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12.
04. 30.
nos moldes das ruas
processando a seletividade: A prática do estêncil: a contestação e a produção em crônica da morte anunciada
os modos, os meios e Luciane escala na arte de rua.
À base de cola e fita adesiva faz-se um costume
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A história e a jornada que leva - ou não - estudantes em Cachoeira do Sul.
carentes até os bancos das universidades.
se eu quiser fumar,
.06 eu fumo.
Uma questão de ser Free.
.34
quem quer ser um adivinha quem é!
milionário
Garotos sonham conquistar fortuna jogando futebol.
20. Uma pessoa, um ator, várias personagens.
fronteira de concreto
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rock daqui.
.11
relato banal de um 28. gregório de mattos guerra
seria humilhado
sujeito normal
dois ainda é pouco...
Relações a três na tela do cinema.
O modo
cursos pré-vestibulares. custos e alimentação com valor reduzido, bolsas
O processo seletivo vestibular é conhecido A desigualdade social que separa o Bra- de trabalho e de iniciação científica, auxílio no
de longa data dos brasileiros. Aqueles que alme- sil em um mosaico de impossibilidades não se transporte público, entre outros, passaram a ser
jam espaço junto às universidades, principal- mostrou indiferente ao ensino superior. As clas- a ajuda providencial para quem almejava con-
mente públicas, deparam-se com o termo desde ses mais abastadas tornaram-se as detentoras cluir uma graduação. Contudo, algo foi deixado
muito cedo. A origem da palavra vem do latim não apenas do poder político e econômico, mas de lado. Voltemos ao cerne da questão: e quem
vestibulum, algo como “entrada”. A primeira também das escassas vagas nas parcas faculda- não possui, ainda assim, condições de conquis-
faculdade do País foi a Faculdade de Medicina des brasileiras da primeira metade do século 20. tar a tão almejada vaga no ensino superior? E
da Bahia (Fameb), inaugurada no dia 18 de feve- Com a expansão de oportunidades pelo interior aqueles que mesmo com auxílio como o Programa
reiro de 1808, exatos oito dias antes da chegada do Brasil, nas décadas da segunda metade dos Universidade para Todos (Prouni) - em que o go-
da família real portuguesa ao Brasil. A primeira últimos cem anos de nossa história, também a verno custeia vagas em universidades particula-
universidade foi a Escola Universitária Livre de escolaridade superior passou a crescer nas extre- res para cidadãos carentes - não conseguem, so-
Manaós, inaugurada em 17 de janeiro de 1909, no midades do País. A criação da UFSM em 1960 é um zinhos, driblar a grande densidade de candidatos
coração da Amazônia. A diferença básica entre exemplo, sendo a primeira universidade federal por vaga e assim conquistar um lugar no ensino
universidade e faculdade consiste no fato de a do interior do Brasil. superior?
primeira abarcar todas as áreas do conhecimen- Dentro desse contexto, a desigualdade
Os meios
to, enquanto a segunda atenta apenas a uma ou pelo interior da nação se refletiu também nas
poucas vertentes de estudo e pesquisa. universidades. Pobres, negros, indígenas e indi- É a partir desta vertente da exclusão social
Em 1911 foi instituído o processo vestibu- víduos oriundos das deterioradas escolas públicas que surgem os cursos Pré-Vestibulares Populares
lar, pelo então Ministro da Justiça e dos Negó- brasileiras não obtinham, salvo raras exceções, (PVPs). Uma vez que modificar o sistema falho de
cios, Rivadávia da Cunha Corrêa. Nos primórdios espaço dentro das faculdades. Ou, se conse- ingresso às universidades é difícil, moroso e trô-
dos processos seletivos as provas eram orais. Lín- guiam obter a vaga, careciam de meios de ma- pego, dar um “empurrão” para quem não pode se
gua portuguesa e língua estrangeira, bem como nutenção, sejam eles de moradia, de alimenta- submeter ao custeio dos preparatórios particu-
matemática, física e química compunham as se- ção ou de curso (a frequência pode ser gratuita, lares foi uma das soluções encontradas. É difícil
letivas. Determinadas partes do conteúdo do pri- mas os gastos em material para determinadas montar um histórico destes projetos, todavia, a
meiro período do curso pretendido também de- faculdades dispende de elevados recursos). Com maior parte nasce dentro das próprias universi-
veriam fazer parte dos domínios dos candidatos, o passar do tempo e de insistentes e solitárias dades. Em Santa Maria existem dois deles, ambos
o que os levava a recorrer a alternativas para reivindicações, os estudantes passaram a rece- ligados à UFSM: o Práxis, que iniciou suas ativi-
absorver conteúdos específicos, afastados da re- ber, em doses quase que homeopáticas, a tão dades no ano de 1999 e o Alternativa, que atua
alidade escolar. É nesse contexto que surgem os necessitada assistência estudantil. Moradia sem desde 2000. Para ser selecionado, o candidato
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ciência, ciência... onde estás?
Por: Mariana Soares Ilustração: www.rosetem.com.br
O mundo diante de nós é mais do que ape- Ora, um dia a mídia divulga uma pesquisa dizendo Toda essa busca por um conhecimento ‘provável’
nas os fenômenos da natureza e os elementos que alimentos transgênicos são bons para a saú- e meticuloso é que permitiu à Ciência uma legiti-
geográficos do planeta Terra. É sim também um de, mas em outro eles são os vilões. Em uma se- mação tão grande como um campo de saber que
fruto de nossas relações com os outros seres, um mana, estudos informam que a grande quantida- traz transformações surpreendentes que afetam
resultado das construções simbólicas que criamos de de CO2 emitida pelas ações dos seres humanos a maneira de ver (e viver) o mundo. No entanto,
todos os dias para viver em sociedade. Torna-se é uma das maiores causas de poluição do ar. Já na isso não quer dizer que os mitos e as tradições
um misto das nossas subjetividades com os as- outra semana uma nota diz que o CO2 não é mais orais perderam lugar. Pelo contrário. Eles estão
pectos que limitam a natureza humana. Durante o ‘bad guy’ intitulado pela primeira pesquisa. E, por aí, na ‘boca do povo’, nas histórias de vida,
muito tempo o homem buscou resolver as inquie- quem sabe, em um mês sai uma pesquisa dizendo nas crônicas e nos contos de conversas de boteco.
