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Adriana Nicolodi

Mesa 27

3º edição
Capa
Adriana Nicolodi

Revisão
Cristiane Carvalho
Flávio Dotti Cesa

É proibida a reprodução total ou parcial desta obra,


por qualquer meio e para qualquer fim, sem autorização prévia,
por escrito, do autor. Obra protegida pela Lei de Direitos Autorais.

Ao adquirir um livro você está remunerando o trabalho de escritores, diagramadores,


ilustradores, revisores, livreiros e mais uma série de profissionais responsáveis por
transformar boas ideias em realidade e trazê-las até você.

Todos direitos reservados.


Dedico esta história à mulher que me ensinou a amar.
A você, Gracieli Valloni, meu eterno amor...
Adriana Nicolodi
Contents

Prólogo
Prefácio
Agradecimentos
Introdução
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo Final
Prólogo

Quem convive comigo e me conhece um pouco sabe que sou


uma pessoa um tanto intensa, tenho uma opinião forte e com isso —
às vezes — é difícil compreender o meu excesso de franqueza.

Resolvi escrever este livro porque acredito que com um papel e


uma caneta — no meu caso, um computador — eu possa por meio
de palavras transmitir algo de bom, uma mensagem positiva e fazer-
nos pensar.

Foi muito gratificante ter criado esta história e hoje dividi-la com
cada leitor, de certa forma, e, por que não dizer, torná-la quase real.
Despertar emoções e sentimentos com a exteriorização de uma
ideia é fantástico, um sentimento único, e quero compartilhar deste
sentimento com você!

Hoje, afirmo enfaticamente que existe uma Adriana antes e uma


Adriana depois deste livro, pois eu “vivi” esta história intensamente,
depositei tanta energia nela que não me admirarei se você puder
senti-la em determinado momento; digo ainda que, cada
personagem carrega um pouco de mim e afirmo, com toda certeza,
que hoje eu carrego um pouco de cada personagem comigo, e isso
é mágico, apaixonante.

Para finalizar, quero tornar público que sempre acreditei no


amor, nas palavras ditas e em um olhar sincero. Amar deve ser
simples — e não complicado. Acredito no amor verdadeiro, no amor
à primeira vista, no respeito mútuo e no potencial que todo ser
humano traz consigo para amar incondicionalmente; e o que
realmente vislumbro para um futuro próximo é: um mundo
desprendido de falsa moral e preconceitos, um mundo mais
consciente, que respeite e acredite nas várias nuances do amor.
Adriana Nicolodi
Site oficial - www.mesa27.online

adriana-nicolodi@hotmail.com
Prefácio

Colocar as ideias num papel não é tarefa das mais fáceis. Que
dirá então escrever um livro com inúmeras páginas, que irão
desvendar uma história toda arquitetada na mente de quem as
idealizou. Todo ser humano é um escritor iminente, partindo do
princípio de que todos se percebem e se identificam — em
diferentes graus — com o mundo a sua volta. O cotidiano é uma
teia, onde vários indivíduos se cruzam e fazem a sua história
diariamente. Porém, por inúmeros motivos, nem todos concretizam
na folha de papel esse saber diário que a vida nos fornece.

No caso do presente livro, conheço muito bem a autora,


Adriana Nicolodi, ou simplesmente Drika. Como o livro tem essa
magia de nos aproximar de suas personagens, quero, neste
pequeno prefácio, o qual fui honrosamente convidado a
desenvolver, apresentar-lhes a Drika. Ela é uma daquelas pessoas
irresistivelmente interessantes. Cada vez que a encontro sempre há
uma novidade, e não fui pego de surpresa — afinal, já nos
conhecemos há bons cinco anos — quando ela me contou que
estava escrevendo um livro.

Acompanhei o desenvolvimento da obra de perto e pude


perceber a entrega dela ao seu objeto. Seus olhos brilhavam, seus
relatos refletiam todo o entusiasmo e a dedicação que ela estava
empregando. Quando estiverem se deleitando no decorrer das
páginas perceberão uma riqueza de detalhes impressionante. Ela se
preocupou com cada informação que foi colocada, foram inúmeras
idas e vindas pelo texto, inúmeras pesquisas para que tudo
estivesse perfeitamente encaixado.

Mas algo me chamou muito a atenção: em uma de nossas


conversas a Drika falou-me que no dia anterior, ao escrever um
capítulo do livro, ela chorou copiosamente. A cena que estava
descrevendo contava com algumas músicas que ela estava
escutando simultaneamente.

Foi com esse relato e por tudo mais que pude presenciar que a
alma do artista está impregnada nela. Percebam a sensibilidade em
penetrar na cena através das músicas em questão. E tenho certeza
de que essa mesma sensação se estenderá a todos aqueles que
entrarem em contato com o livro.

A leitura nos leva a lugares surpreendentes e nos inspira muitos


sentimentos/sensações. Acredito que a obra que a Drika idealizou
com tanto carinho tem algo de muito importante que, além de contar
uma história, nos mostra que podemos construir incessantemente,
seja em qual campo for: o fato de os sonhos moverem o ser
humano. Seja este sonho o de escrever um livro ou qualquer que
seja o sonho.

Este livro é um exemplo de que os sonhos também se tornam


concretos. Porém, há de se ter uma boa dose de empenho, de
determinação, de ousadia e de coragem.

Sou um estudante de ciências sociais que também pretende


escrever, talvez não de uma forma tão literária, mas igualmente me
inspirei nesse sonho que será compartilhado com pessoas que
conhecem a Drika e com pessoas que virão a conhecê-la através
deste livro e de suas personagens. E qual foi a minha inspiração?
Concretize. Faça. Afirme.

Para não me delongar e começar a escrever outro livro, encerro


com a arte que de vez em quando cultivo — a poesia.
Especialmente para minha “irmã” Adriana Nicolodi (Drika):

“A vida é venturosa por demais para não se aventurar

Crie cada dia um novo capítulo dessa história


Reinvente-se, descubra-se, desbrave-se

O espírito dos inquietos dá movimento ao mundo.”

Diogo Serafim Schmidt


Agradecimentos

Mesa 27 é a concretização de um sonho — poder torná-lo


realidade é sem dúvida uma sensação muito maravilhosa e uma
experiência única, mas, isso se deve também a todo auxílio e apoio
que recebi nesses meses.

Quero agradecer especialmente à Nicka, que me inspirou e


ajudou na composição da personagem Shelly, ao Diogo, que
sempre fez observações tão peculiares e pertinentes, e também, o
meu agradecimento sincero a todos que me apoiaram, mesmo que
com apenas uma palavra de incentivo ou com um sorriso de apoio,
contribuindo de alguma forma.

A vocês, o meu reconhecimento e imensa gratidão, pois essa


contribuição foi fundamental e fez parte da realização desta obra.

Adriana Nicolodi
Introdução

Meu nome é Nina, deixei o Brasil para esquecer a Clara. Uma


traição, uma desilusão amorosa, sempre arrancam pedaços e
deixam marcas profundas. De certa forma, a minha vinda para cá
foi uma espécie de fuga, quis “enterrar” meu passado e
simplesmente recomeçar...

Por alguns meses, pareceu-me a decisão acertada, apreciei a


minha “nova vida” com tranquilidade, curiosidade e uma gratificante
calmaria. Confesso que quis driblar o destino, indo embora sem
olhar para trás, mas o destino é esperto e nos prega peças, não
adianta tentar enganá-lo, fugir, ele está eternamente atrelado a nós.

Minha história começa naquele dia frio de inverno intenso,


parecia-me uma manhã como qualquer outra, mas eu não poderia
imaginar nem em meus mais remotos sonhos que aquele dia seria
diferente, a minha rotina seria quebrada por algo novo, algo que
mudaria minha vida...

Para sempre.
Capítulo 1

Sempre que o despertador tocava era um tormento, acordar


cedo definitivamente não é meu forte. Inacreditavelmente, ainda
confundia o toque do despertador com o soar de sirenes “dentro” de
meus sonhos, mas, nem tudo é perfeito e acordar cedo faz parte de
minha nova rotina, de meu novo trabalho, que por sorte, tanto amo.

Lutando contra o sono e minha imensa vontade de ficar entre


edredons e lençóis, como por reflexo levantei em uma fração de
segundos e me pus rapidamente, ainda sonolenta, embaixo do
chuveiro de jatos fortes. As fortes gotas que se chocavam contra
meu corpo faziam minha pele doer, elas me acordavam e me davam
disposição para enfrentar o frio que estava lá fora, pois o sol só
apareceria dali a uma hora.

Então, após tomar uma xícara de chocolate bem quente e ler as


notícias diárias do jornal The Montreal Gazette, forrei-me de roupas
quentes, botas para neve, luvas impermeáveis e touca de pelica,
tratei de ir caminhando e apreciando a linda paisagem entre meu
pequeno apartamento e o mercado. Para mim, ainda era tudo novo,
não apenas uma cidade nova, mas um país novo, com paisagens e
culturas a que eu estava desacostumada.

Chegar ao mercado de peixes em meio àquela loucura e gritaria


que faziam minha cabeça zunir também me deixava empolgada e
com uma pontinha de medo em perceber o quanto era grande
minha responsabilidade em estar à frente de um tradicional
restaurante — e foi somente nessa hora que eu percebi que já era
adulta, mesmo beirando os meus 30 anos.

Parei por um segundo, olhei num âmbito de 360° e fui, fui em


direção à confusão toda em busca de um pargo perfeito, aquele que
me daria ânimo de ir correndo para o trabalho e prepará-lo com
afinco e de maneira deliciosa.
Depois de 15 minutos em meio a negociações e barganhas,
finalmente consegui sair com meu peixe — de mais de 8kg — do
mercado e daquela loucura toda.

Após mais alguns minutos caminhando, finalmente cheguei ao


restaurante e ingressei na minha cozinha, em meio à turbulência
das preparações dos pratos, oito cozinheiros, panelas fervendo,
liquidificador e fritadeira a todo vapor, mas, meu pensamento estava
longe, confesso que não ouvia praticamente nada ao meu redor,
estava tão concentrada no preparo da minha Moqueca que nem
percebi o tempo voar.

Só voltei da minha viagem interior quando escutei o maître


Marcel:

— Chef, a sra. Julieta gostaria de falar com você.

— Por favor, diga a ela que já vou, preciso lavar as mãos.

Dona Julieta era uma senhora educada, bem-vestida,


aparentava ter uns 70 anos e frequentava o restaurante desde 1998,
na época ainda em que o Petit Brazil chamava-se Petit Monde,
muito tempo antes de eu pensar em trabalhar em outro país.

Fui até o salão ao encontro de dona Julieta.

— Tudo bem, dona Julieta? Em que posso ajudá-la?

— Nina, minha querida, como vai? — disse, com extrema


simpatia.

— Muito bem, e a senhora?

— Muitíssimo bem, obrigada. Queria dizer-lhe mais uma vez


que seus pratos são deliciosos e estou ansiosa para experimentar o
que preparou hoje. Mas, eu gostaria de saber como posso preparar
algo “brasileiro” em minha casa, aquela moqueca que você faz, por
exemplo, afinal, quero fazer uma surpresa e cozinhar para meus
netos uma comida típica do Brasil.

Enquanto eu ouvia a dona Julieta, percebi que na mesa de trás,


havia um grupo de três pessoas que eu nunca tinha visto no
restaurante, pessoas bem-vestidas, que não paravam de conversar
um minuto sequer, e dentre eles, me chamou atenção uma mulher,
linda, com um sorriso que me fez hipnotizar, ela tinha um biotipo
diferente das demais daquela região, tinha uma pele mais bronzada,
com cabelos escuros, ondulados, quatro ou cinco dedos abaixo dos
ombros, vestia branco, o que fazia sua linda cor ressaltar ainda
mais.

— Querida?

— Desculpe, dona Julieta, irei agora mesmo providenciar a


receita para a senhora levar, pedirei ao Marcel para trazer até aqui,
na sua mesa, tenho certeza que será uma bela surpresa para seus
netos e eles irão adorar.

— Obrigada, Nina, você é sempre muito atenciosa.

— Obrigada à senhora, com licença.

Meu Deus, o que é isso? — pensei —, quem seria aquela


mulher, como ela podia me deixar atordoada simplesmente com a
sua presença?

— Marcel...

— Sim?

— Quem são aquelas pessoas da mesa 27? Nunca as vi.

— Não sei, também nunca as vi aqui.

— Procure saber, Marcel, parecem ser pessoas de fora,


influentes, seria interessante dar a eles uma atenção especial —
tentei convencê-lo de que aquilo seria de certa forma, bom para o
restaurante.

— Concordo, vou ver o que descubro.

— Marcel, ofereça uma caipirinha a eles, diga que é por conta


da chef — acrescentei.

— Pode deixar, Nina, farei isso.

— Ah! Marcel, antes venha comigo que vou dar a receita da


moqueca para dona Julieta, leve até a mesa dela juntamente com
essa garrafinha de azeite de dendê — dei para Marcel aquela
pequena garrafa de azeite alaranjado —, senão ela não vai
conseguir fazer a moqueca em sua casa, diga que mandei
especialmente a ela.

— Tá bem.

Enquanto Marcel levava a receita e o azeite para dona Julieta,


percebi que eu estava totalmente abalada com a presença daquela
morena.

Sinceramente, a última coisa que eu queria era me apaixonar


por alguém, afinal, minha última paixão, com a garota de São Paulo,
a Clara, já tinha me deixado bastante machucada, por isso, resolvi
que o que eu queria mesmo era me dedicar ao trabalho e no
máximo ter algum envolvimento superficial, sem me apaixonar. Mas,
por outro lado, também tinha que agradecer à Clara, pois se não
fosse por ela eu não teria tido coragem para me aventurar nessa
mudança radical em minha vida, então, de algo teria valido aquela
desilusão.

— Chef?

— Fale, Marcel!
— A dona Julieta adorou a sua gentileza e pediu para
agradecer, mas, disse que faz questão de pagar pelo azeite.

— Não, Marcel, diga que é um presente, para, por favor,


aceitar...

— Certo, direi a ela.

— E quem são as pessoas da mesa 27? — perguntei ansiosa.

— Ah, sim! São médicos, estão aqui para dar algumas palestras
na universidade, me parece que são de Toronto.

— Ah... Sabe até quando ficam aqui?

— Não... Não perguntei, por quê? — ele me olhou sem


entender.

— Nada não... Obrigada, Marcel.

— De nada... Ah! Eles gostariam de agradecer pela caipirinha,


falei que iria avisá-la e que você iria até a mesa deles.

— Me agradecer? Eu ir até lá? Assim desse jeito? — levei um


susto, eu não estava preparada para ir até ela.

— Sim... Dar uma atenção especial, lembra? Da mesma forma


como fez com dona Julieta.

— Claro, já vou, só irei lavar as mãos e estou indo.

Meu Deus! Estava com cheiro de peixe! Como iria até lá?

Lavei as mãos, coloquei minha doma reserva — que estava


limpa — e me dirigi até a mesa 27.

Quando me aproximei da mesa, percebi que a mulher pela qual


eu estava fascinada era muito mais atraente do que antes me
parecia. Era impressionante, como tão rapidamente fui acometida
por aquela espécie de hipnose por ela, eu não compreendia.

Quase tremendo e sem conseguir olhar diretamente nos olhos


dela, fui logo falando:

— Bom dia, senhores, gostaram do drink?

— Muito! — respondeu um homem grisalho de voz grossa e de


gravata rosa.

— Esta é uma bebida típica brasileira, é muito apreciada e


consumida no meu país — emendei rapidamente.

Então, ouço a voz dela, para delírio de meus ouvidos, uma voz
calma, firme, com um tom quase grave, falou incisivamente olhando
fixo em meus olhos:

— O que vai nela? — indagou, num tom quase seco.

Aí sim, quase engasguei! Olhei em seus olhos, mas meu olhar


desviava para sua boca, então me controlando ao máximo disse:

— Açúcar, limão, gelo e cachaça.

— Cachaça? — perguntou ela.

— Sim, um destilado da cana-de-açúcar.

O outro rapaz que estava sentado junto a eles, bem mais jovem
e de boa aparência, interrompeu-nos:

— A comida estava ótima, um pouco diferente do habitual, mas


deliciosa — comentou, nitidamente achando muito apimentada.

— Obrigada, espero que retornem, amanhã teremos um


cardápio excelente! — falei, na tentativa de convencê-los a voltar no
dia seguinte.
— Claro, se for possível, pois estamos de passagem e bastante
atarefados, mas ainda ficaremos dois dias aqui — disse o jovem,
com muita simpatia.

Tomei coragem e perguntei:

— São médicos?

Ela então respondeu, tomando a frente:

— Sim, fomos convidados para dar algumas palestras sobre


patologias cardíacas, inclusive algumas delas ligadas a má
alimentação. Se quiser, fica o convite para a palestra de amanhã à
noite, que também abrangerá este assunto — sugeriu, olhando
diretamente em meus olhos, quase me fulminando com seu olhar,
que impressionantemente parecia ver através de mim.

Deu-me “friozinho” na barriga por aquele convite, mas respondi


com tranquilidade tentando aparentar calma:

— Obrigada. Sim, realmente é um assunto interessante


também para minha área.

Percebi que ela me observava, não com um olhar de desejo,


era algo diferente, não sei explicar, parecia interessada pelo que
estávamos conversando, mas isso bastou para me deixar nervosa.

Já o rapaz mais novo, abriu sua carteira rapidamente e tirou


dois pequenos bilhetes e entregou-me.

— Duas cortesias para a palestra de amanhã, leve um amigo


ou namorado.

— Obrigada — agradeci, pegando as cortesias. — Bem, muito


prazer em conhecê-los, espero que tenham gostado do almoço e
que retornem.

Eles agradeceram e eu fui em direção à minha cozinha com


aqueles bilhetes nas mãos.
Naquele dia não consegui pensar em mais nada, só nela e no
que eu tinha dito, ou melhor, no que eu deveria ter dito! Nem disse a
eles que não tinha namorado, sequer perguntei o nome dela... Meu
Deus, eu tinha feito tudo errado...

À noite, deitei em minha cama e fiquei olhando aqueles bilhetes


ao lado de minha cabeceira, relembrando do rosto dela, seus
grandes olhos negros, sua pele morena, o contorno de seus lábios,
o sorriso, a voz firme, fiquei imaginando sua idade, uns 35 ou 36
talvez... Adormeci pensando nela.

Inacreditavelmente naquela manhã acordei antes do


despertador tocar, e ali, tive certeza de que meu coração estava
sendo atingido por um novo sentimento. Mas como aquilo era
possível? Não sabia o nome dela, se tinha um relacionamento com
alguém, se tinha filhos ou onde morava, fiquei até imaginando que
ela poderia ser casada com o cara da gravata rosa, e ainda, mesmo
supondo que ela fosse solteira — o que definitivamente era
praticamente impossível de se imaginar — baseado em quê ela
sentiria atração por mulheres? Era certamente um lapso de loucura
da minha mente tentando me iludir.

É... — pensei — talvez ela fosse realmente casada com o


senhor da gravata rosa, ele parecia bem mais velho que ela, mas,
pensando bem, poderia ser uma possibilidade. Seria possível?
Tratei de parar de pensar em bobagens e ir trabalhar, isso sim era a
minha realidade.

Depois de toda minha rotina matinal, lá estava eu novamente


na minha cozinha no Petit Brazil, desta vez mais apreensiva, com
uma palpitação no peito, ansiosa em saber se ela voltaria naquele
dia.

Resolvi falar com Marcel para ver se alguma reserva havia sido
feita na mesa 27.

— Marcel, foi feita alguma reserva na mesa 27?


— Deixe-me ver aqui, vamos ver... Sim, tem uma reserva para
duas pessoas, em nome de Alfred.

— Ah... — fiquei pensativa.

— Nina?

— Hum?

— O que está acontecendo? Nesses três meses você nunca


me perguntou se havia alguma reserva em especial. Você se
interessou pelo rapaz de ontem, não é?

— Ai, Marcel! Para com isso! Não me interessei, não, quer


dizer... Não exatamente... Agora tenho que entrar! — saí
desconcertada, e acho que ele percebeu.

Só o que faltava! Eu estava dando bandeira, tinha que me


conter. Então me concentrei e continuei fazendo as minhas
preparações, orientando os cozinheiros e por aquelas horas
consegui focar no trabalho, sem muito pensar nela.

— Nina?

Levantei os olhos e vi seu Jordi, o dono do restaurante, ele


estava engraçado, com o nariz vermelho e aquela touca na cabeça,
que em nada combinavam com o seu terno italiano que
provavelmente custava o meu salário do ano inteiro.

— Sim, seu Jordi?

— Você pode vir no meu escritório por um instante?

— Claro, só vou lavar as mãos e estou indo.

Fiquei imaginado o que o fez aparecer no meio da semana no


restaurante e o que ele poderia querer comigo. Mas, só havia uma
maneira de saber, então rapidamente fui até seu escritório.
— Com licença?

— Entre, Nina, sente-se.

— Obrigada.

— E então? Está gostando do novo trabalho?

— Sim, muito!

— E o clima? Como está se sentindo num país de “clima


temperado”?

— Ainda estou me acostumando, se bem que passo a maior


parte de meu tempo aqui dentro, se não estou na calefação estou
entre fogões, então nem tenho sentido muito frio.

— Sim, é verdade, aqui em Montreal tem calefação por toda


parte e o frio mesmo só sentimos “de passada”, quando estamos na
rua — disse, descontraidamente. — Bem, quero dar-lhe os
parabéns pelo trabalho que vem desempenhando e pedir-lhe para
dar um jantar em minha casa, claro que será muito bem
recompensada por este extra, não se preocupe com isso. Sábado
será o aniversário de minha esposa, meus filhos virão de Milão para
fazer uma surpresa para mãe e eu gostaria de contar com você para
proporcionar a ela um jantar especial. O que você acha?

— Nossa, fico lisonjeada com o convite e será um prazer


imenso poder contribuir nessa data tão especial para vocês.

— Obrigado, Nina, ficamos combinados então? Sábado?

— Certo, pode contar comigo. Agora tenho que voltar ao


trabalho, com licença, até logo.

Levantei-me e saí.
Fiquei muito contente com o reconhecimento do meu trabalho,
mas estava muito atarefada, então voltei rapidamente para meus
afazeres.

— Nina, Nina!

— Que foi, Marcel?

— O seu namorado já chegou! Está na mesa 27!

Meu coração disparou, fiquei parada e mal consegui dizer:

— Ele não é meu namorado! Quem mais está na mesa com


ele?

— O senhor da gravata rosa.

— Quem mais?

— Só os dois, a reserva era para duas pessoas, acho que a


amiga bonitona não vem hoje. Que pena... — falou rindo, com certo
ar de interesse por ela.

Fiquei frustrada e irritada, mas eu nada tinha a fazer, estava de


mãos atadas.

— Me deixa continuar aqui, Marcel! — falei sem paciência.

Ela não tinha vindo, será que não havia gostado de algo que
falei? Ou a comida não teria agradado o seu paladar? Eu até estava
decidida a ir à palestra, mas já não sabia mais se seria o caso, tinha
medo de parecer uma boba.

O dia foi passando, a dúvida sobre o que fazer me


atormentando e eu estava entrando em “parafuso” com aquela
incerteza.

A noite fria estava de volta, retornei ao meu apartamento no 3°


andar depois de uma caminhada de 10 minutos entre o restaurante
e meu pequeno lar.

Fiquei ali por quase uma hora em estado catatônico, sentada na


beirada da cama, enrolada num cobertor, com os olhos parados,
olhando fixamente para um furinho preto na parede, estava
completamente sem saber se deveria ir ou não à palestra.

Comecei a lembrar-me de tudo que eu vivera até ali e, ainda


sentada no mesmo lugar, através da porta de meu quarto fiquei
observando meu pequeno apartamento de cinco cômodos.

Aquele pequeno lavabo junto à sala com apenas uma pia roxa e
azulejos azuis, além de muito feio, era tão pequeno que uma pessoa
de porte médio mal conseguia permanecer ali de forma
“confortável”. O meu quarto era arejado e pequeno, com apenas
uma cama de casal e dois criados-mudos com um abajur sobre eles,
um de cada lado; do lado esquerdo a grande janela deixava o quarto
bem iluminado; e do lado direito, estava o guarda-roupa branco de
apenas três portas. Encostada ao guarda-roupa uma pequena porta
de cedro que levava ao banheiro; este mais confortável, com uma
pia e uma ducha muito boa, mas também era feio, com os azulejos
cor-de-rosa desbotados que apesar da má aparência eram firmes e
não apresentavam nenhuma infiltração; um pequeno balcão ao lado
do box de vidro servia para guardar as toalhas, produtos de higiene
pessoal e alguns materiais de limpeza. Entre o meu quarto e a sala,
vinha a cozinha, que tinha um tamanho bom comparado com o
tamanho total do apartamento, de apenas 39m². Já a sala era
“bonitinha”, estava tudo combinando: o sofá-cama verde-musgo de
dois lugares com várias almofadas claras sobre ele fazia uma ótima
combinação; uma mesinha de centro e uma televisão de 20
polegadas com boa imagem sobre a estante de pátina branca,
ficavam de fronte ao sofá-cama sob a grande janela, o que me dava
uma vista bonita para alguns prédios.

Ainda era tudo simples, mas estava bem arrumadinho e tinha


calefação, o que dentro do possível me proporcionava conforto,
porém, ainda faltava um computador e um celular. Este último, por
hora achei melhor não ter, afinal, a ideia era não ter contato com
ninguém, principalmente com a Clara.

E a palestra? Se eu quisesse mesmo ir teria que me apressar,


pois o evento começaria em uma hora.

Então pensei e falei em voz alta comigo mesma, tentando me


convencer daquela decisão:

— Vou ir sim, vou ficar em um cantinho, sem ser percebida,


pelo menos a verei novamente e quem sabe descubro algo mais
sobre aquela mulher de olhar intrigante.

Tomei um banho rápido, coloquei uma roupa — que até então


eu ainda não tinha tido a oportunidade de usar —, meu perfume e
desci até o telefone público em frente a minha casa e chamei um
táxi, pois o ponto da esquina estava vazio.

Em poucos minutos ele chegou, e rapidamente eu já estava na


frente do anfiteatro da Universidade McGill.

Entrei na fila que dava acesso ao auditório e logo pude entrar e


sentar-me em minha cadeira, que coincidentemente era de número
27, fiquei intrigada com aquilo, mas logo passou, por conta da
ansiedade em revê-la.

Foi quando a luz do palco acendeu-se e um senhor careca


subiu dando a introdução à palestra. No início até prestei atenção,
mas depois, juro que não ouvi mais nada, eram termos tão técnicos
que só seriam compreendidos por um estudante de medicina em
estágio avançado. Após uns 15 minutos de muitos prefixos e sufixos
complicados, o senhor que estava conduzindo a palestra falou:

— Convido agora, o dr. Alfred Willians, cardiologista do Mount


Sinai Hospital, a fazer o uso da palavra.

— Alfred, é o da gravata rosa!


Exclamei alto, mas logo percebi a minha gafe, então, baixei a
cabeça um pouco sem graça, fiquei ouvindo e mais uma vez me deu
sono, nossa, como era demorado todo aquele discurso, e ela? Nem
sinal! Eu já estava ali havia mais de 40 minutos, estava
desanimando.

Foi então, que minha espera seria recompensada, o tão


aguardado momento parecia estar chegando.

— Agora, prezados alunos, mesmo sabendo que podemos


dispensar qualquer tipo de apresentação, prefiro ainda, seguir o
protocolo. Então, senhores presentes, tenho a honra de convidar a
juntar-se a nós, a médica intensivista, Ph.D. em cardiologia, membro
titular do instituto norte-americano de cardiologia e especialista em
transplantes cardíacos, dra. Allegra Cavazza! Por favor, venha até
aqui para compartilhar conosco sua vasta e inquestionável
experiência.

O auditório inteiro levantou-se para aplaudi-la, parecia que uma


celebridade estava prestes a aparecer ali, bem na nossa frente.
Percebi claramente que ela deveria ser muito conhecida no meio
médico, pois a reação do público ao ouvir pronunciar seu nome não
era normal, foi uma reação extraordinariamente absurda. E eu,
ainda entorpecida pela figura daquela mulher, levantei-me também e
aplaudi fervorosamente acompanhando todos.

Então, finalmente eu a vi, linda, alta, levantou-se de uma


cadeira que ficava bem na frente — onde até então eu não a tinha
visto —, dirigiu-se até o palco e colocou-se atrás do púlpito.

Meu sono, que até ali não me deixava, desapareceu como num
passe de mágica, eu finalmente estava alerta, com energia,
prestando atenção em cada movimento que ela fazia, e muito
ansiosa em ouvi-la.

— Muito obrigada, pela calorosa recepção. Boa noite a todos os


presentes e aos meus futuros colegas.
Nossa! Gelei! A forma como ela falava era inexplicável,
impossível de reproduzir, ela falava com tanta firmeza que com
apenas duas ou três palavras ela poderia mover multidões, ela
crescia naquele palco, as pessoas que antes estavam eufóricas,
agora estavam imóveis, prestando atenção em cada palavra, em
cada vírgula, anotavam tudo que ela dizia. E eu, olhava atentamente
para ela, ouvindo-a com devoção e curiosidade, acompanhando-a
com meu olhar atento enquanto ela se movia e apontava para um
painel — com uma pequena luz a laser — para mostrar os pontos a
serem observados entre um coração sadio e um coração danificado.

— Como podemos observar, a incidência em secção


transversal do miocárdio mostra a direção do fluxo sanguíneo
normal. Não existe um sintoma isolado que identifique de maneira
inequívoca uma cardiopatia, mas determinados sintomas sugerem a
possibilidade, e um conjunto de sintomas faz com que um
diagnóstico seja estabelecido — e eu zonza, ouvindo atentamente
as explicações da dra. Allegra.

Allegra! Soava bem aquele nome! Cavazza?! Italiano com


certeza. Que nome forte, de personalidade, nome diferente,
diferente como ela, e lindo, assim como aquela mulher que me
deixava absolutamente perdida.

E foi assim, até a última palavra dela, quando novamente o


auditório levantou-se para aplaudi-la fervorosamente, e entre
palmas e assobios eu ouvia os comentários em minha volta, quase
endeusando a minha dra. Allegra.

Ouvi também, um rapaz dizendo a uma colega que eles


pegariam os autógrafos dos médicos convidados na saída, na
antessala do anfiteatro. Fiquei pensando, como assim pegar
autógrafos? Mas, logo entendi, ao lado da porta central havia um
estande com bibliografias dos respectivos palestrantes, foi quando
me dei conta e corri para comprar e garantir o meu exemplar.

Cardiopatia isquêmica – diagnóstico e prevenção – dra. Allegra


Cavazza. Esse era o título de seu mais recente livro lançado,
imediatamente o comprei, e seguindo o fluxo das pessoas dirigi-me
então, até a antessala para vê-la de perto.

As filas eram grandes, mas a fila que levava até a mesa onde
ela estava era enorme, muito maior. As pessoas a cumprimentavam
e disputavam para tirar fotos com ela, dei-me por conta então, que
para aqueles alunos era um grande acontecimento a presença dela
na universidade.

Já eu, estava meio perdida, não havia levado câmera


fotográfica ou celular – nessa hora, senti falta de não ter um
smartphone –, e nem me preparado para “pedir autógrafos”, mas
como eu iria suspeitar de toda aquela tietagem? Nem remotamente.

Enquanto eu aguardava na fila, folheei rapidamente o livro e na


última página havia sua foto, aquela foto me acalmou, me deixou
tranquila, pude olhar com clareza cada traço de seu rosto, sem
precisar forçar minha memória a tentar reproduzi-la. Mas, à medida
que fui me aproximando da mesa onde ela estava sentada meu
coração disparou, ouvi que ela perguntava o nome de cada aluno
que estava ali e escrevia algo rapidamente dentro do livro, se aquele
aluno não tirasse uma foto ao seu lado, automaticamente já passava
para o outro e assim sucessivamente — era tudo muito rápido, ela
nem levantava de sua cadeira. Nessa hora, confesso que gelei.

Finalmente eu seria a próxima, só então pude compreender


quase que com exatidão o que era um “sintoma de ataque
cardíaco”, pois o meu coração parecia sair pela boca, eu estava
muito nervosa.

Então, por fim me aproximei dela e sem dizer uma só palavra


coloquei meu livro sobre a mesa e deslizei-o até perto de suas mãos
— ela estava sentada de cabeça baixa —, foi quando ela levantou o
seu olhar e disse:

— Qual seu nome?

Imediatamente respondi com um sorriso totalmente sem graça.


— Nina.

Então, ela levantou seus olhos e mais uma vez olhou


diretamente dentro dos meus, novamente parecendo olhar por
dentro de mim, era uma sensação inexplicável e extraordinária, eu
tinha quase a impressão de me conectar com ela, através de seus
olhos.

— Ora, quem veio nos prestigiar! A chef brasileira! Gostou da


palestra? — disse com um pequeno sorriso.

Ela lembrava de mim!

— Muito, embora eu tenha ficado um pouco perdida.

Enquanto eu falava, ela ia escrevendo dentro do meu livrinho


da isquemia.

Ousei perguntar:

— Vai passar no restaurante amanhã?

— Não, daqui estou indo para o aeroporto, vou para Lisboa


ainda hoje, tenho uma convenção amanhã à tarde. Vida de médica
é assim mesmo, muitos compromissos e pouco lazer, mas essa foi
minha escolha, então tenho que acatar as consequências, não é?
Talvez meus colegas irão ao seu restaurante, pois eles ainda ficam
por aqui até amanhã.

Dentro de mim eu tive vontade de gritar, pedir que ela ficasse


também, quase deixei transparecer minha tristeza, mas segurei-me.
Naquele instante, ficou claro que provavelmente eu nunca mais a
veria. Então, ela me devolveu o livro, eu o peguei e para minha
surpresa ela levantou-se e estendeu a mão dizendo:

— Obrigada, por ter vindo.


Pela primeira vez a vi de pé — tão de perto — na minha frente,
ela era alta, no mínimo uns 15 cm a mais do que eu, esguia, com
um corpo atlético e um perfume que me tonteava, perfume bom.
Fiquei estática segurando a sua mão quente, de pele macia, que
apertava a minha com firmeza, só voltei a mim quando uma luz
ofuscante vinda de sua mão esquerda me fez parar de sonhar, era
uma aliança dourada enorme que talvez tivesse uns “300 quilates”.
Quase não quis acreditar, mas mantive a classe e retribuí sua
gentileza.

— Obrigada a você por me deixar a par sobre a quantas


cardiopatias somos suscetíveis.

Vi que tinha falado uma brincadeirinha totalmente sem graça,


então tentei remediar.

— Desculpe a brincadeira, é que realmente não temos ideia do


que a alimentação faz com nosso coração. Mas, tenha então uma
boa viagem e saiba que foi um prazer imenso tê-la conhecido.

Ela sorriu e sentou-se, eu virei e fui me afastando, ainda tentei


dar uma olhadinha para trás, mas ela já estava de cabeça baixa
autografando outro livro, enquanto uma pequena multidão ainda a
aguardava com ansiedade.

Eu tremia de alegria e de tristeza, os sentimentos eram


estranhamente conflitantes. O perfume dela estava impregnado em
minha mão e eu queria sentir aquele cheiro para sempre, tentei
então “memorizar” aquela fragrância, já que não tinha ideia que
perfume era aquele que ela usava.

E aquela aliança? Na mão esquerda! Significava que ela tinha


alguém, alguém de muita sorte. E eu? Por um momento de
insanidade fantasiei a possibilidade remota de tê-la comigo, que
ingenuidade a minha, que papel de boba estava fazendo, ali,
abestalhada, no meio daqueles médicos, com um livro sobre
isquemia embaixo do braço e cheirando meus dedos para não
desperdiçar aquele perfume.
Eu estava parecendo e me sentindo como uma verdadeira
adolescente de 12 anos ao encontrar-se com seu ídolo, e jurando
que ele se casaria imediatamente com a adolescente prometendo
amor eterno. Era patético!

— O que estou fazendo? — falei baixinho comigo mesma.

Mas ela mexia comigo, isso era fato. Tão real que meu peito
doía, tinha uma vontade quase incontrolável de voltar lá e dizer a ela
para, por favor, ficar.

Eu alimentava uma esperança, mesmo contra todas as chances


do mundo, mas desanimava, ao me perguntar quem seria a pessoa
que tinha o privilégio de chamá-la de sua esposa. Foi nesse
momento que me lembrei do cara da gravata rosa, que por sinal
continuava com sua gravata de estimação.

Voltei uns 5 metros e cheguei perto da mesa de autógrafos


dele, procurei olhar sua mão esquerda para ver se também tinha
uma aliança de “300 quilates”, mas as mãos dele estavam vazias,
não havia o menor vestígio de uma aliança, ainda mais daquele
tamanho, seria impossível não detectá-la. Então concluí que não era
ele o homem sortudo. Não sei se isso era bom ou ruim, mas por
hora me aliviou um pouco.

Olhei novamente para a mesa dela, mas não consegui vê-la, a


sua mesa estava rodeada de pessoas, então vagarosamente fui me
dirigindo até o portão da universidade para pegar um táxi e voltar
para minha vida, minha realidade tão distante da dela.

Eu caminhava junto a outros alunos que estavam eufóricos com


a palestra e com seus livros autografados, quando ouvi uma
estudante dizer:

— Pierre, o que ela escreveu no seu?


O estudante rapidamente abriu seu livro e mostrou para sua
colega, lendo em voz alta:

— Ela escreveu: “Caro Pierre, sorte e sucesso em sua nova


jornada, saudações, dra. Allegra Cavazza”.

— E no seu, Justine? — ela repetiu o gesto e mostrou-lhe o seu


livro.

— Também! Ela escreveu a mesma coisa. Que máximo, nem


acredito que a conhecemos pessoalmente!

Então eles se afastaram eufóricos, quando me lembrei de olhar


o que ela havia escrito no meu livro! Como pude esquecer-me de
olhá-lo? — pensei. O que estava acontecendo comigo?

Meu coração disparou novamente, então rapidamente peguei


meu livro e o abri, estava nervosa, quase não conseguia folhá-lo,
mas lá estavam, quatro ou cinco linhas escritas com uma letra
horrorosa, era quase ilegível.

Querida Nina,
“O dia está à sua frente, esperando para ser o que você quiser”.
Obs.: Você preparou a melhor “cachaça” que já provei.
Um abraço,
Allegra C.
O que isso queria dizer? Fiquei boquiaberta lendo e relendo
aquilo, sem entender absolutamente nada. Parecia que ela brincava
comigo, me deixava tonta, agora ainda tinha um “enigma” para
decifrar. Todavia, sem mais o que fazer ali, chamei um táxi e fui para
casa, tentando entender aquela frase.
Ao chegar, deitei-me na cama com a intenção de começar a ler
o livro sobre aquela tal de isquemia, mas não consegui sair do
primeiro parágrafo, era incompreensível, os termos eram técnicos
demais. Então, fiquei alternando entre a primeira página, com a
dedicatória que ela havia escrito especialmente para mim, e a
última, onde estava sua foto em preto-e-branco. Foi assim até eu
adormecer.
Na manhã seguinte, me aprontei para mais um dia de trabalho,
este mais longo, afinal, ao invés de me liberar às 17h como de
costume, eu ainda teria que preparar um jantar espetacular para
meu chefe, seu Jordi.
Não tinha ideia de que horas voltaria para casa, mas tinha ideia
sim do que fazer com o “extra” que ganharia naquela noite.
Compraria então, depois de três meses, o meu computador para
finalmente me conectar com o mundo e tentar saber mais sobre a
minha cardiologista.
Aqueles dias que se seguiram passaram sem grandes
emoções, daquele jantar que fiz para o seu Jordi saíram outros, com
isso, comecei a juntar uma graninha e fazer meu “pé de meia”.
Finalmente comprei meu computador e me conectei com o mundo,
trocava e-mails com minha melhor amiga Shelly e confesso que
alguns também com a minha ex-namorada Clara, intercalava os e-
mails com pesquisas de novas técnicas de cozinha e buscas por
notícias sobre a dra. Allegra, achei várias fotos dela na internet,
inúmeras notícias sobre sua participação em convenções, cirurgias
complicadas, transplantes, participações em eventos médicos e até
uma especulação sobre um possível lançamento de um novo livro,
mas nada indicando que ela retornaria a Montreal.
Descobri também que ela tinha 39 anos e era casada, mas não
descobri com quem, pois pouco se falava de sua vida pessoal, mas
muito sobre seu talento profissional e sua brilhante e extraordinária
carreira médica.
Adquiri o costume de olhar as reservas feitas no restaurante —
em especial da mesa 27 —, sempre com a esperança de ter uma
reserva no nome dela. E assim minha rotina permaneceu por dois
longos meses...
Capítulo 2

— Nina!
— Oi, Marcel, o que foi?
— Telefone para você.
— Tem certeza? — em cinco meses nunca havia recebido uma
ligação.
— Sim, você é a única Nina que eu conheço que trabalha aqui.
— E quem é?
— Não sei, foi difícil de entender, ela fala muito mal inglês.
Dirigi-me até o balcão da recepção e atendi ao telefone.
— Alô?
— Oiii, Nina! Que bom falar com você! Saudades!
— Shelly?! Menina, como me achou aqui?
— Ora, você deve ter repetido no mínimo umas cem vezes o
nome do seu restaurante nos e-mails. Mas fiquei preocupada com
você, faz mais de uma semana que você não responde às minhas
mensagens, aconteceu algo?
— Não, é que realmente andei ocupada e chego tão cansada
em casa que nem estou abrindo meus e-mails.
— Mas aposto que tem tempo para ficar investigando a vida da
tal médica, não é?
— Nem lembro mais disso, Shelly — disse, sendo nada
convincente.
— Não? Você ficou um mês inteiro escrevendo sobre a
“Doutora”, que ela isso, que ela aquilo, dúvido que não pense mais,
te conheço bem, Nina, lembra?
— Na verdade ainda penso nela sim, mas estou tentando
esquecê-la. — então tentei mudar o foco da conversa. — Mas e
você? Vai gastar uma fortuna se ficarmos papeando por telefone.
— Queria te contar a novidade! Lembra do curso que eu queria
fazer aí?
— Sim. Vai dizer que você conseguiu a vaga?
— Sim, Consegui! Estou arrumando as malas para ir morar aí
com você por 90 dias.
— Sério?! Que ótimo! Você não imagina que boa notícia. Adorei
a ideia de passar este tempo com você, me sinto só às vezes. E
quando você vem?
— Depois de amanhã pego o avião rumo a Montreal!
— Depois de amanhã? Mas assim? Tão rápido?
— Amiga, estou tentando te avisar há dez dias, abra seus e-
mails que você verá.
— Sim, verei, mas o importante é que você conseguiu a vaga e
está vido pra cá. Enfim, tenha uma boa viagem e ao chegar aqui,
me liga, para eu poder buscá-la no aeroporto, tá? Estou muito
empolgada! — disse ansiosa.
— Eu também! Um superbeijo e até bem breve.
— Outro.
Desliguei o telefone muito contente com essa excelente notícia
e com minha futura companhia. A Shelly era ótima, tínhamos quase
a mesma idade, ela estudava moda e sonhava em ser uma grande
estilista, tinha a mesma paixão pelo mundo fashion como eu tinha
pelos “sabores e aromas”. Pensávamos de forma parecida, embora
ela fosse mais impulsiva e tivesse uma opinião mais extremista das
coisas do que eu. Ela não era gay, se dizia “bi”, mas fazia mais de
três anos que ela não ficava com um menino, só com meninas,
ainda que eu já tivesse dito isso a ela, a Shelly continuava
afirmando que não era exclusivamente gay.
Ela era o tipo de amiga meio “doidona” que todas nós
gostaríamos de ter, uma pessoa para frente, audaciosa, decidida,
com uma aparência ousada e moderna. Tinha inúmeras tatuagens,
usava vários piercings e trocava a cor dos cabelos com frequência,
mas quando falo de trocar de cores, não digo cores básicas, tipo: de
castanho-claro para preto, ou para acobreado, ela pintava os
cabelos de púrpura, vermelho sangue e azul-bebê. Teve até uma
vez que ela descoloriu totalmente a cabeleira juntamente com as
sobrancelhas, no fundo eu admirava a sua coragem e ousadia.
A Shelly era filha única, vinha de uma família rica, seus pais
financiavam todas as suas viagens e loucuras — bem diferente da
minha realidade, eu nem sabia direito onde meus pais andavam —,
ela era mimada, mas com os pés no chão. Sempre bem-humorada
era difícil tirá-la do sério, tinha um temperamento peculiar e sempre
estava de bem com a vida.
Que eu lembre, só tinha uma coisa que ela odiava muito: era
quando a chamávamos pelo seu nome de batismo, Micheli, ela
detestava, tanto que poucas pessoas sabiam que “Shelly” era seu
apelido, achavam que fosse seu nome.
Eu voltei para o trabalho já ansiosa por voltar para casa e
começar a arrumar um “cantinho” para minha querida amiga.
Nestes dias de espera pela chegada da Shelly, além do meu
trabalho rotineiro, das idas ao mercado para comprar um bom peixe,
aproveitei para fazer um passeio na cidade, conhecer melhor onde
eu estava vivendo, já pensando também em traçar um roteiro para
levar minha amiga, que chegaria em breve.
Já estávamos em meados de fevereiro, o frio não castigava
tanto, as flores começavam a dar um colorido todo especial na
paisagem, até o ânimo era outro, o ar era outro o astral era outro.
Naqueles quase três dias que antecediam a sua chegada,
conheci o Parque de Monte Royal, um lugar lindo, mais de 200
hectares, que abrigavam em seu centro uma montanha de três
picos, espetacular.
Conheci também o Museu McCord de história canadense,
passei horas lá, pois tinha muita interatividade e era barato, apenas
CAN$ 13 a entrada. E o mais intrigante era que este museu ficava
tão próximo à Universidade McGill que era possível acessá-lo por
dentro dela, e obviamente que escolhi essa opção, pois a Allegra
tinha estado ali havia poucos meses, confesso que bateu uma
nostalgia.
Fui também ao centro de convenções Palais des Congrès que
era imponente e também despertava meu interesse, aproveitei
minha disposição em fazer passeios e conheci a Place Jacques
Cartier, uma praça belíssima, que jamais vou esquecer, pois havia
muitas flores, um verdadeiro cartão-postal!
Por último, conheci a Basílica de Notre Dame, um lugar com
fortes energias, dava até uma pontinha de medo. Resumindo, fiz
dos meus três dias de espera um verdadeiro roteiro turístico.
E, depois da espera e muitos passeios, finalmente, havia
chegado o dia, minha querida e fiel amiga estaria aqui a qualquer
momento. Deixei o Marcel de sobreaviso e fiquei aguardando a
ligação da Shelly.
Já tinha avisado também o subchef Gerard para tomar conta de
tudo, pois eu teria que sair mais cedo naquele dia, tudo estava
rigorosamente organizado quando...
— Nina!
— Ligação para mim, Marcel? — indaguei rapidamente.
— Não, tem uma moça aí fora, querendo falar com você.
Ué? Quem poderia ser? Remotamente passou pela minha
cabeça que pudesse ser Allegra, mas logo tratei de tirar a ideia boba
de minha cabeça e ir até o salão e ver de quem se tratava.
Enquanto lavava minhas mãos eu ia perguntando para o Marcel:
— Como é essa moça?
— Não sei, alta, de cabelos pretos, bem-vestida.
— Cabelos pretos? O que mais?
— Vai lá, Nina, tenho que ir até a adega e sou péssimo em
reparar nos outros, além de péssimo fisionomista.
— Tá bem.
Então fui, e quando cheguei e olhei para a porta, vi minha
amiga Shelly, que quando me viu, começou a falar alto de forma
animada:
— Nina minha amiga! Como você está linda! Que saudades!
— Shelly, você veio direto, que surpresa boa! E esse cabelo
escuro?
— Quis fazer uma surpresa e vir aqui direto. Quanto aos meus
cabelos, resolvi escurecê-los, porque estou em outro país, quis
mudar, o frio combina com cabelos escuros.
— Se você diz! — aquela teoria era típica da Shelly.
E entre abraços caímos na gargalhada, assunto é que não
faltaria, com toda certeza. Almoçamos ali no restaurante mesmo,
depois fomos caminhando despreocupadamente pelas ruas de
Montreal, apreciando a bela paisagem que aquela cidade grande e
ao mesmo tempo romântica tinha a nos oferecer, caminhamos até
chegar ao meu apartamento.
Logo a Shelly se acomodou, iríamos dividir o mesmo quarto e o
mesmo teto por três meses, a companhia dela me fazia muito bem.
Naquele dia rimos muito, conversamos muito sobre como era
viver aqui no Canadá, sobre a vaga do seu curso, sobre namoros,
planos futuros, sobre saudades do Brasil, sobre a Clara, enfim,
sobre assuntos dos mais variados. Até que a Shelly resolveu trazer
à tona o assunto que me deixava desconcertada: a Allegra.
— Nina, me fala sobre a médica, quero ver o tal livro dela.
— Ai, Shelly, só de você falar nela já me dá um friozinho na
barriga!
Peguei o livro que estava ao lado da cama e dei para Shelly.
Ela o pegou e atenta folheou até o final, parando na foto da
contracapa.
— Hum, essa é ela?
— Ahã.
— Nossa, que gata, hein?!
Então voltou a folheá-lo e desta vez se deteve na dedicatória.
— E esse “garrancho” aqui é o que ela escreveu?
— É, o que você achou?
A Shelly repetiu em voz alta a frase enigmática escrita pela
médica e logo saiu com suas considerações.
— “O dia está à sua frente, esperando para ser o que você
quiser”, acho que ela quis dizer que ela estava na sua frente
esperando você fazer algo.
— Ah! Para com isso, sério!
— Não entendi, não sei. A cachaça que você deu a ela deve tê-
la inspirado. Quero saber para quando que você marcou?
— Marquei o quê? — perguntei sem entender nada.
— Uma consulta no cardiologista, para fazer um check-up, ou
melhor, na sua cardiologista!
— Não marquei, na verdade nem pensei nisso... Deveria? —
fiquei pensativa.
— Hello! Lógico, Nina! O que você tem na cabeça? Demorou!
Vamos marcar imediatamente, onde tem um telefone aqui?
Fiquei meio confusa, mas acabei concordando, como eu não
tinha pensado nisso?
— Só lá fora, o telefone público aqui da frente. Será que devo?
Ela então olhou para mim com seriedade e me questionou.
— Me responde com sinceridade? Você quer vê-la novamente,
tem vontade de tentar ou não?
— Sim, muita, penso nela todos os dias!
— Então vamos achar o número do consultório dela e ligar já!
Não deve ser nada difícil encontrar o telefone do seu consultório, já
que ela é tão requisitada.
Imediatamente a Shelly sentou-se na frente do computador e
começou a pesquisar no Google.
— Vamos ver... Qual o nome do Hospital em que ela trabalha?
— Mount Sinai Hospital — respondi prontamente.
— Aqui! Deve ser este!
— Não! Esse é do Hospital, não do consultório.
— Podemos ligar para lá e perguntar. Obviamente que eles
saberão dar alguma informação, o que acha?
— Acho ótimo, vamos.
Deixamos o computador ligado e descemos apressadas,
atravessamos a rua e entramos na cabine telefônica. Respirei fundo
e liguei, logo atendeu uma secretária eletrônica dando mil opções de
departamentos e setores, então esperei até o final da gravação para
ser atendida por uma pessoa de “carne e osso”.
— Mount Sinai Hospital, boa tarde, em que posso ajudar?
— Boa tarde, eu gostaria de marcar uma consulta com a dra.
Allegra Cavazza.
— Não é aqui, senhora, você tem que ligar pro Mount Sinai
Medical Center.
— Ah, e qual é o número de lá?
— Vou transferir diretamente daqui, ok? É só aguardar na linha.
O atendente estava transferindo a ligação e por um instante
pensei em desligar o telefone.
— Mount Sinai Medical Center, boa tarde.
— Oi, eu queria marcar uma consulta com a dra. Allegra
Cavazza.
— Um momento, por favor, vou transferir a sua ligação.
Tapei o fone com a mão e preocupada falei para Shelly que me
olhava com atenção.
— Shelly, eles vão passar a ligação para ela, o que eu vou
dizer? Acho que vou desligar!
— Parece louca, Nina, claro que eles não vão passar a ligação
para ela, do jeito que ela parece ser ocupada não estará atendendo
ligações no hospital dando uma de telefonista.
— É... Acho que não. — concordei.
Então fui interrompida, com a voz de uma moça ao telefone:
— Consultório de Diagnóstico em Cardiologia dra. Allegra
Cavazza, boa tarde, com quem eu falo?
— Oi, meu nome é Nina de Amaral Dias e eu gostaria de
marcar uma consulta com a dra. Allegra Cavazza.
— Pois não, você já é paciente dela?
— Não...
— Qual sua idade?
— 28.
— O seu caso é urgente?
— Não... Quer dizer... Não exatamente, é uma consulta
preventiva. — remendei.
— Ela só tem horário livre para consultas para daqui a 60 dias,
posso marcar?
— Sessenta dias?! — falei espantada, enquanto a Shelly me
olhava incrédula.
— Sim, posso marcar?
— Sim, pode, e qual o valor da consulta?
— CAN$ 380.
— Uau! O valor do aluguel do meu apartamento. — falei sem
pensar — Moça, com todo respeito, posso fazer-lhe uma pergunta?
— Sim.
— Se meu caso fosse urgente, como eu faria? Teria que
aguardar “sem morrer” por dois meses?
— Não, senhora, nós a encaminharíamos urgentemente para
algum profissional da equipe da dra. Allegra Cavazza, ele então
prestaria um primeiro atendimento e daria todas as instruções de
como proceder até que fosse atendida pela própria dra. Cavazza. É
o caso?
— Não, não é... Ela está aí no consultório? — minha
curiosidade falou mais alto.
— Não passamos ligações, só recados.
— Desculpe, mas eu só queria saber se ela está aí no
consultório.
— Não, senhora, ela está em Vancouver, retorna amanhã. A
sua consulta ficou agendada para o dia 16 de abril, quinta-feira, às
14h, com a dra. Allegra Cavazza. Por favor, anote o endereço:
— Sim, pode falar.
— Joseph e Wolf Lebovic Saúde Complexo — 600 University
Avenue.
— Certo. Anotado.
— Posso ajudá-la em algo mais?
— Não, obrigada, até daqui a 60 dias — falei num tom irônico.
— Até logo, senhora Nina.
Desliguei o telefone sem crer no tempo de espera para a
consulta, mas feliz, pelo menos eu estava fazendo algo para as
coisas acontecerem, graças ao incentivo da minha amiga Shelly,
que já chegou revolucionando.
— Ouvi bem, Nina? 60 dias?
— É, ouviu... Eu tinha que ter marcado uma consulta com ela
antes mesmo de conhecê-la, aí já estaria perto da data dela me
atender... — falei brincando — e nem adiantaria também eu dizer
que era urgente, pois ela está viajando, outro médico me atenderia...
— Que mulher complicada essa que você foi arranjar, Nina.
Saímos rindo da cabine e já aproveitamos para irmos fazer a
matrícula da Shelly, no curso de “modelagem” que ela tanto lutou
para conseguir a vaga. Também nos matriculamos em um curso de
francês, para aprimorar a língua-mãe de Montreal.
Chegamos ao meu apartamento já era noite, e após comermos
uma macarronada, feita pela Shelly, deitamos na cama, afinal, eu só
tinha aquela cama, que por sorte era de casal.
O frio já começava a dar uma trégua, os edredons já estavam
guardados, pois a temperatura estava mais agradável. Apagamos
as luzes e ficamos falando das diferenças dos costumes daqui, em
comparação ao Brasil, era um papo relativamente sério, quando a
Shelly saiu com aquela pergunta...
— Nina, você está há cinco meses sem “ficar” com alguém?
— O quê?
— Você ouviu! A Clara foi a última? Nem beijo, nem sexo,
nadinha?
— É... Não tive tempo e nem vontade para pensar nisso — falei
com certa vergonha.
— Não teve vontade nem tempo?
— Não...
— Mentira, Nina, e a médica?
— Ah, sim. Com a excessão dela, não tive mais vontade
nenhuma.
— Que engraçado isso, você veio para cá e está “virando
freira”, gostava de mulheres bem mais jovens e agora tá vidrada na
“coroa”, estou preocupada, Nina!
— Você quer que eu ache graça disso? Não estou “virando
freira”, só que a mudança de vida, de clima e de trabalho tomaram
meu tempo... E também procurei nem pensar em relacionamento
depois de tudo que sofri com a Clara... Quanto a minha “coroa”, ela
é diferente, tem tudo que eu sempre procurei em uma mulher e não
aparenta ter 39 anos, aliás, ela tem muito mais do que eu imaginei.
— disse radiante.
— É mesmo? Vou dar um jeito de acabar com teu celibato! Já
em relação à “coroa”, só posso te apoiar, afinal, ela é a única mulher
nesse mundo que tem tudo e muito mais que você sempre sonhou.
Agora, não é por isso que você tem que ficar virgem de novo.
Vamos acabar com isso já!
Olhei para Shelly, naquela penumbra do quarto, meio assustada
com aquela afirmativa.
— Shelly, você está dando em cima de mim? Você por acaso
está pretendendo algo?
Ela deu uma gargalhada e foi logo falando:
— Não, boba, além de você ser minha amiga, quase irmã, você
não faz meu tipo, embora seja linda, tenha esses olhos verdes
lindíssimos, mas você sabe, Nina, tenho uma forte inclinação por
loiras e seus cabelos escuros não me atraem. Estou pensando em
te ajudar. Onde tem um lugar legal para irmos amanhã à noite? Uma
balada gay?
— Ah, tá, ufa... Me assustei! Tem o Lupping, é perto daqui,
nunca fui, mas li algo a respeito e parece legal — eu disse, aliviada.
— Amiga, o Lupping que nos aguarde amanhã! Boa noite — e
imediatamente ela virou-se para o lado tentando dormir.
— Boa noite. — achei graça.
Também virei para o lado e dormimos “feito pedras”.
Na manhã seguinte acordamos cedo, embora eu tivesse que
sair bem antes da Shelly, ainda deu tempo de trocarmos algumas
palavras. Ela começaria o seu curso somente às 8h, enquanto eu
saía de casa religiosamente às 4h45 todos os dias, com a exceção
dos domingos, em que eu não trabalhava.
Durante o dia, eu e a Shelly não nos falamos, só nos
encontramos às 17h30 no apartamento. Providenciei a cópia das
chaves para que ela pudesse ter autonomia em ir e vir, dessa forma,
eu também ficaria mais livre em meus compromissos. Ao entrarmos
no apartamento, ela foi correndo tomar uma ducha, enquanto eu
fiquei na internet olhando meus e-mails.
A Shelly cantava o tempo inteiro, no início até deu vontade de
rir, pois era escandalosamente desafinada, mas depois me
acostumei com aquilo e se ela não cantasse eu acharia que ela
havia se afogado. Enquanto ouvia o vasto repertório de Shelly, vi
que havia chegado um e-mail da Clara, resolvi lê-lo.
Nina, minha pequena.
Sinto tanto sua falta, queria estar com você agora, me
arrependo tanto do que fiz e peço desculpas mais uma vez. Prometo
que nunca mais farei algo para te magoar, quero provar o meu amor
por você, queria estar agora aí do seu lado, se você me der uma
chance vou até você (não estou brincando)... Posso?
Me dá essa chance?
Clarinha
— Como assim?! — falei alto, não acreditando no que eu
acabara de ler.
Lá do banheiro a Shelly escutou o que eu havia dito algo e
perguntou:
— Falou comigo, Nina? Já estou indo aí!
— Não, só estava pensando alto.
Então a Shelly apareceu envolta em três toalhas de rosto, uma
amarrada na cintura, outra no peito e outra nos cabelos.
— Shelly? Por que você não usa toalhas de banho? — achei
aquilo muito bizarro.
— Ah, não, Nina, você também? Nós estamos morando juntas
há um dia e meio e não podemos estremecer nossa relação logo no
começo. — disse ela rindo.
— Hã?
— Estou brincando, boba. O que você estava falando antes?
— É que recebi um e-mail da Clara, dá uma olhada — virei a
tela do computador para que a Shelly visualizasse melhor o e-mail.
A Shelly começou a ler e pela sua fisionomia estava reprovando
cada palavra escrita ali, então ela se manifestou sem nenhum
constrangimento.
— Bom, primeiro que você não é tão “pequena” assim, segundo
que o que ela fez não tem perdão e terceiro que você seria muito
idiota se a deixasse vir.
— É, concordo com você, tenho 1,62cm poxa, portanto estou
na média — falei brincando, referindo-me a ela ter me chamado de
“pequena” —, e ela ter ficado com a Letícia, nossa “amiga”,
enquanto estava comigo não tem perdão, e também não gosto mais
dela, agora tenho outra mulher em minha vida, não aquele
“franguinho” da Clara!
— Só para ter certeza, que idade tem a Clara?
— 26... Por quê?
— Hum... 26, franguinho? Eu tenho 26, lembra? Está me
chamando de franguinho também, só porque você está no ápice dos
seus 28? — disse, ironizando a pouca diferença de idade entre a
gente.
Rimos muito de tudo aquilo e só paramos quando a Shelly
quase me arrastou para debaixo do chuveiro, afinal, tínhamos que ir
ao Lupping.
Enquanto eu tomava banho ouvia a Shelly cantar lá no quarto,
fiquei refletindo e vendo o quanto era bom ter uma companhia e
realmente o quanto fazia falta uma namorada, cheguei a pensar que
a Shelly tinha quase razão ao dizer que eu estava “virando freira”.
A Shelly estava com pressa para irmos logo, então nos
arrumamos e fomos ao Lupping. Chegando lá vimos aquela
multidão com um estilo bem “alternativo”. Mulheres bonitas, bem-
vestidas, perfumadas e cheias de personalidade. A Shelly sem fazer
média já foi entrando, me puxando pelo braço e de cara pediu uma
cerveja, já eu preferi ficar no Martini. Bebemos um pouco, dançamos
bastante e percebi que a Shelly “estava de olho” numa garota ruiva,
toda tatuada. Logo vi que eu perderia minha companhia muito em
breve, e não deu outra, não foram necessários mais de 10 minutos
para perder a Shelly de vista, ela já tinha encontrado alguém aquela
noite. Já eu, fiquei sentada no bar, apreciando meu Martini e
observando aquele mundo todo na minha volta, quando senti
alguém segurar meu braço.
— Oi.
Olhei para aquela menina, linda, com os olhos azuis, pele bem
branca, cabelos lisos e pretos, era o estilo exato que me atraía, quer
dizer, antes de conhecer a Allegra e mudar meus conceitos e
minhas preferências físicas. Retribuí com um sorriso e respondi
imediatamente:
— Olá, tudo bem com você?
— Melhor agora — respondeu ela, deixando claro suas
intenções e olhando profundamente em meus olhos. E já que ela
estava sendo tão direta, resolvi que naquela noite eu iria aproveitar.
— Qual seu nome?
— Amy, e o seu?
— Nina.
— Nina? De onde você é?
— Sou brasileira, mas moro aqui em Montreal, e você?
Também não é daqui, não é? — percebi pelo seu sotaque.
— Sou inglesa, de Londres, estou aqui há um mês, estudando e
passando um tempo com alguns amigos, e você?
— Estou morando aqui há cinco meses... Qual sua idade?
— 21, e a sua?
Vinte e um?! Era tudo o que eu queria... Antigamente! Mas
agora eu havia mudado meus conceitos, e se a Clara era um
“frango” a inglesa era um “feto”!
— Tenho 28 — respondi, me achando velha demais.
— Hum... Adoro mulheres maduras. — disse em tom
insinuante.
Ai meu Deus! Eu estava sem graça, a situação estava ficando
delicada, eu não sabia o que dizer a ela.
— Nina, você é tão bonita, tem uma boca linda, lábios bem
contornados, estou louca para beijá-la. — disse maliciosamente.
Antes que eu pudesse responder qualquer coisa senti seus
lábios tocarem os meus e suas mãos me acariciarem.
Definitivamente eu estava precisando daquilo!
Entre beijos e bebidas, posso dizer que a noite passou
depressa e somente ao amanhecer reencontrei a Shelly, meio
bêbada e totalmente descabelada. Ela estava abraçada na garota
tatuada e eu abraçada no meu “feto inglês”.
Despedimos-nos das respectivas e fomos para casa. Mal nos
falamos no caminho, só via a Shelly me olhando e balançando a
cabeça com um ar de aprovação e com um sorrisinho maroto no
canto da boca. Nem preciso dizer que ao chegarmos, nos atiramos
na cama e dormimos quase o domingo inteiro. Só acordei por volta
das 15h, quando levantei em silêncio, lavei meu rosto, olhei-me no
espelho e sorri, estava feliz, me senti viva.
Enquanto escovava meus dentes ouvi a Shelly gritar alto lá do
quarto, deixando claro que tinha acordado.
— Perdeu o “cabaço”, Nina?
Ela rolava de rir, e eu, que inicialmente fiquei irritada com sua
grosseria, não me contive e acabei rindo junto.
— Sim! Perdi!
— Ainda lembrava como era?
Então entrei na brincadeira.
— No início foi difícil lembrar, Shelly, mas depois eu lembrei
direitinho.
— Shelly! Você sabe que dia é hoje? — perguntei a ela com
seriedade.
— Ué, domingo, não é?
— Sim!
— E daí?
— Hoje faltam 59 dias para minha consulta!
Senti um travesseiro voando na minha cara e a voz da Shelly
dizendo:
— Interna que é grave!
Passamos o resto do dia falando besteiras, comendo besteiras
e relembrando da nossa noite bem-sucedida. Ela falou sobre
Amélia, a ruiva tatuada, relatou minuciosamente tudo da garota e a
noite que tiveram juntas. A Shelly era detalhista e contava com tanta
riqueza de detalhes que às vezes eu ficava sem graça só de ouvir. E
eu, depois de ouvir o relatório completo da Shelly, falei sobre a
minha noite com a Amy, mas bem mais superficialmente.
A Shelly era uma casa cheia, uma pessoa feliz, otimista, me
fazia bem, e eu precisava aprender muito com ela. De fato já estava
aprendendo, eu estava mudando, ela conseguiu que eu saísse à
noite, que eu me matriculasse no curso de francês, me divertisse
mais. A Shelly estava transformando minha vida, para muito melhor.
Foram dois meses de muito divertimento. Conhecemos muitos
lugares, fomos ao Lupping várias e várias vezes, ela teve caso com
umas dez meninas diferentes, enquanto eu continuava saindo com a
inglesa. O curso da Shelly já estava se encaminhando para o final e
meu trabalho indo cada dia melhor, então, o que eu iria querer mais
da vida? Realmente foi um período muito bom.
Capítulo 3

Revirava-me na cama quase o tempo todo, olhava o relógio de


dois em dois minutos, cada vez que tentava relaxar o frio na barriga
me despertava e me fazia iniciar o ciclo novamente: virava para o
lado e olhava o relógio, virava para o lado e olhava o relógio
novamente. As horas não passavam! Esse ciclo só foi interrompido
quando a Shelly sentou na cama acendeu a luz e disse:
— Nina? Para com isso, desse jeito vou ter que ir dormir no
sofá!
— Desculpe, mas não consigo evitar, estou muito ansiosa.
— Escute, Nina, olha aqui, está tudo muito bem organizado,
estamos em função dessa viagem para essa consulta há dois
meses.
— Eu sei, eu sei, mas estou com um aperto no peito.
— Por quê? Você conseguiu uma semana de folga do
restaurante, o Gerard sabe preparar direitinho aqueles teus pratos
todos, então no restaurante tudo está organizado, certo?
— Certo.
— Daqui a pouco pegamos o avião para Toronto. Vamos ficar
num hotel maneiríssimo, conseguimos um preço superbom nas
diárias e ainda teremos praticamente uma semana inteira para
conhecer a cidade, passear, ir a baladas e aproveitar, isso não é
bom?
— Sim, é excelente.
— E o principal, amanhã você vai finalmente ter a consulta e
rever a tua médica, não é perfeito?
— Essa parte é que me deixa nesse estado, não sei se estou
pronta para vê-la. Estou apavorada!
— Que é isso? Vai desistir agora?
— Não, claro que não... Shelly, obrigada por ir comigo, sei que
você teve dificuldades em remanejar essa “uma semana” que vai
perder de curso.
— Já te falei que isso está ajeitado, ficarei uma semana a mais
aqui em Montreal e no final recupero esses dias, pronto! Na verdade
não é nenhum sacrifício ficar aqui uma semana a mais do que o
tempo programado, eu estou adorando esse lugar.
— Eu sei, racionalmente sei que está tudo milimetricamente
calculado, mas meu coração está me matando.
— Não se preocupe, amanhã ele tem uma consulta na
cardiologista. — ela ria e eu ficava cada vez mais tensa.
— Ai, meu Deus! Prefiro não pensar nisso agora.
— Ótimo, pois são 3h da madrugada e temos que estar no
aeroporto às 9h, então ainda quero dormir mais um pouco.
— Tá bem, vou tentar dormir também.
— Boa noite.
— Boa noite...
A Shelly apagou a luz e logo começou roncar, já eu, fiquei ali,
olhando para o teto e para o relógio, mas procurei não me mexer
muito para não acordar a Shelly. A última vez que havia olhado as
horas eram 5h, suponho que eu tenha dormido umas duas horas, o
que já me deu um ânimo.
Levantamos, fui tomar uma ducha enquanto a Shelly preparava
dois sanduíches para tomarmos com café. Logo estávamos prontas,
malas feitas, banho tomado, barriga cheia, passagens na mão,
dinheiro e cartão de crédito, tudo estava em ordem. Chamamos um
táxi e fomos até o Aeroporto Internacional Pierre Elliott Trudeau.
Minha tensão continuou até a decolagem, só consegui me
distrair um pouco quando estávamos lá no alto, naquele dia tão
lindo, em meio àquela imensidão azul. A paisagem me acalmou, as
nuvens gigantes, parecendo imensos algodões, fizeram sentir-me
em paz, consegui conversar bastante com a Shelly sem “lembrar” do
motivo exato pelo qual estávamos viajando. Minha tranquilidade só
foi quebrada quando o comandante falou:
— Senhores passageiros, bom dia, aqui é o Comandante
Jonathan Smith, o pouso foi autorizado pela torre, dentro de poucos
instantes estaremos aterrisando no Aeroporto Internacional Toronto
Pearson, na cidade de Mississauga, por favor, permaneçam todos
sentados até que a aeronave esteja totalmente parada em solo.
Tenham todos um excelente dia e obrigado.
Confesso que naquele momento me arrependi de toda aquela
loucura. A Shelly imediatamente colocou o cinto de segurança e
com uma cara de desconfiada me perguntou.
— Que cidade é essa em que vamos pousar? Não estávamos
indo para Toronto?
— É uma cidade vizinha, fica a uns 30km do centro de Toronto,
fica tranquila, é assim mesmo.
— Ah, entendi, e que história é essa de me pedir para ficar
tranquila, bem quem, “sra. Neura” em pessoa.
— Você não existe, Shelly, obrigada por estar aqui do meu lado,
não tinha tido ainda a oportunidade de agradecer.
— Para com isso, parece despedida, não vamos morrer!
Rimos então, e em poucos minutos já estávamos em solo firme,
esperando por nossas bagagens, para então irmos diretamente ao
Radisson Hotel. Este hotel era excelente, com todas as mordomias
que eu podia imaginar, ele só não era muito perto do Mount Sinai
Medical Center, mas analisando a promoção dos valores das diárias
compensava a distância.
Ao chegarmos ao hotel fomos conduzidas até o nosso quarto,
801, era bonito, no 8° andar, tinha uma vista belíssima e ficamos
muito bem acomodadas ali.
Resolvemos então aproveitar o que aquele hotel tinha a nos
oferecer. A piscina aquecida e o SPA fizeram com que nos
divertíssemos muito, a tarde toda, e com isso eu nem tive tempo
para ficar muito nervosa com a consulta do dia seguinte.
À tardinha, antes de subirmos para o nosso quarto ainda deu
tempo de parar numa das lojas no saguão do hotel, era uma
butique, de roupas e acessórios místicos, roupas da Índia e
incensos, era muito legal, tinha um astral ótimo, a dona da loja “lia a
mão”, juro que fiquei com uma pontinha de vontade em consultar,
mas como não acreditava nisso mesmo, deixei a ideia passar.
Inacreditavelmente, após o jantar, quando caímos na cama,
logo adormeci. Provavelmente a viagem, a tensão e muito tempo na
piscina me esgotaram fisicamente, pois consegui dormir a noite
inteira como uma “pedra”, só acordei às 10h da manhã com a Shelly
me perguntando se eu queria subir para tomar café.
— Acho que vou sim — respondi ainda sonolenta.
— Então se apressa, porque o café é só até as 10h30!
“Pulei da cama”, lavei meu rosto, escovei meus dentes e
coloquei uma roupa bem confortável, estava descansada, não
lembrava quanto tempo fazia que eu não dormir até aquela hora.
Às 10h20, já estávamos sentadas, saboreando um café
delicioso no terraço do hotel. O dia estava lindo, céu claro, sem
vento, estava razoavelmente quente, isso fez com que eu chegasse
à conclusão de que aquela semana de folga estava me fazendo
muito bem, pois por mais que adorasse meu trabalho, ele era
cansativo e me esgotava fisicamente. Já para Shelly, aquilo tudo era
uma aventura, um complemento nas suas “férias”, ela aproveitava
tudo e cada minuto.
Depois de tomarmos aquele café da manhã maravilhoso,
descemos para o nosso quarto e ao entrar pela porta senti o
desespero tomando conta de mim. Agora estava realmente
chegando a hora, iniciava a contagem regressiva, era o tempo de
tomar um bom banho, me arrumar e pegar um táxi para ir até o
consultório da “minha” cardiologista, sim, aquilo ao mesmo tempo
em que me fascinava me deixava em pânico.
Tentei raciocinar e ponderar a minha trajetória até ali, o que
havia me levado a me “atirar de cabeça” naquela loucura toda.
Fiquei imaginando mil coisas que ela poderia pensar, o que eu
poderia dizer, o papel de boba que talvez eu estivesse fazendo, sei
lá, a minha cabeça girava em rotação máxima... Outra dúvida que
me atordoava era saber se a Shelly deveria ou não entrar comigo na
sala do consultório dela. Ao mesmo tempo em que eu queria estar a
sós com minha Allegra, eu queria que a Shelly estivesse do meu
lado para observar tudo que ela fazia, pois certamente eu não
lembraria e não perceberia absolutamente nada. Então, analisando
bem, tive certeza de que a Shelly precisava, sim, entrar comigo na
consulta, e aquilo me deixou um pouco — bem pouquinho — mais
calma.

