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Mesa 27
3º edição
Capa
Adriana Nicolodi
Revisão
Cristiane Carvalho
Flávio Dotti Cesa
Prólogo
Prefácio
Agradecimentos
Introdução
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo Final
Prólogo
Foi muito gratificante ter criado esta história e hoje dividi-la com
cada leitor, de certa forma, e, por que não dizer, torná-la quase real.
Despertar emoções e sentimentos com a exteriorização de uma
ideia é fantástico, um sentimento único, e quero compartilhar deste
sentimento com você!
adriana-nicolodi@hotmail.com
Prefácio
Colocar as ideias num papel não é tarefa das mais fáceis. Que
dirá então escrever um livro com inúmeras páginas, que irão
desvendar uma história toda arquitetada na mente de quem as
idealizou. Todo ser humano é um escritor iminente, partindo do
princípio de que todos se percebem e se identificam — em
diferentes graus — com o mundo a sua volta. O cotidiano é uma
teia, onde vários indivíduos se cruzam e fazem a sua história
diariamente. Porém, por inúmeros motivos, nem todos concretizam
na folha de papel esse saber diário que a vida nos fornece.
Foi com esse relato e por tudo mais que pude presenciar que a
alma do artista está impregnada nela. Percebam a sensibilidade em
penetrar na cena através das músicas em questão. E tenho certeza
de que essa mesma sensação se estenderá a todos aqueles que
entrarem em contato com o livro.
Adriana Nicolodi
Introdução
Para sempre.
Capítulo 1
— Querida?
— Marcel...
— Sim?
— Tá bem.
— Chef?
— Fale, Marcel!
— A dona Julieta adorou a sua gentileza e pediu para
agradecer, mas, disse que faz questão de pagar pelo azeite.
— Ah, sim! São médicos, estão aqui para dar algumas palestras
na universidade, me parece que são de Toronto.
Meu Deus! Estava com cheiro de peixe! Como iria até lá?
Então, ouço a voz dela, para delírio de meus ouvidos, uma voz
calma, firme, com um tom quase grave, falou incisivamente olhando
fixo em meus olhos:
O outro rapaz que estava sentado junto a eles, bem mais jovem
e de boa aparência, interrompeu-nos:
— São médicos?
Resolvi falar com Marcel para ver se alguma reserva havia sido
feita na mesa 27.
— Nina?
— Hum?
— Nina?
— Obrigada.
— Sim, muito!
Levantei-me e saí.
Fiquei muito contente com o reconhecimento do meu trabalho,
mas estava muito atarefada, então voltei rapidamente para meus
afazeres.
— Nina, Nina!
— Quem mais?
Ela não tinha vindo, será que não havia gostado de algo que
falei? Ou a comida não teria agradado o seu paladar? Eu até estava
decidida a ir à palestra, mas já não sabia mais se seria o caso, tinha
medo de parecer uma boba.
Aquele pequeno lavabo junto à sala com apenas uma pia roxa e
azulejos azuis, além de muito feio, era tão pequeno que uma pessoa
de porte médio mal conseguia permanecer ali de forma
“confortável”. O meu quarto era arejado e pequeno, com apenas
uma cama de casal e dois criados-mudos com um abajur sobre eles,
um de cada lado; do lado esquerdo a grande janela deixava o quarto
bem iluminado; e do lado direito, estava o guarda-roupa branco de
apenas três portas. Encostada ao guarda-roupa uma pequena porta
de cedro que levava ao banheiro; este mais confortável, com uma
pia e uma ducha muito boa, mas também era feio, com os azulejos
cor-de-rosa desbotados que apesar da má aparência eram firmes e
não apresentavam nenhuma infiltração; um pequeno balcão ao lado
do box de vidro servia para guardar as toalhas, produtos de higiene
pessoal e alguns materiais de limpeza. Entre o meu quarto e a sala,
vinha a cozinha, que tinha um tamanho bom comparado com o
tamanho total do apartamento, de apenas 39m². Já a sala era
“bonitinha”, estava tudo combinando: o sofá-cama verde-musgo de
dois lugares com várias almofadas claras sobre ele fazia uma ótima
combinação; uma mesinha de centro e uma televisão de 20
polegadas com boa imagem sobre a estante de pátina branca,
ficavam de fronte ao sofá-cama sob a grande janela, o que me dava
uma vista bonita para alguns prédios.
Meu sono, que até ali não me deixava, desapareceu como num
passe de mágica, eu finalmente estava alerta, com energia,
prestando atenção em cada movimento que ela fazia, e muito
ansiosa em ouvi-la.
As filas eram grandes, mas a fila que levava até a mesa onde
ela estava era enorme, muito maior. As pessoas a cumprimentavam
e disputavam para tirar fotos com ela, dei-me por conta então, que
para aqueles alunos era um grande acontecimento a presença dela
na universidade.
Ousei perguntar:
Mas ela mexia comigo, isso era fato. Tão real que meu peito
doía, tinha uma vontade quase incontrolável de voltar lá e dizer a ela
para, por favor, ficar.
Querida Nina,
“O dia está à sua frente, esperando para ser o que você quiser”.
Obs.: Você preparou a melhor “cachaça” que já provei.
Um abraço,
Allegra C.
O que isso queria dizer? Fiquei boquiaberta lendo e relendo
aquilo, sem entender absolutamente nada. Parecia que ela brincava
comigo, me deixava tonta, agora ainda tinha um “enigma” para
decifrar. Todavia, sem mais o que fazer ali, chamei um táxi e fui para
casa, tentando entender aquela frase.
Ao chegar, deitei-me na cama com a intenção de começar a ler
o livro sobre aquela tal de isquemia, mas não consegui sair do
primeiro parágrafo, era incompreensível, os termos eram técnicos
demais. Então, fiquei alternando entre a primeira página, com a
dedicatória que ela havia escrito especialmente para mim, e a
última, onde estava sua foto em preto-e-branco. Foi assim até eu
adormecer.
Na manhã seguinte, me aprontei para mais um dia de trabalho,
este mais longo, afinal, ao invés de me liberar às 17h como de
costume, eu ainda teria que preparar um jantar espetacular para
meu chefe, seu Jordi.
Não tinha ideia de que horas voltaria para casa, mas tinha ideia
sim do que fazer com o “extra” que ganharia naquela noite.
Compraria então, depois de três meses, o meu computador para
finalmente me conectar com o mundo e tentar saber mais sobre a
minha cardiologista.
Aqueles dias que se seguiram passaram sem grandes
emoções, daquele jantar que fiz para o seu Jordi saíram outros, com
isso, comecei a juntar uma graninha e fazer meu “pé de meia”.
