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A boa-vida

Visita guiada às casas da modernidade


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lnaki Ábalos A boa-vida (
Visita guiada às casas da modernidade
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Tradução de Alícia Duarte Penna (


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Editorial Gustavo Gili, SL
Rosselló 87-89, 08029 Barcelona, Espanha. Tel. (+34) 93 322 81 61
Praceta Notícias da Amadora 4-B, 2700-606 Amadora, Portugal. Tel. 21 491 09 36
c
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(
( A presente edição foi traduzida com o incentivo da Dirección General del Índice
( Libro, Archivos y Bibliotecas del Ministerio de Educación, Cultura y Deporte
de Espana.
(
Prefácio 7
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( A casa de Zaratustra 13
(
(
Heidegger em seu refúgio: a casa existencialista 37

\
A máquina de morar de Jacques Tati: a casa positivista 61
( Título original: La buena vida. Visita guiada a /as casas de la modernidad
(
( Tradução: Alícia Duarte Penna Picasso em férias: a casa fenomenológica 85
Revisão técnica: Lane de Castro
(
Projeto gráfico: Estudi Coma
(
Warho/ at the Factory: das comunidades
(
freudiano-marxistas ao 1oft nova-iorquino 109
( 1a edição. 3a impressão, 2012

Cabanas, parasitas e nômades: a desconstrução da casa 139


Nenhuma parte desta publicação, incluindo a ilustração da capa,
(
pode ser reproduzida, armazenada, ou transmitida, de forma alguma,
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por meio algum, seja este eletrônico, químico, mecânico ou ótico, "A bigger splash": a casa do pragmatismo 165
( por gravação ou fotocópia, sem a prévia autorização escrita da editora.
( A editora, não se declarando nem implícita, nem expressamente, a respeito
Epnogo 197
c da exatidão das informações contidas neste livro, não se responsabiliza por

( nenhum. erro ou omissão que ele possa conter.

( Agradecimentos 202
(
© lnãki Ábalos, 2001
~ Editorial Gustavo Gili, SL, Barcelona, 2003 Referências bibliográficas 203
(
( Impresso na Espanha

( ISBN: 978-84-252-1931-3 Créditos fotográficos 208


( -
À memória do meu pai
(

( A boa-vida estuda a relação entre os modos de viver, as diversas utilizar uma linguagem não especializada e, sobretudo: referências que
correntes do pensamento contemporâneo, e as formas da casa: de pertencem mais ao âmbito da cultura do que ao da disciplina propria-
r projetá-la e de habitá-la. E o faz convidando o leitor a visitar sete casas mente dita. Para essas pessoas, e também para muitos arquitetos, o
(
fantásticas, criadas no século xx, em sete jornadas ou capítulos. Dessa livro não será uma reflexão sobre as técnicas de projeto, mas sobre as
( forma, pretende mostrar como a maneira mais difundida de pensar e formas de viver, de apropriar o espaço privado e, por extensão, o
( projetar o espaço doméstico, e que continua ainda vigente entre os espaço público: uma reflexão sobre a boa-vida, sobre a cultura domés-
( arquitetos, não é mais do que uma materialização de certas idéias tica contemporânea.
arquetípicas em torno da casa e dos modos de vida que têm origem As visitas a casas, uma prática tão habitual entre arquitetos e estudan-
em uma dentre aquelas correntes, precisamente a que quase todos os tes, têm, ainda, uma virtude que as faz particularmente interessantes
que têm autoridade para fazê-lo concordam em assinalar como a única como a forma discursiva a se empregar. Ao realizá-las, os arquitetos,
certamente esgotada, cuja validade se encerrou: a positivista. O que em grande medida, livram-se dos preconceitos impostos por sua for-
este livro busca mostrar, então, é que há outras formas de pensar e de mação. Ao visitar casas, o arquiteto torna-se usuário, passa a olhar
( viver a casa que implicam técnicas de projeto bastante distintas e que através dos olhos do habitante, e assim adota uma atitude mais próxi-
( oy
resultam em espaços que se afastam, em maior menor medida, dos ma à de uma pessoa qualquer, perdendo essa couraça que o domínio
que hoje têm prestígio entre muitos profissionais. Não se trata, pois, de de uma disciplina cria, vencido pela força mesma da experiência real
um manual de arquitetura doméstica: não há, aqui, a pretensão de for- da casa, da domesticidade e da vida que ela contém. E essa é a atitu-
(
necer instruções sobre o que fazer. Não tendo uma finalidade prática de, a predisposição que aqui se intentou induzir, ou provocar, através
(
imediata, este livro objetiva, então, ser um alerta que contribua para a desta forma literária, na certeza de que só a partir da desprofissionali-
ampliação da consciência dos vínculos existentes entre os modos de zação do olhar podemos aprender a enxergar com os nossos próprios
~

pensar, de ver o mundo, de viver, e as técnicas de projeto, já que estas olhos, e a mirar aquilo que realmente desejamos ver.
não são neutras, mas, ao contrário, limitam e contêm em si mesmas o Para tanto, é necessário realizar uma redução, uma simplificação, o
potencial do nosso trabalho. que consiste em dar visibilidade a uma série de arquétipos, definindo-
(
A exposição dessas idéias dá-se através de visitas guiadas a um -os por suas características mais marcantes. Assim como ocorre nas
(
pequeno grupo de habitações, reais ou imaginárias, com as quais se caricaturas - e não é outra coisa um arquétipo - que, ao realçarem
{
compõe um panorama do que o século xx deixou-nos como herança. certos traços, distanciam-se da realidade: é esta a distância que
( Cada capítulo dedica-se a visitar as idealizações da casa e do âmbito separa um rosto de sua caricatura. Isto significa que não há uma casa
da privacidade concebidas por diferentes correntes do pensamento existencial ou fenomenológica; a realidade é, ao contrário, mais com-
contemporâneo. Cada visita não é sequer uma breve estada, mas plexa e cheia de matizes, e exatamente aí reside toda a sua força e a
aquele que saiba olhar e tenha fantasia suficiente será capaz de tecer sua vitalidade. Não há, por exemplo, um método estritamente prag -
suas próprias impressões, de tomar notas, como se diz em linguagem mático: tal pretensão levada ao extremo pode resultar num absurdo
( · coloquial. Como freqüentemente ocorre nessas visitas na realidade, delirante. Os arquétipos que iremos visitar são casas imaginárias,
são bem-vindas a essas páginas todos os que, sem uma formação construídas a partir da manipulação de distintas referências. Até
específica em Arquitetura, tenham interesse ou simplesmente curiosi- mesmo quando se considerou inevitável introduzir obras construídas
\ daae em conhecer esses arquétipos, cuja pretensão é descrever um e, assim, dotar de alguma consistência as idéias aqui apresentadas,
C século de trabalhos em torno do tema a que provavelmente os arqui- estas foram tratadas mais como fragmentos de uma colagem do que
{ tetos têm dedicado mais tempo e energia: a habitação. Procurou-se como exemplos completos.

( 8 9
(

(
Por isso deve se advertir o leitor de que ele não encontrará nas pági- tema, apontar estes vínculos e deixar seu desenvolyimento à imagi-
(
nas que se seguem nenhuma das obras primas construídas pelos nação do leitor. De fato, todo o texto tem um ritmo relativamente rápi-
\
arquitetos modernos: a Vila Savoye, a Casa da Cascata ou a Casa do -ou se se preferir, ligeiro -, na convicção de que os melhores livros
Tugendhat nada têm a ver com um arquétipo, com algo que se possa de arquitetura são aqueles que podemos tornar nossos e desenvolver
fragmentar para um fim didático. É precisamente sua complexidade em direções imprevisíveis.
que se deve resgatar se se deseja abordá-las com um mínimo rigor. Esse texto quer, por último, responder às numerosas tentativas recen-
Como já foi dito, são outros os objetivos deste ensaio. tes de reanimar o debate sobre a habitação baseadas no idealismo
Deve-se também explicitar que o número de arquétipos, bem como a social e nos métodos de investigação planimétrica próprios da moder-
ordem na qual aparecem neste texto não foram guiados por uma lógi- nidade, tentativas estas em grande medida ingênuas, presas elas
ca acadêmica, como poderia ser se se optasse, por exemplo, por uma próprias na jaula ideológica que pretendem superar. A boa-vida quer
evolução cronológica ou de acordo com as dimensões de cada arqué- contribuir para dissolver a solidez dessa jaula, como um primeiro gesto (

tipo. Ao contrário, optou-se por reproduzir a forma com que efetiva- necessário para se delinear uma perspectiva mais vinculada ao nosso (
mente vieram se encadeando e se tornando necessários, um a um, na tempo, com seus conflitos e idealizações. E pretende fazê-lo abrindo- (
imaginação do autor, de modo que há, sim, uma ordem - cada capítu; -se a outras disciplinas, deixando que a imaginação e a experiência
\ '
lo pressupõe os anteriores-, mas esta é tão subjetiva quanto o tom ou façam o seu trabalho para conquistar ao mesmo tempo uma sabedo-
(
o ponto de vista com que se descrevem as casas visitadas. Por isso se ria relativa e uma posição própria. Alejandro de la Sota, numa longa
(
situou a visita à casa positivista - a casa do movimento moderno, con- conversa que mantivemos antes de sua morte, fez essa recomendação
tra a qual, em grande medida, os demais modelos foram construídos- claríssima: para desfrutar da arquitetura, é preciso viajar com a imagi- (
em uma posição extravagante, no terceiro capítulo. Pareceu que, ao se nação, é preciso voar com a fantasia.
condená-la a ser uma a mais dentro de um conjunto, reforçava-se a Este ensaio - cujos erros podem ser atribuídos exclusivamente ao seu
hipótese da qual parte este texto, que é precisamente essa, e, além do autor - pretende, assim, ser um convite a viajar com a fantasia, não
mais, respeitava-se o modo de exposição escolhido: a sujeição à apenas para celebrar a diversidade das casas do século xx, mas tam-
ordem da vontade ou da necessidade com a qual essas casas imagi- bém para estimular o prazer de projetar e de habitar intensamente:
nárias foram construindo a si mesmas. para impulsar o surgimento dessa casa que ainda não existe.
Sobre o número delas - sete - , o que implica na exclusão de tantas (

outras formas de pensamento que o século xx produziu, só se pode


dizer que pareceu adequado: ao fim e ao cabo trata-se de um número
associado à construção de totalidades, e será muito benéfico que
(
outras idéias e atitudes consideradas interessantes recebam desenvol-
vimentos posteriores.
As casas aqui tipificadas não compõem uma taxionomia cujo terreno
de aplicação seja restrito exclusivamente ao âmbito da domesticidade. z
Tais arquétipos são também uma forma de pensar as relações entre (
público e privado e, através delas, o âmbito mesmo da cidade. Nesse ( '
sentido, não há inocência alguma nas ambições que animaram a escri-
(
ta deste livro, ainda que se tenha pretendido tão apenas tocar neste
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A casa de Zaratustra
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1sa cem três pátios, Mies van der Rohe, 1934 (desenho de 1939). Planta e elevação.

14
)
Poucas casas alcançaram tamanha unanimidade entre os arquitetos arte, bem como Hans Richter, Walter Benjamin e Romano Guardini, que
quanto o conjunto de casas~pátio projetadas por Mies van der Rohe ao igualmente conheceria no período). Tanto Fritz Neurn'eyer, como Franz
longo de oito anos, desde i 931 , quando contava quarenta e cinco Schultze e Francesco Dal Co, em seus respectivos textos sobre Mies van
anos, até 1938. Não obstante a admiração que despertam, porém, não - der Rohe, descrevem distintos aspectos desse período em que sua for-
há ainda hoje uma explicação coerente para as intenções e o sentido mação intelectual é aperfeiçoada e sistematizada, mencionando
da pesquisa da qual resultam. Não apenas o silêncio do seu autor, mas Nietzsche, o grande pensador antipositivista, e Romano Guardini, teólogo,
muitos outros fatores, tai ~ como a sua localização genérica, ou mesmo como as suas leituras mais intensas e frutíferas de então. Em 1927, Mies
a ambigüidade de sua denominação -mediterrânea e historicista -, difi- van der Rohe observa: "somente através do conhecimento filosófico reve-
cultam a sua análise, ilmifa'ndõ-se~a críticaã exaltar a sua beleza e o . Iam-se a ordem correta de nossas tarefas e o valor e a dignidade de nossa
seu interesse como tipologia residencial, ou a assinalar quer a sua óbvia existência", explicando assim o.valor que atribui à sua reeducação, um
correspondência com alguns princípios espaciais e construtivos do processo que em grande parte vai significar um distanciamento do positi-
Pavilhão de Barcelona, quer a sua relação com outros modelos moder- vismo e, portanto, do espírito que animou todo o projeto moderno. Esse
nos de casas-pátio. distanciamento, essa solitude, marcarão não apenas a sua obra singular,
Esse vazio interpretativo é, sem dúvida, um estímulo para que o ponto mas também a sua própria existência.
de partida da nossa jornada seja a documentação gráfica que delas Fixemo-nos na enorme distância que separa
Mies van der Rohe produziu, e que, com certeza, prezava muitíssimo, sua investigação da de seus companheiros
já que um dentre estes desenhos - o que representa um agrupamento modernos, aqueles que, como Hugo Haring,
de várias dessas casas em um tecido urbano indeterminado - sempre Hannes Meyer ou Ludwig Hilberseimer, esta-
o acompanhou, preso à parede de seu escritório. Ao revisitarmos estes vam trabalhando intensamente na idéia de
documentos gráficos, ao reproduzirmos com nossa fantasia a expe- casas-pátio, simultaneamente, e na mesma
riência de habitar esses espaços, somos tentados a projetá-los junto ao cidade. Nas investigações desses arquitetos
seu autor, interiorizando as suas razões e os seus objetivos. O que teria o objetivo é obter tipologias de baixo custo,
Mies van der Rohe pensado? Por que teria iniciado essa longa pes- com uma boa orientação solar e um aprovei-
quisa sem cliente? O que estaria buscando e a que conclusões teria tamento racional do terreno, para famnias-tipo, das classes operária ou
chegado com essa obsessão que produziu, como resultado mais elabo- burguesa. A repetição de unidades idênticas é, em todas as propostas,
rado, a Casa com três pátios de 1934? um selo recorrente que remete claramente a um desdobramento massi-
Sabemos que aqueles foram anos complicados para Mies van der Rohe: vo desse programa. A casa passa a ser um objeto produzido em série, à
sua misteriosa renúncia, em 1921, à famma que construíra, e o auge do imagem e semelhança do Ford T, o grande paradigma da industriali-
nacional-socialismo obrigaram-no a questionar a sua vida particular e pro- zação. Não encontraremos nada disso em Mies van der Rohe, porém.
fissional justamente quando alcançara um grande prestígio, e se vira rode- Sua busca é, antes, distante dos interesses do conjunto dos arquitetos
ado por um círculo de amizades e por referências culturais que lhe possi- modernos, em sua investigação sobre o Existenzminimun, parE) a otimi-
bilitavam consolidar sua criatividade (em especial, Alois Riehl, seu cliente, zação de tipos estandardizados de habitação. Em seu trabalho sobre as
que, além de ser o autor do primeiro livro sobre a figura de Nietzsche- sig- casas-pátio, à exceção de um primeiro esboço de casas geminadàs
nificativamente intitulado Friedrich Nietzsche como artista e pensador -, (1931), Mies van der Rohe elaborará projetos individualizados, inteira-
introduziu-o em um meio de personalidades de grande influência como mente avessos à idéia de estandardização. De fato, nos raríssimos
Werner Jaeger, historiador da cultura, e Heinrich Wólfflin, historiador da desenhos em que aparece mais de uma habitação, pode-se observar,

20 21
')
.)
acima de tudo, o agrupamento de unidades sempre diferentes, voluntá- distanciamento, essa diferente aproximação, que implica, por sua vez, em
ria e manifestamente individualizadas através de mecanismos topológi- diferentes premissas e diferentes objetivos - lembrem'o-nos da fasci-
cos- diferentes formas de implantação, diferentes proporções dos terre- nação que, desde O nascímento da tragédía (Nietzsche, 1871 ), a revisão
nos, diferentes profundidades e orientação -, ou métricos - maior ou da cultura grega e helenística exerce sobre muitos intelectuais alemães, )
menor área do terreno, maior ou menor área da casa -, sendo o sistema de O. Spengler até W. Jaeger, cujo Paídeía é publicado em 1933. ._ )
empregado para materializá-las o único elemento ali constante. Talvez a pergunta decisiva para entender o ímpeto, a origem dessa )
Tal elemento, contudo, não pode ser reduzido a aspectos puramente investigação, e, com isso, a razão de sua longa vitalidade, deva ser .)
técnicos, construtivos ou estruturais: não se trata somente do empre- · feita não acerca de suas características físicas e materiais, mas acerca
go do vidro e da cobertura plana, nem do uso de muros delimitando de sua finalidade enquanto habitação. Para quem são .essas casas?
recintos e colaborando com as estruturas reticuladas na sustentação A quem, a que formas de vida estão destinadas? Que valores tradu-
dos painéis de cobertura. O que é importante é a idéia de individualizar zem-se nesse espaço privado, e também -ainda que seja apenas pela )

um "sistema", isto é, de operar com poucas variáveis, ligadas entre si, sistema sujeito evidência com que este é negado - no espaço público? Quem são os :)
para obter resultados completos e diversos, tanto construtivos, quanto seus sujeitos? De que noção de homem partem os projetos dessas .' )
espaciais ou estruturais. Trata-se, pois, do sistema em si, e não é difícil casas? Que referências pressupõem? )
perceber aqui a influência de Hans Sedlmayr sobre Mies van der Rohe Há algo que poderá esclarecer o fato de que essas casas-pátio, proje-
)
-a única que permanecerá intocada-, inclusive na casa mais insólita tadas sem que houvesse um cliente- como exercícios abstratos, por-
desta série, aquela cujos espaços internos seguem o movimento curvi- tanto -, não partem de um programa elaborado para a família. Não há ()
líneo realizado por um automóvel. famílias nestas casas: a família como base do programa foi, aqui, :)
Todas as casas-pátio, porém, serão particularizadas, contrárias à idéia do rechaçada. Quando Mies van der Rohe, em uma atitude insólita, esco- r, )
"objeto-tipo" produzido em série: a intenção aqui é, nitidamente, sublinhar, lhe trabalhar o mais abstratamente possível com a casa, ele renuncia l )
antes de tudo, a sua individualidade. Se estudar- também a pensá-la para a família. Renuncia a pensar na sua casuísc
(' )
mos as dimensões dessas casas, perceberemos tica convencional de programas minuciosos e complexos, nas suas
I
mais uma vez que estamos frente a uma investi- codificações pormenorizadas de privacidade e de representatividade,
i )
gação distinta daquela do Exístenzmínímun. Suas em sua implícita rotina de pequenas exigências morais. Ele sabe que,
áreas construídas alcançam cerca de 200 a 300 se o que se deseja compreender é a natureza da vida moderna, aqui- )
metros quadrados e, somando-se a dos pátios, lo que lhe é próprio, deve-se renunciar à memória que a casa guarda )
tanto os principais quanto os mais íntimos, as de si mesma, ao lastro da família como a eterna reprodução do )
áreas totais aproximam-se dos 1000 metros. Foi mesmo. Em nenhuma das casas há mais de um quarto, ou melhor, e
)
precisamente esta tipologia de pátios - alguns mais precisamente, mais de uma cama. Mais precisamente, sim, pois
mais públicos, outros mais privativos-, que Pere Joan Ravetllat estudou, não existe, sequer, um espaço fechado que possamos denominar
traçando um paralelismo entre as casas-pátio e as casas pompeianas, quarto: ao invés, as casas organizam-se como um meio contínuo que )

