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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

MUSEU NACIONAL
Programa de Pós-graduação em Antropologia Social
Trabalho de conclusão de curso da disciplina:
―Cosmoespaços: linhas, conjuntos, mapas, números e medidas em universos indígenas‖

espaço, um equívoco:
dimensões tensivas da territorialidade ameríndia

Thiago Braga Sá
matrícula nr. 119008359

julho de 2019
Billy Pilgrim conta que para as criaturas de
Tralfamadore o universo não é um monte de
pontinhos brilhantes. As criaturas enxergam
onde cada estrela esteve e para onde vai,
assim os céus são tomados por um espaguete
rarefeito e luminoso. E os tralfamadorianos,
além disso, não enxergam os seres humanos
como criaturas bípedes. Eles os veem como
centopeias imensas — ―com pernocas de
bebês em uma das pontas e pernas de velhos
na outra‖, segundo Billy Pilgrim.

- Matadouro 5, de Kurt Vonnegut


I. Na entrada da trilha, o traçado:

Este pequeno trabalho propõe-se a pensar outras possibilidades de


conceptualização do espaço, normalmente estranhas ou excluídas do ensino básico de
geometria, mas que podem funcionar como pontes para o trabalho etnográfico com
populações extra-modernas. Um espaço que, ao contrário da proposição geométrica
clássica – de dimensão vazia por onde corpos-objetos circunscritos movimentam-se –, é
constantemente fabricado na interação de forças mobilizadas pelos entes que o
atravessam e habitam.

Entendido menos como dimensão a priori e mais como processos de


espacialização, pensar esse outro espaço exige, na sua mobilização, que os entes passem
a ser considerados como corpos abertos, não mais objetos circunscritos. Assim, ao
contrário de uma oposição entre espaço como abertura extensiva absoluta e objetos
como fechamento intensivo absoluto, deparamo-nos com diferentes graus relativos de
abertura e fechamento. Corpos que vazam; espaços que escorrem.

II. Apoios para o pé, passos para pensar:

Apesar de estranha à maneira como a educação moderna de geometria mobiliza


o conceito de espaço, essa não é uma ideia nova para as últimas décadas de trabalho
antropológico. Para este pequeno ensaio, servimo-nos sobretudo dos materiais
produzidos por Dominique Tilkin Gallois (1996) e Joana Cabral de Oliveira (2012), nas
suas pesquisas com os Wajãpi; e por Marcela Stockler Coelho de Souza (2017), em seu
trabalho com os Kisêdjê. Esses são apenas alguns dentre um vasto número de artigos e
pesquisas produzidos no encontro com povos cujo movimento espacial e a
territorialidade, os modos de agir na floresta, e com a floresta, desafiam a universalidade
da categoria ocidental de espaço.

Esse outro espaço tampouco é algo completamente alienígena ao ocidente: vozes


menores, dissonantes à aparência homogênea do conhecimento moderno podem ser
encontradas em diferentes áreas, sobretudo na filosofia e na topologia. Para este
trabalho, encontramos suporte nos desenvolvimentos de Gilles Deleuze e Félix Guattari
(1997) sobre territorialidade e o conceito de ―ritornelo‖. O ponto aqui não é afirmar que
o espaço desses autores é o mesmo espaço dos Wajãpi ou dos Kisêdjê, mas sim que
pode nos oferecer ferramentas possíveis para a construção de um campo comum de
inteligibilidade, mesmo que parcial e temporário.

Por fim, apesar de ser um assunto com muitos caminhos virtuais de abordagem,
procuramos ao fim do artigo explorar como esse espaço pode nos ajudar a pensar outras
possibilidades na pesquisa de artes verbais na antropologia e sua mobilização. Com esse
objetivo, é no trabalho de Danilo Paiva Ramos (2019) entre os Desana e os Hup’däh
que encontramos algum suporte para esboços iniciais.

Além disso, ao longo do desenvolvimento das ideias aqui presentes, certos


conceitos básicos de semiótica tensiva foram utilizados como ferramentas de reflexão,
em ressonância não só com o trabalho de Ramos (idem), mas também como primeiro
ensaio para futuros desenvolvimentos de minha própria pesquisa antropológica.

III. Laços e linhas:

Caminhos, trilhas e rotas, para os Wajãpi, são atravessados por diferentes


poderes e agências. Mais bem, poderíamos dizer, seguindo os interlocutores de Oliveira
(idem), são eles próprios o resultado ou a ação continuada de poderes e agências.