Finalmente comprei meu computador e me conectei com o mundo,
trocava e-mails com minha melhor amiga Shelly e confesso que
alguns também com a minha ex-namorada Clara, intercalava os e-
mails com pesquisas de novas técnicas de cozinha e buscas por
notícias sobre a dra. Allegra, achei várias fotos dela na internet,
inúmeras notícias sobre sua participação em convenções, cirurgias
complicadas, transplantes, participações em eventos médicos e até
uma especulação sobre um possível lançamento de um novo livro,
mas nada indicando que ela retornaria a Montreal.
Descobri também que ela tinha 39 anos e era casada, mas não
descobri com quem, pois pouco se falava de sua vida pessoal, mas
muito sobre seu talento profissional e sua brilhante e extraordinária
carreira médica.
Adquiri o costume de olhar as reservas feitas no restaurante —
em especial da mesa 27 —, sempre com a esperança de ter uma
reserva no nome dela. E assim minha rotina permaneceu por dois
longos meses...
Capítulo 2
— Nina!
— Oi, Marcel, o que foi?
— Telefone para você.
— Tem certeza? — em cinco meses nunca havia recebido uma
ligação.
— Sim, você é a única Nina que eu conheço que trabalha aqui.
— E quem é?
— Não sei, foi difícil de entender, ela fala muito mal inglês.
Dirigi-me até o balcão da recepção e atendi ao telefone.
— Alô?
— Oiii, Nina! Que bom falar com você! Saudades!
— Shelly?! Menina, como me achou aqui?
— Ora, você deve ter repetido no mínimo umas cem vezes o
nome do seu restaurante nos e-mails. Mas fiquei preocupada com
você, faz mais de uma semana que você não responde às minhas
mensagens, aconteceu algo?
— Não, é que realmente andei ocupada e chego tão cansada
em casa que nem estou abrindo meus e-mails.
— Mas aposto que tem tempo para ficar investigando a vida da
tal médica, não é?
— Nem lembro mais disso, Shelly — disse, sendo nada
convincente.
— Não? Você ficou um mês inteiro escrevendo sobre a
“Doutora”, que ela isso, que ela aquilo, dúvido que não pense mais,
te conheço bem, Nina, lembra?
— Na verdade ainda penso nela sim, mas estou tentando
esquecê-la. — então tentei mudar o foco da conversa. — Mas e
você? Vai gastar uma fortuna se ficarmos papeando por telefone.
— Queria te contar a novidade! Lembra do curso que eu queria
fazer aí?
— Sim. Vai dizer que você conseguiu a vaga?
— Sim, Consegui! Estou arrumando as malas para ir morar aí
com você por 90 dias.
— Sério?! Que ótimo! Você não imagina que boa notícia. Adorei
a ideia de passar este tempo com você, me sinto só às vezes. E
quando você vem?
— Depois de amanhã pego o avião rumo a Montreal!
— Depois de amanhã? Mas assim? Tão rápido?
— Amiga, estou tentando te avisar há dez dias, abra seus e-
mails que você verá.
— Sim, verei, mas o importante é que você conseguiu a vaga e
está vido pra cá. Enfim, tenha uma boa viagem e ao chegar aqui,
me liga, para eu poder buscá-la no aeroporto, tá? Estou muito
empolgada! — disse ansiosa.
— Eu também! Um superbeijo e até bem breve.
— Outro.
Desliguei o telefone muito contente com essa excelente notícia
e com minha futura companhia. A Shelly era ótima, tínhamos quase
a mesma idade, ela estudava moda e sonhava em ser uma grande
estilista, tinha a mesma paixão pelo mundo fashion como eu tinha
pelos “sabores e aromas”. Pensávamos de forma parecida, embora
ela fosse mais impulsiva e tivesse uma opinião mais extremista das
coisas do que eu. Ela não era gay, se dizia “bi”, mas fazia mais de
três anos que ela não ficava com um menino, só com meninas,
ainda que eu já tivesse dito isso a ela, a Shelly continuava
afirmando que não era exclusivamente gay.
Ela era o tipo de amiga meio “doidona” que todas nós
gostaríamos de ter, uma pessoa para frente, audaciosa, decidida,
com uma aparência ousada e moderna. Tinha inúmeras tatuagens,
usava vários piercings e trocava a cor dos cabelos com frequência,
mas quando falo de trocar de cores, não digo cores básicas, tipo: de
castanho-claro para preto, ou para acobreado, ela pintava os
cabelos de púrpura, vermelho sangue e azul-bebê. Teve até uma
vez que ela descoloriu totalmente a cabeleira juntamente com as
sobrancelhas, no fundo eu admirava a sua coragem e ousadia.
A Shelly era filha única, vinha de uma família rica, seus pais
financiavam todas as suas viagens e loucuras — bem diferente da
minha realidade, eu nem sabia direito onde meus pais andavam —,
ela era mimada, mas com os pés no chão. Sempre bem-humorada
era difícil tirá-la do sério, tinha um temperamento peculiar e sempre
estava de bem com a vida.
Que eu lembre, só tinha uma coisa que ela odiava muito: era
quando a chamávamos pelo seu nome de batismo, Micheli, ela
detestava, tanto que poucas pessoas sabiam que “Shelly” era seu
apelido, achavam que fosse seu nome.
Eu voltei para o trabalho já ansiosa por voltar para casa e
começar a arrumar um “cantinho” para minha querida amiga.
Nestes dias de espera pela chegada da Shelly, além do meu
trabalho rotineiro, das idas ao mercado para comprar um bom peixe,
aproveitei para fazer um passeio na cidade, conhecer melhor onde
eu estava vivendo, já pensando também em traçar um roteiro para
levar minha amiga, que chegaria em breve.
Já estávamos em meados de fevereiro, o frio não castigava
tanto, as flores começavam a dar um colorido todo especial na
paisagem, até o ânimo era outro, o ar era outro o astral era outro.
Naqueles quase três dias que antecediam a sua chegada,
conheci o Parque de Monte Royal, um lugar lindo, mais de 200
hectares, que abrigavam em seu centro uma montanha de três
picos, espetacular.
Conheci também o Museu McCord de história canadense,
passei horas lá, pois tinha muita interatividade e era barato, apenas
CAN$ 13 a entrada. E o mais intrigante era que este museu ficava
tão próximo à Universidade McGill que era possível acessá-lo por
dentro dela, e obviamente que escolhi essa opção, pois a Allegra
tinha estado ali havia poucos meses, confesso que bateu uma
nostalgia.
Fui também ao centro de convenções Palais des Congrès que
era imponente e também despertava meu interesse, aproveitei
minha disposição em fazer passeios e conheci a Place Jacques
Cartier, uma praça belíssima, que jamais vou esquecer, pois havia
muitas flores, um verdadeiro cartão-postal!
Por último, conheci a Basílica de Notre Dame, um lugar com
fortes energias, dava até uma pontinha de medo. Resumindo, fiz
dos meus três dias de espera um verdadeiro roteiro turístico.
