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JOÃO JOSÉ R. l.

DE ALMEIDA

A SINGULARIDADE DAS INVESTIGAÇÕES


FILOSÓFICAS DE WITTGENSTEIN
FISIOGNOM/A DO TEXTO

UNICA"1P

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

Reitor
JOSÉ TADEU JORGE

Coordenador Geral da Universidade


ALVARO PENTEADO CRÓSTA

Consdho Editorial
Presidente
EDUARDO GulMARÁES

El.INTON ADAM! CHAIM - ESDRAS RODRIGUES SILVA


GUITA GRIN DEBERT - Juuo CESAR HADLER NETO
LUIZ FRANCISCO DIAS - MARCO AURÉLIO CREMASCO
RICARDO ANTUNES - SEDI HIRANO le o I T o R A i 1MIMMW·iiiil
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua
Portuguesa de 1990. Em vigor no Brasil a partir de 2009.

FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELO


SISTEMA DE BlBLIOTECAS DA UNICAMP
DIRETORIA DE TRATAMENTO DA INFORMAÇÃO
Bibliotecária: Helena Joana Flipsen - CRB-8' / 5283

AL64s Almeida,JoãoJosé Rodrigues de Lima, 1960-.


A singularidade das Investigações filosóficas de Wittgcnstein: fisiognomia
do texto/ João José R. L. de Almeida. - Campinas, SP: Editorada Unicamp,
2015.

L Wittgenstein, Ludwig, 1889-1951. 2. Expressão (Filosofia). 3. Gra-


mática comparada e geral. 4. Fisiognomia. I. Título.
CDD - 149.94
-415
ISBN 978-85-268-1294-9 -138 Para Lucía, Maria & Natália.

Índices para catálogo sistemático:

l. Wittgenstein, Ludwig, 1889-1951 149.94


2. Expressão (Filosofia) 149.94
3. Gramática comparada e geral 415
4. Fisiognomia !38

Copyright© by João José R. L. de Almeida


Copyright© 2015 by Editora da Unicamp

Direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19.2.1998.


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Foi feito o depósito legal.
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Tombo/BC: l O'Z'Z4~J
Tombo/lEL J i WS2''6
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--···'
SUMÁRIO

ABREVIATURAS UTILIZADAS PARA AS OBRAS DE WITTGENSTEIN......................... 9

APRESENTAÇÃO .................................................................................................. 11

1NTRODUÇÃO ...................................................................................................... 17

1. ESTILO EDESENTENDIMENTO.......................................................................... 53

2. HIPÓTESES DE TRABALHO............................................................................... 69

3. UMA LEITURA ARQUEOLÓGICA........................................................................ 81

4. UMA LEITURA SECA......................................................................................... 89

5. AOBRIGATORIEDADE DO CONTEXTO ................................................................ 101


5.1 Variações sobre um tema dado...................................................................... 106
5.2 Díalogismo polifônico ................................................................................... 112
5.3 Oprefácio das IF ............................................................................................ 116

6. AS lf EONACHLASS ........................................................................................ 123

7. OCORPUS LITERÁRIO EOS DADOS BIOGRÁFICOS ............................................. 145

8. SEIS WITTGENSTEINS ...................................................................................... 157


8.1 Uma forma de filosofia da matemática.......................................................... 161
8.2 Uma filosofia positiva.................................................................................... 163 ABREVIATURAS UTILIZADAS PARA
8.3 Uma espécie de ceticismo............................................................................. 165
AS OBRAS DE WITTGENSTEIN'
8.4 Um tipo moderno de quietismo ..................................................................... 172
8.5 Uma filosofia terapêutica .............................................................................. 184
8.6 Uma antifilosofia .......................................................................................... 196

9. ESTILO EFORMA, AUTOR ELEITOR ................................................................... 209


9.1 Oestilo em Wittgenstein ............................................................................... 218
9.2 Do estilo ao reconhecimento......................................................................... 222
9.3 Do reconhecimento à incompletude .............................................................. 237

ANEXO ................................................................................................................ 243

BIBLIOGRAFIA .................................................................................................... 249 AC Anotaçõessobr~ascores (2009b)


AWL Wittgenstein's lectures. Cambridge, 1932-1935 (1979)
BB 1he blue and brown books ( 1969c)
BMI Bemerkungen I - TS 228 (2000)
BMII Bemerkungen II - TS 230 (2000)
BT 1he big typescript (2005)
CV Culture e value ( 1998)
D Ditado
IF Investigaçõesftlos6ficas (2009)
LC Lectures and conversations on aesthetics, psychology and religious beliej
(1967)
LPP Wittgenstein's lectures on the philosophy ofpsychology (1988)
LWPP I Last writings on the philosophy ofpsychology I (1982)

1
As abreviaturas das obras de Wittgenstein seguem as letras iniciais dos títulos dos li-
vros publicados tal como constam na bibliografia. A única exceção é o conjunto deno-
minado Investigações filosóficas, foco central de nosso livro, abreviado como IF. Os tex-
tos não publicados na forma de livro que fazem parte do espólio literário (Nachlass)
aparecem abreviados aqui pelos nomes como são tradicionalmente conhecidos: BM
para Bemerkungen; MS para Manuscripts; TS para 1jpescripts. O esp6lio literário foi
publicado numa coleção de seis CDs (Wittgenscein, 2001a) pela Oxford University
Press e pelos Wittgenstein Archives da Universidade de Bergen, conhecida como a
Bergen Electronic Edition (BEE).
10 1 Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgenstein

LWPP II Last writings on the philosophy ofpsychology li (1992) APRESENTAÇÃO


MS Manuscritos do Nachlass (2000)
OC On certainty (19746)
ORD Observações sobre "O Ramo Dourado" de Prazer (2011)
PG Philosophica/ grammar ( 1974a)
PPF Philosophy ofpsychology: A _fagment (2009a)
PR Phi/osophica/ rernarks (Wittgenstein, 1975)
RFM Remarks on theJoundations o/mathematics ( 1978)
RPP I Remarks on the philosophy ofpsychology I (1980a)
RPPII Remarks on the phi/osophy ofpsychology II ( 19806)
TLP Tractatus Logico-Phi/osophicus (20016)
TS Datiloscritos do Nachlass (2000) Parece-me bastante difícil tentar definir o que seria um "texto"
VW Ihe voices o/Wittgenstein. Ihe Vienna Circle (2003)
um pouco mais precisamente do que "um certo conjunto orga-
z Zette/(1981)
nizado de palavras fixadas por escrito", Mesmo esta ainda vaga
definição poderia ser perfeitamente contestada por quem também
costuma chamar por esse nome um proferimento discursivo não
necessariamente fixado por escrito; por exemplo, o discurso de
improviso de um político tal como descrito por um ouvinte ca-
sual ou por um jornalista; uma parte da fala de um ator de teatro,
ouvida pela plateia; uma parte que alguém destaca de uma con-
versação entre duas pessoas para examiná-la posteriormente ou
para utilizar como prova num julgamento etc. Há também aque-
les que presumem que não se pode reduzir um texto exclusi-
vamente a seu suporte material, deixando de lado os gestos, as
entonações, os silêncios ou o lugar que ocupa num dado con-
texto que porventura o acompanhe. Dadas todas essas complica-
ções para se definir o que é um texto, abdico do privilégio das
definições prévias e mais precisas, e dou-me por satisfeito simples-
mente pelo faro de que não se pode negar que este ensaio trata de
um texto.
Este ensaio trata de um texto como interpretação filosófica de
um clássico da própria filosofia. Talvez por isso tampouco se pode
12 1 Asingularidade das Investigações filosóficas de Wíttgenstein Apresentação l 13

negar que, de certo modo, ele também seja uma forma de filosofia concebeu. O que faz com que o fenômeno pelo qual me interesso
do texto. Seria desejável então que se partisse de uma tipologia do seja similar ao de quem ouve um dito espirituoso, entende perfei-
texto, ou que, pelo menos, se chegasse a ela, como um resultado tamente o que foi dito, mas não percebe sua graça. O problema
que coroasse o esforço prometido no título a respeito de texto e não é o de explicar a graça do dito espirituoso, o que também não
fisiognomia. tem graça nenhuma. Por isso, o propósito deste trabalho não é o
Lamento também não chegar nem à tipologia, nem ao tra- de fornecer uma chave de leitura, alguma coisa que sirva como
balho de filosofia do texto propriamente dito. Quanto à tipolo- prolegômenos indispensáveis a garantir o acesso universal à obra,
gia, ainda me intriga o que seria o estilo de álbum apresentado mas o de traçar para o leitor uma fisiognomia que lhe permita
por Wittgenstein como obra filosófica e como gênero literário, e realizar seu próprio encontro com o texto. Estou convencido de
quanto à filosofia apenas posso, com sorte, ter dado uma pequena que o problema da incompreensão, nesse caso particular da forma
contribuição. ou de seu aspecto, não é intelectual. E a prova disso é que tal
O trabalho aqui exposto trata exclusivamente da forma das chave de leitura só pode ser recolhida na própria obra do autor.
Investigações filosóficas de Wittgenstein (doravante, IF) e defende Parece-me que Wittgenstein propositalmente escondeu essa
a ideia de que a consideração de sua singularidade formal, tanto chave na forma de seu texto, como veremos no capitulo 7. Ela não
na filosofia quanto, talvez até, na literatura, é crucialmente im- pode ser dada por ninguém mais senão pela ação do próprio texto
portante para a compreensão da obra. Do contrário, um fenô- no leitor. O que posso fazer, portanto, é dar uma contribuição
meno bastante comum em relação a ela poderá se repetir mais modesta para a sua procura, que tem a ver com o reconhecimento
uma vez: ela não será plenamente compreendida. de uma expressão, ou de uma fisiognomia, como veremos, assim
Entretanto, não quero dizer aqui que as IF nunca foram com- como também tentar pensar um pouco melhor a respeito de um
preendidas ou que teriam sido muito pouco compreendidas. Não tema recorrente em Wittgenstein: por que seria esse autor tão
é nada disso. O foco deste ensaio converge, em vez disso, para um pouco compreendido quanto aos seus propósitos.
campo colateral e correlacionado ao da compreensão do con- Esse fato parece ser relevante quando constatamos que é
teúdo do que ali vem escrito. O que parece ser surpreendente possível contar, como veremos no capítulo 8, pelo menos seis
nessa obra, em particular, é a dificuldade de compreensão da fi- Wittgensteins diferentes, todos corretamente extraídos de seus
nalidade do texto, do que ele pretende fazer com o leitor, isto é, escritos. O que ocorre, então, com o olhar de vários autores da
de seu ato perlocucionário como escrita de um determinado au- literatura secundária? O que essa multiplicidade inconciliável
tor, e de quem seria exatamente esse autor que inegavelmente es- de Wittgensteins produzidos ao longo de mais de 60 anos tem a
creveu em linguagem coloquial sobre problemas perfeitamente ver com a singularidade do texto das IF? Como é que alguns equí-
compreensíveis da filosofia tradicional. Há como que uma ce- vocos e acertos poderiam nos ajudar a encontrar essa chave?
gueira para o aspecto quando se trata dos textos de Wittgenstein. Tais são, em breves palavras, os objetivos deste ensaio.
E seus textos têm, fundamentalmente, esse caráter performativo Na introdução, a seguir, explico detalhadamente o plano do
que seria mandatório reconhecer para o leitor ideal que o autor ensaio, o papel de cada capítulo, e como será o leitor conduzido
14 1 Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgenstein Apresentação J 15

até o que me parece ser o mais relevante, do ponto de vista filo- gentilmente, compartilhou comigo e com alguns outros autores,
sófico, como preparo para o texto das IF, que é o conceito de como ele, tradutores e pesquisadores de Wittgenstein. Todo esse
estilo, pelo qual se pode reconhecer a individuação de um tra- conjunto de felizes e coincidentes encontros foi muito impor-
balho, a sua expressão, e a visão de aspecto apresentada por sua tante para o amadurecimento das ideias que estão espalhadas ao
fisiognomia. longo deste ensaio.
Gostaria de deixar registrado que os resultados deste ensaio Outro pesquisador português merece, na verdade, uma men-
devem-se a uma investigação financiada por uma bolsa de auxílio ção especial, porque a essência das ideias aqui utilizadas foi tra-
regular à pesquisa sobre "Estilo e forma nas Investigações filo- tada originalmente por ele. Trata-se de António Marques, da
sóficas" que recebi da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado mesma Universidade Nova de Lisboa, e de seu livro sobre O inte-
de São Paulo (Fapesp) durante os anos de 2011 e 2012. Esse im- rior (2012). Esse texto veio ao encontro de muita coisa que havia
portante incentivo permitiu o desenvolvimento da maior parte pensado até então sobre o estilo de Wittgenstein, mas acabou por
das ideias que apresento aqui. Muitas dessas ideias discuti, em me esclarecer sobremaneira a questão.
várias ocasiões diferentes, com minha companheira, Filomena Os pesquisadores Arley Moreno, antigo aluno de Gilles-Gas-
Sandalo, a quem também agradeço a paciência que uma linguista ton Granger, e Sírio Possenti discutem em seus livros a filosofia
formal deve ter ao permitir-se entrar no resvaladiço campo da do estilo, cada um deles em função de seus interesses próprios de
filosofia, e ouvir e tratar com propriedade tudo que se lhe propõe. investigação. Evidentemente, faço também das ideias desses pes-
Marcelo Moreschi e Yuri Zacra, pesquisadores de teoria literária, quisadores um uso próprio, em função dos objetivos deste meu
também tiveram parte ativa nas discussões que me trouxeram a ensaio. Não obstante, quero deixar claras, na medida em que
uma boa quantidade de contribuições interessantes, sobretudo na ainda for capaz de dar conta disso, as minhas primeiras fontes de
área da estética da expressão escrita. Uma viagem a Lisboa e algu- inspiração.
mas breves discussões que apresentei a Nuno Venturinha e a al- Agradeço à Universidade Estadual de Campinas que, como
guns estudantes da Universidade Nova de Lisboa também têm sempre, proporciona a seus professores e alunos o ambiente mais
parte importante neste trabalho. Sobre Venturinha, em particu- favorável possível à independência e ao pleno desenvolvimento
lar, já muito admirava um texto seu de 2010 que por acaso encon- dá pesquisa.
trei numa livraria de Cambridge, Massachusetts, antes mesmo de Sem essas amplas e casuais conexões provavelmente não have-
conhecê-lo pessoalmente. Desse artigo retomo certas discussões ria como juntar tantos pedaços de pensamentos esparsos que me
sobre o inacabamento das IF, tal como elaboro no capítulo 6. chegaram de tantos lados diferentes, e tentar alinhavar algum
Finalmente, outra feliz coincidência que muito contribuiu para sentido possível para o conjunto de escritos de Wittgenstein que
este trabalho foi uma profícua discussão mantida por e-mail que cerca e circunscreve, mediante ligações orgânicas, o objeto prin-
pude realizar com James Klagge, da Virgínia Tech, a respeito de cipal do meu trabalho, as Investigações filosóficas.
um artigo que ele estava por publicar, denominado "Wittgen-
stein, Frazer, and temperament", e cujas ideias também ele, muito
INTRODUÇÃO

"Have you guessed the riddle yet ?" the Hatter said, turning
to Alice again.
"No, I give it up," Alice replied. "Whar's the answer?"
"I haven't the slighcest idea," said the Hatter.
"Nor l;' said the March Hare.
Alice sighed wearily. "I rhink you might do something
better with rhe time;' she said, "than wasting it in asking
riddles chat have no answers."
(Lewis Carroll, Alice's adventures in wonderland)

Alguns comentadores - como, por exemplo, Pitcher, 1986; Gray,


1995; e May, 2007 - já notaram eloquentes semelhanças entre o
estilo de Wittgenstein e o de Lewis Carrol!. No entanto, o que a
palavra "estilo" talvez pretenda retratar em tais artigos seja a se-
melhança entre os dois aurores no tipo de envolvimento ou de
jogo que eles entretêm com seus leitores. Carrol! e Wittgenstein
conduzem o leitor a situações ou circunstâncias limítrofes em que
se nota que há uma linha tênue de separação entre o sentido e sua
ausência. O leitor experimenta seguidamente conjunturas em que
fica totalmente privado da compreensão. E, com isso, termina-se
por aprender que aquilo que faz pleno sentido poderia ser, por
outro lado, visto de outra forma.
'O Chapeleiro Louco pergunta, por exemplo, a Alice, no capí-
tulo VII de As aventuras de Alice no país das maravilhas: "Por que
um corvo é como uma escrivaninha?".
A pergunta do Chapeleiro Louco não tem que ter, natural-
mente, qualquer sentido, mas Alice se precipita em achar algum,
porque provavelmente imagina que estaria sendo proposto, com
aquela questão, algum tipo de jogo de charadas entre os convivas
à mesa de chá. O que poderia, talvez, querer sugerir que nem
sempre o significado das palavras depende exclusivamente de sua
18 1 Asingularidade das lnvestígações filosóficas de Wittgenstein Introdução l 19

forma lógica, mas também da nossa atitude em relação a elas. O Um detalhe curioso a respeito desse livro de Carrol! é que
ponto é que rodos os acontecimentos que se seguem depois se muita gente realmente escreveu para o autor tentando achar, no 1

desencadeiam da atitude de Alice. Ela se anima a encontrar uma lugar de Alice, uma resposta à charada sobre o corvo e a escriva-
resposta para o que supõe ser um jogo de adivinhações: ninha. Para responder a esses leitores mais voluntariosos, Carrol!
"Acho que posso adivinhar essa", ela diz prontamente. Mas a colocou no prefácio da nova edição do livro, publicada em 1896,
Lebre de Março, então, lhe dirige mais uma pergunta intrigante: dois anos antes de sua morte, uma tirada jocosa: "porque ele pode
"Você quer dizer que acha que pode encontrar uma resposta para produzir umas poucas notas, mesmo que sejam muito chatas" (no
isso?", ao que ela responde: "Isso mesmo", novamente, é claro, se original: "because it can produce a few notes, tho they are very
precipitando na primeira resposta que encontra. Então a Lebre f!at"; note-se que a palavrajlat é homônima para os significados
de Março lhe diz: "Você deveria dizer o que quer dizer", desa- de "chato" e de "bemol" em inglês). E o autor seguia, ainda na
fiando-a, talvez, a dizer o que quer dizer "querer dizer" ( Ihen you mesma frase, grafando de maneira errada a palavra em inglês para
1
should say what you mean ). Mas, com a nova questão, desvia-se "nunca' isto é, escrevendo nevar em vez de never: "[... ] e ele nunca
,

um pouco o foco da capacidade que Alice teria de resolver o é posto de trás para a frente" (no original:"[ ... ] and it is nevar pur
enigma para a questão do significado de "significado" ou de "que- with the wrong end in front"). Esse erro pode ter sido involun-
1
rer dizer' • tário, uma vez que a pronúncia enfática da palavra never pode
Alice responde, já agora um pouco entre surpresa e confusa: soar para o falante de inglês como nevar. Por isso, os editores do
"Eu digo. Pelo menos - pelo menos eu quero dizer o que digo - livro corrigiram a grafia da palavra nas edições posteriores. Mas
isto é a mesma coisa, você sabe". E agora é também ela que em- leitores mais obstinados, que perceberam a maneira como a pa-
baralha todo o sentido da conversa com o sentido de "querer lavra never foi registrada naquela antiga edição, continuaram a
dizer". propor novas soluções para o enigma, mesmo depois da morte de
Ao longo de todo o capítulo, surgem vários tipos de diálogos Carrol!. Alguns disseram que "Allan Poe escreveu sobre ambos",
estranhos, deslocados, e o sentido da conversa vai ficando cada porque se tornou possível depois desse fato especular que se po-
vez mais complicado. Aparentemente, todas as ações subsequen- deria colocar o seu famoso poema "Raven" de trás para a frente,
tes são desencadeadas pelos atos de Alice em resposta ao que se trànsformando~o em "nevar". 1
lhe propõe ou se lhe pergunta. Enquanto isso, Alice continua O fato é que, na realidade, poucos são capazes de não se sentir
tentando encontrar uma resposta ao enigma do corvo e da escri- inquietos diante de uma ideia sem sentido, de alguma coisa que
vaninha. Até o ponto em que ela se vê definitivamente confusa, e não se pode entender imediatamente e por completo. Sente-se
observa que, embora todos ali estivessem falando claramente em urgência em resolver o problema, em escapar do incômodo cau-
inglês, não havia nenhum traço de significado no que diziam. E sado pelo estado de suspensão, e uma pessoa pode se lançar na
o enigma inicialmente proposto não havia, tampouco, encon-
trado qualquer resposta.
1
Cf. essas histórias na nota 5 do livro publicado por Martin Gardner (2000, pp. 71~73).
20 1 Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgenstein Introdução 1 21

busca de uma solução qualquer, mesmo que não seja aquela mais Também se pode reforçar a ideia da semelhança entre
plenamente satisfatória. Atos desse tipo, naturalmente, desen- Wittgenstein e Carrol! pelo fato de que o filósofo faz uso cons-
cadeiam uma série de outras ações. Entretanto, a graça do enigma tante, em toda a sua obra, de exemplos aduzidos pelo lógico e li-
e de sua proposta é que não há resposta. A charada só consta da terato inglês. Usos tanto diretos quanto indiretos. Com o uso
história de Carrol! como forma possível do entretenimento de indireto, isto é, naquela forma de discurso em que o autor cita o
interrupção momentânea do sentido, que, afinal, dá o tom a todo texto e o nome de quem proferiu a frase ou o pensamento, cons-
o livro. Ler Alice no país das maravilhas significa, em princípio, tatamos, já em 1931, Wittgenstein mencionando Carroll para
abster-se de resolver enigmas sem sentido e participar da brin- pensar gramaticalmente tanto o ritual da mágica (como em ORD,
cadeira sem interpor obstáculos. p. 39) quanto a impressão de profundidade provocada pelos jo-
É certo que Wittgenstein deixou claro também seu propósito gos gramaticais que brincam com o sentido das palavras (TS 211,
pedagógico acerca do que não tem sentido, e esse propósito pa- p. 239). Aliás, um suposto esclarecimento desse sentimento de
rece mais ou menos o mesmo de Carroll: "O que quero ensinar profundidade do chiste gramatical, discutido em 1931, passou
é: passar de uma insensatez ( Unsinn) não óbvia para uma óbvia" também para as IF já na primeira versão manuscrita do texto (MS
(IF § 464). Em função dessa finalidade, centrada claramente sobre 142, p. 104), indo em seguida para a versão pré-guerra datilogra-
a possibilidade de enxergar a insensatez, o autor apresentou estra- fada (TS 220, pp. 77-78), chegando até a chamada "versão final"
nhas anedotas para ilustrar seus argumentos. Podemos lembrar, (TS 227), quando finalmente foi riscada e não mais se transmitiu
por exemplo, a do povo que desempenhava todo tipo de ativida- para a publicação póstuma e definitiva do texto.
des regulares, mas não se podia estabelecer nenhuma conexão Neste precioso trecho, nunca publicado, consta a seguinte
entre os sons que eles emitiam e as funções que realizavam; desse reflexão:
modo, não era possível dizer se eles tinham uma linguagem ou
não, pois não saberíamos dizer tampouco se eles se comunicavam Onde está, por exemplo, a profundidade do chiste: "We called
ou não (IF § 207). Outra dessas anedotas era a hipótese da mão hirn Tortoise because he taught us"? Nossa atenção se volta subira~
mente para o fato de que essa derivação do substantivo é impossível.
direita que emprestava dinheiro para a mão esquerda, redigia para
- Mas por que impossível? Ela fica muito evidente. - Mas agora pa~
ela um recibo, e ela assinava (IF § 268). Imagens como a da pedra
rece que o chiste perdeu sua profundidade. Isco é porque deslocamos
que tinha sensações (IF § 284), a poltrona que pensava consigo
nossa atenção. Vê agota out10 exemplo; de Lichtenberg::f'Carras das
mesma (IF § 361), a pessoa que ia às compras com um bilhete es- Criadas sobre Literatura"J escreve urna servente a outra: "[ ... ) pois eu
crito "cinco maçãs vermelhas". e o comerciante reagia segundo li recentemente, em um solene e rigoroso livro de filosofia, que há 001
cada palavra, uma em separado da outra, procurando em conjun- pessoas espirituosas para uma que possui um empolado profundo".
tos organizados de amostras a que correspondia cada palavra es- - Alguém diz: "Ora, cem poderia ser escrito aqui de modo correto",
crita no bilhete (IF § 1). Todas essas histórias são também, como mas então não se sente a profundidade do chiste. Ela aparece, antes,

as de Carrol!, um tanto quanto bizarras. quando alguém tira, por assim dizer, as consequências matemáticas
desse erro de escrita.
Asingularidade das lnvestigaçóes filosôficas de Wittgenstein lntroduçáo 1 23

A profundidade deste chiste consiste em relações que admi- seção do § 111 das IF porque eles se assemelham a uma espécie
tem uma explicação mais longa; porque ela diz respeiro à cons- de explicação, forma que, para Wittgenstein, não seria a ideal
trução particular <<peculiar>> da nossa linguagem. Se nós su- para o seu método de filosofia. Talvez também porque, como já
bitamente < <se mostra>> ubscr vamos esse sistema total, temos disse, não tem graça nenhuma explicar o sentido de um dito
então o sentimento de profundidade. (TS 227a, p. 85) 2 espiriruoso. De qualquer modo, não deixa de ser uma boa ma-
neira de compreender a operação de um chiste como reação ime-
Nada mais próximo entre os dois autores do que essa comen- diata, da maneira como funciona tanto em Carrol! como em
tada "profundidade do chiste gramatical". Subitamente se mos- Lichtenberg.
tra todo um sistema, toda uma construção peculiar ou própria Contudo, Carrol! é também usado diretamente por Wittgen-
(eigentümlich) da nossa linguagem, como reação imediata, coral- steín, por exemplo, quando nosso filósofo toma algum pensa-
mente espontânea, ao que se ouve. Mas, para que a reação possa mento dele como parte de um argumento próprio. Isso pode ser
ocorrer, muita coisa tem que ser aprendida, durante muito tempo, visto, por exemplo, tanto na seção do § 13 das IF, quanto na
dentro de um determinado contexto. É provável que Wittgen- amiga Parte II (PPF § 151). Carrol! é utilizado até com uma frase
stein tenha riscado esses dois parágrafos complementares da atual do capítulo VIII de As aventuras de Alice, em RPP I § 463 (TS 229,
p. 297), o que nos coloca já na produção mais tardia de Wittgen-
stein, entre 1947 e 1948, particularmente nas elaborações finais da
2 filosofia da psicologia. Mas, voltando à década de 1930, encontra-
Algumas peculiaridades da língua inglesa, no caso de Carrol!, e da língua alemã, no
caso de Lichtenberg, perdem-se nessa tradução ao português do tiecho eliminado do mos Wittgenstein mencionando a tentativa de adivinhação do
§ 111 das IF, as quais poderiam complementar o sentido do que Wittgenstein quer di- enigma do corvo e da escrivaninha, que ele cita também, literal-
zer com a observação "relações que admitem uma explicação mais longa". A frase "We
called him Tortoise because he raught us': contém uma ressonância entre as pronúncias mente, em inglês, e compara com a tentativa de solução de pro-
britânicas de tortoise e de taught us. Alice havia perguntado à Tartaruga Fingida, no blemas matemáticos (MS 156a, p. 59r). Sabemos que, na opinião
capítulo IX de Alice no pais das maravilhas, por que ela chamava o seu mestre de tortoise
(tartaruga terrestre), já. que ela era, de fato, uma turtle (tartaruga marinha). Há. todo do autor, para alguns desses problemas matemáticos, particular-
um contexto de trocadilhos, tartarugas fingidas, terrestres e marinhas, confusão entre o
mente aqueles que tinham que tratar do infinito, como na quan-
significado de school (escola) para Alice, e de school offoh (comportamento de animais
marinhos), para a Tartaruga Fingida, além de Mock Turtle (Tartaruga Fingida) ser tificação universal, por exemplo, não havia sentido em falar-se de
o nome de uma sopa consumida durante a era vitoriana. No caso de Lichtenberg, a ci-
"provas" (cf. PR§ 164 ou BT, pp. 443-488). Nesses casos, o mais
tação provém do texto Brife von .lvíiigden über Literatur, atualmente no vol. 3 dos
Vermischte Scrifien, pp. 134-135. Uma criada escreve para outra acerca do bom gosto/e natural era aceitar, simplesmente, que há proposições matemá-
de uma citação que ela havia lido num Vade Mecum, que ela chama equivocadamente,
ticas sem decisões: e, que, talvez por isso, não deveriam necessa-
pela pronúncia cm alemão, de vátter Mekum (Padre Mécum). A carta está repleta de
palavras com erros de grafia e de equívocos semânticos que fazem a graça de um texto riamente constituir problemas (PG, pp. 366,377; PR§ 149).
em que uma pessoa escreve a outra, paradoxalmente, sobre o bom gosto relacionado à
O ponto a que quero chegar, contudo, é que, embora possa-
sublimidade e ao rigor da filosofia. Há um aforismo do próprio Lichcenberg que ressoa
ao fondo para o leitor desse texto: "'H,í 100 pessoas espirituosas para uma que tem en- mos usar muitas estratégias argumentativas para elevar o reconhe-
tendimento' é uma frase verdadeira com que se acalma muitos tolos sem espírito, que
deveriam considerar se não é demais exigir de um colo que diz, novamente, que 'há 100
cimento da forma de escrita de Wittgenstein - e, a meu ver, com
pessoas sem espírito nem razão para uma que tem espírito"'.
24 1 Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgenstein Introdução 1 25

muita razão, a um padrão literário -, 3 não pretendo usar a palavra configuração, que resultou, ela mesma, da tentativa de compor
estilo neste ensaio para me referir ao conteúdo de seu texto. E um texto adequado para livro. Depreende-se que, para colocar em
nem sequer para me referir a uma semelhança com a escrita de um prática seu método, a forma tradicional, digamos assim, do livro,
outro autor. Na verdade, pretendo deslocar o foco do conteúdo foi também se ajeitando ao modelo das variadas discussões que
para a forma. ali se encontravam, criando, dessa maneira, um estilo próprio do
A maneira como Wittgenstein se articula para também dizer que poderia ser, pela natureza daquele pensamento, um livro seu,
que "o óbvio ulula", 4 para mencionar outro caro literato que adequado ao tratamento das observações, e das variadas e repeti-
nosso filósofo vienense nunca conheceu, é o que de fato me pa- das abordagens que o método exigia quando o autor enveredava
rece mais relevante. E, dessa perspectiva, ele se apresenta de ma- por um tópico específico a ser discutido em seu texto. Nesse pre-
neira bem diferente de Carrol!. A forma do texto é completa- fácio, Wittgenstein chamou a forma inusitada, que resultou do
mente distinta. Somente a partir desse ponto, uma grande seu trabalho sobre a forma ideal de um livto, de "álbum". Tomarei
quantidade de outras diferenças - como objetivo, pensamento, a palavra "estilo", portanto, para expressar o trabalho que trans-
método e, sobretudo, a relação que se mantém com o leitor - se forma um modelo ideal numa configuração que o materializa na
desdobra muito mais claramente. Essa maior claridade a respeito prática: "álbum" vem a ser, nas IF, o estilo de livto mais adequado
das várias diferenças entre esses dois autores, desde que as obser- para o método de Wittgenstein.
vemos pelo ponto de vista da forma, justifica-se se compreender- Os textos de Wittgenstein têm não somente essa forma pecu-
mos afeição atual do texto como resultado de um trabalho apli- liar e própria, esse feitio, mas há também o fato de que neles le-
cado sobre uma forma ideal. Lemos no prefácio das IF que seu mos observações e discussões sobre formas de expressão utilizadas
texto foi planejado para ser um livro; na verdade, o segundo livro em conceitos filosóficos. Poderíamos talvez dizer que a forma
de Wittgenstein. Mas, na prática, acabou-se por chegar a outra atual do texto está em relação operativa com o tipo de discussão
realizada sobre formas de expressão. Estas, de fato, são o principal
foco dos métodos propostos para resolver os desafios que se co-
3 Tal como já fazem, por exemplo, os textos de Perloff ( 1996), de Gibson & Huemer locam em cada seção das IF. A observação do uso dessas formas
(2004). de Savickey (1999), de Rundrum (2006, pp. 204-218), de Hagberg (2006, pp. 53· de' expressão, dessas fórmulas que acabam, às vezes, se transfor-
-65) e até de Paul (2007, p. 23). mando em insensatezes, ou seja, a descrição dos conceitos em que
4
Na peça O beijo no asfalto, Nelson Rodrigues (2012) cria um enredo a respeito da rigi-
dez moral de uma sociedade hipócrita a partir de uma cena muito simples: Arandif,
elas se depositam e agem, levando a pressuposições confusas, tem
marido exemplar e indivíduo de bom caráter, beija na boca um homem que agoniza o propósito de deixar à vista do leitor as inquietações filosóficas
logo após de ter sido atropelado por um lotação. Diz Arandir que seu beijo foi um.,gesto
de misericórdia, realizado apenas como último recurso para fazer um bem a um desco-
que o método tem por fim dissolver. O álbum das IF, isto é, seus
nhecido. Mas Amado, jornalista em busca de fama e dinheiro, junto com Cunha, um esboços de paisagens, as variadas abordagens de diversas perspec-
delegado corrupto, tratam de distorcer a história para caracterizar Arandir como ho-
mossexual e criminoso. O que é o óbvio, nesse caso? Que Arandir era homossexual? O
tivas, os saltos repentinos de um tema para outro, o dialogismo
óbvio ululante é uma sociedade preconceirnosa na qual não há lugar para gestos de conduzido por vozes anônimas, as formulações frasais condensa-
bons sentimentos sem a presunção de alguma coisa secreta por trás da cena, o que faci-
lita bastante a corrupção. Cf. também Rodrigues, 1994.
das, as inversões sintáticas, a pontuação peculiar, estranha para os
26 1 Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgenstein lntrodução i 27

padrões germânicos mais comuns, os espaçamentos e indentações, e operação (cf. §§ 5.25-5.252). Desse modo, a forma estaria para o
servem como veículo adequado para esse propósito metodoló- estilo assim como a função estaria para a operação. A forma em si
gico, e configura, segundo o seu prefácio, a inclinação natural do é uma relação fixa entre vários elementos, como traços, marcas,
pensamento do autor em conexão com a própria natureza da in- objetos, pronta para ser trabalhada; a função, também em si
vestigação.Trata-se, como diz o prefácio, de um pensamento que mesma, pode ser vista como um tipo de relação determinada que
não pode soldar suas observações esparsas no feitio de uma tota- pode ser realizada entre elementos de dois conjuntos distintos,
lidade unívoca. em que o segundo, chamado de contradomínio, contém deter-
O conceito de estilo neste ensaio está relacionado, então, à minados elementos, um conjunto-imagem, que satisfazem a soli-
forma diversa do texto. Contudo, não somente à forma do texto citação do conjunto de saída ou primeiro conjunto, chamado de
em si, intocada, como um objeto que pode ser contemplado a conjunto-domínio. Mas o estilo é, na verdade, uma atividade
distância. Em si mesma, poderíamos dizer, a forma nada indica. exercida sobre a forma, um tipo particular de operação; e a ope-
Trata-se, no caso do texto, de uma corporatura, uma conformação ração, para a função, é, em geral, uma atividade transformadora
física, uma disposição material. O estilo, no modo como utilizo realizada por um agente distinto da entidade transformada. O
o conceito, indica antes o tratamento que resultou nessa com- estilo não é a forma, mas a forma acabada representa um estilo
pleição. Aqui há uma diferença entre a atividade que relaciona o do ponto de vista do resultado de seu trabalho, ou então da ativi-
empírico ao intencional e o próprio aspecto material da coisa, dade empregada que resultou naquela forma. Do mesmo modo,
independentemente do estabelecimento de uma relação gramati- a operação não é uma função, mas a relação que a função realiza,
cal interna que a humaniza. Apenas do primeiro modo a forma transformando objetos em valores. Assim, poderíamos traçar a
atual do texto expressa uma relação com o método, e mostra, as- seguinte analogia, útil, mas apenas aproximada, para efeitos ex-
sim, no seu resultado, uma atitude, um foco, um interesse. Só clusivos do esclarecimento aqui proposto:
assim a forma acabada comunica mediante sua relação operativa
com o método, realizando com ele uma interconexão que desenha Tipo de relação Tipo de atividade Tipo de resultado
Forma Estilo Expressão
o seu aspecro, a sua lisiognomia, alguma coisa que informa sem
Função Operação Transformação em valores
dizer, por intermédio das marcas deixadas pelas práticas de inves-
Necessária Contingente Necessário
tigação filosófica desenvolvidas no decorrer das quase sete cente-
nas de seções das IF. Configura-se uma marca de singularidade d9
texto por causa, precisamente, dessa espécie de rrabalho quede- Não é necessário, para a operação, que ela se baseie em qual-
marca uma subjetividade pela sua expressão. A ação do autor so- quer outra coisa para operar, e mesmo o resultado de uma opera-
bre o material de trabalho de que dispunha. O estilo expressa, ção pode ser a base dela própria. Com a função, que é uma ope-
portanto, um trabalho individual sobre uma forma ideal. ração, isso não é possível, pois ela não pode ser seu próprio
Podemos repetir aqui, apenas para efeito de esclarecimento, a argumento. Esse tipo de atividade, ocorrido no interior de uma
mesma distinção utilizada por Wittgenstein no TLP entre função cadeia de relações - na qual objetos sofrem transformações de

1
28 1 Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgenstein Introdução 1 29

acordo com certas regras -, pode também caracterizar a relação tampouco o efeito esclarecedor das histórias deste último. Carrol!
entre forma e estilo que pretendo expressar neste ensaio. O estilo, interessa-se em seguir derivações inusitadas de palavras e de situa-
enfim, resulta de um tipo particular de operação que a forma, por ções. Mas a preocupação peculiar com o auroengano e com as
si mesma, não pode realizar. O resultado dessa atividade é que a ilusões, surgidas pela nossa própria manipulação da linguagem, é
forma atual comunicará, por uma relação interna, exclusivamente típica de Wittgensrein, não de Carrol!. No embate contra as con-
intensional, 5 alguma coisa que, por si só, o conteúdo não é capaz. fusões filosóficas, Wittgenstein pretende mostrar em visada pa-
É assim que a fisiognomia informa, pelo que me parece, ares- norâmica ou sinóptica os critérios segundo os quais pensamos,
peito de todo um trabalho sem precisar dizer absolutamente na- em cada caso, o sentido de nossos conceitos. Essa indicação, esse
da. O álbum, mais que uma forma, é um estilo. Ali, no seu as- esclarecimento, desnuda muitas vezes as situações em que neles
pecto, na sua expressão, na sua singularidade, a diferença de estilo há completa falta de sentido.
entre Carrol! e Wittgenstein marca muito mais claramente a Vejamos, por exemplo, o tratamento do óbvio nas IF:
diversidade de interesses e a distinção dos meios utilizados pelos
respectivos autores para chegar aos fins que desejavam. "Pensar tem que ser algo singular." Quando dizemos, queremos
Poderíamos supor, à primeira vista, que essas diferenças de dízer, que isso procede assim e assim, não nos detemos, com o que
estilo são percebidas pelo conteúdo, não pela forma. Wittgen- queremos dizer, em algum lugar diante dos fatos: senão queremos
dizer que é isso e isso - assim e assim. - Pode-se exprimir, entretanto,
stein seria diferente de Carrol! porque fala do óbvio no interior
esse paradoxo (que já tem a forma de um cruísmo) também assim:
dos conceitos, de algo que está muito perto de todos nós por
Pode-se pensar o que não é o caso. (IF § 95)
causa da nossa linguagem comum, e não propriamente da lingua-
gem técnica dos conceitos recoberta pela linguagem comum.
Isso quer dizer que nossas formas de expressão podem nos
Quero dizer, utilizando as mesmas palavras que usamos normal-
levar, caso não tenhamos muito cuidado, a proferir truísmos
mente no dia a dia, mencionando ululantes obviedades que per-
como se fossem evidências incontestáveis. Dizer que o pensa-
tencem às nossas conversas cotidianas, as mesmas que nos ensi-
mento é algo único, singular, extraordinário, por causa de pro-
nam a linguagem técnica dos conceitos, o filósofo ressalta essas
priedades que ali colocamos arbitrariamente por causa dos nossos
formas de expressão porque elas, quando se lhes atribui qualquer
próprios jogos de linguagem, mas que depois passamos a ver
propriedade especial, nos conduzem a más compreensões. Em
como se fossem dele, do pensamento, e não nossas, e que também
contraste com Wittgenstein, Carrol! parece estar mais próxim9
queiramos falar dele em algumas ocasiões apropriadas, usando
do prazer e do entretenimento do que da nítida preocup";ção
tais truísmos como prova, é uma dessas obviedades invisíveis tão
moral do filósofo, embora não possamos absolutamente excluir
frequentemente mencionadas por Wittgenstein.
Esse é um ponto de diferença com relação a Carrol! bastante
5 Derivado de intensiio, termo técnico da semântica formal utilizado para expressar uma
digno de nota. Reparemos, porém, que se trata mesmo da forma
relação interna entre o que se expressa na sentença e o que a expressão significa, inde- e não do conteúdo. O tratamento filosófico do contrassenso, pela
pendentemente do que ocorre no mundo empírico em que a sentença é proferida.
30 1 Asingularidade das Investigações fifosófiws de Wittgenstein Introdução 1 31

sua exclusiva forma de apresenração, diferencia-se do propósito táculo, e sim um facilitador, para a compreensão. É interessante
literário de enrretenimenro que está nos livros de Carrol!: saber que em um recenre livro publicado por James Klagge,
Wittgenstein in exile, essa mesma preocupação com o fato de
Os aspectos das coisas, que para nós são os mais importantes, Wittgenstein não ser compreendido é também encaminhada
estão, pela sua simplicidade e cotidianidade, ocultos. (Não se pode para a questão do que esse autor emende como "temperamento"
notá-los, porque estão sempre diante dos olhos.) Os alicerces reais da
(2011, pp. 25-26). No fundo, o texto de Wittgenstein só poderia
pesquisa não chamam a atenção da pessoa de modo nenhum. A não
ser compreendido pelo leitor que tem a atitude adequada para
ser que isso tenha lhe chamado a atenção alguma vez. - E isso quer
dizer: aquilo que, uma vez visto, é o que mais chama a atenção e é o
o exposto no texto (cf. op. cit., p. 38). Quem não repara em suas
mais forte não nos chama a atenção. (IF § 129) próprias reflexões, quem for cego para os próprios pressupostos,
provavelmenre não reconhecerá tampouco o que esse autor está
Quer dizer, o apego da filosofia de Wittgenstein ao comenrá- fazendo em seus escritos sob o clássico nome de "filosofia". No
rio do óbvio prende-se aos pressupostos do que fazemos ao ex- livro de Klagge, ral atitude é aquela que corresponde ao espírito
pressar, algo tão perto e tão íntimo quanto o próprio sotaque. da "culturà', tal como posta em contraposição ao espírito de "ci-
Mas o interesse desse tipo de trabalho explica-se não porque o vilização" à maneira de Spengler, uma das mais fortes influências
filósofo pretenda substituir as confusões por novos e mais prepa- sobre o pensamenro de Wittgensrein (cf. op. cit., pp. 22-25). De
rados conceitos. A descrição da forma extingue-se em si mesma, qualquer modo, para Wittgenstein, em função da íntima conexão
sem nada alterar naquilo que descreve, senão pelo fato de que entre nossos pressupostos e nosso uso de conceitos, fazer filosofia
todas as relações inrernas saltam à vista do usuário do conceito, significa dizer o que todo mundo já, de pronto, admite: "Na filo-
caso ele compreenda o que se lhe comunica. Essa particularidade sofia não são tiradas conclusões. 'Isso tem que ficar assim!' não é
transforma a filosofia de Wittgenstein em uma prática vazia de uma proposição da filosofia. Ela só atesta o que todo mundo ad-
conteúdo que muito dificilmenre se pode perceber. Porque, sim- mite" (IF § 599).
plesmenre, os pressupostos do que falamos, ou do que enxerga- A suposição da maior parte das pessoas em relação aos afazeres
mos, é algo que não queremos, em princípio, mudar. Como con- normais da filosofia está, talvez, no sentido exatamente contrário
seguir enxergar os próprios truísmos, sobretudo truísmos que ao do programa wittgensteiniano. Filosofia teria a ver com o con-
assumimos como modelos filosóficos ideais? teúdo, não com a forma. Para elas, o natural, no caso, seria que a
Wittgenstein é um dos autores menos compreendidos da his;; filosofia construísse conceitos, estabelecesse teses, inferisse con-
tória da filosofia. Um fato absolutamente surpreendente, dado clusões, atestasse todas as coisas que se seguem necessariamente
que sua linguagem não é técnica, como ordinariamente ocorre na umas das outras. Depois de provado o argumenro, a filosofia po-
filosofia tradicional. Possivelmente a dificuldade decorre do estilo deria explicar a realidade por meio daquilo tudo que não vemos,
do texto. Mas o estilo, conforme defendemos, é expressão de um revelar o que está realmenre oculto - mas só o que está oculto por
trabalho que resulta naquela forma. Assim, seria preciso uma mo- detrás da realidade, e não o que se esconde bem na frente dos
dificação do olhar para que o estilo não represenrasse um obs- nossos olhos. Ninguém espera da filosofia que ela ateste o que
32 1 Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgenstein Introdução ! 33

todo mundo já admite, o que todo mundo já está sabendo de cor Wittgenstein, então, é colocar a filosofia em ação, livrando-a de
e salteado. Ou seja, a maior parte das pessoas provavelmente es- qualquer conteúdo, para fazer um exame minucioso dos tipos de
pera que a filosofia faça descobertas iluminadas e inauditas, revele afirmação que proferimos no uso da linguagem. Ali pode estar o
grandes coisas que a humanidade antes desconhecia totalmente, desconchavo, o despautério, a tolice, a asneira, ocultos diante
profira somente perfeitas novidades e decifre os mistérios do pen- dos nossos próprios olhos sob o aspecto da mais rigorosa gra-
samento. Espera-se talvez que a filosofia, se não for uma ciência, vidade. E esse exame é também o da sua forma, não o do con-
pelo menos simule uma ciência. Proponha para nós algum co- teúdo. Nesses casos, os contrassensos são produzidos por nós
nhecimento novo, fascinante e extraordinário. Digamos que é mesmos, não pelo autor do texto, tal como se acha na literatura
muito difícil, para não dizer decepcionante, dadas tais pressupo- de Carrol!. Wittgenstein nem mesmo se importa com o absurdo
sições, compreender as razões de um filósofo que pratica tudo das afirmações pelo lado do seu conteúdo, pois, afinal, algumas
aquilo que mais comumente se reconhece como o oposto do que coisas aparentemente absurdas só podem ser reconhecidas como
se chama de filosofia. tais depois de decorrida certa mudança cultural, ou depois de
Seria preciso que o usuário do conceito filosófico percebesse realizada uma verdadeira revolução científica, como é o caso de
a forma de suas expressões pela forma do texto que as discute. É toda a mitologia antiga, e até da hodierna, discutidas extensa-
justamente nessa finalidade prática do comentário do óbvio, na mente em ORD. Veja-se, por exemplo, desta vez nas IF, o caso das
maneira como a filosofia se torna uma atividade sem conteúdo, teorias da geração espontânea:
para o autor, e na sua consequente dificuldade de compreensão,
que o programa wittgensteiniano se diferencia nitidamente da Se estou inclinado a supor que um rato nasce por geração espon-
literatura de Carrol!. Pois, se Carrol! cultiva contrassensos como tânea de trapos cinzentos e de poeira, então seria bom investigar em
forma de entretenimento, em primeiro lugar, e depois, quem sabe seguida esses trapos, como um rato pôde neles se esconder, como ele
secundariamente, como modo de ensino sobre a arbitrariedade, conseguiu chegar lá etc. Se, no entanto, estou convencido de que um
rato não poderia nascer dessas coisas, então essa investigação seria
ou talvez sobre a sensatez e a insensatez da lógica em certos casos,
talvez excessiva.
Wittgenstein, por sua vez, trata o óbvio pela descoberta, nele, de
O que, porém, faz com que na filosofia haja oposição a tal consi-
disparates, conforme o tratamento que lhe dispensa: "Os resul- deração de detalhes é algo que devemos antes aprender a compreen-
tados da filosofia são a descoberta de algum simples disparate e der. (IF § 52)
calombos que o entendimento ganhou ao bater contra o limit,e
da linguagem. Eles, os calombos, nos permitem reconhecer'; va- O que nosso filósofo pretende, de fato, à diferença de Carrol!,
lor daquela descoberta" (IF § 119). é realizar uma investigação gramatical. Uma pura prática, que sig-
O que parece estar diante dos nossos olhos, e parecemos tam- nifica observar atentamente, de maneira ordenada e panorâmica,
bém não enxergar, é a maneira como usamos nossas formas de como funciona a lógica de nossa linguagem mediante o uso de
expressão, forçando-as a dizer o que lhes seria particularmente nossas sentenças, como os pressupostos daquilo que é dito seco-
impossível, pois lhes escapa assim o sentido. A preocupação de nectam com vários elementos, que aparecem, depois de expostos,
34 1 Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgenstein Introdução J 35

em uma rede interna de relações linguísticas que sustentam os ressa a Wittgenstein, realmente, Ca maneira como vemos as coisas,
pilares ou o sentido de uma afirmação qualquer. Não é o conteú- como as representamos, o que só se revela por uma visada pa-
do que interessa, propriamente, mas o modo como o conteúdo se norâmica das conexões realizadas pelo uso de nossas expressões
organizou. Se dissermos que ratos nascem de farrapos nojentos, (IF § 122).
examinam-se os supostos do que estamos dizendo, o que con- Mas por que lhe interessa particularmente a maneira como
tamos como evidência para a nossa afirmação, e por quê. Trata-se, vemos as coisas? Em seu trabalho sobre a linguagem, sobre a ta-
de fato, não somente do exame dessas conexões internas, mas refa de organizar de determinada maneira até mesmo aquilo que
de uma investigação do uso de nossas expressões, ou delas em percebemos, Wittgenstein corroborou, em sua forma particular
seu uso, cujo propósito é o de remover possíveis más compreen- de investigação linguística, o que tanto a filosofia moderna
sões que ali se instalam como problemas. Isso, que sentimos como quanto a filosofia crítica kantiana já discutiram, cada uma à sua
um grande problema, e que, no fundo, não é nada, se forma às maneira, sobre o tema: que nossa relação com o mundo não é
vezes pela superposição de analogias entre formas de expressão meramente passiva, que nós constituímos nossa experiência de
provenientes de regiões completamente distintas da linguagem determinadas formas. Parece claro que só vemos as coisas de certa
(IF § 90 ), ou porque certas formas de expressão atravessam oca- maneira justamente porque as representamos assim. Wittgen-
minho do nosso pensamento (IF § 93 ). O importante não é nem stein, no entanto, agrega ainda outro fator decisivo, de sabor
o fenômeno referido na expressão, nem o estudo panorâmico da schopenhaueriano, a essa organização linguística da experiência:
gramática pela própria gramática, mas a análise ou a decom- a vontade. E talvez seja exatamente esse o ponto para o qual o li-
posição das condições de possibilidade desses fenômenos: como vro de Klagge (2011) pretenda chamar a atenção com o uso da
eles foram armados, com quais suposições, em função do que, palavra "temper~mento". Para Wittgenstein, "ver o aspecto e re-
dentro de qual contexto, para servir a que propósito, o que está presentar estão subordinados à vontade" (PPF § 256).
em jogo nas IF. Análise ou decomposição, não exatamente no Como se explica tal peculiar entrelaçamento entre fatores ni-
mesmo sentido em que aparece no TLP, isto é, até que se chegue tidamente racionais, no sentido de que pertenceriam ao âmbito
aos constituintes mais elementares da proposição, que _diz, assim, daquilo que chamaríamos de "razão", bem ao gosto kantiano, e
qual é seu sentido; mas a análise no sentido de um descobrimento esse último fator, já bem mais ao gosto schopenhaueriano, que
das relações internas entretidas entre os vários elementos linguís- pertence a um âmbito, o emocional, que normalmente excluímos
ticos mediante seu uso ou seu emprego em proferimentos às ve~es de qualquer relação com o racional? Para Wittgenstein, uma ex-
até cotidianos, com vistas a revelar o que se sente como probfoma. clusão como essa não se justifica (talvez tampouco se justifique
O objetivo é o de dissolver o que aparece para nós como intran- para Kant, mas essa é outra história), uma vez que ele pretende
quilidade, como urgência, e não, propriamente, estudar a forma- expor o panorama completo de todas as relações da linguagem,
ção do sentido e dos significados. No método wittgensteiniano, sem deixar nada de fora. E a razão, em conjunto com a emoção,
as possibilidades são clarificadas pela reflexão sobre o tipo de são partes indissociáveis de uma experiência vivida como tota-
afirmação que fazemos acerca dos fenômenos. Porém, o que inte- lidade no emprego dos conceiros. Os modos de representação,
36 1 Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgenstein Introdução j 37

tomados do ponto de vista dessa totalidade, vão fazer parte, na toda a realidade seja elástica, mesmo que toda a realidade encolha
verdade, da nossa gramática. (Cf. um pouco mais sobre a expe- e estique a todo momento, e tudo isso independe de nos darmos
riência vivida como totalidade no capítulo 9, adiante.) conta disso ou não. O metro-padrão de Paris inaugura, na ver-
Vejamos com um pouco mais de detalhe esse ponto. O gra- dade, uma determinada prática com a realidade - o fato de que
matical, como sistema, inclui a organização da experiência e os passamos a medir o espaço de determinada maneira-, e isso nos
pressupostos dessa organização, nos casos em que um conceito é ensinado como uma convenção. O mesmo pode ser dito da cor,
esta, sen d o empregad'T' ' de uma cor: "!"
o . .1omemos o conceito azu , como o "azul': por exemplo, que, mesmo que não esteja guardado
por exemplo. O azul colore a superfície de uma série de objetos em Paris, é sempre uma amostra que serve de padrão, de refe-
diferentes, de modo que poderíamos dizer de uma determinada rência, de comparação para a correção das nossas atribuições de
mancha sobre uma tela de pintura que "ela é azul". Podemos pen- cor à realidade em certos casos. Esses meios de apresentação, do
sar, à primeira vista, que a realidade consiste, simplesmente, de qual nos apropriamos na forma de critérios, são instrumentos da
coisas que existem no mundo diante de nós, isto é, que a realidade nossa linguagem pelos quais conformamos uma realidade, ou a
é um grande povoamento de diferentes e multifacetados "seres" representamos, por assim dizer, em nossas afirmações em geral.
que estão depositados no espaço e no tempo ao nosso redor, e Desse modo, depois de um período de aprendizado, a experiência
separados de nós também, como um vasto mobiliário de entida- se organiza em critérios pelos quais podemos aferir o acerto de
des ontológicas a serem paulatinamente descobertas pela investi- nossos conceitos no momento em que são aplicados. E a práxis
gação metódica e paciente de um observador atento. Mas, sem parece deixar, assim, os argumentos ontológicos um tanto quanto
negar ou afirmar que a ontologia seja assim ou assado, a análise obsoletos.
gramatical mostra uma realidade bem mais prosaica que essa. Ela E, talvez mais importante que as questões filosóficas de fundo,
indica que, quando propomos uma ontologia, fazemos antes, na nossos conceitos parecem ser representações indubitavelmente
prática, conexões com o empírico e o representamos de determi- guiadas pela vontade. Isto é, se nos perguntarmos por que o azul
nada maneira. Nesse caso, julgamos que uma determinada man- é azul, ou por que um metro tem um metro, podemos, é claro,
cha colorida diante de nós seja de cor azul porque, simplesmente, atinar mirabolantes explicações químicas e físicas, explicações
ligamos certa percepção de cor, certo nome a essa percepção, e um jurídicas, sociais, econômicas, mitológicas, religiosas, místicas
correspondente pedaço do mundo empírico. etc.; mas, ao fim e ao cabo, nossas explicações, por muitas e dis-
Bem, talvez isso não seja tão simples assim. Pois como foi qqe · tintas que sejam, sempre se esgotarão em algum ponto. Nesse
vinculamos uma percepção particular a um nome geral? Vejamos momento solene, então, diremos simplesmente que isso é assim
outro exemplo, o metro-padrão de Paris (cf. IF § 50). Não pode- porque é assim (cf. IF § 217). E não poderia ser de outra maneira.
mos dizer dele nem que tem nem que não tem um metro. Ele está Essa resposta é o índice do gramatical. Isso quer dizer que, pela
lá, guardado numa redoma de vidro, para instaurar um determi- investigação gramatical, enxergamos que a linguagem consiste de
nado jogo que fazemos pela mensuração com metros. O metro- uma multiplicidade de acordos. Coisas com as quais todos con-
-padrão representa esse um metro. Ele é um metro, mesmo que cordamos, no fundo, a respeito de qualquer assunto sobre o qual
38 1 Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgenstein lntroduçáo [ 39

possamos discorrer, até mesmo sobre o que consideramos ser a Quando falo de linguagem (palavra, proposição etc.), tenho que
falar da linguagem do cotidiano. É talvez essa linguagem muito gros-
realidade. Mas são acordos celebrados nas.formas de vida, não em
seira, material, para o que queremos dizer? E como seforma então uma
opiniões (IF § 241). Acordos que são, na verdade, práticas insti-
outra? - E como é estranho então que nós possamos enfim iniciar
tucionalizadas que, mesmo desapercebidamente, assimilamos algo com a nossa!
naqueles já mencionados períodos de aprendizado. Porque, de a
Que eu, pelas minhas explicações concernentes linguagem, te-
outro modo, não poderíamos nos comunicar e nada teria muito nha que empregar a linguagem completa (não talvez uma preparató-
sentido. Tal sentido de fundo, de que todos participamos, é evi- ria, temporária), já mostra que só posso propor superficialidades so-
dentemente convencional, independente da nossa vontade parti- bre a linguagem.
Sim, mas como podem então nos satisfazer essas explanações? -
cular, como indivíduos separados de outros indivíduos que so-
Ora, mas perguntas também já escavam compostas nesta linguagem;
mos. Mas, se ao final de uma justificação está sempre uma
tiveram que ser expressas nesta linguagem, se algo tinha que ser per-
determinada prática, isso quer dizer também que voluntariamente guntado!
aderimos, por paradoxal que possa parecer, a essa prárica. Faze- E teus escrúpulos são más compreensões.
mos parte dessas instituições, porque assim, de qualquer modo, Tuas perguntas referem-se a palavras; logo, tenho que falar de
queremos. Tal como já havia sido lembrado no TLP (cf. capítulo palavras.
7, adiante), nossa vontade é também vontade convencional. Nossa Diz-se: não se trata da palavra, mas do seu significado; e imagina,
assim, o significado como uma coisa do tipo da palavra, posto que se
vontade é também vontade convencional, pelo menos até que nos
diferencia da palavra. Aqui está a palavra, aqui o significado. O di~
rebelemos contra uma dessas inúmeras convenções ou práticas
nheiro e a vaca que com ele se pode comprar. (Mas, por outro lado:
institucionalizadas. Não surpreende, portanto, a cegueira para o dinheiro e sua utilidade.) (IF § 120)
outros aspectos possíveis da representação. Faltaria aí a ativação
de uma outra vontade - uma rebelião, digamos assim, contra von- E se os trajes civis da atividade e da linguagem científica não
tades assumidas desapercebidamente. lhe fossem o que há de mais fundamental, suas definições não
Para pôr em prática sua forma de investigação gramatical, a oscilariam tanto ao longo da história: o que hoje é um subpro-
qual coloca a descoberto o que se esconde diante mesmo dos nos- duto marginal de um experimento, amanhã pode ser parte da
sos olhos, Wittgenstein utiliza a própria linguagem comum, a do própria definição do fenômeno (IF § 79).
dia a dia. E não poderia ser de outro modo, pois é ela que funda- Presumo que essa forma, esse como, que com linguagem co-
menta até mesmo as nossas mais técnicas elucubrações matemá~ mum destrincha o revestimento de linguagem comum a encobrir
ticas (cf. RFM V,§ 2). Constituir os números e a forma da nume- nossas mais abstratas tecnicidades, seja inesperado para alguém
ração, medir objetos, propor e provar hipóteses ou apresentar que pressupõe encontrar num texto de filosofia uma filosofia tra-
resultados de experimentos são também típicos jogos de lingua- dicional. Daí o grande desentendimento e a consequente falta de
gem (cf. IF § 23 ), conformados, todos, pela linguagem ordinária. reconhecimento. A vontade é que teria que ser outra, para repre-
Dela não podemos escapar, pois é ela que preenche de pressupos- sentar a realidade de outro modo, ou, pelo menos, aceitar que as
tos nossas atividades expressivas: coisas poderiam ser diferentemente representadas se quiséssemos.
40 1 Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgensteln Introdução 1 41

