucos anos mais tarde, o SERPHA, órgão estadual, encarregou-se de incentivar a
formação de associações de moradores cujos dirigentes e líderes passariam a ser orientados
para uma ação mais independente, cabendo ao SERPHA a incumbência de dar informação
legal e financeira aos favelados. Extinto em 1962, o SERPHA foi substituído pela Secretaria
de Serviços Sociais, órgão criado no governo Lacerda que veio a coordenar e preparar as
remoções de favelas através de suas associações. Em 1974 a Fundação Leão XIII foi
vinculada à Secretaria de Serviços Sociais, ambas atuando junto aos Centros Sociais Urbanos
que passaram então a funcionar nos conjuntos. Até pelo menos 1982, as associações de
moradores abriam-se à tutela do Estado através de suas ligações com os Centros Sociais
Urbanos e com os políticos clientelistas, intermediários do governo estadual”.
“Em 1980, o COMOCID não tinha, por norma de atuação, vínculos com quaisquer políticos
clientelistas, adeptos que eram da “mobilização participativa”. Mas as suas atividades
estavam, de fato, muito próximas às do CSU, por onde aliás haviam passado seus jovens
líderes. Os empreendimentos culturais destes – peças de teatro, exibições de judô e caratê,
exposições, etc. – eram feitos em colaboração com o CSU, mas não com as agremiações
recreativas locais” (Zaluar, 1985, p. 180).

É claro que as concepções de “protagonismo social” e de “protagonismo local”


não podiam florescer num ambiente marcado pela intervenção do Estado e da Igreja
Católica, mas, ao mesmo tempo, a experiência acumulada ao longo dos anos
possibilitou, já durante a década de 1990, a formulação do conceito e da prática do
“protagonismo social”. Mais a frente, os favelados do século XXI “formularam o
conceito de “protagonismo local” e romperam com a lógica presente no discurso do
Estado e da Igreja, que era a de considerar a favela como um local de desvios e de
criminalidade. Neste sentido, tanto o “protagonismo social”, quanto o “protagonismo
local” são fenômenos novos na história dos movimentos sociais urbanos. Mais uma
vez, é necessário chamar a atenção de que a territorialização do espaço urbano, a
segregação residencial e o estigma sofrido pelos favelados não são problemas
específicos das metrópoles brasileiras. São fenômenos globais. Wacquant ressalta
este aspecto do problema na apresentação de seu livro “Os Condenados da
Cidade”:

“Favela no Brasil, poblacione no Chile, villa miséria na Argentina, cantegril no Uruguai,


rancho na Venezuela, banlieue na França, gueto nos Estados Unidos: as sociedades da
América Latina, da Europa e dos Estados Unidos dispõem todas de um termo específico para
48

denominar essas comunidades estigmatizadas, situadas na base do sistema hierárquico de


regiões que compõem uma metrópole, nas quais os párias urbanos residem e onde os
problemas sociais se congregam e infeccionam, atraindo a atenção desigual e
desmedidamente da mídia, dos políticos e dos dirigentes do Estado. São locais conhecidos,
tanto para forasteiros como para os mais íntimos, como “regiões-problema”, “áreas
proibidas”, circuito “selvagem” da cidade, territórios de privação e abandono a serem evitados
e temidos, porque têm ou se crê amplamente que tenham excesso de crime, de violência, de
vício e de desintegração social”.23

Wacquant demonstra que as “representações sociais” do senso comum e de


boa parte dos sociólogos e estudiosos do assunto, ainda estão impregnadas por
idéias preconceituosas e etnocêntricas. O que ele está dizendo é que ainda
predomina nas consciências individuais e coletivas a concepção teórica de Robert
Park24, ou seja, a idéia de que existem nas cidades “regiões morais”. “Regiões
morais” seriam “ambientes isolados nos quais os impulsos, as paixões e os ideais
vagos e reprimidos se emancipam da ordem moral dominante”. Este tipo de análise
tende a considerar os territórios segregados como o locus da imoralidade, da
divergência, do desvio em relação à ordem moral dominante. Esta concepção da
vida social acaba dando origem ao conceito de “underclass”, que no fim das contas
só serve para aumentar e justificar o estigma imposto às populações residentes nas
áreas menos favorecidas das cidades. Quando a Igreja e o Estado diziam que
queriam promover um “elevação moral e cultural dos favelados”, não há dúvida de
que estavam utilizando este tipo re raciocínio preconceituoso. Para que
florescessem os “protagonismos” social e local, os pobres urbanos tiveram que
romper a barreira do preconceito e do patriarcalismo. Tiveram que se impor
enquanto cidadãos portadores de direitos como qualquer outro, independentemente
da classe a que pertençam. Esta parece ter sido uma das maiores conquistas dos
movimentos sociais urbanos nos últimos anos: o respeito das instituições, do Estado,
de algumas empresas, de intelectuais e de uma parcela significativa da sociedade
civil, muito embora a concepção “ecológica” da sociedade, expressa no conceito de

23
WACQUANT, Loic. Os condenados da Cidade: estudo sobre a marginalidade avançada. Rio de janeiro:
Revan. FASE, 2001.
24
PARK, Robert Ezra. A cidade: sugestões para a investigação do comportamento humano no meio urbano. In:
“O Fenômeno Urbano”. Velho, Otavio Guilherme (org.). Rio de Janeiro: Zahar Editores, 3ª edição, 1976.
49

“região moral”, ainda povoe boa parte do imaginário coletivo e do senso comum,
principalmente quando o tema é a favela.

Para terminar esta seção e entrar no estudo de caso propriamente dito,


preciso fazer algumas considerações a respeito da representatividade das
associações de moradores e das agremiações recreativas na Cidade de Deus.
Conforme pesquisa realizada pelo IBAM em 1978, não resta dúvida da preferência
dos moradores daquela localidade pelas agremiações recreativas, em detrimento
das associações de moradores:
“Apenas 12% da amostra total desta população afirmaram ter conhecimento de associações de
moradores. Destes 12%, somente 15,8% admitiram participar regularmente das reuniões em
associações, enquanto 70,9% nunca o faziam”.
“No entanto, 51,2% da amostra total afirmaram conhecer associações recreativas no
seu conjunto e 37,2%, associações esportivas”.
“Tudo indica, portanto, que as agremiações recreativas ou esportivas, entre as quais se
incluem os blocos e times de futebol, são as que mais mobilizam os trabalhadores pobres
que moram em tais conjuntos” (Zaluar, 1985, p. 181-182).
Esses dados, embora desatualizados, me permitem supor que é necessário
que o CCCDD integre em sua ação política, intervenções, cursos e eventos
regulares nas áreas esportiva, recreativa e cultural. O Comitê já faz isso, mas nesse
aspecto a CUFA é muito mais competente: procura atrair os jovens com cursos
profissionalizantes em música e audiovisual, além de estimulá-los a produzir seus
próprios “bens culturais”. Esta estratégia parece dar mais resultado do que as ações
implementadas pelo CCCDD na tentativa de mobilizar a comunidade e a juventude.
Os jovens vêem essas atividades não pela perspectiva da capacitação para um tipo
de trabalho tradicional, do qual não possuem muitas referências positivas dentro da
comunidade, e sim como um tipo de trabalho que é ao mesmo tempo lazer, prazer e
diversão. É assim que a CUFA consegue atrair e mobilizar a juventude da Cidade de
Deus. É claro que estes jovens também possuem o desejo de serem famosos, de
aparecerem na mídia, como algumas personalidades do local que se tornaram
referências positivas dentro da localidade (MVBILL, Tati Quebra Barraco, etc.).
O funk, o Hip Hop, o grafite, e o basquete de rua parecem também surtir
efeitos positivos na auto-estima da comunidade, em especial nos jovens. A CUFA
usa esses instrumentos para atrair a comunidade de posteriormente capacitá-la para
50

o trabalho e o exercício da cidadania. Pelas minhas observações posso dizer que o


CCCDD erra ao fazer uso da linguagem política tradicional na tentativa de atrair e
mobilizar a comunidade. Isso limita sua ação, o que não é bom para a comunidade,
já que este grupo político possui uma concepção democrática muito interessante,
pois radicalmente participativa. Uma das maiores virtudes do Comitê Comunitário é a
de não ter incorporado em seu modelo de gestão o presidencialismo, forma política
adotada pelas associações de moradores em geral. O Comitê não tem presidente.
As reuniões do colegiado são realizadas sempre em círculo, onde cada membro está
eqüidistante do centro da reunião, ou seja, em condição de absoluta igualdade com
os demais membros. Este formato das reuniões, onde são tomadas as decisões e
onde é feito semanalmente o acompanhamento e a avaliação do andamento dos
projetos em curso, mais do que possuir um caráter simbólico, revela a abolição das
hierarquias no interior do grupo político. Este é um dos motivos por que falo que a
concepção de democracia do Comitê Comunitário é radical. As decisões são sempre
tomadas coletivamente, busca-se o consenso através da discussão profunda dos
temas a serem tratados. Quando é necessário votar, o voto de cada indivíduo tem
sempre o mesmo peso.

Este modelo ainda tem a vantagem de proteger os membros do Comitê da


ação dos bandos armados. Como as decisões são sempre tomadas coletivamente,
não há um indivíduo que possa ser acusado pelo tráfico, caso alguma coisa dê
errado. Não podemos nos esquecer que é comum nas favelas cariocas o
assassinato de presidentes de associações de moradores, seja pelo tráfico, pela
polícia, ou pelas milícias. Vide o caso recente do desaparecimento do presidente da
associação de moradores da favela Kelson’s, Jorge da Silva Siqueira Neto.25
Ainda sobre a questão da representatividade das associações de moradores
é preciso dizer que, ao longo da década de 1990, a maioria delas, localizadas em
favelas do Rio de Janeiro, foi dominada por lideranças ligadas ao tráfico de drogas:
“Em meados da década de 1980, as principais associações de moradores nas favelas do Rio de
Janeiro tornaram-se alvo do interesse dos chefes do tráfico, passando a maioria delas para o
controle dos grupos de traficantes e assaltantes, especialmente os vinculados ao Comando
Vermelho. O efeito principal da presença indesejada dos grupos de tóxico foi tornar

25
Rocha, Carla. Um mês depois não há respostas sobre desaparecimento de líder da Kelson’s. O Globo. Rio de
Janeiro. 07.10.2007. Caderno Rio, p. 22.
51

irrealizáveis as atividades rotineiras e as funções administrativas mais simples, tais como


pagamento da água que é coletivizada em quase todas as favelas, bem como outras despesas
coletivas. O desalento tomou conta dos militantes do movimento, que viram os moradores
deixarem a associação. Eles já não conseguiam mais mobilizá-los para suas atividades
conjuntas (Peppe, 1992). Isso facilitou, por sua vez, a participação cada vez maior dos
traficantes na política local e seu ingresso nas associações, em algumas delas através do voto.
Anteriormente, em algumas favelas, traficantes já exerciam o papel de segurança, eliminando
ou afastando os que molestavam os trabalhadores e suas famílias, No final da década, eles
passaram não só a oferecer seus serviços como coletores de taxas, o que podia ser feito sem
problemas devido ao medo que inspiravam nos moradores, mas também a financiar projetos
comunitários, como praças de esportes. A ameaça ao movimento que reúne os trabalhadores
pobres residentes em tais locais é evidente e extremamente desagregadora. Nenhuma resposta
a esses problemas pode ser simples ou unilateral. Há que considerar os aspectos institucionais,
políticos, culturais, sociais e econômicos da questão, os males a combater26” (Zaluar, 2004, p.
35).

26
ZALUAR, Alba. Integração perversa: pobreza e tráfico de drogas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004. 440p.
52

CAPÍTULO 3

1 - A Construção do Projeto de Desenvolvimento Local

A década de 1990 foi marcada pela proliferação de ONG’s pelo mundo todo.
No Brasil não foi diferente. Em especial, na Cidade de Deus, houve uma proliferação
do trabalho voluntário e de organizações não governamentais. Por parte dos
governos, grandes lideranças foram cooptadas, ao mesmo tempo em que houve a
partidarização dos movimentos comunitários, intensificando ainda mais as disputas
internas. Dada a crise de representatividade pela qual passaram as associações de
moradores no Rio de Janeiro, no mesmo período, era de se esperar que, na Cidade
de Deus - onde, como já foi dito, as associações de moradores nunca tiveram muita
representatividade -, se constituíssem ONG’s. Este fenômeno adentrou os anos
2000, muito pela necessidade que os moradores tiveram de registrar algumas
entidades que já existiam, mas que não estavam formalmente constituídas.

Segue abaixo uma lista com algumas das ONG’s que se constituíram no
período analisado, na Cidade de Deus, e que deram origem à Agência Cidade de
Deus de Desenvolvimento Local:

Grupo Alfazendo Brasil: organização civil sem fins lucrativos, fundada em 24 de


fevereiro de 2002, apartidária, que realiza “atendimento sócio-educativo”. Tem por
finalidade:

I - Promoção social de crianças, jovens e adultos;

II - Promoção de acesso a práticas culturais e incentivo a leitura;

III – Prestação de serviços educacionais e pedagógicos nas modalidades de


alfabetização de jovens e adultos no primeiro segmento do ensino fundamental, bem
como reforço escolar para crianças e adolescentes, no Brasil e no exterior;

IV - Orientação familiar quanto a questões de maternidade e paternidade


responsáveis, educação sexual e prevenção ao alcoolismo e à drogadição;

V – Promoção de saúde e dos aspectos sanitários envolvidos;

VI – Promoção do meio ambiente, através da educação ambiental;


53

VII – Promoção da saúde do indivíduo, através de jogos recreativos e práticas


desportivas, visando melhorar os aspectos psicossociais, psicomotores e a rigidez
física de crianças, jovens e adultos;

VIII – Promoção do voluntariado;

IX – Geração de emprego e renda, por meio da experimentação não lucrativa, de


novos modelos sócio-produtivos e de sistemas alternativos de produção;

X – Prestação de educação profissional técnica de níveis básico e médio;

XI – Buscar a colaboração ou cooperação de entidades especializadas e de técnicos


no que se refere à criança, ao adolescente e ao idoso;

XII – Desenvolver a cultura especializada e a habilitação do pessoal destinado a


trabalhar no campo da educação e do bem-estar da criança, do adolescente e do
idoso.

Centro de Estudos e Ações Culturais e de Cidadania (CEACC): fundado em 11


de novembro de 2001, com atuação voltada para “os protagonistas infanto-juvenis”,
é uma sociedade civil sem fins lucrativos que tem por objetivos, entre outros:

I – desenvolver pesquisas sobre temáticas urbanas;

II – fortalecer os movimentos sociais organizados no bairro;

III – organizar atividades de capacitação e formação para lideranças dos


movimentos sociais;

IV – lutar contra qualquer tipo de discriminação;

V – desenvolver atividades voltadas para crianças e adolescentes, com o


objetivo de formar protagonistas;

VI – desenvolver a consciência de cidadania entre seus membros;

VII – lutar pela redução das desigualdades entre homens e mulheres e pela
consolidação da cidadania plena;

VIII – promover debates com entidades diversas sobre políticas públicas de


interesse coletivo;
54

IX – fomentar a criação de cooperativas e outras formas alternativas de


geração de trabalho e renda para a população que esteja fora do mercado de
trabalho;

X – buscar recursos para a realização de atividades de capacitação e de


melhoria da qualidade de vida no bairro.

Centro Educacional Criança Futuro e Adolescência: fundada em 15 de janeiro de


1996 e registrada em 13 de maio de 1998, é uma sociedade civil, apartidária, sem
fins lucrativos, destinada a assistir administrativamente aos moradores, zelando pelo
espírito humanitário e social assim como pelos direitos e o bem-estar de sua
população.

I – buscar melhorias das condições habitacionais;

II – promover a integração social com a circunvizinhança;

III – participar efetivamente da administração do bairro, zelando e agindo legalmente


pela manutenção da ordem e tranqüilidade das famílias.

Liga Litoral de Capoeira - LILIRCA: entidade civil sem fins lucrativos, fundada em
14 de novembro de 1973 e registrada em 02 de fevereiro de 1997, que tem por
objetivos, entre outros:

I – difundir a prática de capoeira, visando capacitação física e educacional;

II – resgatar a memória cultural e histórica da capoeira, principalmente do estilo


característico que é praticado pela liga;

III – contribuir para a boa convivência cultural, social, educacional e desportiva;

IV – valorizar a pessoa humana.

Comitê da Terceira Idade: associação civil sem fins lucrativos, fundada em 26 de


junho de 2005, que tem por finalidade, além de defender os interesses dos idosos e
de seus familiares, promover a melhoria da qualidade de vida dos moradores da
Cidade de Deus como um todo, fomentar projetos na área da educação, buscar
soluções para a pobreza e a desigualdade, promover ações de associativismo,
cooperativismo e empreendedorismo, buscar a aproximação com os vários setores
da sociedade; promover o desenvolvimento humano e sustentável; melhorar a saúde
e as condições sanitárias e habitacionais na Cidade de Deus; atuar como articulador
55

com órgãos públicos e privados; promover ações preventivas para jovens e


adolescentes em situação de risco social, desenvolvendo práticas desportivas,
artísticas, literárias e culturais; educar para a cidadania; lutar contra qualquer tipo de
discriminação, em especial ao portador de necessidades especiais; combater
doenças sexualmente transmissíveis, etc.