E, depois da espera e muitos passeios, finalmente, havia
chegado o dia, minha querida e fiel amiga estaria aqui a qualquer
momento. Deixei o Marcel de sobreaviso e fiquei aguardando a
ligação da Shelly.
Já tinha avisado também o subchef Gerard para tomar conta de
tudo, pois eu teria que sair mais cedo naquele dia, tudo estava
rigorosamente organizado quando...
— Nina!
— Ligação para mim, Marcel? — indaguei rapidamente.
— Não, tem uma moça aí fora, querendo falar com você.
Ué? Quem poderia ser? Remotamente passou pela minha
cabeça que pudesse ser Allegra, mas logo tratei de tirar a ideia boba
de minha cabeça e ir até o salão e ver de quem se tratava.
Enquanto lavava minhas mãos eu ia perguntando para o Marcel:
— Como é essa moça?
— Não sei, alta, de cabelos pretos, bem-vestida.
— Cabelos pretos? O que mais?
— Vai lá, Nina, tenho que ir até a adega e sou péssimo em
reparar nos outros, além de péssimo fisionomista.
— Tá bem.
Então fui, e quando cheguei e olhei para a porta, vi minha
amiga Shelly, que quando me viu, começou a falar alto de forma
animada:
— Nina minha amiga! Como você está linda! Que saudades!
— Shelly, você veio direto, que surpresa boa! E esse cabelo
escuro?
— Quis fazer uma surpresa e vir aqui direto. Quanto aos meus
cabelos, resolvi escurecê-los, porque estou em outro país, quis
mudar, o frio combina com cabelos escuros.
— Se você diz! — aquela teoria era típica da Shelly.
E entre abraços caímos na gargalhada, assunto é que não
faltaria, com toda certeza. Almoçamos ali no restaurante mesmo,
depois fomos caminhando despreocupadamente pelas ruas de
Montreal, apreciando a bela paisagem que aquela cidade grande e
ao mesmo tempo romântica tinha a nos oferecer, caminhamos até
chegar ao meu apartamento.
Logo a Shelly se acomodou, iríamos dividir o mesmo quarto e o
mesmo teto por três meses, a companhia dela me fazia muito bem.
Naquele dia rimos muito, conversamos muito sobre como era
viver aqui no Canadá, sobre a vaga do seu curso, sobre namoros,
planos futuros, sobre saudades do Brasil, sobre a Clara, enfim,
sobre assuntos dos mais variados. Até que a Shelly resolveu trazer
à tona o assunto que me deixava desconcertada: a Allegra.
— Nina, me fala sobre a médica, quero ver o tal livro dela.
— Ai, Shelly, só de você falar nela já me dá um friozinho na
barriga!
Peguei o livro que estava ao lado da cama e dei para Shelly.
Ela o pegou e atenta folheou até o final, parando na foto da
contracapa.
— Hum, essa é ela?
— Ahã.
— Nossa, que gata, hein?!
Então voltou a folheá-lo e desta vez se deteve na dedicatória.
— E esse “garrancho” aqui é o que ela escreveu?
— É, o que você achou?
A Shelly repetiu em voz alta a frase enigmática escrita pela
médica e logo saiu com suas considerações.
— “O dia está à sua frente, esperando para ser o que você
quiser”, acho que ela quis dizer que ela estava na sua frente
esperando você fazer algo.
— Ah! Para com isso, sério!
— Não entendi, não sei. A cachaça que você deu a ela deve tê-
la inspirado. Quero saber para quando que você marcou?
— Marquei o quê? — perguntei sem entender nada.
— Uma consulta no cardiologista, para fazer um check-up, ou
melhor, na sua cardiologista!
— Não marquei, na verdade nem pensei nisso... Deveria? —
fiquei pensativa.
— Hello! Lógico, Nina! O que você tem na cabeça? Demorou!
Vamos marcar imediatamente, onde tem um telefone aqui?
Fiquei meio confusa, mas acabei concordando, como eu não
tinha pensado nisso?
— Só lá fora, o telefone público aqui da frente. Será que devo?
Ela então olhou para mim com seriedade e me questionou.
— Me responde com sinceridade? Você quer vê-la novamente,
tem vontade de tentar ou não?
— Sim, muita, penso nela todos os dias!
— Então vamos achar o número do consultório dela e ligar já!
Não deve ser nada difícil encontrar o telefone do seu consultório, já
que ela é tão requisitada.
Imediatamente a Shelly sentou-se na frente do computador e
começou a pesquisar no Google.
— Vamos ver... Qual o nome do Hospital em que ela trabalha?
— Mount Sinai Hospital — respondi prontamente.
— Aqui! Deve ser este!
— Não! Esse é do Hospital, não do consultório.
— Podemos ligar para lá e perguntar. Obviamente que eles
saberão dar alguma informação, o que acha?
— Acho ótimo, vamos.
Deixamos o computador ligado e descemos apressadas,
atravessamos a rua e entramos na cabine telefônica. Respirei fundo
e liguei, logo atendeu uma secretária eletrônica dando mil opções de
departamentos e setores, então esperei até o final da gravação para
ser atendida por uma pessoa de “carne e osso”.
— Mount Sinai Hospital, boa tarde, em que posso ajudar?
— Boa tarde, eu gostaria de marcar uma consulta com a dra.
Allegra Cavazza.
— Não é aqui, senhora, você tem que ligar pro Mount Sinai
Medical Center.
— Ah, e qual é o número de lá?
— Vou transferir diretamente daqui, ok? É só aguardar na linha.
O atendente estava transferindo a ligação e por um instante
pensei em desligar o telefone.
— Mount Sinai Medical Center, boa tarde.
— Oi, eu queria marcar uma consulta com a dra. Allegra
Cavazza.
— Um momento, por favor, vou transferir a sua ligação.
Tapei o fone com a mão e preocupada falei para Shelly que me
olhava com atenção.
— Shelly, eles vão passar a ligação para ela, o que eu vou
dizer? Acho que vou desligar!
— Parece louca, Nina, claro que eles não vão passar a ligação
para ela, do jeito que ela parece ser ocupada não estará atendendo
ligações no hospital dando uma de telefonista.
— É... Acho que não. — concordei.
Então fui interrompida, com a voz de uma moça ao telefone:
— Consultório de Diagnóstico em Cardiologia dra. Allegra
Cavazza, boa tarde, com quem eu falo?
— Oi, meu nome é Nina de Amaral Dias e eu gostaria de
marcar uma consulta com a dra. Allegra Cavazza.
— Pois não, você já é paciente dela?
— Não...
— Qual sua idade?
— 28.
— O seu caso é urgente?
— Não... Quer dizer... Não exatamente, é uma consulta
preventiva. — remendei.
— Ela só tem horário livre para consultas para daqui a 60 dias,
posso marcar?
— Sessenta dias?! — falei espantada, enquanto a Shelly me
olhava incrédula.
— Sim, posso marcar?