e a sua organização em torno de átrios e peristilos. se movimenta, dispondo seus móveis e objetos de tal forma que, em )
É evidente, então, o distanciamento desta investigação de uma visão estri- função do isolamento obtido através destes movimentos, não é difícil )
tamente funcionalista, de um modernismo ortodoxo tal como o de um determinar a particularidade de cada lugar e o seu uso previsível.
Hannes Meyer, por exemplo. Seja ou não procedente a hipótese da inspi- A casa do solteiro é um lugar paradigmático onde se desenvolve um
' )
ração pompeiana, a imagem é legítima, ao menos para evidenciar esse modo de habitar organizado topologicamente, com base na continui-
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22 23 y
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dade e na conexão, e a que corresponde uma estratégia geométrica Os muros estão aí porque o sujeito - permitamo-nos pensar que se
que se traduz no traçado das divisões, na fragmentação e na segre- trata de um homem: não é fácil imaginar que o misógino Mies van der
gação. O espaço contínuo é, assim, parte do "sistema", e conseqüên- Rohe pensasse em uma mulher como habitante de suas casas-pátio -
cia de uma exploração sem precedentes. Como viveria o homem deseja fugir da publicidade, deseja isolar-se, e exercer sua individuali-
moderno se atendesse unicamente à sua individualidade? dade à revelia de qualquer comentário moral. Quer negar a possibilida-
Para avançarmos com maior precisão, porém, centremo-nos, já e defi- de mesma desse comentário, quer afirmar-se, e asseverar a casa como
nitivamente, naquela que é sem dúvida a casa mais elaborada de toda o império do eu. Não é difícil distinguir, nesta decisão radical, um eco
a série, o seu paradigma: a Casa com três pátios de 1934. Não deve- super-homem do "super-homem" nietzschiano, essa figura que deve reconstruir sua
mos, contudo, esquecer que essa casa não substitui as anteriores e as posição no mundo, esquecendo toda a sujeição a ele imposta, a tra-
posteriores, já que a diversidade é a lei imposta à investigação de Mies dição judaico-cristã e o pensamento metafísico inaugurado por Platão.
van der Rohe frente à tirania homogeneizadora do objeto-tipo. Ainda Um sujeito como o que Mies van der Rohe parece imaginar precisa de
assim, é nela que encontramos o produto mais bem acabado da casuís- uma condição inicial de isolamento, da possibilidade de autocons-
tica das casas-pátio. Contemplemo-la como se fosse a primeira vez que trução à margem dos outros; deve ser capaz de se apropriar do
a víssemos, com os mesmos olhos com que olhamos qualquer outra mundo, de com ele manter relações baseadas em uma nova lucidez,
casa. Comprovaremos, assim, como, apesar da já mencionada conti- instintiva e em expansão, vinculada a uma concepção revolucionária do
nuidade, os diferentes espaços de um programa normal ali se distin- tempo, a um presente contínuo de deslumbrante intensidade.
guem claramente. Sua distribuição é relativamente funcional, os espa- Pensemos, por um momento, em qual teria sido o impacto. dessa ima-
ços são adequados, a cama tem dimensões suficientemente generosas: gem em um Mies van der Rohe ávido por consolidar sua formação atra-
poderia se tratar da casa de um casal jovem ou sem filhos. Mas sabe- vés das leituras de Nietzsche e de seu círculo de amigos intelectuais, e
mos que não, ou que apenas provisoriamente sim: a casa não foi pre- em como esta idéia refletiria sua própria posição no mundo, sua própria
vista nem sequer para o mínimo núcleo da família tradicional; na ver- luta pela construção plena de sua individualidade. Os muros que prote-
dade, não foi prevista para família alguma, ainda que embrionária. gem esse sujeito desejoso de isolamento aparecem, assim, estreitamen-
Se contemplamos o conjunto, com seus muros altos e seus extensos te ligados ao pensamento nietzschiano, ao super-homem, a Zaratustra.
espaços, quase decadentes em sua grandiosidade, e imaginamos a for- Em Nietzsche, a morte de deus e da metafísica ocidental marcam o
ma de habitá-lo, aos poucos reconhecemos que ele se destina a um princípio da idéia da afirmação, da vontade de poder, que têm no
único habitante. E o reconhecemos, entre outras razões, porque os eterno retorno "super-homem" e na teoria do "eterno retorno" sua conclusão proposi-
muros não estão aí para delimitar o lote, nem para sustentar as empe- tiva. Uma afirmação que deve se resolver sem leis, nem princípios
nas da casa, nem tampouco, ou muito menos, para propiciar esse alheios às forças vitais, em um árduo processo de autoconstrução que
mecanismo de controle ambiental - iluminação, temperatura, umida- culmina com a aquisição de um espírito novo, violentamente avesso a
de, ventilação- que é originariamente o pátio. Os muros estão aí para toda a tradição transcendente: uma aristocrática "moral de senhores"
propiciar privacidade, para ocultar quem habita, para permitir que, frente à "moral de escravos" propugnada pela moral e pela filosofia.
dentro da casa, transcorra uma vida profundamente livre, à margem O tempo deste sujeito não é mais o escatológico e o finalista, próprios da
de toda moral ou tradição, à margem de toda vigilância social ou poli- tradição judaico-cristã, mas o tempo cíclico dionisíaco, o fiuir entre con-
cial- à margem, finalmente, desta insuportável visibilidade que a moral trários de Heráclito. A idéia do eterno retorno parte da suposição de que
calvinista impõe a seus companheiros modernos e à sua arquitetura a vida é reversível como uma ampulheta. Ainda que angustiante a princí-
positivista. pio, esta hipótese é, para Nietzsche, uma forma de instalar o homem no

24 25

gozo, como se tal situação o impulsionasse a compreender a intensida- za- aparecem como uma metáfora do tempo cíclico, e a grande fachada I .
de de cada instante, exigindo-lhe um tal compromisso com o presente, envidraçada, como um excepcional diorama para a s~a contemplação.
(
que lhe fosse sempre desejável repetir a sua experiência.. Trata-se, então, Qualquer outro possível sentido terá sido subtraído nessa visão.
(
da recuperação da fugacidade do devir frente à estabilidade do ser, da Como no eterno retorno nietzschiano, o isolamento radical. deste espaço
(
afirmação da necessidade do acaso, do tempo como devir, escamotea- e de suas galerias envidraçadas remetem-nos mais uma vez a esse céle-
( '
da desde Platão. O eterno retorno é, em Nietzsche, a recuperação, pelo bre aforismo - Arquitetura para os que buscam o Conhecimento - que
'
homem, do perecível e do mutável, uma recuperação do presente frente Nietzsche escreveu em A Gaia Ciência: "Chegará um dia - quiçá muito
à tirania do futuro divino ou do passado tradicional, uma volta à vida e às breve - em que se reconhecerá o que falta a nossas grandes cidades:
paixões contrária à domesticação da moral dos escravos. lugares silenciosos, vastos e espaçosos, para a meditação. Lugares com
Observemos agora a casa projetada por Mies van der Rohe, em sua largas galerias cobertas para os dias de chuva e de sol, aos quais não
(
totalidade, além dos limites definidos por suas galerias envidraçadas. · atingirá o ruído dos carros nem o pregão dos mercadores, e onde uma
Diante de nós abre-se um grande pátio ajardinado que é tanto uma etiqueta mais sutil proibirá até ao sacerdote de orar em voz alta: edifícios (
/
extensão da casa, quanto uma representação da natureza. Isolado por natureza e construções que, em seu conjunto, expressarão o que há de sublime \
muros muito altos, o que nele existe já não é a natureza em estado puro, na meditação e no isolamento do mundo. Terão passado os tempos em (
mas uma representação artificial do mundo. Neste espaço, podemos que o monopólio da reflexão pertencia à igreja, em que a vida contem- • (
distinguir somente algumas árvores frondosas, as quais realçam a hori- plativa era unicamente a vida religiosa. Tudo o que a igreja tem edificado (
zontalidade e a uniformidade da pradaria atravessada por um caminho expressa este pensamento, e eu não considero que suas construções
(
pavimentado, que transcorre próximo e paralelamente a um dos muros nos bastem, ainda que se subtraia delas sua finalidade religiosa. Essas
e dá acesso à casa. O que vê este habitante? Por que elegeu esta forma construções falam uma linguagem demasiado patética e demasiado rígi- (.
de se relacionar com a natureza e, através dela, com o mundo? da, para que nós, ímpios, possamos meditar ali. Queremos traduzir a nós C. ·
Inicialmente, trata-se de uma relação contemplativa: não há aí lugar para mesmos em pedras e plantas, queremos passear por nós mesmos z
a horta, nem para o cultivo de fiores, nem para objetos de uso doméstico, enquanto circulamos por essas galerias e esses jardins." (
fontes ou piscinas, enfim, para todo o conjunto de implementas com que Nada poderia explicar de forma mais esclarecedora o trabalho de Mies t
o homem, a famnia-tipo moderna, ameaça um contato ativo com o meio van der Rohe nas casas-pátio, o tema de sua prolongada investigação, do
natural. Se pudéssemos permanecer eterna- que essas galerias envidraçadas, silenciosas e espaçosas, onde podemos \
mente sentados, contemplando essa paisagem de passear por nós mesmos, identificados com o tempo circular através da
uma das poltronas Barcelona dispostas no interior contemplação do ciclo natural. Esta citação corrobora a distância que \
da casa, e acelerássemos esta imagem como os Mies van der Rohe estabeleceu do positivismo ideológico da moderni- (
fotogramas de um filme, assistiríamos a um espe- dade e de suas metodologias operativas; a casa-pátio é um sofisticado
táculo revelador: o da eterna sucessão do mes- mecanismo - uma máquina? - para esquecer a modernidade triunfante,
mo, o do caráter circular do tempo natural frente à a simplicidade do seu positivismo, e penetrar no abismo do indivíduo
linearidade do tempo histórico. Ao ciclo do dia nietzschiano, aquele super-homem que constrói a sua vida como uma
sucede o da noite, à pradaria coberta pela neve obra de arte, tomando como base a pura afirmação de seu eu. Mas não
sucede a chuva e a fiorescência das árvores, é só isso, se é que se pode utilizar aqui o vocábulo "só" com proprie-
depois a queda das folhas, e assim sucessivamente, num espetáculo ite- dade. Esta investigação é, sobretudo, uma tentativa de se criar um méto-
rativo, preparado por esta cenografia em que o céu e o jardim - a nature- do de projeto completo a partir de correntes do pensamento heterodoxo

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que, ensaiadas pelos expressionistas, pareciam definitivamente arrasadas faustuosas, para desenvolver relações mundanas a~ mesmo tempo
pelo poder normativo e organizador dos arquitetos mais ortodoxos, mais protegidas da indiscrição e abertas ao imprevisto.
partidários do progresso técnico-científico. Uma técnica de projeto que se materialidade Examinemos agora os materiais que Mies van der Rohe usa nas casas-
desenvolve a partir desses percursos pelas idéias de espaço e de cidade, -pátio. Trata-se de um procedimento insólito no contexto da moderni-
pela materialidade da cultura objetai e ornamental, e que contém, por- dade, em que se articulam, de forma coerente, os materiais mais
tanto, um programa explícito de trabalho - um sistema de projeto -, base- avançados e os indiscutivelmente tradicionais, procedimento este, aliás,
ado no sujeito nietzschiano e no seu tempo rememorativo e circular. caràcterístico de sua obra. Fixemo-nos na lareira, em sua matéria e em
Ao falarmos do sujeito miesiano, afirmávamos que ele foge da publici- sua posição na casa. Em primeiro lugar, deve se assinalar que a lareira
dade e deseja o isolamento. Ao dizermos "foge" estamos assinalando não foi eliminada em favor da calefação, mas, ao contrário, aparece sis-
algo decisivo: ele não foge do nada, nem do bosque; ele foge da cida- tematicamente nos desenhos, revelando, assim, sua condição de ele-
de, de urna cidade que está aí fora, próxima, contígua; ele foge do ruído cidade mento decisivo no "sistema" de projeto. Não obstante, nunca ocupa um
dos carros e do pregão dos mercadores. A casa, e seus muros, por- lugar central, mas se desloca até se confundir com uma das paredes,
tanto, não são apenas uma representação cosmológica, mas uma ambas - lareira e parede - construídas em tijolos. Dessa forma, a larei-
situação precisa: uma casa urbana. Mais ainda, a casa de um mun- ra passa a ser um acidente na paréd:: a sua verticalidade é quase eli-
dano, de um cosmopolita. Esses muros denunciam não só o homem minada, como se voluntariamente se evitasse toda referência possível a
urbano que habita em seu interior, mas também a cidade buliçosa, aza- um espaço central e vertical, a qualquer tipo de representação simbó-
famada, a metrópole que está detrás deles. lica da idéia de transcendência. Relegada ao perímetro, atua como um
Esta casa, a Casa com três pátios, não seria nunca uma casa no campo, móvel a mais, como um pretexto para a conversação, mas também
fora da cidade. Basta aferir quão ridículo seria imaginá-la habitada por como uma referência tradicional do âmbito doméstico à qual não se
alguém calçado com sapatos rústicos. Sem dúvida, o sujeito rniesiano usa renuncia. Lareiras e paredes de tijolo manifestam vínculos com a mate-
magníficos sapatos de couro primorosamente feitos à mão, os sapatos de rialidade e a evocação do passado que não podem passar desaperce-
alguém acostumado a andar por calçadas bem pavimentadas, a passear, bidos, nem deixados à margem como se não fossem relevantes. É, de
a deixar a sua casa para relacionar-se nos cafés, nos teatros, nos merca- fato, consubstanciai à casa a evocação dessas ligações com um tempo
dos e bulevares da cidade. Como o f!âneur baudelairiano, ou o b!asé de que pode voltar-se sobre si mesmo, contraditórias à linearidade do
Georg Simmel, é um homem com vida social intensa. Como o super- tempo moderno; ligações que nos remetem a Nietzsche novamente, e
-homem de Nietzsche, não se retira do mundo como um anacoreta: seu não, como se tem pretendido muitas vezes, a um rigor tipológico.
ascetismo integra um processo de autoconstrução que resulta em um Não pode haver nessas casas uma metodologia próxima à tipológica,
imenso gozo, o gozo de se libertar das amarras impostas pela moral, nem em sua versão iluminista, nem naquela de raiz estruturalista e con-
um gozo expansivo e contagioso que leva a uma intensa fruição do textualista: o pátio é alheio a todo condicionante geográfico, e nada
mundo, a um desdobramento do espírito criativo sobre os demais. mais distante do método de Mies van der Rohe, da sua forma de con-
Essa mecânica de isolamento e expansão é a base privilegiada do pro- ceber e de projetar, do que essa busca de generalidade através do tipo
jeto miesiano: por isso não é difícil compreender que quem habita ou de especificidade através do contexto, do que essa busca de um
aquela casa não é nenhum defensor da vida natural, do alheamento da fundamento que se possa objetivar. Há ativação da memória, do
cidade, mas alguém que necessita estar próximo à ágora, aos novos tempo, por uma eleição individual de poucos e escolhidos parâmetros.
espaços públicos da cidade burguesa. Quem a habita necessita de Há subjetividade, afinidade, afirmação do particular e dessa diferença
grandes espaços para o cultivo da fi/ia, para as festas e as celebrações que implica na possibilidade da eleição.

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O super-homem, essa forma de ser e de pensar que Nietzsche vincula técnicas de representação por fotomontagens, pelo contraste e pela con-
genealogicamente ao sofista, conhece o poder da convenção, a histori- vivência com a memória da cidade. ·
cidade de sua própria figura: ele é o que extraiu o fundamento das leis da imanência Mas tão importante quanto essa ativação do tempo é a sua imanência,
po/is e da natureza e afirmou sua pertinência ao mundo do nomos, a sua não transcendência, a eliminação de toda a verticalidade, e não
da convenção, do pacto entre os homens. As tradições não são man- apenas a compositiva. Anteriormente mencionamos a horizontalidade
datos, mas convenções cuja escolha é necessária à construção do eu, como conseqüência de um espírito mundano, que se refletiria não só
tal como um repertório de referências em que se mirar. Mas estas não na continuidade e na fluidez do espaço, mas também na negação da
são transcendentes, nem imutáveis, não ligam o homem à divindade, iluminação zenital, tão expressamente rechaçada em toda a obra de
nem a verdade alguma, nem sequer a obrigações sociais. Colaboram, Mies van der Rohe, através da desvinculação de sua arquitetura
sim, para uma criação individual verossímil. de toda idéia de uma luminosidade densa, direcional, concentrada.
Assim, não é por acaso que essas paredes e essa lareira são feitas de Encontramo-nos, de novo, instalados em um mundo de perfil nitidamen-
tijolos, esse piso, em pedra, e outros elementos- os mais próximos do horizontalidade te nietzschiano: a horizontalidade radical evoca a supressão mesma da (
corpo-, em couro natural: nesses momentos o "sistema" negocia com a divindade, de qualquer vínculo vertical; é a expressão do gozo da vida em (
materialidade do passado, fazendo com que ela reapareça no presente. si mesma, uma afirmação do sujeito como protagonista, devendo este
(
Os materiais que Mies van der Rohe usa não são exclusivamente aque- expandir-se pela casa, definir seu ambiente a ponto de polarizar as suas
(
les próprios da época industrial- o aço, o vidro, o concreto-, mas estes técnicas construtivas, a ponto de apoderar-se do "sistema".
mesmos relacionados ao tijolo, à pedra, ao couro, de tal forma que o que Para tanto, Mies van der Rohe utilizará diversas estratégias. Uma será a (
se estabelece entre eles é um diálogo. Ainda que a construção moderna reflexão da luz exploração da reflexão da luz para obter pisos e tetos com idêntica (
- estrutura, vidro, cobertura plana - permita-lhe solucionar seu espaço intensidade luminosa, tal como se pode observar no Pavilhão de I
contínuo e horizontal, Mies van der Rohe elege usar, nos dois gestos Barcelona. Os distintos materiais do piso e do teto permitem a obtenção (
essenciais de fundar e de delimitar a casa, no piso e nos muros, a pedra de uma tonalidade equivalente, um equilíbrio ótico - realçado nas foto- (
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e o tijolo, materiais que remetem a uma genealogia específica- a tradição grafias em preto e branco -, totalmente contrário à idéia da iluminação
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I hipodâmica e pompeiana -, mas que se referem também às tradições zenital associada aos átrios históricos, e, sobretudo, intencionalmente
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locais. Assim, é fácil compreender porque esses muros não são de con- avesso à naturalidade com que a arquitetura clássica utilizava a luz
I
I· creto, ainda que o arquiteto já houvesse experimentado ele mesmo esse como elemento de projeto. Mediante a reflexibilidade, Mies van der Rohe
1: material. É um gesto preciso de ativação da memória, de subjetivação obtém uma luz flutuante, imaterial, que rompe com a mais óbvia dentre
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da modernidade, de afirmação da condição temporal da habitação, da as verticalidades: a dos raios do sol. (
11 necessidade de tal condição na estruturação do eu. Não se pode esque- Uma outra estratégia, complementar, estará ligada à percepção do
q cer, ainda nesse sentido, as conexões que tal concepção estabelece
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I
I espaço e a recursos puramente compositivos. Como já observado por
com a idéia de cidade a que Mies van der Rohe remete. Ao se sentir con- simetria horizontal Robin Evans, Mies van der Rohe substitui a simetria vertical clássica
fortável em projetar em meios urbanos históricos, ao demonstrar um por uma outra, horizontal, que induz o olhar e o seu movimento a um novo (
baixo grau de ansiedade pela aparente desarticulação estética de muitos plano de simetria. Para isso, excepcionalmente, fixará a altura do pé-direi-
de seus primeiros projetos, Mies van der Rohe revela algo verdadeira- to em uma dimensão próxima a 3,20 m, situando o ponto de vista em um \ '
mente distinto do universo ordenado, unitário e coerente de Le Corbusier, plano simétrico em relação ao piso e ao teto, num elementar, mas sutilís- (
pondo em evidência a sua afinidade maior com a idéia da cidade como simo, mecanismo compositivo que determinará uma completa reorgani-
(
uma sedimentação de camadas, o seu gosto perceptível, inclusive nas zação visual e espacial. Tudo deverá ser planejado de acordo com este
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31 I
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·:
mecanismo antigravitacional, que transforma o tradicional sujeito passivo Podemos agora perambular pelo interior da Casa c~m três pátios, e
em um sujeito ativo, permitindo-lhe construir, em sua mobilidade, através cultura objetai · dirigir nossa atenção à cultura objetai e ornamental empregada para
da experiência fenomênica, as simetrias que desde há muito organiza- torná-los habitáveis. Neles reina um vazio imponente, mas não abso-
vam-se verticalmente como efeito de forças cósmicas ou transcendentes. luto: algumas obras de arte e poucos móveis convivem, quase sem
Por último, Mies van der Rohe desenvolverá uma estratégia puramente solução de continuidade, com os elementos mais arquitetônicos.
material. À coreográfica ordenação de rebaixas, cornijas e emolduramen- O mobiliário não se destina ao conforto convencional, nem à especiali-
tos com que a ordem clássica celebra a justaposição de materiais e car- zação funcional : adquire, por si, um valor artístico e arquitetônico,
gas, oporá um emolduramento invertido - a junta refundida - como o transformando-se em um outro elemento-chave do "sistema". Por isso,
recurso que, associado aos anteriores, fará levitar a matéria, assim trans- ainda que sejam poucos os móveis, é evidente que Mies van der Rohe
formada em algo possuidor de massa, mas não de peso. Seus muros em não os negligencia. Mais do que isso, desenha-os com precisão. E não
pedra ou em tijolos passarão a ser puramente uma experiência de matéria matéria em levitação · só os desenha, mas também os concebe com precisão. Assim, pro-
em levitação: não suportam cargas, nem têm peso próprio. Suas qualida- jeta alguns móveis, aproveitando distintas circunstâncias, e deixa de
des passarão, assim, do tectônico ao háptico: eles estão aí pela beleza do fazê-lo quando entende que o programa já está completo: o mundano
seu desenho, da sua caligrafia, pelá r:nemória que ativam. não necessita de muitos pertences, nem os quer. Contudo, sabe que
Encontramos, assim, três formas de horizontalidade. Na organização em sua casa, no espaço de sua intimidade, necessita desses poucos
dos materiais, em que se substitui a junta clássica por seu inverso, o e sábios objetos, desse número reduzido de elementos eleitos que, em
refundido, a linha de sombra. Na iluminação, em que, através de uma sua beleza e perfeição, acolhem-no e o ajudam a desenvolver seu pro-
compensação de reflexões, obtém-se uma luminosidadeuniformemen- jeto próprio de vida.
te distribuída. Na geometria dos espaços, em que se trans- Basta que nos perguntemos acerca da postura que a poltrona Barcelona
forma a tradicional simetria vertical em uma simetria hori- requer, para entendermos em quem se pensava ao desenhá-la, e porque
zontal, produzida a partir da equivalência da altura dos ela se encontra nas áreas de reunião, sempre diversas, que flutuam
espaços ao dobro da altura dos olhos. Tudo isso está pre- naqueles salões: é a postura do bom proseador, o justo equilíbrio entre o
sente nos desenhos em perspectiva das casas-pátio, nos que a convenção impõe e a comodidade pede, um prodígio de elegân-
quais o plano de fuga é o plano da simetria, assim como cia e mundanalidade. Ainda assim, não foi só a idéia dessa postura
nas fotografias do Pavilhão de Barcelona, sempre com aristocrática o que prevaleceu na hora de resolver aquela peça. Há nela
fugas e tonalidades simétricas nos pisos e tetos, e também também uma aspiração de distanciar-se de uma submissão literal aos
no caráter antigravitacional de seus materiais justapostos. padrões ergonômicos funcionalistas, no que se refere não apenas à qua-
A horizontalidade manifesta-se pela negação total e sistemática de qual- lidade que materializam, mas também aos recursos compositivos empre-
quer ordenamento vertical. Cria uma imagem não de leveza, mas de indi- gados para tanto. Nas medidas que contêm o volume desta poltrona -
ferença à gravidade, responsável, junto à iluminação e à simetria horizon- altura= 760 mm, largura= 750 mm, profundidade= 754 mm -,um cubo
tal, por este efeito emocional contraditório provocado em quem se move levissimamente retificado, portanto, podemos apreciar de novo unna
pelo Pavilhão de Barcelona. O efeito de encontrar-se em um templo, em distância - uma recusa, se preferirmos - da banalização positivista do
um lugar de recolhimento, associado, porém, à convicção de que o que tal conforto. As proporções da poltrona Barcelona são determinadas pela
templo celebra não é divindade alguma, mas, sim, o advento do homem satisfação de uma outra qualidade, a aspiração à beleza e à perfeição, o
como protagonista, como agente, como sujeito. Algo que Nietzsche soube que iguala esta peça às esplêndidas obras de arte, também poucas e
enunciar, mas somente Mies van der Rohe soube materializar. escolhidas, que acompanham a solitude do mundano e mobíliam, sem,

