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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO PÁG. 3
INTRODUÇÃO PÁG. 5
CAPÍTULO I PÁG. 16
CAPÍTULO 2 PÁG. 41
CAPÍTULO 3 PÁG. 52
CAPÍTULO 4 PÁG. 80
APRESENTAÇÃO
INTRODUÇÃO
“Não adianta usar a favela como tema e botar a cabeça no travesseiro achando que tá fazendo
uma grande coisa. Um filme, um livro, um CD ou um programa de TV não muda a realidade
de nada. É óbvio que ajuda a mover as idéias na sociedade, essas, sim, mudam para o bem,
para o mal, mas apesar de isso ser muito de um lado, é muito pouco diante de questões
urgentes como a fome e a violência urbana. Pra falar de um assunto da moda, vou citar a bola
da vez: Tropa de Elite. É lógico que Tropa de Elite não vai mudar o Brasil. É até injusto botar
essa responsabilidade numa obra cinematográfica, pois sua função é outra, é discutir idéias e,
quem sabe, de quebra, dar uma forcinha pro cinema brasileiro; não é resolver problemas
reais”.
“Quem tem que resolver problemas reais são os governos pressionados por uma sociedade
atuante”.
“Se algum filme ou programa de TV resolvesse alguma coisa, “Pixote – A Lei do Mais Fraco”
tinha mudado a realidade dos meninos de rua no Brasil há décadas. Na época, o filme de
Babenco foi indicado ao Globo de Ouro como Melhor Filme Estrangeiro, fez um barulho
danado, e todo mundo sabe que não resolveu nem a vida do Fernando Ramos, O Pixote, que,
foi assassinado por PMs na favela de Diadema (SP), em agosto de 1987”.
“Outro lugar que também tá cheio de gente bem-intencionada são as coberturas ou mansões
de frente pro mar. Só que o Monarco continua morando na Mangueira. Eu não tenho nada
6
contra as coberturas e mansões, tanto é que quero a minha também, afinal a nossa luta não é
pra dividir a miséria, mas a riqueza! O lance é que quando a “intelectualidade do bem” faz um
programa de TV defendendo o samba, o Monarco, coitado, fica com a merreca das vendas.
Todo mundo quer ser porta-voz da cultura da favela, todo mundo diz que a favela vai lucrar
com essa exposição na mídia, mas o dinheiro não chega na favela, irmão! Queria ver alguém
ser porta-voz daquele pianista fodão Nelson Freire sem ele lucrar o percentual majoritário na
parada! O barraco ia baixar nos salões mais chiques do mundo, e com razão! O fato é que
pimenta no cuzcuz dos outros é refresco”.
“Eu sou a favor de juntarmos as mãos para mudar a realidade, mas sem esquizofrenia e
oportunismo. Favela é favela, elite é elite. E quando o assunto for favela, não vem querer me
convencer que você entende mais do que nós. Não vai querer se dar bem em cima da nossa
foto. Porque depois de desatarmos as mãos, ao fim de uma reunião, cada um vai pra sua casa e
a vida fica bem diferente. Faz um tempão que a intelectualidade escreve dezenas de livros, faz
filmes e tem um monte de opinião sobre o que deve ser feito. Bacana. Mas quem de fato
começou a dar alguma espécie de solução para a favela foi ela própria. Movimentos como
AfroReggae, Nós do Morro, Observatório das Favelas, Bagunçaso, Cine Periferia, MCR, são
reconhecidos pelo poder público do Brasil e do mundo como iniciativas que criaram
oportunidades inéditas, nunca sequer imaginadas. E não eram, porque as “soluções” vinham
da intelectualidade endinheirada. Hoje, essas instituições, constroem modelos bem sucedidos
e já começam a criar um embrião de geração de intelectuais de favela. Isso mesmo. Temos
nossos próprios protopensadores pensando do nosso jeito. No primeiro ano pode até sair
meia-boca. No segundo, também. Mas no terceiro dá certo e se não der, se precisamos de 300
anos, tudo bem, já começou a contar”!
“O bagulho é tão doido que o preto e pobre sempre apareceu na TV e nada muda. A novidade
mais importante dessa história é colocar os pretos pobres fazendo TV, cinema, teatro, livros e
7
tudo mais. E assim tornar essa indústria cultural mais justa socialmente. Do contrário, é
enganação, não é justiça social, é apenas Justiça Visual ou até visual de justiça”.1
A escolha deste artigo é relevante por tratar de diversos temas que serão
abordados ao longo deste trabalho. Creio ser necessário, portanto, realizar uma
análise minuciosa do que está posto no texto acima, com o objetivo de descortinar
alguns conceitos e idéias que foram colocados pelo autor e, a partir daí, apresentar
os motivos que me levaram a escolher meu objeto de pesquisa, assim como
algumas das temáticas e hipóteses com as quais irei trabalhar.
Em primeiro lugar, quero dizer que sou nascido e criado na Zona Sul da
cidade do Rio de Janeiro. Nasci no Humaitá e morei em Copacabana e no Jardim
Botânico durante meus primeiros anos de vida. Dos quatro aos sete anos vivi em
Jacarepaguá. Aos oito, fui morar em Botafogo onde residi em um condomínio de
classe média até os 21 anos de idade. Mais tarde morei no Leme e no Bairro
Peixoto. Estudei em um dos mais conceituados colégios do Rio de Janeiro, o Santo
Inácio. Meu colégio mantinha uma creche no Moro Dona Marta e cheguei a participar
algumas vezes de visitas à comunidade para ajudar no trabalho realizado na creche.
Também participei de diversas festas organizadas pela escola, que tinham como
objetivo arrecadar fundos para a manutenção das ações sociais do colégio no morro,
as “famosas” FESOE’s (Feira de Solidariedade). Desde cedo percebi que muitos
pais contribuíam financeiramente e através de trabalho voluntário, por que
acreditavam que dessa forma o colégio seria bem visto pela comunidade do Dona
Marta, e, por conseguinte, seus filhos não seriam assaltados a caminho do colégio.
A solidariedade era grande, mas havia um interesse maior que era a segurança dos
seus filhos. Eu já conseguia entender, naquela época, que para aqueles pais, a
favela era um lugar de marginalidade e crime. Todos eles, inclusive os padres,
associavam a pobreza com a criminalidade. Eu nunca consegui ter certeza de que a
equação (pobreza+ favela = crime) fosse algo tão simples.
1
ATHAYDE, Celso. Justiça Visual. O Globo. Rio de Janeiro. 25.11.2007. Caderno Rio. Informe Publicitário:
“Central da Periferia”, p. 22.
8
Dessa forma, voltando ao artigo de Celso Athayde, não tenho a menor dúvida
de que usar a favela como tema é algo importante e capaz de contribuir para a
transformação da vida concreta das comunidades faveladas. Boto minha cabeça no
travesseiro, toda noite, com a maior tranqüilidade.
um núcleo importante; um filme, “Cidade de Deus”, foi capaz de mobilizar uma parte
da comunidade e de agregar políticas e ações que antes estavam desarticuladas.
Além disso, há uma contradição evidente no argumento do autor: se ele acredita que
um filme não possa mudar a realidade, por que a CUFA investe tanto em oficinas de
capacitação em audiovisual. Por que diz que ou “a periferia se impõe virando
protagonista do modo de produção desses produtos ou a favela vai estar mais uma
vez sendo usada” (sic!). Os livros são capazes de mudar vidas, trajetórias, idéias e
também atitudes, induzindo a realização de ações concretas na vida real e cotidiana.
Com relação aos CDs e aos programas de TV a constatação é a mesma: podem
funcionar como instrumentos de conscientização, de alienação ou simplesmente
como entretenimento.
Em terceiro lugar, tenho que concordar com a afirmação “Quem tem que
resolver problemas reais são os governos pressionados por uma sociedade atuante”.
Não há a menor dúvida de que a favela precisa se impor e atuar como protagonista,
não apenas na realização de produções audiovisuais e de livros, como, muito mais
importante, atuando na exigência de direitos, na formulação, acompanhamento,
avaliação e execução de políticas públicas. Mas a favela não irá conseguir isso
através de discursos segregadores e intolerantes. O discurso e a ação política dos
favelados precisa ser o da solidariedade, da união, da luta contra a fragmentação
dentro dos próprios movimentos sociais de base. Na ausência de um paradigma que
se contraponha à lógica neoliberal dominante, o possível é buscar a ampliação e a
radicalização da democracia, o fortalecimento dos movimentos sociais, a união em
torno de objetivos comuns como habitação, saneamento básico, trabalho e renda,
educação de qualidade e segurança pública, inclusive para os moradores de favela,
10
não apenas para as classes mais abastadas. Não é através de um discurso do tipo
“Eu sou a favor de juntarmos as mãos para mudar a realidade, mas sem
esquizofrenia e oportunismo. Favela é favela, elite é elite” que se vai transformar a
realidade da favela e se conseguir parceiros para essa empreitada. O ressentimento
com o grupo social que Athayde chama de “elite intelectual endinheirada” não
contribui muito para o debate, muito menos para a ação. Eu, por exemplo, moro na
Baixada Fluminense há três anos e também sofro os efeitos desta época de
desemprego estrutural, salários rebaixados, flexibilização das relações de trabalho e
desmonte do Estado. Apesar do local onde moro não ser uma favela, é sabido que a
baixada Fluminense padece de problemas semelhantes aos das comunidades mais
pobres do Rio e de Janeiro e do Brasil, em especial a carência de serviços públicos
de qualidade, e o estigma. O fato é que não consegui manter o padrão de vida dos
meus pais, algo muito comum para jovens e adultos de hoje. Se o problema é morar
na Zona Sul e ser “endinheirado”, então me sinto ainda mais à vontade para falar de
favela. E quando Athayde argumenta que, “quando o assunto for favela, não vem
querer me convencer que você entende mais do que nós”, comete um erro primário.
