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CUBA,
A TRANSIÇÃO
SOCIALISTA E A NOVA
ORDEM INTERNACIONAL
Mauro Luis Iasi
Professor da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo e doutorando em Sociologia pela FFLCH-USP
Wladimir de Souza/Imagenlatina
U
Cuba foi, desde suas origens questões cruciais da transição tal co-
ma das principais até a forma particular de transiçãomo nos apresenta Mészáros (2002)
características da re- socialista que assumiu, uma revolu-em suas reflexões em busca de uma
volução cubana é que ção heterodoxa. Isto não quer dizernova teoria da transição. Como sabe-
ela provoca posições muita coisa se partirmos do princí-mos, este pensador marxista formula
apaixonadas, talvez pio que as verdadeiras revoluções a provocante tese segundo a qual um
pelo fato, como já se fazem sempre contra alguma dos problemas da transição socialista
disse Che Guevara, de esta experi- ortodoxia. Foi assim na revolução seria que a ação revolucionária pode
ência ser um “divisor de águas” en- russa de 1917 e sua crítica ao re- produzir uma alteração jurídica na
tre aqueles que “querem o bem formismo da II Internacional, forma de propriedade sem que haja
do povo, e, do outro, os que o uma profunda superação daquilo que
odeiam”. ele denomina de “sociometabolismo”
No entanto, se esta do capital.
visão apaixonada nos Dizendo em poucas pa-
ajuda a cerrar fileiras, A experiência cubana lavras, uma revolução pode
mantendo unida e forte alterar radicalmente a
a solidariedade contra buscou um caminho próprio na correlação das forças po-
a agressão imperialista líticas no Estado sem al-
(agora intensificada construção da transição socialista. Parte terar alguns dos elemen-
pela gestão deliquencial tos que seriam essenciais
de Bush), é verdade desta experiência pode ser a chave para para a existência do ca-
também que pode impe- pital, tais como uma cer-
dir uma segunda tarefa
questões cruciais da transição ta divisão hierárquica do
que é compreender Cuba trabalho, a subordinação
como nossa mais valiosa ex- da classe trabalhadora
periência prática de transição à gestão centralizada, a
socialista e, portanto, com a devida assim como na China com a crítica substituição da burguesia por
objetividade crítica. ao chamado “modelo Petrogrado”, outras personificações que cumpri-
Precisamos partir do pressu- que impunha a cópia da via soviéti- riam a mesma função de extrair e
posto de que estas duas ações, a ca para a realidade chinesa. acumular trabalho excedente.
solidariedade necessária e a com- Quanto à via estratégica da Ainda que não concorde com-
preensão crítica da experiência revolução, Cuba foi uma criativa pletamente com todas as impli-
cubana, não são antagônicas, pelo síntese de elementos da guerra po- cações da tese mészariana, suas
contrário, formam uma unidade pular de guerrilhas de apoio cam- reflexões são de grande utilidade
necessária para que nossa solida- ponês com táticas insurrecionais para aqueles que buscam compre-
riedade seja consciente e nossa nas cidades. Isto é por demais co- ender os impasses da transição.
crítica seja solidária. nhecido. O que é pouco estudado A construção de uma nova socia-
Comecemos, então, pela re- é que a experiência cubana seguiu bilidade no caminho aberto pela
cuperação dos elementos da par- buscando um caminho próprio na inicial socialização dos meios de
ticular experiência de transição construção da transição socialista. produção, a necessária inversão do
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caráter das relações sociais de pro- econômica, a rentabilidade, o interes- cundária. Esta, no entanto, não era
dução marcadas pela divisão entre se material individual como estímulo, a forma como Che via a questão.
gestão e execução, pela alienação e etc.), nos arriscamos a chegar a um Segundo Carlos Tablada (1987):
reificação do trabalho, são aspectos impasse (...). Para construir o comu- “Che pensava que a perpetuação
dos mais importantes para aqueles nismo, é preciso mudar o homem e desenvolvimento das leis e cate-
que acreditam que a transição so- ao mesmo tempo que a base econô- gorias econômicas do capitalismo
cialista não é a mera construção de mica”. (Guevara, Textos Políticos, prolongam as relações sociais de
uma base material (confundida e citado por Löwy, 2002). produção burguesas e com elas os
reduzida ao aspecto econômico), É bom recordar que os manuais hábitos de pensamento e motivações
mas fundamentalmente o processo soviéticos de economia socialista da sociedade capitalista, ainda que
de construção de um novo ser hu- estavam a todo vapor no caminho agora o fenômeno tenha se meta-
mano através da criação de novas do “cálculo econômico”, das “leis morfoseado sob formas socialistas”.
relações sociais. gerais da economia socialista” e da Verdadeiramente não são exa-
É neste aspecto que a contri- “lei do valor socialista”, tudo isto tamente as leis e categorias que
buição da experiência cubana é da amarrado pelo princípio imutável, prolongam as relações, mas o
maior riqueza. A polêmica contrário, é a sobrevivência das re-
de Che Guevara sobre a lações que se reflete na sobrevida,
forma de gestão da no pensamento, das categorias
economia, que ficou Che recupera Marx da economia política do
conhecida pela con- capital. No entanto,
traposição entre o ao afirmar que a tarefa da transição no essencial, o que o
“cálculo econômico” e autor cubano destaca
o “sistema orçamentário”
é, principalmente, criar as condições para é a relação funda-
de empresas consolida- mental que Che fazia
superar a escravizante subordinação do
das, traz à luz a questão entre os mecanismos
sobre a sobrevivência indivíduo à divisão social do trabalho econômicos e o produto
da lei do valor na destes na formação ou
transição socialista. não de uma nova cons-
O que é aparente- ciência. Sabemos que para
mente apenas uma discussão transformado em lei natural pela o revolucionário cubano-argentino
técnica, esconde uma polêmica mui- ortodoxia soviética, da superiori- este era o aspecto mais importante
to maior. Che Guevara estava con- dade do plano. A sobrevivência da para medir o acerto de uma políti-
vencido de que não se pode construir lei do valor e da forma mercadoria ca na transição.
o socialismo utilizando os métodos e era uma contradição menor diante Recuperando o pensamento de
ferramentas herdadas da sociedade da urgência de derrotar o Ocidente Marx, Guevara afirma que a tarefa
capitalista, assim como o socialismo na corrida pela “eficiência”, “pro- da transição é, principalmente, criar
não poderia ser confundido com dutividade”, “rentabilidade” das as condições para superar a escra-
a mais eficaz maneira de produzir “empresas socialistas”. vizante subordinação do indivíduo
em grande escala mercadorias com O fato de que a maneira esco- à divisão social do trabalho e supe-
os meios de produção socializados. lhida para atingir tais metas fosse a rar o trabalho como mero meio de
Neste sentido, Che dizia que perpetuação da forma essencial das vida, transformando-o em primeira
“Indo atrás da quimera de realizar relações capitalistas de organização necessidade da existência. Diz Che:
o socialismo com ajuda das armas e gestão do trabalho, como, por “O socialismo econômico sem a
corrompidas legadas pelo capitalismo exemplo, a forma taylorista-fordis- moral comunista não me interessa.
(a mercadoria tomada como unidade ta, era visto como uma questão se- Lutamos contra a miséria, mas ao
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mesmo tempo contra a alienação Ao mesmo tempo, preocupa- Guevara preocupava-se com a
(...) Marx se preocupava tanto com vam o dirigente cubano problemas forma em que a transição socialis-
os fatores econômicos quanto com de uma outra natureza, mas que se ta se institucionalizaria, e de que
sua tradução no espírito. Chamava- ligam diretamente ao nosso tema. modo a ação excepcional dos revo-
lhe ‘um fato de consciência’. Se o A ação revolucionária havia cria- lucionários iria se transformar em
comunismo negligencia os fatos de do uma série de instrumentos de práticas societais que não podiam
consciência, pode se tornar um mé- justiça que faziam sentido em um perder seu caráter revolucionário.
todo de repartição [e, agregaríamos certo momento do processo revo- Se, para ele, a revolução é quando o
nós, de produção e distribuição lucionário, mas que corriam o risco excepcional se torna cotidiano, qual
mais justa de mercadorias], mas já de degenerar em formas arbitrárias seria a forma deste cotidiano não
não é uma moral revolucionária” que podiam causar grande dano na se perder nas armadilhas da velha
(Che, citado por Löwy, op.cit.). relação entre o povo e a revolução. consciência formada na antiga so-
Fica bastante claro que para Este perigoso caminho de se- ciedade? O critério guevariano para
Che o socialismo não pode ser paração das massas causado por estas questões é o mesmo que liga
confundido com uma “simples um poder sectário e arbitrário nas este aspecto particular ao problema
acumulação mecânica de quanti- mãos de alguns, como florescia geral abordado anteriormente sobre
dade de produtos postos à dis- a emancipação: uma moral e uma
posição do povo” (Che), consciência revolucionária
assim como procu- Se, para Che, a revolução é quando deve se basear em ati-
ra estabelecer uma tudes e relações con-
clara relação entre a o excepcional se torna cotidiano, como cretas que permitam,
forma concreta das re- de fato obriguem, o
lações e o que estas pro-
evitar que este cotidiano perca-se nas surgimento de novo
duzem na consciência do padrão de relações
armadilhas da velha consciência formada
ser humano que se forma humanas.
durante o processo na antiga sociedade? Esta linha de
de transição. raciocínio levava
Esta preocupação à discussão de
econômica se reflete uma legalidade socialista,
igualmente nas questões políticas. por exemplo nos chamados ou mais precisamente, levava à
A forma, e não apenas a meta, da CDRs (Comitês de Defesa da necessidade de superar a ação revo-
ação política deve ser emancipa- Revolução), foi duramente critica- lucionária típica de uma conjuntura
tória. Por isto Che insistiu em mé- do por Che. Este caminho sectário de guerra civil na direção de uma
todos diferentes para criação do de uma “ligação rígida às vezes, de “normalidade” na qual a relação
partido em Cuba, combatendo as medidas corretas até medidas ab- entre os seres humanos volte a ser
tendências burocráticas que dis- surdas, o caminho de supressão da o central.
tanciavam a vanguarda da classe, crítica, não somente por quem tem Os CDRs, uma vez perdido o
como, por exemplo, no momen- o legítimo direito de fazê-la, que vínculo que os une à massa, podiam
to de criação das Organizações é o povo”, mas do próprio partido se converter em instrumento arbi-
Revolucionárias Integradas que perdeu seu caráter “vigilante e trário nas mãos daqueles que o con-
(ORI), ocasião na qual Che insis- de inspeção ao se transformar em trolavam, e pior, esta arbitrariedade
tiu para que o novo membro do um executor” (Che, 1981), tudo tendia a ser justificada em nome de
partido a ser criado fosse indicado isto poderia causar o dano maior um suposto combate aos “contra-
diretamente em assembléias de que é distanciar as massas de sua revolucionários”. Lembrando que
trabalhadores. vanguarda. “contra-revolucionário é aquele
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Havana antiga
que luta contra a revolução, mas temos que dar um pequeno passo materialidade objetiva em que se
também é aquele senhor que, valen- atrás e estabelecer estas relações, insere a experiência histórica.
do-se de sua influência, consegue não continuar com as relações do Após um curto período de expe-
uma casa, consegue depois dois car- forte e do fraco, do ‘eu disse e aca- riência das propostas de Che e dian-
ros, viola o racionamento e obtém bou’. Em primeiro lugar porque não te dos resultados alcançados e das
depois tudo o que o povo não tem; é justo e em segundo lugar, e muito contradições produzidas, entre elas,
(...) este sim é um contra-revolucio- importante, porque não é político” paradoxalmente, um crescimento da
nário” (Che, 1981), Guevara apre- (Che Guevara, La influencia de la burocracia devido à extrema centra-
sentará um interessante raciocínio revolución cubana en la América lização que a proposta demandava,
que nos leva a refletir sobre sua Latina. In: Obras, t. 2, p. 486-91) Cuba adotou várias orientações.
particular visão da transição para Esta preocupação inspirará dire- Naquilo que nos interessa, o fato
uma “legalidade socialista”: tamente a tentativa de estabelecer é que, por um tempo, predominou
“É lógico que em momentos de os Órgãos de Poder Popular a partir uma orientação mais ortodoxa ins-
excessiva tensão não se podem usar de 1974 (Florestan Fernades, 1979, pirada pelo pensamento econômico
panos quentes. Aqui se prendeu p. 199). Todas estas iniciativas, des- soviético. Esta etapa seguiu até a dé-
muita gente sem saber se realmente de aquelas próprias do campo eco- cada de 80 quando foi criticada por
eram culpados. Na Sierra nós fuzi- nômico, como as políticas e jurídi- aquilo que se chamou de “retifica-
lamos pessoas sem saber se eram to- cas, assim como suas conseqüências ção”, processo no qual foram recu-
talmente culpadas, mas há momen- no processo de formação de uma peradas algumas das idéias centrais
tos em que a revolução não podia nova consciência, não são determi- do pensamento econômico de Che.
parar para averiguar demais: tinha a nadas apenas pela intencionalidade O processo de retificação abria
obrigação de triunfar. Nos momen- dos revolucionários ou pelas boas horizontes dos mais otimistas para
tos em que as relações normais entre intenções de qualquer governo. o desenvolvimento da transição
as pessoas voltam a ter importância, Dependem em última instância da socialista em Cuba, no entanto,
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o desmonte da URSS e do leste deve ser garantida sua soberania Somos contra a pena de morte
europeu caiu como uma bomba na utilização de sua ordem jurídica por uma série de motivos, desde
para a frágil economia cubana. A que foi constituída de forma sobe- humanitários até jurídicos. No
precarização material condicionou rana, isto não impede que tenha- entanto o que nos interessa aqui
a adoção das chamadas medidas mos, como socialistas, uma opinião é, retomando o raciocínio gueva-
especiais para tempos de paz, na própria sobre alguns elementos rista, porque “não é justo e não é
verdade um conjunto de orienta- desta ordem legal, mais especifica- político”. Precisamos tomar todo
ções de defesa e sobrevivência, que mente, sobre a pena de morte. o cuidado para não recriarmos
bloqueou o caminho aberto pela O Estado cubano tem que se entre nós uma atitude de justifi-
retificação dos anos 80. defender da agressão imperialista, cativa que nos cegue a qualquer
Tanto o contexto internacional mas, ao mesmo tempo, está cada deformação que possa haver, do
como internamente as medidas es- vez mais obrigado a enfrentar con- tipo “não importa o que o gover-
peciais, fizeram com que prevale- tradições internas agravadas pela no cubano faça, desde que faça
cesse em Cuba uma visão pragmá- reprodução de desigualdades que a em nome da revolução”. Sabemos
tica de reformas econômicas que atual orientação econômica acaba que, em nome da “defesa da revo-
pudessem viabilizar os recursos por gerar. lução”, muitos dos atos cometidos
essenciais, primeiro para a acabam por colocar em risco
sobrevivência e depois pa- esta mesma revolução.
ra a busca de uma alter- A revolução cubana
nativa de desenvolvi- Não podemos recriar uma conseguiu sobre-
mento que não mais viver até agora,
podia contar com atitude que nos cegue a qualquer deformação, quando muitos
o “Comecom”. O apostavam no seu
resultado foi uma do tipo “não importa o que Cuba faça, desde desmantelamento
abertura comer- imediato após o des-
cial e produtiva que faça em nome da revolução”... monte soviético, não
que permitiu o re- simplesmente por man-
torno de investimen- ter rígidos instrumentos
tos privados, principalmente de controle, mas pelo vínculo
na área do turismo, mas não ape- Não basta aceitar o fato de que diferenciado que construiu com as
nas, com todas as conseqüências o Estado cubano é obrigado a ser massas e sua capacidade de des-
em relação à reprodução de desi- duro, mas compreender por que locar o eixo central da transição
gualdades que se possa imaginar, é obrigado a agir assim. Não pelo para o “fator de consciência”. E é
combinadas com um processo de questionamento, como ampla- exatamente isto que o imperialis-
fechamento político e controle mente propalado pela imprensa mo quer quebrar.
muito mais reforçado. monopólica internacional, sobre
A atual situação, incluindo a es- a “sumariedade do processo judi- Referências bibliográficas
calada agressiva norte-americana e cial”, pelo cerceamento do direito Fernandes, F. Da guerrilha ao socialismo: a revolução cubana.
São Paulo, T.A. Queiroz, 1979.
o episódio do fuzilamento de três de defesa e outros argumentos que Guevara, E. C. Obras, vol. 3, São Paulo, Global, 1986.
participantes em uma tentativa de perdem a legitimidade por parti- Guevara, E. C. Textos políticos e sociais, São Paulo, Edições
Populares, 1987.
seqüestro de uma balsa, são refle- rem de onde partem. Cuba como Löwy, M. O pensamento econômico de Che. São Paulo, Ex-
pressão Popular, 2002.
xos deste quadro mais geral e não qualquer país tem o direito de pro- Mészáros, I. Para Além do Capital, São Paulo, Boitempo,
podem ser compreendidos fora de- teger-se e para isto utilizar-se de 2002.
Sader, E. e Fernandes, F. Che Guevara, São Paulo, Ática, 1981.
le. Se por um lado Cuba tem todo seus dispositivos legais. A questão
Tablada Perez, C. Ernesto Che Guevara, hombre y sociedad,
direito de se defender e para isto para os socialistas é outra. Buenos Aires, Antarca, 1987.
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