Tomei banho, coloquei uma roupa nova, meu perfume francês,


fiz escova nos cabelos, escovei meus dentes, passei fio dental e
passei flúor, tudo para me apresentar da melhor forma possível para
minha amada. Esse ritual levou quase uma hora, saí do banheiro e
fiquei parada olhando para Shelly, que a essas alturas estava
cansada de estar pronta me esperando.
— Nina! Você está linda! Estou impressionada, que
transformação! Se você tivesse clareado o cabelo, certamente nós
perderíamos o horário da tua consulta, pois eu estaria te “pegando”
agora!
— Para com isso, Shelly, não me faz rir, estou nervosa, preciso
saber se estou bem assim...
— Bem? Você está muito bem!
— Shelly, eu quero que você entre comigo na consulta!
— Por quê?
— Preciso de seu apoio emocional, quero que você observe
tudo, cada detalhe, para depois me dizer suas conclusões, além do
que, com certeza absoluta, eu irei me sentir mais segura sabendo
que você estará por perto.
— Tá bem, pode deixar comigo, serei mais eficiente que
Sherlock Holmes e mais discreta que a “Sandy”!
— Perfeito!
— Vamos?
Não conseguia falar, estava paralisada.
— Nina? Vamos?
— Desculpe, mas estou “paralisada”, não consigo me mover!
— Nina, você confia em mim?
Balancei a cabeça dizendo que sim.
— Me imita, tá?
E de repente ela começou a gritar muito alto feito uma louca,
me assustei com aquilo e ela olhou para mim e falou:
— Vamos, Nina, grite comigo! Terapia do grito! Libera a energia
que está te exorcizando!
Respirei fundo e soltei um grito, gritei tão alto que a Shelly
arregalou os olhos e ficou me olhando incrédula.
— Ufa! Agora sim estou pronta!
— Muito bem! Viu só? Agora vamos?
— Sim!
Então fechei a porta do quarto e fomos até o táxi que nos
levaria diretamente à dra. Allegra Cavazza!
Exatamente às 13h48 entramos na recepção do consultório
dela, era espetacular, coisa de outro mundo. O piso branco brilhava
mais que espelho, as paredes alternavam cores, algumas brancas e
outras vermelhas, todas com quadros lindíssimos de autores
renomados que preenchiam e decoravam aquela grande sala, três
folhagens com um verde intenso davam vida àquele local; havia
também dois grandes sofás de veludo branco e várias poltronas de
acrílico, com almofadas vermelhas, tudo isso no 21° andar, onde
através de uma imensa parede de vidro tínhamos uma visão
privilegiada que nos presenteava com a beleza daquela cidade;
internamente, os vários tipos de iluminação davam requinte e
aconchego para quem lá chegava, e do outro lado, em outra parede
lateral havia uma grande televisão pendurada, fina como um papel,
que apresentava continuamente imagens e vídeos sobre “o
coração”, além de palestras ministradas por ela, dra. Allegra. Aquele
conjunto de fatores fazia com que ficássemos extasiadas com o
vislumbre daquele lugar.
Eu e a Shelly estávamos boquiabertas com todo aquele luxo, só
que eu não tinha certeza se meu pobre coraçãozinho iria aguentar,
pois quando fixei meus olhos na TV gigante vi a figura daquela
mulher, concedendo um discurso todo em italiano para uma
multidão, ali sim, tive noção do tamanho da loucura que eu estava
fazendo, certamente aquilo tudo era uma grande insanidade, uma
grande bobagem, eu estava me sentindo na beira de um penhasco
de alturas inimagináveis prestes a me atirar de cabeça, aquilo era
com certeza uma nova forma de cometer harakiri!
— Nina? É ela ali na TV?!
— É... — respondi baixinho.
A Shelly fez uma cara de que estava impressionada.
— Eu te falei que ela “quase” dava medo.
— Quase? Até eu senti o “peso” agora! Você é corajosa, amiga!
— Ai, Shelly, pelo amor de Deus, não me deixa mais nervosa
do que estou, porque senão vou desistir de tudo e sair correndo
daqui!
— Para com isso, vamos ali no balcão falar com a “secreta”.
Parei na frente daquela moça que estava de terninho vermelho,
usando um head set, e fiquei estagnada, juro que não tinha ideia
sobre o que devia falar e quando, eu estava totalmente “fora do ar” e
com muita dor de barriga.
— Srta. Nina?
— Sim.
— Por favor, preencha esse formulário com seus dados e
depois peço que a senhorita aguarde até ser chamada, a doutora
deve estar chegando e logo a atenderá.
Peguei a caneta, mas minhas mãos tremiam, as letras naquele
formulário pareciam estar embaralhadas, eu nunca havia sentido
isso, eu realmente estava mal.
— Não consigo preencher, Shelly, acho que vou chorar — falei
baixinho no ouvido da Shelly, cuidando para que a secretária não
percebesse.
— Calma, deixa que eu preencho para você — disse ela me
confortando e se solidarizando com a situação.
Ela preencheu com cuidado e ao mesmo tempo me acalmando,
devolveu a ficha para a secretária e nos sentamos naquele sofá
imenso aguardando o momento de “ir para a forca”. Eu tremia feito
“vara verde” e acho que era perceptível.
De repente, a porta se abre e a dra. Allegra entra, eu e a Shelly
ficamos paralisadas, olhando, ela estava de óculos escuros, com
uma bolsa enorme branca, uma calça social preta de corte reto com
riscas finas, camisa social branca bastante “acinturada” em seu
corpo atlético e um sapato preto bico fino que tinha um salto tão alto
que era quase uma arma. Ela passou rapidamente pela recepção,
com passadas largas, sequer olhou para os lados, simplesmente
entrou numa porta que dava acesso à parte interna do consultório.
Eu diria que foi quase uma miragem que me fez ficar congelada. O
perfume dela deixou um rastro, aquele mesmo perfume que eu
havia sentido em minhas mãos meses atrás, e que definitivamente
provava que eu havia conseguido memorizá-lo!
Eu e a Shelly nos olhamos e ela imediatamente falou:
— Nina! Você viu aquela bolsa?
Só balancei a cabeça indicando que sim, porque naquela hora
eu estava ficando enjoada e realmente não estava passando bem.
— Era Louis Vuitton, deve ter custado um “rim” da doutora! E a
calça e a camisa? Conheço uma peça Versace de longe, aquelas
roupas são originais!
— Como você sabe de tudo isso se você a viu em menos de 3
segundos?
— Esqueceu que faço modelagem e tenho um olhar de raio-x
para moda!
— Ainda bem que você vai entrar comigo, se em apenas 3
segundos você descobriu tudo isso, imagino durante todo tempo da
consulta, você vai descobrir até em que lugar ela compra suas
calcinhas!
Mas a Shelly estava pensativa e parecia nem ter ouvido o que
eu falei.
— Ei, o que foi?
— Não consegui ver que marca era o sapato dela! — ela disse,
arrasada.
— Você está me deixando mal agora, estou me sentindo um
“chinelo”, ela vestida dos pés à cabeça com essas marcas famosas,
deve ter gasto CAN$ 20 mil com aquelas roupas, e eu com essa
bolsa falsificada de R$ 50,00 que comprei na “25 de Março”!
Então, outras pessoas começaram a chegar e fazer-nos
companhia na recepção.
— Nina, você está linda, eu estou prestando atenção nas
roupas dela, porque de certa forma ela é um “laboratório” pra mim,
quem sabe não apresento um trabalho de estudos baseado na tua
médica?
— Tudo bem, Shelly... E qual foi a impressão que você teve
dela?
— Olha, Nina... Sem contar que ela se veste de forma divina e
é tão chique que chega a dar “ódio”, achei ela um desbunde! Você
arrasou na escolha, hein, amiga?!
Então a secretária de vermelho abriu a porta que dava acesso
ao interior do consultório e olhando para mim disse:
— Srta. Nina, por favor, me acompanhe.
Naquele exato momento tive a sensação de “quase morte”,
minha visão ficou turva, mas levantei-me, não sei com que forças,
olhei para Shelly que rapidamente se levantou e me acompanhou ao
encontro da recepcionista, já a recepcionista, por sua vez, se dirigiu
a Shelly dizendo:
— Por favor, senhora, somente a paciente pode entrar, a
senhora tem de aguardar aqui.
Pronto! O fim do mundo havia chegado sem aviso prévio! Meu
queixo começou a tremer e eu juro que não consegui me controlar,
ele se movia sem minha permissão, havia criado vida própria!
Naquela hora senti a Shelly segurar firme meu braço, olhou dentro
dos meus olhos de forma tão séria que eu quase não a reconheci.
— Nina, você é muito mais forte do que pensa, vai lá e
aproveita cada segundo desse momento, faz valer a pena! — disse
bem baixinho para a recepcionista não escutar.
Eu apenas balancei a cabeça com um gesto que concordava e
fui acompanhando a secretária por aquele corredor bem iluminado,
ela me conduziu até uma porta branca imensa onde parou, a porta
exibia letras em aço escovado escrito “dra. Allegra Cavazza”,
naquele instante desejei estar ali, a vontade de revê-la superou meu
medo, então senti quase que como um sonho sendo realizado.
Ao abrir a porta imediatamente senti o perfume dela, olhei para
dentro, mas não a vi, a simpática secretária me acompanhou até
uma confortável poltrona branca que estava colocada na frente
daquela enorme mesa de mármore da mesma cor e de costas para
a porta em eu havia entrado.
— Por favor, sente-se, a dra. Allegra já irá atendê-la.
Sentei-me e com um movimento de cabeça agradeci à moça,
que rapidamente se retirou da sala.
Comecei a observar tudo que estava em minha volta, tudo era
bonito, sofisticado, aquele perfume me embriagava, a vista
maravilhosa através do janelão estrategicamente colocado atrás da
mesa dela me fazia sentir-me quase no céu, tudo era perfeito. Olhei
para o lado direito e vi inúmeros diplomas com molduras também
em aço escovado pendurados na parede. Em cima de sua mesa
havia alguns papéis, uma caneta Mont Blanc dourada, uma chave
de carro que mais parecia um “minicontrole remoto slim” e um
aparelho sofisticado de celular, que obviamente era dela e que eu
obviamente adoraria ter o “código” que o fizesse tocar, e estava tão
fascinada com todas aquelas informações que nem percebi que a
porta atrás de mim se abriu e a dra. Allegra Cavazza entrou.
— Boa tarde — disse ela, movendo-se em minha direção.
Ouvi aquela voz firme de tom suave, era a voz dela, da minha
amada, aquela voz inconfundível ecoava em meus ouvidos fazendo
o meu coração disparar, o som vinha de trás, mas antes mesmo que
eu pudesse me virar ela já estava sentando-se à minha frente, então
eu respondi com um tom meio encabulado:
— Oi.
Ela olhou para o meu prontuário, que estava em suas mãos, e
olhou para mim.
— Você é Nina?
Olhou-me por um instante mais demorado, quase apertou os
olhos, notoriamente puxando de sua memória a minha fisionomia, e
disse:
— Eu conheço você! Você é a brasileira que me fez
experimentar caipirinha!
Ela havia me reconhecido! Além de escandalosamente linda,
também tinha boa memória!
Qual seria seu defeito? — pensei. Foi quando “revi” aquela
aliança na sua mão esquerda, eu acabara de achar a resposta para
minha pergunta, restava então responder a dela.
— Sim, exatamente.
Então ela abriu um sorriso enorme, encostou-se na sua poltrona
de couro branco de uma forma mais despojada, olhou para mim
com aquele olhar que só ela tinha e soltou aquela pergunta afiada.
— E o que a traz aqui, Nina? Afinal, Montreal tem excelentes
cardiologistas!
Ela era muito esperta, estava me testando, naquele momento
percebi que ela tinha total noção do poder que ela exercia sobre as
pessoas, ela sabia jogar, brincava com suas palavras. Eu, quase
indefesa, tentei me concentrar e manter-me firme, e falei seriamente
a ela.
— Na verdade estou aqui em Toronto a passeio, resolvi fazer
check-up com você porque gostei de sua palestra... E para ser
sincera é a primeira vez que resolvo cuidar de minha saúde.
— Certamente que sim, é bom planejar passeios com bastante
antecedência, sempre conseguimos aproveitar mais.
Aí foi que percebi a mancada que eu tinha dado, era lógico que
ela sabia quanto tempo se levava para marcar uma consulta com
ela, portanto sabia direitinho que eu havia “premeditado” estar ali! E
para piorar, também tive certeza de que ela percebeu que tinha me
desconcertado, fiquei da cor de um morango maduro, mas achei
melhor não remendar, seria pior, me detive a apenas dar um sorriso
sem graça e concordar.
— Allora! Preciso saber um pouco de você, vou fazer algumas
perguntas antes de realizar os exames, tudo bem?
— Sim.
Ela virou-se de lado e se posicionou em frente ao seu
computador, para registrar minhas respostas.
— Quantos anos você tem?
— 28.
— Altura e peso?
— 1,62cm e mais ou menos 53kg.
— Na sua família tem histórico de pai, mãe ou parentes
próximos que sejam cardiopatas?
— Não, eu desconheço pelo menos.
— E de hipertensão?
— Meu avô, eu acho...
Ela ia me perguntando e digitando com destreza e rapidez tudo
que eu dizia em seu computador, já eu, olhando cada movimento
dela e tendo a certeza absoluta de que ela era a mulher da minha
vida.
— Tem filhos?
— Não.
— Toma alguma medicação?
— Também não.
— Qual anticoncepcional que você usa?
Me deu um friozinho na barriga naquela hora, mas respondi a
verdade.
— Não uso.
Ela parou por um segundo, mas seguiu olhando para a tela do
computador e continuou o questionário.
— E qual o método contraceptivo que você usa?
Meio que titubeando, respondi...
— Nenhum.
Então ela parou, virou para mim, colocou os cotovelos em cima
de sua mesa, o seu queixo apoiado em suas mãos, inclinou-se
ligeiramente para a frente e perguntou-me firme, olhando
diretamente para dentro dos meus olhos.
— Por que você não usa nenhum método contraceptivo, Nina?
Aí gelei, ela olhava firme demais, ela definitivamente me
deixava despida com seu olhar e eu mal conseguia manter o olhar
na sua direção, suspirei e respondi meio que sem graça.
— Porque não corro risco de engravidar, sou gay.
Ela ficou parada por uma fração de segundos, deu um sorriso
com o canto da boca, virou-se para a tela do computador e fez
algumas anotações.
— Já teve que fazer alguma grande cirurgia?
— Não.
— É fumante?
— Também não.
— Se exercita com regularidade?
— Somente no meu trabalho, pois fico todo o tempo de pé.
— Sabe qual seu tipo sanguíneo?
— Não... Nem ideia...
— Vai ficar quanto tempo aqui em Toronto?
— Oi? Não entendi — aquela pergunta não fazia nenhum
sentido.
Novamente ela virou-se, olhou para mim e repetiu um pouco
mais pausado com firmeza.
— Vai ficar quanto tempo aqui em Toronto?
— Até quarta-feira que vem.
Então, ela levantou-se e me pediu que eu a acompanhasse.
Fiquei nervosa com aquela pergunta e com ela me levando sei lá
para onde. Mas, sinceramente, com ela eu iria para qualquer lugar
mesmo, não importava saber...
Imediatamente levantei-me e a segui, confesso que a olhei com
cobiça, ela não estava de jaleco, apenas com a sua camisa Versace
branca que deixava à mostra seu colo e um estetoscópio sobre os
ombros.
Ela abriu uma porta que havia dentro da sua sala, onde esta
dava para outra pequena sala, ela entrou ali comigo e alcançou-me
um avental azul claro, pediu que eu tirasse os sapatos e parte de
cima de minha roupa e então que eu me cobrisse com o avental e a
abertura deste para frente. Ela olhou-me, e com um sorriso que
deixava à mostra seus largos dentes brancos pediu para que eu
ficasse à vontade, pois ela retornaria em instantes. Ela virou-se e
encostou a porta, me deixando sozinha ali. Rapidamente tirei a
minha blusa e fiquei só de sutiã, tirei sapatos, meias, vesti o avental
com a abertura para a frente exatamente como ela havia
recomendado, sentei-me então numa espécie de maca que tinha ali.
Fiquei esperando e fantasiando mil e uma coisas que poderiam ser
feitas naquela salinha. Deu um friozinho gostoso na barriga!
Ouvi então três ou quatro batidinhas na porta e antes que eu
abrisse a boca para falar algo ela entrou. Era impressionante que
cada vez que eu olhava para ela uma descarga de adrenalina
tomava meu corpo, com certeza algum fenômeno explicável pela
medicina...
— Vou auscultar seu coração agora.
Ela veio na minha direção, suavemente abriu o avental que me
cobria e debruçou-se bem perto de mim, colocou o estetoscópio —
gelado — em meu peito com toda delicadeza e concentrou-se em
ouvir meu coração, e enquanto ela delicadamente trocava de lugar
aquele aparelhinho eu olhava com o canto dos olhos para seu rosto,
que se encontrava a pouquíssimos centímetros do meu, eu ouvia a
sua respiração, sentia seu perfume mais perto do que nunca, via
seu colo e quase conseguia ver o início dos seus seios através
daquele decote, no pescoço uma discreta gargantilha de ouro com a
letra “A”, eu estava no paraíso, ou então na sala da tortura, pois
aquilo que ela causava em mim era quase desumano, mas
ironicamente aquilo me bastava, era entorpecente!
Ela permanecia quase debruçada sobre mim, quando levantou
apenas os olhos, que ficaram praticamente frente a frente com os
meus, e disse:
— Respire bem fundo agora, três vezes. Inspire pelo nariz e
solte devagar pela boca.
Eu obedeci imediatamente.
Ela retirou o estetoscópio de meu peito, com cuidado colocou
cada uma de suas mãos sobre meus ombros e baixou totalmente
meu avental — deixando-me quase despida, somente de sutiã —, e
colocou-se ainda mais perto de mim, eu sentia suas mãos tocarem
minha pele, deixando-a arrepiada, ela pôs seu estetoscópio em
minhas costas pedindo que eu respirasse fundo novamente.
Naquela hora, se eu não estivesse tão nervosa, acho que teria
ficado muito excitada. Eu sentia o calor de seu corpo, a pele dela
insistia em tocar suavemente a minha, a respiração dela me deixava
quase trêmula, eu estava entregue, ela “judiava” de mim, e não
tenho certeza se não era proposital — por alguns segundos eu tive
convicção de que era —, mas naquele instante ela acabou com toda
a minha fantasia, colocando de volta o avental e erguendo-se, pediu
com sua voz firme que eu deitasse na pequena maca.
Deitei-me, mais uma vez obedecendo imediatamente às suas
ordens.
Ela retirou o estetoscópio de seus ouvidos e sem falar uma só
palavra começou a examinar meus tornozelos e minhas canelas,
senti-me meio apreensiva, ela apertava-as suavemente, deslizava
seus dedos até meus tornozelos, e eu, constrangedoramente,
mantinha-me toda arrepiada com aquela situação, eu não tinha a
menor ideia do que estava acontecendo, até que o silêncio foi
quebrado.
— Você tem inchaço nas pernas ou as sente formigando?
— Não, só às vezes sinto minhas pernas cansadas porque fico
muito tempo de pé.
Ela não disse nada e continuou concentrada, e eu quieta,
prestando atenção em tudo. Foi aí que fui posta à “prova de fogo”.
— Vou verificar sua pressão sanguínea e fazer um
eletrocardiograma.
— Tá bem.
Verificar a pressão eu sabia como era, mas eu não tinha ideia
exata de como era esse tal de “eletrocardiograma”, talvez fosse para
ver se eu tinha isquemia. Permaneci imóvel, ali, deitada, primeiro ela
colocou aquele bracelete em meu braço e começou a inflá-lo, ficou
em silêncio escutando “alguma coisa” por alguns segundos e soltou
todo o ar que fazia pressão no meu braço, anotou algo com sua
caneta dourada e voltou aproximando-se de mim.
Sem me avisar foi abrindo meu avental com muito cuidado,
sentia as suas mãos encostarem-se em meus seios, aquilo me
desconcentrou, me assustei, rapidamente ela pegou alguns
adesivos e delicadamente grudou em meu peito e nos meus
tornozelos, estes adesivos eram conectados em alguns fios, que por
sua vez conectavam-se a um aparelho que começou a cuspir uma
tira de papel com aqueles riscos que pareciam estatísticas. Ela
olhou atentamente aquelas informações sem esboçar nenhuma
reação, dobrou o papel com certo cuidado e colocou sobre uma
mesinha auxiliar, do lado da maca onde eu estava deitada. Virou-se,
pegou um chumaço de algodão embebido em álcool com uma de
suas mãos e com a outra tirou aqueles adesivos de mim com
bastante cuidado para não me machucar, começou então a passar
aquele algodão úmido em meu peito, sentia a pressão que ela fazia
na minha pele, sentia o calor de seus dedos, era alucinógeno! E eu,
em meio àquelas sensações contraditórias, me sentia entorpecida
ao olhar para seu rosto, que estava concentrado, ironicamente, “em
meus peitos”, eu queria eternizar aquilo!
— Pode vestir-se, vou aguardar você em minha mesa.
— Tá bem, já vou.
Num piscar de olhos, eu estava vestida e calçada, arrumei
meus cabelos com as mãos e saí rapidamente, queria estar junto
dela o máximo de tempo possível, sentei-me novamente na poltrona
e admirando-a perguntei:
— E então? Ainda tenho quanto tempo de vida?
Brinquei com ela, mas ela era muito profissional e limitou-se a
responder.
— Seu coração está perfeito, sua pressão está ótima e seu
“eletro” normal, vou pedir alguns exames de sangue que são de
rotina, para avaliar principalmente seu colesterol, afinal você
trabalha com muita comida gostosa e normalmente essas comidas
levam muito açúcar e gorduras saturadas, por isso, a importância de
verificarmos seus níveis de HDL, LDL, triglicerídeos e glicose. Vou
aproveitar e pedir também sua tipagem sanguínea. Como você só
vai embora quarta-feira que vem, vai dar tempo de fazer a coleta e
trazer-me aqui os resultados para que eu possa avaliar, capisci?
Por isso ela havia me perguntado quanto tempo eu ficaria em
Toronto, somente naquele momento que entendi, ela queria que eu
voltasse! Eu só tinha dinheiro para uma consulta, mas azar, eu
usaria do cartão de crédito e depois daria um jeito.
— Certo, como devo fazer, devo marcar ali na recepção?
Ela rapidamente emendou outra pergunta sem sequer
preocupar-se em responder à minha.
— Se você coletar amanhã pela manhã, terça-feira os exames
ficam prontos, você pode voltar aqui terça no final da tarde?
Respondi imediatamente que sim.
— Claro!
Ela então pediu que eu aguardasse um momento, que já
voltaria. Enquanto ela tinha saído dali e ido não sei aonde, fiquei
tentando achar alguma pergunta-chave que eu pudesse fazer a ela,
mas foi em vão, minha cabeça não estava funcionando direito
naquele momento, só o que me veio em mente foi que a Shelly me
ajudaria a pensar em algo para fazer até terça-feira.
— Nina? — disse ela me esperando ao lado da porta de saída
da sua sala.
— Oi?
— Vou te acompanhar até lá na frente, já coloquei na agenda
que você virá terça depois do horário, às 18h30, fica bom para
você?
Ela havia pessoalmente marcado o meu horário, fiquei radiante
com aquilo.
— Fica ótimo, estarei aqui pontualmente — respondi dirigindo-
me em direção a ela.
Ela me alcançou a requisição dos exames e me acompanhou
até a porta que dava para recepção, e caminhando ao lado dela
percebi o quanto eu era realmente “pequena”, a Clara tinha certa
razão!
Ela abriu a porta e estendeu a mão para mim, eu
imediatamente apertei sua mão com firmeza, exatamente como ela
havia feito da outra vez. Ela por sua vez apertou mais firme ainda e
por um momento tive a sensação de que ela havia me encarado,
olhando para meus olhos e escorregando o seu olhar para meus
lábios, mas isso foi tão rápido que logo vi que eu estava imaginando
coisas.
— Até logo, Nina.
— Até logo, doutora!
Ela fechou a porta e desapareceu da minha linha de visão.
Dirigi-me até o balcão para pagar o meu “encontro” com ela.
Neste meio-tempo a Shelly já estava grudada do meu lado, me
olhando com uma cara de curiosa que era impagável, percebi que
ela estava contendo-se para não me encher de perguntas ali
mesmo.
— Srta. Nina, a doutora marcou um horário com você terça-
feira, dia 21, às 18h30min, depois dos atendimentos.
— Sim, ela me disse. Estarei aqui no horário marcado.
A Shelly me olhou com os olhos arregalados, ela não estava
entendendo nada.
Abri minha “bolsa falsificada” e de dentro da minha carteira
também falsificada peguei quatro notas de CAN$ 100 — essas
verdadeiras — e coloquei-as sobre o balcão empurrando-as em
direção à secretária. Já a moça, com um sorriso, empurrou o
dinheiro de volta.
— A doutora frisou que a consulta é cortesia, portanto a
senhorita não tem de pagar nada.
A Shelly novamente arregalou os olhos e colocou as mãos na
cintura fazendo um esforço sobre-humano para não me questionar.
— Não?! Quando ela disse isso para você? — perguntei para a
recepcionista, que riu e com paciência explicou.
— Quando ela veio aqui pegar a requisição e marcar o seu
horário para terça que vem, ela frisou que sua consulta era cortesia.
— Ah... Claro, então posso já deixar paga a consulta de terça?
— Pelo que sei, seu horário terça-feira é uma reconsulta para
avaliação de exames, e isso não é cobrado.
A Shelly acompanhava tudo incrédula e eu mais ainda!
— Tá bem, obrigada, agradeça à doutora por mim, ok?
— Pode deixar, boa tarde para vocês!
— Tchau, boa tarde para você também!
Saímos de lá num piscar de olhos e ao fechar a porta abracei a
Shelly e não contive as lágrimas, ela me abraçava forte e vi que
também estava emocionada. Eu agradecia a ela por estar ali me
apoiando e ela dizia baixinho...
— Calma, você merece!
Enxugamos as lágrimas e pegamos o elevador lotado, a
vontade de começar a falar era grande, mas tivemos que aguentar
até parar no térreo.
Logo do outro lado da avenida havia um café, nos sentamos ali,
pedimos um suco e daí sim começamos a falar sem parar, ela
perguntava e eu respondia, era tanta informação que tivemos que
parar e recapitular.
— Vamos de novo! — disse Shelly.
— Tá bem.
— Ela sacou que você marcou essa consulta para vê-la?
— Não sei, mas acho que tem uma grande chance.
— Ela sabe que você é gay.
— Sabe.
— Ela marcou um novo horário para você ir até lá?
— Sim, para levar os exames.
— Acho que vai rolar!
— Shelly, eu adoraria ter toda essa certeza, mas vamos pensar
com a razão, tá?
— Tá.
— Ela sabe que sou gay porque eu falei, marcou outro horário
para analisar meu colesterol, nada fora do comum para uma
cardiologista competente, e quanto a suspeitar que fosse
programada a minha vinda até aqui, eu não tive muito que fazer,
acabei dando mancada e ela percebeu.
— E a cortesia? Como você explica essa parte?
— Acho que ela foi gentil, quis retribuir de alguma forma a
caipirinha que ofereci de cortesia a eles naquele dia.
— Não sei, pode até ser, mas e aquela outra suspeita tua?
— Que suspeita?
— Que ela te olhou diferente, na porta, na hora de ir embora?
— Isso foi delírio meu, se eu ficasse mais meia hora lá com ela,
iria achar que ela havia me pedido em casamento e mais mil coisas
sem fundamento. Agora, te digo uma coisa, amiga, eu estou
perdidamente apaixonada por aquela mulher e farei o possível e o
impossível para tentar conquistá-la!
— Uau! É isso aí! Gostei de ver!
— Shelly, você tinha que ver, tinha que estar lá, ela chegou tão
perto de mim, tocou nos meus seios! Tá, até pode ter sido sem
querer, mas tocou!
— Nina, eu espero muito que tudo isso acabe bem, pois senão
ninguém vai te aguentar.
— Tá bom, tá bom, parei.
— Ah! Esqueci de perguntar algo fundamental!
— Que foi, Shelly...
— Viu a marca dos sapatos dela?
— Não acredito que você tá me perguntando isso!
Levantamos e fomos direto para o hotel, continuamos
conversando todo o caminho, até chegarmos e irmos dar um
mergulho naquela piscina maravilhosa, assim passamos a nossa
tarde toda...
Já no quarto, depois do jantar, peguei a requisição dos meus
exames e fiquei olhando para aqueles nomes, para a letra “horrível”
que ela tinha e relembrando o meu encontro com a dra. Allegra. Era
surreal o que eu tinha feito e gasto para conseguir estar 20 minutos
com ela naquele consultório. Mas já havia valido, não havia dinheiro
que pagasse aquela sensação de estar perto dela, de sentir seu
perfume, calor, a respiração dela tão perto de mim, enfim, de estar
tão próxima a ela.
A Shelly ainda não havia voltado para o quarto, estava de papo
com a dona da butique mística do saguão do hotel, eu não sabia se
ela estava mais interessada em saber das roupas ou na dona da
loja, mas deixei-a e resolvi dormir, coloquei meu relógio para
despertar cedo porque eu queria coletar aqueles exames logo, para
não correr o risco de não ficarem prontos e acabar com o meu
sonho de revê-la na terça, apaguei as luzes e fiquei pensando nela
até pegar no sono, nem vi a Shelly chegar.
Sete horas em ponto o despertador tocou, eu pulei da cama,
me assustei, a Shelly só virou pro lado, então levantei com cuidado
para não acordá-la e entrei no banho, aquela água escorrendo pelo
meu rosto me fez sentir leve, eu estava vivendo algo muito diferente
do que eu estava acostumada, era intenso, bom, mas dava medo,
porque se eu parasse para olhar essa loucura toda “de fora” eu
perceberia que provavelmente tudo isso acabaria em nada, ou
melhor, em desilusão e tristeza. Imediatamente parei de pensar
naquilo, que iria acabar me deixando depressiva e me apressei para
os exames, ainda teria que achar um laboratório que coletasse, pois
eu não tinha ideia de onde ficavam as coisas em Toronto.
Desci até o saguão, peguei um guia, comecei a pesquisar
endereços de laboratórios e o primeiro que me saltou aos olhos foi:
Laboratório de Diagnóstico Mount Sinai, no mesmo prédio do
consultório da Allegra, só que no 7° andar. Não sabia se era o caso
de ir nesse ou procurar outro, que dúvida, a Shelly com certeza diria
para eu ir até lá, mas e se eu acabasse encontrando com ela? E
naqueles trajes?
Não! E se justamente naquele dia ela resolvesse “vestir” uns
CAN$ 40.000 em roupas, como eu iria me sentir? Aliás, esse era
outro problema que eu tinha para resolver até terça, eu teria que
sobressair no visual, não deveria ir com a mesma roupa, mas isso
eu deixaria para Shelly, é o que ela domina e eu por sorte não
poderia estar em melhores mãos!
Acabei indo em um laboratório na quadra de trás do hotel, me
prometeram os resultados para segunda-feira à tarde, portanto ia
dar tempo de ficarem prontos sem o menor problema.
Estava voltando e entrando no saguão do hotel e vejo a Shelly,
num visual superfashion, vindo correndo em minha direção com
umas anotações.
— Bom dia, Nina!
— Bom dia! Que ânimo é esse? — perguntei.
— Olha o que eu tenho aqui! — me mostrou umas folhas de
cadernos com alguns “garranchos” escritos a caneta.
— Estou vendo, só que seria melhor você traduzir para mim,
não acha?
— São os lugares que planejei de irmos este final de semana,
quero aproveitar essas férias ao máximo e não quero que você fique
de cabeça vazia, ou melhor, só pensando na “dra. todo-poderosa”.
Então, escolhi alguns locais bem bacanas e dividi entre os dias que
vamos ficar aqui, aí só falta colocar na lista as baladas que vamos ir
durante as noites, então ficará completo nosso city tour!
— Depois de toda essa empolgação não posso dizer que não,
né?
— Não pode mesmo!
— Shelly, eu tenho que comprar uma roupa bem legal para
consulta de terça, você me ajuda?
— Serei sua personal stylist, deixa comigo, ainda mais que
você ganhou CAN$ 400!
— Ganhei? De quem?
— Da tua médica, ela te “deu” aquela consulta absurdamente
cara!
— Isso mesmo, temos CAN$ 400 para gastar com meu visual,
ou melhor, CAN$ 380!
— Deixa de ser mesquinha, vamos aproveitar nossas férias!
Naquela tarde começamos a seguir o roteiro da Shelly.
Na sexta-feira, dia 17/4, fomos a CN Tower, não teríamos ido
realmente a Toronto se não tivéssemos subido na torre, a paisagem
era fantástica, aquele mar azul aos nossos pés rendeu umas 50
fotos, mas a foto mais legal que tiramos na torre foi bem lá do alto,
onde uma parte do chão é todo de vidro, e ao pisarmos ali temos a
nítida sensação de estarmos flutuando, deu um pouco de medo.
No sábado dia, 18/4, fomos às Ilhas, foi fantástico, afinal,
avistar toda Toronto através de uma ilha é uma experiência muito
diferente. Nessa ilha, curiosamente havia até uma pequena praia de
nudismo, aonde acabamos indo por insistência da Shelly, eu só tirei
a parte de cima depois de muito incentivo da minha amiga, mas a
Shelly ficou como veio ao mundo, ainda quis tirar muitas fotos em
seu estado “natural” para recordar, e só não ficamos mais tempo lá
porque a temperatura não era tão alta e logo sentimos frio, mas no
pequeno tempo que permanecemos na praia eu ri tanto que cheguei
a quase chorar: a Shelly, além de ficar totalmente nua, resolveu se
exercitar na beira do mar para esquentar-se, fez cooper e
polichinelo, confesso que meu único arrependimento era não ter ali
uma filmadora, aquela cena valeria o “Oscar”. Divertimo-nos demais
naquele sábado!
No domingo, dia 19/4, a Shelly escolheu com “esmero” o nosso
passeio, fomos assistir a um jogo de beisebol dos Toronto Blue Jay
no Roger Centre, e embora não estivéssemos entendendo nada das
regras do jogo, a energia era tão boa que torcemos muito pros
donos da casa. Eu, que no início achei que ia ser muito chato,
acabei ficando impressionada com a arquitetura e tamanho do
estádio.
Na segunda-feira, dia 20/4, o dia foi cheio, pela manhã fomos
conhecer a Casa Loma, literalmente um castelo no meio da cidade,
fascinante! À tarde, fomos ao Eaton Centre, um shopping de
proporções gigantescas, fomos comprar minhas roupas pro meu
compromisso do dia seguinte, eu tinha pressa, não podíamos
demorar muito, pois eu teria ainda que buscar meus exames no
laboratório.
— O que devo comprar, Shelly?
— Uma roupa espetacular, que agrade aos olhos da tua
doutora!
— Mas o quê?
— Nina, pensa comigo. Por que você acha que a tua médica
estava usando aquelas roupas?
— Sei lá, porque ela tem muita grana para gastar!
— Tá, mas tirando isso, por que ela escolheu “aquelas” roupas?
— Porque ela gosta, acha bonitas, se sente bem... Era isso que
eu tinha que responder?
— Exatamente isso! Ela usa aquelas roupas por esses motivos,
porque este estilo de roupa a agrada, portanto, sabemos o que ela
vai gostar que você use, consequentemente sabemos o que
procurar!
— Tá brincando comigo? Você quer que eu me vista igual a
ela? Ela vai achar que sou uma “psicopata assassina”!
— Não, boba, não exatamente igual, mas sabemos o estilo
referencial, confia em mim!
Meio contrariada, larguei nas mãos da Shelly, tinha lógica sua
teoria. Experimentei muitas roupas e sapatos, andamos tanto para
cima e para baixo naquele shopping gigantesco que eu já estava
com as pernas bambas!
— Chega, Shelly, estou mortinha!
— Só mais naquela ali, olha que espetáculo aquela vitrine! —
ela apontou para uma loja linda logo à nossa frente.
— Nem pensar, só de olhar para essa loja sinto meus bolsos
esvaziando!
— Vem, deixa de resmungar!
Entramos na tal loja finíssima e em poucos segundos a Shelly
já estava com as mãos lotadas de roupas, a moça que nos atendia
estava meio zonza, seguindo a Shelly e ajudando ela a carregar
alguns pares de sapato.
— Experimenta essa camisa, com essa calça e esse sapato!
Peguei as roupas, entrei no provador meio contrariada, mas
comecei a experimentar.
A Shelly tinha escolhido uma camisa social preta, de um tecido
fino, com uma transparência sutil. O decote deixou com que meus
seios ficassem bem pronunciados, me favorecendo bastante, a
calça era social, branca de corte reto, feita de um tecido leve, com
um caimento perfeito, o conjunto daquelas peças harmonizou-se de
uma forma que eu fiquei espantada comigo, parecia mais alta,
minha cintura ficou bem marcada e eu parecia uma executiva, fiquei
animada, só levei um susto quando abri a caixa dos sapatos, ela
havia escolhido um par de sapatos de couro trabalhado, vermelhos,
com um salto agulha que me dava câimbra nas pernas só de me
imaginar usando aquilo, mas mesmo contrariando todas as
probabilidades os coloquei em meus pés e para minha surpresa eu
adorei, ficou lindo, não sei como aquilo tudo combinou, mas ficou...
Perfeito!
Saí do vestiário e parei na frente da Shelly, que abriu a boca,
arregalou os olhos e não disse uma palavra.
— Shelly? Gostou?
— Vai até de “cabelos pretos” mesmo! — brincou.
Eu ri com a brincadeira dela, mas sabia que aquilo era o auge
do elogio que poderia vir de minha amiga.
— Nina, você está LINDA, não fica nada atrás da sua médica, é
essa a roupa! Ela vai “cair de quatro” na tua frente!
— Eu também gostei — falei, olhando-me no espelho.
Então, a Shelly, tomando a frente e sendo bem abusada, virou
para a moça que nos atendia — que estava com cara de que
também havia gostado da roupa — e disse:
— Vamos levar!
Eu a interrompi imediatamente.
— Para tudo! Quanto custa tudo isso?
A moça imediatamente listou os valores e com uma calculadora
foi somando.
— Essa camisa linda está por CAN$ 350, a calça por CAN$ 480
e esses sapatos fantásticos por apenas CAN$ 790.
Isso dava exatamente MIL SEISCENTOS E VINTE DÓLARES
CANADENSES!
— Não dá, Shelly!
— Nina, você tá no lucro de CAN$ 760, o resto é investimento!
— Eu no lucro de CAN$ 760? Por quê?
— Ganhou a consulta e a reconsulta, lembra?
— A reconsulta era free, lembra?
— Era free até você saber que era, você já estava até querendo
pagá-la adiantado!
— Mas é muito dinheiro!
— É por uma causa nobre! Vai amiga!
Contrariando todos meus princípios e até um pouco a
contragosto aceitei.
— Tá... Vou colocar no cartão de crédito e não quero mais
pensar nisso!
A Shelly começou a bater palmas e rir de felicidade, enquanto
eu entrei no vestiário para colocar minhas roupas de volta.
Saí dali com um misto de sentimentos, aquela roupa tinha
ficado muito boa, mas ao mesmo tempo eu tinha acabado de fazer
uma grande loucura gastando todo aquele dinheiro em três peças
de roupas, mas o que importava era pegar meus exames a tempo e
descansar, porque o que menos tínhamos feito naqueles dias era
descansar.
Já no hotel, depois de ter pegado meus resultados dos exames
e sem ter entendido absolutamente nada daqueles números, fiquei
assistindo televisão, concentradíssima num programa sobre alta
gastronomia, e nisso entra a Shelly — que até então estava de papo
com a dona da boutique do saguão — falando alto.
— Nina, amanhã à noite vamos ao Church Street!
— Vamos? E o que é isso? — perguntei meio que sem querer
saber o que era mesmo, queria era ver meu programa de TV.
— É um bairro gay, lá tem baladas, cafés, restaurantes, tudo
para gays!
— Ué, mas você é “bi”, por que está tão empolgada? — alfinetei
ela.
— Que amargura, Nina, eu sei que sou “bi”, mas estou num
momento gay, portanto quero ir num lugar gay! Podemos ir amanhã
à noite, depois da tua reconsulta, afinal amanhã é nossa última noite
aqui nessa cidade “tudo de bom”.
— Tá bem, vamos, mas você paga!
— Pago tudinho, pode deixar!
Ela saiu porta afora, só a vi quando ela chegou de mansinho no
quarto às 6h da manhã. Nem queria imaginar onde ela estava até
aquela hora.
Acordei às 10h, aí foi minha vez de acordar a Shelly e perguntar
se ela iria tomar café.
— Ei, quer ir tomar café?
Ela só se virou para o lado, acho que nem me ouviu, então me
troquei e fui até o terraço tomar café, eu estava nervosa, mas um
pouco mais relaxada que da outra vez, estava pensativa, porque
não havíamos bolado nenhuma ideia mirabolante para tentar colocar
em prática com a minha Allegra. Fiquei ali no terraço, pegando
aquele solzinho gostoso, não sei por quanto tempo, acho que até
cochilei um pouco.
— Nina? — ouvi a voz de Shelly se aproximando.
— Bom dia, Shelly! — e me virei, mas não acreditei quando a
vi.
— Aonde você vai assim?
Ela estava de biquíni, com uma canga amarrada na cintura, um
chapéu imenso de palha na cabeça e óculos escuros!
— Na piscina! Tem que ser elegante sempre! Vamos juntas!
Eu levantei meio desconfiada, mas fui.
Ela me contou que estava ficando com a Olívia, a dona da
boutique — eu já estava desconfiada disso —, e que ela iria junto
conosco à noite no tal bairro.
— Shelly, você não comentou nada com ela do “verdadeiro”
motivo por que estamos aqui em Toronto, não é?
— Não, Nina, falei que estávamos passeando, só isso, falei que
você gostava de uma mulher que morava aqui, mas nada a mais.
— Nada mesmo?
— Nada...
— Shelly! — desconfiei.
— Que era médica, mas nada mais!
— Shelly! O que mais você falou?
— Nada mesmo, só isso, nem falei que você estava
consultando com ela.
— Tá bem!
Ela ficou me contando sobre a sua Olívia, tudo com riquezas de
detalhes. A Olívia era do tipo que a Shelly gostava, loira, alta, estilo
bem alternativo, além de dona de boutique era formada em
astrologia e estudava para “ser vidente”. Não sei como isso seria
possível, mas diz a Shelly que ela estava se esforçando. A Olívia
não era bonita, mas parecia ser uma pessoa legal.
— Essa Olívia é tua cara, Shelly, tem tudo a ver com você,
vocês combinam.
— Por que você acha?
— Nunca falei com ela, mas fisicamente acho que vocês tem
harmonia, ela parece meio doida assim como você!
— Eu não gosto de mulher doida! — falou irritada.
— Ah, tá! Para cima de mim, Shelly? Você só gosta de mulher
tatuada, cheia de brincos e piercings e que se vestem com roupas
alternativas, que adoram incenso e que tomam “porre” de vez em
quando.
— Tá doida, Nina? Eu gosto de mulheres com classe, de
roupas finas, de bom gosto, discretas, só de vez em quando que eu
gosto de variar e ficar com alguém um pouco mais “descolado”.
Começamos a rir e eu acabei concordando para não ficar
estendendo aquela discussão, mas o que era indiscutível era a sua
preferência por loiras e a minha por morenas!
— Quando eu encontrar uma loira “classuda”, bem meu estilo,
vou te mostrar, vou provar para você! — disse a Shelly me
desafiando.
— Tá bom, tá bom... — falei, encerrando aquela conversa.
Depois de um bom tempo na piscina, subimos até o quarto para
nos trocarmos, eu cumpri rigorosamente meu ritual de
embelezamento, enquanto a Shelly se arrumou rapidamente. Não
entendia como ela conseguia ser tão rápida, ela juntava uma peça
de roupa com outra e ficava lindo, já eu levava um ano para
escolher uma...
Vesti aquela roupa que havia estourado meu cartão de crédito e
pegamos um táxi para irmos ao consultório, o nervosismo já estava
aparecendo novamente, eu tentava me controlar me distraindo
ouvindo a Shelly falar sem parar.
No caminho pegamos um engarrafamento e aquilo me deixou
muito apreensiva, pois eu não queria me atrasar, mas era inevitável
deixar de sentir aquela agonia. Estávamos praticamente paradas no
meio daquela avenida enorme em meio a muitas buzinas que
vinham de todos os lados, já eram 18h20 e nós engarrafadas. Eu
estava prestes a entrar em desespero, mas de repente a Shelly
começou a cantar. Sim, ela começou a cantar desafinadamente
dentro do táxi, completando o caos do momento. Por sorte, logo a
fila começou a andar, e às 18h35 conseguimos chegar, mas o meu
desconforto era visível.
Capítulo 4

O consultório estava vazio, sem pacientes na espera por uma


consulta, somente a menina da recepção, que ao nos ver sorriu e
nos cumprimentou.
— Boa tarde, senhoritas.
— Boa tarde!
A cumprimentamos respondendo à sua pergunta ao mesmo
tempo. Dirigi-me até o balcão e dei meu nome para que ela
recordasse de mim e do meu horário.
— Srta. Nina, a senhora trouxe os exames, isso?
— Sim.
— Vou avisar a doutora e perguntar se é necessário a srta.
entrar ou só deixar comigo os resultados que eu mesmo levo até ela
— imediatamente ela virou-se e saiu dali.
Enquanto a secretária entrou, para perguntar à Allegra, eu e a
Shelly nos olhamos, assustadas com a hipótese de simplesmente
deixar aquela “papelada” ali e irmos embora.
— Shelly?! — falei assustada.
— Essa mulher nem é louca de não te receber, Nina!
— Será que eu interpretei tudo errado, amiga?
— Nina, jura para mim que se por acaso a “secreta” voltar
dizendo que é só para você entregar os exames e que ela leva para
tua médica, você imediatamente faz de conta que está com
palpitações e começa a passar mal? Aí sim quero ver se ela não vai
te receber!
— Para com isso, Shelly... Eu vou me sentir uma perfeita idiota
se ela não me receber — aliás, já estava me sentindo assim —,
gastei uma fortuna para estar vestida com essa roupa, depositei
expectativa no dia de hoje, estou nervosa, ansiosa e esse sapato
está me matando!
A secretária em poucos segundos chegou sorrindo, abriu a porta
que dava acesso ao corredor interno e disse:
— Por favor, srta. Nina, me acompanhe, a doutora quer vê-la.
Olhei para Shelly aliviada, percebi que ela também relaxou com
a notícia. Respirei profundamente e segui a moça pelo corredor,
estava ansiosa, mas a vontade de revê-la era tanta que estava
confiante demais para me abater.
Ao abrir a porta, olhei para dentro e a vi, sentada em sua mesa,
soberana, espetacularmente linda. Ela ergueu os olhos em direção à
porta e levantou-se vindo em minha direção, a secretária pediu
licença, fechou a porta e saiu. Eu, indefesa, caminhei lentamente ao
encontro dela, rezando para que eu não meu desequilibrasse com
aquele salto.
Ela parou na minha frente e esticou a sua mão me
cumprimentando, eu retribui o seu gesto, mas percebi que ao
apertar minha mão ela me olhou dos pés a cabeça com um sorriso
malicioso. E dessa vez eu não estava fantasiando!
— Tudo bem, Nina? — ela falou com voz firme, olhando para
mim.
— Tudo bem, e com você? — ousei perguntar.
— Sim, comigo está tudo bem — ela ainda mantinha o olhar fixo
em mim.
Então, ela largou minha mão, virou-se e sentou na sua grande
poltrona branca, eu sentei-me na frente dela, ansiosa por vê-la e por
ouvi-la. Ela parecia bem mais relaxada, usava um jaleco, com seu
nome bordado do lado esquerdo, ao contrário da primeira vez. Não
sei, mas senti algo diferente, não sei explicar.
— Está gostando da cidade? — perguntou ela sem pressa.
Achei tão estranho, mas fiquei feliz pela iniciativa dela em puxar
uma conversa mais informal.
— Sim, bastante, é tudo muito bonito. Conheci vários lugares
neste final de semana, um mais lindo que outro.
— A cidade é turística, vale a pena conhecer.
Eu estava adorando tudo aquilo, pela primeira vez a vi como
uma mulher normal, me fez bem, me senti mais tranquila... Mas
minha alegria durou somente aqueles poucos instantes, pois já
postando a sua voz firme e serena, ela disse:
— Deixe-me ver seus exames.
Alcancei os resultados a ela e fiquei contemplando-a. Enquanto
ela analisava todos aqueles números, eu simplesmente me
satisfazia em ficar parada, sentindo seu perfume e observando cada
movimento seu. Ela tinha lábios deliciosos, beijava muito bem,
certamente, eu me perdia completamente ao observá-la, era
impressionante, era sem dúvida uma mulher forte, de personalidade
marcante, simplesmente... Única!
— Os seus exames estão normais, os níveis de glicose e
colesterol estão dentro do esperado para sua idade, sua tipagem
sanguínea é “O negativo” e, resumindo, você está ótima!
— “O” negativo? Isso é bom? — tudo que era “negativo” na
minha cabeça era sinônimo de algo ruim.
Ela sorriu e com calma explicou-me com paciência.
— Nina, tipo “O” significa um tipo de sangue que não apresenta
nenhum aglutinogênio, não se preocupe, você é de certa forma até
privilegiada, pois apenas 7% da população possui essa
configuração sanguínea.
— É? Mas e por que ele não tem esse “agluti alguma coisa” —
fiquei preocupada que meu sangue não tinha essa coisa de nome
estranho.
Ela riu, achando graça da minha preocupação e logo continuou
sua explicação técnica usando toda sua habilidade de quem era
uma exímia profissional.
— Vou explicar, Nina. No plasma sanguíneo, podem ou não
existir dois tipos de anticorpos, denominados de aglutininas. Uma
pessoa que possui hemácias do tipo A produzirá aglutininas anti-B,
já uma com hemácias do tipo B produzirá aglutininas anti-A, capisci?
Allora, no nosso caso — ela riu referindo-se a que também tinha o
mesmo tipo sanguineo que o meu —, o indivíduo com hemácias do
tipo “O” produz aglutininas anti-A e anti-B, pois não apresenta
aglutinogênios.
— Ah... — falei muito confusa com toda aquela explicação.
— E quanto ao fator “Rh” que é o positivo ou negativo, os
indivíduos que apresentavam o fator Rh passaram a ser designados
Rh+, geneticamente correspondem aos genótipos RR ou Rr. Os
indivíduos que não apresentam o fator Rh foram designados Rh- e
apresentavam o genótipo rr, considerados recessivos. Sendo
exatamente esta a combinação chamada de “doador universal”,
portanto Nina, podemos doar nosso sangue para qualquer pessoa,
porém para receber uma doação, somente de outro “O negativo”.
Antes que eu pudesse perguntar mais sobre o meu sangue e
aquele universo maluco de anticorpos o nosso diálogo foi
interrompido com o soar da campainha do seu celular. Alguém
estava ligando para ela, quem seria? Eu daria tudo para ter o
número do telefone dela.
— Desculpe, Nina, mas tenho que atender, com licença — disse-
me, olhando para o visor do seu telefone e levantando-se em
direção à grande janela. Parou ali e ficou de costas para mim.
Não pude evitar ouvir a conversa, afinal estávamos no mesmo
ambiente.
— Sim?
Houve um pequeno silêncio e ela voltou a falar, com um tom
seco.
— Estou em atendimento, ligo para você depois.
Mais um silêncio de uns 10 segundos...
— Sim, está confirmada, hoje às 22h, provavelmente eu vá
direto, mas ligo para você antes, ok? Até mais, ciao!
Rapidamente ela desligou e sentou-se em seu posto.
— Desculpe, é que viajo hoje para Nova York, é um
compromisso de última hora.
Achei estranho ela me dar uma satisfação, mas educadamente
comentei:
— Imagino, deve ser bastante comum isso acontecer.
— Mudar os planos é muito mais comum do que você imagina,
mas eu gosto disso — e sorriu, com aquele mesmo sorriso malicioso
de antes.
Algo tinha, definitivamente não era normal, ela estava sem
pressa, mesmo tendo uma viagem para dali a pouco, claro, talvez
estivesse relaxada porque eu seria seu último atendimento do dia...
Mas para mim estava valendo, afinal cada segundo em sua
companhia me deixava no “céu”!
— Já está certo que você vai embora amanhã?
Mais uma vez fui surpreendida, aquela pergunta soava tão
estranha, mas tão estranha, que resolvi não dar certeza se eu iria ou
não... Eu também sabia jogar!
— Em princípio, sim, mas como você disse, coisas de última
hora acontecem.
Ela sorriu, percebendo que eu tinha dado aquela resposta para
“dar-lhe corda”.
— Hoje é meu aniversário, Nina, e eu...
Antes que ela concluísse a frase eu a interrompi.
— Mesmo?! Parabéns! Vai passar o seu aniversário em Nova
York?
Ela sorriu, certamente achou graça da minha empolgação toda e
com tranquilidade respondeu-me:
— Sim, passarei o “final” do meu aniversário lá, embora eu
esteja indo a trabalho e não a lazer... Mas, continuando o que eu
estava lhe falando — e ela assumiu o comando de novo —, eu
gostaria que você fosse sábado a minha casa, volto de Nova York
sábado à tarde, à noite gostaria de reunir amigos e colegas para
oferecer-lhes um coquetel, em virtude do meu aniversário, serão
umas 30 pessoas, quero oferecer-lhes algo, nada sofisticado, além
do mais, acho que eles adorariam conhecer a famosa caipirinha. O
que você me diz, Nina?
Eu estava boquiaberta, tudo passou na minha cabeça em uma
fração de segundos, até que eu estivesse delirando e imaginado
coisas. A “todo-poderosa” dra. Allegra Cavazza estava me
“convidando” para ir à casa dela! E eu? Sem saber o que dizer,
incrédula e com o coração prestes a sair pela boca, arrisquei...
— Bem... Eu teria que ir embora amanhã... Mas posso ver... —
eu não conseguia dizer mais nada, embora minha vontade fosse de
gritar e dizer que sim, que iria no sábado, iria amanhã, a hora que
ela quisesse...
Mas ela continuava a olhar para mim na espera de uma resposta
objetiva.
— Imprevistos de última hora acontecem... — e sorriu, se
divertindo com a situação. — Faça seu preço, Nina!
Limpei a garganta e tentando manter a calma falei:
— Não é essa a questão, tenho certeza de que existem
excelentes profissionais aqui em Toronto que fariam excelentes
coquetéis!
— Tenho certeza de que, da mesma forma, existem excelentes
cardiologistas em Montreal — rebateu ela imediatamente.
Pronto, eu estava encurralada, ela havia me cercado por
completo. Ao mesmo tempo em que aquilo soava como um elogio,
confirmava que ela sabia exatamente o motivo que me levara até
ela! Eu não tinha ideia do que pretendia, mas ela certamente sabia o
que estava fazendo e não estava poupando nenhum um esforço
para tal.
— E então? — insistiu.
Eu tinha que ponderar a razão com a emoção, meu trabalho, o
curso da Shelly, tudo estava em jogo, mas eu jamais conseguiria
negar um pedido dela, isso era fato.
— Tá bem, será um prazer imenso, o que você quer que eu faça
exatamente?
— Isso deixo com você, não tenho dúvidas de que estou em
excelentes mãos, só preciso saber de quanto precisa para que eu
possa pagá-la.
Na mesma hora ela foi tirando de uma gaveta um talão de
cheques, pegou a sua caneta dourada, que devia ser de ouro, e
ficou me olhando esperando eu dizer o valor. Mas o que eu diria? Eu
não queria um centavo dela, queria apenas poder tocá-la, beijá-la,
isso sim... Porém, eu não podia confundir as coisas, talvez eu
estivesse totalmente enganada e ela realmente quisesse apenas me
contratar para seu aniversário, afinal, ela queria que eu fosse a sua
casa — não para um motel — e ela era casada, então tudo indicava
que eu estava delirando novamente e imaginado coisas que não
existiam. Eu tinha que ser profissional.
— Bem, vou cobrar de você apenas os insumos, não cobrarei
minha mão de obra — falei assumindo um ar de seriedade.
— Já que está difícil de fixar um valor eu vou lhe dar uma
quantia e você compra o que precisar — falou de uma forma tão
incisiva que não tive coragem de dizer-lhe um “A”!
Ela preencheu o cheque rapidamente e me alcançou. Peguei-o
totalmente sem graça, com as mãos quase tremendo, e ao olhar
para o cheque me espantei, ao ver o valor que ela havia preenchido.
— CAN$ 6.000?! Isso é demais! Não é correto! — aquilo era no
mínimo três vezes mais do que eu cobraria caso resolvesse cobrar
“muito bem”.
Inclinando-se para frente e com muita calma ela falou:
— Nina, não é sempre que faço 40 anos, quero que você use o
dinheiro para o que achar necessário, se sobrar tenho certeza de
que você será merecedora. Portanto, não se fala mais nisso,
capisci?
Não tinha coragem de abrir a boca, guardei o cheque e apenas
murmurei baixinho.
— Tá bem.
Ela, ao contrário de mim, com total controle sobre tudo, em um
papel de anotações escreveu o seu endereço e me deu, peguei, e
para minha surpresa, embaixo, no canto direito, havia o número de
sua residência e o número de seu celular, quase caí dura quando vi.
— Esteja lá na hora que achar interessante, avisarei a dona
Emma que você irá, ela lhe mostrará onde fica a cozinha, e tudo que
precisar, eu chegarei no meio da tarde e gostaria que pudéssemos
iniciar a recepção por volta das 20h, se tiver alguma dúvida pode me
ligar.
Ela comandava tudo, com precisão cirúrgica — por que será? —,
era uma verdadeira maestrina! Suspirei, tentando esconder minha
euforia e tentando manter o profissionalismo.
— Perfeito. Combinando, talvez eu leve alguém para ajudar, tudo
bem?
— Como quiser — respondeu, levantando-se, fazendo menção
de “terminar a consulta”.
Imediatamente entendi, levantei-me e fui em direção à porta
junto dela. Ela parou diante da grande porta branca e antes de abri-
la para que pudéssemos sair e me acompanhar até a saída disse:
— Te vejo no sábado, obrigada por aceitar — e piscou o olho,
como que um sinal de cumplicidade.
Naquela hora pensei que tinha que fazer algo, mas o quê? Eu
não tinha coragem para nada muito extremo, então arrisquei...
— Eu posso lhe dar um abraço pelo seu aniversário? — na hora
fiquei sem graça, sem saber o que esperar.
Ela sorriu e se aproximou de mim, senti seus braços
contornarem meu corpo com firmeza, da mesma forma abracei-a,
senti seu corpo todo se encostando ao meu, minha cabeça
praticamente se aninhou em seu ombro direito, minha boca quase
encostava na sua orelha, sentia o perfume de seus cabelos e a pele
macia de seu rosto. Eu estava em êxtase, sem acreditar naquilo, era
bom demais para ser verdade, foi quando lembrei do principal
motivo daquele abraço, então, imediatamente falei baixinho
aproveitando a proximidade de minha boca com seu ouvido.
— Tenha um ótimo aniversário, com muita saúde e realizações.
Ela, que também estava com sua boca perto de meu ouvido,
murmurou quase que por imediato.
— E você está linda.
Quase caí, aquelas palavras ditas suavemente ao pé do ouvido
me fizeram arrepiar a pele imediatamente, fizeram todo meu corpo
formigar, sentia a respiração dela no meu pescoço, aquilo me dava
calafrios de excitação e eu não tinha reação alguma, só queria ficar
ali para sempre, eu a desejava com todas as minhas forças.
Ela então foi se desvencilhando devagar e mantendo o olhar fixo
em mim, permanecemos nos olhando por alguns segundos — ela
com aquele olhar intrigante, que parecia atravessar por mim, um
olhar dominante, forte, e eu com olhar totalmente vulnerável —, seu
rosto estava a poucos centímetros do meu, ela olhava dentro de
meus olhos e eu dentro dos dela, seu olhar desviava lentamente
para minha boca e aquilo estava me deixando louca, louca de
desejo, com vontade de puxá-la e beijá-la loucamente, isso durou
uns 5 segundos, quando ela se desvencilhou totalmente e abriu
rapidamente a porta.
— Vou te acompanhar até a recepção — ela saiu andando em
minha frente e eu apenas a segui, olhando o seu “caminhar”, o
movimento de seus quadris, sua cintura que se movia me deixando
tonta, ela me deixava embriagada e implorando por tê-la...
Ao chegarmos à porta que dava acesso à recepção, ela apenas
esticou seu braço e nos despedimos com aquele tradicional aperto
de mão, ela virou-se e retornou para sua sala, enquanto eu fiquei
parada na porta, em estado catatônico.
Só depois de alguns segundos consegui recobrar os sentidos e
perceber que a Shelly e a secretária me olhavam com cara de
assustadas.
— Está tudo bem, srta. Nina? — indagou a secretária,
preocupada.
— Sim, por quê?
A Shelly, percebendo que eu estava transtornada daquele jeito
por causa da Allegra, imediatamente se meteu na conversa, foi me
puxando para a porta de saída, enquanto dava uma explicação para
a secretária.
— Ela é assim, não se preocupe, por isso que amanhã cedinho
ela tem consulta marcada com um “neuro”.
Olhei para Shelly, que fez um sinal com a cabeça para eu não
falar nada, acenamos para a secretária e saímos do consultório. Eu
não conseguia falar, estava quase em estado de choque, a Shelly
me perguntava o que tinha acontecido, mas eu me limitava apenas
a dizer para ela ter calma que eu já falaria. Eu precisava respirar,
processar as informações, tomar um ar.
Descemos e fomos novamente até o café na frente do
consultório, onde pude, finalmente, contar tudo com detalhes a
Shelly. Ela me ouviu com atenção, às vezes fazia caras e bocas,
mas não me interrompia, escutou tudo, com muita atenção até o
final.
— Então, Shelly? Fiz bem em aceitar?
— Óbvio! Se você não tivesse aceitado, você estaria se
“matando” agora, e caso não estivesse, eu faria isso por você!
— Mas estou preocupada, o que direi ao seu Jordi que foi tão
gentil me liberando estes dias? E seu curso, Shelly? Apesar de que
se quiser voltar, eu entenderei.
— Nina, easy, amanhã você liga para o restaurante e fala a
verdade para eles.
— Como assim?!
— Não... Fala “parte” da verdade, diz que você recebeu uma
proposta de fazer um jantar, que é uma grande oportunidade para
teu currículo e que te pagaram uma grana preta, que não tinha
como recusar, se desculpa, obviamente, e fala para eles ficarem à
vontade em descontar estes dias, que nem são tantos assim,
apenas quinta, sexta e sábado! — falou, contando nos dedos.
— Será que vão me demitir?
— Claro que não! Você que faz daquele lugar um sucesso, vive
cheio de gente e cheio de reservas por causas das suas receitas!
Aquilo me deixou mais tranquila, mas ainda eu tinha muita coisa
para resolver.
— E você, Shelly? Seu curso?
— Vou faltar quarta, quinta e sexta, só isso! Vou poder aproveitar
mais minhas férias aqui! — ela falou aquilo radiante, alegre por ter
que ficar até o final da semana.
— Agora vamos para o ponto crucial, o que você achou da
reação dela? — perguntei ansiosa por sua resposta!
— Sinceridade, amiga?
— Claro!
— Ela é muito mais inteligente e esperta do que imaginávamos,
ela sabe que você tá “caidona” por ela, sabe que você marcou essa
consulta para poder se aproximar, e está se divertindo com isso. Ela
é muito hábil, gosta de ter poder sobre as pessoas, convidou você
para fazer esse coquetel na casa dela para te confundir, testar o
poder dela sobre você!
Fiquei pensativa com tudo aquilo e imaginando como eu estava
fazendo papel de uma “perfeita idiota”, mas resolvi arriscar a
perguntar.
— E você acha que poderá rolar algo, ou ela só está se
divertindo comigo?
— Hum... Não sei... Acho que poderá, mas não posso afirmar,
“se” ela for gay acho até bem provável, por outro lado, se ela for
hetero pode ser que ela só esteja te usando para inflar o ego dela!
— Mas e o marido dela?
— Marido?! Essa parte você não me contou! — falou espantada.
— Não sei se é marido, mas enfim, a pessoa que tem “enlace
matrimonial” com ela, provavelmente estará lá!
— Provavelmente, mas isso você vai saber sábado!
— Eu? Nós vamos saber!
— Como assim, “nós”?
— Shelly, você vai comigo! Eu até disse para ela que ia levar
uma pessoa para ajudar.
— Mas eu não sei cozinhar!
— Você não vai cozinhar, Shelly, só vai me ajudar a fazer
caipirinha e prestar atenção em tudo, eu preciso de você lá comigo.
— Tá bem, eu vou... Mas, agora vamos nessa que ainda temos
que sair, agora eu tenho um encontro!
Então fomos para o hotel nos arrumar e pegar a Olívia para
irmos ao tal bairro gay.
Eu só conseguia pensar no que ela havia me dito, no seu olhar,
seu jeito, ainda tinha impregnado em mim o seu perfume, e se eu
me concentrasse podia até sentir a sua respiração no meu ouvido,
aquilo era fantástico! Enquanto eu viajava em meus pensamentos e
recordações, a Shelly me interrompe:
— Estou um arraso, não? — ficou parada sorrindo na minha
frente.
Ela estava de vestido preto, sapatos brancos de salto alto, de
alumínio — acho —, uma bolsa de bolas pretas e brancas, e com os
cabelos presos, estava muito bem-vestida, em um estilo
“monocromático”.
— Está ótima! Como sempre!
— E você, Nina, vai trocar de roupa ou vai assim? — referindo-
se a minha roupa nova, da consulta, que eu ainda estava usando.
— Vou assim, afinal essa é melhor roupa que tenho.
Ao sairmos da porta do hotel a Shelly se aproximou de mim e
falou no meu ouvido:
— Você está linda! — imitando as palavras ditas pela Allegra
poucas horas antes, ela repetiu aquelas palavras e saiu correndo na
frente dando gargalhadas!
— Vai brincando, vai! — e saí atrás dela rapidamente
relembrando da minha Allegra...
Ao chegarmos ao Church Street, optamos por ficar no Dommus
Coffee, um café bem requintado e muito discreto, frequentado por
pessoas da alta sociedade que buscavam privacidade, foi uma
indicação da Olívia, ela conhecia bem aquele bairro. O Dommus
Coffee era um típico local romântico, pequeno, com a arquitetura
rústica e com uma iluminação aconchegante, as pessoas eram
bonitas, bem-vestidas e buscavam sossego para namorar.
Sentamos numa mesinha perto da janela, a conversa fluía tanto
que nem víamos as horas passar. Claro que a Shelly e a Olívia
falavam mais, eu estava bastante pensativa, lembrando do meu dia,
e dos próximos dias que viriam!
— Nina, qual seu signo? — perguntou Olívia.
— Meu? Escorpião... Por quê? Hum... Como você me
descreveria?
— Ah! Você é uma mulher misteriosa, tem uma capacidade de
amar profundamente, incondicionalmente, é desconfiada, dedicada
ao que realmente gosta. Você também tem um senso de justiça
aguçado e não gosta de ser passada para trás, às vezes você é
carente e insegura, mas quando ama de verdade desperta um
vulcão adormecido dentro de você e é capaz de levar qualquer
pessoa a loucura!
— Uau, Nina... Você, hein! — interrompeu Shelly.
— Eu sou assim? — indaguei.
— Claro! Faça uma autoavaliação, contate seu “eu” e a resposta
fluirá!
A Olívia era legal, mas tinha uns papos estranhos, filosofava...
Ela era engraçada.
Novamente Olívia me questiona.
— E a sua médica, Nina? Qual o signo dela?
— Hum, não sei... Mas ela está fazendo aniversário hoje!
— Taurina, na transição do signo! — espantou-se.
— O que quer dizer isso, honey — pergunta Shelly
apaixonadamente para Olívia.
— Significa que ela tem características de Touro e traços de
Áries, terra com fogo é uma combinação explosiva, perigosa,
excitante e extremamente interessante!
Eu e a Shelly nos olhamos e continuamos a prestar atenção no
que ela dizia.
— A sua médica é Cúspide Áries-Touro, certamente tem
personalidade marcante, dominante, capaz de impactar seu
ambiente com grande força e exercer controle sobre os que estão a
sua volta, sejam estes líderes ou não! Ela é influente, intuitiva e
realista!
— Continue! — falei maravilhada.
— Ela adora surpreender, é carinhosa, atenciosa, e honra com o
que se compromete. É altamente estratégica em pensamento e
ação, o que é demonstrado por toda sua capacidade de superar
desigualdades aparentemente avassaladoras, guiada por um
instinto infalível que lhe diz quando esperar e quando agir. De
completo e esmerado preparado, ela não tem pressa alguma em
alcançar resultados imediatos — concluiu Olívia.
— Nossa! É impressionante! Ela é assim mesmo! — eu disse,
suspirando apaixonada.
— Cuidado ao se apaixonar por ela, menina, ela é uma mulher
que “nocauteia”, vai com cautela para não se machucar, porque se
não der certo você ficará com cicatrizes profundas e não se
contentará com outras paixões.
— Wow! Que forte isso! — disse Shelly.
Eu me assustei com aquilo, pois eu já estava completamente
apaixonada e não havia mais volta.
— Nina, o que você pretende fazer para conquistar essa mulher?
— Olívia dispara.
Olhei para Shelly percebendo que ela havia contado
detalhadamente tudo para Olívia. A Shelly me olhou fazendo um
sinal de que estava tudo bem e que a Olívia só queria ajudar. Na
verdade também senti isso, ela era uma garota legal.
— Não sei... Farei o coquetel de aniversário dela em sua casa
sábado... — respondi.
— Mas foi ela quem te contratou, de certa forma é um
compromisso profissional... O que você fará? — disse Olívia me
questionando.
Fiquei pensando por um segundo e falei:
— Comprar um presente bem caro, bem bonito?
A Shelly se intrometeu no meio da conversa naquele momento.
— Nina, presentes caros ela vai ganhar às pencas daqueles
médicos e amigos ricos, você não tem como competir com eles
nisso.
Antes que eu pudesse dizer algo, Olívia continuou:
— Você tem que lhe dar algo diferente, original, de coração, e
dizer a ela o quanto ela é importante para você, senão de que
adianta tudo isso?
Eu pensei, mas logo concluí.
— Impossível, jamais conseguiria falar isso a ela! — falei sem
titubear.
A Shelly argumentou com Olívia, naquela hora.
— É, Olívia, eu já vi como ela fica na presença dela, não ia rolar
essa coisa de se declarar.
— Então escreva para ela, um bilhete, uma carta, escreva de
coração, extravase seus sentimentos...
Antes que ela concluísse seu pensamento eu a interrompi.
— E com que cara vou entregar esse “bilhete” a ela? É
praticamente a mesma coisa!
— Não, Nina, não é... Escreva, apenas escreva com calma,
deixa teu coração falar, não pensa no que ela vai dizer, ou qualquer
coisa do gênero, simplesmente escreva, sem pretensão, se você
achar, depois que escrever, que deva entregar a ela, tudo bem,
senão guarde a carta e quando achar interessante entregue-a, se
não achar que deva, jogue-a fora! Lembre-se, sem pretensão! O
importante é você extravasar esse sentimento que está aprisionado
dentro de você, verbalizar, exteriorizar isso de alguma forma.
Entendeu? Também pense em um presente simples, de coração,
algo que toque a sua alma de alguma forma, e não esqueça,
escreva algo... Depois você resolve se lhe entrega ou não —
concluiu Olívia com uma piscadinha de olho e segurando minha
mão.
Senti-me mais segura para tentar o que a Olívia estava dizendo,
concordei retribuindo a piscadinha.
— Nina, deixa-me ler sua mão? — disse Olívia, já manifestando
seus “poderes” em quiromancia.
Fiquei um pouco ressabiada, mas deixei, esticando minha mão
esquerda até ela para que ela pudesse ter uma visão melhor.
— O que você está vendo — disse Shelly, supercuriosa.
Ela pediu silêncio, colocando seu dedo indicador na frente de
seus lábios. Imediatamente a obedecemos, eu fiquei atenta olhando,
a Shelly sorrindo acomodou-se na cadeira, ansiosa por suas
previsões.
— Você é inteligente, Nina, precavida, tem boa saúde.
— O que mais você está vendo? — falei, ansiosa por saber algo
referente ao amor.
— Você terá uma carreira profissional fantástica e com grande
ascensão, provavelmente terá um restaurante, só seu!
Claro que fiquei muito feliz em ouvir aquilo — quem não ficaria,
afinal, ter um restaurante era meu sonho —, mesmo sendo um tanto
cética em relação a adivinhações paranormais, era bom ouvir coisas
boas, mas eu queria mesmo era saber da Allegra, foi quando
perguntei:
— Olívia, dá para saber algo sobre a Allegra?
— Sobre ela, especificamente, não dá através das quiromancias,
teríamos que usar outros métodos, o que posso ver é a linha do
amor, que a inclui, correto?
— Sim! — respondi empolgada. — E o que você vê na minha
linha do amor?
Ela olhou, puxou minha mão para mais perto de sua visão, fez
uma expressão confusa e disse:
— Sua linha do amor até certa parte segue em uma sequência
linear, mas aqui — e colocou seu dedo em cima da linha localizada
na minha mão — ela está desuniforme, interrompida e se apaga,
não consigo determinar o final dela com exatidão.
Eu me assustei com aquilo, não havia entendido “patavinas”,
mas sabia que havia algo errado.
— E o que isso quer dizer exatamente? — questionei.
— Essa é uma leitura subjetiva, interpretativa, mas, pelos meus
conhecimentos, mostra que você terá uma grande “desilusão” que
abalará demais sua vida.
A Shelly se meteu imediatamente fazendo a sua interpretação e
ao mesmo tempo tentando me despreocupar.
— Ah! Mas isso já aconteceu! Ela já teve a desilusão dela, com a
Clara, está bem recuperada, não é Nina?
— Sim... — mas continuei pensativa.
— É... Pode até ser... Mas não tenho certeza de que seja isso, o
ideal seria jogarmos Tarô, teríamos uma visão mais nítida dessa
situação — disse Olívia, não muito convencida com a conclusão de
Shelly.
— Desculpe, Olívia, não acho que devíamos... Não sou adepta a
adivinhações, gosto de viver um dia de cada vez sem grandes
expectativas — disse, rindo em conta do ceticismo.
Ela acatou minha decisão e então se levantou.
— Garotas, com licença, vou limpar o corpo e purificar a alma,
quando eu voltar quero analisar você, Shelly! — e saiu divertindo-se
com a situação.
— O que ela foi fazer, Shelly?
— Traduzindo, ela foi fazer xixi!
— Ah...
Tratei logo de esquecer suas previsões e antes que eu pudesse
“dar um puxão de orelhas” na Shelly por ela ter fofocado a minha
vida inteira para a Olívia, ela se adiantou mostrando-me um casal
apaixonado, trocando carícias, quase ao nosso lado.
— Nina, tá vendo a mesa aqui ao nosso lado — a Shelly apontou
discretamente para a mesa do nosso lado direito.
— Sim... O que tem?
— Tá vendo aquela loira, de cabelos longos, com aquele cara?
— Sim, o que tem ela?
— Ela é o tipo de mulher “com classe, de roupas finas, de bom
gosto”, que eu disse para você lá na piscina que me atraía!
— Mas essa mulher é mais velha... Deve estar na casa dos 30 e
poucos... Vai me dizer que agora você gosta de mulheres mais
velhas também?
— E desde quando mulheres na “casa dos 30” são velhas? A
Olívia tem 32!
— Tem razão, não são mesmo, e na “casa dos 40” são melhores
ainda!
Falei referindo-me à Allegra e continuei:
— Mas e a Olívia? Você já vai cair pro lado da “loirosa”?
— Não, boba, só queria te provar que você estava errada.
— Ai, Shelly... Tá bem, você provou, agora eu vou descrever
você antes que Olívia chegue! — peguei a mão dela e fiz cara de
concentrada. — Você é muito teimosa, tem grande tendência a
poligamia, é muito fofoqueira e é a melhor amiga do mundo!
Abraçamo-nos e continuamos jogando conversa fora até a Olívia
juntar-se a nós novamente e nos hipnotizar com seus contos e
adivinhações. Ficamos ali até amanhecer, só fomos embora ao
fechar o café...
Na manhã seguinte, tive tempo para ligar e conversar com seu
Jordi, que se mostrou compreensível e solidário, fui também ao
aeroporto e troquei as nossas passagens para Montreal, para
domingo à noite.
À tarde, com todo aquele dinheiro que a Allegra havia me dado,
além de separar o dinheiro para o material do coquetel, pude
comprar uma Doma para mim, outra para Shelly, comprei facas e
utensílios para levar no sábado e aproveitei também para comprar
um celular, assim eu teria algum número próprio e evitaria ter de
passar o número do restaurante, além de ser uma ótima desculpa
para de alguma forma passar meu número à Allegra, retribuindo a
sua gentileza em ter passado o seu número pessoal.
Naqueles dias que se sucederam confesso que às vezes
pensava no que Olívia tinha me dito e me preocupava pensando na
hipótese remota de terem algum fundamento aquelas adivinhações,
temia que eu estivesse gastando todas minhas energias e
expectativas na Allegra em vão e que isso causasse uma desilusão
muito pior do que a que tive com a Clara...
Mas logo o pensamento passava e eu me ocupava planejando o
que serviria no coquetel da minha amada, teria que fazer algo
simples, como ela havia me pedido, mas que fosse marcante e que
a surpreendesse de alguma forma. Contatei alguns fornecedores
para conseguir produtos difíceis de encontrar aqui no Canadá e me
ocupei tanto com todos aqueles preparativos que nem percebia que
a Shelly ficava mais tempo com a Olívia do que comigo, o que era
bom, pois ela estava se divertindo e eu fazendo meu trabalho com
toda calma do mundo.
Capítulo 5

