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Prefácio

Os livros são bilhetes para sonhos esculpidos em textos que estimulam a alma e
nos embarcam em viagens sem limites. Pesa sobre o escritor, a responsabilidade
de nessas jornadas orientar o leitor, impelindo-o a exercitar a alma para os
desafios e metas da vida. Aquilo que para uns aparenta ser o maior dos tesouros,
para outros, não passa de uma mera ilusão, pois buscam a mais pura das
felicidades, impossível de alcançar materialmente.
"Calix Christi", é uma obra que arrebata o leitor, envolvendo-o em cenários
capazes de desafiar a própria imaginação. O "Gargantas", um "falso" iletrado,
verdadeiro instigador de toda a aventura, é um personagem único, senhor de um
carácter que dignifica a humanidade. Embora muito pudesse ser acrescentado,
prefiro convidá-lo a partir nesta aventura, deixando-se embalar nas fantasias da
mente e a ajuizar per si.
Conheci o Luís e a Liliana em Díli, casal supersimpático, muito apaixonados,
sempre de mãos dadas quando faziam as suas caminhadas matinais na baía de
Díli, sorridentes, ele revelando muita autoconfiança, ela tímida. O Luís era um
dedicado bancário da CGD/BNU, a Liliana, esposa fiel, tradicionalista, caseira.
Tê-los conhecido e ter convivido com eles enriqueceu-me a alma.


Agradecimentos
Aos meus filhos, que são a fonte da minha inspiração permanente!
Um agradecimento muito especial ao Senhor Dr. José Ramos-Horta, com quem
partilhei momentos inesquecíveis. Procurei incansavelmente palavras capazes de
descrever dignamente a sua notável personalidade, nenhuma tendo encontrado
suficientemente boa para o fazer. Por isso, direi apenas que: “Há Homens tão
notáveis que se tornam indeléveis, deixando um rasto histórico que servirá de
referência às gerações vindouras! – É o caso de alguém inesquecível, como o
nosso Amigo – Senhor Dr. José Ramos-Horta, que tive a honra de conhecer nos
breves momentos que passei em Timor-Leste e cuja Feliz Recordação me
acompanhará até ao fim dos meus dias!”

“Calix Christi” é dedicado aos meus adorados filhos, mas
também a todos aqueles que apreciam os valores
fundamentais da sociedade e da simples existência, em
detrimento de um notoriamente crescente e malfadado
materialismo.

Capítulo I – O “Gargantas”
Bateram as quatro da madrugada no relógio do Castelo de Linhares da Beira e eu
sem conseguir adormecer. Aquilo que o Ti João me contou martelava-me o
cérebro a cada badalada. Seria realmente possível que numa povoação como
Linhares, existisse um simples agricultor do século XIX que possuísse uma
fortuna tal? Três carroças cheias de ouro?!?!?! Só mesmo eu para ficar a pensar
nisso. Mas por muito que tentasse as suas palavras não me saíam da cabeça:
“Gabava-se que nem três juntas de bois conseguiriam carregar todo o ouro
que tinha!”
De qualquer maneira, que perco eu? Até tenho mais duas semanas de férias para
gozar, nesta bela terra onde para além de um passeio ou de uma visita ao castelo,
pouco mais posso fazer - será um bom entretém. Amanhã tentarei abordar o
assunto com outras pessoas, logo vejo o que é que me dizem. Confortado pela
ideia, acabei por me envolver nos lençóis enriquecidos por diversos cobertores e
aventurar-me em sonhos dos quais raramente tenho memória.
Acordei tarde, quase horas de almoço. Será que a D. Maria me preparou algum
petisco? Mas antes, era certo ter sermão e missa cantada. Pelos vistos os locais
tinham o hábito de se levantar muito cedo e quem não o faça é considerado
mandrião. Até que nem é o meu caso, fossem eles testemunhas da minha labuta
diária e facilmente veriam o quanto estão enganados. Estas férias eram bem
merecidas! Seja como for, deixa-me ir ao banho e fazer esta barba de quase uma
semana, mais uns dias e bato as ovelhas aos pontos.
“Menino Luís!!! ... Menino Luís!!!” – Gritam-me lá de baixo. Já tardava... 
Era curioso ser tratado por menino aos trinta e três anos. Lembrava-me a minha
mãe, hei-de ser sempre o seu ninito, como ainda hoje ela me chama.
“Já vou D. Maria! Estava mesmo a pensar na Senhora.”
“Ai sim, não me diga que sonhou comigo?” – Interpõe, num tom de voz de
quem sabe que apenas tento desnortear para não me apelidar uma vez mais de
indolente.
“Hmmm... Não tive essa sorte! Estava a pensar em que miminho me
preparou hoje para o almoço.”
Não conseguiu esconder um sorriso transparente que emanou do rosto esculpido
pelos seus 74 anos de ternura e sabedoria popular. Tinha plena consciência que
apesar dos meus hábitos pouco comuns, eu até gostava bastante dela. Poucas
pessoas me tratavam tão bem. Sempre preocupada comigo. Não fosse eu opor-
me, e até as meias me aqueceria antes de as calçar. Sem medidas preventivas, o
frio rigoroso de inverno era pena difícil de suportar por estas bandas, mas nem
tanto. Para compensar, podemos divagar, mirando o fogo que consome
alegremente a madeira de pinho usada naquela lareira imponente onde
facilmente se poderia assar um vitelo.
“Vamos lá a ver se vai gostar. É coisa simples, cá da nossa terra. Um
arrozinho de grelos com entrecosto em vinha de alhos. Que me diz?”
“Nunca provei, mas vindo das suas mãos, só pode ser bom!”
“Mais uns 10 minutos e fica prontinho. Posso fazer-lhe uma pergunta,
menino Luís?”
Fiquei apreensivo, o que é que será que me quereria perguntar? Afinal, era
alguém que na maioria das vezes se limitava a observar-me, dirigindo-me um
sorriso cada vez que eu me apercebia dos seus olhos perspicazes pousados em
mim.
“Claro! Já sabe que para si não tenho qualquer tipo de segredos!” –
Retorqui num tom brejeiro.
“Hoje apercebi-me de se ter mexido muito na cama à noite. Não fosse o
menino estar no 1º andar e eu ser a única pessoa a ter a chave da porta, e até
podia ficar a pensar outras coisas. Esteve doente ou houve algum
problema?”
“Ohhh, não... Ontem estive a falar com o Ti João, o da taberna, está a ver
quem é? E ele esteve a contar-me uma estória local muito interessante.
Disseme que no século XIX, havia por aqui um moleiro, de seu nome
António Oliveira, mais conhecido pela alcunha de Gargantas, por causa
daquilo de que se costumava gabar quando bebia uns copitos...”
D. Maria interrompeu-me com uma gargalhada.
“Ahahah... E o menino perdeu o sono por causa disso? Aposto que lhe falou
nas carroças cheias de ouro! Já ouço essa lengalenga desde os tempos dos
meus avós. Era bom que fosse verdade. Mas o Gargantas era conhecido
mesmo por isso – tinha-a de um tamanho que até às girafas havia de fazer
inveja. A única coisa que tinha de boa eram os seus versos, poucos os sabiam
fazer de improviso como ele.”
Fiquei encarnado, vermelho, vermelhão... Ninguém diria que eu até era
Sportinguista ferrenho. A minha atrapalhação era evidente. Quem me mandou a
mim? Que estúpido! Já não me bastava a infeliz crendice pela qual na minha
adolescência tinha sido seriamente gozado, como quando me fizeram estar com
um saco à boca de uma gruta, durante horas à espera de apanhar um gambozino,
e agora mais esta... Vou passar por palhaço mais uma vez.
“Não fique assim menino. Sendo de fora, é natural que ficasse curioso. São
tantas as lendas daqui da terra! Essa é apenas mais uma. Quer ver uma
coisa? Chegue-se aqui à janela. Está a ver aquela quinta, com uma casita
que tem o telhado quase a cair? Então acha que alguém que tivesse assim
tanto ouro, viveria numa casinha assim? Aquela era a quinta do Gargantas.
Bem, deixemo-nos de parvoíces. Além do arroz, tenho uma surpresa para
si.”
“Uma surpresa, que bom! O que é – uma sobremesa d’outro mundo?” –
Perguntei já com água na boca.
“Isso, isso... Só pensa em comer menino? Também temos sobremesa, mas
essa já lha dei a provar, é a tigelada de que tanto gostou. A minha neta que
está em Lisboa, a Liliana, filha da minha Inês, vem cá passar uns dias.
Chegou há pouco, foi ver a minha irmã Rosa, sua tia preferida. Não deve
tardar muito.”
A ideia não me agradou muito. Passaria a ter uma concorrente nas atenções da D.
Maria, que tão bem me faziam – Ainda por cima alfacinha. Há-de aprender
algumas coisas aqui com o tripeiro! Bai ber com quantos paus se faz uma camisa
de baras carago...
“Que idade é que ela tem D. Maria?”
“Faz 25 anos na próxima semana menino, dia 5 de Janeiro. Formou-se este
ano em Engenharia Mecânica.” Disse, orgulhosa.
“Engenharia Mecânica, D. Maria, a sério? É pouco habitual para uma
mulher.” – Devolvi desconfiado.
“Não sei, olhe, o melhor é perguntar-lhe a ela quando vier. Mas tenho quase
a certeza que é isso.” – O seu tom de voz demonstrava algum descontentamento
pelo cepticismo, afinal quem era eu para pôr em causa o curso que a sua menina
tinha acabado de tirar?
Estava mesmo a ver. Só me faltava chegar de fato de macaco e com as mãos
cheias de óleo. Com um bocado de sorte, até um bigode farfalhudo para dar com
o canudo. Que sorte a minha – Uma Engª. Mecânica, imaginem só! Imbuído
nestes pensamentos, até o semblante me definhou enquanto a D. Maria foi
acabar de mexer o arroz e desligar o tacho.
Bateram levemente à porta. Deixei-me ficar sentado, à parte dar o prazer à avó
de receber a netinha, sempre seria mais difícil cair com o susto.
“Anda cá minha querida, quero apresentar-te aqui o menino Luís.”
Ergui ligeiramente a cabeça, não fosse o embate forte demais e eu não conseguir
disfarçar a fronha. O sol por detrás apenas me deixou aperceber da silhueta. Era
uma figura de estatura mediana, valha-nos isso. Pelo menos o meu 1,75m não se
sentia ameaçado. O pior que me podia acontecer era ter uma mulher mais alta ao
meu lado.
“D. Maria – pode fechar a porta por favor? Estou encandeado.”
Os meus olhos demoraram um pouco a recuperar. Cada vez que tinha de encarar
uma luz mais forte, o seu azul era ferido de morte. Tinha-os herdado da minha
mãe, com ascendentes nórdicos. Decorridos alguns segundos comecei a
aperceber-me dos contrastes e sentime desnorteado, estaria às portas do céu?
Deus me livre!!! Será possível existir tal divindade? A minha cabeça latejava, os
meus joelhos fraquejavam, ai se não estivesse sentado... Aqueles olhos cor de
avelã, pregados numa cara irrepreensivelmente angelical, acompanhada de um
nariz perfeito, ligeiramente empinado, uns lábios carnudos, de um vermelho
apelativo, cabelos revoltos e uma silhueta de pôr qualquer um arquejante, eram
argumentos suficientes para ter caído fulminado e feliz nesse mesmo instante.
Tinha de disfarçar... Estendi-lhe a mão firmemente, não fosse ela querer dar-me
dois beijos à boa maneira Portuguesa. Nada de abusos, já os vi perder-se por
bem menos e ficar a chuchar no dedo pelo servilismo dedicado. Comigo, podes
levar a melhor, mas não me vergarás tão facilmente como à minha alma. Parecia
ter sido encomendada das minhas mais elaboradas fantasias. Acho que nem
conseguiria ser tão criativo e exigente. De qualquer maneira é preferível não me
perder em desvarios, as minhas sardas são pouco apelativas. Valha-me Deus que
pelo menos não saí ruivo como a minha avó materna. Então é que era bonito,
bem que morria casto.
“Muito prazer!” – Disse, fazendo uma ligeira vénia, desprendendo-me com
dificuldade do banco onde estava literalmente pregado.
“O prazer é meu!” – Respondeu, debruçando-se ligeiramente para retribuir ao
meu cumprimento.
“Vovó, onde está o meu arrozinho de entrecosto?”
Os meus olhos permaneceram irredutivelmente colados aos seus. Até receio tive
do que mais pudesse ver noutros níveis. Era demasiada emoção para uns breves
instantes. Afinal o arroz não tinha sido feito por minha causa. Que importa?
Numa companhia destas até me vão parecer pedaços do céu caramelizados.
Acalma-te, pensava eu, já te chega de cabeçadas. Durante anos, enquanto me
acompanharam aquelas borbulhas vulcânicas, fui como um verdadeiro
Frankenstein para as mulheres. Só aos 24 anos me desapareceram, quando
curiosamente já tinha desistido de fazer tratamentos e de recorrer aos
dermatologistas. Vá-se lá entender estas coisas. Foi difícil conviver com as
lembranças desses momentos, mas, com o passar dos anos e a muito custo,
desenvolvi alguma confiança junto do sexo oposto, conseguindo ultimamente
que algumas divindades tolerassem a minha presença. Agora, sentia-me
novamente completamente inseguro. Sabia que de bonito não tinha nada, só por
milagre ela olharia uma segunda vez para mim.
Bem, lá vinha o arroz, naquela inconfundível panela de ferro de três pernas.
Vamos lá provar isto a ver se consigo acalmar um pouco os ânimos.
“A comida feita à lareira tem outro sabor. Nada que se compare com o que
estamos habituados a comer nas cidades.”
Liliana olhou para mim sorrindo fugazmente, como que concordando, ao mesmo
tempo que metia sorrateiramente um pedaço de entrecosto à boca.
Foi fácil de confirmar pela sua expressão o quão bom deveria estar. Quem me
dera a mim poder prová-lo daqueles lábios, isso sim, daria a minha vida por ele.
Esperei que me servissem, cravei o garfo num pedaço fervilhante e tentei prová-
lo. Queria berrar e dizer umas certas palavras que me ocorreram de imediato,
mas nem isso consegui. A minha aflição era tal que só mesmo o copo de água
fresca que emborquei de relâmpago me conseguiu arrancar às garras do inferno a
que estava entregue. D. Maria e Liliana estavam encabuladas, não sabiam se
haviam de me acudir ou rir. Mais uma a somar à estupidez que me invadiu.
Desde que a conheci que fiquei com o cérebro paralisado. E o pior é que elas já
se aperceberam. Será que a avó me perdoa tal comportamento?
“Desculpem, foi bem feito, estava distraído...” – Tentei desculpar-me
desajeitadamente.
“Pois, tem de esperar que arrefeça ou soprá-lo como fez a Li. De outra
maneira pode queimar-se a sério. A comida feita na lareira é assim.”
Liliana sorriu, percebendo perfeitamente a intenção da avó, numa tentativa de
reorientar a conversa e estabilizar um começo verdadeiramente atribulado.
D. Maria sabia bem a neta que tinha e o efeito que podia causar. Não era a
primeira vez. Os poucos rapazes da terra tinham ficado loucos com ela e esta
nunca deu troco a ninguém. Dizia que gostava muito deles, mas apenas como
amigos. Até o Duarte, descendente da nobreza local, rapaz bem-parecido e muito
rico, teve a mesma sorte. Liliana dizia sempre que nunca namoraria antes de
terminar os estudos, assim o fez. Como é que seria agora, já teria namorado, ou
manter-se-ia ainda só? Já era altura de começar a pensar numa família. Afinal ela
tinha sido mãe aos dezanove, cinco anos mais nova do que a neta. Mas eram
outros tempos - guardou a pergunta para si. Esperaria que fosse a neta a dizer-
lho.
Recuperado, volto às carroças cheias de ouro, tentando atenuar o sucedido.
“Então D. Maria, a Liliana também sabe do Gargantas?”
“Claro que sei! Já ouvi essa estória de quase todos os habitantes. Noutros
tempos cheguei até a andar à procura de pistas. Coisas de criança – sabe
como é!”
“Liliana, desculpe dizer-lho, mas a nossa diferença de idade não é muito
grande, não se importa de me tratar por tu? Sinto-me menos
desconfortável.” – Pedi-lhe, com o sorriso mais cândido que consegui.
Liliana olhou para a avó e depois de uma momentânea troca de olhares assentiu.
“Está bem. Será mais fácil para todos.”
“Vovó, como é que vai ser a passagem de ano? É já depois de amanhã!
Vamos para a praça, como nos outros anos?”
“É o melhor que podemos fazer. Já sabes que as pessoas fazem questão da
tua companhia e ficam ofendidas se não apareceres.”
Era pouco de multidões pelo que fiquei calado. Sempre que começava o S. João
no Porto, punha-me a andar. Era gente a mais a fazer o quê? Nunca tinha
percebido muito bem a razão de tanta folia. O Natal ainda era como o outro,
tinha significado pela reunião da família. Já o andar a bater na cabeça do vizinho
com um alho-porro... Onde é que está a graça? E então levar com ele, nem se
fala.
“O Luís também nos vai fazer companhia?” – Pergunta a avó – “Não o quero
deixar sozinho em casa.”
“Claro, D. Maria! Então acha que eu passava uma ocasião dessas em
branco? 2011 vai ser um ano memorável!” – Será que tinha pegado? Acho que
estive bem. Pelo menos não corei.
“Amanhã vou fazer uns docinhos para alegrarmos a ocasião.”
Terminámos a mais deliciosa refeição de que tenho memória com um tigelada
que me soube ainda melhor do que a anterior. Queria perguntar à Liliana se lhe
apetecia dar um passeio comigo, mas tinha receio de que pudesse ser
inconveniente e decidi esperar pelo andar da carruagem.
A avó, perspicaz como sempre, espicaça a neta:
“Porque é que não vão tomar um cafezinho à Pousada? Sempre é um sítio
diferente para passar um bocado e a caminhada até vos ajuda a fazer a
digestão.”
“Boa ideia!” Exclamei - Esta soube-me a rebuçado. “Vamos lá então D.
Maria.”
“Eu não vou menino. O café não me faz muito bem, enquanto vocês lá vão
eu trato de arrumar as coisas. Que dizes, Li?”
“Está bem vovó – Não demoramos muito.” – A sua cara denotava alguma
preocupação. Não gostava de contrariar a avó, mas sentia-se de alguma forma
empurrada para um convívio forçado com alguém que tinha conhecido há
poucos minutos. Se as coisas corressem menos bem também era fácil escapulir-
se. Sempre tinha a desculpa de querer ir ajudar a avó e pôr-se na alheta enquanto
o diabo esfrega um olho.
“Agasalhem-se, o tempo não está para brincadeiras.”
Munidos de camisolas grossas, casacos aconchegantes e botas de cano alto com
sola de borracha, propícias a contrariar as calçadas escorregadias da humidade,
descemos a ladeira e percorremos os 300 metros que nos separavam da pousada
que tinha sido inaugurada há menos de dois anos, por reconstrução dos solares
que em tempos foram residência dos mais notáveis de Linhares. Hoje, restaurada
com o contributo do estado, é propriedade da Câmara Municipal de Celorico da
Beira e está a ser explorada pelo INATEL. É um dos locais mais emblemáticos
da aldeia. Tiveram o cuidado de manter a traça original aquando da sua
construção e isso valoriza-a de sobremaneira. O bar, espaço bem decorado e
confortável, é do tipo conservador, nada de contrastes aberrantes, como por
vezes se vê em lugares do género. À semelhança da própria povoação, de
ligeiras variações na paisagem urbana, à parte o recorte do castelo no horizonte,
com as suas imponentes coroas, houve o cuidado de manter essa tendência nos
principais espaços de convivência. Tem uma grande sala, onde se encontra um
exíguo balcão, nada apelativo a um encosto que se poderá tornar inconveniente,
convidando-nos subtilmente a sentar confortavelmente numa das muitas mesas
disponíveis. Ao lado, dispõe de um espaço mais pequeno, contíguo ao bar, onde
se encontra uma lareira quase tão grande como a da D. Maria, emitindo uma
tentadora e calorosa luminosidade crepitante, emanada dos grandes toros a serem
devorados pelas sôfregas labaredas amarelas e vermelho vivo.
Resolvi tentar quebrar o gelo do silêncio que se tinha instalado entre nós
enquanto descíamos. Sentime verdadeiramente orgulhoso da sua companhia.
Não é todos os dias, meses, anos, ou até séculos, que se encontra uma mulher
assim, e muito menos se tem o prazer da sua companhia. Enquanto
caminhávamos tentei disfarçar, olhando para um lugar e para outro, fingindo que
era um passeio perfeitamente natural. Talvez assim ela se sentisse mais
confortável. O sucedido em casa da avó podia fazê-la pensar que eu era um asno,
e não era para menos.
A sala principal estava praticamente vazia. Apenas uma família numa das mesas
de canto. Espreitei a da lareira - estava deserta. Óptimo, pensei eu, mas estranho.
“Sentamo-nos aqui, Liliana?”
“Pode ser. Bem preciso de aquecer os pés. Com estes caminhos em pedra,
nem as botas nos conseguem valer.”
Tal e qual, mas com uma lareira assim, nem que viéssemos encharcados,
secaríamos em 5 minutos. Aproximei-me da mesa em frente à fornalha,
convidando-a a ocupar o lugar mais próximo do fogo. Agradeceu, e antes de se
sentar, virou a cadeira para o lume, ficando de costas para mim. Fiquei
impávido, a olhar sem saber o que dizer. Já me preparava para fazer fila, quando
Liliana se vira ligeiramente e me pergunta se não quero puxar a cadeira para o
seu lado. Sorri, nitidamente contente. Palavras para quê?
Esperámos que alguém nos viesse atender. Noutras circunstâncias já teria ido à
procura do barman, assim, quanto mais tempo demorasse, melhor. Tivemos
alguns minutos de amena cumplicidade, partilhando o aconchego e beleza das
labaredas que teimavam repetidamente em escapulir pela chaminé. Entretanto
chega o barman, ou melhor – a barwoman, auscultando atenciosamente a nossa
vontade e a quem pedimos duas bicas.
Aproveitei a chegada dos cafés para manifestar a minha estranheza pela fraca
ocupação do espaço em época supostamente alta. A empregada sorriu,
retorquindo: “Por vezes as aparências iludem. Temos até a pousada
sobrelotada. Como não temos restaurante, os hóspedes foram almoçar e
aproveitar para visitar o castelo. O casal que cá ficou com os filhos está à
espera de uns familiares que cá vêm ter. Senão, por agora eram só mesmo os
senhores – Gloriosamente sós!”
“Pois, bem me admirei! Como gentilmente me costuma dizer o meu
sobrinho Afonso, com apenas 4 anos – Ó tio, tu és muito distraído! – Uma
forma educada de evitar dizer-me – Ó tio, tu és um grande burro!”
Riram-se em uníssono, dando a impressão de concordar com tal observação.
Concentrei-me na lareira a digerir as reacções. Para ajudar, ouvimos o ribombar
de um trovão e começou a chover copiosamente. Parecia que tinha os anjos do
meu lado. Pode ser que chova toda a tarde. Desejava eu. Sem guarda-chuvas,
teríamos de esperar até que passasse.
Liliana decide retomar o tema que eu pensava já enterrado.
“Então Luís, o que é que achou da estória do Gargantas? Acredita que em
tempos até pensei ir para arqueologia com o entusiasmo? Coisas da
adolescência. Sempre à espreita do desconhecido e da aventura!”
“Pensei que tínhamos combinado tratarmo-nos por tu.”
Liliana desculpou-se assentindo com a cabeça.
“Ainda bem que tocas no assunto. Julguei que a ideia tinha esmorecido
completamente. Quando o Ti João me contou, pareceu-me um conto de
fadas, mas tendo como base uma personagem local relativamente recente,
sempre me pareceu diferente das lendas com séculos.”
“Isso é bem verdade. Os moinhos dele ainda hoje existem e alguns parece
que até estão a funcionar.”
“Moinhos? Mas… Então o Gargantas não era agricultor? A D. Maria até
me indicou a quinta onde ele vivia.”
“Sim, mas era moleiro também. Para dizer a verdade, pelo que me
contaram, era até o homem dos sete ofícios: agricultor, moleiro, pedreiro e
até ferreiro. Na altura das colheitas, a mulher e os filhos tratavam da quinta
e dos animais, enquanto ele moía os cereais produzidos aqui na região.
Eram os melhores moinhos do Concelho, por causa da abundância de água
do local onde estavam construídos. Trabalhavam de tal maneira que a cada
três anos tinham de levar mós novas. Além disso, parece que ninguém
trabalhava a pedra e o ferro como ele, isto para não dizer que era poeta
também. O mais curioso e inacreditável no meio disto tudo, é que era
analfabeto.”
“Ena – era um verdadeiro homem dos sete ofícios então!”
“Pois, mas não eram profissões que dessem para juntar muitos cobres,
muito menos com nove filhos. Agora imagina só em ouro. Alguns gramas
deveriam pagar uma vida de trabalho.” – Sorriu da sua própria ingenuidade.
“Realmente – é pouco provável que tal tivesse acontecido. Se ainda fosse
algum descendente da realeza local, talvez fosse possível. Agora assim...”
“Tinha um grande dom, fazia versos como ninguém. A minha avó diz que
havia até um livro onde a sua poesia foi posterizada pelos Belo. O
Gargantas era analfabeto, como a maior parte das pessoas da época. Só ia à
escola quem tinha dinheiro. Aqui na terra, contavam-se pelos dedos das
mãos as pessoas que sabiam ler e escrever.”
“ E onde é que pára esse livro, fazes ideia?”
“Olha, segundo o que consegui descobrir na altura, os Belo entregaram o
livro ao Padre Agostinho, que foi aqui pároco durante umas décadas e
faleceu há uns oito anos. Acharam que a sabedoria popular devia ficar
entregue a quem lidasse com o povo. Ainda tentei descobri-lo, mas na altura
o Padre Agostinho tinha ido para Coimbra fazer um tratamento e
infelizmente acabou por falecer uns meses mais tarde, já eu tinha retornado
a Lisboa há muito.”
“Não achas que vale a pena procurá-lo? Fiquei curioso.” Esperava que
concordasse comigo, talvez quisesse acompanhar-me.
“Não se perde nada. Mas não deve ser fácil encontrá-lo. Vamos ter de
perguntar à vovó, pode ser que ela nos dê alguma pista.”
Continuámos em amena cavaqueira, falando de coisas do dia-a-dia, espectativas
de vida, sonhos, medos e pesadelos... Partilhando ânsias e receios que nos vão
acompanhando ao longo da vida. Fora escassos pontos em comum, éramos
pessoas substancialmente diferentes, não só motivados pela oposição de género,
provavelmente também pelos percursos de vida. Liliana, não sendo propriamente
rica, vinha de uma família com algumas posses e sempre teve nesta o seu
suporte, passando um pouco ao lado das verdadeiras dificuldades da vida.
Acabei por confirmar que era efectivamente Engª. Mecânica, fruto dos sonhos
do seu pai, que aspirava por tal curso, mas que para dar um futuro sólido à filha,
nunca se pôde dar ao luxo de o tentar sequer tirar. Liliana, ciente dos sonhos do
pai, resolveu presenteá-lo, oferecendo-lhe indirectamente o que tanto
ambicionara. Pensou em ser médica, mas as suas notas não eram suficientemente
altas, e, não obstante esse caso, também tinha algum receio de não ser capaz de
suportar a vivência inevitável do sofrimento dos outros. Assim, optou por seguir
o que lhe pareceu quase hereditário: O fascínio, sofisticação da aplicação e
adaptabilidade das leis da física, num mundo que não pode viver sem ela.
Contei-lhe que, em virtude da morte precoce do meu pai, tinha começado a
trabalhar aos 16 anos, continuando no entanto a lutar esforçadamente por
prosseguir os estudos. Acabei por completar apenas o 11º ano, depois de ter
chumbado pela primeira vez na minha vida. Tinha deixado as disciplinas de
Português e Matemática que nessa altura se me mostraram deveras complicadas
de digerir. No ano seguinte lá as consegui concluir, apesar da problemática
conciliação do emprego e dos estudos. Mais tarde vim a tirar um Curso
Profissional de Metalomecânica, que de pouco me veio a servir, embora fosse
deveras oportuno para as necessidades laborais de então. Tenho andado a
protelar a continuação dos estudos, poderia até aderir às Novas Oportunidades,
mas não me pareceu que fosse uma opção razoável para quem pretende uma
base sólida de acesso à universidade. Prefiro esperar mais um pouco, para reunir,
entretanto, as condições pessoais necessárias a essa jornada. Afinal, ainda hoje
tenho de servir de suporte financeiro à minha mãe. Os meus três irmãos já não
precisam de qualquer ajuda, felizmente estão bem na vida.
O meu primeiro emprego foi ligado à electrónica, algo que me fascinava. Era o
único empregado de uma fábrica recente de módulos inovadores, fazia
orgulhosamente a montagem de componentes electrónicos nas respectivas placas
de circuito impresso, em projectos algo arrojados e avançados para a época, que
vieram a ditar mais tarde o encerramento da empresa – da qual eu já não fazia
parte nessa altura – pela dificuldade de integração no mercado daquilo que é
novidade. Algumas das funcionalidades que hoje vemos disponíveis em viaturas
de gama-alta, estavam já nessa altura a ser desenvolvidas pela nossa fábrica. –
Digo nossa, porque tendo sido eu o único empregado durante um largo período
de tempo, senti-a sempre também como minha. – Refiro-me, por exemplo, à
detecção de obstáculos, que era já nessa altura fabricada e desenvolvida por nós,
mas com o inconveniente de se trabalhar com peças e tecnologia ainda não
suficientemente apuradas para a finalidade. Só anos mais tarde a acuidade dos
componentes foi melhorada, permitindo uma aplicação mais segura dos
princípios então explorados. Volvidos quatro anos de electrónica, surgiu-me a
oportunidade de concorrer a um Banco, tendo-o na altura feito apenas por
descargo de consciência, convencido de que dificilmente conseguiria aceder aos
lugares disponíveis. Acabei por ir ultrapassando as diversas etapas de selecção,
tendo mais tarde ficado apurado para a realização de um estágio curricular,
rematando com a sorte e honra de vir a fazer parte dos seus quadros. A priori,
para quem observa do exterior, pode não parecer um emprego muito apelativo,
mas poucos se lhe compararão. Não só pela nobreza da Instituição, mas também
pelo desempenho de funções que se mostram diariamente um verdadeiro desafio,
na senda de um serviço de eleição ao Cliente, patrão máximo da Organização.
Apesar de me apetecer divulgar o seu nome, prefiro ocultá-lo por motivos éticos,
na certeza, porém, de que serão poucos os que o não adivinharão à primeira, já
que quase de certeza que cada Português carrega o seu gene de nascença,
atestando um vínculo hereditário, patrono de uma simbiose perfeita.
Era a primeira vez que tirava férias no final do ano, época de trabalho acrescido.
Tinha sido praticamente forçado a isso, depois de voluntariamente ter substituído
diversos colegas durante o período de verão, mais propício para o efeito. Como
não tinha família (mulher e filhos) e a praia pouco ou nada me dizia, era-me até
preferível gozá-las nesta altura, quando habitualmente está toda a gente ao
serviço. Aplica-se-lhe na perfeição a máxima: Um por todos, todos por um! –
Um dia há-de chegar a minha vez.
“Isso é que é orgulho!” – Rematou Liliana com um verdadeiro sorriso
estampado no rosto. – “Espero poder dizer o mesmo um dia destes. Não num
Banco, claro! Tenho já umas entrevistas marcadas para Janeiro, vamos lá
ver como é que correm. O mercado de trabalho está cada vez mais difícil,
principalmente para uma mulher formada num curso destes.” – Não
conseguiu disfarçar alguma preocupação. Era um sentimento generalizado entre
a nossa geração, até para os mais capazes.
“Tudo há-de correr pelo melhor. A confiança é um dos melhores atributos
que podemos denotar numa entrevista e isso é coisa que me parece que não
te falta. Arriscava-me a apostar que te vais sair bem à primeira!”
“Espero que sim. Deus te ouça, mas infelizmente sabemos que não é assim
tão fácil. Basta ver os telejornais, com o desemprego a aumentar
incessantemente e empresas promissoras a encerrar portas todos os dias.
Estou apreensiva quanto ao desfecho desta crise, não lhe vejo o fim. Em
última instância emigro. Com o meu curso, acredito que na Alemanha seja
mais fácil, ainda bem que optei pelo alemão como língua principal.”
“É sempre uma opção, mas esperemos que não venha a ser necessário,
gostava de continuar a ter-te por perto.” – Retorqui sinceramente.
O ligeiro erguer das pontas dos lábios alegrou-me a alma. Não se podia dizer que
tinha ficado contente pela observação, mas pelo menos o desagrado não foi
evidente. O mau tempo amainou, era já quase hora do lanche. Nunca tinha
sentido o relógio a galopar como nestas últimas horas. Quem é que disse que não
é possível viajar no tempo?
“Vamos lá perguntar à vovó se tem alguma ideia sobre quem é que terá os
poemas do Gargantas?”
Parecia ter retomado os sonhos de infância. Agora tinha quase a certeza que viria
a disfrutar da sua companhia. – YEEESSSSS!!!!! AHAHAHAHAH!!!! Gritava
o meu ego...
Calcorreámos apressadamente a calçada – precisávamos de uma resposta. Urgia
chegar a quem no-la podia dar.
“Pensei que iam lá ficar o resto da tarde... Que temporal terrível! Sempre
foram à pousada?”
“Fomos, estivemos a regalar-nos com a lareira. É quase tão grande como a
sua, vovó!”
D. Maria riu-se. Sabia que não havia mais nenhuma igual em Linhares. Nem nos
solares dos Santiago ou dos Belo. O seu pai havia-a feito suficientemente grande
para assar um bom porco ou um vitelo, para oferecer nas épocas festivas à
nobreza local. Tinha sido durante quase toda a sua vida o feitor das terras de
ambas as famílias, e estas, pela sua lealdade e dedicação, nunca lhe tinham
deixado faltar nada. A lareira e os seus assados tinham sido bem pagos logo nos
primeiros anos de uso, quando os Santiago lhe ofereceram uma herdade com
cinco hectares e os Belo para não lhes ficarem atrás lhe deram uma outra com
sete. – Não há nada como uma boa oportunidade de mostrar quem é que
realmente tem! – Isto para não falar na casa onde esta tinha sido construída, que
também já tinha sido pagamento por serviços prestados a estes últimos. Não era
qualquer pessoa que numa terra assim tinha uma casa com cinco grandes
quartos, uma cozinha que mais parecia um salão de baile e que funcionava
também como sala de jantar e de estar, reunindo a família em estórias
descongeladas contadas à luz e conforto da lareira. Tinham ainda um estábulo
anexo, agora desactivado, que servia actualmente de armazém. Os animais
davam muito trabalho. D. Maria já não tinha disponibilidade para tratar de tudo.
As batatas, cebolas, alhos, abóboras e outros produtos hortícolas, eram lá
criteriosamente arrumados à espera do consumo na cozinha da casa ou de uma
ou outra venda a pessoas de confiança, dispensando horários rígidos e correrias
atrás dos mesmos, como principalmente as cabritas obrigavam, quando lhes dava
para a traquinice. Ainda assim não havia nada como as ovelhas – Menos trabalho
e mais ganho. Tanto queijinho que tinha sido feito naquela casa. Foi com esse
dinheiro que D. Maria ajudou a filha, mãe de Liliana, a comprar o apartamento
de Lisboa. Se era a única que tinha, tal como a sua neta, para que é que estaria a
guardar o dinheiro? Ajudar enquanto precisa, depois para que é que serve?
Sempre foi a sua forma de estar na vida. Sem loucuras nem facilitismos, nunca
tinha deixado a filha passar necessidades. Tinha um pé-de-meia razoável,
suficiente para ultrapassar eventuais dificuldades próprias da velhice e ainda
haveria de deixar algum à sua adorada netinha.
“Pode não ser tão grande, mas é mais bonita com certeza!”
“Vovó, não diga isso. Lareira igual à sua não há nenhuma!” Era evidente a
comunhão de sentimento por uma peça que se tinha solidarizado com as maiores
alegrias e mais profundas tristezas vividas na comunhão do lar.
“Estivemos a falar do Gargantas. Por acaso sabe quem é que tem aquele
livro de poemas do Gargantas que os Belo escreveram?”
“A esta hora já deve andar perdido minha filha. Parece que o Padre
Agostinho o emprestava de vez em quando para fazerem cópias. Como ele
morreu, se alguém o tinha é natural que nem o tivesse devolvido.”
“Talvez vovó, mas não custa nada tentar. A quem é que podemos pedir
informações?”
“Só vejo uma solução. Falar com a governanta dele, a D. Adelaide. Se o
livro ainda existe, ela deve ser a única pessoa que te pode dizer alguma
coisa.”
“Com este tempo e a esta hora, acho que já não vale a pena irmos ver dele,
Luís. Amanhã logo de manhã vamos falar com a D. Adelaide, que dizes?”
“Pois, é melhor mesmo.” Foram palavras difíceis de arrancar. Ansiava usufruir
isoladamente da sua companhia. Tinha de ter paciência. De qualquer maneira
passaríamos o resto da tarde e o serão juntos. Sempre era melhor do que nada.
A avó fez questão de nos fazer um lanche ajantarado. Puxámos a mesinha para a
frente da lareira. Tínhamos Queijo da Serra amanteigado, moira frita (uma
espécie de chouriça em vinha de alhos com muita cebola), presunto da
salgadeira, pão de centeio cozido no forno de lenha e o vinho directamente da
adega, verdadeiros acepipes aos saltos no meu palato. Some-se a tudo isso visões
sorrateiras da Liliana – quanto mais olhava para ela, mais embeiçado ficava. Era
maravilhosa de todos os ângulos. Parecia ter sido desenhada e esculpida pelos
Deuses.
“Com um lanche assim já não vou conseguir jantar.”
D. Maria riu-se, gostava de ver os hóspedes satisfeitos. Embora não tivesse
necessidade de recorrer ao aluguer dos quartos, era uma forma útil de ter
companhia e reforçar as poupanças. A casa era enorme para uma pessoa só. A
filha foi para Lisboa assim que se casou e o senhor Joaquim, seu marido, morreu
pouco depois, vítima de um acidente com um tractor que se virou enquanto
lavrava. As colinas da serra são perigosas e ele foi atraiçoado quando tentava
aproveitar um bocadinho mais de terreno para cultivar. Era a sua fiel companhia
para tudo, nos bons e maus momentos. Claro que também tiveram as suas
discussões, mas nada que não se tivesse ultrapassado. A vida é mesmo assim. A
sua Inês valia todos os esforços desenvolvidos. Foi para ela que trabalharam e
agora D. Maria tinha o mesmo objectivo para com Liliana. A sua filha já não
precisava, a netinha que era a luz dos seus olhos, estava em começo de vida e
havia que garantir o seu futuro. Um dinheirinho extra nunca fez mal a ninguém.
“Se querem ir falar com a D. Adelaide, têm de ir depois das 9 horas, quando
volta da quinta. Vai lá todos os dias logo de manhãzinha tratar da
bicharada.”
“Ainda bem D. Maria, com este frio também não dá vontade de levantar
muito cedo.” – Sempre servia para disfarçar um pouco a atracção que não tinha
conseguido esconder da avó. E, nem sei por que razão, mas ela até pareceu
aceitar a explicação.
Passámos o resto da noite a reviver as experiências de vida da D. Maria, era um
poço de conhecimento. Aprende-se mais com estas gentes do que aquilo que se
possa imaginar. A sabedoria popular parecia não ter fim. A tudo D. Maria
conseguia aplicar um ditado, alguns dos quais nunca tinha ouvido, seriam
provavelmente de origem local. Embora pouco me apetecesse, era hora de ir
deitar. Tínhamos de nos levantar cedo para ir ver da D. Adelaide e tentar obter
algumas respostas.

