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ANAIS
III FÓRUM DE PESQUISA CIENTÍFICA EM ARTE
Escola de Música e Belas Artes do Paraná. Curitiba, 2005

TROPICALISMO E PÓS-TROPICALISMO:
LEITURA DE PROCEDIMENTOS POÉTICOS
Marcelo Franz*

RESUMO: Busca-se aqui situar e avaliar criticamente o significado artístico da produção


poética das letras de canções do Tropicalismo e compará-las com outras manifestações da
poesia brasileira, a fim de se entender as influências recebidas e as fornecidas por esse
movimento.

Nascido na esfera da canção popular, mas mantendo, em sua curta existência, amplo e
produtivo diálogo com expressões de outras artes, como o cinema, a literatura e o teatro, o
Tropicalismo é um dos mais significativos exemplares da agitação cultural que marca a década
de 1960 no Brasil. O entendimento das possíveis relações de influência mútua que
aproximaram a criação dos artistas do Tropicalismo e os de outros movimentos literários
anteriores e posteriores é o que impulsiona este estudo.

POESIA E CANÇÃO POPULAR: APROXIMAÇÕES

A complexa rede de correspondências entre poesia e música surge de uma origem


comum, não de todo apagada mesmo depois de sua diferenciação no processo histórico. Nas
origens do que se entende por literatura, em contextos culturais ainda marcados pela tradição
oral, os elementos musicais (especialmente o ritmo e os paralelismos) eram associados à
palavra com a intenção de criar os efeitos mnemônicos, garantindo a preservação dos
conteúdos compostos, mesmo que não fossem escritos. Na Grécia clássica, a poesia lírica,
definida por Aristóteles (na Poética) como aquela em que prevalece a voz pessoal do poeta
*
Doutor em Literatura Portuguesa pela USP. Mestre em Literatura Brasileira e graduado em Letras Português-
Francês pela Universidade Federal do Paraná. Professor de Literaturas Brasileira e Portuguesa no curso de Letras
da PUCPR. Publicou artigos nos livros Literatura dos Anos 90 – Diversidades Cultural e Recepcional (Juruá, 2003) e
Linhas e Entrelinhas (Casemiro, 2003).
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expressando sentimentos, era composta para ser cantada ou acompanhada por música, tendo-
se como instrumentos mais usuais a flauta e a lira, de onde vem a expressão poesia lírica. Na
mesma linha dessa performance recitativo-cantada, praticavam-se por esse tempo a poesia
mélica, a poesia de coro e as elegias, todas ligadas à música.
É sabido que, em virtude dessa gênese comum, mesmo após a separação dessas
artes, prevaleceu na teoria da poesia, sobretudo no que tange à versificação, o uso de termos
tomados de empréstimo do universo musical, como Leitmotiv, dissonância, melodia, harmonia,
polifonia, dominante, cadência, período, tema, frase, motivo, entoação, timbre, metro, ritmo.
Além disso, contam-se as formas poéticas com origem vinculada à expressão musical:
baladas, barcarolas, canções trovadorescas, hinos, salmos, liras, odes, madrigais, cantatas,
cantigas, solaus, pastorelas, albas, rondós etc.
Apesar de ser anterior à poesia e, em certo sentido, prescindir dela (especialmente no
muito da expressão musical que transcende o canto), a música também se alimenta do poético
seja nas temáticas de muitas importantes peças de compositores, inspiradas no que a literatura
consagrou, seja na convivência intelectual de músicos e poetas, que resulta na comunhão de
idéias e conceitos, que derivam em tomadas de atitude no campo dos procedimentos
composicionais, caracterizando os estilos de época.
Apesar dessas aproximações e de um histórico de afinidade notável, há que se ver
limites teóricos separando a leitura dessas artes. Longe de se mostrar consensual entre os
estudiosos da literatura, a verificação do valor poético do texto voltado ao canto, dado o status
de grande arte adquirido por essa modalidade de escrita no Brasil, é uma questão conceitual
polêmica diante da qual são tomadas posições variadas e, não raro, extremistas. Ítalo Moriconi1
sintetiza essa discussão observando:

