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Resumo: Os diálogos entre História e Literatura possibilitam a análise do mundo medieval sob novas
formas de abordagem. Nesse sentido, o enfoque será dado à condição feminina retratada a partir de
dois contos selecionados da obra literária Os contos de Cantuária, do escritor inglês medieval
Geoffrey Chaucer. Em O conto do Estudante, a protagonista é uma mulher frágil e submissa ao seu
marido, enquanto que em O conto da Mulher de Bath, a personagem-título é irreverente e
contestadora, que reclama, por exemplo, o direito ao prazer sexual, além de afirmar que a mulher deve
comandar a relação no casamento. Pretende-se, portanto, a partir dessas duas histórias, apresentar a
percepção desse autor sobre os papéis da mulher na sociedade inglesa de seu tempo.
Introdução
Para que se possa compreender, ainda de que forma superficial, como os papéis
desempenhados pelo homem e a mulher na sociedade ocidental na Baixa Idade Média – ponto
chave desta discussão – e, até certa extensão, na contemporaneidade, é necessário visualizar
um panorama que exibe uma dinâmica em que esses papéis se alternam no que diz respeito a
certa preponderância de um sobre o outro, dinâmica essa que dispõe o que se convencionou
chamar de matriarcalismo e patriarcalismo.
A mulher foi por muitos séculos a base estrutural de sociedades primitivas matriarcais,
em que desempenhava um papel de igual ou superior importância ao do homem. Segundo
Leite (1994, p. 20), a mulher seria responsável por manter a cabana em ordem, ela
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Uma observação particular merece ser dada à escolha da palavra “retrato”, no contexto deste artigo: trata-se do
que se pode entender por um tipo de representação do que se vê e do que se concebe sobre algo – no caso, aqui,
uma ideia preconcebida e idealizada do que é e do que constitui a mulher, ou o ser feminino, o que, portanto, não
pode ter significado preciso e “verdadeiro”, “real”.
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Nos livros do Tantra da Índia medieval e moderna, o local onde habita a deusa é
denominado Mani-dvipa, "Ilha das Jóias". Seu divã e trono ali se
encontram, num bosque de árvores que atendem a desejos. As praias da ilha
têm areias de ouro. São banhadas pelas águas calmas do oceano do néctar da
imortalidade. A deusa é vermelha como o fogo da vida; a terra, o
sistema solar, as galáxias do incomensurável espaço — tudo isso cresce no seu
útero. Pois ela é a criadora do mundo, sempre mãe e sempre virgem. Ela abrange o
abrangente, nutre o nutriente e é a vida de tudo o que vive. Ela é também a morte de
tudo o que morre. Todas as etapas da existência são realizadas sob sua influência, do
nascimento — passando pela adolescência, maturidade e velhice — à morte. Ela
é o útero e o túmulo: a porca que come seus próprios leitões. Assim
sendo, ela une o "bom" e o "mau", exibindo as duas formas que a mãe
rememorada assume, em termos pessoais e universais.
Esta visão da deusa está mais intimamente ligada à cultura oriental, ao passo que a
crença da criação do mundo através de um deus masculino está ligada principalmente a
cultura ocidental, principalmente na crença judaico-cristã e bíblica de que Deus criou o
mundo e tudo que nele há em cinco dias, no sexto dia criou o homem e, da costela de Adão,
criou Eva:
Quando todas as outras criaturas tiveram suas companhias, Adão quis a dele: apesar
de ser o Imperador da Terra, e o Almirante dos Mares, ainda assim, no Paraíso sem
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uma companheira, embora fosse verdadeiramente feliz, ainda assim não o era por
completo: embora tivesse o suficiente para a sua mesa, não o tinha para a sua cama;
embora tivesse muitas criaturas para servi-lo, ainda assim queria uma criatura que o
consolasse; quando foi composto pela Criação, deveria ser completado pela
conjunção; quando não tinha nenhum pecado que o feria, então deveria ter uma
mulher para ajudá-lo; não é bom que o homem fique sozinho. (SECKER apud
LEITES, 1987, p. 126)
A mulher foi “feita” única e exclusivamente para servir ao homem. De acordo com
esse mito, a criação da mulher não estava nos planos do Criador: ela existe simplesmente para
suprir as necessidades e carências masculinas. A Bíblia tem interferência na vida dos
indivíduos oriundos da religião cristã desde a infância, as tradições cristãs ressaltam a
superioridade masculina, ditando como deve ser a forma de agir da comunidade, o perfil do
cristão e principalmente a submissão da mulher ao homem. Como já dito anteriormente, a
mulher, desde criança, deve se subordinar ao homem, pois esta foi criada para servir aos
interesses masculinos. Desse modo, na Bíblia encontram-se poucas figuras femininas de
grande expressão, que foram verdadeiramente importantes ou que tiveram um papel de
destaque no lugar social em que estavam inseridas.