Maurice Drury, um antigo aluno de Wittgenstein, estava, tam- Já o segundo grande obstáculo mencionado por Drury, de-
bém ele, convencido de que muito pouca gente seria capaz de corrente do primeiro, é o de que todos os textos de Wittgenstein
entender os textos de seu professor e amigo pessoal, mesmo que apontam para a dimensão ética (p. 81), para a urgência e a neces-
eles fossem tão claros e translúcidos como o cristal. Tal dificul- sidade de modificação da vontade. Mas Wittgenstein pretende
dade não era, na opinião de Drury, de natureza intelectual, mas desincumbir-se dessa tarefa sem ingerência de sua própria von-
apenas uma consequência do modo como se conforma, hoje em tade sobre a vontade do leitor, como quem quer evitar saltar por
dia, a nossa vontade. Em seu modo de ver, a vontade não seria, em cima da linguagem para dizer o que é a linguagem. Trata-se aqui,
princípio, totalmente livre de condicionamentos sociais. Daí tam- evidentemente, de não desrespeitar a liberdade ao tentar induzir
bém decorreria, como ele observou profeticamente, e como vere- alguém, forçosamente, a mudar de parecer. Wittgenstein quer
mos mais detalhadamente no capítulo 8, uma multiplicidade de modificar seu leitor por dentro, por assim dizer, talvez da mesma
interpretações diferentes e desencontradas a respeito do que pro- maneira como se podem traçar rigorosamente por dentro os limi-
priamente seria a filosofia de Wittgenstein (cf 1984, pp. 76-85). tes da linguagem à maneira do TLP. É provavelmente por esse
Drury lembra, para corroborar seu argumento, que o próprio motivo que nada se diga sobre o ético em seus textos, pelo menos
Wittgenstein já estava plenamente convicto de que não seria en- de maneira direta. Wittgenstein prefere deixar ao leitor o que o
tendido pela maioria das pessoas (idem, p. 78). Dois grandes obs- leitor pode fazer por si mesmo (cf. CV, p. 88; MS 137, p. 1346).
táculos cooperavam, na realidade, para essa dificuldade de com- Talvez seja essa mesma a sua ideia de revolução, de uma revolução
preensão, segundo Drury. O primeiro deles é a época em que mais profunda do que qualquer outra: "Revolucionário é aquele
vivemos. Uma era marcada pela fé no progresso, que sempre pa- que pode revolucionar-se a si mesmo" (MS 165, p. 204; CV, p. 51).
rece ser muito maior do que realmente é, tal como sugerido na Uma revolução ética, uma revolução da livre vontade. E talvez
epígrafe das IF. Nossa era poderia ser caracterizada por uma en- também daí decorra a tendência a escrever de forma condensada,
trega cega ao poder da tecnologia, era de uma ilusão contínua das como a dizer meias-palavras, sem revelar senão o mínimo neces-
massas, de todas as formas possíveis, sobre a necessidade de vi- sário para o entendimento do leitor. O que está bem de acordo
vermos em função do progresso da ciência como valor em si, in- com o estilo de pontuação e de subdivisão sui generis de seus tex-
dependente de qualquer relativização possível. Wittgenstein de- tos, as frequentes inversões sintáticas, as intervenções súbitas de
sejava dedicar seus livros "à glória de Deus", numa época em que outras vozes no meio de uma sequência aparente de argumentos,
uma frase como essa poderia ser perfeitamente usada para u~a coisas que nos fazem lembrar uma de suas máximas sobre a obra
trapaça ou uma ilusão desse tipo (PR, p. 7; cf. Drury 1984, P-,78). de arte: ''A obra de arte não quer transmitir outra coisa senão a si
Então, o primeiro grande obstáculo para a compreensão da forma mesma" (MS 134, p. 106; CV p. 67).
de filosofia praticada por Wittgenstein, uma filosofia que é exclu- Com a ideia de integridade da obra de arte, de uma inteireza
sivamente atividade, é a era em que vivemos, marcada pela fé cega própria dela, não só estética mas também moral, Wittgenstein
na ideia de progresso e que molda inflexivelmente a vontade da talvez queira dizer que a obra de arte não está aí para, de maneira
maioria, talvez simplista e unilateral, transmitir alguma coisa qualquer,
42 1 Asingularidade das fnvestigaçõe5 filosóficas de Wittgenstein Introdução 1 43

como uma mensagem ou um determinado ensinamento, por Falamos de compreensão de uma proposição no sentido de que
ela pode ser substituída por outra que diga o mesmo; mas também
exemplo, para o apreciador. É exatamente nesse sentido que ele
no sentido de que ela não pode ser substituída por nenhuma outra
critica Tolstoi, na passagem supracitada, que pensava que a obra
(tampouco quanto um tema musical por outro).
de arte deveria transmitir um sentimento. A obra de arte não quer Em um caso está o pensamento da proposição, que é comum a
transmitir outra coisa, assim como não é o caso, quando visito diferentes proposições; no outro, talvez, o que só essas palavras nessas
uma pessoa (esse é o exemplo que ele dá no texto). A visita não posiçóes expressam. (Compreensão de um poema.) (IF § 531)
seria um meio para outro fim qualquer; uma visita seria apenas
uma visita e nada mais. E aí reside toda a profundidade do ato. Daí que a maior dificuldade da filosofia talvez seja, para
Quero apenas visitar uma pessoa amiga porque, quem sabe, gos- Wittgenstein, não dizer mais do que sabe (BB, p. 45). Apenas
taria de ser bem recebido por ela. Não se deveria inserir, nesse essas palavras, nessas posições, expressam. Quer dizer, para ele, a
caso, uma separação entre o sentimento e sua expressão: ''Não se grande dificuldade da filosofia seria a renúncia a uma tendência
trata de explicar um jogo de linguagem pela nossa vivência, mas muito forte da nossa natureza a dizer muito mais do que pode ser
da confirmação de um jogo de linguagem" (IF § 655). Wittgen- dito, renunciar a uma espécie de compulsão à generalização aliada
stein fala aqui da escrita como expressão. Expressão, talvez, de um ao desprezo pelo caso particular (BB, p. 18). O fato é que a inves-
sentimento, ou talvez percebida como uma expressão sentida; tigação gramatical, não ultrapassando o limite da mera descrição,
mas não alguma coisa que tencione ser um meio para uma finali- e examinando as sentenças estritamente em seu uso, na sua apli-
dade alheia ao que ali mesmo está imediatamente presente e já cação particular, observa rigorosamente essa renúncia filosófica a
acontece na forma de um jogo que nos é proposto jogar. Preservar dizer algo além da própria conta, atendo-se rigorosamente à
a individualidade da obra de arte, ou, igualmente, preservar a forma do caso.
individualidade da expressão significa resguardar:todo um te- Em outras palavras, a grande dificuldade de compreensão dos
souro de possibilidades distintas que podem advir da interação textos de Wittgenstein não parece constituir-se realmente como
entre a obra e sua apreciação. Portanto, é como expressão que um problema intelectual, mas simplesmente como oriunda do
talvez pense Wittgenstein que a "filosofia deve realmente ser ape- fato de que ele pratica a filosofia como forma de luta contra as
nas poetizada" (CV, p. 28; MS 146, p. 25v) outra de suas co- ilusões e o autoengano. É essa dimensão ética de sua filosofia
nhecidas máximas sobre a arte. A arte como intervenção prática, que provavelmente seja de muito difícil reconhecimento nos tem-
sem conteúdo. pos atuais. Seu mote mais conhecido talvez seja o que diz que a
Como expressão simplesmente, um texto não pede nada µ,ais filosofia é uma luta contra o enfeitiçamento (BB, p. 27; IF § 109).
do que reconhecimento. Do reconhecimento podem-se abstrair Mas a nossa era, tomada que está pelo espírito da "civilização",
muitas possibilidades diferentes. Contanto que não se tome a pelos valores aliados à ideia de "progresso" e de "ciência" (cf. CV,
obra como um meio para chegar a alguma outra coisa qualquer. pp. 8-11 ), parece seguir na direção contrária, que é a da prática da
Tudo estaria ali, um universo, em todas as possibilidades de inte- filosofia como forma de doutrinação, de provocar fascinação e,
ração entre o texto e o leitor: justamente, de enfeitiçamento.
44 1 Asingularidade das lnvestíqações fi/osófícas de Wittgenstein Introdução 1 45

[Para o prefácio] Não é sem resistência que passo o livro ao pú- Devemos, evidentemente, levar em consideração também o
blico. As mãos nas quais ele vai cair não serão, na maior parte das fato, talvez surpreendente para alguns, de que as IF são, na reali-
vezes, aquelas que gosto de imaginar. Que ele possa logo - isto é o
dade, uma obra inacabada. Como tal, ela está, como muito bem
que desejo - ser completamente esquecido pelos jornalistas filosófi-
nos lembra Denis Paul (2007, p. 23 ), situada em relação de indis-
cos, & permaneça assim conservado para um mais nobre <<melhor>>
sociabilidade com toda a extensa e complicada ramificação do
tipo de leitor. (MS 136, p. 81a)
conjunto de manuscritos e datiloscritos que a circunscreve de
Neste breve ensaio, pretendo, portanto, apresentar a obra ca- algum modo. Não apenas ali, nas imediações de seu texto, efeti-
vamente composto entre 1936 e 1947, mas também ao longo de
pital de Wittgenstein, as Investigações filosóficas, do ponto de vista
toda a produção intelectual posterior do autor, desde seu retorno
de sua fisiognomia. O que significa, em princípio, tomar as IF pelo
conjunto de traços singulares que as caracteriza ou lhe dão ex-
à filosofia, em 1929, até suas frases finais, em 1951. Se quisermos
pressão como obra filosófica. Essa expressão é singular por causa, interpretar as IF por seu estilo, isso significa capturar a inextin-
precisamente, de seu estilo de álbum. São esses traços característi- guível irresolução entre o livro e o álbum. Evidentemente, esse
cos e únicos que, a meu ver, marcam sua fisiognomia e lhe dão fator torna a tarefa de interpretação um tanto quanto mais difícil,
e mais propensa, por conseguinte, a árduas polêmicas.
expressão. Uma expressão que só é possível por aquelas palavras
Sem me furtar a essa realidade, defendo uma interpretação das
naquelas posições. O que significa dizer que há algo que não está
no que é dito, mas na maneira de dizer. Se há uma operação que IF como texto terapêutico. Tal ideia indica não somente uma fina-
liga a forma com uma expressão, então a maneira como se diz lidade que pode ser comprovada pelos próprios escritos do autor,
alguma coisa denuncia precisamente os fatores mais importantes mas sobretudo assinala uma meta no texto que é dele inseparável,
da comunicação do autor com o leitor: a visão da filosofia como coino uma espécie de gramática ou de jogo que se pratica me-
diante a escrita. Se o leitor puder compreender a atitude do autor,
pura atividade.
A "fisiognomià' é um conceito com o qual nosso autor traba- a filosofia apenas como atividade, então o que ali vem escrito
lhou ao longo de toda a sua carreira, como veremos neste texto, pode ter o interesse que se desejava transmitir pelo texto.
mas que também está vinculado a seus conceitos tardios de ex- O que quer dizer, como veremos ao longo deste ensaio, certa
pressão, de visão de aspecto, e, finalmente, de estilo. Tudo isso qu'antidade de hipóteses a serem sustentadas. Em primeiro lugar,
significa dizer que não seria preciso recorrer a outras fontes filo- a ideia de interpretá-las por seu estilo. Isto é, pelas marcas que as
sóficas ou doutrinárias para compreender essa obra capital, senã6 distinguem e diferenciam de certo ideal ao qual a sua elaboração
àquilo que no corpus textual produzido pelo próprio autor já se escrita estava ligado, mas que também representam, longe de
qualquer dúvida, não um desvio inevitável ou um acidente com-
encontra suficientemente evidenciado. Isso ficará mais claro no
pletamente alheio à vontade do autor, tal que o tenha afastado
capítulo 9, quando colocarmos em contraste o conceito de estilo
de Wittgenstein com aquele já clássico, elaborado pelo filósofo dos seus propósitos. O estilo expressa, ao contrário, uma escolha
deliberada de apresentar uma obra de filosofia precisamente com
francês Gilles-Gaston Granger.
aquelas características de escrita, que se tornam, assim, a manifes-
46 1 Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgenstein Introdução 1 47

tação do resultado de um longo trabalho. O estilo expressa justa- stein pelo conteúdo, não como atividade. Embora ressaltem sem-
mente esse trabalho, que consiste no exercício ou na prática do pre corretamente algum aspecto relevante presente no texto, não
método. E como o estilo expressa? O estilo expressa pela forma o tomam pelo que ele é, isto é, como uma expressão de atitude.
acabada que resulta de um trabalho sobre ela mesma, o estilo re- Por esse motivo, talvez seja mais certo dizer que essas interpreta-
presenta uma relação que passa a ser, assim, operativa. Uma vez ções tomam o texto de Wittgenstein como uma sinalização de
feira a escolha pelo estilo, no caso das IF, consignada inclusive outra coisa, dele separável, que seria cada uma das seis propostas
pela aceitação, expressa no prefácio da obra, da natureza da in- defendidas por esses importantes autores da literatura secundária.
vestigação, há que se considerar o estilo pelo reconhecimento de Pelas seis interpretações, o texto das IF funcionaria, então, mais
uma lisiognomia, e como forma de expressão que mostra certa como prova da hipótese que defendem do que como expressão de
atitude sem sugerir ao leitor nada mais do que aquilo que ele uma atitude filosófica que pede para ser reconhecida como tal.
pode compreender por si mesmo. Em outras palavras, seria um texto que serve para que, por exem-
Procuro corroborar essa hipótese não somente pela compro- plo, o autor recupere a tranquilidade perdida pelas confusões fi-
vação textual direta, mas também porque a hipótese do estilo é losóficas; pratique uma terapia dos conceitos utilizados unilate-
reforçada pelos conceitos wittgensteinianos de expressão, de visão ralmente na compreensão de questões filosóficas; crie outros
de aspecto e de lisiognomia, elaborados sobretudo mais tardia- conceitos que sirvam como ferramenta para o esclarecimento
mente, nas discussões sobre a filosofia da psicologia. Segundo essa daquelas questões; realize uma crítica dos fundamentos da mate-
perspectiva, o estilo singulariza o texto e indica um autor que mática e da psicologia; ou mesmo, ainda, expresse certa antifilo-
pede, pelos seus escritos, um determinado tipo de reconheci- sofia, entre outras coisas que fazem parte de uma relação interna
mento: o do significado da sua atitude. Tal como o exposto na e orgânica presente no próprio texto.
seção que contém o§ 144 das IF, em que Wittgenstein revela que Resta-me dizer como pretendo apresentar minha proposta de
deseja para si um método semelhante ao dos matemáticos interpretação das IF. Começo como se partíssemos da estaca zero:
indianos - aquele que modifica a maneira de olhar: em nosso caso, a dificuldade de entendimento da obra como pro-
blema central. Cabe ao primeiro capítulo, que serve de abertura
[... ] Eu queria colocar esta imagem diante dos seus olhos, e o seu ao' ensaio, a colocação mais apropriada para os objetivos do pro-
reconhecimento dela consiste em que agora ele [aluno] está inclinado blema de entendimento das IF. Esse conjunto de reflexões pode
a considerar um caso dado diferentemente: a saber, compará-lo corµ ser comparado com outras obras clássicas da filosofia contempo-
esta série de imagens. Eu modifico a sua maneira de olhar. [Mateni~- rânea, também difíceis de serem entendidas, e, mediante essa
tico indiano: "Olhe para isto!"] (IF § 144)
analogia, será possível assinalar algumas de suas qualidades dis-
tintivas e de suas características internas, imprescindíveis para
Em segundo lugar, a interpretação das IF como texto terapêu-
uma compreensão do problema pela perspectiva do estilo da obra.
tico se confronta diretamente com, pelo menos, outros seis tipos
Desse ponto, partimos para nossas hipóteses de trabalho, no
de interpretação que, a meu ver, tomam a filosofia de Wittgen-
capítulo 2. Em primeiro lugar, tomar o pensamento de Wittgen-
48 1 Asingularidade das /nvestígações filosóficas de Wittgenstein Introdução 1 49

stein como inseparável de seus escritos. Não porque o pensa- nosso intelecto. Tomaríamos conhecimento de certa missão, tal-
mento de quase qualquer outro filósofo que possamos imaginar vez até religiosa, talvez mística, da filosofia, de deixar tudo como
talvez o seja, mas para que não tomemos uma coisa como causa está. E de que maneira essa impressão se modificaria se, além da
da outra - ou seja, o texto como causa do pensamento do autor. seção que contém o§ 124, também encontrássemos por ali, perdi-
E nem para que isolemos do texto um corpo de doutrinas que das, as seções dos§§ 89-133? Teríamos agora, à nossa disposição,
poderia ser aplicada, sem solução de continuidade, em outros toda uma sequência de observações que poderia nos esclarecer
lados. Isto é, defendemos a tese de que, no caso de Wittgenstein, um pouco mais acerca do papel da filosofia. Nossa compreensão
não há que isolar do seu contexto elementos que fazem parte de se modificaria com esses novos trechos em relação à primeira
uma totalidade expressiva e que se relacionam apenas interna- impressão? Seria possível enxergar as IF como as podemos ver
mente. Há significativas diferenças, em se tratando desse autor, se agora? Teríamos, naturalmente, uma forma de compreensão
tomamos o jogo de linguagem como primário também nesse caso bastante diference do que é possível neste momento, com a to-
(cf. IF § 656). O jogo de linguagem substitui-se imediatamente à talidade da obra a nosso dispor. Este capítulo procura explorar
própria reação, e não temos como compreendê-lo senão pelo que tais hipóteses.
vemos diante de n6s. Em síntese, interpretando um compor- O capítulo 4 introduz, logo em seguida, uma nova hipótese de
tamento (IF § 206), mas tal interpretação pode estar correta ou interpretação: ler as IF ao pé da letra, tomando as palavras pelo
não (IF § 207). Parece-me que é nesse preciso sentido que deve- seu valor de face, sem tentar qualquer interpretação mais re-
ríamos tomar, pela tese que aqui defendo, as IF como uma fisiog- buscada do que o que realmente está consignado diretamente
nomia. Como uma expressão com determinadas marcas faciais naquelas folhas de livro. Mas veremos que essa via de leitura tam-
que a distinguem e singularizam entre todas as outras expressões bém fica muito complicada, porque, assim, as IF ficam parecendo
de filosofia. Uma expressão que autoriza uma visão de aspecto, um amontoado de frases contraditórias. Suas características tex-
autoriza uma interpretação que, como qualquer outra, poderia ser tuais nos obrigam peremptoriamente à busca pelo contexto como
reformulada em caso de erro ou de completa mudança de visão forma de iluminar todas as difíceis passagens que encontramos
de aspecto. Mas, em segundo lugar, e ainda mais importante para no texto, e que, na verdade, não são poucas.
as nossas hipóteses de trabalho, ao admitir esses pontos de par- E, de fato, no capítulo 5 demonstramos que, pelo contexto
tida, podemos seguir uma estratégia metodológica para a nossa mais imediato da obra, certas características de estilo podem ser
interpretação. iluminadas para nos ajudar a compreender a singularidade das IF
O capítulo 3 é uma primeira tentativa de interpretação. T~ata- diante de outras obras de filosofia tradicionais: elementos tais
-se de um esforço de compreensão fictício. Como compreende- como a forma de variação temática que encontramos dentro do
ríamos as IF se delas apenas restasse a seção do§ 124? Um pedaço próprio texto e seu característico dialogismo polifónico são traços
de papel rasgado, apenas com o texto dessa seção das IF e nada de estilo que devem ser levados obrigatoriamente em conta em
mais, encontrado numa escavação arqueológica? Pela sua leitura, sua interpretação. Tais elementos estão, de certa forma, enuncia-
uma determinada impressão seria imediatamente formada em
50 ] Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgenstein Introdução 1 51

dos em seu prefácio, assim como a escolha deliberada pela elabo- uma espécie de guia ou manual de aplicação das hipóteses que
ração de um álbum, e não de livro. defende, para serem utilizadas a seguir pelo leitor. O texto é en-
Mas existe também um contexto mais amplo, realmente muito carado, no fundo, como um receituário, como uma série de pres-
importante, que é a relação das IF com o Nachlass, o legado lite- crições sobre como fazer. Entendo que a principal dificuldade
rário de Wittgenstein. Esse é o tema do capítulo 6. Ali veremos de compreensão do texto de Wittgenstein, e, por conseguinte, de
as conexões entre as várias versões das IF, os textos que as prece- sua filosofia, é apreendê-lo na sua singularidade. É sua diferença
dem e aqueles que dão continuidade a elas, ora numa reescrita em com relação a qualquer outra forma de filosofia tradicional que
arrumações diversas, ora dando prosseguimento a assuntos ali talvez nos ensine que, do ponto de vista do leitor, não importa
discutidos. Pelo Nachlass podemos ter uma visão mais nítida das muito o que estamos fazendo com a filosofia, mas como estamos
IF como obra inacabada, o que permite, por sua vez, uma mais fazendo. No entanto, temos que compreender ecumenicamente
clara interpretação do significado da filosofia para o autor, e da as diferentes interpretações. Cada uma delas apreende uma ver-
sua própria atitude com relação ao texto e a seus leitores. dade do texto, não a totalidade do que se poderia interpretar dele,
A marca da prática filosófica como atitude ética é fortemente caso isso fosse possível. Como veremos, a escrita de Wittgenstein
corroborada quando recorremos aos textos da correspondência é, a exemplo da obra de arte, composta por múltiplas possibili-
de Wittgenstein, aos dados biográficos anotados por vários de dades de significações. O estilo também é relevante nesse sentido.
seus alunos e amigos próximos, e às várias anotações de classe das O que nos leva ao nono e último capítulo, no qual desenvolvo
décadas de 1930 e 1940. Esse é o tema do capítulo 7. os conceitos de estilo e forma do texto, relacionando-os ao con-
No capítulo 8 vamos examinar alguns efeitos de desentendi- ceito de fisiognomia, expressão e visão de aspecto. Também en-
mento provocados pela nossa maneira de lidar com o estilo das trarão em consideração os conceitos de autor e de leitor em rela-
IF. Ali apresento seis diferentes visões dos textos de Wittgenstein: ção ao tipo de escrita que Wittgenstein apresenta.
como uma forma de filosofia da matemática, como uma forma de É curioso observar como uma demanda de reconhecimento
filosofia positiva, como uma espécie de ceticismo, como uma es- pode apresentar-se com tamanho grau de dificuldade de com-
pécie de quietismo, como filosofia terapêutica e como antifilo- preensão, sobretudo com as características coloquiais e dialógicas
sofia. O que há de peculiar nessas interpretações é que, embora presentes em toda a produção intelectual do autor. Um pesquisa-
nenhuma concorde exatamente com a outra, todas elas têm bas~ dor da análise do discurso, que, aliás, define sua teoria linguística
textual correta, a qual é apresentada como evidência para corrp- pelo conceito de estilo (cf. Possenti, 2008), diz em um de seus
borar a hipótese que defendem. Não se pode dizer, a prindpio, artigos que "ler deveria ser desmontar um texto para ver como ele
que o que dizem não está no texto de Wittgenstein. Está tudo lá. se constrói" (Possenti, 2002, p. 106). Vou tentar tomar partido
Com essas seis diferentes visões pretendo mostrar, então, por re- dessa diretiva, que não é tão simples como pode parecer. Veremos
dução ao absurdo, que a desconsideração do estilo do texto, isto se é possível desmontar o texto de Wittgenstein pelo seu estilo.
é, das suas marcas de expressão, leva a confundi-lo com a forma Mas acredito que para realizar essa tarefa não é preciso fazer do
de prática filosófica tradicional, na qual o autor escreve no texto trabalho uma atividade semelhante à do linguista. Embora tenha-
52 1 Asingularidade das lnvestígações fifos6ficas de Wittgenstein

mos que tratar com um corpus textual, parece ser suficiente em 1


nosso caso utilizar os conceitos operarivos forjados pelo próprio
ESTILO EDESENTENDIMENTO
Wittgenstein em seus textos.
Não há razão para pretender que este ensaio seja alguma coisa
mais que uma interpretação. Sem precisar comprometer-me dire-
tamente com a ciência, posso restringir-me ao campo da história
da filosofia, e talvez possa dispensar tanto o instrumental criado
e discutido pela linguística quanto o material produzido por ou-
tro teórico do estilo, o filósofo Gilles-Gaston Granger (1988), cujo
trabalho, como já disse, discutirei muito brevemente no último
capítulo. Reconhecer o texto pelas marcas singulares da sua ex-
pressão parece-me ser uma ferramenta de interpretação necessária
Na história da filosofia, um comentador normalmente descreve
no caso das IF. Mas parece também bastante claro que esta inter-
e explica o pensamento de um filósofo pelo conjunto de textos
pretação em particular não se aplica a nenhum outro texto de
originais publicados. E um conjunto de textos de um filósofo
qualquer outro filósofo. Por isso, "desmontar o texto" quer dizer
reconhecido pela tradição, como é de esperar, sobretudo nos
aqui apenas ressaltar as marcas de estilo e colocá-las em papel
casos particularmente mais difíceis, como os textos de Hegel,
relevante para o reconhecimento do texto das IF, exclusivamente.
Heidegger ou Kant, para citar talvez os mais notáveis exemplos,
permitem mais de uma interpretação divergente. O caso de
Wittgenstein, no entanto, foge do comum. O simples exame da
literatura secundária a respeito dos textos desse autor demonstra
que é muito mais difícil do que se imagina apresentar o pensa-
mento dele de modo coerente. A discordincia é demasiado abran-
gente para acreditarmos numa interpretação do texto que não
seja, pelo menos, muito complexa. Mas tal fato, não exatamente
incomum na tradição filosófica, vem acompanhado de uma par-
ticularidade realmente extraordinária e surpreendente, que não
está presente na escrita de nenhum desses filósofos de linguagem
mais intrincada e, portanto, de intelecção mais árdua. Ocorre que
os textos tardios de Wittgenstein, aqueles escritos entre 1929 e
1951, foram lavrados em linguagem perfeitamente coloquial,
como a de quem conversa informalmente a respeito de temas fi-
54 1 Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgen)tein Estilo e desentendimento 1 55

los6ficos. À primeira vista essa circunstância deveria constituir filósofos, amigos e familiares durante essa época. Temos, por-
um fator de facilitação, não de dificuldade, mas ela em nada coo- tanto, dois estilos provenientes do mesmo autor, o primeiro mais
pera, aparentemente, para a realização de uma interpretação sem técnico, e o tardio, mais coloquial; dois estilos sem paralelo na
um grande custo intelectual e isenta de uma quantidade signifi- história da filosofia, cuja dificuldade interpretativa, porém, não
cativa de possíveis lacunas. Compare-se com o texto de Nietzsche, se explica simplesmente pela presença de intrincadas invenções
por exemplo. Digamos que, em geral, não se trata, no texto de estilísticas em sua escrita. Mas o que, exatamente, torna o texto
Nietzsche, de uma escrita profusa em tecnicidades filosóficas, de Wittgenstein alguma coisa de tão difícil apreensão?
como a dos três primeiros filósofos citados; ela tende, como a Vejamos com um pouco mais de atenção. Uma grande parte
escrita de Wittgenstein, para o lado da conversa mais franca, in- de seus textos tardios tem forma dialógica. Mas eles não são da
formal e direta com o leitor, embora também seja ela profunda, mesma espécie de texto dialógico que se encontra em Platão ou
precisa e filosoficamente muiro bem informada de conceitos em alguns escritos de Galileu e de Hume, nos quais há um per-
alheios e próprios. No entanto, a dificuldade de compreensão sonagem, que representa o mestre ou a sabedoria, que extrai dos
do texto wittgensteiniano é francamente bem mais adversa. Em demais, por um método maiêutico, uma verdade indubitável ins-
60 anos de publicação dos textos, de anotações e correspondên- crita em suas falas. Nos excertos dialógicos dos escritos tardios de
cias, e de generosa discussão sobre seu legado intelectual, o grau Wittgenstein não há personagens denominados, pessoas que se
de desacordo sobre a natureza do pensamento de Wittgenstein é apresentam com seus patronímicos e profissões e que falam a par-
simplesmente espantoso. tir da sua identidade reconhecida pelo leitor. Em Wittgenstein
Podemos dizer o mesmo da escrita do jovem Wittgenstein? A são apenas vozes. Vozes que assumem hipóteses e antiteses dessas
única publicação anterior de Wittgenstein, feita em 1922, o TLP, hipóteses. Há outras vozes também que ponderam a discussão e
está vertida, como sabemos, numa linguagem enigmática e con- a encaminham para um determinado curso, e outras, ainda, que
densada, mas que é, ao mesmo tempo. técnica e artística. Outro finalizam o debate com alguma frase enigmática, mas nenhuma
fator que deveria, a princípio, senão facilitar, pelo menos incitar delas porta um personagem fixo. De modo que, muitas vezes, no
a leitura e torná-la mais interessante, conduzindo o leiçor ao es- meio de um embate filosófico, o leitor mal consegue distinguir
forço entusiasmado e à descoberta previsíveis pela apresentação qual é a voz que representa uma determinada sequência de argu-
do texto. Mas se trata, igualmente, de um escrito extremamente mentação dentro do diálogo, e a discussão aparentemente termina
complexo, que não se entregará jamais a uma interpretação perfeií sem uma conclusão palpável. Veremos alguns exemplos disso mais
tamente coerente e sem lacunas. O comentador, para compr~en- adiante, no capitulo S.
der bem o TLP, não pode prescindir do exame detalhado de toda Outra grande parte dos textos tardios de Wittgenstein não é
a literatura anterior não publicada do autor, como o Prototrac- dialógica, propriamente. Trata-se de observações filosóficas acerca
tatus (Wittgenstein, 1971), os Notebooks 1914-1916 (Wittgen- de um determinado ponto, as quais podem conformar um pará-
stein, 1969b), os outros textos de lógica escritos naquele período, grafo curto, às vezes apenas uma frase, e outras vezes parágrafos
além da vasta correspondência que o autor manteve com outros longos ou mais de um parágrafo. Mas, novamente, essas reflexões
T

56 l Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgenstein Estilo e desentendimento 1 57

parecem terminar sem conclusões peremptórias. Ou melhor, sem vros", por assim dizer, que foram compostos conforme a evolução
qualquer conclusão, deixando o leitor com uma típica sensação do pensamento do autor.
de incompletude. Como se, de repente, ao final da descida de uma Uma dessas complicações da recepção pública da obra do au-
escada, desaparecesse o último degrau. tor é, por exemplo, a publicação da chamada "Parte II" das IF
Além do mais, não há qualquer aviso prévio dentro dos textos, como se fosse um prosseguimento natural do texto principal da
alguma coisa parecida com um índice, um sumário, ou qualquer obra, composto por 693 seções. A primeira edição do livro, lan-
outra indicação que guie o leitor pela forma literária e entre as çada em 1953, trazia como justificativa para a decisão de adicionar
interrupções que encontrará no texto. É como se fosse uma escada uma "Parte II" ao texto principal o fato de que a
sem corrimão, cheia de voltas, que temos que descer no escuro, e
Parte II foi escrita entre 1946 e 1949. Se o próprio Wittgenstein
sem saber muito bem o que vamos encontrar no fundo.
tivesse publicado sua obra, teria suprimido uma boa parte do que está
O texto pode ser ora dialógico, ora reflexivo, ora sem qualquer nas últimas 30 páginas, mais ou menos, da Parte I, e trabalhado com
solução de continuidade, e não há pistas a respeito do encadea- o que está na Parte II, junto com material adicional, em seu lugar.
mento interno de temas ou de assuntos. Um determinado tópico (Wittgenscein, 1958, Editor's Note, p. vi)
pode tomar às vezes muitas seções ao longo do texto, outras vezes
umas poucas seções, e eventualmente é composto por apenas uma Evidentemente, os subtítulos "Parte!" e "Parte II" já são, por
frase. As mudanças de um assunto para outro, ou de um estilo si sós, uma interferência editorial baseada apenas em suposição,
para outro, são, simplesmente, abruptas. como sabemos e como lembra o próprio von Wright (cf. 1992, p.
Talvez essa forma inusitada seja uma consequência do fato de 181). Denis Paul (2009, p. 286), um grande pesquisador e tradutor
que quase tudo o que o autor escreveu tardiamente é formado, na de Wittgenstein, recorda que em 1953 todos ainda estavam muito
realidade, por manuscritos e datiloscritos inacabados. O fato de ansiosos por conhecer qualquer coisa que Wittgenstein houvesse
Wittgenstein haver deixado a decisão de publicar o conjunto de escrito, e a publicação de um texto ainda inédito valia muito mais
seus manuscritos e datiloscritos a seus executores testamentários por sua novidade do que por sua absoluta correção. Dado, porém,
(Elizabeth Anscombe, Rush Rhees e George von Wright), sem o que hoje já sabemos a respeito do Nachlass, não há como não
indicar textualmente como deveria ser sua divisão em "livros", nos perguntarmos se ainda se justificaria a decisão dos editores
quão finalizados estavam, nem sequer seus respectivos títulos, pela "Parte II" nos termos acima declarados. Von Wright, por
pode ter trazido consequências complicadoras para a percepçãü' exemplo, pensava que sim em 1992:
do verdadeiro significado da obra. É normal que a pressuposição
Parece-me certo, por fundamentos intrínsecos, que Wittgenstein
da publicação, por parte dos executores testamentários, como
considerava o datiloscrito da Parte II como um produto mais acabado
também a percepção do público, que recebe a obra, seja a de que
do que outros datiloscritos que ele havia ditado após o datiloscrito da
a um conjunto enorme de manuscritos e datiloscritos deveria cor- Parte L Não posso ver nenhuma boa razão pela qual os editores, Ans-
responder, naturalmente, um punhado de obras separadas, "li- combe e Rhees, não deveriam tê-la impresso junto com a Parte I.
(Von Wright, 1992, p. 188)
58 1 Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgenstein

Estilo e desentendimento 1 59

Dois anos antes de sua morte, no entanto, por ocasião de um


prefácio a uma edição crírico-genética das IF, von Wright já não §§ 43-95 BandX MS 114, pp. 59-102
§§ 96-107 BandX
parecia mais estar tão seguro. Alega que, por ocasião da primeira MS 114, pp. 132-144
§§108-114 BandX
edição da obra, estava se recuperando de uma cirurgia e não pôde MS 114, pp. 103-108
§§ 115-131 BandXI
participar do trabalho de edição com Rhees e Anscombe. Além M5115, pp. 1-31
§§ 132-141 BandX MS114,pp.108-118
disso, não se recorda de que Wittgenstein tenha recomendado Apêndices
qualquer coisa a respeito da assim chamada "Parte II": "Não me 1-3 Três ensaios TS 214a, TS 214b, TS 214c
parece claro por que razão os editores utilizaram para a impressão 4a BT, seção 28 TS 213, pp. 100-101
dois dariloscrítos do que viram como a primeira e a segunda parte 4b BandX/1 MS 116, p. 80
da mesma obra" (von Wright, 2001, p. 7). 5-8 BT,seções31-34 TS 213, pp. 113-142
Outro desses exemplos controversos da recepção pública da Parte li
1-11 BT, caps. 9 e 10
obra do autor vem da publicação, por Rush Rhees e Anthony T5 213, pp. 294-353
Ili-VII BT,caps.15-19
Kenny, do conjunto de texros denominado como Philosophical TS 213, pp. 530-768

grammar [Gramática filosófica] (Wittgenstein, 1974a). A PG é, Fonte: Kenny (1984, pp. 34-35).

supostamente, a conclusão de uma série de revisões realizadas


por Wittgenstein no daríloscrito TS 213, conhecido como Big Convidado na edição dessa obra para traduzir porções de
Typescript. Segundo Kenny, essa revisão do BT envolveu, em pri- texto selecionadas e preparadas por Rush Rhees, Anthony Kenny
meiro lugar, uma boa quantidade de correção manuscrita feita questionou em 1976 as decisões de Rhees em vários pontos (cf.
em cima do próprio datiloscríto TS 213, ao que se seguiu uma 1984, PP· 24-37). Mas a principal reclamação de Kenny era de que
série de etapas visíveis apenas no interior de uma complicada deveria ser publicada pelo menos uma explicação introdutória de
interconexão entre, pelo menos, três manuscritos: MS 114 (Band como o material ali selecionado se relacionava com O BT:
X), MS 115 (Band XI) e o MS 140 ( Grosses Format). De modo que
a PG pretende ser a forma final dessas revisões ao BT, cujas fontes Certamente Rhees nunca publicou o Big Typescript. Mas Witt-
podem ser rastreadas pela ordem a seguir: _genstein, tão logo o havia terminado, começou a mexer nele, adicio-
·nando, cortando, transpondo. Não é seguro que Wittgenstein nunca
tenha pretendido que as passagens escolhidas por Rhees não estives-
Pg Fonte Número no catálogo Von Wríght sem juntas. Mas o texto que Rhees publicou, com base em certo está-
Parte li . gio de revisão de Wittgenstein, é uma entre muitas ordens possíveis
§§1-13 Grosses Format MS 140, pp. 1-14 qu~ p_oderia reivindicar a autoridade de Wittgenstein. A principal
§§ 14-22 BandX MS 114, pp. 45-51 ob1eçao é, que o texto publicado por Rhees não dá nenhuma indicação
§§ 23-40 Grasses Format MS 140, pp. 15-39 da quantidade de atividade editorial que está por trás dele. Os recor-
§§41-42 BandX MS 114, pp. 121-122 t~s foram fei.cos_ silenciosamente, e as transposições meramente suge-
§42 Grasses Format MS 140, p. 38 ndas; material importante do datiloscríto é simplesmente omitido.
(Kenny, 2005, p. 344)
60 1 Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgenstein Estilo e desentendimento

Previsivelmente, as relações entre os dois acadêmicos se tor- revisões, porque os desentendimentos sobre isso se retrotraem ao
artigo de Kenny naActa Philosophica Fennica [Paul refere-se ao artigo
nou bastante tensa dali por diante (cf. Kenny, 2005, p. 344). Mas,
aqui citado com a data de 1984]. O que tinha ouvido sobre ele me
apesar de a controversa história da publicação póstuma de Witt-
parecia inteiramente razoável em 1976, até que, na Biblioteca Wren,
genstein ser hoje em dia relativamente conhecida, 1 além de todos
eu passei da segunda patte daBandX [MS 114] para a primeira parte
os fatores que podem ter sido ou não interferências indesejáveis daBandX! [MS 115]. Então, logo em seguida, achei uma revisão adi-
por parte de seus executores testamentários - as quais até podem cional na forma de um manuscrito de folhas grandes e soltas, cha-
ter como consequência um acréscimo de dificuldade de compre- mado de Grosses Format, MS 140, e finalmente um manuscrito escrito
ensão da obra-, há um elemento que me parece mais importante de ambos os lados, de mais ou menos 100 páginas com a metade do
do que o problema das seleções editoriais por si só: o fato de que tamanho normal, chamado de Kleines Format. Ele não tinha, e ainda
o próprio estilo dos textos permita os desentendimentos. A meu não tem, um número atribuído por G. H. von Wright, um fato que
ninguém nunca me explicou.
sentir, talvez esta seja a questão principal que leva um estudioso
Ter todos os quatro manuscritos em cima de uma grande mesa em
como Paul (2009, principalmente entre as pp. 283-286) a defender
Wren me habilitou a encontrar a pista que estava faltando. O fato
Rhees contra as reclamações publicadas por Kenny. Paul entende é que em todos eles havia marcas entre os parágrafos que direciona-
que Kenny não levou suficientemente a sério certas marcas edito- vam o leitor, ou o próprio Wittgenstein ao ditar, de um manuscrito
riais assentadas por Wittgenstein nos seus escritos: "[ ... ] odes- para o outro. Eu também tinha o meu volume impresso comigo, po~
contentamento de tão longa duração de Kenny proveio não da dia compará-lo com esses direcionamentos, e descobri que eles coin-
ignorância das marcas editoriais, mas da convicção de que elas cidiam quase que exatamente. Infelizmente não publiquei essa desco-
não seriam extremamente importantes" (2009, pp. 285-286). berta e me contentei em marcar os detalhes nas margens da minha
cópia impressa. Ainda tenho a mais importante delas, uma que dire~
Ao examinar em 1976, na Biblioteca Wren do Trinity College,
ciona da página 38 do Grosses Format para a página 180 do Kleines
um manuscrito sem numeração no sistema de von Wright, de
Format (levando à abertura do§ 41), e uma outra, depois de três pa-
mais ou menos 100 folhas escritas em ambos os lados, conhecido
rágrafos do § 42, levando de volta à página 38 do Grosses Format.
como Kleines Format, por causa do tamanho reduzido de suas Anscombe apareceu na Biblioteca Wren enquanto eu estava exami-
páginas (o adjetivo klein,/em alemão, significa "pequeno"), Paul nando esses manuscritos e ficou muito tranquilizada pela demonstra~
descobriu que as críticas de Kenny seriam, de fato, infundadas: Ção de que as críticas de Kenny eram infundadas. Aquilo me pareceu
tudo o que precisava fazer com minha descoberta. Entretanto, infor-
O que mais me preocupa aqui, entretanto, é o que pretendo dize_~ mei o fato também a Isaiah Berlin, que ficou tão feliz quanto Ans-
ao chamar a Parte I da Gramdtica filosófica de o desfecho de repetidas combe em saber que Kenny estava errado. (2009, p. 284)

Um pouco mais tarde, por indicação de Michael Nedo e com


1
Uma boa descrição de uma série de controvérsias ocorridas entre os curadores dos tex- a ajuda de Alois Pichler, Paul ainda consultou uma cópia de
tos de Wittgenstein e alguns pesquisadores como Anthony Kenny, Jaakko Hintikka e
Michael Nedo, pode ser encontrada no artigo de Evdyn Toynton, ''The Wittgenstein um datiloscrito do espólio de Moritz Schlick, um ditado de
Controversy': publicado em junho de 1997, em The Atlantic on-line. Disponível em: Wittgenstein chamado, segundo o nome do editor dos seus pa-
<http :/ /www.theadande.com/ past/ issues/97jun/witt.htm >.
62 1 Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgenstein
Estilo e desentendimento 1 63

péis, de Mulder V, que aparentemente justifica as seleções edi-


toriais de Rhees (cf. Paul, 2009, p. 285). A Parte l da PG, segundo
Paul, era composta exatamente pelas passagens que Wittgenstein,
ao contrário do que julga Kenny, pretendia que estivessem juntas,
e, portanto, aquela não seria <<uma entre muitas ordens possíveis"
(Kenny, 2005, p. 344).
Quanto às primeiras 315 páginas do MS ll6 (Band XII), elas
espelhariam precisamente uma última tentativa de reescrever a
PG, e não propriamente uma última revisão do BT, como afirmam,
por exemplo, Luckhardt e Aue (cf. BT, "Editors' and Translators'
Introduction", p. vii). Particularmente no MS 116, Wittgenstein
experimenta uma nova convenção de espaçamento entre pará-
grafos e de numeração, da qual, segundo Paul, seria desejável ter
uma melhor representação impressa do que as que atualmente
encontramos disponíveis. Contudo, o fato mais importante aqui Essa mesma ponderação sobre o estilo da escrira de Wittgen-
é que é exatamente nesse manuscrito que Wittgenstein se livra stein pode também valer, pelo que presumo, contra argumentos
totalmente tanto da PG quanto do BT, e se direciona para as ideias levantados por Joachim Schulte (2005) para contrapor-se à con-
novas que irão amadurecer nas IF, cuja composição começou em sideração do Nachlass como uma só obra, um só compósito, que
1936. A meu ver, uma boa pesquisa no MS 116 deve, de fato, reve- permite a investigação do leitor por vários percursos e
lar que ele tem muito maiores conexões com as Bemerkungen I (TS interconexões possíveis entre os manuscritos, datiloscritos, dita-
228), as Bemerkungen II (TS 230), com Zettel (TS 233) e com algu- dos, anotações de classe e até o testemunho de coerâneos e anti-
mas passagens das IF (TS 227), do que com o próprio BT (TS 213 ). gos alunos de Wittgenstein. Aparentemente a preocupação de
Na Figura 1, vemos um fac-símile das páginas 2 e 3 do MS 116, Schulte é evitar que se trate com peso igual os diferentes tipos de
com algumas marcas editoriais e com o novo uso de espaçamen- manuscritos (cadernos simples, livros contábeis maiores, folhas
tos entre parágrafos admitidos dali por diante, segundo Paul. soltas) e de datiloscritos ( inteiros e copiados, ou colagem de tre-
Nelas, todos os parágrafos são originários das primeiras págin')s chos recortados de datiloscritos anteriores), posto que represen-
do BT (pp. 1-2). O mais provável, porém, é que o MS 116 não,5eja tam evidentemente estágios de elaboração diferentes do pensa-
mais nenhuma revisão desse texto, mas um ponto de virada em mento do autor. Seria preciso, segundo esse estudioso, levar a
direção às IF, comprovável não só pelas interconexões de conte- sério os rearranjos de material realizados pelo próprio Wittgen-
údo que podemos fazer com as revisões e os rearranjos dos próxi- stein, sempre de acordo com a última concepção daquilo que es-
mos 15 anos de produção escrita, como também pelas próprias tava tentando alcançar.
marcas de estilo estampadas no texto.
64 1 Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgenstein Estilo e desentendimento [ 65

