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Teatro Grego e Romano

História, Cultura e Sociedade


Ana Livia Bomfim Vieira
Claudia Beltrão da Rosa
(Organizadoras)

Teatro Grego e Romano


História, Cultura e Sociedade

São Luís
2015
Copyright © 2015 by Ana Livia Bomfim Vieira & Claudia Beltrão da Rosa
Editoração: Café & Lápis
Editores: Claunísio Amorim Carvalho & Germana Costa Queiroz Carvalho
Revisão: Claunísio Amorim Carvalho
Diagramação: Germana Costa Queiroz Carvalho
Capa: Marísio Amorim Carvalho
Ilustração da capa: “Carta Arqueológica”. Gravura em metal. Água-forte e água tinta, de
Patrícia Horvat.
Impressão: Halley S. A. Gráfica e Editora

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


__________________________________________________________
T253

Teatro Grego e Romano: História, Cultura e Sociedade /. Ana Livia


Bomfim Vieira; Claudia Beltrão da Rosa (Organizadoras). - São Luís:
Café & Lápis; Ed. UEMA, 2015.

284 p.

Coletânea de Artigos
ISBN 978-85-62485-48-0 (Café & Lápis)
ISBN 978-85-8227-083-7 (Editora UEMA)

1. Teatro Greco-romano – História. I. Veira, Ana Livia Bomfim. II. Rosa,


Claudia Beltrão da. III. Título

CDU 930.85:792(37/38)
CDD 792.01
__________________________________________________________
Ficha catalográfica elaborada por:
Marcelo Neves Diniz – Bibliotecário – CRB 489/13

Livro publicado com recursos provenientes do Edital n.º 010/2012 -


Programa de Apoio à Publicação (APUB/FAPEMA).

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DIVISÃO DE EDITORAÇÃO
Alan Kardec Gomes Pachêco Filho

EDITOR RESPONSÁVEL
Alan Kardec Gomes Pachêco Filho

CONSELHO EDITORIAL
Ana Lucia Abreu Silva
Ana Lúcia Cunha Duarte
Eduardo Aurélio Barros Aguiar
Fabíola Oliveira Aguiar
Helciane de Fátima Abreu Araújo
Jackson Ronie Sá da Silva
José Roberto Pereira de Sousa
José Sampaio de Mattos Júnior
Luiz Carlos Araújo dos Santos
Marcelo Cheche Galves
Márcia Milena Galdez Ferreira
Maria Claudene Barros
Maria José Nélo
Sumário

PARTE I - O TEATRO GREGO

Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13

Máscaras, espadas e machado: assimilações e trocas entre


poetas e artesãos em Atenas Clássica
Alexandre Carneiro Cerqueira Lima e Talita Nunes Silva . . . . . . . . . 17

A etnicidade grega em Eurípides: o caso dos Ciclopes


Fábio de Souza Lessa e Vanessa Ferreira de Sá Codeço . . . . . . . . . . . 31

Do poder à servidão, da servidão à morte: representações


da guerra e da violência no prólogo da tragédia Hécuba, de
Eurípides
Brian Gordon Lutalo Kibuuka . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43

O Teatro de Ésquilo e os valores que vêm do campo


Ana Livia Bomfim Vieira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77

Os sonhos de Io: uma abordagem psicanalítica de Promoteu


Acorrentado
Patricia Vivian von Benkö Horvat . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91

... E os gregos inventaram o Teatro


Maria Regina Candido . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 117
PARTE II - O TEATRO ROMANO

Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 135

Ideologia escravista em Aulularia, de Plauto


Sônia Regina Rebel de Araújo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 143

Religião e Teatro na Roma Republicana: notas sobre a Aulularia,


de Plauto
Claudia Beltrão da Rosa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 157

Identidade Cultural e Teatro: um estudo de caso de um


mosaico afro-romano
Regina Maria da Cunha Bustamante . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 181

Da Epigrafia Teatral no Portugal Romano


José d’Encarnação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 205

O Teatro é uma festa: controle dos prazeres na visão de


Tertuliano
Ana Teresa Marques Gonçalves . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 229

Ordem e Desordem na Cidade Antiga: o Teatro entre a


tradição clássica e a cristã
Gilvan Ventura da Silva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 251

Sobre os Autores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 281


Parte I
O Teatro Grego
Apresentação

Ana Livia Bomfim Vieira

Se um de vocês, espectadores, fosse alado,


E se tivesse fome e os coros trágicos o entediassem,
Decolaria e almoçaria em casa,
Depois, satisfeito, para nós de volta voaria.
(ARISTÓFANES. As Aves, 786-789)

O teatro grego teve um lugar de suma relevância na cultura


helênica e representou, sem sombra de dúvida, espaço de contato e
reafirmação dos valores políades. É bastante conhecida a crítica feita por
Plutarco à importância excessiva, segundo ele, dada pelos atenienses à
encenação teatral: “(...) gastaram mais dinheiro com As Bacantes, As Fenícias,
os Édipos, Antígonas, os sofrimentos de Medéia e Electra, do que para lutar por sua
hegemonia e sua liberdade nos seus combates contra os bárbaros” (PLUTARCO.
A Glória dos Atenienses, 349a).
Segundo hipóteses mais tradicionais, o teatro grego teve, desde
o início, profunda relação com a religião grega, sobretudo com o culto
a Dionisos. Eram quatro as festas em honra ao deus – As Dionisíacas
Rurais, as Lenéias, As Antestérias e As Grandes Dionisíacas. Eram nas
Grandes Dionisíacas que as competições teatrais tomavam lugar e mo-
bilizavam todo o corpo cívico de Atenas. E estas competições trágicas
foram instituídas ainda sob a tirania dos Psistrátidas, como forma de
disseminar o culto a Dionisos e construir uma valorização dos espaços
públicos, mas é no cenário democrático do período clássico ateniense
que elas ganham todo o espaço político e simbólico que mereciam.
Celebrada na primavera, esta festa em honra ao deus tinha nas
encenações teatrais seu momento ímpar e, no anfiteatro cravado nas

Teatro Grego e Romano . 13


encostas da Acrópole, já durante o V século a.C., vemos competir entre
si poetas trágicos e cômicos, cada um em sua categoria. Pós uma série
de cerimônias onde podemos ver a ordem cívica e religiosa plenamente
integradas – sacrifícios animais, coroação dos cidadãos beneméritos,
exortação dos órfãos de guerra, komos e uma procissão onde era levada
a estátua de Dionisos aos santuários, culminando com a chegada dela
ao teatro, no dia seguinte iniciavam-se as representações dramáticas. As
tragédias duravam três dias com três poetas admitidos a concorrer e as
comédias cinco dias, mais tarde tendo aumentado para seis, entre os
séculos III e II a.C.
O teatro era o locus onde, sobretudo em momentos de crise,
serão apresentadas as peças teatrais que tratarão de questões que são
sensíveis àqueles que as assistem (SEAGAL, 1994). Mas, mais do que
apresentar aos cidadãos seus próprios conflitos, o teatro serviu de lu-
gar para que experimentassem conflitos extremados, onde era possível
vivenciar todas as tensões possíveis que envolviam os diferentes papéis
sociais do cidadão. Era no teatro que o polites poderia compreender
todas as dificuldades e conflitos existentes entre sua vida cívica e fa-
miliar (GOLDHILL, 1987; 74). Finley (1998, p. 178) apontou para a
natureza de “tubo de ensaio” do teatro grego, que é uma espécie de
concentração de experiências que, dificilmente, um cidadão comum ou
um ser humano normal viveria em seu cotidiano. Segundo o autor, os
poetas trágicos e cômicos excluíam de seus enredos tudo aquilo que
pudesse engessar a imaginação e, neste caminho, construíam narrativas
profundamente conectadas com o que existe de mais humano. Com
as tensões e interdições que subsistem nas dobras do tecido social e
mental e que, muitas vezes, não somos capazes ou não temos coragem
o suficiente para expor. E, negando ou diminuindo a importância da
busca pela verossimilhança das experiências narradas, o teatro grego
colocou asas nas estruturas, convenções, tabus e interdições sociais. E,
de certa forma, a despeito de todas as novidades implementadas no te-
atro em todos esses séculos posteriores, o teatro grego continua sendo
uma autoridade a quem não podemos deixar de observar com respeito
(FINLEY, 1998). Entre os séculos V e IV a.C., foi forjado pelos dra-
maturgos gregos o que seria o teatro e como o conceberíamos ainda
hoje, na sua essência.
É desta forma que os trabalhos desta sessão tentam discutir o te-
atro grego. Como um espaço de reflexão, de crítica social e de vivência

14 . Apresentação - Parte 1
simbólica de experiências humanas na fronteira entre o mito, o logos,
o cívico e o irracional.
O artigo de Alexandre Lima e Talita Silva, Máscaras, espadas e ma-
chado: assimilações e trocas entre poetas e artesãos em Atenas Clássica, vai refletir
sobre as relações que podem ser traçadas entre o teatro, e as encena-
ções teatrais e a cerâmica ática, como suporte de representações destas
encenações. Os autores evidenciam o trânsito existente entre o teatro
e as oficinas, expondo a figura do artesão que é, ao mesmo tempo,
espectador e produtor destas representações imagéticas. E nestas re-
presentações, é possível perceber todos os conflitos e transgressões ex-
postos nas encenações teatrais. Em um mesmo sentido, o de evidenciar
o teatro como lugar de exposição/discussão de conflitos, segue o texto
de Fábio Lessa e Vanessa Codeço, A etnicidade grega em Eurípides: o caso
dos Ciclopes, que tratará de uma das questões mais importantes para a
construção da identidade grega, ou seja, a relação com o não- grego. O
artigo vai analisar a questão da etnicidade entre os gregos, partindo de
um peça do tragediógrafo Eurípides – o Ciclope – para demonstrar que
esta categoria funciona como demarcação de autorreconhecimento e
de territórios simbólicos que constroem as fronteiras entre o eu e o
outro.
No trabalho de Brian Kibuuka, Do poder à servidão, da servidão à
morte: representações da guerra e da violência no prólogo da tragédia Hécuba, de
Eurípides, os principais conflitos e tensões apresentados provêm das
representações da violência e da guerra. Estas representações não são
explícitas, já que a guerra ela mesma não figurou nas peças do trágico,
mas sua concepção da guerra é que seus males alcançam níveis sociais
muito amplos, levando os homens ao excesso e ao erro.
Retomando o tema do teatro como lugar de encontro entre pas-
sado e presente, Ana Livia Bomfim Vieira expõe, em O Teatro de Ésquilo
e os valores que vêm do campo, as peças de Ésquilo como discursos nostálgi-
cos de uma Atenas passada, de valores ligados ao campo e ao trabalho
na terra. A Atenas do V século a.C. é vista pelo tragediógrafo como
uma pólis corrompida pelos valores citadinos. E, novamente, podemos
observar o teatro como um lugar de questionamento da “realidade”
vivida. Patrícia Horvat desloca a reflexão dos conflitos e tensões para
a relação entre tragédia e psicanálise em Os sonhos de Io: uma abordagem
psicanalítica de Promoteu Acorrentado. A autora constrói uma singular aná-
lise sobre a naturalização de uma ordem simbólica cultural, baseada em

Teatro Grego e Romano . 15


necessidades masculinas e que produz e impõe modelos e papéis so-
ciais de submissão às mulheres. Mas esses papéis, embora socialmente
aceitos e reproduzidos, geram inúmeros conflitos sociais e de gênero
pois reconhecem, na mulher, uma agente de transgressão e inversão
desta ordem estabelecida.
Maria Regina Cândido fecha esta sessão sobre o teatro grego
com ... E os gregos inventaram o Teatro, nos apresentado a estrutura da for-
mação das encenações e dos diversos gêneros teatrais, além de refletir
sobre o lugar do teatro no mundo grego, as possíveis fronteiras entre
teatro e religião e as relações entre a forma como concebemos o teatro
hoje e as reflexões filosóficas sobre este espaço que foram forjadas
ainda na antiguidade.

16 . Apresentação - Parte 1
Máscaras, espadas e machado:
assimilações e trocas entre poetas
e artesãos em Atenas Clássica

Alexandre Carneiro Cerqueira Lima


Talita Nunes Silva

Introdução

Alexandre Carneiro Cerqueira Lima

As competições trágicas em Atenas foram organizadas durante


o regime tirânico dos Pisistrátidas. Eles, seguindo aqui uma tradicional
hipótese, apoiaram e disseminaram o culto ao deus Dionisos na ásty,
além de organizarem o calendário cívico-religioso e oficial da pólis
dos atenienses (LIMA, 2000, p. 17). A partir desse momento político,
percebemos uma opção, por parte dos grupos políticos, em privilegiar
o espaço público e as práticas relacionadas ao koinón. O interesse da
comunidade deveria sobrepor-se aos interesses particulares (THEML,
1998). O regime da democracia irá incrementar as festas dionisíacas
e abrirá espaço, no teatro, às encenações cômicas. Iremos vislumbrar
ao longo do V século a.C., em Atenas, manifestações, performances e
representações criadas por tragediógrafos e comediógrafos, bem como
a circulação de ‘imagens’ acerca das obras desses poetas. Portanto, na
primeira parte do presente capítulo, nós iremos investigar a estreita
relação entre espaço/imagem e máscara por meio do teatro. Para tal,
nós escolhemos trabalhar com uma imagem que poderá nos ajudar
a compreender essa relação. Na segunda parte do texto, a Professora
Talita Nunes Silva analisará uma imagem com a representação da
personagem Clitemnestra, heroína transgressora do teatro esquiliano.
O principal teatro da Ática, o de Dionisos, estava situado na
ásty de Atenas, no sopé da Acrópole. A partir desse dado podemos
levantar um referencial espacial importante: o de centralidade. O

Teatro Grego e Romano . 17


complexo Acrópole – Teatro, na ásty, adequa-se à noção eis/es tò méson
(para o centro). Marcel Detienne explica que tal noção expressa o
que é comum a todos, algo compartilhado por todos em uma dada
comunidade (DETIENNE, 1965, p. 434). Para o teatro convergiam
atenienses de várias camadas sociais e estrangeiros. Talvez as mulheres
também pudessem assistir ao festival. O teatro era uma espécie de
‘vitrine’ da pólis. Ideias, valores e crenças eram disseminados e com-
partilhados por vários grupos. Evidentemente, tais representações
seriam lidas de forma diferenciada por cada segmento social.
Duas competições teatrais ocorriam no espaço sagrado de Dio-
nisos: as Leneias e as Grandes Dionisíacas. Nessa última, os atenienses
recebiam o phóros (o tributo) dos aliados da Liga de Délos (MOSSÉ,
2008, p. 95). Aqui fica patente não só a ideia de centralidade, bem como
de hegemonia por parte da democracia de Atenas. Os concursos teatrais
reforçavam a ideia de centralidade (Atenas/ásty/Acrópole – Teatro) e a
de liderança da pólis perante os aliados no Egeu.
O Teatro de Dionisos acumula papéis ao longo do V século a.C.
Além do aspecto anteriormente apontado, o de centralidade, há o de
sacralidade. Os poetas trágicos e cômicos podem manifestar e explicitar
suas opiniões acerca da política, pois estão protegidos pela sacralidade
da festa. Temas como a guerra, a misthophoría, a demagogia poderiam
ser apresentados no período da festa e no espaço sagrado do teatro
(CARRIÈRE, 1979).
Outro ‘papel’ importante é o de circulação de ideias e de repre-
sentações. O poeta pode construir ou mesmo ‘desconstruir’ certas ima-
gens sobre mitos, heróis, seres sobrenaturais, deuses, espaços ‘concretos’
da própria pólis (como a agorá, a casa, etc.) e espaços abstratos (o Olimpo,
o Hades). O poeta pode, como fez Aristófanes em As Nuvens, criar uma
‘imagem’ do sofista. Tudo isso constitui material a ser elaborado pelo
dramaturgo.
Um último aspecto que nós gostaríamos de apontar aqui é o que
chamamos de ‘vitrine’. Ali no palco e na orquestra, com a atuação do
coro, emergem crenças e práticas próprias dos atenienses. Os poetas e
intelectuais da Ática estão mergulhados em uma cultura e referenciais
específicos. No palco do teatro surge com toda força as cores, os odores,
a dança e a música da cultura dos atenienses. Contudo, não podemos
nos esquecer que a plateia era bastante diversificada. Atenienses e
estrangeiros assistiam às peças. E muitos dos estrangeiros que estavam

18 . Alexandre Carneiro C. Lima e Talita Nunes Silva


presentes nas Grandes Dionisíacas são magistrados de suas póleis com
a dura obrigação de entregar o phóros, o tributo obrigatório para o
tesouro da Liga de Délos. O teatro seria, portanto, uma manifestação
cultural ‘imperialista’ ateniense? Uma vitrine que mostraria a força e a
hegemonia até mesmo cultural dos atenienses?

Do teatro ao vaso
Muitas peças trágicas e cômicas ficaram no imaginário dos
atenienses durante o período clássico. E provavelmente estimularam
outros demiourgós (poetas, artesãos, filósofos) em suas obras. Temáticas
criadas por Ésquilo e Eurípides, por exemplo, foram representadas e
pintadas pelos artesãos do Cerâmico.
Nós podemos, então, pensar em uma assimilação direta, por parte
do ceramista, de temas veiculados no teatro? Sim, mas tomando alguns
cuidados. Não acontecia em Atenas o que vemos atualmente ocorrer
com filmes, novelas e seriados que geram uma enxurrada de produtos,
souvenirs e até mesmo artefatos caracterizados como ‘artísticos’. O cera-
mista, da mesma forma que o poeta, possui um referencial e esse pode
ser uma peça de teatro. Entretanto, como mostrou Anthony Snodgrass
(2004), os pintores arcaicos possuíam a liberdade para criarem suas
obras e não estavam atrelados exclusivamente à ‘tradição’ homérica.
Nós entendemos, da mesma forma que Snodgrass, que os pintores do
Cerâmico terão a liberdade de criar a partir de temas ou de passagens
de peças teatrais. Isso quer dizer que o teatro passou a ser mais uma
manifestação cultural importante no repertório dos artesãos da Ática.
Um bom exemplo é a cratera de Pronomos. Nesse artefato nós
podemos reconhecer os atores com suas máscaras e os músicos com
os seus instrumentos (CALAME, 1986; WILSON, 2008).
Tanto o teatrólogo quanto o ceramista possuem um fator
limi-tador: o espaço para a representação. O teatro para o poeta e
o suporte cerâmico para o pintor. O poeta adapta seu repertório
extenso de referências ao espaço da encenação. O teatro (assentos,
orquestra, palco) está presente na própria obra do escritor teatral. O
espaço, portanto, interfere na obra do ‘artista’. Lembremo-nos da ida
ao Hades pelo personagem Dionisos na peça As Rãs, de Aristófanes.
O comediógrafo monta um Hades no palco com o protagonista,
Dionisos, disfarçado de Héracles. Dionisos pede conselhos ao herói,
que se saiu vitorioso em sua viagem ao mundo subterrâneo. Em um

Teatro Grego e Romano . 19


dado momento na peça, Dionisos e o escravo estão temerosos com a
possibilidade de serem devorados pelo ‘monstro’ Empusa. Dionisos
corre do palco e pede ajuda ao seu sacerdote nos primeiros assentos na
plateia (ARISTÓFANES, As Rãs, v. 285-290). Isso caracteriza bem o
jogo articulado pelo poeta. Do Hades/palco a cena passa para o mundo
dos vivos com o sacerdote de Dionisos presente na plateia do teatro.
Imediatamente as espacialidades mudam em um ‘piscar de olhos’.
Todas essas representações criadas pelos poetas trágicos e
cômicos nos estimulam a pensar o espaço do teatro como heterotópico.
O pensador Michel Foucault, em seu artigo Of other spaces, elaborou a
noção de heterotopia. Tal noção
é capaz de superpor num único lugar real diversos espaços,
diversos locais que em si são incompatíveis (...) eles têm uma
função em relação a todo o espaço restante. Essa função se
desdobra entre dois pólos extremos. Ou seu papel consiste
em criar um espaço de ilusão que expõe todos os espaços
reais, todos os lugares em que se divide a vida humana, como
ainda mais ilusórios (...) Ou então, ao contrário, seu papel
consiste em criar um espaço outro, um outro espaço real,
tão perfeito, meticuloso e bem disposto quanto o nosso é
desarrumado, mal construído e confuso (SOJA, 1993, p. 26;
FOUCAULT, 1986, p. 27).

O teatro, por meio de seus demiourgós, os poetas, cria e recria


espaços. Trans-forma completamente o papel original de um lugar. Mais
uma vez, nós recorremos ao teatro aristofânico. Na peça As Vespas, o
comediógrafo monta um tribunal em uma casa/palco (ARISTÓFANES,
As Vespas, v. 765-775). A pólis e todas as suas espacialidades, concretas e
abstratas, estão presentes no palco do Teatro de Dionisos.
Quando nós pesquisadores direcionamos nosso olhar para as ce-
nas de vasos, buscamos os signos que nos apontam que tal imagem é de
uma performance teatral. Nós devemos estar atentos às unidades formais
mínimas, de acordo com o método proposto por Claude Bérard (1983),
que nos indicam que aquela cena pertence ao universo do palco. Nós
observamos a representação de atores, de músicos, de traços que
explicitam a arquitetura do próprio teatro (palco, colunas), trajes,
etc. Mas há um signo bastante frequente que imediatamente faz que
o receptor da cena identifique-a como uma imagem de teatro: a máscara.

20 . Alexandre Carneiro C. Lima e Talita Nunes Silva


A máscara é um acessório da indumentária do ator. Ela era feita
de argila e expressava as características do personagem ‘encarnado’ pelo
ator. Dessa forma, há máscaras de alguns tipos comuns do teatro grego,
a saber: jovem, velho, escravo, mulher jovem e idosa. Ela expressava
também sentimentos e sensações, tais como: fúria, medo e tristeza
(PICKARD-CAMBRIDGE, 1953, p. 208-209).
A máscara era, na imagética de vasos, representada pelos pin-
tores principalmente quando o ator segurava-a em uma de suas mãos
ou quando portava-a no rosto. Algumas etapas da encenação foram
representadas pelos artesãos helenos: os ensaios de atores, a preparação
para entrada em cena, bem como a própria atuação no palco. As
máscaras, as vestimentas e os instrumentos musicais são os signos que
explicitam as representações teatrais na imagética grega.
Uma questão importante deve ser aqui colocada: qual seria o
papel efetivo do mascaramento? Seria somente a transformação, o
disfarce em um personagem? Acreditamos que não. E os pintores do
Cerâmico nos proporcionaram indícios para pensarmos que há outras
possibilidades de sua interpretação.
Desde a década de 1980, a frontalidade vem sendo estudada por
Claude Calame (1986) e por Françoise Frontisi-Ducroux (1995). O olhar
frontal no prósopon – rosto/máscara sugere uma comunicação direta
entre o emissor (pintor) e o receptor (‘consumidor’ do vaso). Muitas
máscaras foram representadas com olhar de três quartos (3/4) e com
olhar frontal. Mas há um dado importante que deve ser problematizado
aqui. A máscara pintada com olhar frontal encontra-se em um contexto
específico: o palco. E mais, encontra-se em um espaço performático
e sagrado. O ator que porta a máscara está no santuário de Dionisos.
Assim sendo, nós teremos de levar em consideração esses três aspectos,
a saber: o mascaramento, a frontalidade e a epifania dionisíaca.
Françoise Frontisi-Ducroux, em sua obra Le Dieu Masque, com-
preende que a máscara Dionisos – o prósopon da divindade em um pilar
–, com seu olhar frontal, corresponde a um dos polos de extrema
alteridade, aquela da contemplação do olhar dos deuses, cujo “brilho
insustentável ofusca os olhos dos mortais”. O outro polo é ocupado
pela máscara e pelo olhar da Górgona (olhar que petrifica, mortífero)
(FRONTISI-DUCROUX, 1991, p. 13) A frontalidade caracteriza a re-
presentação de Dionisos e exprime graficamente a eficiência religiosa
de seu olhar. A máscara pode ser suficiente para apresentá-lo e para

Teatro Grego e Romano . 21


fazer o cultuador entrar em contato com a divindade (FRONTISI-
DUCROUX, 1991, p. 187) E ao entrar em contato com Dionisos, o
cultuador – o folião (komastés) ou a bacante – sentem os efeitos da
epifania dionisíaca.1
Para pensarmos melhor essa questão apontada acima, nós
escolhemos uma imagem significativa. É uma cena em uma cratera de
figuras vermelhas com a representação de dois atores se preparando
para a encenação. O ator da direita está vestido de mênade e porta a
pele de cabrito atada em seu chitón.2 O jovem à esquerda segura uma
máscara em sua mão esquerda.3 A máscara possui olhar frontal. Assim,
fica aqui bem marcado o aspecto do disfarce, do mascaramento e da
sedução, por meio do olhar frontal, aspectos esses próprios dos ritos
dionisíacos em Atenas do V século a.C. J.-P. Cèbe explica que a máscara
proporciona o contato imediato com os seres do mundo invisível. Ela
suprime a barreira entre profano/sagrado, vida/morte (CÈBE, 1987,
p. 205). Assim sendo, no espaço do Teatro de Dionisos as fronteiras
entre homem/mulher, sátiro/cidadão, mulher/bacante e, no caso dessa
representação, jovem ator/mênade, ficam bem tênues. No palco, bem
como nas imagens de vasos nós podemos perceber que as espacialidades
acumulam papéis e representações, e são, portanto, heterotópicas.

1
De acordo com Marcel Detienne, a epifania dionisíaca pode ser caracteri-
zada, em um primeiro momento, por confrontos e conflitos. “Segundo tipo
de epidemia: o deus da vinha, a divindade do vinho e seus hospedeiros. (...)
Epifania do senhor da taça inebriante, de quem a tradição ateniense nos dá
refinada versão em suas voltas e contravoltas, tornando visível o quadro das
mediações que preparam o advento das boas maneiras ao banquete do vinho”
(DETIENNE, 1988, p. 18).
2
Lembremos que o transe dionisíaco começa pelos pés por meio de saltos. “O
deus cabrito, o filhote de cabra em meio às bacantes da noite” (DETIENNE,
1988, p. 83).
3
Cratera ática de figuras vermelhas, ca. 460-450 a. C. Museo Archeologico
Nazionale di Spina, inv. no. 20299 (VILLANUEVA-PUIG, 1992, p. 145).
22 . Alexandre Carneiro C. Lima e Talita Nunes Silva
[Fig. 1 - Atores e máscara]
A permanência do caráter ‘transgressor’ de Clitemnestra na
iconografia
Talita Nunes Silva
Como vimos anteriormente, muitas das peças teatrais permearam
o pensamento dos atenienses durante o Período Clássico e influenciaram
a obra dos pintores dos vasos cerâmicos. Esse deve ter sido o caso das
tragédias escritas por Ésquilo, a julgar pela popularidade de sua obra. O
número de cenas remanescentes do teatro esquiliano nos dá uma idéia
desta notoriedade. Em Illustrations of Greek Drama, vemos que
uma contagem bruta recente do número total de ilustrações
sobreviventes nos dá alguma idéia do aumento e queda de po-
pularidade. Esta pesquisa dá 167 ilustrações de Ésquilo, das
quais 89 podem ser datadas no quinto século, 58 no quarto, e
um punhado mais tarde (...) (TRENDALL, 1971, p. 1).

Ésquilo era, portanto, bastante popular durante o Período Clás-


sico e particularmente no V século a.C., o que nos leva a inferir que
as temáticas criadas por ele devem ter fincado raízes no imaginário
ateniense, assim como influenciado a criação artística da época.4
4
No entanto, peças importantes como o Agamêmnon quase não foram ilus-
tradas, enquanto A.D. Trendall e T.B.L. Webster dizem ser muito provável
que dentre as peças esquilianas mais populares para a ilustração figurassem as
Coéforas e as Eumênides.
Teatro Grego e Romano . 23
Devido a isto, ao observarmos imagens da cerâmica ática referentes
às séries de assassinatos ocorridos no palácio de Argos, não podemos
deixar de indagar se tais cenas retratam a encenação de uma das peças
da Oréstia, ou se, embora não fossem representações de encenações
teatrais, demonstram uma ‘influência’ da versão esquiliana do mito.
As imagens da cerâmica ática que analisamos em nosso trabalho
de pesquisa se inserem dentro do período de 480 a 440 a.C. Se
considerarmos que a Oréstia foi encenada pela primeira vez em 485
a.C., podemos supor que tais imagens tenham sofrido certa ‘influência’
da trilogia de Ésquilo. Entretanto, não temos condições de confirmar
ou não tais suposições para todas as imagens por nós analisadas, ainda
que para algumas delas seja possível presumir uma provável ‘influência’
da obra do dramaturgo.5 Todavia, essas indagações não são essenciais
para o que nos propusemos neste capítulo. Mais do que saber se as
imagens áticas de figuras vermelhas a que tivemos acesso expressam
uma influência do teatro de Ésquilo ou se elas são representações de
suas encenações, nosso objetivo é observar se mesmo nestas imagens
a personagem Clitemnestra apresenta características que nos possibili-
tam classificá-la como ‘transgressora’. Nosso intuito é comparar os
elementos presentes na representação figurada da personagem que
nos permitem tomá-la como ‘transgressora’ com aqueles presentes na
Oréstia e que igualmente nos autorizam a considerar a Clitemnestra de
Ésquilo como uma mulher ‘transgressora’ ao ideal de comportamento
feminino presente na sociedade políade do V a.C.6 Isto posto, neste
capítulo analisaremos uma das sete imagens que constituem nosso
corpus iconográfico referente à esposa de Agamêmnon. Deste modo,
buscaremos ao longo deste capítulo identificar os elementos presentes
5
Quanto à suposição de que tais cenas poderiam retratar encenações tea-
trais da dramaturgia esquiliana, nas imagens que constituem nosso corpus não
encontramos elementos que comprovem tal inferência devido à ausência de
traços que explicitam a arquitetura do próprio teatro (palco, pilastras), assim
como de um signo bastante frequente que permite ao receptor identificar
imediatamente a cena como uma imagem teatral: a máscara.
6
Essa idealização consistia em um conjunto de virtudes reservado às mulhe-
res, como o exercício das atividades domésticas, a submissão, a fragilidade, a
abstinência aos prazeres do corpo, o silêncio, a reprodução de filhos legíti-
mos, a reclusão no interior do oîkos, assim como sua exclusão da vida social,
pública e econômica. Tal modelo ideal de mulher recaiu com mais rigor sobre
as esposas dos cidadãos socialmente favorecidos, ou seja, as mulheres bem-
nascidas.
24 . Alexandre Carneiro C. Lima e Talita Nunes Silva
na imagem analisada que mostrem a rainha de Argos cometendo
desvios (ações transgressoras) ao ideal de comportamento feminino
ateniense, nos atentando para as unidades formais mínimas que a mostrem
como mulher bem-nascida7 e ‘transgressora’.8
A imagem aqui abordada se encontra sobre uma cratera de cerca
de 470-460 a.C. e representa a morte de Cassandra sob as mãos de
Clitemnestra.9 Aqui encontramos um elemento interessante. Embora
mais comum na representação da personagem, o pélekus não é a única
arma que aparece associada à Clitemnestra nos vasos áticos do V
séc.a.C.10 Nesta cena a arma utilizada pela personagem é uma espada e
não um machado duplo.

[Fig. 2 - Clitemnestra e Cassandra]


7
Como unidades formais mínimas presentes em imagens da cerâmica ática de
figuras vermelhas que nos permitem identificar as mulheres ali representadas
como bem-nascidas, podemos citar os seguintes elementos presentes na ca-
racterização das personagens: pele alva, uso de chiton e himation de cores claras,
pés descalços, possível uso de joias, cabelos sempre escuros presos atrás em
forma de coque com fitas, grinaldas e diademas ou soltos com fitas amarradas
no alto da cabeça.
8
Transparência da vestimenta, uso do pélekus ou de espada.
9
Cratera ática de figuras vermelhas, ca. 470-460 a.C. Caltanissetta, Mus. S 733.
Lexicon Iconographicum Mythologiae Classicae (LIMC), v.VII (1). Artemis Verlag
Zürich und München, 1994, f. 200, p. 685.
10
Contudo, consideramos que imagens de Clitemnestra brandindo uma arma
que não o pélekus devem ter sido algo muito raro, pois em nossa pesquisa em
volumes do CVA (Corpus Vasorum Antiquorum) e do LIMC (Lexicon Iconographi-
cum Mythologiae Classicae) encontramos apenas uma imagem na qual Clitemnes-
tra está brandindo uma espada em vez de um machado duplo.
Teatro Grego e Romano . 25
A profetisa Apolínea que foge à esquerda da cena vira o tronco
para trás e olha para Clitemnestra, enquanto seus pés estão voltados
para frente. Seus braços estão volvidos para a rainha argiva talvez num
pedido de clemência ou num gesto de dor. Clitemnestra parece correr
atrás de Cassandra. Ela veste um chiton e um himation, seus cabelos
parecem estar presos e seus pés descalços (o que nos permite considerá-
la uma mulher bem-nascida). Sua mão direita empunha uma espada
semelhante à utilizada por Egisto e Orestes na cratera em cálice pintada
por Dokimasia.11 O fato da espada utilizada por ela nesta iconografia
da morte de Cassandra parecer menor do que a empregada pelos per-
sonagens representados por Dokimasia se pode dever ao fato de parte
dela já estar entranhada em Cassandra – uma vez que não vemos sua
ponta. Como o vaso é de fabricação posterior à primeira encenação da
Oréstia, seu pintor pode ter se inspirado no drama esquiliano, pois utiliza
a espada como instrumento para os crimes cometidos pela esposa de
Agamêmnon.
A arma utilizada por Clitemnestra na execução dos homicídios
por ela perpetrados tem suscitado ao longo do tempo muitos debates.
Na tentativa de responder esta questão, utilizaremos as profícuas
asseverações de A. J. N. W. Prag (1991), em seu artigo Clytemnestra’s
weapon yet once more, no qual o autor rebate a opinião de Malcolm Davies
de que a arma utilizada por Clitemnestra, no Agamêmnon de Ésquilo,
seria o pélekus. Prag nos diz que havia certamente um conceito de
Clitemnestra brandindo uma espada na tradição iconográfica do
Período Arcaico. Já a tradição literária anterior a Ésquilo, assim como o
autor da Oréstia, era vaga sobre a arma utilizada pela personagem. No v.
1149 da peça Agamêmnon, ao prever sua morte, Cassandra anuncia que
os cortes que a aguardam serão provenientes de bigúmea (a0mfh/kei,
de dois gumes, duplo-cortante) arma. Mais à frente, após a conclusão
dos crimes da rainha, o coro, ao lamentar a morte do rei, fala da arma
pela qual este morreu, v. 1494-1496: “Ómoi moi! Neste repouso in-
digno dominado por morte dolosa por mão com ancípite (a0mfito/
mw, corte de ambos os lados, dois gumes) arma”. Se o texto da peça
11
A cena retratada sobre essa cratera, produzida por volta de 465 a.C. e pinta-
da por Dokimasia, é a única representação referente à morte de Agamêmnon
em um vaso do V séc. a.C. No lado [A] do vaso se encontra a representação
da morte de Agamêmnon por Egisto, enquanto no lado [B] observamos o
assassínio deste por Orestes. Boston, Museum of Fine Arts, 63.1246 (N.º
275233).
26 . Alexandre Carneiro C. Lima e Talita Nunes Silva
não nos tivesse dado nenhuma outra evidência, poderíamos pensar
que a arma usada por Clitemnestra era realmente o pélekus devido à
sua definição, um machado de dois gumes, como pelo seu aparecimento
em diversos contextos mitológicos expressando a violência assassina
(DURAND, 1986, p. 105).
No entanto, Cassandra, ao prenunciar novamente a sua morte
e a de Agamêmnon, menciona brevemente – mas como diz Prag,
mais claramente – que o instrumento a ser utilizado por ela para
perpetrar o assassínio do esposo será uma espada; “Aguçando o gládio
(fa/sganon, coisa para cortar com/uma espada, Ag. v. 1262-1263)
para o marido gloriar-se de puni-lo com morte por ter-me trazido”.
Deste modo, ao contrário do que se esperaria,12 a arma utilizada
por Clitemnestra no sacrifício será a espada. Embora ela não seja
denominada explicitamente de ci/fov como o é a arma utilizada por
Orestes para assassinar Egisto e Clitemnestra – conforme a visão da
pítia no oráculo de Delfos nos diz nas Eumênides –, a espada portada
por Clitemnestra tem dois gumes e é também associada à premeditação
e ao guerreiro, como nos mostra Prag (1991, p. 246).
O fato de Clitemnestra usar uma espada em vez de um machado
implica uma mudança profunda de sentido. Nas Coéforas, na cena da
morte de Egisto por Orestes, v. 875-893, a personagem se vê diante do
inesperado. O imprevisto da situação a faz pensar em colocar a mão na
primeira coisa que vem à sua mente para tentar livrar seu amado das mãos
de Orestes, o ‘pe/lekun a0ndrokmh=ta’ (“machado homicida”;
Ag., v. 887-891). O p/elekuv, ao contrário da espada, é uma arma
de crise e do medo, do inesperado. Clitemnestra, ao usar de espada em
vez do machado homicida, demonstra que seu ato não foi uma ação
impensada, fruto do furor do momento. Mas sim um produto da razão,
da reflexão que levou a perfeita execução de seus crimes. Segundo Prag,
em vez de dar a sua Clitemnestra em pânico um machado, Ésquilo a faz
tomar – tranquilamente e em pleno domínio da sua razão – da espada,
instrumento de guerreiro, instrumento masculino. Do mesmo modo,
ao adotar a espada, a personagem representada na iconografia está

12
Ésquilo trata os homicídios cometidos por Clitemnestra como metáforas
do rito do sacrifício, chegando a assemelhar Agamêmnon a um boi. Como
os animais de grande porte – segundo Walter Burkert – eram mortos com
o pe/lekuv, seria, portanto, de se esperar que ele fosse morto com o uso do
machado duplo.
Teatro Grego e Romano . 27
adotando um instrumento associado ao masculino e assumindo uma
postura viril, mas igualmente ela está demonstrando o caráter racional
de sua ação. Isto posto, Clitemnestra nesta representação assume
papéis negados ao sexo feminino. Ao ser representada como uma
mulher bem-nascida assassina, sacrificadora, manipuladora de espada
e executora de ação fruto de premeditação, ela nos permite designá-la
como uma mulher masculina e consequentemente transgressora.
A Clitemnestra da cratera analisada é, portanto, uma mulher
transgressora tanto pelo ato que comete (assassinato) como pela
forma como o empreende (uso de espada). Do mesmo modo que a
Clitemnestra de Ésquilo, a personagem representada neste vaso se
utiliza da espada e não do pélekus para executar suas vítimas. O que
– como mencionado anteriormente – devido ao fato de sua datação
ser posterior à da primeira representação da Oréstia, nos permite supor
uma provável ‘influência’ da trilogia esquiliana na criação do pintor.
No entanto, mais do que uma provável assimilação da dramaturgia de
Ésquilo, o que nos chama atenção ao observarmos esta imagem é a
coexistência tanto na literatura como na iconografia do Período Clássico
de uma percepção de Clitemnestra como mulher ‘transgressora’ ao
ideal de comportamento feminino vigente na sociedade ateniense.
A nossa proposta, nesse capítulo, consistiu em problematizar o
possível diálogo e trocas entre teatro e imagética. Pintores, artesãos e
poetas, na pólis dos atenienses, viviam experiências comuns. Máscaras,
espadas, machados são signos que nos permitem aproximar esses
‘artistas’ que viviam entre o Cerâmico e o Teatro de Dionisos.

Documentação Textual e Iconográfica

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São Paulo: Iluminuras; FAPESP, 2004.
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Paulo: Iluminuras; FAPESP, 2004.
_____. Eumênides (Orestéia Vol. III). Trad. Jaa Torrano, ed. bilíngue. São
Paulo: Iluminuras; FAPESP, 2004.
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30 . Alexandre Carneiro C. Lima e Talita Nunes Silva


A etnicidade grega em Eurípides:
o caso dos Ciclopes

Fábio de Souza Lessa


Vanessa Ferreira de Sá Codeço

Propomos neste texto discutir questões vinculadas ao conceito


de etnicidade entre os gregos antigos a partir do drama satírico O Ciclope,
de Eurípides.1 Entendemos que o conceito de “bárbaro” foi construído
pelos helenos numa clara intenção de se diferenciar (e distanciar) de
todos aqueles que não partilhassem de sua cultura – o não grego. Esta
concepção aparece em diversas bases documentais, especialmente a
textual, aonde temos Heródoto como principal referência. No teatro
grego antigo não era diferente; inclusive Maria de Fátima S. e Silva
(2005, p. 15) afirma que o gênero trágico foi um poderoso porta-
voz desse embate entre gregos e os grupos humanos estranhos à sua
cultura. Diversos tragediógrafos levaram às encenações personagens
estrangeiras e a elas associaram valores objetivando demarcar o eu
(grego) e o outro (bárbaro) e, assim, expor esse distanciamento às grandes
audiências. Nosso objetivo será mapear como essa diferenciação se
dá em Eurípides, trágico muito notável na Atenas Clássica, contudo,
especialmente criticado por seus pares; “a sua arte era nova, muito livre,
e devia chocar facilmente...” (ROMILLY, 2011, p. 129).
Antes de apresentarmos algumas das ideias que singularizam
a poesia de Eurípides, entendemos ser necessário refletirmos acerca
da relação teatro e pólis na Grécia Clássica (séculos V e IV a.C.). Para
1
A data de composição do drama satírico O Ciclope não é segura. Segundo
Carmen Leal Soares há, pelo menos, duas opiniões extremas: os estudiosos
que consideram a obra como produzida no período de maturidade de Eurí-
pides a situam em 408 a.C.; há ainda os que a fazem recuar para aproxima-
damente 430 a.C., vendo na peça uma paródia da tragédia Hécuba (SOARES,
2009, p. 33).
Teatro Grego e Romano . 31
S. Goldhill (2007, p. 199), “assistir a uma tragédia na Atenas antiga
era uma experiência surpreendentemente diferente de qualquer visita
contemporânea ao teatro”. Talvez a relação estreita entre tragédia e
pólis, um consenso entre os especialistas no assunto, possa explicar essa
diferença entre as representações teatrais antigas e contemporâneas.
Defendemos que, na Atenas clássica, o poeta através das tragédias
podia se endereçar ao conjunto da sociedade políade, representando em
cena suas principais preocupações. A representação trágica reflete a
sua integração na pólis e nas suas instituições democráticas, ou como
Goldhill (2007, p. 208) destaca, “continuamente a tragédia apreende a
ideologia da cidade e expõe suas falhas e contradições”; isto é, o teatro
coloca no palco a pólis em discussão.
E as peças de Eurípides fazem exatamente a pólis se representar
para si mesma. Sua obra está marcada pela atualidade, seja pela guerra
(a do Peloponeso), seja pelas ideias sofistas; predominando a presença
concreta do sofrimento humano, venha ele da paixão, da guerra, do
erro ou dos deuses (ROMILLY, 2011, p. 130, 133; ROMILLY, 1998,
p. 110). A guerra em Eurípides é trágica de forma mais abrangente,
sendo o tema de grande parte de suas peças (KIBUUKA, 2012, p. 21).
Certamente podemos concordar com K. Reinhardt (2011, p. 20), ao
afirmar que o teatro euripidiano é um termômetro da crise.
A tragédia grega é por excelência agonística. Nela, os homens
se mostram frequentemente lutando por algum objetivo, em conflito
uns com os outros, ou com alguma força circunstancial, que muitas
vezes é personificada em um deus (COLLARD, 2011, p. 64). Dentre
os dramaturgos, é Eurípides quem mais faz seu público consciente dos
interesses dos deuses nos negócios humanos e, ao mesmo tempo, ele
é visto como o poeta que mais questiona a natureza – e até mesmo a
existência – dos deuses (LEFKOWITZ, 2011, p. 102-103).
Em O Ciclope esta questão se faz presente. O personagem Ci-
clope, apesar de ser filho de um deus – Poseidon –, tem por Zeus, no
mínimo, um desrespeito. Vejamos: “O raio de Zeus não o temo, estran-
geiro, e não sei em que Zeus é um deus superior a mim” (EURÍPIDES.
O Ciclope, v. 231, 319-320). A fala do personagem a Ulisses evidencia a
afirmação de que as personagens euridipianas são conhecidas por sua
censura crítica aos deuses (KIBUUKA, 2012, p. 73). Talvez uma boa
síntese sobre as características do poeta Eurípides nos seja apresentada
por Jacqueline de Romilly. Segundo a autora:

32 . Fábio de Souza Lessa e Vanessa F. de Sá Codeço


Na sua época, Eurípides foi essencialmente um “moderno”.
O seu retrato das paixões, a sua insistência na fraqueza
humana, o seu realismo são algumas marcas. Mas, ao mesmo
tempo, sensível a todas as correntes do tempo, ligado aos
sofistas, emprestou às suas personagens a arte deles para
discutir acerca de tudo e deixou aflorar no seu teatro todos os
problemas, todas as novas ideias e, também, todas as dúvidas
que eles puseram em moda (ROMILLY, 2011, p. 136).

A abordagem dos mitos, como o comum nas tragédias gregas,


está presente nas obras de Eurípides. Inclusive, os autores contem-
porâneos mencionam com frequência que o poeta não hesitava em
modificá-los livremente para inserir reviravoltas e ligar as suas per-
sonagens. Em O Ciclope, a situação não é diferente, pois Eurípides
recupera parte do relato mítico de Odisseu no Canto IX (v. 106-542)
da Odisseia de Homero, descrevendo a presença do herói de Ítaca e de
seus companheiros junto do Cíclope Polifemo.
Podemos afirmar que, no essencial, o tragediógrafo manteve na
peça os elementos da narrativa homérica, porém, algumas mudanças
no relato de Homero foram feitas por Eurípides. Certamente a pró-
pria especificidade do gênero trágico explique a necessidade de tais
alterações. Exemplo dessa situação é a localização da ação da peça.
O local escolhido por Eurípides para desenvolvê-la é a Sicília, e mais
precisamente junto ao Etna. Ao indagar o personagem Sileno sobre
“que terra é esta e quem a habita”, Ulisses obtém a seguinte resposta:
“O Etna, o monte mais alto da Sicília” (EURÍPIDES, O Ciclope, v. 113-
114).
Todorov afirma que uma das primeiras características associadas
aos bárbaros é a questão geográfica. Os bárbaros são aqueles que,
dentre outras peculiaridades, vivem em famílias isoladas em vez de se
agruparem nos habitats comuns ou, melhor ainda, em vez de formarem
sociedades regidas por leis adotadas em comum. Os bárbaros
encontram-se do lado do caos e do arbitrário; eles não conhecem a
ordem social (TODOROV, 2010, p. 26).
A peça trata, o tempo inteiro, do embate (e por que não dizer
choque) entre dois estilos de vida – o grego e o não-grego (entendido
pelos helenos como bárbaro). Falar nesta dicotomia implica, neces-
sariamente, nos inserir nas discussões acerca do conceito de etnicidade,
tão debatido nas últimas décadas. Philippe Poutignat e Jocelyne Streiff-

Teatro Grego e Romano . 33


Fenart chamam a atenção, por exemplo, para o fato de que, para alguns
autores, “a etnicidade refere-se a um conjunto de atributos ou de
traços tais como a língua, a religião, os costumes, o que a aproxima da
noção de cultura, ou à ascendência comum presumida dos membros,
o que a torna próxima da noção de raça” (POUTIGNAT; STREIFF-
FENART, 1998, p. 86). Outros estudiosos a definem em termos de
comportamentos, de representações ou de sentimentos associados à
pertença, ou ainda em termos de um sistema cultural; sendo a cultura
entendida como “simultaneamente um aspecto da interação concreta e
o contexto de significação desta mesma interação...” (POUTIGNAT;
STREIFF-FENART, 1998, p. 86, 109-110).
A língua aparece comumente como critério de diferença e de
distância entre gregos e bárbaros. Segundo Maria de Fátima S. e Silva
(2005, p. 15), “... no critério helênico, o Bárbaro, ao mesmo tempo
em que articula sons que obedecem a uma cadeia incompreensível,
realiza um processo mental que o distingue do Grego”. A imagem que
o heleno constrói do bárbaro se pauta no grotesco, na falta de regras
como justiça, prudência, sociabilidade e hospitalidade.
Tzvetan Todorov afirma que o termo bárbaro assume dois signi-
ficados para o grego que, em determinados momentos, podem se
fundir ou não: 1. a questão do não falar o grego; 2. o fato de negarem
a humanidade dos outros, agindo como se não fossem seres humanos
(TODOROV, 2010, p. 27).
Os bárbaros seriam, ainda, aqueles que transgrediriam as leis fun-
damentais da vida comunitária, desrespeitando, inclusive, as relações
familiares com parricídios, matricídios, infanticídios, etc. Em outra
peça de Eurípides, Ifigênia em Tauris, ao referir-se ao matricídio de
Orestes, diz: “Até mesmo em terra bárbara, quem teria essa audácia?”
(EURIPIDES, Ifigênia em Tauris, v. 1.174). Lembremo-nos, ainda, de
Medeia, personagem da tragédia homônima que, sendo estrangeira em
terra grega, vinga-se de Jasão assassinando os filhos.
Morras! Agora hei tino, mas não tinha
antes, quando de casa e solo bárbaro
te trazia a lar grego, grande mal,
tu, treda à terra tua nutriz e ao padre! (...)
Eis como começastes; e, desposada
comigo, filhos engendraste meus,
que matastes por causa de uma cama.

34 . Fábio de Souza Lessa e Vanessa F. de Sá Codeço


Nenhuma das mulheres gregas nunca
o ousaria – mas eu contigo quis casar-me (...)
Leoa, não mulher, cujo caráter é mais feroz que o da tirrena Cila.
(EURÍPIDES, Medeia, v. 1329-1343)

Todorov admite que em determinados momentos essa divisão


será questionada (TODOROV, 2010, p. 28). No século III, por exemplo,
Eratóstenes, autor conhecido pelos fragmentos contidos na obra de
Estrabão, irá apresentar o seguinte raciocínio:
Na parte final do volume, Eratóstenes desaprova o princípio
de uma divisão bipartida do gênero humano entre gregos e
bárbaros, assim como o conselho dado a Alexandre a fim
de tratar os primeiros como amigos e os segundos como
inimigos. É preferível, diz ele, adotar critérios de divisão,
tais como virtude e desonestidade: um grande número de
gregos são pessoas malvadas, enquanto numerosos bárbaros
têm uma civilização requintada, por exemplo, os indianos
ou os povos que ocupam o planalto de Ariadne, ou ainda
os romanos e os cartagineses, cuja instituições políticas são
notáveis! (ESTRABÃO, Geógraphie, I, 4, 9).

O próprio Estrabão, inclusive, admite que pelo ponto de vista


linguístico, o não grego seria um bárbaro. Mas os gregos, por sua vez,
também o seriam: “do mesmo modo que não estaríamos em condições
de falar a língua deles” (ESTRABÃO, Geógraphie, XIV, 2, 28).
Voltando para o conceito de etnia, a classificação em barbárie
estaria diretamente relacionada a etnia, uma vez que bárbaro seria
aquele que não partilhassem determinadas prerrogativas comuns àquela
sociedade. Para Edward M. Anson, o conceito de etnia aparece asso-
ciado à noção de percepção, isto porque as semelhanças só adquirem
importância se forem consideradas significativas pelosque estão em
causa e reconhecidas por outras pessoas. E destaca cinco atributos
significantes na percepção da etnia, a saber: 1.Origem ancestral
comum; 2. cultura similar; 3. religião compartilhada; 4. raça comum
e; 5. linguagem similar (ANSON, 2009, p. 5). Corroborando o que
mencionamos acima, segundo ainda Anson, a ferramenta mais
referenciadade assimilação ou de exclusão entre os helenos foi a língua,
inclusive o termo para não-gregos – barbaroi – foi aparentemente
linguístico na origem (ANSON, 2009, p. 18). Não podemos deixar de

Teatro Grego e Romano . 35


concordar com J. Hall que a aparência física, a linguagem, a religião e
a cultura não podem ser consideradas necessariamente critérios para a
classificação étnica, até porque não são suficientes (HALL, 2005, p. 13).
Outro autor considerado paradigmático nas questões relativas à
etnia, etnicidade e identidade étnica, é o escandinavo Fredrik Barth,
organizador de um estudo publicado pela primeira vez em 1969 e
intitulado Os grupos étnicos e suas fronteiras. Na introdução desta obra,
hoje considerada clássica, Barth (1976, p. 11) aponta que:
O termo grupo étnico é utilizado geralmente na literatura
antropológica [...] para designar uma comunidade que: 1) em
grande medida se autoperpetua biologicamente; 2) com-
partilha valores culturais fundamentais realizados manifesta-
damente em formas culturais; 3) integra um campo de
comunicação e interação; 4) conta com membros que se
identificam e são identificados por outros e que constituem
uma categoria distinguível de outras categorias da mesma
ordem.

O grupo étnico encontra sua expressão mais visível a partir


da identidade étnica, o que significa a classificação e separação de
um grupo de pessoas em um conjunto de categorias definidas em
termos de oposição. Segundo Barth, o grupo composto por Ulisses
e seus companheiros formaria um grupo étnico, pois pertenceriam a
uma comunidade que se autoperpetuaria biologicamente – a grega;
eles compartilham valores culturais comuns (religião, costumes...);
conseguem se comunicar e integrar-se graças ao domínio da língua
e, finalmente, se identificam como pertencentes ao mesmo grupo,
afastando-os de todos que fogem a esses pré-requisitos. Igualmente,
Polifemo e seus sátiros foram outro grupo étnico. Desta forma, no
embate entre a tripulação de Ulisses e o Ciclope e seus sátiros, temos a
construção de uma fronteira.
Julgamos necessário ressaltar que a etnicidade implica sempre a
organização de agrupamentos dicotômicos Nós/Eles, sendo necessá-
ria que essa alteridade seja expressa e validada na interação social. Esta
ideia é exatamente constatada por Jonathan Hall quando afirma que “a
etnicidade depende de categorização, ou seja, da habilidade em dividir
o mundo entre nós e eles” (HALL, 2001, p. 216). Este processo joga
logicamente com a produção e transformação de fronteiras. Elas são
sempre mais ou menos fluidas, moventes e permeáveis, sendo que
36 . Fábio de Souza Lessa e Vanessa F. de Sá Codeço
a sua manutenção “baseia-se no reconhecimento e na validação das
distinções étnicas no decurso das interações sociais” (POUTIGNAT;
STREIFF-FENART, 1998, p. 111, 152, 158).
Comecemos a verticalizar a nossa reflexão acerca da fronteira
existente entre Ulisses/Nós e Ciclope/Eles. Esta fronteira nos remete,
de imediato, a uma segunda: aquela entre civilizado/propriamente hu-
mano e bárbaro/selvagem. No caso específico de Homero, julgamos
necessário enfatizar que encontramos pouco ou nenhum traço de este-
reótipos etnocêntricos e de depreciação de bárbaros2 (CARTLEDGE,
1993, p. 38).
As imagens do bárbaro elaboradas pelas diversas expressões
literárias cumprem, na Atenas democrática, uma função ideológica de
importância e se associam aos modos de representação imaginária da
identidade cívica ateniense, se opondo, é claro, à alteridade máxima
grega, a saber: os persas. É exatamente com as Guerras Greco-Pérsicas
que o bárbaro passa a ser mais concreto, podendo ser representado
nas expressões literárias e artísticas de forma mais precisa. Pensemos,
por exemplo, na noção de estrangeiro para Eurípides. Ela é, em
geral, representada por um conjunto de elementos estereotipados e
divergentes do modelo grego (SILVA, 2005, p. 18).
Vejamos o estrangeiro com o qual Ulisses se depara no Etna. A
caracterização do Etna e Ciclope feitas por Eurípides atua no sentido
de delinear com clareza a fronteira, construída pelos próprios helenos
entre o seu mundo e aquele dos bárbaros. Vejamos o diálogo entre os
personagens Sileno e Ulisses:
(Sileno): É o Etna, o mais alto monte da Sicília.
(Ulisses): Onde estão as muralhas e as fortificações da cidade?

2
Quanto ao termo bárbaro, Alexandre Moraes destaca que “a etimologia do
vocábulo barbarophônon é costumeiramente discutida. Sugere-se, por exemplo,
que o termo seja decorrente de uma onomatopeia de bambaino, “bater os den-
tes” e/ou “tremer de medo”, que teria gerado por sua vez o latim balbutio.
Entretanto, parece mais plausível admitir que seja apenas uma representação
de um gaguejar, visto que a repetição da primeira sílaba (bar-bar) soa mal em
grego. Podes ser que se tratasse de uma maneira jocosa de se referir àqueles
cuja língua era radicalmente diferente do grego e que, por isso, gerava es-
tranhamento”. Segundo ainda o autor, o termo βα βα οθώνων (barbarophônon)
aparece em Homero (Ilíada, II, 867) para se referir aos Cários (MORAES,
2011, p. 11).
Teatro Grego e Romano . 37
(Sileno): Não existem. Neste monte não habitam seres humanos.
(Ulisses): A quem pertencem estas terras? A feras, por acaso?
(Sileno): Aos Ciclopes, que habitam antros, não casas.
(Ulisses): Quem é seu chefe? Possuem eles o regime democrático?
(Sileno): São pastores errantes e ninguém obedece a ninguém em nada.
(Ulisses): De que se alimentam? Cultivam o trigo, consagrado à
Deméter?
(Sileno): Alimentam-se de leite, queijo e de carne de carneiro.
(Ulisses): Não bebem o suco da videira, consagrado a Brômio?
(Sileno): De modo algum. Também não existe a dança nestes locais
por eles habitados.
(EURÍPIDES, O Ciclope, v. 114-124).

Nesta primeira passagem da peça, vemos uma série de carac-


terísticas da vida grega ressaltadas nas palavras de Ulisses e que, por
não serem vivenciadas na ilha onde habitam os titãs, faz causar um
estranhamento entre aqueles que partilham valores gregos ou não.
As muralhas, o fato de não compartilharem o regime democrático
de governo, não cultivarem trigo e não serem hospitaleiros assinalam
criaturas que não vivem sob o estilo heleno.
Dentre as características atribuídas ao personagem Ciclope se
destacam a animosidade e a selvageria frequentes na interação com
estranhos, vejamos:
(Ulisses): São hospitaleiros e benévolos com os estrangeiros?
(Sileno): Os estrangeiros, dizem eles, têm uma carne saborosíssima.
(Ulisses): Que dizem? Gostam de devorar carne humana?
(Sileno): Todos que vieram aqui foram degolados.
(EURÍPIDES, O Ciclope, v. 125-128).

Nada mais distante da cultura helênica do que a prática da


antropofagia. Certamente deve ter sido essa a característica do Ciclope
que mais estranheza causou em Ulisses, que mais explicita a diferença/
alteridade entre gregos e os outros; entre gregos e bárbaros. A prática,
inclusive, aparece relacionada aos sátiros, companheiros de Polifemo,
não demonstrando sequer respeito entre os seus.
(Polifemo): Meu almoço está preparado direito?
(Corifeu): Ele te espera: é só preparar a garganta.
(Polifemo): Também os vasos estão cheios de leite?
(Corifeu): Podes beber, se quiseres, a jarra inteira.
38 . Fábio de Souza Lessa e Vanessa F. de Sá Codeço
(Polifemo): Leite de ovelha, de vaca, ou misturado?
(Corifeu): A tua escolha, contando que não me engulas!
(EURÍPIDES, O Ciclope, v. 214-219)

O diálogo prossegue. Perguntado sobre o meio de sair da caverna,


Sileno desconhece e tudo que consegue é negociar com Ulisses sobre
alimentos a serem trocados para que a tripulação do herói pudesse
comer. Depois de alguma negociação, Ulisses ainda adverte para que
logo trouxesse, pois “os negócios fazem-se a luz do sol” (v. 137).
Da negociação por alimentos, temos o acordo de que o
pagamento dar-se-á em vinho, o que é comemorado por Sileno, há
muito afastado dos sabores do licor de Dionisos.
O que temos desse ponto em diante da peça é a descrição
dos efeitos da bebida naqueles que não possuem o conhecimento, o
domínio exato sobre ela. Sileno logo se rende, entregando tudo o mais
requisitado por Ulisses por alguns odres de vinho.
A peça segue e logo Ulisses e sua tripulação conhecem o ciclope
Polifemo. O herói reclama a hospitalidade, ignorada por Polifemo.
(Ulisses): (...) Existe, por outro lado, em relação aos mortais, uma
lei, se é que discordas de minha argumentação, que manda acolher os
suplicantes arruinados pelo mar; dar-lhes hospitalidade; fornece-lhes
vestuário e não cravar-lhes os membros em grossos espetos para encheres
tuas maxilas e estômagos.

(Polifemo): A riqueza, homenzinho, é o deus dos sábios, o restante


são discursos enfáticos e palavras bonitas. (...) Que pretendes com tuas
palavras? O raio de Zeus não o temo, estrangeiro e não sei em que Zeus
é um deus superior a mim. (...) No que se refere àqueles que fizeram leis
para embelezar a vida humana, que se danem! Por isso, não deixarei de
me satisfazer – vou te devorar! Como presente de hospitalidade, porque
desejo ser irrepreensível, receberás fogo e a água paterna e um caldeirão:
fervendo, ele envolverá maravilhosamente bem tuas carnes decepadas.
(EURÍPIDES, O Ciclope, v. 317-345).

O titã ignora o costume grego e acaba por prender a tripulação


na caverna e devorar dois dos marinheiros de Ulisses, além de ameaçar
comer os outros restantes. Ulisses, então, oferece ao fim da trágica
refeição uma taça de vinho, que logo é sorvida e faz que Polifemo
fique tonto, a cantar musicas sem nexo com os prisioneiros.

Teatro Grego e Romano . 39


É neste instante que Ulisses bola seu plano para livrar-se do
gigante. Vai convencer o titã a não repartir o vinho e guardá-lo
somente para si. Após estar completamente entorpecido, Ulisses com
a ajuda dos sátiros e da tripulação empunharia um enorme tronco de
oliveira com uma das pontas incandescidas e acertaria no único olho
de Polifemo. Este uma vez cego, Ulisses poderia fugir com todos para
as naus e escapar da ilha. O plano é bem recepcionado pelo coro, que
apoia a ideia.
E assim decorre a ação.
Ulisses está na companhia do Corifeu, de Sileno e Polifemo. Sem
a ajuda dos sátiros, que se acovardam na última hora, Ulisses cega
o titã, que urra de dor e prostra-se na entrada da gruta, dizendo ao
corifeu que ninguém o havia cegado, ardil usado por heróis para que
não soubessem sua verdadeira identidade. Em sequência, temos a
fuga dos marinheiros e do próprio Ulisses, que se escondem no dorso
das ovelhas criadas pelo gigante. Como está cego, Polifemo, mesmo
tateando, não consegue perceber a presença dos homens e libera o
rebanho para sua saída da caverna.
O que Eurípides quis nos mostrar com esta passagem mítica
relembrada através do drama satírico? Como analisar tamanho estra-
nhamento frente a uma audiência grega? Voltando ao conceito de etni-
cidade de Barth, segundo o autor, quanto maior a interação entre dois
grupos étnicos distintos, mais potente ou marcado será o limite étnico
entre eles (BARTH, 1976, p. 13). Desta forma, a interação entre Ulisses
e seus marujos com Polifemo e seus sátiros revela um estilo de vida
antagônico que, no caso grego, visa exaltar o modo de viver helênico.
Assim, o beber o vinho misturado à água, o Dionisismo, a hos-
pitalidade, os banquetes e as negociações à luz do dia são hábitos
caracteristicamente gregos e que somente aqueles que possuem o de-
vido conhecimento sobre eles que são considerados civilizados. São isoí.
Estes apontamentos relacionam-se também com o que se
esperava de um cidadão virtuoso na Atenas Clássica. Apesar da peça
não ocorrer num espaço temporal similar ao da pólis ática, os hábitos
encenados são contemporâneos. Desta forma, o autor transpassa que
o civilizado deve portar-se deste modo. A plateia, ao presenciar esta
cena, identifica-se com os valores lá exaltados, enxergando na figura de
Ulisses o eu e na figura do Titã, o outro – o bárbaro.
Apesar de todos os particularismos e por mais que verifiquemos
mudanças maiores ou menores na definição da fronteira étnica helênica
40 . Fábio de Souza Lessa e Vanessa F. de Sá Codeço
conforme as épocas, um heleno da Antiguidade, em qualquer período,
teria a impressão de achar-se em terreno reconhecível e familiar por
toda parte, ao viajar a póleis ou regiões gregas que não fossem a sua (na
condição de estrangeiro de passagem ou domiciliado). Os diferentes
dialetos eram mutuamente compreensíveis, os deuses eram os mesmos,
bem como no geral as cerimônias semelhantes em seus fundamentos:
por trás dos detalhes distintos perceptíveis em qualquer domínio,
quase sempre se podia notar um fundo comum – pelo menos naqueles
pontos selecionados por meio dos quais a cultura servia, justamente, de
fundamento à autoconsciência étnica (FINLEY, 1928, p. 1-21).
A etnicidade aqui, portanto, é percebida como uma categoria
objetiva de identificação, de auto-reconhecimento de diferenças, de
demarcação de territórios simbólicos, em que os sinais construídos
sobrepõem-se àquilo com que se vive e pensa, a própria marca da
diferença.

Documentação Textual

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42 . Fábio de Souza Lessa e Vanessa F. de Sá Codeço


Do poder à servidão, da servidão à morte:
representações da guerra e da violência
no prólogo da tragédia Hécuba, de Eurípides

Brian Gordon Lutalo Kibuuka

– Meu Deus, que violência! – retorquiu o príncipe no


seu uniforme de gala, o peito coberto de condecorações,
na face achatada um ar florescente, sem ligar a mínima
importância a semelhante acolhimento.
Guerra e Paz, Tólstoi

Um sinônimo utilizado hoje para nomear o conjunto de males


que Týche / Fortuna lega aos homens é tragédia – e a guerra, mais do que
a maior parte dos outros males, é trágica –, eis o legado que hoje viceja e
que é proveniente da concepção grega dos conflitos, inclusive os bélicos.
E em Eurípides, “o mais trágico dos trágicos” (ARISTÓTELES, Poética,
1453 a 29-30), a guerra é trágica de forma mais abrangente, e é o tema
de grande parte de suas tragédias supérstites.
A guerra propriamente dita não foi posta em cena por Eurípides,
como não o fora pelos outros dois tragediógrafos gregos cujas obras
podem ser lidas hoje por terem sido preservadas, Ésquilo e Sófocles.1
1
O que foi preservado das obras dos tragediógrafos gregos do século V a.C.
é apenas uma amostra da sua produção poético-dramática. De Ésquilo, o
mais antigo deles, há Persas, Sete contra Tebas, Suplicantes, Prometeu Acorrentado e
a Oresteia (trilogia formada por três tragédias: Agamêmnon, Coéforas e Eumêni-
des). De Sófocles, foram conservadas as tragédias: Ájax, Antígona, Traquínias,
Édipo Rei, Electra, Filoctetes e Édipo em Colono. De Eurípides, o autor do qual
mais tragédias há para o leitor de hoje, as peças supérstites são: Alceste, Medeia,
Heráclidas, Hipólito, Andrômaca, Hécuba, Suplicantes, Héracles, Troianas, Ifigênia em
Táuris, Íon, Helena, Electra, Fenícias, Orestes, Bacantes, Ifigênia em Áulis e o drama
satírico Ciclope. Para acessar as obras em grego, com tradução, ver: WEST, M.
L. Aeschyli Tragoediae (1990); LLOYD-JONES, H.; WILSON, N. G., Sophoclis
Teatro Grego e Romano . 43
Eurípides optou por se apropriar, como era praxe na tradição das
tragédias, dos mitos pertencentes aos ciclos épicos, tanto o troiano
quanto o tebano, para que esses servissem de base para os seus pró-
prios enredos lírica e tematicamente densos. Porém, diferentemente
de Ésquilo e Sófocles, Eurípides colocou em cena personagens cuja
condição desprivilegiada e frágil trazia a lume o patético de sua própria
condição, cada vez mais sujeita aos reveses que a conduziam ao desfecho
da ação trágica.
A comparação com os demais trágicos revela ser Eurípides um
autor que conhecia a tradição dos que o antecederam. Eurípides se
dispôs, acima de tudo, a romper propositalmente com tal tradição.
Todavia, o tratamento das inovações euripidianas ao teatro não tan-
gencia o cerne da questão que interessa ao presente trabalho: a pos-
sibilidade de tornar o texto euripidiano fonte e ponto de observação
para a reconstituição do contexto mais amplo de sua enunciação. Para
tanto, um caminho viável é o reconhecimento das matérias míticas do
drama euripidiano, a constatação das inovações e mudanças de tônus
em tais mitos e a recepção da matéria própria de Eurípides. É viável
ainda a análise dos códigos linguísticos, culturais e sociais presentes nas
tragédias euripidianas que correspondam às questões que provocaram
nos seus espectadores originais determinados sentidos. Por um lado, o
que se tem é o drama de Eurípides. Por outro lado, o que se tem é o
conhecimento, por meio dos diversos corpora documentais e materiais,
do cotidiano da audiência. A tarefa que desafia a análise é o cruzamento
e a leitura crítica de ambos. E, sendo assim, a questão não é apenas
ler textos trágicos, mas lê-los na profusão de sentidos que emerge da
consideração mais abrangente do contexto de enunciação trágica.
A guerra se apresenta nas várias fontes documentais da Anti-
guidade Grega como um tema caro, por vezes imprescindível,
discernível em sua importância como tema poético desde Homero.
Recuperar, portanto, no tema poético algo do contexto exige uma
leitura ‘hipercrítica’ dos textos, ainda mais quando o caráter da fonte
é de relativo afastamento intencional do próprio gênero, como ocorre
com Eurípides. Mas, apesar dos obstáculos, tal exercício é possível,
pois:

Fabulae (1990); DIGGLE, J. Euripidis Fabulae (3 vols., 1981-1984). Há ainda


muitos fragmentos de tragédias de Ésquilo, Eurípides e Sófocles, bem como
de outros tragediógrafos, os quais podem ser consultados na obra Tragicorum
Graecorum Fragmenta (TrGF).
44 . Brian Gordon Lutalo Kibuuka
Enquanto ficção, tanto a narrativa literária quanto a
histórica pressupõem uma ordenação do real e a busca da
coerência através de uma correlação de elementos e do
estabelecimento de relações entre dados. Esta coerência
fictiva depende de uma possibilidade de construção de
sentido articulada no momento da escritura do texto, mas que
deverá ser reconstruída pelo leitor. Portanto, a construção da
coerência narrativa deverá fazer sentido através da leitura.
(LEENHARDT; PESAVENTO, 1998, p. 12).

A guerra também surge como tema nas imagens das obras de


arte gregas: cenas de conflitos e combates são representados desde as
cerâmicas e painéis micênicos do segundo milênio a.C. até os vasos
gregos da época clássica. E tal qual uma ékphrasis[descrição],2 os poemas
Ilíada e Odisseia apresentam muitos episódios de combates. É possível
admitir que a guerra fosse um tema na literatura mais tradicional e nas
várias manifestações artísticas dos gregos, e se manteve crucial nos
textos e representações teatrais do século V a.C.
Há em Eurípides menções à guerra, porém, com significativos
deslocamentos. Não por acaso, a produção euripidiana sobre a guerra
coincide com um período de iminência do conflito entre Atenas e
Esparta, perpassando os períodos de combate e de cessar-fogo e
terminando pouco antes do fim da guerra, que teve Esparta como
vencedora. A questão das tensões simultâneas ou sucedâneas à guerra,
que conduzem os homens ao excesso [hýbris] e ao erro [hamartía],3 tem
relação com tais ocorrências na Guerra do Peloponeso, e é tratada em
tragédias euripidianas como Ifigênia em Áulis, Suplicantes, Hécuba e Troianas,
entre outras. Mas a chave para a abordagem histórica das relações entre
a Guerra do Peloponeso e o drama euripidiano tem relação com as
questões contextuais que permitem entender as possibilidades e as
motivações dos dramaturgos gregos.