tações das práticas sociais através da criação de que nossos atos dados à afetividade, como amor E eles deflagram as outras formas de ver a vida,
mitos e de histórias para explicar os aconteci- e ciúme, têm explicação científica, mas no mês que não apenas as grandes descobertas e os es-
mentos do cotidiano, os quais deram origem às seguinte nenhuma dessas considerações são le- tudos. Eles expõem – quem sabe, sem querer – a
tradições culturais transmitidas por muito tem- vadas em conta, pois descobriram que a Ciência natureza humana do saber científico, que ao ten-
po através da oralidade, e que com o passar do não pode explicar um campo tão subjetivo. Vá di- tar explicar o mundo, também produz várias con-
tempo deram lugar aos registros escritos. Mas e zer que você, leitor, também nunca pensou sobre trovérsias. Portanto, a Ciência não é definitiva,
o que acontece quando atingimos um outro tipo isso? Ah, e tem mais. Além de todas essas infor- mas sim um processo evolutivo constante. Só que
de conhecimento, que ultrapassa os costumes da mações, em nosso próprio convívio com as demais agora, finalmente, é sua vez de me perguntar:
tradição social? Ou seja, o que acontece quan- pessoas, surge aquele misticismo quanto ao saber bem, mas o que quer dizer tudo isso? E eu res-
do começamos a pensar as questões científicas? científico, como se ele fosse algo supremo, des- pondo com uma outra pergunta: sabe que eu não
Quais as mudanças que surgem no seio social com tinado ao fazer de uma parcela ínfima de todo o sei? Provavelmente tenha que ser assim. Um força
esse ‘novo’ saber? Estou ciente de que essa é planeta, os detentores do poder de mobilizar a se opondo a outra, mas ao mesmo tempo viven-
uma inquietação constante desde os mais antigos tudo e a todos. Diversos autores concordam que do juntas, trocando experiências. Inquietações à
estudos filosóficos romanos até as pesquisas que estas questões permeiam o status que a cienti- parte, a Ciência segue seu rumo e marca nossas
hoje tentam descobrir uma vacina para a AIDS. ficidade estabeleceu através dos séculos. Desde vidas. Mas a Ciência não vive dela mesma, ela
Penso mais ainda, ou melhor, sinto...Sinto que o Iluminismo, através da expansão do conheci- nasce e renasce junto com a nossa história, o nos-
essas inquietações têm se tornado mais latentes mento e da criação das universidades, a relação so tempo. Como diz Giovanni Sartori*, “Ninguém
nos últimos dois séculos, e em especial nesta úl- do homem com as práticas sociais tomou outra pode deter o processo tecnológico, mas nem por
tima década do século XXI. Afinal, estamos em dimensão. Começamos a pensar objetivamente isso devemos deixá-lo escapar do nosso controle e
uma época de pleno desenvolvimento do campo acerca de nossas tradições, buscando, através da nos submeter servilmente à rendição”.
técnico-científico, o qual se fortalece mais e mais reflexão, explicações para os fenômenos que nos
a cada dia. No entanto, pergunto: o que leva a Ci- atingem constantemente, como doenças, catás- *Giovanni Sartori é um dos maiores protagonistas do
ência a ser tão importante para o nosso cotidiano? trofes naturais e problemas de relacionamento. debate cultural italiano. Lecionou na Universidade de
Mas, para abarcar toda essa pesquisa, foi neces- Florença e na Universidade de Colúmbia. É autor de
Por que prezamos tanto o que dizem as pesquisas títulos como Democrazia: cosa è (1993) e Ingegneria
e os estudos? Será que eles todos dizem a verda- sária a criação de métodos, que com o tempo es-
Costituzionale Comparata (1995).
de? Diversas vezes paro e penso nessas questões. tabeleceram o rigor formal da pesquisa científica.
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relato banal de um sujeito normal
Por: Bianca Villanova Ilustração: Caren Rhoden
Ah.... Faustão na televisão. Uma sucessão internet, concentra-se no trabalho.
de trabalhos a fazer e a mão preocupa-se so- No dia seguinte, não pode disfarçar as
mente em apertar os botões do controle remoto. olheiras, afinal teve que ‘trabalhar’ até às quatro
Apertar fundo e repetidas vezes, já que trocar a horas da madrugada! No elevador, confere mais
pilha não é uma opção. uma vez o penteado, os dentes, cutuca aquela es-
Os 15 minutinhos tornam-se mais de pinha. Um pé atrás do outro, ombros encurvados,
uma hora. É óbvio que não me interesso por copo de café na mão. Óculos no rosto inchado e
câmeras ligadas 24 horas por dia, mas só de olhos fundos. Enquanto suspira desanimado,
uma espiadinha rápida não faz mal, só por vê um semiconhecido se aproximar. Não diminui o
curiosidade. Então bate a fome. Vai até a ritmo, mas o outro pára. Inferno. Um rápido cum-
cozinha, abre a porta da geladeira e observa primento, acompanhado do “como vai a vida?”
o interior do eletrodoméstico. Volta para a TV. e logo segue a explicação dos tantos afazeres,
Cinco minutos depois, volta para a cozinha, e é sempre tanta coisa, tenho que ir, tenho que
fica novamente conferindo o conteúdo da gela- correr, mas a gente se fala, legal te encontrar!
deira. Nada. Moço, quanto tempo leva para trazer Sorriso de despedida, vira as costas e apressa o
um xis bacon? Olha ao redor, arruma a cama, or- passo.
ganiza a mesa e acha aquele livro que pegou em- Sobe no ônibus. Tira a carteira do bolso
prestado há três meses. Nessa semana, sem falta, de trás e aproveita para discretamente dar aque-
devolvo. Juro. São 9 da noite e os amigos ligam la coçadinha na nádega direita. Senta e, com a
para a última cerveja do fim de semana. Mas mão nos fundilhos, arrumar o conteúdo da cueca.
