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São Luís
2015
Copyright © 2015 by Ana Livia Bomfim Vieira & Claudia Beltrão da Rosa
Editoração: Café & Lápis
Editores: Claunísio Amorim Carvalho & Germana Costa Queiroz Carvalho
Revisão: Claunísio Amorim Carvalho
Diagramação: Germana Costa Queiroz Carvalho
Capa: Marísio Amorim Carvalho
Ilustração da capa: “Carta Arqueológica”. Gravura em metal. Água-forte e água tinta, de
Patrícia Horvat.
Impressão: Halley S. A. Gráfica e Editora
284 p.
Coletânea de Artigos
ISBN 978-85-62485-48-0 (Café & Lápis)
ISBN 978-85-8227-083-7 (Editora UEMA)
CDU 930.85:792(37/38)
CDD 792.01
__________________________________________________________
Ficha catalográfica elaborada por:
Marcelo Neves Diniz – Bibliotecário – CRB 489/13
EDITOR RESPONSÁVEL
Alan Kardec Gomes Pachêco Filho
CONSELHO EDITORIAL
Ana Lucia Abreu Silva
Ana Lúcia Cunha Duarte
Eduardo Aurélio Barros Aguiar
Fabíola Oliveira Aguiar
Helciane de Fátima Abreu Araújo
Jackson Ronie Sá da Silva
José Roberto Pereira de Sousa
José Sampaio de Mattos Júnior
Luiz Carlos Araújo dos Santos
Marcelo Cheche Galves
Márcia Milena Galdez Ferreira
Maria Claudene Barros
Maria José Nélo
Sumário
Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13
Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 135
14 . Apresentação - Parte 1
simbólica de experiências humanas na fronteira entre o mito, o logos,
o cívico e o irracional.
O artigo de Alexandre Lima e Talita Silva, Máscaras, espadas e ma-
chado: assimilações e trocas entre poetas e artesãos em Atenas Clássica, vai refletir
sobre as relações que podem ser traçadas entre o teatro, e as encena-
ções teatrais e a cerâmica ática, como suporte de representações destas
encenações. Os autores evidenciam o trânsito existente entre o teatro
e as oficinas, expondo a figura do artesão que é, ao mesmo tempo,
espectador e produtor destas representações imagéticas. E nestas re-
presentações, é possível perceber todos os conflitos e transgressões ex-
postos nas encenações teatrais. Em um mesmo sentido, o de evidenciar
o teatro como lugar de exposição/discussão de conflitos, segue o texto
de Fábio Lessa e Vanessa Codeço, A etnicidade grega em Eurípides: o caso
dos Ciclopes, que tratará de uma das questões mais importantes para a
construção da identidade grega, ou seja, a relação com o não- grego. O
artigo vai analisar a questão da etnicidade entre os gregos, partindo de
um peça do tragediógrafo Eurípides – o Ciclope – para demonstrar que
esta categoria funciona como demarcação de autorreconhecimento e
de territórios simbólicos que constroem as fronteiras entre o eu e o
outro.
No trabalho de Brian Kibuuka, Do poder à servidão, da servidão à
morte: representações da guerra e da violência no prólogo da tragédia Hécuba, de
Eurípides, os principais conflitos e tensões apresentados provêm das
representações da violência e da guerra. Estas representações não são
explícitas, já que a guerra ela mesma não figurou nas peças do trágico,
mas sua concepção da guerra é que seus males alcançam níveis sociais
muito amplos, levando os homens ao excesso e ao erro.
Retomando o tema do teatro como lugar de encontro entre pas-
sado e presente, Ana Livia Bomfim Vieira expõe, em O Teatro de Ésquilo
e os valores que vêm do campo, as peças de Ésquilo como discursos nostálgi-
cos de uma Atenas passada, de valores ligados ao campo e ao trabalho
na terra. A Atenas do V século a.C. é vista pelo tragediógrafo como
uma pólis corrompida pelos valores citadinos. E, novamente, podemos
observar o teatro como um lugar de questionamento da “realidade”
vivida. Patrícia Horvat desloca a reflexão dos conflitos e tensões para
a relação entre tragédia e psicanálise em Os sonhos de Io: uma abordagem
psicanalítica de Promoteu Acorrentado. A autora constrói uma singular aná-
lise sobre a naturalização de uma ordem simbólica cultural, baseada em
16 . Apresentação - Parte 1
Máscaras, espadas e machado:
assimilações e trocas entre poetas
e artesãos em Atenas Clássica
Introdução
Do teatro ao vaso
Muitas peças trágicas e cômicas ficaram no imaginário dos
atenienses durante o período clássico. E provavelmente estimularam
outros demiourgós (poetas, artesãos, filósofos) em suas obras. Temáticas
criadas por Ésquilo e Eurípides, por exemplo, foram representadas e
pintadas pelos artesãos do Cerâmico.
Nós podemos, então, pensar em uma assimilação direta, por parte
do ceramista, de temas veiculados no teatro? Sim, mas tomando alguns
cuidados. Não acontecia em Atenas o que vemos atualmente ocorrer
com filmes, novelas e seriados que geram uma enxurrada de produtos,
souvenirs e até mesmo artefatos caracterizados como ‘artísticos’. O cera-
mista, da mesma forma que o poeta, possui um referencial e esse pode
ser uma peça de teatro. Entretanto, como mostrou Anthony Snodgrass
(2004), os pintores arcaicos possuíam a liberdade para criarem suas
obras e não estavam atrelados exclusivamente à ‘tradição’ homérica.
Nós entendemos, da mesma forma que Snodgrass, que os pintores do
Cerâmico terão a liberdade de criar a partir de temas ou de passagens
de peças teatrais. Isso quer dizer que o teatro passou a ser mais uma
manifestação cultural importante no repertório dos artesãos da Ática.
Um bom exemplo é a cratera de Pronomos. Nesse artefato nós
podemos reconhecer os atores com suas máscaras e os músicos com
os seus instrumentos (CALAME, 1986; WILSON, 2008).
Tanto o teatrólogo quanto o ceramista possuem um fator
limi-tador: o espaço para a representação. O teatro para o poeta e
o suporte cerâmico para o pintor. O poeta adapta seu repertório
extenso de referências ao espaço da encenação. O teatro (assentos,
orquestra, palco) está presente na própria obra do escritor teatral. O
espaço, portanto, interfere na obra do ‘artista’. Lembremo-nos da ida
ao Hades pelo personagem Dionisos na peça As Rãs, de Aristófanes.
O comediógrafo monta um Hades no palco com o protagonista,
Dionisos, disfarçado de Héracles. Dionisos pede conselhos ao herói,
que se saiu vitorioso em sua viagem ao mundo subterrâneo. Em um
1
De acordo com Marcel Detienne, a epifania dionisíaca pode ser caracteri-
zada, em um primeiro momento, por confrontos e conflitos. “Segundo tipo
de epidemia: o deus da vinha, a divindade do vinho e seus hospedeiros. (...)
Epifania do senhor da taça inebriante, de quem a tradição ateniense nos dá
refinada versão em suas voltas e contravoltas, tornando visível o quadro das
mediações que preparam o advento das boas maneiras ao banquete do vinho”
(DETIENNE, 1988, p. 18).
2
Lembremos que o transe dionisíaco começa pelos pés por meio de saltos. “O
deus cabrito, o filhote de cabra em meio às bacantes da noite” (DETIENNE,
1988, p. 83).
3
Cratera ática de figuras vermelhas, ca. 460-450 a. C. Museo Archeologico
Nazionale di Spina, inv. no. 20299 (VILLANUEVA-PUIG, 1992, p. 145).
22 . Alexandre Carneiro C. Lima e Talita Nunes Silva
[Fig. 1 - Atores e máscara]
A permanência do caráter ‘transgressor’ de Clitemnestra na
iconografia
Talita Nunes Silva
Como vimos anteriormente, muitas das peças teatrais permearam
o pensamento dos atenienses durante o Período Clássico e influenciaram
a obra dos pintores dos vasos cerâmicos. Esse deve ter sido o caso das
tragédias escritas por Ésquilo, a julgar pela popularidade de sua obra. O
número de cenas remanescentes do teatro esquiliano nos dá uma idéia
desta notoriedade. Em Illustrations of Greek Drama, vemos que
uma contagem bruta recente do número total de ilustrações
sobreviventes nos dá alguma idéia do aumento e queda de po-
pularidade. Esta pesquisa dá 167 ilustrações de Ésquilo, das
quais 89 podem ser datadas no quinto século, 58 no quarto, e
um punhado mais tarde (...) (TRENDALL, 1971, p. 1).
12
Ésquilo trata os homicídios cometidos por Clitemnestra como metáforas
do rito do sacrifício, chegando a assemelhar Agamêmnon a um boi. Como
os animais de grande porte – segundo Walter Burkert – eram mortos com
o pe/lekuv, seria, portanto, de se esperar que ele fosse morto com o uso do
machado duplo.
Teatro Grego e Romano . 27
adotando um instrumento associado ao masculino e assumindo uma
postura viril, mas igualmente ela está demonstrando o caráter racional
de sua ação. Isto posto, Clitemnestra nesta representação assume
papéis negados ao sexo feminino. Ao ser representada como uma
mulher bem-nascida assassina, sacrificadora, manipuladora de espada
e executora de ação fruto de premeditação, ela nos permite designá-la
como uma mulher masculina e consequentemente transgressora.
A Clitemnestra da cratera analisada é, portanto, uma mulher
transgressora tanto pelo ato que comete (assassinato) como pela
forma como o empreende (uso de espada). Do mesmo modo que a
Clitemnestra de Ésquilo, a personagem representada neste vaso se
utiliza da espada e não do pélekus para executar suas vítimas. O que
– como mencionado anteriormente – devido ao fato de sua datação
ser posterior à da primeira representação da Oréstia, nos permite supor
uma provável ‘influência’ da trilogia esquiliana na criação do pintor.
No entanto, mais do que uma provável assimilação da dramaturgia de
Ésquilo, o que nos chama atenção ao observarmos esta imagem é a
coexistência tanto na literatura como na iconografia do Período Clássico
de uma percepção de Clitemnestra como mulher ‘transgressora’ ao
ideal de comportamento feminino vigente na sociedade ateniense.
A nossa proposta, nesse capítulo, consistiu em problematizar o
possível diálogo e trocas entre teatro e imagética. Pintores, artesãos e
poetas, na pólis dos atenienses, viviam experiências comuns. Máscaras,
espadas, machados são signos que nos permitem aproximar esses
‘artistas’ que viviam entre o Cerâmico e o Teatro de Dionisos.
ÉSQUILO. Agamêmnon (Orestéia Vol. I). Trad. Jaa Torrano, ed. bilíngue.
São Paulo: Iluminuras; FAPESP, 2004.
_____. Coéforas (Orestéia Vol. II). Trad. Jaa Torrano, ed. bilíngue. São
Paulo: Iluminuras; FAPESP, 2004.
_____. Eumênides (Orestéia Vol. III). Trad. Jaa Torrano, ed. bilíngue. São
Paulo: Iluminuras; FAPESP, 2004.
Lexicon Iconographicum Mythologiae Classicae (LIMC), v.VII (1). Artemis
Verlag Zürich und München, 1994, f. 200, p. 685.
2
Quanto ao termo bárbaro, Alexandre Moraes destaca que “a etimologia do
vocábulo barbarophônon é costumeiramente discutida. Sugere-se, por exemplo,
que o termo seja decorrente de uma onomatopeia de bambaino, “bater os den-
tes” e/ou “tremer de medo”, que teria gerado por sua vez o latim balbutio.
Entretanto, parece mais plausível admitir que seja apenas uma representação
de um gaguejar, visto que a repetição da primeira sílaba (bar-bar) soa mal em
grego. Podes ser que se tratasse de uma maneira jocosa de se referir àqueles
cuja língua era radicalmente diferente do grego e que, por isso, gerava es-
tranhamento”. Segundo ainda o autor, o termo βα βα οθώνων (barbarophônon)
aparece em Homero (Ilíada, II, 867) para se referir aos Cários (MORAES,
2011, p. 11).
Teatro Grego e Romano . 37
(Sileno): Não existem. Neste monte não habitam seres humanos.
(Ulisses): A quem pertencem estas terras? A feras, por acaso?
(Sileno): Aos Ciclopes, que habitam antros, não casas.
(Ulisses): Quem é seu chefe? Possuem eles o regime democrático?
(Sileno): São pastores errantes e ninguém obedece a ninguém em nada.
(Ulisses): De que se alimentam? Cultivam o trigo, consagrado à
Deméter?
(Sileno): Alimentam-se de leite, queijo e de carne de carneiro.
(Ulisses): Não bebem o suco da videira, consagrado a Brômio?
(Sileno): De modo algum. Também não existe a dança nestes locais
por eles habitados.
(EURÍPIDES, O Ciclope, v. 114-124).
Documentação Textual
Bibliografia
2
É, na Antiguidade, a descrição de alguma coisa, de alguma pessoa ou de
alguma experiência.
3
Os dois termos, hýbris e hamartía, são termos utilizados por Aristóteles para
descrever aquilo que o herói das tragédias faz que justifica o desfecho trágico
das peças.
Teatro Grego e Romano . 45
A pólis-teatral, os festivais trágicos e a guerra
18
Bacantes, Héracles, Íon e Medeia.
19
Helena, Os Filhos de Héracles, Medeia e Suplicantes.
20
Alceste, Electra, Helena, Os Filhos de Héracles, Hipólito e As Fenícias.
21
Hécuba, Fenícias, Suplicantes eTroianas.
22
Em Andrômaca, por exemplo, cita-se a dor causada pela guerra até para os
vencedores (v. 650 ss).
Teatro Grego e Romano . 55
Os critérios temáticos empregados na feitura e na performance
das tragédias não são aleatórios, tornando mais difícil ainda a tarefa
de articular as referências ao contexto no texto trágico, permitindo a
apropriação do drama pelo pesquisador para que tal sirva de documen-
tação textual que informa indiretamente a respeito da Atenas Clássica.
O mesmo se diz a respeito do caráter artístico do drama grego, o qual
se torna preponderante quando o texto trágico é observado a partir
de sua natureza composicional e são inferidos neste os aspectos de
sua performance – ou seja, quando são aferidos os aspectos relacionados
à possibilidade de se destacar de forma suficientemente criteriosa
materiais de filiações diversas, os quais estão imbricados no texto
trágico. É tal o problema que é o ponto de investigação que motiva o
trabalho a ser apresentado em seguida: indicar, por meio de um breve
passo de um texto dramático, os aspectos próprios da cultura e da
sociedade ateniense.
Primeira Cena: o ‘fantástico’ anúncio da traição por cobiça que segue à guerra
CONCLUSÃO
33
“destiné à fonder toutes les formes d’action et de pensée par lesquelles
l’homme se comprend lui-même dans son monde” RICOEUR, Paul. Philoso-
phie de la volonté 2, Finitude et culpabilité 2, La symbolique du mal, Aubier, 1960, p.
168-169.
70 . Brian Gordon Lutalo Kibuuka
de violência, mas demonstra através de uma rica discussão aquela que
é justificável e aquela que não é. Opõe-se e reconciliam-se na tragédia
Hécuba a violência e a justiça em uma formulação cuja equação final é
o reconhecimento – mesmo que o caminho para tal seja a catarse pela
violência retributiva.
Há no prólogo inversões radicais, que ocorrem diante dos olhos
dos espectadores. Inversão do corpo vivo em morto. Inversão do
senhorio em escravidão. Em tais inversões, junge-se a ideia da guerra,
da violência e do sofrimento. Em cada uma das inversões eclode uma
nova perspectiva do texto: a dos espectadores, que são também autores
e participantes da guerra e do teatro. E eles mesmos, vítimas e vilões,
espectadores e atores sociais, entendem o prólogo de Hécuba porque se
entendem, com ou sem máscaras.
BIBLIOGRAFIA COMENTADA
REFERÊNCIAS
Um período de mudanças
Ainda podemos ler: “(...) mais agradáveis para mim que a própria
chuva mandada pelos deuses para a terra ávida na época em que as
flores todas desabrocham.”(ÉSQUILO. As Suplicantes, v. 1109-1118).