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no entanto, aquietar, a sua consciência. O móvel alcançou, em Mies van Essa prática, porém, não se esgota em absoluto no jogo .da projeção, em
der Rohe, um novo estatuto: o· daquilo que é concebido, disposto e seus aspectos autobiográficos. O que há aí de verdadeiramente revela-
fruído como uma obra de arte. método dor é a fecundidade do método, as possibilidades, nesse projeto, de uma
O conforto passou, de sua convencional formulação moderna- o fun- reubiquação dos objetivos da casa. O interesse, para uma teoria do pro-
cional - , ou da sobrecarregada imagem do interior burguês, a ser soli- jeto, da reflexão sobre o sujeito- produto da projeção pessoal, mas tam-
citado como algo inerente à condição artística e à busca da perfeição. bém das elaborações próprias da filosofia antropológica -, de um ques-
Um conforto espiritual, portanto, destinado a satisfazer tão-somente conforto espiritual tionamento da dicotomia público/privado em relação às práticas sociais
àqueles que entendem sua própria existência como a construção de desse sujeito, de um enfrentamento dos vínculos do espaço com o
uma obra de arte, àqueles que, como Nietzsche - assim como expres- tempo, com a memória, com a subjetividade e a técnica- com os sabe-
so no título da obra de Riehl - reúnem em si mesmos as condições de res positivos, com a cultura material de uma época.
pensador e de artista. Se queremos modificar nossa forma de pensar e de projetar casas,
Talvez já seja conveniente desvelá-lo: através desta incursão pela Casa critérios parece imprescindível modificar, em primeiro lugar, os critérios taxionô-
com três pátios descobrimos a forma de conceber um programa com- taxionômicos micos existentes, procedendo a uma distinta ordenação da experiên"
pleto do habitar, quase um método de projeto com o que, partindo de cia, priorizando os aspectos relativos à construçãO d_os diferentes sujei-
um novo sujeito, pode-se construir um "sistema". Um sistema cujos tos com os quais se relaciona o espaço privado - e quiçá o espaço
momentos essenciais são bem distintos dos tópicos mais conhecidos público-, permitindo uma redescrição da casa, do espaço privado, dos
e divulgados - estrutura reticular, vidro, cobertura plana ... Sua relação múltiplos e confusos ideais que se associam a ele, identificando cate-
com a cidade e com a natureza, sua forma de conceber o espaço e as gorias, léxicos e saberes operativos. Durante esse tempo em que "habi-
técnicas para torná-lo presente, sua ternporalidade, sua materialidade, tamos" esta casa, pudemos observar como a filiação convencional à
sua cultura objetai compõem um cúmulo de momentos decisivos nos ortodoxia moderna deu lugar a uma outra, inteiramente alheia ao posi-
quais também se resolve este sistema. Mas não havíamos tomado tivismo moderno. Nietzsche habita a casa tanto quanto o próprio Mies
consciência ainda de até que ponto, neste complexo programa de van der Rohe, ambos encarnados em Zaratustra, e sua presença única
construção do sujeito e da casa, Mies van der Rohe estaria realizando terá transformado completamente os modos de pensá-la, de construí-
um auto-retrato, oferecendo a sua própria pessoa como projeto. -la, e de habitá-la. "Somente através do conhecimento filosófico reve-
Somente nos damos conta disso ao olhar as fotografias que o mos- lam-se a ordem correta de nossas tarefas e o valor e a dignidade de
tram ora visitando as obras da Casa Tugendhat, ora sozinho em seu nossa existência", escreve Mies van der Rohe, neste estilo aforístico
apartamento. Compreendemos, aí, a razão mesma de sua opção pela -devedor do de Nietzsche- que caracteriza seus breves artigos. Com
solitude, de seu apartamento berlinense, da importância daqueles pou- isso, Mies van der Rohe opõe-se frontalmente ao método científico
cos livros que levou consigo aos Estados Unidos, da lareira, do quadro positivista - concebido ele mesmo como uma "superação" histórica da
de Klee, da escultura de Picasso, do vazio, do mínimo com o que se filosofia- e devolve à subjetividade, ao pensamento filosófico, um papel
fez acompanhar em sua vida: é ele mesmo que se constrói através crucial no projeto da casa, um papel que o século, em seu transcurso
deste projeto. E o faz renunciando a toda a moralidade moderna, a árduo e imprevisível, veio implacavelmente resgatando, fazendo surgir
toda a convenção de seus programas e princípios, a qualquer pater- e emergir formas de pensar e de habitar a casa que têm investido dire-
nalismo social, entregando-se, plenamente e em suas limitações, à tamente contra o objetivismo cientificista moderno.
obra de arquitetura, atentando para a dureza sem mediações dessa As casas que visitaremos neste texto - a casa fenomenológica, a casa
entrega, um autêntico exercício de projeção do eu no espaço privado. do pragmatismo e a do pós-humanismo, a do freudiano-marxismo con-

34 35
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testador e tantas outras experiências a que, com maior ou menor acui- Heidegger em seu refúgio: a casa exist~ncialista (
dade, pudemos assistir - têm constituído a si mesmas como uma crí-
tica ao desdém positivista pela subjetividade como matéria criativa,
manifestando, assim, seu débito manifesto para com Nietzsche, e tam- c
bém Mies van der Rohe. Este, com certeza, soube detectar as carên- (
cias do projeto moderno, bem como os modos através dos quais a (
arquitetura deveria pensar a si mesma se quisesse escapar ao restri-
tivo marco que a ela se impôs. Pouco, ou muito pouco, de seu esforço
c
foi compreendido até recentemente por uma crítica cegada pelo feitiço I
de um momento internacional aparentemente unidirecional, uma crítica (
apanhada ela mesma no universo ideológico que pretendia historiar e, (
portanto, incapaz de alcançar um distanciamento objetivo mínimo. (
As recentes revisões da figura de Mies van der Rohe destacam quan-
ta riqueza deste século tem sido velada e desfigurada por esta miopia
c
(
crítica e historiográfica. O mesmo encontraremos se nos remetermos à
maneira com que a casa tem sido estudada na modernidade, aos
(
manuais modernos sobre a casa, à maneira com que gerações inteiras (
de arquitetos têm sido treinadas nessa ficção de ter que resolver uns (
problemas objetivos.
O fato de, neste texto, visitarmos inicialmente a casa-pátio de Mies van
c
(
der Rohe não é um mero acidente, mas um ponto de partida para
(
aprendermos a esquecer essa concepção da casa, adotando, em seu
lugar, uma outra predisposição. Seu testemunho permitir-nos-á identi-
ficar os momentos-chave, as perguntas que deveremos nos fazer se (
quisermos avançar de maneira proveitosa. É através dele que se reve-
lou útil esta taxionomia, uma classificação que indaga o pensamento !
contemporâneo sobre suas idealizações da casa e reduz a casa posi-
(
I tivista a uma entre muitas opções, enquadrada dentro da pluralidade
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radical do século.
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A cabana de Heidegger em Todtnauberg, na Floresta Negra.

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"Sobre a vertente de um extenso vale rodeado por montanhas, na do por este tempo existencial e este marco familiar .e utilitário que o ( .
porção sul da Floresta Negra, a uma altitude de 1150 metros, ergue-se definem. Mas está aí, em um mundo que nem sempre é solícito, frente
uma pequena cabana de esqui. Suas medidas em planta são 6 por 7 ao qual sente uma certa angústia que o impulsiona a compreendê-lo,
(
metros. O telhado, baixo e inclinado, cobre três cômodos: a cozinha, para nele se projetar. A casa deste sujeito que se interroga sobre si
( )
que também é sala de estar, um quarto e um estúdio. Salpicados ao mesmo é, assim, algo mais que um marco neutro: nela habita quem
longo da estreita base do vale e sobre a encosta íngreme, dispõem-se pensa a si mesmo, e este pensamento, por sua vez, é que habita a (
as casas dos lavradores, com suas grandes cobertas suspensas. Mais casa. A casa, a construção da habitação, não é tanto uma metáfora, (
acima da encosta, os pastos e os prados dão lugar aos bosques, com mas o sujeito mesmo da filosofia existencial. Nela se pode exercer o (
seus abetos escuros - valorosos e alinhados. E, acima de todas as autêntico habitar, a plenitude do ser. A casa, contudo, não é um marco
(
coisas ali, abre-se um céu claro de verão, e, em sua radiante expan- inocente, imune ao reflexo de nossos conflitos, é o lugar do íntimo tanto
(
são, dois falcões planam descrevendo amplos círculos." Com este quanto do inóspito, um espaço de alienação que vela ou esconde um
,' I (
parágrafo, Heidegger inicia seu texto "Porque vivo nas províncias", uma desarraigamento, uma incapacidade para o pleno exercício do ser-aí.
(
argumentação contra a vida inautêntica e desenraizada das cidades, Não apenas na modernidade, mas nela de forma especialmente inten- I I

escrita semanas depois de sua desvinculação do partido nazista, e, sa, ~ste desarraigamento, esta inautenticidade do marco existencial
portanto, não tão inocente quanto o seu tom- mais próprio de Heidi, do exacerbou-se à medida em que se desenvolvia nossa capacidade de ( J

que de Heidegger - incita-nos a pensar. Será esta pequena cabana a ação mediante o avanço do conhecimento e o uso abusivo de nossa
(
casa que visitaremos agora, na certeza de que seu atento estudo não técnica. Repensar o ser, retornar às origens da filosofia; · repensar a
(
será insubstancial. casa, voltar a interpretar seu sentido existencial: trata-se, então, de um
Habitar, para Heidegger, não é um ato simples, nem insubstancial. Seu único trabalho, de uma mesma tarefa, com o que necessariamente se
pensamento existencial está estreitamente vinculado, especialmente a confronta a alienação tecnológica moderna.
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partir da "Carta sobre o humanismo", escrita em 1947, ao tema meta- Este discurso- em grande medida uma argumentação contra a moder- (
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fórico da casa, que se apodera de seu próprio sistema filosófico até na banalização do pensamento sobre a casa e seus habitantes- exer- (
com ele identificar-se: "A linguagem é a casa do Ser. Em seu lugar, o cerá uma influência decisiva nas revisões da modernidade que surgem
( ~
homem habita". A casa seNirá ao desenvolvimento de uma retórica no final dos anos sessenta, a ponto de se tornar obrigatório, para a
arquitetônica capaz de deslocar a linguagem da filosofia, num procedi- compreensão de nosso tempo, demorarmo-nos em uma visita detida e
mento que levará a filosofia a ser um pensamento sobre a habitação. minuciosa a esta cabana. Situada em Todtnauberg, na Floresta Negra, (
Este pensamento, originalmente vinculado tanto à fenomenologia de foi cedida a Heidegger pela Universidade de Friburgo como um dos (

Husserl quanto ao niilismo de Nietzsche, terá partido de um empenho benefícios do cargo de reitor que ocupara em 1933, na mesma época (
em retornar às perguntas primeiras, em perguntar-se sobre o sentido em que Mies van der Rohe trabalhava intensamente nas casas-pátio.
do ser, do "ser-aí" (Oaseín), como objeto primeiro e essencial da filoso- Somente através deste pequeno refúgio poderemos reconhecer, em
(
fia. Para Heidegger, esta questão ontológica não pode ser resolvida toda a sua complexidade, a presença da casa existencial.
sem que se reconheça que, ao redor deste sujeito existencial, gravita São três as principais motivações que Heidegger nos fornece para apren-
tudo aquilo que lhe é familiar, os utensnios e a casa como a materiali- der a habitar e a possuir espiritualmente esta casa: em primeiro lugar, a r
zação de uma vida que se desenvolve através de um tempo existen- conhecida palestra em que se desenrola uma sistemática investigação {
cial, não cronológico - passado, presente e futuro experimentados a etimológica sobre o significado do vocábulo bauen (construir); em segun- (
partir da própria subjetividade. O sujeito permanece, assim, atravessa- do lugar, uma imagem heurística surpreendente, a de uma ponte, descri-

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44 45
ta, na mesma conferência, com o intuito de nos ajudar a interpretar o sig- 3. Construir, enquanto habitar, é empregado no senti9o de construir,
nificado de sua idéia sobre um habitar autêntico; em terceiro lugar, uma cuidar, cultivar, e no sentido de construir, erigir edificações.
reportagem gráfica que nos permite conhecer não apenas a casa da (... ) O caráter fundamental do habitar é este cuidar."
Floresta Negra, como também a maneira com que Heidegger ali se ins- Assim, "cuidar" seria o caráter fundamental do habitar: "os mortais habi-
talou e habitou. São esses três momentos, portanto, que compõem os tam na medida em que salvam a terra( ... ) salvar não é apenas livrar algo
principais passos do percurso que vamos iniciar. Mas Heidegger não do perigo, salvar significa propriamente franquear a algo a penetração
está sozinho nesse trajeto da crítica existencial ao projeto moderno. em sua própria essência. Salvar a terra é mais do que explorá-la, ou até
Simultaneamente, um influente arquiteto berlinense nega-se a seguir os arruiná-la. Salvara terra não é apoderar-se da terra, não é transformá-la
dogmas da modernidade-, seja em sua versão expressionista, seja-em em nossa súdita, o que está a um passo da exploração sem limites."
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sua versão sach/ích, e a entender a tradição como algo meramente rea- Arruinar a terra seria precisamente o que a ilimitada capacidade técnica
cionário. Heinrich Tessenow - significativamente recuperado pela crítica herdada da Segunda Guerra Mundial poderia fazer- e já o havia feito na
profissional, nos anos setenta, como uma referência crucial contra os zona militar-, caso não se considerassem outros valores que não os de
I I epígonos modernos - desenvolveu um corpo teórico completo, num um positivismo cego. O cuidado aplicado à ação de construir é coadju-
grande paralelismo ao propugnado por Heidegger, em vários. tratados vante de um habitar no qual o "ser" pode se desenvolver. Mas isto im-
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cuja singeleza também amiúde confundiu-se com inocência. plica, antes de tudo, uma consistência temporal, uma preeminência da
Não há inocência alguma no fato de que seja uma investigação etimo- dimensão temporal sobre a espacial: é o tempo -um tempo longo, que
lógica, a origem, o que Heidegger utilize para desenvolver sua argu- vem de origens remotas, e se estende no cuidado com a terra- que nos
mentação na conferência "Construir-habitar-pensar", proferida no investigação permite aceder a um habitar autêntico.
Darmstadter Gesprach, em 1951, aos arquitetos que estavam destina- etimológica Assim, pois, esta investigação etimológica adverte-nos contra a técni-
dos a reconstruir as cidades alemãs no pós-guerra. Frente ao utilitaris- ca moderna, exigindo-nos uma relação atenta com a natureza, e opõe
mo e ao tempo finalista moderno - uma concepção de mundo que se tem po radical ao tempo finalista um tempo "radical", no qual a memória substitui,
apóia na fé em um futuro de progresso que daria sentido às ações pre- como valor, o progresso, invertendo, por assim dizer, a flecha do
sentes -, Martin Heidegger contrapõe uma crítica "radical": uma volta tempo. Uma argumentàção que, sem dúvida, vem penetrando na
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às raízes, à origem. É necessário, primeiro, interrogar-se sobre o senti- sociedade contemporânea, especialmente nos setores mais sensíveis
do de nossas ações. O que ou quanto construir não é tão importante às questões ambientais, mas também naqueles para os quais a pre-
quanto saber porque construir, qual o significado original desta ação. servação e a incorporação, ao nosso tempo, da memória de nossos
O que legitima e dá consistência ao pensamento de Heidegger é este
retorno: somente através dele poderemos transformar um mero alojar-
-se em um autêntico habitar, e é propositadamente que se utilizam aqui
I antepassados- os monumentos - é um programa de trabalho, uma
forma de entender o significado mesmo da arquitetura, outro dos dis-
cursos contundentes da pós-modernidade.
os vocábulos "mero" e "autêntico", sempre presentes em sua crítica às A partir desta perspectiva, a imagem teórica que o filósofo propõe deste
conseqüências do uso indiscriminado e irrefletido da técnica moderna. construir identificado ao habitar não é um espaço fechado, mas, sur-
l i'. Bauen, construir, confunde-se, originalmente, com habitar: preendentemente, uma construção de caráter transicional: uma ponte.
"Prestemos atenção ao que a língua, através da palavra - bauen - , diz, a ponte de A velha ponte de Heidelberg servirá a Heidegger para explicar como a
e perceberemos três aspectos: Heidelberg esta inversão do valor do tempo corresponde também uma modificação
1. Construir é propriamente habitar. construir radical da noção de espaço, já que o que caracteriza a ponte não é
2. Habitar é a maneira como os mortais estão sobre a terra. tanto a sua espacialidade, mas a sua capacidade de definir um lugar