Existem aqueles que defendem a letra de música como poesia e ponto. Sem maiores ressalvas.
Em contrapartida, existem aqueles que defendem a poesia contra a letra de música, dizendo que esta
jamais se sustenta como autêntica poesia de livro. [...] Mas na sua face de arte brasileira da palavra, a
poesia está, em boa parte, nas letras da música popular. Está no cordel nordestino, recitado por cantadores
nas feiras e nas ruas. Está no rock dos anos 80 e no hip hop dos 90. Em nenhum outro lugar do mundo a
canção popular atingiu um status tão intelectual quanto no Brasil.

É necessário, porém, que se estabeleçam nesse debate algumas distinções entre as


artes tendo em vista o modo como operam, no nível da linguagem, a comunicação com o
receptor. A poesia se caracteriza, para além das origens mencionadas acima, como arte verbal
dependente da escrita e da leitura individualizada de um objeto intelectual, o poema, que pouco
apela (de modo direto) a entendimentos “sensoriais”, por exemplo, da parte de quem lê. Longe
ficou a fase em que sua única condição de sobrevivência era o canto, mesmo que o estrato
sonoro da composição poética seja importante para o adensamento dos sentidos. A canção,

1
MORICONI, Ítalo. Como e porque ler a poesia brasileira do século XX. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. p. 11 e 14.
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independentemente da sua dimensão textual – a letra de música, que não se volta


primeiramente à leitura e, em muitos casos, não resiste a ela – é uma arte performática,
recebida e percebida como comunicação que ultrapassa o intelectual, contemplando, mesmo
na gravação ouvida solitariamente, um envolvimento menos indireto, porque mais sensorial,
ditado pelo som.
A verdade é que, nos melhores casos, a arte da composição de letras no Brasil atingiu
um refinamento que permite a cogitação de que o sensorial e o intelectual, o performático e o
verbal por vezes desafiam as separações estanques. Ao equilibrar melodia e verso, texto e
som, sem decréscimo de qualidade de nenhum desses ingredientes, o compositor brasileiro é
responsável pela criação de muito do que de melhor o gênio nacional tem sido capaz, nas
últimas décadas, permitindo a aproximação dos estudos do textual e do musical no
entendimento do modo de nos expressarmos e entendermos o mundo. É Luiz Tatit quem
afirma, a esse respeito:

A canção brasileira ocupa hoje um espaço artístico amplo demais para permanecer desvinculada
de qualquer esfera de reflexão do país. Há todo um aparato industrial, tecnológico e mercadológico
cuidando de sua produção e aumentando seu poder de penetração nos diversos setores socioculturais sem
que haja, em contrapartida, qualquer acompanhamento analítico em condições de desvendar ao menos
uma parcela desses estratos de sentido que a canção movimenta diariamente.2

Este estudo pretende enfrentar essa provocação, aceitando-se incapaz de dar conta da
abrangência do problema. Veremos alguns dos pontos em que o movimento tropicalista, com
suas composições de letras, dialogou com o literário.

O TROPICALISMO E SEU CONTEXTO CULTURAL

Originado sob o signo da cultura pop e expressando uma mundividência moderna,


urbana, universalizante, alimentada por informações estéticas da indústria cultural e do young
power sessentista (especialmente a produção musical), o Tropicalismo propôs, ao mesmo
tempo, uma retomada assumida e irônica, no dizer de Caetano Veloso, do elemento cafona da
nossa cultura, assumindo o caráter contestador dessa escolha. Contestação e
experimentalismo são termos que aproximam a postura estética dos tropicalistas do espírito
geral do pensamento, do ativismo e do comportamento dos anos 60. Heloísa Buarque de
Hollanda e Marcos A. Gonçalvesrefletem sobre a cultura nacional do dos anos 60 afirmando:

Havia toda uma área de afinidades no campo da produção cultural, envolvendo uma geração
sensibilizada pelo desejo de fazer da arte não mais um instrumento repetitivo e previsível de uma
veiculação política direta, mas um espaço aberto à invenção, à provocação, à procura de novas