Capítulo II – A caixa
Apesar da ansiedade causada pelos momentos vividos, queria adormecer afagado
pelos lençóis de flanela, numa tentativa de vivência paralela de uma vida que só
por milagre conseguiria alcançar no meio terreno. Talvez o inconsciente me
presenteasse com momentos de felicidade, originados pelas sucessivas imagens
de Liliana que se retiveram indelevelmente na minha cabeça. Acabei por apagar
e acordar com o galo da vizinha que teimava em anunciar a alvorada. Estiquei o
braço para espreitar o relógio do telemóvel. Eram 6h35m, cedo demais para o
pequeno-almoço, mas já não valia a pena voltar a adormecer. Tinha o
despertador do telemóvel para as 7h30m, era preferível preparar-me e entreter-
me até a D. Maria me chamar. Peguei no robe e dirigi-me pé-ante-pé à única
casa de banho disponível. Era um dos inconvenientes de ser uma moradia antiga,
evitava fazer ranger o soalho, podia acordá-las, embora a D. Maria já devesse
estar desperta a rezar o terço, como fazia todas as manhãs. Resquícios de outros
tempos, com poucas semelhanças nos dias de hoje. Talvez a sociedade fosse um
pouco melhor se não se tivessem perdido alguns dos hábitos cimentados pelo
cultivo da fé. Consequências do excesso de informação que fazem as pessoas ter
certezas apenas daquilo que vêem e sentem, preterindo o que não é objectivo.
Que mundo materialista o de hoje, com posições centradas na existência
individualista. Tomei um banho que não se pôde alongar demais. O sistema de
aquecimento era também antigo. Um cilindro de duzentos e cinquenta litros que
não conseguia fornecer mais de quinze minutos contínuos de água quente,
precisando de um período de recuperação de pelo menos meia hora, caso esta
esgotasse.
Regressava ao quarto quando a porta do lado se abriu.
“Bom dia!” – Saúda Liliana num tom de voz harmonioso. Caiu-me que nem
ginjas, como se costuma dizer por aqui.
“Bom dia!!!” – Correspondi com um indisfarçável contentamento pelo presente
recebido.
Que quadro! Até os cabelos desalinhados lhe ficavam bem. Quem me dera poder
eternizar essa imagem nesse instante, para poder alimentar o meu coração na sua
falta.
“Acordaste cedo, Luís!”
“Não me queria atrasar para ir ter com a D. Adelaide. Além disso, dormi
como um anjinho, deve ter sido da tua companhia.”
Riu-se.
“Ou do frio... A vovó diz que não há nada como ele para nos fazer repousar.
Encontramo-nos lá em baixo daqui a 20 minutos? Ainda tenho de tomar
banho.”
“Claro, lá estarei – Vou vestir-me.”
Arranjei-me e entretive-me um pouco a ver os emails. Em tempos de férias
evitava fazê-lo, já me chegavam as catadupas que recebia diariamente por
motivos profissionais. Só me apercebi da forma como estava agarrado às novas
tecnologias quando comecei a sentir um cansaço desmesurado e o médico me
disse que era originado por falta de repouso. Tinha dias que, entretido entre
emails, facebook e MSN, chegava a deitar-me depois da uma da manhã. Para
quem tem de se levantar habitualmente às 6h30m era um bocado violento, com
graves repercussões no estado de vigília. Como nem aos fins-de-semana
aproveitava para pôr o sono em dia, foi apenas uma questão de tempo. Custou-
me bastante, mas acabei por encerrar a página do facebook, assim não me dou a
tentações de acompanhar avidamente os acontecimentos dos amigos ou de busca
de simples curiosidades ou bisbilhotices. A minha qualidade de vida melhorou
substancialmente desde esse dia. Daí ter optado também por férias num local
como este. Trazer o portátil, foi apenas uma forma de assegurar que em caso de
emergência laboral, teria uma maneira de aceder a um canal de troca de
informação.
Estava quase na hora. Não quis tornar a parecer ansioso, resolvi dar mais um
tempinho e desci já ligeiramente atrasado. D. Maria acompanhou a minha
chegada com a manifestação do seu contentamento pela situação.
“Assim sim – menino Luís. Isto é que são horas de começar o dia!”
“É verdade. Normalmente faço-o todos os dias, até mais cedo do que isto,
mas de férias, já sabe como é.” – Tentei desculpar-me. Ela sorriu,
condescendente. – “Além disso, temos de ir ver da D. Adelaide.”
“Ainda têm muito tempo para tomar o pequeno-almoço. Ela só deve chegar
a casa por volta das nove.”
Regalámo-nos com o café feito na lareira e servido nas canecas de alumínio. As
torradas de pão de centeio, servidas com aquela abundante manteiga de ovelha,
eram de comer e chorar por mais. Terminámos com um arroz doce feito com
leite de cabra, pleno de sabor e energia para ultrapassar qualquer barreira.
Momentos vividos em silêncio, repletos de sentimentos partilhados, num acto
quase familiar, não fosse a minha condição de intruso. É bom sentirmo-nos
acolhidos e integrados sem necessidade de pronunciar uma palavra. A cara da D.
Maria era um espelho da sua alma. Pelo molde do seu rosto, qualquer
desconhecido facilmente traçaria o seu estado de espírito. Fiquei-lhe grato por
me ter aparentemente desculpado o comportamento desajeitado do dia anterior.
Saímos em direcção à casa da D. Adelaide, que Liliana tão bem conhecia de
outras alturas. Enquanto esperávamos, contou-me que ela era da mesma idade da
avó, uma solteirona por opção própria. Segundo a avó, era uma das mulheres
mais bonitas de Linhares, mas quando a grande paixão da sua vida emigrou, à
procura de melhores condições, com promessas de retorno, ela ficou à sua
espera, desconhecendo que pouco tempo depois de chegar a França este se
juntou a outra portuguesa que já lá estava. Decorreram vários anos até ter
conhecimento da situação. Quando soube, jurou a si mesma nunca mais entregar
o seu coração a ninguém, e, apesar das constantes investidas dos muitos
pretendentes, levou a sua promessa avante. Foi governanta do Padre Agostinho
desde a sua chegada a Linhares, tendo-o acompanhado até à sua morte. Isto fez
com que os homens deixassem de a incomodar. Os Padres sempre foram das
figuras mais respeitadas, senão mesmo a mais respeitada, neste tipo de meios.
Para D. Adelaide foi um alívio, chegara ao fim a necessidade de inventar
sucessivas desculpas para resistir aos constantes devaneios.
“Bom dia D. Adelaide!” – Saúda Liliana
Embevecido na conversa, que me permitia deslumbrar inocentemente com a
visão de Liliana, não me apercebi da sua chegada. Apesar dos trajes de trabalho,
manchados dos afazeres diários, notava-se pelo porte que era uma verdadeira
Senhora. A sua postura recta, de cabeça levantada, contrastava com as pessoas
ligadas à lavoura que com o peso dos anos e do trabalho, vêem as costas arquear
contra a sua vontade. Era evidente o orgulho na sua pessoa, certa da diferença
que fazia numa sociedade habituada a vergar aos seus costumes aqueles que
deles divergem.
“Bom dia, Lili! Seja bem-vinda!” – Cumprimentou-a, cristalina, num caloroso
acolhimento.
Embora Liliana não gostasse de ser chamada assim, desculpava-a. Tirando a sua
avó e os pais que a tratavam por Li, era a única pessoa que não corrigia para que
a tratasse pelo nome correcto. Dava a impressão que via em D. Adelaide uma
extensão da família. Já a conhecia dos primeiros tempos que se lembra de ter
passado com a sua avó e marcou-lhe especialmente a dedicação da D. Adelaide
aquando da morte do seu avô. Passou dia e noite com D. Maria até esta se
conformar com o sucedido e ganhar alento para continuar. Não era qualquer
pessoa que se prestava a tão grande solidariedade. Por isso lhe ficaria
eternamente reconhecida.
“E este menino, é o seu namorado?”
AHHHHHH, GRANDE MULHER!!!! Já tinha subido quinhentos pontos na
minha consideração e ainda nem a conhecia. Sorridente, olhei para o lado.
Liliana estava mais vermelha que um tomate.
“Que ideia D. Adelaide. É apenas um amigo, hóspede da vovó.” O
nervosismo latente na voz acalentou-me. Indiferente não lhe era. Restava saber
se por bons ou maus motivos.
“O que vos traz por cá?”
“Estivemos a falar com a vovó no Gargantas D. Adelaide. Ela disse que os
Brandão de Belo tinham recolhido em livro alguns dos seus poemas e que
mais tarde o tinham oferecido ao Padre Agostinho. Como a senhora era a
sua governanta, pensámos que talvez soubesse onde é que esse livro pára.”
“Ohhh, Lili – Tudo o que o Padre Agostinho tinha foi entregue ao Lucas, o
sobrinho que vive em Trancoso. Mas não tenho ideia de lá ir qualquer livro.
Os que havia ficaram na biblioteca da igreja, estão agora à guarda do Padre
Jacinto, que só cá vem uma vez por semana rezar a missa, estará cá depois
de amanhã. Chega sexta-feira no final do dia para a missa de sábado que é
às sete da manhã. Se quiserem podem ir procurá-lo à pousada, é lá que
costuma ficar.” – Era evidente a sinceridade, restava-nos esperar a chegada do
Padre Jacinto e tentar encontrar o livro na biblioteca, talvez tivéssemos sorte.
“E alguém que tenha uma cópia?” – Atira Liliana. – “Parece que o Padre
Agostinho o emprestava de vez em quando para fazerem cópias dele.”
“Ahhh, esse... Agora me lembro.” – Devolve, olhando para o céu. – “Não sei
porquê, houve algo que descobriu nele que o fez recusar a sua entrega a
partir daí. Cada vez que alguém lho pedia ele dava essa desculpa. Era uma
maneira fácil de se livrar de problemas, principalmente quando começou a
ser visitado quase mensalmente por um fulano das bandas de Lisboa que se
dizia um estudioso de Linhares, mas tinha uma atitude que não convencia.
Não lhe largou a porta por mais de dois anos, até à morte do Padre
Agostinho. Vinha sempre num bruto Mercedes, vestido como ninguém,
parecia um diplomata. O Padre Agostinho até andava receoso que lhe
acontecesse alguma coisa.”
“Estou a ver. Sendo assim é melhor esquecermos.” – O seu tom de voz era de
puro desânimo.
“Esperem, Esperem! Se calhar... deixa ver, às tantas estava a mentir sem
querer.” – A sobrancelha erguida e o coçar do queixo pareciam querer ajudar a
elucidar alguma pergunta que lhe assaltava o pensamento. – “O Padre
Agostinho, muito antes da sua morte, pediu-me para lhe guardar uma caixa,
fez-me jurar que não falaria a ninguém dela e que só a entregaria a quem
ele indicasse. Rogou-me para não lhe mexer, pois podia ser perigoso.
Aparenta ser uma coisa do outro mundo, até me dá arrepios. Nem parece
coisa dele, lembra mais o demónio. Estive quase para a dar ao Lucas, mas
na altura achei que era melhor deixá-la onde está. Posso dizer-vos que fico
sem sono cada vez que me vem à lembrança. Parece coisa do diabo Lili!
Quando o Padre Agostinho ma quis dar ainda tentei recusar, mas sabe como
ele era. Ninguém o podia contrariar.”
“Deixa-nos vê-la? Por favor!” – Pede Liliana numa voz de quebrar qualquer
coração empedrado.
“Não sei Lili, como lhe disse, o Padre Agostinho diz que podia ser perigoso.
Sabe-se lá o que é que está lá dentro. Digo-lhe que até a tenho escondida
debaixo do Oratório. As forças do bem sempre venceram as do mal e é
melhor prevenir do que remediar. A Nossa Senhora de Fátima que lá tenho
dá-me um conforto e alento que nem essa caixa consegue abafar. Sei que
estando Ela por perto, nada me acontecerá.”
A sua devoção era notória e contagiante. Também eu adoro Nossa Senhora de
Fátima, como a compreendo. Entrar no Seu templo faz-me sentir quase que
levitando, em alegre comunicação com o além. Isto no templo antigo, sem saber
muito bem porquê, não me identifico desta forma com o novo, nem me sinto da
mesma maneira quando o visito.
“Por favor D. Adelaide! Conhecemo-nos há tantos anos. Deixe-nos pelo
menos vê-la. Depois logo nos diz se a podemos abrir.”
Ai se fosse eu a receber um pedido assim. Já te tinha caído redondinho aos pés.
“Está bem menina. Só mesmo por ser para si! Espero não me vir a
arrepender e que o Padre Agostinho, que Deus tem, me compreenda e
perdoe.”
Trouxe-a enfiada num saco de pano branco rendado.
“Cuidado que é pesada!” – Advertiu.
Entregou-a à Liliana que pouco faltou para a deixar cair quando a destapou.
Afastou-a do seu corpo, com linhas de terror estampadas no rosto. Seria assim
tão horrenda? Espreitei por entre os seus braços e não consegui segurar o queixo.
“Ehhh lá!” – Foi a única coisa que me conseguiu sair da garganta. Era um
objecto muito elaborado, uma caixa construída de madeira com uns trinta
centímetros de frente, por vinte de profundidade e dez de altura, que parecia feita
de raiz de nogueira, com uma espécie de ferrolho na frente, um pentagrama
invertido na tampa, cortado por uma figura de metal, numa combinação aparente
de prata e ouro, daquilo que sugeria uma medonha mistura de homem e cabra.
Tinha dizeres em ambos os lados da gravura. Os cantos estavam protegidos por
elaboradas ferragens esculpidas em metais similares aos da imagem. Não admira
que perdesse o sono. Era realmente demoníaco!

Liliana tentou abrir a caixa deslocando ferrolho para a direita e puxou a tampa
em vão.
“Ohhh, isto mexe, mas não abre!”
“Deve ter alguma chave.” – Sugiro eu. – “O que é que diz aí?” Perguntei-lhe.
“Espera... Chave não deve ser, que não há qualquer buraco.” – Colocou a
caixa sobre a cabeça para conseguir ler o texto. Estava escrito numa letra tipo
gótica, difícil de interpretar.
Do lado esquerdo da figura podia ler-se:
Se esta caixa quiseres abrir
O enigma terás de resolver
E se a tentares partir
Depressa te irás arrepender
Do lado direito:
Em linha recta contarás
Ao terceiro carregarás
Por cima dele passarás
Mas por ele não começarás
Tinha qualquer coisa também no fundo da caixa. – “Espera Liliana – Tem
qualquer coisa escrito em baixo.”
Onde se podia ler:
A ordem terás de descobrir
De uma ponta partirás
Nove botões para abrir
Até que à outra chegarás
“Quais botões? Ahhh!!! Estes na ponta da estrela. Olha, os das intersecções
também. Pareciam fixos, mas afinal são botões.” – Exclamou Liliana
enquanto carregava no nariz do demónio. – “Será que é o livro que cá está
dentro?”
“Ou outra coisa qualquer.” – Remato. Seja o que for deve ser importante.
“Isso é de certeza meninos. Para o Padre Agostinho ma ter entregado, é
importante de certeza.”
“Como é que uma caixa destas estava na mão do Padre Agostinho? –
Pergunta Liliana admirada. – Parece mais pertença de uma seita satânica do
que de um católico convicto.”
“Ai isso é, Lili... Ai isso é... Ele nunca me quis dizer a verdade. Quando lhe
fazia alguma pergunta sobre o assunto, referia sempre o segredo da
confissão. Apenas sei que foi alguém desta terra que lha entregou num acto
de contrição e que já vinha de um familiar muito antigo que a tinha em seu
poder. Na família que a possuía, houve sempre alguém vítima de desgraças
inexplicáveis. Aparentemente, a caixa foi a origem de todo o mal. Foi essa a
dedução de quem então se resolveu a confessá-lo ao Padre Agostinho e a
entregar-lhe a caixa para que lhe desse o destino que achasse mais
adequado. O arrependido, último sobrevivente da família, acabou por
morrer de velhice. Antes de finar, disse que só no fim da sua vida tinha
sabido o que era ser feliz. Até então tinha ficado praticamente louco a tentar
abri-la. Deve ter sido um alívio livrar-se dela.”
“Compreendo... E o Padre Agostinho não terá descoberto o segredo? Não
lho terá entregado também?”
“Não, isso não. Nunca quis sequer tentar. Esteve até para a destruir. Só não
o fez por uma questão de consciência.”
“Deixa-nos levar a caixa D. Adelaide? Prometo que se a conseguirmos abrir
lha trazemos e mostramos o conteúdo.”
“Se me prometerem que têm cuidado Lili, não me importo que a tentem
abrir. Mas têm de me entregar a caixa e o que lá estiver dentro para saber o
que é que lhe hei-de fazer.”
Prometemos-lhe que se a conseguíssemos abrir lhe daríamos de imediato
conhecimento. Fomos em pulgas para casa. Queríamos estar num lugar onde
pudéssemos pensar concentradamente sobre o enigma.
“O que é isso, Li?” – Interroga D. Maria assim que chegámos – “Ai, cruz,
credo! Onde é que foram achar a boca do diabo?”
“Foi a D. Adelaide que no-la emprestou vovó. Parece que o Padre Agostinho
lhe pediu em tempos para guardar esta caixa. Há-de ser alguma coisa
importante, não acha?”
“Isso não parece coisa do Padre Agostinho! Se havia alguém que apregoava
a resistência ao mal e à tentação, ninguém o fazia como ele!” – Devolve D.
Maria com indignação. O Padre Agostinho tinha sido o seu confessor ao longo
dos tempos, dando-lhe sempre forças nas horas de dificuldade e aflição. Como é
que seria possível ter um objecto assim?
“Se calhar foi mesmo por isso que o entregou à D. Adelaide vovó!
Provavelmente foi melhor do que cair em mãos incertas, não se sabe o que é
que cá estará guardado.”
“É verdade. Também é fácil de ver, basta abri-la.”
“Isso queremos nós, mas não parece nada fácil. Leia isto vovó!”
Mostrámos os textos à D. Maria, que ficou igualmente intrigada sobre o enigma.
Devia ser coisa grande para estar assim tão bem guardada.
“Então e já tentaram resolver o segredo?”
Liliana, habituada a problemas matemáticos e conhecedora do infindável número
de combinações possíveis, diz: “Podemos até nunca o conseguir resolver
vovó. Se fosse assim tão simples...”
“Li, essa não é a Estrela de Salomão?”
“Não vovó – é parecida. Esta é um pentagrama, apenas com cinco pontas, a
de Salomão tem seis. Está é virada ao contrário, talvez daí a sua confusão.”
“Pois é, tens razão minha filha!” – Confirmou D. Maria enquanto mirava a
Estrela de Salomão em ouro que trazia ao pescoço como amuleto, junto ao
crucifixo. Dizia o povo que tinha o dom de nos proteger.
“Vamos ver se descobrimos isto Luís?” – Pergunta Liliana entusiasmada.
“’Já devíamos era estar a tratar disso.”
Sentámo-nos no sofá junto da lareira, com a caixa entre nós.
“Assim não ficamos bem, um vê a imagem duma forma e o outro doutra. É
melhor sentarmo-nos lado a lado Liliana, não achas?”
Era uma posição muito mais favorável, não só para analisar melhor a caixa, mas
principalmente pela proximidade que as circunstâncias permitiam. Estávamos
debruçados sobre ela, sentindo eu o calor de Liliana, quando D. Maria põe a
cabeça entre nós. Oooops – não lhe escapa nada. Com um bocado de sorte,
talvez seja apenas curiosidade, esperemos.
“Vamos lá ver. A estrela tem dez botões. É formada por cinco rectas, cada
uma com quatro botões colocados nas pontas e nas intersecções. O texto diz
que tem de se começar numa ponta e acabar noutra, contar três em linha
recta e pressionar o último, podendo saltar por cima de um botão já
carregado, mas não começar num que já o esteja.” Liliana fez uma tentativa
de abertura, conseguindo carregar em apenas sete botões, olha para o resto
e diz: “Uiiii… – já não consigo carregar em mais nenhum. Ora vê Luís...”
Tinha razão, para pressionar qualquer dos três restantes, tinha de começar
obrigatoriamente num que já estivesse pressionado. Tentei aldrabar o sistema e
pressionei dois deles. Accionei o trinco e os botões retornaram à posição inicial,
puxei a tampa e... – Nada!!! Era sorte a mais.
Durante longo tempo experimentámos diversas combinações, cumprindo as
regras dos textos, nunca tendo conseguido, na melhor das hipóteses, passar dos
oito botões. Ainda assim, tentávamos continuamente carregando batoteiramente
no nono. O resultado foi sempre o mesmo: ferrolho a correr e nada a acontecer.
Entretanto D. Maria abandona-nos para ir fazer o almoço. Aproveitei para me
posicionar estrategicamente em frente à caixa, obrigando de alguma forma
Liliana a aproximar-se mais de mim. Uma, outra, mais outra e nada...
Começávamos a desesperar, o que no início parecia de alguma forma exequível,
mostrava-se uma barreira inultrapassável. Era um verdadeiro quebra-cabeças, só
me apetecia mandar a caixa ao chão para a abrir à força. Não fosse o receio do
desconhecido e já o tinha feito, mas o aviso na caixa parecia sério e o melhor era
tentar mesmo abri-la cumprindo o exigido.
“Espera aí!” – Interrompe Liliana – “Desta maneira não nos safamos. Vou
fazer a estrela num papel e assim sempre somos dois a trabalhar ao mesmo
tempo. Tu vais tentando abrir a caixa e eu vou tentando resolver o enigma
no papel. Vou buscar um bloco ao meu quarto.”
“Boa ideia!” – Disfarcei a contrariedade. Lá se ia a minha proximidade. Dito e
feito, quando me apercebi, estava Liliana sentada à mesa, entretida a tentar
resolver o problema.
Almoçámos à pressa. Mal deu para apreciar a refeição. Tínhamos um verdadeiro
quebra-cabeças para solucionar, sem o mais pequeno vislumbre da decifração.
A meio da tarde, cansado de tantas tentativas, lembrei-me de ir buscar o portátil
para fazer uma busca na Net. Talvez aí conseguisse encontrar uma pista. Fui ao
Google e fiz uma busca por pentagrama. Eram milhões de artigos, nunca mais
dali sairia. Depois tentei: Enigma do pentagrama. Menos resultados, mas mesmo
assim, eram mais de dois milhões. Passei os olhos por diversas páginas e nada
que se relacionasse com o pretendido. Aparentemente o pentagrama era um dos
símbolos mais utilizados na antiguidade, ligado às melhores e piores práticas
religiosas. Neste último caso, o pentagrama invertido, exactamente o que
tínhamos em mão. Tentei ainda variações das palavras noutras línguas e nada.
Até porque hoje em dia o Google faz a tradução do texto a pesquisar para
diversas línguas, com especial incidência no inglês, indo na maioria das vezes
buscar páginas relacionadas com o texto pesquisado, ainda que estejam escritas
noutra língua.
Já me doíam os dedos de tanto clicar no rato. Tive de ir ao quarto buscar o
carregador do portátil, já dava sinal de bateria fraca. Ao fim de duas horas de
uso, era quase um milagre que ainda estivesse operacional. Com a utilização da
rede, normalmente ia abaixo em pouco mais de hora e meia.
Resolvi retomar a pesquisa apenas pela palavra pentagrama. Encontrei então um
artigo interessante, pareceu-me bastante completo. Falava dos aprofundados
estudos de Pitágoras sobre o pentagrama e do fascínio que a maior parte da
civilização tinha sobre este. Da proporcionalidade da figura, em que os lados dos
triângulos formados divididos pela sua base, tendiam para o número perfeito ou
proporção divina (1,1618...). Neste se conseguia também aplicar a sequência de
Fibonacci, o valor de Pi (3,14159265...), entre muitos outros desígnios e
mistérios ligados à sua imagem. Isto para não falar da sua associação ao longo
dos tempos à questão do espírito e da alma, à força da natureza, ou ainda às
práticas associadas às fontes do mal. Mas do que precisava, nada!
O resumo de
(http://www.spectrumgothic.com.br/ocultismo/simbolos/pentagrama.htm),
chamou-me a atenção. Nela encontrei a imagem incluída nesta caixa, que não
passou despercebida e um texto de onde é de destacar o seguinte:
“Os Templários, uma ordem de monges formada durante as Cruzadas,
ganharam grande riqueza e proeminência através das doações de todos
aqueles que se juntavam à ordem; além de grandes tesouros trazidos da Terra
Santa. Na localização do centro da Ordem dos Templários, ao redor de Rennes
du Chatres, na França, é notável observar um pentagrama natural, quase
perfeito, formado pelas montanhas que medem vários quilómetros ao redor do
centro. Ainda é possível perceber, a profunda influência do símbolo, em
algumas Igrejas Templárias em Portugal, que possuem vitrais na forma de
Pentagramas. No entanto, Os Templários foram dizimados pela mesquinhez da
Igreja e pelo fanatismo religioso de Luís IX, em 1303. Iniciou-se assim a Idade
das Trevas, onde se queimavam, torturavam e excomungavam qualquer um
que se opusesse a Igreja. Durante esse longo tempo de Inquisição, a igreja
mergulhou no próprio diabolismo ao qual se opunha. Nessa época o
pentagrama simbolizou a cabeça de um bode ou do diabo, na forma de
Baphomet, o mesmo que a Igreja acusou os Templários de adorar. Assim
sendo, o pentagrama passou de um símbolo de segurança à representação do
mal, sendo chamado de Pé da Bruxa. Assim, a perseguição da Igreja fez as
religiões antigas se ocultarem na clandestinidade”
“Espreita aqui Liliana.”
“Olha, é a mesma imagem da caixa!” – Admira-se.
“Tal e qual! Agora lê o que está ao lado.”
Liliana arranca-me o portátil das mãos e devora atentamente o texto. Quando
termina, olha para mim, com ar de quem está a congeminar alguma.
“Não me digas que estás a pensar o mesmo que eu...” – Tento descobrir.
“Templários?” – Questiona receosamente.
“Pareces bruxa...”
“O que é que os templários poderiam ter a ver com Linhares? Acho difícil
existir alguma relação com uma terra de nenhures Luís.”
“Nenhures? Talvez hoje o seja, mas olha que noutros tempos as coisas não
foram provavelmente bem assim. Não era qualquer terra que tinha um
castelo como o de Linhares! Além disso, não te esqueças que ficava na rota
para os principais pontos de Portugal, beneficiando de acessos com
condições que não existiam em todo o lado.”
“Talvez tenhas razão. Por algum motivo o castelo foi aqui construído.”
Desisti de fazer mais pesquisas. Não encontrei a mais leve referência à adivinha
que tínhamos em mão. Era altura de retomar. Atirámo-nos de novo ao
pentagrama numa tentativa quase desesperada de ultrapassar os oito botões que
teimavam em resistir.
Embrenhados no quebra-cabeças, nem do lanche nos lembrámos. Chegou a hora
do jantar e mal o provámos. Com o esforço, os olhos já me rebentavam.
Começava a ficar com cefaleias. Era demais. Olhei para o relógio, era tarde.
“Liliana, que me dizes a irmos dormir e continuarmos amanhã de manhã?”
“Será melhor. Também estou a ficar cansada.” – A fraqueza transpirava na
sua voz. Era evidente o desalento causado pelo sucessivo preenchimento de
folhas em busca do inatingível. Rabiscara frente e verso, ponto após ponto.
Tinha começado a enumerá-los, numa tentativa de encontrar alguma lógica que
encurtasse caminho, mas nada. Sete, oito, nunca mais do que isso. Que raiva!!!
Subimos as escadas que gemiam num sofrimento partilhado, sintonizadas pelo
nosso escalar emudecido e cabisbaixo.
“Boa noite, Luís!”
“Dorme bem Liliana. Bons sonhos!” – Quem me dera que fosse comigo.
Quanto mais não seja, que sonhe eu contigo.
Pousei na cómoda a caixa que trazia em mãos. Deixei a roupa arrumar-se no
soalho. Nem pijama vesti. Encovei-me nos lençóis, derreado pelas sucessivas e
infrutíferas tentativas de quebrar o inquebrável. Foram quase doze horas
praticamente seguidas de tentativa-erro, tentativa-erro, tentativa-erro... erro, erro,
erro... A cabeça caiu-me inevitavelmente num precipício espaço temporal,
atirando-me para uma viagem plena de incertezas.
Ia já larga a madrugada quando comecei a viver um pesadelo. Ouvi gritos, mais
gritos...
“Consegui!!! AHAHAH!!! COONSEEEGUUIIII!!! Consegui, Luís!!!!
CONSEGUI!!!” – Gritava num entusiasmo pleno de alegria.
“Hmmm?!” – Pus a cabeça num guindaste, puxei o botão e deixei-o levantar-
ma.
O emaranhado nevoeiro que me atravessava a cabeça começou a dissipar-se da
minha mente. Abri os olhos com dificuldade e afiei as orelhas.
“Consegui, Luís, consegui!!!”
Era a Liliana. Levantei-me de um pulo e dei com ela no corredor. Incrédula a
olhar para o bloco.
“Consegui, olha... Consegui!!!” – Não cabia em si de contente.
Ainda estava vestida. Não tinha conseguido deitar-se com aquilo a matutar-lhe a
cabeça. Só quando me mirou de alto a baixo e partiu o caco a rir, me apercebi de
como estava. Apenas de boxers e ainda por cima torcidos. Que figura... Corri
para o quarto, arranquei as calças do chão com o pé e retornei ao corredor. Já lá
estava a D. Maria, completamente estremunhada. Parecia uma zombie.
“Achei a solução vovó!”
“Que dizes?!”
“Descobri como é que se abre a caixa vovó!” Vaidosamente orgulhosa de si
mesma. Até eu, como é que ela não o deveria estar também?
Parecia impossível... – “Mostra lá!”
“Ora vejam!”
Pregou-nos os olhos a uma estrela preenchida com nove pontos, cada um deles
enumerado. Céptico, iniciei o seu rastreio: um, dois, três, quatro, cinco, seis,
sete, oito e nooovveeeeeeee!!!!! – “Urrraaa!!!! Ai mamma mia!!!!
HEHEHE!!!” – Até parecia que tinha sido eu a encontrar a solução.
Avó e neta só se riam, num momento enriquecido com a minha alegremente
triste figura.
“A caixa... Traz a caixa!”
Fui buscá-la. – “É melhor irmos para baixo. Aqui não estamos bem.”
Concordaram e descemos as escadas sentando-nos todos à lareira, com o seu
resistente calor. D. Maria nunca a deixava apagar-se. Assim dispensava o
aquecimento eléctrico. A energia estava pela hora da morte.
Liliana pega na caixa e com as mãos trémulas inicia a sequência, completa-a e
respirámos fundo em uníssono. Manda esperançosamente o dedo ao ferrolho e...
Nada!!!
“Não pode ser!!!!” – Indigna-se a avó.
Então a sua netinha havia descoberto o segredo e ele não funcionava?
Impossível, impossível...
“Olha lá Li, aqui não diz para começares numa ponta e acabares noutra?”
“Foi isso que fiz vovó! Mas não dá...” – Responde-lhe desanimada.
“Pontas podem ser os cornos minha filha!” – Diz D. Maria.
Não conseguimos abafar uma gargalhada arrancada bem de dentro.
“Pois, foi isso mesmo que tentei. As outras pontas não estão tão visíveis, por
isso achei que deviam ser essas.”
“Então e se começámos na ponta errada? Talvez seja o inverso. Dá cá um
espelho!” – Peço eu impaciente.
“Espelho para quê?” – Ri-se Liliana, separando a folha do bloco e virando-a ao
contrário contra a luz.
Garota inteligente... Bem, a do espelho também não era mal pensada, digam lá...
Com a sequência simetricamente arrancada à contraluz na folha segura pelas
mãos de Liliana, começo eu desta vez a pressionar os botões.
“Pronto!” – Sai-me ofegantemente.
Mando lentamente o polegar ao trinco. Ouve-se um clique e a tampa ergue-se
alguns milímetros.
Dei comigo agarrado pelo pescoço por quatro braços gritantes. Comecei a tremer
e tive de pousar a caixa. Não conseguia controlar os meus próprios músculos.
Devolvi como podia os abraços que me afogavam. As mãos para trás, uma sobre
o ombro de cada uma delas. Que sensação... Espantosamente inebriante e
assustadora.
“Abre!” – Pede Liliana.
“Espera! Deixa-me recompor.”
Tive de respirar profundamente diversas vezes até que o coração, que teimava
inusitadamente em extrapolar o meu peito, se decidisse a voltar ao lugar.
“Vamos a isso!”
Levantei-me do sofá, agarrei na caixa e dirigi-me à mesa de cozinha, onde a
pousei. Elas seguiram-me, contagiadas de curiosidade. Afastei-a um pouco mais
e com apenas os olhos acima da linha do tampo da mesa, estiquei os braços e
disselhes:
– “Baixem-se, não sabemos o que é que pode acontecer!”
Obedeceram prontamente, colocando-se cada uma do meu lado em posição
semelhante, seguras com as mãos colocadas sobre os joelhos.
“Ai menino!” – Geme D. Maria temerosa. – “Deus nos ajude!”
Mandei os polegares firmemente às pontas da tampa e demorei uma eternidade a
erguê-la. Quando chegou à posição vertical fez um ligeiro clique que no mais
absoluto silêncio soou a tremenda explosão.
Liliana atirou-se para debaixo da mesa, numa tentativa de proteger a cabeça e
mandou uma tremenda cabeçada no travessão, caindo completamente atordoada
no chão. Eu lancei-me para trás embatendo no sofá, que me impediu de cair
desamparado e D. Maria pura e simplesmente tombou para o lado.
Brancos como a cal, dirigimo-nos a D. Maria, receosos do seu estado.
“Vovó, vovó...” – Chamava Liliana assustada.
“Ai Jesus... Pensei que íamos morrer meu amor!” – Disse, abraçando-nos.
Ajudámo-la a erguer-se e os três firmemente agarrados pelos braços
entrelaçados, espreitámos temerosamente o interior da caixa.
Tinha no cimo uma espécie de mecanismo montado por baixo de uma placa
completamente perfurada no topo, por onde se conseguia descortinar alguma
coisa. Quase parecia uma fechadura e havia algo escrito no reverso da tampa:
Se não queres rebentar
Terás de me conter
Vais ter de adivinhar
O que precisas de saber
As tuas entranhas
Vão-se por aí espalhar
Se não souberes as manhas
Para daqui me tirar
“Afastem-se! Estejam quietas, não lhe mexam - Pode ser uma bomba!” –
Grito assustado.
Liliana pede-me para me acalmar. “Já está aberta. Se tivesse de explodir já
teria acontecido quando a abrimos.”
Aproximou-se da caixa observando-a de todos os ângulos. – “Espera aí!” –
Disse – “Vou ao quarto, já venho.”
Retornou com uma lanterna em mãos.
“Assim conseguimos ver o que é que está montado por baixo disto.”
Está visto porque é que era Engª. Mecânica, engrenagens eram com ela. Razão
tinha quando dizia que era herança genética.
Apontou o foco de luz à caixa e espreitou minuciosamente buraquinho por
buraquinho.
“Arranja-me cinco esferográficas tipo Bic ou lápis se faz favor.” – Pediu-me.
“Para quê? Vê lá o que é que vais fazer. Ainda te acontece alguma coisa!” –
Observei, com medo de a perder.
“Confias em mim ou não? Faz o que te pedi, se faz favor!”
Subi e mandei a mão à pasta do portátil. Costumava trazer sempre algumas
comigo. Encontrei duas do meu Banco, eram no género das Bic e achei mais um
lápis.
“Tenho três, duas esferográficas e um lápis, chega?” – Perguntei-lhe do cimo
das escadas.
“Não, têm de ser cinco. Têm de ser cinco. Vai à mesinha de cabeceira do
meu quarto, está lá uma esferográfica e um lápis com que estive a fazer as
estrelas.”
Encontrei-os e desci as escadas numa curiosidade crescente. Para que é que
seriam?
“Dá cá! Agora pega na vovó e saiam daqui se faz favor!”
“Nem penses, não te vou aqui deixar sozinha!” – Retorqui com convicção.
“Nem eu, meu amor, nem eu!” – Diz afincadamente D. Maria.
“Então pelo menos sente-se no sofá. Faça-me lá esse favor. Senão não posso
fazer nada.” – O sofá estava colocado em frente à lareira, de costas para a mesa.
Estaria minimamente protegida.
“No sofá está bem. Mas daqui não saio!”
“E tu, Luís, já que és teimoso como um burro, segura-me apenas a caixa e
não a deixes mexer.”
Mandei as mãos aos lados da caixa e preguei-a literalmente à mesa. – “Já está!”
“Agora dá-me só um jeitinho, chega-te um pouco para o lado.”
Assim fiz, facilitando-lhe a movimentação. Liliana pega nos lápis e nas
esferográficas às quais tinha tirado as tampas e dirige-se à caixa. Pegou num
lápis e forçou gentilmente a sua entrada num dos buracos de um dos cantos, fez
o mesmo noutro canto com outro e com as duas esferográficas nos restantes,
depois pega na última e coloca-a num buraco ao centro. Verificou depois se
estavam fixos ou soltos, parecendo descansada por nenhum se deslocar com
facilidade. Mandou cada uma das mãos a dois deles das pontas e forçou-os
ligeiramente para os lados, puxando ao mesmo tempo todo o mecanismo para
fora da caixa. Com isso, deixou à vista uma espécie de tijoleira de barro
envidraçado, incrustado com quatro pontos de cobre ou bronze, semelhantes a
botões do tipo daqueles que encontramos nas calças de ganga.
“Espera, ainda não terminei – está quase.” – Afastou-me interpondo um
cotovelo.
Pousou o mecanismo constituído por aquilo que víamos como tampa e por
quatro lados de metal, como se fossem abas e retirou a peça de cerâmica do
interior da caixa. Tinha uns vinte centímetros de largura, por quinze de
profundidade e pelo menos uns cinco de altura. Não admira que a caixa fosse tão
pesada. Mecanismos atrás de mecanismos e ainda por cima uma peça de
cerâmica destas dentro.
Espreitei para a caixa e já só lhe vi o fundo – “O que é isso?” – Inquiri
intrigado.
“Deve ser mesmo uma bomba!” – Respondeu, rindo-se nervosamente.
D. Maria, virada no sofá, ia tendo um treco. – “Uma bomba Li? Pousa isso já!”
“Agora já não faz mal vovó. Retirei-lhe os gatilhos que a faziam explodir.
Sem estar junto com aquela peça não acontece nada. A não ser que lhe dê
uma martelada ou algo do género, claro. Quer ver?” – Pousou a cerâmica e
pegou no mecanismo, fez pressão sobre os lados de cada uma das esferográficas
e lápis colocados nos cantos, um a um, e retirou-os ouvindo-se um martelar cada
vez que um deles era totalmente retirado, quando tirou o do centro todos os lados
do mecanismo se abriram de repente como se de uma ratoeira se tratasse,
fazendo um barulho que pareceu ensurdecedor a quem estava totalmente absorto
na situação. Saltámos e berrámos mais uma vez como se o mundo estivesse a
acabar, para logo de seguida nos rirmos como loucos da figura que fizemos.
Voltámos à peça de cerâmica. Observou-a de canto a recanto e descobriu uma
tampa no fundo. Era feita de cortiça e parecia estar isolada com uma espécie de
cera. Dirigiu-se à banca e pegou numa faca de cozinha, raspando levemente em
volta da cortiça. Depois de terminar, meteu o bico da faca num dos lados e
forçou ligeiramente a tampa que cedeu quando fez uma espécie de alavanca.
Pela abertura escorreu um pó negro. Pelo cheiro era pólvora, não tinha dúvidas.
Correu para o lava-louças, onde despejou todo o que saía. Retirou
completamente a tampa deixando a descoberto um pequeno rolo amarelo pejado
de resíduos desse pó preto. Nos cantos a cerâmica tinha a continuidade daquilo
que ela me veio a contar ser o método de ignição do explosivo, caso os gatilhos
batessem naquelas peças que estavam colocadas no topo. Eram feitos de
camadas alternadas de pederneira e de metal poroso, para que se desse a faísca
quando fossem friccionados, se a compressão inicial da pólvora introduzida
entre as camadas não provocasse imediatamente a explosão. Areia demais para a
minha carroça, mas deleite para uma Engª. Mecânica, cujo pai era caçador e
poupava algum dinheiro fazendo os seus próprios cartuchos em casa. Não
fossem as advertências existentes no exterior e qualquer um poderia ser
facilmente vítima do seu manuseamento.
“Está visto que o livro não é!” – Pegou no rolo e fez um esgar, era pegajoso.
Cheirou-o e abanou afirmativamente a cabeça, parece que tinha entendido o que
se passava. O rolo estava impregnado de resina de pinheiro que servia como
aderente para a pólvora, isolante do papel e ao mesmo tempo de combustível,
fazendo-o arder completamente no caso de violação da caixa onde estava
encerrado. Quem engendrou isto sabia o que estava a fazer. Era uma verdadeira
obra de arte.
“Chegas-me um pano seco, se faz favor?”
Puxei-o do varão do fogão de lenha onde D. Maria os punha a secar e entreguei-
lho. Liliana dedicou-se a eliminar cuidadosamente os resíduos de pólvora e a
resina em volta daquilo que parecia ser papel. Entretanto, D. Maria já se nos
tinha juntado outra vez. Estava tão curiosa, debruçada sobre Liliana, que a neta
mal tinha espaço para se mexer. Quando terminou abriu-o, desenrolando-o
lentamente e leu o seu conteúdo em voz alta:
Tu que tanto me queres
Pensa se muito quererás suar
Porque para me teres
Um castelo terás de levantar
Debaixo de suas fundações
Me escondi para não voltar
Fugindo das tentações
De quem me quis roubar
Ofereço-te uma última rima
Cuidado se lá conseguires chegar
Não vá o castelo cair-te em cima
Quando a mão lhe tentares deitar
“Às tantas a lenda do tesouro não é assim tão descabida.”
“É o que parece, menino Luís.”
“Também acho!” – Reforça Liliana.
“Agora, pensem bem. Ainda que seja uma pista para um tesouro. Já
imaginaram o que é que o poema quer dizer com – Levantar um castelo e
Debaixo das suas fundações? Representa uma tarefa pura e simplesmente
impossível!” – O meu cepticismo era evidente, num erguer de braços aos céus.
“Muito provavelmente. Mas não perdemos nada em fazer uma vistoria ao
castelo. Muito embora, se a menção – Debaixo das suas fundações – estiver
correcta, de pouco ou nada nos vá valer. De qualquer maneira, vamos lá
daqui a pouco? Eu já não vou conseguir dormir.” – Liliana estava decidida e
eu ainda mais.
“Ó meninos, eu cá não saio daqui. Além de ter de ir descansar, as pessoas
ainda diziam que tinha pirado. Aos anos que não vou para essas bandas.
Agora, lembrem-se de uma coisa, o castelo foi reconstruído nos anos
quarenta. Está bem que não lhe mexeram nas fundações, mas por dentro foi
praticamente todo revolvido. Se lá estivesse alguma coisa, era natural que a
já tivessem encontrado.”
“Ainda bem que fala nisso D. Maria. Mas quando alguém se refere às
fundações, normalmente é relativamente aos alicerces. Neste caso seria
provavelmente apenas a base das muralhas em si o que exclui praticamente
o espaço interior, mas... Nunca se sabe, tudo é possível!”
Os raios de sol começavam a rasgar o horizonte enaltecendo os recortes da serra
que protegia a povoação, funcionando como uma muralha intransponível para
quem noutros tempos a tentasse alcançar vindo de Sul. Tínhamos o sangue nas
veias em ebulição, estávamos ao rubro pela emoção dos momentos vividos. Não
valia sequer a pena tentar adormecer. Era preferível tentarmos aplacar os
pensamentos que nos assaltavam e descansarmos depois.
Munidos de luvas e gorros, imprescindíveis para a temperatura que fazia, saímos
de casa depois de termos tomado um pequeno-almoço rápido que a D. Maria nos
arranjou. Pelo sim, pelo não, levei a minha máquina fotográfica para registar um
local ou outro que fosse digno da ocasião.
O céu estava carregado, numa ameaça permanente de banho inadvertido.
Deixámos os guarda-chuvas em casa, arriscando alguma molha. Com a máquina
a tiracolo tornava-se desconfortável carregá-los.