46 47
(
através do estabelecimento de ligações de ordem não apenas material, tável seu desenvolvimento em larga escala -, Heidegger introduziu um
mas também espiritual - é significativo, por exemplo, que as pontes deslocamento de interesses e um léxico que lentamente viria a ter uma ( ·
tenham sido sempre, tradicionalmente, consagradas a uma santa ou a grande repercussão. O "Espaço-Tempo" de Siegfried Giedion, enuncia-
um santo. Terra e céu, divinos e mortais unem-se através da ponte, do em 1941 , foi totalmente posto em dúvida: inverteu-se o tempo e a (
compondo a quaternidade na qual habita o ser existencial. quaternidade memória ocupou o lugar do futuro, o espaço já não servia para grande (
"A terra é a diligente portadora, a florescente frutífera, que se estende coisa. Seriam estes lugares da quaternidade a devolver ao homem con- C
pelas pedras e pelas águas, ascendendo o que cresce e o que é animal. temporâneo a dignidade que a técnica contraposta à natureza eliminou. (_
Se dizemos terra, pensamos imediatamente nas outras três, mas não lugar, memória, Lugar, Memória e Natureza contrapunham-se frontalmente a Espaço, C.
consideramos a unidade dos quatro. O céu é a curvilínea marcha do sol, natureza Tempo e Técnica, pela primeira vez de urna forma completamente arti-
o mutante giro da lua, o viageiro brilho das estrelas, as estações do ano culada, num giro que abarcaria praticamente todas as mudanças de
e seus solstícios, o alvorecer e o crepúsculo do dia, a obscuridade e a valor que se sucederam no panorama arquitetônico desde o final dos
claridade da noite, a fertilidade e a esterilidade do clima, a marcha das anos sessenta até hoje.
nuvens e o azulado abismo do éter. Se dizemos céu, pensamos ime- Teria Heidegger proposto algum modelo, implícito ou explícito, àqueles
giatamente nas outras três, mas não consideramos a unidade dos qua- arquitetos? Diante do imenso programa de trabalho que tinham em suas
tro. Os divinos são os mensageiros que fornecem as pistas da divinda- mentes, Heidegger convidou-os a observar atentamente a minúscula
cabana, onde terminara de escrever em 1926 Ser e tempo, e assim lhes
( '
de. Através de sua obra sagrada, o deus surge em sua presença, ou se
encobre em sua ocultação. Se nomeamos os divinos, pensamos ime- falou: "Pensemos por um momento em uma casa de camp0 na Floresta
diatamente nas outras três, mas não consideramos a unidade dos qua- Negra, que um habitar, embora rural, construiu há dois séculos. A casa
tro. Os mortais são os homens. Denominam-se mortais, porque podem foi erguida num esforço de instalar univocamente, nas coisas, terra e
morrer. Morrer significa ser capaz da morte enquanto morte. Só o céu, divinos e mortais. E foi situada na vertente da montanha que está (
homem morre continuamente, ainda que permaneça sobre a terra, sob protegida do vento, entre as pradarias, próxima à fonte. Desejou-se para
(
o céu, ante os divinos. Se nomeamos os mortais, pensamos imediata- ela um telhado com um grande beiral, que, com sua adequada incli-
(
mente nas outras três, mas não consideramos a unidade dos quatro. nação, sustém o peso da neve e, avançando até embaixo, protege a
A esta unidade chamamos quaternidade. Os mortais estão na quater- habitação contra as tormentas das longas noites de inverno. Não se
nidade enquanto habitam. O traço fundamental do habitar é o cuidar. negligenciou o nicho para a imagem do nosso Senhor, detrás da mesa
Os mortais habitam à medida em que cuidam da quaternidade em sua comunitária, arranjaram-se os lugares sagrados para os momentos do (
I essência. Assim, o cuidar habitando é quádruplo." nascimento e da 'árvore da morte', que é como se chama ali o ataúde, (
I ' O espaço, tal como o entendem os modernos, não é mais do que e, assim, sob o telhado, às distintas idades da vida imprimiu-se, de
i' extensão matemática e algébrica, ares extensa cartesiana, que não é antemão, o lacre da sua passagem pelo tempo. Um ofício, surgido ele
propriamente o objeto, nem a atividade de construir, nem a de habitar. próprio do habitar, e que necessita, além disso, de seus instrumentos e <
A construção de lugares ergue-se no caráter próprio do ser existencial, andaimes enquanto coisas, construiu a casa de campo." (
lugares como a ponte através da qual se vincula o destino dos mortais Temos agora o privilégio de vê-lo habitar esta casa junto à sua mulher C
ao da terra e do céu. Elfridge, na reportagem fotográfica realizada por Digne Meller Marcovicz (
Mediante esta decisiva palestra - que tiveram que ouvir, seguramente anos depois, em 1968 - curiosamente um mês depois dos aconteci-
(
! atônitos, arquitetos prontos a explorar todo o potencial do movimento mentos revolucionários em Paris. Podemos ver Heidegger ali, de braços
I cruzados, cravando em nós o seu olhar enquanto sua atenciosa espo- (
)
moderno, justamente quando a situação histórica tornava quase inevi-
( I

48 49 c
sa prepara uma sopa. Ao olharmos para ele, vemo-nos obrigados a nos É precisamente esta nostalgia por uma forma de instal~ção no mundo,
perguntar quem é o sujeito que habita a casa existencial. A quem, afinal, gradativamente eliminada pelo século, o que ativa todo o poder de evo-
esta concepção doméstica privilegia? Podemos vê-lo também à porta cação da casa existencial. O refúgio do mundo, e do público, tanto
da cabana, carregando um balde de água, ou saindo para um passeio quanto das forças da natureza: "... na profundidade de uma noite de
pelos arredores. Esentado à mesa, de novo atenciosamente servido por inverno, quando uma selvagem, estrepitosa e raivosa tempestade
sua esposa, embora, numa atitude clássica de pensador, olhe para de neve envolve a cabana, escurecendo e encobrindo tudo: este é o
ela distraidamente. Enquanto o contemplamos, entendemos que quem a noite de inverno, tempo perfeito para a filosofia." A noite de inverno, a forte tempestade
sustenta estas concepções de tempo e de espaço não é outro, não a tempestade de neve, simbolizam o momento culminante da relação entre o habi-
pode ser outro, senão aquele que detém a autoridade, aquele cuja de neve tante existencial e a natureza, momento em que a casa aparece, em
existência constitui-se como um diálogo com a quaternidade, a figura todo o seu esplendor, como refúgio, como abrigo protetor. São tam-
mesma do filósofo transrnutada na figura da autoridade paterna. Mark autoridade paterna ~ bém metáfora da relação desta casa com a natureza artificial que é a
Wigley o descreveu com tanta precisão, que sua descrição poderia ser grande cidade, das nítidas fronteiras entre o público e o privado que
a legenda de urna foto: "o domínio da filosofia é o domínio da casa, a estão na base da concepção deste espaço doméstico.
autoridade patriarcal que torna o outro um escravo dentro da casa, um violência: relação A relação com a natureza, assim como aquela mantida com o público,
servente doméstico, o servo da dornesticidade." com a natureza e estará marcada pela violência. E será esta violência a nos remeter à
Quem habita a casa é aquele que domina a linguagem, aquele que cons- com a cidade figura central do pai, da autoridade. Na casa existencial será permanente
trói seu pensamento através dela. Porém, além de qualquer outro argu- a presença latente de um esquema hierárquico autoritário, de·um habitar
mento, do intento radical de Heidegger de superar a metafísica, há em sua totalmente voltado à proteção do exterior e à primazia do pai. É ele quem
concepção doméstica uma nostalgia desse sujeito centrado e dominante constrói a casa no tempo, é ele quem desenvolve o programa do "cuida-
que constrói a casa ao habitá-la, do mesmo modo que o filósofo constrói, do" a que Heidegger se refere. É, portanto, razoável estabelecer uma
com o seu pensamento, a casa. O sujeito da casa existencial não é outro correspondência entre este eixo hierárquico e autoritário e a organização
senão aquele que herda a propriedade e os bens de seus pais, e os admi- espacial da casa em torno de um espaço central. "A casa da fumaça":
nistra com prudência para transmiti-los a seus filhos -que se constitui, assim Yago Bonet denominou esta tipologia, a casa em torno da lareira
portanto, como uma "ponte". Esta submissão do sujeito à quaternidade, ou de um espaço central dominante, o hall, próprio das construções tra-
à terra e ao céu, em um completo esquema vertical- em que se fixa a esquema vertical dicionais do norte da Europa, e que cumpre a função tanto de lugar de
existência enraizando-a, e em um lugar-, expressa com nitidez a posição reunião da família, como de centro das reuniões sociais, evidenciando seu
de quem tradicionalmente detém a autoridade, o pater fami/ias . caráter vertical e hierarquizado. Poder-se-ia descrever a casa existencial,
Ou, mais exatamente, expressa a nostalgia pela consistência que nostalgia da portanto, como uma casa centrada e vertical, habitada por alguém anco-
outorgavam, ao habitar, essas relações - não nos esqueçamos, no consistência rado firmemente ao lugar, por uma família estável, hierárquica e autoritá-
caso da cabana de Heidegger, de que se trata de um imóvel cedido, e ria, como uma casa que protege de um meio externo agressivo, inautên-
não herdado, de uma casa de campo, e não de uma residência fixa, tico, e que se liga, no tempo e na memória, a um sujeito que se define
e de que ninguém ali trabalha na terra, apenas passeia por ela. integralmente, por assim dizer, por sua origem e por sua linhagem.
A casa de Heidegger é a manifestação dos conflitos existenciais com o autêntico A casa é o lugar do autêntico, é o refúgio que protege do exterior, da
o tempo, aquilo que, simplificando, denominamos nostalgia, o produto inclemência do tempo e dos agentes naturais, mas também do munda-
de uma idealização da densidade e da solidez do passado frente à no e do superficial, dessa exterioridade sempre concebida como nociva.
banalidade do presente. A menção da casa nos primeiros escritos pós-guerra de Heidegger, e

50 51
o tom literário ingênuo neles adotado, são algumas das chaves para a ingresso na Academia de Artes de Dresden, publicado em 1921 sob o
·compreensão do exterior como ameaça, da vinculação do tema do título O pais situado no centro. Ambos dedicaram-se a combater a
habitar e da casa ao seu intento pessoal de se eximir de qualquer par- Grosstadt e a exaltar a figura do pequeno artesão médio, sua casa
ticipação no nazismo. Explicam também, com clareza, as implicações modesta, com jardim, horta e oficina, sua pequena cidade - nem vila,
desta violência no âmbito público na violência no âmbito privado, nem metrópole, mas uma cidade média -, sua posição central -
a associação sistemática da casa existencial à autoridade paterna, e a Alemanha- no plano da Europa ... Sem dúvida, um precedente impor-
sua conformação espacial centrada, transcendente, vertical. A violên- tante do pensamento de Heidegger frente à modernidade. Importante
cia da natureza reproduz-se nos âmbitos público e privado, marcando público e privado tanto para a articulação do discurso sobre uma vida autêntica, "um saber
o pulso do habitar existencial. A casa é, assim, a fuga da ágora, do verdadeiro", no terreno estritamente disciplinar, quanto pela influência
fórum, do público (e do partido nazista). É o lugar do "autêntico", onde deste arquiteto no meio profissional (lembremo-nos que, ainda que sua
a penetração das manifestações da exterioridade supõe uma dilace- influência, como no caso de Heidegger, não tenha se restringido aos cír-
ração, um obscurecimento da autenticidade. culos nacional-socialistas, estes fizeram uso de suas idéias, corno é o
O autêntico contrapõe-se, assim, a duas manifestações da exteriorida- caso de, por exemplo, Albert Speer, discípulo confesso de Tessenow).
de: as tecnologias industriais e os meios de comunicação. Não só a No pensamento de Tessenow, a Grosstadt aparece como a origem de
natureza é arruinada por nossa depredação tecnológica: a introdução todos os males, já que, desde a industrialização acelerada até o aban- J
\
do mundo da opinião- o rádio, a televisão, o jornal- no interior da casa dono das virtudes próprias da classe média ou pequeno burguesa, a
configura uma violência ao habitar, uma regressão do habitar ao alojar- grande cidade encerrara em si todas as condições que haviam condu-
-se, uma ruptura daquele cuidado da quaternidade. E também determi- zido ao desastre da guerra. (

na a irrupção de uma crise no esquema vertical implícito ao sujeito hei- Stadtfeindlichkeit Assim como em Heidegger, encontramos, aqui, uma Stadtfeindlichkeit
deggeriano. "A toda hora, em todos os dias, eles estão presos ao rádio (aversão à cidade) que se projeta sobre a Grosstadt, entendida como
e à televisão. Semana após semana, os filmes os transportam a insóli- expressão pura da irracionalidade de um desenvolvimento tecnológico
tos, embora freqüentemente vulgares, estados de imaginação e lhes cego. Em contraposição a ela, Tessenow exalta a figura do modesto
dão a ilusão de um mundo que não é o mundo. As revistas ilustradas artesão - essa modéstia que é expressão de um saber, de uma vida
estão por toda parte. Tudo o que as técnicas modernas de comuni- autêntica. "Tornaram-se raros os homens com as mãos calejadas, as
cação estimulam, isolam e conduzem, tudo isso está muito mais ime- costas encurvadas, e o rosto aberto e belamente expressivo, e estes
diatamente próximo do homem de hoje do que os campos ao redor de estão, ainda, situados detrás de nós do ponto de vista do prestígio
sua granja, mais próximo do que o céu sobre a terra, mais próximo do social ... ", escreverá, num tom que imediatamente nos faz recordar o ado-
que as nuanças do dia e da noite, mais próximo do que as convenções tado por Heidegger em A origem da obra de arte, no comentário que
e os costumes de seu povo, do que a tradição do seu próprio mundo." tece sobre os sapatos do lavrador: "... na escura boca do solado gasto
O habitar existencial ergue-se contra a cidade moderna e seus imple- boceja a fadiga dos passos laboriosos. No rude peso do sapato está
mentas técnicos, contra aquilo que leva tanto ao aniquilamento da representada a tenacidade da lenta marcha através dos longos e monó-
natureza, quanto ao esquecimento da tradição: a casa é uma proteção tonos sulcos da terra lavrada, sobre a qual sopra um vento áspero."
contra a banalidade do cosmopolitismo, e, na medida em que seja Encontramos, aí, a mesma finalidade: exaltar a nobreza de um sujeito
capaz de lutar contra ele, cumprirá seus objetivos existenciais. que, com sua tenacidade e em seu trabalho paciente, estabelece uma f
(
ti
f. l Talvez seja a hora de voltarmos a H. Tessenow, a seu tratado Trabalho relação equilibrada com o meio. Tessenow prosseguirá: "O artesão pre-
artesanal e cidade pequena, publicado em 1919, e a seu discurso de tende sempre situar-se no centro, deseja estar, como trabalhador, nesta

52 53
posição onde nos encontramos quando realmente somos homens: no espaço, aqui totalmente substituída pela de tempo - daí essa perpétua
centro do mundo (...). O espírito artesão nos mantém ligados à casa. negação heideggeriana do espaço, sua analogia com a ponte, sua identi-
E nos faz ter uma terra própria onde fixar a casa, o pátio, o jardim, e a ficação do habitar com o construir. O espaço interior da casa existencial
oficina como o lugar central. Uma oficina que armazena nossas fadigas, não é espetacular; os interiores desta casa imaginária têm esse aspecto
preocupações e tristezas, mas também nosso orgulho, nossas risadas e convencional, obscuro, e de uma violência latente, que talvez melhor do
canções. Uma oficina com máquinas não muito grandes e poucos livros que em nenhum outro lugar podemos observar nos interiores de Heinrich
... e tudo isso no centro da cidade pequena." Tessenow, especialmente nesses desenhos que suscitam tanto nossa
A prosa mais simples e emotiva de Tessenow transporta-nos imediata- admiração, quanto uma certa inquietude ou perturbação: um mundo
mente a um modelo de cidade - a pequena cidade das províncias -, em humilde, mas também, segundo nossa percepção, doentio, tristonho,
que tais formas de · habitar . alcançam sua plenitude. Mas toda essa como se petrificado pela convenção e suas codificações da rotina.
inocência se desvanece quando ele, clarividente, vaticina sobre o papel A casa existencial é o reino do interior, mas não do espaço interior, e
catártico da Segunda Guerra, na conclusão de seu tratado Trabalho arte- sim do homem interior, apegado a um modelo de profundidade em seu
sanal e cidade pequena: "Na realidade talvez seja ridículo reivindicar hoje modo de se realizar. Por isso, carece de objetos técnicos, ou, em sua
o trabalho artesanal e a cidade pequena, ou, melhor dizendo, antes que cultura objetai carência, deprecia-os. A cultura objetai que se desenvolve nessas habi-
possam florescer de novo, talvez seja necessário algo assim como uma tações é mínima, e nela há espaço apenas para o desenvolvimento téc-
'chuva de enxofre'. Talvez seu próximo florescimento seja possível num nico e para a subjetividade individual de outros habitantes que não
esplendor que somente agora podemos compreender vagamente e que sejam o pater famílias. Os objetos são da família, pertencem à linha-
requer, provavelmente, povos que tenham descido até o inferno." A clari- gem, porque seu valor apóia-se na colaboração com o esquema verti-
vidência de Tessenow nesta conclusão apocalíptica é, no mínimo, assom- cal: não são permitidos nem segredos pessoais, nem contradições,
brosa: serão os povos que "tenham descido ao inferno" os que décadas nem conforto, nem prazer individual. Contemplemos as salas deste
mais tarde reivindicarão o projeto existencial, o trabalho artesanal e a cida- lugar nos desenhos pormenorizados de Tessenow, nos quais se regis-
de pequena como antídotos contra a irracionalidade do século. tra, com precisão caligráfica, tal cultura material. Aí estão os móveis pri-
Mas voltemos agora à casa existencial para nela entrar, e dela conhecer morosamente conservados, todos eles ativados por objetos que deno-
a cultura material, como se circunstancialmente a habitássemos. O que cultura material tam a presença do tempo, da linhagem, ou da autoridade paterna:
primeiro nos chama a atenção na cabana de Heidegger ou nos desenhos o chapéu e o capote no cabideiro, os chinelos e a fotografia do casa-
de Tessenow é que não há, ali, espaço para a representação pública, para mento, o aparelho de chá, as luvas ... Tessenow transmite-nos esta cul-
as festas, para os convidados, para tudo aquilo que poderia vir a romper tura objetai substituindo a presença grosseira da autoridade por seu
a organização interna da família e seus códigos estritos. A casa é, assim, fantasma, pelos vestígios de uma existência que talvez alguns conside-
pequenina: um maior tamanho ou qualquer outro sinal de grandiosidade rem como representativa de uma ordem perdida, e outros, como a
despertaria apenas receio no habitante existencial. A casa tende, assim, manifestação da violência que a família impõe à privacidade.
a permanecer vo~ada para o seu interior, centrada na sala familiar, tendo sem tecnificação Não é difícil compreender a ausência de objetos tecnificados, como não o
ao seu redor células elementares, também de dimensão reduzida, sem é compreender que todos os valores que a modernidade havia deposita-
complexidade, nem qualidades espaciais. Poderíamos concluir que a casa do sobre os materiais artificiais, produzidos mediante uma transformação
existencial não possui espaço propriamente privado, invadida que é pela industrial das matérias-primas, são eliminados nesta idéia de casa.
presença do hierárquico, pelo peso da família como instituição, mas seria materiais naturais A casa existencial sempre será feita de materiais naturais, provavel-
ainda mais correto afirmar que carece de interioridade, da idéia de mente de pedras, tijolos, ou madeira; a mesma madeira e as mesmas

