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O carma do senhor Immanuel

Kant na França e seus últimos


dez dias de vida

2020
Copyright © 2020 do autor

Direitos reservados desta edição:


RiMa Editora

Proibida a reprodução total ou parcial.

Marques, Adilson

M357c O carma do senhor Immanuel Kant na França, e seus últimos


dez dias / Adilson Marques. São Carlos: RiMa Editora, 2020.

109 p.
ISBN 978-65-80035-21-2

1. Apometria. 2. TVI. 3. Animagogia. 4. Espiritualidade.


I. Autor. II. Título.

Editora

Rua Virgílio Pozzi, 213 – Jd Santa Paula


13564-040 – São Carlos, SP
Fone: (16) 98806-4652
Se uma exposição for bela, mas superficial, conseguirá
apenas deleitar a sensibilidade, mas não o entendimento;
se, pelo contrário, for sólida, mas árida, agradará então
só ao entendimento, mas não à sensibilidade.

Immanuel Kant, em Lógica


Sumário

Introdução .......................................................................... 9
De Châlons a Königsberg: as agruras de
uma alma .......................................................................... 15
O Dia 2 de Fevereiro de1804: o início da
emergência espiritual de Immanuel Kant ....................... 27
3 de Fevereiro de 1804: a descoberta de um
mundo novo ..................................................................... 31
4 de Fevereiro de 1804: a reencarnação como
um fato natural ................................................................. 37
5 de Fevereiro de 1804: a lei do carma é inexorável ....... 43
6 de Fevereiro de 1804: o amor cobre uma
multidão de pecados ......................................................... 49
7 de Fevereiro de 1804: a comunicação mediúnica
sempre existiu ................................................................... 53
8 de Fevereiro de 1804: a vida é Lila, uma
brincadeira divina! ............................................................ 57
9 de Fevereiro de 1804: o milagre é natural! ................... 61
10 de Fevereiro de 2004: somos todos irmãos
espirituais e nunca nos separamos ................................... 65
11 de Fevereiro de 1804: amar o inimigo ........................ 69
12 de Fevereiro de 1804: o suicídio
antecipa a morte? ............................................................. 73
Os Últimos Minutos de Vida de Immanuel Kant:
o regresso ao Lar ............................................................... 77
O Diário de Luna Dorada (Fragmentos) ......................... 85
Glossário Básico ............................................................ 101
Introdução

P or volta de 1794, Immanuel Kant conheceu Luna


Dorada, nome artístico de uma ex-bailarina espanho-
la que, ao se tornar viúva e dona de uma fortuna consi-
derável, resolveu refugiar-se na bela cidade de Königsberg,
na Prússia, para fugir das sombras do passado.
O motivo de ter saído da Espanha era um segredo
que ela guardava consigo. Sua vida era tão misteriosa e
sua participação tão pouco interativa no grupo de estudo
conduzido pelo filósofo – no qual mais ouvia do que
falava – que sua presença passou despercebida pelos
biógrafos de Kant, apesar de sua participação ter sido
intensa na vida íntima dele, principalmente em seus
últimos dez dias de vida.
Na cidade de Königsberg, ela se dividia entre as
atividades de tolerância em um cabaré da cidade, onde
tinha um quarto exclusivo, e os estudos filosóficos
conduzidos por Kant, em um salão no interior da igreja
local. A diferença de idade entre ambos era de aproxi-
madamente 20 anos, e ela era uma das poucas mulheres
que participavam das aulas do filósofo.
O cabaré era apenas sua residência. Ela não se
envolvia com os homens que frequentavam o local. Luna
pagava aluguel de um quarto confortável e amplo, onde
conseguia a paz necessária para descansar a mente e a
alma. Mas acabou se tornando grande amiga das demais
mulheres, a quem ajudava com orientações sobre as
coreografias, conselhos para a vida prática e até mesmo
com dinheiro, quando estas mais necessitavam.
10 Adilson Marques

O trabalho como bailarina encerrou-se na Espanha


por volta de seus 25 anos de idade. Sobre o seu passado
no país ibérico ela colocou uma pedra, não querendo
falar com ninguém a respeito. Mas, em Königsberg,
principalmente no cabaré, ela ficou conhecida por sua
habilidade em ler as mãos e em jogar tarô, o que fazia
para as novas amigas e, nos raros momentos de lazer do
filósofo, para Immanuel Kant.
Em suas primeiras experiências como consulente de
Luna, o filósofo fazia questão de ouvir sua nova amiga
em virtude da afeição que nutria por ela, sem demonstrar
muito interesse pelo conteúdo transmitido, porém, com
o passar do tempo, sua relação com as informações
mudou radicalmente. Ele varava a madrugada conver-
sando com a amiga, que, até se habituar ao frio de
Königsberg, precisava voltar para o cabaré com o
sobretudo usual de Kant. Ele brincava que o empréstimo
era a forma de pagar pela leitura de mão ou de tarô.
Luna, dona de considerável fortuna, não jogava por
dinheiro.
A taróloga orgulhava-se em dizer que as breves
teorias sobre a imaginação, a fantasia e os lampejos de
romantismo na obra filosófica de Kant deviam-se à sua
influência, nos últimos anos da vida do filosofo da razão
pura, assim como algumas de suas reflexões sobre
estética e até sobre o sexo e as relações sexuais na
sociedade civil, questionando o porquê de os filósofos
da liberdade se esquivarem do tema.
Para Kant, o comportamento sexual de adultos não
dizia respeito ao Estado nem à moralidade, se não segue
dano às partes e a mais ninguém. A perversidade só
surgiria quando o outro deixava de ser tratado como
O Carma do Senhor Immanuel Kant na França 11

pessoa e passava a ser visto como coisa, algo que nunca


teria acontecido na relação entre Kant e Luna.
Immanuel Kant nasceu em Königsberg, em 1724,
o quarto de nove filhos de um casal de devotos pietistas.
Como o mais velho entre os sobreviventes, acabou
assumindo o compromisso de cuidar dos irmãos meno-
res, após a morte dos pais. Sua juventude e início da vida
adulta foram marcados pelo sacrifício e penúria finan-
ceira, contribuindo muito mais para que Kant se
tornasse o homem movido pelo dever e pela indiferença
perante o poder ou reputação do que a educação anti-
intelectualista do pietismo, uma seita reformista dentro
do movimento Luterano que gozava de certo prestígio
entre as camadas baixas e médias prussianas.
Porém, para a ex-bailarina e taróloga, o fato de Kant
ter nascido nessa família pietista e ter perdido os pais
tão cedo não fora um mero acaso. Como ela gostava de
ressaltar, era a colheita por erros e acertos em sua vida
anterior, na França, onde Kant havia encarnado e vivido
a personalidade de um famoso bispo na região de
Champagne.
Ela enfatizava que as dificuldades financeiras na
juventude, o corpo deformado, a morte prematura do
pai a quem respeitava e da mãe por quem nutria grande
amor – dentre tantas outras experiências que marcaram
a infância, a juventude e o início da vida adulta de Kant –
tinham relação direta com aquela vida passada, assim
como o fato de não ter se casado ou tido filhos. Segundo
Luna, Kant precisava, desde tenra idade, assumir o dever
cármico de ajudar na criação dos irmãos.
Luna, que parecia conhecer como ninguém a alma
de Kant, dizia que, em sua vida passada, ele teria
12 Adilson Marques

engravidado várias freiras, mas forçou-as a abortar. E os


mesmos Espíritos animavam a vida de seus irmãos
menores e daqueles fetos abortados.
A teoria da amiga mexia profundamente no íntimo
de Kant. Por um lado, se as categorias causa-efeito e
necessidade-contingência eram fundamentais para se
compreenderem os fenômenos naturais e humanos, por
outro, Kant não considerava racional a ideia da reen-
carnação. Ele acreditava na sobrevivência do Espírito
após a morte, mas não conseguia compreender como
seria possível um Espírito retornar à Terra em um novo
corpo físico.
Apesar desses pensamentos povoarem com fre-
quência a mente de Kant, fazendo-o perder noites de
sono, ele mantinha uma relação ambígua com aquelas
revelações. Assim, mesmo quando se manteve cético
diante do que ouvia, sua atenção era plena e, ao mesmo
tempo, rememorava passagens de seu estudo sobre o
“vidente de espíritos”, o sueco Emanuel Swedenborg,
um contemporâneo por quem havia nutrido um misto
de admiração e desprezo.
Em 1766, Kant publicou um livro polêmico e de
nome estranho: Sonhos de um vidente de espíritos explicados
pelos sonhos da metafísica. Este nunca teve o prestigio de
seus livros posteriores, e seus críticos e amigos costu-
mavam classificá-lo como sendo do período “pré-crítico”
ou de imaturidade do filósofo. O próprio Kant teve
receio de assumir publicamente o livro, tanto que o
publicou com um pseudônimo e justificou o interesse
nas narrativas visionárias de Swedenborg para com-
pensar a despesa financeira que teve com a aquisição do
livro Arcanos celestes.
O Carma do Senhor Immanuel Kant na França 13

Mas o interesse de Kant pelo assunto era realmente


sério. Por isso, mesmo colocando em dúvida as infor-
mações, nunca ironizou as revelações feitas por Luna.
Às vezes se questionava se suas críticas a Swedenborg
não tinham sido muito duras. E se, de fato, o vidente
de Espíritos estivesse certo?
Com Luna, porém, era diferente. O peso da idade
e a paixão por aquela mulher de corpo esguio, boca
carnuda, cabelos encaracolados e olhar profundo e
misterioso o seduziam de tal forma que não seria capaz
de nenhuma ironia. Ao contrário, encantava-se sempre
que a via se expressando e manipulando as cartas com
suavidade e sensualidade.
Kant também admirava os olhos negros daquela
mulher. Eles piscavam freneticamente durante o tempo
em que, em transe, Luna manipulava as cartas. Kant
jurava ver raios lilases brilhando ao redor deles, dando
uma coloração toda especial àqueles olhos que tanto
gostava de contemplar.
Esse poder de seduzir e causar alucinações, como
as antigas pitonisas, fazia parte da arte, da beleza ou da
“fraqueza” feminina. Para Kant, tanto o homem quanto
a mulher eram propensos ao domínio. Mas cabia à
mulher dominar pelo contentamento e pelo deleite. E
o segredo daquela mulher de olhar penetrante estava na
arte de encantar por meio da manipulação das cartas e
da leitura das mãos, hipnotizando-o completamente.
Foram nos últimos dez dias da vida de Kant que a
relação com Luna se intensificou. Ambos passaram a se
ver diariamente, em horários preestabelecidos, no final
da tarde. Sonhos recorrentes passaram a incomodar a
mente racionalista de Kant e, antes de morrer, assumiu
14 Adilson Marques

para si mesmo que realmente não por acaso nascera em


uma família pietista que o obrigou a se adequar a uma
vida simples e em integral obediência à lei moral.
Nos últimos instantes de vida convenceu-se de que
sua existência foi um contraponto necessário ou um
descanso para aquela alma atormentada que, na perso-
nalidade vivida anteriormente, representou o papel de
um bispo que se acostumou com a luxúria e a pro-
miscuidade, cometendo muitos desatinos cujas conse-
quências sua alma foi obrigada a colher na vida seguinte.
Antes dos últimos suspiros, aceitou plenamente a
reencarnação como um fato natural e necessário. Mas
não havia mais tempo para comunicar essa descoberta
ao mundo, que já o tratava como um louco.
No último encontro, Kant entregou a ela um texto
e pediu-lhe que o mesmo fosse destruído após a leitura.
Luna cumpriu apenas parte do acordo. Anos mais tarde,
quando ela foi encontrada morta, em seu quarto, no
cabaré, um trecho do texto foi achado ao lado do corpo:

O amor, enquanto afeição humana, é o amor que


deseja o bem, possui uma disposição amigável,
promove a felicidade dos demais e alegra-se com ela.
Mas é patente que aqueles que possuem uma incli-
nação meramente sexual não amam a pessoa por
nenhum dos motivos ligados à verdadeira afeição e
não se preocupam com a sua felicidade, mas podem
até mesmo levá-la à maior infelicidade simplesmente
visando satisfazer a sua própria inclinação e apetite.
O amor sexual faz da pessoa amada um objeto do
apetite; tão logo foi possuída e o apetite saciado, ela
é descartada tal como um limão sugado.
O Carma do Senhor Immanuel Kant na França 15

De Châlons a Königsberg:
as agruras de uma alma

D urante cerca de dez anos, após conhecer Luna,


Kant recebeu, em “doses homeopáticas”, infor-
mações sobre uma suposta encarnação vivenciada na
França, entre a segunda metade do século XVII e início
do século XVIII, durante o reinado de Luiz XIV.
A cada nova revelação, Kant se questionava se não
deveria rever os livros escritos antes da sua fase crítica,
quando afirmou ter acordado de um sonho dogmático.
Mas encontrava-se velho, cansado e sem disposição para
escrever como antigamente. Ainda assim, foram várias
noites em claro, refletindo sobre as informações que lhe
foram transmitidas por sua amiga Luna Dorada, após
suas concorridas aulas sobre Ética.
Ao juntar todas as informações, como se fossem
peças de um imenso quebra-cabeça, Kant concluiu que
elas faziam referência ao bispo Jean Baptiste Louis
Gaston de Noailles (1669-1720), que construiu sua
carreira política e religiosa na cidade de Châlons, na
região de Champagne. Ou seja, Kant teria nascido ou
reencarnado, como ela dizia, quatro anos após a morte
do bispo.
Para a taróloga, era possível um retorno tão rápido
da alma para uma nova encarnação, caso a missão ficasse
incompleta. E dava sempre detalhes das paragens
espirituais por onde a alma de Kant teria vagado antes
de voltar à Terra. Surpreendia-lhe a semelhança entre o
que ela dizia e o que estudou e, de certa forma, ridicu-
16 Adilson Marques

larizou na obra que escreveu sobre o “vidente de


Espírito”, quase 30 anos antes.
Para Kant, fazia sentido imaginar o Universo
composto por diferentes esferas com variações de
luminosidade e felicidade, e que seriam as moradas do
Espírito após a morte do corpo físico. A distribuição
dos Espíritos era comandada por uma Lei Espiritual
Universal. Mas a forma como Luna descrevia essas
paragens espirituais era muito semelhante às que ele
estudou em seu livro sobre Swedenborg, e isso o
incomodava.
Assim, sempre que Luna relatava algum fato espiritual,
Kant buscava em sua memória as imagens que criou em
sua mente ao ler o livro Arcanos celestes. Tanto neste livro
como nas narrativas visionárias de Luna, existiriam, nos
mundos invisíveis, casas, jardins, ruas, escolas, além de
atividades artísticas como música e literatura. Os novos
habitantes, após um período de repouso, recuperavam a
consciência. E os velhos ou aleijados também recuperavam
o vigor, e seu corpo espiritual adquiria uma aparência
saudável e rejuvenescida.
Porém, enquanto Kant ficou muito incomodado ao
estudar a obra de Swedenborg, concluindo que tudo não
passaria de ilusão ou de “sonhos das sensações” – como
ele identificou as “alucinações” do vidente de Espíritos –,
com relação às narrativas de Luna ele já era capaz de
demonstrar outro sentimento.
Se antes ele considerava como patológica, agora ele
aceitava que era possível a comunicação com a alma dos
mortos. E que o fenômeno era completamente natural.
Da mesma forma que não considerava Swedenborg um
charlatão, tinha certeza de que a amiga não mentia nem
O Carma do Senhor Immanuel Kant na França 17

fingia estar em transe enquanto transmitia informações


sobre sua suposta vida passada.
Para Kant, o vidente de Espíritos sofria de uma
perturbação da inteligência, fruto de alguma afecção
patológica dos sentidos e da imaginação. O resultado
seriam as representações simbólicas de um além
impossível de ser atingido pelas mentes normais. No
caso de Luna, ao contrário, já considerava que nada de
patológico estava acontecendo. Tratava-se, apenas, de
alguma habilidade psíquica pouco conhecida pela
ciência.
Graças à convivência rotineira com as experiências
psíquicas da espanhola, Kant superou as conclusões
escritas em seu livro sobre o vidente de Espíritos. Já não
acreditava mais que contatar o mundo dos mortos fosse
capaz de produzir um efeito patológico sobre as facul-
dades mentais. E, mesmo considerando que o fato ainda
era difícil de ser tratado pela racionalidade do século
XVIII, passou a considerar que, para algumas pessoas,
a comunicação entre “vivos” e “mortos” era natural e
que isso não acarretaria enfermidades ou loucura.
Incomodava-o, porém, a descrição que ela fazia do
período entre vidas da alma do bispo, ou seja, nos
quatro anos antes de retornar e viver uma nova exis-
tência, agora como Immanuel Kant. O que ele havia
classificado como “delírio” ou “relatos extravagantes”
de Swedenborg – na descrição tanto das entidades
angelicais quanto das monstruosas – estavam ali à sua
frente, nas narrativas da amiga Luna. E o mais preo-
cupante: referia-se à experiência que supostamente
Kant teria experimentado na erraticidade após ter
vivido como o bispo de Châlons.
18 Adilson Marques