não, não pode, foi mal, mas tenho mesmo Pelo canto do olho percebe aquele vizinho pas-
que trabalhar! Melhor ficar em casa, vou sando pela roleta. Vira o pescoço num ângulo de
começar agorinha mesmo. Senta-se frente 90 graus, espiando a rua naquele ponto lá atrás.
ao computador. Opa, a Cláudia foi à festa Passado o perigo, relaxa e se acomoda e num ges-
na sexta, mas tá sozinha nas fotos? E o co- to veloz passa o dedo do nariz à parte de baixo do
mentário desse guri? Cara, a Cláudia não banco. Na próxima parada, surge no ônibus uma
namora mais? Mas que coisa... e como foi senhora. Passou a roleta, então não é tão idosa,
o fim de semana? No próximo saímos de mas as rugas e aparência frágil indicam que de-
novo, fechou! Uma hora da manhã. Abri veria levantar. Antes que ela o perceba, encosta
o Word, agora vai. Pisca a nova luzi- a cabeça no vidro, fecha os olhos, deixa o ônibus
nha laranja, ah, ela de novo não. Ao sumir:
menos já tava no ausente... Ama- “se eu quero e você quer, tomar banho de cha-
nhã digo que já estava dormin- péu, ou esperar Papai Noel, ou discutir Carlos
do e fica tudo certo. Entre um Gardel, então vá! Faz o que tu queres pois é tudo
twitt e outro, solitário até na da lei, da lei!”
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nos moldes das ruas
Por: Tiago Miotto Fotos: Lara Machado e Tiago Miotto
A arte de rua vem sendo progressivamente aceita em diferentes meios – das galerias de arte à publicidade de grandes corpo-
rações. Em um processo natural para seus praticantes, a busca por técnicas distintas do grafite ‘tradicional’ segue causando
polêmica quando as experimentações acontecem em seu locus por excelência: as paredes da cidade. Riqueza de manifesta-
ções para uns, vandalismo para outros, o fato é que as ruas de Santa Maria são povoadas pelas mais distintas expressões, den-
tre as quais o estêncil – que utiliza moldes vazados para gravar marcas com spray – chama atenção por suas peculiaridades.
Che Guevara, Seu Madruga, Malcolm X, célebre em todo o mundo por suas obras de con- dem ser trabalhadas com calma”, conta Bueno*,
Hommer Simpson: basta caminhar pela cidade teúdo ácido e seus estênceis executados em lo- Latinos desde o princípio.
de Santa Maria para topar com estes ícones da cais irreverentes, como o contradito muro entre A Latinos é, na definição de Bueno, uma
cultura popular em gravuras de uma só cor (nor- Israel e Palestina. Contudo, o reconhecimento é família. Nasceu das diversas pretensões ligadas
malmente o preto) distribuídas amplamente pelo mais uma exceção do que uma regra. A maioria à arte que seus membros tinham em comum – a
mobiliário urbano. Por vezes, as gravuras que se dos adeptos da arte de rua tem na clandestinida- arte de rua entre elas. Mais do que isso, as mani-
repetem pela cidade contêm palavras de ordem de seu berço e seu refúgio. festações que foram parar na rua são o resultado
ou símbolos conhecidos: a imagem de um boneco da insatisfação com os valores americanizados
jogando a suástica nazista no lixo é tão expressi- O estêncil em Santa Maria que viam na sociedade. “O negócio é latino, san-
va quanto um Che Guevara com aspecto aborreci- gue quente, valorização do que é daqui. Por isso
do advertindo eu não sou mercadoria. As manifestações urbanas começaram a a utilização de ícones como o Seu Madruga, o Che
Essas imagens e muitas outras que podem aparecer em Santa Maria entre o fim dos anos 90 Guevara”.
ser encontradas em diferentes locais da cidade e o início dos anos 2000, mais ou menos quan- Uma ampla gama de estênceis da Latinos
são gravadas por meio de uma técnica específica: do outros elementos relacionados a esta cultura, resistiu ao tempo. Eles ainda podem ser vistos pe-
o estêncil (do inglês stencil), que utiliza moldes como o skate e o BMX (bicicleta), já estavam dis- las ruas de Santa Maria, muitos dos quais já imbri-
previamente recortados para deixar com tinta seminados na cidade. Rafael*, um dos primeiros a cados à paisagem da cidade. Um legado respeitá-
spray a marca desejada. Essa prática se apropria utilizar os muros da cidade como suporte, conta vel ou uma degradação persistente, dependendo
da arquitetura da cidade, juntamente com outras que o marco inicial não é algo bem delineado. “O do ponto de vista. Hoje, a maioria dos membros
formas de expressão urbanas – grafites, adesivos, que começou primeiro aqui foi o grafite. Depois, do grupo está envolvida em projetos pessoais e
colagens, tags e pichações. A própria denomina- à medida que o pessoal ia se informando, buscan- tem pouco tempo para as ruas. O que não sig-
ção dessas expressões como arte de rua não é do outras técnicas, as variações foram surgindo. nifica que a inspiração ou a inquietação tenham
aceita por todos, devido ao grande número de Aí, vieram os adesivos, o estêncil”. diminuído.
