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in Manuel Pedro Ferreira, Aspectos da Música Medieval no Ocidente Peninsular, vol.

1: Música
palaciana, Lisboa: Imprensa Nacional/ Fundação Calouste Gulbenkian), 2009, pp. 150-74

Estrutura e ornamentação melódica


nas cantigas trovadorescas*

Abstract: The author first sets the stage for the analysis of secular troubadour songs: he
passes in review hints by Johannes de Grocheio, Dante Alighieri and Johannes de Garlandia,
and summarizes the concept of structure and ornamentation in Gregorian Chant. Then the
situation in troubadour music is discussed in the wake of Hendrik Van der Werf, Hans
Tischler and Elizabeth Aubrey. The 13th-century Galician-Portuguese cantigas by Martin
Codax and King Dinis are then analyzed in detail and their style compared. The issues of
authorship and originality are also dealt with: double musical authorship is suggested for the
melodies of Codax, while Dinis reveals higher coherence and a personal stamp. The author
concludes that the distinction between structure and ornamentation applies in these songs, but
depending on style; in both cases the structural level is linked to different formative contexts
(low clerical culture or aristocratic tradition, respectively), while the higher levels of
ornamentation are more likely to mirror aesthetic choice and personal artistry.

A compreensão do texto de uma cantiga trovadoresca supõe alguma familiaridade


com o galego-português medieval; mas esta língua é facilmente reconhecida por um falante de
galego ou de português moderno como próxima da sua, na estrutura gramatical como na
maior parte do vocabulário. Já a compreensão de uma melodia trovadoresca supõe a imersão
em categorias estéticas que pouco têm a ver com a experiência da música mais recente, pois
construção e estilo melódicos partem de pressupostos muito diferentes daqueles a que nos
habituámos.
Um destes pressupostos é a dialéctica entre estrutura e ornamentação. «Estrutura»
refere tanto o conjunto de pontos de referência e de relações subsistentes que unifica a
sucessão dos sons, como a forma mais simples que uma melodia concreta possa assumir. Por
«ornamentação», entende-se a elaboração e reelaboração da sua textura. Longe de evocar um
arrebicar supérfluo do fundamental (a composição escrita), ou uma camada superficial do
objecto artístico ligada à apropriação e renovação do gosto (a interpretação), a ornamentação
é, na música da Idade Média, à vez demonstração de capacidade inventiva individual e factor
constitutivo da natureza artística do objecto. Ela inclui a capacidade de enriquecimento —
por ampliação, variação, ou expansão polifónica — de uma linha melódica dada, mas
também a incorporação cumulativa dos resultados de tal processo na própria composição, de
forma a marcar decisivamente a sua identidade.

*
Texto apresentado na Jornada de Estudos sobre a Lírica Galego-Portuguesa (Oxford, 19 de
Novembro de 2004).
No fenómeno musical, a produção de sentido não depende apenas de invariantes
acústicas e psicológicas, mas também de condicionantes culturais, convenções e expectativas
partilhadas pelo grupo social que cria, transmite ou suporta determinado repertório. Tentar
compreender as melodias das cantigas medievais galego-portuguesas implica, por isso, uma
reconstrução histórica dos modelos que estão subjacentes à sua composição e fruição estética.
Pretende-se com este trabalho demonstrar que neste repertório estão operativos modelos
estruturais e ornamentais afins a outras tradições da Idade Média e que esse reconhecimento
é fundamental para uma adequada abordagem interpretativa.

Infelizmente, não se vislumbra nos textos da época uma reflexão minimamente


articulada sobre a música das cantigas galego-portuguesas. Tudo o que os trovadores
peninsulares sugerem, através de um poema de Juião Bolseiro («... meu amigo ... // fez unhas
lirias no som / que mi sacan o coraçon»), é que os requebros — se este é de facto o sentido de
«lirias» — poderiam calar fundo no ouvinte1. A propósitos destes eventuais requebros, floreios
ou melismas, pode ainda recorrer-se ao testemunho do Cancioneiro da Ajuda, que
indirectamente nos esclarece sobre o seu uso: o melisma poderia corresponder a um hábito
corrente de amplificação do final das frases, mas também a uma manipulação intencional
com vista a realçar a ocorrência de pausa sintáctica, a acentuação de uma palavra, o seu
especial posicionamento geométrico ou o seu valor semântico na economia do poema2.
A ornamentação melismática poderá estar implícita no conceito de cantus coronatus,
transmitido por Johannes de Grocheio (c. 1300). Cantus coronatus designa, no seu tratado, a
canção trovadoresca de maior dignidade social e de estilo mais elevado, caracterizado pela
lentidão e regularidade de uma pulsação idealmente invariável. O desdobramento
ornamental das notas longas em que se decomporia a melodia seria uma outra característica
— isto, se aceitarmos a interpretação que se tem feito do adjectivo coronatus, e que Thomas
Binkley exprimiu nestes termos: «Entendo, tal como muitos outros, este ‘coroar’ como
referindo um embelezamento através de floreios de uma ou de outra espécie [...] ornamentos
concentrados, postos ao serviço de claras tácticas retóricas»3.
Johannes de Grocheio, depois de distinguir entre a grande canção cortês (género de
registo estilístico elevado, a que chama simplesmente canção) e a canção de refrão (a que
chama cançoneta) e de propôr três categorias de cançonetas (que parecem corresponder ao

1 Comentário in Manuel Pedro Ferreira, Cantus Coronatus — Sete cantigas d’El-Rei Dom Dinis, Kassel:

Reichenberger, 2005, pp. 16-17, 37-38.


2 Manuel Pedro Ferreira, “O rasto da música no Cancioneiro da Ajuda”, in O Cancioneiro da Ajuda, cen

anos despois: Actas do Congreso, Santiago de Compostela: Xunta de Galicia, 2004, pp. 185-210; “Som
mudo no Cancioneiro da Ajuda”, comunicação ao Colóquio “Cancioneiro da Ajuda, 1904-2004”
(Lisboa, 11-13 de Novembro de 2004), no prelo.
3 Thomas Binkley & Margit Frenk, Spanish Romances of the Sixteenth Century, cit. in M. P. Ferreira, Cantus