Em seu livro sobre o vidente de Espíritos, Kant fazia


uma pequena recomendação às mulheres, principal-
mente às grávidas, de que não entrassem em contato
com as descrições sobre o estado dos Espíritos após a
morte. Sendo a forma espiritual fruto da vivência moral,
muitos pareciam deformados ou com aspectos anima-
lescos. Sua amiga, porém, não parecia ter medo ou
repugnância em descrever as aparências que via, inclu-
sive a de seu amigo Immanuel Kant antes de encarnar.
Se não estivesse tão velho e cansado, teria, final-
mente, motivos para sair de sua pequena Königsberg e
viajar pela França a fim de descobrir mais detalhes sobre
a vida daquele curioso bispo: escrever um livro sobre a
possibilidade da reencarnação dos Espíritos seria o
coroamento de suas teorias sobre o conhecimento a
respeito do transcendente por meio do que chamou de
“conhecimento sintético a priori”.
Mesmo assim, com a ajuda de amigos e de estu-
dantes que vinham de outras cidades europeias para
participar de seus cursos, conseguiu reunir, por volta dos
75 anos de idade, vários documentos sobre a vida do
bispo, os quais estudou com muito afinco. Não foi difícil
conseguir informações sobre a vida pública do bispo, mas
quase nada que comprovasse os fatos que sua amiga lhe
passava.
Algumas informações que recebeu fizeram com que
se identificasse com o francês. Dava deliciosas risadas
quando contava para a amiga ocultista o que havia
descoberto nos textos. Agradou-lhe particularmente –
até criou piadas bem-humoradas sobre isso – o conflito
que o bispo teve com o papa Clemente XI, quando foi
publicada a bula papal contra os jansenistas.
O Carma do Senhor Immanuel Kant na França 19

O jansenismo foi uma doutrina religiosa que se


fundamentou nas ideias de Cornelius Jansenius, bispo
em Ipres, na Bélgica. O cerne de seu pensamento era o
problema da Graça, inspirando-se em Santo Agostinho.
O livro Augustinus, de Jansenius, foi publicado postu-
mamente em 1640 e se tornou referência obrigatória
para os jansenistas e seus rivais, principalmente os
jesuítas.
Na França, um dos mais respeitados defensores do
jansenismo foi o irmão mais velho do bispo Gaston de
Noailles, o cardeal Louis Antoine de Noailles. Porém,
em 1713, o papa Clemente XI expediu a Bula Unigenitus,
que excomungava os jansenistas. Assim como o irmão
mais velho, o bispo teria se posicionado contra a
autoridade da Igreja Católica e falecido sem pedir perdão
ao papa.
Kant, ciente desse fato, passou a ver certa se-
melhança entre o conflito vivido entre o bispo e o papa
e o dele com Frederico Guilherme II, imperador que, em
1788, tentou acabar com a tolerância religiosa existente
na Prússia.
O conflito foi motivado pelo livro de Kant A religião
dentro dos limites da simples razão, que, apesar de não ter
sido censurado, fez com que o filósofo fosse proibido de
participar de qualquer discussão pública sobre religião.
Por isso, assim como o bispo, Kant também sofreu muita
dor e amargura por conta de suas ideias e convicções
sobre religião.
Enquanto lia sobre a vida do bispo, Kant se emo-
cionou ao conhecer o trabalho voluntário que o religioso
havia realizado em 1709, ano em que se registrou na
França um dos invernos mais rigorosos que se têm
20 Adilson Marques

notícias, e também o trabalho em um convento, criado


pela mãe do bispo, durante a infância deste, para acolher
prostitutas que se convertiam ao catolicismo, as assim
chamadas fille repenti.
Divertiu-se especialmente com um dos fatos mais
marcantes da biografia pública do bispo: a destruição
de uma relíquia, motivo de importantes romarias até
Châlons, movimentando a economia local. O objeto
cultuado e venerado pelos fiéis era uma tripa seca,
possivelmente de carneiro, que ficou conhecida como
sendo o umbigo de Cristo.
Segundo o texto que chegou às mãos de Kant, o
bispo provavelmente se irritou com tanto fanatismo e
quebrou a relíquia com a justificativa de que Jesus
deveria ser adorado em “espírito e verdade”. O fato
colocou praticamente toda a cidade de Châlons contra
ele. O único que parece ter concordado com a ação do
bispo foi Voltaire, que fez um comentário sobre essa
atitude em um de seus textos.
Esses e outros fatos que Kant encontrou sobre a vida
do bispo não entravam em contradição com as infor-
mações que sua amiga lhe trazia, seja por meio da leitura
de sua mão ou pelo tarô. Porém, também não as con-
firmavam.
A única informação transmitida pela taróloga que
teria relação direta com os fatos históricos encontrados
por Kant foram os textos escritos pelo bispo e proibidos
pela Igreja Católica, fazendo estes parte do index. Em
busca de tais materiais, ele encontrou referência ao texto
denominado Lettre pastorale et mandement l’lllustr.me et
Reverend.me, publicado em 1714, ou seja, dez anos antes
de Kant nascer.
O Carma do Senhor Immanuel Kant na França 21

Porém, as informações mais polêmicas transmitidas


pela amiga estavam relacionadas à vida particular do
bispo e não puderam ser comprovadas em nenhum dos
documentos que Kant conseguiu coletar. Passou a
considerar a hipótese de que o bispo talvez levasse uma
vida dupla: um “santo” em público e um “demônio” em
particular. Ou seja, uma pessoa que não sabia lidar com
a própria sombra, no caso, a sexualidade arrebatadora
e sua concupiscência. E que, por alguma razão, Luna era
um instrumento para transmitir tais informações que,
não necessariamente, seriam de uma vida passada dele.
Segundo a taróloga, o bispo não tinha vocação
religiosa, gostava mesmo era de dançar. Fascinado pelas
danças da corte, teria ingressado na Igreja por motivos
familiares e políticos e não por vocação religiosa, ao
contrário do irmão mais velho, que também foi bispo
em Châlons antes de se tornar cardeal em Paris.
Jean Baptiste Louis Gaston de Noailles descendia
de uma importante família francesa, ao contrário de
Kant, que era filho de humildes pietistas. Enquanto o
bispo foi o filho caçula – o sexto – de Anne de Noailles,
um militar que ganhou algum destaque durante o
reinado de Luiz XIV, Kant não era nem o primogênito
nem o caçula, mas, como o mais velho entre os sobre-
viventes, acabou ficando responsável pelos mais novos.
O bispo, de acordo com a taróloga, mantinha
envolvimento amoroso com freiras e outras mulheres da
Igreja. Para ela, do ponto de vista espiritual, tais
relacionamentos não seriam problema. O “carma”, cujos
efeitos estavam sendo colhidos por Kant, deveu-se aos
abortos que ele provocou dentro dos conventos que
administrava.
22 Adilson Marques

Em sua mente, ela dizia ver o bispo providenciando


abortos quando uma freira aparecia grávida. Em outros
casos, quando a criança chegava a nascer, ela era retirada
da mãe e colocada na roda dos enjeitados, em outros
conventos da região, impedindo, assim, qualquer con-
tato entre mãe e filho.
Para a taróloga, isso explicaria o fato de Kant ter
muita dificuldade para se relacionar com as mulheres –
embora fosse um homem cordial, era muito atrapa-
lhado – e não ter filhos na atual encarnação. E o fato
de ter perdido os pais ainda na juventude – uma vez que
ninguém morre antes da hora, segundo sua crença – e
precisar assumir a criação dos irmãos menores, que
teriam sido os filhos abortados ou abandonados no
passado.
Kant não encontrou nenhum documento histórico
ou depoimento que confirmasse tais informações sobre
a vida oculta do bispo, mas concordava com a amiga que,
dentro de uma perspectiva de causa e efeito, faria sentido
as conjecturas. Entretanto, ele ainda não acreditava em
reencarnação, ou na possibilidade de colher em outra
vida o que se plantou em uma passada.
Sua racionalidade até aceitava que as informações
sobre o bispo poderiam ser verdadeiras, mesmo não
tendo achado os documentos comprobatórios. Mas seria
por algum motivo ainda desconhecido que ela acessava
tais informações.
Kant até aceitava a ideia de que havia um en-
cadeamento lógico ou, quem sabe, coincidências, de
modo que parecia haver uma relação de causa e efeito
entre os supostos erros do bispo e as vicissitudes
presentes em sua vida.
O Carma do Senhor Immanuel Kant na França 23

Porém, ele compreendia, e não era de agora, que os


Espíritos seriam seres que ocupavam o espaço físico sem
o preencherem e que habitariam um mundo suprassen-
sível formando uma comunidade de seres racionais. E
que havia uma interdependência entre o mundo sensível
dos humanos e o suprassensível dos Espíritos, que não
seriam nada além do que as almas dos mortos.
Dessa forma, Kant acreditava que o fato de os
Espíritos não estarem efetivamente no espaço não os
impediria de se utilizar dos pensamentos humanos e,
portanto, suas ideias ou opiniões eram sempre revestidas
pela aparência do mundo sensível. Assim, acreditava ser
possível que no mundo dos Espíritos as representações
fossem similares às humanas, daí a existência das escolas,
dos hospitais, dentre outras coisas que tanto Swedenborg
como Luna costumavam descrever.
Para ele, Swedenborg era um “oráculo dos Espí-
ritos”, que teria o seu “ser interior” aberto, podendo
ser tomado por estes, e o mesmo acontecia com a
amiga espanhola enquanto lia as mãos ou abria o tarô.
As cartas seriam apenas um instrumento para os
Espíritos se manifestarem – usando o corpo e a voz
da amiga – e conversarem com ele ou com outros
consulentes.
Porém, ainda mantinha a mesma opinião de algu-
mas décadas atrás: seria pretensioso não acreditar em
nada do que diziam, mas, ao mesmo tempo, não era
possível crer em tudo sem um exame mais rigoroso da
razão. Daí seu envolvimento crítico com toda infor-
mação que vinha dos Espíritos.
Mas uma grande diferença entre o antigo e o novo
Kant – daquele que estudou os livros de Swedenborg e
24 Adilson Marques

do que convivia diretamente com uma sensitiva – foi o


abandono dos momentos de ironia ou as afirmações de
que teria sido ingênuo ao investigar se os relatos de
Swedenborg poderiam ser verídicos ou loucura.
Pela amiga Luna Dorada demonstrava muito res-
peito, mesmo colocando entre aspas as informações que
recebia, e agia com mais seriedade diante desse inter-
câmbio com as dimensões transcendentes.
Obviamente, a oportunidade de presenciar a amiga
em transe transmitindo as informações mudava muita
coisa. Embora não fosse um empirista, levava em
consideração as teorias de Hume e, portanto, reconhecia
o valor da experiência. Kant, que não via como exclu-
dentes o racionalismo de Leibniz e o empirismo de
Hume, enxergando uma relação de complementaridade
entre as duas visões, conseguia entender que estava
diante de um importante enigma do conhecimento
humano que, para ser desvendado, a racionalidade e a
experiência empírica deveriam andar de mãos dadas.
Assim, não se baseava mais em uma especulação
racional, lógica ou cartesiana, como havia feito ao
estudar a obra de Swedenborg. Kant estava agora diante
da vivência e observação da naturalidade com que o
transe se processava na vida da amiga e que nada de
patológico acontecia com aquela mulher. Embora,
obviamente, levasse uma vida diferente para os padrões
prussianos, ela, sem dúvida, era saudável.
Em suma, sua razão agora já não se encontrava tão
desamparada quanto algumas décadas atrás. Para Kant
começava a ser um falso enigma o shakesperiano
aforismo que afirmava ser a morte a região misteriosa
de onde nenhum viajante jamais teria voltado.
O Carma do Senhor Immanuel Kant na França 25

Porém, nada se comparou aos seus dez últimos dias


de vida, quando intensos sentimentos ambíguos to-
maram conta de sua alma e sonhos enigmáticos passa-
ram a ocorrer diariamente. Todos os dias, por volta das
18 horas, passou a receber a visita da amiga Luna
Dorada para conversarem. Para as pessoas e amigos mais
próximos, Kant estaria completamente louco, falando
coisas sem nexo.
Luna, porém, sabia que o processo de desligamento
da alma estava se processando, mas não queria assustar
ainda mais o amigo cuja racionalidade estava sendo
fortemente abalada pela crise de emergência espiritual
que ocorria dentro dele.
A espanhola procurou confortá-lo nesses dias,
dando-lhe o amparo necessário para que sua passagem
fosse a mais tranquila possível. Ela sabia que, no máximo
em duas semanas, Kant passaria a habitar o mundo dos
Espíritos, quando poderia rever suas crenças terrenas e
constatar que a reencarnação era um fato natural, no
qual se troca de corpo como se troca de roupa na Terra.
Teria, então, a oportunidade de comparar sua existência
como Immanuel Kant com suas vidas anteriores, ana-
lisando se passou ou não nas provas escolhidas volun-
tariamente por ele.
Para Luna, era o Espírito eterno que importava e não
a roupagem terrena na forma de Immanuel Kant. Este
era apenas uma espécie de persona ou máscara que
ocultava a real individualidade. Ela tinha certeza de que,
em pouco tempo, ele recuperaria sua consciência real e
estaria do outro lado trabalhando no resgate de almas
ou até mesmo se comunicando por meio de algum
sensitivo, orientando e ajudando com sábios conselhos
26 Adilson Marques

as pessoas iludidas pela aparência do mundo feno-


mênico.
Assim, Kant, com sua consciência real desperta,
entenderia, realmente, a relação paradoxal entre o livre-
arbítrio e a fatalidade, uma vez que – ela gostava de
enfatizar – a plantação é livre, mas a colheita é sempre
obrigatória.
O Carma do Senhor Immanuel Kant na França 27

O Dia 2 de Fevereiro de 1804:


o início da
emergência espiritual de
Immanuel Kant

I nfluenciado ou não pelas revelações da taróloga, Kant


passou seus últimos dez dias de vida tendo sonhos
estranhos e enigmáticos. Em sua opinião, pareciam ter
relação com as histórias que a amiga contava sobre a vida
privada do bispo Jean Baptiste Louis Gaston de Noailles.
Os sonhos pareciam tão reais que ele foi ficando
apreensivo e a dúvida tomou conta de sua alma. Passou
a considerar que a reencarnação poderia ser realmente
necessária e que ele e o bispo seriam o mesmo Espírito.
Nem imaginava que dentro de poucos dias estaria ele
próprio sendo mais um habitante dos planos extrafísicos
e poderia observar e analisar se tudo aquilo que havia
escutado era, realmente, verdade ou apenas mistificação
e fruto do irracionalismo popular.
No dia 2 de fevereiro de 1804, Kant sonhou que
estavam reunidos ele, Swedenborg e a senhora Charlotte
Von Knobloch, uma antiga amiga de Kant que gostava
de ouvir as reflexões sobre metafísica do filósofo.
No sonho, enquanto conversavam, o vidente entrou
em transe e, como se estivesse com o corpo tomado por
um Espírito, disse para Kant que o conhecia de outra
encarnação, na qual o filósofo teria sido um líder religioso
da Igreja Católica cujos textos estavam na Biblioteca do
28 Adilson Marques

Vaticano, classificados no Index. No sonho, o Espírito que


se manifestava por meio de Swedenborg fazia referência
ao título “de Toulouse”, que repetia várias vezes.
Ao acordar, Kant lembrou-se de que Swedenborg
havia morrido em 1772, há mais de 30 anos, portanto.
No sonho, sua aparência era jovial e, antes de entrar
em transe, disse a Kant que estava muito ocupado
revendo as opiniões que manifestou na Terra sobre o
mundo espiritual. Afirmava que muito do que escreveu
era verdade, mas algumas informações precisavam ser
revistas. Disse ainda que, em breve, teria permissão
para escrever um livro por intermédio de uma sensitiva
da Terra.
Kant passou horas deitado na cama refletindo sobre
o sonho. Os diálogos e as imagens eram muito reais para
ser mera criação mental. O filósofo teve uma forte
impressão de que Swedenborg estava, realmente, vivo.
Mas Kant só tomou consciência de que estava
realmente diante de um morto ao acordar. E, supondo
que estivesse em contato com o Espírito dele, então o
sonho teria, de fato, um componente espiritual. A teoria
que Swedenborg e Luna compartilhavam, sobre a
aparência rejuvenescida do Espírito, faria sentido. No
sonho, o “vidente de Espíritos” tinha uma aparência
jovial, aparentava cerca de 30 anos de idade.
Mesmo assim, Kant ficou intrigado com o fato de,
no sonho, Swedenborg ter seu corpo tomado por outro
Espírito; parecia ser uma mulher que repetia com
frequência a expressão “de Toulouse”.
Kant passou o dia ansioso para encontrar a amiga
e conhecer a interpretação que Luna daria para tudo isso.
Mal sabia ele que esse sonho era apenas o primeiro de
O Carma do Senhor Immanuel Kant na França 29

uma série que o acompanharia até o seu último dia de


vida na Terra.
A informação de que havia textos inseridos no Index,
escritos em vida passada, não lhe chamou tanto a atenção,
uma vez que ela já tinha sido transmitida pela taróloga,
portanto poderia ter sido apenas uma criação onírica sem
maior importância. Mas sonhar com Swedenborg incor-
porado mexeu com seu ceticismo racionalista.
Seu dia poderia ter sido bem tranquilo se não fosse
o enigmático sonho. Seu coração só se acalmou no final
da tarde, quando recebeu a visita de Luna e puderam,
finalmente, conversar.
— Se há várias moradas no reino de Deus, para que
alguém dos planos mais elevados se comunique com
alguém que está em um mais baixo, faz sempre mister
um comunicador – assim ela respondeu à principal
questão levantada por Kant.
O filósofo ficou pensativo:
— Possivelmente, então, tanto lá, onde estiver, como
aqui, Swedenborg pode continuar desempenhando o
mesmo papel, como um Hermes contemporâneo.
— Tudo é tão simples, mas o coração humano recusa-
se a acreditar num universo sem uma finalidade! –
comentou Luna sorrindo.
Kant refletiu sobre a frase da amiga e, após abraçá-
la, disse:
— Realmente! Quem não sabe o que busca, não
identifica o que acha, não é mesmo?
Sobre o suposto Espírito que se manifestava por
intermédio de Swedenborg, Luna falou que em sua
mente via uma menina pequena no colo do bispo, ainda
adolescente. Não era filha dele, afirmou ela.
30 Adilson Marques