54 55
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pedras obtidas na ação natural de abrir uma clareira no bosque para a J capacidade de evocação de uma porta; é a imagem
sua construção. Pode-se intuir que assim ocorreu com a pequena ·J mesma da casa o que se propõe novamente a estudar
cabana da Floresta Negra. Estes materiais estão aí para assinalar a ·· , nessa sua figuração historicista. A pequena casa burgue-
passagem do tempo e a ligação com o lugar, a autenticidade do habi- -,, sa, isolada ou formando um conjunto, as tipologias tradi-
tar. Nada mais belo do que aquilo que nos liga à terra, e nada mais
encantador do que o trabalho artesanal com este mesmo material.
Por isso, pela negação do espaço interior, e pelo radicalismo com que
trabalho artesanal I cionais são retomadas em uma linguagem modesta, que
apenas ingenuamente pode-se denominar "intemporal": é
precisamente a temporalidade extensa dessa imaginária o que permite
se concebe a casa como uma barreira, o lugar de máxima intensidade o desenvolvimento da casa existencial como valor arquitetônico.
(
da casa existencial não será um espaço privilegiado, nem sequer aque- Poderíamos pensar em uma avaliação exclusivamente negativa desta
le hall ou aquela lareira que nos serviram para exemplificar seu caráter
·f concepção do tempo em relação ao espaço, em uma leitura política de
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centralizado, mas as suas paredes, a pele, essa fronteira entre o espaço a pele figurativa I seus valores como inteiramente retrógrados e reacionários, mas não (
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exterior e interior. avançaríamos na compreensão de seu apelo e de sua permanência, de
I I
E aí, neste campo de fricção entre os dois âmbitos - exterior e interior -, sua popularidade e de sua aceitação social, se insistíssemos em juízos (
em permanente ~ombate, a porta, o acesso, o lugar que articula as esfe- morais. De fato, seria errôneo atribuir a Heidegger uma nostalgia tão
ras do público e do privado. Reportemo-nos novamente a Tessenow, ingênua. Mais do que isso, é a consciência de ser um turista de passa- I
\
para observar como, em seus tratados, nos desenhos que apresenta, gem pela Floresta Negra o que dá ao ser heideggeriano uma dimensão
a porta é um tema recorrente. Porticada, contemporânea e irônica em relação a si mesmo, algo que os autores
com bancos, com gradil externo, com recentes têm ressaltado e reavivado no debate sobre a vigência de seu (
escadas, com árvores, com inscrições de pensamento. Gianni Vattimo, por exemplo, em sua proposição de um (
versos tradicionais, com postigos, com "pensamento débil", convida-nos a assumir a história como uma tra-
capachos: sempre encontraremos um dição cultural, um destino, os quais nos teriam sido dados, e ante os (
esrneradíssirno cuidado na elaboração quais somente caberia uma relação, se se preferir, "piedosa", uma espé-
'I (
I deste ponto fronteiriço. Tessenow mesmo afirma: "... o cuidadoso cie de reconciliação existencial com a memória, manifesta no terreno
',.
desenho da porta é o que dá dignidade à habitação do trabalhador", algo ironia criativo através da manipulação secularizada de citações.
que deveria soar cínico, ou aristocrático, aos ouvidos dos arquitetos e consistência Ironia ou piedade- ou ambas, talvez, ao mesmo tempo- cujo valor e inte-
positivistas, então absorvidos pela quantificação do Existenzminimun. resse poucos arquitetos pós-modernos terão entendido melhor do que (
Mas não é a porta em si mesma, como objeto técnico, o que Tessenow Robert Venturi em suas primeiras obras. E o entendeu completamente,
I - e Heidegger - consideram importante. Não é, em absoluto, ou avaliando até que ponto essa nostalgia de um tempo consistente, da con-
\,
somente, a sua funcionalidade que lhe confere dignidade, mas a sua sistência mesma das coisas, teria perdido, hoje, toda a chance de se
dimensão figurativa, sua capacidade de evocar uma porta já existente, materializar, até que ponto seria a ironia a perm~ir mediar, sem romper, a
"intemporal", detentora da memória de um passado. Assistimos, relação entre esses dois paradigmas existenciais e uma realidade cada
assim, ao desenvolvimento de uma atitude frente à casa em tudo aves- vez mais "inautêntica". Na casa que projeta para sua mãe - em cuja porta
sa aos temas do positivismo moderno, mas em nada avessa aos significativamente ela se assenta-, assim como nas casas de veraneio em
temas pelos quais a arquitetura volta a se interessar a partir do final dos madeira - que, sem dúvida, evocam o arquétipo da cabana que estamos f
\
anos sessenta - e a recuperação de Tessenow é, sem dúvida, um sin- visitando -, a gravitação em torno da lareira, a cobertura e a porta mani-
toma inequívoco de sua relativa atualidade. Não se trata apenas da festam essa reconciliação com a memória. São uma mostra de uma ati-

56 57 (
tude afirmativa em relação ao passado, com um tratamento irônico e dis- associada, e como se pode abordar a sua figuração sem se resvalar em
tanciado, que carece de qualquer afã de transcendência. Mas são tam- urna nostalgia néscia.
bém um sinal do deslocamento do interesse de projeto para a fachada, Basta aqui, para concluirmos nossa visita, assinalarmos que a ativação
deixando nas mãos da convenção - neste caso, excêntrica - interiores da memória e o lugar, tal como estes conceitos foram elaborados por
que gravitam, de forma conseqüente, em torno de halls centrais, engran- Heidegger, foram capazes de avançar e de conquistar essa postura vital
decidos com recursos cornpositivos que aumentam suas restritas que tem um correlato político e espacial, a postura do "autêntico", para
dimensões reais, como corresponde a famfiias cujas casas são habitadas empregar um vocábulo hoje já coloquial. Tal postura, desde os anos ses-
apenas por duas gerações por um período maior do que quinze anos, e senta, vem construindo valores alternativos aos do progresso, da ordem
que vêem diminuída sua tradicional estabilidade devido à freqüência de e da famnia, e, sem dúvida, está na origem da preservação de muitos
divórcios e trocas de casal. centros históricos, assim como de tantas experiências de formas alter-
Nesse interior convivem móveis tradicionais e modernos e, ainda que se nativas de ocupação nas periferias metropolitanas, a meio de caminho
possa perceber um possível vínculo com os interiores tessenowianos, entre o rural e o urbano, que incorporam a idéia da auto-sustentação
também se percebe um distanciamento de seu tradicionalismo obsessivo. como valor catalisador da existência. Não se trata, porém, de uma
De fato, trata-se de um dos primeiros exemplos, difundidos nas revistas influência marginal ou testemunhal: as práticas espaciais e as políticas
especializadas, em que aparece, exibido internacionalmente, um mobiliá- urbanas de grande escala alteraram-se a tal ponto, que hoje são impen-
rio eclético. Talvez seja necessário recordar o impacto e a sensação liber- sáveis políticas que desconsiderem a preservação e a revitalização de

I
tadora frente ao dogma moderno que tal exibição provocou na época, centros históricos, ou que se mostrem alheias ao discurso da sustenta-
para avaliarmos o quanto devemos aos arquitetos dessa geração pela bilidade. A revitalização de inumeráveis centros históricos nos anos oiten-
superação do modelo unívoco do positivismo. ta, assim como a reconsideração do marco geográfico na planificação do
Culminemos esta nossa visita com a desenvolvimento sustentável nos anos noventa são conseqüências indi-
comovente e reveladora imagem da retas, mas certas, da reflexão sobre uma pequena cabana de seis por
mãe de Venturi, sozinha, sentada à sete metros, realizada por um professor obcecado pelo significado da
.I porta de sua casa. E comparemo-la palavra bauen. E isso não se encerra aí: toda a revisão da ortodoxia
com essas outras imagens de habi- moderna está permeada por este anelo, que tanto Heidegger como
tantes que viemos acumulando: o he- Tessenow souberam dignificar, por um retorno a uma relação equilibrada
rói solitário e nietzschiano idealizado com a natureza, por um habitar mais simples ou modesto, capaz de esta-
por Mies van der Rohe, Heidegger, e belecer uma relativa harmonia também com o nosso passado.
os imponentes traços de seu rosto, Heidegger, em sua muitas vezes obscura linguagem, soube explicar, aos
sendo servido por sua mulher em um arquitetos que quiseram ouvi-lo, quais eram os momentos-chave, de que
interior quase opaco ... Talvez a ex- forma deveriam ser retificados seus métodos e valores, porque não se
pressiva imagem de uma mãe assentada em um umbral - numa atitude deveria mais pensar a casa a partir de pressupostos cuja vigência havia se
que denota ao mesmo tempo orgulho e fragilidade - mostre, melhor do encerrado. Soube, definitivamente, explicar como a casa é a expressão de
que qualquer texto, a permanência e os limites da casa existencial, as for- uma subjetividade que se constrói a si mesma através da problematização
mas frágeis e, se preferirmos, irônicas, com que ainda se pode pensar e do significado do construir, a partir do enfrentamento dos fatos originais e
projetar a casa existencial, e indique até onde pode se dirigir sua con- fundamentais do habitar. Soube, definitivamente, devolver ao pensamento
sistência original, a evocação das raízes e da materialidade natural a elas filosófico um papel cnucial no desenvolvimento das idéias arquitetônicas.

58 59
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A máquina de morar de Jacques Tati: ( '
a casa positivista ( '
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Em 1957, cem anos após a morte de Auguste Comte, Tati conclui o mento técnico e científico: a identificação da filosofia.com a ciência '
filme Mon anele, legar.tdo-nos uma das críticas mais inteligentes - e sendo esta entendida como o auge do pensamento. De outro, a (
divertidas -, dentre tantas que haviam sido realizadas, sobre a forma impugnação do positivismo que, primeiro Husserl e Bergson, e depois
(
de pensar, projetar e habitar a casa propugnada pela ortodoxia moder- Heidegger e Merleau-Ponty levam a cabo, na intenção de estabelecer
(
na. Nesse filme, como seguramente todos se recordarão, contrapõem- um novo subjetivismo, ou vitalismo, que permita impor um limite à ciên-
-se duas formas de viver: a do tio- monsieur Hulot (Tati) -, numa velha cia, desmascarando o caráter ideológico do positivismo e de seus tec-
casa mal-ajambrada no centro de Paris, e a da família Arpel -formada nocráticos desdobramentos sociais.
pelo monsieur Arpel, proprietário da fábrica de plásticos Plasta, por sua Não é por acaso que este enfrentamento irá repercutir simultaneamente {
mulher, irmã de Hulot, e por um único filho que adora o tio -, numa no filme e na ação de alguns arquitetos contra os dogmas modernos no (
casa com um pequeno jardim, em um bairro nobre afastado. O enre- seio mesmo de suas instituições. O décimo Congresso Internacional de
do, aparentemente simples, consiste em contrapor esses dois estilos Arquitetura Moderna, realizado em Dubrovnik, em 1956, dedicado aos
de vida, através do olhar desse menino que adora passear com o tio, "Problemas do hábitat humano", marcou a crise definitiva desta instituição
e das desesperadas tentativas dos Arpel de integrar seu filho e Hulot à moderna, através da contestação radical dos seus mestres por parte dos
vida moderna. membros mais jovens - Bakema, Van Eyck, §>mithson etc. -, agrupados
Tati, um artista perfeccionista e minucioso, foi também nesta ocasião em uma organização paralela, o Team 1O. O alvo do ataque desses arqui-
-como em Playtime (1967), outra análise aguda da cidade moderna- tetos não era outro, senão esse reducionismo positivista que pairava e se
(
não apenas ator e diretor, mas também cenógrafo, junto a Jacques derramava indiscriminadamente sobre a arquitetura moderna. ·
(
Lagrange, tendo sido responsável pela concepção e pela construção A maior liberdade de Tati permitiu-lhe uma clarividência e uma intensi-
completa da casa dos Arpel nos estúdios da Victorine, em Nice (em dade satírica que, a partir do próprio marco normativo e institucional
Playtime, Tati projeta e constrói um dos fragmentos de cidade moder- fabricado pela modernidade, acabarão fatalmente condenadas a ser (

na mais celebrados do cinema). Tal esforço não é, em absoluto, gra- testemunhais, precedentes de transformações que apenas posterior- ( I

tuito: a comparação entre os estilos de vida do casal Arpel e do mon- mente tornar-se-ão realidade. (
sieur Hulot não se dá através dos diálogos e das opiniões expressas Por isso, preferimos visitar as casas projetadas pelo grande arquiteto que
(
pelos protagonistas- afinal, Tati vem do cinema mudo, e confia pouco, chegou a ser Tati, buscando encontrar nelas o quanto há de nós mes-
(
ou nada, em palavras -, mas através de suas ações e dos elementos mos, reconhecendo-nos como herdeiros daquela modernidade através
físicos que os rodeiam . Nesse filme, a arquitetura e o urbanismo, assim de seus tópicos, ainda se acreditamos havê-los superado. Somos preci-
como os ruídos, naturais ou artificiais, são, em grande medida, induto- samente os arquitetos os que mais dificuldades encontramos, ainda hoje,
res dos comportamentos, causa e/ou conseqüência univocamente . para identificar esses tópicos, pois estes, sem dúvida, formam a coluna (

ligadas aos mesmos. Por isso, todo ele pode ser interpretado como vertebral de nosso treinamento, de nossa formação acadêmica. (
uma lição crítica de arquitetura, na qual se enfrentam dois modos de Lembremo-nos que talvez um dos maiores êxitos de Comte e de seus
(
pensá-la que são também modos de vivê-la. De fato, como veremos seguidores tenha sido o positivismo acadêmico francês, as Escolas
Politécnicas, em cujos currículos ainda persiste- deformado, mas essen- (
adiante, o enredo reproduz, com grande fidelidade, o embate entre
duas correntes de pensamento cuja influência foi decisiva no século xx. cialmente intacto - o ideal positivista. Pensemos, portanto, que temos ( '

De um lado, a persistência e a extensão à esfera da vida privada do sido treinados cegamente em seus métodos, que vemos através de seus (
r
,,:f
paradigma positivista, da fé no progresso e na ordem como instru- olhos, e que ainda é necessário, em muitos lugares, fazer uma enorme (
r mentos de salvação postos à disposição do homem pelo desenvolvi- ginástica para aprender a ver com outros olhos, para aprender a esque- (

69 (
68
I
(
( I
cer. E pensemos também - se, de fato, desejamos ter uma perspectiva organizada pela ciência, é trasladar a transcendência da religião à
;: do que isso supõe - que, dentre todas as correntes do pensamento imanência da vida. Por isso a teoria positivista acabará por constituir uma
influentes, em maior ou menor medida, no século xx - de Nietzsche a "religião da humanidade", uma religião dedicada a fazer, do mundo, 0
(I
Heidegger, de James a Deleuze -, o positivismo, como delírio da razão ordem e progresso império da ordem e do progresso.
I
que é, não foi apenas o indutor direto dos episódios mais atrozes do Assim, Comte escreverá seu Catecismo Positivista, nomeando-se
I
c século - Hiroshima, Auschwitz -, mas também a ideologia mais supera- Sumo Pontífice, o que a princípio pode parecer absurdo, mas, em defi-
.( I da, a única que teria sido devorada pelo mesmo deus Cronos com o que nitivo, simboliza a culminância do pensamento positivista, e explica seu
I I pretendia nos dar Unidade e Ordem. caráter dogmático e holístico, sua necessidade de se apresentar como
I
'
Comte e seus acólitos são hoje história, e é possível que somente na · única filosofia possível.
certeza de que nossas posições sejam distintas, sem que tenhamos O positivismo é também a origem da sociologia. O homem e a socie-
nadado contra a corrente que inaugurou o positivismo, possamos dade, entendidos como fenômenos naturais, "submetidos a leis invariá-
agora proceder a uma valoração suficientemente equânime de seu veis", passam, então, a ser objeto do conhecimento científico. O indivíduo
I, l legado. Contudo, Auguste Comte e sua doutrina não são fenômenos é tomado como uma abstração, como a peça de uma engrenagem sujei-
I isolados. Se o seu objetivo é uma descrição científica da sociedade - ta à observação e à experimentação, como um dado estatístico, objetivá-
I "o caráter fundamental da filosofia positivista é a consideração de que vel, que se dilui em comportamentos previsíveis: "... os movimentos da

. ' todos os fenômenos estão submetidos a leis naturais invariáveis, cuja leis naturais sociedade, inclusive os do espírito humano, podem ser realmente previs-

:. . I ' precisão e redução à menor quantidade possível é o objetivo de nos-


sos esforços"-, tal objetivo encontrará em Charles Darwin, e em sua
invariáveis tos, em certa medida, para cada época determinada, sob cada aspecto
essencial, inclusive aqueles que parecem à primeira vista desordenados."
teoria da evolução, um modelo especialmente interessante, na medida Não obstante, estes enunciados científicos permanecerão em Comte
I em que se trata de um modelo que supõe a aplicação da abstração nesse nível, no nível dos enunciados, como um apelo para que o pensa-
I científica das ciências exatas às ciências biológicas, a esse âmbito da mento positivista desdobre-se, ao mesmo tempo, numa ciência- a socio-
: I vida em que o positivismo pretende se inserir. logia- e numa religião, sem, porém, um desenvolvimento pormenorizado,
t. I Igualmente Herbert Spencer, também coetâneo, terá contribuído decisi- o qual é confiado aos processos sociais por vir. Nisto, e em tantas outras
vamente para a consolidação do ideal positivista. Seu "evolucionismo" coisas, pode se verificar, sem dúvida, a grande similitude e a profunda
.l
terá dado o passo que permitirá ligar as ciências biológicas às humanas, influência que esta doutrina tem sobre o arquiteto moderno, incapaz, em
I ao explicar o desenvolvimento da cultura como o de um ser vivo sub- grande medida, de dotar de conteúdos concretos aquele apelo, a indus-
I metido a um ciclo vital - infância, juventude, maturidade ... - em nada trialização e a máquina, e incapaz também de se ver como um cientista.
j diferente do ciclo orgânico do mundo natural. O conhecimento e a cul-
~ Ao contrário, a sua gestualidade seria a de um pontífice que anunciasse o
·~ tura do homem estão imersos no mundo natural e, assim sendo, podem advento iminente de uma transformação que lhe houvesse sido revelada.

