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ELEMENTOS PARA SE PENSAR UMA VIRTUAL RELAÇÃO ENTRE EDUCAÇÃO E



BIOPOLÍTICA


Sylvio de S. Gadelha Costa

A tarefa de situar e problematizar o lugar e o papel da educação, suas condições de


possibilidade e suas implicações com a biopolítica, em meio ao que Gilles Deleuze denominou de
“sociedades de controle” parece-me constituir uma questão instigante e desafiadora, a ser
enfrentada por estudiosos e pesquisadores em nosso presente, pelo menos por aqueles que se
interessam de algum modo pelo campo educacional. Deve-se ter em mente, contudo, que essa
tarefa levanta algumas indagações e envolve algumas dificuldades. Em outras palavras, o
posicionamento de problemas e as cartografias a serem construídas requerem que se leve em
conta uma série de fatores em jogo em torno desse campo problemático. É disso que pretendo
tratar, em termos muito sumários, neste trabalho.
Um primeiro fator a ser considerado diz respeito ao cuidado que devemos ter em não
tomar essa relação entre educação e biopolítica como algo evidente, como algo já estabelecido
de antemão, mesmo que possamos antever virtuais implicações entre uma e outra. Ao que
parece, o termo biopolítica vem sendo cada vez mais utilizado pelos movimentos sociais, seja no
campo da saúde, seja no campo das lutas ecológicas, assim como nas contendas em torno dos
usos e abusos da biotecnologia, nas lutas democráticas e naquelas empreendidas pelos ativistas
dos direitos humanos. Ora, considerando que as questões que perpassam esses diversos
campos são transversais, que elas envolvem diversos níveis e esferas organizacionais e
institucionais da geopolítica e micropolítica contemporâneas, é de se esperar que a educação
cedo ou tarde seja envolvida por esse misto de “discussão”/problemática, ou trate ela mesma de
averiguar sua implicações, isto é, em que medida e como ela poderia fazer, ou faz parte, de uma
problemática biopolítica.
Em segundo lugar, antes de tentarmos averiguar as condições de possibilidade de uma
relação entre biopolítica e educação, faz-se necessário que nos detenhamos no exame da
primeira, definindo essa noção, situando-a, e dimensionando seus usos, a fim de evitarmos que
ela se propague como mais um chavão, um lugar comum, tornando-se um conceito vago, pouco
operacional e inconsistente para o pensamento e a ação engajados. Tendo em vista que a noção
de biopolítica tem uma assinatura muito precisa, aquela que lhe deu Michel Foucault, talvez seja
conveniente partir das formulações originais desse pensador sobre o assunto, a fim de que
possamos melhor entender o sentido dessa precaução. Num segundo momento, considero

Conferência apresentada no VI Simpósio Internacional de Filosofia - Nietzsche e Deleuze: imagem, literatura e
educação, em Fortaleza, set. de 2005.