Após se concentrar por alguns minutos e com os


olhos fechados, ela exclamou:
— Trata-se de uma sobrinha do bispo!
A partir dessa informação, Kant consultou um
documento que havia recebido anos atrás de um aluno
e espantou-se ao descobrir que um dos irmãos do bispo
era o duque Anne Jules de Noailles. Este teve uma filha
chamada Maria Vitória de Noailles, que, após o segundo
casamento, tornou-se a condessa de Toulouse.
Kant ficou em dúvida. Será que ao ler aquele
documento, anos atrás, teria sido criada uma impressão
em seu cérebro com o nome “Toulouse”? E, mesmo não
se lembrando de todas as informações, seu cérebro teria
criado aquele sonho – como diria Hume – ou, de fato, o
Espírito da sobrinha do bispo estaria conversando com
ele através daquele sonho, e a ênfase no título “de
Toulouse” era uma forma de se identificar para ele?
A mente de Kant fervilhava com tantas questões.
Queria conversar com outras pessoas, mas, sempre que
tentava, era logo taxado de louco. O filósofo percebeu que
a mesma ironia com que tratou o livro de Swedenborg,
décadas antes, voltava para ele neste momento tão
delicado de sua vida. Somente Luna dava atenção
sincera ao que ele dizia e se mostrava interessada na
experiência que ele vivenciava nos momentos finais da
vida.
O Carma do Senhor Immanuel Kant na França 31

3 de Fevereiro de 1804:
a descoberta de um
mundo novo

N a noite seguinte outro sonho com o vidente de


Espíritos deixou Kant ainda mais intrigado. Desta
vez o filósofo se viu andando velozmente por um
comprido e tortuoso corredor dentro de um prédio
escuro e opulento. Apesar da idade avançada, no sonho
ele caminhava como um jovem de 20 anos.
Foram inúmeros os corredores que encontrou pela
frente. Mas Kant parecia saber realmente por qual deles
seguir e não titubeava. E, assim, entre as várias opções,
ele virava ora para a esquerda, ora para a direita sem
parar para pensar por onde prosseguir.
Depois de tanto correr percebeu uma pequena luz
que iluminava um ambiente em cuja entrada havia uma
grossa cortina vermelha. Ao se aproximar, agora com
mais calma, chegou a uma espécie de recepção onde
Swedenborg o aguardava com um sorriso no rosto e o
convidou a entrar.
Kant foi recebido no recinto por várias pessoas que
lá o aguardavam. Algumas lhe eram familiares, outras
não. Dentre as conhecidas, algumas pessoas já falecidas.
No centro da sala, destacava-se uma mesa de madeira
com uma abóboda de vidro sobre ela. Swedenborg
conduziu Kant até a mesa.
Ao se aproximar ele viu, em seu interior, vários livros
antigos.
32 Adilson Marques

— Estes são os livros que você escreveu ao longo de


suas vidas! Logo, todos aqueles que você escreveu na atual
existência também farão parte dessa coleção, assim como
os outros, que ainda escreverá – explicou-lhe o vidente.
Naquele momento, Kant estava fascinado pela
tênue luz, com cores distintas, que os livros irradiavam;
alguns em tons brilhantes, outros mais opacos. Curioso,
perguntou a Swedenborg o que seria aquilo.
— Meu caro amigo, cada livro manifesta também a
energia que o autor irradiou ao escrever. E esta energia
chega aos leitores. O conteúdo, a intenção, os senti-
mentos expressos durante a escrita fazem parte também
de cada livro, e é o que mais importa – respondeu o
vidente de forma amável.
Kant parecia admirado com aquela revelação.
Swedenborg, percebendo o interesse do filósofo pela
luminosidade que saía dos livros, completou:
— E, de acordo com a sensibilidade de cada leitor,
essa energia pode ser sentida plenamente!
Kant acordou após uma mulher se aproximar dele
e o beijar na face. Era sua mãe. Ainda sentindo o beijo
no rosto e muito emocionado, Kant começou a refletir
sobre o sonho. Lágrimas escorreram por seus olhos.
Não poderia ser apenas uma criação onírica, pensou.
Kant passou a trabalhar mentalmente com a hipótese
de estar se encontrando realmente com Swedenborg em
alguma dimensão espiritual, durante o adormecimento
do corpo, e, o que mais o impressionara naquele sonho,
com sua mãe, que falecera quando ele tinha apenas treze
anos de idade.
Naquele mesmo dia o filósofo recebeu a visita de
um antigo criado, Lampe, demitido dois anos antes.
O Carma do Senhor Immanuel Kant na França 33

Feliz com sua presença, Kant começou a contar-lhe seus


sonhos e as informações que havia recebido nos últimos
anos. Pediu ao ex-criado que pegasse os livros que
estavam sobre uma mesa. Enquanto Lampe os folheava,
Kant, tomado por um entusiasmo até então desconhe-
cido por aquele, começou a falar que eram textos que
tinha escrito no passado, em outra vida, e que foram
proibidos pela Igreja Católica, fazendo parte do Index.
Afirmou também que fora um bispo francês e havia
se envolvido em um conflito com a Igreja Católica, após
o lançamento da bula papal Unigenitus, em 1713,
condenando o jansenismo, movimento político-religioso
que ele, Immanuel Kant, abraçou em sua vida passada.
Contou ainda a história do umbigo de Cristo, uma
relíquia que era cultuada pelos fiéis e que ele, na pele
do bispo Gaston de Noailles, teria destruído.
Kant contava e ria. Narrava com entusiasmo suas
descobertas. Lampe, porém, embora tivesse ouvido
atentamente e com educação todas aquelas histórias,
saiu da casa do ex-patrão com a certeza de que ele estava
senil. Aquelas falas desencontradas sobre sonhos ou
livros proibidos pelo Vaticano só podiam ser fruto da
loucura que havia tomado conta da mente do filósofo,
como muitos diziam.
Lampe fez questão de ouvir afetuosamente seu
antigo patrão para não o desagradar. Deixou Kant falar
pelo tempo que precisasse e depois se despediu, sem
fazer nenhum comentário. Mas espalhou, em seguida,
por toda a cidade, que o filósofo de Königsberg tinha
ficado completamente louco.
Kant, por outro lado, passou o resto do dia con-
tando os minutos. Não via a hora de encontrar a amiga
34 Adilson Marques

Luna. Ela, com certeza, daria total atenção ao sonho


que tivera.
E ele tinha razão. Ao chegar, Luna conversou muito
com Kant. E este, finalmente, estava convencido de que
a infância humilde e pobre, a educação em um meio
religioso rico de alimento mental e inspiração moral, ao
mesmo tempo em que manifestava verdadeira aversão
às intermináveis formalidades cerimoniosas, e a atenção
que dedicou à Filosofia e não à Teologia, como seus pais
desejavam, já estava escrito. Sua vida não poderia ter
sido diferente. A lei do carma – expressão que a amiga
usava – era realmente inexorável.
Kant falou-lhe sobre a relação paradoxal entre
liberdade e fatalidade. E sobre o fato de acontecer
aquilo que precisa acontecer, sem que isso abale o nosso
livre-arbítrio. Luna ouvia tudo com curiosidade e
respeito.
— Exatamente! A plantação é livre, mas a colheita
é obrigatória – afirmou.
— Nem que seja em outra existência – completou
Kant com um sorriso nos lábios.
Porém, apesar do mergulho racional e profundo
sobre todo o mundo conhecido do século XVIII, per-
correndo as abstrações da metafísica até as realidades
da física, da psicologia, da astronomia e das demais
ciências de sua época, o filósofo, naquele momento,
concluiu que nada superava a experiência empírica, com
os poderes sensitivos da amiga Luna, nos últimos anos,
e esses dois sonhos.
Se, até então, para Kant tudo aquilo que a ciência
estudava parecia se constituir em uma propriedade
infinita com um amo ausente (Deus), sua experiência
O Carma do Senhor Immanuel Kant na França 35

atual lhe mostrava a presença íntima Dele tanto dentro


como fora de cada um de nós.
Lamentou não ser mais novo para mergulhar no
profundo, mas pantanoso, mundo dos Espíritos, assim
como fez Swedenborg. E reconheceu que não teve a
coragem ou o apoio suficiente para isso, décadas atrás,
quando teve essa oportunidade.
O contato com o mundo espiritual não era algo
patológico, como concluíra no passado, mas algo extre-
mamente natural e até mesmo saudável, se realizado
com método. A comunicação entre os vivos e a alma dos
que habitam o mundo espiritual não apresentava nada
de sobrenatural ou fantasioso, só seriam necessárias
algumas regras para acontecer com segurança, dizia.
Luna ficou feliz com as observações do amigo. Em
seu intimo lamentava que, em breve, ele faria o retorno
à pátria dos Espíritos, mas, por outro lado, sabia que a
recuperação de sua real consciência seria muito mais
rápida.
Ela lamentava que, para os amigos da Terra, Kant
não passasse de mais uma pessoa acometida pela
loucura, a mesma que tanto criticou em sua vida, mas,
de fato, é a emergência espiritual que, se bem conduzida,
liberta a alma dos grilhões da Terra ou, como diziam os
budistas, do samsara, a roda das encarnações.
4 de Fevereiro de 1804:
a reencarnação como um fato
natural

P ela terceira noite seguida, Kant sonhou muito. E,


dessa vez, o que mais lhe chamou a atenção ao
acordar é que o sonho parecia ter relação direta com
outro conflito significativo na vida do bispo, aquele que
não envolveu somente a Igreja, mas toda a população
da pequena cidade de Châlons. O fato foi, inclusive,
documentado por Voltaire: as procissões de fiéis que
movimentavam a economia da região com o objetivo de
venerar uma possível tripa de carneiro, cultuada como
sendo o umbigo de Jesus.
A peregrinação para visitar a relíquia animava a
cidade e a fé popular. O bispo, porém, cansado de tanto
fanatismo, tratou de destruir a relíquia, afirmando que
Jesus deveria ser adorado em Espírito e Verdade. Sua ação
enérgica, que lembrava Jesus expulsando os vendilhões
do Templo, colocou toda a cidade de Châlons contra ele.
Sobre esse fato, escreveu Voltaire, em um docu-
mento ao qual Kant teve acesso:

L’évêque de Châlons-sur-Marne, Gaston-Louis de


Noailles, frère du cardinal, eut une piété assez
éclairée pour enlever, en 1702, et faire jeter une
relique conservée précieusement depuis plusieurs
siècles dans l’église de Notre-Dame, et adorée sous
le nom du nombril de Jésus-Christ.
38 Adilson Marques

Tout Châlons murmura contre l’évêque. Présidents,


conseillers, gens du roi, trésoriers de France, marchands,
notables, chanoines, curés, protestèrent unanimement,
par un acte juridique, contre l’entreprise de l’évêque,
réclamant le saint nombril, et alléguant la robe de Jésus-
Christ conservée à Argenteuil ; son mouchoir à Turin
et à Laon ; un des clous de la croix à Saint-Denis ; son
prépuce à Rome, le même prépuce au Puy en Velay; et
tant d’autres reliques que l’on conserve et que l’on
méprise, et qui font tant de tort à une religion qu’on
révère. Mais la sage fermeté de l’évêque l’emporta à la
fin sur la crédulité du peuple.
Quelques autres superstitions, attachées à des
usages respectables, ont subsisté. Les protestants en
ont triomphé; mais ils sont obligés de convenir qu’il
n’y a pas d’église catholique où ces abus soient
moins communs et plus méprisés qu’en France.
L’esprit vraiment philosophique, qui n’a pris racine
que vers le milieu de ce siècle, n’éteignit point les
anciennes et nouvelles querelles théologiques qui
n’étaient pas de son ressort. On va parler de ces
dissensions qui font la honte de la raison humaine.*

* O bispo de Châlons-sur-Marne, Gaston-Louis de Noailles, irmão do


cardeal, tinha piedade suficientemente esclarecida para, em 1702, tirar
e jogar uma relíquia, preciosamente preservada por vários séculos na igreja
de Notre-Dame e adorada sob o nome de «umbigo de Jesus Cristo».
Todo Chalons murmurara contra o bispo. Presidentes, conselheiros, povo
do rei, tesoureiros da França, comerciantes, notáveis, cânones, sacerdotes,
protestaram por unanimidade, com um ato jurídico, contra a atitude do
bispo, reivindicando o “umbigo” e lembrando do manto de Jesus Cristo
mantido em Argenteuil; seu lenço em Turim e Laon; um dos pregos da
cruz em Saint-Denis; seu prepúcio em Roma; o mesmo prepúcio em Puy
en Velay; e tantas outras relíquias que se guarda e desprezamos, e que
O Carma do Senhor Immanuel Kant na França 39

Essa atitude do bispo, narrada pela taróloga anos


atrás, divertiu Kant e o fez se identificar ainda mais com
o religioso. Kant detestava o rigor dos pietistas. Ficava
extremamente irritado com as formalidades da religião
abraçada por seus pais. Da mesma forma que o bispo
de Châlons, Kant acreditava que o importante era
venerar Jesus em Espírito e Verdade.
Naquela noite, sonhou que andava por um local
onde vários objetos valiosos eram guardados. Todos que
lá estavam moviam-se cuidadosamente para nada
estragar. Kant, ao contrário, parecia não dar valor algum
aos objetos e não entendia a razão de tanta idolatria.
De repente, ele parou em frente a um objeto que
parecia ser de barro. Discretamente, Kant deu um
cutucão no mesmo, para ninguém desconfiar de sua
intenção. Quando o objeto caiu no chão e se espatifou,
observou que dentro dele havia algo que lembrava uma
minhoca seca. O filósofo pegou aquilo na mão, com certo
desprezo, e jogou-o fora sem cerimônia alguma, para
espanto de todos que se encontravam na sala.
Ao acordar, Kant associou o sonho à história do
bispo, que destruiu o objeto de culto, causando muita
revolta nos fiéis, políticos e comerciantes, que viam na

causam tanto dano a uma religião que reverenciamos. Mas a sábia firmeza
do bispo prevaleceu no final sobre a credulidade do povo.
Algumas outras superstições, ligadas as usos respeitáveis, sobreviveram.
Os protestantes triunfaram sobre ele, mas são forçados a concordar que
não há Igreja Católica em que esses abusos sejam menos comuns e mais
desprezados do que na França.
O espírito verdadeiramente filosófico, que não se enraizou até meados
deste século, não extinguiu as velhas e novas disputas teológicas que não
estavam dentro de seu alcance.
Falaremos sobre essas dissensões que envergonham a razão humana.
(tradução de professor Michel Hospital).
40 Adilson Marques

destruição do “umbigo de Jesus” um enfraquecimento


da economia local e da fé popular.
Na época do bispo, o Estado francês ainda não era
laico. Era comum o bispo assumir também a admi-
nistração da cidade, como se fosse prefeito. Por isso, a
ação de Gastón de Noailles teve repercussão signi-
ficativa, afetando a vida de muitos na pequena cidade
de Châlons.
Foi a partir desse sonho que Kant aceitou como
racional e possível a ideia de que ele e o bispo fossem o
mesmo Espírito, em duas encarnações distintas. O
filósofo considerou que tinha com o francês algo em
comum que vinha do Espírito e não da personalidade.
Muito mais do que coincidências, era a categoria de
causa e efeito que vinculava sua existência como Kant
à do bispo de Châlons.
No encontro diário que tinha com sua amiga
taróloga contou o sonho e constatou:
— Durante algum tempo considerei que destruir
dogmas ou superstições e arrumar confusão por causa
de religião seriam experiências que eu e o bispo tínhamos
em comum, por isso as informações sobre ele começaram
a chegar para mim. Apenas coincidência. Mas agora
tenho a convicção de que o mesmo Espírito vivenciou
experiências semelhantes, em épocas e locais distintos.
— Então, agora, se alguém lhe perguntasse se
acredita em reencarnação, você diria que sim? – ques-
tionou Luna.
— Eu simplesmente diria: ‘Não, eu não acredito. Eu
tenho certeza’ – respondeu o filósofo com ironia.
Luna riu, mas percebeu a profundidade da expressão
de Kant. Em seguida, ele disse:
O Carma do Senhor Immanuel Kant na França 41