Naquela manhã, após uma noite conturbada e muito ansiosa,


acordei supercedo, tinha que confirmar a entrega dos insumos na
casa da dra. Allegra. Pretendia estar na casa dela no máximo às
10h, pois às 11h os produtos começariam a chegar e eu deveria já
estar com tudo organizado, sabia que ela não estaria lá pela manhã
e isso me deixava um pouco mais calma.
Após confirmar as entregas com os fornecedores e estar com
tudo organizado, desci e fui andar na rua. Ainda tinha algum tempo
antes de sairmos para a casa dela, então aproveitei para “colher” o
presente de aniversário da minha amada. Era primavera e a cidade
estava coberta de flores, colhi 9 tulipas lindas, não imaginava algo
mais simples e que expressasse mais os meus verdadeiros
sentimentos quanto aquelas flores. Juntei aquelas longas tulipas de
um vermelho vivo e as coloquei dentro de um vaso de vidro, que
comprei de um artesão quase em frente ao hotel, então só me
restava subir para o quarto e escrever um bilhete ou uma carta a
ela, com tudo que eu realmente gostaria de dizer-lhe, mesmo
sabendo que eu jamais a entregaria.
Fiz silêncio ao entrar no quarto, a Shelly ainda dormia. Me pus
sobre a cama e com uma caneta e uma folha de ofício sobre um
livro me permiti escrever, escrevi como se realmente fosse dizer
tudo aquilo diretamente à Allegra, com sinceridade, sem pensar se
entregaria ou não aquilo um dia, simplesmente abri meu coração.
— Nina? Bom dia! O que está fazendo? — disse Shelly baixinho,
ainda sonolenta.
— Bom dia, estou escrevendo a cartinha para Allegra...
— Que bom, termine enquanto vou me arrumar, faz com calma,
tá? — disse, solidária.
A Shelly foi para o banho e eu continuei escrevendo, acho que
ela realmente entendia a importância daquilo, pois pela primeira vez
em todo aquele tempo ela tomou banho em silêncio!
Terminei a cartinha e coloquei-a dentro de um envelope
vermelho.
Enquanto me arrumava e me preparava para o grande dia, a
Shelly saiu do banho e perguntou-me:
— Escreveu, Nina?
— Sim, está ali — apontei para o criado mudo ao lado da cama.
— Posso?
Ela fez um sinal sondando se poderia lê-la, eu confesso que me
senti um pouco contrariada, mas sabia o quanto ela se importava
com toda aquela situação e o quanto ela estava nessa comigo,
então eu mesma alcancei a ela e fiquei observando-a. Ela pegou o
envelope, com cuidado abriu e começou a ler atentamente a minha
cartinha...
Querida... Posso te chamar assim?
Que audácia a minha, não?
Eu deveria estar escrevendo apenas um cartão de aniversário,
colocando aqui o trivial para essa data, desejando-lhe ótima saúde,
muito sucesso, paz e amor... Amor! Ah, essa palavra que está me
impulsionando e me fazendo perder as noites de sono. Sei que para
você sinceramente isso não deva ser novidade, você é inteligente,
esperta, e eu nada discreta (por mais que eu me esforce em ser),
estou “dando bandeira” a toda hora!
Juro que queria ter coragem de entregar-lhe esta carta, mas
duvido que um dia eu consiga, só de pensar começo a suar frio...
Queria ter a coragem de olhar para dentro dos seus olhos negros e
dizer o quanto você me inspira, o quanto mexe comigo, o quanto eu
te desejo, o quanto o teu sorriso emoldurado pelos teus lábios
desperta em mim uma vontade absurda de beijá-los... Queria por
um dia apenas que fosse poder te tocar com intimidade, sentir o teu
corpo colado no meu e te agradecer todos os dias por me permitir
esse momento... Sabe, Allegra, desde que te conheci só existe um
desejo habitando o meu pensamento, o de sentir cada centímetro da
sua pele, seus suspiros mais profundos, o calor das suas mãos
percorrendo o meu corpo e a maciez dos teus cabelos desabando
sobre mim.
Ah! Que utopia a minha... E eu, fantasiando tudo isso, sabendo
que você tem alguém, que sua vida é estruturada, organizada e bem
resolvida, muito aquém destas paixões bobas, de garotas como eu,
que parecem adolescentes... Peço que não me entenda mal, releve,
use isso como uma lembrança ou até para massagear seu ego, mas
lembre-se que por trás dessa garota aqui, tímida, meio sem jeito e
com dificuldade em usar as palavras, existe uma mulher que te
deseja intensamente, e que trocaria anos de sua vida por alguns
instantes junto de você...

Com todo amor,


Nina

Ela terminou de ler, guardou a carta dentro do envelope,


colocou-o sobre o criado mudo e disse:
— Nina, está lindo... Fiquei até emocionada, você tem que
entregar a ela!
— Não, sem chance, já está pensado e repensado. Não teria
coragem de olhar para ela, fiz como sua namorada disse,
simplesmente escrevi, extravasei, estou me sentindo mais leve por
isso, mas entregar a ela nem pensar... Um dia quem sabe...
— Entendo, Nina, mas reavalie, nós estamos aqui, depois de
meses de espera, ela convidou você para ir casa dela, falta agora a
tua parte... Pense em tudo isso que está acontecendo!
— Shelly, eu fiz tudo que pude, confesso que fiz até mais do que
imaginava, claro que devo muito a você, mas só vou dar-lhe as
tulipas e o resto eu deixo para o destino...
Shelly olhou para o vaso com as tulipas, sorriu e disse...
— Ela vai adorar! Tenho certeza!
Abraçamo-nos e ficamos em silêncio por alguns instantes, então
peguei meu estojo de facas, o endereço dela e as flores, e como eu
estava com as mãos ocupadas, pedi a Shelly que fechasse o quarto,
então fomos até o táxi que nos levaria à casa da dra. Allegra
Cavazza!
Ficamos quietas quase o caminho inteiro, o silêncio só
desapareceu quando a Shelly exclamou:
— Nossa, que lugar lindo!
O motorista do táxi imediatamente respondeu rindo.
— Sim, Forest Hill, aqui é um dos bairros mais chiques de
Toronto, só tem mansões, vocês não conheciam?
— Não! — respondeu Shelly.
E a conversa continuou entre os dois.
— Vocês não são daqui?
— Não, somos brasileiras, estamos morando em Montreal,
viemos aqui para Toronto para fazer um evento na casa da dra.
Allegra Cavazza, uma cardiologista, a Nina é chef de cozinha! — e
apontou para mim cheia de orgulho.
— Que maravilha! Gente rica é outra coisa, podem dar-se a
estes luxos... Eu acho que conheço essa médica da televisão, ela é
bem conhecida aqui, é uma morena bem bonita, né?
A Shelly toda sorridente respondeu:
— Sim, é essa mesma!
Então o taxista diminuiu a velocidade do carro e apontou para
uma das mansões do bairro.
— Meninas, acho que chegamos! Pelo endereço, é esta casa
aqui na esquina.
Quando olhamos quase não acreditamos, era realmente uma
mansão, aquelas de novela, coisa de cinema. Agradecemos ao
taxista tão prestativo e descemos.
Ficamos paradas, boquiabertas, olhando aquela casa que
ocupava meio quarteirão, era uma casa branca, com um formato
meio “arredondado”, janelas enormes de vidro, uns três andares e
um portão branco gigantesco na frente, esse era o único empecilho
que atrapalhava a visão daquela casa monstruosa. Estávamos
realmente escandalizadas com a grandeza daquele lugar.
Ao nos aproximarmos do grande portão, um segurança veio ao
nosso encontro.
— Bom dia, posso ajudá-las?
— Sim, viemos a pedido da dra. Allegra — a Shelly respondeu.
Ele então entrou na sua guarita ao lado do grande portão, olhou
uma anotação e de lá perguntou:
— A srta. é a Nina?
— Sim! — respondi.
— Podem passar, a doutora deixou autorizado!
Nos olhamos e calmamente nos aproximamos do enorme portão
que se abriu lentamente à nossa frente.
— A senhoras podem entrar pela porta principal, seguindo
sempre em frente.
— Obrigada... Ah! Chegarão alguns insumos para o coquetel de
logo mais à noite, você poderia nos avisar quando chegarem? —
perguntei ao segurança.
— Me passe a listagem de quem virá, eu mando entrar pela
garagem e avisá-las.
Imediatamente deixei com ele a relação dos fornecedores e
seguimos em frente, era tudo lindo, passando o enorme portão
visualizamos um jardim maravilhoso, com a grama verde, bem-
cuidada, muitas flores e árvores aparadas ornamentalmente. Do
lado direito ficava a garagem, não dava para ver bem, mas havia
dois carros dentro, um “sedan” prata e uma camionete preta, fiquei
vislumbrando aquilo e imaginando qual seria o carro dela, era muita
emoção, quase indescritível!
Vinte metros à frente — em meio àquele imenso jardim — dava
para avistar uma enorme porta de vidro jateado, e naquela hora eu
agradeci o fato de a minha amada não estar lá, eu não aguentaria. A
Shelly olhava para todos os lados, estava tão impressionada quanto
eu, nós nem falávamos, apenas ficávamos admirando tudo a nossa
volta. Realmente aquele era um mundo à parte, muito distante do
meu.
Ao subirmos aquela escada de mármore branco e ficarmos em
frente à grande porta de vidro, percebi que apenas nos restava tocar
a campainha e aguardar; porém antes mesmo de tocá-la
observamos um vulto através da porta, que se aproximou e logo
abriu um dos lados da imensa porta de duas partes. A figura de uma
senhora aparentando uns 60 anos, gorda e cabelos grisalhos presos
sob uma touca de tela branca, nos recebeu com um sorriso no rosto.
— Olá! Qual de vocês é a Nina?
— Sou eu, e essa é a Shelly, minha assistente — apontei para
Shelly, que imediatamente fez uma expressão bastante séria e
muito profissional, me deu vontade de rir.
— Eu sou a Emma, secretária da dra. Allegra. Por favor, me
acompanhem, vou mostrar para vocês a cozinha e o vestiário onde
poderão se trocar. Fiquem à vontade e qualquer coisa me
perguntem. Eu sempre fico por perto, para lá e para cá, deixando
tudo em ordem.
— Obrigada, pode deixar! — disse Shelly, empolgadíssima.
A seguimos pelo hall de entrada e logo ficamos novamente
abismadas com aquela casa. Tudo era muito grande, muito
iluminado, janelas enormes, uma decoração belíssima, muito
mármore branco e quadros lindíssimos. Antes de chegarmos na
cozinha nos deparamos com a sala principal, e a Shelly não se
conteve naquela hora.
— Minha nossa Senhora!!
A dona Emma abriu um sorriso achando graça da reação da
Shelly e falou com tranquilidade.
— É, minha filha, tudo aqui é muito bonito mesmo. Eu também
fiquei deslumbrada quando vim trabalhar aqui quatro anos atrás.
Hoje já estou acostumada, só que, por trás de tanto luxo, existem
escadas que tenho que subir e descer, pátios compridos e peças
amplas, não há coluna e pernas que resistam depois de certa idade!
Vocês são jovens ainda, não entendem, mas daqui a uns anos irão
me compreender!
A Shelly continuava estática, nem sequer respondeu para dona
Emma. Eu respondi para não ficar chato, pois a Shelly nem piscava
olhando aquela sala enorme de piso branco. Um aquário marinho de
mais de 10m de comprimento ocupava uma das paredes. Tudo era
clean, as combinações misturavam-se perfeitamente junto com a cor
branca e tons oliva. Era de extremo bom gosto. Quatro ambientes
finamente decorados junto a um mezanino compunham
perfeitamente aquela sala. A parede que dava para os fundos
daquele enorme ambiente era toda de vidro... Para deixar ainda
mais atraente aquele cenário, ao fundo, no canto esquerdo, entre
duas portas brancas, uma enorme escada de mármore branco com
corrimão de vidro que espetacularmente adornava aquela sala
belíssima; juntamente com sofás enormes, poltronas modernas,
uma mesa de jantar para 20 pessoas com cadeiras no tom oliva
fazendo com que tudo combinasse entre si e confirmasse o bom
gosto depositado naquele espaço. Mas o que mais me impressionou
foi que do lado esquerdo, perto da escada, sob um enorme lustre de
cristal, repousava um piano de cauda branco que chamava a
atenção por sua imponência. Era surreal!
— Dona Emma, quem toca piano? — perguntei meio sem jeito.
— A dra. Allegra toca muito bem, mas ela pouco tempo tem,
então faz horas que não a vejo tocar, e a dona Diana fez algumas
aulas particulares, mas não foi muito adiante, ela não gosta, prefere
ficar na academia e ir aos shoppings.
Eu e a Shelly nos olhamos, mas eu não tive coragem de
perguntar quem era “Diana”. Mas a Shelly não me decepcionou.
— Diana?
— Sim, a esposa da dra. Allegra — respondeu ela, indo em
direção à cozinha.
A Shelly me olhou com os olhos arregalados, eu não sabia se eu
ria ou chorava, no fundo eu não estava preparada para aquilo, me
deu um aperto no peito e vontade de sair correndo.
— E ela está em casa? — emendou Shelly.
— Sim, ela está lá em cima, está dormindo, ela acorda tarde,
então antes do meio-dia vocês não a verão, com certeza.
Ainda espantadas a seguimos até a cozinha, claro que também
era enorme, muito maior que meu apartamento em Montreal, tinha
tudo que se possa imaginar ali, era quase como a cozinha do
restaurante, só que era tudo muito bem decorado, muito bonito,
eletrodomésticos de aço, com controle digital, armários que
ocupavam toda a extensão da parede, mais um janelão — este
atrás do balcão — que dava uma visão panorâmica para o gramado
enorme com uma casa menor ao fundo, branca com janelas verdes.
Dali dava para ver também uma piscina enorme, de borda infinita,
com uma cascata na sua outra extremidade; um quiosque estilo
tropical com cadeiras e mesas sob ele, este ficava ao lado direito da
piscina, uma quadra de tênis e uma academia envidraçada, do lado
esquerdo, era tudo em proporções cinematográficas.
Eu ainda estava atordoada com a descoberta, afinal saber que
ela era casada com outra mulher me abalou, mesmo sabendo que
existia uma possibilidade remota disso acontecer.
Larguei o vasinho com as tulipas sobre um dos balcões e fomos
até o vestiário para funcionários — que ficava do lado de fora, bem
do lado da cozinha — para nos trocar. Era um vestiário grande, com
chuveiros, armários e até duas camas, percebi que para manter
aquela casa ela devia ter muitos funcionários trabalhando ali, fora os
que ficavam permanentemente morando na casa auxiliar... Eu sabia
que ela era rica, mas aquilo fugiu completamente de minha
imaginação.
— Meninas, fiquem à vontade, mexam no que for preciso e me
chamem se precisarem de algo — disse dona Emma.
Ela virou-se e saiu para algum lugar daquela casa imensa, e eu
e Shelly começamos a nos trocar em silêncio. Depois de alguns
minutos falei...
— Shelly?
— Oi.
— O que você achou de tudo isso?
— Sinceridade, Nina?
— Claro, né!
— Tirando que essa mulher é podre de rica, esbanja poder e é
gay... Acho que a Olívia tinha total razão...
— Como assim?
— Tenho medo que você se machuque, acho que é tudo ou
nada, Nina, você vai ter que lutar ferozmente por essa mulher,
porque pelo pouco que percebi essa tal de Diana não vai largá-la
tão fácil... Olha a vida que essa mulher leva! Não trabalha, dorme
até tarde e vive em shoppings e academia, deve apenas ter a difícil
missão de “torrar” o dinheiro da tua médica todos os dias!
Eu baixei a cabeça e tive total certeza de que a Shelly tinha
razão, estava triste, mas ao levantar a cabeça e ver a Shelly vestida
com a doma, de bandana e avental, me deu vontade de rir, ela não
combinava com aquilo, mas demonstrava que ela era uma amiga de
verdade.
— Obrigada, Shelly... Te devo todas!
— Vamos lá! Não vamos desanimar, temos que surpreender tua
médica!
Saímos do vestiário e não consegui me conter.
— Ela é gay, Shelly! Não posso acreditar! — estava incrédula.
— É... Nem eu acreditei! Sorte nossa!
— Sabe, no fundo eu queria muito, afinal seria teoricamente
mais fácil, mas Shelly, fiquei chocada, a Allegra não parece. Não
tem o menor “jeito”.
— E você por acaso “parece”, Nina?
— Acho que não...
— Então, boba! Agora vamos!
Fomos até a cozinha e começamos a receber os produtos
que os fornecedores começavam a entregar, eram caixas e mais
caixas.
— Quanta coisa, Nina!
— É bastante! Isso que é para poucas pessoas, imagine se
fosse para muitas!
— Mas e o que exatamente eu farei? Não sei fazer nada!
— Shelly, por enquanto você vai me ajudar, vai fazendo o que eu
disser e depois sim, aí quero que você ligue o teu “radar” e dê enter
em tudo!
— Pode deixar! — disse Shelly, pegando as caixas e abrindo-as
com cuidado.
— Vou tentar adiantar tudo, porque quando ela chegar, se já
estiver tudo encaminhado, posso tomar uma ducha e ficar
apresentável.
— O que vamos preparar? Não sei nem por onde começar!
— Bom, ela pediu coquetel com caipirinha, isso é sinônimo de
canapés com caipirinha. Além disso, obviamente, faremos,
carpaccio, pamonha e camarões gigantes na moranga! Serviremos
sucos e caipirinha! Agora olha o que tem nessa caixa aí do teu lado!
— apontei para uma caixa grande fechada encostada na geladeira.
A Shelly abaixou-se e abriu rapidamente a caixa.
— Ué? O que tem? Isso é vinho!
— Sim, mas não qualquer vinho, é um champanhe,
especificamente um Bollinger Special Cuvée, que é um dos
champanhes de referência absoluta, fica entre os cem melhores
vinhos do mundo!
A Shelly ficou me olhando, olhava para aquelas garrafas com
uma cara de que não entendeu nada.
— Nina, vamos ver se eu entendi... Pelo jeito isso deve ter
custado uma nota preta! Correto?
— É... Mais ou menos... Mas afinal, eu tinha que gastar o
dinheiro que ela me deu de algum jeito e também é uma forma de
impressioná-la, lembra?
— Mas ela pediu que você comprasse bebidas?
— Não, só caipirinha, estas champanhes são por minha conta,
tenho certeza de que esse coquetel vai ficar à altura desse palacete!
— Agora senti a sua energia positiva fluindo! — disse Shelly,
empolgada!
— Vamos lá! Mãos à obra, quero fazer doze tipos de canapés,
com salmão, caviar, foie gras, trufas negras, fora as pamonhas,
carpaccios e os camarões, então temos muita coisa a fazer!
Começamos a preparar tudo, conversando e produzindo, tudo
estava correndo perfeitamente bem. A dona Emma às vezes ia até a
cozinha, ficava um pouco ali, perguntava como era uma coisa e
outra, conversava bastante, pois ela adorava “bater um papo”! Ela
ficou mesmo encantada com o cozimento da “pasta” da pamonha
dentro das próprias folhas do milho verde, achou diferente, e eu
estava me divertindo muito, quase esqueci onde eu estava e por
quem eu estava ali.
Quando, sem mais nem menos, aparece na porta uma loira alta,
cabelos longos, olhos verdes, toda arrumada — bonita é verdade —
mas superantipática.
— Emma? Vou sair, vou almoçar com umas amigas, você sabe a
que horas a Allegra chega? O celular dela para variar está desligado
— falou a loira, sem paciência.
— Ela ligou pela manhã bem cedo, dona Diana, você ainda
estava dormindo, ela não quis acordá-la, disse que entraria para
uma cirurgia e logo após viria para cá, disse que pretendia chegar
até umas 16h.
— Ah... Tá bom... Não sei por que ela inventa essas “festinhas”
se nem está em casa! — resmungou a antipática. — Até as 18h
estou de volta, nem adianta eu vir antes porque ela sempre se
atrasa.
Deu as costas e saiu, nem nos cumprimentou por mínima
educação, resumindo, a mulher era “uó”!
— Essa menina não para em casa! — disse dona Emma com ar
de reprovação. — Ela não queria fazer nada aqui hoje, disse que é
só para dar bagunça... Não sei por que ela se preocupa com isso se
não é ela que limpa!
Percebi que a dona Emma não aprovava a vida que a Diana
levava, percebi também que ela gostava muito da Allegra. E
enquanto a dona Emma saía da cozinha indo atrás da Diana, eu
fiquei imaginando que aquela era a mulher que dividia a mesma
cama com a minha Allegra, que ela a tinha sempre por perto e que
podia beijá-la a qualquer hora...
— Nina? — a Shelly me chamou baixinho com uma expressão
apavorada.
— Quê?
— Você viu a mesma coisa que eu?
— Sim, que essa mulher se acha a pessoa mais importante do
mundo e que não é nada educada...
— Não, Nina! Nada disso! Essa mulher é aquela que estava no
Dommus, na mesa do lado da gente, junto com aquele cara
trocando beijos apaixonados!
— Imagina, Shelly, você tá confundindo!
— Eu, confundindo?! Tenho certeza! Me chamou a atenção
porque ela fazia o meu tipo, lembra? Mostrei para você!
— Será?! — pensei, tentando lembrar da fisionomia da mulher
do café, mas ainda não tinha certeza e achava que a Shelly
estivesse delirando.
— Com certeza! Essa vaca infiel tá traindo tua mulher!
Fiquei pensativa por alguns instantes... E de repente me veio
uma lembrança de algo que havia acontecido.
— Shelly! Lembrei de algo que vem ao encontro da tua
afirmação!
— O quê?
— O dia em que supostamente “a vimos” no Dommus foi o
mesmo dia da minha reconsulta, e a Allegra recebeu uma ligação
estranha no celular, que acredito ter sido dela... Me chamou a
atenção que a Allegra confirmou que a viagem dela para NY estava
acertada! Será que era tudo premeditado?
— Lógico, Nina!
— Meu Deus! E agora?
— Calma, Nina, vamos fazer de conta que nada aconteceu,
porque da mesma forma que nós a reconhecemos ela pode nos
reconhecer, vamos ficar na nossa e à noite observar, aí teremos
alguma ideia do que fazer.
— Tá bem... Não tinha pensado nisso, você tem razão.
Fiquei impressionada com aquilo, e tentando puxar a memória
para eu ter a mesma certeza que a Shelly tinha em relação a ser a
mesma pessoa... Mas continuamos o trabalho sem parar, e às
14h30 já estávamos com tudo adiantado e organizado, só faltavam
alguns detalhes e a montagem — esta eu teria que caprichar muito
para impressionar minha amada. Aproveitei a tranquilidade do
momento para tomar água, lavar o rosto e me recompor.
Quando, pontualmente às 15h, escuto passos — com barulho
característico de saltos — se aproximando, escuto também a voz da
Allegra. Eu e a Shelly nos olhamos e eu fiquei nervosa, meu
coração parecia que tinha parado, e antes mesmo que eu pudesse
emitir qualquer som ou ter alguma reação, vejo a Allegra entrar na
cozinha, elegantérrima, com óculos escuros enormes, uma blusa
vermelha, uma calça social de “corte masculino”, sapatos de bico
fino, com uma pequena mala nos braços e um largo sorriso no rosto.
— Olá, garotas! Pelo cheirinho deve estar ótimo! — falou
brincando, super-simpática de uma forma que eu nunca a tinha
visto, ao mesmo tempo em que tirava os óculos escuros.
— Espero que esteja — sorri, meio sem graça. — Esta é a
Shelly, minha assistente.
— Muito prazer, Shelly, fique à vontade em minha casa, vou me
trocar e depois volto com mais calma — ela virou-se e saiu deixando
o rastro daquele perfume enlouquecedor.
— Nina! Essa mulher é escandalosamente sofisticada! Você viu
os óculos Chanel dela? E não é falsificado!
— Vi, Shelly... — apenas concordei, mas não tinha prestado
atenção nesse “detalhe”.
— Nina, me responde como ela se casou com a “loura”?
— Boa pergunta, Shelly! — respondi, ainda sob o efeito causado
pela presença dela.
— Nós vamos descobrir! — desafiou Shelly.
Continuamos a fazer nossos canapés, eu já estava iniciando a
montagem — ainda entorpecida pela presença dela — e ensinando
a Shelly a fazê-los também, assim adiantaríamos bastante.
Eu queria que a Allegra e seus convidados conhecessem um
pouco da gastronomia brasileira, queria apresentar-lhes “algo mais”
junto aos canapés tradicionais, foi então que resolvi, na última hora,
improvisar, e além dos pratos típicos brasileiros que eu já tinha
incluído no coquetel, apostei numa iguaria que no Canadá era
totalmente desconhecida, o brigadeiro!
— Shelly, faremos brigadeiro!
— Faremos? — indagou ela.
— Sim!
— Mas, Nina, eu sei que não entendo muito disso, longe de
criticar você, mas estamos preparando uns canapés maravilhosos,
finíssimos, confesso que estou impressionada com teu talento,
nunca tinha visto canapés tão lindos e tão gostosos, mas você está
misturando pamonha e brigadeiro... Não acha meio brega isso?
— Ai, Shelly, você me faz rir... Seria brega se estivéssemos no
Brasil, pamonha, brigadeiro, camarão na moranga, são pratos
típicos de lá e que não existem aqui, portanto junto aos canapés
maravilhosos que estamos fazendo estaremos apresentando algo
que eles nunca comeram, serão verdadeiras iguarias, pode ter
certeza de que essas coisas tão simples para nós serão o centro
das atenções para eles!
— Ah... Nem tinha pensado nisso, você é esperta Nina!
— Não é esperteza, faz parte da minha profissão... — sorri para
Shelly.
Nisso a dona Emma entrou na cozinha notoriamente encantada
com os canapés que estávamos montando.
— Posso ficar olhando? — perguntou dona Emma, deslumbrada.
— Claro que sim! — respondi imediatamente.
Quando escuto três batidinhas na porta que estava aberta.
— Posso entrar? — era Allegra, falando em tom de brincadeira.
Como eu “travei” ao vê-la — para variar —, a Shelly resolveu a
situação bem a sua maneira.
— Entre, faça de conta que a casa é sua! — falou
descontraidamente.
Ela se aproximou da bancada onde estavam os canapés e ficou
admirando-os com um olhar detalhista.
— Estão lindos! — disse ela, com sua voz macia.
Eu fiquei olhando para ela e quase não a reconheci, ela estava
de calça jeans, uma blusa justa de alcinhas, branca, com alguns
bordados em cristais na parte da frente, estava de cabelos presos, o
que deixava seu rosto perfeito ainda mais à mostra, era
impressionante o que aquela mulher causava sobre mim...
— Posso experimentar um, Nina? — perguntou ela, olhando em
meus olhos.
— Lógico! Escolha o que quiser! — respondi, nervosa.
Ela escolheu o de trufas negras, mordeu com delicadeza e ficou
saboreando com muita calma, e ao mesmo tempo em que
saboreava ela fazia um sinal de positivo com a cabeça, o que me
deixou mais aliviada.
— Está excelente! — exclamou.
Sorri e agradeci.
— Ah, dra. Allegra! — falei meio sem pensar.
Ela olhou para mim e não deixou eu concluir.
— Nina, me chame de Allegra, quando estou em casa sou
apenas Allegra — ela deu aquele sorriso de cumplicidade que eu já
conhecia.
— Tá bem... Allegra...
Aproximei-me até as tulipas e alcancei a ela dizendo com certa
vergonha e com um tanto de coragem:
— Trouxe para você, são simples, mas é de todo meu coração.
Ela aproximou-se e as pegou com um sorriso imenso nos lábios.
— São lindas! — disse com os olhos brilhando.
Eu senti que ela havia gostado e que eu a havia realmente
surpreendido com a simplicidade do presente.
— Desculpe lhe dar agora, mas eu não sabia a que horas seria
melhor dá-las a você, pensei que depois, com os convidados, seria
mais tumultuado.
Ela ouviu o que eu disse e virou-se para dona Emma, que estava
ali do nosso lado.
— Dona Emma, por favor, leve as minhas lindas flores ao meu
escritório, quero que elas fiquem sobre a minha mesa — ela
entregou-as a dona Emma, que imediatamente a atendeu.
Então, a Allegra espontaneamente aproximou-se de mim e
abraçou-me — eu espantada —, a abracei instantaneamente e
novamente tive aquela sensação maravilhosa somente comparada
ao êxtase!
— Obrigada, Nina, tenho certeza de que este será o presente
mais sincero que receberei hoje — ela falou baixinho olhando para
mim.
Ela encontrava-se novamente a centímetros do meu rosto e
minhas pernas começaram a amolecer, senti que eu poderia “dar
algum vexame”, tentei imediatamente mudar o meu foco de
pensamento e sair daquele transe, mudando de assunto.
Então tirei uma força sobre-humana de dentro de mim e fui me
desvencilhando devagar, e falei:
— Não precisa agradecer... A propósito, a dona Emma comentou
que você toca piano.
A Shelly estava quieta, observando tudo, percebia que ela “fazia
de conta” que estava montando os canapés, mas na verdade estava
prestando a máxima atenção.
— Toco, mas hoje em dia não tenho tido tempo, a música é uma
das minhas grandes paixões — exclamou ela com certo ar de
nostalgia.
— Mas se você gosta deveria tocar sempre que tivesse um
tempinho, isso faz tão bem... — falei sem perceber.
Notei que eu conversava com ela com facilidade e que meu
nervosismo estava controlado.
— Você gosta de piano, Nina?
— Adoro, acho lindo, gostaria de saber tocar, mas não tenho o
“dom” para isso — e então resolvi arriscar, era tudo ou nada. — Eu
adoraria vê-la tocar!
Sem perder um milésimo de segundo ela abriu um sorriso
enorme, e fazendo um sinal com a cabeça e já saindo da cozinha
disse-me:
— Vem então.
Eu olhei para Shelly atônita, que me olhou fazendo um gesto
com as mãos como que dizendo “vai logo”. Ela continuava a me
surpreender, mesmo com um ar mais “amável” como ela estava
sendo naquela hora.
Eu a segui pela grande sala e fiquei calada até chegar ao lado
daquele imenso piano de cauda, ela abriu o tampo sobre as teclas,
retirou uma faixa de veludo azul-marinho que repousava sobre elas
e sentou-se à frente daquele instrumento, olhou para mim e
perguntou...
— O que você quer que eu toque? — perguntou de maneira
suave, mas incisiva, demonstrando toda sua autoridade.
— Bem... Eu não sei... O que você preferir — eu disse
totalmente admirada, diante daquela imagem perfeita.
O piano por si só já era lindo, imagine adornado com a Allegra
junto a ele, a visão era fantástica!
Ela então se voltou de frente para o piano, ficou alguns
segundos em silêncio e com delicadeza colocou seus dedos
cumpridos sobre as teclas, o silêncio permaneceu por mais alguns
instantes quando finalmente ela “acordou” o enorme piano branco
com Quelqu'un m'a dit. Seus dedos deslizavam sobre o instrumento,
ela tocava com suavidade e com destreza... E eu, admirada ouvindo
aquela canção, que era linda e ela estava tocando para mim. Me
perguntava por que ela havia escolhido aquela música... Eu só
conseguia observá-la, extasiada.
Ousei então fechar meus olhos e me deixar levar pela emoção
do momento, a melodia era perfeita, aquela música entrava em
meus ouvidos e acalmava meu coração. Percebi que lágrimas
escorriam pelo meu rosto em virtude daquela onda de sentimentos
provocadas em mim... — é totalmente impossível descrever o
sentimento que tomou conta de mim naquela hora.
Só abri meus olhos após alguns minutos, quando o silêncio
tomou conta da enorme sala novamente. Enxuguei as lágrimas
rapidamente e a única coisa que consegui dizer ainda
envergonhada...
— Você é perfeita...
Ela sorriu e fechando o tampo do piano disse:
— Você deveria tentar, percebi que a música consegue tocar a
sua alma e isso não é a gente que escolhe, nós somos escolhidas...
Antes que eu pudesse dizer algo, o celular dela tocou e
rapidamente ela o atendeu.
— Sim?
Uma pequena pausa.
— Já estou em casa, estou te esperando.
Mais uma pausa.
— Eu também, ciao.
Só podia ser a Diana, aquele momento tão fantástico foi
interrompido por aquela mulher, eu nunca havia trocado uma só
palavra com ela, mas já a odiava.
Eu disse então...
— Desculpe, mas vou lá dentro continuar, ainda tenho algumas
coisas para fazer antes de montar a mesa e já são quase 17h, não
quero que nada saia errado... Você toca muito bem...
Ela me olhava escutando atentamente o que eu dizia, o que ela
não percebia é que cada vez que ela me olhava daquele jeito ela me
desarmava e eu ficava totalmente vulnerável!
— Obrigada, Nina, não acho que eu toque tão bem, mas aceito
seu elogio, gostaria de tocar como Marc-André Hamelin, mas aí
seria muita pretensão... — ela sorriu, mas percebeu que eu não
sabia de quem ela estava falando, então continuou mudando de
assunto, para não me deixar constrangida.
— Tenho certeza de que nada sairá errado, mas tudo bem, vá lá.
Eu me virei e fui saindo pensando quem poderia ser esse tal de
“Marc-André”, quando escuto alguém.
— Nina?
Olhei para trás e ela repetiu sorrindo.
— A música consegue tocar a sua alma... Isso é para poucos...
Ela levantou-se e subiu a enorme escada de mármore, eu fiquei
ali, estática, enfeitiçada, olhando ela subir os degraus até
desaparecer ao adentrar no segundo piso de sua bela residência.
Voltei até a cozinha, sentei numa cadeira e desabei a chorar.
— Nina... O que foi? — disse Shelly, preocupada.
— Ai, Shelly... Isso está me matando, o que sinto por ela é muito
maior do que eu mesmo supunha... Sabe, o celular dela tocou
agora, era a sua “esposa”, aquilo me matou, não sei se consigo
aguentar — eu soluçava sem parar.
— Calma, Nina, olha para mim! Eu vi o jeito que ela te olha, ouvi
tudo que ela disse a você nessa cozinha e também pude ouvir ela
tocando piano para você, percebi a música que ela escolheu... Ela
não está brincando com você!
Enxugando as lágrimas e olhando para Shelly, falei:
— Você acha?
— Acho! Claro que tudo isso é muito legal, muito cômodo para
ela, é até de certa forma divertido, mas eu percebi que ela olha para
você com carinho, ela é atenciosa, e outra, ela é que está
provocando tudo isso, a sua vinda até aqui hoje, a alteração da data
de irmos embora, a reconsulta, tudo, tudo só pode ser proposital!
— Shelly, não sei o que dizer, não sei o que pensar, só sei que
nunca senti nada parecido antes, eu “achava” que amava a Clara,
hoje percebo que não sentia nada comparado ao que sinto pela
Allegra.
— Escuta, vamos continuar, vamos deixar tudo perfeito e depois
que terminarmos você vai lá dentro, toma um banho, relaxa, troca
de roupa e tenta conseguir mais alguma aproximação com ela, eu
cuido da reposição e da organização aqui depois, tá? Sei que
vamos sair daqui tarde mesmo, então não se preocupe, só vamos
terminar de cozinhar estas coisas aqui, porque já são quase 17h30
e honestamente cozinhar eu não sei, não quero estragar todo teu
trabalho com minha incompetência gastronômica.
Respirei fundo, levantei, tomei um copo de água gelada e
começamos a trabalhar ininterruptamente, só levantei os olhos
quando eu vi a Diana chegando depois das 19h com as mãos
lotadas de sacolas Dolce e Gabana... Ela era fútil demais, mas eu a
invejava por estar tão perto da Allegra, pensava como ela podia
desrespeitar alguém que lhe dava tudo... Continuei pensando...
Finalmente tudo estava pronto, a mesa na grande sala estava
coberta de canapés, quatro abóboras gigantes lotadas de camarões
estavam ao centro, dando mais cor e criatividade. Uma mesa
auxiliar comportava os brigadeiros e as pamonhas caprichosamente
fechadas com palha de milho, outra mesa auxiliar exibia os
champanhes — imersos em baldes transparentes lotados de gelo
—, caipirinhas e sucos, as luzes estavam acesas, o enorme lustre
de cristal dava requinte logo acima do piano iluminando-o, o som
tocava uma música de fundo deixando, aquele lugar com um “ar
mágico”.
A casa estava fabulosa, o pé-direito daquela sala tinha no
mínimo uns sete metros, e junto aos grandes janelões de vidro que
se encontravam abertos dando passagem direta para o gramado
externo realmente faziam daquele lugar um local único e davam a
sensação de um ambiente ainda maior.
Vimos os convidados chegando, entre eles o dr. Alfred — o
senhor da gravata rosa, que obviamente estava vestido com ela —,
o rapaz jovem que foi a Montreal naquela ocasião também se fez
presente. Dona Emma recepcionava a todos, vimos vários
convidados, mas nada de ver a “minha” aniversariante — que devia
estar se arrumando —, apenas muitas pessoas bem-vestidas com
embalagens de presentes caríssimos.
Eu e a Shelly fomos até a sala, já lotada de convidados, para
levar os guardanapos, alguns pratos de porcelana e copos de
cristal, quando a Shelly me chamou discretamente.
— Nina, atrás de você, olha disfarçadamente — virei-me e
avistei um rapaz de terno bege, o mesmo que estava com a Diana
no Dommus!
— Shelly, é ele!! — ali sim eu tive certeza.
— Que cara de pau dessa vaca! Não basta trair, ainda tem que
colocá-lo para dentro da casa dela!
— Ele deve ser conhecido da Allegra também, o que piora ainda
mais a situação! Que raiva, Shelly!
— Com toda certeza! E que dá raiva, dá mesmo... Vamos ter que
pensar em algo!
Foi quando ouvimos os convidados aplaudindo e cantando
parabéns. Nos viramos e eu a vi descendo as escadas, linda, toda
vestida de preto, ao contrário do que eu estava acostumada vê-la,
usava uma calça de seda preta de corte reto, uma blusa cavada
justissíma também de cor preta — que permitia deixar à mostra o
contorno de seu corpo —, um salto altíssimo, uma gargantilha de
brilhantes e um par de brincos também de brilhantes que apareciam
discretamente sob seus cabelos soltos.
A Shelly me olhava e olhava para ela, rindo e fazendo um gesto
com a cabeça de que eu tinha “bom gosto”, mas logo atrás desceu a
Diana, também muito bem-vestida, estava com um vestido salmon
até o joelho e com uma sandália de strass, ela apressou o passo até
alcançar a Allegra que estava no meio da escada, rapidamente
entrelaçou a sua mão com a dela, e então desceram os degraus
restantes de mãos dadas.
Eu não conseguia ver aquilo, era difícil, me provocou uma
sensação de impotência enorme e me despertou ciúmes, mas eu
tinha que ficar até o final do “parabéns”.
Allegra agradecia com a cabeça e com seu sorriso cativante,
parecia muito feliz, quando em um determinado momento ela me
viu, percebi que segurou o seu olhar em mim por uma fração de
segundos e discretamente soltou a sua mão de Diana. A Shelly
imediatamente me cutucou com o cotovelo percebendo aquela
atitude, eu não tinha total percepção se aquilo havia sido proposital
ou não, mas pelo menos ela não estava mais de mãos dadas com
Diana...
Retornamos à cozinha, e enquanto a recepção fluía eu e a Shelly
cuidávamos da reposição, as pessoas pareciam estar gostando de
tudo, pois elogiavam os canapés e as iguarias brasileiras, repetiam
muito e não paravam de comer e beber. Eu pouco ia até a sala, a
Shelly ia com maior frequência, ela prestava atenção em tudo e
voltava me contando onde e o que Allegra estava fazendo, ela era
incansável em me descrever o que estava acontecendo lá dentro.
O movimento dos convidados era grande, algumas pessoas
circulavam no grande gramado, à beira da piscina — que da cozinha
tínhamos o privilégio de observar —, enquanto outros ficavam
sentados nos sofás da sala conversando.
— Nina! Olhe ali fora! — a Shelly falou apontando para rua.
Olhei imediatamente e vi a Diana conversando com o rapaz de
bege, o seu amante!
— O que faremos, Shelly?
— Não sei, mas temos que fazer algo!
— Onde está a Allegra?
— Vou lá dentro ver — a Shelly saiu em disparada levando
alguns canapés para disfarçar.
Enquanto a Shelly estava lá dentro eu fiquei observando pela
janela a Diana, e percebia que realmente havia algo a mais entre os
dois, pois riam muito, se tocavam constantemente.
— Ela está sentada no sofá, conversando com o médico “da
gravata” — entrou a Shelly na cozinha me contando. — Agora vou lá
na rua ver o que mais descubro! — e saiu rapidamente porta afora,
eu fiquei com medo, mas ao mesmo tempo sabia que ela não faria
nenhuma bobagem.
Como momentaneamente a Shelly não estava ali, eu mesma tive
de ir até a sala para reposição dos docinhos, fui até a sala e
discretamente com o canto dos olhos vi Allegra sentada, de pernas
cruzadas, com uma taça de champanhe nas mãos e conversando
com dr. Alfred, exatamente como a Shelly havia descrito, e percebi
que ela havia me notado ali, pois pediu licença, levantou-se e veio
em minha direção. Eu fiquei ali fazendo tempo, até ela chegar.
— Está tudo divino! Queria te dar os parabéns — disse ela,
chegando por trás de mim.
— Obrigada, que bom que gostou — virei-me, ficando de frente
com ela.
— E essa Bollinger Special Cuvée? — perguntou, mostrando a
taça que segurava em suas mãos.
— Eu trouxe, achei que iria gostar.
— Eu adorei, mas esse champanhe é caro, não fazia parte de
nosso trato.
— Foi um presente meu — falei um pouco sem jeito.
— Faço questão de reembolsá-la.
— De jeito nenhum, vou ficar muito triste se você insistir — nem
eu acreditei que eu tinha falado aquilo.
Ela sorriu, acho que um pouco surpresa, mas concordou fazendo
um sinal com a cabeça.
— Então tá, eu adorei esse presente também, mas confesso que
gostei ainda mais das tulipas.
E ela virou-se saindo dali, mas mantendo seu rosto ainda meio
de lado para mim. Eu fui lá para dentro eufórica, com o coração em
disparada, percebendo que tinha algo no ar... Eu suava, estava sem
entender direito aquilo tudo — como sempre. Nesse meio-tempo a
Shelly entra.
— Descobri! — disse, esbaforida.
— Fala logo!
— Ele se chama Bob, e adivinha? É o advogado da Allegra! —
falou, espantada.
— Meus Deus! Como você descobriu isso?
— Foi mais simples que eu imaginava, fui lá na rua ajudar a
dona Emma a recolher uns copos e ela gosta de uma conversinha,
comecei a falar como quem não quer nada, perguntei uma coisa e
outra e ela foi falando tudo!
— O que mais ela disse?
— Que a Allegra é filha única, órfã de pai e mãe, filha de um
médico italiano com uma ex-modelo mulata, nasceu na Itália e mora
aqui no Canadá desde os 8 anos de idade, fala inglês, alemão,
francês e italiano fluentemente, está casada com a Diana há três
anos, desde que a “loirosa” se separou de um gerente de uma loja
de conveniências, me parece que ela se separou do cara por causa
da Allegra, elas se conheceram por acaso em Vancouver, e a Diana
largou o marido para morar com a tua médica.
— Nunca eu ia imaginar isso! Essa mulher tem cara de que vai
dar o golpe do baú na Allegra! Nossa, como você descobriu tanta
coisa?
— A velhinha fala “pacas”, mas falando sério, também pensei
nisso!
— O que mais você descobriu?
— Hum, deixa eu lembrar... Ah! que essa casa tem 2.800 m²!
— Ah... Quero saber dela!
— Hum... deixa eu pensar... Ah! Ela me contou que o doutor da
gravata rosa é enlouquecido pela tua médica, tão apaixonado, que
ele se divorciou da esposa em nome desse amor platônico,
acredita?
— Acredito, Shelly... Eu sou a pessoa que mais acredita nisso...
E o que mais?
— Nina, a melhor descoberta nisso tudo é que a dona Emma
conta tudo! É o nosso trunfo.
— Sim, isso é verdade mesmo, Shelly, faz mais amizade com
ela.
— Pode deixar!
Nisso vi que a Shelly ficou meio desconcertada, inquieta, e
perguntou para mim como se fazia pamonha, quase lhe dei a
explicação, quando percebi que ela jamais me perguntaria isso...
Tinha algo estranho!
— Shelly? Desembucha! O que foi? Você nunca me perguntaria
como se faz pamonha!
— Nada, Nina, quero mesmo saber como se faz essa delícia! —
e se colocou na minha frente.
Percebi que ela estava querendo esconder algo de mim, quando
olhei por cima de seus ombros e através do janelão da cozinha
avistei a Allegra de mãos dadas com a Diana, elas estavam rindo,
pareciam felizes, quando a Diana a beijou de forma discreta. Eu
fiquei estática, não queria ver nem crer naquilo.
— Desculpe, Nina, eu queria ter evitado que você visse — a
Shelly disse, arrasada.
— Deixa, Shelly... fazer o quê? — lamentei. — Só você mesmo
para inventar uma desculpa tão esfarrapada como essa da
“pamonha”! — tentei descontrair e evitar de continuar olhando.
— Só foi isso que me veio à cabeça...
Nessa hora a dona Emma entrou trazendo um carrinho de copos
e louças sujas.
— Todo mundo adorou os canapés de vocês! — disse dona
Emma com satisfação.
— Que bom! — respondi imediatamente, controlando-me para
que ela não percebesse que estava atordoada.
— Tem um pessoal que já está indo embora e daqui a pouco eu
também vou ir dormir — disse ela novamente com um ar de dever
cumprido.
— Mas tem bastante gente ainda... — disse Shelly.
— Sim, mas conheço essas pessoas há anos, logo estarão indo,
já passa da meia-noite, quando for 1h30 não terá mais ninguém. Até
dona Diana já está se recolhendo, acabei de vê-la se despedindo da
Allegra.
Pensei naquela hora que infelizmente nós também tínhamos
visto...
A Shelly não podia perder a oportunidade e falou:
— Como assim, “se recolhendo”? Ela não vai ficar junto com a
esposa dela até o final da festa?
Eu só olhando o desenrolar do papo entre as duas e torcendo
para dona Emma largar mais informações.
— Ela quase nunca acompanha a dra. Allegra, que já está até
acostumada, nem se importa mais, no início lembro que ela ficava
chateada, hoje parece não se importar mais — falou novamente,
reprovando a atitude de Diana. — Para vermos novamente a Diana,
só amanhã depois do meio-dia — complementou, indignada.

Largando a louça na pia, ela foi saindo para buscar mais...


Então a Shelly segurou no meu braço e falou seriamente.

— Nina, já estamos recolhendo tudo, não precisamos mais


fazer reposição, depois que todos se forem é só guardar as coisas,
separar o que é nosso, organizar tudo aqui na cozinha e ir embora,
então, eu quero que você vá lá no vestiário agora, vai tomar teu
banho, colocar a tua roupa limpa, que eu vi que você trouxe uma
bem bonita, e deixa as coisas aqui comigo, porque se é para falar
ou fazer algo, vai ter que ser logo, pois amanhã estaremos voltando
para Montreal!

Fiquei ansiosa com aquelas palavras, mas ela tinha razão, até a
dona Emma já estava quase indo dormir, então fui para o vestiário
para ficar apresentável novamente e mais bonita, para me despedir
da Allegra.

Fiquei no vestiário uns 30 minutos, aquele banho demorado me


revigorou, me senti bem, me senti limpa, bonita e com o dever
cumprido, agora eu só precisava conseguir me aproximar
novamente da Allegra e rezar para estreitar um pouco mais a minha
“amizade” com ela.

Quando voltei à cozinha a Shelly já estava organizando tudo,


notei que não havia quase ninguém mais na casa, pois havia
silêncio e algumas poucas vozes isoladas falando. Imediatamente
me pus a ajudar a Shelly, que logo resmungou.

— Nina, de que adianta tomar banho e se perfumar toda se vai


começar a trabalhar de novo?

— Tá, parei... — sentei-me numa cadeira e fiquei observando.


A dona Emma entrou na cozinha novamente, ainda com
algumas louças nas mãos, largou na pia e nos deu boa-noite, estava
indo dormir, lavaria a louça toda na manhã seguinte.

— Adorei vocês, meninas, apareçam para conversarmos e


tomar um chazinho! A comida de vocês estava ótima! Boa noite!

Respondemos em coro para ela.

— Boa noite!

Ela saiu e depois de uns 5 minutos vejo a Allegra passando


com o médico da gravata rosa e os últimos convidados em direção à
porta, ela estava acompanhando-os para despedir-se deles.

Olhei para Shelly, nos entendemos no olhar, sabíamos que


agora seria minha última chance para falar algo a ela... Mas o que
eu diria? E em instantes escuto...

— Parabéns, meninas! Estava tudo fabuloso, não imaginaria


algo melhor do que foi apresentado — falou Allegra, chegando e
encostando-se na porta da cozinha.

A Shelly então se manifestou antes que eu pudesse agradecer.

— Não parabenize a mim, eu apenas ajudei, o mérito é todo da


nossa chef Nina, que é muito talentosa.

— Com certeza, não tenho dúvidas! — disse Allegra,


concordando.

Então fui obrigada a rir e falar:

— Eu agradeço às duas pelos elogios.

Allegra então continuou.


— Nina, sinceramente eu não sou muito ligada em cozinha, não
gosto e não sei cozinhar muito bem, mas eu adorei os docinhos de
chocolate que você fez, você se importaria de anotar a receita e
como se faz? Se eu não me aventurar em fazê-los, peço para dona
Emma, que se entende muito bem com o fogão — disse ela,
brincando.

— Claro! — imediatamente comecei a procurar por papel e


caneta olhando em volta.

— Shelly, você tem caneta? — perguntei com certa ansiedade.

— Tenho, mas na bolsa, lá no vestiário, vou pegar!

Então foi a vez da Allegra nos interromper.

— Não, não precisa, tem papel e caneta aqui no meu escritório,


você se importa de irmos ali, Nina? — ela me olhou com um olhar
sugestivo, tão impetuoso que senti que até a Shelly ficou sem jeito.

— Claro que não — saí atrás dela, seguindo-a, com uma


sensação estranha, senti pela primeira vez que pudesse realmente
rolar algo, mas isso era uma hipótese que me assustava.

Ela me conduziu até a porta branca do lado esquerdo da


grande escada, e ao entrarmos ali pude observar seu escritório,
amplo, com uma decoração muito parecida com a do seu
consultório no Medical Center, porém, ao invés de uma grande
poltrona branca atrás de sua mesa, havia uma grande poltrona
preta, na frente uma confortável cadeira, um grande sofá vermelho
no lado esquerdo e uma linda rafis logo na entrada; os janelões
eram a marca registrada da Allegra, pois ali não era diferente,
porém a visão externa estava bloqueada por uma grande cortina
branca que cobria toda aquela parede de vidro.

Sobre sua mesa, além de um notebook e alguns papéis, estava


o vaso com as tulipas que eu havia dado a ela, fiquei muito feliz ao
vê-las ali, separadas dos demais presentes que ela havia ganho,
que se encontravam amontoados em cima do sofá.

Ela pediu que eu sentasse na cadeira em frente a sua mesa,


enquanto lentamente a contornou — com toda classe que só ela
tinha — e sentou-se na sua então “poltrona preta”, assumindo a
posição de comando que ela tanto conhecia.

A figura dela me encantava, os cabelos soltos, aquele perfume


que exercia efeito alucinógeno em mim, me deixando confusa,
aquela blusa apertada que deixava à mostra seu colo e quase
permitia enxergar seus mamilos através dela. Ela era divina! Para
mim ela poderia ser perfeitamente comparada a uma grande obra
de arte.

— Viu como as flores combinaram com o ambiente? — disse,


sorrindo para mim.

— Sim, ficaram lindas.

Num movimento suave, ela curvou-se até a gaveta de sua


mesa e pegou uma chave para abri-la, e imaginei, então, que caneta
seria aquela para ficar trancada em sua gaveta, mas percebi que ela
tinha uma bem a sua frente, logo ela não estava procurando uma
caneta... Quando, de repente, eu gelei, quase caí da cadeira, tive
vontade de sair correndo ao ver o que ela tinha nas mãos,
imediatamente fui tomada por um calorão que subiu pelo meu corpo
até chegar no meu rosto. Eu realmente não sabia o que fazer,
aquela foi a pior sensação que eu tive em 28 anos!

— Nina, quero que você me responda com sinceridade, foi você


que escreveu esta carta? — empurrando na minha direção o
envelope vermelho com a carta que eu havia escrito pela manhã.

Eu só consegui baixar a cabeça e colocar minhas mãos na


frente do rosto, envergonhada e pensando como a Shelly tivera
coragem de fazer aquilo comigo? Não consegui responder nada a
ela.
Ela viu meu desespero e sorriu na tentativa de me acalmar.

— Nina, é apenas uma pergunta, só me responda, foi você que


escreveu esta carta? — ela levantou-se e contornou a sua mesa
vindo em minha direção, e então continuou. — Porque eu adoraria
que tivesse sido.

Ali uma revolução de sentimentos começou a palpitar em meu


peito, um misto de euforia, medo, alegria e incredulidade.

Ela parou de pé, na minha frente, linda, alta, toda de preto, eu


apenas me encorajei a lentamente levantar minha cabeça e com
muita vergonha olhei para cima, direto em seus olhos. Ela estendeu
sua mão, como num gesto de ajudar-me a levantar, olhei para a
mão dela parada na minha frente esperando que eu a segurasse, eu
tremia inteira, não conseguia falar nada, só senti uma lágrima
brotando em meus olhos embaçando minha visão, enxuguei-a
rapidamente e finalmente enchi-me de coragem e toquei a sua mão
que continuava esperando pela minha.

Segurei sua mão quente, de pele suave, que me puxou


delicadamente para cima e me fez ficar cara a cara com ela — cara
a cara com minha Allegra —, eu permaneci imóvel, sem reação, ela
permaneceu assim também, olhando para minha boca, quando ela
perguntou-me baixinho e pausadamente com os seus lábios quase
encostando no meus.

— Foi você que escreveu essa carta? Diga que sim, Nina.

Eu só conseguia ouvir minha respiração e o pulsar de meu


coração acelerado, então respirei profundamente e com a voz
trêmula e quase sem emitir nenhum som eu murmurei...

— Fui...

Ela então sorriu satisfeita — tinha arrancado de mim aquela


confissão —, segurou minhas duas mãos e com gesto brusco as
colocou por trás de meu próprio corpo, como que algemada,
daquela maneira ela me segurava firme e me mantinha contra seu
corpo de tal forma que eu ficasse totalmente presa, eu estava
assustada, já ela, continuava sorrindo com um ar malicioso, seus
lábios estavam tão próximos aos meus que eu quase os podia
sentir, a sua respiração estava tão perto que entrava em minhas
narinas, fazendo-me compartilhar com ela o mesmo ar, me deixando
em chamas... Fechei meus olhos e tomada de tanto desejo disse
baixinho:

— Por favor, Allegra, não me torture mais, me beija — implorei


a ela.