Fica clara a intimidade do ateniense, que estava presente na pla-
teia dessas peças, com os sinais da natureza. Ésquilo nos mostra isso
Teatro Grego e Romano . 83
colocando em suas peças o conhecimento, o saber do camponês, a
consciência de que no verão o vinho é mais bem consumido, que a
presença de seiva nas raízes mostra que a planta ainda tem vida, que
as chuvas são de suma relevância para o agricultor que precisa que seu
trabalho tenha sucesso. Sua vida depende disso. O saber camponês pre-
sente em Ésquilo, portanto, deixa transparecer que este conhecimento
está presente na pólis ateniense, que ele é o tipo de saber que melhor
representa e que insere majoritariamente o corpo cívico na chóra. Esse
conhecimento está vinculado, também, ao respeito aos deuses. Essa é
outra característica da sociedade aristocrática de Hesíodo que vai estar
presente na Atenas de Ésquilo. O camponês não poderia deixar de
se guiar pela natureza se quisesse ter sucesso com suas práticas. Era
fundamental estar atento aos sinais da phýsis. Contudo, mais importan-
te ainda era realizar os rituais aos deuses. O homem do campo, para
que sua produção não fosse prejudicada pela ira dos deuses, precisava
render-lhes homenagens, oferendas, preces e agradecimentos. O mun-
do do camponês pertence aos deuses. A pólis ateniense pertence tam-
bém aos deuses. E é isso que Ésquilo nos mostra. Em nossa análise,
podemos demonstrar estes dados através dos seguintes versos: “Os
muitos generosos dons de Zeus e as sementeiras anuais sempre vencem
a fome(...)” (ÉSQUILO. Agamêmnon, v. 1158-1160). Podemos observar
a mesma questão ainda neste trecho “Foi Zeus, que tudo faz e causa
tudo!...Nada acontece a nós, mortais, sem Zeus. Que pode haver sem o
querer divino?” (ÉSQUILO. As Suplicantes, v. 1728-1730).
É pela vontade dos deuses que as colheitas abundam, os reba-
nhos reproduzem, e os rios dão peixes. O homem deve respeitar os
sinais da natureza e as suas regras, como as sementeiras anuais, por
exemplo. Ele deve, porém, colocar os deuses acima de tudo, pois é
através das graças derramadas por eles que prosperam as atividades
humanas. A não obediência aos ritos pode ser desastrosa:
Na noite de nossa chegada um deus mandou um rigoroso
inverno antes do tempo certo, gelando inteiramente o Estrí-
mon, rio sacro. Ali, alguns de nossos homens, descuidosos
até então da reverência aos deuses pátrios, faziam promessas,
adorando o céu e a terra (ÉSQUILO. Os Persas, v.658-664)
(...) o leite de uma vaca nunca poluída pelo odioso jugo, o mel
brilhante feito pela aproveitadora de todas as flores, além de
água corrente de uma fonte virgem; trago também este licor
puro e alegre, filho de mãe selvagem – de uma vinha antiga –
e este fruto oloroso e louro da oliveira e flores em guirlanda,
dons da terra fértil (ÉSQUILO. Os Persas, v. 792-799).
CONCLUSÃO
DOCUMENTAÇÃO TEXTUAL
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1
Conforme Judith Butler, consideraremos o gênero como “performativo”,
ou seja, constituindo uma identidade proposta por um processo político e
educacional, entendendo-o como uma construção social, culturalmente con-
tingente, e não como uma concretização de uma distinção “biológica”, as-
sumindo que “verdades” sobre as diferenças entre homens e mulheres são
frutos de discurso e de práticas sociais e culturais: BUTLER, J. Gender Trouble:
Feminism and Subversion of Identity (Thinking Gender) New York, Rou-
tledge, 1990, p. 25.
2
Termo que, segundo Ursula King, surgiu na sociologia norte-americana do
início do século XIX, designando a adequação da experiência masculina nas
sociedades europeias e europeizadas ocidentais com a experiência humana
geral, e que deveria ser, portanto, aceita como norma por mulheres e homens,
universalmente: KING, U. Religion and Gender: Embedded patterns, in-
terwoven frameworks. In: MEDDE, T. A; WIESNER-HANKS, M.E. (edd.).
A Companion to Gender History.The Blackwell Publishing Ltd. 2004, p. 73.
Teatro Grego e Romano . 91
“naturais” são elementos culturalmente incutidos nos seres humanos
por um longo processo educativo (BELTRÃO; HORVAT, 2010, p. 2).
A tragédia apresenta o castigo do titã Prometeu, protetor dos
seres humanos, a quem concedeu o fogo roubado de Zeus, e ensinou as
artes. Zeus, como punição, ordena Cratos, o poder, Bias, a violência, e
Hefestos, o deus metalúrgico, a acorrentá-lo na Cítia,3 região escarpada
e selvagem, perto do mar e fora dos limites do espaço humano (“Deves
cumprir à risca, Hefesto, o édito/ paterno: aprisionar o criminoso/
com fortes cabos de aço no rochedo/ íngreme”, v. 3-6). Prometeu está
preso à rocha e ali permanece (“Que aprenda a dar valor à voz de
Zeus”. v. 10) e a peça consiste nos diálogos entre o Titã e seus visitantes
(BELTRÃO; HORVAT, 2010, p. 7).
Io, filha do deus-rio Ínaco, surge repentinamente no terceiro
episódio, reclamando ser perseguida por um moscardo, ou pelo espectro
de Argos, o pastor de mil olhos. A personagem conta sua história:
Zeus tomou-se de desejo por ela, que o recusou, acusando-o de um
desejo ignóbil, posto que ela era uma sacerdotisa do palácio de Hera
(TORRANO, 2009, p. 349) e, portanto, destinada à castidade. Furioso,
Zeus forçou seu pai Ínaco, o deus-rio, filho do Oceano, a expulsá-la
de casa, e em sua testa brotaram chifres de vaca. A moça-vaca passou
a ser vigiada por Argos que, morto por Hermes, assombrava-a sob a
forma de um moscardo monstruoso, que não cessava de picá-la e a
condenava a fugir incessantemente dele. Na tragédia, Prometeu indica
a Io a longa viagem que faria, até seu término, às margens do Nilo,
onde estaria destinada a dar à luz Épafo, de quem descenderiam as
Danaides e, após muitas gerações, Héracles, o libertador de Prometeu.
O episódio termina abruptamente, com o retorno do moscardo, que a
espanta, e a fuga desesperada de Io, seguindo-se um estásimo4 do Coro,
lamentando a triste sina de Io.
Consideramos, então, como uma possibilidade de interpretação
do terceiro episódio de Prometeu Acorrentado, que Prometeu desem-
penha um papel análogo ao de um psicanalista a quem Io, mimetizando
a histeria, endereça a demanda de ajuda para a compreensão das
razões do seu sofrimento. Nesta tragédia, identificamos alguns
conceitos cunhados pela psicanálise, principalmente no que concerne
3
Região ao norte do Mar Negro.
4
Canto com o Coro parado no centro da orchestra.
92 . Patricia Vivian von Benkö Horvat
à “cura pelas palavras”5, aos mecanismos oníricos, à configuração
dos sonhos e aos estudos sobre a histeria. Prometeu se reconhece
como decifrador dos mistérios da alma humana e como profeta das
ações divinas (“Classifiquei diversas profecias;/ figuras da vigília
destaquei/ dos sonhos, decifrei rumores árduos/ e os símbolos
plantados nos caminhos”, v. 484 -487) e Io encena os conflitos próprios
à histeria (“Em detalhe, relato ponto a ponto,/ sem esconder, contudo,
meu rubor:/ despencou sobre mim uma tormenta/ divina, o fim de
minha antiga forma”, v. 641-644) que subsistem até os dias atuais com
fisionomia semelhante.
Entendemos, aqui, a histeria como um sintoma a partir do qual a
psicanálise infere fantasias inconscientes obstaculizadas pela repressão
(FREUD, 1991, II, p. 36-39), e seguimos a premissa psicanalítica segun-
do a qual o sofrimento psíquico remete à sexualidade, considerando o
“Mito de Édipo” freudiano como uma alegoria do mito grego, particu-
lar à psicanálise. Consideramos, também, a proposta lacaniana de que
os discursos, expressos pelas diversas formas de linguagem, são laços
sociais, modos de se pôr no mundo e de estabelecer relações interpes-
soais (QUINET, 2009, p. 33, passim). Não desenvolveremos uma leitura
arqueológica, mas, sim, uma leitura da peça em outro contexto cultural,
que aceita e subsume o anacronismo implícito neste salto temporal.
Io e Prometeu são interlocutores que buscam minimizar seus
problemas e ansiedades, iluminando-os e esclarecendo-os através da
linguagem verbal, e é explícita a sugestão de que a palavra pode prover
a cura para o sofrimento psicológico, originado, em geral, por um con-
flito entre os anseios íntimos e pulsionais6 e os estatutos da moralidade.
No verso 378 lemos: “palavras (logoi) curam o coração colérico?” na
tradução de Trajano Vieira; e “Não sabes, Prometeu, que as palavras
5
A “cura pelas palavras” é um termo utilizado por Bertha Pappenheim (des-
crita como Anna O.), paciente de Joseph Breuer, colega de Freud, para clas-
sificar o processo psicanalítico, indicando que o relato que fazia de suas his-
tórias induzia à mitigação de suas aflições. Enquanto Anna O. se referia às
palavras dos pacientes, Aristóteles, na direção inversa do diálogo, referindo-se
às palavras do “terapeuta”, já considerava os efeitos curativos da sugestão
verbal (cf. ENTRALGO, P. L. La curación por la palabra em la antigüedad clásica.
Barcelona: Anthropos Editorial, 2005).
6
O termo “pulsão”, em alemão Trieb, remete ao termo latino pulsio, e é utili-
zado para marcar a sua diferença de “instinto”. Significa, para a psicanálise, o
impulso para uma ação em direção a um objetivo não intencional.
Teatro Grego e Romano . 93
são médicos/ capazes de curar teu mal, este rancor?” v. 498-499, na
tradução de Mário da Gama Cury. Io, como uma analisante, conta seus
sonhos, “com pudor”, a Prometeu e ao Coro das Oceânides, que incen-
tivam o seu relato e a escutam compassivas.
Temos em vista que a psicanálise se apoia no acordo social que
institui os significados da cultura ocidental moderna, tomados como
fundamento, e que esta se constitui como teoria e prática pela aborda-
gem dos termos da linguagem tais como se apresentam na cultura,
com a fisionomia do pressuposto cultural. A psicanálise estabelece seu
referencial na expressão individual, referindo-se ao sujeito, seu ob-
jeto e, observando os fatos individuais humanos com ênfase no
código linguístico, procede a uma abstração do contexto espaço-tem-
poral, remetendo-os à historicidade dos sujeitos individualizados em
um procedimento de desconstrução dos significados constituídos e ins-
titucionalizados pela sociedade. Neste procedimento, a psicanálise
opera também uma reconstrução dos significados que os isola do
âmbito histórico-cultural e os realoca no particular (BOWLBY, 2007,
p. 49), segundo uma axiologia em que a estrutura da subjetividade
adquire um caráter de universalidade, ou seja, torna-se comum aos
seres humanos em diversos tempos e lugares, o que permite o esta-
belecimento de um sistema teórico-metodológico próprio, tornando-se
ciência e prática interpretativa.
Cumpre esclarecer que os sonhos, que orientaram a hermenêutica
da histeria implementada por Freud, exemplificam o funcionamento
da linguagem do inconsciente, cuja característica é ser estruturado
como uma linguagem, e, em sua formação, destacam-se três operações
básicas: a condensação, o deslocamento, e a figuração (FREUD, 1987, p. 325-
331). O ponto de partida de Freud para a classificação dessas operações
do inconsciente como linguagem foi a interpretação dos sonhos, que
trazem um universo cognitivo obscuro à luz do dia, e o expressam
de modo aparentemente truncado. Na condensação, a brevidade das
figurações e percursos apresentados nos sonhos é resultado de uma
economia linguística que reduz os pensamentos a serem representados
ao seu mínimo possível, e a um encurtamento retórico determinado
pelas permissões das restrições morais que freiam as expressões do
imaginário onírico, omitindo lacunarmente alguns elementos do
conteúdo e reiterando outros. No deslocamento, a manifestação do
conteúdo latente é também obliterada pela censura, o essencial foge
7
O termo “eidética” remete ao grego eidós, e “imagem eidética” significa uma
ideia em forma de imagem.
8
Não trataremos dos processos de internalização e obstaculização dos símbo-
los linguísticos, presentes nos escritos freudianos, pois ultrapassam o objetivo
deste capítulo. Trataremos, aqui, de um processo de “dessubjetivação”, ou
seja, de uma forma aparentemente espontânea de “exteriorização do indi-
zível”, quando, cultural e circunstancialmente, a fala e as demais formas de
expressão não encontram lugar (cf. SIMON. 1978, p. 241 passim).
96 . Patricia Vivian von Benkö Horvat
A personagem Io apresenta características da histeria feminina
que podem ser comparadas às “impressões que não conseguiram
encontrar uma descarga adequada”, descritas por Freud, a partir das
quais podemos tecer interpretações psicanaliticamente coerentes sobre
a histeria e pelas quais depreende-se a universalidade de estruturas
psíquicas constituintes do ser humano.
14
“Sim, bem primeiro nasceu Caos, depois também/ Terra de amplo seio,
de todos sede irresvalável sempre” (Hesíodo. Teogonia, v. 116-117). Terra, ou
Gaia, a grande mãe, forja o aço de suas entranhas, entrega a foice dentada a
Cronos, seu filho, que castra o pai, o Céu, que cobria a terra de tal modo que
abafava e prendia os filhos em seu interior. Cronos, o Tempo, castra o pai
Uranos, o Céu, que se solta da Terra e deixa os filhos virem à luz. Cronos, de-
pois de castrar o Céu, toma o poder, como rei dos deuses, mas, com medo de
que seus filhos o destronassem, torna-se também tirânico e come seus filhos,
gerados por Reia. Destes, a mais velha é Hestia, deusa do fogo doméstico, e
o mais jovem é Zeus. É Terra quem ensina Reia, deusa mulher de Cronos,
mãe dos Olímpicos, um estratagema para enganar Cronos e salvar seus filhos.
Esses filhos provocarão a guerra de Titãs, na qual Zeus, com o auxílio de seus
irmãos e do tio, Prometeu, derrota Cronos e assume o poder.
100 . Patricia Vivian von Benkö Horvat
opera as substituições simbólicas do objeto interditado e das experiên-
cias traumáticas, que, convertidas, configuram o sintoma.
Ai! (Io iò pópoil)
Por onde o descaminho
me faz rondar sem rumo?
Satúrneo,15 que erro meu
explica este martírio?
Oprimes com terror
– frenético ferrão –
uma mulher sem siso.
Que teu fogo me queime,
que a terra me acoberte,16
me tenham no repasto
duros monstros marinhos;
aceita, rei, meu rogo.
Sei bem como extenua
andar ao léu; fugir
dos males não me é dado. Escutas
o rogo da moça bicorne? (v. 576-589).
15
Satúrneo é aqui uma liberdade do tradutor, pois no texto grego Zeus é dito
Cronida e não Satúrneo, e vez ou outra os dois deuses são confundidos um
com o outro nas traduções. Prometeu é irmão de Cronos, tio de Zeus. Por
sua, vez Saturno é um deus itálico, não grego.
16
No texto em grego, Io pede a Zeus que a cubra com terra, uma referência
ao ritual de sepultamento dos mortos.
17
O termo “gozo” (Genuss em alemão e juissance em francês) “designa a ação
de fazer uso de um bem com a finalidade de retirar dele as satisfações que ele
supostamente proporciona” (ROUDINESCO, 1998, s.v. Gozo), em psicanáli-
Teatro Grego e Romano . 101
vítima do ferrão, por toda terra” (v. 680-681), supondo o erro que
desconhece, denegado e desresponsabilizando-se.
Io fala novamente em eidolon Argon, imagem de Argos, cuja
perseguição era a causa do seu frenesi. Destacamos aqui dois níveis de
significação: no primeiro, Io transforma-se em vaca, como na versão
tradicional do mito, e é atormentada por um moscardo, fisicamente
real; no segundo, Io, a mulher, é atormentada por alucinações táteis (v.
566), visuais (v. 568), e auditivas (v. 574). Nas linhas 673-5, por exemplo,
ela descreve transformações físicas e mentais, mas em 878-886, seu
tormento é descrito com sendo tanto manía, quanto um sofrimento
físico devido a ferimentos (GRIFFITH, 1983, p. 195).
Ai! Ai! Pobre de mim! Que espasmo súbito,
que acesso delirante já me queima?
O ferrão do moscardo me transtorna
como se fosse um aguilhão de fogo!
Meu coração espavorido palpita
no fundo do meu peito sem parar!
Meus olhos giram convulsivamente.