Capítulo III – O castelo
Era cedo demais, pouco passava das sete e meia. As portas do castelo ainda
estavam encerradas. Teríamos de esperar que a senhora do museu chegasse para
as abrir, o que, segundo o panfleto afixado na mesma, deveria acontecer pelas
nove e meia.
“Que me dizes de irmos dar uma volta por fora das muralhas?” Pergunto.
“É curioso, já vim aqui centenas de vezes, mas acreditas que apenas
conheço o interior? Nunca me deu para andar pelo exterior. Provavelmente
porque a vovó me dizia sempre que era muito perigoso por causa dos
precipícios. E era bem advertido. Pelo menos visto de cima, há veredas
aparentemente muito perigosas, muito mais com este tempo.”
Decidimos contorná-lo pela direita, observando com atenção todos os
pormenores do assentamento das pedras da base. Estavam totalmente colocadas
sob rocha maciça. Seria praticamente impossível existir um lugar onde o tesouro
pudesse ser colocado. A não ser que tivessem escavado a rocha, o que nos
pareceu pouco provável, seria uma tarefa deveras penosa. Chegámos a um
patamar, no lado oposto da porta principal, que interrompia o caminho que
havíamos percorrido. Espreitámos os terrenos abaixo e reparámos que uns vinte
metros adiante, num plano inferior, existiam alguns rochedos junto da muralha
que mereciam uma observação de perto. Tentámos descer por uma rocha
contígua à parede de sustentação da plataforma, mas resolvemos encontrar
alternativas, estava demasiado húmida e com algum musgo agarrado. Nem as
botas de borracha nos valeriam.

“Vamos tentar por ali, Luís.”


Apontava-me um percurso menos conturbado que se formava a meio do patamar.
Teríamos de dar uma volta maior, mas seria mais seguro. Descemos
cuidadosamente pequenos patamares e contornámos as silvas que teimavam em
barrar-nos o acesso ao local, segurando-nos repetidamente pela roupa. As rochas
formavam uma espécie de anta, com aquilo que noutros tempos deve ter sido um
canal de acesso à fortificação. Seria ali? Era evidente demais. Qualquer um que
se abeirasse naquele patamar daria com o local. Espreitámos mais adiante, não
conseguiríamos passar, só descendo ao vale e subindo de seguida, demoraríamos
uma boa hora para o fazer, isto para não falar na estafa que seria. Preferimos
voltar atrás e dar a volta ao contrário. Fomos galgando cuidadosamente as
enormes rochas que sustentam as muralhas, aproveitando alguns trilhos
existentes, alguns dos quais pareciam abertos por rodas de carroças,
aprofundados pelo seu uso durantes séculos. No extremo esquerdo do castelo,
ainda no lado frontal, mas já fora do perímetro das muralhas, deparámo-nos com
algo muito curioso: numa rocha inteiriça, completamente cinzenta, à semelhança
do granito que se encontra por toda a zona, vemos aquilo que parecem ser duas
tampas quadradas de uma rocha provavelmente também granítica, mas de um
tom completamente diferente, quase rosa.
“Estranho!” Exclamámos em uníssono.
“Repara nas bordas destas pedras.” Alerta Liliana. “Dá a impressão que são
em cunha, como aquelas aberturas rasgadas verticalmente nas muralhas
dos castelos, tipo pequenas janelas. Eram usadas para se defenderem, em
que do lado de fora apenas se vê uma frincha, mas do lado de dentro a
reentrância é alargada num ângulo pronunciado, permitindo a manobra
dos arcos, lanças ou outras armas, de forma a abrangerem o maior ângulo
possível.”
“Tens razão. É como se as tivessem colocado pelo lado de dentro, com esse
formato seria impossível de outro modo. Deixa-me tirar umas fotos.”
Alguns cliques depois, tentámos movê-las e nada. A maior delas devia pesar
mais do que um carro e mesmo a mais pequena teria umas boas centenas de
quilos. Ainda que não estivessem bloqueadas pelo encaixe, só mesmo com
auxílio de equipamento as conseguiríamos deslocar.
Uma coisa era certa: aquelas rochas não tinham nascido ali. Eram
substancialmente diferentes da rocha onde estavam inseridas, com uma figura
geométrica quadrangular, só mesmo o homem as podia lá ter colocado.
Combinámos fazer posteriormente uma pesquisa sobre o assunto e continuámos.
Passámos a porta no topo ocidental, que vista de dentro, teria um acesso algo
problemático, tal era a rampa que a seguia. Resta saber se tinha ficado assim
depois da reconstrução, nos anos 40, ou se manteve a inclinação original. Para
que é que teria sido usada? Não fazia muito sentido...
Percorremos essa lateral pejada de maciços, sem nada mais que nos despertasse
a atenção e dobrámos o canto.
“Pronto, estamos do lado de trás do castelo. Sempre foi mais fácil assim.” –
Nota Liliana sorridente.
Observávamos na altura o declive que teríamos de ultrapassar se tivéssemos
optado por descer do outro lado. Era uma tarefa ingrata. Quando nos virámos
para observar a muralha, vimos um aglomerado de rochas na sua base, que,
encostadas umas às outras, permitiam o acesso a um espaço interior. Não resisti
à curiosidade e enfiei a cabeça num dos buracos. Com um bocado de jeito
conseguia entrar.

“Espera só um bocadinho, já venho!” Entreguei a máquina a Liliana e pus-me


de gatas para atravessar o pequeno túnel.
“Tem cuidado, isso parece instável!”
Roçando as costas pela rocha cimeira consegui encatrafiar-me na concavidade.
Dava perfeitamente para me pôr de pé. Tinha acesso também por outro lado, se
calhar até mais facilmente. O chão nesse lugar era diferente do resto. Constituído
por uma camada macia, terrosa e com alguns bocados de cerâmica e pequenas
pedras. Ficava precisamente na base da muralha. Teria alguma relação com o
poema? Se fosse o caso, o espaço não era muito grande, mas...
“Então, o que é que vês aí?”
“Desculpa, estava a observar... Isto forma uma espécie de pequena caverna,
mas não se consegue tirar qualquer conclusão, queres entrar? Não é
perigoso.”
Pousou a máquina e atravessou. Dei-lhe a mão para a ajudar a levantar e ela
ficou coladinha a mim. Só por isso já tinha valido a pena.
“Dá a impressão que andaram por aqui a escarafunchar – não te parece
Luís?”
Despeguei os olhos dos limites do seu regaço onde tinha ficado literalmente
hipnotizado. Os promontórios voluptuosos, até então escondidos sobre o casaco
de cabedal, agora entreaberto, e a camisola de lã palpitante com o pequeno
esforço, puseram-me a cabeça à volta.
“Ahhh???!!! Como? Ah sim... pois parece!” Retorqui, refreando as ideias e
rodando os meus olhos nas órbitas de encontro ao alvo do seu olhar.
O lugar era um pouco sombrio, não o conseguia ver em toda a sua extensão.
“Espera, vou buscar a máquina para tirar umas fotos com o flash.”
Saí e tornei a entrar, empurrando cuidadosamente a minha inestimável Canon
EOS 50D, que já me tinha acompanhado nuns estonteantes setenta mil disparos,
sem nunca ter vacilado, apesar de já ter dado alguns tombos fúnebres. Foi a sua
vez de me ajudar a erguer. Puxei da máquina e disparei diversas vezes para os
lugares mais escuros com diferentes graus de zoom. Virei a máquina para nós,
rodeando Liliana por um ombro e tirei uma fotografia para a posteridade. Será
que ficou bem? Ela tinha aproximado ligeiramente a sua cabeça da minha, num
movimento intuitivo de enquadramento na foto, ou seria carinhoso? – Vá não
sejas pretensioso ou ainda te espalhas ao comprido. – Sorri-lhe, agradecendo
silenciosamente e estendi-lhe a mão para a ajudar na saída.
Já cá fora, pusemo-nos a observar cuidadosamente as fotografias tiradas à
penumbra. Não conseguimos descortinar nada de realce. Ficámos apenas com a
impressão de que a muralha nesse lugar era algo diferente. A base tinha uma
camada alta de terra em vez de rocha, divergindo do que já tínhamos visto.
Quando chegámos à última foto, a nossa, não consegui disfarçar o meu
contentamento pelo sorriso carinhoso que Liliana lá tinha deixado estampado.
Ela notou a minha cara e enrubesceu, apontando para uma racha na muralha à
laia de salvação.
“Uiiii... O castelo um dia destes cai – Grande brecha!”
Era um rasgo ligeiramente à esquerda de onde tínhamos estado momentos antes.
Aproximámo-nos para verificar.
Estás a ver lá em cima? Aquilo não é uma mó?” – Aponto certeiramente.
“É o que parece. Uma mó aqui neste lugar? É algo esquisito.” – O seu
trejeito transparecia a admiração por mim compartilhada.
Lá bem em cima, perto do topo da muralha, estava colocada uma pedra que,
vista de baixo, se assemelhava indubitavelmente a uma mó. Completamente
desenquadrada do local. Um moinho para funcionar precisava de água em
abundância, decorrente de um plano elevado, o que não era praticável no lugar
em questão. Tínhamos constatado que existia um canal perto da base do castelo,
mas estava num nível substancialmente inferior ao da mó, pelo que estava fora
de questão tal aplicabilidade. Puxei da máquina e emoldurei o lugar com
diversos ângulos e de diferentes aproximações, para auxiliar futuras questões e
avivar memórias.
Estendemos o nosso caminho por mais uns escassos metros e terminámos. Não
havia forma de prosseguir. O precipício confinante era intransponível. Só com
equipamento de montanhismo o conseguiríamos aceder e analisar. Para observar
esse bocado tínhamos de fazer o trajecto que evitáramos. Concluímos que
dificilmente valeria a pena o esforço.
Bateram as dez horas no relógio do castelo, aliciando-nos a visitar o seu interior.
Esperávamos conseguir vislumbrar algo mais sobre a mó que observáramos do
lado de fora. Entrámos, fomos de encontro ao local e passeámos os olhos sobre
todo o piso. Nada... Nada que se conseguisse ver a nu. O melhor seria ir ao
museu, talvez lá pudéssemos desenterrar alguma coisa sobre o assunto.
Utilizaram a torre maior para construir o museu e um auditório. O acesso é
realizado através de uma estrutura de metal que parte quase do portão principal
do castelo subindo à sua direita por gentis patamares até a um nível superior
onde está recortada a única porta.
Recebeu-nos uma senhora morena na casa dos trinta. Tinha uma presença
agradável, simpática e atenciosa, incentivando a socialização. Com gente assim
sempre é mais fácil conversar. Fizemos-lhe algumas perguntas às quais não nos
soube responder. Quanto às tampas na rocha, retorquiu que também gostava de
saber o motivo e tinha até ficado admirada relativamente à questão relacionada
com a mó. Éramos os primeiros a abordar esse assunto e ficou até de ir fazer
brevemente uma vistoria ao local.
Questionámo-nos se a brecha se poderia ter aberto recentemente. Não nos
parecia muito provável, mas não era de pôr essa hipótese totalmente de parte. A
literatura disponível sobre o local era praticamente inexistente. Está
perfeitamente referenciado na história, são conhecidos os principais papéis
desempenhados na protecção e defesa das suas gentes ao longo das épocas, mas
não há desenvolvimento literário que consubstancie inequivocamente a sua
origem, os lapsos de tempo que medeiam esses acontecimentos ou referências
aos verdadeiros obreiros da sua construção primária. Infelizmente, nem certezas
se têm quanto a quem foi o mandante, imaginem sobre os executantes. Tudo
levava a concluir que a mão-de-obra tenha sido importada de outras bandas.
Dela não havendo qualquer registo, por se tratar na altura de associação quase
desprezível, por melhores que fossem os artífices e por maior que fosse a
empreitada. Era apenas de alguns dos seus mestres que rezava a história. A
importância de Linhares é evidenciada através das Inquirições de 1.258, por
onde sabemos que os homens de Sátão eram obrigados a colaborar nas obras de
reparação e/ou ampliação dos castelos da Guarda e de Linhares da Beira. Uma
coisa era inquestionável, este castelo foi um protagonista destacado na história
de Portugal, disso não havia qualquer dúvida!
Durante a visita às instalações, reparámos numa espécie de pêndulos de granito,
suspensos por cabos de aço vindos dos andares de cima. Questionada a guarda
do museu, descreveu-nos a sua funcionalidade, enaltecendo o facto de
pertencerem ao relógio que se encontrava mais acima, construído no século
XVIII pela Fábrica de Sinos de Braga. Batia certo com o que nos tinha dito a D.
Adelaide. Subimos os lances interiores para aceder aos pisos superiores e
deparámos com a pequena sala de conferências com escassos lugares, onde por
vezes eram feitas projecções de promoção do local e da povoação. Num patamar
intermédio, deparámos com o relógio, debaixo do qual saíam os cabos que o
ligavam aos pêndulos. Observando-o de perto, um leigo como eu, nunca diria
que tal maravilha pudesse ter sido construída nessa época. Era uma delícia
observar o funcionamento do mecanismo completamente despido, extremamente
elaborado, com engrenagens que saltavam à vista pela sua notória precisão.
Claro que tive de disparar mais uma série de fotografias. Fi-lo de todos os lados
numa tentativa de cobrir os pormenores. Não foi fácil. A redoma de vidro que o
envolvia devolvia parte da luz do flash manchando de branco a imagem.
Experimentei sem o flash e captei mais algumas, mantendo a máquina firme por
causa da baixa velocidade do obturador. Eram razoáveis, no seu conjunto davam
para ficar com uma ideia realista do objecto.

Tinha na frente uma placa onde se podia ver o nome do fabricante “Fábrica de
Sinos de Braga”. De sinos haveria de ter alguma coisa, mas era evidente que
dispunha de tecnologia que faria inveja a algumas indústrias dos dias de hoje.
Olhámos para o topo e reparámos numa pequena porta a um canto que se
encontrava fechada. Solicitámos novamente os serviços da guarda do museu que
se mostrou sempre disponível para nos orientar e logo se prestou a aclarar que
era o acesso ao torreão, abrindo-nos a portinhola para o acedermos. Mantinha-se
fechado por uma questão de precaução. Por vezes tinham visitas de estudo de
escolas das mais diversas localidades e com as crianças não se pode facilitar,
porque há lugares nas ameias que podem ser facilmente transpostos, dando
origem a uma queda de mais de uma dezena de metros.
Atravessámos com alguma dificuldade este último reduto de acesso ao cume do
galardão do castelo. Tive de passar a máquina primeiro e pousá-la no patamar
onde haveríamos de sair. Valeu a pena! A paisagem era de cortar a respiração.
Ninguém se conseguiria aproximar deste sem ser avistado. Para Norte, Sul ou
Oeste, conseguiam avistar-se quilómetros de terrenos ainda hoje férteis, apesar
do êxodo dos campos em detrimento da magnética civilização que atraía quem
os trabalhava. Apesar disso, os habitantes locais continuam a amanhar os
terrenos, numa tentativa de conter o avanço das ervas daninhas e dos silvados
que teimavam em os ocupar. Só a Este havia alguma dificuldade de
monitorização. Mas como era a serra que ocupava esse ponto, dificilmente
alguém conseguiria aceder à povoação sem ser notado pelos pastores que
buscavam os resquícios de ervas remanescentes em vales recônditos, para
alimentar os vastos rebanhos, sustento de muita da população dessas eras.
Recuando no tempo e colocando-me no lugar dos ocupantes, também eu me
sentiria mais seguro se dispusesse de uma fortificação destas nas proximidades.
Estes momentos foram enriquecidos pela aproximação de Liliana a fim de
partilharmos impressões sobre estas visões de difícil alcance. Ou melhor, para
partilharmos sentimentos, porque arrebatados pela paisagem, entrecruzámos
diversas vezes o nosso olhar, entrosando perspectivas que ficariam eternamente
tatuadas nas nossas recordações. Apenas o frio cortante que corria célere em
instâncias mais altaneiras, se tornava por vezes incomodativo com as chicotadas
casuais com que nos ia açoitando. A máquina acabou por se revelar inútil. Tinha
aquecido durante a permanência no interior do torreão e com esta temperatura a
lente ficaria imediatamente embaciada. Não havia condições de esperar que
arrefecesse o suficiente para permitir a sua utilização.
“Brrrr....” – Queixa-se Liliana batendo os dentes e aproximando-se de cabeça
baixa sobre braços cruzados numa tentativa de bloqueio à intempérie. Puxei o
meu casaco pelas mangas e coloquei-lho sobre as costas.
“Não faças isso, ainda apanhas alguma!”
“Estou habituado, não te preocupes.” – Coloquei-me a seu lado, abracei-a
levemente e encaminhei-a para a portinhola. Apetecia-me dizer-lhe o quanto
enfeitiçado estava, mas, além de me sujeitar a que algo de menos agradável
pudesse ter de troco, não queria fragilizar a relação existente com D. Maria que
tão bem me tinha acolhido. Há apenas dois dias a conhecera, era difícil de
acreditar que qualquer sentimento pudesse ter fundamentação. Provavelmente
seria encarado como mais um dos muitos apaixonados que lhe foram surgindo ao
longo da vida e tratado consequentemente como tal.
Apoiei-a na descida dos escassos degraus e imitei-a. Mal tinha pousado um pé
no chão, ainda de costas, virado para a escada, e sentime agarrado pela cintura
num abraço ternurento. Pôs-se em bicos de pés e deu-me um suave beijo na face.
Sentime atraiçoado por não ter podido contemplar o seu rosto nesse momento.
Tirou o meu casaco e segurou-o de maneira a que eu o pudesse vestir facilmente.
Estava animado, com o ego em quarto crescente. Embora não pudesse tirar
conclusões da situação, porque se podia ter tratado de um simples agradecimento
pelo meu gesto, soube-me a um presente de Natal tardio. Sentia o brilho nos
meus olhos relampejantes retratando fielmente o meu estado de espírito. Liliana
fixou o seu olhar sobre mim, como que à espera de uma resposta. Estava
hipnotizado, catapultado para um mundo extraterreno. Não consegui resistir
mais e estendi a mão direita, tocando o seu rosto numa carícia alongada pelo
polegar que lhe passei levemente em todo o lábio inferior. As vibrações do seu
estremecimento estenderam-se ao soalho e percorreram-me todo o corpo.
Aproximei vagarosamente a minha cabeça da sua e colámos os lábios numa
indescritível comunhão de corpo e alma. Os anjos festejavam sobre nós ao som
dos sinos que ressoavam atingidos pelas flechas de cúpido, comemorando o feliz
destino. Afastámo-nos ligeiramente numa tentativa de adivinhar o efeito que
tivemos um sobre o outro e a resposta surgiu breve quando reatámos o que
queríamos infindável. Fomos interrompidos pelo ruído de calçado sobre a
estrutura de metal. Alguém subia. Era a guarda do museu preocupada com a
nossa demora. Atrapalhados, compusemo-nos o mais rapidamente possível.
“Então, gostaram?”
“Gostámos e muito!” – Diz Liliana num tom de voz condicente.
Encontrei o céu na terra. Pensava eu. Preciso que me belisquem para ter a
certeza que não estou a sonhar.
“Deixem-me só fechar a portinhola e já desço convosco.”
“Desculpe, fui o último a descer e esqueci-me. Estava absorto nas imagens
com que a torre nos presenteou.”
“Ahahah... Vale mesmo a pena, não vale?” – O orgulho que sentia pelo lugar
era evidente.
Apressei-me a concordar. Raras foram as vezes em que tive a oportunidade de
apreciar uma paisagem de tão belo local. Mal ela imaginava o festival de
foguetes faiscantes que tinham acabado de cruzar os meus sentimentos
celebrando o novo significado que encontrei para a vida.
Descemos as escadas, não sem antes termos parado mais uma vez junto do
relógio que era um ícone da tecnologia. Trocámos impressões sobre o seu
funcionamento e ficámos a saber que a cada seis dias era necessário girar uma
manivela num encaixe embutido no relógio para elevar os pêndulos de granito à
sua posição mais cimeira, de forma a que o seu peso funcionasse como a corda
nos relógios normais, com a diferença que neste caso a actuação da gravidade é
que fazia o serviço, pela carga exercida no cabo enrolado sobre um tambor que
ambicionava livrar-se repentinamente do seu aperto, eternamente impedido pelo
desmultiplicar dos carretos em marcha de compasso regular imposto pela âncora,
que o marcava comemorando alegremente a passagem de cada estágio numa
cadência de esquerda-direita… esquerda-direita, realçada por um tic-tac
permanente oriundo do seu impacto alternativo sobre a roda de escape,
configurando certeiramente o inevitável avanço dos ponteiros.
Ouvimos um estalido diferente e uma das peças do relógio começou a girar
rapidamente.
“Vai dar as horas.” – Comentou a senhora do museu, esclarecendo a nossa cara
de estupefacção.
Mais uma série de inesperados movimentos e lá começou ele a anunciá-las,
entoando no sino colocado no topo da torre, seu companheiro de sempre, o som
provocado pelo badalo que fustigava o bronze através de um arame ligado a uma
alavanca que percorria forçadamente os ressaltos esculpidos numa das rodas do
relógio: um, dois… onze, alertando os habitantes para o aproximar da hora de
almoço.
Despedimo-nos da afável senhora agradecendo a sua atenção. À saída do museu
aproveitámos o posicionamento para apreciar novamente a área interna do
castelo onde ainda nos pudemos aperceber de alguns resquícios que remontariam
provavelmente à sua fundação. Degraus visivelmente gastos pelo calcorrear ao
longo dos séculos e algumas reentrâncias que serviriam de suporte aos pisos
mais elevados. Interrogámo-nos ainda sobre a finalidade do torreão mais baixo, a
meio da fortaleza, que se encontrava fechado. Talvez hoje fosse uma espécie de
armazém de achados locais. O aspecto exterior não denotava fragilidades que
supusessem riscos de utilização. Pelo que seria mais concebível que lhe tivessem
dado essa finalidade. Afinal, quem vê uma é como se estivesse na outra. A
perspectiva obtida da torre maior era obviamente mais convidativa e abrangente.
Retornámos a casa para acalmar a avó de Liliana. Sabíamos que ela tinha de
fazer alguns doces para partilhar com os conterrâneos na comemoração da
passagem de ano a realizar no largo do castelo, pelo que já a devíamos encontrar
levantada.
Percorremos alegremente as ruelas estreitas que traçavam o caminho, numa
confortante cumplicidade recentemente adquirida. Dar-lhe a mão, por muito que
gostasse de tentar, estava completamente fora de questão. Numa terra destas,
ainda não teríamos dado dois passos e já D. Maria teria conhecimento. Tudo
muito boa gente, mas a cusquice faz parte do dia-a-dia e serve de alento aos
idosos, esmagadora maioria da população. Nem o farão por mal, acredito que
seja mais uma maneira de participarem enquanto personagens indirectas em
verdadeiros reality-shows, tal e qual os espectadores que, sentados em frente à
televisão, devoram avidamente acontecimentos referentes à vida alheia, obtidos
em espaços normalmente confinados a uma casa, vigiados por câmaras em todos
os recantos, aos quais nem as casas de banho por vezes escapam. Há que
prevenir e falar dos outros primeiro – não se vá dar o caso deles começarem a
falar de nós.
Lá estava ela junto do fogão já à volta com o almoço.
“Então meninos – conseguiram descobrir alguma coisa?” – Quis saber,
interrompendo os seus afazeres.
“Descobrir, descobrir, não podemos dizer. Mas demos com algumas coisas
que nos puseram a pensar vovó.”
“Ai sim? E o que foi?”
“É melhor mostrar-lhe as fotografias. Compreenderá mais facilmente.”
Coloquei a máquina à sua frente e começava a mostrar-lhas, quando me lembrei
da foto com a Liliana.
“Espere D. Maria. Vou descarregá-las no computador que as vemos melhor.
Já venho.”
Retornei alguns minutos depois, com o portátil na mão, já com a fotografia
polémica transferida para outro directório.
“Assim conseguimos ver melhor.”
D. Maria concordou e pôs-se junto de mim em lado oposto a Liliana. Comecei a
passar as fotografias e a vovó queixou-se que já via um bocadinho mal pelo que
aproximei o laptop de nós. Como o ângulo de visionamento nos LCD’s dos
portáteis é exíguo, tiveram de aproximar as suas cabeças da minha para
conseguirem visualizar em condições. Nem de propósito. Fiquei
estrategicamente entalado entre a minha perdição e uma senhora por quem
desenvolvia uma crescente afinidade.
Já conhecia o pormenor das tampas que muitas vezes tinha contemplado ao
longo da vida, mas nunca se tinha interrogado do motivo, tinha-o aceitado
simplesmente como um acidente da natureza que depois de questionado por nós
lhe avivou a curiosidade. O mesmo se passou com o buraco que visitámos e com
a mó.
Quis parecer-me que o facto dos habitantes de Linhares da Beira terem
convivido desde sempre com o castelo e seus pormenores, os fez pura e
simplesmente aceitá-lo tal e qual era, sem sequer se darem ao trabalho de
questionarem os porquês de determinadas coisas. Para eles, era mais importante
enaltecer os seus protagonistas e feitos ao longo dos tempos, do que
interrogarem-se sobre algo em que praticamente nasceram. No fundo, deveriam
pensar: Já cá está há tanto tempo, qualquer coisa que houvesse para descobrir já
o deveria ter sido há muito. Perfeitamente natural, para pessoas cujos afazeres
diários ligados à lavoura e pastorícia lhe ocupavam a maior parte do tempo,
numa constante luta pela sobrevivência, inibindo momentos livres para reflexão.
Seria quase o mesmo que nos interrogarmos sobre os nossos progenitores.
Adorámo-los por aquilo que eles são, sem quaisquer dúvidas ou preconceitos. Se
eu tivesse nascido neste lugar, provavelmente também teria sido contagiado pela
cómoda apatia generalizada entre os demais, formulando somente perguntas que
muito provavelmente se entenderiam muito além das suas fronteiras, numa ânsia
de respostas àquilo que tantos outros sentiram como um chamamento irresistível,
tentando ludibriar um dia-a-dia supostamente duro e agreste. Nada que não se
tenha já testemunhado nas mais diversas localidades do interior do país. Tal é a
guerra que se trava hoje contra a desertificação dessas povoações, que até
subsídios atribuem a quem nelas se decidir manter ou radicar.
“Vou acabar o almoço. Vocês deviam aproveitar para descansar um pouco.
Tu principalmente, Li.” – Frisou, confrontando a neta. “Não descansaste
absolutamente nada”!
“Comemos primeiro e depois vou fazer uma sesta. Até vai dar jeito, já que
vamos estar acordados até mais tarde.”
“Tens de aproveitar a tarde para repousares em condições. O menino Luís
ainda dormiu um pouco, mas tu nem pregaste olho.”
“Prometo que descanso vovó! Vou pôr o despertador a tocar só para a hora
de jantar.”
D. Maria ficou mais descansada. Não era nada de grave, mas há que concordar
que o sono é imprescindível a um crescimento saudável e a uma mente sã.
Esperámos pelo almoço sentados no sofá em frente da lareira, onde estava a
inesquecível panela de ferro com a caldeirada de cabrito a libertar um aroma
irresistivelmente perfumado. Mirando silenciosamente as reconfortantes brasas
que se formavam, éramos esporadicamente interrompidos quando D. Maria
resolvia mexer o conteúdo da panela para evitar que agarrasse.
Deliciámo-nos com o cabrito. Estava macio e saboroso como nenhum. As mãos
da cozinheira eram abençoadas. Conseguia descortinar o sabor a vinho branco,
alho em abundância, cebola, tomate, um toque de picante e azeite, obviamente,
misturados com batatas aos cubos, numa irrepreensível sinfonia de sabores que
alegravam o palato. O leite-creme feito com leite puro de vaca oferecido por
uma vizinha foi o remate final de um repasto digno dos Deuses!
Já satisfeitos, de barriga saciada, fomos empurrados por D. Maria para um
descanso que, ainda que necessário, se mostrou da minha parte algo forçado, por
ter de temporariamente abandonar a minha amada.

Capítulo IV – Ano novo vida nova
Adormeci rapidamente embalado pelas recentes recordações que me afagaram o
coração. Descansei como não imaginava ser possível durante o dia, dormi sete
horas corridinhas, até que Liliana me chamou a um despertar que desejava se
prolongasse até ao fim dos meus dias.
“Luuuíííííííííííííííís, já são sete e meia!” Foi como ter a Orquestra do Norte a
acariciar-me os tímpanos.
Vesti o robe à pressa e entreabri a porta onde Liliana estava encostada. “A tua
avó?” Sondei.
“Está lá em baixo. Já tomei banho, despacha-te, temos de jantar e ir ver do
Padre Jacinto.”
Espreitei as escadas desertas e preguei-lhe um beijo esquivo, correspondido por
um ligeiro esticar dos lábios.
Alegre e contente, livrei-me dos odores indesejáveis e preparei-me num ápice.
Jantámos e preparámo-nos para ir uma vez mais à pousada onde, segundo a D.
Adelaide, costumava ficar alojado o Padre Jacinto. Tinha sido um dos
impulsionadores da sua construção, tanto junto da família proprietária dos
edifícios onde foi construída, como da Câmara Municipal de Celorico da Beira.
Sem a sua intervenção tudo teria sido mais difícil. Como sinal de
reconhecimento, o INATEL fez questão de lhe disponibilizar permanentemente
os aposentos necessários à sua permanência em Linhares da Beira. A casa que
tinha sido do Padre Agostinho já não se encontrava nas melhores condições.
Necessitava de obras de fundo que só se justificariam se se destinassem a um
Pároco permanente. Parece que nos tempos que correm, há dificuldade em
encontrar Padres suficientes, tendo muitos de partilhar diversas paróquias,
tentando dessa forma colmatar as falhas existentes. Será que alguns não teriam
hoje também dificuldade de sobrevivência nestas terras despojadas dos inúmeros
habitantes de antigamente? Independentemente do tipo de religião, acredito que
o mundo tivesse sido um lugar muito mais hostil sem a sua existência. Tenho
enraizados os princípios que me foram transmitidos pela família: Respeitar os
Outros, independentemente da raça, estatuto ou religião. O “Em todos os povos e
classes sociais se encontram pessoas boas, a conservar, e algumas a evitar. Com
todas elas devemos aprender, umas para repetir, outras para evitar.” – Tantas
vezes transmitido pelo meu pai, mostrou-se mais do que realista – Assim o
comprovei! Nas experiências vividas até então foi precisamente isso que
confirmei. Conheci e lidei com Europeus, Asiáticos, Africanos e Sul-
Americanos, tendo constatado que este princípio era transversal a qualquer deles.
Em todos encontrei grandes personalidades, mas também outras com as quais
tive de aprender da pior maneira e que prefiro esquecer. Apesar de ser um
católico convicto, embora não praticante assíduo, gosto de ver os outros da
mesma maneira que espero que eles me vejam a mim. Respeitá-los como quero
que eles me respeitem e ajudá-los como eu gostaria que me ajudassem em caso
de necessidade. Creio que somos todos filhos de Deus! Qual Deus? Deus!!! Para
mim só há Um, Aquele em que acredito! Será que existe alguém que tenha a
pretensão de julgar que aqueles que escolheram outro caminho, tantas vezes
inevitavelmente herdado, estarão todos perdidos e longe daquilo que se espera da
humanidade?
Achámos melhor levar o meu carro, um velhinho e irreverente Peugeot 205 GT,
que andava e rugia como poucos. Se tivéssemos de ir à igreja e voltar, não
iríamos obrigar o Padre Jacinto a fazer todo o caminho a pé. Era provável que no
final do dia estivesse cansado.
Confirmámos com a recepcionista que já tinha chegado há poucos minutos.
Pedimos-lhe o favor de o chamar, não sem antes nos identificarmos a fim de o
transmitir quando lhe ligasse para o quarto. Assistimos a uma breve troca de
palavras e aguardámos.
Cinco minutos depois, entra um senhor, de porte altivo e aparentando uns
cinquenta anos, pela porta principal. O colarinho branco não deixava margem
para dúvidas, era o Padre Jacinto.
“Boa noite senhor Padre! Muito prazer, sou a Liliana, neta da D. Maria e
este é o Luís, um amigo.”
“Bem sei, a D. Maria, filha do antigo feitor. Muito prazer!” –
Cumprimentou-nos estendendo firmemente a mão.
“Então em que é que os posso ajudar?”
“Se calhar é melhor sentarmo-nos um pouco senhor Padre. Gostávamos de
lhe explicar o motivo do nosso pedido, ainda leva um tempito. Se não se
importar...” – Pediu-lhe Liliana.
Fomos para a sala da lareira e contámos-lhe que tivemos conhecimento da
existência do livro elaborado pelos Belo, onde tinham sido recolhidos os poemas
do António Oliveira. Claro que não lhe pudemos contar tudo porque corríamos o
risco de ser mal interpretados ou apelidados de lunáticos. Referimos a adoração
pelo lugar e a vontade de documentar o máximo que pudéssemos para uso
pessoal e futuras memórias.
Ficou admirado pelo relatado, mas não pôs de lado a hipótese da sua existência.
Como só ia a Linhares celebrar a missa e muito raramente um casamento ou
baptizado, nunca tinha tido oportunidade de consultar todos os livros existentes.
Na verdade, pouco mais tinha utilizado do que os livros de registo das ocasiões
celebradas.
Montados na minha carroça ronronante fomos até à biblioteca da igreja,
subtraída ao espaço exíguo da sacristia. Presumimos que deveríamos procurar
algo do género de um bloco de notas, passando as lombadas a pente fino com o
olhar, sem encontrar nada que sobressaísse. Gorada a primeira tentativa,
resolvemos desfolhar um a um, ajudados pelo Padre Jacinto, não fosse o caso de
estar disfarçado. Continuámos em branco… Virámos gavetas, cantos e recantos,
debaixo e por cima dos móveis, espreitámos por todo o lado e nem vestígios do
livro de poemas do Gargantas. Volvida mais de uma hora resolvemos desistir. Já
não faltaria muito para as pessoas se começarem a reunir na praça para
comemorarem a passagem de ano e ainda tínhamos de ir buscar a D. Maria e os
doces.
“Obrigado Padre Jacinto, mas pelos vistos o livro desapareceu mesmo.” –
Lamentou-se Liliana.
“Gostava de vos poder ser útil, mas como vêem…”
“Agora temos de ir buscar a vovó para virmos para a praça comemorar a
passagem de ano, gostávamos que nos fizesse companhia Senhor Padre!”
“Costumo deitar-me muito cedo, mas hoje é um dia especial, não é verdade?
Terei muito prazer em o poder partilhar convosco.”
Fomos à pousada confirmar a hora possível de regresso e ficámos descansados
quando a recepcionista nos disse que, considerando a ocasião, ficaria com a
porta aberta pelo menos até às duas da manhã. Lamentou-se apenas pelo facto de
não poder fazer parte dos festejos, que acompanharia pela televisão. Gostámos
do seu profissionalismo. Se fossem outras, provavelmente fechavam a porta e os
clientes que se danassem.
D. Maria já estava inquieta com a nossa demora. Não fosse a presença do Padre
Jacinto e teríamos reprimenda pela certa. Pegámos nas travessas, pusemo-las na
mala do carro e dirigimo-nos ao largo onde já se concentrava uma pequena
multidão. A alegria foi geral quando se aperceberam da nossa ilustre companhia.
As pessoas rodearam o Padre Jacinto que se viu no meio de apertos de mão,
beijos e abraços vindos de todo o lado. Aproveitámos para pousar a nossa
partilha na mesa improvisada, onde havia de tudo um pouco, não faltando o
habitual espumante ladeado por pilhas de copos de plástico. Atendendo à época,
fiquei bastante intrigado pelo facto de não existir qualquer protecção para a
chuva. Hoje em dia as previsões meteorológicas são mais certeiras, mas mesmo
assim, era bastante arriscado.
D. Adelaide acercou-se de nós assim que cumprimentou o sacerdote. – “Então
meninos, conseguiram abrir a caixa?” – Perguntou-nos em surdina.
“Ohhh… Desculpe-nos! Com a emoção da descoberta e a avidez da
aventura, acabámos por nos esquecer temporariamente do que lhe
havíamos prometido. Desculpe, foi sem qualquer intenção!” – Redimiu-se
Liliana numa atrapalhação evidente. – “Conseguimos, estivemos até de
madrugada, mas conseguimos!” – O orgulho transbordava na acentuação.
“Está bem Lili. Mas o que é que encontraram? Sempre era o livro que lá
estava dentro?”
“Não D. Adelaide. Apenas um poema. Amanhã já lho levamos juntamente
com a caixa.”
“Um poema? Não compreendo. Tanto mistério por um poema? É muito
estranho.”
“Provavelmente entenderá melhor quando o vir. É coisa enigmática.” –
Reforcei.
Explicámos-lhe que não tínhamos contado tudo ao Padre Jacinto, pelo que lhe
pedimos que não abordasse o assunto da caixa quando ele estivesse connosco.
Poderia ser quase ofensivo e tínhamos gostado da sua pessoa e companhia, pelo
que não o queríamos magoar.
“Então, e já pensaram que poderá estar na casa onde o Padre Agostinho
vivia?” Aventa D. Maria.
“Olha, queres ver? Às tantas… Se calhar até é mais provável do que na
igreja!”
Diz D. Adelaide, com um ar quase incrédulo. Como é que não se havia lembrado
disso antes? – “Ainda tenho a chave da casa, embora não tenha lá ido mais
depois de entregar as coisas ao sobrinho do Padre Agostinho. Dói-me a alma
relembrar a casa sem o nosso pároco.”
“Importa-se de amanhã lá dar um saltinho connosco?” – Pediu-lhe Liliana.
“Não me custa nada. Podemos lá ir depois da missa, que dizem?”
“Perfeito! Obrigado!” – Apressei-me a concluir.
“Também quero ir convosco. Já que vou à missa, aproveito e faço-vos
companhia.” Interpela D. Maria, que se tinha mantido atenta ao desenrolar da
conversa. Com a companhia do Padre Jacinto, não lhe pudemos dizer nada.
A hora aproximava-se, achámos por bem dirigirmo-nos ao Padre Jacinto para o
libertar das infindáveis perguntas que lhe eram dirigidas. Obviamente que eram
por bons motivos, mas era difícil refrear a ânsia de convivência com alguém
admirado e respeitado, que raras vezes estava disponível em convívios
populares, pelo que notámos a cara de alívio do resgatado.
Atentos ao sinal de alerta da guarda do museu que tinha o seu relógio
sincronizado pelo do castelo, estabeleceu-se um silêncio ansioso no último
minuto do ano. Todos esperavam de copo na mão a primeira badalada que
anunciaria a transição para 2011, olhando ansiosamente para a torre do relógio,
como se nela pudessem observar algo que lhes indiciasse o som que de lá
haveria de advir.
“Dooonnnnngggg…” – foi a ordem de marcha das doze passas baptizadas com
os nomes dos meses do ano, devoradas uma por uma a cada entoada do sino,
desejando-se uma nova etapa mais favorável que a anterior. Encostados os copos
aos dos compatriotas, num emudecido tilintar de plástico, escorropichámo-los
até à última gota, celebrando com o espumante refrescado pelo ar da serra, que
almejava percorrer-nos a garganta, terminando com auspiciosos e calorosos
desejos entregues em apertados abraços distribuídos generosa e gratuitamente
entre os convivas mais próximos. Prosseguimos em voraz e silenciosa comilaina,
partilhando os sabores alheios que enriqueciam a opípara mesa.
Despedidas efectuadas à pressa, num rápido aceno atirado pelas mãos em
movimento, dirigimo-nos ao carro para levar o Padre Jacinto à pousada e
retirarmo-nos para o aconchego do lar.
Chegámos a casa e dirigimo-nos aos quartos. Aproveitei a ausência da D. Maria,
que tinha ficado a reforçar a lenha na lareira, para arrancar um sorridente beijo
de despedida a Liliana. Combinámos levantar-nos às seis, tínhamos pouco mais
de quatro horas para dormir. O que vale é que não era todos os dias assim, senão
rebentávamos.