Outro mito que tenta explicar a criação da primeira mulher diz que Lilith foi criada por
Deus no momento em que Este criou a Adão. Eva teria sido criada posteriormente, pois a
primeira mulher não aceitou ser vista como um ser inferior ao homem. Eva só teria sido
criada devido ao insucesso da primeira mulher.
Segundo Sicuteri (1985, p. 35), Lilith teria se revoltado com Adão por sempre ser
inferior a ele. Ela se diz feita do mesmo pó que ele, portanto pensava não ter nenhuma
obrigação de se sujeitar a ele. Também não se agradava de ter que ficar em uma posição
inferiorizada no ato sexual, portanto, pede que Adão mude de posição, permitindo que ela
também fique por cima dele em determinado momento. Assim, eles teriam uma relação igual,
mas Adão não aceita a condição. Consequentemente, há o primeiro conflito entre os dois:
__ Por que ser dominada por você? Contudo eu também fui feita de pó e por
isso sou tua igual". Ela pede para inverter as posições sexuais para
estabelecer uma paridade, uma harmonia que deve significar a igualdade
entre os dois corpos e as duas almas. Malgrado este pedido, ainda úmido de
calor súplice, Adão responde com uma recusa seca: Lilith é submetida a ele,
ela deve estar simbolicamente sob ele, suportar o seu corpo. Portanto: existe
um imperativo, uma ordem que não é lícito transgredir. A mulher não aceita
esta imposição e se rebela contra Adão. É a ruptura do equilíbrio.
maioria das mulheres, que devem todo o tipo de submissão a seus maridos. A história de
Lilith teria sido supostamente removida da maioria das versões bíblicas por se tornar um mau
exemplo para as mulheres cristãs que, sabendo da história desta, provavelmente também
questionariam os maridos acerca da submissão sexual.
Com a constante mudança social, passa-se a ser notório o imperialismo patriarcal,
principalmente a partir das teorias criacionistas próprias da cultura ocidental, explicitando que
o mundo foi criado por um Deus masculino. Entretanto, esses mitos são repassados ao longo
da história por meio de escrituras sagradas ou de tradições orais. Assim, a mulher, que antes
tinha o papel de conhecedora, levando uma vida igual ou superior à do homem, agora,
passava a ser inferiorizada, tornando-se objeto de posse, sendo uma ameaça para a sociedade,
não podendo se intrometer em assuntos relativos à política, à sociedade e à cultura,
estritamente exclusivos ao sexo masculino.
Pode-se perceber, portanto, que a imagem da mulher, de seu papel social, de suas
características físicas, comportamentais e morais passou por várias reformulações, enquanto
clichê ou estereótipo – e, por isso mesmo, são visões simplistas, reducionistas e que negam a
complexidade e a dinamicidade que constitui qualquer ser humano.
É, sobretudo, a partir do advento do Cristianismo e sua propagação pelo mundo que a
concepção do ser feminino se confere como tradição e adquire as feições de um ideal que
atende às perspectivas do mundo dominado pelo sexo masculino, ainda como clichê ou
estereótipo, sem levar em conta toda uma gama de variáveis e possibilidades do que faz um
ser humano “ser humano”.
Faz-se necessário, também, compreender que, dada a complexidade natural que faz
parte do ser – e de ser – humano, não se pode simplesmente colocar rótulos sobre esse ou
aquele indivíduo, ou sobre um conjunto de indivíduos desse ou daquele sexo, sociedade,
cultura etc. Há variáveis demais, em uma dinâmica constante, provocando mudanças nessa
constituição do que é “humano”. A mulher, nesse contexto, portanto, é um ser ativo também,
que também deixa suas marcas, além de ser meramente um fantoche à mercê do que a cultura
e a sociedade constrói a respeito dela:
Desta forma, essas mulheres desafiadoras das leis deixam suas marcas, abrindo terreno
fértil para outros modos de pensar e agir. De acordo com Rank (2014, p.9): “Apesar de elas
não se terem buscado derrubar o mundo de dominância masculina em que viviam, fica claro
que elas não eram mais donzelas em perigo. Muitas delas foram lideres mais poderosas de seu
tempo”.