O problema do argumento de Schulte, na minha opinião, é a Entretanto, interpretar a totalidade dos escritos de Wittgen-
presença de um pressuposto evolutivo muito rígido para esse caso, stein como uma grande sinfonia ainda nos faz cair na ideia de
e não tanto a razão que certamente tem ao alertar sobre as di- uma totalidade fechada. Uma sinfonia é quase sempre composta
ferenças de estágio de composição relativas aos materiais escritos numa estrutura tripartite que consta de começo, meio e fim. Pro-
por Wittgenstein. É evidente que o Nachlass, como um rodo, ponho, para uma melhor inteligência das características do texto
apresenta tentativas em direções diferences, mostra que Wittgen- de Wirtgenstein, que possamos compreendê-lo, do pomo de vista
stein teve em mente projetos diferentes ao longo da sua carreira, temporal, como uma sinfonia aberra, e, do pomo de vista espa-
mas a visão do Nachlass como um compósito único não significa cial, como uma grande cidade em expansão contínua, com bairros
o apagamento dessas diferenças. Quer-se fazer justamente o con- amigos e novos, ainda em construção; uma cidade ainda inaca-
trário: trata-se de mostrar como a investigação proposta pelo bada que vamos conhecendo pouco a pouco, na medida das pe-
Wittgenstein tardio leva a caminhos de ida e volta, de interrup- quenas incursões que realizamos todos os dias, aprendendo ca-
ção e de retomada, de maneira que, ao longo de rodo o percurso, minhos novos, reconhecendo antigos bairros a partir de novas
possamos realizar vários esboços de paisagens diferentes, ainda perspectivas, abrindo sempre um pouco mais o leque das nossas
que mal desenhados. Em outros termos, o método de Wittgen- convicções (cf. IF § 18). As IF, como uma parte dessa totalidade,
srein provoca mudanças de perspectiva constantes, a fim de evitar compartilham as características de obra aberta e inacabada.
que nos agarremos a qualquer doutrina filosófica que possa servir Um comentário de Wittgenstein sobre a forma ideal dos livros
como explicação demasiado rígida de alguma coisa empírica. de filosofia, reaHzado numa aula de 1933, talvez sirva para funda-
Na realidade, essas macro e micro interconexões· entre manus- mentar essa impressão:
critos e datiloscritos, nos quais as reflexões se permitem caminhos
de ida e volta, se desdobram e se repetem sempre em novos ar- Existe uma verdade na visão de Schopenhauer de que a filosofia é
um organismo, e de que um livro de filosofia, com um começo e um
ranjos, cada vez que uma nova versão das Observações filosóficas é
fim, é uma espécie de contradição. Uma das dificuldades da filosofia
reelaborada pelo autor em alguma de suas passagens filosóficas,
é a de que nos falta uma visão sinóptica. Encontramos aqui o tipo de
além dos vários desenhos, ilustrações e diagramas que povoam dificuldade que teríamos com a geografia de um país do qual não ti~
todo o Nachlass, em paralelo com o texto, enfim, rodo esse ar- Véssemos um mapa, ou então um mapa das partes em separado. O
ranjo rico e variado lembra bem uma grande e multifacetada sin-. país do qual falamos é a linguagem, e a geografia, a sua gramática.
fonia. Não haveria sentido em tomar uma das vozes melódicas, Podemos andar muito bem pelo país, mas quando somos obrigados
por mais central que ela possa parecer, por roda a peça sinfônica. a fazer um mapa, comeremos erros. Um mapa irá mostrar estradas
Enxergar a totalidade do conjunto harmônico, observando a ma- diferentes dentro do mesmo país; podemos tomar qualquer uma, mas
neira como as diferentes melodias, modulações e movimentos se não duas ao mesmo tempo, do mesmo modo que na filosofia remos
que tomar os problemas um a um, mesmo que, de faro, cada problema
remetem uns aos outros, é o que talvez faça mais sentido para uma
leve a uma multiplicidade de outros problemas. Temos que esperar
audição generosa da obra. até que voltemos ao ponto de partida, antes que possamos ou tratar
66 1 Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgenstein Estilo e desentendimento 1 67

do problema que atacamos em primeiro lugar, ou proceder a um ou- construir um princípio norteador. Parece-me factível supor que
tro. Em filosofia as questões não são tão simples para que possamos uma interpretação dialógica de seus textos corresponde a uma
dizer "Vamos ter uma ideia aproximada", pois não conhecemos o país forma de filosofia que não pode ser compreendida senão me-
defato senão quando conhecemos as conexões entre as estradas.
diante as inconsistências, ambiguidades e contradições que são
(AWL,p.43)
parte inerente da sua expressão. Veremos o que quer dizer (<inter-
pretação dialógica" e o que são essas "inconsistências e contra-
Talvez seja mais apropriado pensar a obra filosófica de Witt-
dições". A seção que contém o § 124 das IF se presta bastante
genstein não como livro, mas como um organismo vivo, com
adequadamente a essa exposição. Ela contém uma declaração que,
muitas artérias e células se multiplicando, mas que recomenda,
se quisermos, poderia justificar as seis diferentes formas de com-
como precaução, uma visão de conjunto, um mapa, para que não
preensão de seu pensamento mencionadas acima, mas, se qui-
nos percamos por ruelas estreitas e escuras ou em grandes aveni-
sermos também, justificar igualmente o equívoco de cada uma
das cuja direção ainda não conhecemos perfeitamente. Conhecê-
delas, por incoerências perceptíveis nos contextos imediato e
-la é também mapeá-la pouco a pouco, e eventualmente até de-
abrangente do excerto. E, nesse caso, restaria ainda ao comen-
pois refazer esses mapas, na medida em que vamos caminhando
tador o desafio de explicar que tipo de filosofia é a que Witt-
pelos labirintos da linguagem (IF § 203 ).
genstein pratica.
Eis por que as múltiplas divergências interpretativas a respeito
do significado do texto de Wittgenstein, como veremos no capí-
tulo 8, talvez não sejam uma consequência meramente fortuita.
A nosso ver, há algo a mais no texto de Wittgenstein que não está
simplesmente no que é dito, mas na sua geografia ou na forma
como se apresenta. Embora o legado literário de Wittgenstein
tenha recebido ultimamente bastante atenção dos estudiosos,
presumo que as características de seu texto ainda estão por mere-
cer estudos linguísticos e críticos mais específicos para melhor
compreendermos a relação que poderia haver entre a natureza de
seu pensamento e o veículo pelo qual sua filosofia se comunica e
se difunde. Suponho que enquanto não pudermos encontrar ufu
fio condutor mais compatível com a autoria e a leitura de seus
textos, a força do desentendimento e a multiplicação de interpre-
tações desencontradas serão ainda bem maiores do que o espaço
dialógico de uma concordância mínima.
Tomando a seguir como base o excerto que aparece no § 124
das IF, trabalharemos nos próximos capítulos no sentido de re-
2

HIPÓTESES DE TRABALHO

O pensamento de Wittgenstein parece ser tão inseparável dos


escritos em que foi lavrado quanto o são certas expressões simbó-
licas dos seus respectivos rituais. O símbolo, separado do ritual
que o atualiza, pode ganhar interpretações bizarras. Imaginemos,
por exemplo, ver a hóstia na eucaristia sem perceber o ritual que
ali se desenrola. A hóstia não seria muito mais do que um pãozi-
nho redondo e fino que provoca a aglomeração de um grupo de
pessoas em torno de uma outra pessoa trajada de modo diferente
das demais. Essa outra pessoa em trajes distintos reparte o pão-
zinho, e todas as outras pessoas estranhamente tentam comê-lo
sem mastigar. Do mesmo modo, o beijo, sem o cumprimento,
seria, aparentemente, uma forma insidiosa de assédio. Assim
como a linguagem protocolar fora da corte judicial poderia soar
deslocada e cômica, a depender do contexto. Esses elementos são
inseparáveis no interior das relações que se estabeleceram entre
uma coisa e a outra. Precisamos do ritual para entender o papel
que aqueles objetos desempenham ali como símbolos. Com isso
quero dizer que a declaração "Witrgenstein é o autor do conceito
de jogos de linguagem" não pode ser compreendida da mesma
maneira ou com o mesmo sentido que daríamos às declarações
70 1 Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgenstein
Hipóteses de trabalho 1 71
1
"Hume compreende a causalidade como uma relação produzida interna. Temos que tomar esse cuidado com os conceitos criados
exclusivamente pela mente" ou "Kant compreende a causalidade por Wittgenstein, mesmo sem considerar o fato de que qualquer
como um conceito apriorístico do entendimento utilizado, ne- pensador poderia tirar, naturalmente, proveito próprio daquilo
cessária e universalmente, em juízos de conhecimento". Porque, que foi discutido pelo filósofo vienense na primeira metade do
enquanto podemos dissertar sobre a correção das ideias de cau- século XX. Isso seria algo diferente do que supõe compreender
salidade em Hume e em Kant, independentemente dos textos que o texto de Wittgenstein exclusivamente pelo conteúdo. En-
os originaram, por exemplo, somos vedados de fazer o mesmo tretanto, do ponto de vista formal, parece-me factível defender
com a ideia de jogo de linguagem em Wittgenstein. Pode parecer a pertinência do conceito ao texto, tomando até por base a se-
estranho o que estou dizendo agora, mas vou tentar explicar por guinte citação:
quê: da maneira como é apresentado nos textos desse autor, o
conceito de jogo de linguagem não está nem cerro nem errado. Nossos claros e simples jogos de linguagem não são estudos pre-
Ele pertence somente ao texto em que aparece e ao que ali está paratórios para uma futura regulamentação da linguagem, como se
sendo discutido e trabalhado, como conceito operativo mera- fossem primeiras aproximações, sem considerar o atrito e a resistência
mente interno, tanto quanto o conceito de "desaniversário" per- do ar. Os jogos de linguagem estão aí, antes, como objetos de compa-

tence a Alice no país das maravilhas e ao desenvolvimento do ração que, pela semelhança e dessemelhança, devem lançar uma luz
nas relações da nossa linguagem.
enredo em que se debatem seus personagens. Nenhuma pessoa
Só assim podemos realmente escapar da injustiça ou do vazio das
aplica o conceito de "desaniversário" em nenhum outro lugar do
nossas afirmações, ao considerar o modelo como o que ele é, como
mundo. Mas não parece desacertado empregá-lo no interior do objeto de comparação - por assim dizer, como medida; e não como
livro de Carrol!. Não quero sugerir aqui, evidentemente, que uma preconceito ao qual a realidade tem que corresponder. ( O dogma-
pessoa não possa fazer um uso próprio do conceito de jogo de tismo no qual tão facilmente nos deterioramos ao filosofar.) (IF
linguagem em algum novo contexto. O que quero dizer é que §§ 130-131)
aquele conceito, tal como foi criado nos textos de Wittgenstein,
não pode ser discutido em separado dos seus escritos, tal como Mas, então, o que fazer? Como distinguir o filosófico do
fazemos com outros conceitos de filósofos tradicionais. literário?
Não pretendo tampouco sugerir que filosofia seja literatura, Segundo as ORD, compreenderíamos mal a morte do rei em
posto que podemos sempre distingui-las por seu objeto, finali-; pleno auge se não observássemos simultaneamente seu contexto
dade e método, mesmo que seja eventualmente possível conjugar vivencial (p. 29 ), assim como não entenderíamos a pulga sem o
as duas atividades ao mesmo tempo; o que desejo demarcar é que cão no qual ela subsiste (p. 53 ). No sentido aqui proposto, os con-
11
tanto "desaniversário" como jogo de linguagem" têm funções ceitos estão misturados a seus rituais e a seus contextos sociais,
internas à dinâmica do texto em que aparecem, e não cabe discu- ambientais e históricos. Para defender uma interpretação dialó-
tir a sua correção pelo lado de fora, procurando as aplicações gica, digamos, em primeiro lugar, que o mesmo se dá entre o pen-
empíricas ou especulativas do conceito para além da sua proposta samento de Wittgenstein e as anotações de seus diários: há uma
72 1 Asingularidade das Investigações fi/05ófiws de Wittgenstein Hipóteses de trabalho 1 73

relação interna, gramatical, entre a prática da filosofia e a ano- ela se forja tanto a ideia do isomorfismo no TLP quanto a do
tação em diários, que é parte indissociável de certa fisiognomia. gramatical nos escritos posteriores do autor. Não somente na con-
Em segundo lugar, contudo, digamos que essa fisiognomia ratifica cepção representacionista da linguagem, tal como defendida no
a impossibilidade de um sentido único para os temas específicos TLP, pela qual fazemos figuras dos fatos(§ 2.1), e até mesmo de-
discutidos em cada porção de seus escritos, dos exemplos neles senhamos neles traços fisiognômicos (§ 4.1221), como também na
elaborados e das variações às quais é submetido, por causa, pre- concepção pragmática e performativa da linguagem, forjada pos-
cisamente, de seu estilo. As marcas deixadas pelo trabalho de in- teriormente, pela qual retraçamos a fisiognomia dos nossos erros
vestigação filosófica voltado ao esclarecimento dos usos dos con- a fim de reconhecê-los como tais (MS ll0, p. 230; TS 213, p. 410;
ceitos e o seu típico método de exame e de perquirição cuja TS 220, p. 83; TS 239, p. 84).
finalidade não é uma regulamentação futura da linguagem, mas A sugestão de retraçar a fisiognomia dos nossos erros é uma
a tentativa de livrar-se das ilusões e dos ardis provocados pelas proposta metodológica propositalmente assemelhada a uma clí-
confusões gramaticais - têm, como resultado, uma nítida figura nica psicanalítica, quando surge em 1931 (ver MS ll O, p. 230).
de múltiplos caminhos entrecruzados dentro de um labirinto. O Essa grande aproximação ao espírito do método psicanalítico
que vemos, tomado o conjunto de textos em sua totalidade, é uma acompanha as reflexões de Wittgenstein até 1943, pelo menos, na
vasta rede de salas e galerias que se interconectam muitas vezes versão retrabalhada das IF (TS 239; ver Figura 3, abaixo, no ca-
e de várias maneiras. O método é percorrer cada um desses ca- pítulo 6). Depois dessa época, entretanto, esse avizinhamento tão
minhos por vez, ida e volta, percebendo muitas vezes que se está explícito ao método freudiano se arrefece um pouco, talvez à
perdido, mas perseverando no combate ao autoengano pelo es- medida que a própria investigação gramatical vai ficando cada vez
quadrinhamento dos sentidos das nossas hipóteses, até que pos- mais sutil e mais sofisticada, e, portanto, autônoma em relação às
samos encontrar uma saída, mesmo que provisória. A fisiognomia ideias que lhe serviram inicialmente de inspiração e de modelo.
desse método apresenta, evidentemente, uma face pluralista. Há Isso não quer dizer, contudo, que o método não continue aguar-
sentido nele para uma multiplicidade de hipóteses, mas não há dar semelhança com a técnica psicanalítica até o final da pro-
sentido para que uma delas apenas prevaleça sobre todas as de- dução intelectual do autor. Pode-se constatá-lo pelas investiga-
mais, senão como escolha, como manifestação da vontade que, ções majoritariamente dedicadas à filosofia da psicologia, às cores
depois de liberta das ilusões, decide por uma delas soberanamente e à certeza, entre os anos de 1946 e 1951, em que o foco sobre te-
e com autonomia. / mas relacionados à visão de aspecto e ao sentimento de conforto
Defendo uma interpretação dialógica das IF, baseado, por- e segurança que nos dão as configurações arbitrárias de sentido
tanto, em sua fisiognomia. Entretanto, permito-me lançar mão vão se tornando mais relevantes, e também pela continuidade da
desse recurso heurístico não somente por causa de sua fecun- discussão sobre Freud, ou sobre alguns de seus conceitos (tais
didade e sua engenhosidade, mas principalmente porque a fer- como o do sonho como realização de desejo, ou o de incons-
ramenta da fisiognomia orienta as investigações filosóficas de ciente), em todos esses anos (cf. Z §§ 444,449; RPP I, §§ 225,262;
Wittgenstein desde o TLP até suas observações mais tardias. Com LWPP 1 § 91; LWPP II, p. 86; CV, pp. 62, 78, 99). É claro que o in-
74 1 Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgenstein Hipóteses de trabalho 1 75

teresse em ressaltar aqueles óbvios detalhes das nossas práticas,


que são ao mesmo tempo tão familiares e tão imperceptíveis, con-
funde-se com o interesse da técnica psicanalítica em muitos pon-
tos. Discutiremos um pouco mais sobre a semelhança entre o
método terapêutico da filosofia de Wittgenstein e a psicanálise
posteriormente, no tópico 5 do capítulo 8.
O método da apresentação panorâmica ou sinóptica, contudo,
inspira-se diretamente na Morfologia das plantas de Goethe. Con-
siste em descobrir e inventar conexões que esclareçam a visão de
determinados aspectos e sugiram novas investigações filosóficas Figura 2
(ORD, p. 45). E, nesse caso, explica-se o interesse de Wittgenstein
por Freud em virtude do parentesco de seu método com o de Ninguém duvidaria hoje em dia de que a fisiognomia é uma
Goethe: pseudociência. Mas já foi um campo de investigação científica
levado a sério por mais de 2.200 anos, desde Aristóteles até o sé-
Existe um porquê para o qual a resposta não permite nenhuma
culo XIX. Um dos seus defensores modernos foi Johann Kaspar
previsão. Assim é, por exemplo, com as explicações animistas. Muitas
das explicações de Freud, ou de Goethe na Teoria das cores, são desse Lavater, um pastor suíço amigo de Goethe por um breve período
tipo. Mas, então, o fenômeno não está mais sozinho, está conectado e que o influenciou definitivamente sobre a sua peculiar cultura
com outros, e nos sentimos tranquilizados. (LWPP II, p. 86) visual (Moore, 2007, pp. 165-191). Ga!ton, por sua vez, foi um
defensor da fisiognomia em seus experimentos com compósitos
No MS 133 (p. 39r; tb. TS 229, p. 339; TS 245, p. 250), vemos, fotográficos no final do século XIX. Wittgenstein ali faz experi-
no uso de uma palavra, uma fisiognomia. Em RPP II §§ 614-616, mentos com a ideia de Galton.
um trecho elaborado entre 1948 e 1949, testemunhamos a ideia da A ideia wittgensteiniana do gramatical como um compósito
fisiognomia orientando as noções de limite, de variabilidade e de for,mado por uma aglutinação de materiais de origens diversas -
multiplicidade, quando todo esse jogo de linguagem está relacio- os quais conformariam então uma nova relação interna de cone-
nado à compreensão de fenômenos tão simples como um sorriso. xões, apresentando uma nova visão de aspecto, uma nova maneira
E até mesmo nas atividades recreativas da vida comum, Wittgerr- de enxergar fenômenos anteriormente distintos ou mesmo soli-
stein, interessado no aspecto gramatical dos experimentos fisiog- tários e sem resposta - parece indicar também a direção geral
nômicos de Ga!ton, monta sua própria semelhança de família
(Figura 2). 1 Gretl, Helenc, Ludwig e Herminc Wittgenstein. Fonte: <http:/ /www.cam.ac.uk/
research/news/wittgenstein~s-camera> (acesso em 1/5/2013). É interessante observar
que Freud adota a mesma ideia da fisiognomia como um compósito quando escuda o
1 mecanismo de condensação das figuras do sonho. Freud também menciona Gakon no
Trata-se de uma imagem compósita feita por Wittgenstcin e o fotógrafo vienense Mo-
ritz Nahr, em algum ponto nos meados da década de 1920, a partir dos retratos de capítulo VI da sua Interpretação dos sonhos.

l
76 1 Asíngularidade das Investigações filosóficas de Wittgenstein
Hipôteses de trabalho ] 77

mediante a qual podemos interpretar, se quisermos, o variado mas diferentes. E é devido a esse parentesco, ou a esses parentescos,
conjunto de observações filosóficas gravadas em manuscritos, que chamamos a todas elas de "linguagem". Eu quero pesquisar, expli-
datiloscritos, ditados e lições compartilhadas por Wittgenstein car isso. (IF § 65)
ao longo de toda a sua produção intelectual. A imagem que apa-
rece na figura acima é um composto inventado com base em qua- Pela ideia do compósito ou da fisiognomia, da aparência pela
tro fotografias reais, que bem poderia ser uma quarta irmã de qual reconhecemos determinado aspecto, Wittgenstein pretende
Wittgenstein. Essa interconexão de dados empíricos é possível, dizer que, embora o reconhecimento de uma determinada ideia
mas isso não quer dizer necessariamente que seja real. O que pa- exija uma totalidade fechada pela qual se torna possível enxergar
rece sugerir que também as nossas descrições do empírico podem muitas conexões que antes não percebíamos, isso não significa
muito bem ser apenas um construto, não necessariamente real. necessariamente que tal forma seja a única possível. É com essa
Em qualquer caso, para além das discussões sobre o realismo e o ideia do compósito empiricamente possível, mas não necessaria-
idealismo do nosso pensamento, o que sempre vale a pena é re- mente real, que ele vai criar o célebre conceito de "semelhança de
lativizar nossas muito bem justificadas ideias, submetendo-as a família", para explicar por que jogos tão diferentes entre si podem
uma constante autocrítica. O exercício da autocrítica serve como ser tratados, todos, como "jogos de linguagem" (cf. IF §§ 66-67).
prevenção para inoportunas ilusões gramaticais. São traços que se sobrepõem e se entrecruzam. Embora não per-
Podemos ver esse programa de delineamento de parentescos maneçam ali o tempo todo, permitem que reconheçamos um
literalmente exposto numa passagem das IF em que Wittgenstein padrão, e façamos uma espécie de inferência problemática, uma
critica seu antigo programa de crítica da linguagem do TLP e "abdução~ se quisermos chamar assim, ou um ''juízo de reflexão",
anuncia a nova forma da sua investigação filosófica: se quisermos também falar nos termos propostos na introdução
à Critica da faculdade do juízo de Kant. Podemos variar, relativi-
Aqui nos chocamos com a grande pergunta que está por trás de zar, multiplicar os traços relevantes, estabelecendo sempre novas
todas essas considerações. - Pois, pode-se objetar-me: "Tu facilitas as correlações. Entretanto, cada figura fisiognômica é um marco
coisas! Falas de todos os jogos de linguagem possíveis, mas não dis- específico, fechado, autojustificado em bases empíricas e ideativas
seste em nenhum lugar o que é, então, a essência do jogo de lingua-
que conformam uma totalidade que é sentida em si mesma como
gem, e, portanto, da linguagem. O que todos esses processos têm em
uma significação:
comum e os torna uma linguagem ou parte da linguagem. Tu te deste .
de presente, portanto, justamente a parte da investigação que te deÜ
nesse tempo a maior das dores de cabeça, a saber, aquilo que concerne Tome o uso do inglês "this", "that", "these", "those", "will", "shall":
àforma geral da proposição e da linguagem". seria difi'.cil fornecer regras para o uso dessas palavras. No entanto é
E isso é verdade. Em vez de mencionar algo que é comum a tudo possível compreendê-las, contanto que tu estivesses inclinado a dizer:
o que chamamos de linguagem, digo que essas manifestações não têm "Se alguém tivesse o sentimento correto do sentido dessas palavras,
nada em comum, ainda que para todas elas empreguemos a mesma então se poderia também aplká~las". Poder-se-ia, portanto, também
palavra, senão que elas estão mutuamente aparentadas de muitas for- atribuir a essas palavras um significado característico na língua in~
78 1 Asingularidade das Investigações fi/os6ficas de Wittgenstein Hipóteses de trabalho 1 79

glesa. Seu uso seria, por assim dizer, sentido como uma fisiognomia. do texto, alimentando o próprio espírito através dos desafios in-
(RPP II,§ 654) telectuais por ele enfrentados, mas resguardando para si o direito
à prática filosófica da maneira como melhor convenha e se possa
Passemos então à tensão entre compósito aberto e totalidade responsavelmente justificar.
fechada que conforma as relações internas de uma gramática e Retornaremos a nossas hipóteses no capítulo final do ensaio,
imaginemos a dificuldade interpretativa dos textos de Wittgen- mas por ora digamos que sua função é fornecer uma prova de que
stein. Como dizer que não há contornos precisos na obra escrita a apresentação coerente de uma "filosofia de Wittgenstein" só
do autor senão com precisões? Submetamo-nos ao risco de for- pode ser feita à custa do silenciamento de porções do corpus li-
necer provas que podem ou não fazer sentido. terário que deporiam em sentido contrário. O estilo de álbum do
Pretendo realizar essa prova escolhendo um trecho específico Nachlass funciona sempre como reserva de sentido por causa,
das IF. De todo modo, o trecho escolhido será trabalhado junto precisamente, dos seus caminhos tortuosos e desencontrados - o
com as seguintes hipóteses: (a) o Nachlass (1929-1951) deve ser
que poderia, sem a devida precaução e cautela, levar a desenten-
tomado como um único bloco dentro do qual cada seção (porção dimentos ou confusões gramaticais.
de texto separada por espaçamento de outra porção) adquire uma Passemos ao excerto que nos servirá de prosa.
fisiognomia; (b) o TLP, bem como os escritos pré-tractarianos,
deve ser comparado, em semelhanças e dessemelhanças, ao Nach-
lass; (c) denominamos neste ensaio a conjunção do Nachlass com
o Tractatus como corpus literário; (d) outras espécies de escritos,
como correspondências, ditados, anotações de aulas e das conver-
sas realizadas nos anos de 1930 e 1950, servem como fonte de
apoio ao corpus; (e) o corpus, especificamente, coloca em jogo um
conceito de "autor" e um conceito correlacionado de "leitor"; (f)
de maneira semelhante, existe tam bém no corpus uma rorma" e "C

um "estilo" decisivos para uma correta interpretação de cada uma


das suas partes; (g) para cumprir seu objetivo, o Nachlass atualiza
um método, criado depois que o primeiro método, apresentad9 ·
pelo TLP, comprovou-se como equivocado, e também depois que
a tentativa de investigação da linguagem fenomenológica em Í929
fracassou; e, (h) o corpus não foi escrito para convencer ninguém,
senão para dar satisfação (ou até prazer) para aqueles que já se
encontram convencidos daquilo que nele se acha. Em outras pa-
lavras, trata-se de reviver os rituais dialógicos do autor pela leitura
3

UMA LEITURA ARQUEOLÓGICA

O trecho programático do § 124 das IF literalmente exorta o


leitor assim:

A filosofia não pode, de nenhum modo, apalpar o uso real da


linguagem, pois ela só consegue, ao fim, descrevê-lo.
Pois ela tampouco consegue fundamentá-lo.
Ela deixa tudo como está.
Ela também deixa a mateméltica como está, e nenhuma descoberta
matemática pode fomentá-la. Um "problema relevante de lógica mate-
mática" é para nós um problema da matemática como qualquer outro.

As lF estão subdivididas em 693 seções numeradas em sequên-


cia natural, o que pode indicar, em princípio, certa independência
de cada uma delas em relação às demais. Façamos um pequeno
teste e vejamos se a hipótese da autonomia se confirma. Se dispu-
séssemos hoje somente desse pequeno fragmento, encontrado por
acaso dentro de um pote de barro no fundo de uma caverna de
uma região desértica do Oriente Médio, e todo o resto do que
Wittgeustein escreveu houvesse desaparecido para sempre, esse
texto seria ainda compreensível para nós? Entenderíamos certa-
mente que se trata de uma espécie de recomendação para aquilo
que a filosofia tem ou não tem permissão (dürfen) de fazer: ela

J
82 1 Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgenstein Uma leitura arqueológica ! 83

não pode tocar no uso real da linguagem, assim como não pode algum incômodo e algum desconforto, certamente devidos às
fundamentá-lo; mas pode, em contrapartida, descrevê-lo. Desse propostas incomuns nelas contidas - que atribuiríamos, claro, a
modo, entretanto, a filosofia estará deixando tudo como sempre uma antiga seita herética que havia fugido para o deserto acossada
esteve. Deixará, em particular, a matemática como sempre esteve, pelo exército romano e que utilizava aquele fragmento de texto
e nada do que ocorra nessa área, até mesmo um problema proe- como uma espécie de mantra em suas cerimônias exóticas.
minente de lógica matemática, ocasionará avanços na filosofia. Contudo, viremos nossa primeira página arqueológica e pas-
Um problema em matemática não é mais importante do que qual- semos para a outra. Comprovado o malogro da hipótese de auto-
quer outro problema que a filosofia pudesse tratar. Enfim, em sua nomia do fragmento, vamos investigar agora seu contexto mais
tarefa descritiva, a filosofia é ao mesmo tempo intangível e inca- imediato. Em vez de somente um papel rasgado, teríamos encon-
paz, aparentemente, de afetar a outra disciplina. trado mais algumas folhas soltas naquele pote de barro no fundo
Ficamos totalmente à deriva acerca da relevância desse tipo de da caverna daquela região desértica do Oriente Médio. Estas,
postura programática da filosofia. Que tipo de filosofia é esta que agora, abrangem as seções dos §§ 89-133 das atuais IF que, de fato,
não mais desvenda o sentido oculto das coisas, tal como normal- correspondem a todo um lote da obra que discute mais especifi-
mente esperamos? Que não mais interfere em nossa prática, re- camente a função da filosofia. Talvez isso possa jogar agora um
velando equívocos imperceptíveis e indicando os melhores ca- pouco mais de luz nas nossas inquietações interpretativas.
minhos a seguir? Uma filosofia tão inócua e descomprometida Em correlação com o seu contexto mais imediato, os termos
quanto alguém que relata os costumes de um povo estrangeiro empregados no fragmento iluminam-se realmente muito mais, e
desde o próprio gabinete? Uma filosofia escrita em forma de crô- já poderíamos inclusive tentar emitir algum juízo a respeito do
nicas adocicadas, compostas em uma varanda no final da tarde? que o autor pensa a respeito da natureza da filosofia. Logo no
Uma filosofia que abdica de tudo, até mesmo da posse da ló- começo, nas seções dos §§ 89-90, aprendemos que, em vez do es-
gica? Uma filosofia que imediatamente levantaria a suspeita fatal forço para compreender o fundamento ou a essência de tudo o
incutida na pergunta "para que serve"? E se a filosofia não serve que está na experiência, a investigação filosófica se dirige antes às
para nada, por que, então, propô-la? Falta-nos, ainda, o sentido possibilidades de fenômenos do que a eles próprios. Pergunta-
de "filosofia" usado no texto, bem como das expressões "uso da ríamos se não se trata do estabelecimento de um argumento trans-
linguagem", "descrição" e "problema relevante de lógica matemá: cendental, dedicado ao exame das condições de possibilidade
ticà'. O fragmento não pode ser plenamente compreendido seín daquilo que se apresenta, às vezes distraidamente, como juízo de
essas conexões que estão ali, claramente propostas. Falta-nos. tam- conhecimento. Mas não há mais pistas nesse sentido naquelas
bém conhecer a origem da citação colocada entre aspas no trecho seções, exceto pela informação de que a filosofia é "observação
em epígrafe, e das questões a ela relacionadas. gramatical"(§ 90). Qualquer que seja o significado do qualifica-
Salva-se, contudo, certo efeito de estranhamento provocado tivo "gramatical" ali utilizado, evidentemente não aparece nessas
no leitor. Pois, mesmo antes de descobrir o pleno significado das poucas folhas uma argumentação transcendental, pelo menos não
expressões utilizadas no fragmento, elas não deixarão de provocar no sentido de uma arregimentação das provas para o emprego
84 1 Asingularidade das Investigações filasóficas de Wittgenstein Uma leitura arqueo!ógiGi 1 85

daquilo que, de direito, poderia constituir-se como um juízo palavras, clarificar problemas e remover desentendimentos. Claro
factual. No lugar do esperado interesse epistemológico - ou de está que o foco não reside propriamente nas doutrinas que de-
qualquer outra atividade construtiva em filosofia-, surge, surpre- fendemos, mas nas palavras com que as envolvemos; por exemplo,
endentemente, naquelas folhas soltas, uma determinação pura- as analogias confusas entre formas de expressão pertencentes a
mente destrutiva: a importância da filosofia decorre de poder diferentes regiões da linguagem (§ 90 ). Quando damos explica-
destruir tudo o que parece ser grande e interessante (!) (§ 118). ções, estamos utilizando necessariamente a linguagem completa
Ela se dedica a combater ilusões, mas aparentemente sem arregi- na qual nossas teorias são enquadradas, quer dizer, a linguagem
mentar quaisquer argumentos; pelo menos, algum argumento cotidiana, aquela do nosso dia a dia, e não qualquer sorte de lin-
que possamos perceber naquelas folhas soltas. Mas o texto parece guagem preparatória e provisória(§ 120). Nossas questões só po-
ter consciência, ademais, de que há imagens que nos aprisionam dem ser expressas nessa linguagem, que o autor chama de com-
(§ 115); pretende ou quer derrubar, porém, o que chama de edi- pleta(§ 120), e não numa qualquer específica. Por isso, a tarefa
fícios construídos no ar, deixando para trás apenas pedras e entu- clarificadora realiza-se não pela escavação de alguma coisa oculta
lho (§ 118). Lembra um pouco a filosofia feira com martelo, de aos nossos olhos, mas pelo ordenamento de tudo o que já estava
Nietzsche. Muito também por causa de suas observações cómicas, à plena vista, desde sempre diante de nós(§ 92). Para isso, não é
11
como, por exemplo, a de que a única descoberta de que é capaz é preciso utilizar superconceitos" da linguagem, bastam apenas
a dos disparates e dos galos que nosso entendimento adquire ao palavras concretas, que envolvam o uso das referidas expressões
se chocar contra os limites da linguagem(§ 119). Ela pretende no interior de jogos de linguagem (§§ 93-97). Não se trata tam-
liberar o terreno da linguagem(§ 118), chamar de volta as pala- pouco de buscar um ideal, em contraposição ao vago, na forma
vras do seu uso metafísico para o cotidiano (§ 116). E percebe- de regras lógicas estritas e claras que fossem inabaláveis e que re-
mos, afinal, que o que se denomina como "observação gramatical" presentassem o estado geral das coisas(§§ 98-106). Em vez da
é claramente um método, não uma prova, nem uma listagem, e pureza cristalina da lógica, ideal porém escorregadia, tal como o
muito menos uma doutrina. gelo fino cristalizado sobre a calçada, o método filosófico vai pre-
Mas se imaginamos um método, logo descobrimos que não há ferir a fricção crua e crispada da linguagem real por debaixo do
um método, mas métodos, da mesma forma que diferentes gelo. Ainda que carregada de asperezas, é precisamente essa carac-
terapias(§ 133). Alguns deles são comentados nessas folhas soltas. terística que permite o caminhar mais perfeito(§ 107).
Posto que a nossa "gramática'' falha em nos proporcionar urµa Como a tarefa não é a de reformar a linguagem, mas a de co-
disposição clara, e mal enxergamos o uso das nossas palavras, diz- locá-la em uma de múltiplas ordenações possíveis(§ 132), a filo-
-se da possibilidade de arrumar numa certa ordenação as conexões sofia não propõe teses (§ 128) e não pretende refinar nem com-
intermediárias entre os elementos envolvidos num problema filo- pletar o sistema de regras para o uso das palavras (§ 133). Os
sófico, para que logo possamos examinar a sua forma de apresen- chamados "jogos de linguagem" são apenas objetos de compara-
tação e a maneira como se veem as coisas(§ 122). Seu objetivo é, ção criados para encontrar semelhanças e dessemelhanças nas
se for possível enxergar o que estamos fazendo com as nossas relações estabelecidas pela linguagem (§ 130 ); são um padrão de
86 1 Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgenstein Uma leitura arqueológica 1 87

medida e não um preconceito ao qual a realidade deve corres· envolvemos nossas teorias. Entendemos que "deixar tudo como
pender(§ 131). Esses mérodos consistem somente em dispor den· está" significa, então, não interferir na doutrina; contudo, signi-
rro de um arranjo aquilo que é de há muiro familiar, para que o fica também estimular o teórico a ver de maneira diferente os
trabalho da linguagem seja reconhecido em perspectiva um problemas com que se depara. Então, não é, propriamente enten-
pouco mais distante, em contraposição a uma compulsão ( Trieb) dido, que a filosofia não afete a disciplina que está sob o seu foco.
para desentendê-la(§ 109 ). Em outras palavras, compreende-se a O esclarecimento certamente muda o destino das nossas ativida-
filosofia não como forma de conhecimento, como doutrina, ou des, se elas antes eram confusas. Mas a tarefa da filosofia é mera-
como discurso a respeiro de qualquer objeto. Ela é apenas o em- mente terapêutica, seus métodos são exclusivamente terapêuticos.
prego de um método, de uma ferramenta ou uma atividade, se- Ela não irá fazer parte, como elemento integrante, da disciplina
gundo aquelas folhas soltas. O auror diz que é "uma luta contra que esclarece. Obviamente, então, aquele "deixar tudo como está''
o feitiço do nosso entendimento pelos meios da nossa linguagem'' não quer necessariamente dizer que tudo ficará como antes. Ape-
(§ 109). Entenda-se que tanto o enfeitiçamento quanto as armas nas que não é papel da filosofia nutrir-se tampouco de descober-
da luta ocorrem por meio da "nossa linguagem", pelo que se su- tas matemáticas.
gere mediante uma ambiguidade supostamente proposital. Contudo, mesmo depois de compreendermos um pouco me-
Sobre a matemática, mais especificamente, a seção seguinte a lhor o que teria levado o escritor do fragmento a dizer que a " [a
nosso fragmento(§ 125) esclarece que não é assunto da filosofia filosofia] deixa tudo como está", esse tipo de programa filosófico
resolver uma contradição por meio de uma descoberta mate- continua sendo estranho. Sentimos que essas folhas talvez te-
mática ou lógico-matemática. O propósito, à diferença de qual- nham pertencido a uma civilização que concebia o papel da filo-
quer especificidade doutrinária, é somente tornar visível o estado sofia de uma maneira bem diferente da que normalmente pensa-
da matemática que nos intranquiliza, ou o seu estado antes da mos hoje. O que ela talvez tenha de semelhante à nossa filosofia
resolução da contradição. A filosofia tenta compreender não as ocidental é certa tentativa de redução dos conceitos (ontológicos,
regras, mas por que nelas nos enredamos, pretende jogar uma luz epistemológicos e metafísicos) a problemas linguísticos, mas ela
sobre o nosso conceito de "querer dizer algo" (Meinen ), mostrar se recusa terminantemente a considerá-los de modo positivo, tra-
que talvez o que quisemos dizer, ou o que pressupusemos, pode balhando sobre esses conceitos para transformá-los em novas pro-
bem vir a ser outra coisa. O problema filosófico volta-se não para postas filosóficas. Seu programa de redução linguística pretende
a matemática, mas para o estado civil (bürgerlich) da contradiçã9, somente a visada panorâmica e o estabelecimento de compara-
ou para a sua situação no mundo burguês. ções, a procura de semelhanças e dessemelhanças. Essa atitude é
Nosso fragmento ficou muito mais claro agora. Ficamos sa- cercamente incompreensível dentro do nosso atual contexto de
bendo por que a filosofia não pode tocar no uso real da lingua- busca pelas melhores e mais eficazes soluções. É possível que na-
gem, por que ela só pode descrevê-lo, e por que não pode funda- quela época e naquele lugar a filosofia tenha sido vivida como
mentá-lo. Ela não é uma explicação da linguagem, mas trabalha uma forma de anacoretismo. Sublinha-se em seus escritos, real-
com um método linguístico sobre a linguagem com a qual mente, essa busca desesperada pela tranquilidade.
88 1 Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgenstein

Talvez exista alguma semelhança com outra espécie de pro-


4
grama de filosofia, de caráter mais crítico e terapêutico, entre as
existentes atualmente, como a filosofia de Nietzsche, ou certa UMA LEITURA SECA
crítica do cientificismo e da técnica presente em Heidegger. Há
em nossa filosofia do deserto, porém, certo fervor místico, cerra
urgência escatológica, traços que se deixam entrever nas fórmulas
que expressam certezas acerca de algumas visões totalmente
alheias à perspectiva da filosofia tradicional, como "linguagem
completa", "aspereza da linguagem real", "luta contra o enfeitiça-
mento" e o já conhecido "uso real da linguagem". Destaca-se tam-
bém nela a ausência completa da polêmica com os grandes temas
políticos, sociais e culturais da sociedade do seu tempo, como
vemos em Nietzsche e em Heidegger, bem como a de um lingua- Parece bastante evidente que as seções das IF não podem ser com-
jar tecnicamente mais filosófico, substituído nesse fragmento por preendidas autonomamente. Sua dependência do resto da obra
uma retórica mais assemelhada ao gênero confessional. do autor, ou seja, de todo o Nachlass, é crucial para que a filosofia
Outra dessas estranhas certezas continua para nós completa- como atividade não fique parecendo um conjunto de manifesta-
mente opaca, como "o estado burguês da contradição, ou sua si- ções místicas de um eremita. Façamos agora, entretanto, outra
tuação no mundo burguês". Conhecemos, decerto, a história da experiência. Em vez da leitura arqueológica, que se esforça por
matemática e as várias tentativas de resolução de contradições e dar coerência ao fragmento da seção que contém o§ 124 à luz das
paradoxos. Mas não sabemos a qual delas o autor do fragmento outras 43 seções que a acompanham, e das variadas inter-relações
se refere. Ademais, parece realmente estranha a recusa da filosofia que entre elas podem ser estabelecidas, utilizemos as mesmas fo.
em participar da resolução de contradições em lógica e matemá- lhas sem acrescentar nexos e ligações de sentido, tanto na relação
tica, ou, talvez, permanecer na matemática antes da resolução da entre as seções e o nosso fragmento como na vinculação entre as
contradição e tentar não compreender as regras, mas por que nos orações que se sucedem, uma após outra, no interior das seções,
enredamos nelas. Parece estranho porque, precisamente, essas con- se tais conexões não estiverem explicitadas no próprio texto. En-
tradições parecem ser sempre decorrentes de alguma filosofia Vies- fim, tentaremos agora outra espécie de assimilação do texto. Va-
suposta no interior da matemática. Além do mais, como se,pode mos procurar apreender seu conteúdo sem interpor conexões
permanecer numa situação em que não se compreendem as regras? lógicas que resolvam a falta de sentido daquilo que vai sendo
Não é o que queremos dizer que nos salvaria da contradição, mas apreendido pelo intelecto por meio dos sinais escritos sobre a
o trabalho da filosofia é justamente o de descobrir o elemento que folha de papel. Exclusivamente os sinais escritos, sem colocar
ainda falta à nossa compreensão, bem ao contrário do que pode nada mais entre eles. Aproveitemos uma sugestão do próprio
ter parecido ao nosso antigo sacerdote da comunidade do deserto. Wmgenstein, que evoca a mágica do Rato, um dos personagens
90 1 Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgenstein
Uma leitura seca J 91

do capítulo IlI de Alice no país das maravilhas, para "secar pela ninguém pergunta, e não mais sabemos quando remos de expli-
leitura do mais seco que há" ( 0RD, p. 39 ). Leremos, portanto, car, é algo que temos que "meditar" sobre, "recordar" ou "reconsi-
algumas seções sem estabelecer qualquer outra conexão de sen- derar" (woraufman sich besinnen muj?J. O peso está claramente
tido senão a que já esteja claramente estabelecida no texto. posto sobre esse dever de "meditar~ já que o verbo foi sublinhado
Logo de saída, na seção do§ 89, constatamos que o que se diz pelo escritor. Fica estabelecida uma relação entre a incompreen-
da filosofia na seção do§ 124 aplica-se também à lógica. Mas não são e a obrigação de meditar. E, ainda, o segundo parágrafo vem
confundamos lógica com filosofia, como se a primeira palavra não acrescentado de uma declaração final colocada entre parênteses
se referisse estritamente a uma técnica de transformação de obje- que nos alerta de que tudo isso é manifestamente algo sobre 0
tos abstratos regida por regras explícitas. Na seção do§ 89 passa qual, por alguma razão, segundo o texto, dificilmente medita-
a ser a lógica, e não a filosofia, que não está à procura de novos remos. O que claramente nos joga noutra imensa dificuldade, que
fatos e nada pretende descobrir. O motivo, no caso da lógica, é é a de desfazer a ambiguidade (ou até a contradição) entre O dever
que ela pretende chegar a compreender a essência ou o funda- para o qual somos, quase que religiosamente, chamados, e que, ao
mento de tudo o que ocorre na experiência. Ela, portanto, tal mesmo tempo, se atendermos, por "alguma razão" dificilmente
como a filosofia na seção do§ 124, não nos ensinará nada de novo, conseguiremos realizar.
pois tudo o que queremos entender já está em aberto diante dos Mas outra coisa, realmente, que agora nós, leitores secos, não
nossos olhos, e, poderíamos até concluir, por conta dessa atitude, mais sabemos, é se a incompreensão evocada por Santo Agosti-
que a lógica parece deixar tudo como está. A única informação nho é da mesma natureza que a da lógica, assunto que tratávamos
nova do primeiro parágrafo da seção é a que diz que é exatamente antes, no parágrafo anterior da mesma seção, e que, segundo ha-
isso que parecemos não compreender. víamos sido informados, deseja compreender a essência da expe-
Abre-se então, sem prévio aviso, um novo panorama de dis- riência sem a experiência. É possível que permaneçamos nesse
cussão. Aparece uma pergunta muito antiga, oriunda das profun- assunto, mas pode ser que, novamente, mudemos completamente
dezas da história, formulada por Santo Agostinho: "O que é o de tema no segundo parágrafo da seção. O texto simplesmente
tempo?" (Confissões XI, 14). Poderíamos, com todo o direito, não explica o que uma incompreensão tem a ver com a outra,
perguntar o que tem a ver a lógica com o tempo. O autor do nem por que seria uma pergunta sobre o tempo em Santo Agos-
texto, surdo a esse reclamo, sugere que uma questão como esta tinho uma espécie de pergunta lógica, ou semelhante a questões
não cabe na ciência natural. Mas ua próxima frase saltamos dr lógicas, ou, pelo menos, como ela pode ser posta em comparação
preocupação epistemológica para outro foco de interesse, CC?m- com uma questão científica contemporânea, como o peso atô-
pletamente distinto, que é o tema da incompreensão. O tema da mico específico do hidrogênio, mencionado no texto, sem cor-
ciência natural, por sua vez, um assunto bastante profícuo, e pro- rermos o tremendo risco de anacronismo. Parece realmente es-
fundo o suficiente para ocupar muitas páginas de discussão, é pantoso como uma questão típica da filosofia da ciência
abandonado sem a menor cerimônia. Levados agora para a in- contemporânea pode conviver tão desavisadamente com um
compreensão, o autor nos diz que aquilo que sabemos quando problema metafísico da filosofia medieval. A única indicação do
92 1 Asingularidade das Investigações filosóficos de Wittgenstein Uma leitura seca f 93

autor é uma exortação final à obrigação de "meditar" diante desse do fenômeno", antes que à sua realidade metafísica. O que, de
mesmo tipo de embaraço (provavelmente a pergunta sem res- resto, parece ser o caso, quando lemos as Confissões, é a realidade
posta de Santo Agostinho). metafísica do tempo, um assunto completamente alheio aos argu-
Quando começa a seção do § 90, o autor parece estar ainda mentos transcendentais que, ao contrário de Santo Agostinho,
referindo-se à lógica, e não à filosofia, porque não apenas segue tentam desvencilhar-se da metafísica desnecessária. Para piorar
evocando o mesmo exemplo fornecido na seção do§ 89, o emba- ainda mais a situação, o autor do texto diz com toda a ênfase que
raço de Santo Agostinho, como também segue discutindo sobre os enunciados que Santo Agostinho examina não são filosóficos.
a mesma necessidade moral de "meditar". Refletiremos, segundo Mas, como é bastante provável que para a maioria dos estudiosos
a nova seção, sobre os "tipos de enunciados que fazemos sobre os do filósofo medieval eles sejam, sim, filosóficos, não sabemos tam-
fenômenos", assim como Santo Agostinho medita sobre os enun- pouco ao certo o que nosso autor quer dizer com isso, por com~
ciados que se fazem sobre a duração dos acontecimentos, isto é, pleta falta de indicação no texto que agora lemos secamente.
sobre o passado, o presente e o futuro. Percebe-se que a meditação E eis que novamente outra janela se abre repentinamente para
agora já não é sobre o que não mais sabemos quando queremos uma paisagem distinta da que vínhamos tratando no parágrafo
explicar, mas sobre os tipos de enunciados que fazemos sobre os anterior da seção. Um cenário que agora parece relacionar ( indi-
fenômenos - o que, diga-se de passagem, são duas coisas diferen- cado pelo advérbio daher na primeira frase) as considerações re-
tes. Mas tudo se passa até aqui como se o autor estivesse fazendo cém-concluídas com o adjetivo "gramatical": "Nossa observação
certa ironia com a lógica e com as complicações nas quais ela se é, portanto, gramatical", declara a primeira oração. Quase nos
envolve sem intenção e sem necessidade. E, mais uma vez, a lógica predispomos a aceitar que a "meditação", a cujo dever moral e
desempenha algumas tarefas que antes líamos como se estivessem respectivos procedimentos nos convocava o autor logo acima, é a
designadas à filosofia. Por exemplo, de que a investigação não se mesma "observação gramatical" daqui. Porém, só o que sabemos
dirige aos fenômenos, mas volta-se à sua possibilidade. E, de deveras é que o filosófico passou a ser também o lógico, depois se
pronto, passamos da investigação das possibilidades para, como constituiu como necessidade de meditar, depois passou para a
disse, a meditação sobre os tipos de enunciado que fazemos sobre investigação da possibilidade dos fenômenos, e agora fica sendo,
os fenômenos, sem que, novamente, não se diga como se dá a li- adicionalmente, uma "observação gramatical", sem que as dife-
gação de uma coisa com a outra. Apenas a sugestão de que Santo renças e semelhanças entre os distintos termos postos em jogo se
Agostinho realiza as mesmas meditações sobre enunciados acerca; esclareçam. É evidente também que o leitor, encontrando agora
do tempo, no livro XI das Confissões. Não se sabe ao certo co,;no o adjetivo "gramatical", que só é usado para qualificar a norma
a "investigação sobre as possibilidades dos fenômenos" se asseme- linguística destituída de qualquer contaminação filosófica, não
lha e se diferencia da "meditação sobre os tipos de enunciados que pode evitar a perplexidade. Ele é obrigado a um tremendo esforço
fazemos sobre os fenômenos", e nem em que as meditações de de compreensão e empatia para não se perder na leitura. Mal-
Santo Agostinho no livro XI das Confissões sobre o tempo diri- grado, entretanto, a falta de explicação e a indiferença quanto aos
gem-se realmente aos "tipos de enunciado" ou às "possibilidades sentimentos do leitor, o novo parágrafo que se abriu na seção
94 1 Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgenstein Uma leitura seca 1 95

dedica-se a esclarecer que a observação gramatical não é uma con- pressão completamente decomposta". Ou, então, seria levado a
templação tão neutra quanto poderia parecer à primeira vista, imaginar que as formas de expressão que utilizamos são, essen-
dado que ela "traz luz para o nosso problema" e, nesse mesmo cialmente, ainda não analisadas, que haveria nelas ainda alguma
movimento, ainda "remove más compreensões". Essas más com- coisa de oculto a ser descoberto. Existe essa aparente preocupação
preensões de agora, o texto nos esclarece, são provocadas, entre com o desentendimento do leitor, mas não se explica então exa-
outras coisas, por certas analogias entre formas de expressão de tamente do que se trata. Tudo se passa como se fosse um daqueles
distintas regiões da nossa linguagem. E aqui aparece inespera- casos em que se adverte uma pessoa a não fazer aquilo mesmo que
damente mais uma forma de assepsia, porque o texto também se deseja que ela faça. A admoestação serviria como incitação para
informa que muitas dessas formas de expressão podem ser elimi- aquele que não havia sequer imaginado tais possibilidades. En-
nadas pela sua mera substituição por outra forma de expressão. contra-se aqui mais um ponto de perplexidade para o leitor.
Não se diz como nem quando, nem se isso é a mesma coisa que a O segundo parágrafo da seção persiste no propósito de cla-
"iluminação" propiciada pela "observação gramatical" que, ao rificar seus termos. O resultado, porém, é que confunde ainda
mesmo tempo, "remove as más compreensões". Para finalizar com mais, pois sugere a alternativa de que ''eliminamos más compre-
mais uma confusa informação, e agravar ainda mais nossos pro- ensões tornando nossa expressão mais exatà'. Confusão da qual o
blemas interpretativos, o autor nos diz que podemos chamar esse próprio parágrafo novamente se apercebe, porque declara que
processo de "'analisar"' (que ele coloca entre aspas) "nossas for- pode parecer que o objetivo seria o de buscar um estado de exati-
mas de expressão", uma vez que, às vezes, tem semelhança com a dão completa, mas não é nada disso. Porém, tudo termina assim,
atividade de "desmontar", "destrinchar" ou "decompor" (Zerle- de súbito. E nada mais é dito sobre o que supostamente se quer
gen ). Curiosamente, entretanto, o autor realiza aqui aquilo dizer com a palavra "analisar".
mesmo que ele acabou de condenar: uma analogia entre formas De fato, em todo o resto dessas folhas soltas, nunca mais re-
de expressão de distintas regiões da nossa linguagem. Ficamos torna à cena a expressão "analisar", para que o leitor se sinta con-
atônitos, ao testemunhar que ele transfere uma expressão dire- fortado pelo real significado dessa missão filosófica, que se con-
tamente da química para a filosofia, instaurando imediatamente funde, por um lado, com "meditar", "investigar" ou "observar", e,
uma ambiguidade (ou até uma contradição, não sabemos ao por outro, com uma atividade diferente sobre a qual muito pouco
certo) com relação ao que acabou de dizer a respeito da origem se esclarece. Não há o aceno da menor esperança de que em algum
das nossas más compreensões. momento possamos sair do pântano interpretativo. Realmente, a
A seção do§ 91 como que se apercebe da ambiguidade desen- seção do § 124 resume isso tudo como um "deixar tudo como
cadeada pelo uso da expressão "analisar" nesse contexto, pois apa- está". Porém, isso é de muito pouca ajuda para quem gostaria de
rentemente se preocupa agora com o que pode parecer ao leitor saber exatamente o que se deve fazer em lógica (ou em filosofia).
o uso desse verbo. Ele poderia ser levado a supor que haveria uma Se desistirmos de seguir o texto sentença por sentença para
"última análise das nossas formas de linguagem", tal como faze- tentar entender a mensagem dessas folhas soltas, e passarmos um
mos numa análise química, a fim de chegar a "uma forma de ex- olhar de relance ao longo de suas 44 seções apenas para checar os
96 1 Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgenstein Uma leitura seca 1 97

usos d.as palavras "problema" e "má compreensão", centrais em firmemente estabelecidos, colocados cuidadosamente por escrito,
toda a argumentação missionária desenvolvida até aqui, e também que sirvam para avaliar as medidas preventivas prescritas no
na seção do § 124, tampouco nada se resolve. Vejamos. Quanto ao texto, exceto alguma sugestão como ((Perguntemo-nos: por que
que podemos considerar como um "problema'' em filosofia, na sentimos um chiste gramatical como profundo? (E isso já é a pro-
seção do § 89, o autor do texto nos diz que o problema consiste fundidade filosófica)". A única profundidade filosófica que O lei-
em saber até que ponto a lógica é algo sublime. E aprendemos na tor pôde sentir até aqui é a da extensão de seu afogamento inte-
referida seção que o lugar para onde convergem nossas preocupa- lectual. Quase não se pode mais respirar quando o autor fala de
ções constitui certamente nosso modo de conceber ou de repre- um chiste que ele não nos conta.
sentar a lógica. Quer dizer, se, para o leitor, parecia que o pro- Pulando, agora, para a seção do § 123, somos surpreendidos
blema era medir a sublimidade da lógica, na verdade, a argu- com a nova forma que adquire o "problema filosófico". Ela con-
mentação parece sugerir que o problema consiste na própria siste num inexplicável e enigmático "eu estou perdido" (lch kenne
maneira de formular perguntas, no tipo de interesse que a lógica mich nicht aus ). Coincidência ou não, é exatamente assim que 0
desperta em nós, no modo como a utilizamos. Já na seção se- leitor seco também se sente. O nosso fragmento, a seção do§ 124,
guinte, no § 90, o ponto focal muda do uso da lógica para as abor- apenas diz que um problema proeminente da lógica matemática
dagens da linguagem em geral, porque o nosso problema se rorna é um problema como outro qualquer, o que não esclarece muita
agora, como já vimos, as analogias entre formas de expressão de coisa, e a seção do § 125 aparece com um "o problema filosófico''.
diferentes regiões da linguagem. Já duas seções mais abaixo "nosso inédito até então, que ela ciosamente explica tratar-se da situação
problema'' é outro: ele se encarrega particularmente da forma "a civil da contradição ou a sua situação no mundo burguês. Final-
essência nos é oculta''. Depois, voltamos ao geral, porque na seção mente, na última das nossas seções, a do§ 133, nos inteiramos de
do § 109 os problemas filosóficos consistem numa compulsão a que, quando dificuldades são eliminadas, problemas são resolvi-
compreender mal o funcionamento da linguagem. Um tipo de dos, mas não um problema - o que, supostamente, deve querer
problema, o autor nos esclarece, que não é empírico, mas cuja dizer que há muitos dessa espécie, talvez mais do que o nosso vão
relação com tudo aquilo que desde a seção do § 92 foi também entendimento possa imaginar.
indicado como "nosso problema'', muito embora lá atrás pareça Quanto à "má compreensão", que está estreitamente correla-
ser algo bem próximo de nós, não é, na realidade, claramente cionada ao "problema filosófico", parte significativa dos argumen-
explicada aqui. A seguir, no § 11 O, os problemas são especificados tos missionários da filosofia ao longo das nossas folhas soltas - e,
nas "ilusões gramaticais", é sobre elas que recaem o nosso-'inte- queremos acreditar, também no nosso fragmento - deixa-nos
resse, e no § 111, os problemas, também no plural, consistem em igualmente sem indicações concretas. Na seção do § 90, as más
um mal interpretar as formas da nossa linguagem. Não há muitos compreensões, ali no plural, dizem respeito ao uso de palavras, e
exemplos para reconhecer quando alguma sentença não é uma são removidas pela luz lançada pela observação dos nossos pro-
ilusão gramatical ou quando uma interpretação das formas da blemas. Mas como, especificamente? A seção nos indica a substi-
nossa linguagem deve ser considerada boa. Não há parâmetros tuição de uma forma de expressão por outra, já que o uso das
98 1 Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgensteln Uma leitura seca 1 99

palavras é provocado, entre outras coisas, por analogias. A suges~ sição. E, finalmente, na seção do§ 132 fica claro que o autor não
tão, entretanto, não resolve o problema de sua imprecisão, posto pretende um melhoramento da nossa terminologia para evitar as
que falta saber quando o uso de uma analogia ou de uma forma más compreensões do seu uso prático, embora isso fosse, a seu ver,
de expressão pode ser considerado correto, e quando deve ser possível. Antes disso, o que ocupa a filosofia são as confusões que
substituído. Na seção do§ 91, as más compreensões são elimina- se originam quando a linguagem gira no vazio, e não quando ela
das de outra forma, não pela substituição, mas quando tornamos trabalha. Quando, no entanto, essa má situação se instala, não
mais exatas nossas expressões. Mas também aqui falta o parâme- está claro no texto.
tro da exatidão. Na seção do § 93, aparece a menção a uma suposta Constatamos, portanto, que uma leitura seca, sem a interpo-
má compreensão da lógica da linguagem. Essa má compreensão sição de conexões compreensivas nas lacunas de sentido, não fun-
faz parecer que a proposição tenha feito algo de notável e raro. ciona para solucionar o problema da correta compreensão das !F.
Como saberemos, porém, que compreendemos mal? A única in- Não funciona, pelo menos, para o caso da nossa amostra arqueo-
dicação - vaga - é o uso de expressões exaltadas, como o uso do lógica; mas provavelmente não funcionaria para o conjunto das
adjetivo merkwürdig (notável, curioso, singular), tanto na seção IF. Trata-se de uma obra inacabada. Por causa disso, portanto,
do § 93 quanto na do § 94, a respeito de supostas capacidades e uma obra em estreita conexão com a totalidade do Nachlass. Mas
maravilhas da lógica. Mas, em si, o uso de expressões nada quer antes de examinarmos as ligações entre as IF e o Nachlass, preci-
dizer, como veremos a seguir na seção do § 120. Antes disso, no samos observar algumas de suas características de estilo para evi-
§ 109, existe uma má compreensão que é o resultado de uma ten- denciar que os aspectos formais do texto podem comunicar uma
dência contraposta ao reconhecimento do trabalho da nossa lin- grande quantidade de informação que não está exatamente na-
guagem. Também não há exemplos nem esclarecimentos mais quilo que é dito pelo texto. E, do ponto de vista do estilo, as IF se
precisos a respeito do que seria o trabalho da nossa linguagem. singularizam na história da filosofia. Não é, afinal, tão surpreen-
Agora, na seção do§ 120, os escrúpulos em utilizar a mesma lin- dente constatar que uma filosofia concebida como atividade, co-
guagem na qual formulamos perguntas no esclarecimento das locada claramente em contraposição a filosofias concebidas como
dificuldades das explicações são qualificados, simplesmente, de explicações científicas, manifestou pelos aspectos pragmáticos da
más compreensões. Aqui parece claro que o ponto da falta esc'rita a própria filosofia como atividade. O surpreendente é
de compreensão é o da rejeição em considerar seriamente a lin- como isso foi feito.
guagem do dia a dia para se referir à linguagem no sentido m')is
técnico do termo. Não obstante, uma aparente contradição não
escapa ao olhar: para essa linguagem grosseira, material, com a
qual compomos todas as nossas explicações, o autor usa o adjetivo
"notável" (merkwürdig), ao observar que podemos fazer coisas
espetaculares com ela. Esta é exatamente a mesma atitude que
parece ser condenável nos §§ 93 e 94 quando seu foco é a propo-
5

A OBRIGATORIEDADE DO CONTEXTO

Evidentemente, uma leitura seca das nossas 44 seções é impossível.