coronatus, p. 13n; minha tradução. Sobre a interpretação da expressão cantus coronatus, veja-se id., ibid.,
pp. 12-15, e Timothy J. McGee, The Sound of Medieval Song, Oxford: Clarendon Press, 1998, pp. 107-10.
rondeau, a um tipo de ballade e ao virelai, géneros que começavam então a estar em voga), dá-
nos ainda algumas pistas relativamente à música destas últimas, com base na existência ou
não de retoma melódica: «Há decerto muitos que chamam ‘roda’ ou ‘rondel’ a qualquer
cançoneta porque retorna sobre si mesma à maneira de um círculo, começando e terminando
no mesmo ponto. Nós, porém, só chamamos ‘roda’ ou ‘rondel’ àquelas cançonetas cujas
estrofes não têm canto diverso do canto do responso ou refrão. E são cantadas prolixa e
pausadamente, como o cantus coronatus [...] A cançoneta a que chamam stantipes é aquela na
qual há diversidade entre estrofes e refrão tanto nas rimas da letra como no canto [...] A ductia
é na verdade uma cançoneta leve e veloz nas subidas e descidas, a qual é repetidamente
cantada por moços e moças numa dança colectiva [...]»4.
No contexto do discurso sobre a arte trovadoresca, destaca-se ainda a
conceptualização da forma musical, aplicada à grande canção cortês (sem refrão), proposta
por Dante Alighieri no seu tratado De vulgari eloquentia (c. 1304): «Dizemos então que toda a
estância é harmonicamente organizada com vista a receber uma melodia. Mas é evidente que
há estâncias de diversos tipos. Algumas estão sujeitas a uma melodia que se desenrola
continuamente até ao fim, isto é, sem que qualquer percurso melódico se repita e sem
disjunção — e por disjunção entendemos um ponto de viragem que supõe retoma de uma
passagem melódica noutra passagem (aquilo a que, em língua vulgar, chamamos volta) — [...]
Outras estâncias deveras há que toleram disjunção: mas não pode haver disjunção, no sentido
que lhe damos, a não ser que se reitere uma melodia, seja antes da disjunção, seja depois, ou
nos dois lados. Se a repetição ocorre antes da disjunção, dizemos dessa estância que tem pedes;
e deverá ter dois, embora, em raros casos, aí se ponham três. Se a repetição ocorre após a
disjunção, então dizemos que a estância tem versus. Se antes não houver repetição, dizemos da
estância que tem frons; se não houver depois, dizemos que tem syrma, ou cauda»5.
Apesar destas propostas tardias de conceptualização da forma musical, a comparação
das versões melódicas de canções trovadorescas com música conservada em mais de um

4 Cantilena vero quaelibet rotunda vel rotundellus a pluribus dicitur eo quod ad modum circuli in se ipsam reflectitur et
incipi et terminatur in eodem. Nos autem solum illam rotundam vel rotundellum dicimus cuius partes non habent diversum
cantum a cantu responsorii vel refractus. Et longo tractu cantatur velut cantus coronatus [...] Cantilena quae dicitur
stantipes est illa in qua est diversitas in partibus et refractu tam in consonantia dictaminis quam in cantu [...] Ductia vero
est cantilena levis et velox in ascensu et descensu quae in choreis a iuvenibus et puellis decantatur [...]: Johannes de
Grocheio, De Musica, cit. in Christopher Page, “Johannes de Grocheio on secular music: a corrected
text and a new translation”, Plainsong and Medieval Music, vol. 2 (1993), pp. 17-41 [24-26].
5 Dicimus ergo quod omnis stantia ad quandam odam recipiendam armonizata est. Sed in modis diversificari videntur.

Quia quedam sunt sub una oda continua usque ad ultimum progressive, hoc est sine iteratione modulationis cuiusquam et
sine diesi — et diesim dicimus deductionem vergentem de una oda in aliam (hanc voltam vocamus, cum vulgus alloquimur)
— [...] Quedam vero sunt diesim patientes: et diesis esse non potest, secundum qod eam appellamus, nisi reiteratio unius
ode fiat, vel ante diesim, vel post, vel undique. Si ante diesim repetitio fiat, stantiam dicimus habere pedes; et duos habere
decet, licet quandoque tres fiant, rarissime tamen. Si repetitio fiat post diesim, tunc dicimus stantiam habere versus. Si ante
non fiat repetitio, stantiam dicimus habere frontem. Si post non fiat, dicimus habere sirma, sive caudam: Dante, De
vulgari eloquentia, edited and translated by Steven Botterill, Cambridge: Cambridge University Press,
1996, p. 74 (Liber II, cap. x, §§ 2-4).
manuscrito revela que a forma de uma canção era frequentemente instável após as primeiras
frases (embora não de maneira arbitrária), e que os trovadores não hesitavam em modificar a
sucessão de frases de molde a que uma música pré-existente se adaptasse a uma diferente
forma estrófica6. A ideia de fixidez formal, com clara identidade ou contraste entre frases
musicais sucessivas, parece não se ter estabelecido com firmeza no meio trovadoresco antes
dos finais do século XIII7.
Vemos assim um discurso que, no que respeita à forma musical, aparece ainda
tacteante, e que, no que se refere a outras características técnicas dos cantares, é omisso, em
contraste com o que sucede contemporaneamente entre os teóricos da polifonia, cujos
tratados, surgidos em ambiente escolástico, incluem instrumentos conceptuais que poderiam
ter sido úteis para a descrição das melodias trovadorescas. Poderá pensar-se, por exemplo,
que a ideia de ornamentação está contida na de «invenção» (fictione), tal como aparece numa
redacção tardia de um tratado atribuído a Johannes de Garlandia: «Enobrecer uma melodia é
alargá-la ou diminuí-la por meio de altivez, no alargamento [da duração], para que melhor se
perceba, na espessura [= volume da voz], para que bem se ouça, na invenção [= modificação
ou expansão ornamental] para que mais atractiva se torne, na emissão [= impacto
interpretativo], para que [perante ela] o espírito se incline»8. No entanto, tudo o que, a
propósito da elevação do estilo, nos dizem as Leys d’Amors — que em meados do século XIV
representam a consciência teórica do meio trovadoresco occitano —, é que as cansos devem ter
uma melodia pausada, contrariamente às pastorelas, às quais convém toada um pouco rápida
e viva9.
Não havendo depoimentos que nos esclareçam sobre os critérios objectivos que
teriam presidido, ainda que subconscientemente, à concepção musical das canções, resta-nos
recorrer à análise das melodias conservadas por escrito. No entanto, esta análise supõe a
projecção subjectiva de modelos através dos quais se possa descrever ou explicar o
funcionamento estético do objecto em questão. Os modelos historicamente mais próximos são
os dos tratadistas medievais que sucessivamente se debruçaram sobre o canto gregoriano,
pelo que se impõe uma digressão que relembre as suas principais aquisições teóricas.

6 Para exemplos, veja-se a edição de Hendrik van der Werf, The Extant Troubadour Melodies, Rochester
(N.Y.): The Author, 1984; Elizabeth Aubrey, The Music of the Troubadours, Bloomington: Indiana
University Press, 1996, pp. 112-26, 148; e Manuel Pedro Ferreira, "Mesure et temporalité: vers l'Ars
Nova", in La rationalisation du temps au XIIIème siècle — Musiques et mentalités (Actes du colloque de Royaumont,
1991), Royaumont: Créaphis, 1998, pp. 65-120.
7 Hans-Herbert S. Räkel, Die musikalische Erscheinungsform der Trouvèrepoesie, Bern/Stuttgart: Paul Haupt,

1977, pp. 272-79.


8 Nobilitatio soni est augmentatio eiusdem vel diminutio per modum superbiae, in augmentatione, ut melius videatur, in

grossitudine, ut bene audiatur, in fictione, ut melius appetatur, in dimissione, ut spiritus recurventur: Johannes de
Garlandia, De mensurabili musica, ed. E. Reimer, cit. in T. McGee, The Sound..., p. 176.
9 Chansos deu haver so pauzat [...] Pastorela [...] deu haver so un petit cursori e viacier: Guilhelm Molinier, Leys

d’Amors, ed. M. Gatien-Arnoult, cit. in René Nelli & René Lavaud, Les troubadours, II: Le trésor poétique de
l’Occitanie, Paris: Desclée de Brouwer, 2000, p. 620.
Estrutura melódica e ornamentação no canto gregoriano