~ .~ ·~~
;I
ser tratados cientificamente. No pensamento positivista, então, a filoso-
fia seria, antes de tudo, auxiliar ao trabalho científico, e teria direito à
existência apenas enquanto justificasse e interpretasse a ciência, a ver-
I Este é o mundo que Tati observa e de quem faz uma caricatura, essa
vida felizmente inserida na ordem e no progresso científico encarnada
pelos Arpel, a emulação de uma impossível vida harmônica dedicada à
1 dadeira e madura forma de conhecimento que o homem alcançou em
I plena inserção dos indivíduos na engrenagem maquínica da sociedade,

~i
sua evolução, uma evolução que principia no mundo puramente animal, I essa paródia do indivíduo que é o sujeito estatístico do positivismo.
nos primatas. O objetivo do pensamento positivista é intensificar esta i Quem habita esta casa? Qual é o sujeito que a ativa e possui com a
I ~ evolução, conduzindo o homem a uma sociedade perfeita, sem conflitos, máxima intensidade? A casa positivista não é habitada por um único
)1
l( j 70 71 -
(
personagem central, mas por uma família modelo - os Arpel -, um a família modelo dele provém terá um valor inferior ao que promete o futuro, e somente será
(
casal, para sermos exatos, de uma estrita moralidade calvinista, que valorizado por representar o esforço de estágios inferiores da sociedade
interpreta o progresso material ao mesmo tempo como uma conse- em sua jornada linear até o progresso. Os monumentos históricos aleato-
\
qüência direta de sua moralidade e como um destino - o da felicidade riamente dispersos na nova Paris do Plano Voisin mostram bem esta res- (
material - que culminará, num futuro já próximo, tal como promete o trita relação com a memória, com o tempo genealógico. É também o (
programa positivista, e ao que se sacrifica, em parte, o presente. O que tempo do evolucionismo orgânico de Spencer, o tempo darwiniano que (
é significativo é o fato de que esta família carece de traços particulares: tanto se identifica com o positivismo de Comte, o que permitirá assimilar, (
a diferença, como forma de significação, foi abolida, integrando agora de forma sintética, a sociedade e a natureza dentro de idênticas leis de
(
uma totalidade social gigante. Para alcançar este futuro de progresso, é crescimento e desenvolvimento: As duas correntes da ortodoxia moder-
(
necessário subsumir o indivíduo- em Comte, o fundador da sociologia, na, o funcionalismo e o organicismo, não serão outra coisa, senão dois
o individual é algo abstrato - na Unidade de tudo e de todos, é neces- lados de uma mesma moeda, assim descrita por Comte: "A humanidade, (
sário renunciar a pensar diante do que existe, eliminar a faculdade crí- em geral, marcha através de uma série de etapas que a vão aperfeiçoan- (
tica, e entregar-se às pautas impostas pela industrialização e pelo positi- do em seu ser e em sua obra, de forma semelhante a como o indivíduo (
vismo, esta ideologia que supera a filosofia, esta filosofia única e definitiva evolui, passando por uma sucessão de estados e de idades em sua (
para um novo mundo. Este sujeito não é outro, senão o homem-tipo existência biológica. O progresso social é
corbusiano, a famma-estatística, esse constructo mental que permitiu necessário e irresistível como uma lei física."
aos arquitetos ortodoxos objetivar o comportamento social e quantificá-lo O espaço da modernidade incorporará essa
(
naquela experiência quase delirante que foi o Existezminimun. mesma projeção para a frente, esse esqueci- (
Diante dessa família orgânica, imersa em uma sociedade unidirecional, mento quase completo do passado, e ten- (
monsieur Hulot - o tio -, habitante de um fantástico labirinto fenome- derá a se constituir igualmente por leis uni- (
nológico e indiferente a toda idéia de progresso, atua como um para- versais - tal como propugna o catecismo (
sita, desvelando, com sua solitária presença, a grotesca codificação positivista -, por normas que depositam no
(
social, desconstruindo-a, no estrito sentido da palavra. futuro próximo sua cristalização.
Monsieur Hulot vive no presente: cada instante, cada situação são por ~
O plano, a planificação, e a sua objetivação I

ele percebidos como uma experiência autônoma e com sentido em si como técnica de controle do crescimento - \ '
mesma. Hulot reproduz literalmente a epojé husserliana, o modo com o urbanismo -, serão manifestações culmi- (
que o sujeito fenomênico se estabelece frente ao mundo e aos seus nantes deste tempo teleológico, perfeito, ou, ( .i
objetos, com as mesmas intensidade e inocência de um menino - daí se preferirmos, "radiante". O trabalho sobre
o carinho de seu sobrinho. As ações dos Arpel, ao contrário, têm seu
c
a planta se reproduz como um automorfismo
fundamento e sentido distantes delas, apontam para um progressivo (
a-escalar, da casa à cidade, explicitando o
aperfeiçoamento lógico no tempo, estão imersas no tempo teleológico o tempo trabalho, a técnica própria do arquiteto, tão ( '
do positivismo, o qual reproduz, secularizado, o tempo finalista da fé teleológico "necessária e irresistível como uma lei física". (
cristã (e isto o aproxima também do materialismo histórico). O espaço da casa, o ar e sua memória, por (
Um tempo que se projeta para a frente, amnésico, e que implica, sem assim dizer, apenas existem; foram completa- (
dúvida, uma valoração bem distinta do passado e do futuro: o primeiro mente eliminados para proceder a uma quan-
(
não será outra coisa, que não o recontar da dor acumulada; tudo o que tificação normativa, à objetivação biológica da

72
família-tipo mediante o plano, o trabalho sobre a planta. A nova categoria descendência do tio. Observemos como Tati sublinha a falta de higiene
dominante é, para o arquiteto positivista, "o metro quadrado", e a sua oti- dos vendedores ou do varredor, que nunca começa efetivamente a varrer,
mização através do transbordamento das técnicas de otimização da pro- ante a obsessiva higiene de madame Arpel, limpando e perseguindo com
dução industrial, propugnadas por Frederick W. Taylor em seu Principies seu espanador tudo o quanto está à mão, até obter um ambiente hospi-
of Scientific Management (1911 ), ao âmbito da privacidade. A casa, como talar no qual praticamente não há partículas em suspensão no ar.
objeto de estudo do positivismo, experimentará, em seu interior, a disse- O espaço quedou quantificado, transformado em um produto da dis-
cação taylorista, a decomposição de todos os movimentos em unidades secação do movimento, da geometria e da matemática. O espaço ape-
mínimas, estudadas e cronometradas para reorganizar as tarefas em nas existe como tal: será entendido como ares extensa de Descartes,
esquemas avessos a interferências, perfeitamente coordenados. na qual se encena a exposição de uma família igualitária, eficiente, sau-
Os trabalhos de Alexander Klein sobre a habitação mínima, os CIAM dável e trabalhadora. Nada encontraremos aí da intensidade intimista
dedicados ao Existezminimun, com suas comparações de plantas e do tortuoso labirinto topológico da casa fenomenológica de monsieur
superfícies, são o triunfo desta redução cientificista do espaço. Hulot, nem da obscura cerimônia da perpetuação da linhagem da casa
O esquema metodológico de Klein é um compêndio perfeito do projeto existencial. A casa positivista será a casa da exposição não apenas de
positivista da casa. Quatro fatores - dados estatísticos, princípios cien- uns frente a outros, mas também da família, como unidade, ao exterior.
tíficos, aspectos técnicos e construtivos - conformam um processo de Seu ar já não será o denso ar sensorial fenomenológico, mas um ar
tomada de decisões em uma cadeia arborescente, que culmina na visibilidade medicinal, higiênico, correspondente a um espaço cuja desinfecção é
construção em série. A habitação, para Klein, transformou-se em um propiciada pela transparência, pela insolação, pela limpeza. O espaço
problema da indústria, que, como tal, deve ser estudado com o mesmo positivista é um espaço sem densidade, um espaço sem memória,
espírito que se aplica a qualquer processo industrial: Contribuições cien- lançado ao futuro em direção contrária ao passado.
tíficas ao problema da habitação, Ensaio de um método gráfico para a Tudo o que se refere ao espaço deriva do moralismo: sua transparên-
avaliação de plantas de habitações de pequeno porte, A casa unifami- cia é repressiva, vinculada diretamente à diafaneidade e à visibilidade
liar: Tipo com orientação sul, todos estes títulos são expressões elo- públicas do Panóptico de Jeremias Bentham. Não há, na casa, lugar,
qüentes de sua produção teórica, da translação da figura do arquiteto nem nicho, para o desvio, para o isolamento, para o gozo. O espaço
tradicional à do engenheiro industrial que pretende impulsionar. fluido da modernidade positivista aparece associado à vigilância, com-
Fixemos nossa atenção na cozinha projetada por Margarette Schutte- pletamente submisso a uma finalidade edificante, e, portanto, como
-Uhotzky para Ernst May em Frankfurt, nessa cozinha que tanto se asse- um espaço que busca o seu sentido num futuro otimista.
melha à oficina de um carpinteiro ou de um torneiro, com sua bancada e Em síntese, no espaço moderno, o que é privado encontra-se expos-
suas ferramentas. Vejamo-la nos fotogramas do curta demonstrativo em to, o que é doméstico, anulado, e o que é íntimo, castigado. É essa
I I que ela mesma aparece preparando um prato, mostrando a eficiência dos visibilidade convertida em vigilância- insuportável para o sujeito nietzs-
movimentos ali permitidos. Vejamos, agora, como a senhora Arpel mos- chiano da casa-pátio, e frontalmente combatida pelo ser existencial
tra a casa às suas vizinhas, com que orgulho explica quão "funcional" é a que se refugia detrás das paredes de sua cabana-, o que Tati expres-
sua organização: "é muito prático, tudo se comunica (...) os cômodos são sará, com admirável sarcasmo, por meio das "janelas" do quarto do
muito bem orientados, todos dão para o jardim". Ou corno se envaidece casal Arpel. De cima, dominando todo o entorno, a cidade de seus
por sua higiênica cozinha pseudo-robotizada. Comparemos seu ambien- iguais, o casal representa uma antropomorfização da casa positivista,
te com a informalidade e a intensidade sensorial do mercado e das ban- revelando a sua profunda fundamentação na vigilância da ordem e da
cas nas quais um menino se esbalda na ausência dos pais, graças à con- unidade. Esta casa é, sim, uma máquina de vigiar.

74 75
(
(
Por isso não é difícil compreender que, se a casa positivista possui algum
Qual é a materialidade que corresponde a esta soma.deres extensa e (
espaço privilegiado, este é, sem dúvida, aquele que representa a família
eixo heliotérmico, na qual se cristaliza espacialmente o tempo teleoló-
como um todo orgânico: o salão, o lugar em que se realiza o sujeito posi- \
gico positivista? Na casa positivista, obviamente, não cabem os mate-
tivista, no qual culmina seu ideal espacial de visibilidade e transparência. (
riais naturais, aqueles mesmos troncos e pedras obtidos ao se abrir a
Transformado em peça principal, na expressão simbólica desse modo de (
clareira no bosque, e com os quais, ao menos idealmente, constrói-se
viver, o salão crescerá até ocupar duplos ou triplos pé-direitos, em torno (
o refúgio existencial. Toda memória tem uma qualidade inferior: assim
dos quais gravita a casa, como uma versão doméstica do Panóptico. o salão panóptico
como estão proibidas as lembranças dos antepassados, está proibido (
O espaço interior privilegiado, porém, necessariamente encontrará seu
qualquer mobiliário que evoque alguma memória- observemos os inte- (
duplo no exterior: o terraço ou o jardim serão concebidos à sua ima-
riores das casas positivas mais ortodoxas divulgadas pelos meios de
gem e semelhança, e apenas um fino e permeável pano de vidro os
comunicação-, está proibida a construção com materiais que não pos-
separará. No exterior, ao "ar livre", nos terraços corbusianos, no jardim
suam, em si mesmos, uma condição moderna.
dos Arpel, natureza e higiene, saúde e progresso triunfam. A natureza,
materiais Todas as técnicas industriais são bem-vindas. A parede não será nunca <
a idéia de natureza, terá sido também transformada pela visão cientifi- (
industriais mais esse conglomerado maciço e inerte com o que os antigos defen-
cista e, emulando as concepções médicas então vigentes, participará
diam-se da temperatura externa: suas propriedades flsicas derivarão
da casa e da cidade desde que seja capaz de promover a saúde. O eixo heliotérmico
de leis e normas, para cada uma das quais um material industrializado
eixo heliotérmico polariza a casa positivista, e se estende pelos bairros
colabora, constituindo uma parede completa, com múltiplas camadas,
- lembremo-nos de Hilberseimer -, orientando a organização das cida- (
que, em suas melhores formulações, à imagem da linha dé produção,
des -lembremo-nos da Vil/e Radieuse, esse pesadelo da razão, no qual (
chegará a ser montada a seco. A dissecação taylorista penetra, assim,
todas as construções de uma cidade para três milhões de habitantes (
num dos elementos compositivos mais ligados à tradição. No interior,
são orientadas em direção ao sol.
A natureza servirá tão somente aos esportes, à saúde a à higiene, e,
porém, tal complexidade torna-se desnecessária. <
Trata-se, aqui, de dar vida a um espaço cartesiano e higiênico, que se ( '
para tanto, resultará plana, reduzida à "superfície verde": res extensa + superfície verde
baseia na visibilidade, e foge de qualquer conotação com a insalubri-
eixo heliotérmico. \
dade e a memória. Assim, da mesma forma que, no exterior, o espaço
Fixemo-nos agora no jardim dos Arpel - com t' ' // , /
(
público transformou-se num material contínuo indiferenciado, sem pro-
seu peixe-fonte e sua cruel codificação de usos ( '
o branco priedades- o "verde';-, no interior este material passa a ser o "branco",
e movimentos -, nesse salão estendido ao ar (
um material moderno, visível e integrador, homogeneizador ao extremo,
livre, sempre deslumbrante, plenamente ex-
(I eficiente tanto sob o ponto de vista higiênico, quanto como elemento ( '
posto ao sol. E comparemo-lo aos terrenos dos
' rarefaciente do espaço. (
arrabaldes por onde monsieur Hulot circula,
Parece inútil ressaltar o enorme prestígio do vidro: a casa positivista será, (
divertindo ao seu sobri-nho, a esses descampa-
de todas quantas encontremos, aquela que mais emprega o vidro. Tudo
l li dos que são verdadeiras áreas de impunidade, (
vidro transparente o que representa o vidro, desde seus processos de fabricação e monta-
I!,
1 11 onde se produzem as formas mais intensas de {
; i! gem, até sua transparência, contribuirão para fazer dele um material pri-
'i
I I socialização. Tati mostra, assim, as implicações
i I vilegiado. Observemos que o vidro, na ortodoxia moderna, é sempre um (
da redução pseudocientífica da idéia de nature-
F za na cidade moderna, os limites de uma visão
material produzido industrialmente, em série, com o máximo grau de per-
feição em súas propriedades métricas- superfície, corte etc. - , transpa-
(
(
l l· utilitarista do espaço público.
rente até o ponto da invisibilidade, e capaz de permitir a passagem da (

I,,,I 76 77
/
\
I
(
I
(
I
( radiação solar. Em poucos momentos terão coincidido de forma tão feliz, os conhecimentos essenciais para aperfeiçoar esse esquema. A cidade
I como neste, a ascensão dos valores ideológicos - a visibilidade positi- dos Arpel, a cidade do positivismo, é construída com base no modelo de
(
I vista- e o surgimento de uma tecnologia e de um material. Ainda que se aperfeiçoamento científico que Taylor criou para a indústria, a dissecação
(
I possa matizar extensivamente esta idealização do vidro (pois este reflete do tempo e do espaço em unidades mínimas, autônomas, otimizadas.
( as superfícies até a opacidade, suas propriedades frente ao sol são limi- As seqüências de Mon anele isolam os momentos da vida dos Arpel
I
( tadas, sua perfeição é relativa, ele é frágil, e, além do mais, trata-se, ori- em grandes unidades sem conexão. Os planos dedicados à circulação
I
( ginalmente, de uma rocha natural geralmente translúcida), nada disso irá eficiente do automóvel, ao trabalho sistemático na fábrica, à vida fami-
I desmanchar o encanto e o prestígio desta conjunção de transparência e liar na casa, assim como a longa seqüência da festa no jardim, cada um
(
I superfícies brancas hospitalares que caracteriza a materialidade positi- com seus ruídos específicos, são unidades autônomas não apenas do
.~ I vista e dá forma ao seu afã de obter uma luminosidade ofuscante e sau- Carta de Atenas ponto de vista cinematográfico, mas também na vida dos Arpel:
{
i I dável, puro efeito da visibilidade. somente monsieur Hulot as atravessa sem solução de continuidade,
i ( mesclando-as e as confundindo.
A exibição da visibilidade da família induz à sua integração a uma engre-
' I
nagem coletiva superior. A visibilidade do salão será reproduzida na da Estas longas seqüências isoladas reproduzem a cidade moderna, são
I
( casa e esta, no conjunto delas, onde a casa positivista encontrará seu uma materialização direta da Carta de Atenas, o grande livro sobre a cida-
I destino mais natural: será esta casa, dentre as aqui resenhadas, a única de positivista escrito durante o CIAM realizado naquele transatlântico que
I I que "voluntariamente" aceite constituir-se em uma coletividade. A família viajava de Marselha a Atenas no ano de 1933. Nele, a habitação, o lazer,
mira-se como a célula de um organismo social superior, e, para isso, o trabalho e a circulação são consagrados como categorias capazes de
serve-se do falanstério como uma referência em que se conjuga o positi- organizar o conhecimento da Cidade Grande. Cada uma delas deve se
! '
' vismo ao socialismo utópico (Comte não apenas fundou a sociologia; foi, separar no tempo e no espaço, otimizando-se, assim, a produtividade
antes, discípulo de Saint-Simon). Entenda-se bem: é a casa positivista a geral da sociedade industrial. Com estas unidades mínimas à mão, o
única que encontra o seu apogeu no conjunto habitacional; são os arqui- sumo pontífice, Le Corbusier, criará uma cadeia orgânica final: as peças
r
~I
I
tetos modernos os únicos que encontram a legitimação de suas idéias de previamente seccionadas adotarão uma organi-
I habitação em sua capacidade de dar forma ao conjunto habitacional. zação antropomórfica na Vil/e Radieuse. Nela, o
I ~ Ao serem a casa positivista e o conjunto habitacional animados pelo conjunto resultado da fé cientffica aparece como a resti-
I
imperativo moral segundo o qual o coletivo seria um valor superior, o habitacional tuição do corpo do indivíduo ao grande corpo
fim último da habitação será modelar e solucionar o espaço público, social em que reinam a unidade e a ordem, um
será conformar a cidade. Este é, definitivamente, o projeto que se ins- corpo limpo e saudável exposto ao eixo heliotér-
trui, de cujo otimismo social participa profundamente o positivismo: mico. O maquínico, a dissecação cientíiica serve,
construir a cidade, construir o espaço público através da habitação. assim, à criação de uma sociedade orgânica, per-
O conjunto habitacional propiciará, ainda, fechando o círculo, a síntese feitamente ordenada, que demonstra, no esplen-
I I entre o orgânico e o maquínico, o evolucionismo e a industrialização, e dor de sua perfeição, a necessidade de uma dou-
será, ao mesmo tempo, expressão culminante da metáfora orgânica da trina científica da cidade: o urbanismo. Técnica
sociedade - a célula e o organismo -, e produto de uma industrialização de planejamento desse corpo orgânico, forma de
que produz em série objetos-tipo para famílias-tipo. As leis imutáveis da alcançar a plenitude da sociedade, o urbanismo
natureza reproduzem-se na sociedade, e são os cientistas e os arquitetos estende, da casa operária à cidade inteira, a aten-
modernos, que trabalham à sua imagem e semelhança, os que possuem ção ao metro quadrado e à planta, sem modificar

78
(

minimamente sua técnica de projeto. A cidade dos Arpel será, portanto, da cidade, ainda que distraidamente visite a Córseg9 e Atenas, en-
uma grande máquina planejada, uma utopia social que somente em quanto elabora a sua cidade ideal. Este turista não terá as mãos trêmu-
c
Brasma terá se materializado com a pureza desejada pelos modernos. las quando propuser a destruição do passado em favor da IÇJgica maquí-
Em Brasília, será de novo a planta a nos revelar a simbologia que dá ori- nica social: "Não se pode admitir que, em prol de um culto mesquinho (
gem à cidade: o grandioso sonho humano - voar - torna-se realidade do passado, sejam ignoradas as regras da justiça social", escreverá (
graças à ciência, assim como o sonho da cidade perfeita, que se mate- na Carta de Atenas. Esta insensibilidade, produto dos valores
rializa graças à ciência do urbanismo. Uma dupla metáfora, maquínica e positivistas, certamente marcará o início do fim da cidade moderna, e
orgânica, o avião e a ave, abre suas asas em pleno Planalto Central, cons- seNirá à crítica sistemática que outras formas de pensar e de habitar (
truindo o que, sem dúvida, é um grande e - por que não? - monstruoso aqui estudadas trarão à tona na segunda metade do século xx.
(
sonho da razão. Da mesma forma que o apelo de Comte a uma vida positivista carecia
Vemos reproduzidos, aqui, na escala da cidade~ os mecanismos de pro- de um programa específico, que se confiava a um posterior desenvol- (
jeto da casa. O documento-mestre será de novo a planta, sua otimização vimento, o maquinismo moderno carece de qualquer reflexão sobre a (
mediante a dissecação de momentos em equilíbrio - o zoníng - e a sua mecânica do conforto. Também sua cultura material está ligada a uma
restituição final, orgânica e higiênica. Inversamente, poderpos entender o visão mais estética, do que prática, do conforto, baseada na ideali- (
projeto da casa como uma translação da cidade: também o projeto da zação das técnicas e dos materiais industriais. Expressa, quanto mais,
(
casa positivista resolve-se através do zoníng, de um microzoníng consa- microzoning o prazer de viver em uma época em que foram compreendidas, final-
(
grado ao sol, em que as peças são decompostas para serem novamen- mente, as tarefas da maquinização, e aspira a realizá-las no interior da
te ordenadas em uma engrenagem mecânica e orgânica com eficiência casa. A casa dos Arpel expressa bem este anelo e suas limitações, evi- (

máxima, a famosa "máquina de morar". Esse mícrozoníng é, sem sombra denciando, através das falhas sistemáticas de seus automatismos - na (
de dúvida, o elemento que permanece implícito e oculto em muitas das cozinha, no portão de entrada, no jardim, no portão da garagem ... -, a (
propostas pretensamente contrárias à ortodoxia moderna. É precisa- ineficiência técnica e suas conseqüências. Uma delas será, sem dúvi- ( ,
mente este esquema funcional, que se reproduz no público e no privado, da, a fixação máxima das atividades imposta por essa mecanização, de
( I

o cerne da modernidade que Tati soube evidenciar, mostrando-o como modo que nem tanto os objetos visíveis, o mobiliário, mas sobretudo as
(
um verdadeiro mecanismo de retroalimentação do sistema maquínico. precariamente desenvolvidas instalações elétricas da casa, obrigarão a
Porém, o maquinismo da casa positivista tem também um caráter sim- uma rotina de alguma forma escravizadora, submetida aos desígnios do (
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bólico. Reyner Banham, em Teoria e projeto na era da máquina (1960), o arquiteto arquiteto, tornando o habitante incapaz de reconstruir a experiência
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descreveu, com precisão, os limites dos arquitetos e urbanistas moder- do espaço através de procedimentos e vínculos personalizados. (
nos ante as realizações técnicas da industrialização: ".. .produziram uma O que deixa de estar presente na casa positivista é toda a cultura mate- (
arquitetura da era mecânica apenas na medida em que construíram rial desenvolvida na construção do eu: qualquer vislumbre de individua-
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seus monumentos em uma era mecânica e expressaram uma atitude lização do espaço é substituído pela presença autoritária e fantasmagó-
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frente à máquina, na medida em que se podia encontrar em solo rica desse outro que dirige invisivelmente as pautas da conduta privada,
francês, e discutir política francesa, mas sempre falando em inglês." o arquiteto moderno. Quem não terá percebido, ao assistir Mon oncle, (
O arquiteto é sempre um turista fascinado ante um maquinismo cuja essa perturbadora presença, contínua e latente, que voluntariamente (
mecânica desconhece, um turista que se encanta com a beleza do tran- tiraniza os Arpel, até anular qualquer hipótese de iniciativa? Entremos no (
satlântico no qual decide viajar para pontificar sobre a cidade, mas é quarto do menino, incapaz de personalizar esse espaço em que tudo já
(
incapaz de mostrar a mesma sensibilidade diante da memória histórica foi previsto por outro, e assim entenderemos até que ponto a mecani-