Prof. Adjunto do Depto. de Fundamentos da Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira
da FACED-UFC.
2
proveitoso seguir alguns de seus desdobramentos no pensamento de outros autores mais ou
menos próximos a Foucault.
Foucault entende a biopolítica como o modo através do qual se procurou, a partir do século
XVIII, “racionalizar os problemas propostos à prática governamental, pelos fenômenos próprios a
um conjunto de seres vivos constituídos em população: saúde, higiene, natalidade, raças...”.
(Foucault, 1997: p. 89) Mais especificamente, a biopolítica se exerce sobre o “corpo-espécie” da
população, quer dizer, sobre o corpo como suporte de processos biológicos, constituindo-o como
objeto estratégico da arte de governar, tal como ela emerge a partir do final do século XVIII. Esta,
por sua vez, opera por intermédio de biopoderes que tomam a si o encargo de fazer a gestão do
que hoje chamamos “questões sociais”, ou seja, questões relativas à saúde, higiene, alimentação,
sexualidade, segurança pública etc. Funciona, por um lado, em adjacência e em
complementaridade com uma anátomo-política do corpo, animada por um dispositivo disciplinar e
por um dispositivo da sexualidade, que incidem junto aos corpos-máquinas dos indivíduos. Por
outro lado, Foucault se apercebe que o dispositivo da sexualidade não se presta somente à
regulação (adestramento e subjetivação) de indivíduos, mas que concorre também para a
regulação e o controle dos modos de vida das populações, através de uma “grande medicina
1
social”. Num momento posterior de seu trabalho, ele afirma que outra tecnologia de poder
também se encontra agenciada ao controle do corpo social, a saber: a polícia
(Poliziwissenschaft). Essa manifestação ou equivalente de biopolítica constituía, na verdade, uma
espécie de “tecnologia das forças estatais”, que teria por função afirmar e aumentar a força do
Estado, mediante a regulamentação e manutenção da ordem e da disciplina, providenciando o
necessário para que os súditos tivessem uma vida cômoda e feliz. 2 Sob essa perspectiva, pois, o
corpo-máquina dos indivíduos e o corpo social da população são alvos de mecanismos
heterogêneos, mas complementares, que os tomam como objetos de saber e poder. Em termos
políticos, se as disciplinas deram condições de possibilidade à emergência das Ciências
Humanas, em contrapartida, a medicina social, os dispositivos de segurança e os dispositivos
previdenciários, como novos mecanismos de regulação do corpo social, possibilitaram a
emergência de disciplinas, tais como a estatística, a demografia, a geografia e a moderna
economia. Passa-se, assim, diz Foucault, de um Estado-territorial a um Estado-população. 3
Deve-se ter em conta, ademais, que tanto a noção de biopolítica como os problemas que
lhe são concernentes, segundo Foucault, só ganham inteligibilidade à luz do quadro de
1
Cf. FOUCAULT, Michel. O nascimento da medicina social. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder.
Organização, introdução e revisão técnica de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 9a edição, 1990, pp. 79-98.
2
Cf. FOUCAULT, Michel., Resumo dos cursos do Collège de France (1970 – 1982). Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed.,1997, p. 85.
3
Além das referências já apontadas, o biopoder e a biopolítica são também abordados em: FOUCAULT, Michel.
História da sexualidade 1: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1988, pp. 125-149; FOUCAULT, Michel.
Em defesa da sociedade. Curso no Collège de France. São Paulo: Martins Fontes, 1999, pp. 285-315; FOUCAULT,
Michel. Sécurité, Territoire, Population. Cours au Collège de France (1977 - 1978). Lonrai (FR): Gallimard / Seuil,
Hautes Études, 2004; FOUCAULT, Michel. Naissance de la Biopolitique. Cours au Collège de France (1978 -
1979). Lonrai (FR): Gallimard / Seuil, Hautes Études, 2004.
3
racionalidade política no âmbito do qual ambos tiveram condições de possibilidade e adquiriram
acuidade. Este quadro, para ele, é o do liberalismo; não como teoria ou ideologia, mas sim
entendido como uma reflexão crítica sobre a realidade da prática governamental, ou seja, “da
atividade que consiste em dirigir a conduta dos homens em quadros e com instrumentos estatais”.
(Foucault, 1997, p. 90) Pois bem, sob este prisma, Foucault vê o liberalismo introduzir uma
ruptura diante da tendência, até então predominante, de se racionalizar a prática governamental
desde uma “Razão de Estado”, na qual essa prática deveria tender à sua maximização, em
condições otimizadas. Essa maximização, por seu turno, se justificaria pela compreensão de que
haveria um incômodo descompasso entre o controle, a regulação e o regramento operados pela
prática governamental em face do que, por suposto, seria efetivamente necessário em termos
reais. Em suma, sob a ótica dessa Razão de Estado, faltaria governo, ou melhor, governar-se-ia
pouco.
Ora, com o liberalismo dá-se justamente o contrário. Isto é, o que ele trará à cena, no
entender de Foucault, é uma desconfiança quanto a esse princípio, indagando se, inversamente,
não se estaria governando em demasia. Essa indagação, por outro lado, força a análise filosófico-
política a propor outros problemas, assim como a levar em conta um elemento aparentemente
excluído por essa prática governamental assentada numa Razão de Estado. Que elemento é
este? A sociedade. Nas palavras do próprio Foucault:

A reflexão liberal não parte da existência do Estado, encontrando no governo um meio de


atingir essa finalidade que ele seria para si mesmo, mas da sociedade que vem a estar
numa relação complexa de exterioridade e interioridade em relação ao Estado. É ela – ao
mesmo tempo a título de condição e de fim último – que permite não mais colocar a
questão: como governar o mais possível e pelo menor custo possível?, mas esta: por que é
preciso governar? Ou seja: o que torna necessário que haja um governo e que fins ele deve
ter por meta em relação à sociedade, para justificar sua existência? É a idéia de sociedade
que permite desenvolver uma tecnologia de governo a partir do princípio de que ele está já
em si mesmo “em demasia”, “em excesso” – ou, pelo menos, que ele vem se acrescentar
como um suplemento, ao qual se pode e se deve sempre perguntar se é necessário e para
que é útil. (Foucault, 1997, p.91)

Na medida em que o liberalismo passa então a considerar a sociedade nesses termos,


ambíguos, uma vez que esta última se encontra ao mesmo tempo em relação de interioridade e
exterioridade em face do Estado, a necessidade e a utilidade do governo serão justificadas,
doravante, pela assunção da vida como objeto político primordial do poder soberano. Isso
significa que o exercício do governo, por parte desse poder, já não pode definir-se negativamente
em face do direito da sociedade de garantir, manter e desenvolver sua vida. Caberá a ele
exercer-se positivamente sobre a vida social, empreendendo sua gestão, sua majoração, sua
multiplicação, seu controle preciso e sua regulação. Numa palavra: cabe ao governo “fazer viver”.
E, no entanto, diz Foucault, institui-se com isso um estranho paradoxo, que desde então nos
acompanha, seja com sua face cínica, seja com sua face sombria e assustadora:
4

As guerras já não se travam em nome do soberano a ser defendido; travam-se em nome da


sobrevivência de todos; populações inteiras são levadas à destruição mútua em nome da
necessidade de viver. Os massacres se tornam vitais. Foi como gestores da vida e da
sobrevivência dos corpos e da raça que tantos regimes puderam travar tantas guerras,
causando a morte de tantos homens. E, por uma reviravolta que permite fechar o círculo,
quanto mais a tecnologia das guerras voltou-se para a destruição exaustiva, tanto mais as
decisões que as iniciam e as encerram se ordenaram em função da questão nua e crua da
sobrevivência. (Foucault, 1988, p. 129)