Dizer que só quem mora em favelas conhece o assunto e pode dele falar, é o
mesmo que dizer que só um banqueiro pode falar de dinheiro e de investimento, já
que é ele que tem a grana. Seguindo esse raciocínio, como poderiam os pobres e os
favelados opinar sobre gastos e investimentos públicos, como poderiam propor
intervenções em suas localidades, se todas elas custam dinheiro! O fato de eu ter
tido a oportunidade de conhecer e andar por diversas favelas do Rio de Janeiro,
também não me autoriza a falar de favelas, muito menos a falar por elas. O que
pode me dar alguma legitimidade para tratar deste assunto é o fato de ter procurado
estudar e conhecer, a partir de trabalhos anteriores sobre o mesmo tema, a
realidade das favelas cariocas. A partir daí posso tentar dar minha contribuição ao
debate, sem nunca querer ser o dono da verdade. Até porque verdade não existe, é
sempre algo provisório. Minha pretensão neste trabalho é produzir uma interpretação
coerente, nunca uma verdade absoluta.
Em quarto lugar, quero dizer que quando Athayde fala que: “quem de fato
começou a dar alguma espécie de solução para a favela foi ela própria. Movimentos
como AfroReggae, Nós do Morro, Observatório das Favelas, Bagunçaso, Cine
Periferia, MCR, são reconhecidos pelo poder público do Brasil e do mundo como
11
“Contei da minha formação, que era assíduo freqüentador de baile funk, que passei
minha infância no subúrbio, em Ramos e Bonsucesso, que depois morei no centro da cidade,
convivendo com várias pessoas ligadas à criminalidade e à prostituição2”.
2
JUNIOR, José. Da Favela Para o Mundo: a história do Grupo Cultural AfroReggae. Rio de Janeiro: Ediouro,
2006. p 40.
12
Para finalizar minha interpretação deste artigo, quero deixar bem claro que
admiro o trabalho da CUFA, de Celso Athayde e do MVBILL. A crítica que faço é de
caráter doutrinário, ideológico e estratégico. Não tenho a menor dúvida da
importância da formação de intelectuais oriundos das favelas; o que precisa ficar
explícito é que a “questão urbana” é um tema que não diz respeito apenas aos
favelados, pois afeta a sociedade como um todo. Como irei tentar mostrar ao longo
deste trabalho, os movimentos sociais urbanos precisam romper com a
fragmentação e as divisões internas, que são históricas, e buscar pontos comuns,
capazes de produzir consenso. Unidos serão mais fortes, terão mais voz e poderão
se impor ao Estado e às instituições parceiras em boa parte de suas reivindicações.
O que chama a atenção, é que apesar de haver uma certa homogeneidade entre os
pobres urbanos, expressa por demandas e reivindicações comuns – saneamento
básico, educação de qualidade, direito à moradia digna, segurança pública, direito
ao trabalho –, os movimentos sociais urbanos ainda são muito fragmentados, brigam
entre si e muitas vezes ocupam o mesmo espaço político. Além disso, minha
pesquisa indica que é preciso impregnar de política os movimentos sociais urbanos.
A lógica das políticas sociais ora implementadas é decorrente de um processo
histórico que esvaziou de sentido político as lutas dos movimentos sociais urbanos.
Isso só agora começa a mudar. É preciso mais do que investimento em arte e
14
CAPÍTULO 1
1 - A Globalização
3
IANNI, Octavio. Teorias da Globalização. 4ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997, p 40-41.
18
4
VIEIRA, Liszt. Cidadania e Globalização. Rio de janeiro: Editora Record, 1997, p. 20-21.
21
social. Contudo, este movimento se faz de uma maneira diferente do que já foi no
passado. As demandas dos novos movimentos sociais tendem a, cada vez menos,
serem orientadas no sentido de práticas clientelistas tradicionais, que costumavam
submeter os movimentos sociais a uma relação de reciprocidade com os políticos
clientelistas. Este tipo de relação chegava ao fim quando o político clientelista
conseguia aquilo que queria: um mandato eletivo. Os novos movimentos sociais,
como pude perceber estudando um caso concreto na Cidade de Deus, não aceitam
mais ações políticas estatais implementadas “de cima para baixo”. Eles atuam num
sentido inverso, impondo suas demandas, negociando, cedendo em alguns pontos e
rejeitando políticas públicas que não respeitem as peculiaridades e prioridades
locais. Neste sentido, os novos movimentos sociais reagem ao Estado quando este
pretende impor intervenções sociais de maneira autoritária, sem consulta prévia à
população beneficiada.
Outra característica interessante dos novos movimentos sociais, ao menos do
que estudei mais de perto, é sua dimensão não-ideológica, ou, para melhor dizer,
eclética. Não percebi em nenhum momento nas reuniões do Comitê Comunitário ou
da Agência de Desenvolvimento local, uma concepção ideológica fechada. Pelo
contrário, na ausência de um paradigma que se contraponha ao capitalismo, eles
aceitam inclusive ações que os capacitem a inserir-se de forma competitiva no
mercado, como é o caso da capacitação em economia solidária e a formação de
cooperativas de trabalhadores, tema que será estudado mais à frente. O que pude
perceber foi um ecletismo ideológico. Eles parecem abertos a qualquer tipo de
proposta que possa resolver seus problemas concretos, independentemente da sua
origem ideológica. Neste sentido, concordo plenamente com a citação que Liszt
Vieira faz de Arato e Cohen, a qual reproduzo abaixo:
“Segundo Arato e Cohen, os movimentos sociais têm se apoiado em tipos ecléticos de síntese,
ligados à história do conceito de sociedade civil. Eles pressupõem, em diferentes
combinações, a divisão gramsciana tripartide entre sociedade civil, Estado e mercado, ao
mesmo tempo em que preservam aspectos-chave da crítica marxista à sociedade burguesa.
Reivindicam ainda a defesa liberal dos direitos civis, a ênfase dada por Hegel, Tocqueville e
outros à pluralidade societária, a importância dada por Durkheim à solidariedade social, e a
defesa da esfera pública e da participação política acentuada por Habermas e Hanna Arendt.
Nessa perspectiva, o fim último das revoluções não é mais a reestruturação do Estado a partir
24
de um novo princípio, mas a redefinição das relações entre Estado e sociedade, sob o ponto de
vista desta última” (Vieira, 1997, p. 49.).
Não estou com isso dizendo que os membros participantes dos novos
movimentos sociais, pelo menos daquele que foi estudado por mim, conheçam as
obras dos autores citados no trecho acima, ou que tenham uma consciência clara de
seu ecletismo ideológico. Pelo contrário: excetuando dois líderes comunitários com
os quais tive contato durante os meses em que estive na Cidade de Deus, nada me
leva a crer que os outros membros do Comitê Comunitário ou da Agência de
Desenvolvimento Local tenham noção da existência de alguns dos autores citados
acima. O que chama a atenção é o caráter pragmático desses movimentos, eles não
parecem muito preocupados com ideologias ou argumentações abstratas. O que
querem é a solução de seus problemas mais urgentes, e nisso tem logrado algum
sucesso. Mas o que não pode deixar de ser dito é que, no caso do movimento social
que estudei na Cidade de Deus, alguns dos parceiros do projeto - técnicos da
FINEP, da Caixa Econômica Federal, do Ibase, da incubadora de empreendimentos
econômicos solidários da PUC RJ - que ajudaram a comunidade a desenvolver a
metodologia do projeto e a escrevê-lo, com certeza conhecem boa parte da obra
exposta acima. São sociólogos, assistentes sociais, jornalistas, professores
universitários. Estes parecem ter construído, junto com a comunidade, um projeto
que é eclético no aspecto ideológico. São estes profissionais que parecem ter
impregnado o projeto e a cabeça dos moradores da comunidade com o ecletismo.
Ecletismo este que é uma marca de nosso tempo, um tempo de crise dos grandes
paradigmas, com exceção, é óbvio, do paradigma capitalista. Não podemos
esquecer também, que, como já foi dito anteriormente, o pensamento político e
social brasileiro carrega a marca do iberismo, e, portanto, ao longo de nossa história,
nenhuma das tradições de pensamento político ou social chegou aqui sem sofrer
algum tipo de modificação ou adaptação. Definitivamente, não somos um povo
adepto a purismos ideológicos. A única exceção à regra parece ter sido o marxismo,
e mesmo assim por algum tempo. Hoje, até mesmo os marxistas incorporam novos
conceitos oriundos de outras correntes ideológicas. Vide o que se convencionou
chamar de “socialismo do século XXI”.