2
É, na Antiguidade, a descrição de alguma coisa, de alguma pessoa ou de
alguma experiência.
3
Os dois termos, hýbris e hamartía, são termos utilizados por Aristóteles para
descrever aquilo que o herói das tragédias faz que justifica o desfecho trágico
das peças.
Teatro Grego e Romano . 45
A pólis-teatral, os festivais trágicos e a guerra

Uma ideia oportuna para a análise das tragédias gregas é o


conceito de “Estado Teatral”, de Clifford Geertz,4 especialmente no que
diz respeito ao recurso às poéticas do poder, às linguagens, às imagens e
às representações da dominação e da violência nas várias manifestações
coletivas. Faz-se tal opção, não obstante o reconhecimento dos limites
do conceito,5 por ser conveniente à análise de contextos como o
ateniense. A cultura de Atenas é uma cultura da performance (REHM,
1992; CSAPO, E.; SLATER, W. J., 1995), marcada pela realização de
celebrações religioso-rituais de grande valor cívico, dentre os quais
destacam-se os dois importantes festivais anuais em honra a Dioniso:
as Leneias e as Dionisíacas Urbanas ou Grandes Dionisíacas.6
Os festivais dionisíacos realizados na cidade de Atenas pro-
vavelmente surgiram das Dionisíacas Rurais,7 celebrações rituais e,
ao mesmo tempo, dramáticas, realizadas no campo. Mais tarde, essas
celebrações foram transferidas para a cidade e passaram a fazer parte
das Leneias8 e Dionisíacas Urbanas,9 festivais mais tardios nos quais se
sedimentou a performance de ditirambos, tragédias, comédias e dramas
satíricos (PICKARD-CAMBRIDGE, 1988; SIMON, 1983).
Os festivais dionisíacos eram oportunidades de descanso e recu-
peração dos mais de 200.000 habitantes da Ática que se dedicavam
ao trabalho. Refletiam também a identidade cívica dos cidadãos que,
4
Sobre a expressão “estado teatral”, consultar: GEERTZ, C. Negara: the The-
ater State in Nineteenth-Century Bali. New York, 1980.
5
Ver as críticas a Clifford Geertz em: SHANKMAN, P. The Thick and the
Thin: On the Interpretive Theoretical Program of Clifford Geertz. Current
Anthropology, 25, p. 261-279, 1984; �������������������������������������
KEESING, R. Anthropology as Interpre-
tive Quest. Current Anthropology, 29, p. 161-176, 1987.
6
Sobre a natureza do festival, ver: MIKALSON, J. D. The heorte of heorto-
logy, GRBS, 23, p. 213-221, 1982.
7
As Dionisíacas Rurais eram celebradas em honra a Dioniso nos campos.
Vários dêmoi celebravam esta festa em diferentes datas, mas todas no mesmo
ano agrícola durante o fim do período de chuvas, entre dezembro e janeiro,
poucas semanas antes das Leneias.
8
As Leneias era festivais de verão, que ocorriam entre janeiro e fevereiro.
9
As Dionisíacas Urbanas ou Grandes Dionisíacas eram um festival de
primavera celebrado anualmente entre o fim de março e o começo de
abril.
46 . Brian Gordon Lutalo Kibuuka
agregados a uma democracia vigorosa na época clássica, viam re-
presentados diante dos seus olhos muitos dos códigos da ordem social
em vigor, representações que sustentavam, criticavam ou reforçavam
a identidade cívica ateniense, ou mesmo lembravam o passado mítico,
dando a este corporeidade e expressão pela encenação. A partir de
tal dado é que se observa o lugar ocupado pela temática da guerra
no drama trágico, tendo por premissas a realização de uma guerra no
período da encenação, a representação simbólica de conceitos social-
mente aceitos e as referências a respeito da guerra no drama. Uma
representação da vida e dos seus valores era encenada à audiência, re-
pleta de códigos que são, eles mesmos, elementos aproximantes (ou
distanciantes) entre a audiência e o tragediógrafo. A guerra fazia
parte do cotidiano dos interlocutores das tragédias, seja nos mitos,
na necessidade de defender a cidade dos ataques estrangeiros, seja no
risco de guerra civil (stásis) ou mesmo na guerra entre cidades gregas.
A guerra é, entre os gregos, um dado cultural e culturalmente inter-
pretado.
Os atenienses tinham a guerra como prática costumeira no quinto
e no quarto séculos. E na guerra era exercitado tanto o engajamento
cívico quanto a afirmação da virilidade e coragem. Não é por acaso que
a coragem, a honra, a vingança, a virilidade e a ruptura de todos estes
valores são temas e assuntos das tragédias, sendo postas em debate em
peças como Agamêmnon (de Ésquilo), Ájax (de Sófocles), Suplicantes,
Hécuba e Troianas (de Eurípides), bem como em muitas outras peças,
de forma direta e indireta. Então, é possível lançar mão dos dramas
trágicos como fontes para a reflexão sobre a guerra, reflexão esta política
– visto que os mesmos que participavam dos embates democráticos
que decidiam a existência e/ou os rumos da guerra faziam parte da
audiência que decidia inclusive os vencedores dos concursos trágicos.
O que se pode observar a partir da relação entre a guerra e
a guerra como tema de um drama é que este é mais do que um ato
artístico: é também a submissão, em um concurso dramático ocorrido
em um ‘Estado Teatral’, de uma representação imbuída de idealidades e
mentalidades com rupturas e continuidades significativas entre o drama
e a audiência julgadora. E é neste campo intrincado de relações entre
ambos que, segundo se indica aqui neste trabalho, emerge um novo
ponto de observação sobre a guerra na Antiguidade, ponto produtivo
e historicamente relevante.

Teatro Grego e Romano . 47


A ‘teoria’ da guerra: um breve esboço

A pesquisa sobre a guerra tem uma longa história. No caso da


guerra na Grécia Antiga, obras como De equitum magistro, de Xenofonte,
ou Tactica, de Aeneas Tacticus, são as primeiras obras disponíveis aos
leitores modernos que mostram as orientações práticas do comando
de tropas em um campo de batalha. Porém, não há em tais obras a
vinculação da guerra com conceitos filosóficos ou religiosos – ou
seja, não há indicações de uma reflexão a respeito da guerra, de suas
motivações, dos valores e critérios para ela, ou até das razões para a
declaração do início ou do fim dos combates.
Obras dedicadas a outros temas mais específicos relacionados à
guerra foram escritas apenas no período helenístico e romano. Herão e
Fílon se dedicaram a abordar a guerra nos seus aspectos mais técnicos
da formação de tropas. Posidônio e Asclepiodoto tratam, por sua vez,
das táticas de combate, um viés semelhante ao tratamento de Frontino
e Polieno. Os detalhes práticos dos conflitos bélicos foram tratados
abundantemente no Epitoma Rei Militaris, de Vegetius. No caso de
Asclepiodoto e Onasandro, ambos escreveram a respeito das causas da
guerra e da razoabilidade dela.
A ausência de fontes que tratem da teoria relacionada à guerra e
que promovam uma avaliação crítica sua no período clássico da Gré-
cia Antiga é um problema que pode ser equacionado pelas menções
indiretas em textos, bem como nas evidências em inscrições de uma
reflexão a respeito do conflito bélico. A evidência de reflexão crítica nos
historiógrafos gregos Heródoto e Tucídides, no escritor Xenofonte e
nos autores devotados à prosa filosófica é insuficiente para completar
um quadro convincente dos conceitos fundamentais para uma teoria
da guerra, ou seja: há potencialidades conceituais, mas tais carecem de
instrumentos de leitura para serem acessadas e de complementação em
outras fontes. E tal é a razão de se propor a análise do tema da guerra
nas tragédias e comédias, visto que há representações e discussões
a respeito da guerra nos dramas. Tal análise já fora sugerida por J.-
P. Vernant (1968), P. Vidal-Naquet (1986), P. Ducrey e Y. Garlan
(1989), os quais tratam de instituições e demonstram que tais refle-
tem as tensões de classe, que estão refletidas nas várias representações
na pólis; e no trabalho de M. I. Finley (1981 – e também Van Wess,
2000), que mostra como a guerra no período clássico está ligada ao
culto, ao ritual, às questões psicológicas, de gênero, à demografia e à
48 . Brian Gordon Lutalo Kibuuka
cultura em geral. Logo, é possível coletar, a partir do drama clássico e,
em especial, o euripidiano, as representações presentes nas tragédias,
as quais não apenas refletem uma concepção típica do senso comum
a respeito do conflito bélico, mas uma reflexão sobre os motivos, os
limites, as transgressões e as consequências da guerra.

Os antecedentes da guerra na tragédia: a guerra na poesia arcaica


A guerra, como já se afirmou acima, é um tema que perpassa
diferentes corpora literários gregos. E tal se dá desde as origens da
literatura grega, que é, fundamentalmente, devotada ao conflito – quer
seja na afirmação da sua necessidade; quer seja no apelo ao engajamento
e à excelência [areté] em relação aos assuntos bélicos; ou mesmo em
relação ao oposto, em que o éthos da participação nos combates sofre a
metafórica e cômica inversão no tema do ‘abandono do escudo’.10
A tragédia recorre ao mito e o faz em diálogo com a tradição
mítica presente em autores do período arcaico. Homero, Hesíodo e os
poetas líricos eram considerados educadores da cidade (pólis). Os seus
escritos eram recitados e serviam para ensinar as crianças e reforçar
nos adultos a sua ‘história’ e cultura – ou seja, a sua identidade como
parte do povo grego.
O discurso e a narrativa a respeito da beligerância não ocupam
lugar marginal na literatura tradicional grega. O tema da guerra per-
passa a tradição épica do período arcaico, em especial, o Ciclo Troiano,
salpicando cores rubras nos mais diferentes relatos – tanto os relatos
das batalhas, quanto os dedicados a narrar a preparação delas ou as
consequências do pós-guerra. Nos textos do período arcaico, o conflito
bélico é representado com uma extensão ampliada, ramificando-se
10
Arquíloco de Paros, mais antigo representante da poesia em iambo, ainda
no século VII a.C., usa os dísticos elegíacos e iambos (segundo, DOVER,
K. J., The poetry of Archilochos, Entretien Hardt, Tome X, 1964, p. 185) para
tratar do tema do abandono do escudo – o que o faz no fragmento 6
DIEHL. Arquíloco trata ainda, no fragmento 60 DIEHL, da preferência do
general belo (caricatura de Glauco), que participa da aventura da expedição
(ele participou do reforço da colonização de Tasos iniciada pelo seu pai).
Ver ainda: FOWLER, R. L. The Nature of Early Greek Lyric: Three Preliminary
Studies, Toronto, 1987, capítulo 1. Recorrem ao mesmo tema do abandono do
escudo Anacreonte (fragmento 51 DIEHL) e Alceu (fragmento 428 LOBEL-
PAGE). O tema é uma resposta ao apelo ao combate e à guarda do escudo até
a morte feito por autores como Tirteu.
Teatro Grego e Romano . 49
em vários outros temas. A Ilíada, por exemplo,é um extenso poema
narrativo cujo conflito faz parte do seu cerne, constituindo um
consistente fio em meio à densa tessitura narrativa. Se o canto da
deusa na proposição do poema é à “ira de Aquiles”, tal ira é a causa
de muitos heróis perderem a vida, tombando no campo de batalha
e servindo de repasto aos cães (HOMERO, Ilíada 1.1-5). Atrelada
à temática da guerra, um conjunto de valores socioculturais é
apresentado, nos quais as representações mediante a linguagem são
índices da organização e da valorização dos entes que compõem esse
mundo de representações. Na própria Ilíada, anuncia-se, por exemplo,
a necessidade de a guerra ser assumida pelos mais jovens e vigorosos,
cuja morte é honrosa e bela – em oposição à morte dos mais velhos,
desonrosa quando eles, tendo os corpos expostos no meio do campo,
insepultos e nus, servem de repasto para os cães, como se observa em
Homero, Ilíada 22.71-76:

Todas as coisas convém ao jovem


que morre na guerra, trucidado pela lança pontiaguda;
para aquele que está morto, todas as coisas são belas, porque todas as
[coisas se mostram.
Mas quando os cães desonram a cabeça e a barba grisalha
e as partes vergonhosas um ancião morto
isso, em efeito, é a coisa mais lamentável para os míseros mortais.

O mesmo tópico se irradia em diferentes corpora literários da


Grécia Arcaica – porém, tal temática literária não é apenas uma cate-
goria vazia, condicionada à ficcionalidade. É, entre outras coisas, a re-
presentação ficcional de códigos socioculturais típicos de um período
histórico – e, sendo assim, tal representação, dissipando-se e ganhando
novas cores e texturas nos textos que seguem, utiliza categorias
reconhecíveis porque existentes nos contextos de enunciação. Se agora
o que se tem são textos supérstites, o que havia outrora era mais do
que isso. Há um amálgama em tais textos entre os contextos que os
envolvem, as performances, a sua enunciação e a rica tradição mítica e
narrativa que serve de antecedente dialógico para tais poemas. Investigar
os componentes culturais e sociais que medeiam o jogo ficcional das
narrativas permite que o leitor moderno se aproxime dos interlocutores,
das demandas pragmático-discursivas e dos muitos outros elementos
subjacentes a um poema da Antiguidade que trate da guerra.

50 . Brian Gordon Lutalo Kibuuka


Um exemplo passível de observação é a recepção do tema
homérico da guerra, da morte dos jovens no conflito bélico e da morte
dos mais velhos no fragmento 10W de Tirteu de Esparta, versos 21-30:

Pois isto certamente é vergonhoso: um homem mais velho,


depois de cair entre os da vanguarda, ficar estendido diante dos jovens,
tendo cabeça branca e barba grisalha,
exalando o bravo ânimo na poeira,
segurando nas caras mãos as vergonhas ensanguentadas –
para os olhos, essas coisas são vergonhosas e é injusto ver –
e a pele desnuda: para os jovens, todas as coisas são convenientes,
durante certo tempo, a formosa flor da desejada juventude conserva-se,
para os homens é admirável ver, para as mulheres é desejável
quando está vivo, e é belo depois de cair entre os da vanguarda.

O fragmento supracitado de Tirteu também trata do éthos da


guerra. O conceito da beleza na morte do jovem ocorrida na guerra
se mantém. A rejeição do valor da morte do homem mais velho no
combate também perdura. Porém, a relação intertextual apresenta
inovações. A violência da morte é dignificada, mas tal não se dá mais
no âmbito do combate individual característico de Homero – tal se dá
no âmbito do combate hoplítico, lado a lado. Há uma linha de combate
de frente, a “vanguarda”.11
Há, para além do âmbito do modelo de guerra, índices repre-
sentacionais da juventude nos poemas do período arcaico. A ideia da
brevidade do vigor da juventude é referida e desenvolvida no frag-
mento 13W do poeta Mimnermo de Colófon (ou Esmirna), que lança
mão da metáfora relacionada ao “fruto da juventude”.12 O conjunto
de valores relacionado à juventude, ilustrado no poema de Mimnermo,
quando reassumidos em poemas que mencionam à guerra, faz parte de
um jogo discursivo que relaciona adjetivos como ‘desejável’ e ‘admirável’
com o que é aceitável no combate. O contrário, o tratamento da velhice,
é indicado no fragmento 1W de Mimnermo a respeito da velhice:
11
O termo grego traduzido por “vanguarda”, promáchomai, significa “comba-
ter nas primeiras filas”.
12
[(…) por um breve espaço de tempo, nós gozamos os vigores da juventude
/ pois não conhecemos nem mal, nem bem da parte dos deuses; / Queres
negras aproximam-se / uma portadora do fado da penosa velhice / a outra,
da morte. Por pouco tempo viceja o fruto da juventude / assim como o sol
sobre a terra difunde-se.].
Teatro Grego e Romano . 51
[…] quando chega
a velhice penosa, que faz o homem simultaneamente mal e feio…
(o velho) para as crianças é odioso, para as mulheres é sem valor:
deste modo um Deus estabelece uma penosa velhice.

As percepções representativas da juventude, da velhice e da


guerra são, para além de opiniões de autores sobre o valor da guerra,
da juventude ou da velhice, substratos indicionais de tais categorias, que
perpassam os textos e os conectam em relações intratextuais. É claro
que, na concepção dos biógrafos, críticos literários e classicistas devota-
dos à literatura e aos temas de cada autor, é fundamental descrever,
elucidar e relacionar temas com vistas a entender melhor uma obra. E
no caso da investigação histórica, é fundamental pensar no sentido dos
textos como o resultado de uma negociação que acontece entre a inven-
ção literária e os discursos ou práticas do mundo social,13 negociação
que conduz à identificação entre o literário e o cultural em um deter-
minado período. A busca pelas matrizes envolve, necessariamente, a
seleção crítica de vozes em meio a múltipla dicção literária. E dessas
vozes, o substrato traditivo revela-se nas personagens desse jogo sim-
bólico, os jovens guerreiros e os velhos, e outros in absentia: crianças,
efebos, moças, velhas. Logo, pensar em textos que tratem da guerra,
como Homero e Tirteu, perceber a vinculação da guerra com a juven-
tude e velhice e observar em tais autores e em outros o tratamento que
tais dão à velhice e juventude permite se inserir numa discussão que
ganha em amplitude pela assimilação dos seus índices representacionais.
A narrativa euripidiana também trata da guerra, da questão da
juventude e da velhice. Mas, em diálogo com a tradição que o antecede,
ela o faz pelo percurso in absentia. Na peça aqui discutida, Hécuba, as
personagens são um exemplo disso. A peça começa com um monó-
logo enunciado por Polidoro, um não adulto assassinado por Polimes-
tor, hospedeiro que havia sido hóspede do pai de Polidoro, Príamo, e
que o fizera por causa do ouro que o menino tinha em sua posse. A
13
Ver: CHARTIER, Roger. Culture écrite et societé. L’ordre des livres (XIVe-XVIIIe
siècles), Paris, Albin Michel, 1996. Ver também: FOUCAULT, Michel. “Qu’est-
ce qu’un auteur?”, Bulletin de la Societé Française de Philosophie, t. LXIV, juillet-
septembre, 1969, p. 73-104 (reimpresso em Dits et écrits 1954-1988, Edition
établie sous la direction de DEFERT, Daniel et EWALD, François avec la
collaboration de LAGRANGE, Jacques. Paris, Gallimard, 1994, Tome I, 1954-
1969, p. 789-821); FOUCAULT, M. L’ordre du discours, Paris, Gallimard, 1970.
52 . Brian Gordon Lutalo Kibuuka
protagonista, Hécuba, fala em seguida: ela, uma velha, suporta o jugo
da idade, da escravidão, da desconfiança dos males ainda maiores que
sobrevirão – o conhecimento da morte do seu único filho vivo, Polidoro,
e a morte da sua filha Políxena pela mão dos seus senhores. O jogo
narrativo coloca em cena as antigas questões relacionadas à juventude,
à morte e à velhice e relaciona-as com a guerra in absentia: a narrativa
retrata os sofrimentos do pós-guerra enraizados no acampamento dos
derrotados que sobreviveram e foram escravizados.

Hécuba de Eurípides, as tragédias euripidianas e a guerra: considerações preli-


minares

O documento a ser tratado aqui é o prólogo da tragédia Hécuba,


de Eurípides (versos 1 a 97). Parte-se aqui da premissa de que o con-
texto que emerge da tragédia Hécuba, de Eurípides, está intimamente
relacionado ao imaginário grego consoante à guerra no período
dos conflitos entre Atenas e Esparta. A peça Hécuba é encenada no
período da Guerra do Peloponeso (431-404 a.C.) e proporciona um
significativo material através do qual é possível observar a guerra e as
suas implicações como temas fundamentais. Tal se dá pela existência
de códigos culturais comuns, imbuídos de relevância cívica e religiosa,
existentes entre poeta, encenador, coreutas, juízes, espectadores; entre
os cidadãos atenienses e os estrangeiros que compareciam ao teatro
no período das festividades.14 Mais especificamente, é estreita a relação
entre as questões relacionadas à guerra e à maior parte das dezoito
peças disponíveis do drama euripidiano. Sete peças de Eurípides podem
ser consideradas como pertencentes a esse período, podendo também
ser datadas com maior exatidão: Medeia (431 a.C.); Hipólito (428 a.C.);
14
As representações teatrais eram encenadas nas festas a Dioniso, sendo par-
te dos muitos festejos cívico-religiosos que mobilizavam Atenas. As festas
eram cinco: as Oscofórias, que ocorriam na segunda quinzena de outubro;
as Dionisíacas rurais, que eram realizadas entre os meses de dezembro e ja-
neiro; as Leneias, que eram realizadas entre os meses de janeiro e fevereiro;
as Antestérias, que eram realizadas entre os meses de fevereiro e março; e as
Dionisíacas urbanas, que eram realizadas entre os meses de março e abril. E a
importância da tragédia nessas festas, que ocupavam a cidade durante a meta-
de do ano, estava em constituir-se um espaço de interação social, de debate e
de entretenimento. Ver: SOMMERSTEIN, Greek Drama and Dramatists. New
York: Routledge, 2002. p. 6-7.
Teatro Grego e Romano . 53
Troianas (415 a.C.); Helena (412 a.C.); Orestes (408 a.C.); Bacantes (405
a.C.); e Ifigênia em Áulis (405 a.C.).15Troianas é, dessas peças, a que trata
diretamente do contexto da guerra para vencedores e vencidos, e retrata
os sofrimentos das mulheres dos troianos derrotados e mortos.
Hécuba, ao contrário das peças supracitadas,é um drama cuja
datação é estabelecida de forma indireta.16 Tal se dá pela menção à
peça em uma comédia datada de Aristófanes.17 Sendo assim, Hécuba,
cuja data aproximada é 424 a.C., aborda um tema semelhante ao da
peça Troianas: as angústias de Hécuba, rainha tornada escrava por causa
da derrota dos troianos na guerra. E, de alguma forma, tem relações
temáticas com outras peças do autor, como Suplicantes (424 a 420 a.C.),
que tem por tema a guerra entre Atenas, governada pelo rei mítico
Teseu, e Tebas.
O período da encenação da tragédia Hécuba corresponde ao pri-
meiro período da Guerra do Peloponeso, que teve início em 431 a.C.
e terminou com a chamada Paz de Nícias, em 421 a.C. No segundo
período da guerra, iniciado na expedição à Sicília em 415 a.C., Eurípides
apresentou ao público a peça Troianas. Nessas duas peças relacionadas
à temática da guerra de Troia, é marcante a utilização de personagens
femininas acometidas por desastres pessoais em decorrência do estender-
se de conflitos que já não se sabe mais por que começaram. Nisso se
dá a grande distinção de Eurípides em relação aos tragediógrafos que
o precederam: ele parece ter escolhido histórias menos conhecidas,
mitos considerados menores, provenientes de regiões remotas. Ao
15
A datação adotada é proposta por: MCLEISH, Kenneth. A Guide to Greek
Theatre and Drama. London:
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Methuen, 2003, p. 106. O autor parte de evidên-
cias internas e externas.
16
As evidências para a datação de uma peça proveniente da Antiguidade são
internas e externas. As internas se dão pela análise de dados que estão no pró-
prio texto. As externas, pela investigação de referências, alusões e citações aos
autores e obras em outras obras e autores. No caso de Eurípides, a evidência
interna é a utilização de uma medida métrica do seu verso, o trímetro iâmbico:
essa medida vai caindo em desuso progressivamente, o que coaduna perfei-
tamente com a observação da ocorrência desse metro nas peças datadas. As
evidências externas são os scholia e as referências à premiação de Eurípides
nos concursos trágicos, bem como a obra SUDA, um léxico enciclopédico
bizantino do século X d.C. escrito em grego.
17
A grande ocorrência do trímetro iâmbico permite datar a peça entre as tra-
gédias da primeira fase de Eurípides, entre 430 e 420 a.C.
54 . Brian Gordon Lutalo Kibuuka
que parece, Eurípides selecionou partes menos destacadas de mitos
mais conhecidos para ter uma oportunidade de mostrar personagens
fortes em suas mulheres. As evidências apontam para um propósito
motivador de Eurípides: a discussão dos dilemas políticos, morais e
éticos das cidades gregas [póleis], principalmente os de Atenas. Porém,
suas peças não tratam apenas das histórias que serviram de base para
o enredo. Elas, na verdade, usam o mito para discutir acerca do caráter
humano das divindades,18 do heroísmo,19 do amor humano20 e, no caso
desta análise, da guerra.21
O que se apresenta em Hécuba, em suma, é uma peça sobre o
tema da guerra e de seus desdobramentos, com menções de conflitos
relacionados aos problemas da pólis. Tais conflitos sofreram oposição
no drama euripidiano mediante o recurso à encenação da situação das
mulheres escravizadas devido aos males decorrentes dos conflitos, os
quais perduram após o seu término, tanto para vencidos, quanto para
vencedores. O patético entranha-se com as questões políticas, formando
um conjunto que exprime o objetivo do poeta: revelar que a desmedida
é despertada devido à ausência de reflexão quanto às consequências
dos atos cometidos em uma situação de conflito entre gregos.22
Além dos aspectos relacionados ao contexto mais próximo,
urge destacar também que é evidente que os códigos culturais estão
presentes nas caracterizações, no vestuário, no gestual, na composição
das máscaras, na língua e na linguagem adotada na tragédia grega – mas
também é preciso ressaltar que tais códigos também permeiam os temas,
os motivos, os discursos, os agônes e outros elementos que configuram
o drama trágico. Porém, por outro lado, as tragédias são produções
artísticas cujas particularidades refletem uma dinâmica interna e outros
condicionamentos relacionados ao autor e aos próprios modos, formas
e critérios temáticos do gênero, ao mesmo tempo em que tais dramas
contêm particularidades que as caracterizam como obras de autores
distintos, cuja criação é diversificada.

18
Bacantes, Héracles, Íon e Medeia.
19
Helena, Os Filhos de Héracles, Medeia e Suplicantes.
20
Alceste, Electra, Helena, Os Filhos de Héracles, Hipólito e As Fenícias.
21
Hécuba, Fenícias, Suplicantes eTroianas.
22
Em Andrômaca, por exemplo, cita-se a dor causada pela guerra até para os
vencedores (v. 650 ss).
Teatro Grego e Romano . 55
Os critérios temáticos empregados na feitura e na performance
das tragédias não são aleatórios, tornando mais difícil ainda a tarefa
de articular as referências ao contexto no texto trágico, permitindo a
apropriação do drama pelo pesquisador para que tal sirva de documen-
tação textual que informa indiretamente a respeito da Atenas Clássica.
O mesmo se diz a respeito do caráter artístico do drama grego, o qual
se torna preponderante quando o texto trágico é observado a partir
de sua natureza composicional e são inferidos neste os aspectos de
sua performance – ou seja, quando são aferidos os aspectos relacionados
à possibilidade de se destacar de forma suficientemente criteriosa
materiais de filiações diversas, os quais estão imbricados no texto
trágico. É tal o problema que é o ponto de investigação que motiva o
trabalho a ser apresentado em seguida: indicar, por meio de um breve
passo de um texto dramático, os aspectos próprios da cultura e da
sociedade ateniense.

A documentação textual: tradução e comentário ao prólogo da tragédia Hécuba,


de Eurípides

A tradução do prólogo que segue foi realizada a partir de uma


edição do texto em grego, com o apoio de uma edição crítica. Foi
utilizado como base para a tradução o texto grego estabelecido por
Justina Gregory (1999). Para o acesso às variantes textuais e a eventual
escolha de uma delas, opta-se no presente trabalho pela edição crítica
de T. E. Page, D. E. Capps e W. H. D. Rouse (1929).23 Nota-se, porém,
que o que segue abaixo é a tradução em língua portuguesa do texto.
Para a tradução, foram utilizados ainda os dicionários de Bailly
(1963) e Liddell-Scott (1940), bem como as gramáticas de Horta
(Tomo 1: 1983; Tomo 2: 1979) e Goodwin (1894).
Fantasma de Polidoro
Chego, depois de deixar a região subterrânea dos mortos e as portas da
1
escuridão,
onde Hades habita em separado dos deuses,
Polidoro, filho gerado de Hécuba de Kisseus
e de Príamo, pai que a mim, quando a cidade dos frígios
23
Os nomes em colchetes presentes na tradução, por exemplo, são
reconstituídos pelo editor e aqui traduzidos, mas são mantidos entre
colchetes.
56 . Brian Gordon Lutalo Kibuuka
5 corria risco de cair pela lança helena,
tendo temido, enviou-me sob sigilo da terra troiana
para a casa de Polimestor, hóspede trácio,
que esta excelente planície queronesa
semeia, governando o povo amigo de cavalos através da lança.
10 O pai envia secretamente muito ouro comigo
para que, se um dia cair o muro de Troia,
não possa haver carência de recurso para os filhos vivos.
[Eu] era o mais jovem dentre os priamidas, pelo que da terra me
retirou secretamente: pois nem carregar armas
15 nem lança era possível [carregar] por causa do jovem braço.
Então, enquanto os muros da terra permaneciam firmes
e as defesas da terra de Troia estavam intactas
e Heitor, o meu irmão, prosperava por meio da lança
favoravelmente junto ao homem trácio, hóspede fraterno,
20 eu, desgraçado, me desenvolvia como um ramo causa dos alimentos;
mas quando Troia e a vida de Heitor pereceram,
e o lar paterno foi minado,
e ele caiu junto a um altar consagrado
após ter sido morto pelo homicida filho de Aquiles,
25 assassina a mim, desgraçado, por causa do ouro,
o hóspede paterno e depois de matar, para a onda do mar
lançou-me, a fim de que pudesse possuir ouro nas moradas.
Jazo sobre as margens, outra vez no agito do mar,
sendo levado para lá e para cá pelas muitas idas e vindas das ondas,
30 sem choro fúnebre, insepulto: agora, sobre a mãe querida
Hécuba movo-me, após ter deixado meu corpo,
há dois dias mantenho-me suspenso,
tantos quanto, nesta tão grande terra queronesa,
minha mãe miserável chega de Tróia.
35 Todos os calmos aqueus com naus
estavam sentados na fronteira da pátria trácia:
pois o filho de Peleu, Aquiles, aparecendo sobre a tumba,
reteve todo o exército grego
que dirigia para a casa o navio marítimo;
40 [ele] pede a minha irmã Políxena
que para o túmulo leve consigo um sacrifício amigável e um presente
E será feito isto, pois não [será] uma que recusa presentes
por parte de homens benquistos: a que marca pelo destino vai
matar a minha irmã nesse dia.
Teatro Grego e Romano . 57
45 A mãe contemplará dois cadáveres de dois filhos,
do meu e da miserável jovem.
Pois aparecerei, para que obtenha resoluto a sepultura,
diante dos pés da escrava no movimento das ondas.
Portanto, eu pedi aos que são poderosos nos infernos
50 para receber um túmulo e às mãos da mãe cair.
Portanto, tudo quanto eu desejava alcançar,
ser-me-á: darei lugar à anciã Hécuba saindo do seu caminho:
pois esta atravessa a pé para debaixo da cabana
de Agamêmnon, porque teme o meu fantasma. Ai!
55 Ó, mãe, proveniente de casas tirânicas
o dia vê da servidão, como sofres tão grande mal
conforme a fortuna anterior: condenando-te
algum dentre os deuses destrói a pregressa felicidade.
HÉCUBA
Levai, ó filhas, esta anciã para frente da cabana;
60 levai, aprumando a serva semelhante a vós,
troianas, para vós, a que antes era rainha;
[tomai-me, conduzi-me, enviai-me, erguei-me]
segurando os braços envelhecidos:
65 e eu, com um bastão curvo na mão,
com apressados os pés lentos
depois de avançar em marcha convosco.
Ó raio de Zeus, ó noite escura,
por que estou presa
70 a objetos de horror noturno? Ó terra bendita,
mãe de sonhos de asas negras,
afasto a visão noturna
a respeito de meu filho, que sobrevive na Trácia,
bem como sobre a querida filha Políxena, pois sei que, por meio de sonhos,
contemplei uma visão terrível que instrui.
Ó deuses ctônicos, salvai meu filho,
80 o qual é única âncora da casa, que dos meus
flui na Trácia coberta de neve
com o anfitrião, hóspede do pai.
Ocorrerá algo novo:
chegará um canto de gemidos aos que gemem.
85 Jamais minha mente obstinada
se agita, teme.
De onde posso ver a alma divina
58 . Brian Gordon Lutalo Kibuuka
de Helena e Cassandra, Troianas,
para que interpretem meus sonhos?
90 Pois eu vi uma cerva veloz degolada pela súcia sangrenta de um lobo,
após havê-la arrancado de meus cuidados pela força.
E meu temor é: veio ao alto
cume da tumba
o fantasma de Aquiles: exigiu uma oferta
95 das sofridas troianas.
De minha filha, da minha
[isto] apartem, deuses, eu suplico.

Comentários formais e literários sobre o prólogo de Hécuba

O prólogo da tragédia Hécuba é composto de dois monólogos:


um enunciado pela personagem Polidoro, que surge como fantasma
sobre o cenário [skenê]; e Hécuba, sua mãe. A leitura preliminar do
prólogo da peça Hécuba revela três peculiaridades no texto: a existência de
dois monólogos com estruturas diferentes; a fala por uma personagem
morta, Polidoro, no primeiro monólogo; e a descrição dos elementos
pertencentes a outras partes do enredo nos primeiros 95 versos da
peça. Para dar conta de tais peculiaridades, foram definidos quatro
pressupostos advindos da análise literária do texto, que permitem o
aprofundamento nas questões relacionadas à sua composição.
Em primeiro lugar, a análise da estrutura do prólogo revela-o
bipartido e isso não é acidental na obra de Eurípides segundo Grube
(1941, p. 68-69) e Santos (2008, p. 92). Santos afirma que a fun-
ção geral do prólogo é dar informações básicas que permitam a com-
preensão da ação dramática.24 No caso, tais informações são dadas por
mensageiros ou seres divinos. No lugar de um ser divino, dá-se a voz
a um fantasma, um espectro de uma vítima de homicídio à traição. A
posição que o fantasma ocupa é a mesma das divindades dos outros
prólogos trágicos: no telhado da cabana que serve de cenário [skenê].
A aparição do fantasma nesse lugar é um recurso que visa fortalecer
o estranhamento mediante o recurso ao fantástico. Por outro lado, as
invocações aos deuses feitas por Hécuba na segunda cena do prólogo,
dessa mãe ainda ignorante do fato de que seus dois filhos morrerão,
são invocações feitas a deuses não-olímpicos e que têm por motivação
SANTOS, Fernando Brandão dos. Alceste, de Eurípides: o prólogo (1-76).
24

Humanitas, v. LX, 2008, p. 92.


Teatro Grego e Romano . 59
sonhos premonitórios. A segunda cena também se mostra eivada de
recursos ao fantástico.
Em segundo lugar, em relação à análise dos recursos trágicos
peculiares de Eurípides, Easterling afirma que é próprio ao drama
euripidiano o experimentalismo e a inovação. No caso do prólogo de
Hécuba, o experimentalismo é mais uma vez utilizado para dar destaque
ao que dizem as personagens.25
A terceira premissa literária é a de que os principais conflitos
trágicos presentes na peça Hécuba são antecipados narrativamente no
prólogo, o que mostra a inversão do mito concomitante à exposição
da temática cruenta e violenta - e tal se dá pela boca de um não-adulto
(Polidoro) e de uma mulher. Segundo Bowra (1958, p. 88):
Los asuntos de la tragedia griega tenían que buscarse entre
las historias de la Edad Heroica, y esta limitación sin duda
entorpecía la índole moderna y “progresista” de Eurípides.
Pero aceptó tal limitación y trató con nuevo espíritu las
viejas historias, procurando en ellas lo que había de verdad
permanente. El resultado fue una serie de dramas sobre las
mujeres famosas de la antigüedad. En Medea (431 a. C.),
Hipólito (428 a. C.) , Hécuba (ca. 424 a. c.) y Andrómaca (ca.
422 a. C.), Eurípides traza un conjunto de estudios trágicos
sobre la feminidad que admiraban y sorprendían a sus
auditorios. Dejando de lado las conveniencias y pasando
sobre las opiniones recibidas respecto a la mujer, creó algo
enteramente nuevo en estos cuadros de almas violentas,
cuadros íntimos, exactos, descarnados y a la vez plenamente
simpáticos.

Seaford afirma que o motivo geral, comum entre Hécuba, Helena


e Filoctetes (esta última tragédia foi escrita por Sófocles), é a rup-
tura da hospitalidade [xenía] devida entre o estrangeiro e o que o hos-
peda/hospedou, entre o suplicante e o que ouve a súplica.26
25
EASTERLING, E. A. Form and Performance. In: EASTERLING, E. A.
The Cambridge Companion to Greek Tragedy. Cambridge: Cambridge University
Press, 1997 (2005). p. 151-177.
26
Segundo Seaford, “a violação da relação de xênia é central em três peças.
No Filoctetes de Sófocles, Neoptólemo abandona Filoctetes, seu xenós e
suplicante. Na Hécuba de Eurípides, Polimestor mata seu xenós Polidoro, e é
morto (sic), em seu turno, por Hécuba. Na Helena de Eurípides, Teoclímeno
faz ameaças de ferir Helena, a xenê hereditária que foi confiada ao seu pai
60 . Brian Gordon Lutalo Kibuuka
Por fim, a partir da aplicação das teorias de análise da narrativa de
Tzvetan Todorov (1971, p. 212-218; 233-235), é possível perceber que
os marcadores temporais, verbos, encadeamentos narrativos e subes-
truturas são articuladores construídos com o propósito de fomentar
uma recepção própria no ouvinte/espectador/leitor. Por sua vez, o
cenário dramático-literário – a saber, a cenografia, a topografia e a
cronografia do enunciador e contra-enunciador – aponta para a definição
de um jogo proposto pela narrativa e que dirige o olhar do leitor para
as concepções preestabelecidas no texto (MAINGUENEAU, 2001, p.
121-135).

Analisando a primeira cena mais de perto: narrativa e pragmática da enunciação

Todorov, em sua proposta de análise da narrativa, afirma que é


necessário observar as estruturas mediante o destaque das repetições
(TODOROV, 1973, p. 213),27 do encadeamento de micronarrativas
(idem, ibidem, p. 216),28 da dependência entre as partes narrativas (ou
homologias),29 do encadeamento ou justaposição de histórias (idem,
ibidem, p. 234),30 da alternância ou do contar de duas histórias simulta-
neamente, e do encaixamento ou inclusão de uma história na outra.31
Já Maingueneau, no campo pragmático, chama a atenção para o
por Zeus”. SEAFORD, Problematic Reciprocity in Greek Tragedy. In: GILL,
Christopher; POSTLETHWAITE, Norman; SEAFORD, Richard. Reciprocity
in Ancient Greece. Oxford: Oxford University Press, 1998. p. 53.
27
Segundo Todorov, “em toda obra, existe uma tendência à repetição, que
concerne à ação, aos personagens ou mesmo a detalhes da descrição”. Ele
destaca formas de repetição, como a antítese, a gradação e o paralelismo, sen-
do este último de dois tipos: o paralelismo que trata das grandes unidades da
narrativa e o paralelismo das fórmulas verbais.
28
O encadeamento ou encaixamento das micronarrativas são “diferentes
combinações de uma dezena de micronarrativas de estrutura estável, que cor-
responderiam a um pequeno número de situações.” Segundo Todorov, é pos-
sível alinhar tais micronarrativas em díades e tríades.
29
Homologia é a “projeção sintagmática de uma rede de relações paradigmá-
ticas” (TODOROV, 1976 , p. 218) – uma relação proporcional entre termos
de uma narrativa.
30
Encadeamento de histórias é o “justapor de diferentes histórias: uma vez
acabada a primeira, começa-se a segunda”.
31
Alternância de histórias é, segundo Todorov, o contar de duas histórias
simultaneamente, interrompendo ora uma ora outra.
Teatro Grego e Romano . 61
cenário literário em que a topografia, a cronografia e a cenografia
instituem a situação que torna o texto pertinente para o receptor de sua
enunciação.32 Os parâmetros sugeridos por Todorov e por Maingueneau
permitem, como já se afirmou acima, a abertura das narrativas para a
identificação do que nela não é estrutural, mas contextual e narrativo –
e, por ex-tensão, histórico.
A personagem em destaque na primeira cena da peça é Polidoro,
fantasma, filho dos soberanos de Troia, Hécuba e Príamo. Em sua fala,
a personagem informa que veio do Hades, bem como revela o seu
nome e a sua ascendência (versos 1 a 4).
A utilização do verbo hékō [chegar, estar] logo no primeiro verso
da peça é um procedimento usual no início das tragédias gregas. A sua
função é a de introduzir a personagem em cena: usado em primeira
pessoa, serve ao propósito de apresentar à audiência o responsável pela
elocução. A partir do uso do pronome relativo (hós), cujo antecedente
é Príamo, tem-se início a narrativa a respeito das várias ações do rei
troiano que explicam a morte de Polidoro. Príamo enviara o filho com
ouro para junto de Polimestor, rei da Trácia e antigo hóspede paterno,
porque era muito jovem para combater em Troia (versos 4 a 15).
Uma sequência de orações temporais coordenadas entre si,
introduzidas pela conjunção héōs, relaciona o sucesso dos troianos na
batalha com o bom tratamento dado a Polidoro por Polimestor. Uma
nova sequência de orações temporais introduzidas pela conjunção
e0pei/relaciona a derrota dos troianos com o assassinato de Polidoro
por Polimestor. A antítese também é marcada pela presença das
partículas μέν…δέ/. (versos 16 a 27).
Uma nova ocorrência de um verbo na primeira pessoa do singular
do presente do indicativo (verso 28), “jazo” [keîmai], introduz uma
ação dramática que será desenvolvida no decorrer da peça: Polidoro
encontra-se insepulto, ao sabor das vagas às margens do mar trácio,
fato que sua mãe desconhece. Então, após Polidoro explicar as razões
de sua morte e o estado do seu corpo, passa a falar dos antecedentes
32
“Chamaremos de cenografia essa situação de enunciação da obra, toman-
do o cuidado de relacionar o elemento – grafia não a uma oposição empírica
entre suporte oral e suporte gráfico, mas a um processo fundador, à inscrição
legitimante de um texto estabilizado. Ela define as condições do enunciador
e de co-enunciador, mas também o espaço (topografia) e o tempo (crono-
grafia) a partir dos quais se desenvolve a enunciação”. MAINGUENEAU,
Dominique. O contexto da obra literária, p. 123 (grifos do autor).
62 . Brian Gordon Lutalo Kibuuka
que culminarão na morte de sua irmã Políxena (versos 35 a 44).
A causa da morte de Políxena é a exigência feita pelo fantasma
de Aquiles de uma honraria, de um presente ofertado em honra
[géras]: o sacrifício de Políxena. O uso de verbos no presente indica
a simultaneidade entre a fala de Polidoro e a exigência de Aquiles. A
inserção do verbo no futuro “será feito” é um indício de que o pedido
de Aquiles será realizado (verso 42).
A síntese dos sofrimentos que acometerão a protagonista Hé-
cuba é marcada pelo uso do dual no verso 46, arcaísmo estilístico que
reforça a referência a Polidoro e Políxena. Por ter gerado dois filhos,
Hécuba contemplará dois cadáveres. Esse verso constitui a síntese dos
prenúncios da primeira cena: a morte de Políxena (versos 35 a 44) e
a descoberta do corpo de Polidoro (verso 46). Neste último caso, o
verbo está em primeira pessoa do futuro seguido de uma conjunção
conclusiva: “pois aparecerei” (verso 47), um paralelo perfeito com o
prenúncio do sacrifício de Políxena (“será feito”, verso 42).
O fim da fala de Polidoro é um duplo lamento sobre a condição
da mãe, caracterizado pelo paralelismo antitético rainha/escrava. Tais
lamentos são intercalados com a reafirmação da razão da aparição do
fantasma (“receber um túmulo” – verso 50) e da fuga de Hécuba diante
da visão do espectro (verso 54). Polidoro, ao mesmo tempo espectro
e cadáver insepulto, nada tem da ‘bela morte’ entoada pelos poetas
líricos. A beleza da morte no combate se desvanece quando a morte é
por traição, por ruptura da hospitalidade. Está lançado diante dos olhos
dos espectadores valores que eles mesmos entendem e provavelmente
aceitam: a guerra, terminada, não termina se a injustiça e o ultraje
perduram.

Primeira Cena: o ‘fantástico’ anúncio da traição por cobiça que segue à guerra

O recurso comum utilizado pelo tragediógrafos em seus pró-


logos é retomado por Eurípides em Hécuba: as personagens que
enunciam o prólogo localizam o enredo no espaço e no tempo. Porém,
para além da mera informação quanto aos elementos do enredo, que
é a função básica do prólogo das tragédias gregas no período clássico,
a estratégia de se recorrer à aparição de um fantasma no início da
peça, e não a um deus ou a uma personagem convencional, eleva
esse primeiro monólogo ou cena à dimensão do fantástico, resultado
do paradoxo entre o estranho, referenciado em parâmetros naturais
Teatro Grego e Romano . 63
e conformado em um tempo e espaço específicos e possíveis, postos
em cena pela caracterização do cenário [skenê], pelas vestimentas, pela
linguagem, pelas relações intertextuais e pelas referências tópico-
temporais presentes no discurso. O maravilhoso, pertencente a um
mundo impossível, é balizado nesse tempo e espaço – e, no caso da
peça em questão, as balizas estão lançadas no recurso à aparição, no
tempo dramático-narrativo, de um morto que, proveniente do invisível
mundo dos mortos (“a região subterrânea dos mortos e as portas da
escuridão”, verso 1), se dirige aos espectadores e narra sua história,
descreve a terra em que está, narra a história de sua mãe e irmã e ainda
prenuncia eventos que ainda ocorrerão na peça.
A aparição de Polidoro é fundamental à narrativa e às concepções
de sofrimento e guerra na peça. Polidoro é humano: fala, se move, vê
e informa. Mas, ao mesmo tempo, é inumano: ele é proveniente do
mundo dos mortos e gera medo até mesmo em sua mãe; e aparece
em cena no telhado do cenário ao mesmo tempo em que contempla
seu próprio cadáver insepulto lançado de um lado a outro às margens
do mar. É por conta da aparição dessa personagem que se estabelece
desde o prólogo de Hécuba um equilíbrio instável, que concede à
narrativa – e também à performance – características que amplificam
de tal forma as informações. Tais são patéticas, imbuídas de densidade
advinda da imbricação dos elementos elencados na constituição da
personagem e de sua articulação com o espaço-tempo narrados. O
sofrimento que é narrado está encarnado (ou descarnado) em Polidoro,
que pelo seu aspecto (a caracterização do ator) manifesta o que sofreu.
Funde-se na personagem as imagens de vítima tardia da guerra e da
cobiça que essa provoca nos que se beneficiam das situações geradas
por ela; e de suplicante, que recorre à justiça esperando por restituição.
A personagem Polidoro é síntese, junção de dois mundos, o real e
o imaginário, mundos que se ramificam em sua fala e perpassam a
narrativa em referentes textuais e cênicos que concedem força inicial
ao drama. E só há força nos dois mundos porque tais fazem parte do
campo de representações – um mundo que existe na cultura que une
espectadores, atores e tragediógrafo, em que se pode cogitar a irrupção
do mundo dos mortos no mundo dos vivos. Logo, o fantástico se dá
no prólogo de Hécuba segundo matrizes que são culturais, jungindo
as premissas do contexto com os recursos necessários à narrativa.
Contudo, tal junção não prescinde dos códigos que permitem a sua
encenação e compreensão pela plateia. Os sofrimentos dos infantes,

64 . Brian Gordon Lutalo Kibuuka


a traição e a morte são ocorrências possíveis porque o seu pano de
fundo é a guerra, que não termina nunca para os que a perdem. Tanto
o tragediógrafo quanto a sua audiência sabe disso.
A tragédia era um drama feito em e para um mundo em que
conjunto de valores e crenças permitia a simultânea identificação entre
a personagem e o espectador (ou, em outro momento, o leitor), bem
como a distinção entre ambos – um mundo que não julga impossível
a existência de uma interioridade que perdure em uma dimensão
extracorpórea. Um mundo aberto à possibilidade de se imaginar,
ao menos, a existência da vida após a morte, que ao menos cogite a
possibilidade de se imaginar o retorno de um morto ao mundo dos
vivos. É a esse conjunto de crenças e valores que Eurípides recorre
na primeira cena do prólogo de Hécuba. Mas nesse mesmo mundo,
a guerra é um tema presente desde os primórdios da formação da
tradição cultural. Sendo assim, Eurípides une os dados imediatos e as
suas impressões aos dados e temas traditivos mais remotos, fazendo-o
por meio da voz de um morto. É a partir da vítima que se funda esse
mundo ficcional que tem muito de realidade; esse mundo mítico
que está enraizado no presente vivido dos espectadores; esse mundo
representacional que não prescinde da própria coisa representada para
ser entendido.
O prólogo também desperta interesse pela via da negação, daquilo
que deveria ser, mas não é. Lê-lo revela que há uma expectativa de que
o fim da guerra resulte também no fim das hostilidades. Espera-se que
um protetor legal conserve a vida do seu protegido – e caso não o faça,
espera-se que tal se dê no âmbito do terror e do conflito entre iguais,
homens adultos, no momento em que as rivalidades e os desacordos
levam às rupturas. Mas o tempo da narração de Hécuba, de Eurípides,
é tempo de paz. E é na paz que Polidoro, por razão fútil, lamenta e
denuncia: “assassina a mim, desgraçado, por causa do ouro” (v. 25).
Partindo da ideia de que “somente podemos chegar a definir aquilo
que é fantástico na medida em que conhecemos a norma extratextual
definida pela tradição cultural” (SCHWARTZ, 1981, p. 68), é possível
observar e descrever a junção entre o enredo, a necessidade narrativa
de articulação das partes de tal enredo, e as necessidades performativas
resultantes. E é fundamental a compreensão, como dado articulador da
viabilidade do discurso, que apenas são possíveis tais articulações, no
caso do prólogo analisado, se o contexto de enunciação da narrativa
performática se dê em um ambiente em que tal se torne ‘macro-ato’ de

Teatro Grego e Romano . 65


linguagem, cuja opacidade entre o imaginado e o real, entre a criatividade
e a continuidade, e entre o dramático-literário e o narrativo-histórico
seja viável. O drama só será possível, bem como o literário, se tal estiver
minimamente articulado com seu contexto – pois não há tessitura entre
o literário-performático e o leitor-espectador sem que ambos tenham
referências minimamente comuns: no caso, a língua, mas também um
conjunto de crenças a respeito de possibilidades e impossibilidades, a
partir dos quais rupturas e continuidades, em equilíbrio instável, geram
efeitos viabilizadores do discurso.
A morte por assassinato de uma escrava ou de uma criança em
tempos de paz não é aceitável. As rivalidades que perduram após os
conflitos, as exigências de ouro, as traições as explicam, mas não as
justificam. Eurípides, ao transformar tais mortes em tema, o faz em
alguma relação com a situação ateniense na época da encenação: sendo
a tragédia encenada por volta de 424 a.C., ela tem em seu pano de
fundo contextos semelhantes à chamada ‘revolta de Mitilene’ em que
os atenienses, após vencerem os revoltosos mitileneus e realizarem uma
assembleia para determinar o seu destino, decretaram por influência de
Cléon matar todos os homens da cidade (TUCÍDIDES, 3.8-16, 25-50).
A decisão, excessiva e cruel, foi modificada um dia depois de tomada.
Observa-se no episódio de Mitilene e em Hécuba que as rivalidades e
os interesses perduram após as tensões e conflitos bélicos. Logo, era
oportuno que Eurípides encenasse o pós-guerra diante de uma plateia
que experimentava no cotidiano o que era estar em conflito. É verdade
que os recursos cênicos, dramáticos, narrativos e contextuais aqui
observados, bem como a força narrativa, informativa e performativa
da fala de Polidoro, devem ser entendidos inicialmente na dinâmica
interna da narrativa dramática. Mas, ao mesmo tempo, tais códigos
estão inseridos no contexto maior dos espectadores, e tal contexto é de
guerra dura, interrompida eventualmente por armistícios de maior ou
menor duração.

Uma Hécuba deslocada da tradição: um novo olhar sobre a segunda cena

Hécuba é descrita na tradição de origem homérica como a rai-


nha de Troia. Ela é descrita na Ilíada como uma mulher nativa da
Frígia, região situada na Ásia Ocidental. Juntamente com Andrômaca
e Helena, ela é a mais importante mulher troiana citada na obra de
Homero. Na Ilíada, ela é caracterizada como filha de Dimas (HOMERO,

66 . Brian Gordon Lutalo Kibuuka


Ilíada 16.718; ver também VIRGÍLIO, Eneida 7.320; OVÍDIO,
Metamorfoses 13.404-569). Esposa de Príamo, rei de Troia, ela é
caracterizada como uma mulher sofredora, cujos sofrimentos se deram
em especial por conta da morte de seus filhos homens e morte ou
escravização das suas filhas mulheres. Mãe de dezenove filhos segundo
a tradição de Homero (HOMERO, IIíada 24. 496), são citados como
seus filhos na Ilíada: Heitor, Antífon, Heleno, Hipôno, Deífobo, Páris,
Troflus, Polites, Cassandra, Creusa, Laódice e Políxena.
Fora do âmbito da literatura homérica, é possível inferir pela
literatura posterior dados de mitos não transmitidos nas obras supér-
stites do período arcaico. Os chamados Kýpria, atribuídos a Estasino,
tratam das causas da Guerra de Troia, narrando inclusive o nasci-
mento e o julgamento de Páris. A Etiópida, atribuída a Arctino de
Mileto, fazia provavelmente menção a Hécuba por tratar dos principais
personagens da Ilíada e ainda introduzir outros, como Pentesileia
e Mêmnone. Ilíou Pérsis, obra atribuída a Arctino de Mileto, trata do
sacrifício da filha de Hécuba, Políxena, indício de que a representação
dos sofrimentos da personagem diante de sua filha morta, retratados,
por exemplo, em peças trágicas clássicas, tem origens mais remotas. Por
fim, o poema cujo título é Nóstoi [Retornos], cuja autoria é atribuída a
Eumelo de Corinto ou Hágias de Trezena, provavelmente fazia menção
à Hécuba, já que narra o retorno ao lar de Agamêmnon, cuja concubina
é Cassandra, filha da rainha troiana; e de Ulisses, a quem a tradição
épica atribui o senhorio em relação à rainha de Troia.
Também há um conjunto significativo de narrativas sobre
Hécuba na tragédia grega. Oito peças, aproximadamente um quarto do
corpus supérstite dos trágicos, são baseadas em mitos conhecidos da
Guerra de Troia. A popularidade deste material entre os dramaturgos
deriva em parte do estado monumental da Ilíada e da Odisseia, na
tradição poética grega e em parte do número e variedade de mitos
conhecidos em torno dos conflitos entre os aqueus e os troianos. É
no âmbito das peças que são ambientadas em Troia que Hécuba surge,
caracterizada como mulher sofredora, cujas súplicas são ineficientes e
que experimenta, após a riqueza e a glória características da majestade,
sofrimentos inomináveis com a perda de seus filhos e filhas. Porém, é
no drama euripidiano que Hécuba se tornará personagem importante
e protagonista.
Hécuba e Troianas são, das tragédias de Eurípides, aquelas em que
a rainha troiana ganha voz e é explorada, sendo a sua caracterização e
Teatro Grego e Romano . 67
história um amálgama entre mitos conhecidos em Homero, na tradição
do Ciclo Troiano e inovações euripidianas. Em Troianas, Eurípides
dramatiza a situação das vítimas escravizadas por causa da derrota na
guerra – usando como base para as narrativas os eventos narrados no
Ciclo Troiano, concentrando-se no impacto da guerra sobre os cativos
e vencedores. No drama, Hécuba e as mulheres cativas que com ela
estavam passam por três estágios previsíveis de sofrimento que levam à
raiva, à ira e ao desejo de vingança, etapas que passam e que caracterizam
a descrição euripidiana de um desastre cuja amplitude é praticamente
insuportável.
A tragédia Hécuba está ambientada no momento posterior à
destruição de Troia, situação em que Hécuba, a rainha viúva, primeiro
perde a filha Políxena, sacrificada em honra do fantasma de Aquiles, e
depois descobre o cadáver de seu filho, último sobrevivente, Polidoro.
É nesta peça que as inovações euripidianas em relação ao mito original
são significativas: a proveniência queronesa de Hécuba, a mudança em
relação à paternidade da rainha (Kisseus, não mais Dimas) e a atribuição
de filiação de Polidoro provavelmente são invenções euripidianas.
Hécuba, no prólogo da tragédia, não dirige seu discurso nem
à plateia (como no primeiro monólogo), nem a Polidoro (que já não
está em cena), mas às troianas (Trōiádes, vocativo citado no verso 61),
que ainda não estão em cena, uma vez que o párodo (entrada do coro
em cena) tem início apenas no verso 98. Em seu monólogo, Hécuba
retoma a antítese que finaliza a fala de Polidoro, exceto na menção da
relação entre Hécuba e as conservas: “outrora vossa rainha / agora,
escrava igual a vós” [homódoulos].
A narrativa transita de forma contrastante, partindo da
contemplação por parte de um ser sobrenatural para o sofrimento
terreno pelo qual passa a protagonista. Ela também revela dois níveis
de petição: às conservas e aos deuses.
O primeiro nível peticional apresenta abundância de verbos no
imperativo em sequência (“tomai-me, conduzi-me, enviai-me, erguei-
me”) no verso 62, o qual reforça o status de urgência dos rogos da
protagonista.No segundo nível, tais rogos são súplicas dirigidas aos
deuses utilizando o vocativo: “ó trovão de Zeus, ó Noite escura – verso
68; “ó Terra sagrada” – verso 70; “ó deuses ctônicos” – verso 77.
A segunda cena transita em dois níveis: a menção ao sofrimento
da velha Hécuba, vítima de guerra, na linha de frente do coro de

68 . Brian Gordon Lutalo Kibuuka


Troianas, sendo a mais velha dentre elas. Devota às divindades não
convencionais e ela mesma não convencional, Hécuba precisa de
auxílio para transitar, para sair da tenda, para lidar com as angústias
dos sofrimentos do porvir, presentes no prólogo por causa dos sonhos
premonitórios anunciados pela personagem. A antiga temática do
velho caído entre jovens no campo de batalha fica para trás: diante dos
olhos dos espectadores está a inversão decorrente da guerra. A senhora
tirânica vira escrava e, depois de escrava, se torna vítima de violências
que não cessam.

CONCLUSÃO

As duas cenas do prólogo mostram, em nível estrutural, que os


temas do sacrifício de Políxena, do encontro do corpo de Polidoro e da
condição servil de Hécuba perpassam todo o prólogo, em uma estru-
tura A-B-C-C’-B’-A’, sendo A o sacrifício de Políxena, B o encontro do
corpo de Polidoro e C a condição servil de Hécuba. A, B e C fazem
parte da primeira cena. C’, B’ e A’ fazem parte da segunda cena.
O sacrifício de Políxena desencadeará o tema da voluntariedade
para o sacrifício, assunto recorrente do drama de Eurípides segundo
Bowra, Lesky, Easterling e Seaford. A descoberta do corpo de Polidoro
e da traição de Polimestor desencadeará a vingança de Hécuba, assunto
também frequente em Eurípides segundo os autores supracitados. A
oposição entre a Hécuba-rainha e a Hécuba-escrava adiciona ao enredo
‘tragicidade’ tal que, vinculada ao tema das consequências da guerra,
permite o tensionar da mola trágica, que perdura por toda a peça até o
seu desenlace.
Por fim, em relação às coordenadas que servem de referência
à enunciação, o esquema binário relaciona Troia e Trácia, pai morto
e mãe viva, vitória e derrota, hóspede e inimigo, fantasma e corpo,
fuga do filho versus ansiedade pelo aparecimento do filho, naus móveis
e navegadores imóveis, morto e vítima prestes a morrer, esperança
e desilusão e, principalmente, rainha e escrava. Tal cenografia está
vinculada às relações temporais triádicas (passado, presente e futuro),
espaciais triádicas (Troia, Trácia e Grécia) e entre cenários enunciativos
preexistentes a Eurípides, conhecidos do públi-co (sacrifício voluntário,
vingança e sofrimentos da guerra).
A peça Hécuba, portanto, trata dos casos de violação: da
hospitalidade, do direito à vida, da condição mínima até mesmo para
Teatro Grego e Romano . 69
os escravos. Ao fazê-lo, a tragédia está tratando do mal, daquilo que,
nas palavras de Ricoeur (1988, p. 62), “é o que é e não o que deveria ser,
contudo nós não poderíamos dizer porque ela é” . Então, o sofrimento
de Hécuba, protagonista, o suplício de seus filhos e a sua condição
vexatória, destituída de marido, filhos homens e filhas mulheres
casadas aguça na plateia o senso de justiça. O fato de a tragédia ter sido
encenada em um período de conflito bélico, em que os excessos foram
constantemente cometidos contra aquilo que se imaginava razoável,
manifesta que:
[(…) o senso de injustiça não é nada mais que somente mais
pungente, mais perspicaz que o senso da justiça, porque a
justiça é mais frequente que a falha e a injustiça que reina,
e os homens tem uma visão mais clara que deficiente sobre
as relações humanas que da maneira correta de organizar”]
(RICOEUR, 1991, p. 177).

O desfecho da tragédia é a opção da protagonista pela vingança


contra o assassino de seu filho Polidoro, que é o interlocutor no pró-
logo. A condição de escrava e a perda de toda e qualquer possibilidade
de felicidade culminou na vingança extrema de Hécuba, cuja dimensão
é de irracionalidade, um fenômeno humano recorrente, já que, segundo
Ricoeur, também é típico do humano e, portanto, das narrativas. E a
questão central em Hécuba é a escolha do mal que se faz eventualmente
o pior, chocando a plateia deste drama que, na verdade, é uma grande
metáfora da violência cometida no contexto dos expectadores na época
da Guerra do Peloponeso.
Hécuba escolhe, em retribuição à morte da sua filha Políxena
e de seu filho Polidoro, supliciados por causa de honrarias vis e por
causa do dinheiro, matar os dois filhos de Polimestor diante dele e
cegá-lo, fixando para sempre tal ato em sua memória. O autor escreveu
um enredo em diálogo com “as formas de ação e de pensamento
pelos quais o homem compreende a si mesmo em seu mundo”.33 É
necessário entender que mundo é esse, em que se concebe a escalada da
violência. Eurípides mostra na narrativa não apenas uma modalidade

33
“destiné à fonder toutes les formes d’action et de pensée par lesquelles
l’homme se comprend lui-même dans son monde” RICOEUR, Paul. Philoso-
phie de la volonté 2, Finitude et culpabilité 2, La symbolique du mal, Aubier, 1960, p.
168-169.
70 . Brian Gordon Lutalo Kibuuka
de violência, mas demonstra através de uma rica discussão aquela que
é justificável e aquela que não é. Opõe-se e reconciliam-se na tragédia
Hécuba a violência e a justiça em uma formulação cuja equação final é
o reconhecimento – mesmo que o caminho para tal seja a catarse pela
violência retributiva.
Há no prólogo inversões radicais, que ocorrem diante dos olhos
dos espectadores. Inversão do corpo vivo em morto. Inversão do
senhorio em escravidão. Em tais inversões, junge-se a ideia da guerra,
da violência e do sofrimento. Em cada uma das inversões eclode uma
nova perspectiva do texto: a dos espectadores, que são também autores
e participantes da guerra e do teatro. E eles mesmos, vítimas e vilões,
espectadores e atores sociais, entendem o prólogo de Hécuba porque se
entendem, com ou sem máscaras.

BIBLIOGRAFIA COMENTADA

EURIPIDES. Hecuba. Introduction, text, and commentary: Justina


Gregory. Atlanta, Georgia: American Philological Association, 1999.
A edição de Justina Gregory apresenta o texto grego de Hécuba.
Porém, a introdução e os comentários propostos pela autora permitem
o reconhecimento das relações entre a peça de Eurípides e o mito, a
guerra, os demais dramas euripidianos e o contexto da audiência.

GREGORY, J. Euripides and the Instruction of the Athenians. Ann Arbor:


The University of Michigan Press, 1991.
A obra Euripides and the Instruction of the Athenians, de Justina Gregory,
mostra as funções políticas e didáticas o drama euripidiano a partir da
análise de Alceste, Hipólito, Hécuba, Héracles e Troianas.É uma obra que
proporciona ao leitor uma leitura dos dramas de Eurípides, relacionando-
os com o complexo e tumultuado período de sua encenação.

SEGAL, C. O ouvinte e o espectador. In: VERNANT, J-P. (org.). O


Homem Grego. Lisboa: Presença, 1994.
O texto de Charles Segal trata das diferenças de recepção de quem ouve,
assiste ou lê uma peça, destacando o que é percebido e imaginado pelo
ouvinte/espectador/leitor. Tal diferença insere o leitor na discussão
a respeito de uma estética da recepção pela audiência de um drama,
abrindo o espaço para a ampliação da discussão sobre a existência de
Teatro Grego e Romano . 71
representações simbólicas de dados do contexto nos textos.

SOMMERSTEIN, A. H. Greek Drama and Dramatists. New York:


Routledge, 2002.
A obra Greek Drama and Dramatists é um estudo conciso de Alan H.
Sommerstein que permite ao leitor conhecer uma breve história dos
gêneros dramáticos, os principais autores e uma síntese das peças
conhecidas de cada autor. Sommerstein também apresenta os chamados
poetas menores, tanto os trágicos quanto os cômicos, e inclui na obra
uma cronologia do drama grego e antologia de textos trágicos e cômicos.

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76 . Brian Gordon Lutalo Kibuuka


O Teatro de Ésquilo
e os valores que vêm do campo

Ana Livia Bomfim Vieira

Nos dias de hoje, as artes de um modo geral, e o teatro em par-


ticular, ganharam um lugar no mundo do entretenimento. Podemos ir
ao teatro assistir a uma peça apenas para nos divertirmos. Não que o
teatro, entre nós, não possa ter um caráter político, por exemplo, mas
somos capazes de separar um do outro. O teatro antigo grego, ao
contrário, era encarado como um espaço de discussão, e as tragédias
são fruto do quinto século ateniense, contexto em que esta pólis passava
por grandes mudanças. A utilização das peças trágicas para perceber e
compreender as mudanças político-culturais de Atenas torna-se possí-
vel, pois estas possuem uma abertura às problemáticas sociais (SEGAL,
1994, p. 189), já que um de seus objetivos é o envolvimento, a catarse
do espectador. Quando não há identificação, não há envolvimento.
Segundo Charles Segal (1994, p. 194):
Mas a tragédia não é apenas uma parte qualquer desse espe-
táculo citadino, dado que, com a sua extraordinária abertura,
leva a cidade a refletir sobre o que está em conflito com os
seus ideais, sobre o que deve excluir ou reprimir, sobre o
que teme ou considera estranho, desconhecido, Outro. (...)
A tragédia podia levar à cena, de forma simbólica, debates
contemporâneos acerca de temas políticos e morais, (...).

O teatro, e a tragédia em particular, em momentos de crise vai


utilizar-se dos mitos, passado heroico dos espectadores, para tratar de
questões atuais na sociedade (SEGAL, 1994, p. 194).
As peças são ainda de grande valor pela proeminência dada ao
poder significante da linguagem utilizada, entre outras coisas, para emo-
cionar e envolver o espectador. Sobre isso, veremos as metáforas
Teatro Grego e Romano . 77
utilizadas por Ésquilo sobre o campo, mas são também conhecidos os
jogos de palavras das críticas políticas de Aristófanes.
A principal relevância da linguagem e, nesse sentido, do teatro,
estaria ligada à palavra falada, esta como veículo de comunicação
e de perpetuação da memória (SEGAL, C. 1994, p.186) tornando o
passado sempre presente. Contudo vai mais além. A linguagem, com
suas ambiguidades, não deixa de tornar perceptível a ambiguidade
dos valores e do próprio mundo (VERNANT; VIDAL-NAQUET, p.
1988, p. 35-36). O homem percebe este mundo como um lugar de
conflitos. Na tragédia, este conflito pode ser percebido na tensão entre
o mito e as estruturas de pensamento ligadas à “cidade”. A tragédia é
o lugar de conflito entre o passado e o presente, mas é por isso mesmo
o seu lugar de encontro.
O Teatro contribui também para o processo de construção de
identidade entre os cidadãos. Ele une estes homens em torno das
instituições democráticas atenienses (SEGAL, 1994, p. 195). Isto pro-
cede pois, como lembra J.-P. Vernant, a tragédia, está ligada a um mo-
mento histórico delimitado: o quinto século (VERNANT; VIDAL-
NAQUET, p. 1988). Vernant e Vidal-Naquet, da mesma forma que
Segal, compartilham o pressuposto de que o teatro fala do que lhe é
familiar, da sociedade e do momento histórico em que está inserido.
Segundo Vernant e Vidal-Naquet, a tragédia não poderia refletir aquilo
que lhe causasse estranhamento. A tragédia – ou o teatro –, contudo,
não se propõe apenas a falar ou a apresentar a sociedade, mas a
questioná-la:
A Tragédia não é apenas uma forma de arte, é uma insti-
tuição social que, pela fundação dos concursos trágicos, a
cidade coloca ao lado de seus órgãos políticos e judiciários.
Instaurado sob a autoridade do arconte epônimo, no mesmo
espaço urbano e segundo as mesmas normas institucionais
que regem as assembléias ou os tribunais populares, um
espetáculo aberto a todos os cidadãos, dirigido, desempe-
nhado, julgado por representantes qualificados das diversas
tribos, a cidade se faz teatro; ela se toma, de certo modo,
como objeto de representação e se desempenha a si própria
diante do público. Mas, se a tragédia parece assim, mas que
outro gênero qualquer, enraizada na realidade social, isso não
significa que seja um reflexo dela. Não reflete essa realidade,
questiona-a. Apresentando-a dilacerada, dividida contra ela
78 . Ana Livia Bomfim Vieira
própria, torna-a inteira problemática (VERNANT; VIDAL-
NAQUET, 1988, p. 21).

Um período de mudanças

O século quinto ateniense foi um período de significativas trans-


formações político-culturais. Durante a primeira metade do V século a.
C., Atenas é representada, na sua produção cultural, como uma socie-
dade de valores ligados ao campo. Todas as características formadoras
de um cidadão pleno eram encontradas no espaço rural. Essa Atenas
assemelha-se à Atenas de Hesíodo: rural, agrícola e aristocrática. A
partir da segunda metade do quinto século, Atenas faz uma opção pelo
espaço urbano. Isso ocorre como forma de fortalecer a democracia
e os segmentos sociais a ela ligados, segmentos esses essencialmente
urbanos. Essa mudança nos esquemas culturais atenienses acontece
motivada por processos históricos, tais como: vitória nas Guerras
Pérsicas, organização de um império marítimo, crescimento da ati-
vidade comercial, derrota na Guerra do Peloponeso e o advento do
pensamento sofista no âmbito dos saberes. Esses processos vão reor-
ganizar culturalmente a sociedade ateniense do quinto século. As
transformações, ou melhor, reorganizações na sociedade podem ser
percebidas a partir das imagens construídas e apresentadas pelas peças
teatrais, tais como as de Ésquilo e Eurípides. O primeiro nos mostra
uma sociedade rural, aristocrática, que valoriza a terra como um bem, o
campo como formador de valores essenciais ao cidadão e onde o saber
camponês é valorizado, conhecido por todos e liga-se ao conceito de
bem viver. O segundo fala de uma Atenas urbana, onde os valores que
antes se ligavam a práticas e saberes rurais ligam-se agora a práticas e
saberes urbanos: comércio, artesanato, marinha e o pensamento sofista.
Neste trabalho, analisaremos a Atenas rural que Ésquilo imortalizou
em suas tragédias.
Ésquilo e o seu mundo rural

O espaço rural tem um significativo lugar na vida do ateniense


e da pólis como um todo. A agricultura é ainda no quinto século a base
econômica de Atenas.1 Esse destaque pode ser percebido nos textos
1
Sobre este ponto nos colocamos ao lado de Moses I. Finley. Consideramos
a agricultura como a base econômica de Atenas, apesar de incorporarmos as
Teatro Grego e Romano . 79
antigos, que não apenas reiteram os valores da chóra, como ressaltam
o apego do camponês à sua terra. Sobre esse aspecto, podemos citar
Tucídides, no momento em que este historiador refere-se à saída de
parte do campesinato do espaço rural para a ásty, no início da Guerra
do Peloponeso:
Depois de ouvir as palavras de Péricles os atenienses, já per-
suadidos, começaram a trazer do campo seus filhos, suas
mulheres e todos os seus pertences; retiraram até o madei-
ramento das casas; os rebanhos e os animais de carga foram
transportados para a Eubéia e para as ilhas vizinhas. Este
deslocamento lhes pareceu penoso, pois os habitantes em sua
maioria estavam habituados à vida do campo (TUCÍDIDES,
Histoire de la Guerre du Peloponese, II, 14-17).

E ainda citando Tucídides: “(...) deixavam relutantes as casas


e os templos aos quais estavam ligados por uma longa posse e, ao
renunciarem à sua maneira de viver, era como se cada um deles se
afastasse da sua própria cidade”.( TUCÍDIDES, Histoire de la Guerre du
Peloponese, II, 16, 2)
O espaço rural fazia parte do território cívico, portanto, era
preciso mantê-lo não só para a pólis ateniense como também para o
cidadão, principalmente no que se refere aos valores morais. Estes
valores tinham como procedência a vida e o trabalho dos campos.
Sobre este ponto, quem nos informa é Aristófanes:
Com respeito à firmeza de alma, ao zelo que não conhece
sono, à frugalidade do estômago formado a base de pri-
vações, contentando-se com salada para o jantar, fiques des-
preocupada e tranqüila, porque eu poderia servir de bigorna
(ARISTÓFANES, As Nuvens, v. 420-422).