No século XIII, época em que a tradição lírica galego-portuguesa ganha os contornos


definitivos e atinge o seu zénite, o discurso teórico sobre a monodia sacra do mundo latino
estava estabilizado em torno de uma escala de referência e de uma doutrina sobre
modalidade. Após um longo período de desacordo sobre a estrutura escalar do canto
gregoriano, havia-se tornado consensual uma escala de referência diatónica de sete notas
replicáveis à oitava, incluindo um si móvel (natural ou bemol) nas duas oitavas mais agudas,
ficando esquecidos eventuais graus irregulares ou matizes enarmónicos, incompatíveis com a
escrita musical entretanto adoptada10. Esta escrita permitia transposições de conveniência à
distância de um intervalo de quinta, mas obrigava a modificações mais criativas para evitar
inconveniências melódicas que a memória insistia em conservar.
Os tratadistas procuraram ainda definir princípios gerais que permitissem agrupar as
melodias em famílias modais, estando previstas, de acordo com o precedente bizantino, oito
categorias (quatro «maneiras» caracterizadas pela estrutura intervalar correspondente ao grau
inferior e aos dois superiores a ré, mi, fá e sol, cada uma delas subdividida numa variedade
aguda, chamada «autêntica», e outra grave, chamada «plagal», perfazendo um total de oito
modos). Os critérios a utilizar para classificar as melodias, segundo a linha teórica mais
pragmática — representada, entre outros, por Guido d’Arezzo e Johannes Afflighemensis —,
incluíam o início (entoação), a nota final da composição e o âmbito melódico, considerado
não em abstracto mas em conexão com a nota final; podiam também ser invocadas as notas
nas quais se detêm internamente as frases e a presença de um grau predominante,
relacionável com as cordas de recitação da salmodia.
A construção melódica podia ser abstractamente descrita com recurso à designação
dos intervalos admissíveis no género diatónico, aos antigos conceitos de tetracorde (quatro
graus contidos num intervalo de quarta perfeita) de pentacorde (cinco graus contidos num
intervalo de quinta perfeita) e de «espécie» de um intervalo (no género diatónico, uma das
possibilidades finitas de repartição dos tons e meios-tons dentro de um intervalo dado), o qual

10 A escala na qual foram vazadas, através das notações diastemáticas desenvolvidas no século XI, as
melodias gregorianas, corresponde em geral à proposta por Hucbaldo no final do século IX. O autor
anónimo do tratado Musica enchiriadis propôs na mesma época a replicação disjuntiva, ao longo do
espaço tonal, do tetracorde diatónico formado por tom, meio-tom e tom, o que implica a presença na
escala de si bemol grave e de fá sustenido agudo, com possível extensão tetracordal superior incluindo o
dó sustenido. Este tratado, contrariamente ao de Hucbaldo, foi repetidamente copiado até ao século
XII, altura em que o ensinamento hucbaldiano (retomado por autores posteriores, entre os quais Guido
de Arezzo) levou definitivamente a melhor, apesar das objecções de teóricos como Theinredo de Dover
e o anónimo autor das Quaestiones in musica, que advogaram o reconhecimento de graus cromáticos
irregulares. Sobre a questão, veja-se a síntese de David Hiley, Western Plainchant: A Handbook, Oxford:
Clarendon Press, 1993, pp. 442-53.
permitia descrever uma construção escalar através da conjugação de diferentes espécies de
quarta e de quinta11.
No entanto, os critérios analíticos reflectidos nos tratados da época não são suficientes
para dar conta da complexa realidade melódica do canto gregoriano, o que foi, aliás,
reconhecido então por vários autores, entre os quais os cistercienses que, no século XII, se
empenharam numa tentativa de restauro da tradição melódica. Estes admitiram a mistura
complementar de modos plagais e autênticos sobre a mesma final (conceito de maneria) e
denunciaram a existência de peças que, contrariamente à regra geral, começam num modo e
terminam noutro. Aliás, as peças modulantes (como o ofertório Erit vobis), originaram sérias
divergências de interpretação entre os chantres medievais12.
Os musicólogos de hoje, formados com base na valorização do trabalho do
compositor, mas, não obstante, atentos às aquisições da etnomusicologia, desenvolveram uma
abordagem que se quer mais fina e matizada do que a de outrora, já que o antigo propósito
classificatório, de cariz funcional, é subordinado à compreensão, quer da génese e das
condições de circulação do repertório, quer das melodias individuais, entendidas como
objectos artísticos com lógica construtiva e dinâmica interna próprias.
Neste sentido, é básico reconhecer, no ambiente cristão medieval, uma gradação
contínua de processos de vocalização do texto sacro, do simples recitativo, sobre um único
grau da escala, à melodia original artisticamente elaborada, passando pelas fórmulas da
salmodia, pela composição melódica a partir da justaposição de motivos e de frases musicais
pré-existentes («centonização») e pela melodia esquemática livremente adaptável («melodia-
tipo»). É também importante ter em conta que o grau de fixidez das fórmulas e das melodias
tradicionais variou consoante o contexto litúrgico, geográfico e temporal. Note-se, a
propósito, que um maior grau de complexidade não é necessariamente indicativo de menor
antiguidade: as duplas cordas de recitação, por exemplo (de que há vestígio no 6º tom
salmódico para as antífonas da Missa, como se poderá adiante verificar no Ex. 1), implicam
maior elaboração do que uma corda única, mas, atendendo a vários indícios, remontam com
toda a probabilidade às fases mais recuadas da constituição de uma tradição litúrgica cristã.

11 A linhagem teórica que explora o conceito de “espécie”para chegar a uma definição “antiquária”,
pseudo-grega, dos modos eclesiásticos, tem a sua origem no século X, no tratado Alia musica, e teve em
Berno de Reichenau (séc.XI) o seu mais convincente representante. Esta orientação foi especialmente
influente em território germânico e teve importantes ramificações tardias em Itália, estando na base da
reformulação do conceito de modalidade, tendo em vista a polifonia, ocorrida no Renascimento. Veja-
se a propósito Harold S. Powers, "Mode [I-II]", The New Grove Dictionary of Music and Musicians, ed.
Stanley Sadie, London: Macmillan, 1980, vol. 12, pp. 376-96 (2ª ed. [2001]: vol. 16, pp. 775-96).
12 Sobre o canto cisterciense, a melhor síntese é ainda: Solutor R. Marosszéki, Les origines du chant

cistercien. Recherches sur les réformes du plain-chant cistercien au XIIe siècle, Roma: Tipografia Poliglotta
Vaticana, 1952 [Analecta sacris ordinis cisterciensis, vol. VIII]. Sobre os problemas de fixação do texto
musical dos cânticos de modalidade instável, veja-se, por exemplo, Theodore Karp, Aspects of Orality and
Formularity in Gregorian Chant, Evanston, Illinois: Northwestern University Press, 1998, pp. 225-69.
A partir da década de 1960, a modalidade gregoriana deixou de ser vista como um
corpo fechado de oito categorias coerentes, para ser vista como fruto de um processo histórico
acidentado em que convivem matrizes estéticas de diversas épocas (como a chamada
«modalidade arcaica», cara a Jean Claire, em que coincidem eixo melódico e nota final, e que
se encontra, por exemplo, no intróito Quasi modo)13. Assim, uma mesma classe modal pode
recobrir várias famílias melódicas, uma mesma melodia pode conceder papel dominante a
mais de um grau (como na comunhão Simile est regnum) e o grau, ou graus, em que mais se
insiste numa melodia pode não coincidir com o tenor salmódico que lhe veio a ser
posteriormente atribuído (divergência que o intróito Eduxit eos claramente ilustra).
Centrais, na actual abordagem do canto gregoriano, são as noções complementares
de estrutura e de ornamentação melódicas, noções estas que fundamentam a redução
analítica de uma melodia ao seu esqueleto primordial. Não se confunda esta noção de
ornamentação com a presença nos manuscritos mais antigos de neumas hoje chamados, nem
sempre com razão, «ornamentais», como o quilisma, ou com a possibilidade, explorada por
alguns cantores medievais, de variar ou ampliar, aqui e ali, a linha melódica gregoriana.
Trata-se antes de captar aquilo que para os nossos antepassados fazia a diferença entre uma
melodia própria para uma ocasião comum e uma melodia artisticamente elevada, diferença
que deu origem à separação, na articulação musical do texto, entre o estilos silábico (sílabas
maioritariamente cantadas com uma nota ou duas), florido ou neumático (uso de curtos
melismas na maioria das sílabas), e melismático (estilo florido com uso pontual de melismas
muito extensos)14.