Ainda que a autora comece seu artigo colocando a questão em termos de


―conhecimento sensível sobre o território‖, o que significaria implicitamente uma
diferença entre espaço e suas marcações, diferentes momentos narrados de seu trabalho
demonstram que, para os Wajãpi, as marcações, menos como traços sobre substrato, são
elas mesmas constituidoras contínuas do espaço. Isso fica especialmente evidente nas
considerações sobre o estado -awyry, estar perdido, andando em círculos.

Quando Jamy, informante Wajãpi, perde-se na floresta, descreve a experiência


como ―ficar enrolada nos caminhos‖, decorrente da ação de um espírito das águas,
atraído pelo cheiro de seu sangue menstrual. É esse espírito que, feito uma sucuri,
enrola Jamy. O espaço, que não é neutro, mobiliza-se contra a informante, e o resultado
parece ser um espelhamento entre confusão perceptiva e enovelamento espacial.

Riscos similares acontecem durante a caça, como conta Janaimã, outro


interlocutor de Oliveira (idem). Percorrer a trilha de uma presa, mais do que se deslocar
através de uma dimensão neutra, é percorrer também um gradiente de diferenças entre
seus parentes, a aldeia onde mora, e o animal perseguido, relacionado de alguma forma
com ka’ajarã, donos da mata. O risco sempre presente é o de se transformar em outro,
perceber-se subitamente, ou ser percebido por outra pessoa, não mais como Wajãpi, mas
como a presa que se caçava.

Tudo se passa como se ao percorrer um caminho, os corpos deixassem algo de si


e ganhassem algo de outro ao longo da trilha. O caminho, formado através do
deslocamento de um corpo pela mata, guarda algo desse ente na sua própria
constituição, e essas qualidades podem afetar os próximos entes que aí transitam,
escorrem. Mais ainda, outros seres nas redondezas podem mobilizar as próprias trilhas e
caminhos, ―enrolá-los‖, para predar os Wajãpi presentes.

Como a própria autora afirma, o contraste entre semelhança e diferença é


mobilizado por outro contraste, entre proximidade e distância. Assim, dizer que a
diferença é uma distância também significa dizer que toda distância mobiliza algo de
diferença. Espaços e corpos não são, portanto, essencialmente diferentes, mas diferenças
pouco ou muito concentradas, respectivamente, e todo deslocamento é potencialmente
uma transformação.

Deslocamentos que são transformações, linhas de fuga de um devir-outro, no


vocabulário de Deleuze e Guattari (idem). Segundo Gallois (idem), é de forma análoga
que os xamãs Wajãpi descrevem os tupãsã, fios que ligam todos os seres a seus mestres
e traduzidos como ―caminhos‖. A capacidade xamanística está na manipulação dessas
linhas invisíveis:

(...) podem confeccionar tupasã novos, estabelecendo relações com entidades que virão auxilia-
los nas suas atividades; podem quebrar ou consertar os laços que unem as criaturas a seus donos;
podem misturar os laços, atribuindo à nova categoria o controle e o destino de seus inimigos etc.
(Gallois 1996:43)

Como o espírito das águas que pode enrolar alguém nos caminhos da floresta, o
xamã pode enrolar os caminhos-fios de outros entes para gerar efeitos sobre eles, afetá-
los não à distância, mas com a distância. Pois parece que é justamente a diferença
extensiva, ou seja, o fio-caminho desenrolado, que torna os seres propensos a serem
afetados, manipulados através do espaço pelo qual estendem-se. Em oposição, as
capacidades do i-paie (aquele que tem pajé) são visualizadas como um casulo de fios
que envolve o xamã: diferença intensiva, fios-caminhos concentrados, enrolados. O que
não significa que o xamã não esteja presente de alguma forma no espaço extensivo: ele
mesmo está ligado por fios tupasã enrolados em seus braços ou conectados a seus
ajudantes, na forma de pequenas larvas que habitam seu casulo. Aqui, neste outro
espaço de forças e agências, as oposições nunca são absolutas, mas sim concentrações
tensivas. Ter um casulo de caminhos, ou seja, de espaço, concentrado ao redor de si é
justamente a intensidade que serve como contraponto, proteção e potência às suas ações
extensivas que reverberam pelos caminhos tupasã.