O camponês e o espaço rural representam o que há de mais


valoroso. E é isto que queremos demonstrar, que na primeira metade
do século quinto Atenas é representada na documentação como sendo
essencialmente rural, e o teatro de Ésquilo foi um veículo fundamental
para o reforço desta imagem. Contudo, a identificação deste fenômeno

críticas feitas a este historiador a respeito da subvalorização do comércio. Este


último teve um papel fundamental nas mudanças ocorridas no quinto século.
Ver: Finley (1989, p.106); Finley (1986, p.134, 171, 182).
80 . Ana Livia Bomfim Vieira
se dá não só por encontrarmos em suas obras referências ao campo
em si, mas pela numerosa presença de referências ao que podemos
chamar de saber camponês, que pode ser observado através das obras
de Hesíodo, por exemplo. Este autor vem em auxílio ao historiador
no que diz respeito ao entendimento da formação da pólis, do mundo
políade e da sua inserção no âmbito agrícola; muito embora saibamos
que Hesíodo não era um ateniense. E embora Ésquilo não seja con-
temporâneo de Hesíodo, ele fala de uma mesma Atenas. É a Atenas
com a preponderância do saber camponês como o saber pertencente
ao espaço formador de bons e valorosos cidadãos. O trabalho na chóra
é digno e honesto. É a melhor maneira de o homem não passar fome e
até mesmo enriquecer.
A sociedade dos atenienses do quinto século criou diversas formas
de marcação de tempo. Entre elas permaneceu o que os historiadores
chamaram de “calendário rural”. Com relação ao camponês, no entanto,
ele não seguia somente o calendário cívico. Ele conhecia também um
calendário natural constituído a partir do ciclo solar e das mudanças
das estações. O agroîkos havia estabelecido esses marcos através da sua
observação da natureza. Além disso, era através dos valores rurais que
esta comunidade se via, isto é, era no espaço rural que se encontravam
todos os valores políades, a chóra era o lugar ideal para o cidadão de
bem, e o trabalho na terra, o labor digno por excelência. A estrutura
políade ateniense, entendida como as relações simbólicas de ordem
cultural, estava ligada aos signos, símbolos e saberes provenientes do
espaço rural. Estes três elementos constituem um saber tradicional, o
saber produzido pelo camponês.
Os camponeses desenvolveram uma relação intrínseca com os
fenômenos da natureza, fossem eles astronômicos, climáticos ou am-
bientais. Eram esses fenômenos que marcavam as mudanças de estações.
Estas mudanças determinavam as práticas sociais camponesas, entre
as quais podem ser citadas: semeadura, poda, colheita, pesca, caça,
transumância. Os camponeses áticos, mais do que apenas guiar as suas
atividades pelos sinais da natureza, produziram um saber, a partir da
observação daqueles fenômenos apontados acima. Mas, exatamente,
em que se constituía esse saber? O camponês observava os sinais que
a própria natureza lhe fornecia, delimitando o tempo exato de plantar
ou de colher. Estes sinais poderiam ser a chegada de aves migratórias,
a presença de alguns insetos e, até mesmo, sinais astronômicos. O
agricultor notava o aparecimento de constelações de estrelas fixas no
Teatro Grego e Romano . 81
céu noturno e o seu consequente desaparecimento. Percebia a constân-
cia deste fenômeno. Os solstícios, por exemplo, eram considerados para
o ano agrícola, pois marcavam o início do verão e do inverno. Esse saber,
que foi passado de geração a geração pela tradição oral, constituiu-se
naquilo que denominamos de saber empírico, já plenamente constituído
e visualizado em Hesíodo (HESÍODO, Os trabalhos e os dias, v. 27-32;
380-385; 414-437; 479-493; 565-570; 573-582; 597-610):
Quando Orion e Sírio tiverem chegado ao meio do firma-
mento, e quando a Aurora dos róseos dedos houver visto
Arcturo, então, Perses, colhe e leva para a casa as tuas uvas,
expõe-as ao sol durante dez dias e dez noites, põe-nas à
sombra durante cinco dias e, no sexto, deita nas jarras a
dádiva do alegre Dioniso. A seguir, depois de se terem posto
as Plêiades, as Híades e o potente Orion, lembra-te que é a
época das sementeiras, e haja feliz sorte a semente na terra
(HESÍODO, Os trabalhos e os dias, v. 611-617).

O saber camponês apresentado por Hesíodo, que podemos,


portanto, definir como aquele conhecimento do homem do campo,
baseados na leitura dos sinais da natureza, que serviam para definir o
tempos das atividades agrícolas, mostram para mostrar que no sétimo
século este autor estava mergulhado em uma sociedade de valores
aristocráticos, rurais e agrários. E são estas características que vamos
encontrar nas obras de Ésquilo, situadas na primeira metade do quinto
século. Elas apresentam uma pólis marcadamente ruralizada na qual o
saber camponês continua sendo utilizado no cotidiano. Este saber, e isto
é importante de ser observado, continua integrando harmoniosamente
a produção cultural dessa sociedade. Ao trazer o saber camponês para
a ásty, Ésquilo está valorizando os valores aristocráticos, pois o conflito
entre campo e cidade está mais presente do que nunca. A phýsis em
Ésquilo está majoritariamente no campo. A mesma concepção de mar-
cação de tempo presente em Hesíodo encontra-se também em Ésquilo.
Verifica-se nas peças deste último autor o quanto a marcação do tempo
está relacionada com os sinais da natureza. Vejamos três passagens para
demonstrar esta relação:
(...) de tanto olhar o céu noite após noite agora sei reco-
nhecer a multidão inumerável de estrelas, senhoras lúcidas
do firmamento etéreo, indicadoras dos invernos e verões

82 . Ana Livia Bomfim Vieira


em seu giro constante pela imensidão (ÉSQUILO,
Agamemnon, v. 5-10)

E também: “(...) irresistíveis no ataque final a Tróia quando


as brilhantes Plêiades já declinavam (...)” (ÉSQUILO, Agamemnon, v.
928-929).
Podemos perceber que os fenômenos astronômicos fazem parte
deste saber apresentado também por Ésquilo, assim como foi por
Hesíodo. As estrelas e constelações serviam de guia para o homem do
quinto século, assim como guiava também o homem do sétimo século.
Com o conhecimento deste saber camponês o espectador da peça de
Ésquilo sabia que, segundo o trecho que selecionamos, o momento em
que as Plêiades declinam, ou se põem, é o outono, mais especificamente
no mês pyanepsión. Ésquilo, na verdade, nada mais faz do que falar da
maneira que seria entendido, ou seja, marcando a passagem de tempo
como os homens que o assistiam, e por que não ele mesmo, estava
acostumado a fazer. Não há outra forma de marcação de tempo nas
obras de Ésquilo. Mas esse autor não nos fala apenas de fenômenos
astronômicos. Na phýsisde Ésquilo a fauna também tem seu lugar.
Destacamos uma passagem que nos mostra a relevância, para o homem
do campo, de algumas aves: “O Mastim fiel que guarda bem o seu
rebanho (...)” (ÉSQUILO, As Suplicantes, v. 1020-1021).
Ésquilo também nos mostra sinais ambientais e climáticos uti-
lizados pelo camponês para a realização das suas práticas. Essas refe-
rências já apareciam em Hesíodo:
Sabia eu que enquanto há seiva na raiz, renascem folhas
abundantes que protegem a casa da canícula com sua
sombra. Por isso, quando voltas para a intimidade do lar,
comparas-te ao retorno do verão em pleno inverno; nesses
dias em que Zeus nos dá o vinho feito das uvas mais ácidas,
se o ar se torna ameno repentinamente, é que o senhor,
o tipo acabado do homem, retorna e vê findarem os seus
sofrimentos.(ÉSQUILO. As Suplicantes, v. 1109-1118).

Ainda podemos ler: “(...) mais agradáveis para mim que a própria
chuva mandada pelos deuses para a terra ávida na época em que as
flores todas desabrocham.”(ÉSQUILO. As Suplicantes, v. 1109-1118).
Fica clara a intimidade do ateniense, que estava presente na pla-
teia dessas peças, com os sinais da natureza. Ésquilo nos mostra isso
Teatro Grego e Romano . 83
colocando em suas peças o conhecimento, o saber do camponês, a
consciência de que no verão o vinho é mais bem consumido, que a
presença de seiva nas raízes mostra que a planta ainda tem vida, que
as chuvas são de suma relevância para o agricultor que precisa que seu
trabalho tenha sucesso. Sua vida depende disso. O saber camponês pre-
sente em Ésquilo, portanto, deixa transparecer que este conhecimento
está presente na pólis ateniense, que ele é o tipo de saber que melhor
representa e que insere majoritariamente o corpo cívico na chóra. Esse
conhecimento está vinculado, também, ao respeito aos deuses. Essa é
outra característica da sociedade aristocrática de Hesíodo que vai estar
presente na Atenas de Ésquilo. O camponês não poderia deixar de
se guiar pela natureza se quisesse ter sucesso com suas práticas. Era
fundamental estar atento aos sinais da phýsis. Contudo, mais importan-
te ainda era realizar os rituais aos deuses. O homem do campo, para
que sua produção não fosse prejudicada pela ira dos deuses, precisava
render-lhes homenagens, oferendas, preces e agradecimentos. O mun-
do do camponês pertence aos deuses. A pólis ateniense pertence tam-
bém aos deuses. E é isso que Ésquilo nos mostra. Em nossa análise,
podemos demonstrar estes dados através dos seguintes versos: “Os
muitos generosos dons de Zeus e as sementeiras anuais sempre vencem
a fome(...)” (ÉSQUILO. Agamêmnon, v. 1158-1160). Podemos observar
a mesma questão ainda neste trecho “Foi Zeus, que tudo faz e causa
tudo!...Nada acontece a nós, mortais, sem Zeus. Que pode haver sem o
querer divino?” (ÉSQUILO. As Suplicantes, v. 1728-1730).
É pela vontade dos deuses que as colheitas abundam, os reba-
nhos reproduzem, e os rios dão peixes. O homem deve respeitar os
sinais da natureza e as suas regras, como as sementeiras anuais, por
exemplo. Ele deve, porém, colocar os deuses acima de tudo, pois é
através das graças derramadas por eles que prosperam as atividades
humanas. A não obediência aos ritos pode ser desastrosa:
Na noite de nossa chegada um deus mandou um rigoroso
inverno antes do tempo certo, gelando inteiramente o Estrí-
mon, rio sacro. Ali, alguns de nossos homens, descuidosos
até então da reverência aos deuses pátrios, faziam promessas,
adorando o céu e a terra (ÉSQUILO. Os Persas, v.658-664)

Ésquilo ainda nos informa mais sobre as relações entre os deuses


e os homems e, principalmente, sobre os trabalho nos campos, inclusi-

84 . Ana Livia Bomfim Vieira


ve mencionando as oferendas mais comuns nos rituais para o plantio,
colheita, enfim, para os trabalhos nos campos:
Que Zeus faça fecunda, enfim, esta terra, em toda estação e
sempre; que as ovelhas que pastam em seus campos sejam
prolíferas; que tudo rejuvenesça por obra dos deuses. (...)
E aos deuses que possuem esta terra (...) sacrifício de bois,
coroas de louros (ÉSQUILO. As Suplicantes, v. 658-664).

(...) o leite de uma vaca nunca poluída pelo odioso jugo, o mel
brilhante feito pela aproveitadora de todas as flores, além de
água corrente de uma fonte virgem; trago também este licor
puro e alegre, filho de mãe selvagem – de uma vinha antiga –
e este fruto oloroso e louro da oliveira e flores em guirlanda,
dons da terra fértil (ÉSQUILO. Os Persas, v. 792-799).

As obras de Ésquilo demonstram que a sociedade ateniense da


primeira metade do quinto século estava mergulhada em um mundo
rural, regulado essencialmente pelos deuses. A natureza, a phýsis é al-
guma coisa que faz parte do cotidiano dos homens, dos camponeses,
mas é algo, também, que eles não podem controlar ou conhecer com-
pletamente. Ela está no âmbito do divino, do que não é passível de ser
desvendado ou compreendido na sua natureza pelos simples mortais.
Os fenômenos da natureza, fossem eles climáticos, astronômicos ou
ambientais, eram manifestações da vontade dos deuses e lembravam
aos mortais a quem eles deveriam render homenagens.
Como apresentamos até aqui, Ésquilo, em suas obras, fala de
uma Atenas ruralizada, temerosa dos deuses, lançando mão do saber
camponês, saber esse presente e incorporado a essa sociedade pelo me-
nos desde o VII século. Contudo, esse autor trágico enriquece ainda
mais nossa argumentação com as figuras de linguagem por ele utiliza-
das. Estamos falando, mais precisamente, das metáforas que ele utiliza
no decorrer de todas as suas peças e que vão indicar um mundo marca-
damente rural. Essas metáforas vão estar sempre associadas a práticas
e saberes provenientes da chóra. Observemos os seguintes trechos: “Ide
pastar sem um pastor longe daqui, pois deus nenhum desejaria tal re-
banho!” (ÉSQUILO. Os Persas, v. 259-260). E também sobre o mesmo
tema: “(...) como se fosse uma nuvem de abelhas, seguindo o condutor
de nossas forças ” (ÉSQUILO. Os Persas, v. 138-139).

Teatro Grego e Romano . 85


Que soprem sobre esta cidade brisas calmas vindas da
terra, do profundo mar, do céu, sob os raios propícios do
brilhante sol! Que o solo rico e os rebanhos nunca deixem
de dar prosperidade ao povo ateniense! Que a semente dos
homens seja protegida! Que os descuidosos da veneração
dos deuses sejam ceifados sem nenhuma piedade, pois como
jardineiro sempre cuidadoso gosto de ver os mortais justos
prosperarem como uma plantação livre de ervas daninhas.
(ÉSQUILO. Eumenides, v. 1195-1205).

As passagens acima deixam transparecer que Ésquilo nos apre-


senta, através de suas metáforas, uma Atenas rural, onde a realidade
campesina era comum e conhecida por todos. Uma Atenas aristocrá-
tica, com valores ligados à terra, onde os esquemas culturais estavam
ligados à vida no campo. Ésquilo, como nos lembra Charles Segal, está
muito mais próximo da cultura oral do passado, aproximando-se, desta
forma, muito mais da relação direta entre palavras e coisas e do papel
do poeta como porta-voz de valores ligados à comunidade (SEGAL,
C. 1994, p. 19). Esses valores apregoados por Ésquilo – generosidade,
coragem, atenção aos deuses – seriam aqueles ligados ao espaço rural,
aos valores dos arístoi. Através de suas metáforas podemos perceber
a criação de uma imagem rural para Atenas. Seguindo J. Dumortier
(1975, p. 1), encaramos essas metáforas como palavras entendidas
como imagens. Lembrando de Aristóteles, que observa: “A metáfora
difere pouco da imagem”(ARISTÓTELES. Retórica, Livro III, c. IV).
A sociedade de Ésquilo compartilha aspectos e preocupações
com a de Hesíodo. Tanto uma como outra valorizam o campo como
lugar de bem viver. As duas valorizam a agricultura como trabalho dig-
no e fundamental para a sobrevivência da pólis:
Que nunca os ventos cheios de miasmas soprem para matar
as vossas plantas! Graças a nós o fogo irresistível, cujo calor
consome a floração, nunca ultrapassará vossas fronteiras e o
triste mal destruidor das frutas não se aproximará de vossas
árvores! Que os campos generosos sempre aumentem
as vistosas ovelhas fecundas para terem belos cordeiros
gêmeos quando chegar a hora prefixada! E praza aos céus
que as riquezas guardadas no solo cheio de grandes tesouros
vos permitam retribuir aos deuses as dádivas do ganho
inesperado! (ÉSQUILO. Eumenides, v. 1237-1251).

86 . Ana Livia Bomfim Vieira


Ésquilo utiliza-se das metáforas relativas ao campo e das refe-
rências ao saber camponês em si não só para mostrar a relevância da
agricultura, mas também a do espaço rural como um todo, haja vista
a menção à pesca com uma analogia às redes utilizadas pelos pescado-
res: “(...) emaranhei-o numa rede indestrutível igual às manejadas pelos
pescadores (...)” (ÉSQUILO. Agamemnon, v. 1527) e à forma de abate
de um peixe: “(...) como se seus adversários fossem atuns ou peixes
outros, golpeavam, matavam a pancadas com restos de remos” (ÉS-
QUILO. Agamemnon, v. 554-556). Sem dúvida, estão presentes nesse
autor todos os valores ligados à chóra, à terra, essa como aquela que
nutre, que alimenta:
(...) aos vossos filhos e à terra maternal, na qual vos espo-
jastes no seu solo benfazejo quando éreis criança, que se
encarregou de todos os cuidados da vossa educação e vos
nutriu para que fôsseis cidadãos fiéis e a protegêsseis com os
vossos escudos na necessidade presente. Digo-vos que até
o céu está por nós; porque desde o dia que nos assediaram,
a guerra, graças aos deuses, decorre cada vez mais a nosso
favor. Mas hoje o adivinho falou: este pastor de pássaros que,
sem o auxílio do fogo, observa pelo ouvido e pelo espírito os
augúrios fatídicos com uma ciência infalível, este mestre dos
presságios estraídos do vôo das aves, (...) (ÉSQUILO. Os Sete
Contra Tebas, v. 18-29).

A terra é o bem mais valioso, a mãe geradora, a riqueza dos cam-


poneses, a formadora dos cidadãos. É da terra que o homem de bem
deve retirar o seu sustento e os seus valores morais. É no campo que
o cidadão se forma, ou melhor, é através dos valores rurais que o ate-
niense se completa, se constitui, se transforma em um homem valoroso
e digno de sua pólis. Estes valores ligados à terra são os valores aristo-
cráticos dos bem nascidos. E o melhor saber para representá-lo é o
do camponês, já que ele está ligado, eminentemente, à terra, ao espaço
rural. E esse saber fazia parte do cotidiano dos homens, era por todos
conhecido. Podemos afirmar isso levando em conta o papel do teatro
neste quinto século. O teatro era um espaço de discussão dos proble-
mas e realidades dessa sociedade. A tragédia não poderia apresentar
algo que não fosse conhecido de quem a assistisse. Ela contribui, inclu-
sive, para a construção de identidade entre os cidadãos. A tragédia une
os atenienses em torno das instituições democráticas. Ela tem a função
Teatro Grego e Romano . 87
de questionar a sociedade (VERNANT; VIDAL-NAQUET, 1988, p.
23), e Ésquilo, como um homem de seu tempo, apresentou uma Atenas
ruralizada, com valores aristocráticos, revelando com isso um conflito
já existente entre campo e cidade, a respeito do qual o autor se posicio-
na ao lado da chóra e de seus valores e saberes.

CONCLUSÃO

Com este trabalho, objetivamos demonstrar que a V século ate-


niense conheceu um processo de mudanças nos esquemas culturais.
Esses esquemas estavam associados ao campo vinculando à chóra a
procedência dos valores políades; vão posteriormente se ligar ao espa-
ço urbano de Atenas. Não tratamos deste aspecto no texto, mas isso
pode ser verificado, por exemplo, nas tragédias de Eurípides, um poeta
eminentemente citadino e vinculado aos novos saberes urbanos.
Há, portanto, uma tendência à valoração da ásty como o lugar
ideal, como o lugar que melhor representa essa Atenas. Essa valoração
do espaço urbano em detrimento do rural não foi gratuita. Existiam
segmentos sociais, urbanos, que questionavam a associação do ideal
do bom cidadão ao ideal do homem do campo, que, na verdade, repre-
sentava a aristocracia, as fortunas advindas da terra. Esses segmentos
urbanos – comerciantes, artesãos, homens ligados à marinha – deti-
nham um poder econômico, tinham uma ampla participação política,
contudo, estavam dissociados do “status” e dos valores morais que for-
mavam o polítes ateniense. Além disso, na segunda metade do quinto sé-
culo, Atenas encontra-se em um processo de desagregação, não sendo
mais a “grande senhora dos mares”. O sistema políade precisava ser
fortalecido. A forma encontrada foi vincular os valores antes associa-
dos aos arístoi, aos representantes dessa nova Atenas democrática, ou
seja, os setores urbanos.
O debate entre saber sofista e saber tradicional era, na verdade,
um debate entre democracia e aristocracia. O confronto entre um pas-
sado de valores rurais, valores ligados ao nascimento e um presente de
valores ligados à ásty, valores urbanos, que poderiam ser adquiridos por
qualquer um. Este debate aparece nas peças de Eurípides e Aristófa-
nes, esse retomando o ideal de uma Atenas rural, a que expomos aqui
através de Ésquilo.
A Atenas apresentada por Ésquilo, para a primeira metade do
quinto século, é uma sociedade ruralizada. E percebemos isso pelas
88 . Ana Livia Bomfim Vieira
inúmeras referências às práticas rurais e ao saber camponês. Essas re-
ferências vão praticamente desaparecer nas obras de Eurípides, na se-
gunda metade do referido século. Com a democracia radical, os grupos
desse regime vão silenciar tais referências a práticas associadas aos arís-
toi. É reforçada, então, a hipótese de uma opção pelo espaço urbano
como uma forma de ressaltar e reafirmar o sistema democrático. E,
para isso, as práticas ligadas aos arístoi desapareceram das produções
culturais dessa sociedade. Era necessário reforçar práticas e segmentos
sociais ligados a essa democracia. E esses segmentos não estavam no
campo. Eles encontravam-se no espaço da ásty.

DOCUMENTAÇÃO TEXTUAL

AESCHYLUS. Suppliant Maidens; Persians; Prometheus; Seven Against The-


bes. vol I, London: Loeb, 1996.
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London: Loeb, 1996.
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Pierre (org). O Homem Grego. Lisboa: Editorial Presença, 1994.
VERNANT, Jean-Pierre; VIDAL-NAQUET, Pierre. Mito e Tragédia na
Grécia Antiga. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1988.

90 . Ana Livia Bomfim Vieira


Os sonhos de Io:
uma abordagem psicanalítica de
Prometeu Acorrentado

Patricia Vivian von Benkö Horvat

É consenso que a psicanálise dialoga desde sua origem com a


tragédia e ambas apoiam-se nos conflitos oriundos da impossibilidade
de harmonização dos hiatos entre a vida individual e a vida política.
Na leitura de Prometeu Acorrentado, atribuída a Ésquilo, pode-se fazer
uma analogia entre o que a tragédia apresenta e a prática psicanalítica
na atualidade. Nossa proposta é analisar um episódio desta tragédia,
no qual é veiculada uma imagem da função e do papel das mulheres na
sociedade,1 a partir da personagem Io, no terceiro episódio. A sociedade
ateniense era androcêntrica,2 e nas representações teatrais apresentavam-
se masculinidade e feminilidade como atributos essenciais, explicados
pela “natureza” de cada um dos sexos. No entanto, tais atributos ditos

1
Conforme Judith Butler, consideraremos o gênero como “performativo”,
ou seja, constituindo uma identidade proposta por um processo político e
educacional, entendendo-o como uma construção social, culturalmente con-
tingente, e não como uma concretização de uma distinção “biológica”, as-
sumindo que “verdades” sobre as diferenças entre homens e mulheres são
frutos de discurso e de práticas sociais e culturais: BUTLER, J. Gender Trouble:
Feminism and Subversion of Identity (Thinking Gender) New York, Rou-
tledge, 1990, p. 25.
2
Termo que, segundo Ursula King, surgiu na sociologia norte-americana do
início do século XIX, designando a adequação da experiência masculina nas
sociedades europeias e europeizadas ocidentais com a experiência humana
geral, e que deveria ser, portanto, aceita como norma por mulheres e homens,
universalmente: KING, U. Religion and Gender: Embedded patterns, in-
terwoven frameworks. In: MEDDE, T. A; WIESNER-HANKS, M.E. (edd.).
A Companion to Gender History.The Blackwell Publishing Ltd. 2004, p. 73.
Teatro Grego e Romano . 91
“naturais” são elementos culturalmente incutidos nos seres humanos
por um longo processo educativo (BELTRÃO; HORVAT, 2010, p. 2).
A tragédia apresenta o castigo do titã Prometeu, protetor dos
seres humanos, a quem concedeu o fogo roubado de Zeus, e ensinou as
artes. Zeus, como punição, ordena Cratos, o poder, Bias, a violência, e
Hefestos, o deus metalúrgico, a acorrentá-lo na Cítia,3 região escarpada
e selvagem, perto do mar e fora dos limites do espaço humano (“Deves
cumprir à risca, Hefesto, o édito/ paterno: aprisionar o criminoso/
com fortes cabos de aço no rochedo/ íngreme”, v. 3-6). Prometeu está
preso à rocha e ali permanece (“Que aprenda a dar valor à voz de
Zeus”. v. 10) e a peça consiste nos diálogos entre o Titã e seus visitantes
(BELTRÃO; HORVAT, 2010, p. 7).
Io, filha do deus-rio Ínaco, surge repentinamente no terceiro
episódio, reclamando ser perseguida por um moscardo, ou pelo espectro
de Argos, o pastor de mil olhos. A personagem conta sua história:
Zeus tomou-se de desejo por ela, que o recusou, acusando-o de um
desejo ignóbil, posto que ela era uma sacerdotisa do palácio de Hera
(TORRANO, 2009, p. 349) e, portanto, destinada à castidade. Furioso,
Zeus forçou seu pai Ínaco, o deus-rio, filho do Oceano, a expulsá-la
de casa, e em sua testa brotaram chifres de vaca. A moça-vaca passou
a ser vigiada por Argos que, morto por Hermes, assombrava-a sob a
forma de um moscardo monstruoso, que não cessava de picá-la e a
condenava a fugir incessantemente dele. Na tragédia, Prometeu indica
a Io a longa viagem que faria, até seu término, às margens do Nilo,
onde estaria destinada a dar à luz Épafo, de quem descenderiam as
Danaides e, após muitas gerações, Héracles, o libertador de Prometeu.
O episódio termina abruptamente, com o retorno do moscardo, que a
espanta, e a fuga desesperada de Io, seguindo-se um estásimo4 do Coro,
lamentando a triste sina de Io.
Consideramos, então, como uma possibilidade de interpretação
do terceiro episódio de Prometeu Acorrentado, que Prometeu desem-
penha um papel análogo ao de um psicanalista a quem Io, mimetizando
a histeria, endereça a demanda de ajuda para a compreensão das
razões do seu sofrimento. Nesta tragédia, identificamos alguns
conceitos cunhados pela psicanálise, principalmente no que concerne

3
Região ao norte do Mar Negro.
4
Canto com o Coro parado no centro da orchestra.
92 . Patricia Vivian von Benkö Horvat
à “cura pelas palavras”5, aos mecanismos oníricos, à configuração
dos sonhos e aos estudos sobre a histeria. Prometeu se reconhece
como decifrador dos mistérios da alma humana e como profeta das
ações divinas (“Classifiquei diversas profecias;/ figuras da vigília
destaquei/ dos sonhos, decifrei rumores árduos/ e os símbolos
plantados nos caminhos”, v. 484 -487) e Io encena os conflitos próprios
à histeria (“Em detalhe, relato ponto a ponto,/ sem esconder, contudo,
meu rubor:/ despencou sobre mim uma tormenta/ divina, o fim de
minha antiga forma”, v. 641-644) que subsistem até os dias atuais com
fisionomia semelhante.
Entendemos, aqui, a histeria como um sintoma a partir do qual a
psicanálise infere fantasias inconscientes obstaculizadas pela repressão
(FREUD, 1991, II, p. 36-39), e seguimos a premissa psicanalítica segun-
do a qual o sofrimento psíquico remete à sexualidade, considerando o
“Mito de Édipo” freudiano como uma alegoria do mito grego, particu-
lar à psicanálise. Consideramos, também, a proposta lacaniana de que
os discursos, expressos pelas diversas formas de linguagem, são laços
sociais, modos de se pôr no mundo e de estabelecer relações interpes-
soais (QUINET, 2009, p. 33, passim). Não desenvolveremos uma leitura
arqueológica, mas, sim, uma leitura da peça em outro contexto cultural,
que aceita e subsume o anacronismo implícito neste salto temporal.
Io e Prometeu são interlocutores que buscam minimizar seus
problemas e ansiedades, iluminando-os e esclarecendo-os através da
linguagem verbal, e é explícita a sugestão de que a palavra pode prover
a cura para o sofrimento psicológico, originado, em geral, por um con-
flito entre os anseios íntimos e pulsionais6 e os estatutos da moralidade.
No verso 378 lemos: “palavras (logoi) curam o coração colérico?” na
tradução de Trajano Vieira; e “Não sabes, Prometeu, que as palavras
5
A “cura pelas palavras” é um termo utilizado por Bertha Pappenheim (des-
crita como Anna O.), paciente de Joseph Breuer, colega de Freud, para clas-
sificar o processo psicanalítico, indicando que o relato que fazia de suas his-
tórias induzia à mitigação de suas aflições. Enquanto Anna O. se referia às
palavras dos pacientes, Aristóteles, na direção inversa do diálogo, referindo-se
às palavras do “terapeuta”, já considerava os efeitos curativos da sugestão
verbal (cf. ENTRALGO, P. L. La curación por la palabra em la antigüedad clásica.
Barcelona: Anthropos Editorial, 2005).
6
O termo “pulsão”, em alemão Trieb, remete ao termo latino pulsio, e é utili-
zado para marcar a sua diferença de “instinto”. Significa, para a psicanálise, o
impulso para uma ação em direção a um objetivo não intencional.
Teatro Grego e Romano . 93
são médicos/ capazes de curar teu mal, este rancor?” v. 498-499, na
tradução de Mário da Gama Cury. Io, como uma analisante, conta seus
sonhos, “com pudor”, a Prometeu e ao Coro das Oceânides, que incen-
tivam o seu relato e a escutam compassivas.
Temos em vista que a psicanálise se apoia no acordo social que
institui os significados da cultura ocidental moderna, tomados como
fundamento, e que esta se constitui como teoria e prática pela aborda-
gem dos termos da linguagem tais como se apresentam na cultura,
com a fisionomia do pressuposto cultural. A psicanálise estabelece seu
referencial na expressão individual, referindo-se ao sujeito, seu ob-
jeto e, observando os fatos individuais humanos com ênfase no
código linguístico, procede a uma abstração do contexto espaço-tem-
poral, remetendo-os à historicidade dos sujeitos individualizados em
um procedimento de desconstrução dos significados constituídos e ins-
titucionalizados pela sociedade. Neste procedimento, a psicanálise
opera também uma reconstrução dos significados que os isola do
âmbito histórico-cultural e os realoca no particular (BOWLBY, 2007,
p. 49), segundo uma axiologia em que a estrutura da subjetividade
adquire um caráter de universalidade, ou seja, torna-se comum aos
seres humanos em diversos tempos e lugares, o que permite o esta-
belecimento de um sistema teórico-metodológico próprio, tornando-se
ciência e prática interpretativa.
Cumpre esclarecer que os sonhos, que orientaram a hermenêutica
da histeria implementada por Freud, exemplificam o funcionamento
da linguagem do inconsciente, cuja característica é ser estruturado
como uma linguagem, e, em sua formação, destacam-se três operações
básicas: a condensação, o deslocamento, e a figuração (FREUD, 1987, p. 325-
331). O ponto de partida de Freud para a classificação dessas operações
do inconsciente como linguagem foi a interpretação dos sonhos, que
trazem um universo cognitivo obscuro à luz do dia, e o expressam
de modo aparentemente truncado. Na condensação, a brevidade das
figurações e percursos apresentados nos sonhos é resultado de uma
economia linguística que reduz os pensamentos a serem representados
ao seu mínimo possível, e a um encurtamento retórico determinado
pelas permissões das restrições morais que freiam as expressões do
imaginário onírico, omitindo lacunarmente alguns elementos do
conteúdo e reiterando outros. No deslocamento, a manifestação do
conteúdo latente é também obliterada pela censura, o essencial foge

94 . Patricia Vivian von Benkö Horvat


à apresentação, e o eixo da história é centrado em alguma proposição
irrelevante, como que fugindo ao assunto e deformando a ação ex-
pressiva.
Ambos os processos de transformação do material referencial dos
sonhos pertencem à instância figurativa do imaginário, que transpassa as
instâncias da subjetividade. A instância figurativa, seja do imaginário ou
da racionalidade, opera em uma temporalidade não linear, é a instância
da concomitância. As imagens são apreendidas em uma totalidade
não linear, sobrepondo-se, esticando-se, de acordo com um desejo de
apreensão, isento dos pressupostos lógicos “o sujeito não é, mas se faz
e desfaz em uma topologia complexa em que se incluem o outro e seu
discurso” (KRISTEVA, 1988, p. 245). Além disso, na figuração colo-
cam-se em um mesmo topos elementos imagéticos aparentemente
inadequados uns aos outros. Esses elementos estão representados em
conjunto por similitude e por acordo arbitrário, não importando se
são contraditórios e/ou excludentes. Para o inconsciente não há leis
de exclusão formal, o único juízo é o moral, que institui a negação,
e o que é negado representa igualmente a representação do que é
afirmado, com a diferença de denotar, como acréscimo ao significado,
a incidência da negação. No que concerne às obras de arte e, como
tal, a tragédia, o que importa é representar o possível e não o real. A
ação poietica é a mesma, e o que a diferencia do trabalho onírico é a sua
intencionalidade, perpassada pela racionalidade e a maestria técnica que
rege a sua execução. As regras ilógicas da organização dos significantes
desta linguagem imagética também existem nas representações coletivas,
populares, tais como mitos, lendas, provérbios, jogos de palavras, em
que o significante, ou seja, o signo apresentado, afasta o significado
gramaticalmente usual para dar lugar a outros e sucessivos significados.
Esses procedimentos oblíquos de construção linguística obser-
vados pela psicanálise, tais como os deslizamentos dos significantes
em relação aos significados teoricamente instituídos, podem ser exem-
plificados pelos procedimentos da construção poética. Em tais pro-
cedimentos, o significante precede o sentido: no caso da arte, por
uma operação da linguagem que responde à realização de uma forma
necessária à produção da imagem estética (aesthesis) e, no caso das ex-
pressões afetivas deflagradas em sonhos ou discursos não remetentes à
norma geral de comunicação – que respondem à necessidade de eclosão
de sentimentos aflitivos – , pelas operações de metáfora e metonímia.

Teatro Grego e Romano . 95


Estas duas figuras de linguagem, em que a substituição significante busca
um sentido que aponta para uma função expressiva, são observadas pela
prática psicanalítica com uma acuidade específica e mais claramente do
que em outros tipos de hermenêutica das sinuosidades da linguagem.
No caso da metáfora, a substituição opera por meio da similaridade
semântica ou homofônica que, caminhando por cadeias associativas,
remete a significados inconscientes e, no caso da metonímia, o que
ocorre é o deslocamento de valores que deriva em um deslocamento
tópico de significado, cujo sentido é uma imagem eidética7 passível de
ser representada e cuja interpretação se dá por meio de um percurso
retroativo de associações que indica o significado obliterado.
Foi a partir das indagações acerca das manifestações da histeria
que a psicanálise colocou em pauta a expressão cênica da linguagem,
aventando a possibilidade da existência de regras relativamente estáveis
segundo as quais o corpo responde linguisticamente, em vez de fisio-
logicamente, às demandas do sujeito em sua relação com o mundo, e
estabelecendo a constância de um conjunto típico de manifestações,
constituinte de uma sintomatologia no topos corporal que tem sua
etiologia no topos linguístico.8 De acordo com Freud:
[...] verificaremos que as experiências psíquicas que formam
o conteúdo dos ataques histéricos têm uma característica que
lhes é comum. Todas são impressões que não conseguiram encontrar
uma descarga adequada, seja porque o paciente se recusa a
enfrentá-las, por temor de conflitos mentais angustiantes,
seja porque (tal como ocorre no caso de impressões sexuais)
o paciente se sente proibido de agir, por timidez ou condição
social, ou, finalmente, porque recebeu essas impressões num
estado em que seu sistema nervoso estava impossibilitado
de executar a tarefa de eliminá-las (FREUD, 1991, I, p. 190).

7
O termo “eidética” remete ao grego eidós, e “imagem eidética” significa uma
ideia em forma de imagem.
8
Não trataremos dos processos de internalização e obstaculização dos símbo-
los linguísticos, presentes nos escritos freudianos, pois ultrapassam o objetivo
deste capítulo. Trataremos, aqui, de um processo de “dessubjetivação”, ou
seja, de uma forma aparentemente espontânea de “exteriorização do indi-
zível”, quando, cultural e circunstancialmente, a fala e as demais formas de
expressão não encontram lugar (cf. SIMON. 1978, p. 241 passim).
96 . Patricia Vivian von Benkö Horvat
A personagem Io apresenta características da histeria feminina
que podem ser comparadas às “impressões que não conseguiram
encontrar uma descarga adequada”, descritas por Freud, a partir das
quais podemos tecer interpretações psicanaliticamente coerentes sobre
a histeria e pelas quais depreende-se a universalidade de estruturas
psíquicas constituintes do ser humano.

O episódio de Io no Prometeu Acorrentado


Prometeu roubou o fogo, entregando-o aos seres humanos e,
por isso, é vítima de Zeus. Io, sua interlocutora no terceiro episódio da
tragédia, recusou-se à união carnal com Zeus e, por isso, é vítima de
sua ira, desenvolvendo distúrbios que podem ser interpretados como
histéricos. Alguns especialistas compreenderam os sinais comporta-
mentais e físicos de Io como manifestações de mania, ou possessão re-
ligiosa, a enfatizar o caráter sagrado dos seus sofrimentos (GRIFFITH,
1983, p. 152-220), mas podem ser vistos, à luz da interpretação psica-
nalítica, como representação cênica dos sintomas de histeria conforme
descritos na medicina grega, um mal que Hipócrates atribuiu a mulhe-
res sem filhos (isto é, mulheres que escapavam ao ordenamento social
ateniense)9 e que, segundo a medicina ateniense, só podia ser curado
com a gravidez e o parto, que desobstruíam os tubos sanguíneos.
A histeria é considerada ainda hoje a doença feminina por exce-
lência, e esta ideia remete a modelos do corpo e do psiquismo femini-
nos influenciados pelo discurso médico ateniense. Para Phyllis Katz,
por exemplo, o episódio de Io apresenta um rito de passagem e reforça
uma lição para a comunidade: a necessária transição das meninas ate-
nienses para o papel social de mães submissas às necessidades masculi-
nas (KATZ, 1999, p. 131).
9
Os textos do Corpus Hippocraticum podem ser acessados, no grego e em tra-
dução francesa, pelo sítio da Universitè Paris V - René Descartes, na Biblio-
thèque Interuniversitaire de Médecine: http://web2.bium.univ-paris5.fr/liva
nc/?cote=34859x08&do=chapitre. O principal texto sobre o tema é o “Sobre
as Virgens”, I, 4-9, no qual é exposta a origem do estado febril que levava
ao delírio deambulatório, um mal causado pela retenção do sangue no útero,
cuja cura era decorrente do parto, que desobstruía o sangue, recuperando sua
circulação normal. Interessante é notar a prática médica para a verificação de
distúrbios no útero: pela introdução de um dente de alho na vagina, verifica-
va-se o hálito da paciente no dia seguinte. Caso a paciente apresentasse um
terrível mau hálito, era considerada sã.
Teatro Grego e Romano . 97
Prometeu, pro methis, tem a sagacidade de ver adiante, o futuro,10
e está colocado fora do convívio de todos, isolado do mundo dos
deuses e dos mortais, mas exposto à visita e à visão de todos, que,
segundo ele, se comprazem de seu sofrimento. No entanto, parece ser
o mundo que gira à sua volta, e ele, como um ímã titânico, atrai a pas-
sagem de visitantes, todos interessados naquele que desafiou o gran-
de Zeus, detentor do poder, recém-vitorioso da Guerra de Titãs que
lhe garantiu o domínio sobre os deuses e sobre o mundo, compor-
tando-se, no universo diegético da tragédia, como o jovem tirano
denunciado por Prometeu. O Titã detém o conhecimento que fará,
no futuro e a partir da pacificação da violência de Zeus, com que o
grande deus se consolide no poder e se torne o que será na religião
grega: o princípio da sabedoria, o instituto do Grande Outro.11 Zeus
representado na peça como tirano, está constantemente atento a
Prometeu, tal que, no final da tragédia, envia seu filho e fiel escudeiro
Hermes para descobrir o segredo do seu futuro, que só Prometeu sabia
e que lhe garantiria governar eternamente.
A tragédia põe em cena um tempo no qual Zeus ainda não é
um deus político, e pode ser considerada a representação de um mito
de fundação. Zeus, a partir de seu embate com o sophos Prometeu,
aprenderá a ser o princípio da lei e da ordem, que o caracteriza no
período histórico grego. Na peça, é emblemática a atitude violenta de
Zeus para com todo aquele que não compartilha do estatuto simbólico
da obediência inquestionável ao deus, cuja dominação é exercida com
laivos de crueldade e cujo desejo ainda não reconhece interdição (“Verás
que o duro rei não presta contas”, v. 324 e “o coração de Zeus, nada
o comove:/ éduro quem exerce poder novo”, v. 34-25). Ao mesmo
tempo em que lamenta, Prometeu suporta suas penas, reconhecendo
10
É interessante pensar sobre a dimensão temporal da psicanálise, dimensão
instaurada por Freud. A origem do que causa o relato (o relato presente do ana-
lisante) está no passado, mas, escondido nas dobras da memória, é desvelado
no futuro (o presente da fala). Este f­uturo presente ressignifica o passado, vendo
além – pro methis –, mas, igualmente, recria o passado, posto que depende das
experiências, das vivências em todos os futuros passados vividos. Prometheus vê
adiante, no jogo passado-presente-futuro deste presente triplo que é seu discurso.
11
A expressão Grande Outro é utilizada por Lacan para significar a instân-
cia simbólica que determina a subjetividade, a Lei. Representa os estatutos
simbólicos internalizados, constituintes da subjetividade, e que determinam a
relação do sujeito com seus desejos.
98 . Patricia Vivian von Benkö Horvat
a castração simbólica (temporária) por Zeus, seu sobrinho e novo
rei dos deuses (“Fundamental levar de modo leve/ o destino fixado
pelo fado,/ sabendo que o vigor do Necessário/não vacila”, v. 103-
106).
O terceiro episódio inicia com a entrada desesperada de Io,
diante do Prometeu acorrentado, debatendo-se a esmo para espantar o
moscardo, espécie de mosca-de-cavalos, que a agride incessantemente
com seu ferrão.12 A primeira fala de Io é de compaixão em relação a
Prometeu, que vê agrilhoado à rocha, em pé, sujeito às intempéries
e com a pele, a interface com o mundo, rachada pelo sol causticante,
padecendo de um sofrimento tão atroz como o dela. Io pergunta a
Prometeu que erros cometeu, identificando-se com a sua situação.
Há uma empatia, a mesma que condiciona a relação psicanalítica, que
poderia ser vista como um estado transferencial em relação ao sujeito
suposto saber.13
Que raça, que país, que nome tem
o prisioneiro que a intempérie agride,
com aço preso àpedra? Que erros graves
explicam os suplícios que tu expias?
Por onde eu me extravio dolorida? (v. 561-565)

Io, desamparada, interpela Prometeu com a demanda de uma


explicação sobre a razão do seu suplício e perguntando que lugar é
aquele aonde sua deriva a levou. Que situação é aquela pela qual passa?
12
Na peça original, em grego, Io entra gritando o seu nome, Io!, Io!, um som
em staccatto, uma interjeição que indica o ato de pular. A mesma interjeição
que inicia os cantos das procissões religiosas, que se chamam Io-Apollo, Io-
Bacchus, segundo o deus que homenageiam.
13
A expressão sujeito suposto saber representa um topos imaginário no qual um
sujeito coloca outro, supondo que este outro sabe algo sobre ele, ou sobre um
assunto, que ele mesmo não sabe. Por exemplo, o analisante crê que o analista
sabe algo sobre ele, que ele mesmo não sabe, como o estudante, que reputa
ao professor os saberes que desconhece e que supõe existirem, e como os fiéis
que supõe que os ministros religiosos detêm o conhecimento dos mistérios. É
a relação em que uma pessoa supõe que a outra detenha um saber – e, como
tal, um poder –, transferindo para a outra o papel de um ser que existe na sua
imaginação, tornando-a o sujeito da cena. O sujeito suposto saber é uma das figu-
ras em que se aloca a transferência e que configura a relação paciente/agente, com
a delegação ao agente, do poder e da maestria.
Teatro Grego e Romano . 99
Lamenta que o moscardo a fere; este, “sombra de Argos”, é definido
como imagem – eidolon, ao mesmo tempo ídolo e espelho –, espectro,
fantasma de Argos, o pastor de mil olhos, a mando de Hera protetor de
Io, morto por Hermes por ordem de Zeus. Argos que, filho da Terra,
nem morto à terra volta; seu espectro persegue Io com seu ferrão.
Em seus sonhos, a transmutação de Argos em um moscardo com seu
ferrão insistente poderia representar o deslocamento do atributo fálico
de Zeus.
Ai! (Ââhè hé!)
De novo o moscardo me fere,
sombra de Argos, filho da Terra.
Terra, me ajuda. Tremo ao ver
as mil retinas do vaqueiro.
Com mirada pérfida avança,
pois nem morto a terra o oculta.
Sai do inferno e vem à caça
desta infeliz desnorteada,
faminta a vagar pela praia (v. 566-574).

Ela continua a sua errância, admoestada pelo ferrão de Argos e


pede à Terra, a origem, a grande mãe,14 da qual provêm todos os deu-
ses, que a ajude a livrar-se do mal que a aflige. Em Argos é reiterada a
visualidade, tanto por ter o corpo coberto por olhos, como pelo fato
de ser o pastor, guardador, que vigia rebanhos e olha por Io. É a reci-
procidade de Io, ainda que inconfessa, que enseja o conflito, mediado
constantemente pela vigilância do supereu, o caráter de interdição que

14
“Sim, bem primeiro nasceu Caos, depois também/ Terra de amplo seio,
de todos sede irresvalável sempre” (Hesíodo. Teogonia, v. 116-117). Terra, ou
Gaia, a grande mãe, forja o aço de suas entranhas, entrega a foice dentada a
Cronos, seu filho, que castra o pai, o Céu, que cobria a terra de tal modo que
abafava e prendia os filhos em seu interior. Cronos, o Tempo, castra o pai
Uranos, o Céu, que se solta da Terra e deixa os filhos virem à luz. Cronos, de-
pois de castrar o Céu, toma o poder, como rei dos deuses, mas, com medo de
que seus filhos o destronassem, torna-se também tirânico e come seus filhos,
gerados por Reia. Destes, a mais velha é Hestia, deusa do fogo doméstico, e
o mais jovem é Zeus. É Terra quem ensina Reia, deusa mulher de Cronos,
mãe dos Olímpicos, um estratagema para enganar Cronos e salvar seus filhos.
Esses filhos provocarão a guerra de Titãs, na qual Zeus, com o auxílio de seus
irmãos e do tio, Prometeu, derrota Cronos e assume o poder.
100 . Patricia Vivian von Benkö Horvat
opera as substituições simbólicas do objeto interditado e das experiên-
cias traumáticas, que, convertidas, configuram o sintoma.
Ai! (Io iò pópoil)
Por onde o descaminho
me faz rondar sem rumo?
Satúrneo,15 que erro meu
explica este martírio?
Oprimes com terror
– frenético ferrão –
uma mulher sem siso.
Que teu fogo me queime,
que a terra me acoberte,16
me tenham no repasto
duros monstros marinhos;
aceita, rei, meu rogo.
Sei bem como extenua
andar ao léu; fugir
dos males não me é dado. Escutas
o rogo da moça bicorne? (v. 576-589).

Hera destinara o vaqueiro de mil olhos, protetor de seu rebanho


sagrado, para proteger sua sacerdotisa que, no entanto, nutre e reprime
o desejo por Zeus. A existência desse desejo, que Io vagamente expressa
ao dizer de si mesma que lhe falta o bom-senso (siso), abriu espaço para
que Hermes matasse o vaqueiro, permitindo que Zeus se aproximasse
da moça. Morto, Argos passa a persegui-la incessantemente, com a
permissão de Hera, a quem a reciprocidade da moça a Zeus, ainda
que ambígua, não escapara. Em Io, vemos em cena a antinomia entre
o desejo e o repúdio, ela reitera o seu próprio castigo ao associar o
desfrute (gozo)17 à punição. Ela diz: “... o açoite divino me persegue/

15
Satúrneo é aqui uma liberdade do tradutor, pois no texto grego Zeus é dito
Cronida e não Satúrneo, e vez ou outra os dois deuses são confundidos um
com o outro nas traduções. Prometeu é irmão de Cronos, tio de Zeus. Por
sua, vez Saturno é um deus itálico, não grego.
16
No texto em grego, Io pede a Zeus que a cubra com terra, uma referência
ao ritual de sepultamento dos mortos.
17
O termo “gozo” (Genuss em alemão e juissance em francês) “designa a ação
de fazer uso de um bem com a finalidade de retirar dele as satisfações que ele
supostamente proporciona” (ROUDINESCO, 1998, s.v. Gozo), em psicanáli-
Teatro Grego e Romano . 101
vítima do ferrão, por toda terra” (v. 680-681), supondo o erro que
desconhece, denegado e desresponsabilizando-se.
Io fala novamente em eidolon Argon, imagem de Argos, cuja
perseguição era a causa do seu frenesi. Destacamos aqui dois níveis de
significação: no primeiro, Io transforma-se em vaca, como na versão
tradicional do mito, e é atormentada por um moscardo, fisicamente
real; no segundo, Io, a mulher, é atormentada por alucinações táteis (v.
566), visuais (v. 568), e auditivas (v. 574). Nas linhas 673-5, por exemplo,
ela descreve transformações físicas e mentais, mas em 878-886, seu
tormento é descrito com sendo tanto manía, quanto um sofrimento
físico devido a ferimentos (GRIFFITH, 1983, p. 195).
Ai! Ai! Pobre de mim! Que espasmo súbito,
que acesso delirante já me queima?
O ferrão do moscardo me transtorna
como se fosse um aguilhão de fogo!
Meu coração espavorido palpita
no fundo do meu peito sem parar!
Meus olhos giram convulsivamente.
Lançada para fora do caminho
por um sopro de raiva furiosa,
já não consigo dominar a língua
E mil pensamentos desencontrados

se, implica a ideia de uma transgressão à Lei, ao estabelecido como regra geral
e internalizado como o instituído. Sem a interdição o sujeito investiria tanta
energia na busca do prazer que se fundiria ao objeto do desejo, ocorrendo
uma clivagem do sujeito, neste movimento complexo e repetitivo, a pulsão
que direciona ao prazer, à “vida”, e a pulsão que direciona ao aniquilamento,
à “morte”, estão imbricadas. Para Lacan, o gozo está intrinsecamente relacio-
nado à repetição, como em um mecanismo em que para se buscar o prazer é
necessário que haja a perspectiva de obstaculização da consecução, gerando
um desprazer e a necessidade de novo impulso de busca de prazer, em uma
circularidade sem fim que alimenta e realimenta o supereu, que é o instrumento
de obstaculização, recrudescendo as censuras subjetivas. Assim, o gozo con-
siste em forçar a barreira do princípio do prazer, sendo necessária uma trans-
gressão para lhe ter acesso e, por conseguinte, uma interdição a superar. “E se
o vínculo social se baseia numa renúncia à satisfação da pulsão, é justamente
porque esta pressupõe o gozo – no sentido jurídico do termo – de objetos
que poderiam ou pertencer a outros ou privá-los de seu gozo” (Lacan, apud
MIJOLLA, 2005, s.v. Gozo).
102 . Patricia Vivian von Benkö Horvat
debatem-se desordenadamente
nas vagas de terríveis sofrimentos.
(Prometeu acorrentado, v. 877-886)

O androcentrismo da sociedade ateniense, ao naturalizar e rei-


terar supostos atributos essenciais “masculinos” e “femininos”, encon-
trou no teatro um medium eficaz para a educação de seus membros,
e a inserção destes atributos em uma peça que apresenta perso-
nagens-chave de mitos fundadores tem uma função retórica
significativa. Io, incluída incomumente nesta tragédia, como uma
inovação de Ésquilo, que fundiu duas tradições míticas, a de Prometeu
e a de Io e as Danaides, é uma personagem própria aos mitos de
fundação da humanidade. Ela mesma vai fundar, no Egito, uma nova
raça de humanos, mais sofisticados do que a anterior, que entrara em
decadência devido à sua violência desenfreada.18 Sua punição é um
ensinamento que significa, então, a necessidade de que as mulheres
respondam ao requisito de terem filhos. A personagem Io padece por
seu desvio em relação à normatização social e por esquivar-se do desejo
masculino. A normatização social é o resultado do desejo masculino,
imposto, naturalizado e, através dos tempos, instituído como o
simbólico. Retratado na peça, o desejo de Zeus é o índice do Grande
Outro, que virá a instituir uma nova ordem simbólica, a do universal
masculino (“Zeus reina com leis próprias./ Contra os deuses de outrora/
ergue a lança orgulhoso./ A terra toda geme”, v. 403-406).
O supremo modelo da autoridade patriarcal (e real) de Zeus, cujo
título é também Zeus Pater, e suas inúmeras conquistas sexuais tendem
a reforçar sua dominância masculina e sua potência. Esse modelo de

18
Após a Guerra de Titãs, o roubo do fogo por Prometeu, e o envio de Pan-
dora, por Zeus, para puni-los, os seres humanos revelaram-se de uma belico-
sidade desenfreada. Com a paz estabelecida, no futuro da peça, entre Zeus
e Prometeu, com o primeiro aprendendo o segredo de bem governar, Zeus
decide pela exterminação necessária – com o apoio de Prometeu e de todos
os deuses – dos seres humanos. Mas, decide também pela renovação deste ser.
Trata-se do relato do dilúvio enviado, por ordem de Zeus, por todas as divin-
dades aquáticas à terra, e a recriação dos seres humanos a partir de Deucalião
e Pirra, filho e filha, respectivamente, de Prometeu e Epimeteu. Os novos
mortais foram gerados a partir de pedras lançadas pelo casal por cima de seus
ombros – segundo a mensagem de Hera: as pedras lançadas por Deucalião
tornaram-se homens; as pedras lançadas por Pirra, mulheres.
Teatro Grego e Romano . 103
dominância masculina (e promiscuidade) é reproduzido através do
reino humano. Há incontáveis passagens na tragédia grega em que uma
ou outra personagem expressa lealdade ao nome e à pessoa do pai, do
marido, do mestre (vivo ou morto); e tantas outras, em que obediência,
submissão, ou silêncio são exercitados pelas mulheres em nome
da autoridade paternal ou conjugal: “Mulheres, para uma mulher o
silêncio é melhor adorno” (SÓFOCLES, Ajax, 293). Usualmente estas
reiterações da sujeição feminina são aceitas sem refutação. E quando
uma personagem feminina decide atuar por sua própria iniciativa, o
resultado é quase desastroso, a não ser que ela seja uma grega buscando
escapar do assédio de um rei bárbaro, estrangeiro, como em Eurípedes
(Iphigenia em Tauris e Helena) (GRIFFITH, 2005, p. 341-342).
Io, diante do Titã que sabe o que foi e o que será, insiste em
conhecer seu futuro, ao que Prometeu aquiesce:
Por que não anunciar-me tudo já?
(...)
Pode ficar tranquilo; quero ouvi-lo.
Se é esse o teu desejo, então escuta. (v. 627-630)

Antes de Prometeu narrar o futuro de Io, para que conhecesse


o destino dos seus males, o Coro pede que ela própria narre o seu
passado, para que, só então, Prometeu comece a falar. Para fazer Io
lembrar e reproduzir suas experiências oníricas, o Coro, dirigindo-se a
Prometeu, ordena:
Ainda não! Partilha esse prazer.
que ela informe primeiro sua doença;
que relate sua sorte deplorável.
O restante do azar, saiba-o de ti (v. 631-634).

Ao que Prometeu diz a Io:


É teu dever satisfazê-las, Io.
Talvez deva lembrar-te: são tuas tias
Chorar a própria sorte, lamentá-la,
e ter em troca a lágrima do ouvinte
é um entretenimento muito digno (v. 635-639).

O Coro é composto pelas Oceânides, filhas do Oceano, irmãs de


Ínaco, pai de Io. Em grego, em vez de “são tuas tias”, é dito “são irmãs do
104 . Patricia Vivian von Benkö Horvat
teu pai”, aludindo ao pai como argumento de autoridade e como modo
de remetimento ao Grande Outro, ou seja, às regras do ordenamento
social. Prometeu dá um comando a Io, fundamentadona ordem familiar
e políade, da qual o Coro é a voz. Lembramos que o Coro representa a
voz das instituições simbólicas. Incentivada pelo Coro e por Prometeu,
segue-se a confissão dos sentimentos aflitivos e a indução à catarse:
Em detalhe, relato ponto a ponto,
sem esconder, contudo, meu rubor:
despencou sobre mim uma tormenta
divina, o fim de minha antiga forma.
Sombras noturnas, volteando assíduas,
repetiam conselhos veludosos:
(...)
Noite a noite tais sonhos me assaltavam,
até que fui ao pai, contei-lhe eu mesma
as visões que tomavam minhas noites (v. 641-657).

O primeiro verso do exórdio, que introduz o que será relatado


(“sem esconder contudo meu rubor” v. 643), sugere que Io tem noção
da necessidade tácita de cumprir o ordenamento do qual se esquivara
ao se tornar sacerdotisa do santuário de Hera, em Argos.19 O desejo
de Zeus é uma afronta a Hera, pois ele está invadindo uma região
que pertence a outra divindade e se imiscuindo em assuntos sagrados
concernentes a ela, tentando arrebatar sua sacerdotisa, o que pode ser
interpretado como uma disputa de poder entre Zeus e Hera, irmã mais
velha e casada com Zeus. O desejo de poder de Zeus sobre Hera é
expresso sob a forma de incontinência do desejo sexual em relação
à sua sacerdotisa. Io sofre as consequências do desmando tirânico
de Zeus, tornando-se vítima de uma competição que ultrapassa sua
própria compreensão. O olhar desejante de Zeus sobre ela desperta
a possibilidade de responsividade, e provoca a instauração de um
conflito entre uma proposta de vida – sua dedicação ao santuário – e
a obediência à vontade de Zeus. O ordenamento social e o reiterado
universo simbólico em que foi educada lhe incutiram o dever de
responder ao olhar masculino. Nesta ordem simbólica, às mulheres
cumpre aceder ao desejo masculino (SIMON, 1978, p. 96).

Hera é deusa patrona, protetora de Argos, como Athená Partenos o era de


19

Atenas e Medeia de Corinto.


Teatro Grego e Romano . 105
O conflito é a priori: por um lado, só às deusas é dado ter relativa
autonomia e às mortais, a cuja índole a servidão é inerente, não há
outra opção senão adotar integralmente uma feminilidade alegórica
culturalmente construída e naturalizada de acordo com o universo
simbólico, politicamente instituído, que lhes reserva o lugar de não
agentes do próprio desejo, apenas responsivas ao olhar masculino
e à necessidade política de procriar e reproduzir os valores sociais,
mantendo a estabilidade da polis. Por outro lado, há a insurgência de
desejos e de vontades advindos de instâncias próprias da sensibilidade
e caráter, sublimados, organizados pela experiência de vida e
exercitados no mundo epistêmico, racionalizados, e que são resultado
de uma maturação e autonomia que ultrapassam os conflitos edipianos
primários (SIMON, 1978, p. 239).20
... despencou sobre mim uma tormenta
divina, o fim de minha antiga forma.

20
Podemos aventar a hipótese, segundo a leitura psicanalítica, de que Io bus-
ca o amor de um pai simbólico, Zeus, colocando-se no lugar de uma mãe,
também simbólica, Hera. Para a psicanálise, o Complexo de Édipo, complexo
relacional criança, mãe, pai, próprio à estrutura familiar nuclear ocidental, é
um modelo explicativo que representa estruturalmente a constituição da sub-
jetividade e remete ao desejo amoroso de uma criança pelo genitor. O complexo
de Édipo tem estreita relação com a castração, que se traduz pela interdição por
um genitor, ao amor do outro genitor, dando ensejo à saída da tríade, para a
escolha de um objeto erótico e a busca de amor no mundo. Na tragédia em
pauta não há uma personagem investida no papel de mãe, mas Io se depara
com a “traição” por parte do pai, que a renega. Io, substituindo-o, aloca seu
erotismo no pai simbólico exterior, Zeus, e se identifica e se coloca no lugar
da mãe imaginária, Hera. Por outra vertente de leitura, podemos apontar para
as manifestações do sintoma de Io como uma encenação do discurso histé-
rico, considerando que, sendo os discursos modos de dominação, o agente
do discurso histérico busca a maestria sobre o desejo do outro, despertando
e manipulando o desejo do outro, desfrutando do prazer de negar-se à sua
consecução e de reincitá-lo, em um jogo produtor de uma suspensão que de-
sestabiliza o outro posto neste diálogo, como nos jogos de sedução amorosa.
A encenação deste jogo não deixa incólume a personagem que atua, posto
que a personagem histérica nesta encenação expressa também suas motiva-
ções, que permanecem inconscientes para ela, colocando-a em uma suspen-
são semelhante que se traduz por uma situação intrapsíquica conflitante que
igualmente a desestabiliza.
106 . Patricia Vivian von Benkö Horvat
Sombras noturnas, volteando assíduas,
repetiam conselhos veludosos:
“Por que prolongas tua virgindade,
moça de sorte? Ao teu alcance estão
núpcias máximas. Arde em Zeus o amor
dardo certeiro -; em ti vislumbra Vênus.
Não deves resistir ao leito dele.
(v. 644-652)

No verso 650, “Arde em Zeus o amor”, é clara a referência ao


desejo masculino, o termo é uma perífrase digna e eufemismo para
relação sexual, ao passo que “Não deves resistir”, conforme escrito
em grego, é um termo pejorativo para a decisão de Io de permanecer
virgem (GRIFFITH, 1983, p. 207). E é ela mesma que usa um termo
pejorativo para si. Io responde, portanto, com um sentimento de culpa
pela sua transgressão à naturalização do simbólico, cujo representante é
o interlocutor, Prometeu, que reitera o seu destino de ceder aos desejos
de Zeus e ser a progenitora de uma nova estirpe, incluindo Hércules,
que matará a águia (animal distintivo de Zeus) que come o fígado de
Prometeu, e, justiceiro, libertará o Titã do castigo do tirano. Prometeu
sabe que a ordem de Zeus será instituída no futuro, ou seja, a ordem
androcêntrica que substituirá a ordem titânica, na qual as deusas perderão
a isonomia. Assim, Io, como Leda, Danae, e outras heroínas míticas que
Zeus visitou sexualmente, e cujos mitos expressam a construção da
ordem simbólica masculina, não pode se furtar a responder a seu papel
na história dos deuses21. O sonho é imperativo:
Alcança Lerna, vai ao prado fértil,
onde teu pai tem pastos e estábulos:
que o olhar divino acalme o seu afã (v. 652-654).

21
As tragédias gregas... “justificam poeticamente a subordinação das mulheres,
estrangeiros e escravos. As vozes e a liberdade de agir que o drama confere
às mulheres se prestam amplamente à liberalização e, apesar das aparências,
ao seu contrário. Caracteres femininos acabam por serem os instrumentos
dos poetas homens para reafirmar a identidade e a supremacia masculinas...
Mas a premissa central é, talvez anacronicamente, política: implica fortemente
que a tragédia é inteira sobre a cidade e o lugar das mulheres”. MOSSMAN,
J. Women’s Voices. In: GREGORY, J. A. Companion to Greek tragedy. The
Blackwell Publishing Ltd, 2005.
Teatro Grego e Romano . 107
Lerna, que ficava a cinco milhas ao sul de Argos, área banhado
pelo mar, com prados profundos, é, na literatura grega, o local con-
vencional de encontros sexuais, como se pode ver em Homero (Ilíada,
14.346). A linha 654: “que o olhar divino acalme o seu afã”, ecoa o ver-
so 376:“até que Zeus modere a sua cólera”, que fala na luxúria e tem-
peramento forte, características dos jovens tiranos, como se apresenta
Zeus. A expressão está nitidamente vinculada ao discurso do sonho de
Io, e não há nenhuma justificava para o comportamento de Zeus além
do mero desejo sexual; mas a mitologia grega está cheia de belas jo-
vens que, voluntariamente ou não, se submetem ao desejo dos deuses.
Aquelas que resistem sofrem por isto, por exemplo, Cassandra, muitas
gerações depois de Io, condenada à presciência e ao descrédito por não
ceder aos desejos de Apolo (GRIFFITH, 1983, p. 207).
Noite a noite tais sonhos me assaltavam,
até que fui ao pai, contei-lhe eu mesma
as visões que tomavam minhas noites.
Para Delfos, Dodona,22 partem vários
consultores em busca de um informe:
ato, palavra, o que era caro aos deuses?
Retornam com oráculos ambíguos,
expressos em linguagem desconexa.
Ínaco enfim acolhe um sinal claro.
Ordena sem torneios que me expulsem
do palácio, de minha própria pátria,
errante e só até o fim do mundo (v. 655-665).

Para justificar o destino errante de Io, dada sua expulsão da


cidade e sua condenação a ser “estrangeira”, não há qualquer alusão a
algum erro cometido por Ínaco ou por Io, caso em que Zeus poderia
legitimamente, segundo o pensamento grego, simplesmente fulminar
a pólis de Ínaco com seus raios (GRIFFITH, 1983, p. 208-209). Trata-
se tão somente da reiteração de uma regra de obediência inconteste à
vontade de Zeus (“Ou o raio de Zeus, feição de fogo,/ fulminaria toda a
nossa raça”, v. 665-667).
“Errante e só até o fim do mundo”, é uma sentença que se perde
na tradução e na nossa experiência temporal, mas era reconhecida pe-
los espectadores à época da tragédia, e no texto em grego compõe uma
expressão utilizada como referência a animais sagrados que residiam e
22
Delfos é o oráculo de Apolo, e Dodona, o de Zeus.
108 . Patricia Vivian von Benkö Horvat
vagavam no território dos templos. É apropriada por Io, na tempora-
lidade do relato, antes de se tornar vaca (GRIFFITH, 1983, p. 208), o
que prenuncia a sua “transformação” neste animal e fornece um indí-
cio para a compreensão da produção do sintoma. Io está se consideran-
do, de antemão, um animal sagrado, para depois se transformar nele,
ou assim acreditar e produzir-se como tal. Sintomas não são aleatórios,
surgem da dicursividade, e Io se considera tal qual um animal sagrado,
não apenas sob a sua forma física, de animal que transita pelos tem-
plos, mas também, simbolicamente, com a realização do sintoma da
errância do sagrado, não localizado na estabilidade da mundaneidade,
pois imaginariamente o sagrado tem epifanias em qualquer tempo e
lugar (“despencou sobre mim uma tormenta/ divina, o fim de minha
antiga forma”, v. 643-644). A vivência do sonho erótico é inconciliável
com os pressupostos morais de uma sacerdotisa e só pode ser trazida
à consciência e narrada por meio de uma aproximação com a instância
do sagrado.
Sagrado é um termo derivado de sacer, no latim “separado”,
e sacrificium significa, literalmente, “fazer o sagrado” (ERNOUT;
MEILLET, 2001, s.v. sacer, sacrificium). O sagrado religioso é o conte-
údo manifesto do fenômeno insólito, que contrasta com a familiari-
dade habitual do que é natural, conhecido e imediatamente apreensí-
vel pelo entendimento. A hierofania é a aparição de uma singularidade
que pertence a um sistema ontológico diferente, passível de operar
uma ruptura no sistema habitual de ordenação, o kosmos, que poderia
derivar em cataclismas e ser fatal (ELIADE, 2002, p. 21, passim). É
no desconhecido que os seres humanos projetam seu imaginário
e o símbolo sagrado, receptáculo das forças incontroláveis, mágico-
religiosas, se torna objeto de veneração, por seu potencial de sublimida-
de e de temor, pelo potencial de dissolução do estabelecido. Assim, Io
sacraliza seu sintoma da melhor maneira que encontrou, circundando
os escrúpulos de sua consciência moral e transformando-se em uma
hierofania, uma vaca sagrada, e desse modo opera uma pseudo-recon-
ciliação com a moralidade da ordem simbólica que concomitantemen-
te incita e proíbe aquilo que ela percebe como transgressão. Nestes
termos, o universal simbólico da teoria psicanalítica corresponderia à
ordem simbólica do âmbito dos estudos culturais e seria um substrato
cultural sacralizado que impregna o inconsciente. A partir destas con-
siderações, poderíamos depreender o deslocamento operado no sonho
de Io, do âmbito sexual para o sagrado.
Teatro Grego e Romano . 109
Ainda assim, as coerções morais de Io não permitem uma
resolução feliz na construção do sonho: o desfecho é punitivo. Io induz,
com seu relato, que na vida real seria desnecessário, a reação do seu pai
(“até que fui ao pai, contei-lhe eu mesma / as visões que tomavam
minhas noites”, v. 656-657). Ela colocara, diante do seu pai, um outro
pai maior que ele e o obrigava a tomar atitudes que, inevitavelmente,
derivariam na obediência a Zeus, procedendo quase como em uma
revanche, em uma atitude de perversão do esperado, que contrastaria
com a passividade a que era obrigada.
A nós ambos contrário, aceita o oráculo
de Lóxias e me expulsa do palácio,
a entrada me lacrando. Com violência,
pelo freio de Zeus subjugado23 (v. 669-672).

O sonho de Io independe da plausibilidade. Nos sonhos, como na


arte, as representações remetem ao imaginário possível e não ao mundo
da realidade material, epistêmica. O inconsciente, como linguagem,
comunica sem destino, sua comunicação é tão somente performática,
dirige-se não à interlocução, mas a algum lugar, comunica-se, então,
se assim quisermos dizer, com o nada, o topos da alteridade absoluta e,
assim, remete ao particular, do emitente para o si próprio, passando por
um outro lugar, um Grande Outro imaginário. O inconsciente onírico
fala à “outra cena”, hinc et nunc inexistente, qualquer uma ou nenhuma
(LACAN, 1998, p. 22, 25-27).
Então, os sintomas histéricos sobrevêm como a expressão per-
formática do conflito:
[...] os mais variados sintomas, tidos como operações espontâneos e, por
assim dizer, idiopáticos, da histeria, estão tão estritamente relacionados
com o trauma desencadeador quanto os outros fenômenos que exibem
a conexão causal de maneira bem clara. (...) Em outros casos a
conexão causal não é tão simples. Consiste apenas no que
se poderia denominar uma relação “simbólica” entre a causa
precipitante e o fenômeno patológico – uma relação do
tipo da que as pessoas saudáveis (sic) formam nos sonhos.
(FREUD, 1991, II, p. 30).

23
Lóxias é um dos nomes de Apolo.
110 . Patricia Vivian von Benkö Horvat
Como exemplo da conversão histérica24 de um sentimento
obstaculizado pela repressão, temos a expressão e transformação
corpórea de Io, para ela, real:
Transmudou-se-me a forma e logo a mente;
pelo agudo aguilhão azucrinada,
com meus chifres, lancei-me à foz do Lerna,
às águas de Cercnéia, louco assalto (v. 673-676).

Pode-se traduzir o verso 673 também como: “Minha aparência


e minha mente foram distorcidas”. Nessa passagem, sintomas físicos e
mentais são sobrepostos e a sua eclosão dramática deve-se ao conflito
significativo trazido à tona no sonho recorrente de Io.
Um infante da Terra, Argos, vaqueiro,
destemperado em seu furor sem freio,
espreitava-me os rastros, todo-olhos (v. 677-679).

Io não diz quem mandou Argos agir como vaqueiro, presumivel-


mente foi Hera, para impedir que Zeus se aproximasse dela metamor-
foseado em boi, como era seu hábito, por exemplo, na visita a Europa,
ou para punir sua sacerdotisa, como é declarado por Prometeu (“Como
não, se o ferrão aturde a moça?/ O amor chameja pela filha de Ínaco/
no coração de Zeus. Hera lhe impõe/ irada a fatigante correria”, v.
589-592.).
Tirou-lhe a vida um fato inesperado.
Mas o açoite divino me persegue (v. 680-681).

Argos, espectro, com olhos por todo o seu corpo, tema popular
em pinturas cerâmicas gregas, significa que Io está sob o olhar de mil
olhos, publicamente vista nesta situação de transformação em vaca
histérica. E o verso 681 é uma metáfora que aparece em Homero, e
significa “derrotada pela intervenção de Zeus”, como na Ilíada, 13. 812
(GRIFFITH, 1983, p. 210).

24
Podemos dizer que o conceito de “conversão” remete a manifestações
(transformação em alguma coisa somática) que correspondem ao desejo, nas
quais unem-se o psíquico e o somático, provendo uma espécie de “substitui-
ção de satisfação” que remete a outra cena (o inconsciente), através do corpo.
Teatro Grego e Romano . 111
vítima do ferrão, por toda terra.
Sabes a minha história. Conta agora
o que mais vou sofrer. Dize! Condoído,
não deves me embalar na fala falsa,
pois para mim o engano é a pior moléstia (v. 682-686).