Lançada para fora do caminho
por um sopro de raiva furiosa,
já não consigo dominar a língua
E mil pensamentos desencontrados
se, implica a ideia de uma transgressão à Lei, ao estabelecido como regra geral
e internalizado como o instituído. Sem a interdição o sujeito investiria tanta
energia na busca do prazer que se fundiria ao objeto do desejo, ocorrendo
uma clivagem do sujeito, neste movimento complexo e repetitivo, a pulsão
que direciona ao prazer, à “vida”, e a pulsão que direciona ao aniquilamento,
à “morte”, estão imbricadas. Para Lacan, o gozo está intrinsecamente relacio-
nado à repetição, como em um mecanismo em que para se buscar o prazer é
necessário que haja a perspectiva de obstaculização da consecução, gerando
um desprazer e a necessidade de novo impulso de busca de prazer, em uma
circularidade sem fim que alimenta e realimenta o supereu, que é o instrumento
de obstaculização, recrudescendo as censuras subjetivas. Assim, o gozo con-
siste em forçar a barreira do princípio do prazer, sendo necessária uma trans-
gressão para lhe ter acesso e, por conseguinte, uma interdição a superar. “E se
o vínculo social se baseia numa renúncia à satisfação da pulsão, é justamente
porque esta pressupõe o gozo – no sentido jurídico do termo – de objetos
que poderiam ou pertencer a outros ou privá-los de seu gozo” (Lacan, apud
MIJOLLA, 2005, s.v. Gozo).
102 . Patricia Vivian von Benkö Horvat
debatem-se desordenadamente
nas vagas de terríveis sofrimentos.
(Prometeu acorrentado, v. 877-886)
18
Após a Guerra de Titãs, o roubo do fogo por Prometeu, e o envio de Pan-
dora, por Zeus, para puni-los, os seres humanos revelaram-se de uma belico-
sidade desenfreada. Com a paz estabelecida, no futuro da peça, entre Zeus
e Prometeu, com o primeiro aprendendo o segredo de bem governar, Zeus
decide pela exterminação necessária – com o apoio de Prometeu e de todos
os deuses – dos seres humanos. Mas, decide também pela renovação deste ser.
Trata-se do relato do dilúvio enviado, por ordem de Zeus, por todas as divin-
dades aquáticas à terra, e a recriação dos seres humanos a partir de Deucalião
e Pirra, filho e filha, respectivamente, de Prometeu e Epimeteu. Os novos
mortais foram gerados a partir de pedras lançadas pelo casal por cima de seus
ombros – segundo a mensagem de Hera: as pedras lançadas por Deucalião
tornaram-se homens; as pedras lançadas por Pirra, mulheres.
Teatro Grego e Romano . 103
dominância masculina (e promiscuidade) é reproduzido através do
reino humano. Há incontáveis passagens na tragédia grega em que uma
ou outra personagem expressa lealdade ao nome e à pessoa do pai, do
marido, do mestre (vivo ou morto); e tantas outras, em que obediência,
submissão, ou silêncio são exercitados pelas mulheres em nome
da autoridade paternal ou conjugal: “Mulheres, para uma mulher o
silêncio é melhor adorno” (SÓFOCLES, Ajax, 293). Usualmente estas
reiterações da sujeição feminina são aceitas sem refutação. E quando
uma personagem feminina decide atuar por sua própria iniciativa, o
resultado é quase desastroso, a não ser que ela seja uma grega buscando
escapar do assédio de um rei bárbaro, estrangeiro, como em Eurípedes
(Iphigenia em Tauris e Helena) (GRIFFITH, 2005, p. 341-342).
Io, diante do Titã que sabe o que foi e o que será, insiste em
conhecer seu futuro, ao que Prometeu aquiesce:
Por que não anunciar-me tudo já?
(...)
Pode ficar tranquilo; quero ouvi-lo.
Se é esse o teu desejo, então escuta. (v. 627-630)
20
Podemos aventar a hipótese, segundo a leitura psicanalítica, de que Io bus-
ca o amor de um pai simbólico, Zeus, colocando-se no lugar de uma mãe,
também simbólica, Hera. Para a psicanálise, o Complexo de Édipo, complexo
relacional criança, mãe, pai, próprio à estrutura familiar nuclear ocidental, é
um modelo explicativo que representa estruturalmente a constituição da sub-
jetividade e remete ao desejo amoroso de uma criança pelo genitor. O complexo
de Édipo tem estreita relação com a castração, que se traduz pela interdição por
um genitor, ao amor do outro genitor, dando ensejo à saída da tríade, para a
escolha de um objeto erótico e a busca de amor no mundo. Na tragédia em
pauta não há uma personagem investida no papel de mãe, mas Io se depara
com a “traição” por parte do pai, que a renega. Io, substituindo-o, aloca seu
erotismo no pai simbólico exterior, Zeus, e se identifica e se coloca no lugar
da mãe imaginária, Hera. Por outra vertente de leitura, podemos apontar para
as manifestações do sintoma de Io como uma encenação do discurso histé-
rico, considerando que, sendo os discursos modos de dominação, o agente
do discurso histérico busca a maestria sobre o desejo do outro, despertando
e manipulando o desejo do outro, desfrutando do prazer de negar-se à sua
consecução e de reincitá-lo, em um jogo produtor de uma suspensão que de-
sestabiliza o outro posto neste diálogo, como nos jogos de sedução amorosa.
A encenação deste jogo não deixa incólume a personagem que atua, posto
que a personagem histérica nesta encenação expressa também suas motiva-
ções, que permanecem inconscientes para ela, colocando-a em uma suspen-
são semelhante que se traduz por uma situação intrapsíquica conflitante que
igualmente a desestabiliza.
106 . Patricia Vivian von Benkö Horvat
Sombras noturnas, volteando assíduas,
repetiam conselhos veludosos:
“Por que prolongas tua virgindade,
moça de sorte? Ao teu alcance estão
núpcias máximas. Arde em Zeus o amor
dardo certeiro -; em ti vislumbra Vênus.
Não deves resistir ao leito dele.
(v. 644-652)
21
As tragédias gregas... “justificam poeticamente a subordinação das mulheres,
estrangeiros e escravos. As vozes e a liberdade de agir que o drama confere
às mulheres se prestam amplamente à liberalização e, apesar das aparências,
ao seu contrário. Caracteres femininos acabam por serem os instrumentos
dos poetas homens para reafirmar a identidade e a supremacia masculinas...
Mas a premissa central é, talvez anacronicamente, política: implica fortemente
que a tragédia é inteira sobre a cidade e o lugar das mulheres”. MOSSMAN,
J. Women’s Voices. In: GREGORY, J. A. Companion to Greek tragedy. The
Blackwell Publishing Ltd, 2005.
Teatro Grego e Romano . 107
Lerna, que ficava a cinco milhas ao sul de Argos, área banhado
pelo mar, com prados profundos, é, na literatura grega, o local con-
vencional de encontros sexuais, como se pode ver em Homero (Ilíada,
14.346). A linha 654: “que o olhar divino acalme o seu afã”, ecoa o ver-
so 376:“até que Zeus modere a sua cólera”, que fala na luxúria e tem-
peramento forte, características dos jovens tiranos, como se apresenta
Zeus. A expressão está nitidamente vinculada ao discurso do sonho de
Io, e não há nenhuma justificava para o comportamento de Zeus além
do mero desejo sexual; mas a mitologia grega está cheia de belas jo-
vens que, voluntariamente ou não, se submetem ao desejo dos deuses.
Aquelas que resistem sofrem por isto, por exemplo, Cassandra, muitas
gerações depois de Io, condenada à presciência e ao descrédito por não
ceder aos desejos de Apolo (GRIFFITH, 1983, p. 207).
Noite a noite tais sonhos me assaltavam,
até que fui ao pai, contei-lhe eu mesma
as visões que tomavam minhas noites.
Para Delfos, Dodona,22 partem vários
consultores em busca de um informe:
ato, palavra, o que era caro aos deuses?
Retornam com oráculos ambíguos,
expressos em linguagem desconexa.
Ínaco enfim acolhe um sinal claro.
Ordena sem torneios que me expulsem
do palácio, de minha própria pátria,
errante e só até o fim do mundo (v. 655-665).
23
Lóxias é um dos nomes de Apolo.
110 . Patricia Vivian von Benkö Horvat
Como exemplo da conversão histérica24 de um sentimento
obstaculizado pela repressão, temos a expressão e transformação
corpórea de Io, para ela, real:
Transmudou-se-me a forma e logo a mente;
pelo agudo aguilhão azucrinada,
com meus chifres, lancei-me à foz do Lerna,
às águas de Cercnéia, louco assalto (v. 673-676).
Argos, espectro, com olhos por todo o seu corpo, tema popular
em pinturas cerâmicas gregas, significa que Io está sob o olhar de mil
olhos, publicamente vista nesta situação de transformação em vaca
histérica. E o verso 681 é uma metáfora que aparece em Homero, e
significa “derrotada pela intervenção de Zeus”, como na Ilíada, 13. 812
(GRIFFITH, 1983, p. 210).
24
Podemos dizer que o conceito de “conversão” remete a manifestações
(transformação em alguma coisa somática) que correspondem ao desejo, nas
quais unem-se o psíquico e o somático, provendo uma espécie de “substitui-
ção de satisfação” que remete a outra cena (o inconsciente), através do corpo.
Teatro Grego e Romano . 111
vítima do ferrão, por toda terra.
Sabes a minha história. Conta agora
o que mais vou sofrer. Dize! Condoído,
não deves me embalar na fala falsa,
pois para mim o engano é a pior moléstia (v. 682-686).
BIBLIOGRAFIA COMENTADA
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DOCUMENTAÇÃO
BIBLIOGRAFIA
1
nil intemptatum nostri liquere poetae/nec nimium meruere decus uestigia Graeca/
ausi deserere et celebrare domestica facta/uel qui praetextas quel qui docuere togatas
(HORÁCIO, Ars P. 285-88).
Teatro Grego e Romano . 135
Grécia cativa capturou seu feroz captor, e trouxe as artes para o agreste
Lácio”,2 retirada de seu contexto original, tornando-se uma máxima que
comprovava o caráter secundário da arte romana em geral.
No caso específico do teatro, o orador Cícero parecia fornecer
a prova cabal quando, numa passagem de seu tratado Dos termos
extremos dos bens e dos males (De finibus bonorum et malorum), declara que
os dramaturgos romanos copiavam os originais gregos “palavra por
palavra” (ad uerbum). Muitos estudiosos se contentaram com esta frase,
e classificaram o teatro romano como “cópia” ou “simples tradução”
do teatro grego. Nada melhor, porém, do que retomar a “fonte” dos
mal-entendidos e deixá-la falar:
Há neles [naqueles que desprezam os escritos latinos],
contudo, algo que considero estranho: por que os assuntos
mais graves lhes agradam em latim, enquanto as pequenas
peças do teatro em latim, traduzidas palavra por palavra do
grego, são para eles uma leitura desagradável? Poderia haver
quem fosse tão inimigo do nome romano para desprezar a
Medeia de Ênio ou o Antíope de Pacúvio sob o pretexto de
que as peças lhe agradam em grego, mas lhe são intoleráveis
em latim? Então, diria ele, seria necessário ler o Synefebo de
Cecílio ou o Andria de Terêncio, e não uma ou outra dessas
peças em Menandro? Estou longe de pensar como aqueles
que, malgrado toda a perfeição da Electra de Sófocles,
evitam ler a má tradução de Atílio, de quem Licínio disse
ser um “escritor de ferro”; apesar disso, é um escritor,
e devemos lê-lo, pois a completa ignorância de nossos
poetas é sinal tanto de uma total preguiça quanto de um
gosto exageradamente delicado. De minha parte, creio que
ninguém é suficientemente culto se ignora nossa literatura.
O trecho: Mais ao céu que no bosque,3 o lemos tão bem quanto
no grego, e não queremos que as ideias de Platão sobre a
virtude e a felicidade sejam lidas em latim? E se não fazemos
traduzir literalmente, mas temos o cuidado de reter o que
foi expresso no original somado àquilo que aprovamos,
acrescentando nossas próprias opiniões e nosso estilo de
composição? Que razão eles podem oferecer para preferir
2
Graecia capta ferum victorem cepit, et artes intulit agresti Latio (HORÁCIO, Ep. 2,
1, 156).
3
Trecho inicial da Medeia de Ênio.
136 . Apresentação - Parte 2
o que é brilhantemente escrito em latim, e não literalmente
traduzido do grego? (CÍCERO, De Fin. I, 2, 4-6)4
Podemos realmente concluir que Cícero afirmou que os drama-
turgos romanos “copiavam” os gregos? Cremos que a declaração de
Cícero insiste que há mais, muito mais, nas versões latinas de peças
gregas: há aquilo que chama “nossas opiniões e nosso estilo de com-
posição” (nostrum iudicium et nostrum scribendi ordinem), indicando, no caso
da comédia e da tragédia traduzidas de originais gregos, a inclusão de
elementos romanos, criando o que chamaríamos de versões.
Esse desmerecimento do teatro romano tinha, também, funda-
mento num desconhecimento do fenômeno teatral para além dos gê-
neros gregos tragédia e comédia, ou numa redução do teatro a esses dois
gêneros. Mas, mesmo na tragédia e na comédia, a prática romana dife-
riu bastante da ateniense.5 Dramaturgos romanos que adotaram, com
entusiasmo, a tragédia e a comédia, adaptavam seus originais gregos,
quando não compunham obras originais com temas gregos.
4
In quibus hoc primum est in quo admirer, cur in grauissimis rebus non delectet eos sermo
patrius, cum iidem fabellas Latinas ad uerbum e Graecis expressas non inuiti legant. Quis
enim tam inimicus paene nomini Romano est, qui Ennii Medeam aut Antiopam Pacuuii
spernat aut reiciat, quod se iisdem Euripidis fabulis delectari dicat, Latinas litteras oderit?
Synephebos ego, inquit, potius Caecilii aut Andriam Terentii quam utramque Menandri
legam? A quibus tantum dissentio, ut cum Sophocles uel optime scripserit Electram, tamen
male conuersam Atilii mihi legendam putem, de quo Licinius: “Ferrum scriptorem”, ue-
rum, opinor, scriptorem tamen, ut legendus sit. Rudem enim esse omnino in nostri poetis aut
inertissimae segnitiae est aut fastidi delicatissimi. Mihi quidem nulli satis eruditi uidentur,
quibus nostra ignota sunt. An “Vtinam ne in nemore...” nihilo mminus legimus quam
hoc idem Graecum, quae autem de bene beateque uiuendo a Platone disputata sunt, haec
explicari non placebit Latine? Quid, si nos non interpretum fungimur munere, sed tuemur
ea, quae dicta sunt ab iis quos probamus eisque nostrum iudicium et nostrum scribendi
ordinem adiungimus, quid habent, cur Graeca anteponant iis quae et splendide dicta sint
neque sint conversa de Graecis? (CÍCERO, De Fin, 1.2.4-6).
5
Num exemplo simples, se, nas tragédias romanas, há um coro em cena, não
há uma orchestra, o que demanda, de imediato, alterações cênicas e métricas,
para além das diferenças linguísticas. A própria arquitetura do teatro romano
é bastante distinta do teatro grego. Por exemplo: se os assentos eram dispos-
tos em círculo, como nos teatros gregos, o palco romano criava uma sensação
de fechamento da cena mais próximo ao efeito do “palco italiano” moderno;
havia diferenças arquitetônicas entre os teatros nas cidades imperiais, mas
pode-se perceber um esquema geral do teatro romano, apresentado no artigo
de Gilvan Ventura da Silva nesta coletânea.
Teatro Grego e Romano . 137
O contexto romano da performance diferia significativamente
da prática grega. Em Roma, representações cênicas compunham o
programa de vários ludi – festivais religiosos na essência – de abril a
novembro. Não havia competição entre dramaturgos, como em Atenas;
as peças eram escolhidas pelo edil ou outro magistrado responsável
pelos jogos, e os dramaturgos eram pagos se suas peças fossem
selecionadas. Além dos ludi, representações cênicas eram incluídas em
ocasiões como triunfos e funerais, financiadas por seus promotores, e
iam além das tragédias e das comédias.
O teatro romano formou-se a partir de diversos elementos itáli-
cos (etruscos, latinos, úmbrios e outros) e das cidades gregas da Itália.
A Península Itálica, desde pelo menos o século VIII a.C., conheceu e
encenou performances, o que demanda pesquisas, e a própria Roma con-
tava com diversos elementos cênicos em seus ritos religiosos6 séculos
antes que a primeira tragédia fosse encenada na urbs, no século III a.C.,
apesar de, até os últimos anos da República, performances dramáticas de
todo tipo serem encenadas em palcos temporários. O primeiro tea-
tro permanente deveu-se a Pompeu, o Grande, em cerca de 60 a.C., e
outros logo se seguiram a este em Roma, mas as ocasiões nas quais a
encenação de peças já eram numerosas e comuns, para audiências cada
vez maiores, sob o patrocínio de políticos romanos há muitos séculos.