2
TATIT, Luiz. O Cancionista – Composição de Canções no Brasil. 2. ed. São Paulo: EDUSP, 2002. p. 309.
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possibilidades expressivas, culturais, existenciais. O redimensionamento da relação com o público, a crítica


à militância conscientizadora, a valorização das realidades ‘menores’ ligadas à experiência cotidiana e a
recusa do ideário nacional-populista, em favor de uma brasilidade renovada (que buscava em Oswald de
Andrade um ponto de referência), definem, em linhas gerais, essa nova disposição.3

Ao associar a busca da brasilidade (no culto crítico e irônico das faces marginalizadas
da música brasileira, junto com a reverência à tradição), a emergência do mundial (na
incorporação do pop-rock da indústria de entretenimento) e a abertura ao experimentalismo de
músicos eruditos de vanguarda (como Júlio Medaglia e Rogério Duprat, Damiano Cozella e
Sandino Hohagen), o Tropicalismo procurava articular uma nova linguagem da canção, da qual
fazia parte uma nova forma de composição do texto a ser cantado. Isso ficou demonstrado ao
público brasileiro desde as apresentações de Alegria, Alegria e Domingo no Parque, no III
Festival de Música Popular Brasileira da TV Record de São Paulo, em outubro de 1967. A
estranheza das performances de Caetano Veloso e Gilberto Gil (bem como da inusitada junção
de artistas de formação variada ligados a eles, como Beat Boys, Mutantes e a orquestra de
Rogério Duprat) é assim descrita por Celso Favaretto:

Tornava-se difícil reconhecer uma postura política participante ou certo lirismo, que davam a tônica
das canções da época. A novidade – o moderno de letra e arranjo –, mesmo que muito simples, foi
suficiente para confundir os critérios reconhecidos pelo público e sancionados por festivais e crítica.
Segundo tais critérios, que associavam a “brasilidade” das músicas dos festivais à carga de sua
participação político-social, as músicas de Caetano e Gil eram ambíguas, gerando entusiasmos e
desconfianças.4

Com efeito, a partir de então, o movimento sofreu resistências e provocou escândalos


tanto nos puristas da tradição como nos segmentos identificados com a música descartável, de
sucesso fácil. Esquerda e direita – numa época de drástica polarização ideológica,
potencializada pela situação de fechamento e ditadura no Brasil – se ofenderam com o
comportamento “contra-cultural” das iniciativas tropicalistas. Na música, como em todas as
áreas da cultura e do pensamento, mantinha-se acesa uma polêmica que opunha
experimentalismo e engajamento, participação e alienação. Nenhum desses pólos era
claramente perceptível no que os tropicalistas propunham. Heloísa Buarque de Hollanda e
Marcos A. Gonçalves tentam entender assim essa estigmatização sofrida pelos tropicalistas:

Na opção tropicalista o foco de preocupação foi deslocado da área da revolução social para o eixo
da rebeldia, da intervenção localizada, da política concebida enquanto problemática cotidiana, ligada à vida,
ao corpo, ao desejo, à cultura em sentido amplo. Na relação com a indústria cultural essa nova forma de
conceber a política veio a se traduzir numa explosiva capacidade de provocar áreas de atrito e tensão não
apenas no plano específico da linguagem musical, mas na própria exploração dos aspectos
visuais/corporais que envolviam suas apresentações. Uma “tática de guerrilha”, que poderia ser associada

3
HOLANDA, Heloísa Buarque de; GONÇALVES, Marcos Augusto. Cultura e participação nos anos 60. São Paulo:
Brasiliense, 1982. p. 44.
4
FAVARETTO, Celso. Tropicalismo – Alegoria Alegria. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998. p. 19.
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às formas de protesto da juventude, à linguagem fragmentada das passeatas com seus comícios-
relâmpago, sua retórica e seu ritmo de centralização/descentralização.5

Criticando e exprimindo, nas suas contradições, a “geléia geral” brasileira (marcada


pelo chocante encontro de primados culturais opostos, como o comercialismo e a
experimentação, o avanço e o atraso, e pelas agruras do exercício do pensar numa época de
passeatas apaixonadas, atos institucionais violentos e resistência no limite do martírio), o
tropicalismo, mesmo findo o seu período de experimentação (que vai de 1966 a 1970) é uma
das principais referências estéticas das criações dos movimentos seguintes, nas décadas de
1970 e 80, como a nova música nordestina, o rock emergente etc.