Para o discurso mítico, assim como para o onírico, as referências


a representações imaginárias têm a mesma validade lógica que
os remetimentos à realidade material. Assim, a pressuposição de
veracidade da transformação de seres humanos em animais, tais como
Argos-moscardo e a vaca, na qual Io se transforma, ou acredita ter
se transformado, são expressões do universo simbólico, que alguns
teóricos consideram atávico, enquanto outros consideram cultural.
No âmbito da psicanálise tende a prevalecer o remetimento do
valor simbólico ao âmbito das representações constituídas e instituídas
pela cultura, e pode-se dizer que o significante vaca é um indício de
significado na história afetiva do sujeito, cujo imaginário é culturalmente
construído e interiorizado, e tem o valor de verdade que seu significado
transporta. Podemos compreender o sintoma de Io como resultante
de sua experiência como sacerdotisa no santuário de Hera, com seus
rebanhos sagrados, e incorporação da ideia de fertilidade da vaca,
suscitada pelo interesse sexual de Zeus. Junto a esse valor de verdade
cultural, o símbolo desempenha a função de indicar um sentido de
decifração, abrindo caminho para seus correlatos imaginários segundo
a concepção do sujeito falante. Como é próprio às representações
simbólicas, dependentes do acordo social historicamente determinado,
a interpretação deste signo, cujo significante é a palavra vaca, era, para os
antigos espectadores de Prometeu Acorrentado, plena de sentido. A vaca é
símbolo religioso de fertilidade e, como tal, da mãe ancestral, a Grande
Mãe e, junto ao boi, touro fecundador, compõe os princípios ativo e
passivo das forças geradoras, como axiologia diádica do imaginário
transcendental.
No episódio em pauta, o que desencadeia as atribulações da
personagem são seus sonhos, que exemplificam o funcionamento
da linguagem do inconsciente. Para a psicanálise, na histeria verifica-
se uma antinomia que Freud chamaria de duplo sentido antitético, no
âmbito do simbólico, Die Symbolik. “Freud define a histeria pelo tipo
de reação experimentada em termos de gozo: o desprazer” (QUINET,
2005, p. 112), que é o resultado desta antítese entre ser sujeito, ativo,

112 . Patricia Vivian von Benkö Horvat


e objeto, passivo, em que o conflito entre nomoi, leis, suspende o ethos,
comportamento, dando lugar a um proton pseudos, primeira mentira, a
um deslizamento da linguagem pela superfície do sujeito, objetificado,
que pelas frestas da superfície deixa escapar fragmentos de desejo
advindos de outra instância: o inconsciente. À necessidade premente
de realização se interpõe a interdição. As perguntas da histeria são
sobre o seu ser, a sua vontade e o seu desejo, mas nenhuma resposta as
alcança, pois o sujeito histérico que enuncia as questões está ausente,
deslizando na errância do desejo de uma alteridade imaginária, um
Outro. É a identificação com a situação objetual, a materialização do
ser em uma aparência, que determina que a aflição antinômica do
histérico se expresse nesta interface com o mundo, o corpo, que se
move e que transporta a aparência, espaço da mimetização, realizando
nele o sintoma. O histérico se reconhece pela materialização de si em
sua superfície fenomênica, naquilo que se apresenta ao olhar do outro,
e se coloca em cena para ser visto para, então, se ver como existente.
Na conversão histérica podem ser observados, portanto, indícios da
linguagem do inconsciente. Como nos diz Lacan (2007):
O homem está capturado pela imagem de seu corpo. Este
ponto explica muitas coisas e, em primeiro lugar, o privilégio
que tem a dita imagem para ele. Seu mundo, se é que esta
palavra tem algum sentido, seu Umwelt, o que o rodeia, ele
o corpo-reifica, o faz coisa à imagem de seu corpo. Não tem
a menor ideia, certamente, do que acontece neste corpo.
Como sobrevive um corpo? (...) O corpo ganha seu peso
pela via do olhar.

Permanece uma questão quanto à recriação pela tragédia, na


personagem Io, da histeria como uma desordemmimética, e a influência
dessa representação nos conceitos da teoria psicanalítica. A questão de
Io seria, então, a mesma da histeria: o que vem antes, o aprendizado
da histeria como pseudo-solução do conflito derivado da pressão
exercida pelo simbólico sobre o eu, intermediado pelo supereu, ou a
superveniência de uma pulsão de vida irracionalizável que esbarra na
interdição operada pelo temor ao aniquilamento pela invisibilidade no
real androcêntrico e se transforma em pulsão de morte? Se os sintomas
de sujeitos diversos, homens e mulheres, se assemelham, ainda que na
sua forma fenomênica, não seria por terem sido aprendidos e, portanto,
por existirem de antemão no imaginário comum sob uma ordem
Teatro Grego e Romano . 113
simbólica androcêntrica cultural e politicamente instituída? Poder-se-ia
questionar a naturalização de uma sujeição tão nitidamente instrumental,
cuja pregnância deriva de ritos sancionados e institucionalizados –
instrumentos de reiteração do simbólico e da manutenção da ordem
social e política – que provavelmente se originam no reconhecimento
de que as mulheres têm potencial para não só pontualmente realizar
a fantasmática castração de sujeitos, mas para desequilibrar a ordem
imaginária e real criada politicamente pelas necessidades masculinas,
e no consequente temor da dissolução da ordem simbólica, isto sim,
irracionalizável.

PROMETEU ACORRENTADO - EDIÇÕES UTILIZADAS


CURY, M.G. Tragédia grega. vol VI: Prometeu Acorrentado, Ájax,
Alceste. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.
GRIFFITH, M. Aeschylus Prometheus Bound. Nova York: Cambridge
University Press, 1983.
TORRANO, J. Ésquilo – Tragédias. São Paulo: Ed. Iluminuras, 2009.
VIEIRA, T.; ALMEIDA, G. Três tragédias gregas. São Paulo: Perspectiva,
2007.

BIBLIOGRAFIA COMENTADA

BOWLBY, R. Freudian Mythologies. Greek Tragedy and Modern Identities.


New York, Oxford University Press, 2007.
Rachel Bowlby apresenta atualizações das leituras psicanalíticas das
tragédias gregas utilizadas por Freud. Discute a diluição dos pressu-
postos dos séculos XIX e XX sobre cujas bases se construíram as
teorias psicanalíticas, comparando-os com os substratos cultural e
científico que formam a atual estrutura familiar e as novas formas de
identidade.

BUTLER, J. Gender Trouble: Feminism and Subversion of Identity


(Thinking Gender). New York, Routledge, 1990.
Obra de referência para os estudos de gênero, este livro tornou-se um
clássico. A autora apresenta, além de definições sólidas e coerentes
sobre os conceitos de gênero e identidade, um panorama das principais
abordagens sobre a questão de gênero em diversas especialidades do
conhecimento, incluindo a Psicanálise.
114 . Patricia Vivian von Benkö Horvat
QUINET, A. A lição de Charcot. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 2005.
_____. Psicose e laço social. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 2009.
Quinet explica a histeria esteticamente, com uma peça teatral em que
há um diálogo entre Charcot e seus contemporâneos, iniciadores da
psicanálise, e a atualidade. Traz um histórico comentado da histeria
baseado na teoria lacaniana. Em Psicose e laço social, Quinet parte da
teoria dos discursos de Lacan para analisar como os quatro tipos de
discursos, entre eles o da histeria, expressam a afetividade e estabelecem
laços sociais imaginários, abordando os tipos clínicos da psicose e seu
posicionamento apartado da linguagem institucionalizada.

SIMON, B. Mind and madness in Ancient Greece. The classical roots of


modern psychiatry. NY: Ithaca, 1978.
Um livro de referência para os estudos de apropriação do classicismo
no que concerne à psicologia, psiquiatria e psicanálise. Simon traz o
percurso histórico, pela Grécia clássica, das ideias sobre doença mental
e faz uma exegese dos textos em que os caracteres psicológicos e os
sintomas psiquiátricos aparecem, comentando a persistência dos
quadros analíticos que os descrevem e conceituam na atualidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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o “episódio de Io” em Prometeu Acorrentado. Caderno Espaço Feminino, v.
23, n. 1/2, p. 199-219.Uberlândia: NEGUEM/UFU: 2010.
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2002.
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Barcelona: Anthropos Editorial, 2005
ERNOUT, A.; MEILLET, A. Dictionnaire étymologique de la langue latine.
Histoire des mots. Paris: Klincksieck, 2001.
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____. Fragmento de análisis de un caso de histeria – Tres ensayos de teoría
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Teatro Grego e Romano . 115
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Ancient Greece. Literature, Religion, Society. Cranbury, London, Ontario:
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LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar. 1998.
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veiculado na IPB-lista. Trad. Rita Smolianinoff, Recife, 2007. Disponível
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MIJOLLA, A. de. (dir.). Dicionário Internacional da Psicanálise. 2 v. Rio de
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QUINET, A. Psicose e laço social. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 2009.
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ROUDINESCO, E; PLON, M. Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro:
Zahar, 1998.

116 . Patricia Vivian von Benkö Horvat


... E os gregos inventaram o teatro

Maria Regina Candido


Se alguém convidar você para ir ao teatro, imagino que você,
provavelmente, irá preparar-se para sair no período do entardecer ou
mesmo à noitinha. Entre os gregos da região da Ática no período do
V e IV séculos a. C., o ato de ir ao teatro significava participar de um
festival em homenagem ao deus Dioniso, cujo evento começava ao
alvorecer e durava o dia inteiro pelo período de quase uma semana.
O teatro de Dioniso ficava encravado na encosta do lado sul
da Acrópole de Atenas, tinha a capacidade para receber em torno
de 14000 espectadores que assistiam a tragédias, comédias e dramas
satíricos. O público era, geralmente, composto de homens e mulheres
atenienses, de estrangeiros e de escravos. A razão para a popularidade
do teatro nos diferentes segmentos sociais compostos de ricos, pobres
e escravos não seria difícil de entender. O espaço físico do teatro
tornara-se o local no qual os cidadão atenienses de todos os níveis
e atividades assim como os visitantes de diferentes regiões da Grécia
podiam assistir, se emocionar, rir e chorar, sofrer e lamentar, julgar os
diferentes acontecimentos sociais que envolviam a pólis.
Todos se alojavam no espaço físico do teatro que, em meados do
V século, mudara a construção dos assentos de madeira para pedra. Nas
primeiras filas, nos assentos em mármore ficavam os integrantes das
melhores famílias locais, os aristhoi, acompanhados de seus hospedes.
Em seguida, vinham aqueles considerados cidadãos de recursos médios,
e, pelo meio da arquibancada, sentavam os cidadãos pobres com seus
familiares.
Theofrastos deixa transparecer que a entrada ao teatro era
alvo de alguma pecúnia destinada a reparos e manutenção dos
prédios públicos, pois o autor cita na obra Caracteres XXX que alguns
Teatro Grego e Romano . 117
aproveitadores esperavam o momento em que os responsáveis pelo
acesso ao teatro liberavam a entrada de graça (Theofrastos, XXX: 6).
Os demais espaços do teatro seriam preenchidos pelos estrangeiros
residentes identificados como metecos e os não residentes na qualidade
de estrangeiros de passagem. Alguns pesquisadores consideram a
presença de escravos nos últimos lugares da arquibancada. A hierarquia
era respeitada e fundamental para a manutenção da ordem poliades.
Um detalhe curioso é que o espaço físico ao qual denominamos
de teatro grego não detém qualquer semelhança com as casas de espe-
táculos que conhecemos na atualidade nas grandes capitais do mundo.
Entre os gregos, as apresentações teatrais ocorriam numa estrutura se-
micircular e em espaços abertos sendo determinante a existência de
uma boa propagação do som vocal. Havia a necessidade de que essa
construção semicircular estivesse encravada nas encostas com eleva-
ções acentuadas para permitir uma acústica eficaz que é perceptível até
nos dias atuais.
Outro dado interessante está na própria palavra teatro, ou me-
lhor, theatron, que em grego significa lugar para ver, para assistir de forma
atenta a um grande espetáculo de apresentação e perfomance. O termo
orquestra que nos remete a um conjunto de instrumentos e de músicos,
na antiguidade dos gregos representava o lugar para dançar, o espaço fi-
cava no centro da estrutura semicircular por onde transitavam os atores
que naquela época eram denominados de hypocrites e dividiam o espaço
da orchestra com o coro e músicos e dançarinos.
O termo hypocrites formou a palavra hipocrisia no sentido de dissi-
mular, fingir ser, representar, ou seja, a própria perfomance do ator cuja
história está associada à formação do teatro e o processo de especia-
lização desse profissional. No fragmento da Vida de Ésquilo 15, citado
por Eric Csapo, tomamos ciência que Ésquilo usou como primeiro
ator Kleandros e depois adicionou um segundo ator, de nome Myn-
niskos de Chalkis, e que introduziu um terceiro ator. Entretanto, de
acordo com Dicaearchus de Messena, o terceiro ator foi introduzido
por Sófocles (CSAPO, 1994, p. 221). Aristóteles ratifica a questão ao
citar que Ésquilo foi o primeiro que elevou de um a dois o número dos
atores, diminuiu o valor do coro e fez do diálogo protagonista (Poética,
1449a15).
Analisando a complexidade da estrutura da representação da
dramaturgia, percebemos que o número de atores excede a três, tal
fato ratifica que o numero de atores sem fala que atuavam no palco
118 . Maria Regina Candido
era ilimitado, sendo restrita e permanente a quantidade de atores que
faziam o uso da fala. A delimitação para três atores tornou-se primordial
para o estabelecimento de regras de atuação no palco, ou seja, o uso
da fala se limitava ao diálogo no qual o terceiro ator permanecia, por
convenção, em silêncio.
Acreditamos na existência de competição entre os atores para
atuar em primeiro plano; a documentação nos aponta que um dos efeitos
do ambiente agônico e competitivo gerou a padronização na estrutura
da atuação. Aristóteles cita na Retórica que aqueles que usam suas vozes
bem e carregada de emoção arrebatam todas as premiações da disputa;
para ele o embate no teatro estava tornando o ator mais importante do
que o poeta que escrevia a dramaturgia (Retórica,1003b31).
Platão, na obra Banquete/Sympósiun, questiona a eficácia de um
poeta e ator em representar tanto na tragédia quanto na comédia
(Simpósio, 223d). A disputa e a especialização da função de ator gerou
o estabelecimento de hierarquia na atuação, composta pelo protagonista,
que atuava no papel principal, o deuteragonista, que seria aquele que
atuava como coadjuvante, e o triagonista, que atuava como ancora, auxiliar
dos anteriores. Entretanto, somente o protagonista poderia estabelecer
contrato com o arconte basileus e receber a primeira premiação como
ator (CSAPO, 1994, p. 223).
Como podemos observar, os três termos da hierarquia de atuação
são compostos pela palavra agon, que se define como um confronto,
embate, desafio ação presente na sociedade helênica. A representação da
dramaturgia torna-se o espaço de atuação eficaz diante do embate entre
o coro e o protagonista, luta entre dois heróis que representam posições
adversas e/ou antagônicas. O confronto tem como função simbólica
expressar os valores poliades que estão sendo desafiados ou levados
ao esquecimento. O agon entre os gregos está presente em diferentes
situações como nas dramaturgias, nos banquetes, nos concursos musicais
e de poesias e junto às facções políticas conhecidas como hetareia de
diferentes naturezas, ao qual incluímos os atores no teatro.
As representações que nos apontam para o espetáculo das perfo-
mances teatrais estão fartamente documentadas na imagética grega des-
de o VI a. C. Um dos objetos mais comuns representados nas imagens
é a máscara usada pelos atores levadas antes ou depois de uma perfor-
mance. Desde o período helenístico, esse uso decorativo da máscara foi
encontrado em muitos aspectos da arte grega, como imagens em vasos
de cerâmica, afrescos e esculturas. A motivação pode ter se originado
Teatro Grego e Romano . 119
através da prática de atores vitoriosos na disputa do drama dedicarem
as suas máscaras como oferendas aos deuses. Nessa ocasião, a máscara
não apenas celebra o papel que levou à vitória, mas também as festivi-
dades que acompanhavam a vitória (CSAPO, 1994, p. 282).
Para F. B. Jevons, o uso da máscara pode ter levado à formação
da performance do drama grego. A máscara foi usada pelos três tipos
de dramaturgia: tragédia, comédia e drama satírico, porém, Jevons
reafirma que não há evidências do uso das máscaras em outros tipos
de performance que não fosse o drama trágico (JEVONS, 1916, p. 172).
O detalhe mais curioso era a proibição da mulher de participar como
atriz no teatro; os papéis femininos de deusas, rainhas e heroínas eram
representados pelos homens. Tal fato nos leva a concluir que os atores
tinham que ter uma excelente performance para convencer o público, de
forma eficaz, que eles estavam diante de uma personagem feminina.
Havia o coro de mulheres, de jovens e dos homens que cantavam
em cerimônias públicas, porém, com a restrição de que somente os
homens podiam usar as máscaras. A proibição se deve à tradição antiga
dos gregos em usar a máscara em cerimônia de culto dos ancestrais
praticado pelos sacerdotes e familiares maculinos. O pesquisador Jevons
traz como questão se a máscara usada no culto dos ancestrais era usada
somente pelo morto, como nos indicam as cerimônias realizadas na
realeza palaciana do período minoico-micênico, ou se a presença das
máscaras somente ocorria durante o culto ao ancestral usadas pelos
participantes do sexo masculino (JEVONS, 1916, p. 174).
A abordagem do teatro grego está repleta de curiosidades pelos
arqueólogos; eles questionam se os primeiros teatros na Ática teriam
uma estrutura retangular ou semicircular. Os pesquisadores alemães,
com base nas escavações arqueológicas, argumentam que a orquestra
dos primeiros teatros de Thorikos e Ikarion na Ática seria de forma
retangular. A justificativa da forma retangular se deve à formação do
processo de isonomia e da democracia, ou seja, a pólis estava mudando
a sua forma de defesa individual ao acrescentar o segmento social dos
zeugitas visando à formação coletiva da falange de soldados hoplitas.
A formação hoplítica requer um longo aprendizado efetivado
através da participação dos jovens soldados no Ritual da Efebia, no qual
aprendiam através de intensos treinamentos a marchar em ordem unida
e em linha reta. De acordo com o pesquisador Alair Figueiredo Duarte,
essa formação hoplítica tornou-se a base dos treinamentos e desfiles
militares em diferentes países da modernidade (DUARTE, 2011, p. 15).
120 . Maria Regina Candido
Para entendermos o significado da performance da dramaturgia
grega, temos que recorrer à obra Poética, de Aristóteles. O filósofo
analisa a formação da tragédia e da comédia e menciona que tragédia
emergiu do improviso dos solistas do dityrambo, e a comédia dos hinos
fálicos, ambos muito estimados entre os atenienses (Poética, 1449a).
A citação do filósofo tem sido alvo de debate na atualidade sobre a
origem do teatro na sociedade grega; o filósofo deixa transparecer que
os primórdios da formação dos rituais os quais denominamos de teatro
eram cerimônias relacionadas ao culto ao deus Dioniso.
A tese de Aristóteles esteve presente entre os helenistas da Escola
de Cambridge no início do século XX, como Francis M. Cornford
(1914) e Jane Harrison e Gilbert Murray (1927). A abordagem que
começou como uma aplicação experimental do método antropológico
para a elaboração da história da religião grega, logo se expandiu para
outros ramos de conhecimento da literatura, do teatro, da antropologia
e com acentuado diálogo entre os pesquisadores interessados na
formação do teatro grego.
O pesquisador Eli Rozik refuta o consenso, que existe junto aos
especialistas, que relaciona a formação do teatro grego à atividade ritu-
alizada ao deus Dioniso. Rozik nos informa que a teoria foi formula-
da na Cambridge School of Anthropology/CSA, que buscava fundamentar,
cientificamente, a formação do teatro grego (ROZIK, 2002, p. ix). Para
o autor, o teatro existiu de forma independente ao ritual religioso, am-
bos, o teatro e o ritual formavam duas entidades culturais autônomas.
O ritual pode estar presente no teatro assim como pode apoiar ou-
tras atividades culturais, como a narrativa mítica, eventos de música e
dança, que não pertençam necessariamente à atividade relacionada ao
campo religioso (ROZIK, 2002, p. x).
Para Mariana McDonald, os gregos não foram os primeiros a
representar narrativas históricas através de gestos e palavras fora do
campo do ritual religioso usando música, dança, máscaras e indumen-
tárias específicas. A perfomance teatral realizada diante de uma audiência
e com propósitos específicos pode ser encontrado em diferentes socie-
dades antigas (McDONALD, 2007, p. 13). Tal fato torna difícil traçar
uma linha divisória entre a performance do teatro e o ritual, cerimônia e
representação.
A pesquisadora McDonald considera que ao tecer análises
sobre o teatro grego, devemos nos reportar ao período minoano
no qual a população não grega colonizou a ilha de Creta e de Theera
Teatro Grego e Romano . 121
durante a segunda metade do II milênio. As imagens dos afrescos
presentes nas paredes dos palácios apontam para a realização de ceri-
mônias e rituais que incluíam a representação imagética de danças, acro-
bacias e sacerdotes comandando atividades ritualizadas (McDONALD,
2007, p. 14).
Eric Csapo retoma a controvérsia ao explicar que a matriz da
relação entre o drama e o ritual religiosos começou com Friedrich
Nietzsche, na obra Die Gerburt der Tragödie oder Griechentum (O Nasci-
mento da Tragédia), em 1872. Na obra, o autor descreveu a origem da
tragédia a partir do ritual de representação do drama dionisíaco ao ser
desmembrado pelos Titãs. Para o autor, toda a representação trágica,
como Prometeu, Édipo, Ajax e outras, seria uma das formas de reviver
o drama da divindade simbolizando a mística mensagem da paixão e
sofrimento do verdadeiro Dioniso. O drama do desmembramento sig-
nifica o retorno aos elementos primordiais como água, terra, ar e fogo
(CSAPO, 2007, p. 24).
A explicação de Nietzsche causou impacto e suscitou o debate
no universo germânico e depois entre os pesquisadores e classicistas
das demais escolas. A helenista Jane Harrison retomou a teoria do
drama ritual e combinou a sua análise com a abordagem de Nietzsche,
G. Frazer e a teoria do drama-ritual da Escola de Cambridge/Cambridge's
Ritualism. Harrison e Gilbert Murray, no livro Themis: a study of social
origins of Greek Religion, apresentam Dioniso como o principal herói dos
gregos por simbolizar o ciclo da morte e renascimento. O processo
seriam etapas de coesão que integram o ciclo da natureza, da vegetação,
do culto aos ancestrais mortos e adorado como herói pelos integrantes
da comunidade poliades.
Para Jane Harrison, o culto à natureza foi originalmente honrado
na primavera através da performance do dithyrambo, que resultou no ritual
cujo padrão recorrente definem as etapas do agon que seria o embate
contra os adversários e inimigos; o pathos cujo ritual envolvia o sacrifício
da morte do deus; o mensageiro que reportava a morte do deus; o threnos, o
lamento dos fieis seguidores do deus; o anagnorisis que seria a descoberta
da morte do deus e finalmente a theophania etapa da ressurreição ou
apoteose máxima de Dioniso (MURRAY, 1927, p. 343-344).
Ao longo dos tempos, criou-se a máxima de que a perfomance
da dramaturgia ocidental tem muito do que foi representado na teatro
ateniense do V século. Entretanto, a tese tem sido questionada na atu-
alidade. O pesquisador Eric Csapo considera que a invenção do dra-
122 . Maria Regina Candido
ma, como conhecemos hoje, foi formado, no período do renascimento
(CSAPO, 2007, p. 4).
Parte dos pesquisadores, como Eli Rozik, considera que a drama-
turgia emergiu fora no processo ritual, e como evidência para a origem
do drama e teatro grego, recorrem à antropologia devido à possibi-
lidade de efetivar a comparação com outras culturas. A controvérsia
teve início através da antropologia comparativa aplicada por Sir James
Frazer ao articular que o drama trágico provém do processo ritual en-
dereçado às divindades dos gregos. A abordagem denominou-se The
Cambridge's Ritualism, composta por helenistas profissionais que se ba-
seavam em evidências da sociedade grega.
Embora a tese que tende a relacionar a origem do drama ao ritual
fosse refutada por Arthur W. Pickard-Cambridge, no livro Dithyramb,
Tragedy and Comedy (1927), alguns pesquisadores ainda explicam o
desenvolvimento da dramaturgia trágica ocidental e o teatro a partir do
processo ritual. Como exemplo, podemos citar Phyllis Hartnoll, na obra
Concise History of the Theatre (1971), na qual afirma que a origem do teatro
emergiu dos rituais religiosos das antigas comunidades que deixaram
vestígios de seus cultos e ritos realizados por adoradores vestidos com
pele de animais ao honrar o deus (HARTNOLL, 1971, p. 7). O pes-
quisador Oscar G. Brockett considera que o teatro necessariamente foi
originado de atividade ritualizada o que nos permite afirmar que teatro
e ritual detêm uma coexistência mútua (BROCKETT, 1991, p. 3).
Para Eric Csapo, os pesquisadores da The Cambride's Ritualism
classificavam os materiais etnográficos estrangeiros a partir da compa-
ração com os vestígios de ritual encontrados na sociedade grega. Fato
que gerou a formulação de um consenso, um padrão universal que
apontava a existência do ritual e a dramaturgia trágica como própria
dos helenos. Jane Harrison descreveu que a ação dramática foi uma
invenção dos gregos que permitiu à Europa sair da selvageria para a ci-
vilização (CSAPO, 2007, p. 2). A tese da Escola de Cambridge adquiriu
popularidade junto à antropologia comparativa ao ratificar a ideia de
superioridade da civilização ocidental. Os helenistas herdaram a visão
eurocentrista e evolucionista presente na antiga abordagem da antro-
pologia comparativa desenvolvida na Europa Ocidental do século XIX
e inicio do XX (CSAPO, 2007, p. 1).
Alain Martin participou do debate ao nos alertar que a emergência
e a formação da tragédia grega tinham sido pouco pesquisadas nos
últimos anos da década de 90 e que grande parte da historiografia
Teatro Grego e Romano . 123
analisava a tragédia como um culto religioso, um gênero literário ou um
ação cívica (MARTIN, 1995, p. 17). Eric Csapo (2007, p. 31) atualiza
esses dados aos afirmar que desde 1980 ressurgiu o interesse em
estabelecer a ligação entre drama e ritual junto aos helenistas:

• 1971-1986 – Richard Green foi capaz de listar somente doze


estudos sobre a origem do teatro grego no meio acadêmico
anglo-saxão;
• 1987-1995 – houve um aumento para cinquenta e três publi-
cações;
• 1995 – houve um acentuado aumento de publicação de
literatura relacionando o ritual grego ao drama, a partir da
teoria da New Ritualism da Escola de Cambridge.
A partir dessa teoria, o pesquisador Eric Csapo afirma que,
entre os atenienses, o drama é descrito no texto oficial como “coro para
Dioniso” e era realizado após as orações e sacrifícios (CSAPO, 2007, p.
5) diante do ícone de madeira constrido na forma do deus. A tragédia
grega e o drama satírico integram a narrativa mítica de Dioniso, veículo
de disseminação do mito no mundo helenizado.
O filosofo grego Aristóteles, na Poética 1448b, nos informa
que o termo drama significa ato de fazer, atuar, agir, e a palavra não
pertence ao dialeto ático, mas teria a sua origem com os dórios. Para
os atenienses, diferentemente dos dórios, a palavra que designa ação,
o ato de agir se concretiza no termo prattein, palavra da qual emerge
os termos praxis e pragma/pragmatismo muito próximo do sentido de
performance. Aristóteles ainda nos informa que, por essa razão, os dórios
reclamam para si a invenção da tragédia e da comédia (Poética, 1448a).
Para Mariana McDonald, nem a tragédia, nem a comédia pare-
cem ser de fato uma invenção dos atenienses; as duas representações
foram precedidas em regiões distintas, como o coro trágico na região de
Sycion e o coro cômico representado pela comunidade dos dórios na
região do Peloponeso e na Sicília. Para a peculiar instituição ateniense
de dramas satíricos com ações heroicas e de homens vestidos de
sátiros e silenos parecem, segundo a autora, que não foram trazidos
para Atenas antes do final do VI a. C., provavelmente introduzidos por
Pratinas de Phleious, uma região próxima de Argos (McDONALD,
2007, p. 21).
Na produção do drama teatral em Atenas, o coro era a mais
importante atuação do cidadão voluntário, e a legislação da pólis ins-
124 . Maria Regina Candido
tituía a liturgia denominada de corégia. O número de participantes vo-
luntários era de cinquenta homens identificados como integrantes le-
gítimos da comunidade de cidadãos aptos para integrar o dithyrambo
ou o drama. Segundo Konrad H. Kinzl, no artigo The origins and early
history of Attic tragedy (1980), a palavra dithyrambo é de origem grega e
proveniente da Ásia Menor, cujos autores mais remotos seriam Arion
de Methyna, Lasos de Hermione e Hypodikos de Chalkis (KINZL,
1980, p. 178).
O termo dithyrambo, segundo Sir Arthur Pickard-Cambridge,
já circularia entre os gregos do VII como nos aponta o fragmento
de Archiloco de Paros, ao mencionar: “eu sei como entoar a música
para o senhor Dioniso, um dithyrambo com o meu punho atrelado
ao vinho”. O autor afirma que, no tempo de Arion de Methymna, o
dithyrambo era uma simples composição literária e que o termo kyklios
khoros está sempre relacionado à performance do dithyrambo (PICKARD-
CAMBRIDGE, 1962, p. 1).
Na atualidade, questiona-se sobre a relação do termo kyklios
khoros com o dithyrambo; a palavra pode ter sido usada na linguagem
oficial visando à inscrição da apresentação do coral no teatro e não
como termo equivalente a dithyrambo (CSAPO, 2007, p. 8). As demais
referências estão em Píndaro e Platão, o filósofo e autor da República
menciona no verso 329c que ao vencedor da disputa do dithyrambo cabia
como premiação um boi e que Arion de Methymna teria inventado o
gênero na corte do rei Periandro de Corinto. A referência a Arion está
presente na poesia Elegia, de Sólon (frag. 30aw) e reporta que Arion
de Methymna foi o primeiro a introduzir o drama da tragédia, como
Sólon indicou em seu poema intitulado Elegia. Heródoto (História, I:
23) também menciona que Arion foi o primeiro a compor, nomear e
ensinar o coro de dithyrambo.
As citações deixam transparecer que existe uma estreita relação
da característica rural do culto e a formação da tragédia ao relem-
brarmos que a região de Ikarion detém em sua narrativa mítica uma
relação com o culto ao deus Dioniso, que revelou aos homens a cultura
da uva e a produção do vinho. Para Aristóteles (Poética, 1449a), no
ponto de vista técnico, a tragédia é uma espécie de dithyrambo dionisiaco
(MARTIN, 1995, p. 18). Aristóteles acredita que a tragédia e a comédia
têm por matriz uma forma de culto e hinos fálicos cantados e presididos
por rituais de sacrifício aos deus Dioniso.

Teatro Grego e Romano . 125


Para John Winkley, a história da performance da Dionisia Urbana foi
marcada por três estágios: tragoidoi seria uma espécie de canto organizado
por Thepis em 534 a. C. durante o período da tirania de Pisístratos.
A premiação para o coro dos homens e dos meninos que competiam
no dithyrambo foi adicionada no período da reforma constitucional de
Clisthenes em 508 a. C. Os komoidoi que foram introduzidos na categoria
de competição almejando a premiação em 486 a. C. O dithyrambo e o coro
cômico seriam muito mais antigos que a sua oficialização no festival e a
polis passou a fornecer financiamento e estrutura competitiva para uma
antiga tradição (WINKLET, 1985, p. 40) festejada e realizada de forma
diletante antes de ser subvencionada pela pólis.
Acredito que cabe agora nos questionar: Afinal, o que seria um
dithyrambo? A resposta a esta questão torna-se de difícil nos dias atuais
diante do acentuado intervalo de tempo e do fato da palavra trazer em
si o sentido de antiguidade. O termo está relacionado à emergência da
pólis e ao processo de mudança na sua estrutura e organização política.
Dithyrambo configura-se como um coro formado por um grupo de
cinquenta homens e/ou jovens efebos que cantava nos rituais em honra
à divindade relacionada ao cultivo do vinho. O termo – dy thyrambo
–nos remete a narrativa mítica do duplo nascimento de Dioniso que
foi gerado no ventre de Semele e depois nasceu das coxas de Zeus.
A análise da palavra também nos possibilita associar a performance que
envolve a marcação do ritmo, a sonoridade vocal, aos passos da dança.
Nós estamos acostumados a pensar nesse gênero como literatura épica,
lírica, satírica, porém, originalmente, o gênero era realizado através
da oralidade acompanhado pela sonoridade vocal com acréscimo de
instrumentos musicais e demarcado por passos de dança.
A música coral era acompanhada por instrumentos musicais
como a kithara ou phorminx, instrumentos adequados para acompanhar
múltiplas vozes diante de ampla plateia alojada em lugares amplos e
abertos. A lira era geralmente empregada para acompanhar o cantor
solo em lugares pequenos e de pouco público. Para a celebração do
dionisismo, o aulos duplo era o mais adequado devido ao seu forte
timbre e ritmo frenético próprio da região do norte da Trácia e da Frígia
acompanhado pelo tympano, tambores e krotala. Em relação ao ritmo do
iambos, esse seria marcado por uma batida, acompanhada de sonoridade
vocal baixa e passos marcados no mesmo lugar; dithyrambos seriam duas
batidas e modulação vocal média com dois passos em círculo; triambos
seria um ritmo de três marcações rápidas seguido de voz alta ou aguda
126 . Maria Regina Candido
com três passos de dança também rápidos. Arthur Pickard-Cambridge
nos traz a citação de Cratinus fr.36 que deixa transparecer que extrair
sons triamboi tornavam a musica odiosa (PICKARD-CAMBRIDGE,
1962, p. 8), ou seja, tornava o ritmo acelerado e desagradável.
Os termos coro de meninos e coro de homens talvez fossem estas as
designações, de uso oficial e popular, para esse tipo de performance.
Quando o dithyrambo passou a integrar oficialmente as competições da
Dionisia Urbana, os seus participantes foram divididos por categoria
e idade: os meninos, os ageneioi e os homens. Lembrando que o termo
ageneioi designa e significa jovem imberbe (WINKLEY, 1985, p. 42).
Podemos afirmar que os movimentos selvagens do dithyrambos
dionisiaco foram gradualmente domesticados em que a dança foi trans-
formada em gênero musical acrescida de composição poética. A dança
do coro foi perdendo o seu caráter orgiástico através da interseção de
Arion, Lasos e Thespis. A remodelação resultou na redução do coro de
cinquenta para vinte e quatro pessoas e depois para quinze integrantes,
instituíram o dithyrambo agon em Atenas no qual um coreuta passou a dia-
logar musicalmente com o coro (KINZL, 1980, p. 183).
Eric Csapo nos afirma que os fragmentos pré-aristotélicos, como
IG II²2318 de aproximadamente 500 a.C., nos informam que já existia
o coro para Dioniso e o coro para a tragédia, assim como a lista de
vitoriosos no coro circular, na tragédia e na comédia. Outro fragmento
menciona a lei ateniense que institui a procissão do coro de meninos
seguido do coro dos homens (CSAPO, 2007, p. 12).
Diante da pouca informação dos fragmentos provenientes das
inscrições, devemos recorrer aos recursos da arqueologia cujos dados
estratigráficos para a área do teatro de Dioniso em Atenas apontam
para o período do final do VI século. Fato que levou diversos especia-
listas a considerar que a dramaturgia trágica e o teatro foram criação
do processo democrático (CSAPO, 2007, p. 13). O período demarca
o processo de reconfiguração do espaço físico de Atenas como a ação
efetivada por Laso de Hermione, que direciona a procissão do dithyram-
bo para um lugar fixo que se tornara lugar para ver, o theatron com um
espaço circular ao centro a orchestra que se designou lugar para dançar.
Em síntese, grande parte dos helenistas consideram o dithyrambo
como o precursor do teatro grego e que a tragédia deixa transparecer que
pertence ao território Ático do VI séc. A demarcação do período levou
a pesquisadora Jacqueline de Romilly (1973) a afirmar que Pisístratos é,
em certo sentido, Dioniso, pois o tirano ateniense havia desenvolvido
Teatro Grego e Romano . 127
o culto a essa divindade. Ele ergueu, no sopé da Acrópole, um templo
a Dioniso de Eleutherio, e instituiu em sua honra as festas dionisíacas
urbanas, que seriam aquelas tragédias (ROMILLY, 1998, p. 16).
A autora complementa que os primórdios da formação teatral
ficaram a cargo da aristocracia, pois dois eminentes magistrados eram
designados como khoregos, ou seja, cidadãos de recursos que teriam a
honra de selecionar, subvencionar e manter os integrantes do coro/
coreutas às próprias expensas (ROMILLY, 1998, p. 26). Os mesmos ma-
gistrados tinham por incumbência a escolha dos poetas beneficiados
pelo financiamento da pólis. Entretanto, cabia aos poetas selecionados a
tarefa de ensaiar o coro, pois os coreutas eram considerados o ponto de
partida para uma performance vitoriosa.
A questão foi trazida a debate pelo pesquisador Alain Martin, no
artigo La Tragedie Attique de Thespis a Eschyle (1995), no qual questiona
a relação entre Pisístratos e Dioniso. No artigo Teatro, Memória e
Educação na Atenas Clássica (CANDIDO, 2005, p. 625-636), teci algumas
considerações a respeito da possibilidade de novas abordagens.
O pesquisador Alain Martin interage com as abordagem de Fr.
Kolb (1977) e Konrad H. Kinzl (1980) ao situar o desenvolvimento do
drama trágico na área de influência de Pisístratos (CANDIDO, 2005,
p. 626). Segundo Thomas H. Carpenter, o pesquisador John Boardman
argumenta que Héracles era o herói associado a Pisístratos, tanto que
após o afastamento dos tiranicidas percebe-se um acentuado decrés-
cimo no número de imagens em vasos cuja narrativa mítica remetia
à figura de Héracles (CARPENTER,1997, p. 26). Konrad H. Kinzl
considera que a base de apoio político de Pisistratos era a população
urbana de poucos recursos, os remanescentes da área de influência da
aristocracia rural (KINZL, 1980, p. 185).
Alain Martin acrescenta que devemos iniciar a análise dos pri-
mórdios da tragédia grega conceituando o termo. A palavra grega tragos
significa bode e oidia seria canto; teremos como definição o canto do
bode em homenagem ao deus Dioniso. O animal tem sido represen-
tado em imagética dos vasos gregos como oferenda ao deus. Retomo
a pesquisa de O. Szemerenyi, que considera a palavra tragoidia muito
próxima à família do verbo hitita tarkuwai, que se traduz por dançar.
O teatro trágico seria um espetáculo rural ritualizado com música e
dança presente na região da Anatólia e na Jônia por volta do VIII e
VII a.C., transmitida ao continente grego na região de Ikaros e Thorikos,
proveniente da região de Mileto (MARTIN, 1995, p. 17). Para o autor,
128 . Maria Regina Candido
a imagem do bode não teria nenhuma relação com o deus Dioniso que
se manifestava em êxtase ou enthusiasmo, mas com o ritual de passagem
da infância para a adolescência do jovem cidadão participante do Ritual
da Efebia (MARTIN, 1995, p. 18).
John Winkley, no artigo The Ephebes' Song:tragoidia and Polis (1985),
menciona que o ritual visava preparar o jovem ateniense para a guer-
ra, que fazia parte da cultura dos helenos. O embate entre as poleis era
regido por regras e normas que tinham por princípio a honra e a ver-
gonha, princípios fundamentais no aprendizado dos jovens e futuros
soldados. Cabia aos jovens ter conhecimento que no campo de batalha
o soldado não devia fraquejar ou demonstrar medo do ataque surpresa
ou da morte; o local da batalha era previamente determinado e era o
resultado de uma resposta formal a um desafio; o embate podia durar
dias sucessivos, entretanto, emboscadas e ataques surpresas efetivados
à noite constituíam uma séria violação dos princípios de honra do ho-
mem grego (WINKLEY, 1985, p. 28).
Aristóteles, na obra Constituição de Atenas (42.3), nos informa
sobre a formação do jovem ao citar que uma vez congregado o grupo
de efebos, esses, primeiramente fazem o percurso dos santuários e, a
seguir encaminham-se para o Pireu para guardar a região em Muniquia
e em Acte. Osefebos teriam dois treinadores e instrutores que ensinavam
a combater como hoplita, a atirar com arco, a lançar dardo e catapulta.
O sustento de cada preceptor era de uma dracma e de quatro óbolos
para cada efebo. Após o período de um ano, eles retornavam ao centro
cívico de Atenas, e, em assembleia realizada no espaço físico de teatro,
demonstravam as manobras militares aprendidas perante os demais
integrantes da polis.
A citação de Aristóteles gerou a dúvida sobre a relação entre
dithyrambo e o teatro, ou seja, entre o coro dos meninos e a formação
dos efebos. O coro do dithyrambo formado por homens e meninos, a
perfomance era de dança circular, enquanto os ageneioi ou tragoidoi moviam
em formação linear. Os integrantes do coro ficavam ordenados em três
colunas com quatro ou cinco fileiras, podendo totalizar de doze a quinze
jovens que, marchando firmemente, entravam na orquestra enfileirados.
Embora a orquestra fosse circular para a apresentação do dithyrambo
como kyklios choros, os tragoidoi entravam em formação retangular em
ordem unida e com movimentos precisos da formação hoplítica. Em
Atenas, as informações convergem para a afirmação que a apresentação
da performance da efebia militar ocorria no teatro de Dioniso.
Teatro Grego e Romano . 129
Sob o ponto de vista cívico as pesquisas de Fr. Kolb e Konrad H.
Kinzl apontam que a história da tragédia se inscreve no processo gradual
de formação do exercício do poder político como deixa transparecer
o mais remoto espaço de teatro na região de Thorikos e de Ikarion.
A peculiaridade do sua construção retangular ratifica a abordagem de
Dioniso está relacionado ao exercício e à prática militar como rito de
iniciação dos jovens efebos em período anterior às reformas de Clístenes.
John J. Winkler nos afirma que a performance no dithyrambo era
designada para duas categorias de idade, ou seja, os homens maduros
e os jovens rapazes cuja participação era marcada pela tragoidoi, como
a primeira performance sob a direção de Thespis em 534 a.C. durante a
tirania de Pisístratos. A premiação para o melhor coro de homens e
de jovens rapazes que executaram o dithyrambo se insere no período da
reforma territorial de Clístenes (WINKLER, 1985, p. 41). Para o autor,
o tragoidoi era destinado aos efebos cujo movimento ocorria em formação
retangular e o dithyrambo tinha os passos de dança realizados de forma
circular cujo resultado é a perfomance teatral que passamos a conhecer no
período clássico ateniense.

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132 . Maria Regina Candido


Parte II
O Teatro Romano
Apresentação

Claudia Beltrão da Rosa

Nossos poetas nada deixaram que não experimentassem,


nem foi pequeno o louvor que mereceram os que,
ousando abandonar os vestígios gregos,
celebraram os feitos domésticos ora criando
[as fábulas] praetextae ora as togatae.
(HORÁCIO, Arte Poética, 285-88)1

O termo theatrum é uma clara latinização do grego theatron,


mantendo o significado central de um lugar de onde se vê, já fixado
no sentido de um lugar para assistir a performances dramáticas. O termo,
a partir do século I a.C., passou a designar, também, os edifícios nos
quais tais performances ocorriam, como em nossos dias, e o drama
antigo, a partir de um longo processo de apropriações, abandonos,
ressignificações e redescobertas, é um dos principais componentes da
tradição cultural ocidental. Na dramaturgia moderna, comédia e tragédia
ainda são referidas a gêneros e padrões estabelecidos entre cerca dos
séculos VI a.C. e III d.C.
O teatro romano, contudo, foi alvo de acusações reiteradas de
ser uma “mera cópia” do teatro grego, este sim inventivo, criativo e
paradigmático. Essa mesma acusação se estendeu à arte romana em
geral e, durante muito tempo, as artes plásticas e cênicas romanas
foram vistas, quando não como “meras cópias”, como exclusivamente
dependentes de modelos gregos. É certo que tal visão não era desprovida
de fundamentos, e o poeta autor de nossa epígrafe teve sua frase: “A

1
nil intemptatum nostri liquere poetae/nec nimium meruere decus uestigia Graeca/
ausi deserere et celebrare domestica facta/uel qui praetextas quel qui docuere togatas
(HORÁCIO, Ars P. 285-88).
Teatro Grego e Romano . 135
Grécia cativa capturou seu feroz captor, e trouxe as artes para o agreste
Lácio”,2 retirada de seu contexto original, tornando-se uma máxima que
comprovava o caráter secundário da arte romana em geral.
No caso específico do teatro, o orador Cícero parecia fornecer
a prova cabal quando, numa passagem de seu tratado Dos termos
extremos dos bens e dos males (De finibus bonorum et malorum), declara que
os dramaturgos romanos copiavam os originais gregos “palavra por
palavra” (ad uerbum). Muitos estudiosos se contentaram com esta frase,
e classificaram o teatro romano como “cópia” ou “simples tradução”
do teatro grego. Nada melhor, porém, do que retomar a “fonte” dos
mal-entendidos e deixá-la falar:
Há neles [naqueles que desprezam os escritos latinos],
contudo, algo que considero estranho: por que os assuntos
mais graves lhes agradam em latim, enquanto as pequenas
peças do teatro em latim, traduzidas palavra por palavra do
grego, são para eles uma leitura desagradável? Poderia haver
quem fosse tão inimigo do nome romano para desprezar a
Medeia de Ênio ou o Antíope de Pacúvio sob o pretexto de
que as peças lhe agradam em grego, mas lhe são intoleráveis
em latim? Então, diria ele, seria necessário ler o Synefebo de
Cecílio ou o Andria de Terêncio, e não uma ou outra dessas
peças em Menandro? Estou longe de pensar como aqueles
que, malgrado toda a perfeição da Electra de Sófocles,
evitam ler a má tradução de Atílio, de quem Licínio disse
ser um “escritor de ferro”; apesar disso, é um escritor,
e devemos lê-lo, pois a completa ignorância de nossos
poetas é sinal tanto de uma total preguiça quanto de um
gosto exageradamente delicado. De minha parte, creio que
ninguém é suficientemente culto se ignora nossa literatura.
O trecho: Mais ao céu que no bosque,3 o lemos tão bem quanto
no grego, e não queremos que as ideias de Platão sobre a
virtude e a felicidade sejam lidas em latim? E se não fazemos
traduzir literalmente, mas temos o cuidado de reter o que
foi expresso no original somado àquilo que aprovamos,
acrescentando nossas próprias opiniões e nosso estilo de
composição? Que razão eles podem oferecer para preferir

2
Graecia capta ferum victorem cepit, et artes intulit agresti Latio (HORÁCIO, Ep. 2,
1, 156).
3
Trecho inicial da Medeia de Ênio.
136 . Apresentação - Parte 2
o que é brilhantemente escrito em latim, e não literalmente
traduzido do grego? (CÍCERO, De Fin. I, 2, 4-6)4
Podemos realmente concluir que Cícero afirmou que os drama-
turgos romanos “copiavam” os gregos? Cremos que a declaração de
Cícero insiste que há mais, muito mais, nas versões latinas de peças
gregas: há aquilo que chama “nossas opiniões e nosso estilo de com-
posição” (nostrum iudicium et nostrum scribendi ordinem), indicando, no caso
da comédia e da tragédia traduzidas de originais gregos, a inclusão de
elementos romanos, criando o que chamaríamos de versões.
Esse desmerecimento do teatro romano tinha, também, funda-
mento num desconhecimento do fenômeno teatral para além dos gê-
neros gregos tragédia e comédia, ou numa redução do teatro a esses dois
gêneros. Mas, mesmo na tragédia e na comédia, a prática romana dife-
riu bastante da ateniense.5 Dramaturgos romanos que adotaram, com
entusiasmo, a tragédia e a comédia, adaptavam seus originais gregos,
quando não compunham obras originais com temas gregos.
4
In quibus hoc primum est in quo admirer, cur in grauissimis rebus non delectet eos sermo
patrius, cum iidem fabellas Latinas ad uerbum e Graecis expressas non inuiti legant. Quis
enim tam inimicus paene nomini Romano est, qui Ennii Medeam aut Antiopam Pacuuii
spernat aut reiciat, quod se iisdem Euripidis fabulis delectari dicat, Latinas litteras oderit?
Synephebos ego, inquit, potius Caecilii aut Andriam Terentii quam utramque Menandri
legam? A quibus tantum dissentio, ut cum Sophocles uel optime scripserit Electram, tamen
male conuersam Atilii mihi legendam putem, de quo Licinius: “Ferrum scriptorem”, ue-
rum, opinor, scriptorem tamen, ut legendus sit. Rudem enim esse omnino in nostri poetis aut
inertissimae segnitiae est aut fastidi delicatissimi. Mihi quidem nulli satis eruditi uidentur,
quibus nostra ignota sunt. An “Vtinam ne in nemore...” nihilo mminus legimus quam
hoc idem Graecum, quae autem de bene beateque uiuendo a Platone disputata sunt, haec
explicari non placebit Latine? Quid, si nos non interpretum fungimur munere, sed tuemur
ea, quae dicta sunt ab iis quos probamus eisque nostrum iudicium et nostrum scribendi
ordinem adiungimus, quid habent, cur Graeca anteponant iis quae et splendide dicta sint
neque sint conversa de Graecis? (CÍCERO, De Fin, 1.2.4-6).
5
Num exemplo simples, se, nas tragédias romanas, há um coro em cena, não
há uma orchestra, o que demanda, de imediato, alterações cênicas e métricas,
para além das diferenças linguísticas. A própria arquitetura do teatro romano
é bastante distinta do teatro grego. Por exemplo: se os assentos eram dispos-
tos em círculo, como nos teatros gregos, o palco romano criava uma sensação
de fechamento da cena mais próximo ao efeito do “palco italiano” moderno;
havia diferenças arquitetônicas entre os teatros nas cidades imperiais, mas
pode-se perceber um esquema geral do teatro romano, apresentado no artigo
de Gilvan Ventura da Silva nesta coletânea.
Teatro Grego e Romano . 137
O contexto romano da performance diferia significativamente
da prática grega. Em Roma, representações cênicas compunham o
programa de vários ludi – festivais religiosos na essência – de abril a
novembro. Não havia competição entre dramaturgos, como em Atenas;
as peças eram escolhidas pelo edil ou outro magistrado responsável
pelos jogos, e os dramaturgos eram pagos se suas peças fossem
selecionadas. Além dos ludi, representações cênicas eram incluídas em
ocasiões como triunfos e funerais, financiadas por seus promotores, e
iam além das tragédias e das comédias.
O teatro romano formou-se a partir de diversos elementos itáli-
cos (etruscos, latinos, úmbrios e outros) e das cidades gregas da Itália.
A Península Itálica, desde pelo menos o século VIII a.C., conheceu e
encenou performances, o que demanda pesquisas, e a própria Roma con-
tava com diversos elementos cênicos em seus ritos religiosos6 séculos
antes que a primeira tragédia fosse encenada na urbs, no século III a.C.,
apesar de, até os últimos anos da República, performances dramáticas de
todo tipo serem encenadas em palcos temporários. O primeiro tea-
tro permanente deveu-se a Pompeu, o Grande, em cerca de 60 a.C., e
outros logo se seguiram a este em Roma, mas as ocasiões nas quais a
encenação de peças já eram numerosas e comuns, para audiências cada
vez maiores, sob o patrocínio de políticos romanos há muitos séculos.
As formas itálicas do teatro se multiplicaram com as conquistas
romanas: tragédia, comédia, farsas Atellanae, competições musicais e
retóricas de vários tipos, pantomimas, recitações, declamações etc., mas
o estudo da dramaturgia latina depende de poucas peças supérstites e
de fragmentos, e a observação de detalhes das performances depende de
anedotas ou referências incidentais em outros textos. Há comentários
sobre o teatro em textos de arquitetos, oradores, juristas, gramáticos e
outros sobre o que ocorria em cena, sobre os atores etc. Os vestígios
físicos de teatros estão por toda a parte nas cidades imperiais romanas;
há também pinturas e mosaicos com temas relativos ao teatro, para
além de epigrafias que nos ajudam a compor corpora documentais para
o estudo do fenômeno teatral romano.7

6
Como as encenações que compunham a dança dos sacerdotes sálios.
7
Alguns elementos, contudo, perderam-se, como é o caso da música cênica,
para a qual, se se registra sua presença no palco, e seus instrumentos e músi-
cos, a música propriamente dita é desconhecida.
138 . Apresentação - Parte 2
Falar em teatro romano implica pensar os espetáculos num
sentido mais amplo do que geralmente o fazemos hoje. Observar
as representações cênicas no contexto dos principais espetáculos
cívicos (corridas de cavalos, de carros, lutas – armadas ou não – entre
seres humanos, animais etc.), cada qual com suas especificidades e
desenvolvimentos particulares; analisar o sucesso do Império Romano
tanto para absorver e ressignificar, quanto para orientar as escolhas
das populações das cidades imperiais, e outros temas que demandam
pesquisas pontuais e de conjunto.
No Brasil, os estudos sobre o teatro romano vêm conseguindo,
paulatinamente, ultrapassar as restrições tradicionais do estudo da
dramaturgia, mas o estudo dos espetáculos cênicos e do fenômeno teatral
ainda é incipiente, demandando maior investimento em pesquisas que
dediquem maior atenção às relações entre a documentação textual e a
cultura material, entre a dramaturgia e o palco, entre teatro e sociedade,
temas que nos possibilitam levantar mais problemas do que aventar
soluções. Os artigos presentes nesta seção não têm como objetivo
apresentar as origens e o desenvolvimento das artes cênicas em Roma e
nas cidades imperiais, tampouco apresentar um levantamento exaustivo
da dramaturgia romana. Longe disso, e as ausências são óbvias. Esta
seção reúne um grupo de especialistas em História e Cultura Romana,
em torno de uma preocupação comum: perceber e analisar, a partir
de casos pontuais, a presença marcante e central do teatro na vida
social e cultural das populações de Roma e de municípios imperiais,
numa abordagem que escapa do “romanocentrismo” e lança mão de
documentos diversos.
Os artigos de Sônia Regina Rebel de Araújo e de Claudia Beltrão
da Rosa têm como objeto uma mesma obra dramática, trazendo duas
abordagens distintas e complementares da Aulularia, de Plauto. No
primeiro, Ideologia Escravista em Aulularia de Plauto, Sonia Rebel discute
as representações dramatúrgicas das relações ambíguas entre senhores
e escravos, destacando a ideologia escravista romana. Já em Religião
e Teatro na Roma Republicana: notas sobre a Aulularia de Plauto, Claudia
Beltrão tem como objeto as pouco conhecidas crenças e práticas
religiosas domésticas romanas, das quais a dramaturgia é excelente
fonte documental. A riqueza do teatro plautino assoma na polissemia
de suas cenas e personagens e nas ricas possibilidades de pesquisa que
abre como via de acesso à cultura romana republicana.

Teatro Grego e Romano . 139


Em Identidade Cultural e Teatro: um estudo de caso de um mosaico
afro-romano, Regina Maria da Cunha Bustamante lida com o com-
plexo tema das identidades e alteridades culturais, problematizan-
do suas articulações a partir da análise de um mosaico de uma
domus norte-africana, no qual o teatro desponta como signum da cultura
imperial romana, enquanto José d’Encarnação, em Da Epigrafia Teatral
no Portugal Romano, apresenta inscrições epigráficas como media para o
estudo de um elemento característico da vida urbana em cidades impe-
riais romanas na província da Lusitânia, e seu pertencimento cultural
ao imperium.
O teatro, desempenhando um papel fundamental na identifi-
cação das elites locais e das populações urbanas à ordem romana, foi
um tema de destaque na obra de autores cristãos, geralmente sob a
forma da invectiva. No artigo O Teatro é uma Festa: controle dos prazeres
na visão de Tertuliano, Ana Teresa Marques Gonçalves analisa a obra
De Spectaculis, do cristão Tertuliano, pérola de invectiva contra os
espetáculos de toda natureza, conclamando os cristãos a renunciarem
aos prazeres do mundo, texto que assoma como uma das principais
fontes para o estudo do teatro romano, a despeito das intenções de
seu autor. A presença física dos teatros nas cidades romanas é uma
preocupação central de Gilvan Ventura da Silva, em Ordem e Desordem
na Cidade Antiga: o teatro entre a tradição clássica e a cristã. A partir
da observação da centralidade do teatro na cidade antiga, como
“microcosmo” da cultura imperial, o artigo analisa o discurso do
pregador cristão João Crisóstomo contra a presença de cristãos no
teatro e contra a existência de teatros na “cidade cristã”.
Os textos e os objetos da cultura material que chegaram até
nós revelam a popularidade e o fascínio do teatro em Roma e nas
cidades imperiais. Mesmo moralistas cristãos sucumbiam ao seu
poder de atração e, apesar de suas vituperações – excelentes fontes,
quando devidamente depuradas, para o estudo do teatro pela riqueza
de detalhes que apresentam – performances teatrais continuaram a ser
realizadas após o século IV d.C. subsidiadas por cidadãos ricos, por
magistrados e imperadores. No século V d.C, o antigo Teatro de
Pompeu foi restaurado, e Claudiano, poeta da corte do imperador
Honório, faz referências a representações cênicas tradicionais (Pan.
Man. Theod. 323-30), bem como os novos governantes ostrogodos
e vândalos estimulavam os espetáculos populares e as performances

140 . Apresentação - Parte 2


teatrais. O fechamento dos teatros por Justiniano, em 526 d.C.,
não parece ter sido permanente ou, pelo menos, eficaz. Em 692 d.C.,
o Concílio de Trullo, reunido em Constantinopla sob Justiniano II,
contudo, baniu todas as formas de representação teatral, fechando,
definitivamente, os teatros antigos, num momento em que “todos
os homens temiam seu poder” (omnes formidant homines eius ualentiam.
Nev. Danae. fr. 1).

Teatro Grego e Romano . 141


Ideologia escravista em
Aulularia, de Plauto

Sônia Regina Rebel de Araújo

Este capítulo tem como escopo discutir aspectos das relações


entre amos e escravos na República Romana do século III a.C.,
enfocando a ideologia escravista que informava essas relações, tomando
a peça Aulularia de Plauto como locus da análise. Pretendo demonstrar
que as fontes literárias, mesmo ficcionais, podem iluminar aspectos
do social, inclusive a situação social dos escravos em relação a seus
amos. Igualmente é possível perceber nessas fontes a ambiguidade dos
escravos vistos como seres humanos cheios de defeitos, mas, ao mesmo
tempo, capazes de lealdade ao amo. “Pensar a humanidade do escravo
era filosoficamente problemático”.1A ambiguidade do pensamento
consiste em que o amo sabia que o escravo era ao mesmo tempo um
ser humano e uma mercadoria, “e a este respeito, viver com escravos
significava viver em contradição”.2 Alguns autores enfatizam o fato
de escravo ser mercadoria, outros a humanidade do escravo, porque a
instituição era contraditória.
Ao analisar esta fonte para perceber o teor das relações entre
amos e escravos, verifico os limites possíveis da visão dos letrados e
senhores no mundo romano sobre os escravos, pois nela aparecem
tanto o mandonismo dos amos, como um discurso da acomodação dos
escravos a sua situação, e também aspectos de antagonismo entre amos
e escravos.
O conceito de ideologia com que trabalho neste texto foi
formulado por R. Williams que, entre várias acepções marxistas deste

1
Ambiguidade: Finley (1991); Ideologia escravista e defeitos dos escravos:
Garnsey (1996).
2
Escravidão como instituição contraditória: Davis (1968) e Fitzgerald (2000).
Teatro Grego e Romano . 143
conceito, a definiu também como “o processo de produção do sentido”
(WILLIAMS, 1979, p. 60). Tal concepção de ideologia é especialmente
interessante para análise da literatura produzida no mundo romano,
pois centra sua preocupação no significado de um texto, como ele é
produzido e como chega a significar algo.
Igualmente importantes para minha análise são as ideias de
Lucien Godmann (1970) sobre ideologia e classes sociais. Seu método
estruturalista genético acerca da Sociologia da Literatura estabelece
premissas relevantes para os estudos socioliterários e as utilizo para
aplicá-las à análise da ideologia escravista no mundo romano. De acordo
com este método, a criação literária deriva, ou melhor, origina-se das
estruturas mentais que organizam tanto a consciência real de um grupo
social quanto o universo imaginário que o artista cria. Por tal motivo, as
estruturas mentais são sociais, coletivas, e não são frutos apenas de um
artista individual. A consciência de classe de um dado autor é chamada
por Goldmann de “estrutura englobante”, e seria a classe social o
verdadeiro autor coletivo da obra literária. As estruturas mentais e
sociais é que conferem à obra artística sua unidade, constituindo esta
última um elemento fundamental da qualidade estética da obra. Por
outro lado, tais estruturas sociomentais são não-conscientes, exigindo
uma pesquisa sociológica que as explique (GODMANN, 1970, p. 128).
Os métodos que este enfoque pressupõe consistem em buscar,
através do recorte do objeto, a apreensão do significado da obra e
para tal é preciso verificar como a estrutura descoberta no texto tem
um caráter funcional e constitui um comportamento significativo.
Pressupõe também que “explicação” e “compreensão” não são
categorias opostas e cumprem tarefas diferentes e complementares,
visto que a compreensão atuaria no nível imanente da obra, suas
estruturas internas, enquanto a explicação se preocuparia com a sua
inserção numa estrutura mais vasta, que tanto pode ser o gênero a que a
obra pertence, quanto a “estrutura englobante”, a consciência de classe
do autor.
Exemplifico com uma obra de Plauto. “Nós não necessitamos de
escravas, exceto para ter alguém para tecer, moer o trigo, cortar lenha, fiar sua roupa,
limpar a casa, para a gente bater” (vapulo) (PLAUTO, Mercator).3 Ou seja,
o tema da escravidão citado na obra impõe a abordagem do assunto,
ligando escravidão feminina à exploração do trabalho doméstico e a
3
Apud Fitzgerald (2000, p. 32-33).
144 . Sônia Regina Rebel de Araújo
castigos físicos. A consciência de classe do autor apresenta-se neste
trecho como uma estrutura mais geral, mas o emprego do verbo
vapulo, bater, fustigar, mostra que a análise do vocabulário, no nível
da compreensão da obra, é fundamental para o entendimento da obra
como um todo (GOLDMANN, 1976, p. 212).
Pretendo, então, analisar esta peça de Plauto mediante a
articulação de um estudo das estruturas internas da obra com algo mais
geral, a ideologia escravista do mundo romano de que a obra plautina
é um exemplo.

Alguns dados biográficos de Plauto

Titus Maccus Plauto viveu entre os anos 254 e 184 a.C. Nasceu
em Sarsina, fronteira da Úmbria, e proveio de família modesta. Foi
o mais antigo dos comediógrafos latinos. São-lhe atribuídas mais de
cento e trinta peças, mas só nos chegaram vinte e uma com autoria
comprovada por Varrão. A influência dos autores gregos da “comédia
nova”, Menandro e, sobretudo, Dífilo, é certa e, por representarem o
modo de vida dos gregos, são conhecidas como fabulae palliatae. No
entanto, em suas peças, Plauto introduz elementos da vida romana, do
cotidiano das classes populares, o que lhes confere uma originalidade
especial, resultante também do fato de ele frequentar os meios populares
romanos (MCCARTHY, 2000).
O enredo da maioria de suas peças gira em torno dos engodos e
trapaças de um escravo às vezes destinado a unir amantes apaixonados.
Entre seus personagens estão, além de escravos ardilosos, pais estúpidos,
soldados falastrões, rufiões gananciosos. Dentre as mais famosas peças
estão Captivi, Aulularia, Amphitryo, Pseudolus, Asinaria, Casina. Em suas
peças os diálogos são muito importantes e ocupam boa parte do texto,
cerca de um terço. Os dois terços restantes eram consagrados à cantica,
a parte cantada.
Esta peça narra as peripécias de um velho pobre e avarento,
Euclião, que tinha como única riqueza uma panela cheia de ouro e
cuja filha Fedra tinha sido desonrada por Licônidas, um jovem vizinho.
Euclião tenta por todas as maneiras evitar que se descubra o pote de
ouro em seu poder, escondendo-o em vários esconderijos, até que,
ao esconder o ouro no bosque de Silvano,4 é roubado por Estróbilo,
4
Sobre o significado religioso desta peça e particularmente do esconderijo do
pote de ouro no bosque de Silvano, ver neste livro o artigo a cargo de Claudia
Teatro Grego e Romano . 145
escravo de Licônidas. Aqui se destaca a figura do escravo ardiloso que
negocia com os amos a posse da panela em troca da própria liberdade.
A moça, que tinha sido prometida por seu pai a Megadoro, um velho
rico, tio do jovem, acaba por se casar com Licônidas, e seu pai Euclião,
feliz com o casamento da filha e com a recuperação do ouro, doa o
conteúdo da panela ao jovem casal.
Há dois diálogos muito significativos dessa comédia de erros, em
ambos Euclião é interlocutor. O primeiro entre Euclião e Megadoro,
em que cada personagem fala a respeito do assunto que mais o
interessa, o ouro para Euclião e a mão da moça no caso de Megadoro.
Entre Euclião e Licônidas acontece um dos momentos mais cômicos,
pois a extensão do diálogo e dos enganos em relação ao assunto da
conversa – novamente, Euclião pensa que se está a mencionar o ouro
e Licônidas tenta contar o crime que cometeu contra Fedra e fala em
reparar o erro casando-se com ela.
A importância da peça para estudar ideologia escravista é enorme.
A presença de escravos – Estáfila, a escrava doméstica de Euclião,
vários escravos cozinheiros, mas, sobretudo, o ardiloso Estróbilo, que
conquista com esperteza a sua liberdade – invoca, por um lado, os
defeitos dos escravos – curiosidade, roubar – por outro, o mandonismo
dos amos, a repressão em forma de castigos rotineiros ou ameaças de
castigo e até a morte (crux, crematio).

Acomodação e Resistência de Escravos na República Romana: o exemplo de


Aulularia
Em primeiro lugar, abordo as premissas de Finley (1991, p.
97-128) acerca da escravidão na Antiguidade para referenciar minhas
reflexões sobre a instituição escravista no mundo romano. O Autor
parte de duas considerações de caráter mais geral: a de que a sorte do
escravo dependeria das disposições do senhor para com os escravos
e se este é um bom ou mau amo; a ambiguidade do escravo como ser
humano e ao mesmo tempo propriedade, objeto, mercadoria, é um
excelente ponto de partida teórico para explicar a escravidão no mundo
antigo. A seguir, Finley acentua que os escravos pagariam com o corpo
pelas ofensas cometidas pelo fato de não serem livres, e também

Beltrão da Rosa, Religião e Teatro na Roma Republicana: Notas sobre a Aulularia de


Plauto.
146 . Sônia Regina Rebel de Araújo
por serem desenraizados, privados do direito de família, violências
decorrentes do fato primordial de serem propriedades. A prática da
tortura, longe de ser irracional, torna-se corriqueira naquela sociedade,
pois era fundamental distinguir os homens livres dos não-livres. A
despersonalização dos escravos se daria pela mudança constante de
seus nomes, pelas possibilidades de venda como mercadorias, e por
serem chamados de “garotos” – pais em grego, puer em latim – sua
idade real não importava aos amos. Finalmente, os escravos não tinham
personalidade jurídica, eram desprovidos de direitos, seu casamento era
um prêmio àqueles de bom comportamento e, de qualquer modo, não
tinha valor legal, o que dava poderosas vantagens de manipulação dos
casais e dos filhos por parte dos amos.
As implicações destas premissas para a análise da situação dos
escravos e sua situação real de vida, mesmo que se parta de fontes
primárias de cunho ficcional, são enormes. Quanto à ideologia dos
letrados romanos, por exemplo, observem-se os resultados do fato de se
os considerar como coisas e como seres humanos: os escravos poderiam
ser companheiros de trabalho do amo, realizando tarefas diversas;
poderiam se voltar com frequência para o amo como uma referência,
aceitando certos valores dos elementos das camadas dominantes,
o que explicaria o sentimento de fidelidade em relação aos amos.5 A
visão ambígua acerca de alguns fâmulos – amas, pedagogos, sobretudo
médicos – aparece nos escritos de letrados gregos e romanos, vistos
por uns com sentimentalismo (refiro-me aos epigramas funerários de
Marcial) mas condenados pelos moralistas – Plutarco pode ser um
bom exemplo – que criticavam o fato dos pais entregarem os filhos,
futuros cidadãos, aos cuidados de “bárbaros incultos”. A este respeito,
Finley (1991, p. 122) indica como elemento da ideologia dos letrados, o
“racismo”, “resultado lógico da equação escravo-estrangeiro, termo no qual insisto,
apesar da ausência de um estigma de cor, a despeito da variedade de povos, e a
despeito da frequência das manumissões e suas consequências peculiares”.
Ainda sobre ideologia escravista, Peter Garnsey (1996, p. 35-
52) discorre acerca dos defeitos dos escravos serem uma justificativa
para a degradação cometida pelos senhores. Assim, os escravos eram
mostrados como ladrões, sempre aptos a roubar coisas de seus donos,
o que justificava a recomendação de se trancar os objetos de valor,
5
Um bom exemplo constante na comédia plautina Os Cativos é a rela-
ção de fidelidade entre o escravo Tíndaro e seu amo Filócrates.
Teatro Grego e Romano . 147
como seres curiosos, sempre escondidos atrás das portas para ouvir as
conversas dos amos, como glutões e luxuriosos.6
Ao lado do poder do amo sobre os escravos, a resistência destes
sempre existiu de forma mais ou menos organizada. Não devemos vê-
los, contudo, como vítimas indefesas de seus sádicos senhores, nem
também como rebeldes de tempo integral, sempre desejosos de fugir
ou atacar os senhores. Os escravos acomodavam-se, a maior parte do
tempo, para sobreviver e resistiam ao domínio do amo de maneiras
variadas, dependendo das circunstâncias. A rebelião de escravos
de forma organizada foi rara na Antiguidade e ocorreu quando a
conjuntura foi favorável. Em minha análise, os dois aspectos estão
presentes: os escravos do mundo romano, embora nunca tenham
aceitado a escravidão, revoltaram-se quando possível, acomodando-se
quando não era viável resistir, provavelmente a maior parte do tempo.
Mas ressalto, neste texto, a resistência cotidiana do escravo, no caso da
peça de Plauto, o emprego da astúcia, do engodo e do roubo para obter
a liberdade.
Passo então a analisar a peça Aulularia de Plauto para dar conta
das ideias sobre acomodação e resistência enfocando, sobretudo, o
mandonismo dos amos sobre os escravos e a manipulação dos amos
pelo escravo esperto, ardiloso. Quero demonstrar que as relações
sociais entre amos e escravos eram de antagonismo, mas que nem
sempre o poder do amo, teoricamente total sobre o escravo, se exercia
plenamente havendo brechas para a manipulação do escravo. Como
estabeleceu W. Fitzgerald (2008, p. 8)
O que eu quero enfatizar aqui é que a coabitação entre
escravos e o amo gerava um conjunto de problemas sobre o
status moral do escravo que não poderia ser definitivamente
resolvido e que são mais frutíferas as experiências dos amos e
dos escravos em termos de semelhantes conflitos do que em
termos de atitudes rigidamente estabelecidas especialmente
quando alguém está estabelecendo [a análise a partir da
literatura].

Sobre a escravidão como metáfora para relações sociais ver as ori-


gens dessa forma de pensar localizada na obra de Aristóteles, mas muito
presente no mundo romano como se verá na análise da peça de Plauto.
6
Ver P. Garnsey (1996). “Justifications of Slavery”, p. 35-52; e “Slavery as
metaphor”, p. 220-243.
148 . Sônia Regina Rebel de Araújo
Em uma condição extrema, escravidão provê aos livres uma
metáfora e uma medida para uma variedade de relações.
Aristóteles mapeou relações políticas, familiares e sociais
em termos de domínio e subordinação, traçando uma
série de analogias e distinções entre as diferentes relações
(FITZGERALD, 2000, p. 74).

Vejamos como a fonte escolhida demonstra o teor das relações


entre amos e escravos. Em primeiro lugar, na cena 1, Euclião maltrata a
escrava Estáfila, alegando que sua curiosidade resultaria em mexericos
e consequentemente na perda da panela com ouro que ele escondia na
lareira. Ele a insulta e ameaça. É uma ocorrência típica do mandonismo
dos amos e também da violência cotidiana sobre os escravos:
Olha esta malvada, como resmunga lá consigo. Por Hércules,
ainda te vou arrancar os olhos minha sem vergonha, para que
não possas espiar o que eu vou fazer. Vai lá para trás! Mais!
(...) Bom, aí podes parar. Mas (...) olha que se sais deste lugar
(...) ou se olhares para trás sem que eu te dê licença, então (...)
mando-te logo para a cruz, para te ensinar. [à parte] Do que
eu tenho um medo terrível é de que ela não me tenha caçado
alguma palavra por descuido meu e não lhe tenha chegado o
cheiro do lugar em que escondo o ouro; porque esta malvada
até parece que tem olhos na nuca (Aul. 1,1).