As formas itálicas do teatro se multiplicaram com as conquistas
romanas: tragédia, comédia, farsas Atellanae, competições musicais e
retóricas de vários tipos, pantomimas, recitações, declamações etc., mas
o estudo da dramaturgia latina depende de poucas peças supérstites e
de fragmentos, e a observação de detalhes das performances depende de
anedotas ou referências incidentais em outros textos. Há comentários
sobre o teatro em textos de arquitetos, oradores, juristas, gramáticos e
outros sobre o que ocorria em cena, sobre os atores etc. Os vestígios
físicos de teatros estão por toda a parte nas cidades imperiais romanas;
há também pinturas e mosaicos com temas relativos ao teatro, para
além de epigrafias que nos ajudam a compor corpora documentais para
o estudo do fenômeno teatral romano.7
6
Como as encenações que compunham a dança dos sacerdotes sálios.
7
Alguns elementos, contudo, perderam-se, como é o caso da música cênica,
para a qual, se se registra sua presença no palco, e seus instrumentos e músi-
cos, a música propriamente dita é desconhecida.
138 . Apresentação - Parte 2
Falar em teatro romano implica pensar os espetáculos num
sentido mais amplo do que geralmente o fazemos hoje. Observar
as representações cênicas no contexto dos principais espetáculos
cívicos (corridas de cavalos, de carros, lutas – armadas ou não – entre
seres humanos, animais etc.), cada qual com suas especificidades e
desenvolvimentos particulares; analisar o sucesso do Império Romano
tanto para absorver e ressignificar, quanto para orientar as escolhas
das populações das cidades imperiais, e outros temas que demandam
pesquisas pontuais e de conjunto.
No Brasil, os estudos sobre o teatro romano vêm conseguindo,
paulatinamente, ultrapassar as restrições tradicionais do estudo da
dramaturgia, mas o estudo dos espetáculos cênicos e do fenômeno teatral
ainda é incipiente, demandando maior investimento em pesquisas que
dediquem maior atenção às relações entre a documentação textual e a
cultura material, entre a dramaturgia e o palco, entre teatro e sociedade,
temas que nos possibilitam levantar mais problemas do que aventar
soluções. Os artigos presentes nesta seção não têm como objetivo
apresentar as origens e o desenvolvimento das artes cênicas em Roma e
nas cidades imperiais, tampouco apresentar um levantamento exaustivo
da dramaturgia romana. Longe disso, e as ausências são óbvias. Esta
seção reúne um grupo de especialistas em História e Cultura Romana,
em torno de uma preocupação comum: perceber e analisar, a partir
de casos pontuais, a presença marcante e central do teatro na vida
social e cultural das populações de Roma e de municípios imperiais,
numa abordagem que escapa do “romanocentrismo” e lança mão de
documentos diversos.
Os artigos de Sônia Regina Rebel de Araújo e de Claudia Beltrão
da Rosa têm como objeto uma mesma obra dramática, trazendo duas
abordagens distintas e complementares da Aulularia, de Plauto. No
primeiro, Ideologia Escravista em Aulularia de Plauto, Sonia Rebel discute
as representações dramatúrgicas das relações ambíguas entre senhores
e escravos, destacando a ideologia escravista romana. Já em Religião
e Teatro na Roma Republicana: notas sobre a Aulularia de Plauto, Claudia
Beltrão tem como objeto as pouco conhecidas crenças e práticas
religiosas domésticas romanas, das quais a dramaturgia é excelente
fonte documental. A riqueza do teatro plautino assoma na polissemia
de suas cenas e personagens e nas ricas possibilidades de pesquisa que
abre como via de acesso à cultura romana republicana.
1
Ambiguidade: Finley (1991); Ideologia escravista e defeitos dos escravos:
Garnsey (1996).
2
Escravidão como instituição contraditória: Davis (1968) e Fitzgerald (2000).
Teatro Grego e Romano . 143
conceito, a definiu também como “o processo de produção do sentido”
(WILLIAMS, 1979, p. 60). Tal concepção de ideologia é especialmente
interessante para análise da literatura produzida no mundo romano,
pois centra sua preocupação no significado de um texto, como ele é
produzido e como chega a significar algo.
Igualmente importantes para minha análise são as ideias de
Lucien Godmann (1970) sobre ideologia e classes sociais. Seu método
estruturalista genético acerca da Sociologia da Literatura estabelece
premissas relevantes para os estudos socioliterários e as utilizo para
aplicá-las à análise da ideologia escravista no mundo romano. De acordo
com este método, a criação literária deriva, ou melhor, origina-se das
estruturas mentais que organizam tanto a consciência real de um grupo
social quanto o universo imaginário que o artista cria. Por tal motivo, as
estruturas mentais são sociais, coletivas, e não são frutos apenas de um
artista individual. A consciência de classe de um dado autor é chamada
por Goldmann de “estrutura englobante”, e seria a classe social o
verdadeiro autor coletivo da obra literária. As estruturas mentais e
sociais é que conferem à obra artística sua unidade, constituindo esta
última um elemento fundamental da qualidade estética da obra. Por
outro lado, tais estruturas sociomentais são não-conscientes, exigindo
uma pesquisa sociológica que as explique (GODMANN, 1970, p. 128).
Os métodos que este enfoque pressupõe consistem em buscar,
através do recorte do objeto, a apreensão do significado da obra e
para tal é preciso verificar como a estrutura descoberta no texto tem
um caráter funcional e constitui um comportamento significativo.
Pressupõe também que “explicação” e “compreensão” não são
categorias opostas e cumprem tarefas diferentes e complementares,
visto que a compreensão atuaria no nível imanente da obra, suas
estruturas internas, enquanto a explicação se preocuparia com a sua
inserção numa estrutura mais vasta, que tanto pode ser o gênero a que a
obra pertence, quanto a “estrutura englobante”, a consciência de classe
do autor.
Exemplifico com uma obra de Plauto. “Nós não necessitamos de
escravas, exceto para ter alguém para tecer, moer o trigo, cortar lenha, fiar sua roupa,
limpar a casa, para a gente bater” (vapulo) (PLAUTO, Mercator).3 Ou seja,
o tema da escravidão citado na obra impõe a abordagem do assunto,
ligando escravidão feminina à exploração do trabalho doméstico e a
3
Apud Fitzgerald (2000, p. 32-33).
144 . Sônia Regina Rebel de Araújo
castigos físicos. A consciência de classe do autor apresenta-se neste
trecho como uma estrutura mais geral, mas o emprego do verbo
vapulo, bater, fustigar, mostra que a análise do vocabulário, no nível
da compreensão da obra, é fundamental para o entendimento da obra
como um todo (GOLDMANN, 1976, p. 212).
Pretendo, então, analisar esta peça de Plauto mediante a
articulação de um estudo das estruturas internas da obra com algo mais
geral, a ideologia escravista do mundo romano de que a obra plautina
é um exemplo.
Titus Maccus Plauto viveu entre os anos 254 e 184 a.C. Nasceu
em Sarsina, fronteira da Úmbria, e proveio de família modesta. Foi
o mais antigo dos comediógrafos latinos. São-lhe atribuídas mais de
cento e trinta peças, mas só nos chegaram vinte e uma com autoria
comprovada por Varrão. A influência dos autores gregos da “comédia
nova”, Menandro e, sobretudo, Dífilo, é certa e, por representarem o
modo de vida dos gregos, são conhecidas como fabulae palliatae. No
entanto, em suas peças, Plauto introduz elementos da vida romana, do
cotidiano das classes populares, o que lhes confere uma originalidade
especial, resultante também do fato de ele frequentar os meios populares
romanos (MCCARTHY, 2000).
O enredo da maioria de suas peças gira em torno dos engodos e
trapaças de um escravo às vezes destinado a unir amantes apaixonados.
Entre seus personagens estão, além de escravos ardilosos, pais estúpidos,
soldados falastrões, rufiões gananciosos. Dentre as mais famosas peças
estão Captivi, Aulularia, Amphitryo, Pseudolus, Asinaria, Casina. Em suas
peças os diálogos são muito importantes e ocupam boa parte do texto,
cerca de um terço. Os dois terços restantes eram consagrados à cantica,
a parte cantada.
Esta peça narra as peripécias de um velho pobre e avarento,
Euclião, que tinha como única riqueza uma panela cheia de ouro e
cuja filha Fedra tinha sido desonrada por Licônidas, um jovem vizinho.
Euclião tenta por todas as maneiras evitar que se descubra o pote de
ouro em seu poder, escondendo-o em vários esconderijos, até que,
ao esconder o ouro no bosque de Silvano,4 é roubado por Estróbilo,
4
Sobre o significado religioso desta peça e particularmente do esconderijo do
pote de ouro no bosque de Silvano, ver neste livro o artigo a cargo de Claudia
Teatro Grego e Romano . 145
escravo de Licônidas. Aqui se destaca a figura do escravo ardiloso que
negocia com os amos a posse da panela em troca da própria liberdade.
A moça, que tinha sido prometida por seu pai a Megadoro, um velho
rico, tio do jovem, acaba por se casar com Licônidas, e seu pai Euclião,
feliz com o casamento da filha e com a recuperação do ouro, doa o
conteúdo da panela ao jovem casal.
Há dois diálogos muito significativos dessa comédia de erros, em
ambos Euclião é interlocutor. O primeiro entre Euclião e Megadoro,
em que cada personagem fala a respeito do assunto que mais o
interessa, o ouro para Euclião e a mão da moça no caso de Megadoro.
Entre Euclião e Licônidas acontece um dos momentos mais cômicos,
pois a extensão do diálogo e dos enganos em relação ao assunto da
conversa – novamente, Euclião pensa que se está a mencionar o ouro
e Licônidas tenta contar o crime que cometeu contra Fedra e fala em
reparar o erro casando-se com ela.
A importância da peça para estudar ideologia escravista é enorme.
A presença de escravos – Estáfila, a escrava doméstica de Euclião,
vários escravos cozinheiros, mas, sobretudo, o ardiloso Estróbilo, que
conquista com esperteza a sua liberdade – invoca, por um lado, os
defeitos dos escravos – curiosidade, roubar – por outro, o mandonismo
dos amos, a repressão em forma de castigos rotineiros ou ameaças de
castigo e até a morte (crux, crematio).
pre fica ao seu lado, se não foge, então é um bom escravo. Ver: Finley (1991),
capítulo 3 principalmente.
10
Ver observações sobre palavras de raiz latina colleo, de onde vêm caloso e
esperteza. Eles mesmos, os açoites, são a recompensa do escravo esperto =
callidus.
11
Novamente vê-se aqui uma passagem idêntica àquela de Os Cativos, em que
o capataz conversando com Hegião, seu amo, fala na liberdade como natu-
Teatro Grego e Romano . 151
pior de todas as desgraças é a escravidão. O que Júpiter faz
antes de tudo àqueles que odeia é torná-los escravos (Aul. 5).
DOCUMENTAÇÃO TEXTUAL
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1
Claudia Beltrão da Rosa
1
Uma primeira versão deste estudo foi apresentada, sob o título Elementos da
religião doméstica romana na Aulularia de Plauto, no Encontro Internacional sobre
Religião, Rito e Magia, promovido pelo Núcleo de Estudos da Antiguidade
(NEA-UERJ), em 2010. Agradecemos às oportunas observações e sugestões
dos colegas antiquistas Norma Musco Mendes, Sonia Regina Rebel de Araújo
e Gilvan Ventura da Silva.
Teatro Grego e Romano . 157
A religião inseria-se em todos os aspectos da vida individual e
coletiva na urbs. Sabemos, por meio de vestígios arqueológicos, lite-
rários e outros, que a religião romana sempre esteve ligada demaneira
profunda ao quotidiano da urbs, em suas festas públicas e privadas, em
eventos políticos e na vida familiar. Trata-se de um tecido de relações
complexas, expresso em discursos e rituais cujos vestígios nos permitem
uma via de acesso à sua compreensão (BEARD; NORTH; PRICE,
v. 1, 1998; BELTRÃO, 2006). Nossa principal preocupação é com as
áreas da vida religiosa no período republicano sobre a qual temos uma
quantidade maior de informação de um tipo ou de outro – rituais,
festivais, instituições, edifícios religiosos, santuários etc., e dentre os
possíveis documentos para a pesquisa sobre a religião romana está o
texto dramático.
Tendo como premissa a ideia de que o sistema religioso romano
era o elemento que fundamentava a ordem moral e política da urbs,
fomentando a coesão social, favorecendo a formação de um espírito
coletivo nos membros da comunidade, proporcionando o sentido e
conhecimento do passado, projetando o futuro e fundando a identidade
coletiva romana, a análise das peças teatrais ganha, atualmente, um
novo vigor no que tange à investigação da vida religiosa romana no
período republicano.2
2
C. Geertz cunhou uma definição de religião que mantém elementos do fun-
cionalismo simbólico de Durkheim (a religião como um ato social coletivo)
e de teses de M. Weber sobre o significado da religião como um sistema para
o ordenamento do mundo, sem tanger questões de crenças tão comumen-
te vinculadas às definições de religião. Desse modo, uma definição universal
e categórica de religião nos parece não apenas impossível quanto indesejá-
vel, falseadora das características diversas e múltiplas das distintas religiões,
não apenas porque os conteúdos, práticas e crenças religiosas são histórica e
culturalmente condicionados, mas também porque qualquer definição é, em
si, um produto do processo discursivo, com suas especificações históricas e
culturais. Sua definição abrangente é, portanto, útil para nossos propósitos:
“... uma religião é: (1) um sistema de símbolos que atua para (2) estabelecer
poderosas, penetrantes e duradouras disposições e motivações nos homens
através da (3) formulação de conceitos de uma ordem de existência geral e (4)
vestindo essas concepções com tal aura de fatualidade que (5) as disposições
e motivações parecem singularmente realistas” (GEERTZ, 2008, p. 67).
158 . Claudia Beltrão da Rosa
Chegaram até nós inúmeras imagens de cenas de rituais3 e
outras práticas religiosas romanas, mas pouquíssimos documentos que
explicitem as fórmulas vocalizadas e orações e a própria vivacidade da
vida religiosa romana. Certamente há uma maior dificuldade para pin-
tores e escultores de representar momentos do ritual em que os sons
são o elemento preponderante, momentos visualmente muito mais am-
bíguos do que outras cenas da ação ritual. Mas todas as ações rituais
eram acompanhadas de sons, articulados ou não. O teatro pode ser um
meio para recuperarmos, em parte, algo das “vozes” dos rituais, que
as imagens silenciosas ocultam, uma via de acesso às palavras rituais e
sua performance. A palavra, a fórmula ritual, eram elementos cruciais no
ritual (PLÍNIO. HN, 28,10), assim como as duplicações e respostas dos
assistentes e/ou dos espectadores, e o cuidado com as palavras e os ter-
mos utilizados era fundamental, especialmente quando era utilizado o
vocabulário arcaico em rituais tradicionais, cuja compreensão há muito
fora esquecida (cf. QUINTILIANO. Inst. 1.6.49: sobre o Hino a Marte)
para a realização correta dos ritos. O teatro romano reflete a importân-
cia do ritual. De certo modo, o próprio drama é um ritual, e representa-
ções dramáticas faziam parte de festivais cívicos em Roma pelo menos
desde 240 a.C. (CÍCERO. Brut, 72).4 Desse modo, acreditamos que a
3
Seguiremos, aqui, uma definição proposta por Stanley Tambiah que nos
parece profícua para nossos propósitos: “Ritual é um sistema socialmente
constituído de comunicação simbólica. É constituído de sequências de pala-
vras e atos padronizadas e ordenadas, frequentemente expressas em múltiplos
media, cujo conteúdo e arranjo são caracterizados em vários graus pela for-
malidade (convencionalidade), estereotipia (rigidez), condensação (fixidez) e
redundância (repetição)” (TAMBIAH, 1985, p. 128).
4
A primeira performance dramática, uma tragédia de L. Andrônico, ocorreu no
programa dos ludi Romani. Aos poucos, os ludi Plebeii e os festivais de Apolo e
da Magna Mater adotaram representações cênicas em seus programas rituais
e, ao longo do período republicano, as performances dramáticas mantiveram
sua ligação com os festivais públicos e com as instituições religiosas. A partir
do século III a.C., há registros de vários ludi scaenici, em honra de diversas
divindades: Apolo, Flora, Magna Mater, Júpiter Optimus Maximus e outros.
Estudiosos como E. Gruen (1996) e M. Beard; M. Crawford (1985) defendem
a tese do desenvolvimento da literatura e das artes cênicas romanas, muitas
vezes explicitamente baseados em modelos helênicos, e dos ludi scaenici em
particular, como uma das inovações religiosas do século III a.C., provavel-
mente em decorrência das interações culturais intensificadas com cidades de
cultura helênica ou helenizada, sobretudo após as intervenções militares ro-
Teatro Grego e Romano . 159
análise da dramaturgia romana pode, especialmente, aprofundar nossa
compreensão das práticas religiosas romanas.
a religião como uma “ordem sagrada”, caracterizada por uma constante luta
entre a manutenção de determinada ordem e sua potencial violação, na qual
o “sagrado” é visto como uma entidade ou fenômeno sobre-humano que se
“manifesta” no mundo, sacralizando a própria ordem social. Como Paden
sublinha, a sacralidade não é construída como um “além”, mas como o modo
pelo qual uma ordem específica é propagada, consolidada ou mantida intacta
(PADEN, 1996, p. 5).