Os paralelos entre atividades xamanísticas e de caça entre os Wajãpi continuam


no que Gallois (idem) chama de ―rituais de tocaia‖. Oculto de entidades que lhe
poderiam causar danos em um abrigo de folhas fabricado para este fim, o xamã entoa
cantos e realiza determinadas ações para atrair seres com quem deseja negociar efeitos
ou alianças. Segundo a autora, os próprios cantos utilizados, além do sopro e dos
chocalhos marari, são conceptualizados pelos xamãs como ―caminhos‖. Assim,
verdadeiro ritornelo, a tocaia é uma estratégia de mobilização de forças inseparável de
seu processo de territorialização, de fabricação de espaço. Seres distintos – o xamã,
seus ajudantes -jar e os espíritos atraídos – concentram-se durante o ritual em um
mesmo esconderijo: diferenças (entre seres) que são distâncias, distâncias que podem
ser momentaneamente concentradas em um mesmo espaço, antes de reverbarar
extensivamente, sem que deixem de ser diferenças.

É com o mesmo interesse pelo espaço que a própria Gallois (idem: 51-58)
descreve práticas de transmissão e de resguardo do -paie, a qualidade e/ou substância de
que prescindem os xamãs, nas iniciações: ―(...) o resguardo pode ser visto como um
movimento, no espaço e no tempo cósmico‖, e eles mobilizam diferentes graus de
distância e proximidade, com relação a parentes Wajãpi e novos aliados ou ajudantes,
respectivamente, e de modo diretamente inverso às práticas de socialização dos que não
tem -paie. Ao contrário do caçador, que persegue a diferença com a cautela de não se
deixar ser transformado ele mesmo, o xamã busca um deslocamento controlado entre
diferenças, aproxima-se da alteridade e afasta-se da semelhança com o grupo Wajãpi.

Nas palavras da autora, ―transformação e translação‖ caminham juntas nas


práticas xamanísticas. Não poderia ser de outra forma – o xamanismo é uma ―forma de
controle do movimento‖ (idem: 42); por extensão, controle do espaço.
IV. Os nomes dos nós

Estratégias de mobilização da qualidade plástica do espaço também podem ser


encontradas na maneira como diferentes povos ameríndios valem-se de toponímias e de
narrativas para construir lugares de interesse.

Oliveira (idem: 217) aponta recorrentemente em seu trabalho como, na


experiência com os Wajãpi, ―a paisagem torna-se impregnada de acontecimentos, que
ficam registrados em traços ambientais e na toponímia‖. Mais do que impregnada,
poderíamos dizer, a paisagem é constituída – lugares têm nomes diferentes de acordo
com a memória ou o interesse de informantes determinados; caminhos são alterados
conforme são percorridos pelos entes que habitam à sua volta; e novas concentrações
espaciais emergem a partir da narrativa e da localização de eventos. O espaço é formado
através de processos de dêixis e de práticas constantes, é uma zona de negociação e
disputa de desterritorialização e reterritorialização.

Relações similares podem ser encontradas entre os Kisêdjê, segundo Coelho de


Souza (idem). Além de ―constituído pelas interações passadas‖, o espaço é também
―constitutivo das interações futuras‖. Eventos passados tornam-se terra através de
nomes de lugares e narrativas que descrevem percursos, mas tais topônimos e narrativas
mantêm uma territorialização cuja força continuará afetando os seres que a habitam:

Os nomes de lugar Kĩsêdjê registram eventos passados — como Kupë wymba re mekrïtá,
―acampamento do medo do inimigo‖, ou Komndu ra hwï rãrãk tá, ―onde o Bicho da Água
sacudiu as árvores‖; atividades regulares — Mben jahôk tá, ―onde tiramos mel‖; traços
topográficos salientes — Kensy toktxi, ―areia alta‖; e a presença ou abundância de espécies
vegetais ou animais — Tyrykô, ―bananal (de banana brava)‖, ou Rumswa khu, ―formigueiro‖.
(...) Acredito (e argumentei alhures, Coelho de Souza 2009) que animais e plantas apareçam aqui
não tanto como recursos a serem explorados, mas como agências a serem consideradas. Assim,
para os Kisêdjê, habitar a paisagem, abrindo roças e aldeias, construindo casas, viajando e
acampando, pescando, caçando, coletando frutos ou rachando lenha, sem provocar desastres ou
conflitos, é uma arte baseada na capacidade de identificar essas agências. Conhecer a terra é
perceber que suas características são efeitos (Coelho de Souza, 2017:117)

Para os Kisêdjê ainda, podemos identificar dois tipos de espacialização presentes


em suas narrativas, e que correspondem a dois blocos de narrativas definidos por
Coelho de Souza (idem): narrativas sobre ―lugares não-localizados‖, terras nunca vistas
pelos indígenas atualmente vivos ou seus antepassados; e narrativas cujos locais são
identificados. O primeiro bloco, que se passa em um passado mítico indeterminado, é
composto também por personagens coletivos e indiferenciados, enquanto que o segundo
bloco é constituído por topônimos bem definidos (ainda que mutáveis) e ancestrais com
relações de parentesco específicas.