controvérsias que começam pela violação da pro- Nessa fase, surgiram diversas crews – como Uma parede lisa ainda instiga Matheus*,
priedade alheia e vão até o questionamento do os grafiteiros e pichadores chamam seus grupos –, outro dos Latinos. Ele hoje estuda publicidade e
valor estético de rabiscos inteligíveis apenas para algumas das quais são atuantes até hoje. Entre as pratica serigrafia em um ateliê nos fundos da casa
alguns, como é o caso das tags. crews pioneiras, o grupo Latinos foi um dos pri- afastada do centro. Lá, entre pinturas, pôsteres,
Nos últimos anos, alguns interventores ur- meiros e mais ativos na prática do estêncil. “Co- latas, tintas e o material próprio para serigrafia,
banos obtiveram projeção internacional e osten- meçamos a fazer estêncil porque era mais rápido, tem uma coleção de cadernos com desenhos an-
tam de forma irrevogável o status de artistas de e portanto menos arriscado, e também estetica- tigos e recordações dos “rolês”, como algumas
12 rua. O londrino sem rosto Banksy, por exemplo, é mente mais agradável. Além disso, as formas po- das primeiras máscaras recortadas em placas de
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raio-x. Hoje, dedica mais tempo ao design e à se- O conceito de agitação e propaganda sur- O movimento social de que Flávio faz par-
rigrafia, um processo que tem o estêncil em suas giu na União Soviética, como uma forma de difun- te acredita também que a prática da arte de rua
origens. “Eu gosto disso. Envolve tudo, me permi- dir as bandeiras da Revolução Russa e angariar o sirva como um meio de comunicação alternati-
te várias possibilidades, experiências. Acho que apoio do povo. Como grande parcela da população vo, para dar voz à parte da sociedade que não
na serigrafia, cada um tem o seu próprio proces- era analfabeta, a arte era uma forma de atingir costuma ter espaço nos meios formais. Por esse
so”, diz Matheus, enquanto instala uma tela re- as pessoas de uma maneira direta e eficaz. motivo, realizam oficinas de estêncil com outros
cém seca no aparelho de impressão. Com o estên- Seja por meio de panfletos, manifestações grupos e movimentos, para “difundir a técnica e
cil, explica, foi a mesma coisa, até aperfeiçoar a de rua, intervenções artísticas de qualquer tipo permitir que mais gente possa, com ela, se ex-
técnica e chegar ao raio-x como molde ideal. e até iniciativas mais sutis como a conversa, a pressar”.
Atualmente, um dos principais grupos a finalidade da agitação e propaganda é provocar a
povoar com estênceis as ruas de Santa Maria é reflexão das classes populares e politizar as mas- A técnica
um movimento social de juventude que prefere sas. Assim, apesar da proibição e do problema da
não se identificar. O estudante Flávio*, um dos repressão, a técnica do estêncil é bastante eficaz Embora a prática do estêncil como ma-
membros do movimento, explica que a utilização por seu caráter conciso e impactante. nifestação urbana e no contexto da arte de rua
da técnica surge em um contexto maior, de agi- Além disso, Flávio destaca que a arte de seja relativamente recente, a técnica de gravar
tação e propaganda. “Basicamente, o objetivo é rua serve também para gerar um debate sobre os imagens com o uso de moldes vazados não é exa-
causar uma sensação de estranhamento para as meios de produção cultural. “A maioria dos ar- tamente nova. Tristan Manco, artista e estudioso
pessoas que veem. Desnaturalizar, de certa for- tistas no Brasil não debate uma arte engajada, do assunto, traça em seu livro Stencil Graffiti um
ma, o que na sociedade está posto como natural, não se tem uma arte política. Assim, não é só um histórico da prática ao redor do mundo. Se gun-
inevitável”. debate político: é também um debate cultural”. do ele, há evidências de que o estêncil – ou um
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parente próximo seu – possa ser uma das for- Nas ruas pular – ou da luta social – e palavras de ordem
mas mais antigas de expressão artística. Existem em estênceis se aproveita disso para chamar a
marcas de mais de 22 mil anos em que teria sido Os primeiros registros da utilização do atenção dos transeuntes e ainda tirar proveito
utilizada a tinta soprada ao redor da mão para estêncil como forma de expressão nas ruas são de seu caráter imperativo. Aí reside, também, a
gravar a sua impressão invertida nas paredes das oriundos do século XX. Durante a Segunda Guer- proximidade entre a arte do estêncil e a cultura
cavernas. Essas gravuras seriam as precursoras ra Mundial, os fascistas na Itália utilizavam a punk: além da assimilação do lema “Faça você
do estêncil. técnica para disseminar imagens de Mussolini no mesmo”, comum à arte de rua em geral, ocorre
A prática de gravar imagens por meio de espaço público. A maior parte das expressões, a apropriação e utilização de símbolos autoritá-
moldes também era comum na ornamentação contudo, costumava partir de pessoas que pro- rios para subvertê-los em seu conteúdo.
de imagens de Buda, na China, na decora- testavam contra o sistema vigente sem ter aces- O estêncil e a arte de rua em geral, mui-
ção das paredes internas de pirâmides so aos meios de comunicação formais. Foi assim tas vezes, servem de inspiração e instrumen-
egípcias e na Europa, a partir da Idade no caso dos Bascos, nos anos 70, e em diversos to para iniciativas diversas. Em atividades do
Média, no adorno de paredes, muros e momentos na América Latina, em que o estêncil Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à
igrejas. Já no século XX, serviu como serviu como uma maneira alternativa de chamar Docência (Pibid), por exemplo, estudantes do
base para o desenvolvimento de outras a atenção da população. curso de História da UFSM realizam oficinas de
técnicas mais sofisticadas. Na França, A contemporânea arte de rua cresceu em estêncil com alunos do colégio estadual Padre
o pochoir utilizava máscaras para re- meados dos anos 90 nas grandes metrópoles,. Rômulo Zanchi. Para trabalhar a temática da
alizar pinturas à mão com guache, o Caracterizou-se pela incorporação de técnicas e democracia em atividades extraclasse e tentar
que dava às ilustrações o aspecto de estilos diversos ao grafite ‘tradicional’, origina- se aproximar mais da realidade e dos interesses
aquarela ou pintura a óleo. do nos subúrbios da Nova Iorque dos anos 60 e dos alunos, são oferecidas oficinas como teatro
Na década de 30, surge a 70. As novas expressões, além de utilizarem car- e arte de rua.
técnica da serigrafia, um pro- tazes, adesivos, pincéis, estênceis e tinta spray, “A ideia é discutir as questões relaciona-
cesso mais elaborado que traz fazem uso de técnicas de marketing e publicida- das ao conteúdo de aula por meios diferentes
a possibilidade de reproduzir de para atingir os transeuntes. Resgatam, ainda, do ensino formal, abordando a função do sujeito
peças artísticas em grande elementos da Pop art, como as experimentações histórico na intervenção política, social e cul-
quantidade. A praticidade que com a cultura de massa e a reprodução em gran- tural”, relata Rodrigo Suñe de Oliveira, um dos
a pintura por meio de másca- de escala feitas por Andy Warhol. acadêmicos do projeto. “A utilização de elemen-
ras propicia, ao mesmo tempo O autor Tristan Manco descreve as mani- tos da arte não formal e que normalmente é coi-
em que garante a uniformida- festações de rua como uma resposta barata e bida, como o estêncil, permite trabalhar a livre
de das reproduções em série, acessível ao crescimento das comunicações de expressão na prática e colocar a questão: até
faz com que o estêncil seja po- massa de alta tecnologia – inacessíveis a maior que ponto existe democracia de fato na comuni-
pularmente utilizado até hoje parte da população. cação humana?”