Associação de Moradores União Comunitária Cidade de Deus – AMUNICOM:


constituída como Associação Civil sem fins lucrativos, fundada em 07 de agosto de
2004, tem por finalidade;

I – defender os interesses sociais e econômicos de seus associados;

II – Promover palestras, cursos e encontros;

III – realizar atividades desportivas na comunidade;

IV – garantir a propriedade do terreno onde vive por cada morador;

V – transformação da favela em bairro popular com água, luz, esgoto, calçamento e


saneamento básico;

VI – instalação de escola e posto de saúde na comunidade;

VII – instalação e manutenção de creche comunitária;

VII – atender aos jovens da comunidade com cursos de balé, sapateado, jazz, dança
de salão, lambaeróbica, teatro e música.

A leitura do estatuto destas ONG’s deixa claro que, em muitos aspectos, elas
estavam ocupando o mesmo espaço político. Atuavam de forma fragmentada, o que
era de se esperar, pelos motivos que já foram expostos anteriormente.

Em 2002, o sucesso do filme “Cidade de Deus” colocou o bairro intensamente


na mídia, reforçando o estigma de comunidade violenta e perigosa e favorecendo
uma nova onda de preconceito e discriminação, que atingiu mais uma vez
negativamente a auto-estima da comunidade. Isto já havia ocorrido na década de
1980, quando a “guerra” entre facções do tráfico de drogas havia transformado a
localidade, anteriormente vista como “solução” do problema habitacional – na
perspectiva das políticas habitacionais da época -, em questão de segurança pública
(Cf. Teixeira de Mello, 2007, p.19.).
56

É da indignação causada pelo filme que surge em 2003 o Comitê Comunitário


Cidade de Deus, ao mesmo tempo em que o Fórum Empresarial pelo Rio, com o
objetivo de reduzir os índices de exclusão social na cidade do Rio de Janeiro,
escolhe o bairro de Cidade de Deus como área-piloto.

Bianca Freire Medeiros e Maria Josefina Gabriel Sant’Anna27, na análise que


fazem dos filmes Boyz’n the Hood, La haine e Cidade de Deus, verificam que a
maioria dos personagens destes três filmes “não tem trabalho ou convive com suas
formas mais precárias ou ilegais”. Além disso, as localidades retratadas pelos filmes
“são territórios segregados e estigmatizados, onde os efeitos da destituição social
expressam-se na impossibilidade de acesso aos direitos sociais que, entre outros
resultados perversos, coloca sua população sob julgo da violência policial arbitrária”.
Portanto, estigmatização e segregação social aparecem aqui como um fenômeno
global, característico das metrópoles do planeta. Especificamente em relação à
Cidade de Deus, as autoras demonstram que “os conjuntos habitacionais foram
assimilados no imaginário social como favelas” e o favelado é um “homem
construído pela socialização em um espaço marcado pela ausência dos referenciais
da cidade”. Dessa forma, segundo as autoras “conjuntos habitacionais (como é o
caso de Cidade de Deus) e loteamentos irregulares, embora com um padrão mais
formal de ocupação do solo, também podem “favelizar-se”, isto é, assumir
características socioculturais supostamente semelhantes àquelas encontradas nos
espaços típicos de favelas, do que é sintoma a existência dos tradicionais “donos do
lugar””. Tal constatação se encaixa com a visão de alguns líderes locais com os
quais tive contato e que chamam este processo de “Re-favela”. É que no caso da
Cidade de Deus o processo histórico ocorreu na forma de um evento-sequência:
“Favela - Conjunto Habitacional – Re-favela”, o que pode ser comprovado pela
análise de algumas fotos a que tive acesso e que mostram um cenário muito similar
em algumas áreas da comunidade hoje, se comparado ao cenário das favelas que
deram origem ao conjunto habitacional, em especial a Praia do Pinto.

Ainda segundo as autoras “a lógica do imediatismo (reforçada pela idade dos


jovens), a falta de perspectiva, o surgimento de uma subcultura que desqualifica o

27
FREIRE – Medeiros, B. e SANT’ANNA, M. J. G. Gueto, favela, banlieue: juventude e segregação espacial
no cinema contemporâneo. In Freire – Medeiros, Bianca e Costa Vaz, Maria Helena (orgs.) Imagens Marginais.
Natal: Editora da UFRN, 2006.
57

trabalho e prestigia a violência para a obtenção de bens tidos como exclusivos dos
ricos, as práticas discriminatórias em relação aos jovens das áreas pobres (prisões
arbitrárias, por exemplo), colaboram para compor os territórios de desespero e
violência que os filmes retratam”.

O importante neste ponto é perceber que o evento catalisador da


transformação que ora acontece na Cidade de Deus, foi o reforço do estigma
imposto ao Conjunto Habitacional enquanto o locus da violência e da degradação
moral. O filme foi capaz, através do sucesso de público que alcançou, de reforçar
este estigma no inconsciente coletivo. A mídia, segundo Wacquant, tem grande
parcela de culpa neste processo de estigmatização dos excluídos, pois induz setores
da sociedade a assumirem para si as “representações midiáticas”, que em si
mesmas têm se mostrado estigmatizantes. O resultado de todo este processo é a
tendência que amplos setores da sociedade têm de “culpar a vítima”. O fato novo, no
caso da Cidade de Deus, foi a não aceitação pelos moradores da comunidade do
rótulo de “underclass” e a mobilização no sentido da construção de uma outra
imagem, de uma nova representação social.

Todos estes acontecimentos levaram alguns setores da comunidade de


Cidade de Deus a se unirem em torno da construção de um projeto coletivo, que
fosse capaz de reagir ao estigma que estava posto. No período de um ano, entre o
sucesso do filme “Cidade de Deus” e a constituição do Comitê Comunitário e da
Agência de Desenvolvimento Local, a comunidade construiu este projeto. O objetivo
era romper com a fragmentação histórica que existia – e ainda existe - na localidade;
unir forças para construir um novo movimento social mais forte, e articulado com
amplos setores da comunidade. Para isso, eles precisavam colocar as idéias no
papel e sair em busca de parcerias. Só que eles não sabiam muito bem como fazê-
lo. Não sabiam como elaborar e escrever o projeto, qual metodologia iriam usar, e
quais as melhores maneiras de mobilizar a comunidade em torno de objetivos
comuns. A cronologia da construção coletiva desse empreendimento social, segundo
informativo28 do Comitê e da Agência, foi a seguinte: o Centro Comunitário foi criado
em 2003, logo depois do lançamento do filme “Cidade de Deus”.

“Lideranças e militantes sociais se reuniram para mostrar que nosso bairro não é só
violência e miséria. Depois da realização de dois fóruns de discussão, formou-se uma rede de
28
Comitê Comunitário e Agência Cidade de Deus de Desenvolvimento Local. Informativo Nº 1, Agosto, 2006.
58

instituições locais e moradores. Era o Comitê Comunitário, que nasceu da necessidade e


sentimento da comunidade de construir um projeto de desenvolvimento local. Um processo de
transformação que pressupõe cooperação, autonomia, protagonismo, coordenação das ações,
compartilhando valores, objetivos, responsabilidades, possibilidades e poder”.

“Claro que para isso é preciso exigir que os governos, vereadores, deputados e
senadores, cumpram sua obrigação. Atendam as necessidades da comunidade” (Comitê e
Agência Cidade de Deus, Informativo nº 1, 2006, p. 2)..

“Mas não podemos ficar esperando. Podemos e devemos mostrar que nosso bairro tem
uma vida comunitária capaz de responder aos desafios colocados. Isso é desenvolvimento
local. Exigir direitos, mas também agir para melhorar a vida” (Comitê e Agência Cidade de
Deus, Informativo nº 1, 2006, p. 3).

“Em 2003, aconteceu o 1º Fórum Comunitário. O evento realizou um primeiro


levantamento das necessidades da comunidade,(...), Mas uma das conquistas mais importantes
desse processo foi a elaboração do Plano para o Desenvolvimento da Cidade de Deus.
Durante o 2º Fórum Comunitário, o plano de desenvolvimento Comunitário foi apresentado e
aprovado. Para colocar em prática o plano também foi aprovada a criação da Agência Cidade
de Deus de Desenvolvimento local”.

“Para dar os primeiros passos na construção da agência, o Comitê Comunitário


conseguiu um financiamento junto à Finep (Financiadora de Estudos e Projetos); (...); O
projeto de criação da Agência Cidade de Deus foi discutido com o Ibase (Instituto
Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas); (...). Atualmente, a Agência Cidade de
Deus está sendo preparada para funcionar com a ajuda de pessoal especializado. Mas,
num futuro bem próximo, ela vai funcionar somente através do trabalho e da atuação de
pessoas e entidades da própria comunidade. O objetivo é que isso aconteça a partir de
2007” (Comitê e Agência Cidade de Deus, Informativo nº 1, 2006, p. 6.).

Quando o Ibase entrou no projeto, já havia, portanto, toda uma mobilização


da comunidade em andamento. Não há como negar o pioneirismo e a iniciativa da
Comunidade da Cidade Deus para a construção deste empreendimento social.
Contudo, como o projeto em análise se auto-define como um projeto em permanente
construção, houve grandes modificações desde o projeto inicial elaborado pelo
antigo Centro Comunitário. Segundo as informações que obtive, foi o Ibase quem
deu toda a assessoria técnica à comunidade e ajudou a reescrever e a viabilizar o
59

projeto. Como existem diversas versões do projeto – a versão com que trabalhei é a
de 18 de abril de 2005 –, prevaleceram no corpo do texto as idéias do Ibase. Esta
ONG possui mais de vinte anos de trabalho na área social e no incentivo à cidadania
ativa. Possui reconhecida expertise na elaboração e execução de projetos sociais.
Portanto, nada mais previsível do que o projeto ter sido impregnado pelas
concepções do Ibase sobre temas como cidadania, democracia, participação, gestão
compartilhada, novo arranjo institucional, etc. Inclusive o conceito de “protagonismo
local”, tudo leva a crer, foi levado à comunidade a partir de experiências anteriores
das quais o Ibase já tinha participado, em especial uma, que nasceu dentro do
próprio Ibase: a Agenda Social Rio. Isso em nada desvaloriza a experiência e a
articulação da comunidade em busca da construção de um destino coletivo comum.
Pelo contrário, a transferência de toda uma tecnologia social - acumulada e
construída ao longo de anos de experiência e trabalho do Ibase -, para o Comitê e a
Agência Cidade de Deus, permitiu que a comunidade organizada desse um salto de
qualidade, pulando etapas e acelerando a realização das metas propostas. A
aceitação desta cooperação técnica demonstra um amadurecimento do movimento
social de base, que sabe que precisa se capacitar para poder negociar com o
Estado em condições mais equânimes.

Cabe neste momento, um breve relato sobre o Ibase, como se constituiu, e


quais são as concepções e os conceitos que orientam esta instituição na prática
política. Como iremos perceber, as idéias defendidas pela comunidade – apesar de
todo o cuidado do Ibase em respeitar o saber local - são as idéias do Ibase, ou
melhor, são as idéias concebidas num fórum específico que congregou diversos
setores da sociedade civil, denominado Agenda Social Rio. É possível até que elas
já estivessem na mente de algumas lideranças locais, só que de forma
desarticulada. Nesse caso, o Ibase teria atuado como uma espécie de “intelectual
orgânico coletivo”, esclarecendo, organizando as idéias da comunidade e auxiliando
na execução das mesmas.
60

2 - O Ibase

O Ibase nasceu do ideal de um famoso sociólogo brasileiro, Herbert de


Souza, o Betinho:

“No início da década de 1980, [Betinho] fundou o Ibase – instituição de caráter


suprapartidário e supra-religioso dedicada a democratizar a informação sobre as realidades
econômicas, políticas e sociais no Brasil29”.

“O Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), criado em 1981, é uma


instituição de utilidade pública federal, sem fins lucrativos, sem vinculação religiosa e a
partido político. Sua missão é a construção da democracia, combatendo desigualdades e
estimulando a participação cidadã.

Acima de tudo, de forma radical e simples, democracia para o Ibase é cidadania ativa,
participativa, de sujeitos sociais em luta, nos locais em que vivem, agindo e construindo –
com igualdade na diversidade – a sociedade civil, a economia e o poder.

Entre os temas e campos de atuação que o Ibase julga prioritários estão o processo Fórum
Social Mundial, Alternativas democráticas à globalização, Monitoramento de políticas
públicas, Democratização da cidade, Segurança alimentar, Economia solidária e
Responsabilidade social e ética nas organizações.

O público para o qual suas ações estão direcionadas é composto por movimentos sociais
populares; organizações comunitárias; agricultores(as) familiares e trabalhadores(as) sem
terra; lideranças, grupos e entidades de cidadania ativa; escolas, estudantes e professores(as)
da rede pública de ensino fundamental e médio; rádios comunitárias e experiências em
comunicação alternativa; formadores(as) de opinião nos meios de comunicação de massa;
parlamentares e assessores(as); gestores(as) de políticas públicas”.30
“No início da década de 1990, Betinho esteve à frente de importantes movimentos de
mobilização da sociedade civil. O primeiro deles, o Movimento pela Ética na Política,
culminou no processo de impeachment do então presidente da República, Fernando Collor de
Mello. O segundo – e também de muitíssima força de mobilização e projeção – foi a
Campanha contra a Fome, que nasceu composta de duas instâncias: uma ligada ao governo e à
sociedade, representada pela criação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea),

29
http://www.ibase.br/modules.php?name=Conteudo&pid=40. Acesso em 25.05.2008.
30
http://www.ibase.br/modules.php?name=Conteudo&pid=24. Acesso em 25.05.2008.
61

e a outra, Ação da Cidadania contra a Miséria e pela Vida, criada em 1993, era ligada,
essencialmente, à sociedade civil31”(Ibase, 2004, p.12).

Já a Agenda Social Rio, também idealizada por Betinho, nasceu em 1996, e,


conforme artigo escrito por Patrícia Lanes, jornalista e pesquisadora do Ibase,
“pretendia criar um compromisso social que envolvesse sociedade civil e governo,
em torno de metas voltadas para a melhoria da qualidade de vida de todos e todas
que vivem na cidade do Rio de Janeiro” (Ibase, 2004, p. 12.).

“Em abril de 1997, logo após a eliminação da candidatura do Rio às Olimpíadas de 2004,
surgiu a necessidade de identificar uma meta que articulasse as demais, permitindo a
consolidação de um sentido integrado para a implantação das diversas iniciativas planejadas
pela Agenda. Assim, a questão das favelas urbanizadas e integradas à cidade ganhou
centralidade” (Ibase, 2004, p 12.).

“Um plano de desenvolvimento local integrado da Agenda Social Rio foi formulado como
um projeto-piloto capaz de se expandir para outras regiões da cidade”. (...) “Escolheu-se parte
da Área de Planejamento 2.2” (Ibase, 2004, p. 13.).

Esta área foi batizada de Grande Tijuca e talvez tenha sido o primeiro projeto
de desenvolvimento local concebido para uma área da cidade do Rio de Janeiro.

“A idéia inicial era construir, em parceria com diferentes atores locais, um plano de
desenvolvimento local integrado e sustentável (PDLIS), para a Grande Tijuca”. (...) “Para
tanto era necessário criar um fórum democrático, capaz de discutir e propor ações para o
combate à pobreza e para a redução das desigualdades sociais por meio do estímulo à
participação comunitária” (Ibase, 2004, p. 13.).
“Desde o ano 2000, a Agenda passou por diversas discussões e reflexões e redefiniu seu
papel, especialmente quanto às possibilidades de relação com o poder público. Até o ano
2000, o governo municipal vinha se mostrando mais aberto a um diálogo mais permanente
com setores da sociedade civil. Após esse ano, essa realidade mudou” (Ibase, 2004, p. 14.).
“Os grupos e subprojetos da Agenda Social Rio passaram, então, a se guiar pelo princípio do
fortalecimento de sujeitos políticos coletivos, capazes de contribuir na formulação de políticas
públicas mais justas, incorporando o olhar das classes populares” (Ibase, 2004, p. 14-15).