— Sim, pode, e qual o valor da consulta?
— CAN$ 380.
— Uau! O valor do aluguel do meu apartamento. — falei sem
pensar — Moça, com todo respeito, posso fazer-lhe uma pergunta?
— Sim.
— Se meu caso fosse urgente, como eu faria? Teria que
aguardar “sem morrer” por dois meses?
— Não, senhora, nós a encaminharíamos urgentemente para
algum profissional da equipe da dra. Allegra Cavazza, ele então
prestaria um primeiro atendimento e daria todas as instruções de
como proceder até que fosse atendida pela própria dra. Cavazza. É
o caso?
— Não, não é... Ela está aí no consultório? — minha
curiosidade falou mais alto.
— Não passamos ligações, só recados.
— Desculpe, mas eu só queria saber se ela está aí no
consultório.
— Não, senhora, ela está em Vancouver, retorna amanhã. A
sua consulta ficou agendada para o dia 16 de abril, quinta-feira, às
14h, com a dra. Allegra Cavazza. Por favor, anote o endereço:
— Sim, pode falar.
— Joseph e Wolf Lebovic Saúde Complexo — 600 University
Avenue.
— Certo. Anotado.
— Posso ajudá-la em algo mais?
— Não, obrigada, até daqui a 60 dias — falei num tom irônico.
— Até logo, senhora Nina.
Desliguei o telefone sem crer no tempo de espera para a
consulta, mas feliz, pelo menos eu estava fazendo algo para as
coisas acontecerem, graças ao incentivo da minha amiga Shelly,
que já chegou revolucionando.
— Ouvi bem, Nina? 60 dias?
— É, ouviu... Eu tinha que ter marcado uma consulta com ela
antes mesmo de conhecê-la, aí já estaria perto da data dela me
atender... — falei brincando — e nem adiantaria também eu dizer
que era urgente, pois ela está viajando, outro médico me atenderia...
— Que mulher complicada essa que você foi arranjar, Nina.
Saímos rindo da cabine e já aproveitamos para irmos fazer a
matrícula da Shelly, no curso de “modelagem” que ela tanto lutou
para conseguir a vaga. Também nos matriculamos em um curso de
francês, para aprimorar a língua-mãe de Montreal.
Chegamos ao meu apartamento já era noite, e após comermos
uma macarronada, feita pela Shelly, deitamos na cama, afinal, eu só
tinha aquela cama, que por sorte era de casal.
O frio já começava a dar uma trégua, os edredons já estavam
guardados, pois a temperatura estava mais agradável. Apagamos
as luzes e ficamos falando das diferenças dos costumes daqui, em
comparação ao Brasil, era um papo relativamente sério, quando a
Shelly saiu com aquela pergunta...
— Nina, você está há cinco meses sem “ficar” com alguém?
— O quê?
— Você ouviu! A Clara foi a última? Nem beijo, nem sexo,
nadinha?
— É... Não tive tempo e nem vontade para pensar nisso — falei
com certa vergonha.
— Não teve vontade nem tempo?
— Não...
— Mentira, Nina, e a médica?
— Ah, sim. Com a excessão dela, não tive mais vontade
nenhuma.
— Que engraçado isso, você veio para cá e está “virando
freira”, gostava de mulheres bem mais jovens e agora tá vidrada na
“coroa”, estou preocupada, Nina!
— Você quer que eu ache graça disso? Não estou “virando
freira”, só que a mudança de vida, de clima e de trabalho tomaram
meu tempo... E também procurei nem pensar em relacionamento
depois de tudo que sofri com a Clara... Quanto a minha “coroa”, ela
é diferente, tem tudo que eu sempre procurei em uma mulher e não
aparenta ter 39 anos, aliás, ela tem muito mais do que eu imaginei.
— disse radiante.
— É mesmo? Vou dar um jeito de acabar com teu celibato! Já
em relação à “coroa”, só posso te apoiar, afinal, ela é a única mulher
nesse mundo que tem tudo e muito mais que você sempre sonhou.
Agora, não é por isso que você tem que ficar virgem de novo.
Vamos acabar com isso já!
Olhei para Shelly, naquela penumbra do quarto, meio assustada
com aquela afirmativa.
— Shelly, você está dando em cima de mim? Você por acaso
está pretendendo algo?
Ela deu uma gargalhada e foi logo falando:
— Não, boba, além de você ser minha amiga, quase irmã, você
não faz meu tipo, embora seja linda, tenha esses olhos verdes
lindíssimos, mas você sabe, Nina, tenho uma forte inclinação por
loiras e seus cabelos escuros não me atraem. Estou pensando em
te ajudar. Onde tem um lugar legal para irmos amanhã à noite? Uma
balada gay?
— Ah, tá, ufa... Me assustei! Tem o Lupping, é perto daqui,
nunca fui, mas li algo a respeito e parece legal — eu disse, aliviada.
— Amiga, o Lupping que nos aguarde amanhã! Boa noite — e
imediatamente ela virou-se para o lado tentando dormir.
— Boa noite. — achei graça.
Também virei para o lado e dormimos “feito pedras”.
Na manhã seguinte acordamos cedo, embora eu tivesse que
sair bem antes da Shelly, ainda deu tempo de trocarmos algumas
palavras. Ela começaria o seu curso somente às 8h, enquanto eu
saía de casa religiosamente às 4h45 todos os dias, com a exceção
dos domingos, em que eu não trabalhava.
Durante o dia, eu e a Shelly não nos falamos, só nos
encontramos às 17h30 no apartamento. Providenciei a cópia das
chaves para que ela pudesse ter autonomia em ir e vir, dessa forma,
eu também ficaria mais livre em meus compromissos. Ao entrarmos
no apartamento, ela foi correndo tomar uma ducha, enquanto eu
fiquei na internet olhando meus e-mails.
A Shelly cantava o tempo inteiro, no início até deu vontade de
rir, pois era escandalosamente desafinada, mas depois me
acostumei com aquilo e se ela não cantasse eu acharia que ela
havia se afogado. Enquanto ouvia o vasto repertório de Shelly, vi
que havia chegado um e-mail da Clara, resolvi lê-lo.
Nina, minha pequena.
Sinto tanto sua falta, queria estar com você agora, me
arrependo tanto do que fiz e peço desculpas mais uma vez. Prometo
que nunca mais farei algo para te magoar, quero provar o meu amor
por você, queria estar agora aí do seu lado, se você me der uma
chance vou até você (não estou brincando)... Posso?
Me dá essa chance?
Clarinha
— Como assim?! — falei alto, não acreditando no que eu
acabara de ler.
Lá do banheiro a Shelly escutou o que eu havia dito algo e
perguntou:
— Falou comigo, Nina? Já estou indo aí!
— Não, só estava pensando alto.
Então a Shelly apareceu envolta em três toalhas de rosto, uma
amarrada na cintura, outra no peito e outra nos cabelos.