As inconsistências, ambiguidades e contradições que, nessa mo-
dalidade de leitura, prorrompem no decorrer do texto obrigam-
-nos imediatamente a aplicar o princípio de caridade e consertar
os embaraços segundo uma linha coerente e harmônica de com-
preensão. Maximizar a coerência e os sentidos das palavras e dos
pensamentos, a fim de proporcionar uma acomodação racional
da interpretação, é um pressuposto do uso da linguagem, de
acordo com um célebre postulado proposto por Donald David-
son (1984, pp. 136-137). Se o aceitamos, a leitura arqueológica é
claramente preferível à leitura seca. Aliás, ela se torna mandatória.
O argumento, além de tudo, tem caráter transcendental, pois
inegavelmente é uma condição de possibilidade a priori para qual-
quer forma de interpretação. Seria impossível pensar o sentido de
um texto sem a pressuposição de alguma forma de regularidade,
de acordo com essa perspectiva. Poderíamos, nesse caso, partici-
par até do coro pragmático e dizer que o humano tem horror à
leitura seca. Não fazemos leituras secas, exceto nas fantasias lite-
rárias como as de Lewis Carrol!.
Se transladássemos o princípio de caridade ao caso aqui pro-
posto, diríamos que parece impossível que, ao lermos um texto,

UNICAlW!;e
iNf<Yl'nXH'.J PI: f::STU!:lóiif '-'"' Ui'111G!W\Gi!lll!
~BUO'itECfe\
102 1 Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgenstein
Aobrigatoriedade do contexto

já não desenhemos nele imediatamente uma fisiognomia. Ostra- stein, exatamente no que se refere às operações espontâneas da
ços que nele colocaremos serão então a expressão de um determi- razão, tais como as descritas na passagem acima. O preenchi-
nado conteúdo, ou de uma determinada mensagem, pelo menos. mento de lacunas na experiência certamente é alguma coisa com
E aqui pode residir toda a solução e todo o problema, a depender a qual Wittgenstein conta em suas descrições antropológicas, mas
do uso da fisiognomia. Vejamos este excerto das IF: não menos certamente é alguma coisa pela qual ele não demons-
tra nenhum interesse teórico.
"Ele o media com um olhar hostil e dizia ..." O leitor da narração
O valor do experimento da leitura seca, entretanto, tal como
compreende isso; ele não tem nenhuma dúvida em sua mente. Agora
o aplicamos aqui, reside no fato de que ele chama a nossa atenção
tu dizes: "Bem, ele adiciona mentalmente o significado, ele adivinhà'.
- Em geral: Não. Em geral, ele não adiciona mentalmente nada, ele
para uma peculiaridade do texto de Wittgenstein: mesmo apli-
não adivinha. - Mas é também possível que o olhar hostil e as pala- cando o princípio de caridade, a leitura continua apresentando
vras mais carde se comprovem como dissimulação, ou que o leitor basicamente os mesmos obstáculos que dificultam uma interpre-
permaneça em dúvida sobre se eles são ou não, e que ele, portanto, tação completamente consistente. Isso pode ser demonstrado pela
adivinhe sobre uma interpretação possível. - Mas então ele adivinha, circunstância de que os termos missionários mobilizados pelo
sobretudo, sobre uma conexão. Ele diz para si, talvez: os dois que nosso pequeno pedaço de texto do capítulo 3 continuam sem
agem aqui tão hostilmente são, na realidade, amigos etc. etc.
indicações concretas, continuam com muitas referências não es-
(("Se queres compreender a sentença, tens que imaginar ali o sig-
clarecidas e continuam apresentando ambiguidades e contra-
nificado psicológico, os estados mentais.")) (IF § 652)
dições, mesmo depois que ampliamos um pouco o contexto li-
terário. Essa situação se assemelha a dificuldades interpretativas
Temos aqui uma discussão sobre o preenchimento do con-
tais como a mencionada por Wittgenstein em OC:
teúdo de uma história interrompida no meio. O leitor deve adi-
vinhar se é uma expressão de hostilidade. Tudo parece indicar que
Alguém, em conversa comigo, diz sem qualquer nexo "Te desejo
sim. Há indícios no contexto para sustentar essa leitura como tudo de bom". Estou atônito; mas depois me dou conta de que essas
uma possibilidade interpretativa razoável. Mas uma expressão palavras estão em conexão com os seus pensamentos sobre mim. E
pode ser também uma dissimulação. E a dúvida se instala na agora elas já não me parecem sem sentido. (OC § 469 ) 1
mente do leitor. Entretanto, em qualquer caso, se queremos com-
preender, temos que usar a imaginação para preencher as lacun~s;
1
Wittgenstein, porém, não utiliza nenhum instrumento conceitúal A tradução ao português elimina uma das estratégias de escrita mais notórias em Witt-
genstein, uma característica coincidente com a escrita de Lewis Carroll, como já vimos,
para denominar essa espécie de recurso mental que Davidson, em que é o uso de sentenças ambíguas para produzir uma leve desorientação no leitor e
obrigá-lo à reflexão (cf Tejedor, 2015, p. 160), No alemão, o pronome pessoal no caso
sua teoria, denominou como "princípio de caridade,,. Mais
nominativo cem a declinação neutra no plural e, portanto, cria ambiguidade se esse
adiante, no capítulo 8, precisamente no tópico 4, veremos que pronome tem um antecedente feminino, masculino ou mesmo neutro. O leitor fica
suspenso por um momento, sem saber se o pronome se refere a "pensamentos" (subs-
McDowell chama de "segunda natureza" o que ele interpreta
tantivo na 3' pessoa do plural masculino, em alemão) ou a "palavras" (substantivo na
como a expressão de um naturalismo antropológico em Wittgen- 3" pessoa do plural neutro, em alemão). A língua portuguesa não oferece a possibilidade
de manter a ambiguidade, exigindo que da seja desfeita pelo uso do pronome no fe-
104 1 Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgenstein Aobrigatoriedade do contexto l 105

Criar conexões de sentido pode acalmar nossa perplexidade. do § 124, em cujo foco nossas incursões contextuais se baseiam.
Somos compungidos a fazê-lo, pois, do contrário, permanecería- Veremos que os pressupostos do argumento do contexto nem
mos num desagradável estado de obscuridade do entendimento. sempre funcionam. Basicamente, porque eles ainda continuam
Mas isso não quer dizer, necessariamente, que nossa hipótese dependendo do tipo de olhar que estamos lançando para o pano-
interpretativa tenha que estar correta, mesmo que ela seja útil rama. E, nesse caso, podemos notar ou não o que poderia ser
para aliviar, por cerro período de tempo, uma tensão. Vejamos visto. Para examinar esse ponto, podemos conceber o contexto
como esse mesmo problema se configura no próprio texto de ampliado da nossa figura de três modos diferentes: (1) as IF como
Wittgenstein. Em primeiro lugar, é preciso reparar o que está um todo; ou, (2) o Nachlass, incluindo as IF no conjunto; e (3) o
pressuposto no argumento do contexto. Ele sustenta a esperança corpus literário mais os dados biográficos do autor e o mundo fi-
de que os problemas interpretativos se arrefecem quando dispo- losófico que nutria suas preocupações literárias. Em nenhum des-
mos da totalidade que enquadra um cenário interpretativo. Esse ses casos o argumento do contexto será plenamente bem-suce-
pressuposto está implícito até mesmo numa reflexão fornecida dido, a não ser que o espírito do texto seja o mesmo do leitor. Isto
pelas próprias IF, na cena da discussão da figura de uma face sor- é, teríamos que compreender a expressão, reconhecer nela o pró-
ridente (IF § 539). Essa reflexão dedica-se a demonstrar que o prio autor, sua atitude filosófica, mas esses pedaços de informação
contexto espacial e temporal afeta decisivamente qualquer juízo não estão disponíveis no conteúdo do texto.
que possamos fazer sobre a figura. A cena aparece assim: se no No caso da hipótese (1), por exemplo, o argumento do con-
desenho de uma face sorridente enxergamos exclusivamente um texto sustentaria que manter o foco nas nossas 44 seções, mas da
rosto que sorri, podemos imaginar que se trata de um sorriso de perspectiva das demais 649 seções (as 88 que as antecedem, a pró-
candura, como o de quem está vendo uma criança a brincar; con- pria, mais as 560 que as sucedem nas IF), deveria mudar tanto a
tudo, se ampliamos o enquadramento da figura e percebemos que nossa visão quanto o contexto que circunda o fragmento literário.
a pessoa está sorrindo porque tesremunha o sofrimento do seu Contudo, a expansão do contexto das nossas 44 seções para todo
pior inimigo, a interpretação da mesma face sorridente, sem reti- o livro pode até aliviar um pouco a necessidade de um sentido
rar nem acrescentar nada do próprio desenho, não será mais de mais claro, mas fica bem longe de resolver nossos problemas in-
candura, mas talvez de mordacidade. terpretativos. As IF já são, por si mesmas, um livro bastante inco-
Diante disso, a pergunta que podemos fazer é se a ampliação mum. Não só porque não tem um índice, como seria de esperar
do contexto espacial e temporal modificará não só a leitura das 44 de um livro, e os assuntos que nela vão surgindo simplesmente
seções, mas também nos dará uma interpretação segura da s~ção não vêm subdivididos em capítulos e tópicos que facilitariam o
seguimento - e, portanto, a compreensão do leitor -, mas tam~
bém porque os temas vão se alternando dentro do conjunto de
minino ou no masculino. A interpretação mais imediata é de que a referência é a pala-
vras. Aqui, OC § 469 em alemão: "Jemand sagt im Gespriich zu mir znsammenhangslos rextos sem qualquer aviso prévio. Eles vão e voltam como veios
»Ich wünsch dir alies Gute«. Ich bin erstaunt; aber spliter sehe ich ein, dag diese de água que desaparecem para dentro do subsolo e recomam em
Worte in einem Zusammenhang mit seincn Gedanken über mich stehen. Und nun
erscheinen sie mir nicht mehr sinnlos". qualquer outro ponto inesperado do campo como se fosse a nas-
106 1 Asingularidade das lnve5tigações filosóficas de Wittgenstein Aobrigatoriedade do contexto j 107

cente de outro rio. O leitor não pode se distrair, deve encarregar- dessa voz, precisamente porque esse tipo de "referência", junto
-se, por si mesmo, de perceber quando mudou o tema e quando com os usos de palavras restantes, já é conhecido.
ele ressurge de outra perspectiva noutra parte do livro. E isso não Pois bem, se na seção do § 90 ocorre a coincidência temática
é tudo. Na verdade, acredito que a completa eficácia do pressu- de tomar a má compreensão como um resultado proveniente tam-
posto do contexto - ou seu funcionamento perfeito, sem nenhum bém do uso de palavras, lá ela é removida de outra forma. Não
problema é negada em nosso primeiro caso por três fatores pela ostensão, mas pela "observação dos nossos problemas" e pela
decisivos contidos nas próprias IF: não apenas (1) a imprevisível consequente "substituição" de uma forma de expressão por outra.
variação em torno de um tema dado; mas, também, (2) a polifo- O que é diferente de remover a má compreensão pela simples
nia dialógica presente em várias partes do livro; e, (3) as próprias ostensão. Nesse caso, um gesto corporal resolve o problema; na-
declarações do prefácio. Esses três itens ajudam a compor uma quele, está sendo convocada uma operação intelectual bastante
fi.siognomia do texto, mas não são suficientes para o esclareci- mais complicada.
mento definitivo das opacidades do conteúdo. Na seção do§ 91, por sua vez, a má compreensão é removida
quando tornamos mais exatas as nossas expressões. Mas, ao final
da seção do § 28, num acréscimo posterior ao texto proveniente
5.1 Variações sobre um tema dado do TS 228 (Bemerkungen I), diz-se que "Qualquer explicação pode
ser mal compreendida" (mote que é repetido, dentro de outro
Para constatar o ponto 1, basta retomar o exemplo "eliminar a má contexto, na seção do§ 71). O que nos levaria ao problema de não
compreensão", mencionado nas seções dos§§ 90 e 91, que acaba- mais saber como poderia haver uma expressão mais exata se qual-
mos de examinar no capítulo 4, e verificar se nossa perspectiva quer explicação pode ser mal compreendida. O que se
melhora no restante do livro. Podemos ver que não. A primeira diz na seção do § 28 parece remar contra a corrente do que se
vez que a expressão aparece, no § 10, o contexto é o de uma discus- admite na seção do § 91. E ainda, paradoxalmente, admite-se na
são acerca do que designam as palavras nos casos do jogo de lin- seção do § 87 que uma explicação serve para evitar más compreen-
guagem da ostensão. Nesse sentido, uma das vozes da discussão, sões. Ou que explicações servem para eliminá-las ou, então, para
em contraposição à ideia de que a descrição do uso deveria vir sua'prevenção (mesmo levando em conta que nem todas pode-
acompanhada de uma forma linguística, argumenta que é possível riam cumprir a função).
abreviar tal descrição - como, por exemplo, a palavra "chapà', Vejamos agora, em vez do possível significado de uma expres-
proveniente do campo semântico da atividade de construção de são bastante utilizada nas IF, outro tipo de caso de variação de
edifícios - pela mera ostensão, isto é, simplesmente mostrando o perspectiva a respeito de um mesmo tema, que é aquele, talvez
objeto. Isso seria feito se quiséssemos, por exemplo, remover a má muito mais importante, referido a conceitos, Tomemos, por
compreensão de que a palavra "chapà' se refere à forma da pedra exemplo, um dos conceitos mais importantes discutidos nas IF,
de construção que, de fato, denominamos como "bloco". Evita-se que é o de "seguimento de regras". Na seção do § 202, Wittgen-
a má compreensão pela simples ostensão, segundo o argumento stein declara que: "É por isso que 'seguir uma regra' é uma práxis.
108 1 Asingularidade das Investigações filosóficas de W1ttgenstein Aobrigatoriedade do contexto [ 109

E acreditar seguir uma regra não é: seguir uma regra. E por isso gras estaria associado ao hábito, ao costume, e não se poderia se-
não se pode seguir uma regra 'privatim', senão o próprio acreditar guir uma regra sozinho no mundo; o que propriamente nos com-
seguir uma regra seria como seguir uma regra" (IF § 202). pele a seguir uma regra; o que quer dizer a expressão "e assim por
Todo o contexto imediato da citação trata de uma ampla dis- diante", como a ela respondemos com um comportamento regu-
cussão sobre o que propriamente queremos dizer quando men- lar etc. No meio de toda essa massa variada de discussões, a seção
cionamos vários casos de comportamentos regulares e repetitivos, do § 201 enuncia o famoso paradoxo da interpretação de um de-
como se eles estivessem supostamente guiados pelo seguimento terminado comportamento pelo seguimento de uma regra, que é
de regras. Esse contexro abrange rodo um bloco de pelo menos 57 o de que se qualquer curso de ação puder ser interpretado de
seções, entre a seção do § 185 até a do § 242. Nesse bloco, uma acordo com uma regra, pode ser também interpretado contra
gama de variedades comportamentais, mentais e sociais é rigoro- ela. Desse modo, ficamos completamente impossibilitados de
samente examinada quanto a sua plausibilidade e sua coerência. dizer que regra determinou certo tipo de ação, e todos os nossos
Na opinião de Kripke, como veremos abaixo no tópico 3 do ca- questionamentos, como toda essa exaustiva perquirição que du-
pítulo 8, isso ocorre mesmo depois da seção do § 243, que inau- rou até ali, caem por terra como um abacate maduro desman-
gura o tópico sobre o argumento da linguagem privada, o qual, chando no chão após um baque surdo. Depois disso, nosso senti-
na sua correta visãoi é também uma discussão sobre o seguimento mento é de perplexidade e desorientação. Todo o nosso cansaço
de regras, mas, desta vez, pelo lado do interior. Deveria ser, então, tinha sido vão, e não sabíamos. Aparentemente, é essa reflexão de
a "parte II" da discussão sobre o seguimento de regras. No en- um pensamento atônito e conformado que provoca a dissolução
tanto, se dispensarmos essas seções, a ideia do seguimento de re- do problema da interpretação na práxis, o único elemento indu-
gras, apenas do ponto de vista público, já é por si mesma questio- bitável que está diante dos nossos olhos céticos, já que tampouco
nada de uma grande multiplicidade de formas somente naquele "acreditar" seguir uma regra, como esclarece o trecho, não seria
primeiro bloco. Por exemplo, questiona-se como é possível não exatamente "seguir uma regra". O caráter individual e privado do
cometer um erro quando adicionamos um algarismo a outro in- acreditar anularia, pelas exigências da discussão aqui em foco, o
finitamente, conforme as regras; o que garantiria a continuidade sentido exclusivamente público do seguimento de regras. A práxis
infinita da aplicação da mesma regra; como podemos saber, ape- ali não significa, evidentemente, algo do lado de fora da lin-
nas pelo comportamento, se agimos ou não de acordo com uma guagem. Quer dizer apenas algo antes de qualquer construção
regra; por que seria necessariamente um erro, e não agir conforple metafísica feita com base em nossa percepção inevitavelmente
outra regra, não nos comportarmos em conformidade COfi\ a ex- organizada.
pectativa; se uma máquina poderia conter em si todos os infinitos Veremos adiante, também no capítulo 8, mas desta vez no
passos do desempenho de uma tarefa conforme uma determinada tópico 4, que Crispin Wright chama essa redução à práxis de "se-
regra; se podemos ou não capturar todas as alternativas possíveis guimento de regras básico ou cego". É com ele que Wittgenstein
de aplicação de uma regra de um só golpe; se seria possível seguir dissolve qualquer ímpeto teórico platônico ou comunitarista a
uma regra apenas uma única vez na vida; se o seguimento de re- respeito de regras. Vamos admitir que essa interpretação da ativi-
110 1 Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgenstein Aobrigatoriedade do contexto l 111

dade filosófica de Wittgenstein esteja correta. Ela, pelo menos, nos adverte para que consideremos o jogo de linguagem como
é factível. primário, o que significa utilizá-lo como a base a partir da qual se
Lancemos nosso olhar agora para outra seção bem mais lon- pode erigir uma interpretação qualquer. De qualquer maneira, a
gínqua, a do § 653 das IF, em que o mesmíssimo tema reaparece, interpretação, se fosse o caso, se dissolveria no jogo de linguagem.
agora em nova perspectiva e contexto: Crispin Wright certamente diria que estamos aqui novamente na
presença de um novo caso de "seguimento de regras básico ou
Imagina este caso: Digo para alguém que caminhei por deter- cego", só que de outro ponto de vista.
minado caminho em conformidade com um plano que havia prepa- Entretanto, eu diria que esse outro ponto de vista do mesmo
rado anteriormente. Eu lhe mostro o plano, e ele consiste de traços caso torna a variação temática da reflexão filosófica como uma
em cima de um papel; mas não consigo explicar em que medida os
peça inteiramente distinta. Não se trata mais da mesma coisa:
traços do plano são o meu percurso, nem dizer ao outro nenhuma
dissolver na práxis nossos conceitos de seguimento de regras, de-
regra pela qual o plano deva ser interpretado. No encanto, eu segui
aquele desenho com todas as indicações características da leitura de
negando a validade do argumento de que as regras estariam an-
um mapa. Poderia, então, denominar um desenho como esse de um coradas numa pedra angular de natureza mental, ou presas numa
plano "privado"; ou o fenômeno que descrevi de "seguir um plano estaca cravada na fortaleza do comunitarismo, tal como ocorre
privado". (Mas essa expressão poderia, naturalmente, ser facilmente no § 202, não é mais o mesmo caso que dissolver na práxis as ex-
desentendida.) plicações das vivências internas. O contexto aqui é outro. Trata-se
Poderia dizer então: "Que eu naquela hora quis agir assim e assim, de uma série de discussões sobre o caráter da expressão, e como
fiz uma leitura como se fosse a de um plano, conquanto não houvesse
elas nos comunicam alguma coisa se, ao mesmo tempo, poderiam
ali nenhum plano"? Mas isso não quer dizer outra coisa senão: Estou
ser perfeitamente dissimuladas. Wittgenstein procura determinar
inclinado agora a dizer: "Leio a intenção de agir assim em certo estado
a lógica própria da expressão: por que podemos dizer que um
mental de que agora me recordo". (IF § 653)
cachorro pode ter medo de que seu dono lhe bata, mas não po-
O mais interessante dessa citação é que ela facilmente pode demos dizer que tem medo de que seu dono irá lhe bater amanhã
nos levar a supor que se trata da mesma dissolução da interpreta- (cf. IF § 650)? A expressão do animal, como a expressão de uma
ção do seguimento de regras que ocorre na citação anterior. Nas criança, está imediatamente ligada com uma série de elementos
três seções seguintes (§§ 654-656), Wittgenstein inclusive aponta que pressupomos como pertencentes às suas limitações. O que
decididamente para a práxis, condenando com tal gesto a explr- redunda em dizer que coisas que não podem ser descritas ou refe-
cação que se coloca em seu lugar. No § 654, ele diz que nosso erro ridas, como as vivências internas, têm, no entanto, uma enorme
é que deveríamos ver os fatos como "fenômenos originários" (à possibilidade comunicativa. Mas, como? Quais são os limites e as
moda de Goethe), isto é, como um jogo de linguagem que está possibilidades do jogo de linguagem da expressão? Basta reparar
sendo jogado. Mas, no§ 655, ele adverte que não se trata da expli- que aqui, no novo contexto, Wittgenstein fala de jogo de lingua-
cação de um jogo de linguagem pelas nossas vivências, mas da gem no mesmo lugar em que no antigo contexto fala somente da
constatação de um jogo de linguagem. E, finalmente, no § 656, ele práxis. Aqui ele investiga claramente a lógica da expressão. Mas
112 1 Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgensteín Aobrigatoriedade do contexto

no outro contexro, o mais antigo, não há menção do jogo de lin- gismo polifónico, que também surge desavisadamente e sem
guagem que está na práxis, não há uma investigação da lógica qualquer regularidade sistemática ao longo da obra. Vejamos este
daquela pratica de seguimento de regras que está diante de nós. exemplo, que é do § 246, que tomo a liberdade de colocar em
Há uma práxis que dissolve as interpretações, estas, sim, outras forma bilíngue:
lógicas, outros jogos de linguagem.
lnwlefern sind nun meine Empfindungen Até que ponto são então as minhas
Na verdade, o que realmente presenciamos com a nossa hipó-
privat? - Nun, nur ich kann wissen, ob ich sensações privadas? - Bem, só eu posso
tese 1? Que no decorrer do livro os mesmos temas podem ser wirk!ich Schmerzen habe; der Andere kann saber se realmente tenho dores; o outro só
revisitados de vários ângulos. Mas quando se alternam as seções es nur vermuten. - Das ist in einer Weise pode supor. - Isto é, por um !ado, falso, e,
falsch, in einer andem unsinnig. Wenn wir pelo outro, um contrassenso. Quando
do livro, nunca se está falando de um mesmo tema como se fosse
das Wort »wissen« gebrauchen, wie es usamos a palavra "saber': tal como ela é
a mesma coisa que da vez anterior. E, desse ponto de vista, o leitor normalerweise gebraucht wird (und wie normalmente usada (e como devemos,
claramente se ressente da falta de um corte que evite a prolife- sollen wir es denn gebrauchen!), dann pois, usá-la!), então o outro muito frequen-
wissen es Andre sehr haufig, wenn ích temente sabe se tenho dores. - Sim, mas
ração incontrolavel do assunto, as ramificações correlatas que Schmerzen habe. - Ja, aber doch nicht mit não com asegurança com a qual eu mesmo
nunca cessam de brotar, aqui e acolá, de forma irreprimível e de- der Sicherheit, mit der ich selbst es weif1! - sei! - De mim não se pode, na realidade,
savisada ao longo de toda a extensão das 693 seções das IF. Tal Von mir kann man überhaupt nicht sagen dizer (exceto, talvez, como brincadeira),
(auíler etwa im Spaíl), ich wisse, daíl ich que sei que tenho dores. O que isso deve,
variação de horizontes e de enquadramentos distintos cria a im- Schmerzen habe. Was sol1 es denn heiílen então, querer dizer- exceto, talvez, que eu
pressão de inconsistência, ou, pelo menos, de falta de fundamen- - auíler etwa, da8 ich Schmerzen habe? tenho dores?
Man kann nicht sagen, die Andem Jernen Não se pode dizer que o outro aprende
tos sólidos, que o leitor deve, em seguida, tratar de atenuar pela
meine Empfindung nur durch mein a minha sensação apenas através do meu
aplicação do princípio de caridade. É bastante factívd, contudo, Benehmen, -denn von mir kann man nicht comportamento, pois de mim não se pode
que nem sempre essa operação semântica seja perfeitamente exe- sagen, ich lernte sie. !eh habe sie. dizer que eu a aprendi. Eu a tenho.
Das ist richtig: es hat Sinn, von Ãndern zu Isto é correto: há sentido em dizer dos
cutável e que muitas lacunas sobrem na leitura do livro como um sagen, sie seien lm Zweife! darüber, ob ich outros que eles duvidariam se tenho dores;
todo. Lacunas interpretativas com as quais o leitor das IF deve, Schmerzen habe; aber nicht, es von mir mas não dizer isso de mim mesmo.
se!bst zu sagen.
resignado, conviver.

Estamos, nesse trecho, mergulhados no conjunto de seções


5.2 Dialogismo polifônico dedicadas à discussão do famoso argumento da linguagem pri-
vada. Aqui o autor parece querer investigar se há um limite den-
À parte a dificuldade de não haver à disposição do leitor dadF tro do qual poderíamos falar de privacidade da linguagem. E a
uma continuidade temática no interior de cada um dos vários discussão se inicia com uma pergunta sobre "até que ponto" ou
assuntos percorridos pelo autor no livro - os quais, a cada vez que "até onde" pode-se falar de sensações como um "dado empírico"
são retomados, vão sendo acrescentados de uma nova particu- privado. Mas, note-se bem, quem faz a pergunta? É o autor do
laridade, abandonando qualquer delimitação que coloque a ma- texto? Não seria muito previdente, dentro de um contexto clara-
téria dentro de parâmetros fixos -, temos o fenómeno do dialo- mente dialógico, que identificássemos a preocupação implícita na
114 1 Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgeristein Aobrigatoriedade do contexto l 115

pergunta com alguma ideia própria do autor. Ademais, não há portamente de quem tem uma determinada sensação x. Mas isso
indicação no texto de que as IF representem essencialmente al- não é tudo. Porque não preciso aprender, ao mesmo tempo, qual
guma facção filosófica anricartesiana ou antiempirista. Cha- é o meu comportamento com relação às minhas sensações. Eu
memos, por isso, a essa primeira voz, que inaugura a seção, de simplesmente as tenho.
"voz provocadora'' (VP), pois ela trata de espezinhar a voz carte- Há duas coisas curiosas nesse segundo parágrafo. Em primeiro
siana (que bem poderia ser também uma voz do partido contrá- lugar, quem está falando? VP, VC ou uma terceira voz, síntese
rio, empirista), desafiando-a a interpor um limite para a sensação dialética das duas antagônicas anteriores? Chamemo-la de Voz
ou o "dado". Sintética (VS), pois ela subsume, num novo argumento, elemen-
Se a primeira voz é a VP, a segunda, que responde, é a voz car- tos importantes das duas primeiras teses: o imediatismo da sen-
tesiana, ou VC. Ela territorializa "as sensações" em geral, propos- sação, mas também a publicidade do comportamento. O segundo
tas na pergunta, com "dores" em particular, e defende, assim, o elemento curioso deste segundo parágrafo, é que retornamos ao
privilégio epistêmico da primeira pessoa. discurso da sensação no geral, e não mais de dores, que são ins-
No terceiro movimento, digamos que VP replica a tese de VC tâncias particulares de sensação.
com uma desqualificação dupla: a tese de VC é falsa porque não E, finalmente, a conclusão, no terceiro parágrafo. Ainda é VS
há saber em primeira pessoa, uma vez que o juízo de conheci- que fala, uma voz teórica, capaz de fazer a síntese dos melhores
mento comporta uma apresentação pública de evidências; e é argumentos, ou será uma quarta voz conclusiva, diferente de to-
também insensata, pois, no caso de dores, o outro não precisará das as anteriores? Ela retorna da sensação, em geral, para as dores.
formar um conhecimento daquilo que já sabe de antemão, pois Digamos que ela é a última voz, ela é a Voz Terapêutica (VT),
esse saber é, muito frequentemente, imediato. porque não se interessa pelas afirmações generalizantes ou teó-
VC consegue redarguir com o argumento cartesiano da cer- ricas, mas somente pela saída das confusões. Para ela, o compor-
teza imediata do eu, que pretende garantir, pela chamada "intui- tamento conta entre os critérios de correção, pois pode-se duvi-
ção", o privilégio da primeira pessoa. dar, com base apenas no comportamento, que alguém esteja
VP desmente que haja sentido na palavra "saber" quando apli- sentindo dores; mas esse critério não conta nos casos de primeira
cada à primeira pessoa, mesmo que apelemos a uma subentendida pessoa. O que abre, de pronto, uma dissimetria de pontos de
intuição. Dores não são coisas que sei, mas coisas que tenho. Apli- vista, que não se pode misturar nem confundir quando se fala
cam-se aqui outros critérios, diferentes dos epistêmicos. de sensações.
No segundo parágrafo, abre-se uma nova faceta na discussão, Dadas tais características, seria perfeitamente possível ler as IF
que é a da possibilidade do aprendizado da sensação. Como se como um dos melhores exemplos de dialogismo polifónico, aos
pode aprender que temos uma sensação, uma vez que não nasce- moldes de Bakhtin (1981, pp. 222-223): "[ ... ] o diálogo não como
mos sabendo disso? E um dos componentes, comprovadamente meio mas como fim. [... ] Ser significa comunicar-se pelo diálogo.
necessário, mas não suficiente, do aprendizado da sensação que o Quando termina o diálogo, tudo termina. Daí o diálogo, em essên-
outro sente é o comportamento. Posso aprender como é o com- cia, não poder nem dever terminar. [... ] Tudo é meio, o diálogo é
116 1 Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgenstein Aobrigatoriedade do contexto l 117

o fim". Poderíamos até pensar no estilo do texto wittgensteiniano, fácio. Assim como o prefácio do TLP, ele foi redigido quase na
de álbum, como veremos a seguir, como uma carnavalização do forma de um manifesto e como interpretação geral do sentido da
livro. Contudo, a conceituação bakhtiniana foi concebida para atividade filosófica, que vem a ser aquela praticada no livro. Evi-
explicar o romance de Dostoiévski - e apenas ele. Seria mais cor- dentemente, o prefácio pode perfeitamente servir como alicerce
reto, a meu ver, restringir a discussão bakhtiniana aos limites da para um exercício pleno da compreensão do texto. Sabemos que
teoria literária especializada, sem correr o risco de hipostasiar esse prefácio foi escrito e modificado várias vezes, de acordo com
qualquer outro texto que pareça cumprir também aqueles parâ- os distintos planos de publicação da obra, a qual, finalmente, não
metros. E isso mesmo independentemente das intenções filosófi- ocorreu durante a vida do autor. Os esboços de prefácio que se
cas universais ressoando ao fundo do famoso ensaio de Bakhtin. referem apenas às IF são vários: MS 117, pp. 110-126; TS 225; MS
Nesse sentido, podemos encontrar nas IF uma polifonia dialógica, 128, pp. 40-45; TS 243 e TS 227, pp. 1-4, com acréscimos manus-
simplesmente porque ( 1) as vozes se multiplicam em diversos critos. Aquele de que dispomos agora, pela publicação da obra em
personagens, que (2) entram num embate filosófico, no qual (3) 1953, corresponde ao último deles, redigido em 1946, que traz sua
para cada voz é reservado um direito à autonomia de consciência, última modificação numa frase manuscrita, aposta posterior-
e que (4) todo o enredo se consome no próprio embate dialógico, mente ao texto já então datilografado das IF (TS 227, p. 2):
por natureza, inconclusivo. Nada disso, porém, quer dizer que o "- Portanto, este livro é, na realidade, só um álbum".
texto das IF seja bakhtiniano. Ocorre somente que, ao preservar A meu ver, a ideia de "álbum" sintetiza precisamente traços
as características de um diário, Wittgenstein transportou ao livro distintivos presentes no texto, como a variação em torno de um
suas vozes filosóficas interiores acompanhadas de sua incessante tema dado e o dialogismo polifónico, desordenadamente encon-
atitude antifilosófica. trados ao longo de toda a obra. No prefácio, especificamente, a
Agora, reparemos isto: o dialogismo polifónico, típico das IF, ideia de álbum se contrapõe à de livro, à maneira de um desvio,
mais uma vez nos obrigou a aplicar o princípio de caridade, sem de um sotaque ou então de um estilo, conceito que vamos explo-
o que nos perderíamos na leitura. Nem sequer podemos ter cer- rar adiante, no capítulo 9. Vejamos como Wittgenstein descreve
teza de que a idenrificação das quatro vozes que fizemos aqui está seu próprio texto no prefácio às IF:
correta. Mal podemos distingui-las, diferenciá-las umas das ou- Por álbum, ele quer dizer que:
tras. E o autor, novamente, não nos dá nenhuma facilidade para (1) o leitor encontrará no texro um "precipitado" (Nieder-
uma interpretação segura. schlag) de investigações filosóficas, das quais ele se ocupou du-
rante 16 anos. Essa é a primeira indicação: trata-se de sedimentos
acumulados com o passar dos anos, talvez mais pela ação do acaso
5.3 O prefácio das IF do que mediante uma ordenação deliberada, que corresponderia,
nesse caso, a alguma coisa com começo, meio e fim.
Talvez o piso menos movediço que pode servir de base para um (2) Depois, ele diz que serão encontrados vários assuntos: con-
arrojo interpretativo das IF como um todo seja seu próprio pre- ceitos de significado, de compreensão, de proposição, de lógica,
118 1 Asingularidade das Investigações fi/os6ficas de Wittgenstein Aobrigatoriedade do contexto l 119

fundamentos da matemática, estados da consciência e outros. (Na (4) No segundo parágrafo do prefácio, a interpelação ao leitor
verdade, são muitos mais do que somente esses seis.) Porém, esses continua, agora com argumentos mais extensos, que tentam re-
assuntos foram redigidos como "observações", palavra que ele correr à noção de "naturalidade", tanto do pensamento como da
coloca em itálico, e que parece querer com isso dizer que são pou- investigação. O autor não nega que tenha tentado soldar seus
cos parágrafos apenas para cada tema. Contudo, ele não nega que, resultados numa totalidade (tal é a ideia que tem de um "livro"),
algumas vezes, a cadeia pode estender-se bem mais, e que há mas alega que suas tentativas foram infelizes e viu que nunca
mudanças repentinas, pulando-se desavisadamente de uma área conseguiria. Percebeu que o melhor que conseguiria escrever
para outra. Já aqui o leitor deveria estar espanrado, porque a essa eram as tais "observações filosóficas". Declara ainda que seus pen-
altura já se percebe que não será um livro comum. samenros logo se entorpeciam (erlahmten) quando tentava forçá-
(3) Surge, então, uma espécie de interpelação, como se fosse -los, contra a sua inclinação natural, em uma só direção (esse
um pedido de desculpas ou um apelo à paciência ou à tolerância "uma" é ressaltado no texto, o que também casa a ideia de livro
do leitor. Diz-nos o autor que sua intenção era reunir rudo isso com a de unidade temática). E diz que isso está conectado com a
em um livro, cuja forma foi imaginada de maneiras diferentes em própria natureza da investigação. Na realidade, seria essa natureza
diferentes épocas. Frase que acende a suspeita de que as IF não se que nos compele ou nos obriga (zwingt uns) a viajar por uma am-
constituem apenas das 693 seções da primeira parte do texto pu- pla região do pensamento, a torto e a direito, e em todas as dire-
blicado com esse nome. Wittgenstein tentava publicar um livro ções. Claro que aqui fica formalmente caracterizado o conceito
desde 1931, época em que encontramos a primeira de suas tenta- de álbum como essa espécie de livro que se pode percorrer em
tivas de escrever um prefácio (CV, pp. 8-11), e não se deu por sa- qualquer direção e a partir de qualquer lugar, o que não deixa de
tisfeito em 1946, quando o TS 227 já estava datilografado. Não implicitamente evidenciar também a imensa possibilidade de
apenas a redação de observações filosóficas continuou até dois confundir-se ou de atrapalhar-se na busca desses caminhos sinuo-
dias antes de seu falecimenro, em 1951, como há esboços de pre- sos (labirínticos) de leitura. Finalmente, depois de atribuir ares-
fácio posteriores às páginas 1-4 do TS 227 (MS 136, p. 81a, por ponsabilidade do desvio da intenção de composição à natureza
exemplo, que é de janeiro de 1948), e referências tardias ao "jogo do pensamento e da investigação, qualifica suas observações filo-
de linguagem n. 2" 2 (MS 175, p. 67v, em 1951, publicado em OC sóficas de "coleção de esboços de paisagens" formados em longas
§ 396), como se seu texto fosse uma continuação natural das IF. e emaranhadas excursões.
Mas lhe pareceu que o essencial ali era que os pensamentos se- , Com tudo isso, já intuímos, naturalmente, por que não conse-
guissem de um tema ao outro de maneira natural e sem lacunas. guimos compreender perfeitamente seus textos. No entanto, mais
E, assim, fecha-se o primeiro parágrafo do prefácio. detalhes das suas características são ainda fornecidos no terceiro
parágrafo.
(5) Nele, chega-se finalmente à descrição mais afastada e con-
2
Tomo a indicação da continuidade do uso da expressão "jogo de linguagem (2)" ao longo
traposta possível à ideia de livro. Depois da desculpa invocada em
de todo oNachlass, e não somente dentro das IF, de Venturinha (2010, pp. 149-150). razão da natureza da investigação, e da correspondente inclinação
120 1 Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgenstein Aobrigatoriedade do contexto j 121

do pensamento, que obriga, mesmo contra a vontade inicial em Ainda nos resta verificar as hipóteses levantadas no início doca-
contrário, a viajar a torto e a direito em todas as direções, para pítulo, a saber, o Nachlass, incluindo as IF e o corpus literário mais
além dos inesperados resultados alcançados - apenas uma coleção os dados biográficos do autor e o mundo filosófico que nutria suas
de esboços de paisagem-, é preciso agora qualificar o saldo final. preocupações intelectuais.
A descrição pode, por isso, ser mais franca e direta nesse novo Entretanto, uma frase do penúltimo parágrafo do prefácio das
parágrafo. O que vemos é exatamente o que já encontramos nas IF não deveria nos escapar: "Eu não gostaria de, com o meu es-
44 seções que analisamos anteriormente. Na realidade, consrata- crito, poupar os outros do pensar. Senão que, se fosse possível,
mos agora que o prefácio já prevenira o leitor a respeiro do que estimular alguém a seus próprios pensamentos". Ele sinaliza mara-
iria encontrar. No enta,nto, não dá pistas sobre como interpretar vilhosamente bem o principal efeito do embate dialógico: o lei-
esse tipo de achado. Antecipa que os mesmos, ou quase os mes- tor, na sua autonomia, se responsabiliza pelo que aprende das dis-
mos pontos, são sempre tocados novamente, a partir de diferentes cussões ali testemunhadas. O texto a nada obriga, nem pretende
direções, e, assim, novas imagens são projetadas sobre a base dos sugerir qualquer doutrina. Ao contrário, as doutrinas de todo
mesmos temas, como vimos. Confessa, enfim, o inconfessável: que tipo são submetidas a uma crítica, digamos sem meias-palavras,
um sem-número dessas imagens ou desses quadros fica descarac- avassaladora. Nem mesmo sugere o texto que o leitor se trans-
terizado, afligido por todos os defeitos de um desenhista fraco. forme em um filósofo terapeuta por conta própria. As IF não
Se eles são descartados, restam ainda alguns que são mais ou me- parecem ser um curso preparatório para a prática da filosofia como
nos aceitáveis, que logo devem ser ordenados, e frequentemente terapia. Antes disso, a terapia talvez seja um efeito de leitura pos-
recortados, para que o observador possa compor a paisagem. sível das IF. No entanto, sua intenção bastante explícita é nada
Evidentemente, o prefácio das IF é omisso quanto ao fato de mais que revigorar o pensamento do leitor, qualquer que ele seja,
encontrarmos inúmeras vezes, no livro, textos redigidos de forma pela visitação dos esclarecimentos que o livro disponibiliza.
dialógica e polifônica. Tal omissão em nada ajuda para uma in-
terpretação mais segura do texto que o leitor irá encontrar no li-
vro. Mas talvez ele possa entender que essa é uma das maneiras
possíveis de revisitar um tema de diferentes pontos de vista e
vindo de distintas direções; nesse caso, pelo ponto de vista de
uma outra consciência que, no texto, entra nos debates de forma,,,1
completamente autônoma, sem a influência das outras vozes ,do
texto e de seu autor.
Chegados até aqui, entretanto, ainda continuamos sem uma
decifração completa daquelas frases epigramáticas e condensadas
que encontramos nas 44 seções que examinamos nos capítulos 3
e 4, e, especificamente, das frases que compõem a seção do§ 124.
T

AS IF EONACHLASS

Se até aqui, depois de verificada o conjunto das IF, não conse-


guimos avançar significativamente na interpretação da nossa
ainda misteriosa seção do § 124, resta ainda a esperança de que as
frases ali contidas tenham referência assentada em pontos locali-
záveis do Nachlass. Mas, se essas referências puderem ser encon-
tradas - e, de fatoi isso é possível -, nossa incompreensão acerca
do que precisamente quer o autor dizer com suas admoestações
programáticas estaria resolvida? Em grande parte, sim. Sabería-
mos com muito mais precisão por que o autor menciona ali a
matemática, as descobertas matemáticas e os problemas de lógica
matemática, quando diz que a filosofia não toca no uso real da
linguagem nem pode fundamentá-lo: ela apenas descreve esse
uso. Mas outro problema se abre ao mesmo tempo, porque cons-
tatamos nitidamente que as IF, como um álbum, não é só um li-
vro, organizado e publicado na forma em que atualmente o co-
nhecemos, mas todo o Nachlass. Todo o conteúdo das IF, de fato,
se esclarece por contínuas remissões a todos os manuscritos e
datiloscritos que cooperaram com a sua composição, e, sem essas
remissões, ficamos em completa obscuridade. Essas referências
cobrem não apenas o período de 1936 a 1947, que é o tempo em
que transcorre a composição específica das 693 seções das IF. Uma
124 1 Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgenstein As IF e oNach/ass l 125

grande parte do material publicado em 1953 provém, além disso, e 238. Há um datiloscrito que ainda continua desaparecido: o TS
dos anos 1930, de forma tanto direta como retrabalhada. E, mais 234, composto a partir do MS 144, e que contém a outrora cha-
do que isso ainda, e agora de modo decisivo: as IF não estavam mada "Parte II" das IF, atual PPF. Há também um novo arquivo
prontas em 1947. Conforme referido no capítulo anterior, elas com mais de 170 mil palavras, misto de ditado e de manuscrito,
continuaram a receber novos arranjos e reacomodamentos nos que foi recentemente reencontrado. Presume-se que nele esteja o
anos seguintes e, inevitavelmente, novos acréscimos, inclusive até Pink book ou o Yellow book (D 311). Aparentemente esse novo
dois dias antes da morte do autor. É o que veremos aqui. Mas o arquivo receberá, quando for publicado, numeração catalográfica
caso é que, desse ponto de vista, agora bem mais amplo, já im- da quarta centena (cf. Gibson, 2010, pp. 64-77).
porta bem menos o conteúdo que os meios, ou a atitude do autor, O problema é que a divisão tipológica entre manuscritos, da-
para resolver, sempre e repetidamente, suas inquietações filosó- tiloscritos e ditados, embora tenha representado um avanço espe-
ficas. Trataremos da impotd.ncia da figuração, da fisiognomia ou tacular para a filologia dos textos de Wittgenstein, naturalmente
do estilo para a compreensão da obra de Wittgenstein, e de como não informa tudo o que é preciso saber sobre esses escritos para
a visão da forma altera a percepção do conteúdo, no capítulo 9. lidarmos com eles da maneira mais adequada e eficiente. Em pri-
Por ora, vamos examinar um pouco mais a interconexão entre as meiro lugar, manuscritos, datiloscritos e ditados são diferentes
IF e o Nachlass. entre si.
A primeira dificuldade que aparece aqui é como lidar com o Há manuscritos que são:
Nachlass. A totalidade dos escritos produzidos entre 1929 e 1951 1. Pequenos cadernos de bolso, onde as anotações se asseme-
compõe-se de manuscritos, datiloscritos e ditados. Em 1969, lham a reflexões lançadas em primeira mão, as quais serviriam
Georg von Wright criou um catálogo de todos os textos conhe- como rascunho para a elaboração de manuscritos posteriores,
cidos até então, que se tornou uma referência padrão para o Nach- mais lapidados. Nessa categoria estão os MS 125-127, que confor-
lass entre os estudiosos do autor (cf. von Wright, 1993). Esse ca- mam hoje as Partes IV e V das RFM, e os MS 153-167, 169-171 e 175.
tálogo, que na verdade abrange todo o corpus literário, organizou 2. Há cadernos comuns, que, na verdade, são livros diários
os diferentes tipos de textos em uma escala numérica relativa- para uso comercial com folha pautada e capa dura. Wittgenstein
mente simples: de 100 a 199 para manuscritos, de 200 a 299 pata os Utilizava para a revisão e o polimento de manuscritos ante-
datiloscritos, e de 300 a 399 para ditados. Desse modo, os manus- riores. Vários deles parecem conter uma versão prévia manuscrita
critos atuais foram numerados com algarismos da primeira cen;, do que poderia vir a ser em seguida datilografado: são eles os MS
rena (MS 101-183), os datiloscritos, com numerais da segunda 105-122, que conformam os volumes !-XVII das Philosophische
centena (TS 201-245), e os ditados, com numerais da terceira cen- Bemerkungen; MS 123-124, que são partes não numeradas, porém
tena (D 301-310). Posteriormente, alguns manuscritos e datilos- efetivas, das Philosophische Bemerkungen; MS 128-135, todos escri-
critos que estavam desaparecidos foram encontrados e confirma- tos entre 1944-1947, cujas anotações vieram conformar a versão
dos dentro da numeração catalográfica padrão do Nachlass: são final das IF (TS 227), como também as RPP I (TS 232); MS 136-138,
eles os MS 126, 127, 1396, 142 e 183, e os datiloscricos TS 204, 236 chamados de volumes Q, R e S; MS 142, que é a versão manuscrita
126 1 Asingularidade das lnvestiqaçães filosóficas de Wittgenstein As lf e o Nachlass [ 127

pré-guerra das IF; MS 168, 173-174, 176-177, 180, que versam sobre elementar; e o TS 206, que é uma reflexão sobre identidade escrita
variados assuntos; e o MS 183, que é o chamado Koder Nachlass. em inglês e dirigida a Ramsey em 1927.
Além destes, temos os MS l O1-104, que conformam um conjunto 2. Datiloscritos que pretendiam compor um livro: TS 209-211
misto de anotações pessoais e escritos prévios ao TLP. Todos esses ( Observaçõesfilosóficas); TS 212 (recortes retirados dos TS 208,210
cadernos seriam mais propriamente como uma grande quantidade e 211, junto com várias folhas manuscritas); TS 236 (17 páginas
de primeiros ensaios para a composição de um livro. não consecutivas do TS 210 e uma do TS 211); TS 213 (o chamado
3. Há grandes cadernos, como os MS 145-152, denominados Big Typescript); TS 220-224 (versão pré-guerra das IF junto com
como Cl até C8, respectivamente, utilizados majoritariamente Parte Idas RFM); TS 237 (fragmentos do TS 220 com algumas
como rascunhos: MS 145-146 são rascunhos para os MS 114 e 115; adições); TS 238 (revisões do TS 220); TS 239 (revisão do TS 220);
MS 147 é um rascunho para o Blue book; MS 148 e 149 consistem, TS 240 (fragmentos de TS 221 com mudanças); TS 241 (datilos-
na maior parte, de anotações para as aulas sobre experiência pri- crito baseado no MS 129); TS 242 (datiloscrito de parte da versão
vada e dados dos sentidos; MS 150 são anotações para a parte final intermediária das IF); TS 227 (versão final das IF); TS 228-230
do Brown book; MS 151 e 152 também consistem de anotações (Bemerkungen J e II); TS 244 (datiloscrito que faz uma transição
para classes e exercícios, mas no MS 152 encontram-se também de 11 páginas entre os TS 228 e 229); TS 245 (datiloscrito que re-
rascunhos que consistem nos passos iniciais das IF. toma a parte final do TS 244, e segue com todo o TS 229); TS 232
4. Há manuscritos que são folhas soltas, como o MS 139, que (datiloscrito dos MS 135-137); TS 233 (Zette!'J; TS 234 (datiloscrito
é a Conferência sobre ética; o MS 140, o chamado Grasses Format, desaparecido das PPF).
que contém as revisões do BT que, com os MS 114 e 115, e prova- 3. Datiloscritos que redigem diversos tipos de ensaios: TS
velmente com o ainda perdido Kleines Format, conformam a 214-219.
atual PG (cf. Paul, 2009); o MS 141, que é o começo de uma pri- 4. Datiloscritos que são listagens das observações de outros
meira versão em alemão do Brown book; o MS 143, que é a Parte datiloscritos: TS 231 (lista de observações das Bemerkungen J e II);
II das ORD; o MS 172, que contém observações sobre cores e cer· TS 235 (lista de conteúdo de uma obra desconhecida).
teza; o MS 181, que trata da privacidade dos dados dos sentidos; 5. Datiloscritos que são prefácios: TS 225 (prefácio de 1938
os MS l 78a- l 78h, que são fragmentos soltos sobre assuntos diver- para as IF); TS 243 (prefácio de 1945 para as IF).
sos; e o MS 182, que é uma lista das observações das Bemerkungen 6. Tradução de Rhees ao inglês da versão pré-guerra das IF:
J (TS 228) colocadas na versão final das IF (TS 227). TS 226.