Capítulo V – As memórias do Gargantas
Apesar do parco descanso, até que acordei bem-disposto. Preparámo-nos e
fomos em grupo para a igreja. Quando lá chegámos já o Padre Jacinto estava a
cumprimentar os fiéis, dando-lhes alento para os tempos difíceis que se viviam.
D. Adelaide chegou-se a nós com um ar de cumplicidade evidente.
Tinham sido escassas as minhas presenças na missa. As poucas vezes que a tinha
frequentado, normalmente era por estarem associadas a celebrações de
baptizados, casamentos ou algum funeral. Apesar de ser uma pessoa crente,
como dizem por estas bandas, não me identificava com a postura da maior parte
dos sacerdotes que até então tinha conhecido. Muito menos com a confissão. Até
a mim, que conscientemente me considerava uma pessoa sem grandes culpas,
nunca tinha feito deliberadamente mal a ninguém, nem sequer o desejava, a
confissão me custava um pouco a entender. Parecia-me mais uma forma de
entregar o poder do que propriamente de expiação. O Padre Jacinto fazia-me ver
as coisas de uma maneira diferente, Apesar de ser novo, transparecia uma
sabedoria de vida enriquecida por uma postura tolerante, pouco comum nos dias
de hoje. Talvez por isso as pessoas gostassem tanto dele. Quando acabou a missa
fomos à sacristia ao seu encontro. Manifestámos-lhe o nosso agrado por o
termos conhecido e combinámos que estaríamos com ele sempre que viéssemos
a Linhares.
Assim que o Padre Jacinto se dirigiu à viatura para o regresso a sua casa,
seguimos a D. Adelaide, atravessando os escassos metros que nos separavam da
antiga residência do Padre Agostinho. Era uma casa granítica, como a maioria
delas, tinha dois pisos, sendo o de baixo uma espécie de loja onde em tempos
recolhiam os animais. Tinha o telhado desgrenhado, precisava que lhe
alinhassem os cabelos revoltados por alguma ventania mais acentuada. Subimos
meia dúzia de degraus e demos com um pequeno alpendre sobre um varandim
virado para o largo da igreja. D. Adelaide puxou duma chave que aparentava ter
sido feita à martelada por um ferreiro e forçou a sua volta na fechadura que
despertou de um longo descanso com um queixume reumatóide.
A casa estava às escuras. Tivemos de esperar que as portadas fossem abertas para
prosseguirmos. Os móveis estavam cobertos por lençóis outrora brancos. O
soalho gemia a cada passada. Via-se que a casa estava mesmo a precisar de
obras.
“Com um pouco de jeito ainda lá vamos parar abaixo, não?” – Observei
temerosamente.
“Ahahah! Nem pense nisso menino, parece, mas não. Isto é soalho feito de
carvalho. Foi reconstruído há uns quinze anos e olhe que aguenta séculos!”
Fiquei mais descansado. Não me apetecia ver ninguém a precisar de ir para um
hospital. Nunca é demais prevenir.
Começámos à procura, abrindo e fechando gavetas, mirando por tudo quanto era
sítio, até dentro do fogão de lenha e da chaminé da lareira espreitámos. Nada de
diferente – Vazios e mais vazios. Era evidente que a D. Adelaide tinha mesmo
retirado tudo da casa, conforme nos havia dito. Até os lençóis tinham ido,
deixando a cama despida com o colchão à vista. Combinámos separar-nos, cada
um por sua divisão, e observar minuciosamente o soalho, verificando se não
existiria qualquer indício de tábuas que pudessem ser removidas. Até os móveis
arredámos, nada conseguindo descobrir de diferente.
“Não há um sótão, D. Adelaide?” – Perguntei-lhe esperançoso.
“Não menino. A única coisa que há é a loja lá em baixo.”
“Podemos lá ir então dar uma espreitadela?”
“Esqueci-me de trazer a chave. Esperem um pouco que vou a casa e já
venho.”
Esperámos uns escassos minutos junto da porta da cave e lá a tínhamos junto de
nós. Era a nossa última hipótese. Já tínhamos revirado tudo sem o mínimo
vislumbre do livro.
Abrimos as portadas de par em par, retirando os travamentos de ferro que
sustentavam cada uma delas, deixando a descoberto o que em tempos deve ter
sido um lagar, um monte de lenha e algumas prateleiras com ferramentas e
utensílios agrícolas.
Virámos e revirámos tudo, e nem sinal do livro.
“Queres ver, queres ver?” – Grita D. Maria entusiasmada.
“O que foi vovó, o que foi?”
“Olhem bem para este monte de lenha. Não vêem nada de diferente?” –
Alvitra D. Maria.
Era o único sítio onde ainda não tínhamos procurado. Como é que alguma coisa
poderia estar escondida num monte de lenha por onde até se podiam verificar
perfeitamente os espaços livres entre as cavacas?
“Não vejo nada de especial.” – Respondo, logo seguido de uma concordância
gestual dos demais.
“Então não acham estranho que o cepo onde se corta a lenha esteja
colocado no fundo do monte?” – Atira D. Maria com ar incrédulo.
“Tem razão D. Maria, tem razão! Não tem mesmo lógica nenhuma!” –
Concorda D. Adelaide. – “O cepo é a última coisa a arrumar-se e a primeira
a utilizar-se, nunca deveria estar no fundo do monte.”
Tirámos a lenha toda para fora, libertando o cepo da sua carga. Tinha uns bons
trinta centímetros de diâmetro por sessenta de profundidade, com um rebordo no
fundo de uns cinco de largura por três de altura, que lhe servia de base de
estabilização. Não deveria pesar menos de quarenta quilos. Pedi-lhes que se
arredassem para o poder manipular e puxei-o para a porta a fim de o observar
melhor. Aparentemente era um cepo normal. Mas era muito estranho ele estar no
fundo do monte de lenha. D. Maria tinha razão.
“Deixa-me ver.” – Pediu-me Liliana.
Pegou no tronco e pô-lo com a base para cima. Foi buscar uma cavaca pequena,
bateu levemente de lado no cepo e depois na base. “Notaram a diferença?”
“Realmente…” – Assentimos. Parecia ser um tom ligeiramente diferente
quando lhe batia na base.
“Luís - procura-me um martelo ou qualquer coisa do género, se faz favor.”
Lá estava ele com as orelhas levantadas. Um martelo ferrugento, castigado por
inúmeras batidas, facilmente visíveis na orla da cabeça amassada pelos impactos.
Estava com o cabo ligeiramente solto, pelo que o bati contra a parede para
encavar o ferro e passei-lho.
“Ajuda-me a virar isto ao contrário e segura-o inclinado, se não te
importas.”
Deitei-lhe as mãos e segurei-o pelo topo, mantendo-o num ligeiro ângulo,
quando Liliana desatou às marteladas no bordo do cepo, tentando arrancá-lo. A
única coisa que conseguiu foi partir o bordo, que implorava aflito, jurando a pés
juntos que não tinha culpa de nada.
“Vira-o outra vez.” – Soou-me mais a uma ordem impaciente do que a um
pedido.
Com o cimo assente no chão. Desancou-lhe mais umas arrochadas na base que
ainda hoje não sei como é que o pobre do cepo não partiu, mas só conseguiu
fazer-lhe umas amolgadelas na madeira.
A sua cara já denotava frustração, apesar da convicção com que tinha iniciado a
tortura do objecto. Pousou o martelo e aproximou-se do cepo, colando-lhe
praticamente os olhos. Levantou-se e foi às prateleiras rebuscar mais qualquer
coisa, voltando com uma espécie de formão ou goiva na mão. Começou a
escavar a madeira circularmente num local em que as nervuras sofriam uma
ligeira interrupção, quando de repente se sentiu o barulho de metal contra metal.
Tinha batido em algo. Continuou a alargar o desbaste descobrindo um prego que
estava disfarçado por serrim colado. Pegou então no martelo e no formão,
escavando a passos largos para conseguir lá meter as orelhas do martelo e sacar
o prego.
Estávamos todos eufóricos, nem D. Adelaide e D. Maria escapavam ao frenesim.
Seria desta?
Acabado o desbaste do cepo, pegou num pequeno pedaço de madeira para servir
de calço, colocando-o entre o cepo e as orelhas do martelo, para auxiliar a
extracção. Depois de algumas tentativas frustradas, pedi-lhe para me deixar
tentar a mim. A força de um homem sempre é outra coisa. Pus-me em posição e
enchi o peito de ar, puxando com quanta força tinha à medida que expirava. O
prego começou a sair. Tive de reiniciar o processo diversas vezes ajustando a
posição do calço a cada investida, avançando escassos milímetros de cada vez.
Só quando o prego cá estava fora é que Liliana percebeu a necessidade de tanto
esforço.
“Inacreditável! Um prego torcido, como aqueles que os japoneses usavam
tornando as uniões mais firmes. Não admira que eu não o conseguisse
tirar!” – Observa enquanto o mirava.
O prego estava efectivamente torcido. E eu que pensava que era defeito. O
formato do prego servia afinal para evitar que se soltasse facilmente.
Voltou ela para o cepo e rodou-o, procurando outros defeitos no desenho exterior
da madeira que indiciassem mais pregos. Descobriu mais dois, colocados
equidistantes ao primeiro que foi extraído. Aplicámos-lhes o mesmo processo e
conseguimos retirá-los, já eu suava estopinhas com o esforço. Passei novamente
o martelo a Liliana e deixei-a continuar o que tinha em mente, depois de pousar
horizontalmente o cepo, conforme me havia solicitado.
À primeira arrochada que desancou na borda houve um desprendimento da base
que teve de ser alternadamente aliviada por pancadas em lados opostos, sendo
totalmente extraída ao fim de mais de uma dezena delas. Quando saltou,
presenteou-nos com aquilo que parecia uma antiga sebenta, incrustada num
entalhe na coroa interior da base do cepo.
Abraçámo-nos uns aos outros emocionados a festejar a ocorrência. Estávamos
abismados. Era um esconderijo e pêras!
Liliana utilizou o formão para retirar o livro do seu altar e levantou-se com ele
na mão, juntando-se a nós para partilhar a ocasião.
O exterior estava despido. Virámos a capa e na primeira página pudemos
confirmar o que tanto esperávamos escrito numa caligrafia irrepreensível.

Poemas do meu amigo
António Oliveira

Linhares da Beira, 19 de Janeiro de 1894
Por não saber escrever
Pedi a D. Belo, meu amigo
Que, para não se esquecer
Anotasse o que eu digo
Sou pobre e muito feliz
Não padeço de avareza
Porque Deus assim o quis
A família minha riqueza
Três séculos te dou
Para meu segredo achar
Aquilo que eu sou
Não conseguirás adivinhar
Olhas incansavelmente
E nada descobres aqui
Vê mais atentamente
Se o vislumbras ali
Se me tentas agarrar
Fujo-te entre os dedos
Hás-de querer berrar
De tantos degredos
Pobre de ti homem
Que tanto procuras
Aqueles que o comem
Gozam tuas loucuras
Olha para ti confiante
Nesse porte altaneiro
Certo que mais adiante
O encontrarás primeiro
Desengana-te folião
Aquilo que procuras
Terás sempre à mão
Mas estarás às escuras
Pega numa enxada
Prepara o teu arado
Que tanta terra cavada
Há-de ser o teu fado
Escondi-os tão bem
Aos olhos de todos
Num lugar que tem
Magros e gordos
Se um dia o achares
Um terço apenas terás
Para tanto procurares
Que a vida perderás
Não há homem nem mulher
Capaz de tal façanha
Achar prato e colher
Onde ninguém amanha
Quem conseguiria dizer
Que pela cabrita escapar
Pensava que ia enriquecer
No lugar onde a fui resgatar
Largas horas de escavação
Ma permitiram tirar
Para com grande ofuscação
Eu me ir enfeitiçar
Tu, que brilhaste para mim
Três meses para te carregar
Parecias não ter fim
Penando eu ao luar
Taças, cruzes e colares
Bandejas e gargantilhas
Peças diversas aos milhares
Carreguei por longas milhas
Pedras de todas as cores
Incrustadas em vil metal
Não morriam de amores
Cravadas em garras do mal
Noite escura aproveitei
Para junto de mim o guardar
Mas nunca imaginei
Que haveria de o odiar
Grande susto apanhei
Quando a muralha gemeu
Ainda hoje não sei
Como de lá escapei eu
Estava a terminar
Quando quase desabou
O paredão a quebrar
Que sortudo que eu sou
No topo da fenda malvada
Minha coroa coloquei
Para agradecer à abençoada
Onde a vida quase deixei
Agradeço a todos os santos
Ainda estar neste mundo
Graças a Nossa Senhora
E àquelas pedras do fundo
Cuidado se lá fores
E tentares escavar
Vais ter muitas dores
E hás-de lá ficar
Necessidade nunca passei
Tinha até para ajudar
A quem pediu sempre dei
Para a fome lhe matar
Agora que tudo tinha
Nada mais eu desejava
Que ter só minha farinha
Para sustentar quem amava
Aquelas peças reluzentes
Brilhantes, de falso latão
Fizeram meus filhos decadentes
Loucos perdidos de ambição
Zangas houve todo o dia
Porque vários pretendiam
Aquilo que José e Maria
Ávidos também queriam
Meus filhos queridos
Gananciosos por ele
Quase ficaram perdidos
Fui desfazer-me dele
Três lugares escolhi
Para sempre o guardar
Nem nunca mais o vi
Para não me atentar
Quem diria que a ajudar
Para a todos bem-fazer
Estava eu a ocultar
Tesouro que queria perder
Poucos me agradeceriam
Aquilo que reedifiquei
Mas todos quereriam
O que lá depositei
Ainda que isto desintrinques
A ignorância te assaltará
Para que o segredo deslindes
Conhecimento te faltará
Ainda assim te ajudarei
Uma boca para alimentar
Cheia de gula a deixei
Capaz de muito devorar
Com mais olhos que barriga
Tanto encherá que esventrará
Eternamente sem fadiga
Sua tarefa continuará
Em suas entranhas terás
Presentes indescritíveis
Muito rico te julgarás
Visões pouco credíveis
Abençoada por Deus
Serve todas as gentes
Católicos e ateus
Génios e dementes
Dos outros dois não falarei
Para que os possam encontrar
Pistas no primeiro deixei
Para o segundo desenredar
É melhor guardares este segredo
Imagina só se to descobrem
Matam-te ou põem-te no degredo
Enquanto uns e outros o comem
A fartura de alguns
É miséria dos demais
Para que nenhuns
Gozem como esses tais
Estais enganados senhores
Envaidecidos de tanto poder
Tenho muitos mais amores
Que alguma vez haveis de ter
Encher-vos essa pança
Era o que me apetecia
Para começar a dança
Com montes de arrelia
Mas não vale a pena
Seja o que Deus quiser
Poderia criar gangrena
A homem e a mulher
Não vos desejo tal
Mas ficam a saber
Que por tanto mal
O fiz desaparecer
Também eu me enganei
Pensando como vós
Mas tudo reconquistei
Deixando-o bem a sós
Assim a paz regressou
Ao seio desta família
Ninguém mais se queixou
De haver nova quezília
Estes campos que semeio
Por encostas e vales
Plenos de trigo e centeio
Afastam todos os males
A única coisa que guardei
Foi a sua má lembrança
Rico e mais alegre fiquei
Com sua derradeira matança
O diabo me atentou
Lançando-me suas garras
Mas ao inferno retornou
Atado por suas amarras
D. Belo, surpreso comenta
Que algo estou a ocultar
Quem tanto argumenta
Tem mistério a desvendar
Longe de mim, meu Senhor
Só vos quero todo o bem
Porque coima e penhor
Não desejo a ninguém
Há coisas a guardar
Para nunca mais querer
E os cobiçosos ensinar
A não se deixar perder
Muitas vezes nesta vida
Temos tudo que precisamos
E na avidez da subida
Perdemos o que ganhámos
Aguardem pelo Verão
Fixem minhas colheitas
Vejam como elas me dão
Comida e roupas feitas
Trigo e centeio de ouro
Que me tiram da pobreza
O meu gigantesco tesouro
Digno da melhor realeza
Isto sim é o que preciso
Para no resto de meus dias
Viver com todo o siso
As maiores alegrias
Maravilhosos filhos meus
Riqueza de todo o mundo
Devo-os todos a Deus
E a meu amor profundo
Hão-de lembrar-se de mim
Por diversos motivos
É certo que assim
Alegro morto os vivos
Pela vida fora fiz
Mós, moinhos e pontes
E quase ninguém diz
Que também algumas fontes
Muita água lá passou
E muita mais há-de passar
Hoje, aquilo que eu sou
A poucos há-de lembrar
Muita pedra arranquei
Destes montes hermínios
Tanta pancada lhe dei
Que atingi meus desígnios
Toneladas de ferro forjei
Ferraduras e cravos fiz
E em muitas bestas cravei
Batendo até à raiz
Julgaram-me completamente louco
Sempre que já bebido lhes dizia
Que três juntas de bois seriam pouco
Para tanto ouro que eu possuía
Pensem no que ajuizaram
Porque quanto mais não seja
O loiro trigo que miraram
Para três juntas bem sobeja
Deixo-vos assim a pensar
No que sempre vos disse
Para nunca mais parar
Por muito que me risse
É preciso é que falem de nós
Nem que seja para dizer bem
Porque este pessoal atroz
Para dizer mal sempre tem
As humildes roupas que trajo
São fruto do meu suor
Um qualquer andrajo
Que me vale pelo melhor
Roupas finas para quê?
Para torturar minha Maria?
Que como toda a gente vê
Lava de noite e de dia?
Dispenso bem ostentações
Prefiro viver assim
Com escassos tostões
Mas felicidade sem fim
Agora, mais aliviado
Meus versos vou acabar
Para um dia se finado
Todos pôr a matutar
Queridos filhos meus
Donos do meu coração
Rezem sempre a Deus
E ajudem vosso irmão
Ao que estiver perdido
Estendam a vossa mão
É certo que ferido
Terá perdido a razão
Tropeções também eu dei
Mas o mais importante
É que com o que hoje sei
Não tombei degradante
Ajudem a levantar
Quem souber reconhecer
Porque estarão a ajudar
Um novo amanhecer
Semeando o perdão
Alegria acharás
Terás sempre melhor pão
E nunca te perderás
Por aqueles que apoiardes
Nascerá felicidade
E se nunca odiardes
Se enterrará a maldade
Essa pena a correr
Meus olhos faz chorar
Queria assim saber
Tão bem ortografar
A D. Belo bendigo
Pela honra de me fazer
O que eu não consigo
Nem ler, nem escrever
Capítulo VI – Loucura ou sabedoria?
Éramos um amontoado uno, fundidos num corpo só, embrenhados em
pensamentos distantes. Duma coisa não havia dúvida: Os versos escondiam algo.
Restava apurar se se trataria realmente do que pensávamos ou de uma elaborada
lição, implícita nas páginas finais. O homem podia ser iletrado, mas de burro não
tinha absolutamente nada. Transparecia mais ser um catedrático em Ciências da
Vida do que propriamente um analfabeto.
“O Gargantas até não era mau poeta de todo vovó!”
“Pelo menos era o melhor da aldeia, já que nunca conheci mais nenhum.
Vamos mas é para casa ver isto com calma, antes que alguém se ponha a
charriscar o que é que aqui andamos a fazer!” – Adverte D. Maria. – “Venha
connosco D. Adelaide. Almoçamos todos lá em casa.”
“Isso é que é uma óptima ideia, D. Maria. Não me apetecia nada começar o
ano a almoçar sozinha.”
Saímos da loja e enquanto D. Adelaide foi fechar a casa, D. Maria pediu o livro
à neta e resguardou-o debaixo do seu xaile. O silêncio imperava entre nós,
arrebatados pela interpretação do que havíamos lido. Embora algumas coisas nos
parecessem bem evidentes, eram óbvias demais para serem verdade. Seria muito
fácil e pouco concebível. Alguém que se tinha dado ao trabalho de deixar
algumas memórias sobre este tipo de coisa, nunca o teria feito tão
transparentemente. Principalmente quando deixa um sério aviso no ar quanto à
verdadeira acepção da palavra riqueza.
Liliana foi ao quarto buscar o bloco de notas e atirámo-nos novamente aos
versos. Sentámo-nos aconchegados no sofá e D. Adelaide fez questão de puxar
um mocho (pequeno banco) e sentar-se à frente de D. Maria que tinha ficado
entre mim e a Liliana. Espero que inadvertidamente, pensava eu. Ninguém
queria perder pitada do acontecimento e aproveitar a oportunidade para alvitrar o
que lhe parecesse digno de registo. A companhia e conforto da lareira
acalentava-nos o corpo e aconchegava-nos a alma.
“Aposto que os moinhos têm alguma coisa a desvendar.” – Congemina D.
Maria.
“Também já pensei nisso, vovó. Era um lugar onde estaria perfeitamente à
vontade para fazer tudo o que lhe apetecesse. Só acho que quando ele diz:
Nem nunca mais o vi - Para não me atentar – dá a entender que
pretendeu afastar-se definitivamente do que ocultou. Pelo que não teria
grande lógica que o mantivesse num sítio onde trabalhava uma boa parte do
ano.”
“Hmmm… Tens razão Li. Seria de pouco tino.”
“O que acham da menção a: Tanta terra cavada - Há-de ser o teu
fado?” – Questiono eu receosamente. – “Leva a crer que poderá estar
enterrado algures.”
“É possível. Mas seguindo o mesmo raciocínio de há pouco, há-de ter sido
em qualquer lugar, menos nos terrenos dele. Já imaginaram a tarefa? Seria
como procurar agulha num palheiro. Até porque não há qualquer
referência geográfica nos versos.” – Argumenta Liliana.
D. Maria e D. Adelaide olhavam uma para a outra, como se tivessem um nó no
cérebro. Não era caso para menos. A única conclusão mais ou menos fiável que
poderíamos tirar de todo o texto, era que, a ser verdade, o Gargantas havia
desprezado a riqueza em prol da felicidade da família.
“Espera… Há aqui uma coisa que ainda ontem confirmámos:
No topo da fenda malvada
Minha coroa coloquei”
“Lembras-te de teres comentado comigo que era muito estranho aquela mó
estar colocada no topo da racha que vimos na muralha do castelo? Aqui
tens o motivo!”
“Será que foi mesmo o Gargantas que a lá colocou? A ser assim, pelo menos
saberíamos que uma parte do que está escrito é verdade.”
D. Maria e D. Adelaide partilhavam da opinião de que, pelo que se sabia, se
havia pessoa habilitada para tal, era mesmo o Gargantas. Até era ele que fazia a
manutenção dos moinhos dos outros. O único artífice recente capaz de o fazer já
tinha falecido na década de sessenta e era filho dele. Caso para dizer que filho de
peixe sabe nadar. A profissão de moleiro dava um sustento razoável, mas não o
suficiente para que alguém pudesse viver apenas do arranjo dos moinhos, pelo
que eram raros aqueles que optavam por aprender a arte. Além disso, exigia
muita sabedoria, que as famílias tinham tendência a transmitir apenas aos seus.
Daí hoje ser muito raro encontrar alguém que perceba um pouco do assunto.
Quando o Padre Agostinho quis em tempos reconstruir os moinhos do Gargantas
para os utilizar como atracção turística, só nos confins do Concelho de Seia
conseguiu descobrir um senhor capaz de tal feito. Acabou por não dar em nada
porque os apoios que tinham sido prometidos pelo Estado nunca chegaram.
“Pensa bem Liliana, não te parece que depois do que lemos no que
encontrámos na caixa e o que vimos na muralha, associado ao relatado no
livro, a possibilidade de o tesouro ser verídico incrementa
exponencialmente?”
“Acho que é melhor irmos ver os moinhos.” – Exclama entusiasmada.
“Nunca lá fui. Assim fico também a conhecê-los. Lembra-me para levar a
máquina fotográfica.”
“Primeiro têm de almoçar meninos. E eu já não saio mais daqui. As minhas
pernas não dão para tanto bulir.”
“Eu faço-lhe companhia D. Maria. Sempre tenho uma tarde mais
agradável.” – Diz D. Adelaide contente.
Ficámos satisfeitos por saber que D. Maria não ficava sozinha e que D. Adelaide
estaria em boas mãos. A vivência com o Padre Agostinho ainda a tinha isolado
mais do que aquando da ida da sua paixão para França. Tinha-lhe sido uma
pessoa exclusivamente dedicada. As más-línguas da aldeia diziam até que
haveria algo mais. Mas D. Maria jurava que eram mesmo só as más-línguas.
Quem conhecia o Padre Agostinho, sabia que era uma pessoa que levava o
celibato muito a sério, como tudo o demais que fosse relacionado com a sua
vocação.
Quando as senhoras se dirigiram à banca para fazerem o almoço, Liliana
encostou-se a mim e ficámos silenciosamente em feliz harmonia a virar e revirar
as páginas, tomando algumas notas pontualmente. O leve roçar da sua mão pela
minha, escondido pelo corpo debruçado, autênticos toques divinos. O facto de
ter sido sua iniciativa soube-me a vitória. Agora as dúvidas que me assaltavam
dissiparam-se por completo. Quando somos nós a intentar algo, nunca sabemos
se a outra parte coopera por vontade própria ou se por alguma forma de coerção.
A simples hipótese, ainda que remota, dessa incerteza tinha-me martirizado.
Sentia uma felicidade indescritível pela sorte com que o destino me tinha
bafejado. Se a perdesse, sabia que iria viver um autêntico inferno. Tinha de
deixar de pensar neste tipo de coisas e viver o dia-a-dia, aproveitando o máximo
de cada momento. Já chegava andar a pensar no que é que iria acontecer quando
Liliana tivesse de retornar a Lisboa. Haveríamos de encontrar uma solução.
Pegámos na máquina fotográfica e fomos a pé até aos moinhos que ficavam na
saída para a serra, mesmo no limite da povoação. Lá estavam três em fila
indiana. Vistos de longe nem pareciam estar em muito mau estado de
conservação. Até os telheiros pareciam ter sido renovados recentemente. Talvez
tivesse sido ainda obra do Padre Agostinho. Puxei da máquina e tirei algumas
fotos. Queria manter um registo para futuras observações. Por vezes não nos
apercebemos de alguns pormenores que só detectamos em análise mais
detalhada, sendo as fotografias um auxiliar precioso. O do fundo estava
facilmente acessível, já os outros estavam rodeados de algum mato
desenvolvido.
“Começamos já por este, Luís?”
“É melhor. Para ir ver os outros é preferível seguirmos pelo canal de água.”
Havia um canal, agora reconstruido parcialmente em cimento, a alimentar os
moinhos, aproveitando consecutivamente a saída de água do anterior,
estrategicamente colocado num plano superior. Quando chegámos, a primeira
coisa que nos saltou à vista foi a roda motora tombada do último moinho, junto à
sua saída da água que ainda corria célere. Espreitamos temerosamente a
cavidade onde em tempos deve ter rodado vezes sem fim. Havia sempre o risco
de alguma coisa abater. Mais valia prevenir. Dava perfeitamente para ver que
tinha havido uma tentativa de restauro das peças, pelas diferentes cores da
madeira que as compunham. Era indício de aproveitamento de algumas das
partes existentes. A roda onde batia a água, fazendo mover a mó à qual estava
ligada por um forte eixo de madeira, ainda estava em condições razoáveis,
apesar de fora do seu lugar. Já o mesmo não se podia dizer das ferragens que
interligavam algumas peças. A corrosão tinha-as assaltado, condenando-as a uma
morte forçada. Mas daí não deveria advir grande mal. Entre trabalhar madeira,
pedra e ferro, penso que será muito mais fácil encontrar alguém que lide com
maior facilidade com este último. As paredes também evidenciavam reforços de
cimento introduzidos entre as pedras seculares a fim de evitar colapsos. No
fundo não conseguíamos ver nada que fosse aparentemente digno de registo.
Demos a volta e deparámo-nos com várias portas entreabertas. A da esquerda era
para uma espécie de loja que, a julgar pelos vestígios de mato e algum estrume,
devia ter servido de curral ou algo do género. É possível que tivessem algum
jumento para transportar a farinha. A da frente dava então para diversos
compartimentos. Uma divisão pequenina, com resquícios de um colchão, uma
mala de porão das antigas e a um canto, um amontoado de pedras que em tempos
deve ter servido de lareira e fogão. Uma moldura de plástico dourado
denunciava um uso relativamente recente do local agora abandonado. Virámo-
nos para a divisão do lado oposto e deparámos com as mós e o mecanismo de
dispensa dos cereais para a moagem. Parecia que com um mínimo de
manutenção seria capaz de voltar a trabalhar. Se fosse restaurado, seria um lugar
aprazível para passar uma ou duas noites. Principalmente para o pessoal das
grandes cidades, como nós, que pouco ou nenhumas vezes tiveram oportunidade
de admirar construções deste tipo.
Entretivemo-nos por um bocado em observações cuidadosas do lugar,
equacionando cenários que pudessem ser a solução do que havíamos lido. Não
descobrimos nada que parecesse realmente merecedor de atenção distinta.
Meditava sobre a forma como funcionaria o mecanismo de fornecimento do
cereal, quando me senti firmemente agarrado pela cintura. Foi uma confissão de
afecto que me fez rodar sobre os pés e devorar os lábios de Liliana numa
tentativa de aplacar a fome inexorável que a sua pessoa despertava em mim.
Trocámos deliciosas essências durante longos minutos, devorando intensamente
cada fluído corporal em efervescentes convulsões cerebrais, acompanhando cada
investida com abraços algemantes em plena comunhão física e espiritual. Saímos
do espaço de mão dada, em completa harmonia. Era um novo e glorioso
despertar.
Espreitámos para dentro duma última portinhola que dava para uma pequena
arrecadação. Pela configuração seria quase impossível esconder lá fosse o que
fosse. Calcámos algumas giestas que nos separavam do canal de água e subimo-
lo apoiando cuidadosamente os pés nas bordas deste. Os outros moinhos,
ocupados apenas pela moagem e seus mecanismos, estavam ainda em melhor
estado do que o primeiro, embora nenhum deles parecesse estar verdadeiramente
operacional. Quanto mais não fosse pelas madeiras carcomidas pela bicharada. O
que não admirava muito. Com as portas abertas, estavam sujeitos aos caprichos
das intempéries e de actos de vandalismo, que infelizmente sabemos ser o pão
nosso de cada dia, praticados por pessoas mais inconscientes. Aventurámo-nos
ainda a tentar descobrir de onde vinha a água para os moinhos. Chegámos a um
sítio onde a água brotava por baixo do alcatrão e atravessámos a estrada para um
pouco mais à frente constatar que provinha de um pequeno lago que servia de
reservatório. Este receptáculo era alimentado por diversos veios, abundantes
nestas encostas húmidas e plenas de vegetação, concentrando utilmente energias
quase desprezíveis, transformando-as numa enorme massa com aproveitamento
para geração de força motriz, oriunda do vertiginoso galopar da água em
caminhada gentilmente oferecida pela eficaz gravidade actuando por confinados
declives convidativos à fuga da represa e ao arrastamento do que pelo caminho
se lhe opuser. O aproveitamento hídrico é uma das bênçãos da natureza à
humanidade. O ciclo da água tem sido aproveitado desde tempos imemoriáveis
para o benefício dos povos e este era apenas um dos vários exemplos
disponíveis.
Fiquei com mais umas largas dezenas de fotografias para o meu portfólio que um
dia haveria de servir para alguma coisa. Nem que fosse apenas para relembrar os
românticos momentos vividos.
Liliana aproveitou para me despertar algumas curiosidades sobre o
aproveitamento e transformação de muitas das forças disponíveis da natureza,
enaltecendo a sua utilização em detrimento do consumo das energias fósseis que
contribuíam para um definhar apressado do nosso planeta e dos seus habitantes.
As palavras fluíam transparentemente dos seus lábios, atestando a mestria da
oradora no assunto abordado e permitindo-me perceber facilmente os elaborados
mecanismos da física.
“Estou confuso, Liliana – Ia jurar que alguns dos versos se referiam a água.
Quando li aquela parte:
Se me tentas agarrar
Fujo-te entre os dedos
Lembrou-me logo a água ou qualquer coisa líquida. E mais ainda quando
falavam sobre pontes e fontes. Parti do princípio que os moinhos eram
excluídos deliberadamente. Tudo isto me pareceu mais lógico acrescido da
menção:
Uma boca para alimentar
Cheia de gula a deixei
Capaz de muito devorar
Que apontava para a boca da mó onde entra o cereal.”
“Não tinha pensado nisso. Podia ser realmente uma boa pista. No entanto,
acredito que isto só serve para dar consistência à teoria dele ter afastado de
si o que achou!”
“É verdade. Então achas que nem vale a pena irmos ver a quinta que era
dele?”
“Duvido que lá encontremos alguma coisa. Pensa bem. Imagina que querias
afastar dos teus filhos o motivo das desavenças, optavas por escondê-lo num
lugar onde eles te pudessem estar a observar ou que o viessem a descobrir
até por acaso?”
“Pois, é de todo incoerente.”
“E mais - lembra-te que ele faz referência que o escondeu num sítio
acessível a toda a gente? Se os moinhos ainda pudessem ter algum
cabimento, por estar afastado da sua propriedade e de muita gente lá se
dirigir, já o mesmo não se pode dizer da quinta. Aposto que há-de ser algum
lugar público!”
“E qual será?”
“Aquilo que me parece mais provável é que se trate de uma ponte ou fonte,
conforme mencionaste há pouco. Vamos ter com a vovó a ver se têm
conhecimento de alguma obra que tenha sido feita pelo Gargantas. Será o
melhor caminho.”
Depois de detalharmos verbalmente a nossa experiência às senhoras que
esperavam ansiosamente pelo nosso regresso, partimos mais uma vez à procura
de respostas às intermináveis perguntas.
“Ó meu amor, quando o Gargantas morreu, ainda eu não era nascida. Nem
nunca ouvi falar dele para além da estória do ouro que nem três juntas o
conseguiriam carregar, por que tanto o gozavam. Dois dos filhos é que eram
ajudantes frequentes do teu bisavô. Um deles até era do género do pai.
Deitava as mãos a tudo. Não havia nada que não compusesse. Enquanto
vocês saíram nós estivemos a reler o livro e a falar sobre o assunto, mas não
conseguimos descobrir nada. Ele fala de tanta coisa que pode ser tudo e
nada. Bem dizia ele que se havia de rir a bom rir por todos pôr a pensar.”
“E na junta de freguesia, será que existe registo de alguma coisa?” –
Afigurou-se-me uma hipótese.
“Só se forem falar com o Presidente, o Ti João da taberna.” – Diz D.
Adelaide.
“Quem, o mesmo que me contou a estória?”
“Esse mesmo, menino Luís.”
Nem era tarde, nem era cedo. Saímos de casa dando forte corda aos calcantes
para irmos falar com o Ti João. Começávamos a desesperar com a situação.
Estávamos em pulgas para descobrir o fio à meada e não havia forma de lhe
encontrar a ponta. Combinámos uma desculpa para lhe dar caso ele quisesse
saber mais do que devia.