— Shelly? Por que você não usa toalhas de banho? — achei
aquilo muito bizarro.
— Ah, não, Nina, você também? Nós estamos morando juntas
há um dia e meio e não podemos estremecer nossa relação logo no
começo. — disse ela rindo.
— Hã?
— Estou brincando, boba. O que você estava falando antes?
— É que recebi um e-mail da Clara, dá uma olhada — virei a
tela do computador para que a Shelly visualizasse melhor o e-mail.
A Shelly começou a ler e pela sua fisionomia estava reprovando
cada palavra escrita ali, então ela se manifestou sem nenhum
constrangimento.
— Bom, primeiro que você não é tão “pequena” assim, segundo
que o que ela fez não tem perdão e terceiro que você seria muito
idiota se a deixasse vir.
— É, concordo com você, tenho 1,62cm poxa, portanto estou
na média — falei brincando, referindo-me a ela ter me chamado de
“pequena” —, e ela ter ficado com a Letícia, nossa “amiga”,
enquanto estava comigo não tem perdão, e também não gosto mais
dela, agora tenho outra mulher em minha vida, não aquele
“franguinho” da Clara!
— Só para ter certeza, que idade tem a Clara?
— 26... Por quê?
— Hum... 26, franguinho? Eu tenho 26, lembra? Está me
chamando de franguinho também, só porque você está no ápice dos
seus 28? — disse, ironizando a pouca diferença de idade entre a
gente.
Rimos muito de tudo aquilo e só paramos quando a Shelly
quase me arrastou para debaixo do chuveiro, afinal, tínhamos que ir
ao Lupping.
Enquanto eu tomava banho ouvia a Shelly cantar lá no quarto,
fiquei refletindo e vendo o quanto era bom ter uma companhia e
realmente o quanto fazia falta uma namorada, cheguei a pensar que
a Shelly tinha quase razão ao dizer que eu estava “virando freira”.
A Shelly estava com pressa para irmos logo, então nos
arrumamos e fomos ao Lupping. Chegando lá vimos aquela
multidão com um estilo bem “alternativo”. Mulheres bonitas, bem-
vestidas, perfumadas e cheias de personalidade. A Shelly sem fazer
média já foi entrando, me puxando pelo braço e de cara pediu uma
cerveja, já eu preferi ficar no Martini. Bebemos um pouco, dançamos
bastante e percebi que a Shelly “estava de olho” numa garota ruiva,
toda tatuada. Logo vi que eu perderia minha companhia muito em
breve, e não deu outra, não foram necessários mais de 10 minutos
para perder a Shelly de vista, ela já tinha encontrado alguém aquela
noite. Já eu, fiquei sentada no bar, apreciando meu Martini e
observando aquele mundo todo na minha volta, quando senti
alguém segurar meu braço.
— Oi.
Olhei para aquela menina, linda, com os olhos azuis, pele bem
branca, cabelos lisos e pretos, era o estilo exato que me atraía, quer
dizer, antes de conhecer a Allegra e mudar meus conceitos e
minhas preferências físicas. Retribuí com um sorriso e respondi
imediatamente:
— Olá, tudo bem com você?
— Melhor agora — respondeu ela, deixando claro suas
intenções e olhando profundamente em meus olhos. E já que ela
estava sendo tão direta, resolvi que naquela noite eu iria aproveitar.
— Qual seu nome?
— Amy, e o seu?
— Nina.
— Nina? De onde você é?
— Sou brasileira, mas moro aqui em Montreal, e você?
Também não é daqui, não é? — percebi pelo seu sotaque.
— Sou inglesa, de Londres, estou aqui há um mês, estudando e
passando um tempo com alguns amigos, e você?
— Estou morando aqui há cinco meses... Qual sua idade?
— 21, e a sua?
Vinte e um?! Era tudo o que eu queria... Antigamente! Mas
agora eu havia mudado meus conceitos, e se a Clara era um
“frango” a inglesa era um “feto”!
— Tenho 28 — respondi, me achando velha demais.
— Hum... Adoro mulheres maduras. — disse em tom
insinuante.
Ai meu Deus! Eu estava sem graça, a situação estava ficando
delicada, eu não sabia o que dizer a ela.
— Nina, você é tão bonita, tem uma boca linda, lábios bem
contornados, estou louca para beijá-la. — disse maliciosamente.
Antes que eu pudesse responder qualquer coisa senti seus
lábios tocarem os meus e suas mãos me acariciarem.
Definitivamente eu estava precisando daquilo!
Entre beijos e bebidas, posso dizer que a noite passou
depressa e somente ao amanhecer reencontrei a Shelly, meio
bêbada e totalmente descabelada. Ela estava abraçada na garota
tatuada e eu abraçada no meu “feto inglês”.
Despedimos-nos das respectivas e fomos para casa. Mal nos
falamos no caminho, só via a Shelly me olhando e balançando a
cabeça com um ar de aprovação e com um sorrisinho maroto no
canto da boca. Nem preciso dizer que ao chegarmos, nos atiramos
na cama e dormimos quase o domingo inteiro. Só acordei por volta
das 15h, quando levantei em silêncio, lavei meu rosto, olhei-me no
espelho e sorri, estava feliz, me senti viva.
Enquanto escovava meus dentes ouvi a Shelly gritar alto lá do
quarto, deixando claro que tinha acordado.
— Perdeu o “cabaço”, Nina?
Ela rolava de rir, e eu, que inicialmente fiquei irritada com sua
grosseria, não me contive e acabei rindo junto.
— Sim! Perdi!
— Ainda lembrava como era?
Então entrei na brincadeira.
— No início foi difícil lembrar, Shelly, mas depois eu lembrei
direitinho.
— Shelly! Você sabe que dia é hoje? — perguntei a ela com
seriedade.
— Ué, domingo, não é?
— Sim!
— E daí?
— Hoje faltam 59 dias para minha consulta!
Senti um travesseiro voando na minha cara e a voz da Shelly
dizendo:
— Interna que é grave!
Passamos o resto do dia falando besteiras, comendo besteiras
e relembrando da nossa noite bem-sucedida. Ela falou sobre
Amélia, a ruiva tatuada, relatou minuciosamente tudo da garota e a
noite que tiveram juntas. A Shelly era detalhista e contava com tanta
riqueza de detalhes que às vezes eu ficava sem graça só de ouvir. E
eu, depois de ouvir o relatório completo da Shelly, falei sobre a
minha noite com a Amy, mas bem mais superficialmente.
A Shelly era uma casa cheia, uma pessoa feliz, otimista, me
fazia bem, e eu precisava aprender muito com ela. De fato já estava
aprendendo, eu estava mudando, ela conseguiu que eu saísse à
noite, que eu me matriculasse no curso de francês, me divertisse
mais. A Shelly estava transformando minha vida, para muito melhor.
Foram dois meses de muito divertimento. Conhecemos muitos
lugares, fomos ao Lupping várias e várias vezes, ela teve caso com
umas dez meninas diferentes, enquanto eu continuava saindo com a
inglesa. O curso da Shelly já estava se encaminhando para o final e
meu trabalho indo cada dia melhor, então, o que eu iria querer mais
da vida? Realmente foi um período muito bom.
Capítulo 3
Fiquei ansiosa com aquelas palavras, mas ela tinha razão, até a
dona Emma já estava quase indo dormir, então fui para o vestiário
para ficar apresentável novamente e mais bonita, para me despedir
da Allegra.
— Boa noite!
— Foi você que escreveu essa carta? Diga que sim, Nina.
— Fui...
Ela foi escorregando devagar sobre mim, pude sentir sua língua
macia deslizando na minha barriga, em volta do meu umbigo,
enquanto ela passava suas mãos suavemente em meus seios,
aquilo me inundou de tanto desejo, minha respiração estava
acelerando, eu precisava tê-la por completo, ali, naquela hora,
imediatamente, então, agarrei-a com força e a virei no sofá, ficando
por cima dela, ela me olhou espantada, mas com aprovação, então
eu tomei a frente daquela situação, beijava seu pescoço com força e
passava minha língua suavemente por sua orelha, contornando-a
com delicadeza, arranhava suavemente suas costas enquanto
sussurrava palavras picantes em seu ouvido.
Eu ouvi o que ela dizia com alívio, mas senti também que aquilo
nunca mais poderia acontecer, entendi “em suas palavras” que não
era para eu confundir o que havia acontecido entre nós com algum
tipo de relacionamento, então se tinha algum momento de
perguntar-lhe algo era ali, naquela hora.
— E sua esposa?
— Você a ama?
Nina
E alcancei a ela, meio sem graça. Ela leu com atenção, sorriu,
dobrou a cartinha e a colocou dentro do envelope vermelho,
contornou sua mesa — ficando do meu lado — e trancou-a dentro
de sua gaveta secreta. Eu a observei com carinho, sem falar nada.
— Bem, já, já ele as levará para o hotel, mais uma vez obrigada
pelo coquetel fantástico, estava divino! — ela esticou a mão para
despedir-se da Shelly, que imediatamente retribuiu seu gesto e
agradeceu a oportunidade.
Eu olhei para ela pensando em dizer algo, mas não disse nada,
apenas entrei no seu carro e sentei-me do lado da Shelly, que já
estava me olhando com sua cara de curiosa.
Eu parei, olhei séria para ela por alguns instantes, até que ela
também ficou séria sem entender nada, eu comecei a gritar e pular
na cama sem parar, a Shelly começou a rir e perguntar
insistentemente.
Olhei para Shelly com medo, o que ela teria aprontado dessa
vez.
— Eu sei, mas o que quero dizer com isso é que confio nela, e
que acho que ela pode nos dar uma “ajudinha” nesse “caso” da tua
médica.
— Ah, é? E como?
Fiquei na dúvida, mas sabia que a Olívia era “do bem” e que
não colocaria os “pés pelas mãos”, então cedi.
— Nina?
— Fala, Shelly...
— Você tem que reagir! Faz mais de dez dias que sua vida se
resume a trabalho, ler o jornal e dormir, você percebeu que mal nos
falamos? Que você está triste, sem vida?
— Nina, por que você não liga para ela? Se você tem
saudades, se quer falar com ela, liga!
— Escuta, você não está ligando, assim como ela, isso significa
que você não quer falar com ela?
— Não... Você sabe que não, mas não tenho coragem e não
quero pressioná-la, ser inconveniente... Além do mais, como
prevíamos, naquele encontro ela deixou claro que o que aconteceu
não passava de uma aventura, que não era um início de
relacionamento ou de algum tipo de compromisso...
— Nina, talvez você tenha razão, mas talvez não... Ela não
disse isso com todas as letras!
A Shelly tinha razão, aquilo não era vida, até no trabalho eles já
estavam percebendo o meu desânimo.
— De verdade?
— Que pendências?
Pensei por um minuto e percebi que ela tinha razão, a Amy não
tinha nada a ver com meus conflitos internos, eu devia uma
explicação a ela.
— Pronto! Liguei!
— Me empresta teu telefone, vou ligar pra Olívia, ver se ela tem
alguma novidade lá da tua médica ou da Diana.
— Fala, Shelly!
— Shelly, você liga para ela todos os dias e só hoje que ela
disse isso?
Fiquei feliz por ela, a Shelly merecia ter alguém que a amasse
de verdade e parecia que ela havia encontrado.
— E?
— E-mail para quê? Se você está aqui, a Allegra não tem meu
e-mail mesmo...
— Shelly...
Minha pequena
Não entendo por que insiste em me ignorar, sabe que sou uma
pessoa que luta pelo que quer, e você é o que mais quero!
Adivinha??
Vou até aí ver você! Hoje pela manhã comprei minha passagem
para Montreal e devo chegar dia 27 próximo. Peço que me espere
em seu apartamento de braços abertos e ansiosa por rever-me,
igualmente como eu estou louca de vontade de reencontrá-la!
Clarinha
— Nina... Você viu a data em que ela vai chegar? — falou com
os olhos arregalados.
— Já sei! Vou ligar pra Olívia! Ela com certeza saberá nos dar
uma explicação razoável para essas coincidências.
— Isso, boa ideia! Liga logo!
— Alô?
— Hã?
— Ao certo não temos como saber, mas uma coisa é fato, esse
é o número do retorno, por mais que ele vá, ele sempre irá voltar,
não ligue esse número necessariamente a coisas ruins, a mitos e
religiões, mas ligue-o a grandes transformações, autoconhecimento
e a grandes lutas. Nina, você entrou numa nova fase e esta está
desencadeando uma série de acontecimentos ao seu redor, mesmo
que você não tenha consciência deles, me parece que é algo de
resgate, de algum reencontro de outras vidas, algo diretamente
ligado à Allegra. Você tem que ficar atenta a tudo, pois por se tratar
de um número que representa o “ego”, o retorno, podemos
interpretá-lo até como algo que represente riscos, perigo, mas não
necessariamente seja ruim, portanto, cabe a você ter cuidado, ser
atenta e tentar ser mais incisiva em suas decisões.
— Tá bem, vou falar pra ela sobre esse assunto... –— ela riu
contidamente.
— O quê?
— Mas Nina...
— Alô?
— Não...
— Não sei...
— Nina, pode ter sido engano, pois ficar ouvindo sem dizer
nenhuma palavra não condiz com a tua médica, que é culta e cheia
de atitude, mas se por acaso foi ela que ligou e “algo” aconteceu na
linha que você não conseguia ouvi-la ela vai ligar de novo, não se
preocupe.