— A relação de causa e efeito está no sujeito e não


no mundo. E como o Espírito é sempre o mesmo, não
importando qual seja a existência, uma causa cuja
origem está no passado pode ter seu efeito muito tempo
depois, mesmo após a morte física daquela perso-
nalidade.
Luna ficou muito feliz em ouvir o querido amigo se
expressando daquela maneira. Ela sabia que estava
ajudando-o a passar por uma verdadeira metanoia,
abrindo-se, de fato, à realidade espiritual. Durante
algum tempo, Kant havia sido levado por um racio-
nalismo ingênuo ou dogmático, fato que ele mesmo
reconhecia, despertando apenas após a leitura dos textos
de Hume, mas sem ceder ao empirismo cético deste
último, que não acreditava existir a relação de causa e
efeito, sendo esta apenas uma criação mental. Mas, neste
exato momento, Kant transcendia a sua própria ideia
de causa e efeito.
Para Luna, que sabia que o momento do desencarne
do amigo se aproximava, essa mudança de perspectiva
seria de grande valia para o despertar real que só poderia
acontecer no lado oculto da vida, depois de algum tempo
vivendo em alguma cidade Astral.
Não bastaria desencarnar para recuperar plena-
mente a consciência, dizia ela. Em algum momento após
a morte, o Espírito eterno precisaria também se libertar
da personalidade Immanuel Kant para assumir sua real
plenitude, sua consciência plena, e, assim, ter as con-
dições necessárias para avaliar sua última encarnação e
poder planejar o futuro.
Luna acreditava que uma nova encarnação ou exis-
tência, caso esse processo ainda se mostrasse necessário,
42 Adilson Marques

ou até mesmo o começo de uma nova fase espiritual, em


que se abandona a fase humanizada do Espírito, só seria
possível após a libertação plena do Espírito.
Para a taróloga, após a fase humanizada do Espírito,
aconteceria a fase angelical. Luna acreditava que esse
seria o processo que seu amigo vivenciaria após o
desencarne. Em seu íntimo, a alma de Kant iria “ascen-
sionar” e não precisaria mais da encarnação humanizada
para evoluir.
Mas, no dia da morte de Kant, ela tomou cons-
ciência de que ainda não seria o momento, pois outras
encarnações ainda eram necessárias. Pelo menos mais
duas encarnações estavam no horizonte do filósofo
prussiano. E, como ela pressentia, seriam mais ven-
turosas ou auspiciosas, como diria algum monge budista.
E, para sua felicidade, ela estaria em ambas.
Ela só lamentava ter de esquecer os momentos que
passaram juntos. Então, aproveitou para pedir a seu
“anjo da guarda” que, em suas vidas futuras, encarnasse
com o dom da lembrança das vidas passadas.
O Carma do Senhor Immanuel Kant na França 43

5 de Fevereiro de 1804:
a lei do carma é inexorável

K ant gostava de poesias e de marchas militares, mas


não apreciava dançar, embora achasse agradável as
famosas danças da corte. E foi ao ler a mão do filósofo,
anos atrás, que a bailarina lhe disse, meio ironicamente,
que sabia do horror que Kant tinha de dançar, justa-
mente por ter “dançado”, ou seja, adquirido “carma” por
gostar e valorizar muito mais a “vida profana” do que a
“religiosa” na sua vida como bispo.
Foi também ao segurar as mãos de Kant que ela lhe
falou sobre a falta de aptidão religiosa do bispo, afir-
mando que este foi levado à Igreja para atender aos
interesses políticos da família. Falou também sobre os
abortos que teriam pesado em sua economia espiritual,
precisando expiar esses erros do passado em sua exis-
tência atual.
Na madrugada do dia 5 de fevereiro, Kant sonhou
que um homem estava sendo cozido dentro de um
caldeirão, e ele, com uma faca, cortava o nariz do
desafortunado. O homem expressava sofrimento, en-
quanto Kant parecia fazer aquilo com total desprezo,
sem se importar com a dor alheia.
Acordou suado e com o estômago embrulhado.
Passou muito mal o resto do dia. Sua cabeça doía sempre
que lhe vinha à mente a imagem do homem sendo
atingido por sua faca. As horas seguintes foram muito
complicadas. Vivia bocejando e lacrimejando. A cabeça
44 Adilson Marques

não parava de doer, como se tivesse uma faca encravada


na altura da têmpora direita.
Ao encontrar a amiga contou o angustiante sonho
e o terrível dia que vivenciara. Ela se apiedou de Kant
e, após ouvir o relato do filósofo, abraçou-o e conversou
muito com ele, chamando-o o tempo todo de bispo.
Luna associou aquela criação onírica aos abortos.
— Do meu ponto de vista, o caldeirão seria a re-
presentação de um útero, e cortar o nariz do homem
representaria o ceifar de uma existência. No esoterismo,
o nariz simboliza também a personalidade. No caso, o
sonho indicou que você estava diante de mais uma
personalidade ceifada pelo bispo – explicou enquanto
segurava a mão do amigo.
Kant viu sentido naquela interpretação e relembrou
a amiga de sua quase insuportável dor de cabeça. Luna,
ao impor a mão sobre a cabeça dele, bem no local da
dor, teve pequenos espasmos e, como se estivesse em
transe, descreveu uma cena, um tanto repugnante,
relacionada com abortos:
— Meu querido amigo, vejo o bispo estimulando
abortos das freiras que engravidaram dentro dos con-
ventos que ele administrava.
Enquanto ouvia a amiga, Kant percebia que a dor
de cabeça diminuía consideravelmente, como se esti-
vesse sendo retirada pela mão dela.
Ao se dar conta de que o filósofo estava preocupado
com o destino de sua alma, Luna lhe disse:
— A cada encarnação, ou melhoramos ou per-
manecemos estacionados, assim disse Krishna na
Baghavad Gita, o livro sagrado dos hinduístas.
Kant, então, lembrou-se da parábola dos talentos:
O Carma do Senhor Immanuel Kant na França 45

— Acredito que aprendemos com os erros do


passado e cada aprendizagem se torna um ‘talento’ para
a alma. Quando um erro é superado, nunca mais ele será
praticado, não importando o tempo ou o espaço. Um
assaltante, por exemplo, se supera a vontade de roubar,
pode ser colocado em um local onde o estímulo ao
assalto é constante e, mesmo assim, ele tem autodo-
mínio e não cede à tentação.
— O dever ético e moral é uma conquista da alma
e não somente o fruto da educação ou da religião –
concordou Luna. – Claro que essas são importantes, mas
toda a mudança só se processa de dentro para fora. O
que pensa a respeito?
— A cada nova existência temos a oportunidade
sagrada de corrigir os erros do passado. E nos são ofe-
recidas duas maneiras de fazer isso: através da dor ou do
amor, sofrendo na pele o que causamos ao outro ou dando
a outra face. Nosso livre-arbítrio não entra em contradição
com a necessidade ou com a fatalidade da vida.
Kant sabia que suas novas conclusões revolucio-
navam seu pensamento sobre o juízo, que era, de certa
forma, a matriz de toda a sua filosofia. Apesar de ser um
homem religioso e que reconhecia o valor da fé, para ele
o verdadeiro conhecimento tinha de ser científico. E,
portanto, necessário e universal, assim como eram os
chamados “juízos analíticos a priori”, que serviam para
esclarecer muitas coisas, mas que seriam incapazes de
ampliar o próprio conhecimento.
Segundo Kant, este processo, para acontecer, neces-
sitava dos “juízos sintéticos a posteriori”, formulados
por meio da experiência, mas que não seriam universais
e necessários.
46 Adilson Marques

Kant já sabia, há décadas, que nem os juízos


analíticos nem os sintéticos, sozinhos, seriam capazes
de nos fornecer um conhecimento seguro e compreendia
o papel da intuição nesse processo. Mas agora estava
diante de um fato novo. Ele sabia que daquela expe-
riência singular seria possível construir um conhe-
cimento universal. Não lhe restava dúvida de que certas
pessoas tinham a capacidade de ceder seus corpos físicos
para os Espíritos se comunicarem ou que estes poderiam
usar os sonhos como um canal de comunicação, não
sendo os sonhos apenas um epifenômeno do cérebro
para se livrar do excesso de informação ou para fortalecer
a memória.
Lamentou estar velho demais para essa empreitada,
mas pressentia que, em breve, alguém encarnaria para
fazer essa aproximação com o mundo dos Espíritos de
uma forma mais racional e conseguiria produzir um
conhecimento, tanto científico como filosófico, desper-
tando a humanidade para uma nova etapa de apren-
dizados.
As relações entre o mundo dos fenômenos e o
numinoso pareciam mais evidentes. E o mundo dos
Espíritos começava a ser, para ele, o mundo real, o que
controlava e determinava o que acontecia no mundo
material. Mas, na essência, seria apenas um mundo só.
Apesar de não ocuparem o espaço, os Espíritos seriam
os contrarregras de tudo o que aconteceria de bom ou
de mal em nossas vidas, de acordo sempre com as
escolhas feitas antes de encarnar ou do “carma”, no
sentido aqui de expiação.
Tais conclusões, sem dúvida, tinham reflexos em
toda a sua teoria dos juízos. A finalidade da natureza
O Carma do Senhor Immanuel Kant na França 47

ou do mundo material começava a fazer mais sentido


para ele. E Kant, em um lampejo intuitivo, diz para a
amiga:
— Os países são os palcos para a realização das
provas ou das expiações de cada Espírito. Para cada uma,
há um cenário mais adequado. Essa função providencial
da vida material pode ser comparada ao papel que os
tabuleiros, as mesas ou a natureza têm na prática de um
jogo ou esporte. Eu não consigo jogar sinuca em um
tabuleiro de xadrez. O jogo de dama e o de xadrez podem
até utilizar o mesmo tabuleiro, mas cada um tem suas
regras, de forma que um jogo não interfere no outro. Por
sua vez, um jogo de sinuca necessita de uma mesa com
determinadas características para acontecer.
— Você tem razão – concordou Luna. – E, por
alguma razão que ainda não conseguimos entender, e
dentro da finalidade da natureza, a Prússia de hoje
apresenta as condições mais adequadas para as expiações
do bispo do que a França. O cenário mudou, o corpo
mudou, a religião mudou, mas o Espírito continua sendo
sempre o mesmo.
E Kant, em sintonia com a fala da amiga, diz:
— Existe uma única vida, a do Espírito, mas esta
pode ser vivenciada ao longo de várias existências, em
que personalidades diferentes representam papéis
distintos, mas complementares, determinados pela
inexorável lei do carma.
Feliz com o pensamento do amigo, Luna o abraça
afetuosamente e agradece-lhe por compartilhar seus
sonhos com ela.
6 de Fevereiro de 1804:
o amor cobre uma multidão
de pecados

E m suas pesquisas teóricas, Kant só havia encontrado


informações positivas a respeito do bispo, como
suas ações caridosas durante o intenso inverno que
ocorreu em 1709; o trabalho em um convento para
abrigar as prostitutas que se convertiam ao cristianismo;
sua posição firme, porém ética, em defesa do jansenismo;
e até mesmo sua preocupação para que Jesus fosse
adorado em “Espírito e Verdade”. Mesmo não encon-
trando informações que comprovassem as revelações de
Luna, o filósofo acreditava que elas eram verdadeiras e
diziam respeito, sim, a uma vida passada sua.
Kant teve um sonho que acreditou ter relação com
a ação caritativa em 1709, durante um dos frios mais
intensos na França. No sonho, ele andava por uma rua
escura e fria, ao lado de outras pessoas. Perto de chegar
a uma igreja viu, sentada nos degraus, uma senhora
com algumas crianças. Todos passavam fome e frio. Ele
abriu a porta da Igreja para que entrassem e depois
entregou pão e uma espécie de coberta para todos que
lá estavam.
Um tempo depois, ele se retirou e foi em direção a
um castelo. Durante o trajeto, Kant ficou admirando
com as enormes torres que surgiam no horizonte, os
belos jardins por onde passava a carruagem e um rio que
contornava todo o caminho.
50 Adilson Marques

A cidade natal de Kant, Königsberg, tinha um belo


castelo, e sua casa ficava do lado esquerdo, compondo
uma agradável paisagem. Os rios da cidade e suas sete
pontes eram admiravelmente belos. Mas a paisagem de
seu sonho era diferente e também muito aprazível. No
sonho, Kant sentia-se bem ao fazer aquele percurso, um
confuso sentimento de nostalgia, de saudade.
Naquele mesmo dia, um amigo que voltava de uma
viagem à França, trouxe-lhe uma planta do castelo onde
o bispo morou, em Sarry, perto de Châlons. Kant ficou
boquiaberto com as semelhanças entre a planta e a
paisagem de seu sonho, e passou o dia entusiasmado,
aguardando o momento de mostrar para a taróloga a
planta e lhe contar o sonho.
Luna também ficou impressionada com as se-
melhanças. Para ela, não restava dúvidas de que ele havia
sonhado com o chateau onde Kant teria vivido, em sua
existência anterior, e onde teria morrido, em 1720.
Sabia também, mas não quis dizer, que o sonho
representava que o desenlace da alma estava muito
próximo, podendo acontecer a qualquer momento. O
retorno ao castelo também era uma simbologia para a
volta ao verdadeiro lar, o plano espiritual.
A taróloga já começava a se preparar para o dia
em que o encontraria morto. Mesmo acreditando na
sobrevivência da alma e na reencarnação, sabia que
sentiria muito a separação entre ambos, assim como
sentiu quando soube do suicídio da filha e viu o filho
morto no chão, no fatídico dia no qual eclodiu todo
o seu potencial psíquico, fatos que ela não contou
para ninguém, mas que estavam descritos em seu
diário.
O Carma do Senhor Immanuel Kant na França 51

Agora a dor seria diferente. Ela estava mais madura


e confiante nos desígnios de Deus, e sabia que a morte
nada mais era do que o retorno ao mundo dos Espíritos,
onde a verdadeira vida se processa. O corpo, apesar de
importante e de merecer um tratamento respeitoso, era
apenas a morada provisória do Espírito e que, na hora
certa, precisaria ser abandonado.
A única coisa que o Espírito leva da Terra é a
experiência adquirida; as atitudes positivas e amorosas
contam muito para a economia espiritual. São os novos
talentos conquistados que enriquecem ainda mais a alma
humana. E eles não se perdem jamais, não importando
as vicissitudes que a vida nos apresenta.
A vida de Kant havia sido cheia de vicissitudes.
Desde a mais tenra infância sofreu as consequências das
condutas irresponsáveis que realizou na pele do bispo
de Chalons. A morte dos pais, sobretudo da mãe, marcou
profundamente sua alma.
“Muitas vezes é necessário sentir o mesmo que nós
causamos em outras pessoas para aprender a distinguir
o certo do errado ou o bem do mal”, costumava dizer
Luna, afirmando que, apesar de Jesus ter vindo trazer
outra interpretação, a lei mosaica do famoso “olho por
olho, dente por dente” ainda se fazia necessária na Terra.
7 de Fevereiro de 1804:
a comunicação mediúnica
sempre existiu

N a madrugada do dia 7 de fevereiro, Kant sonhou


que assistia a uma missa dentro de uma bela
catedral. De onde estava, era possível observar o padre
que celebrava a missa e também os fiéis, sem que estes
o notassem. Ao seu lado, havia um homem que permitia
a manifestação de um Espírito. Embora ele tenha falado
muito com Kant, ao acordar, não conseguia se lembrar
do que havia conversado com o suposto Espírito ou se
o homem era alguém conhecido.
A imagem do interior da Igreja estava tão nítida em
sua mente que, se tivesse condições de ir até Châlons
para conhecer a Catedral de Saint-Étienne, poderia
confirmar se ele estava realmente dentro dela, uma vez
que, durante o sonho, Kant ficou admirando por vários
minutos alguns vitrais e também a disposição do coro e
do altar-mor.
Aquele dia foi especialmente tranquilo. Kant apro-
veitou que o inverno dera uma pequena trégua e resolveu
passear por Königsberg para tentar, mais uma vez,
decifrar o enigma das pontes, um dos passatempos dos
moradores, dando várias voltas pelas ilhas que formam
a cidade.
No fim da tarde, quando Kant narrou o sonho para
a amiga, ela passou a ver em sua mente a catedral
pegando fogo.
54 Adilson Marques

— Não sei precisar quando foi, mas estou vendo a


catedral em chamas. Mas fique tranquilo, o bispo ainda
não era nem nascido. Se foi um incêndio criminoso, a
culpa não foi dele!
Ambos deram uma gostosa gargalhada.
— Eu estou vendo o bispo acompanhando a missa
e, ao mesmo tempo, conversando com seu irmão mais
velho, também membro da Igreja – prosseguiu Luna. –
Mas este fala inspirado por um Espírito. O bispo respeita
muito as opiniões do irmão e não toma nenhuma
decisão sem o consultar.
Luna disse a Kant que o bispo, provavelmente,
sabia da existência dos Espíritos e se comunicava com
eles, buscando orientações para o seu trabalho.
— E não foi uma, mas várias vezes que o bispo
recebeu orientação deles para parar com aquela vida
sexual promíscua. Ele sabia que isso acarretaria prejuízos
para a sua alma! – disse Luna censurando o amigo de
forma irônica.
Tomando as dores do bispo, Kant contra-argu-
mentou:
— Mas poderia ser uma força que o bispo não
conseguia dominar ou controlar apenas pela razão. De
alguma forma, suas vítimas precisavam passar por
aquelas experiências. Não teria sido o bispo também um
instrumento para as provações daqueles?
Percebendo que Kant não se sentia à vontade com
essa revelação, Luna disse:
— Eu sei o que o Espírito disse ao Bispo em seu
sonho. Ele explicava que os credos e os dogmas, inde-
pendentemente da religião, não pertencem a Deus. Eles
são criações humanas e não livram ninguém da respon-
O Carma do Senhor Immanuel Kant na França 55

sabilidade por seus atos e atitudes. O Espírito tenta


passar para o bispo que as leis espirituais, que são
universais, é que importam.
Kant concordou com a cabeça.
— Os credos e os dogmas aprisionam a divindade
na Terra – continuou a amiga. – Quem se apegar a eles
precisará de um período para a purgação de sua alma
nas zonas intermediárias entre a Terra e o Paraíso. E
todos os líderes espirituais, sejam católicos, protestantes
ou de outras religiões, são inspirados por Deus.
Kant, coçando a orelha, disse:
— Tenho a impressão de que todas as religiões foram
corrompidas. Em outras palavras, perderam o seu
verdadeiro sentido. É difícil encontrar uma religião que
demonstre a simplicidade de Jesus, Buda ou de qualquer
outro líder espiritual. Parece que hoje em dia o que
importa são os cerimoniais, os credos e os dogmas.
Luna concordou com o amigo, mas antes de ir
embora quis saber se Kant havia resolvido o enigma das
pontes. Brincando, ele respondeu que nem os Espíritos
que conversavam ou inspiravam Luna seriam capazes de
resolvê-lo. Aquele enigma não tinha solução.
Kant foi dormir mais tranquilo naquela noite. Seu
coração estava sereno. Ele já se sentia confortável com
a rotina de sonhos, inclusive já os aguardava. Tinha
impressão de que estava mais vivo ao dormir e sonhar
do que acordado, enfrentando o inverno rigoroso de
Königsberg.
8 de Fevereiro de 1804:
a vida é Lila, uma
brincadeira divina!