Por serem ideologicamente ecléticos, os novos movimentos sociais, no Brasil
urbano, se aproximam, em muitos aspectos, da tradição individualista anglo-
25
saxônica. Isso fica evidente no uso costumeiro de alguns jargões originários desta
tradição, como “autogestão”, “autonomia”, “empowerment”:
“A partir da década de 70, a noção de sociedade civil mudou consideravelmente”.(...)
“Expressões como autonomia, autogestão, independência, participação, empowerment,
direitos humanos, cidadania, passaram a ser associadas ao conceito de sociedade civil”.
“Não se trata mais de um sinônimo de sociedade, mas de uma maneira de pensá-la, de uma
perspectiva ligada à noção de igualdade de direitos, autonomia, participação, enfim, os
direitos civis, políticos e sociais da cidadania. Em virtude disso, a sociedade civil tem que ser
“organizada”. O que era um estado natural nos filósofos contratualistas, ou uma condição da
política moderna em Hegel e Marx, torna-se agora um objetivo para os ativistas sociais do
segundo e terceiro Mundos: a sociedade civil tem que ser construída, reforçada, consolidada.
Trata-se de meio e fim da democracia política.”
A sociedade civil transforma-se num “campo onde prevalecem os valores da solidariedade”.
“Esta perspectiva se aproxima da noção anglo-saxônica de “terceiro setor”, ou ainda de
movimento social ou organização não-governamental” (Vieira, 1997, p. 63.).
É importante notar que a disseminação dos conceitos de sociedade civil e
terceiro setor, a proliferação de Organizações Não-Governamentais em escala
global e as estratégias governamentais de “empoderamento” das classes populares,
produção de “capital social” entre os excluídos, fomento a um novo tipo de
“solidariedade social”; são todos contemporâneos do processo de globalização
neoliberal e ao mesmo tempo, e o que é mais interessante e dramático; essa nova
maneira de pensar a sociedade é contemporânea de um fenômeno perverso: a
globalização da pobreza. A medida em que o capitalismo se radicaliza e se impõe de
maneira cada vez mais hegemônica na sociedade global, aumenta em nível
planetário a concentração do capital. A contrapartida deste fato social é a exclusão
de enormes contingentes populacionais, que passam a se situar à margem desta
nova sociedade de consumo. Parece haver uma correlação entre o aumento da
pobreza, a disseminação das favelas pelo mundo inteiro, o processo de redução do
tamanho do Estado pelo qual passaram os países capitalistas desenvolvidos e
subdesenvolvidos, e a chamada revolução das ONG’s, que proliferaram
principalmente na década de 1990. Tudo isso em conformidade com a cartilha do
Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial, que ao longo de mais de duas
décadas impuseram práticas econômicas baseadas na crença de que o mercado,
por si só, seria capaz de realizar os ajustes necessários ao alcance do bem estar
26
5
SANTOS, Sinval Neves. Urbanização, sim; favelização, não. Revista Época, Guia Época Vestibular 2008, f. 3,
p. 4, set. 2007.
6
DAVIS, Mike. Planeta Favela. São Paulo: Boitempo, 2006. 272 p.
27
7
Oberai, Population Growth, Employment and Poverty in Third-World and mega-Cities, p. 13.
8
UN-Habitat, An Urbanising World: Global Report on Human Settlements (Oxford, Oxford University, 1996),
p. 239.
29
anos de ouro da revolução houve um imenso esforço nacional para reassentar os pobres, ainda
que muitos projetos, em retrospecto, fossem adaptações maçantes do modernismo”9.
“Embora o compromisso da Cuba revolucionária com um “novo urbanismo” fosse
vanguardista, o ideal do direito do povo à moradia digna não era inédito no Terceiro Mundo
da época – final da década de 1950 e início dos anos 1960: Nasser, Nehru e Sukarno também
prometeram reconstruir as favelas e criar quantidade imensa de novas moradias. Além da
moradia subsidiada e do controle dos aluguéis, o “contrato com o Egito” de Nasser garantia
empregos no setor público a todos que concluíssem a escola secundária. A Argélia
revolucionária criou leis de atendimento médico e educação, universais e gratuitos, além de
aluguel subsidiado para os moradores pobres das cidades. Todos os Estados africanos
“socialistas”, a começar pela Tanzânia no início da década de 1960, iniciaram programas
ambiciosos de reassentamento de favelados urbanos em novas moradias de baixo custo. A
Cidade do México, nos anos de Uruchurtu, mobilizou os serviços de estrelas emigradas da
arquitetura, como Hannes Meyer, da Bauhaus, para projetar prédios de apartamentos para
trabalhadores sindicalizados e funcionários públicos, comparáveis, com vantagem, aos
modelos do norte da Europa. Enquanto isso, no Brasil, o presidente João Goulart e Leonel
Brizola, governador radical do Rio Grande do Sul, conquistaram amplo apoio para a sua idéia
de um “New Deal” urbano. E, adiante, naquela mesma década, Juan Velasco Alvarado,
ditador militar de tendência esquerdista do Peru, se aproximaria do fidelismo ao patrocinar
invasões em massa de terrenos urbanos e criar um programa estatal ambicioso párea melhorar
as barriadas (que ele rebatizou com otimismo de pueblos jovenes)”.
“Quase meio século depois, o progressista programa habitacional de Cuba foi desacelerado
quase totalmente pela austeridade do “Período Especial” que se seguiu ao colapso da União
Soviética, e a oferta de moradias arrasta-se com muita desvantagem em relação às conquistas
mais impressionantes do país na saúde e na educação. Além dos casos especiais de Hong
Kong e Cingapura, no mundo em desenvolvimento somente o Estado chinês, nas décadas de
1980 e 1990 conseguiu construir grande quantidade de habitações populares decentes (embora
até essa “revolução não decantada”, como diz o especialista urbano Richard Kirkby, esteja
bem longe da necessidade das dezenas de milhares de camponeses que vêm se mudando para
as cidades)”10.
9
Joseph Scarpaci, Roberto Segre e Mario Coyula, Havana: Two Faces of the Antillean Metropolis (Chapell Hill,
University of North Carolina Press, 2002), p. 199-203.
10
Richard Kirkby, China, em Kosta Mathéy (org.), Beyond Self-Help Housing (Londres, Mansell), 1992, p. 298-
9.
30
Conselho Sistema
Nacional das Nacional de
Cidades
ANAHAB
Habitação
Câmara Técnica
de Habitação
Subsistema de
Subsistema de
Financiamento
Financiamento
Habitação de
Habitação de
Interesse Social
Mercado
11
Ministério das Cidades – Secretaria Nacional de Habitação. Política Nacional de Habitação. Versão
Preliminar de 23.04.2004 (veiculação restrita). Intranet Caixa Econômica Federal. Acesso em: 28.03.2008.
31
“O déficit quantitativo tem se ampliado nas faixas de renda até 2 salários mínimos
representando, em 2000, cerca de 4,2 milhões de moradias, enquanto mostra-se com
certa retração nas faixas acima de 5 salários mínimos, isto é, em 1991, o déficit nesta faixa
de renda representava 15,7% do total e, em 2000, passou para 9,5%”.
Além disso:
E ainda:
Recursos
Recurso
p/ Planos, Programas e Projetos
s p/ Agente Promotor 1,2,n
subsídio
financia
Beneficiário final
Sistema de Fundos
mento Agente Financeiro 1,2,n Estrutura Institucional
Fontes de Recursos
12
GOUVÊA WERNECK, Raquel Dantas. Conselho Municipal de habitação: Limites e Potencialidades Frente
aos Marcos Legais da Política de Habitação de Interesse Social. Monografia de conclusão de curso de
especialização em Política Social e Desenvolvimento Urbano. Universidade de Brasília, 2007.
34
caminho a percorrer para a realização de uma política urbana socialmente mais justa
(Cf. Gouvêa Werneck, 2007.).
Contudo, os avanços incorporados à nova política habitacional, em especial a
criação do Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social, são decorrentes
muito mais de mudanças nas diretrizes do Banco Mundial - que no início do século
XXI, começa finalmente a admitir que o mercado não é capaz de, por si só, resolver
a questão habitacional no Terceiro Mundo – do que de uma política autônoma e
soberana, gestada pela sociedade brasileira através do debate público e
democrático. Não há como negar a ingerência do Banco Mundial na formulação
desta nova política. Um documento que obtive comprova que, em dezembro de
2001, ou seja, a um ano do final do segundo mandato do Presidente Fernando
Henrique Cardoso, uma oficial do Banco Mundial fazia propostas ao Sr. Amaury Bier,
Secretário Executivo da Secretaria de Política Econômica, ditando regras sobre
como deveria ser encaminhada a proposta da Nova Política Habitacional, inclusive
estabelecendo diretrizes e propondo mudanças na forma de atuação de uma
Agência do Governo Federal. Muito do que está neste documento entrou na lei que
definiu a Nova Política Habitacional, já no governo Lula. Reproduzo este documento
na íntegra e me reservo o direito de não revelar a fonte:
10 de dezembro de 2001
Dr.Amaury Bier
Secretário Executivo
Secretaria de Política econômica
Ministério de Finanças
Esplanada dos Ministérios, bloco, 4 andar, saIa 428,
70048-900 Brasília, DF BRASIL,
Segue atachada a nota técnica preparada por nosso pessoal considerando nosso trabalho
proposto como a contribuição para uma Política Habitacional Nacional junto com a CAIXA, SEDU e
outros parceiros.