Quanto aos datiloscritos, poderíamos dividi-los entre: Quanto aos ditados, eles são:
1. Datiloscritos prévios a 1929: aqueles do período pré-tracta- 1. D 301, ditado a G. E. Moore sobre questões de lógica.
riano, como o TS 201 (Notas sobre lógica), e os TS 202-204 (respec- 2. D 302-308, ditados a Schlick.
tivamente, as versões Engelmann, Vienense e Gmunden do TLP); 3. D 309, o Blue book.
o TS 205, que é o prefácio do Diciondrio para estudantes da escola 4. D 31 O, o Brown book.
128 1 Asingularidade das Investigações filosôficas de Wittgenstein As IF e o Nachlass J 129

Em segundo lugar, dada a diferença entre tipos de manuscritos que contém nun1erosas correções manuscritas sobre o papel da-
e datiloscritos, mas dado também que essa tipologia, se a fizermos tilografado, e várias inserções de recortes manuscritos, prove-
realmente, não pode ser tomada de maneira rígida, a inter-relação nientes de outras composições, colocados entre as seções já apa-
entre os diferentes tipos de escritos fica bastante complicada. rentemente finalizadas.
Cada um deles deve ser analisado e avaliado como caso separado. Levando tudo isso em consideração, devemos concluir que,
E como se não bastasse por si só uma consideração da tipologia embora se possa inicialmente perceber uma hierarquia em termos
que não deve ser assim tão rígida, a passagem de manuscrito a de acabamento e de evolução do pensamento do autor na passa-
datiloscrito não significa de nenhum modo o acabamento da evo- gem de um manuscrito para outro, principalmente de manuscri-
lução daquele pensamento. Há manuscritos, por exemplo, que são tos de anotações para manuscritos mais elaborados, e destes para
transcrições de outros manuscritos e se transformam em dati- datiloscritos, isso não quer dizer necessariamente que possamos
loscritos. Estes, por sua vez, são corrigidos novamente em forma traçar uma imagem evolutiva do pensamento do autor, no pres-
manuscrita, com anotações de frases e de palavras sobre o próprio suposto de um avanço contínuo e uniforme. Qualquer ideia de
papel datilografado, podendo se tornar depois novos manuscri- desenvolvimento na filosofia de Wittgenstein tem que necessa-
tos, que serão, mais uma vez, transformados em datiloscritos. Um riamente percorrer caminhos de ida e volta entre manuscritos e
exemplo desse caso é o MS 110, que foi datilografado nos TS 211, datiloscritos, realizando um entrelaçamento assistemático de as-
212 e 213. O TS 213 é o datiloscrito mais bem acabado do espólio suntos e saltos súbitos de um tema para outro dentro de cada es-
wittgensteiniano: tem quase 800 páginas cuidadosamente redigi- crito, tal como se vê também claramente ao observar a totalidade
das, subdivido em capítulos e tópicos, e um detalhado sumário. do Nachlass. Assim, para refletir sobre a evolução do pensamento
Mas o Big Typescript, como é conhecido, que representava uma do autor é necessário examinar algumas ideias que ele defendeu
aparente versão final de todo um intenso processo de mudança de em diferentes períodos. Por exemplo, sua trajetória desde a ideia
pensamento que acometeu Wittgenstein entre os anos de 1929 e da linguagem fenomenológica, em 1929, até as primeiras concep-
1933, ganhou, por sua vez, extensas correções manuscritas em ções de gramática como um cálculo respaldado pela linguagem
cima e no verso do próprio datiloscrito; estas foram se transfor- ordinária, ao final desse mesmo ano, deveria ser sopesada e con-
mando em novos cadernos manuscritos, como, por exemplo, trastada com a ideia do gramatical dos anos de 1930 a 1933; o
grandes partes dos MS 114 e 115, e até nos MS 116 e 117, depois da mesmo deveria ser feito em relação a seu percurso desde as preo-
grande revisão que formou a PG. Uma boa parte desses nov~J cupações centradas no cálculo e na física até chegar a uma visão
textos entrou para o MS 142, que é a primeira versão manuscdta de grande abrangência, quase antropológica, envolvendo a vida e
das IF, feita em 1936-1937, a qual se transformou, retomando o a cultura. E teria que ser sopesado também, e posto em contraste
antigo processo, numa série de novos datiloscritos durante a dé- com a ideia do fenomenológico que aparece no BT, nas IF e nas
cada de 1940; estes deveriam tornar-se de novo uma publicação próprias, e muito mais tardias, AC. Mesmo em textos tão tardios
em forma de livro, na verdade nunca efetivada. Mesmo o TS 227, corno as IF, Wittgenstein ainda continua comentando "o cálculo"
a versão final das IF, se o examinarmos cuidadosamente, veremos (Cf. IF §§ 81 e 136). Cada caso, portanto, será diferente, mas o
130 1 Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgenstein As IF e oNach!ass j 131

importante é que a maneira como o intérprete extrai uma de- ocorre também no trabalho realizado entre 1929 e 1933, que foi,
terminada linha de evolução do pensamento de Wittgenstein a na sua maior parte, dedicado à crítica da interferência de concei-
partir do Nachlass deverá ser justificada pelo tipo de escrito exa- tos metafísicos extemporâneos nessa disciplina, especificamente
minado em cada escolha exegética, e por sua posição no entrecru- no tratamento da ideia de infinito, de decidibilidade, de identida-
zamento de manuscritos e datiloscritos, para o tema pesquisado, de, e em vários outros temas relacionados à teoria dos conjuntos. 1
no espólio literário. Dentro do corpus literário, as RFM representam uma dessas
Voltando ao conteúdo, portanto, e à nossa dúvida acerca de muitas tentativas de produzir um livro, algo que Wittgenstein
possíveis respostas para os pontos mais opacos do texto que esco- vinha tentando fazer desde 1930, em que pudesse mostrar clara-
lhemos, a resposta positiva provém do fato de que, do ponto de mente seu método de filosofia posterior ao TLP. Nessa época em
vista mais abrangente, da perspectiva do Nachlass, as relações particular, subsequente a seu retorno à filosofia, ocorreu que, de-
entre as IF e as RFM revelam-se bem mais claramente do que pode pois de quase um ano de tentativas, em 1929, de elaborar um mé-
ser percebido apenas pela leitura do § 124 das IF, sem a apresen- todo a posteriori voltado para a investigação da linguagem feno-
tação de seu contexto mais amplo. Na verdade, essa inter-relação menológica, que ele chamava então de "primáriá; uma linguagem
entre as IF e as reflexões sobre os fundamentos da matemática que pudesse dar conta, na proposição verificável, da multiplici-
talvez não possa ser percebida nem mesmo pela leitura do livro dade lógica do dado dos sentidos, Wittgenstein renuncia ao pro-
inteiro. As razões dessa dificuldade de percepção originam-se, jeto quando, a partir de outubro daquele mesmo ano, constata
evidentemente, no inacabamento das IF, mostrado pelo conheci- a impossibilidade de falar de dados dos sentidos que deveriam ser,
mento do Nachlass, que, em sua totalidade, representa, de um ex hypothesi, atemporais (MS 105, p. 114; MS 113, p. 123v). Mas
determinado ponto de vista, todas as tentativas malogradas de também, e crucialmente, reformula seu pensamento depois que
preparação para a publicação de um livro entre 1929 e 1951. percebe que já não se poderia falar de linguagem fenomenológica
As reflexões sobre a filosofia da matemática que aparecem nas sem pressupor a própria linguagem ordinária (MS 107, pp. 176,
RFM, especificamente, são textos tardios elaborados entre 1936 e 205). Portanto, nesse novo livro, a reflexão sobre a matemática,
1944. Devemos lembrar aqui que a atividade filosófica mais carac- fundamental para a construção de uma linguagem do cálculo,
terística e mais intensa de Wittgenstein localiza-se precisamente seria posra em correlação íntima com a discussão sobre a lingua-
na área da filosofia da matemática. Quase a totalidade do TLP,
por exemplo, compõe-se de uma grande defesa antifundacionis,ta
da aritmética, tratada no livro como séries de operações efernadas Uma breve e excelente descrição da filosofia da matemática de Wittgenstein encontraM
-se em Floyd (2007, pp. 75-128). Marion (1998), que apresenta um trabalho de muito
de acordo com princípios lógicos, apresentadas em contraposição maior fôlego, é um dos melhores livros até hoje publicados sobre o tema, não só porque
ao tratamento da aritmética como uma teoria de classes, proposta relaciona detalhadamente as discussões de Wittgenstein com as diversas correntes da
filosofia da matemática referidas pelo filósofo em seu texto - e até mesmo as não referi-
por Bertrand Russell, ou como uma atividade que tem por funda- das-, como também porque discute corajosamente as soluções encontradas pelo autor
mento objetos lógicos, conforme pressuposto por Gottlob Frege. no contexto filosófico cm que se encontra cada um de seus escritos. Marion defende, no
encanto, que Wittgenscein seria partidário de uma modalidade convencionalista de fi-
Essa mesma preocupação com os fundamentos da matemática nitismo - o que constitui a parte mais problemática e discudvd de seu livro,
132 ] Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgenstei11 As IF e o Nachlass l 133

gem ordinária. Se compararmos as IF com as RFM, com efeito, a A partir de 1945, assistimos a um crescimento vigoroso e irre-
seção do § 189b-c das lF repete-se integralmente em RFM !, !. freável das reflexões sobre a linguagem, que enveredam, nas IF,
Podemos compreender em apresentação panorâmica as formas pelos temas da consciência, do pensamento, da realidade, da jus-
dessa conexão com o auxílio do diagrama que se encontra em tificação de crenças empíricas, dos limites do sentido, dos estados
<http://www.unicamp.br/-joaojose/witt-nachlass.html>. e processos mentais, grande parte delas consistindo em reela-
A versão pré-guerra das IF (TS 220, que corresponde às seções borações herdadas de discussões ocorridas na década de 1930,
dos§§ l-189a) deveriam ter sido publicadas em conjunto com a que chegam agora às IF pela retomada do BT (TS 213 ), por meio
Parte Idas RFM (TS 221) em 1938. O TS 221 começa, de fato, com dos MS 114-119 ou, até mesmo diretamente, por meio do próprio
o mesmo texto atual de IF § 189b-c, diferenciando-se ao final TS 228 (Bemerkungen 1), os quais conformam, todos juntos, um
dessa seção e enveredando pela discussão lógica e matemática. Isso rio caudaloso e fértil que deságua na versão final das IF em 1945-
quer dizer que as RFM tomavam seu rumo a partir do ponto em -1946 (TS 227). Esta chega agora até a seção do§ 693.
que as IF paravam. Em 1938, IF e RFM I certamente eram partes Mas isso não quer dizer que as IF tenham sido finalizadas com
do mesmo livro. este datiloscrito. Chamamos ao TS 227 de "versão final" apenas
Mas Wittgenstein desistiu da publicação também desse livro, porque ele é a atual Parte I das IF, tal como foi postumamente
e continuou sua elaboração manuscrita sobre os fundamentos da publicada por dois dos executores testamentários de Wittgen-
matemática em vias paralelas ao desenvolvimento das reflexões stein, G. E. Anscombe e R. Rhees. Mas o projeto de desenvolvi-
sobre linguagem e filosofia pertencentes às IF, feitas por outro mento em paralelo da composição da obra que deveria se juntar
lado. Em 1943, aparece uma versão retrabalhada das IF (ainda as no final às observações sobre os fundamentos da matemática
mesmas seções dos §§ l-189a da versão pré-guerra) que, do continuou depois de 1946 pelos caminhos da filosofia da
mesmo modo, prerendem ser publicadas em conjunto com a pri- psicologia, das discussões sobre as cores e sobre a certeza, até a
meira parte das RFM (TS 221-224). A novidade nessa época é ape- morte do autor em 1951.
nas a de que Wittgenstein cogitou publicar as IF acompanhadas Há pelo menos duas razões independentes e fortes que con-
do TLP, para que o leitor pudesse ter uma visão sinóptica das correm para a suposição da existência do projeto inacabado de
continuidades e das diferenças entre seu primeiro e seu segundo composição que segue caminhos paralelos e autônomos: a pri-
método de filosofia. O TS 220 foi redatilografado no TS 238, e, meira delas é a versão em inglês do prefácio da versão pré-guerra
este, no TS 239. das IF (TS 225), recentemente encontrada (cf. Venturinha, 2010,
Nova desistência, e o auror continua seu trabalho em paralelo pp. 187-188). Esse prefácio, que reproduzo em parte de forma
entre matemática e linguagem, pelo menos até 1944. Em 1945, as bilíngue abaixo, é muito importante porque contém duas notá-
IF, trabalhadas em separado das reflexões sobre a matemática, e já veis diferenças em relação à versão alemã já anreriormente conhe-
bem aumentadas, chegam agora até o § 421, que corresponde à cida: refere-se a "volumes" que o autor deseja publicar de seleções
chamada versão intermediária das IF (TS 242). Aparece nessa
época a composição de um novo prefácio (TS 243 ).
134 1 Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgenstein As IF eo Nach!ass l 135

das suas observações filosóficas, e menciona, ademais, no plural, uma reunião posterior ao "fragmento"? Para responder a essa
a palavra "publicações" :2 pergunta, teríamos que seguir a pista do "sistema de referências
cruzadas", também referido no prefácio, que tornaria mais clara a
ln this and the following volumes l wish Neste e nos volumes seguintes, desejo ligação entre a massa de observações e o fragmento. A criação
to pubhsh a selection ofthe philosophical publicar uma seleção das observações filo-
dessa "rede de números" está também atestada no MS 118, p. 95v,
remarks which ! havewritten down in the sóficas que tenho escrito no decurso dos
course of the last nine years. [., .] últimos nove anos.[ ...] outro esboço de prefácio escrito em 1937. Contudo, essa rede de
[ ... ] ...
[ ] números foi um sistema que o nosso autor, de fato, nunca elabo-
1 begin these publications with the Começo estas publicações com o fragmen-
fragment of my last attempt to arrange to da minha última tentativa de organizar rou, ou, então, se chegou a elaborar, não deixou dele qualquer
my philosophical thoughts in an ordered meus pensamentos filosóficos numa sequên- rastro que pudesse ser encontrado pela posteridade. Para as nossas
sequence. This fragment has perhaps the cia ordenada. Este fragmento tem talvez a
pretensões filológicas podemos reter, entretanto, a ideia de partes
advantage of giving comparatively easily vantagem de fornecer, de uma maneira
an idea of my method. l intend to follow comparativamente fácil, uma ideia do meu separadas que deveriam se reunir numa publicação conjunta e
up this fragment with a mass of remarks método. Pretendo dar seguimento a esse futura.
more or less loose!y arranged; and I sha!! fragmento corri uma ·massa de observações
organizadas de maneira mais ou menos
A segunda razão que podemos aventar para o projeto inaca-
explain the connections between my
remarks, wherethe arrangement does not solta; e explicarei as conexões entre as mi- bado de composição das IF são as próprias Bemerkungen J (TS
itself make them apparent, by a system of nhas observações, nos pontos em que a 228). Em 13 de junho de 1945, Wittgenstein escreveu nos se-
cross-references thus: each remark shall própria organização não as deixe claras, por
have a current number and besides this um sistema de referências cruzadas, assim: guintes termos para Rush Rhees: 3 "Estou trabalhando muito bem
the numbers ofthose remarks which stand cada observação terá um número corrente, desde a Páscoa. Estou ditando algum material, observações, algu-
to it in important relations. e, além disso, os números daquelas obser- mas das quais quero incorporar no meu primeiro volume (se hou-
vações que com ela mantêm relações impor-
tantes. ver, de fato, algum). Essa coisa do ditado tomará mais ou menos
outro mês, ou seis semanas".
Pela quantidade de tempo necessário para completar o traba-
Observe-se, em particular, a referência ao começo dessas pu-
lho, e considerando a época, o melhor candidato ao datiloscrito
blicações mediante um extrato literário denominado como "frag-
referido nesse excerto são as Bemerkungen I. Esse datiloscrito está
mento", Não sabemos ao certo se o termo se refere efetivamente
composto principalmente de seleções das primeiras três partes do
ao TS 220, o texto datilografado das lF em 1937, ou a outra parte
MS 116 (mas também do final), além de seleções dos MS 114,115,
dos escritos de Witrgenstein. Mas podemos cogitar que, se temos
117, 119, 124, 129, 130, e de uma seleção de textos provenientes da
mais de um volume e mais de uma publicação em vista, e a prÍ-
década de 1930, compostos para o Big Typescript (TS 213 ). O re-
meira delas é o referido "fragmento", então há outra parte signifi-
sultado final foi um total de 698 observações, das quais ao redor
cativa de produção escrita denominada ali como "massa de obser-
de 400 integram a versão final das IF (TS 227), sendo 17 delas in-
vações". O que seria essa "massa de observações" planejada para

2
Sigo aqui os argumentos elaborados por Nuno Venturinha. Cf, 2010, pp. 144-147 e
3
pp. 182-186. Cf. von Wright, 1982, p. 127. Para maiores detalhes, cf. pp. 127-133.
136 1 Asingularidade das /nvestigaçóes filosóficas de Wittgenstein As IF e oNachlass 1137

cluídas como Randbemerkungen (observações postas à margem Além disso, o TS 230, conhecido como Bemerkungen II, é com-
do texto). OMS 182 (ver Figura 3) é uma lista, elaborada pelo pró- posto, na sua quase totalidade, de observações que já estão no TS
prio autor, das observações contidas nas Bemerkungen I que fo- 228. Datilografadas agora, entretanto, com ordenação alterada.
ram para a versão final das IF, em 1946. Temos também o TS 244, correndo em ramificação paralela, com-
No Anexo ao final deste ensaio podemos visualizar a lista com- posto de seções sobrepostas de TS 228 e TS 229; e o TS 245, que
pleta das correspondências entre o TS 227 (IF) o TS 228 (BM I) e retoma a parte final do TS 224, e acrescenta todo o TS 229. Pode-
o TS 230 (BM II): observe-se que a partir do§ 201 das IF, até o mos ver na Figura 4, abaixo, a primeira página de outra lisra ela-
final, § 693, a quase totalidade dos textos é proveniente das borada por Wittgenstein da correspondência entre as Bemerkun-
Bemerkungen J (TS 228) e consta também nas Bemerkungen II gen I(TS 228) e asBemerkungen II (TS 230): trata-se do TS 231.
(TS 230). Temos, então, ao que parece, outra configuração das próprias
lF, ou, se quisermos, as IF com outra fisiognomia. Entre as IF e as
BM I e BM II podemos ver o mesmo rexto em três configurações
diferentes, os mesmos temas se combinam de outro modo, perfa-
zendo outras correlações e, consequentemente, outra forma de
visualização das mesmas ideias - portanto, outra expressão. Mas
também temos caminhando decisivamente em outra direção, nas
Bemerkungen II, a continuação do trabalho sobre a filosofia da
psicologia da qual, provavelmente, o trabalho exposto no MS 144,
a atual "Parte II" das IF, poderia muito bem ser uma reelabora-
ção posterior ainda em andamento. Podemos fazer essa cogitação
baseando-nos no fato de que, se há uma ligação entre TS 228 e a
versão final das IF (TS 227), e se TS 230 está dentro do fluxo de
trabalho de TS 228, então não há uma ligação entre TS 230 e TS
227, contrariamente ao que pensava von Wright em 1982.4 O tra-
balho, portanto, seguia uma direção própria, particularmente na
direção do conjunto de recortes de datiloscritos e manuscritos
conhecido como Zettel (Wittgenstein, 1981), que contém textos
que abrangem a produção literária de 1929 até 1948, com destaque
Mas o mais curioso e notável dessa história é que a tarefa de para os textos que se encontram em TS 228, 229, 230 e 232.
transposição das reflexões do TS 228 para o TS 227 não se deu por
terminada. Na realidade, o TS 229 contém observações filosóficas
adicionais que dão continuidade à numeração lançada no TS 228. 4
Sobre esse detalhe, cf. Oku, 1998.
138 1 Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgenstein As !f e o Nach/ass l 139

l
,. II,
18 71
,. II,
219
I,
138
II,
338
A julgar pelo que assumimos até aqui, todas essas observações
2 19 72 220 139 314 filosóficas tardias provavelmente esperavam uma reelaboração
3 73 90 140 542
4 "
24 74
75
81
79
l4l 419
420 para a futura conjunção em mais de um volume. Um projeto,
7
8
9
10
20
21
55
76
77
78
80
87
82
"'
14}
144
145
421
422
424
naturalmente, irrealizável: a radicalidade de sua exigência meto-
54
11 32 79 477 146 425
13 110 81 478 147 426 dológica tornava o horizonte desse percurso cada vez mais amplo
16 82 113 148 423
17
18
19
"
103
104
107
84
86
88
+
479
7
149
150
l5l
318
393
39'
e mais distante.
20
21
106
187
100
89
'º929l
.,
60
28
152
153
154
395
158
321
O estado de inacabamento das IF é evidentemente mais um
"
25
26
102
101 ., 122
123
27
155
156 "'
377
+
elemento, além da variação em torno de um tema dado e do dia-
27 480 94 157 logismo polifónico, que o leitor deve sopesar cuidadosamente se
29
30
31
+
184
+
95
96
97

+
152
158
159
160
305
500.
501 quiser ter uma compreensão mais esclarecida dos esboços de pai-
87 98 + 161 118
"
34
36
37
17
+
105
99
102
103
331
227
228
163
164
165
382
383
384
sagem que se encontram no álbum. Porém, desse ponto de vista
104 181 166 385
38 328
105 406 bem mais amplo, a forma é mais proeminente do que o conteúdo,
39
41
329
163 107 + i~t +
112, 303
42 164 108
109
408
399
169
170
+ pois talvez o inacabamento do "livro" se apresente como o resul-
43 + +
44 + 110 + 171 380
45 363 1-1'2 71 172 381 tado de um trabalho que, como tal, expressa claramente o essen-
46 113 8 173 386
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cial de uma informação que não poderia ser dita: a maneira pela
50 214 1'17
118 -
358 177 319 qual temos que olhar nosso pensamento caso queiramos favorecer
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. -324 uma mudança de perspectiva.
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191
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· 390
391-
para assumir que a menção da matemática e de suas descobertas
está posta em comparação com a atividade filosófica, porque esse
68 + 132 312 195
69 160 133 m 196
70 21a· 135 304 197 é o plano e o sentido original do livro que Wittgenstein pretendia
publicar. Livro cujo plano jamais se consolidou senão como
Figura4 forma - e estilo - de álbum. A aproximação entre matemática e
linguagem nessa seção não é um mero acaso. O exame panorii.-
Considerando as duas razões acima expostas, temos a perspe~; mico de toda a obra manuscrita e datiloscrita do autor indica um
tiva de um projeto inacabado de publicação de um livro que ca- plano de publicação no qual as observações sobre os fundamentos
minhava em três direções distintas: ( 1) o assim chamado "frag- da matemática seriam o ponto de chegada de todos os argumen-
mento principal", (2) a filosofia da matemática e (3) a filosofia da tos desfiados na filosofia da psicologia e na filosofia da linguagem,
psicologia. Acrescentemos a essas três frentes de trabalho duas em geral, mediante os quais a crítica do fundacionismo em mate-
novas ramificações, criadas e desenvolvidas na sequência dessa mática poderia ser feita, sem que, por isso, a filosofia se tornasse
produção: Anotações sobre as cores (AC) e Sobre a certeza (OC). alguma forma de cálculo ou de prova lógica.
140 1 Asingularidade das Investigações fí/osóficas de Wittgenstein As JF e oNachlass l 141

O argumento da apresentação panorâmica ou da visão sinóp- tica. Particularmente com mais ênfase sobre o fato de que con-
tica do contexto, ademais, tem a forte corroboração do parágrafo cordamos sobre o certo e o errado no procedimento de cálculo
datilografado ao final do TS 234, que era uma observação exarada precisamente na linguagem, e não em opiniões (cf. RFM I, § 153;
ainda no meio do MS 144 (p. 70 - cf. hoje em PPF § 372), mas que III,§§ 67-75; IV,§ 8; VII,§§ 9, 25-26, 39, 43). O estudo da matemá-
passou para o fim do texto a propósito da edição final, hoje per- tica é amplamente comparado nas RFM com a história natural da
dida. Sabemos também pelo MS 138 (p. 12a) que a observação é humanidade e com a antropologia (cf. RFM I, §§ 63, 142; II, § 40;
bastante tardia, pois consta ali a data de 30 de janeiro de 1949. III,§§ 65, 87; IV,§§ 11, 13; VI,§ 49; VII,§§ 2, 33 ).
Portanto, uma reflexão que leva em consideração tudo o que A referência abaixo, entretanto, parece já ser suficiente para
foi redigido até aquele momento, dois anos antes da morte do corroborar esse ponto:
autor. Tudo isso suporta fortemente a hipótese de que toda adis-
cussão em torno da psicologia e de todos os outros temas abor- A máquina de calcular calcula?
dados nos manuscritos daqueles anos finais - prepara o leitor
Imagine uma máquina de calcular que surgiu por acaso; agora,
para enveredar pelo caminho da discussão dos fundamentos da
alguém aperta por acaso seus botões (ou um animal anda sobre eles),
matemática:
e ela calcula o produto de 25 x 25.
É possível para a matemática uma investigação completamente
Quero dizer: é essencial à matemática que seus signos também
análoga à nossa investigação da psicologia. Ela é tão pouco matemd-
sejam usados em trajes civis.
tica quanto a outra é psicológica. Nela não se calcula,. ela é portanto,
É o uso fora da matemática, portanto o significado dos signos, que
digamos, não logística. A ela poderia ser dado o nome de uma inves-
torna o jogo dos signos em matemática.
tigação sobre os "fundamentos da matemática''. (PPF § 372)
Assim como não há conclusão lógica quando transformo uma
Voltando à nossa velha seção do § 124 das IF, para responder figura em outra (um arranjo de cadeiras, por exemplo, em outro), se
à pergunta sobre como tratar a matemática com investigações esses arranjos já não têm um uso linguístico fora dessa transformação.
nada matemáticas, ou a psicologia com investigações nada psi- (RFMV, § 2)
cológicas, temos que pensar na própria filosofia da linguagem de
Wittgenstein. Nesse caso, a utilização da linguagem ordinária Por que a filosofia não pode tocar no uso real da linguagem,
como instrumento investigativo da montagem dos argumentds mas apenas descrevê-lo? Por que ela deixa tudo como está? Por
técnicos e da fabricação dos conceitos, eles mesmos também for- que não dá para esse uso um fundamento filosófico? Por que ela
jados pelo mesmíssimo instrumental. E aqui temos respondido, não altera a matemática com suas proposições, e por que ne-
finalmente, o sentido da aproximação entre linguagem e matemá- nhuma descoberta matemática a afeta? Por que um problema da
tica para esse auror. Consiste em pura metodologia. matemática é, para ela, como qualquer outro problema? Porque,
Nas RFM, evidentemente, podemos encontrar uma multidão manifestamente, o que se está buscando - na matemática, na psi-
de referências acerca dessas relações entre linguagem e matemá- cologia, na estética, na religião e nos temas correlatos da língua-
142 1 Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgenstein As IF e o Noch!ass ! 143

gem - são seus trajes civis, os fundamentos linguísticos (e esses Sem a linguagem não há ensino, não há treino, não há corre-
"fundamentos", digamos assim, não são mais do que uma "von- ção, nem distinção entre certo e errado. A linguagem comum
tade") que recobrem nosso aprendizado das disciplinas e se tor- estabelece as conexões que cooperam e se suportam de maneira
nam os pressupostos sem os quais nada do que se afirma no inte- imediata, instantânea, sem que o usuário possa aperceber-se, à
rior de um sistema poderia ser dito. primeira vista, do que se trata. Porque a conjuntura gramatical
permite enxergar problemas e soluções, mas à condição de não
Mas como - ela [ a matemática) gira nessas regras para !d e para haver autoconsciência imediata da sua forma. Trata-se sempre de
cá? - Ela cria sempre novas e novas regras: constrói sempre novas vias
ver de uma determinada maneira. Trata-se também de um acordo
de trânsito; pelas quais a rede das antigas se estende.
tácito, engendrado na cultura, na sociedade, mediante seus ins-
Mas ela não estaria precisando, por isso, de uma sanção? Ela pode,
trumentos comunicativos que não podem se constituir, de fato,
então, prosseguir arbitrariamente com a rede? Agora eu poderia, en- em um acordo baseado em opiniões. Daí a necessidade da descri-
tão, dizer: o matemático inventa sempre novas formas de apresenta- ção. Ela engendra a possibilidade de enxergar de maneira distinta
ção. Algumas atiçadas pela necessidade prática, outras, pela necessi- a contradição:
dade estética, e outras ainda de vários modos. E tu imaginas aqui um
paisagista que projeta caminhos para um jardim; pode muito bem ser Nós veremos a contradição por uma luz totalmente diferente se
que ele só desenhe na prancheta faixas ornamentais, e não imagine de considerarmos seu surgimento e suas consequências de maneira
modo nenhum que alguém algum dia irá passar por elas. antropológica - como se a fitássemos com a indignação de um ma~
temático. Isto é, nós a veremos de outro modo se procurarmos so-
O matemático é um inventor, não um descobridor. (RFM I, mente descrever como a contradição influencia jogos de linguagem;
§§ 166-168) como se nós a víssemos do ponto de vista do legislador matemático.
(RFM III,§ 87)
Não é exatamente o conteúdo daquilo que está sendo afir-
mado em lógica e matemática o que importa a Wirrgenstein. Des-
crever o uso real da linguagem, sem tocá-lo, significa traçar o
percurso das conexões entre os elementos ideativos, empíricos e
linguísticos que se coadunam em função conjunta com uma ati-
vidade num caso determinado de uma disciplina ou do empregá
de um conceito, mas como um sistema cuja montagem e cuja cola
se devem à linguagem ordinária: "O que fornecemos, na reali-
dade, são observações sobre a história natural do ser humano; não
contributos curiosos, mas constatações das quais ninguém duvida
e que só escapam de serem observadas porque se situam diante
dos nossos olhos" (IF § 415).
7

OCORPUS LITERÁRIO E05 DADOS BIOGRÁFICOS

Encontraremos no corpus literário atividades filosóficas do autor


que corroborem seu plano de modificar a visão do leitor exclusi-
vamente pela forma, sem nada tocar no conteúdo? Diremos que
sim. Facilitar e permitir a autoconsciência dos acordos táciros
celebrados na linguagem parece ter sido a preocupação constante
de Wittgenstein ao longo de toda a sua carreira filosófica, mesmo
na época do TLP. Ao mesmo tempo, o autor antecipa claramente
a enorme dificuldade desse projeto. No TLP menciona-se a típica
confusão da filosofia entre o contrassenso e aquilo que realmente
faz sentido, que a crítica da linguagem tem por mister esclarecer
(§§ 4.003-4.0031). Na fase posterior, não se trata mais de um pro-
blema de correção lógica, simplesmente, mas daquilo que precede
e fundamenta a própria lógica, que será sempre uma gramática.
Para todos os casos com os quais temos que lidar, existem as mais
variadas técnicas, as mais distintas formas de operação, que po-
deríamos chamar de arranjos de sentido; mas produzimos confu-
sões gramaticais quando passamos a filosofar sobre os arranjos
naturais consolidados na linguagem. Aqui surgem as ilusões gra-
maticais, dificilmente perceptíveis, pois elas se confundem com
esses arranjos. Uma vez revestidas com nossos trajes civis, seria
146 ] Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgenstein Ocorpus literário e os dados biográficos j 147

preciso uma espécie de reflexão autocrítica extremamente exi- catenados no espaço lógico(§ 1.13), e de uma relação entre lin-
gente para poder ver as coisas de maneira diferente da aprendida guagem e mundo como de delimitação ou de fronteira que es-
desde criança, através de um longo processo de aprendizagem. É tabelece não somente a possibilidade de representação e de ex-
factível supor que essa missão e sua aparente exigência crítica pressão, mas também a inexistência da expressão de um sujeito
deixem marcas no texto que poderiam passar a impressão de am- que, ao mesmo tempo, é esse mundo como microcosmo (§ 5.63)
biguidade e de contradição ao leitor desinformado. Pois cada caso e como limite (§ 5.632). Esse pensamento subjetivo que não
é examinado por si mesmo, cada um deles comporta distintas existe, bem como aquele (sujeito) que pensa, que tampouco
facetas, além de serem os casos diferentes entre si. Wittgenstein existe, é curiosamente mantido no TLP como ponto sem extensão,
invariavelmente retorna ao mesmo ponto já examinado em outro como, também, limite. Wittgenstein persevera em mostrar algo
lado, e, de novo ponto de vista, chega a conclusões diferentes das para além da proposição que, para ele, seria o mais importante:
anteriores. o ponto de abandonar a filosofia. E como se pode manter esse
É o que acontece com o TLP, por exemplo, que tem essa lado de fora para o qual não há referência possível? A resposta é:
dualidade parentemente expressa no texto, como um dentro e um apenas pela forma das relações internas da linguagem. Desse
fora delimitados desde dentro, que apenas se mostram: "somente ponto de vista, de quem seria este mundo senão daquele a quem
na linguagem esse limite pode ser traçado, e o que está para além só a linguagem entende ( § 5.62)? Reparemos bem na sugestão
do limite, será, simplesmente, contrassenso" (no prefácio). Evi- dualista provocada propositalmente pelo emprego deste só (al-
dentemente, a expressão "dualidade" deve ser tomada aqui cum lein ), nessa formulação frásica do autor. Ela bem poderia ser arti-
grano salis. A palavra nos faz pensar, num primeiro momento, em culada de modo menos contorcido. O que será que ele prerende
duas naturezas, duas substâncias, dois princípios em coabitação com essas, digamos assim, firulas? Em primeiro lugar, apontar
simultânea. Porém, não é dessa acepção mais ampla que se trata. alguém, uma vontade, um sentimento, a quem o mundo pertence.
Da maneira como a estamos propondo, a palavra deve ser com- E, em segundo lugar, uma verdade do solipsismo. O leitor dis-
preendida apenas no sentido de "dual", de dois lados, duas faces, traído será indubitavelmente levado a supor que não há mais coi-
mas com um só princípio, um só funcionamento, porque a relação sas no mundo senão essa vontade. Wittgenstein alimenta assim,
entre mundo e linguagem, no TLP, é interna. mediante um sutil sublinhar de palavras-chave decisivas, com
Relações internas, no TLP, são aquelas sem as quais não seria . uma aparente ambiguidade, uma espécie de solipsismo. Um so-
possível conceber o objeto (§ 4.123 ). Embora ele seja inconcebível lipsismo realista. Mas compreendamos bem a articulação da frase:
sem essas relações, isso não quer dizer que elas possam ser descri- o fato de que haja uma relação interna entre um sujeito dessa
tas ou que possam ser expressas pela proposição; elas só se expres- vontade e o mundo como limite, como microcosmo, como von-
sam como propriedade interna da proposição (§ 4.124), isto é, elas tade mostrada na linguagem, como sentimento, não autoriza a
se mostram. O mundo e a linguagem são, no TLP, conceitos recí- afirmação de nenhuma subjetividade que possa ser descrita, além
procos. O livro, assim, fala da linguagem como condição a priori de não autorizar a afirmação de nenhum relativismo empírico ou
de representação do mundo(§ 6.13), de mundo como fatos con- moral, nem de nenhum possível idealismo. No TLP o sujeito é um
148 1 Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgenstein Ocorpus literário e os dados biográficos i 149

"ponto sem extensão", e o solipsismo, que Wittgenstein acredita Russell, ele só quer desvelar a lógica por detrás de qualquer lin-
como correto nessa época(§ 5.62), coincide com o puro realismo guagem que pretenda representar os faros. 1
(§ 5.64). Portanto, a principal preocupação do TLP é aproveitar-se Sendo um tratado, entretanto, o livro supostamente deveria
de uma possibilidade interna da linguagem, mostrando, para os entregar ao leitor algumas lições sobre algo de que ele ainda não
poucos que compreenderão, o que não pode ser dito. A saber, que tivesse conhecimento ou ainda não soubesse fazer. O TLP decla-
a única forma do nosso entendimento é a linguagem. Como diz radamente investiga os limites do sentido, matéria típica pela qual
uma das proposições mais conhecidas do TLP, "O que pode ser se reconhece um tratado, mas apresenta, em vez do desenvolvi-
mostrado não pode ser dito"(§ 4.1212). mento de um arrazoado que chegue, concatenadamente, a alguma
O prefácio e a parte final do livro demonstram o propósito do conclusão, algo mais parecido com uma peça literária. Por quê?
autor de instilar a autoconsciência a respeito daquilo de que não Na parte final revela-se que tudo o que foi dito no livro não
se pode falar, apenas mostrar. E também a imensa dificuldade da passa de contrassenso, e o autor chama a atenção do leitor não para
consecução de uma tarefa como essa. Logo no início do prefácio, o conteúdo da obra, mas para si mesmo:
ele diz: "Este livro talvez seja entendido apenas por quem já tenha
alguma vez pensado por si próprio o que nele vem expresso - Minhas proposições elucidam dessa maneira: quem me entende
acaba por reconhecê-las como contrassensos, após ter escalado através
ou, pelo menos, algo semelhante. Não é, pois, um manual. -
delas - por elas - para além delas. (Deve, por assim dizer, jogar fora
Teria alcançado seu fim se desse prazer a alguém que o lesse e
a escada ap6s ter subido por ela.)
entendesse".
Deve sobrepujar essas proposições, e então verá o mundo corre-
Uma declaração extremamente curiosa acerca do propósito de tamente. (TLP§ 6.54)
um tratado de lógica e de filosofia. Porque se trata de um livro de
lógica e filosofia que não quer ensinar nada de novo para nin- Que era, pelo menos em parte, uma composição literária, mais
guém. Apenas entreter e dar prazer a quem o lê. Deve ter sido a que um tratado de filosofia, foi o que nosso autor confessou a
primeira vez, e talvez a única até hoje, que o autor de um tratado Ludwigvon Ficker, um amigo seu, em 1919: "O trabalho é rigo-
filosófico expressou semelhante declaração. Eventualmente até rosamente filosófico e ao mesmo tempo literário, mas não há nele
profética, porque podemos constatar de plano, na própria intro- nenhuma mistura" (Wittgenstein, 1969a, p. 33). E foi também
dução ao TLP escrita por Bertrand Russell, atualmente parte in- claramente a impressão de Frege, quando disse:
tegrante do próprio TLP, como é fácil desentender o seu propó- "
sito. Enquanto Russell supõe que ao livro importa "as condiçõ,es A satisfação de ler o seu livro não pode mais ser incitada, por-
que teria que cumprir uma linguagem logicamente perfeita" tanto, pelo conteúdo, já conhecido, mas pela forma impressa pela
(Wittgenstein, 20016, p. 113), o livro supõe, ao contrário, que peculiaridade do autor. De modo que o livro é mais artístico que
tudo está em ordem tal como está (TLP§ 5.5563). O TLP não quer
dobrar a realidade em conformidade com um ideal como o de
1
O desfocamemo de Russell é um ponto lembrado por Marion (1998, p. 120).
150 1 Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgen5tein Ocorpus literário e os dados biográficos l 1s1

científico; aquilo que nele é dito fica por detrás do modo como é dito. Nesse prefácio para outro livro encontramos a mesma tensão ir-
(ApudMonk, 1991, p. 604) resoluta entre aqueles que entendem e aqueles que não entendem.
Os amigos, espalhados por todos os cantos desconhecidos do
Podemos admitir que a primeira obra de Wirtgenstein torna- mundo, e aqueles aos quais não é dado reconhecer seu conteúdo:
-se, portanto, apenas um rito de passagem para alguma coisa que
ela mesma indica como situado além dela. Não é a doutrina filo- O perigo de um longo prefácio é o de que o espírito de um livro
sófica nela contida que importa, mas o que através dela nos con- deve mostrar-se nele & não vir a ser descrito. Pois se um livro for
escrito só para poucos, então isso já se mostrará pelo fato de que pou-
duz a aquele lugar para o qual, segundo o livro, não há expressão
cos o compreenderão. O livro deve efetuar automaticamente a
possível. Provavelmente o sítio onde já estava o autor, o ponto
separação entre aqueles que o compreenderão & aqueles que não. O
para o qual ele convidava então o leitor mediante o rito de passa- prefácio, também, é escrito exatamente para aqueles que compreen-
gem do entendimento proporcionado pelo livro. O TLP é, diga- derão o livro.
mos assim, um chamado para as pessoas que teriam o mesmo tipo Não há sentido em dizer alguma coisa para alguém que não a
de compreensão do mundo e da vida que o autor virem para o seu compreende, mesmo que se acrescente que ele não a compreenderá.
lado e enxergarem o mundo do jeito que ele realmente é, silencio- (Isso ocorre frequentemente com urna pessoa que se ama.)
samente. Um chamado ocioso, desde logo, porque os leitores su- Se tu não quiseres que determinadas pessoas entrem num quarto,
então coloca uma fechadura da qual eles não tenham a chave. Agora,
postamente já entendiam, antes do início da leitura, a mesma
não tem sentido falar sobre isso com eles, a menos que tu queiras que
coisa que o autor. Pelo menos é o que o prefácio confessa ser con-
eles admirem o quarto de foral
dição do próprio entendimento do livro. Pergunta 0 se, então, por
É mais decente colocar uma fechadura nas portas que só atraia
que toda a simulação? O que pretendia Wittgenstein com sua aqueles que podem abri-la & não seja notada pelos outros. (MS 109,
coleção de contrassensos muito bem articulados? pp. 208-209)
Onze anos mais tarde, em 1930, encontramos um novo prefá-
cio redigido pelo autor para outro livro que supostamente pre- É bastante factível que essa divisão do mundo entre aqueles
tendia publicar na época. Esse livro representaria sua mudança de que compreendem o espíriro do livro e aqueles que irremediavel-
foco metodológico. Wittgenstein se pautava agora não mais pela m.ente não o compreendem tenha sido escrita com o pensamento
lógica abstrata e unívoca da linguagem, expressa no TLP, mas, posto em Carnap, e até mesmo em Waismann, membros do Cír-
depois de decorridos seu abandono e seu retorno à filosofia, peja culo de Viena com os quais nosso autor se encontrava com
linguagem compreendida em suas aplicações práticas. Estava, a frequência naqueles anos. Independentemente dessa circunstân-
bem da verdade, num período de transição entre uma linguagem cia, no entanto, ocorre novamente a disposição para um texto
compreendida como cálculo e voltada para o fenômeno (um subs- hermético similar ao que se encontra no TLP, a de só conversar
tituto para o já eliminado atomismo lógico do período tractaria- com aqueles que participam do mesmo espírito com o qual o livro
no) e uma concepção pragmática da linguagem (a lógica colhida foi escrito. Mas em 1930, pelo menos, está mais claro que tipo de
no seu emprego prático) que já o encaminhava para o gramatical. espírito é aquele pelo qual Wittgenstein está dividindo o mundo.
152 [ Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgenstein Ocorpus literário e os dados biográficos l 153

Existem aqueles que partilham do mesmo espírito que ele, e os Nestroy, para publicar suas sátiras e críticas sociais e conseguir
outros, que pertencem ao tipo de espírito dominante na civili- driblar a censura do primeiro-ministro conservador de sua época,
zação europeia e americana, cuja expressão é a indústria, a ar~ Klemens Wenzel von Metternich, escrevia de maneira ambígua,
quitetura e a música do fascismo e do socialismo do seu tempo. com frases rebuscadas entremeadas de muitos jogos de palavras.
Esses são os traços de um espírito que, para o autor, é estranho e A mensagem cifrada das IF, portanto, parece querer insinuar que
antipático a ele (MS 109, p. 205). As pessoas que dele participam o leitor encontrará no livro a crítica do espírito de civilização e de
cooperam para uma civilização que se caracteriza pela palavra progresso, mas de maneira que ela não possa ser reconhecida por
progresso, um mundo cuja forma é o progresso, mas no qual este aqueles que participam do mesmo espírito que essa civilização.
não é uma das propriedades pelas quais o mundo progride (idem, Na epigrafe das IF, Nestroy mostraria sem dizer, segundo a nossa
p. 207). hipótese, o espírito do livro que ao mesmo tempo é uma fecha-
Pois bem, o livro dele não é escrito para essas pessoas, porque dura, cuja chave apenas o leitor que comunga do universo do
elas nunca o entenderão. E para assegurar que a sua obra não con- autor pode também possuir.
vide as pessoas erradas a entrar, nosso autor a provê de uma fecha- O esclarecimento filosófico não é direcionado para os estra-
dura que só pode ser aberta por aqueles a quem ela atraia, e, ao nhos e os não simpáticos ao espírito da cultura. É prescrito so-
mesmo tempo, não seja percebida pelos demais. Em outras pala- mente para aqueles cujas forças estão assinaladas e compreendidas
vras, poderíamos dizer que a chave do texto está no seu aspecto no interior de uma totalidade que dá sentido para cada individuo
performativo. Apenas o leitor adequado para aquela forma de (cf. MS 109, p. 206), isto é, todos aqueles que podem estar imbuí-
comunicação poderá entender perfeitamente a mensagem: dos de um propósito ético que encontra um fim em si mesmo,
desobstruído de outro interesse. Somente estes compreenderão
[No prefácio] Não é sem resistência que passo o livro ao público. por que o livro está lavrado de uma maneira hermética e conden-
As mãos nas quais ele vai cair não serão, na maior parte das vezes, sada, instigando a necessidade de pesquisa no amplo campo dos
aquelas que gosto de imaginar. Que ele possa logo - isso é o que de-
escritos do autor espalhados ao longo de todo o Nachlass, para
sejo - ser completamente esquecido pelos jornalistas filosóficos, &
que a mensagem seja plenamente compreendida e o ritual de pas-
permaneça assim conservado para um mais nobre <<melhor>> tipo
sagem cumprido. Esse movimento do pensamento em direção ao
de leitor. (MS 136, p. 81a)
esclarecimento tem como efeito o despertar de uma letargia, a
O fato é que a redação final das IF (TS 227) carrega, precisa/ quebra do feitiço e do entorpecimento ocasionados pelos pró-
mente na sua página de abertura, o mote que serve para uma fe- prios hábitos linguísticos, que lutam inercialmente para perma-
chadura desse tipo. Lá vem escrita, em epigrafe, uma frase do dra- necer na sombra e na inconsciência em que jazem, afetados que
estão pelo espírito da civilização e do progresso:
maturgo austríaco do século XIXJohann Nestroy: "O problema
do progresso, afinal, é que ele parece ser muito maior do que real-
,,, Nós dizemos numa investigação científica tudo o que é possível;
mente e.
fazemos muitas afirmações cujo papel na investigação não compreen-
154 ! Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgenstein Ocorpus literário e os dados biográficos l 155

demos. Pois não dizemos tudo com uma finalidade consciente, senão neira automática. Não é qualquer pessoa que tenha conhecimento
que a nossa boca segue sozinha. Nós seguimos movimentos de pen~ do contexto do Nachlass, dos dados biográficos e de outros tex-
sarnento convencionados, criamos saídas automatizadas, na medida
tos do autor, como cartas e anotações de classe, que compreen-
da técnica que aprendemos. E agora temos que inspecionar primeiro
derá a mensagem central dos rituais pelos quais os escritos do
o que dissemos. Fizemos uma grande quantidade de movimentos
autor nos fazem passar. O texto dele exige um "mais nobre" ou
inúteis e sem propósito, e agora temos que esclarecer filosoficamente
nossos movimentos de pensamento. (MS 136, p. 31a) um "melhor" tipo de leitor. Existiria ali, supostamente, uma fe-
chadura que só atrai aqueles que podem abri-la. Essa suposta
Tudo se passa como se fosse o próprio esforço de pensamento fechadura poderia bem ser, se nos apoiamos na mesma estratégia
do leitor, requerido pelo prefácio das IF ("eu não gostaria de, com utilizada pelo autor na composição do TLP, a própria forma do
o meu escrito, poupar os outros do pensar"), que o despertaria do Nachlass, isto é, a atitude que ela expressa.
automatismo das saídas criadas pelo hábito durante o longo pro- Seria correto, porém, imaginar um texto aberto como um
cesso de aprendizado de uma técnica de investigação científica. texto fechado, ou vice-versa?
É nesse sentido que a frase "a filosofia deixa tudo como está'' -
que, aliás, é bem antiga (já aparece no MS 110, p. 188, em 1931) -
poderia, de fato, funcionar. Sem que fosse preciso tocar em nada
da técnica estabelecida, nós nos poríamos a repensar somente
acerca de como a criamos e a assimilamos, em como nos coloca-
mos a aplicar suas saídas sem pensar muito nelas. Em outras pa-
lavras, o esclarecimento filosófico proposto pelo álbum seria nada
mais que a saída da obscuridade pela criação da autoconsciência.
Mas isso provocado sem que nada acerca do conteúdo, ou da ma-
neira como praticamos e aplicamos os conceitos que aprendemos,
seja mencionado, ou alguma sugestão de mudança seja proferida.
Examinaríamos apenas nossos trajes civis pelo olhar, pelo reconhe-
cimento de si. O lado externo daquilo que praticamos, mas sem
precisar, para isso, olhar a linguagem do lado de fora. Trata-se c;le
reconhecer nossa linguagem com a linguagem, do mesmo modo
que já previa antes o TLP. Entretanto, agora, nas IF, o mesmo
mister é reformulado pela consigna de "uma luta contra o feitiço
do entendimento pelos meios da nossa linguagem" (IF § 109).
Em conclusão, podemos dizer que o argumento do contexto,
ao qual o texto de Wittgenstein nos obriga, não funciona de ma-
8