como técnica de decoração de Na arquitetura urbana, palavras e ícones O objetivo do projeto é trabalhar à mar-
ambientes, móveis, papeis de fazem parte da composição do ambiente, cha- gem da educação tradicional e construir com os
parede e para a pintura de pla- mam a atenção e têm um caráter autoritário – alunos material de suporte ao livro didático que
cas de sinalização, entre muitas basta pensar na mensagem “Pare” das placas de esteja mais conectado à realidade deles. Aí en-
outras. trânsito. A utilização de ícones da cultura po- tra a prática do estêncil e a criação de fanzines
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* Para preservar a identidade dos entrevistados, foi utilizado apenas o seu primeiro nome.
se eu quiser fumar,
eu fumo.
Por: Caren Rhoden Imagens: Divulgação
UMA QUESTÃO
Em Tudo sobre minha mãe, clássico de Al- das atrizes do cinema”. Sim, ainda era para os
modóvar de 1999, Marisa Paredes encena Huma homens, mas valores católicos e machistas não
Rojo, uma atriz reconhecida e cobiçada. Quando fariam progredir o mercado do cigarro. A mulher
Por: Lara Machado Fotos: Gianlluca Simi, Lara Machado e Tiago Miotto
existe um muro separando-os. É assim a convivência entre a Vila zinho. Alguns usam o muro a seu favor – seja para prender o
Noal e a Vila Natal desde o fim de 2006, quando uma parede pré- varal de roupas, seja como parede para a casa. Mas muitos
fabricada passou a delimitar a fronteira entre as vizinhanças. ainda não aceitam as razões dadas para a divisão: “Até no
No fim de 2004, algumas famílias ocuparam um terreno governo tem ladrão”, lembra o líder comunitário. A generali-
ocioso para ali construir suas casas e formar a Vila Natal. As gra- zação de casos isolados prejudica toda a comunidade. O posto
des, câmeras de segurança e outras parafernálias não foram sufi- de saúde, a escola e a quadra de esportes ficaram para o lado
cientes para deter a sensação de insegurança, aumentada com a de lá.
instalação dos novos vizinhos, de alguns residentes na Vila Noal. Até onde um grupo de pessoas pode interferir no direito
A solução tida como viável foi a barreira física e visual. As se- de ir e vir de outras tantas? Problemas de segurança pública,
gregações sociais se materializam em cerca de 300 metros de problemas sociais. O fato é que o diálogo entre os dois lados
comprimento e três de altura. teima em ser barrado por alguns muros. Concretos ou não.
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fora de pauta no 10 / outubro de 2010
esse tal de rock enrow
santa-mariense
Por: Luciana Minuzzi Fotos: Luciana Minuzzi, Marcelo Cabala, Arquivo Pylla e Arquivo Quintal de Clorofila
acomp s shows de informações, administrada por Gilberto Rama- vivendo coisas no mundo que teriam que ser pos- bandas independentes: “Seja rock, pop, sertane-
o lho, o Betão, um dos pioneiros a vender Heavy
o tio n ono 14.
tas em pauta. Hoje tem muita gente que se pre- jo, vai ter um espaço bem maior do que hoje”.
Metal para a gurizada. Para trazer os lançamentos E acredita que os movimentos vão se reciclando:
b cisa brigar, mas a juventude parece ter medo. A
da Car e encomendas dos clientes, Betão precisava ir até juventude ficou muito superficial, querem uma “O diferencial é que nos 90 era rock autoral. Logo
Porto Alegre. Hoje, downloads e internet substi- coisa pra eles e não pra nós. Não é um coletivo”. após a dissolução desse movimento, rolou outro
tuíram os rituais antigos. “Não tem mais aquele Os novos roqueiros, como Léo, também com covers, que tá aí até hoje e mesmo assim,
clima de ir até a loja e trocar ideias pra criação. sentem falta de um ‘rock-protesto’ e critica a tem espaço pra banda autoral hoje, reduzido,
É muito diferente falar com um só pelo compu- linguagem ‘feliz’ do rock que tem sido apresenta- mas tem”. Não se sabe se por exigência dos em-
tador, do que com dez ao mesmo tempo. do pelas rádios de grande massa. “Falta interesse presários, do público, ou de outros fatores, mas
Hoje a coisa tá muito individualizada, cada em buscar outras coisas além do que tá nas rá- o cover está instituído na cidade. “A questão é
um curte um estilo e não há uma troca, uma dios. Hoje é fácil baixar um CD do Led Zeppelin, homenagear mesmo, tocar um som que gostamos
ajuda”, lamenta Betão. do Black Sabbath.” Sobre a cena que Léo herdou, muito e transmitir isso pro público”, diz a voca-
“Os apaixonados continuam. Tem Pylla pondera: “Tem uma alma criando ainda pra lista Aniele Freire, da Lady Insanna, que costuma
os ouvidores de som, que ouvem porque os não deixar morrer o que existiu, são poucos dos apresentar tributos à Janis Joplin. “Interpretar
outros estão ouvindo, e tem os curtidores, que ainda pegaram a formatação inicial do rock. Janis é uma responsabilidade enorme, compensa-
que vão procurar novidades, bandas menos Por outro lado, me sinto vivo quando vou ao te- da pela resposta do público”, segundo Aniele.
conhecidas”, classifica Betão. As dificuldades atro assistir grupos como Rinoceronte, de gente Já o movimento de festivais parece estar
de arrumar uma gravadora eram um modo de como éramos naquela época, que não espera crescendo. O festival de rock independente Ma-
selecionar o que era bom ou ruim, segundo Be- acontecer”. condo Circus, por exemplo, ocorrido em 2009,
tão. “O rock pra mim não morreu por insistên- reuniu um grande público para assistir gratuita-
cia de uns da antiga. Se depender dessa guri- Talking about my generation mente bandas de todos os lugares do País, inclu-
zada de hoje em dia, com raríssimas exceções, sive daqui. Os shows aconteciam no centro da
adiós rock’n’roll. Eles estão mais preocupados A Rinoceronte, citada por Pylla, tem Paulo cidade, em plena luz do dia, em meio ao cami-
Be com a tecnologia. Esquecem que os caras come- Noronha como vocalista e guitarrista. O músico nho de cada dia dos passantes na Praça Saldanha
coman tão çavam com uma guitarra e morriam com ela. Hoje faz parte da geração que assistia aos shows da Marinho, e seguiam pela madrugada adentro no
Excluz da a
os ano i ve d e fora de pauta no 10 / outubro de 2010
s oite sde
nta.