Até aqui, após algumas considerações e um breve panorama do que se sabe sobre a
complexa dinâmica de papéis exercidos pela mulher e pelo homem na História, desde seus
primórdios até a prevalência do patriarcalismo difundido principalmente pela cultura judaico-
cristã, lançando seus reflexos na sociedade ocidental, chega-se ao ponto em que se desejava
chegar: a Baixa Idade Média no contexto da Inglaterra do tempo de Geoffrey Chaucer.
Desse modo, antes de se mergulhar diretamente na questão masculino X feminino em
Os contos de Cantuária, é necessário um preâmbulo acerca de Chaucer e de sua importância
para a sociedade de seu tempo e também para a sociedade atual.
Conforme Vizioli (1988, p. X-XI), há poucos dados concretos sobre a vida de
Geoffrey Chaucer, mas sabe-se que nasceu em Londres, por volta de 1340, e era filho de um
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Já Burgess (2004, p. 40) afirma que Chaucer – a quem chama de “moderno – possuía
olhar observador sobre a vida como de fato ela era vivida, por meio de personagens
verossímeis e sua visão tolerante, humorada, com doses de ceticismo, além de sua paixão e
amor pela humanidade. Há outros traços de inovador na escrita de Geoffrey Chaucer, no que
se refere à transformação da língua inglesa, segundo seus propósitos literários, deixando-a um
pouco mais parecida com o inglês atual, além de estabelecer suas tradições literárias.
Chaucer redigiu sua obra Os contos de Cantuária (The Canterbury Tales) entre 1386 a
1400, ano de sua morte. O enredo tem como advento inicial quando todos os personagens se
encontram em uma estalagem e todos se juntam a Chaucer com o mesmo objetivo: partir de
Londres até a Catedral de Cantuária (Canterbury) venerar São Tomás Becket. Assim, o
Albergueiro aconselha que todos façam a viagem juntos, sendo mais seguro para todos e, para
que a viagem seja mais agradável, ele propõe que cada um conte duas histórias na ida e duas
na volta. Como prêmio, quem contasse a melhor história seria brindado com um banquete
pago por todos. Por conseguinte, os contos são apresentados, um a um, e cada conto junto a
seu prólogo, compondo cada conto, um capítulo.
Sua obra retrata um amplo panorama social da época, a começar pelo prólogo geral,
composto por homens e mulheres das mais diversas classes e ofícios, os peregrinos, reunindo
relatos e acontecimentos dos diversos personagens. Vizioli (1988) afirma que, embora as
classes mais altas e as mais baixas não façam parte da comitiva, eles são abordados no corpo
dos textos. Além da sociedade, no livro estão presentes traços da cultura e da literatura
medieval.
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Narrado por Alice, a Mulher de Bath – uma mulher com atitudes bastante “atípicas”
para o que o senso comum confere às mulheres da época – que decide relatar suas vivências
após contrair o matrimônio. Fundamentada em preceitos bíblicos, a personagem os utiliza
para defender sua conduta. Ainda no prólogo, a narradora faz uma introdução sobre os males
do casamento a partir de suas experiências, para que estas possam servir de instrução aos
inexperientes. Desde seus doze anos, até então, a senhora contraíra cinco matrimônios.
Quando questionada a tal atitude, ela mesma diz: “deixo que os outros façam suas suposições
e as suas interpretações; quanto a mim, o que sei é que Deus, expressamente e sem mentira,
ordenou-nos claramente isto: Crescei e multiplicai-vos!” (CHAUCER, 1988, p.105).
Alice retrata a história de um cavaleiro da corte do Rei Artur que é condenado por
deflorar uma donzela. Segundo a lei convencional, ele deveria ser condenado à morte. A
rainha condiciona a vida ou a morte do jovem à resposta para a pergunta: “o que as mulheres
mais desejam?”. Ele aceita e busca resposta em vários lugares, até que já cansado conhece
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uma velha muito feia que lhe responde que “as mulheres desejam dominar os homens” em
troca dele se casar com ela.