Este excerto contém o núcleo da ideologia escravista que atribui


aos defeitos dos escravos as desgraças que podem acometer os amos
e que, para corrigi-los, os meios empregados são repressivos, podendo
chegar à eliminação física na cruz. Como o assunto principal da peça é
o ouro contido na panela que Euclião temia acima de tudo ser roubado,
as menções a roubos perpetrados por escravos são numerosas, como se
pode conferir no Ato II, no diálogo entre dois escravos de Megadoro,
Congrião e Estróbilo, quando este último diz:
Aqui em casa vamos ter muita confusão, são muitos os
escravos, e há mobília, há ouro, há vestuários e há vasos de
prata. Se desaparecer alguma coisa (e, pelo que sei de ti, é-te
muito fácil não tocar nas coisas quando não as tens pela
frente) vão logo dizer: ‘Foram os cozinheiros que roubaram.
Prendam-nos, atem-nos, batam-lhes, atirem-nos à cova!’ Ora,
a ti não te vai acontecer nada disto; lá [na casa de Euclião]
não há nada para roubar (Aul. Ato II).
Teatro Grego e Romano . 149
Reforço, então, a coerência do pensamento de Plauto em relação
aos escravos, pois dois fatos merecem nossa atenção: afirmação de que
o escravo sempre que tem oportunidade rouba o amo, e a repressão, a
coerção física como meio de coibir, corrigir, os defeitos dos escravos,
particularmente roubopdiu7.
Como já foi dito acima, a acomodação dos escravos à situação
de inferioridade igualmente ocorre na comédia plautina. É um recurso
estilístico de o autor colocar na boca do próprio escravo o discurso da
conveniência da acomodação, mesmo a naturalização da condição de
escravo.8 Em Aulularia vê-se Estróbilo, o esperto escravo de Licônidas,
dizer para si mesmo:
É próprio de o bom escravo fazer aquilo que estou reali-
zando e comportar-se de maneira que não tenham demora
nem obstáculo as ordens de seu amo. O escravo que deseja
servir bem o seu senhor trata de fazer primeiro tudo que
diz respeito ao amo e depois o que a si próprio diz respeito.
(...) acho que do mesmo modo deve o escravo ser jangada
para seu amo generoso, para sustentá-lo à tona d’água e não
deixar que vá ao fundo. Deve conhecer seu amo a ponto
de saberem os olhos o que deseja o espírito; (...) Quem o
fizer, se livrará das censuras e chicote e não polirá com sua
diligência grilheta alguma (Aul. 4,1).

Novamente, a menção aos onipresentes castigos físicos – chicote,


grilhetas – mostra que a escravidão como modo de produção era um
trabalho compulsório que implicava para dar dividendos aos amos a
coerção física. Mas o destaque aqui é para outra faceta da escravidão, a
existência do escravo leal ao amo generoso, o “bom escravo”.9
7
Também em Plauto, Asinária há menção às costas vergastadas, chicoteadas,
dos escravos, como de resto, em várias fontes literárias, não só na obra plau-
tina.
8
Sobretudo em Os Cativos, quando o capataz de Hegião pondera junto aos
prisioneiros de guerra ora escravizados que é necessário acomodar-se à “des-
graça da escravidão (...) tem de se tornar digno tudo que de indigno faz o
dono” (Cativos, 2, 195-205).
9
A questão do “bom escravo”, do escravo leal ao amo, refere-se a um assunto
delicado e controvertido: pode um escravo ter ética? Sim, pois suas qualidades
morais de “bom escravo” são referidas não a ele como pessoa, mas na sua
relação com o amo; se ele bota os interesses do amo acima dos seus, se sem-
150 . Sônia Regina Rebel de Araújo
Para W. Fitzgerald, o corpo vergastado do escravo lembra ao
livre sua própria vulnerabilidade. As imagens do escravo punido são
como espelho do mundo: adjetivos como bubulinus, ulmeus, ferreus, são
acrescentados ao vocabulário da cidadania e da política (FITZGERALD,
2000, p. 40). Plauto traça paralelo entre soldado e o escravo inteligente,
esperto. Fizgerald analisa o vocabulário plautino e descobre coisas
interessantes, por exemplo, uma similaridade entre as costas calosas do
escravo e a esperteza.
A esperteza do escravo intratável e astucioso é um sinônimo
da dureza da pele, impermeabilizada para punições, o que
faz com que seja constantemente chicoteado, açoitado;
Experiência e impermeabilidade são ambas produtos da
raiva do senhor (FITZGERALD, 2000, p. 41).10

Estróbilo consegue roubar o ouro de Euclião quando este, depois


de retirar a panela do templo da Fidelidade, a esconde no bosque de
Silvano, fora dos limites da cidade, para onde o seguira Estróbilo que,
ao descobrir o esconderijo, se apodera do ouro e o oferece ao seu amo
Licônidas em troca de liberdade. Mas há um jogo de palavras nessa
cena do diálogo ente Licônidas e Estróbilo em que este espertamente
testa a disposição de seu amo para libertá-lo antes de confessar que
realmente tem o ouro da panela de Euclião em seu poder. Depois de
ameaçá-lo com chicotes e correntes, Licônidas se dispõe a ouvir as
ponderações de Estróbilo em que este negocia sua liberdade e evita,
com palavras, os castigos.
Se me torturares até a morte, verás quais vão ser as
consequências: primeiro, morrer-te um escravo; depois, não
conseguires o que desejas. Mas se me tentasses com o doce
prêmio da liberdade, já sem dúvida alguma terias alcançado
o que queres. A todos a natureza jurou livres e todos por
natureza pensam na liberdade.11 O pior de todos os males, a

pre fica ao seu lado, se não foge, então é um bom escravo. Ver: Finley (1991),
capítulo 3 principalmente.
10
Ver observações sobre palavras de raiz latina colleo, de onde vêm caloso e
esperteza. Eles mesmos, os açoites, são a recompensa do escravo esperto =
callidus.
11
Novamente vê-se aqui uma passagem idêntica àquela de Os Cativos, em que
o capataz conversando com Hegião, seu amo, fala na liberdade como natu-
Teatro Grego e Romano . 151
pior de todas as desgraças é a escravidão. O que Júpiter faz
antes de tudo àqueles que odeia é torná-los escravos (Aul. 5).

Se Plauto aceita, e até justifica a escravidão, como de resto os


demais letrados do mundo romano, por outro lado observe-se a crítica
à concepção que naturaliza este sistema. Para ele, a escravidão é “doen-
ça”, “desgraça”, pelas indignidades e violências que causa. O fato de ele
constantemente mencionar castigos físicos como inerentes às relações
entre amos e escravos, a meu ver, deriva do próprio fato social que é a
existência de textos literários. Em outras palavras, a verossimilhança é
inerente ao texto literário.
Lucien Goldmann, ao discorrer sobre as origens do texto lite-
rário, ao explicar a autoria coletiva dos textos, mostra que por trás de
um autor individualizado há uma consciência de classe, esta é a origem
fundamental da obra. Se para Goldmann as estruturas mentais são
sociais, se a classe social, sujeito coletivo portador de ideologia, então
se pode explicar de forma rigorosa a árdua questão da autoria da obra
literária, e mais, explicar as relações entre o ficcional e a realidade social.
Os pressupostos de Goldmann são úteis para sepultar a anacrônica
teoria da “obra de arte como reflexo do social”, ao dar uma explicação
satisfatória para o surgimento de uma obra literária de um autor. Para
ele, o universo mental do autor tem uma coerência que se manifesta
de forma inconsciente nos escritos, o que confere unidade e qualidade
à obra. E preconiza como método, por exemplo, que o investigador
leia a obra completa do autor em questão para se ter uma ideia de seu
universo mental. O seu método “estruturalista genético”; “estruturalista”
porque o Marxismo adotado por ele é um estruturalismo, e “genético”
porque, tal como Lukács, ele se preocupa com as classes sociais e com
a consciência de classes para entender a origem das obras literárias.12
Em termos de método, Goldmann insiste que não há contradição
entre dois tipos de abordagens, a compreensiva e a explicativa. Ao
contrário, elas se complementam. A primeira trata de explicar as
ral ao ser humano e que a escravidão é uma “desgraça”, uma “doença” que
acomete os homens, mas não é natural. É bem significativo observar-se esta
crítica, na obra de Plauto como um todo, à ideia aristotélica da “escravidão
natural”.
12
Duas obras de L. Goldmann (1970; 1976) são importantes para aprofun-
dar estas questões. Nesta última, ver especialmente a “Conclusão”, em que
ele explica didaticamente o “Método Estruturalista Genético” em Literatura
(GOLDMANN, 1976, p. 203-220).
152 . Sônia Regina Rebel de Araújo
estruturas internas da obra: vocabulário, metáforas as divisões do
texto; por “explicação” o Autor se refere à necessidade que o investi-
gador tem de inserir a obra num contexto mais geral, seja o das classes
sociais, seja a categoria, o gênero a que a obra pertence, o contexto
histórico. Esses passos são necessários para se entender o significado
da obra, pois esta é a tarefa primordial do analista ou crítico.
Assim, em minha própria abordagem da obra plautina, seguindo
Goldmann, analiso o vocabulário da escravidão, as passagens da peça,
com vistas a entender e explicar o teor ideológico nela contido. Neste
sentido, cito uma frase de Finley que é do maior valor para todos
que estudam obras literárias que têm como objeto a escravidão, seja
ou não relativa à Antiguidade: “É o tema da escravidão que implica
a abordagem”.13 Em outras palavras: Plauto tem como assunto
a escravidão nesta e em outras peças; então, os temas da repressão,
dos abusos contra os escravos, de seus defeitos morais, dos ardis,
são obrigatoriamente apresentados. É neste sentido que emprego a
premissa da “autoria coletiva” derivada da consciência de classe de que
fala Goldmann.
Sobre a resistência dos escravos à situação de dominação sobre
eles exercida, cito um trecho em que Estróbilo critica o agir dos amos
em relação à sua propriedade. Lembro ainda que esta peça é da época
em que Roma se lançara à expansão sobre o Mediterrâneo, em que as
riquezas afluíam para Roma em grande quantidade, através das guerras.
Aqui se trata de uma crítica à avareza dos senhores.14
(...) O nosso tempo produziu donos demasiadamente
avarentos. Costumamos chamá-los Harpagões, Harpias e
Tântalos, pobres no meio das maiores riquezas e sedentos
no seio do vasto oceano. Não lhes chegam bens nenhuns,
nem os de Midas, nem os de Creso. (...) Os donos tratam
indignamente os seus escravos; por seu lado; por seu lado,
os escravos cumprem mal as ordens de seus donos. Assim
nenhum deles faz o que seria justo. Os velhos avarentos
fecham a sete chaves os escritórios, as despensas, os celeiros.
O que eles mal querem conceder a seus filhos legítimos, os
escravos ladravazes, espertos e ladinos o pilham, mesmo que
13
Finley (1991, p. 97).
14
Vários analistas mostram a influência desta peça de Plauto sobre a obra de
Shakespeare e de Molière. Neste último caso, a referência óbvia é à peça O
Avarento.
Teatro Grego e Romano . 153
esteja fechado com as tais sete chaves. A furto lho tiram,
devoram-no. Nem a cruz os faz confessar as centenas de
roubos. Assim os escravos se vingam, divertindo-se e rindo,
de sua escravidão. Concluo, portanto, que a liberdade faz os
escravos fiéis (Aul. 5).

Nesta cena, o monólogo de Estróbilo, o escravo esperto, ladino,


traduz a maneira de pensar do próprio Plauto acerca da escravidão e das
relações entre amos e escravos. À época da escrita de suas peças, como
já mencionei, havia a expansão romana no Mediterrâneo e um número
impressionante de escravos foi trazido para a Itália e a Sicília. Não por
acaso, esta época também testemunhou a ocorrência de numerosas,
pequenas, revoltas de escravos – na Apúlia, em Roma, no Sul da Itália –
que antecederam as grandes revoltas servis do século II a.C. na Sicília,
pois o número expressivo de escravos de primeira geração, ao lado
de outros fatores,15 trouxe necessariamente conflitos nos locais que os
receberam.
O que Plauto denuncia nesta peça, especialmente no trecho
acima, é a modificação no comportamento dos senhores: tornaram-se
mais gananciosos, agressivos, desejosos de lucro fácil mesmo à custa
das vidas miseráveis dos escravos. Além da denúncia, este texto traz
um programa para o relacionamento entre amos e escravos. O chicote
cotidiano e a crucificação, castigo tremendo destinado aos escravos
rebeldes e criminosos, não coibiam o roubo e as demais atitudes
negativas dos escravos. Estes resistiam como podiam: roubando,
enganando, mas também usando o riso e a ironia como armas contra
o amo. Esta passagem é muito importante porque trata da fala de um
escravo inteligente que quer obter a liberdade através do roubo, do
engano, mas manipulando a ganância de seu amo, o desejo deste de
possuir o ouro da panela de Euclião. A ironia é uma arma do próprio
Plauto, já que ele mesmo aceitava a escravidão como fato, não tinha nem
de longe ideias abolicionistas, o que aliás era impensável na Antiguidade.
Quando Estróblio diz que “Concluo, portanto, que a liberdade faz os
escravos fiéis”, ele quer dizer que não existiam escravos fiéis, já que a
liberdade no mundo romano trazia a cidadania para o liberto. Portanto,
a escravidão era sinônimo de crimes, de vinganças e violências de parte
a parte, de amos e escravos, e que a avareza dos senhores era um fator
agravante da situação já bastante explosiva na sociedade romana.
15
Bradley (1989).
154 . Sônia Regina Rebel de Araújo
CONCLUSÃO

Euclião é convencido a desfazer o trato de casamento se sua filha


com Megadoro e casar Fedra com Licônidas, que pede perdão por tê-la
desonrado e propõe o casamento como reparação. Euclião transforma-
se de velho avarento em generoso, pela oferta da panela de ouro aos
jovens nubentes.
O deus Lar, que apresenta toda a situação no Prólogo da peça,
em que critica os sucessivos donos daquela casa por não lhe fazerem as
honras devidas, é que dispôs para que Euclião não usufruísse do ouro
em seu poder, mas sim sua filha, pois esta lhe fazia todas as honras,
cultuava-o, ofertava-lhe incenso e vinho, fazia-lhe preces. O deus Lar
informa que fará uma trama para que o vizinho Megadoro peça a mão
da moça em casamento, “e isto pra que mais depressa se case com
aquele que a seduziu” (Prólogo). Neste sentido, a religião doméstica
é um tema central na peça, assunto nobre, mas que se desenvolverá a
contento a partir dos engodos de um escravo ardiloso.

DOCUMENTAÇÃO TEXTUAL

PLAUTE. Comédies. Tome I: Amphitryon; Asinaria; Aulularia. Texte


établi et traduit par A. Ernout. 3e tirage. Langues français, latin XLIX
- 412 p. (1932).
PLATUS. Amphitryon. The Comedy of Asses. The Pot of Gold. The Two
Bacchises. The Captives. Edited and translated by Wolfgang de Mello.
Harvard, Loeb Classical Library. Jan. 2011.
PLAUTO - TERÊNCIO. A Comédia Latina. Trad. Agostinho da Silva.
Rio de Janeiro: Ediouro, [s.d.].

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Bloomington: Indiana University Press; London: Batsford, 1989;
updated reprint 1998.
Teatro Grego e Romano . 155
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GARNSEY, P. Ideas of Slavery from Aristotle to Augustine. Cambridge:
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GOLDMANN, L. Sociologia do Romance. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
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MCCARTHY, Kathleen. Slaves, Masters and the Art of Authority in Plautine
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156 . Sônia Regina Rebel de Araújo


Religião e Teatro na Roma Repúblicana:
Notas sobre a Aulularia, de Plauto1

1
Claudia Beltrão da Rosa

...omnia quae cernerent deorum esse plena


(CÍCERO. Leg., 2, 26).

A religião romana vem atraindo um número cada vez maior de


estudiosos. A postura tradicional, que via uma religião estática e con-
servadora, não mais se sustenta, e nos últimos trinta anos sua imagem
assoma como um dos fundamentos dinâmicos da urbs, ampliando o
olhar dos historiadores para aspectos da experiência romana até en-
tão obscurecidos ou mesmo desconhecidos. Nas últimas décadas, ao
lado das contribuições teóricas dos estudos antropológicos, pesquisas
arqueológicas recentes trazem novas discussões e novas possibilidades
de abordagens, somadas à reavaliação da documentação textual. Do
mesmo modo, estudiosos das artes cênicas, especialmente no que tange
às comédias de Plauto e Terêncio, vêm propondo hipóteses e leituras
sobre o teatro romano que renovam as possibilidades do diálogo inter-
disciplinar na construção do conhecimento sobre o mundo antigo, e o
período tradicionalmente conhecido como República romana é um perí-
odo muito fértil, em todos os sentidos, para o estudo das instituições e
dos fenômenos religiosos romanos.

1
Uma primeira versão deste estudo foi apresentada, sob o título Elementos da
religião doméstica romana na Aulularia de Plauto, no Encontro Internacional sobre
Religião, Rito e Magia, promovido pelo Núcleo de Estudos da Antiguidade
(NEA-UERJ), em 2010. Agradecemos às oportunas observações e sugestões
dos colegas antiquistas Norma Musco Mendes, Sonia Regina Rebel de Araújo
e Gilvan Ventura da Silva.
Teatro Grego e Romano . 157
A religião inseria-se em todos os aspectos da vida individual e
coletiva na urbs. Sabemos, por meio de vestígios arqueológicos, lite-
rários e outros, que a religião romana sempre esteve ligada demaneira
profunda ao quotidiano da urbs, em suas festas públicas e privadas, em
eventos políticos e na vida familiar. Trata-se de um tecido de relações
complexas, expresso em discursos e rituais cujos vestígios nos permitem
uma via de acesso à sua compreensão (BEARD; NORTH; PRICE,
v. 1, 1998; BELTRÃO, 2006). Nossa principal preocupação é com as
áreas da vida religiosa no período republicano sobre a qual temos uma
quantidade maior de informação de um tipo ou de outro – rituais,
festivais, instituições, edifícios religiosos, santuários etc., e dentre os
possíveis documentos para a pesquisa sobre a religião romana está o
texto dramático.
Tendo como premissa a ideia de que o sistema religioso romano
era o elemento que fundamentava a ordem moral e política da urbs,
fomentando a coesão social, favorecendo a formação de um espírito
coletivo nos membros da comunidade, proporcionando o sentido e
conhecimento do passado, projetando o futuro e fundando a identidade
coletiva romana, a análise das peças teatrais ganha, atualmente, um
novo vigor no que tange à investigação da vida religiosa romana no
período republicano.2

2
C. Geertz cunhou uma definição de religião que mantém elementos do fun-
cionalismo simbólico de Durkheim (a religião como um ato social coletivo)
e de teses de M. Weber sobre o significado da religião como um sistema para
o ordenamento do mundo, sem tanger questões de crenças tão comumen-
te vinculadas às definições de religião. Desse modo, uma definição universal
e categórica de religião nos parece não apenas impossível quanto indesejá-
vel, falseadora das características diversas e múltiplas das distintas religiões,
não apenas porque os conteúdos, práticas e crenças religiosas são histórica e
culturalmente condicionados, mas também porque qualquer definição é, em
si, um produto do processo discursivo, com suas especificações históricas e
culturais. Sua definição abrangente é, portanto, útil para nossos propósitos:
“... uma religião é: (1) um sistema de símbolos que atua para (2) estabelecer
poderosas, penetrantes e duradouras disposições e motivações nos homens
através da (3) formulação de conceitos de uma ordem de existência geral e (4)
vestindo essas concepções com tal aura de fatualidade que (5) as disposições
e motivações parecem singularmente realistas” (GEERTZ, 2008, p. 67).
158 . Claudia Beltrão da Rosa
Chegaram até nós inúmeras imagens de cenas de rituais3 e
outras práticas religiosas romanas, mas pouquíssimos documentos que
explicitem as fórmulas vocalizadas e orações e a própria vivacidade da
vida religiosa romana. Certamente há uma maior dificuldade para pin-
tores e escultores de representar momentos do ritual em que os sons
são o elemento preponderante, momentos visualmente muito mais am-
bíguos do que outras cenas da ação ritual. Mas todas as ações rituais
eram acompanhadas de sons, articulados ou não. O teatro pode ser um
meio para recuperarmos, em parte, algo das “vozes” dos rituais, que
as imagens silenciosas ocultam, uma via de acesso às palavras rituais e
sua performance. A palavra, a fórmula ritual, eram elementos cruciais no
ritual (PLÍNIO. HN, 28,10), assim como as duplicações e respostas dos
assistentes e/ou dos espectadores, e o cuidado com as palavras e os ter-
mos utilizados era fundamental, especialmente quando era utilizado o
vocabulário arcaico em rituais tradicionais, cuja compreensão há muito
fora esquecida (cf. QUINTILIANO. Inst. 1.6.49: sobre o Hino a Marte)
para a realização correta dos ritos. O teatro romano reflete a importân-
cia do ritual. De certo modo, o próprio drama é um ritual, e representa-
ções dramáticas faziam parte de festivais cívicos em Roma pelo menos
desde 240 a.C. (CÍCERO. Brut, 72).4 Desse modo, acreditamos que a
3
Seguiremos, aqui, uma definição proposta por Stanley Tambiah que nos
parece profícua para nossos propósitos: “Ritual é um sistema socialmente
constituído de comunicação simbólica. É constituído de sequências de pala-
vras e atos padronizadas e ordenadas, frequentemente expressas em múltiplos
media, cujo conteúdo e arranjo são caracterizados em vários graus pela for-
malidade (convencionalidade), estereotipia (rigidez), condensação (fixidez) e
redundância (repetição)” (TAMBIAH, 1985, p. 128).
4
A primeira performance dramática, uma tragédia de L. Andrônico, ocorreu no
programa dos ludi Romani. Aos poucos, os ludi Plebeii e os festivais de Apolo e
da Magna Mater adotaram representações cênicas em seus programas rituais
e, ao longo do período republicano, as performances dramáticas mantiveram
sua ligação com os festivais públicos e com as instituições religiosas. A partir
do século III a.C., há registros de vários ludi scaenici, em honra de diversas
divindades: Apolo, Flora, Magna Mater, Júpiter Optimus Maximus e outros.
Estudiosos como E. Gruen (1996) e M. Beard; M. Crawford (1985) defendem
a tese do desenvolvimento da literatura e das artes cênicas romanas, muitas
vezes explicitamente baseados em modelos helênicos, e dos ludi scaenici em
particular, como uma das inovações religiosas do século III a.C., provavel-
mente em decorrência das interações culturais intensificadas com cidades de
cultura helênica ou helenizada, sobretudo após as intervenções militares ro-
Teatro Grego e Romano . 159
análise da dramaturgia romana pode, especialmente, aprofundar nossa
compreensão das práticas religiosas romanas.

Teatro, ritual e ordem sagrada


O teatro é, na verdade, aquela prática que calcula o olhar
para as coisas serem vistas: se eu colocar o espetáculo aqui, o
espectador verá tal coisa; se o colocar noutro lugar, ele não a
verá... (BARTHES, 1982, p. 195).

Há muito o drama5 é utilizado como documentação em pesquisas


sobre o mundo antigo, sendo atualmente consenso entre os estudiosos
da religião romana que as performances dramáticas expressam, enquanto
representações da vida humana, a importância e a complexidade dos
rituais e de elementos da vida religiosa da urbs. Acreditamos que a pes-
quisa histórica deve buscar as interações entre as peças dramáticas e
outras formas de ação social, a fim de discernir como uma apreciação
das ações (drama) no palco enriquece a compreensão das ações sociais,
pois a encenação torna-se significativa no interior das tradições e práticas
sociais. Palavras, gestos e convenções religiosas têm um grande impac-
to quando encenados no palco, sobrelevando a sensibilidade dos espec-
tadores a tais ações. O drama e o palco são culturalmente significantes,
e podem ser vistos como – e envolvidos por – um ato cultural maior,
no qual se insere a religio romana.

manas no Mediterrâneo Oriental. Na própria Itália, Nápoles, Siracusa e outras


cidades de origem helênica estavam então na órbita romana.
5
Seguimos a definição aristotélica de drama como ação (Poet. 1450a 20-23). O
teatro é mimético, no sentido aristotélico da mimèsis tès praxèos, isto é, a estiliza-
ção da ação. E, para o filósofo, “imitar é natural ao homem desde a infância
– e nisso difere dos outros animais, em ser o mais capaz de imitar e de ad-
quirir os primeiros conhecimentos por meio da imitação – e todos têm pra-
zer em imitar” (Poet. 4,13). Aristóteles analisa a mimèsis segundo três critérios
distintos: os meios, os objetos e o modo de representação (Poet. 46a10-48b3),
acentuando o drama: a) do ponto de vista dos meios, especialmente sobre os
aspectos não verbais, como os gestos, a mímica, etc., observando a expres-
são ou o caráter “conativo” da linguagem; b) do ponto de vista dos objetos,
observando seu lugar, posição e sentido no desenvolvimento do drama, am-
pliando seus aspectos expressivos e afetivos; e c) do ponto de vista do modo,
a representação no sentido “dramático” (cf. PAVIS, 2007: s.v. dramático).
160 . Claudia Beltrão da Rosa
Certamente, há sempre algum nível de abstração e de estilização,
maior ou menor, no teatro, tanto no drama quanto na cena. Uma ence-
nação, invariavelmente, seleciona, abstrai e organiza dados da realidade
quotidiana, simplificando-a e reduzindo-a ao essencial, criando uma
unidade em meio à multiplicidade das coisas e do mundo social, geo-
metrizando os códigos e as convenções de uma determinada sociedade.
O teatro, portanto, é o local da simulação, uma simulação que, segundo
R. P. Martin (2007, p. 38),
...inevitavelmente nos conduz ao estudo da história, da
arqueologia e da semântica, as especialidades acadêmicas
que buscam visualizar os contornos sociais precisos de uma
antiga cultura através da identificação de seus significados
primários e seus campos de força.

Performances dramáticas realizadas em rituais religiosos não são


exclusividade grega nem romana, e a conexão entre ritual e drama vem
chamando a atenção de estudiosos há muito tempo (cf. TURNER,
1990). O drama é ação, assim como o ritual; como este, é realizado por
atores especializados, com papéis definidos, e a analogia entre teatro e
ritual religioso é notória: o sacrificante – geralmente o líder do grupo –,
os assistentes, os papeis estereotipados, o coro, e cria um tempo e um
espaço separados da vida quotidiana. Os rituais romanos eram distintos
no tempo e no espaço, gerando comportamentos ritualizados com alto
nível de formalização. Nascimentos, mortes, vitórias, dedicações de
templos, festivais etc., todos tinham suas características particulares
e performances próprias, e apresentavam uma combinação estilizada de
palavras, música, dança e elementos visuais, contendo claros elementos
dramáticos, a despeito de seu caráter não teatral. Os rituais envolviam
toda a comunidade, com vários atores representando a comunidade,
cada qual desempenhando seu papel. Assim como as performances
dramáticas, envolviam atores/agentes e uma audiência; trata-se de um
momento separado no tempo e no espaço, com movimentos, gestos
palavras e objetos convencionais, mesmo que num solilóquio (um
monólogo teatral, e.g.).
Em ambos os casos, as ações são realizadas de modo a despertar
sentimentos e a fazer crer, a partir dos elementos postos em cena, criando
um arranjo espacial único e especializando formas arquitetônicas
distintas: recintos sagrados, santuários, o palco, o teatro. Sua estrutura
é também semelhante: simples e clara, com início, meio e fim, de modo
Teatro Grego e Romano . 161
fácil de memorizar e reproduzir. Uma performance, ritual ou teatral, não
só diz ou faz algo; ela o realiza diante dos olhos de sua audiência, assim
como é percebida em relação a outras performances que a antecederam,
em comportamentos ritualizados com alto nível de formalização,
estilizando as ações e apresentando uma “versão” que atua, pela ilusão,6
pelo efeito de real,7 no sentido da complementação e potencialização das
formas pelas quais a ordem social é vivida e percebida. São ambos, ritual
religioso e performance dramática, expressões coletivas que nos revelam
muito sobre a vida comunitária, as instituições, as crenças, sentimentos
e modos de ação dos grupos sociais.
Performance e ritual inserem-se no que podemos definir como atos
comunicativos direcionados a uma audiência, e acreditamos não ser
equivocado ver a cultura romana republicana como performática, seja
nos comitia, no Senado, no forum romanum, na oratória, nos sacrifícios e
procissões, etc., e a performance é um componente-chave da identidade
social dos romanos – ao menos dos romanos da elite – em suas
preocupações com o arranjo, a seleção e a atenção aos detalhes, à
audiência, à estilização expressiva de gestos, palavras, vestuário etc.8 E
os diversos elementos dos rituais religiosos e das representações cênicas
falam também de conteúdos políticos; sua finalidade é a manutenção
do status quo romano, público ou doméstico, a manutenção da ordem
político-social e a proteção contra ameaças a esta ordem. No espaço
ritual e no espaço cênico, tais conteúdos são “encarnados” à vista do
6
Segundo Pavis, a ilusão é uma situação sine qua non no teatro, e o público é
conivente, pois a ilusão está ligada ao efeito de real produzido pelo palco; ela
se baseia no reconhecimento psicológico e ideológico de fenômenos já fami-
liares ao espectador (PAVIS, 2007: s.v. ilusão).
7
Efeito de real é um termo cunhado por R. Barthes (1968) designando os dis-
positivos que obscurecem o mais possível o uso de técnicas, equipamentos,
materiais cênicos diversos. Segundo Pavis: “Além do prazer da identificação
para o espectador, o efeito de real tranquiliza sobre o mundo representado,
que corresponde perfeitamente aos esquemas ideológicos que temos dele,
esquemas que se dão como naturais e universais” (PAVIS, 2007: s.v. efeito de
real). Na comédia, contudo, naturalmente alusiva às práticas sociais de seu
tempo e lugar e tendendo à autoparódia, vemos uma frequência maior de efei-
tos teatrais, que podem ser definidos em oposição ao efeito de real, sem perder
seu poder persuasivo. Para o estudo dos efeitos teatrais especificamente nas
comédias de Plauto, veja-se: Cardoso (2010).
8
Tivemos a oportunidade de analisar algo desse caráter performático da cul-
tura romana, especialmente no que tange à formação e à performance do orador
romano (BELTRÃO, 2007).
162 . Claudia Beltrão da Rosa
público, seus gestos, suas vozes, suas expressões, suas vestes estão no
centro do processo de significação. Podemos, portanto, perguntar, com
Patrice Pavis (2007, p. 124):
A que ‘ideologização’ são submetidos o texto dramático e a
representação? O texto – seja ele dramático ou espetacular –
só se compreende em sua intertextualidade, principalmente
em relação às formações discursivas e ideológicas de uma
época ou de um corpus de textos. Trata-se de imaginar a
relação do texto dramático e espetacular com o ‘contexto
social’, isto é, com outros textos e discursos mantidos sobre
o real por uma sociedade.

Ressalte-se que as representações teatrais eram parte do programa


de festivais religiosos públicos, eram rituais sancionados, “oficiais”, que
expressavam a identidade religiosa e cívica, criando e consolidando os
laços entre divindades, seres humanos, lugares e tempos. Desse modo,
podemos depreender a representação da ordem social e da hierarquia
no palco romano. Não apenas a institucionalização das práticas
religiosas, mas também sua representação e atualização protegiam a
ordem pública, naturalizando-a diante do corpo social.
A representação romana de mundo distinguia diversas áreas de
competências particulares, abrangendo todo o mundo. De acordo com
essa imago mundi, as divindades tinham áreas, competências e lugares
particulares, e o mundo era racionalizado segundo tal visão. Os pró-
prios indivíduos tinham seus deuses particulares, um Genius para cada
homem e uma Iuno para cada mulher (cf. PLAUTO. Captiui, 290), e
lidar com o sagrado (sacer), realizar o sacrifício, demandava qualidades
e conhecimentos específicos dos atores do culto (CÍCERO. Leg. 2, 24),
comportamentos, gestos, palavras e sons apropriados. E as “versões”
teatrais dos rituais religiosos os estilizam, encenando a cidade e a or-
dem social, interpretando-a e, mais ainda, disseminando-a, tornando-a
uma ordem sagrada.9
9
Acreditamos que mais do que concernindo a sentimentos ou percepções in-
dividuais, a religião é relacionada e diz respeito à sociedade e à manutenção da
ordem social. William Paden, e.g., argumenta que, para além da interação com
poderes sobrenaturais – por exemplo, as divindades – as religiões funcionam
“a partir de um constante monitoramento e negociação das fronteiras de sua
própria integridade” (PADEN, 1996, p. 4). E um meio para a manutenção
dessa integridade como uma dimensão crucial da religiosidade é conceituar
Teatro Grego e Romano . 163
Os Jogos Cênicos, ludi scaenici,10 se atraíam a “boa vontade” das
divindades, atraíam também o interesse de sua audiência humana, po-
tencializando, por seus efeitos miméticos, seus elementos parateatrais e
patéticos, o efeito do ritual (REHM, 2007, p. 185ss).
Uma de nossas premissas é considerar as comédias11 de Plauto e
de Terêncio não como simples “adaptações” de comédias gregas, mas
como representações cênicas complexas, encenadas e fazendo apelo a
audiências concretas em Roma. As peças, e.g., devem ser analisadas em
seu contexto, e não isoladamente. Por exemplo, o Sticchus foi encenado
nos ludi Plebeii (200 a.C.); o Pseudolus, na inauguração do templo da Magna

a religião como uma “ordem sagrada”, caracterizada por uma constante luta
entre a manutenção de determinada ordem e sua potencial violação, na qual
o “sagrado” é visto como uma entidade ou fenômeno sobre-humano que se
“manifesta” no mundo, sacralizando a própria ordem social. Como Paden
sublinha, a sacralidade não é construída como um “além”, mas como o modo
pelo qual uma ordem específica é propagada, consolidada ou mantida intacta
(PADEN, 1996, p. 5).
10
Segundo T. Lívio, os ludi scaenici tiveram sua origem nas pantomimas com
acompanhamento musical, realizadas por atores etruscos (ludiones), em 364
a.C., como tentativa de encerrar uma peste; ameaçados por uma epidemia,
em 364 a.C., os romanos realizaram um lectisternium (um banquete no qual
os deuses participam como comensais). Não conseguindo expurgar o prodí-
gio, apelaram para dançarinos etruscos (ludiones) (AVC, 7, 2.3. ss; cf. também
Horácio, Epist. 2, 1, 139-55). Os ludi scaenici teriam, para Lívio, uma função
análoga à dos lectisternia: alimentar os deuses, desenvolvendo-se uma tradição
de pequenas performances dramáticas nos rituais romanos, o que foi incre-
mentado em 240 a.C., com a inovação de Lívio Andrônico. Talvez T. Lívio
se referisse a tradições itálicas, como as fabulae Atellanae, ou os dramas phlyax
do sul da Itália, mas não podemos ter certeza, tratando-se de um tema que
demanda novas pesquisas.
11
Seguimos a definição de P. Pavis para a comédia: “Tradicionalmente, define-
se a comédia por três critérios que a opõem à tragédia: suas personagens são
de condição modesta, seu desenlace é feliz e sua finalidade é provocar o riso
no espectador. (...) ela se dedica à realidade quotidiana e prosaica das pessoas
comuns (...). O riso do espectador é ora de cumplicidade, ora de superiori-
dade: ele o protege contra a angústia trágica, propiciando-lhe uma espécie
de ‘anestesia afetiva’. O público se sente protegido pela imbecilidade ou pela
doença da personagem cômica; ele reage, por um sentimento de superiori-
dade, aos mecanismos do exagero, contraste ou surpresa” (PAVIS, 2007: s.v.
comédia).
164 . Claudia Beltrão da Rosa
Mater (191 a.C.); o Phormio, de Terêncio, nos ludi Romani (161 a.C.) e
seu Adelphoe, nos funerais de L. Emílio Paulo (160 a.C.). Percebemos,
então, que as peças eram encenadas, principalmente, em ocasiões
e festividades de grande importância religiosa e política na Roma
republicana. Um risco, contudo, é superestimar o efeito dessas peças
sobre suas audiências, apesar de sabermos que houve um incremento
crescente de performances teatrais, por exemplo, nos ludi Romani (a partir
de 240 a.C.), acrescentando-se os ludi Apollinari (a partir de 212 a.C.), os
ludi Plebeii (desde pelo menos 200 a.C.), as Cerealia (antes de 201 a.C.), as
Megalensia (desde 194 a.C.) e as Floralia (desde ca. 210, tornados anuais
em 173 a.C.) (cf. GRUEN, 1992).12

Religio domestica e ordem sagrada: notas sobre a Aulularia


Ne quis miretur qui sim, paucis eloquar.
ego Lar sum familiaris ex hac familia
unde exeuntem me aspexistis. hanc domum
iam multos annos est cum possideo et colo
patri auoque iam huius qui nunc hic habet
(PLAUTO. Aul. 1-5).

Em sua organização e delimitação, na constituição de seus sacer-


dócios, de seu calendário e de seus espaços sagrados, a religio romana, a
religião publica de Roma, absorveu muitas crenças, objetos, fenômenos,
ritos e lugares designados priuata,13 especialmente devido à marcante
12
E. Gruen, por exemplo, trouxe uma discussão interessante sobre vários ludi,
as diversas instâncias de realização, entre 216 e 179 a.C., e outras ocasiões nas
quais ludi scaenici ocorreram neste período.
13
Uma pista para a distinção entre sacra publica e sacra priuata é fornecida por
Festo: Os ritos públicos são aqueles realizados a expensas públicas em benefí-
cio do povo (...) em contraste com os ritos privados que são realizados em be-
nefício de indivíduos, das famílias, dos descendentes (Publica sacra, quae publico
sumptu pro populo fiunt quaeque pro montibus pagis curis sacellis; at priuata, quae pro
dingulis hominibus familiis gentibus fiunt. Fest. 350L). Sacra priuata, como podemos
depreender, não eram apenas os ritos da religio domestica, mas tudo o que não
se inseria na definição de publica sacra, ou seja, os ritos realizados em benefício
do povo romano (pro populo), por oficiantes sancionados e financiados pelo
tesouro público, com participação ativa de magistrados e sacerdotes, diante
da grande massa do público assistente, que geralmente participava – no todo
ou em parte – do banquete após o sacrifício. A própria definição de sacrum é
Teatro Grego e Romano . 165
presença das gentes na formação da urbs e de seu império. Legalmente
distintos do culto público, o vasto universo dos sacra priuata não apenas
era permeado pelos conteúdos e pela organização do culto público,
mas também tinha proeminência social similar ou correlata. Os alta-
res domésticos, por exemplo, e suas dedicationes eram um signo pelo
qual a lei romana reconhecia uma domus, e também o que distinguia
uma casa enquanto “edifício” e enquanto um “lar” (cf. ULPIANO. Dig.
25.3.1.20).14 A despeito das definições jurídicas – sempre epigonais em
relação à experiência vivida – depreende-se pela documentação que os
romanos viam seus altares particulares, seus deuses domésticos e suas
dedicationes como sendo tão eficazes e importantes como aqueles consi-
derados, oficialmente, publica (cf. CÍCERO. Att. 12.18).
Para a análise da religio domestica,15 a literatura e o teatro nos tra-
zem imagens variadas: os cultos domésticos, por exemplo, são presen-
ças constantes na urbs e nas cidades imperiais, e escritores romanos
e gregos declaravam a antiguidade desses cultos – e a dificuldade de
defini-los. As práticas quotidianas da vida religiosa romana, contudo,
recebem pouco detalhamento na documentação disponível, sendo
mais frequente o registro das celebrações públicas.16 De fato, o princi-

reservada para coisas e lugares consagrados oficialmente pelos pontífices (cf.


GAIO. Inst. 2,5; ULPIANO. Dig. I, 8.9.). Podemos assumir que a definição
de sacra – ao menos juridicamente – seguia os mesmos passos que definiam o
ritual público, ou seja, um objeto ou lugar que se tornava sagrado através de
um ato ritual específico – a consecratio – que devia ser autorizado pelo Senado,
presidido por sacerdotes e magistrados e promovido com fundos públicos.
14
Cf. Bodel (2008), que analisa a ação de Cícero, ao partir para o exílio, remo-
vendo sua estátua doméstica favorita de Minerva de sua casa no Palatino para
“a de seu pai” (o templo de Júpiter Capitolino). Cícero parece ter vinculado
Júpiter Optimus Maximus, deus cívico por excelência, a um culto familiar, além
de ter dedicado sua pequena Minerva como “salvadora da cidade”, vinculando
os poderes apotropaicos da deusa aos seus esforços, como cônsul, contra Cati-
lina e seus seguidores (cf. CÍCERO. Leg. 2, 17; PLUTARCO. Cic. 31).
15
Dentre os sacra priuata, os cultos da religio domestica eram aqueles realizados
pela familia romana, em seu benefício.
16
Certamente, estamos mais bem informados sobre as práticas rituais públi-
cas, mas é possível que a distinção entre práticas públicas e práticas privadas
seja mais uma preocupação acadêmica moderna do que uma preocupação ro-
mana. Os princípios e os meios de comunicação com as divindades, por meio
do ritual, parecem-nos similares, distinguindo-se por seus atores (magistrados,
166 . Claudia Beltrão da Rosa
pal obstáculo para o estudo da religião doméstica é sua inconsistência e
ubiquidade. Uma imensa quantidade de referências imagéticas e escul-
tóricas a divindades romanas em contextos domésticos chegaram até
nós, mas a linha que demarca esses vestígios, permitindo distinguir com
clareza o que era um objeto de culto, e o que era um objeto decorativo
é obscura. Rigorosamente falando, pinturas e objetos que apresentam
representações de divindades são indícios inseguros para um estudo da
religião doméstica propriamente dita, e por religio domestica entendo as
práticas rituais realizadas pelos habitantes da domus, incluindo a familia
romana.17
Os Lares familiares, os Penates18 e o Genius19 doméstico – sejam
pintados ou representados de modo tridimensional – são as únicas
figuras que podemos assumir como objetos religiosos stricto sensu nas
casas da elite romana. O material iconográfico restante é por demais
equívoco, como demonstram as pesquisas da arqueóloga Annemarie
Kaufmann-Heinimann (2007). Paul Zanker (1999), do mesmo modo,
tratando de pinturas com representações divinas em contextos
domésticos destaca três pontos: a) as imagens são polissêmicas, e sua
interpretação pode variar; b) as imagens propiciavam uma ocasião
para que os espectadores as interpretassem, demonstrando um alto nível
cultural; c) a despeito da variação de temas, as pinturas costumam não
estar vinculadas, rigorosamente falando, à ação mítica correspondente,
mas harmonizam-se em ações que misturam cenas tradicionais,
geralmente com dois protagonistas, e os deuses chegam a ter rostos
de contemporâneos, penteados da moda, etc. Ilustravam, desse modo,
sacerdotes, patresfamilias etc.) e beneficiários (populus romanus, uma familia ou
um grupo social específico). Scheid estabeleceu o paradigma: os indivíduos
participavam da religião como membros da res publica, os rituais eram realiza-
dos em benefício do grupo, e sua violação trazia consequências para o grupo
(SCHEID, 2003).
17
A família patriarcal romana é um agrupamento de pessoas livres e não livres
(famuli, escravos, de onde deriva o nome familia: ERNOUT; MEILLET, 2001:
s.v. familia), que implica propriedade e patrimônio.
18
Deuses das despensas (penus) que tinham seu lugar no atrium das casas ro-
manas, considerados protetores da casa, junto com os Lares.
19
O espírito (numen) do paterfamilias, que lhe garantia o poder gerador, simboli-
zado por uma serpente. Seu local era o lectus genialis (a cama do casal principal
da casa). O culto do Genius, ao que consta, ocorria no dia do aniversário do
paterfamilias.
Teatro Grego e Romano . 167
a cultura e a riqueza de seu proprietário, exaltando uma vida idílica
e harmoniosa. Assim, definir a relação entre as pinturas murais e as
práticas religiosas é tarefa difícil, à exceção das pinturas dos lararia.
O centro da religio doméstica era o lararium, o coração da domus,
onde era alimentado o fogo (sagrado) e residiam as divindades domés-
ticas, assim como no forum ardia o fogo de Vesta, na lareira circular que
centralizava a religio romana. Uma enorme quantidade de estatuetas de
bronze e de outros materiais foi encontrada em quase todo o território
imperial, além de pinturas em lararia. Se não podemos obter conclusões
mais seguras sobre o culto doméstico pela própria natureza da docu-
mentação, podemos, contudo, entrever a importância da religio domestica
em Roma e outras cidades imperiais.20
Elementos da vida quotidiana são presenças constantes nas co-
médias de Plauto, nas quais orações, rituais e sacrifícios surgem re-
presentados nos palcos para as grandes plateias presentes aos rituais
religiosos.21 Podemos entrever a interrelação entre o modelo doméstico
e o modelo público dos rituais religiosos romanos, e vemos a ordem
sagrada representada comicamente. Assim, buscando passagens e indí-
cios que possam nos auxiliar na difícil tarefa de observar alguns aspec-
tos da religio domestica, optamos por apresentar uma brevíssima análise

20
Além disso, por um documento tardio, podemos perceber a permanência e
a longevidade do culto doméstico: o edito de Teodósio, de 392 d.C., que pro-
íbe o culto dos Lares, do Genius e dos Penates (Cth. 16.10.12). Para o estudo do
desenvolvimento do culto doméstico na Antiguidade tardia, veja-se: Bowes
(2008).
21
A própria população da urbs havia se ampliado ao longo dos séculos III e
II a.C. No século III a.C., a concessão da cidadania a comunidades itálicas
foi incrementada, além da concessão da cidadania a libertos (BEARD; CRA-
WFORD, 1985, p. 78-92). Os rituais religiosos e o teatro promoviam a educa-
ção cívica desses novos cidadãos (e, certamente, novas tensões sobrevinham).
É deste momento um aumento notável de documentos literários sobre a re-
ligião romana, concomitante ao movimento de consolidação da língua latina
como língua literária; por exemplo, os fragmentos de Ênio (Annales, ROL, I,
3,215) fornecem elementos para o estudo das ideias religiosas, e de Catão o
Antigo (Origines), que transmitem informações sobre tradições e rituais re-
ligiosos, mesmo em estado fragmentário, complementadas pelos dados do
De re agricola. O teatro de Plauto, portanto, fornece à pesquisa ricos elemen-
tos sobre a religião romana pública e doméstica, numa época de inovações e
transformações.
168 . Claudia Beltrão da Rosa
da comédia Aulularia, peça da qual não sabemos a data da primeira
encenação. Esta comédia, cujo motivo central é a avareza de Euclião, fi-
gura ridícula, transtornada pela descoberta de um tesouro, tange o tema
da fortuna da família, defendida pelo Lar familiaris, e o texto dramático
– posto que a encenação propriamente dita seja praticamente inalcan-
çável para nós – pode ser um guia para a análise de práticas religiosas
domésticas. Nosso objetivo é, então, tentar entrever práticas e cren-
ças relacionadas à religião doméstica romana.22 Há, porém, vantagens
e desvantagens no uso da documentação dramática numa investigação
sobre discursos, ritos e práticas religiosas.
Os espaços físicos nas cidades, nos quais as peças eram encenadas
(espaços teatrais) e a participação cênica, mesmo indireta, de divindades
que recebiam culto público ou privado em Roma, constituem
elementos importantes das performances, criando as interdependências
entre o espaço ficcional e o espaço cívico, entre personagens e
espectadores, especialmente porque as peças eram encenadas, como
vimos, em datas e espaços religiosos (cf. RAWSON, 1991). No final da
II Guerra Púnica, Salus, Victoria, Fides, Spes, Fortuna, Libertas, Honos et
Virtus, Mens e Concordia tinham pelo menos um templo em Roma (cf.
ORLIN, 2002). As comédias de Plauto foram escritas e encenadas num
momento em que um grande número de divindades (relacionadas, em
geral, com personificações de virtudes) “ganhou uma casa” em Roma,
permitindo que vislumbremos algo de sua recepção e das respostas a tais
divindades na urbs. Rituais surgiam nos palcos, personagens invocavam
os deuses, juravam, faziam libações, oferendas, sacrifícios (apesar de os
22
Referências à religião e a rituais envolvendo a familia romana, e à observân-
cia religiosa estão presentes em praticamente todo o corpus plautino, mesmo
que em breves alusões, mas, devido aos limites de um capítulo, não seria pos-
sível tentar dar conta de todas. Aos Lares, por exemplo, temos referências em
Mer. 864-5 (Lares uiales) e, dentre outros, Mer. 834 e Mil. 1339 (Lares familiares).
É certo também que a presença de deuses “atuando” no prólogo tornou-
se uma característica da Comédia Nova grega, após algumas experiências de
Eurípedes (Alceste, As Troianas), apesar de personagens divinas não tomarem
parte direta nas tramas, exceção feita a Mercúrio e a Júpiter, no Amphitryo,
de Plauto. Num mundo pleno de religiosidade, a mimesis da vida humana não
poderia ser feita sem a presença de elementos e personagens religiosas. Além
disso, nossa escolha – a Aulularia – deve-se também ao sucesso da peça na
tradição teatral ocidental, incluindo recriações no teatro brasileiro (cf. O santo
e a porca, de A. Suassuna).
Teatro Grego e Romano . 169
sacrifícios serem geralmente mencionados, e não realizados no palco) –
e os espaços ficcionais podiam ser santuários públicos (e.g., PLAUTO.
Rudens, em frente ao santuário de Vênus de Cirene, e Aulularia, no
templo da Fides e no bosque de Silvano) ou domésticos, como na
própria Aulularia, revelando a centralidade do lararium.
Na Aulularia, 582-6 e 606-18, encontramos uma passagem
interessante para nossos propósitos. Trata-se do apelo de Euclião, o
paterfamilias avarento, à Fides, em cujo templo tenciona esconder seu
pote de ouro, e do apelo de Estróbilo, o escravo, à mesma deusa, a
fim de roubar o ouro, o que só consegue depois que Euclião resolve
transferir o pote para o bosque de Silvano, fora da cidade.23 Aqui, vemos
um indício do caráter fisicamente localizado das divindades romanas e
de seu poder, nesta Atenas-Roma da comédia.24 Ambas as personagens
sentiam-se aptas a usar um espaço fisicamente delineado em “Roma”
pelo culto da Fides, tanto para conseguir atingir seus objetivos, quando
para reivindicá-los. Se podemos assumir que houve uma peça de
Menandro25 que serviu como modelo para Aulularia, a escolha de Fides
na cena é certamente de Plauto, pois a Pistis grega, que seria a divindade
mais semelhante à Fides romana, não parece ter tido um altar na Grécia
até a época de Adriano. Euclião reivindica um acordo prévio com a
deusa (“Fides, você me conhece e eu te conheço”), e dá a entender
que, para ele, o significado da divindade é sinônimo de “confiança”,
“boa-fé”. Já Estróbilo pede que Fides prefira a ele, e não a Euclião, e
que lhe seja “fiel” (fidelis). Vemos que há uma leitura discrepante entre
as formas de endereçamento das personagens à deusa.
Fides, cujo templo no Capitólio foi construído pouco antes do
nascimento de Plauto, não operava apenas na esfera dos tratados,
mas também num domínio ao qual as comédias antigas faziam apelo
e no qual ostensivamente se situavam: o domínio da vida quotidiana,
corriqueira, das pessoas “comuns”. Assim, a discrepância entre os
apelos das personagens à Fides pode ser ilustrativa: o escravo não parece
se referir à Fides do mesmo modo que Euclião, um paterfamilias, mesmo

23
Deuses como guardiões da propriedade e templos usados como depósito
de riquezas surgem também em Plauto, Bacch, 306-331.
24
Cf. Chaniotis (2009); Beltrão (2010).
25
É lugar comum vincular a comédia romana à comédia grega, especialmente
à Comédia Nova, de Menandro, e às fabulae Atellanae, da Úmbria, cf. nota 12.
Para o aprofundamento dessa questão, veja-se: Rehm (2007).
170 . Claudia Beltrão da Rosa
que vicioso. Euclião declara ter excelentes relações de confiança com a
deusa; Estróbilo parece se remeter a um sentido de “obter um crédito”
da Fides, para que a deusa permita o roubo, o que, no palco cômico,
surge como perfídia. Assim, perguntamos: poderíamos interpretar esta
discrepância de sentido como um exemplo das negociações quotidianas
com os deuses, diferentes conforme a posição que cada um ocupava na
sociedade romana e, consequentemente, de diferentes percepções da
ordem social e divina? A distinção entre confiança e perfídia, expressa
nos apelos das personagens à Fides, teria uma relação com a cosmovisão
romana? O escravo revela certo júbilo em relação ao possível sucesso
de seu plano. Poderia esta fala estar vinculada a uma visão aristocrática,
detectada em textos posteriores a Plauto, sobre a perfídia de escravos?26
É possível, pois a comicidade de uma peça só e somente só faz sentido se
estiver de acordo com, não apenas, o universo cognitivo de seu público,
mas principalmente com suas crenças morais, ou o riso não ocorre. As
comédias são, de certo modo, centradas na domus, na familia romana,
nos conflitos familiares, suas personagens são definidas por sua posição
no interior da familia e suas ações se inscrevem nos quadros de seu
estatuto familiar. Certamente, há de relembrar seu caráter ficcional, mas
as obras cômicas são pautadas pela moralidade comum, pelos modelos
normativos, religiosos – ou não provocariam o riso.27 Na Aulularia, o
riso assoma quando Euclião, o paterfamilias avarento e desconfiado, por
isso “não confiável”, reivindica o apoio da Fides, enquanto Estróbilo,
o escravo, exterior à fides romana, portanto “pérfido”, endereça a Fides
um apelo para que lhe dê um crédito, por ser um “bom escravo” (seruus
frugi), ou seja, por visar à felicidade de seu senhor, para quem entregaria
o ouro esperando, em troca, sua manumissão (um tema recorrente em
Plauto).
É importante, porém, lembrar que Estróbilo não consegue reali-
zar o roubo no templo da Fides, e só obtém o sucesso quando Euclião,
sempre desconfiado, transfere o pote de ouro para fora do pomerium, para
26
Remetemos ao artigo de Sônia Regina Rebel de Araújo, intitulado Ideologia
Escravista em Aulularia de Plauto, sobre o tema em pauta.
27
Segundo Pavis, “o riso do espectador é ora de cumplicidade, ora de supe-
rioridade; ele o protege contra a angústia trágica, propiciando-lhe uma espécie
de ‘anestesia afetiva’. O público se sente protegido pela imbecilidade ou pela
doença da personagem cômica; ele reage, por um sentimento de superiori-
dade, aos mecanismos do exagero, contraste ou surpresa” (PAVIS, 2007: s.v.
comédia).
Teatro Grego e Romano . 171
fora do solo consagrado de Roma, entregando-o a Silvanus, um deus
anterior à urbs, que vive nas matas (siluae) do Lácio, que não atende aos
ditames das regras sociais, e isso permite entrever algumas característi-
cas da religio romana.
Como apresentamos em publicação recente,
O termo fores, que chegou até nós nas palavras fora, foro,
forâneo, forasteiro, era um dos termos-chave na definição
do limite entre o espaço doméstico e aquilo que era deixado
de fora, o mundo exterior, estranho e adverso, domínio das
feras e das divindades não aplacadas, culminando no forum
romanum, centro da res publica, o espaço que concentrava os
cidadãos, local que criava o espaço público comum a todos
e estabelecia os limites entre o romano e o não-romano, in-
fluenciando a paisagem social e fomentando relações de con-
vivência e estabelecendo leis e costumes, e depois, segundo
Cícero, a organização do direito e a disciplina da vida, de
modo a proteger a vida (De Off. II, 15). Daí a sacralidade de
tais lugares e a identificação da urbs com os templos de seus
deuses, com os sepulcros de seus antepassados e com os
marcos limiares. O valor desses marcos é expresso no rito de
fundação de uma cidade, que evocava o rito etrusco, criando
um baluarte sobrenatural com sua dimensão sagrada (sacer).
A ideia é expressa por Cícero, assinalando a força da comuni-
dade de sangue na formação da res publica, exaltando os mo-
numentos dos maiores, o uso dos mesmos lugares sagrados
e dos sepulcros comuns (De Off. I, 55) (BELTRÃO, 2007).

Durante décadas, contudo, a ênfase política da historiografia le-


vou a um esquecimento desta relação entre o poder doméstico e o
poder político, eclipsando o primeiro nas análises sobre a sociedade ro-
mana e as instituições da res publica, e a dramaturgia romana se constitui
como um tipo de documento precioso para a análise da centralidade
do poder doméstico na República romana. Todo poder é exercido em
virtude de uma determinada ordem, que se apresenta como lei, seja lei
da natureza, lei divina, lei humana, leis escritas ou não, e implica regras
formais ou informais, precisas e rigorosas, que regem a obtenção e
a justificativa do poder e de seu exercício, bem como a aceitação e o
reconhecimento deste poder – e de seu exercício – por outros indiví-
duos. Consideramos, portanto, uma arbitrariedade destacar o sentido
público do poder em detrimento do sentido doméstico, vendo as di-
172 . Claudia Beltrão da Rosa
versas ocorrências literárias das referências sobre o poder doméstico
como derivadas, secundárias ou, mesmo, irrisórias, e projetando sobre
o vocabulário romano do período republicano sentidos ou construções
jurídico-políticas que lhes são posteriores.
Cícero, por exemplo, declara a superioridade da lei não escrita
sobre os códigos de lei (Leg. 3, 3), e compara sua relação com seu ir-
mão mais novo, Quinto Cícero, com a de um paterfamilias em relação ao
filho, citando Terêncio (Phorm, 232 ss). No De re publica, 3, 37, o orador
enumera os poderes partindo dos menores aos maiores: o poder dos
reis, dos generais, dos pais, dos povos... Em Caec. 52, com a expres-
são imperium domesticum, Cícero menciona o poder do paterfamilias como
uma instituição reconhecida e como fundamento das demais. É inte-
ressante notar que também Plutarco, de origem e idioma gregos, indica
a interação entre as instituições domésticas e as públicas na Roma de
seu tempo, declarando o caráter paternal dos poderes políticos, e que
a domus é uma espécie de ciuitas (Cato Maior, 21.4). Essas manifestações
literárias, que insistem na soberania do paterfamilias como pai, marido e
senhor, indicam a importância da análise da religio domestica e sua centra-
lidade como um dos fundamentos da ordem romana, calcada na cen-
tralidade da domus.28
Acreditamos que a força da religio romana estava contida em cada
domus, estendendo-se ao forum romanum e procedia tanto de sua íntima
relação com as divindades como com os antepassados, e isso é visível
na comédia. A casa é um santuário, com seus Lares e Penates, no qual
oficiava como sacerdote o paterfamilias. Mas a casa familiar não era fe-
chada sobre si mesma; a comunicação com a vizinhança e com o forum
era constante, e as interrelações entre interior e exterior se instituciona-
lizavam no quotidiano, fundadas nos mores, na moralidade expressa pela
religio. Temos, então, um interesse especial por esta comédia: a presença
de uma divindade no prólogo e o que ela apresenta aos espectadores.
O prólogo explica previamente a situação, e é próprio do teatro
que os discursos não sejam apenas enunciados, mas mostrados, ou seja,
a cena apresenta o discurso ao olhar, e não apenas à razão, graças à ma-
28
Remetemos ao estudo de Jean-Christian Dumont (1990), que analisa as
características e o funcionamento do poder do paterfamilias, com base nas co-
médias de Plauto e de Terêncio. Para referências explicitas de Plauto sobre o
poder do paterfamilias ver: Amph, 991; Asin, 505,508; Bacch. 459; Persa, 339,
344; Stic. 141. Note-se que na Asinaria, trata-se do poder de uma mãe viúva
sobre sua filha, a quem pretendia prostituir.
Teatro Grego e Romano . 173
terialidade dos dispositivos cênicos, buscando a adesão do espectador
pela mediação da representação das personagens como modelos que
tornam visíveis e inteligíveis as leis, os códigos e a lógica da sociabilida-
de. A cena dá, então, uma consistência física e estética aos discursos, às
opiniões, aos valores, etc., de uma sociedade, presentificando o corpo
político.
A Aulularia nos traz um Lar familiaris, o deus doméstico par excel-
lence, que apresenta a trama para o público. Após se apresentar como o
protetor divino da familia, conta como o avô de Euclião lhe confiou um
tesouro, destacando a avareza dos patresfamilias, avô/filho/neto, motivo
pelo qual manteve em segredo o ouro que guardava:
LAR: Como estava para morrer – e era por natureza avarento
– jamais quis revelar isso ao seu filho, e preferiu deixá-lo
pobre a mostrar-lhe o referido tesouro. Deixou-lhe uma
pequena extensão de terra, para que vivesse miseravelmente
e com grande sacrifício. Quando aquele [avô de Euclião]
que me confiou o tal ouro morreu, comecei a observar se
porventura o filho [pai de Euclião] me prestava maior honra
do que seu pai fizera. Mas, na verdade, importava-se cada
vez menos [comigo] e cada vez menos me reverenciava com
oferendas. Em resposta, tratei-o de maneira semelhante,
pois morreu na mesma penúria. [Ele] deixou de si este filho
[Euclião] que agora mora aqui, de costumes iguais, como foi
o pai e o avô dele (v. 9-12).29

Na religião doméstica, o paterfamilias deveria oferecer aos deuses


palavras e gestos em benefício do grupo familiar, como o magistrado
o fazia pro populo. Como no teatro, a música e toda uma cenografia
acompanhavam a cena/a ação. Cantos potencializam a dramatização,
além de eventuais danças e gestos ritmados.30 E o Lar apresenta o
motivo pelo qual fez com que Euclião descobrisse o tesouro no
29
LAR. Is quoniam moritur, – ita auido ingenio fuit/– Numquam indicare id filio
uoluit suo,/Inopemque optauit potius eum relinquere/Quam eum thesaurum commons-
traret filio./Agri reliquit ei non magnum modum,/Quo cum labore magno et misere uiue-
ret./Vbi is obiit mortem qui mihi id aurum credidit,/Coepi obseruare, ecqui maiorem
filius/Mihi honorem haberet quam eius habuisset pater./Atque ille uero minus minusque
inpendio/Curare minusque me impertire honoribus./Item a me contra factum est: nam
item obiit die <m>./Is ex se hunc reliquit qui hic nunc habitat filium/Pariter moratum,
ut pater auusque huius fuit (v. 9-22). Tradução nossa.
30
Cf. Plauto, Epidicus 314-16; 414-16, para as preliminares de ritos domésticos.
174 . Claudia Beltrão da Rosa
lararium: a piedade de Fedra, filha de Euclião, cujo casamento estava
sendo preparado:
LAR: Este tem uma filha que me presta culto sempre, todos
os dias, ou com incenso ou com vinho ou com alguma outra
coisa. Dá-me coroas de flores. Por causa desta consideração,
fiz com que Euclião encontrasse aqui [no lararium] o tesouro,
para que, se quisesse, a concedesse mais facilmente em
casamento (v. 23-27).31

Os Lares familiares eram divindades domésticas que cuidavam


da casa da familia romana e de seus moradores e eram cultuados no
lararium nas Kalendas, nas Nonae e nos Idos do mês, além de em ocasiões
especiais, principalmente os casamentos. Eram benfazejos para a familia,
desde que tratados com atenção e respeito, mas sabemos muito pouco
a seu respeito.
Euclião, o avarento, é uma personagem ridícula por não corres-
ponder ao ideal do paterfamilias, sacerdote de sua familia, desagradando
ao deus de sua casa. Este deus residia no recinto doméstico e, em seu
altar (ara) de pedra, de forma quadrangular, próximo à lareira, deveriam
ser oferecidos os sacrifícios propiciatórios que estabeleciam as relações
com os seres divinos e com os numina dos antepassados, cujos restos
repousavam em um sítio que na urbs encontrou seu lugar fora das casas,
o que o dominus Euclião não fazia. Na Aulularia, conseguimos entrever
elementos sobre os Lares que apenas pelo material iconográfico não
conseguiríamos, daí sua importância, além de menções a elementos da
religio domestica serem raros em outras fontes textuais.
Certamente, as personagens em cena enunciam uma argumentação
que não pode exceder os limites da dramaturgia, mas as palavras são
pronunciadas e seu discurso é uma enunciação efetiva e pública. O
teatro representa, assim, as relações sociais, políticas institucionais,
mas também utópicas e imaginárias. E tem uma clara função didática,
pondo em cena o ideal da sociabilidade, apresentando-o, com base
nos incidentes e na conduta da sociedade em questão, na religião e na
moralidade pública. Movendo-se entre a dimensão política e a dimensão
afetiva, entre seu potencial e sua eficácia, repousa sobre o processo de

31
LAR. Huic filia una est; ea mihi cottidie/ Aut ture aut uino aut aliqui semper suppli-
cat;/ Dat mihi coronas. Eius honoris gratia/ Feci thesaurum ut hic reperiret Euclio,/ Quo
illam facilius nuptum, si uellet, daret (v. 23-27). Tradução nossa.
Teatro Grego e Romano . 175
identificação, essencial na comunicação. O teatro de Plauto surge como
o teatro da moral pública, mostrando o mundo e as coisas inscritas
no simbólico (ou melhor, a vida quotidiana, seus sentimentos, ações,
paixões, etc., recebem uma consistência simbólica). A comédia plautina
apresentava aos espectadores romanos os fundamentos de sua própria
identidade, contribuindo para a manutenção da ordem sagrada romana.

AULULARIA – EDIÇÕES UTILIZADAS

PLAUTO. Four Comedies. The Braggart Soldier. The Brothers Menaech-


mus. The Haunted House. The Pot of Gold. Trad. Erich Segal. New
York: Oxford University Press, 2008.
_____. Comedias I. Anfritión. La Comedia de los Asnos. La Comedia de
la Olla. Las Dos Báquides. Los Cautivos. Cásina. Int y Trad.: Mercedes
Gonzales-Haba. Madrid: Editorial Gredos, 1992 (texto em latim e
tradução em espanhol).
T. MACCI PLAVTI AVLVLARIA. The Latin Library, from the Leo
edition of 1895-96. Disponível em: <http://www.thelatinlibrary.com/
plautus/aulularia.shtml>.

BIBLIOGRAFIA COMENTADA

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History); vol. 2 (A Sourcebook). Cambridge: Cambridge University Press,
1998.
Mais do que um manual sobre a religião romana, o primeiro volume desta
obra, escrita por três especialistas na pesquisa sobre a religião romana,
apresenta análises acuradas das características e do desenvolvimento
das instituições religiosas romanas e uma antologia de documentos,
com comentários.

GEERTZ, C. A Religião como Sistema Cultural. In: ______. A


Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 65-91.
C. Geertz cunhou uma definição de religião que mantém elementos do
funcionalismo simbólico de Durkheim (a religião como um ato social
coletivo) e de teses de M. Weber sobre o significado da religião como
um sistema para o ordenamento do mundo, sem tanger questões de
crenças tão comumente vinculadas às definições de religião. Para o
176 . Claudia Beltrão da Rosa
autor, uma definição universal e categórica de religião é não apenas
impossível quanto indesejável, falseadora das características diversas
e múltiplas das distintas religiões, não apenas porque os conteúdos,
práticas e crenças são histórica e culturalmente condicionados, mas
também porque qualquer definição é, em si, um produto do processo
discursivo, igualmente condicionado.

DUMONT, Jean-Christian. L’imperium du paterfamilias. Publications de


l’École Française de Rome, 129. Rome: École Française de Rome, 1990.
Este artigo de Jean-Christian Dumont (1990), que analisa as
características e o funcionamento do poder do paterfamilias, enquanto
pai, marido e senhor de escravos, em relação ao poder do magistrado,
com base nas comédias de Plauto e de Terêncio, demonstrando, a partir
de um cuidadoso estudo de vocabulário, a interação do modelo do
poder doméstico e do modelo do poder público.

GRUEN, E. S. Culture and National Identity in Republican Rome. New


York, Ithaca: Cornell University Press, 1992.
O livro de E. Gruen traz uma discussão profícua e bem documentada
sobre vários ludi e as diversas instâncias de suas realizações, entre 216
e 179 a.C., e outras ocasiões nas quais ludi scaenici ocorreram neste
período.

SCHEID, J. An introduction to Roman Religion. Bloomington, Indianapolis:


Indiana University Press, 2003.
Um dos maiores especialistas internacionais em religião romana, John
Scheid estabeleceu o modelo da orthopraxis e o paradigma: os indivíduos
participavam da religião como membros da res publica, os rituais eram
realizados em benefício do grupo, e sua violação trazia consequências
para todo o grupo.

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180 . Claudia Beltrão da Rosa


Identidade Cultural e Teatro:
Um estudo de caso de um mosaico afro-romano1

1
Regina Maria da Cunha Bustamante
A História nos permite conhecer melhor o presente e a ines-
gotável diversidade humana, que nela se manifesta. Renunciando à
presunção dos julgamentos definitivos e irrevogáveis, sendo histo-
riadores, devemos nos empenhar em observar a dimensão plural da
existência dos homens, isto é, examinar criticamente as ações e espe-
cificidades das sociedades humanas. Ao dialogarmos com os antigos,
esforçamo-nos por nos colocarmos em lugares específicos do passado,
onde eles se moviam, mesmo sabendo que os resultados alcançados
por essa aventura serão, muitas vezes, precários. Nesta diretriz, posi-
ciona-se Hartog (2003, p. 198), que defende justamente a “manutenção
desse jogo do mesmo e do outro, com sua sucessão de problemas e sua história, com
suas tensões e suas reviravoltas”, o que faz com que os antigos desper-
tem interesse no presente por serem paradoxalmente “nem mesmo, nem
outros e, ao mesmo tempo, um e outro”. O estudo da Antiguidade produz
indubitavelmente um sentido de alteridade espacial e temporal, que é
operada com a intenção de projetar uma reflexão sobre o presente,
estimulando e desenvolvendo um olhar crítico sobre o social. Proble-
mas urgentes do mundo contemporâneo trazem, para o âmbito da
História Antiga, campos de visibilidade da vida social que nos ajudam
a compreender, através do encontro com a diferença, nossos próprios
caminhos e opções. Eis a dialética da duração: como estudiosos da An-
1
No presente texto, aprofundaram-se aspectos desenvolvidos para a comu-
nicação “Mosaico ‘O poeta trágico e o ator cômico’: identidade cultural e elite
provincial afro-romana”, apresentada no V Colóquio Internacional “Mito e
performance: da Grécia à modernidade”, ocorrido em La Plata (Argentina)
no período de 16 a 19 de junho de 2009. O texto foi resultante de pesquisa
realizada para a Bolsa de Produtividade do CNPq.
Teatro Grego e Romano . 181
tiguidade, ao nos debruçarmos sobre o passado, pensamos no presente
e pensamos o presente. Assim, o tema contemporâneo da construção
das identidade/alteridade culturais suscitou o presente texto.

Identidade/alteridade culturais, uma relação dialógica


A questão da identidade/alteridade culturais na nossa sociedade
está sendo vigorosamente debatida nas teorias sociais. Argumenta-se
que as velhas identidades, que uniam e estabilizavam o mundo social
por tanto tempo, estão em diluição dando lugar a novas identidades
(nacionais, culturais, sociais, geracionais, religiosas, gênero...) e frag-
mentando o indivíduo moderno como sujeito unificado. Essa deno-
minada “crise de identidade” é vista como parte de um processo mais
amplo de mudança que está “deslocando” as estruturas desmanchan-
do as “armações” que davam aos indivíduos e grupos a unidade e a
estabilidade no mundo social, ou seja, o conceito de identidades está
sendo “descentrado”. O mundo contemporâneo vive uma volatilização
de sistemas éticos, de identidades e de solidariedades “locais”. A iden-
tidade – que antes oscilava entre a separação de um complexo múlti-
plo de unidades definidas pelas suas diferenças e uma estrutura capaz
de absorver uma multiplicidade de variáveis e ainda assim manter sua
unidade básica – estaria agora sendo abordada como uma relação em
que o “outro” constitui a identidade do “eu”. Haveria, portanto, uma
relação de alteridade no processo de identificação.
Os estudos atuais criticam uma perspectiva unitária, monolítica,
autônoma, essencialista e a-histórica das culturas. Considera-se que as
formas de identidade/alteridade são específicas de um contexto histó-
rico e social determinado, tanto no tocante aos processos internos da
sociedade quanto às suas relações e aos contatos com outras socieda-
des próximas ou distantes. Portanto, pertencer ou não a um grupo ou
a uma sociedade é uma construção social e cultural, cujo significado e
forma variam no tempo e no espaço, podendo coexistir uma multipli-
cidade de identidades/alteridades que interagem umas com as outras.
Por isso, devemos atentar para as múltiplas interpenetrações e apropria-
ções culturais, que possibilitam o entendimento do aparecimento de
identidades e culturas fronteiriças, próprias das práticas de negociação
cultural que transcendem às contradições dualistas através das experi-
ências relacionais. Evidenciamos, assim, uma pluralidade de situações
de inclusão, assimilação, segregação, estigmatização e exclusão social,
que instigam o estudo das diversas estratégias, como por exemplo: ho-
182 . Regina Maria da Cunha Bustamante
mogeneização (estratégias formais e informais de vigilância/punição
devido ao grande medo da diversidade), hierarquização da diversidade
(estratégias de favorecimento para formação de grupos fechados com
lugares hierarquizados) ou “mestiçagem”/“hibridismo” (estratégias de
criação de lugares de ambiguidade).
Ao lado dos parâmetros para nos situar frente aos “outros” pelo
poder econômico e pela autoridade política, estão surgindo novos pa-
râmetros que privilegiam uma visão do “eu” e do “outro” a partir das
experiências relacionais do cotidiano, condizentes com os diferentes
aspectos culturais presentes em cada sociedade. Assim, a identidade
dos grupos humanos seria construída a partir das interações culturais
historicamente verificáveis, nas quais se inseriria a concepção de alteri-
dade, permitindo a percepção do homem na sua diversidade, como ser
essencialmente cultural. Portanto, a mesma operação, que possibilita
conceber o “outro”, inscreveria também os parâmetros da identidade:
reconhecer-se, substantivar-se, definir para si aquilo que lhe é próprio.
Não há constituição em separado do “mesmo” em identidade e do
“outro” em diferença. O estudo dos mecanismos de abordagem da
diferença em sociedade pressupõe o estudo das formas de reconhe-
cimento em que o grupo compreende-se e se fabrica como unidade.
Verso e reverso – identidade e alteridade – encontram-se intimamente
interligados. Assim, as identidades coletivas envolveriam sistemas com-
plexos de interpelações e reconhecimentos através dos quais os agentes
sociais se inscreveriam na ordem das formações sociais de diferentes
formas: voluntária, negociada, consensual, imposta e outras. A intera-
ção entre culturas acontece com a intersecção de diferentes hábitos,
valores e conceitos presentes na sociedade. A interação cultural requer
uma concepção de cultura como historicamente reproduzida na ação.
Neste contexto, as interações culturais implicariam dinamismo/trans-
formação/alteração/variação de culturas seja em termos diacrônicos
ou sincrônicos.
Problematizar as diversas formas de identidades/alteridades cul-
turais não implica forçosamente abordar unicamente formas institu-
cionais nem priorizar um conjunto particular de determinações (quer
sejam técnicas, econômicas ou demográficas), mas atentar para como
se inserem no processo social. Valorizam-se tanto os seus feixes de ati-
vação e modos de assentimento/assimilação quanto às diversas formas
de resistência, reprodução, sublevação, subversão, ou seja, as diversas
maneiras pelas quais os sujeitos/grupos interpretam, reinterpretam,

Teatro Grego e Romano . 183


desviam e fazem circular as múltiplas identidades/alteridades culturais
presentes na sociedade, penetrando assim no labirinto das relações e
das tensões que o constituem. Neste sentido, pensar diferentes mo-
dos de articulação das identidades/alteridades com o mundo social de-
manda uma sensibilidade para a pluralidade das clivagens (classificação
socioprofissional, pertenças de gênero, etnias ou geracionais, adesões
religiosas, tradições educacionais, solidariedades territoriais...) e a di-
versidade dos empregos de materiais ou de códigos compartilhados.
Desta forma, os conceitos de identidades/alteridades culturais facul-
tam compreender um campo social compósito. Busca-se entender os
processos e resultados das complexas negociações entre diferentes gru-
pos e culturas. Assim, pretendemos aqui avaliar as experiências vividas
e os significados presentes no discurso construído pela elite provincial
da África Romana, que, no presente caso, se materializa numa imagem
vinculada a um mosaico.