Posto isso, constituiria um despropósito a possibilidade de alguém vir a indagar se


Foucault teria estabelecido uma relação efetiva entre educação e biopolítica? Pois não foi ele
próprio quem caracterizou esta última como uma “grande medicina social”, e também como algo
que remete a um mecanismo policial de controle e regulação do corpo social? Com efeito, se é
que ela realmente foi abordada por Foucault, que relação seria esta e em que medida a educação
seria crucial à biopolítica? Acreditamos que essa não é uma questão irrelevante, haja vista que,
em nosso entender, pelo menos até recentemente, em nosso país, parte considerável dos
estudos e pesquisas em educação inspirados em Foucault, parece ter gravitado
preferencialmente em torno das tecnologias disciplinares de subjetivação, operadas nas e através
das instituições e/ou organizações educativas, incidindo sobre os corpos e subjetividades dos
indivíduos-alunos. Essa ênfase nos efeitos das disciplinas no campo educacional parece
confirmar essa “reserva crítica”, isto é, a de que as questões biopolíticas, na medida em que
foram remetidas por Foucault ao modus operandi de uma “grande medicina social”, e de um
mecanismo “policial”, não implicariam substancialmente a educação. Com efeito, se nos atermos
às formulações mais substanciais de Foucault acerca desse assunto, ou melhor, ao estatuto que
a noção de biopolítica tem em seu pensamento, creio que devemos ter em conta que a educação
não tem aí, precisamente, um papel fundamental.4
Nisso reside, portanto, uma das dificuldades a serem superadas, ou um mal-entendido a
ser evitado, se quisermos levar a cabo a tarefa a que aludimos logo ao início desse trabalho.
Entretanto, se Foucault não estabeleceu uma conexão, um laço significativo entre biopolítica e
educação, isso não significa que ele não nos tenha deixado importantes elementos para tanto,
desde os quais podemos tentar pensar e dimensionar a educação em suas virtuais implicações

4
Quando comecei a me ocupar desse misto de tema/problema, atendo-me apenas ao pensamento de Foucault,
pensava que os processos de normalização poderiam vir a constituir o principal vínculo (“a chave” de conexão)
entre biopolítica e educação. Todavia, leituras posteriores e conversas produtivas com o filósofo Roberto Machado
levaram-me a reconsiderar minha posição. Para Roberto Machado, a noção de biopolítica tem uma “incidência
muito pequena” em Foucault, além de ocupar um lugar “muito preciso e delimitado” em seu pensamento. Assim,
dizia ele, mesmo admitindo-se que ela tenha sido remanejada após a publicação do primeiro volume de História da
Sexualidade (A vontade de Saber), reaparecendo, por exemplo, na última aula de Em Defesa da Sociedade (Curso
no Collège de France - 1975 – 1976) e, posteriormente, num Curso dedicado ao Nascimento da Biopolítica (1978 –
1979) - e considerando ainda que a partir de então ela praticamente “desaparece” em seus trabalhos posteriores,
não se poderia deduzir daí que Foucault tenha continuado a lhe dar privilégio, quanto mais a uma relação entre
biopolítica e educação. Na edição revista e ampliada de Ciência e saber: a trajetória arqueológica de Michel
Foucault, sob o novo título de Foucault, a ciência e o saber (2006, Zahar Editor), Roberto Machado fornece
elementos que ajudam a melhor situar essa questão.
5
com a singular forma com que a biopolítica funciona em nossa contemporaneidade. Em outros
termos, com a ajuda de Foucault, pensando com ele, e diante dos novos fatores que crivam
nossas existências, podemos tentar ver se há ou não condições de possibilidade para que se
estabeleça essa relação, assim como em que termos isso poderia ser feito e como poderíamos
estimar sua dimensão. Nessa direção, já não se trata de fazer uma pesquisa sobre – a biopolítica
em - Foucault, mas de tomá-lo como intercessor privilegiado em pesquisas outras; já não se trata
de pensar a biopolítica necessariamente nos termos em que ele o fez, mas de tomar de
empréstimo esta noção e procurar ver, caso seja realmente possível estabelecer uma relação
entre ela e a educação, em que termos essa relação poderia se dar, que novos elementos,
funções e conexões essa relação atualmente faria operar, assim como averiguar quais seriam as
novas modalidades de exercício da biopolítica em nossos dias.
Nessa perspectiva, devemos ter o cuidado de não concebermos a educação sob
parâmetros demasiado estreitos, reduzindo-a, por exemplo, aos tradicionais discursos que
enunciam os limites e especificidades da escola e do processo de escolarização, tomados em
oposições estanques relativamente a outros estratos e forças organizacionais e institucionais do
funcionamento social. Em segundo lugar, é importante não perdermos de vista não só a
démarche de Foucault, mas também os desdobramentos do próprio conceito de biopolítica, tanto
em seu pensamento quanto nos daqueles que por ele foram mais ou menos influenciados (por
exemplo, Gilles Deleuze, Félix Guattari, Antonio Negri, Michael Hardt e Giorgio Agamben),
averiguando as redefinições de que esse termo foi objeto, bem como novos elementos e
problemas que ele pode vir a suscitar. Nesse sentido, aquela hipótese a que aludi anteriormente
pode e deve ser retomada, ou melhor, recolocada em outros termos: o exercício da biopolítica
envolve, por um lado, novos diagramas imanentes ao campo social (seria o caso de se avaliar os
lugares e papéis das grandes corporações, do consumismo, do marketing, da publicidade, da
propaganda, das novas tecnologias de informação e das biotecnologias, por exemplo) e, de outro,
o exercício de biopoderes e de processos de normalização (novas tecnologias empresariais e
administrativas de gestão das subjetividades). Além disso, seria o caso de se avaliar como todos
esses fatores se encontram agenciados entre si em nosso presente. Ora, será que os novos
mecanismos de dominação, controle e normalização (os “controlatos” do Império) teriam
condições de possibilidade sem o concurso da educação, isto é, sem que mobilizassem, uns nos
outros, uns através dos outros, uns desde os outros e uns para os outros, um vetor ou uma
dimensão pedagógicos?
De qualquer modo, tendo isso em vista, vale a pena explorar um pouco mais os
desdobramentos da noção de biopolítica em Foucault e os novos problemas que ela faz emergir,
pois tanto os primeiros como os segundos tendem a ampliar e a tornar ainda mais complexa essa
relação agonística entre poder e vida, bem como os virtuais lugares que a educação pode vir a aí
6
ocupar. Atenhamo-nos apenas ao fato de que Foucault logo trata de reinscrever aquela
tecnologia policial, bem como a higiene pública e a medicina social que lhe eram correlatas, nos
quadros gerais de uma problemática mais ampla, na qual a biopolítica assumiria seu sentido
pleno. Ora, segundo Judith Revel (2005), esse movimento indica uma “ultrapassagem da
tradicional dicotomia Estado/sociedade, em proveito de uma economia da vida em geral”. (Revel,
2005, p.27, grifos meus) Esse movimento, prossegue Revel, faz emergir um novo problema, qual
seja:

Trata-se de pensar a biopolítica como um conjunto de biopoderes ou, antes, na medida em


que dizer que o poder investiu a vida significa igualmente [dizer] que a vida é um poder,
pode-se localizar na própria vida (...) o lugar de emergência de um contra-poder, o lugar de
uma produção de subjetividade que se daria como momento de desassujeitamento? (Id.
Ibid, pp.27-28)

Para a autora, Foucault decide avançar na exploração dessa hipótese, e, ao fazê-lo,


terminaria por propor em novos termos a ética da relação com o político. Daí por diante, portanto,
uma análise e uma prática política que pretendam corporificar atos de resistência, devem retomar
incessantemente as relações de poder e a agonística destas com a “intransitividade da liberdade”.
Também para Peter Pelbart (2000), Foucault havia claramente se apercebido de que “aquilo que
o poder investia – a vida – era precisamente o que doravante ancoraria a resistência a ele, numa
5
reversão inevitável”. (Pelbart, 2.000, p.27) Bem, servimo-nos do posicionamento desse
problema tanto para encerrarmos a primeira parte de nossa apresentação, como para iniciarmos
a segunda.

Voltemos a ele, pois, traduzindo-o nos seguintes termos: “o que fazer quando o campo de
ancoragem da resistência tende a coincidir com o campo de incidência do poder?” (Id. Ibid, p.27)
Quanto a este ponto, gostaria de fazer duas breves observações. A primeira, é que ao orientar
seu pensamento nessa direção, trabalhando a ética, o cuidado de si, parece-me que Foucault
sinaliza alguma aproximação, senão pelo menos uma ressonância, ou afinidade, às posições
assumidas conjuntamente por Gilles Deleuze e Félix Guattari, em face do exercício do pensar e
do exercício da política. Não estou, com isso, desconsiderando divergências apontadas pelo
próprio Deleuze entre o modo como ele e Guattari concebem a dinâmica social, e a posição
assumida por Foucault quanto a esse mesmo tema, dentre as quais talvez a mais importante seja
a de que o que é primeiro em uma sociedade, não é tanto o fato de que ela se estrategiza através
de tecnologias políticas de saber-poder (posição que estes autores atribuiriam a Foucault), senão
6
que algo nela foge, vaza. Todavia, em que pesem essa e outras divergências, tanto os autores
5
PELBART, Peter Pál. A vertigem por um fio: políticas da subjetividade contemporânea. São Paulo: Iluminuras,
2000, p. 27.
6
Cf. DELEUZE, Gilles. Desejo e prazer (carta de Deleuze a Foucault). In: ROLNIK, Suely & PELBART, Peter.
(orgs.). Cadernos de Subjetividade. São Paulo: Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade/ Programa de
7
de Mil Platôs como Foucault, assumem uma posição imanentista em face das relações entre
poder e resistência, descortinando, portanto, possibilidades outras de avaliação dos jogos de
forças que nos envolvem, possibilidades ético-estéticas para a existência e para o exercício da
política, desconcentrando-as, pluralizando-as, intensificando-as etc. De todo modo, a tese de
Deleuze e Guattari afirma uma explícita primazia ontológica da vida em face do poder. Isso quer
dizer que embora a vida tenha se tornado o objeto político, por excelência, do capital, isto é,
aquilo de que este necessita e de que se alimenta para (re)animar sua maquinaria infernal de
axiomatização e produção serializada de subjetividades, ela, todavia, constitui, anteriormente, em
termos ontológicos, justamente o que teima em resistir aos seus mecanismos de captura e
assujeitamento, na medida em que devém permanentemente pela variação complexa de suas
formas e pela reinvenção constante de suas coordenadas de enunciação.
Ora, curiosamente, em Império, Antonio Negri e Michael Hardt (2001) dão a entender que
Foucault ainda veria essa relação sob uma perspectiva inversa (primazia ontológica do poder
sobe a vida), e que, por isso mesmo, talvez fosse mais produtivo , aos olhos desses autores, sob
inspiração de Deleuze e Guattari, conceber a biopolítica em outros termos, isto é, tomando-a
como uma potência instituinte imanente à vida da multidão (multitude) - exercida por todos e
qualquer um -, e funcionando em favor de sua afirmação. Sob essa perspectiva, tomada num