A resposta do jovem à rainha é satisfatória, tornando-o um homem livre para se casar
com a sábia idosa correndo o risco de perder sua liberdade, pois “o casamento tira a
liberdade”. Então, se casam e o a velha propõe que ele escolha entre ter uma esposa velha e
feia, porém fiel e humilde, ou uma jovem e atraente, porém dominadora e promíscua. O
jovem deixa a velha escolher e ela se transforma em uma linda donzela capaz de realizar
todos os desejos do marido e assim ambos são felizes “sempre em perfeita harmonia”.
Muito mais do que expressar suas características físicas, o autor destaca o perfil de
Alice como uma mulher destemida, que não perde a oportunidade de falar o que pensa.
Percebemos também que a personagem, além de possuir um grande poder monetário em
decorrência de seus vários casamentos, ela possui experiências de vida e mundo.
ela se orgulha desde o início, seu discurso tem tons de conflito com sua sociedade
patriarcal”.7
Outro ponto relevante a se destacar é a beleza como comercialização sexual, pela voz
da personagem-título:
Senhor meu Jesus, quando me lembro dos tempos em que era jovem e
bonita, meu coração até bate mais depressa… ainda hoje sinto lá dentro uma
satisfação enorme só de pensar como aproveitei bem a vida enquanto pude.
Mas depois veio a idade, que envenena tudo, e me roubou a beleza e o
pique… Não faz mal. Adeuzinho! Vão para o diabo! Acabou-se a farinha,
não há o que discutir: agora faço o que posso para vender o farelo, sem
perder a alegria de viver. (p. 109)
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The Wife is exactly what the medieval Church saw as a “wicked woman,” and she is proud of it—from the
very beginning, her speech has undertones of conflict with her patriarchal society.
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Considerações finais
Por fim, a crítica tecida por Nascimento (1997) à corrente historiográfica chamada
História das Mulheres é salutar, no que consiste em realizar, sim, o estudo do papel da mulher
na História, na constatação de que “o cotidiano do homem ou da mulher de qualquer época
histórica pode romper qualquer arcabouço teórico, e de que a existência humana vai muito
além da oposição entre o preto e o branco; ela permite infinitas possibilidades de cores e
matizes” (p. 84).
O contexto medieval estabelece novas relações e comportamentos de gênero que
muitas vezes podem ser entendidos de forma generalizadora. A leitura de Chaucer se torna
interessante, porque confere o espaço para se observar formas de diferentes diálogos que o
feminino estabelece com esse contexto patriarcal, nem sempre o reforçando, mas, algumas
vezes, até mesmo estabelecendo contestações, como no conto da Mulher de Bath, o que, de
certa forma, nos conduz a um conceito não estático da cultura, em que se pode perceber
diversas formas de diálogos que podem se estabelecer com os padrões culturais.
Referências
MURARO, Rose Marie. Breve Introdução histórica. In: KRAMER; SPRENGER. O martelo
das feiticeiras. Tradução: Paulo Fróes. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2009.
NASCIMENTO, Maria Filomena Dias. Ser mulher na Idade Média. In: Textos de História, v.
5, n" I, 1997, p.82-91.
RANK, Michael; RANK, Melissa. Mulheres na Idade Média: rainhas, santas, assassinas de
Vikings, de Teodora a Elizabeth Tudor. Five Minute Books, 2014.
SICUTERI, Roberto. Lilith: a Lua Negra. Trad. Norma Telles e J. Adolpho S. Gordo. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1985.
SPARKNOTES Editors. SparkNote on The Canterbury Tales. SparkNotes LLC. Disponível
em: <Http://www.sparknotes.com/lit/canterbury/ 2003>. Acesso em: 10/10/15.
VIZIOLI, Paulo. Apresentação. In: GEOFFREY, Chaucer. Os Contos de Cantuária: The
Canterbury Tales. Tradução de Paulo Vizioli. São Paulo: T. A. Queiroz, 1988, p. VII-XXIV.
WETHERBEE, Winthrop. Chaucer: the Canterbury Tales – a student guide. 2nd ed. New
York: Cambridge University Press, 2004.