31
IBASE. Rio: A democracia vista de baixo. Rio de janeiro: IBASE, 2004. 87p.
62

Pronto! Encontramos aqui o processo histórico que antecedeu, em alguns


anos, o projeto de desenvolvimento local na Cidade de Deus. Um projeto de
desenvolvimento local para a Grande Tijuca, o estímulo à participação comunitária
para a redução das desigualdades sociais, um governo, no caso o municipal, que se
fecha ao diálogo com a sociedade civil, e, aí sim, uma mudança de rumo na direção
do “fortalecimento de sujeitos coletivos, capazes de contribuir na formulação de
políticas públicas mais justas, incorporando o olhar das classes populares”. É nesse
momento que surge o conceito de “protagonismo local”. Essa idéia não surgiu “de
baixo para cima”. Pelo contrário, este conceito foi concebido por intelectuais a partir
do momento em que o poder público interrompeu o diálogo com eles. Foi aí que
perceberam que tinham que estimular e fortalecer sujeitos políticos coletivos para
que estes se tornassem capazes de impor ao Estado suas demandas e, dessa
maneira, influenciar e contribuir na formulação de políticas públicas. O conceito de
“protagonismo local” só faz sentido, se pensarmos em movimentos sociais que
adquirem capital social e voz para influenciar o poder público no que diz respeito à
proposição, elaboração, execução, acompanhamento e avaliação de políticas
públicas; construídas e pensadas sempre a partir das demandas e necessidades
apontadas pelas classes populares. A verdade é que, os movimentos sociais, na
década de 1990, não estavam politizados a ponto de criarem uma articulação deste
tipo com o Estado. O fato é que estavam enfraquecidos, desmotivados,
desmobilizados e despolitizados. A “revolução das ONG’s” e a ascensão dos
traficantes de drogas foram os principais responsáveis por essa fase de relativa
estagnação dos movimentos sociais urbanos. A luta política amoleceu, as lideranças
foram amaciadas, cooptadas. A “revolta”; tão presente na luta das classes populares
no passado, expressa, por exemplo, na luta contra a carestia, nos saques a
supermercados e nas manifestações públicas (Cf. Zaluar, 1985, p. 161-162); foi
substituída pelo conformismo e pela descrença na política. A “revolta”, que
representava o “você sabe com quem está falando?”, dos pobres, foi substituída
pela ausência da fala, pela perda da voz. Movimentos como AfroReggae, Nós do
Morro, Observatório das Favelas, Bagunçaso, Cine Periferia e MCR, apesar da
inquestionável importância que tiveram e continuam tendo na elevação da auto
estima de jovens em situação de risco social, do papel que desempenham
disputando os jovens favelados cariocas com o tráfico de drogas (e muitas vezes
ganhando esta batalha) e na formação de lideranças dentro das próprias
63

comunidades pobres, sempre mantiveram com o Estado uma relação que não pode
ser caracterizada como de “protagonismo”. O fato é que, quando procuram o Estado,
é, no máximo, para propor uma parceria na realização de um evento, a colaboração
para a cessão de um espaço público para uso comunitário, para conseguir
transporte para os participantes do projeto, etc. Nunca estabelecem relações de
imposição de demandas, de acesso inegociável a direitos garantidos
constitucionalmente e de proposição de mudanças nas políticas públicas
direcionadas aos pobres urbanos. É óbvio que nenhum destes movimentos podem
ser considerados acomodados ou conformados. São todos projetos que buscam
algum tipo de transformação social e que alcançam resultados muito significativos.
Mas, ao mesmo tempo, não podem ser considerados movimentos “políticos”, no
sentido estrito da palavra.

É pela ótica da luta pelo fortalecimento dos movimentos sociais urbanos e da


construção de uma cidadania com direitos, que devemos pensar, a partir de agora, o
“Projeto de Desenvolvimento Local da Cidade de Deus”.

3 - O Projeto32

A escolha da comunidade da Cidade de Deus como beneficiária de um


programa da Caixa Econômica Federal, vinculado aos “Objetivos de
Desenvolvimento do Milênio”33 têm a ver com dois fatos: em primeiro lugar a
realização dos Jogos Pan-americanos na cidade do Rio de Janeiro, no ano de 2007.
Como grande parte dos jogos seriam realizados em complexos esportivos
construídos na Barra da Tijuca e havia uma forte preocupação com a questão da
segurança e da possibilidade de violência durante a realização do Pan, a escolha
pode ser definida como estratégica e preventiva. Beneficiar uma comunidade
dominada pelo tráfico de drogas, considerada um dos maiores entrepostos de
vendas de drogas do Estado do Rio de Janeiro, e localizada próxima a Linha
Amarela - uma das principais vias de acesso aos complexos esportivos – era uma
tentativa de controle social e uma medida de segurança pública. Beneficiando e
investindo na Cidade de Deus, os governos Federal, Estadual e Municipal,

32
Projeto Cidade de Deus-Finep. Versão 18 de abril de 2005.
33
Os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio da ONU são um dos últimos sopros de idealismo
desenvolvimentista. Alguns dos objetivos são: cortar pela metade, até 2015, a proporção de pessoas que vivem
em extrema pobreza e reduzir drasticamente a mortalidade materna e infantil no Terceiro Mundo (Cf. Davis,
2006, p. 200).
64

acreditavam que conseguiriam que os jogos fossem realizados em clima de paz, o


que de fato ocorreu. Em segundo lugar, o sociólogo Paulo Magalhães, técnico social
da Caixa Econômica Federal, com fortes contatos no Ibase, tendo inclusive
participado das discussões em torno da Agenda Social Rio, tinha uma preocupação
de que a população do Rio de Janeiro fosse ouvida a respeito dos jogos e também
de que fosse deixado um legado social para a cidade. Foi ele o principal responsável
pela escolha da Cidade de Deus pela Caixa e pela construção de 618 casas na
localidade da Rocinha 2. Em artigo de 2004, Magalhães já expressava sua
preocupação com a fragmentação social, a violência e a ausência de diálogo entre
governo e sociedade a respeito dos Jogos Pan-americanos:

“Apesar disso, a dinâmica dessa cidade com enorme carência de integração não
impediu que ela viesse a ser sede dos próximos Jogos Pan-americanos – inquestionável fonte
de um imenso potencial de mobilização coletiva e inovação social. As representações
idealizadas, a idealização do passado, as imagens inconscientes e as peças publicitárias, assim
como as estratégias de marketing, talvez possam explicar isso, que parece ser um paradoxo”.

“O primeiro a apontar esse antagonismo entre a imagem idealizada de uma cidade e a


realidade das injustiças que ela abriga foi Herbert de Souza, o Betinho, da ONG Ibase. Em
1996, a propósito da candidatura da cidade ás Olimpíadas de 2004, ele conclamou a sociedade
civil a uma reflexão: se a cidade do Rio de janeiro não conseguia acolher com cidadania
milhões de moradores e moradoras, seria possível preparar a cidade para receber algumas
centenas de esportistas?”.

“Em torno do clamor de Betinho, reuniram-se importantes setores sociais que


organizaram uma agenda de ações para a cidade: a Agenda Social Rio 2004. A derrota da
candidatura do Rio à cidade sede das Olimpíadas de 2004 inviabilizou essa agregação de
interesses. A Agenda Social Rio 2004 transformou-se em Agenda Social Rio, tendo
estabelecido importante marco para uma ação pública participativa na cidade”.

“Neste ano, a decisão da candidatura do Rio à sede dos Jogos Pan-americanos – e


mesmo a dos Jogos Olímpicos – também prescindiu de qualquer forma de consulta aos
cidadãos e cidadãs ou aos organismos de representação. Foi, simplesmente, uma ação
unilateral da Prefeitura da cidade, que, ao mesmo tempo, trocou, quando da vitória
assegurada, a construção do Museu Guggenheim pelos Jogos Pan-americanos.”
65

“É possível organizar esta cidade para um evento, já confirmado, da magnitude dos


Jogos Pan-americanos, sem nenhum sistema de consulta a cidadãos e cidadãs, à sociedade,
aos organismos de representação?”

“É correto consolidar os eixos de expansão urbana, novos eixos viários, a expansão do


sistema de transporte, mudando o sistema de circulação, condenar áreas e bairros à
estagnação, aumentar o adensamento de outros, estabelecer novas hierarquias para os
investimentos públicos e outras tantas intervenções urbanas sem criar canais de interlocução
com a sociedade? Sem nenhum sistema de consulta? Sem qualquer controle da sociedade
civil?”(Ibase, 2004, p. 84-5.).

O Pan do Rio também era uma preocupação da comunidade da Cidade de


Deus, que esperava ser beneficiada com as verbas destinadas aos jogos. O
prometido legado social não se concretizou naquela localidade, já que a construção
da Vila Olímpica da Cidade de Deus não saiu do papel. Os custos do Pan-americano
ficaram muito acima das projeções iniciais e a localidade acabou sendo preterida.
Conforme Informativo do Comitê e da Agência Cidade de Deus34, a menos de dois
meses do início dos jogos, o local onde seria construída a vila olímpica da localidade
era um “lixo olímpico”, dada a quantidade de lixo acumulado no terreno.

Além disso, eventos internacionais de grande porte costumam afetar


profundamente comunidades residentes nas proximidades dos complexos
esportivos. O medo de que voltem a ocorrer remoções de moradores para a
construção de algum empreendimento ou complexo esportivo é um temor que se
justifica por experiências similares ocorridas na Alemanha nazista, Coréia do Sul e
atualmente na China, país sede dos próximos Jogos Olímpicos e que está
realizando uma política de remoção de favelas em grande escala (Cf. Davis, 2006, p.
112-3.).
“Os modernos Jogos olímpicos têm uma história especialmente sinistra, mas pouco
conhecida. Durante os preparativos para os Jogos de 1936, os nazistas expurgaram
impiedosamente os sem-teto e favelados de áreas de Berlim que talvez pudessem ser avistadas
pelos visitantes internacionais. Embora os Jogos subseqüentes, inclusive os da Cidade do
México, de Atenas e Barcelona, tenham sido acompanhados por renovação urbana e despejos,
os Jogos de Seul, em 1988, foram realmente sem precedentes na escala da perseguição oficial
aos pobres, quer fossem donos de sua própria casa, invasores ou locatários: cerca de 720 mil
34
Comitê Comunitário e Agência Cidade de Deus de Desenvolvimento Local. Informativo Nº 4, 2007.
66

pessoas foram removidas em Seul e Incheon, levando uma ONG católica a afirmar que a
Coréia do Sul rivalizava com a África do Sul como “o país no qual o despejo à força é mais
violento e desumano”35.
“Beijing parece estar seguindo o precedente de Seul em seus preparativos para os Jogos de
2008: 350 mil pessoas serão reassentadas para abrir espaço apenas para a construção de
estádios”36”.

A Caixa Econômica Federal, apesar de ser um parceiro forte, é apenas um


entre tantos outros colaboradores do projeto de desenvolvimento local na Cidade de
Deus. Entre os demais parceiros, aparecem representantes das três esferas de
governo (municipal, estadual e federal), Sebrae/RJ, Unesco, Lamsa – Linhas
Amarelas, Caixa Econômica Federal, Sesc/RJ, Ibase, Fenaseg, Fetranspor e
Fecomercio-RJ. Podemos também incluir a UFRJ, através do SOLTEC (Núcleo de
solidariedade técnica) e a PUC RIO, através do Projeto de incubadora de empresas.

O desafio do Projeto consiste em “desencadear estratégias de enfrentamento


da desigualdade e da pobreza, isto é, de produzir desenvolvimento com inclusão
social, tendo a realidade local como referência e base de construção das ações”.
Fica evidente a necessidade de:

a) fortalecimento do capital social local;

b) criação de bases sócio-institucionais que garantam a continuidade e a integração


de políticas e projetos no território. O foco é a “implementação de ações
estruturantes nas áreas de trabalho e educação bem como a gestão compartilhada
da nova institucionalidade a ser criada com vistas a viabilizar a integração de
projetos e serviços no bairro”.

A metodologia que orienta o projeto “fundamenta-se na identificação do elo


entre desenvolvimento sustentável e protagonismo local. Em outras palavras: o
fortalecimento dos agentes locais como sujeitos de seu próprio projeto de mudança
é decisivo para a autocriação e reprodução (sustentabilidade) do processo de
desenvolvimento, entendido como um processo de transformação na qualidade de
vida e convivência, produzido a partir do incremento das capacidades e do poder
das comunidades locais”. Atuar neste sentido requer um esforço de investimento

35
Catholic Institute for International Relations, Disposable People: Forced Evictions in South Korea (Londres,
Catholic Institute for International Relations, 1988), p. 56.
36
Asian Coalition for Housing Rights, Housing by People in Ásia (boletim), 15/10/2003, p. 12.
67

combinado em capital social e aprendizagem. “Tal investimento é indissociável da


criação de novas institucionalidades que configurem espaços democráticos
participativos e formulação e gestão do desenvolvimento”.

A fonte que utilizo neste ponto do trabalho é o projeto Cidade de Deus –


FINEP. Os trechos entre aspas foram extraídos do corpo deste documento. É
importante ressaltar que segundo o que está escrito no projeto e o que pude notar
nas reuniões do Comitê Comunitário, essa visão é hoje assumida “tanto pelos
agentes comunitários quanto pelos parceiros institucionais”. A partir daí o projeto
define seus dois grandes fios condutores, a saber: capacitação e construção
socioinstitucional, ambos entrelaçados, pois “esta construção é em si mesma
capacitadora”.

O projeto possui duas dimensões chave: um “eixo alimentador” que


corresponde ao sistema de comunicação e mobilização social e as ações
estruturantes em trabalho (sob a perspectiva de economia solidária), e
educação (com ênfase na inclusão social). Porém ao todo são cinco dimensões
com metas claras e objetivas.

Fato importante a destacar é que este é um projeto aberto que se constrói na


medida em que vai se desenrolando o processo de transformação. Está aberto para
a captação de novos parceiros e recursos durante o seu transcorrer, bem como a
propostas elaboradas pelos grupos de trabalho, que se reúnem todas as quintas-
feiras para prestar contas, definir novas metas e avaliar o projeto. A avaliação é um
processo contínuo. Ou seja, os atores locais são ao mesmo tempo construtores e
avaliadores do projeto e para isso contam com a ajuda de profissionais das
instituições parceiras, até que estejam plenamente capacitados para caminharem
por si mesmos.

Antes de apresentar as dimensões do projeto, quero fazer algumas


considerações sobre alguns conceitos orientadores do projeto, como Capital Social,
Inclusão Social, Integração de Políticas no Território, Incremento das Capacidades e
do Poder das Comunidades Locais.
68

Como dizem Itamar Silva e Moema Miranda, ao contrário da tese de Zuenir


Ventura37, não é apenas a cidade que está partida. A favela também está (Cf. Ibase,
2004, p. 8.).

Vivemos em tempos de segmentação em várias esferas da vida cotidiana:


trabalho, habitação, educação, etc.

O sociólogo uruguaio Rubem Kaztman38 possui uma visão a respeito da


fragmentação social na América Latina que guarda estreita relação com os conceitos
que orientam o projeto de Desenvolvimento Local na Cidade de Deus, assim como
com os objetivos e estratégias de superação das desigualdades sociais e de
promoção do acesso à cidade, estabelecidos no projeto. Segundo ele, a situação
histórica atual é marcada pelo processo de globalização. Vivemos num cenário de
profundas alterações no mercado de trabalho e do papel do Estado, o que pode ser
observado tanto em nível global, quanto em nível local. A América Ibérica, pela
maneira como se inseriu, ao longo do tempo, no mercado mundial, vem sofrendo de
forma aguda os efeitos da globalização. No Brasil, a precarização das relações de
trabalho e a falência do Estado de Bem Estar Social, num contexto de mais de uma
década de neoliberalismo, produziram como efeitos perversos, o aumento da
desigualdade social, o aumento da exclusão e a falência dos serviços públicos
(saúde, educação, segurança pública e transportes).Tais efeitos foram mais sentidos
pelos pobres urbanos. Neste contexto:

“Se debilitan los vínculos de los pobres urbanos con el mercado de trabajo y se
estrechan los ámbitos de sociabilidad informal con personas de otras clases sociales, lo que
conduciría a su progresivo aislamiento” (Kaztman, 2001, p. 171.).