10
Segundo T. Lívio, os ludi scaenici tiveram sua origem nas pantomimas com
acompanhamento musical, realizadas por atores etruscos (ludiones), em 364
a.C., como tentativa de encerrar uma peste; ameaçados por uma epidemia,
em 364 a.C., os romanos realizaram um lectisternium (um banquete no qual
os deuses participam como comensais). Não conseguindo expurgar o prodí-
gio, apelaram para dançarinos etruscos (ludiones) (AVC, 7, 2.3. ss; cf. também
Horácio, Epist. 2, 1, 139-55). Os ludi scaenici teriam, para Lívio, uma função
análoga à dos lectisternia: alimentar os deuses, desenvolvendo-se uma tradição
de pequenas performances dramáticas nos rituais romanos, o que foi incre-
mentado em 240 a.C., com a inovação de Lívio Andrônico. Talvez T. Lívio
se referisse a tradições itálicas, como as fabulae Atellanae, ou os dramas phlyax
do sul da Itália, mas não podemos ter certeza, tratando-se de um tema que
demanda novas pesquisas.
11
Seguimos a definição de P. Pavis para a comédia: “Tradicionalmente, define-
se a comédia por três critérios que a opõem à tragédia: suas personagens são
de condição modesta, seu desenlace é feliz e sua finalidade é provocar o riso
no espectador. (...) ela se dedica à realidade quotidiana e prosaica das pessoas
comuns (...). O riso do espectador é ora de cumplicidade, ora de superiori-
dade: ele o protege contra a angústia trágica, propiciando-lhe uma espécie
de ‘anestesia afetiva’. O público se sente protegido pela imbecilidade ou pela
doença da personagem cômica; ele reage, por um sentimento de superiori-
dade, aos mecanismos do exagero, contraste ou surpresa” (PAVIS, 2007: s.v.
comédia).
164 . Claudia Beltrão da Rosa
Mater (191 a.C.); o Phormio, de Terêncio, nos ludi Romani (161 a.C.) e
seu Adelphoe, nos funerais de L. Emílio Paulo (160 a.C.). Percebemos,
então, que as peças eram encenadas, principalmente, em ocasiões
e festividades de grande importância religiosa e política na Roma
republicana. Um risco, contudo, é superestimar o efeito dessas peças
sobre suas audiências, apesar de sabermos que houve um incremento
crescente de performances teatrais, por exemplo, nos ludi Romani (a partir
de 240 a.C.), acrescentando-se os ludi Apollinari (a partir de 212 a.C.), os
ludi Plebeii (desde pelo menos 200 a.C.), as Cerealia (antes de 201 a.C.), as
Megalensia (desde 194 a.C.) e as Floralia (desde ca. 210, tornados anuais
em 173 a.C.) (cf. GRUEN, 1992).12
20
Além disso, por um documento tardio, podemos perceber a permanência e
a longevidade do culto doméstico: o edito de Teodósio, de 392 d.C., que pro-
íbe o culto dos Lares, do Genius e dos Penates (Cth. 16.10.12). Para o estudo do
desenvolvimento do culto doméstico na Antiguidade tardia, veja-se: Bowes
(2008).
21
A própria população da urbs havia se ampliado ao longo dos séculos III e
II a.C. No século III a.C., a concessão da cidadania a comunidades itálicas
foi incrementada, além da concessão da cidadania a libertos (BEARD; CRA-
WFORD, 1985, p. 78-92). Os rituais religiosos e o teatro promoviam a educa-
ção cívica desses novos cidadãos (e, certamente, novas tensões sobrevinham).
É deste momento um aumento notável de documentos literários sobre a re-
ligião romana, concomitante ao movimento de consolidação da língua latina
como língua literária; por exemplo, os fragmentos de Ênio (Annales, ROL, I,
3,215) fornecem elementos para o estudo das ideias religiosas, e de Catão o
Antigo (Origines), que transmitem informações sobre tradições e rituais re-
ligiosos, mesmo em estado fragmentário, complementadas pelos dados do
De re agricola. O teatro de Plauto, portanto, fornece à pesquisa ricos elemen-
tos sobre a religião romana pública e doméstica, numa época de inovações e
transformações.
168 . Claudia Beltrão da Rosa
da comédia Aulularia, peça da qual não sabemos a data da primeira
encenação. Esta comédia, cujo motivo central é a avareza de Euclião, fi-
gura ridícula, transtornada pela descoberta de um tesouro, tange o tema
da fortuna da família, defendida pelo Lar familiaris, e o texto dramático
– posto que a encenação propriamente dita seja praticamente inalcan-
çável para nós – pode ser um guia para a análise de práticas religiosas
domésticas. Nosso objetivo é, então, tentar entrever práticas e cren-
ças relacionadas à religião doméstica romana.22 Há, porém, vantagens
e desvantagens no uso da documentação dramática numa investigação
sobre discursos, ritos e práticas religiosas.
Os espaços físicos nas cidades, nos quais as peças eram encenadas
(espaços teatrais) e a participação cênica, mesmo indireta, de divindades
que recebiam culto público ou privado em Roma, constituem
elementos importantes das performances, criando as interdependências
entre o espaço ficcional e o espaço cívico, entre personagens e
espectadores, especialmente porque as peças eram encenadas, como
vimos, em datas e espaços religiosos (cf. RAWSON, 1991). No final da
II Guerra Púnica, Salus, Victoria, Fides, Spes, Fortuna, Libertas, Honos et
Virtus, Mens e Concordia tinham pelo menos um templo em Roma (cf.
ORLIN, 2002). As comédias de Plauto foram escritas e encenadas num
momento em que um grande número de divindades (relacionadas, em
geral, com personificações de virtudes) “ganhou uma casa” em Roma,
permitindo que vislumbremos algo de sua recepção e das respostas a tais
divindades na urbs. Rituais surgiam nos palcos, personagens invocavam
os deuses, juravam, faziam libações, oferendas, sacrifícios (apesar de os
22
Referências à religião e a rituais envolvendo a familia romana, e à observân-
cia religiosa estão presentes em praticamente todo o corpus plautino, mesmo
que em breves alusões, mas, devido aos limites de um capítulo, não seria pos-
sível tentar dar conta de todas. Aos Lares, por exemplo, temos referências em
Mer. 864-5 (Lares uiales) e, dentre outros, Mer. 834 e Mil. 1339 (Lares familiares).
É certo também que a presença de deuses “atuando” no prólogo tornou-
se uma característica da Comédia Nova grega, após algumas experiências de
Eurípedes (Alceste, As Troianas), apesar de personagens divinas não tomarem
parte direta nas tramas, exceção feita a Mercúrio e a Júpiter, no Amphitryo,
de Plauto. Num mundo pleno de religiosidade, a mimesis da vida humana não
poderia ser feita sem a presença de elementos e personagens religiosas. Além
disso, nossa escolha – a Aulularia – deve-se também ao sucesso da peça na
tradição teatral ocidental, incluindo recriações no teatro brasileiro (cf. O santo
e a porca, de A. Suassuna).
Teatro Grego e Romano . 169
sacrifícios serem geralmente mencionados, e não realizados no palco) –
e os espaços ficcionais podiam ser santuários públicos (e.g., PLAUTO.
Rudens, em frente ao santuário de Vênus de Cirene, e Aulularia, no
templo da Fides e no bosque de Silvano) ou domésticos, como na
própria Aulularia, revelando a centralidade do lararium.
Na Aulularia, 582-6 e 606-18, encontramos uma passagem
interessante para nossos propósitos. Trata-se do apelo de Euclião, o
paterfamilias avarento, à Fides, em cujo templo tenciona esconder seu
pote de ouro, e do apelo de Estróbilo, o escravo, à mesma deusa, a
fim de roubar o ouro, o que só consegue depois que Euclião resolve
transferir o pote para o bosque de Silvano, fora da cidade.23 Aqui, vemos
um indício do caráter fisicamente localizado das divindades romanas e
de seu poder, nesta Atenas-Roma da comédia.24 Ambas as personagens
sentiam-se aptas a usar um espaço fisicamente delineado em “Roma”
pelo culto da Fides, tanto para conseguir atingir seus objetivos, quando
para reivindicá-los. Se podemos assumir que houve uma peça de
Menandro25 que serviu como modelo para Aulularia, a escolha de Fides
na cena é certamente de Plauto, pois a Pistis grega, que seria a divindade
mais semelhante à Fides romana, não parece ter tido um altar na Grécia
até a época de Adriano. Euclião reivindica um acordo prévio com a
deusa (“Fides, você me conhece e eu te conheço”), e dá a entender
que, para ele, o significado da divindade é sinônimo de “confiança”,
“boa-fé”. Já Estróbilo pede que Fides prefira a ele, e não a Euclião, e
que lhe seja “fiel” (fidelis). Vemos que há uma leitura discrepante entre
as formas de endereçamento das personagens à deusa.
Fides, cujo templo no Capitólio foi construído pouco antes do
nascimento de Plauto, não operava apenas na esfera dos tratados,
mas também num domínio ao qual as comédias antigas faziam apelo
e no qual ostensivamente se situavam: o domínio da vida quotidiana,
corriqueira, das pessoas “comuns”. Assim, a discrepância entre os
apelos das personagens à Fides pode ser ilustrativa: o escravo não parece
se referir à Fides do mesmo modo que Euclião, um paterfamilias, mesmo
23
Deuses como guardiões da propriedade e templos usados como depósito
de riquezas surgem também em Plauto, Bacch, 306-331.
24
Cf. Chaniotis (2009); Beltrão (2010).
25
É lugar comum vincular a comédia romana à comédia grega, especialmente
à Comédia Nova, de Menandro, e às fabulae Atellanae, da Úmbria, cf. nota 12.
Para o aprofundamento dessa questão, veja-se: Rehm (2007).
170 . Claudia Beltrão da Rosa
que vicioso. Euclião declara ter excelentes relações de confiança com a
deusa; Estróbilo parece se remeter a um sentido de “obter um crédito”
da Fides, para que a deusa permita o roubo, o que, no palco cômico,
surge como perfídia. Assim, perguntamos: poderíamos interpretar esta
discrepância de sentido como um exemplo das negociações quotidianas
com os deuses, diferentes conforme a posição que cada um ocupava na
sociedade romana e, consequentemente, de diferentes percepções da
ordem social e divina? A distinção entre confiança e perfídia, expressa
nos apelos das personagens à Fides, teria uma relação com a cosmovisão
romana? O escravo revela certo júbilo em relação ao possível sucesso
de seu plano. Poderia esta fala estar vinculada a uma visão aristocrática,
detectada em textos posteriores a Plauto, sobre a perfídia de escravos?26
É possível, pois a comicidade de uma peça só e somente só faz sentido se
estiver de acordo com, não apenas, o universo cognitivo de seu público,
mas principalmente com suas crenças morais, ou o riso não ocorre. As
comédias são, de certo modo, centradas na domus, na familia romana,
nos conflitos familiares, suas personagens são definidas por sua posição
no interior da familia e suas ações se inscrevem nos quadros de seu
estatuto familiar. Certamente, há de relembrar seu caráter ficcional, mas
as obras cômicas são pautadas pela moralidade comum, pelos modelos
normativos, religiosos – ou não provocariam o riso.27 Na Aulularia, o
riso assoma quando Euclião, o paterfamilias avarento e desconfiado, por
isso “não confiável”, reivindica o apoio da Fides, enquanto Estróbilo,
o escravo, exterior à fides romana, portanto “pérfido”, endereça a Fides
um apelo para que lhe dê um crédito, por ser um “bom escravo” (seruus
frugi), ou seja, por visar à felicidade de seu senhor, para quem entregaria
o ouro esperando, em troca, sua manumissão (um tema recorrente em
Plauto).
É importante, porém, lembrar que Estróbilo não consegue reali-
zar o roubo no templo da Fides, e só obtém o sucesso quando Euclião,
sempre desconfiado, transfere o pote de ouro para fora do pomerium, para
26
Remetemos ao artigo de Sônia Regina Rebel de Araújo, intitulado Ideologia
Escravista em Aulularia de Plauto, sobre o tema em pauta.
27
Segundo Pavis, “o riso do espectador é ora de cumplicidade, ora de supe-
rioridade; ele o protege contra a angústia trágica, propiciando-lhe uma espécie
de ‘anestesia afetiva’. O público se sente protegido pela imbecilidade ou pela
doença da personagem cômica; ele reage, por um sentimento de superiori-
dade, aos mecanismos do exagero, contraste ou surpresa” (PAVIS, 2007: s.v.
comédia).
Teatro Grego e Romano . 171
fora do solo consagrado de Roma, entregando-o a Silvanus, um deus
anterior à urbs, que vive nas matas (siluae) do Lácio, que não atende aos
ditames das regras sociais, e isso permite entrever algumas característi-
cas da religio romana.
Como apresentamos em publicação recente,
O termo fores, que chegou até nós nas palavras fora, foro,
forâneo, forasteiro, era um dos termos-chave na definição
do limite entre o espaço doméstico e aquilo que era deixado
de fora, o mundo exterior, estranho e adverso, domínio das
feras e das divindades não aplacadas, culminando no forum
romanum, centro da res publica, o espaço que concentrava os
cidadãos, local que criava o espaço público comum a todos
e estabelecia os limites entre o romano e o não-romano, in-
fluenciando a paisagem social e fomentando relações de con-
vivência e estabelecendo leis e costumes, e depois, segundo
Cícero, a organização do direito e a disciplina da vida, de
modo a proteger a vida (De Off. II, 15). Daí a sacralidade de
tais lugares e a identificação da urbs com os templos de seus
deuses, com os sepulcros de seus antepassados e com os
marcos limiares. O valor desses marcos é expresso no rito de
fundação de uma cidade, que evocava o rito etrusco, criando
um baluarte sobrenatural com sua dimensão sagrada (sacer).
A ideia é expressa por Cícero, assinalando a força da comuni-
dade de sangue na formação da res publica, exaltando os mo-
numentos dos maiores, o uso dos mesmos lugares sagrados
e dos sepulcros comuns (De Off. I, 55) (BELTRÃO, 2007).
31
LAR. Huic filia una est; ea mihi cottidie/ Aut ture aut uino aut aliqui semper suppli-
cat;/ Dat mihi coronas. Eius honoris gratia/ Feci thesaurum ut hic reperiret Euclio,/ Quo
illam facilius nuptum, si uellet, daret (v. 23-27). Tradução nossa.
Teatro Grego e Romano . 175
identificação, essencial na comunicação. O teatro de Plauto surge como
o teatro da moral pública, mostrando o mundo e as coisas inscritas
no simbólico (ou melhor, a vida quotidiana, seus sentimentos, ações,
paixões, etc., recebem uma consistência simbólica). A comédia plautina
apresentava aos espectadores romanos os fundamentos de sua própria
identidade, contribuindo para a manutenção da ordem sagrada romana.
BIBLIOGRAFIA COMENTADA
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1
Regina Maria da Cunha Bustamante
A História nos permite conhecer melhor o presente e a ines-
gotável diversidade humana, que nela se manifesta. Renunciando à
presunção dos julgamentos definitivos e irrevogáveis, sendo histo-
riadores, devemos nos empenhar em observar a dimensão plural da
existência dos homens, isto é, examinar criticamente as ações e espe-
cificidades das sociedades humanas. Ao dialogarmos com os antigos,
esforçamo-nos por nos colocarmos em lugares específicos do passado,
onde eles se moviam, mesmo sabendo que os resultados alcançados
por essa aventura serão, muitas vezes, precários. Nesta diretriz, posi-
ciona-se Hartog (2003, p. 198), que defende justamente a “manutenção
desse jogo do mesmo e do outro, com sua sucessão de problemas e sua história, com
suas tensões e suas reviravoltas”, o que faz com que os antigos desper-
tem interesse no presente por serem paradoxalmente “nem mesmo, nem
outros e, ao mesmo tempo, um e outro”. O estudo da Antiguidade produz
indubitavelmente um sentido de alteridade espacial e temporal, que é
operada com a intenção de projetar uma reflexão sobre o presente,
estimulando e desenvolvendo um olhar crítico sobre o social. Proble-
mas urgentes do mundo contemporâneo trazem, para o âmbito da
História Antiga, campos de visibilidade da vida social que nos ajudam
a compreender, através do encontro com a diferença, nossos próprios
caminhos e opções. Eis a dialética da duração: como estudiosos da An-
1
No presente texto, aprofundaram-se aspectos desenvolvidos para a comu-
nicação “Mosaico ‘O poeta trágico e o ator cômico’: identidade cultural e elite
provincial afro-romana”, apresentada no V Colóquio Internacional “Mito e
performance: da Grécia à modernidade”, ocorrido em La Plata (Argentina)
no período de 16 a 19 de junho de 2009. O texto foi resultante de pesquisa
realizada para a Bolsa de Produtividade do CNPq.