T alvez por ter dormido com a alma serena, o sonho


daquela noite foi muito interessante; provavel-
mente o mais agradável de todos até aquele momento
singular de sua vida. Kant se via como um ator re-
presentando um papel em cima de um palco. À sua frente,
a plateia e, longe da visão desta, os contrarregras que faziam
as mudanças necessárias no cenário, marcando a entrada
e a saída de outros atores, dentre outras atividades.
Vestido como um palhaço, ele sabia que suas estri-
pulias sobre o palco não o representavam, mas era, sim,
uma personagem. Eventualmente, dava algum sinal para
os contrarregras, que jogavam algum objeto sobre ele ou
fechavam as cortinas.
Kant acordou sentindo a alma plena: “Se eu mor-
resse agora, morreria feliz, muito feliz!”, pensou.
Passou o dia lendo o Sermão da Montanha e
admirando cada ensinamento de Jesus. Também cuidou
do jardim de inverno, aproveitando os poucos raios de
sol que resolveram aquecer um pouco aquele dia. Seu
coração estava muito sereno e a mente muito tranquila.
Talvez fosse a primeira vez em sua vida que nenhum
pensamento o incomodava, nem as fofocas que faziam
dele o perturbavam mais.
Quando Luna chegou, ele contou o sonho. Ambos
interpretaram da mesma forma. Todos nós, antes de
58 Adilson Marques

encarnar, escolheríamos um gênero de existência. Após


essa escolha, seria criada uma personagem para se viver
mais uma encarnação. Essa personagem, de certa forma,
é um palhaço. É uma máscara que representamos.
Quanto mais amor e felicidade irradiarmos no mundo,
mais seremos como o palhaço que alegra a vida de todos
da forma mais singela.
Além disso, não estaríamos nunca sós. Uma infi-
nidade de contrarregras atuariam para o espetáculo
acontecer da melhor forma possível, em que cada um
colheria somente aquilo que plantou.
Nesse espetáculo, quando estamos encarnados,
somos o palhaço, mas, nas entrevidas, somos também
parte da equipe de contrarregras, escalados para tornar
o palco da vida o local das aventuras do Espírito.
Kant deu um abraço apertado na amiga, que era
muito mais alta que ele. Nesse momento, outra cena veio
à mente dela. Luna viu o bispo consagrando uma igreja.
Ele representava muito bem o seu papel de “palhaço”.
Enquanto entretinha o público, os contrarregras, que
seriam os Espíritos, trabalhavam na dimensão espiritual:
impunham as mãos sobre os fiéis e renovava-os com ener-
gias balsâmicas, recolhiam outros desencarnados presos
ainda às ilusões da vida material e até faziam cirurgias
em pessoas, sem que ninguém percebesse a ação deles.
Ela perguntou ao amigo se tinha um mapa de Paris.
Ele pegou, abriu-o sobre a mesa e a taróloga se con-
centrou, apontando com o dedo determinado ponto do
mapa. Tratava-se justamente da Eglise Sainte Geneviève,
em um local denominado Asnières-sur-Seine, na peri-
feria de Paris. Aquela seria a igreja que o bispo havia
consagrado.
O Carma do Senhor Immanuel Kant na França 59

Kant resolveu pegar alguns documentos que havia


recebido, uma espécie de atos oficiais praticados pelo
bispo, e, realmente, constava a consagração daquela
igreja, no dia 6 de setembro de 1711.
Aproveitando a curiosidade de Kant, Luna per-
guntou-lhe se conhecia o conceito de Lila, do hinduísmo,
o brincar criativo divino que nos faz recordar que a
alegria e a tristeza estão no espetáculo da vida, mas que
transcendemos essa e outras vicissitudes.
— Parece que a única diferença entre o brincar e o
trabalhar está na atitude, na motivação. Brincar não é
um ato, mas uma atitude. Toda minha existência, mesmo
os momentos mais difíceis, parece que foi uma brinca-
deira – constatou Kant.
— Você viveu intensamente Lila, a brincadeira
divina. Foi por nunca a abandonar que você conseguiu
realizar seus propósitos. Em suma, nunca abandonou
sua criança interior – completou Luna.
9 de Fevereiro de 1804:
o milagre é natural!

A ntes de dormir, Kant colocou papel e lápis ao lado


da cama. Intuiu que poderia sonhar com algo
importante e depois não se lembrar de todos os detalhes.
O primeiro sonho naquela noite foi curioso. Ele
sonhou com uma lápide. Ao ler a placa achou engraçado.
Tinha o seu nome e também a data de seu nascimento
e de sua morte. Ainda sonhando, lembrou-se do papel
e do lápis e pensou: “Preciso acordar e anotar essa data!”.
Porém, não acordou, e na lápide não aparecia mais
o ano e ele não conseguia se lembrar. Forçou a memória,
mas não adiantou. Pensou: “Vou acordar e anotar, então,
o dia e o mês”. Mas, de novo, não conseguiu acordar e,
ao olhar para a placa, não aparecia mais data alguma.
Nesse momento acordou.
Ainda inconformado com o sonho, logo dormiu
novamente. Em seguida, sonhou que estava com dor de
cabeça, mas que ela diminuía significativamente quando
um senhor impunha as mãos sobre ela. Kant via com
muita nitidez o rosto do homem, que disse a ele uma
única frase: “Leia o relatório da Universidade de
Loraine”.
Kant acordou e anotou no papel que se encontrava
ao lado da cama. Olhou no relógio e, como era muito
cedo, voltou a dormir.
Ao acordar, já não se lembrava dos detalhes do
sonho, mas a anotação o fez se lembrar de que ainda não
havia aberto um pacote que recebera no dia anterior,
62 Adilson Marques

enviado por um ex-aluno. Ele sabia que eram infor-


mações referentes ao bispo, conseguidas na França, mas,
como estava muito cansado, tinha deixado para abrir o
pacote no dia seguinte.
Levou um susto. Boquiaberto, percebeu que se
tratava de uma carta na qual o bispo Gaston de Noailles
fazia uma solicitação para a Universidade de Lorraine,
na cidade de Nancy, no começo do século XVIII.
O bispo buscava um estudo sobre as curas mila-
grosas realizadas por outro bispo de Chálons, Felix
Vialart (1613-1680). Além da carta, o pacote trazia o
relatório elaborado pela universidade, assinado por
vários médicos e cirurgiões.
Kant leu o relatório do começo ao fim, sem pausas.
As informações eram desconcertantes. Na primeira parte,
havia várias histórias de pessoas que foram tratadas no
hospital denominado Hôtel-Dieu em Châlons, onde o
bispo realizou suas curas supostamente milagrosas.
O relatório da Universidade de Lorraine também
trazia relatos sobre úlceras que não cicatrizavam,
hemorroidas que faziam a pessoa sofrer há décadas e
tantos outros males. Ficou encantado com os depoi-
mentos de médicos afirmando que seus tratamentos não
surtiam efeito em alguns casos e pedindo para a pessoa
recorrer ao bispo Vialart.
Na parte final do relatório, os médicos e cirurgiões
analisavam 34 curas realizadas pelo bispo e apontavam
as que consideravam naturais e as que julgavam sobre-
naturais.
Kant ficou ansioso pela visita de Luna. Queria falar
sobre o sonho e a encomenda que havia recebido na
véspera. Se ele tivesse aberto o pacote e lido antes de
O Carma do Senhor Immanuel Kant na França 63

dormir, poderia achar que a leitura havia estimulado o


sonho. Mas ele nem sequer tinha ideia do conteúdo do
pacote.
Luna também ficou admirada com o sonho e afir-
mou que conseguia ver em sua mente quem era a pessoa
que impusera as mãos sobre a cabeça de Kant. Era o
próprio bispo Felix Vialart, aquele que fora alvo de
estudo da Universidade de Lorraine.
Quanto ao outro sonho, ela preferiu não comentar.
Mas sabia que ele indicava que o desencarne do amigo
estava muito próximo. Era questão de dias.
Ver a data da morte representava, segundo ela, que
o Espírito sabia que em breve estaria livre, mas o fato
de as datas desaparecerem da memória era uma indi-
cação de que um véu cobrira a consciência da per-
sonagem. Esta não poderia ter acesso à informação,
ficando a mesma apenas gravada no inconsciente.
10 de Fevereiro de 2004:
somos todos irmãos espirituais e
nunca nos separamos

I nfluenciado ou não pelas leituras realizadas no dia


anterior, desta vez Kant sonhou que estava em um
local parecido com um hospital. De repente, passaram
por ele cerca de 20 idosos dementados. O grupo era
acompanhado por uma moça jovem e por um senhor de
cabelos brancos e com um sorriso no rosto. Kant sentia
que esse homem era alguém conhecido e por quem
nutria grande afeto.
Ao passar por Kant, o homem apertou-lhe a mão.
O filósofo acordou com a sensação da mão quente e
grande daquele homem.
Naquele dia, ele seria surpreendido por outra
coincidência. Um pacote que havia chegado pelos
correios trazia cópias das cartas trocadas pelo bispo com
o irmão mais velho, Louis Antoine de Noailles, que havia
sido bispo de Châlons antes de Gaston. Este assumiu o
cargo quando o irmão mais velho foi nomeado cardeal
arcebispo de Paris.
As cartas trocadas pelos dois irmãos revelaram alguns
fatos curiosos. A morte do pai, quando Gaston de Noailles
tinha apenas 9 anos de idade, fez com que Louis se
tornasse o principal responsável por sua educação. Com
16 anos, Gaston era um típico adolescente “rebelde”. O
irmão o descreve como um jovem que gostava de se
divertir gastando seu dinheiro sem muito controle.
66 Adilson Marques

No Carnaval especialmente, o jovem se extasiava e,


de forma enfática, exigia da mãe que lhe desse mais
dinheiro para torrar em suas farras juvenis. Louis
também se preocupava com o fato de ele andar com
“más companhias”. Apesar disso, o irmão mais velho o
admirava. Louis costumava elogiá-lo por ser um jovem
de opinião forte, não aceitando ser contrariado.
Enquanto lia atentamente as cartas, Kant se admi-
rava com as constantes semelhanças entre as duas
personalidades – a dele e a do bispo francês –, sobretudo
pelo fato de ambos terem forte vinculação com os jogos
políticos e religiosos. E, assim como o bispo, também
escrevia muito.
Chegou a ficar com os olhos marejados quando leu
que Gaston de Noailles ao se tornar bispo, em 1696,
com apenas 27 anos de idade, realizou um trabalho
muito ativo na cidade, chamando a atenção tanto no
meio religioso como no político. Kant ficou feliz e, ao
mesmo tempo, com uma pontada de orgulho daquela
sua suposta personalidade vivida na França.
Porém, ainda que os fatos públicos da biografia de
Gaston de Noailles fossem interessantes e impressio-
nassem positivamente Kant, ele continuava incomodado
com as informações que a amiga taróloga revelava por
meio de seus poderes psíquicos. Ele gostaria que, de fato,
não passassem de ilusão. Não se sentia bem com aquelas
histórias de aborto.
Além das cartas trocadas pelos irmãos, Kant recebeu
um documento com uma pequena biografia do bispo.
Neste, a morte do clérigo era descrita da seguinte forma:
Gáston de Noailles, após se “aposentar espiritualmente”,
foi morar em seu château, em Sarry, com alguns funcio-
O Carma do Senhor Immanuel Kant na França 67

nários (um cozinheiro, um mordomo, um porteiro, etc.)


e oito cavalos. Segundo o documento, o bispo teria
contraído uma enfermidade repentina e veio a falecer
com 51 anos de idade, tendo seu corpo enterrado na
catedral de Saint-Étienne.
No fim da tarde, quando a amiga chegou, Kant
contou-lhe o sonho e comentou sobre a morte do bispo.
A taróloga, espantada, disse que havia algo errado. Ela
sempre via mentalmente o bispo com vários hematomas
e algumas freiras o limpando, com certo nojo. Para ela,
não parecia que os hematomas fossem fruto de alguma
enfermidade. Ela pediu para segurar a mão de Kant e
em pouco tempo começou a descrever as cenas que lhe
vinham à mente.
Luna viu o respeito que Gaston nutria pelo irmão mais
velho, um verdadeiro mentor em sua vida, e o amor de
Louis pelo irmão caçula, um amor praticamente paternal.
Mas também viu que, na juventude, Gaston demonstrava
realmente disposições “turbulentas” e “mal acomodadas”
para alguém cujo destino era a “carreira sagrada”.
Para ela, isso já indicava “falta de vocação religiosa”
do bispo, que teria uma vida privada também ativa, mas
que envolvia uma sexualidade doentia, uma verdadeira
“sombra” que acompanhou quase toda a vida do clérigo.
Ela via também a mãe do bispo, quando este ainda
era criança, dedicando-se ativamente a um convento,
construindo a capela e boa parte dele, tendo lá, inclusive,
um quarto para descansar. E, sobre o bispo, era um
religioso que tinha o bom senso de não tomar nenhuma
decisão sem consultar o irmão mais velho; viu a firmeza
de ambos na luta contra a bula Unigenitus, lançada pelo
papa Clemente XI para barrar a expansão do jansenismo.
68 Adilson Marques

Luna disse ter forte convicção de que o homem


presente no sonho, que teria apertado a mão de Kant
de forma tão intensa que o fez acordar com a sensação
do calor e da força de suas mãos, era o irmão mais velho
do bispo.
Não quis falar, mas ela teve o pressentimento de que
no dia da morte do amigo, que intuía cada vez mais
próxima, o Espírito que viveu como Louis Antoine de
Noailles viria recebê-lo, e Kant o reconheceria justa-
mente pela sensação da mão. Esse seria uma espécie de
código para que o filósofo identificasse aquele que foi
seu irmão mais velho na encarnação em que viveu a
personalidade de Gaston de Noailles.
Kant ouviu com atenção o que a amiga dizia.
— Tenho a convicção de que os Espíritos formam
uma espécie de família, com cerca de 100 a 200 mem-
bros. Estes encarnam juntos ou de forma alternada. Os
que encarnam são assistidos por aqueles que continuam
no mundo espiritual. Seriam os seus anjos da guarda ou
mentores espirituais, como você costuma dizer. Eu sinto
que vou reencontrar esse meu irmão em breve – falou
com firmeza.
Despediram-se com um caloroso abraço. Kant foi
dormir pensando nas informações sobre a possível
enfermidade que teria tirado a vida do bispo. Estava feliz
com suas conclusões, mas também intrigado com a
revelação de Luna. Para ela, teria sido outra, não a
enfermidade, a causa dos hematomas que ela via no
corpo do bispo.
Refletindo sobre o assunto, acabou adormecendo.
O Carma do Senhor Immanuel Kant na França 69

11 de Fevereiro de 1804:
amar o inimigo

N aquela noite, o sonho deixou Kant assustado.