Verifica-se assim a redução das oportunidades dos pobres urbanos em


acumular capital social individual, capital social coletivo e capital cívico, redução
esta, que é causada por processos de segmentação dos serviços públicos e de
segregação residencial. A radicalização deste processo leva os pobres urbanos a se
afastarem cada vez mais das correntes predominantes na sociedade (mainstream),
o que favorece a formação de subculturas marginais que desvalorizam o trabalho e a
educação como formas de inserção produtiva na sociedade e no consumo. Cria-se
37
VENTURA, Zuenir. A cidade partida. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, 277 p.
38
KAZTMAN. Ruben (2001). Seducidos y abandonados: El aislamento de los pobres urbanos. Extraído da
Revista da CEPAL, nº 75, Dez 2001. http://www.eclac.org/publicaciones/xml/6/19326/Katzman.pdf. Acesso em:
28.05.2008.
69

dessa maneira um círculo vicioso: a desindustrialização e a tecnologia diminuem a


quantidade de postos de trabalho; os pobres urbanos, para ingressarem neste novo
mercado precisam de alta qualificação, o que não conseguem devido à falta de uma
educação de boa qualidade. A educação pública perde qualidade em decorrência da
deserção das classes médias (“aqueles que têm voz”), que abandonam os serviços
públicos e migram para os sistemas privados de saúde, de educação e de
transporte. Essa deserção é uma das causas da queda de qualidade dos serviços
públicos, e ao mesmo tempo reduz os espaços públicos de convivência entre as
classes, fato este que diminui as oportunidades de acúmulo de capital social pelos
pobres urbanos. Tais fenômenos levam ao aumento da segregação e da
segmentação social, produzem os chamados guetos urbanos, e ao diminuírem a
interação entre desiguais, produz o que Kaztman chama de “tolerância à
desigualdade”, fenômeno perverso e reprodutor das diferenças sociais. Cabe aqui a
conceituação de diferenciação, segmentação e segregação:
“El primer término simplemente designa diferencias en los atributos de dos o más categorias
sociales. El segundo agrega al anterior una referencia a la existência de barreras para el paso
de una categoría a otra. El tercero agrega a los dos anteriores una referencia a la voluntad de
los miembrosde una u otra categoría de mantener o elevar las barreras que las separan entre
si” (Kaztman, 2001, p. 173.).
A Segmentação Laboral:

Cabe neste momento, fazer a distinção entre as três formas anteriormente


citadas de capital social:

• Capital Social Individual: o estabelecimento onde se trabalha é um


lugar privilegiado para a construção de redes de amizade, através das quais fluem
recursos em forma de contatos, informação e facilidades de acesso a determinados
serviços.

• Capital Social Coletivo: a participação estável em um mesmo


estabelecimento de trabalhadores com diferentes graus de qualificação aumenta as
oportunidades que tem as categorias de trabalhadores menos qualificados de
acessar a instituições eficientes na defesa de seus interesses laborais e na
preservação de direitos adquiridos.

• Capital Social Cidadão: o estabelecimento onde se trabalha é também


um âmbito privilegiado para a geração de elementos subjetivos de cidadania, no
70

qual se compartilham problemas, se consolidam identidades, se constroem auto-


estimas e um destino comum.
“Una de las características nodales de la presente reestructuración económica radica en que os
umbrales de calificación para participar en el mercado formal se elevan al ritmo cada vez más
acelerado de lãs innovaciones tecnológicas y de los requerimientos de productividad y
competitividad a nivel mundial. Esta situación suele implicar una drástica devaluación de los
créditos asociados a las habilidades y competencias que los trabajadores lograron adquirir en
los lugares de trabajo y, por ende, una reducción igualmente drástica de sus posibilidades de
participar en el mercado formal y en los ámbitos laborales donde se acumula el tipo de activos
antes mencionados” (Kaztman, 2001, p.175.).
Paralelamente se produzem intensos processos de desindustrialização e
apequenamento do Estado, com a conseqüente redução de postos de trabalho
estáveis e protegidos, e o conseqüente aumento dos postos no setor de serviços,
particularmente os pessoais e os de consumo. Deve-se observar que as exigências
de qualificação são maiores no setor de serviços do que na indústria, e a
transferência maciça de mão-de-obra de um setor para o outro ocasiona um
incremento da desigualdade nos ingressos e nas condições de trabalho. Este é um
grave problema em economias como a brasileira, que ao longo de sua formação
econômico-social, principalmente a partir do início do processo de urbanização
(década de 1920), privilegiaram o trabalho como via de acesso para a inserção na
sociedade, a formação de identidades e sentimentos de auto-estima. O trabalho
perde relevância como promotor de cidadania. Com a crise do Estado de Bem Estar
Social, o que temos hoje no Brasil são instituições “escassamente preparadas para
proteger a população que possui vínculos precários com o mercado de trabalho”.

A Segmentação Educacional:
“La creciente centralidad del conocimiento como instrumento para el progreso de las naciones
reafirma el papel que se asignó tradicionalmente a la educación como vía principal de
movilidad social y ámbito privilegiado para la integración social de las nuevas generaciones”
(Kaztman, 2001, p. 176.).
A concentração dos recursos dos sistemas educativos nas crianças de
lugares com baixos níveis socioculturais é um dos meios mais eficientes para
quebrar os mecanismos de reprodução da pobreza e da segmentação social. Porém,
segundo Kaztman, não basta investir em educação nestas áreas segregadas. A
escola precisa voltar a ser um lugar privilegiado de convivência entre cidadãos de
distintas origens sociais, um espaço de convivência distinto do contrato de trabalho e
que possibilite a interação entre desiguais em um ambiente de igualdade. Isso
71

possibilitaria o estabelecimento de redes de solidariedade e o conseqüente acúmulo


de capital social, em seus diferentes níveis, pelos pobres urbanos. A escola pública
precisa, portanto, quebrar a homogeneidade social gerada pela segmentação e
constituir-se no espaço da heterogeneidade. Isso garantiria a ativação dessas redes
de solidariedade e lealdade pelos pobres urbanos, no momento de sua inserção no
mercado de trabalho, o que ajudaria a quebrar o mecanismo de reprodução da
pobreza. Para tanto a escola pública precisa ser capaz de atrair as classes médias,
que ainda valorizam a educação como um bem fundamental, ao mesmo tempo em
que têm voz para exigir um ensino público de qualidade para todos. Em resumo, a
contribuição da escola para a formação da cidadania e da autonomia do sujeito será
maior onde ela consiga garantir a heterogeneidade entre seus alunos, onde ela se
aproxime da composição social da sociedade como um todo.

A Segregação Residencial:
“La segregación residencial refiere al proceso por el cual la población de las ciudades se va
localizando en espacios de composición social homogênea” (Kaztman, 2001, p. 178.).
À concentração dos pobres em determinados bairros da cidade corresponde
um processo análogo, ao menos no Rio de Janeiro e em São Paulo, de
concentração espacial dos ricos em determinados bairros e condomínio fechados.
Os pobres urbanos sofrem assim do que Kaztman chama de “isolamento social”, o
que contribui para a formação de subculturas que se afastam do mainstream da
sociedade, subculturas estas que desvalorizam o trabalho e a educação como vias
de acesso a direitos e a mobilidade social.

Segundo classificação de bairros populares feita por Kaztman, a Cidade de


Deus, bem como outras favelas do Rio de Janeiro, possui características
predominantemente de gueto urbano, espaço altamente segregado e estigmatizado,
onde seus habitantes sofrem com as barreiras que são levantadas pela cidade
formal e que impedem a mobilidade e a inclusão social dos moradores destes
territórios. A chave para entender a dimensão do problema é, segundo Kaztman, a
extrema homogeneidade social que existe hoje nestas localidades, que impedem a
constituição de redes de solidariedade e lealdade e criam barreiras à sua inserção
produtiva na sociedade. A solução seria o poder público buscar formas criativas que
estimulassem a heterogeneidade, a convivência entre desiguais em espaços
72

públicos. Hoje em dia até mesmo a praia e os estádios de futebol, que anteriormente
eram espaços deste tipo, se transformaram em espaços segmentados, com nítidas
divisões entre classes e culturas distintas.
“La concentración espacial históricamente inédita de personas con aspiraciones propias de la
vida urbana, con graves privaciones materiales y escasas esperanzas de alcanzar logros
significativos merced al empleo, suscita fuertes sentimientos de privación relativa. Bajo estas
circunstancias, los nuevos guetos urbanos favorecen la germinación de los elementos más
disruptivos de la pobreza. Los hogares que cuentan con recursos para alejarse de esos
vecindarios lo hacen, lo que va dejando en el lugar una población residual, que vive en
condiciones cada vez más precárias y se halla crecientemente distanciada de las personas que
reúnen los rasgos mínimos para tener êxito en la sociedad contemporânea” (Kaztman, 2001,
p. 181.).
Tal fenômeno, aliado à “deserção das classes médias” dos serviços públicos,
cria o isolamento social verificado atualmente nas metrópoles brasileiras e latino-
americanas. É algo semelhante ao que Oliveira Vianna chamou de “insolidariedade
social”, só que agora dentro de um contexto histórico no qual a sociedade brasileira
tornou-se muito mais urbana do que rural. Portanto, a urbanização no Brasil não foi
capaz de romper com o isolamento social e muito menos de criar condições para a
integração e a formação de redes de solidariedade. Talvez estes sejam alguns dos
motivos das favelas cariocas terem sofrido por tanto tempo com práticas clientelistas
(que se assemelham ao coronelismo) e hoje tenham que lidar com uma espécie de
mandonismo, baseado em práticas ilícitas: o tráfico de drogas.

Tudo isso faz com que:


”los niños y jóvenes carecen de contactos con modelos de rol exitosos dentro de las corrientes
principales de la sociedad, así como de oportunidades de exposición a esos modelos”
(Kaztman, 2001, p. 181.).
Além disso,
“las situaciones de desempleo persistente aumentan la predisposición a explorar fuentes
ilegítimas de ingreso” (Kaztman, 2001, p. 181.).
Um dos exemplos de fontes ilegítimas de ingresso é o tráfico de drogas, que
nada mais é do que uma resposta adaptativa a uma situação de desigualdade:
“La sedimentación progresiva de estas respuestas adaptativas va alejando la normatividad y
los códigos imperantes en estos barrios de aquellos que predominan em el resto de la ciudad,
acentuando de ese modo su aislamiento social”(Kaztman, 2001, p.181.).
A sedimentação progressiva das respostas adaptativas gera nas
comunidades pobres uma “tolerância aos desvios”. Como resposta adaptativa, as
classes médias e altas, vivendo em espaços homogêneos, segmentados e
protegidos, com maior qualidade nos serviços de educação, transportes, saúde e
73

segurança, e sem contato com a realidade dos pobres urbanos, desenvolvem o que
Kaztman chama de “tolerancia a la desigualdad”. O antídoto para a tolerância à
desigualdade seria o desenvolvimento de um sentimento coletivo de “aversión a la
desigualdad”, o que se realizaria no espaço público, onde sentimentos de empatia
entre “os que tem mais” e “os que tem menos” teriam a possibilidade de serem
vividos, onde os desiguais conviveriam em condições de igualdade e de respeito
mútuo. Contudo, a violência é um complicador que entrava a formação de espaços
públicos de interação entre as classes sociais. De um lado temos uma situação de
“vulnerabilidade social” e tolerância ao crime, do outro, um contexto de indiferença e
“apartheid” onde se tolera a injustiça social e também o crime, quando praticado
contra os outros. O cenário é de enorme tensão, e a “revolta” dos pobres urbanos
eclode não na política, mas na violência que enfrentamos cotidianamente em nossas
cidades, algo que se torna ainda mais complexo com o avanço das milícias sobre
localidades dominadas por traficantes de drogas.

Dimensão 1 – Construção Institucional

Baseia-se no princípio da gestão compartilhada e participativa. “Entende-se que o


desenvolvimento local supõe a combinação entre participação comunitária e
articulação institucional, tendo como referência permanente o protagonismo local,
entendido como o fenômeno em que os agentes se reconhecem como sujeitos de
seu próprio destino”.

O novo arranjo sócio-institucional está alicerçado nos seguintes elementos:

Comitê Comunitário: “Formado por um conjunto de treze organizações de base local


e passível de expansão, o Comitê Comunitário tem um papel decisivo como
protagonista em todo o processo (o que se expressa inclusive no papel chave de
seus integrantes no desenho deste projeto)”.

Conselho Gestor: Formado pelo Comitê Comunitário e um conjunto de instituições


parceiras (cerca de 10). “Constitui a instância política básica de gestão
compartilhada, com reuniões regulares mensais, capazes de produzir diretrizes
definir prioridades e concretizar encaminhamentos”.

Fórum de Desenvolvimento Comunitário da Cidade de Deus: “Instância-evento” que


reflete o processo mais amplo de mobilização do bairro. “Materializa-se em
encontros abertos a centenas de pessoas/organizações, ao menos duas vezes por
74

ano, voltadas para referendar ou reorientar as grandes linhas de prioridades da


dinâmica de desenvolvimento local da Cidade de Deus”.

Agência Cidade de Deus de Desenvolvimento Local: “Subordinada diretamente ao


Conselho Gestor (instância de definição de políticas) e referenciada no Fórum de
Desenvolvimento Comunitário, sua criação e fortalecimento constitui um dos
principais resultados esperados desse projeto. Trata-se de instância executiva,
técnica e gerencial, formalizada como pessoa jurídica, que se constitui como núcleo
de impulsão de projetos no bairro e “faz acontecer” a política definida nos espaços
mais amplos de gestão compartilhada.”

Dimensão 2 – Capacitação de atores e organizações

“A consolidação do arranjo sócio-institucional proposto é impensável sem um


trabalho intensivo de capacitação”. Mais que a simples capacitação técnica em
habilidades “trata-se de fomentar toda uma dinâmica de saberes (o “saber técnico” e
o “saber popular”), mudanças comportamentais e produção de novos modos de
relacionamento”. A meta neste ponto é a “redução progressiva da necessidade de
agentes “externos” até o término do período deste projeto, de forma coerente com o
princípio de protagonismo local. Ou seja, “haverá um foco permanente na
consolidação de assessores e multiplicadores no próprio território da Cidade de
Deus”. Isto, segundo o projeto, contribuiria para a sustentabilidade do processo de
desenvolvimento local iniciado.

Dimensão 3 – Trabalho e Economia Solidária

“Na concepção deste projeto há uma ênfase especial na ligação entre


desenvolvimento local e economia solidária. Mais do que uma estratégia de
resistência a situações de precariedade e exclusão do mundo do trabalho, o fomento
à economia solidária, especialmente quando associado a um processo amplo e
territorializado de cooperação, é visto como um caminho estratégico de inclusão
social e construção do desenvolvimento sob novas bases”. O acesso ao trabalho
digno é encarado de forma prioritária e “identifica-se um potencial significativo, no
bairro, para a formação e organização dos trabalhadores sob formas cooperativas
autogestionárias, especialmente em ramos de serviços que tendem a ter aumento de
demanda”. Um dos passos deste projeto será “aprofundar a identificação dessas
potencialidades, com ênfase nos elos entre a Cidade de Deus e os bairros
75

adjacentes”. Haverá também capacitação de trabalhadores e moradores em


economia solidária. Isto convergirá para a formação de “empreendimento associativo
autogestionário na Cidade de deus. Sua forma jurídica poderá ser uma ou mais
cooperativas”.

Quero neste momento fazer algumas considerações sobre o que é “economia


solidária” e o que ela representa – ou poderia representar - como estratégia de
inclusão social e enfrentamento da pobreza, numa época marcada pela hegemonia
do paradigma capitalista.
“A economia solidária começou a ressurgir no Brasil na década de 1980 e tomou impulso
crescente a partir da segunda metade dos anos 1990. Ela resulta de movimentos sociais que
reagem à crise do desemprego em massa, que tem início em 1981 e se agrava com a abertura
do mercado interno às importações, a partir de 1990. Em 1991, tem início o apoio de
assessores sindicais a operários que conseguem se apossar da massa falida da empresa que
antes os empregava, formando uma cooperativa de produção, que retoma as operações e assim
“salva” os postos de trabalho até então ameaçados de fechamento. Três anos depois, diversas
empresas autogestionárias com esta origem fundam a Associação Nacional de Trabalhadores
em Empresas Autogestionárias e Participação Acionária (Anteag)”.
“Como decorrência do grande movimento da Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e
pela Vida, que mobilizou milhões de pessoas entre 1992 e 1994, surgiram também em meados
da década de 1990 as Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares (ITCP), que
pertencem a universidades e se dedicam à organização da população mais pobre em
cooperativas de produção ou de trabalho, às quais dão pleno apoio administrativo, jurídico-
legal e ideológico na formação política, entre outros. Há hoje ITCP em 14 universidades
brasileiras, desde Fortaleza, no Ceará, até Pelotas, no Rio Grande do Sul. Várias outras estão
em processo de formação. Elas constituem uma rede que se reúne trimestralmente para trocar
experiências e organizar atividades conjuntas. Estão integradas à Unitrabalho, uma fundação
voltada ao movimento operário, que tem mais de oitenta universidades filiadas”.
Outras entidades importantes de apoio à economia solidária foram formadas mais
recentemente: a Agência de Desenvolvimento Solidário (ADS), da grande central sindical
CUT, em parceria com a Unitrabalho e o Dieese, o Departamento Intersindical de Estudos
Estatísticos, Sociais e Econômicos, que assessora todos os sindicatos brasileiros há mais de
quarenta anos” (Singer & Souza, 2003, p. 25.)..
76

“Merecem ainda atenção outras entidades fomentadoras de empreendimentos solidários.


...cabe registrar a atividade da Cáritas, órgão do Conselho Nacional de Bispos do Brasil
(CNBB), da FASE no Rio de Janeiro, da ATC em São Paulo, das prefeituras de Porto Alegre,
de Blumenau e de Santo André,...”39 (Singer & Souza, 2003, p. 26.).

