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Ideais do sertanista, que idealizou o Serviço de Proteção aos Índios, são relevantes até hoje
Larry Rohter
09/08/2019 - 06:00 / Atualizado em 16/09/2019 - 09:49
Em sua defesa dos povos indígenas, Rondon idealizou o Serviço de Proteção aos Índios, que começou suas atividades em 1910 e foi dirigido por ele
até 1930. Na foto, o futuro marechal distribui presentes para os índios parecis, em Mato Grosso. Foto: Luiz Thomas Reis / Museu do Índio
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Theodore Roosevelt e o marechal Rondon ao lado do marco com o nome do rio rebatizado em homenagem ao ex-presidente americano e
antes conhecido como Rio da Dúvida. Foto: Divulgação / Museu do Índio / Funai
Todo brasileiro já ouviu falar de Rondon. Ele foi o desbravador do sertão que cunhou
aquela frase memorável: “Morrer se preciso for, matar nunca”. Na realidade, Rondon
não foi apenas o mais importante explorador moderno dos trópicos, mas também um
grande cientista e, apesar de ser caracterizado como “o general pacifista”, um feroz
combatente nas trincheiras políticas. Para defender seus ideais, travou batalhas até com
presidentes, como Epitácio Pessoa, Artur Bernardes e Getulio Vargas, sem medo das
consequências pessoais. De certa maneira, as recentes declarações do presidente
Bolsonaro sobre a necessidade de abrir novos terrenos para o agronegócio e a
mineração lembram o discurso de Vargas, que, uma vez declarado o Estado Novo, em
1937, anunciou uma “marcha para o oeste” com o intuito de fomentar o
desenvolvimento econômico do Centro-Oeste. Para Vargas, a campanha representava
“o verdadeiro sentido de brasilidade” e pretendia fazer com que os indígenas se
tornassem “úteis ao país”. Qual foi a resposta de Rondon? Redobrou seus esforços para
demarcar terras indígenas, usando novos critérios que ampliaram o tamanho das áreas
delimitadas. Durante todo o Estado Novo, Rondon foi servidor de um governo cujos
objetivos e filosofia ele não compartilhava. Mas achou melhor permanecer dentro desse
governo, lutando para seus próprios projetos, a ficar fora, sem poder fazer nada. Foi
desse jeito que ele conseguiu torpedear um acordo com o Vaticano que daria ao clero
um papel na política indigenista, ajudou a bloquear uma aliança do Brasil com as
potências fascistas e conseguiu um orçamento mais gordo para defender os interesses
dos indígenas.
Mas em matéria de política indigenista talvez ainda mais relevante para o momento
atual seja a crise de 1910, da qual Rondon foi um dos principais expoentes. Naquele
momento, a economia estava em franca expansão, com o empresariado paulista ansioso
por penetrar o interior e explorar suas riquezas. O diretor do Museu Paulista, Hermann
von Ihering, deu sustento intelectual a esse desejo quando escreveu um artigo
afirmando que “os índios não representam um elemento de trabalho e progresso” e,
portanto, “parece que não há outro meio de que se possa lançar mão senão seu
extermínio”. Em meu livro, afirmo que Rondon, com sua vigorosa defesa dos povos
indígenas e de suas terras, evitou um genocídio. Com isso, não quero dizer que o
governo Bolsonaro esteja contemplando um genocídio. Longe disso, embora num
disparate há 20 anos o então deputado tenha levantado tal suspeita quando lamentou:
“Pena que a cavalaria brasileira não tenha sido tão eficiente quanto a americana, que
exterminou os índios”. Mesmo sendo mais comedidas, suas declarações mais recentes
deixam claro que ele, como os adversários de Rondon um século atrás, considera que os
povos indígenas são um empecilho, um obstáculo ao desenvolvimento pleno do país.
Como tal, é necessário tirar os “privilégios” dos quais eles supostamente desfrutam.
“Não tem terra indígena onde não tenha minerais,” declarou o futuro presidente em
2015, numa palestra em Campo Grande, perto da terra natal de Rondon. “Ouro, estanho
e magnésio estão nessas terras, especialmente na Amazônia, a área mais rica do mundo.
Não entro nessa balela de defender terra para índio.” No mesmo discurso, queixou-se
de que “os índios não falam nossa língua, não têm dinheiro, não têm cultura. São povos
nativos. Como eles conseguem ter 13% do território nacional?”.
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Exploradores chegam a aldeia contatada por Rondon no vale do Rio Ji-Paraná, no estado de Rondônia, que recebeu esse nome em
homenagem ao sertanista. Foto: Museu Histórico do Exército
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Índios waiãpis denunciaram a invasão de sua aldeia por garimpeiros e o assassinato do cacique Emyra Foto: Apu Gomes / AFP
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Para Rondon, sempre foi impossível separar a causa indígena da questão do meio
ambiente. Os povos originários reverenciam o mundo a seu redor, e ele, como filho das
etnias bororo, terena e guaná, compartilhava essa visão do homem vivendo em
harmonia com a natureza. Os indígenas eram, portanto, guardiões naturais da beleza e
das riquezas da terra. Como explorador e cientista, Rondon aprendeu a respeitar ainda
mais a grandeza do mundo natural e foi o primeiro a visitar lugares que hoje formam
parte do sistema de parques nacionais — entre eles o Monte Roraima e as Montanhas
do Tumucumaque. Também foi autor do projeto que originou o Parque Nacional do
Xingu, criado três anos depois de seu falecimento, para homenageá-lo. Por essa dupla
razão — ambientalismo e indigenismo —, é especialmente preocupante ver o governo
Bolsonaro lançar a ideia, mesmo de forma provisória, de abrir reservas indígenas à
mineração. Nos tempos de Rondon, os seringais constituíam a principal ameaça à
existência dos povos originários. Mas ele lutou também contra as investidas dos
garimpeiros, madeireiros e fazendeiros — até em momentos em que a postura do
governo foi de indiferença. Agora o país tem um governo que apoia, de maneira
entusiasmada, uma política que resultaria na destruição de terras indígenas
demarcadas por Rondon e na negação da autonomia dos habitantes dessas reservas.