O TROPICALISMO E A POESIA BRASILEIRA

Passado o ciclo histórico das invenções e da utopia de iniciativas de grupo no campo


das letras, pode-se considerar que os anos 60 marcam o fim da época de ouro da literatura
brasileira como movimento organizado. A partir desse período, assiste-se a uma perda
crescente dos sinais da literatura livresca e da poesia na experiência cotidiana do brasileiro
médio, mesmo o letrado. Abstraindo-se as possíveis “crises” artísticas, editoriais e
educacionais que poderiam explicar esse fenômeno, percebe-se que ele ocorre paralelamente
à emergência massacrante de novas fontes de informação cultural massificadas, em que a
experiência do poético vai se dar em novas dimensões e expressões, algumas saudadas
outras demonizadas pelos estudiosos e críticos. Mesmo os movimentos vanguardistas da
poesia dos anos 60 – concretismo e neo-concretismo, poesia práxis e poema processo –
enveredaram por uma poesia excessivamente cerebral, voltada para iniciados. Com isso, o
público passou a buscar em outras formas de linguagem a poeticidade que já não lhe estava
disponível na maior parte dos livros publicados.
É nesse contexto que as letras de canções de importantes compositores da geração
que aparece nessa década serão recebidas e entendidas como variantes – das mais ricas – da
produção poética de então. Ítalo Moriconi6 analisa essa ocorrência, entendendo-a como parte
de uma mudança geral na forma de se dar a experiência poética na sua relação com o receptor
dos novos tempos:
A tendência a uma separação entre cultura popular e cultura erudita, de um lado, e cultura
performática e cultura escrita, de outro, sofreu um abalo irreversível com o advento de um novo tipo de
civilização, que chamo de pop-midiática [...]. Poesia literária e canção voltaram a relacionar-se de maneira
mais estreita. Estamos vivendo uma nova era lírica, dominada pela música.

5
HOLANDA; GONÇALVES. Op. cit., p. 58.
6
MORICONI. Op. cit., p. 23-24.
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É claro que o consumo de música popular – sobretudo numa época de franca