Como pode ser inferido do texto acima, a economia solidária está intimamente
ligada à história do Partido dos Trabalhadores e ao Ibase. Não é por acaso que, no
projeto de Desenvolvimento local Cidade de Deus, ela apareça como uma dimensão
fundamental e mereça atenção especial por parte dos agentes capacitadores. Não
esqueçamos que o projeto inicia no governo do presidente Lula e foi escrito com o
auxílio de técnicos do Ibase. Além disso, uma das principais parceiras do projeto, A
Caixa Econômica Federal, é uma empresa pública que atua como um dos principais
braços do governo federal na execução de políticas públicas. Segundo André
Ricardo de Souza:
“Os empreendimentos de economia solidária representam “cerca de 0,5% do total de
trabalhadores ocupados, de acordo com a estimativa da população ocupada do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)”.
“Este conjunto é ínfimo no quadro ocupacional brasileiro, mas está evidente em expansão e é
extremamente promissor, sobretudo no que se refere a mudanças de qualidade das condições
e relações de trabalho. Os empreendimentos solidários ainda têm pouco peso econômico, mas
possuem grande significação cultural, afinal são experiências destacadamente educativas”
(Singer & Souza, 2003, p.7.).

Ainda de acordo com este mesmo autor:


“Essas iniciativas parecem ser transformadoras de mentalidades. Os relatos indicam que nos
empreendimentos solidários vêm ocorrendo outros ganhos, diferentes do econômico em si,
tais como auto-estima, identificação com o trabalho e com o grupo produtivo,
companheirismo, além de uma noção crescente de autonomia e de direitos cidadãos. De forma
educadora essas iniciativas vêm apontando sinais de uma sociedade baseada na democracia
jurídica e econômica, numa palavra, socialista” (Singer & Souza, 2003, p. 10.).

É importante destacar o caráter ainda incipiente da economia solidária no


Brasil. O autor defende que os empreendimentos econômico-solidários teriam um
caráter educador e seriam capazes de estreitar laços sociais, aumentar a auto-

39
SINGER, Paul & SOUZA, André Ricardo de (orgs.). A economia solidária no Brasil: a autogestão como
resposta ao desemprego. São Paulo: Contexto, 2. ed , (Coleção Economia), 2003. Vários autores.
77

estima e a identificação com o grupo social, ou produtivo. Se isso for verdade, não
há dúvida que a economia solidária poderá fortalecer os laços de união entre os
moradores da Cidade de Deus, contribuindo para a redução da fragmentação
verificada naquela comunidade. Além disso, a criação de empreendimentos
autogesionários poderia contribuir no sentido de “empoderar” as classes populares,
aumentando a autonomia e a noção de direitos. É um fato que empresas que forem
bem geridas de maneira coletiva e que consigam gerar trabalho e renda em
comunidades carentes, em muito podem contribuir no processo de redução das
desigualdades sociais e na promoção da inclusão de populações marginalizadas.
Tenho minhas dúvidas quanto ao caráter “socialista” desta empreitada.

Paul Singer defende o mesmo ponto de vista de Souza, atribuindo à


economia solidária o mesmo caráter socialista e, indo mais além, chegando a
considerá-la uma alternativa revolucionária:
“A economia solidária surge como modo de produção e distribuição alternativo ao
capitalismo, criado e recriado periodicamente pelos que se encontram (ou temem ficar)
marginalizados do mercado de trabalho. A economia solidária casa o princípio da unidade
entre posse e uso dos meios de produção e distribuição (da produção simples de mercadorias)
com o princípio da socialização destes meios (do capitalismo)”.

Mais na frente ele diz que:

“O modo solidário de produção e distribuição parece à primeira vista um híbrido entre o


capitalismo e a pequena produção de mercadorias. Mas, na realidade, ele constitui uma
síntese que supera ambos” (Singer & Souza, 2003, p. 13.).

E ainda:
“O caráter revolucionário da economia solidária abre-lhe a perspectiva de superar a condição
de mero paliativo contra o desemprego e a exclusão” (Singer & Souza, 2003, p. 28.).

Conforme já mencionei, não consegui perceber no movimento social que


estudei, nenhuma forma ideológica pura. Ele se caracteriza pelo ecletismo. A
economia solidária interessa a eles na medida em que aparece como solução para o
problema do trabalho e da geração de renda. Mas em nenhum momento ouvi nada
parecido com revolução ou socialismo. Pelo contrário, a orientação da incubadora da
PUC, responsável pela construção do empreendimento econômico solidário na
Cidade de Deus, é no sentido de que a economia solidária não nega o capitalismo. É
78

apenas uma forma dos trabalhadores desempregados construírem uma alternativa


que lhes proporcione a possibilidade de inserção competitiva no mercado, e,
portanto, esta inserção ocorre dentro dos limites do capitalismo. Ouvi isso da boca
de uma professora da PUC RIO, durante uma das reuniões que participei no Comitê
Comunitário.

.Dimensão 4 – Educação

A educação é, segundo o projeto, um pilar fundamental para a realização do


processo de desenvolvimento local na Cidade de Deus. São consideradas
imprescindíveis mudanças de enfoque na política educacional para que se avance
na inclusão social, com a conscientização da comunidade para a exigência de
direitos. Dessa dimensão espera-se que sejam elaboradas propostas de políticas
públicas na área educacional com respeito a CDD e outras comunidades pobres, e
pretende-se mobilizar a comunidade e instituições com vistas a debater a qualidade
da educação na CDD, “incluindo seminários sobre os diferentes níveis de educação
(infantil, fundamental, ensino médio, educação de jovens e adultos) e organização
do Fórum “Qualidade da Educação na Cidade de Deus”.

Dimensão 5 – Sistema de Comunicação

Norteado pelo princípio da “máxima transparência” para toda a população da CDD.


Prevê a prestação de contas à comunidade, “indo ao encontro dos moradores nas
centralidades do bairro”. A comunicação é vista como um “eixo alimentador das
demais dimensões do projeto e “fator de mobilização social e estímulo à participação
qualificada no processo de desenvolvimento local”.

“Para tanto será gerado um sistema de comunicação com diversos componentes


integrados: rádio comunitária, jornal comunitário, site, produção de vídeos, boletins,
murais e painéis, combinados a uma sistemática de encontros presenciais em
diversas localidades do bairro”.

O sistema de avaliação e monitoramento do projeto também está inserido no


sistema de comunicação de forma a garantir a gestão compartilhada e participativa.
Espera-se como resultado um sistema de comunicação capaz de funcionar não
apenas internamente, mas competente para irradiar e transferir resultados a outros
bairros e cidades.
79

Dimensão 6 – Habitação

Incorporada ao projeto posteriormente, prevê a construção de 618 casas populares,


com água, luz e saneamento, na Região de Rocinha 2, área mais carente da Cidade
de Deus e que é dominada pelo tráfico de drogas.

Resultados Esperados:

1. Agência Cidade de Deus de desenvolvimento local construída,


fortalecida e funcionando a partir de processo de incubagem, constituindo-se
como vetor de sustentabilidade do impulso ao desenvolvimento local no
bairro;

2. Agentes comunitários e institucionais qualificados para a gestão da


agência de desenvolvimento local e para a participação no arranjo sócio-
institucional que a sustenta (Comitê Comunitário, Conselho Gestor, Fórum de
Desenvolvimento Comunitário);

3. Empreendimento econômico associativo construído sob a perspectiva


de economia solidária, gerando trabalho e renda aos moradores do bairro;

4. Propostas de Políticas públicas na área educacional elaboradas;

5. Sistema de comunicação interna e externa construído;

6. Construção de 618 unidades habitacionais, com habitação, água


canalizada e rede de esgoto.
80

CAPÍTULO 4

1 - O trabalho de Campo
Neste capítulo apresentarei o trabalho de campo que realizai na comunidade.
Irei me ater às anotações feitas no meu caderno de campo durante as reuniões do
Comitê Comunitário e da Agência de Desenvolvimento local das quais participei.
Utilizarei também alguns dados a que tive acesso e que constam no Relatório Final
do Projeto.

11 de Agosto de 2006

A primeira vez que tive contato com as lideranças locais da Cidade de Deus
foi numa apresentação do “Projeto Finep – Cidade de Deus e de Direitos”, no
auditório da Caixa Econômica Federal, no centro do Rio de Janeiro, em meados do
ano de 2006. Três coisas me chamaram a atenção. Primeiro o discurso articulado e
crítico de uma determinada líder comunitária. Em segundo lugar o ineditismo do
projeto, que tem como diferencial a aplicação do conceito de “protagonismo local”. E
em terceiro lugar, talvez o mais surpreendente para mim, foi a sensibilidade de uma
instituição pública frente às demandas de uma comunidade pobre e favelada do Rio
de Janeiro. O que via diante de mim era uma comunidade organizada e
conhecedora de suas necessidades e de seus direitos; e com um projeto de
desenvolvimento local em construção que parecia plenamente viável. Vislumbrei
neste dia a possibilidade da resolução da histórica questão urbana carioca, não mais
através de políticas públicas executadas de “Cima para Baixo”. O que a comunidade
da Cidade de Deus estava propondo era justamente o oposto: nós, que ao longo dos
últimos quarenta anos temos sido alvo de políticas ora paternalistas, ora populistas,
ora clientelistas; nós que somos encarados pela sociedade abrangente como “O
Outro”, estamos aqui para dar nosso grito de emancipação e liberdade. Quem sabe
de nossas necessidades somos nós; não é o Estado, a imprensa, a sociedade ou a
academia; nós, comunidade organizada, reivindicamos o papel de protagonistas na
formulação, execução, avaliação e acompanhamento das políticas públicas
implementadas em nossa comunidade. E exigimos que as instituições nos levem em
conta, pois somos os legítimos conhecedores de nossas especificidades, problemas
e potencialidades.
81

Ao fazerem isso aquelas pessoas assumiam o papel de construtores de seu


próprio destino coletivo, ao mesmo tempo em que abriam mão de práticas políticas
tradicionais e de qualquer forma de assistencialismo. Pelo essa foi a minha primeira
impressão.

A mim aquilo tudo soou como uma micro-revolução. O que aquelas pessoas
estavam dizendo é que era possível pensar em novas formas de participação
democrática, de gestão compartilhada e em novos modelos de atuação do poder
público junto a comunidades excluídas. Dentro do contexto dos movimentos sociais
urbanos tudo soava como inédito e pioneiro.

Imediatamente me interessei em estudar o projeto mais a fundo e para isso fui


auxiliado pelo sociólogo da Caixa Econômica Federal, Paulo Magalhães, sem dúvida
alguma o grande responsável pela entrada da Caixa como instituição parceira do
projeto.

Este tipo de apresentação, realizada por integrantes da comunidade, serve


para dar visibilidade ao projeto na sociedade e, principalmente, para a tentar captar
novos parceiros entre instituições privadas ou públicas. É realizada sempre que
julgado necessário pela comunidade.

A exposição de uma moradora da Comunidade de Cidade de Deus, Cleonice,


me fez sentir que estava diante de uma iniciativa que, se não for inédita, é ao menos
muito rara na história política de nosso país, já que foi a própria comunidade
organizada que se articulou e, com o auxílio de entidades e instituições que foram se
juntando ao projeto, foi construindo uma série de iniciativas com o objetivo de
transformar a realidade e a vida dos moradores daquele território segregado e
estigmatizado. Inédito sem dúvida é o fato de instituições públicas e privadas, entre
elas a Caixa, se sensibilizarem e entenderem que deveriam respeitar as demandas
da comunidade local organizada e que não poderiam impor um projeto de cima para
baixo, como tantos outros que foram implementados na Cidade de Deus e em outras
favelas cariocas e que por isso tiveram seus impactos reduzidos e seus objetivos
não alcançados. Creio ser esse o aspecto fundamental que me fez escolhê-lo como
objeto deste trabalho, ou seja, uma iniciativa de desenvolvimento local, construída e
realizada pela comunidade local, que com o auxílio do IBASE na redação e
confecção formal do projeto, pôde articular-se em torno das lideranças locais e
convencer a FINEP a financiar o projeto, bem como, a partir daí, iniciar uma série de
82

contatos com empresas privadas e instituições municipais, estaduais e federais no


sentido de consolidarem suas metas e garantirem a sustentabilidade das ações a
médio e longo prazo. Todo projeto social tem um tempo de vida e após este tempo a
comunidade precisa estar preparada para caminhar com suas próprias pernas. O
objetivo, portanto, é a conquista de autonomia e liberdade para se desenvolverem e
se integrarem à cidade formal. Os pobres urbanos dão aqui um raro exemplo de luta,
de consciência crítica, pois conhecem seus problemas e sabem que a resolução
deles só pode vir daqueles que sofrem diretamente com a dura realidade dos guetos
urbanos. Estes homens e mulheres se cansaram de esperar soluções mágicas de
políticos clientelistas, cansaram-se das promessas não cumpridas por diferentes
governos. Toda esta iniciativa corre um sério risco, como irei discutir mais adiante,
pois o tráfico pode interpretar este tipo de organização da sociedade civil como uma
forma de contestar seu poder no território.

Ademais eles não estavam pedindo favor a ninguém. Estavam apenas


exigindo seus direitos como cidadãos e membros de uma cidade da qual lutavam
para fazer parte. Tudo isso nasceu em 2002, da indignação com o efeito
estigmatizante provocado pelas mídias carioca e nacional, principalmente após o
sucesso de crítica e bilheteria alcançado pelo filme “Cidade de Deus” de Fernando
Meirelles e Kátia Lund.

Ao término da apresentação me apresentei ao sociólogo Paulo Magalhães e


disse que gostaria de participar daquilo de alguma forma. Ele se colocou a
disposição, mas só alguns dias depois decidi realizar um estudo de caso como
monografia de conclusão de curso. Fui alertado desde o princípio pelo Paulo de que
o tema da violência era um “Tabu” entre as lideranças e a comunidade, e que por
isso deveria tomar cuidado e evitar este tema. Dessa maneira, inicialmente pensei
em estudar especificamente a meta de habitação, pois a localidade que seria
beneficiada com a construção de 618 casas, Rocinha 2 (área mais pobre e com o
menor IDH dentro da Cidade de Deus), me permitiria discutir as políticas públicas de
inclusão social na Cidade do Rio de Janeiro. O tema era instigante, mais ainda por
que, segundo o Paulo e alguns membros do Comitê Comunitário, as famílias e os
indivíduos da Rocinha 2 sofriam um processo de exclusão social de segunda ordem,
ou como diz Alba Zaluar, uma “dupla exclusão”. Além de sofrerem o processo de
estigmatização e exclusão por parte da sociedade carioca, algo que é vivenciado por
83

todo e qualquer morador de favela e periferia, eles ainda sofriam um processo de


exclusão dentro da própria comunidade. Eram excluídos pela comunidade de Cidade
de Deus e não se sentiam como parte daquela comunidade. Outro dado intrigante
que me foi trazido pelo Paulo é de que “algo em torno de 40% dos chefes das
famílias residentes na Rocinha 2 estão presos”, o que revelava um processo de
criminalização dos indivíduos do sexo masculino daquela localidade.
Conseqüentemente, as famílias são em sua maioria comandadas por mulheres.
Chamava atenção ainda o nível socioeconômico daquelas famílias, abaixo da linha
de pobreza; a sujeira; a falta de saneamento básico e a falta de estrutura de
moradia, já que os barracos ainda eram construídos em madeira. A pergunta que
vinha a minha cabeça era: como estas pessoas conseguem continuar vivendo em
condições materiais tão precárias e aparentemente sem possuir qualquer fonte de
renda? Esta pergunta ainda não tinha resposta. Foi quando comecei a freqüentar as
reuniões no Comitê Comunitário e a ter contato com a realidade daquelas pessoas.

11 de Outubro de 2006.

A segunda reunião da qual participei foi, na realidade, o “1º encontro Geral do


Projeto Finep”, em 11 de outubro de 2006. Neste dia havia a presença de
representantes das instituições parceiras e dos membros da comunidade e o
objetivo era rever alguns pontos do projeto, realizar ajustes, prestar contas e
estabelecer diretrizes. Tive a oportunidade de conhecer o projeto mais a fundo.

Pela manhã assistimos a um vídeo institucional produzido pelos membros do


Comitê para funcionar como um instrumento de interação entre a comunidade e as
entidades parceiras. O vídeo mostra que a Cidade de Deus é muito mais do que
apenas uma comunidade onde existe violência. Um dos aspectos ressaltados como
positivos é que 82% dos imóveis do bairro são regularizados, ou seja, possuem
escritura definitiva. A participação de jovens e as políticas do Comitê para os idosos
e para a promoção da cidadania também são mostrados no vídeo. A comunidade
busca, através do projeto, a conquista de educação de qualidade e saúde para
todos, além da geração de trabalho e renda e da luta por moradia digna. O
desenvolvimento local é uma ação protagonizada pelos moradores com o objetivo
de melhorar as condições de vida da comunidade “aqui e agora”. Para os membros
do Comitê, a Agência de Desenvolvimento Local, apoiada pela caixa Econômica
84

Federal, é uma conquista para a Cidade de Deus e demonstra que “é possível


transformar”. A agência é o órgão executor das “políticas públicas construídas pela
comunidade e para a comunidade”. O objetivo de todos é sua consolidação como
um pólo de desenvolvimento da Cidade de Deus. Um dos problemas enfrentados à
época é que a agência ainda não havia obtido o alvará para poder funcionar. O
imóvel alugado está localizado numa área residencial e isso estava atrasando o
início das atividades.