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I zação - ao menos a imperfeita - é um lastro para a apropriação do escapar ao marco não apenas epistemológico, mas também normativo,
(
I espaço. Comparemo-lo com Hulot, em sua casa, distraindo-se ao fazer da modernidade. Por ora, contentaremo-nos com um objetivo mais mo-
(
I o vidro refletir o sol em determinada direção para estimular os passari- desto: escapar a uma valoração simplista e negativa desta fantástica, e
( nhos a cantar, e ouçamos, de outro lado, os ruídos de todo o maquiná-
I
também unidirecional, concepção de arquitetura e, através desta visita
( rio da casa positivista. Não é a sua idéia de conforto puramente exter- à casa dos Arpel, olhar sem rancor a experiência moderna.
I
( na? Não há, na higienização do ambiente, um esquecimento profundo É óbvio que a nossa visita à casa dos Arpel é enviesada e parcial, e que
I do conjunto de estímulos sensoriais - odores, sons, elementos táteis -
( se poderia fazer uma análise bem distinta da casa positivista, explican-
I que compõe qualquer idéia plausível de ambiente? do a situação histórica, a explosão demográfica associada à industria-
(
I A sonoridade metálica e irritante da casa dos Arpel - que, não aciden- lização, o caráter progressista de tantas experiências, o benefício à
(
. I talmente, reproduz a da fábrica - é, assim, expressão de uma mecani- qualidade de vida obtido através daquelas mesmas regulações e leis, o
( zação a um só tempo imperfeita e mitificada, que se expande por toda a sentido de resistência da modernidade frente às tendências mais bru-
I
( casa, tornando cada vez mais difícil o prazer, o descanso, a intimidade. tais do capitalismo selvagem ... Tudo isto é inegável, mas apenas nos
I
( Lembremo-nos de como Tati filma o momento de maior relaxamento na obriga a adotar a postura do historiador tradicional e, sobretudo, não
. I
( casa dos ArpeL ~ televisão, o grande totem do mobiliário moderno, nos comove. O que nos comove, e emociona, é o cuidado com o deta-
I polariza a posição dos Arpel em suas poltronas-estrutura, sentados justo lhe que Tati dispensou à construção desta casa, e do bairro completo
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no limiar da porta, continuamente levantando-se, nem dentro, nem fora, de uma cidade de negócios em Playtime. Comove o fato, puro e sim-
I(I mas de costas para o exterior, numa posição inverossímil e ridícula, ples, de que aquela fantástica iluminação chamada modernismo não se
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angustiantemente incômoda. Esta cena cotidiana da vida dedicada à fé converteu em história abstrata, mas em nossa própria tradição, no
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positivista é uma metáfora completa das limitações que apontamos na lugar em que nossas vidas têm se desenrolado. Comove que esta cida-
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casa positivista, nas formas de pensá-la e de habitá-la. de, baseada em princípios cuja mera menção repele nosso entendi-

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Talvez, porém, as dificuldades que ainda hoje a arquitetura encontra
para superar esta casa, para aprender a esquecer as suas grandes limi-
mento, tenha sido um marco em nossas vidas. Somente assim, a par-
tir do entendimento daquilo contra o que nos formamos, "nadando
tações, não residam apenas na influência do positivismo vigente nos contra a corrente", e de sua conversão em uma difícil tradição viva,
[\ processos de formação do arquiteto, mas em sua profunda capacida- somente assim podemos entender e compartilhar esse amor, esse cui-
~ '.! de de penetração na mecânica produtiva, através das normas que nos normas dado dispensado por Tati. Provavelmente nos identificaremos não com
ti deixou como herança. Talvez seja esta a principal ferramenta para a per- modernas monsíeur Hulot, nem com os Arpel, mas com o que representa o filho,
sistência de alguns modos de pensar e de projetar a habitação nos entre as duas cidades que lhe são alheias, pulando de umâ para outra,
quais ninguém mais crê, mas de acordo com os quais todos estão con- e não apenas fisicamente. É ele o protagonista, o personagem que
denados a agir. Apenas quem confia no fato de que tanto a sociedade, explica a ambígua posição de Tati frente ao mundo que nos foi dado.
il quanto a natureza são regidas por leis idênticas pode trabalhar, com o É através de sua mente que podemos entender e nos identificar com a
afinco dos modernos, na produção deste legado de normas cristaliza- beleza das melhores proposições positivistas, sem concordar com nem
das. Assim como os arquitetos do Team 1O experimentaram dificulda- um só que seja de seus argumentos. Quem não terá sentido a beleza
des para superar a ortodoxia moderna no interior da própria moderni- das obras mais radicais de Le Corbusier? Quem não desejaria, nem
dade, os arquitetos de hoje ainda permanecem, em muitos lugares e que fosse por uma temporada, viver em uma destas fantásticas máqui-
países, presos a essa jaula herdada. A tarefa de quem deseja modificar nas de morar? Quem não valorizaria a casa dos Arpel como uma das
sua forma de pensar e de projetar a habitação é também a tarefa de grandes obras da arquitetura de nosso século, com sua horrível fonte,

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sua cozinha de hospital, suas janelas-olhos dalinianas, seu cacto Picasso em férias: a casa fenomenológ.ica (
catastroficamente mutilado por monsíeur Hulot? Quem, finalmente, í i
permaneceria impassível ante o desdobramento de ilusão e beleza, de
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fé no progresso, de uma cidade como Brasília, capital de um país que
(
ainda hoje ostenta, escrito em sua bandeira, o lema que foi o /eít motív
do credo positivista: "Ordem e Progresso"? Como o menino Arpel, \
sabemos que estamos condenados a esta fascinação exercida pelo
mundo de onde viemos, que nos fez como somos, que nos forneceu _(
as normas com e contra as quais viver, isto a que sempre se denomi- ( I

nou "tradição" .
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Ao lançarmos a idéia da casa existencial, tínhamos um ponto de par- modo de morar desenvolve-se em todas elas. Todas elas compõem,
tida: uma soma da investigação etimológica sobre a palavra bauen, em nossa memória, uma mesma casa, desmesurada e anárquica, vivi-
da imagem heurística da ponte, e da descrição da própria cabana de da na desordem e na despreocupação próprias de um menino, nessa
Heidegger. A idéia da casa fenomenológica, por sua vez, pode ser cons- desordem e nessa liberdade de que tanto ressente o filho dos Arpel, em
truída a partir de dois textos e de duas referências visuais que também sua imaculada casa positivista. Observemos detidamente esses docu-
alimentam sua configuração arquetípica: de um lado, o clássico texto de mentos, façamos nossos esse espaço e esse modo de habitar, tome-
Maurice Merleau-Ponty, Fenomenologia da percepção (1945) - espe- mos posse de tudo isso, e assim principiemos a construir, em nossa
cialmente os capítulos dedicados ao corpo e ao espaço -, e, de outro, fantasia, a casa fenomenológica.
essa obra tão popular entre os arquitetos, A poética do espaço (1957), Quem é o sujeito que habita esta idéia de casa? Como construiu sua
através da qual Gaston Bachelard realizou uma completa topologia da forma de habitar? Para encontrarmos uma resposta, teremos que
casa fenomenológica. Contudo, paradoxalmente, nenhum outro tipo que aprender suas técnicas nos dois textos citados anteriormente. Já pon-
descrevamos será menos livresco, menos abstraído da experiência, deramos o quanto, ao menos originalmente, o pensamento fenomeno-
que esta casa que se constituiu, por assim dizer, somente a partir de lógico - o de Husserl e o de Merleau-Ponty - pretende resgatar, para
uma determinada atitude vital. a subjetividade, uma capacidade de explicar o mundo que anule a
Por isso, optamos por recorrer inicialmente a duas referências mais hegemônica constituição do objetivismo positivista como pensamento
concretas, que se tornaram familiares para nós através de documen- único. O fenomenólogo pensa que pode conhecer tão-somente a
tos gráficos, tão próprios do século xx, como a fotografia e o cinema. experiência de sua própria vida, e que este é, portanto, o seu único
De uma delas já falamos, ao abordar a casa positivista: a complexa e ponto de partida - daí sua subjetividade radical. Por isso deseja, antes
absurda - pelo menos do ponto de vista funcional - casa multifamiliar, de tudo, voltar a estabelecer "um contato ingênuo com o mundo": sua
em cujas águas-furtadas vive monsieur Hulot, imerso em seu mundo tarefa filosófica não é propriamente a de analisar, ou a de explicar, mas
fantástico, e cuja contraposição à casa dos Arpel evidencia a distância a de "descrever as vivências". Maurice Merleau-Ponty assim o enuncia
entre duas concepções de existência profundamente antagônicas. claramente: "O mundo não é um objeto cuja lei constitutiva estaria em
À outra, tivemos acesso através das reportagens de André Vi/lers e de meu poder: é o meio natural e o campo de todos os meus pensa-
David Douglas Duncan, registros de uma prazerosa intimidade apre- mentos e de todas as minhas percepções explícitas. A verdade não
sentados em dois livros, Viva Picasso (1980) e Picasso, lenda de um 'habita' unicamente o 'homem interior': melhor ainda, não há homem
século (1999), nos quais, com todos os detalhes, assistimos a uma interior, o homem está no mundo, neste mundo em que se conhece."
forma fascinante e mítica de entender e de usar o espaço. Uma forma Este sujeito, "um sujeito presenteado ao mundo", extrai a vivência, das
de habitar que pertence plenamente ao século .>6<, aos seus maiores epojé coisas e de si mesmo, através da epojé (redução), do espanto ante o
triunfos na construção do indivíduo livre e criativo, capaz de estabe- mundo, o que seria uma forma de isolamento da consciência frente ao
lecer um diálogo desinibido com as convenções. Picasso pintando, fenômeno, a qual desvelaria sua intencionalidade através da visão,
absorto, a casa desarrumada ao entardecer. Picasso, de ceroulas, fios entre sujeito estendendo fios entre ambos- eu e mundo, sujeito e objeto-, e assim
fazendo palhaçadas, ou pulando corda com sua filha. Pouco, ou nada, e objeto formando a unidade natural do mundo e da vida.
• importa que estes documentos fotográficos, realizados por David Nada, portanto, que se compare a um espectador imparcial ou a um
Douglas Duncan e André Villers, pertençam a La Californie, a vila situa- olhar introspectivo ou científico. Nessa vinculação, o sujeito e os objetos
da em Cannes, na Riviera Francesa, ou ao Château de Vauvenargues, constituem-se a si mesmos. A "redução eidética", a epojé husserliana, é
ou à Notre Dame de Vie - as distintas casas do artista: um mesmo uma técnica de esquecimento de todos os preconceitos, e de restabele-
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cimento de vínculos diretos entre os fenômenos e a percepção individual. sença do mundo ao redor, descrevendo vagos círculos. rememorativos
I É, neste sentido, uma técnica de suspensão do tempo, de "colocar entre - essa imagem cotidiana que Vermeer soube resgatar da indiferença e
(
I parênteses" a historicidade do conhecer e do ser humano, em favor de transformar em motivo central da sua própria forma de . entender a
uma volta idealista "às coisas mesmas", cuja essência nos seria revelada existência -, seria uma imagem precisa desse momento privilegiado em
por uma "vivência depurada". Esta vivência depurada não é outra coisa, que a casa, o mundo, e a própria subjetividade encontram sua síntese.
senão o primado absoluto da percepção sobre as demais formas de relação imediata A percepção fenomenológica é atravessada por dois tipos de relação eu-
aproximação da realidade. No fenômeno, tal como o vê o fenomenólogo, e rememoração -mundo que se alimentam mutuamente: uma, puramente imediata, ati-
capta-se a coisa mesma---ªtLavés--ºª _~ua j[ltenção significativ?_:____S~ -ª------ -- - -~_____ vada pela ação das coisas frente ao sujei~o~m sua presença simultânea
intuição e a intenção, bem- como a união de ambas, o fundamento do--~ _-os "fios" já mencionados que a teoria psicológica gestáltica estudará-
conhecimento. E isso implica na intensificação da experiência, o que sig- e outra, em que o tempo seria ativado pela rememoração e pela imagi-
nifica, por assim dizer, congelar o tempo, isolá-lo, e esquecer, devolven- nação (Bachelard). Observemos, contudo, como esse tempo, o da reme-
do-se, ao ato mesmo de experimentar, a sua pureza. moração, é ao mesmo tempo retroativo e autobiográfico: um tempo indi-
Monsieur Hulot, surpreso e absorto ante qualquer fenômeno, a ele conec- vidual, uma memória pessoal. Poderíamos, então, descrever o tempo
I
r tado por vínculos quase físicos, numa permanente inocência infantil, e fenomenológico 'cçmo um tempo lento e em suspensão, "posto entre
Picasso, usufruindo dessa mesma sensação em seu próprio trabalho, em parênteses", produzido por um ensimesmamento que o torna também
um grande palácio rural, ocupando esse espaço~ poder-se-ia dizer "inva- autobiográfico, personalizado. O de Vermeer, o de Picasso trabalhando
dindo" esse espaço~ com o desembaraço de um menino rebelde e capri- ou conversando, o de Hulot: um tempo à margem de qualquer velocida-
choso, explicam o olhar fenomenológico de forma intuitiva e imediata. de impulsionada quer pela nostalgia do passado, quer pela do futuro.
O que isto imediatamente nos mostra é que o olhar fenomenológico Merleau-Ponty o define como um conjunto de pontos, de instantes múl-
carrega consigo não essa consistência temporal~ associada a um "per- o tempo, rede de tiplos, um tempo sem direção, carente de linearidade: "O tempo não é
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tencer" estável, a uma linhagem e a um lugar- que daria sentido à casa intencionalidades uma linha, mas uma rede de intencionalidades".
existencial, mas uma maior intensidade do vínculo pessoal com o espaço intensidade Em Merleau-Ponty, primarão tanto a intensificação da experiência, quan-
como fenômeno do sentido~ tanto emocional, quanto intelectual. to a suspensão do tempo. Em Bachelard, tudo será ativação da lem-
Dito de forma direta, o sujeito protagonista, aqui, não seria, em absoluto, brança, do sonho. A apresentação da casa fenomenológica requer, em
aquele encarnado pela autoridade paterna e pela coesão familiar, pirami- Bachelard, esta técnica de devaneio que nos remete à infância e à casa
dal, mas, sim, um indivíduo diante de si mesmo e do mundo, corpo sen- natal, a esses momentos supremos, nos quais a relação entre o eu e o
sível constituído através de sua experiência, vinculado, através da mundo ainda não foi deteriorada pela imposição de um modelo racional
intenção, ao mundo e às coisas. Tal experiência realizar-se-ia mediante à nossa forma de visão. É a visão do menino, sua rememoração, o que
uma relação particular com cada espaço ou cada objeto - "intensidade" guia o método bachelardiano, e vincula o Picasso das fotografias ao per-
seria a palavra que definiria esta relação, assim como "consistência" seria sonagem de Hulot, ambos habitantes de casas com memórias de si
aquela adequada à casa existencial. A epojé, então, seria esta técnica de mesmas. Assim, o sujeito que constitui e polariza a casa fenomenológica
intensificação em que se subtraem o tempo e os argumentos do fogos, é um indivíduo cuja experiência do espaço provém tanto das lembranças
para se atingir uma percepção direta das coisas "em si mesmas". Essa e rememorações do passado, quanto das experiências sensoriais do pre-
subtração, porém, assemelha-se muito mais a uma suspensão, pois sente: o seu passado não é um passado transcendente, relacionado à
tal forma de aproximação inclui também o tempo de nossa memória. o menino escondido linhagem, mas um passado imanente e individual, relacionado à infância
O olhar absorto detrás da janela, o corpo e a mente enfeitiçados pela pre- o olhar absorto e à dupla ação do segredo e da descoberta. O sujeito fenomenológico