13 Algumas sugestões bibliográficas sobre modalidade gregoriana, por ordem de publicação: Albert
Jacques Bescond, Le chant grégorien, Paris: Buchet/Chastel, 1972, pp. 105-72; H. Powers, "Mode [I-II]",
cit.; Jean Jeanneteau, Los modos gregorianos. Historia - Análisis - Estética, Silos: Abadía, 1985; Nancy
Phillips, "L'enseignement de la théorie des modes du IXe au XIIe siècle", L'enseignement de la musique au
Moyen Age et a la Renaissance. Colloque, 5 et 6 juillet 1985, Royaumont: Éditions Royaumont, 1987, pp. 96-
107; David Hiley, Western Plainchant, cit., pp. 454-77; Alberto Turco, Il canto Gregoriano. Toni e Modi,
Roma: Torre d’Orfeo, 1996; Daniel Saulnier, Les modes grégoriens, Solesmes: Abbaye, 1997; David E.
Cohen, “Notes, Scales, and Modes in the Earlier Middle Ages”, in The Cambridge History of Western Music
Theory, ed. Thomas Christensen, Cambridge: Cambridge University Press, 2002, pp. 307-63. Os livros
de Jeanneteau, Turco e Saulnier reflectem a influência dos ensinamentos de Jean Claire.
14 Sobre a distinção entre estilos de articulação silábica, veja-se Paolo Ferretti, Esthétique grégorienne ou

Traité des formes musicales du chant grégorien, vol. I, Solesmes: Abbaye Saint-Pierre, 1938. Só no canto
litúrgico faz sentido diferenciar entre estilos florido e melismático. À ultrapassagem místico-
contemplativa do texto sacro através da expansão melismática do canto respondeu-se por vezes, entre
os séculos X e XII, com a reabsorção do grande melisma no estilo silábico, através de uma glosa que
pela sua própria existência faz ressaltar o momento que se celebra (tropo litúrgico); mas a racionalidade
humanística e a sede de ortodoxia do século XVI levaram ao abandono do tropo, e conduziram mais
tarde ao corte sistemático e redistribuição silábica dos melismas mais extensos do cantochão.
Ex. 1: Intróito Hodie scietis

A distinção entre estrutura e ornamentação inspira-se, de facto, na prática litúrgica


medieval. Esta conhece diversos níveis de elaboração melódica e associa melodias mais
amplas a ocasiões mais festivas. Um bom exemplo dessa tendência é a hierarquização das
melodias do Kyriale (Ordinário da Missa) nos livros litúrgico-musicais da Idade Média tardia e
do Renascimento: para um mesmo texto, temos as melodias mais silábicas reservadas aos dias
feriais, e as mais floridas ou melismáticas destinadas aos domingos e dias festivos.
Do mesmo modo, se as antífonas usadas no Ofício com o canto dos salmos são
normalmente bastante simples, já as da Missa procuram uma maior amplidão, reflectindo a
maior solenidade da ocasião. Note-se que as antífonas não apenas enquadram a salmodia,
mas se baseiam primitivamente nela (os seus textos são maioritariamente versículos do salmo
com que se cantam). Nas antífonas de intróito, associadas à lenta procissão de entrada, a
valorização da melodia teve como efeito a progressiva redução do salmo remanescente a um
(ou, raramente, dois) dos seus versículos. Contudo, muitas destas melodias retêm ainda uma
grande proximidade ao estilo de recitação salmódica a que originalmente estavam
associadas15. Assim, o intróito Hodie scietis (Ex. 1) pode ser visto como resultado da expansão

15Isto tem sido reconhecido por vários autores, entre os quais Willi Apel, que observa: “Não poucos
intróitos fazem-se notar pelo carácter estacionário do conjunto da sua linha melódica, e pela sua
contínua insistência num dado grau por intermédio de notas simples, de strophici, e de neumas que nele
põem a ênfase. Estes intróitos dão a impressão geral de um recitativo um pouco ornamentado.
Particularmente interessantes a este respeito são um certo número de intróitos do segundo modo [...]
cuja linha melódica, reduzida ao essencial, é notavelmente semelhante à do tom de intróito do mesmo
melódica de uma corda de recitação sobre fá: a este fá acrescentou-se uma terceira inferior,
uma segunda superior, e finalmente uma quarta inferior de apoio, formando o esqueleto
melódico dó-RÉ-FÁ-sol, ornamentado com recurso a outras notas.16
Muito do repertório gregoriano (assim designado por associação abusiva ao papa
Gregório Magno) parece ser, na sua génese histórica, uma recomposição gaulesa de esquemas
melódicos importados de Roma no século VIII, pelo que mais propriamente se deveria
apelidar de romano-franco. Embora conheçamos somente versões tardias, do século XII, do
antigo canto romano, tendo este entretanto absorvido peças de origem gregoriana, por vezes
estas versões retêm passagens que poderão corresponder ao protótipo que foi exportado
quatrocentos anos antes, se é que não derivam da simplificação de um modelo melódico
importado no norte. No intróito Ad te levavi (Ex. 2), é possível ilustrar a diferença entre uma
melodia reduzida ao seu esqueleto e a sua versão ornamentada, comparando a lição romana
do trecho Deus meus à lição gregoriana17. Em contrapartida, as cadências sobre sol, no mesmo
intróito, reduzem-se a uma fórmula muito simples na versão gregoriana, enquanto na
romana, ganharam uma decoração que sugere liberdade de improvisação ou recomposição
concedida, nalguma época, a um ou mais cantores.

modo, usado no versículo salmódico e na doxologia subsequentes” (Willi Apel, Gregorian Chant,
Bloomington: Indiana University Press, 1958, p. 307; minha tradução).
16 Por conveniência, uso a edição mais corrente, reproduzida no Graduale Triplex, Solesmes: Abbaye de

Solesmes, 1979, p. 38.