Macondo Lugar. já não estão mais na ativa. E mais: é possível ver abertura política de
Também há outros festivais, como Cesma in e ouvir os caras. Está no site de compartilhamen- agora e das pessoas
Blues e Grito Rock, já se concretizando na agenda to de vídeos Youtube Crime ao Vivo: um elo, uma serem menos con-
cultural dos santa-marienses, fundindo rock com era, documentário que retrata a ‘Santa Maria, servadoras, é uma
outras manifestações, como artes visuais e tea- Seattle do Sul’. O vídeo é resultado de um proje- adrenalina, mexe
tro, e ocupando lugares públicos e privados por to experimental do curso de Comunicação Social contigo, testa
toda cidade. “Temos boas bandas atuando de for- da Unijuí, idealizado e dirigido por Tiago Andrade tuas ânsias, tua ide-
ma significativa e atraindo a atenção do público dos Santos. Músicos, apoiadores, produtores, fa- ologia”.
de fora. Tudo isso é fruto de uma organização na lam sobre a importância do Elo Um para a época, O criador da ‘Seattle
cidade entre diversos atores sociais que traba- intercalados com trechos dos shows das bandas do Sul’, Paulo Ricardo, tenta
lham para fortalecer e divulgar os trabalhos da- que formaram a coletânea. definir uma expressão para a
qui”, analisa Fábio Wilke, vocalista da Ventores, Pylla é um dos poucos da época da ‘Se- cena atual: “Dá pra criar um
ores
banda que faz parte do nicho das autorais. attle do Sul’ que continua na ativa, outros dão conceito de que Santa Maria
A Vent a no
apost oral.
O estilo também está na tela dos cine- aulas, trabalham em estúdios, ou mudaram to- precisa voar de novo em ter-
clubes e em exposições, como a organizada pelo talmente de profissão. O vocalista, que já viveu mos de rock, de música, por- ut
integrante do Macondo Coletivo, Marcelo Cabala, o ‘sexo, drogas e rock’n’roll’, agora delega outra que eu tenho bastante medo som a
e a fotógrafa Estela Fonseca, que foi apresentada trindade para o rock “amor, liberdade musical e de como vai ser o futuro da
no Ciclo Mês do Rock no Cineclube Lanterninha saúde”. Uma fase ruim em 2000 fez com ele se música local. Minha filha
Aurélio e depois em outros pontos de Santa Maria. afastasse da música, mas se recuperou e lançou chegou a ir aos shows quando
“Eu posso dar o meu olhar para o momento, ter Bruxos Rosa em 2004. O segundo trabalho solo de pequena e tantos outros que
a liberdade de fazer arte em cima de outra arte Pylla, lançado em 2008, Pylla Canta 25 anos de sabem sobre a época ficam
e apoio dos músicos pra isso”, diz Cabala sobre o Rock Santa Maria, reúne dez faixas de bandas que até frustrados por não terem vivido aquilo. Para
porquê de registrar. marcaram a história do rock de Santa Maria entre isso voltar, é preciso uma mudança de menta-
Há dez anos acompanhando o rock santa- os anos 80 e 2000. A lista inclui Thanos, A Bruxa, lidade, apoio à cultura, o lado empresarial
mariense, Cabala analisa: “Em 2004 os lugares Fuga, Nocet, Feeling, 220 Volts, Black Rain, In- deveria dar mais asas, não só ao rock, mas a
diminuíram, o jornal não dava muito espaço, rá- seto Social, com a participação dos músicos que todos que fazem música boa na cidade”.
dio já tinha mudado o perfil. Logo depois abriu fazem ou faziam parte das bandas. O lançamento Mesmo que grande parte da agen-
o Macondo, em março de 2005, e muitas bandas do CD reviveu a tradição dos shows no Largo da da rock do fim de semana em Santa Ma-
viram ali um espaço. Só que ficou só lá e as ban- Locomotiva, na Avenida Presidente Vargas, reu- ria seja composta por tributos e covers,
das se acomodaram. A cena com o Macondo se nindo um público cativo. parece haver um restabelecimento dessa relação
fortaleceu por um lado e diminuiu por outro”. “Eu reconheço que ainda estou na estra- preciosa. Porém, a concretização do público can-
O momento é de se profissionalizar, gravar com da só por insistência, porque eu ainda tenho que tando junto às composições próprias
qualidade e ter uma boa divulgação, segundo Ca- fazer essa semente brotar [aponta para o Léo] e das bandas ainda levará algum tempo.
bala. Atribuída por muitos como a causadora do porque o povo me faz feliz. Como disse Bono Vox Há quem discorde e acredite que o rock
fim do ‘clima rock’, a internet é o principal meio do U2 e eu assino embaixo, a gente é feliz porque santa-mariense morreu. Cada um tem
de divulgação dessas novas bandas. “A lógica da faz rock e isso nos dá a possibilidade e a bela uma opinião, um gosto, uma ideia, e só
produção e mesmo a sobrevivência musical se dá sensação de mudar as coisas na nossa volta. Pelo dá para tirar a prova ouvindo. O rock feito
através da internet”, afirma Fábio. menos na nossa volta”. E fazer rock em Santa Ma- no ‘coração do Rio Grande do Sul’ não é só
ria é ainda mais peculiar para Pylla: “O rock origi- isso. Tem muitas outras histórias para con-
Onde estão os pioneiros?
nal tem a propensão de ser agitado, de protesto, tar e tantas se desenrolando. Só que, como
A vilã/heroína internet é um meio de en- e fazer isso em uma cidade religiosa como essa, diz Negendre, “se eu te contar todo o pro-
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contrar o trabalho de bandas de Santa Maria que com essa potência armada que temos, apesar da cesso calculo uns 300 anos de cadeia...”.