Uma das participantes, Maria Cristina, chama atenção para o fato desta
experiência ser inédita, e por isso todos aprendem fazendo e deliberam em forma e
colegiado. O colegiado foi o estatuto jurídico encontrado pela comunidade de forma
a viabilizar a gestão compartilhada do projeto. No colegiado o voto de cada membro
tem o mesmo peso e há sempre a busca do consenso.

Uma das metas mais importantes para a comunidade é a geração de trabalho


e renda através da construção de empreendimentos econômico-solidários. Após
levantamento inicial realizado para identificação das potencialidades e
possibilidades, teria início a capacitação dos moradores que se interessassem em
realizar projetos baseados na cooperação. Algumas das possibilidades levantadas
seriam a formação de uma cooperativa de trabalhadores da construção civil para
trabalharem em obras na Rocinha 2, no SESC e no Pan-americano. Além disso foi
identificado potencial na área de jardinagem, e no caso das mulheres, que na
comunidade costumam trabalhar em casa, foi verificada a necessidade de organizá-
las em torno de uma cooperativa, possivelmente de costureiras. Foi dado o exemplo
das mulheres da Rocinha que produzem doces e compotas, da cooperativa de
artesãos de Paciência, e de uma cooperativa em Laranjeiras que reúne jovens de 18
a 24 anos, todos empreendimentos incubados pela PUC. A incubadora da PUC RIO
foi escolhida para incubar os empreendimentos da comunidade. Cleonice, uma das
lideranças locais, deu a idéia da criação de um selo com a marca “Cidade de Deus”.
Foram passadas também informações sobre uma reunião que havia ocorrido em
Brasília, entre representantes da comunidade e o secretário nacional de economia
solidária, Paul Singer. O que me chamou muito a atenção foi a coordenadora da
incubadora da PUC dizer diversas vezes que “a economia solidária não nega o
capitalismo, é apenas uma forma de buscarmos uma inserção de forma competitiva
85

no mercado”. Esta, com certeza não é a visão do secretário, à época, Paul Singer,
mas era a visão que a PUC passava para aqueles a quem teria que capacitar.

Foi ressaltado que as metas não terminariam com o final do projeto FINEP e
que a continuidade e a sustentabilidade das ações dependeria do nível de
organização da comunidade, que teria, a partir de algum momento, que andar com
as próprias pernas.

O SOLTEC (Núcleo de solidariedade técnica da UFRJ) apresentou um projeto


de “inclusão produtiva para jovens da comunidade entre 18 e 24 anos”. A
comunidade pediu a extensão da faixa etária para 16 a 24 anos, por entender que
em Cidade de Deus, o risco social começa mais cedo. O SOLTEC foi bem claro ao
dizer que os recursos para o projeto, que foram conseguidos junto ao BNDES,
seriam devolvidos caso o Comitê não fosse capaz de atrair os jovens da
comunidade. O objetivo era gerar renda e formar lideranças, mas a capacidade de
atração do Comitê, não parecia ser forte o suficiente, ao menos naquele momento,
para chamar a atenção da juventude local. O SOLTEC procurou mostrar a
necessidade do Comitê e da Agência trabalharem também a cultura e, a partir daí,
“implantar uma cultura da partilha” na comunidade.

Foram apresentadas, em seguida, algumas dificuldades, que estavam sendo


enfrentadas pelo Comitê. Uma delas era por que o SESC e o SENAC só aceitam
capacitar quem tem, no mínimo, a 4ª série do nível fundamental completa. Essa não
é a realidade dos trabalhadores da Cidade de Deus.

Outra dificuldade é decorrente das empresas não quererem ligar sua marca à
Cidade de Deus. O Paulo Magalhães me contou que tentou, junto ao dono da
AGENCO, uma das maiores construtoras da cidade do Rio de Janeiro, elaborar um
projeto de responsabilidade social que beneficiasse os trabalhadores da construção
civil residentes em Cidade de Deus. A resposta que ouviu foi categórica: “posso até
contratar gente de lá, mas não quero o nome da minha empresa vinculado de
nenhuma maneira à Cidade de Deus”. Veio daí a necessidade da Caixa começar a
exigir em contrato com as empresas da construção civil, uma espécie de “quota”
para trabalhadores da Comunidade de Deus e de outras localidades pobres do Rio
de Janeiro.
86

Na parte da tarde ouvimos em detalhes os objetivos referentes à meta


“educação” e os resultados alcançados até então. A meta do Comitê é, através de
políticas públicas na área da educação, realizar a integração do bairro Cidade de
Deus à Cidade. Foram realizados quatro seminários para a formulação de políticas
públicas em educação. Os governos, federal e municipal, infelizmente, enviaram
representantes do terceiro escalão do governo. Esta é outra dificuldade encontrada
pelo Comitê quando busca dialogar com o Estado. Apenas o Secretário Estadual de
Educação compareceu ao Fórum, e isso foi comemorado pelos membros do Comitê.
Foi apresentada uma proposta de construção uma escola de ensino médio na
região, que seria uma unidade do Colégio Pedro II. A comunidade quer que 60% das
vagas sejam reservadas aos jovens residentes na Cidade de Deus. O governo
acena com a possibilidade de reservar 30% das vagas. Por ser uma escola capaz de
atrair a classe média de Jacarepaguá e adjacências, a comunidade espera que,
garantida a quota, os jovens da comunidade tenham condições de estabelecer redes
de solidariedade com jovens de classe média, o que poderia, no futuro, abrir as
portas do mercado de trabalho para eles. Mais ou menos da mesma forma como
pensa Rubem Kaztman. Além disso, a presença da classe média no Pedro II seria
capaz de garantir a qualidade do ensino. A qualidade do ensino é, segundo a
coordenadora da meta educação, o principal problema da Cidade de Deus. Existem
escolas na comunidade, mas o ensino é de pouca qualidade. Segundo dados que
obtive, o cenário educacional na Cidade de Deus hoje é o seguinte:
1- “três creches municipais
2- 13 escolas Ensino Fundamental;
3- uma escola Municipal cedendo, no horário noturno, espaço para rede estadual que
atende apenas alunos vagas de nível médio, formação geral;
4- uma escola municipal, oferece no horário noturno, a Educação de Jovens e Adultos
apenas em nível fundamental.
5- nenhuma escola oferecendo educação profissional
6- algumas creches comunitárias,sem estrutura necessária e apoio público para,
viabilidade de um trabalho com crianças
7- algumas escolas privadas no entorno, que não possuem trabalho social na comunidade.
8- um percentual elevado de analfabetos, apenas alguns atendidos por projetos sociais
comunitários”.
87

“Além da alta taxa de analfabetismo, as 13 escolas públicas de CDD (que oferecem apenas
o ensino fundamental) não absorvem todos os alunos em idade escolar, necessitando sempre
que boa parte dos estudantes busquem educação em outros bairros40” (Lima & Silva, 2007,
p.35.).
“Por outro lado, algumas escolas de nível fundamental, não atingem a sua capacidade
instalada, por estarem localizadas em regiões de alto risco de violência, com acessos
precários e problemas na pavimentação das ruas, devido à falta de saneamento básico”.
“Não há escola de ensino médio. A comunidade conta apenas um espaço cedido que funciona
somente no horário noturno, atendendo a 150 alunos”.
“É inexistente também o oferecimento de educação profissional pelo poder público, em
qualquer nível de qualificação ou em nível técnico em CDD” (Lima & Silva, 2007, p.36.).

Ainda segundo a coordenadora, “a comunidade não vai à escola por que não
quer e por que é preguiçosa”. Foram marcados dois seminários sobre educação na
região, para outubro e novembro. Foi ainda verificada a necessidade de se realizar
um levantamento sobre quais as principais demandas em termos de formação para
os membros da comunidade. Chamou a minha atenção o fato da comunidade, no
diálogo que vem realizando com o MEC, estar tentando forçar que os representantes
do ministério vão até a comunidade. As reuniões costumam ser marcadas no centro
da cidade, mas os membros do comitê tentam remarcá-las para que aconteçam na
comunidade. Algumas vezes obtém sucesso, o que garante que os burocratas do
ministério conheçam um pouco mais de perto as condições da educação e de vida
da comunidade, ao mesmo tempo em que, negociar “em casa” com as instituições é
garante um pouco mais de igualdade no debate. Ir a reuniões no MEC é como “ir
jogar na casa do adversário”. No futebol, jogar na casa do adversário é sempre uma
desvantagem.

Outro tema importante na área educacional é a necessidade de um


levantamento de informações a respeito dos “tomadores de conta” de crianças e a
elaboração de propostas para construção de creches e para a educação infantil. Na
Cidade De Deus, os “tomadores de conta” possuem um papel muito importante, por
que, na falta de creches ou na impossibilidade de pagar por uma, as mães que
trabalham fora tem como quem contar quando saem para trabalhar. Os “tomadores

40
LIMA, Carla Moura & SILVA, Itamar. Relatório Técnico do Projeto Cidade de Deus e de Direitos. - Ibase e
Finep. (Não Publicado). 2007. 88p.
88

de conta” de crianças são uma alternativa criativa encontrada pelos pobres urbanos
para a resolução de uma questão fundamental que é com quem deixar o filho na
hora de ir trabalhar. Revela-se aqui um pouco da solidariedade que pode ser
encontrada em comunidades como Cidade de Deus, embora saibamos que a
solidariedade ainda é fragmentada. Baseia-se fundamentalmente na proximidade, na
vizinhança. Mas, às vezes, só o fato de morar do outro lado do rio, já impede a
formação de laços de solidariedade deste tipo. Daí a necessidade do Estado
construir creches, que sejam capazes de universalizar o acesso a este tipo de
serviço no interior da comunidade.

No final do dia houve a exposição das metas na área da comunicação. O que


pude perceber é que os principais objetivos da comunicação dentro das premissas
do projeto são: a mobilização da comunidade e a garantia de uma gestão
democrática, transparente, ética e honesta. Os coordenadores desta meta procuram
realizar encontros nas centralidades do bairro para prestar contas sobre o
andamento do projeto, destinação dos recursos, parcerias desenvolvidas. Nesses
encontros procura-se tomar muito cuidado para não gerar intrigas e divisões no
movimento. Como lidam com dinheiro público, as cifras parecem ser sempre muito
altas, ainda mais em se tratando de uma comunidade pobre. A prestação de contas,
portanto, deve ser detalhada, clara e objetiva.

Outra preocupação dos coordenadores é com a construção de um site, pois


identificaram naquela época, que “se você digitar Cidade de Deus num site de
busca, só aparecem coisas negativas. Daí a importância do site; mostrar que aqui há
trabalho social sério e engajamento”.

O tema da violência não foi abordado em profundidade em nenhuma das


exposições sobre o andamento das metas do projeto. Mas, analisando meu caderno
de campo, encontrei o registro de uma conversa informal com uma das participantes
do evento, moradora da comunidade com quem puxei conversa, e que “do nada”
começou a falar sobre seus trinta anos de luta na Cidade de Deus. Disse-me que
pegou “a fase do crime desorganizado, depois a falange vermelha, o comando
vermelho” e que agora estavam na iminência de sofrerem a invasão pela “polícia
mineira”. “Vivemos num barril de pólvora e corremos o risco de perder tudo que
conquistamos até o momento, se o tráfico achar que somos olheiros da polícia ou
que estamos contra eles”. Fiquei estimulado e surpreso com aquela fala, pois havia
89

sido dito que violência era um tabu. De fato nada parecido havia sido dito durante a
reunião formal. O tema simplesmente não entrou em pauta. Mas ainda era cedo para
qualquer conclusão e por opção metodológica preferi não forçar o assunto com a
minha informante. Ficou a dúvida e a pergunta: porque ela havia falado sobre
violência naquele momento sem eu ter perguntado nada, logo para mim que era um
novato naquele lugar?

Descobri posteriormente que esta pessoa era a responsável eleita pela


comunidade para a realização da meta de habitação, a ser realizada em Rocinha 2.
Talvez ela já estivesse prevendo algum tipo de dificuldade com o tráfico armado
mais a frente. A pergunta não saía da minha cabeça e eu ainda estava muito longe
da resposta.

16 de Novembro de 2006

Nesta data assisti a terceira reunião, a primeira em forma de colegiado, para


acompanhamento e prestação de contas sobre o andamento do projeto. Estas
reuniões são semanais e acontecem sempre às quintas-feiras à noite. Na pauta
estavam o plano de educação, o planejamento da capacitação profissional e a
proposta da incubadora de empreendimentos econômico-solidários. A mesa foi
coordenada pela Cleonice, líder comunitária que se destaca pela capacidade de
articulação e pela capacidade intelectual. Os participantes foram informados sobre o
email que o Paulo Magalhães enviou à Jussara Pedreira, secretária de Luiz
Gushiken (responsável pelo projeto Casa Brasil), solicitando 49 computadores para
o Comitê Comunitário iniciar sua política de inclusão digital. A idéia era distribuir os
computadores pela agência e pelos organismos de economia solidária. Foi verificada
também, a necessidade de se cobrar do governo federal o cabeamento, a instalação
e a manutenção dos computadores. Isto, como ficou decidido, seria feito através de
um ofício. O Paulo Magalhães fez sua exposição sobre o andamento da meta de
habitação. Informou que só faltava a assinatura do prefeito para a liberação da verba
de R$ 25 milhões para a construção das casas.

“Hoje, o Carlos [líder comunitário] assinou pela Agência de Desenvolvimento


local, um contrato com a Prefeitura, a Caixa e o Patrimônio da União, para a
realização do projeto da Rocinha 2. Só falta o Prefeito César Maia assinar. São 25
milhões de reais. Ao mesmo tempo, são necessários vários documentos para a
formalização jurídica disso tudo”.
90

Paulo Magalhães também apresentou um vídeo que mostra que toda a área
próxima a Rocinha 2 havia sido adquirida por empresas de construção civil, que
provavelmente estão esperado pela valorização imobiliária da região após o término
das obras. Um dos terrenos estava sendo utilizado para construção de uma escola
de ensino médio do SESC. Outros terrenos foram comprados pela Carvalho Hosken,
pela Brascan e pela Perugia. Ficava claro que a comunidade precisava criar
mecanismos para se defender da especulação imobiliária. Além disso, o Paulo
apresentou um projeto ligado à Prefeitura, para a construção da Via 8:

“A Via 8 vai separar a área da Cidade de Deus da área rica. O projeto, que
tudo leva a crer, que seja da Prefeitura, prevê a construção de novas casas para os
ricos na beira da via 8, com a remoção das pequenas favelas do entorno”.

A idéia de remoção e de segregação residencial é algo que volta e meia


ressurge no debate sobre a política urbana. É como um câncer, que, quando parece
extirpado de vez, reaparece e precisa ser combatido com altas doses de
medicamento. O remédio, neste caso, é a mobilização popular.

Cleonice se manifesta a favor do estabelecimento de contato com as


comunidades que seriam afetadas, visando mobilizá-las para impedir a remoção.

Foi identificado que a Cidade de Deus possuía, á época, 14 praças


necessitando de melhorias e revitalização.

Com relação à Rocinha 2, tomei conhecimento durante esta reunião de


que o cadastro das famílias beneficiárias das 618 casas que serão construídas
foi elaborado pela própria comunidade, segundo critérios próprios e com o
objetivo de selecionar as famílias mais carentes e necessitadas de apoio. A
comunidade foi deixada à vontade pelas instituições parceiras para a definição
de quem irá receber as casas. Ao mesmo tempo este empreendimento irá gerar
renda para os trabalhadores da construção civil residentes na comunidade e a Caixa
irá determinar em contrato que um percentual dos trabalhadores contratados - para
esta e outras obras que venham a ser realizadas na região -, seja destinado a
trabalhadores da Cidade de Deus.

Teve então início uma reunião entre a Caixa e os trabalhadores da Cidade de


Deus, com o objetivo de mobilizá-los para que se organizem em forma de uma
91

cooperativa, visando a construção de um empreendimento econômico solidário de


trabalhadores da construção civil residentes na comunidade.

A Aline Mendonça, assistente social contratada pelo Ibase para colaborar na


capacitação da comunidade em economia solidária, propôs a transferência de
conhecimento e tecnologia da incubadora da PUC para a comunidade, visando a
formação de inteligência na própria comunidade, já que o objetivo do projeto é a
autogestão dos empreendimentos de economia solidária.

O Paulo Magalhães tomou o maior cuidado quando começou a dialogar com


os trabalhadores interessados em participar da cooperativa de trabalhadores da
construção civil. Nesta primeira reunião apareceram 14 trabalhadores. Ele explicou
que a caixa atuaria como facilitadora do processo, e que ia aproveitar as obras da
Rocinha 2 para, com o auxílio da Caixa, colocar os trabalhadores da comunidade
para trabalhar. Ressaltou que, até aquele momento, não havia garantias de que as
obras seriam realizadas por moradores da Cidade de Deus, daí a necessidade deles
se organizarem coletivamente. Mostrou que naquela região havia a previsão de
diversas obras: “a vila pan-americana vai se expandir, será construído um shopping,
mais apartamentos. Tudo vai depender da organização de vocês. A Agência Cidade
de Deus e a Caixa vão ajudar financeira e tecnicamente você nessa organização”.
Naquele momento estabeleceu-se um compromisso e aqueles trabalhadores se
sentiram motivados. Chamou minha atenção o Paulo fazer questão de dizer que não
era candidato a nada, que era apenas um funcionário público e que estava ali para
ajudá-los, sem querer nada em troca. Esse cuidado é fundamental, pois aquelas
pessoas com certeza já estavam cansadas de promessas não realizadas por
políticos oportunistas. Revelou ainda, por parte do Paulo, um conhecimento sobre a
história da localidade e das práticas clientelistas que foram corriqueiras durante
anos. Fez questão ainda de dizer que nunca tomaria decisões em nome deles, e que
tudo seria transparente; e incentivou aquele pequeno grupo inicial a se organizar, já
a partir daquele momento, para negociar com a AGENCO, empresa responsável
pelas obras na região. Depois o Paulo abriu a reunião para perguntas e sugestões.
Um dos trabalhadores elogiou a construção das casas na Rocinha 2, e disse que
elas iam “elevar a auto-estima daquele povo da Rocinha 2” e disse que aquele
região era muito carente e que lá é tão ruim que “tem até jacaré”, o que não é
brincadeira. De fato os moradores da Rocinha 2 convivem com o risco de serem
92

atacados por jacarés que vivem nos rios e lagoas da região. Dizem até que os
traficantes utilizam esses animais para dar sumiço em suas vítimas. Outra pergunta
foi a respeito de como seria na hora de negociar. O Paulo respondeu que sentariam
juntos, a AGENCO, ele, representando a caixa e a cooperativa. Os trabalhadores
foram se empolgando e ao final da reunião já estavam discutindo estratégias para
informar outros trabalhadores da existência da cooperativa, formas de organização e
de cadastramento dos trabalhadores interessados.

Resolvi dar uma saída para fumar um cigarro. Foi quando conheci o Nei, um
trabalhador desempregado que estava participando daquela reunião e que também
tinha saído para fumar. Ele começou a falar comigo. Registrei aquele depoimento
logo após termos voltado para dentro da Agência de Desenvolvimento Local. Sem
nenhum motivo aparente ele começou a falar que “existem facções dentro da CDD”
e que isto reflete o fato da comunidade ter sido “formada por gente muito diferente,
vinda da Praia do Pinto, Humaitá, Lagoa...”. Nesse momento ele se tocou que estava
entrando num tema perigoso, ainda mais porque ele nem me conhecia, e disse “é
melhor eu não falar mais nada”. Porém mudou de assunto e continuou falando.
Segundo Nei, “o pessoal não é muito engajado”. “Eu me sinto um excluído, sou
negro, queimado [ele apresentava marcas de queimaduras por fogo pelo corpo],
favelado. O povo daqui é muito imediatista. Mas eu vejo que estão abrindo as portas
para mim e eu vou escancará-la. Quando você comenta com alguém sobre isso
daqui ele pergunta a que horas acaba a reunião. É pra gente mesmo! Não tem que
se preocupar com a hora. Eles perguntam se tem lanche. O pessoal é muito
imediatista. A comunidade precisa participar. Muita gente nem sabe disso aqui”.

Este monólogo revela que o tema da violência sem dúvida é evitado. O tema
novamente não surgiu durante a reunião do Comitê e pude perceber que mesmo
numa conversa informal foi evitado, talvez por medo. Em conversas com o colega da
UERJ, Allan Brum Pinheiro, que é Coordenador Geral do Grupo Sócio Cultural
“Raízes em Movimento” e realiza um trabalho de inclusão social no Complexo do
Alemão, fui informado que a omissão do tema violência é uma estratégia de
determinadas comunidades para ressaltar os aspectos positivos e as
potencialidades da comunidade, evitando dessa maneira correlacionar pobreza e
criminalidade. Não falar do crime e da violência é, a meu ver, uma forma de tentar
romper o ciclo de reprodução da violência, conforme análise realizada pela
93

pesquisadora Teresa Caldeira41. A “fala do crime”, segundo esta autora, possui dois
efeitos que são contraditórios. Ao mesmo tempo em que ao falar da criminalidade a
sociedade busca maneiras de enfrentamento e de resolução da violência, a “fala do
crime” contribui para a reprodução do ciclo da violência. Falar do crime resulta na
formação de um mecanismo de manutenção e ampliação da criminalidade, além de
criar toda uma ideologia e uma cultura da violência. A reprodução do ciclo da
violência de daria por um mecanismo de privatização da segurança. Este fenômeno
gera o que a autora chama de uma “cidade de muros”. As classes média e alta se
isolam em condomínio fechados, cercados por modernos aparatos de segurança.
Recorrem ainda à contratação de empresas de segurança privada. Nas favelas e
bairros populares, principalmente em localidades dominadas por traficantes
armados, a “fala do crime” gera uma demanda por segurança. Como o Estado não
tem sido capaz de garantir a segurança pública, especialmente nestas localidades,
cria-se uma espécie de demanda reprimida. A existência deste “mercado
consumidor” reprimido, explicaria, em parte, no meu entender, o avanço de milícias
armadas sobre regiões até então submetidas à tirania dos traficantes de drogas. O
lucro destes grupos armados, formados em boa parte, por policiais e ex-policiais, é
realizado através da cobrança de taxas de segurança e ainda através da exploração
do comércio de água, gás e TV por assinatura clandestina (“GatoNet”).

“Assim, a fala do crime alimenta um círculo em que o medo é trabalhado e


reproduzido, e no qual a violência é a um só tempo combatida e ampliada” (Caldeira,
2000, p. 27).

Parece que as lideranças locais utilizavam a estratégia mencionada e


evitavam falar do tráfico, com o objetivo de romper com o ciclo da violência. Eles
acreditavam que a questão seria resolvida pela implementação das políticas públicas
formuladas sob a ótica do protagonismo local. Contudo, o fato do tema violência
surgir em conversas isoladas sugere que apesar desta visão estratégica, os
moradores da comunidade não têm como deixar de pensar no assunto, uma vez que
convivem com ele diariamente, seja devido às incursões policiais, seja pela ação
violenta dos traficantes locais, seja pela iminência da invasão da comunidade pelas
milícias. Minha interpretação é que, apesar da mobilização que se inicia e das novas
oportunidades que se abrem aos habitantes locais, paira sobre eles, o tempo todo, o

41
CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de Muros. São Paulo: Ed. 34/Edusp, 2000.
94

medo de que os “Donos do Lugar” inviabilizem seu projeto coletivo de autonomia e


liberdade. O fato dos atores locais acreditarem que o tráfico pode causar problemas
à implementação das políticas democraticamente negociadas, faz com que eles
utilizem estratégias de ação que “colaboram’ para concretizar aquela crença. A
omissão do tema da violência, o “não-dito”, a ausência de uma tomada de posição
frente ao tráfico armado, acaba por contribuir para que os traficantes, em algum
momento, venham realmente a causar problemas e a impor limites às ações do
Comitê. A ação do tráfico armado, em oposição às ações da comunidade
organizada, acaba por tomar a forma de uma “profecia que se auto-cumpre”.

22 de Maio de 2007

Fiquei um pouco afastado das reuniões após os incidentes ocorridos no final


de dezembro de 2006, quando milícias armadas, formadas por policiais, iniciaram
uma série de tentativas de invasão em diversas comunidades do Rio de Janeiro,
entre elas a Cidade de Deus. O medo falou mais alto do que meus objetivos
acadêmicos e resolvi esperar um melhor momento para voltar a campo.

Retornei à comunidade em maio de 2007. Pela manhã fiz contato telefônico


com a líder comunitária Cleonice e com um membro que me atendeu quando liguei
pela segunda vez. Queria ter certeza de que haveria reunião naquele dia e perguntar
se eu poderia participar da reunião, pois pela primeira vez iria até a comunidade sem
estar acompanhado pelo Paulo Magalhães, que foi quem me introduziu no campo e
abriu as portas para que a comunidade aceitasse a minha participação nas reuniões.
O motivo da segunda ligação foi a informação que obtive de que o ministro tarso
genro estava visitando, naquele mesmo dia, o núcleo da CUFA na Cidade de Deus e
que a atmosfera na localidade estava um tanto quanto conturbada, devido à
presença de forte aparato de segurança, havendo inclusive efeitos no trânsito nas
imediações. O rapaz que me atendeu, que não consegui identificar, confirmou que a
reunião aconteceria, pois eles não tinham nada a ver com a CUFA e não
estabeleciam nenhuma forma de diálogo com aquela instituição. Este relato
confirmava a persistência da fragmentação dos movimentos sociais no interior da
localidade.

Cheguei na sede do Comitê às 19:00 horas e fui muito bem recebido. A


reunião contava com a participação de um membro da RITS, mais uma parceria
95

incorporada ao projeto de desenvolvimento local e que desempenhou um papel


importante na capacitação dos atores locais.

O foco desta reunião foi um evento de entrega de certificados aos concluintes


de um curso de capacitação em Gestão e Educação, desenvolvido em parceria com
o Ibase e a RITS. Este evento aconteceria na igreja Maranata e percebi que o
Comitê tinha interesse em se aproximar dos evangélicos com o objetivo de
conseguir aumentar a mobilização na comunidade. Cleonice chegou a dizer que “é
uma grande lição este contato e essa parceria com as igrejas por que a gente tem
que se adequar a eles quando utilizamos o espaço deles para qualquer evento. É
um grande desafio respeitarmos essa diversidade, principalmente nessa fase que
estamos vivendo”. Ela se referia à preocupação dos membros do colegiado com o
comportamento dos membros da Coopforte (cooperativa de trabalhadores da
construção civil da Cidade de Deus) no dia do evento. Um dos colegiados disse que
“o pessoal da cooperativa é pinguço mesmo, todo mundo fuma, todo mundo bebe”.
E a preocupação se justificava na medida em que o pastor já havia dito ao Comitê
que a confraternização deveria respeitar algumas regras da igreja: não poderia
haver briga, sujeira, os convidados não poderiam fumar ou beber, pois aquela era a
casa de Deus. E com relação à música, o pastor não abria mão de que só tocasse
música Gospel. Além disso, o Comitê deveria contratar três meninos para tomar
conta do patrimônio da igreja, o que representava mais uma dificuldade para o
Comitê por que, muito provavelmente, aqueles meninos não tinham nem identidade
nem CPF, o que impediria a emissão de notas fiscais, imprescindíveis no processo
de prestação de contas à comunidade.

Depois trataram dos projetos para a Rocinha 2. O SESC se comprometeu a


construir uma quadra polivalente naquela localidade, orçada em R$ 350.000,00. A
Polícia Federal se ofereceu a fazer uma doação – pelo que entendi o terreno onde
seria construída a quadra pertence à Polícia Federal – desde que tivesse acesso ao
cadastro dos moradores da Rocinha 2. É claro que esta estratégia da Polícia Federal
tem a ver com o alto percentual de indivíduos criminalizados que residem naquela
localidade. O acesso ao cadastro permitiria que o serviço de inteligência da PF
realizasse ações para reprimir a criminalidade na Rocinha 2. Os membros do
Comitê, contudo, não pareciam estar nem um pouco dispostos a ceder a esta
pressão exercida pela Polícia Federal. O Comitê concluiu pela necessidade da
96

construção de um cadastro único dos moradores da Rocinha 2. As informações até


então produzidas estavam fragmentadas e o cadastro existente poderia conter
duplicidades. Este cadastro único, para todas as instituições parceiras, garantiria o
acompanhamento das doações que estavam chegando para os moradores da
Rocinha 2.

Cabe neste momento citar alguns dados obtidos no “Relatório Técnico” do


projeto Cidade de Deus e de Direitos:
“O Pré-Cadastramento é considerado um ato inaugural da atuação da equipe social, um
grande marco em Rocinha II”.
“Os moradores declararam possuir renda familiar média em torno de 1 salário mínimo (48%).
Cabe ressaltar que no Pré-Cadastramento, 14% alegou não contar com nenhuma renda, 4%
vive de serviços esporádicos e apenas 1% declarou receber auxílios governamentais como
bolsa-família e cheque-cidadão”.
“A equipe social constatou a existência de um boato de que as casas seriam vendidas e que as
famílias que se declarassem sem renda não teriam direito as casas. Por isso a necessidade de
verificação posterior das informações, pois devido ao boato citado, existe a possibilidade da
situação sócio-econômica das famílias ser ainda mais precária do que a apontada no Pré-
cadastramento”.
“Os moradores de Rocinha II trabalham em geral em biscates como: catadores de lata,
papelão, etc; moto táxi; vendedores; auxiliares de serviços gerais; entregadores; diaristas; etc.
Apenas 25% declarou possuir carteira assinada em empregos como: costureira; babá;
repositor de mercadoria; vigia noturno; atendente de creche; estoquista; ajudante de
lanchonete e de caminhão; balconista e gari comunitário. O restante vive da caridade alheia
como ajuda de parentes, de igrejas, entre outros. São observados em Rocinha II
aproximadamente 50 barracos que são biroscas, caracterizando-se esta então como uma
alternativa de geração de renda para algumas famílias”.
“O nível de escolaridade dos moradores é baixo. A quantidade de não-alfabetizados é quase o
triplo da média da cidade – 25%. Os que não concluíram o antigo 1o grau constituem-se na
maioria, 47%. Poucos iniciaram o 2o grau e ainda não foi encontrado nenhum morador com
nível superior, nem mesmo cursando”.
“Muitas famílias em Rocinha II são matrinucleadas, em torno de 40%. Porcentagem também
aproximada de famílias com os dois cônjuges presentes. Segundo uma primeira amostragem
97

há em torno de 17% de famílias apenas com a presença do pai e o restante compõe-se de


pessoas que moram sozinhas” (Lima & Silva, 2007, p.67.).
“As famílias em geral têm 1, 2 ou 3 filhos. Um levantamento por amostragem de 20% da
comunidade apontou para 23% das famílias com apenas 1 filho; 22% com 2 filhos; 19 % com
3 filhos. Famílias com 4,5 e 6 filhos constituem-se numa minoria, sendo: 5, 3 e 2%
respectivamente. Quase 10% das famílias acolhem agregados como sobrinhos, afilhados, etc.
Há um pequeno quantitativo de homens e mulheres que declararam morarem sozinhos: 6 e
3% respectivamente. Foram identificadas, por enquanto, 5 pessoas portadoras de necessidades
especiais como: auditivas, visuais e psicomotoras”.
“Durante o Pré-cadastramento a necessidade de moradia foi a mais freqüentemente referida,
sendo que a demanda por trabalho e renda encontra-se como pano de fundo da situação
precária das famílias. Por intermédio de conversas informais durante as travessias e o Pré-
Cadastramento, diversos moradores expressaram o desejo de estudar, pois atribuem seu
desemprego à falta de escolaridade. Reivindicaram creche pública para que possam deixar as
crianças para que, principalmente as mulheres, possam estudar e procurar emprego”.
“Em Rocinha II o trabalho informal é o que prevalece. Como as informações acima são
declaradas pelos moradores, há a desconfiança de que tenham sido modificadas, como no caso
da existência de fato de menos trabalhadores com carteira assinada. Acredita-se que a
informalidade na geração de renda dos trabalhadores tenha sido diminuída devido ao temor de
que isso influenciasse negativamente na candidatura às novas casas”.
“No pré cadastramento foram ouvidas todas as famílias. O número de pessoas cursando o 1o e
2o grau é muito baixo. Há em torno de 50 analfabetos e muitos disseram que cursaram o 1o
grau, mas na realidade não chegaram a ir para a escola. O maior sonho declarado é o de
trabalhar com carteira assinada” (Lima & Silva, 2007, p.68.).
Pela natureza e quantidade de demandas identificadas em Rocinha II, acredita-se que todos os
esforços ainda sejam insuficientes, gerando inúmeras angústias nas componentes desta
equipe, já que em Rocinha II é encontrado um risco representado pela possibilidade
permanente de disputa pelo controle local entre o tráfico de drogas e milícias que já dominam
outras comunidades vizinhas à CDD. Constitui-se num espaço permeado de diferentes
poderes e a equipe possui o desafio de implementar o que o Comitê Comunitário preconiza
que são ações estruturantes, com impacto social significativo na vida daquelas famílias que se
encontram em elevado nível de miserabilidade”.
“Outro aprendizado para o Comitê é trabalhar com metodologias participativas como: a
questão do desenvolvimento local, inclusão social e as dificuldades de habitação dentro de
98

Rocinha II. A questão da habitação torna-se mais complicada por CDD já ser considerada
"um gueto" e Rocinha II "um gueto do gueto" o que se constitui numa novidade para todos.
Neste sentido todos são aprendizes em processo contínuo de capacitação. Para o trabalho em
Rocinha II efetivar-se realmente de forma estruturante, transformadora e participativa, requer
de todos muito conhecimento, habilidade e sobretudo, cuidado” (Lima & Silva, 2007, p.69.).
“Uma nova dificuldade para a equipe social encontrou-se em discutir com a população o
projeto aprovado. Ao invés de uma casa, segundo o arquiteto responsável, com a verba só foi
possível projetar um cômodo com banheiro. Alega-se que o maior custo da obra é a
preparação do terreno. O que gerou constrangimentos e exigiu estratégias eficazes de trabalho
junto à população local. O tamanho reduzido das unidades habitacionais foi alvo de críticas e
insatisfações generalizadas por parte dos futuros moradores”.
“Um dos principais objetivos do trabalho da equipe social é resgatar a cidadania e a auto-
estima dessa população, pois os moradores de Rocinha II já foram alvo de muitas promessas.
Eles se consideram "nada" e são discriminados, mesmo dentro da CDD” (Lima & Silva, 2007,
p.70.).

Os dados acima demonstram a extrema precariedade das condições de vida


dos habitantes de Rocinha 2; a exclusão de segunda ordem de que são vítimas e a
respeito da qual já havia me referido; e a questão do crime e da violência no local,
enquanto limitadores do processo de desenvolvimento daquela micro-região. Os
desafios são imensos, e apenas a construção de casas não irá equacionar
problemas tão graves quanto a baixa escolaridade e a ausência de renda e de
capacitação para o trabalho. Outro dado que obtive, mas que não tenho como
comprovar, é que cerca de trinta dos chefes das famílias residentes em Rocinha 2
estão presos por envolvimento com o tráfico de drogas. É um número assustador,
que de certa forma explica o elevado número de famílias matrinucleadas na
localidade.

Por volta das nove horas da noite, um dos integrantes do colegiado chamado
Cabeça, disse o seguinte: “Eu tenho que falar uma coisa, tenho que me ausentar,
sabe, porque, eu moro na zona do agrião e onde eu passo, na interseção, tem
tiroteio todo dia, fogo cruzado e às vezes eu chego da cidade e tenho que ficar duas
horas na praça esperando”. Seguiram-se risos e uma certa exaltação. Foi quando
um dos integrantes do Comitê disse que “Hoje tá arregado”, numa referência à
propina que é distribuída pelo tráfico para que policiais corruptos deixem o
99

movimento funcionar “em paz”. Nesse mesmo instante começaram os estampidos


dos fogos de artifício, que avisavam da chegada da polícia. Em seguida começou o
primeiro tiroteio. Alguém falou “É o Caveirão” e o participante que momentos antes
havia tentado acalmar a todos dizendo que estava “arregado”, mudou de idéia e
falou “Retiro tudo o que eu disse”. Logo depois, um dos colegiados disse “Se você
quer saber, hoje já jogaram até granada”. Era a primeira vez que o tema da violência
e do tráfico surgia durante uma reunião do Comitê de maneira tão explícita. O tiroteio
funcionou como um evento catalisador que me possibilitou observar como aquelas
pessoas vivenciam a violência e como reagem em situações de risco. Naquele
momento era como se eu não estivesse ali, eles falavam do assunto sem se
preocuparem com a minha presença.

Os tiros pararam por alguns momentos e a reunião recomeçou. Ouvi então


um relato surpreendente. Cleonice, a responsável pela meta de habitação, que trata
da construção das 618 casas na Rocinha 2, informou que “Há alguns dias eu e o
Paulo Magalhães fomos convocados pelo tráfico para irmos na Rocinha 2 para
termos uma “conversa”. O Paulo ficou muito apreensivo e com medo, mas eu disse a
ele que tínhamos que ir. Havíamos combinado que se eles pedissem casas, nós
diríamos que não tinha. Ficamos em praça pública, esperamos uma hora e meia
para termos a conversa. Tivemos uma demonstração de poder. Eles nos mostraram
as benesses que fizeram lá; aí dá para entender porque tem um monte de gente que
não trabalha e consegue viver por lá. Ficou determinado que para qualquer um
entrar na Rocinha 2 a partir de agora tem que avisar com 24 horas de antecedência.
Até por que, por mais que seja coincidência, sempre que entramos lá a polícia vem
atrás. Hoje uma moradora brincou dizendo que a gente leva a polícia”.

As informações que colhi revelam que o tráfico está querendo tomar as casas
dos moradores que foram escolhidos como beneficiários pela comunidade, num total
desrespeito a um cadastro que foi formado através de uma escolha democrática e
participativa. Todo o cadastramento das famílias corre o risco de não ser cumprido.
O tráfico quer mudar tudo, e, de acordo com seus critérios, estabelecer quem serão
os futuros moradores das casas que serão construídas.

“Por outro lado”, continuou Cleonice, “tivemos hoje no culto evangélico que foi
realizado na Rocinha 2 uma ampla demonstração de respeito da comunidade pelo
trabalho do Comitê. O pastor rezou para que os pobres que estão esperando pelas
100

casas possam efetivamente ter acesso a elas”. Neste culto foram homenageados o
Comitê e a Caixa. O pastor falou que os tiroteios que estão acontecendo lá são
devidos à presença do diabo na localidade, e que o diabo tem agido naquele lugar, e
que a construção das casas pode significar a superação desses conflitos. Foi lido um
trecho de “Neemias”, no qual o pastor fez um paralelo entre o que está acontecendo
na Rocinha 2 e a reconstrução de Jerusalém. Segundo palavras da Cleonice “foi
muito bonito e os moradores se mobilizaram para agradecer a Deus e às instituições
pelas ações que estão sendo desenvolvidas”.

Às dez da noite quando me preparava para ir embora o tiroteio recomeçou de


forma muito mais intensa. A polícia fez base na rua do Comitê e tive que sair por um
caminho alternativo para não passar pela linha de tiro.

2 – O sentido da ação social

A perguntas que me vinham à cabeça agora eram as seguintes: qual o


sentido que os atores, no caso o Comitê Comunitário, atribuíam às suas ações.
Como eles justificavam para si próprios a opção política em não tratar da questão do
tráfico? Por que não colocaram entre as metas a serem alcançadas pelo projeto a
dimensão “prevenção da violência”? Qual o sentido sociológico da opção pela não
abordagem do tema da violência. Quais as causas profundas desta omissão? E
quais os efeitos dessa estratégia sobre a vida na comunidade e o destino das
políticas implementadas na localidade?

A meu ver este é um caso típico de ação racional que tem por objetivo o
alcance de um determinado fim social. O sentido que os atores locais atribuem às
suas ações, principalmente a opção por não tratar da questão do tráfico de drogas e
da violência, é o de que não falar da violência ajuda a anular o estigma de que são
vítimas e a dar visibilidade a outras dimensões da vida na comunidade. Esta
estratégia tem, por fundamento, a concepção de que não é a pobreza que gera a
criminalidade. Nesta perspectiva, a criminalidade é um problema social muito mais
complexo e, portanto, as comunidades pobres não deveriam vincular suas ações à
resolução da criminalidade violenta. Esta é uma estratégia coerente e justificável,
apoiada inclusive em boa parte da pesquisa científica produzida nas últimas
décadas.
101

No entanto, a resposta a estas questões não pode prescindir, a meu ver, de


uma análise da estrutura social e dos reflexos desta estrutura na psicologia dos
moradores do Conjunto Habitacional Cidade de Deus. A adoção da “estratégia de
omissão” possui causas mais profundas e cabe ao cientista social descortiná-las,
trazê-las à tona.

Cidade de Deus é um conjunto habitacional que passou por um processo de


refavelização ao longo das últimas décadas. Apesar de ter sido formado por grupos
sociais diferentes e heterogêneos e da fragmentação daí decorrente, sua população
pode ser considerada homogênea em pelo menos um aspecto, que é o mais
importante dentro do arcabouço teórico que procurei construir: é uma população que
se iguala na pobreza e no estigma que sofre por parte da sociedade abrangente. O
espaço social no qual vive esta comunidade não está incorporado à cidade formal e
em decorrência do estigma e das ocorrências policiais mostradas rotineiramente
pela mídia, não pode ser considerado um espaço público de convivência entre
desiguais. Este fato inibe as possibilidades de interação entre os moradores da
Cidade de Deus e os habitantes de outras áreas da cidade do Rio de Janeiro, em
especial as classes médias, que evitam este tipo de lugar por considerá-los “regiões
problema”. Ao mesmo tempo, a desindustrialização e a precarização das relações de
trabalho ocorridas nas últimas décadas reduziu a possibilidade de inclusão dos
pobres urbanos via mercado de trabalho.

O processo de socialização ao qual são submetidas as novas gerações, que


se formam no interior desse território segregado, é marcado pelo conflito entre o
Poder do Estado e o Contra-Poder do tráfico de drogas. Crianças e jovens crescem
num meio social onde convivem com o contraditório e o processo de socialização
acontece num ambiente em que co-habitam as correntes culturais predominantes na
sociedade abrangente (mainstream) e as subculturas marginais, características de
territórios segregados nos quais é comum a existência dos chamados “donos do
lugar”. O indivíduo que se forma neste contexto é, por dedução, ambivalente, reflexo
de uma estrutura social em que coexistem normas (do Estado de Direito e da polícia)
e contra-normas (do tráfico de drogas). Robert Merton42, apesar de reduzir o
problema da ambivalência à sua dimensão sociológica - em oposição ao que ele

42
MERTON, Robert K. A ambivalência Sociológica e outros ensaios. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.
102

denomina de “ambivalência psicológica” e que seria objeto não da sociologia, mas


da psicologia - demonstra que “a ambivalência sociológica é uma importante fonte
de ambivalência psicológica”. Isso a meu ver explica a coexistência, num mesmo
indivíduo, de sentimentos contraditórios em relação ao Estado e aos traficantes de
drogas. O que pude perceber nas minhas visitas à Cidade de Deus é que os
indivíduos residentes naquela localidade experimentam, ao mesmo tempo,
sentimentos de amor e ódio com relação à polícia (que é identificada por muitos
deles como “O Estado”) e com relação às ações dos traficantes de drogas. Nenhum
destes dois status é reconhecido como legítimo pela comunidade. O próprio Comitê
assume-se como mais um status e termina optando por não tomar partido de
nenhum dos outros dois lados. Segundo Merton (Merton, 1979, p. 22.), “O tipo
principal de ambivalência sociológica coloca exigências contraditórias para os
ocupantes de um status numa determinada relação social. E desde que essas
normas não podem ser expressas simultaneamente no comportamento, aparecem
expressas em oscilações de comportamento: de distanciamento e compaixão, de
disciplina e tolerância, de tratamento pessoal e impessoal”. A ambivalência
psicológica revela-se na visão que eles têm do tráfico e da polícia: os traficantes são
vistos como cruéis e bárbaros, porém, ao mesmo tempo, os moradores reconhecem
que eles realizam melhorias e que cumprem um papel social, principalmente em
Rocinha 2, onde são eles que garantem a sobrevivência das famílias que vivem
naquela localidade. As ações da polícia são vistas na maioria das vezes como
arbitrárias, embora os moradores também reconheçam a importância da polícia na
manutenção da ordem e na garantia dos direitos individuais e coletivos. O problema
está “na polícia que eles conhecem” e não nos conceitos de polícia e de segurança
pública. A comunidade vive, portanto, numa contínua tensão entre dois status, status
estes que teoricamente são inconciliáveis, mas que se interpenetram através de
relações de corrupção. Numa situação de conflito como a descrita, é lógico e
“racional” que um terceiro status, o Comitê Comunitário, opte por uma posição
“neutra”, de modo que não se tornem evidentes as suas próprias contradições
internas.
103

3 - As Conseqüências não-antecipadas da ação social

A principal conseqüência da adoção de uma posição “neutra” pelo


Comitê Comunitário foi a ação dos traficantes armados no sentido de desrespeitar o
cadastro das famílias que seriam beneficiadas pela construção de 618 casas na
localidade de Rocinha 2; cadastro este que havia sido negociado democraticamente
pela comunidade. Esta conseqüência, além de imprevista não era desejada. A mim
parece, que com base no estado atual do conhecimento nas ciências sociais, teria
sido possível prever que a omissão e a neutralidade resultariam em algum tipo de
43
“efeito perverso” . Contudo, o medo e o terror impostos tanto por policiais
arbitrários quanto pelos traficantes inibe qualquer posicionamento explícito por parte
da comunidade quando o assunto é segurança pública e criminalidade violenta. O
recente assassinato de um líder comunitário da favela Kelson’s revela claramente o
que pode acontecer àqueles que se opõem aos “donos do lugar”, sejam eles
traficantes, policiais ou milicianos. Além do mais, não é à comunidade que cabe uma
tomada de posição quanto a esta questão. A atribuição e a competência para a
resolução de conflitos violentos são do Estado. Não se pode cobrar qualquer atitude
dos moradores de Cidade de Deus no sentido de se posicionarem contra ou a favor,
quando estivermos falando de segurança pública. Quem deve garantir a organização
e a participação popular, a efetivação das decisões tomadas democraticamente e a
realização das metas sociais perseguidas pela comunidade, quando ameaçadas
pela ação de bandos armados, é aquele que possui o monopólio legítimo do uso da
força: o Estado.

43
BOUDON, Raymond. (org.) Tratado de Sociologia. Cap. 1, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995.
104

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O protagonismo local representa um enorme avanço para os movimentos


sociais urbanos. A experiência em curso na CDD serve como um ótimo laboratório
para a democracia e para políticas de inclusão social que levem em conta o saber
local.

Neste momento, o grande desafio que se coloca à comunidade da CDD é a


viabilização da continuidade do projeto. Agora que os recursos financeiros da FINEP
pararam de chegar, a comunidade, agora bem mais capacitada a caminhar com as
próprias pernas, precisa urgentemente garantir novas fontes de recursos, novas
parcerias que dêem sustentabilidade às ações do Comitê e da Agência. Para isso
precisam ser redobrados os esforços no sentido da superação da fragmentação dos
movimentos sociais no interior da CDD e do enfrentamento da temática da violência,
por constituírem-se em obstáculos à radicalização democrática buscada pelos
membros do Comitê e da Agência. É preciso que estas entidades continuem
buscando apoio e cooperação técnica externa, ao mesmo tempo em que busquem
construir algum diálogo com outros movimentos importantes no interior do bairro, em
especial a CUFA. Se isso será possível, só o tempo dirá. A análise deste processo
vindouro fica como sugestão para novas pesquisas e novos pesquisadores.
105

CONCLUSÃO

No primeiro capítulo procurei mostrar que o protagonismo dos movimentos


sociais de base só pode florescer num momento histórico específico, marcado pelo
processo de globalização, nos marcos do neoliberalismo. O apequenamento do
Estado, fenômeno ocorrido em escala global, principalmente após a queda do muro
de Berlim, transferiu para a sociedade civil a responsabilidade pela busca de
soluções para a questão social.

Nos dois capítulos seguintes demonstrei que o protagonismo local é um


conceito que incorpora práticas do protagonismo social e expande este último
conceito, na medida em que busca uma nova forma de articulação com o Estado,
objetivando a formulação de políticas públicas que respeitem o saber local, e
exigindo direitos expressos na Constituição brasileira que têm sido, historicamente,
negados aos pobres urbanos. Mostrei que ambos os conceitos são fruto do
desenvolvimento histórico dos movimentos sociais urbanos e que encontram limites
na fragmentação do espaço social e nas divergências existentes dentro dos próprios
movimentos sociais, que muitas vezes, ocupam o mesmo espaço político.
Demonstrei ainda a importância da interação inter-classes tanto no que diz respeito
à construção de projetos sociais, quanto para a superação da pobreza, da
segregação e do estigma. Relativizei o suposto ineditismo do projeto procurando
ressaltar ainda mais a importância da cooperação entre a intelectualidade, a
academia, as ONG’s, as agências governamentais e os movimentos sociais de base.

No último capítulo surgiu de forma intensa a questão da violência e do tráfico


de drogas e os limites impostos à ampliação da democracia e à construção de uma
cidadania ativa no Brasil, em especial, nas comunidades empobrecidas. Procurei
enfatizar a necessidade do Estado garantir a segurança em todas as áreas da
cidade, em particular naquelas que mais sofrem com a violência: as favelas.
Segurança pública é hoje, um tema indissociável da questão democrática. Não
podemos cobrar das vítimas da violência soluções para esta problemática. Cabe ao
Estado resolver esta questão. Só assim a cidade voltará a ser um espaço público
onde todos possam circular livremente e interagir em condições de igualdade. A
parceria entre a sociedade civil e o Estado é fundamental para a consolidação da
democracia e da participação cidadã.
106

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