SEIS WITTGENSTEINS

Proponhamos agora a hipótese do Grande Pacto. Ela se baseia


numa interpretação do texto redigido em 1930, citado no capí-
tulo anterior (MS 109, pp. 204-209 ), para o prefácio de um livro.
Wittgenstein parece estar sugerindo nesse prefácio a existência
de uma relação particular entre autor e leitor, a qual não estaria
baseada em mera semelhança na organização, na conexão ou no
arranjo de determinados assuntos ou objetos, mas alguma coisa
mais vital, orgânica, que ele chama, em síntese, de gramatical,
entre as pessoas que se conectam por meio de seu texto e da ma-
téria de que trata. Somente os que estiverem incluídos nessa rela-
ção compreenderão o livro. Trata-se de uma aliança. Pois bem,
digamos que ninguém celebra um pacto sem uma atitude propo-
sitiva. Por esse motivo, o próprio livro se encarrega de separar
automaticamente aqueles que o compreendem e aqueles que não.
Não poderia haver, então, na relação entre o leitor e os escritos de
Wittgenstein um interesse alheio ao projeto fundamental do
pacto, alguma coisa do tipo "leio este texto para aprender um
pouco mais de filosofia, ou para exibir para os outros certo tipo
de conhecimento de história da filosofia, ou para aprender uma
determinada técnica proposta no texto e aplicá-la em outros lados
158 1 Asingularidade das Investigações filosôficas de Wittgenstein Seis Wíttgensteins ! 159

etc.". A leitura deve ser capaz de satisfazer exclusivamente aos servir de inspiração, de encorajamento, de estímulo ao pensa-
participantes da aliança. Em outras palavras, compreender o que mento, mas nunca para o aprendizado de urna nova técnica, a qual
ali está escrito deve ser a finalidade da leitura, e a comunhão dos poderia ser imitada ou reproduzida em antro lugar na forma de
objetivos do autor e do leitor é parte do que o próprio autor con- doutrina, nem para a difusão e a propagação de uma nova forma
cebe como a Grande Cultura (MS 109, p. 205). Um sistema que de conhecimento ou de fazer filosofia. Por tal hipótese, portanto,
abarca todas as relações entre os indivíduos numa totalidade os leitores ideais de Wittgenstein seriam silenciosos. Não aventa-
dentro da qual todas as forças podem ser reconhecidas e seus lu- riam hipóteses sobre a sua obra nem sobre a sua filosofia.
gares assinalados, de tal forma que essas forças não se dispersem Essa hipótese mística é a que devemos recusar. Não há um
nem se dissipem, fragmentadas em finalidades alheias ao propó- Grande Pacto misterioso e secreto entre aqueles que estão envol-
sito do texto. Uma totalidade inclusiva, contrária à exclusão dos vidos no mesmo espírito. Não se trata de uma ordem de cavaleiros
supostos mais fracos e oposta ao que prescreve o espírito de civi- templários urdindo conspirações à sombra dos acontecimentos
lização e de progresso. da história. Não se trata, tampouco, de urna união mística, trans-
A leitura seria, pela hipótese, ela mesma um jogo de lingua- cendente e atemporal, entre autor e leitores ideais. Defendemos
gem. Por isso, Wittgenstein escreveria para os seus amigos em que o texto de Wittgenstein apresenta, simplesmente, uma fisiog-
qualquer canto do mundo (idem, p. 206), pois eles estariam vincu- nomia, consequente com seu método. Como lisiognomia ou
lados entre si por intermédio desse mesmo espírito de cultura, como expressão é que o texto apresenta dificuldades interpretati-
que se define por ser oposto ao espírito do cientificismo. vas, pois uma das exigências do método é a modificação da von-
O que encontraria, então, o leitor de Wittgenstein em seus tex- tade, coisa muito difícil de perceber quando a vontade ainda é
tos? Absolutamente nada de interessante senão dores de estômago: outra. A vontade, em geral, presa à imagem da filosofia tradicio-
nal, enxerga a produção de conceitos, ou então a dissolução de
Eu não tenho nenhum direito de publicar um livro no qual sim- outros conceitos.
plesmente as dificuldades que senti estão expressas e mastigadas. Pois O leitor que se interessa pelos meios que o autor encontrou
essas dificuldades são, na realidade, interessantes para mim, que nelas contra as suas dores de estômago, e não exatamente pelas dificul-
me meti, e não necessariamente para a humanidade <<os Outros>>.
dades descritas no texto, que são particularidades pertencentes a
Elas são particularidades do meu pensamento, são parte da minha
um diário, mais que a um livro, é aquele que pretende compreen-
formação. Elas pertencem, digamos, a um diário, não a um livro. E
mesmo que esse diário pudesse alguma vez ser interessante para al-/ der o autor, tal como se solicita na seção§ 6.54 do TLP. O foco do
guém, ainda assim não o publicaria. Não são as minhas dores de_, es- texto é a modificação da vontade do leitor, não tanto a luta quase
tômago que são interessantes, mas os meios - ifany - que encontrei interminável que ali vem descrita, que é parte, apenas, da forma-
contra elas. (MS 136, p. 144a) ção do autor. A forma, ali mencionada como "meios", é mais im-
portante que o conteúdo.
As dores de estômago e os meios encontrados contra elas são E talvez seja realmente a vontade presa a certa imagem da fi-
apenas expressão de um testemunho pessoal, um relato que pode losofia tradicional, a vontade que persevera na produção de con-
160 1 Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgenstein Seis Wittgensteins ] 161

ceitos e doutrinas que expliquem o universo e todas as realidades 8.1 Uma forma de filosofia da matemática
existentes, aquela que, por conseguinte, também forja a impressão
de hermetismo no texto de Wittgenstein. Isto é, a ideia de que Uma das primeiras interpretações dos textos de Wittgenstein foi
seu texto esconde um saber reservado aos poucos que comunga- a que pretendia revelar o tipo de filosofia da matemática defen-
riam de um Grande Pacto entre autor e leitor. Desse modo, o dida pelo autor, proposta em 1959 por Michael Dummett (cf.
papel do leitor seria o de desvendar o saber oculto do texto, e não 1978, pp. 166-185). Esse comentador entendia que Wittgenstein
propriamente tomar partido do texto de forma terapêutica, propugnava em seus textos de filosofia da matemática uma forma
aprendendo com o autor apenas uma forma de cuidado de si. radical de construtivismo, que denominou como "convenciona-
Chama mais a atenção, por isso, não o leitor interessado no cui- lismo puro-sangue" (idem, p. 170). Assim, se uma pessoa adota a
dado de si, mas a proliferação de outro tipo de leitores, aqueles convenção registrada pelos axiomas matemáticos junto com seus
que produziram uma série de interpretações discordantes dos princípios de inferência, então, sua adesão será uma expressão
seus escritos. Evidentemente, não se pode dizer desse outro tipo direta da linguagem incorporada pelo sistema. Para Dummett,
de leitores que eles não compreenderam o texto. Porém, ficaram Wittgenstein postula que um enunciado lógico segue-se necessa-
presos exclusivamente ao conteúdo. A sua atividade interpreta- riamente não em razão de uma motivação externa, como o ideal
tiva - ou, em outros termos, a aplicação do princípio de caridade platônico, ou porque a linguagem simplesmente nos obriga, mas
ao texto de Wittgenstein - gera o fato surpreendente da prolife- porque decidimos tratá-lo como indisputável, tratá-lo como enun-
ração de interpretações divergentes, todas com base correta de ciado acerca do qual não há possibilidade de refutação. Como
prova textual. David Stern (2005, pp. 164,170) sugere que o fenô- tudo isso expressa, na realidade, uma relação interna, nosso com-
meno se deve às distintas possibilidades de inter-relação permiti- portamento no que diz respeito ao sistema também expressará
das pelo corpus. Naturalmente, tudo isso é parte da fisiognomia precisamente essa nossa adesão.
do texto, da maneira como se enxerga uma expressão, o que é, Dado que Dummett identifica nas discussões matemáticas
também, por sua vez, parte da manifestação de uma vontade. de Wittgenstein um tipo de doutrina, isto é, um tipo de posi-
Wittgenstein tinha, na realidade, três irmãs. Mas imaginar uma cionamento filosófico que tem implicações sobre a correção das
quarta irmã, cuja figura é uma composição da aparência das irmãs diversas filosofias da matemática, como é que ele interpreta o
com a dele mesmo, é talvez interessante para reconhecer carac-. § 124 das IF?
terísticas fisiognômicas dos demais, mas não da figura inventada. Em primeiro lugar, Dummett diz que, para Wittgenstein, fi-
Nesse sentido, tais leituras produzem visões de distintas fa~etas losofia e matemática não têm nada a dizer uma para a outra: "ne-
do texto e ajudam, a seu modo, na compreensão da totalidade nhuma descoberta matemática pode ter algum peso sobre a filo-
do texto real do autor, isto é, de seus traços característicos, mas, sofia da matemática" ( 1978, pp. 167-168), e, aparentemente, tam-
como interpretações da filosofia de Wittgenstein, criam fisiogno- pouco a filosofia pode ter algum peso sobre a matemática. Mas
mias imaginárias. Vejamos, então, de que modo essas fisiognomias ele pensa nessa postura como uma tendência geral do autor a con-
são possíveis no texto de Wittgenstein. siderar os discursos como ilhas separadas e incomunicáveis: "isso
162 1 Asingularidade das Investigações fí/osóficas de Wittgenstein Seis Wittgensteins l 163

não deve ser tomado tão seriamente", declara na página 168. O 8.2 Uma filosofia positiva
§ 124 das IF seria, portanto, na opinião de Dummett, provavel-
mente mais uma dessas contradições internas recorrentes em Outra maneira também antiga de interpretar os textos de Witt-
Wittgenstein, as quais manifestam a falta de uma elaboração mais genstein era descrevê-lo como um autor que passou por duas fases
atenta e rigorosa quanto à coerência interna do texto. inteiramente distintas, com posições filosóficas completamente
O que permite que Dummett tenha esse tipo de percepção antitéticas entre si. Assim, por exemplo, Stegmüller pensa que
sobre a filosofia de Wittgenstein? Nas páginas iniciais de seu ar- Wittgenstein, depois de ter destruído toda a sua doutrina ante-
tigo temos a resposta. Ele também vê nos textos de Wittgenstein rior, construiu passo a passo uma nova filosofia (1977, p. 430).
uma espécie de inacabamento, mas certamente não daquele Que, apesar das IF se constituírem numa das obras mais difíceis
mesmo tipo de incompletude essencial e constitutiva que ana- da história da filosofia, depois de um esforço fora do comum o
lisamos aqui. Dummett interpreta que nenhum dos manuscritos leitor poderá extrair dela uma "teoria positiva" (idem, p. 431; as
que compuseram as RFM tinha intenção de ser um livro (idem, aspas são do próprio comentador). Poderá, por exemplo, extrair
p. 166). Comprova o seu parecer pelo fato de que neles o próprio da crítica de Wittgenstein à teoria de uma substância indestru-
autor reconhece que seus pensamentos estavam expressos de uma tível do mundo, cujos elementos seriam as coisas simples, defen-
maneira inacurada e obscura; que algumas passagens contradizem dida no seu próprio livro anterior, o TLP, uma nova teoria dos
outras mais afastadas; que algumas são completamente incon- nomesi uma teoria, agora, dos nomes vazios, que se apoia na dis-
clusivas; algumas, ainda, levantam objeções a ideias que o próprio tinção que pode ser estabelecida entre o "portador de um nome"
autor teve, ou tinha tido anteriormente, e não foram atestadas e o "significado de um nome": "O que, na realidade, corresponde
claramente no volume; além de passagens de qualidade muito ao nome é seu portador, não o significado. O portador do nome
pobre e que contêm erros aparentemente evidentes (particular- pode desaparecer sem que o próprio nome perca seu significado:
mente sobre o teorema de Gõdel). Comparando as RFM e as IF, quando Sócrates morre, a palavra 'Sócrates' não se torna uma
que ele supõe terem sido muito mais bem trabalhadas que o outro expressão destituída de sentido" (Stegmüller, 1977, p. 436).
livro, conclui, finalmente, que os dois textos tiveram origens com- Do mesmo modo, segundo esse autor, Wittgenstein propõe
pletamente diferentes. um conceito de uso para suplantar o conceito de significado
Essa primeira interpretação dos textos de Wittgenstein des- (idem, p. 441 e ss.), cuja fundamentação abrange praticamente
conhece a ideia de álbum e de inacabamento, de maneira formal,, toda a obra posterior do filósofo. Envolverá as noções de "jogos
como estilo, tal como defendemos aqui, e pressupõe acriticamepte de linguagem" e de "seguimento de regras", entre outras tantas,
a ideia de livro incompleto. Não podemos negar que Wittgenstein pelas quais o autor examinará uma multiplicidade de situações
muitas vezes manifestou insatisfação com seu texto. Dummett em que a ideia de significado dependerá do uso.
tem base para a sua visão de aspecto. Mas não parece ter sido des- Assim como no caso de Dummett, a exposição de Wittgen-
pertado para outros aspectos da fisiognomia do Nachlass. stein feita por Stegmüller compreende o texto tal como dado na
publicação póstuma, sem a crítica filológica. De modo que oco-
164 1 Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgenstein Seis Wittgensteins l 165

mentador chega a manifestar o desejo de uma maior sistematici- uma passagem das AWL (p. 43), além de outros manuscritos de
dade numa elaboração futura do pensamento do autor: "Sem filosofia da matemática, o comentarista identifica a referida tarefa
cogitar de críticas a Wittgenstein, cabe solicitar, orientando a positiva com o próprio método da visão (ou apresentação) sinóp-
pesquisa futura, que a investigação filosófica da linguagem coti- tica. Wittgenstein se ocuparia, cm sua filosofia, do esclarecimento
diana propagada por Wittgenstein venha a ser montada mais da linguagem dos nossos conceitos como quem traça o mapa de
sistematicamente" (idem, p. 456, itálicos do autor). um país desconhecido: o país é a linguagem, e a geografia é a sua
gramática (Hacker, 2007, p. 115), Dominar a geografia dos con-
Stegmüller supõe que a assistematicidade do texto corres- ceitos, desenhar sua topologia característica, apresentar seme-
ponde à desorganização e não, como já vimos no prefácio à versão lhanças e diferenças seria a clara função gramatical e positiva da
final das IP (TS 227), à própria natureza do pensamento do au- filosofia de Wittgenstein, segundo Hacker. Evidentemente, nosso
tor. De maneira que, para extrair com mais facilidade a teoria po- comentador está, nesse momento, muito mais preocupado com
sitiva de sua filosofia, seria preciso uma remontagem mais regu- o conteúdo do que com a forma, e, por isso, cego quanto à impor-
larizada de acordo com o padrão da tradição filosófica. tii.ncia da expressão de uma atitude do autor das IP e da urgência
Mas nem sempre a ideia de que nos textos de Wittgenstein de uma modificação interna da vontade presa ao dogmatismo.
haveria uma teoria positiva supõe uma forma antiga de conceber
sua filosofia nem é consequência apenas da falta de crítica filoló-
gica. Peter Hacker, por exemplo, é um comentarista moderno e 8.3 Uma espécie de ceticismo
um dos especialistas mais versados em todo o mundo nos textos
de Wittgenstein, com extensa publicação de exegeses e traduções Uma das interpretações da filosofia de Wittgenstein em que o
inovadoras cuja característica principal é o enraizamento minu- § 124 tem um papel dos mais relevantes é a da visão pirrônica de
1

cioso, o trabalho profundo, e a articulação criativa de toda a ex- seus textos. Segundo essa visão, a finalidade principal das IF,
tensão dos manuscritos e datiloscritos do Nachlass. Pois ele tam- assim como de toda a estratégia wittgensteiniana, é pôr fim ao
bém tem um parecer semelhante a Stegmüller, no que tange à dogmatismo em termos muito semelhantes ao procedimento pro-
busca de uma proposta filosófica positiva nos textos do autor. posto na Antiguidade por Sextus Empiricus. Trata-se de arregi-
Num dos seus artigos mais conhecidos, em que disputa com Gor- mentar razões com o único fito de colocar em dúvida irretor-
don Baker a maneira correta de ler os texros de Wittgenstein e dr quível qualquer espécie de doutrina filosófica. Stern, seguindo um
exarar sua real filosofia, Hacker declara que, apesar de ser inegável texto de Fogelin ( 1987, pp. 205-222), chamou a essa espécie de
a existência de uma finalidade terapêutica em seus escritos tar- interpretação da filosofia de Wittgenstein de pirtônica (2005,
dios, seria equivocado não reconhecer que ela envolve também "a pp. 215-220). Mas talvez o melhor representante dessa espécie de
tarefa positiva de delinear a geografia lógica dos conceitos emba- visão dos seus textos não seja exatamente a de um autor que iden-
raçosos" (2007, p. 100, o itálico é do auror). Segundo Hacker, tifique Wittgenstein com o ceticismo de tipo pirrônico, mas com
como seria desempenhada essa tarefa por Wittgenstein? Citando o ceticismo humiano ou o berkeleyano. Trata-se da imagem da
166 1 Asingularidade das Investigações filos6ficas de Wittgenstein Seis Wittgensteins l 167

filosofia de Wittgenstein tal corno retratada por Saul Kripke no o anterior, mas é somente uma consequência direta do ceticismo
seu livro sobre seguimento de regras e linguagem privada (1982). acerca da possibilidade de justificação do comportamento pela
A interpretação proposta por Kripke, segundo descreve outro regra. Para Kripke, portanto, é um ponto pacífico que o mote
texto de Stern (2004, p. 2), é "a mais influente e amplamente dis- central das IF é um argumento cético (1982, p. 7). Seu grau de
cutida interpretação das Investigações filosóficas". Ela mesma, en- letalidade para todos os problemas que se aplicam ao uso signifi-
tretanto, não pretende ser realmente urna exposição correta da cativo da linguagem é, simplesmente, absoluto.
perspectiva de Wittgenstein, mas apenas a maneira corno a leitura Para provar esse ponto, Kripke propõe um exemplo aritmé-
do texto dele atingiu o comentador e lhe causou algum impacto tico. Se tornarmos a palavra "adição" e o símbolo "+ ", seu signifi-
(Kripke, 1982, p. 5). O fato, porém, é que essa interpretação se cado será urna muito bem conhecida função matemática definida
tornou tão célebre e tão discutida que hoje se cunhou um novo para todos os pares de números inteiros. Mediante representações
termo para a imagem de Wittgenstein que surge a partir da lei- simbólicas externas e representações mentais internas, assimila-
tura do livro desse pesquisador: Kripkenstein. mos a regra correspondente ao conceit0.
Kripkenstein, em síntese, é o filósofo que escreveu as IF para Mas corno podemos garantir que realmente compreendemos
defender a ideia de que não é possível constituir qualquer teoria o significado da adição? Só há, aparentemente, urna maneira: se
positiva sobre a linguagem em geral, ou sobre seguimento de re- aprendemos a sornar, isso quer dizer que assimilamos urna regra
gras e eventos mentais, em particular, que garanta o significado que se aplicará sempre da mesma maneira no futuro, quando uti-
correto de asserções e termos. Trata-se de um "ceticismo do sig- lizarmos o conceito de adição. Em outros termos, a assimilação
nificado", para o qual se oferece urna solução plausível que alivia da regra deve determinar, de alguma forma, todas as suas futuras
os efeitos destrutivos dessa espécie de pensamento. aplicações. Por exemplo, se nunca adicionamos o número 68 ao
Kripke considera a hipótese de que é o § 201 das IF que talvez número 57, isso não deverá constituir nenhum problema, pois a
contenha o "problema central" exposto no livro (idem, p. 7). Ela aplicação da função "sorna" a esses números deve gerar inexora-
está intimamente conectada não apenas com a questão do segui- velmente o número 125, se as regras forem aplicadas sempre da
mento de regras, mas também com o argumento da linguagem mesma maneira. Ou seja, a aplicação correta da regra é que ga-
privada, cujas seções são posteriores no livro à discussão sobre rante o acerto da função indefinidamente, todas as vezes que a
seguimento de regras. Diz a seção§ 201 das IF que: "Este era o usarmos.
nosso paradoxo: urna regra não pode determinar nenhum cony Suponhamos, então, que um cético bizarro questione nossa
portamente, pois cada comportamento deve ser posto de acqrdo certeza sobre a aplicação da regra. Corno alguém poderia saber se
com a regra. A resposta era: se cada um pode ser posto de acordo realmente está usando a regra ou função "mais", e não, em vez
com a regra, então também em contradição com ela''. disso, urna estranha função chamada "quais"? Digamos que are-
Para o comentador, a centralidade do paradoxo do seguimento gra "quais" é em tudo igual a "mais", desde que nenhum dos dois
de regras é tal que o argumento da linguagem privada não cons- números da sorna seja maior ou igual a 57. Sendo um dos números
titui um bloco separado, independente e de igual relevância que
168 1 Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgenstein
Seis Wittgensteins l 169

da função maior ou igual a 57, a soma será sempre igual a 5. Por- imbatível acerca da impossibilidade de um fundamento legítimo
tanto 57 "quais" 68 é igual a 5. Por definição: para o significado de nossos conceitos linguísticos, e, ao mesmo
tempo, o salvador da corrosão cognitiva gerada pelo seu próprio
x EB y = x + y, se x, y < 57, e= 5 de qualquer outro modo. argumento cético. O ponto importante é o método de salvação,
na visão de Kripke. Este se realiza pelo instrumento filosófico da
O centro da questão não é o de saber propriamente se a regra inversão dos termos da condicionalidade lógica. Para uma melhor
foi cumprida corretamente ou não, mas se eu posso me escudar compreensão do que isso significa, concentremo-nos nos detalhes
na regra para justificar minha resposta; saber, em síntese, se ela é do raciocínio.
a correta ou não. Assim, o cético pergunta que fato do meu estado A inversão dos termos da condicionalidade lógica vem a ser,
mental interno, ou do meu comportamento externo, constitui o em termos práticos, uma reversão de prioridades (idem, pp. 93-
1
meu significado de 'mais" e não de ''quais", ou, ainda mais do que ·95 ). Como isso ocorre? O operador lógico da condicionalidade,
isso, se existe algum outro candidaro que possa satisfazer essa também conhecido como "implicação material", é uma tradução
condição. Como se pode saber se não houve uma mudança no em linguagem simbólica de argumentos que conectam duas pro-
uso, se não mudamos de "mais" para "quais" imperceptivelmente, posições simples com uma representação do tipo "se - então".
em algum ponto do processo de aprendizado das regras? Que Dizemos assim, em lógica, que uma representação do tipo "se -
regra da regra, então, garantiria a correção do nosso comporta- então" tem a forma de um condicional ou de uma implicação
mento? Parece não haver nada que possa ser fornecido como ga- material. O argumento "Se um ato for imoral, então deve ser con-
rantia do significado da nossa ação, nem da perspectiva do com- denado''. por exemplo, tem essa forma. Ele tem uma proposição
portamento, nem da perspectiva de um estado mental interno, antecedente e outra consequente ligadas por uma conexão con-
que não seja a proposta de um retorno infinito. dicional. Nessa forma lógica, a proposição antecedente, precedida
Evidentemente, Kripke (idem, p. 19) supõe que o argumento pela conjunção condicional "se", marca a condição suficiente no
cético de Wittgenstein não se restringe somente ao seguimento argumento, e a proposição consequente, precedida pelo advérbio
de regras, mas atinge toda a extensão da linguagem. Wittgenstein "então", assegura a condição necessária. Portanto, nesse argu-
teria, assim, inventado uma nova forma de ceticismo: mento, a imoralidade do ato é uma condição suficiente para a
condenação, e a condenação é uma condição necessária para a
Pessoalmente, estou inclinado a considerá-lo como o problem3, imoralidade. Parece estranho, mas, em termos lógicos, é assim
cético mais radical e original que a filosofia viu até hoje, um que só- mesmo que funciona. Isso apenas esclarece o fato de que o argu-
mente uma espécie de mente altamente incomum poderia ter p_ródu-
mento condicional só é válido se for necessário que o antecedente
zido. Naturalmente, ele não quer nos abandonar com o problema,
verdadeiro tenha somente um consequente verdadeiro. Não pode
mas resolvê-lo: a conclusão cética é insana e intolerável. (Idem, p. 60)
haver um consequente falso correlacionado a um antecedente
Esse importante trecho do livro marca os dois lados da ima- verdadeiro. Se o antecedente for verdadeiro, o argumento só é
gem de Kripkenstein: o genial criador de um argumento cético válido se o consequente também for verdadeiro. Reparemos bem,
170 1 Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgenstein Seis Wittgensteins j 171

se o antecedente for falso, o consequente pode ser verdadeiro ou necessária do argumento é ou não verificável), para o problema
falso, sem nenhuma alteração quanto à validade nessa espécie de da sua convenção.
argumento. Mas o caso exclusivo de invalidade ali ocorre apenas A solução desse problema de difícil saída depende, para
quando o antecedente é verdadeiro e o consequente, falso. Vemos, Kripke, portanto, da particular concepção de linguagem que
por isso, que o consequente é a peça decisiva para determinar a Wittgenstein criou nas IF como resposta a limitações e dificul-
validade da relação lógica de condicionalidade. dades da concepção proposta anteriormente no TLP. Em lugar
Kripke diz que a inversão do condicional é um recurso utili- de uma concepção de linguagem que depende de condições de
zado muito frequentemente em filosofia. Hume, para o comen- verdade, as IF apresentam uma nova ideia de linguagem que de-
tador, é um caso clássico (cf. idem, nota 76, pp. 93-94). Seu argu- pende de condições de assertividade ou de justificabilidade, das
mento cético sobre a causalidade é baseado na inversão dos quais a verdade é apenas um subconjunto (idem, pp. 74-78). Essa
termos da condicionalidade lógica. Normalmente, associamos mudança de foco teórico significa agora que, para dar conta de
fogo a calor mediante um raciocínio lógico do tipo "Se há fogo, questões acerca do significado de sentenças e palavras, teremos
então há calor". Mas, pela aplicação do instrumento da inversão que recorrer a elementos internos da nossa linguagem. Em outras
do condicional, Hume provoca o efeito da reversão das priorida- palavras, as afirmações sobre o sentido do que dizemos, tudo
des: o que era condição necessária torna-se condição suficiente. aquilo que é preciso para legitimar nossas asserções, as chamadas
A inversão proporciona, de maneira conveniente, um funda- condições de assertividade, são, elas mesmas, parte da nossa lin-
mento lógico para declarações filosóficas que corroem a pressu- guagem comum. A solução do problema cético depende, por-
posição de realidade das relações de causa e efeito, deixando tanto, dessa nova teoria sobre as condições de assertividade pró-
muito mais claro que necessidades lógicas são associações conso- prias da linguagem (idem, p. llü).
lidadas por nossos hábitos ou costumes, e não algo que está real- Pois bem, são essas condições que, para Kripke, como numa
mente presente na experiência, que nada contém de lógico. espécie de argumento kantiano, pressupõem três elementos ine-
Retornando ao exemplo da aplicação da regra da adição, ludíveis: ( 1) a concordância entre interlocutores sobre o acerto ou
Kripke, então, diz que se antes pensávamos que "se 12 + 7 é igual erro daquilo que se fala; (2) certa forma de vida na qual essas re-
a 19, então temos o conceito de adição", agora podemos dizer gras façam sentido; e, finalmente, ( 3) os próprios critérios em tor-
que "se temos o conceito de adição, então 12 + 7 é igual a 19". A no dos quais se discute a correção (idem, pp. 96-100 ). A solução
inversão dos termos da condicionalidade lógica, realizado, se-/ de Wittgenstein ao paradoxo cético, segundo Kripke, é o comu-
gundo Kripke, também por Wittgenstein, ressalta o caráter !I}e- nítarismo. É o papel da comunidade em relação ao seguimento de
ramente convencional, portanto arbitrário, das regras manifesta- regras (idem, pp. 92-93 ), que troca condições de verdade que não
das no uso da linguagem. E desse modo passamos furtivamente, sobrepujam o argumento cético por deduções provenientes de
digamos assim, do problema semântico da proposição, isto é, da condições de justificabilidade perfeitamente linguísticas e con-
possibilidade de construção de valores de verdade (se a condição vencionais, que dissolvem, pela nova postura, o ceticismo.
172 1 Asingularidade das Investigações filosóficas de Wlttgenstein Seis Wittgensteins l 173

A solução de Kripke apresenta, naturalmente, um Wittgen- lação por Kripke (Wright, 1989, p. 299; cf. também 2001, pp. 181,
stein muito estranho para quem conhece mais de perto seus tex- 186-187). Segundo ele,
tos. Sua corrosão cética não é evidentemente parte de uma estra-
tégia anticartesiana, mais especificamente de moldes humianos, Wittgenstein está preocupado com o sentido, se houver algum,
que busca apresentar uma filosofia convencionalista. A exposição no qual uma regra poderia ser genuinamente um objeto de intelecção,
alguma coisa cujos requisitos possamos rastrear - para usar um jar-
dos três elementos pressupostos por Kripke em Kripkenstein po-
gão mais recente - pelas graças de um poder intuitivo ou interpre-
deria passar novamente por uma crítica corrosiva, e talvez não
tativo. Indubitavelmente, a intenção - ou poderíamos dizer, a sus-
sobrasse nada. Diríamos, então, que Wittgenstein era um cético? peita - dessas passagens [IF §§ 185-219; RFM, VI§§ 23-47] é negativa.
O método terapêutico do texto fica de lado na interpretação de (Wright, 2001, p. 181)
Kripke e gera uma faceta presente no texto, mas, naturalmente,
incompleta, como o próprio comentador já sabe e confessou na O desafio fundamental de Kripkenstein é saber se alguém
introdução de seu livro. pode dizer qual é a regra que o praticante da soma seguiu pri-
meiro, se foi "mais" ou se foi "quais". Logo, a pergunta do livro de
Kripke recai sobre os aspectos pelos quais poderíamos reconhecer
8.4 Um tipo moderno de quietismo com certeza, seja no comportamento, seja na vida mental, se
o aprendiz de aritmética seguiu uma determinada regra e não
Um sucedâneo direto da interpretação cética de Wittgenstein é outra. O problema do regresso infinito disparado pela colocação
o quietismo. O ideal pirrônico da ataraxia, de alcançar a perma- dessa pergunta é concebido por Kripke como resultante de um
nente serenidade e a calma pela denegação de qualquer espécie de erro de concepção sobre o que são as regras. Saber de que regra se
papel positivo para a filosofia presente naquela interpretação pa- trata é enfocar o problema em relação aos requisitos de alguma
rece ser também inerente à visão do pensamento de Wittgenstein coisa que já foi interiorizada pelo aprendiz. Obviamente, a in-
como quietismo. De fato, o termo quietismo foi posto em circu- dagação sobre como é possível saber que regra seguimos é um
lação pela primeira vez numa recensão crítica realizada por Cris- tanto diferente, mesmo que até certo ponto relacionada, da per-
pin Wright a um livro de Colin McGinn sobre a questão do sig- gunta sobre como é possível saber o que a regra demanda de mim.
nificado em Wittgenstein (cf. Wright, 1989). O livro de McGinn O paradoxo de Kripkenstein, segundo Wright, relaciona-se dire-
(1984) contém uma ampla discussão com Kripke ( 1982), e Wright tamente com o problema da existência da regra e de seu segui-
criticava, justamente na passagem em que emprega pela primeira mento, e não, como deveria ser, segundo seu ponto de vista, com
vez a designação (p. 305), o que lhe parecia ser uma incorre~ão as questões epistemológicas de regras cuja existência não se ques-
interpretativa por parte de Kripke. tiona de fato nos textos de Wittgenstein. O que Wittgenstein
Wright alega que o principal erro da interpretação cética é tenta nos ensinar, de acordo com Wright, é que há fundamental-
confundir a crítica epistemológica de Wittgenstein com uma mente alguma coisa errada com a maneira pela qual concebemos
questão realista ou ontológica colocada artificialmente em circu-
174 [ Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgenstein Seis Wittgensteins j 175

o problema do seguimento de regras, e muito provavelmente esse material, de amor desinteressado e de silêncio contemplativo.
equívoco provém, de todo modo, da maneira corno formulamos Esse estado corresponderia, na teologia, à suprema felicidade.
nossas perguntas. Manter urna atitude de total passividade diante dos fatos da vida
Entretanto, mesmo que Wright reconduza a questão do para- seria um meio de atingir um estado contínuo de amor e de união
doxo do seguimento das regras da ênfase ontológica para a ques- com Deus.
tão epistemológica, a solução final é muito parecida com a de O interesse mais urgente de Wright, porém, é o de conseguir
Kripke. Para o Wittgenstein de Wright, não há essencialmente identificar o projeto filosófico de Wittgenstein com a espécie de
urna epistemologia do seguimento de regras. Essa predisposição quietismo moderno que propõe. Sigamos o argumento do co-
em derrubar os fundamentos das questões epistemológicas, e sua mentador um pouco mais de perto. O problema do seguimento
recusa em propor qualquer outra espécie de questão constitutiva de regras consiste basicamente em saber corno é possível que seja-
sobre o seguimento de regras, é o que Wright precisamente deno- mos guiados em nossa prática por elas, e corno todos nos harmo-
mina como "quietismo". O quietismo consiste em dar-se por sa- nizamos na sua aplicação, sem que tenhamos, às vezes, qualquer
tisfeito quando todas as más cornpreensões filosóficas acerca das consciência do fato; sem que possamos sequer dizer que fato é
nossas práticas linguísticas foram antecipadas pela crítica, e dei- esse. Essa interrogação acerca da condição de possibilidade do
xamos, assim, de formular perguntas que nos levem a equívocos. seguimento de regras gera imediatamente três conjuntos de pro-
É, portanto, o fato de nos guardarmos de qualquer tendência a blemas inter-relacionados e sujeitos a todo tipo de dificuldades e
erigir urna imagem mitológica que fundamente o seguimento de de equívocos: em primeiro lugar, deve haver objetividade no se-
regras. Urna vez que tal tendência foi exposta, não precisamos guimento de regras, pois se não houver um fato independente
mais suplantá-la com explicações plausíveis. O quietismo parece, e anterior que nos leve a segui-las, não há qualquer sentido na
então, descansar no mesmo estado de completa ausência de in- pergunta; em segundo lugar, deve haver releváncia, pois se é por
quietações e perturbações almejado pelo cético, a finalidade de aquela regra que nos conduzimos e não por outra, reconhecemos
seu exercício de corrosão radical das crenças. imediatamente sua identidade no fato de sua igualdade a si
É indubitável que nem rodo quietismo pode ser traduzido nos mesma não oscilar; e, em terceiro lugar, deve haver conhecimento,
termos apresentados por Wright. A denominação estava, antes de sem o qual não identificaríamos nem seguiríamos uma regra in-
tudo, reservada a certo tipo de doutrina teológica que propunha dependente de nós, nem nos justificaríamos por ela quando re-
urna via de salvação por meio do resguardo de certos preceitos de• quisitados (cf. Wright, 2007, pp. 481-482).
conduta - o que não é exatamente um programa de crítica .do O comentador acentua que duas espécies de respostas amplas
conhecimento. Designava urna forma de teologia negativa, urna se formaram na tradição para dar urna justificação satisfatória a
doutrina que sustentava a impotência do homem diante da po- esses conjuntos de problemas e de condições: a resposta comuni-
testade divina e da inexorabilidade do destino. Pela doutrina, tária e a resposta platônica. Sem detalhar e sem exemplificar
todo o esforço pessoal para escapar desses poderes seria inútil. muito cada um desses casos, Wright sugere que a primeira seco-
Essa constatação levava o fiel, então, a urna postura de renúncia loca em posição oposra à interioridade cartesiana e soluciona as
176 1 Asingularidade das lnvestígações filasófkas de Wittgenstein Seis Wittgensteins l 177

questões de objetividade, de relevância e as epistemológicas me- nho constitutivo que evita tanto o comunitarismo quanto o pla-
diante o argumento da comunidade linguística e da relevância tonismo, ele não conduz essa terceira via à sua realização. É justa-
do contexto; já a última contrapõe-se à primeira ao sustentar que mente essa renúncia da tarefa constitutiva que marca o seu
a questão do significado - e, por conseguinte, das regras que go- quietismo: "Já foi feito o suficiente quando indicamos e desar-
vernam o uso independente da comunidade linguística porque mamos as más compreensões filosóficas de nossas práticas linguís-
há casos de má aplicação comunitária de regras. Um exemplo ticas, de modo que se evite uma descrição equivocada dos seus
disso seriam as superstições, que não respondem satisfatoriamente detalhes. Nosso discurso sobre regras e significados se sustenta
aos três conjuntos de condições inter-relacionadas acima (idem, sobre os próprios pés" (Wright, 2007, pp. 488-489).
pp. 485-486).
Podemos certamente questionar em que sentido Wright pode Em que pese o suposto quietismo de Wittgenstein, resta, en-
dizer que uma comunidade inteira poderia estar errada a respeito tretanto, para Wright, a indicação da terceira via. Como se pode
de algo, e não compelir a respeito de certo e errado em relação a evitar a resposta comunitarista e a platônica? Wright indica as
regras e significados (cf. Finkelstein, 2006, pp. 103-114), mas, para disposições primitivas de concordância no juízo e na ação. A ex-
seguir com o argumento e não nos determos em outra questão pressão pretende referir-se a hipotéticas tendências naturais do
paralela, Wright afirma que seria estranho reduzir a correção a ser humano, os chamados acordos básicos de aplicação das regras,
uma questão de marchar no mesmo compasso que todo mundo, que explicam a permanência coletiva do uso correto em cada
excluindo, desse modo, a possibilidade de juízos que são verda- novo juízo depois de um período de aprendizagem e de treina-
deiros e independentes de qualquer consenso comunitário. Em mento, e não, ao contrário, que o acerto coletivo no uso das re-
vista disso, o comentador tece um conjunto de considerações gras seja explicado pela internalização de elementos transcenden-
que aponta para uma perspectiva independente em relação ao tes e autônomos que subsistem de maneira separada das nossas
dilema platonismo versus comunitarismo. Ou seja, ele tenta ela- reações em cada novo caso de aplicação. Mas como se explica,
borar uma concepção de regras, e de práticas governadas por re- então, essa primitividade ou essa imediaticidade do uso correto
gras, que permita espaço suficiente entre os requisitos necessários das regras? O que motiva Wittgenstein a dizer que quando obe-
de uma regra e as reações dos sujeitos em qualquer caso particular decemos a uma regra não escolhemos, obedecemos cegamente (IF
de seguimento de regras, para que a ideia de má aplicação de regra § 219)? Certamente, sugere Wright, ele está falando dos casos
por parte de toda uma comunidade não se comprometa com/ mais simples de seguimento de regras, casos em que as respostas
qualquer idealização espúria e platonizada de autonomia das çe- são imediatas e inconscientes, e nas quais não há razões nem jus-
gras e de seus requisitos. Alguma coisa parecida com essa situação tificações explícitas que possam dar conta do ato:
seria a muito difundida imagem das regras como trilhos que se
dirigem ao infinito o uome sugere o título de um dos mais co- Em um caso como esse, segue-se uma regra "sem razões" no pre-
nhecidos livros de Wright (cf. 2001). O fato, contudo, é que, se ciso sentido de que os juízos sobre a condição de emprego para sua

Wittgenstein indica uma terceira via, uma outra forma de cami- correta aplicação não são informados por outros exercícios de concei-
178 1 Asingularidade das Investigações fi/os6fícas de Wittgenstein Seis Wittgensteios ! 179

tos, apenas por aqueles para os quais a regra se aplica - isto é, o con~ delo do modus ponens funciona de maneira similar ao que chama-
ceito cuja expressão é regulada pela regra, e cuja apreensão consiste ríamos de "tipo ideal". Do ponto de vista prático, teríamos que
na competência daquela mesma expressão. (Wright, 2007, p. 496)
levar em conta os ruídos de assimilação, apreensão e interpretação
que eventualmente ocorrem entre a regra pura e sua aplicação em
Há uma diferença, por suposto, entre regra racionalizável e cada caso. Em outras palavras, posto que não há, praticamente,
não racionalizável. A primeira pode ser claramente distinguida casos de seguimento puro de regras, teríamos que considerar que
pelo recurso lógico do modus ponens. Suponhamos, por exemplo, o modelo do modus ponens retrata, na realidade, uma quimera.
o uso do roque no jogo de xadrez. A estrutura do juízo nesse tipo Falhas inevitáveis na percepção ou na memória, problemas con-
de caso é a seguinte:
textuais, certos momentos históricos, ou qualquer outra espécie
Regra: se nem o rei nem uma das duas torres foi movimentada de atrito imprevisto, contaminam inexoravelmente o seguimento
durante o jogo, e se entre o rei e uma daquelas torres todas as puro de regras. O modelo do modus ponens depende, por isso, de
casas estão vazias, nem o rei está em xeque, nem alguma das casas
um fundamento puro e racional do seguimento de regras.
vazias o colocará em xeque, então o roque pode ser realizado.
Nos casos básicos, os chamados casos primitivos ou "cegos" de
Premissa: nem o rei nem a torre em questão foram movimen-
seguimento de regras, que Wittgenstein, de acordo com Wright,
tados durante o jogo[ ... ].
parece prever, essa dissociação entre a regra e as suas circunstân-
Conclusão: posso aplicar o roque agora. cias não é possível. Wright evoca, nesse sentido, os casos típicos
de aplicação correta de cores:
O modelo do modus ponens é perfeitamente aplicável a todos
os casos em que se pode explicitar a regra utilizada num determi-
Regra: se x tiver tal e tal característica, então é correto aplicar
nado juízo ou numa ação. Usa-se esse raciocínio evemualmente . do "vermeIho" a x.
o pre d1ca
para justificar a correção do ato. É claro que nesse modelo o co- Premissa: x tem tal e tal característica.
nhecimento da regra é parte integrante da totalidade da operação
Conclusão: então, é correto aplicar o predicado "vermelho" a x.
para a sua correta aplicação. Está presente na compreensão do ato,
portanto, o pressuposto de certo holismo, bem aparentado à ideia
Pelo modelo do modus ponens, uma pessoa só pode utilizar
davidsoniana de que a explicação do comportamento envolve a
corretamente o predicado "vermelho" se possuir conhecimento
reunião de crenças e desejos. O modelo do modus ponens realiza, prévio do conceito de "vermelho". Mas o "vermelho" dado no
porém, uma dissociação entre a regra e as circunstâncias fortuitas
exemplo é um conceito completamente dissociado de casos con-
que envolvem a sua apreensão, compensando qualquer apreensão
cretos de ensino, aprendizado, contexto, treinamento, momento
equivocada da regra ou resultado inesperado na sua aplicação, histórico, cultura etc. O modelo representado acima só faz sen-
como erro proveniente não da regra, mas de alguma falha na as-
tido, portanto, para conceitos assimilados previamente e disso-
similação das características relevantes das circunstâncias nas
ciados da ação. Mas, nos casos básicos evocados nas IF, a apreen-
quais ela pode ser aplicada. Parece evidente, contudo, que o mo-
são do conceito não é anterior à habilidade de dar-lhes uma
180 1 Asingularidade das Investigações filosóficas de Wíttgenstein Seis Wittgensteins l 181

expressão linguística competente. Ela deve residir nessa mesma O modelo do modus ponens, portanto, é inapropriado para a
habilidade. Os casos cegos de seguimento de regras, aqueles aos explicação do seguimento de regras. Na verdade, antes de cons-
quais obedeço sem saber dizer o motivo, não são informados por tituir uma explicação, existe uma pergunta que induz à explica-
juízos anteriores que forneçam as razões para o ato. Nestes, deve ção. O que parece ser eminentemente equivocado no modelo
haver respostas sem nenhum fundamento, respostas que são puras puro, incontaminado, é própria colocação de uma pergunta como
reações, no preciso sentido de que não podem ser racionalizadas essa, pois ela pressupõe uma falsa concepção de que o segui-
pelo modelo do modus ponens. Nessa ampla variedade de casos, o mento de regras deva ser racional. Mas não há, na realidade, ne-
sujeito simplesmente não precisa ter razões para as suas razões, e nhum elemento que nos garanta que estejamos seguindo alguma
a apreciação de seu ato como racional exigiria o emprego de um coisa, ou que alguma coisa nos guie na aplicação correta de uma
conceito anterior, dissociado e independente, que tornasse a sua regra. A própria concepção de seguimento de regras parece ser,
ação apropriada para o caso. de antemão, uma racionalização injustificada de fatos completa-
Wright, todavia, chega a ser mais radical. Como não só o mo- mente cegos.
dus ponens transforma o ato em ação racional, mas é também o Até esse ponto chega a crítica negativa de Wittgenstein, que,
único modo de avaliar por categorias racionais (como as de justi- segundo Wright, se abstém de propor qualquer questão constitu-
ficação e de verdade) a validade da resposta de um sujeito para um tiva. O que não impede o próprio comentador de se perguntar
caso de seguimento de regras, resulta claro que a racionalidade da pela natureza e pela estrutura de razões que não podem ser expli-
ação é anterior e independente do ato. Desse ponto de vista, todos cadas pelo modelo do modus ponens. Wright apela às próprias
os casos de seguimento de regras envolvem, na realidade, o segui- experiências imediatas com exclusão do modelo do modus ponens.
mento de regras básico ou cego (Wright, 2007, p. 497). A racio- Para isso, as experiências devem ser, elas mesmas, adequadas a
nalidade é sempre uma aposição posterior ao ato. O modelo do juízos empíricos. Por conseguinte, elas devem ser essencialmente
modus ponens sugere, por isso, uma concepção de linguagem dotadas de conteúdo conceituai. Wright adota, então, um modelo
como mera roupagem do pensamento. A ideia do seguimento de experiência como recepção imediata de aparências, mas no
cego de regras indica, entretanto, a própria linguagem como con- qual a receptividade significa o preenchimento de um conteúdo
dição de possibilidade do pensamento. É a linguagem que, de conceitua!. A experiência, o modo como a recebemos, pode, as-
fato, permite o pensar, da qual ele não pode ser dissociado: sim, racionalizar um juízo sem ser causalmente predisposta. Essa
solução constitutiva, que Wright (2007, p. 500) diz ser semelhante
Seguimento de regras básico, como todo seguimento de regra~_,,é à de John McDowell, não estaria, a seu juízo, em desacordo com
racional no sentido de que envolve intencionalidade e disposição de
as críticas de Wittgenstein.
aceitar a correção à luz do erro. Mas isso não quer dizer que ele im-
E, de fato, em Mind and world, McDowell ( 1996, p. 95) inter-
plique capacidade de resposta aos requisitos da regra concebida como
preta o que Wittgenstein chama de "nossa história natural", em
instruções que pudessem exibir-se no pensamento e informar racio-
nalmente a resposta da pessoa. (Idem, pp. 497-498) IF § 25, por exemplo, como uma "segunda natureza". Nossa natu-
reza, diz esse autor, é amplamente uma segunda natureza. Nossa
182 1 Asingularidade das Investigações fi/os6fiws de Wittgenstein Seis Wittgensteins 1 183

sensibilidade percebe não somente objetos na experiência, mas, a pensar a normatividade, presente nas regras que seguimos ce-
pela maneira como as nossas vidas estão formadas, o uso da razão gamente, como se ela envolvesse algum mistério a ser explicitado.
conforma-se de maneira espontânea, não forçada, sem neces- Ou ainda perguntas filosóficas do tipo "como isso é possível", que
sidade de intervenção planejada ou estudada nessa mesma recep- nos fazem esquecer, sem que nos apercebamos disso, a obviedade
tividade, àquilo que com ela se põe em contato: "nossa Bildung do comportamento linguístico, compelindo-nos inutilmente a
efetiva algumas das potencialidades com as quais nascemos; não escavar alguma coisa oculta por detrás das palavras. Implica tam-
temos que supor que ela introduza algum ingrediente não animal bém perseverar na tarefa de desenvolver várias técnicas eficazes a
em nossa constituição" (idem, p. 88). Nessa segunda natureza, fim de evitar que tal prática se transforme numa pavimentação do
muito própria da vida humana, é que se encaixa a ideia da recep- caminho, como em Wright, para facilitar o desenvolvimento de
tividade conceitua! da experiência. Porém, em McDowell, com- alguma filosofia positiva, supostamente mais saudável, a ser pro-
pletamente destituída do quadro transcendental nela aplicada por posta posteriormente:
Kant. Na experiência exercemos naturalmente nossas capacidades
O quietismo de Wittgenstein não é, em absoluto, uma recomen-
conceituais de maneira involuntária, sem que isso represente para
dação para algum tipo de ociosidade, uma prática de deixar tarefas
nós qualquer espécie de esforço.
necessárias para outros, que parte de algum desgosto, que se aban-
Não obstante, McDowell não endossa o tipo de atitude que
dona como se parecesse um mero equívoco no estilo de leitura contra
parece estar presente nas reflexões desenvolvidas por W right. o qual me coloco em objeção, para os tipos de atividade que se dedi-
Para o primeiro, o quietismo defendido pelo segundo ainda cam em desempenhá-las. O quietismo, na realidade, nos compele a
gesticula a favor de uma reflexão substantiva daquilo que deve não nos engajarmos em certas espécies de tarefa, mas precisamente
constituir nossa apreensão do significado (McDowell, 1996, p. 92, porque demanda que trabalhemos para mostrar que elas não são ne-
n. 7; e 2009, p. 370 ). Longe de acenar com a constituição de uma cessárias. E isso é, na realidade, trabalho. A filosofia terapêutica é

resposta filosófica diante do suposto quietismo de Wittgenstein, projetada para nos poupar das penas da filosofia positiva, mas tem as
suas próprias dificuldades. (Idem, pp. 371-372)
McDowell prefere pensar que a ideia de uma segunda natureza
não implica nenhuma teoria acerca do significado, do uso ou do
1 Essa tarefa filosófica alternativa de suspeição proposta por
seguimento de regras. A 'segunda naturezà' em Wittgenstein é
Wittgenstein não é nada fácil. Não há garantia de que o esqueci-
apenas uma etiqueta que serve de lembrete para a inutilidade de
mento do óbvio poderá ser percebido e descoberto. De fato, é
conceber o seguimento de regras como um problema, tratando
extremamente complicado poder desalojar pelo lado de fora uma
de explicá-lo pela constituição de uma filosofia que evite tanto.o
convicção fortemente enraizada na prática. Não parece ser um
platonismo como o comunitarismo.
projeto que possa ser realizado tranquila e rapidamente. É exata-
Para McDowell, o quietismo é, nas IF, "uma maneira de fazer
mente esse programa de trabalho longo, intricado e difícil que
filosofia sem teses" (2009, p. 367). Implica tarefas concretas que
McDowell pensa ser a especificidade filosófica de Wittgenstein,
não deixam de ter suas próprias dificuldades, como colocar em
e que, à diferença de Wright, conecta o quietismo com o terapêu-
suspeita certas perguntas filosóficas - as que, por exemplo, levam
184 1 Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgenstein Seís Wtttgensteins l 185

tico. Mas talvez seja mais proveitoso passarmos agora para essa para o próprio TLP, que não é um absurdo, mas uma forma legí-
outra maneira de compreender a filosofia de Wittgenstein. Vere- tima de metafísica elucidativa que serve para expressar verdades
mos que uma filosofia terapêutica pode ser também compreen- que não podem ser ditas. Em vez do duplo aspecto, esses autores
dida de mais de uma maneira. dizem que contrassenso é apenas e unicamente contrassenso.
Quer dizer, se no TLP Wittgenstein diz "a maioria das proposi-
ções e pergunras escritas sobre temas filosóficos não é falsa, mas
8.5 Uma filosofia terapêutica conrrassensos" (TLP§ 4.003 ), ele não esrá excluindo do conjunto
a totalidade das proposições do próprio TLP. A senrença implica
Não é incomum, depois das publicações de McDowell, pensar o que todo o TLP é também o mesmo conrrassenso que os demais.
quietismo em conexão com o terapêutico. Talvez esta tenha sido Por conseguinre, não há no livro doutrinas a serem aprendidas.
uma das primeiras vezes que a tradição da filosofia analítica tenha Em particular, não há uma teoria semântica, nem uma teoria da
colocado em destaque a finalidade terapêutica da filosofia de lógica, nem uma teoria dos números, descritas no TLP, que subs-
Wittgenstein em conexão com seus aspectos metodológicos. tituam outras teorias concorrenres na lógica e na filosofia da ma-
Desde então surgiram novas formas de interpretação que se- temática, que são ali criticadas. O TLP, como um livro imerso em
guiram a mesma tendência. Textos como os de Finkelstein (2006), contrassensos, tem um propósito exclusivamente terapêutico:
por exemplo, que correlaciona, sem maiores preocupações, a visão pretende que o leitor, pelo uso da imaginação, depois de ter sido
austera ou resoluta da filosofia de Wittgenstein, surgida nos anos levado à ilusão de que compreende o que não pode ser compreen-
1990, com o quietismo de tipo terapêutico. dido (o próprio TLP, que é um contrassenso, como um todo),
O quietismo, contudo, não estava vinculado anteriormente ao compreenda não o livro, mas seu autor (TLP § 6.54), e se engaje
resolurismo. Esse movimento, posteriormente reconhecido como numa atividade ética sobre a qual nada se pode dizer. O que cons-
o do "novo Wittgenstein", iniciou-se como uma interpretação tituiria uma espécie de quietismo terapêutico, talvez, como pre-
restrita ao significado do contrassenso no Tractatus, proposta por tende Finkelstein.
Cora Diamond (1991, 2000) e, em seguida, por James Conant No enranro, para essas espécies de correlações enrre método e
(2000, 2004). O resolutismo no TLP pode ser estendido a toda a terapia, a falta de um deralhe concreto ainda salta aos olhos. Por-
obra de Wittgenstein, naturalmenre, desde que se identifique em que, se a filosofia de Wittgensrein é identificada como terapêutica
que sentido a mudança de método e de visão de linguagem, ocor-/ por esses autores, ela ainda se circunscreve, nas suas descrições, ao
rida depois de 1929, em nada afera o propósito ético e terapêurko âmbito da compreensão racional, ao espaço em que circulam as
da atividade filosófica proposta na juventude. Quanto ao TLP, regras dos conceitos e a melhor forma de aplicá-los, segundo um
segundo esses autores, a proposra consiste em afirmar que não há cálculo de adequação entre uso e regra de acordo com o conrexto
duas formas possíveis de visão do conrrassenso: um definido para dado. Isto é, trata-se de uma terapêutica ainda apoiada no forne-
absurdos metafísicos, que não podem ser falsos nem pertencer ao cimento de nova informação, na correção da aplicação de concei-
simbolismo, como contradições e tautologias, e outro definido tos ou no emprego da melhor metafísica. Ora, se os termos me-
186 1 Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgenstein
Seis Wittgensteins j 187

rodológicos propostos por Wittgenstein fossem dados dessa persuasão ou propaganda para um ponto de vista (Standpunkt), uma
maneira, ficaríamos sem compreender, desta feita, por que a ên- tentativa de conversão ( Umstellung). É dirigida mais para a vontade
fase terapêutica do autor repousa sobre a vontade aliada a uma do que para o intelecto. (Baker, 2004, p. 163)
visão, por que o seu esforço trafega pelas vias da persuasão e da
conversão, em detrimento do convencimento, por que o esclare- O que Baker pretende dizer por "não antagonístico"? Essa
cimento filosófico visa superar as resistências, e por que o seu foco qualificação está claramente alinhada com o método psicanalítico
tem, por exemplo sobre a matemática, o mesmo efeito que a luz de não confrontar as formulações do paciente com propostas
do sol sobre os brotos da batata (BT, p. 433 ), isto é, impede o novas ou opiniões divergentes. Em vez do confronto, que só pode
crescimento de rebentos indesejáveis. O quietismo aqui não é ter como resposta uma reação inconveniente para os propósitos
uma finalidade, mas parte integrante de um método que, para do método, procura-se lançar mão das próprias analogias empre-
atuar na vontade e ocasionar uma mudança de atitude, não intro- gadas pelo paciente para ressaltar a intranquilidade, a confusão e
duz novas informações. Em vez disso, trabalha com as informa- a perplexidade que delas resultam, segundo o seu próprio ponto
ções fornecidas pelo próprio paciente mediante a forma apresen- de vista; isto é, o ponto de vista do paciente, não o do terapeuta.
tada no seu método. Trata-se de um texto terapêutico, não de um O quietismo aqui é, então, o método, não a finalidade nem O ideal
manual para o ensino de uma filosofia terapêutica. Interessa mais a que se aspira. Em favor do método conversivo, utilizam-se com-
como expressão do que pelo que expressa. parações cuidadosamente selecionadas, retiradas de informações
A mais definida interpretação terapêutica da filosofia de fornecidas pelo próprio interlocutor, para levá-lo, sem que ele
Wittgenstein, e a mais antiga, correlaciona o método filosófico à perceba, à consciência da contradição entre as analogias que em-
psicanálise e se recusa à filiação quietista. Mas é duvidoso, con- prega e a intranquilidade que sente.
tudo, que ela não tenha sucumbido à ilusão do conteúdo. Ela O aspecto psicanalítico do método de Wittgenstein foi ne-
pertence a Gordon Baker que, em seus últimos textos, além de gligenciado pela filosofia analítica, segundo Baker. Esta concebia
distanciar-se do ponto de vista positivo defendido por seu antigo a descrição gramatical wittgensteiniana como uma atividade es-
parceiro, Peter Hacker, ressalta, em vez do quietismo, o caráter sencialmente impessoal e livre de contextos, algo mais ou menos
propagandístico e conversionista do método wittgensteiniano: parecido com a determinação da geometria de uma linguagem
natural institucionalizada. Para Baker, dissolver um problema
O caráter não antagonístico desse método não equivale a uma filosófico significa, na perspectiva objetivista e imparcial, demons-
preferência temperamental pelo "quietismo" filosófico. Em vez disso, trar_ que uma questão não pode ser formulada sem transgredir os
ele é diretamente motivado pela concepção de Wittgenstein dos prO'- hm1tes do sentido ou chocar-se contra os muros da linguagem.
blemas filosóficos e por suas aspirações terapêuticas. Não há literal-
Na perspectiva psicanalítica, sem embargo, o tratamento do pro-
mente nada a certificar, descobrir ou demonstrar na gramática da
ble'.'1ª é especifico do paciente. Ocupa-se muito mais com a prática
nossa linguagem. Consequentemente, a discussão filosófica, de
do mterlocutor do que com a instituição pública; mais com suas
acordo com a sua concepção, deve abjurar de qualquer pretensão a ser
uma demonstração more geometrico; no lugar, ela assume o aspecto de atitudes em relação à fala de uma linguagem compartilhada do
188 1 Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgenstein Seis Wittgensteins f 189

que com os fatos dessa prática; mais com seus motivos particu- 1956 (How 1 see philosophy). 1 O comentador esclarece que ore-
lares para formular uma questão do que com a possibilidade abs- curso a Waismann se justifica apenas como um objeto de com-
trata de fazê-lo. paração, já que as manifestações explícitas de Wittgenstein a
Em seus últimos textos, Baker quis tornar visíveis aspectos respeito da relação entre seu método e a teoria psicanalítica são
ainda não suficientemente observados na literatura secundária a escassas e encobertas pela economia das suas expressões. Do livro
respeito do parentesco do método filosófico de Wittgenstein com de Waismann, Baker retira três características que lhe parecem
a psicanálise (2004, p. 46). Sua estratégia retórica envolve dois semelhantes ao que Wittgenstein nos anos 1930 vinha chamando
componentes: os reflexos da inclinação metodológica pela psica- de "Unsere Methode" (cf. VW, pp. 277-311). Em primeiro lugar,
nálise em Wittgenstein nos textos tardios de seu antigo discípulo, o fato de associar problemas filosóficos a uma ampla variedade de
Friedrich Waismann, e uma reflexão voltada diretamente para os termos do campo semântico dos distúrbios ou das doenças men-
1
aspectos metodológicos, sobretudo nos ditados de Wittgenstein tais: "tormento", "inquietude", "ansiedade", "anseio", 'preconceito",
a Schlick e a Waismann e no BT. "superstição'; "ilusão". Desse modo, o tratamento adequado de um
Quanto ao estratagema de demonstrar as inclinações filosó- problema filosófico não é propriamente conduzido na forma de
ficas de Wittgenstein pela influência posterior em Waismann, a resolução de um enigma, mas como forma de trazer alívio para
argumentação de Baker lembra a de Marion (1998), outro im- uma pessoa que está manifestamente doente e infeliz.
portante comentador de Wittgenstein, que utiliza Goodstein Em segundo lugar, ao vincular problemas filosóficos a compul-
como prova da propensão finitista da filosofia da matemática de sões, obsessões e preconceitos, Waismann tornou proeminente no
Wittgenstein. método a revelação do uso de termos modais como "deve" e "não
Baker traduziu os ditados a Schlick e Waismann (Wittgen- pode". Essas expressões modais têm um papel central na deter-
stein, 2003). Num desses ditados (D 28), por exemplo, Baker minação do conteúdo e do propósito das observações em análise.
(2004, p. 145) põe em destaque a seguinte declaração explícita E, em terceiro lugar, a intensa variação no emprego de prono-
de Wittgenstein acerca da proximidade do seu método com a mes pessoais, que aponta para a forma dialógica, para uma discus-
psicanálise: são real ou imaginária entre um filósofo-terapeuta e um paciente
durante uma "análise filosófica", e para o importante papel dessa
Nosso método se assemelha, em certo sentido, ao da psicanálise. forma de discurso na reconstrução do conteúdo das observações
Na sua forma de expressão, pode-se dizer que uma analogia que atua/ individuais.
no inconsciente se torna inócua quando é vocalizada. E essa compa.:
Essas três características indicam, para Baker, as cinco princi-
ração com a análise pode ser levada ainda mais adiante. (E essa aria-
pais semelhanças entre o método wittgensteiniano e a psicanálise
logia certamente não é casual.) (VW, pp. 68-70)
freudiana, tal como podem ser detectadas nos escritos de Wais-