No início do século XX, Catherine amou protesto das minorias, a revolução sexual atinge melhor que fazer o casal de assaltantes de banco
dois amigos: um francês e um alemão, Jules e seu auge. ter um caso com o jovem que passa a acompa-
Jim. A I Guerra Mundial faria os dois lutarem um Esse movimento é retratado no filme Os nhá-los na viagem. Porém Warren Beatty, galã e
contra o outro, mas o tempo acabaria por baixar Sonhadores (2003), de Bernardo Bertolucci, di- produtor do filme, barrou a ideia por achar que
a poeira das bombas e fazer a paz reinar. Então, retor que viu a efervescência da Europa na épo- não cairia bem para a sua imagem fazer o papel
entre passeios de bicicleta, corridas na ponte e ca. No filme, o estadunidense Matthew, que fora de um “homossexual” e, em troca, aceitou que
muitas lágrimas, Catherine, Jules e Jim viveriam estudar em Paris, aproxima-se dos gêmeos fran- Clyde, seu personagem, fosse impotente.
juntos durante anos, sem que ela precisasse es- ceses Isabelle e Theo graças à paixão que todos A Nova Hollywood, embora tenha avança-
colher por algum deles. Catherine morreria sen- nutrem pelo cinema. Enquanto a revolução toma do em vários temas considerados tabus, deixou a
do “uma mulher para dois”. as ruas, os três se mantêm presos em um aparta- questão dos relacionamentos a três para trás. A
Em Jules e Jim, o diretor francês François mento, fazendo jogos sexuais que os tornam cada epidemia da AIDS que começou a assustar a todos
Truffaut mostrou pela primeira vez no grande ci- vez mais íntimos. Ao som de rock e ao gosto de vi- nos meados da década de 80, conhecida pelos se-
nema uma relação a três, ou na expressão fran- nho, os três caminham nus pela casa, tomam ba- tores conservadores da sociedade como “a peste
cesa, um ménage à trois. Ao dar o primeiro pas- nho juntos e discutem política e cinema. Porém, gay”, parece ter freado a revolução sexual em
so, o cineasta parece ter aberto a porta para essa enquanto os irmãos desejam a liberdade sexual vários âmbitos, entre eles a aceitação do ménage
temática que viria a receber um grande volume como uma maneira de contestação, Matthew só à trois como uma prática normal, visto que esta,
de obras décadas depois. deseja uma relação monogâmica com Isabelle. em grande parte das vezes, supõe um relaciona-
O clássico francês foi lançado em 1962 Entre Jules e Jim e Os Sonhadores, no mento bi ou homossexual.
quando começava a surgir a revolução sexual. entanto, foram poucos os grandes filmes que Em 1994, Andrew Fleming alcançou suces-
Além da criação da pílula anticoncepcional, as trouxeram a temática do relacionamento a três. so ao trazer novamente o tema à tona, com a
ideias do filósofo e sociólogo alemão Herbert Existiram tentativas, como a de Robert Benton comédia romântica Três formas de amar. Dois ra-
Marcuse, que associava diretamente a repressão e David Newman, escritores do primeiro roteiro pazes e uma moça que dividem um apartamento
sexual à manutenção de uma ordem social ex- de Bonnie e Clyde – Uma rajada de balas (1967), acabam por dividirem também a cama. Banhos
ploradora, estimularam a mudança de compor- filme que começou a Nova Hollywood, movimen- nus no riacho, seduções na biblioteca, conversas
tamentos. A livre expressão da sexualidade foi to que revolucionou a indústria cinematográfica ao telefone. Tudo parece perfeito, até o sexo fi-
uma das primeiras armas usadas pelos estudantes estadunidense. Os roteiristas estreantes, apaixo- nalmente entrar em cena.
de todo o mundo para lutar contra uma socieda- nados por Truffaut e Godard, queriam transfor- Depois desse filme, a temática parece ter
de na qual não acreditavam mais. Em 1968, ano mar suas ideias em um filme ao estilo da nouvelle voltado à moda. Nos últimos anos, muitos são os
marcado por grandes movimentos políticos e de vague francesa e pensaram que, para isso, nada filmes, surgidos nos mais diferentes países, que
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trazem um ménage à trois. É o caso do mexicano phe Honoré. Nele, o jornalista Ismael começa vi-
E sua mãe também, que conta a história de dois vendo um conturbado e divertido ménage à trois
rapazes e uma mulher casada, decidida a mudar com sua namorada Julie e sua colega de trabalho
sua vida, que partem em uma viagem à procura Alice. Ismael desconfia que as duas querem eli-
de uma praia que nem sabem se existe. Depois de miná-lo do jogo, Julie se recente dos momentos
muitas revelações e brigas, todos acabam ceden- em que os outros dois passam sozinhos à noite na
do e o que poderia ser só um fim de semana de redação e Alice se sente excluída por causa do
novas experiências sexuais acaba mudando para romantismo dos namorados. Num dos momentos
sempre a relação entre eles. mais engraçados do filme, Julie tenta explicar a
Se há algo que parece ser uma constante relação dos três para a sua mãe, que se mostra
nos filmes sobre esse tipo de relações é o ciúme. curiosa para saber como surgem as posições na
Há filmes em que ele praticamente se torna o hora do sexo. “Como dizem, já é difícil a dois”,
tema principal, como são os casos do francês Flor completa ela.
da Pele e do brasileiro Cidade Baixa, ambos de Outro destaque é Vicky Cristina Barcelo-
2005. No primeiro, um casal de namorados e seu na, do veterano Woody Allen. O romance entre as
novo companheiro só se dão bem até o momento duas mulheres que dão título ao filme e o pintor
em que os três transam sobre um tatame. No se- Juan Antonio só emplaca quando, após se esta-
gundo, a amizade de infância de dois habitantes belecer com Cristina, o artista recebe em casa
do Recôncavo baiano se rompe quando ambos se sua neurótica ex-mulher, Maria Elena, e os três
veem apaixonados por uma prostituta. passam a viver juntos.
Será que existe alguma relação a três li- A verdade é que o relacionamento ou sim-
vre de ciúmes? No cinema nacional, há pelo me- plesmente a transa a três é uma das fantasias
nos uma, a de Caramuru e das índias Paraguaçu sexuais mais comuns entre homens e mulheres.
e Moema, duas irmãs que faziam jus à alcunha A estranheza se vincula com a criação cultural
de gentis e que receberam o protagonista com do indivíduo. Seja pelo ciúme, seja pelo acaso
os braços (e não só os braços) abertos nas terras de uma correspondência perfeita, essa condição
recém inventadas. tripla é frágil e, falam essas películas, intensa.
Nos últimos anos, têm surgido ótimos fil- Para a corrida na ponte de Jules e Jim, união,
mes com o assunto. Um deles é o musical francês origem. Para a corrida final de Os sonhadores, a
As Canções de Amor, de 2007, do diretor Christo- turbulenta despedida.
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À base de cola e fita adesiva faz-se um
costume em Cachoeira do Sul.
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adivinha quem é! Por: Gianlluca Simi
“Stanislavski na veia!”
Um gaiteiro a postos dedilha seu instru- vozes toma conta do lugar. Estamos, afinal, no único problema mesmo é acertar exatamente a
mento. Sentado ao lado, um bêbado o acompa- clima da Boca Maldita. data de fundação. Havia confusão entre os anos
nha na letra fazendo de uma garrafa de cerveja A Boca Maldita, também popularmente de 2002 e 2008. Contudo, os encontros diários
microfone imaginário. O músico segue a com- adotada como Beco da Cotovelada, é um espa- sem compromisso são realizados com certeza
posição gauchesca enquanto o companheiro de ço que utiliza desde os bancos do calçadão até desde a década de 1990. Há álbum de fotos dos
banco faz que enrola. Algumas idosas rapidamen- as adjacências no entorno do balcão da lanche- principais encontros (em algumas situações são
te viram o pescoço e espiam de soslaio qual o ria. Futebol é o assunto principal, já que por ali beneficentes), integrantes dos mais variados em-
furdunço do dia naquele que é conhecido como o se encontram jogadores profissionais de final de pregos, e ,como data de fundação, não poderia
local dos encontros santa-marienses: o calçadão semana, como Zeir, Joel e Branca de Neve. Os ter sido escolhido melhor dia: 12 de outubro.
da cidade. três conversam animados próximo ao gaiteiro en- É comum para todo morador local transi-
Há, contudo, um lugar em especial diante quanto os outros parceiros não chegam. tar pelo calçadão da cidade, já que ali se encon-
dos aproximados duzentos metros de calçada e A vida alheia e a própria vida. Encosta- tram grandes lojas e lotéricas, estas sempre com
comércio varejista desarranjado entre lojas de dos nas paredes da galeria, sentados nos bancos longas filas. E é comum também o santa-marien-
roupa, eletrônicos, CDs, lotéricas, produtos in- da calçada, em rodas de conversa, sozinhos, em se deparar-se com o aglomerado de senhores a
dígenas, bancas e sorveterias. Em um ponto, a dupla, em trio... O assunto faz o volume das re- conversar, rindo ou numa seriedade de reunião
banca e a sorveteria dividem o mesmo espaço, dondezas aumentar. Para o desconhecido, pode comunista. O jornal de um passa pelas mãos de
entre cotoveladas, filas desarrumadas e centenas parecer até briga, como diz seu Joel Silva. Com tantos outros. É a partir das quatro da tarde que
de produtos variáveis, como um copo de suco de porte atlético, pele negra e óculos apoiados no a Boca ferve, dizem as atendentes da lancheria
manga e vinte maços de cigarro. É ali, no rebo- nariz esguio, Joel ironiza um dos companheiros Luciane Ferreira e Edicleusa Lima Luz.
que de uma galeria, logo que o sol ilumina as sentados nas imediações: esse aqui é o Guiñazu, Luciane, entre a correria de buscar os
lajotas em xadrez de preto e branco que, dia- olha a cara do malandro – apertando com a mão salgados e levar até o cliente, conta que o me-
riamente, milhares de senhores, dos mais novos direita o maxilar do amigo (há que se discordar lhor da Boca Maldita é conversar com o pessoal.
(com 15 anos) até os mais velhos (ainda não te- do parentesco, mas até podem ser primos de Edicleusa, que convive com o ritmo do local há
mos dados do último censo) se encontram para ama de leite). nove anos, incomoda-se com apenas uma coisa,
o papo agradável sobre a vida. Pode ser sobre a Zeir, Joel e Branca de Neve descansavam o cigarro.
vida dos outros. serenados naquela tarde. Os óculos não são regra E é assim que se vai mais uma tarde na
É assim que com sol e sem chuva os inte- para se filiar ao grupo, mas os três levavam no Boca Maldita. Se o assunto vai além de futebol e
grantes variáveis daquela agremiação discutem, rosto o amuleto. Até pode não existir um estatu- política, o nome escolhido pelo radialista Antô-
entre chegadas e partidas, o que de melhor e to regulador de direitos e deveres dos participan- nio Tessis se encaixa bem. Nem mesmo Gregório
pior aconteceu no país nas últimas horas. Sim, o tes opinativos vociferantes do local, mas o grupo de Mattos Guerra, o poeta Boca do Inferno, teve
tempo noticioso é atual, pois no outro dia o gru- tem data de fundação e até uma publicação im- o privilégio de ter um recinto para se topar com
po coloca sem atrasos o colóquio em dia. O piso pressa não periódica. O nome do jornal respeita os coniventes de opinião. Na Boca Maldita é as-
quadriculado da galeria contrasta com a lajota o nome da casa e mostra para quem quiser ver sim: tu vais passar, vais achar que é briga, mas
cinza do calçadão. Um balcão em forma de “S” os acontecimentos mais importantes e as cam- não é, esclarece Zeir ao lado dos companheiros
lota com os senhores fazendo pedidos. O som das panhas realizadas pela mocidade intelectual. O de conversa.