17 Vd. Alberto Turco, Le chant romain: Les antiennes d’introït, Solesmes: Abbaye de Solesmes, 1993, p. 27;

pode ainda consultar-se o aparato editorial de Le Graduel Romain – Édition critique, par les moines de Solesmes,
IV: Le texte neumatique, vol. 2, Solesmes: Abbaye de Solesmes, 1962, pp. 69-72; Luigi Agustoni et al.,
“Vorschläge zur Restitution von Melodien des Graduale Romanum: Teil 1”, in Beiträge zur Gregorianik,
21 (1996), pp. 7-42.
Ex. 2: O trecho Deus meus e as duas cadências sobre sol
no intróito Ad te levavi (versões romana antiga e gregoriana)

No trecho Deus meus acima reproduzido, se considerarmos que a versão romana


representa o ponto de partida, observamos que na versão gregoriana a primeira nota
mantém-se; a segunda é reforçada por outra; a terceira é ornamentada por repercussão e
rápida passagem pelo grau superior; e a quarta, desdobrada em duas notas longas, em
movimento ascendente, o que introduz o ré (ausente da versão romana nossa conhecida) como
uma nota esteticamente importante. Em geral, porém, a melodia romano-franca desenvolve-
se no âmbito do pentacorde fá-sol-lá-si-dó; há uma forte polaridade entre sol e dó (graus que
também servem de eixo melódico) e uso ocasional da cadeia de terceiras fá-lá-dó.
Esclareça-se que a procura, em cada peça, de uma hierarquia entre os graus da escala
pode atender ao seu peso estatístico, mas requer sensibilidade estilística ao uso e
posicionamento das notas, a qual se pode em parte exprimir através de algumas regras
práticas18. A definição da estrutura passa pela não só pela identificação das notas mais

18Os seguintes princípios, testados em aulas práticas, podem ser úteis para uma primeira abordagem
analítica do repertório gregoriano: (1) A primeira nota de um grupo de duas notas ascendentes (pes) ou
de três circunflexas (torculus), posicionado no cume de um movimento melódico, é estrutural, sendo a
segunda ornamental, a não ser que conclua esse movimento. (2) A última nota de um grupo de três
ascendentes no cume de uma movimento melódico (scandicus, salicus) é estrutural. (3) A reiteração
importantes, mas também por meios sintéticos de descrever a sua organização; isto requer o
reconhecimento de eixos e pólos melódicos e a aplicação não só dos conceitos antigos de
tetracorde e pentacorde, mas também de outros, como os de tricorde, de cadeia de terceiras, e
de pentatonismo. Este último conceito, que pode ser ilustrado pela comunhão In splendoribus,
tem sido usado até à exaustão.
No exemplo 3, podemos ver, em sobreposição, três níveis estéticos: a melodia de Ad te
levavi na íntegra, com toda a sua ornamentação; uma primeira proposta de redução, que,
tendo em conta o estilo e a informação neumática dos manuscritos mais antigos, procura
manter somente as notas estruturais à superfície; e uma proposta de redução mais radical, que
procura captar o esquema construtivo subjacente.

imediata de uma nota tem carácter estrutural somente quando corresponda a sílabas diferentes; caso
contrário, é ornamental. (4) Para que seja reconhecido um resíduo de recitação, é necessário que uma
mesma nota seja repetida imediatamente sobre, pelo menos, três sílabas seguidas; uma insistência no
mesmo grau, mas que passe por outras notas, responde à noção de eixo melódico. (5) Devem valorizar-
se as notas iniciais e terminais de cada frase, especialmente tratando-se do mi, de peso estatístico
normalmente reduzido, mesmo nas peças de modalidade Deuterus.
Ex. 3: Intróito Ad te levavi (melodia gregoriana e suas reduções)

Estrutura melódica e ornamentação no canto trovadoresco

Apesar de longa e talvez demasiado densa, a precedente digressão pelo canto


gregoriano era necessária para enfrentar o problema da análise melódica das cantigas
medievais. Não queremos sugerir que a chave dessa análise está na familiaridade com o canto
litúrgico; há que ter em conta que a intersecção entre o mundo eclesiástico e o mundo
trovadoresco poderia, conforme os casos, ter sido importante ou apenas tangencial. Havia
proximidade e cruzamento de percursos individuais, mas os diferentes ambientes sociais e
contextos culturais em que as melodias se transmitiam permitiam que se adequassem a
diferentes expectativas e seguissem diferentes critérios artísticos. As melodias trovadorescas
poderiam ter adoptado a escala de referência e a organização modal encontrada no canto
gregoriano, como lhe poderiam ter escapado.
Na verdade, há por vezes nos cancioneiros trovadorescos de além-Pirenéus melodias
que utilizam recitação simples sobre um grau, como em Rassa, tan derts e mont’ e pueia, de
Bertran de Born, Un sirventesc novel vuelh comensar, de Peire Cardenal, ou Chanterai por mon corage,
de Guiot de Dijon; e outras, como Rei glorios, veray lums e clartatz, de Guiraut de Borneill, ou
Quant voi le tans bel et cler, de Gace Brulé, que exibem uma modalidade de tipo gregoriano19.
Contudo, é também possível encontrar na monodia profana medieval notas cromáticas não

19 Cf. H. van der Werf, The Extant..., pp. 72-74*, 163-64*, 233*; Samuel N. Rosenberg e Hans Tischler

(eds.), Chanter m'estuet: Songs of the Trouvères, London: Faber, 1981, p. 224; Maria Sofia Lannutti, Guiot de
Dijon: Canzoni, edizione critica a cura di —, Firenze: Sismel/Edizioni del Galluzzo, 1999, pp. 31-49.
admitidas na notação eclesiástica convencional; peças com final fá que fazem uso do mi nas
cadências como sensível, sendo que o meio-tom conducente à nota final é alheio ao estilo
gregoriano; e bastantes casos em que uma mesma frase melódica, ou uma composição inteira,
aparece em diferentes manuscritos com diferentes notas finais (com implicações modais
diversas), levando a crer que a identidade da melodia residia mais no seu contorno e direcção
do que propriamente na repartição dos intervalos em torno de um grau de referência no qual
o cantor se devia deter. Isto impõe prudência quando se trate de descrever o comportamento
melódico de uma canção trovadoresca; não há razão para se recorrer a uma categoria modal
gregoriana, se a canção não evidenciar as características típicas que a permitam colocar nessa
categoria.
Elizabeth Aubrey é de opinião de que a monodia trovadoresca não só escapa às
categorias modais gregorianas, como ao nosso conceito de modalidade. Ela reconhece que
«muitas melodias trovadorescas têm um ou mais centros tonais, e aspectos tais como o
âmbito, o contorno melódico, e fórmulas iniciais e finais podem ser vistas como estando
relacionadas com um conceito de modalidade»; mas observa que «quando se conservam duas
ou mais versões de uma melodia, quase sempre manifestam diferenças estruturais, não só no
esquema de repetições mas também em aspectos como âmbito, centros tonais, conteúdo
intervalar, e contorno. Em muitos casos é difícil ou impossível determinar, numa versão
melódica sobrevivente, que traços estruturais em particular se devem atribuir ao compositor,
aos intérpretes, ou aos copistas». Mais concretamente: a nota final da canção frequentemente
não condiz com o percurso melódico decorrido, «o conteúdo intervalar de muitas melodias é
instável [...] e onde um centro tonal parece deslocar-se, como sucede em muitas canções,
mudam os intervalos que recebem ênfase — especialmente tons inteiros ou meio-tons e
terceiras maiores ou menores. Nisto e em muitos outros aspectos as melodias sobreviventes
não parecem em geral comportar-se da maneira que se esperaria, se elas tivessem sido
concebidas com características modais em mente». E conclui: «Centro tonal e
direccionalidade não parecem ter sido preocupações globais dos trovadores, qualquer que
tenha sido a sua geração, incluindo a última. Por vezes usavam a diferenciação hierárquica
entre graus como meio de unificar uma melodia em particular ou de lhe dar coerência, mas
não dependiam consistentemente de tal método. A falta de focalização tonal não aponta
necessariamente para uma disposição impensada das notas, antes orienta o ouvido para
outros aspectos estruturais, tais como o movimento cadencial, o ataque das entoações, o
conteúdo intervalar e a manipulação motívica»20.
Estas afirmações de Aubry, baseadas no estudo das canções occitanas, estão
largamente de acordo com as conclusões de investigadores que escolheram como foco