Acordou com a sensação de que este tinha relação
direta com a morte do bispo. As imagens eram tão
fortes que passou o dia todo com elas muito nítidas
na mente.
Lembrou-se de que, no dia anterior, Luna havia dito
que vira o bispo com vários hematomas no corpo, mas
não explicara o que poderia tê-las causado. Kant consi-
derou a possibilidade de que o sonho tivesse sido
influenciado pela conversa entre eles, no dia anterior.
O sonho começava com imagens nítidas de um
instrumento que parecia ser uma entalhadeira de
escultor. O instrumento era mostrado em detalhes para
Kant, que o apreciou por longo tempo. Em seguida, viu-
se em pé, e do seu lado esquerdo havia alguém que ele
não conseguiu identificar. À frente havia um homem
ajoelhado e de costas para Kant.
Pouco tempo depois, surgiu uma mulher pelo lado
direito, segurando na mão aquele objeto cortante,
provavelmente para entalhar madeira. Kant, no sonho,
observou atentamente a cena e o objeto, seu formato e
a ponta afiada, na mão da mulher.
De repente, a mulher começou a gritar que odiava
o homem à frente e passou a lhe desferir vários golpes.
Ele permaneceu ajoelhado sem esboçar qualquer reação
ou defesa. Ela o atingiu no rosto, no pescoço e no peito
com dezenas de golpes.
70 Adilson Marques

A pessoa que está do lado esquerdo de Kant per-


gunta se ele quer ver novamente a cena, mas agora por
outro ângulo: de frente. O filósofo responde com a voz
embargada que não é necessário e, em seguida, acorda
com o estômago embrulhado. As imagens que viu no
sonho mexeram profundamente com ele.
Acordou convicto de que o sonho tinha relação com
a morte do bispo ou, pelo menos, com a causa da morte.
Em vez de uma enfermidade repentina, possivelmente
o bispo foi atacado por alguma freira inconformada com
as atitudes do clérigo. Os hematomas que Luna via em
sua mente poderiam ter sido causados por aquele objeto
pontiagudo.
No fim da tarde, Kant contou o sonho para Luna.
Ela começou a chorar e o abraçou apertado durante
vários minutos. Quando se recuperou, resolveu descrever
uma imagem que acessara anos atrás, mas que nunca
tivera coragem de revelar a ele.
Luna se via como uma freira. Ela morava em um dos
conventos administrados pelo bispo, era uma espécie de
braço direito dele. Fazia tudo por ele, inclusive ajudá-
lo a matar inimigos políticos ou até mesmo dentro da
religião da qual ambos comungavam.
Segundo a amiga, o bispo costumava usar um anel,
com uma enorme pedra, que tinha um fundo falso onde ele
colocava veneno. Quando precisava se livrar de alguém, o
bispo passava para a freira o veneno para que o mesmo fosse
colocado em alguma bebida que seria oferecida à vítima.
Um dia, porém, com muito ódio do bispo, ela
resolveu se vingar. Pegou o formão e avançou sobre ele,
desferindo os golpes. Os hematomas que ela vira na
véspera foram causados por esses golpes.
O Carma do Senhor Immanuel Kant na França 71

Ela não sabia precisar se o bispo havia morrido em


virtude desses golpes, mas já tinha se visto limpando as
feridas dele, com nojo e raiva.
Kant sentiu um aperto no coração. Não queria
acreditar que a melhor amiga poderia ter tirado sua vida
no passado. Mesmo assim, não sentia raiva dela, apenas
compaixão.
Apesar de ser apenas uma hipótese, o filósofo sentia
no coração que aquelas palavras eram verdadeiras. O
bispo não havia adquirido nenhuma enfermidade, como
oficialmente informado, mas teria sido vítima dos golpes
de uma freira tomada pelo ódio.
Para ajudar a controlar as emoções da amiga, Kant
a abraçou. Ambos choraram e ela, com a voz trêmula,
pediu-lhe perdão.
Amorosamente, Kant disse que não precisava
perdoá-la, pois não havia sido ofendido. A verdadeira
caridade ou o verdadeiro amor é ser benevolente com
todos e sempre indulgente. Mas, como ninguém ofende
ninguém, é a somente a própria pessoa que pode ou não
se sentir ofendida. Se isso vier a acontecer, o perdão
existe para ser praticado. Apenas os fortes perdoam, mas
não era o caso. O amor cobre uma multidão de pecados.
12 de Fevereiro de 1804:
o suicídio antecipa a morte?

N aquela noite, Kant acordou com muita dor de


cabeça. Ele associou o sonho que teve à morte do
bispo, complementando o anterior.
No sonho, ele se viu em uma praça onde aguardava
uma carruagem que o levaria para outra cidade. Ele
começou a se sentir impaciente pelo atraso da carrua-
gem. Cansado de esperar, resolveu seguir a pé e carregou
nos ombros uma caixa branca de aproximadamente dois
metros de comprimento.
Ao acordar, tentou interpretar o que vira. Chegou
a uma conclusão, que lutava internamente para não
aceitar: o sonho retrataria, de forma simbólica, um
possível suicídio do Bispo.
A hipótese de um possível suicídio veio do fato de
Kant ter lido que o bispo se encontrava deprimido em
seus últimos dias de vida, já “aposentado da vida
espiritual” e descontente com os rumos da igreja. A
suposta depressão do bispo aparece em textos sobre
sua vida, como no livro de René Cerveau, a que Kant
teve acesso, chamado Nécrologe des plus célèbres défen-
seurs et confesseur de la vérité au 18e siècle contenant les
principales circonstances de la vie et de la mort des personnes
de l’un et de l’autre sexe, qui ont été recommandables par
leur piété, leur science et attachement à la vérité, et surtout
par les persécutions qu’elles ont essuyées au sujet du
formulaire, et de la part des Jésuites, publicado origi-
nalmente em 1760.
74 Adilson Marques

Para a amiga, o sonho revelava que o bispo estava


fraco em virtude dos ferimentos. Sabia que morreria em
breve, mas não aguentava mais esperar pelo fim daquele
sofrimento.
Para ela, a interpretação de Kant estava certa. A
espera pela carruagem que se encontrava atrasada
simbolizava a impaciência do bispo, que desejava morrer
o mais rápido possível.
Assim, ao resolver ir embora, levando consigo uma
enorme caixa branca, o sonho expressava a vontade do
bispo de se antecipar ao tempo, carregando o próprio
caixão, ou seja, cometendo suicídio. Luna acreditava que
o bispo, não suportando mais as dores e a morte que
demorava a chegar, resolveu tomar uma dose do veneno
que costumava dar para suas vítimas.
Para Kant, essa interpretação fazia muito sentido.
Apesar de já considerar que o mesmo Espírito poderia
ter animado as duas personalidades, não se sentia
confortável com as revelações de que teria estimulado
abortos ou que cometera o suicido em vida passada.
Possivelmente, a terrível dor de cabeça que sentia se
devia a esse conflito em sua alma.
Kant queria muito ter encontrado documentos que
refutassem a interpretação da amiga. Mas teve de se
conformar, aceitando que só alguém muito próximo ao
bispo poderia saber se foi suicídio ou não a morte dele.
Obviamente, a Igreja omitiria esse fato, divulgando que
se tratou de morte repentina, fruto de uma enfermidade,
em virtude do prestígio que ele tinha na comunidade de
Châlons.
Assim, nem a suposta vida oculta marcada por
abortos, assim como o possível suicídio, seriam noti-
O Carma do Senhor Immanuel Kant na França 75

ciados pela Igreja Católica. Era melhor enfatizar nos


documentos públicos as atividades positivas do bispo.
Para animar um pouco o amigo, Luna inventou um
fato da vida do bispo, relatado de outra forma em seu
diário. O clérigo tivera um filho com ela. Apesar de ele
ter tentando fazê-la abortar, ela conseguiu levar a
gravidez até o fim e deu à luz um menino. O bispo
acreditou a vida toda que aquele garoto por quem nutria
um afeto especial tinha sido abandonado na “roda dos
enjeitados” de outro convento, mas, na verdade, era filho
dele. E o menino teria assumido um papel importante
no cotidiano do convento após a morte do pai.
Com essa história inventada, o objetivo de Luna era
tirar o foco de Kant do aspectos negativos da perso-
nalidade do bispo, fazê-lo voltar a sorrir, valorizando as
boas ações que também aconteceram, possivelmente, em
número muito maior que as negativas.
— E talvez – disse ela — se o bispo tivesse cons-
ciência do fato de ter sido pai, não teria cometido o
suicídio, se é que o fato realmente aconteceu.
Kant notou que a fala da amiga não parecia sincera.
Mas sua mente já estava mais tranquila e intrigada com
outra coisa: será que o suicídio antecipa o desencarne?
Ou será que até mesmo quem comete suicídio morre no
momento programado e não antes da hora, nesta relação
complexa entre liberdade e fatalidade que caracteriza a
vida humana?
Os Últimos Minutos de Vida de
Immanuel Kant:
o regresso ao Lar

P ouco antes de a amiga se retirar, Kant lhe entregou


um manuscrito. Pediu-lhe que lesse antes de ir, mas
depois queimasse o documento. O filósofo não queria
que ninguém mais tivesse acesso a esse texto.
Luna pegou o manuscrito e começou a ler em voz
alta:

Estes últimos dias foram intensos. São poucas as simila-


ridades entre as informações transmitidas por minha
querida amiga Luna, por meio de seus poderes psíquicos,
e as informações que consegui levantar sobre a vida do bispo
Gaston de Noailles. Pode até ser que o mesmo tivesse, de
fato, uma vida dupla. A pública, como um represente ético
da religião católica, e a privada, na qual era um verdadeiro
“demônio”, estimulando abortos e até cometendo assas-
sinato, o que não seria algo improvável, mas que minha
razão teima em não aceitar.
Porém, pode tudo ser ilusão, e essas informações metafísicas
serem falsas. Mas, de fato, em meu íntimo, sinto que são
verdadeiras.
Das informações históricas que obtive, uma que gostaria
de aprofundar ou ter conseguido mais detalhes seria em
relação ao convento para ex-prostitutas. As outras são
interessantes, mas acredito que as informações que já se
encontram documentadas não vão ajudar a desvendar a
78 Adilson Marques

possível vida oculta do bispo, seja a dele destruindo uma


relíquia católica, considerada o cordão umbilical de Jesus,
o que acabou com a peregrinação de multidões até a região
de Champagne, ou seu conflito com a Igreja Católica,
insurgindo-se contra a Bula papal de Clemêncio XI.
Infelizmente, a única informação obtida por meio dos
poderes sensitivos confirmada historicamente foi sobre o
texto que fazia parte do index. Com relação às demais
informações (ter adquirido “carma” pelo assassinato de
inimigos e ter estimulado abortos entre as freiras, assim
como não ter aptidão para a vida religiosa, gostando,
sobretudo, das danças da corte, entre outras) minha relação
é ambígua. Sei que não há prova alguma, mas tenho uma
forte convicção de que são verdadeiras.
Se não consegui provas de que o bispo realmente cometeu
tais atos, há, por outro lado, vários documentos que relatam
que os bispos na França, inclusive na época do rei Luiz
XIV, não eram escolhidos por motivos religiosos. Assim, é
possível que as obrigações políticas da família em que
nasceu o tenha obrigado a isso.
Já a vida sexual ativa e promíscua dentro dos conventos e
outros espaços da Igreja Católica não é novidade para
ninguém. Logo, por que não aceitar, pelo menos como
hipótese, que o bispo teve uma vida dupla, ou melhor, uma
vida oculta que resultou em uma “ação carmática” para
o Espírito: viver novamente uma experiência humanizada,
dessa vez na Prússia?
Eu sei que você vai me dizer: “No fundo, lá no fundo, você
não acredita. Você duvida da informação de que você e o
bispo Gaston de Noailles seriam o mesmo Espírito”.
Realmente, quando as informações começaram a chegar,
eu duvidada. Mas, hoje, a partir de tudo que conseguimos
O Carma do Senhor Immanuel Kant na França 79

obter, sabendo que os Espíritos, pelo menos por enquanto,


parecem não ter autorização para nos passar todas as
informações, dando-nos a missão de procurá-las, eu
gostaria de ser mais jovem para viajar até Châlons,
visitar o atual bispo e lhe dizer: “Bom dia! Eu sou a
reencarnação do bispo Gaston de Noailles e vim visitar
a diocese, ver como ela está após quase 80 anos da minha
morte”.
Hoje, eu não digo que acredito em reencarnação. Eu digo
que tenho certeza de que ela existe e faz parte das leis
numinosas do Universo.
E, para encerrar esta missiva, eu quero dizer a você que
me acompanhou nestes últimos dias que:
O amor, enquanto afeição humana,
é o amor que deseja o bem,
possui uma disposição amigável,
promove a felicidade dos demais
e alegra-se com ela.
Mas é patente que aqueles
que possuem uma inclinação
meramente sexual
não amam a pessoa
por nenhum dos motivos ligados
à verdadeira afeição
e não se preocupam com a sua felicidade,
mas podem até mesmo levá-la à maior infelicidade
simplesmente visando satisfazer
a sua própria inclinação e apetite.
O amor sexual faz da pessoa amada
um objeto do apetite;
tão logo foi possuída e o apetite saciado,
ela é descartada tal como um limão sugado.
80 Adilson Marques

Luna se emocionou ao ler o texto escrito por Kant


e percebeu, por meio de sua vidência, que os laços que
prendiam a alma do filósofo ao corpo físico estavam cada
vez mais fracos. Em pouco tempo ele estaria livre de mais
uma encarnação.
Colocou a mão na testa de Kant e disse que, final-
mente, teria acesso ao diário que ele tanto desejava ler.
Porém, como Kant estava muito fraco e com a visão
cansada, ela leria para ele.
Respirou fundo e começou a leitura. Enquanto lia,
muitas vezes com lágrimas nos olhos e entre soluços, ela
reparou que o semblante de Kant se tornava cada vez
mais sereno. Um leve sorriso despontava em seu rosto.
Quando terminou a leitura, notou que ele estava
morto. Luna chamou os criados para cuidar do corpo
enquanto percorria em sua memória o dia em que
conheceu Kant na igreja e se tornaram amigos. Lembrou-
se com detalhes dos passeios pelas ruas de Königsberg,
onde conversavam muito.
Os passeios duravam horas, caminhavam muitas
vezes sem destino, assim como Aristóteles e seus
discípulos na antiga Grécia. Mas sempre paravam em
praças ou pontes para contemplar a bela paisagem de
Königsberg.
Nos espaços públicos nunca permitiu que ele se
aproximasse muito, nem sequer que segurasse suas mãos.
Porém, na casa dele ou em seu quarto, no Cabaré,
permitia, às vezes, alguns beijos e até gostava de deitar
a cabeça no peito dele, o que a fazia se sentir mais segura.
Ela se lembrou das muitas vezes em que Kant
insistiu para ler o diário dela, o que Luna sempre negou.
E ele, como um verdadeiro liberal, controlava sua
O Carma do Senhor Immanuel Kant na França 81

curiosidade e respeitava a privacidade da amiga. O


filósofo sabia como ser carinhoso com ela.
A taróloga gostava muito dele, mas sempre resistia
aos seus galanteios, nunca se entregando aos encantos
do amigo. Passaram bons momentos juntos, e isso nunca
seria apagado de sua memória.
A ligação entre eles era tanta que, na noite após o
enterro, Luna sonhou que estava no velório do amigo.
Estranhamente, ela via, ao mesmo tempo, Kant deitado
no caixão e, em pé, ao seu lado. Ambos conversaram
muito, o que parecia normal no sonho. Ela só se deu
conta do “absurdo” quando acordou e, meio sonolenta,
ouviu dentro de sua mente a voz de Kant dizendo: “Não
se preocupe, eu já estou com minha família!”.
Ela riu e, logo em seguida, um filme começou a
passar em sua mente. Luna viu o despertar de Kant no
mundo dos Espíritos. Este seria muito diferente daquele
vivido pelo bispo, décadas atrás.
Na imagem projetada em sua mente, ele era rece-
bido em uma cidade Astral por uma grande orquestra
que tocava em sua homenagem. Várias pessoas assistiam
a essa apresentação e batiam palmas para o filósofo que
retornava para casa, após vencer suas provações. Além
da orquestra, um grupo de poetas declamava poesias
para ele. Por fim, antes de ele ser conduzido em uma
carruagem até sua nova casa, uma artista plástica
talentosa presenteou-o com esculturas feitas com
cristais.
Durante um período de readaptação – Luna viu –
Kant moraria em uma cidade Astral habitada por
diferentes artistas e filósofos. No local, a paz perpétua
era uma realidade, não uma utopia.
82 Adilson Marques

A taróloga acessou também fragmentos das pró-


ximas encarnações de Kant. Em sua mente, ambos
apareciam do outro lado do Atlântico, em um país
escravocrata, possivelmente no final do século XIX. Ela
se via como esposa de um famoso fazendeiro, enquanto
Kant era um pastor luterano e educador alemão que teria
imigrado para aquele país a fim de auxiliar os colonos
germânicos que para lá precisariam mudar. Também o
via contribuindo na alfabetização dos filhos, ao mesmo
tempo em que ensinava, sem que o marido dela sou-
besse, os escravos da fazenda a ler e a escrever. Ela via
que ambos tinham horror à escravidão e trabalhavam
por seu fim.
Viu também a encarnação posterior a essa, que teria
início, exatamente, 200 anos após a publicação do livro
sobre vidência escrito por Swedenborg. Nessa futura
encarnação Kant teria a responsabilidade de escrever
livros que desfizessem todo “carma” gerado pela difusão
de ideias equivocadas sobre a relação entre os “vivos” e
os “mortos”, quando tratava como patologia o poder
psíquico do “vidente de Espíritos”.
Mas especialmente curioso e difícil de entender foi
o período entre essas duas existências. Luna viu Kant
no mundo espiritual com a aparência de um homem
velho e preto. Ele trazia um chapéu de palha na cabeça
e segurava um cachimbo. Ela achou engraçado quando
ouviu ele ser chamado de “pai Maneco”.
Luna não entendeu muito bem o que acontecia
naquela cena. Luzes lilases saíam da cabeça de “pai
Maneco” e envolviam dois senhores encarnados que
trajavam roupas brancas, enquanto estes davam orien-
tações e conselhos para várias pessoas. Ao mesmo tempo,
O Carma do Senhor Immanuel Kant na França 83

dele também saía uma luz esverdeada que envolvia cinco


mulheres encarnadas. Com ervas nas mãos, elas tra-
tavam pessoas com doenças físicas e emocionais.
Na dimensão material, Luna via muitas velas, de
várias cores, e jovens tocando instrumentos de per-
cussão. Sem entender o que significava tudo aquilo,
numa espécie de projeção de memória para o futuro, de
repente ouviu o seguinte, em sua mente:

Pai Maneco será, em um futuro próximo, uma entidade


trabalhadora da AUM BANDHA, e será muito feliz.