— Eu não teria uma ideia melhor! Mas você vai mandar para a
casa dela ou quer que eu entregue a ela lá em Toronto?
Querida Allegra,
Nina
— Tudo bem, Nina, é por uma ótima causa, vou pedir para a
Olívia “emanar” ondas positivas nestes convites, para que tudo dê
certo, fique tranquila.
Ela falou super-sério, mas eu não aguentei e caí na gargalhada.
Olhei para a Shelly e fiz sinal que ninguém falava nada, então
ela disse alto.
— Desliga isso, Nina, deve ser a Clara jurando que está nos
enganando, mas sabemos que é você, Clara!
— Você que pensa, ela não é confiável, traiu você, fez tudo na
moita, está ligando no meio da noite para saber e vir prevenida, com
bastante veneno!
— Será?
— Tudo bem, mas tome cuidado com o que vai dizer a ela.
— Sim, logo volto para cuidar de você, mas enquanto isso, fica
com os teus olhos bem abertos! — retrucou sério.
— Tá bem! Prometo!
— Alô?
— Oi, Clara, você chegou antes? Não ia chegar por volta das
16h?
— Não, eu falei para você que seria às 16h para fazer surpresa!
— Não acredito que terei que ficar aqui plantada! — disse ela,
inconformada.
Mesmo sabendo que não gostava mais dela, que era louca pela
Allegra e que não tinha a menor dúvida sobre o meu sentimento
pela minha médica, eu ainda tinha certo receio em vê-la novamente,
afinal viajei para outro país para fugir da Clara e não mais cair em
suas artimanhas...
— Gerard?
— Sim, chef?
— Obrigada.
Fui até o vestiário, tomei um banho rápido, me vesti, peguei um
táxi e fui até ao aeroporto encontrar com a Clara, no caminho pedi
forças aos “Deuses do além”, que me fizessem forte e não me
deixassem envolver pela Clara, afinal eu não a via desde o término
do nosso namoro.
— Claro.
— Olha, Clara...
— Não precisa dizer nada, Nina, eu sei que você ainda está
magoada comigo, mas vai passar. Não vamos falar disso agora.
— Clara, vou sair, vou fazer uma cópia da chave para você, vai
se ajeitando, fica à vontade, tem comida na geladeira se sentir
fome... Volto logo.
— Vamos dar um prazo para ela se mudar, para ela sair daqui e
achar outro apartamento, podemos dar uma semana ou uns dez
dias para Micheli encontrar outro lugar, ela terá mais liberdade e a
gente também.
— Meu Deus, Clara! Você está louca? A Shelly não vai sair
daqui a não ser por vontade própria!
— Nina, fala a verdade pra mim? Você está gostando dela, está
apaixonada por ela?
— Quer dizer que você prefere dormir com a Micheli que é sua
amiga do que comigo que fui sua namorada por um ano e meio?
— Clara, olha pra mim, me escuta com atenção, não acho que
você deva alimentar esperanças para um possível retorno nosso.
— Por que não? Se você jura que não está namorando e nem
apaixonada pela Micheli, por que não devo tentar então?
— Não importa!
— Ela é bonita?
— 40.
— Clara!
— Fala...
— Ela é médica.
— Isso é desnecessário!
— Sim.
A Clara levantou-se imediatamente, sem dizer nada, e juntou as
roupas da Shelly.
Fiquei quase meia hora sob a ducha, saí mais calma, um banho
sempre renova as energias, e para minha surpresa, quando saí do
banho, as roupas da Shelly já estavam novamente no seu lugar, a
Clara estava na sala assistindo televisão, já havia colocado uma
panela de arroz no fogo e uns bifes temperados sobre a mesa para
fritá-los mais tarde.
— Pode, o quê?
— Você está linda hoje!
— Obrigada, Clara.
— Não vimos direito, porque ela estava dentro do carro, deu pra
ver que estava de óculos escuros, só isso, mas não se preocupe,
tiramos fotos!
— E a Clara, Nina?
— Está se comportando, tive uma conversa séria com ela e me
parece que está funcionando.
— Não confio...
— Será?
— Tá bem...
— Me ajuda a levar a mesa pra sala, vamos abri-la lá que tem
mais espaço.
Sorri sem graça, percebi que a Olívia não sabia que a Clara era
a minha ex-namorada.
— Ela é sua namorada, Nina? — perguntou Clara, indignada,
achando que eu havia mentido a ela.
— Obrigada a você!
— Muito bonito todo esse discurso dela, é fácil “dizer” que tanto
faz operar um famoso ou um indigente, mas queria saber quanto
que esse ator não pagou pra ela operar o filho. Deve ter
desembolsado milhões de dólares! É muito fácil essa tal de Allegra
“extorquir” fortunas desses ricaços numa hora tão delicada. Queria
ver se fosse um mero mortal assalariado, se este conseguiria fazer
uma cirurgia desse porte com a “todo-poderosa”! Duvido, ou o pobre
infeliz se sujeitaria a entregar o seu coração literalmente nas mãos
de um médico sem “pedigree” ou teria que trabalhar duas vidas
inteiras só para pagar os honorários dela! — disse Clara criticando e
morrendo de ciúmes.
— É mesmo? Então é por isso que você veio pra cá? Para
reconquistá-la?
— Bem, garotas, vou me retirar, vou deitar, pois estou com sono
— pegou seu travesseiro e dirigiu-se para o meu quarto.
— Mentira, Clara!
Percebi que eu estava sendo muito dura com ela, afinal ela não
havia feito nada de errado. Por um momento me pus no lugar dela e
tive noção do quanto estaria sendo difícil estar longe da família, ter
visto a Allegra na televisão e eu ainda sendo ríspida com ela.
— Atende, Nina!
Eu fiz sinal para ela ficar quieta. Ela obedeceu, mas achou
estranho... Eu continuei ouvindo, tentando decifrar algum ruído ou
algo que me desse alguma pista de quem seria, mas estava
extremamente silencioso, consegui ouvir apenas uma respiração do
outro lado da linha, então a Clara resolveu falar novamente, já sem
paciência.
Olhei pra Clara e mais uma vez fiz sinal para ela ficar quieta,
mas do outro lado desligaram.
— Eu que digo o que é isso! Por que você não fala pra ela que
eu estou aqui? Não precisa ficar só ouvindo — a Clara tinha certeza
de que era a Allegra, pois, segundo ela, teria o hábito de me ligar à
noite para conversarmos, da mesma forma como nós (eu e Clara)
fazíamos na época em que namorávamos.
— Não tenho ideia, como não tenho ideia de quem possa ser
agora...
— Nina?!
— Às 15h30.
— Você está tão sexy com essa roupa, Nina — continuou Clara.
— Sim, compreendemos!
— Eu sei... Cada vez que olho para você sinto tanta vontade de
te tocar, me seguro para não descumprir o que prometi, mas é
difícil... Vejo também que quando alguém toca no nome da Allegra
seus olhos brilham, eu sofro...