O primeiro bloco, portanto, trata de um espaço altamente extensivo, lugares


espalhados, e as diferenças de seus personagens parece seguir a mesma tendência:
identidades difusas, diferenças em continuidade, e que correspondem ao tempo em que
gentes e animais tinham os mesmos corpos, falavam a mesma língua. Ao contrário, as
narrativas que compõem o segundo bloco contam com espaços intensivos, em que
identidades e diferenças condensam-se e marcam descontinuidades.

No entanto, continuidade e descontinuidade, no caso dos personagens e lugares


das narrativas Kisêdjê, não são polos opostos, mas sim, novamente, graus de
concentração tanto de espaço quanto de diferenças e identidades, e que se articulam no
movimento dos Kisêdjê desde seu surgimento, ―um místério‖, à chegada na Terra
Indígena do Xingu, marcada pelo recorte de personagens, lugares, eventos, percursos,
encontros.

V. Torcer o espaço com canto; afetar os seres com espaço

Para este último trecho de nossa investigação sobre outras possibilidades de


conceptualizar o espaço, gostaríamos de nos ater a certos pontos do trabalho recente de
Ramos (idem), sobre o encontro comparativo entre benzimentos Desana e Hup’däh, no
Alto Rio Negro.

Até então, quando observamos os aspectos de produção discursiva dos exemplos


citados, vimos como os Wajãpi mobilizam o espaço enunciativo como uma maneira de
especular sobre e descrever situações recentemente vividas: perder-se na floresta,
perseguir uma caça, perceber-se enrolado pelos caminhos da mata. Sabemos que as
práticas xamanísticas envolvem também cantos, mas, segundo Gallois (idem: 67), eles
são entoados em múrmurio, e não temos acesso, no seu trabalho, a detalhes desses
textos orais. Ao contrário, vimos como os Kisêdjê mobilizam o gênero narrativo para
presentificar constantemente eventos passados e envolvê-los nas suas práticas de
territorialização, de movimento e de fabricação espacial. No entanto, o que torna a
situação descrita por Ramos (idem) especialmente interessante, principalmente no
campo de estudos das artes verbais, é que ela nos coloca frente a estratégias de
territorialização no interior do gênero narrativo cujos efeitos, caso o ritual seja efetivo,
serão sentidos corporalmente.

O autor descreve o encontro de dois informantes, um deles Desana e o outro


Hup’däh, que discutem entre si em língua Tukano qual benzimento seria o mais
indicado para resolver a situação de uma terceira pessoa. Os rituais de benzimento são
bastante diferentes entre si, mas apresentam também algumas similaridades que valem a
pena serem destacadas. Em primeiro lugar, ambos os informantes estão de acordo com a
causa da doença, um espinho patogênico, invisível aos olhos de não-xamãs, alojado no
corpo do paciente. Os textos dos benzimentos diferem sobre a origem dos espinhos, mas
convergem no seu destino final: depois de removidos, devem ser tratados em um rio e
apodrecidos, triturados e destruídos.

O que é particularmente interessante em ambos os rituais, todavia, é que a sua


efetividade depende da capacidade do enunciador de traçar o percurso dos espinhos
patogênicos no enunciado, desde a sua criação por entes inimigos, até a sua destruição
durante o benzimento. Poderíamos dizer, inclusive, que, para que o doente, em estado
de conjunção com os espinhos perigosos, possa livrar-se da doença, é preciso que o
enunciador-xamã seja capaz de desdobrar espaço e tempo no enunciado, transformar a
intensidade espacial de paciente-com-espinho em extensidade, espalhar os espinhos
através do tempo e do espaço para que, engachada a enunciação corretamente nas
origens dos espinhos, ela seja efetiva no seu destino.

Nas palavras de Ramos (idem: 206), os benzimentos são:

(...) uma trama entre múltiplos espaços tópicos, seres e ações que englobam os lugares de
transformação e agem sobre eles de modo a enfraquecer a intensidade da presença do espinho de
patauá no corpo da pessoa hup. O corpo do doente pode ser visto como um espaço utópico, o
lugar da realização da performance onde se dá a conjunção final que reestabelece a vida.

