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ANAIS
III FÓRUM DE PESQUISA CIENTÍFICA EM ARTE
Escola de Música e Belas Artes do Paraná. Curitiba, 2005
TROPICALISMO E PÓS-TROPICALISMO:
LEITURA DE PROCEDIMENTOS POÉTICOS
Marcelo Franz*
Nascido na esfera da canção popular, mas mantendo, em sua curta existência, amplo e
produtivo diálogo com expressões de outras artes, como o cinema, a literatura e o teatro, o
Tropicalismo é um dos mais significativos exemplares da agitação cultural que marca a década
de 1960 no Brasil. O entendimento das possíveis relações de influência mútua que
aproximaram a criação dos artistas do Tropicalismo e os de outros movimentos literários
anteriores e posteriores é o que impulsiona este estudo.
expressando sentimentos, era composta para ser cantada ou acompanhada por música, tendo-
se como instrumentos mais usuais a flauta e a lira, de onde vem a expressão poesia lírica. Na
mesma linha dessa performance recitativo-cantada, praticavam-se por esse tempo a poesia
mélica, a poesia de coro e as elegias, todas ligadas à música.
É sabido que, em virtude dessa gênese comum, mesmo após a separação dessas
artes, prevaleceu na teoria da poesia, sobretudo no que tange à versificação, o uso de termos
tomados de empréstimo do universo musical, como Leitmotiv, dissonância, melodia, harmonia,
polifonia, dominante, cadência, período, tema, frase, motivo, entoação, timbre, metro, ritmo.
Além disso, contam-se as formas poéticas com origem vinculada à expressão musical:
baladas, barcarolas, canções trovadorescas, hinos, salmos, liras, odes, madrigais, cantatas,
cantigas, solaus, pastorelas, albas, rondós etc.
Apesar de ser anterior à poesia e, em certo sentido, prescindir dela (especialmente no
muito da expressão musical que transcende o canto), a música também se alimenta do poético
seja nas temáticas de muitas importantes peças de compositores, inspiradas no que a literatura
consagrou, seja na convivência intelectual de músicos e poetas, que resulta na comunhão de
idéias e conceitos, que derivam em tomadas de atitude no campo dos procedimentos
composicionais, caracterizando os estilos de época.
Apesar dessas aproximações e de um histórico de afinidade notável, há que se ver
limites teóricos separando a leitura dessas artes. Longe de se mostrar consensual entre os
estudiosos da literatura, a verificação do valor poético do texto voltado ao canto, dado o status
de grande arte adquirido por essa modalidade de escrita no Brasil, é uma questão conceitual
polêmica diante da qual são tomadas posições variadas e, não raro, extremistas. Ítalo Moriconi1
sintetiza essa discussão observando:
Existem aqueles que defendem a letra de música como poesia e ponto. Sem maiores ressalvas.
Em contrapartida, existem aqueles que defendem a poesia contra a letra de música, dizendo que esta
jamais se sustenta como autêntica poesia de livro. [...] Mas na sua face de arte brasileira da palavra, a
poesia está, em boa parte, nas letras da música popular. Está no cordel nordestino, recitado por cantadores
nas feiras e nas ruas. Está no rock dos anos 80 e no hip hop dos 90. Em nenhum outro lugar do mundo a
canção popular atingiu um status tão intelectual quanto no Brasil.
1
MORICONI, Ítalo. Como e porque ler a poesia brasileira do século XX. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. p. 11 e 14.
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A canção brasileira ocupa hoje um espaço artístico amplo demais para permanecer desvinculada
de qualquer esfera de reflexão do país. Há todo um aparato industrial, tecnológico e mercadológico
cuidando de sua produção e aumentando seu poder de penetração nos diversos setores socioculturais sem
que haja, em contrapartida, qualquer acompanhamento analítico em condições de desvendar ao menos
uma parcela desses estratos de sentido que a canção movimenta diariamente.2
Este estudo pretende enfrentar essa provocação, aceitando-se incapaz de dar conta da
abrangência do problema. Veremos alguns dos pontos em que o movimento tropicalista, com
suas composições de letras, dialogou com o literário.
Havia toda uma área de afinidades no campo da produção cultural, envolvendo uma geração
sensibilizada pelo desejo de fazer da arte não mais um instrumento repetitivo e previsível de uma
veiculação política direta, mas um espaço aberto à invenção, à provocação, à procura de novas
2
TATIT, Luiz. O Cancionista – Composição de Canções no Brasil. 2. ed. São Paulo: EDUSP, 2002. p. 309.
130
Ao associar a busca da brasilidade (no culto crítico e irônico das faces marginalizadas
da música brasileira, junto com a reverência à tradição), a emergência do mundial (na
incorporação do pop-rock da indústria de entretenimento) e a abertura ao experimentalismo de
músicos eruditos de vanguarda (como Júlio Medaglia e Rogério Duprat, Damiano Cozella e
Sandino Hohagen), o Tropicalismo procurava articular uma nova linguagem da canção, da qual
fazia parte uma nova forma de composição do texto a ser cantado. Isso ficou demonstrado ao
público brasileiro desde as apresentações de Alegria, Alegria e Domingo no Parque, no III
Festival de Música Popular Brasileira da TV Record de São Paulo, em outubro de 1967. A
estranheza das performances de Caetano Veloso e Gilberto Gil (bem como da inusitada junção
de artistas de formação variada ligados a eles, como Beat Boys, Mutantes e a orquestra de
Rogério Duprat) é assim descrita por Celso Favaretto:
Tornava-se difícil reconhecer uma postura política participante ou certo lirismo, que davam a tônica
das canções da época. A novidade – o moderno de letra e arranjo –, mesmo que muito simples, foi
suficiente para confundir os critérios reconhecidos pelo público e sancionados por festivais e crítica.
Segundo tais critérios, que associavam a “brasilidade” das músicas dos festivais à carga de sua
participação político-social, as músicas de Caetano e Gil eram ambíguas, gerando entusiasmos e
desconfianças.4
Na opção tropicalista o foco de preocupação foi deslocado da área da revolução social para o eixo
da rebeldia, da intervenção localizada, da política concebida enquanto problemática cotidiana, ligada à vida,
ao corpo, ao desejo, à cultura em sentido amplo. Na relação com a indústria cultural essa nova forma de
conceber a política veio a se traduzir numa explosiva capacidade de provocar áreas de atrito e tensão não
apenas no plano específico da linguagem musical, mas na própria exploração dos aspectos
visuais/corporais que envolviam suas apresentações. Uma “tática de guerrilha”, que poderia ser associada
3
HOLANDA, Heloísa Buarque de; GONÇALVES, Marcos Augusto. Cultura e participação nos anos 60. São Paulo:
Brasiliense, 1982. p. 44.
4
FAVARETTO, Celso. Tropicalismo – Alegoria Alegria. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998. p. 19.
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às formas de protesto da juventude, à linguagem fragmentada das passeatas com seus comícios-
relâmpago, sua retórica e seu ritmo de centralização/descentralização.5
5
HOLANDA; GONÇALVES. Op. cit., p. 58.
6
MORICONI. Op. cit., p. 23-24.
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os baianos estão usando uma metalinguagem musical, vale dizer, uma linguagem crítica, por meio da qual
estão passando em revista tudo o que se produziu musicalmente no Brasil e no mundo, para criar
conscientemente o novo, em primeira mão [...]. Eles deglutem, antropofagicamente, a informação do mais
radical inovador da Bossa Nova [João Gilberto]. E voltam a pôr em xeque e em choque toda a tradição
musical brasileira, bossa nova inclusive, em confronto com os novos dados do contexto universal.7
O tropicalismo de Gilberto Freyre é o trópico visto da casa-grande. Nós olhamos da senzala. Pois,
como dizia Oswald de Andrade, não estamos na idade da pedra, estamos na era da pedrada. Interessa é
saber comer e deglutir – que são atos críticos –, como fazem Veloso e Gil.9
Geléia Geral
No Canecão, na TV.
E quem não dança, não fala,
Assiste a tudo e se cala,
Não vê no meio da sala
As relíquias do Brasil:
Doce mulata malvada,
Um elepê de Sinatra,
Maracujá, mês de abril,
Santo barroco-baiano,
Superpoder de paisano,
Formiplac e céu de anil,
Três destaques da Portela,
Carne-seca na janela,
Alguém que chora por mim,
Um carnaval de verdade,
Hospitaleira amizade,
Brutalidade jardim.
Manifesto Antropófago
Queremos a Revolução Caraíba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas
eficazes na direção do homem. Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do
homem. A idade de ouro da América. A idade de ouro. E todas as girls. O homem natural. Rousseau. Da
Revolução Francesa ao Romantismo, à Revolução Bolchevista, à Revolução Surrealista. Fizemos Cristo
nascer na Bahia.
Foi Júlio Medaglia que me levou a Augusto de Campos. O que Augusto e o seu grupo queriam
fazer com poesia estava próximo do trabalho de vanguarda desses músicos. [...] Antes que o movimento
começasse e antes que nos conhecêssemos, ele já tinha escrito um artigo profético sobre o que faríamos
das suas traduções dos poemas de E. E. Cummings e dos textos de James Joyce, do livro sobre
Sousândrade, o ABC da Literatura, de Ezra Pound, tudo isso foi importante. Mas o essencial foi o contato
com Oswald de Andrade, que aconteceu através deles. O Oswald foi um presente de uma precisão
absoluta que o Augusto nos deu.10
som
10
Disponível em: <www.tropicalia.com.br>.
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mar
amarelanil
maré
anilina
amaranilanilinalinarama
som
mar
silêncio
não
som
O final do confuso ano de 1968 é visto por muitos estudiosos como o fim do período
mais característico do Tropicalismo, embora nas criações posteriores e nas suas concepções
estéticas os artistas dessa corrente tenham mantido as linhas gerais do que defenderam desde
1966, antes ainda de deixarem a Bahia. Obra do fechamento e do obscurantismo criados pelo
AI 5, o exílio londrino vivido por Caetano Veloso e Gilberto Gil entre 1969 e 1972 os tornou
vítimas fáceis e em certo sentido “exemplares”, pela visibilidade que seus escândalos
alcançaram naquele ano de 1968, em eventos como o discurso-protesto de Caetano Veloso
sob as vaias da platéia do Festival Internacional da Canção, da Rede Globo e o lançamento do
disco coletivo Tropicália ou Panis et Circensis.
Mesmo com o arrefecimento do furor crítico e os redirecionamentos que a produção
musical/poética dos tropicalistas foi tendo, pode-se considerar que a marca da contestação e a
urgência do novo, aprendida com eles, seguirá, na década seguinte, orientando as criações
tanto dos poetas como dos compositores dos anos 70, especialmente os ligados ao chamado
desbunde e à poesia marginal. Os poetas daquela década, especialmente aqueles que faziam
poesia social, viram-se tolhidos pela censura e pela repressão do governo militar. No período
em que a indústria cultural explodia no Brasil, e livros jornais e revistas eram impressos em
tiragens recordes, eles precisaram buscar formas alternativas para promover suas obras.
Assim, criavam jornais e folhetos mimeografados, imprimiam livros em pequenas gráficas,
divulgavam seus poemas por meio de pôsteres, camisetas, cartazes, faixas, “varais”. A
distribuição era feita em locais públicos, de preferência aqueles ligados a eventos culturais.
Eram os adeptos da “poesia marginal”, que circulava à margem dos meios editoriais
convencionais. Paulo Leminski, Ana Cristina César, Cacaso, Chacal, Wally Salomão foram
grandes representantes desse movimento.)
É Torquato Neto, o poeta suicida do Tropicalismo (morto em 1972), a ponte mais visível
entre os tropicalistas e os “marginais”, fazendo de sua coluna no jornal Última Hora, do Rio de
janeiro, no começo dos anos 70, uma trincheira para desafiar (“desafinando”) o que chamou de
“coro dos contentes” e manifestar, pelo deboche, a crítica dos absurdos daqueles dias de crise.
Seu livro publicado postumamente, Os Últimos Dias de Paupéria (que contém o todo de sua
obra, inclusive os textos de suas letras, como Geléia Geral, Marginalia II e Mamãe Coragem) é
tido como um dos pilares da heterogênea produção dos jovens poetas e dos compositores pós-
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tropicalistas dos anos 70. É dele o texto poético abaixo, espécie de pensamento-síntese das
angústias da geração pós AI 5 e sua relação com a poesia, feito de algumas citações de letras
do Tropicalismo.
Escute, meu chapa: um poeta não se faz com versos. É o risco, é estar sempre a perigo sem
medo, é inventar o perigo e estar sempre recriando dificuldades pelo menos maiores, é destruir a
linguagem e explodir com ela. Nada no bolso e nas mãos. Sabendo: perigoso, divino, maravilhoso.
CONCLUSÃO
Referências
CAMPOS, Augusto de. Balanço da Bossa e outras Bossas. São Paulo: Perspectiva. 1978.
FAVARETTO, Celso. Tropicalismo – Alegoria Alegria. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998.
HOLANDA, Heloísa Buarque de; GONÇALVES, Marcos Augusto. Cultura e participação nos anos 60.
São Paulo: Brasiliense, 1982.
MORICONI, Ítalo. Como e porque ler a poesia brasileira do século XX. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.
TATIT, Luiz. O Cancionista – Composição de Canções no Brasil. 2. ed. São Paulo: EDUSP, 2002.
<www.tropicalia.com.br>