Essa proposta é a crônica de uma tragédia anunciada.
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Cerca de 15 mil garimpeiros trabalham hoje na reserva indígena ianomâmi, entre Roraima e o Amazonas, que abriga 23 mil índios. Foto:
Daniel Marenco / Agência O Globo
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O presidente se esforça para cumprir suas promessas de campanha, entre elas integrar os índios à sociedade, abrir as reservas para a
exploração mineral e dar uma “foiçada” na Funai. Foto: Alan Santos / Agência O Globo
Para dizer a verdade, em cada cantinho da política nacional atual que eu olho, percebo
ecos dos tempos de Rondon. Tomemos como outro exemplo o bate-boca que acabou
com a exoneração de Ricardo Galvão, presidente do Instituto Nacional de Pesquisas
Espaciais (Inpe), no dia 2 de agosto. Quando dados oficiais do Inpe para o mês de junho
revelaram um aumento considerável no desmatamento na Amazônia, Bolsonaro reagiu
iradamente, questionando os dados e acusando o Inpe de fazer “propaganda negativa”
contra seu governo e de agir “a serviço de alguma ONG”. Galvão rebateu a acusação,
citando o renome internacional do Inpe por sua “transparência e honestidade
científica”. Rondon viveu uma experiência semelhante em 1922, quando o presidente
Epitácio Pessoa pediu que ele encabeçasse uma comissão governamental para
investigar as causas da feroz seca que assolava o Nordeste havia cinco anos. O governo
queria recomendações para aliviar a crise. Paraibano de nascimento, Pessoa deu
destaque ao combate à seca, construindo mais de 400 açudes e poços durante seu
mandato — mas sem conseguir os resultados desejados.
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Como engenheiro militar, Rondon achava inicialmente que o problema fosse puramente
técnico, fácil de resolver com melhores barragens e sistemas de drenagem. Depois de
viajar pela região por dois meses, conversando com autoridades, lavradores,
agrônomos, empresários e até, num encontro memorável no sertão do Ceará, com o
Padre Cícero, Rondon chegou a outra conclusão. “Não pode o problema de forma
alguma reduzir-se à obra de irrigação e açudagem”, escreveu no relatório que entregou
ao presidente. “O que se visa acima de tudo é ao homem, a sua incorporação a uma vida
com dignidade.” Ao ler as entrelinhas, é possível dizer que Rondon estava afirmando
que o problema fundamental era um sistema político e econômico que concentrava o
poder e a riqueza em poucas mãos, tirando do pequeno agricultor a possibilidade de
uma vida digna. Pessoa, porém, acabou rejeitando o relatório que ele mesmo havia
encomendado. Numa refutação escrita e em comentários à imprensa, qualificou a
avaliação de Rondon de excessivamente sombria. Quando os repórteres foram procurar
Rondon, sua resposta foi taxativa: “A consciência manda que eu diga o que sinto
porque, no futuro, quando a realidade confirmar os fatos previstos pela ciência, não
quero ser do número dos otimistas de hoje”. Talvez as palavras de Rondon sejam de
consolo para Galvão, o ex-presidente do Inpe, e outros cientistas preocupados com o
viés do atual governo. Passado quase um século do caso de Rondon e Pessoa, sabemos
quem tem razão: aquele que confiou nos “fatos previstos pela ciência”. E acho que não
precisamos desperdiçar nem cinco minutos duvidando da idoneidade do Inpe e dos
cientistas que, seguindo Rondon, atuam como “a consciência manda”.
O desmatamento na Amazônia vem crescendo no governo Bolsonaro, segundo os alertas do Inpe. Foto: Carl de Souza / AFP
Continuam muito pertinentes também os conselhos que Rondon ofereceu a seus colegas
militares na última entrevista que concedeu, em maio de 1957, na ocasião de seu 92º
aniversário. Estava fisicamente fraco, doente e quase cego, mas suas palavras foram
lúcidas e até proféticas. Um ano e meio antes, havia surgido nas Forças Armadas um
movimento para impedir a posse do recém-eleito presidente Juscelino Kubitschek —
movimento que foi frustrado por um golpe preventivo liderado por outro grupo militar.
Rondon era aliado de JK e de seu plano para construir uma nova capital no Cerrado do
Centro-Oeste e quis, a todo custo, evitar novas manifestações de descontentamento e
desagrado entre os oficiais. Foi por isso que disse: “O Exército deveria ser o grande
mudo, pronto ao sacrifício pelo bem da nação, sem, contudo, intervir em mesquinhas
questões de politicagem”. Todos nós sabemos que sete anos depois as palavras de
Rondon foram ignoradas pelos colegas e que o resultado foi uma ditadura militar que
durou 21 anos e fez o país sofrer muito. Hoje, após uma luta árdua para reconquistar o
respeito e o apoio do povo brasileiro, as Forças Armadas, mais uma vez, enfrentam uma
encruzilhada. Até que ponto devem atrelar os destinos das instituições militares a um
presidente ex-militar que quer se aproveitar de seu prestígio? Ou seria melhor manter
uma certa distância das palavras e ações levianas e precipitadas do atual ocupante do
Palácio do Planalto? São perguntas que ainda não têm respostas. Mas os conselhos
sábios de Rondon sugerem um caminho a seguir.