Teatro Grego e Romano . 181
tiguidade, ao nos debruçarmos sobre o passado, pensamos no presente
e pensamos o presente. Assim, o tema contemporâneo da construção
das identidade/alteridade culturais suscitou o presente texto.
FIGURA 12
(KHADER; SOREN, 1987, p. 191, fig. 57; FANTAR; et al., 1994, p.
199; BLANCHARD-LEMÉE; et al., 1996, p. 220, fig. 165; LANCHA, 1997,
pl. IX; LAVAGNE, BALANDA; URIBE ECHEVERRÍA, 2000, fig. 57; SLIM;
FAUQUÉ, 2001, p. 173; KHADER, BALANDA; URIBE ECHEVERRÍA,
2003, fig. 235; ABED, 2006, p. 114, fig. 6.4)
2
Dimensões: medalhão central: 1,31m de diâmetro; Acervo: Museu Arque-
ológico de Sousse na Tunísia.
Teatro Grego e Romano . 185
Eis o mosaico selecionado que, no esquema peirceano, corres-
ponde à face perceptível do signo, constituindo, portanto, o seu signi-
ficante ou representamen.
Passemos à identificação do objeto ou referente, visando inferir o
que é representado pelo significante acima exposto (FIGURA 1).
4
O termo contabulata é derivado do escritor africano Apuleio (c. 125-c. 190),
em Metamorfoses XI.3, quando descreve o complexo pregueado da palla (manto
retangular feminino) de Ísis.
Teatro Grego e Romano . 187
típica da tragédia, destacando-se o onkos (a parte superior da máscara
em forma de lambda – Λ / λ). A fronte acentuada era frequentemente
dissimulada por uma peruca. Com o onkos, objetivava-se, por um lado,
restabelecer as proporções do corpo, acrescido com as vestimentas e
pelos altos cothurni,5 e, por outro, emprestar às figuras trágicas um as-
pecto distinto. Este acessório atingia, por vezes, dimensões desmedidas,
mas sua altura era muito variável. A máscara é de um homem moreno
(melas anêr) e adulto. Sua tez morena (melas), sua barba e seus cabelos
crespos simbolizam a força viril. O ar rude (trachus) do seu rosto pode
indicar que esta máscara estava destinada aos papéis “antipáticos”.
A máscara da tragédia nos informa que estamos diante de um
dramaturgo. Blanchard-Lemée (1996, p. 219) observa que não seria ex-
traordinário para um notável rico na próspera cidade de Hadrumetum se
dedicar a compor versos ou mesmo peças; nem seria mais extraordiná-
rio ainda se ele decidisse registrar seus feitos em alguns dos cômodos
da sua casa. A autora questiona se existia alguma cidade afro-romana
que não possuísse seu próprio compilador ou gramático. Os trabalhos
de um número de poetas menores africanos foram eventualmente cole-
tados para uso educacional em Cartago. Mas, o nome do escritor neste
mosaico não é mais conhecido por nós; sobreviveu apenas este retrato
musivo anônimo...
O olhar do dramaturgo é frontal. A intencionalidade comuni-
cativa deste olhar pode ser compreendida através das proposições de
Calame (1986), que analisou a representação da figura humana, e, em
particular, do jogo dos olhares, na cerâmica clássica. Ele concluiu que
os olhares não foram feitos ao acaso; havia uma relação entre os ele-
mentos do enunciado icônico e o receptor. O estudioso identificou três
situações: o olhar de perfil, quando os personagens olham entre si, não
se preocupando com o receptor nem se interessando pela sua presen-
ça; o olhar de ¾, quando o personagem, ao mesmo tempo, olha para a
situação do enunciado – o interior do texto – e para o receptor, como
se o estivesse convidando a participar com ele da situação; e o olhar
frontal, em que o personagem, voltado diretamente para o receptor,
dialogaria com ele. No caso do mosaico, o dramaturgo está com o olhar
5
O cothurnus era uma bota com solado alto, usada pelos atores trágicos
quando em cena (VIRGÍLIO. Bucólicas, VIII.10) para aumentar a sua altura
(JUVENAL. Sátira, VI.633) e lhe dar um ar mais imponente. Para esconder o
cothurnus, os atores trágicos portavam longas vestimentas que tocavam o chão
(RICH, 2004, p. 200).
188 . Regina Maria da Cunha Bustamante
frontal, por conseguinte, está interagindo com os leitores da imagem
que a apreciam.
A outra figura do mosaico, que se encontra em primeiro plano,
é um homem, com cabelo castanho com corte pajem e imberbe, sinal
diacrítico de juventude. Veste uma túnica e manto; não porta a toga, a
roupa do cidadão. Normalmente, os atores possuíam baixo status social;
eram, em sua maioria, escravos ou ex-escravos. Um cidadão que atuasse
como ator era degradado pelos censores (magistrados que estabeleciam
as classificações sociais na Roma Antiga) e excluídos da sua posição
(HALL; EASTERLING, 2008, p. 265-266 e 277-278).6 O jovem do
mosaico calça soccus, pantufas que cobriam todo o pé. Em Roma, o
uso deste tipo de sapato estava restrito às mulheres (soccus muliebris) e
aos atores cômicos, contrastando então com o cothurnus do ator trágico
(RICH, 2004, p. 589-590). A túnica e os sapatos baixos (socci) davam aos
atores cômicos a liberdade de movimentos e estavam condizentes com
as vestes de segmentos sociais populares.
O jovem em pé tem um dos seus braços sobre uma coluneta.
Com o outro braço, segura uma máscara. Esta máscara representa um
dos personagens da comédia: o do jovem com cabelo anelado (oulos
neaniskos). Este seria o tipo de jovens libertinos, debochados (iuvenes
luxuriosi) e bonitos com rosto vivaz e as sobrancelhas arqueadas. Foi
identificado como “capitão” por ser moreno e sua cabeleira flutuar
como uma crina; é desta particularidade que se origina seu nome: epi-
seistos. Estes tipos faziam parte da comédia latina, que teve como um
dos seus parâmetros as peças do ateniense Menandro (343-291 a.C.),
um dos mais célebres escritores da Nova Comédia,7 cujos trabalhos
influenciaram os comediógrafos latinos republicanos, como Plauto (c.
254-184 a.C.) e Terêncio (c. 186/5-c. 159 a.C.) (GRIMAL, 1986, p. 103-
116; PARATORE, 1987, p. 39-61 e 111-133; CIRIBELLI, 1995, p. 33-
38 e 51-77; COUTO, 2006, p. 12-34; e MEDEIROS, 2008, p. 10-15).
6
No Código Teodosiano (CTh), compilação em 16 livros contendo todas as
leis imperiais promulgadas desde o imperador Constantino (306-337) até o
imperador Teodósio (379-394), elaborado entre 435 e 438, há uma parte espe-
cífica sobre homens e mulheres envolvidos em espetáculos (CTh XV.7.1-13),
em que se reafirma sua estigmatização.
7
Na Comédia Nova, surgida no período helenístico (323-260 a.C.), predomi-
navam os enredos
������������������������������������������������������������������
em torno de identidades falsas, intrigas familiares e amo-
rosas.
Teatro Grego e Romano . 189
Pelos sinais diacríticos do soccus e da máscara em questão, esta-
mos diante de um ator cômico. Enquanto o dramaturgo encontra-se
mais ao fundo da cena, condizente com seu trabalho relacionado aos
“bastidores” do Teatro, ou seja, à escrita das peças a serem represen-
tadas, o ator cômico situa-se em primeiro plano, referindo-se assim à
sua performance no palco em frente à plateia. Ele também tem o olhar
frontal, estabelecendo, tal como no palco, uma relação direta com o
espectador.
8
Associação oficial de cidadãos romanos nas aglomerações sem status de mu-
nicípio ou de colônia (LAMBOLEY, 1995, p. 116). Em Hadrumetum, era com-
posta de negociantes romanos que comerciavam os produtos agrícolas da
região visando exportá-los para Itália (LEPELLEY, 1981, p. 261).
190 . Regina Maria da Cunha Bustamante
se que Trajano (98-117) promoveu Hadrumetum à colônia honorária,
o que demonstra a plena inserção da cidade na ordem romana.9
Este imperador estabeleceu ainda um procurator regionis Hadrumetinae,
responsável pelos domínios imperiais (LEPELLEY, 1981, p. 262).
Desde o Principado (27 a.C.-284), Hadrumetum era uma capital regional.
No governo de Diocleciano (284-305), com a criação da província de
Bisacena,10 a cidade tornou-se a sua capital.
A partir do século II, foram construídos monumentos públicos
como teatro, anfiteatro, circo, termas e suntuosas residências aristocrá-
ticas ricamente decoradas com mosaicos. A prosperidade econômica
da região fundamentava-se principalmente na produção e comerciali-
9
A promoção à colônia honorária assimilava os cidadãos da comunidade pro-
vincial aos de Roma e a obrigava teoricamente a renunciar ao que restava do
seu próprio direito para adotar integralmente o direito romano. Durante o
domínio romano na África do Norte, mais de 50 cidades indígenas recebe-
ram o título de colônia honorária (LEPELLEY, 1979, p. 122). Mesmo com
a extensão do direito de cidadania, concedida por Caracala (211-217) através
da Constituição Antonina em 212 aos habitantes de todas as cidades (exce-
tuando-se aquelas que resistiram ao domínio romano e certas categorias de
pessoas), o governo imperial continuou a conceder, a pedido das próprias
comunidades, os status de município e de colônia, como se comprova nas
inscrições epigráficas norte-africanas do Baixo Império (LEPELLEY, 1979,
p. 128-132). O sentido de colônia, portanto, não implicava necessariamente a
criação de uma nova cidade. Poder-se-ia conferir o título às cidades de catego-
ria inferior como uma forma de promoção. Roma incentivava a lealdade das
comunidades locais já existentes através da concessão deste título honorífico,
quando sua história tornasse possível, desejável ou necessária esta transfor-
mação, tanto para o sistema imperial quanto para os habitantes da cidade.
Era um reconhecimento de um grau de romanização suficiente para justificar
a agregação de uma cidade à comunidade dos cidadãos romanos. Mas, uma
romanização mais intensa era também incentivada por esta concessão, favo-
recendo um movimento espontâneo de adesão em favor dos costumes e leis
de Roma.
10
Ignora-se a data precisa da criação da província; supõe-se entre 294 e 305.
A reforma administrativa diocleciana dividiu a Província da África Procon-
sular em três: Zeugitana ou África Proconsular propriamente dita, Bisacena
e Tripolitânia. Esta divisão visava aumentar os recursos fiscais destinados a
enfrentar as ameaças exteriores, reforçar a autoridade imperial e, ao mesmo
tempo, diminuir a do procônsul da África Proconsular, cujo poder em geral
fazia o jogo dos usurpadores (MAHJOUBI, 1983, p. 482).
Teatro Grego e Romano . 191
zação do azeite. Em fins do século II (193-197), um cidadão hadrume-
tino, Décimo Clódio Albino, disputou o trono imperial com Septímio
Severo, natural de outra cidade afro-romana, Leptis Magna (HISTÓRIA
AUGUSTA. Clodius Albinus, IV.1). A ascensão da dinastia severiana
(193-235), de origem afro-síria, ao poder representou um período de
grande desenvolvimento para as províncias norte-africanas; foi a época
de esplendor em Hadrumetum, quando houve uma significativa ativida-
de edilícia, dentre elas, a residência onde se localiza o mosaico em tela,
datado do início do século III.
Nesse período, desenvolvia-se o “estilo musivo africano”, surgido
no século anterior, que rompeu com os padrões geométricos simples,
semelhantes aos italianos, seguidos pelos mosaicistas da região, que
relegavam as tradições púnicas. As oficinas norte-africanas passaram a
se dissociar então dos cânones dos mosaicos italianos e estabeleceram
seu próprio estilo com a gradual introdução da policromia nas bordas
e da integração de elementos florais e geométricos. Produziram uma
grande quantidade de mosaicos policromáticos, geométricos, florais e
figurativos em fundo branco. Cada região desenvolveu seu próprio estilo
e seus temas a partir de tradições locais (FANTAR; et al., 1994, p. 18-45
e 55-9; LAVAGNE, BALANDA; URIBE ECHEVERRÍA, 2000, p. 68-
74). A representação do cotidiano oscilou entre o realismo, a caricatura
e alguma idealização, mas também era comum se recorrerem a cenas
mitológicas. A predileção por assuntos tomados da vida real e a forma
de representação com distribuição de cenas trabalhadas em cores sobre
uma ampla superfície branca não diferenciada eram características
distintivas do “estilo musivo africano”, que chegou a sua maturidade a
partir do século III e se difundiu pelo Império Romano (FANTAR; et
al.,1994, p. 59 e 240-259).
Os mosaicos nas paredes e no teto eram um dos elementos de-
corativos mais admirados. Traziam leveza às domus da elite local, ao
decorar seus aposentos como se fossem afrescos e tapetes, e também
revelavam a vida cotidiana, os prazeres e os valores da elite provincial
(THÉBERT, 1990, p. 300-398). A riqueza desta elite, fundamentada,
sobretudo, na produção de cereais e na manufatura do vinho e do azei-
te, como em Hadrumetum, encontrou expressão tanto na construção
de monumentos públicos quanto na decoração sofisticada das residên-
cias urbanas (domus) e rurais (villae), onde os membros da elite provin-
cial, profundamente romanizada, afirmavam seu status e seus valores
culturais. A decoração doméstica nas residências urbanas de pessoas
CONCLUSÃO
17
A coleção, publicada na década de 1980, foi elaborada a partir da pers-
pectiva dos próprios africanos. Para tanto, 350 cientistas coordenados por
um comitê formado por 39 especialistas, dois terços deles africanos, procu-
raram reconstruir a historiografia africana livre de estereótipos e do olhar
estrangeiro. Desde 2010, toda a coleção, em seus 8 volumes, está disponível
em: <http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/ResultadoPesquisaO-
braForm.do?first=50&skip=0&ds_titulo=&co_autor=&no_autor=&co_
categoria=132&pagina=1&select_action=Submit&co_midia=2&co_
obra=&co_idioma=&colunaOrdenar=DS_TITULO&ordem=null>, por
iniciativa governamental, que a colocou sob domínio público, objetivando
fornecer uma importante referência no campo dos estudos africanos.
18
Especificamente o volume 2, está disponível em: <http://www.dominiopu-
blico.gov.br/download/texto/ue000319.pdf.>. Acesso em: 6 ago. 2011.
19
Em termos territoriais, corresponde atualmente à região que abrange desde
a Tunísia ao Marrocos.
Teatro Grego e Romano . 199
(capítulo 1).20 Esta faz uma introdução esclarecedora, revisitando as
operações definidoras dos conceitos de identidade e diferença, fun-
damentadas na estreita interrelação entre estes dois conceitos. Dialo-
ga com estudos antropológicos (Claude Lévi-Strauss sobre a cozinha,
Mary Douglas sobre puro/impuro), filosóficos (Jacques Derrida sobre
oposição binária, Hélène Ciouxs sobre gênero, Louis Althusser sobre
ideologia) e psicanalíticos (Freud e Lacan sobre inconsciente).
Peirce (1839-1914), pensador prolífero e multifacetado,21 impac-
tou os estudos semióticos de textos escritos, como as obras de Eco
(1991, 2004a, 2004b e 2007), e imagéticos, como em Niemeyer (2007) e
Joly (1997) 22. Esta utilizou a Semiótica de Pierce para analisar a mensa-
gem visual fixa, como pintura, fotografia e cartaz, que foram utilizados
como exemplos metodológicos. Seu livro é esclarecedor para aqueles
que se interessam pelo tema.
DOCUMENTAÇÃO TEXTUAL
DOCUMENTAÇÃO MATERIAL
OBRAS DE REFERÊNCIA
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1
José d’Encarnação
Figura 1
Encontrou-se um teatro, o de Olisipo; temos sérias probabilidades
de que outros hajam existido. Epígrafes que falem de representações
teatrais, quer as de índole particular, encomendadas por senhores para
gáudio dos seus convidados, quer as que resultam de circunstancia-
lismos político-sociais, pois que celebrar um acontecimento com re-
presentações teatrais era hábito corrente por todo o Império… não
há! Por enquanto… pensamos nós! Primeiro, porque este Ocidente,
embora afastado dos centros decisórios e culturais importantes, nun-
ca deixaria seus créditos por mãos alheias; depois, porque, sitas em
contextos urbanos que perduraram ocupados até aos nossos dias, sem
dúvida que essas pedras com letras foram, naturalmente, aproveitadas
nas construções seguintes…
3
Tradução: “Gaio Quíncio Valgo, filho de Gaio, Marco Pórcio, filho de Mar-
co, duúnviros, por decreto dos decuriões trataram da implantação e fiscaliza-
ram a construção deste teatro coberto”.