20 E. Aubrey, The Music..., pp. 136, 175-76, 183-84; minha tradução.


analítico as canções francesas. Assim, Hendrik van der Werf, após observação atenta de peças
existentes em versões múltiplas, deduz que os trovadores do norte não distinguiam
consistentemente senão entre o grupo das modalidades «maiores» (baseadas em sol, fá ou dó) e
o grupo das modalidades «menores» (baseadas em ré, lá, ou, raramente, mi); ou seja, os
compositores assumiam, a partir de um grau de referência que não coincidia necessariamente
com a nota final, a qualidade da terceira superior, respeitando somente a estabilidade dos
graus que formam a correspondente estrutura pentatónica21. Michelle Stewart é menos
radical na sua apreciação, admitindo alguma relação com os modos eclesiásticos, mas ainda
assim conclui que «a aplicação ‘estrita’ do termo ‘modo’ é inapropriada neste repertório»,
como demonstrariam a ausência de entoações regulares, a flexibilidade na escolha das notas
iniciais e terminais das frases, ou a altíssima frequência de movimentos cadenciais
ascendentes22. Hans Tischler, editor da totalidade das canções medievais em língua francesa,
chegou à conclusão de que o tratamento da modalidade nas melodias dos trouvères difere
significativamente do encontrado no canto gregoriano, e reconhece que a determinação de
um modo implícito é muitas vezes problemático; mesmo assim, recorre à terminologia dos
modos eclesiásticos para descrever o seu comportamento. Observa, nomeadamente, uma
relação íntima entre Protus e Tritus maneriae, que muitas vezes alternam na mesma melodia
(pois não é raro que haja passagem de um modo a outro no seio da mesma peça); a raridade
do Deuterus; a frequente combinação dos âmbitos autêntico e plagal; a livre escolha das notas
terminais das frases, mesmo das conclusivas, e o possível uso de fórmulas cadenciais no seu
interior, o que não sucede no canto gregoriano23.
Quanto à distinção entre estrutura e ornamentação, é recomendável, mais uma vez,
alguma prudência. A variabilidade que se encontra no canto trovadoresco tem muito maior
latitude do que a normalmente encontrada no canto litúrgico. O estatuto profano do
repertório, a informalidade da sua aprendizagem, o restrito número de praticantes, o
reduzido papel da escrita na fixação de muitas canções, a evolução do gosto musical ao longo
de dois séculos de tradição e a fragilidade documental da própria tradição, são condicionantes
a ter em conta. Regras de análise adaptadas ao estilo gregoriano não devem ser simplesmente
transpostas para a análise da monodia trovadoresca; também aqui há que decidir, caso a caso,
que categorias são aplicáveis, e até que ponto.

21 Hendrik van der Werf, The Chansons of the Troubadours and Trouvères: A Study of the Melodies and Their
Relation to the Poems, Utrecht: Oosthoek, 1972, pp. 53-59.
22 Michelle F. Stewart, “The Melodic Structure of Thirteenth-Century ‘Jeux-Partis’”, Acta musicologica

51 (1979), pp. 86-107 [101].


23 Hans Tischler, “On Modality in Trouvère Melodies”, Acta musicologica 71 (1999), pp. 76-81.
Ex. 4: Ornamentação em melodias de Gaucelm Faidit

Decerto que havia na tradição trovadoresca uma distinção implícita entre as notas
melodicamente centrais, e as outras: basta recorrer à comparação de diferentes versões de
uma melodia, retiradas de diferentes manuscritos, para o constatar. Concentremo-nos no
repertório occitano, menos extenso e de mais fácil acesso do que o dos trouvères. No exemplo 4,
apresentam-se alguns casos de enriquecimento ornamental em melodias de Gaucelm Faidit
(passagens retiradas das canções Lo jent cors onratz, Si anc nulz hom per aver fin corage e S’on pogues
partir son voler, segundo os manuscritos G, R e X). No exemplo 5, vemos um caso em que a
melodia original de uma canso de Raimon Jordan (Vas vos soplei, domna, premieramen, aqui na
versão do manuscrito W, único a incluir música) parece ter sido despida de grande parte da
sua ornamentação para reutilização em Ricx hom que greu ditz vertat e leu men, de Peire Cardenal,
sirventes transcrito no códice R; pontualmente, estas versões divergem de um intervalo de
segunda, pelo que a simplificação de Cardenal não é uma redução exacta da canção de
Jordan tal como esta nos chegou apontada.24

Ex. 5: Ornamentação em melodia de Raimon Jordan, evidenciada


pelo confronto com o respectivo contrafactum, de Peire Cardenal

Se podemos assim concluir que há neste repertório uma distinção entre estrutura e
ornamentação, mais difícil é estabelecer regras gerais para determinação das notas estruturais,
já que coexistem várias tendências estilísticas e o material comparativo é relativamente
escasso. Para Hendrik van der Werf, «graus que, numa dada melodia, se destacam
frequentemente por posição, reiteração, maior duração, ou frequência com que ocorrem,
formam o que pode ser chamado a ‘estrutura subjacente’ da melodia»25. Se a chamada de
atenção de van der Werf para as cadeias de intervalos de terceira (ou de quarta) pode ser
apoiada pelo precedente histórico e pela presença dos saltos melódicos correspondentes, a sua
proposta de valorizar especialmente os graus que confinam intervalos maiores do que a
segunda, ou que iniciam grupos neumáticos sobre uma mesma sílaba, é algo subjectiva e nem
sempre adequada. Mesmo cruzando critérios, van der Werf reconhece que algumas melodias
têm uma estrutura muito pouco clara, chegando a parecer incoerentes. De facto, nem sempre
é possível deduzir com segurança que notas são primordiais, e que outras serão secundárias,
dispensáveis, ou (errada ou livremente) alteráveis.

24 H. van der Werf, The Extant..., pp. 128-129*, 141*, 146*, 303*. A canção S’on pogues... e a melodia de

Jordan também se encontram, com comentário, in E. Aubrey, The Music..., pp. 117-21, 154-56, 160.
Para outros exemplos de ornamentação, ver id., ibid., pp. 267-72, e ainda: Raffaello Monterosso,
“L’ornamentazione nella monodia medievale”, in Rivista di cultura classica e medioevale, VII (1965), pp.
724-44 [738-40]; Wulf Arlt, "Secular Monophony", in Howard M. Brown e Stanley Sadie (eds.),
Performance Practice — Music before 1600, London: MacMillan, 1989, pp. 55-78 [65].
25 Hendrik van der Werf, “Music”, in A Handbook of the Troubadours, ed. by F. R. P. Akehurst & Judith