sentido inverso ao que lhe havia dado Foucault, o termo biopolítica, como diz Peter Pelbart 7,
assume maior abrangência e positividade, constituindo-se como signo resistência, de vitalidade
social da multidão; ela se institui como potência política liberadora em face dos mecanismos de
dominação dos biopoderes.
Para que melhor se entenda o modo como Negri e Hardt concebem a biopolítica, a
abordagem de dois pontos me parece essencial: a) como eles interpretam o que sucede na
transição entre as sociedades disciplinares e as sociedades de controle; b) como se utilizam de
Foucault, Deleuze e Guattari em suas próprias formulações sobre o biopoder e a biopolítica.
Passemos em revista, portanto, esses dois pontos. No segundo capítulo da parte I de Império,
Negri e Hardt voltam sua atenção ao que eles chamam de “produção biopolítica”, centrando sua
análise na transformação material que dá substancialidade ao novo paradigma de governo –
inclusive, aos seus conceitos e sistemas jurídicos. Em suas próprias palavras, trata-se de
“descobrir os meios e as forças de produção da realidade material, bem como as subjetividades
que a animam” (Negri; Hardt, 2001, p.41). De início, os autores prestam seu reconhecimento a
Foucault, afirmando que este permitiu reconhecer a transição histórica entre as sociedades
disciplinares e as sociedades de controle. Em seguida, após caracterizarem os principais traços
da primeira e da segunda, voltam a prestar tributo a Foucault, pelo fato deste ter antecipado “a

Estudos de Pós-Graduados em Psicologia Clínica / Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC / SP -, n o
especial (Deleuze), jun. 1996.
7
Cf. PELBART, Peter Pál. Vida capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003, p.14.
8
natureza bio-política do novo paradigma de poder” (Id. Ibid, p.43) Ao definirem esse novo
paradigma, salientam que diferentemente do que sucedia nas sociedades disciplinares, em que a
ação e os efeitos das tecnologias biopolíticas eram ainda localizados, nas sociedades de controle,
por sua vez, os biopoderes recobrem todo o socius, envolvendo a vida (consciência e corpo da
população) por inteiro (em toda a sua extensão) e por dentro (já não há mais um “fora do poder”),
buscando monitorá-la, regulá-la, administrá-la e controlá-la, assegurando assim a sua produção e
a sua reprodução.
Retomando uma tendência que já havia sido apontada anteriormente por Marx e pelos
teóricos da Escola de Frankfurt, a saber, a de que o desenvolvimento do capitalismo se inclinava
para uma relação cada vez mais intensa de mútua implicação de todas as forças sociais, Negri e
Hardt chamam nossa atenção para a forma singular com que esse processo se dá na transição
entre as sociedades disciplinares e as sociedades de controle:

A transição a que nos referimos, entretanto, é fundamentalmente desigual porque, em vez


de concentrar-se na unidimensionalidade do processo descrito por Marx e reformulado e
ampliado pela Escola de Frankfurt, a transição foucaultiana lida fundamentalmente com o
paradoxo da pluralidade e da multiplicidade – e Deleuze e Guattari desenvolveram essa
perspectiva com clareza ainda maior. A análise da subordinação real, entendida como
envolvendo não apenas a dimensão econômica ou apenas a dimensão social da sociedade
mas também o próprio bios social, e quando está atenta às modalidades de disciplinaridade
e/ou controle, desfaz a figura linear e totalitária do desenvolvimento capitalista. A sociedade
civil é absorvida no Estado, mas a conseqüência disso é uma explosão dos elementos
previamente coordenados e mediados na sociedade civil. As resistências deixam de ser
marginais e tornam-se ativas no centro de uma sociedade que se abre em redes, os pontos
individuais são singularizados em mil platôs. O que Foucault implicitamente construiu (e
Deleuze e Guattari tornaram explícito) é portanto o paradoxo de um poder que, à medida
que unifica e envolve todos os elementos da vida social (perdendo com isso sua
capacidade efetiva de mediar diferentes forças sociais), nesse exato momento revela um
novo contexto, um novo milieu de máxima pluralidade e incontornável singularização – um
milieu do evento. (Negri; Hardt, 2001, p. 44)