206 . José d’Encarnação
“��������������������������������������������������������������
Converteu-se o teatro num difusor da ideologia imperial, à me-
dida que esta se foi enraizando no seio da sociedade romana. Assi-
nalou-o Zanker em termos bem adequados: o teatro como ponto de
encontro entre o Princeps e o povo”, escreveu José L. Jiménez Salvador
(1993, p. 237). Não admira, portanto, que todas as capitais conventuais,
por exemplo, devessem ter teatro, precisamente para ser palco dessas
manifestações, em que, para além dos aspectos artísticos propriamente
ditos, as implicações sociopolíticas eram deveras consideráveis.
Não se trata, este, de um tema de investigação inédito; contudo,
apesar de no volume 2 dos Cuadernos de Arquitectura Romana (1993) se
ter optado por analisar, em exclusivo, os teatros romanos de Hispânia
(<http://revistas.um.es/car>), quase se pode apontar o ano de 2002
como o do súbito despertar do interesse por estas problemáticas, se
pensarmos que se reuniram, em Córdoba, nesse ano, umas jornadas
sobre teatros romanos em Hispania (MÁRQUEZ; VENTURA, 2006),
e Trinidad Nogales Basarrate superintendeu a edição de Ludi Romani,
o catálogo de uma exposição realizada em Mérida, sobre esse tema
dos espectáculos na Hispânia romana, de 29 de julho a 13 de outubro
de 2002, acerca do qual, na ocasião, se realizou também um Colóquio
Internacional, cujas conferências são dadas a conhecer nesta obra.
Nesse domínio se tem distinguido, entre outros, Alberto Ceballos
Hornero, que traçou, em 2004, uma panorâmica da documentação
epigráfica relativa a tudo o que eram espectáculos da Hispânia romana,
temática a que continuou a dedicar-se (2007; 2011).
Um teatro em Évora
5
“O eixo determinado pela fachada oeste do criptopórtico coincide com o
eixo transversal da estrutura que julgamos representar o teatro”, escreveu
Vasco Mantas, ao referir-se à estrutura urbana de Aeminium (1992, p. 508); o
tema não teve, porém, que eu saiba, ulterior desenvolvimento, dado que, em
1999, afirmou: “De outros monumentos da cidade apenas restam indícios ou
vestígios de difícil ou impossível identificação, caso do teatro, que se levanta-
ria a norte do fórum” (p. 386).
208 . José d’Encarnação
Na verdade, não só a análise da morfologia do aglomerado
urbano já sugeriu inclusive a mui provável localização do teatro,6 como
a inscrição7 gravada no que considerei as costas de um assento do
teatro, que – se a minha interpretação está correcta, porque apresentei
a reconstituição feita a partir de um fragmento – nos dá conta de que
Philon ofereceu ao seu patrono, Aulus Castricius Iulianus, um subsellium,
ou seja, o assento de mármore que lhe ficava reservado.
É a primeira vez que se encontra um testemunho deste teor; daí,
a razão da minha cautela na proposta de interpretação que fiz.
Regista-se a profissão de subselliarius na Roma antiga: veja-se, por
exemplo, essa palavra no Oxford Latin Dictionary, que traz à colação a
epígrafe de Roma (CIL VI 6055), referente a Aulus Veturius Tiro, liberto
de uma mulher, que é dito supsellarius [sic]. Trata-se de singela placa,
achada em columbário modesto, e nada mais diz.
Por seu turno, o termo subsellium, sem uma tradução específica
para português, usava-se, de modo especial, no foro judicial: homo a sub-
selliis era a expressão que designava quem era costumeiro nos tribunais;
versatus in utrisque subselliis identificava quem era versado em questões
analisadas tanto do ponto de vista dos juízes como do dos advogados;
e o citado dicionário apresenta uma série de testemunhos do uso da
palavra nesse contexto.
Pôs-se-me, por conseguinte, a questão: justificava-se a oferta de
um assento na cúria? Pareceu-me que o mais ajustado seria optar por
um cenário de pompa, de solene privilégio e, para esse fim, nada me-
lhor que um teatro. Havia, como se sabe, lugares marcados no teatro
consoante a categoria social; considerei, pois, que seria essa a melhor
opção. De resto, Victor Chapot, no artigo sobre subsellium que assina
no Dictionnaire das Antiquités Grecques et Romaines dirigido por Ch. Da-
remberg e Edm. Saglio (p. 1551-1552), é peremptório: “No teatro, no
anfiteatro ou no circo, designavam-se assim todas as filas de assentos
que rodeavam em círculo o interior do edifício (cavea), em degraus so-
brepostos”.
6
“A curva que a actual Rua de S. Mancos descreve sugere a curvatura da cavea
de um teatro. A ser assim, o teatro romano de Évora ficaria perfeitamente
axializado com o fórum” (ALARCÃO, 1988, p. 185).
7
Veja-se Encarnação (2008, p. 225). O estudo mais pormenorizado do texto
apresentei-o em 1986-1987, p. 13-18. Acrescente-se agora Ceballos Hornero
(2004, p. 616-617) (inscrição n.º 150), que, no entanto, parece preferir, sem
argumentos, a hipótese de inserção da epígrafe num anfiteatro.
Teatro Grego e Romano . 209
E esta será, sem dúvida, uma prova deveras interessante não
apenas da existência do edifício como, inclusive, da importância que
lhe era concedida no seio da população culta da cidade.
O teatro de Lisboa
É, contudo, em Olisipo (Lisboa) que temos o teatro mais bem
documentado e estudado desta zona ocidental do Império.8
A zona foi abalada pelo terramoto de 1755 e só quando, em 1798,
ali se abriram os alicerces para um prédio, se puseram a descoberto
as suas ruínas, que o arquitecto Francisco Xavier Fabri desenhou,
desenhos que Luís António de Azevedo (1815) deu a conhecer.
A reconstrução da cidade não teve, porém, em consideração
a possibilidade de recuperação total do edifício (os tempos e as
mentalidades eram outros!...) e só a partir de meados do século XX se
voltou a dar mais atenção às ruínas existentes, embora mui significativa
parte das bancadas, por exemplo, jazam ainda hoje sob o casario.9 Têm
sido praticamente impossíveis as negociações para que os proprietários
dos imóveis aceitem vendê-los ou permutá-los.
Figura 2
8
Cf. Ceballos Hornero (2004, p. 593-596), (n.º 140).
9
Veja-se, por exemplo, em Jorge de ALARCÃO (1982) breve história da des-
coberta e descrição do monumento.
210 . José d’Encarnação
No que concerne aos vestígios epigráficos, teve-se a sorte de
partes de uma das mais sugestivas epígrafes ter sido desenhada também;
e os subsequentes trabalhos arqueológicos, a cargo de equipas sob a
tutela do Município, ajudaram a identificar os blocos que ‘sobreviveram’
(FERNANDES; CAESSA, 2006-2007, p. 93-98) (Fig. 2).
Era, de facto, uma grande inscrição arquitectónica, distribuída
por blocos que se ajustavam. Nem todos foram encontrados. Ou seja:
nunca tivemos a inscrição completa e logo Luís António de Azevedo
teve o cuidado de esclarecer:
Como as relíquias das letras que se descobriram da primei-
ra inscrição foram ainda, num quadrângulo ESARIS, num
semicírculo AESAR, além de AVG e Is, assentámos, em
consequência e conformidade destas palavras e sílabas, que
devíamos suprir na presente inscrição o que, de ordinário,
trazem semelhantes monumentos, que é dizerem não só de
quem o imperador é filho, mas também declarar de quem é
neto, bisneto, trineto, e assim dos outros parentescos daí por
diante, como se prova de um grande número de inscrições
que a todos aqueles que tiverem lição desta matéria são no-
tórias (AZEVEDO, 1815, p. 13-14).
10
Cf. <http://eda-bea.es/>: registos 1249, 1360 e 1683, por exemplo, todos
da província da Bética.
Teatro Grego e Romano . 211
S(ule) II (secundum) DESIGNATO III (tertium) / PROSCAENIVM ET
ORCHESTRAM CVM ORNAMENTIS / AVGVSTALIS PERPETVVS
C(aius) HEIVS PRIMVS […]
Luís da Silva Fernandes (2007) teve ocasião de enquadrar esta família dos
11
Figura 4
Figura 5
13
Transcrevo a versão de <http://eda-bea.es/> (registo n.º 21 285): “- - - -
- - / [Augu]stali / perpetuo / C(aio) Heio C(ai) l(iberto) / Primo / C(aius)
Heius Primi lib(ertus) / Nothus et Heia / Primi l[ib(erta)] Elpis / Heia No-
tha Secunda / C(aius) Heius Nothi f(ilius) Gal(eria) / Primus Ca[t]o / Heia
Nothi f(ilia) Chelid(a) / T(itus) [H]eius Nothi f(ilius) Gal(eria) / Glaphyrus
Nothian/[us? - - -] / - - - - - -”. Os seus libertos aqui identificados são: Gaio
Heio Primo, Heia Elpis e Heia Notha Secunda; Gaio Heio Primo Catão, filho
de Notho, já é cidadão, uma vez que está inscrito na tribo Galéria (de Olisipo);
registam-se, ainda, Heia Quélida, filha de Notho, e seu irmão, Tito Heio Gla-
firo Nothiano [?], também ele já cidadão inscrito na tribo Galéria. E outros
nomes haveria. Trata-se, por conseguinte, de uma homenagem familiar, ape-
nas passível de estar integrada no edifício, devido à benemerente contribuição
dada pelo seu patrono.
Teatro Grego e Romano . 215
a dado momento, em nome próprio. E serve de introdução explicativa
ao que se vai aduzir de seguida.
Exodiarius
Figura 6
14
Este arcebispo de Évora foi notável coleccionador de antigualhas, que reu-
niu desde os tempos em que esteve em Lisboa até ir para Beja, onde juntou
uma colecção, que foi o embrião do actual Museu regional de Beja. Quando
foi nomeado arcebispo de Évora, levou consigo boa parte da colecção, hoje
no acerbo do Museu dessa cidade. Foi, porém, meticuloso desenhador das
peças que ia ajuntando e nesses seus desenhos podemos confiar, uma vez
que, comparando-os com os monumentos existentes, se verifica essa fideli-
dade aos mais imperceptíveis pormenores; daí que, em relação aos objectos
arqueológicos que desenhou, nomeadamente inscrições, nós possamos garan-
tir que o erro será mínimo, tão grande foi o rigor com que tudo registou. O
seu álbum – que cito na bibliografia – religiosamente guardado na Biblioteca
Pública de Évora constitui, por isso mesmo, uma importante fonte histórica.
Cf.: Encarnação (2010, p. 47); e Morais (2009).
216 . José d’Encarnação
Reflecti sobre a epígrafe e dei dela, em 1984 (IRCP 247), a
seguinte tradução:
Consagrado aos deuses Manes. (Aqui jaz) Patrício,
actor, de … anos. […]
15
Remeto para Kajanto (1982, p. 313), que inclui este antropónimo entre os
cognomes, informando que, na Península Ibérica, no conjunto do CIL, há 8
testemunhos em 20. Esse estatuto servil parece ter sido também o dos três
Patricii da necrópole de Quinta de Marim (Olhão): IRCP 49 e 50.
Teatro Grego e Romano . 217
cuius libenter dicor exodiarius”, “não é uma só vez mas amiúde que de
muito boamente sou chamado exodiário”.16
Também não serão frequentes as referências literárias ao exodium,
pequena peça, do jeito de uma farsa, que finalizava, completando-a gra-
ciosamente, uma representação teatral. No Oxford Latin Dictionary (s. v.
exodium), alude-se a uma passagem da Vida dos Doze Césares, de Suetó-
nio, concretamente no final do capítulo XLV referente ao imperador
Tibério, em que se faz lúbrica citação de uma “atelana”, remetendo,
pois, para as então chamadas exodia Atellanica. E, na verdade, se dificil-
mente encontraremos ‘exódio’ num dicionário de língua portuguesa,
“atelanas” está consignado como “farsas populares em uso entre os
antigos Romanos”. É ainda em Suetónio, na vida de Domiciano (X, 4),
que se lê: “Occidit et Helvidium filium, quasi scaenico exodio sub per-
sona Paridis et Oenones divortium suum cum uxore taxasset��������
”�������
(�����
“����
Man-
dou matar também Helvídio filho, com o pretexto de que numa repre-
sentação intitulada Paris e Oenone censurava o divórcio do príncipe”).17
Sirva-nos este pequeno excurso de aperitivo para uma conclusão:
caso, como parece, Patricius foi exodiarius, à população de Pax Iulia
terá mesmo de atribuir-se um estatuto cultural deveras elevado, se
atendermos às características atrás citadas dos exódios: pequenas peças,
de algum sabor irónico e crítico, destinadas a transmitir ao espectador
forte dose de boa disposição. Aliás, isso mesmo se pode depreender
da seguinte explicação, a propósito de uma sátira de Juvenal (III, 175),
aduzida por Grifi (p. 27):
Exodiarius apud veteres in fine ludorum intrabat, quod ridiculus foret;
ut quidquid lacrymarum atque tristitiae coegissent ex tragicis affectibus,
huius spectaculi risus detergeret.
16
Esta inscrição é frequentemente citada, desde há muito. Veja-se, a título de
exemplo, que já vem comentada no livro de Grifi (1847, p. 28-29).
17
Sigo a tradução indicada na bibliografia; contudo, facilmente se verificará
que se trata de uma versão um tudo-nada livre, que não respeita a precisão
terminológica, no caso vertente do tipo de representação.
218 . José d’Encarnação
Já vimos que, com muita verosimilhança virão a encontrar-se,
um dia, sob as actuais construções de Beja os restos de um edifício
teatral. Não era obrigatório que o exodiário necessitasse de um palco
formal para representar as suas pantomimas (passe o termo); mas
não restam dúvidas de que, a ser correcta a interpretação que vimos
dando a esta epígrafe, o seu testemunho reforça substancialmente essa
realidade.18
Thymelicus
18
Ceballos Hornero (2004) também inclui esta epígrafe no seu livro: p. 383-
384 (inscrição n.º 66). Cita a opinião de Mariner segundo a qual Patricius po-
deria actuaria com o seu grupo pela Península Ibérica, acabando por morrer
em Pax Iulia; isso é prova, conclui, que havia aí um teatro, tal como, aliás, cita,
é opinião de Hauschild de que “pelo menos em cada capital conventual ha-
veria um teatro permanente onde a população poderia assistir regularmente à
representação de ludi”.
19
Vide: <http://eda-bea.es/>, registo 22 859. Fig. 7.
Teatro Grego e Romano . 219
Iulia L(ucii) f(ilia) Modesta an(norum) XIIX (duodeviginti) /
Livia Nymphe an(norum) XXXX (quadraginta) / h(ic) s(itae) s(unt) /
L(ucius) Iulius Thymelicus sibi filiae et / uxori
Aqui jazem Júlia Modesta, filha de Lúcio, de 18 anos;
Lívia Ninfe, de 40 anos.
Lúcio Júlio Timélico para si, para a filha e para a esposa.
Procede esta placa (de 43,3 cm de altura e 92 de comprimento)
da aldeia de Souto da Casa, concelho do Fundão, um concelho bem
rural da actual Beira Baixa portuguesa. Perto, em tempo de Romanos
e com alguma relevância política, económica e social, apenas a civitas
Igaeditanorum.20 Não se encontrou ainda qualquer vestígio de teatro entre
as muitas descobertas que na cidade se vêm fazendo (CARVALHO
2009). E não se pôs sequer, por enquanto, a hipótese de o vir a
encontrar. Não sabemos, porém, donde é oriundo Timélico, ainda que
a sua onomástica e o cognomen de sua mulher grafado à maneira grega
nos deem quase a garantia de que estamos em presença de uma família
de libertos. Terá, no entanto, a atribuição do cognomen Thymelicus algo a
ver com uma tradição teatral ou com o seu desempenho como actor
ou bailarino, porventura enquanto escravo e ainda que a título privado
ou a nível da comunidade local? Nunca o poderemos garantir; como
também nunca poderemos garantir o contrário! Que estamos perante
um nome invulgar, pleno de mistério e mui sugestivo, isso não se pode
negar. Mais um caso em que a “profissão” determinou a onomástica?
E por que não?