M. Davis, pp. 121-64 [134]; minha tradução.


Estrutura melódica e ornamentação nas cantigas galego-portuguesas

No caso das cantigas trovadorescas galego-portuguesas, há desde logo que tratar as


cantigas d’amigo de Martin Codax de forma diversa das cantigas d’amor de Dom Dinis. Se o
contraste na construção e conteúdo poéticos é evidente, não menos evidente é o contraste no
estilo musical, se bem que, em ambos os casos, se use uma escala diatónica convencional. As
melodias de Codax têm em comum com o canto eclesiástico um significativo número de
fórmulas salmódicas (iniciais, mediais e finais) associadas aos 3º e 8º tons, e um forte
parentesco com a modalidade gregoriana, nomeadamente o Tritus e o Tetrardus plagais (6º e 8º
modos). O parentesco com o Tetrardus é detectável nas cantigas I e V, mas também na II,
enquanto o Tritus aparece nas cantigas III, IV e VII (os numerais romanos referem a ordem
das cantigas no Pergaminho Vindel). Não se trata aqui, porém, de uma modalidade
gregoriana clássica, mas de uma modalidade por vezes menos claramente diferenciada,
associada a âmbitos reduzidos, e em que a escolha da nota final parece não ter um papel
decisivo; uma modalidade, pois, com traços arcaicos, imbuída de salmodia, teoricamente não
formatada. Se observada do ponto de vista do canto litúrgico, tal modalidade remete-nos, por
um lado, para uma época recuada e sugere, por outro, uma sobrevivência periférica; se vista
no seu contexto jogralesco, ela aponta para uma concepção melódica informal, mas
fortemente influenciada pela estruturação sonora de uma prática litúrgica conservadora.
Esta afinidade estilística com o mundo sonoro da liturgia católica, numa versão
arcaica, é coerente com o carácter periférico da Galiza em geral, com a centralidade da Igreja
no acesso dos plebeus locais à educação literária e com o hipotético patrocínio clerical de
jograis galegos, talvez relacionado com as cantigas modernamente chamadas «de romaria»,
ou, mais propriamente, «de santuário»26. É possível que as características musicais de Martin
Codax traduzam um percurso pessoal (plebeu activo na área de Vigo, é plausível que soubesse
ler e escrever, podendo o seu ciclo de cantigas ter relação propagandística com o santuário
viguês), mas é também possível que reflictam um idioma previamente estabelecido entre os
jograis, seus pares, idioma esse no qual tivessem confluído a memória da liturgia local e as
práticas do mundo laico. Esta última hipótese afigura-se mais provável, pois Codax usa um
número significativo de fórmulas que se encontram disseminadas pelas Cantigas de Santa
Maria27.

26 António Resende de Oliveira, “Galicia trobadoresca”, in Anuario de estudios literarios galegos (1998), pp.

207-29; Henrique Monteagudo, “Cantores de santuario, cantares de romaría”, in Congreso O mar das
cantigas, Santiago de Compostela: Xunta de Galicia, 1998, pp. 99-127.
27 Os dados analíticos e comparativos sobre as cantigas de Martin Codax aqui sintetizados aparecem

referidos em pormenor no aparato crítico da edição respectiva: Manuel Pedro Ferreira, O Som de Martin
Codax — Sobre a dimensão musical da lírica galego-portuguesa (séculos XII-XIV), Lisboa: Imprensa Nacional-
Casa da Moeda, 1986, pp. 137-67. A dependência das Cantigas de Santa Maria face à música
Independentemente da avaliação histórica que se faça das características gerais do
estilo melódico de Codax, são as próprias cantigas que vêm confirmar uma diferenciação
entre estrutura e ornamentação afim à distinção encontrada quer no canto litúrgico, quer no
canto trovadoresco de além-Pirenéus (mas sem a sua frequente imprevisibilidade). De facto,
sendo a frase inicial de cada cantiga repetida pelo menos uma vez, e havendo motivos comuns
às diferentes peças (I e V, IV e VII), é possível detectar nas repetições um tipo de expansão
ornamental que nos é familiar. No exemplo 6, são apresentados em sobreposição os trechos
que surgem variados aquando de uma repetição; os numerais romanos identificam as
cantigas, e os árabes, os versos dos dísticos, sendo o refrão denotado por um “R/.” Note-se a
tendência para se ornamentar uma nota simples, atacando, pelo grau imediatamente acima,
um grupo neumático descendente.

Ex. 6: Ornamentação nas cantigas de Martin Codax

Se agora tomarmos como objecto toda a primeira cantiga, Ondas do mar de Vigo —
uma das mais melismáticas de Codax —, poderemos ensaiar uma redução analítica que isole
a sua estrutura subjacente (Ex. 7a). 28

eclesiástica é, em geral, assaz reduzida: sobre o assunto, veja-se id., "The Influence of Chant on the
Cantigas de Santa Maria", in Cantigueiros, vol. XI-XII (1999-2000), pp. 29-40.
28 Tendo em conta os vários factores que influem na disposição dos neumas no manuscrito, proponho

aqui uma distribuição musical das sílabas mais assimétrica, mas simultaneamente mais próxima do
documento do que aquela que em tempos propus in O Som de Martin Codax; ambas as soluções se me
afiguram defensáveis.
Ex. 7a : A cantiga Ondas do mar de Vigo (com redução estrutural)

Este exercício é útil, não apenas para melhor perceber, mas também para melhor
interpretar esta cantiga. Do ponto de vista construtivo, esta redução põe claramente em
evidência que três frases musicais (as quais constituem, juntamente com a passagem inicial do
refrão, toda a melodia) resultam da expansão e de contracção de um único esquema melódico
tetracordal, que por sua vez tem como base uma recitação sobre dó a que estão agregados o lá
e sol inferiores (Ex. 7b).

Ex. 7b: Ondas do mar de Vigo (estrutura da 1ª frase, nas suas três aparições)
Ex. 7c: A emergência de Ondas do mar de Vigo (hipótese de reconstrução)

Uma vez conscientes deste processo de invenção, em que um esquema geral é


sucessivamente particularizado, poderemos recriá-lo experimentalmente. De facto, isoladas as
notas-chave da melodia, o cantor tem toda a vantagem em percorrer o caminho inverso, da
estrutura para a superfície canora, porque desse modo foca a sua atenção nos pontos
essenciais, assimilando de forma clara a articulação do texto e aprendendo a dosear e repartir
a energia vocal de forma a restabelecer auditivamente o equilíbrio hierárquico entre as notas
(não há coisa mais letal para a interpretação da música antiga, do que dar a ornamentos o
peso sonoro e o fraseado de notas principais). No exemplo 7c, propomo-nos reconstruir
hipoteticamente a primeira frase da cantiga, supondo que a sua melodia emerge a partir de
um esquema construtivo generalizado. Na base, temos uma recitação sobre dó, com entoação
e terminação a fornecer os restantes graus do tricorde sol-lá-dó. Num segundo nível, tendo em
conta a memória da salmodia gregoriana, associa-se a essa corda de recitação uma fórmula
inicial e uma fórmula mediante, e deixa-se, de acordo com uma tendência bem atestada, que
o dó mais próximo do lá descaia para si. Num terceiro nível, duas notas são ligeiramente
ornamentadas, implicando a substituição, no ataque de uma sílaba, de um dó por um si:
chega-se à estrutura melódica observada na cantiga. No quarto e último nível, essas duas
posições silábicas sofrem uma derradeira expansão, atingindo-se o perfil melódico definitivo.
Se a familiaridade com o canto gregoriano provou ser crucial na compreensão de
Codax, caso diferente é o das cantigas de Dom Dinis (aqui referidas pelo seu número de
ordem no Pergaminho Sharrer, de I a VII). Estas pouco devem, em geral, ao mundo sonoro
da liturgia, do qual ignoram as fórmulas típicas, embora se possam também aqui encontrar a
cadeia de terceiras ré-fá-lá ou a alternativa dó-fá-lá (que remetem para o Protus autêntico ou o
Tritus plagal, 1º e 6º modos), bem como a polaridade entre sol e os graus dó e ré superiores
(típica do Tetrardus autêntico, 7º modo). Contudo, nas melodias dionisinas — cujo
conhecimento é aliás condicionado pelo estado fragmentário em que nos foram transmitidas
— há tendência a conjugar (ré-)fá-lá com o dó e o ré superiores, sem que haja clara definição
no sentido do Protus ou do Tritus; a cadeia de terceiras aparece, contrariamente ao que se
esperaria num Protus, sobretudo como harpejo descendente, ou então muito decorada; a
rápida permuta entre o dó e o ré agudos, ainda quando se oponham ao sol, e a descida deste
para fá, impedem que se delineie um ambiente típico de 7º modo; as melodias parecem
frequentemente estacionar ou ondear de forma irresoluta, sem tomar uma direcção clara.
Existe assim, tal como na música dos trovadores de além-Pirenéus, provável indiferença
perante uma coerência modal de tipo gregoriano.
Ex. 8: Ornamentação nas cantigas de Dom Dinis