urbanização, planificação dos costumes e mentalidades tendo-se como padrão os modos da
classe média e seu consumismo e a sofisticação dos aparelhos de difusão de entretenimento
via cultura de massas – é determinado por múltiplos fatores além da excelência das
composições. Apesar disso, é inegável a importância dada à arte do texto voltado para o canto
nessa época, o que era favorecido pelo fato de muitos dos então novos compositores terem
tido sua formação como letristas decidida pelo contato que tiveram com os grandes nomes da
poesia nacional e com suas obras, algo que não se veria, com o mesmo efeito, nas gerações
subseqüentes.
Vale ressaltar que, a exemplo do que se vê na poesia, no universo das melhores
composições de letras desse período se nota uma cisão entre propostas textuais contrárias.
Uma vertente derivada da bossa nova se alinhava politicamente à esquerda, reprocessando
em seus textos e em suas performances algo já visto pela tradição da literatura engajada
desde o regionalismo de 30. Descontentes com as temáticas predominantes nas composições
de bossa nova (o aparente convite à evasão e ao hedonismo otimista numa época de crise),
autores como Edu Lobo, Sérgio Ricardo e Geraldo Vandré, imbuídos do espírito de discussão
das mazelas da luta de classes, optarão por um discurso poético descritivo, feito de um
consistente lirismo convencional, que pouco indaga o significante na fatura da letra. É certo que
essa vertente nos dará também a refinada poesia de Chico Buarque, exceção (em alguns
casos) a essa regra geral, marcada pelo apego à tradição no plano formal, mesmo que a
prédica militante apontasse para o sonho da transformação das estruturas de poder.
Segmento oposto ao desses compositores, o Tropicalismo se consolida como forma de
escrita influenciada pelas concepções poéticas de ruptura e experimentação, algo até então
pouco explorado na tradição das letras de nossas canções. Cubismo, simultaneidade,
fragmentação, enunciação caótica, iconoclastia, prosaico, jogo de palavras, desconstrução
eram alguns procedimentos adotados pelos textos dos compositores tropicalistas e que lhes
garantia uma posição de vanguarda no cenário desse tempo. Além disso, esses autores
incorporaram à sua expressão poética as novidades da indústria cultural (especialmente a
dimensão estética da televisão, mídia relativamente recente no cotidiano da classe média, que
dava a tônica de uma nova forma de relação do artista com o público, com uma nova
consciência dos impactos buscados), a retórica dos comícios, passeatas e manifestações
políticas, as imagens fragmentárias e justapostas do discurso cinematográfico.
Augusto de Campos, em texto de 1968 – depois incorporado a seu conhecido estudo
Balanço da Bossa e outras Bossas – interpreta a ação e a postura estética dos tropicalistas
observando que
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os baianos estão usando uma metalinguagem musical, vale dizer, uma linguagem crítica, por meio da qual
estão passando em revista tudo o que se produziu musicalmente no Brasil e no mundo, para criar
conscientemente o novo, em primeira mão [...]. Eles deglutem, antropofagicamente, a informação do mais
radical inovador da Bossa Nova [João Gilberto]. E voltam a pôr em xeque e em choque toda a tradição
musical brasileira, bossa nova inclusive, em confronto com os novos dados do contexto universal.7

Por meio da “antropofagia”, a aproximação dos baianos a Oswald de Andrade é, desde


então, uma constante nas análises da dimensão poética das primeiras letras tropicalistas de
Caetano (Alegria, Alegria; Tropicália), Gil (Domingo no Parque), Capinam (Soy Loco Por Ti
América), Torquato Neto (Geléia Geral) e Tom Zé (Made in Brazil). No mesmo texto, o ensaísta
reforça essa associação ao afirmar que os novos compositores buscavam “redescobrir tudo e
reaprender a ‘ouvir com ouvidos livres’ tal como Oswald de Andrade proclamava em seus
manifestos: ‘ver com olhos livres’“. Segundo Haroldo de Campos, citado no texto de Augusto
de Campos, assim como a poesia antropofágica de Oswald de Andrade, o Tropicalismo
representava “uma visão brasileira do mundo sob a espécie da devoração, para uma
assimilação crítica da experiência estrangeira e sua reelaboração em termos e circunstâncias
nacionais, alegorizando, nesse sentido, o canibalismo de nossos selvagens”.8
Em sintonia com essas ponderações, Décio Pignatari, também em 1968, debruça-se
sobre os possíveis significados antropofágicos do Tropicalismo entendendo a singularidade
que esse nome contém (para além da sua origem, como se sabe, tomada de empréstimo do
título de uma obra de Hélio Oiticica, Tropicália), entendendo-o em face do sentido com que
esse termo aparece em obras do sociólogo Gilberto Freyre, já nos anos 30 :

O tropicalismo de Gilberto Freyre é o trópico visto da casa-grande. Nós olhamos da senzala. Pois,
como dizia Oswald de Andrade, não estamos na idade da pedra, estamos na era da pedrada. Interessa é
saber comer e deglutir – que são atos críticos –, como fazem Veloso e Gil.9

É fácil perceber o acerto dessas proposições, independentemente do que carreguem de


panfletário ou redutor. O cotejo simples de trechos de uma letra emblemática do movimento,
Geléia Geral (de Torquato Neto, musicada e interpretada por Gilberto Gil, com arranjo de
Rogério Duprat no antológico disco Tropicália ou Panis et Circensis, de 1968) com o Manifesto
Antropófago, de Oswald de Andrade, deixa ver alguma coincidência – segundo os tropicalistas
involuntária – especialmente quanto ao uso da fragmentação, da enumeração e dos contrastes
chocantes de imagens desconexas do nacional em diálogo com o mundial. Veja-se esse
exemplo:

Geléia Geral

É a mesma dança na sala,


7
CAMPOS, Augusto de. Balanço da Bossa e outras Bossas. São Paulo: Perspectiva, 1978. p. 56.
8
CAMPOS. Op. Cit. p. 58.
9
Disponível em: <www.tropicalia.com.br>.
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No Canecão, na TV.
E quem não dança, não fala,
Assiste a tudo e se cala,
Não vê no meio da sala
As relíquias do Brasil:
Doce mulata malvada,
Um elepê de Sinatra,
Maracujá, mês de abril,
Santo barroco-baiano,
Superpoder de paisano,
Formiplac e céu de anil,
Três destaques da Portela,
Carne-seca na janela,
Alguém que chora por mim,
Um carnaval de verdade,
Hospitaleira amizade,
Brutalidade jardim.

Manifesto Antropófago

Queremos a Revolução Caraíba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas
eficazes na direção do homem. Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do
homem. A idade de ouro da América. A idade de ouro. E todas as girls. O homem natural. Rousseau. Da
Revolução Francesa ao Romantismo, à Revolução Bolchevista, à Revolução Surrealista. Fizemos Cristo
nascer na Bahia.

A recusa da linearidade do discurso e a percepção da palavra em sua concretude


significante, tomada como centro da construção do poema (em detrimento da frase poética ou
do “verso”) também marcam a linguagem poética das letras do Tropicalismo. É por essa via
que se faz ver, para além das afinidades pessoais e da coincidência de “gosto”, a ligação dos
procedimentos poéticos do movimento com a linguagem verbi-voco-visual concretista. Em
entrevista a Ana de Oliveira, Caetano Veloso comenta sua ligação com os poetas concretistas:

Foi Júlio Medaglia que me levou a Augusto de Campos. O que Augusto e o seu grupo queriam
fazer com poesia estava próximo do trabalho de vanguarda desses músicos. [...] Antes que o movimento
começasse e antes que nos conhecêssemos, ele já tinha escrito um artigo profético sobre o que faríamos
das suas traduções dos poemas de E. E. Cummings e dos textos de James Joyce, do livro sobre
Sousândrade, o ABC da Literatura, de Ezra Pound, tudo isso foi importante. Mas o essencial foi o contato
com Oswald de Andrade, que aconteceu através deles. O Oswald foi um presente de uma precisão
absoluta que o Augusto nos deu.10

Com o concretismo reforça-se nas iniciativas poéticas dos tropicalistas, especialmente


de Caetano Veloso, a consciência da visualidade do poema e o jogo com a dimensão material
do significante. Isso progride desde as criações mais singelas (e ainda assim inusitadas num
contexto de predomínio de letras de discursividade convencional) como o palíndromo do refrão
“Irene ri”, de Irene, e o grafismo no uso do espaço em branco, em Batmacumba, até o
experimentalismo mais consistente dos textos das canções do disco Araçá Azul, de 1973,
como De palavra em palavra, aqui exemplificada:

som

10
Disponível em: <www.tropicalia.com.br>.
135

mar
amarelanil
maré
anilina
amaranilanilinalinarama
som
mar
silêncio
não
som

O final do confuso ano de 1968 é visto por muitos estudiosos como o fim do período
mais característico do Tropicalismo, embora nas criações posteriores e nas suas concepções
estéticas os artistas dessa corrente tenham mantido as linhas gerais do que defenderam desde
1966, antes ainda de deixarem a Bahia. Obra do fechamento e do obscurantismo criados pelo
AI 5, o exílio londrino vivido por Caetano Veloso e Gilberto Gil entre 1969 e 1972 os tornou
vítimas fáceis e em certo sentido “exemplares”, pela visibilidade que seus escândalos
alcançaram naquele ano de 1968, em eventos como o discurso-protesto de Caetano Veloso
sob as vaias da platéia do Festival Internacional da Canção, da Rede Globo e o lançamento do
disco coletivo Tropicália ou Panis et Circensis.
Mesmo com o arrefecimento do furor crítico e os redirecionamentos que a produção
musical/poética dos tropicalistas foi tendo, pode-se considerar que a marca da contestação e a
urgência do novo, aprendida com eles, seguirá, na década seguinte, orientando as criações
tanto dos poetas como dos compositores dos anos 70, especialmente os ligados ao chamado
desbunde e à poesia marginal. Os poetas daquela década, especialmente aqueles que faziam
poesia social, viram-se tolhidos pela censura e pela repressão do governo militar. No período
em que a indústria cultural explodia no Brasil, e livros jornais e revistas eram impressos em
tiragens recordes, eles precisaram buscar formas alternativas para promover suas obras.
Assim, criavam jornais e folhetos mimeografados, imprimiam livros em pequenas gráficas,
divulgavam seus poemas por meio de pôsteres, camisetas, cartazes, faixas, “varais”. A
distribuição era feita em locais públicos, de preferência aqueles ligados a eventos culturais.
Eram os adeptos da “poesia marginal”, que circulava à margem dos meios editoriais
convencionais. Paulo Leminski, Ana Cristina César, Cacaso, Chacal, Wally Salomão foram
grandes representantes desse movimento.)
É Torquato Neto, o poeta suicida do Tropicalismo (morto em 1972), a ponte mais visível
entre os tropicalistas e os “marginais”, fazendo de sua coluna no jornal Última Hora, do Rio de
janeiro, no começo dos anos 70, uma trincheira para desafiar (“desafinando”) o que chamou de
“coro dos contentes” e manifestar, pelo deboche, a crítica dos absurdos daqueles dias de crise.
Seu livro publicado postumamente, Os Últimos Dias de Paupéria (que contém o todo de sua
obra, inclusive os textos de suas letras, como Geléia Geral, Marginalia II e Mamãe Coragem) é
tido como um dos pilares da heterogênea produção dos jovens poetas e dos compositores pós-
136

tropicalistas dos anos 70. É dele o texto poético abaixo, espécie de pensamento-síntese das
angústias da geração pós AI 5 e sua relação com a poesia, feito de algumas citações de letras
do Tropicalismo.

Escute, meu chapa: um poeta não se faz com versos. É o risco, é estar sempre a perigo sem
medo, é inventar o perigo e estar sempre recriando dificuldades pelo menos maiores, é destruir a
linguagem e explodir com ela. Nada no bolso e nas mãos. Sabendo: perigoso, divino, maravilhoso.

CONCLUSÃO

Este estudo quis discutir criticamente a situação estética do Tropicalismo no complexo


ideológico, artístico e comportamental de seu tempo, tendo como foco de interesse uma
indagação da dimensão textual das composições de letras de canções do movimento e seu
status de criação poética. Dentro desse propósito, buscou-se considerar tanto as influências
sofridas de estéticas poéticas anteriores (notadamente a antropofagia oswaldiana) como as
marcas que os tropicalistas deixaram nas expressões poéticas de depois (como o que se vê na
poesia marginal dos anos 70). Por meio disso, pode-se constatar a importância do movimento
e a considerável relevância do que pôde realizar na cultura brasileira, seja no terreno da
música seja no da poesia.

Referências
CAMPOS, Augusto de. Balanço da Bossa e outras Bossas. São Paulo: Perspectiva. 1978.
FAVARETTO, Celso. Tropicalismo – Alegoria Alegria. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998.
HOLANDA, Heloísa Buarque de; GONÇALVES, Marcos Augusto. Cultura e participação nos anos 60.
São Paulo: Brasiliense, 1982.
MORICONI, Ítalo. Como e porque ler a poesia brasileira do século XX. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.
TATIT, Luiz. O Cancionista – Composição de Canções no Brasil. 2. ed. São Paulo: EDUSP, 2002.
<www.tropicalia.com.br>

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