CONCLUSÃO
Estavam os teatros nas cidades. Às cidades romanas foram
sucedendo, salvo raras excepções (como no caso de Conimbriga), ‘outras
cidades’ ao longo dos tempos. Pedras para as novas construções havia-
as, por isso, ali mesmo, à mão de semear, e muitas delas já aparelhadas,
a jeito de serem incorporadas nas paredes. Então as ‘pedras com letras’
eram normalmente bem facetadas e mesmo à medida!...
Essa, a razão primordial para que, neste Ocidente peninsular a
que demos, por comodidade, o nome de “Portugal romano”, a epigrafia
teatral seja escassíssima. De Évora suspeitamos que um fragmento de
20
Vide o mais recente estudo sobre a sociedade e a cultura nesta cidade: SÁ
2007.
220 . José d’Encarnação
mármore possa ter pertencido ao assento no teatro de um notável
local. De Lisboa logrou-se retirar uma série de blocos pertencentes a
uma das epígrafes mais significativas, que redunda, afinal, em prestígio
do augustal benemerente, dado que o seu nome ficava bem à vista de
todos no teatro para cuja reabilitação ele, a expensas suas, largamente
contribuíra. Por tal motivo, nesse mesmo espaço colocaram inscrição
em sua honra. E como o teatro denunciava inspiração, bem presentes
estariam ali as musas, de que se recolheu o baixo-relevo de uma,
Melpomene, a da tragédia.
Serviu-nos, por fim, na falta de outros elementos, a onomástica: se
Patricius, de Pax Iulia, foi realmente um exodiarius, estavam os habitantes
da cidade dotados de elevado grau de cultura; se um Thymelicus teve
tal nome por ser actor, há-de procurar-se local onde actuasse, a não
ser que de actor ambulante se tratasse e, nesse caso, qualquer local lhe
serviria para se fazer ouvir.
A expectativa? – Que o acompanhamento metódico dos trabalhos
em meio urbano, designadamente nas cidades que foram romanas,
venha a mostrar-nos esses tais monumentos epigrafados a dar conta de
que as famílias locais também sabiam que as representações no teatro
(editis ludis scaenicis…) constituíam imprescindível veículo de inigualável
promoção social.
O Autor e a Obra
CONSIDERAÇÕES FINAIS
DOCUMENTAÇÃO TEXTUAL
OBRAS GERAIS
Romanização ou romanidade?
1
Para uma discussão sumária, mas atualizada, acerca dos limites do conceito
de romanização, consultar Hingley (2010).
252 . Gilvan Ventura da Silva
característicos que podem ser encontrados da Bretanha à Mesopotâ-
mia, com destaque para as termas, o circo, o anfiteatro e, naquilo que
nos interessa, o teatro. Prescindindo de uma abordagem tão-somente
arquitetônica e propondo uma análise cultural mais abrangente, é pos-
sível afirmar que estes edifícios comportam uma conexão estreita entre
as atividades que aí se desenvolvem e o público que regularmente os
ocupa, o que nos remete ao princípio da arquitetura como experiência
vivida, razão pela qual a maneira como os grupos sociais se relacionam
com os edifícios e monumentos, a representação que deles fazem, o
significado cultural que lhes são atribuídos, as regras de ocupação do
recinto, nos trazem valiosas informações sobre como, no dia a dia, as
hierarquias sociais são produzidas, reproduzidas e subvertidas e sobre
como as identidades e alteridades são forjadas.
Tendo em vista essas considerações, nos propomos, neste
capítulo, a refletir sobre o teatro como um espaço polissêmico capaz
de engendrar ao mesmo tempo a ordem e a desordem de acordo com
o ponto de vista do espectador. Para tanto, discutiremos, num primeiro
momento, as relações existentes entre o teatro, compreendido na sua
dimensão física, arquitetônica; as modalidades de espetáculo que aí se
desenrolam e a produção/reprodução daquilo que poderíamos qualificar
como “ordem” romana, ou seja, como um conjunto de disposições
hierárquicas que estabelecem uma “cartografia” das relações de poder
na qual os pobres, as mulheres, os escravos e os estrangeiros figuram
numa posição usualmente subalterna. Cumpre notar, entretanto, que
esta ordem não deve, em absoluto, ser tomada como uma realidade
estanque, estática, pois onde quer que ela se imponha haverá sempre
um trabalho de contraordem, de subversão, como pretendemos
demonstrar em seguida, ao analisarmos a censura dos cristãos ao
teatro. Desde pelo menos Tertuliano, os autores cristãos não cessam
de qualificar o teatro como um espaço privado de Deus, um território
posto sob influência demoníaca, o que, pela insistência e consistência
discursivas, nos revela a importância dessa forma de entretenimento
para a configuração de uma determinada identidade no Império. A
base empírica de nossas reflexões é constituída pela série de Homilias
sobre o Evangelho de Mateus proferidas por João Crisóstomo, um pregador
que desde 386, ao assumir o cargo de presbítero da igreja de Antioquia,
não poupou esforços no combate aos espetáculos teatrais que, muito
embora fossem uma das manifestações culturais mais características da
cidade antiga, eram para os cristãos fonte de desordem, desregramento
Teatro Grego e Romano . 253
e poluição, numa surpreendente inversão de todos os valores que até
então conferiam ao teatro uma posição preeminente para a manutenção
da ordem imperial.
3
Para uma defesa da laicização dos festivais pagãos em Antioquia no final do
século IV, consultar Natali (1975) e Liebeschuetz (1972). Uma crítica consis-
tente a essa tendência historiográfica foi estabelecida por Soler (2006).
262 . Gilvan Ventura da Silva
Mimos e pantomimas: vetores da desordem?
cara. Em geral, trajava uma veste de mangas largas e atuava sobre coturnos
ou pernas de pau. O tragicus cantor poderia ou não ser acompanhado da cítara
(EASTERLING & MILES, 1999, p. 96).
264 . Gilvan Ventura da Silva
dos cristãos, é inteiramente refratário aos ludi, quaisquer que sejam eles
(LUGARESI, 2008, p. 70).
Enquanto a pantomima se incumbia de representar cenas trá-
gicas conectadas ao patrimônio mitológico, os mimos, por sua vez,
cumpriam a tarefa de satisfazer o interesse do público pelos enredos
cômicos. Originários da Magna Grécia, os primeiros mimos encenados
em Roma estavam relacionados às Floralias, o festival em honra à deusa
Flora celebrado pela primeira vez em 238 a.C. e que se tornou regular
de 173 a.C. em diante. As encenações realizadas durante os ludi Floralis,
ao que parece, exibiam um conteúdo escandaloso, uma vez que Flora
era a divindade protetora das meretrizes (TRAINA, 1994, p. 86). Nos
mimos, homens e mulheres atuavam como atores e cantores, mas sem
o apoio de um coro (BARNES, 1996, p. 169). Os espetáculos “mími-
cos” eram constituídos por diálogos burlescos improvisados contendo
alusões de natureza sexual, erótica e, no limite, obscenas. O enredo do
espetáculo girava quase sempre em torno do adultério, embora tenha-
mos conhecimento de mimos versando sobre temas políticos e mito-
lógicos. A vítima, um homem mais velho e desprovido de atrativos,
costumava ser exposta ao ridículo pela esposa, uma mulher mais jovem
– e, portanto, fogosa – que o traía com outros homens. Ao contrário
dos pantomimos, os atores dos mimos não portavam máscara nem
qualquer indumentária mais elaborada. O traje típico dessa modalidade
de representação era um vestido curto denominado centuculus, ao passo
que, nos pés, os homens usavam sandálias baixas. Já as atrizes (mimae)
costumavam representar descalças, o que acentuava o topos da mulher
livre e desimpedida. Os espetáculos mímicos possuíam assim uma es-
tética que poderíamos qualificar como “realista”, pois neles os atores
apareciam tal como eram, ao mesmo tempo em que reproduziam a
linguagem do povo, repleta de metáforas de duplo sentido e palavras
de baixo calão (PEREA YEBÉNES, 2004, p. 14). Não resta dúvida
de que, quando comparados às pantomimas, os mimos estimulavam
um comportamento muito mais exaltado por parte do público, que
neles podia contemplar belas mulheres extravasando sensualidade e re-
citando textos repletos de picardia. Além disso, sabemos que um dos
momentos mais aguardados pelos espectadores era a nudatio mimarum,
quando a mima se despia em cena (TRAINA, 1994, p. 88).
Acerca do conteúdo dos ludi scaenici, é comum os autores cristãos
– e mesmo alguns pagãos, como Dión de Prusa e Élio Aristides – ro-
tularem os espetáculos como “indecentes” e “imorais”, seja pelo fato
Teatro Grego e Romano . 265
de homens encarnarem papéis femininos ou de mulheres se exibirem
em trajes sumários e dizendo obscenidades. Desse ponto de vista, o
teatro exerceria sobre a plateia uma influência absolutamente nociva,
difundindo comportamentos inadequados e, com isso, corrompendo o
corpo cívico. Resta, contudo, nos indagarmos se os espetáculos teatrais,
no período imperial, cumpririam de fato uma função como esta, ou
seja, seriam eles vetores de corrupção do mos maiorum (dos costumes
ancestrais) como propugnavam os moralistas pagãos e cristãos? No que
diz respeito às pantomimas, a resposta é negativa, uma vez que os te-
mas representados pelos dançarinos – enredos mitológicos e cenas das
grandes tragédias – não eram totalmente desconhecidos do público.
Por outro lado, considerando que o pilar da formação educacional (pai-
deia) da aristocracia romana era a tradição mitológica acerca dos deuses
e heróis preservada nas epopeias homéricas e nas obras dos tragedió-
grafos, podemos supor que as pantomimas, ao levarem para a praça
pública essa tradição, contribuíam para reforçar, entre espectadores o
mais das vezes iletrados, todo um repertório de conhecimentos que,
do contrário, permaneceriam restritos à elite, configurando assim um
processo de circularidade cultural como proposto por Bakhtin e Ginzburg
(LEYERLE, 2001, p. 29). Acreditamos que a pantomima, assim como
o teatro grego na fase clássica da polis, era um instrumento pedagógico
de instrução cívica, contribuindo para a formação cultural dos habitan-
tes dos núcleos urbanos, aqueles que tinham maiores oportunidades de
assistir às performances teatrais. Em apoio ao nosso argumento, podemos
evocar o testemunho de Libânio, um dos autores mais eruditos da fase
final do Império, que, na Oratio 64, Em defesa das pantomimas, pronuncia-
da em 361 na cidade de Antioquia, se propõe a refutar a censura de Élio
Aristides aos atores, considerados uma ameaça à ordem pública. Opon-
do-se frontalmente a Aristides, Libânio defende o princípio segundo o
qual a arte dos pantomimos é um elemento intrínseco à cultura cívica
por propiciar aos cidadãos uma pausa para contemplar a harmonia e a
beleza, dissipando assim a monotonia do labor cotidiano. Ao mesmo
tempo, em Libânio, o corpo do pantomimo, dotado de uma elasticidade
que dificulta a sua ruptura, se converte numa metáfora do corpo cívico,
que deve sempre se esforçar para manter a sua unidade. Para Libânio,
em lugar de ameaçar a polis, as pantomimas contribuem para preservá-la
(HAUBOLD; MILES, 2004, p. 30-31). Mas, e quanto aos mimos?
Os dois principais defensores dos ludi scaenici na época imperial,
Luciano de Samósata e Libânio, não dedicam uma atenção especial aos
266 . Gilvan Ventura da Silva
mimos, elegendo antes as pantomimas como tema central da refutação
que fazem a Élio Aristides. É como se os espetáculos cômicos e os
atores e atrizes que os encenam não compartilhassem do caráter res-
peitável atribuído, a princípio, aos pantomimos, mais não fosse pelo
fato de que, nos mimos, mulheres e homens encenassem lado a lado
um drama que, com raras exceções, rebaixava o arquétipo masculino
diante do feminino, numa inversão de valores repulsiva para os mem-
bros mais respeitáveis da comunidade, a exemplo dos magistrados
e professores. Quanto a isso, não é por mero acaso que, em termos
jurídicos, as atrizes foram de longa data equiparadas às prostitutas, a
ponto de, com o tempo, mima se tornar sinônimo de meretrix (PEREA
YEBÉNES, 2004, p. 14). Na realidade, atores e atrizes, de acordo com
o direito romano, eram humiles et abiectae personae, pessoas humildes e
abjetas, recaindo na situação de infames, daquelas “sobre quem não se
deve falar” e partilhando assim do mesmo estigma atribuído às pros-
titutas, proxenetas e gladiadores, categorias que, do mesmo modo,
degradavam o próprio corpo ao ofertá-lo em troca de dinheiro
(FRENCH, 1998, p. 296). No entanto, se nos afastamos de uma leitura
excessivamente jurídica ou conservadora acerca do assunto, os mimos
e seus profissionais nos revelam uma realidade muito mais complexa
e até certo ponto contraditória. Em primeiro lugar, a representação
social que fazia do mundo do palco o domínio da licenciosidade, da
devassidão e da desordem é justamente isso, uma representação, que
não condiz em absoluto com os códigos que regiam o exercício da
profissão de ator. Os mimos não são imunes às distinções hierárquicas
aplicadas a outros ofícios no Império Romano, como constatamos por
intermédio das inscrições tumulares dos atores e atrizes, os quais se
fazem proclamar archimimus (chefe dos mimos) e secundus mimus (segundo
ator em importância na companhia), informações preciosas que nos
revelam a existência de uma autêntica carreira, como em qualquer
outra profissão dita “honrada” (EDMONDSON, 2002, p. 25).6 Em
segundo lugar, muito embora fossem atingidos pelo estigma da infamia,
os atores não deixavam de gozar de popularidade e prestígio junto às
6
Entre as atrizes também verificamos diversas gradações e especializações,
havendo a saltatrix (saltadora ou contorcionista), a circulatrix (atriz indecente
que circulava no palco) e a embolaria (atriz que atuava no embolium, a esquete
dos entreatos), além da mima, a atriz que apenas representava; da pantomima,
que cantava, dançava e representava e da arquimima, a chefe da companhia
(PEREA YEBÉNES, 2004, p. 27).
Teatro Grego e Romano . 267
suas comunidades, que não hesitaram em homenageá-los. Assim é
que a cúria e o povo de Taormina, na Sicília, erigiram, em honra da
atriz Júlia Bassila, uma estela funerária na qual celebravam a sua arte,
virtude e sabedoria (FRENCH, 1998, p. 296). Ao que tudo indica, esse
procedimento não era incomum no Império, pois Teodósio, em uma lei
datada de 394, determina a destruição das imagens de atores e aurigas
que se encontrassem próximas às imagens imperiais, de modo a evitar
a profanação destas últimas, tidas no Baixo Império como sagradas.
Entretanto, no texto da mesma lei, o imperador autoriza que as imagens
dos atores sejam postas na frente do palco, reconhecendo assim como
legítimo o tributo que, por ventura, a população desejasse prestar à
memória de pessoas reputadas como infames (C. Th. 15,7,12).
de trinta dias. Uma antiga tradição situava a Maiuma em maio, mas estudos
recentes assinalam outubro como o mês mais provável (SOLER, 2006, p. 10).
270 . Gilvan Ventura da Silva
Não nos convêm estar continuamente rindo e ser dissolutos
e lascivos, mas isso pertence àqueles sobre o palco, as pros-
titutas, os homens que são talhados para tal propósito, para-
sitas e bajuladores. Não aqueles que são chamados aos céus,
não aqueles que são inscritos na cidade de cima, mas aqueles
que são inscritos ao lado do demônio. Pois é ele quem fez do
assunto uma arte, para enfraquecer os soldados de Cristo e
arrefecer o seu zelo. Por esse motivo ele também construiu
os teatros nas cidades e, tendo treinado os bufões, pela per-
niciosa influência deles permitiu que esse tipo de pestilên-
cia queimasse sobre toda a cidade, persuadindo os homens
a seguir aquilo que Paulo nos ordenou evitar, “conversas e
brincadeiras tolas”. E o que é mais sério do que isso é o tema
da risada. Pois quando aqueles que executam essas coisas ab-
surdas, dizem alguma blasfêmia ou sujeira, muitos dentre os
mais irresponsáveis riem e se regozijam, aplaudindo-os por
aquilo que eles deveriam ser apedrejados. E atraindo sobre
suas próprias cabeças, por meio desses gracejos, a fornalha
de fogo (Mat. hom. VI,10).
DOCUMENTAÇÃO TEXTUAL
BIBLIOGRAFIA COMENTADA
SLATER, W. J. (ed.). Roman theater and society. Ann Arbor: The University
of Michigan Press, 1996.
Trata-se de uma coletânea composta por sete ensaios nos quais os
autores abordam diversos aspectos referentes ao teatro romano,
dentre os quais a profissão do ator, a iconografia das pantomimas,
a importância do teatro como um espaço de exercício do poder e a
relação dos cristãos com os espetáculos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS