Elas embarcaram para Delhi numa composição ferroviária
expressa e Ja-yaní Mallya acompanhou-as, porque queria apresentar Nirmalá a seu velho mes-tre, Shrí Rama Govindanatha, que há alguns anos morava nos arredores de De-lhi. O trem parou na velha estação, um belo edifício ocre construído no perí-odo vitoriano, com duas grandes torres na forma de minaretes, e interligadas por uma série de arcos em estilo colonial. O céu estava límpido e a temperatura amena. Nirmalá estava muito feliz com a possibilidade de rever sua mãe depois de tanto tempo. Amanhã minha mãe e minha irmã vão se apresentar no auditório Ka-mani. Elas nos convidaram para vermos o espetáculo e depois jantarmos. Afinal, onde vocês estiveram durante o dia? – perguntou Nirmalá. Nós demos uma volta por Delhi, e eu aproveitei para ir ao escritório do doutor Satyananda Das, porque queria agradecer a ele pelo apoio que me tem dado com a correspondência. Então, Giovànna disse-lhe que o doutor Satyananda Das entregou-lhe um novo envelope com uma carta de Genova e outra de seu tio, o cardeal. Meu tio foi convidado pelo Papa Paulo VI para ocupar uma nova se-cretaria no Vaticano e ele está articulando a instalação de uma congregação ca-tólica em Calcutá. Nirmalá sorriu. Porque eles não deixam a Índia em paz? Giovànna levantou os ombros e fazendo uma careta disse que a igreja de Roma tinha uma histórica fome de poder. Parece que a correspondência te deixou mais tranqüila, não é verda-de? Ela sorriu dizendo que pelo menos tudo estava ficando mais claro para ela no que dizia respeito a seu futuro profissional e a sua relação familiar. Meu relatório foi analisado pela comissão encarregada do projeto e Enrico sugeriu um realinhamento de objetivos. Eu estou pensando sobre o as-sunto e também sobre a minha vida. Sei lá, às vezes tenho vontade de desistir do trabalho para dedicar-me a mim mesma. Sinto que a minha vida é um bem mais valioso do que continuar engajada num projeto acadêmico, que gera co- nhecimentos e honrarias, mas não me traz paz interior e felicidade. Nirmalá respondeu que elas poderiam deixar esta conversa para mais tar-de, em num outro dia. No dia seguinte elas foram visitar a cidade velha, e a noite foram assistir ao espetáculo de dança que sua mãe e sua irmã apresentavam no teatro Kamani. O espetáculo foi musicado por um grupo tradicional de Delhi, e Rudraní se apresentou com vários solos e algumas coreografias acompanhada de bailarinas locais. No fim do espetáculo, o público em pé aplaudiu-as calorosamente. O camarim de Rudraní estava repleto de flores que ela recebeu de várias autoridades presentes e emocionou-se ao ser cumprimentada pelo primeiro mi-nistro Jawaharlal Nehru, que estava acompanhado por sua filha Indira Gandhi. Nirmalá já os havia conhecido na ocasião da cerimônia de independên-cia, mas Nehru não demonstrou tê-la reconhecido. Após o almoço do dia seguinte Mallya providenciou um veículo, para le-vá-las à casa de Shrí Rama Govindanatha. Shrí Rama era um erudito com vários livros de poesias publicados. Quando jovem ele foi membro efetivo na Socieda-de Teosófica em Adyar, onde permaneceu por cinco anos, antes de abandona-la em Agosto de 1929, na mesma época em que Jiddu Krishnamurti dissolveu a Ordem da Estrela. Nesta época ele foi morar em Bombaim, onde conheceu Shrí Gurunatha que o tomou como discípulo, iniciando-o na linha Navnatha Sampra- daya. Ele era um homem de meia idade, ligeiramente obeso, alto, tez morena, olhar sereno, longa barba esbranquiçada e cabelos desalinhados, caindo sobre os ombros. Sua única vestimenta era uma minúscula sunga e às vezes um xale bran-co em volta do pescoço. Nos pés, uma rústica e desgastada sandália de couro. Ao vê-lo, Jayaní Mallya foi emocionada ao seu encontro, tomando sua benção respeitosamente. ¾ Mestre, que prazer revê-lo! Desculpe-me vir sem avisar, mas eu trouxe uma surpresa para o senhor. – disse apresentando Nirmalá. ¾ Nirmalá é a amiga de quem eu lhe falei. Shrí Rama encarou Nirmalá com olhar sereno e perscrutador, enquanto ela sorria para ele, cumprimentando-o com as mãos postas frente ao peito. ¾ Namastê! Ele respondeu seu cumprimento da mesma forma. ¾ Vamos nos acomodar na varanda. É uma grande honra recebe-las em minha casa. Vocês gostariam de tomar um chá? Mira, a governanta saiu para preparar o chá, enquanto elas foram sentar-se na varanda, que era rodeada por um bosque florido. Shrí Rama sentou-se em frente a Nirmalá e permaneceu olhando-a com curiosidade. Ela percebeu que estava sendo analisada, mas não se importou com isto. ¾ Então é a senhora a pessoa a quem muitos consideram a enviada de uma nova era? Nirmalá sorriu para ele, mas permaneceu calada. ¾ Ela é somente a filha de Ishána, o poder invisível que governa o Uni-verso. – disse Manisha orgulhosa. Nirmalá acariciou a mão da amiga e balançando a cabeça em sinal de de-saprovação falou: ¾ Minha amiga falou a verdade, mas eu sou a mais humilde das filhas da Mãe Divina. Shrí Rama encarava Nirmalá com os olhos semi-serrados, enquanto brin-cava com seu rosário de rudraksha, rodando-o entre os dedos. ¾ Em minha tradição nós também veneramos o poder feminino que di-vide com Shiva as transformações do Cosmos. Qual é a sua tradição? – pergun-tou para Nirmalá. ¾ Eu não sou vinculada a nenhuma tradição, embora a minha visão da verdade seja não-dualísta. ¾ Entendo, você se declara uma eclética advaitim. Nirmalá sorriu. ¾ Eu prego a religiosidade sem dogmas, assim sinto-me livre para comungar com todas as crenças. ¾ Quem foi seu mestre? ¾ A Mãe Divina. ¾ Então você não teve um mestre terreno? ¾ Não, pois desde muito cedo eu tenho sido acompanhada por Sua sa-grada presença, e isto tem me bastado. ¾ Entendo. – disse Shrí Rama com ar de desconfiança. ¾ O que você ensina, Vedânta? ¾ Em verdade eu nada ensino. Eu somente converso com as pessoas, respondendo à suas dúvidas, de acordo com a minha experiência de vida. Jayaní Mallya resolveu interromper o curso da conversa, e aproveitou pa-ra falar um pouco sobre o trabalho de Giovànna. ¾ Mestre, desculpe interrompe-lo, mas eu gostaria de falar um pouco sobre a doutora Giovànna que é uma pesquisadora italiana e estuda aspectos de nossa cultura espiritual. Shrí Rama olhou para ela e amavelmente dirigiu-lhe a palavra. ¾ E o que a doutora está pesquisando? ¾ A influência dos místicos sobre a cultura popular. ¾ E o que tem concluído? Giovànna sorriu sem graça. ¾ Veja, quando eu cheguei aqui, eu tinha em mente certos aspectos a serem investigados, mas após conhecer Nirmalá tudo mudou. ¾ Por que? Giovànna sorriu disse que não mais via Nirmalá como uma simples místi-ca. ¾ E o que a doutora crê que ela seja? ¾ Ah, para mim ela é a face feminina de Deus, uma santa! Agora eu não tenho mais dúvidas a respeito. Shrí Rama olhou para Nirmalá e voltando-se para Giovànna perguntou: ¾ Com base em que a senhora faz tal afirmação? ¾ Com base no que ela me fala, e o que eu tenho assistido durante o pouco tempo em que estamos juntas. Nirmalá tocou o joelho de Giovànna, mas ela continuou falando; ¾ Para mim quem cura leprosos e paralíticos é uma santa, operando mi-lagres em nome de Deus. O senhor não acha? ¾ Eu nada sei de milagres. Em minha tradição nosso objetivo é a libera-ção da roda dos nascimentos. ¾ Eu creio que este também seja o objetivo de Nirmalá. – disse Giovàn-na olhando-o com altivez. Rama voltou-se para Nirmalá e perguntou: ¾ Com certeza a senhora estudou as escrituras sagradas do Shivaismo. ¾ Quando menina eu li alguma coisa que meu pai tinha em sua estante. Mas confesso que não sou uma intelectual. O que sei, eu aprendi com Ela. ¾ Eu iniciei muitos devotos na tradição Siddha Navnatha, e se um dia você quiser posso iniciá-la também. – disse Rama olhando-a de soslaio. Ela olhou-o com carinho, mas nada disse além de balançar sua cabeça de forma vaga, como se dissesse, talvez. Jayaní Mallya estava sentindo-se desconfortável com a conversa. Então olhou para Nirmalá fazendo um gesto com a cabeça e sugerindo que elas poderi-am ir embora. Nirmalá sorriu e com calma voltou-se para o Shrí Rama: ¾ Há quanto tempo o senhor tem este sangramento? O velho guru ficou desconcertado e olhou discretamente para suas coxas nada percebendo de anormal. ¾ Ao que a senhora se refere? – disse dissimuladamente. Nirmalá olhou-o carinhosamente e disse: ¾ Nós poderíamos conversar em particular se o senhor preferir. ¾ Não é necessário, mas já que a senhora sugeriu, venha a minha biblio-teca. – respondeu demonstrando um certo nervosismo. Ela fechou a porta e permaneceu em pé olhando-o com atenção e cari-nho. Shrí Rama abaixou a cabeça, e por um instante corou frente aquela jovem que agora ele sentia estar perscrutando sua alma. ¾ Eu não entendi o que a senhora estava dizendo. ¾ Creio que o senhor sabe sobre o que estou falando. Eu sinto que o se-nhor não está bem, o senhor está evacuado sangue, não está? ¾ Bem, eu estou me tratando com umas ervas e creio que tenho melho-rado muito. ¾ Entendo, mas será que um tratamento com ervas o irá cura-lo? Shrí Rama abaixou a cabeça visivelmente abalado com as palavras de Nirmalá. ¾ O que a senhora está dizendo? ¾ Eu vejo que o senhor tem um o tumor no intestino, e se algo não for feito rápido ele vai se difundir para os órgãos vizinhos. Eu lamento, mas sua vida corre iminente perigo. Sua expressão facial mostrava toda a sua dor e tristeza. Pela primeira vez ele estava consciente de sua impotência, porque sabia que todo o seu conheci-mento era inútil para cura-lo. Então, sua vida passou rápido por sua mente e ele sentiu-se pequeno frente a tanto mistério. Ele que sempre se orgulhou de sua erudição e estava acostumado a viver como um mestre, sentiu-se pequeno frente àquela jovem que aparentava ter um poder que ele desconhecia. ¾ Meu Deus, o que devo fazer então? Nirmalá com a respiração suspensa não ouviu seu lamento. Aquele pobre homem tinha um bom coração, apesar de que a vaidade e o orgulho pela sua erudição o desviaram do caminho da luz. Seu rosto mostrava intensa emoção. Nirmalá viu nos liames da vida uma possibilidade de ajuda-lo. Então, o amor da Mãe Divina fluiu sobre Ela e o poder se fez presente, quando se apro-ximando dele, Ela tocou-o no peito. Rama arregalou os olhos num espasmo de dor, inclinou-se para trás e de-sabou sobre o sofá com ambas as mãos sobre o abdômen. ¾ Meu Deus o que está acontecendo comigo? O que a senhora fez? O rosto de Nirmalá estava impassível. ¾ Eu nada fiz, nunca faço nada, quem age por mim é Ishána. À noite ela não saiu de seu quarto, e quando Giovànna procurou-a para conversar, ela estava sentada lendo um jornal e tomando uma xícara de chá. ¾ Você poderia ter me convidado! ¾ Não seja por isto, fique à vontade e sirva-se. Giovànna serviu-se do chá e adoçou com dois tabletes de açúcar. ¾ Eu sinto que você está feliz. ¾ Estou sim. Eu reli a correspondência que veio de Genova e também a carta que recebi de meu tio. Creio que de certa forma ambas se complementam e me ajudam a tomar uma decisão quanto a minha vida. ¾ Hum, hum. – murmurou Nirmalá. ¾ Meu chefe deu-me algumas diretivas para redirecionamento da pes-quisa e sugeriu que eu deveria visitar o Dalai Lama para entrevistá-lo. Mas, ago-ra percebo que ele está mais interessado no aspecto político e social, do que no aspecto espiritual, que é o que me interessa agora. Quanto ao meu tio, ele conti-nua sendo bem direto em suas repreensões e acusa você de estar me manipulan-do. ¾ O que você andou escrevendo para ele? ¾ Eu não escrevi nada para ele sobre nós, escrevi para minha irmã, e ela deve ter comentado com ele o quanto eu estou feliz em descobrir meu verdadei-ro caminho espiritual. Creio que isto o incomodou. ¾ Eu posso imaginar. Giovànna tirou do bolso a carta de seu tio, e leu um trecho para Nirmalá. “.... eu dediquei minha vida a lhe ensinar os valores de nossa Santa Madre Igre-ja, que são a humildade, a caridade e a piedade. E agora você diz que encontrou seu caminho entre os gentios! Como você pode ter substituído nossa fé pelo credo de pessoas que idolatram deuses primitivos? Você me venerava quando criança e dizia que eu era o seu padrinho querido. Agora vejo que você me tirou do pedestal, substituindo-me por essa garota iletrada, que você considera uma mestra. Giovànna eu estou preocupado com você, com seu futuro, e como seu padrinho espiritual gostaria que você voltasse o mais rápido possível para Roma, a fim de conversarmos sobre isto tudo.” Giovànna guardou a carta no bolso e fazendo uma careta disse: ¾ A garota iletrada a quem ele se refere é você. ¾ Eu sei, eu percebi, mas não fique aborrecida com seu tio, porque ele não sabe o que você está vivendo e o quanto isto é importante para você. Ele somente está tentando defender a visão que ele tem da verdade. ¾ Nirmalá o que estou aprendendo com você, tem se mostrado mais im-portante do que tudo que eu vivi e aprendi até agora. Eu achava que me conhe-cia..., mas agora vejo que não. Com sua visão diferente das coisas da vida, você virou meu mundo de ponta cabeça e o sacudiu bastante. Confesso a você que ainda me assusto com o que estou me tornando. Mas, de uma coisa eu tenho certeza, eu não quero mais aquela vida para mim. Não quero mais ser escraviza-da, usada e explorada por uma sociedade atrasada e preconceituosa, que se co-loca como uma referencia cultural para o mundo. Não quero mais pedir licença para viver, eu quero ser, somente ser. Agora meu tio me diz que eu coloco as pessoas em pedestais, que eu o tinha colocado em um e que o substitui por você. Nós sabemos que isto não é verdade. Aconteceu que você cruzou o meu caminho no momento certo, trazen-do o amor e a verdade. Eu não te coloquei num pedestal, te coloquei no meu coração. Foi com você que eu aprendi a me conhecer, a conhecer o amor e a vi-ver a vida com naturalidade. Eu aprendi mais com você, que ele chama de garo-ta iletrada, do que havia aprendido em toda minha vida...lá fora, no meio de pessoas eruditas e literalmente castradas. Agora a única coisa que eu espero é poder ajudar a todos que quiserem enxergar a vida de uma forma mais simples e natural, tal como você me ensinou. Giovànna sentou-se no chão e debruçando-se sobre os joelhos de Nirma-lá chorou copiosamente. Nirmalá afagou seus cabelos deixando-a desabafar até que se recuperasse. ¾ Eu sei que você teve dificuldades na vida, mas todos nós as temos. Sua relação com seu ex-marido, as pressões da vida acadêmica, a sociedade mo-ralista em que você cresceu, foram vivências que deixaram marcas em sua men-te. São os estereótipos que nos fazem sofrer. Mas você está fazendo progressos, está se libertando e sei que logo será uma mulher livre e auto-realizada. ¾ Obrigada, pois eu devo tudo isto a você. ¾ Eu ainda não fiz quase nada por você, além de despertá- la para a ver-dade da espiritualidade sadia. Mas sua hora está chegando e eu pretendo dar-lhe a iniciação necessária, para você trilhar seu caminho rumo à luz. Giovànna olhou-a surpresa e meio incrédula. “Ser iniciada? Meu Deus, eu não creio que tenha merecimento para tanto.” – pensou. ¾ Então vamos derrubar mais uma tranqueira, como você diz. Pare de pensar que você não é merecedora. Todos nós merecemos a oportunidade de vivenciarmos a luz. Giovànna deu um grito: ¾ Mia Stella brilhante, você novamente leu meu pensamento! Nirmalá sorriu para ela. ¾ Um dia sua sensibilidade permitirá que você faça o mesmo. Agora nós vamos tomar mais um chá e amanhã vou te levar para conhecer a cidade.
No dia seguinte Jayaní Mallya bateu no quarto de Nirmalá,
para dizer que seu mestre Shrí Rama, estava no saguão do hotel e gostaria de falar-lhe. ¾ Eu já esperava por esta visita minha amiga, diga a ele que eu vou des-cer para conversarmos. Jayaní Mallya desceu para o átrio do hotel enquanto Nirmalá foi pegar seu xale. Giovànna estava recostada escrevendo uma carta para Enrico Martino. Ela levantou os olhos do papel e perguntou: ¾ Você gostaria que eu descesse com você? ¾ Não é necessário, minha amiga. Não há o que temer. Nirmalá saiu do elevador e avistou Jayaní Mallya no vestíbulo, sentada com Shrí Rama e um senhor que o acompanhava. Ela foi até eles e saudou-os com as mãos postas frente ao peito. Shrí Rama segurava um grande maço de rosas vermelhas de damasco e, ao vê-la levantou-se lhe entregando o maço de flores, junto com um carinhoso sorriso. O senhor que o acompanhava levantou-se e ofereceu-lhe um caixa de bombons. Jayaní pegou as flores e a caixa de bombons das mãos de Nirmalá, e co-locou-os sobre uma mesinha. ¾ É um prazer revê-lo Shrí Rama. ¾ Meu Deus! Foi Ele quem a colocou em meu caminho. Jayaní Mallya sentada ao lado de Nirmalá deu-lhe a mão. ¾ Antes de qualquer coisa, eu gostaria de pedir-lhe desculpas, pois sei que fui insolente com você em minha casa. Por favor perdoe a minha arrogância. Aceite as desculpas de um velho que é indigno de beijar a poeira que seus pés tocam. Nirmalá olhava-o com carinho. Então, levantando-se, segurou-o pelos an-tebraços e colocando-o de pé, abraçou- o dizendo ao seu ouvido: ¾ Meu querido irmão, sua essência é tão pura quanto a minha, pois nós somos uma única essência que espelha a beleza da Mãe Divina. Então, não exis-te ofensor, ofensa, tampouco ofendido. Sua mente iludida pela beleza da erudi-ção inflou teu ego, mas não maculou o seu coração, que sempre cheio de bonda-de já ajudou muita gente, não é? Foi pelo seu coração que Ela, a Senhora da Luz e do Amor fez descer o poder sobre ti, curando-o. Aproveita a sua vida e reflita sobre a beleza que existe na simplicidade de ser. Dizendo isto ela beijou-o na face e sentou-se ao lado de Jayaní. Shri Rama sentou-se também e por um momento ficou calado. Depois, olhando-a ali, bem à sua frente, com seu sorriso enigmático, disse: ¾ Minha filha, eu posso chamá-la assim, não é? Quero que saiba que em meus oitenta anos de vida eu convivi com muitos mestres, mas nunca conheci alguém como você. Espero que a Mãe Durgá me ajude para que nos anos que ainda me restam, eu possa abrir com humildade um nicho em meu coração para abrigá-La. Diga-me, o que devo fazer para despertar desta ilusão em que vivi até agora? Nirmalá sorriu. ¾ Meu amigo, eu creio que o passo mais difícil você acabou de dar. Você despertou da ilusão que te aprisionava. Agora ensina a teus seguidores a simplicidade de ser que é a fé verdadeira. Pela graça de Durgá vo-cê renasceu. Então Nirmalá voltou-se para o senhor que o acompanhava dizendo: ¾ Meu coração se alegra com sua presença. Eu vejo ao teu lado uma fi-gura feminina, ela está envolta por muita luz e diz chamar-se Rabia al-Adawiyya, e diz ter vivido em Basra, uma cidade que confesso não saber onde fica, mas isto não é importante, o importante é que ela tem muita luz e te acom-panha pelos caminhos da vida como sua guardiã. Hajji colocou as mãos frente ao rosto e não conteve a emoção, balbuci-ando e dizendo que toda a vida sentiu alguém ao seu lado, mas jamais pensou poder ser a grande Rabia, a santa que transformou a tradição sufi. ¾As-sallamu aleykum, Filha da Luz, eu sou eternamente grato por sua vidência. Nirmalá nada disse, somente cumprimentou-os com as mãos postas fren-te ao peito e se despediu. Jayaní acompanhou-os até a saída do hotel e depois foi ao encontrou Nirmalá no átrio. ¾ Serei eternamente grata a você pelo que fez ao meu mestre. ¾ Minha amiga tudo que aconteceu foi por tua iniciativa e pela graça da Mãe Divina. Jayaní abraçou-a e beijou-a no rosto. Ao chegar em seu quarto, Giovànna estava esperando-a com um bule de chá e bolachas. Nirmalá colocou as flores em um vaso e a caixa de bombons sobre a mesa. ¾ Pelo que eu vejo, nós vamos tomar chá com bolacha e bombons! Nirmalá limitou-se a sorrir para a amiga e sentou-se ao seu lado. ¾ Você está querendo me falar algo, não é? ¾ Quero sim, mas não sei por onde começar. – disse servindo uma xíca-ra de chá para Nirmalá. ¾ Aceita uns biscoitos? ¾ Não, obrigada. Eu vou beber puro e sem açúcar. ¾ Como sempre! Nirmalá sorriu, agradecendo pelo chá. ¾ Eu escrevi uma carta para meu “ex-chefe”, dizendo que após repensar e considerar algumas coisas na minha vida, eu decidi deixar a pesquisa e meu cargo de assistente na universidade. Você gostaria que eu lesse a carta para vo- cê? Nirmalá sorriu para a amiga demonstrando ser desnecessário a leitura da carta. ¾ Eu decidi que ainda tenho uma vida pela frente e devo escolher um caminho que me traga a felicidade, um caminho de alegria, mesmo que seja sim-ples, sem macarronada, vinho, pizza e espresso. Neste pouco tempo que estou ao seu lado, eu tenho pensado muito na minha vida. Vocês todas são pessoas sim-ples, vivem de forma simples e são muito felizes com a vida que têm. Uma vida de sabedoria que não foi construída em cima de livros e palestras, mas é o fruto da paz interior e de sua ligação com sua Mãe Divina. ¾ Nossa Mãe Divina. – corrigiu Nirmalá. ¾ Nossa Mãe. - Giovànna sorriu. ¾ Espero que um dia eu possa ser uma filha tão dedicada quanto você é. ¾ Giovànna eu estou entendendo a sua argumentação, e já sabia que es-ta seria sua escolha, mas mesmo assim eu tenho que perguntar como você se vê vivendo junto a nós? Você sabe que nós somos muito simples e vivemos de ma- neira simples. Agora estamos neste hotel luxuoso, por cortesia de nossa amiga Jayaní Mallya, mas em geral ficamos na casa de amigos ou em albergues. An-damos pela Índia sem destino, embora penso em um dia me fixar em algum lu-gar para ter uma referência de uma casa. Como você se vê vivendo assim? ¾ Nirmalá, minha vida sempre foi muito simples, meus pais eram pesso-as simples e humildes. Eu sempre trabalhei dando aulas particulares, para custear meus estudos e depois do doutorado meu trabalho foi sempre externo, viajando para lugares distantes e na maioria das vezes inóspitos, onde em geral os estudos de antropologia são feitos. Ainda não sei como eu poderia ser útil para você, mas sei que um dia vou encontrar uma forma de retribuir tudo que você tem feito por mim. – ela fez uma pausa, suspirou e disse: ¾ Quanto a sua pergunta, eu diria que eu vejo meus dias com vocês de forma muito prazerosa. Eu quero continuar aprendendo, estudar a tradição espiritual e cultural da Índia, até o dia em que a letra não seja mais importante, porque tal como você, eu também che-guei no ponto de aprender vivenciando a verdade que a vida nos mostra. – Gio-vànna estava emocionada. Ela parou de falar e voltando-se para Nirmalá pergun-tou: ¾ Você me quer, não é? Quero dizer, você me aceita como sua discípu-la? Nirmalá não respondeu e limitou-se a abraçar a amiga e beijar-lhe o rosto carinhosamente. No dia seguinte Giovànna postou três cartas no correio; uma para Enrico Martino, uma para sua irmã Antonella Sciarrino e outra para seu tio, o cardeal Sciarrino. Para seu ex-chefe ela disse estar muito agradecida por tudo que ele fez por ela, mas que por motivos de foro íntimo ela estava dando como concluída sua parte na pesquisa e abandonando o projeto. Em verdade ela estava pedindo a demissão do trabalho e solicitando que ele lhe informasse como ela poderia ressarci a sociedade mantenedora do projeto, pelas despesas com sua viagem interrompida. Para sua irmã e seu tio, ela somente disse que estava bem, e que havia decidido tirar umas férias e permanecer por um tempo viajando pela Índia. Ela agora se sentia livre e feliz, apesar de um pouco amedrontada quanto ao seu futuro. Mas, quando Nirmalá lhe perguntou como ela estava se sentindo, ela respondeu que nunca se sentira melhor na vida, e que tinha certeza que toma-ra a decisão certa. Ela precisava de um tempo para si, e para refletir sobre o ver-dadeiro objetivo da vida. Ela sabia que ainda era jovem e podia se dar uma chance de tentar viver dentro de outros paradigmas. Após o almoço elas sentaram-se para conversar e Nirmalá disse-lhes que estava pensando em partir para Rishikesh, via Meerut e Haridwar, num ônibus que sairia de Delhi no dia seguinte, pela manhã. No final da tarde, elas foram se despedir de Jayaní Mallya, que estava de volta para Bombaim. Ao raiar do dia foram para a estação rodoviária e tomaram um ônibus com destino a Rishikesh.