gostaria de agradecer a oportunidade de falar com vocês sobre a pesquisa que
eu estou fazendo com os indígenas Fulni-ô que vivem na região agreste do estado de pernambuco. Acho que é importante dizer que eu aqui não quero falar deles ou por eles, mas sim a partir desse encontro com eles que eu tenho tido a oportundiade de viver. Até meados de abril eu estava lá, vivendo na periferia da aldeia em que eles vivem, mas tive que vir embora por conta da pandemia que estamos enfrentando. Quando eu deixei a região, ainda não havia casos de COVID-19 confirmados, nem em investigação, mas hoje, infelizmente já são mais de 20 pessoas contaminadas e 4 óbitos em decorrência do vírus.
Bom, eu vou falar de um trabalho que está em desenvolvimento, as vezes eu me questiono se vale a pena ficar falando sobre algo que eu ainda tenho que pensar muito, porém eu também acho que falar sobre o trabalho me ajuda a elaborar melhor a pesquisa e eu agradeço a generosidade da escuta de cada um de vocês. Para situar um pouco melhor, eu passar agora a uma breve apresentação do povo Fulni-ô. Os Fulni-ô constituem um povo indígena que habita o semi-árido pernambucano, na região do planalto da Borborema, em uma terra demarcada de 11.500 hectares, desde o final do século XIX, dentro da qual os brancos, apropriando-se de uma porção do território indígena, abriram ruas e erigiram edifícios a fim de construir uma cidade, no início do século XX, a qual batizaram de Águas Belas. Dados levantados pela Sesai, atestaram que 4.689 Fulni-ô viviam na aldeia, em 2014. Nesse mesmo período, o IBGE contabilizou no município uma população composta por mais de 40 mil águas-belenses. O antropólogo alagoano Estevão Pinto - que dedicou boa parte de sua carreira à etnologia das populações indígenas do nordeste - calcula ser 1700 o ano em esse povo deparou-se com a máquina colonialista. Desde então, os Fulni-ô se viram enredados no drama civilizatório que, em um mesmo ato, ceifou centenas (ou, quem sabe, milhares) de suas vidas e os fizeram nascer para “história da humanidade”. É dizer: enquanto seus corpos caíam ao chão defenestrados pelos golpes do “herói” colonizador, eles passavam a existir enquanto uma variedade da população humana a quem era necessário apresentar os desígnios do Criador e os quais era interessante conhecer a fim de adicionar mais um verbete ao catálogo antropológico. Minha intenção inicial junto aos Fulni-ô era a de conduzir uma pesquisa a partir dos agenciamentos da planta jurema que eu supunha possuir centralidade naquela sociocosmologia. Um colega antropólogo – após conhecer alguns homens Fulni-ô na cidade fluminense de Petrópolis em uma “vivência” indígena em que se preparavam e bebiam infusões daquela planta – visitou-os na aldeia no ano de 2016, e, ao voltar, compartilhou comigo que acreditava ser lá um locus interessante para eu conduzir uma pesquisa de campo sobre a jurema. Após defender dissertação sobre o interesse ameríndio voltado a planta de tabaco, minha ideia era seguir, no doutorado, focalizando as “plantas de poder” apostando na rentabilidade teórica que o tabaco havia me mostrado possuir para os povos indígenas sul-americanos, ao operar como espécie de “dobradiça” entre dimensões internas e externas daqueles mundos. Minha aposta era que a jurema poderia abrir a sociocosmologia indígena em direção a sociocosmologia afro-brasileira uma vez que essa planta também está presente em religiões de matriz- africana praticadas principalmente no nordeste brasileiro. Tais ilações constituíam-se em hipóteses muito vagas e que vem ficando ainda mais tênues.
Antes de chegar ao campo, estava com muito receio do que os Fulni-ô iriam achar de mim à primeira vista. A literatura antropológica que havia lido, antes de chegar lá, contribuía, e, muito, para que eu me sentisse daquele jeito: destaca-se em vários escritos a desconfiança característica desse grupo indígena em relação aos pesquisadores; falava-se até em queima de etnografia imprópria por revelar “segredos culturais” - aquela escrita por Estevão Pinto, em 1956 (FOTI, 2011). Ciente de que o sucesso da prática antropológica depende da qualidade das relações constituídas entre o pesquisador e o grupo de pessoas com quem se deseja pesquisar, tinha medo de ser despachada logo no primeiro dia, de fazer perguntas impróprias, de me expressar mal. Assim, desde minha partida, período que andava lendo textos da filósofa belga Isabele Stengers para um trabalho de disciplina, o que mais afligia me não era propriamente minha capacidade de tolerá-los, ou de conjurar a maldita tolerância que viesse a sentir como nos exorta a autora, mas o fato se os Fulni-ô seriam (ou melhor, serão) capazes de me tolerar.