Apesar de tudo, a repetição em diferentes cantigas de certos segmentos musicais


confirma que um processo de expansão ornamental está subjacente a estas melodias, embora
os grupos neumáticos descendentes nunca correspondam em passagens paralelas a uma só
nota, como em Codax; os dois graus mais agudos de cada grupo, não apenas o central, são
firmemente retidos (Ex. 8).29 A manutenção de um estilo invulgarmente florido acarreta
alguma dificuldade em hierarquizar os elementos de cada grupo, mas em contrapartida a
determinação das notas estruturais pode apoiar-se pontualmente nos valores de duração,
sempre que a notação os diferencie (na transcrição apresentada, as notas seguramente longas
aparecem esvaziadas).
A direccionalidade difusa, ambiguidade modal e roupagem melismática que
caracterizam estas cantigas colocam o seu intérprete moderno numa posição particularmente
desconfortável, já que dele se espera que produza, através do canto, sentido musical, nem
sempre nelas evidente a uma escala temporal alargada. Para que se favoreça a assimilação do
respectivo estilo melódico, nos exemplos que se seguem são propostas reduções analíticas das
frases que se conservam das cantigas III e V30. No exemplo 9 (cantiga III, O que vos nunca cuidei
a dizer), a redução permite evidenciar, entre outras coisas, o parentesco estrutural entre as
frases A e C, já que ambas conjugam a polaridade entre sol/lá e dó com a cadeia descendente
dó-lá-mi, primeiramente conducente ao dó grave, depois ao ré.

29 Para outros exemplos, consulte-se M. P. Ferreira, Cantus coronatus, pp. 100-102.


30 Id., ibid.
Ex. 9 : O que vos nunca cuidei a dizer (melodia e reduções)

No exemplo 10 (cantiga V, Senhor fremosa, non poss’eu osmar) está bem patente, na
melodia transcrita na linha superior de cada sistema, o uso repetido, numa forma
praticamente idêntica, de três motivos melódicos, sendo o primeiro [m1] comum às frases A e
B, o segundo [m2], às frases A e D, e o terceiro [m3], às frases B e D. Se atentarmos no nível
inferior de redução analítica, descobre-se que os motivos [m1] e [m3] exprimem parcialmente
uma estrutura [e] que as frases A, B e D realizam de modos ligeiramente diferentes. Embora
estas frases contrastem entre si no contorno melódico e no registo utilizado, a partilha de
material motívico e de um mesmo segmento estrutural confere-lhes uma audível identidade
estilística que se estende aliás, como se vê no exemplo 8, a outras quatro cantigas (I, IV, VI e
VII).
A frase C aparece isolada, mas na verdade elabora, em transposição, o mesmo
esqueleto construtivo encontrado nas frases A e C da cantiga III (aí formado pelos graus, em
ordem ascendente, mi-sol-lá-dó, com descida final ao ré ou ao dó). Neste caso, os graus que
esquematicamente estruturam a melodia são, do grave para o agudo, lá-dó-ré-fá, com descida
final ao sol ou ao fá; na prática, a única diferença é a posição do 4º grau, não estrutural,
relativamente aos adjacentes, conforme a oitava parta do dó ou do fá; este grau da escala pode
assim ser considerado um grau móvel.
Ex. 10 : Senhor fremosa, non poss’eu osmar (melodia e reduções)

O elevado grau de coerência estilística encontrado entre as cantigas de D. Dinis


ganha significado acrescido, tendo em conta o facto de as respectivas melodias terem sido
escritas no Pergaminho Sharrer por três mãos diferentes. Tal coerência aponta para uma
mesma autoria musical, que não pode ser atribuída senão ao próprio rei. Já no caso de Martin
Codax, a partilha de material melódico afecta as quatro cantigas copiadas pelo primeiro
apontador do Pergaminho Vindel, deixando de fora as duas copiadas pelo segundo, o que nos
faz suspeitar de uma dupla autoria musical (suspeição reforçada pelo diferente estilo rítmico
dos dois grupos de cantigas). Atendendo a que o primeiro apontador é quem acrescenta a
letra da sétima cantiga, originalmente ausente do manuscrito, podemos concluir que a sua
música representa um momento na circulação do repertório, mas não necessariamente as
composições de Codax no seu estado primitivo.

Concluindo: verificámos que a distinção entre estrutura e ornamentação melódica


está subjacente quer ao canto litúrgico cristão, quer ao canto trovadoresco (incluindo a lírica
galego-portuguesa). Podemos também assumir que em ambos os casos a ornamentação está
ligada a um propósito de dignificação, de acordo com uma hierarquia estética que preza a
pulsação pausada e a sonoridade prolixa. Verificámos todavia que os tipos de estrutura e de
variabilidade ornamental que moldam as diferentes tradições musicais podem ser diferentes.
Essa diferenciação ocorre não apenas entre o mundo clerical e o mundo aristocrático, mas
manifesta-se, no caso galego-português, também no seio da produção trovadoresca: as
estruturas associadas a Codax são distintas das de D. Dinis, e mesmo as preferências
ornamentais não coincidem inteiramente.
Até que ponto isso se deve à distinção entre géneros poético-musicais (cantiga
d’amigo versus cantiga d’amor), ao desdobramento interno dos géneros (cantiga d’amigo
paralelística versus cantiga não-paralelística) ou à diferente formação cultural dos praticantes
(jogral versus rei), não podemos saber ao certo. Mas o testemunho indirecto do Cancioneiro da
Ajuda, anteriormente invocado, diz-nos que os processos de ornamentação podiam ser
mobilizados pelos trovadores galego-portugueses para fins diversos e bem precisos, porventura
calculados em harmonia com a concepção poética de cada cantiga. Vista contra este pano de
fundo, a ornamentação melódica em Codax aparece-nos espontânea, em consonância com
processos tradicionais de composição e vocalização, enquanto as cantigas de D. Dinis, ao
submergirem o melisma ocasional num estilo claramente florido, sugerem uma vontade de
saturação ornamental que implica a solenização estética da sua produção pessoal, coerente
com a sua conhecida política de afirmação, entre a nobreza, da primazia do poder real. Em
suma: tudo se passa como se, na sua estrutura melódica e nos níveis inferiores de elaboração
composicional, Codax e D. Dinis remetessem para os contextos culturais formativos,
respectivamente o mundo laico próximo do baixo clero e o mundo da alta nobreza, enquanto
no grau superior de ornamentação musical teriam a oportunidade de afirmar a
individualidade sócio-cultural (jogralesca ou real) do seu projecto artístico.

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