Com os olhos marejados, Luna agradeceu a Deus


por saber que seu amigo tinha um futuro espiritual
promissor. E, lembrando-se do pedido de Kant, cumpriu
sua promessa: queimou o manuscrito, mas, antes, rasgou
a parte final contendo a poesia e a guardou consigo.
Aquele pequeno pedaço de papel a acompanhou
pelo restante de sua existência. Era como um amuleto
que lhe dava esperança e força diante das vicissitudes
da vida.
Para Luna, a leitura daquele pequeno texto se
transformou em uma espécie de oração diária que fazia
ao acordar e antes de dormir. Junto com Santa Sara e
abaixo apenas de Deus, Kant se transformou em seu
“anjo da guarda”, a quem sempre recorria em pensa-
mento quando precisava tomar alguma decisão im-
portante.
O Diário de Luna Dorada
(Fragmentos)

N asci em uma família pobre na cidade de Frigiliana,


perto de Málaga, no sul da Espanha, onde passei
minha infância. Lembro-me de ter cinco anos quando
comecei a me interessar por dança. Mas foi aos doze anos
que passei a visitar uma escola de Flamenco e a assistir
às aulas, sem permissão para participar. Encantada pelas
danças, eu me imaginava no lugar daquelas mulheres.
Por volta dos quatorze anos de idade, no inicio da
adolescência, fugi para Málaga, cidade onde me tornei
dançarina profissional com apenas dezessete anos.
Apesar de conviver rotineiramente com mulheres mais
velhas, elas não me permitiam participar de suas
conversas sobre tarô, leitura de mãos e astrologia.
Diziam que eu era muito jovem para entender a com-
plexidade dessas práticas.
Como já salientei, desde criança sou apaixonada
pelos segredos da dança flamenca e, como dançarina
profissional, passei a encantar os homens com meu corpo
e meu gingado. Eram os Encantos de la Luna, diziam.
Eu despertava muito paixão, mas não me envolvia
com ninguém. Gostava de dançar com uma grande flor
vermelha na cabeça e castanholas nas mãos, que ma-
nejava com maestria. Usava sempre vestidos vermelhos
e botas pretas. Minha aparência era brava, com traços
rígidos, mas não passava de uma estratégia de defesa
para evitar a aproximação dos homens.
86 Adilson Marques

Essa resistência era fruto de uma experiência dolorosa.


Eu fui violentada por meu irmão mais velho. Pequena e
frágil, eu não sabia como me defender. Minha mãe, quando
soube, ficou contra mim e me fez sentir culpada. Esse foi
um dos motivos que me levou para Málaga.
Lá eu utilizava a dança para me vingar, fazendo os
homens ansiarem fazer sexo comigo ou se mostrarem
apaixonados, enquanto eu os desprezava. Mas acabei me
envolvendo com um plebeu enriquecido de Granada e
com ele me casei.
A paixão me cegou. E fui morar em sua cidade, em
uma ampla casa, com vários empregados. Porém, lá eu
me sentia desamparada. Meu marido era um homem de
negócios e viajava muito. Eu vivia muito sozinha. Além
disso, os funcionários da casa me vigiavam 24 horas por
dia e contavam tudo o que eu fazia para ele.
Por ser muito ciumento, ele me proibiu de dançar.
Tratava-me bem, sem dúvida, mas eu precisava de
liberdade. Eu me sentia presa àquele lugar amplo e
rodeada por pessoas que controlavam cada passo meu.
O único local em que me sentia livre era na imensa
biblioteca que lá havia. Meu marido comprava e ganha-
va muitos livros. Praticamente todos os assuntos po-
deriam ser encontrados nela, e em várias línguas di-
ferentes. Como eu não tinha confiança em ninguém e
para não me sentir presa naquela casa, eu devora os
livros, dia e noite, sobretudo aqueles sobre mitologia
grega, astrologia e ocultismo.
Um dia, o meu marido percebeu o meu desconten-
tamento e teve uma ideia: ele iria me engravidar. Se eu
tivesse de cuidar de filhos, não me sentiria tão só e ele
também se sentiria mais seguro.
O Carma do Senhor Immanuel Kant na França 87

Os anos se passaram e eu acabei tendo um casal de


filhos, sendo o menino dois anos mais velho. Eu amei
muito os dois, mas cuidar de crianças não era a vida que
eu havia desejado para mim.
Quando minha filha completou 12 anos, meu
marido resolveu enviá-la para um convento. Temia pelo
futuro dela, linda e graciosa como a mãe. Ele não queria
ver sua filha encantando os homens. O melhor, então,
a fazer era escondê-la do mundo. Porém, não fazia nem
um ano que ela havia saído de casa e recebemos uma
notícia dolorosa: nossa filha havia se suicidado dentro
do convento.
Não se passaram nem dois anos dessa triste perda
e meu marido, junto com o meu filho, sofreram um
acidente em uma viagem para Madri. Perto da ponte de
Toledo, a carruagem que os levava tombou. Meu marido
bateu a cabeça com força em uma pedra e morreu na
hora. Meu filho ficou gravemente ferido e foi levado para
casa em estado grave.
Os negócios da família foram assumidos pelo irmão
de meu falecido marido. Passei meses preocupada apenas
em ajudar na recuperação de meu filho, até que, no dia
29 de janeiro de 1793, em uma fria manhã, tive o pior
pesadelo da minha vida. Às sete horas, fui vê-lo e o
encontrei caído, inerte, morto. Minha mente e o meu
coração entraram em choque. Não sabia mais diferenciar
o que era sonho e o que era realidade. Senti uma forte
dor no peito; uma saudade indefinível se misturava com
a dor de ver meu filho morto no chão.
Nesse dia despertou em mim um polêmico potencial
psíquico. Muitas vezes, meu corpo é tomado por Espí-
ritos que conversam com as pessoas quando estou
88 Adilson Marques

jogando tarô ou lendo suas mãos. Outras vezes minha


mente é tomada por imagens nítidas, como se eu fosse
uma testemunha ocular daqueles fatos.
Depois que meu filho morreu, passei a viver com
uma estranha sensação no peito. Banhada em lágrimas,
colocava-me em oração e pedia ajuda a Deus e a Santa
Sara para poder compreender o que acontecia comigo.
Nesses momentos de introspecção, vinha em minha
mente um objeto estranho. Parecia um sapato de couro.
Ele era feio, de bico fino e parecia muito desconfortável.
O sapato não se assemelhava a nenhum dos mo-
delos vendidos nas lojas, fazia-me pensar que deveria ser
peça de algum museu, representando um calçado de uma
época distante. Porém, o que significaria? Por que aquele
feio sapato aparecia em minha mente sempre que orava?
E por que ele me trazia um ambíguo sentimento de ódio
e nostalgia?
Até me sentia ridícula: o que um sapato tem a ver?
Perder o filho me deixou com um vazio no peito. Passava
horas pensando no motivo de ele ter morrido tão jovem.
Mas eu acreditava que o sonho talvez pudesse ter alguma
relação com o nascimento e a morte dele, e o tarô
poderia me ajudar a entender o sonho, a visão do sapato
e a dor no peito.
Ao abrir as cartas apareceu a seguinte resposta: um
amigo de vidas passadas iria me ajudar. Ele morava
longe, mas eu descobriria o local em breve. Fui con-
versar com meu cunhado, que estava na biblioteca
manuseando um livro de um senhor chamado
Immanuel Kant. Ele pegara esse livro porque sua
próxima viagem seria para a cidade daquele escritor,
chamada Königsberg.
O Carma do Senhor Immanuel Kant na França 89

Intuí que esse escritor seria a pessoa que me ajudaria


a superar aquele momento difícil. Pedi a meu cunhado
para acompanhá-lo. Em um primeiro momento, negou-
se a me levar. Mas, após convencê-lo de que não voltaria
e deixaria a casa para ele, levando comigo apenas uma
quantidade razoável de dinheiro, ele aceitou.
Resolvi sair de Granada e ir para lá, sem me im-
portar com o tempo que levaria para chegar. E, meses
depois, aqui estava. Não passou muito tempo e eu
conheci Kant e passei a frequentar seus cursos. Fiquei
fascinada com meu amigo. Sempre que nos encon-
trávamos, uma imagem mental, uma intuição ou uma
lembrança de uma vida passada, acompanhada de
emoção profunda, vinha à mente.
Na Prússia, resolvi adotar o meu pseudônimo de
dançarina. Eu estava disposta a estudar e ser livre. E
Königsberg me pareceu ser o lugar seguro de que
precisava.
A primeira coisa que vi ao chegar à cidade foi um
cabaré. Criei uma forte identificação com as bailarinas,
todas jovens e com sonhos parecidos com os que tinha
décadas atrás. Consegui um quarto, onde passei a morar,
e trabalhei dando conselhos para as jovens. Mesmo não
dançando, não abandonei a dança e participava sempre
dos ensaios, orientando-as.
Certo dia, ao visitar a Catedral de Konisgsberg,
encontrei Kant e mais três homens. O filósofo se
apresentou e me convidou para visitar a sala onde
aconteciam seus cursos. Comecei a frequentá-los,
ficando quase sempre em silêncio; apreciava os ensina-
mentos e as discussões. Gostava de ouvi-lo falar sobre
as limitações do empirismo de Hume e do racionalismo
90 Adilson Marques

de Leibniz, defendendo uma terceira filosofia que não


as negava, mas mostrava a interdependência entre elas.
Kant também frequentava o cabaré. Eu gostava
quando ele ia lá. Na verdade, eu gostava de todo mundo,
mas era desconfiada. Eu sempre fui mais de ouvir do que
de falar.
Era óbvio o interesse que eu despertava em Kant,
mas tinha medo de perder novamente minha liberdade.
Por isso, não aceitava me envolver com ele. Mas gostava
muito de nossos encontros às escondidas e da troca de
carícias.
Em nosso primeiro encontro, porém, comecei a ver
o sapato em minha mente e a ter sensações desa-
gradáveis. Alguns segundos depois, passei a ver uma
pessoa importante da Igreja Católica, talvez um bispo.
Ele alternava o uso de uma túnica preta com outras duas,
uma branca e outra marrom, mas sempre trazendo uma
fita preta na cintura.
Quando vi mentalmente o bispo, fiquei assustada.
Era um homem feio e com vários hematomas no rosto.
Tinha os olhos de uma pessoa rancorosa e irada.
Dei-me conta de que eu morava em um lugar
administrado pelo bispo. E logo vi que se tratava de um
convento. A construção tinha vários corredores e
cômodos e eu era uma das freiras que lá residia. O meu
quarto, pequeno, tinha apenas uma cama e uma mi-
núscula mesa. Na parede, sobre a cama, havia um
crucifixo prateado.
Esforcei-me para ver outras coisas. Comecei a ouvir
os passos do bispo se aproximando e esse som me
perturbou. Então, era o bispo que usava aquele sapato!
O som dos passos era peculiar. Ao mesmo tempo em que
O Carma do Senhor Immanuel Kant na França 91

sentia muita raiva, também ficava com ciúmes quando


ele entrava em outro quarto e não no meu.
Muitas freiras ficavam grávidas no convento e,
quando as crianças nasciam, eram colocadas na roda dos
enjeitados, que ficava em outro convento. Ali onde
estávamos ainda não havia esse artefato, onde as
crianças rejeitadas pelos pais ou por mães solteiras eram
deixadas. As freiras encarregavam-se de cuidar das
crianças.
A madre superiora do convento acobertava o bispo
e também era sua amante. Muitas lembranças vieram à
minha mente; eu via que a maioria das freiras estava lá
contra a própria vontade.
Numa outra ocasião, vi minha chegada ao convento.
Visualizei uma casa pequena, muito charmosa, de uma
família de camponeses. Eu sabia que era na França e,
provavelmente, no século XVII. Eu era uma menina
muito simpática com cerca de quatorze anos de idade.
Meu corpo estava desabrochando e o sentimento de
liberdade que senti era imenso.
Eu vi a menina correndo por um campo verde-claro.
A garota girava o corpo com os braços abertos. Lembro-
me de me emocionar quando a menina tirou um lenço
da cabeça, deixando os cabelos soltos enquanto saltitava
no campo. Ela, que eu sabia ser eu, usava um vestido
rodado que lhe cobria o corpo até os tornozelos. Tam-
bém usava meias e um sapato com grandes bicos.
A menina tinha um irmão que era livre para fazer o
que quisesse. Eu, porém, não desfrutava da mesma
liberdade. Eu senti que meu desejo era ser como o meu
irmão, mas o meu pai não deixava. Sua intenção era boa,
mas ele era um homem autoritário. Ele não podia
92 Adilson Marques

permitir que a filha tivesse a mesma liberdade do filho.


Era assim a educação da época. Mas isso deixava a
menina revoltada e infeliz.
Meu pai, eu lembro até hoje, tinha uma aparência
rude. Usava calça colante, botas de couro cano alto e
uma camisa suja por dentro da calça. Por cima, vestia
um colete que mais parecia uma bata. Apesar de ser
um homem forte, eu não sentia medo dele, mas
revolta por sua falta de compreensão. Eu nutria pelo
meu pai algo parecido com desprezo e ódio ao mesmo
tempo.
Não consegui descobrir o nome da cidade onde a
família morava, mas percebi que era um local muito frio.
A casa que habitavam tinha o telhado em V. Minha mãe
gostava de usar um vestido escuro com um avental por
cima e, na cabeça, costumava usar uma touca parecida
com a de cozinheiro. Ela tinha a pele e os olhos claros e
andava sempre de cabeça baixa, olhando para o chão.
A impressão é que se tratava de uma mulher servil e
submissa, sempre obedecendo às ordens do marido sem
questionamento. Eu via e sentia que o sonho da menina
era ser livre como o irmão. Ela queria brincar no rio, que
tem muitas pedras e é frio.
Eu vi também a imagem do meu pai cortando lenha
para aquecer a casa, pois estava um dia muito frio. Em
seguida, eu vi que, depois que o bispo conheceu a
menina e a negociou com o pai, ela foi para o convento.
Era jovem, talvez tivesse cerca de doze anos. Desta vez,
eu vi o bispo com uma aparência jovem, por volta dos
30 anos de idade. A pele dele era branca, mas os cabelos
combinavam com os olhos. Estes eram brilhantes, mas
traziam revolta e ironia.
O Carma do Senhor Immanuel Kant na França 93

Numa outra ocasião, cheguei a me ver como uma


mulher com mais de cinquenta anos de idade. Ela estava
com muita dor no estômago, não conseguia mais se
alimentar. Percebi que ninguém se importava com ela e
que ficou vagando pelo convento após a morte, pro-
curando o bispo. Ela havia se tornado cúmplice dele e,
junto com o ódio, sentia forte afeição por ele.
As informações vinham em minha mente na forma
de imagens detalhadas e nítidas, apenas não conseguia
identificar o nome das pessoas nem as datas com
precisão, como no caso de um parto.
Eu me vi usando uma camisola branca, muito
comprida, que me cobria os braços e as pernas. Eu estava
grávida e acariciava a barriga. Um homem levava comida
para mim todos os dias. O quarto ficava em uma torre
muito alta, com uma escada circular. Nele havia uma
janela grande que dava para o pátio e um jardim. O
quarto era pequeno, cabiam apenas uma cama e uma
cômoda. Eu ficava o tempo todo sozinha.
No dia do nascimento da criança – um menino –,
quatro ou cinco freiras ajudaram no parto. Assim que
ele nasceu, um homem entrou no quarto e a criança lhe
foi entregue. Depois, ele a deixou com uma mulher, que
saiu do convento e levou a criança para outro local.
Sem poder cuidar do filho, entrei em depressão
profunda. Não queria mais viver. Não sei quanto tempo
fiquei assim: enferma, não comia nada. Achei que fosse
morrer. Mas me recuperei e me tornei uma mulher
amarga e muito rígida com as outras freiras. Elas não
gostavam de mim, diziam que eu era protegida do bispo.
Quando ele entrava, todas abaixavam os olhos. O bispo
me defendia e protegia, dando-me sempre razão.
94 Adilson Marques