Lentamente ela aproximou-se ainda mais — se é que isso era


possível — e pude sentir sua boca aproximando-se da minha, senti
sua língua quente, úmida, contornar os meus lábios lentamente, me
espantei — eu estremeci —, finalmente seus lábios tocaram os
meus com vontade e sua língua abriu caminho até explorar minha
boca por completo, eu retribuí da mesma forma, senti um
formigamento em todo meu corpo, um frio na boca do estômago,
uma pressão dentro de mim e meu coração disparar
descontroladamente. Ela tinha um beijo macio, envolvente, que me
deixava fora do ar, era o melhor beijo do mundo!

Ela então soltou minhas mãos e suavemente as conduziu até


seu corpo, para que eu o tocasse, só naquele momento realmente
pude perceber o que realmente estava acontecendo, ali eu me
destravei e deixei o meu “instinto” falar por mim, segurei-a firme, a
beijei ferozmente, senti a sua respiração acelerar, me sentia cheia
de desejo, embriagada por ela e pelo seu cheiro, minhas mãos
percorriam todo o seu corpo de maneira que eu conseguia sentir
cada curva daquela bela mulher...

Ela continuava a me beijar e com a respiração cada vez mais


acelerada começou a tirar a minha blusa, eu estava tão ofegante
que a ajudei a tirar com rapidez e num instinto, impulsionado pela
minha ansiedade, logo tirei a dela também, eu precisava senti-la
ainda mais. Ao tirar sua blusa, parei, fiquei extasiada ao ver a
beleza daquele corpo quase desnudo, apenas com a gargantilha
adornando seu pescoço, sua pele morena de aparência bronzeada
me tonteava, acariciei com cuidado seus seios, contemplando-os,
percebi que ela havia ficado arrepiada e que seus mamilos estavam
rígidos.

Não conseguia mais me conter e perdendo totalmente o


controle segurei seus seios com firmeza e os beijei com muita gana,
passava a língua em seus mamilos e sugava-os com delicadeza, ela
gemia e forçava minha cabeça contra seus seios — eu não
acreditava naquilo, parecia um sonho —, ela agarrou meus cabelos
e me puxou de volta para sua boca quente que ansiava por beijos,
tanto que quase me sufocou com seu beijo ardente.

Ainda me beijando, ela me conduziu, com seu corpo grudado


ao meu, até o sofá, me derrubando sobre ele e sobre os presentes
que ali estavam. Ela permaneceu de pé, na minha frente, enquanto
eu estava totalmente vulnerável jogada ali, empurrei os presentes
para um canto e fiz menção em levantar-me, mas imediatamente ela
disse:

— Fique aí, não levante.

Eu lhe obedeci, ansiosa em saber o que ela pretendia, e foi


quando, olhando fixo em meus olhos, ela começou a mexer seus
quadris suavemente, terminando de despir-se na minha frente, de
forma muito sensual, a sua cintura movia-se de um lado para o outro
— aquilo me hipnotizou e me deixou cada vez mais excitada, eu a
desejava, a queria de uma forma louca, de uma forma que nunca
imaginei querer alguém —, quando finalmente ela ficou totalmente
nua, deixando à mostra aquele corpo atlético, malhado e bem
definido, as minhas mãos tremiam, meu corpo formigou por inteiro,
não me contive e a puxei para cima de mim...

Enquanto eu a beijava enlouquecidamente eu sentia sua pele


quente colada em meu corpo, sentia aquela mulher movimentar-se
sobre mim como uma serpente. Ela gemia, me tonteando e fazendo-
me gemer de tanto prazer. Eu deslizava minhas mãos em suas
costas e nádegas, sentindo-a cada vez fazer mais parte de mim. Eu
aguardava qualquer loucura naquela hora, eu queria pausar o
tempo.

Ela era ousada e começou a sussurrar no meu ouvido,


enquanto desabotoava minha calça e a puxava para baixo, de
maneira que eu também ficasse completamente nua.

— Você me queria, não é? Agora você tem “cada centímetro de


minha pele” em suas mãos, faça com meu corpo o que tanto
desejou... — disse ela, repetindo um trecho da carta que eu havia
escrito.

Aquelas palavras sussurradas em meu ouvido me deixaram


absurdamente desatinada, louca de tesão por aquela mulher!

Ela foi escorregando devagar sobre mim, pude sentir sua língua
macia deslizando na minha barriga, em volta do meu umbigo,
enquanto ela passava suas mãos suavemente em meus seios,
aquilo me inundou de tanto desejo, minha respiração estava
acelerando, eu precisava tê-la por completo, ali, naquela hora,
imediatamente, então, agarrei-a com força e a virei no sofá, ficando
por cima dela, ela me olhou espantada, mas com aprovação, então
eu tomei a frente daquela situação, beijava seu pescoço com força e
passava minha língua suavemente por sua orelha, contornando-a
com delicadeza, arranhava suavemente suas costas enquanto
sussurrava palavras picantes em seu ouvido.

Ela contorcia-se e gemia cada vez mais alto, deixando claro o


que estava querendo, deslizei minha mão entre suas pernas e pude
sentir toda sua excitação. A penetrei devagar, com cuidado,
fazendo-a suspirar alto e arquear seu corpo... Ela jogou sua cabeça
para trás, enquanto gemia e arranhava minhas costas
pressionando-me firme contra seu corpo, os movimentos eram
sincronizados, cada vez mais rápidos, eu me satisfazia em vê-la
ardendo de tanto prazer, mas eu precisava sentir ainda mais, seu
suor, seu sexo, tirei meus dedos de dentro dela e desci numa
velocidade impetuosa levando minha boca entre suas coxas, até
sentir seu gosto. Coloquei minha língua dentro dela, enquanto ela
me arranhava com suas unhas afiadas e implorava por mais e mais
— definitivamente ela gostava daquilo. Eu podia sentir sua pulsação
dentro de minha boca, sentia-a contorcendo-se, envolvendo-me com
seus movimentos que me deixavam quase sem ar...

Num impulso brusco ela me segurou pelos cabelos e puxou-me


com força para cima até meus lábios encaixarem nos dela, beijando-
me violentamente fazendo misturar nossas salivas e nossos gostos,
senti então os seus dedos entrarem dentro de mim — aqueles
dedos longos, de pianista —, eu estava tão excitada que
momentaneamente ela interrompeu o beijo e sorrindo de forma
maliciosa disse:

— É desse jeito mesmo que eu gosto.

Eu só consegui dizer entre gemidos e suspiros de prazer:

— Por favor, continue... mais fundo... — eu a queria por


completo, adorava senti-la dentro de mim.

Ela continuou me penetrando, com força, naquele balanço


ritmado, estávamos suadas, com a pele grudando uma na outra,
quando eu cheguei ao meu limite e não me contive mais... Senti
aquela onda elétrica tomando conta de todo meu corpo, senti meus
olhos revirarem, meu corpo se contrair, meus mamilos ficarem
rígidos e pude finalmente sentir na amplitude da palavra “o
verdadeiro prazer da carne”. Suspirei fundo e gemi forte, me
agarrando contra seu corpo, ela visivelmente satisfeita, me agarrou
ainda mais forte, e me empurrou de volta para entre suas coxas,
sem me dar nenhuma trégua, nenhuma pausa, forçava a minha
cabeça contra seu sexo e se contorcia de uma forma tão sensual
que me deixava sem fôlego, sufocada e alucinada por ela cada vez
mais.

Enquanto eu a sugava intensamente, introduzi sem piedade


meus dedos dentro dela a fazendo gemer e tremer todo seu corpo,
bastaram dois ou três minutos naquela “dança pecaminosa” para
que de repente ela cravasse sem dó suas unhas com muita força
em minhas costas — senti um misto de dor e prazer naquele
momento —, a senti arquear seu corpo e gemer de forma que
parecia um “choro”, um choro de prazer, de tesão, de satisfação, ela
ainda emitiu um suspiro profundo, deixando claro que ela havia
chegado ao êxtase, ao auge do prazer carnal, pude sentir sua
vagina se contraindo, apertando meus dedos, como se fossem
sugados, senti minha boca inundar pelo seu prazer e ainda ouvi um
último gemido, alto, quase como se desfalecesse — era
inacreditável!

Bem devagar tirei meus dedos de dentro dela e os passei em


seu lábios, contornando sua boca, ela olhou-me com um olhar
atrevido, e com seus olhos fixados nos meus sugou meus dedos, eu
a olhava fixamente, admirando-a, extasiada e satisfeita... Então me
aninhei em seu peito, senti seus braços me envolverem com
delicadeza, me senti aconchegada, isso fez com que
instantaneamente me arrepiasse — aquilo era com certeza o “ápice”
do que se pode almejar, era difícil acreditar que eu estava ali, nua
junto a minha dra. Allegra Cavazza, que tínhamos acabado de
transar e com certeza a melhor transa que eu havia experimentado
em toda minha vida — e eu ali, deitada sobre ela. Ouvia o pulsar
forte de seu coração e sua respiração que aos poucos voltavam ao
normal, sentia seu perfume, seu cheiro que me embebedava, tinha
seu gosto em minha boca me deixando sedenta por mais, eu a
acarinhava, podendo sentir o calor e a maciez de sua pele,
enquanto a contemplava com uma visão privilegiada das curvas de
seu lindo corpo nu. Ela havia conseguido algo teoricamente
impossível, ela tinha despertado em mim os cinco sentidos de uma
só vez... Quando ouvi sua voz macia interrompendo meu momento
de contemplação.

— Eu poderia ficar aqui a noite toda, querida...

Eu me espantei, ergui minha cabeça e olhei para ela que me


olhava com carinho, e um sorriso nos lábios, eu queria dizer a ela o
quanto eu era grata por aquele momento, o quanto ela havia me
feito feliz, mas minha voz engasgou e não consegui dizer nada,
apenas enchi meus olhos de água, ficando totalmente emocionada
com o que ela havia dito e com tudo que havia acontecido. Ela
então colocou suas mãos em minha cabeça e me acariciando
disse...

— Eu jamais usaria você para massagear meu ego, jamais


achei você uma garota boba e jamais faria algo somente para
satisfazer você, sou muito egoísta para isso. O que aconteceu aqui
foi pensado, foi consciente, foi porque eu também quis, vou lembrar
desse momento sempre com muito carinho.

Eu ouvi o que ela dizia com alívio, mas senti também que aquilo
nunca mais poderia acontecer, entendi “em suas palavras” que não
era para eu confundir o que havia acontecido entre nós com algum
tipo de relacionamento, então se tinha algum momento de
perguntar-lhe algo era ali, naquela hora.

— Allegra, você sabia desde o início que consultei com você


por que queria te ver, não é?

Ela sorriu e movimentou-se para que pudéssemos nos sentar


no sofá, para ficarmos mais bem colocadas... Sentamos, nuas,
muito próximas, e ficamos nos olhando, ela mexia nos meus
cabelos, sempre com um sorriso no rosto, eu me detive apenas a
olhá-la — ainda incrédula — e timidamente segurar na sua mão.

— Não, eu não tinha certeza, mas achei que pudesse ser, só


tive certeza quando você transferiu sua data da volta a Montreal
para vir aqui hoje... Mas Nina, não pense que te testei, senti atração
por você desde a primeira vez que a vi no restaurante, aquela roupa
de chef me excitou, você é linda, tem os olhos lindos, é meiga,
atenciosa, você me cativou pela sua simplicidade, pelo seu olhar...
Confesso que não voltei no dia seguinte no seu restaurante por
causa disso, eu não queria “alimentar” aquela atração... Mas depois
você acabou indo na palestra e finalmente no meu consultório,
estava tão elegante com aquela roupa que tive que me segurar para
não ceder às minhas vontades, imaginei então que o destino
quisesse dar uma ajudinha — ela falou sorrindo e piscando o olho
para mim.

Ouvi tudo aquilo com enorme espanto, e diante daquela


“revelação” me senti importante, me senti desejada... Mas não quis
dar ênfase a minha “pré-euforia” e continuei a conversa.

— E sua esposa?

Ela suspirou, baixou a cabeça por um segundo...

— Eu jamais a trairia se ela tivesse mantido sempre o respeito


por mim, mas eu descobri que há dois anos ela se envolveu com
uma amiga, claro que ela se diz arrependida, chorou, explicou que
sentiu-se carente, sozinha por não termos muito tempo juntas, que
foi algo “de momento”, que não teve envolvimento sentimental e que
nunca mais faria... Chegamos a nos separar por uma semana, mas
eu era muito apaixonada por ela e acabei perdoando-a, mas isso
abriu uma brecha em nosso relacionamento, fez com que eu me
permitisse viver também as minhas vontades e não mais reprimi-las.

Ela falava de forma aberta, tranquila, sem pressa, sem a menor


intenção de “esconder” algo, aquilo me deixava mais à vontade para
continuar perguntando e satisfazer minha curiosidade.

— Depois disso que aconteceu entre vocês, você a traiu


alguma vez?

Ela riu, olhou para mim passando os dedos em meus lábios.

— Sim... Com você.

Eu não sabia se acreditava ou não, mas certamente ela sabia


como agradar a uma mulher e fazia isso direitinho, fiquei sem jeito,
mais uma vez ela fazia me sentir desejada...

— Vocês têm um relacionamento aberto hoje em dia?


— Não, de forma alguma... Ela não pode “sonhar” com o que
aconteceu entre nós, a Diana é muito agressiva, inconsequente,
mimada e um pouco descontrolada, infelizmente esses são defeitos
com que aprendi a conviver.

— Você não tem medo de que ela apareça aqui?

— Não tem possibilidade, depois que ela se deita nada a faz


levantar — falou com total certeza.

— Mas e se ela ficar com sede ou algo assim e descer?

Ela passou sua mão em meu rosto e com carinho respondeu à


minha ingênua pergunta.

— Temos frigobar no quarto, ela não vai descer, não se


preocupe.

Sorri sem graça e continuei.

— Você a ama?

Ela olhou para mim, como se percebesse que estava sendo


literalmente interrogada, mas mesmo assim manteve a calma e
gentilmente me respondeu, achando uma certa graça em tudo
aquilo.

— Bem... Essa é uma pergunta que me faço todos os dias... —


parou por um segundo e ficou pensativa. — Eu já a amei
cegamente... Hoje? Não sei te responder.

Ela fez mais uma pausa e continuou.

— A nossa relação tem muito mais coisas envolvidas do que


você possa imaginar.

Não ousei perguntar o que tinha, mas aquilo me soou estranho,


então eu me enchi de coragem e abracei-a, como se pudesse dizer
a ela que poderia contar comigo e que eu adoraria ter a chance de
fazê-la feliz, ela não hesitou, correspondeu ao abraço e procurou
meus lábios até nos beijarmos com delicadeza, eu me arrepiava
inteira cada vez que ela encostava em mim, parecia que eu era
tomada por uma onda elétrica cada vez que a sentia, e ela parecia
estar gostando de tudo aquilo. Então ela disse:

— E você, tem namorada, Nina?

— Não... — eu ri, pois ironicamente quem eu queria namorar


estava ali em meus braços me perguntando se eu tinha namorada.

— Por que você ri? — foi incisiva e ali eu vi sua personalidade


aflorar novamente.

— Eu ri porque na verdade eu tinha uma namorada, mas ela


me traiu, e eu terminei com ela... — remendei na hora.

Ela ficou pensativa, percebendo que as nossas reações para


“traição” foram opostas.

— Fomos traídas, então! — falou descontraidamente.

Eu concordei com ela balançando a cabeça.

— Acho melhor nos vestirmos, sua amiga vai achar que te


raptei — disse ela em tom de brincadeira.

Eu pensei comigo mesma que era claro que a Shelly não


pensaria isso, pois afinal ela é que havia armado tudo aquilo, mas a
Allegra nem imaginava, achava que eu tinha deixado a carta para
ela ler propositalmente, mas para não levantar suspeitas tive de
entrar na brincadeira.

— É verdade, antes que ela vá embora sozinha. Allegra? Posso


fazer uma última pergunta, um pouco indiscreta, mas não vou me
perdoar se eu não a fizer... — senti minha face esquentar de
vergonha, me senti meio boba fazendo aquela pergunta.
— Pode — respondeu ela com certa curiosidade. — Só não
pode perguntar quantos anos eu tenho — brincou, sendo simpática.

— Pode deixar, Allegra, não ousarei perguntar sua idade —


entrei na brincadeira. — Mas eu queria saber se você se importaria
de dizer qual perfume você usa, seu cheiro é tão maravilhoso...

— Clive Christian N.o 1.

Ela achou graça da pergunta, levantou-se e começou a juntar


suas roupas que estavam espalhadas por toda parte.

Nos vestimos, eu ainda estava perplexa e incrédula, vê-la ali na


minha frente me fazia brotar uma vontade de gritar de alegria, mas
infelizmente eu tinha de reprimir aquela vontade...

Quando já estávamos vestidas, ela veio até mim, pegou minha


mão e me levou até a sua mesa, me fez sentar em sua grande
poltrona preta, alcançou-me uma caneta e ofereceu o verso da carta
que eu havia escrito a ela, e disse:

— Não acha que eu esqueci da receita, Nina — disse ela,


sorrindo.

— Achei que a receita fosse uma desculpa — brinquei com a


situação.

— Em partes... Adorei os docinhos!

Peguei a caneta de sua mão e coloquei no verso da carta a


receita do “brigadeiro”, o meu número de telefone — obviamente —
e rapidamente escrevi algumas palavras...

“Allegra, querida, obrigada por permitir-me compartilhar com


você esse momento mágico, você conseguiu a proeza de eternizar
estes instantes em minha vida”

Nina
E alcancei a ela, meio sem graça. Ela leu com atenção, sorriu,
dobrou a cartinha e a colocou dentro do envelope vermelho,
contornou sua mesa — ficando do meu lado — e trancou-a dentro
de sua gaveta secreta. Eu a observei com carinho, sem falar nada.

Ela abaixou-se até mim e beijou-me com ternura, eu sabia que


aquele poderia ser nosso último beijo, me senti à beira das lágrimas,
mas me contive, fechei meus olhos e aproveitei ao máximo sua
boca macia.

Então, novamente segurando minha mão, ela me conduziu até


perto da porta, e antes de sairmos de seu escritório ela disse
baixinho olhando nos meus olhos e segurando minha cabeça entre
suas mãos:

— Nina, eu também não vou esquecer este momento, lembra


disso, tá?

Eu balancei a cabeça — ainda entre suas mãos —


concordando e esforçando-me para não deixar transparecer meu
óbvio desespero por aquela despedida, ela sorriu e me conduziu
com suas mãos entrelaçadas nas minhas até sairmos dali, pois ao
cruzarmos a porta ela soltou-as e me acompanhou até a cozinha,
sendo totalmente discreta.

Quando chegamos ali, a Shelly estava sentada esperando, com


tudo arrumado, inclusive com a louça da dona Emma lavada e
guardada, estava com um sorriso nos lábios, louca para perguntar-
me o que havia acontecido.

— Pedirei para o David levá-las até o hotel, já é tarde e o táxi


pode demorar — disse Allegra com uma postura mais séria, mas
amável.

Concordamos e carregando nossos “apetrechos”


acompanhamos a “dra. Allegra” até o portão de entrada. No trajeto
eu a olhava discretamente, ela caminhava com passadas largas, era
muito sensual, sofisticada, realmente poderosa, mal podia acreditar
que eu acabara de fazer sexo com ela... Ao chegarmos ao jardim do
lado da guarita, ela pediu ao segurança que chamasse o motorista
da casa e nos levasse ao hotel em seu próprio carro.

— Bem, já, já ele as levará para o hotel, mais uma vez obrigada
pelo coquetel fantástico, estava divino! — ela esticou a mão para
despedir-se da Shelly, que imediatamente retribuiu seu gesto e
agradeceu a oportunidade.

Ela virou-se para mim e estendeu a sua mão repetindo o gesto,


eu dei-lhe a mão com meu coração apertado.

— Obrigada, Nina, adorei “os” presentes — ela sorriu de forma


maliciosa e puxou-me com discrição e beijou meu rosto.

— Eu que agradeço por tudo — disse beijando sua face e


retribuindo com um sorriso de cumplicidade.

A Shelly observava tudo, estava se corroendo de tanta


curiosidade, ela havia percebido que algo tinha acontecido entre nós
e estava sendo duro para ela aguentar aqueles momentos calada,
sem poder perguntar.

Nisso um Maybach 57S prata se aproximou e parou ao nosso


lado, nos deixando boquiabertas com tamanho luxo — aquele carro
eu tinha visto apenas uma vez na televisão, no ranking dos dez
carros mais sofisticados e caros do mundo —, o motorista abriu sua
porta e dirigiu-se até a porta de trás, abrindo-a para que
pudéssemos entrar naquele carro, ou melhor, naquela “nave”. O
carro impressionava, era fantástico, digno de uma celebridade, não
tinha ideia de quanto exatamente valeria aquele carro.

— Bom retorno a Montreal, tenham uma ótima viagem — ela


continuou dirigindo-se a nós duas.

A Shelly agradeceu e entrou no carro, e enquanto eu aguardava


a Shelly se acomodar para que eu pudesse entrar a Allegra
permanecia ali ao meu lado, apenas observando sem dizer nada.
Finalmente quando a Shelly já estava acomodada eu olhei para
Allegra mais uma vez e dei um sorriso tímido, ela por sua vez
esboçou um sorriso enorme e disse:

— Você deveria aprender a tocar piano, a música toca sua


alma.

Eu olhei para ela pensando em dizer algo, mas não disse nada,
apenas entrei no seu carro e sentei-me do lado da Shelly, que já
estava me olhando com sua cara de curiosa.

O motorista fechou a porta e entrou, esperando que o grande


portão branco se abrisse para que pudéssemos voltar.

O carro saiu devagar, eu fiquei olhando a Allegra ali parada até


desaparecer atrás do portão que se fechou, foi quando desabei em
lágrimas. Aquele carro tinha o perfume dela, eu conseguia quase
sentir a sua presença ali, a Shelly me abraçou solidariamente
enquanto eu chorava baixinho.

Durante o caminho todo permanecemos quietas, a Shelly


abraçada em mim passando a mão em meu ombro e eu sem saber
o que aconteceria dali por diante.

Quando finalmente chegamos ao hotel e subimos até nosso


quarto, sentei-me na cama, a Shelly sentou-se na minha frente e
antes que eu dissesse algo ela antecipou-se:

— Nina, antes de você falar qualquer coisa, de me escorraçar


ou me contar o que aconteceu, quero explicar que eu não coloquei a
carta no escritório dela para te sacanear, eu a levei junto sem a
menor intenção de fazer isso, queria apenas nos precaver, caso
você mudasse de ideia e quisesse dar a ela a cartinha... Então, na
hipótese de você se arrepender, a carta estaria ali. Eu nem ia dizer
nada, só se você demonstrasse arrependimento por ter deixado a
carta aqui — explicou ela com calma.
Olhei para ela e só consegui lhe fazer uma pergunta:

— E o que a fez mudar os planos e colocar a carta lá, sem


minha autorização?

— Eu sei que não justifica, mas quando eu vi que a Diana era a


mulher do café e que estava traindo sua médica, eu fiquei furiosa,
mas ainda assim eu não a colocaria lá. Só depois que vi a “dra.
todo-poderosa” na cozinha te olhando daquele jeito é que comecei a
pensar na possibilidade, aí depois que a ouvi tocando Quelqu'un m'a
dit, especialmente para você, eu achei que valia a pena correr o
risco de você brigar comigo, mas fazer alguma coisa para que você
não perdesse a chance de pelo menos tentar... Desculpe, mas juro
que fiz pensando em seu bem... — ela ficou cabisbaixa e continuou.
— Além do mais, se eu contasse para você o que eu pretendia,
você não iria topar...

Eu olhei para ela inicialmente chateada, mas logo sorri


entendendo que ela tinha feito aquilo por mim, mesmo arriscando
nossa amizade, o que demonstrava mais ainda o quanto ela queria
que tudo desse certo entre mim e a Allegra.

— Eu entendi, Shelly, queria matar você quando eu vi aquela


carta nas mãos dela, mas agora a minha vontade é de te encher de
beijos e agradecer pelo resto da minha vida! — pulei em cima dela e
comecei a beijá-la... No rosto.

— Para com isso, Nina, me conte pelo amor de Deus o que


aconteceu, antes que eu volte para casa da sua médica para
perguntar diretamente a ela o que houve!!

Eu parei, olhei séria para ela por alguns instantes, até que ela
também ficou séria sem entender nada, eu comecei a gritar e pular
na cama sem parar, a Shelly começou a rir e perguntar
insistentemente.

— Nina, fala, para com isso, me conta!! Vocês se beijaram?


— Não...

— E você tá feliz assim porque sua doida?

— Nós transamos! Uma loucura!!!

Ela arregalou os olhos e começou a gritar e me abraçar


também, eu só pulava e agradecia à Shelly por sua “malcriação”.
Parecíamos duas loucas nos comportando daquela maneira no meio
da madrugada, somente depois de alguns minutos de pura euforia é
que nos acalmamos e eu pude contar tudo a ela, detalhe por
detalhe, repeti tudo mil vezes, porque a Shelly cada vez tinha algo
diferente para me perguntar.

— Shelly, olha isso — levantei minha blusa e mostrei minhas


costas arranhadas.

— Menina! O que vocês fizeram? — perguntou espantando-se.

— Sexo!! Isso que fizemos!

— Tem certeza de que foi só isso? Ela tirou pedaços de você!

— Ela fez comigo o que bem entendeu... Ela é demais, Shelly,


sou perdidamente louca por ela!

— Não está doendo? — ela perguntou impressionada e com


cara de que estava “sentindo dor no meu lugar”.

— Não, só arde um pouco, mas é bom, me faz lembrar dela se


contorcendo de tanto prazer — falei sorrindo e me exibindo
apaixonada.

— Você é doida, igual a essa médica torturadora com quem


você transou — disse, incrédula.

— Sou doida mesmo, doida por ela!


— Estou feliz por você, Nina, você merece ser feliz depois de
ter sofrido tanto com a traição da Clara.

Eu fiquei pensativa, lembrei do que havia passado...

— Falando em traição, o que faremos para alertar a Allegra,


não quero que ela sofra, nem que seja feita de boba por aquela
mulher...

— Nina, tenho que te contar uma coisa...

Olhei para Shelly com medo, o que ela teria aprontado dessa
vez.

— Que foi, Shelly... O que você fez?

— Não fiz nada, só queria te contar que estou gostando mesmo


da Olívia, ela mexeu comigo, ela me entende, a gente se diverte
tanto — falou com um ar apaixonado.

— Isso é bom, estava na hora mesmo de você sossegar!

— Eu sei, mas o que quero dizer com isso é que confio nela, e
que acho que ela pode nos dar uma “ajudinha” nesse “caso” da tua
médica.

— Ah, é? E como?

— Ela mora aqui, é mais fácil, se você me autorizar pedirei a


ela para dar uma força... Posso?

Fiquei na dúvida, mas sabia que a Olívia era “do bem” e que
não colocaria os “pés pelas mãos”, então cedi.

— Pode, Shelly, faço qualquer coisa para que a Allegra não


seja enganada por “aquelazinha”.

— Pode deixar amiga, vamos resolver isso tudo!


— Vamos sim, não vejo a hora!

— Isso, deixa comigo, amanhã vou encaminhar tudinho... Mas


mudando de assunto, Nina, me conta, quer dizer que tua médica
“tem pegada” mesmo?

A Shelly me fazia rir muito com suas perguntas indiscretas e


despojadas, ficamos conversando e confabulando até o amanhecer,
quando finalmente dormimos, sem nem trocar de roupas...
Simplesmente adormecemos.

Despertei depois do meio-dia, a Shelly não se encontrava mais


no quarto, devia estar se despedindo da Olívia. O nosso voo era às
18h e certamente minha amiga estava aproveitando essas últimas
horas para namorar.

Eu estava com uma sensação diferente, quase não acreditava


no que tinha acontecido no dia anterior, ainda estava com o perfume
da Allegra impregnado em mim e com minhas costas ardendo.
Lembrava dela a todo instante, me sentia radiante por alguns
momentos que alternavam com um certo desespero por estar indo
para longe dela, sem previsões de revê-la, mas eu sabia das minhas
responsabilidades profissionais e tinha que cumpri-las com primor,
então, o que me restava era organizar tudo para finalmente
retornarmos a Montreal.
Capítulo 6

— Nina?

— Fala, Shelly...

— Você tem que reagir! Faz mais de dez dias que sua vida se
resume a trabalho, ler o jornal e dormir, você percebeu que mal nos
falamos? Que você está triste, sem vida?

— Desculpa, Shelly, você sabe que não é nada com você, é


comigo...

— Olha, Nina, me desculpa você, mas no momento em que


você está agindo assim isso também me atinge! Você percebe?

— Não é por mal... Sinto-me péssima!

— Nina, vou embora daqui a duas semanas, quero me divertir


com você, como fazíamos antes de ir à Toronto.

— E como faço para tirar a Allegra da minha cabeça? Como?

— Nina, por que você não liga para ela? Se você tem
saudades, se quer falar com ela, liga!

— Não... Se ela não me ligou eu não vou ligar... Significa que


ela não quer falar comigo.

— Escuta, você não está ligando, assim como ela, isso significa
que você não quer falar com ela?

— Não... Você sabe que não, mas não tenho coragem e não
quero pressioná-la, ser inconveniente... Além do mais, como
prevíamos, naquele encontro ela deixou claro que o que aconteceu
não passava de uma aventura, que não era um início de
relacionamento ou de algum tipo de compromisso...

— Nina, talvez você tenha razão, mas talvez não... Ela não
disse isso com todas as letras!

— Não, mas nem precisava, eu entendi...

— Mesmo que você porventura tenha razão, vai viver assim


eternamente?

— Não... Espero que não...

— Então tenta melhorar, porque você está insuportável!

A Shelly tinha razão, aquilo não era vida, até no trabalho eles já
estavam percebendo o meu desânimo.

— Tá bem... Prometo que vou tentar.

— De verdade?

— Sim, Shelly! De verdade!

— Então vamos começar a resolver as pendências todas agora


e não mais ficar fugindo, tá?

— Que pendências?

— Primeiro liga pra Amy, atende as ligações dela quando ela te


ligar, para de fugir da garota... Ou você continua ficando com ela ou
termina de uma vez, mas não faz a garota sofrer.

Pensei por um minuto e percebi que ela tinha razão, a Amy não
tinha nada a ver com meus conflitos internos, eu devia uma
explicação a ela.

— Vou ligar, amanhã... Tenho que pensar o que dizer a ela.


— Não, nada disso, Nina, liga agora! São 20h30, não é tarde e
está mais que na hora de resolver essa situação — ao dizer isso a
Shelly alcançou o meu celular para que eu ligasse imediatamente.

— Tá bem, mas vou falar o quê?

— O que você quiser, mas libera a menina... Embora eu


particularmente ache interessante você continuar ficando com ela,
mesmo que fosse algo esporádico, acho que iria te fazer bem... Fica
sem expectativas, abre o jogo para ela, diz que é sem compromisso,
não engana a menina, mas vai ser bom pra você.

— Não, não tenho coragem de beijar outra boca, nem


conseguiria!

— Faça o que seu coração mandar, Nina.

Percebi que a Shelly queria de alguma forma que Amy me


ajudasse a esquecer a Allegra, ela via meu sofrimento e estava
tentando todas as alternativas para amenizá-lo.

Então, liguei para a Amy, pedi desculpas por não atender as


suas ligações e expliquei que não me sentia pronta para namorar ou
ter algum compromisso, que o melhor seria que continuássemos
apenas amigas. Ela inicialmente não entendeu, ficou até com raiva,
mas acabou se acalmando e respeitando minha decisão.

— Pronto! Liguei!

— Não está se sentindo melhor?

— Sim, mais aliviada... E agora? O que mais temos que


resolver?

— Me empresta teu telefone, vou ligar pra Olívia, ver se ela tem
alguma novidade lá da tua médica ou da Diana.

Fiquei feliz pela iniciativa da Shelly e imediatamente dei o


telefone a ela, com um sorriso nos lábios.
— Ah! Assim que eu quero te ver, Nina! Com esse sorrisão! É
bom ver você sorrir novamente!

A Shelly ligou para Olívia, e inicialmente ficaram trocando juras


de amor e de saudades. Eu já estava ficando entediada, quando,
depois de uns 10 minutos de muita melação, ela resolveu perguntar
como estava a “investigação”.

A Shelly ficou quieta por uns dois ou três minutos só escutando


e prestando muita atenção no que a Olívia dizia a ela. Finalmente,
depois de quase 20 minutos grudada no telefone ela desligou.

— Fala, Shelly!

— Nina, a Olívia disse que percebeu que me ama! Que está


completamente apaixonada por mim! — falou com os olhos
brilhando.

— Shelly, você liga para ela todos os dias e só hoje que ela
disse isso?

— Sim, que me amava sim! Nina, estou tão feliz, estou


emocionada!

Fiquei feliz por ela, a Shelly merecia ter alguém que a amasse
de verdade e parecia que ela havia encontrado.

— Parabéns! Espero que dê tudo certo entre vocês... Mas o


que ela falou da Allegra?

— Ah! É mesmo! A Olívia disse que ligou para casa da Allegra


e que...

— O quê?! Você deu o telefone da casa dela?!

— Dei! Como ela poderia nos ajudar se não tivesse nenhuma


“pista”?!
— Pista? Meu Deus, Shelly, nem sei se tenho coragem de
perguntar o que ela fez... — fiquei assustada.

— Calma, a Olívia ligou pra lá pela manhã, num horário em que


não tinha risco da Allegra estar em casa nem da Diana estar
acordada, sobrando apenas a dona Emma para atendê-la.

— Hum... E o que ela fez?

— Ela inventou que era de uma agência de turismo e que


vendia pacotes turísticos, resumindo, enrolou a dona Emma para
descobrir as viagens da Allegra e conseguiu descobrir que a Allegra
viaja amanhã para Marselha, ficará lá três dias e já tem uma viagem
agendada para Los Angeles dia 26, onde ficará por mais cinco
dias...

— E?

— Acorda, Nina! Isso significa que a Diana a partir de amanhã


terá três dias de liberdade, a Olívia vai tentar pegar a “traíra” no pulo
e documentar algo para nós!

— Hum... Boa ideia, mas não sei exatamente o que fazer


depois...

— O “depois” a gente pensa!

— Fiquei mais empolgada em saber algo dela... — suspirei


aliviada.

— Agora, Nina, a senhorita faz favor de abrir seus e-mails e


tentar voltar ao planeta Terra, porque nesses dez dias você está
vegetando, feito rúcula.

— E-mail para quê? Se você está aqui, a Allegra não tem meu
e-mail mesmo...

— Não importa, Nina, é pra você voltar à vida! Só isso.


— Tá bem...

Fui até meu computador, sentei na minha pequena cadeira azul


giratória e abri minha caixa de e-mails, que tinha 27 e-mails não
lidos. Parei por um segundo e lembrei que este número parecia
estar se tornando uma frequência em minha vida...

— Shelly...

— O quê? Não vai ler seus e-mails? — falou, ansiosa.

— Vou, mas é que pode parecer besteira, é que por um


momento achei que o número 27 me persegue!

— Ué... Por quê?

— A mesa em que vi a Allegra pela primeira vez foi a n° 27,


depois quando fui à palestra assistí-la, a poltrona em que sentei era
n° 27, e agora minha caixa de e-mails tem 27 novas mensagens!
Não acha estranho?

A Shelly ficou pensativa, percebi que ao mesmo tempo em que


ela achou ser uma bobagem também ficou encucada.

— É... Não sei... Estranho... Mas deve ser coincidência, não


grila...

— É, deve ser... — parei de pensar naquela bobagem e


comecei a olhar meus e-mails, das 27 mensagens 20 eram
propagandas e vírus, as sete restantes eram todas da Clara.

— O que essa garota quer com você, Nina?

— Não sei, Shelly, vou olhar agora...

Comecei a lê-las, a Shelly acompanhando junto comigo suas


mensagens atentamente, as seis primeiras diziam resumidamente
que ela estava perdidamente apaixonada, arrependida, preocupada
por eu não responder a seus e-mails e muito inclinada a viajar para
me encontrar. Quando finalmente abri a última mensagem, que
datava de seis dias atrás, fiquei surpresa com o que dizia:

Minha pequena

Não entendo por que insiste em me ignorar, sabe que sou uma
pessoa que luta pelo que quer, e você é o que mais quero!

Diante de seu silêncio, resolvi tomar uma atitude mais drástica


e que tenho certeza que no fundo você vai adorar!

Adivinha??

Vou até aí ver você! Hoje pela manhã comprei minha passagem
para Montreal e devo chegar dia 27 próximo. Peço que me espere
em seu apartamento de braços abertos e ansiosa por rever-me,
igualmente como eu estou louca de vontade de reencontrá-la!

Te adoro e até breve.

Clarinha

— Não acredito, Shelly! Só o que me faltava, o que vou fazer?


Como vou impedi-la de vir?

— Nina... Você viu a data em que ela vai chegar? — falou com
os olhos arregalados.

— Sim, dia 27... — quando me dei por conta da nova


coincidência. — Meu Deus! De novo!

— Acho que é mais que coincidência, Nina, você tinha razão,


esse número tá te perseguindo!

— Não me apavora, Shelly!

— Já sei! Vou ligar pra Olívia! Ela com certeza saberá nos dar
uma explicação razoável para essas coincidências.
— Isso, boa ideia! Liga logo!

Alcancei novamente o celular para Shelly, que ligou


apressada... Enquanto o telefone chamava eu pedi que ela
colocasse no viva-voz para que eu pudesse ouvir também as suas
explicações, e a Shelly imediatamente obedeceu.

— Alô?

— Oi, querida, sou eu, de novo!

— Estava com saudades, “minha bruxinha”?

Ao ouvir aquilo me deu vontade de rir, mas percebi que a Shelly


ficou um pouco sem jeito, por eu estar compartilhando da intimidade
delas.

— Sim, meu amor, estou no viva-voz, a Nina está aqui comigo e


estamos com uma dúvida que talvez você possa nos ajudar a
esclarecer.

— Oi, Nina! — disse Olívia, me cumprimentado.

— Oi, Olívia! — respondi, deixando que a Shelly desse


continuidade à conversa.

— Querida, você entende de numerologia, não é?

— Um pouquinho — ela riu, dando a entender que era modesta,


mas manjava muito do assunto.

— O que os números podem “falar” para nós, ou até que ponto


eles podem mandar mensagem para nós? — questionou Shelly,
bastante concentrada.

— Os números, em si, representam princípios universais,


através dos quais todas as coisas evoluem e continuam a crescer
de forma cíclica. Os dígitos de 1 a 9 simbolizam os estágios pelos
quais um conceito tem de passar antes de se tornar realidade. Toda
manifestação é resultado desses noves estágios.

— Hã?

— Assim, meninas... Resumidamente, a numerologia é o


estudo do significado dos números e da influência deles no nosso
caráter e no nosso destino, podendo nos ajudar a nos conhecer
melhor, conhecer nossas potencialidades, carmas e fraquezas, nos
dando muito mais facilidade para encontrar um equilíbrio e nos
alertando, para até mesmo evitar certos acontecimentos. Basta
saber interpretá-los.

— E o que você me diz do número 27?

— Depende... Em que situação? É alguma data de aniversário,


soma das letras de um nome?

— Não! — e Shelly explicou todas as coincidências incluindo


aquele número na minha vida.

— Hum, interessante essa ligação do 27 com você, Nina, essas


coincidências foram a partir da primeira vez que você viu a Allegra,
daí desencadeou uma chuva de “27s” na sua vida, muito curioso...

Fiquei um pouco intrigada com aquilo, ouvindo com atenção.

— Há várias interpretações que podemos fazer, quando eles —


os números — se tornam repetitivos em nossa vida, com certeza
absoluta tem um motivo para isso... No seu caso, desse número em
específico, se não “desmembrá-lo”, o número 27 indica que você
entrou em uma nova fase, mas a sua indecisão está impedindo a
chegada destes novos eventos. Como o número continua a se
repetir podemos analisá-lo de outra forma, por outro ângulo, esse
número é considerado um número cármico por representar
deficiências a serem trabalhadas, obtidas provavelmente em
existências anteriores... Ou, indo mais além, aprofundando o estudo
e já desmembrando o número, podemos dizer que esse número
pode também representar o número da “besta”, pois nove vezes três
é igual a 27.

— Para! Que medo isso! — eu disse, apavorada!

— Calma, Nina! Deixa ela terminar... Mas Olívia, o número da


besta não é 666? — contestou Shelly.

— Segundo o Cristianismo, sim, mas “Anton LaVey”, o pai da


'Church of Satan', proclamou o número da besta como sendo o n°
nove, pois nove é o número do ego; qualquer número que é
multiplicado nove faz com que o nove volte para si mesmo, vou dar
um exemplo: 9x2 é igual a 18, não é? Se demesmbrarmos o 18 em
1+8 será igual a 9, ou seja, ( 9x3 = 27) 2 +7 = 9.

— Mas Olívia, o que na prática isso quer dizer?

— Ao certo não temos como saber, mas uma coisa é fato, esse
é o número do retorno, por mais que ele vá, ele sempre irá voltar,
não ligue esse número necessariamente a coisas ruins, a mitos e
religiões, mas ligue-o a grandes transformações, autoconhecimento
e a grandes lutas. Nina, você entrou numa nova fase e esta está
desencadeando uma série de acontecimentos ao seu redor, mesmo
que você não tenha consciência deles, me parece que é algo de
resgate, de algum reencontro de outras vidas, algo diretamente
ligado à Allegra. Você tem que ficar atenta a tudo, pois por se tratar
de um número que representa o “ego”, o retorno, podemos
interpretá-lo até como algo que represente riscos, perigo, mas não
necessariamente seja ruim, portanto, cabe a você ter cuidado, ser
atenta e tentar ser mais incisiva em suas decisões.

Fiquei pensando em toda aquela grande confusão de números,


explicações nada convencionais e cálculos bizarros, enquanto a
Shelly namorava “via fone” mais um pouquinho.

Na verdade, não entendi muito bem — nem sei se realmente


queria entender —, mas absorvi a mensagem principal... Que era
prestar mais atenção em tudo e tentar tomar mais atitudes em vez
de ficar esperando as coisas acontecerem... Porém, isso não
mudaria minha ideia inicial, e uma coisa era certa, eu não iria ligar
para Allegra. Tinha a consciência de que talvez isso desse a
impressão de ser “joguinho” ou algo parecido, mas na realidade não
era nada disso, o que eu queria era evitar ser chata e jamais ser
uma lembrança ruim e inconveniente para Allegra.

Fui deitar e logo consegui adormecer, mesmo com as


gargalhadas e conversas da Shelly ao telefone... Estava tão
cansada que não vi a noite passar.

Acordei assustada com o despertar do relógio que me avisava


que mais uma jornada de trabalho estava começando — e mais
uma vez tive certeza do quanto eu odiava acordar cedo. Ainda sob o
efeito do susto e atordoada, desliguei-o rapidamente para não
acordar a Shelly, mas percebi que ela não estava deitada do meu
lado e que a cama do lado onde ela dormia nem havia sido mexida.

Levantei-me assustada e a chamei preocupada.

— Shelly! — falei alto.

— Aqui na sala, Nina — ela respondeu calmamente.

Corri até a sala e não acreditei no que vi!

— Shelly, você ainda está no telefone? Desde ontem?!

Ela despediu-se com carinho de Olívia, enquanto eu a olhava


incrédula, com meus braços na cintura. Meio sem jeito ela me deu
algumas explicações.

— Sim, Nina, desculpe... Mas não se preocupe, eu pagarei


essa ligação!

— Shelly, o que tanto tinham pra conversar, dessa forma você


vai gastar todo o seu dinheiro em contas de telefone e não vai ter
ânimo para terminar seu curso, que já está na reta final.
— Não se preocupe, eu não estava fazendo “sexo por telefone”,
nem falando “abobrinhas”, estava tendo uma conversa séria com a
Olívia. Na verdade, uma das conversas mais sérias que tive em toda
a minha vida!

— Como assim, Shelly? — indaguei sem entender nada.

— Conversamos sobre nós!

— Sei... E isso é a coisa mais séria da tua vida?

— Sim, Nina, é... Chegamos à conclusão de que nos amamos


muito, quem sabe até da mesma forma que você ama a Allegra.

Percebi que eu estava sendo egoísta e não estava respeitando


os sentimentos da Shelly pela Olívia, então na mesma hora sentei-
me no sofá ao lado dela, coloquei o celular que estava ligado à
tomada sendo carregado no chão e segurei na sua mão.

— Desculpe, Shelly, não quis ser indelicada, é que você me


pegou de surpresa, me conte tudo.

Ela sorriu aliviada e continuou.

— Então, eu e a Olívia nos damos bem, somos almas gêmeas,


nos entendemos num olhar, nossos “astros” estão em sintonia, por
mais que eu a conheça há pouquíssimo tempo parece que somos
amigas desde a infância. Confesso, Nina, que quando você falou
pra mim que estava apaixonada pela médica sem nem ter trocado
muitas palavras com ela eu achei graça, no fundo achava que era
apenas uma atração sua pela doutora, mas hoje acredito realmente
no seu amor por ela, e ainda acredito, sim, em amores “à primeira
vista”, o que sinto pela Olívia é tão puro que eu estou me
desconhecendo, e o melhor é que percebo que é recíproco!

Ela estava emocionada me relatando aquilo, os olhos dela


estavam cobertos por uma camada de lágrimas, vi que estava se
segurando para controlar seu choro, eu não me contive e me
emocionei ao ver com quanto sentimento ela falava sobre a Olívia e
esse novo amor que tinha encontrado.

— Shelly, eu estou aqui para te apoiar, quero que seja feliz, e


se for ao lado da Olívia melhor ainda, pois daí poderei “consultar
meu futuro” de graça com ela! — falei brincando.

— Tá bem, vou falar pra ela sobre esse assunto... –— ela riu
contidamente.

Então ela continuou.

— Tem mais, Nina...

— O quê?

— Dia 22 termina meu curso, eu não quero voltar para o Brasil


e ficar longe da Olívia.

— Mas o que você pensa em fazer? Ir morar com a Olívia?

— Não ainda, mas futuramente sim... Agora te entendo quando


você terminou com a Amy e disse que não tinha vontade de beijar
mais ninguém.

— É, Shelly... Para você estar sentindo isso, você está


realmente apaixonada! Mas e o que pretende fazer?

— Dia 1° de junho inicia um curso de extensão em “criação de


moda”, vou ligar para meus pais financiarem esse curso, não posso
dizer que quero ficar aqui por causa de uma mulher!

— Hum... Mas você pretende fazer este curso mesmo ou é


apenas uma desculpa?

— Na verdade as duas coisas, claro que isso é um motivo para


ficar aqui no Canadá e continuar me relacionando com a Olívia, mas
ao mesmo tempo vou continuar a me aprimorar na área da moda
com esse curso.
— E você não prefere fazer um curso em Toronto? Afinal, aqui
nós estamos a mais de 500 km da Olívia... E da Allegra... — concluí.

— Mas Nina, 500 km não são nada comparando a distância que


eu teria se voltasse para o Brasil!

— Isso é! Te desejo muita sorte, Shelly, quero muito que você


seja feliz!

— Eu sei, Nina, eu sei!

— Bem, tenho que me arrumar, senão vou me atrasar, quer


dizer, já estou atrasada!

— Mas Nina, tem mais uma coisa ainda.

— O que “tem” mais?

— Combinei com ela de ir a Toronto dia 25 e voltar dia 31, um


dia antes de começar o meu curso de extensão, você não quer ir
comigo e ficar lá esses seis dias? Quem sabe visitar a médica!

— Ai, Shelly... Nem me fale nisso, é tentador seu convite, mas


se eu pedir folga de novo eu perco o meu emprego certamente,
além disso, se não me falha a memória, você me falou que a dona
Emma disse a Olívia que a Allegra viajaria para Los Angeles dia 26
de maio, não é isso?

— Sim... Isso mesmo, havia esquecido... Ah! E a tua ex-


namorada chega dia 27 para ficar não sei quanto tempo aqui com
você — disse, ironizando.

— Nem me lembre disso, Shelly, não pensei ainda no que


fazer... Se é que posso fazer algo... Ah! E corrigindo o que você
disse agora, ela não vem ficar aqui comigo, ela vem e vai ficar aqui
com a gente!

— Vamos ter que organizar isso, Nina, não gosto daquela


garota aqui no “nosso” apartamento!
Como percebi que o assunto se estenderia resolvi encurtar a
conversa.

— Shelly, que legal que você vai ficar mais um tempo, eu


estava tão triste em saber que você logo iria embora... Eu não
queria demonstrar, mas agora eu posso!

Nos abraçamos e naquele momento selamos ainda mais nossa


amizade e cumplicidade.

— Mas Nina...

— Shelly, estou atrasadíssima!

— Eu sei, Nina, mas onde vamos colocar a Clara?

— Na volta conversamos, tá bem? Ainda temos alguns dias


para pensar em algo!

— Tá bem, só digo uma coisa, Nina, eu não vou ceder o meu


pedaço da cama para ela, ela que vá dormir no sofá!

Fui me arrumar rindo e feliz pela decisão da Shelly, enquanto


ela continuava resmungando, deixando claro o quanto ela não
gostava da Clara.

E foi nesse clima que aqueles dias se passaram, eu consegui


me manter um pouco melhor, mais calma, menos apreensiva por
saber que a Shelly estaria ao meu lado, não iria mais viajar para o
Brasil e estaria presente me dando força com a Allegra. Fiquei
empolgada com a viagem de Shelly a Toronto, renovando as minhas
esperanças em ter novas informações sobre a Diana e o advogado
— já que apesar dos esforços da Olívia para descobrir algo sobre a
infidelidade de Diana enquanto a Allegra estava viajando a Marselha
eles não deram em nada, pois os amantes não foram ao Dommus
Coffee durante aqueles três dias — e quem sabe assim
desmascará-los.
A companhia da Shelly era quase sempre ótima, só ficava
intragável quando o assunto vigente era a Clara. Tivemos que
estabelecer regras, eu tive que prometer a ela que nunca deixaria a
Clara dormir no seu lugar — ao meu lado na cama —, tive também
que “tentar” fazê-la entender que se fôssemos conviver as três
juntas naquele apartamento minúsculo e sob o mesmo teto teríamos
que manter o mínimo de diplomacia, uma postura amigável e adulta.
A fiz prometer também que se esforçaria em pelo menos “tolerar” a
presença da Clara, ela concordou, mas totalmente a contragosto,
sinceramente eu também não estava contente com a ideia de rever
a Clara.

Enquanto eu me preocupava em como seria a minha relação


com a Clara, a Shelly e a Olívia estavam em perfeita sintonia, se
falavam umas 20 vezes ao dia pelo meu celular. Então, antes que
eu perdesse a minha linha telefônica por não conseguir pagar as
contas exorbitantes, resolvi dar um presente pra Shelly, comprei um
celular pra ela, e nem preciso comentar que foi acertada a minha
decisão.

E eu, continuava na esperança de receber uma ligação da


minha amada…
Capítulo 7

— Alô?

Eu disse assustada, ao ser acordada no meio da madrugada


por aquela ligação.

— Alô!? — insisti, ao ver que ninguém respondia.

Mas não ouvia a voz de ninguém, apenas alguns ruídos que


não consegui identificar o que eram, desliguei...

A Shelly acordou com aquele telefonema e acendeu a luz de


seu abajur.

— Que horas são, Nina? — resmungou esfregando os olhos.

— 2h15 — respondi, pensativa.

— Achei que já estivesse na hora de eu ir para o aeroporto.

— Não...

— E por que você colocou o despertador a tocar tão cedo se


hoje é domingo e você não tem que trabalhar? — disse Shelly,
totalmente desnorteada e sem se dar conta de que não era o
despertador que havia tocado e sim o meu telefone.

— Shelly, não foi o despertador que tocou, foi o celular.

— E quem era a essa hora?

— Não sei, não disse nada...

— Mas que número era?


— Não sei, apareceu “número não identificado” no visor!

— Ah... Deve ter sido engano... Vamos dormir!

— Será que pode ter sido a Allegra?

— Que “neura” Nina, e por que ela não falaria nada?

— Não sei...

— Nina, pode ter sido engano, pois ficar ouvindo sem dizer
nenhuma palavra não condiz com a tua médica, que é culta e cheia
de atitude, mas se por acaso foi ela que ligou e “algo” aconteceu na
linha que você não conseguia ouvi-la ela vai ligar de novo, não se
preocupe.

— É, com certeza ela não ficaria muda...

— Já a Clara não sei não, é a cara dela isso! — alfinetou Shelly.

— Tá bem, Shelly, impressionante sua implicância com ela.


Vamos tentar dormir antes que a gente comece a falar da Clara de
novo.

— Boa ideia, não vou perder minhas horinhas preciosas de


sono por causa dela.

— Boa noite, Shelly.

— Boa noite, Nina.

Em segundos a Shelly dormiu, já eu fiquei pensativa


imaginando quem poderia ter ligado naquela hora, mas me convenci
de que devia ter sido engano e que não tinha a menor chance de ter
sido a Allegra. Cochilei um pouco, mas meu sono estava muito leve,
e em vez de dormir até tarde, como eu costumava fazer aos
domingos, às 7h eu já estava de pé, tomando meu café na sala em
frente à televisão, assistindo “Bob Esponja”, me entreti tanto que
nem vi a hora passar.
— Bom dia, Nina! — sai a Shelly do quarto, sonolenta.

— Bom dia, dorminhoca! — falei brincando.

— Nossa, dormi feito pedra, que horas são?

— 9h30, tá cedo ainda, poderia dormir mais.

— Não, quero terminar de arrumar minhas malas, estou ansiosa


em ver a Olívia! Louca de saudades!

— Imagino, eu também estaria no seu lugar, mas você só viaja


depois do almoço, tem tempo de sobra para arrumar suas malas.

— Prefiro ser prevenida!

— Tem café pronto na cozinha, Shelly, deixei tudo em cima da


mesa.

— Vou tomar uma xícara de leite, vem comigo na cozinha, Nina.

— Tá, só vou pegar o jornal e estou indo.

Fui até a porta e peguei o Gazzete que religiosamente o


carteiro deixava ali todos os dias — era um hábito lê-lo diariamente
pela manhã —, pois ao mesmo tempo em que me inteirava das
notícias eu aprimorava meu vocabulário, já que este jornal,
diferentemente de outros, era em inglês, não em francês. Fui até a
cozinha e sentei-me no banquinho ao lado da mesa, enquanto
folheava o jornal e conversava com a Shelly.

— Nina, me conte direito o que aconteceu de madrugada, não


lembro bem.

— Tocou o telefone, eu atendi, mas só ficaram ouvindo... E não


deu para saber que número era...

— Hum, mas se não ligaram mais com certeza foi engano.


— Acho que sim, no início fiquei imaginando se poderia ser a
Allegra, mas depois percebi que não seria ela, isso não é uma
atitude condizente com a personalidade dela.

— Com certeza não é mesmo!

Enquanto conversávamos eu folheava o jornal sem prestar


muita atenção, até que na seção de eventos vi um anúncio de meia
página do pianista Marc-André Hamelin, ele estaria em Montreal
para uma única apresentação no dia 27 de junho às 21h, depois de
quase dois anos sem tocar no Canadá — embora ele fosse
canadense de Montreal —, seria um concerto solo, com obras de
grandes compositores, no belíssimo Place des Arts, um complexo
com cinco salas que abriga também a ópera de Montreal e a
orquestra sinfônica. Marc-André se apresentaria na maior sala do
complexo e os convites já estavam à venda, por CAN$ 150. Ao lado
do anúncio havia uma grande reportagem onde o exaltavam por seu
grande talento e expunham a quantidade de prêmios e troféus que
ele já havia conquistado. Percebi que Marc-André era um dos
maiores e mais respeitados músicos da atualidade, ficando evidente
o porte do pianista.

Lembrei imediatamente que a Allegra havia se referido a ele no


dia do coquetel, em sua casa, e que ela devia ter me achado uma
“perfeita ignorante” por eu não ter nem ideia e nem ter ouvido falar
naquele pianista tão famoso... Dei-me por conta e me assustei ao
ver estampado naquelas páginas em branco e preto que o dia em
que o músico faria a sua única apresentação seria no dia 27...
Rapidamente fiz uma retrospectiva de tudo que havia se passado
em minha vida depois que conheci a Allegra. Percebi que aquele
número era muito mais que uma tremenda coincidência, lembrei-me
das palavras da Olívia, de suas teorias sobre esse número e
principalmente do conselho que ela havia me dado, que era para
não mais ignorar os acontecimentos, tomar atitudes e enfrentar de
uma vez por todas esse “carma” ou algo parecido. A Olívia havia
sido clara ao dizer-me para não mais ficar sentada esperando as
coisas acontecerem!
A Shelly, que estava ali na cozinha ao meu lado com sua xícara
de leite, percebeu minha tensão, então mostrei o jornal e expliquei
tudo a ela, que me ouviu com muita atenção e concordou com
minha decisão.

— Mas... O que pretende fazer exatamente, Nina, vai ligar pra


ela?

— Não, já disse que não vou ligar.

— Não?!... E que “grande atitude” você fará?

— Vou comprar dois convites para esse concerto, vou mandar


um para ela e o outro ficará comigo. Direi a ela que a estarei
esperando dia 27 de junho às 20h45 em frente à sala do teatro, que
se ela ainda quiser me ver que venha, senão eu entenderei a
decisão dela.

— Uau! Tô passada! Nina, você me surpreendeu, agora!

— O que você acha, boa ideia?

— Eu não teria uma ideia melhor! Mas você vai mandar para a
casa dela ou quer que eu entregue a ela lá em Toronto?

— Nem um nem outro, se eu mandar pra casa dela a Diana


poderá ver ou interceptar e eu nunca saberei... Se você entregar
pessoalmente dará chance a ela de falar, argumentar e questionar,
além disso, te conheço bem, Shelly, você não vai simplesmente
entregar e sair calada.

— Talvez você tenha razão — admitiu Shelly. — Mas então,


qual seu plano?

— Vou mandá-lo por Fedex, diretamente para seu consultório,


não vejo maneira mais segura de chegar às mãos dela.

— Perfeito, Nina! E quando você fará isso?


— Agora, Shelly! Vou pedir para entregarem as entradas aqui
em casa agora mesmo, e enquanto espero elas chegarem vou
escrever um bilhete e colocar junto com o convite dela, aí amanhã
cedinho dou uma escapada do restaurante e deixo no correio!

— Estou impressionada com essa sua “nova versão”! Adorei!

Peguei o telefone sem vacilar e solicitei a entrega, consegui


dois lugares excelentes na segunda fileira, bem em frente ao palco,
dois lugares privilegiados um ao lado do outro.

Enquanto a Shelly terminava de arrumar sua mala eu peguei


um folha, uma caneta e me pus a escrever um bilhete, ainda sobre a
pequena mesa de dois lugares.

Querida Allegra,

Se eu procurasse as mais belas palavras do mundo e as


pusesse aqui, ainda assim seriam pequenas para expressar o
quanto desejo te ver novamente, sinto tanta saudade de você que
seria impossível escrever aqui...

Estou mandando junto com estas palavras de carinho e


saudades um convite para assistir ao seu pianista preferido dia 27
de junho aqui em Montreal. Estarei te esperando às 20h45 em frente
à sala do concerto, tenho comigo o convite que me dá direito a
sentar-me na poltrona ao seu lado...

Por favor, Allegra, minha querida, só venha se ainda quiser me


ver, caso contrário não venha, saberei e entenderei a sua decisão,
não guardarei mágoas, lembrarei de você como uma mulher
honesta que não quis alimentar falsas esperanças a uma garota
apaixonada, e por mais que isso seja dolorido, admirarei sua atitude
madura... Ainda assim, assistirei ao concerto, mas confesso que não
terá o mesmo encanto ouvir o grande pianista Marc-André sozinha...
Mas, assim mesmo, estarei lembrando-me de você em cada acorde
por ele tocado...
Com carinho e muita saudade,

Nina

Dobrei cuidadosamente e levei até o quarto onde a Shelly


estava, mostrei a ela, mesmo estando decidida a mudar de atitude e
mandar a pequena carta à Allegra, ainda assim queria ter a opinião
da minha amiga, que certamente seria sincera.

— Está ótima, Nina, sei que já disse antes, mas estou


impressionada com você. Você me surpreendeu positivamente
tomando essa atitude, espero que dê resultado tão positivo quanto a
sua iniciativa, vou torcer que ela venha ou pelo menos ligue para
agradecer a sua gentileza e que assim vocês possam se falar.

— Shelly, eu nem quero pensar muito, simplesmente vou


mandar amanhã e tentar esquecer isso até dia 27 do mês que vem,
porque dia 27 agora a Clara está chegando, não sei quanto tempo
ela vai ficar e nem como será daí em diante... E o pior, espero que
vocês não se “matem” aqui dentro, porque senão eu que vou me
mudar e deixar vocês duas aqui — disse, brincando, mas com um
fundo de verdade.

— Ainda bem que estarei bem longe, com minha Olívia lá em


Toronto no maior love, quando ela chegar aqui essa semana.

Já estava quase na hora de a Shelly ir ao aeroporto, então


concordei, pois enquanto eu podia adiar aquela situação eu adiaria,
deixaria ver o que aconteceria no momento em que elas se
encontrassem.

— Shelly, vou me despedir de você aqui, não vou ao aeroporto,


tenho que esperar os convites chegarem.

— Tudo bem, Nina, é por uma ótima causa, vou pedir para a
Olívia “emanar” ondas positivas nestes convites, para que tudo dê
certo, fique tranquila.
Ela falou super-sério, mas eu não aguentei e caí na gargalhada.

— Não ria, Nina! A energia positiva é que move o mundo!

— Eu sei, eu sei... — concordei por concordar.

Naquela hora escutei meu telefone tocar e rapidamente corri


até cabeceira da cama para atender, olhei no visor e novamente
aparecia “número não identificado”.

— Shelly! Olha! De novo o número sem se identificar!

— Atende logo, Nina!

— Alô? — não ouvi nada.

— Alô — mais uma vez insisti, mas nada.

Olhei para a Shelly e fiz sinal que ninguém falava nada, então
ela disse alto.

— Desliga isso, Nina, deve ser a Clara jurando que está nos
enganando, mas sabemos que é você, Clara!

Imediatamente desliguei, mas dessa vez um pouco


preocupada, poderia ser a Clara, mas sinceramente eu não tinha
certeza disso.

— Quem será, Shelly? Duas vezes seguidas não pode ser


engano.

— É a Clara! Quer ver se você está com alguém aqui, se está


namorando ou de casinho com alguma menina...

— Pode ser, mas acho estranho, ela perguntaria se fosse isso...

— Você que pensa, ela não é confiável, traiu você, fez tudo na
moita, está ligando no meio da noite para saber e vir prevenida, com
bastante veneno!
— Será?

— Hello! Acorda, Nina, essa garota não presta! E tem mais,


quando ela descobrir seu amor pela médica, ela fará tudo para
arruinar um possível encontro ou relacionamento entre vocês!

— Para com isso, Shelly, ela não seria capaz de tanto!

— Não é?! — ela falou com total certeza de que eu estava


enganada. — E falando nisso, você vai esconder dela o que sente
pela Allegra?

— Não, se ela perguntar algo vou falar a verdade, não quero


deixá-la com esperanças.

— Tudo bem, mas tome cuidado com o que vai dizer a ela.

— Pode deixar, Shelly, tomarei cuidado... Mas logo você volta


pra me proteger, não é? — disse, tentando acalmar os ânimos da
Shelly que já estavam se alterando.

— Sim, logo volto para cuidar de você, mas enquanto isso, fica
com os teus olhos bem abertos! — retrucou sério.

— Tá bem! Prometo!

— Nina, vou indo... Vou pegar um táxi ali na esquina.

Abracei Shelly apertado, ela também me abraçou curvando-se,


pois era bem mais alta que eu; não que eu fosse extremamente
baixa, ela que tinha uma altura acima da média e ainda por cima
estava de salto alto.

— Vai lá, Shelly, aproveita bastante, diga que mandei um beijo


para a Olívia e se esforcem como “detetives” para descobrir algo
sobre a Diana, tá?

— Pode deixar, desta vez a “traíra” não escapa! Eu ligo quando


chegar.
Despedimo-nos, a Shelly foi ao encontro do seu táxi enquanto
eu aproveitei para fazer uma faxina em casa e deixar tudo em
ordem.

Mais ou menos uns 40 minutos após a Shelly ter saído de casa


para o aeroporto, meus convites chegaram, fiquei contemplando-os
por alguns minutos, coloquei um deles dentro do envelope
juntamente com a cartinha — o outro guardei em minha gaveta ao
lado da cama —, fechei com cuidado, escrevi o endereço do
consultório e grifei o nome do destinatário, “Aos cuidados de dra.
Allegra Cavazza”, me deu um friozinho na barriga, mas sabia que eu
precisava tomar aquela atitude, depositei toda minha energia
positiva naquele pequeno envelope seguindo os conselhos da
Shelly... Nem eu me reconheci tendo aquela atitude, mas fiquei
orgulhosa de mim mesma, sabia que era o melhor a ser feito.

No dia seguinte, conforme eu havia planejado mandei a carta


por Fedex, ali a sorte tinha sido lançada! Só restava então esperar
para ver o que aconteceria no dia do concerto, mas até lá ainda
havia muita coisa pela frente, a Clara que chegaria no meio da
semana — precisamente na quarta-feira, dali a dois dias. Com isso
sim eu tinha que começar a me preocupar logo, pois sabia que não
seria nada fácil...
Capítulo 8

— Telefone pra você, Nina.

— Já estou indo, Marcel, peça para aguardar um minuto, só vou


liberar estes dois pratos para a mesa 19.

Justo naquele dia em que a Clara estava chegando o


restaurante estava lotado como há muito tempo eu não via... Eu já
tinha avisado ao subchef Gerard que teria que sair antes e que ele
teria que assumir “a bronca”, mas estava tão lotado, os pratos
atrasados, fila de espera, que mesmo já passando das 14h o
movimento continuava intenso, como em “horário de pico”, estava
uma loucura, não sabia como eu faria para buscar a Clara.

Saí de fininho e fui atender o telefone.

— Alô?

— Oi, meu amor! Cheguei, estou aqui no aeroporto a sua


espera!

— Oi, Clara, você chegou antes? Não ia chegar por volta das
16h?

— Não, eu falei para você que seria às 16h para fazer surpresa!

Ela já havia começado mentindo, eu não havia me programado


para sair 3 horas antes do meu horário, mas sim uma hora antes.

— Só que não posso sair agora, me programei para sair mais


tarde, você tinha que ter me avisado.

— Não gostou da surpresa, docinho?


— Gostei sim... — não podia ser rude. — Mas Clara, você terá
que esperar aí, ou pegar um táxi e vir até aqui no restaurante me
esperar.

— Não acredito que terei que ficar aqui plantada! — disse ela,
inconformada.

— Clara, compra uma Pepsi, senta aí e relaxa, que vou tentar


me liberar o quanto antes, tá?

— Tá bom, mas não demora! — falou, emburrada.

Desliguei o telefone mais atordoada que antes, senti que ia ser


difícil a convivência com ela. A Clara era aquele tipo de garota
geniosa, riquinha, mimada e acostumada a ter tudo que quer na
hora, ela tinha noção de que era bonita e usava de seu charme para
manipular as pessoas e conseguir coisas que queria.

Mesmo sabendo que não gostava mais dela, que era louca pela
Allegra e que não tinha a menor dúvida sobre o meu sentimento
pela minha médica, eu ainda tinha certo receio em vê-la novamente,
afinal viajei para outro país para fugir da Clara e não mais cair em
suas artimanhas...

Ao voltar para o tumulto da cozinha, percebi que se eu fosse


esperar acalmar o movimento só sairia dali depois das 18h, então fui
obrigada a recorrer ao subchef.

— Gerard?

— Sim, chef?

— Por favor, assuma a cozinha agora, terei que sair um pouco


antes do que eu havia previsto.

— Tudo bem, Nina, fique tranquila, eu assumo agora.

— Obrigada.
Fui até o vestiário, tomei um banho rápido, me vesti, peguei um
táxi e fui até ao aeroporto encontrar com a Clara, no caminho pedi
forças aos “Deuses do além”, que me fizessem forte e não me
deixassem envolver pela Clara, afinal eu não a via desde o término
do nosso namoro.

Entrei no aeroporto e comecei a procurá-la, bastaram dois ou


três minutos para que eu a visse, ela me viu também e logo se
levantou com um sorriso e veio ao meu encontro com um grande
buquê de rosas nas mãos.

Aqueles 30 metros que nos separavam serviram para eu tirar


algumas conclusões: ela continuava bonita, ainda me atraía, mas já
não a achava mais tudo aquilo que antes me fizera idolatrá-la, ela
era mais baixa e tinha um corpo mais mirrado comparado ao da
Allegra, que fazia o tipo “mulher fatal”, que era bem mais alta, cheia
de curvas e toda malhada... Definitivamente e sem a menor dúvida,
eu só tinha olhos para a Allegra...