Os paralelos mais significativos da argumentação de Baker


provêm, entretanto, de um livro publicado por Waismann em
1
Waismann, 1968.
190 1 Asingularidade das Investigações fílosóficas de Wittgenstein Seis Wittgenstelns l 191

mann: (1) Um método estritamente orientado ao paciente, cuja mente constatamos o paralelo com Freud não apenas em LC (III,
preocupação central é a cura ou o tratamento de pessoas indi- §§ 28-34; pp. 41-52), mas também nas versões pré-guerra das IF.
vidualmente enfermas; (2) terapias direcionadas a tipos particu- O TS 239, p. 74, contém um acréscimo manuscrito ao pé da pá-
lares de doença ou tipos de conflitos internos, evidenciados na gina, onde se lê: "Freud fala de uma teoria 'dinâmicá dos sonhos".
maneira como os pacientes lidam com seus próprios conceitos ou Mas isso não quer dizer que, mesmo na falta de afirmações mais
pensamentos; (3) o método da terapia é precisamente circuns- explícitas acerca do caráter freudiano de seu método nos anos
crito: trata-se de uma forma de discussão racional frente a frente posteriores, depois da Segunda Guerra, Wittgenstein não esti-
com o paciente, mostrando que o único tratamento admissível é vesse levando adiante seu método freudianamente inspirado. A
a cura pela fala: (4) a cura do transtorno do paciente consiste no título de exemplo, podemos ver como em RPP é importante o
alcance de urna compreensão de si mesmo, isto é, consiste em foco orientado ao paciente, e não a uma abstração teórica:
trazer à consciência aspectos dos quais o paciente estava parcial
ou totalmente inconsciente, retraçando esses aspectos às suas O que há de repulsivo na ideia de que nós estudamos o uso
origens ou raízes: presume-se que os transtornos desapareçam de uma palavra, indicamos erro na descrição desse uso etc.? Antes de
tudo, pergunte-se: como isso pode ser tão importante para nós? De-
uma vez conquistado certo nível de autoconsciência das atitu-
pende de que o que é chamado de "descrição falsa" não concorde com
des e dos pensamentos; e, finalmente, (s) o próprio reconheci-
o uso de linguagem sancionado ou de que não concorde com a
mento do paciente é indispensável para estabelecer o diagnóstico práxis daquele que descreve. Somente no segundo caso se produz um
correto e efetuar a cura, isto é, somente o que pode ser reconhe- conflito filosófico. (RPP I § 548)
cido, em última instância, pelo paciente, pode ser considerado
como verdadeiro, e nada mais nem nada menos do que sua acei- A mesma orientação é mencionada numa de suas aulas de
tação dos próprios sentimentos e motivos é que constitui a reti- 1946:
rada do seu transtorno.
Arregimentando suas provas, Baker segue para a segunda Então existe uma tendência a dizer que o problema era verbal.
parte da sua estratégia, que é a de exibir excertos originais dopa- Mas como ele pode ser verbal? "Pensamento" e "dor" podem ser con-
fundidos. Mas nesse caso não se produz um conflito filosófico. Só há
ralelo entre o método freudiano e o wittgensteiniano. O comen-
cbnflito filosófico quando a pessoa tem alguma ideia correta do uso.
tador reconhece que houve uma fase bem definida do pensa-
Mas o que é a ideia correta do uso? Na realidade, a pessoa tem um
mento de Wittgenstein no qual uma comparação minuciosa cony us() e o pratica. O problema aqui não tem nada a ver com conflito
o método de Freud informou sua própria concepção de inve.sti- entre pessoas diferentes; tem a ver com conflito dentro da própria
gação filosófica (cf. Baker, 2004, p. 155). Ela vai, especificamente, pessoa. Mesmo que a pessoa tenha o uso correto, tem também uma
de 1931 até 1938, ou seja, desde a composição do BT até o TS 220, ideia errada do uso.[ ... ] (LPP, p. 125)
a versão pré-guerra das IF. Foi em 1938, para mencionar uma
época bem determinada da produção das IF, que, em conversa Antigos alunos de Wittgenstein, como Maurice Drury e Oets
com Rhees, Wittgenstein se disse um "discípulo de Freud". E real- Bouwsma, recordam os efeitos desarticuladores das suas con-
192 1 Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgenstein Seis Wittgensteins l 193

versas com Wittgenstein, mostrando como, na medida em que não teria contraído uma dívida com seus pais em relação àquele de-
ver, Ela deveria, simplesmente, cumpri-lo ou não. Um homem pode,
Wittgenstein não utilizava informação filosófica para agregar co-
por outro lado, ter urna dívida com Deus em relação a seu dever, ou,
nhecimento, e sim apenas para o esclarecimento, ele devolvia ao
tal como vemos, com ninguém em absoluto. Como, então, as pessoas
interlocutor as mesmas palavras que este havia utilizado, só que
chegam a dizer que todos os deveres são dívidas para alguém? Talvez,
dentro de outro arranjo. Essas conversações eram, de fato, bas- simplesmente, devido a um hábito de fala nesse contexto. Alguns
tante próximas dos efeitos clínicos de uma intervenção psica- deveres são dívidas para alguém, Talvez a maioria seja. Isso agora es-
nalítica. Drury, por exemplo, enquanto conversava sobre Kierke- tabelece um padrão de linguagem, e as expectativas em conexão com
gaard com Wittgenstein, recorda que ... ela. Então, alguns deveres são dívidas, e para alguém. (Bouwsma,
1986, p. 4)
[.. ,) numa época posterior, Wittgenstein me disse que um de seus
alunos lhe havia escrito para contar que havia se tornado católico- Nesse último exemplo, em particular, vemos que Wittgenstein
-romano, e que ele, Wittgenstein, era parcialmente responsável por fala em hábito de fala, de padrões de linguagem, de expectativas
essa conversão, porque tinha sido ele que o havia aconselhado a ler culturalmente estabelecidas, sem que, no entanto, tais elementos
Kierkegaard. Wittgenstein me disse que escreveu de volta, dizendo:
se constituam em doutrinas. São conceitos utilizados, simples-
"Se alguém me conta que comprou uma roupa de equilibrista, isso
mente, na desarticulação de uma ideia de correlação entre deve-
não me impressiona até que eu veja o que foi feito com ela". (Drury,
1984, p. 88)
res e direitos, sem desautorizar, necessariamente, tal correlação.
Mas toda a argumentação é estruturada em cima de um pedaço
Esse é um típico caso de devolução de uma imagem em respos- da fala do interlocutor: "parecia". Wittgenstein, numa tertúlia
ta a uma afirmação do interlocutor, ainda inconsciente dos possí- informal, recorre ao conhecido método de não acrescentar nada
veis motivos, como também das prováveis consequêricias, de uma de novo à prática filosófica, mas procurar conduzir o interlocutor
decisão tão crucial que tomou, e cuja responsabilidade atribui a a ver de maneira diferente aquilo mesmo que ele articula apenas
um outro (Kierkegaard ou Wittgenstein). A imagem é muito mais de uma só maneira ("Problemas são resolvidos não pela produ-
eficiente quando o objetivo é atingir a vontade do que quando ção de nova evidência, mas pelo arranjo do que é há muito conhe-
se trata de arregimentar uma série de argumentos intelectuais. cido" - IF § 109).
Bouwsma, por sua vez, recorda uma conversação sobre ética: Evidentemente, se os seus escritos não produzirem o mesmo
tipo de incômodo, como pensa Baker, eles não terão sido com-
O tema era ética. Brown introduziu o tema, a ideia de que deveres preendidos: "o escritor está tentando engajar seu leitor num diá-
e direitos são correlativos. Parecia a Brown que um homem podia logo cuja meta principal é a de efetuar uma mudança sobre a ma-
muito bem ter um dever quando nenhum outro homem pudesse re- neira como se veem as coisas" (2004, p. 155). Baker pensa que é
clamar um direito à realização daquele dever. Wittgenstein tomou o exatamente esse mesmo espírito freudiano perturbador, presente
uso de "parecia"... Por que "parecia"? Uma criança podia ser criada nos textos de Wittgenstein, que deve moldar a maneira de com-
com frases como: "Nunca, nunca roube", ''resista à tirania" etc. Ela
preender as "descrições gramaticais": "O maior propósito de
194 ! Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgenstein Seis Wittgensteins j 195

'nosso método' é quebrar a tirania de certas imagens ou analogias de inconsistências e ambiguidades com que nos deparamos na
que estão incrustadas no pensamento de uma pessoa atormentada leitura seca dos textos de Wittgenstein. O estilo de seu texto está
por problemas filosóficos" (idem, p. 158). em conformidade exatamente com tal propósito metodológico e
O comentador lembra o uso, por parte de Wittgenstein, nos terapêutico:"[ ... ] quanto do que faço é modificar o estilo de pen-
Ditados, de vários termos tipicamente psicanalíticos. Wittgen- samento, e quanto do que faço é persuadir as pessoas a modificar
stein chama a atenção para o poder das analogias e das imagens seu estilo de pensamento" (LC III, § 40 ). Trata-se do estilo ade-
inconscientes para provocar dano, quando observa a possibilidade quado ao método dirigido à modificação da vontade do leitor,
de resistência e a necessidade de superá-la; quando enfatiza a im- uma vez que este é convidado, ele mesmo e não o autor, ao esforço
portância central do reconhecimento, mencionando tanto a cen- que poderá, por fim, resultar na modificação da sua maneira de
sura quanto a sublimação em relação a imagens, como também a ver e representar seus problemas, liberando sua vontade de uma
repressão das dúvidas; e quando se refere a várias formas de es- prisão a imagens fixas. Essa meta psicanalítica do texto witt-
tados patológicos, como obsessão, compulsão e paralisia mental gensteiniano combina também com o que podemos conhecer de
(idem, p. 160). A principal diferença em relação à psicanálise re- sua biografia e dos textos publicados de suas aulas.
side, segundo Baker (pp. 160-161), no fato de que esses problemas Pergunto-me, contudo, se também essa interpretação não seria
não são relacionados a eventos ou experiências factuais, mas a muito redutora, apesar de resolver melhor as anomalias não men-
analogias ou imagens, e não se pretende descobrir nada novo para cionadas nem elaboradas pelas demais interpretações. Digamos
o paciente, senão remover a perplexidade pela promoção da au- assim, se as IF forem a expressão escrita de uma espécie de terapia
toconsciência. Enquanto a psicanálise se preocupa com padrões filosófica ou conceirual, isso não pressuporia imediatamente um
fixos de comportamento, como as manifestações típicas de sin- leitor enfermo e um autor são? Por que motivo, senão pelo
tomas neuróticos, a filosofia se preocupa com padrões fixos no reconhecimento de uma doença, ficaria estimulado o leitor a
uso das palavras (conexões de estados mentais com determinadas prosseguir em sua leitura? Não levaria depois o leitor que passou
expressões, por exemplo). por todo o processo de "leituroterapia" a querer curar toda sorte
Essa passagem da visão terapêutica abstrata, manifestada pelos de filosofia que se afirme teoricamente? Não levaria o leitor a
últimos autores do quietismo e, em geral, pelos wittgensteinianos pensar que filósofos explicativos estariam todos, de alguma forma,
resolutos, para uma terapêutica bem mais concreta, focada nas doentes? A psicanálise, necessariamente, se reproduz. Pacientes
intranquilidades e perplexidades filosóficas do paciente, e não nof de psicanálise são, potencialmente, futuros psicanalistas. Uma vez
conceitos em si ou seja, uma terapia dirigida para o indivíduo curados, por que eles não sairiam de seus casulos patológicos mu-
que formula conceitos, e não para os conceitos formulados pelos nidos de um novo fervor evangélico, curando todas as pessoas
indivíduos-, é, sem dúvida, uma realização filosófica impressio- pelo mundo afora, até mesmo como parte do processo de cura?
nante alcançada por Baker em relação às outras interpretações da O que impediria o leitor que passou por essa terapia de classificar
filosofia de Wittgenstein que vimos até aqui. Ela nos coloca numa qualquer um que não concorde com a sua particular visão de fi-
posição bem mais confortável para compreender todas as espécies losofia terapêutica como dogmático e doente?
196 1 Asingularidade das lnYestigações filosóficas de Wittgenstein Sels Wittgensteíns [ 197

Podemos entender a terapia wittgensteiniana como concei- para promover uma atitude antimetafísica. O leitor percebe ime-
tuai, e não psicológica, no sentido ordinário da expressão. Mas diatamente a contradição entre o ato e o dito, porque se lhe tra-
uma mistura não precisamente qualificada entre elementos me- vam imediatamente a compreensão e o prosseguim.ento impen-
todológicos da psicanálise e da filosofia termina por não deixar sado da leitura. Como também percebe que a situação é proposi-
perfeitamente clara a diferença entre as duas formas de terapia, talmente forjada. Mas ele pode não chegar a perceber outra coisa
posto que, em ambos os casos, o que realmente está em causa é a mais importante: o lugar para o qual o encaminha o escriror com
vontade do paciente. O fato é que há um sentido importante, não sua maquinação literária - seja por não se sentir convidado a en-
psicanalítico, do conceito de vontade em Wittgenstein, que pa- trar pela beleza das imagens poderosas produzidas no poema, seja
rece ainda escapar a Baker. Ele está ligado ao aspecto ético - e, por, simplesmente, não se interessar pelo que ali se sugere. No
portanto, à expressão do conceito. Na psicanálise, o que se liga ao entanto, o que interessa ao literato português não é, evidente-
ético é a expressão do desejo, e aqui a atividade é nitidamente mente, o que diz, mas o efeito produzido pelo que diz. Trata-se,
psicológica. portanto, de uma metafísica destituída na forma de um ato esté-
Outro sentido importante do terapêutico, que também parece tico, na forma de um manifesto a favor da pureza estética, diga-
lhe escapar, é o fato de que a terapia, como o método, não pode mos assim, cujo fito é o de converter o leitor, pelo uso da metafí-
ser única, tal como se dá no método da psicanálise (cf. IF § 133). sica, a desistir da metafísica.
Isso significa que pode haver um grande pacote de diferentes, Salvaguardada qualquer comparação mais séria com a litera-
criativos e multifacetados procedimentos pensados em relação tura, ou qualquer insinuação nessa direção, é essa mesma forma
com o propósito real da terapia concebida por Wittgenstein. Um de ato pragmático que Alain Badiou pretende encontrar na filo-
problema como esse, da unilateralidade do próprio método te- sofia de Wittgensteín, que denomina, também muito a propósito,
rapêutico, resolve-se pela dissolução do conceito nos textos do como "antifilosofià' (cf. 2011). Não utilizo aqui, porém, expres-
autor. Não há um conteúdo terapêutico, mas uma forma terapêu- sões consagradas pelo pragmatismo sem nenhuma razão, pois é
tica do texto em Wittgensteín. Nele, o conteúdo, que são parti- nessa mesma chave de leitura que Wittgenstein fica enquadrado
cularidades da formação do autor, importa menos que a forma. É como antifilósofo por Badiou. A antifilosofia é, para ele, signo de
a forma que contém a mensagem central das IF e do Nachlass. um gênero que recolhe outras quatro espécies de pensamentos
diferentes, que se unificam pela mesma atitude.
O que é, então, uma antifilosofia? Para Badiou, muito natu-
8.6 Uma antifilosofia ralmente, é "certa forma de desprezo p~la filosofia" (idem, p. 74).
Mas, para que esse desprezo possa constituir alguma coisa um
"Há metafísica bastante em não pensar em nada", diz um impor- pouco mais digna de atenção, é preciso que a postura negativa
tante aforismo de Alberto Caeiro lavrado no quinto poema de "O não seja somente uma tagarelice fátua. De fato, a antifilosofia é
guardador de rebanhos". Nele, o poeta produz de propósito uma uma rebelião muito sedutora, mas com características decidida-
autocontradição performativa, que consiste em fazer metafísica mente positivas:
198 1 Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgenstein Seis Wittgensteins l 199

O antifilósofo nos recorda que um filósofo é um militante polí- das em w·ingenstein" (idem, p. 81). Para nós, o ponto decisivo
tico, geralmente odiado pelos poderes constituídos e pelos seus ser- em questão é se o Wittgenstein posterior ao TLP deixa de ser um
vos; um esteta, que vai à frente das mais improváveis criações; um antifilósofo e se torna um sofista, pelos seus critérios. E a resposta
amante cuja vida é capaz de virar do avesso uma mulher ou um ho- é a de que sim, especialmente quando Badiou examina a sua
mem; um sábio que frequenta os desenvolvimentos mais violenta- discussão posterior sobre os fundamentos da matemática (idem,
mente paradoxais das ciências; e que é nessa efervescência, nessa in-
pp. 137-143). Wittgenstein, na visão desse autor, vem a ser um
disposição, nessa rebelião, que filósofos produzem suas catedrais de
caso estranho de fragoroso fracasso, como o de uma pessoa que
ideias. (Idem, p. 67)
chegou, com grande esforço, a constituir uma espetacular obra
antifilosófica, equiparável aos melhores argumentos da prosa
Pela mesma forma de autocontradição performativa, o antifi-
alemã encontrável, por exemplo, em Nietzsche, para depois redu-
lósofo é uma espécie de filósofo radical que, segundo parece su-
zi-la apenas a uma interminável e irritante garrulice, a uma "glosa
gerir o encaminhamento da argumentação do autor, deveria dife-
imanente", a uma espécie de "talmude pessoal" (idem, p. 76). Evi-
renciar-se do sofista. O antifilósofo é, de fato, reconhecido por
dentemente, o sofista não presta mais uma contribuição positiva
três operações conjuntas (idem, pp. 75-76):
à vida, à ética, à arte, digamos, mas participa da epopeia humana
Uma crítica linguística, lógica, genealógica dos enunciados
1. de uma maneira ressentida, simplesmente.
da filosofia; uma destituição da categoria de verdade; um desve- Seria interessante examinar por que Badiou entende de ma-
lamento das pretensões da filosofia a constituir-se como teoria. neira tão distinta as duas diferentes fases da produção literária de
2. O reconhecimento do fato de que a filosofia, em instilncia Wittgenstein. A foraclusão simples, desapossada de qualquer
final, não pode ser reduzida à sua aparência discursiva, suas pro- análise mínima e com semelhança de puro preconceito, da pro-
posições, seu exterior teórico falacioso. Filosofia é um ato no qual dução filosófica posterior de Wittgenstein parece muito estranha
as fabulações sobre a "verdade" são a vestimenta, a propaganda, em contraste com a bela e rica análise que o autor, afinal, faz do
as mentiras. TLP. A leitura de seu ensaio vale justamente por causa do esta-

3. O apelo feito, contra o ato filosófico, por um ato novo radi- belecimento desse contraste. Compreender mais claramente as
calizado, que ou será chamado também de filosófico, criando, desse razões de seu desentendimento permite enxergar também por que
modo, uma equivocação (por meio da qual o "pequeno filósofo" as IF são tão mal compreendidas.
consente com deleite ao escarro que cobre seu corpo), ou, então, Isso, por uma parte, provém, é claro, da maneira como esse
mais honestamente, de suprafilosófico ou mesmo afilosófico. autor qualifica a obra posterior de Wittgenstein; de outra parte,
provém de certos equívocos em sua visão da proposta antifilo-
Pascal, Rousseau, Kierkegaard, Nietzsche e Lacan são antifi- sófica que se pode encontrar no próprio TLP: mas resulta, prin-
lósofos nesse sentido, dentro do modelo de Badiou. O Wittgen- cipalmente, de certa astúcia fundamentalista, presente na filiação
stein do TLP também: "não pode haver dúvida de que as três cega do autor a uma determinada interpretação do pensamento
operações constitutivas de toda antifilosofia podem ser recupera- de Lacan, que é a de abraçar uma ontologia negativa e julgar, com
200 ] Asingularidade das Investigações fí/osóficas de Wittgensteín Seis Wittgensteins 1 201

seu auxílio, todos os casos do mundo. Tal artifício dissimula o A seu ver, Wingenstein passa da solidez dos aforismos do TLP
dogmatismo dessa forma de filosofia e, ao mesmo tempo, dis- para o "estilo de abelha" (idem, p. 169): elabora ininterrupta-
semina certo fascínio entre seus adeptos, que não reconhecem, no mente perguntas sem resposta, perguntas destinadas a provocar
negativo, uma fundamentação, ou, dentro do jargão wittgenstei- irritação, e não mais visando formular uma asserção, e que, por
niano, uma típica ilusão gramatical. Através da sua ontologia, isso, levam o leitor a uma impressão de constantes ferroadas e
então, tudo pode ser medido, julgado e acomodado em seus de- tormentos.
vidos lugares, sem que nada pareça muito religioso nem muito A razão pela qual Badiou supõe que Wittgenstein tenha pas-
fanático. Tudo se passa como se essa forma de visão fosse a melhor sado de antifilósofo a sofista consiste precisamente em tais "rela-
de· todas as antifilosofias. E é desse modo que Badiou não re- tivização, suspensão e antropologização da matemática, transfor-
conhece nos textos do Nachlass as características antifilosóficas mando-a em um jogo convencional que, em última instância,
que ele atribui somente ao autor do TLP: a filosofia como ato, e a depende dos nossos hábitos linguísticos" (idem, p. 138). E se, de
criação de equivocações como forma de apelo suprafilosófico ou fato, fosse correta essa descrição do pensamento de Wittgenstein
afilosófico. nas RFM, Badiou não se equivocaria em classificá-la com as mes-
De que maneira Badiou qualifica a obra posterior de Wittgen- mas pretensões do pragmatismo, ao lado da "filosofia da lingua-
stein? Logo de saída ele se declara nos seguintes termos: "real- gem ordinária" (idem, p. 138). Todo o Nachlass não passaria de
mente não gosto do seu livro posterior, e muito menos ainda do um constante desfiar de uma prática interrogativa e dissolvente,
que ele se tornou, a saber, a garantia involuntária, não merecida, que teria abandonado o estilo anterior, constantemente afirma-
da filosofia gramatical anglo-americana[ ... ]" (idem, p. 70). E o tivo, devido, talvez, ao cansaço de esperar silenciosamente e em
que tem de especial nessa obra posterior que tanto desagrada Ba- vão pelo ato divino sem precedentes, tal como parece indicar, na
diou? Tem o que o autor reputa como um patente menosprezo interpretação de Badiou, o "elemento místico" presente no TLP.
pela matemática, ao reduzi-la a meros jogos infantis, um pecado Por tudo isso se explica a perda de si no estilo histérico da ver-
do qual, a seu ver, nenhuma filosofia pode se recuperar (idem, borragia e do queixume, tomados de empréstimo do sofista (idem,
p. 71). Badiou pensa certamente na obra posterior de Wittgen- p. 139). Mas o fato é que, em sua visão unilateral e apaixonada por
stein como uma fuga patológica para o relativismo, pois dentro Cantor, Badiou não consegue reconhecer nem aceitar como pos-
dela tudo se desagrega e se desfaz ( idem, p. 76). Uma obra que sível o parentesco kroneckeriano da filosofia da matemática de
Wittgenstein. Dentro da sua família de interpretação da matemá-
[... ) emprega os meios da mais provocativa superficialidade, dando tica (cf. BT, p. 352), se é possível dizer assim, nosso autor rejeita
uma versão tão inexata e deficiente das teorias mais profundas e en- explicitamente que a teoria dos conjuntos possa servir como fun-
genhosas (particularmente, as de Cantor ou Gõdel), que seus mais damento (cf. TLP§ 6.031; BT, pp. 489-495; RFM, V§§ 5, 7), algo
devotos bajuladores ficam muitas vezes desconcertados com isso e
aparentemente sagrado para Badiou, assim como rejeita qualquer
têm que se dedicar a volumes poderosos como tentativas de justifi-
outro tipo de fundamento, concebendo a aritmética apenas como
cação. (Idem, p. 138)
formas de operações lógicas. Desse modo, no TLP, proposições
202 [ Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgenstein Seis Wittgensteins 1 203

da matemática não são realmente proposições, nem comportam Witrgenstein não procura fazer dos "objetos" tractarianos, ou das
qualquer pensamento, e nas RFM, por contraste, são jogos de ''coisas", uma substância no sentido ontológico do termo, mas
linguagem, com certezas e pensamentos sem qualquer funda- trata a substância meramente como condição de possibilidade. A
mento que tipificam acordos celebrados não em opiniões, mas nas leitura de Badiou produz, simplesmente, uma confusão. A onto-
formas de vida (cf. IF § 241). Mas nenhuma dessas posições filo- logia do TLP é uma ontologia do "mundo'; daquilo que "é o caso",
sóficas assumidas por Wittgenstein configura alguma doutrina, isto é, dos "fatos", ou da existência ou inexistência de estados de
como, por exemplo, conformam as teorias pragmáticas. Essas coisas tal como são figurados num espaço lógico de determinação
posições filosóficas fazem parte, como já vimos, de um método (cf. TLP§ 2.11). Assim podemos ler no TLP:
que procura dissipar o nevoeiro das ilusões gramaticais. São atos
puros de destituição de saberes que nada têm contra esses saberes, Os objetos constituem a substância do mundo. Por isso não po-
mas que indicam, tal como antes, no TLP, uma exigência e urna dem ser compostos.
urgência ética de fundo. Se o mundo não tivesse substância, ter ou não ter sentido uma
proposição dependeria de ser ou não verdadeira uma outra proposi-
Badiou, é claro, perde de vista o objetivo de tantas repetições,
ção.
retornos, reatualizações, experimentos e questionamentos no es-
Seria então impossível traçar uma figuração do mundo (verda-
tilo posterior do texto de Wittgenstein - isto é, perde de vista o deira ou falsa).(§§ 2.021-2.0212)
ato de destituição -, que continua sendo o mesmo ato antifilo-
sófico do TLP, só que agora com um novo método. Ao assimilar Badiou apresenta uma confusão "muito difundida nos meios
Wittgenstein ao pragmatismo, denega que nosso autor queira filosóficos" - para citar diretamente o TLP - entre relações for-
salvaguardar as certezas da matemática a salvo de qualquer rela- mais internas e relações propriamente ditas, isto é, relações mate-
tivismo, que as queira como certezas matemáticas somente, ilumi- riais externas (cf. TLP§ 4.122). O fato de que essas relações inter-
nando com raios de sol as contaminações filosóficas da disciplina, nas tractarianas não possam, segundo o livro, ser mencionadas,
para ensejar uma poda que realmente possibilite à matemática do mas de que elas simplesmente se mostrem provém exatamente da
futuro uma muito maior sensibilidade (BT, p. 432). Uma conta- sua constituição transcendental. E a crítica posterior de Witt-
minação filosófica da qual Badiou é, na verdade, com sua ontolo- genstein a essa forma de concepção de "objetos" ou de "coisas"
gia negativa, um dos maiores e dissimulados artífices. não se aplica propriamente à sua proposição, mas apenas ao fato
É, portanto, mediante uma superstição gramatical que BadiolY de que ela não foi esclarecida. A falta de esclarecimento empresta
vê no TLP uma ontologia de objetos impensáveis que vem a ser, um caráter fixo ou dogmático ao que é nada mais do que uma
sem nenhuma surpresa, a mesma ontologia negativa que adota. forma gramatical. O mais importante na crítica das IF à ideia
Logo, o que ele valoriza no TLP é o fato de a obra constituir "uma tractariana do objeto simples, entretanto, é que ela revela que a
das raras tentativas contemporâneas de estabelecer axiomati- atitude antifilosófica presente nas IF, nos termos em que Badiou
camente os fundamentos de uma doutrina da substância e do a define, ainda é a mesma do TLP. Vejamos este exemplo:
mundo" (2011, p. 93). O que, fundamentalmente, é um equívoco.
204 1 Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgenstein Seis Wittgensteins 1 205

Mas quais são as partes constituintes simples das quais a realidade Para a pergunta filos6jica: "A imagem visual desta árvore é com-
é composta? - Quais são as partes constituintes simples de uma ca- posta, e quais são suas partes constituintes?", a resposta correta é:
deira? - Os pedaços de madeira com os quais é montada? Ou as mo- "Isso depende do que tu compreendes por 'composto"'. (E isso, natu-
léculas, ou os átomos? - "Simples" quer dizer: não composto. E isso ralmente, não é nenhuma resposta, mas uma destituição da per-
depende de: em que sentido é "composto"? Não tem nenhum sentido gunta.) (IF § 47)
em absoluto falar de "partes constituintes simples da cadeira".
Ou: minha imagem visual desta árvore, desta cadeira, consiste de Não se trata aqui de uma desconstrução no exclusivo sentido
partes? E quais são suas partes constituintes simples? A policromia de relativizar e banalizar qualquer espécie de pensamento, mas de
é um tipo de compósito; um outro é, por exemplo, algum contorno relativizar na medida em que o filósofo fica preso a formas de
quebrado feito de peças retas. E um pedaço de curva pode ser de- pensamento fixas. A crítica dissolvente é um meio para que o fi-
nominado como urna composição de segmento ascendente ou des-
lósofo possa perceber que sua forma de pensamento não é a única
cendente.
possível, mas que tudo pode ser visto de outra maneira. Portanto,
Se eu digo para alguém, sem maiores explicações, "o que agora
vejo é, para mim, composto", então, ele pode, com razio, perguntar: tal como no TLP, o propósito de Wittgenstein não é o de tratar
'(O que tu queres dizer por 'composto'? É possível chamar tudo as- a filosofia como proposição de novas doutrinas ou novas ontolo-
sim!" -A pergunta "O que tu vês é composto?" tem todo sentido se gias, mas como uma atitude ética que visa recolocar a filosofia na
já foi estabelecido de que tipo de composicionalidade - quer dizer, única função em que ela pode cooperar com o conhecimento, em
de que uso específico dessa palavra - deve-se tratar. Se estivesse de- vez de petrificá-lo.
finido que a imagem visual de urna árvore devesse ser chamada de Não precisamos nos enganar, entretanto, supondo que Badiou
"composta" quando se vê não somente o tronco, mas também os ga-
tenha deixado de perceber que o Wittgenstein do TLP consi-
lhos, então a pergunta "A imagem visual desta árvore é simples ou
derava as próprias proposições do livro como contrassensos (cf.
composta?" e a pergunta "Quais são as suas partes constituintes sim-
§ 6.54). Ele sabe disso perfeitamente, pois distingue "dois regimes
ples?" teriam um sentido claro - um emprego claro. E a resposta para
a segunda pergunta não seria, naturalmente, "os galhos" (essa seria do sentido", articulados, a seu ver, no TLP como base para a ati-
uma resposta para a pergunta gramatical: "O que se denomina aqui tude antifilosófica que repousa na figura do contrassenso (cf.
de 'partes constituintes simples'?"), mas uma descrição dos galhos em 20ll, p. 112).
separado.[ ... ] O primeiro sentido é o que diz que "o sentido do mundo deve
A palavra "composto" (e, portanto, a palavra "simples") é empre- estar fora dele" (TLP§ 6.41), e o segundo é o sentido "intramun-
gada por nós em um sem-número de diferentes maneiras, e de dife-
dano'; que pode ser expresso na proposição, aquele cuja forma, mas
rentes modos de utilização relacionados. (A cor de uma casa de Ull\
não o conteúdo, ela contém (TLP § 3.13 ). Pois bem, o primeiro
tabuleiro é simples, ou ela consiste de um branco puro e de um ama~
"sentido", o sentido do mundo, que não pode ser dito pela propo-
relo puro? E o branco é simples, ou ele consiste das cores do arco-íris?
- Este segmento de 2 cm é simples, ou ele consiste de duas partes de sição, é o único que carrega valor, pois dentro do mundo não há
segmento de 1 cm cada? Mas por que não de um pedaço de 3 cm de valores. Em particular, para a proposição, a "verdade" é definitiva-
extensão e de um pedaço, juntado em sentido negativo, de 1 cm?) mente separada do sentido, pois, para que ela possa expressá-la,
J6 1 Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgenstein Seis Wittgensteins [ 207

ela deve contê-la apenas como uma possibilidade. E é precisa- -6.43; 6.521 ), deve-se, mais uma vez, a leitura da ontologia dos
mente nessa possibilidade que se deposita o sentido da proposi- objetos simples do TLP como se fosse a demarcação de um "resto"
ção. Tal separação entre sentido e verdade é essencial, segundo lacaniano do real que, particularmente em Wittgenstein, aponta
Badiou, para demonstrar que o contrassenso da filosofia consiste para "o mais alto", ou para "o mais verdadeiro", que seria o já men-
em pretender que a sua verdade tenha algum sentido, o que seria cionado "elemento místico", não capturado pela relação especular
uma distorção das capacidades da linguagem (cf. 2011, p. 115). que constitui a ontologia do mundo e da linguagem (Badiou,
A questão aqui, portanto, é como Badiou situa e recategoriza 2011, p. 94). Na reconfiguração dele, o ético perde para o místico.
o ato destituinte de Wittgenstein no TLP. Porque, na sua visão, Porque, para esse autor, todo ato antifilosófico é, no fundo, com
o fato de que os objetos tractarianos constituam uma ontologia a única exceção para o caso de Lacan, o silêncio sobre "a mulher",
sobre a qual nada pode ser dito a torna semelhante a uma onto- sobre "a feminilidade" ou sobre a "inexistência da relação sexual",
logia negativa, nos mesmos moldes daquela que lhe é tão cara, o que torna qualquer ato antifilosófico "espantoso e vão" (idem,
com fundamentos lógicos. E a diferença consiste no fato de que p. 95). A leitura de Badiou é distorcida por seu interesse na pro-
Badiou interpreta que o objetivo dessa construção ontológica em moção de Lacan e das suas frases de efeito como a exceção entre
particular é tornar possível a soberania do "elemento místico" os antifilósofos.
(idem, p. 93 ), em vez do ato ético, simplesmente. O contrassenso Se Badiou compreendesse a desconstrução feita nas IF da
da filosofia, simulado no contrassenso do próprio TLP, serve, na ontologia do TLP ou se compreendesse o autor do Nachlass, de-
interpretação desse autor, apenas para indicar que o valor "mais veria abandonar sua própria ontologia negativa. Sentiria que não
alto" se deposita no "místico". Badiou não enxerga o ato de des- poderia colocar nada no seu lugar, porque perceberia de repente
tituição lavrado na proposição 6.54 do TLP, na qual Wittgenstein que tinha apenas um castelo construído no ar (IF § 118). E aí é que
traça claramente uma distinção entre compreendê-lo e elucidar está seu problema. Sua ontologia negativa é o último recurso
as proposições do livro como contrassensos. É somente a com- que serve para lhe impedir uma passagem ao ato. Se, entretanto,
preensão do autor que leva ao reconhecimento das afirmações do mergulhasse nas águas da dúvida (ORD, p. 29) ou descesse ao caos
TLP como contrassensos. Por conseguinte, leva a sobrepujar as (MS 136, p. 51a), como recomenda Wittgenstein ao filósofo
próprias proposições do TLP depois de havê-las também com- (ORD, p. 29), teria a chance de reconfigurar suas fisiognomias.
preendido. O silêncio seria a marca do próprio reconhecimento
de si, que é o propósito final do livro. Ali é que está o ato antifilo-
sófico por excelência, o qual ensina que mesmo que nossa filosofia .
seja muito boa, o ato ético, destituído de qualquer crença ou dou-
trina, é a única atitude a comportar um valor e um sentimento.
A ignorincia de Badiou acerca da discussão sobre a religião
em Wittgenstein (cf. por exemplo, LC, pp. 53-72), e da vinculação
no TLP entre o místico, o estético e o ético (§ 6.373-6.374; 6.423-
9

ESTILO EFORMA, AUTOR ELEITOR

Existe algo no texto que certamente não está no que é dito (cf.
Possenti, 2008, p. 73 ). E talvez seja essa forma a que mais interesse
ao leitor, posto que muitos dos esforços para a apreensão de um
conteúdo correto das IF e do Nachlass deixam algum fator impor-
tante para trás, despercebido. Passemos, enfim, ao que nos inte-
ressa neste ensaio: uma avaliação das IF pelo seu estilo.
Em um importante e pioneiro livro da literatura secundária
acerca das relações entre as IF e o Nachlass, o autor, Stephen
Hilmy, dedica um tópico de dez páginas (cf. 1987, pp. 15-25) para
comentar possíveis correspondências entre o método de filosofia
concebido por Wittgenstein na fase posterior da sua produção
intelectual e o estilo da sua escrita. Evidentemente, ele reconhece
que há aspectos do estilo de Wittgenstein que estão intimamente
ligados e concorrem para os mesmos objetivos propostos pelo
método (pp. 15 e 18), mas recusa-se terminantemente a admitir a
sugestão, também bastante presente na literatura secundária, de
que seu estilo é parte e parcela de seu método. A seu favor, Hilmy
argumenta que o estilo da escrita de Wittgenstein é puramente
acidental, como o próprio autor comprovadamente não só ad-
mite, mas também lamenta, ao deixar patente o sentimento de
210 1 Asingularidade das Investigações fí/osófícas de Wittgenstein Estilo e forma, autor e leitor 1 211

fracasso em não conseguir escrever o que pretendia na forma de essas características que podemos) para usar expressões mais
um livro tradicional, com sequência ordenada e linear, e encadea- ligadas à linguística, chamar de redundâncias ou de traços não
mentos dispostos de maneira ininterrupta, sem saltos abruptos pertinentes de um livro - estão presentes, por outro lado, em
para temáticas completamente diversas, como podemos atual- todo o Nachlass. Não se trata, afinal, de um acidente infeliz, nem
mente constatar nos textos de Wittgenstein. de um fracasso dos objetivos inicialmente propostos. Trata-se do
Em contraposição ao argumento de Hilmy, contudo, desejo que ocorreu na prdtica. Essas marcas é que expressam, na verdade,
sustentar neste ensaio a mesma disposição em correlacionar estilo seu particular trabalho de escrita.
e método que os autores da literatura secundária que ele critica. Redundância é um conceito elaborado dentro da "teoria de
Precisamente em conjunto com esses autores, a favor deles, é que traços" da fonologia de Jakobson (cf. Jakobson, Fant & Halle,
meus argumentos correm na direção contrária da interpretação 1951, pp. 1-15). Nessa teoria, os segmentos fónicos são decom-
defendida por Hilmy. À diferença deles, entretanto, talvez seja ne- postos em traços. Há dois tipos de traços: distintivos (ou perti-
cessário reconhecer o texto de Wittgenstein não mediante al- nentes) e redundantes (ou não pertinentes). Os traços distintivos
guma ilação direta, formulada com base numa reunião de caracte- estabelecem contraste de conteúdo entre as formas, já os traços
rísticas constantes pela qual se infere uma hipótese, uma proposta redundantes não estabelecem contraste. Por exemplo, quando
ou uma interpretação acerca do texto exarada exclusivamente do contrapomos as formas "dia'' e "tia'' há contraste de conteúdo pela
conteúdo, pelo descuido da forma. Em vez desse procedimento mera permura do segmento fónico [d] por [t]. Estes traços são
mais tradicional, utilizado pelos antagonistas de Hilmy, mas tam- pertinentes no sistema da língua portuguesa. No entanto, se
bém e principalmente pelos patrocinadores dos seis exemplos que contrapomos as formas, em transcrição fonética, [tfia) e [tia], não
elencamos no capítulo anterior, talvez precisemos reconhecer no há contraste de conteúdo. Embora a permuta seja da mesma na-
texto de Wittgenstein, antes de qualquer coisa, uma fisiognomia. tureza que a outra, ou seja, a mera troca de um segmento fônico
Isto é, reconhecer que o texro de Wittgenstein é o resultado por outro, o resultado é diferente porque não há alteração de
aleatório de um longo processo de trabalho para escrever um li- conteúdo. São traços redundantes ou não pertinentes. Traço re-
vro, ou, em outros termos, admitir que o Nachlass é o livro que dundante, entretanto, não significa supérfluo. A noção de redun-
lhe foi possível escrever na prdtica. Esse "livro", que resultou do dihcia funcional tem por objetivo separar o papel dos traços dis-
trabalho empregado em sua escrita durante 22 anos (aqui estou tintivos do papel dos traços redundantes. Os primeiros são ex-
contando de 1929 a 1951), é somente um "álbum", constituído polf pressivamente ativos no sistema, pois estabelecem contraste de
uma série de características pelas quais não mais distinguimos conteúdo, ao passo que os segundos não estabelecem contraste,
aquele livro tradicional, com sequência ordenada e linear, e com mas reforçam os traços pertinentes e revelam significação. Por
encadeamentos ininterruptos e perfeitamente sequenciados, que exemplo, eles podem revelar a região geográfica de um falante
se tentou, durante todos aqueles longos anos, publicar. Esses tra- pelo seu sotaque. Note que toda a teoria jakobsoniana se faz por
ços demasiadamente sistemáticos não correspondiam, afinal, à na- relações, seja a relação entre forma e conteúdo, seja entre distin-
tureza do pensamento do auror. As marcas do estilo de álbum - tivo e redundante.
212 [ Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgenstein Estilo e forma, autor e leitor 1 213

Granger (1988) ampliou o conceito de traço redundante para infixidez, a instabilidade e a diferença do vivido. Dessa maneira
aplicá-lo em uma filosofia do estilo. Sua aplicação não é mais fono- inventiva, portanto, é que ele pretende representar ou descrever
lógica, claro. Interessa-lhe a relação entre forma e conteúdo, bem as condições complexas nas quais se inserem a atividade e seu
como a relação entre distintivo e redundante. Ele propõe que, ao contexto social, que são de primordial importância em seu tra-
tomar formas como obras (e ao contrapô-las), se possa perguntar balho. Mas, ainda mais digno de consideração, é a observação de
se há contraste de conteúdo ou não. Se redundantes, no sentido que se a filosofia do estilo se define como "modalidade de integra-
de Jakobson, podemos derivar dois estilos. Desse modo, o esrilo ção do individual em um processo concreto que é o trabalho"
é recuperado como uso do simbolismo, como uma maneira de co- (idem, p. 8), trata-se, de fato, de uma integração do individual
locar em relação dois aspectos, a forma e o conteúdo, que coexis- vivido no interior de uma totalidade. Certamente deve-se afastar
tem e se determinam na práxis. Para ele, de fato, tal relação se aqui uma compreensão de "totalidade" no sentido místico. Não
consolida como processo, como geração de produto, em suma, se trata, para o autor, de um absoluto ( idem, p. 112), de uma ex-
como um trabalho: "Do ponto de vista da análise das obras, o que periência de caráter espiritual que dê significação religiosa ao que
é, com efeito, o trabalho senão certo modo de colocar em relação, não pode ser compreendido senão pelas leis naturais. Mas tam-
suscitando-os, uma forma e um conteúdo?" (idem, p. 5). pouco se trata de um incondicionado, na forma de uma totali-
Ao reajustar o foco para reaver as redundâncias no interior dade acabada, plena, ilimitada e independente, que paira acima
do interesse de uma teoria, Granger pretende indicar, como Wit- dos fatos humanos. Granger se refere, antes, a uma totalidade vi-
tgenstein, a importância da prática ou das condições concretas de vida como "certo fechamento, circunstancial e relativo, que com-
manifestação de um conceito ou de uma disciplina para a apreen- porta horizontes, primeiros planos, lacunas" etc. ( idem, ibidem).
são da sua significação mais fundamental e mais profunda. Ele A significação nasce, para Granger, da alusão a resíduos gerados
amplia o conceito de rraço redundante para conceber realmente pela tentativa de transformar a unidade da experiência na unidade
a filosofia como uma forma de comentário sobre significações ou, de uma estrutura, que a consciência laboriosa captura na obra
o que na sua proposta quer dizer o mesmo, como uma meditação estruturada e introduz como "imperfeições da estrutura" (idem,
sobre as obras humanas. Obras que ele retoma como realização ibidem).
prática, concreta, de um trabalho sobre uma forma, entendendo A proposta de Granger, efetivamente, especializa-se no exame
por "significação" algo que resulta desse trabalho, pela colocação da história das ciências, isto é, numa estilística da atividade cien-
em perspectiva de um fato relativamente a uma totalidade, ilusó- tífica. Por exemplo, na investigação da construção do objeto ma-
ria ou autêntica, na qual ele é vivido (idem, p. 11). temático e das diferenças de estilo entre as abordagens euclidiana,
A colocação dos termos conceituais na filosofia do estilo de cartesiana, arguesiana e a vetorial (idem, pp. 18-105), nas quais as
Granger é bastante original e criativa, porque sobrepuja a grande redundâncias não são distribuídas de maneira aleatória, mas pare-
dificuldade de elaborar uma espécie de filosofia da práxis com cem esboçar certa constância. Nesses casos, há estilo. Mas, para o
termos teóricos bastante precisos. A práxis, por definição, tem nosso interesse, cabe apenas recuperar os elementos estilísticos
natureza concreta, é oposta a abstrações teóricas, e pressupõe a que circunscrevem a própria ideia do gramatical em Wittgen-
214 1 Asingularidade das lnvestigaçôes filosóficas de Wittgenstein Estilo e forma, autor e leitor 1 215

stein. Na linguagem grangetiana, as redundâncias distribuídas de Entretanto, "'seguir a regra"', lembra-nos muito bem Wittgen-
maneira não aleatória, os traços não pertinentes da produção ma- stein, "é uma práxis" (IF § 202). O que nos resta a descrever,
terial do autor das IF, só podem ser divisadas em contraste com a diante da pura práxis, é uma fisiognomia, da qual a ideia de livro,
ideia de "livro". bem como seus traços não pertinentes, certamente são parte e
Nota-se, entretanto, que o trato que Granger dispensa entre parcela de uma mesma totalidade significativa. A ideia de livro
forma e conteúdo não é exatamente o mesmo que Wittgenstein e seus traços não pertinentes tecem uma relação interna nesse
dá ao gramatical. Arley Moreno, que foi aluno de Granger, tratou caso, e é dentro dela que geram significações. Wittgensrein cuida
de deixar bastante explícitas essas significativas diferenças (cf. de investigar a regra no uso, na aplicação. Não há uma influência
2005, pp. 39-107). Granger diz, por exemplo, que o estilo é a "face de uma estrutura externa para dentro do caso, que deveria ser
negativa" da estrutura (1988, p. 13), colocando de certo modo em visto, assim, como "face negativa". Não podemos acompanhar
relação dual o simbolismo e seu uso na prática. O uso da palavra Granger quando ele diz que a estrutura se insere na prática, e que
'
1
resíduo" não é, portanto, casual. Granger pensa em . atrito, desa- a relação se dá entre forma e conteúdo, segundo sua definição
comodação, desencaixe, desinteligência e subdererminação como própria de trabalho (cf. 1988, p. 5). A atividade prática de tra-
resultantes características da inserção da estrutura numa prática balho, que, ao colocar em relação forma e conteúdo, se objetiva,
individualizada: "Nós caracterizaremos esses resíduos como re- para Granger, em obras, termina por pressupor uma forma se-
dundâncias na medida em que o vivido estrutural se torna men- parada a ser contraposta e contrastada com o trabalho realizado
sagem, em que certos aspectos permanecem sempre não pertinen- a fim de revelar os traços redundantes ou não pertinentes que
tes para a codificação que lhe impõe a esrrururà' (idem, p. 102). caracterizam o estilo. O mesmo acontece com o trabalho mais
É bem verdade que, para Granger, essa relação entre a estru- recente de Klagge (2011), que subsume o desentendimento dos
tura e suas variantes, capturadas segundo a realização de aplica- textos de Wirrgenstein à ideia de um "trabalho de exílio". Em
ções, pode ser considerada como "forma transcendental em curso ambos os casos trata-se, a meu ver, de regras separadas da sua
de geração" (idem, p. 102). Não são nem modalidades de estru- aplicação. Não são casos de regras subsumidas no interior do seu
turação, à maneira do empirismo, nem são imitações imperfeitas emprego, ou, em outras palavras, da criação de uma determinada
de realidades transcendentes, como no platonismo, mas constru- fisiognomia daquilo que se expressa no texto.
ção de formas no seio da experiência, ou, se quisermos também, Por isso é que coloco a forma em relação não com o conteúdo,
formas de transformação do mundo. A relação entre a estrutura mas desde já com o próprio estilo. Acompanho, assim, a tese de
e o estilo se dá em perspectiva de objeto, traduzindo-se em faros Genova (1979, pp. 320-322), para quem os termos se dão dentro
mediante certa unicidade de orientação dos enfoques, os quais de um mesmo plano estrutural, sem "faces negativas", embora não
não podem justificar-se de outro modo. sem atritos, resíduos ou tensões, os quais resultam, justamente,
Para nós, entretanto, não faz sentido separar a regra da sua num determinado estilo. Naturalmente, rodos esses aspectos -
aplicação. O que temos diante de nós é um caso de aplicação de juntos - conformam uma fisiognomia ou uma gramática: há,
regra - por exemplo, das regras para a composição de um "livro". portanto, uma relaçâo funcional entre a forma e o estilo. E, nesse
216 1 Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgenstein Estilo e forma, autor e leitor 1 217

sentido, o álbum, à diferença do livro, expressa precisamente o significação do trabalho da forma. Há que se falar em redundân-
que Wittgenstein procura evidenciar: a necessidade de mudar a cia, portanto, apenas em contraste com o distintivo relativamente
maneira de ver as coisas. O estilo de álbum, dentro dessa perspec- àquela forma canônica. Entretanto, do ponto de vista da práxis,
tiva, não pode ser considerado meramente como acidente, nem ali está simplesmente uma fisiognomia - e suas muitas possibili-
como desvio. Devemos recuperar aqui o caso individual tal como dades de interpretação. O que quer dizer, dadas essas "muitas
vivido no interior de uma totalidade significativa. possibilidades", que não podemos mais separar, no Wittgenstein
É verdade que o estilo resulta de um trabalho com a forma, tardio, o conceito de fisiognomia do conceito de visão de aspecto.
que se distingue por suas redundâncias, pela presença constante Wittgenstein estaria, nesse sentido, bem mais próximo de Jakob-
e não aleatória de traços não pertinentes pelos quais Granger son que de Granger, pois este estabelece o contraponto que marca
caracteriza a individuação e a concretude de um trabalho. No que os traços redundantes dentro do horizonte da mesma disciplina
o autor faz muito bem, já que está interessado em comentar a ou da mesma ciência, enquanto aquele esrabelece o contraponto
continuidade transformadora da forma das teorias científicas me- que marca os traços redundantes dentro do mesmo sistema, isto
diante sua prática pelo estilo. Este tem a ver com o como, e não é, da mesma língua. Em Wittgenstein, o traço não pertinente do
com o quê, com as singularidades resultantes da aplicação de um álbum, em relação a livro, é interno ao Nachlass, assim como em
simbolismo, e não com a generalidade. É precisamente através Jakobson a redundância é interna a uma língua ou a um sistema.
desse como que podemos compreender a individualidade do tra- Mas em Granger, em vez da relação interna, há uma relação ex-
balho. No entanto, as próprias expressões "redundância" e "traço terna, que vem de fora, isto é, do horizonte temporal ou da tradi-
não pertinente", tomadas de empréstimo à fonologia, só fazem ção, daquela atividade prática ou do trabalho daquela disciplina.
sentido dentro de um regime em que elas são precisamente "re- No caso de Wittgenstein, e agora em separado desses autores, o
dundâncias" ou "traços não pertinentes". Dito de outra maneira, que da fisiognomia dissermos será então o que vemos, entre muitos
não são mais redundâncias no interior exclusivo da singularidade, e
outros aspectos distintos possíveis da percepção - o que dirá
isto é, dentro do caso individual vivido como totalidade signifi- também, sem dúvida, muita coisa sobre nós, que vemos.
cativa, ou dentro da singularidade, se pudéssemos compreendê-la O fato é que há um outro conceito, também muito impor-
apenas em si mesma, no seu uso, na sua aplicação. Tais traços, tante, principalmente nos textos mais tardios de Wittgenstein,
submetidos a outro uso, em ourro regime de significação, não são que não pode tampouco ser separado do conceito de fisiognomia,
mais "não pertinentes"; pelo contrário, adquirem imediatamente que é o conceito de expressão. Exatamente por ser a expressão de
algum valor diferencial e distintivo. Se Granger caracteriza o es-. um método que as IF não podem ser consideradas como um re-
tilo pela presença constante e não aleatória de redundâncias, é sultado puramente acidental, apesar do argumento de Hilmy (cf.
porque pressupõe como dada - e talvez até, mesmo que sem que- 1987). Exatamente porque os traços de estilo são expressão de
rer, como fixa - a forma canônica; isto é, porque pressupõe que a uma vontade é que precisamos levá-los rodos em consideração.
distinção do estilo se dá pelo contraste com a forma canônica que Eles se tornam extreniamente importantes para o reconheci-
deve, por isso, estar sempre lá, presente como um horizonte de mento de uma vontade, de uma determinada postura ética diante
218 1 Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittge11stei11 Estilo e forma, autor e leitor 1 219