Até trechos da minha vida no plano espiritual, entre


uma encarnação e outra, eu consegui ver. Certo dia, após
me encontrar com Kant, visualizei meus últimos ins-
tantes de vida como freira. Comecei a adoecer por volta
dos 47 anos, por causa do intenso ódio que sentia, tanto
do bispo como da pessoa que o substituiu após sua
morte.
Pouco antes de morrer, o bispo aparentava ter quase
oitenta anos, apesar de ser mais jovem. No convento,
ninguém queria cuidar dele. As pessoas tinham medo e
nojo. Resolvi cuidar do bispo para me vingar. Eu o
ridicularizava, ria de sua forma monstruosa. Porém, o
sentimento que eu nutria misturava amor e ódio. Sentia
raiva do bispo por ele não ter permitido que eu cuidasse
do filho que gerei, mas, ao mesmo tempo, tinha medo
de perdê-lo.
Tive mais cinco filhos com ele, mas só me interessei
pelo primeiro. Aliás, dos outros, eu queria me libertar o
mais rapidamente possível. Usava o sexo apenas para
controlar o sacerdote e ter poder sobre as outras freiras.
Meu poder ali dentro era maior do que o da madre
superiora. Enquanto eu estava grávida, o bispo procu-
rava as outras freiras para se satisfazer, por isso, o que
mais queria era me livrar das gestações indesejadas.
Com a morte do bispo, uma pessoa muito severa
veio cuidar do convento. Uma de suas primeiras provi-
dências foi instalar uma roda dos enjeitados no conven-
to. Isso me revoltou ainda mais, pois tinha de cuidar das
crianças abandonadas. O ódio me fez adoecer e, após a
morte física, minha alma ficou vagando pelo convento.
Na condição de Espírito, passei a notar que as
paredes do lugar traziam gravadas as energias de so-
O Carma do Senhor Immanuel Kant na França 95

frimento e sentia também os sonhos roubados daquelas


jovens. Umas estavam lá por serem lindas e chamar a
atenção dos homens; enquanto outras, ao contrário, por
serem feias e um peso para a família que não acreditava
ser possível arrumar maridos para elas.
No convento, eu andava de um lado para o outro à
procura do bispo. Apesar de pernicioso, ele foi a minha
principal referência no mundo.
Eu me via também saindo do convento para pro-
curá-lo. Andei por uma rua de pedra até chegar a um
povoado com várias casas, todas pintadas de branco. Lá
encontrei um cemitério e entrei. Cheguei perto de uma
sepultura e, sem entender o que estava acontecendo, me
senti presa a ele. Comecei a sentir muita falta de ar, como
se estivesse enterrada viva.
No meio daquele desespero acabei dormindo. Ao
acordar, vi que me encontrava deitada em uma cama,
em uma espécie de hospital muito iluminado, com um
homem negro ao meu lado. Minha primeira reação foi
de espanto. Os únicos homens que havia conhecido
foram o meu pai, meu irmão e o bispo.
Além disso, no convento, só havia pessoas brancas.
Naquela encarnação eu nunca havia encontrado uma
pessoa negra. Vi quando o homem se aproximou para
impor suas mãos sobre mim e me assustei. Pensei que
ele fosse me agredir.
Com medo, pedi para ele sair. Compreendendo a
apreensão em que me encontrava, o homem obedeceu
e outro Espírito entrou no quarto, agora na forma
feminina. Eu fiquei eufórica, pois se tratava de uma ex-
companheira de convento que faleceu como um passa-
rinho, dormindo, sem dor ou sofrimento.
96 Adilson Marques

Essa ex-irmã me disse para ficar calma e começamos


a conversar. Antes, ela pediu para alguém me trazer uma
espécie de sopa, cuja cor era amarela. Ainda sob o efeito
do relaxamento, senti o gosto. Mas não sei descrever o
sabor, porque não há nada na Terra que se compare a
isso. Recebi, então, da ex-freira esclarecimentos sobre a
reencarnação e sobre a vida após a morte. Mais calma,
adormeci.
Não sei precisar quanto tempo se passou, mas, ao
acordar, meu único desejo era encontrar o bispo. Ainda
sentia dores na barriga, mesmo assim, desejando ver e
ouvir o clérigo, eu consegui sair daquele hospital
espiritual e fui parar em uma região muito estranha e
tenebrosa. Via muitas crianças chorando e sentia
remorsos.
Sai correndo por uma rua onde várias crianças
mendigavam e passavam fome. No auge do meu deses-
pero, briguei com Deus, acreditando que aquelas crian-
ças não mereciam passar por aquilo. Eu também culpava
Deus por ter sido vítima da violência e por amar aquele
homem que tanto mal me fez.
Revoltada, gritava: “Se você realmente existe, por
que permite que estas coisas aconteçam?”. Era tanta a
minha revolta que meu corpo espiritual começou a se
deformar, faltando partes. Além disso, o cheiro era
insuportável.
Eu não estava preparada para amar a Deus. Eu
sentia medo dele e de seus emissários, dentre eles o
bispo, que, finalmente, encontrei naquela região
viscosa, com cheiro de carne podre e onde muitos
gritavam, choravam e amaldiçoavam uns aos outros.
Vários membros da Igreja Católica lá se encontravam
O Carma do Senhor Immanuel Kant na França 97

e culpavam Deus, gritando que tinham sido enganados


por Ele.
Outros que deram grandes somas em dinheiro para
a Igreja e que diziam ter obedecido aos seus repre-
sentantes na Terra também blasfemavam contra Deus.
O bispo mantinha a mesma aparência de seu desen-
carne. O rosto continuava desfigurado e exalava um forte
mau cheiro. Da cabeça dele saíam faixas com cores
escuras que envolviam um bando de Espíritos que lhe
faziam reverência e o obedeciam cegamente.
Quando ele me viu, pensei que me receberia com
alegria. Porém, começou a gritar que eu não deveria estar
ali. Falava que a mulher era uma armadilha fatal e que
a minha presença poderia levar o grupo à destruição.
Mas, depois de um tempo, o bispo começou a aceitar a
minha presença.
Às vezes, luzes de cores claras e brilhantes passavam
por lá e chamavam algumas pessoas pelos nomes que
tiveram na Terra. O grupo que seguia o bispo sempre se
escondia em grutas até as luzes sumirem. Com fre-
quência, o bispo tinha convulsões. Rolava pelo chão e
esbravejava, jurando vingança contra os pais. O bispo
os culpava pelo seu destino. Dizia que os pais poderiam
ter dado a ele outra vida. A família o obrigou a assumir
aquele posto junto à Igreja. Também acusava Deus,
dizendo que trabalhou em Seu nome.
O bispo era orgulhoso e ameaçava se vingar de todos
que não reconhecessem sua superioridade intelectual e
financeira. Por ser dotado de inteligência era o líder
naquele local deprimente.
O bispo não me maltratava, mas outros Espíritos ele
deixava de castigo. Eles ficavam uivando durante muito
98 Adilson Marques

tempo em grutas. Em raros momentos, ele me olhava


com piedade, mas logo voltava a me desprezar por ser
mulher. Eu tinha a impressão de que me tratava como
um animal de estimação.
De repente adormeci e acordei novamente no
hospital. Ao meu lado havia outros Espíritos doentes e
em completa ignorância da Verdade. Lá reencontrei a
ex-irmã do convento e chorei muito. Com sua voz suave,
ela sempre pedia que entregássemos tudo a Jesus. Era a
única que cuidava de todos com amor, sem nunca
reclamar ou se revoltar. Finalmente, resignada e cons-
ciente de minha condição espiritual, me vi aceitando o
tratamento naquele hospital.
Pouco tempo depois, recebi da irmã permissão para
ir aonde quisesse, pois já estava fortalecida e era capaz
de manter controle adequado da mente, não me vin-
culando mais com as energias deletérias daquela antiga
encarnação.
Entendi que, de certa forma, o bispo foi o ins-
trumento necessário para que eu, enquanto Espírito,
passasse por minhas provações. Na condição de Espírito
eterno estava compreendendo que ambos – eu e o bispo –
possuíamos o mesmo desejo de dominar, julgar e jogar
com os sentimentos alheios. Com minha consciência
espiritual recuperada, percebia que ainda tinha muito
a aprender. Felizmente, tomava consciência de minhas
muitas imperfeições e de que precisava me esforçar para
melhorar minha condição como espírito eterno, gal-
gando mais alguns degraus rumo à angelitude.
E eu e o bispo iríamos nos reencontrar em breve,
em uma nova encarnação. Só não sabia que eu nasceria
perto de Málaga e ele em Königsberg. Que eu ganharia
O Carma do Senhor Immanuel Kant na França 99

a vida e faria fortuna como bailarina e ele seria um


filósofo amoroso. Que eu teria poderes psíquicos e ele
seria um racionalista inveterado.
Nessa nova encarnação, ele estava bem diferente.
Era um homem muito mais romântico e amoroso.
Apesar de nossos frequentes encontros, nunca consegui
me entregar por completo a ele. Kant insistia e até em
casamento me pediu. Mas eu nunca cedi. Não sei se o
que me impedia eram as imagens dele como bispo ou
se era o medo de perder novamente a liberdade.
Mas eu gostava muito de seus beijos e também de
seus toques. Gostava quando ele se deitava na cama e
eu subia em seu corpo. Eu ficava muito excitada e
ofegante. Meus peitos eram pequenos e duros. Cabiam
nas mãos de Kant, que os acariciava. Esse era o limite.
Não o deixava ir adiante.
Em meus devaneios, imaginava que estávamos em
minha cidade natal, contemplando as casinhas brancas
da vila, e eu, finalmente, me entregava de forma plena.
Imaginava que percorria as ruas estreitas de mãos dadas
com ele e, no jardim de casa, enquanto olhava a lua
cheia, era penetrada pelo homem que eu amava.
Felizmente, para ambos, o passado sombrio na
França é, agora, apenas passado. Uma fase infantil na
vida eterna do Espírito.
Glossário Básico

Categorias – são os doze conceitos puros formulados


por Kant e que seriam como formas vazias a serem
preenchidas pelos fenômenos. Os doze conceitos são
separados em quatro grupos:
Quantidade: unidade, pluralidade e totalidade
Qualidade: realidade, negação e limitação
Relação: substância, causalidade e comunidade
Modalidade: possibilidade, existência e necessidade
No caso específico da causalidade (causa e efeito), que
para Hume seria uma ilusão criada pela mente, Kant vai
afirmar que o erro de Hume foi procurar a causalidade
na natureza. A causalidade, segundo Kant, estaria no
sujeito e não no mundo.

Conhecimento sintético a priori – Ao contrário do


conhecimento sintético a posteriori, que seria o co-
nhecimento científico ou empírico, o juízo sintético a
priori seria similar à ideia de postulado, ou seja, que é
sujeito a contraditório e a falsificabilidade. Como
postulado, o conhecimento sintético a priori pode ser
alterado a partir de novas descobertas.

David Hume (1711-1776) – Foi um dos principais


críticos do racionalismo, sobretudo o de Descartes. Em
seu clássico estudo filosófico Ensaio sobre o entendimento
humano expõe sua teoria empirista na qual os sentidos
(visão, olfato, paladar, tato e audição) impressionam o
102 Adilson Marques

cérebro. Por sua vez, as representações mentais seriam


fruto dessas impressões. Ou seja, a consciência e os
produtos associados a ela (imaginação, ideias, etc.) nada
mais seriam do que epifenômenos criados pelo cérebro
ou frutos das impressões causadas pelos sentidos. Seu
pensamento teve e ainda tem grande influência na
ciência moderna, como no caso dos estudos sobre
inteligência artificial. A suposta ausência de experi-
mentação na religião ou na metafísica levou Hume e
outros empiristas a não se interessarem por elas.

Emanuel Swedenborg (1688-1772) – Sueco que


contribuiu em diferentes ramos do saber científico até
que, por volta dos 56 anos, passou por um sensível
processo de emergência espiritual, que se, por um lado,
o tornou mais conhecido, por outro, abalou sua repu-
tação científica. Sem se preocupar com as críticas e
perseguições, continuou até o fim de sua existência a
difundir suas visões sobre os planos espirituais e poderes
que hoje seriam chamados de mediúnicos. Em sua fase
denominada pré-crítica, Kant, que não negou a exis-
tência do mundo espiritual, classificou o contato de
Swedenborg com a dimensão oculta como patológica ou
capaz de causar loucura. O livro de Kant foi utilizado
pelos adversários do Espiritismo para atacar a doutrina
formulada por Allan Kardec.

Félix Vialart (1613-1680) – Também foi bispo em


Châlons, de 1642 até o ano de sua morte. Ficou conhe-
cido por operar milagres e foi estudado pela Uni-
versidade de Lorraine, em Nancy, na França.
O Carma do Senhor Immanuel Kant na França 103

Gottfried W. Leibniz (1646-1716) – Nascido em


Leipzig, na Alemanha, tornou-se um dos principais
representantes do racionalismo, após Descartes e
Spinoza. Destacou-se, no âmbito espiritualista, por sua
teoria sobre as mônadas, substâncias simples, mas
diferentes entre si e sem extensão, sendo indivisíveis e
eternas. Para ele, apenas Deus poderia criar e destruir
as mônadas. Cada uma vê o mundo de seu ponto de
vista, e as mônadas não se comunicam entre si. Assim,
qualquer mudança na mônada tem de ser o resultado
de um processo interno, uma vez que nada externo
poderia interferir nela. Para Leibniz, Deus também seria
uma mônada, mas Ele perceberia o mundo de todos os
pontos de vista possíveis, enquanto as demais mônadas
percebem e representam a partir de um único ponto de
vista. Assim, Deus seria a mônada das mônadas.

Igreja Paroquial de Santa Genoveva em Asnières-


sur-Seine – Igreja consagrada em 1711 por Jean
Baptiste Louis Gaston de Noailles, na periferia de Paris.

Jean Baptiste Louis Gaston de Noailles (1969-


1720) – Nascido em Paris, tornou-se bispo na cidade
de Châlons, na região de Champagne. Morreu sem pedir
perdão ao papa e ficou famoso, em sua época, por
destruir uma relíquia que movimentava a economia de
sua pequena cidade por meio do “turismo religioso”. Sua
ação foi elogiada por Voltaire.

Königsberg – Cidade natal de Kant, hoje denominada


Kaliningrado. Após 1945, a cidade passou a pertencer
à Rússia, inclusive foi uma das sedes do Campeonato
104 Adilson Marques

Mundial de Futebol em 2018. Antes disso, porém, foi


uma das mais importantes cidades do império prussiano,
tendo sido sua capital entre 1457 e 1701. Ela foi
fundada em 1255 e duramente bombardeada na Segun-
da Guerra Mundial, sendo amplamente destruída. Na
chamada “ilha de Kant”, a única construção não afetada
foi a catedral, erguida em 1380, em estilo gótico. Além
de Kant, um dos seus filhos mais ilustres, a cidade ficou
conhecida pelo enigma das sete pontes. Alguns mora-
dores, em 1735, lançaram um desafio: conseguir fazer
um passeio a pé pela cidade, passando uma única vez
por cada ponte e voltando ao ponto de partida. No ano
seguinte, o matemático Leonhard Euler, utilizando o que
ficou conhecida, posteriormente, como a teoria dos
grafos, concluiu que seria impossível. Porém, a teoria dos
grafos tornou-se uma referência para a solução de
diferentes problemas práticos no mundo moderno.

Louis Antoine de Noailles (1651-1729) – Apesar de


indicado cardeal arcebispo de Paris, em 1700, por
indicação de Luis XIV, tornou-se um fervoroso defensor
da República e do jansenismo, sendo excomungado pelo
papa Clemente XI. Assim como seu irmão, Gaston de
Noailles, também foi bispo de Châlons.

Maria Vitória de Noailles (1688-1766) – Em 1723,


casou-se, em uma cerimônia secreta, com o conde de
Toulouse. Ela foi a única mulher a quem era permitido
ver o rei Luis XV sem agendamento oficial.
O Carma do Senhor Immanuel Kant na França 105

Jean Baptiste Louis Gaston de Noailles (1969-1720)


Nascido em Paris, tornou-se bispo na cidade de Châlons, na
região de Champagne. Morreu sem pedir perdão ao papa e
ficou famoso, em sua época, por destruir uma relíquia que
movimentava a economia de sua pequena cidade por meio
do “turismo religioso”. Sua ação foi elogiada por Voltaire.
Emanuel Swedenborg (1688-1772)
Sueco que contribuiu em diferentes ramos do saber científico
até que, por volta dos 56 anos, passou por um sensível
processo de emergência espiritual. Se, por um lado, esse
processo o tornou mais conhecido, por outro, abalou sua
reputação científica. Sem se preocupar com as críticas e
perseguições, continuou até o fim da vida a difundir suas
visões sobre os planos espirituais e poderes que hoje seriam
chamados de mediúnicos
Königsberg – Cidade natal de Kant, hoje conhecida como
Kaliningrado. Após 1945, a cidade passou a pertencer à
Rússia. Foi uma das mais importantes cidades do império
prussiano, tendo sido sua capital entre 1457 e 1701.
Fundada em 1255, foi duramente bombardeada na Segunda
Guerra Mundial, o que acarretou grandes estragos. Na
chamada “ilha de Kant”, a única construção não afetada foi
a catedral, construída em 1380, em estilo gótico. Na catedral
encontra-se o túmulo de Kant e um museu.

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