Os Fulni-ô tem um contato forçado com a sociedade ocidental desde o século XVII. São íntimos, assim, do interesse alheio pelo seu modo de vida e por suas terras. Estão acostumados a receber pesquisadores e outros tipos de curiosos. Ninguém, até o momento, me questionou sobre o que faz uma antropóloga, eles sabem, e, acredito que, por isso, repetidas vezes, me questionam sobre o recorte temático da pesquisa. Pensando nos termos de Stengers, os Fulni-ô me impõe a habilidade de saber fazer antropologia na presença deles. Eles fazem juízo sobre o meu ofício, tomam a palavra sobre mim. Tem suas próprias ideias do que é a sociedade que eu pertenço e de como ela se distingue da que eles pertencem.
A aldeia em que os Fulni-ô vivem tem muitas características urbanas, suas casas são de armação de concreto, quase todos se locomovem de moto ou carro, e as roupas que usam são iguais aos dos habitantes de Águas Belas. Não há assim uma diferença que salte aos olhos de quem os vê desde a cidade. A baixa “distintividade cultural” que esses grupos indígenas do nordeste possuiriam em relação à sociedade brasileira é compreendida, dentro da etnologia brasileira, como uma categoria marcante desses povos, a qual justificaria o desinteresse dos pesquisadores (em relação aos povos indígenas amazônicos, por exemplo) e o não reconhecimento estatal e acesso aos direitos específicos (CARVALHO & REESINK, 2018). A maior parte da antropologia que se fez sobre esses grupos, guiou-se pelas categorias de identidade e etnicidade e buscou descrever elementos culturais marcadores de uma indianidade. Ademais, relacionou-se os processos de afirmação identitária desses povos a uma necessidade por território a que todos os grupos humanos estariam submetidos.
Minha experiência em campo tende a confirmar o que se diz sobre a interdição aos não- indígenas do conhecimento das particularidades de seus rituais sagrados, da cosmologia de seus mundos, etc. Mas minha pouca experiência também me mostrou que essa dimensão, longe de constituir um domínio separado da vida dos Fulni-ô, ao qual eles só recorreriam a fim de afirmar suas identidades perante as pessoas não indígenas e o estado brasileiro e que eles precisariam manter escondido como quem esconde um tesouro do branco pilhador - atravessa as ações cotidianas e os discursos do dia-a-dia. Praticamente todos os dias escutei sobre fatos corriqueiros ocorridos no último Ouricuri, quase todos os Fulni-ô me falavam da percepção e importância daquele ritual em suas vida. Diante disso, creio que a questão do segredo, se é um limite para a pesquisa junto aos Fulni-ô certamente não é o no sentido geográfico daquilo que encerra e separa os Fulni-ô do outro e impede qualquer ato comunicativo. A chave do enigma não seria, creio, decifrá-lo, mas segui-lo, uma vez que a partir dele os Fulni-ô se enredam em sucessivos processos de diferenciação.
Certo dia, acompanhei Isnar – um amigo Fulni-ô que vem me ajudando no campo com entusiamo – em uma de suas caminhadas, na saída de Águas Belas. Como é um jogador de futebol, reconhecido por suas habilidades, ele tem o hábito de se exercitar diariamente para manter a forma física, no auge de seus quase cinquenta anos. Entre uma passada e outra, falávamos sobre os limites do território Fulni-ô, e de um processo de revisão que está parado na Funai há alguns anos, e eu comentei, com certa indignação, que seria difícil aquilo se concretizar devido à política bélica do nosso atual presidente. Sem mudar de humor, Isnar disse que o atual presidente “não iria fazer nada contra eles”, desconsiderando que ele tivesse qualquer força. Retruquei dizendo que as pessoas, em geral, e incluindo ele, não estavam acreditando do que o eleito era capaz. Mas Isnar mais uma vez desdenhou dos meus alertas. Disse que, “na verdade, eu não podia entender, mas que aquele presidente não tinha nenhum poder sobre os Fulni-ô, que eu podia não acreditar, mas que ele sabia”. Que “quando o presidente pensasse em prejudicar os Fulni-ô, os espíritos que os protegem os avisariam antes, o plano estaria arruinado”. Pois bem, nesses tempos em que a “alteridade tende a perder toda a aspereza” como diz GUATARRI (2001 [1989], p.8), estou interessada em compreender e etnografar o comum (no termos de Stengers) em torno do qual os Fulni-ô se reúnem e o que os “faz pensar, imaginar, criar, de modo que o que cada um faz importa para os outros”. Não estou interessada propriamente nos sinais diacríticos expressivos de sua cultura particular, mas, se posso dizer assim, aos seus pertencimentos, à força presente em suas vidas e que os permitem ser outra coisa que nós. Se Isnar se sente forte e capaz diante do horror que mais vez se instala diante dos indígenas e de nós encarnadas nas figuras abjetas que tomam o poder atualmente é certamente porque os Fulni-ô não desaprenderam a reunir-se em torno de um comum que os permite criar quase infinitamente um campo de possíveis de modo a reiventar suas vidas contitnuamente e resisitir às barbáries que o ocidente vem-lhes impondo há trezentos anos.