do outro e do mundo, que, me parece, caracteriza o conjunto da "Le style c'est l'homme." "Le scyle c'esc l'homme même." A pri-
obra de Wirtgenstein. Em outras palavras, notamos o estilo meira expressão é de uma brevidade -<-<-!,epigramática» barata. A se-
quando já ocorreu a mudança de perspectiva, o despertar de um gunda, -<-<-!,correta» abre uma perspectiva totalmente diferente. Ela
novo aspecto, pelo qual passamos a ver o que ali está em contraste diz que o estilo é -<-<-!,seria» a imagem da pessoa.
com uma forma diferenciada. Percebemos nos traços da expressão
do texto também uma ética. Sem o despertar do novo aspecto, É possível que Wittgenstein estivesse pensando aqui - tal
nada veríamos no mesmíssimo fenômeno. como interpreta, por exemplo, Cavell (2004, pp. 32-33) - numa
Vejamos, agora, sem trocadilho, como penso que se articula concepção de estilo como "assinatura". O estilo seria, então, a
uma filosofia do estilo em Wirtgenstein, e como podemos aplicá- marca do autor. Assim sendo, com a reprodução em duas versões
-la às lF de modo que ela se preserve, em sua autonomia, como do dito de De Buffon, Wittgenstein estaria, na verdade, refe-
prática diante das variadas interpretações legítimas que dela se rindo-se indiretamente a seu próprio texto. A primeira frase, que
podem fazer ao longo do tempo e dos contextos. não lhe agrada, supostamente sugere que o estilo é a roupa do
escritor, o que, no seu caso, levaria a péssimas interpretações.
Lembremos que Wittgenstein se considerava mau escritor (cf.
9.1 O estilo em Wittgenstein CV, PP· 45, 60, 75). Portanto, a primeira frase de De Buffon sobre
o esrilo seria mais ou menos equivalente a de quem avalia O cará-
O que podemos depreender do uso que nosso autor faz do con- ter de uma pessoa pelas roupas que veste. A segunda frase, que
ceito de fisiognomia é que para ele o que finalmente conta no Witrgenstein atesta que é a correta (talvez o que ele queira dizer
estilo não é o "estilo em si'; isto é, a descrição de uma determinada com isso é que esta foi realmente a frase escrira por De Buffon),
disposição não aleatória de elementos que individualizam uma contém o detalhe estilístico do pequeno acréscimo de um advér-
obra, um trabalho, a exposição de um conjunto determinado de bio, muito característico da língua francesa, e que, por isso, diz
características desviantes, percebidos mediante o contraste esta- coisa totalmente distinta da primeira frase sem nada alterar no
belecido com um padrão previamente escolhido. Wittgenstein conteúdo, ao apontar com o gesto para a imagem da pessoa por
parece bem mais interessado no emprego daquilo que podemos detrás do estilo. Segundo Cavell, deveríamos concluir que as duas
tomar como um "estilo", mesmo que cheguemos a comprovar que frases sobre o estilo estariam ali para indicar a ética manifesta na
o significado de estilo seja realmente conforme àquelas condições. escrita (cf. 2004, p. 33).
O que quer dizer o emprego daquilo que tomamos por estilo? Desejo, porém, afastar-me por um momento da visão de estilo
Para compreender esse ponto talvez valha a pena começar repro- como assinatura, mesmo que não seja necessariamente errado
duzindo uma seção do MS 137, escrita em 4 de janeiro de 1949, nas pensar assim, já que o estilo de fato denuncia, por assim dizer, um
páginas 140a-14üb. Ela está publicada atualmente em CV, p. 89, e autor. Quero afastar-me por dois motivos: primeiro, porque 0
diz o seguinte: contexto imediato da citação, não reproduzida em CV, indica uma
direção de leitura diferente. Duas seções antes dessa, Wittgen-
120 1 Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgenstein Estilo e forma, autor e leitor

stein anota em seu manuscrito original: "Penduram-se muitas que não pode ser apontado, nos usos de sentenças referenciais,
vezes aforismos na parede. Mas não teoremas da geometria "me- caracteriza uma importante distinção feita por Wittgenstein, so-
cinica". Nossa relação com esres dois" (MS 137, p. 140a; também bretudo nas suas discussões derradeiras sobre a filosofia da psico-
em PPF § 195b). 1 E na seção seguinte considera a gramática do logia, entre a expressão e a descrição: 2
"ver assim":
Escuto as palavras "Eu tenho medo': Pergunto: "Em que contexto
"Se vejo a coisa assim, então ela se ajusta ao restante <<bom para disseste isso? Foi um gemido de aflição, foi uma confissão, foi uma
isto, mas não para isto>>". Isso é um jogo de linguagem totalmente auto-observação ... ?"
determinado com a expressão "ver isto como isto <<algo assim>>". Quem grita "Socorro!" descreve o que é por ele sentido?
E o critério do "ver assim" é aqui diferente do caso da geometria des- Nada é dele mais longínquo do que descrever algo.
critiva. (MS 137, p. 140a) Mas existem transições do que não chamaríamos de descrição
para o que chamaríamos de descrição.
A frase "descrição de estados mentais" caracteriza um determi-
Dado esse contexto, pergunto-me, então, por que não pensar
nado jogo. E se apenas escuto a frase "Eu tenho medo", então posso,
na apresentação de duas versões do aforismo de De Buffon como
na verdade, adivinhar que jogo é jogado aqui (pelo tom ralvez), mas
casos do jogo de linguagem do "ver assim", isto é, da visão de eu só saberei quando conhecer o contexto. (LWPP !, §§ 47-50)
aspectos e da diferença das nossas relações fi.siognômicas com
cada um desses aforismos, que bem poderiam estar pendurados Vejamos bem. Conquanto haja uma ineludível assimetria epis-
numa parede. têmica entre descrição e expressão, com o privilégio evidente
O segundo motivo pelo qual desejo afastar-me da visão de da pessoa que ouve sobre aquela que fala no caso de descrições
estilo como assinatura é, naturalmente, para evitar o emprego cognitivas (e aqui temos uma proposta decididamente anticarte-
indiscriminado de um conceito psicológico que em nada combina siana - cf. Marques, 2013, pp. 13-32), descrever e expressar não
com o espírito da filosofia de Wittgenstein. No modelo de as- são, definitivamente, compartimentos estanques das formas de
sinatura, o estilo, como admitimos, seria a marca de uma subjeti- uso da nossa linguagem referencial (ou mitologicamente referen-
vidade. Mas se não podemos, definitivamente, negar que o seja, cial, no caso de cerras expressões do interno). Há transições
por outro lado tampouco podemos indicá-la através das marcas possíveis de uma para a outra, como lembra o texto de Wittgen-
do estilo (ou seja, os termos grangerianos de "redundii.nciá' ou stein citado acima. O que devemos examinar com cuidado, alerta
"traços não pertinentes" que para ele caracterizam o estilo e que o nosso filósofo, é o uso que está sendo feito do nosso exemplo.
aqui deixei de lado). Essa espécie de assimetria, presente por todo Ele expressa ou descreve? Ou é um pouco de cada coisa? O uso
o lado em nossa linguagem, entre o que pode ser apontado e o
2
Muito do que escrevo aqui sobre expressão, descrição, fisiognomia e visão de aspectos é
1 uma influência direta do excelente livro de António Marques, O interior. Linguagem e
Aqui estamos em janeiro de 1949. Grande parte deste manuscrito, o Volume~ d~,S Phi-
losophische Bemerkungen, passou para o MS l'.t4 e o TS 234 (atual PPF, ou a antiga Pane mente em Wittgenstein (2013); mas evidentemente sou o exclusivo responsável por
II" das IF), que trata basicamente do tema da "visão de aspectos". quaisquer erros de interpretação.
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caracteriza "um determinado jogo". E se não dispomos de uma descartados, tal como podemos fazer com um jornal que acaba-
evidência clara a respeito de que jogo está sendo jogado, então mos de ler. O valioso, nesses casos, são as informações que pode-
teremos que adivinhar, segundo as marcas do estilo e segundo o mos reter, e a maneira como elas nutrem nossa atitude e nossa
contexto. De fato, o estilo é que está sendo expresso, para depois ação e às vezes se prestam para criar outros conceitos ou outras
ser descrito como tal. E assim retornaríamos ao nosso 'ver como".
1
formas de pensamento. Desse modo, pensarei em estilo exata-
O padrão que percebemos, as marcas de expressão que serão pos- mente dentro da gramática do "ver assim".
tas em relevo por nossa descrição, daquilo que só pode ser dessa O fato é que a "forma" a que me refiro neste ensaio não pode
forma única, tal como uma fisiognomia, determina uma forma de ser senão a do álbum, ou a do diário, que leva o leitor a experi-
visão de aspecto, uma determinada forma de reconhecimento e mentar, aleatoriamente, variações de pensamento que necessitam,
uma determinada gramática da fisiognomia. para o conforto da aplicação do método, da liberdade assiste-
Isso é exatamente o que transparece nesta afirmação de mática na qual se acumulam as múltiplas seções das IF, da inde-
Wittgenstein, anotada alguns parágrafos depois do texto acima: pendência e da autonomia de cada voz envolvida no diálogo em
"Um tipo de escrito no qual a palavra riscada, a sentença riscada, relação ao que propõe para discussão e do que o próprio autor do
é um sinal" (LWPP I, § 54). Por aqui vemos como são importantes texto coloca como desafios. A forma das IF nada mais é do que "o
as marcas de estilo, aparentemente insignificantes para quem meio" que o autor encontrou contra as suas próprias dores de
não as reconhece (cf. o caso da controvérsia entre Rhees e Kenny, estômago. É ela que pode parecer interessante para o leitor. Dito
descrito no capítulo !). Pois elas só são significativas dentro de de outra maneira, podemos pensar aqui, de modo exatamente
uma determinada visão, mediante certa lógica da percepção contrário à sugestão de Hilmy, que o estilo induz ao método, e
de aspectos. que é por isso mesmo que ele é relevante.
E o "estilo"? Podemos pensá-lo, nesse sentido, como expressão
dessa forma. Entre o estilo e a forma, nesse caso, há uma relação
9.2 Do estilo ao reconhecimento operativa. Para veicular uma forma dialógica, polifónica, não hie-
rarquizada e assistemática, o estilo de "álbum" afigura-se como
Na verdade, não gostaria de lançar mão nem mesmo de algum perfeitamente adequado, posto que não se poderia fazê-lo me-
conceito linguístico ou filosófico, tanto de "estilo" quanto de "for- diante o estilo de "livro". Naturalmente, nem toda forma se rela-
ma", apenas para descrever a maneira como a escrita wittgenstei- 1 ciona operativamente com um estilo. É totalmente indiferente
niana interage com o leitor. O estilo e aforma servem para com- dizer "As cartas chegaram" ou "Chegaram as cartas", se não há
preender o caso das IF, mas provavelmente não se prestarão a uma relação operativa entre a forma e a expressão utilizada. É bem
nenhum outro caso de texto filosófico ou literário escolhido ao possível, e seria até mais eficiente, utilizar a segunda forma
acaso. Em se tratando de Wittgenstein, o mais adequado é que quando se quer transmitir (ou expressar) mais confiança ao inter-
utilizemos conceitos apenas corno ferramentas úteis para um de- locutor - embora ela não seja necessária para esse fim. Se a se-
terminado trabalho, os quais podem ser depois, se quisermos, gunda frase foi ou não uma transmissão de confiança dirigida ao
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interlocutor, isso só pode ser presumido com a ajuda dos traços mente se distingue como o ponto decisivo do assim chamado
de estilo associados ao contexto do proferimento. Há ali todo um "efeito estético":
jogo de linguagem proposto como convite ao interlocutor.
"Uma imagem deve ser boa mesmo que você a veja de cabeça para
Parece-me que é isso, precisamente, o que Wittgenstein busca
baixo." Então o sorriso pode não ser notado.
na reprodução das frases de De Buffon acima: desvendar o estilo
[Suponha que você diga:] "Aquele pequeno gesto pelo qual você
do aforismo, ou seja, como a sua forma opera no leitor, como ela muda um sorriso de gentil para irônico não é uma diferença pura-
expressa, como se estabelece a sua gramática e um determinado mente visual" ( Cf. a imagem de um monge olhando para a visão da
tipo de relação comunicativa, totalmente distinta de uma outra, Virgem Maria.) [Suponha que você diga:] "Ela muda toda a sua ati-
também eventualmente possível. Vendo a investigação conceitua! tude com relação à imagem." Isso pode ser inteiramente verdadeiro.
de Wittgenstein dessa maneira, compreendemos que o texto age Como isso seria expresso? Talvez pelo sorriso que você faz. Uma
mais pela forma do que pelo conteúdo. E constitui, digamos as- imagem poderia ser blasfematória; com a outra, você fica como se
estivesse na igreja. Sua atitude poderia ser num caso a de que você fica
sim, um texto terapêutico.
diante dela quase em oração, no outro caso quase com um olhar las~
Uma segunda incursão pelo corpus textual wittgensteiniano
civo. Esta é uma diferença de atitude.
pode indicar mais alguns elementos para interpretar o estilo
"Bem, aí está. Tudo é a atitude." Mas você poderia ter essas atitu~
como uma lisiognomia, o que quer dizer aqui, naturalmente, uma des sem a imagem. Elas são importantes - cercamente. (LC IV, § 10)
/isiognomia que expressa uma atitude e que nos levará, final-
mente, à associação entre estilo e reconhecimento. Tomemos uma Se não há um ponto decisivo ou uma essência daquilo que
pergunta que Wittgenstein faz a seus alunos em uma aula de es- poderia ser a individualização e a causa do efeito estético, isto é,
tética de 1938: "Um homem pode cantar uma canção com ex- se não há um determinado fator x que possamos isolar, ou um
pressão e sem expressão. Então, para ter a expressão, por que não conjunto de regras fixo para provocar um determinado tipo de
deixar de fora a canção?" (LC IV, § 2). Nas páginas seguintes do reação, isso significa que, para Wittgenstein, não existe um efeito
mesmo texto, ou seja, dentro do mesmo curso de 1938, Wittgen- estético? Isto é, não se pode, então, tentar atingir uma audiência
stein discute que elemento em especial poderia servir de faísca e modificá-la precisamente pelo apelo ao efeito estético de uma
para a impressão que produz a execução ou a apresentação de uma obra? E se dissermos que isso é possível, como poderíamos então
determinada obra de arte, ou então de um desenho numa folha distinguir os pontos relevantes para alcançar tal efeito, se não há
de papel: seriam as associações provocadas pela figura, seria a uma causa para aquilo que queremos ocasionar?
atitude com que se apresenta determinada obra, seria o compo,r' Toda a discussão tardia de Wittgenstein sobre visão de aspectos
tamento que corresponde a determinado sentimento, seriam as parece entrar em jogo aqui:
memórias provocadas pela forma de apresentação de uma peça,
seria a forma das nossas reações ao tipo de apresentação que se "Isto é uma experiência visual genuína?" A resposta é: em que
mostra? Tudo isso parece ser e, ao mesmo tempo, parece não ser medida ela é uma.
importante para o caso, e nenhuma dessas características isolada- Aqui é difícil ver que se trata de determinações de conceito.
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Um conceito se impinge. (Isso tu não podes esquecer.) que, na falta de regras, como também já dissemos, nos encontra·
Quando eu deveria, então, chamá-la de mero saber, não de ver? mos diante da práxis (IF § 202). De todo modo, Wittgenstein
- Talvez se alguém tratasse a imagem como um projeto de trabalho, parece estar querendo dizer que os trajes civis, a prática comum,
se a lesse como um diagrama. (Finos matizes de comportamento. -
o uso real da linguagem, são muito mais amplos e complicados
Por que são eles importantes? Eles têm consequências importantes.)
do que qualquer conceito de linguagem que possamos propor.
(PPF §§ 190-192)
Este será sempre mais estreito que a práxis.
O que impingimos a uma audiência - e a maneira como ela Encontramos, assim, a radicalidade de seu projeto. Acompa-
reage - são conceitos. Mas conceitos podem ser percebidos ou não, nhar a linguagem e a crítica da linguagem configura-se como um
conforme o emprego dado ao caso. Existe um ver assim e um ver projeto impossível para as exigências de regularidade impostas
de outro modo, e em ambos os casos são diferentes regras que se pelo sentido. A necessidade de significação proporá inexoravel-
impingem (IF § 74). E existem também as situações de completa mente sempre novas interpretações, uma vez que alguma anterior
falta de regras e de conceitos para aplicar ao caso - momentos se dissolva em face de incoerências encontradas na práxis. Práxis
em que ficamos completamente sem reação e não sabemos mais que, evidentemente, não está depositada em um "fora da lingua-
1
o que fazer nem o que dizer. Esse é precisamente o exemplo evo- gem" qualquer - não haveria sentido em pensar em um "fora" que
cado no§ 207 das IF: já não seja, em si mesmo, no momento mesmo em que pronun-
ciamos a palavra, imediatamente organizado pela nossa pr6pria
Imaginemos que o povo de uma determinada terra executasse designação de "forá'. Trata-se aqui apenas da práxis como uma
atividades humanas comuns, e, para isso, eles se serviSsem, aparen- experiência que eventualmente ultrapassa nossas pr6prias pressu-
temente, de uma linguagem articulada. Ao observar sua atividade, posições transcendentais.
ela é compreensível e nos parece ('16gicà'. Entretanto, :Se tentamos Dito de outra maneira, o que temos diante de n6s é um jogo
aprender sua língua, descobrimos que é impossível. É qúe não existe de linguagem. Um jogo de linguagem não é redutível a alguma
para eles nenhuma conexão regular do que se fala, dos sons, com as
outra coisa, anterior a ele e escondida por detrás da realidade. O
ações; mesmo que esses sons não sejam supérfluos; pois se amorda-
jogo de linguagem é primário (IF § 656), substitui-se imediata-
çamos, por exemplo, alguém desse povo, isso teria as mesm·as conse-
quências que conosco: sem aqueles sons, as suas ações incorrem em mente à pr6pria reação, e não remos como compreendê-lo senão
confusão - se posso me expressar assim. pelo que vemos diante de n6s, isto é, interpretando um compor-
Deveríamos dizer que esse povo tem uma linguagem; ordens, in-/ tamento (IF § 206), ou uma fisiognomia, interpretação esta que
formes etc.? pode estar correta ou não (IF § 207). Se insistimos em desconfiar
Para isso faltaria, ao que chamamos de "linguagem", a regula- da nossa, digamos assim, "correção" diante da práxis, cria-se uma
ridade. tensão semelhante àquela que há entre o livro e o diário, uma
tensão que cria uma "filosofia") um "pensamento".
Considerações similares a estas podem ser encontradas tam-
O interessante, diante da pura práxis, ainda percebida como
bém em LC (!, § 6). E este é precisamente também o momento em hist6ria natural da humanidade, é reter o que diz a seção seguinte
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à do§ 202, quando estamos como que perdidos, sem saber o que coisas desse modo, é preciso que ambos conformem uma "pri-
pensar ou dizer: "a linguagem é um labirinto de caminhos" (IF meira teoria" articulável com uma 1'teoria de passagem". É essa
§ 203 ). Ou seja, nesse tipo de situação em que o chão parece ter articulação que, finalmente, geraria a compreensão correta dos
sido roubado dos nossos pés, há um convite a explorar o mundo, casos. Essa "primeira teoria" articulada com a "teoria de passa-
um desafio e uma tarefa a nele se perder e se achar sempre re- gem" estabeleceria a diferença entre o que as palavras significam
novadamente. e o que o falante quis dizer. Isso tanto do ponto de vista do intér-
Essa postura de Wittgenstein, para termos uma mais clara prete, já que o falante não proferiu sua sentença de modo que 0
ideia de sua profundidade, é totalmente diferente do caso-limite intérprete pudesse utilizar imediatamente sua "primeira teoria'')
que encontra Davidson para a aplicação de seu princípio de cari- vendo-se obrigado, assim, a mediá-la com uma "teoria de passa-
dade, que o faz mudar de perspectiva em relação à sua investi- gem'; como do ponto de vista do falante, já que ele falou pela
gação linguística em particular. No célebre artigo "A nice deran- "teoria de passagem'; mas quis ser interpretado pela "primeira
gement of epitaphs" (1986), Davidson destaca quescasos de paro- teoriá'. Tal articulação, portanto, garantiria a competência lin-
nímia ou malapropismo não se submetem à interpretação radical. guística básica dos falantes que conforma a interpretação radical.
Paronímias são usos de palavras ou frases, pronunciadas de ma- A dificuldade, entretanto, é que essa "teoria de passagem" não
neira voluntária ou involuntária, que parecem ou se assemelham pode, por sua vez, ser aprendida por convenção, já que ela só pode
a outras, e que, exatamente por causa disso, geralmente provocam ser usada em ocasiões particulares e completamente imprevisíveis
efeito cômico. Dizer, por exemplo, "Este menino é muito impos- para os casos já convencionados. Ela violaria, portanto, os princí-
sível!') em vez de "Este menino é muito impulsivo!" oll "A alegria pios básicos que garantem tanto a existência a priori da interpre-
da festa era contagiosa" em vez de "A alegria da festa era conta- tação radical quanto do princípio de caridade. Ela só poderia,
giante" obrigaria, segundo o esquema de interpretação proposto então, ser derivada por perspicácia, por um pouco de sorte, pela
por Davidson, à articulação de um sistema de relações lógicas sabedoria para lidar com um vocabulário e uma gramática pri-
entre distintos proferimentos: entre o que deveria e o que foi efe- vados, pela aplicação de regras práticas para avaliar que desvios
tivamente dito (e ouvido), de tal modo que as paronímias pudes- da regularidade são os mais prováveis em determinados contextos
sem ser compreendidas corretamente. Em outras palavras, para etc. A conclusão de Davidson - que, lembremos, está diante de
que ral articulação seja possível, deve haver um encadeamento situações de falta de regularidade similares às enfrentadas nos
entre princípios baseados nos primeiros significados dos proferi-/ exemplos evocados por Wittgenstein - é a de que deveríamos
mentos que se vincule logicamente com seus significados secun- desistir de tentar iluminar semanticamente de que maneira as con-
dários, e lhe devolvam, em ato contínuo, sem efeito de solução, venções se aplicam em cada caso: "Nós devemos desistir da ideia
sem hiato, seu significado primário. Tais princípios têm que ser, de uma estrutura compartilhada claramente definida que os usuá-
ao mesmo tempo, sistemáticos, compartilhados e aprendidos me- rios da linguagem adquirem e então aplicam a casos" (idem, p. 446).
diante convenções ou regularidades entre falantes e ouvintes (Da- A desistência de Davidson parece tão radical quanto sua pró-
vidson, 1986, p. 436). O fato 1:. que, se queremos interpretar as pria teoria de interpretação. É possível, evidentemente, que não
Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgenstein Estilo e forma, autor e leitor 1 231

haja teoria semântica para casos extraconvencionais, tais como os À diferença de Davidson, que descobriu uma situação que o
exemplos citados por ele ou outros exemplos, mas isso não quer paralisou e acabou por modificar sua perspectiva dali por diante,
dizer, sobretudo em se tratando de casos de paronímia, que o Wittgenstein busca sempre e renovadarnente essas mesmas
falante não utilize instrumentos recursivos exclusivamente sintá ~ situações em que não há mais nada a dizer, apenas aceitar que
ticos, por exemplo, ou que não se possa pensar que se trata aqui poderíamos, se quiséssemos, ver tudo de modo diferente do
de casos similares aos que se aplicam os famosos "juízos de refle- que vínhamos fazendo até então: "Eu tenho que mergulhar repe-
xão", divisados por Kant em sua Terceira Crítica. Juízos de reflexão tidamente na água da dúvidà' (ORD, p. 29 ). A diferença entre os
buscam justamente avaliar sob que regra geral poder-se-ia pensar dois pensadores consiste então em que no segundo há um ati-
um dado caso particular (cf. Kant, 2011, pp. 11-19). O que signi- vismo deliberado na busca de situações limítrofes nas quais uma
fica pensar o caso (da obra de arte ou de um fenômeno da natu- pessoa se vê obrigada a reavaliar, e talvez a reconfigurar, o que
reza) em conformidade a fins (zweckmafig) com o único propó- sabe a respeito do que antes julgava ser incontestável e, por isso,
sito de alcançar uma compreensão do particular. Diferentemente perfeitamente seguro: "Em filosofia deve-se descer no velho caos
do juízo determinante, que subsume o particular a uma lei uni- & ali sentir-se bem" (MS 136, p. 51a; CV, p. 74; cf. também OC
versal já conhecida, um juízo de reflexão só pode dar uma lei a § 613 ). É nesse exato momento que a linguagem é pensada como
partir de si e para si mesmo. A faculdade de juízo prescreve então um "labirinto de caminhos", pois a mesma configuração que nos
uma lei não à natureza (como autonomia), mas a si mesma (como desorienta é também o único meio de que dispomos para desco-
heauronomia), para justamente guiar sua reflexão sobre a natu- brir novas saídas possíveis.
reza ou sobre o aparentemente inédito ou estranho caso dado. Diferentemente de Kant também, Wittgenstein não está inte-
Trata-se de um princípio meramente subjetivo, válido para o juízo ressado em criar sua própria metafísica sobre que tipo de ativi-
em razão de um conjunto de sentimentos e expressões corporaisi dade transcendental entra em causa em um juízo de reflexão,
muito importante em todo esse processo de reflexão, que cria um embora reflita muito sobre isso em toda a sua obra tardia.
jogo próprio entre as faculdades de imaginação e de entendi- Sustentamos que a estratégia de Wittgenstein é a de exprimir-
mento, tratadas sob o conceito de Gemüt (ânimo). 3 -se de certa forma, ou de apresentar um determinado estilo de
pensamento, para, assim, facilitar um tipo de reconhecimento
que consiga modificar o pensamento do seu leitor. É aqui que
3 Cf. um interessante comentário de António Marques sobre "o que o conceito de Gemüt
entra a ideia de uma fisiognomia. Uma fisiognomia é reconhecida
traz ao conceito de razão" (2004, pp. 169~180). Existe também um artigo de Santos e~ um pouco por parentesco, um pouco por diferença (cf. IF § 76),
que o autor lembra que uma das reações mais interessantes à Critica da faculdade do
juízo de Kant, foi a publicação de Metamorfose das plantas, de Goethe ( 1993 ), obra que
da mesma maneira em que foi apresentada a Metamorfose das
associa arte e natureza sob um mesmo princípio de compreensão (Santos, 2006, p. 8). A plantas, de Goethe.
associação da ideia de fisiognomia com o mét0do de apresentação panorâmica ou
sinóptica (übersichtliche Damdlung) surgiu para Wittgenstein em 1931 (cf. ORO,
E aqui falamos de duas formas de uso da fisiognomia. Forma-
p. 45; VW, pp. 170, 177 e 310), ao comentar os métodos sinópticos de Goethe e de mos, em primeiro lugar, uma fisiognomia da situação para com-
Spengler.Juliet Floyd (2003), por sua vez, faz uma comparação entre a forma dos juízos
de reflexão, da Terceira Crítica, com o gramatical de Wittgensrein.
preendê-la imediatamente, utilizando para isso o nosso senso
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Estilo e forma, autor e leitor f 233

comum, talvez também ao modo de um "juízo de reflexão", como Este seria o segundo uso de fisiognomias: não somente para
em Kant, ou de um "princípio de caridade", como em Davidson. configurar e reconfigurar uma situação, um fato, um processo,
O próprio Goethe (1993, pp. 65-66), de fato, declara sua inspi- mas também para traçar fisiognomias como uma maneira de pro-
ração na Terceira Crítica de Kant. Mas Wittgenstein também vocar essa revolução no pensamento sem que nenhuma sugestão
destacou esse procedimento como fundamental para o seu mé- precise ser feita por parte do autor: "Eu só poderia esperar pela
todo desde cedo: mais indireta das influências" (MS 134, p. 143; CV, p. 71).
Preserva-se, assim, pela recusa do argumento indubitável, pelo
Goethe pensou diferente sobre isso. A concepção de "planta pri- evitamento da coação direta imposta pela inexorabilidade do
mitiva'' provém de Goethe; claro que ele viu nela só uma ideia, nada
encadeamento lógico, a plena liberdade de escolha do leitor, ou,
de real. Que problema é então resolvido por meio dessa ideia? O
dito de outro modo, pretende-se impingir um conceiro pela per-
problema da apresentação panorâmica. A frase de Goethe "Todos os
órgãos da planta são folhas transformadas" nos dá um esquema pelo suasão, e, evidentemente, não pelo convencimento; 4 pelo recurso
qual agrupamos os órgãos da planta segundo seu grau de semelhança, do "ver assim" antes que pela sugestão direta; pela insinuação
como se estivessem ao redor de um centro. Vemos como a forma da antes que pela dureza do argumento lógico. Uma forma de ação
folha se modifica: do cotilédone e da folha da raiz chega-se, em for- que procura capturar a exclusiva vontade; por isso mesmo, sem que
mação gradual, à folhagem, de lá, em silenciosas transições, às sépalas, alguém se veja obrigado a aderir necessariamente a esse novo
e então aos órgãos que são metade folha, metade botões, ou metade modo de ver as coisas. Preserva-se o aspecto ético, para o qual o
botões, metade estames, e daí por diante. Vemos a folha como se esti-
exercício soberano da vontade é fundamental.
vesse no seu ambiente natural de formas. Nesse sentido,, não vemos a
O fato é que entre descrição e expressão há uma assimetria
planta primitiva, senão o que se chama de a evidência para a planta
primitiva, ou de evidência para a hipótese de desenvolvimento. E isso
favorável à primeira do ponto de vista epistêmico; mas em termos
é, na realidade, também o que fazemos: nós juntamos um.a forma de de poder de persuasão, se o que for expresso na figura puder ser
linguagem com o seu ambiente, vemos a nossa gramática sobre o plenamente reconhecido, sua eficácia será muiro maior do que a
fundo de jogos semelhantes e aparentados, e isso bane a intranquili- mera descrição, porque o privilégio típico da expressão não é o
dade. (VW, p. 310) cognitivo, tal como o seria na atividade de descrição, mas é certa-
mente o emotivo, o estético, e, por conseguinte, o ético - pelo
Apresentar diferentes fisiognomias dos mesmos problemas é menos na medida em que se trata de modificar uma vontade.
a maneira pela qual Wittgenstein pretende, para usar uma palavra/ E o que temos então nas IF senão uma fisiognomia que ex-
realmente mais force do que apenas "modificar", revolucionar o pressa poderosamente cerco estilo, com vistas a modificar o estilo
pensamento: "Um dos meus métodos mais revolucionários é ima- de pensamento do leitor?
ginar de outra forma o caminho histórico do desenvolvimento de
nossos pensamentos, diferente do que realmente ocorreu. Ao se
fazer isso, o problema nos mostra um lado totalmente novo" (MS 4
Para a diferença entre "persuasão"e "convencimento" em Wittgensrein, cf. Almeida,
1626, p. 68v; CV, p. 45). 2007.
234 1 Asingularidade das /nve5tigações filosôficas de Wittgenstein Estilo e forma, autor e leitor ! 235

Quanto do que fazemos é modificar o estilo de pensamento, e ponto de vista de certos tipos de jogos de linguagem que instaura,
quanto do que eu estou fazendo é modificar o estilo de pensamento, isto é, dentro deles, em uma certeza constante. Precisamente a
e quanto do que estou fazendo é persuadir as pessoas a modificar seu característica de opacidade cognitiva dessas formas de expressão
estilo de pensamento. possibilita a necessária flexibilidade para a introdução de jogos
(Muito do que fazemos é uma questão de modificar o estilo de
de linguagem estéticos, da possibilidade de fingimento que tam-
pensamento.) (LC III,§§ 40-41)
bém caracteriza, em outra vertente, a arte. Na arte, como bem
sabemos, podemos sempre simular outra forma de vida, podemos
O exercício livre da vontade estaria garantido nesse caso exa-
sempre tentar sentir como o autor sentiu, por exemplo, suas do-
tamente pela opacidade cognitiva da expressão em geral. Como a
res de estômago, e tentar reviver da mesma maneira que ele os
expressão, ao contrário da descrição, não pode ser verdadeira nem
remédios que usou contra elas. Não seria precisamente essa a
falsa, a ela só resta a possibilidade de ser sincera ou dissimulada:
atitude que declama o autor de Autopsicografia, quando diz que o
A criança que aprende a linguagem, aprende ,o uso das palavras poeta é um fingidor? É justamente essa possibilidade que ou-
"ter dores", e aprende também que se podem fingir as dores. Isso per- torga caráter humano, portanto emotivo, estético e ético, à ex-
tence ao jogo de linguagem que ela aprende. pressão. O cão, como também sabemos, não pode fingir, nem
Ou também: Ela não só aprende o uso de "Ele tem dores", mas tampouco ser sincero; e a criança, para fingir, tem muito que
também de "Acredito que ele tem dores". (Mas naturalmente não de aprender (PPF § 363 ).
"Acredito que tenho dores".) (RPP !, § 142)
A incerteza cognitiva possibilita, em outras palavras, certas
manobras linguísticas que somos obrigados a fazer diante de evi-
Expressar a dor e fingir a dor podem ser, portanto, dois jogos
dências cientificamente imponderáveis:
de linguagem bem diferentes, possibilitados pela mesma opacidade
cognitiva que caracteriza em geral a natureza da expressão de sen- Pertencem à evidência imponderável as sutilezas.do olhar, do
sações e de vivência de sentimentos. Essas características de opa- gesto, do tom.
cidade cognitiva emprestam-se também às IF como fisiognomia. Eu posso reconhecer o olhar autêntico do amor, diferenciá-lo do
Mas também se dá o fato de que a sensação ou a vivência de dissimulado (e naturalmente pode haver aqui uma corroboração
um sentimento, exatamente por não poderem constituir-se como "ponderável" do meu juízo). Mas posso ser totalmente incapaz de
objetos de conhecimento, tornam-se uma parte não mediada de . descrever a diferença. E isso não porque não haveria para mim
uma relação interna que, por um lado, a primeira pessoa tem com palavras conhecidas para tal. Por que então não introduzo simples-
mente novas palavras? - Se eu fosse um pintor altamente talentoso,
o seu próprio sentir, e que, por outro, não pode comprovar pelo
então seria imaginável que eu apresentasse por imagens o olhar
menos com o que geralmente consideramos como evidências
autêntico e o fingido. (PPF § 360)
científicas. Essa espécie de incerteza cognitiva da expressão pode
ser chamada, como o faz o próprio Wittgenstein em relação a Eis aí a importância das marcas de estilo. Elas podem funcio-
esses tipos particulares de jogos de linguagem, de certeza consti- nar, para quem não estiver cego para o aspecto (PPF § 257), como
tucional (cf. RPP I, § 141). Ou seja, a incerteza transforma-se, pelo
236 1 Asingular idade das lnvestigaçôes filosóficas de Wittgenstein

Estilo e forma, autor e leitor [ 237

evidências cientificamente imponderáveis que, nesse momento,


filosófica com a q 1 l
para a pessoa que compreende uma expressão volitiva, transfor- . d . ua se ocupe o eitor, nem a possibilidade de
mam-se em ponderáveis. Percebe-se, então, a autenticidade de vana as Interpretações das IF, desde que justificadas.
uma fisiognomia: "Pode-se dizer de alguém que ele é cego para a
expressão de um rosto ( Gesicht ). Mas falrou, por causa disso, algo
9.3 Do reconhecimento à incompletude
a seu sentido de visão ( Gesichtssinn )?" (PPF § 232).
Existe, pois, uma fisiognomia do aspecto: "No aspecto está
O estilo das IF nã é . .
disponível uma fisiognomia que em seguida desvanece. É quase . o um conceito impingido, ou seJ· a não h,
conceito d " ·1 ,, f, , a um
como se estivesse ali um rosto que primeiro eu imito e depois - e em o em unção da sua cientificidade, da sua
reçao ou da sua validade ainda ue d . cor-
acolho sem imitá-lo. - E isso realmente não é explicação sufi- f t' l· "[ ] - ' q tu O ISSO fosse plenamente
ciente? - Mas ela não é demasiada?" (PPF § 238). ~c ~v~ . ... nao exercemos ciências naturais; nem tampouco
h IStona natural - já u de ,
Por causa da dificuldade dessa percepção, veco aspecto torna h. ' . q e po mos tambem inventar naturalidades
imprescindível a participação da vontade: "O ver o aspecto e o lStoncas para as nossas finalidades" (PPF § 365) El ' . . 'd
f, - d fi · e e 1mpmg1 0
representar estão sujeitos à vontade". Existe a ordem "Represen- em unçao a nalidade de modificar a vontade do futuro leitor:
ta-te isto!" e a "Vê agora a figura assim!"; mas não "Vê agora a
Eu não digo· fossem
folha verde!" (PPF § 256). "Ver como", desde que exista a possibi- · outros este e este facas natura,·, .
pessoas t · , entao as
en~ outros conceitos (no sentido de uma hipótese). Porém
lidade de variação do aspecto, é algo que pode ser aprendido. E,
quem ~credita que cerras conceitos seriam, como tais, os corre ,
se for aprendido, só o será pela aceitação e pelo accilhimento da quem tivesse outros, não admitiria plenamente algo que nós adro~, .e
nova fisiognomia. mos - este p d · · . m1n-
. ? ena imagrnar de outro modo certos fato .
Todo esse sutil trabalho da fase final da produção filosófica de muito. ger~is, tal como nós nos habituamos a eles, e outras ;o;;cur_a1s
Wittgenstein é de muito difícil apreensão. O modo como se arti- conce1tua1s poderiam vir a ser com . açoes
habituais. (PPF § 366) preend1das por ele, diferentes das
culam fisiognomia, expressão e visão de aspecto nos leva a supor
que, para a percepção das corretas características que se quer
transmitir, é fundamental a participação livre da vontade do lei- l As IF, compreendidas em sua indissociabilidade com o N, h
tor. Por outro lado, entretanto, essa articulação tardia de con- ass, na condição de obra incompleta, não pelo modo de c:~:
ceitos da filosofia da psicologia nos leva a pensar no conjunto das preender um livro tradicional de filosofia - h .
I ' nao tem nen um inte
IF como expressão da vontade do autor, que pretende modificar resse pe o seu conteúdo conceitua!. Os conceitos ali forjados sã;
a vontade e a visão do leitor precisamente pelo seu estilo. O estilo mstr~memos para a finalidade de conversão da vontade·
denuncia seus métodos pelas marcas de uma fisiognomia, mar- imagmar outras possibilidades que /!exibi!. . , para
, . · - izanam uma maneira
cas que nitidamente provocam a mudança de perspectiva, marcas est1e1t~, nao abrangente, de enxergar o mundo.
cujo intuito é exclusivamente terapêutico: prevenir a cristalização . E nao sendo um livro tradicional de lilosofia, não construindo
dogmática, que em nada obsta qualquer outra espécie de reflexão e mventando conceitos de história natural da huma 'd d
mesmo sentido em - . , n1 a e no
que se propoem h1poteses, as IF devem ser
238 1 Asingularidade das lnvestígaçôes fílosáficas de Wittgenstein Estilo e forma, autor e leitor 1 239

compreendidas pelo seu lado estético: "Compare um conceito essa forma de atuação, de jogo, de representação artÍstica para
com um tipo de pintura: então, é também só o nosso tipo de mostrar, quando a explicação é impossível. Parece-nos que este é
pintura arbitrário? Podemos escolher algum ao nosso gosto? (Por precisamente o caso das IF: mais do que somente a estilística lite-
exemplo, o do tipo egípcio.) Ou se trata aqui só de bonito ou rária, elas estão decisivamente vinculadas ao ético.
feio?" (PPF § 367). O ponto ao qual devemos prestar muita atenção é que, ao re-
Mas não. Não se trata somente de bonito ou feio. Nem de uma cuperarmos em Wittgenstein uma filosofia do estilo, ela não pode
nova espécie de dogmatismo da expressão estética, pela visão das ser parte, naturalmente, de uma teoria do texto, da fala ou do uso
IF pelo lado exclusivo de seu conteúdo, que só interessava ao da linguagem em geral. Nesse caso entraríamos em contradição
autor, pelo descaso da forma. com o que parece ser o espírito do próprio texto de Wittgenstein,
Reparemos que na função expressiva da linguagem não há um que, a nosso ver, pretende ser ateórico. Se há uma filosofia do es-
comportamento ou evidência constatável qualquer que sirva de tilo em Wittgenstein, ela deve ser retirada, por isso, do próprio
critério para a sua verdade. Falta à expressão a capacidade de po- texto do autor e trabalhada da mesma maneira que uma de suas
der ser verdadeira ou falsa. Ela pode ser apenas reconhecida ou tantas ferramentas conceituais cujo propósito é o de servir apenas
não reconhecida (PPF §§ 231-232). Para dificultar ainda mais os como objeto de comparação, e também (por que não?) como
termos mais cognitivos do problema, dá-se também o fato de que instrumento da própria escrita de Wittgenstein, isto é, dos traços
o que é expresso não pode ser plenamente descrito. Há poucas característicos que particularizam sua escrita como um determi-
coisas que podem ser descritas em uma expressão: nado estilo - ou como uma fisiognomia. Objeto de comparação,
acreditamos, concebido unicamente para o propósito terapêutico
O que é o medo? O que quer dizer "estar com medo"? Se quero interno ao próprio texto, que é o de evitar que a filosofia trans-
explicar isso com um mostrar - atuaria, então, o medo. forme problemas empíricos em questóes filosóficas (cf. IF § 109).
Em outras palavras, essa filosofia do estilo tem que ser uma cria-
Poderia também representar a esperança assim? Dificilmente. Ou
ção dissolvente e dissolúvel, pensada exclusivamente para a fina-
então a crença?
lidade de obter uma interpretação do texto das IF que estanque a
Descrever meu estado mental (de medo, talvez), é o que faço em proliferação interpretativa e produza uma concepção estável e
determinado contexto. (Como urna determinada atividade s6 é um suficientemente flexível da obra. Portanto, ela deve permitir uma
experimento em um determinado contexto.) gama de diferentes interpretaçóes do texto, mas ao mesmo tempo
É assim tão surpreendente que empregue a mesma expressão em garantir a independência e a distância da obra com relação a todas
diferentes jogos? E algumas vezes também como se estivesse entre os elas. Do mesmo modo que todo jogo de linguagem, trata-se do
jogos? (PPF §§ 77-79) primário, da práxis em si mesma, que inexoravelmente interpre-
tamos, apesar de ela resguardar sempre uma reserva de sentido em
Dadas tais dificuldades, o recurso comunicativo mais pode- sua autonomia. As interpretaçóes não podem se confundir com
roso da expressão, assim supomos, é o estilo. O estilo serve como o próprio texto, assim como uma interpretação da regra não se
140 1 Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgenstein Estilo e forma, autor e leitor 1 241

confunde com a regra (IF § 201). O seguimento de uma regra, no culdades. Nós queremos, portanto, apreender a faixa ilimitada e la-
fundo, é uma práxis, como muitas outras possíveis (IF § 202). mentar que ela não possa ser trabalhada pedaço por pedaço. E, de
fato, não, se compreendermos por pedaço uma faixa longitudinal
Essas interpretações são também diferentes e legítimas práticas
infinita. Mas pode muito bem ser feito, se compreendermos por isso
filosóficas, desde que não se transformem em filosofias da prática.
uma faixa transversal. - Mas então nunca chegaremos ao fim de nosso
David Stern (2005, p. 180) havia sugerido que a proliferação trabalho! - Certamente, não; pois ele não tem fim.
de tantos Wittgensteins diferentes se deve sobretudo à surpreen- (Em vez de conjecturas e explicações turbulentas, queremos co-
dente falta de atenção dos comentadores ao estilo de composição locar a consideração tranquila dos fatos linguísticos.) (z § 447)
do autor (a ênfase é minha). Argumentos dos quais dificilmente
se discordaria. Porém, como Stern não indica muito bem, nem O estilo das IF corresponde perfeitamente a esse método. Nós
ali, nem em outro magnífico texto (2004) sobre as Investigações o reconhecemos por seus traços fisiognômicos, pela expressão.
filosóficas, o que quer dizer exatamente com "estilo" (digamos, não Reconhecimento que só nasce pela modificação da vontade e pela
muito mais do que indicar o dialogismo polifónico e as variações superação da cegueira do aspecto. Temos, assim, um autor que
do pensamento mediante inusitados experimentos mentais tão pede reconhecimento de uma atitude, e um leitor que é aquele a
ao gosto do autor), talvez valha a pena um trabalho de reflexão quem não interessa as dores de estômago, mas os meios, a forma
sobre esse problema. de diário, não de livro, a forma inacabada de que se utilizou para
Da nossa parte, pretendemos pensar, com relação ao estilo de combatê-las. O leitor das IF não é Alice, que se perde no con-
composição do autor, as IF como um ato filosófico de Wittgen- teúdo dos desafios do sentido propostos pelas sentenças de vários
stein. Importa nelas mais a forma do que o conteúdo; não o que personagens do livro de Carrol!. O leitor das IF, ao contrário, é
o autor diz, mas como diz, se o que ali vem expresso é uma atitude, convidado a encontrar uma chave que possa abrir a porta da com-
não um conjunto de doutrinas. E, nessa direção, as IF p'odem ter preensão mais profunda do texto do Nachlass.
sobre o leitor um efeito perlocucionário. Deixo ao leitor, por conseguinte, a continuidade da tarefa de
Importa pensar nas IF como uma demanda de reconhecimento reflexão sobre o estilo e a singularidade das IF. Essa tarefa pode
da interminável, e ao mesmo tempo urgente, tarefa de combate ser retomada de outra forma, de outras perspectivas, pegando
ao autoengano, que se contrasta decisivamente com qualquer tra- outros caminhos e atalhos que descortinarão novos panoramas,
balho doutrinário em filosofia. Tal como esclarece o excerto que desde que façamos sempre recortes transversais. E, para isso, está
estava na versão pré-guerra das IF (MS 142, pp. 120-121; TS 220, dada a indissociabilidade entre as IF e o Nachlass. Como obra
p. 93) e passou depois para Zettel: incompleta, ela permite vários desenhos de percurso.

A intranquilidade na filosofia, pode-se dizer, provém de que a


olhamos falsamente, a vemos falsamente, como se fossem cortes de
faixas longitudinais (infinitas), em vez de faixas transversais (deli-
mitadas). Esse deslocamento de concepção produz a maior das difi-
ANEXO

Quadro sinóptico entre as IF (TS 227), as Bemerkungen I (BM I:


TS 228) e as Bemerkungen II (BM II: TS 230 ). As 12 primeiras in-
serções nas IF (§§ 22, 28, 35, 70, 104, 108, 133, 138, 139, 142, 149 e
165) são fichas (Zettel) que vieram da BM I ou da BM II.
:t
IF BMI BMII IF BMI BMII IF BMI BMII
IF BMI BMII IF BMI BMII ~

279 444 147 653a 218 -


22 432 - 355 454 296 470 380 563
=,,."
e
297 524 564 445 148 653b 219 -
229 356 455 471 365
28 522 g:
- 359 370 74 472 381 272 565 446 149 654 - 463b :s-
35 36,223
273 - 655 - 463c r;
545 - 360 342 76 473 382 566 447

1~·
70
274 448 150 656 210 464
104 340 130 367 156 377 474 383 567

268 151 657 211 465


108 502 - 368 658 109 475 491 568a 449

542 370 633 367 476 492 269 569 230 - 658 637 355
[
133 140

138 82 113 371 697 369 477 460 270 570 231 125 659 222 463 §
129 271 571a 375 95 660 216 442 is-
72, 210 372 385 478 461
i·"'
139 363, 335
265 571b 681 299 661 204 462
142 357 124 373 698 341 479 462
-
149

165
79, 86

395
477, 479

61
374

375 269a
175 368

375, 75
480

481
463, 464 266, 280

465 281
572

573
289

326
482

483
662

663
208

209 435 "s·

- 174 374 482 466 282 574 353 - 664 109 399
201 265 376
283 250ab 470 665 108 408
202 266 - 377 261 370 483 467 575

284 576 286 466 666 141 419


203 267 336 378 263 333 484 468
285 197 443 667 142 420
214 - - 379 264 334 485 469 577

288, 289 496 472 668 143 421


677 25 380 262 335 486 631,632 578
215
267 570 291 669 144 422
25 381 346 372 487a-c 628 579
216 678
- 371 670 148 423
218 337 23 382 99 331 488 - 580 588

IF 8MI BMII IF 1 __ BMI BMII IF BMI BMII IF BMI BMII IF BMI BMII
219 596,597 239,240 384 259 366 489 - - 581 285a - 671 145 424

220 598 - 386b 602 39 490 - - 582 287 467 672 146 425

221 599 241 388 29 - 491 113 8 583 253 49 673 147 426

222 603,614 - 389 30 184 492 543 10 584 254 50 674 150 393

223 339 25 390 233 351 493 187 - 585 249 476 675 151 394

224 282 256 396 358 96 494 188 - 586 288 468 676 587 392

225 613 255 397 - - 495 537 14 587 459 469 677 152 395

226 607 251 398 156 377 496 110 - 588 310 487 678 589 426

227 608 252 399 162 - 497 115 127 589 563 484 679 590 428

228 621 - 400 164 383 498 538 15 590 564 485 680 200 396

229 338 244, 401 166 385 499 539 154 591 283 494 681 201 397

230 604 248 402 157 - 500 67 155 592 315 492 682 191 401

231 622 242 403 122 315 501 112 71 593 183 45 683 213 400

232a 609 257 404 123 307 502bc 91 28 594ab 567 38 684 214 -
232b 619 - 405 124 308 503 1 18 594c 602 39 685 320 432

233 610 258 406 125 309 504 2 19 595 316 493 686 193 390

234 616 260 407 129 - 505 17 103 596 640 533 687 585 413

235 617 - 311 102 540 388


5"
408 131 506 25 597 641 688 325
~
236 612 261 409 132 312 507 7 20 598 642 541 689 224 415

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i
lf BMI BMII lf BMI BMII lf BMI BMII lf BMI BMII lf BMI BMII
~

237 605,606 249 410 680 306 508a 6 - 599 691 294 690 238 387

238 336 23 411 139 314 509a-c 105, 107 406 600 662 532 691 196 414 i
239 38 328 414 161 118 510 426 91 601 423 531 692 352 -
412
1
~
~

240 277 262 415 389 126 511 506 156 602 390 525 693 343
S-
242 279 263 419 273 376 512 64 157 603 391 526

245 626 343 422 205 350 513 47 114 604 392 527 I·&'
~-~
247 305 339 423 635 353 514 685 115 605 394b 529

248 138 33 424 636 354 515 686 116 606a 566 68, 534 §
249a 689 440 425 126 356 516 666 119 607 366 536
"';s
250 252 439
161
426 127 357
352
517
518
667
371
120
226
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537
59
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251 63 427 696 5'
162 428 557,558 179, - 519 102 227 610a 664 111
252 65
634 247 429 531 180 520 69 160 611 475 508
255
257 458 302 430 51 186 521 505 159 612 476 509

317 431 21 187 522 532 56 61,3 480 512


262 693
180 531 432 688 185 523 406 58 614 227 504
263
264 97 152 433 546 189 524 - - 615 359 502

319 434 556 190 525 9 55 616 360 503


265 177

692 322 435 369a-c 175, 176 526 10 54 617 474 507
266

lf BMI BMII lf BMI BMII lf BMI BMII lf BMI BMII lf BMI BMII
267 179 320 436a 396 177 527 89 60 618 482 513

268 181 324 436b 671 - 528 332 43 619 483 514

269 583 327 437 57 191 529 334 44 620 484 515

279 695 325 438 56 212 530 403 52 621a 485a 516

292 309 337 439 508 213 531 682 29 622 - -


294 155 332 440 243 - 532 683 30 623 321 -
297 154 321 441ab 244 233 533 684 31 624 361 521

299 627 246 442 510 193 534ab 280 34 625 362 522

300 650,651 342, - 443 511 194 535 422 62 626 173b 386

301 - - 444 523 230 536 419 - 627 228 505

305 182 346 445 524 231 537 416 65 628 229 506

306 176 347 446 512 195 538 417 66 629 - -


307 258 348 447 494 217 539 418 67 630 312 489

308 687 349 448 70 218 540 327 46 631 313 490

309 368 178 449 71ab 219 541 328 47 632 314 491

317 375 95 450 348 108 542 329 48 633 317 448

321 350 497 451 31 - 543 272 41 634 318 446

322 351 498


293
452 507 196
197
544 270 -
40
635 220 443
441
f
326 256 453 630 545a 271 636 215

15
248 1 Asingularidade das Investigações filosóficas de Wittgenstein

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