— Nina, você está assim pelo que aconteceu? Por favor, fale a
verdade pra mim!
— Sim, Clara... Não pense que é por você, você não tem culpa
de nada, você é linda e foi ótimo... Estou assim por mim.
— Não estou entendendo, se você diz que foi bom, por que
está se culpando?
— Mas Nina, você disse que não estava namorando com ela,
como pode tê-la traído?
Pensei quase em brigar com a Clara por ela dizer aquilo, mas
não tive forças, estava entregue, apenas comecei a chorar
compulsivamente, arrependida pelo que eu tinha “deixado”
acontecer e por lembrar que existia a Diana na vida dela.
— Tenho sim...
— Nina, você sabe que o seu Jordi te adora, que você nunca
faltou, e sabe que o Gerard toma conta da sua cozinha direitinho,
garanto que ficará tudo bem! Pode deixar que eu mesma ligarei pra
lá e digo que você não está bem, acordou indisposta e que não tem
como ir, pode ser?
— Não sei...
— Deixa ela ligar, Nina, você vai ver que fará bem — reforçou
Clara.
— Você me assustou!
— Shelly, a culpa não foi dela, ela não forçou nada, eu que fiz
bobagem mesmo e acabei sendo fraca, só que agora estou muito
arrependida e culpada por ter traído a Allegra.
— Quando?
— Mas você disse que ela beijava outra pessoa todos os dias,
ela é casada, por acaso?
— Sim, ela é casada, mas por favor, não quero falar sobre
isso... Me machuca demais — admiti.
— Eu sei, eu sei...
— Sim!
— Nina, você vai usar a mesma blusa, mas vai usar por baixo
um corpete de rendas preto, com uma calça social preta e salto
altíssimo! Vai dar outro visual!
— Vou.
— Sim.
— Deve ser.
— E porque você vai encontrar com ela tem que me tratar seca
desse jeito?
— Assistir ao quê?
— Chega! Não quero mais ouvir uma palavra sobre isso, Clara!
O que você pensa ou deixa de pensar não é problema meu e não
me interessa mais. Você fez sua escolha, está pagando pelos seus
atos, e se eu me machucar ou me arrepender nessa relação com a
Allegra será um problema exclusivo meu, e então eu pagarei pelas
minhas escolhas!
— Vamos então.
— Nina, se ela não aparecer é porque não era para ser, vai ficar
claro que o que vocês tiveram foi apenas um “bom momento” e você
vai ter que guardá-lo como uma boa lembrança.
— Você terá que ser forte para tentar esquecê-la, você vai
assistir ao concerto até o final e depois virá pra casa, e daí vou me
trancar no quarto com você e se for preciso ficarei a noite toda
acordada do seu lado, mas quero que me prometa, se isso
acontecer não deixará a Clara saber, só vai piorar.
Então tive a certeza de que não era delírio, era ela, tinha de ser,
linda, exuberante, sentada ao meu lado e segurando minha mão
delicadamente, fiquei olhando-a sem dizer nada enquanto ela
prestava atenção no músico...
Ela tinha vindo! Ela estava ali, ao meu lado, vestida como uma
princesa, fazendo parte de meu mais belo e intenso sonho.
— Adorei o que você fez, Nina, sua iniciativa, não poderia ser
mais acertada, eu estava com saudade sua — ela disse, me
deixando sem saber o que responder.
— Você já jantou?
— Ainda não.
Eu fiquei sem jeito, mas radiante por ela ter pensado em mim.
— Sabe, Nina, perdi meus pais muito cedo, meu pai era médico
e pouco ficava em casa, eu passava muito tempo com minha mãe.
Nós tínhamos uma vida estável financeiramente e a maioria das
pessoas se aproximavam de nós por algum tipo de interesse
financeiro. Minha mãe sempre me dizia para ter cuidado com as
pessoas, eu era pequena, não compreendia direito, mas tinha uma
vaga noção. Um dia perguntei a ela como eu saberia se uma pessoa
se aproximaria de mim sem interesse e ela me levou em frente ao
espelho e disse: olhe nos olhos da pessoa, ela terá que ter os olhos
como os seus, sinceros, transparentes, você saberá identificar
quando conseguir enxergar a alma dessa pessoa... Eu cresci
lembrando das suas palavras, mas nunca consegui entender na
prática. O tempo passou e isso tornou-se apenas mais uma
lembrança de minha mãe, até o dia em que eu vi você pela primeira
vez. No momento exato em que olhei para seus olhos eu
compreendi o que minha mãe quis dizer, Nina. Tentei fugir, tentei
esquecê-la, mas hoje sei com toda certeza que você é especial,
você é diferente. Eu chego perto de você e sinto sua alma, sua
simplicidade, e por isso eu jamais deixaria de vir hoje neste
concerto, jamais deixaria de vir dizer-lhe pessoalmente que estou
plenamente apaixonada por você.
— Promete?
Eu olhei encabulada para “os dizeres” mas não sabia o que era.
Ela me olhou e percebeu que eu não havia entendido, então me
explicou calmamente.
— Não é por isso não, querida, é o que eles têm de melhor aqui
e hoje é uma ocasião especial e quero o melhor.
Baixei a cabeça, ficando claro que a queria por mais tempo. Ela
segurou minha mão e quando ia falar algo o garçom chegou com o
champanhe “fortúnico”, serviu nossos copos e perguntou:
— Obrigada, não posso fazer feio para uma chef de mão cheia
como você! Mas Nina, vi que você ficou chateada por eu ter de ir
embora amanhã.
— Sim, lembro.
— Pois então, por isso não posso separar-me, mas sei que a
Diana não está comigo por amor — disse, um tanto ressentida.
— Tudo bem, Allegra, quero que saiba que estou do seu lado,
se quiser me contar e sentir-se à vontade para isso pode contar, se
não quiser, entenderei.
— Nenhuma...
— Por mim isso não é nenhum problema, desde que tenha uma
cama para que possamos ficar juntinhas a noite toda, para mim será
o melhor lugar do mundo — disse, com um sorriso tão lindo que era
impossível negar aquele pedido.
— Qual detalhe?
— Não, claro que não. — ali tive tanta raiva por a Clara estar lá
em casa que queria “seu pescoço”.
— Alô! Nina??
— Vai lá, Nina, não deixa a coroa escapar! Vou arrumar seu
quarto e trocar os lençóis!
— Ok... Beijos.
— O que foi? Falei algo que não devia? É que estamos tendo
uma conversa tão franca, por isso falei... Desculpe.
— Não quero que chore, quero pedir logo uma sobremesa para
depois irmos a sua casa, pode ser?
— Claro!
— Alô?
Fiquei quieta esperando ela terminar de falar ao telefone para
que déssemos continuidade na nossa conversa.
— Te quero — murmurei.
Para sempre...