Capítulo VII – A fonte
Esperámos que o Ti João acabasse de servir um grupo que se tinha sentado para
lanchar e perguntámos-lhe se podíamos conversar à parte com ele. Chamou a
mulher para o substituir e conduziu-nos a sua casa, por cima do estabelecimento.
“Então em que posso ajudar-vos?”
“Ti João – precisávamos de saber se a junta de freguesia tem um registo das
obras que foram efectuadas em Linhares no século XIX e, caso exista, dar-
lhe uma olhadela.” Pede-lhe Liliana.
“E para que precisam disso?” Interroga com ar desconfiado. Há tantos anos
que estava na Junta e raras eram as pessoas que perguntavam sobre as obras
executadas, quanto mais as do século XIX.
“A avó da Liliana diz que o Gargantas, aquele coitado que o Ti João me
contou que se gabava do ouro, era analfabeto, mas ninguém o superava a
trabalhar a pedra e outros materiais, executando obras como ninguém.
Como a Liliana se formou em Engenharia Mecânica, está curiosa em
confirmar como é que alguém que não sabe ler nem escrever, pôde fazer
empreitadas que exigiam conhecimentos tão profundos.” Concluo eu
tentando credibilizar a manha.
“Ora, ora. Já podiam ter dito! Para isso não precisam de ver livro nenhum.
A única obra de que há registo que tenha sido o Gargantas a fazer, é a
reconstrução da Fonte do Paço. Asseguro-vos isso porque no início deste ano
tivemos de elaborar um inventário de todos os bens públicos e do seu estado,
para fornecer à Comissão Nacional do Património do Estado, a fim de nos
candidatarmos a verbas de apoio para conservação. Curiosamente, a fonte
do Paço, que foi reconstruída pelo Gargantas, desde então nunca mais foi
mexida. É a que melhor funciona, nunca tendo sequer precisado de obras ou
qualquer manutenção. Foi oferecida pela nobreza local, mas até ele lhe
mexer nunca tinha funcionado em condições. Pelos registos, entupia quase a
cada seis meses e era um problema para a conseguirem arranjar, por tanta
pedra ser preciso tirar para a compor. Foi então que decidiram deixar o
Gargantas fazer a remodelação que havia proposto. Fez tudo sozinho, sem
qualquer tipo de ajuda. Depois de dois anos a funcionar ininterruptamente,
até um louvor lhe foi prestado em acta. O pessoal dessa época até gozava
com o assunto, porque dizia que se havia alguém habilitado para tratar de
canalizações rôtas, ele era catedrático, por causa de tanto vinho emborcar.
Certo é que ainda hoje funciona tão bem, que ninguém se atreve a mexer-
lhe com medo de estragar o que foi feito. Posso dizer-vos que há uns anos
tentaram ver o que é que o Gargantas lá tinha feito, mas nem as pedras
conseguiram tirar do sítio. Parece que foram coladas umas às outras. Só
partindo mesmo. Sabidinho é que tem a melhor água de Linhares.”
“Grande ajuda que nos deu Ti João! Já agora, onde é que fica essa fonte?” –
Quis eu saber.
“Eu sei onde é, Luís. Fica perto da pousada.”
“É essa mesmo! Querem que lá vá convosco?”
“Obrigado Ti João! Hoje já começa a ficar tarde e além disso não o
queremos maçar. Passamos por lá um dia destes para a ver.” Despistei.
Não queríamos de maneira alguma despertar curiosidades que pudessem vir a
mostrar-se problemáticas. Tínhamos de arranjar uma maneira de lá conseguir ir
sem dar nas vistas, o que não era nada fácil numa terra tão pequena e ainda por
cima no sítio onde passam mais pessoas por causa da pousada. A única maneira
era irmos lá de madrugada. Os locais costumam deitar-se cedo, mas durante o
fim-de-semana estava fora de questão por causa dos turistas. Teríamos de esperar
pela noite de domingo para segunda.
Regressámos a casa animados por termos continuidade para o nosso sonho.
Estávamos a viver uma aventura sem precedentes. Ainda que não desse em nada.
Sonhar é das melhores coisas que nos pode acontecer. Isto para não falar na
crescente loucura que despertava no nosso relacionamento. Sentia-me quase
noutro mundo. As minhas perspectivas de vida que até então se resumiam a uma
existência sem qualquer aspiração a uniões, fruto do que já relatei, ganhou um
ânimo inesperado e compelia-me a esperar algo mais do que um relacionamento
pontual.
Pusemos D. Maria e D. Adelaide a par do sucedido e fizemo-las sentir como
adolescentes, animadas pela hipótese daquilo que o Gargantas sugeria no seu
legado poder ser verdade. Era bom demais para ser assim e passámos muito
tempo a tentar descortinar mais alguma coisa nos versos que pudesse indiciar
outros caminhos. Uma coisa era indiscutível, o Gargantas queria alertar as
pessoas para o perigo da ganância e das consequências de partilhas desavindas.
O dinheiro, ou neste caso algo que representava riqueza, transforma as pessoas e
em nada contribui para uma coexistência pacífica. Apesar de ser um instrumento
necessário à manutenção das actividades comerciais, foi também desde tempos
imemoriais motivo das maiores guerras e atrocidades. As próprias heranças,
ainda que de valores exíguos, são muitas vezes motivo de afastamento de
familiares próximos, dando origem a clivagens irreversíveis em relacionamentos
que se esperariam sólidos e perpétuos.
Demos a conhecer a nossa perspectiva relativamente à necessidade de analisar a
fonte madrugada fora e, apesar de D. Maria não parecer muito satisfeita com a
iniciativa, acabou por concordar que não haveria outra maneira de o conseguir
fazer. Houve uma coisa que disse e nos tranquilizou: perto da fonte não há
nenhuma casa que esteja habitada, pelo que, com excepção do pessoal da
pousada que se encontrava relativamente próximo, estaríamos mais ou menos à
vontade para vermos o que precisávamos. Passámos o resto do dia falando sobre
contos e ditos locais, enriquecidos pela contribuição de D. Adelaide que era
bastante conhecedora pelo relacionamento com o Padre Agostinho que era um
estudioso de Linhares. Inevitavelmente, a caixa e o seu conteúdo, voltaram às
nossas mãos e à baila, tendo cada um de nós ficado emudecido pela observação,
não só do elaborado símbolo maléfico, mas também do incrível mecanismo que
esta continha. Divertimo-nos um pouco a aliciar D. Adelaide a tentar abri-la, que
desistiu definitivamente ao fim de uma dúzia de tentativas. Claro que a senhora
ficou estupefacta pela astúcia necessária para se conseguir desvendar o que quer
que lá se colocasse.
“Como é que a Lili conseguiu descobrir o segredo?”
“Foi sorte – muita sorte.” – Diz Liliana humildemente.
“Qual sorte, qual quê. Temos aqui é uma mulher de armas!”
O orgulho latente na minha voz fez Liliana rir e D. Maria corar. Jurava que se
apercebeu de alguma coisa que por enquanto pretendíamos manter apenas entre
nós. Podia dar-se o caso de não nos apoiar e deitarmos tudo a perder, quando
estávamos tão próximos do nosso objectivo. Era preferível fazermos as coisas
com calma, preparando o terreno para o efeito.
Liliana ainda tentou desmanchar a tampa da caixa para descobrir como é que
tinha sido construído o engenho da estrela, mas D. Adelaide não gostou muito da
ideia por ser necessário limar os rebites que a selavam. Isso provavelmente
deixá-la-ia inoperacional e ela pretendia manter a recordação que o Padre
Agostinho lhe havia confiado, apesar do seu horripilante aspecto.
Ficámos a saber muitas coisas sobre as dificuldades doutros tempos e da maneira
como a comunidade se unia para ultrapassar essas complicações. As pessoas
especializavam-se em determinado tipo de culturas e depois procediam à troca
dos seus géneros pelos que necessitavam. O dinheiro era escasso e esta uma boa
maneira de poupar porque neste tipo de trocas não havia propriamente um lucro
implícito. Por vezes, o tempo não ajudava à produção de um ou outro tipo de
cultura e essa especialização daria origem a anos de fome, não fosse o apoio
conseguido junto dos demais. O que uns dispensavam a quem nada lhes podia
dar em troca, era compensado posteriormente, caso lhe viesse a acontecer o
mesmo. Todos tinham uma espécie de conta na única mercearia local, que
comercializava de tudo, e só pagavam quando vendiam alguns excedentes a
quem se aventurava a comercializá-los fora de Linhares. No fundo, era
mercearia e casa de crédito. Claro que não perdiam nada com isso, porque se não
fosse dessa maneira, a sua existência estaria condenada à partida. Nunca
conseguiria sobreviver apenas com o consumo das famílias mais abastadas que
eram poucas. Para nós, criados em grandes cidades, eram cenários difíceis de
imaginar, abordados superficialmente em aulas de história, mas que julgávamos
pertencerem a um passado muito distante. Ainda tínhamos muito a aprender, e
conversando com pessoas causticadas pelo atravessar de épocas, tudo se tornava
mais fácil de entender.
Captámos uma série de lições baseadas em factos reais, com soluções que se
mostraram eficazes em casos aparentemente perdidos à nascença. A necessidade
faz o engenho, disso não há dúvida. Seria pouco provável que pessoas bem
formadas fossem capazes de ultrapassar mais eficazmente os sulcos rasgados no
caminho da vida. Se alguns dos nossos políticos viessem passar uns dias na sua
companhia, granjeando os seus conselhos, todos nós teríamos a ganhar. Cada vez
me enraivecia mais contribuir para uma sociedade condenada ao insucesso e
para uma classe de políticos cujo principal objectivo era servir os seus
propósitos, atraiçoando aqueles que os elegiam.
D. Adelaide ria-se a propósito da maledicência referida pelo Gargantas.
“… pessoal atroz… Hehehe, isto é bem verdade! Este pessoal gosta muito de
falar do vizinho. Mas também há uma coisa de que nos podemos gabar: se o
visado precisar de ajuda, os que falam também são os primeiros a dar a
mão, nem que seja para depois dizer que tiveram de ajudar.”
Há tempos, em conversa com um colega, ouvi algumas palavras que me ficaram
na memória e que são muito semelhantes a diversos ditados populares: “A quem
não tem dinheiro, até os cães lhes urinam nas pernas!” Infelizmente isso era o
que eu mais tinha testemunhado pela vida fora. Toda a gente procurava estar ao
lado dos vencedores e afastar-se dos derrotados, isto para não dizer que ainda
ajudariam de bom grado a enterrá-los mais um bocado. Sempre me convenci que
alguém que minimiza os outros fá-lo porque não consegue superá-los,
lembrando outra velha máxima: “Para quem não presta, quem é bom não vale
nada!”. Dessa maneira não progridem, obtendo somente enganosa vantagem
pela aparente recessão dos outros. Até alguns sábios precisariam de aprofundar
mais as suas experiências e conhecimentos para alcançarem soluções ao nível
das praticadas por estas bandas.
D. Adelaide diz que já não tinha lembrança de estar acordada até às dez da noite,
hora a que eu e Liliana a fomos levar a casa. Deixou-nos ficar com a caixa e o
livro para os podermos consultar em caso de necessidade.
Deitámo-nos cedo para recuperar dos dias anteriores e prepararmo-nos para a
noite seguinte que seria de estafa. Passámos um domingo que parecia
interminável. A ansiedade estava a apoderar-se de nós, consumindo-nos o
pensamento pela incerteza do que acharíamos.
“Meninos, vocês não têm nada para me dizer?” – Questiona-nos D. Maria
quando lanchávamos.
“Porquê vovó?” – Liliana estava enrubescida como nunca.
“Vocês andam sempre muito juntinhos e eu pensei que talvez andasse
alguma coisa no ar.”
O tom de voz de D. Maria não tinha sido desagradável. Olhei para Liliana e ela
percebeu pelo meu olhar que eu gostava que ela contasse a verdade. Tinha de ser
opção sua, não queria que algo lhe corresse mal se a iniciativa fosse minha.
“Sabe vovó, eu gosto muito do Luís!” – Disse, olhando receosamente de
cabeça baixa para a sua avó querida.
“Bem me parecia. E há alguma necessidade de me esconderem essas coisas.
É perfeitamente natural. A vida é mesmo assim.”
Levantei-me de um pulo, abracei-me a D. Maria pregando-lhe um beijo na face e
Liliana juntou-se a nós. A agora minha vovó, foi assim que a senti, começou a
rir-se e diz-me: – “Ande lá menino, não é a mim que tem de dar beijos.”
“Apetecia-me beijocá-la toda D. Maria!”
“Não é caso para tanto. A única coisa que quero, é que se dêem bem e
tenham juízo. Também já tive a vossa idade e os meus pais sempre
apoiaram as minhas opções. Isso ajudou-me a crescer de uma maneira
saudável ao lado de quem amava, ao contrário de algumas amigas minhas
que acabaram por ser umas infelizes para o resto da vida, forçadas às
escolhas da família. No coração não se pode mandar!”
Pimba! Mais uma para encaixar. Quanto mais a ouvia, mais gostava dela. Era um
exemplo perfeito para modelo da sociedade.
Foi um momento indescritível, não conseguíamos parar de nos rir. Era um
grande passo para a resolução duma situação que me fazia recear pelo futuro, o
medo foi substituído por confiança. A avó já estava do nosso lado, restava saber
qual seria a reacção dos pais de Liliana.
Saímos um pouco no final do dia. Com o conhecimento e bênção de D. Maria,
caminhámos de mãos dadas, dando origem a indiscretas cotoveladas e arrastando
olhares. Pronto, já tinham do que falar para os próximos meses. Fomos dar a
volta à fonte para fazermos uma vistoria rápida e parámos na pousada para
tomarmos um café a fim de auscultarmos a hora do encerramento.
“Hoje devemos fechar cedo. Os clientes já foram todos embora. Como não
temos qualquer reserva, salvo ocorrência de última hora, às onze já devo
estar a caminho de casa.”
Foram boas novas. Assim poderíamos ir mais cedo tratar do nosso assunto.
Como o dia a seguir era de trabalho, seria pouco provável que alguém andasse
nas ruas depois do fecho da pousada. Retornámos ao aconchego do lar e
preparámos o que pareceu mais útil para a ocasião: duas lanternas e pilhas
suplentes, calçado de rasto macio para não fazer barulho, uma corda de cinco
metros, uma chave de fenda e outra de estrela, bloco de notas e lápis, um alicate
e ainda um pequeno pé de cabra que fazia parte dos utensílios do avô de Liliana.
Pegámos numa mochila onde colocámos as ferramentas.
“Vai buscar a tua Canon. Pode fazer-nos falta.”
“Aqui está ela Liliana.”
“Chamame Li, gosto mais.”
“Estava a ver que não mo dizias, minha querida Li.”
Em troca recebi um caloroso abraço e um beijo chispante.
“Meu amorzinho…” Foi tudo quanto consegui proferir, enlaçando-a e
murmurando-o ao seu ouvido.
O aperto progressivo dos seus braços que voltaram a enredar-me foi mais do que
uma resposta para mim. Dispensava palavras.
“Ohhh, que burro! Espera, vou buscar uma coisa que lá tenho em cima.”
“O que é isso?”
“É uma peça para montar no topo da objectiva, permitindo tirar fotografias
em ângulo. Fui eu que a fiz. Vês este espelho, pode regular-se o ângulo,
como se estivesses a observar algo através do reflexo. Dá para tirar
fotografias fantásticas. Deixa ver se consigo arranjar-te um exemplo... Se eu
quiser tirar uma fotografia por baixo de um carro, mesmo que lá consiga
meter a máquina, a distância focal mínima não me permite tirar uma foto
em condições, nem no modo macro. Mas se montar isto na objectiva. Posso
manter a máquina num ângulo acentuado, a uma distância focal maior e
tirar fotos mais nítidas.”
“Parece uma boa ideia. Foste tu que a idealizaste ou já existia alguma coisa
parecida?”
“Que eu saiba não. Mas o princípio já é conhecido há muito tempo. Apenas
o adaptei à finalidade.”
“Hmmm… Acho que percebes mais desse tipo de assuntos do que aquilo
que queres fazer crer.”
“Vou percebendo qualquer coisita, mas comparado contigo, princesinha,
sou um autêntico leigo.”
“Ohhh, gostei desse princesinha! O meu pai também me costuma chamar
assim.”
“Para mim és a princesinha do reino do meu coração!”
“Ai que temos poeta. Se continuares assim, nunca mais te largo!”
“Isso, isso! É tudo o que eu quero, princesinha! Ando com a cabeça à roda
de tanto pensar no que vai acontecer quando tiveres de retornar a Lisboa.”
“Há pouco estive a falar com os meus pais e pedi-lhes para passar o meu
aniversário com a vovó. Eles não ficaram muito contentes, mas como lhes
disse que era para comemorar com ela, coisa que não faço há uns tempos,
acabaram por concordar. Mas não contes à vovó, quero fazer-lhe uma
surpresa.”
“Boa! Assim sempre estamos mais uns dias juntos.”
“Claro! Agora é melhor terminarmos isto e irmos ver da vovó, senão daqui
a pouco ainda muda de ideias quanto a nós.”
D. Maria tinha ido à arrecadação anexa buscar alguns ingredientes para o jantar e
quando saiu de casa foi interrompida por uma das vizinhas.
“Ó D. Maria, a senhora sabe que a sua netinha já namora? Olhe qua passou
há pouco para baixo de mão dada com um rapaz.”
“Há muito tempo D. Joaquina. Há muito tempo!”
“Desarmei-a num ápice. Se vinha com ideias de meter intrigas, ficou com
elas bem entaladas.” Contou-nos.
Soubemos depois que D. Maria lhe enfiou uma carrada de patranhas para que
deixassem de falar rápido da neta, ou se o fizessem, que fosse por bons motivos.
Esta mulher não existia! Partimos o coco a rir com as galgas que a outra
emborcou.
“Já viram a lata? Eu não sou nada de mentir, mas não me contive! Esta
gente não tem mesmo mais nada que fazer.”
“Obrigado vovó. Tu és única!”
“Também tu, meu amor! Ai de alguém que te tente fazer mal. Esgadanho-a
toda!”
O esticar dos braços, com as unhas como que eriçadas, lembrando uma leoa
feroz capaz de tudo fazer para proteger a sua ninhada, era bem elucidativo.

Capítulo VIII – O quebra-cabeças
Contámos ansiosamente os minutos até à hora em que combinámos partir à
aventura. Bateram as onze, demos uma espreitadela à janela para verificar se
andava alguém na rua. Estava tudo deserto. De qualquer maneira, resolvemos
dar mais uns minutos para que não nos cruzássemos com a miúda da pousada.
Não se fosse atrasar por algum motivo.
Onze e um quarto. Chegou a hora! Pegámos nas nossas coisas e partimos rumo
ao desconhecido. Deixámos D. Maria num misto de perturbação e expectativa.
Se alguém nos descobrisse, podia ser o cabo dos trabalhos para ela. Pedimos a
D. Maria que apagasse as luzes para sairmos de casa e embrenhámo-nos
silenciosamente no gelo da noite. As luvas peludas que levámos eram uma
dádiva num tempo agreste como este. Nem vivalma. As casas estavam
completamente às escuras, correu como esperávamos.
Lá estava ela, será que conseguiríamos descobrir o seu segredo? Fui dar uma
espreitadela à entrada da pousada para prevenir eventuais surpresas. Estava tudo
bem fechado, sinal de que a recepcionista já tinha deixado o serviço. Óptimo,
agora era meter mãos à obra. Sacámos das lanternas e mantivemos os feixes de
luz baixos, evitando sobressaltos. As suas dimensões eram generosas, poucas
haverão de ser deste tamanho. Percorremos pormenorizadamente as saídas de
água e cada frincha das suas pedras. Era diferente do habitual. Normalmente as
fontes têm apenas uma saída de água, mas esta além de ter a principal repartida
em duas, permitindo o correr da água por duas bicas, ainda possuía do lado
direito outro rego por onde esta jorrava, permitindo a utilização por diversas
pessoas ao mesmo tempo. Em vez dos comuns canos, a água era transportada
por rasgos efectuados na pedra. Este pormenor permitia antever uma construção
secular. Percorremos cada pedra e detalhe diversas vezes com os nossos fachos
luminosos, até que Liliana se aproximou da pedra central, que fechava a saída da
bica repartida.
“Aponta a tua lanterna para aqui Luís! Estás a ver este pormenor? Repara
nas juntas das outras pedras. São de barro ou algo parecido. Esta pedra não
tem qualquer junta!”
“Pode ser para fazerem a manutenção…”
“Talvez, mas então porque é que a pedra da outra bica não está como esta?”
“Pois não. Aquela está selada como as outras.”
“Dá cá o pé-de-cabra!”
Liliana introduziu-o nas diversas frinchas e tentou mover a pedra sem qualquer
sucesso. Estava bloqueada, alguma coisa a impedia de sair.
“Tem de ser isto, tem de ser isto Luís! Temos de descobrir o que impede a
pedra de se mover.”
Pedi-lhe para tentar eu. Não fosse uma questão de força. Não tardei muito a dar-
me por vencido. Por muita força que empregasse, nem vacilava sequer. Parecia
que estava cimentada, embora nada encontrássemos. Voltámos a passar cada
milímetro da construção sem mais nada descobrir. O que é que impediria a sua
deslocação? Fosse o que fosse, não estava à vista. Tinha de ser algo pelo lado de
dentro.
A parede da fonte era demasiado alta para poder espreitar pelo lado de cima.
Ficámos convictos de que pouco ou de nada valeria. Por aquilo que víamos, a
traseira da fonte deveria ser um terreno num plano elevado, pelo que a água
seria, quase de certeza, encaminhada subterraneamente. Volvida mais de uma
hora de insistências em análises e tentativas de vencer a teimosia do
paralelepípedo, resolvemos desistir e retornar a casa.
Estávamos cansados e abatidos, vencidos por algo invisível. Só o abraço e o
caloroso beijo que recebi de Liliana antes de me deitar, reanimaram um pouco o
meu espírito. Amanhecemos penosa e tardiamente, numa tentativa inconsciente
de recuperação das energias gastas em inusitada derrota. D. Maria, que tinha
esperado pela nossa chegada e testemunhado a nossa desilusão, partilhava cada
sentimento como se dela se tratassem. Incentivou-nos a descansar e a procurar
respostas no dia seguinte. “Nada como uma pausa depois de uma derrota,
para depois a levar de vencida.” Tentou ela animar-nos.
Depois duma noite cheia de pesadelos, invadida por inúmeros fracassos,
atirámo-nos novamente aos poemas. A resposta tinha de estar encoberta nos
versos relativos à fonte:
Ainda assim te ajudarei
Uma boca para alimentar
Cheia de gula a deixei
Capaz de muito devorar
Com mais olhos que barriga
Tanto encherá que esventrará
Eternamente sem fadiga
Sua tarefa continuará
Em suas entranhas terás
Presentes indescritíveis
Muito rico te julgarás
Visões pouco credíveis
Abençoada por Deus
Serve todas as gentes
Católicos e ateus
Génios e dementes
“A boca será a bica da fonte Luís?”
“Não, não acredito, princesinha. Deve ser a origem da água que sai na fonte.
É mais provável. Boca deve referir-se a entrada e não a saída.”
“Pois, tem mais lógica.”
“Já reparaste na menção a ventre? Se pensarmos numa perspectiva física, o
ventre fica mais ao menos ao centro, por cima da bexiga, por onde saem as
águas.”
“Isso! Refere-se à pedra que tentámos tirar?”
“Não te parece óbvio? E o – Tanto encherá que esventrará – tem de ser
quanto à quantidade de água que lá entra.”
“Temos de achar a nascente, Luís!”
Ainda a tarde não tinha entrado praticamente ao serviço e já nós a andávamos a
atormentar, para que se esticasse o suficiente para conseguirmos concluir as
buscas que iniciámos. Mau feitio o seu de nunca vergar! Não tivemos outro
remédio senão pôr-nos a andar como baratas tontas, sem rei nem roque, Sul
desconhecido e Norte perdido. Altos e baixos, expostos e escondidos, cantos e
recantos, pedras e calhaus, cobras e lagartos, analisámos e interrogámos,
quedando na penumbra. Ainda tivemos algumas esperanças, quando a poucas
dezenas de metros da fonte nos apercebemos do barulho de água e deparámos
com um antigo bebedouro que extravasava um cubículo com uma pequena porta.
Tratava-se de um ponto de confluência de águas, mas depois de o analisarmos
bem, verificámos que estava num plano inferior à bica da fonte, pelo que não
poderia ser este a alimentá-la. Tarde se fez e já o anoitecer nos batia à porta,
quando no lusco-fusco tropecei em algo que me fez aterrar subitamente, jorrando
raios e coriscos em protesto de tal sorte, levantei-me combalido. Não fossem as
preciosas luvas e teria ficado com as mãos em carne viva.
“Estás bem meu amor?”
Já estava eu de perna erguida preparado para arrear um valente pontapé a fim de
castigar o que se tinha atrevido a pregar-me um tropeção, quando as suas
palavras me refrearam os ímpetos e me convidaram a prestar mais atenção às
partidas do destino. O ressalto que me havia rasteirado era a ponta levantada de
uma placa de granito, quase quadrada, que num dos lados tinha uma pequena
reentrância, no género da das tampas dos esgotos. Já tínhamos passado por ela
inúmeras vezes e não fosse este percalço, passaria mais uma vez desapercebida,
escondida na calçada irregular. Ligeiramente acima desta, estava uma pequena e
estranha rocha que nos tinha captado toda a atenção sempre que a cruzávamos.
Pelo que até ser castigado não nos tínhamos apercebido da sua presença. Pela
inclinação da ladeira onde estava, que começava a subir perto da fonte,
percebemos facilmente que se encontrava num plano substancialmente superior
a esta. Já nos tínhamos deparado com alguns curiosos, pelo que resolvemos
voltar mais tarde, tendo apenas a lua e estrelas como testemunhas.
Cerca da mesma hora do dia anterior, voltámos carregados outra vez com os
acessórios. Acerquei-me da tampa com o pé-de-cabra em riste e introduzi-o
decididamente no entalhe. Fiz um pouco de força e a tampa cedeu. Arrancámo-la
do seu encaixe e apontámos as lanternas para o interior. Era uma espécie de
caixa de derivação. A água corrente era dividida em duas por uma bifurcação em
pedra, dirigindo um pequeno manancial na direcção da fonte e outro mais
abundante em direcção divergente. No lado de escoamento mais abundante,
reparámos num corte na pedra envolvente, onde se poderia alojar uma tampa que
funcionaria como uma pequena comporta.
“Se taparmos este lado, princesinha, conseguimos encaminhar toda a água
para a fonte.”
“E como é que o vamos fazer? Não temos aqui nada que sirva de tampa!”
“Já vês!”
Tirei as minhas coisas dos bolsos e despi o casaco impermeável que trazia.
Peguei nele, enrolei-o e encatrafiei-o no espaço de escoamento, fazendo com que
a água começasse a invadir-me os braços e a ser forçosamente encaminhada para
o lado da fonte.
“Agora a fonte tem de deitar mais água. Vamos lá ver princesinha.”
Mais uma decepção. O débito era sensivelmente o mesmo.
“Há aqui qualquer coisa de errado, ou então aquela água não vem dar à
fonte Luís.”
Estava tão desalentado que a resposta que lhe tentava dar ficou abafada pelo meu
queixo empedernido. Estávamos a ser gozados à força toda, bem o dizia o
Gargantas.
“Temos de lá voltar. Há mais qualquer coisa, de certeza.”
Voltámos à caixa de derivação e decidimos tapá-la para abafar o ruído da água a
correr.
“A água vai na direcção daquele muro. Devemos ouvi-la a correr por baixo
da calçada.” Disse eu esperançosamente.
Percorremos a direcção do escoamento e junto ao primeiro muro onde se dirigia,
ouvimos um ligeiro borbulhar mesmo junto dele. Iluminámos o lugar e afastando
algumas ervas, deparámo-nos com uma tampa semelhante à anterior. Novo
alento! Mais uma tarefa para o pé-de-cabra. Esta não foi tão fácil de desencaixar,
tivemos de cortar primeiro todas as ervas e limpar as frinchas da terra que as
sustentava, só depois a conseguimos mover. Quando aclarámos o que esta
escondia, demos com nova bifurcação de águas. O encaminhamento que fizemos
perdia-se por outra derivação que escoava praticamente todo o caudal,
permitindo apenas um pequeno fluxo em direcção à fonte.
“Aqui está o motivo! Precisamos de tapar este também.”
“Eu ponho aí o meu casaco.” Sugere Liliana começando a despi-lo.
“Não vale a pena. Esta abertura ainda consegue ser maior do que a anterior.
É mais larga e o mais certo era o casaco ir por aí abaixo.”
Não tivemos outra solução senão ir a casa buscar algo que servisse o propósito.
D. Maria propôs-nos a utilização de algumas telhas antigas que estavam na loja.
Fomos buscá-las e pegámos em duas. Pela dimensão até uma deveria chegar,
mas era melhor prevenir. Antes de retornarmos, ainda nos munimos de alguns
panos velhos para vedar eventuais fugas.
Uma telha era mesmo à justa, mas um pequeno desequilíbrio desalojá-la-ia
facilmente. Envolvemo-la num pano e entalámo-la, já não abalaria de seu leito.
A água passou quase totalmente para o encaminhamento que julgávamos ser o da
fonte. Vedámos ainda o melhor que conseguimos o espaço entre a telha e a
vazão, parando quando nos pareceu estanque.
Quando regressámos à fonte, esta jorrava água em tanta abundância que já fazia
transbordar o tanque. Tínhamos acertado na mouche! Mais um degrau subido.
“Parece que o – Tanto encherá que esventrará – ainda não foi desta.”
Lamentei-me.
“Agora falta o mais fácil princesinho!”
“Princesinho???”
“Sim, prin-ce-si-nho!!! Porque principezinho qualquer um é. E tu és único,
meu princesinho!”
Sentime como o Topo Gigio quando estava envergonhado, retorcendo o corpo
sob os joelhos e braços dobrados. Corei de alto-a-baixo, mas fez-me sentir o
mais feliz dos homens.
“Conta-me! O que é que falta?”
Com ar trocista, sacou dois panos da mochila, enrolou-os e encatrafiou-os nas
saídas da fonte como uma rolha.
“Espera, vamos ver o que acontece!”
Não tardou muito, o pano saltou da bica repartida, deixando esguichar água
como em agulheta de bombeiro. Voltámos a pô-lo no sítio e trancámo-lo com
uma pequena pedra. Ficámos por um longo período a olhar ansiosamente para a
irredutível pedra, até que a água começou a assomar pelos lados, subindo
lentamente pelas laterais desta, até fazer um leque de cada lado e depois por
cima. Momentos depois começou a deslizar como que empurrada pelo lado de
dentro e saiu completamente tombando dentro do tanque, presenteando-nos com
uma onda de maré viva que ainda hoje, cada vez que penso nela, se me
enregelam os ossos. Estávamos como uns pitos, mas só nos apetecia gritar de
felicidade, não fosse permanecermos emudecidos, com o queixo caído, a
contemplar alternadamente o buraco e a pedra que jazia no fundo do tanque.
“Não vamos conseguir entrar ali com este caudal. Temos de ir repor o que
fizemos nas caixas.” Avisa Liliana.
Animados pela descoberta e rezando para que ninguém passasse pela fonte,
demorámos pouco mais de dez minutos a deixar as caixas como estavam antes
de lhes tocarmos, finalizando com as respectivas tampas. Trouxemos tudo de
volta, não fosse alguma coisa alarmar alguém.
A fonte apresentava novamente o caudal inicial. Mesmo assim, seria muito
difícil entrar no buraco de onde tinha saído a pedra. Eu só conseguiria passar se
estivesse deitado sobre um ombro e teria de me contorcer um pouco para vencer
a abertura. Iluminámos e local e vimos que a cavidade subia um pouco e se
prolongava, alargando mais adiante. Sem equipamento auxiliar não me atreveria
a aventurar no seu interior. Sabia-se lá com o que me podia deparar. Então deixar
Liliana tentar é que estava completamente fora de questão.
Bateram as três da madrugada no relógio do castelo. As roupas molhadas
açoitadas pelo frio invernio começavam a castigar-nos demasiado. Era hora de
repormos a pedra no seu lugar e retornarmos ao lar onde nos poderíamos mudar,
para então mais tarde estudar uma forma de conseguir aceder ao interior da gruta
por onde a água era encaminhada.
Afastei Liliana e meti-me dentro do tanque da fonte para conseguir pegar
devidamente na pedra e encaixá-la no puzzle mor. Já estava molhado e estava,
pouco tinha a perder. Antes de a entregar ao seu túmulo, apontei uma vez mais a
lanterna para tentar descobrir o que segurava firmemente tal calhau. Perscrutei
todos os lados e nada estava à vista. Será que tinha sido arrastado quando da sua
expulsão? Era pouco plausível, pelo menos no fundo do tanque não se via nada
que não fosse um pouco de areia e pequenas pedras. Encaixei-a sem grandes
problemas no seu lugar e nivelei-a à parede exterior para que não desse nas
vistas.
D. Maria levou as mãos à cara quando nos pôs os olhos em cima.
“Ai Deus meu! O que aconteceu?”
Apesar dos queixos tilintantes, as nossas caras de satisfação tranquilizaram-na e
deram a entender que muito haveria para contar.
Depois de nos livrarmos das roupas encharcadas e de vestir os pijamas e robes,
voltámos ao estacionamento habitual. Bem precisávamos de um calorzinho após
húmida e inesquecível tormenta.
Estava a ver que os olhos lhe saltavam das órbitas, enquanto esperava
ansiosamente que aquecêssemos o corpo o suficiente para conseguirmos narrar o
sucedido. Estivemos meia hora a contar-lhe em pormenor todas as etapas que
percorremos e o que por fim encontrámos. Conjecturámos sobre o que
poderíamos achar e acabámos por aí, embalados por altos sonhos. Apesar da
excitação, estávamos consumidos pelo cansaço. Precisávamos de repousar
urgentemente.

Capítulo IX – O segredo
No final da manhã, trespassada uma noite promissora, reunimo-nos para tentar
encontrar uma solução que nos permitisse explorar o que tínhamos descoberto.
“Podemos arranjar uma plataforma móvel que te permita mover sem
esforço pelo túnel. À parte o rasgo por onde corre a água e a ligeira
inclinação, a pedra parece bem plana, pelo que será mais fácil percorrer o
trajecto. Além de que pouco ou nada te molharias. Estava a pensar em
adaptarmos alguns skates para o efeito, que me dizes?” Propõe Liliana.
“Skates??? O que é isso Li?”
“São uma espécie de patins compridos, vovó. Uma prancha com um par de
rodas ligadas por um eixo em cada topo.”
“Hmmm, estou a ver. Iguais àqueles que alguns malucos que aparecem na
televisão usam nos pés, fazendo saltos e piruetas nisso?”
“Tal e qual, D. Maria.” Concordei, divertido com a descrição.
“É terça-feira, Luís. De certeza que encontramos alguma loja de desporto
aberta em Celorico da Beira. Vamos até lá?”
Esperámos que se abeirassem as três da tarde para evitar esperas desnecessárias
e pusemo-nos todos a caminho. Encontrámos duas lojas com skates e voltámos à
primeira que visitámos, onde os preços eram mais comedidos. Apesar de a
qualidade poder ser ligeiramente inferior, não era factor primordial para o uso
que lhes íamos dar. O empregado começou a reinar connosco quando lhe
dissemos que precisávamos de três unidades.
“A senhora é corajosa!” Brincou ele referindo-se a D. Maria.
“Eu cá não sei nada disso. Se fosse noutros tempos até era capaz de tentar.
Hoje, só se fosse para ir direitinha para o cemitério.” O tom de voz aplicado
deu origem a uma gargalhada geral.
Apesar de dois skates serem aparentemente suficientes para o propósito,
resolvemos levar um como suplente para o caso de algum imprevisto. Havia-os
com pranchas de todas as formas e feitios. Optámos por uma prancha larga e
com o mínimo de curvaturas. Precisávamos de algo estável e o mais direito
possível, já que o corpo ia aí assentar, com conjunto de trucks (eixos),
amortecedores e rodas extralargos de baixo perfil, para permitir uma passagem
mais confortável pela abertura. Caso optássemos por conjuntos elevados,
corríamos o risco de nem sequer conseguir atravessar o espaço correspondente à
pedra amovível. Adquirimos também um jogo de ferramentas para desmontar e
montar o que fosse necessário. Fomos a uma drogaria local comprar uma tira de
dois metros por dez centímetros de largura de chapa inoxidável com dois
milímetros de espessura, uma tesoura de chapa, um conjunto de brocas para
metal, parafusos, porcas, anilhas e tubo de nylon, tudo de oito milímetros, que
julgámos suficientemente resistentes para unir eficazmente os skates, pondo-os a
funcionar articulados como um camião com atrelado. Fizemos um inventário
mental do que havíamos encontrado de ferramentas em casa de D. Maria e
estendemos a lista inicial do que pretendíamos com um berbequim barato,
serrote de ferro, massa lubrificante, duas limas, uma fita métrica e uma craveira
económica de origem chinesa. Na verdade, estávamos a fiar-nos em golpes de
vista, faltavam-nos medidas precisas por não termos na altura instrumentos para
as apurar. Tudo isto nos faria falta, era preferível sobrar do que termos de voltar
a Celorico para as adquirir. Em Linhares, só se pedíssemos emprestado, o que
nos obrigaria a dar respostas a perguntas inconvenientes.
Foi na mesa de cozinha que improvisámos a oficina. Na loja, não só ficávamos
mais susceptíveis a curiosos, como não tínhamos nenhuma ficha eléctrica onde
ligar o berbequim. Fizemos um furo de doze milímetros, correspondente ao
diâmetro exterior dos tubos de nylon, em dois dos skates, a três centímetros do
limite, para lhe assegurar a resistência suficiente, onde introduzimos os tubos
cortados num comprimento imperceptivelmente superior à espessura da prancha,
a fim de facilitar a articulação da chapa que haveria de os unir. Em dois bocados
desta, com vinte por dez centímetros de largura, que arredondámos nos cantos e
às quais embotámos as arestas com uma lima, fizemos dois furos de oito
milímetros em cada, centrados a dois centímetros do limite, onde passariam os
parafusos do mesmo tamanho e viriam depois a ser unidos por um par destes,
acrescidos de anilhas e porcas com contraporcas.
“Até parece um serviço de serralheiro princesinha.”
“De um verdadeiro profissional!” Respondeu, orgulhosa da nossa obra.
Estava na altura de testar a engenhoca. Pus-me de barriga para baixo
paralelamente à dita cuja e apoiei-me em mãos e pés, rodei o corpo para subir e
distribuí-lo sobre os dois, ficando assente sobre um ombro no limite do skate e
uma perna no outro. A pressão exercida pelo corpo fez-me aperceber
dolorosamente do efeito das arestas da cabeça hexagonal dos parafusos na zona
da anca. Tivemos de desmanchar tudo para os retirar e arredondar as suas
cabeças, limando-as. Ficaram bem melhor, agora já o efeito era diminuto. Sentia
apenas uma pequena saliência, nada de preocupante. O conjunto estendia-se do
meu ombro até ao meio da canela, ficando a articulação ao nível da bacia.
Calhava bem. Caso fosse preciso descrever alguma curva, bastaria arquear
ligeiramente o corpo, que os skates deviam acompanhar naturalmente o
movimento. A maior dificuldade era manter a estabilidade com o corpo na
horizontal, apoiado apenas sobre um ombro e uma perna. Sem a ajuda dos
membros a amparar não era fácil.
“Deixa-me experimentar Luís.”
Liliana teve a mesma sensação que eu, mas acabámos por concluir que nos
estávamos a preocupar em vão. Iriamos encatrafiar-nos num buraco onde
estaríamos confinados, sem condições sequer de tombar, porque as paredes da
cavidade não o permitiriam, pelo menos junto à entrada. Acabámos por nos rir
da nossa idiotice. A nossa maior preocupação passou a ser a dúvida quanto à
possibilidade das rodas se enfiarem no rasgo de transporte da água, se tal
acontecesse seria algo difícil retirá-la de lá, pondo em causa a progressão no
trajecto. Tínhamos dúvidas que estas fossem largas o suficiente para garantir
sempre um ponto de apoio. Só com a experiência teríamos a resposta.
“Estamos a esquecer-nos de uma coisa Luís. Com a dimensão das chapas
que aí pusemos, não vamos conseguir dobrar os skates para ocuparem
menos espaço. Teremos de os levar direitos.”
Peguei neles e tentei pô-los lado a lado rodando-os pela articulação de chapa,
conseguindo apenas formar um ângulo recto entre eles.
“Pois é, tens razão!”
“Das duas uma, afastamos as chapas, para que os skates encaixem um no
outro, o que lhes vai retirar estabilidade ou então fazemos novas chapas
com mais uns quatro centímetros que permitirão que os skates encostem
lateralmente.”
“É melhor fazermos outras chapas. Transportá-los assim será muito
incómodo e para afastarmos as chapas teríamos de abdicar da rigidez
estrutural, comprometendo a segurança.”
Pusemos mãos à obra e depressa acabámos o novo conjunto. Ficou perfeito,
articulavam perfeitamente e quando dobradas ficavam reduzidas ao tamanho de
um único skate, embora com o dobro da largura, mas com isso podíamos nós
bem.
“Chiça – sou mesmo burro!”
“O que foi? Fizemos alguma coisa mal?”
“Esqueci-me duma coisa. Devíamos ter comprado lanternas de mineiro. Vai
ser uma dor de cabeça levá-la na mão.”
“A esta hora já está tudo fechado. Se calhar não é tão grave assim, espera
um pouco.”
Retornou com algumas fitas de cabeça na mão.
“Aqui tens a solução!”
Não consegui perceber o que é que Liliana queria dizer com aquilo até que
colocou uma fita na cabeça e entalou uma lanterna nela.
“És um génio, princesinha!”
Pegámos em fita-cola e unimos duas lanternas a outras tantas fitas de maneira a
que ela ficasse segura obliquamente para que o facho apontasse
aproximadamente na mesma direcção dos olhos quando tivéssemos a cabeça
ligeiramente erguida para acompanhar o avanço no túnel. O resultado satisfez-
nos depois de termos apagado as luzes e simulado a posição que esperávamos
adoptar para o efeito. Não era o ideal, mas servia perfeitamente.
D. Maria que já tinha a comilaina pronta tinha-se acercado de nós, apreciando o
nosso engenho.
“Vejam lá se ainda se magoam com isso. Têm de ter cuidado!”
“Isto não é perigoso vovó!”
“Pois não D. Maria. Ora veja!”
Depois de algumas demonstrações e explicações, deixámo-la mais descansada.
Realmente não parecia nada de mais.
Depois do repasto, e até chegar a hora de testar a nossa obra, entretivemo-nos à
mesa a elogiar o génio do Gargantas. Ainda estava por descobrir a forma como
ele tinha conseguido bloquear aquela pedra.
“Se uma cabeça assim tivesse estudado, imaginem só do que é que ele não
seria capaz!”
“Faz-me lembrar o Van Gogh, de quem tanto gosto.” Desabafei.
“O Van Gogh era pintor Luís!”
Ri-me.
“Eu sei, princesinha. Os seus quadros alimentam-me a alma. Têm um efeito
inexplicável sobre mim. Mas referia-me infelizmente ao facto de apenas
depois de uma vida de miséria lhe terem reconhecido o imensurável talento.
É inacreditável como é que alguém com a sua capacidade e espírito
inovador, que com algumas pinceladas e das mais variadas formas e
técnicas facilmente conseguia transmitir o que via e sentia, tivesse sido
quase desprezado ao ponto de não conseguir sequer sobreviver para além
dos trinta e sete anos, encontrando somente na morte o reconhecimento que
lhe era devido.”
“Vendo dessa forma…”
“Os quadros são assim tão bonitos?” Admira-se D. Maria.
“Já lhe mostro D. Maria, julgará por si.”
Fui buscar o portátil e puxei-as para o meu lado afastando ligeiramente o
monitor para apreciarmos com um enquadramento mais adequado o slide-show
de algumas das centenas de pinturas que tinha retirado do site
http://www.vggallery.com/. Visitava-o inúmeras vezes, em especial quando a
vida me era mais madrasta. As suas cores e formas partilhavam comigo traços do
transcendente além. Encarava-as como o espelho de uma alma brilhante que
tinha sido ofuscada durante a sua forma física. É indescritível como é que
alguém consegue, com linhas por vezes quase toscas, dar-nos a conhecer a
perfeição. Arrebatados, o silêncio instalou-se entre nós. Os olhos humedecidos
de D. Maria, quando a esclareci que eram os auto-retratos de Van Gogh que
estavam a passar naquela altura, deram-me a saber que não era o único a sentir-
me dessa forma perante eles. Um dos meus principais projectos de vida era um
dia visitar o seu museu em Amsterdão. Gostava até de imaginar a sensação de
pessoalmente contemplar algo que tanto valorizava virtualmente. As cores,
traços e luminosidade deverão ser ainda mais fascinantes. Foi impossível
desviarmo-nos mais deste tema. D. Maria assaltou-me com infindáveis perguntas
sobre como, quando, onde e porquê. Parecia uma criança curiosa. Isso deixou-
me satisfeito. Apenas numa pequena mostra das suas obras, tornara-se também
fã incondicional do eterno mestre.
Foi Liliana quem alertou para a chegada da hora. Colocámos os agasalhos e
preparámo-nos para ir explorar o desconhecido, com a mochila das ferramentas
às costas e o engendrado apetrecho debaixo do braço. Liliana levava outra
mochila vazia – just in case.
Depois da habitual espreitadela à quietude na pousada e nos arredores, era altura
de iniciar trabalhos. Puxei do pé-de-cabra e tentei em vão sacar a pedra do lugar,
a qual apenas vacilava de um lado para o outro, conforme tentava
alternadamente em cada lado. Só quando introduzi também a chave-de-fendas,
para trabalharem em conjunto, consegui arrancá-la da sua cama. Não tive outro
remédio senão encharcar-me de novo até aos joelhos para movimentar a pedra
com o menor ruído possível. A nossa sorte era não estar ninguém nas imediações
quando no dia anterior a pedra caiu de rompante no tanque. Tinha sido um
estardalhaço e pêras. Colocámo-la no canto da fonte e aprontei-me a enfiar a
cabeça na abertura depois de ter desdobrado os skates, colocando na abertura a
ponta de um deles para auxiliar a passagem. Tive de retirar a lanterna que já
tinha na cabeça e que me impedia de progredir. Estendi os braços para puxar o
corpo com as mãos e consegui passar a corneta, mas empanquei quando cheguei
aos ombros. Era volume a mais, tive de livrar-me do grosso casaco e tentar
novamente. Nem assim dava para transpor. Era demasiado largo de ombros. Sem
o patim talvez desse, mas era quase impossível continuar por não ter espaço
suficiente para me movimentar rastejando.
Nem o frio escabroso me conseguia arrefecer o entusiasmo e impedia de suar a
estopinhas, tal era a erupção do vulcão que acordara dentro de mim.
“Tenho de tentar eu Luís. Devo conseguir passar.”
Por muito que me custasse, estávamos sem alternativas. Fi-la prometer que teria
todo o cuidado e que retornaria à mínima dúvida ou obstáculo.
“Vou atar este fio ao último eixo do patim e caso aconteça algo é só dares
um toque que eu puxo-te de volta.”
“Combinado. Mas é melhor atá-lo só à minha cintura. Imagina que o patim
me foge por qualquer motivo.”
“Tens razão.”
Passei-lhe o cordel pela cintura e dei-lhe vários nós. Passei-lhe a lanterna que
tinha ao pescoço e amparei-a para se deitar sobre o patim. Depressa constatámos
que era escusado tentar passar usando o kispo que a agasalhava. Aliviada desse
volume foi-lhe fácil transpor a abertura. Ia já pela cintura quando me pediu para
a deixar recuar um pouco. Uma das rodas tinha-se enfiado no rasgo de água
dificultando o avanço. Aliviei a pressão que estava a fazer para a auxiliar a
ultrapassar a pequena subida e ela lá conseguiu corrigir o trajecto. Continuei
orientando a direcção da prancha móvel e meti o braço dentro da cova até não
conseguir mais alcance. Puxei da lanterna para espreitar e já só lhe vi os pés no
cimo da pequena rampa.
“Estás bem?” Atirei em surdina para dentro do buraco.
“Estou!” A sua voz saiu gutural. Transformada pela reverberação do espaço
interior.
“Então, o que vês?”
Não obtive resposta. Pela quantidade de fio que tinha deixado correr não podia
estar muito longe.
“Li, o que se passa princesinha? Estás bem?” Começava a ficar apavorado
quando senti três esticões no cordel.
Apressei-me a tirá-la lá de dentro. Estava desnorteado. Só me davam ganas de
me agarrar ao fio com quantas forças tivesse, mas as pressas podiam aleijá-la.
Tive de manter a calma e esperar que aflorasse à zona que eu farolizava. Lá
vinha ela de marcha atrás refreando o movimento com as mãos enluvadas a roçar
a parede.
Quando saiu estava lívida como cal e tremia como varas verdes. A respiração
arquejante impedia-a de falar.
“O que foi princesinha? Acalma-te e fala comigo por favor!”
“Passa-me a mochila vazia. Já vês!” Respondeu-me abafada.
Dei-lhe a mochila que segurou às botas apertando os atacadores em volta de uma
das alças e ajudei-a a reentrar.
“Vai-me dizendo alguma coisa para ficar descansado. Ia morrendo com o
susto quando não me respondeste!”
“Já venho. Fica sossegado. Aquilo é seguro.” Retorquiu numa voz trémula que
não me convenceu muito.
Pareceram-me séculos os poucos minutos que demorou a dar-me novamente
sinal para a puxar. Trazia a mochila arrastada por uma mão que mantinha para lá
da cabeça.
Saiu do buraco e sentou-se na borda da fonte com as pernas dentro da água e a
mochila sobre os joelhos.
“Abre-a!”
Corri o fecho e entreabri-a apontando-lhe a lanterna.
“Ai cum caraças!!!! Meu Deus!!!” Um enorme crucifixo e diversas peças
enchiam a mochila. Os dourados reflexos que emanavam, ampliados por pedras
de mil e uma cores, eram bem esclarecedores do inestimável conteúdo.
“O falso latão.” Titubeei.
Liliana olhou para mim e começou a rir-se incontrolavelmente. Tive de lhe pôr
um dedo em frente dos lábios para a conter.
“Se nos ouvem estamos feitos.”
“Isto é só o início meu princesinho!”
Apressámo-nos a ir a casa deixando o buraco aberto. Era quase uma da manhã.
Tínhamos de ser céleres para voltarmos a buscar o que pudéssemos.
D. Maria ia desmaiando quando a neta lhe mostrou o que tinha acabado de
encontrar. Sentou-se hirta no sofá contemplando as peças que havíamos retirado.
“Sempre era verdade!”
“Há lá muitas mais, vovó! Temos de lá voltar antes que sejamos descobertos.
Não podemos perder tempo. Depois falamos.”
Andámos numa azáfama até às quatro da manhã. Fizemos mais quatro recolhas e
fechámos a fonte. Não podíamos arriscar ficar até mais tarde porque pouco
faltava para algumas pessoas se levantarem para ir fazer a ordenha do gado.
Nem sabíamos o que era cansaço. Estávamos com uma dose de adrenalina capaz
de nos manter acordados por semanas. Depois de tomarmos um banho
escaldante descemos e juntámo-nos à D. Maria que estava fascinada com uma
taça em ouro, incrustada com inúmeras pedras preciosas das mais variadas cores
em redor do cálice e do pé. Fustigadas pela luz intermitente das labaredas da
lareira, as pedras faulhavam num renascer promissor abandonando séculos de
sufocante cativeiro. Imaginem se fossem pedras lapidadas, iluminariam
Linhares. Eram gemas em bruto, translucidas, quando muito ligeiramente
polidas.
“A quem teria pertencido? Uma taça destas haveria de ser de algum rei…”
Ventilou.
“Fosse quem fosse, era de certeza pessoa muito importante!” – Confirmei.
Obviamente que tal obra não teria nascido para indigente regaço.
Tínhamos em mãos algo de valor incalculável. Não só pela preciosidade e
nobreza dos materiais, mas, acima de tudo, pelo valor histórico dos achados. Já
tinha visitado alguns dos melhores museus nacionais, mas nunca me tinha
deparado com tal variedade e riqueza, e, muito menos com peças tão bem
conservadas. Algumas aparentavam ter sido acabadas de fabricar, envelhecidas
apena pelo pó que se depositara durante intermináveis anos. Estávamos só no
começo. Liliana assegurava que estas eram apenas uma amostra do que lá
encontrara. Embora não pudesse precisar, porque o amontoado não era
facilmente perceptível, jurava que se o que encontraram era apenas 1/3 do que o
Gargantas escondera, aquilo que ele apregoava era bem verdade: Nem três juntas
ou carroças de bois conseguiriam carregar a sua fortuna. Mais pelo volume do
que pelo peso, mas ainda assim corroborava o proclamado. Só a taça que a D.
Maria mirava insistentemente pesava mais de um quilo. As pedras maiores, uma
no cálice e outra na base, estavam alinhadas, eram de um vermelho vivo
sangrento, com mais do dobro do tamanho das restantes, estavam cravadas no
centro de uma cruz dos templários, ladeadas por uma pedra verde em cada uma
das quatro hastes. Apostava que eram rubis e esmeraldas. Pelo seu tamanho, os
rubis não teriam menos de cinquenta quilates cada (aproximadamente 10
gramas). Pelo que sabia, são tão ou mais valiosos do que diamantes e
extremamente raras as pedras grandes, imaginem só quanto poderiam valer.
Antes de nos recolhermos para repousar o corpo e deixar a mente retemperar,
tivemos de dar uma volta à casa para escolher os sítios onde guardar o tesouro.
Enchemos uma arca antiga de madeira, onde D. Maria guardava alguns
cobertores que despejámos no guarda-fatos, distribuímos algumas peças pelos
diversos quartos, escondendo-as sob lençóis e em gavetas cumeadas por
humildes peças de roupa subitamente enriquecidas.
O beijinho que dei à Li aquando da despedida desprendeu um afectuoso sorriso
da cara de D. Maria ainda mais rejuvenescida pela aventura.

Capítulo X – Aniversário dourado
Estava já de pijama vestido, preparando-me para aterrar no vale dos lençóis,
quando recebi uma mocada cerebral pela recordação de algo inesquecível que
me havia incompreensivelmente passado. Dirigi-me apressadamente à porta do
quarto de Li e bati-lhe gentilmente. D. Maria abriu a sua primeiro, auditando a
ocasião com um olhar reprovador.
“Parabéns princesinha!!!” Felicitei Liliana, abraçando-a.
A vovó compreendeu finalmente a intenção, juntando-se-nos em tardia e
calorosa saudação. Afinal não se tratava de nenhuma traquinice a desenvolver-se
nas suas costas e debaixo do seu tecto. A minha expressão facial deu-lhe a
entender que aceitava as desculpas que me tinha dirigido num semblante
arrependido de conclusões precipitadas.
Agora era hora de ir descansar. Embora existissem motivos para permanecermos
eternamente acordados, o corpo começava a dar sinal de extrema fadiga.
Parecendo que não, o corrupio em que andámos, transportando tudo o que
pudemos, deixou-nos exaustos.
De pálpebras pregadas, as orelhas alertavam-me para um ruído crescente.
“Tá, tá, taá… TÁ, TAÁ, TAAÁ…” Queixava-se a porta para que lhe
puséssemos fim ao sofrimento infligido por graduais e incisivas pancadas.
Quase onze da manhã, nem D. Maria tinha escapado ao arrebatamento da alma e
inevitável repouso do corpo depois de conturbadas labutas e emoções.
“Quem é? QUEM É?” Ouvi-a proferindo, enquanto descia as escadas com as
persianas que teimavam em não descolar completamente. Afinal era uma
senhora de idade já considerável que precisava de cumprir uma certa rotina para
ficar bem. Depois de uns dias assim, era perfeitamente compreensível que
tivesse quebrado um pouco aquela peculiar vitalidade.
Não houve resposta, fosse quem fosse, ou era parvo ou para aí caminhava. O
revoltar da chave e o entreabrir da sólida porta depressa deram a resposta.
“Nenê!!! Ai minha filhinha. Que bom!” As suas palavras transpiravam
felicidade, enquanto agarrava emocionada a mãe de Liliana.
“Hehehe…” Correspondia alegremente D. Inês.
“Mamã!” Gritou Li do cimo das escadas, que desceu apressadamente de
encontro aos braços da mãe.
“O Neca?” Perguntou D. Maria, querendo saber do genro.
“Já aí vem. Está a tirar as coisas do carro.”
“Parabéns meu amor!”
“Obrigado mamã!”
“Luís! Luííís!!! Vem conhecer os meus pais.” Chamou-me Liliana numa voz
apelativa.
Acabei de me arranjar o melhor que pude. Embora elas estivessem ainda em
pijama, eu não me sentiria bem em encontrar alguém pela primeira vez nessas
condições. Tinha um administrador que dizia: Não há uma segunda oportunidade
para causar uma boa primeira impressão! Com a qual eu concordava plenamente.
Não querendo de modo algum deixar qualquer tipo de dúvida em alguém que
pretendia ajuizasse da melhor maneira sobre a minha pessoa, ainda passei pela
casa de banho para aprumar o cabelo e visual. Só então me senti capaz de ser
apresentado.
O pai de Liliana tinha entretanto chegado e matado saudades da filha e da sogra.
Dirigi-me firmemente ao grupo, mas com uma sensação latente de
enrubescimento excessivo.
“Mamã, papá, este é o Luís!” O seu tom de voz e pose denunciaram-me
irreversivelmente. De tal modo, que o pai conseguiu ficar ainda mais corado do
que eu. Já D. Inês presenteou-me com um afável sorriso.
Estendi a mão ao pai que me retribuiu com um aperto decidido. D. Inês mantinha
o sorriso nos lábios quando nos saudámos e a D. Maria olhava ternamente para
mim e Liliana. Só faltou dizerem que era o namorado de Liliana, embora tivesse
ficado perceptivelmente implícito.
Ajudei o pai a meter dentro de casa a bagagem e apressei-me a ir à arrecadação
buscar lenha que escasseava. Compus as cinzas, carreguei e aticei a lareira que
estava já moribunda.
“Nem imaginam o que temos para vos contar mamã!”
“Está bem meu amor. Dá-nos só um bocadinho. Temos de falar com a vovó
primeiro.”
Os pais e a avó foram para o primeiro andar. Não sei porquê, fiquei com a
sensação que estavam a falar de mim. Esperava que fosse por bons motivos.
“Estás bem princesinho?” Provocou-me Liliana, que se tinha apercebido da
minha inquietação.
“Achas que eles gostaram de mim?”
“Não, não acho… Tenho a certeza!” Ripostou rindo-se.
“Mas o teu pai ficou tão corado que pensei que ia explodir.”
“Ele é mesmo assim. Não sabia de nada e foi a dúvida que o pôs mais
nervoso.”
“E era preciso? Pelo teu tom de voz e ambiente, só um grande distraído não
se apercebia.”
“Ahahah – Isso é verdade!”
“Como é que hei-de chamar o teu pai? Ouvi a vovó a chamar-lhe Neca, mas
isso é um diminutivo. Suponho que seja de Manuel.”
“Nem mais. Costumam chamá-lo de Manuel ou Silva, conforme o caso. Mas
tu é melhor tratá-lo por Manuel, temos de o habituar à familiaridade.” Riu-
se.
Já vinham a descer, quando Liliana foi ao encontro deles e lhes pediu para
retornarem ao andar de cima.
“Contaste-lhes, vovó?”
“Não, acho que devem ser vocês a fazê-lo.”
Entretanto, os pais de Liliana pegavam em conjunto num envelope que
entregaram à filha.
“O que é isto?”
“A tua prenda!”
Liliana abriu-o num ápice e tirou de lá de dentro a chave de um Volkswagen. Os
olhos cintilaram, radiantes, e um sorriso tomou conta do seu rosto.
“Um carro – Que maravilha! Obrigado!!! Onde está?”
“Ainda estivemos para o trazer, mas está em casa à tua espera. Antes que
houvesse algum azar. É um Golf, cinza-prata, como tu gostas.”
“Yesssss!”
Apesar de já ter a carta há uns anitos, quando precisava usava o carro dos pais.
Assim a independência era outra. Escusava de estar sujeita à disponibilidade ou
de fazer pedidos de reserva antecipados. Os pais muitas vezes desistiam de
planos que tinham para fazer a vontade à filhinha querida. Acabavam-se esses
condicionalismos.
“Agora vamos todos lá acima! Temos de vos mostrar uma coisa.” Pediu-lhes.
A estupefacção cravou-se-lhes no rosto quando Liliana abriu a arca onde
tínhamos colocado uma boa parte das peças.
“Onde arranjaram isto?”
Rimo-nos desenfreadamente, nem D. Maria se conteve. Deixámos as respostas
para mais tarde. Em vez disso fomos aos restantes lugares mostrar tudo o que
tínhamos encontrado. À incredulidade seguiram-se perguntas às quais
respondemos já reunidos à frente da lareira. Estivemos duas horas a contar-lhe
todos os pormenores.
“Ainda lá há mais?” Perguntou boquiaberto o pai.
“Muito mais!”
“Meu Deus! Deve valer uma fortuna.”
“Nem é bom pensar muito nisso, senhor Manuel, senão ainda nos dá um
treco.” Observei.
“Vamos precisar de uns tempos para conseguir tirar tudo de lá. Vou
telefonar a desistir da entrevista. O que me dizem?”
Os pais apoiaram-na. Obviamente que deviam dar prioridade ao que tinham em
mãos. Dizer que era a oportunidade de uma vida era pouco para o que
testemunhavam. Dispuseram-se a colaborar no que fosse preciso, até a ajudar no
transporte. Agradecemos-lhes, mas após troca de algumas palavras, chegámos à
conclusão que era preferível continuarmos só nós a fazê-lo, embora pudessem
acompanhar todo o desenvolvimento se ficassem connosco em Linhares. Assim
ficou decidido para alegria de D. Maria, feliz por poder passar mais uns tempos
com eles.
Festejámos o aniversário de Liliana com um bolo feito pela D. Maria. A minha
prenda ficou prometida para depois. Em Linhares não encontraria nada
satisfatória para a ocasião e pretendia oferecer-lhe algo de memorável. Liliana
frisou diversas vezes que era desnecessário, sendo suficiente a minha
companhia. Embora isso me deixasse bastante satisfeito, claro que não deixaria
de o fazer.
O meu gerente ficou preocupado quando lhe liguei a pedir que me concedesse
nas semanas seguintes a totalidade das férias a que tinha direito nesse ano. Tinha
combinado gozar apenas duas, sendo a última de 2010, que me restava desse
ano, e a seguinte já de 2011. Não era normal fazer-se uma coisa dessas, pelo que
só após longas justificações e insistência o consegui convencer. Escusado será
dizer que voltei a necessitar de lhe pedir uma extensão da ausência que só foi
possível pela autorização excepcional de um período de dois meses de licença
sem vencimento.
Foram necessárias mais duas semanas para tirar tudo o que lá estava, num total
de 427 peças. Desde pulseiras que pesavam escassos gramas, até vasos e
crucifixos em ouro com alguns quilos, havia de tudo. A maior parte delas tinha
conotação religiosa. Interrompemos à sexta-feira e ao sábado, dias em que as
pessoas andavam até mais tarde na rua. Quando terminámos, a casa de D. Maria
não tinha qualquer recanto livre. Até um dos armários da cozinha ocupámos
completamente, deixando a louça à vista, pousada sobre os tampos. Se
aparecesse alguma visita inesperada, D. Maria diz que se desculpava com
limpezas. Precisávamos de as transportar para um lugar mais seguro. Se alguém
descobrisse, a nossa vida poderia correr sério perigo.
Na azáfama para terminar a recolha do tesouro, esquecemo-nos de procurar no
local as pistas dos dois terços que faltavam. Voltámos lá e Liliana levou a
máquina para fotografar o que fosse digno de registo. Encontrou uma gravura
esculpida na parede da caverna onde se podia ver aquilo que parecia um pastor
com 3 ovelhas por baixo dele, ladeadas por 2 cajados que as confinavam, cada
um seguro pela mão cerrada no topo dos braços estendidos, como se o indivíduo
estivesse na cruz, impedindo-as de se tresmalharem. Em cima, do lado direito,
estava representado o sol em grandes dimensões e com alongados traços
concêntricos reproduzindo radiosa luminosidade.
Faltava-nos apenas descobrir o mecanismo que tinha conseguido manter a fonte
inexpugnável, pelo que pedi a Liliana para numa derradeira visita, inverter o
sentido de saída, para que tentasse descobrir o que tão solidamente tinha
conseguido manter a pedra inamovível. Mesmo junto à entrada, do lado de
dentro, encontrou umas ferragens com aquilo que viemos a descobrir ser uma
espécie de bóia de autoclismo feita com algumas camadas de cortiça e articulada
através de algumas ligações com quatro linguetas. Passei-lhe uma chave de
fendas para ela a conseguir retirar do sítio onde estava encaixada. Só passados
uns bons dez minutos e danificando o aro exterior foi possível arrancá-la do seu
leito. Depois de analisada em pormenor a pedra que tantas vezes havíamos
deslocado, apercebemo-nos de quatro pequenos rasgos junto a cada um dos
vértices posteriores, onde tais trinques funcionavam. Não admira que ninguém a
conseguisse mover. A genialidade do Gargantas era deveras sublime. Simples e
fantástica! Quando aumentou o nível da água, a bóia acompanhou-o subindo e
libertando a pedra dos quatro ferrolhos que a aprisionavam. Ainda que por mero
acidente viessem a descobrir estas trancas, seria quase impossível movê-las, não
só pela forma das linguetas, mas também pela enorme pressão exercida sobre
estas decorrente do efeito de alavanca multiplicando várias vezes o peso do
conjunto bóia e braço articulado. Só mesmo destruindo as pedras onde tal
aparelho estava encaixado seria possível neutralizá-lo. Mas para isso seria
preciso ter conhecimento da sua existência ou que, entretanto, a fonte tivesse
avariado necessitando de uma intervenção mais profunda, coisa que nunca
aconteceu desde que o Gargantas lhe fez as obras de manutenção. Ainda
pensámos em repor o mecanismo no sítio, mas depois das amolgadelas
necessárias para o arrancar e de pensarmos a forma correcta de o activar,
resolvemos desistir. Seria uma tarefa hercúlea e incerta. Assim sendo, trouxemos
tudo connosco, queríamos manter e estudar aquilo que pudesse estar ligado a
esta incógnita e genial personalidade. Quem sabe um dia chegar até fazer
inaugurar um museu em seu nome?
Capítulo XI – Legado templário
A fase seguinte foi catalogar todo o espólio. Tirámos diversas fotografias a cada
uma das peças e redigimos a descrição mais detalhada possível das suas
características, incluindo dimensão e peso, reunindo toda a informação numa
base de dados em Access. Já Março nos acenava quando concluímos esta
empreitada. Registámos cento e trinta e uma peças onde se podia ver a cruz dos
templários e outras tantas com símbolos a identificar. Depois de muitas
pesquisas infrutíferas sobre a sua passagem por estas bandas, concluímos que a
história deveria ser muito provavelmente reescrita. Era difícil de acreditar que
fosse uma mera coincidência. E mais, numa das nossas muitas visitas à igreja
local, deparámos com algo que sempre nos tinha passado ao lado e que estava à
frente de toda a gente: No topo da porta lateral da igreja, desenhadas no arco que
a sustenta, encontram-se diversas gravuras ligadas também aos templários. Mais
um indício de que Linhares terá muito mais a descobrir do que aquilo que lhe é
reconhecido historicamente. Uma das maneiras de encontrar algumas respostas
seria dar a conhecer a um expert na matéria o que encontrámos. Mas a quem e
sob que risco? Nenhum de nós pretendia aventurar-se por alternativas
eventualmente tenebrosas. As notícias que estávamos habituados a ouvir sobre
este tipo de coisas eram, na esmagadora maioria das vezes, relacionadas com
crimes praticados na sua obtenção ou transacção. Imaginem só se sonhassem
com uma ínfima parte disto. No dia a seguir estaríamos com certeza prostrados e
o que tanto nos custara a conseguir já a caminho de parte incerta, enriquecendo
nefastas almas.
Conseguimos finalmente chegar a um consenso: Pegaríamos numa peça que
considerássemos adequada e consultaríamos vários antiquários. Se nos
perguntassem, diríamos que era uma herança de ancestral família e que
gostaríamos de a avaliar para efeitos de partilha. Resolvemos levar a taça que
tinha hipnotizado a vovó. Esperávamos que as suas características fossem
suficientes para nos elucidar sobre a origem das restantes ou pelo menos dar-nos
uma pista sobre isso. Só em Lisboa ou no Porto encontraríamos diversidade
capaz de nos garantir alguma equidade na avaliação e o máximo de fiabilidade
na informação que pretendíamos. Pela pesquisa que efectuámos na net, em
Viseu, onde estavam os antiquários mais próximos, existiam apenas dois,
número que considerámos insuficiente para o propósito.
D. Maria e D. Inês ficaram em Linhares, a filha não a quis deixar sozinha com
tudo o que lá estava. Era certo que ninguém tinha conhecimento, mas ela achou
melhor assim. Não fosse o diabo tecê-las. Saímos de Linhares às sete da manhã.
Fomos no carro do senhor Manuel, um Volkswagen Golf TDI com alguns anitos,
mas muito bem conservado. Com a sua condução calma e algumas paragens pelo
caminho demorámos três horas a chegar a casa deles, onde nos dirigimos
primeiro para que Liliana pudesse ver a sua prenda. Ficou maravilhada com o
carro com que tinha sido brindada e fez questão de dar uma voltinha antes de
partirmos, pelo que nos metemos todos dentro do Golf indo eu atrás e demos a
volta ao bairro duas vezes. Satisfeita a curiosidade e guardado o carro na
garagem, partimos à cata de respostas.
Foi muito rápida a primeira visita que fizemos. Quando lhe mostrámos a taça,
mirou-a de todos os ângulos recorrendo a uma lupa de mão, fixou o olhar nas
pedras, fez um ligeiro trejeito de desdém e teve a lata de sorrir abanando a
cabeça em negação dizendo-nos muito “honestamente” que era uma pena que os
chineses andassem a invadir o mercado com imitações de peças antigas como a
que tínhamos em mão. Apesar de ser uma réplica de escasso valor, feita de uma
liga de bronze especial para lhe dar uma cor que simulasse ouro, ainda estaria na
disposição de nos dar quinhentos euros por ela, tendo em conta a sua
originalidade.
Ficámos a olhar uns para os outros, indecisos se lhe haveríamos de dizer
algumas das boas ou de o ignorar simplesmente e abandonar o local. Foi o que
fizemos, despedimo-nos e virámos-lhe as costas. Quando chegávamos à porta,
chamou-nos de novo e tentou saber de onde éramos, o que fazíamos e se
pensávamos consultar mais alguém. O pai de Liliana disse-lhe que uma vez que
já sabíamos o que queríamos, não havia necessidade de consultar mais ninguém,
pelo que nos limitaríamos a transmitir essa informação aos demais familiares.
Não tendo obtido resposta quanto às nossas origens, intimidou-nos dizendo que
uma vez que se tratava de uma falsificação, precisava das nossas identificações
para comunicar à polícia em caso de necessidade. Obrigação a que estava sujeito
por força da actividade que exercia.
O senhor Manuel simulou uma consulta aos bolsos do casaco tacteando-os
exteriormente e lamentou-se por se ter esquecido dos documentos em casa,
escusando-se ao fornecimento dos da filha e meus por sermos meros
acompanhantes. Prometeu ir a casa buscá-los e passar lá de seguida. O antiquário
ainda tentou ficar com a guarda da taça, alegando que podia ser penalizado caso
não o fizesse, mas quando o pai de Liliana lhe disse que era preferível chamar as
forças de segurança, rapidamente mudou de atitude, dizendo então que ficaria à
espera que ele lhe levasse a identificação para poder recolher os elementos.
Claro que se a polícia fosse chamada ao local, este é que estaria em sérios apuros
por nos tentar enganar. Razão pela qual resolveu repentinamente confiar em nós.
Escusado será dizer que não pusemos mais lá os pés. O segundo antiquário a que
nos dirigimos, além de ter um aspecto mais respeitável, era visivelmente mais
honesto do que o anterior. Assim que lhe passámos a peça, começou a tremer e
pousou-a com enorme dificuldade de coordenação. Estava esgazeado a olhar
alternadamente para as pedras grandes. Fechou a porta e virou a placa indicando
que estava encerrado. Agachou-se e pôs no balcão um enorme livro retirado das
prateleiras inferiores que começou a desfolhar à procura de algo. Virou-o e
mostrou-nos uma imagem perguntando-nos:
“Onde é que encontraram o cálice?”
“Cálice? Hmmm… Nós chamávamos-lhe taça, até por causa do tamanho.
Mas se calhar tem razão.” Rematei, agradecido pela explicação.
Víamos erradamente o cálice como parte integrante de uma taça,
correspondendo à parte superior desta, mas descobrimos que a menção a cálice
ou taça é substancialmente diferente, principalmente no que concerne à
finalidade. Cálice tem implícita a conotação religiosa, sendo habitualmente um
objecto de pequenas dimensões, o que não era bem o caso deste, enquanto taça
tem outro significado e finalidade.
“Este é um cálice muito especial. Pensava-se até que não passava de uma
lenda. Isto é o sonho de qualquer arqueólogo!”
“O Santo Graal?” Perguntou Liliana empolgada.
“Não menina. Mas é algo que terá sido executado em sua memória: O Calix
Christi. Estes dois rubis grandes representam o sangue de Jesus Cristo. O
de cima simboliza o que foi recolhido pelo Santo Graal e o de baixo o que
santificou o solo onde foi derramado. Este é um dos objectos mais cobiçados
no mundo! Vocês correm grande perigo na posse dele. Têm de o guardar
num lugar seguro.”
Fitámo-nos entusiasmados, conseguimos a resposta que precisávamos, uma
alegria enorme pela confirmação do que suspeitávamos e pelo seu valor, mas,
por outro lado, o receio invadia-nos crescentemente. Aquilo que havíamos
transportado num simples saco de mão descaracterizado, nem na mais inviolável
das fortalezas estaria a salvo da cobiça alheia.
A descrição constante do livro correspondia ao que portávamos. Só não fazia
qualquer menção às dimensões e peso, quanto ao resto, até nas referências às
cores e ao significado das pedras era inequivocamente transparente. O cálice
passou de mão em mão, uma e outra vez, por apurados olhares trocados entre
livro e cálice.
“Pode facultar-nos um cartão seu para qualquer informação de que
possamos necessitar?” Pediu-lhe o senhor Manuel.
“Claro! Aqui têm.” Respondeu distribuindo um a cada.
Ecclesia – Antiguidades & Novidades, António Costa – Gerente, podia ler-se.
Em linha com o que estava à vista com os preços em destaque. Peças seculares e
também algumas bem recentes. Agradou-nos a transparência. Não era fácil
encontrar um sítio onde as respostas estivessem a descoberto, para que o cliente
não fosse enganado. Cada vez ficávamos mais com a certeza de que à segunda
tinha sido de vez. Escusámo-nos até a consultar mais algum. Não fosse o caso de
darmos com um vigarista como o primeiro e sairmos mal da situação.
“Senhor António, imaginemos que queríamos vender esta peça. Onde e a
quem é que podíamos recorrer?”
“Só mesmo uma leiloeira como a Christie’s, a Sotheby's ou outra do género
será adequada para esse fim. Garanto-vos que esse objecto é suficiente para
pôr a maior das salas a abarrotar de sedentos licitantes oriundos de todo o
mundo. Se recorrerem a outras vias sujeitam-se a serem enganados.
Escolham e contactem apenas uma delas ou darão origem a alguma guerra
em que não se quererão ver envolvidos. Olhem que o que mais se encontra
por aí é pessoas à espreita de oportunidades destas. Nem ao padre o
confessem!”
“Infelizmente, já hoje tivemos mostras disso, senhor António. Há cada
vigarista…”
“Os tempos estão difíceis, sabem? Claro que não é desculpa, mas a
necessidade aguça o engenho e desperta males adormecidos.”
“Ficamos-lhe muito agradecidos senhor António. Devemos-lhe alguma
coisa?”
“Eu é que vos fico eternamente grato pela oportunidade de ter algo em
mãos que fez valer uma vida inteira de trabalho. Só vos pedia um favor.”
“Se pudermos…”
“Dêem-me conhecimento da evolução – Seja ela qual for. Ajudar-me-á a
sentir mais realizado. E, se não fosse pedir muito, se algum dia pudessem
falar no nome do meu estabelecimento, davam-me uma boa ajudinha. As
coisas estão muito más, sabem? Precisava mesmo de um empurrãozinho. A
melhor forma de publicidade é mesmo o passa palavra e se for conhecido
que nesta loja esteve tão nobre peça, tenho a certeza que as coisas
melhorarão muito.”
“Claro senhor António! Quem é que haveríamos de promover senão quem
nos elucidou? O que não lhe podemos prometer é que o façamos ou pelo
menos que o façamos de imediato.” Advirto-o.
“Pois, mas se for oportuno…”
“Fica prometido!” Asseguro-lhe.
“Tenham cuidado! Principalmente com os cordeiros com dentes de lobo!”
“Obrigado! Teremos de certeza.”
Despedimo-nos agradecidos do senhor António. Concluímos que o melhor seria
ir a um Banco e alugar um cofre para guardar o cálice. Não queríamos correr
qualquer risco. Imaginem só qual foi o Banco que elegemos para o efeito? O
meu, claro! O melhor Banco do mundo! Embora enquanto empregado
beneficiasse de uma série de regalias, estas não eram extensivas ao aluguer de
cofres, pelo que depois de confirmarmos a existência de cofres de aluguer,
optámos por nos deslocar à agência onde o senhor Manuel tinha já conta.
Facilitaria bastante o processo, encurtando o processo e contrato de adesão.
Depois de um almoço ligeiro lá fomos nós, a caminho da segurança material e
do almejado descanso emocional. Começávamos a ficar demasiado nervosos
pelo que descobrimos sobre o que trazíamos dentro do saco. A preocupação
assaltou-nos quando durante o almoço num snack-bar deparámos com um fulano
que olhava insistentemente para nós e para o saco que tinha protegido entre mim
e a parede, colocando as alças em redor do meu tornozelo. Às tantas até teria
sido isso que o pôs curioso, vá-se lá saber. Mas pelo sim pelo não, era melhor
prevenir.
Chegados à agência onde o senhor Manuel foi agraciado com uma calorosa
recepção, pedimos para ser atendidos num local reservado e o Subgerente fez
questão de lhe tratar de todo o processo. Ficou muito admirado quando o pai de
Liliana lhe disse que pretendia guardar alguns objectos que herdara. Pediu o que
houvesse de maiores dimensões, o que causou alguma estranheza. Era
sobejamente conhecido por transaccionar toda a receita da sua actividade nesse
local, mas não lhe eram conhecidas origens que justificassem aparentemente tal
necessidade. De qualquer maneira, o valor das coisas tem muitas vezes
motivações sentimentais ou desconhecidas e para determinada pessoa aquilo que
possa ser uma riqueza pode nada representar para outro, pelo que a admiração
inicial depressa foi substituída por empenho e celeridade na conclusão. Acordou-
se o aluguer de um cofre com um metro cúbico, o maior disponível. Depois de
assinado o contrato, onde Liliana foi incluída, à semelhança da própria conta em
que estava como autorizada, e debitados os respectivos custos fomos todos ao
cofre de clientes, por pedido expresso do senhor Manuel que fazia questão que
estivéssemos presentes, onde lhe foi indicado o que tinha acabado de alugar,
sendo-lhe fornecidas duas vias da mesma chave que actuaria em conjunto com
outra do Banco para se lhe poder ter acesso. Para evitar contos e ditos, apesar da
confidencialidade implícita no acto, o senhor Manuel pegou no saco sem o abrir
e encatrafiou-o no cofre, fechando-o de seguida. Evitavam-se assim dúvidas que
poderiam suscitar caso tivesse exposto o cálice. A situação exigia o máximo de
discrição, fosse onde e com quem fosse. Para que não restassem desconfianças
quanto à legitimidade de utilização, o senhor Manuel pegou numa das vias da
chave que lhe tinha sido entregue e deu-a à filha em frente do Subgerente
frisando:
“Quando for necessário vires cá, estás completamente à vontade. Não é
assim, senhor Clementino?”
“Claro, claro! Sempre que precisar, Liliana, estaremos à sua inteira
disposição!”
“Obrigado, senhor Clementino! Um dia destes, eu ou o papá, teremos de
passar por aqui para deixarmos mais algumas coisas, pelo que não
tardaremos muito a visitá-lo.”

Capítulo XII – Momentos de terror
Já a agência tinha encerrado quando de lá saímos. Assim que transpusemos a
porta, Liliana que caminhava entre nós, puxou-nos sorrateiramente para ela e
chamou-nos a atenção para alguém que estava dentro de um carro a escassos
metros do Banco.
“Aquele fulano não é o mesmo do snack-bar?”
Demos-lhe uma olhadela de soslaio e anuímos. Deixara de ser uma suspeição e
passara a ser uma certeza. Tínhamos alguém à perna e com boas intenções não
devia ser. O azar foi tanto que nem conseguimos entrar no nosso carro sem
sermos vistos. Fomos obrigados a entrar mesmo debaixo dos seus olhos. Já
dentro da viatura, à laia de quem está a orientar a manobra de recuo, tirei-lhe a
matrícula e anotámo-la em dois telemóveis. Caso viesse a ser necessário sempre
seria um ponto de partida para investigação.
“É melhor darmos umas voltinhas por aqui e ver se nos segue.” O receio na
minha voz era evidente.
“Calma… Eu já trato dele!” Diz o senhor Manuel.
Em vez de andar às voltas como esperávamos, o pai de Liliana dirigiu-se à
segunda circular e entrou no sentido Alverca Campo-Grande, sempre seguido a
alguma distância pelo artista. Quando estávamos perto da segunda saída para
Alvalade, aquela onde se vai para o estádio, parou no separador deste com os
quatro piscas ligados, obrigando o indivíduo a optar por sair pelo desvio ou
continuar pela segunda circular em direcção a Benfica. O imprevisto e a
localização da nossa viatura impeliram-no a seguir pela segunda circular e logo
de seguida o senhor Manuel recua ligeiramente e continua na direcção do
estádio.
“Ahahah… Bem visto, senhor Manuel! Já lhe torceu os olhos!”
“Conheço isto como a palma das minhas mãos, Luís. Já cá ando há muitos
anos!”
“Só gostava de ver a cara dele agora!” ─ Gozava a filha.
Ainda Liliana não tinha acabado de falar e sentimos um soluçar do motor.
“Faltou a gasolina?” Pergunto eu, admirado, espreitando para o indicador do
nível do depósito. “Não, está mais de meio!”
Encostámos o carro antes que fosse completamente abaixo e abrimos o capô à
pressa. Verificámos o filtro de gasolina que parecia limpo; abrimos o distribuidor
para ver se havia algum indício de corrosão ou algo parecido, mas nada. De
pouco adiantava ficar a olhar para o motor à espera que ele se arranjasse.
Tínhamos de arranjar outra solução.
Liliana estava a vigiar, de lágrimas nos olhos, com medo que aparecesse de novo
o carro que nos tinha seguido.
“Então?” Pergunta, aflita.
“Não conseguimos descobrir a avaria e não vai dar para chamar o reboque,
porque teríamos de esperar imenso tempo. Ainda acabavam por nos
encontrar outra vez.” Lamento-me.
“Eu trouxe a chave do meu carro. Se calhar é melhor irmos buscá-lo.”
“Sim, mas vamos andando até à paragem dos táxis, junto ao hotel que está
do outro lado. Temos de sair daqui o mais rapidamente possível.”
“O carro não pode ficar aqui ao Deus dará. Daqui a pouco ligo para a
assistência. Deixa-me só levar os papéis do seguro para tratar do assunto.”
Tirámos os nossos pertences, fechámos o carro e passámos por baixo da ponte
para atravessarmos até ao hotel, onde há sempre táxis parados. A Liliana pegou
num lenço e enrolou-o na cabeça, escondendo o inconfundível cabelo, e nós
enfiámos uns bonés do meu Banco na cabeça, com as palas praticamente a
taparem-nos os olhos. Sempre seria mais difícil reconhecerem-nos.
O pai da Liliana abre a porta do táxi e entra para a frente.
“Arranque em direcção a Benfica se faz favor. Eu vou-lhe dando as
indicações.”
“Sim senhor!”
O taxista olhava de lado para o pai de Liliana e tentava mirar-nos pelo espelho.
Era perfeitamente natural que se tivesse apercebido da nossa atrapalhação.
Aqueles minutos de exposição tinham-nos deixado deveras nervosos. Íamos
espreitando em diversas direcções a tentarmos aperceber-nos de algo anormal.
Antes de chegarmos a casa, o pai de Liliana pede ao taxista para dar duas voltas
a um bairro próximo, onde, se alguém nos seguisse, seria obrigado a sair do
tráfego e facilmente nos aperceberíamos.
“Anda perdido? Já passámos aqui!” Dizia o taxista com ar de caso.
“Só quis confirmar se estava aqui o carro de um amigo meu.” Despista o pai
de Liliana.
Pediu ao taxista para parar dentro da garagem de um centro comercial próximo
da sua casa e deu-lhe uma gorjeta de 50 euros para ele só sair dali passados 10
minutos, ao que o homem aquiesceu contente.
“Já ganhei o dia!” Retorquiu, de lábios escancarados e transmutado pela
inesperada recompensa.
Sorrimos e entrámos no centro comercial subindo pelas escadas rolantes. Fomos
até ao último andar, onde estivemos uns minutos a ver os cartazes de cinema.
Depois de nos termos certificado de que não éramos realmente seguidos, o pai
pede-nos para sairmos separados para despistar e evitar surpresas.
“Eu não deixo a Liliana sozinha!” Disse ao pai.
O pai ficou a olhar para mim e para a filha, desorientado, sem saber se havia de
rir ou chorar.
“Está bem. Eu também fico mais descansado. Mas não te esqueças de pôr o
lenço na cabeça se faz favor.”
Saiu calmamente de junto de nós e pediu-nos que esperássemos 5 minutos antes
de irmos para casa, onde deveríamos dirigir-nos directamente à porta traseira que
já estaria aberta.
Envolvia num apertado abraço, acolhendo o seu rosto entre o meu pescoço e a
face, numa terna carícia de alguém perdidamente apaixonado. Era o que mais se
via e a nós dava-nos mais jeito do que nunca. Volvidos os 5 minutos, acertámos
o passo e percorremos os pouco mais de 200 metros até à casa num ápice.
Contornámos a casa pela direita, evitando o passadiço da garagem que era mais
visível da rua.
O pai de Liliana estava a segurar a porta e abriu-a quando nos aproximámos,
transpirando um sorriso de alívio.
“Vou ligar para a assistência, para irem rebocar o meu carro.” Adverte-nos.
“Faça isso enquanto vamos fazer uma vistoria pela casa.”
O senhor Manuel estava a terminar o fornecimento dos dados do veículo quando
a operadora lhe pergunta se está a brincar.
“Desculpe lá – mas isto é alguma brincadeira? Acabámos de receber um
telefonema há 10 minutos, a pedir a assistência para esse automóvel.”
Fiquei calado, tentando perceber o que é que se tinha passado e como é que era
possível terem adivinhado a companhia de seguros. Depois lembrei-me que o
selo do carro tinha o símbolo da companhia. Só podia ter sido o tal fulano.
“Minha senhora, eu sou o dono desse veículo, quem lhe ligou não lhe pode
ter dado os meus elementos de identificação.”
“Não pode? Tanto pode que respondeu a todas as perguntas sem titubear. O
reboque ficou de recolher o carro e entregá-lo na oficina da Volkswagen
mais próxima. Mas afinal quem é o senhor?”
“Eu já lhe disse que sou o dono do carro!!!” Responde, arreliado.
De repente iluminou-se-lhe o cérebro e a percepção da asneira cometida pintou-o
de vermelho. Tinha-se esquecido que junto dos documentos do carro, que
estavam no tabelier, tinha cópias dos documentos na eventualidade de se
esquecer da carteira. Desses, constava também a morada.
“Que burro que eu sou – Temos de nos despachar!”
“O que foi?” Pergunta Liliana com cara de caso.
Contou-lhe o sucedido e como é que ele teve acesso aos seus dados.
“Agora já não há nada a fazer. Vamos é apressar-nos.”
A Liliana entrou para o carro e eu estava à espera que o pai dela acabasse de
abrir o resto do portão da garagem, que era tripartido, quando uma sombra passa
por mim e me faz sentir um calafrio. Sinto um objecto de aço encostar à nuca,
enquanto observo a cara da Liliana esculpida por traços de terror.
“Quietos – Saia já do carro!” Grita à Liliana de arma apontada, enquanto me
rodeia o pescoço com o outro braço.
Os olhos marejavam-lhe, enquanto abria lentamente a porta do carro. O pai
estava hirto, escondido pela porta dobrada, à espera de uma oportunidade que
pudesse surgir.
“Onde está o cálice? Se não me dizem, mato já os dois!”
“Na mala do carro.” Respondo, apontando o caminho que ladeava o carro pelo
lado onde estava o pai.
“Vai buscá-lo!” Ordena-me, enquanto me solta e agarra a Liliana de lado. Mas
de repente lembra-se que posso lá ter alguma coisa para me defender. “Não,
espera - é melhor ir lá eu.”
Segura a Liliana à sua frente e aponta-lhe a arma à cabeça, dirigindo-se à mala
do carro enquanto me controlava pelo canto do olho.
Estava a passar o limite da porta dobrada, quando o pai de Liliana lhe desanca
uma pancada na mona com uma bomba de ar de pés, que até os ossos estalaram.
Liliana gritou e baixou-se, completamente em pânico. O fulano escorrega-lhe
inconsciente sobre as costas e bate com as fuças no chão, agravando a sua já
triste condição.
“Ahhhhh… Grande sacana!” – Berra o pai, completamente esvairado. “Estás
bem?” – Pergunta assustado à filha.
Ela agarrou-se ao pai e descarregou toda a aflição num pranto misto de
sofrimento e alívio.
“Vamos amarrá-lo antes que recupere a consciência.” Digo.
O fato preto que envergava estava a ficar ensopado no sangue que lhe escorria da
nuca para o chão.
Pegámos num rolo de corda da roupa e prendemos-lhe os pés e as mãos atrás das
costas. Pelo sim, pelo não, fizemos várias passagens isoladas e demos outros
tantos nós. Se se livrasse de alguns, sempre tinha mais uns quantos para tirar.
“Será que vai morrer?” Pergunta Liliana.
“Vou pôr-lhe um bocado de fita-cola para ajudar a estancar.” Diz o pai.
Passou-lhe um farrapo pela nuca, limpando parte do sangue e pegou num
maçarico portátil chamuscando-lhe o cabelo dessa zona. Ficámos a olhar para
ele.
“Se não for assim, a fita-cola não serve de nada.” Argumenta, respondendo ao
nosso espanto. “Para além disso, o fogo também ajuda a estancar.”
Complementa, não segurando um sorriso de malandrice a acompanhar.
Depois de calçar umas luvas para não deixar impressões digitais e de lhe colocar
várias tiras a tapar o local da pancada que com o inchaço começava a apresentar
semelhanças com uma bola de futebol, passa-lhe mais uma volta que lhe tapa a
boca e ainda algumas mais à volta dos olhos, dos pés e dos punhos.
“Nunca se sabe!” Diz-nos, abanando a cabeça.
“E agora, o que lhe fazemos?”
Estava a preocupar-me o facto de termos de ligar à polícia. Se fossemos
confrontados, poderia ser um verdadeiro problema. Ainda acabariam por
descobrir a verdade e talvez pudéssemos até perder o tesouro.
“Vamos encostá-lo no canto da garagem e quando estivermos já a caminho,
ligamos à polícia anonimamente a denunciar um assalto. Assim, hão-de aqui
vir e prestam-lhe assistência.” Sugere o pai.
“Espera, espera! E depois vão querer contactar-nos. Depressa descobrirão
que fomos nós.” Contrapõe Liliana.
“É verdade.” Confirmo. “Mais vale metê-lo na mala e descarregá-lo perto de
um hospital. Assim, duvido que vá dizer que nos estava a assaltar.”
Também lhes pareceu a melhor ideia. Combinámos esperar pelo fim do dia, para
que a penumbra ajudasse a encobrir o acontecimento. Saímos era já lusco-fusco
e passámos por um hospital de onde fugimos quando nos apercebemos que
tinham câmaras de filmar apontadas aos acessos. Fomos a outro onde estavam
diversas pessoas numa azáfama à volta de várias ambulâncias que concentravam
a atenção de todos. Provavelmente a assistência a um acidente grande.
Olho para trás de nós e confirmo que não está ninguém. “Faz aqui a inversão
de marcha. Quanto tiveres o carro atravessado, pára.”
Assim, que Liliana recua para inverter a marcha, peço-lhe para parar e saio
apressadamente do carro. Olho para um lado e para o outro, para confirmar que
ninguém estava a observar-nos e descarrego a nossa malfadada carga que
tombou muda, encoberta pelo fato negro perdido na escuridão da noite.
“Arranca – arranca. Agora já alguém dará com ele.”
“Bem nos advertiu o senhor António!” Desabafei.
“Apostava que foi o outro que o mandou seguir-nos!” Avento.
“Pois, papá – tens razão! Mais um motivo para ficarmos lá em cima uns
tempos. Duvido que conte a verdade sobre o sucedido. Teria muito a
explicar.”
“Não há-de ser nada. Se for preciso, depois vamos à polícia. Não roubámos
ninguém.”
Pernoitámos num hotel da periferia e de manhã cedo fomos ver se tinham
recolhido o meu carro. Tinham-no levado. Dirigimo-nos à marca, onde tinha
pedido que o entregassem, onde ainda aguardámos uns minutos pelas 8h30m,
hora de abertura.
“Era uma coisa simples.” – Dizem-nos na secretaria. – “O condensador dos
platinados picou. Raramente acontece, mas desta vez foi convosco.” –
Explica o funcionário. – “Ficou em curto-circuito e impedia a corrente de
chegar às velas.”
É das tais avarias que nunca nos passa pela cabeça. Até tivemos o condensador à
vista, mas não conseguiria detectar a avaria sem um multímetro. Antes isso, pelo
menos foi um arranjo barato e célere. Paguei os custos e seguimos viagem nos
dois carros. O pai fez sinal à filha para me acompanhar. Pediu-me para não ir
muito depressa, porque o carro era novo e não queria estar a puxar demasiado
por ele.
Estávamos preocupados que pudéssemos ser novamente seguidos, pelo que em
vez de nos dirigirmos a norte, fomos em direcção a Évora, despistando eventuais
tentativas de nos acompanharem. Como o tráfego é muito menor, sempre seria
mais fácil detectar alguma presença indesejável. Aparentemente, tudo tido
corrido bem. Uma viagem muito mais longa, mas despida de sobressaltos.
O sol abrigava-se já, elevando o serrilhado do horizonte e Linhares crescia
saudando o nosso apressado regresso. As mães estavam ansiosas por desejadas
novidades. D. Inês e D. Maria ficaram de início deslumbradas com o que lhes
contámos, mas rapidamente mudaram de atitude quando chegou a parte do nosso
perseguidor. A preocupação apoderou-se delas.
“Têm a certeza de que ele não vos consegue seguir até aqui?”
A maré alta que assomava aos olhos de D. Inês abafou contentamentos e gerou
consternação no grupo. Provavelmente teria sido melhor esconder-lhes esta
parte. Nem sequer nos passou pela cabeça que a reacção pudesse ser tão
inquietante.
“Não vai acontecer nada mamã!” – Confortou-a Liliana acariciando-lhe a face.
“Tenho medo Li. Se é como vos disse o antiquário, imaginem o que é que
poderá suceder. O melhor é tirarmos isto tudo de casa o mais rapidamente
possível.”
“É pior a emenda que o soneto, Inês.” – Atalha o marido.
“Andar com este manancial de um lado para o outro só vai agravar a
situação. O fulano não vai adivinhar que estamos cá em cima e mesmo que o
descubra, toda a gente vai reparar. Estamos mais seguros assim. Esperamos
uns tempos e só quando tivermos a certeza que o perigo passou, faremos
mudanças.”
Todos nos apressámos a concordar. Só então D. Inês acalmou um pouco.
Prometemos-lhe que andaríamos de olhos bem abertos e que evitaríamos saídas
desnecessárias.
“Não acham que devíamos dar conhecimento do tesouro à D. Adelaide?” –
Perguntou D. Maria.
“Quanto menos gente souber, melhor, vovó. Havemos de lhe dizer mais
tarde e até compensá-la. Sem ela não teríamos conseguido descobrir nada.”
“Amanhã vou a Celorico comprar uma capa para o carro. Com este frio
ninguém desconfiará que o propósito é evitar que vejam a matrícula. Todos
pensarão que é para o proteger do gelo.”
“Boa ideia senhor Manuel. Mesmo que o outro passe por aqui, não dará
facilmente com ele e há-de pôr-se na alheta.”
“Capa para quê Neca, se o podes meter na loja? O carro passa bem nas
portadas. Basta ajeitar a lenha a um canto e cabe lá perfeitamente.”
Foi o que fizemos de seguida. Arredámos alguns utensílios de um dos cantos e
movemos toda a lenha para lá. As pesadas portadas que em tempos serviram
para permitir passar carroças para descarregar palha e os produtos do campo,
permitiam que lá passasse um camião. Depois do carro estar devidamente
resguardado, segurámos as portadas com as trancas de ferro interiores que
normalmente não eram colocadas. Em circunstâncias normais eram
desnecessárias, mas considerando o sucedido era conveniente. Apostava que as
gazuas usadas para vencer os canhões de fechaduras actuais não conseguiriam
derrotar as voltas no trinco da fechadura ancestral. A própria chave era um
torcido e retorcido de ferro digno de registo, deixando antever grandes
obstáculos a transpor.
Passámos o serão entre sonhos, suposições e pesquisas sobre o cálice. Fartámo-
nos de percorrer páginas da net e todas as referências que encontrámos
apontavam somente para o Santo Graal. Eram catadupas as alusões a este. Seria
impossível analisá-las uma a uma na esperança de encontrar uma pista sobre o
que tínhamos em mãos. Mesmo acrescendo termos como templário, tesouro e
outros, eram infindáveis os números devolvidos. Passámos as pestanas sobre as
primeiras respostas e acabámos por ser vencidos pela falta de diversidade. A
abordagem era incisiva, com descrições mais ou menos pormenorizadas, mas a
tecla era sempre a mesma. O tempo encarregou-se de relembrar o mais fabuloso,
ainda que fantasista, e fez esquecer realidades, perfeitamente ao estilo do ser
humano. É bem verdade que sonhar é viver. Muitas vezes se persegue o
inalcançável, desprezando o que temos à frente dos olhos. Talvez seja por isso
que ainda hoje se procura o que foi almejado durante séculos, o Santo Graal,
supostamente um cálice de madeira, do qual ninguém tem ou tinha a certeza da
sua existência e a materialidade deste acabou por se diluir historicamente, dando
lugar a uma fusão. Certo é que o senhor António nos disse que este tinha sido
feito em memória do outro. Restava, no entanto, saber qual deles é que a
humanidade tanto procurava.
Os dias seguintes foram algo penosos. Permanecemos em casa, receosos e
atentos a todas as viaturas que ouvíamos no exterior, espreitando entre
cortinados para despistar indesejada visita.
Aproveitámos para matar saudades familiares. Recordaram-se histórias da
meninice de cada um e cimentaram-se laços. Fizeram-me sentir parte da família
o que me deixou muito contente. Já lá ia uma semana quando resolvemos dar
uma passeata e aproveitar o dia solarengo. Ficámos mais descansados quando
em conversa com vizinhos que íamos saudando constatámos que nada de
anormal tinha acontecido nos últimos tempos. As pessoas só manifestavam
alguma estranheza por estarmos há tanto tempo em Linhares, relacionando o
facto com uma hipotética doença de D. Maria. Depois de algumas palavras
tocadas com a visada, rapidamente concluíam que não passava de mais uma
conjectura.

Capítulo XIII – Mr. David
Agora, mais tranquilos, era altura de procurarmos os contactos das leiloeiras,
para sabermos com o que é que poderíamos contar. Hoje com a internet tudo se
consegue descobrir com enorme facilidade. Foi só “Googlar” os nomes
sugeridos e de imediato nos foram devolvidos os links das suas páginas web. A
escolha foi unânime, optaríamos pela Sotheby’s, ainda que não fosse a melhor,
mas pelo simples facto de ter sido a página de que mais gostámos.
Constatámos que a Sotheby’s tem até representação em Portugal, mas depois do
recente susto, não estávamos na disposição de arriscar uma unha que fosse.
Pensámos na possibilidade de enviar um email mas depressa concluímos que o
mais certo era ser interpretado como alguma brincadeira, pelo que em vez disso
resolvemos ligar para um dos números de contacto disponíveis. Tanto eu como
Liliana estávamos relativamente à vontade com o inglês, mas acabei por ser eu a
fazer a ligação. Foi-me recusado o pedido para falar com alguém responsável
por não ter sido marcado e autorizado previamente, nem querer dar a conhecer o
assunto. Ameacei que contactaria a Christie’s e quando os responsáveis
descobrissem o motivo alguém se ia arrepender, apressou-se a passar o
telefonema a um dos técnicos avaliadores.
Começou por dizer que tinham uma delegação em Portugal que serviria
perfeitamente o propósito. Perdi longos minutos a tentar convencer o avaliador
que tínhamos em mãos uma peça ligada aos templários e que de maneira
nenhuma estaria na disposição sequer de receber ou discutir o assunto com
alguém local. Ciente que estava irresoluto, começou então a fazer-me algumas
perguntas às quais fui respondendo o melhor que pude. Quis saber porque é que
eu afirmava que a peça tinha essa origem, salientando que eram imensos os
casos de pessoas que estavam convencidas de determinadas coisas que acabavam
por se mostrar infundadas; como é que tinha chegado à minha posse; entre
muitas outras questões. Pediu-me para lhes enviar o cálice em correio expresso
ao seu cuidado e que depois diriam alguma coisa. Obviamente que lhe transmiti
que estava completamente fora de questão remetê-lo fosse por que via fosse.
Acabou então por me dizer que teria de lhe enviar uma foto do objecto, sem a
qual não estariam dispostos a arriscar uma viagem até Portugal. Consultei
Liliana e achámos que não tínhamos outra solução. Era preferível correr o risco
de remeter uma foto do que ter de o levar em mãos. Principalmente depois do
que nos tinha sucedido. Trocámos os contactos e pedimos que esperasse apenas
alguns minutos para lhe remeter o email.
Escolhemos uma fotografia onde se viam os rubis de frente. Devia ser
suficientemente esclarecedora. No texto fizemos a descrição do objecto, para que
não restassem dúvidas. Algumas características não seriam perceptíveis apenas
através da fotografia. Remeti-lhe o email para o seu endereço pessoal da
Sotheby’s mas incluindo o conhecimento a vários outros que entretanto criámos
com nomes descaracterizados, esclarecendo no texto que tal conhecimento havia
sido dado a pessoas da nossa confiança por uma medida de segurança. Dessa
forma, caso entretanto lhe ocorresse alguma ideia maléfica, seria motivo
suficiente para pensar duas vezes.
Pouco tempo passou até que recebemos um telefonema. Pelo indicativo
internacional era ele de certeza. O seu tom de voz mudou radicalmente, pediu
imensas desculpas pela relutância que tinha mostrado. Implorou que
compreendêssemos que passavam por muitas situações estranhas e que eram
obrigados a ser cuidadosos neste tipo de contactos. Já estava tão farto de
remições que tive de o interromper e perguntar-lhe como é que queria tratar do
assunto.
“Vou pessoalmente falar convosco e tratar de tudo o que for necessário!” –
Assegurou.
Agradecia que lhe dessemos algum tempo para voltar a ligar porque tinha de
falar com os seus responsáveis e acertar alguns pormenores antes da viagem.
Queria saber qual era o meu nome completo e morada, mas não lha facultei. Em
vez disso, garanti-lhe que o iriamos buscar ao aeroporto, mas que deveria marcar
a viagem com destino ao Porto em vez de Lisboa, não só por uma questão de
segurança, mas também porque para nós era mais perto. Para isso bastava
remeter-nos os detalhes do voo que nós estaríamos no aeroporto esperando por
ele com uma placa com o seu nome. Preferimos que marcasse hotel na mesma
localidade. Ainda tínhamos onde o colocar lá em casa, mas assim ficaria a saber
mais do que queríamos e perto demais do resto das peças. Quanto mais longe
melhor.
Mais tarde recebemos toda a informação, incluindo uma foto sua. Em dois dias
chegaria ao aeroporto Francisco Sá Carneiro.
“Temos o cálice em Lisboa, vamos ter de o ir buscar.” – Lembra Liliana.
O pai não nos quis deixar sozinhos. Depois do que vivemos, era compreensível.
“Vamos no meu carro senhor Manuel. Posso dizer-lhe que vai ser a primeira
vez que vai até Lisboa.”
“É melhor! Pelo menos por aí não dará connosco.” – Concorda.
“Aproveitamos e levamos mais algumas peças papá.”
“Nem penses nisso! Imagina que por obra do diabo somos descobertos. É
preferível não levarmos nada. Qualquer coisa que tenhamos em nossa posse
depressa indiciará a existência de outras. Assim, se derem connosco
facilmente ficarão na dúvida.”
“Pois…”
Chegou o dia. Saímos ainda de madrugada para conseguirmos fazer todo o
trajecto. Liliana fez questão de deixar o pai ir à frente. Um dos defeitos do meu
leão GT era não ter portas atrás e de o espaço ser um pouco acanhado. Como
normalmente andava sozinho não me fazia grande diferença, mas agora dava
jeito um carro maior. A viagem decorreu sem incidentes entre breves rosnares do
motor em esporádicas ultrapassagens. Se havia algo que me dava gozo era poder
espezinhar livremente o acelerador na auto-estrada. Quando o carburador duplo
entrava em pleno funcionamento abrindo a segunda borboleta a partir das quatro
mil rotações, parecia que lhe dava uma coisinha má até atingir o limite de
rotação, altura em que era cortada a energia à unidade. Por impossível que
pareça, como a potência máxima do motor só era atingida às seis mil e
oitocentas rotações e o limite para o corte era às sete mil, quase nem se dava
conta quando esta era alcançada, não fosse o súbito e abafado refrear do carro.
“Isto anda bem!” – Elogiou o senhor Manuel.
“Por isso é que não me desfaço dele. Já pensei diversas vezes trocá-lo, mas
quando chega a hora volto sempre atrás.”
Ainda o Banco não tinha aberto e já nós estávamos em Lisboa. Passámos por um
quiosque onde comprámos uma revista para Liliana ler enquanto esperava por
nós. Combinámos deixá-la numa pastelaria distante da agência onde iriamos
buscá-la quando retornássemos da nossa recolha. Se acontecesse algo sempre
estaria em segurança e capaz de lançar um alerta.
O senhor Clementino veio ao nosso encontro assim que nos viu. Explicámos-lhe
que precisávamos de ir ao cofre. A mochila que eu levava às costas despertou a
curiosidade dos presentes. Era estranho, tenho de convir, mas pretendíamos
trazer o saco e a mochila, trocando os conteúdos. Tinha lá colocado uma cavaca
embrulhada em jornais. Se alguém nos mandasse a mão ao saco era o que
levava.
Desta vez estávamos à espera de não conseguirmos evitar que o Subgerente
vislumbrasse o que estava dentro do saco que tínhamos no cofre, mas enganámo-
nos. Assim que pousei a mochila e puxei o saco para trocar o que tinham dentro,
o senhor Clementino virou-se discretamente, deixando-nos completamente à
vontade para fazermos o que fosse preciso sem a sua intromissão. Muito bem,
pensei. Profissionalismo acima de tudo.
À saída demos uma nervosa e discreta vistas de olhos pelas redondezas e
dirigimo-nos ao carro que tínhamos deixado a um quarteirão do Banco. Nada de
anormal. Era difícil que volvidas quase duas semanas ainda persistisse a vigília
ao local, mas não era impossível.
Liliana estava notoriamente preocupada até que desprendeu um sorriso de alívio
assim que parámos em frente à pastelaria. O relógio trespassava as nove horas
quando chegámos à auto-estrada. Na pior das hipóteses chegaríamos ao Porto
por volta do meio-dia. Ainda pensei levá-los a casa da minha mãe, mas como o
trânsito é imprevisível, resolvi ir directo ao aeroporto onde comeríamos qualquer
coisa enquanto esperávamos por Mr. David – o avaliador. Faltavam ainda cerca
de duas horas para a chegada. Colámos a mochila e o saco a nós e sentámo-nos
num snack-bar a matar a fome, monitorizando o placar a escassos metros de nós.
“Já apareceu! Parece que chega a tempo. Mas vamos ter de esperar mais
um pouco por causa da recolha da bagagem.” – Observei.
Mais tarde, chegado o momento, aproximámo-nos da saída dos passageiros e
examinámos cada rosto que a transpunha.
“É aquele!” – Alerta Liliana.
Era facilmente reconhecível pela foto que nos tinha enviado. Cerca de cinquenta
anos, elevada estatura, com cabelo grisalho cortado à escovinha rasgado por
duas vastas entradas.
Elevei a placa que tinha debaixo do braço orientando-a na sua direcção. Avistou-
a, encaminhando-se sorridente para nós. O cumprimento que lhe dirigimos
deixou o senhor Manuel confuso. Como não falava inglês, limitou-se a oferecer-
lhe a mão observando a reacção. Mr. David percebeu e não forçou qualquer
contacto verbal para evitar constrangimentos, limitando-se a efectuar uma ligeira
vénia.
A mala do carro era demasiado pequena para a grande que trazia. Só depois de
lhe retirar a tampa traseira a consegui lá encatrafiar. A pequena poderia ir
perfeitamente no habitáculo. Perguntámos-lhe qual era o hotel que tinha
reservado para onde fomos de seguida. Mr. David confessou-nos ser um
admirador do nosso Vinho do Porto, Oporto como dizia ele, pelo que reservou
um hotel do lado de Gaia perto da ponte de D. Luís, onde pretendia aproveitar a
oportunidade para visitar as suas caves.
Feito o registo na recepção, perguntámos se existia alguma sala mais reservada,
o que nos foi negado.
“Vamos ter de nos reunir no seu quarto Mr. David.”
“Claro – é preferível ser lá do que onde possamos ser observados.”
Era um quarto duplo com vista para o rio Douro. À luz do dia não era nada do
outro mundo, mas quando anoitecesse, com a ribeira iluminada devia ser algo
digno de vislumbre. Ele pegou nas duas malas que trazia e encostou-as ao
guarda-fatos, pedindo-nos ansioso para ver a peça.
“Não consegui resistir. Passei-lhe o saco de mão e fiquei à espera que este o
abrisse.”
“O que é isto!” Reclamou quando desembrulhou os jornais e deu com a cavaca.
Liliana e o pai, absortos no acto, nem se aperceberam do que eu tinha feito e
soltaram uma gargalhada arrancada dos confins dos bofes.
“És do pior Luís – Isso não se faz!” – Protesta disfarçadamente Liliana
contendo o gozo sentido.
A cara de estupefacção de Mr. David apontava norte e sul ao mesmo tempo.
Estava completamente à nora. Fazer uma viagem de propósito de Inglaterra para
se deparar com um pedaço de lenha. Seriam uma cambada de doidos? Era
demais, mesmo para o maior dos condescendentes. Só quando torci o tronco para
desprender a mochila que tinha às costas libertou temporariamente os músculos
retesados do rosto. Abri-a e passei-lhe firmemente a taça que estava envolta na
capa de flanela de uma almofada. Descobriu-a e sem qualquer palavra quase
desfaleceu sentando-se repentinamente sobre a cama que por sorte estava mesmo
atrás de si. Não fosse o caso e teria provavelmente batido com a mona no chão.
Lancei-me na sua direcção com medo que deixasse cair o cálice. Por sorte
manteve-o agarrado por ambas as mãos prensando-o contra a barriga, como se
dele nunca mais se quisesse separar.
“O Calix Christi! - Isto é o meu sangue…” – Murmurou num aparente acto de
contrição.
Esperámos que se recompusesse e iniciasse uma panóplia de explicações que
complementaram largamente o que o senhor António, o antiquário, nos havia
transmitido. Constava-se que este cálice tinha sido feito também pelo motivo que
ele nos disse, em memória do Santo Graal, mas esse era secundário. O principal
era que tinha sido destinado a celebrar o Corpus Christi nas mãos de intocáveis
Papas e por algum motivo desapareceu da história sendo há muito tempo
encarado como uma lenda, não obstante as referências feitas por vários
historiadores. Rezavam os tempos que guerras tinham sido desencadeadas na sua
busca. Algumas personagens históricas afirmavam que a imprecisão dos relatos
se devia ao segredo em seu redor na tentativa de o proteger da cobiça, o que
originou a que a sua existência simplesmente se esfumasse. Nada se lhe
comparava, só mesmo o Santo Graal poderia superar o seu valor histórico.
Houve quem afirmasse que as referências ao Santo Graal eram na verdade sobre
o Calix Christi, cuja aura e misticismo gerara confusões no singrar dos séculos.
A última alusão que merecera alguma credibilidade, dizia-o à guarda dos
templários e que o segredo do seu paradeiro estaria bem guardado pelos nove
fundadores dessa Ordem.
“Nove fundadores Mr. David?”
“Sim, – Hugo de Payens; Godofredo de Saint-Omer; Godofredo de Bisol;
Payen de Montdidier; André de Montbard; Arcimbaldo de Saint-Amand;
Hugo Rigaud; Gondemaro e Arnaldo – foram os fundadores da Ordem dos
Templários.”
“Está explicado! Os nove botões da caixa representam os fundadores da
Ordem dos Templários.”
“Só pode!” – Exclama estupefacta.
“Como?” – Pergunta Mr. David, intrigado pela atitude.
“Nada Mr. David. Estávamos admirados e a comentar o que nos contou.”
Pareceu ficar convencido.
Restava saber como é que alguém de Linhares aparecia no meio disto. Será que
era um descendente dos templários? Nas pesquisas que fizemos sobre essa
matéria, falava-se praticamente só sobre Tomar. Celorico da Beira, sede de
concelho, também pode ter sido um local de breve permanência da Ordem.
Quem sabe tivessem optado por algum local que não desse tanto nas vistas,
como o castelo de Linhares, aproveitando a sua fase de construção para
conseguir esconder colossal segredo sem dar muito nas vistas? Não fosse o acaso
vivido pelo Gargantas e só mesmo levantando ou destruindo completamente o
castelo se conseguiria descobrir o enorme tesouro que mantinha enclausurado.
Partindo deste princípio, seria natural que enraizassem alguém que
insuspeitamente monitorizasse a castidade do local. Seria de todo concebível que
nem sequer soubesse a verdade sobre o que tanto zelava.
“Comunico-vos desde já que estou autorizado pela Sotheby’s para vos
oferecer condições verdadeiramente excepcionais na negociação desta
relíquia. Podemos fazer já de seguida o contrato. Trouxe tudo o que é
preciso.”
“Que condições são essas Mr. Davis?” – Perguntei.
“Normalmente, cobramos taxas que chegam a rondar os vinte e trinta por
cento, dependendo do valor da peça, mas no vosso caso, estou autorizado a
oferecer-vos uma comissão de apenas cinco porcento. Nem mais uma
milésima! A Sotheby’s gostava de ter a honra de intermediar a negociação e
servir-vos-á segundo os mais altos padrões.”
Entreolhámo-nos e despertámos-lhe algum nervosismo decorrente das palavras
que trocávamos em português.
“Parecem-nos condições razoáveis, Mr. David. Mas só por curiosidade
estaremos a falar de cinco por cento de quanto?” – Desafio-o curioso.
“Ohhh… Hmmm… Cinco porcento de um número que não sei quantos
dígitos é que terá. Só vos posso afiançar que serão muitos, muitos mesmo.
Acredito piamente que superará inúmeras vezes a maior licitação de
sempre.”
Não conseguimos tecer qualquer comentário. Os nossos olhares eram bastante
esclarecedores, só o senhor Manuel se mantinha ligeiramente apreensivo até que
lhe traduzíssemos a conversa.
“Disseram-me que foi herança de família. Há mais alguma peça?”
“Não Mr. David. Essa foi a única que os bisavôs de Liliana deixaram.” –
Apressei-me a acrescentar, refreando Liliana que se preparava para responder.
Não fossemos contradizer-nos.
“Perguntei só por perguntar. Afianço-vos que poucos reis receberam tão
valiosa herança, se é que algum arrecadou algo de valor próximo até. Só o
leilão o desvendará.”
Seria mesmo assim de tão grande valor?
“Suponho que saibam que tenho de levar o Cálice comigo. Têm consciência
disso?”
“Mr. David, com o devido respeito, para levar o Cálice consigo nós temos de
o acompanhar até à sede e de trazer o recibo da sua entrega para leilão,
para além do contrato.” – Os anos de acompanhamento do negócio bancário
tinham-me dado algum calo e ensinado formas legais de precaver incidentes. O
ser humano é deveras complexo e no que concerne a dinheiro é bom nem se falar
muito. São tantas as atrocidades que se cometem por valores irrisórios, que
imaginem só o que é que poderia acontecer numa situação destas.
Pai e filha estavam completamente de acordo comigo. Por muito confiável que
fosse a leiloeira não havia que facilitar.
“Podemos fazer então o contrato?” – Quis saber apressadamente Mr. David.
“Deve estar com medo que mudemos de ideias e contactemos mais alguém.”
– Comento eu com Liliana e o pai, desencadeando uma gargalhada que soube a
farpas ao Mr. David.
Traduzi-lhe o que lhes tinha dito e o inglês soltou um risinho forçado. Claro que
para ele a piada não soara muito aprazível.
Esta oportunidade pode transformar a minha vida, sabem?” – Confessou-
nos. – “A minha mulher ficou sem emprego no ano passado quando a sua
empresa encerrou e eu ando aflito para garantir o sustento aos meus filhos.
Apesar de ganhar bem na Sotheby’s, a vida em Londres é muito cara e os
tempos estão difíceis. O meu filho mais velho está na universidade e uma
das minhas filhas também para lá irá no próximo ano. Andava sem saber o
que fazer. Posso dizer-vos confidencialmente que neste negócio posso ganhar
uma comissão que assegurará o futuro dos meus filhos. São só umas
milésimas da transacção, mas será muito dinheiro para mim.”
“Quantos filhos tem, Mr. David?”
“Tenho quatro – Dois casais.”
Explicámos o transmitido ao pai de Liliana e ficámos sensibilizados pela sua
sinceridade e situação. Quando lhe transmitimos a nossa decisão, foi como se lhe
tivesse saído a lotaria. Soltou um verdadeiro – YESSSS! – à laia de adolescente.
Esperámos que puxasse do portátil e da pequena impressora. Disse a Liliana que
queria que o contrato fosse feito apenas em nome dela, mas esta assim não o
quis.
“Há viver e há morrer. Imagina que me acontece alguma coisa! E sem ti
nunca tínhamos descoberto o tesouro.” – Estremeceu quando se apercebeu do
que tinha acabado de dizer.
“Calma. Esqueces-te que ele não fala a nossa língua.” – Tranquilizei-a num
tom neutro para não levantar suspeições.
“Ufa…” – Suspirou de alívio.
Mr. David esperava que lhe transmitíssemos o decidido. Passei-lhe então os dois
bilhetes de identidade e indiquei-lhe os principais dados a incluir no contrato.
Como morada, optámos por fornecer apenas a dos pais de Liliana. Pediu-nos
para tirar algumas fotos que imprimiria de seguida. Dos documentos, da peça e
outra nossa segurando nela. Explicou-nos que era uma forma de legitimar o acto
e garantir que nenhum crime estava por trás da sua posse. Embora confiasse
plenamente em nós, a falta de documentação que atestasse a legitimidade de
posse e as regras da empresa assim o exigiam em circunstâncias especiais como
esta. Claro que não nos opusemos. O senhor Manuel é que não quis ficar na foto
com o Cálice. Fez questão de dizer que o mérito era nosso, nada lhe era devido.
Fiz questão que o pai de Liliana nos tirasse algumas fotos aos três com o meu
telemóvel. Também precisávamos de assegurar que tudo correria bem.
Como Mr. David retornava no domingo, dentro de três dias, tínhamos de nos
apressar a tratar dos bilhetes de avião. Faríamos a viagem na sua companhia.
Caso deparássemos com algum imprevisto, sempre era mais fácil do que se
fossemos sozinhos. Convencemos o senhor Manuel que deveria ficar junto de D.
Inês e da sogra, que nós estaríamos em segurança. A foto do inglês que
deixaríamos em sua posse seria suficiente para garantir que tudo corresse bem.
Ligámos para Linhares explicando a D. Inês que não podíamos retornar nesse
dia e que pernoitaríamos na minha casa em Gaia. Avisei a minha mãe que lá
passaríamos a noite. Coisa que muito lhe agradou, volvida a surpresa por me
julgar em Linhares.
As luzes das ruas já estavam ligadas quando terminámos, agraciando o Douro
com longos e tremelicantes reflexos. Mr. David praticamente nos obrigou a
jantar com ele. Ainda tentámos escapar para chegarmos cedo a casa, mas não foi
possível. A ocasião era digna de celebração e além disso, o que é que ele haveria
de pensar se o deixássemos subitamente desamparado? Os nossos elevados
padrões de hospitalidade ficariam seriamente comprometidos.
O frio de inverno começava a ceder o lugar a esgares da primavera que nos
acenava convidando à permanência nas belas esplanadas ribeirinhas, sob o olhar
atento dos empipados barcos rabelos. Jantámos mesmo junto ao rio. Saboreámos
umas irresistíveis tripinhas à moda do Porto que lhe sugerimos e que estavam
simplesmente divinais, arrematando com um queijo da serra para sobremesa
coroado com um incontornável Vinho do Porto. Pois, são um bocadito pesadas
para um jantar, mas como não íamos logo para a cama não haveria de ser grave.
Apesar do empregado nos ter tentado desmotivar para o seu consumo nocturno,
levámos a nossa avante, pedindo apenas que reduzisse a quantidade de feijão. Ir
ao Porto e não comer as tripinhas à sua moda, era como ir a Roma e não ver o
Papa. Mr. Davis estava encantado com a pequena amostra da nossa soberba
gastronomia. Após alguma insistência, lá lhe fizemos a vontade e elucidámos
que as tripinhas são estômago de bovino. Apesar da admiração, não pareceu
arrependido, prometendo repetir a proeza.

Capítulo XIV – A caminho de Londres
Acertámos o encontro no hotel para daí a três dias, data da partida para Londres.
No dia seguinte trataríamos dos bilhetes avisando-o que não poderíamos estar
com ele porque precisávamos de regressar a Lisboa para tratarmos das nossas
coisas. Mentirinha ligeira, mas necessária.
Deixámo-lo no hotel e fomos até à casa onde nasci em Coimbrões, mais para o
centro de Gaia. Ultrapassada a surpresa e o impacto das inesperadas
apresentações à minha mãe, mostrei-lhes os quartos onde dormiriam. A
habitação era secular, humilde, sem grandes comodidades. As poucas que tinha
foram sequência de largas e dispendiosas obras efectuadas pela nossa família.
Talvez por isso o proprietário não fizesse muita questão de actualizar o valor da
renda como a maioria dos seus pares.
Antes de nos recolhermos à quietude dos quartos, sentámo-nos um pouco na sala
para elucidar a minha mãe do motivo da nossa estada por aquelas bandas. Fiz
apenas referência ao facto de termos vindo receber um senhor inglês que
pretendia tratar de um negócio com o pai de Liliana e escusei-me a entrar em
mais pormenores. Mesmo sendo à minha mãe, quanto menos soubesse melhor. A
seu tempo contar-lhe-ia a verdade.
Logo de manhãzinha fomos a uma agência de viagens e comprámos dois bilhetes
para o mesmo voo de Mr. David. Ele tinha reserva em executiva, classe já
esgotada, pelo que tivemos de aceitar dois dos quatro lugares disponíveis em
económica.
Deu-me um baque quando me lembrei da alfândega do aeroporto. Transpô-la
com o cálice sem chamar a atenção seria quase impossível. Transmiti-lhes a
minha preocupação que se generalizou.
“Vamos ter problemas se levarmos o cálice, mas não se levarmos uma taça!”
– Graceja Liliana.
“Hmmm?” – Deixou-me confuso.
“Vamos a um ourives e compramos uma placa para lhe colocar como se
fosse um troféu.”
“Tu surpreendes-me, princesinha!”
O pai olhou para mim, não sei se pelo princesinha, se pela ideia.
“Tratamos disso quando passarmos em Viseu.” – Sugere o pai.
Antes de pararmos na ourivesaria, tirámos a medida à base do cálice. Se
encontrássemos uma taça que tivesse as mesmas dimensões, podíamos retirar-lhe
a base e colá-la ao cálice para dar menos nas vistas. Não é habitual verem-se
troféus sem uma. Pelo menos que me lembrasse. Aqueles que eu tinha ganho até
então nos torneios de xadrez, tinham todos uma base onde normalmente a placa
estava colada. Exteriormente tinha ligeiramente mais do que dezasseis
centímetros e no interior cerca de quinze. Encaixá-la de uma maneira ou de outra
dependeria essencialmente do tipo de base.
Depois de passarmos meia cidade encontrámos uma grande ourivesaria perto do
posto da PSP. A empregada mostrou-nos uma panóplia de troféus, mas nenhum
servia os nossos propósitos por calçarem medidas pequenas. Estavam também
fora de questão as bases de pedra ou mármore, pela dificuldade de qualquer
adaptação que fosse necessária. Explicámos-lhe então que queríamos um que
tivesse uma base de madeira com mais de dezoito centímetros de lado ou
diâmetro, conforme fosse quadrada ou redonda. Pediu à colega que tomasse
conta da loja e foi ao armazém de onde voltou com um troféu de tiro ao prato.
“Este serve?”
Depois de lhe mandar a mão medindo-a por aproximação ao palmo confirmei.
“É isto mesmo que precisamos, mas falta-lhe a placa.”
“Há várias à escolha. São autocolantes. Depois de gravadas é só colocá-la na
base. Querem em alumínio ou prata?”
A diferença de preço era pequena, somente quatro euros, pelo que optámos pela
de prata. Contribuiria para um aspecto geral mais uniforme.
“Então o que é que vão querer gravar?”
“III Torneio Internacional de Xadrez de Gaia – 2º Lugar, se faz favor.”
A empregada ficou confusa. Não era motivo para menos. Comprar uma taça de
tiro ao prato para atribuir num campeonato de xadrez era muito esquisito. Além
disso para um evento que se realizaria a mais de uma centena de quilómetros.
“Mas nós temos taças de xadrez. Esta é de tiro ao prato!” – Diz-nos
surpreendida.
A julgar pela sua cara só faltou proferir que ali havia gato. Mas não se atreveu.
Limitou-se encolher os braços quando insistimos, obtendo a confirmação do que
lhe tínhamos pedido e procedeu à gravação da placa à nossa frente. Quando se
preparava para a afixar, mandando as mãos ao protector do autocolante para o
retirar, disse-lhe que o colocaríamos depois. Primeiro teríamos de trocar o troféu
em si. Os seus traços aliviaram dando mostras de alguma compreensão. Talvez
não fossemos tão tóinos como parecíamos. Trocando o troféu não seria
descabido de todo. Mas se tinham taças próprias da modalidade…
Durante o jantar com Mr. David, descobrimos que ele e eu partilhávamos a
mesma paixão pelo xadrez, pelo que seria mais fácil justificar a posse da “taça”
caso fosse interrogado. Se tentassem entrar em muitos pormenores, desculpar-se-
ia pelas imprecisões, uma vez que era a primeira visita que fazia a Portugal.
Retomámos o caminho e aproveitei para separar o troféu da base constatando
que o parafuso central que o suportava era fixo pelo que se podia manter. Cabia
perfeitamente no espaço oco dentro do pé do cálice. Já o mesmo não se passava
com a base em si. Não tinha nenhuma reentrância que permitisse o ajustamento e
fixação do cálice.
“Vou ter de desbastar isto por dentro para poder encaixar e colar o cálice.”
– Lamentei-me.
“Com esse parafuso metido na bucha do berbequim e um formão, abrimos
caminho num instante.” – Sugere Liliana como se fosse brincadeira de
meninos.
Volvido o matar de saudades e as narrações da aventura tripeira, dedicámo-nos à
adaptação a que nos propusemos. O tempo era escasso, só faltavam dois dias
para o regresso ao Porto e encetarmos rumo aos domínios de Sua Majestade a
Rainha Isabel II. Foi uma luta para convencer D. Inês e a mãe que ficaríamos
bem, mesmo sem a companhia do pai de Liliana. Mas a falta de alternativas e o
plano de mascarar o cálice foram argumentos suficientes para as demover.
Pusemos em prática a ideia de Liliana e, ultrapassado um primeiro susto quando
tentei forçar uma entrada demasiado rápida do formão em que o berbequim
saltou tentando desprender-se do sólido aperto do senhor Manuel que o afogava
contra a bancada inventada na mesa de cozinha, tudo foi corrigido com uma
cautelosa abordagem do improvisado buril, desbastando lentamente em ângulo
apertado. Três medições depois e outras tantas correcções, estava aberto o leito
onde colar firmemente o cálice.
Combinámos um pouco de serradura fina que obtivemos triturando as aparas
retiradas da base com cola de madeira num moinho eléctrico de café e metemos
a mistura dentro do rasgo aberto na base. Colocámos-lhe o cálice e voltámos a
arrematar as juntas com a miscelânea. Prensámos o conjunto colocando-o na
vertical com uma panela de ferro cheia de água por cima e protegendo o cálice
com um pano de cozinha ensanduichado. Segundo as instruções de utilização da
cola, base e cálice ficariam irmanados em poucas horas. No dia seguinte daria
uma demão de tinta pela base toda para disfarçar a ligação e terminaria com uma
ou duas demãos do verniz castanho-escuro remanescente das últimas
impermeabilizações feitas às madeiras exteriores da casa.
“Caramba – Vocês percebem do assunto!” Elogia D. Maria orgulhosa do
desempenho da equipa masculina.
Agradecemos silenciosamente o elogio e dedicámo-nos o resto do dia a
grandiosos sonhos discutindo o destino que daríamos ao dinheiro que
conseguíssemos com o cálice.
“Será possível um cálice valer assim tanto dinheiro? Dará para comprar um
apartamento?” – Admira-se D. Maria.
A neta abafou uma gargalhada eminente. Não queria ofender a sua vovó querida.
“Pelo que nos disse Mr. David – será até suficiente para comprar vários. Se
calhar algumas casas em vez de apartamentos.”
Quando voltámos a pegar na improvisada taça já o período de secagem da cola
tinha passado há muito. Lixei cuidadosamente a parte superior da base e isolei o
cálice com fita-cola nos limites da junção para garantir que a pintura e
envernizamento não o manchariam. Quando lhe retirámos a fita, findo o período
de espera, contemplámos um troféu sem paralelo no universo. Depois de
colocada a placa, dificilmente levantaria suspeitas.
O domingo chegou e abalámos ao encontro de Mr. David, carregados de imensas
recomendações e alertas por nós ajuramentados. Saímos com algumas horas de
antecedência, não fosse o diabo tecê-las e acontecer algum imprevisto. O pedido
que D. Maria me fez em surdina matutava-me na cabeça: – “Vocês são livres
para fazerem o que quiserem, Luís – de nada vos posso impedir. Peço-lhe
apenas que pense bem antes de seguir algum caminho do qual possa ter
dúvidas. A minha netinha é tudo para mim!” – Olhando um pouco para a
sociedade em que vivemos, é fácil de compreender a sua preocupação. A
juventude, sem culpa formada, começa a optar por rumos inquietantes que lhes
são induzidos por relacionamentos esporádicos, alguns momentâneos até,
difundidos em novelas e programas de disseminação geral, fragilizando
conceitos sociais que se pretenderiam inabaláveis. Em determinadas situações,
nem a família é poupada a elaboradas traições e vinganças, dando uma imagem
de que para vencer tudo vale. A verdade é que por muito felizes que possam ser
em breves momentos passados nas mais variadas circunstâncias, ao gosto de
cada um, nada se compara a uma vida de felicidade na companhia dos que
amamos, vivendo e partilhando os mais “insignificantes” momentos.
A nossa chegada não lhe passou despercebida. Estava na sala de espera, de malas
ao lado, com o check-out já efectuado. Foi necessário voltarmos a pedir a chave
na recepção para tratarmos da transferência da taça para a sua mala de viagem.
Sempre era mais seguro, pensávamos nós, do que transportá-la na bagagem de
mão que era habitualmente mais verificada.
Ficou estupefacto com a ideia e com o trabalho realizado, muito mais depois de
lhe dizermos que tínhamos sido nós a executá-lo.
“Perfeito… Realmente perfeito… Uma ideia genial!” – Admira-se.
“Abra a mala para a colocarmos lá Mr. David.” – Pedi-lhe.
“Querem arriscar metê-la lá e estarem sujeitos a um eventual extravio da
bagagem? Há bagagem que nunca mais aparece!” – Censurou-nos – “Nem
pensem nisso. Comigo não se extraviará!”
Restou-nos concordar com o seu ponto de vista. O extravio de bagagem era
demasiado frequente. Eu próprio tinha passado por situações embaraçosas por
esse mesmo motivo, sem roupa por vários dias. Por muito irrepreensível que
fosse o sistema de distribuição, havia sempre alguma falha.
“Agora para tudo ficar perfeito só nos falta um tabuleiro de xadrez.”
“Um tabuleiro Mr. David?” – Fiquei curioso.
“Nada melhor para justificar a presença da taça. Podemos jogar umas
partidas enquanto esperamos pelo avião. Isso justificará o motivo para o
trazermos na bagagem de mão.”
“Boa! Passamos num centro comercial a caminho do aeroporto.”
Escolhemos um tabuleiro dobrável de madeira com medidas e peças semelhantes
às oficiais. Comprámos também um relógio próprio para a modalidade que é
uma espécie de duplo cronómetro. Cabiam perfeitamente na mala do portátil
com a taça ao lado. Num teste rápido, verificámos que o separador lateral onde
se costumam colocar carregador e acessórios era ajustável, pelo que a taça ficaria
confinada e protegida num espaço almofadado.
Aproveitámos e almoçámos por lá. Esperava-nos um interregno de quase quatro
horas até à chegada do avião. Mesmo com o tempo de precedência necessário
para o check-in, era demasiado para se desperdiçar, pelo que optámos por uma
refeição o menos plastificada possível, atendendo às características do espaço
onde nos encontrávamos. Enquanto esperávamos, Mr. David pegou no tabuleiro
e com uma chave fez-lhe algumas mossas e riscos ligeiros, por cima dos quais
passou vigorosamente as mãos dando-lhes um ar envelhecido. – É nos mais
ínfimos pormenores que por vezes as coisas correm menos bem – Deu igual
tratamento às peças e ficámos com um conjunto aparentando o uso de muitos
jogos.
Durante a refeição Mr. David fez questão de nos contar as suas aventuras dos
últimos dias: Como ficou deslumbrado ao visualizar as enormes cubas onde
permanecia o famoso Vinho do Porto; O convidativo ambiente da zona
ribeirinha que o impeliu a beber mais do que aquilo a que estava habituado
celebrando uma noite feliz e que o fez acordar com uma valente dor de cabeça;
O agradável passeio dado no Palácio de Cristal acompanhado por irrequietos
coelhos felpudos que desejava ter para oferecer à sua filha mais nova; Entre
muitas outras atracções que só por si tinham justificado a deslocação.
Fomos para o aeroporto. Deixei ficar o carro no parque interno. Apesar de ter
consciência que me ia custar uma nota preta, ficava mais descansado. Embora
fosse velhinho, era o meu inseparável companheiro dos bons e maus momentos,
pelo que me merecia os maiores cuidados.
O check-in correu sem incidentes e fomos até à sala de espera onde daríamos
início ao nosso duelo de xadrez.
Como não existiam mesas onde pudéssemos colocar o tabuleiro, pousámo-lo
numa cadeira entre as nossas. Apesar de ser um domingo havia pouca gente à
espera, pelo que não esperávamos que viesse a fazer falta. Se acontecesse
arranjaríamos outra solução. Confiante no meu historial na modalidade, cedi as
brancas a Mr. David e dei início à contagem dos quinze minutos de partida que
acertáramos. Espicaçou-me com uma variante da abertura espanhola que me
deixou de olhos vacilantes. Pela posição resultante após uma dúzia de lances,
constatei que me debatia com um adversário de respeito. Com mais certezas
fiquei quando num sacrifício de dama sobre o meu roque pequeno me apercebi
de um mate inevitável em quatro lances.
“Ena, esta foi de mestre! Já fui…” – Lamentei-me.
Peguei no rei e tombei-o sobre o tabuleiro, simbolizando a aceitação da derrota.
Trocadas as peças aventurei-me com a minha abertura favorita. Uma variante da
Bird de dar um nó no cérebro a quem respondia com uma Siciliana. Depois de
f4(e4)-c5; e4(f4)-Cc6; Cf3… tem origem um jogo que não sendo muito
agressivo é bastante promissor para as brancas, augurando com alguma
facilidade pelo menos um empate. Os movimentos de resposta começaram a
arrastar-se pelo tempo confirmando a novidade e multiplicidade de inóspitos
lances. Foi uma dura batalha e o empate o veredicto final. O inglês estava
admirado com a linha de jogo e pediu-me para lha explicar.
“Não é má... Não é má… – repetia – Nunca tinha jogado este tipo de
partida.”
“O factor novidade costuma ser uma mais-valia nesta variante.
Normalmente dou-me bem com ela.”
“É um bom desafio. Principalmente em partidas semi-rápidas ou rápidas.”
– Confirma. A escassez de tempo na descoberta de respostas a novos lances é um
factor decisivo em partidas cronometradas.
Chegada a hora de arrumarmos os batalhões, tinha encaixado três derrotas e dois
empates arrancados com a bem-aventurada. Não foi nada mau considerando a
qualidade do jogo praticado pelo meu oponente que era de um nível bastante
superior ao meu.
Tirámos casacos, cintos e pertences, que pousámos na passadeira rolante onde
seriam monitorizados electronicamente. Para evitar suspeitas acrescidas, Mr.
David escancarou a pasta onde estava o conjunto de xadrez e a taça, deixando-os
bem à vista. A operadora que tinha os olhos postos no ecrã dos raios-X alertou o
colega que acompanhava a saída dos objectos para o conteúdo da mala aberta.
Perguntou a Mr. David se era dele e agarrou na taça. Virou-a e deparou com a
placa do torneio, perguntando-lhe:
“É um bom jogador! 2º Lugar – muito bem! Em quantos lances é que se dá
o mate mais rápido em xadrez?” – Inquiriu-o em tom desafiador numa
pergunta de morte súbita.
Aparentemente era conhecedor da modalidade, ou talvez fosse um simples
curioso. Como estávamos a seguir, esperando a saída dos nossos pertences,
acompanhámos atentamente o que se passava.
“A maioria das pessoas pensam que é de brancas e em quatro lances, mas na
verdade o mate mais rápido é dado de pretas em dois.” – Responde-lhe
prontamente.
“Não pode!” – A negação foi acentuada por condicente movimento enérgico de
cabeça.
Em segundos Mr. David abre o tabuleiro, coloca as peças e mostra-lhe: f4-e6(ou
e5); g4-Dh4++ (mate). Deixou-o de queixo caído. Agora percebia-se que era
apenas um curioso. Um verdadeiro jogador saberia a resposta. Mirou
alternadamente várias vezes o tabuleiro e Mr. David coçando o queixo e dirigiu-
se com a taça a uma máquina próxima que deveria ser um aparelho de ultra-sons.
Passou-lhe uma espécie de scâner na base e retornou devolvendo a taça ao seu
leito.
“Tudo bem. Pode passar. Obrigado pela visita. Volte sempre!”
Recolhemos as nossas coisas sob o olhar de quem estava a digerir um xeque-
mate inesperado.
A viagem passou num ápice. Ainda o avião não tinha parado e já nós estávamos
em cima de Mr. David. Não só pelo que transportava, mas também pelo receio
de nos desencontrarmos. Por vezes os passageiros separam-se no desembarque e
não podíamos arriscar-nos. A pressa valeu-nos uma chamada de atenção duma
hospedeira. Deveríamos ter esperado que o avião se imobilizasse antes de nos
levantarmos – pelo que lhe pedi desculpa.
Nenhum de nós tinha até então estado em solo britânico pelo que pedimos a Mr.
David que nos encaminhasse a um hotel à sua escolha, onde nos aliviaríamos da
carga transportada. A relação qualidade-preço da primeira abordagem agradou-
nos. Praticamente no centro da cidade e relativamente perto da Sotheby’s.
Quando chegou a vez de confirmar o tipo de quarto olhei para Liliana
perguntando-lhe se pedíamos dois.
“Ficamos mais seguros só num. Pede é com duas camas.” – O tom de voz
transparecia uma timidez poliglota que desprendeu um sorriso no inglês.
Fiz por esconder a minha alegria. Subimos todos ao quarto no sexto-andar e
procurámos o 409, onde ficaríamos. Era bastante acolhedor, com mobílias
recentes de linhas direitas. A alcatifa de pêlo longo abafava qualquer passo mais
decidido, resguardando os outros hóspedes de vizinhança mais ruidosa.
Quando saquei a mochila da mala de viagem, o avaliador já tinha a taça na mão
para me entregar. Gostei da atitude e de não ter sido necessário lembrá-lo de que
deveria ficar na nossa posse até ser entregue na sede da leiloeira. De mochila às
costas parámos defronte do hotel esperando o táxi que Mr. David tinha pedido na
recepção. Deu-nos conhecimento que estava uma equipa à nossa espera na
Sotheby’s para recepcionar o cálice e atestar a guarda do mesmo. Não estávamos
à espera, pelo que lhe transmiti a minha preocupação por não termos retirado
ainda a basse improvisada.
“Isso é o menos.” – Sossegou-nos – “Estão lá os melhores técnicos do mundo.
Tratam disso num instante.”
O edifício era digno de registo, simplesmente imponente. Estávamos a pisar o
último degrau da escadaria quando a porta principal se abriu pelas mãos de dois
porteiros fardados a rigor e expôs uma sorridente equipa alinhada a rigor.
“Bem-vindos!” – Exclamaram numa só voz.
Sentimo-nos pequenos, muito pequenos mesmo. Aquela corrente de pessoas que
transpiravam nobreza e poder, tinha-se deslocado propositadamente a um
domingo para a nossa recepção. Valeu-nos a afável expressão que nos dirigiam,
permitindo-nos aliviar a responsabilidade sentida. Indicaram-nos o caminho para
uma sala digna de reis. A mesa era meio campo de futebol, onde num palpite de
relance constariam pelo menos cinquenta entronados assentos. Respirava-se
magnificência em cada palmo.
Mr. David iniciou as apresentações e ficámos a saber que para a ocasião estavam
presentes todos os administradores da empresa, acompanhados dos mais
reputados técnicos, dos quais recolhemos cartões-de-visita suficientes para fazer
um baralho de cartas. Ainda equacionei a sua ordenação para tentar identificar
cada um deles, mas era impossível.
O Presidente do Conselho de Administração puxou uma das cadeiras junto à
cabeceira e formou um par onde nos convidou a sentar, colocando-se
estrategicamente ao nosso lado direito, em oposição a Mr. David que ficara à
esquerda. Antes de me sentar puxei a mochila que tinha às costas, de onde retirei
mediante angustiosos olhares, uma toalha, umas calças, uma carteira, uns ténis
usados e finalmente a taça. Tinha-a dissimulada e protegida, precavendo
qualquer eventualidade. Se nos assaltassem era mais provável levarem a carteira
e deixar o mais importante.
Ainda a borda da taça não tinha passado completamente os limites da mochila e
já o irrepreensível comportamento britânico tinha caído por terra. Ninguém
resistiu a uma aproximação inadvertida de tão glorioso objecto. Até o presidente
tinha dois colaboradores empoleirados nele, sem dar ares nem queixumes da
sobrecarga anestesiada pelo hipnótico vislumbre. O molho era de tal ordem que a
taça ficara ao alcance da mão de qualquer um dos presentes.
“Esta base foi para fazer passar o cálice incógnito.” – Explica-lhes Mr. David.
“Foi muito bem pensado.” – Elogia o presidente, envaidecendo Liliana.
“Não foi ideia minha, mas funcionou na perfeição.” – Comenta ele olhando
para nós.
“Meus senhores – regressem aos vossos lugares se faz favor!” – Ordenou num
tom de voz cortês.
Quem olhasse agora para eles não dizia que há uns momentos atrás pareciam
uma cambada de putos reguilas à espera de alcançar uma guloseima. Hehehe…
Passei o cálice a Mr. David que o encaminhou de imediato ao Presidente.
“O Calix Christi – Parece um sonho... Todos pensavam tratar-se apenas de
mais uma lenda!” – Comentou olhando para nós – “Ficamos muito contentes
por terem optado pela nossa intermediação.”
O cálice foi passado à sua direita e percorreu todas as mãos que teimavam em
retê-lo perante olhos arrebatados até que o seguinte fizesse questão de o pedir
para também o poder sentir.
“O contrato está feito.” – Comenta Mr. David abrindo a mala de onde o retirou
passando-o ao seu presidente.
“Vamos tratar de retirar de imediato a base que lhe colocaram. Podem
acompanhar os técnicos que vão efectuar o serviço e fazer o favor de os
informar sobre os materiais que usaram para o efeito. Facilitará o processo
de remoção. Entretanto lavraremos o auto de recepção para levarem
convosco.”
Saímos da sala na companhia de toda a equipa técnica. Ninguém queria perder
pitada sobre o desenrolar da situação. Ficaram aliviados quando lhes disse que
tinha utilizado cola de madeira na fixação. A aplicação de pouco de humidade
seguida de um jacto de ar quente seria suficiente para que o cálice se libertasse
facilmente da base. Os processos foram aplicados debaixo de vários focos de luz
que aclaravam o cenário onde estavam a ser gravados diversos filmes captados
por quatro câmaras de vídeo estrategicamente colocadas.
“Posso dizer-vos que muitas pessoas matariam para obter estas imagens!” –
Alerta-nos um deles.
“Fiquem descansados. São absolutamente confidenciais. A sua divulgação
ou publicação nunca será possível sem o vosso expresso consentimento. São
apenas para uso interno da Sotheby’s e ficarão guardadas numa das mais
invioláveis fortalezas ao cimo da terra – Exactamente como o Calix
Christi!” – Apressa-se outro a completar.
Ficámos mais tranquilos. Se havia coisa que pretendíamos era o anonimato. Não
tanto por causa do Calix, mas acima de tudo pelo que ainda possuíamos. Era
fácil de imaginar que talvez pudessem existir outras peças, pelo que correríamos
iminente perigo de vida em caso de simples suspeição. No contrato celebrado,
ficara perfeitamente firmada a confidencialidade da origem, fragilizada apenas
em caso de comprovada ilegitimidade de posse do objecto. Por aí estávamos
perfeitamente descansados.
A demora foi pouca até o Calix retomar a sua forma original, desabrochando em
pleno esplendor. Foram efectuados mais alguns testes a todas as pedras, nos
quais confirmaram a nossa suspeição – tratava-se de rubis, esmeraldas e
diamantes. Quando terminaram entregaram-mo, suponho que por uma questão
de respeito. Reconduzi-o novamente a Mr. David que o recolheu nitidamente
vaidoso. Começava a sentir algum remorso pela desconfiança com que o tinha
tratado inicialmente. Infelizmente pagara o justo pelo pecador. Mas como diz a
vovó: Mais vale prevenir do que remediar!
A sala de reuniões não tardou a ficar completa com o nosso retorno. Em frente
de cada um dos nossos lugares estava pousado um auto de recepção, ainda por
assinar.
“Tirem as fotografias do Calix para juntar aos autos se faz favor.” – Ordena
o presidente.
A pedido do presidente certificámos os nossos dados pessoais e elementos
descritivos do sagrado objecto, alguns dos quais transmitidos entretanto pela
equipa técnica, assentindo na generalidade do conteúdo.
“Normalmente os autos de recepção são assinados apenas por um elemento
do Conselho de Administração e por um avaliador ou técnico, mas como
esta é uma oportunidade única, faço questão que todos nós sejamos parte
integrante do acto. Embora na frente fiquem a constar apenas a minha
assinatura e de Mr. David, que nos deu a honra de conquistar a vossa
confiança, os restantes assinarão por trás testemunhando e atestando este
glorioso acto.”
A salva de palmas que irrompeu do resto dos presentes cortou-me a manifestação
da concordância pela opção tomada.
O presidente estendeu-nos a mão para que lhe passássemos os autos e assinou-os
percorrendo-os com elaborados traços firmados por uma caneta de aparo. Mr.
David assinou igualmente ambos os documentos por baixo e retornou-os ao seu
superior para que este o orientasse a quem pretendesse. Foram atestados
individualmente percorrendo a sua direita, em sentido contrário aos ponteiros de
relógio. Os selos da Sotheby’s colocados sobre o lacre amolecido no canto
superior esquerdo na frente dos autos, fechando a união dos agrafos cruzados
utilizados para os tornar indivorciáveis das fotos, tornou-os ainda mais solenes.
“Agora só falta tirar uma cópia de cada para os senhores atestarem a
entrega fechando os procedimentos.”
Confirmadas as cópias, foi a nossa vez de assinar cada uma delas certificando
que eram fiéis dos originais que nos tinham sido entregues nessa mesma data.
Seguiram-se algumas perguntas sobre as nossas expectativas relativamente à
data para licitação do Calix e alguns entendimentos internos sobre a matéria.
Estávamos de acordo quanto a vinte e nove de Julho, data sugerida, dando mais
de quatro meses à leiloeira para tratar de todo o processo ligado à divulgação do
Calix. Fiquei na dúvida quando nos sugeriram que o leilão fosse restringido
apenas a licitantes convidados. Segundo eles, caso o leilão fosse do
conhecimento público, tendo em conta a preciosidade e avidez pela sua posse,
existiria um risco exponencial de assalto ou atentado. Por muito que se tentasse
esconder o local do evento, acabaria por transpirar alguma informação pela
quantidade acrescida de pessoas envolvidas na operação. Liliana concordou com
eles de imediato o que me levou a aceder. Apesar de julgar que poderíamos ser
penalizados no valor a atingir, asseguraram-nos que os maiores licitantes iriam
ser convidados. A empresa mantinha um registo actualizado das personalidades
interessadas neste tipo de ocasiões e do potencial de cada um, pelo que a triagem
seria consonante com as expectativas. Garantiram-nos que o excesso de procura
chega a ser prejudicial porque os lances a efectuar podem focar atenções em
pessoas que pretendem passar despercebidas. Algumas vezes chegam inclusive a
recorrer a intermediários para não serem relacionados com a aquisição.
Para evitar riscos desnecessários, aceitámos que os convites fossem feitos apenas
pessoalmente, sem qualquer tipo de comunicação que pudesse ser interceptada
ou violada, aproveitando a ocasião para mostrar aos potenciais licitantes uma
cópia do Calix a uma escala de 1:2, que seria construída propositadamente para
esse efeito, numa liga de bronze com vidro a simular as pedras preciosas.
Assentes os pormenores, tivemos de subscrever novo contrato com as alterações
introduzidas que veio a substituir o celebrado em Gaia. Solicitados pelo
presidente, na companhia de Mr. David e mais dois membros da Administração
– fomos a um enorme armazém na cave, fortificado por portas de segurança
como nunca tinha visto e acompanhámos a introdução do Calix em outro
colossal cofre interior onde se poderia facilmente fazer um quarto. Para o abrir
foi necessário que cada um dos administradores desfizesse o respectivo segredo
mecânico e que o Presidente utilizasse uma chave magnética que trazia dentro da
carteira juntamente com a impressão digital para o destranque final. A porta era
tão pesada que a sua movimentação era feita hidraulicamente ou através duma
manivela em caso de avaria ou falha nas unidades eléctricas de back-up.
“Só para vossa informação e descanso, ficam a saber que as paredes do
cofre exterior são feitas em betão com um metro de espessura e malha de
ferro com um espaçamento máximo de cinco centímetros em qualquer
direcção, acrescido de diversos sistemas de segurança que poucos conhecem
neste mundo. Este mais pequeno tem paredes de aço com trinta centímetros
de grossura e dezenas de toneladas de peso. Para o construírem foi preciso
montarem uma mini fundição cá dentro.” – Elucida-nos Mr. David.
Aceitámos que nos pagassem a estadia no hotel, com todos os serviços e extras
que pretendêssemos a ficar por conta da Sotheby’s. Disseram-nos que não nos
preocupássemos que tratariam de tudo directamente com o hotel e caso
precisássemos de algo bastar-nos-ia contactar qualquer das pessoas constantes
dos cartões-de-visita que nos tinham dado, que contaríamos incondicionalmente
com a sua disponibilidade. Foi uma atitude que nos deixou plenamente
satisfeitos por termos optado pelos seus serviços.
Era noite avançada quando abandonámos as instalações após intermináveis
despedidas e agradecimentos. A hora de jantar já lá ia há muito e ninguém tinha
dado por isso. Escusámo-nos aos convites que nos fizeram desculpando-nos com
o cansaço da viagem e necessidade de repouso. Prometemos que teríamos muito
gosto em os aceitar numa oportunidade futura. Mr. David acompanhou-nos até
ao táxi que tinha pedido para chamarem e despediu-se de nós prometendo que
iria buscar-nos no seu carro para nos ir pôr ao aeroporto dois dias depois.
Agora podíamos estar mais descansados. Os cuidados e atenções a que o
transporte do Calix nos obrigava, desapareceram, permitindo-nos ficar mais
descontraídos.
O serviço de bar era permanente, pelo que encomendámos duas sanduiches
mistas e dois sumos de laranja na recepção antes de subirmos ao 409. Mal acabei
de fechar a porta quando Liliana se virou para mim e me enredou. Com as faces
coladas e respiração ofegante permanecemos unidos saboreando o momento que
terminou com um olhar de ternura e um beijo capaz de sugar o universo.
Respirávamos infindável felicidade. São situações como essa que fazem valer
toda uma vida e dão absoluto sentido à existência.
Sentámo-nos alegres nas camas frente-a-frente.
“E agora, princesinho?”
“Bem… Agora vamos esperar pelas sandes e depois… vamos dormir!” –
Bateram à porta, ainda a frase não tinha acabado, interrompendo o ar surpreso de
Liliana.
Entre vorazes mordidas expliquei-lhe o que havia prometido a D. Maria e não
obstante o facto das minhas certezas e convicções, preferia protelar o
comprometimento do relacionamento que tanto desejava solidificar, do que me
sentir como se traísse quem tanto estimava.
“A vovó pediu-te que não dormisses comigo?” Exclama indignada.
“Não, de modo algum! Pediu-me apenas para pensar seriamente em
qualquer passo que desse – Entendo-a perfeitamente!”
A sua opinião ficou bem patente quando se mudou para o meu lado e depositou
um suave beijo na minha testa – Ainda hoje achámos que foi a decisão mais
acertada que tomámos – Mais tarde viríamos a compensar largamente tudo o que
havia sido protelado em sólida harmonia de corpo e alma. Fechámos os autos no
cofre e adormecemos cada um em seu leito observando ternamente o outro sob o
testemunho do esbranquiçado manto de lua cheia que teimava em trespassar os
espessos cortinados.
Aproveitámos a oportunidade e no dia seguinte arrancámos de táxi e partimos à
descoberta de Londres. De manhã fomos ver in loco o Big Ben, a Tower Bridge,
visitámos o Science Museum e à tarde perdemo-nos por Hyde Park. Da nossa
lista de prioridades, ficou por visitar o Buckingham Palace, passeio que
reservámos para a manhã seguinte antes do regresso a terras lusas. Agora
lamentávamo-nos por a Canon ter ficado em casa. Além do carrego, sempre era
mais uma coisa em que pregar o olho e a prioridade soberana era o Calix. Se
tivéssemos adivinhado que logo no domingo ficaria em segurança… Assim
fomos recorrendo aos telemóveis para memorizar a nossa estadia e à boa vontade
dos transeuntes para uma ou outra foto a dois.
Mr. David apareceu como prometido e acompanhou todos os nossos movimentos
até nos despedirmos já a caminho do embarque. Chegados ao Porto apressámo-
nos a recolher a bagagem para irmos no mais curto espaço de tempo até
Linhares. Mal a porta de saída se abriu ouvimos um sonoro – “São eles!” –
proferido por D. Inês. Mãe, pai e avó estavam em êxtase com a chegada da sua
adorada filha e netinha. Saudações terminadas – fomos todos ao estacionamento
buscar o bólide para os levarmos até à viatura que tinham deixado noutro parque.
D. Maria estava feliz com o retorno da sua netinha. Era a primeira vez que vinha
à cidade invicta, pediu para passarmos pela ponte de D. Luís. Tinha em tempos
ouvido na televisão que tinha sido projectada pelo mesmo homem que construiu
aquela torre em Paris.
“Gustave Eiffel, vovó!” – Complementa Liliana.
“Esse mesmo! Podemos lá ir? Nem que seja para ver só de longe.”
Arranquei na companhia de Liliana. Atravessámos a ponte da Arrábida e saímos
na Afurada, sempre seguidos por eles. Deixámos o Golf num parque da Afurada
e continuámos todos no leãozão. Se encontrar lugar para um na zona ribeirinha
não é fácil, imagine-se para dois. A ponte aguardava serena a nossa chegada,
convidando-nos à travessia pedestre. D. Maria ficou especialmente curiosa
quando parámos a meio do tabuleiro inferior, mirou a ponte em todas as
direcções e elogiou as embarcações que alcançava com o olhar. Era um cenário
completamente virgem para os seus olhos, diametralmente oposto àquele que
tinha testemunhado pela vida fora, descontinuado ocasionalmente por uma
esporádica visita a Lisboa na companhia da filha.
Explicadas algumas curiosidades e pormenores relativamente à zona,
encaminhámo-nos inevitavelmente para casa de D. Rosa, minha mãe. As
apresentações foram de curta duração, mas a conversa entre as senhoras
mostrava claro entendimento. Prometemos um encontro futuro com mais tempo
para se cimentar o relacionamento, fosse em Gaia ou Linhares, mas
precisávamos de abalar antes que se fizesse noite – a serra suspirava por nós.
Gostei particularmente de não terem feito qualquer pergunta sobre o cálice até
chegarmos ao nosso destino. Apenas em casa se falou nisso. Até então, a
curiosidade tinha incidido apenas sobre se tínhamos gostado de Londres e o que
é que visitámos. Essa atitude demonstrou-me que para eles a família em si era
mais importante do que o verdadeiro motivo pelo qual tínhamos abalado.
Foi uma noite longa até concluirmos o relatório da recente experiência. Ficaram
no ar as expectativas relativamente ao desfecho do leilão, mas a isso só o tempo
se encarregaria de responder. Ficara assente com a leiloeira que só voltaríamos a
ter notícias depois da licitação. O risco de transmissão de qualquer informação
via electrónica era muito elevado, pelo que ficou acordado um retorno à sede no
final do grande dia. A hipótese de estarmos presentes no acto ficara excluída –
Lá se iria o anonimato. Depois de tudo o que testemunháramos não ficaram
quaisquer reservas quanto à idoneidade da leiloeira que nos levassem a
desconfiar sobre a ocultação do verdadeiro valor alcançado pelo Calix.
Ficaram estupefactos quando lhes mostrámos os autos. Uma verdadeira obra-
prima digna de se eternizar em ostensiva moldura.
Ninguém nos fez qualquer pergunta sobre o modo como tínhamos permanecido
no hotel – pelo menos à minha frente. Provavelmente com medo daquilo que
pudessem ouvir ou pela mentira que eventualmente forçariam.
Independentemente de sabermos que nada havia a esconder, preferimos assim.
Chegara a altura de falarmos com D. Adelaide e contarmos-lhe o sucedido.
Embora entretanto a encontrássemos e estivéssemos na sua companhia por
diversas vezes, esta nunca mais abordara o assunto, limitando-se a falar de coisas
do quotidiano. Nem a nossa presença alongada em Linhares espicaçara
perguntas, limitando-se a manifestar o seu agrado por nos ter por perto.
Preferimos convidá-la a vir até casa. Queríamos mostrar-lhe o tesouro e estava
fora de questão andar com ele para trás e para a frente.
Contámos-lhe tudo aquilo por que passámos, incluindo a nossa ida a Londres
antes de a deslumbrarmos com o que lhe íamos exibindo. Escusado será dizer
que a sua incredulidade era infindável. A cada peça em que pousava os olhos
desprendia um – “Ahhh!” – que não nos surpreendia minimamente. Vistas bem
as coisas, sobejavam peças mais elaboradas e de grandiosidade tal que em
riqueza material pouco ou nada ficariam a dever ao Calix.
“Quem diria… E toda a vida gozaram o pobre homem…” – Lastima D.
Adelaide.
“Atrever-me-ia a dizer que muito provavelmente o mais rico dos homens, D.
Adelaide! Principalmente depois de se ter desfeito do tesouro.” – Interponho.
“É verdade! Pelo menos é o que se depreende nos poemas que nos deixou.
Dizia pobre apenas pela atitude mesquinha do povo.” – Corrige.
Quando lhe dissemos que escolhesse as peças que quisesse limitou-se a
responder que gostara especialmente de uma corrente de ouro feita com grandes
elos e onde pendia uma deslumbrante cruz cravejada de pedras azuis – turquesas
certamente. Apesar da nossa insistência, nada mais desejou.
“Para quê, meninos? Isto para mim é mais do que suficiente! Vocês hão-de
dar-lhe certamente melhor destino do que eu.”
Aquilo que mantínhamos dentro de casa era uma preocupação constante.
Precisávamos de arranjar um lugar insuspeito onde o guardar. Nem nos
atreveríamos a mostrá-lo a mais ninguém. Somente D. Adelaide teve de saber
por motivos óbvios. Sem ela nunca teríamos lá chegado. Escondê-lo em
Linhares, só seria possível durante a penumbra. Seria arriscar demais e desafiar a
sorte que tivéramos quando o retirámos da fonte. Acabámos por encontrar uma
solução. Por vezes, os lugares mais óbvios são os que passam mais
despercebidos. Qual foi?  Pois… Muita gente gostaria de saber a resposta à
pergunta.
Chegara o final de Março, no início de Abril tinha de retornar ao serviço. Por
nada deste mundo me apetecia largar Liliana, mas o dever chamava-me. Passou-
me pela cabeça largar o emprego e passar a viver do que viéssemos a conseguir
com a venda do Calix, mas por muito que pensasse não encontrava nenhum
destino com que me identificasse. Gostava (e gosto) muito do meu Banco, que
tanto me ajudou em momentos deveras difíceis. Pretendia reconhecer-lhe
enquanto pudesse a oportunidade que me deu, quando tantos outros desejavam
um dos lugares então disponibilizados por concurso.
Conscientes da nossa preocupação pela separação que nos aguardava
brevemente, os pais de Liliana manifestaram a sua concordância quanto a uma
eventual mudança para Gaia, que diziam vir também a acompanhar caso não nos
importássemos de os ter por perto. Por muito que fizéssemos, nunca
conseguiríamos demonstrar-lhes a nossa alegria pela solidariedade com que nos
presentearam. Antes de lhes agradecer pela atitude, pedi-lhes uns minutos em
que me ausentei com a minha princesinha. Quando voltámos parecíamos uns
bobos de lábios rasgados em sorrisos geminados.
“Papá, mamã, vovó… – Estão todos convidados para o nosso casamento!” –
Anuncia Liliana numa alegria contagiante.
Montanhas de apertos, beijos e abraços depois, procurámos um calendário para
acertar a data. Pesquisei o dia treze de Maio, dia de Nossa Senhora de Fátima, e
depressa desisti. Não por calhar a uma sexta-feira treze, mas por ser sexta.
Fomos também alertados por D. Inês que existiam prazos de espera relativos a
publicações no Registo Civil que tinham de ser respeitados, além de todo o
tempo necessário para fazer convites, marcações, etc. O ideal seria uma
precedência de pelo menos três meses. Ponderados os diversos factores, optámos
pelo dia dezassete de Julho. Os pais disponibilizaram-se para tratar de tudo o que
pudessem. Estavam excluídos, por motivos óbvios, os procedimentos relativos
ao Registo Civil.
Foi escolha generalizada que a cerimónia se realizasse em Linhares e celebrada
pelo Padre Jacinto. Como convidados pretendíamos apenas os familiares mais
directos e D. Adelaide, que era como se pertencesse à casa. Nada de grandes
opulências. Num dos passeios dados pelas redondezas, deparámo-nos com um
empreendimento turístico em Seia onde nos tinham ficado os olhos. Quem sai da
localidade em direcção a S. Romão, entre as encostas que as limitam, fica um
complexo digno de se visitar.
“Quinta do Crestelo!” – Lembra Liliana.
“É isso mesmo!” – Confirma o pai. Deixem que nós vamos lá saber se fazem
casamentos e combinar tudo, caso seja possível.
Quando transmiti aos pais que a parte que deveria ser a minha mãe a suportar era
por minha conta, ouvi uns valentes raspanetes.
“Os noivos não têm nada a ver com isso. Se a sua mãe não pode, nós
fazemos questão!”
Escusava de os tentar demover. O tom de voz de D. Inês era bastante
esclarecedor. A verdade é que nem uns nem outra o pagaram, chegada a hora, foi
D. Maria quem se adiantou. Numa aparentemente inocente ida à casa de banho,
cujo caminho lhe foi indicado pelo proprietário, combinou com ele o sorrateiro
pagamento.
Lisboa ficara propositadamente esquecida. A recordação do nosso perseguidor
demovera-nos a lá voltar. Estávamos em Inglaterra quando o senhor Manuel foi
lá sozinho dar uma espiadela para confirmar se tudo estava bem, nada tendo
descoberto de suspeito.
Retornei ao trabalho. Liliana ficara em Linhares na companhia dos pais e avó,
para onde me desloquei todos os fins-de-semana. A cerimónia correu da melhor
maneira possível num dia que se tornou inesquecível. A soberba igreja de
Linhares seguida do ambiente propiciado pela Quinta do Crestelo excedeu
largamente as nossas maiores expectativas. Vivemos apenas um pequeno
sobressalto quando D. Maria, emocionada no momento em que colocávamos as
alianças, mandou as mãos ao peito e largou um elevado suspiro que nos arrancou
das nossas posições partindo em dispensável auxílio. Sossegados os ânimos pelo
inadvertido susto, a cerimónia continuou sem o mínimo incidente. Depois do
casamento passámos uma semana numa bela lua-de-mel nos Açores e fixámos a
nossa residência em Gaia num apartamento alugado perto da praia de Salgueiros.
Chegara o dia vinte e nove de Julho – momento de todas as verdades – meu
último dia de licença por casamento. Repetiu-se o percurso de Março, com
reserva de dois dias no mesmo hotel. Desta vez numa suíte com cama de casal
queen size, adequada a efectuar os pagamentos em dívida desde Março. 
Desta feita, quando aterrámos em Londres às três da tarde, não tínhamos Mr.
David à nossa espera, conforme combinado anteriormente. Para nós era mais
importante que acompanhasse integralmente o leilão e nos viesse buscar depois
do seu encerramento que deveria ocorrer por volta das oito horas da noite.
Estimava-se que diversos licitantes ou os seus representantes chegassem só nesse
mesmo dia, pelo que o início ficou agendado pelas quatro da tarde, hora
suficiente para garantir a chegada do maior número de voos possíveis das mais
diversas proveniências do mundo. Quatro horas a leiloar uma única peça,
inclusivamente com coffee-break previsto – que maratona!
Pelo sim, pelo não, às sete já estávamos sentados no hall de entrada.
Observámos as oito, oito e meia, nove menos um quarto, nove menos dez, nove
menos cinco, nove menos quatro… Começávamos a ficar preocupados e
inquietos. Nem sinal. Teria acontecido alguma coisa? Eram nove menos dois
quando mandei a mão ao bolso interior em busca do telemóvel para lhe ligar e
reparámos num carro igual ao seu a parar defronte do hotel.
Era ele – Veio ter connosco com um sorriso do tamanho da London Tower.
Tremia como varas verdes quando nos estendeu a mão. Ficámos apreensivos,
nervosos… Algo de errado se tinha passado – o sorriso devia ser de nervosismo
com certeza!
“Desculpem o atraso! Vim o mais rápido que pude.” – Desculpou-se.
Quando entrámos no carro perguntámos-lhe inquietos se tudo tinha corrido bem.
“Por ter corrido tão bem é que demorei tanto. Foi uma autêntica batalha! O
meu presidente estava louco de contente! Nunca imaginei – disseme ele por
diversas vezes antes de vos vir buscar.”
“A sério? Qual foi o valor atingido Mr. David?” – Pergunta Liliana com
agitada curiosidade.
“Desculpem, mas vai ser o presidente a dizer-vos. Devo-lhe essa honra.”
O lugar já estava despido de licitantes que tinham partido logo após o leilão
terminar e depois de formalizados os procedimentos do feliz ganhador que ainda
fez um forcing para saber a origem do cálice, mas que o presidente recusou
terminantemente – em conformidade com o nosso pedido.
Prestadas calorosas honras na chegada fomos para a sala que já conhecíamos na
companhia da equipa que já nos havia recebido antes. Todos se sentarem nas
posições de outrora, connosco igualmente à cabeceira.
“Estimados senhores, estão bem seguros às vossas cadeiras?” – Provoca-nos
manifestamente divertido o presidente. Algo surpreendente num britânico –
“Permitam-me que vos diga que o valor foi de tal ordem que no pequeno
intervalo que fizemos, houve vários licitantes a agrupar-se para
conseguirem continuar numa corrida que já lhes tinha ultrapassado todas
as disponibilidades. Não sei se estão a ver bem… Estamos a falar dos mais
ricos homens sobre a terra! Pela primeira vez na minha vida, vi gente do
mais alto gabarito a discutir com os outros licitantes por não os poder
acompanhar e alcançar o que tanto desejavam.”
Entreolhámo-nos de queixo pendente – o que é que se seguiria?
O presidente pegou num bloco de notas e começou a escrever algo que virou de
seguida para nós.
“825.000.000,00” – Era o que lá estava escrito – “Oitocentos e vinte e cinco
milhões?” – Da garganta não me conseguia sair o que os olhos esbugalhados
liam. – “Isto são euros???” – Balbuciei, com os lábios a tremer e o esqueleto a
tilintar.
A estrondosa gargalhada geral que se seguiu deixou-nos atarantados.
“É impossível! Só podem estar a gozar connosco!” – Comento com Liliana
que estava muda, quase estarrecida.
“Sim, oitocentos e vinte e cinco milhões de euros meus senhores! Mas não é
o valor da arrematação – esse é apenas o valor da nossa comissão!”
“AHHHHHH…!?!?!?”
“Tenho a honra de lhes comunicar que o Calix Christi foi arrematado por
um grupo de empresários russos no montante de 16.500.000.000,00 –
dezasseis mil e quinhentos milhões de euros! Deduzida a nossa comissão, os
senhores arrecadarão 15.675.000.000,00 de euros – quinze mil, seiscentos e
setenta e cinco milhões de euros!”
Saltámos das cadeiras e abraçámo-nos numa alegria desmedida, acompanhados
de uma ovação sem precedentes. O presidente e Mr. David, iniciaram infindáveis
felicitações, que recebemos de todos. Agora entendíamos porque é que ele
tremia daquela forma. Quando retomámos os nossos assentos estávamos com
pernas bamboleantes, despojados de forças.
Esperou-nos uma festa de arromba feita em casa do presidente. Evitara
prudentemente outros lugares que pudessem atirar a público o nosso nome. A
farra continuou madrugada fora e acabámos por pernoitar lá. Era inútil tentarmos
escapar-nos ao convite. Muito mais porque, por iniciativa do presidente,
receberíamos no dia a seguir alguns banqueiros e administradores bancários para
nos elucidarem sobre as vantagens de cada uma das instituições onde
poderíamos abrir conta. Fazê-lo em Portugal, nesta fase em particular, seria
quase um suicídio. A seu tempo canalizá-lo-emos para a minha incomparável
Caixa. Oooppss! Eu disse Caixa? Xiiiiii… Distraí-me… – Pois, mas isso já toda
a gente sabia. Pela descrição só podia ser mesmo a Caixa Geral de Depósitos!
Não foi fácil enfrentar individualmente potentados de cinco grandes Bancos a
apregoar as virtudes de cada um. A solução foi mesmo optar por abrir
temporariamente conta em todos eles dividindo equitativamente o montante.
Três mil, cento e trinta e cinco milhões em cada – um valor absurdo! As alegrias
comediram-se quando lhes transmitimos que tal verba haveria de ser transferida
futuramente. Apesar dos argumentos inabaláveis, nenhum se compara à Caixa –
Caixa será sempre Caixa, onde quer que se esteja! O único compromisso
assumido com todos foi que deixaríamos a verba depositada por um período
mínimo de seis meses. Quiseram assegurar os valores na passagem de ano,
compreensível e até louvável para o sector.
Hoje, andamos ainda às voltas com a melhor forma de proceder à gestão deste
montante bárbaro. Nada está ainda definido, já pensámos numa Sociedade
Anónima, numa Fundação, entre outras possibilidades. A Fundação parece-nos a
melhor das soluções para evitar o pagamento de impostos que pretendemos
canalizar para beneficência. O futuro se encarregará de nos mostrar o melhor dos
caminhos. Uma coisa podemos assegurar, não dependeremos essencialmente
desse dinheiro. Continuaremos a trabalhar, ainda que em novos projectos
adequados aos fins a que nos propomos. Quando muito, utilizaremos uma
pequena parte para construir uma casita à minha mãe, outra para os meus sogros
e uma também para nós – nada de palácios. Compraremos um Porsche, um
sonho de criança que até há pouco tempo me era inalcançável e terminaremos
com um pequeno pé-de-meia para alicerçar o futuro da família. Seis dígitos
intermédios serão mais do que o suficiente. O resto será destinado a ajudar quem
realmente precisa. Não incentivaremos o ócio, inimigo do desenvolvimento.
Beneficiará somente quem se esforçar e provar que merece a oportunidade que a
vida lhe oferecer. O senhor António, antiquário, terá a recompensa pela sua
honestidade, uma vez que não lhe pudemos fazer o que nos pediu e o Senhor
António Oliveira, injustamente conhecido pela alcunha de Gargantas, terá uma
homenagem digna de um prodigioso homem que descobriu a verdadeira essência
da vida e da felicidade.
As pistas deixadas para a segunda parte do tesouro ficarão para quem se quiser
dedicar a elas. Quem sabe onde irão dar e o que desvendarão…
O resto do tesouro que achámos, permanecerá disfarçado em silenciosa
sepultura, até que este dinheiro tenha concluído a sua missão – coisa que não
acreditamos que venha a acontecer ainda durante as nossas vidas.

FIM

ATENÇÃO!!! Alerto para que se tenha o máximo


cuidado em visitas a efectuar a determinados locais
constantes desta obra. Em alguns deles podem estar
sujeitos a desmoronamentos iminentes, quedas, ou
outros perigos inadvertidos.

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