Imagem, um discurso a ser interpretado


Neste estudo, optamos por privilegiar o modo de produção de
sentidos da imagem, ou seja, como ela provoca significações. Partimos
da premissa de que a imagem é uma linguagem composta de signos e,
portanto, passível de interpretação (JOLY, 1997, p. 48). O produtor da
imagem encontra-se numa relação dialógica com a sociedade na qual
está inserido: produz por diversas motivações culturais e sociais e seus
produtos retornam à sociedade reforçando, criticando ou formulando
novos valores e práticas. Seguindo Bérard (1983, p. 5-37), considera-
mos que as imagens correspondem a uma narrativa e seus criadores
as fizeram a partir de um repertório comum de elementos estáveis e
constantes na sua sociedade. A combinação destes elementos constitui-
se numa imagem de conteúdo narrativo. Através destas combinações
associativas, podemos passar da relação de referência à relação de sig-
nificação, daí a pertinência da aplicação da leitura semiótica. Tal como
o signo, a imagem está no lugar de alguma coisa para alguém e possui
alguma relação ou alguma qualidade analógica desta coisa, constitui-se
assim numa representação visual. Apresenta-se como uma ferramenta
de expressão e comunicação ao transmitir uma mensagem para outro.
É, portanto, uma mensagem visual composta de diversos signos, ou
melhor, uma linguagem. O texto imagético, por utilizar um código vi-
sual construído socialmente, é um importante documento para a com-
preensão da sociedade que o produziu e consumiu.
184 . Regina Maria da Cunha Bustamante
Na leitura do mosaico selecionado, aplicamos a proposta do se-
miólogo Peirce, pois partimos do pressuposto de que a imagem é um
signo, na medida em que exprime a relação entre o significante e o
significado, que se transforma em ideias e demanda uma atitude inter-
pretativa dos seus leitores. Eco (1991, 2004a, 2004b e 2007) abordou
a ideia de Peirce da semiótica ilimitada, porém, isto não implica dizer
que a interpretação não tivesse critério nem que a interpretação fosse
desprovida de objeto, nem, muito menos, que ocorresse por si própria.
No esquema peirceano (PEIRCE, 1992 e 2000), o signo mantém uma
relação solidária entre, pelo menos, três polos que compõem a dinâmi-
ca de qualquer signo como processo semiótico: o significante ou o re-
presentamen (a face perceptível do signo), o objeto ou o referente (o que é
representado pelo signo) e o significado ou o interpretante (que depende
do contexto do seu aparecimento e da expectativa do receptor). A par-
tir destes três polos do signo, estruturamos o presente estudo de caso.

Signo imagético musivo: seu significante

FIGURA 12
(KHADER; SOREN, 1987, p. 191, fig. 57; FANTAR; et al., 1994, p.
199; BLANCHARD-LEMÉE; et al., 1996, p. 220, fig. 165; LANCHA, 1997,
pl. IX; LAVAGNE, BALANDA; URIBE ECHEVERRÍA, 2000, fig. 57; SLIM;
FAUQUÉ, 2001, p. 173; KHADER, BALANDA; URIBE ECHEVERRÍA,
2003, fig. 235; ABED, 2006, p. 114, fig. 6.4)
2
Dimensões: medalhão central: 1,31m de diâmetro; Acervo: Museu Arque-
ológico de Sousse na Tunísia.
Teatro Grego e Romano . 185
Eis o mosaico selecionado que, no esquema peirceano, corres-
ponde à face perceptível do signo, constituindo, portanto, o seu signi-
ficante ou representamen.
Passemos à identificação do objeto ou referente, visando inferir o
que é representado pelo significante acima exposto (FIGURA 1).

a. Signo imagético musivo: seu objeto

Emoldurado por uma composição geométrica de cubos em pers-


pectiva, encontra-se um medalhão circular com elementos figurativos
em fundo branco. Nele, há duas figuras humanas, vestidas à maneira
clássica. Utilizou-se, assim, uma expressão iconográfica da tradição cul-
tural greco-romana.
Principiemos pela figura sentada mais ao fundo da cena. É um
homem de cabelo encaracolado e barba – sinal diacrítico de idade adul-
ta – castanhos. Veste uma toga com faixa púrpura estreita e pregas (toga
angusticlave contabulada) e está sentado num banco sobre estrado com as
pernas cruzadas e calçando crépida.3
A toga simbolizava a dignidade do cidadão romano. Também se
relacionava à paz, pois era utilizada, em períodos pacíficos, para ativida-
des políticas e cerimoniais, próprias do espaço urbano, diferentemente
do uniforme e das armas do soldado, portados pelo cidadão em tempos
de guerra (MENDES, 2003, p. 310-312). Por isso, o poeta latino Virgí-
lio (70-19 a.C.) definira os romanos como “nação togada” (VIRGÍLIO.
Eneida I.282), ressaltando assim a Pax Augusta (Paz Augusta), obtida no
governo de Augusto (27 a.C.-14). Os romanos consideravam-se pos-
suidores não apenas do poder militar, mas também de uma civilização,
que tinha a toga como a indumentária do seu cidadão, que se opunha às
vestes do “outro” (mulher, escravo, estrangeiro/“bárbaro”). Tradicio-
nalmente, a toga era feita de um longo tecido (em alguns casos, de até
6,5m) em lã espessa e branca, que era arrumado em dobras cobrindo
o corpo. A própria palavra toga deriva do verbo latino tego, texi, tectum,
que significa cobrir. Era uma roupa tão elegante quanto incômoda: era
difícil de vestir e portar, restringindo os movimentos e tornando os
gestos mais comedidos e solenes, distintamente da túnica curta que era
utilizada pelos trabalhadores em suas fainas diárias. A toga diferenciava
3
Calçado com alças (ansæ) fixadas nas bordas da sola, pelas quais se passava
uma correia (amentum), que se entrelaçava sobre o peito do pé até o tornozelo
(RICH, 2004, p. 201).
186 . Regina Maria da Cunha Bustamante
os cidadãos por sua idade, condição social ou cargo público que ocupa-
vam, sendo, portanto, um fator de visibilidade da diferenciação social.
Assim, a toga angusticlave, adornada com uma faixa estreita de púrpura,
era vestida pelos membros da ordem equestre, magistrados inferiores
e filhos de senadores. Este tipo de toga se opunha a laticlave, que se
caracterizava por faixa púrpura larga, sendo vestida pelos patrícios, se-
nadores e altos dignitários. O qualificativo contabulata refere-se à roupa
com longas pregas, que surgiu a partir de fins do século II,4 tornando-
se popular nos séculos III e IV, o que corrobora a datação do início do
século III para o mosaico em análise.
O homem togado segura, na altura do queixo, com uma das
mãos, o calamus, instrumento para a escrita, feito de um pedaço de cana
ou junco, talhado obliquamente ou afinado na extremidade, utilizado
antigamente para escrever em papiros e pergaminhos. Na outra mão,
ele tem um volumen. Este objeto era uma folha longa e estreita, feita
com certo número de faixas de papiro coladas juntas, que se enrolava,
quando a obra era concluída, em torno de um cilindro, de maneira que
o leitor a desenrolava à medida que a lia. Foi somente em fins do século
III (após, portanto, a datação do mosaico) que, no Ocidente Romano,
ocorreu a afirmação definitiva do codex sobre o volumen. O codex era feito
de folhas separadas encadernadas juntas, como as páginas dos nossos
livros, e representou uma revolução na leitura, pois, distintamente do
volumen, deixava as mãos livres para fazer anotações e se podia voltar
mais facilmente a um trecho lido. Além disso, a economia do material
era enorme, pois se escrevia nos dois lados, reduzindo os seus custos
em relação ao volumen (CAVALLO, 1998, p. 71-102).
Todos os sinais diacríticos, até agora analisados, permitem inferir
o pertencimento desta figura humana à civilização romana e, ainda, sua
plena inserção no mundo da cultura escrita. O gestual indica a situação
de escrita interrompida: o calamus não está na superfície do volumen, mas
no queixo, e seu olhar dirige-se para frente, como se buscasse inspira-
ção. É um escritor prolífero, pois, próxima aos seus pés, há uma capsa
(caixa cilíndrica) com doze voluminis. O tipo de escritor é identificado
pelo objeto que está sobre o móvel à sua esquerda: uma máscara barba-
da e de testa alta com peruca encaracolada castanha. Esta máscara era

4
O termo contabulata é derivado do escritor africano Apuleio (c. 125-c. 190),
em Metamorfoses XI.3, quando descreve o complexo pregueado da palla (manto
retangular feminino) de Ísis.
Teatro Grego e Romano . 187
típica da tragédia, destacando-se o onkos (a parte superior da máscara
em forma de lambda – Λ / λ). A fronte acentuada era frequentemente
dissimulada por uma peruca. Com o onkos, objetivava-se, por um lado,
restabelecer as proporções do corpo, acrescido com as vestimentas e
pelos altos cothurni,5 e, por outro, emprestar às figuras trágicas um as-
pecto distinto. Este acessório atingia, por vezes, dimensões desmedidas,
mas sua altura era muito variável. A máscara é de um homem moreno
(melas anêr) e adulto. Sua tez morena (melas), sua barba e seus cabelos
crespos simbolizam a força viril. O ar rude (trachus) do seu rosto pode
indicar que esta máscara estava destinada aos papéis “antipáticos”.
A máscara da tragédia nos informa que estamos diante de um
dramaturgo. Blanchard-Lemée (1996, p. 219) observa que não seria ex-
traordinário para um notável rico na próspera cidade de Hadrumetum se
dedicar a compor versos ou mesmo peças; nem seria mais extraordiná-
rio ainda se ele decidisse registrar seus feitos em alguns dos cômodos
da sua casa. A autora questiona se existia alguma cidade afro-romana
que não possuísse seu próprio compilador ou gramático. Os trabalhos
de um número de poetas menores africanos foram eventualmente cole-
tados para uso educacional em Cartago. Mas, o nome do escritor neste
mosaico não é mais conhecido por nós; sobreviveu apenas este retrato
musivo anônimo...
O olhar do dramaturgo é frontal. A intencionalidade comuni-
cativa deste olhar pode ser compreendida através das proposições de
Calame (1986), que analisou a representação da figura humana, e, em
particular, do jogo dos olhares, na cerâmica clássica. Ele concluiu que
os olhares não foram feitos ao acaso; havia uma relação entre os ele-
mentos do enunciado icônico e o receptor. O estudioso identificou três
situações: o olhar de perfil, quando os personagens olham entre si, não
se preocupando com o receptor nem se interessando pela sua presen-
ça; o olhar de ¾, quando o personagem, ao mesmo tempo, olha para a
situação do enunciado – o interior do texto – e para o receptor, como
se o estivesse convidando a participar com ele da situação; e o olhar
frontal, em que o personagem, voltado diretamente para o receptor,
dialogaria com ele. No caso do mosaico, o dramaturgo está com o olhar
5
O cothurnus era uma bota com solado alto, usada pelos atores trágicos
quando em cena (VIRGÍLIO. Bucólicas, VIII.10) para aumentar a sua altura
(JUVENAL. Sátira, VI.633) e lhe dar um ar mais imponente. Para esconder o
cothurnus, os atores trágicos portavam longas vestimentas que tocavam o chão
(RICH, 2004, p. 200).
188 . Regina Maria da Cunha Bustamante
frontal, por conseguinte, está interagindo com os leitores da imagem
que a apreciam.
A outra figura do mosaico, que se encontra em primeiro plano,
é um homem, com cabelo castanho com corte pajem e imberbe, sinal
diacrítico de juventude. Veste uma túnica e manto; não porta a toga, a
roupa do cidadão. Normalmente, os atores possuíam baixo status social;
eram, em sua maioria, escravos ou ex-escravos. Um cidadão que atuasse
como ator era degradado pelos censores (magistrados que estabeleciam
as classificações sociais na Roma Antiga) e excluídos da sua posição
(HALL; EASTERLING, 2008, p. 265-266 e 277-278).6 O jovem do
mosaico calça soccus, pantufas que cobriam todo o pé. Em Roma, o
uso deste tipo de sapato estava restrito às mulheres (soccus muliebris) e
aos atores cômicos, contrastando então com o cothurnus do ator trágico
(RICH, 2004, p. 589-590). A túnica e os sapatos baixos (socci) davam aos
atores cômicos a liberdade de movimentos e estavam condizentes com
as vestes de segmentos sociais populares.
O jovem em pé tem um dos seus braços sobre uma coluneta.
Com o outro braço, segura uma máscara. Esta máscara representa um
dos personagens da comédia: o do jovem com cabelo anelado (oulos
neaniskos). Este seria o tipo de jovens libertinos, debochados (iuvenes
luxuriosi) e bonitos com rosto vivaz e as sobrancelhas arqueadas. Foi
identificado como “capitão” por ser moreno e sua cabeleira flutuar
como uma crina; é desta particularidade que se origina seu nome: epi-
seistos. Estes tipos faziam parte da comédia latina, que teve como um
dos seus parâmetros as peças do ateniense Menandro (343-291 a.C.),
um dos mais célebres escritores da Nova Comédia,7 cujos trabalhos
influenciaram os comediógrafos latinos republicanos, como Plauto (c.
254-184 a.C.) e Terêncio (c. 186/5-c. 159 a.C.) (GRIMAL, 1986, p. 103-
116; PARATORE, 1987, p. 39-61 e 111-133; CIRIBELLI, 1995, p. 33-
38 e 51-77; COUTO, 2006, p. 12-34; e MEDEIROS, 2008, p. 10-15).

6
No Código Teodosiano (CTh), compilação em 16 livros contendo todas as
leis imperiais promulgadas desde o imperador Constantino (306-337) até o
imperador Teodósio (379-394), elaborado entre 435 e 438, há uma parte espe-
cífica sobre homens e mulheres envolvidos em espetáculos (CTh XV.7.1-13),
em que se reafirma sua estigmatização.
7
Na Comédia Nova, surgida no período helenístico (323-260 a.C.), predomi-
navam os enredos
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em torno de identidades falsas, intrigas familiares e amo-
rosas.
Teatro Grego e Romano . 189
Pelos sinais diacríticos do soccus e da máscara em questão, esta-
mos diante de um ator cômico. Enquanto o dramaturgo encontra-se
mais ao fundo da cena, condizente com seu trabalho relacionado aos
“bastidores” do Teatro, ou seja, à escrita das peças a serem represen-
tadas, o ator cômico situa-se em primeiro plano, referindo-se assim à
sua performance no palco em frente à plateia. Ele também tem o olhar
frontal, estabelecendo, tal como no palco, uma relação direta com o
espectador.

b. Signo imagético musivo: seu significado


Abordaremos, neste segmento, o significado ou o interpretante.
Para tanto, observaremos o contexto do aparecimento do mosaico e as
expectativas dos receptores.
O mosaico selecionado é um dos que decorava um cômodo
de recepção de uma domus (residência) – denominada de “Casa das
Máscaras” – da antiga Hadrumetum, atual Sousse na Tunísia. Esta cidade
situa-se numa região que, desde a Antiguidade, permaneceu próspera
devido à cultura da oliveira, cuja produção de azeite era exportada
do seu porto. De origem fenícia, foi encontrado, na cidade, material
arqueológico remontando ao século VI a.C. Durante a Segunda Guerra
Púnica (218-202 a.C.) entre Cartago e Roma, Hadrumetum aliou-se a
Roma recebendo como recompensa o status de ciuitas libera (cidade
livre), o que lhe permitiu manter sua autonomia até as guerras civis do
Primeiro Triunvirato entre Pompeu e Júlio César em meados do século
I a.C. (LEPELLEY, 1981, p. 261). Como se posicionou favorável aos
pompeianos, com a vitória de Júlio César, foi agravada com pesados
tributos e com a instalação de um conuentus ciuium romanorum8 (JÚLIO
CÉSAR. Guerra da África, XCVII.2). Entretanto, moedas hadrumetinas
da época de Augusto mostraram que a libertas (liberdade) era ainda
conservada ou fora restaurada (FOUCHER, 1964a, p. 112-116).
A história municipal de Hadrumetum é mal conhecida (GASCOU,
1972, p. 67-75), devido à continuidade da ocupação humana da cidade,
o que afetou a sobrevivência de material epigráfico. Por uma tábua de
patronato de 321 encontrada em Roma (CIL VI.1687 = ILS 6111), sabe-

8
Associação oficial de cidadãos romanos nas aglomerações sem status de mu-
nicípio ou de colônia (LAMBOLEY, 1995, p. 116). Em Hadrumetum, era com-
posta de negociantes romanos que comerciavam os produtos agrícolas da
região visando exportá-los para Itália (LEPELLEY, 1981, p. 261).
190 . Regina Maria da Cunha Bustamante
se que Trajano (98-117) promoveu Hadrumetum à colônia honorária,
o que demonstra a plena inserção da cidade na ordem romana.9
Este imperador estabeleceu ainda um procurator regionis Hadrumetinae,
responsável pelos domínios imperiais (LEPELLEY, 1981, p. 262).
Desde o Principado (27 a.C.-284), Hadrumetum era uma capital regional.
No governo de Diocleciano (284-305), com a criação da província de
Bisacena,10 a cidade tornou-se a sua capital.
A partir do século II, foram construídos monumentos públicos
como teatro, anfiteatro, circo, termas e suntuosas residências aristocrá-
ticas ricamente decoradas com mosaicos. A prosperidade econômica
da região fundamentava-se principalmente na produção e comerciali-

9
A promoção à colônia honorária assimilava os cidadãos da comunidade pro-
vincial aos de Roma e a obrigava teoricamente a renunciar ao que restava do
seu próprio direito para adotar integralmente o direito romano. Durante o
domínio romano na África do Norte, mais de 50 cidades indígenas recebe-
ram o título de colônia honorária (LEPELLEY, 1979, p. 122). Mesmo com
a extensão do direito de cidadania, concedida por Caracala (211-217) através
da Constituição Antonina em 212 aos habitantes de todas as cidades (exce-
tuando-se aquelas que resistiram ao domínio romano e certas categorias de
pessoas), o governo imperial continuou a conceder, a pedido das próprias
comunidades, os status de município e de colônia, como se comprova nas
inscrições epigráficas norte-africanas do Baixo Império (LEPELLEY, 1979,
p. 128-132). O sentido de colônia, portanto, não implicava necessariamente a
criação de uma nova cidade. Poder-se-ia conferir o título às cidades de catego-
ria inferior como uma forma de promoção. Roma incentivava a lealdade das
comunidades locais já existentes através da concessão deste título honorífico,
quando sua história tornasse possível, desejável ou necessária esta transfor-
mação, tanto para o sistema imperial quanto para os habitantes da cidade.
Era um reconhecimento de um grau de romanização suficiente para justificar
a agregação de uma cidade à comunidade dos cidadãos romanos. Mas, uma
romanização mais intensa era também incentivada por esta concessão, favo-
recendo um movimento espontâneo de adesão em favor dos costumes e leis
de Roma.
10
Ignora-se a data precisa da criação da província; supõe-se entre 294 e 305.
A reforma administrativa diocleciana dividiu a Província da África Procon-
sular em três: Zeugitana ou África Proconsular propriamente dita, Bisacena
e Tripolitânia. Esta divisão visava aumentar os recursos fiscais destinados a
enfrentar as ameaças exteriores, reforçar a autoridade imperial e, ao mesmo
tempo, diminuir a do procônsul da África Proconsular, cujo poder em geral
fazia o jogo dos usurpadores (MAHJOUBI, 1983, p. 482).
Teatro Grego e Romano . 191
zação do azeite. Em fins do século II (193-197), um cidadão hadrume-
tino, Décimo Clódio Albino, disputou o trono imperial com Septímio
Severo, natural de outra cidade afro-romana, Leptis Magna (HISTÓRIA
AUGUSTA. Clodius Albinus, IV.1). A ascensão da dinastia severiana
(193-235), de origem afro-síria, ao poder representou um período de
grande desenvolvimento para as províncias norte-africanas; foi a época
de esplendor em Hadrumetum, quando houve uma significativa ativida-
de edilícia, dentre elas, a residência onde se localiza o mosaico em tela,
datado do início do século III.
Nesse período, desenvolvia-se o “estilo musivo africano”, surgido
no século anterior, que rompeu com os padrões geométricos simples,
semelhantes aos italianos, seguidos pelos mosaicistas da região, que
relegavam as tradições púnicas. As oficinas norte-africanas passaram a
se dissociar então dos cânones dos mosaicos italianos e estabeleceram
seu próprio estilo com a gradual introdução da policromia nas bordas
e da integração de elementos florais e geométricos. Produziram uma
grande quantidade de mosaicos policromáticos, geométricos, florais e
figurativos em fundo branco. Cada região desenvolveu seu próprio estilo
e seus temas a partir de tradições locais (FANTAR; et al., 1994, p. 18-45
e 55-9; LAVAGNE, BALANDA; URIBE ECHEVERRÍA, 2000, p. 68-
74). A representação do cotidiano oscilou entre o realismo, a caricatura
e alguma idealização, mas também era comum se recorrerem a cenas
mitológicas. A predileção por assuntos tomados da vida real e a forma
de representação com distribuição de cenas trabalhadas em cores sobre
uma ampla superfície branca não diferenciada eram características
distintivas do “estilo musivo africano”, que chegou a sua maturidade a
partir do século III e se difundiu pelo Império Romano (FANTAR; et
al.,1994, p. 59 e 240-259).
Os mosaicos nas paredes e no teto eram um dos elementos de-
corativos mais admirados. Traziam leveza às domus da elite local, ao
decorar seus aposentos como se fossem afrescos e tapetes, e também
revelavam a vida cotidiana, os prazeres e os valores da elite provincial
(THÉBERT, 1990, p. 300-398). A riqueza desta elite, fundamentada,
sobretudo, na produção de cereais e na manufatura do vinho e do azei-
te, como em Hadrumetum, encontrou expressão tanto na construção
de monumentos públicos quanto na decoração sofisticada das residên-
cias urbanas (domus) e rurais (villae), onde os membros da elite provin-
cial, profundamente romanizada, afirmavam seu status e seus valores
culturais. A decoração doméstica nas residências urbanas de pessoas

192 . Regina Maria da Cunha Bustamante


abastadas buscava reafirmar a posição privilegiada do seu proprietário
frente à comunidade romanizada. A aceitação social do pavimento com
mosaicos nas cidades norte-africanas era uma prática do estilo de vida
urbano romano-africano. Desta forma, podemos esperar que o conte-
údo das decorações nos revele muito a respeito dos gostos e valores da
elite nesta parte do mundo romano.
Na soleira do aposento de recepção (dimensões: 6m²) decorado
com o mosaico “O poeta trágico e o ator cômico”, havia outro exemplar
que apresentava três máscaras cômicas: a máscara da esquerda, por
ter na cabeça um enfeite amarelo, considerado um sinal de ganância,
poderia ser uma cortesã; a do centro sugeriria um velho irritável
que serviria para o papel de um pai; e a da direita com uma faixa
vermelha seria aceitável para o papel de servente ardiloso (KHADER,
BALANDA; URIBE ECHEVERRÍA, 2003, p. 103). A ênfase no tema
das máscaras nesta residência fez com que ela passasse a ser conhecida
na contemporaneidade como “Casa das Máscaras”. Ela se localizava a
cerca de 50 m ao sul do antigo teatro de Hadrumetum.
O gosto dos habitantes de Hadrumetum por literatura é compro-
vado a partir do período dos Severos (193-235) por uma série de mo-
saicos, dentre eles, além dos supracitados da “Casa das Máscaras”, o
de “Virgílio e as Musas”11 e o do provável Menandro ou ator cômico
frente a duas máscaras cômicas. Essas imagens davam à elite provincial
a oportunidade de demonstrar seu conhecimento da alta cultura (pai-
deia), distinguindo-se assim da massa iletrada; era um signo de perten-
cimento social durante a vida; supunha a vitória da inteligência sobre
a animalidade, da civilização sobre a barbárie. Temas relacionados à
literatura clássica funcionavam, no mundo romano e no grupo social
ao qual estavam relacionados, como uma prova de adesão ao conjunto
de valores com forte conotação de prestígio social. O homem livre era,
na verdade, instado a ocupar a maior parte de seu tempo de lazer (otium)
cultivando as Musas “com igual zelo” (APULEIO. Florida, XX.1). As
tragédias e comédias eram representadas no palco e também lidas, sen-
do declamadas em voz alta nos grandes banquetes aristocráticos e por
grupos ou clubes literários.
11
Este mosaico, um dos carros-chefes do Museu do Bardo na Tunísia, foi
objeto de análise por vários estudiosos, dentre eles, Foucher (1964a, p. 216 e
230; 1964b, p. 247-257); Fantar; et al. (1994, p. 196-197 e 199-202); Blanchard-
Lemée; et al. (1996, p. 222); Lancha (1997, p. 43-46); Khader, Balanda; Uribe
Echeverría (2003, p. 530) e Bustamante (2007, p. 292-313).
Teatro Grego e Romano . 193
Havia um elo entre temas culturais e a difusão da cultura ro-
mana, que era efetiva em cidades com teatros e outros edifícios de
espetáculos e que se beneficiavam também da circulação de ideias e
de artistas. Os notáveis da África Romana não se limitavam a ofere-
cer jogos no anfiteatro; eles também subsidiavam espetáculos teatrais.12
Embora a forma de espetáculo teatral mais vulgar fosse considera-
da particularmente imoral por teólogos cristãos (p. ex., TERTULIA-
NO. Espetáculos, XIV e Apologético, XV; e MINÚCIO FÉLIX. Otávio,
XXXVII.12), Agostinho (354-430), bispo da cidade norte-africana de
Hipona, admitiu que, em sua juventude, quando ainda não se converte-
ra ao cristianismo, apreciava muito o teatro (AGOSTINHO. Confissões,
I.10.16 e III.2.2-4). O tema teatral dava prestígio ao proprietário da casa
aos olhos dos seus convidados. Os cômodos de recepção recebiam um
número significativo de decorações figuradas com assuntos culturais
e literários. Observamos a tendência de fazer representar os assuntos
literários e culturais na parte pública da casa. O arquiteto romano Vi-
trúvio (c. 70-25 a.C.) apresenta, para cada acomodação da domus, uma
decoração própria condizente com o seu uso; assim, na exedra (sala
de recepção), a decoração devia reproduzir cenas trágicas, cômicas ou
satíricas (VITRÚVIO. Arquitetura, VII.5.2), tal como se apresenta na
“Casa das Máscaras”.
Para Lancha (1997, p. 371-372), a fácil adaptação de temas te-
atrais aos diferentes cômodos e edifícios privados e públicos prova a
sua perfeita integração não apenas por simplesmente compor o reper-
12
Veyne (1976) cunhou o neologismo evergetismo, a partir do termo grego
euergetein, para denominar uma manifestação de uma virtude ética, de uma
qualidade de caráter, uma magnificência dos ricos particulares, que participa-
vam com sua fortuna no embelezamento da sua cidade ou tomavam ao seu
encargo uma parte das suas obrigações financeiras, distribuíam dinheiro aos
seus concidadãos, organizavam jogos, financiavam espetáculos e banquetes
públicos, distribuíam azeite e de trigo por ocasião de dedicatórias monumen-
tais... Com isso, a elite municipal obtinha prestígio e assegurava uma grande
popularidade. Era um meio de se fazer eleger como magistrados municipais;
uma obrigação (munus) para a elite local, especialmente por ocasião da sua
ascensão às dignidades públicas ou municipais, provando, desta forma, sua
generosidade. O benefício era proporcional à posição e à fortuna do evergeta,
à importância da cidade ou à função almejada. De fato, os candidatos compe-
tiam por honras públicas, a fim de obter os necessários votos populares, e não
poupavam suas fortunas para agraciar sua cidade e seus concidadãos. Era uma
maneira de manter as comunicações entre os vários grupos sociais urbanos.
194 . Regina Maria da Cunha Bustamante
tório dos mosaístas, mas, principalmente, por estar condizente com a
mentalidade dos que encomendavam os mosaicos. Era, assim, um dos
aspectos mais evidentes e sensíveis da interiorização desta cultura entre
os proprietários das domus e villae. Ela não funcionava apenas como
sinal de reconhecimento – na parte pública da casa – entre nostálgicos
e/ou militantes da cultura pagã, mas sua ubiquidade dava a medida da
constante vontade de tornar viva uma cultura literária, poética, filosófi-
ca e política que constituía um componente essencial da sociedade ro-
mana provincial. As imagens dos pavimentos das casas não podiam ser
separadas das leituras dos senhores, nem da sua condição de especta-
dor, nem, eventualmente, do encargo de financiar espetáculos. Segun-
do Lancha (1997, p. 45), os mosaicos com estas temáticas atestavam a
cultura e o gosto literário do seu proprietário. Distintamente, Fantar; et
al. (1994, p. 198) questionam se os mosaicos seriam realmente demons-
trativos da “grande erudição da sociedade aristocrática [local]” ou da
“vitalidade da cultura clássica tradicional” na África Romana. Levanta
a possibilidade de considerar que os provinciais, que encomendavam
os mosaicos com esta temática, buscando reafirmar sua ascensão so-
cial advinda das primeiras gerações enriquecidas pela prosperidade da
oleicultura e seus descendentes, como financistas, produtores ou ar-
madores, estavam mais preocupados em manter transações comerciais
rentáveis e em ter uma carreira política bem sucedida. Para o autor, não
se podem negligenciar os modismos e esnobismos, que influenciavam
na escolha dos temas dos mosaicos. Estes tipos de fenômenos também
estão presentes em épocas mais recentes, como por exemplo, o orien-
talismo em voga no Ocidente durante o século XVIII e o american way
of life dos séculos XX e XXI.
Consideramos que a elite provincial afro-romana buscava se apa-
rentar, se situar e se identificar à ordem romana através da reprodução
de cenas que desvelavam a cultura clássica entre a elite, que mesmo
com a cristianização do Império, não deixou de estar presente e ser
valorizada na decoração das suas casas. O seu uso era fator de dis-
tinção e enobrecedor, pois permitia se identificar, se lembrar da “sua
memória” e se colocar ao lado daqueles que podem e sabem se lem-
brar; se reconheciam apenas aqueles que tinham uma história que a
sabem contar para seduzir e se fazer admitir. Portanto, os membros
da elite provincial, profundamente romanizada, afirmavam assim, não
apenas o seu status, mas também valores culturais comuns. As temáti-
cas clássicas, como a do Teatro, por exemplo, eram reproduzidas e se

Teatro Grego e Romano . 195


inseriam na retórica, que teve papel central no mundo greco-romano
na construção do pensamento e expressão da elite. O motivo teatral
era uma maneira de representar experiências e acontecimentos dentro
de certa espécie de moral ou rede social; era uma forma de expressar
alguns “significados compartilhados” (HUSKINSON, 2000, p. 7), que
fundamentavam a cultura da qual se originava. Para Huskinson (2000,
p. 5 e 8), apesar da diversidade cultural do Império Romano, havia uma
experiência cultural compartilhada, manifesta no emprego de repre-
sentações aceitas de identidade comum, que percebemos, por exemplo,
através do tema escolhido para o mosaico em análise. Especificamente
o Teatro, constituía-se num assunto mais tradicional para simbolizar a
ligação com a cultura clássica. Desta forma, manifestava-se a constante
vontade de tornar viva uma cultura literária, que era um componente
essencial da sociedade romana provincial, e inferia o pertencimento e o
aceite da ordem imperial romana.
Lemos o mosaico em foco – encomendado por um membro da
elite afro-romana para decorar sua residência – como uma construção
sociocultural que cria significações sobre o poder, gerando e mantendo
hierarquias. Para Woodward (2000, p. 8), “as identidades adquirem
sentido por meio da linguagem e dos sistemas simbólicos pelos quais
elas são representadas”. Justamente, compreendemos que o presente
mosaico, através da linguagem visual, é uma representação que atuou
simbolicamente para classificar o mundo e as relações da elite provincial
no seu interior, resultando na construção de uma identidade, que estava
vinculada às condições sociais e materiais específicas. Os sistemas de
representação presentes na decoração doméstica das residências da
elite provincial constituíram lugares a partir dos quais esta elite pôde se
posicionar e se expressar.

CONCLUSÃO

A manutenção da unidade do Império Romano demandou com-


patibilidade de valores entre as unidades participantes da comunida-
de romana, compartilhando códigos de moralidade e comportamen-
to social. Estes valores ganhavam efetividade quando incorporados a
instituições, língua, religião, nomes, vestuário, culinária, imagens..., ori-
ginando uma forma de vida comum, que reforçava os laços entre as
unidades e originava um sentimento comum, estabelecendo assim con-
fiança e lealdade mútuas entre as unidades da comunidade. Entretanto,
não se excluía a alteridade através da existência de identidades locais;
196 . Regina Maria da Cunha Bustamante
havia espaço para o elemento local. O respeito aos direitos e costumes
locais era um dos princípios essenciais da política romana. O sistema
político romano buscava agregar novos elementos sem comprometer
sua própria existência e, ao mesmo tempo, todos salvaguardavam sua
organização particular.
O mosaico “O poeta trágico e o ator cômico” permitiu com-
preender o processo de construção de identidade entre Roma e a elite
provincial norte-africana. As identidades coletivas envolvem sistemas
complexos de interpelações e reconhecimentos através dos quais os
agentes sociais se inscrevem na ordem das formações sociais de di-
versas formas, tais como voluntária, negociada, consensual, imposta
e outras. Como beneficiária da ordem romana, a elite norte-africana
adotou um marco decorativo que lhe servia como elemento de identi-
ficação e de integração ao lhe permitir viver à maneira romana. Assim,
manifestava sua participação na gestão do Império Romano e afirmava
sua posição privilegiada frente à sociedade local. A existência de uma
comunidade cultural mediterrânea, incentivada pela civilização romana
e apoiada num intenso intercâmbio econômico, político e intelectual,
ocasionou o desenvolvimento de uma decoração privada característica
das elites em todo o Império Romano. A homogeneidade social e a
cumplicidade política dessas elites foram fatores fundamentais para a
perceptível uniformidade dos princípios básicos de sua decoração do-
méstica, sem, contudo, excluir de todo os elementos locais.
As identidades culturais são formadas e transformadas dentro
de um contexto social complexo composto, não apenas de instituições,
mas também de símbolos e representações. Neste sentido, Woodward
(2000, p. 17) aponta que “a representação inclui as práticas de signi-
ficação e os sistemas simbólicos por meio dos quais os significados
são produzidos, posicionando-nos como sujeito. É por meio dos sig-
nificados produzidos pelas representações que damos sentido à nossa
experiência e àquilo que somos”. A constituição de uma comunidade
demanda a capacidade de gerar um senso de identidade e aliança e
de construir significados que norteiem e organizem ações e autoima-
gens. É fundamental, portanto, compreender as estratégias implemen-
tadas para a construção de identidades com a elaboração de modelos
de comportamento e valores e imagens que permitam manter unidos
grupos de pessoas que, se identificando culturalmente, se reconheçam
e se distingam dos “outros”.

Teatro Grego e Romano . 197


COMENTÁRIOS BIBLIOGRÁFICOS

O livro de Grimal (1986) é uma introdução sucinta13 sobre o


Teatro na Grécia e Roma antigas. No caso deste último, apresenta o seu
surgimento e as proximidades e diferenças em relação ao Teatro grego
(capítulo VI), os gêneros dramático (capítulo VII) e cômico (capítulo
VIII) a partir dos seus autores e obras. Um maior aprofundamento
sobre a vida dos dramaturgos e comediógrafos latinos e uma análise
mais detalhada da sua obra podem ser encontrados em Paratore
(1987).14
Os estudos clássicos mais tradicionais enfatizam a produção e
a hermenêutica dos textos, como se verifica, por exemplo, em Grimal
(1986) e Paratore (1987). Desenvolvendo perspectivas um pouco menos
usuais, destacam-se duas coletâneas: uma organizada por Cavallo e
Chartier (1998)15 e a outra, Hall e Easterling (2008).16 A primeira centra-
se no campo da recepção dos textos escritos, mais especificamente, as
13
Este caráter introdutório está condizente com a proposta da coleção da
qual o livro de Grimal faz parte: “Que sais-je?”, editada pela Presses Uni-
versitaires de France (PUF). Esta coleção, cujo subtítulo é “Le savoir vite”
(O saber rápido), tem como alguns de seus princípios: direcionada ao gran-
de público (estudantes e leigos), desenvolvimento de temas por especialistas,
síntese/introdução sobre todos os assuntos e apreensão do mundo de on-
tem e de hoje (Disponível em: <http://www.puf.com/wiki/%22Que_sais-
je%3F%22_-_Le_savoir_vite>. Acesso em: 6 ago. 2011). O livro em foco é
a tradução portuguesa do original: GRIMAL, P. Le théâtre antique. Paris: PUF,
1978 (Coll. Que sais-je n° 1732).
14
A Fundação Calouste Gulbenkian, objetivando incentivar o Ensino Supe-
rior, desenvolveu uma linha editorial de publicação de manuais universitários,
originais e estrangeiros (Disponível em: <http://www.montra.gulbenkian.
pt/channel.aspx?channelid=845B69D1-445F-4F91-99AA-7B425690B868>.
Acesso em: 6 ago. 2011). O livro de Paratore (Storia della letteratura latina. Fi-
renze: Sansoni, 1979) insere-se nesta última categoria.
15
O livro faz parte da Coleção “Múltiplas Escritas”, publicada pela Editora
Ática em fins do século XX. O primeiro volume da História da leitura no mundo
ocidental foi dedicado aos períodos antigo e medieval ocidentais. Ele foi tradu-
zido do original: CAVALLO, G.; CHARTIER, R. (Ed.). Histoire de La lecture
dans Le monde occidental. Paris: Seuil, 1997.
16
Tradução do original: HALL, E.; EASTERLING, P. (Ed.). Greek and Roman
actors: aspects of an ancient profession. Cambridge: Cambridge University Press,
2002.
198 . Regina Maria da Cunha Bustamante
práticas de leitura. Com a colaboração de especialistas, a obra apresenta
um panorama bastante interessante das diferentes normas e convenções
de leitura em diferentes comunidades (dentre elas, na Roma Antiga:
capítulo 2) para definir os usos dos livros, os gestos de leituras e os seus
processos interpretativos. Por sua vez, a coletânea de Hall e Easterling
(2008) também apresenta outro aspecto, que se distingue dos estudos
clássicos tradicionais: trata dos atores gregos e romanos, analisando a
arte do ator, o mundo desta profissão e a ideia de ator, através de uma
documentação diversificada (escrita e material) e com uma abordagem
interdisciplinar que privilegia a dimensão representativa da literatura
antiga, ou seja, a performance.
A coleção monumental da História Geral da África, publicada sob
o patrocínio da UNESCO,17 em seu volume, dedicado à África Antiga,18
fornece um panorama abrangente da África Romana19 (capítulo XIX,
parte I), abordando a ocupação territorial, a organização administrativa
e os problemas militares, a colonização e a organização municipal, a vida
econômica (população, agricultura, indústria e comércio), a sociedade,
religião e cultura.
Os conceitos identidade/alteridades ganharam uma relevância
significativa a partir dos Estudos Culturais. Neste contexto, insere-se a
obra organizada por Silva (2000), que contem três ensaios que abordam
esta questão: um de autoria do próprio organizador (capítulo 2) e os
outros dois escritos por Stuart Hall (capítulo 3) e Kathryn Woodward

17
A coleção, publicada na década de 1980, foi elaborada a partir da pers-
pectiva dos próprios africanos. Para tanto, 350 cientistas coordenados por
um comitê formado por 39 especialistas, dois terços deles africanos, procu-
raram reconstruir a historiografia africana livre de estereótipos e do olhar
estrangeiro. Desde 2010, toda a coleção, em seus 8 volumes, está disponível
em: <http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/ResultadoPesquisaO-
braForm.do?first=50&skip=0&ds_titulo=&co_autor=&no_autor=&co_
categoria=132&pagina=1&select_action=Submit&co_midia=2&co_
obra=&co_idioma=&colunaOrdenar=DS_TITULO&ordem=null>, por
iniciativa governamental, que a colocou sob domínio público, objetivando
fornecer uma importante referência no campo dos estudos africanos.
18
Especificamente o volume 2, está disponível em: <http://www.dominiopu-
blico.gov.br/download/texto/ue000319.pdf.>. Acesso em: 6 ago. 2011.
19
Em termos territoriais, corresponde atualmente à região que abrange desde
a Tunísia ao Marrocos.
Teatro Grego e Romano . 199
(capítulo 1).20 Esta faz uma introdução esclarecedora, revisitando as
operações definidoras dos conceitos de identidade e diferença, fun-
damentadas na estreita interrelação entre estes dois conceitos. Dialo-
ga com estudos antropológicos (Claude Lévi-Strauss sobre a cozinha,
Mary Douglas sobre puro/impuro), filosóficos (Jacques Derrida sobre
oposição binária, Hélène Ciouxs sobre gênero, Louis Althusser sobre
ideologia) e psicanalíticos (Freud e Lacan sobre inconsciente).
Peirce (1839-1914), pensador prolífero e multifacetado,21 impac-
tou os estudos semióticos de textos escritos, como as obras de Eco
(1991, 2004a, 2004b e 2007), e imagéticos, como em Niemeyer (2007) e
Joly (1997) 22. Esta utilizou a Semiótica de Pierce para analisar a mensa-
gem visual fixa, como pintura, fotografia e cartaz, que foram utilizados
como exemplos metodológicos. Seu livro é esclarecedor para aqueles
que se interessam pelo tema.

DOCUMENTAÇÃO TEXTUAL

APULÉE. Apologie; Floride. Trad. P. Valette. Paris: Les Belles Lettres,


2002. (Collection des Universités de France)
APULÉE. Les métamorphoses. T. III: livres VII-XI. Trad. D. S. Robertsn et P.
Valette.Paris: Les Belles Lettres, 2002. (Collection des Universités de France).
20
Tradução do original: WOODWARD,
���������������������������������������������
K. Concepts of identity and differ-
ence. In: _____. (Ed.). Identity and difference. London: Sage Publications, 1997,
p. 8-61.
21
Santaella (2004, p. 15-22) apresenta Pierce como “um Leonardo das ciên-
cias modernas” por seu conhecimento em múltiplas áreas do conhecimento
(Química, Geodésia, Metrologia, Espectroscopia, Biologia, Geologia, As-
tronomia, Arquitetura, Literatura, Linguística, Filologia, Filosofia, História
e Psicologia), além de ser poliglota (“uma dezena de línguas”). O que unia
esta diversidade científica era seu interesse pela Lógica das Ciências, ou seja,
buscava compreender os métodos de raciocínio científico. Ele adotou uma
concepção ampla de Lógica, que “era quase coextensiva a uma teoria geral de
todos os tipos possíveis de signos”, visto como Semiótica. Produziu cerca de
80.000 manuscritos.
22
O livro, em sua edição portuguesa (JOLY, M. Introdução à análise de imagens.
Lisboa: Edições 70, 2007), está disponível em: <http://pt.scribd.com/d
oc/16343510/Introducao-a-Analise-da-Imagem-Martine-Joly>. Acesso em:
6 ago. 2011. Tanto a edição portuguesa quanto a brasileira são traduções do
original: JOLY, M. Introduction à l’analyse de l’image. Paris: Nathan, 1994.
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204 . Regina Maria da Cunha Bustamante
Da Epigrafia Teatral no
Portugal Romano1

1
José d’Encarnação

Entende-se por “epigrafia teatral” o conjunto de epígrafes que,


de forma directa ou indirecta, se prendem com o teatro como espaço
ou como espectáculo e seus intervenientes.2 A expressão ‘Portugal
romano’, desprovida de sentido numa acepção literal – pois nunca
houve um “Portugal romano”!... –, pode considerar-se, porém, aceitável
se nela consubstanciarmos, de forma expedita, dois conceitos não
contemporâneos: o geográfico e o histórico; ou seja, ter em linha de
conta o que é, hoje, o território português (por sinal, um dos territórios
europeus cujas fronteiras se mantêm inalteráveis há mais de oitocentos
anos) e, por outro lado, os vestígios que nele foram deixados pelos
Romanos há mais de dois mil anos.
Por conseguinte, ainda que essa área compreenda o que foi,
na Antiguidade, a província romana da Lusitânia, certo é que não
apenas a capital dessa província se situa, na actualidade, em território
1
Esta nota insere-se na actividade desenvolvida no âmbito dos objectivos
propostos pelo projecto de investigação do grupo Epigraphy and Iconology of
Antiquity and Medieval Ages, do Centro de Estudos Arqueológicos das Uni-
versidades de Coimbra e Porto (Unidade I&D n.º 281 da Fundação para a
Ciência e a Tecnologia).
2
Expressão equivalente, “epigrafia anfiteatral”, tem sido amiúde utilizada,
precisamente para identificar as inscrições ligadas aos anfiteatros e aos espec-
táculos neles realizados. Consagraram-na, entre outros, o projecto Epigrafia
anfiteatrale dell’Occidente Romano iniciado em Roma por Patrizia Sabbatini Tu-
molesi (1988), que estudou os textos de Roma. No que concerne à Península
Ibérica, coube a Joaquín Gómez-Pantoja a elaboração do respectivo volume
(o VII da série, 2009). Idêntica iniciativa ainda se não tomou em relação ao
teatro, decerto também porque são consideravelmente menos as epígrafes
relacionadas com a actividade teatral.
Teatro Grego e Romano . 205
espanhol, como o espaço geográfico a norte do rio Douro estava
administrativamente incorporado na província da Hispania Citerior.
Qual é, pois, o objectivo desta nota? Apresentar e comentar
as epígrafes mais significativas de que tenho conhecimento e que se
prendem com a actividade teatral nesta finisterra romana. Não temos,
diga-se desde já, riqueza substancial nesse domínio. Uma placa (Fig.
1) como a de Pompeios, que, afixada num odeon, explicita claramente
quem o mandou fazer – C(aius) Quinctius C(aii) f(ilius) Valg (us) / M(arcus)
Porcius M(arci) f(ilius) / duovir(i) dec(urionum) decr(eto) / theatrum tectum /
fac(iundum) locar(unt) eidemq(ue) prob(arunt) [CIL X 844]3 – não encontrou,
por enquanto, qualquer paralelo na Hispânia ocidental.

Figura 1
Encontrou-se um teatro, o de Olisipo; temos sérias probabilidades
de que outros hajam existido. Epígrafes que falem de representações
teatrais, quer as de índole particular, encomendadas por senhores para
gáudio dos seus convidados, quer as que resultam de circunstancia-
lismos político-sociais, pois que celebrar um acontecimento com re-
presentações teatrais era hábito corrente por todo o Império… não
há! Por enquanto… pensamos nós! Primeiro, porque este Ocidente,
embora afastado dos centros decisórios e culturais importantes, nun-
ca deixaria seus créditos por mãos alheias; depois, porque, sitas em
contextos urbanos que perduraram ocupados até aos nossos dias, sem
dúvida que essas pedras com letras foram, naturalmente, aproveitadas
nas construções seguintes…
3
Tradução: “Gaio Quíncio Valgo, filho de Gaio, Marco Pórcio, filho de Mar-
co, duúnviros, por decreto dos decuriões trataram da implantação e fiscaliza-
ram a construção deste teatro coberto”.
206 . José d’Encarnação
“��������������������������������������������������������������
Converteu-se o teatro num difusor da ideologia imperial, à me-
dida que esta se foi enraizando no seio da sociedade romana. Assi-
nalou-o Zanker em termos bem adequados: o teatro como ponto de
encontro entre o Princeps e o povo”, escreveu José L. Jiménez Salvador
(1993, p. 237). Não admira, portanto, que todas as capitais conventuais,
por exemplo, devessem ter teatro, precisamente para ser palco dessas
manifestações, em que, para além dos aspectos artísticos propriamente
ditos, as implicações sociopolíticas eram deveras consideráveis.
Não se trata, este, de um tema de investigação inédito; contudo,
apesar de no volume 2 dos Cuadernos de Arquitectura Romana (1993) se
ter optado por analisar, em exclusivo, os teatros romanos de Hispânia
(<http://revistas.um.es/car>), quase se pode apontar o ano de 2002
como o do súbito despertar do interesse por estas problemáticas, se
pensarmos que se reuniram, em Córdoba, nesse ano, umas jornadas
sobre teatros romanos em Hispania (MÁRQUEZ; VENTURA, 2006),
e Trinidad Nogales Basarrate superintendeu a edição de Ludi Romani,
o catálogo de uma exposição realizada em Mérida, sobre esse tema
dos espectáculos na Hispânia romana, de 29 de julho a 13 de outubro
de 2002, acerca do qual, na ocasião, se realizou também um Colóquio
Internacional, cujas conferências são dadas a conhecer nesta obra.
Nesse domínio se tem distinguido, entre outros, Alberto Ceballos
Hornero, que traçou, em 2004, uma panorâmica da documentação
epigráfica relativa a tudo o que eram espectáculos da Hispânia romana,
temática a que continuou a dedicar-se (2007; 2011).

Os teatros nas cidades


Por consequência, é bem provável que trabalhos arqueológicos
de emergência ou sistematicamente planeados venham dar a conhecer
edifícios teatrais nas mais importantes cidades do Ocidente romano.
Pax Iulia (a actual Beja, sita no Sul do território português), que
foi capital do conventus Pacensis, tê-lo-ia sem dúvida, embora os vestígios
materiais da sua existência ainda se não tenham logrado encontrar.4
Da cidade provém a inscrição de um eventual exodiarius, a que mais
adiante me referirei.
Em Bracara Augusta (a actual Braga, sita no Norte), que foi ca-
pital do conventus Bracaraugustanus, pertencente à província romana da
4
Sugere Vasco Mantas (1996, p. 13) a sua localização: “Apesar de pouco níti-
da, a estrutura do edifício evidencia-se através da análise estereoscópica […]”.
Teatro Grego e Romano . 207
Hispania Citerior, existiu. Os seus vestígios arquitectónicos foram pos-
tos a descoberto pela equipa da Universidade do Minho (MARTINS,
RIBEIRO; MAGALHÃES, 2006); contudo, não são conhecidas, por
enquanto, inscrições relacionáveis com o edifício ou com a actividade
teatral.
De duas outras cidades importantes na época romana, Aeminium
(actual Coimbra) e Conimbriga (esta, seguramente, o núcleo urbano mais
escavado do Portugal romano), poderá sempre suspeitar-se que tiveram
teatro; nada, porém, até ao momento de relacionável se encontrou.5
Para além dos edifícios – e cingindo-nos, de modo especial, ao
tema desta nota – haverá que encontrar inscrições. Podem ser monu-
mentais, do jeito da que atrás se citou, de Pompeios, relativas, portanto,
às circunstâncias que envolveram a erecção do edifício e às personalida-
des que nisso intervieram. Essas serão, pois, referências directas, como
o seria também o achado de pedras com números, a identificar – como
na actualidade – os assentos. Podem ser, todavia, referências indirectas:
a epígrafe que assinala ter uma personalidade celebrado um aconte-
cimento editis ludis scaenicis, “promovendo representações teatrais”, ou
uma singela tessera theatralis, de osso, de cerâmica ou mesmo metal, à
semelhança dos bilhetes de ingresso de agora…
No território que escolhemos para estudo, nada disso foi encon-
trado até ao momento; mas, como se sublinhou, dado que as cidades
continuaram a ser habitadas e a ter construções, o normal é assistir-se
ao aproveitamento das pedras antigas nas novas edificações. Daí que
seja, hoje, de norma o acompanhamento arqueológico de tudo o que é
renovação urbana.

Um teatro em Évora

O caso de Ebora Liberalitas Iulia (Évora) pode exemplificar o que


acaba de se assinalar.

5
“O eixo determinado pela fachada oeste do criptopórtico coincide com o
eixo transversal da estrutura que julgamos representar o teatro”, escreveu
Vasco Mantas, ao referir-se à estrutura urbana de Aeminium (1992, p. 508); o
tema não teve, porém, que eu saiba, ulterior desenvolvimento, dado que, em
1999, afirmou: “De outros monumentos da cidade apenas restam indícios ou
vestígios de difícil ou impossível identificação, caso do teatro, que se levanta-
ria a norte do fórum” (p. 386).
208 . José d’Encarnação
Na verdade, não só a análise da morfologia do aglomerado
urbano já sugeriu inclusive a mui provável localização do teatro,6 como
a inscrição7 gravada no que considerei as costas de um assento do
teatro, que – se a minha interpretação está correcta, porque apresentei
a reconstituição feita a partir de um fragmento – nos dá conta de que
Philon ofereceu ao seu patrono, Aulus Castricius Iulianus, um subsellium,
ou seja, o assento de mármore que lhe ficava reservado.
É a primeira vez que se encontra um testemunho deste teor; daí,
a razão da minha cautela na proposta de interpretação que fiz.
Regista-se a profissão de subselliarius na Roma antiga: veja-se, por
exemplo, essa palavra no Oxford Latin Dictionary, que traz à colação a
epígrafe de Roma (CIL VI 6055), referente a Aulus Veturius Tiro, liberto
de uma mulher, que é dito supsellarius [sic]. Trata-se de singela placa,
achada em columbário modesto, e nada mais diz.
Por seu turno, o termo subsellium, sem uma tradução específica
para português, usava-se, de modo especial, no foro judicial: homo a sub-
selliis era a expressão que designava quem era costumeiro nos tribunais;
versatus in utrisque subselliis identificava quem era versado em questões
analisadas tanto do ponto de vista dos juízes como do dos advogados;
e o citado dicionário apresenta uma série de testemunhos do uso da
palavra nesse contexto.
Pôs-se-me, por conseguinte, a questão: justificava-se a oferta de
um assento na cúria? Pareceu-me que o mais ajustado seria optar por
um cenário de pompa, de solene privilégio e, para esse fim, nada me-
lhor que um teatro. Havia, como se sabe, lugares marcados no teatro
consoante a categoria social; considerei, pois, que seria essa a melhor
opção. De resto, Victor Chapot, no artigo sobre subsellium que assina
no Dictionnaire das Antiquités Grecques et Romaines dirigido por Ch. Da-
remberg e Edm. Saglio (p. 1551-1552), é peremptório: “No teatro, no
anfiteatro ou no circo, designavam-se assim todas as filas de assentos
que rodeavam em círculo o interior do edifício (cavea), em degraus so-
brepostos”.
6
“A curva que a actual Rua de S. Mancos descreve sugere a curvatura da cavea
de um teatro. A ser assim, o teatro romano de Évora ficaria perfeitamente
axializado com o fórum” (ALARCÃO, 1988, p. 185).
7
Veja-se Encarnação (2008, p. 225). O estudo mais pormenorizado do texto
apresentei-o em 1986-1987, p. 13-18. Acrescente-se agora Ceballos Hornero
(2004, p. 616-617) (inscrição n.º 150), que, no entanto, parece preferir, sem
argumentos, a hipótese de inserção da epígrafe num anfiteatro.
Teatro Grego e Romano . 209
E esta será, sem dúvida, uma prova deveras interessante não
apenas da existência do edifício como, inclusive, da importância que
lhe era concedida no seio da população culta da cidade.

O teatro de Lisboa
É, contudo, em Olisipo (Lisboa) que temos o teatro mais bem
documentado e estudado desta zona ocidental do Império.8
A zona foi abalada pelo terramoto de 1755 e só quando, em 1798,
ali se abriram os alicerces para um prédio, se puseram a descoberto
as suas ruínas, que o arquitecto Francisco Xavier Fabri desenhou,
desenhos que Luís António de Azevedo (1815) deu a conhecer.
A reconstrução da cidade não teve, porém, em consideração
a possibilidade de recuperação total do edifício (os tempos e as
mentalidades eram outros!...) e só a partir de meados do século XX se
voltou a dar mais atenção às ruínas existentes, embora mui significativa
parte das bancadas, por exemplo, jazam ainda hoje sob o casario.9 Têm
sido praticamente impossíveis as negociações para que os proprietários
dos imóveis aceitem vendê-los ou permutá-los.

Figura 2
8
Cf. Ceballos Hornero (2004, p. 593-596), (n.º 140).
9
Veja-se, por exemplo, em Jorge de ALARCÃO (1982) breve história da des-
coberta e descrição do monumento.
210 . José d’Encarnação
No que concerne aos vestígios epigráficos, teve-se a sorte de
partes de uma das mais sugestivas epígrafes ter sido desenhada também;
e os subsequentes trabalhos arqueológicos, a cargo de equipas sob a
tutela do Município, ajudaram a identificar os blocos que ‘sobreviveram’
(FERNANDES; CAESSA, 2006-2007, p. 93-98) (Fig. 2).
Era, de facto, uma grande inscrição arquitectónica, distribuída
por blocos que se ajustavam. Nem todos foram encontrados. Ou seja:
nunca tivemos a inscrição completa e logo Luís António de Azevedo
teve o cuidado de esclarecer:
Como as relíquias das letras que se descobriram da primei-
ra inscrição foram ainda, num quadrângulo ESARIS, num
semicírculo AESAR, além de AVG e Is, assentámos, em
consequência e conformidade destas palavras e sílabas, que
devíamos suprir na presente inscrição o que, de ordinário,
trazem semelhantes monumentos, que é dizerem não só de
quem o imperador é filho, mas também declarar de quem é
neto, bisneto, trineto, e assim dos outros parentescos daí por
diante, como se prova de um grande número de inscrições
que a todos aqueles que tiverem lição desta matéria são no-
tórias (AZEVEDO, 1815, p. 13-14).

Na verdade, parece ter sido corrente – e certamente por obedi-


ência a uma directriz imperial tendente a justificar, por hereditariedade,
a legitimidade da sua assunção do poder – que, nos monumentos em
que se incluía a identifica�������������������������������������������
ção����������������������������������������
do imperador Nero, viesse exaustiva re-
ferência aos seus antepassados: trineto do divino Augusto, bisneto de
Tibério, neto de Germânico, filho do divino Cláudio...10 O que resta, na
actualidade, do monumento epigráfico de Olisipo confirma, em parte,
essa possibilidade, até porque se reconhece a existência de muitas lacu-
nas, dado que a epígrafe se desenvolveria numa única linha, a ocupar o
proscénio em toda a sua largura.
Uma possível reconstituição seria, pois, a seguinte:
NERONE CLAVDIO DIVI · CLAVDI(i) F(ilio) · GERMA[NICI C]
AESA[RIS NEP(ote) / [TI(berii) C]AESARIS [PRON(epote) DIVI AVGVSTI
ABN(epote) CAESARE] AVG(usto) GERMANICO PONT(ifice) MAX(imo)
TRIB(unicia) POT(estate) III (tertia) IMP(eratore) III (tertium) CO(n)

10
Cf. <http://eda-bea.es/>: registos 1249, 1360 e 1683, por exemplo, todos
da província da Bética.
Teatro Grego e Romano . 211
S(ule) II (secundum) DESIGNATO III (tertium) / PROSCAENIVM ET
ORCHESTRAM CVM ORNAMENTIS / AVGVSTALIS PERPETVVS
C(aius) HEIVS PRIMVS […]

Que assim se poderia traduzir:


Sendo Nero Cláudio Augusto Germânico – filho do divino Cláudio, neto do César
Germânico, bisneto de Tibério César, trineto do divino Augusto – pontífice máximo, no
3.º poder tribunício, imperador pela 3.ª vez, cônsul pela 2.ª vez, designado pela 3.ª – Gaio
Heio Primo, augustal perpétuo, (ofereceu?) o proscénio e a orquestra com ornamentos…

Reconhecemos, com Armín Stylow (2001, 145 – citado em Hep,


11, 2005, n.º 690), que a identificação do imperador se deve reconstituir
em ablativo, a indicar a data da benemerência do augustal, neste caso
uma data bem precisa: pouco antes de 13 de outubro do ano 57, dia em
que assumirá o 4.º poder tribunício, mas já está designado cônsul pela
3.ª vez, cargo de que apenas será empossado a 1.º de janeiro de 58. Não
é, de facto, viável, porque fora do comum neste contexto, supor que se
trata de uma dedicatória – e há, pois, que corrigir todos os comentários
que vêm sendo feitos nesse sentido.
Não há motivo, por outro lado, para se não continuar a pensar que
existiu uma primeira construção, provavelmente em tempo de Augusto,
contemporânea, mui provavelmente, da urbanização inicial da cidade –
no contexto político a que atrás se fez referência – e que esta intervenção
de Gaio Heio Primo se insere numa remodelação do edifício.
Tendo sido nomeado augustal perpétuo – uma honra de muito
merecimento, que teve certamente justificação plena no papel por ele
desempenhado no seio da sociedade olisiponense, ao nível económico,
político e social11 –, não quis também ele deixar os seus créditos
por mãos alheias e meteu ombros ao empreendimento de custear as
despesas de construção do proscénio e da orquestra, com a decoração
adequada. A monumental inscrição perpetuaria perante todos o seu
nome e o seu gesto com mui justificada razão.

Luís da Silva Fernandes (2007) teve ocasião de enquadrar esta família dos
11

Heii no contexto romano, sublinhando a sua importância.


212 . José d’Encarnação
Figura 3

Figura 4

Fica-se, porém, com a sensação de que o texto poderia ter


continuação: a presença dos nomes Cato e Heia no desenho de Fabri
(Fig. 3), no final da epígrafe, pode sugerir que algo mais haveria e
acaba por remeter, queiramos ou não, para a outra epígrafe citada por
Azevedo e de que traz desenho (Fig. 4), em que libertos de Primus o
homenageiam. Se, como parece, esse cipo12 foi colocado em lugar de
12
Não creio que possa ser pedestal de estátua, pois, no teatro, estátuas havia,
sim, mas de divindades ou de imperadores em pose de deuses – e estou a re-
Teatro Grego e Romano . 213
destaque no próprio teatro, também poderia ter acontecido que, além
de Primus, outros membros da sua família houvessem contribuído para
a remodelação do edifício.
Há, porém, outro vestígio epigráfico a merecer amplo realce: a
placa incompleta com a representação, em baixo-relevo, de Melpomene,
musa da tragédia (Fig. 5).

Figura 5

Podemos sempre interrogar-nos acerca do lugar onde esse frag-


mento de placa de revestimento se encontraria originalmente e se se
faria acompanhar de outras musas e, quiçá, do próprio Apolo. Não é
crível, de facto, que apenas Melpomene tivesse tal honra. Contudo, o que
também interessa acentuar é a circunstância de a identificação da musa
vir… em caracteres gregos! Trata-se, na verdade, de uma das poucas
inscrições gregas do corpus de inscrições do Portugal romano e há que
fazer notar que tamanha singularidade significa não apenas erudição
cordar a escultura do teatro de Arles a representar Augusto como se de Apolo
se tratasse…
214 . José d’Encarnação
e cultura, mas também uma atitude deveras assinalável de cosmopoli-
tismo, perfeitamente consentâneo com o facto de os augustais serem
libertos e de o cipo honorífico ter sido mandado lavrar por libertos cuja
onomástica é, também ela, etimologicamente grega.13
Assume-se Olisipo, desta sorte, como ponto de encontro de
culturas, um porto de mar que bem poderia fazer a ponte entre o
Atlântico e o Mediterrâneo Oriental.

Nomes que são indícios…


- Então e que nome vamos pôr ao bebé?
- O pai disse-me que se chamasse Manuel José.
- Apelido da mãe?
- Marques; ela é da família dos Marques.
- Apelido do pai?
- Ah esse eu não sei!... Nós chamamos-lhe os Torneiros, porque um
dos antepassados deles era torneiro, mas o nome verdadeiro não sei!...
- Então, o miúdo fica Manuel José Marques Torneiro – perorou o
funcionário do Registo Civil.

A cena passou-se em 1946, em Portalegre. Nessa altura, era


o almocreve que, uma vez por mês, quando ia à cidade, registava as
crianças nascidas nas redondezas. E, como se calcula, o pai não gostou
da opção; mas, apesar de ter ficado zangado com o almocreve, acabou
por chamar de Marques Torneiro a todos os filhos homens.
Refiro o caso, que é verídico, porque frequente ainda nos dias de
hoje, como o seria em tempo de Romanos: a profissão transformar-se,

13
Transcrevo a versão de <http://eda-bea.es/> (registo n.º 21 285): “- - - -
- - / [Augu]stali / perpetuo / C(aio) Heio C(ai) l(iberto) / Primo / C(aius)
Heius Primi lib(ertus) / Nothus et Heia / Primi l[ib(erta)] Elpis / Heia No-
tha Secunda / C(aius) Heius Nothi f(ilius) Gal(eria) / Primus Ca[t]o / Heia
Nothi f(ilia) Chelid(a) / T(itus) [H]eius Nothi f(ilius) Gal(eria) / Glaphyrus
Nothian/[us? - - -] / - - - - - -”. Os seus libertos aqui identificados são: Gaio
Heio Primo, Heia Elpis e Heia Notha Secunda; Gaio Heio Primo Catão, filho
de Notho, já é cidadão, uma vez que está inscrito na tribo Galéria (de Olisipo);
registam-se, ainda, Heia Quélida, filha de Notho, e seu irmão, Tito Heio Gla-
firo Nothiano [?], também ele já cidadão inscrito na tribo Galéria. E outros
nomes haveria. Trata-se, por conseguinte, de uma homenagem familiar, ape-
nas passível de estar integrada no edifício, devido à benemerente contribuição
dada pelo seu patrono.
Teatro Grego e Romano . 215
a dado momento, em nome próprio. E serve de introdução explicativa
ao que se vai aduzir de seguida.

Exodiarius

Figura 6

Foi dado a conhecer por Frei Manuel do Cenáculo, através de


desenho constante no seu álbum,14 o fragmento de uma placa funerária
(Fig. 6), onde se lê o seguinte (apresento a leitura interpretada):
D(is) · M(anibus) · S(acrum) / PATRICIVS /
EXODIARIVS / ANNORVM / […]

14
Este arcebispo de Évora foi notável coleccionador de antigualhas, que reu-
niu desde os tempos em que esteve em Lisboa até ir para Beja, onde juntou
uma colecção, que foi o embrião do actual Museu regional de Beja. Quando
foi nomeado arcebispo de Évora, levou consigo boa parte da colecção, hoje
no acerbo do Museu dessa cidade. Foi, porém, meticuloso desenhador das
peças que ia ajuntando e nesses seus desenhos podemos confiar, uma vez
que, comparando-os com os monumentos existentes, se verifica essa fideli-
dade aos mais imperceptíveis pormenores; daí que, em relação aos objectos
arqueológicos que desenhou, nomeadamente inscrições, nós possamos garan-
tir que o erro será mínimo, tão grande foi o rigor com que tudo registou. O
seu álbum – que cito na bibliografia – religiosamente guardado na Biblioteca
Pública de Évora constitui, por isso mesmo, uma importante fonte histórica.
Cf.: Encarnação (2010, p. 47); e Morais (2009).
216 . José d’Encarnação
Reflecti sobre a epígrafe e dei dela, em 1984 (IRCP 247), a
seguinte tradução:
Consagrado aos deuses Manes. (Aqui jaz) Patrício,
actor, de … anos. […]

Analisando o desenho de Frei Manuel do Cenáculo, comentei,


acerca da leitura do cognomen de Patricius, que Emílio Hübner (CIL II 65)
interpretara como [E]XOD[IA]RIVS, embora, à primeira vista, se leia,
de facto, IXODINPIVS (com NP em nexo):
Efectivamente, no desenho de Cenáculo, da primeira letra
resta a metade inferior: uma haste vertical com vestígio da
barra mediana – poderá ser, portanto, um E cuja barra infe-
rior estivesse pouco nítida; os AA não são traçados, pelo que
a letra após o primeiro I pode ser A com a haste da direita
bastante prolongada, chegando a tocar a letra seguinte que
também poderá ser R – parece-nos ver a haste oblíqua infe-
rior; do S final distingue-se a terminação de baixo.
Atendendo à habitual precisão de Frei Manuel do Cenáculo, a
proposta de interpretação é viável e só há que esperar que o fragmento
se reencontre para melhor podermos ajuizar da sua viabilidade. Em
todo o caso, na sequência do que atrás se disse a propósito de o termo
indicativo de uma profissão poder vir a ser integrado como antropóni-
mo, poderia pensar-se que a tradução mais correcta seria, não a que eu
propus, mas sim Patrício Exodiário, funcionando a palavra como cogno-
men; neste caso, parece-me que não, atendendo a que não há praenomen
e Patricius, usado isoladamente se adequa a uma utilização como nome
único e não como nomen, indiciando estatuto de escravo.15 Estaremos,
pois, mui provavelmente, em presença de um exodiário, o que acres-
centa à população de Pax Iulia um nível cultural deveras significativo.
Na verdade, quanto me é dado saber, apenas mais uma referência
explícita a um exodiarius se registará no conjunto da epigrafia imperial:
trata-se de uma célebre inscrição em verso, de Roma (CIL VI 9797),
datada do ano 126, em que (se bem a interpreto) Urso se vangloria das
suas façanhas, sublinhando, nas linhas 19 e 20: “nec semel sed saepius

15
Remeto para Kajanto (1982, p. 313), que inclui este antropónimo entre os
cognomes, informando que, na Península Ibérica, no conjunto do CIL, há 8
testemunhos em 20. Esse estatuto servil parece ter sido também o dos três
Patricii da necrópole de Quinta de Marim (Olhão): IRCP 49 e 50.
Teatro Grego e Romano . 217
cuius libenter dicor exodiarius”, “não é uma só vez mas amiúde que de
muito boamente sou chamado exodiário”.16
Também não serão frequentes as referências literárias ao exodium,
pequena peça, do jeito de uma farsa, que finalizava, completando-a gra-
ciosamente, uma representação teatral. No Oxford Latin Dictionary (s. v.
exodium), alude-se a uma passagem da Vida dos Doze Césares, de Suetó-
nio, concretamente no final do capítulo XLV referente ao imperador
Tibério, em que se faz lúbrica citação de uma “atelana”, remetendo,
pois, para as então chamadas exodia Atellanica. E, na verdade, se dificil-
mente encontraremos ‘exódio’ num dicionário de língua portuguesa,
“atelanas” está consignado como “farsas populares em uso entre os
antigos Romanos”. É ainda em Suetónio, na vida de Domiciano (X, 4),
que se lê: “Occidit et Helvidium filium, quasi scaenico exodio sub per-
sona Paridis et Oenones divortium suum cum uxore taxasset��������
”�������
(�����
“����
Man-
dou matar também Helvídio filho, com o pretexto de que numa repre-
sentação intitulada Paris e Oenone censurava o divórcio do príncipe”).17
Sirva-nos este pequeno excurso de aperitivo para uma conclusão:
caso, como parece, Patricius foi exodiarius, à população de Pax Iulia
terá mesmo de atribuir-se um estatuto cultural deveras elevado, se
atendermos às características atrás citadas dos exódios: pequenas peças,
de algum sabor irónico e crítico, destinadas a transmitir ao espectador
forte dose de boa disposição. Aliás, isso mesmo se pode depreender
da seguinte explicação, a propósito de uma sátira de Juvenal (III, 175),
aduzida por Grifi (p. 27):
Exodiarius apud veteres in fine ludorum intrabat, quod ridiculus foret;
ut quidquid lacrymarum atque tristitiae coegissent ex tragicis affectibus,
huius spectaculi risus detergeret.

O que, em tradução livre, quer dizer o seguinte:


Entre os antigos, o exodiário entrava no final das peças, para ser
ridículo; a fim de que, se trágicos sentimentos tivessem provocado
lágrimas e tristeza, o riso deste espectáculo os fizesse desaparecer.

16
Esta inscrição é frequentemente citada, desde há muito. Veja-se, a título de
exemplo, que já vem comentada no livro de Grifi (1847, p. 28-29).
17
Sigo a tradução indicada na bibliografia; contudo, facilmente se verificará
que se trata de uma versão um tudo-nada livre, que não respeita a precisão
terminológica, no caso vertente do tipo de representação.
218 . José d’Encarnação
Já vimos que, com muita verosimilhança virão a encontrar-se,
um dia, sob as actuais construções de Beja os restos de um edifício
teatral. Não era obrigatório que o exodiário necessitasse de um palco
formal para representar as suas pantomimas (passe o termo); mas
não restam dúvidas de que, a ser correcta a interpretação que vimos
dando a esta epígrafe, o seu testemunho reforça substancialmente essa
realidade.18

Thymelicus

Se se procurar o significado de Thymelicus, decerto a primeira ima-


gem que nos aparece pode ser a de uma borboleta, a Thymelicus sylvestris,
pertencente ao género Thymelicus, família das Hesperiidae. Num comum
dicionário de Latim, ocorrerá encontrar-se o antropónimo feminino
Thymele, Tímele; contudo, no Oxford Latin Dictionary, algo se acrescenta,
com base em Marcial (1.4.5) e em Juvenal (6.66): nome de uma famosa
bailarina, tida como o expoente máximo da sua profissão (“a famous
dancer, taken as typical of her profession����������������������������
”���������������������������
). Vem, de seguida, o vocá-
bulo Thymelicus, directamente colhido do grego θυμελικός e referente
à dança e ao teatro – “of or connected with (dancing in) the orches-
tra of a theatre” –, como adjectivo ou, em função substantiva, como
dançarino, “a performer in such dancing”. E transcrevem-se passagens
de Apuleio (Apol. 13), Vitrúvio (5.7.2) e Ulpiano (Dig. 3.2.4), em que
a palavra surge, assim como da inscrição CIL VI 32 323 (que é o co-
mentário acerca dos V Jogos Seculares), onde se refere a realização de
representações gregas timélicas no teatro de Pompeu, à terceira hora:
(ludos) graecos thymelicos in theatro Pompei h(ora) III (tertia).
Não admira, pois, que, tendo encontrado numa inscrição19 o cog-
nomen Thymelicus, eu o tivesse relacionado, de imediato, com a actividade
teatral (ENCARNAÇÃO 2010, 126-130). O texto é o seguinte:

18
Ceballos Hornero (2004) também inclui esta epígrafe no seu livro: p. 383-
384 (inscrição n.º 66). Cita a opinião de Mariner segundo a qual Patricius po-
deria actuaria com o seu grupo pela Península Ibérica, acabando por morrer
em Pax Iulia; isso é prova, conclui, que havia aí um teatro, tal como, aliás, cita,
é opinião de Hauschild de que “pelo menos em cada capital conventual ha-
veria um teatro permanente onde a população poderia assistir regularmente à
representação de ludi”.
19
Vide: <http://eda-bea.es/>, registo 22 859. Fig. 7.
Teatro Grego e Romano . 219
Iulia L(ucii) f(ilia) Modesta an(norum) XIIX (duodeviginti) /
Livia Nymphe an(norum) XXXX (quadraginta) / h(ic) s(itae) s(unt) /
L(ucius) Iulius Thymelicus sibi filiae et / uxori
Aqui jazem Júlia Modesta, filha de Lúcio, de 18 anos;
Lívia Ninfe, de 40 anos.
Lúcio Júlio Timélico para si, para a filha e para a esposa.
Procede esta placa (de 43,3 cm de altura e 92 de comprimento)
da aldeia de Souto da Casa, concelho do Fundão, um concelho bem
rural da actual Beira Baixa portuguesa. Perto, em tempo de Romanos
e com alguma relevância política, económica e social, apenas a civitas
Igaeditanorum.20 Não se encontrou ainda qualquer vestígio de teatro entre
as muitas descobertas que na cidade se vêm fazendo (CARVALHO
2009). E não se pôs sequer, por enquanto, a hipótese de o vir a
encontrar. Não sabemos, porém, donde é oriundo Timélico, ainda que
a sua onomástica e o cognomen de sua mulher grafado à maneira grega
nos deem quase a garantia de que estamos em presença de uma família
de libertos. Terá, no entanto, a atribuição do cognomen Thymelicus algo a
ver com uma tradição teatral ou com o seu desempenho como actor
ou bailarino, porventura enquanto escravo e ainda que a título privado
ou a nível da comunidade local? Nunca o poderemos garantir; como
também nunca poderemos garantir o contrário! Que estamos perante
um nome invulgar, pleno de mistério e mui sugestivo, isso não se pode
negar. Mais um caso em que a “profissão” determinou a onomástica?
E por que não?
CONCLUSÃO

Estavam os teatros nas cidades. Às cidades romanas foram
sucedendo, salvo raras excepções (como no caso de Conimbriga), ‘outras
cidades’ ao longo dos tempos. Pedras para as novas construções havia-
as, por isso, ali mesmo, à mão de semear, e muitas delas já aparelhadas,
a jeito de serem incorporadas nas paredes. Então as ‘pedras com letras’
eram normalmente bem facetadas e mesmo à medida!...
Essa, a razão primordial para que, neste Ocidente peninsular a
que demos, por comodidade, o nome de “Portugal romano”, a epigrafia
teatral seja escassíssima. De Évora suspeitamos que um fragmento de
20
Vide o mais recente estudo sobre a sociedade e a cultura nesta cidade: SÁ
2007.
220 . José d’Encarnação
mármore possa ter pertencido ao assento no teatro de um notável
local. De Lisboa logrou-se retirar uma série de blocos pertencentes a
uma das epígrafes mais significativas, que redunda, afinal, em prestígio
do augustal benemerente, dado que o seu nome ficava bem à vista de
todos no teatro para cuja reabilitação ele, a expensas suas, largamente
contribuíra. Por tal motivo, nesse mesmo espaço colocaram inscrição
em sua honra. E como o teatro denunciava inspiração, bem presentes
estariam ali as musas, de que se recolheu o baixo-relevo de uma,
Melpomene, a da tragédia.
Serviu-nos, por fim, na falta de outros elementos, a onomástica: se
Patricius, de Pax Iulia, foi realmente um exodiarius, estavam os habitantes
da cidade dotados de elevado grau de cultura; se um Thymelicus teve
tal nome por ser actor, há-de procurar-se local onde actuasse, a não
ser que de actor ambulante se tratasse e, nesse caso, qualquer local lhe
serviria para se fazer ouvir.
A expectativa? – Que o acompanhamento metódico dos trabalhos
em meio urbano, designadamente nas cidades que foram romanas,
venha a mostrar-nos esses tais monumentos epigrafados a dar conta de
que as famílias locais também sabiam que as representações no teatro
(editis ludis scaenicis…) constituíam imprescindível veículo de inigualável
promoção social.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS (COMENTADAS)

ALARCÃO, Jorge de. O Domínio Romano em Portugal, Mem Martins:


Edições Europa-América, 1988.
Síntese do que então se conhecia sobre a presença romana no território
actualmente português: economia, sociedade, cultura, urbanismo,
organização territorial... É a edição em língua portuguesa do I vol. de
Roman Portugal, Warminster, 1988.

ALARCÃO, Jorge, O teatro romano de Lisboa. Actas del Simposio El


Teatro en la Hispania Romana, Badajoz, 1982, 287-302.
Uma das primeiras sínteses sobre a problemática arqueológica e
histórica suscitada pelos vestígios até então postos a descoberto.

AZEVEDO, Luís António de. Dissertação Critico-Filologico-Historica sobre


o verdadeiro anno, manifestas causas, e attendiveis circumstancias da erecção do

Teatro Grego e Romano . 221


Tablado e Orquestra do antigo Theatro Romano, descoberto na excavação da Rua
de São Mamede perto do Castelo desta Cidade, com a intelligencia da sua Inscripção
em honra de Nero, e noticia instructiva d’outras Memorias alli mesmo achadas, e
atégora apparecidas. Lisboa, 1815.
O título, bem à maneira da época, dá logo o resumo do seu conteúdo.
Como é natural numa ciência em fase de nascimento, a fantasia prende-
se com a realidade e constante o recurso às fontes literárias antigas.

CARVALHO, Pedro C., O fórum dos Igaeditani e os primeiros tempos


da civitas Igaeditanorum (Idanha-a-Velha, Portugal). Archivo Español de
Arqueología, 82, p. 115-131, 2009.
Um dos trabalhos mais válidos sobre esta civitas, na medida em que,
com base nos novos dados trazidos pelas escavações que o autor diri-
giu, se faz uma concatenação com os conhecimentos anteriores. Dis-
ponível em: <http://aespa.revistas.csic.es/index.php/aespa/article/
download/61/59>.

CEBALLOS HORNERO, Alberto e David, La nominación de los


espectáculos romanos en la epigrafía provincial del Occidente latino,
Emerita, 79/1, p. 105-130, 2011.
Resumo: Existem 279 espectáculos mencionados em 234 inscrições
latinas, de cronologia alto-imperial, que provêm das províncias do Oci-
dente romano, excluída Itália. O objectivo dos autores é estabelecerem
que fórmulas latinas se utilizavam para designar a edição dos espectácu-
los: munera gladiatorum, uenationes, ludi scaenici, circenses e certamina pugilum.

CEBALLOS HORNERO, Alberto, Geografía y cronología de los ludi


en la Hispania romana, Cæsaraugusta, 78, p. 437-454, 2007.
Integração geográfica e histórica da realização dos ludi documentados.

CEBALLOS HORNERO, Alberto, Los Espectáculos en la Hispania Romana:


La Documentación Epigráfica, 2 tomos, Cuadernos Emeritenses – 26,
Museo Nacional de Arte Romano, Mérida, 2004.
A mais completa colectânea de inscrições que, directa ou indirectamente,
se relacionam com os espectáculos (no teatro, no anfiteatro e no
hipódromo). Inclui também as duvidosas e apresenta resumo das
informações que dá cada uma.

222 . José d’Encarnação


CENÁCULO, Frei Manuel do. Manuscrito da Biblioteca Publica de Évora:
Álbum de Antiguidades Lusitanas e Luso-romanas e Lapides do Museu
Sesinando Cenáculo Pacense [Códice CXXIX/1-14].
Um dos preciosos manuscritos deixados por este bispo amante de
antiguidades. Dá o desenho bastante rigoroso de cada uma das peças da
sua colecção e anota o local de achado. Várias das peças que desenhou
se perderam, o que torna estes manuscritos de muito maior valia.

ENCARNAÇÃO, José d’, Epigrafia – As Pedras que Falam. 2 ed.,


revista e aumentada, Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra,
mar. 2010.
Manual para o estudo da Epigrafia, designadamente da Epigrafia
Romana. Encara-se o monumento epigráfico como singular fonte
histórica e dão-se exemplos.

ENCARNAÇÃO, José d’, IRCP – 25 anos depois. Revista Portuguesa


de Arqueologia. 11/2, p. 215-230, 2008. Disponível em: <http://hdl.
handle.net/10316/12234>.
Apontamentos sobre achados epigráficos mais significativos ocorridos
após 1984 (data da publicação de IRCP). No caso da epígrafe aqui
estudada, é apresentada a correspondente bibliografia.

ENCARNAÇÃO, José d’. Religião e cultura na Évora dos Romanos. A


Cidade de Évora 69-70, p. 5-19, 1986-1987. Disponível em: <http://hdl.
handle.net/10316/12233>.

ENCARNAÇÃO, José d’. Inscrições Romanas do Conventus Pacensis


[IRPC]. Coimbra, 1984. [O número indica o número da inscrição no
catálogo].
O I volume contém o estudo tanto quanto possível exaustivo de cada
um dos quase 700 monumentos epigráficos deste conventus, que abarca
todo o Sul de Portugal. Analisam-se, no II, as informações que eles
fornecem sobre os diversos aspectos da aculturação romana nesse
território. Estão disponíveis em: <http://hdl.handle.net/10316/578>
a introdução, a conclusão geral e o índice.

FERNANDES, Lídia; CAESSA, Ana. O proscaenium do teatro romano


de Lisboa: aspectos arquitectónicos, escultóricos e epigráficos da
Teatro Grego e Romano . 223
renovação decorativa do espaço cénico. Arqueologia e História (Revista
da Associação dos Arqueólogos Portugueses) 58/59, p. 83-102, 2006-
2007.
Lídia Fernandes é a arqueóloga encarregada deste teatro e nele tem
feito escavações; Ana Caessa é também técnica superior no município
olisiponense, tendo a seu cargo a análise das epígrafes que vão
sendo encontradas. Este é, pois, um trabalho que actualiza os dados
conhecidos.

FERNANDES, Luís da Silva, C. Heius Primus, augustalis perpetuus. Théâtre


et mise en scène du pouvoir à Olisipo. In : MAYER I OLIVÉ, Marc;
BARATTA, Giulia; GUZMÁN ALMAGRO, Alejandra (edit.). Acta
XII Congressus Internationalis Epigraphiae Graecae et Latinae, Barcelona, p.
483-490, 2007. Disponível em: <Acta XII Congressus internationalis
epigraphiae graecae et latinae: - Resultado da pesquisa de livros do
Google>.
Panorâmica dos testemunhos epigráficos acerca da família dos Heii em
nível de todo o Império Romano, com vista a melhor se compreender
o seu papel benemerente e a sua posição sociopolítica e económica em
Olisipo.

GÓMEZ-PANTOJA, Joaquín L. Epigrafia Anfiteatrale dell’Occidente


Romano. VII – Baetica, Tarraconensis, Lusitania, Roma: Edizioni
Quasar, 2009.
Corpus bem estruturado de todas as epígrafes relativas aos espectáculos
que se realizaram nos anfiteatros das províncias hispânicas.

GRIFI, Luigi. Sulle iscrizioni intorno a teatri antichi e a giuochi in essi


rappresentati – ragionamento primo. Roma: Tipografia delle Belle Arti,
1847.
Vale o livro não apenas pelas informações que dá – data dos primeiros
tempos do grande interesse pelos monumentos epigráficos – mas
também pelas considerações e citações com que recheia os seus
comentários. É uma obra acessível: Google eBook.

HAUSCHILD, Theodor. La situación urbanística de los teatros en la


Península Ibérica. El Teatro en la Hispania Romana. Badajoz, p. 95-98, 1982.

224 . José d’Encarnação


Arquitecto de formação, arqueólogo por paixão, T. Hauschild constitui,
sem dúvida, um dos investigadores mais sabedores acerca da relação
entre os edifícios públicos e o urbanismo romanos. Também estudou
exaustivamente o teatro romano de Lisboa (Madrider Mitteilungen, 31, p.
348-392, 1990).

HISPANIA EPIGRAPHICA [HEp]. Revista editada pela Universidade


Complutense de Madrid.
Indica-se, geralmente, o número, a data da publicação e o número da
inscrição. Existe uma versão on line: <http://eda-bea.es/>.

JIMÉNEZ SALVADOR, José L., Teatro y desarrollo monumental


urbano en Hispânia. Cuadernos de Arquitectura Romana, 2, p. 225-238,
1993.
A integração do teatro no tecido urbano. Disponível em: <http://
revistas.um.es/car/article/view/68551/65971>.

KAJANTO, Iiro. The Latin Cognomina, Roma, 1982 (reimp.).


A obra ainda clássica sobre os cognomes latinos, porquanto regista
todos os testemunhos documentados no conjunto do CIL (Corpus
Inscriptionum Latinarum, obra monumental de recolha de todas as
inscrições romanas, levada a cabo pela Academia de Ciências de Berlim).

MANTAS, Vasco Gil. O espaço urbano nas cidades do Norte da


Lusitânia. In: RODRÍGUEZ COLMENERO, Antonio (coord.). Los
Orígenes de la Ciudad en el Noroeste Hispánico, I, Lugo, p. 355-391, 1999.
O autor tem-se interessado pela problemática do urbanismo romano;
nesta comunicação faz o ponto da situação acerca do que nesse âmbito
se pode apontar como viáveis hipóteses de análise espacial.

MANTAS, Vasco Gil. Teledetecção, cidade e território: Pax Iulia,


Arquivo de Beja, I (3.ª série) p. 5-30, 1996.
Tendo sido um dos primeiros arqueólogos portugueses a recorrer aos
dados colhidos mediante a teledetecção, o autor aplica o sistema ao
caso da cidade de Pax Iulia.

MANTAS, Vasco Gil. Notas sobre a estrutura urbana de Aeminium,


Biblos, 68, p. 487-513, 1992.
Teatro Grego e Romano . 225
Uma das mais sugestivas reflexões acerca do modo como a cidade
de Aeminium (hoje, Coimbra) se implantou no terreno, com especial
destaque para o circuito da muralha e a localização dos principais
edifícios públicos romanos.

MÁRQUEZ MORENO, Carlos; VENTURA VILLANUEVA, Ángel


(coords.). Jornadas sobre Teatros Romanos en Hispania, Córdoba, 2006.
Actas desta reunião científica, realizada em Córdoba, em 2002, uma das
primeiras que escolheu o teatro, nos seus diversos aspectos, como tema
primordial de análise.

MARTINS, Manuela; RIBEIRO, Jorge; MAGALHÃES, Fernanda.


A arqueologia urbana em Braga e a descoberta do teatro romano de
Bracara Augusta, Forum, 40, p. 9-30, jul./dez. 2006. Disponível em:
<http://hdl.handle.net/1822/13345>.
A primeira notícia sobre a identificação das estruturas do teatro e sua
integração na malha urbana da cidade.

MORAIS, Rui. Um caso exemplar: Cenáculo e o coleccionismo no


Portugal de Setecentos, Cadmo, 19, p. 209-228, 2009.
Uma perspectiva sobre a actividade de Frei Manuel do Cenáculo
enquanto coleccionador de antiguidades.

NOGALES BASARRATE, Trinidad [ed.], Ludi Romani (Espectáculos


en Hispania Romana), Museo Nacional de Arte Romano, Mérida, 2002.
Recensão em Conimbriga, 42, p. 237-242, 2003 Disponível em: <http://
hdl.handle.net/10316/0000>.

SÁ, Ana Marques de. Civitas Igaeditanorum: Os Deuses e os Homens,


Município de Idanha-a-Nova, 2007.
Primeira grande actualização do livro de D. Fernando de Almeida sobre
Egitânia (Idanha-a-Velha, concelho de Idanha-a-Nova), feita a partir de
cuidada análise das epígrafes na sua totalidade. Os capítulos de síntese
tratam, de modo especial, da sociedade, da cultura e da religião. Realce
para as excelentes fotografias, de Delfim Ferreira, cuja memória desta
forma também se homenageia.

226 . José d’Encarnação


STYLOW, Armín U. Las estatuas honorificas como médio de
Autorrepresentación de las elites locales de Hispania. In: NAVARRO
CABALLERO, Milagros; DEMOUGIN, Ségoulène (coords.), Élites
Hispaniques, Bordéus, p. 141-155, 2001.
Discute o facto de conseguir autorização para levantar uma estátua em
lugar público ser honra reservada apenas a alguns notáveis locais.

SUETÓNIO. Os Doze Césares, Trad. e notas de João Gaspar Simões.


Lisboa, Editorial Presença, 1979.
Uma das versões em língua portuguesa desta obra clássica, onde
amiúde, como se sabe, a realidade se mescla com o boato e a intriga
palaciana constitui tema dominante.

TUMOLESI, Patrizia Sabbatini. Epigrafia Anfiteatrale dell’Occidente


Romano: I. Roma, Roma: Edizioni Quasar, 1988. [Recensão in:
Conimbriga, 27, p. 216-220, 1988].
O primeiro grande corpus epigráfico sobre este tema dos gladiadores e
dos espectáculos levados a efeito em Roma nos anfiteatros. Um olhar
arguto sobre um mundo verdadeiramente insuspeitado, que também
escolheu a epígrafe como forma de eternizar sentimentos e memórias.

Teatro Grego e Romano . 227


O Teatro é uma Festa:
controle dos prazeres na
visão de Tertuliano

Ana Teresa Marques Gonçalves

A releitura da obra De Spectaculis, isto é, Sobre os Espetáculos, de


Tertuliano, produzida no final do II século d.C., traz-nos interessantes
questões acerca da relação dos cristãos com os vários tipos de fes-
tividades públicas promovidas pelos não cristãos no seio do Império
Romano. Como temos desenvolvido pesquisas referentes às festas
promovidas pelos romanos na passagem do II para o III século d.C.,
durante os governos dos Imperadores Severos, tornou-se fundamental
a análise da narrativa tertuliânea, por seu caráter paradigmático no que
concerne ao estímulo que era dado aos que professavam a fé cristã de se
apartarem das cerimônias pagãs, topos literário, ou seja, uma ideia-força
e recorrente, que aparece em muitos autores que defendiam a difusão
das crenças e práticas cristãs no interior de uma formação imperial na
qual ainda imperavam os cultos gentios.
Interessante enfatizar que neste momento da chamada História
do Cristianismo, os autores enfatizam a congruência que se deveria
fixar entre crenças estabelecidas e práticas realizadas. A profissão de fé
cristã engendrava em si comportamentos específicos, que levava seus
fiéis a se protegerem da contaminação pagã, tanto pelo empreendimen-
to de ações específicas quanto pela negação e refutação de certas ações.
Peter Brown, no livro A Ascensão do Cristianismo no Ocidente, ressalta
exatamente essa necessidade cristã inicial de se diferenciar dos não cris-
tãos (BROWN, 1999, p. 34), por ações específicas a serem promovidas
e/ou evitadas. Tal procedimento acaba por gerar um processo de for-
mação identitária própria que caracterizaria as primeiras comunidades
cristãs.

Teatro Grego e Romano . 229


A Construção das Identidades Cristãs

No artigo intitulado “Quem Precisa da Identidade?”, Stuart Hall


demonstra como a ideia de uma identidade integral, originária e unificada
tem sido criticada na contemporaneidade. Parte-se do pressuposto de
que a identidade é um desses conceitos que se operam “sob rasura”,
no intervalo entre a inversão e a emergência, uma ideia que não pode
ser pensada da forma antiga, mas sem a qual certas questões-chave não
podem ser sequer pensadas (HALL, 2000, p. 104).
As identidades são construções, ou seja, são criadas e recriadas
ao longo do tempo e respondem às necessidades dos sujeitos que
as constroem. Por isso, estão fundadas na fantasia, na projeção e na
idealização (HALL, 2000, p. 107). Muitas vezes as identidades são
construídas não a partir do que a pessoa é, mas do que ela gostaria
de ser e de como ela gostaria de ser vista pela comunidade com a
qual se relaciona. As identidades devem se adaptar aos vários papéis
que os seres humanos representam em sociedade. A identidade deve
ser plural porque o ser humano é plural. Ele é filho, marido, irmão,
trabalhador, entre tantos outros papéis, e o homem tem que responder
ao que a sociedade espera dele em cada uma dessas funções que exerce
ao longo dos dias. E ele deve ser identificável em cada uma delas.
A complexidade da vida moderna exige que assumamos diferentes
identidades (WOODWARD, 2000, p. 31). Assim, as identidades estão
vinculadas ao processo de autorreconhecimento que cada indivíduo
elabora.
No primeiro capítulo do livro Fora do Lugar: Memórias, Edward
W. Said comenta: “Todas as famílias inventam seus pais e filhos, dão
a cada um deles uma história, um caráter, um destino e até mesmo
uma linguagem” (SAID, 2004, p. 19). Esta invenção de uma tradição,
de antepassados idealizados, de um lugar no mundo, é o processo de
identificação pelo qual todo ser humano passa, da mesma forma como
os cristãos buscaram estabelecer características próprias de vivências
comunitárias capazes de diferenciá-los dos que não professavam sua
fé. Em seu caso específico, sua principal força identitária foi estabe-
lecida sobre sua fé, que justificava ações, reprimia posturas e elencava
comportamentos permitidos e/ou proibidos. A ação a ser empreen-
dida era explicada pela adesão a um corpo de crenças compartilhadas
por alguns, que buscavam expandir suas relações sociais por meio de

230 . Ana Teresa Marques Gonçalves


práticas proselitistas, característica predominante da fé cristã frente a
outras seitas estabelecidas a partir de cânones judaicos.
As identidades são antes de tudo relacionais. Parte-se da alte-
ridade, do que não se é, para se definir o que se gostaria de ser. Traz
tranquilidade ao ser humano acreditar que se é o que se pensa que é.
As identidades são marcadas pela diferença e pela formulação de sím-
bolos que as identifiquem (WOODWARD, 2000, p. 9). Uma forma de
se vestir, de se comportar, uma linguagem específica, pode simbolizar a
adesão a um determinado processo de identificação, gerando fidelida-
des e lealdades a um determinado grupo, mas também o afastamento
de outros setores sociais, com os quais o processo de identificação não
se define.
Na obra Os Estabelecidos e os Outsiders, Norbert Elias e John Scotson
já demonstravam, a partir de um estudo de caso sobre as relações
mantidas pelos habitantes de um povoado industrial inglês, como, para
estes habitantes, o povoado estava claramente dividido entre um grupo
que se percebia, e que era reconhecido, como o establishment, local e
um outro conjunto de indivíduos e famílias vistas como outsiders. Os
primeiros fundavam a sua distinção e o seu poder em um princípio de
antiguidade: moravam em Winston Parva, a comunidade pesquisada,
antes dos outros, encarnando os valores da tradição e da boa sociedade.
Os outros viviam estigmatizados por todos os atributos associados com
a anomia, como a delinquência, a violência e a desintegração (ELIAS;
SCOTSON, 2000, p. 7).
Arnaldo Momigliano, em duas obras bastante citadas por quem
trabalha com os conflitos e integrações constantes estabelecidos entre
pagãos e cristãos no mundo antigo, intituladas Sobre Pagãos, Judeus e
Cristãos (1996) e O Conflito entre o Paganismo e o Cristianismo no Século IV
(1989), enfatiza essa necessidade inicial de se estabelecerem dogmas,
livros sagrados, espaços de culto, heróis cristãos (mártires e santos)
capazes de identificarem os fiéis com seus paradigmas identitários.
Suas ações deveriam ser capazes de diferenciá-los e destacá-los dos
não fiéis, estabelecendo diferenças típicas dos processos de construção
de identidades. Esta é ao mesmo tempo simbólica e social. Deste
modo, existe uma associação entre as identidades de uma pessoa e os
objetos que ela utiliza e expõe para apreciação pública (WOODWARD,
2000, p.10), da mesma forma que esta pessoa realiza ou evita certos
comportamentos no meio social, intencionando estabelecer vínculos
com certos indivíduos e, no mesmo momento, se apartar de outros.
Teatro Grego e Romano . 231
Norbert Elias, na obra A Sociedade dos Indivíduos, demonstra
como a individualização se dá no processo social, ou seja, só perce-
bemos o que somos e como somos em contraste com os outros,
com o que fazem e como se comportam os que nos cercam. E essa
individualização se dá a partir de conflitos:
E quanto menos objetivas são as pessoas em seus pensamen-
tos e ações, quanto mais são suscetíveis aos sentimentos e à
fantasia, menos são capazes de suportar os perigos, confli-
tos e ameaças a que estão expostas. Em outras palavras, as
ciências humanas e as ideias gerais que as pessoas têm de si
como “indivíduos” e “sociedades” são determinadas, em sua
forma atual, por uma situação em que os seres humanos,
como indivíduos e como sociedades, introduzem na vida uns
dos outros perigos e temores consideráveis e basicamente in-
controláveis. E essas formas de conhecimento e pensamento
sobre as pessoas contribuem, por sua vez, para a constante
reprodução desses perigos e temores (ELIAS, 1994, p. 72).

São esses perigos e temores causados pelo estranhamento que


se desenvolve na relação com os outros, os diferentes, os que não são
facilmente compreendidos, que “tornam as sociedades mais coesas e
dão aos seus membros uma sensação de poder sobre acontecimentos
sobre os quais, na realidade, é frequente eles exercerem pouco con-
trole” (ELIAS, 1994, p. 72). A identificação a um grupo tanto pode
unir os membros deste grupo, quanto atiçar o fogo do conflito e da
tensão entre os membros destes grupos de identidades diversas, que
se representam de formas diferentes. A fixação das identidades é um
processo que depende sempre da maneira pela qual um determinado
grupo concebe, interpreta ou representa o seu mundo, resultando daí a
interdependência entre os conceitos de representação e de identidade
(SILVA, 2004, p. 15).
Para Roger Chartier, os homens se percebem e esta autoper-
cepção constitui sua identidade. Mas esta percepção se dá no campo
das representações coletivas, do imaginário compartilhado por um
grupo, num espaço e num tempo específicos. A noção de representação
coletiva, por ele adotada, permite que se analisem os conflites que
surgem no interior de uma dada sociedade, para que suas representações
sejam consideradas as mais adequadas para aquela comunidade naquele
momento. As sociedades são constituídas por diferentes grupos, que
232 . Ana Teresa Marques Gonçalves
manifestam visões de mundo diferenciadas. Essas visões de mundo
hierarquizam as representações:

Uma dupla via é assim aberta: uma que pensa a construção


das identidades sociais como resultando sempre de uma
relação de força entre as representações impostas por aqueles
que têm poder de classificar e de nomear e a definição,
submetida ou resistente, que cada comunidade produz de
si mesma; a outra que considera o recorte social objetivado
como a tradução do crédito concedido à representação que
cada grupo faz de si mesmo, portanto, à sua capacidade de
fazer com que se reconheça sua existência a partir de uma
exibição de unidade (CHARTIER, 2002, p. 73).

As representações são fruto de lutas e de consensos, de conflitos


e de articulações, no interior das comunidades. Quando Tertuliano
escreveu sua obra, os cristãos estavam em busca exatamente de seu
poder de nomear, de definir, de classificar o mundo em que viviam e no
qual se encontravam imersos, para o qual buscavam uma significação
e um entendimento próprio. Precisavam se unir em torno de suas
crenças e ações comuns no intuito de buscar o reconhecimento de
sua existência. Referimo-nos a um período da História Romana pouco
anterior às perseguições oficiais engendradas no III século d.C., tão
bem estudadas por G. E. M. Ste-Croix (1981), no seu artigo “Por
que foram perseguidos os primeiros cristãos?”, e mais recentemente
por Daniel Boyarin (1999), no livro Dying for God, obras nas quais se
destaca um tema caro à obra de Tertuliano: a importância do martírio
no estabelecimento da fé cristã.
O próprio termo “ato de fé”, que caracteriza a prática do martírio,
ou seja, morrer de forma trágica e violenta em nome de uma crença une
em si os dois fatores que queremos ressaltar neste texto: a ação em si,
que pode ser de realização (fazer algo) ou de inércia (evitar fazer algo),
e a crença, isto é, os princípios teológicos e teleológicos que justificam
a ação e/ou a não-ação. Tertuliano, na sua oração sobre os espetáculos
não cristãos, enfatiza claramente o que deveria ser empreendido e o que
deveria ser evitado pelos que professassem a fé cristã. Em sua narrativa
podem ser destacados os aspectos práticos das ações humanas e as
justificativas para sua implementação enquanto questão de fé. A opção
por acreditar num deus único, diferente das divindades cultuadas

Teatro Grego e Romano . 233


pelos gentios, impele o fiel a certos comportamentos, aceitando certos
deveres e evitando alguns prazeres.

O Autor e a Obra

Quinto Séptimo Florens Tertuliano nasceu na África Romana,


mais especificamente em Cartago, por volta de 155 d.C. Teve uma
educação privilegiada e erudita, tanto em letras quanto em direito,
tanto que como advogado exerceu a jurisprudência em Roma (a
capital do Império e do mundo conhecido), alcançando notoriedade
e autoridade na área do direto. Após sua conversão ao cristianismo,
quando ainda estava em Roma, iniciou seus estudos sobre aquilo que
ele mesmo classificaria de filosofia cristã. Ao retornar a Cartago, em
195 d.C., buscou se dedicar ao estudo do cristianismo, sua história e
sua filosofia, no qual tentou dedicar-se ao estilo apologético, ou seja,
de convencimento proselitista dos ainda não-convertidos à fé cristã,
demonstrado exaustivamente no decorrer de suas obras. O estilo
apologético foi muito utilizado pelos cristãos, indo dos Evangelhos aos
escritores patrísticos e às orações, pois este estilo de escrita retratava
um discurso dinâmico, normalmente feito para ser lido em voz alta e
em público, por meio do qual ficava ressaltada a capacidade crítica, a
forte base retórica, a grande erudição dos autores, pois por meio de
artifícios de linguagem, isto é, de princípios de retórica, os expositores/
leitores precisavam captar e manter a atenção de sua plateia. Por isso, são
obras nas quais costumeiramente encontram-se abundantes metáforas,
exemplificações e outras figuras de linguagem. Trata-se de obras de
persuasão, antes de tudo, pois visam ampliar o rebanho do Senhor,
o número dos convertidos, dos crentes, por intermédio da veiculação
de argumentos encarados como irrefutáveis, visto que baseados nas
Sagradas Escrituras.
Foi contemporâneo do governo do Imperador Septímio Severo
(193-211 d.C.), além de seu compatriota, pois nasceram em cidades
norte-africanas (Tertuliano em Cartago e Septímio em Leptis Magna)
e ambos fazem parte de um processo de inserção de valores norte-
africanos no interior do Império Romano. Septímio Severo, em 202
d.C., lançou um edito imperial, no qual lembrava aos súditos da
necessidade de realização dos sacrifícios e dos cultos aos deuses do
Império e enfatizava a importância do culto ao genius do Imperador,
pois havia ascendido ao poder após longa luta civil contra as legiões de
234 . Ana Teresa Marques Gonçalves
Pescênio Nigro e Clódio Albino, e desgastante contenda externa contra
os Partos, que onerou de forma intensa o erário público. Com isso,
acabou proibindo, mesmo que de maneira indireta, qualquer forma de
proselitismo e propaganda religiosa concorrente à religio licita, atingindo
assim especialmente a fé judaica e a fé cristã (SIMON; BENOIT, 1987,
p.134). Esta nova legislação causou grandes problemas aos cristãos,
especialmente porque o estilo apologético e o caráter proselitista eram
a principal forma de agregação de pessoas ao movimento cristão.
Tentando solucionar as crises sociais e políticas vigentes, além
de visar à agregação e a unidade social, este edito, que em sua essência
não pode ser visto como um incentivo claro à perseguição de cristãos,
acabou dando margem para tais ações, pois o edito imperial tinha
status de lei. Logo, com o ato de desobediência feria-se o preceito
jurídico romano da legalidade, sendo o desobediente passível de ser
penalizado juridicamente pela sua desobediência e podendo chegar
até a ser condenado pelo crime de Lesa-Majestade, ou seja, traição ao
poder exercido pelo povo romano por intermédio de seus magistrados,
dos quais o Imperador era o principal representante em Roma e nas
províncias.
A situação dos cristãos ao tempo de Severo parece ter sido boa,
não se detectando nos documentos a existência de uma perseguição
imperial (ao menos não sistematizada tal qual se verá mais tarde no
governo de Décio, por exemplo), mas devemos lembrar que o edito de
Severo poderia levar à ocorrência de perseguições locais por parte de
governadores das províncias romanas (MATOS, 1997, p. 69), gerando
prisões de fiéis e o fechamento de centros de ensino cristãos, como os
de Alexandria e de Cartago (SIMON; BENOIT, 1987, p. 135).
Visto como herdeiro da erudição de Tácito, mas sem perder suas
raízes eruditas e o estilo africano de escrita (HAMMAN, 1995, p. 72),
Tertuliano buscou dentro do direito romano as condições para provar
a tese da ilegalidade das perseguições aos cristãos, demonstrando
com estilo e retórica irrepreensíveis, que o problema fundamental
daqueles que perseguiam os cristãos era o desconhecimento desta
filosofia, ou seja, a ignorantia dos perseguidores (HAMMAN, 1995,
p. 73). Com uma contribuição que marcou todo o pensamento e os
escritos cristãos posteriores, Tertuliano, por intermédio de um estilo
que mesclava erudição greco-romana clássica com seus conhecimentos
dos dogmas cristãos, quis trazer a sophia àqueles que não a detinham
(CAMPENHAUSEN, 2005, p. 198).
Teatro Grego e Romano . 235
Segundo Martino Menghi (1995, p. 20), sua vasta obra pode ser
dividida em três grupos: estudos apologéticos, narrações anti-heréticas
e orações ético-disciplinares. Do primeiro grupo, fazem parte: Ad
Nationes, Apologeticum, De Testimonio Animae, Ad Scapulam e Adversus
Iudaeos, obras nas quais buscou enfatizar as diferenças das crenças cristãs
das judaicas e confirmar os princípios de ação dos que professavam a
fé cristã, com grande ênfase para a prática dos martírios. O segundo
grupo é integrado pelas obras: De Praescriptione Haereticorum, Adversus
Marcionem, Adversus Hermogenem, Adversus Valentinianos, De Baptismo, De
Carne Christi, De Resurrectione Carnis, Adversus Praxean e De Anima, obras
nas quais o autor discute princípios que considera heréticos e reafirma
ações do que considera sua visão de um verdadeiros cristianismo. Já o
terceiro grupo é formado pelas orações: Ad Martyras, De Cultu Feminarum,
De Oratione, De Patientia, De Paenitentia, Ad Uxorem, De Exhortatione
Castitatis, De Monogamia, De Virginibus Velandis, De Corona, De Fuga in
Persecutione, De Idolatria, De Ieiuno Adversus Psychicos, De Pudicitia, De Pallio
e De Spectaculis. Deste último grupo, faz parte a obra que nos propomos
a analisar neste texto e agrega obras nas quais Tertuliano explicita a
forma de agir de um bom cristão. As práticas que ele enfatiza são todas
justificadas pelas crenças cristãs e devem ser efetivados sem relutância
por aqueles que optarem por professar a fé no deus cristão. Congrega
temas diversos, mas fundamentais para a produção identitária cristã,
pois por meio destas orações discute a importância da virgindade, do
martírio, da fuga da idolatria, os tipos de vestimentas adequadas aos
não gentios e as qualidades a serem desenvolvidas na prática da fé,
como a coragem para o martírio, o pudor, a castidade, a monogamia,
a paciência e a penitência. Neste grupo de orações, que foram em sua
maioria produzidas para serem lidas em voz alta para um auditório já
convertido ou em vias de conversão, Tertuliano prega a transformação
das qualidades cristãs em ações adequadas aos fiéis, vinculando crença
e prática na criação de uma identidade compartilhada cristã.
Tertuliano apresenta, por meio de seus escritos, um modelo
de vida alternativo ao praticado pela cultura e pela lei dos romanos
(MENGHI, 1995, p. 5). O prêmio iminente para os convertidos e para
os que demonstrarem diariamente por suas ações sua conversão seria
a criação de um reino celeste na Terra. Os comportamentos por ele
indicados criam uma moral, uma ética, uma disciplina próprias capazes
de promoverem as virtudes cristãs. Ao repertório de virtudes pagãs
tradicionais, como a coragem, a pietas, a fides, a clementia, entre outras
236 . Ana Teresa Marques Gonçalves
(PEREIRA, 1990), Tertuliano propõe ao mesmo tempo a releitura
destas qualidades (a noção de pietas pagã diz respeito à manutenção
da família, à proteção do patrimônio familiar e à execução dos
deveres primordiais dos cidadãos, como a defesa do território pátrio,
diferenciando-se sobremaneira da noção cristã de piedade, por exemplo)
e a inclusão de novas posturas, como o pudor, a castidade, a paciência,
que engendravam novas práticas sociais.
Em suas obras, Tertuliano propõe uma releitura de princípios
platônicos, aristotélicos, estoicos e epicuristas no afã de converter os
gentios, de disciplinar suas ações e aproximá-las do ideal cristão. Na
tentativa de convencimento, tornava-se necessário partir-se do que
era conhecido para se poder ressignificar as práticas sociais. Falar dos
prazeres até então realizados para se propor novos prazeres, mais
de acordo com as Escrituras. Discursar sobre antigas concepções
filosóficas já cristalizadas pela tradição para se propor novas ideias.
Elencar antigos costumes para se estimular a prática de novas ações.
Como a produção identitária sempre engendra a construção
de identidades múltiplas e conflitantes, este processo se efetivou nos
primórdios da produção da fé cristã. Tornaram-se comuns grandes e
intensas discussões doutrinárias, ao longo do estabelecimento dos câ-
nones teológicos, que geraram a irrupção de diversas posturas poste-
riormente denominadas heréticas. Um exemplo a ser destacado no
estudo da obra tertuliânea é a formação do chamado movimento mon-
tanista, que se alastrou bastante no norte da África. Montano foi seu
líder fundador, na transição do I para o II século d.C., quando afirmava
ser portador de uma relação especial com o Espírito Santo que lhe ga-
rantia a glossolalia, isto é, a possibilidade de por meio de um transe se
expressar em várias línguas, inclusive a dos anjos, o que lhe permitiria
converter um número maior de povos e se aproximar dos apóstolos
de Cristo, também inundados pelos dons do Espírito Santo na ação de
Pentecostes. A doutrina montanista pregava forte rigor moral e práticas
ascéticas que afastavam os fiéis de ritos considerados impuros. Monta-
no, originário da Frígia, encorajava o martírio diante das perseguições
locais, o que atraiu a simpatia de Tertuliano. W. H. C. Frend, a partir
de uma análise filológica das obras de Tertuliano, defende que ele teria
integrado a seita montanista e depois se afastado dela para criar uma
comunidade ainda mais firme em termos de preceitos morais: “(Tertu-
liano) considera a igreja não somente como uma escola para a salvação,
mas como uma comunidade de santos, aguardando a aproximação cada
Teatro Grego e Romano . 237
vez mais rápida do fim do mundo” (FREND, 1952, p. 118-119). As
obras mais tardias de Tertuliano apresentam noções ascéticas mais rí-
gidas, exortando a monogamia ou mesmo rechaçando o casamento em
prol da virgindade, enfatizando as práticas da penitência e a abolição de
antigos costumes e prazeres como demonstrações de fé e de caridade
cristãs. Não temos, contudo, informações sobre Tertuliano a partir de
222 d.C., data de sua última obra (De Pallio).

Propondo uma Releitura do De Spectaculis

Trata-se exatamente da abolição de antigos costumes e de enfáti-


cos prazeres a obra De Spectaculis, na tentativa de formar os novos cris-
tãos, de exortar suas virtudes e de controlar seus afetos, sentimentos e
práticas sociais. A oração está disposta em trinta sucintos livros, escri-
tos em latim, que propõem um novo prazer para os cristãos: um bom
assento no espetáculo do Juízo Final, se o fiel souber evitar tentações
como a de assistir aos espetáculos pagãos.
Para melhor realizar o ato de convencimento e de conversão à fé
cristã, Tertuliano se apropria de cânones, gêneros, formas linguísticas,
ideias e exemplos retirados da tradição pagã. Ele cita textualmente os
nomes de Timeu, Varrão e Suetônio no livro V, pois era preciso falar e
convencer tomando-se por base o que já era conhecido. Só se efetiva
um ato de persuasão a partir de modelos já construídos e estabelecidos
na tradição de exempla e de referenciais retóricos.
A obra em questão é uma oração na qual se exortam os cristãos
a não integrarem de forma alguma, nem como partícipes nem como
espectadores, espetáculos promovidos pelos pagãos. Tal exortação re-
veste-se de significados religiosos, políticos e éticos (MENGHI, 1995,
p. 10), pois os rituais romanos congregavam todas estas esferas. Como
ressalta Florence Dupont, a realização de ritos públicos e a participação
em espetáculos era uma parte importante da vida política dos cidadãos
romanos na capital e nas províncias (DUPONT, 1991, p. 10). Em sua
condenação do mundo pagão, Tertuliano prega a ruptura com as prá-
ticas culturais dos gentios e a construção de práticas próprias para os
cristãos, integrando-os em uma nova comunidade, paralela a até então
existente. É uma proposta de apartamento de certos valores e de ressig-
nificação de práticas culturais, que em última instância promoveriam a
criação de uma nova cultura, mais adequada aos valores expressos nas
Escrituras Sagradas.
238 . Ana Teresa Marques Gonçalves
Apropriando-se de um cânone dissertativo e expositivo muito
comum aos retóricos antigos, Tertuliano rejeita o ato de ver e de ouvir
os espetáculos pagãos. Os sentidos da visão e da audição sempre
foram caros e precisos para vários gêneros, inclusive o da História, na
Antiguidade. Na concepção de François Hartog, na produção de textos
de História nas sociedades clássicas:
O saber deve fundar-se na autópsia e organizar-se com base
nos dados que esta proporciona. Dos dois meios do conhe-
cimento histórico, o olho e o ouvido, só o primeiro pode
conduzir a uma visão clara e distinta. Além disso, é preciso
usá-lo bem: autópsia não consiste num dado imediato; con-
vém filtrá-la mediante todo um procedimento de crítica dos
testemunhos, a fim de estabelecer os fatos com tanta exati-
dão quanto possível (HARTOG, 2003, p. 57).

Tal afirmação se baseia em elementos do método histórico,


como os fornecidos por Tucídides no Proêmio da História da Guerra do
Peloponeso:
Quando aos fatos da Guerra, considerei meu dever relatá-los,
não como apurados através de algum informante casual nem
como me parecia provável, mas somente após investigar cada
detalhe com o maior rigor possível, seja no caso de eventos
dos quais eu mesmo participei, seja naqueles a respeito dos
quais obtive informações de terceiros (TUCÍDIDES. História
da Guerra do Peloponeso, I. 22).

Assim, estabelece-se, desde os autores gregos, que os sentidos da


visão e da audição daqueles que viram o fato são os melhores veículos
para se chegar à verdade dos acontecimentos. Por isso, Tertuliano é tão
imperativo em sua obra em se manifestar contrário a que cristãos ou-
çam ou vejam espetáculos pagãos, pois adaptando o sentido de verdade
ao que está estipulado nas Sagradas Escrituras, ele percebe a audição e
a visão como os veículos para a contaminação. Os sentidos não apenas
podem se impregnar com a verdade como podem ser maculados pela
vergonha. Tanto o ato de ver quanto o de ouvir em si não são bons ou
maus, mas o que é visto ou ouvido se converte em porta de danação ou
em caminho de salvação para o crente. São várias as passagens na obra
De Spectaculis nas quais se faz referência a estes sentidos: “Prazeres exte-
riores dos olhos e dos ouvidos não podem nutrir uma religião baseada
Teatro Grego e Romano . 239
sobre o espírito e sobre a consciência” (TERTULIANO. De Spectaculis,
I. 1.13-15); “Pois deve-se lembrar de que o que contamina o homem
pode ser recebido pelos olhos e pelas orelhas” (TERTULIANO. De
Spectaculis, XVII. 5.4-6); “Aquele que tem usado a língua e as orelhas
em benefício do diabo contra deus” (TERTULIANO. De Spectaculis,
XXVII. 3.12-13); “Nosso espírito pode imaginá-lo graças à fé, como
são aqueles espetáculos que nem os olhos viram, nem os ouvidos escu-
taram, nem estão dispostos no coração do homem” (TERTULIANO.
De Spectaculis, XXX. 7.19-22). Ou ainda na passagem mais longa:
Se liberamos a gula e o ventre para todo tipo de gordura,
nos afastando cada vez mais de nossos órgãos mais nobres,
como os olhos e as orelhas, em direção a prazeres que
consagramos aos ídolos e aos mortos, não passarão pelos
intestinos, mas serão digeridos pelo nosso espírito e pela
nossa alma (TERTULIANO. De Spectaculis, XIII. 1.20-25).

Desse modo, como cita Peter Brown, no capítulo sobre festas


pagãs e cristãs no mundo antigo, no livro Governanti e Intellettuali: Popolo
de Roma e Popolo di Dio, é pelo uso do que há de mais humano, que são os
sentidos mais primordiais, que a fé deve se estabelecer e se impregnar
na essência dos crentes (BROWN; RUGGINI; MAZZA, 1982, p. 67).
A noção de fides latina, tão bem estudada por Gérard Freyburger,
em sua obra Fides: Étude Sémantique et Religieuse depuis les Origines jusqu´à
l´Époque Augusténne, na qual se define que o conceito designa ao mesmo
tempo uma disposição interior do indivíduo, uma crença, uma opinião
pessoal, e um aspecto de prestígio social, vinculado à concepção de
fama, estão ligados a certa atitude de constância e provém de um enga-
jamento preciso, baseado na reciprocidade com obrigações inequívo-
cas e numa dedicação a outrem. Fides é ao mesmo tempo ato (foedus) e
poder (potestas) (FREYBURGER, 2009, p. 15). Sua acepção de crença,
unida a uma sinceridade no ato de crer, fez com que ela fosse res-
significada pelos autores cristãos e traduzida nestas obras como “fé”,
vista como engajamento particular em princípios divinos estabelecidos
por uma divindade superior que em tempos imemoriais se comunicou
diretamente com os seres humanos, que são sua criação. Este pacto
criador-criatura estabelece um sistema de leis e convicções que devem
ser praticadas pelos que nele creem.
Maria Helena da Rocha Pereira lembra-nos, em sua obra Estudos de
História da Cultura Clássica, que fides se relaciona diretamente com os atos
240 . Ana Teresa Marques Gonçalves
de confiar, garantir e deixar-se persuadir. Trata-se da fé nos juramentos,
na força da palavra empenhada, na lealdade sancionada pela divindade,
práticas tão caras às sociedades orais (PEREIRA, 1990, p. 323). E é
desta forma que Tertuliano inicia sua oração: “Quais fundamentos da fé,
quais princípios da verdade, quais prescrições da doutrina cristã vieram
mostrar outros erros do mundo, como a realização dos espetáculos”
(TERTULIANO. De Spectaculis, I. 1.1-3). A opção pela fé cristã incita
o fiel a escolher alguns prazeres em detrimento de outros: “os prazeres
dos espetáculos são incompatíveis com a verdadeira religião e com o
verdadeiro respeito devido ao verdadeiro Deus” (TERTULIANO. De
Spectaculis, I. 4.19-20).
Interessante como Tertuliano percebe que assistir aos espetácu-
los pagãos é uma fonte de prazeres, mas que tal ato deve ser evita-
do pelos cristãos a partir de duas premissas argumentativas: renunciar
aos prazeres é uma prática ascética muito bem vista e participar dos
espetáculos seria ato de idolatria, pois todas as cerimônias romanas
pagãs se revestiriam de atos religiosos em honra de alguma divindade
do panteão. Queremos nos ater a esta segunda ideia tertuliânea: “os
espetáculos trazem em sua essência a idolatria” (TERTULIANO. De
Spectaculis, IV. 3.11). Para este autor, os escritores antigos indicam que
todos os espetáculos, cerimônias e festividades advêm de “práticas re-
ligiosas” (TERTULIANO. De Spectaculis, V.3.19), isto é, todas as festas
são celebradas “no interesse público” e estão designadas para “ídolos
e superstições” específicas (TERTULIANO. De Spectaculis, VI. 2.6-7).
Desta forma, renunciar à participação nos espetáculos era o mesmo
que renunciar à idolatria.
Retomando a Noção de Espetáculo no Império Romano

Tertuliano proporciona em sua obra uma apresentação bastante


interessante de alguns espetáculos romanos. Em primeiro lugar, infere
que tudo que existe no mundo é obra de Deus. Assim, o problema
não é o que existe, mas a finalidade dada pelo homem a cada coisa
existente, pois em sua ignorância transforma em mau o que é em
essência bom. O homem corrompe a criação divina ao utilizar as
coisas a seu serviço de forma equivocada. O autor nos fornece um
exemplo bem elucidativo desta sua argumentação: “Um homicídio, por
exemplo, pode ser realizado com uma arma, com veneno ou por meio
de fórmulas mágicas. Tanto o material da arma quanto o que é usado
Teatro Grego e Romano . 241
para fazer os venenos e as magias são obras de Deus, mas o homem
lhes dá mau uso” (TERTULIANO. De Spectaculis, II.8.18-21). Trata-se
do “uso perverso da criação por parte das criaturas” (TERTULIANO.
De Spectaculis, II. 11.11-12).
O mesmo raciocínio retórico é usado para entender o mal que a
visão dos espetáculos pagãos poderia causar num cristão, visto que a
idolatria seria se afastar da disciplina, seria também fruto da ignorância
e a pior das ofensas (TERTULIANO. De Spectaculis, II. 9.29). Os
espetáculos citados pelo autor são antes de tudo grandes festas latinas,
que buscavam integrar os provinciais, garantir sua lealdade e fortalecer
o consenso em torno da expansão territorial do Império Romano. Por
intermédio destes espetáculos, os romanos e seus líderes demonstravam
sua grandeza, sua força, sua soberania, sua abundância e pediam às
divindades que esta situação se estendesse por muito tempo.
Como aponta Giuseppina Grammatico, no artigo “La Fiesta
como el Tiempo del Dios”, o festivo na Antiguidade une a sacralidade ao
trágico. A sacralidade restabelece a unidade na comunidade e desta com
o divino que a institui, enquanto a tragicidade se apresenta na catarse
(catharsis) que a festa encerra. A festa garantia a repetição periódica da
realidade. Os gregos chamavam as festas de heorté, palavra que indica
deleite, alegria, celebração, e de thalía, germinação, florescimento. Os
romanos falavam em feriae, dias de repouso consagrados a render
homenagens aos deuses com cultos e sacrifícios, e em festa, dias nos
quais não se poderiam fazer muitas coisas, mas também seja obrigatório,
lícito, fazer muitas outras, cuidadosamente estipuladas pela ordem da
religio (GRAMMATICO, 1998, p. 35). E a autora demonstra como
mesmo no culto a Dioniso o que parece excesso nada mais é do que a
manutenção de uma regra: a bebida do vinho traria o conhecimento do
mundo divino.
Joaquin Barceló, no artigo “El Sentido Religioso de la Fiesta en
el Mundo Antiguo”, segue esta mesma lógica argumentativa. O mundo
da festa é apresentado por ele como o mundo da religião, do culto, do
ritual, do cerimonial regrado e ordenado. Em todos os casos estudados
pelo autor, “o sentido originário da celebração festiva exige entender a
ação humana em relação direta com o divino, porque sem a interferência
e a intervenção dos deuses os esforços humanos não podem prosperar
nem dar frutos” (BARCELÓ, 1998, p. 81). Lembra que a festa no seu
sentido mais originário não é um tempo dedicado a divertir-se, mas é
uma atividade séria em que os homens têm a oportunidade de se pôr
242 . Ana Teresa Marques Gonçalves
em contato com o sobrenatural e de se vincular com as forças divinas
que regem o mundo (BARCELÓ, 1998, p. 82).
As festividades são momentos nos quais seu caráter cíclico e re-
gular garantem uma renovação de laços com o sagrado, mas também
dos laços sociais. São espaços que se abrem para acionar o geral e o
particular, as memórias individuais e as coletivas. Na narrativa de Tertu-
liano, espetáculo é festa e traz prazer. E o prazer maior do cristão seria
renunciar ao prazer transitório da festividade em nome de sua demons-
tração pública de fé, pois seria dever cristão “declarar publicamente
vossa adesão a Ele” (TERTULIANO. De Spectaculis, I. 1.5), “religião
esta baseada sobre o espírito e sobre a consciência” (TERTULIANO.
De Spectaculis, I. 3.14-15).
Para Tertuliano, as Sagradas Escrituras se prestam sempre a
várias interpretações (TERTULIANO, De Spectaculis, III. 4.20), noção
esta que será reformada em autores cristãos posteriores. Sendo assim,
não há na Bíblia uma interdição direta dos espetáculos. Mas cabe a
Tertuliano argumentar de forma enfática que certas práticas são
boas em si e que devem ser reforçadas enquanto outras, más em si,
devem ser evitadas. Os espetáculos permitem a reunião de ímpios, de
incrédulos, e seria interessante que os cristãos se afastassem dos gentios
(TERTULIANO. De Spectaculis, III. 8.18). Em nenhum lugar achar-se-
ia escrito “não irás ao circo nem ao teatro, não observareis uma luta
nem um combate de gladiadores”, mas os que se afastam dos ímpios se
afastariam da corrupção (TERTULIANO. De Spectaculis, III. 2.10-13).
Outro excerto exemplifica também este argumento:
Esta renúncia não está explicitamente prescrita (...). De
fato, como existe um desejo de riqueza, de dignidade, de
gula, de libidinagem ou de glória, também existe um desejo
de prazeres e os espetáculos são uma espécie de prazer
(TERTULIANO. De Spectaculis, XIV. 1.4 e 2.8-11).

Ele compara os espetáculos romanos à pompa que cercaria o dia-


bo (TERTULIANO. De Spectaculis, IV. 1.5) e vincula cada jogo romano
a uma explicação mitológica e/ou lendária e a uma divindade, dando
relevo à figura de Liber Pater, uma das emulações latinas de Dioniso.
Nos livros V e VI, exemplifica sua argumentação citando os jogos na-
talícios dos Imperadores e dos Reis, os jogos públicos em prol da pros-
peridade dos cidadãos, as festas municipais e as cerimônias fúnebres.
Tanto que o autor classifica os jogos em duas categorias: os sagrados e
Teatro Grego e Romano . 243
os fúnebres, ou seja, em honra dos vivos e em honra dos mortos (TER-
TULIANO. De Spectaculis, VI. 3.13-15). Relata os sacrifícios, a organi-
zação das corridas de bigas e quadrigas no Circo, as estátuas perfiladas,
os tronos, as coroas, as roupas, os mobiliários que cercavam as cerimô-
nias de beleza e glamour, mas que horrorizavam os olhos de Tertuliano.
Segundo ele, os espetáculos provinciais eram organizados com menor
cuidado pela diminuta disponibilidade de meios econômicos (TER-
TULIANO. De Spectaculis, VII. 4), mas ofendiam o deus dos cristãos
da mesma forma. No Circo, poder-se-ia ver o culto ao Sol, vindo de
Samotrácia, ou à Grande Mãe, vindo do Egito. O Circo, os teatros e o
Capitólio seriam lugares ocupados pelos espíritos do diabo; para evitar
contaminação o cristão deveria se manter longe destes espaços citadi-
nos (TERTULIANO. De Spectaculis, VIII. 10.17-21). Até as torcidas do
Circo (vermelha, branca, verde e azul) estariam conspurcadas por sua
vinculação às divindades não cristãs (TERTULIANO. De Spectaculis,
IX. 5.26-28). Os jogos atléticos estariam contaminados pelo cerimonial
efetivado pelos sacerdotes pagãos e porque o Estádio imitaria o Circo
ao estar dedicado a vários ídolos, como Castor, Hércules e Mercúrio
(TERTULIANO. De Spectaculis, XI. 4.18-19).
No livro XII, Tertuliano dedica-se a descrever o munus, segundo
ele, “o maior e mais famoso dos espetáculos” (TERTULIANO. De
Spectaculis, XII. 1.1), ressaltando sua extrema crueldade. O Anfiteatro
seria consagrado a potências divinas ainda mais terríveis que aquelas
encontradas no Capitólio, transformando-se no templo de todos os
demônios (TERTULIANO. De Spectaculis, XII. 7.14-16).
Religião e Poder se misturavam intrinsecamente em solo romano.
O calendário de festividades (feriae) era imenso e comportava verdadeiros
ciclos festivos bastante heterogêneos nas formas de comemoração. As
festas misturavam várias maneiras de agradar aos deuses e aos homens.
Numa mesma festividade poderiam ocorrer procissões festivas,
sacrifícios de animais, jogos gladiatórios, banquetes públicos, corridas
de carros, entre outras atrações.
A lógica tertuliânea é de que não se pode servir a bem a dois
senhores, pela participação nestes espetáculos tão variados, mas imersos
na religiosidade não cristã:
Não reconhecemos os altares, não adoramos as imagens,
não realizamos sacrifícios, não oferecemos sacrifícios aos
mortos, não comemos nada que provenha dos sacrifícios

244 . Ana Teresa Marques Gonçalves


feitos aos deuses ou aos mortos, pois não podemos nutrir-
nos ao mesmo tempo da ceia de Deus e daquela oferecida
aos mortos (TERTULIANO. De Spectaculis, XIII. 4.14-20).

Assim, todos os espetáculos seriam criados no interesse do Dia-


bo e organizados de acordo com o que lhe provem (TERTULIANO.
De Spectaculis, XXIV. 1.4-5). Por isso, não se deveria participar nem com
ações, nem com palavras, nem com o olhar, nem com o pensamento
(TERTULIANO. De Spectaculis, XXIV. 3.9-11). Porém, Tertuliano for-
nece aos cristãos outras fontes de prazeres: escutar os profetas ou ler/
ouvir os salmos (TERTULIANO. De Spectaculis, XXV. 3.10-13). Pode-
se tocar instrumentos e cantar, mas a harmonia deve ser feita em nome
do Senhor (TERTULIANO. De Spectaculis, 5.23-25). Os espetáculos
cristãos devem ser santos, eternos e gratuitos. Por eles, revelar-se-ia a
verdade, reconhecer-se-iam os erros e se perdoariam pecados cometi-
dos no passado, por meio de uma vida moderada, da liberdade de uma
consciência pura e da superação do temor da morte (TERTULIANO.
De Spectaculis, XXIX. 1.5-7 e 3.14-15). Mas o verdadeiro espetáculo do
deus cristão seria a criação de uma nova Jerusalém, quando um grande
incêndio anunciaria o Juízo Final e um novo tempo de paz e prosperi-
dade (TERTULIANO. De Spectaculis, XXX. 1.5 e 2.10).

O Teatro é uma Festa

As referências ao espaço, às técnicas e às tramas teatrais se iniciam


no livro XV da obra de Tertuliano. Segundo ele, não é o Teatro em si,
enquanto lugar, que estaria contaminado, pois seria obra de Deus, mas
o que fosse realizado neste espaço que contaminaria quem lá estivesse.
As obras apresentadas trariam a alteração do espírito, tirariam a calma
e a paz enquanto promoveriam “o furor, a bile, a ira e a dor” (TERTU-
LIANO. De Spectaculis, 2.8-10). Os textos representados incitariam à
paixão, pois “ninguém se aproxima do prazer sem paixão e ninguém
prova uma paixão sem risco” (TERTULIANO. De Spectaculis, XV. 6.24-
25). Seria impossível assistir aos espetáculos teatrais com temperança e
sabedoria, ou ânimo imperturbável e sem paixão atingindo o espírito.
Interessante notar como Tertuliano nega, assim, toda a impor-
tância da catarse garantida aos textos teatrais em A Poética, de Aristóte-
les (XIV. 1.30-54). Para o autor cristão, a catarse teatral geraria o furor,
a vaidade, a estranheza, e não a reflexão que melhoraria o caráter dos
homens, como para Aristóteles. O furor seria um sentimento capaz de
Teatro Grego e Romano . 245
impelir o homem a más ações, a delírios, a paixões (TERTULIANO.
De Spectaculis, XVI. 4.15), por isso deveria ser evitado a todo custo,
mesmo abrindo-se mão de situações consideradas prazerosas. A ação
de assistir a atos teatrais poderia levar à impudicícia e à obscenidade
que os atores representavam com seus gestos. Arriscava-se a ordem
ao se colocar no palco, por exemplo, personagens que representassem
prostitutas (TERTULIANO. De Spectaculis, XVII. 2.5 e 4.20-22).
Tertuliano retira do texto teatral qualquer possibilidade pedagó-
gica, qualidade que os antigos autores pagãos tanto reforçavam. Se-
ria impossível aprender qualquer valor cristão assistindo às peças ou
participando de espetáculos teatrais. Eram festas, sem dúvida, mas
que contaminavam ao invés de limparem o espírito: “Da interdição da
impudicícia advém a interdição também do teatro” (TERTULIANO.
De Spectaculis, XVII. 6.8). Tanto no gênero trágico quanto no cômico,
defender-se-iam crimes e se apresentariam cenas libidinosas, cruentas
e lascivas, o que reforçaria a obscenidade por meio dos olhos e dos
ouvidos. O texto teatral não deveria ser acolhido nem sob forma de
recitação (TERTULIANO. De Spectaculis, XVII.7.17).
O espetáculo teatral não deveria ser visto porque ficaria na me-
mória do expectador e ao recordá-lo ele seria para sempre revivencia-
do, o que denotaria novas ondas de impurezas no caráter do cristão.
O espaço cênico estaria reservado para cenas de adultérios, mentiras,
idolatrias. Os espetáculos no Circo causariam frenesi, os do Estádio,
insolência, os do Anfiteatro, horror, e os do Teatro, impureza (TER-
TULIANO. De Spectaculis, XX. 5.17-20). O fiel deveria se proteger de
palavras vulgares e de gestos desavergonhados. Tertuliano critica até
mesmo o fato dos atores usarem sapatos que os deixavam mais altos
que os outros mortais, pois para ele apenas Cristo poderia ter uma
estatura mais elevada. As máscaras, objetos cênicos por excelência, se-
riam terríveis, pois imitariam a imagem de Deus. Ele não aprova quem
falsifica a própria voz, o sexo, quem faz passar por verdadeiros falsos
amores, quem falseia lágrimas e gemidos, quem finge ser uma mulher
(TERTULIANO. De Spectaculis, XXIII. 4.15-19 e 5.20-24), desabonan-
do qualquer prática teatral.
No livro XXVI, bem ao gosto da retórica antiga, fornece um
exemplo vivaz do que pode acontecer com quem frequenta teatros.
Uma mulher que foi ao Teatro acabou tomada pelo Diabo. Durante
o exorcismo, o espírito maligno afirmava: “eu fiz algo que me é de
direito, pois ela se encontrava em meu território” (TERTULIANO. De
246 . Ana Teresa Marques Gonçalves
Spectaculis, XXVI. 2.4-8). Tem-se uma quantidade suficiente de obras,
versos, pensamentos, hinos e cantos, mas não se encontra neles a verdade.
Não se divulga por eles a castidade, a fé, a misericórdia e a modéstia,
valores mais ressaltados por Tertuliano nesta obra (TERTULIANO.
De Spectaculis, XXIX. 4.19-22 e 5.25-27). A obra teatral desequilibraria
os humores e os sentimentos, turbaria a visão da verdade. Os atores,
os atletas, os gladiadores, os aurigas acabariam sendo exaltados mesmo
não detendo amplos direitos civis. Eles receberiam distinções mesmo
não integrando a Cúria, o Senado, a Rostra, ou pertencendo à ordem
equestre ou tendo honras e distinções. Os partícipes dos espetáculos
confundiriam a ordem instituída, falseariam os papéis sociais e
desorganizariam o equilíbrio das instituições, na opinião tertuliânea
(TERTULIANO. De Spectaculis, XXII. 1.6-7 e 2.10-15).
Da mesma forma como condena todos os tipos de espetáculos,
sem fazer grande diferença entre eles, Tertuliano indica que o espaço
do Teatro é também um espaço festivo, mas tão indigno quanto os
outros. Nada de bom poderia vir de se frequentar os espaços cênicos,
nem o palco, nem a plateia, nem os locais de recitação e/ou leitura
pública. Para o autor, não se poderia desenvolver a moral verdadeira
em locais onde se praticavam atos impuros aos olhos do deus cristão.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pela releitura atenta da obra em questão, percebe-se que o mundo


de Tertuliano é dividido entre o bem e o mal. Seu imaginário é marcado
pelo confronto entre luz e trevas num mundo real criado à imagem e
semelhança de seu Deus. Os espaços foram criados pela divindade,
mas mal usados pelo Diabo e por seus seguidores. Nas festas cristãs, o
único sangue bem vindo seria o dos mártires, como o próprio Cristo,
que se imolou pelos seus fiéis. O único gesto salutar seria o do martírio
em prol do proselitismo cristão. Tertuliano chega mesmo a enfatizar:
“Querem também um pouco de sangue? Tem aquele de Cristo”
(TERTULIANO. De Spectaculis, XXXIX. 5.28).
Como a origem de todos os espetáculos seria a idolatria, eles
deveriam ser evitados. A loucura, a ira, a dor se insinuariam inevitavel-
mente aos que participassem das manifestações festivas (MENGHI,
1995, p.14). Mesmo na plateia, os espectadores seriam partícipes dos
atos impetrados e se contaminariam tanto quanto quem nele interferis-
se diretamente. Não há diferença na mácula entre atores e público no
Teatro Grego e Romano . 247
espaço teatral pensado por Tertuliano. Como compensação pela renún-
cia aos prazeres pagãos, o autor apregoa um lugar de relevo no maravi-
lhoso e terrível espetáculo que será o fim do mundo. Os olhos, como
portas da alma, e os ouvidos deveriam ser poupados para o Apocalip-
se, o mais importante espetáculo cristão. Portanto, no longo processo
de construção de uma identidade cristã, frente às expressões culturais
não cristãs, autores como Tertuliano expressaram seu incômodo com
práticas tradicionais pagãs e admoestaram os fiéis a controlarem seus
prazeres, em prol da construção de um novo tipo de sociedade, baseada
em novas lógicas, novas mitologias e várias ações ressignificadas.

DOCUMENTAÇÃO TEXTUAL

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Teatro Grego e Romano . 249


Ordem e Desordem na Cidade Antiga:
O Teatro entre a
Tradição Clássica e a Cristã

Gilvan Ventura da Silva

Romanização ou romanidade?

Os estudos acerca da assim denominada “identidade romana”


desenvolvidos nas últimas décadas tem insistido num aspecto crucial
quando se trata de compreender os mecanismos que conferiam cer-
ta unidade a uma infinidade de povos, línguas e crenças disseminadas
pelas províncias de um território supra continental: o fato de que, não
obstante tenha gozado de uma ampla receptividade entre arqueólogos
e historiadores, o conceito de romanização deriva ao fim e ao cabo de
uma valorização excessiva da matriz cultural latina, que tenderia a exer-
cer uma influência irresistível sobre as realidades locais, dando margem
inclusive à classificação das culturas provinciais como “pré-romanas”,
“romanas” e “semiromanizadas” (MENDES, 2008, p. 38-39). Na con-
tramão desse modelo unilateral de interpretação da dinâmica cultural
do Império, os pesquisadores têm hoje investido numa reflexão um
pouco mais complexa, pretendendo elucidar, com base em estudos de
caso, quais elementos poderiam ser interpretados como próprios de
uma “cultura romana” standard e quais seriam as particularidades locais,
sem, no entanto, supor um conflito, uma contradição entre elementos
“romanos” e “não romanos” e sem atribuir a qualquer uma das vari-
áveis da equação uma carga valorativa em comparação à outra. O que
investigações tendo como referência, por exemplo, as modalidades de
apropriação do espaço – e, quanto a isso, o espaço urbano, mas não
apenas ele, adquire uma importância singular – apontam sem cessar é
a existência, no Império Romano, de múltiplas variações regionais, isso
não se pode negar (REVELL, 2009, p. 3). No entanto, essas mesmas
investigações também demonstram a recorrência de formas culturais
Teatro Grego e Romano . 251
que, se não podem mais ser explicadas à luz da romanização, uma ca-
tegoria que padece já de certo esgarçamento teórico, talvez adquiram
algum sentido mediante o emprego do conceito de romanidade, de senti-
mento de pertença a uma comunidade portadora da humanitas, ou seja,
do estatuto de humanidade revelado pela adesão a alguns valores, ritos
e comportamentos comuns.1 Uma romanidade que sabemos fluida,
plural, porosa, mas que não deixa de exibir, no limite, uma face que
poderíamos qualificar como romana, ou antes, como greco-romana
(VEYNE, 2005, p. 11).
Estimulada por esse novo approach que vemos se delinear nos
últimos anos, a exploração da cultura material tem trazido indícios pre-
ciosos acerca da configuração dos processos identitários no Império
Romano, uma vez que constatamos uma conexão indissolúvel entre a
fixação das identidades e as atividades do cotidiano executadas dentro
de um ambiente específico a partir de performances igualmente específi-
cas. Dentre as variáveis que nos permitiriam falar em padrões culturais
compartilhados pelas populações do Império, os quais sustentariam
a ideia de romanidade, as diretrizes de organização do espaço cívico,
vale dizer, o urbanismo, desempenhariam, ao lado da imagem imperial
e da práxis religiosa pagã, um papel de primeira grandeza, auxiliando
na reprodução, em nível local, das estruturas simbólicas que conferi-
riam certa unidade ao Império. Tomando como ponto de partida a
centralidade da vida urbana para os romanos, o que se observa nas
províncias é o investimento das elites na construção, manutenção e
restauro de um conjunto de formas arquitetônicas associadas, embora
de modo um tanto difuso, a uma “cultura romana”, ou antes, a uma
expectativa cultural do que se entenderia como romano em oposição,
por exemplo, ao bárbaro, formas arquitetônicas essas que contribuem
para a manutenção de uma ordem calcada em diversas oposições: rico
e pobre; homem e mulher; cidadão e estrangeiro; livre e escravo, dentre
outras (REVELL, 2009, p. 19). Desse modo, por mais que tenhamos
consciência do quanto o Império era múltiplo, multifacetado, como os
pesquisadores não cessam de nos alertar, é impossível pura e simples-
mente desconsiderar as recorrências que nos permitem falar do Impé-
rio Romano, no singular, e não de “impérios”, no plural, e que se ma-
terializam, por exemplo, num repertório de edifícios urbanos bastante

1
Para uma discussão sumária, mas atualizada, acerca dos limites do conceito
de romanização, consultar Hingley (2010).
252 . Gilvan Ventura da Silva
característicos que podem ser encontrados da Bretanha à Mesopotâ-
mia, com destaque para as termas, o circo, o anfiteatro e, naquilo que
nos interessa, o teatro. Prescindindo de uma abordagem tão-somente
arquitetônica e propondo uma análise cultural mais abrangente, é pos-
sível afirmar que estes edifícios comportam uma conexão estreita entre
as atividades que aí se desenvolvem e o público que regularmente os
ocupa, o que nos remete ao princípio da arquitetura como experiência
vivida, razão pela qual a maneira como os grupos sociais se relacionam
com os edifícios e monumentos, a representação que deles fazem, o
significado cultural que lhes são atribuídos, as regras de ocupação do
recinto, nos trazem valiosas informações sobre como, no dia a dia, as
hierarquias sociais são produzidas, reproduzidas e subvertidas e sobre
como as identidades e alteridades são forjadas.
Tendo em vista essas considerações, nos propomos, neste
capítulo, a refletir sobre o teatro como um espaço polissêmico capaz
de engendrar ao mesmo tempo a ordem e a desordem de acordo com
o ponto de vista do espectador. Para tanto, discutiremos, num primeiro
momento, as relações existentes entre o teatro, compreendido na sua
dimensão física, arquitetônica; as modalidades de espetáculo que aí se
desenrolam e a produção/reprodução daquilo que poderíamos qualificar
como “ordem” romana, ou seja, como um conjunto de disposições
hierárquicas que estabelecem uma “cartografia” das relações de poder
na qual os pobres, as mulheres, os escravos e os estrangeiros figuram
numa posição usualmente subalterna. Cumpre notar, entretanto, que
esta ordem não deve, em absoluto, ser tomada como uma realidade
estanque, estática, pois onde quer que ela se imponha haverá sempre
um trabalho de contraordem, de subversão, como pretendemos
demonstrar em seguida, ao analisarmos a censura dos cristãos ao
teatro. Desde pelo menos Tertuliano, os autores cristãos não cessam
de qualificar o teatro como um espaço privado de Deus, um território
posto sob influência demoníaca, o que, pela insistência e consistência
discursivas, nos revela a importância dessa forma de entretenimento
para a configuração de uma determinada identidade no Império. A
base empírica de nossas reflexões é constituída pela série de Homilias
sobre o Evangelho de Mateus proferidas por João Crisóstomo, um pregador
que desde 386, ao assumir o cargo de presbítero da igreja de Antioquia,
não poupou esforços no combate aos espetáculos teatrais que, muito
embora fossem uma das manifestações culturais mais características da
cidade antiga, eram para os cristãos fonte de desordem, desregramento
Teatro Grego e Romano . 253
e poluição, numa surpreendente inversão de todos os valores que até
então conferiam ao teatro uma posição preeminente para a manutenção
da ordem imperial.

A arquitetura romana dos ‘ludi scaenici’

Os espetáculos romanos, designados ludi ou agones, faziam parte


do ciclo de comemorações religiosas previstas no calendário oficial.
Prolongando-se por vários dias, os festivais em honra aos deuses ou aos
mortos costumavam apresentar, além das exibições dos aurigas no circo
(ludi circenses), múltiplas funções teatrais (ludi scaenici) de caráter cômico
e trágico. Já os combates de gladiadores (gladiatoria munera), que tanto
interesse despertam em nós, contemporâneos, eram menos frequentes,
mas nem por isso deixavam de seduzir os espectadores, que lotavam
as galerias do anfiteatro para aplaudir os seus combatentes favoritos
(EDMONDSON, 2002, p. 9). As representações cênicas em Roma
remontam, pelo menos, ao século IV a.C., sem que delas conheçamos
os pormenores. Sabemos, todavia, que os primeiros espetáculos
propriamente ditos surgem apenas por volta de 240 a.C., inspirados
em originais gregos das poleis do sul da Península Itálica. Doravante,
o teatro, cada vez mais integrado à sociedade romana em virtude da
conquista do Mediterrâneo oriental, experimentará uma bem-sucedida
trajetória como uma das principais manifestações culturais do Império,
a ponto de, sob o Principado, supor-se que toda civitas digna desse
nome devesse contar com pelo menos um teatro (BARNES, 1996, p.
161). Não obstante o interesse crescente da elite e da população em
geral pelos ludi scaenici, importa assinalar que a construção de teatros
em pedra na Península é um acontecimento até certo ponto tardio,
pois somente por volta do I século a.C. temos notícia dos primeiros
teatros permanentes em cidades como Tivoli, Preneste e Pompeia, até
que, em 55 a.C., Pompeu decidiu erigir o primeiro teatro em Roma,
ao que parece inspirado no modelo de Mitilene, cidade grega da ilha
de Lesbos. Antes do século I a.C., todos os teatros erguidos na Itália
eram temporários, permanecendo em uso apenas durante o festival que
visavam a atender e sendo demolidos em seguida, muito provavelmente
devido ao zelo do Senado, temeroso de que os romanos se tornassem
por demais afeitos à “moda grega”, tida como prejudicial a homens de
índole viril (BROTHERS, 1989, p. 99).

254 . Gilvan Ventura da Silva


Mirando-se de início nos teatros gregos da época helenística, os
teatros romanos, ao se multiplicar em fins da República, apresentarão
algumas inovações importantes em termos arquitetônicos. O teatro
grego convencional era composto por um espaço circular (orchestra)
no qual evoluía o coro, um componente indispensável das tragédias
e comédias. Ao redor, ocupando quase o raio total da orchestra, ficava
o auditório (cavea), composto por arquibancadas concêntricas. Do
lado oposto das arquibancadas, erguia-se um edifício denominado
scaenae frons, um cenário fixo em formato retangular que apresentava
uma extensão compatível com a da orchestra (GRIMAL, 2003, p. 70).
À frente da scaenae frons corria uma plataforma denominada pulpitum,
o palco propriamente dito sobre o qual os atores representavam, que
se elevava de três a quatro metros acima da orchestra (Fig. 1 A). Os
arquitetos romanos operaram diversas modificações nessa estrutura,
dentre as quais uma das mais expressivas foi a conversão da orchestra
num semicírculo, acompanhando a opção dos dramaturgos romanos
em reduzir o papel do coro, uma tendência já presente nas peças de
Plauto e Terêncio. Como consequência, a orchestra romana será ocupada
pelos espectadores mais ilustres, como os senadores, os membros da
domus (casa) imperial e, no caso dos teatros locais, os decuriões e seus
familiares (BROTHERS, 1989, p. 103). O espetáculo, na sua íntegra,
é então transferido para o pulpitum que, além de ter a sua extensão e
profundidade ampliadas, é rebaixado, aproximando-se do nível da
orchestra (Fig. 1 B). Além disso, outra singular inovação romana foi o
investimento na decoração da scaenae frons, uma parede muitas vezes
da altura da cavea que reproduzia a fachada de um palácio. Um jogo
de portas (três ou cinco, conforme as dimensões do teatro) permitia
o trânsito dos atores entre os bastidores e o pulpitum. A porta central
era denominada regia e utilizada pelo protagonista. A ornamentação da
scaenae frons, em sintonia com o gosto romano por uma decoração mais
sofisticada, exibia inúmeros rebuscamentos, incluindo revestimento com
pedras coloridas, instalação de frisos esculpidos e construção de nichos
(cellae) nos quais eram depositadas estátuas dos deuses, do imperador
ou de personagens ilustres. Muito embora a monumentalidade da
scaenae frons obrigasse o cenário a permanecer sempre o mesmo,
independentemente do tipo de espetáculo, uma das suas vantagens era
amplificar a voz dos atores, que da parede reverberava para a cavea. Por
último, enquanto os teatros gregos eram, em sua maioria, erguidos nas

Teatro Grego e Romano . 255


encostas das montanhas, uma hábil solução que permitia assentar a
cavea na rocha entalhada, poupando-se assim tempo e matéria-prima,
os teatros romanos se situavam em terreno plano, sendo sustentados
por um complexo de vigas e arcos formando galerias utilizadas para dar
acesso à orchestra e à cavea e como abrigo em caso de chuva repentina
(GRIMAL, 2003, p. 70-71).
As três principais divisões espaciais do teatro romano eram, por
um lado, a cavea e a orchestra, locais da audiência e, por outro, o proscaenium
que, repartido em pulpitum e scaenae frons, pertencia aos atores. A cavea,
formada por semicírculos concêntricos (cunei), subdividia-se em ima,
media e summa cavea, ocupadas pelos espectadores conforme o seu status,
como veremos a seguir. Cada uma dessas seções era separada das
demais por meio de muretas (podia), a fim de restringir a possibilidade
de contato entre indivíduos de condições sociais distintas. Temos
conhecimento que alguns assentos da cavea eram reservados em nome
de determinadas personagens ou collegia (associações profissionais),
como no teatro de Bostra, onde inscrições demonstram que uma parte
da media cavea pertencia aos collegia dos bronzeiros e joalheiros. Havia
também o hábito de numerar as fileiras de assentos, começando pela
parte inferior. Nesse caso, os bilhetes, usualmente confeccionados em
osso ou marfim e representando um peixe, um pássaro ou mesmo
uma porta (a entrada principal do teatro) trazem a indicação precisa
do assento. Sobre a cavea era possível afixar toldos (velae), desfraldados
para proteger o público do sol ou da chuva. Sabemos, inclusive, que
os toldos poderiam receber uma decoração elaborada, pois Nero
teria feito instalar, no teatro de Pompeu, uma vela na qual aparecia
conduzindo uma biga, estratagema visando certamente a enaltecer a
própria imagem diante do público da Capital.
Em muitos teatros romanos, a parte superior da cavea era
circundada por uma colunata coberta (porticus). A orchestra, por sua vez,
destinava-se aos senadores e principais magistrados, cujos assentos
eram dispostos em torno da borda. Assim como a summa, a media e a
ima cavea eram separadas entre si pelo podium, o mesmo ocorria entre a
orchestra e a cavea. Nas laterais esquerda e direita da orchestra ficavam as
tribunalia, ou seja, as tribunas de honra dos magistrados responsáveis
por presidir os ludi scaenici, a exemplo dos pretores, em se tratando
da cidade de Roma. A terceira parte do teatro, o proscaenium, dividia-
se, como dissemos, em pulpitum e scaenae frons. O pulpitum, usualmente

256 . Gilvan Ventura da Silva


confeccionado em madeira, era a plataforma sobre a qual os atores
se movimentavam. Atrás deles, projetava-se a scaenae frons, uma parede
que funcionava como cenário fixo, em geral reproduzindo a fachada
de um palácio com portas ímpares. Na parte anterior do pulpitum,
numa canaleta do tablado, situava-se a cortina (aulaeum), abaixada
no início das apresentações e suspensa ao término, ao contrário do
movimento atual. Acima do pulpitum havia uma cobertura em madeira
cuja finalidade, muito provavelmente, era favorecer a acústica. Atrás do
proscaenium localizava-se o postcaenium, composto por camarins e escadas
que conduziam ao topo da scaenae frons (SEAR, 2006, p. 1 e ss.).
Os custos de construção e manutenção de um teatro costumavam
ser vultosos, exigindo amiúde uma combinação de fundos provenientes
de patronos ricos e da própria comunidade cívica beneficiada. Por esse
motivo, não nos causa estranheza que alguns teatros tenham demorado
mais de meio século para ficarem prontos. Uma solução eficiente
para acelerar os trabalhos de construção era o recurso ao patronato
régio, como constatamos no período helenístico, quando Eumenes II,
soberano de Pérgamo, empreendeu a reforma do teatro de Delfos, um
edifício que, à época, já contabilizava duzentos anos de funcionamento
(SEAR, 2006, p. 12). Essa prática foi imitada pelos líderes romanos
de final da República, ávidos em aumentar seu prestígio, não sendo
por acaso que a construção do primeiro teatro em Roma, como
assinalamos, foi encomendada por Pompeu. O monumento foi
concebido com o propósito de realçar a auctoritas do triúnviro, uma vez
que no porticus foram erguidas estátuas representando os povos sobre
os quais Pompeu havia triunfado, ao passo que a parte superior da cavea
alojava um templo consagrado a Vênus Victrix, sua divindade protetora
(BROTHERS, 1989, p. 101). O mesmo expediente foi empregado pelo
rival, Júlio César, que por volta de 46 a.C. construiu ou fez restaurar,
não sabemos ao certo, o teatro de Antioquia. No final do século I a.C.,
o teatro surgia assim, em Roma, como um meio eficaz de enaltecimento
dos generais que digladiavam pelo controle supremo da República, o
que denota, por um lado, a popularidade alcançada pelos espetáculos
cênicos e, por outro, o potencial político contido em um edifício que
logo se tornará o principal ponto de referência dentro da paisagem
urbana e o emblema maior da romanidade.
A sutura proporcionada pelo teatro entre lazer, política e religião
logo despertou a atenção de Augusto, que patrocinou diretamente –

Teatro Grego e Romano . 257


ou fez patrocinar por intermédio de seus auxiliares – a construção de
inúmeros teatros, tanto no Ocidente quanto no Oriente, com destaque
para os de Vienne, Arles, Nîmes, Orange, Augusta Emérita, Óstia, La-
odiceia e Atenas, onde Agripa erigiu um odeum, um teatro de dimensões
mais modestas destinado a concertos. Além disso, diversos reis-clientes
que mantinham relações estreitas com Augusto se dispuseram a acom-
panhar o evergetismo do princeps, como Juba II, soberano da Mauritâ-
nia, responsável por introduzir a arquitetura cênica romana no norte da
África quando da construção do teatro de Iol/Cesareia entre 25 e 15
a.C.; e Herodes, rei da Judeia, que, em fins do século I a.C., construiu
teatros em estilo romano em Cesareia Marítima, Sidon, Damasco e Je-
rusalém. Pelas províncias, muitos aristocratas, na condição de êmulos
do imperador, assumiram a tarefa de agraciar sua cidade com um tea-
tro ou subvencionar obras de restauração.2 Sob o governo de Augus-
to observa-se, portanto, um estímulo sem precedentes à construção
de teatros, sem dúvida como parte de um amplo “programa” político
tendo por objetivo estreitar os laços que uniam o princeps às comuni-
dades cívicas, uma vez que muitos teatros foram dedicados ao numem
de Augusto e de sua divindade tutelar, Apolo, pelos Augustales, ou seja,
por sacerdotes do culto imperial então nascente. Desse modo, não nos
causa surpresa constatar que as principais contribuições romanas à ar-
quitetura do teatro, a saber, o aumento das dimensões do proscaenium, o
esplendor da scaenae frons, a instalação de estátuas da família imperial nas
cellae, além da consolidação da orchestra semicircular, remontem ao início
do Principado, difundindo-se rapidamente para o Oriente e o Ocidente
(SEAR, 2006, p. 12-15).
O teatro como microcosmos da ordem imperial

O evergetismo das elites permitiu ao teatro tornar-se, sob o Prin-


cipado, um dos principais símbolos da romanidade, auxiliando na for-
mulação de um ethos que congregava as populações urbanas em torno
de um edifício convertido em reprodução microscópica dos princípios
hierárquicos que sustentavam a ordem social. De fato, em nenhum ou-
tro edifício imperial é possível constatar com tanta nitidez a exibição
e ao mesmo tempo o reforço das relações de poder vigentes na so-
2
Apenas para citar dois exemplos circunscritos à Península Itálica, o teatro
de Volaterra foi patrocinado por Cecina Severo, cônsul em 2-1 a.C. Já Mítio
Celer, um nobre local, construiu o teatro de Corfino (SEAR, 2006, p. 13).
258 . Gilvan Ventura da Silva
ciedade romana, o que não poderia passar despercebido a Augusto,
cujo interesse pelo teatro como um emblema dos novos tempos não se
limitou à construção de edifícios, mas comportou igualmente o desejo
de que, nesses lugares onde de quando em quando a população se aglo-
merava para assistir a encenações trágicas e cômicas, desfrutando assim
de uma experiência coletiva, as clivagens sociopolíticas que fixavam de
modo estrito a posição ocupada por cada um dentro da estrutura social
não fossem, em absoluto, ignoradas. Ainda durante a República, vemos
emergir a tendência de se reservar assentos especiais para os senado-
res por ocasião dos ludi, numa reação a um antigo costume segundo
o qual cidadãos de categorias distintas sentavam-se lado a lado para
assistir aos espetáculos. Em 67 a.C., a adoção de assentos especiais é
formalmente instituída por meio da Lex Roscia, que destina as quatorze
primeiras fileiras da ima cavea aos membros da ordem equestre, uma
medida recebida com hostilidade pela população. Tal inovação não se
restringe à Capital, pois fora de Roma a reserva de assentos para os
integrantes da elite logo se torna regra, como vemos na colônia de
Urso, na Hispania, cuja carta de fundação (Lex Ursonensis), datada de 44
a.C., já especifica a quem caberiam, no teatro, os lugares de honra: ma-
gistrados romanos, promagistrados (i. é, governadores de província),
senadores e seus filhos e equestres, além, é claro, dos magistrados locais
e decuriões (EDMONDSON, 2002, p. 11).
A associação entre o recinto do teatro e a ordem romana já pre-
sente nos tempos da República se torna mais nítida sob o governo de
Augusto, num momento em que o princeps se impõe a tarefa de res-
taurar os antigos padrões hierárquicos que teriam sido abalados em
função da aguda crise deflagrada após o assassinato de César, em 44
a.C. Nesse período, temos conhecimento de que alguns indivíduos, em
particular soldados e libertos enriquecidos, teriam começado a pleite-
ar uma elevação do seu status. Um dos recursos simbólicos que então
empregaram foi se lançar, sem a menor cerimônia, sobre os assentos
do teatro destinados aos senadores e equestres. A atuação de Augusto
com a finalidade de sanar o problema transcorreu em duas etapas. Na
primeira delas, em 26 a.C., o princeps solicitou ao Senado que votasse um
senatusconsultum determinando que, em todos os espetáculos, as fileiras
iniciais fossem reservadas aos senadores, e isso tanto em Roma quanto
nas províncias. Alguns anos mais tarde, entre 20 e 17 a.C., Augusto dis-
pensa uma atenção maior à matéria mediante a Lex Iulia Theatralis, que
pretendia regular em detalhes a distribuição do público na orchestra e na
Teatro Grego e Romano . 259
cavea, convertendo assim o teatro num monumento à ordem hierárqui-
ca romana. Infelizmente, não possuímos o texto da lei, mas podemos
reconstituí-la em suas linhas gerais com base nas informações transmi-
tidas por Suetônio (EDMONDSON, 2002, p. 11).
A Lex Iulia Theatralis, no seu propósito de disciplinar a ocupação
do teatro de acordo com o status dos usuários, foi além de ratificar aqui-
lo que já se encontrava consignado na Lex Roscia e no senatusconsultum de
26 a.C., ou seja, que aos equestres se concedia o privilégio de sentar nas
quatorze primeiras fileiras da ima cavea e aos senadores, o de sentar na
orchestra. Entre os senadores e os equestres, Augusto posicionou os sol-
dados agraciados com a corona civica, uma condecoração militar atribuí-
da àqueles que haviam salvado a vida de um companheiro. Os próprios
equestres, por sua vez, foram alvo de repartição. Os que haviam servi-
do como tribunos militares e os que galgaram a posição de magistrados
juniores (os XX viri) foram autorizados a ocupar as duas primeiras filei-
ras da ima cavea, numa posição superior diante dos equestres, digamos,
ordinários. Mais tarde, ainda sob Augusto, estes últimos foram classifi-
cados como seniores e juniores e alocados em fileiras distintas. Atrás das
quatorze fileiras equestres e na frente da plebs romana foram instalados
os apparitores, funcionários (secretários, arautos, mensageiros) que pres-
tavam serviço aos magistrados romanos. Em seguida, distribuída pela
ima, media e summa cavea, encontrava-se a população em geral (plebs). Na
ima cavea, os soldados em serviço e, muito provavelmente, os veteranos,
foram apartados da plebs, recebendo assentos próprios. À direita deles
sentavam-se os cidadãos casados (mariti) e à esquerda os pueri praetextati,
os rapazes que ainda portavam a toga praetexta, vestimenta dos cidadãos
que não haviam ainda alcançado a idade adulta e que, portanto, não
podiam revestir a toga virilis (toga viril). Na condição de acompanhantes
dos pueri praetextati, os professores (pedagogos), muitos deles escravos
ou libertos, foram autorizados a sentar junto aos seus alunos, uma ma-
neira encontrada por Augusto para homenagear os responsáveis pela
formação das futuras gerações. A media cavea, por sua vez, era reservada
aos ingenui (cidadãos nascidos livres). Já na summa cavea ficavam as ca-
tegorias inferiores da sociedade romana: cidadãos miseráveis que, não
podendo adquirir uma toga branca, eram obrigados a portar a túnica
negra (pullatus), libertos, estrangeiros e pobres em geral. Logo depois
da summa cavea vinha o recinto dos escravos e por último, nas cadeiras
dispostas sob o pórtico coberto, as mulheres comuns, uma vez que as

260 . Gilvan Ventura da Silva


virgens vestais e as matronas da domus caesaris (a família do imperador)
assentavam-se numa das tribunas laterais da orchestra (fig. 2). De acordo
com Edmondson (2002, p. 14), tal segregação tinha por objetivo evitar
que as mulheres desfrutassem de uma visão nítida do corpo dos atores,
por vezes bastante sensual, bem como protegê-las dos olhares lascivos
do público masculino.
Essa disposição espacial da audiência instituída pela Lex Iulia
Theatralis, embora tivesse como alvo primário o público da cidade de
Roma, tendeu a se reproduzir mutatis mutandis pelas cidades do Império,
como convinha a uma sociedade na qual as oportunidades de ascen-
são eram limitadas, o que só fazia acentuar a distância entre os gru-
pos sociais. Do ponto de vista físico, arquitetônico, o teatro é assim
responsável por proclamar a munificência do imperador e das elites
comprometidas com a sua construção e manutenção, permitindo que a
comunidade reunida para celebrar os festivais preste ao mesmo tempo
reverência à generosidade dos seus patronos, mas sem que esse congra-
çamento acarrete qualquer tentativa de ruptura da ordem social. Nesse
sentido, se o teatro é um dos principais loci da festa, da comemoração,
do riso e da dança, um espaço conectado amiúde com o culto a Dioni-
so, a divindade do excesso e da pândega, ele não é, ao contrário do que
poderíamos supor com base, por exemplo, nos testemunho dos detra-
tores cristãos, um local de transgressão das hierarquias, de supressão
das convenções sociais. Ou, pelo menos, a inversão de papéis verificada
sobre o palco existe somente enquanto representação, ou seja, enquanto
um exercício efêmero de mimesis por parte dos atores, não produzindo
de imediato uma alteração no comportamento dos espectadores que,
segregados espacialmente, são a todo o momento lembrados da sua
posição na escala social. Os vínculos do edifício com a ordem imperial
podem ainda ser evidenciados em outras oportunidades, pois algumas
vezes a população se reunia no teatro, não para assistir a encenações
de mimos e pantomimas, mas para participar de atos solenes que im-
plicavam demonstrações do poder romano, como quando o impera-
dor ou algum representante oficial chegava à cidade. Tais cerimônias
eram em geral precedidas por uma procissão de magistrados, decuriões
e sacerdotes portando símbolos que exaltavam o domínio de Roma,
além de estátuas de divindades locais. Em seguida, os melhores ora-
dores declamavam discursos em honra à autoridade presente. Imagens
do imperador e de sua família também costumavam ser trazidas ao

Teatro Grego e Romano . 261


teatro como objeto de veneração, recebendo aclamações do público,
o que contribuía para reforçar a ideia de participação dos provinciais
nessa autêntica “comunidade imaginada” que era o Império Romano
(GEBHARD, 1996, p. 127).
O teatro emerge assim como um instrumento de reprodução da
ordem imperial, propriedade reforçada pelo caráter religioso que cerca
o edifício. Por mais que alguns autores defendam a hipótese segundo a
qual, no decorrer da fase imperial, os ludi experimentaram uma “laici-
zação” progressiva, é necessário que nos acautelemos contra algumas
conclusões precipitadas, ao menos no que diz respeito ao teatro, um
edifício que, desde os seus primórdios, na Grécia, era consagrado aos
deuses, não havendo motivo para supor que a sacralidade do teatro te-
nha se esvaído sob o Império, muito pelo contrário.3 Quanto a isso, vale
a pena recordar que o primeiro teatro construído em Roma por Pom-
peu comportava, no topo da cavea, um templo dedicado a Vênus Victrix
(BROTHERS, 1989, p. 101). Durante o Principado, muitos sacerdotes
do culto imperial (flamines Augustalis) construíram teatros em homena-
gem ao imperador e suas divindades tutelares (SEARS, 2006, p. 15).
Além disso, por todo o Império constatamos uma associação evidente
entre estruturas teatrais e templárias, de maneira que, em algumas oca-
siões, um teatro poderia ser consagrado ao Numen Theatri, o espírito di-
vino do teatro, como vemos em Clunia, ou abrigar um pequeno templo,
como em Bilbilis, ambas as cidades situadas na Península Ibérica. Mais
que isso, escavações arqueológicas revelaram que em Bilbilis o templo se
comunicava diretamente com o teatro por meio de uma escadaria, o que
levou Revell (2009, p. 144) a sugerir a existência de um importante nexo
espacial entre o templo e o teatro. Desse modo, as performances teatrais
continuariam a apresentar, sob o Império Romano, um matiz sagrado,
sendo inclusive encenadas durante os festivais religiosos, o que contra-
diz a tese da “laicização” dos ludi. Espaço de reprodução da ordem so-
cial, o teatro era igualmente um espaço posto sob a proteção dos deuses,
o que lhe conferia um papel importante na manutenção do equilíbrio
cósmico. Todavia, no que diz respeito àquilo que era encenado sobre o
palco, poderíamos nutrir a mesma expectativa?

3
Para uma defesa da laicização dos festivais pagãos em Antioquia no final do
século IV, consultar Natali (1975) e Liebeschuetz (1972). Uma crítica consis-
tente a essa tendência historiográfica foi estabelecida por Soler (2006).
262 . Gilvan Ventura da Silva
Mimos e pantomimas: vetores da desordem?

A história do teatro romano, até onde podemos remontar com


base em informações mais confiáveis, tem início nos ludi de 240 a.C.,
quando Lívio Andrônico, um liberto de origem grega que desempenha-
va ao mesmo tempo as funções de escritor, diretor e ator, estabeleceu
as primeiras adaptações latinas da tragédia e da comédia helênicas. No
decorrer do século seguinte, o teatro romano experimentou um notá-
vel desenvolvimento, surgindo então um elenco de comediógrafos e
tragediógrafos que, até o fim da República, se revelarão bastante ativos,
como Plauto, Terêncio, Pacúvio, Lúcio Ácio e Vário Rufo, autores de
peças encenadas na íntegra nos festivais, a exemplo dos seus congêne-
res gregos (LEBEK, 1996, p. 34). Por essa época, o ofício de escritor
de peças teatrais já se mostrava rentável, pois os autores costumavam
vender seus manuscritos aos magistrados encarregados de patrocinar
os ludi ou mesmo a proprietários de companhias teatrais, às vezes por
quantias consideráveis. Conta-se que, em 29 a.C., Vário Rufo teria re-
cebido um milhão de sestércios para compor a tragédia Tieste, enco-
mendada por Otaviano para a sua cerimônia de triunfo sobre Marco
Antônio e Cleópatra. Muito embora valores semelhantes dificilmente
tenham sido pagos com frequência aos autores, o episódio é mais um
indício do prestígio alcançado pelo teatro em Roma, o que justifica o
investimento de Augusto na construção de novos edifícios. No final
do século I a.C., no entanto, o teatro romano começa a passar por uma
profunda transformação. Segundo o que podemos concluir das poucas
fontes disponíveis, as representações de comédia e tragédia perdem
pouco a pouco o seu apelo junto ao grande público, abandonando-se
então a montagem de peças inteiras.4 Muito embora textos trágicos e
cômicos continuassem a ser escritos, como nos dão testemunho, por
exemplo, o Agamêmnon e a Medeia, de Sêneca, o consumo dessa litera-
tura se fazia cada vez menos por intermédio da encenação no palco do
teatro, substituída pela leitura recitada ou cantada de um tragicus cantor
ou mesmo de um professor de retórica.5 Desse modo, no decorrer da
4
Não sabemos ao certo em que momento as tragédias e comédias deixaram
de ser encenadas. Na opinião de Barnes (1996, p. 169), isso deve ter ocorrido
por volta do século III. Easterling; Miles (1999), por sua vez, creem que até a
Antiguidade Tardia haverá ainda espetáculos dessa natureza, mas as evidências
empíricas sobre a qual se apoiam para extrair tal conclusão são bastante frágeis.
5
O tragôidos ou tragicus cantor recitava ou cantava excertos trágicos usando más-
Teatro Grego e Romano . 263
era imperial os clássicos da literatura dramática greco-latina se tornam
familiares apenas para um público restrito, composto pelos alunos dos
gramáticos e rétores ou por anfitriões da elite e seus convidados, ao
passo que a cena é invadida por dois gêneros outrora secundários: a
pantomima e o mimo (LUGARESI, 2008, p. 68-69).
O surgimento da pantomima encontra-se associado aos nomes
de Pilades e Batilo, atores-dançarinos que gravitavam em torno da cor-
te de Augusto. Ambos teriam sido responsáveis pela reestruturação dos
espetáculos teatrais em Roma ao encenarem sketches extraídos das tra-
gédias sob a forma de passos coreografados. Ao que tudo leva a crer,
a primeira demonstração pública do novo gênero para uma audiência
ampliada ocorreu em 23 a.C., durante os jogos de Marcelo. Doravan-
te a pantomima, também conhecida como “dança itálica”, gozará de
ampla receptividade, permanecendo como a principal modalidade de
encenação até a fase final do Império e angariando inclusive a sim-
patia de Juliano, pouco afeito aos ludi (LUGARESI, 2008, p. 70). A
pantomima consistia de um solo de dança no qual o artista, sempre do
sexo masculino, encenava uma passagem mitológica utilizando apenas
a linguagem corporal, com destaque para os movimentos das mãos e
dos dedos. A indumentária era composta por uma máscara (variável,
conforme a personagem) e uma túnica de seda, por vezes bordada a
ouro, que caía até os tornozelos (HAUBOLD; MILES, 2004, p. 25).
Durante a performance, o dançarino era acompanhado por um coral e
por músicos tocando diversos instrumentos, tais como flauta, tambo-
rete, cítara, címbalo e castanholas. Segundo consta, essa forma de ex-
pressão artística teria surgido na Grécia e alcançado a Península Itálica
em meados do século II a.C., mas até ser reestruturada por Pilades e
Batilo, no alvorecer da era imperial, a pantomima não teria despertado
a atenção do público, muito mais interessado nas tragédias e comédias
propriamente ditas (JORY, 1996, p. 2). Com o passar do tempo, en-
tretanto, a pantomima será apreciada como um gênero de representa-
ção altamente sofisticado, havendo inclusive referências à transposição,
para a linguagem da dança, de versões dos diálogos platônicos. A arte
do pantomimo, na condição de forma de expressão artística, recebeu
a admiração até mesmo de Agostinho, um autor que, como a maioria

cara. Em geral, trajava uma veste de mangas largas e atuava sobre coturnos
ou pernas de pau. O tragicus cantor poderia ou não ser acompanhado da cítara
(EASTERLING & MILES, 1999, p. 96).
264 . Gilvan Ventura da Silva
dos cristãos, é inteiramente refratário aos ludi, quaisquer que sejam eles
(LUGARESI, 2008, p. 70).
Enquanto a pantomima se incumbia de representar cenas trá-
gicas conectadas ao patrimônio mitológico, os mimos, por sua vez,
cumpriam a tarefa de satisfazer o interesse do público pelos enredos
cômicos. Originários da Magna Grécia, os primeiros mimos encenados
em Roma estavam relacionados às Floralias, o festival em honra à deusa
Flora celebrado pela primeira vez em 238 a.C. e que se tornou regular
de 173 a.C. em diante. As encenações realizadas durante os ludi Floralis,
ao que parece, exibiam um conteúdo escandaloso, uma vez que Flora
era a divindade protetora das meretrizes (TRAINA, 1994, p. 86). Nos
mimos, homens e mulheres atuavam como atores e cantores, mas sem
o apoio de um coro (BARNES, 1996, p. 169). Os espetáculos “mími-
cos” eram constituídos por diálogos burlescos improvisados contendo
alusões de natureza sexual, erótica e, no limite, obscenas. O enredo do
espetáculo girava quase sempre em torno do adultério, embora tenha-
mos conhecimento de mimos versando sobre temas políticos e mito-
lógicos. A vítima, um homem mais velho e desprovido de atrativos,
costumava ser exposta ao ridículo pela esposa, uma mulher mais jovem
– e, portanto, fogosa – que o traía com outros homens. Ao contrário
dos pantomimos, os atores dos mimos não portavam máscara nem
qualquer indumentária mais elaborada. O traje típico dessa modalidade
de representação era um vestido curto denominado centuculus, ao passo
que, nos pés, os homens usavam sandálias baixas. Já as atrizes (mimae)
costumavam representar descalças, o que acentuava o topos da mulher
livre e desimpedida. Os espetáculos mímicos possuíam assim uma es-
tética que poderíamos qualificar como “realista”, pois neles os atores
apareciam tal como eram, ao mesmo tempo em que reproduziam a
linguagem do povo, repleta de metáforas de duplo sentido e palavras
de baixo calão (PEREA YEBÉNES, 2004, p. 14). Não resta dúvida
de que, quando comparados às pantomimas, os mimos estimulavam
um comportamento muito mais exaltado por parte do público, que
neles podia contemplar belas mulheres extravasando sensualidade e re-
citando textos repletos de picardia. Além disso, sabemos que um dos
momentos mais aguardados pelos espectadores era a nudatio mimarum,
quando a mima se despia em cena (TRAINA, 1994, p. 88).
Acerca do conteúdo dos ludi scaenici, é comum os autores cristãos
– e mesmo alguns pagãos, como Dión de Prusa e Élio Aristides – ro-
tularem os espetáculos como “indecentes” e “imorais”, seja pelo fato
Teatro Grego e Romano . 265
de homens encarnarem papéis femininos ou de mulheres se exibirem
em trajes sumários e dizendo obscenidades. Desse ponto de vista, o
teatro exerceria sobre a plateia uma influência absolutamente nociva,
difundindo comportamentos inadequados e, com isso, corrompendo o
corpo cívico. Resta, contudo, nos indagarmos se os espetáculos teatrais,
no período imperial, cumpririam de fato uma função como esta, ou
seja, seriam eles vetores de corrupção do mos maiorum (dos costumes
ancestrais) como propugnavam os moralistas pagãos e cristãos? No que
diz respeito às pantomimas, a resposta é negativa, uma vez que os te-
mas representados pelos dançarinos – enredos mitológicos e cenas das
grandes tragédias – não eram totalmente desconhecidos do público.
Por outro lado, considerando que o pilar da formação educacional (pai-
deia) da aristocracia romana era a tradição mitológica acerca dos deuses
e heróis preservada nas epopeias homéricas e nas obras dos tragedió-
grafos, podemos supor que as pantomimas, ao levarem para a praça
pública essa tradição, contribuíam para reforçar, entre espectadores o
mais das vezes iletrados, todo um repertório de conhecimentos que,
do contrário, permaneceriam restritos à elite, configurando assim um
processo de circularidade cultural como proposto por Bakhtin e Ginzburg
(LEYERLE, 2001, p. 29). Acreditamos que a pantomima, assim como
o teatro grego na fase clássica da polis, era um instrumento pedagógico
de instrução cívica, contribuindo para a formação cultural dos habitan-
tes dos núcleos urbanos, aqueles que tinham maiores oportunidades de
assistir às performances teatrais. Em apoio ao nosso argumento, podemos
evocar o testemunho de Libânio, um dos autores mais eruditos da fase
final do Império, que, na Oratio 64, Em defesa das pantomimas, pronuncia-
da em 361 na cidade de Antioquia, se propõe a refutar a censura de Élio
Aristides aos atores, considerados uma ameaça à ordem pública. Opon-
do-se frontalmente a Aristides, Libânio defende o princípio segundo o
qual a arte dos pantomimos é um elemento intrínseco à cultura cívica
por propiciar aos cidadãos uma pausa para contemplar a harmonia e a
beleza, dissipando assim a monotonia do labor cotidiano. Ao mesmo
tempo, em Libânio, o corpo do pantomimo, dotado de uma elasticidade
que dificulta a sua ruptura, se converte numa metáfora do corpo cívico,
que deve sempre se esforçar para manter a sua unidade. Para Libânio,
em lugar de ameaçar a polis, as pantomimas contribuem para preservá-la
(HAUBOLD; MILES, 2004, p. 30-31). Mas, e quanto aos mimos?
Os dois principais defensores dos ludi scaenici na época imperial,
Luciano de Samósata e Libânio, não dedicam uma atenção especial aos
266 . Gilvan Ventura da Silva
mimos, elegendo antes as pantomimas como tema central da refutação
que fazem a Élio Aristides. É como se os espetáculos cômicos e os
atores e atrizes que os encenam não compartilhassem do caráter res-
peitável atribuído, a princípio, aos pantomimos, mais não fosse pelo
fato de que, nos mimos, mulheres e homens encenassem lado a lado
um drama que, com raras exceções, rebaixava o arquétipo masculino
diante do feminino, numa inversão de valores repulsiva para os mem-
bros mais respeitáveis da comunidade, a exemplo dos magistrados
e professores. Quanto a isso, não é por mero acaso que, em termos
jurídicos, as atrizes foram de longa data equiparadas às prostitutas, a
ponto de, com o tempo, mima se tornar sinônimo de meretrix (PEREA
YEBÉNES, 2004, p. 14). Na realidade, atores e atrizes, de acordo com
o direito romano, eram humiles et abiectae personae, pessoas humildes e
abjetas, recaindo na situação de infames, daquelas “sobre quem não se
deve falar” e partilhando assim do mesmo estigma atribuído às pros-
titutas, proxenetas e gladiadores, categorias que, do mesmo modo,
degradavam o próprio corpo ao ofertá-lo em troca de dinheiro
(FRENCH, 1998, p. 296). No entanto, se nos afastamos de uma leitura
excessivamente jurídica ou conservadora acerca do assunto, os mimos
e seus profissionais nos revelam uma realidade muito mais complexa
e até certo ponto contraditória. Em primeiro lugar, a representação
social que fazia do mundo do palco o domínio da licenciosidade, da
devassidão e da desordem é justamente isso, uma representação, que
não condiz em absoluto com os códigos que regiam o exercício da
profissão de ator. Os mimos não são imunes às distinções hierárquicas
aplicadas a outros ofícios no Império Romano, como constatamos por
intermédio das inscrições tumulares dos atores e atrizes, os quais se
fazem proclamar archimimus (chefe dos mimos) e secundus mimus (segundo
ator em importância na companhia), informações preciosas que nos
revelam a existência de uma autêntica carreira, como em qualquer
outra profissão dita “honrada” (EDMONDSON, 2002, p. 25).6 Em
segundo lugar, muito embora fossem atingidos pelo estigma da infamia,
os atores não deixavam de gozar de popularidade e prestígio junto às
6
Entre as atrizes também verificamos diversas gradações e especializações,
havendo a saltatrix (saltadora ou contorcionista), a circulatrix (atriz indecente
que circulava no palco) e a embolaria (atriz que atuava no embolium, a esquete
dos entreatos), além da mima, a atriz que apenas representava; da pantomima,
que cantava, dançava e representava e da arquimima, a chefe da companhia
(PEREA YEBÉNES, 2004, p. 27).
Teatro Grego e Romano . 267
suas comunidades, que não hesitaram em homenageá-los. Assim é
que a cúria e o povo de Taormina, na Sicília, erigiram, em honra da
atriz Júlia Bassila, uma estela funerária na qual celebravam a sua arte,
virtude e sabedoria (FRENCH, 1998, p. 296). Ao que tudo indica, esse
procedimento não era incomum no Império, pois Teodósio, em uma lei
datada de 394, determina a destruição das imagens de atores e aurigas
que se encontrassem próximas às imagens imperiais, de modo a evitar
a profanação destas últimas, tidas no Baixo Império como sagradas.
Entretanto, no texto da mesma lei, o imperador autoriza que as imagens
dos atores sejam postas na frente do palco, reconhecendo assim como
legítimo o tributo que, por ventura, a população desejasse prestar à
memória de pessoas reputadas como infames (C. Th. 15,7,12).

O teatro como fonte da ‘stásis’: o discurso cristão

Por mais que os espetáculos teatrais desagradassem os círculos


mais conservadores da elite romana e que os atores, especialmente os
integrantes dos mimos, fossem tidos como infames, não verificamos
por parte dos autores pagãos, nem mesmo dos mais ácidos, como Dión
de Prusa e Élio Aristides, a formulação de nenhuma proposta de su-
pressão dos ludi scaenici, uma modalidade de entretenimento incorpora-
da de longa data ao mos maiorum (LUGARESI, 2008, p. 171). As críticas
mais contundentes contra o teatro antigo serão desferidas pelos cris-
tãos, para quem, nos espetáculos, não poderia haver nada de positivo,
muito pelo contrário. Fazendo parte da cidade antiga, mas nutrindo
um forte desejo de afastamento diante de práticas e valores que julga-
vam incompatíveis com o credo que professavam, os cristãos elegerão
os espetáculos, em geral, e as representações teatrais, em particular,
como um ponto de apoio para demarcarem a sua própria identidade
nos ambientes urbanos, razão pela qual a recusa a frequentar o teatro,
o anfiteatro ou o circo logo se tornou um dos principais elementos de
distinção dos cristãos. Convém assinalar, entretanto, que essa recusa
não era universal, pois até a fase final do Império vemos as autoridades
eclesiásticas empenhadas em evitar que os membros das suas congre-
gações socializem com os pagãos nos recintos onde ocorriam os ludi,
especialmente os ludi scaenici, considerados os mais perigosos, devido
não apenas à “imoralidade” e à “idolatria” que encerravam, mas, como
argumenta Lugaresi (2008, p. 57), à confusão que promoviam entre
verdade e ficção, contrariando assim a ratio veritatis (razão verdadeira)
268 . Gilvan Ventura da Silva
que teria presidido a Criação. Reproduzindo sobre o palco uma re-
alidade imaginária, os atores subverteriam assim a ordem do mundo
instituída por Deus, dentro de um jogo retórico entre aparência e es-
sência que atribuía à primeira um caráter de ilusão, falsidade, engano,
predicados de Satanás. Desse modo, logo emerge uma tradição literária
voltada para a exposição dos argumentos que sustentavam a repulsa
cristã ao teatro, tradição esta da qual o tratado De Spectaculis, escrito por
Tertuliano entre 200 e 206, é considerado o texto fundador. As invec-
tivas contra os espetáculos receberão, nos séculos IV e V, um impulso
considerável em virtude do florescimento da homilética, que fará da
condenação aos ludi um dos seus temas prediletos, como nos dá teste-
munho João Crisóstomo, o principal pregador da igreja de Antioquia
entre os anos de 386 e 397, período em que atuou como presbítero da
entourage episcopal de Flaviano.
Antioquia, na segunda metade do século IV, era célebre por abri-
gar uma população que nutria um entusiasmo particular pelos festivais,
jogos e espetáculos cívicos, como é possível concluir da atuação dos
magistrados locais, generosos nas demonstrações de evergetismo pú-
blico. Ao lado de Elis e Apameia, Antioquia era, à época, a sede dos
principais jogos olímpicos da Antiguidade, celebrados a cada quatro
anos com pompa e circunstância. Os jogos duravam cerca de um mês
e atletas de todo o Império se dirigiam à cidade para tomar parte nas
competições desportivas, que incluíam, além da luta e do pugilato, cam-
peonatos de retórica e corridas de cavalo. Os jogos tinham lugar em
Antioquia e em Dafne, um subúrbio a 8 km no sentido sul, em locais
próprios para este fim, como o Plethrion e o Xystos (LIEBESCHUETZ,
1972, p. 136).7 Afora os Jogos Olímpicos, que movimentavam bastan-
te a cidade de tempos em tempos, Antioquia contava ainda com um
extenso calendário de comemorações religiosas das quais a Maiuma e
a Caliopeia eram as mais concorridas.8 Essas festas davam ensejo a apre-
7
O Plethrion de Antioquia, construído durante o governo de Dídio Juliano, em
fins do século II, destinava-se a acomodar as competições de luta e pugilato,
outrora realizadas no teatro. Já a ereção do Xystos é um pouco anterior, re-
montando ao governo de Cômodo. Abrigando um templo em honra a Zeus
Olímpico, a divindade protetora dos Jogos, o Xystos era uma pista de corrida
coberta para uso dos atletas (DOWNEY, 1961).
8
O festival em honra de Calíope, padroeira de Antioquia, era celebrado anual-
mente, no início do verão. No que diz respeito à Maiuma, em honra a Dioniso
e Afrodite, sabemos que o festival acontecia a cada três anos, com duração
Teatro Grego e Romano . 269
sentações de mimos e pantomimas, encenadas no Teatro de Dioniso e
no Teatro de Dafne com grande sucesso, a julgar pela recorrência dos
ataques de João Crisóstomo contra os espetáculos teatrais. A respeito
do teatro da Capital as informações são mínimas, pois as escavações
conduzidas entre 1932 e 1939 não foram capazes de estabelecer com
exatidão o seu sítio. Pelos testemunhos literários, sabemos apenas que
o teatro, construído ou reconstruído por Júlio César, não ficava na re-
gião do fórum, mas nas encostas do Monte Sílpios, nas imediações do
templo de Dioniso. Quanto ao teatro de Zeus Olímpico, em Dafne,
felizmente as informações são mais detalhadas, pois os arqueólogos
conseguiram recuperar vestígios do edifício. O teatro, assim como o
de Antioquia, assentava-se numa colina, seguindo, portanto, o padrão
arquitetônico dos teatros gregos. O formato da orchestra, porém, era
semicircular e o proscaenium bem extenso, ao passo que a scaenae frons
era decorada com colunas de mármore e granito, assinalando uma ine-
quívoca influência romana. Sua construção remontava ao governo de
Vespasiano, que teria utilizado os espólios obtidos na Guerra da Judeia
para subvencionar a obra (KONDOLEON, 2001, p. 155).
Era nesses ambientes associados aos cultos de Dioniso e de Zeus
que a população de Antioquia tinha por hábito se reunir para assistir
aos mimos e pantomimas, provocando a ira de João Crisóstomo, que
se esforça por alertar a sua audiência acerca da contaminação à qual
estavam sujeitos ao frequentar os espetáculos teatrais, encenados num
ambiente assolado pela idolatria. Para João o recinto do teatro é satu-
rado de potestades demoníacas e, no seu interior, os espectadores, en-
tregues aos cuidados de Satanás e suas falanges, são capazes das piores
baixezas. Na sua série de homilias dedicadas ao comentário do Evan-
gelho de Mateus, o pregador, em inúmeras oportunidades, admoesta os
ouvintes para que não se deixem seduzir pelos perigos do teatro, que
é convertido, mediante argumentos retóricos bastante rudes, numa das
piores heterotopias possíveis, um local capaz de transtornar a persona-
lidade dos indivíduos, afastando-os de Deus. Numa passagem sugestiva
em que busca traçar a diferença entre o comportamento dos cristãos e
dos helenos por intermédio da crítica aos mimos, o pregador alude à
origem do teatro da seguinte maneira:

de trinta dias. Uma antiga tradição situava a Maiuma em maio, mas estudos
recentes assinalam outubro como o mês mais provável (SOLER, 2006, p. 10).
270 . Gilvan Ventura da Silva
Não nos convêm estar continuamente rindo e ser dissolutos
e lascivos, mas isso pertence àqueles sobre o palco, as pros-
titutas, os homens que são talhados para tal propósito, para-
sitas e bajuladores. Não aqueles que são chamados aos céus,
não aqueles que são inscritos na cidade de cima, mas aqueles
que são inscritos ao lado do demônio. Pois é ele quem fez do
assunto uma arte, para enfraquecer os soldados de Cristo e
arrefecer o seu zelo. Por esse motivo ele também construiu
os teatros nas cidades e, tendo treinado os bufões, pela per-
niciosa influência deles permitiu que esse tipo de pestilên-
cia queimasse sobre toda a cidade, persuadindo os homens
a seguir aquilo que Paulo nos ordenou evitar, “conversas e
brincadeiras tolas”. E o que é mais sério do que isso é o tema
da risada. Pois quando aqueles que executam essas coisas ab-
surdas, dizem alguma blasfêmia ou sujeira, muitos dentre os
mais irresponsáveis riem e se regozijam, aplaudindo-os por
aquilo que eles deveriam ser apedrejados. E atraindo sobre
suas próprias cabeças, por meio desses gracejos, a fornalha
de fogo (Mat. hom. VI,10).

João Crisóstomo considera o teatro, tomado tanto na acepção ar-


quitetônica quanto artística, como uma invenção demoníaca destinada
a minar a fé dos cristãos, numa distorção grosseira dos fatos históricos,
pois antes do surgimento do cristianismo, os espetáculos teatrais conta-
vam pelo menos uns quinhentos anos de história. No teatro, os atores,
esforçando-se por provocar o riso, empregam amiúde gestos licencio-
sos e imagens grosseiras. Os espectadores, por sua vez, não são tidos
como vítimas inocentes expostas aos horrores do local, mas comparti-
lham da vileza dos atores ao incentivá-los, por meio de gargalhadas, a
prosseguir com a sua conduta indecente. Congregando a ralé composta
por homens e mulheres depravados que afrontam a inteligência divina,
o teatro se torna a matriz de todos os comportamentos ditos contra na-
tura. Esse assunto merecerá atenção especial de João em outra homilia
da série, a de número 37:
E o que é uma vez mais o aplauso? O que são o tumulto, os
gritos satânicos e os gestos diabólicos? Pois, em primeiro
lugar, um indivíduo, sendo um rapaz, usa seu cabelo caindo
pelas costas, e mudando sua natureza para a da mulher, se es-
força em aspecto, em gesto e em roupas, e em todos os mo-
dos, para assumir a imagem de uma jovem donzela. Então
Teatro Grego e Romano . 271
outro que é velho, de modo contrário a isso, tendo raspado o
seu cabelo, com seu lombo preparado, sua vergonha retirada
antes do seu cabelo, aguarda, pronto para ser fustigado com
uma verga, pronto a nada fazer ou dizer. As mulheres uma
vez mais, com as cabeças descobertas, esperam sem sequer
enrubescer, discursando para a multidão, tão perfeita é a sua
experiência na falta de vergonha; e desse modo despejam im-
pudência e impureza na alma dos seus ouvintes. E seu único
propósito é remover toda a castidade desde as suas bases,
corromper nossa natureza para saciar o desejo dos demônios
imundos. E há também ditos repugnantes e gestos piores.
E o estilo do penteado segue esse caminho, e o modo de
andar e os trajes, e a voz e o movimento dos membros. E há
movimentos dos olhos, flautas, dramas, ardis. Em resumo,
todas as coisas da mais extrema impureza. [...] Tanto adulté-
rios quanto casamentos roubados estão aí, e há mulheres se
fazendo prostitutas, homens se prostituindo, jovens corrom-
pendo a si mesmos. E tudo é iniquidade ao extremo, tudo é
feitiçaria, tudo é vergonha (Mat. hom. 37,8).

Como se pode depreender desta passagem, o teatro, segundo


João Crisóstomo, é um ambiente que se presta a todas as confusões, a
todas as transgressões. Nele, os atores interferem na própria aparência
física, rompendo as fronteiras biológicas do sexo e da idade a fim de
confundir os espectadores. Atores, ao que tudo indica pantomimos,
assumem a aparência de mulheres, muito provavelmente por meio do
uso de máscaras com franjas, como vemos em algumas representações
iconográficas (JORY, 1996). Homens velhos, raspando a cabeça, se tor-
nam moços, e numa atitude de submissão incompatível com os códigos
de masculinidade vigentes na sociedade romana, se deixam fustigar. Já
as atrizes, trazendo a cabeça descoberta, um dos principais indícios da
falta de decoro para os cristãos, ousam falar em público, numa afronta
às orientações de Paulo, que proibia às mulheres tal conduta. A confu-
são de papeis que se estabelece no teatro é reforçada por um repertório
de artifícios destinados a atrair a atenção do espectador, tornando-o
presa fácil para os demônios. Recaem nessa categoria os gestos e pala-
vras obscenas, o estilo do penteado, a indumentária, as flexões vocais,
a maneira de caminhar, ou seja, todos os recursos característicos da
profissão de ator, que concorrem para arruinar os lares e corromper a
juventude. Por esse motivo é que o teatro, suas funções e seus profis-
sionais são, de acordo com João Crisóstomo, os principais responsáveis
272 . Gilvan Ventura da Silva
por disseminar o caos na cidade, como vemos em outra passagem, ex-
traída também da Homilia 37:
Eu pergunto a vocês: nós devemos arruinar todas as leis?
Não, mas é arruinar a ilegalidade se nós paramos com estes
espetáculos. Pois são eles que criam o caos em nossas cidades;
devido a eles, por exemplo, existem sedições e tumultos. Pois
eles são mantidos pelos dançarinos e por aqueles que vendem
a sua própria voz para o estômago, cujo ofício é gritar e
praticar tudo o que é abominável. Esses são especialmente
os homens que insuflam a população, que criam tumultos
em nossas cidades. Pois a juventude, quando dá as mãos à
indolência e é criada em tão grandes males, se torna mais
feroz do que as bestas selvagens. Os necromantes também,
eu pergunto a vocês, onde estão? Não é com o objetivo de
excitar o povo que está ocioso e sem propósito e fazer com
que os dançarinos sejam beneficiados com muitos e sonoros
aplausos, e fortalecer as prostitutas contra os castos, que eles
praticam até agora a feitiçaria, a ponto de nem mesmo deixar
de perturbar os ossos dos mortos? (Mat. hom. 37, 8).

João Crisóstomo produz aqui uma relação de causa e efeito entre


o teatro e a desordem pública, acusando uma vez mais os pantomimos
de insuflar a população e disseminar a insegurança na cidade. Sabemos
que, no Império Romano, a pantomima era a modalidade de espetá-
culo teatral favorita do grande público, dando margem à formação de
factiones que vez por outra entravam em atrito (LEBEK, 1996, p. 43),
como vemos no episódio do levante das estátuas de 387, quando a
claque do teatro tomou parte ativa nos motins, arrastando e destruindo
pelas ruas de Antioquia as estátuas do imperador e da imperatriz, num
ato de rebelião aberta que por pouco não culminou num banho de
sangue. Testemunha ocular do acontecido, João Crisóstomo não perde
a oportunidade de responsabilizar os atores pelas sedições, acusando-
os ainda de fazer uso das artes magicae para obter popularidade, o que
reforça o caráter idolátrico atribuído ao teatro, pois, num ambiente ge-
rido por Satanás, os sortilégios e encantamentos executados mediante
a invocação dos demônios não poderiam de modo algum se encontrar
ausentes. A essa altura, caberia interrogar a respeito da solução imagi-
nada por João Crisóstomo para colocar seus concidadãos ao abrigo das
“torpezas” do teatro. Implicaria tal solução a destruição completa dos
edifícios? Vejamos a resposta:
Teatro Grego e Romano . 273
“Vamos então por abaixo o palco”, eles dizem? Seria
possível fazer isso; ou antes, se nós quisermos, até onde nos
diz respeito, ele já está posto abaixo e enterrado. Contudo,
eu não desejo tal coisa. Deixando esses lugares de pé, como
estão, eu exorto vocês a torná-los sem efeito, o que seria um
elogio ainda maior do que destruí-los. Imitem pelo menos
os bárbaros, se não algum outro. Pois eles de fato são isentos
de contemplar tais visões. Que desculpa então podemos ter
a respeito disso, nós, cidadãos do céu, e companheiros nos
coros dos querubins e em irmandade com os anjos, por nos
tornarmos piores que os bárbaros, e isso quando muitos
outros prazeres, melhor que estes, estão ao nosso alcance?
Se vocês desejam que suas almas gozem de refrigério, se
dirijam a sítios agradáveis, a um rio fluindo ao redor, e aos
lagos, prestem atenção nos jardins, ouçam os gafanhotos
enquanto cantam, estejam o tempo todo junto à sepultura
dos mártires, onde há saúde do corpo e benefício da alma, e
nenhum ferimento ou remorso após o prazer. Tenham uma
mulher, tenham filhos. O que se compara a estes prazeres?
Tenham uma casa, tenham amigos, estas são as autênticas
delícias (Mat. hom. 37, 8-9).

Considerando a vitalidade da cultura greco-romana em Antio-


quia, João Crisóstomo não poderia decerto sugerir ao seu público que
promovesse a demolição dos teatros da cidade, uma alternativa que, no
entanto, não soaria de todo implausível ao pregador, uma vez que, em
fins do século IV, verificamos a multiplicação dos ataques a templos e
sinagogas por parte dos cristãos, fato que, em mais de uma ocasião, exi-
giu a mediação imperial a fim de restabelecer a normalidade. Na impos-
sibilidade de mobilizar a população cristã de Antioquia contra o teatro,
João imagina um estratagema mais sutil, apelando para a oposição entre
a vida na polis e uma vida mais próxima ao estado de natureza, livre as-
sim dos prazeres da cidade. Na medida em que o modus vivendi cívico, do
qual o teatro era uma das peças principais, constituía uma das expres-
sões mais nítidas da romanidade, João Crisóstomo estabelece um con-
traponto com os bárbaros, louvando estes últimos por não conhecerem
o teatro, uma metonímia para a própria vida urbana. Em substituição
aos prazeres do teatro, João sugere a sua congregação apreciar a flora e
a fauna e a buscar refúgio junto às sepulturas dos mártires que, em sua
maioria, se situavam em território extra muros. Investindo igualmente

274 . Gilvan Ventura da Silva


num reforço dos laços familiares, o pregador cria outra oposição, desta
vez entre a polis e o oikos, um topos que retomou amiúde ao longo da sua
carreira sacerdotal. Não que João pretendesse, mediante o emprego de
tais imagens, suprimir a polis, pois a cidade, segundo ele, era uma cria-
ção divina que havia sido corrompida pelos abusos humanos. Seu pro-
pósito era antes erradicar da polis tudo aquilo que desagradasse o Cria-
dor, de modo a restituir a ela a sua face original, vale dizer, a harmonia
entre os seus habitantes. Dentre as medidas necessárias para restaurar
o equilíbrio da polis, a supressão dos espetáculos teatrais revelava-se ur-
gente, pois, em sua concepção, o teatro era responsável por disseminar
a stásis e promover a cisão do corpo cívico. Ao fazer isso, no entanto,
João simplesmente descarta todo o simbolismo hierárquico que cerca-
va o teatro, convertido, na época imperial, num monumento à ordem
romana. Mantendo com a cidade antiga uma relação de permanente
estranhamento, o discurso cristão se volta contra um dos principais
símbolos constituintes do estilo de vida romano, dentro de um proces-
so de afirmação identitária que encontra, na cristianização do espaço
urbano, a sua contrapartida geográfica e arquitetônica. Nesse sentido,
a cristianização da cidade antiga implicou não apenas a construção de
edifícios conectados com o culto cristão, como os martyria, nosokomia e
hospitia, que pouco a pouco se impõem na paisagem. Ela implicou tam-
bém um trabalho contínuo de desconstrução dos lugares e ambientes
conectados com os valores e as concepções religiosas pagãs, os quais
são esvaziados da sua importância como espaços de sociabilidade e de
ratificação das normas que regiam a vida social para se tornarem espa-
ços perigosos, poluentes e, por isso mesmo, intransitáveis. Dentro des-
se processo de formulação de heterotopias desencadeado pela Igreja na
Antiguidade Tardia, certamente nenhum outro edifício greco-romano
foi tão atingido na sua dignidade quanto o teatro.

DOCUMENTAÇÃO TEXTUAL

CHRYSOSTOM, St. John. Homilies on the Gospel of Saint Matthew. In:


SCHAFF, F. (ed.) Nicene and post-Nicene fathers. Translated by G. Prevost.
Peabody: Hendrickson, 2004. v. 10.
Repertório de noventa homilias sobre o evangelho de Mateus
pronunciadas por João Crisóstomo durante a sua fase como presbítero
em Antioquia. Conjugando a exegese do texto bíblico com orientações

Teatro Grego e Romano . 275


de natureza disciplinar, as homilias constituem uma preciosa fonte de
informação sobre o cotidiano do Império na Antiguidade Tardia.

PHARR, C.; DAVIDSON, T. S. (Trad.). Codex Theodosianus and novels and


Sirmondian Constitutions. Princeton: Princeton University Press, 1952.
Coletânea de leis da fase final do Império Romano, o Código Teodosiano é
uma das principais fontes para o estudo, não apenas de temas próprios
da esfera do Direito, mas também de aspectos da vida cotidiana, pois
os imperadores costumavam legislar sobre os assuntos mais prosaicos,
como, por exemplo, a cor da roupa das prostitutas.

BIBLIOGRAFIA COMENTADA

LEYERLE, B. Theatrical shows and ascetic life: John Chrysostom’s attack on


spiritual marriage. Berkeley and Los Angeles: University of California
Press, 2001.
A autora, ao analisar os argumentos de João Crisóstomo contrários
ao costume das virgens coabitarem com homens que não eram seus
parentes, demonstra como tais argumentos se encontram repletos de
imagens extraídas do teatro.

LUGARESI, L. Il teatro di Dio: il problema degli spetacolli nel


cristianesimo antico (II-IV secolo). Brescia: Morcelliana, 2008.
Obra fundamental para o estudo do pensamento eclesiástico sobre o
teatro, com destaque para Tertuliano, Agostinho e João Crisóstomo.
Nela, o autor se dedica a investigar os pontos de convergência entre
os discursos cristãos, realizando uma ampla prospecção das principais
fontes disponíveis.

SLATER, W. J. (ed.). Roman theater and society. Ann Arbor: The University
of Michigan Press, 1996.
Trata-se de uma coletânea composta por sete ensaios nos quais os
autores abordam diversos aspectos referentes ao teatro romano,
dentre os quais a profissão do ator, a iconografia das pantomimas,
a importância do teatro como um espaço de exercício do poder e a
relação dos cristãos com os espetáculos.

276 . Gilvan Ventura da Silva


SEAR, F. Roman theatres: an architectural study. Oxford: Oxford
University Press, 2006.
Estudo erudito e abrangente sobre os teatros romanos do ponto de
vista da arquitetura. Cotejando a documentação arqueológica com
uma leitura atenta dos textos literários, o autor expõe, em detalhes, a
maneira pela qual os edifícios eram construídos, mantidos e restaurados,
fornecendo ainda um inventário dos teatros do Império.

SOLER, E. Le sacré et le salut à Antioche au IVe siècle après J.-C.: pratiques


festives et comportements religieux dans le processus de christianisation
de la cité. Beyrouth: Institut Français du Proche-Orient, 2006.
Uma das obras mais completas sobre as tradições religiosas de Antioquia
no final do Império. Nela, o autor tem por objetivo refutar a concepção
segundo a qual, no século IV, a cidade já estivesse completamente
cristianizada. Para tanto, um dos argumentos que evoca é justamente a
popularidade dos espetáculos teatrais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Roman theater and society. Ann Arbor: The University of Michigan Press,
1996, p. 161-180.
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(ed.). Roman public buildings. Exeter: University of Exeter, 1989, p. 97-
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University Press, 1961.
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Antiquity. In: MILES, R. (ed.) Constructing identities in Late Antiquity.
London: Routledge, 1999, p. 95-111.
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romani: espectáculos en Hispania Romana. Mérida: Museo Nacional de
Arte Romano, 2002, p. 9-29.
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Christian society. Vigiliae Christianae, v. 52, n. 2, p. 293-318, 1998.

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Roman theater and society. Ann Arbor: The University of Michigan Press,
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KONDOLEON, C. Antioch, the lost city. Princeton: Princeton University
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(ed.). Roman theater and society. Ann Arbor: The University of Michigan
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spiritual marriage. Berkeley and Los Angeles: University of California
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in the Later Roman Empire. Oxford: Oxford University Press, 1972.
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d’après Jean Chrysostome In: KANNENGIESSER, C. (ed.). Jean
Chrysostome et Augustin. Paris: Beauchesne, 1975, p. 41-59.
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VEYNE, P. L’Empire Gréco-Romain. Paris: Seuil, 2005.
278 . Gilvan Ventura da Silva
Fig. 1 – Padrões arquitetônicos dos teatros grego e romano

Vemos acima, em “A”, o teatro de Epidauro, construído no


século IV a.C., com sua orchestra circular e o proscaenium limitado. Em
“B” temos a reprodução do teatro de Arausio, nas Gálias, construído
no primeiro século d.C, com destaque para a orchestra semicircular e o
amplo proscaenium. Fonte: Brothers (1989).
Teatro Grego e Romano . 279
Fig. 2 – Ocupação do teatro segundo a Lex Iulia Theatralis, de Augusto
Fonte: Edmondson (2002)

280 . Gilvan Ventura da Silva


Sobre os autores

Alexandre Carneiro Cerqueira Lima – Professor Associado do Departa-


mento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal Fluminense. Pesquisador do NEREIDA/UFF e
MNEMOSYNE/UEMA. E-mail: <alexcarneiroclima@yahoo.com.br>.

Ana Livia Bomfim Vieira – É professora Adjunta de História Antiga do


curso de História da Universidade Estadual do Maranhão – UEMA
e do PPGHEN – Programa de Pós-Graduação em História, Ensino
e Narrativas da UEMA. Coordena o MNEMOSYNE – Laborató-
rio de História Antiga e Medieval do Maranhão, e é pesquisadora do
NEREIDA/UFF. Estuda o imaginário marinho, os mitos e suas re-
lações com a religiosidade grega e os modelos identitários. E.mail:
<analiviabv@gmail.com>.

Ana Teresa Marques Gonçalves – Professora Associada III de História


Antiga e Medieval na Universidade Federal de Goiás. Doutora em His-
tória pela USP. Bolsista Produtividade II do CNPq. Coordenadora do
LEIR-GO e do GTHA - GO. Autora de diversos artigos em periódicos
nacionais e estrangeiros, coordenadora de várias coletâneas e autora do
livro A Noção de Propaganda e sua Aplicação nos Estudos Clássicos: O Caso dos
Imperadores Romanos Septímio Severo e Caracala (2013).

Brian Gordon Lutalo Kibuuka – Mestre em História Antiga pela Univer-


sidade Federal Fluminense e Mestre em Letras Clássicas pela Universi-
dade Federal do Rio de Janeiro, com estudos feitos na Universidade de
Coimbra, dedicou sua formação acadêmica ao estudo do Teatro Gre-
go, em particular, o teatro de Eurípides. Graduou-se ainda em Teolo-
gia pelo Seminário Presbiteriano do Rio de Janeiro, em Teologia pela

Teatro Grego e Romano . 281


Universidade Metodista de São Paulo e em Letras (Português-Grego)
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. É pesquisador do grupo
NEREIDA, sob a orientação do Prof. Dr. Alexandre Carneiro, do Cen-
tro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra
e do Grupo de Pesquisa Discurso na Antiguidade Grega (DAG-UFRJ).

Claudia Beltrão da Rosa – Professora Associada do Departamento de


História e do Programa de Pós-graduação em História da Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Doutora em História
Antiga, a autora atua nas áreas de História Antiga Romana e Estu-
dos Clássicos, realizando e orientando pesquisas nos seguintes temas:
Roma republicana; religião romana; religião e política romana; teatro
romano; religião, rituais e imagens.

Fábio de Souza Lessa – Professor Associado de História Antiga do Ins-


tituto de História (IH) e do Programa de Pós-Graduação em Histó-
ria Comparada (PPGHC) da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ). Membro do Laboratório de História Antiga (LHIA) / UFRJ e
Membro Colaborador do Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos
da Universidade de Coimbra.

Gilvan Ventura da Silva – É professor dos Programas de Pós-Graduação


em História e em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo,
mestre em História Antiga e Medieval pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro, doutor em História Econômica pela Universidade de
São Paulo, pesquisador do Laboratório de Estudos sobre o Império
Romano (Leir) e bolsista produtividade 1-D do CNPq.

José d’Encarnação – É Professor Catedrático na Universidade de Coim-


bra. Membro do Centro de Estudos Arqueológicos das Universidades
de Coimbra e Porto. Escreveu mais de cinco centenas de artigos cien-
tíficos, tem proferido conferências para os mais diversos públicos, e já
participou em mais de duas centenas de reuniões científicas, em Por-
tugal e no estrangeiro. Especializou-se em Epigrafia, domínio em que
publicou as seguintes obras: Divindades Indígenas sob o Domínio Romano em
Portugal (Subsídios para o seu Estudo), Imprensa Nacional – Casa da
Moeda, Lisboa, 1975; Inscrições Romanas do Conventus Pacensis – Subsídios
para o Estudo da Romanização, 2 volumes, Coimbra, 1984; Introdução ao

282 . Sobre os Autores


Estudo da Epigrafia Latina, Coimbra, 1979 (1.ª edição), 1987 (2.ª), 1997
(3.ª); Roteiro Epigráfico Romano de Cascais, Cascais, 1994 e 2001 (2.ª edi-
ção); Estudos sobre Epigrafia, Coimbra, 1998; Epigrafia – As Pedras que
Falam, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2006 e 2010 (2.ª edição).

Maria Regina Candido – É Professora Associada de História Antiga e


Coordena a Area: História Antiga e Medieval do Departamento de His-
tória da UERJ. Atua na Coordenação do NEA//www.nea.uerj.br e na
Coordenação do Lato Sensu de História Antiga e Medieval/CEHAM-
UERJ. Membro da Society for Historical Archaeology/SHA/USA.
Orienta temas de pesquisa sobre religião, mito e magia na Grecia An-
tiga nos Cursos de Graduação de História e de Arqueologia Clássica
assim como no PPGH-UERJ.

Patricia Horvat – É Bacharel em Belas Artes (Escultura), Mestre em Fi-


losofia e em Psicanálise e Doutoranda em Psicanálise. Professora de
Filosofia no Curso de Licenciatura em História da UNIRIO. É pes-
quisadora do Núcleo de Estudos e Referências sobre a Antiguidade
e o Medievo (NERO/UNIRIO) e do Núcleo de Representações e de
Imagens da Antiguidade da Universidade Federal Fluminense (NE-
REIDA/UFF). Estuda a recepção do Teatro Antigo e sua interface
com a Psicanálise.

Regina Maria da Cunha Bustamante – Possui Licenciatura Plena e Bachare-


lado em História pela UFRJ, Mestrado em História Social pela UFRJ e
Doutorado em História pela UFF. Atualmente, é Professora Associada
da UFRJ, vinculada ao Instituto de História, sendo docente dos Cursos
de Bacharelado e Licenciatura em História e dos Cursos de Mestrado
e Doutorado do Programa de Pós-graduação em História Comparada
da UFRJ e do Curso de Mestrado Profissional de Ensino de História
/ PROFHISTÓRIA. Pesquisadora do Laboratório de História Anti-
ga / UFRJ. Coeditora científica da Revista Phoînix (ISSN 1413-5787).
Atua na área de História Antiga, com ênfases em: Antiguidade Roma-
na, desenvolvendo pesquisa em África Romana, identidade/alteridade
e imagética, e Ensino de História, particularmente, em Educação Patri-
monial, documentos e o seu uso na produção e no ensino do conheci-
mento histórico escolar.

Teatro Grego e Romano . 283


Sônia Regina Rebel de Araújo – Professora Associada de História An-
tiga, pertencente aos quadros do PPGH-UFF. Co-organizadora, com
Claudia Beltrão da Rosa e Fábio Duarte Joly do livro Intelectuais, Poder e
Política na Roma Antiga (NAU, 2009) e co-organizadora com Alexandre
Carneiro Cerqueira Lima, do livro Um Combatente pela História: Profes-
sor Ciro Flamarion Cardoso (Vício de Leitura, 2012).

Talita Nunes Silva – Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em


História da Universidade Federal Fluminense e Bolsista da CAPES.
Pesquisadora do NEREIDA/UFF. E-mail: <talita.nunes@uol.com.br>.

Vanessa Ferreira de Sá Codeço – Doutora em História Comparada pela


Universidade Federal do Rio de Janeiro e membro do Laboratório de
História Antiga (LHIA). Estuda temas relacionados a Teatro Antigo
Grego, História da Vestimenta, Etinicidade e Educação Grega Clássica.

284 . Sobre os Autores

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