Assim, tanto a transformação dos espinhos patogênicos quanto do próprio


paciente são enunciadas como um trajeto espacial: novamente, movimentação é
transformação. Se o perigo dos espinhos está justamente em uma diferença predatória
em demasiada proximidade com o afetado, é preciso que a proximidade seja
transformada em distância para que a diferença possa ser neutralizada com segurança.
Uma enunciação que determina espaços que, por sua vez, determinam as
transformações dos entes envolvidos no enunciado.
VI. Conclusões parciais em trajetos abertos:

Ao longo desta pequena investigação, procuramos destacar detalhes de trabalhos


etnográficos recentes como material de reflexão que desafia não só a universalidade do
espaço geométrico moderno, mas principalmente a neutralização de qualidades afetivas
e estésicas tanto de espaços quanto de corpos. Em lugar de uma oposição estática entre
objetos e espaço, buscamos delinear a permeabilidade e interpenetrabilidade de ambos,
em uma oposição dinâmica definida e redefinida constantemente por práticas semio-
materiais.

Entretanto, um argumento bastante comum em resposta a esse desafio seria o de


invocar uma diferença essencial entre literalidade e metáfora, univocidade e
plurivocidade, o que transformaria esses outros modos de conceptualização espacial em
simples projeções culturais sobre uma dimensão únivoca, a que apenas a geometria
moderna teria acesso. Esse é, afinal de contas, o argumento que fundou a maior parte
das práticas de expropriação e exploração coloniais: um espaço como dimensão
extensiva absoluta é a justificativa epistemológica para o deslocamento, a mudança e a
remoção de qualqueis corpos-objetos que o habitem. Assim, recursos minerais são
desconectados de suas presenças situadas, populações indígenas são removidas de seus
territórios constituídos, espécies vegetais e animais são realocadas, exterminadas ou
transformadas em valor abstrato, e quaisquer forças ou qualidades espaciais são
prontamente afastadas das medidas quantitativas oficias que determinam cercas,
fazendas, terras do Estado. O resultado desse caminho epistêmico é um espaço
completamente esvaziado, sugado de seu potencial de agentividade.

Esse argumento, portanto, não é novo; pelo contrário, faz parte da herança
colonial da disciplina antropológica. No entanto, desafiar a universalidade do espaço
geométrico moderno significa desafiar também a universalidade das próprias categorias
epistemológicas da modernidade. O contraste rígido entre univocidade e plurivocidade
nos posiciona de maneira assimétrica frente as tensões e conflitos contemporâneos de
territórios entre populações ameríndias, de um lado, e o agronegócio e o Estado
brasileiro, de outro, pois coloca novamente o espaço ―do nativo‖ como uma
representação cultural do ―verdadeiro‖ espaço a que Capital e Estado teriam acesso
direto e privilegiado.
Nossa proposta, portanto, ao analisar em conjunto espaço e ―o que se faz (do)
espaço‖, é o de construir a dimensão espacial como uma ―equivocação controlada‖
(Viveiros de Castro, 2004). Se, como afirma Coelho de Souza (idem), ―fronteiras que se
movem sem dúvida deixam o Estado nervoso‖, buscamos aqui delinear os fundamentos
de um projeto de investigação que possa tensionar ao máximo esse ―nervosismo‖,
investir ao máximo em um espaço que não existe a despeito, ou antes, das estratégias,
das negociações, das disputas que o produzem.
VII. Referências:

COELHO DE SOUZA, M. S. ―Dois pequenos problemas com a lei – terra intangível


para os Kisêdjê‖, in: R@U, 9, jan./jun. São Carlos: UFSCAR, 2017.

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. ―1837 – Acerca do Ritornelo‖, in: Mil Platôs –


Capitalismo e Esquizofrenia, vol. 4. São Paulo: Editora 34, 1997.

GALLOIS, D. ―Xamanismo Waiãpi: nos caminhos invisíveis, a relação i-paie‖, in:


LANGDON, E. J. M. (org.). Xamanismo no Brasil: Novas perspectivas. Florianópolis:
Ed. Da UFSC, 1996.

OLIVEIRA, J. C. de. ―Um Mundo Tangível‖, in: ―Entre Plantas e Palavras‖. São Paulo:
USP, 2012.

RAMOS, D. P. ―Sobre farpas e espinhos: dimensões tensivas de discursos xamânicos


hup’däh e desana‖, in: Revista estudos semióticos, vol. 15, Edição Especial. São Paulo:
USP, 2019.

VIVEIROS DE CASTRO, E. ―Perspectival Anthropology and the Method of Controlled


Equivocation‖, in: Tipití – Journal of the Association for the |Anthropology of Lowland
South America, New Orleans, v. 2, n.2, 2004.

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