Como nós mencionamos antes, o Banco Mundial começou um diálogo com a CAIXA
e foi firmado prover ajuda detalhada nos seguintes assuntos:
Mercados mais eficientes - terra e habitação: acesso melhor a terra, sub-divisão e zoneamento,
melhor o sistema de inscrição, códigos de edificações e infra-estrutura, uso de terra pública,
regulamentação urbana, processos das licenças de construção. As dificuldades atuais encorajam a
residencia informal.
Foco na política habitacional de interesse social e nas necessidades dos grupos de baixa-renda com
subsídios orçamentários direcionados. A oferta tem que ser reconciliada com vários segmentos da
demanda. Incluindo o alojamento progressivo e a melhoria de casa. Uma melhor coordenação e
divisão de tarefas se faz necessário entre as esferas federais, estaduais e municipais, e os
investidores privados. Áreas de progresso incluem o uso de terra pública, política de aluguel social
e a tributação sobre a moradia.
• O FGTS gera baixo retorno como um fundo providente de habitação, não são bem
distribuídos os subsídios entre os membros e para os mutuários, e geralmente dá perdas à
CAIXA como o fornecedor dos subsídios. Seu público alvo é habitação para baixa renda. A
liquidez deste fundo poderia ser canalizada de uma maneira mais abrangente e lucrativa.
Nós estabelecemos um relacionamento profissional com a CAIXA e a esta nota fixa fixaria a fase para
continuarmos nosso diálogo. Nós sugestionamos uma missão breve em janeiro para discutir os
assuntos elevados na nota e uma missão de duas semanas no início de março com diversos consultores
internacionais. Isto permitiria tempo para preparar várias notas sobre a política até o fim de abril.
Sinceramente
Cecíle Ramsay
Diretor suplente
Brasil - Unidade de Administração Rural
América Latina e a Região Caribenha
(1) Graças a ações hipotecárias extrajudiciais, e o uso de uma ação de reforço de garantia
(2) Ativos habitacionais podem ser separados legalmente do patrimônio líquido de fomentador e na comissão
independente inclusive representantes de casas de cliente é responsável pela verificação do desenvolvimento do
processo
(3)Infra-estrutura em terra provida por municipalidades e construindo materiais para auto-construção/comunidades.
(4) Principalmente o FGTS e o SBPE.
(5) Liberalize taxas de juros reguladas mais íntimo comercializar níveis, troque a um índice de CPI, simplifique
regulamentos e isenções de limite sobre investimentos elegíveis, limite o nível de economizar isenção fiscal mas
estenda a interesses de empréstimo adicionais, poupanças a longo prazo isentas de reservas estatutárias.
enfrente “individualize” um crédito contratual de acordo com as poupanças acumuladas (então com uma possível
ligação com subsídios públicos).
13
http://www.sobral.ce.gov.br/boletim/2000/b_novembro2000/21.htm. Acesso em 25/05/08.
14
S. Sethuraman, “Urban Poverty and the Informal Sector: A Critical Assessment of Current Strategies”, artigo
para discussão da Organização Internacional do Trabalho (OIT), Genebra, 1997, p. 2-3.
15
Cedric Pugh, “The Role of the World Bank in Housing”, em Aldrich e Sandhu, Housing the Urban Poor, p.
63.
38
16
Pugh, “The Role of the World Bank in Housing”, p. 64.
39
17
Imparato e Ruster, Slum Upgrading and Participation, p. 255.
41
CAPÍTULO 2
1 – Os Movimentos Sociais de Base: Das Origens à Constituição do Comitê
Comunitário e da Agência Cidade de Deus de Desenvolvimento Local
crianças da Rocinha 218. E o Comitê Comunitário aceitou. Fica claro que o Comitê
Comunitário também aceita o assistencialismo. Não estou criticando, até por que
toda política social precisa de uma dose de assistencialismo, o problema é saber a
dose certa e não deixar que este tipo de prática desvirtue o movimento. Portanto, a
cizânia entre o Comitê Comunitário e o grupo do MVBILL não decorre da aceitação
de práticas assistencialistas, já que ambos os grupos se beneficiam deste tipo de
prática. A questão é muito mais complexa e tem a ver com as estratégias destes
grupos e a forma com que pretendem levar a imagem da Cidade de Deus para fora
dos limites da comunidade.
Passo agora a descrever o processo de formação dos movimentos sociais de
base no Rio de Janeiro, em particular, na Cidade de Deus.
2 - Histórico
18
Email interno distribuído aos empregados da Caixa Econômica Federal, vinculados à Superintendência
Regional Rio de Janeiro Centro. 19 dez 2007.
19
ZALUAR, Alba. A Máquina e a Revolta: as organizações populares e o significado da pobreza. São Paulo.
Brasiliense, 1985.
43
“Nas décadas de 1960 e 1970, por exemplo, as ditaduras militares do Cone Sul declararam
guerra às favelas e campamientos que viam como centros de potencial resistência ou como
simples obstáculos ao aburguesamento urbano. Assim, escrevendo sobre o Brasil pós-1964,
Suzana Taschner diz: “o início do período militar caracterizou-se por uma atitude autoritária,
com a remoção compulsória de assentamentos de invasores com a ajuda das forças de
segurança pública”. Evocando a ameaça de um minúsculo foco urbano de guerrilheiros
marxistas, os militares arrasaram favelas e expulsaram quase 140 mil pobres dos morros que
dominam o Rio20. Com o apoio financeiro da United States Agency for International
Development (Usaid), outras favelas foram demolidas mais tarde para abrir espaço à expansão
industrial ou para “embelezar” as fronteiras das áreas de renda mais alta. Embora as
autoridades fracassassem em seu objetivo de eliminar todas as “favelas do Rio em uma
década”, a ditadura deflagrou conflitos entre os bairros burgueses e as favelas e entre a polícia
e a juventude favelada que continuam a vicejar três décadas mais tarde”21 (Davis, 2006, p.
114.).
“Desde a década de 1970, tornou-se lugar comum para os governos do mundo todo justificar
a remoção de favelas como um modo indispensável de combater o crime. Além disso, as
favelas costumam ser consideradas uma ameaça simplesmente por serem invisíveis para a
vigilância do Estado e, com efeito, estarem fora do panóptico” (Davis, 2006, p. 117).
Sem dúvida, os programas de erradicação de favelas no Rio de Janeiro
estavam ligados a uma prática preventiva do governo ditatorial, que considerava as
favelas cariocas possíveis focos de resistência ao regime militar e núcleos de
insubordinação, onde os revolucionários comunistas podiam buscar abrigo e formar
novos revolucionários entre as classes.populares. Pela dificuldade de entrar
naquelas comunidades em busca de insurgentes, o governo optou pela remoção das
populações faveladas para conjuntos habitacionais, construídos de preferência em
terrenos planos, com ruas amplas e bem delimitadas, nas quais as forças de
segurança poderiam entrar com facilidade. Enfim, a remoção significava, aos olhos
da ditadura, recolocar as classes populares sob o controle do Estado, ou seja, trazê-
las para dentro do panóptico, fortalecendo, dessa forma, o controle social.
Ao mesmo tempo, o governo militar sofria pressões oriundas do setor da
construção civil, que via nos terrenos da zona sul ocupados por favelas, um enorme
20
Taschner, “Squatter Settlements and Slums in Brazil”, p. 205.
21
Michael Barke, Tony Escasany e Greg O’Hare, “Samba: A Metaphor for Rio’s Favelas”, Cities, v. 18, n. 4,
2001, p. 263.
44
22
TEIXEIRA DE MELLO, Edir Figueiredo de Oliveira. Cidade de Deus: Histórias e Trajetórias. 2007. 52 p.
Projeto de Tese de Doutorado em Ciências Sociais. UERJ. Rio de Janeiro.
47
marginais. Poucos anos mais tarde, o SERPHA, órgão estadual, encarregou-se de incentivar a
formação de associações de moradores cujos dirigentes e líderes passariam a ser orientados
para uma ação mais independente, cabendo ao SERPHA a incumbência de dar informação
legal e financeira aos favelados. Extinto em 1962, o SERPHA foi substituído pela Secretaria
de Serviços Sociais, órgão criado no governo Lacerda que veio a coordenar e preparar as
remoções de favelas através de suas associações. Em 1974 a Fundação Leão XIII foi
vinculada à Secretaria de Serviços Sociais, ambas atuando junto aos Centros Sociais Urbanos
que passaram então a funcionar nos conjuntos. Até pelo menos 1982, as associações de
moradores abriam-se à tutela do Estado através de suas ligações com os Centros Sociais
Urbanos e com os políticos clientelistas, intermediários do governo estadual”.
“Em 1980, o COMOCID não tinha, por norma de atuação, vínculos com quaisquer políticos
clientelistas, adeptos que eram da “mobilização participativa”. Mas as suas atividades
estavam, de fato, muito próximas às do CSU, por onde aliás haviam passado seus jovens
líderes. Os empreendimentos culturais destes – peças de teatro, exibições de judô e caratê,
exposições, etc. – eram feitos em colaboração com o CSU, mas não com as agremiações
recreativas locais” (Zaluar, 1985, p. 180).
23
WACQUANT, Loic. Os condenados da Cidade: estudo sobre a marginalidade avançada. Rio de janeiro:
Revan. FASE, 2001.
24
PARK, Robert Ezra. A cidade: sugestões para a investigação do comportamento humano no meio urbano. In:
“O Fenômeno Urbano”. Velho, Otavio Guilherme (org.). Rio de Janeiro: Zahar Editores, 3ª edição, 1976.
49
“região moral”, ainda povoe boa parte do imaginário coletivo e do senso comum,
principalmente quando o tema é a favela.
25
Rocha, Carla. Um mês depois não há respostas sobre desaparecimento de líder da Kelson’s. O Globo. Rio de
Janeiro. 07.10.2007. Caderno Rio, p. 22.
51
26
ZALUAR, Alba. Integração perversa: pobreza e tráfico de drogas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004. 440p.
52
CAPÍTULO 3
A década de 1990 foi marcada pela proliferação de ONG’s pelo mundo todo.
No Brasil não foi diferente. Em especial, na Cidade de Deus, houve uma proliferação
do trabalho voluntário e de organizações não governamentais. Por parte dos
governos, grandes lideranças foram cooptadas, ao mesmo tempo em que houve a
partidarização dos movimentos comunitários, intensificando ainda mais as disputas
internas. Dada a crise de representatividade pela qual passaram as associações de
moradores no Rio de Janeiro, no mesmo período, era de se esperar que, na Cidade
de Deus - onde, como já foi dito, as associações de moradores nunca tiveram muita
representatividade -, se constituíssem ONG’s. Este fenômeno adentrou os anos
2000, muito pela necessidade que os moradores tiveram de registrar algumas
entidades que já existiam, mas que não estavam formalmente constituídas.
Segue abaixo uma lista com algumas das ONG’s que se constituíram no
período analisado, na Cidade de Deus, e que deram origem à Agência Cidade de
Deus de Desenvolvimento Local:
VII – lutar pela redução das desigualdades entre homens e mulheres e pela
consolidação da cidadania plena;
Liga Litoral de Capoeira - LILIRCA: entidade civil sem fins lucrativos, fundada em
14 de novembro de 1973 e registrada em 02 de fevereiro de 1997, que tem por
objetivos, entre outros:
VII – atender aos jovens da comunidade com cursos de balé, sapateado, jazz, dança
de salão, lambaeróbica, teatro e música.
A leitura do estatuto destas ONG’s deixa claro que, em muitos aspectos, elas
estavam ocupando o mesmo espaço político. Atuavam de forma fragmentada, o que
era de se esperar, pelos motivos que já foram expostos anteriormente.
27
FREIRE – Medeiros, B. e SANT’ANNA, M. J. G. Gueto, favela, banlieue: juventude e segregação espacial
no cinema contemporâneo. In Freire – Medeiros, Bianca e Costa Vaz, Maria Helena (orgs.) Imagens Marginais.
Natal: Editora da UFRN, 2006.
57
trabalho e prestigia a violência para a obtenção de bens tidos como exclusivos dos
ricos, as práticas discriminatórias em relação aos jovens das áreas pobres (prisões
arbitrárias, por exemplo), colaboram para compor os territórios de desespero e
violência que os filmes retratam”.
“Lideranças e militantes sociais se reuniram para mostrar que nosso bairro não é só
violência e miséria. Depois da realização de dois fóruns de discussão, formou-se uma rede de
28
Comitê Comunitário e Agência Cidade de Deus de Desenvolvimento Local. Informativo Nº 1, Agosto, 2006.
58
“Claro que para isso é preciso exigir que os governos, vereadores, deputados e
senadores, cumpram sua obrigação. Atendam as necessidades da comunidade” (Comitê e
Agência Cidade de Deus, Informativo nº 1, 2006, p. 2)..
“Mas não podemos ficar esperando. Podemos e devemos mostrar que nosso bairro tem
uma vida comunitária capaz de responder aos desafios colocados. Isso é desenvolvimento
local. Exigir direitos, mas também agir para melhorar a vida” (Comitê e Agência Cidade de
Deus, Informativo nº 1, 2006, p. 3).
projeto. Como existem diversas versões do projeto – a versão com que trabalhei é a
de 18 de abril de 2005 –, prevaleceram no corpo do texto as idéias do Ibase. Esta
ONG possui mais de vinte anos de trabalho na área social e no incentivo à cidadania
ativa. Possui reconhecida expertise na elaboração e execução de projetos sociais.
Portanto, nada mais previsível do que o projeto ter sido impregnado pelas
concepções do Ibase sobre temas como cidadania, democracia, participação, gestão
compartilhada, novo arranjo institucional, etc. Inclusive o conceito de “protagonismo
local”, tudo leva a crer, foi levado à comunidade a partir de experiências anteriores
das quais o Ibase já tinha participado, em especial uma, que nasceu dentro do
próprio Ibase: a Agenda Social Rio. Isso em nada desvaloriza a experiência e a
articulação da comunidade em busca da construção de um destino coletivo comum.
Pelo contrário, a transferência de toda uma tecnologia social - acumulada e
construída ao longo de anos de experiência e trabalho do Ibase -, para o Comitê e a
Agência Cidade de Deus, permitiu que a comunidade organizada desse um salto de
qualidade, pulando etapas e acelerando a realização das metas propostas. A
aceitação desta cooperação técnica demonstra um amadurecimento do movimento
social de base, que sabe que precisa se capacitar para poder negociar com o
Estado em condições mais equânimes.
2 - O Ibase
Acima de tudo, de forma radical e simples, democracia para o Ibase é cidadania ativa,
participativa, de sujeitos sociais em luta, nos locais em que vivem, agindo e construindo –
com igualdade na diversidade – a sociedade civil, a economia e o poder.
Entre os temas e campos de atuação que o Ibase julga prioritários estão o processo Fórum
Social Mundial, Alternativas democráticas à globalização, Monitoramento de políticas
públicas, Democratização da cidade, Segurança alimentar, Economia solidária e
Responsabilidade social e ética nas organizações.
O público para o qual suas ações estão direcionadas é composto por movimentos sociais
populares; organizações comunitárias; agricultores(as) familiares e trabalhadores(as) sem
terra; lideranças, grupos e entidades de cidadania ativa; escolas, estudantes e professores(as)
da rede pública de ensino fundamental e médio; rádios comunitárias e experiências em
comunicação alternativa; formadores(as) de opinião nos meios de comunicação de massa;
parlamentares e assessores(as); gestores(as) de políticas públicas”.30
“No início da década de 1990, Betinho esteve à frente de importantes movimentos de
mobilização da sociedade civil. O primeiro deles, o Movimento pela Ética na Política,
culminou no processo de impeachment do então presidente da República, Fernando Collor de
Mello. O segundo – e também de muitíssima força de mobilização e projeção – foi a
Campanha contra a Fome, que nasceu composta de duas instâncias: uma ligada ao governo e à
sociedade, representada pela criação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea),
29
http://www.ibase.br/modules.php?name=Conteudo&pid=40. Acesso em 25.05.2008.
30
http://www.ibase.br/modules.php?name=Conteudo&pid=24. Acesso em 25.05.2008.
61
e a outra, Ação da Cidadania contra a Miséria e pela Vida, criada em 1993, era ligada,
essencialmente, à sociedade civil31”(Ibase, 2004, p.12).
“Em abril de 1997, logo após a eliminação da candidatura do Rio às Olimpíadas de 2004,
surgiu a necessidade de identificar uma meta que articulasse as demais, permitindo a
consolidação de um sentido integrado para a implantação das diversas iniciativas planejadas
pela Agenda. Assim, a questão das favelas urbanizadas e integradas à cidade ganhou
centralidade” (Ibase, 2004, p 12.).
“Um plano de desenvolvimento local integrado da Agenda Social Rio foi formulado como
um projeto-piloto capaz de se expandir para outras regiões da cidade”. (...) “Escolheu-se parte
da Área de Planejamento 2.2” (Ibase, 2004, p. 13.).
Esta área foi batizada de Grande Tijuca e talvez tenha sido o primeiro projeto
de desenvolvimento local concebido para uma área da cidade do Rio de Janeiro.
“A idéia inicial era construir, em parceria com diferentes atores locais, um plano de
desenvolvimento local integrado e sustentável (PDLIS), para a Grande Tijuca”. (...) “Para
tanto era necessário criar um fórum democrático, capaz de discutir e propor ações para o
combate à pobreza e para a redução das desigualdades sociais por meio do estímulo à
participação comunitária” (Ibase, 2004, p. 13.).
“Desde o ano 2000, a Agenda passou por diversas discussões e reflexões e redefiniu seu
papel, especialmente quanto às possibilidades de relação com o poder público. Até o ano
2000, o governo municipal vinha se mostrando mais aberto a um diálogo mais permanente
com setores da sociedade civil. Após esse ano, essa realidade mudou” (Ibase, 2004, p. 14.).
“Os grupos e subprojetos da Agenda Social Rio passaram, então, a se guiar pelo princípio do
fortalecimento de sujeitos políticos coletivos, capazes de contribuir na formulação de políticas
públicas mais justas, incorporando o olhar das classes populares” (Ibase, 2004, p. 14-15).
31
IBASE. Rio: A democracia vista de baixo. Rio de janeiro: IBASE, 2004. 87p.
62
comunidades pobres, sempre mantiveram com o Estado uma relação que não pode
ser caracterizada como de “protagonismo”. O fato é que, quando procuram o Estado,
é, no máximo, para propor uma parceria na realização de um evento, a colaboração
para a cessão de um espaço público para uso comunitário, para conseguir
transporte para os participantes do projeto, etc. Nunca estabelecem relações de
imposição de demandas, de acesso inegociável a direitos garantidos
constitucionalmente e de proposição de mudanças nas políticas públicas
direcionadas aos pobres urbanos. É óbvio que nenhum destes movimentos podem
ser considerados acomodados ou conformados. São todos projetos que buscam
algum tipo de transformação social e que alcançam resultados muito significativos.
Mas, ao mesmo tempo, não podem ser considerados movimentos “políticos”, no
sentido estrito da palavra.
3 - O Projeto32
32
Projeto Cidade de Deus-Finep. Versão 18 de abril de 2005.
33
Os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio da ONU são um dos últimos sopros de idealismo
desenvolvimentista. Alguns dos objetivos são: cortar pela metade, até 2015, a proporção de pessoas que vivem
em extrema pobreza e reduzir drasticamente a mortalidade materna e infantil no Terceiro Mundo (Cf. Davis,
2006, p. 200).
64
“Apesar disso, a dinâmica dessa cidade com enorme carência de integração não
impediu que ela viesse a ser sede dos próximos Jogos Pan-americanos – inquestionável fonte
de um imenso potencial de mobilização coletiva e inovação social. As representações
idealizadas, a idealização do passado, as imagens inconscientes e as peças publicitárias, assim
como as estratégias de marketing, talvez possam explicar isso, que parece ser um paradoxo”.
pessoas foram removidas em Seul e Incheon, levando uma ONG católica a afirmar que a
Coréia do Sul rivalizava com a África do Sul como “o país no qual o despejo à força é mais
violento e desumano”35.
“Beijing parece estar seguindo o precedente de Seul em seus preparativos para os Jogos de
2008: 350 mil pessoas serão reassentadas para abrir espaço apenas para a construção de
estádios”36”.
35
Catholic Institute for International Relations, Disposable People: Forced Evictions in South Korea (Londres,
Catholic Institute for International Relations, 1988), p. 56.
36
Asian Coalition for Housing Rights, Housing by People in Ásia (boletim), 15/10/2003, p. 12.
67
“Se debilitan los vínculos de los pobres urbanos con el mercado de trabajo y se
estrechan los ámbitos de sociabilidad informal con personas de otras clases sociales, lo que
conduciría a su progresivo aislamiento” (Kaztman, 2001, p. 171.).
A Segmentação Educacional:
“La creciente centralidad del conocimiento como instrumento para el progreso de las naciones
reafirma el papel que se asignó tradicionalmente a la educación como vía principal de
movilidad social y ámbito privilegiado para la integración social de las nuevas generaciones”
(Kaztman, 2001, p. 176.).
A concentração dos recursos dos sistemas educativos nas crianças de
lugares com baixos níveis socioculturais é um dos meios mais eficientes para
quebrar os mecanismos de reprodução da pobreza e da segmentação social. Porém,
segundo Kaztman, não basta investir em educação nestas áreas segregadas. A
escola precisa voltar a ser um lugar privilegiado de convivência entre cidadãos de
distintas origens sociais, um espaço de convivência distinto do contrato de trabalho e
que possibilite a interação entre desiguais em um ambiente de igualdade. Isso
71
A Segregação Residencial:
“La segregación residencial refiere al proceso por el cual la población de las ciudades se va
localizando en espacios de composición social homogênea” (Kaztman, 2001, p. 178.).
À concentração dos pobres em determinados bairros da cidade corresponde
um processo análogo, ao menos no Rio de Janeiro e em São Paulo, de
concentração espacial dos ricos em determinados bairros e condomínio fechados.
Os pobres urbanos sofrem assim do que Kaztman chama de “isolamento social”, o
que contribui para a formação de subculturas que se afastam do mainstream da
sociedade, subculturas estas que desvalorizam o trabalho e a educação como vias
de acesso a direitos e a mobilidade social.
públicos. Hoje em dia até mesmo a praia e os estádios de futebol, que anteriormente
eram espaços deste tipo, se transformaram em espaços segmentados, com nítidas
divisões entre classes e culturas distintas.
“La concentración espacial históricamente inédita de personas con aspiraciones propias de la
vida urbana, con graves privaciones materiales y escasas esperanzas de alcanzar logros
significativos merced al empleo, suscita fuertes sentimientos de privación relativa. Bajo estas
circunstancias, los nuevos guetos urbanos favorecen la germinación de los elementos más
disruptivos de la pobreza. Los hogares que cuentan con recursos para alejarse de esos
vecindarios lo hacen, lo que va dejando en el lugar una población residual, que vive en
condiciones cada vez más precárias y se halla crecientemente distanciada de las personas que
reúnen los rasgos mínimos para tener êxito en la sociedad contemporânea” (Kaztman, 2001,
p. 181.).
Tal fenômeno, aliado à “deserção das classes médias” dos serviços públicos,
cria o isolamento social verificado atualmente nas metrópoles brasileiras e latino-
americanas. É algo semelhante ao que Oliveira Vianna chamou de “insolidariedade
social”, só que agora dentro de um contexto histórico no qual a sociedade brasileira
tornou-se muito mais urbana do que rural. Portanto, a urbanização no Brasil não foi
capaz de romper com o isolamento social e muito menos de criar condições para a
integração e a formação de redes de solidariedade. Talvez estes sejam alguns dos
motivos das favelas cariocas terem sofrido por tanto tempo com práticas clientelistas
(que se assemelham ao coronelismo) e hoje tenham que lidar com uma espécie de
mandonismo, baseado em práticas ilícitas: o tráfico de drogas.
segurança, e sem contato com a realidade dos pobres urbanos, desenvolvem o que
Kaztman chama de “tolerancia a la desigualdad”. O antídoto para a tolerância à
desigualdade seria o desenvolvimento de um sentimento coletivo de “aversión a la
desigualdad”, o que se realizaria no espaço público, onde sentimentos de empatia
entre “os que tem mais” e “os que tem menos” teriam a possibilidade de serem
vividos, onde os desiguais conviveriam em condições de igualdade e de respeito
mútuo. Contudo, a violência é um complicador que entrava a formação de espaços
públicos de interação entre as classes sociais. De um lado temos uma situação de
“vulnerabilidade social” e tolerância ao crime, do outro, um contexto de indiferença e
“apartheid” onde se tolera a injustiça social e também o crime, quando praticado
contra os outros. O cenário é de enorme tensão, e a “revolta” dos pobres urbanos
eclode não na política, mas na violência que enfrentamos cotidianamente em nossas
cidades, algo que se torna ainda mais complexo com o avanço das milícias sobre
localidades dominadas por traficantes de drogas.
Como pode ser inferido do texto acima, a economia solidária está intimamente
ligada à história do Partido dos Trabalhadores e ao Ibase. Não é por acaso que, no
projeto de Desenvolvimento local Cidade de Deus, ela apareça como uma dimensão
fundamental e mereça atenção especial por parte dos agentes capacitadores. Não
esqueçamos que o projeto inicia no governo do presidente Lula e foi escrito com o
auxílio de técnicos do Ibase. Além disso, uma das principais parceiras do projeto, A
Caixa Econômica Federal, é uma empresa pública que atua como um dos principais
braços do governo federal na execução de políticas públicas. Segundo André
Ricardo de Souza:
“Os empreendimentos de economia solidária representam “cerca de 0,5% do total de
trabalhadores ocupados, de acordo com a estimativa da população ocupada do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)”.
“Este conjunto é ínfimo no quadro ocupacional brasileiro, mas está evidente em expansão e é
extremamente promissor, sobretudo no que se refere a mudanças de qualidade das condições
e relações de trabalho. Os empreendimentos solidários ainda têm pouco peso econômico, mas
possuem grande significação cultural, afinal são experiências destacadamente educativas”
(Singer & Souza, 2003, p.7.).
39
SINGER, Paul & SOUZA, André Ricardo de (orgs.). A economia solidária no Brasil: a autogestão como
resposta ao desemprego. São Paulo: Contexto, 2. ed , (Coleção Economia), 2003. Vários autores.
77
estima e a identificação com o grupo social, ou produtivo. Se isso for verdade, não
há dúvida que a economia solidária poderá fortalecer os laços de união entre os
moradores da Cidade de Deus, contribuindo para a redução da fragmentação
verificada naquela comunidade. Além disso, a criação de empreendimentos
autogesionários poderia contribuir no sentido de “empoderar” as classes populares,
aumentando a autonomia e a noção de direitos. É um fato que empresas que forem
bem geridas de maneira coletiva e que consigam gerar trabalho e renda em
comunidades carentes, em muito podem contribuir no processo de redução das
desigualdades sociais e na promoção da inclusão de populações marginalizadas.
Tenho minhas dúvidas quanto ao caráter “socialista” desta empreitada.
E ainda:
“O caráter revolucionário da economia solidária abre-lhe a perspectiva de superar a condição
de mero paliativo contra o desemprego e a exclusão” (Singer & Souza, 2003, p. 28.).
.Dimensão 4 – Educação
Dimensão 6 – Habitação
Resultados Esperados:
CAPÍTULO 4
1 - O trabalho de Campo
Neste capítulo apresentarei o trabalho de campo que realizai na comunidade.
Irei me ater às anotações feitas no meu caderno de campo durante as reuniões do
Comitê Comunitário e da Agência de Desenvolvimento local das quais participei.
Utilizarei também alguns dados a que tive acesso e que constam no Relatório Final
do Projeto.
11 de Agosto de 2006
A primeira vez que tive contato com as lideranças locais da Cidade de Deus
foi numa apresentação do “Projeto Finep – Cidade de Deus e de Direitos”, no
auditório da Caixa Econômica Federal, no centro do Rio de Janeiro, em meados do
ano de 2006. Três coisas me chamaram a atenção. Primeiro o discurso articulado e
crítico de uma determinada líder comunitária. Em segundo lugar o ineditismo do
projeto, que tem como diferencial a aplicação do conceito de “protagonismo local”. E
em terceiro lugar, talvez o mais surpreendente para mim, foi a sensibilidade de uma
instituição pública frente às demandas de uma comunidade pobre e favelada do Rio
de Janeiro. O que via diante de mim era uma comunidade organizada e
conhecedora de suas necessidades e de seus direitos; e com um projeto de
desenvolvimento local em construção que parecia plenamente viável. Vislumbrei
neste dia a possibilidade da resolução da histórica questão urbana carioca, não mais
através de políticas públicas executadas de “Cima para Baixo”. O que a comunidade
da Cidade de Deus estava propondo era justamente o oposto: nós, que ao longo dos
últimos quarenta anos temos sido alvo de políticas ora paternalistas, ora populistas,
ora clientelistas; nós que somos encarados pela sociedade abrangente como “O
Outro”, estamos aqui para dar nosso grito de emancipação e liberdade. Quem sabe
de nossas necessidades somos nós; não é o Estado, a imprensa, a sociedade ou a
academia; nós, comunidade organizada, reivindicamos o papel de protagonistas na
formulação, execução, avaliação e acompanhamento das políticas públicas
implementadas em nossa comunidade. E exigimos que as instituições nos levem em
conta, pois somos os legítimos conhecedores de nossas especificidades, problemas
e potencialidades.
81
A mim aquilo tudo soou como uma micro-revolução. O que aquelas pessoas
estavam dizendo é que era possível pensar em novas formas de participação
democrática, de gestão compartilhada e em novos modelos de atuação do poder
público junto a comunidades excluídas. Dentro do contexto dos movimentos sociais
urbanos tudo soava como inédito e pioneiro.
11 de Outubro de 2006.
Uma das participantes, Maria Cristina, chama atenção para o fato desta
experiência ser inédita, e por isso todos aprendem fazendo e deliberam em forma e
colegiado. O colegiado foi o estatuto jurídico encontrado pela comunidade de forma
a viabilizar a gestão compartilhada do projeto. No colegiado o voto de cada membro
tem o mesmo peso e há sempre a busca do consenso.
no mercado”. Esta, com certeza não é a visão do secretário, à época, Paul Singer,
mas era a visão que a PUC passava para aqueles a quem teria que capacitar.
Foi ressaltado que as metas não terminariam com o final do projeto FINEP e
que a continuidade e a sustentabilidade das ações dependeria do nível de
organização da comunidade, que teria, a partir de algum momento, que andar com
as próprias pernas.
Outra dificuldade é decorrente das empresas não quererem ligar sua marca à
Cidade de Deus. O Paulo Magalhães me contou que tentou, junto ao dono da
AGENCO, uma das maiores construtoras da cidade do Rio de Janeiro, elaborar um
projeto de responsabilidade social que beneficiasse os trabalhadores da construção
civil residentes em Cidade de Deus. A resposta que ouviu foi categórica: “posso até
contratar gente de lá, mas não quero o nome da minha empresa vinculado de
nenhuma maneira à Cidade de Deus”. Veio daí a necessidade da Caixa começar a
exigir em contrato com as empresas da construção civil, uma espécie de “quota”
para trabalhadores da Comunidade de Deus e de outras localidades pobres do Rio
de Janeiro.
86
“Além da alta taxa de analfabetismo, as 13 escolas públicas de CDD (que oferecem apenas
o ensino fundamental) não absorvem todos os alunos em idade escolar, necessitando sempre
que boa parte dos estudantes busquem educação em outros bairros40” (Lima & Silva, 2007,
p.35.).
“Por outro lado, algumas escolas de nível fundamental, não atingem a sua capacidade
instalada, por estarem localizadas em regiões de alto risco de violência, com acessos
precários e problemas na pavimentação das ruas, devido à falta de saneamento básico”.
“Não há escola de ensino médio. A comunidade conta apenas um espaço cedido que funciona
somente no horário noturno, atendendo a 150 alunos”.
“É inexistente também o oferecimento de educação profissional pelo poder público, em
qualquer nível de qualificação ou em nível técnico em CDD” (Lima & Silva, 2007, p.36.).
Ainda segundo a coordenadora, “a comunidade não vai à escola por que não
quer e por que é preguiçosa”. Foram marcados dois seminários sobre educação na
região, para outubro e novembro. Foi ainda verificada a necessidade de se realizar
um levantamento sobre quais as principais demandas em termos de formação para
os membros da comunidade. Chamou a minha atenção o fato da comunidade, no
diálogo que vem realizando com o MEC, estar tentando forçar que os representantes
do ministério vão até a comunidade. As reuniões costumam ser marcadas no centro
da cidade, mas os membros do comitê tentam remarcá-las para que aconteçam na
comunidade. Algumas vezes obtém sucesso, o que garante que os burocratas do
ministério conheçam um pouco mais de perto as condições da educação e de vida
da comunidade, ao mesmo tempo em que, negociar “em casa” com as instituições é
garante um pouco mais de igualdade no debate. Ir a reuniões no MEC é como “ir
jogar na casa do adversário”. No futebol, jogar na casa do adversário é sempre uma
desvantagem.
40
LIMA, Carla Moura & SILVA, Itamar. Relatório Técnico do Projeto Cidade de Deus e de Direitos. - Ibase e
Finep. (Não Publicado). 2007. 88p.
88
de conta” de crianças são uma alternativa criativa encontrada pelos pobres urbanos
para a resolução de uma questão fundamental que é com quem deixar o filho na
hora de ir trabalhar. Revela-se aqui um pouco da solidariedade que pode ser
encontrada em comunidades como Cidade de Deus, embora saibamos que a
solidariedade ainda é fragmentada. Baseia-se fundamentalmente na proximidade, na
vizinhança. Mas, às vezes, só o fato de morar do outro lado do rio, já impede a
formação de laços de solidariedade deste tipo. Daí a necessidade do Estado
construir creches, que sejam capazes de universalizar o acesso a este tipo de
serviço no interior da comunidade.
sido dito que violência era um tabu. De fato nada parecido havia sido dito durante a
reunião formal. O tema simplesmente não entrou em pauta. Mas ainda era cedo para
qualquer conclusão e por opção metodológica preferi não forçar o assunto com a
minha informante. Ficou a dúvida e a pergunta: porque ela havia falado sobre
violência naquele momento sem eu ter perguntado nada, logo para mim que era um
novato naquele lugar?
16 de Novembro de 2006
Paulo Magalhães também apresentou um vídeo que mostra que toda a área
próxima a Rocinha 2 havia sido adquirida por empresas de construção civil, que
provavelmente estão esperado pela valorização imobiliária da região após o término
das obras. Um dos terrenos estava sendo utilizado para construção de uma escola
de ensino médio do SESC. Outros terrenos foram comprados pela Carvalho Hosken,
pela Brascan e pela Perugia. Ficava claro que a comunidade precisava criar
mecanismos para se defender da especulação imobiliária. Além disso, o Paulo
apresentou um projeto ligado à Prefeitura, para a construção da Via 8:
“A Via 8 vai separar a área da Cidade de Deus da área rica. O projeto, que
tudo leva a crer, que seja da Prefeitura, prevê a construção de novas casas para os
ricos na beira da via 8, com a remoção das pequenas favelas do entorno”.
atacados por jacarés que vivem nos rios e lagoas da região. Dizem até que os
traficantes utilizam esses animais para dar sumiço em suas vítimas. Outra pergunta
foi a respeito de como seria na hora de negociar. O Paulo respondeu que sentariam
juntos, a AGENCO, ele, representando a caixa e a cooperativa. Os trabalhadores
foram se empolgando e ao final da reunião já estavam discutindo estratégias para
informar outros trabalhadores da existência da cooperativa, formas de organização e
de cadastramento dos trabalhadores interessados.
Resolvi dar uma saída para fumar um cigarro. Foi quando conheci o Nei, um
trabalhador desempregado que estava participando daquela reunião e que também
tinha saído para fumar. Ele começou a falar comigo. Registrei aquele depoimento
logo após termos voltado para dentro da Agência de Desenvolvimento Local. Sem
nenhum motivo aparente ele começou a falar que “existem facções dentro da CDD”
e que isto reflete o fato da comunidade ter sido “formada por gente muito diferente,
vinda da Praia do Pinto, Humaitá, Lagoa...”. Nesse momento ele se tocou que estava
entrando num tema perigoso, ainda mais porque ele nem me conhecia, e disse “é
melhor eu não falar mais nada”. Porém mudou de assunto e continuou falando.
Segundo Nei, “o pessoal não é muito engajado”. “Eu me sinto um excluído, sou
negro, queimado [ele apresentava marcas de queimaduras por fogo pelo corpo],
favelado. O povo daqui é muito imediatista. Mas eu vejo que estão abrindo as portas
para mim e eu vou escancará-la. Quando você comenta com alguém sobre isso
daqui ele pergunta a que horas acaba a reunião. É pra gente mesmo! Não tem que
se preocupar com a hora. Eles perguntam se tem lanche. O pessoal é muito
imediatista. A comunidade precisa participar. Muita gente nem sabe disso aqui”.
Este monólogo revela que o tema da violência sem dúvida é evitado. O tema
novamente não surgiu durante a reunião do Comitê e pude perceber que mesmo
numa conversa informal foi evitado, talvez por medo. Em conversas com o colega da
UERJ, Allan Brum Pinheiro, que é Coordenador Geral do Grupo Sócio Cultural
“Raízes em Movimento” e realiza um trabalho de inclusão social no Complexo do
Alemão, fui informado que a omissão do tema violência é uma estratégia de
determinadas comunidades para ressaltar os aspectos positivos e as
potencialidades da comunidade, evitando dessa maneira correlacionar pobreza e
criminalidade. Não falar do crime e da violência é, a meu ver, uma forma de tentar
romper o ciclo de reprodução da violência, conforme análise realizada pela
93
pesquisadora Teresa Caldeira41. A “fala do crime”, segundo esta autora, possui dois
efeitos que são contraditórios. Ao mesmo tempo em que ao falar da criminalidade a
sociedade busca maneiras de enfrentamento e de resolução da violência, a “fala do
crime” contribui para a reprodução do ciclo da violência. Falar do crime resulta na
formação de um mecanismo de manutenção e ampliação da criminalidade, além de
criar toda uma ideologia e uma cultura da violência. A reprodução do ciclo da
violência de daria por um mecanismo de privatização da segurança. Este fenômeno
gera o que a autora chama de uma “cidade de muros”. As classes média e alta se
isolam em condomínio fechados, cercados por modernos aparatos de segurança.
Recorrem ainda à contratação de empresas de segurança privada. Nas favelas e
bairros populares, principalmente em localidades dominadas por traficantes
armados, a “fala do crime” gera uma demanda por segurança. Como o Estado não
tem sido capaz de garantir a segurança pública, especialmente nestas localidades,
cria-se uma espécie de demanda reprimida. A existência deste “mercado
consumidor” reprimido, explicaria, em parte, no meu entender, o avanço de milícias
armadas sobre regiões até então submetidas à tirania dos traficantes de drogas. O
lucro destes grupos armados, formados em boa parte, por policiais e ex-policiais, é
realizado através da cobrança de taxas de segurança e ainda através da exploração
do comércio de água, gás e TV por assinatura clandestina (“GatoNet”).
41
CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de Muros. São Paulo: Ed. 34/Edusp, 2000.
94
22 de Maio de 2007
Rocinha II. A questão da habitação torna-se mais complicada por CDD já ser considerada
"um gueto" e Rocinha II "um gueto do gueto" o que se constitui numa novidade para todos.
Neste sentido todos são aprendizes em processo contínuo de capacitação. Para o trabalho em
Rocinha II efetivar-se realmente de forma estruturante, transformadora e participativa, requer
de todos muito conhecimento, habilidade e sobretudo, cuidado” (Lima & Silva, 2007, p.69.).
“Uma nova dificuldade para a equipe social encontrou-se em discutir com a população o
projeto aprovado. Ao invés de uma casa, segundo o arquiteto responsável, com a verba só foi
possível projetar um cômodo com banheiro. Alega-se que o maior custo da obra é a
preparação do terreno. O que gerou constrangimentos e exigiu estratégias eficazes de trabalho
junto à população local. O tamanho reduzido das unidades habitacionais foi alvo de críticas e
insatisfações generalizadas por parte dos futuros moradores”.
“Um dos principais objetivos do trabalho da equipe social é resgatar a cidadania e a auto-
estima dessa população, pois os moradores de Rocinha II já foram alvo de muitas promessas.
Eles se consideram "nada" e são discriminados, mesmo dentro da CDD” (Lima & Silva, 2007,
p.70.).
Por volta das nove horas da noite, um dos integrantes do colegiado chamado
Cabeça, disse o seguinte: “Eu tenho que falar uma coisa, tenho que me ausentar,
sabe, porque, eu moro na zona do agrião e onde eu passo, na interseção, tem
tiroteio todo dia, fogo cruzado e às vezes eu chego da cidade e tenho que ficar duas
horas na praça esperando”. Seguiram-se risos e uma certa exaltação. Foi quando
um dos integrantes do Comitê disse que “Hoje tá arregado”, numa referência à
propina que é distribuída pelo tráfico para que policiais corruptos deixem o
99
As informações que colhi revelam que o tráfico está querendo tomar as casas
dos moradores que foram escolhidos como beneficiários pela comunidade, num total
desrespeito a um cadastro que foi formado através de uma escolha democrática e
participativa. Todo o cadastramento das famílias corre o risco de não ser cumprido.
O tráfico quer mudar tudo, e, de acordo com seus critérios, estabelecer quem serão
os futuros moradores das casas que serão construídas.
“Por outro lado”, continuou Cleonice, “tivemos hoje no culto evangélico que foi
realizado na Rocinha 2 uma ampla demonstração de respeito da comunidade pelo
trabalho do Comitê. O pastor rezou para que os pobres que estão esperando pelas
100
casas possam efetivamente ter acesso a elas”. Neste culto foram homenageados o
Comitê e a Caixa. O pastor falou que os tiroteios que estão acontecendo lá são
devidos à presença do diabo na localidade, e que o diabo tem agido naquele lugar, e
que a construção das casas pode significar a superação desses conflitos. Foi lido um
trecho de “Neemias”, no qual o pastor fez um paralelo entre o que está acontecendo
na Rocinha 2 e a reconstrução de Jerusalém. Segundo palavras da Cleonice “foi
muito bonito e os moradores se mobilizaram para agradecer a Deus e às instituições
pelas ações que estão sendo desenvolvidas”.
A meu ver este é um caso típico de ação racional que tem por objetivo o
alcance de um determinado fim social. O sentido que os atores locais atribuem às
suas ações, principalmente a opção por não tratar da questão do tráfico de drogas e
da violência, é o de que não falar da violência ajuda a anular o estigma de que são
vítimas e a dar visibilidade a outras dimensões da vida na comunidade. Esta
estratégia tem, por fundamento, a concepção de que não é a pobreza que gera a
criminalidade. Nesta perspectiva, a criminalidade é um problema social muito mais
complexo e, portanto, as comunidades pobres não deveriam vincular suas ações à
resolução da criminalidade violenta. Esta é uma estratégia coerente e justificável,
apoiada inclusive em boa parte da pesquisa científica produzida nas últimas
décadas.
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42
MERTON, Robert K. A ambivalência Sociológica e outros ensaios. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.
102
43
BOUDON, Raymond. (org.) Tratado de Sociologia. Cap. 1, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
CONCLUSÃO
BIBLIOGRAFIA
CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de Muros. São Paulo: Ed. 34/Edusp, 2000.
LIMA, Carla Moura & SILVA, Itamar. Relatório Técnico do Projeto Cidade de Deus e
de Direitos. - Ibase & Finep. (Não Publicado). 2007. 88p.
IBASE. Rio: A democracia vista de baixo. Rio de janeiro: IBASE, 2004. 87p.
SINGER, Paul & SOUZA, André Ricardo de (orgs.). A economia solidária no Brasil: a
autogestão como resposta ao desemprego. São Paulo: Contexto, 2. ed , (Coleção
Economia), 2003. Vários autores.
VENTURA, Zuenir. A cidade partida. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, 277
p.