Essa constatação faz com que os autores dirijam sua atenção ao que seria uma dimensão
“produtiva” do biopoder. Essa tarefa, por seu turno, requer que examinem como Foucault e, em
segundo lugar, Deleuze e Guattari se posicionam em face da dinâmica da produção no
capitalismo contemporâneo, em que emerge a nova ordem Imperial. Se Foucault é por eles
elogiado por ter re-introduzido fatores culturais e subjetivos na estrutura material fundamental da
sociedade, concebendo-a, pois, como dimensão que não se reduz apenas ao econômico, ele não
deixa de ser criticado por não ter captado com maior acuidade qual seria a real dinâmica de
produção numa sociedade eminentemente biopolítica. Para Negri e Hardt, Foucault ainda não
teria se desembaraçado completamente de certa influência estruturalista. Quanto aos segundos,
Deleuze e Guattari, estes sim, teriam dado um passo adiante, compreendendo efetivamente,
desde uma perspectiva materialista, de que modo o ser social é produzido, assim como a relação
9
dessa produção com o biopoder das sociedades contemporâneas. Todavia, também são
criticados por não darem conta de uma questão crucial a Negri e Hardt:

Eles (Deleuze e Guattari) concentram nossa atenção claramente na substância ontológica


da produção social. Máquinas produzem. O constante funcionamento das máquinas sociais
em seus diversos aparelhos e montagens produz o mundo juntamente com os sujeitos e
objetos que o constituem. Deleuze e Guattari, porém, parecem capazes de conceber
positivamente apenas as tendências ao movimento contínuo e aos fluxos absolutos, e
assim, em seu modo de pensar, também, os elementos criativos e a ontologia radical da
produção social permanecem insubstanciais e impotentes. Deleuze e Guattari descobrem a
produtividade da reprodução social (produção criativa, produção de valores, relações
sociais, afetos, formações), mas conseguem articulá-la apenas superficial e efemeramente,
como um horizonte caótico e indeterminado, marcado pelo evento inalcançável. (Id., Ibid.,
p.47)