Ela continuava com seus olhos verdes — água, bastante claros


— lindos, penetrantes, que contrastavam com seus cabelos pretos e
pele branca, mas esse “conjunto de atributos físicos” não exercia
mais o mesmo efeito em mim... O meu amor pela Allegra era
infinitamente incomparável ao que eu um dia senti pela Clara, e isso
me fez relaxar, mesmo sabendo que a Clara usava e abusava de
suas artimanhas, pois aquelas rosas eram para “derrubar” logo de
cara.

— Meu amor! — disse ela me abraçando. — Essas flores são


para você!

Abracei-a e peguei as rosas, agradecendo.

— Obrigada, Clara, não precisava se preocupar com isso.

— Como que não? Era o mínimo que poderia fazer para


mostrar o quanto estou arrependida e disposta a te reconquistar.
Sorri sem graça, nem sabia o que dizer a ela.

— Vamos, Clara, vamos até meu apartamento. Onde estão


suas malas?

— Ali — ela apontou para uma montanha de malas que


estavam ao lado de uma fileira de cadeiras.

— Tudo isso é seu?

— Sim! Achou muito?

— Muito? Achei exagerado! Quanto tempo pretende ficar?

— Indefinido, Nina. Quero morar aqui com você, não pretendo


voltar ao Brasil sem você. Nina, se você quiser ficar aqui para
sempre eu também fico.

A situação era crítica, muito mais grave do que eu supunha,


lembrei da Shelly imediatamente, que iria surtar ao saber dessa
decisão da Clara... Então tentei com todo jeito desencorajá-la.

— Clara, antes de você tomar qualquer decisão definitiva, você


tem que conhecer a cidade, os costumes, a língua e principalmente
a temperatura, é tudo muito diferente do Brasil.

— Bobinha! O que me importa é estar com você, o resto “tiro de


letra”! Você está tão linda, Nina, está diferente, com um semblante
lindo!

Apenas sorri, percebi que não ia adiantar argumentar nada


naquela hora, eu teria que ter muita calma. Então colocamos as
inúmeras e intermináveis malas dela nos carrinhos, pegamos um
táxi e fomos até meu apartamento, durante o trajeto mostrei para ela
através da janela do táxi alguns pontos interessantes, paisagens e
até onde ficava o Petit Brazil. Depois de 15 minutos chegamos em
frente ao meu apartamento.
Ao entrarmos, largamos as malas no canto da sala ao lado da
estante e colocamos as flores em cima da mesinha da sala, e a
Clara disse:

— Que gracinha, Nina! — referindo-se ao apartamento.

— Obrigada, é pequeno, mas tento deixá-lo o mais confortável


possível!

— Posso te pedir uma coisa, Nina?

— Claro.

— Quero te beijar, estou com saudades de você.

Ela veio na minha direção, mas eu esquivei e disse a ela:

— Clara, não confunda as coisas. Eu nunca prometi a você


nada além de amizade.

Ficou nítido que ela estava totalmente contrariada, mas se


esforçou em tentar camuflar o seu descontentamento.

— Tudo bem, Nina, eu vou respeitar, você precisa de um


tempo, eu te dou esse tempo para pensar, ok?

— Olha, Clara...

— Não precisa dizer nada, Nina, eu sei que você ainda está
magoada comigo, mas vai passar. Não vamos falar disso agora.

— É melhor mesmo... — falei sem paciência.

— Onde está a Micheli?

— Ela está viajando... Foi encontrar com a namorada, volta


domingo.

— Ela dorme aqui na sala?


— Não, ela dorme no quarto comigo, na cama.

— Hum... Por um momento achei que vocês pudessem estar


tendo um caso, isso faz sentido?

— Para, Clara, a Shelly é minha amiga de anos, nós nunca


teríamos nada.

Eu já estava ficando nervosa e estressada com ela, isso que ela


tinha chegado há menos de uma hora. Eu precisava dar uma volta,
arejar a cabeça e pensar qual seria a melhor forma de lidar com
aquela situação.

— Clara, vou sair, vou fazer uma cópia da chave para você, vai
se ajeitando, fica à vontade, tem comida na geladeira se sentir
fome... Volto logo.

Saí porta afora, já sentia falta da minha liberdade, senti-me


sufocada, queria gritar, queria estar com a Allegra, que me fazia
sentir-me bem, leve e calma...

Comecei a andar pelas ruas, olhando as pessoas, os prédios,


as árvores...

Andava sem pressa, deixei meus pensamentos voarem até a


Allegra e recordei-me dela, do seu beijo, do seu abraço, de suas
palavras doces, seu perfume, do som que o seu coração fazia
quando eu estava deitada sobre seu peito, e sem perceber comecei
a chorar... Sentei-me na calçada, no meio fio e ali fiquei por alguns
minutos, algumas horas...

Só levantei dali quando estava totalmente escuro, fui


lentamente até o chaveiro e tirei a cópia que eu havia prometido a
Clara. No caminho de volta cheguei à conclusão de que antes que a
situação ficasse insuportável — o que fatalmente seria breve — eu
deveria ter uma conversa adulta com a Clara, senão eu
enlouqueceria antes mesmo de a Shelly chegar.
Ao abrir a porta do apartamento não acreditei no que vi, todas
as roupas da Shelly estavam em cima do sofá, corri para o quarto e
vi a Clara arrumando todas as suas roupas no guarda-roupa do meu
quarto.

— Que é isso, Clara?

— Docinho, eu já estava preocupada com você! Onde andou?

— Clara, o que você está fazendo?

— Arrumando minhas coisas, você não disse para eu ficar à


vontade e me instalar!

Respirei fundo, tentei me acalmar.

— Clara, você tirou todas as roupas da Shelly e jogou no sofá!


O que você acha que está fazendo?

— Meu amor, vou dobrar as roupas da sua amiga depois e


deixá-las organizadas, não se preocupe, esse apartamento é
pequeno, não tem espaço suficiente para guardarmos as roupas de
nós três aqui, então eu estava pensando...

— O que você estava pensando? — falei prestes a explodir.

— Quando a sua amiga chegar vamos conversar com ela,


vamos ser solidárias a ela.

— Como assim solidárias, Clara?

— Vamos dar um prazo para ela se mudar, para ela sair daqui e
achar outro apartamento, podemos dar uma semana ou uns dez
dias para Micheli encontrar outro lugar, ela terá mais liberdade e a
gente também.

— Meu Deus, Clara! Você está louca? A Shelly não vai sair
daqui a não ser por vontade própria!
— Nina, fala a verdade pra mim? Você está gostando dela, está
apaixonada por ela?

— Para com isso! Já disse que a Shelly é minha amiga! Só


isso!

— Mas você está nitidamente preferindo ela do que eu!

— Clara... De uma vez por todas, antes que eu surte, vamos


sentar ali no sofá e vamos conversar, tá bem?

Ela veio devagar com um semblante de quem estava prestes a


chorar e sentou-se no sofá, eu coloquei algumas roupas da Shelly
no chão, sentei-me do lado dela e com toda calma iniciei a
conversa.

— Clara, a Shelly é minha amiga, só isso, está entendido?

Ela balançou a cabeça concordando.

— Ela está aqui comigo há mais de três meses, nos


entendemos bem e vivemos em harmonia... E eu quero continuar
assim.

— Você está dizendo que eu estou causando discórdia?

— Não... Mas se continuar assim você vai acabar causando,


então antes que eu me irrite, acho bom você entrar nas regras aqui
de casa.

— Você está sendo rude comigo — e começou a chorar.

Pensei comigo mesma: “Senhor, dai-me paciência”!

— Para com isso, Clara, não chora!

— Você está odiando que eu estou aqui, não é?


— Não, não é nada disso, é que você está dificultando tudo. Eu
pensei que quando você chegasse pudéssemos conversar sobre um
montão de coisas legais, passear, te mostrar a cidade linda em que
estamos, mas você chegou confrontando tudo!

— Desculpe, eu errei, vou me controlar, amo você e quero ficar


com você.

— Bem, se você está disposta a cooperar, então preste atenção


em como vamos viver daqui por diante, tá bom?

— Tá bem — ela falou, totalmente contrariada.

— A Shelly, minha amiga, vai continuar dormindo comigo, na


cama, como sempre foi, as roupas dela vão continuar no lugar que
sempre estiveram e você vai dormir aqui na sala, no sofá-cama, e
se não achar bom terá que aguentar até comprarmos uma cama ou
um colchão melhor, ok?

— Quer dizer que você prefere dormir com a Micheli que é sua
amiga do que comigo que fui sua namorada por um ano e meio?

— Você falou certo agora, você foi minha namorada, agora é


minha amiga, assim como a Shelly, se ainda namorássemos aí sim
você dormiria comigo.

— Então vamos voltar a namorar!

— Deixa de ser infantil, Clara! — eu começava a perceber que


a Shelly estava coberta de razão em tudo que falava da Clara, eu só
não percebia antes porque estava apaixonada por ela. — Você
disse que estava disposta a cooperar.

— Estou sim, Nina, vou fazer o que você pediu para te


reconquistar o quanto antes.

— Clara, olha pra mim, me escuta com atenção, não acho que
você deva alimentar esperanças para um possível retorno nosso.
— Por que não? Se você jura que não está namorando e nem
apaixonada pela Micheli, por que não devo tentar então?

— Ai, Senhor! Porque não, Clara!

— Você está namorando com alguém?

— Não, não estou...

— Então você não pode me impedir de tentar te reconquistar.

— Clara, você acha que agindo assim vai conseguir alguma


coisa de mim?

— Assim como, Nina? Estou dizendo que me arrependi, que te


amo, quero viver minha vida inteira ao seu lado, deixei o Brasil e vim
até aqui por sua causa e você nem se quer reconhece!

— Não é isso... Eu entendo você... Só que não dá!

— Não? O que é então? Por que não dá?

— Clara... Eu amo outra mulher, estou perdidamente


apaixonada por outra pessoa.

Nessa hora a Clara arregalou os olhos incrédula, suspirou


fundo e perguntou:

— Quem é essa outra mulher, por quem você está


“perdidamente” apaixonada, Nina?

— Não importa, Clara, você não a conhece mesmo, eu não


queria te magoar, preferia nem ter dito nada, mas você não me dá
alternativa.

— Mas você acabou de dizer que não está namorando.

— Não estou mesmo... Mas isso não impede de eu amar outra


pessoa, não acha?
— E essa “outra pessoa” sabe disso, você já ficou com ela?

— Sim, ela sabe disso e nós já ficamos juntas.

— Onde ela mora?

— Não importa!

— Ela é bonita? Que idade ela tem? O que ela faz?

— Clara, nada disso importa! Já falei!

— Pra mim importa sim, e muito! Prometo que vou me


comportar, prometo que vou tentar ser legal com a Micheli, mas não
vou sossegar se não souber disso, por favor, me fale! Juro que não
vou te incomodar mais.

Eu sabia que isso tinha “cara de chantagem” e das mais


baratas, mas naquela hora me parecia a única alternativa para
tentar uma trégua.

— Você promete pra mim que se eu te contar você não vai


provocar a Shelly e nem tentará mudar a nossa rotina aqui de casa?

— Juro por todo amor que sinto por você.

Ela falou tão confiante que pensei na possibilidade de não ser


uma chantagem.

— Tá bem... O que você quer saber?

— Ela é bonita?

— Sim, ela é linda... — falei radiante.

— Mais que eu?

— Clara, você prometeu!


— Tá, desculpe foi sem querer.

— Que idade ela tem?

— 40.

— O quê? Você quer me trocar por uma mulher de 40 anos?

— Clara!

— Desculpe... Onde ela mora?

— Ela não mora aqui em Montreal, não se preocupe...

— Você não respondeu à minha pergunta!

— Em Toronto. Satisfeita? Encerrou o assunto?

— Não, ainda tenho três perguntas.

— Fala...

— O que ela faz?

— Ela é médica.

— Qual o nome dela?

— Isso é desnecessário!

— Você concordou, Nina, responda às minhas perguntas que


vou cooperar.

— Tá bom, tudo em nome da paz! O nome dela é Allegra.

— Hum... E vocês já transaram?

— Sim.
A Clara levantou-se imediatamente, sem dizer nada, e juntou as
roupas da Shelly.

— O que você vai fazer?

— Cumprir a minha parte do trato, colocar as roupas da Micheli


de volta e me instalar aqui na sala.

Fiquei impressionada! Parecia que estava funcionando.

— Ótimo, Clara, assim será melhor, não acha?

— Sim, só uma coisa, Nina, que não prometi e nem vou


prometer. Eu vou tentar te reconquistar custe o que custar... Você
vai esquecer essa médica e voltar pra mim.

— Isso é uma ameaça?

— Não, só estou jogando limpo com você, assim como você


abriu o jogo comigo, estou fazendo o mesmo agora.

— Tá bem, Clara... Eu vou tomar banho.

Fiquei quase meia hora sob a ducha, saí mais calma, um banho
sempre renova as energias, e para minha surpresa, quando saí do
banho, as roupas da Shelly já estavam novamente no seu lugar, a
Clara estava na sala assistindo televisão, já havia colocado uma
panela de arroz no fogo e uns bifes temperados sobre a mesa para
fritá-los mais tarde.

Jantamos, conversamos bastante, não tocamos mais naqueles


assuntos que tanto tinham causado polêmica e parecia que ela iria
se comportar, pois estava amável e educada.

Naquela semana vivemos em harmonia, durante o dia eu


trabalhava e ela ficava em casa, deixava tudo arrumado, assistia TV
e lia o jornal procurando alguma ocupação e emprego, quando eu
chegava após o trabalho saímos bastante, levei-a para conhecer a
cidade e matricular-se em um curso de francês, já que ela tinha uma
boa fluência no inglês mas não entendia uma só palavra do francês.

Falei com a Shelly algumas vezes por telefone, mas procurava


não comentar muito sobre a Clara, era totalmente desnecessário
gastar telefone com aquele assunto, conversávamos mais sobre a
relação dela com a Olívia e possíveis novidades da Allegra, ela
disse ter descoberto “algo” da Diana, mas insistia que só contaria
pessoalmente, não queria adiantar nada por telefone. Claro que
quase morri de curiosidade, mas sabia que não iria adiantar
absolutamente nada gastar minhas energias em tentar arrancar algo
da Shelly, já que ela estava decidida a só contar quando voltasse.
Capítulo 9

Finalmente a Shelly estaria de volta, ela havia dito que chegaria


a tempo de almoçar, então acordei às 10h daquele domingo lindo,
ensolarado, e ainda arrisco em dizer que era um dos dias mais
quentes até então.

Depois de lavar meu rosto e escovar os dentes, coloquei uma


blusinha cavada e uma calça jeans, passei em silêncio pela sala —
para não acordar a Clara que ainda estava deitada — e fui para a
cozinha me divertir com minhas panelas e meus temperos. Mesmo
no domingo eu não conseguia ficar longe da minha paixão, que era
cozinhar, ainda mais quando se tem um motivo especial, minha
amiga querida estava quase chegando!

Separei algumas panelas, temperos e já estava bolando o


“cardápio” quando a Clara acordou.

— Bom dia, Nina — disse Clara chegando à cozinha e


servindo-se de um copo de suco.

— Bom dia, Clara!

— Qual gostosura você fará para o almoço?

— Farei um frango recheado, batatas assadas, tudo bem


simples, mas com um temperinho bem brasileiro!

— Hum, já estou com água na boca!

— Acho que ao meio-dia estará pronto.

— Nina, posso lhe dizer algo?

— Pode, o quê?
— Você está linda hoje!

Fiquei com pena da Clara, ela estava se comportando, não


havia reclamado de nada e tentava me conquistar com muito
cuidado, eu percebia em suas atitudes e pequenos gestos... Se
fosse em outras circunstâncias eu já teria cedido.

— Obrigada, Clara.

— Vou tomar um banho, sua amiga deve estar quase chegando


e quero esperá-la de banho tomado e com a sala em ordem.

— Ok, vá lá, enquanto isso vou continuar cozinhando.

Descasquei as batatas, levei para cozinhar antes de colocá-las


ao forno, temperei o frango e o deixei marinando, enquanto
começava a preparar o delicioso recheio.

Passaram-se uns 20 minutos, quando escuto barulho de chave


na porta, corri para sala e juntei-me a Clara, que já estava de banho
tomado e terminava de arrumar sua “cama”.

Para minha alegria, minha amiga Shelly estava de volta, e


trouxe junto com ela a Olívia, as duas com sorrisos enormes
estampados no rosto!

— Que surpresa boa, Olívia! — eu disse ao vê-la.

— A minha “bruxinha” me convenceu em fazer uma surpresinha


— ela respondeu.

— Você fez muito bem, Shelly! Estava com saudades amiga,


me dá um abraço!

Enquanto nos abraçávamos e nos cumprimentávamos a Clara


ficou olhando meio sem jeito. Mas puxou assunto.

— Oi, eu sou a Clara — disse para Olívia.


— Oi, Clara! Prazer em te conhecer! — respondeu Olívia com
simpatia.

— Oi, Micheli — disse Clara para Shelly.

— Primeiro lugar, me chama de Shelly, aí sim podemos


começar a conversar.

Olhei pra Shelly e fiz um olhar quase que implorando que


tentasse ser acessível com a Clara, para evitar discussões, ela
entendeu e tentou amenizar dizendo:

— Dessa vez passa, Clara... Como você está se adaptando


aqui em Montreal?

— Estou gostando bastante, “Shelly” — ela respondeu sorrindo.

Então, logo, a Olívia, que era “boa de papo”, começou a puxar


conversa com a Clara e em menos de três minutos estávamos todas
enturmadas. Aproveitei aquele momento descontraído e chamei a
Shelly na cozinha, que veio na mesma hora.

— Me conta, amiga! O que vocês descobriram da Diana? —


perguntei em voz baixa.

— Dia 26, eu a Olívia fomos na esquina da casa da Allegra e


ficamos de “campana” lá, vimos a Allegra sair de casa bem cedo
com aquele carrão dela.

— Sério?! E como ela estava?

— Não vimos direito, porque ela estava dentro do carro, deu pra
ver que estava de óculos escuros, só isso, mas não se preocupe,
tiramos fotos!

— Jura!! Preciso ver! Vocês a seguiram?

— Não, né, Nina! A ideia era saber o que a Diana estava


aprontando, além disso, sabíamos que a Allegra viajaria naquele dia
26 para Los Angeles, muito provavelmente ela deva ter ido ao
aeroporto e deixado o carro dela lá.

— É verdade, e o que mais? — perguntei supercuriosa.

— Às 12h30 a Diana saiu com a caminhonete preta e foi até um


restaurante bem longe dali, entrou e sentou-se em uma mesa, num
canto. A Olívia entrou atrás dela e sentou duas mesas longe, para
não perder nada.

— E aí? Me conta tudo!

— Passaram uns 10 minutos e chegou o advogado amante


dela, ele entrou, juntou-se a Diana, conversaram, almoçaram,
trocaram beijos e carícias e depois olharam alguns papéis
atentamente, pareciam documentos, e depois adivinha para onde
foram?

— Não sei... Onde? Fala logo!

— Motel! Ficaram lá a tarde toda.

— Que desgraçada! Vocês conseguiram registrar algo disso


tudo?

— Sim! Desde os beijos no restaurante até a entrada e saída do


motel, a Olívia fotografou tudo com o celular dela.

— Mas e agora, o que faremos com tudo isso?

— Não sei, o mais importante é que conseguimos provas que


tanto queríamos.

— Sim... É verdade! — fiquei pensando em alguma maneira de


usarmos aquilo, mas não tinha nenhuma ideia... Até então, mas
teria, com certeza!

— E a Clara, Nina?
— Está se comportando, tive uma conversa séria com ela e me
parece que está funcionando.

— Não confio...

— Eu sei, mas não custa tentar e dar um voto de confiança, não


é?

— Você recebeu de novo alguma ligação anônima?

— Não... Aquela de domingo passado foi a última. Por quê?

— Isso só confirma as minhas suspeitas de que era a Clara!

— Será?

— Vamos ver... Até quando ela vai ficar aqui?

A Shelly tinha feito a pergunta que eu tanto temia!

— Não sei, Shelly... Ela não disse...

— Você não perguntou?

— Perguntei... — falei sabendo que não tinha escapatória.

— E o que ela disse?

— Que veio para ficar... — respondi, esperando uma reação


ruim da Shelly.

— Ah, não! Essa garota está louca?

— Shelly, não vamos nos preocupar com isso agora... Tenho


certeza de que ela mudará de ideia, por favor, não fala nada, por
mim?

— Tá bem...
— Me ajuda a levar a mesa pra sala, vamos abri-la lá que tem
mais espaço.

Levamos a mesa para a sala e enquanto eu terminava de


preparar o almoço, elas arrumaram a mesa, ligaram a TV no jornal e
estavam conversando animadamente e pacificamente.

Assim que o almoço ficou pronto, levamos tudo para a mesa,


a salada, o arroz branco, o frango recheado, as batatas assadas e
uma jarra de suco de uva. O frango estava ótimo, só recebi elogios,
principalmente da Olívia, que estava experimentando pela primeira
vez um tempero brasileiro. Almoçamos descontraidamente, rindo
muito das teorias da Olívia, o papo estava ótimo, quando na CNN
escutamos uma chamada.

— E no próximo bloco, depois de nove meses na fila de espera


por um transplante de coração, o filho do astro dos cinemas, Kevin
Grate, finalmente receberá um coração novo, e a responsável por
realizar este procedimento delicadíssimo em Alan Grate, filho do
ator hollywoodiano, será ninguém menos do que a cardiologista e
especialista em transplantes cardíacos dra. Allegra Cavazza, que
estará ao vivo aqui nos estúdios da CNN para nos explicar como
será o procedimento. Aguardem, no próximo bloco.

O silêncio tomou conta da sala, eu fiquei visivelmente


transtornada, a Shelly ficou feliz e louca para mostrar para Olívia
quem era a “famosa médica”, e a Clara percebeu que finalmente
veria com seus próprios olhos por quem eu estava “perdidamente
apaixonada”... Percebi também que a Clara se sentiu diminuída por
ver que ela era uma médica de grande prestígio.

— Aí, Nina, hein! Tá podendo, com a namorada aparecendo na


TV e operando só os famosos! — disse Olívia.

Sorri sem graça, percebi que a Olívia não sabia que a Clara era
a minha ex-namorada.
— Ela é sua namorada, Nina? — perguntou Clara, indignada,
achando que eu havia mentido a ela.

— Ela não é minha namorada, Olívia, mas espero que venha a


ser — respondi olhando para Olívia mas com a intenção de deixar
bem esclarecido para Clara.

— Silêncio, vai começar! — alertou Shelly.

Nós quatro paramos imóveis na frente da televisão.

— Estamos de volta aqui nos estúdios da CNN com a


cardiologista e especialista em transplantes cardíacos dra. Allegra
Cavazza!

— Boa tarde, doutora!

— Boa tarde, John, é um grande prazer estar aqui.

— Uau! Essa que é a famosa médica, a taurina?! A Shelly já


tinha me dito que ela era poderosa, mas não imaginei que fosse tão
bonitona. Nitidamente é uma mulher Alfa! — disse Olívia,
visivelmente impressionada.

— Depois eu te pego, Olívia — disse Shelly, brincando estar


com ciúmes.

— Por favor, meninas, depois, deixem eu ver a minha Allegra!


— eu disse, atordoada.

A Clara estava imóvel com os olhos grudados na TV,


extremamente incomodada com a beleza da Allegra.

Ela estava linda, com um terninho branco, uma gargantilha


prata superdiscreta, estava serena, com aquele jeito inconfundível
de falar, com firmeza, dominava o assunto e explicava todo o
procedimento com calma e cuidado para que os telespectadores
pudessem entender, sem termos técnicos, tendo o bom senso de
uma excelente profissional.
— Então, John, o coração do doador está sendo mantido em
funcionamento através de aparelhos, até que as duas equipes
médicas e o receptor, Alan Grate, estejam prontos para recebê-lo.
Este doador teve sua morte cerebral constatada hoje pela manhã
através de um eletroencefalograma, que é um exame que detecta a
atividade cerebral, consequentemente, a ausência dela. O
procedimento ocorrerá entre a madrugada do dia de hoje ou
amanhã pela manhã, tudo dependerá da hora em que o coração for
removido do doador, aí a contagem é regressiva e teremos até 4
horas para realizar o transplante.

— O filho do ator Kevin, o garoto Alan Grate, de 12 anos de


idade, está na Califórnia, e o doador está no Texas... Como será
esta locomoção, doutora?

— Enquanto o coração viaja para a Califórnia com uma equipe


médica, eu e minha equipe já estaremos com Alan, no bloco
cirúrgico sendo preparado para a recepção do órgão.

— Como você lida com essa grande responsabilidade de ter


sido eleita como uma das melhores cardiologistas da atualidade e
por isso ser incumbida de operar o filho de uma celebridade?

— Primeiro sinto-me lisonjeada pelo elogio designado a mim,


porém, a responsabilidade que sinto em operá-lo é a mesma que
sinto por qualquer ser humano, independentemente se for um
indigente ou uma pessoa famosa, sempre dou 100% de mim em
qualquer procedimento e em qualquer circunstância.

— Por isso que a dra. Allegra é uma profissional tão


reconhecida, desejo sorte a você e sorte ao pequeno Alan.

— Obrigada pela oportunidade, John, e se me permitir gostaria


de estender este agradecimento principalmente à família do doador,
que nos permitiu estar aqui hoje na eminência de salvar mais uma
vida.

— Toma! — disse Shelly.


— Psiu... — Olívia fez para que ela ficasse quieta para que
continuássemos ouvindo.

— Doutora, ainda temos 30 segundos, antes de irmos para o


comercial, gostaria de saber se além de realizar cirurgias e atender
em seu consultório você também ministra aulas para alunos de
medicina.

— Não, infelizmente não tenho tempo para assumir turmas


acadêmicas, eu ministro palestras em universidades e em
congressos no mundo inteiro, semana que vem estarei indo para
Tóquio num congresso mundial de novas técnicas de “By Pass”, e
de lá vou direto para o Brasil participar de um seminário de
cardiologia, que será sediado em um dos maiores hospitais de
transplantes da América Latina, o hospital Dom Vicente Scherer.

— Obrigado, doutora, e boa sorte.

— Obrigada a você!

— Voltaremos com as notícias locais após os comerciais,


aguardem.

Olhei para a Clara, que estava pálida, e a Shelly, radiante e


orgulhosa, e naquela hora lembrei que eu havia tido o privilégio de
estar junto dela, tocá-la e ter um relacionamento íntimo com aquela
mulher deslumbrante, lembrei-me também da loucura que eu havia
feito em mandar o convite a ela — que a essas alturas ela já havia
recebido — e tive a sensação de que ela não apareceria no dia do
concerto, não sei por que exatamente, mas tive esse
pressentimento.

— Aí, Nina, sua médica falou bonito, aliás, me desculpe, minha


bruxinha, mas com todo respeito, que escolha a sua hein, Nina?
Bonita, culta, inteligente e poderosa! Ah, e de “lambuja” podre de
rica, o que mais você quer? — disse Olívia, sem perceber que com
aquelas palavras estava deixando a Clara prestes a explodir.
— Obrigada, Olívia — falei sem graça.

Nessa hora a Clara não se conteve e interrompeu.

— Muito bonito todo esse discurso dela, é fácil “dizer” que tanto
faz operar um famoso ou um indigente, mas queria saber quanto
que esse ator não pagou pra ela operar o filho. Deve ter
desembolsado milhões de dólares! É muito fácil essa tal de Allegra
“extorquir” fortunas desses ricaços numa hora tão delicada. Queria
ver se fosse um mero mortal assalariado, se este conseguiria fazer
uma cirurgia desse porte com a “todo-poderosa”! Duvido, ou o pobre
infeliz se sujeitaria a entregar o seu coração literalmente nas mãos
de um médico sem “pedigree” ou teria que trabalhar duas vidas
inteiras só para pagar os honorários dela! — disse Clara criticando e
morrendo de ciúmes.

Controlei-me para não sair em defesa da Allegra, mas fiquei


quieta para evitar bate-boca.

— E você, Clara? Tem namorada ou namorado? —perguntou


Olívia, seguindo a conversa, mas mudando o foco para tentar
apaziguar.

Senti que aquilo não daria boa coisa...

— Tinha uma namorada, Olívia, até ela me deixar e se mudar


para Montreal — cutucou.

— É mesmo? Então é por isso que você veio pra cá? Para
reconquistá-la?

— Sim! Exatamente isso, você é boa em adivinhações... —


ironizou.

— E como está sua “investida”? Está dando certo?

Eu e a Shelly nos olhamos, prevendo o que aconteceria, mas


não sabíamos exatamente como agir, a Olívia nem desconfiava com
quem estava mexendo e a Shelly devia estar arrependida e
querendo sumir por não ter avisado sobre as intenções de Clara.

— Estaria dando certo sim, se não fosse uma médica famosa


metida a besta atrapalhar meus planos!

Eu só baixei a cabeça e coloquei minhas mãos no rosto,


enquanto a Shelly levantou-se recolhendo a louça e levando para a
cozinha.

— Médica? Também? Como aqui em Montreal as garotas se


apaixonam por médicas, impressionante!

De repente a Olívia se deu por conta do que estava


acontecendo e sem graça disse:

— Desculpe, Clara... Acho que entendi... Que fora que eu dei...


E vocês duas? — referindo-se a mim e a Shelly. — Vou matar
vocês! Como não me disseram nada?

Nisso a Shelly entrou e resolveu acabar com aquela situação.

— Minha linda, tínhamos coisas bem mais interessantes para


falar e “fazer” do que ficar falando das paixões alheias, não acha?
Portanto vamos acabar com esse papo agora, elas que são adultas
que se entendam... E que neste duelo vença a melhor — alfinetou a
Shelly, sem perder a oportunidade de desafiar a Clara.

— Veremos! — disse Clara, saindo dali e indo à cozinha para


lavar a louça.

Durante aquele dia inteiro, depois desse pequeno


“desentendimento”, tudo transcorreu normalmente, conversamos
muito, jogamos War, rimos bastante, a Olívia falou sobre astrologia,
sobre signos, sobre apometria quântica, sobre mantras e todo seu
repertório místico. A Shelly me mostrou as fotos que tiraram da
Diana e algumas da Allegra — quer dizer, do carro dela, porque ela
mesma não dava para ver, infelizmente —, passamos as fotos para
um DVD e eu o guardei escondido em minha gaveta, pois
pensaríamos depois o que fazer para alertar a Allegra...

Resumindo, o domingo foi um sucesso comparado ao desastre


que poderia ter sido depois das “alfinetadas” e da aparição da
Allegra na televisão — fato que me deixou pensando nela o dia
inteiro —, porém naquela noite nos deparamos com mais um
pequeno problema aparente.

— Como faremos a distribuição para dormirmos? — perguntou


Olívia, já de camisola.

Eu e a Shelly nos olhamos, a Clara sorriu percebendo que elas


não dormiriam separadas. Então a Olívia disse:

— Desculpe, Nina, mas a minha Bruxinha dorme todas as


noites com você, essa semana quero ela só pra mim...

A Shelly olhou apaixonada para Olívia e a beijou


amorosamente.

— Tá, entendi... Vocês preferem a sala ou o quarto? — disse,


sem nenhuma alternativa.

— Imagina, Nina, durma na sua cama, eu e a Olívia dormimos


aqui na sala, esse sofá-cama é grande, dá e sobra para nós duas —
concluiu Shelly.

A Clara, notoriamente feliz, interrompeu na mesma hora.

— Bem, garotas, vou me retirar, vou deitar, pois estou com sono
— pegou seu travesseiro e dirigiu-se para o meu quarto.

A Shelly e a Olívia nem perceberam que a Clara tinha dado boa


noite a elas, pois estavam praticamente em lua de mel. Eu, como
teria que acordar supercedo para o trabalho, despedi-me das duas e
fui deitar também.
Entrei no quarto, fechei a porta e coloquei meu pijama, a Clara
já estava deitada me olhando, a única iluminação ali era o abajur
ligado do lado da Clara. Deitei embaixo das cobertas e percebi — na
hora em que levantei as cobertas — que a Clara estava nua.

— Clara! Você está fazendo de propósito?

— Fazendo o quê? — disse, sendo dissimulada.

— Para, Clara, não tem necessidade de fazer teatro! Por que


você está nua?

— Porque sempre durmo nua, esqueceu?

— Sim, você dormia nua quando namorávamos!

— Não... Sempre durmo assim! — insistiu.

— Mentira, Clara!

— Verdade! Você não dormiu sempre comigo pra saber!

— Quer saber? Durma como quiser! — falei, irritada.

Já ela, com toda calma, falou:

— Durma bem, meu docinho — disse, com carinho.

Percebi que eu estava sendo muito dura com ela, afinal ela não
havia feito nada de errado. Por um momento me pus no lugar dela e
tive noção do quanto estaria sendo difícil estar longe da família, ter
visto a Allegra na televisão e eu ainda sendo ríspida com ela.

— Desculpe, Clara, não foi minha intenção te agredir.

— Tudo bem, Nina, eu entendo você, entendo sua irritação,


afinal o que fiz com você não se faz... — ela disse referindo-se a ter
me traído e se mostrando arrependida.
— Não, Clara, sei que o que você fez foi errado sim, mas não
devo ser grossa com você.

— Eu só queria ter a chance de tentar, Nina...

Olhei pra ela e vi que ela estava emocionada, quase fraquejei,


afinal ela era atraente, estava tão perfumada e eu tão carente... Mas
me segurei.

— Vamos dormir, Clara, apague o abajur, por favor, amanhã


tenho que acordar muito cedo.

Ela obedeceu na mesma hora e o silêncio tomou conta do


quarto. Eu fiquei com os olhos abertos em meio àquele breu que se
fazia ali, lembrando da Allegra, lembrando que naquela hora ela
devia estar dentro de um centro cirúrgico com uma responsabilidade
do tamanho do mundo em suas costas, tive noção da imensa
importância e da confiança depositada nela pela família daquele
menino. Senti saudades dela, senti vontade de abraçá-la, queria
acariciá-la, protegê-la, admirei-a mais uma vez e então fiz uma coisa
que não fazia há anos... Rezei, rezei para que Deus a iluminasse
naquela hora, deixando-a tranquila e mostrando o caminho que ela
precisava seguir para que tudo desse certo com aquele menino de
apenas 12 anos... Adormeci pensando nela.

Faltavam alguns minutos para as 3h da manhã quando acordo


com meu celular tocando, sentei-me na cama assustada e liguei
meu abajur, e ao pegar o celular novamente estava estampado no
seu visor “número não identificado”, a Clara sentou-se ao meu lado
sem entender e ficou me olhando.

— Atende, Nina!

Atendi... Só que desta vez não disse nada, apenas fiquei em


silêncio ouvindo, e como eu já esperava ninguém falava nada. A
Clara ficou me olhando sem entender por que eu estava quieta e
falou.
— Você não vai falar?

Eu fiz sinal para ela ficar quieta. Ela obedeceu, mas achou
estranho... Eu continuei ouvindo, tentando decifrar algum ruído ou
algo que me desse alguma pista de quem seria, mas estava
extremamente silencioso, consegui ouvir apenas uma respiração do
outro lado da linha, então a Clara resolveu falar novamente, já sem
paciência.

— Está com vergonha de falar para Allegra que está aqui


comigo agora, dormindo do meu lado?

Olhei pra Clara e mais uma vez fiz sinal para ela ficar quieta,
mas do outro lado desligaram.

— Poxa, Clara! Que é isso?

— Eu que digo o que é isso! Por que você não fala pra ela que
eu estou aqui? Não precisa ficar só ouvindo — a Clara tinha certeza
de que era a Allegra, pois, segundo ela, teria o hábito de me ligar à
noite para conversarmos, da mesma forma como nós (eu e Clara)
fazíamos na época em que namorávamos.

— Clara, não é nada disso, estou recebendo essas ligações há


alguns dias, não sei quem é, só ligam e ficam ouvindo... Até achei
que fosse você, mas agora vi que não é!

— Eu? E por que eu faria isso?

— Não tenho ideia, como não tenho ideia de quem possa ser
agora...

— Deve ser a médica, Nina!

— Duvido, ela não faria isso, não condiz com a sua


personalidade, eu a conheço!

— Sei... Você me conhece superbem e achava que era eu...


Portanto, reavalie... Eu vou dormir, boa noite, Nina.
— Boa noite.

Desliguei a luz e virei para o lado, pensando em quem poderia


ser... A Clara estava descartada, a Allegra eu não acreditava que
pudesse ser, mas estava começando a cogitar da possibilidade,
estava achando tudo muito estranho.

Demorei para dormir novamente, mas assim que cochilei o meu


despertador tocou — era penoso acordar tão cedo —, então levantei
e fui me arrumar para o trabalho, com cuidado para não acordar
todos que ainda dormiam... Pela primeira vez eu estava com a casa
cheia e isso era divertido, uma sensação de família, que há anos eu
não sabia o que era...
Capítulo 10

Naquela manhã, já no restaurante — que estava muito calmo


—, tive tempo para tomar café, deixar tudo organizado com
tranquilidade e até para ficar um pouco no salão recebendo os
clientes. Conversei com dona Julieta, que era sempre muito
simpática e sempre “conseguia” alguma receitinha comigo para
fazer para seus netos. Ela era um amor, eu tinha um carinho muito
especial por ela, acho que por lembrar minha falecida avó. O tempo
passou sem correria em meio a conversas, moquecas e muita
caipirinha.

Por incrível que pareça, às 15h eu já estava com tudo pronto,


não tinha absolutamente mais nada para fazer, o restaurante estava
quase fechando, restando apenas duas mesas com clientes
conversando sem pressa, então, sentei-me numa mesa ao fundo do
salão perto da televisão de 20 polegadas que ficava ligada o dia
inteiro e me pus a assistir ao telejornal local, na esperança de
alguma notícia sobre o transplante do garoto.

Logo na metade do primeiro bloco entrou uma reportagem


enorme sobre Alan, o filho de Kevin Grate — com direito a uma
equipe de repórteres de plantão em frente ao hospital onde o garoto
estava internado —, informando que a cirurgia tinha sido um
sucesso, havia corrido tudo dentro do esperado, o garoto estava na
UTI e seu estado geral era estável, estava sob os cuidados da
Allegra, e diziam que se dentro de 72h o quadro do garoto
continuasse progredindo ele seria transferido para o quarto. Mais
uma vez exaltaram a competência e dedicação da Allegra, e eu
respirei aliviada por ter dado tudo certo, imaginei que se eu me
sentia daquele jeito, apreensiva, estando “do lado de fora”, o que ela
não sentiria... Fiquei com vontade de ligar pra ela e parabenizá-la,
mas logo tirei a ideia da cabeça...
Mostraram alguns flashes de imagens dela, mas ela não
apareceu falando ao vivo... Porém, um detalhe na reportagem me
chamou a atenção, disseram que a cirurgia havia começado
exatamente à 1h05 da manhã e que terminara às 5h55, isso
significava que quando eu recebi a ligação anônima perto das 3h
não poderia ter sido a Allegra, que estava dentro de uma sala de
cirurgia em meio a um transplante cardíaco; isso me aliviou, por um
lado, sabia que aquilo não era condizente com o seu caráter, mas
por outro lado a dúvida permanecia... Quem seria?

— Nina?!

Olhei para a porta e vi a Olívia, a Shelly e a Clara sorrindo pra


mim.

— Olá! O que vocês fazem aqui? — disse, feliz por vê-las.

— Viemos almoçar, ora! Ninguém se aventurou em cozinhar


hoje! — disse Shelly, já conduzindo as outras duas até uma mesa.

— Vou lá dentro ver o que ainda consigo pra vocês.

Saí em direção à cozinha achando graça. Preparei três pratos


com o que ainda havia do almoço e levei até a mesa, sentei-me
junto a elas e começamos conversar.

— Por pouco que vocês não pegam o restaurante fechado.

— Que horas fecha, Nina? — perguntou Clara.

— Às 15h30.

— Você está tão sexy com essa roupa, Nina — continuou Clara.

Lembrei que a Allegra havia me dito que se sentiu atraída por


mim quando eu estava com a doma, então eu mudei de assunto
para não dar vazão a nenhum pensamento.
— Shelly, não era hoje que começava teu curso de extensão?
— perguntei.

— Sim, na verdade já começou, me matriculei no período da


manhã, saí de casa às 7h40 e voltei às 14h, aí quando eu voltei a
Clara recém tinha levantado e estava ajeitando a casa, a minha
Olívia estava meditando na sala, e nem sinal de almoço, aí
resolvemos vir aqui, sabíamos que você nos salvaria!

— Mas se você chegou às 14h por que demoraram tanto para


vir, o restaurante fica a três quadras de casa.

— Porque elas tomaram café tarde e não estavam com uma


“fome de leão” assim como eu! Tive que esperar a Clara terminar de
se arrumar para você, e a Olívia terminar de meditar! — desabafou
Shelly.

— Bem, vou deixar vocês almoçarem, vou lá dentro trocar de


roupa e vou embora com vocês, afinal já terminei tudo mesmo, já
volto.

Fui tomar um banho e me vestir para sairmos e passear um


pouco, aliviada em saber que tinha dado tudo certo na cirurgia da
Allegra, isso me confortava.

Após uns 20 minutos, quando voltei, elas já haviam terminado o


almoço, então saímos, queríamos fazer algum passeio diferente,
para a Clara e Olívia conhecerem alguns lugares interessantes,
quando a Shelly teve uma ideia ótima!

— Vamos no Quartier Gay?

— O que é isso? — perguntou Clara.

— É onde fica uma das maiores comunidades gay da América


— respondi, mesmo sem conhecer, só havia ouvido falar.

— Ótima ideia! — a Olívia respondeu.


Fomos de metrô e durante o percurso, no caminho, contei à
Shelly da ligação anônima que eu havia recebido no meio da noite e
que nossas suspeitas sobre ser a Clara tinham “caído”. Ela ficou um
tanto surpresa e pensativa, mas apostava que era algum imbecil
passando trotes, nada mais, eu já não tinha mais uma opinião
formada e imaginava que ela talvez estivesse certa... Ou não...

Ao chegarmos fomos conhecer o Complexe Bourbon, que


ocupava uma quadra inteira, ali dentro do complexo havia hotéis,
bares, restaurantes e boates que ficavam abertos 24h, um
verdadeiro paraíso gay!

Cansamos de tanto caminhar pra lá e pra cá, quando a Shelly


resolveu se superar na originalidade e ajoelhou-se na frente da
Olívia. Nós três paramos e ficamos olhando sem entender nada, até
que a Shelly disse com uma voz firme e alta:

— Minha “feiticeira”, embusteira de adivinhações e malefícios,


que fez “vodu” em meu pobre coração, aprisionando-o para sempre
junto ao teu. Quero diante de ti, meu amor, e das duas testemunhas
que aqui estão — apontou para mim e para Clara — pedir você,
querida Olívia, em casamento.

— Bruxinha!!! — disse Olívia, emocionada.

Eu não estava crendo que me encontrava diante daquela


situação. Me segurei para não rir, pois por mais romântica e
inspiradora que aquela cena fosse, dentro de um contexto geral era
muito cômica.

— Aceita? — insistiu Shelly.

— Claro, meu amor, bruxinha do meu caldeirão! Quando vamos


casar?

Aí a surpresa foi maior ainda quando a Shelly anunciou:


— Agora mesmo! — e apontou para o seu lado direito,
mostrando uma igreja que realizava casamentos gay na hora e
ficava aberta 24h.

— Que romântico! — exclamou Clara, enquanto as duas se


beijavam apaixonadas.

— Bom, e agora que vocês estão oficialmente noivas e prestes


a casarem, qual é próximo passo? — perguntei.

— Vamos entrar na igreja e comprar as alianças! — respondeu


Shelly indo em direção à igreja de mãos dadas com a Oliva.

Eu e a Clara saímos apressadas atrás delas, rindo de tudo


aquilo. Ao entrarmos na igreja, fizemos silêncio, pois estava
acontecendo um casamento entre dois rapazes, então nos dirigimos
até o balcão da entrada onde vendiam tudo que era necessário para
um casamento. Elas compraram um par de alianças Express, dois
buquês de flores artificiais brancas, dois véus de “tule branco” e
duas velas compridas com cores do arco-íris — para eu e a Clara
segurarmos durante a cerimônia —, e após elas preencherem um
formulário, espécie de certificado de casamento, estavam radiantes
e prontas para consumar o casamento.

— Minha bruxinha, esse será o casamento mais lindo que já vi!


— falou Olívia, radiante e apaixonada.

Eu ainda não acreditava, aquilo era surreal! A Shelly realmente


estava gostando muito da Olívia. Eu pensei por um rápido instante
em ter um momento assim com a Allegra, mas logo deletei aquele
delírio do meu pensamento, não a imaginava ali de jeito nenhum,
aquilo não era a cara dela.

— Por favor, as noivas podem passar aqui — disse o pastor,


todo vestido de branco, mais parecendo um “pai de santo” e
chamando-as em direção ao pequeno altar.
Elas obedeceram e foram sorrindo com seus rostos tapados
pelo “tule” branco e buquês de flores de plástico nas mãos.

— Onde estão as testemunhas de vocês? — o pastor


questionou a elas.

— Ali, seu Padre! — disse Shelly, apontando para nós duas.

Nessa hora a Olívia cutucou a Shelly corrigindo-a, dizendo que


ele era pastor e não padre. Enquanto isso nós nos colocamos uma
de cada lado das noivas segurando as velas coloridas acesas, fiquei
um pouco sem jeito porque havia umas 10 ou 15 pessoas
assistindo, eram curiosos e outros casais que se inspiravam em
fazer o mesmo.

— Vamos começar, então — disse o pastor. — Estamos aqui


hoje, dia 1° de junho de 2009, reunidos para abençoar a paixão
entre estas duas mulheres, que por vontade de seus corações hoje
estão aqui para receber a bênção divina.

Elas se olharam emocionadas e eu não me contive, como


sempre, me deixei levar pela emoção e pela vontade de estar com a
Allegra... Continuei ouvindo a bênção do pastor.

— Micheli Andrade e Olívia Kim, vou ler algumas


recomendações que sabiamente foram inscritas por alguém que
entendeu o verdadeiro significado do matrimônio. Quero que ao
final, se vocês estiverem de acordo, prometam respeitar estes
princípios, tudo bem?

As duas balançaram a cabeça positivamente.

— Vocês entendem que ao se casarem, não adquirem o direito


de controlar a pessoa que está ao seu lado, e muito menos serem
donas uma da outra?

— Vocês compreendem que a amizade e o respeito são tão ou


mais importantes do que uma louca noite de sexo?
— Vocês endentem que ao escolherem viver juntas, vocês tem
todo o direito de serem vocês mesmas em sua essência? E que
vocês podem e devem se sentir a vontade uma com a outra, devem
ter intimidade suficiente para dormirem com uma camiseta velha e
manchada se assim estiverem sendo vocês mesmas.

— Compreendem que ao escolherem uma à outra vocês


deverão andar juntas na mesma direção, sem competição ou
inveja?

— Entendem que ao dividirem a vida irão dividir também


momentos antagônicos e com isto irão permitir que sua
companheira conheça você, tanto o seu lado bom e todos os outros
lados também? E mesmo assim sejam pacientes. — disse ele, com
um sorriso no rosto e piscando um dos olhos em sinal de
cumplicidade.

— Entendem que devem levar a vida de forma leve, com bom


humor e serem pacientes uma com a outra?

— Vocês sabem que o ciúme pode acabar com qualquer


relação e que não existe ciúme saudável? Por isto, estejam juntas
porque querem, porque amam, porque a vida as uniu. E então,
aproveitem cada segundo, viagem muito, comam doces, façam
sexo, façam amor, façam nada, sempre que quiserem.

— Prometem, respeitar-se, serem gentis, defender uma a


outra? Prometem darem risada das coisas boas e bobas da vida?
Sejam felizes, mesmo nos momentos mais tensos.

— Vocês entendem que levar o casamento a sério não significa


abdicar da liberdade, mas sim estarem livres para serem vocês
mesmas de mãos dadas?

— E por fim, vocês compreendem que estas palavras não são


apenas palavras, mas sim, a fórmula para viverem um casamento
saudável, com amor, respeito, companheirismo, diálogo, apoio e
principalmente, cumplicidade?
Nós quatro estávamos emocionadas e as noivas deixavam
escorrer lágrimas por suas faces. E sem titubear as duas
concordaram dizendo em coro:

— Sim, compreendemos!

— Sendo assim, Srta. Micheli e Srta. Olívia, eu as declaro muito


mais do que casadas, eu as declaro cúmplices.

Elas se beijaram e todas as pessoas presentes aplaudiram,


trocamos abraços, beijos e tiramos algumas fotos com um fotógrafo
de plantão, havia sido uma experiência muito interessante, um ritual
de passagem lindo, eu desejei imensamente um dia estar ali com a
Allegra... Dali fomos para casa, só paramos no caminho porque a
Clara quis comprar um buquê de flores e presenteá-las em virtude
do casamento.

Ao chegarmos, fui ver algo para jantarmos, mas não me contive


e tive que perguntar.

— Vocês vão passar a lua de mel aqui?

— Estamos em lua de mel permanente, se você não se


importar acenderemos alguns incensos quando vocês forem para o
quarto dormir, pois hoje será uma noite especial — respondeu
Olívia, cheia de planos sexuais para logo mais.

Nós rimos, eu nem queria imaginar o que aconteceria naquela


noite. Mas antes disso teríamos que jantar, e em comemoração ao
casamento da minha amiga Shelly resolvi fazer um cardápio
especial, mas como em casa eu não tinha muitas opções, fui até o
restaurante e “peguei emprestados” alguns ingredientes para
preparar um delicioso Magré de pato à L’orange com Mousseline de
amêndoas.

Nós todas estávamos empolgadas, aquele casamento nos


deixou mais bem-humoradas, empolgadas e românticas. Via nos
olhos da Clara que ela queria muito estar comigo, e acho que se
percebia nos meus a saudade que eu tinha da Allegra... Era
estranho...

Depois de toda a minha dedicação no preparo do nosso jantar


fui recompensada com muitos elogios, e o melhor, com os pratos
vazios, comprovando que o meu menu tinha sido aprovado.

Logo recolhemos a louça e num mutirão lavamos e guardamos


tudo rapidamente.

Eu e a Clara resolvemos ir antes para o quarto para dar mais


privacidade às recém-casadas. Só quis deixar um “recadinho” antes
de me retirar.

— Meninas, quero deixar vocês bem à vontade, façam de conta


que a casa é de vocês e que estão sozinhas, só peço que usem e
abusem de suas fantasias somente até as 4h30 da manhã, porque a
essa hora eu acordo e fatalmente terei que ficar passando aqui na
sala, e daí pode ser que “vocês” fiquem meio constrangidas — falei,
brincando.

— Pode deixar, Nina, fique tranquila, não somos tão pervertidas


assim! — a Olívia falou em tom de brincadeira.

— Não?! — contestou Shelly, já partindo literalmente para cima


de Olívia.

Eu me retirei de fininho e deixei as duas ali na sala em meio


aos incensos e “amassos”...

A Clara já estava deitada — nua — lendo um livro sobre a


segunda guerra mundial, eu coloquei uma camisola e deitei-me ao
lado dela, em silêncio para não atrapalhar sua leitura, fiquei
pensando sobre o dia maluco que tivemos, acabei adormecendo
ainda com a Clara acordada.

Acordei quando a Clara desligou a luz e guardou o livro, mas


fiquei quieta, ela nem percebeu que havia me acordado, aí perdi o
sono, fiquei de olhos fechados esperando ele voltar... Estava tudo
silencioso, quando ouvi alguns gemidos vindos da sala, me virei
para ouvir melhor e ter certeza se era mesmo o que eu estava
“pensando”, mas quando me virei a Clara percebeu que eu estava
acordada e me perguntou baixinho...

— Você está ouvindo?

— Sim — respondi rindo.

— Me parece que elas se gostam mesmo, olha que prova de


amor legal que a Micheli deu pra Olívia!

— É verdade, Clara, também achei.

— Sabe, Nina, na hora em que estávamos nós quatro lá na


igrejinha, felizes, me senti quase como se fôssemos “dois casais”,
percebi que por uma burrada absurda minha joguei no lixo o grande
amor da minha vida, você! E não estou falando por você ter
terminado comigo e vindo pra cá, mas por eu ter dado brecha para
outra pessoa tomar conta do seu coração, isso é o mais grave e me
arrependo a cada minuto — concluiu Clara.

— É, Clara, não posso mentir pra você, no fundo você foi a


grande responsável por eu ter me apaixonado pela Allegra —
confessei a ela.

— Eu sei... Cada vez que olho para você sinto tanta vontade de
te tocar, me seguro para não descumprir o que prometi, mas é
difícil... Vejo também que quando alguém toca no nome da Allegra
seus olhos brilham, eu sofro...

Fiquei com dó dela, vi que ela sofria e que seu arrependimento


era sincero, confesso que tive vontade de abraçá-la, pois ainda sim
eu a achava atraente, e quase como uma transmissão de
pensamento ela disse:

— Nina, deixa eu te abraçar?


Engasguei, mas não tive coragem de dizer que não, então eu
abracei seu corpo nu, ela me abraçou forte e com a voz trêmula pela
emoção disse baixinho.

— Obrigada, Nina, você me faz tão bem... Me desculpa pela


grande burrada que fiz?

— Sim, Clara, desculpo... Isso já faz parte do passado.

Então senti seus lábios tocando os meus em meio à escuridão,


não consegui recuar, acabei cedendo e a beijando, usando-a de
instrumento para matar minha carência e a minha necessidade
física... Deixei me envolver totalmente, sem pensar em nada — eu
não queria pensar —, pois sabia que isso me faria mal naquela
hora... Ela tirou minha camisola devagar e me fez ficar nua, assim
como ela, acabamos transando, quase em silêncio, apenas com
alguns suspiros e gemidos tímidos. Ela estava emocionada por estar
finalmente tocando-me, e eu, sentindo um aperto no peito, uma
vontade praticamente incontrolável de chorar, por saber que estava
sendo fraca e me deixando levar por outros braços, que não os da
minha amada Allegra... Ambas estávamos com lágrimas nos olhos,
porém por sentimentos muitos distintos... Adormecemos após
satisfazermos nossos corpos...

Não ouvi mais nada, nenhum som vindo da sala, o meu


cansaço era tão grande que não lembro nem de ter sonhado
naquela noite.

Ao soar o despertador e acordar nua com a Clara abraçada em


mim foi que tive a verdadeira noção do que eu havia feito, me
condenei imensamente por ter sido tão fraca, tão estúpida! Sentei
na cama — vesti minha camisola que estava jogada sobre as
cobertas — e com as mãos em meu rosto chorei baixinho, não
contive as lágrimas... A Clara acordou, acendeu a luz e me viu
chorando, mesmo com a minha tentativa de disfarçar.

— Ei, o que houve, docinho?


Enxugando as lágrimas e tentando recompor-me, eu disse a
ela:

— Nada... Pode voltar a dormir, é muito cedo ainda.

— Nina, você está assim pelo que aconteceu? Por favor, fale a
verdade pra mim!

— Sim, Clara... Não pense que é por você, você não tem culpa
de nada, você é linda e foi ótimo... Estou assim por mim.

— Não estou entendendo, se você diz que foi bom, por que
está se culpando?

— Porque me sinto culpada, sinto uma sensação quase de


como ter “traído” a Allegra.

Ela baixou a cabeça, estava sentida com minhas palavras, mas


mesmo assim continuou.

— Mas Nina, você disse que não estava namorando com ela,
como pode tê-la traído?

— Você nunca vai entender, Clara...

— Tente, por favor.

— Não é questão de dizer “estou ou não estou” namorando,


“tenho ou não tenho” um compromisso com ela, a questão é comigo,
meu coração está comprometido por ela, eu sinto que a traí, sinto-
me fraca, impotente.

— Se isso vai te deixar mais calma, eu prometo que de minha


boca ela nunca saberá — ela disse quase com dor aquelas
palavras.

— Não é isso, Clara, você entendeu...


— Nina, faz quanto tempo da última vez que você a viu, que
ficou com ela?

— Por que essa pergunta?

— Não seja rude, apenas me responda.

— Faz exatamente 38 dias.

— E você acha que neste “mais de um mês” ela não beijou


ninguém, que ela está “casta” esperando por você? Sinceramente,
Nina!

Pensei quase em brigar com a Clara por ela dizer aquilo, mas
não tive forças, estava entregue, apenas comecei a chorar
compulsivamente, arrependida pelo que eu tinha “deixado”
acontecer e por lembrar que existia a Diana na vida dela.

— Calma, Nina, não fica assim... Desculpe pelo que eu disse,


mas acho que você tem que ser realista.

— Clara, eu sou realista, ela beija sim outra pessoa, todos os


dias — desabafei, em meio a um choro compulsivo e a soluços de
desespero.

Eu estava extravasando um turbilhão de sentimentos que eu


havia reprimido até então, eu tremia e chorava compulsivamente,
era incontrolável. A Clara percebeu que eu estava realmente mal,
levantou-se, vestiu uma camiseta e foi até a cozinha buscar um
copo de água com açúcar pra mim.

Quando ela voltou a Shelly percebeu a movimentação


“estranha” e foi até o quarto.

— Nina? O que aconteceu?

Eu não conseguia responder, eu tentava, mas não conseguia.

— Clara, pelo amor de Deus, o que houve com ela?


— Ela está assim porque está exausta, esgotada mentalmente
e porque sente falta da Allegra.

A Shelly arregalou os olhos, não acreditando que a Clara


estava falando aquilo com tranquilidade, achei até bonito da parte
da Clara tentar me resguardar.

— Toma, Nina, toma essa água com açúcar, vai te acalmar —


disse Clara, oferecendo-me o copo.

— Faz o que ela diz, Nina, toma um pouquinho — reforçou


Shelly.

As duas ficaram sentadas do meu lado, me acariciando e me


acalmando sem dizer nada, ficaram ali uns 10 minutos em silêncio
até eu me acalmar um pouco.

— Obrigada a vocês duas, estou melhor... Vou tomar banho,


tenho que ir trabalhar.

— Tem certeza de que consegue, Nina? — perguntou Clara.

— Tenho sim...

— Acho melhor você ficar em casa hoje, se você está esgotada,


trabalhar só vai deixar você pior, fica em casa, dorme bastante,
descansa, vamos conversar e amanhã você volta bem, ok? — disse
a Shelly.

— Mas e o meu trabalho, Shelly? Não posso.

— Nina, você sabe que o seu Jordi te adora, que você nunca
faltou, e sabe que o Gerard toma conta da sua cozinha direitinho,
garanto que ficará tudo bem! Pode deixar que eu mesma ligarei pra
lá e digo que você não está bem, acordou indisposta e que não tem
como ir, pode ser?

— Não sei...
— Deixa ela ligar, Nina, você vai ver que fará bem — reforçou
Clara.

Acabei concordando, elas tinham razão, aquele meu “ataque”


só podia ser fruto de stress de um turbilhão de sentimentos
reprimidos e de ter colocado tudo para fora, e, descansar um dia
inteiro em casa me faria muito bem.

Mais tarde a Shelly ligou para o seu Jordi e para o Gerard,


avisou sobre o que tinha acontecido, eles entenderam e ainda se
ofereceram para ajudar se precisássemos de algo.

Tomei um banho e voltei a dormir, acordei tarde, descansada,


mas ainda muito arrependida, a Clara ficou ali do meu lado quase
todo o tempo, ela ficou quieta, só levantou quando me trouxe café
na cama, me senti grata às minhas amigas que ficaram me
“bajulando” quase que a manhã toda.

A Olívia me deu um “passe” para descarregar energias ruins e


acendeu um incenso — com cheiro de macumba — para purificar o
ambiente, depois ela e Clara foram preparar o almoço, me senti
muito mimada naquela hora. Peguei um livro e comecei a ler, não
estava muito interessante, mas mantinha minha cabeça ocupada.

— Muito bem, “senhorita” Nina, pode desembuchar o que


realmente aconteceu — disse Shelly, indo porta adentro.

— Você me assustou!

— Desculpa, Nina, mas quero saber direitinho o que houve, não


acreditei naquilo que a Clara falou de você, assim, a troco do nada
você ter aquele “piripaque”.

Eu baixei a cabeça e não consegui esconder a verdade da


minha amiga.

— Eu fiz besteira, Shelly, sou muito estúpida!


— O que você fez?

— Transei com a Clara — disse envergonhada.

— Você é muito cabeçuda, Nina! Eu vou matar essa garota!

— Shelly, a culpa não foi dela, ela não forçou nada, eu que fiz
bobagem mesmo e acabei sendo fraca, só que agora estou muito
arrependida e culpada por ter traído a Allegra.

— Nina, você não “traiu” a Allegra, você simplesmente cedeu a


uma vontade, algo físico, não se culpe por isso, você só poderia
culpar-se se realmente tivesse um compromisso com ela... Tá, eu
sei que você vai dizer que “tem” um compromisso, mas estou
falando de algo oficializado e pactuado entre vocês duas.
Sinceramente o que mais me preocupa nisso tudo é que a Clara vai
achar que agora você vai ficar sempre com ela, e isso sim pode ser
problema.

— Não se preocupe, Shelly, já pensei nisso, vou ter uma


conversa séria com a Clara.

— Quando?

— Pode ser agora, você chama ela aqui pra mim?

— Sim... Confio em você e quero que saiba que eu acredito no


seu amor pela Allegra, e tanto eu quanto você sabemos que isso
que aconteceu entre você e a Clara não abalou em nada o amor
puro que você sente pela médica.

Ela piscou o olho pra mim e saiu buscando a Clara, eu sabia


que o meu amor pela Allegra não havia sido abalado, mas ainda
assim me sentia muito arrependida.

— Fala, docinho! Quer conversar comigo?

— Sim, senta aqui, Clara — bati suavemente com minha mão


na cama indicando que ela sentasse ao meu lado.
— Pode falar minha, pequenina.

— Clara, o que aconteceu entre a gente esta noite não


acontecerá mais, nunca mais, está entendido?

— Entender o que você está dizendo eu entendo, porém acho


que a palavra “nunca” é forte demais, não sabemos o dia de
amanhã.

— Clara, não complica. Gosto de você, gosto da maneira como


vem se comportando, mas estou sendo sincera, não estou te
enganando, deixei claro desde o primeiro dia o que sinto pela
Allegra e me manterei fiel a isso, a esse sentimento.

— Mas você disse que ela beijava outra pessoa todos os dias,
ela é casada, por acaso?

Baixei a cabeça, pois odiava admitir isso, ainda mais para a


Clara, que certamente vibraria com essa confirmação.

— Sim, ela é casada, mas por favor, não quero falar sobre
isso... Me machuca demais — admiti.

A Clara ficou pensativa, sabia que no fundo ela havia gostado


de saber disso, mas se manteve e procurou não deixar transparecer
a sua empolgação com a evidente “boa notícia”.

— Nina, não pense que estou perguntando isso pelo fato de


que gosto de você... Mas você acha certo dedicar-se e ser fiel a
esse ponto por alguém que tem outra pessoa, que nesse tempo
todo que estou aqui não vi fazer uma ligação sequer para você, não
vi você ligar pra ela... Nada! Que espécie de relacionamento é
esse? É “unilateral”? Você acha que vale mesmo a pena?

— Clara, se vale ou não eu não sei, sou fiel ao meu coração! E


assunto encerrado! — finalizei a conversa.
— Tá bem, Nina, quero o melhor para você, se você ficará bem
assim eu respeito, mas quero lembrá-la que EU estou presente aqui,
do seu lado, estou aberta de corpo e alma exclusivamente para
você — ela levantou-se e saiu, me deixando sozinha.

Eu fiquei pensando sobre o que ela havia dito e sabia que a


Clara tinha uma certa razão no que dizia, mas dia 27, no dia do
concerto, eu teria uma resposta, saberia finalmente se “valia a pena”
toda a minha fidelidade e dedicação em nome desse amor...

Eu voltei a trabalhar normalmente naquela semana, a Clara


respeitou minha decisão e não tentou mais nada, claro que ainda
continuava dormindo nua e sendo amável comigo, oportunamente
soltava alguma indireta e deixava claro que estava tentando me
reconquistar, mas tudo dentro de um limite aceitável.

A Olívia voltou para Toronto naquele final de semana, com isso


a Shelly voltou a dividir a cama comigo e a Clara voltou para o sofá,
as duas se toleravam, era visível que ambas se esforçavam para
não saírem “no braço”, mas se comportavam.

As ligações anônimas cessaram e o dia do concerto estava se


aproximando, cada vez que eu pensava na possibilidade de rever a
Allegra meu coração parecia sair pela boca; por outro lado, ela
poderia não aparecer, sabia que se isso me acontecesse não estaria
pronta para enfrentar outra desilusão, e esta muita maior e mais
intensa do que aquela que eu havia vivido quando me mudei pra cá,
tinha consciência de que eu estava na eminência de ter a resposta
de que eu tanto precisava, e isto me apavorava...
Capítulo 11

— Você vai contar para a Clara? — perguntou Shelly.

— Sei lá, você acha que ela percebeu algo?

— Ela pode até se fazer de boba, mas não é nem um pouco!


Ou você acha que ela não viu seu nervosismo nesses últimos dias,
não percebeu que você estava fazendo quase uma contagem
regressiva para que o dia de hoje chegasse? E ainda por cima a
senhorita espalhou aos quatro ventos que não tinha dormido nada
de tanta ansiedade!

— Dei mancada, né, Shelly?

— Claro, Nina, você percebeu que a Clara não perguntou nada,


não disse uma palavra sequer sobre este teu nervosismo todo?

— É verdade... Mas Shelly, é claro que mesmo ela


desconfiando que “pretendo” me encontrar com a Allegra hoje, ela
vai perguntar, vai ver eu me arrumando e não vai se conter!

— Ah, vai, certo que sim, e o que você vai dizer?

— Vou dizer a verdade, não vou mentir...

— Mas não diga de maneira nenhuma que existe uma chance


da Allegra não aparecer, pois ela vai torcer muito que isso aconteça
e pode atrair maus fluidos!

— Ai, Shelly, pensei nisso a noite toda! E se ela não aparecer,


como vou esconder isso da Clara e ainda simular que encontrei com
ela? — perguntei, muito preocupada.

— Vamos torcer para que isso não aconteça, mas se a Allegra


não for e você estiver muito arrasada, inventa que brigou com ela...
Aquela hipótese me deixou com medo e desanimada, se isso
acontecesse eu me sentiria um lixo. E arrasada...

— Vamos pensar positivo, lembra o que a minha querida Olívia


sempre fala, não existe poder maior no universo do que o
pensamento positivo!

— Eu sei, eu sei...

— Agora vamos escolher logo a sua roupa antes que a Clara


saia do banho e perceba sua aflição, você tem que tentar agir
normalmente.

— Tá, o que você indica que eu use?

— Hum... Teatro, concerto, gente fina metida a besta... Usa


aquela sua blusa social preta de seda leve.

— A que compramos em Toronto?

— Sim!

— Mas vou usar a mesma blusa?

— Nina, você vai usar a mesma blusa, mas vai usar por baixo
um corpete de rendas preto, com uma calça social preta e salto
altíssimo! Vai dar outro visual!

— Certo, e de onde vou tirar um corpete preto de rendas?

— Eu vou te emprestar o meu, usei uma vez, tá novo e é


fantástico de tão lindo!

— Mas a blusa é meio transparente, vai aparecer!

— Mas essa é a ideia, Nina! Acorda!

— Não vai ficar vulgar?


— Claro que não! Vai ficar sensual, porque aquela camisa
social preta é levemente transparente, e junto com a calça social e o
sapato preto altíssimo você ficará elegante e muito atraente!

— Acho que sim... Mas esse “tal” sapato preto, altíssimo?


Vamos sair pra comprar agora, às 18h30?

— Não, lembra o sapato lindo que comprei semana passada?

— Sim, adorei aquele sapato, mas vai ficar grande em mim!

— Não vai, eu deveria tê-lo experimentado na loja, pois ficou


apertadíssimo no meu pé, vai ficar superbom em você!

— Tá bem! — concordei, mas ainda estava muito nervosa.

— Ela não ligou pra você, Nina?

— Não... E nem eu pra ela... Estou achando que farei papel de


boba.

— Não fará, não! Você está fazendo tudo certo!

Concordei com a Shelly, mesmo não tendo certeza se eu havia


agido tão certo assim. A Clara saiu do banho e eu entrei no banheiro
com minha toalha na mão, esbarrei com ela, mas não falei nada,
precisava chorar e não queria que ela visse.

— O que deu nela, Shelly?

— Algum “curto-circuito”, não liga...

Fiquei por quase uma hora debaixo da ducha, sentei-me no


chão, segurei meus joelhos dobrados contra meu peito e deixei
escorrer aquela água sobre mim, tentei imaginar as minhas
prováveis reações caso ela viesse e todas caso ela não aparecesse.
Depois de chorar todas as lágrimas que eu tinha dentro de mim,
respirei fundo algumas vezes e abri a porta, saindo aparentemente
bem, enrolada em toalhas e pronta para me arrumar.
— Nina! Está saindo fumaça de você, você cozinhou no banho!
— disse Clara, impressionada.

— Estava ótimo o banho, relaxei, a água quente me revigorou!

— Essa fumaça é do “curto–circuito”, ela tem isso um sábado


por mês — respondeu Shelly, brincando com a situação.

Comecei a me arrumar, a Shelly já havia separado a roupa em


cima da cama, eu estava vestindo o corpete quando a Clara entrou
no quarto e a Shelly discretamente baixou o volume da televisão na
sala e ficou só de olho, observando e ouvindo tudo que a Clara
fazia.

— Você vai sair, Nina?

— Vou.

— Vai se encontrar com a Allegra?

— Sim.

Ela ficou quieta por alguns segundos, observando todos os


meus movimentos.

— Por isso, todo esse seu nervosismo nesses últimos dias?

— Deve ser.

Eu evitava dar muito assunto, porque tinha medo de desabar e


acabar contando que eu estava indo naquele encontro quase às
escuras, sem nenhuma garantia de realmente encontrá-la.

— E porque você vai encontrar com ela tem que me tratar seca
desse jeito?

— Clara, não estou tratando você mal e nem “seca”, apenas


estou concentrada me arrumando.
— Você está linda, aliás, nunca a vi tão arrumada e tão bonita,
sabia? — ela disse deixando transparecer seu ciúme.

— Obrigada, é o lugar que pede que eu vá um pouco mais


arrumada.

— E eu posso saber aonde vocês vão?

— Ao teatro — respondi a contragosto.

— Assistir ao quê?

Nisso a Shelly entrou falando, percebendo que a Clara ia


conseguir tirar de mim todas as respostas que ela queria.

— O que vamos fazer no seu cabelo, Nina? Você está linda e


tem que fazer algo muito legal no cabelo para deixar a Allegra
“caidona”! — ela disse já segurando meu cabelo para o alto e sendo
até um pouco maldosa com a Clara.

— Ah, Shelly... Não queria prender o cabelo, prefiro-o solto —


disse, contrariando a sua ideia.

— Então vamos fazer uma escova, vai ficar maravilhosa, senta


aí que faço pra você — e já foi pegando o secador de cabelos.

A Clara percebeu o entusiasmo da Shelly e não se conteve.

— Nossa, Shelly, estou impressionada como você apoia esse


“namorico” da Nina com essa mulher! — disse, muito irritada,
incomodada pelo apoio evidente da Shelly.

— Garota, fica na sua, eu apoio quem eu quiser, além disso, o


que você fez com a Nina é podre! Você é escrota! Nunca vou apoiar
você com ela! — disse Shelly literalmente “lavando a alma”.

— Ei, vamos parar com isso! — tentei acalmá-las, mas a Clara


continuou.
— Você me chama de escrota, está me condenando porque tive
um deslize depois de um ano e meio de namoro, namoro sério, a
que me dediquei ao máximo! Admito que errei, foi um tremendo
vacilo, me arrependi e me arrependo amargamente. Estou pagando
por isso todos os dias, agora me admira você, Micheli, que se diz
correta, justa e cheia de moral, apoiar esse “namorico” entre a Nina
e essa mulher que claramente não está nem aí pra ela, e ainda por
cima é casada!

Ouvi aquilo e cheguei ao meu limite de tolerância, não


suportava vê-la falando da Allegra, então falei sem medir as
palavras.

— Chega! Não quero mais ouvir uma palavra sobre isso, Clara!
O que você pensa ou deixa de pensar não é problema meu e não
me interessa mais. Você fez sua escolha, está pagando pelos seus
atos, e se eu me machucar ou me arrepender nessa relação com a
Allegra será um problema exclusivo meu, e então eu pagarei pelas
minhas escolhas!

— Ouviu, garota? — cutucou a Shelly.

— E você, Shelly, por favor, não piora ainda mais a situação,


tá?

Tudo ficou em silêncio, a Clara saiu emburrada e foi assistir TV


enquanto a Shelly terminava de arrumar meu cabelo e fazer uma
maquiagem leve, conversamos um pouco, mas tentamos evitar falar
na Allegra, pois cada vez que eu ouvia o seu nome me dava dor de
barriga. A Shelly terminou minha escova e fomos até a sala.

— Pronto! Está na hora! Estou bem assim? — perguntei, queria


confirmar que eu estava bonita.

— Está linda — disse Clara de maneira acanhada.

— Está linda, perfumada e gostosa! — completou Shelly.


— Obrigada, meu ego agradece! Vou pegar um táxi ali na
esquina, já são 20h e não quero me atrasar.

— Vou te acompanhar, Nina — disse Shelly.

— Vamos então.

Peguei minha bolsa, celular, chaves, dinheiro, conferi se o


convite estava na minha carteira e me despedi da Clara, que estava
nitidamente abalada.

Enquanto caminhávamos até a esquina para pegar um táxi no


ponto, perguntei a Shelly.

— Se ela não aparecer?

— Nina, se ela não aparecer é porque não era para ser, vai ficar
claro que o que vocês tiveram foi apenas um “bom momento” e você
vai ter que guardá-lo como uma boa lembrança.

— Mas e na prática, como terei que agir?

— Você terá que ser forte para tentar esquecê-la, você vai
assistir ao concerto até o final e depois virá pra casa, e daí vou me
trancar no quarto com você e se for preciso ficarei a noite toda
acordada do seu lado, mas quero que me prometa, se isso
acontecer não deixará a Clara saber, só vai piorar.

— Tá — falei, prestes a desmoronar.

— Promete que irá assistir ao concerto até o final?

— Queria que você fosse comigo, estou me sentindo tão


sozinha.

— Você é forte, não precisa de mim, agora prometa que irá


assistir ao concerto.

— Não posso prometer, Shelly.


— Prometa que vai tentar?

— Sim, prometo... Estou muito nervosa, Shelly! Isso que são


20h10, imagina quando for 20h45, que é o horário combinado.

— Nina, confesso que também estou ansiosa, não pense que


não fico apreensiva, mas estarei torcendo, não se preocupe por
antecipação, respira fundo, relaxa e vai, o táxi tá ali, é só ir.

Abracei a Shelly e me despedi. Sentei no banco de trás do táxi


e pedi que o motorista me levasse ao teatro, a Shelly ainda disse
pelo lado de fora que estava torcendo que desse tudo certo... Saí
em direção ao imponente complexo Place des Arts, para assistir ao
grande pianista Marc-André Hamelin.

Exatamente às 20h30 cheguei em frente ao teatro, a


movimentação era grande, o local estava iluminado, repleto de
pessoas muito bem-vestidas, os perfumes caros misturavam-se
formando uma única fragrância, coloquei-me em pé, ao lado direito
da entrada da grande porta de acesso, tudo era bonito, muito mais
bonito do que eu supunha, tapetes vermelhos cobriam o piso de
mármore e lustres de tamanhos gigantescos enriqueciam ainda
mais o grande saguão, olhei para todos os lados à procura dela,
mas ainda era cedo e tentei-me tranquilizar me apegando nisso...

Para não parecer que estava desconfortável à espera de


alguém, peguei um fôlder com a programação do concerto, um que
estava ao lado de um grande cartaz iluminado anunciando a
apresentação única do pianista. A procura por ingressos havia sido
tão grande que se esgotaram todos os lugares em apenas dois dias
de vendas. Realmente devia ser um grande artista.

Ao ler a programação percebi que o recital se dividiria em duas


partes, com 10 minutos de intervalo entre uma e outra. O repertório
escolhido pelo músico era bastante diverso, contemplando vários
compositores, inclusive — para minha surpresa — o brasileiro Heitor
Villa-Lobos, que fazia companhia a outros grandes compositores já
aclamados mundialmente, como Mozart, Ketèlbey, Beethoven e
Handel. A música que Marc-André interpretaria, de autoria do
brasileiro, seria a Bachiana n° 5, ária Cantilena, música que cresci
ouvindo, lembrava minha infância e consequentemente mexia
comigo.

Os minutos passavam, as pessoas começavam a deixar o


saguão e a adentrar para a grande sala, em busca de seus lugares
numerados. A minha aflição aumentava literalmente a cada minuto,
comecei a sentir-me mal, um mal-estar tal que por muito pouco não
tive que procurar um lugar para sentar, mas não queria abandonar
meu posto, minhas pernas estavam amolecidas, meu coração
acelerado e a minha ansiedade estava atingindo seu ponto máximo!

O relógio marcava exatamente 20h45, atingindo o horário


marcado, o horário da minha resposta, realmente o ponto crucial da
minha vida...

Olhei em volta e nada, nenhum vestígio dela, comecei


imediatamente a pensar em pequenas “desculpas” para ela não
estar ali e justificar para mim mesma, ao mesmo tempo em que eu
segurava o celular em uma das mãos esperando quem sabe uma
ligação dela; pensei que ela pudesse estar atrasada, pensei que ela
pudesse estar realizando algum transplante em algum paciente que
de uma hora para outra recebeu a notícia de um doador compatível
— esta hipótese bastante plausível para uma médica —, me passou
pela cabeça que ela não tivesse recebido o convite, enfim, pensava
em todas e quaisquer desculpas na tentativa de me acalmar,
enquanto meus olhos percorriam desesperadamente o salão à
procura dela, mas não a vi... Meu peito ardia, sentia meu coração
pulsar forte, meu peito parecia apertado, prestes a explodir, percebi
que a chance de vê-la estava diminuindo, se esvaindo, com
tamanha velocidade somente comparada à velocidade da luz... E os
minutos continuavam passando...

Só restavam poucas pessoas no saguão, algumas ainda


chegando e entrando apressadas para não perder o início da grande
apresentação. Ouvi o soar da campainha dando o primeiro sinal,
alertando que logo o concerto se iniciaria, meus olhos encheram-se
de lágrimas e finalmente dei-me por conta de que não adiantava
mais ficar ali, naquela altura eu encontrava-me só no saguão...

Pensei em ir para casa, mas lembrei que eu havia prometido a


Shelly de pelo menos tentar ficar, suspirei fundo e prometi a mim
mesma que assistiria à apresentação, seria quase uma espécie de
despedida, ouvir o pianista preferido da Allegra e lembrar-me dela,
talvez isso fosse algo meio masoquista, mas de alguma forma — e
não sei explicar o porquê — eu precisava daquele momento... Olhei
mais uma vez em volta numa última e desesperada tentativa de vê-
la, mas foi em vão, definitivamente ela não viria...

Entrei na enorme sala, decorada de forma luxuosa, lotada de


pessoas ansiosas pelo início do recital, o teatro estava cheio, os
camarotes lotados ao ponto de algumas pessoas se acomodarem
em pé no fundo do teatro. Enquanto me deslocava até a cobiçada
segunda fileira da plateia central, percebia a expressão de cada
uma das pessoas que estavam ali, algumas riam, outras
conversavam animadas, alguns casais estavam abraçados
conversando baixinho com cumplicidade, e eu estava só, segurando
minhas lágrimas para que ninguém percebesse meu desespero,
pelo menos até as luzes se apagarem por completo...

Ao chegar à segunda fileira, com um nó na garganta e com a


voz nitidamente abalada, pedi licença para passar à frente daquelas
pessoas que estavam sentadas nas poltronas iniciais e me
acomodar. Desloquei-me com cuidado até encontrar os dois
assentos vazios bem no meio da plateia, exatamente nesta hora não
consegui mais conter-me e as lágrimas finalmente venceram meus
olhos ao inundá-los totalmente. Sentei-me em uma das poltronas ao
lado do assento onde a Allegra deveria estar, suspirei na tentativa
de conter meu choro, na hora exata em que a sirene soou
anunciando o segundo sinal e deixando o grande teatro quase
totalmente escuro, não fosse pelas pequenas luzes no corredor
marcando a entrada das fileiras e as placas de saída... Olhei para
meu celular numa última e desesperada tentativa antes de desligá-
lo, na remota esperança por alguma notícia da minha Allegra, o
amor da minha vida.

O terceiro sinal soou e em poucos segundos o pianista entrou,


levando a plateia à loucura e a aplaudi-lo de pé, tentei levantar-me,
mas não consegui, minhas pernas tremiam demais para suportar o
meu peso. Ele sentou-se em frente àquele enorme piano de cauda
preto, fazendo todos sentarem e calando a todos, seria um silêncio
quase mórbido se não fosse por algumas pessoas que tossiam ao
fundo.

Ele finalmente começou a sua apresentação abrindo o seu


repertório exatamente com a Bachiana n° 5 de Villa-Lobos. Nessa
hora fechei meus olhos, encostei minha cabeça na poltrona, respirei
fundo e deixei-me levar pela linda e melancólica música, as lágrimas
brotavam de meus olhos insistentemente, meu queixo tremia
descontroladamente. Aquela música me partia ao meio, me
retalhava, ao mesmo tempo em que acariciava minha alma, me
acalmava, então me lembrei instantaneamente das palavras da
Allegra, que naquele dia em sua casa disse-me que a “música
tocava minha alma”, naquele exato instante compreendi, tive certeza
e entendi com precisão o que as suas palavras significavam, senti-
me frágil, fraca, sozinha, vulnerável... Estava tão entregue àquele
momento que consegui sentir seu perfume nitidamente, senti minha
alma gritar por dentro, chorando e implorando por ela... Senti minha
mão ser tocada com delicadeza, me confundindo. Por uma fração
de segundos me senti delirando, e ainda bastante confusa aquele
toque me fez despertar, fazendo-me abrir os olhos embaçados e
finalmente vê-la... Minha amada, minha Allegra, ao meu lado,
sorrindo para mim... Sorri timidamente, assustada, enxugando as
lágrimas, com o coração disparado, sem entender se aquela
imagem era real ou um delírio de minha mente já totalmente
insana...

Ela aproximou-se de meu ouvido fazendo-me delirar com seu


perfume e falou baixinho:
— Querida, me atrasei, desculpe... — disse encostando seus
lábios em meu ouvido.

Então tive a certeza de que não era delírio, era ela, tinha de ser,
linda, exuberante, sentada ao meu lado e segurando minha mão
delicadamente, fiquei olhando-a sem dizer nada enquanto ela
prestava atenção no músico...

Ela tinha vindo! Ela estava ali, ao meu lado, vestida como uma
princesa, fazendo parte de meu mais belo e intenso sonho.

Fiquei impressionada com a questão de como o corpo humano


é capaz de alternar sentimentos em frações de segundos, a tristeza
e o desespero deram lugar imediatamente a uma sensação de
euforia, de êxtase, de satisfação plena. Sem querer descobri, ao
experimentar essas sensações, que estamos equilibrados em cima
de uma frágil e tênue linha entre a sanidade e a loucura, entre o
amor e ódio, entre o certo e o errado, entre a mais profunda
escuridão e a mais bela e encantadora luz...

Ah, como eu a amava, não precisava de nada mais para ser


feliz, apenas a sua presença, seu calor, aquele olhar sincero. Não
precisava de uma só palavra, apenas estar ao seu lado me bastava,
me supria, eu poderia morrer naquele instante, pois morreria feliz...
Agradeci fervorosamente a Deus, e até ao “passe” da Olívia.

Quando a música terminou todos aplaudiram e eu aproveitei e


falei ao seu ouvido.

— Obrigada, querida, obrigada por ter vindo.

— Eu jamais deixaria de vir, Nina, suas palavras, seu gesto,


mexeram comigo. Já disse para você uma vez e vou repetir, o seu
olhar, a sua simplicidade e sinceridade me cativaram — concluiu ela
com um largo sorriso nos lábios.

Fiquei encabulada, agradeci com um discreto gesto de cabeça


e ousei dar um beijo em seu rosto, fazendo com que ela mais uma
vez sorrisse e me olhasse com carinho.

Ouvimos atentamente todo o primeiro ato, às vezes eu


arriscava, desviava o meu olhar do palco e a observava com o canto
dos olhos, queria ter certeza de que ela estava mesmo ao meu lado,
era incrível... Ela segurou minha mão o tempo inteiro, às vezes a
acariciava com seus dedos, percebi que ela se emocionava em
alguns momentos mais intensos das músicas, eu quase a vi
derramar algumas lágrimas, mas ela se manteve forte, controlada e
não “fraquejou”, ao contrário de mim, que não precisava de muito
para expor-me totalmente e me debulhar em lágrimas.

Quando o primeiro ato terminou, as luzes se acenderam


parcialmente, algumas pessoas levantaram para ir ao toalete,
enquanto nós duas permanecemos sentadas, pude vê-la no claro,
ela estava mais linda que eu supunha, a sua beleza me surpreendia
dia após dia, certamente não era efêmera. Ela estava com os
cabelos presos, com um vestido preto um pouco abaixo dos joelhos,
era estilo tomara que caia, expondo seu colo e deixando-me
hipnotizada; usava uma gargantilha prata com algumas poucas e
discretas esmeraldas adornando o seu pescoço, brincos com a
mesma pedra preciosa e uma pulseira de uma prata muito brilhante,
linda, estilo bracelete — mas bem mais fina —, essa pulseira me
chamou atenção, pois era vazada olhando ao longe, mas
concentrando-me e olhando-a mais de perto observei que eram
letras, tinha algo escrito nela, mas eu não compreendia, era em
outro idioma.

— Adorei o que você fez, Nina, sua iniciativa, não poderia ser
mais acertada, eu estava com saudade sua — ela disse, me
deixando sem saber o que responder.

A voz dela era tão suave, firme e calma, eu me sentia quase


uma colegial admirando seu professor... Queria responder-lhe algo,
mas nada vinha em minha mente, então mesmo sendo repetitiva
falei o que eu estava sentindo.
— Que bom que gostou, eu também estava com muita
saudade, você não imagina o quanto.

Ela me olhou, sorriu com certa malícia, trouxe sua boca ao pé


do meu ouvido e disse baixinho.

— Estou ansiosa para beijá-la, você está linda, quero passar a


noite inteira com você.

Fiquei tonta, minha cabeça girava, meu coração estava


acelerado e a felicidade extrema tomou conta de mim mais uma vez.
Era emocionante ouvir aquelas palavras da pessoa que se ama. Ah!
E eu a amava com todas as minhas forças, como nunca ousei
imaginar que pudesse ser capaz de amar e sentir tamanha paixão.

— É o que mais desejo — respondi olhando diretamente em


seus olhos.

As luzes apagaram-se novamente, as pessoas acomodaram-se


e ela pegou minha mão mais uma vez. O segundo ato começou com
a música In a Persian Market, do compositor Albert W. Ketèlbey.

— Adoro essa música — disse-me baixinho.

— É linda! — respondi emocionada.

Ela me olhou novamente com carinho e admiração. Me senti


especial pelo olhar concedido a mim. Por um instante achei que ela
pudesse sentir algo por mim... Ficamos apreciando o recital, juntas,
com as mãos entrelaçadas, viajando naquela onda de emoções que
a música despertava em nós, lembrei que se ela não tivesse vindo
eu não teria forças para suportar permanecer ali em meio àquela
chuva de emoções desencadeadas por aqueles acordes, lembrei
que a Shelly certamente estaria apreensiva para saber algo e que
quando terminasse o concerto eu ligaria pra ela. Mas naquela hora o
que eu queria mesmo era ficar curtindo cada segundo ao seu lado.
Passados uns 45 minutos todos levantaram para aplaudir o
pianista, que finalizava sua apresentação com esmero. As palmas
permaneceram ininterruptas por mais de três minutos, até que o
músico deixou o palco e as pessoas foram deslocando-se e
deixando o local ao poucos, lentamente esvaziando o teatro. Fomos
até o saguão do teatro, onde ela me perguntou:

— Você já jantou?

— Ainda não.

— Aceita jantar comigo? — disse ela sorrindo, apenas


formalizando a pergunta, pois já sabia da resposta.

— Lógico que aceito — falei, totalmente apaixonada. — E


aonde você vai me levar?

— Hum... Tenho que ter cuidado ao escolher o local, tem de ser


um excelente restaurante, afinal estarei acompanhada de uma
mulher linda, de olhos verdes, e além de tudo uma grande e
exigente chef de cozinha — disse, elogiando-me de forma amável e
visivelmente feliz em estar ali comigo. O que me deixou surpresa e
muito mais radiante, se é que isso era possível. — Vou levá-la no
Toqué, o que acha?

A escolha dela era perfeita, este restaurante era sofisticado,


num ambiente lindo, luxuoso, o chef de lá era conhecido
internacionalmente, a comida era quase exótica, sensacional, só o
que não era nada bom era o preço, totalmente exorbitante.

— Acho fabuloso! Vamos de táxi?

Ela riu e deu-me uma pequena explicação.

— Nina, vim direto da Itália, a cirurgia que fiz em Milão atrasou,


só tive tempo de ligar para o aeroporto daqui e deixar um carro
locado a minha espera, não tive tempo de mais nada, por isso
cheguei atrasada, mas carro nós temos para nos deslocar —
descontraiu, respondendo-me.

Fomos até o estacionamento, no caminho mandei uma


mensagem para Shelly dizendo:

“Amiga pode relaxar estou com ela!”

Eu sabia que a Allegra teria locado um bom carro, mas ela me


surpeendeu mais uma vez ao ver que o carro locado era nada
menos do que um Bentley preto, eu nunca tinha visto um de perto,
muito menos imaginei entrar dentro de um, e o detalhe, com a
Allegra dirigindo-o, era surreal, incrível, senti-me por alguns
momentos no lugar da “Julia Roberts” no filme Uma linda mulher...

— Nossa, esse carro é fantástico! — eu disse, deixando


transparecer toda a minha surpresa.

— É sim, é ótimo, gosto dele! Você sabe dirigir, Nina?

— Sim... Por quê?

— Quer tentar? — mostrou as chaves me oferecendo para


dirigir o Bentley.

— Não! Teria medo se algo acontecesse — falei em virtude do


valor que tinha aquele carro.

Ela sorriu e então entramos no carro e mais uma vez me


encantei, parecia que eu estava dentro de uma cabine de um “A 380
airbus”, os bancos eram de couro claro e o deixavam ainda mais
luxuoso. O teto solar deixava entrar uma leve claridade vindo da lua,
era romântico demais... A Allegra sentou em frente à direção de
couro bege e abriu sua bolsa-carteira verde, provavelmente
procurando alguma coisa, enquanto isso eu a observava, e percebi
que havia uma pequena mala no banco de trás, onde imaginei que
estivessem as suas roupas de viagem.
— Nina, comprei algo pra você, espero que goste — me
alcançou um pequeno pacote que ela havia tirado da bolsa.

Eu fiquei sem jeito, mas radiante por ela ter pensado em mim.

— Mas Allegra... Não precisava... — falei, segurando o


pequeno pacote.

— Abra! — disse ela usando de sua autoridade nata e não


dando importância alguma ao que eu havia dito.

Obviamente a obedeci sem pestanejar, abri com cuidado o


pacote que tinha sido fechado e enfeitado cuidadosamente. Ao abri-
lo me espantei ao ver que dentro do pequeno pacote havia uma
pulseira, idêntica à dela, peguei-a na mão e pude ver que estava
escrito nela a seguinte frase: Oculus animi index, não sabia o que
dizer e também não sabia o que aquela frase significava.

— É linda! Estou surpresa, não sei o que dizer, Allegra — fui


sincera.

— Não diga nada, deixe eu colocar no seu pulso.

Então ela pegou a pulseira, se aproximou e colocou-a no meu


pulso com delicadeza. Eu fiquei olhando para ela sem reação... Ela
olhou para mim aproximando-se de meu rosto, chegou muito perto e
então passou seu dedo suavemente em meus lábios contornando-
os e olhando-os fixamente. Eu estava ofegante e ela percebeu isso,
pois deu um pequeno sorriso com o canto da boca, então finalmente
beijou-me com vontade, senti naquele beijo que ela estava com
saudades, assim como eu dela, nos beijamos demoradamente,
como que matando uma saudade que persistia estar entre nós.
Depois de alguns minutos ela afastou-se e disse:

— Você tem um beijo tão gostoso, Nina... Seu perfume é tão


bom... — disse ela me fazendo quase parar de respirar.
— Seria muita falta de criatividade a minha dizer que sinto o
mesmo? — falei a ela, sem saber o que deveria ter dito, mas falei a
verdade.

Ela sorriu, mais uma vez beijou-me delicadamente e após


alguns instantes afastou seus lábios dos meus e segurou meu
pulso, olhando para a pulseira que acabara de colocar em mim.

— Mandei fazer estas pulseiras.

— Mandou fazer? Por quê? — indaguei.

— Sabe, Nina, perdi meus pais muito cedo, meu pai era médico
e pouco ficava em casa, eu passava muito tempo com minha mãe.
Nós tínhamos uma vida estável financeiramente e a maioria das
pessoas se aproximavam de nós por algum tipo de interesse
financeiro. Minha mãe sempre me dizia para ter cuidado com as
pessoas, eu era pequena, não compreendia direito, mas tinha uma
vaga noção. Um dia perguntei a ela como eu saberia se uma pessoa
se aproximaria de mim sem interesse e ela me levou em frente ao
espelho e disse: olhe nos olhos da pessoa, ela terá que ter os olhos
como os seus, sinceros, transparentes, você saberá identificar
quando conseguir enxergar a alma dessa pessoa... Eu cresci
lembrando das suas palavras, mas nunca consegui entender na
prática. O tempo passou e isso tornou-se apenas mais uma
lembrança de minha mãe, até o dia em que eu vi você pela primeira
vez. No momento exato em que olhei para seus olhos eu
compreendi o que minha mãe quis dizer, Nina. Tentei fugir, tentei
esquecê-la, mas hoje sei com toda certeza que você é especial,
você é diferente. Eu chego perto de você e sinto sua alma, sua
simplicidade, e por isso eu jamais deixaria de vir hoje neste
concerto, jamais deixaria de vir dizer-lhe pessoalmente que estou
plenamente apaixonada por você.

Eu simplesmente a abracei e chorei em seu ombro, chorei


desesperadamente, ela me abraçava forte, em silêncio, sem dizer
nada, olhei em seus olhos e percebi uma lágrima escorrendo deles.
Eu não me continha de tanta alegria. Olhei para dentro de seus
olhos e disse:

— Allegra, minha querida, eu estou incondicionalmente e


irrevogavelmente apaixonada por você! Pode parecer loucura ou
coisa de outro mundo, de outra vida, mas é isso que sinto — falei,
entre soluços e lágrimas.

Ela respondeu-me com a voz um pouco abalada, mas tentando


controlar-se.

— Eu imaginava amar a Diana, mas depois que vi você, depois


que ficamos juntas eu não tirei mais você da minha mente e percebi
que o meu sentimento por você era muito mais intenso do que um
dia eu senti pela Diana.

Aquela espécie de confissão fez-me expor ainda mais e falar de


meus medos.

— Tenho muito medo de te perder, estou radiante por estar com


você aqui, nesse momento, você não sabe quanto tempo eu esperei
e almejei por isto.

Ela passou a mão em meu rosto, nos abraçamos, ouvi mais


uma vez o som do seu coração que batia forte, o calor do seu
abraço, a temperatura da sua pele, estava louca pra gritar ao mundo
inteiro que eu a amava, mas estávamos dentro daquele carro, no
estacionamento quase vazio, tive que me controlar! Mas do que
mais eu precisava? Eu estava junto dela, sentindo ali a maior
felicidade do mundo ao ter ouvido de sua boca aquelas palavras, eu
estava incrédula e infinitamente realizada.

— Você não vai me perder, Nina...

— Promete?

— Sim, Nina, eu prometo a você.


Então, antes que eu desabasse em lágrimas mudei o assunto.

— Mas você ainda não me disse por que mandou fazer as


pulseiras.

— É verdade! — ela sorriu. — Mandei fazer porque eu nunca


acharia uma pulseira com esses dizeres.

Eu olhei encabulada para “os dizeres” mas não sabia o que era.
Ela me olhou e percebeu que eu não havia entendido, então me
explicou calmamente.

— Nina, esta é uma frase em latim, está escrito: Oculus animi


índex, que quer dizer “Os olhos são a janela da alma”.

— Que lindo! — fiquei olhando encantada com os dizeres e


com o brilho daquele “bracelete”. — Brilha tanto! É de prata?

— Não, é de ouro, ouro branco. Mandei fazer na Itália, ficou


pronta esta semana.

— Allegra, achei fantástica a sua ideia, adorei, nunca vou tirá-la


do meu pulso — prometi a ela.

— Não vou tirar a minha também — disse, em cumplicidade,


quase como um pacto, um símbolo entre nós.

— Você fala latim?

— Um pouco, entendo mais do que realmente falo, mas longe


de ser fluente... — sorriu. — Mas vamos indo, senão o restaurante
vai acabar fechando — disse ela, por estarmos ali já há mais de 15
minutos.

Ela ligou o som do carro — num volume baixo — e


coincidentemente estava tocando Quel Qu'un M'a Dit,
imediatamente lembrei-me da música que ela havia tocado em seu
piano para mim, e antes que eu dissesse algo ela falou:
— Nossa música, Nina!

Eu estava boquiaberta, chocada com tudo e ainda mais com a


observação dela em relação à música, significava que ela também
se lembrava de mim ao ouvi-la, ousei apenas responder
acanhadamente...

— Sempre me lembro de você quando escuto esta música!

Ela ligou o carro e saiu em direção ao Toqué. Ela dirigia bem,


com aquela segurança que só ela tinha. Conhecia bem os caminhos
e estávamos indo sem nenhuma dificuldade. No caminho recebi
uma mensagem da Shelly que me fez rir.

“Não deixa a coroa escapar Nina, dá um cansaço nela!”

A Allegra percebeu minha tentativa de esconder o riso e


perguntou-me o que era, mas eu disfarcei e disse que era a minha
amiga que tinha mandado uma mensagem engraçada.

— O que ela mandou? Deixa-me ver — ela disse brincando,


percebendo que tinha algo a ver com ela.

Fiquei sem graça e envergonhada.

— Desculpe, mas não tenho coragem de mostrar.

— Ah, é? O que você quer em troca para me deixar ler a


mensagem? — falou ela com um tom ousado.

Depois de tudo que eu já tinha ouvido da boca dela não medi as


palavras e falei com todas as letras.

— Quero você, Allegra, quero você só para mim — falei,


colocando minha mão sobre sua perna.

Ela olhou pra mim com uma expressão totalmente convidativa e


respondeu-me sem vacilar.
— E você terá, não se preocupe.

Fiquei sem graça, mas superempolgada com as expectativas


para aquela noite! Fomos trocando pequenos carinhos e palavras de
afeto até chegarmos ao restaurante, onde fomos recebidas por um
manobrista que gentilmente abriu as portas do carro para que
pudéssemos sair e adentrar no finíssimo restaurante, enquanto ele
conduzia o Bentley ao estacionamento privado.

Sentamos em uma mesa ao lado de uma janela enorme que


dava para uma vista linda, dali víamos a cidade toda iluminada.

— Senhoritas, o que desejam tomar? — disse o garçom.

— O que você quer beber, Nina?

— Hoje deixo tudo com você, querida, surpreenda-me — falei,


orgulhosa do que tinha dito.

Ela riu e sentiu-se desafiada, resolvendo mostrar a mim do que


era capaz para “surpreender-me”.

— Traga um champanhe, um Brut Dom Perignon, Moët e


Chandon 1993 — disse, satisfeita. — Bem gelada! — enfatizou.

— Allegra! Você está louca? — indaguei-a por gastar CAN$ 700


em um champanhe.

O rapaz pediu licença e saiu para buscar o pedido enquanto a


Allegra respondeu-me.

— Acho que consegui surpreendê-la, Nina!

— Nunca mais vou pedir para me surpreender!

— Não é por isso não, querida, é o que eles têm de melhor aqui
e hoje é uma ocasião especial e quero o melhor.

— Mas é muito caro!


— Nina, você que me surpreende na verdade, enquanto as
pessoas querem “tirar de mim” o mais caro, você quer o contrário.

— Desculpe, Allegra, mas isso é o que eu pago de aluguel em


meu apartamento — justifiquei.

— Querida, eu entendo você e acho nobre sua atitude, mas


para mim esse valor não fará nenhuma falta e hoje quero que tudo
seja perfeito, pois tenho que ir embora amanhã à tarde.

Lembrei que ela era casada — aquela aliança em seu dedo me


alertava a todo o momento —, que eu tinha que aproveitar aquele
sonho o máximo possível e tentar convencer o “relógio” a andar bem
devagar.

— A que horas você vai embora amanhã?

— Às 18h, já estou com a passagem comprada.

Baixei a cabeça, ficando claro que a queria por mais tempo. Ela
segurou minha mão e quando ia falar algo o garçom chegou com o
champanhe “fortúnico”, serviu nossos copos e perguntou:

— Já escolheram o que querem para jantar?

— Por favor, traga terrine de foie gras, cavatelli com cogumelos


shitake ao óleo de trufas brancas, para duas pessoas — pediu
Allegra, sorrindo.

— Uau! Você realmente sabe o que tem de melhor, estou


impressionada — disse, elogiando-a pelo bom gosto na escolha do
prato.

— Obrigada, não posso fazer feio para uma chef de mão cheia
como você! Mas Nina, vi que você ficou chateada por eu ter de ir
embora amanhã.

— Não, Allegra, não se explique, entendo você, entendo seu


trabalho — justifiquei.
— Só queria dizer que adoraria ficar, de verdade, ou ficar ou
levar você comigo! Queria vê-la com frequência, queria poder
assumir um relacionamento com você — disse suspirando e
deixando aparentar seu desconforto.

Eu não sabia como agir, todas aquelas informações eram novas


para mim, eu sempre quis ouvir aquilo, mas não imaginava ouvir
realmente.

— Eu sei, você é casada, estou ciente da sua situação, e não


estou aqui para cobrar nada — deixei claro.

— Nina, eu juro para você, queria poder me separar da Diana


para ficar com você!

Aquela revelação me espantou, parecia ser sincera, fiquei


surpresa e sem saber o que dizer, olhando imóvel para ela.

— O que você disse? — questionei-a, supondo ter entendido


mal.

— Isso mesmo que você entendeu, Nina.

— Bem, sinceramente, Allegra, já que você está me dizendo


isso, me sinto no direito de perguntar-lhe o que a impede de
separar-se então? — obriguei-me a perguntar, pois precisava saber
daquela resposta.

— Em minha casa, eu lhe falei que havia muitas coisas


envolvidas em nosso relacionamento, lembra? — referindo-se ao
seu casamento com Diana.

— Sim, lembro.

— Pois então, por isso não posso separar-me, mas sei que a
Diana não está comigo por amor — disse, um tanto ressentida.

Nisso nossos lindos e saborosos pratos chegaram e por alguns


momentos permanecemos caladas, esperando o garçom se retirar.
— Então, Nina, não é o casamento em si que me impede de
separar-me, são circunstâncias que se criaram em torno desse
casamento... É uma longa história, um dia conto pra você — disse
ela, encerrando o assunto.

Fiquei chocada, pensei por um momento em abrir o jogo e


contar da traição da Diana, mas não podia correr o risco de estragar
a “nossa” noite.

— Tudo bem, Allegra, quero que saiba que estou do seu lado,
se quiser me contar e sentir-se à vontade para isso pode contar, se
não quiser, entenderei.

— Nina, minha querida, quero fazer um brinde.

Ela ergueu sua taça com o champanhe esperando eu repetir o


gesto, eu imediatamente repeti esperando por suas palavras, então
ela falou olhando para mim.

— Quero fazer um brinde a nós, meu amor! A este momento.


Quero dizer que desejo muito, desejo com todo meu coração um dia
poder estar realmente ao seu lado — então ela ofereceu-me a taça
para a famosa batidinha do “tim-tim”...

Obviamente que eu o fiz, inerte com suas palavras e sem


reação.

Antes que eu pudesse tentar dizer alguma coisa a ela e dar


alguma continuidade a nossa conversa, o meu celular tocou. Então
o peguei e vi que depois de um bom tempo sem ligar, novamente o
número anônimo estava me chamando, não sabia se atendia ou
não, mas na dúvida atendi.

— Alô? — como sempre não ouvia vozes, somente uma


respiração, insisti dizendo “alô” mais umas duas vezes e desliguei,
irritada.

— Algo errado, Nina?


— Não sei, estão me ligando há algum tempo e não dizem
nada, ligam de um número não identificado, não imagino quem seja.

— Você não tem ideia de quem possa ser?

— Nenhuma...

Então o celular da Allegra também tocou, ela pediu desculpas


— sendo educadíssima — mas disse que precisa atender, referindo-
se a sua profissão.

— Sim? — disse ela. — Estou em Montreal, Diana, vim direto


de Milão — continuou.

Era Diana no telefone, fui tomada por uma sensação tremenda


de ciúmes, embora eu não me considerasse uma pessoa ciumenta.
Enquanto a Allegra dava algumas explicações a ela sobre onde
estava, a que horas voltaria, o meu celular tocou novamente, e de
novo era o número não identificado. Atendi irritada, mas para variar
apenas o “silêncio” do outro lado da linha. Desliguei enfurecida e
fiquei esperando a Allegra desligar o seu telefone.

— Muito bem, onde estávamos? — continuou ela.

— Não lembro mais — fiquei tentando me recordar.

— Bom, então quero pedir uma coisa a você — disse,


insinuando-se e colocando sua mão sobre a minha.

Percebi que ela estava sendo maliciosa e dei-lhe corda.

— Peça o que quiser! — eu sabia que qualquer coisa que ela


me pedisse eu faria sem questionar.

— Não tive tempo de reservar um hotel devido ao meu atraso,


pensei que pudesse passar a noite com você no seu apartamento, o
que você acha? — falou, apertando minha mão e sorrindo
maliciosamente.
O que eu diria? Nunca imaginaria receber a Allegra em minha
casa, e quem imaginaria ouvir aquela proposta de sua boca! Como
eu iria negar? Mas onde eu “enfiaria” a Clara?

— Mas Allegra, meu apartamento é do tamanho ou menor que


a cozinha da sua casa, tenho vergonha de levá-la lá. — confessei a
ela meio sem jeito.

— Por mim isso não é nenhum problema, desde que tenha uma
cama para que possamos ficar juntinhas a noite toda, para mim será
o melhor lugar do mundo — disse, com um sorriso tão lindo que era
impossível negar aquele pedido.

— Eu também acho! Só o que quero é ficar com você! —


concordei, apaixonada.

— Então essa resposta quer dizer sim?

— Claro, só tem um detalhe, que tenho que lhe contar, se você


não se importar... — falei constrangida e sem graça, ao mesmo
tempo em que estava eufórica com a ideia de tê-la em minha cama.

— Qual detalhe?

— Tenho duas amigas hospedadas em minha casa, isso


incomoda você?

— Bom, se você e elas não se importarem, por mim não há


nenhum problema.

— Não, claro que não. — ali tive tanta raiva por a Clara estar lá
em casa que queria “seu pescoço”.

— Elas não dormem no seu quarto, não é, Nina? Elas


provavelmente dormem em outro quarto, certo?

— Elas dormem na sala — respondi, sabendo da encrenca em


que tinha me metido.
— Ótimo! Nina, preciso ir ao toalete, você me dá licença?

— Claro! Estarei esperando você aqui — falei brincando,


insinuando que eu não fugiria.

Ela levantou-se em direção ao banheiro, eu estava pasma,


literalmente abobalhada com as suas revelações, com a sua
extrema educação, com sua fantástica companhia e com sua
estonteante beleza... Mas, eu tinha um “abacaxi gigantesco” em
minhas mãos, aproveitei então a sua ausência momentânea e
rapidamente liguei para a Shelly, que atendeu ao primeiro toque.

— Alô! Nina??

— Oi, Shelly! Que bom que me atendeu! — fiquei aliviada por


ela ainda não estar dormindo.

— Me conte! Onde estão, como foi o concerto?

— Shelly, me escuta, não posso falar disso agora, conto tudo


depois para você, estou na maior enrascada da minha vida, preciso
da sua ajuda!

— Claro! O que foi?

— Estamos jantando em um restaurante que fica a uns 20


minutos daí de casa, e depois que jantarmos iremos sabe pra onde?
Praí!!

— Caraca! Vou ter que “faxinar” tudo rápido!

— Shelly, não brinca comigo! Não é esse o problema, o


problema é a Clara, ela certamente vai fazer barraco!

— Não vai mesmo, eu mato ela!

— Sério, Shelly, fala com ela, por favor, tenta convencê-la a se


comportar, quero curtir esta noite ao lado da minha amada, mas
estou preocupada com o que a Clara possa fazer.
— Nina, fica tranquila, eu estou aqui e ela vai se comportar,
nem que eu tenha que amordaçá-la. Podem vir, não sairei do lado
da Clara nem por um segundo!

— Obrigada, amiga, agora tenho que desligar, a Allegra está


vindo!

— Vai lá, Nina, não deixa a coroa escapar! Vou arrumar seu
quarto e trocar os lençóis!

— Ok... Beijos.

Desliguei e guardei o celular discretamente em minha bolsa,


mas a Allegra de boba não tinha nada.

— Era o número anônimo novamente, Nina?

— Não, apenas liguei pra casa avisando que iríamos pra lá


depois — e então mudei de assunto rapidamente. — Mas me conte,
Allegra, como foi operar o filho do ator? Fiquei orgulhosa de você,
pensei em ligar e parabenizá-la!

— Foi tranquilo, correu tudo muito bem, conseguimos um


excelente doador. Mas por que você não ligou pra mim, já que teve
vontade? Eu adoraria...

— Sei lá, não queria te incomodar, pensei também que como


você tinha meu telefone e nunca havia ligado, imaginei que era
melhor deixar assim...

A Allegra baixou a cabeça e percebi que havia ficado


desconfortável.

— O que foi? Falei algo que não devia? É que estamos tendo
uma conversa tão franca, por isso falei... Desculpe.

— Nina, eu pensei em ligar para você muitas vezes, mas o que


eu diria? Eu estou em uma situação muito delicada em minha
relação, não poderia lhe oferecer nada, absolutamente nada... Sei
que seu sentimento é puro, verdadeiro, me sentiria muito mal lhe
propondo para apenas nos encontrarmos algumas vezes como
“amantes”! Você não merece só isso...

Achei melhor mudar de assunto antes que eu desse a


impressão de estar forçando-a falar sobre aquele assunto.

— Tudo bem, entendo você... Mas me diga como resolveu ser


médica? Por causa de seu pai?

Ela sorriu empolgada em contar o porquê de sua escolha.

— Foi! Sempre o admirei muito, eu gostava demais dele,


pensava em ser neurocirurgiã, assim como ele.

— E o que a fez mudar de ideia e escolher a cardiologia?

— Ele morreu quando eu tinha 12 anos, de ataque fulminante


do miocárdio — disse triste. — Eu queria tê-lo salvado, eu o amava,
não entendia como ninguém havia podido fazer algo para preservar
a vida dele. Então jurei que seria cardiologista quando crescesse e
me esforçaria ao máximo para salvar outras vidas.

Achei nobre a sua persistência e a sua linha de raciocínio, mais


uma vez me encantei com ela, pois ela havia alcançado seu objetivo
com primor, sendo uma referência mundial em cardiologia. Só
interrompemos a conversa porque seu telefone tocou novamente —
dessa vez era alguém de dentro do hospital —, ela pediu licença e
atendeu.

— Sim? Sou eu... Estou em Montreal, algum problema com


Kate?

Referindo-se a uma paciente.

— Sim... E qual a saturação?

Ela falava calmamente, escutando atentamente a pessoa do


outro lado da linha.
— O respirador está em quanto?

Ela me deixava maravilhada, isso era um misto de amor e


paixão, não poderia ter outra denominação.

— Ok! Coloque o respirador em Sipap, se ela reagir bem


durante toda a noite, amanhã pela manhã você poderá extubá-la,
então, faça nebulização de uma em uma hora por três vezes com
uma solução de SF.09% e adrenalina. Se ela não reagir bem à noite,
tire-a do Sipap e a coloque no respirador a 20%, se ainda assim ela
não reagir bem, me ligue.

Continuei ouvindo-a encantada, embora não estivesse


entendendo seus termos e suas explicações médicas, mas ela
continuou dando orientações.

— Não, Christie! Mantenha o cateter distal com a medicação, o


proximal, suspenda a medicação, mas ainda mantenha o acesso
“heparinizado”. Qualquer modificação no quadro me ligue.

Ela desligou o telefone, satisfeita com suas orientações, então


eu perguntei a ela.

— Você não fica nervosa, não treme quando está operando?

— Procuro manter-me tranquila. Claro que fico um pouco


apreensiva, isso é natural, mas me mantenho firme sem tremer —
disse, rindo. — Pois se eu tremer e cometer algum erro, por menos
de um milímetro que seja, isso já seria o suficiente para colocar em
risco a vida de um paciente e até perdê-lo.

— Nossa, deve ser muito tenso!

— Na verdade, Nina, o nosso corpo e a nossa vida são muito


frágeis, em segundos tudo pode mudar, o corpo humano é uma
máquina totalmente interligada, onde uma “pecinha” sair fora do
lugar ou estragar poderá colocar em risco todo o funcionamento e
parar. O maior bem que possuímos é a saúde, sem ela a nossa vida
não vale muita coisa.

Fiquei ouvindo com devoção, ela era inteligente e a forma como


ela explicava, com tanta calma, tentando fazer-se compreender, me
encantava. Ela sabia discernir o seu “público”, falava com exímio
conhecimento e termos técnicos quando estava em seu meio
médico, porém, quando estava entre leigos — como eu — tinha
cuidado em usar exemplos e formas de facilitar a compreensão, era
fantástica, era uma forma sedutora, seria impossível não prestar
atenção.

— Vi você falando na TV que iria ao Brasil, você foi?

— Sim, conheci o Brasil há alguns dias atrás e pensei muito em


você quando estive lá. Fui a Porto Alegre, você conhece aquela
cidade?

— Sim, nasci em Porto Alegre, você conheceu minha cidade


natal! Que coincidência!

— Sério? Coincidência mesmo, gostei da cidade, um pouco


quente, mas linda, você sempre morou lá, antes de mudar pra cá?

— Não, antes de vir para cá morei por um ano e meio em São


Paulo, é uma cidade que fica a mais ou menos uns 1.000 km de
Porto Alegre.

— E por que se mudou para lá por esse período?

— Porque tive uma namorada lá, aquela que me traiu, lembra?


Ficamos juntas nesse período — falei, com certo receio de ter que
contar que a Clara estava aqui em Montreal, precisamente dentro do
meu apartamento, mas ela foi discreta.

— Boba essa sua ex-namorada que perdeu você! Mas, melhor


pra mim, não acha?— ela piscou o olho.
— Sinceramente, Allegra, conhecer você foi o que de melhor
aconteceu em toda a minha vida — confessei.

— E eu só lamento não ter conhecido você antes, Nina.

Ela me surpreendia a cada momento...

— Allegra, quero dizer-lhe, antes que eu possa esquecer, que


ter ido no concerto com você foi o melhor presente que o destino
podia ter me dado, amei estar junto de você a cada segundo,
compartilhando aquela chuva de emoções em cada música... Ao
seu lado... Obrigada, meu amor.

— Eu digo o mesmo, Nina, quero que olhe para essa pulseira e


lembre sempre deste dia, dos sentimentos que você e eu vivemos,
juntas naquele teatro, mais uma vez vou dizer a você, não é
qualquer pessoa que tem a dádiva de deixar-se tocar a alma, e você
tem! Vi em seus olhos, desde a primeira vez que a vi! E tive certeza
da minha constatação quando toquei piano para você... E hoje me
senti a pessoa mais privilegiada deste mundo por estar
compartilhando com você aquilo que nunca em minha vida consegui
compartilhar com alguém, um sentimento tão puro que vinha da
alma... Obrigada a você, Nina.

— Nossa, Allegra, assim você vai me fazer chorar o tempo


inteiro!

— Não quero que chore, quero pedir logo uma sobremesa para
depois irmos a sua casa, pode ser?

— Claro!

Mas antes que pudéssemos pedir a sobremesa seu telefone


tocou novamente, era um médico italiano parabenizando-a pelo
sucesso no transplante de Alan Grate.

— Alô?
Fiquei quieta esperando ela terminar de falar ao telefone para
que déssemos continuidade na nossa conversa.

— Genaro! Come stai? Quanto tempo ci sei rimasto?

Para minha surpresa ela começou a falar italiano, ela me


fascinava!

— Si, si! Adesso molto bene, grazie!

— Si, mi è piaciuto molto!

Inacreditavelmente ouvi-la falar em outro idioma me deixou


excitada, fiquei encabulada...

— Spero di rivederti. Ciao.

— Adorei! — eu disse radiante.

— Adorou? O quê? — perguntou-me sem entender.

— Ouvi-la falar em italiano!

— Nina... — ela riu. — Sou italiana, nasci em Gênova, foi a


primeira língua que aprendi! Embora atualmente eu não pratique
tanto por conta do inglês — falou, achando muito engraçado minha
admiração.

— Mas mesmo assim me fascinou, Allegra, fiquei excitada... —


sem querer acabei falando e depois me arrependi, baixei a cabeça
totalmente sem graça.

— É mesmo? Bom saber esse seu ponto fraco! — disse ela


num tom convidativo. — Quer saber? Vamos pedir a sobremesa e
vamos logo para sua casa, não vejo a hora de chegarmos lá.

Pedimos a sobremesa, conversamos mais um pouco sobre


vários assuntos enquanto saboreávamos uma deliciosa torta fondant
com coulis de frutas vermelhas e licor de romã,
mais uma vez ela disse estar apaixonada por mim, me fazendo a
pessoa mais feliz do mundo. Contei a ela sobre o casamento da
Shelly e da Olívia na “Igrejinha Express” — ela achou graça — e
comentei sobre meu trabalho no restaurante. Já ela disse-me que
tentou fazer “brigadeiro” e que foi impossível de comê-lo de tão ruim
que havia ficado, enfim, rimos muito, conversamos muito até
finalmente pedirmos a conta — exorbitante — para irmos para casa!
Capítulo 12

Respirei fundo — torci para que a Shelly tivesse realmente


amordaçado a Clara — e coloquei a chave na porta, abrindo-a. Eu e
a Allegra entramos e nos deparamos com a Shelly e a Clara
sentadas no sofá em frente à televisão. A Shelly estava
aparentemente eufórica e a Clara estava igual ou pior do que se
estivesse num velório.

— Oi, dra. Allegra! Lembra de mim? — disse Shelly, saltando


do sofá e indo até a porta para nos recepcionar.

— Olá, lógico que me lembro de você! — respondeu com


simpatia.

— Uau, doutora! Você está um arraso com esse vestido preto


chiquérrimo que lembra a Belle Époque, o detalhe do espartilho
então, a deixou ainda mais linda!

— Obrigada, Shelly, realmente impressiona seu conhecimento,


é sempre bom receber elogios! — disse Allegra, surpresa pelas
observações da Shelly.

— Vocês duas estão fantásticas, que casal lindo! Preciso tirar


uma foto! Importam-se?

Obviamente não nos importávamos, a Shelly, então,


imediatamente tirou uma foto de nós duas juntas, abraçadas — a
Clara quase surtou —, com a câmera de seu celular, fiquei sem
graça, mas a Allegra não se importou, ela estava feliz, e a Shelly
eufórica com a presença da Allegra.

— Bom tê-la aqui, “doutora”, é quase uma sensação de estar


recebendo a Madonna em nosso humilde apartamento! Surreal!
Olhei para Shelly incrédula, deixei claro com minha expressão
para ela ir mais devagar com seus comentários. Allegra achou
graça, enquanto a Clara continuava mumificada no mesmo lugar
“fuzilando” a Allegra com seu olhar enciumado.

— Onde está sua esposa, Shelly? Soube que se casou! Meus


parabéns! — continuou Allegra.

— Obrigada! Ela está em Toronto, mora lá, eu irei morar com


ela assim que concluir meu curso de extensão aqui em Montreal —
explicou, empolgada e eufórica.

A Allegra, então, olhou para Clara e falou com educação e


simpatia esperando para ser apresentada a ela.

— E você? Tudo bem?

— Se melhorar estraga! — disparou Clara, sendo irônica e


fazendo com que a Allegra percebesse que havia algo errado.

Mas a Shelly imediatamente remendou, com toda sua


habilidade e criatividade totalmente espirituosa.

— Allegra, esta é Clara, não dê bola para seu “espírito de


porco”, pois ela era drogada até ontem e está em processo de
desintoxicação, fica assim antes de ter uma crise de abstinência! —
disparou Shelly, me fazendo quase morrer de vergonha!

— Posso indicar um bom profissional para ajudá-la no processo


— disse Allegra, com toda prestatividade, olhando para Shelly e
para Clara.

Nessa hora obriguei-me a interromper aquela situação antes


que ficasse ainda pior.

— Querida, deixa eu mostrar-lhe o quarto, você deve estar


cansada, segurando essa mala pesada... E eu estou louca por
banho — fui dizendo e puxando a Allegra pela mão.
Ela concordou e sorriu para Shelly. Saímos de mãos dadas, em
direção ao quarto, quando sem perder tempo a Shelly dispara:

— Ah! As duas estão de “pulseirinha de compromisso”, hein? A


noite promete — repetiu ela, fazendo com que eu quisesse me
esconder de tanta vergonha.

A Allegra achou graça da espontaneidade da Shelly, sorriu para


ela e balançou a cabeça fazendo um sinal de aprovação. Eu não
quis correr o risco de continuar aquela conversa, e finalmente
consegui chegar com a Allegra em meu quarto — sãs e salvas —,
que estava todo arrumado, perfumado e com os abajures acessos, a
Shelly tinha dado um “clima” ali!

Fechei a porta aliviada e antes que eu pudesse dizer ou fazer


algo a Allegra largou sua mala em cima da cama e me segurou com
firmeza contra a parede, beijando-me com voracidade, fazendo-me
extremecer. Sua língua passeava dentro de minha boca acariciando
a minha, que implorava por mais e mais, ela me deixava sem ar e
sufocada de tanto desejo...

— Te quero — murmurei.

— Não mais do que eu — rebateu Allegra, deixando-me


surpresa.

Ela estava nitidamente com saudades, estava sedenta por


aquele momento, suas mãos percorriam meu corpo e
habilidosamente desabotoavam minha blusa deixando-me só de
corpete. Ela era rápida, estava quase parcialmente nua quando eu
disse:

— Espera — tentei acalmá-la.

— O que houve, Nina? — ela disse sem entender.

— Quero transar com você, debaixo do chuveiro — disse a ela,


porque me sentia suada.
Ela sorriu de forma maliciosa, puxando-me em direção ao
banheiro, onde rapidamente nos despimos e pude contemplar toda
sua beleza mais uma vez, mas ela foi mais rápida que eu.

— Nina, você é linda! — disse, me deixando envergonhada.

Fiquei sem jeito e abracei-a, estávamos nuas e totalmente


entregues uma à outra. Ao nos colocarmos sob a ducha de jatos
fortes no pequeno box onde mal cabíamos, olhei para Allegra, nua,
com a água escorrendo pelo seu rosto, e dei-me finalmente por
conta do que estava realmente acontecendo, não pude acreditar
que ela estava na minha casa, no meu banheiro, pela primeira vez a
vi como uma mulher de carne e osso, linda, em meio ao “meu
mundo”, era fascinante!

Passei minhas mãos em seu corpo molhado, delicadamente,


como se precisasse tocá-la daquela forma para acreditar que ela
realmente estava ali e era “de verdade”, já ela apenas me observou,
não disse nada, ficou me olhando e me permitindo tocar seu corpo...
Então, após comprovar que ela não era nenhuma miragem, nos
beijamos loucamente. Sentia todo carinho daquele momento em seu
toque, queria tê-la mais uma vez, ansiava por aquele momento,
então, sem controlar minha ânsia por tê-la, ajoelhei-me em sua
frente, curvando-me aos pés de minha rainha, afastei suas pernas e
me pus a sugá-la com gana, enquanto a água escorria em meu
rosto, ela gemia sem importar-se em ser ouvida, eu sentia-me cada
vez mais excitada e tomada pela loucura, segurei suas nádegas
com força e a puxei contra mim, para que ela se aproximasse ainda
mais de minha boca, que naquele momento encontrava-se
entranhada em meio às suas coxas... Eu estava realizada, adorava
sentir seu gosto, o saboreava como se fosse um néctar, apreciando
literalmente aquela bebida açucarada digna dos deuses!

Sentia suas pernas tremerem e seus gemidos aumentarem de


uma forma frenética, ela segurava minha cabeça firme, às vezes
passava suas unhas em minhas costas arranhando-me com
suavidade, mas logo pude sentir novamente suas unhas cravarem
em minha carne, percebendo que seria contemplada mais uma vez
com seu êxtase. Ouvi-la e sentir todo seu prazer através de seu
gemido forte, alto, empurrando-me firmemente contra seu sexo já
totalmente consumido era incrível... Ela suspirou e encostou-se na
parede, saciada, entregue, me puxou devagar para cima, onde me
abraçou, exausta.

— Quero que sinta o mesmo que senti, Nina — murmurou em


meu ouvido.

— Vamos para a cama — sugeri ainda entorpecida por aquele


momento.

Rapidamente sequei-me e fui até o quarto, deitei-me na cama


esperando-a ansiosa por terminar de secar-se e juntar-se a mim.

Ela veio nua, olhando-me com um olhar sedutor, colocou-se


sobre mim deixando sentir todo seu peso, sua pele, seu calor... Ela
disse para eu permanecer imóvel, eu obedeci, mas ansiando em
poder tocá-la novamente, ela beijava-me inteira, deixando-me louca
de tanta excitação por conta daquela situação em que eu me
encontrava, imóvel e totalmente submissa... Aquilo também era uma
espécie de tortura, pela vontade absurda de querer tocá-la, mas ela
havia “mandado” eu ficar imóvel, portanto não podia desobedecer.

Sentia seus dedos percorrerem meu corpo, sua língua circular


meus mamilos arrepiados, enquanto eu assistia à “dra. Allegra” em
ação, nua, voluptuosa, contorcendo-se sobre mim, ela esfregava-se
sobre meu corpo faminto beijando meu pescoço, sua língua
preenchia meu ouvido em movimentos circulares deixando-o
molhado, ela mordiscava minha orelha com cuidado e gemia
baixinho, fazendo-me contorcer-me de tanto desejo. Àquela altura
eu já estava no auge, no limite da minha excitação, e mesmo
sabendo que não “podia” tocá-la, desobedeci, passei as minhas
mãos em suas costas, em suas nádegas, me realizando, subi meus
dedos até seus cabelos molhados e empurrei delicadamente sua
cabeça em meio às minhas coxas... Ah! O que mais eu poderia
desejar na vida? Ela era habilidosa, demonstrava aptidão tanto com
seus dedos quanto com sua língua, ela me tonteava com suas
“manobras” ousadas e deixava-me a cada segundo mais perto de
explodir de tanto prazer. Eu me segurava, mas era difícil conter-me,
pois meu grau de excitação era tanto que seria mais fácil “aprender
latim” do que segurar-me por mais tempo... Não me contive no
momento em que, enquanto ela sugava-me com indescritível
destreza — mais uma vez me surpreendendo —, sem nenhum
pudor e constrangimento colocou delicadamente seu dedo entre
minhas nádegas atigindo “seu alvo”, penetrando-o sem piedade e
fazendo-me esquecer qualquer tipo de preconceito e entregar-me
por inteira ao prazer extremo. Arqueei meu corpo e gemi tão alto
que me constrangi subitamente... Ela, por sua vez, ainda
acomodada entre minhas pernas, levantou seu olhar e sorriu
satisfeita, quando, devagar, abandonou seu posto e veio até mim
beijando-me por todo “trajeto”... Permanecemos abraçadas, sem
dizer uma só palavra por alguns minutos, eu estava ofegante, mas
lentamente a minha respiração foi se normalizando, fazendo-me
voltar a mim e agradecer mais uma vez ao destino pelo presente
daquele incomparável momento.

— Eu amo você, Allegra! — disse, sem pensar e deixando-me


levar pela emoção.

— Querida, eu penso que possa estar amando-a também,


quero muito ficar com você, não queria ter de ir embora amanhã,
mas minha vida é muito corrida — explicou ela, ao mesmo tempo
em que correspondia à minha declaração, deixando-me ainda mais
entregue a ela.

— Mas amanhã é domingo — tentei argumentar.

— Eu sei, meu amor, porém amanhã às 21h haverá lá em


Toronto um evento para formalizar a nova comissão que irá compor
a Anac, Associação Norte-Americana de Cardiologia, eu serei
nomeada oficialmente presidente da associação, terei que discursar,
será televisionado, não poderei ficar, querida, embora eu quisesse
muito — disse Allegra, explicando-me cheia de orgulho pelo novo
cargo conquistado.
— Meu Deus! Mas isso é sensacional! Claro que você não
poderá faltar, estou tão orgulhosa de você! — disse, radiante.

Ela sorriu e ficou pensativa.

— O que foi, Allegra? — questionei curiosa.

— Já é a segunda vez no dia de hoje que você diz sentir


orgulho de mim.

— Mas é verdade! Sinto a todo momento, o tempo inteiro, por


suas conquistas, pelo seu reconhecimento mundial, pela sua
competência... Enfim, por inúmeros e inquestionáveis motivos.

— Sabe, Nina, desculpe falar nisso nesse momento tão nosso,


não me julgue indelicada, mas a Diana nesses anos todos nunca
disse isso pra mim, nunca me acompanhou num concerto, nunca
me fez sentir tão feliz como você está me fazendo, com essas
pequenas coisas.

Eu não sabia o que dizer, estava pasma, feliz, eufórica... Só


consegui passar a mão em seu rosto — enquanto ela fechou seus
olhos — e beijá-la com todo carinho que existia dentro de mim.

— Você é tão linda... — disse baixinho, não me contendo com


tamanha beleza.

— Querida, você é muito mais linda do que possa imaginar —


disse, abrindo seus olhos, enquanto sua cabeça repousava sobre
meus ombros.

Fiquei sem reação, ela estava me deixando apaixonada a cada


segundo, não sabia mesmo o que dizer a ela...

Então resolvi descontrair.

— Allegra, o que significa “O dia está à sua frente, esperando


para ser o que você quiser”? — perguntei, referindo-me à
dedicatória do livro da isquemia.
Ela riu, lembrando-se do que havia escrito.
— Quis dizer exatamente isso! — disse, divertindo-se por me
confundir.
— Por favor, me diga... Vai... — insisti.
— Com uma condição!
— Qual?!
— Se você me mostrar a mensagem que recebeu em seu
celular hoje!
Fiquei muito envergonhada, como iria mostrar a mensagem da
Shelly! Pior, a chamando de “coroa”!
— Allegra, querida... Não posso, tenho vergonha... —
argumentei, sem graça.
Ela calmamente sentou-se, ligou o abajur ao seu lado e com um
sorriso malicioso disse:
— Vergonha, Nina? De mim?
Ela me convencia de tudo com o seu jeitinho, mesmo indo
contra minha razão peguei o celular e mostrei a ela, totalmente
encabulada.
— Tá bem... Olhe...
Ela deu uma gargalhada como eu nunca tinha visto, e depois
disse ainda se divertindo.
— Você terá que me dar um “cansaço”, Nina! — disse,
concordando com a mensagem da Shelly.
Respirei aliviada ao perceber que ela tinha levado na boa,
então me senti à vontade para falar.
— Pode deixar comigo... Mas agora cumpra a sua parte, o que
significa a frase que escreveu pra mim?
— Tá bem, mas não vá se acostumando, pois não irei traduzir
para você a dedicatória do próximo livro que vou lançar!
— Sério?! E quando será lançado? — perguntei mais uma vez
cheia de orgulho, e interrompendo-a novamente.
— Exatamente não posso dizer, mas muito breve, já terminei de
escrevê-lo, faltam apenas algumas pequenas correções e a
editoração para publicação, mas mandarei pra você assim que
estiver pronto.
— E sobre o que é? Você pode me falar?
— Hum... Posso, mas só se você prometer não contar para
ninguém — disse, divertindo-se.
— Prometo! — afirmei com seriedade. — Sobre o quê?
— É sobre “Homocisteína e Polimorfismo dos genes MTHFR e
VEGF”.
Olhei para ela por um segundo séria, e depois nós duas
começamos a rir sem parar. Então entrei na brincadeira.
— Você que não vá se acostumando mal, só desta vez que não
vou espalhar para todo mundo sobre o que é seu livro, e se você
não se comportar vou agora mesmo contar pra Shelly!
— Essa sua amiga é superdetalhista, não é? Percebeu nossas
pulseiras!
— Ela é muito rápida, ela estuda moda, percebe qualquer
detalhe.
— Olha que interessante, será que ela conseguiu ver o que
está escrito? — Allegra brincou com a situação.
— Não duvide — disse a ela, me contendo para não contar que
a primeira vez em que a Shelly a viu no consultório em menos de 3
segundos relacionou as suas roupas, com suas marcas e
respectivos preços. — Mas acho que ela não viu, não, o que estava
escrito, aliás, Allegra, achei genial sua ideia de mandar fazer estes
“braceletes” escritos em latim, muito original!
— Que bom que gostou, meu amor... Eu gostei mais ainda da
denominação que ela deu às pulseiras — salientou, referindo-se a
Shelly por chamar de “pulseiras de compromisso”.
— Você está querendo me dizer algo com esse sorrisinho nos
lábios? — disse, envergonhada.
— Sim, quero dizer que você pode considerá-las assim —
novamente sobre o significado atribuído às pulseiras.
Abracei-a e com euforia me pus a enchê-la de beijos, ela se
“assustou” com minha reação e rindo entrou na brincadeira e
também começou a beijar-me sem parar.
— E essa sua amiga? Clara... Em qual entorpecente ela era
viciada?
Não sabia o que dizer, mas na dúvida resolvi arriscar e falar a
verdade, não conseguiria mentir para ela.
— Allegra, não posso mentir para você, jamais conseguiria
enganá-la, nem que fosse por um motivo aparentemente bobo... A
Clara é minha ex-namorada, aquela que me traiu.
A Allegra ficou séria me ouvindo, e eu me assustei ao vê-la ali
na frente imponente, ela havia assumido a postura dominante e
quase prepotente de como eu havia a conhecido. Então continuei...
— Ela se diz arrependida, veio pra cá sem minha autorização,
numa tentativa de me reconquistar... Por isso ela estava com aquela
cara e mal-humorada, foi aí que a Shelly resolveu inventar uma
desculpa qualquer para justificar a atitude rude da Clara e me
proteger... Desculpe-me — disse, arrasada.
Ela ficou em silêncio enquanto eu a observava com atenção em
busca de algum sinal do que ela estivesse pensando.
— E você está tendo algum relacionamento com ela?
— Não! Mas...
— Mas? — ela questionou-me com firmeza.
Se eu queria ter algo realmente sério com a Allegra não poderia
mentir e nem esconder algo dela.
— Teve uma noite em que dormimos juntas... Arrependo-me
demais por isso, mas juro para você, isso jamais vai se repetir...
Desculpe!
— Nina, não se desculpe, entendo que você tenha cedido por
uma noite, não posso cobrá-la por isso... Mas você pensa em dar
outra chance a ela?
— Não! Isso não tem nenhuma hipótese! Inclusive contei a ela
sobre o que sinto por você, fui honesta com ela, assim como estou
sendo agora — falei, convicta.
— Bem, então acho que ela vai superar... — falou, dando a
entender que a Clara estava pagando pela traição feita
anteriormente a mim.
Respirei aliviada, estava me sentindo muito melhor, afinal, eu
não tinha mais nada a esconder da Allegra, então insisti:
— Mas você ainda não me disse o que significa a frase de
dedicatória no livro da isquemia.
— Nina, foi uma maneira sutil de dizer-lhe que só dependia de
você “fazer algo” para nos aproximarmos, eu estava a sua frente
dando-lhe inteira liberdade para isso... E de certa forma, mesmo que
inconscientemente você entendeu o recado, nos comunicamos, pois
se hoje estamos aqui, nesta cama, foi porque você fez acontecer...
Somos responsáveis de alguma forma por todos os acontecimentos
em nossas vidas — filosofou Allegra, me fazendo pensar...
— Pode ser... Será? — questionei.
— Tenho certeza!
Então, aproveitando que ela estava ali, por inteira, sem pressa
e totalmente disposta a conversar, além de ficar acariciando-a quase
que o tempo inteiro, quis saber um pouco mais dela.
— Quando você se interessou por tocar piano?
— Minha mãe tocava, ela me ensinou desde pequena, eu
adorava quando tocávamos juntas, sentadas uma ao lado da outra,
me sentia tão bem... Depois quando cresci comecei a fazer aula
particular com um professor francês, muito bom, minha mãe sempre
dizia que eu tocava muito bem, que eu precisava me esforçar
sempre para ser a melhor, isso é o que me faria diferente dos
outros, ela também dizia que adorava me ouvir tocando — disse,
com nostalgia aparente. — Mas depois entrei para a faculdade de
Medicina e abandonei as aulas, não tinha mais tempo para
praticar... Minha mãe faleceu e eu mais uma vez senti muito pela
sua morte. Sou filha única e me vi sozinha e desamparada, sofri
demais, me atirei de cabeça nos estudos para amenizar meu
sofrimento, me dediquei ao máximo, queria ser a melhor sempre,
como ela havia me incentivado, só que eu ainda sentia sua falta,
lembrava muito dela, éramos muito apegadas, me sentia
constantemente triste... Até que um dia eu estava no auditório da
faculdade e vi um piano todo empoeirado num canto, olhei para ele
e deu-me uma vontade louca de tocar, fui até aquele velho piano,
sentei-me e comecei a tocá-lo e inacreditavelmente de modo
imediato comecei a chorar, extravasar... Instantaneamente senti a
presença de minha mãe, me senti bem, leve, eu sabia que ela
estava ali, de alguma forma eu sei que ela estava, ela ainda gostava
de me ouvir, não sei exatamente quanto tempo eu permaneci
tocando naquele piano, mas foi o suficiente para voltar a praticar e
descobrir que minha mãe de alguma forma ainda estava perto de
mim. Sabe, Nina, hoje em dia não tenho muito tempo, mas sempre
que posso eu toco, sinto a presença dela, acredite! Nina, eu me
sinto tão bem tocando, sinto realmente como se ela estivesse me
ouvindo e eu me encontrasse perto dela — concluiu, emocionada.
— Nossa... Que lindo, eu acredito em você, sei que o que está
falando é o que sente.
— Eu sei que você sabe, Nina, tanto que eu disse a você que
deveria aprender a tocar piano, lembra?
— Lembro, sim, mas eu não levo jeito, só me dou bem com as
panelas! Quem sabe um dia!
— Aí, se você resolver “quem sabe um dia” aprender, você toca
pra mim?
— Ah, Allegra... Prefiro ouvir você, tocando pra mim!
— Ah... Pensa bem, Nina, estou pedindo pra você — disse ela,
brincando e fazendo uso do poder que ela sabia que exercia sobre
mim.
— Tá bem... Vou pensar no seu caso... — falei,
desconversando.
— E você? Do que você gosta, Nina? Você sabe que gosto de
piano, em especial do Marc-André, mas não sei seu gosto musical
— questionou-me, interessada.
— Ah... Deixa ver, gosto de piano também, adoro o som da
flauta, mas de cantor... Hum... Tá, vou contar pra você!
— Conte então, de qual cantor você gosta? — perguntou,
superinteressada.
— Na verdade é uma cantora... Adoro Edith Piaf, acho que ela
foi uma cantora fantástica, cantava com a alma, com extremo
sentimento.
— Você tem bom gosto, um gosto sofisticado, Nina. E tem
razão em sua observação, ela mostrava sua alma através de suas
músicas. Edith Piaf foi, e mesmo após sua morte continua sendo,
uma vedete da chanson française! Parabéns pelo seu excelente e
peculiar gosto musical!
— Obrigada — fiquei sem graça.
— Vamos ouvi-la, também adoro! Coloque baixinho seu CD.
— Infelizmente vou ficar devendo para você, não tenho CDs da
Edith aqui, só os da Shelly, mas acho que você não vai gostar muito
de ouvi-los, são de um estilo muito diferente desse que estamos
falando... — disse a ela, tendo certeza de que iria odiar.
Ela entendeu... Ela estava feliz, eu via em seus olhos, estava
calma, estava disposta a abrir seu coração, me olhava com afeto, eu
a via sem amarras, totalmente desarmada, vi uma Allegra que eu
ainda não conhecia até então, doce, “quase” vulnerável... Mas ela
continuou me questionando.
— E o que pretende fazer futuramente, Nina, continuar como
chef, ter seu próprio restaurante, o que você imagina?
— Ah... Eu queria mesmo era ter meu próprio restaurante, fazer
algo aconchegante, sabe? Comprar uma casa e transformá-la em
um lugar romântico, maravilhoso, com uma comidinha saborosa e
caseira, quem sabe até com um pianista tocando ao fundo... Você
iria ao meu restaurante?
— Claro, meu amor, todos os dias... Seus olhos brilham, Nina,
estou muito feliz aqui com você, como há muito tempo eu não me
sentia — disse suspirando.
— Allegra, você me deixa sem palavras, estou amando cada
momento junto de você, queria que durasse pra sempre...
Ela mais uma vez ficou incomodada e disse com certa raiva.
— Juro pra você, Nina, eu queria poder me separar e assumi-la,
mas não posso... — baixou a cabeça. — O que posso lhe oferecer é
estar com você em alguns momentos e também o meu amor, este
sim você conquistou logo de cara, e hoje o tem por inteiro.
Como ela havia novamente falado sobre isso eu resolvi ser
objetiva e arrisquei.
— Allegra, estou muito feliz em ouvir isso, desejei isso com
todas as minhas forças... Eu quero que saiba que não tenho
nenhuma dúvida de que está dizendo a verdade, estou grata pela
sua sinceridade, mas eu gostaria de saber por que você “não pode”,
você é uma mulher tão forte, determinada, tão dona de si, que não a
vejo estando presa à Diana por algo que não fosse algum
sentimento... Se não quiser falar eu vou respeitar, mas eu gostaria
de saber.
Ela ficou pensativa por um instante, respirou fundo e perguntou-
me.
— Você não se importa de falarmos dela?
— Não, se for necessário, não.
— Vou explicar para você entender... Conheci a Diana em
Vancouver, eu estava de passagem rápida por lá, tinha participado
de um congresso e estava voltando com um carro que eu havia
locado no aeroporto. Quando percebi que o nível de combustível
estava baixo, parei num posto de gasolina no caminho do aeroporto
para abastecê-lo, e para minha surpresa a Diana veio me atender,
ela era frentista do posto, casada com o gerente da loja de
conveniência daquele lugar. Foi uma estupidez minha... Hoje tenho
noção, mas me encantei por ela, ela viu o bom carro, notou que eu
tinha dinheiro e acho que ela percebeu que me senti atraída por ela,
pois “me deu corda”... Resumindo, saímos, transamos, acabei
ficando mais dois dias em Vancouver e ela me contou uma história
triste, me convenceu de que eu era tudo que ela sempre sonhou,
que não gostava do marido, que tinha casado por obrigação, porque
sua família era preconceituosa, obrigou-a a tal. Deixei-me envolver,
iludir e quis trazê-la comigo para Toronto, porém para isso ela teria
que separar-se do marido e contar a sua família, e
consequentemente arcar com as duras consequências dessa
atitude. Sua família, muito católica, a repudiou, expulsou-a de casa
e da família, deixando-a literalmente na rua e proibindo-a de um dia
tentar voltar... Então eu prometi, dei minha palavra no sentido de
que ficaria com ela, a assumiria, e nunca deixaria faltar nada a ela,
me sentia responsável e culpada por tê-la feito ser deserdada pela
sua família, prometi a ela que assim que fosse possível oficializaria
a nossa relação, que ela jamais teria que passar qualquer tipo de
dificuldade na vida, que eu faria o possível para suprir sua carência
dando-lhe o que estivesse ao meu alcance.
Eu estava espantada, sabia que aquela mulher não gostava da
Allegra e não tinha nenhum respeito por ela e nem por tudo que ela
estava fazendo para honrar seu compromisso.
— Que situação, querida, estou sem saber o que dizer... E
vocês oficializaram quando a relação de vocês — perguntei, sentida
e indignada com a Diana.
— Íamos oficializar faz tempo, mas foi quando descobri a
traição dela e achei melhor adiar por um tempo.
— Mas mesmo assim você ainda quis continuar a relação e
casar-se com ela, Allegra?
— Nina, eu era apaixonada, depois disso, com o tempo,
comecei a perceber nas pequenas coisas que ela não devia gostar
de mim o quanto dizia, comecei a pensar naquilo que minha mãe
falava quando eu era pequena, que poderia ser interesse
financeiro...
— Então quer dizer que vocês não oficializaram a relação?
— Não ainda... Propus-me a perdoá-la e a perdoei... Entenda,
Nina, eu dei minha palavra, assumi esse risco, não tenho uma
“desculpa” para não fazê-lo, não posso chegar e dizer a ela que
estou apaixonada por você, descartá-la, sabendo que ela “não tem
mais família” por minha causa...
— E vocês vão se casar quando? — perguntei, abalada.
— Vamos oficializar judicialmente, não vamos nos “casar
simbolicamente” como fez sua amiga, era para ter sido hoje, neste
dia 27 de junho, na minha volta da Itália, só que resolvi adiar mais
uma vez, para poder estar aqui com você hoje.
Abracei-a forte e perguntei sem pestanejar.
— Allegra, se você tivesse um motivo realmente forte para
romper com ela, você ainda sim honraria com sua promessa para
com ela?
— Provavelmente, Nina... Não sei, teria de ser algo realmente
muito forte... Por quê?
— Allegra, querida, eu lembro-me bem naquele dia em sua
casa, quando eu perguntei a você sobre se você já havia traído a
Diana alguma vez, você disse que não, que aquela havia sido a
primeira vez, comigo... É verdade?
— Sim, Nina, você foi a única! Não serei hipócrita em dizer que
não me senti atraída algumas vezes por outras mulheres, quase tive
uma relação com uma colega de trabalho, mas isso nunca se
concretizou, sempre fui forte o suficiente para me controlar, sou
totalmente contra traição! Só não consegui ser forte com você... O
que eu e você estamos vivendo é algo que de certa forma
desconheço, algo novo, algo maravilhoso... Só lamento demais por
ser nessas circunstâncias... Mas por que a pergunta?
— Vou lhe contar uma coisa, espero que possa me perdoar
pela intromissão em sua vida particular, mas agora me sinto na
obrigação de confessar-lhe algo.
— O que é, Nina? — perguntou Allegra, bastante intrigada.
— No dia em que fui ao seu consultório pela segunda vez,
depois da reconsulta, à noite, saí até um café, juntamente com a
Shelly e a Olívia, estávamos conversando, e em determinado
momento a Olívia saiu, a Shelly e eu ficamos a sós na mesa, e
então a Shelly mostrou-me um casal apaixonado numa mesinha
quase ao nosso lado, ela quis mostrar-me que aquela mulher fazia o
tipo dela, que a achava atraente... Isso passou, e esquecemos
aquele episódio. No sábado, quando chegamos a sua casa para o
coquetel do seu aniversário, nos deparamos com a Diana, que tinha
ido até a cozinha para avisar a dona Emma que sairia durante a
tarde, eu sinceramente não dei bola, mas a Shelly, que é muito
detalhista, ficou assustada ao constatar...
— Nina, continue!
— Era ela... A Diana estava com aquele homem no café, estava
aos beijos!
A Allegra ficou pensativa, vi que sofreu com aquilo, mas
continuou me olhando e pediu para continuar.
— O que mais? Continue!
— Eu ainda estava na dúvida se era mesmo ela, mas à noite,
durante o coquetel, quando eu a vi junto com o mesmo homem eu
tive certeza...
— E quem é esse homem?
— A Shelly perguntou discretamente a dona Emma quem era
ele, e segundo ela é seu advogado.
Ela ficou furiosa, estava nitidamente sentindo-se traída,
apunhalada.
— Allegra, escute, eu não queria falar nada, mas não acho justo
omitir esse fato, sendo conivente com ela, eu amo você, por mais
que eu a quisesse poupar desse sofrimento eu estaria sendo
cúmplice da Diana se não te alertasse.
— Nina, minha querida, obrigada, mas agora tenho que pensar
no que fazer...
— Eu não queria estragar nossa noite, mas não podia ser
egoísta a esse ponto.
— Não se preocupe, nada irá estragar nossa noite, prometo a
você, não pense que estou chateada por ela, mas pela situação de
“traição” à qual fui submetida. Agora terei que dar um jeito de
separar-me dela e demitir o Bob — disse, já imaginando como faria.
— Allegra, tem mais uma coisa.
Peguei o DVD — com as fotos e provas da traição — e
envergonhada expliquei as circunstâncias em que resolvemos fazer
aquilo.
— Ponha-o no computador agora, Nina, quero ver! — disse-me,
mostrando seu autoritarismo.
Levantei-me, fui até o guarda-roupa, coloquei meu hobby
branco — ofereci a ela o meu outro hobby rosa, mas com a cabeça
ela disse que não queria —, sentei-me em frente ao computador, ao
pé da cama. Ela sentou-se ao meu lado para ver a prova da
infidelidade. Mostrei foto a foto e percebi que ela estava irada,
realmente furiosa, quase não a reconheci, embora permanecesse
quieta... Quando mostrei as fotos do almoço do advogado com
Diana, ela pediu que eu parasse e aproximasse a imagem.
— O que foi, Allegra?
— Quero ver que papéis são estes, é óbvio que eles estão
tramando algo, preciso ver se consigo identificar.
Aproximei ao máximo — antes de distorcer a imagem —, ela
olhou atenta e disse.
— São os papéis do “casamento”, o Bob havia me mostrado.
— Mas o que eles fariam com isso? Se ele mostrou a você é
porque não tem nada obscuro! — concluí.
— Nina, nesses papéis “que eu iria assinar” está especificado,
está explícito que a Diana teria direito a metade de tudo que tenho.
Arregalei os olhos e deixei escapar:
— Uau.
— Nina, o que é aquele envelope na mão da Diana? — disse
ela, aproximando-se da tela do computador.
— Não sei... Não tenho a menor ideia! O que você acha que é?
Ela aproximou ainda mais seus olhos do monitor e tentou
ampliar a foto ainda mais.
— Nina, eu acho... Não tenho certeza, mas eu acho que aquele
envelope é o envelope vermelho da carta que você me deu de
aniversário! — disse pensativa.
— O quê?! Mas como?
Ela ficou pensando, levantou-se — sem nenhuma vergonha por
estar nua — e andou de um lado para o outro, eu me preocupei
também.
— Nina, desde quando você está recebendo aquelas ligações
anônimas?
— Hum, acho que há mais ou menos um mês... Por quê?
— Naquela carta tinha seu telefone, tinha uma “declaração” sua
e no verso, além da receita do docinho, havia alguns dizeres seus
dando a entender que havia acontecido algo entre nós, lembra?
— Como eu iria esquecer?! Mas como ela teria acesso à carta
se estava trancada em sua gaveta?
— Eu tirei a carta da gaveta mais ou menos uma semana
depois do coquetel, tirei para tentar fazer a receita do docinho de
chocolate, lembra que contei que ficou horrível e que não consegui
comer?
— Sim, mas ela viu a carta?
— Não que eu saiba ou que eu tenha percebido, mas eu tive de
atender algumas ligações e deixei a cozinha por algumas vezes... E
ela estava em casa naquele dia. Que descuido meu! Lembro que
quando a guardei novamente não encontrei a chave da gaveta, mas
não me preocupei, pois a Diana nunca entrava no meu escritório, e
no outro dia a chave estava lá, em cima da mesa, lembro que
pensei como eu poderia não tê-la visto no dia anterior... Se foi ela
quem pegou e viu a carta, ela fez cópia da chave e depois a colocou
de volta!
— Será? — perguntei assustada, mas acreditando naquela
possibilidade, pois a Allegra passava confiança naquela teoria e,
além disso, conhecia bem a Diana.
— Nina, você recebeu essas ligações alternadas, com espaço
de tempo entre elas, não é?
— Sim!
— Lembra em quais dias foram?
— Hum, agora você me pegou... Não lembro, e como já faz
tempo que começaram não está mais registrado no celular, a não
serem as de hoje... Ah! E também no dia em que você estava
fazendo o transplante do filho do ator, às 3 horas da manhã!
— Provavelmente era ela, ligando quando eu não estava em
casa, quando estava em alguma viagem, para ver se eu estava com
você!
— Mas Allegra, hoje quando ligaram pra mim lá no restaurante,
você estava no telefone com ela, como poderia ser ela?
— Seu telefone tocou duas vezes! Uma antes da ligação da
Diana e outra durante, certamente o Bob devia estar com ela em
todas as vezes, então eles poderiam ligar tanto pra mim quanto pra
você ao mesmo tempo... E me lembro que no dia da cirurgia do
pequeno Alan havia uma chamada da Diana no meu celular, feita de
madrugada, mas como eu não pude atender só vi pela manhã após
a cirurgia, recordo que depois perguntei a ela o que queria no meio
da madrugada e ela disse apenas que “estava com saudades”... Ela
me ligou algumas vezes durante algumas viagens minhas, para
dizer “nada”, isso não fazia seu estilo, lembro que achei estranho...
O que a Allegra dizia fazia sentido, ela tinha um raciocínio
rápido e lógico, e aquilo me preocupou.
— Isso significa que ela sabe de nós?
— Creio que sim!
— E agora?
— Agora, neste momento, não temos o que fazer, vamos
aproveitar a nossa noite juntas e amanhã quando eu chegar em
casa vou guardar a carta em um lugar seguro, embora ela já deva
ter cópia, mas...
— Mas será que não está com ela? — disse, referindo-me à
carta original.
— Não creio, ela não quer que eu saiba que ela “desconfia”,
não iria sumir com a carta, certamente aproveitou o dia em que
viajei, mostrou ao Bob e depois deve ter guardado-a novamente.
— E o que você vai fazer em relação a isso? — perguntei,
apontando para as provas da infidelidade de Diana.
— Terei de ter calma para ver o que posso fazer para
resguardar-me e não expor você. Nina, não posso deixar que
percebam que sei, terei que dar uma desculpa para adiar
novamente a assinatura do documento matrimonial, deixar eles
pensarem que está tudo bem, enquanto isso, irei consultar outro
advogado, para orientar-me de como devo proceder e depois me
separar, sem mais nenhuma culpa!
— E você vai conseguir manter-se “fria”, sem ela perceber?
— Terei que fazer o possível pra isso... Mas sabe o que quero
mesmo?
— O quê?
Ela sentou-se — ainda nua — do meu lado, tirou a sua aliança
“enorme” do dedo, colocou-a ao lado do computador, segurou minha
mão e disse olhando nos meus olhos.
— Quero aproveitar que agora estou de fato livre e perguntar
para você se você aceita ser minha namorada.
Fiquei em êxtase, nunca eu havia vivido um dia tão
emocionante, tão fantástico, com tantas coisas boas acontecendo
em toda a minha vida! Ela finalmente tinha tirado aquela aliança de
“300 quilates” que tanto me incomodava... Então respirei fundo e
cheia de alegria respondi:
— É lógico que sim! Para sempre!
Nos beijamos apaixonadamente... Então, ainda entorpecidas
por tudo aquilo eu disse:
— Você me faz a mulher mais feliz deste mundo, Allegra! —
falei, olhando em seus olhos.
Ela olhou-me com carinho, passou sua mão em minha face e
suspirou aliviada.
— Você foi o melhor presente que ganhei em toda minha vida,
Nina, minha querida.
Eu a olhava admirando cada centímetro seu, sua pele era tão
bonita, suas costas malhadas, seus braços tão definidos, ela era
perfeita!
— Allegra, você tem um corpo tão lindo... É tão alta, me atrai
muito, sabia?
— Você também me atrai muito, adoro seus cabelos escuros,
sua pele clara, esses olhos verdes que me fazem ver através de
você...
— Mas eu sou tão baixinha... — disse, com certa complexidade.
— Você não é nada baixinha, Nina, quando usa salto deve ficar
com quase 1,70cm, e eu adoro você assim!
— É... Pode ser... É que do seu lado eu fico tão pequena... Que
altura você tem?
— Eu tenho 1,76cm, não é tanta diferença assim.
— E com salto fica com mais de 1,80cm... — disse, rindo
devido aos saltos altíssimos que ela sempre usava.
— O que você tem contra mulheres altas? — continuou,
insinuando-se.
— Nada... Nadinha mesmo!
E mais uma vez cedemos aos nossos desejos mais
íntimos, sem nenhum pudor, sem nenhum preconceito, ela me
levava à loucura com facilidade extrema, da mesma forma que eu a
fazia delirar de prazer... O tempo ao seu lado parecia correr, já era
muito tarde, resolvemos dormir, depois de estarmos exaustas e
saciadas, desligamos a luz do pequeno abajur e ela me abraçou
falando baixinho:
— Mia piccola stella. Lascia che il mio amore riscaldi il tuo
cuore. In questa dolce notte ti do la buonanotte.
Ela me encantava, pensei em perguntar pra ela o que ela havia
dito, mas perguntar por quê? Senti em sua maneira de falar que
eram palavras doces, cheias de carinho e isso me bastava, então
somente respondi a ela com todo amor que eu poderia ter.
— Durma bem, meu amor, essa é a noite mais especial de toda
minha vida... Amo você...
Ela me abraçou carinhosamente e adormecemos abraçadas,
embora o meu sono tivesse sido muito leve, pois acordava com
facilidade, não conseguia acreditar que ela estava do meu lado,
ficava observando-a dormir, linda, serena, parecia um anjo...
Como há muito tempo não acontecia, acordei naquela manhã
nublada de domingo com um beijo em meu rosto, assustei-me e
levei alguns segundos para dar-me conta de que a minha Allegra
havia passado a noite toda ao meu lado e que me despertava com
seu beijo suave... Não sei como, mas não a vi levantar antes de
mim, pois ela já estava de banho tomado, usando aquele perfume
extraordinário — impregnando todo quarto —, vestia uma calça
social preta e uma blusa justa da mesma cor, mais uma vez
surpreendi-me com a perfeição de seus traços.
— Bom dia, meu amor, dormiu bem?
— Bom dia... Que horas são? — respondi, ainda zonza.
— São exatamente 9h30 — disse ela, olhando em seu relógio.
— Nossa! Vou tomar um banho, depois podemos tomar café, o
que acha? — disse, passando as mãos em meu rosto e ajeitando os
cabelos.
— Claro, vou comprar um jornal para ler as notícias, tenho esse
hábito, tem algum lugar aqui perto onde eu possa comprá-lo?
— Eu o recebo todos os dias, a Shelly já deve ter pegado, não
é necessário sair para comprar. Você costuma acordar cedo
sempre?
— Costumo acordar sempre cedo, durmo pouco, inclusive em
finais de semana... Vou pedir para a Shelly o jornal e lê-lo enquanto
você toma seu banho, querida — disse com um tom amável.
— Tudo bem, fique à vontade, não repare na casa, já estou
indo lá na sala — disse a ela, tentando agradar de todas as formas.
Eu tinha receio do que a Clara pudesse dizer a ela na minha
ausência, mas a Allegra já sabia de tudo e a Shelly estava lá
também, isso me tranquilizou, mas antes que ela pudesse sair eu
disse:
— Allegra?
— Sim, querida?
— Você tirou a aliança... Não vai mais colocá-la?
— Não! Foi a primeira vez que a tirei, nem quando a Diana me
traiu aquela vez eu havia tirado, ficamos separadas por uma
semana e mesmo assim eu continuei com ela, agora que a tirei não
a coloco mais — falou, categórica.
— Mas se você não quer que ela perceba, como vai aparecer
sem a aliança?
— Nina, provavelmente ela nem perceberá, caso perceba darei
a ela alguma desculpa, não se preocupe, meu compromisso é com
você daqui por diante!
Achei aquelas palavras mágicas, não me aguentava de tanta
felicidade, a única coisa que me preocupava era a Clara “à solta” no
mesmo apartamento que nós.
— Allegra, mais uma coisa... — chamei-a novamente.
— Sim, Nina?
— Não dê bola para o mau humor da Clara, tá?
— Não se preocupe... Até entendo se ela estiver mal-
humorada, afinal ela deve ter noção da burrada que fez te
magoando.
Então o seu celular tocou, ela foi saindo do quarto e dando
algumas orientações para outros médicos, referentes aos seus
pacientes internados em Toronto, e eu fui tomar banho.
Entrei sob a ducha de água escaldante e peguei-me rindo
sozinha, estava tão radiante que mal podia acreditar em tudo que
estava acontecendo, era tão sensacional! Vesti-me rapidamente
com uma calça jeans, uma blusa branca de mangas compridas e
perfumei-me para logo estar perto da Allegra, não queria perder um
só minuto, aquele tempo era precioso demais para se desperdiçar.
Ao sair do quarto e adentrar na pequena sala vi uma cena um
tanto “estranha”, cômica se não fosse quase trágica. Minha Allegra,
linda, de pernas cruzadas, com toda sua classe, sentada no sofá de
dois lugares lendo o Gazzete — que repousava em seu colo — e
com uma xícara de chá em uma das mãos, parecia despreocupada
com a presença da Clara, que ocupava o lugar ao seu lado,
nitidamente incomodada e segurando-se para não falar nada. A
situação quase se agravou quando a Allegra calmamente e com
certa “ânsia” em alfinetar a Clara disse:
— Querida, você está linda, sente aqui comigo, já estou com
saudades — falou aquilo olhando para o braço do sofá, orientando-
me a sentar ali.
Sentei-me um tanto sem graça ao seu lado — ela me abraçou
com a sua outra mão que estava desocupada —, percebi que a
Clara me olhava com mágoa e a Shelly lá da cozinha se divertia
com a situação.
— O que está lendo, Allegra? — perguntei, tentando relaxar.
— Estou apenas olhando as notícias e quero ver também o
caderno de economia, algumas cotações, tenho alguns
investimentos, sempre acompanho os índices.
Nisso a Shelly saiu da cozinha juntando-se a nós, já agitando.
— Nina, um chazinho até fiz pra “dra. Cavazza”, mas pelo amor
de Deus ofereça algo melhor a ela, afinal ela deve estar com fome
depois da noite intensa que eu “ouvi” que vocês tiveram.
A Shelly era legal, mas ela me matava de vergonha! A Allegra
riu com o comentário e a Clara ligou a tevê e cruzou os braços.
Então falei de forma carinhosa e abraçando a Allegra:
— O que você gostaria que eu fizesse especialmente pra você,
meu amor?
— Já tenho tudo que quero aqui ao meu lado, mas vou abusar
de você hoje, depois do “cansaço que você deu aqui na sua coroa”,
tenho sim um pedido especial — ela disse rindo, olhando para
Shelly, que começou a rir descontroladamente.
— O que é? — perguntei, morta de vergonha.
— Quero comer aquele docinho de chocolate, pois a minha
primeira e última tentativa em fazê-lo foi desastrosa!
— Você quer antes ou depois do almoço?
— Antes e depois — disse, deixando claro que havia realmente
gostado muito do brigadeiro.
Dei um beijo em sua testa e levantei-me em direção à cozinha
para fazer o melhor brigadeiro de toda minha vida, enquanto isso eu
ouvia a Shelly e a Allegra conversarem, sem ouvir nenhum ruído
vindo da Clara. Eu estava envolvida entre minhas panelas e já
temperando um peixe para fazer no almoço, quando escuto a Shelly
perguntar para Allegra.
— O que tem escrito nessas pulseiras?
— É uma frase em latim, estas pulseiras simbolizam o início de
nosso namoro. Breve a Nina irá morar comigo em Toronto e se
tornar oficialmente a “Sra. Cavazza”! — ela respondeu sorrindo e
olhando para a cozinha, pois sabia que eu tinha ouvido.
Eu estava explodindo de alegria, olhei para ela através da porta
da cozinha com um olhar apaixonado e sorri, dando a entender que
era tudo que eu mais queria. Mas o clima romântico foi quebrado
com a explosão da Clara.
— Vocês, por favor, me respeitem? Já não chega ter que
passar a noite toda ouvindo a “farra” de vocês, agora tenho que ficar
testemunhando essa melação toda! Quanta idiotice, vocês ficaram
mais de um mês sem nem se falarem por telefone e agora ficam
fazendo esse teatrinho de “Romeu e Julieta” aqui na minha frente,
poupem-me!
A Shelly imediatamente a interrompeu.
— Garota, você que fique quieta! Antes que eu perca as
estribeiras com você.
Eu coloquei as mãos na cabeça não acreditando na cena que
estava se fazendo na sala, e antes que eu pudesse ir até a sala a
Allegra disse, com toda calma.
— Clara, seja leve em suas palavras, “idiotice” é não cuidar da
saúde, não faz bem para o seu coração se descontrolar desse jeito
— disse ela ironizando por ser cardiologista. — Quanto ao que você
ouviu, que denomina como “farra”, digo que você “testemunhou”
duas mulheres apaixonadas se amando, e quanto ao “teatrinho” a
que você fez analogia, sinto informar-lhe que nossa relação não se
baseia em apenas telefonemas, é muito além disso, é de alma,
coisa que você ainda terá que evoluir muito para compreender, pois
para mim “teatrinho” é estar namorando com alguém enquanto a trai
com outra, coisa que você sabe bem!
Nessa hora eu interrompi e chamei a Clara até a cozinha.
— Clara, por favor, venha aqui, estou pedindo a você!
Ela levantou-se contrariada e com nítido ódio da Allegra veio
até mim, enquanto a Allegra continuava lendo seu jornal.
— Clara! O que é isso? Você quer me matar de vergonha?
Você prometeu!
— Nina? Você está brincando comigo? Você trouxe essa
mulher aqui só para me afrontar, para me punir!
— Não é nada disso, e eu não vou ficar dando explicações a
você agora! Você prometeu que iria se comportar, honre com sua
palavra.
— Mas ela — apontou para Allegra — disse que vocês irão
morar juntas!
— E daí? E se for? O que tem de mais nisso? Nós somos
namoradas!
— Ela não é casada? Ou você aceitará dividi-la com outra
pessoa?
— Ai, Clara, você está me tirando do sério! — disse com raiva
enquanto ainda tentava falar baixo para Allegra não ouvir. — Ela
está se separando!
A Clara arregalou os olhos e encheu-os de lágrimas, baixou a
cabeça e disse:
— E eu?
— Não sei, Clara, sinceramente não sei, já gostei de você,
sempre fui honesta com você, igualmente estou sendo agora ao
dizer que amo a Allegra, e ela é tudo que mais quero na vida.
— Nina, eu farei tudo, qualquer coisa para tê-la de volta!
— Clara, faça o que quiser desde que se comporte, estou lhe
pedindo, converse com ela pelo menos com educação, ela não foi
mal-educada com você nem por um momento, faça isso por mim?
— apelei a ela.
— Tá bem... Farei isso por você!
A Clara saiu e foi até a sala, e para minha surpresa ela se
dirigiu a Allegra, dizendo:
— Dra. Allegra, me desculpe por ter me descontrolado, não quis
ser rude. Não é segredo para ninguém que amo a Nina, mas se ela
está feliz com você, eu também ficarei feliz, só espero que você
possa amá-la e fazê-la feliz como ela merece.
A Allegra, sentada, apenas levantou seus olhos e a ouviu
atentamente, enquanto eu e a Shelly ficamos espantadas com as
palavras da Clara.
— Clara, é nobre seu sentimento, e o respeito, já tive sua idade
e sei que somos suscetíveis a explosões de raiva por falta de
maturidade, mas fique tranquila, cuidarei da Nina, respeitarei a Nina
e a amarei com todo meu coração — disse Allegra.
Eu me emocionei e não me contive, fui até a sala e a beijei. A
Clara baixou a cabeça e saiu, entrou no meu quarto e foi até o
banheiro para tomar banho, enquanto a Shelly batia palmas
dizendo:
— É isso aí! Mandou bem!
Nós acabamos rindo da atitude da Shelly, o clima da casa
melhorou bastante! Então a Shelly continuou a questioná-la.
— Mas Allegra, eu quero saber o que você faz para estar com
tudo “em cima” desse jeito?
Ela achou graça e respondeu fazendo analogia novamente à
mensagem de texto da Shelly.
— Para você chegar a minha idade com tudo “em cima” e ser
uma “coroa” inteira, deve se exercitar e controlar a alimentação, eu
não sou extremamente radical, como de tudo, mas controlo a
alimentação, além disso jogo tênis, faço academia e yoga.
Elas continuaram conversando, e durante a manhã, depois do
pequeno “incidente”, tudo correu bem, tranquilamente. A Allegra
adorou o brigadeiro, almoçamos todas juntas na sala sem nenhum
problema, o peixe assado e a salada de camarões que preparei
fizeram sucesso e eu me senti “no céu” por estar vivenciando aquele
momento, tão simples, mas tão intenso. A Shelly recolheu a louça
enquanto a Clara lavava os pratos, eu me sentei no sofá ao lado da
Allegra e trocávamos carinho enquanto assistíamos à CNN, só
éramos interrompidas pelas inúmeras ligações que ela recebia, de
pacientes, colegas e consultas para procedimentos vindas de
hospitais. Estava tudo perfeito, parecia que a Allegra estava em paz,
curtindo aquela calmaria daquele domingo atípico em meu mundo.
— Nina, o tempo lá fora está tão ruim, nublado, chovendo... E
esse friozinho é tão convidativo, não acha que poderíamos
aproveitar para ficarmos juntinhas e fazer amor? Daqui a pouco terei
que ir embora e não sei quando poderei vir novamente pra cá... —
disse cochichando em meu ouvido.
— Excelente ideia, vamos para o quarto, quero estar perto de
você a cada segundo — disse, levantando-me e a segurando pela
mão.
No quarto, ela começou a beijar-me, eu a beijava loucamente,
apaixonadamente, mas meu peito estava apertado, sentia uma
vontade de chorar quase incontrolável, então a abracei-a apertado e
não contive as lágrimas.
— Nina, o que foi? — perguntou-me ela surpresa.
— Não sei... Não queria que fosse embora, quando vou vê-la
de novo?
Com toda calma ela segurou meu rosto entre suas mãos e
disse com suavidade olhando em meus olhos.
— Meu amor, breve! Eu não desaparecerei, conversaremos
todos os dias, vou ligar para você e você vai ligar para mim, nos
corresponderemos por e-mail, eu prometo a você! Confie em mim!
— Eu confio, não pense que estou pressionando você, mas a
incerteza de uma data, a expectativa, me consome!
— Eu darei um jeito de vir pelo menos uma vez ao mês, espero
logo resolver a situação com a Diana, para então você ir morar
comigo, estou sinceramente apaixonada por você, Nina!
— Meu amor, é o que mais desejo! Não quero seu dinheiro, não
quero luxo, não quero nenhum centavo, não quero nenhum
“documento” oficializando judicialmente nosso relacionamento,
quero apenas o seu amor, seu coração, e quero te amar o resto de
minha vida... — disse, chorando.
— Isso você já tem... — disse ela me acalmando. — Sabe o
que quero fazer da próxima vez que eu vier aqui ver você?
— O quê?
— Quero que você me leve lá na “Igrejinha Express” e aceite
casar-se comigo!
— O quê?! Sério? — indaguei surpresa e incrédula, mas já com
um sorriso nos lábios.
— Claro que é sério, só não irei se você não quiser!
— Querida, como eu amo você! — declarei-me.
Abraçamo-nos forte e nos beijamos, aí sim dando início ao ritual
de amor e prazer que se estendeu até as 16h30, quando
infelizmente ela levantou-se dentre os lençóis que repousavam
sobre nossos corpos nus e se pôs a arrumar sua mala. Eu estava
com um vazio no peito, mas estava feliz por tê-la ali comigo, por
aqueles momentos maravilhosos e inesquecíveis, sabia que tudo
que ela havia me dito era verdade, vi em seus olhos a sinceridade
de cada palavra dita por ela. Finalmente soube que eu seria dela e
ficaríamos juntas, que aquela situação era provisória, que breve
tudo se acomodaria em seus devidos lugares...
Ela já estava pronta quando me levantei e vesti minhas roupas,
coloquei um casaco mais quente e disse a ela...
— Vou com você ao aeroporto.
— Não é necessário, Nina, está chovendo, está frio, não é
preciso.
— Como que não? Quero estar do lado de minha namorada! —
disse usufruindo meu novo “cargo”.
— Tá bem, mas já está escurecendo, como você vai voltar
depois? — disse, preocupada comigo.
— De táxi!
— Então peça para a Shelly vir com você — mais uma vez
mostrando preocupação em me deixar sozinha, aquilo me comovia,
aquele cuidado extremo.
— Se isso a fará ficar mais tranquila, eu peço, sim.
Ela abriu a sua carteira — chiquérrima —, tirou uma nota de
CAN$ 100 e estendeu a mão me oferecendo aquele dinheiro.
— Pra que é isso, Allegra?
— É pro seu táxi.
— Guarde isso antes que eu fique brava com você — falei num
tom de brincadeira, mas dando a entender que era para ela guardar.
— Eu disse pra você que não quero seu dinheiro.
— Tudo bem... — ela guardou e se aproximou beijando-me já
em despedida. — Não tire a pulseira, Nina, não vou tirar a minha.
— Prometo que não vou tirar — falei dando um beijo na
pulseira, ela repetiu o gesto e depois rimos muito daquela situação
quase “cafona”.
Ela me beijou, e então fomos até a sala, com uma mão eu
levava a mala dela e com a outra segurava a sua mão. Convidamos
a Shelly e a Clara para ir ao aeroporto fazer-me companhia, a Shelly
aceitou na mesma hora, já a Clara a contragosto acabou
concordando.
Entramos as quatro no Bentley que estava estacionado em
frente ao meu apartamento e fomos para o aeroporto, eram 17h mas
parecia muito mais tarde devido ao mau tempo.
Ao chegarmos, a primeira coisa que fizemos foi devolver o carro
à locadora, depois, enquanto a Shelly e a Clara olhavam algumas
lojas eu aproveitava meus últimos minutos com a Allegra.
— Querida, fica com Deus, tenha uma boa viagem! Vou
acompanhar a cerimônia em que você receberá oficialmente o cargo
da Anac pela TV, e vou, mais uma vez, me encher de orgulho! Você
merece, pois além de ser extraordinariamente competente tem um
coração maravilhoso, e agradeço por me deixar fazer parte de sua
vida... E não quero mais falar porque senão vou chorar — falei, já
enxugando algumas lágrimas.
Ela me abraçou e permaneceu assim sem dizer nada por
alguns segundos, e então me disse:
— Obrigada por me proporcionar momentos tão bons, adorei
cada segundo ao seu lado, não vejo a hora de voltar para encontrá-
la novamente, e lembra que esse seu coraçãozinho — apontou para
meu peito —, esse sim vale ouro!

Mais uma vez nos abraçamos e com um beijo no rosto ela


entrou na sala de embarque, esperei um pouco ali, fiquei olhando
ela desaparecer em meio à multidão... Então fui ao encontro da
Shelly e da Clara. Eu estava visivelmente abalada por ela estar
voltando para Toronto, ela teria de enfrentar uma situação
complicada com a Diana e o advogado, eu lamentava não poder
estar ao seu lado naquela hora, mas o que podia ter feito eu fiz e
isso me deixava tranquila...

Eu não via a hora de chegar em casa e contar à Shelly tudo que


eu tinha vivido desde o dia anterior, suas declarações, nossos
planos e até sobre a reação dela ao ver o DVD com as fotos da
Diana. Ao mesmo tempo em que eu já estava louca de saudades
por ela estar voltando a Toronto, eu também estava eufórica por
saber que a veria novamente e que breve teríamos uma vida
juntas... Era mágico, perfeito...

Pensamos em ficar ali esperando o avião decolar, mas estava


frio e eu não conseguiria vê-la mais, então resolvemos pegar um
táxi e voltar para casa, durante o caminho eu fiquei quieta, olhando
para minha pulseira — que mais parecia um lindo bracelete — e
lembrando o quão precioso era esse presente para mim, não tinha
ideia de quanto havia custado, mas nem todo o dinheiro do mundo
pagaria o significado daquela pulseira em minha vida...
Capítulo 13

O táxi parou bem em frente ao meu apartamento, pagamos o


valor da corrida e descemos, o táxi saiu rapidamente. Enquanto
caminhávamos — nos protegendo dos chuviscos — para subir os
degraus que davam acesso à porta de entrada do prédio, ouvi
alguém nos chamar — não ouvi exatamente o que disseram —, nós
três nos viramos e antes que eu pudesse ver quem era ouvi dois
disparos, não entendi de imediato o que era aquele barulho, mas
senti queimar meu peito e uma força quase comparada a uma forte
pancada me lançar contra o chão, não compreendi o que estava
acontecendo até que a Clara começou a gritar por socorro e a
Shelly deitou sobre mim dizendo totalmente transtornada.
— Nina! Você está bem, você está bem?
Quando eu tentei falar, para responder à Shelly, senti em minha
boca um gosto de sangue e dei-me por conta de que eu havia sido
atingida por tiros, coloquei a mão no meu peito e senti meu casaco
encharcado de sangue, não senti dor, somente uma forte ardência
que me queimava, eu ainda me sentia bem, mas então comecei a
ficar tonta e senti-me muito fraca... Ouvia o desespero da Clara e da
Shelly gritando... Eu tentava falar para elas se acalmarem, mas era
inútil, a minha voz não saía...
— Clara, liga para a emergência, rápido! — dizia Shelly.
— Estou ligando — dizia Clara chorando e segurando o seu
celular.
— Nina, aguenta firme, não fecha os olhos... Por favor, seja
forte, você vai ficar bem! — dizia Shelly, muito abalada e tremendo.
Eu estava ouvindo suas vozes cada vez mais distantes e tudo
estava ficando escuro... Eu fiquei com medo, não podia acreditar
que aquilo estava acontecendo comigo, senti medo de morrer,
sentia minha vida se esvaindo a cada segundo, comecei a confundir
a realidade com o imaginário, ouvia a voz da Allegra me chamando,
ouvia sua risada, tudo com eco, mas eu tinha noção de que ela não
estava ali, era estranho, amedrontador...
— Conseguiu, Clara??
— Sim, eles já estão vindo! Meu Deus! Eles não podem
demorar! — dizia a Clara, desesperada.
A Clara se debruçou sobre mim e chorava dizendo:
— Nina, fica Nina, abre os olhos! — ela chorava. — Shelly, o
que vamos fazer?
— Não sei! Vou ligar para Allegra, ela saberá o que fazer... Meu
Deus!
— Mas a emergência já está vindo, a Allegra está dentro do
avião!
— Se tivermos sorte, quem sabe a Allegra ainda não tenha
embarcado, o voo pode ter atrasado por causa do tempo... Sei lá,
tenho que avisá-la, ela não irá me perdoar se eu não ligar! Fica aqui
com a Nina, fica falando com ela, que eu vou telefonar.
Senti a Shelly mexer em meu casaco procurando o meu celular
— que tinha o número da Allegra —, ela o achou e rapidamente
ligou.
— Está chamando, Clara!! Graças a Deus! Por favor, atenda!
Atenda!
Eu tinha noção da gravidade e que os minutos estavam
correndo, mas para mim estava tudo em câmara lenta, eu sentia
sono, muito sono...
— Alô? Allegra? Graças a Deus! É a Shelly! Aconteceu uma
coisa horrível, a Nina foi baleada aqui em frente de casa, ela está
desmaiada, está perdendo muito sangue, está esvaziando! Tem
uma poça enorme embaixo dela, por favor, me diga o que fazer! Ela
não pode morrer!
Eu ouvia a Shelly falar, eu não tinha a noção de que eu estava
desmaiada como ela dizia, eu escutava, mas meus olhos estavam
pesados demais para conseguir mantê-los abertos...
A Shelly estava muito assustada, mas ouvia com atenção as
orientações dadas pela Allegra e dizia:
— Tá, tá... Vou fazer... Pode deixar... Tá bem!
Ela desligou o telefone e debruçou-se sobre mim, juntando-se à
Clara, que chorava muito.
— O que ela disse, Shelly? — perguntou transtornada.
— Clara, a Allegra disse para pressionar o ferimento com
cuidado para diminuir a perda de sangue, coloca sua mão aqui —
senti uma pequena pressão no peito —, é para manter a cabeça da
Nina de lado, para ela não se afogar com o sangue, ela está vindo
pra cá e disse que se a ambulância chegar antes dela é para
dizermos para levar a Nina direto para o Montreal Heart Institute,
que então ela irá para lá!
As vozes começaram a desaparecer, ficando cada vez mais
fracas.
— Shelly, ela está respirando?
— Não sei... Acho que...
Depois dessa hora eu não me lembro de mais nada, tudo ficou
escuro...
Acordei, não tenho ideia quanto tempo depois, com várias
pessoas em volta de mim, eu estava sem roupas, com agulhas e
tubos ligados em mim, era tudo muito confuso, alguns diziam para
me levar para cirurgia, outros falavam que precisavam fazer alguns
exames antes de qualquer coisa e outros gritavam pedindo sangue
para transfusão... Lembro-me vagamente de ouvir a voz da Shelly
explicando para alguém que eu não tinha seguro de saúde, mas
para, por favor, fazerem de tudo para me salvar... Eu estava toda
suja de sangue e com medo, tinha muita gente na minha volta,
muitas luzes sobre mim... Me sentia absolutamente só, vulnerável,
começava a sentir dor, junto com uma dificuldade imensa de
respirar... Era assustador... Então escuto a voz firme da Allegra
chegando à emergência e assumindo o controle da situação.
— Daqui em diante eu assumo! — disse Allegra chegando
rapidamente ao meu lado e examinando meu ferimento com
cuidado. — Por favor, providenciem imediatamente a sala de
cirurgia, quero levá-la agora mesmo para o centro cirúrgico! Chame
a equipe titular de cirurgia cardíaca para me auxiliar! — disse para
enfermeira que estava ali e que prontamente saiu para providenciar.
Eu vi que todos a ouviram, ela estava comandando aquela
multidão de pessoas em minha volta. Porém um dos médicos, que
estava até então tomando as decisões iniciais, disse a Allegra:
— Desculpe, dra. Cavazza, mas essa paciente não tem seguro
médico, a situação dela parece muito complicada e receio que a
equipe titular não aceitará auxiliar nessa cirurgia, é melhor
chamarmos a equipe da residência.
— Não irá aceitar me auxiliar por quê? Por causa dos altos
custos dessa cirurgia? Por causa de seus honorários? É isso que
está insinuando... “Dr. Charles”? — disse olhando para seu crachá
e procurando o nome daquele médico residente, totalmente
indignada.
— Provavelmente, doutora!
— Coloque imediatamente no prontuário da “minha” paciente
que ela fará todos os procedimentos particulares, não precisará de
seguro, eu estou arcando com todas as suas despesas! E você, “dr.
Charles”, receio que se continuar com esse pensamento mesquinho
acabará tendo uma carreira medíocre! Agora, por favor, me deixe
trabalhar!
Ele saiu contrariado, e senti a sua mão segurar a minha
enquanto debruçou-se para falar perto do meu rosto... Ouvi sua voz
baixa, falando com suavidade e com clareza.
— Querida, eu estou aqui, vou cuidar de você, Nina, não se
preocupe, tudo vai ficar bem. Agora vou lhe dar uma medicação e
você vai dormir, aí vou operá-la para você ficar boa logo, e então
podermos “casar na igrejinha”... Quero que seja forte...
Eu ouvi as suas palavras, senti em sua voz que nitidamente ela
estava abalada, pude sentir a sua mão, que segurava a minha,
tremendo, e lembrei que ela disse que não poderia tremer... Percebi
que a minha situação era muito mais crítica do que ela tentava me
fazer acreditar... Eu tive a intenção de tentar dizer-lhe algo, mas a
tontura que senti em virtude da medicação entrando em minhas
veias me levou a mergulhar na escuridão e no sono profundo... Daí
em diante eu não me lembro de nada, remotamente ouvia algumas
vozes e não compreendia o que diziam e nem de onde vinham...
Capítulo 14

Só recobrei a consciência lentamente dois dias depois, eu


sentia e ouvia tudo em minha volta, mas as pessoas não sabiam
disso, achavam que eu estava em coma, e na verdade era isso
mesmo! Mas estava consciente, porém não conseguia mexer um
músculo sequer, não conseguia abrir os olhos, era uma sensação de
prisão dentro de meu próprio corpo, eu tinha a consciência de que
estava na Unidade de Tratamento Intensivo, ouvia o apitar dos
monitores, aquele cheiro característico e as pessoas falando
baixinho... Sentia um tubo que entrava em minha garganta se
estendendo até meu peito fazendo-me respirar, meu tórax repuxava,
acho que era devido às suturas, às vezes eu sentia frio, muito frio,
mas não tinha como reclamar...
Finalmente eu começava a reconhecer as vozes,
principalmente quando ouvi a Clara nitidamente chorando ao meu
lado.
— Nina, desculpa... Eu não queria ter traído você, nem feito
você sofrer, me perdoa, por favor!
Pensei naquela hora que se ela estava me pedindo perdão “no
meu leito” é porque eu devia estar prestes a morrer, isso era típico!
Tive vontade de chorar, mas não saíam lágrimas de mim... Não ouvi
mais Clara, tive a impressão de que ela tivesse saído, mas logo
escutei a voz da Shelly, dando-me por conta de que talvez fosse
horário de visitas.
— Nina, não vou te perdoar se você morrer! Só conheci a Olívia
por tua causa! Você é forte, reaja! Se você conseguiu passar por
aquela cirurgia de mais de 5 horas, se você conseguiu driblar duas
paradas cardíacas, você vai abrir os olhos e sair dessa! — mas
depois disso eu ouvi que a Shelly começou a chorar e permaneceu
segurando minha mão por alguns minutos.
Pensei... Nossa! Como eu havia tido duas paradas cardíacas?
E a Allegra, tinha me operado por cinco horas! Era tudo muito
estranho, uma sensação inédita, mas desesperadora.
A Shelly saiu e eu fiquei atenta, esperando para “ver” se alguém
mais viria me visitar... Depois de algum tempo, que não sei precisar
quanto, senti apenas um toque em minha mão e o perfume da
Allegra, era ela que estava ao meu lado, eu não a via, estava tudo
escuro, mas eu a sentia... Ela não disse uma só palavra, apenas
segurava apertada a minha mão e passava sua outra mão em
minha testa. Mas era ela... Como era bom senti-la, sua presença
mesmo que nessas circunstâncias fazia-me tão bem, me
confortava...
Eu queria dizer a ela que eu estava bem, me sentia bem se não
fosse por estar imóvel, mas era inútil meu esforço, eu estava
paralisada... Então ouvi a Shelly novamente e presumi que ela havia
voltado à UTI.
— Allegra, desculpe atrapalhá-la, sei que você disse querer
ficar a sós com a Nina, mas eu precisava falar com você, preciso
saber como a Nina está. Estou aflita! — perguntou com a voz baixa
para não atrapalhar os demais pacientes.
Então a Allegra soltou minha mão e se afastou de mim, acho
que com a intenção de falar sobre meu estado sem estar ao meu
lado, mas ainda assim eu conseguia ouvi-las, bem baixo, mas
perfeitamente compreensível.
— Shelly, querida, clinicamente ela está correndo riscos sérios,
eu fiz o que podia, esgotei todas as possibilidades possíveis e
impossíveis, agora é com ela, só o tempo dirá... Se ela acordar,
ainda assim não saberemos se terá alguma sequela em virtude das
paradas cardíacas, estou sendo franca com você e não estou lhe
escondendo nada, se ela não melhorar nas próximas 72 horas
provavelmente será irreversível.
Ali eu vi que a minha situação era séria, mas como eu podia
estar pensando, raciocinando e me sentindo “razoavelmente” bem?
Como meu corpo não reagia? Por quê?
— Mas Allegra, tem que existir algo que possamos fazer, ela já
está desse jeito há dois dias!
— Shelly, acredite em mim, clinicamente ela está tendo todo
suporte, eu pessoalmente estou aqui 24 horas cuidando dela e
observando cada mudança em seu quadro, nesse momento
estamos à mercê do tempo, sinceramente, eu esperava alguma
melhora no quadro dela dentro dessas 48 horas que se passaram —
a Allegra falava com a Shelly baixinho, enquanto eu ouvia sem
poder fazer nada.
— Ela pode nos ouvir?
— Não sei... Acho que não, ela está em coma, mas eu não sei
dizer... Se sentir vontade, fale com ela!
— Eu já falei antes e vou continuar falando, pois se existir uma
hipótese de ela me ouvir ela saberá que estou furiosa com ela por
ela estar “aprontando” conosco!
— Fale sim, tudo é válido, Shelly.
Sentia no tom das palavras da Allegra que ela estava arrasada,
se mantinha firme, mas eu já a conhecia e sabia que ela estava
derrubada.
— Allegra, descobriram alguma coisa de quem era aquele
motoqueiro que fez isso com a Nina?
— Ainda não, Shelly, acho difícil que se descubra... Você, a
Nina e a Clara foram as únicas testemunhas, e como vocês não o
identificaram, a polícia está totalmente sem pistas, mas isso não me
importa agora, o que eu quero é ficar com a Nina...
— Vou deixá-la com ela, vou esperar lá fora, me avise sobre
qualquer mudança!
— Pode deixar, vá descansar, Shelly.
Havia sido um motoqueiro que atirara em mim, mas porque ele
havia feito isso comigo, eu me perguntava, ele estava fazendo a
Allegra sofrer, minhas amigas sofrerem, e eu estava presa dentro de
mim mesma sem poder dizer nada! Era frustrante!
Então senti a Allegra se aproximando novamente e me
abraçando, encostou seu rosto no meu e deu-me um beijo na face,
eu a ouvi chorando, ela estava chorando baixinho, abraçada em
mim, ela soluçava, eu nunca a havia “visto” chorar, ela era tão forte,
mas estava entregue, eu sentia suas lágrimas molhando meu
rosto... Eu sabia que precisava me esforçar, eu precisava abrir os
olhos, ela precisava saber que eu ainda estava ali... Fiz muita força,
mais do que eu supunha ter para tentar abrir meus olhos, mas não
adiantava... Parecia inútil! Então ouvi a Allegra entre lágrimas falar
no meu ouvido — seguindo o conselho da Shelly.
— Meu amor, não me deixe! Preciso tanto de você comigo, não
quero perder outra pessoa que tanto amo, não é justo, por favor, fica
comigo!
Aquilo me arrebentou, naquela hora me desesperei, eu estava
fazendo ela sofrer, eu queria falar com ela... Forcei o que pude para
mexer algum músculo, mas não adiantava, eu estava presa, o
desespero tomou conta de mim, e ouvi-la chorando, ouvi-la dizer
aquelas palavras junto com a sensação de impotência me fez
chegar ao grau extremo de aflição, insuportável, mas ainda piorou
quando senti a Allegra levantar sua cabeça, passar a mão devagar
em meu rosto e dizer ainda baixinho...
— Querida, estou colocando a sua pulseira de volta no seu
pulso, tive que tirá-la, mas a deixei comigo o tempo inteiro, e agora
a estou colocando no lugar de onde ela nunca deveria ter saído —
senti-a pegar meu pulso e colocar a pulseira, ainda chorando muito.
Eu estava gritando por dentro, desesperada, angustiada, aflita!
Pedia, implorava a Deus que me “desse forças”, precisava me
comunicar com ela, precisava acalmar seu sofrimento, então
naquele momento de fúria, de cólera, uma lágrima escorreu
lentamente de meus olhos, me fazendo vibrar por dentro, eu a senti
escorrer! Precisava agora que a Allegra a visse para saber que eu
estava ali! Fiquei esperando algum sinal, mas estava tudo em
silêncio, ela havia se calado... Mas antes que o desespero e a
sensação de impotência tomassem conta de mim novamente, senti
sua mão passar com delicadeza em meu rosto, enxugando a minha
lágrima.
— Nina? Você está me ouvindo, meu amor? Ou eu que estou
imaginando coisas? Por favor, esteja me ouvindo! — disse Allegra,
abalada.
Mas para alívio meu e dela as lágrimas começaram a escorrer
descontroladamente de meus olhos, deixando claro para a Allegra
que eu ainda estava ali com ela. Ela abraçou-me e chorou sobre
mim compulsivamente...
— Nina, meu amor, estou aqui com você, tenha força, Nina, só
depende de você agora, se esforce, por favor, não quero perdê-la,
quero passar o resto de minha vida ao seu lado!
Eu senti uma súbita alegria, senti renovar-me, ela sabia que eu
não a abandonaria jamais, foi ela quem fez com que eu conseguisse
derramar aquelas lágrimas, foi o amor dela, foi o meu amor por ela,
nós estávamos em sintonia, e eu tinha que fazer o que ela estava
me pedindo, eu precisava fazer força, precisava me mexer.
— Nina, mais uma vez seus olhos falaram por você! Agora que
sei que está me ouvindo quero que preste atenção — ela falava com
cuidado em meu ouvido, ainda se recompondo de seu choro —, eu
vou diminuir os sedativos para que fique mais fácil para você tentar
recobrar os movimentos, isso poderá fazê-la sentir algum
desconforto, alguma dor, mas tente suportar, se você não aguentar
e seus sinais caírem serei obrigada a aumentá-los novamente,
podendo induzir ao coma, mas sei que está comigo e que vai se
esforçar.
Tive a noção de que ela faria algo arriscado, mas eu confiava
piamente nela e não podia decepcioná-la, teria que tirar toda e
qualquer força que estivesse dentro de mim para que tudo desse
certo. Então eu a ouvi novamente recobrando sua voz firme,
chamando a enfermeira que estava responsável pelo controle das
minhas medicações.
— Srta. Kelly, por favor, suspenda imediatamente o uso de
Midazolan, mantenha a via heparinizada e a bomba de infusão com
Morfina em espera, reduza pela metade o Fentanil e mantenha
todas as outras medicações. Faça isso imediatamente e vamos ficar
atentas aos sinais vitais, avise-me se ocorrer qualquer oscilação em
sua pressão arterial, batimentos cardíacos e respiração.
— Sim, doutora.
Eu fiquei feliz com a sua atitude, porém fiquei um pouco
assustada em saber que aquilo poderia fazer-me clinicamente
piorar. Então ouvi a voz de um médico contestando-a.
— Dra. Cavazza, ouvi bem essa alteração no protocolo dessa
paciente?
— Está se referindo à diminuição dos sedativos, dr. Charles?
— Exato!
— Ouviu sim.
— Com todo o respeito, dra. Cavazza, mas é sabido por
qualquer estudante de medicina que numa cirurgia de grande porte
como essa os sedativos só devem ser diminuídos com a
estabilização total dos sinais vitais e com uma melhora evidente na
qualidade respiratória do paciente.
— Dr. Charles, posso lhe fazer uma pergunta?
— Sim.
— Está formado há quanto tempo?
— Dois anos, e estou no primeiro ano de residência cardíaca.
— Pois bem, você é jovem, cheio de personalidade, vejo que
sabe muito bem a teoria farmacológica e médica, porém vou lhe dar
um conselho, que provavelmente possa ser o melhor conselho que
ouvirá em toda a sua vida, algo que aprendi nesses meus 16 anos
de experiência médica! Você tem que avaliar um paciente
individualmente, e não como o exemplo exposto em um livro de
medicina, você tem de saber discernir, tomar certas atitudes em
momentos certos, mesmo que estas “pareçam” arriscadas, isso é o
que fará de você um médico diferenciado. Aprenda a ter coragem de
quebrar paradigmas e ousar, mesmo sabendo que com isso você
estará pisando em uma área não tão confortável, e sujeito a críticas,
assim como eu estou sujeita nesse exato momento.
— Sim, doutora, desculpe a minha intromissão, fico honrado em
ter tido a oportunidade de aprender algo com você e acompanhar
esse caso de perto — falou, referindo-se a mim.
Ele saiu, e a Allegra, antes de ir conversar com a Shelly e a
Clara e contar-lhes que eu estava “ouvindo”, mais uma vez disse ao
meu ouvido.
— Minha querida, vou sair agora, volto daqui a alguns minutos,
por favor, lembre-se do que eu lhe disse, seja forte, lute, pois quero
ficar com você por muitos anos ainda!
Ela deu-me um beijo carinhoso na testa, tapou-me
cuidadosamente com um lençol e saiu, fiquei ali, sozinha, sentindo
ainda seu perfume no ar e esperando para enfrentar “a dor” que
talvez eu sentisse. No início senti-me como antes, imóvel, sem dor e
aquecida, mas depois de algum tempo, pela primeira vez até então,
o meu peito começou a doer muito, cada vez que meus pulmões
enchiam devido à introdução de oxigênio pelo respirador, meu peito
parecia ser esfaqueado, era uma dor dilacerante, eu sabia que tinha
que aguentar, mas era penoso cada vez que eu respirava, não
imaginava por quanto tempo aguentaria.
— Dra. Cavazza! — chamou a enfermeira. — A senhora pode
vir aqui olhar essa paciente?
— Sim, um momento — disse Allegra, um pouco distante de
onde eu estava.
Eu me preocupei, mas só em saber que a Allegra logo viria, me
tranquilizava.
— Sim, Kelly? — disse ela chegando ao lado de meu leito.
— Acho que essa paciente está suando muito e seu ritmo
cardíaco está acelerado.
— Veja a temperatura dela, por favor, Kelly!
A enfermeira levantou meu braço e colocou o termômetro em
minha axila, enquanto a Allegra continuava avaliando meus sinais
vitais...
— Há quanto tempo ela está com taquicardia e a pressão
arterial elevada, Kelly?
— Há pouco, doutora, uns 10 minutos no máximo, como não
cedeu eu achei melhor avisá-la.
Eu me preocupei, percebi que eu estava me esforçando para
aguentar, mas meu corpo estava me boicotando.
— E qual a temperatura dela, Kelly?
— 37,2°.
— Kelly, faça-me um favor, vá buscar uma Dipirona, vamos
aplicá-la, antes que a temperatura se eleve ainda mais — disse
Allegra, mantendo-se calma.
— Sim, senhora.
A enfermeira saiu e Allegra segurou minha mão e se aproximou
de mim.
— Nina, você está com dor, eu sei, estes sintomas deixam
claro, eu não posso e não conseguiria deixá-la sofrendo, sei que
está se esforçando, mas vou dar-lhe mais sedativos, não quero que
sinta nenhum desconforto.
Eu não queria sedativos, eu queria acordar! Sabia que ela
estava fazendo aquilo para o meu bem, que ninguém melhor que ela
faria tudo para meu bem-estar, mas lembrava-me do que ela havia
me dito antes, caso voltasse com os sedativos. Eu quis avisá-la que
eu aguentaria, fiz força, mas doía demais, doía muito, então ela me
abraçou e falou.
— Amo você...
Ela nunca havia dito isso tão explicitamente, aquelas palavras
fizeram-me passar por toda dor, que pensei quase não suportar, e
num esforço absurdo, sobre-humano eu apertei fortemente sua
mão, que estava segurando a minha... Dentro de mim mais uma vez
eu comemorei, ela havia sentido.
— Nina? Você apertou minha mão? Tente fazer novamente! Por
favor, tente!
Eu esforcei-me, concentrei toda minha força em mover meus
dedos, e o fiz! Apertei sua mão!
— Querida, você está saindo do coma, não posso impedir que
acorde, não vou dar-lhe mais sedativos, me perdoe por não
minimizar sua dor, meu amor, tente aguentar, vou prescrever alguns
analgésicos, para melhor um pouco seu desconforto, mas isso não
vai interferir para que possa se recuperar.
Eu fiquei aliviada, sabia que agora era questão de tempo e que
eu acordaria. Ela ficou quase todo tempo do meu lado, conversava
comigo e me deixava tranquila, amparada, só saía dali quando eu
recebia visitas, a Clara só chorava e a Shelly me xingava o tempo
todo, eu não via a hora de acordar e xingá-la bastante!
No decorrer daquele dia eu alternava alguns momentos de sono
e de lucidez, quando eu estava lúcida eu “treinava” a mexer meus
dedos, depois meus pés e até minhas pernas... Eu progredia a cada
momento, quando finalmente, depois de três dias de total escuridão,
consegui com muita dificuldade abrir meus olhos por alguns breves
instantes e deixar as luzes fortes inundarem minha visão, quase me
cegando, no início era muito difícil mantê-los abertos, mas depois fui
me acostumando e finalmente consegui segurar minhas pálpebras
abertas por mais de 5 segundos, a minha visão estava turva, mas
suficientemente boa para ver a Allegra ao longe — vestida de
branco, com seu jaleco —, escrevendo em um prontuário, mesmo
naquele estado consegui admirá-la, vislumbrar sua beleza, queria
chamá-la, para vê-la de perto, acalmar minha saudade e mostrar
para ela que finalmente eu estava acordada, enxergando
novamente... Acompanhei-a com os olhos por alguns momentos na
ânsia de que ela me olhasse, quando finalmente olhou-me e veio
até mim com aquele sorriso que me fazia renascer literalmente
daquela escuridão.
— Querida, você abriu os olhos! Que notícia maravilhosa, meu
amor! Como é bom olhar para eles novamente!
Ela beijou meu rosto e seus olhos encheram-se de lágrimas,
deixando a emoção transparecer, eu também deixei lágrimas
escorrerem pelo meu rosto, ela olhava para mim sorrindo e
acariciando meu rosto, eu só conseguia olhá-la e chorar, não podia
falar, pois estava com aquele tubo na minha boca. Ela permaneceu
ali por mais de cinco minutos, acariciando-me, olhando-me
emocionada e sorrindo.
— Nina, é tão bom tê-la de volta, fica calma, tranquila, agora
está tudo bem e tudo se encaminhando, se sua respiração continuar
melhorando e você conseguir respirar sozinha, até a noite vou tirar
isso de você, tá? — apontou para o tubo em minha boca.
Eu apertei meus olhos com força para ela entender que eu
estava concordando.
— Vou chamar suas amigas que estão ali fora há três dias sem
descansar. Nada de muito esforço, mocinha! — ela disse brincando
e nitidamente aliviada.
Enquanto saiu para buscar a Shelly e a Clara, eu tive a noção
do meu estado, olhei em minha volta, havia muitos fios e tubos
ligados em mim, eram monitores, bombas de infusão, cateteres, me
impressionaram!
Vi as três vindo rapidamente em minha direção — a Clara um
pouco mais baixa que a Shelly e a Allegra, que eram mais altas —,
aquela imagem me fez vibrar, elas caminhavam com passos
apressados e sorriso nos lábios.
— Nina, sua danada! Qual é a sua de dar esse susto na gente?
— disse a Shelly entre risos e lágrimas.
A Clara debruçou-se sobre mim e chorava muito, parecia uma
criança desesperada, fiquei com dó dela, enquanto a Allegra
observava — de pé ao meu lado — a reação de ambas, e vi que ela
também sentiu pena da Clara.
— Nina, que bom que acordou, eu te amo muito, não
conseguiria viver sem você! — Clara ficou aliviada.
A Allegra ouviu aquelas palavras e num gesto nobre se
aproximou, colocou sua mão nos ombros da Clara e disse:
— Vou deixá-las a sós, conversando. Qualquer coisa me
chame.
Disse isso, claro, na tentativa de não constrangê-la nem permitir
que se sentisse humilhada pela sua presença, mas a Clara virou-se
para Allegra com os olhos ainda inchados e, demonstrando gratidão,
disse, relevando seu orgulho e um pouco constrangida:
— Obrigada, Allegra, obrigada por ter se doado tanto, obrigada
por tudo que fez pela Nina.
A Allegra passou sua mão nas costas da Clara e disse,
acalmando-a.
— Eu não tenho dúvidas de que você teria feito o mesmo,
Clara.
A Allegra virou-se e saiu depois de olhar para mim e sorrir com
ternura.
Eu estava feliz, emocionada e contente pelo fato de a Allegra
ter permitido que elas entrassem ali juntas, fora do horário de visitas
e por aquela cena anunciando “paz” entre as duas. A Allegra ficou
nos observando de longe, em uma bancada junto aos demais
médicos.
Naquele mesmo dia, à noite, a Allegra retirou o tubo de minha
boca como havia prometido. No início senti dificuldade em respirar,
senti dor pelo esforço que eu tinha que fazer, mas ela ficava do meu
lado dando-me apoio e incentivando-me... Consegui depois de muito
esforço e com a voz rouca e baixa dizer a Allegra:
— Obrigada, meu amor...
— Nina, não fale nada, não se esforce mais do que está se
esforçando para respirar, não quero que me agradeça, quero que
seja forte para ir logo pra casa, amanhã vou transferir você para um
quarto, mas para isso você terá que ficar bem, tá? Até amanhã
quero tirar a maioria dessas medicações e “fios” de você!
Eu fiz um sinal de positivo com a cabeça para não me esforçar
muito. E mais uma vez cumprindo sua promessa, no dia seguinte fui
para o quarto e continuei a me recuperar bem. Comecei aos poucos
a falar sem dificuldade, comer uma dieta leve e parecer-me com
uma pessoa normal, vi a complexidade da cirurgia quando pude
visualizar o tamanho da enorme cicatriz vertical em meu peito e do
dreno que ainda estava introduzido no meu peito, mas não doía, era
apenas um pouco incômodo. Eu estava num quarto particular, com
todas as “mordomias” que ele proporcionava: Televisão, frigobar,
climatizador de ar e uma cama para um acompanhante ao lado da
minha. Bem diferente do que teria sido se a Allegra não tivesse se
responsabilizado por tudo aquilo.
Naquela noite acordei assustada, tive um sonho ruim e perdi o
sono, vi que a Allegra dormia na cama ao lado, resolvi chamá-la.
— Allegra, querida, está dormindo?
— Nina? — disse ela abrindo seus olhos. — Você está sentindo
algo?
— Não, é que perdi o sono, tive um sonho ruim, me assustei!
Ela levantou-se, sentou na minha cama e começou a me
acalmar.
— O que você sonhou, meu amor?
— Sonhei que você tinha levado um tiro no meu lugar, que a
Shelly tinha me chamado para salvar você, mas eu não sabia operá-
la! Foi horrível!
— Nina, isso foi um sonho, só isso — disse, achando certa
graça do meu pavor.
— Eu sei... Você está com sono? — perguntei.
— Não, meu amor, não estou, ficarei aqui com você quanto
quiser — disse, sorrindo e entendendo que eu queria ficar
conversando.
— Oba! Me conte, o que aconteceu exatamente comigo!
— É o que você já sabe, Nina, um motoqueiro atirou em você,
acertou seu peito, uma bala saiu e outra ficou alojada, você perdeu
muito sangue, pois uma artéria foi parcialmente rompida, quase a
perdi por duas vezes na mesa de cirurgia, alguns médicos quiseram
desistir, mas eu não deixei, jamais me perdoaria. Nina, foi uma das
cirurgias mais difíceis de toda minha carreira, não pelos óbvios
obstáculos médicos, mas porque se tratava de uma pessoa que eu
amava, Nina, eu tive que ser forte para não tremer, meu amor, mas
deu tudo certo, reparamos os danos e consegui retirar a bala que
estava alojada!
Ela estava mostrando suas fraquezas, contando-me seu drama,
e isso me fazia amá-la ainda mais.
— Allegra, quero te agradecer de todo meu coração por ter
salvado minha vida, eu ficarei eternamente em dívida com você!
— Nina, o que é isso?! Não me agradeça, eu não fiz nada
sozinha, na verdade foi você que me deu a maior recompensa que
eu poderia almejar.
— Eu? O quê?
— Lembra que optei em ser cardiologista porque não
conseguiram salvar meu pai? Eu queria ter a chance de poder
salvar vidas.
— Sim, mas você já salvou inúmeras vidas!
— Sim, e isso é gratificante, mas desta vez eu salvei alguém
que eu amava tanto quanto ele, você, e isso fez valer todo meu
esforço e minha escolha, tenho certeza, depois disso, de que cumpri
minha missão, fiz valer meu esforço tendo você aqui, hoje, viva!
— Allegra...
— Não diga nada, não deve se emocionar, você está em
observação e sua médica não irá gostar de saber que sua
acompanhante fica fazendo você chorar! — disse ela divertindo-se,
para também não chorar.
— Tá bem... Vou me controlar... E a Diana? Você não voltou
ainda para Toronto, desde o domingo do incidente?
— Eu não podia deixá-la, Nina, a Diana sabe que sou médica e
que imprevistos acontecem.
— Mas e sua promoção da Anac? Perdeu seu cargo por minha
causa?
— Eles souberam que tive uma emergência, não perdi o cargo,
perdi apenas a cerimônia — disse, tranquilizando-me.
— E seus outros pacientes? Você ficou o tempo todo aqui
comigo!
— Nina, eu tenho vários pacientes em vários locais, nunca
conseguirei estar em todos estes lugares ao mesmo tempo, por isso
tenho uma equipe médica que trabalha comigo, nos comunicamos
por telefone e conseguimos administrar bem.
— Entendi... — fiquei pensativa. — Allegra, a Shelly me contou
uma coisa... Ela disse que não era para eu falar pra você, mas eu
preciso perguntar... — falei, sem graça.
— Pode perguntar querida, o que ela lhe disse?
— Ela disse que todo esse tratamento que tive e todas as
“mordomias” que estou tendo são porque você está pagando, está
sendo tudo particular... É verdade?
— Sim, Nina.
— Como vou pagar você? Ela disse que dará uma verdadeira
fortuna!
— Eu não quero que me pague... A minha recompensa é ver
você melhorando a cada dia, o que eu queria de você eu já tenho, é
seu amor, seu jeitinho meigo, seu olhar tão leal... Dinheiro, Nina? É
efêmero, transitório, isso fica... A terra e a ganância consomem!
Agora, o amor, o sentimento verdadeiro, esses ficam com a gente...
Portanto não se fala mais nisso, capisci?
— Mas...
— Capisci?
— Tá bem... Quantos litros de sangue a gente tem? —
perguntei, mudando de assunto.
Ela não se conteve e riu, respondendo-me após parar de rir.
— A mulher tem em torno de 5 litros e o homem 6 litros, varia
de acordo com a estatura e peso, mas é em torno disso.
— A Shelly disse que eu estava esvaziando, como vocês me
“encheram” de novo?
— A Shelly é exagerada, Nina, sei que não a conheço tanto
quanto você, mas pelo pouco que a conheço já sei que é bastante
demasiada e também sei que ela é uma amiga como poucas, ela é
uma pessoa especial!
— Eu sei, adoro a Shelly!
— Mas respondendo a sua pergunta, você teve que fazer
transfusão, Nina, perdeu muito sangue.
— Tive? Mas e esse sangue que colocaram dentro de mim? É
sadio? — falei, fazendo careta, com um pouco de nojo.
— Eu doei para você, seu sangue é raro, lembra?
— Você?! — me espantei!
— Sim, juntamente com outros dois doadores.
O sangue dela estava dentro de minhas veias, aquilo era muito
estranho, ao mesmo tempo era romântico, quase poético,
resumindo, era um sentimento louco!
— Allegra, não sei como agradecer, já falei isso antes, mas
serei eternamente grata a você.
— Nina, não fiz nada além do que alguém faz por quem se
ama, tenho certeza de que você faria isso por mim, não faria?
— Lógico, sem nenhuma dúvida! — fui enfática.
— A Shelly e a Clara foram fundamentais também, se elas não
te amassem e fizessem tudo que estava ao alcance delas, eu
provavelmente nem teria a chance de operá-la. Elas foram ótimas
com você.
— Eu agradeci a elas esta manhã. Tenho consciência disso...
— refleti. — E quantos litros de sangue tem um bebê? — eu puxava
assunto porque estava sem sono.
— Que curiosa, você! Um bebê tem em torno de uma xícara de
sangue. Mas agora chega de perguntas, eu quero que descanse,
pois amanhã vou tirar esse dreno de você e se continuar
progredindo até o final da semana mandarei a senhorita para casa.
— Mas Allegra...
— Agora não é Allegra, é dra. Allegra, são ordens médicas! —
falou, tentando disfarçar um sorriso.
— Hum... Isso me deu uma ideia! Aquele jaleco, aquele “esteto”
sobre seus ombros... — insinuei uma fantasia erótica.
— Mas que barbaridade, mocinha, já está assim, é? Está se
recuperando bem depressa!
— Estou...
— Quando você estiver em casa e bem recuperada, irei realizar
sua fantasia, prometo! Mas para isso quero que durma, para se
recuperar logo.
— Sim, doutora.
Ela beijou-me apaixonadamente. Sentir seus lábios ajudava a
saciar um pouco a saudade daqueles momentos... Ela voltou para
sua cama ao meu lado, eu não me contive e ainda tentei
argumentar.
— Allegra...
— O que foi, Nina?
— Deita aqui comigo, você cabe nesta cama, ficaremos
apertadinhas, mas dá — falei cheia de “intenções”, mas com certo
receio.
Ela só me olhou, e eu entendi pelo seu olhar que tinha que
tentar dormir e nem cogitar dessa possibilidade...
Às vezes eu esquecia quem era ela, esquecia que era a dra.
Allegra Cavazza e que todos provavelmente já desconfiavam
daquele cuidado excessivo comigo, e eu sabia que ela não gostava
de comentar sua vida particular... Fiquei acordada mais um tempo,
feliz e agradecida por estar viva... E com ela.
No outro dia, ela retirou meu dreno, disse que não iria doer
muito, mas confesso que senti muita dor. Foi rápido, ela teve
cuidado para não se prolongar no procedimento, que não foi nada
agradável. Por incrível que pareça e por mais que eu estivesse
naquela situação, eu adorava vê-la exercendo sua profissão, nem
conseguia acreditar que estava namorando com ela!
À tarde recebi a visita do Marcel e da dona Julieta, me
emocionei ao vê-la entrando no quarto com um ramalhete de rosas,
ela lembrava minha avó... A Olívia também esteve comigo, fazendo-
me rir e me sentir bem. Ela conheceu a Allegra pessoalmente e
mais uma vez me parabenizou pela “escolha”... Como ela não
poderia ficar muito tempo afastada de sua loja em Toronto, ficou
apenas um dia, mas o suficiente para alegrar a todas nós.
Soube que seu Jordi, Marcel e Gerard foram me visitar ainda na
UTI no primeiro dia. Eu não lembrava, mas sabia que estiveram lá,
mostrando consideração por mim, me senti querida por todas
aquelas pessoas, era gratificante.
Depois de quase dez dias internada, finalmente a Allegra me
deu alta e me levou para casa, disse que eu precisava ficar em
repouso e não fazer esforço por pelo menos 15 dias.
A Polícia me interrogou para saber se eu lembrava de algo
novo, e quem sabe fornecesse alguma pista sobre o motoqueiro,
mas eu não sabia nada a mais do que eles. Dias depois soube que
a Polícia havia desistido de procurar pelo motoqueiro por falta de
provas e tinham arquivado o caso, devido à insuficiência de pistas
para continuar. Isso me deixou chateada, com medo de que ele
voltasse para me matar, mas a Polícia me acalmou dizendo que o
que havia acontecido comigo fora um incidente, que não havia com
que me preocupar, mas mesmo assim eu ainda estava com medo,
não estava convencida. Até que a Allegra também me acalmou
dizendo para ficar descansada, que nada aconteceria, só aí que
fiquei tranquila, eu acreditava nela, mas o principal e o mais
importante é que eu estava bem...
A Allegra voltou para Toronto e para sua vida agitada, eu sentia
muito a sua falta, mas era diferente agora, pois tínhamos um
compromisso. Ela ligava-me todos os dias, ficávamos horas no
telefone — quase igual à Shelly e à Olívia —, disse que estava
mantendo-se indiferente a Diana e ainda não havia falado nada
sobre suas provas da traição, só contara tudo a um outro advogado,
o Dr. James, que estava analisando toda documentação e
procurando uma saída definitiva para encerrar para sempre o
relacionamento delas.
Ela disse-me também que seu livro estava pronto e que em
breve seria publicado. Ela me enchia de recomendações e de
cuidados, mas eu estava me recuperando rápido, e cobrava dela
que viesse logo para Montreal. Eu brincava com ela que eu queria
que ela cumprisse a sua promessa de realizar minha fantasia, nós
nos divertíamos muito, eu sentia saudades dela, mas cada vez que
eu olhava para aquela pulseira me enchia de felicidade e isso me
acalmava por completo.
A Clara estava tranquila e cuidava-me com dedicação. Aos
poucos eu comecei a levar uma vida quase normal, ainda não podia
trabalhar, mas sentia-me ótima, só me lembrava do incidente ao ver
a cicatriz que ocupava grande parte do meu tórax, mas ela
desapareceria aos poucos...
Capítulo 15

— Bom dia, Nina! — disse Shelly ao entrar no quarto com uma


bandeja nas mãos e com duas xícaras de leite com chocolate sobre
ela.
— Bom dia! Nossa! Assim vou ficar muito mal-acostumada!
— Enquanto ainda estou aqui, não me importo de fazer esses
“mimos” para você, porém depois que eu for morar com a Olívia, ou
a Clara ou a Allegra que terão que dar continuidade a esses
pequenos agradinhos.
— Tá bem... — eu disse, rindo e já pegando uma xícara e
assoprando para esfriar o leite achocolatado que deixava no ar um
cheiro maravilhoso.
— Mas e aí, Nina? Você voltará a trabalhar na semana que
vem, e eu irei para Toronto assim que concluir meu curso, como
você e a Allegra vão ficar?
— Vamos ficar como? — eu disse, sem entender sua pergunta.
— Vão namorar a distância, por telefone, ou você irá para
Toronto também?
— Não sei, Shelly, ontem a Allegra me disse ao telefone que
hoje ela falaria com a Diana e demitiria o Bob. Dr. James, o novo
advogado dela deixou tudo pronto para que ela conseguisse
resolver toda a situação hoje. Estou um pouco ansiosa em relação a
isso, mas vou esperar ela me ligar pra me contar como foi tudo...
Acho que não será nada fácil! Aí sim, depois disso que vamos
conversar sobre o nosso namoro, ela tinha me dito que queria que
eu fosse pra lá, lembra? Mas tudo vai depender do dia de hoje!
— Uau! É hoje que a cobra volta pro ninho! Queria ser uma
“mosquinha” pra ver a cara da “vaca loira”! Você acha que a Allegra
pode voltar atrás?
— Não, Shelly, sem chances, a Allegra está decidida e quer
tanto quanto eu acabar com isso logo.
— Mas a Allegra teve que manter as aparências até então, para
a Diana não perceber?
— Sim, até ela ter toda orientação do advogado.
— E será que enquanto isso elas ainda estavam transando?
— Ai, Shelly, que desagradável... Não sei nem quero saber, a
Allegra não disse nada e eu também não perguntei. Mas eu espero
que não...
— Ah! A Olívia pediu para perguntar para você e para a sua
namorada a data e a hora certinha do nascimento de vocês, ela
quer fazer o mapa astral de vocês duas.
— Sobre mim eu sei, mas da Allegra vou ter que perguntar para
ela, quando ela me ligar eu pergunto, tá?
— Tá bem! Nina, olha o que trouxe pra você! — ela levantou-se
e pegou de dentro do guarda-roupa um pacotinho de presente.
— O que é?
— Abra!
Abri com cuidado para não rasgar o papel e ao abri-lo vi o lindo
presente que a Shelly estava me dando, um porta-retratos com a
foto que ela havia tirado no dia do concerto, eu e a Allegra, juntas,
abraçadas... Ela estava linda...
— Shelly! Adorei! Obrigada!
— Que bom que gostou! Vocês estão lindas nessa foto!
— Também achei! Formamos um casal lindo, não acha? —
falei, sendo nada modesta.
— Sem dúvida, é só olhar para vocês duas! Mas... Nina,
mudando de assunto... E a Clara? Como fica nessa história toda?
— Pois é, Shelly, eu não sei... Ela foi ótima comigo, sou grata a
ela, mas tudo está se encaminhando para que eu vá para Toronto,
não vou levá-la junto.
— Acho que você tem que falar com ela. Ela está triste, vejo
que está de um lado para o outro, sem rumo...
Nessa hora vejo a Clara entrando na porta do quarto e
dizendo...
— Não pude deixar de ouvi-las... Se quiser falar comigo, Nina,
podemos conversar agora...
A Shelly levantou-se e ao passar ao lado da Clara disse:
— Fiquem à vontade, vou esperar na sala, qualquer coisa,
chamem — disse, retirando-se do quarto e nos deixando a sós.
— Senta aqui, Clara — disse a ela pedindo que sentasse ao
meu lado.
— Fala, Nina, o que você quer conversar?
— Clara, quero primeiro dizer que sou muito grata a você e a
tudo que fez por mim, não tenho palavras para mensurar o quanto
você foi fantástica comigo.
— Nina, você sabe que tudo que fiz foi por amor a você, mas
não quero que faça rodeios, quero que vá direto ao ponto, por favor.
— Tá bem... Estou preocupada com você, Clara, vejo que está
sofrendo e quero saber o que pretende fazer daqui por diante.
— Não sei... Eu me propus a ficar com você para sempre, a
dedicar minha vida e meu amor a você, mas já não sei de mais
nada...
— Eu fico até sem jeito ao ouvir isso, mas nunca escondi de
você que amava a Allegra, estou realmente disposta a apostar
minha vida nesse relacionamento... Desculpe a franqueza...
Ela ficou cabisbaixa, quieta por alguns segundos, e falou:
— Você a ama de verdade, não é?
— Com todas as minhas forças, Clara.
— Você não fica comigo por causa dela ou se não fosse por ela
você ficaria?
— Não fico com você porque não te amo mais, porque amo
outra pessoa, coincidentemente essa pessoa é a Allegra, mas
mesmo se eu estive solteira, eu não voltaria para você, Clara...
Quero que saiba que o que vivemos foi muito bonito, mas passou,
nada é para sempre, temos que aproveitar ao máximo cada
momento, pois tudo acaba...
— Entendi... Quero que seja feliz, Nina... Eu não gostava da
Allegra, mas depois do que ela fez por você, ela conquistou minha
admiração e você vai estar ao lado de uma pessoa fantástica,
espero que ela não estrague tudo como eu estraguei, espero que
você não a jogue fora como eu fiz com você, espero que sua
decisão seja acertada e que vocês possam ser muito felizes! —
disse Clara, segurando suas lágrimas e olhando para o porta-retrato
ao lado da cama.
— Clara, você sim, conquistou minha admiração, estou
impressionada e contente por ver essa maturidade em você!
— Nina, vou ficar aqui em Montreal até vocês resolverem a vida
de vocês, a Micheli logo vai para Toronto e se você também for para
lá, morar com a Allegra ou com a Micheli, eu voltarei para o Brasil e
vou tentar refazer minha vida.
Abracei a Clara, e confesso que me emocionei, mas era o
melhor a ser feito...
Pela primeira vez depois do rompimento entre mim e ela,
parecíamos estar novamente nos acertando, ela estava visivelmente
triste, mas conformada, já eu passei o dia ansiosa e louca para ligar
para a Allegra, mas ela havia ficado de me ligar, então tive que me
manter calma e esperar... E foi penoso esperar tanto tempo...
Já era quase meia-noite quando o telefone finalmente tocou,
atendi rapidamente, era a Allegra!
— Alô?
— Oi, Nina, como é bom ouvir sua voz!
— Meu amor, que bom que ligou, estava tão preocupada...
Como foi a conversa com a Diana?
— Foi difícil, Nina, muito difícil... Estou exausta!
— Eu queria estar aí com você agora, para poder cuidar de
você, mas acho que de agora em diante tudo irá para seu lugar e
breve poderemos passar mais tempo juntas!
— Com certeza, Nina, é o que mais quero, estou com saudades
de você, você me faz tão bem...
— Para, Allegra, senão vou pegar o primeiro avião e ir correndo
aí para seus braços... Estou com tanta saudade... Mas antes de
qualquer coisa quero que me conte tudo!
— Então, meu amor, mostrei a ela o DVD com as fotos, disse
que já sabia tudo sobre ela e o Bob e que não poderíamos mais
continuar juntas, no início ela tentou argumentar, disse que sabia de
nosso caso e por isso me traiu, porém diante das provas e das
datas ela foi obrigada a admitir...
— Meu amor, ela sabia da gente?
— Ela viu a carta, Nina, admitiu, ela também confessou que era
ela que ligava, pois queria ter certeza de que eu estava com você,
no final deixou bem claro que ela não me amava, que queria era
dinheiro.
— Ela disse isso pra você?
— Não, não disse, mas deu a entender, disse que se envolveu
com o Bob, que estava se apaixonando por ele, mas que ele não
poderia dar a ela a vida que eu dava, e que como ela não tinha mais
família estava se submetendo.
— Mas que cara de pau! E ela aceitou na boa a separação?
— Não, ela chorou muito, gritou, quebrou várias coisas na
parede, disse que tentaria reverter a situação, que queria me amar
de novo, que terminaria com o Bob, mas Nina, isso na verdade era
uma tentativa de não perder a vida que tinha ao meu lado, toda
comodidade e dinheiro à vontade.
— E agora? Ela está aí? Como vai ficar?
— Conversei com ela hoje pela manhã, disse que poderia ficar
mais uma semana até se organizar, dei a ela o carro que ela usava
e CAN$ 500.000 para ela iniciar uma nova vida, o dr. James me
orientou a dar “um valor” para deixá-la mais calma, mas ela foi
embora agora à noite, levou a maioria de suas coisas...
— E o Bob?
— Falei com ele à tarde no meu consultório, disse que o estava
demitindo pelas razões óbvias e que daquele momento em diante
ele não cuidaria mais dos meus negócios. Ele aceitou bem, disse
que continuaria a cuidar dos negócios de Diana e que amanhã pela
manhã assinaríamos todos os documentos necessários para me
resguardar e resguardar meu patrimônio. Vamos desfazer alguns
seguros e rapidamente tudo estará em ordem novamente, ele ficou
com as cópias de todas as documentações para analisar, e amanhã
às 9h assinaremos tudo. Com ele foi mais fácil do que eu imaginava.
— E como não seria, você está doando a eles uma fortuna...
— Nina, eles sabem melhor do que ninguém o patrimônio que
tenho, e esse valor que doei a eles é muito pequeno em
comparação ao que ela teria oficializando um relacionamento
comigo.
— Allegra, eu não quero seu dinheiro, lembra sempre disso, tá?
— Eu sei, meu amor, não se preocupe com isso...
— Mas você não acha que eles poderão ainda tentar
chantageá-la por mais dinheiro?
— Foi por isso que esperei esse período e pedi orientação ao
dr. James, justamente para evitar qualquer tipo de extorsão,
conheço a Diana e pelo jeito o Bob é mais mercenário que ela, mas
amanhã assinaremos os documentos e aí estarei livre deles e
totalmente livre para você, Nina.
— Alguém mais sabe de nosso relacionamento?
— Tirando o dr. James, só o Alfred, e ele é meu amigo de anos,
fiel e honesto, além de excelente médico.
— Alfred é aquele que já nasceu com uma gravata rosa no
pescoço? — disse, brincando.
— Exato! — ela entrou na brincadeira e riu com a observação.
— Mas... Eu soube que ele é apaixonado por você... — falei
sem graça.
— É, Nina, eu sei, mas nunca dei esperanças a ele e sempre
deixei clara a minha preferência, ele sabe, entende e administra
muito bem isso, sendo sempre um amigo fiel.
— E o que ele disse sobre isso?
— Ele quer me ver bem, ele não gostava da Diana mesmo,
disse também que por tudo que falei de você eu devia estar
apaixonada por uma pessoa muito especial... Você!
— Quando vamos nos ver, meu amor?
— Amanhã à noite estarei pegando um voo aí para Montreal, e
espero que me recepcione com aqueles docinhos de chocolate!
— Sério!! Você virá amanhã? Estou tão feliz, com vontade de
sair gritando! Vou preparar brigadeiro pra você! — disse, eufórica.
— Sim, meu amor, vou ficar aí com você dois dias, o suficiente
para irmos até a tal igrejinha que você disse, para nos casarmos, e
conversar com seu Jordi, para já ir arrumando outra chef de cozinha
para colocar no seu lugar, pois você vai embora comigo, quero que
venha morar aqui, meu amor, além do mais, agora que meu livro já
está pronto tenho que pensar no próximo e começar a escrevê-lo, e
neste você me ajudará!
— Eu, Allegra? Não sou escritora e muito menos médica!
— Eu sei, mas vamos escrevê-lo juntas!
— Vamos?! E qual o tema?
— “Por trás do Coma”, assinaremos a autoria juntas!
Comecei a chorar no telefone, extravasando toda minha
felicidade, ela iria se casar comigo como ela havia prometido
quando eu estava muito mal no hospital, ela se preocupava comigo,
me incluía em seus planos futuros, era fantástica em todos os
sentidos que um ser humano poderia ser... Ela viu o quanto me fez
feliz com suas palavras e sua devoção, então também se
emocionou, somente depois de alguns segundos consegui dar
continuidade à conversa.
— Minha querida, não posso ir embora com você em dois dias,
adoraria, mas tenho que devolver o apartamento, esperar para seu
Jordi se organizar também...
— Eu sei, mas vamos deixar tudo organizado nesses dois dias,
então dentro de um mês mais ou menos você vem para ficar, e
como sei que você não vai conseguir ficar sem trabalhar, tomei a
liberdade e comprei uma casa linda, onde você fará o seu
restaurante, do jeitinho que sempre sonhou!
— Meu Deus! O quê?! Você comprou uma casa para eu montar
um restaurante?
— Sim! Como você queria...
— Allegra, estou tão feliz, mas eu disse que estava com você
por amor, não por dinheiro!
— Não é dinheiro, estou dando a casa e tudo que precisar
colocar dentro.
— Mas é a mesma coisa...
— Nina, meu amor, não negue esse presente meu, estou dando
com todo carinho, sei que ficará feliz em ter seu restaurante e eu
ficarei orgulhosa por isso! O dr. James já está com todos os
documentos prontos, no seu nome, e quando você vier para cá você
assina, mas já está comprada e sacramentada!
— Meu Deus, Allegra, o que eu posso dizer a você? Como eu
poderei retribuir tudo isso?
— Nina, talvez você não tenha ideia, mas você retribui a cada
momento, eu te amo muito!
Nessa hora a Shelly interrompeu a conversa entrando no quarto
e lembrando-me de perguntar a data e a hora de nascimento dela,
para a Olívia fazer o tal mapa astral.
— Allegra, meu amor, a Shelly está aqui e está perguntando se
você sabe a hora exata do seu nascimento, ela quer a data, local e
hora, para a Olívia fazer o nosso mapa astral — falei um pouco sem
graça, não sabia se ela acreditava nisso.
— Diga a ela que nasci no dia 21 de abril de 1969, em Gênova,
na Itália, 00:27 minutos.
Quando ela disse aquilo eu fiquei muda, tive certeza de que
estávamos ligadas por aquele número, então depois de passar os
dados para Shelly, que também se espantou com a nova
coincidência, eu contei tudo a ela sobre aquelas coincidências a
partir do primeiro dia em que a vi na mesa de n° 27 no restaurante.
Ela escutou com tranquilidade, ouviu-me com muita atenção e
disse-me não conhecer nada sobre numerologia, mas que
acreditava na ciência e que alguma explicação lógica haveria, pois
eram várias as coincidências envolvendo aquele número, que ela
acreditava ser algo bom, afinal estávamos juntas e muito felizes.
— Nina, meu amor, já é tarde, amanhã terei um dia longo,
espero que tudo se resolva, e à noite quero estar ao seu lado,
abraçando-a e beijando seus lábios.
— Sonho com esse dia, meu amor, durma bem, descanse, e
fique tranquila que tudo dará certo! Estou com muitas saudades e
mal me aguento esperar para vê-la.
— Ah, antes que eu esqueça, já separei o “esteto” e o meu
jaleco, vou levar junto! — disse em tom malicioso, referindo-se a
minha fantasia.
— Sério!? Não vejo a hora!
— Eu também, meu amor!
— Sabe de uma coisa, dentre tantas que admiro em você?
— Não... Mas se quiser me contar...
— Você cumpre tudo que promete, isso é raro!
— Cumpro, Nina, e prometo a você que sempre estarei do seu
lado!
— Eu também prometo isso a você!
— Minha querida, agora vamos desligar, terei um dia longo
amanhã e preciso descansar... Boa noite, Nina, meu amor.
— Boa noite, meu anjo.
Antes que eu desligasse o telefone ela disse:
— Não esqueça que te amo!
— Jamais vou esquecer isso, pois também te amo demais.
Desligamos o telefone, eu ainda fiquei por alguns minutos
extasiada, com o meu celular nas mãos e olhando atentamente a
nossa foto na cabeceira da cama ao meu lado, parecia um sonho de
conto de fadas, era incrível. Depois disso contei todas as novidades
para a Shelly, que vibrou em saber que eu teria meu próprio
restaurante e que ambas moraríamos em Toronto, uma perto a da
outra, ela disse, divertindo-se, que eu seria a “vizinha milionária”
dela; enquanto isso, a Clara estava apática e sabendo que logo
retornaria para o Brasil...
Capítulo 16

Finalmente eu a veria novamente naquele dia, então, naquela


manhã acordei cedo, mesmo sem precisar. A Shelly ainda dormia e
como eu só começaria a trabalhar dali a dois dias, eu ainda estava
numa rotina desregrada, porém a minha euforia era enorme para
continuar debaixo das cobertas.
Eu estava radiante, tinha uma sensação diferente dentro de
mim, estava ansiosa por vê-la, queria que o tempo passasse
depressa para logo poder tocá-la e tê-la em meus braços, pois
finalmente eu a veria totalmente desimpedida de fato e de direito.
Somente compromissada a mim, sem tê-la que dividir com mais
ninguém, era incrível!
Tomei um banho, e quando saí do banheiro a Shelly já estava
arrumando a cama.
— Bom dia, Shelly! — falei, radiante.
— Bom dia, Nina, nem vou perguntar por que todo esse ânimo,
sei exatamente as suas razões, eu também estaria assim.
— Não vejo a hora, Shelly! Estou superansiosa!
— Tente se ocupar, que o tempo passará mais depressa!
— Vou limpar a casa, deixá-la brilhando!
— Você não pode se esforçar demais, Nina, a Allegra não
deixou isso claro pra você? Vou contar a ela que não está seguindo
suas orientações!
— Tá bem, mas preciso fazer algo para passar o tempo!
— Nina, calma, vai lá na sala, liga a TV e fica assistindo a
algum programa que eu vou preparar um suco e um sanduíche para
você, pode ser? Relaxa...
— Tá ... Mas estou sendo muito mimada! — disse, feliz com
toda aquela bajulação.
Saí do quarto cantarolando de felicidade e sentei-me no sofá ao
lado da Clara, que já estava com a TV ligada. Estávamos olhando
um programa de entretenimento enquanto a Shelly preparava o
sanduíche na cozinha — meus pensamentos estavam longe. No
intervalo do programa, a Clara, de posse do controle remoto,
trocava de canais, quando entrou uma notícia extraordinária.
Um acidente de automóvel na Eglinton Ave W agora pela
manhã deixa gravemente ferida a médica cardiologista Allegra
Cavazza, responsável por inúmeros transplantes cardíacos, o mais
recente foi o de Alan Grate, filho do ator Kevin Grate. A médica
bateu seu carro desgovernado em um poste e foi levada às pressas
para o hospital onde trabalhava. Segundo informações, seu estado
é gravíssimo, ainda não se sabe as causas do acidente. Voltaremos
com mais informações a qualquer momento.
Eu ouvi aquela notícia como uma bomba caindo sobre mim, não
podia acreditar, não podia ser verdade, fui tomada pelo desespero e
comecei a gritar:
— Shelly!! Pelo amor de Deus! — falei, gritando, negando-me a
acreditar no que havia escutado.
A Clara, percebendo o que estava acontecendo, tentava me
acalmar, mas eu chorava compulsivamente pedindo para Shelly ligar
para ela e ver se era verdade... Eu não tinha condições de telefonar,
eu só tremia e chorava. A Clara correu para a cozinha e pegou um
copo com água e açúcar, enquanto a Shelly tentava telefonar.
— Calma, Nina, tome isso — disse Clara, me alcançando o
copo.
— Não quero! Meu Deus! Meu Deus! Shelly, está conseguindo
falar com ela?
— Desligado, Nina, vou ligar par dona Emma! Tente se acalmar!
A Shelly estava chocada, tremia, ligava para o celular da
Allegra e para a casa dela, mas não conseguia falar com ninguém...
Então ela resolveu ligar para o Mount Sinai Hospital e para minha
infelicidade confirmou que ela havia mesmo se acidentado e estava
passando por uma cirurgia naquele momento.
Eu chorava compulsivamente, e entre soluços de desespero
falei:
— Shelly, preciso ir lá, não posso deixá-la sozinha! Você vem
comigo?
— Sim, Nina, mas por favor, tente se acalmar, você está se
recuperando de uma cirurgia cardíaca...
— Como posso ficar calma?! Me diga? Eu preciso vê-la, preciso
estar com ela... Meu Deus! Por quê?
— Nina, nós vamos com você, pegue suas coisas, vamos ao
aeroporto, compraremos as passagens e vamos lá para ficar com
ela, mas por favor tente se acalmar, ela está em boas mãos,
cuidarão bem dela, fique tranquila — a Shelly tentava me acalmar,
mas estava visivelmente nervosa.
Então, sem conseguir mais ficar ali parada, peguei a minha
bolsa e saí desesperada atrás de um táxi para levar-me ao
aeroporto. A Shelly e a Clara rapidamente vieram atrás de mim,
também só com suas bolsas, eu estava fora de mim...
No caminho eu tentava ligar para ela, estava tão perdida que
deixei vários recados em sua caixa de mensagens pedindo para que
ela me retornasse... Tentava falar com dona Emma, mas ninguém
atendia. Tentei ligar para o hospital para saber de mais detalhes,
mas nada... Não informavam nada... Era desesperador.
Compramos as passagens e conseguimos um voo que logo
sairia, mesmo assim a espera parecia infinita...
Finalmente embarcamos, eu chorava o tempo todo, não me
lembro da viagem direito, só alguns lapsos de pessoas me olhando
com pena e das comissárias perguntando-me se eu queria algo, um
calmante ou até se eu precisava um médico... Só me lembro com
mais detalhes quando depois de três horas cheguei no Mount Sinai
Hospital e entrei correndo até a porta da UTI, onde fui barrada, me
juntando àqueles repórteres e fotógrafos de plantão esperando por
notícias dela...
Ali eu desmoronei, caí de joelhos no chão, chorando e
implorando para que alguém me deixasse entrar, a Shelly tentava
me acalmar me conduzindo até uma cadeira logo ao lado, enquanto
a Clara fazia de tudo para conseguir falar com alguém que pudesse
nos ajudar... Eu chorava muito, só conseguia dizer:
— Por favor, preciso vê-la... Por favor...
Parecia inútil meu esforço, ninguém permitia o meu acesso.
Quando vejo de repente o dr. o Alfred passando apressado, e vários
repórteres cercando-o. Naquela hora eu corri até ele e tentei pará-lo
dizendo.
— Dr. Alfred, por favor, me escute, sou a Nina!!
Ele parou, me olhou com seus olhos visivelmente transtornados
e abatidos, e gentilmente colocou a mão sobre meus ombros —
lembrando-se de quem eu era — e disse:
— Venha comigo, Nina.
Atravessamos a porta que dava acesso à UTI, ele então parou
na minha frente, muito abalado e segurando-se para não chorar,
falou com calma.
— Querida, tanto eu quanto você queremos mais do que
ninguém que a nossa Allegra saia dessa, vou levá-la até ela, mas
quero que se mantenha calma. Ela está muito ferida, está
inconsciente e seu estado é gravíssimo, eu a operei até agora há
pouco e ela está instável, quero que fique do lado dela porque ela
me disse o quanto te ama, ela vai gostar de saber que está junto
dela... — ele disse, enchendo seus olhos de lágrimas.
Eu o abracei, concordando, e só consegui dizer a ele:
— Sei o quanto está se esforçando para que ela fique bem, por
favor, cuide dela... Infelizmente eu não posso fazer nada a não ser
rezar para que Deus ilumine as suas mãos, doutor... Obrigada, dr.
Alfred.
Ele me conduziu — ainda com sua mão sobre meu ombro —
até o leito onde ela estava; na medida em que me aproximava dela,
minhas pernas começavam a tremer e o desespero tomava conta de
mim...
Ao chegar ao seu lado, o dr. Alfred saiu, me deixando sozinha
com Allegra. Ela estava com um tubo na boca, vários monitores e
fios ligados e ela, sua testa estava machucada, mas seu rosto
estava lindo, eu segurei sua mão que estava bastante arranhada e
beijei seu rosto dizendo baixinho e me controlando para não cair em
prantos...
— Allegra, minha querida, estou aqui, não sei se pode me ouvir,
mas sei que pode me sentir, não vou te abandonar, e quero que
você não me abandone, por favor...
Comecei a chorar sobre ela compulsivamente, eu sentia o seu
perfume, eu não podia acreditar no que estava acontecendo, era
injusto demais, meu coração estava partido... O dr. Alfred, vendo
meu sofrimento, aproximou-se.
— Nina, você está muito nervosa, é melhor sentar-se lá fora.
— Não! Por favor, eu lhe imploro, não me tire do lado dela, eu
preciso ficar aqui.
— Está bem, mas tente se controlar, por favor.
Ele estava abatido, segurando suas emoções e fragilizado com
aquele momento. Eu estava sem rumo, de mãos atadas, sem saber
o que dizer ou fazer, só queria estar ali, ficar com ela...
Ela parecia razoavelmente bem, salvo alguns pequenos
arranhões, ela parecia normal, eu não sabia exatamente o que
estava acontecendo... Então me afastei dela e fui até o dr. Alfred,
que estava numa bancada olhando os exames e os raios-x da
Allegra.
— Dr. Alfred, por favor, me diga a verdade, o que aconteceu
com ela, como ela está? Qual seu estado real? Não me esconda
nada, por favor...
— Está bem. Escute, Nina, quero que seja forte! Ela rompeu
alguns órgãos com a brutal pancada, teve uma grande hemorragia
interna, tentei reparar na cirurgia, mas a situação é muito delicada, a
chance de ela sobreviver é mínima.
— Não! Ela não pode morrer! Como ela foi bater?? Ela dirige
tão bem, com calma... Não é possível!! Não a deixe morrer, doutor!
Por favor! — eu dizia, atordoada.
— Nina, estou fazendo tudo que posso, só o tempo dirá...
Aquelas palavras me lembraram o que eu havia passado, então
tentei me acalmar e ficar tranquila, para voltar a ficar ao lado de
minha amada...
Voltei para perto dela, passava minha mão em sua testa
machucada com cuidado, em seus cabelos, a tapei com o lençol
caso ela estivesse com frio e permaneci acariciando-a por um longo
tempo... As enfermeiras vinham até ela, olhavam os monitores, seus
sinais vitais, anotavam e saíam, eu não entendia nada, mas estava
ali com ela, do seu lado, afinal, era a única coisa que eu podia
fazer... Olhava pra ela, deitada, imóvel, lembrava-me de nossa
conversa na noite anterior e segurava-me para não ficar
desesperada...
Até que percebi que sua pulseira não estava no seu pulso, e
aquilo me incomodou profundamente, saí dali e fui ao encontro do
dr. Alfred. Perguntei a ele sobre a pulseira, ele me disse que era
necessário retirar qualquer tipo de acessório para a cirurgia e disse
que a pulseira estava com ele. Então, mostrei a minha pulseira a ele
e pedi, por favor, para que me desse a autorização para colocá-la de
volta no pulso dela, ele me devolveu a pulseira, mas disse para não
colocar até segunda ordem. Eu obedeci, deixei as duas em meu
pulso.
Saí da UTI por alguns minutos e fui até a recepção para dar um
retorno para a Shelly e para a Clara, elas certamente também
estavam apreensivas e não seria justo privá-las de notícias.
Quando cheguei à recepção, vi que a Olívia também já estava
junto com a Shelly e a Clara, elas vieram rapidamente ao meu
encontro para saber da Allegra, eu expliquei o pouco que sabia. Eu
estava muito abatida, atordoada, só fiquei pior ainda quando vi a
Diana e o Bob chegarem na recepção e se dirigirem até uma
atendente — que ficava em frente à porta da UTI.
Meu sangue subiu, fiquei revoltada, o que eles faziam ali?
Fiquei olhando para Diana com muito ódio, hipnotizada e com
vontade de pular no pescoço dela. Ela percebeu, me olhou dos pés
à cabeça e com um sorriso sarcástico, se dirigiu até mim, parou na
minha frente e com um tom irônico falou:
— Ora, ora, então é você! Você que é a “namoradinha” da
Allegra! Não consigo acreditar que ela tenha me trocado por uma
garota tão simplória quanto você!
Ela me olhava com muita ironia e desdém, não parecia nem um
pouco abalada com a situação da Allegra. A Shelly imediatamente
ficou revoltada, mas antes que ela se intrometesse, a Olívia, com
toda sua diplomacia, conduziu a Clara e a Shelly para outro lado,
nos deixando a sós. Então respondi a ela:
— Foi a minha simplicidade que atraiu a Allegra, eu não preciso
usar artifícios para conquistar alguém! — rebati.
— Você é muito desaforada, garotinha!
— Desaforada é você de estar aqui depois de tudo que fez para
ela!
— Me desculpe, mocinha, mas se tem alguém que provocou
tudo isso foi você, não eu! — falou com um ar de superioridade.
— Eu?! — perguntei sem entender sua acusação.
— Sim! Se você não tivesse se metido na nossa vida, hoje
estaria tudo bem! Se você tivesse morrido com aqueles tiros, a
Allegra estaria bem! Mas a mania da Allegra de querer salvar o
mundo fez com que acabasse nisso, ela terminou salvando você e
se colocando nesta situação... Por mais que eu não a amasse, eu
não desejava esse final trágico para ela!
— O que você está me dizendo, sua traidora! Como você sabe
que levei esses tiros? Foram vocês dois que tentaram me matar! —
nessa hora ela sorriu. — Tudo para deixar o seu caminho livre! Meu
Deus! — naquele momento caiu minha ficha de que tudo que estava
acontecendo foi milimetricamente planejado, inclusive o “acidente”
da Allegra.
— Portanto, mocinha, a culpa é sua! Não minha!
Nessa hora o Bob chegou e puxou a Diana pelo braço,
afastando-a de mim, ele dizia para ela ter cuidado com o que falava.
Os dois saíram e ficaram sentados em um sofá na recepção,
enquanto alguns repórteres perguntavam ao Bob como estavam as
investigações do acidente, e ele então respondia calmamente,
incorporando uma postura de quem estava abalado, dizia aos
repórteres que ele mesmo cuidaria pessoalmente das investigações,
para que tudo fosse apurado e esclarecido o quanto antes.
Eu fiquei parada, olhando para eles, sem acreditar na confissão
da Diana. Me senti culpada pelo que estava acontecendo e
totalmente desesperada...
Respirei fundo e voltei para o lado de minha amada, precisava
ficar com ela...
Ao estar novamente com ela, segurei sua mão e a senti tão
quente, me preocupei, ela suava muito! Perguntei para a enfermeira
que estava ali perto por que ela estava tão quente, e ela me disse
que ela estava com febre, então beijei seu rosto e olhando em seus
olhos eu disse baixinho:
— Querida, eu te amo demais, não quero que me deixe, quero
que me veja tocar piano, como você pediu, lembra? Quero tocar
para você, vou começar a fazer aulas assim que sairmos dessa! Eu
te prometo! Mas por favor, fica comigo!
Nesse instante uma lágrima escorreu de seus olhos, então eu
tive certeza de que ela me sentia, ela me ouvia, mas estava presa
também, como eu estive... Eu comecei a beijá-la e entre lágrimas
chamei o dr. Alfred, que prontamente veio até mim.
— O que foi, Nina?
— Doutor, ela está consciente, ela está me ouvindo, uma
lágrima escorreu de seus olhos, eu vi, olha, ainda está molhado! —
apontei para sua face.
— Nina, acalme-se, isso pode ser efeito das medicações, ela
está em coma, ela não escuta nem sente nada, ela está sedada.
— Não! Acredite em mim, eu sei que ela está me ouvindo, está
nos escutando agora, deve ter feito um esforço tremendo para nos
mostrar que ela está entendendo o que estamos falando, por favor,
a deixe acordar, diminua os sedativos dela.
Ele me puxou para um canto, um pouco afastado, e disse com
clareza.
— Não posso fazer isso, Nina, os sinais dela estão totalmente
instáveis, ela respira por aparelhos, está com febre, isso significa
que está desenvolvendo alguma infecção. Eu entendo seu
sofrimento, mas lamentavelmente eu não posso diminuir os
sedativos. Agora à tarde vamos coletar sangue para averiguar essa
possível infecção e poder tratá-la.
— Mas doutor... Quando eu estava em coma ela diminuiu os
sedativos para que eu conseguisse me recuperar mais fácil! —
argumentei.
— Nina, ela fez isso porque o seu caso permitia que ela fizesse,
mas cada caso é um caso, e no dela eu não posso fazer isso.
Ele saiu e eu me senti impotente, eu sabia que ela estava me
ouvindo, então eu voltei para o seu lado e continuei falando com ela
e tentando acalmá-la.
— Allegra, minha querida, aguenta firme, eu sei do seu esforço,
sei melhor que ninguém, vou tentar convencê-lo, ele precisa
acreditar na gente.
Beijei seu rosto, segurei sua mão firme, cuidando para não
causar nenhuma dor no seu machucado, olhei para seu pulso vazio
e disse.
— A sua pulseira está aqui comigo, logo vou colocá-la de volta
no seu pulso, de onde ela nunca deveria ter saído — repeti as suas
palavras.
Vi mais duas lágrimas escorrerem pelo seu rosto e o monitor
alarmar, fazendo o dr. Alfred e duas enfermeiras correrem até ali. Eu
me assustei e fui afastada por uma das enfermeiras, enquanto o dr.
Alfred falava alto.
— Arritmia! Ela está tendo uma parada cardíaca, tragam o carro
de parada.
Uma enfermeira me segurou pelo braço e foi me conduzindo
até a recepção, eu não queria ir, olhava para trás, a enfermeira
falava alguma coisa e me empurrava para fora, eu só conseguia
olhar para seu leito e gritar alto no corredor, enquanto caminhava
em direção à porta de saída.
— Allegra, querida, aguenta firme! Vai dar tudo certo, eu já volto
para ficar com você!
Ao sair, fui recepcionada pela Shelly. Eu chorava
desesperadamente enquanto ela tentava me acalmar perguntando o
que estava acontecendo. Eu não consegui dizer nada, só chorava
segurando a sua pulseira, permaneci ali por longos e intermináveis
minutos à espera de alguma notícia, era desumana a dor que eu
sentia, era desumano o que estava acontecendo, era injusto
demais...
Quando finalmente, após uma longa espera, a porta da UTI
abriu-se e o dr. Alfred, visivelmente enternecido e enfraquecido, veio
até mim.
Imediatamente eu levantei e fiquei parada em sua frente,
olhando em seus olhos à espera de alguma notícia de minha
Allegra... Foi quando ele disse, com a voz trêmula.
— Desculpe, Nina... Eu lamento demais... Mas ela não
resistiu...
O meu mundo parou naquele momento, suas palavras ecoavam
em minha mente, lutando para não serem compreendidas, tudo
girava...
— NÃO! Pelo amor de Deus, por favor, diga que não é
verdade!!! Por favor! Não pode ser! Minha Allegra, não!
Ajoelhei-me aos seus pés e chorava compulsivamente, vi a
Shelly chorando, mas ao mesmo tempo tentando me levantar, a
Clara foi até uma janela e chorou discretamente... Aquilo não podia
estar acontecendo, era sofrido demais, injusto, doloroso demais...
Levantei-me tremendo, tentando sustentar o peso de meu corpo
que parecia ter se multiplicado, e falei para o dr. Alfred que ainda
estava imóvel em minha frente, com lágrimas nos olhos.
— Preciso vê-la!
Ele me abraçou e conduziu-me novamente para dentro da
UTI...
Eu não lembro de escutar nada, de ver nada, só me lembro da
hora em que cheguei ao lado de sua cama e a vi... Ela estava sem o
tubo na boca, parecia estar dormindo, parecia tranquila, ainda
estava linda, estava quente, eu beijei seu rosto e pude sentir seu
perfume, mais fraco, mas ainda assim era o seu perfume... Segurei
seu pulso e coloquei a pulseira de volta nele, então quase sem voz
e entre lágrimas, disse a ela:
— Querida, vou te amar para sempre, meu amor...
Com muito cuidado e delicadeza beijei seus lábios que ainda
estavam mornos e chorando desesperadamente debrucei-me sobre
seu peito, mas, ao contrário das outras vezes, eu não ouvi mais o
pulsar forte de seu coração, estava silencioso, mudo, calado...
Depois daquele momento senti uma dor profunda, senti tontura,
náusea, parecia que um buraco havia se formado sob meus pés me
puxando impiedosamente para dentro, minha visão ficou turva e eu
caí, mergulhando na escuridão profunda...
Capítulo Final

Abri meus olhos lentamente e fiquei olhando aquele teto branco


por alguns segundos, ouvia o som de um rádio ligado baixinho e
uma janela enorme deixando o sol entrar por ela... Olhei em minha
volta e não vi nada além de um sofá branco e um criado-mudo ao
lado da cama onde eu me encontrava, com o porta-retrato que a
Shelly havia me dado — aquele com a minha foto junto da Allegra,
que tiramos no dia do concerto —, eu não reconhecia aquele lugar...
Tentei levar minhas mãos até meu rosto, mas elas estavam
presas junto à grade da cama, eu estava amarrada e toda vestida
de branco... Não estava entendendo, eu não tinha ideia de onde eu
me encontrava e que lugar era aquele, estava confusa... Quando a
porta se abre e a Shelly entra.
— Nina? Você está bem?
— Shelly! Que bom ver você! Onde eu estou?
— Graças a Deus! Você está me reconhecendo! — disse
aliviada.
— Hum... Eu não deveria? — perguntei, confusa.
Ela sentou-se do meu lado e com calma explicou.
— Nina, você lembra o que aconteceu?
— Com a Allegra?
— Sim...
— Quisera não lembrar e esquecer para sempre, mas lembro-
me dela a cada segundo, consigo ainda ouvir sua voz, se eu fechar
meus olhos sinto o seu perfume... Dói demais... — enchi meus olhos
de lágrimas.
— Eu sei, amiga, imagino seu sofrimento...
— Mas onde eu estou, Shelly, o que está acontecendo?
— O que aconteceu, Nina, é que você entrou em choque,
surtou, tentou se matar, dizia que queria ir junto com ela, passou um
dia inteiro gritando descontroladamente, teve de ser sedada... Mas
quando o efeito do medicamento passava você chamava pela
Allegra desesperadamente, não reconhecia ninguém!
— Eu agi assim? Mas não lembro de nada!
— Sim... Foi horrível... Assustador!
— E quanto tempo faz isso? Há quanto tempo estou aqui?
— Um mês, Nina...
— Um mês?! Eu não fui ao enterro dela, não me despedi dela?
Nunca mais vou vê-la? — nessa hora senti um nó na garganta, uma
dor dilacerante e lágrimas escorreram em meu rosto.
— Nina, você não foi, não tinha a menor condição, eu quero
que evite falar nisso para não surtar de novo, os médicos falaram
que você iria voltar ao normal, mas tenho medo que saia de si
novamente.
— Por que estou amarrada?
— Porque você se machucava, tentava se ferir, atacava os
enfermeiros e qualquer pessoa que se aproximasse.
— Nossa... Como não lembro de nada disso que fiz? Que lugar
é este?
— Você está numa clínica de reabilitação psiquiátrica, o dr.
Alfred que conseguiu pra você, ele foi fantástico.
— E por que a foto dela está aqui do meu lado?
— Porque você não sossegou enquanto não fomos a Montreal
buscar.
— Eu estou em Toronto?
— Sim...
— Solta meus pulsos, Shelly?
— Você promete que não vai me atacar? — disse brincando e
já soltando.
— Prometo.
Ela me soltou e eu pude me mexer mais tranquilamente, a
pulseira ainda estava no meu pulso, eu a olhei, e com coragem
perguntei:
— E a pulseira dela, Shelly? Onde está?
— Com ela, Nina, foi enterrada com ela, o dr. Alfred proibiu que
a tirassem...
Eu peguei o porta-retrato, fiquei olhando para aquela foto, olhei
o seu sorriso, seus traços, ela parecia tão feliz naquele dia... Me pus
a chorar baixinho sobre o porta-retrato.
— Nina, você vai superar tudo isso, sei que dói, leva tempo,
mas você vai superar, eu prometo!
— Sabe quais foram as últimas palavras que ela me disse,
Shelly? — perguntei emocionada.
— Não, Nina... Quais foram?
— “Não esqueça que te amo”... — disse sem conseguir
controlar meu choro.
Vi que a Shelly baixou a cabeça e tentando não me desanimar
disse:
— E não é para você esquecer mesmo!
— Nunca vou esquecer, eu nunca vou deixar de amá-la...
Nessa hora a Olívia entra dizendo:
— Ora! Olha só quem despertou?! Que notícia boa, Nina!
— Oi, Olívia — respondi ainda abraçada ao porta-retrato e
tentando me recompor.
A Shelly levantou-se de meu lado e falou, já saindo do quarto:
— Nina, tenho que telefonar para uma pessoa, que pediu para
avisar quando você acordasse, fica com a Olívia por enquanto, tá?
— Tá bem...
A Shelly saiu e a Olívia sentou na cama ao meu lado.
— Como você está, Nina?
— Mal... Perdida, desamparada... Estou totalmente sem rumo,
não imagino como vou viver sem ela...
— Nina, o que você passou e o que vocês duas passaram não
foi por acaso, foi porque vocês tinham que viver tudo isso, isso
estava escrito no destino de vocês! — disse Olívia, tentando me
confortar.
— E você acha justo, Olívia? Acha justo ela morrer tão nova,
acha justo a gente se separar tendo ficado tão pouco tempo juntas,
com tantos planos? Ela nem teve tempo de me conhecer direito!
Que droga de destino é esse? — falei com muita ira.
— Nina, todos nós temos uma missão nessa vida, ela teve a
dela e você tem a sua...
— Sabe, Olívia, eu não faço ideia de qual seja a minha missão
nessa vida, mas ela sabia qual era a dela, ela me contou... Ela disse
que era ter me salvado, que ela estudou e se esforçou a vida toda
para salvar alguém que ela amasse de verdade... Parece
“brincadeira” isso... — falei, inconformada com a ironia do destino.
— Nina, de repente era isso mesmo, não uma “brincadeira”.
Tente compreender, tudo acontece na vida da gente por algum
motivo, você tinha que passar por isso, tinha que conhecer a
Allegra...
— E por qual razão? Para acabar comigo desse jeito, para vê-la
perder a sua vida dessa forma tão brutal? Não tivemos escolha,
Olívia... Isso é tão injusto...
— Talvez ambas tivessem escolhido, sim, talvez sem a
consciência dessas escolhas...
— Olívia, isso é impossível... Eu nunca teria escolhido passar
por isso!
— Nina, se você pudesse optar entre não passar por isso nem
sofrer e nunca tê-la conhecido, ou passar exatamente por tudo isso
e ter tido a oportunidade, mesmo que breve, de ter ficado com ela, o
que você escolheria?
— Ter ficado com ela, sem a menor dúvida — falei, sem hesitar.
— Então valeu a pena, Nina, nossa vida é curta, nada é para
sempre!
— Que ironia, eu disse isso para a Clara, agora você fala isso
pra mim...
— Nina, o amor tem as suas razões que a lógica não
compreende, como o destino tem as suas ironias que a razão não
explica...
— Mas dói tanto, é dilacerante...
— Dói, é verdade, mas o destino colocou a Allegra no teu
caminho e te colocou no caminho dela, você acha que ele foi tão
injusto assim?
Eu pensei, analisei aquelas palavras e disse...
— Não... Na verdade, a Allegra foi a página mais linda que o
destino escreveu na minha vida.
— Então não se arrependa, não julgue! Finais felizes são
aqueles de conto de fadas, de mentirinha... A sua vida, a realidade,
a sua história, vão muito além disso, vão até o ponto de descobrir o
porquê desse drama, qual a mensagem disso tudo! Querer tudo
“certinho”, como filmes e novelas, é para aqueles que não
compreendem além do óbvio, você e a Allegra viveram algo forte,
algo que transcende a nossa razão. Você é privilegiada, Nina!
— É difícil compreender que isso seja um privilégio... Mas pode
ser que você tenha alguma razão...
— Eu tenho certeza de que você vai compreender isso um dia,
vai se reerguer e vai viver bem, irá achar uma maneira de sentir-se
perto dela e um dia vocês irão se reencontrar, pode ter certeza,
Nina! Seria muita mesquinharia se tudo terminasse assim, o amor
vai além da morte, o amor de vocês é uma energia viva e que está
conectando uma à outra.
— Olívia, eu sei como me sentir perto dela... Ela me ensinou...
Disse-me como conseguia sentir a presença da mãe dela... Eu
prometi a ela, e vou cumprir... Aí eu terei certeza de que ela estará
do meu lado, cheia de orgulho!
— Viu só? Você ainda tem muitas conexões com ela, ela está
ligada em você, ela está dentro de você!
— Sim, eu a sinto junto de mim, o sangue dela está aqui, vivo,
correndo forte dentro de minhas veias, e a presença dela está
dentro do meu coração.
— Nina, o corpo morre, mas e o amor? Este não está vivo como
nunca dentro de você?
— Sim, mais vivo que nunca!
— Cada dia que passar você vai sentir mais isso... Talvez essa
tenha sido a forma que o destino encontrou para eternizar esse
amor... Pensa nisso... Você vai lutar, vai melhorar e vai progredir,
tenho certeza!
— Pode ser... Vou ter que pensar nisso tudo, é muita
informação... — concluí. E percebendo que eu ainda não tinha visto
a Clara, perguntei: — Olívia, onde está a Clara?
— A Clara voltou para o Brasil semana retrasada, ela tentou
falar com você nesses dias, mas você não a reconhecia, depois liga
pra ela, ela estava preocupada com você.
— Vou ligar sim... — disse com certa pena dela e já trocando de
assunto. — Mas Olívia, agora que você está aqui, e está explicando
todas essas coisas, queria entender o porquê de tantos “27” na
minha vida a partir do momento em que conheci a Allegra...
— Nina, com certeza isso é cármico, o caminho de vocês
estava traçado, era uma forma de avisá-las, mas nem sempre se faz
compreensível...
— Mas eu continuo sem compreender... Qual sua opinião?
— Na minha opinião, o que exatamente quer dizer é que o
número 27 é o número do ego, é o número que representa tudo que
vai e que volta, já havia lhe dito isso antes. Hoje, posso dizer
claramente, depois desses acontecimentos todos, que desde o
início vocês iriam se encontrar, se separar e depois se reencontrar...
É um número que vai e que volta, lembra?
— Mas nós não brigamos, não nos separamos!
— Vocês não estão separadas agora? Fisicamente separadas?
— Sim...
— Então, isso é provisório e é cíclico, certamente vocês irão se
reencontrar... Ela é sua alma gêmea...
Fiquei feliz com aquela dedução, com aquela certeza dela,
afinal, era a única coisa a que eu podia me apegar naquele
momento, pois aquele monte de coincidências envolvendo o número
27 com certeza não foram por acaso! Algo realmente existia por
trás, talvez todas aquelas coincidências ligadas a Allegra fossem
exatamente para me mostrar que nada na vida é uma coincidência...
De repente, no meio da nossa conversa entrou pela porta um
senhor juntamente com a Shelly, ele carregava uma pasta com
alguns papéis. Eu nunca o tinha visto, aparentava uns 50 anos,
estava um pouco acima do peso, mas tinha uma fisionomia
amigável.
— Srta. Nina?
— Sim — disse, curiosa.
— Muito prazer! Sou o dr. James Burk, advogado da dra.
Allegra Cavazza — disse, estendendo-me a mão e
cumprimentando-me.
— Muito prazer, doutor, ela comentou muito bem de você.
— A mim também, ela falou muito bem de você, srta. Nina.
Quase perguntei o que ela havia dito, mas pareceu-me
inadequado fazer aquela pergunta.
— Srta. Nina, trouxe estes papéis para você assinar, é de um
imóvel que a doutora comprou e queria lhe dar.
Eram os documentos da casa, aquela para fazer meu
restaurante...
— Desculpe, dr. James, mas eu não vou assinar!
— Não?! O imóvel já está pago, não se preocupe, só falta a sua
assinatura — ele disse, espantado.
— Pode pegar para você, doutor, eu não quero e nunca quis o
dinheiro da Allegra... Ela sabia disso...
A Shelly interrompeu a conversa e disse com certo cuidado.
— Nina, ela comprou essa casa com todo carinho para você,
tente imaginar a alegria dela quando escolheu esse imóvel, imagine
a felicidade que ela teve ao ter a ideia para te presentear, não faça
isso, aceite, por ela...
A Shelly tinha razão... Eu não poderia fazer essa desfeita para
a Allegra... Então o dr. James complementou.
— Srta. Nina, eu presenciei a alegria da dra. Allegra, ela estava
radiante. Me contou com os olhos brilhando a surpresa que faria a
você. A casa é linda, com enormes janelões, já está toda mobiliada,
numa localização privilegiada... E... — percebi que ele iria falar algo
mais, mas se conteve.
— E? — questionei, forçando-o a dar uma continuidade em seu
pensamento.
— Tem mais uma coisa... Ela havia pedido segredo, porque ela
mesma queria fazer surpresa para você... Mas agora...
— O que é? Por favor, me diga doutor...
— Ela comprou junto com a casa um Bentley preto, está na
garagem do imóvel. Ela disse que você havia gostado do carro e
que quando viesse morar aqui em Toronto precisaria de um meio
para se locomover, não queria que continuasse andando de ônibus,
metro ou táxi.
Novamente me encontrava pequena diante das lágrimas, ela
havia pensado no meu bem-estar, ela ouvia tudo que eu dizia com
atenção, era tão cuidadosa, se preocupava comigo como ninguém
antes havia feito... Eu não podia negar aqueles presentes, seria
cruel de minha parte...
— Meu Deus! Ela comprou até o carro! — falei, espantada. —
Tá bem... Me dê os papéis, eu vou assinar...
A Shelly ouviu tudo isso, e não se contendo, disse:
— Essa mulher devia ter muita grana!!
— Ela tinha um patrimônio enorme... — concordou dr. James.
Ele me alcançou aquele punhado de papéis. Eu assinei umas
dez páginas, não li, nem sei o que dizia... Então perguntei a ele.
— Dr. James, o senhor sabe dizer o que causou o acidente com
a Allegra?
— A perícia descobriu que o carro estava sem freios, mas
concluiu-se que fora um acidente, e o caso não está mais sendo
investigado.
— Sem freios? Um carro daqueles, novo, bem cuidado, que
tinha no mínimo cinco anos de garantia, isso não é possível! Isso
deve ter sido forjado!
— Srta. Eu sei que parece estranho, também tenho minhas
dúvidas, mas infelizmente não temos provas...
— E a Diana? Ficou com todo o patrimônio da Allegra? —
perguntei, certa de uma resposta positiva.
— Não, senhorita, elas não chegaram a formalizar a união, e
como a dra. Allegra não tinha familiares os bens dela serão
provavelmente doados para instituições. O dr. Alfred está fazendo o
possível para que isso aconteça, estamos trabalhando nisso juntos.
— Mas então, qual a lógica de a Diana querer matar a Allegra?
Ela ter tentado me matar está claro que foi para ela se livrar de mim,
e assim assinarem a formalização da união... Mas o acidente da
Allegra eu não entendo, pois ela já tinha dado CAN$ 500.000 para
Diana... — dei vazão ao meu pensamento em voz alta.
— Srta. Nina, por favor, isso são suposições muito graves, não
temos provas disso!
— Mas a Diana me confessou! Ela falou no hospital!
— Mas isso não é uma prova concreta, são apenas palavras...
— Mas doutor, a Diana teria algum benefício com a morte da
Allegra? — perguntei inconformada.
Ele baixou a cabeça, e acho que intimamente ele acreditou na
minha hipótese de assassinato.
— Sim, a Allegra tinha um seguro de vida, íamos desfazê-lo na
manhã do acidente. A beneficiária era a Diana.
— Eu sabia! — disse, convicta de minhas suspeitas. — A
Allegra me contou na noite anterior do acidente que iriam desfazer
alguns seguros, era isso então!
Percebi que a Olívia e a Shelly ficaram espantadas e
acreditaram em minhas palavras.
— E o senhor pode me dizer de quanto era esse seguro?
— CAN$ 15.000.000.
— Meus Deus! Está óbvio que foi tudo planejado! A Diana não
iria se contentar com “apenas” CAN$ 500.000. Quando ela percebeu
que a Allegra estava irredutível e que não assinaria a união delas,
eles planejaram uma forma de ter direito ao seguro! O que podemos
fazer? — eu disse, transtornada e com gana por justiça.
— Srta. Nina, quando você tiver alta, quero que vá ao meu
escritório, lá vamos conversar sobre tudo isso com calma e ver o
que podemos fazer. Fique tranquila, estou junto com você nisso e
me disponho a fazer essa investigação pela dra. Allegra, ela era
uma ótima pessoa — disse ele, dando-me seu cartão.
— Obrigada, eu irei sim, não vou descansar enquanto aqueles
dois assassinos não pagarem por terem arrancado a vida dela —
respondi incisivamente.
Ele se despediu e saiu com os documentos assinados, a Shelly
e a Olívia se aproximaram de mim, sentando na cama.
— Você fez bem, Nina, agora é vida nova, você deve receber
alta manhã e depois disso quero vê-la bem — disse Shelly.
— Como eu vou conseguir levar uma vida normal? Como? —
perguntei a elas.
— Você vai ter que se esforçar, Nina. Estaremos do seu lado,
pode contar conosco! — disse Shelly.
Então a Olívia levantou-se e pegou um caderno e uma caneta e
me deu.
— Nina, lembra quando falei para você escrever o que sentia
naquela carta de aniversário para a Allegra?
— Sim...
— Você não se sentiu melhor? Sentiu-se aliviada por
exteriorizar seus sentimentos?
— Sim, me senti mais leve, me senti perto dela...
— Faça a mesma coisa agora, escreva aqui neste caderno,
exteriorize tudo que passou, tudo que está sentindo, as coisas boas
e ruins... Tente...
— Tá bem... Deixe o caderno aqui do lado — eu disse,
apontando para o criado-mudo onde estava o porta-retrato.
— Nina, nós vamos sair, vamos ver o que precisa para sua alta,
quero que depois você ligue para a Clara e para o dr. Alfred, eles
ficarão felizes em saber que você está “dentro da casinha” de novo!
— disse Shelly.
— Tá bem... Vou ligar, sim, tenho que sair forte daqui, tenho um
restaurante para montar. Também tenho que aprender a tocar piano
para a Allegra, eu prometi a ela, quero que ela me ouça! Quero
tentar viver... — falei, tentando vislumbrar algum futuro para minha
vida.
— Isso mesmo, mocinha! — disse Olívia, feliz ao ver meu
esforço.
— Shelly, Olívia, obrigada por tudo que fizeram por mim.
— De nada, Nina... Nós te amamos! — disse Olívia.
Elas estavam saindo pela porta quando a Shelly voltou e
perguntou.
— Você vai morar aqui em Toronto agora?
— Primeiro terei que ir a Montreal devolver o apartamento,
tenho que agradecer a seu Jordi, Marcel e todos que me ajudaram
tanto. Depois vou me mudar para a casa que a Allegra comprou, irei
me esforçar para fazer dela um restaurante lindo, vou colocar um
piano de cauda branco ao fundo e todos os dias irei tocá-lo... —
falei, emocionada. — Vou arrumar um dos cômodos dessa nova
casa para eu morar, e se vocês aceitarem, outro para vocês duas —
disse, convidando as duas para morarem comigo na casa nova.
A Shelly e a Olívia sorriram e fizeram um sinal de positivo,
enquanto a Shelly voltou até meu lado e abriu a gaveta do criado-
mudo, tirou um pacote de dentro e alcançou-me.
— Nina, isso chegou para você, chegou pelo correio quando
estive em Montreal para pegar o porta-retrato que você tanto queria,
não abri, estava esperando você ficar bem para lhe entregar...
Ela saiu pela porta sorrindo, juntamente com a Olívia, e eu
fiquei no quarto com aquele pacote nas mãos, estava embrulhado
em um papel pardo e na frente estava endereçado a mim com a
letra inconfundível da Allegra... Meu coração disparou, virei o pacote
e no remetente estava o nome dela...
Segurei aquele pacote contra meu peito por alguns segundos,
meu coração batia forte, estava comovida e curiosa, então
delicadamente eu o abri, com muito cuidado e imaginando o
momento em que ela havia fechado aquele pacotinho. A saudade e
a dor naquele momento eram de proporções gigantescas...
Ao abri-lo e em meio àquele papel pardo vejo o livro recém-
lançado da Allegra, “Homocisteína e Polimorfismo dos genes
MTHFR e VEGF”, e juntamente com o livro de capa vermelha e
branca havia um CD, uma coletânea das melhores músicas de Edith
Piaf.
Eu estava atordoada, estava nitidamente tocada pela
sensibilidade da Allegra e nitidamente sobrecarregada de
sentimentos...
Levantei-me devagar, ainda meio tonta e fui até o pequeno som
e coloquei o CD a tocar baixinho...
Voltei para a cama e fechei meus olhos por alguns segundos,
ouvindo atentamente a letra de Mon Dieu, o meu francês era
mediano, mas bom o suficiente para entender a letra daquela
música, que ironicamente parecia “traduzir” meus pensamentos...
Tocada por aquele momento e por aquela música intensamente
visceral, encorajei-me então a pegar o livro de minha querida Allegra
nas mãos, e chorando por tanta dor eu o abri...
Oh, Deus! Quisera não tê-lo aberto, pois me deparei com a
dedicatória que a Allegra havia carinhosamente escrito para mim...

Nina, meu amor!


Hoje sou a pessoa mais feliz deste mundo, e sabe por quê?
“Amor vincit omnia”
Eu nunca tive dúvidas disso...
Para sempre sua,
Allegra C.

Não contive minhas lágrimas, mais uma vez ela estava


cumprindo a sua promessa... Ela disse que não traduziria a
dedicatória deste livro...
Ainda abalada, peguei o caderno que a Olívia havia deixado ao
meu lado, a caneta, olhei para aquelas páginas em branco, então
respirei fundo e disse em voz baixa...
— Allegra, meu amor, o que nós vivemos foi o que de mais
lindo aconteceu em toda minha vida, cada segundo, cada momento
junto de você foi singular, um milagre... Por isso, quero que todos
saibam do nosso amor. Vou escrever nestas páginas a minha
história, a nossa história... Por você, querida, meu eterno e único
amor...
Com as mãos trêmulas segurei a caneta e me pus a escrever...

Meu nome é Nina, deixei o Brasil para esquecer a Clara. Uma


traição e uma desilusão amorosa sempre arrancam pedaços e
deixam marcas profundas... De certa forma a minha vinda para cá
foi uma espécie de fuga, quis “enterrar” meu passado e
simplesmente recomeçar... Por alguns meses pareceu-me a decisão
acertada, apreciei a minha “nova vida” com tranquilidade,
curiosidade e uma gratificante calmaria, confesso que quis driblar o
destino, indo embora sem olhar para trás, mas o destino é esperto e
nos prega peças, não adianta tentar enganá-lo, fugir, ele está
eternamente atrelado a nós...

Minha história começa naquele dia frio de inverno intenso,


parecia uma manhã como qualquer outra, mas eu não poderia
imaginar nem em meus mais remotos sonhos que aquele dia seria
diferente, a minha rotina seria quebrada por algo novo, algo que
mudaria minha vida...

Para sempre...

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