De todo modo, seguindo nas trilhas deixadas por esses autores, assim como pelo
movimento do operaísmo italiano, Negri e Hardt, como disse anteriormente, terminarão por
conceber a biopolítica em outros termos. É com ela e nela que a biopotência da multidão resiste
ao biopoder das sociedades de controle. Império, de Negri e Hardt, perfaz um original e
importante esforço para se pensar as condições e os conflitos geopolíticos de nosso presente, a
partir de uma perspectiva biopolítica. E, nesse sentido, apesar das críticas, não nos enganemos,
ele está mais próximo de Foucault do que aparenta.
Por outro lado, antecipando-se aos autores de Império, seguindo de forma inventiva e
independente nas trilhas deixadas por Foucault, mas explorando campos por ele pouco ou nada
trabalhados, tais como o direito e a teologia, o filósofo italiano Giorgio Agamben traz novos
elementos a essa discussão, estendendo ainda mais a amplitude e a complexidade do problema
da biopolítica. Ao direcionar sua problematização para o campo do direito, também com a ajuda
de Walter Benjamin e Hannah Arendt, o intuito de Agamben é o de se debruçar sobre o
funcionamento de mecanismos e estruturas jurídicos que procuram normatizar o campo da
política e da ação social. Em o fazendo, conclui que, antes mesmo do advento das sociedades
disciplinares, diferentemente do que pensava Foucault, já podemos vislumbrar o funcionamento
de um biopolítica. Mas, então, em que termos ele a entende, que outras questões ela evoca e que
reposicionamentos eventualmente se fariam necessários para melhor compreendermos o que
está em jogo diante de tudo o que se levantou até aqui?
Para Agamben (2002), um dos maiores méritos do trabalho de Foucault foi ter explicado
como o Estado ocidental moderno chegou a desenvolver um “duplo vínculo político” entre, de um
lado, “técnicas políticas” e, de outro, “tecnologias do eu”. Ao passo que através das primeiras o
Estado pôde assumir e integrar em seus domínios o cuidado da vida natural dos indivíduos,
mediante as segundas, por seu turno, ele conseguiu instituir processos de subjetivação que
funcionavam de modo a fazer com que os indivíduos se vinculassem à própria identidade e
10
consciência, assim como se sujeitassem a um poder de controle externo. Ora, diz Agamben, se
Foucault foi capaz de apontar essa convergência entre “procedimentos totalizantes” e “técnicas
de individuação”, ele, todavia, não teria deixado claro o ponto nodal em que eles efetivamente se
tocam, ou seja, o ponto de intersecção no qual esse duplo vínculo político encontraria sua razão
de ser. No entender de Agamben, esse ponto de intersecção parece constituir uma zona de
indiscernibilidade que restou, à sombra, desafiando o pensamento arqueogenealógico. Contudo,
se este não puder pensá-la, afirma ele, nada poderá compreender de nossas atuais condições de
existência. Vejamos, então, como Agamben se propõe escapar a esse dilema.
Para isso, ele nos reenvia àquela ambigüidade, já levantada por Foucault, quando este se
referia ao quadro de racionalidade política no âmbito do qual a biopolítica pôde emergir, ou seja,
ao liberalismo. Relembremos: é da sociedade (como condição e fim último), e não do Estado, que
a reflexão liberal deve partir a fim de poder responder por que é preciso governar. Contudo,
“sociedade”, aqui, é situada por Foucault como guardando uma relação complexa e ambígua com
o Estado: ela é tomada, simultaneamente, como interior e exterior a ele. Pois bem, essa relação
complexa e ambígua da sociedade em face do Estado é o que mais interessa a Agamben, pois
ela encerraria e atualizaria, em nossa modernidade e em nossa contemporaneidade, o nexo
oculto da relação entre política e vida. Entretanto, como dissemos, ele julga poder encontrá-la
antes mesmo do advento das sociedades disciplinares, isto é, ela já se faria presente nas
sociedades de soberania. Isso significa, aos olhos desse filósofo, que a produção de um corpo
biopolítico constitui, na verdade, obra do poder soberano.
Mas, então, qual a argumentação de Agamben? De início, ele parte do fato de que os
gregos denominavam zõé o simples fato de viver, comum a qualquer ser vivo, e bios, por sua vez,
constituiria uma vida de outro tipo, uma vida qualificada: por exemplo, uma vida política, uma vida
filosófica. Ao passo que estas últimas pertencem ao âmbito da polis, a primeira, por seu turno,
como “vida natural”, vida nua, encontra-se dela excluída. Mas, vejam bem. Segundo Aristóteles,
se é certo que o homem é um ser vivente, que ele é animado por zõé, ou seja, que ele existe
como vida nua, como vida natural, o mais importante e decisivo é que, “além disso”, ele é capaz
de uma existência política. É por isso que se diz que o homem é um “animal político”. Nesses
termos, a existência política do homem excluiria (ou pelo menos não se definiria por) sua vida
nua.
Ora, quando é que essa existência política, em nossa modernidade, dá lugar a uma
problemática propriamente biopolítica? Isso se dá a partir do momento em que ela já não pode
ser pensada numa relação de exterioridade absoluta com a vida nua, zõé. E Foucault já o
apontava, genialmente, no final de A vontade de saber, ao dizer que “o homem moderno é um
animal, em cuja política, sua vida de ser vivo está em questão”. (Foucault, 1988, p.134) Mas,
segundo Agamben, engana-se quem pensa que só nesse momento se constrói a politização da
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vida nua, isto é, algum tipo de vinculação entre soberania (Estado social/ de Direito) e vida nua
(Estado de Natureza). Pois eis que, estudando o direito romano arcaico, ele descobre o caso
curioso do homo sacer. Esse homem sagrado, a um só tempo mal e impuro, embora julgado pelo
povo por ter cometido um delito, não pode ser sacrificado. Todavia, estranhamente, se alguém
vier a matá-lo, não será condenado por homicídio. Percebam que curiosa condição. Por um lado,
se ele é insacrificável, é por estar aquém e além da esfera religiosa; por outro lado, se sua vida é
matável, sem que isso venha a constituir um crime, é porque tampouco se situa na esfera da lei.
Qual é, então, o lugar ocupado por essa vida? Que zona de indiscernibilidade é essa que o homo
sacer habita? É justamente esse enigmático caso, essa paradoxal condição de uma vida nua
duplamente excluída, que Agamben verá ressoar nos tempos modernos e atuais, mas
equacionados sob condições muito peculiares.
Se nas sociedades de soberania já opera uma biopolítica, é porque esta funciona de modo
a tomar a vida nua, da sociedade, ou melhor, da população, do povo (com “p” minúsculo) como
aquilo que deve ser incluído, no âmbito do Estado de direito (do Estado que concerne um Povo,
com “P” maiúsculo), através de uma exclusão. O instrumento que torna possível essa inclusão
por exclusão, é o estado de exceção. O problema da biopolítica se institui com toda força,
todavia, justamente quando já não se consegue mais discernir entre aquele espaço ocupado pela
vida nua (espaço, a princípio, “fora” da lei), daquele outro espaço por esta normatizado (espaço
de bios). Em outros termos, quando já não se consegue diferenciar entre que vida está dentro e
que vida está fora, que vida é interior e que vida é exterior à política, haja vista que a referência
maior da qual o poder soberano se serve para balizar interioridade e exterioridade, o que é de
direito e o que é de fato, a saber, o estado de exceção, perde seus contornos, sua definição,
deixando de ser excepcional para se tornar ordinário, tendendo a fazer coincidir vida nua e norma
numa zona de indiferenciação. Juliana Merçon (2004), num texto recente e precioso, resume o
essencial da tese de Agamben, e nos mostra como ele acredita ter conseguido esclarecer aquela
questão que havia sido deixada em aberto por Foucault:

Com o homo sacer, a vida humana se inclui na ordem religiosa e jurídica unicamente sob a
forma da exclusão. A inclusão da vida por meio de sua exclusão faz com que participe de
um estado de exceção. O estado de exceção, no qual a vida nua era, ao mesmo tempo,
excluída da ordem jurídica e nela contida, constituía, segundo Agamben, o fundamento
oculto sobre o qual repousava todo o sistema político. Ocorre, no entanto, que o espaço da
vida nua, situada originariamente à margem da ordem jurídica, vai coincidindo
progressivamente com o espaço político, de forma que exclusão e inclusão, externo e
interno, zõé e bios, direito e fato entram em uma zona de indiferenciação. O espaço que era
juridicamente vazio no estado de exceção extrapola seus limites e passa a coincidir com a
norma. Quando a exceção tende a converter-se em regra, estado de natureza e Estado de
direito, vida e lei coincidem sem nenhum tipo de distinção. Quando as fronteiras do estado
de exceção se desmancham e se fazem indeterminadas, a vida nua, específica, que ali
habitava fica liberada em toda parte e passa a ser ao mesmo tempo o sujeito e o objeto do
ordenamento político e de seus conflitos, o lugar único tanto da organização do poder
estatal como da emancipação dele. (Merçon, 2004, p.7)
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Ora, quais as conseqüências que Agamben extrai dessa inusitada situação? Em primeiro
lugar, como atesta o texto de Juliana, tem-se esse paradoxo da modernidade: se, por um lado,
esta elege o indivíduo, sua vida e sua liberdade como aquilo que há de mais precioso e que,
portanto, deve constituir objeto de preservação e proteção por parte do poder público, por outro
lado, todavia, essa entrega total do indivíduo e de sua liberdade ao Estado dá a este um poder
ilimitado sobre sua vida. Em segundo lugar, se o poder soberano, tal como concebido por Karl
Schmitt - jurista e ideólogo do nacional-socialismo - se define pelo seu poder legal de suspender a
validade da lei, instituindo assim o estado de exceção, ele se coloca ao mesmo tempo dentro e
fora dela, isto é, dentro e fora do ordenamento jurídico. Mas, além disso, se esse procedimento
de suspender legalmente a validade da lei deixa de ser excepcional, e se torna a regra, decorre
daí que estamos sendo cada vez mais governados, mesmo nas democracias ocidentais, como diz
Agamben, por estados de exceção. E aqui, diz o filósofo, é preciso que estejamos atentos ao que
sucede à vida nua da população: tal como no caso do homo sacer, esta pode vir a ser qualificada
pelo poder soberano como uma vida indigna de ser vivida, impura, haja vista que aparece como
obstáculo à constituição de um corpo político não fraturado, unificado. Vista sob essa perspectiva,
e uma vez que ela, por efeito da exclusão inclusiva da exceptio, se vê colocada à margem da lei,
do direito, da norma, porque não tomá-la como descartável? Não é outra coisa o que sucedeu
aos judeus e aos ciganos, por exemplo, sob a tirania nazista: o que se exterminou ali não foram
vidas humanas qualificadas, mas algo equivalente a “ratos”, “piolhos”, vida nua qualquer. Aos
olhos dos nazistas, não se tratava de um crime, senão de uma limpeza. Nesse sentido, afirma
Agamben, o campo de concentração nazista constitui o modelo por excelência da biopolítica que
nos concerne, em sua forma mais cristalina e essencial. No limite, por fim, tudo isso concorre
para questionar a própria relação entre política e direito, problema que sempre foi negligenciado
pelo pensamento marxista, segundo Agamben, pelo fato deste “acreditar que o direito, em última
instância, era um instrumento neutro do qual poderíamos nos servir sem problemas”. 8
Assim, passando tudo o que dissemos em revista, o que importa reter é que todos esses
autores, Foucault, Deleuze, Guattari, Negri, Hardt e Agamben, malgrado as diferenças que
guardam entre si, cada um a seu modo, com suas respectivas ferramentas conceituais, parecem,
no entanto, convergir no sentido de nos propor elementos significativos para uma
problematização biopolítica de nosso presente, de nossas condições de existência. E a maneira
como o fazem (em favor de uma atitude ética e estética em face da existência, da produção de
linhas de fuga ativas, por construções singulares de uma relação a si, do exercício da biopotência
da multidão, e da profanação), conflui por uma especial relevância à imanência, à diferença, às
multiplicidades, à complexidade e ao fato de que pensar é resistir. Nosso desafio, tal como o

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Entrevista ao caderno especial MAIS, do jornal Folha de São Paulo, em 18/09/2005.
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colocamos logo ao início de nossa fala, é voltar essa problematização, essa maquinaria
conceitual e essa atitude para o campo educacional; é buscar cartografar em que termos e em
que medida a educação se faz agenciar e/ou é agenciável por uma biopolítica em nossos dias.

Referências bibliográficas

AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Ed. UFMG,
2002.
FOUCAULT, Michel. Resumo dos cursos do Collège de France (1970 – 1982). Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 1997.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Ed. Graal,
1988, p. 129.
HARDT, Michael, NEGRI, Antonio. Império. Rio de Janeiro: Ed. Record, 2001.
MACHADO, Roberto. Foucault, a ciência e o saber. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006.
MERÇON, Juliana. Biopolítica e imanência. In: II Colóquio Franco-Brasileiro de Filosofia da
Educação: O devir-mestre – entre Deleuze e a educação (CD-Room). Rio de Janeiro, UERJ,
2004.
PELBART, Peter Pál. A vertigem por um fio: políticas da subjetividade contemporânea. São
Paulo: Iluminuras, 2000.
REVEL, Judith. Foucault: conceitos essenciais. São Carlos (SP): Claraluz Ed., 2005.

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