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será o menino escondido em cada um de nós, desfrutando do prazer em uma soma de distintas peças ou salas autônomas. Apretensão, aqui, (
proporcionado por férias prolongadas nessa imaginária casa natal, em é, portanto, reproduzir, metodicamente, a irracionalidade poética com (
que a convivência com muitos facilita a multiplicação e, conseqüente- que monsieur Hulot habita e Picasso ocupa seu palácio mediterrâneo.
(
mente, a dissolução das hierarquias familiares cotidianas. Esta busca pela multiplicidade, porém, resultaria excessivamente simpli-
(
Se queremos aprender a pensar e a projetar tornando nossa esta con- ficada, se apenas atendêssemos a uma certa complexidade e variedade
cepção do pensamento contemporâneo, devemos, novamente, fazer o topológica, o que seria a sua condição primeira. A multiplicidade seria ati- l
esforço de aprender a esquecer, exercitando nossa inteligência e nos- vada, além disso, por uma diferente relação com o meio natural, por uma (
sos sentidos para ver o mundo - a arquitetura - através do olhar deste matizada modelação sensorial do ar. Como comprovamos em Vermeer e (
sujeito a quem provavelmente nada- absolutamente nada- importa ou nos interiores picassianos, a casa fenomenológica constrói sua idéia de (
interessa daquilo que propugna a forma positivista de pensar a casa; espaço através da excitação do ar, de uma ativação completa de sua
esta que persiste ainda hoje em praticamente todas as formas de arqui- aparente inércia. O espaço deixa de ser entendido como aquela extensão
tetura. Uma aprendizagem, portanto, embora aparentemente simples, neutra própria do cientificismo cartesiano, e passa a ser um "ente habi-
complexa, na medida em que nos obriga a um longo percurso. tado" por estímulos e reações, por vetores, por desejos e afetos que
Como poderia projetar uma casa este menino ou menina-arquiteto? O orientam, antecipam e dão sentido às coisas, e ao nosso corpo entre \
que consideraria fundamental? Quais seriam as idéias que daí se desen- elas. Assim, a presunção de qualquer objetividade é anulada, em favor de (
cadeariam? Sob o ponto de vista fenomenológico, esta casa poderia ser uma presença protagonista, polarizada pela revelação dos fenômenos
(
descrita, numa primeira aproximação, como a grande casa familiar, habi- físicos em interação com a própria subjetividade.
(
tada por longos períodos de férias, urna casa "bachelardiana", com seus Esta ativação do ar, levada a cabo pela fenomenologia, veio recebendo
sótãos e suas águas-furtadas, com seus recantos secretos e seus com- uma atenção crescente por parte dos arquitetos à medida em que se (
pridos corredores, conformada por uma multiplicidade inapreensível de divulgavam os escritos clássicos da fenomenologia - Fenomenologia da (
habitações, à semelhança de um labirinto. Uma rede de momentos jus- percepção foi escrito em 1945; A poética do espaço, em 1957 - e da (
tapostos, em que não se distingue um esquema hierárquico ou funcional Gestalt- Kurt Koffka, Princípios da psicologia da forma , 1935; Wolfgang ( '
capaz de representar, sinteticamente, a casa. É precisamente o seu apa- Kéihler, Psicologia da forma, 1947; Rudolph Arnheim, Arte e percepção
recimento como um acúmulo surpreendente, como uma multiplicidade visual, 1954. A percepção visual e a fenomênica serão, assim, as moti-
(
de microcosmos, o que constitui a sua experiência mais límpida. vações diretas ou indiretas de um importante conjunto de textos profis-
(
A casa fenomenológica seria uma multiplicidade de microcosmos, cada sionais, entre os quais se destacam A nova paisagem , 1956, de Gyorgy
um dos quais teria sua identidade definida por seus próprios e diferen- Kepes - que dirige, no MIT de Massachusetts, o Center for Advanced (
ciados atributos topológicos. Como nos desenhos infantis de interiores Visual Studies -;A imagem da cidade, de Kevin Lynch, 1960; Intenções (
de casas, esta concepção requer a fragmentação do conjunto em uma em arquitetura, de Christian Norberg-Schulz, 1967; A dimensão oculta, (
soma de espaços autônomos, sem unidade, nem coerência: uma proli- de Edward 1 Hall, 1969, que contribuirão decisivamente para desviar o
(
feração de habitações e coisas cuja relação somente poderia ser descri- ideal espacial moderno em direção a concepções do ambiente mais ela-
ta por meio de preposições. Uma organização cuja taxionomia foi estu- boradas. Aldo Van Eyck, Jéirn Utzon, Juhani Pallasmaa, Juan Navarro cI
~I
dada e posta em prática por Steven Holl, em suas cartas topológicas Baldeweg, Steven Holl serão alguns dos arquitetos mais significativos
(correlational charts), nas quais são descritas as formas de organização que se deixarão influenciar pelas teorias da percepção fenomenológica.
de dois, três ou quatro elementos, em posições variáveis, e cuja apli- Poucas instalações sintetizam com tanta precisão esta idéia de espaço (
cação supõe a prévia explosão de qualquer possível entidade espacial fenomênico, quanto a realizada por Juan Navarro Baldeweg, na Sala
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96 97 , I
Vinçon de Barcelona em 1976, na qual o um lado, o velho casarão - as férias ociosas -, de o~tro, o esquema
tempo é suspenso por um instante, e se horizontal, ·mais moderno, que enfatiza aquele contato abraçando o
rememora o momento feliz da experiência meio natural; de um lado, um esquema rememorativo, de outro, um
infantil do desafio à gravidade, enquanto esquema intensificador (que, sem dúvida, não são excludentes, mas,
a luz é detida e direcionada, através de antes, respondem a uma diversidade de opções topológicas).
linhas e vetores, ao seu foco natural - a Por isso, a casa fenomenológica traz consigo uma concepção de pele
janela -, numa encenação de ecos ver- bem distinta da existencial. Esta é, aqui, extremamente sofisticada, um
meerianos. Todos os elementos- inclusi- filtro emocional, eriçado e sensível, e não algo que defina âmbitos ou assi-
ve o plano da fotografia, à altura do olhar nale uma "estabilidade". Para o fenomenólogo, a casa é um "ser entrea-
atônito de um menino - contribuem para berto" - corno tantas vezes a descreveu Francisco J. Sáenz de Oíza -,
desautorizar a neutralidade da res extensa cartesiana, conferindo ao um contínuo umbral, um espaço de transição onde se regulariam os
espaço presença, sentido e intencionalidade. Neste espaço, o meio intercâmbios e se organizaria a complexidade labiríntica. Assim, se qui-
natural aparece não como algo externo, que estivesse lá fora, esperan- séssemos, agora, destacar um momento privilegiado da casa, em que
do por uma visita, mas corno algo que partícira da atividade da casa, ela alcança sua plenitude, este não seria, em absoluto, o da tempestade
que modela sua experiência sensorial e outorga seu significado à com- heideggeriana, este momento que obriga a uma concepção defensiva da
plexidade topológica. Ángel González assim descreveu esta revelação casa, encerrando o habitante em um espaço quase indizível, mas um
fenomênica: "Precisamente nas habitações de Vermeer, Juan Navarro momento de especial esplendor fenomenológico, o da luminosidade
descobre o que ele mesmo definiu corno o sentimento de uma realida- mediterrânea do amanhecer ou o momento em que a garoa cessa e toda
de iluminada. Estas habitações ativam todos aqueles atributos da a natureza votta a se abrir.
evidência e da presença que os caravaggistas ingênuos deixavam A casa de Utzon, em Maiorca, ou a de Juan Navarro, na Cantábria, são
escapar, em sua desemparelhada rede de sombras e músculos: a exemplos eloqüentes, ainda que com as limitações que a realidade
queda das coisas, seu peso e seu significado, os olhares perdidos e impõe, de como esses esquemas implicam em peles sensíveis, eriçadas,
os retribuídos, a simetria e sua enfermidade, o fluxo e o refluxo das
direções, o rastro da luz, o ar... Ou, como diria Juan Navarro, de um
modo elíptico, mas suges-tivo, a estreita estrutura de relações e refle-
xos." Um sentimento de realidade iluminada que podemos trasladar
facilmente desde a habitação de Juan Navarro Baldeweg até a grande
casa compacta de Bachelard, com os diferentes odores e densidades
luminosas de cada aposento em função de sua posição - observemos
novamente os aposentos da casa picassiana e comprovemos o parale-
lismo existente com a fotografia em que sua filha Paloma pula corda-,
assim como aos esquemas espaciais horizontais, cuja complexidade
topológica organiza-se através do desenvolvimento da casa ao redor
de pátios, espaços externos e umbrais de todo os tipos, buscando
uma maior presença do meio natural no interior. Dessa forma, chega-
mos àquela dualidade já assinalada em Bachelard e Merleau-Ponty: de

98
(

ligadas aos fenômenos relevantes em cada caso: no primeiro, ao clima Voltemos, agora, às fotografias dos interiores domésticos de Picasso,
(
mediterrâneo, no segundo, ao atlântico. Ambas, significativamente deno- para identificar a lógica com que estes se organizam n·a casa fenome-
( ;
minadas "casa do sol" e "casa da chuva", buscam a máxima intensifi- nológica. Neles reina uma esplêndida desordem aparente, uma pro-
fusão de objetos pessoais, telas, potes de pintura e pincéis, cadeiras e (
cação da experiência, através de seus esquemas desdobráveis e labirín-
ticos, deformando-se cada uma segundo sua particular interpretação da mesas, cerâmicas e pratos amontoados aleatoriamente. Podemos (
paisagem. A casa da chuva parecerá "penteada", com sua cobertura em perscrutar essas habitações, observando seu colorido e sua desordem /
duas águas, suas calhas e encanamentos à mostra como se se tratasse próprios de um bazar- ou de uma habitação infantil -, e, assim, verifi- (
de um baldaquim, enquanto a casa do sol buscará o encontro deste com car como o labirinto topológico, o microcosmo de multiplicidades que
(
o mar, com janelas por ele polarizadas, transformadas elas mesmas em descreve a casa como um todo, é trasladado ao território de móveis e
objetos que colonizam e ativam esses espaços, multiplicando-se de
(
habitáculos. Ambas mostram como a casa fenomenológica e seus habi-
tantes mantêm uma relação comprometida, ativa, com o meio físico, forma escalar sem solução de continuidade.
completamente alheia à concepção defensiva existencial, à concepção objetos O sujeito fenomenológico se faz rodear por coleções de objetos senti-
higiênica positivista, ou à concepção contemplativa nietzschiana. sentimentais mentais que constituem um inventário notório, a memória, de sua ativi- (
Numa versão mais esquemática ou caricaturesca do que implica esta dade. Mas o faz através de sua própria desordem e de uma ausência de
(
relação com o meio natural, poderíamos afirmar que o habitante desta hierarquização, em certa medida, da organização também labiríntica
(
casa cuida pessoalmente, e com primor, de seu hipotético jardim, ao dos objetos, o que seria uma repro8ução ou homotetia da casa: uma
organização particular, labiríntica, através da qual o habitante apro- (
qual, se o clima permitir, não faltarão hortas, nem árvores frutíferas, flo-
res e pombais. Uma relação criativa que, em sua versão mais sofisti- pria-se do espaço. A ligação entre a idéia de uma extensa soma de (
cada, será consubstanciada nessas janelas através das quais Picasso dependências distintas e a sua projeção sobre os objetos personaliza- c
fixou em nossa memória a presença da natureza mediterrânea, fértil e dos será algo sempre presente nestes interiores, que somente poderiam (
generosa, na vivência da casa fenomenológica. intimidade vir a ser descritos a partir da primazia da concepção de "intimidade"
(
Como conseqüência desta primazia do ar sobre os limites que o confor- sobre qualquer outro padrão ou valor da domesticidade- o conforto, a
mam, a materialidade da casa fenomenológica passará a ser de uma funcionalidade, o luxo etc.
(
ordem pouco problemática. Numa descrição gestáltica, seria o "fundo" da O habitante fenomenológico buscará o bem-estar através de relações
"figura" que é o espaço. Por isso, não se aplicarão, aqui, categorias espe- essencialmente afetivas com os objetos, recriando , através deles, um (
ciais ou valores a priori, e se poderá, indistintamente, utilizar materiais arti- mundo miniaturizado- para o qual os brinquedos serão uma referência (

ficiais ou naturais, tendendo a um uso ad hoc e híbrido destes - tal como indispensável -, desinteressando-se por qualquer visão tecnicista do (
mostram os mesmos exemplos das casas do sol e da chuva-, mas a um ambiente. Os objetos ressaltam o caráter particular, íntimo, quase infan-
(
uso dirigido à obtenção de uma congruência e de uma economia senso- til, da casa fenomenológica: baús, cofres, armários, caixas, chaves
{
riais - nos sentidos tátil e háptico - , mais do que técnica ou construtiva. habitarão e colonizarão o seu espaço. Trata-se de uma descomposição
escalar, que rompe todo o sistema hierarquizado de conceber a casa, (
As texturas, a temperatura da cor refietida, a sonoridade dos ambientes
regerão os critérios seletivos, incorporando ativamente elementos naturais e se estende, sem perder a intensidade, até o aroma do interior das
-espelhos d'água, árvores frondosas etc. - , os quais passarão a ser con- gavetas, o que coloca, portanto, a dificuldade de se estabelecer, com \
siderados e utilizados como verdadeiros materiais de construção. Trata-se, precisão, o limite entre a construção e a ocupação da casa. Algo que,
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portanto, de uma materialidade desinibida e sensual, mais própria da de em termos convencionais, poderia ser explicado destacando-se como
um brico/eur, do que da de um engenheiro, mais tátil, do que tectônica. o detalhe, a "decoração", integra substancialmente o método fenome-
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nológico, aí desenvolvido com a mesma- ou ainda maior- ênfase que mediante a técnica da justaposição descontextualizada:
se aplica aos aspectos construtivos, estruturais ou energéticos. uma cidade constituída por elementos m"emoráveis, com-
Da mesma forma, no que se refere ao esquema público/privado, pletamente alheia às categorias e técnicas de organização
encontramos uma mecânica semelhante de reprodução escalar do espacial da Carta de Atenas, uma cidade idealmente
microcosmo de multiplicidades, desde a casa até os modelos urbanos representada pelo fragmento urbano desenhado por
aos que se remeteriam a casa fenomenológica. Os arquitetos do CIAM David Griffin e Hans Kollhoff, com o que principiam seu
de Dubrovnick (1956) bem o sabiam, quando polemicamente enfrenta- texto, tão próximo à cidade análoga pintada por Arduino
ram a vitalidade da casbá, e de sua labiríntica organização espacial, Cantafora sob a inspiração de Rossi.
com a pureza dos prismas modernos, e propuseram substituir as qua- Na Cidade-colagem , encontramos o mesmo desdobra-
tro funções identificadas na Carta de Atenas por outras quatro catego- mento que vimos na casa fenomênica: de um lado, a
rias diretamente ligadas à experiência: casa, rua, bairro, cidade. rememoração; de outro, a intensificação gestáltica da per-
Do mesmo modo, a complexidade espacial dos grandes edifícios termais cepção. Se a cidade moderna que se pretende combater
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romanos, assim como os vínculos que estes estabeleciam com o corpo e pode ser condenada a partir de critérios gestálticos, a pro-
a natureza, provinham de um modelo coerente, uma arquitetura de res- posta elaborada organiza-se a partir de modelos tradicio-
sonâncias piranesianas, na qual se comprazerá a proposta de Cidade- Collage City nais rememorativos: "De imediato, ao se considerar a
colagem (Cal/age City, 1981), de C_ollin Rowe e Fred Koetter (e também a cidade moderna do ponto de vista da capacidade per-
proposta da cidade análoga de Aldo Rossi, uma colagem baseada em ceptiva, segundo o critério da Gestalt, somente cabe con-
associações rememorativas e autobiográficas). A cidade fenomenológica dená-la. Porque se se supõe que a apreciação ou a per-
terá, assim, um caráter fragmentário, cenográfico e complexo, como cepção do objeto ou figura requer a presença de um certo tipo de campo
uma soma densa de peças ou fundo , se o reconhecimento de uma determinada classe de campo
que a experiência e o tempo limitado é, de qualquer modo, um pré-requisito de toda experiência per-
viriam destilando. "Por que nos ceptiva, e se a consciência de campo precede a consciência da figura,
veríamos obrigados a preferir então, quando a figura não é suportada por nenhum marco referencial
a nostalgia do futuro à do pas- identificável, forçosamente ela há de se fragilizar e de se destruir." O que
sado? Não poderia esta cida- se propõe contra esta ausência de contraste figura-fundo é um retorno à
i
de modelo que concebemos espacialidade tradicional, e não àquela da pequena cidade tessenowia-
i considerar nossa conhecida na, mas à do modelo metropolitano, complexo e monumental, baseado
I constituição psicológica? Não em apropriações de fragmentos urbanos de grandes exemplos históri-
. ~ poderia esta cidade ideal cos. Veneza, Roma, Berlim, Londres, Paris ou Nova Iorque- todas elas
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comportar-se ao mesmo tem- destino habitual do turismo cultural - serão tomadas como modelos,

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po, e explicitamente, como um
teatro da profecia e como
como objeto de análise e de apropriação. Observemos, porém, que
estas são cidades que não resistem a uma análise funcional: é precisa-
/i um teatro da memória?" O que mente o seu excesso o que as torna memoráveis. A despeito dos pro-
li Rowe e Koetter propõem na blemas técnicos que esta idéia de cidade-colagem implicaria- não é difí-
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Cidade-colagem é um retorno cil perceber que tal cidade resultaria numa espécie de parque temático
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à memória e à experiência, cultural -, de novo o mais interessante, aqui, será entender que o traço
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diferencial da argumentação fenomenológica é a remissão à experiência engenheiro. Claude Lévi-Strauss, em O pensamento selvagem (1962),
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como a única certezp., o fato de prescindir dos modelos abstratos aos dedicado justamente a Merleau-Ponty, desenvolve esta idéia pontual-
que induzem as demais lógicas. Ao contrário, e nisto seguramente Tati arquiteto bricofeilr mente colocada por Rowe e Koetter: "O bricoleur dedica-se a realizar um ( .
supera a Rowe e a Koetter, a cidade de monsieur Hulot é aquela que grande número de tarefas, mas, distintamente do engenheiro, não subor- (

contém não apenas espaços públicos e monumentos, mas também o dina cada uma delas à disponibilidade de matérias-primas e ferramentas (
que interessa à sua visão da cidade existente. E isso inclui não apenas concebidas e obtidas segundo a finalidade do projeto. Seu universo de i
os tradicionais espaços de sociabilidade - o café, o mercado, a praça -, descampados instrumentos é limitado e as regras do seu jogo são sempre as de atuar
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mas também os descampados, aqueles lugares que, como a grande com 'qualquer coisa que esteja à mão', isto é, com uma sucessão de
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casa picassiana, somente adquirem pleno sentido através do uso que a ferramentas e materiais que é sempre finita e que é também heterogênea,
(
eles se dá, através da nossa capacidade de deles nos apropriarmos. porque o que contêm não guarda relação com o projeto em si, nem, na
Encontramo-nos, assim, diante de uma visão do público que é uma realidade, com projeto particular algum, mas é o resultado contingente de (

materialização dessa rede de estímulos e intencionalidades de que se todas as ocasiões para renovar ou enriquecer as existências - ou mantê- \
compõem a temporalidade e a espacialidade fenomenológicas, conce- -las - com os restos de construções ou destruições anteriores. Portanto,
bendo a cidade moderna e burguesa de forma análoga àquela com que os diversos meios do bríco/eur não podem ser definidos em função de um
Picasso ocupa sua residência de verão. O decisivo na cidade fenomê- projeto (o que pressuporia, ainda, que, como ocorre com o engenheiro,
nica, no âmbito público a que se remete, seria, então, sob o ponto de houvesse, ao menos em teoria, tantos jogos de ferramentas e de mate-
vista do projeto, a suspensão de toda a linearidade dos argumentos, o riais, ou 'jogos instrumentais', quanto há diferentes tipos de projeto). Deve- \
questionamento dos métodos objetivos, a confiança nos modelos sub- -se, ao contrário, defini-los unicamente por seu uso potencial. .. porque (
jetivos próprios da experiência: a casbá, o "descampado" e as termas os elementos são reunidos ou conservados segundo o princípio de que
'sempre podem vir a ser úteis'. Tais elementos são especializados até um
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seriam a idéia mesma do público fenomênico. f
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I' Picasso e monsieur Hulot sintetizam, dessa forma, o universo fenomeno- certo ponto, o suficiente para que o brico/eur não precise de uma equipe
:; lógico tanto no âmbito privado, quanto no público, compondo uma forma e de todos os conhecimentos de todos os ofícios e profissões, e o sufi-
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de habitar a casa ao mesmo tempo estranha ao caráter heróico do super- ciente para que cada um deles não tenha tão-somente um uso definido
e determinado. Representam uma série de relações reais e possíveis; {
-homem niilista, totalmente avessa à submissão social do positivista,
e igualmente distante do homem interior heideggeriano. "Um sujeito pre- são 'operadores', mas podem ser empregados em quaisquer operações f
senteado ao mundo", tal como Merleau-Ponty o definiu, que desenvolve do mesmo tipo." {
suas próprias técnicas de projeto com as que materializa tal idéia. Não É esta multiplicidade de operadores heterogêneos a que guarda uma
basta, obviamente, adotar uma atitude que se iguale ao olhar infantil, nem maior empatia natural com essa outra heterogênea multiplicidade de
(
manipular as questões topológicas frente às geométricas, ou trabalhar espaços e experiências sensoriais na qual se realiza o olhar fenomenoló-
com o ar e a luz, ou de acordo com um certo ad hocismo materiaL É essa gico, uma multiplicidade que esfuma a atenção e as ferramentas do pro-
surpresa diante de tudo, apresentada a este sujeito presenteado ao jeto em um processo que não é linear, nem hierárquico. Se examinamos (
mundo, que induz a utilizar uma multiplicidade de técnicas díspares, a tra- novamente o esquema metodológico linear e arborescente de Alexander (
balhar como um entusiasta ou bricoleur, e não como um cientista ou Klein, compreendemos a diferença substancial de posição do projetista:
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artesão - e o exemplo de Picasso explicita esse aspecto de forma privile- sua imagem é a de uma "rede de intencionalidades dispersas", sem prin-
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giada. A colagem não é apenas uma referência na concepção da cidade, cípio, nem fim definidos. É a mente de Hulot e a criatividade profusa e
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mas também uma técnica do arquiteto bricoleur, alheia à otimização do transbordante de Picasso- se é que esta mente singular pode ser toma-
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104 105 (
da como exemplo. Não há um fim definido, uma casa que já conhecês- férias disposição sensorial a que induz, são uma experiência comum, e já que
semos em seus valores arquetípicos, um processo que tivesse os pro- tal circunstância permite sublinhar a distância desta idealização daque-
cedimentos prefixados: o projeto fenomenológico é uma divagação da las idealizações funcionalistas convencionais. Como concebemos essa
mente e dos sentidos, não conhece, nem deseja aproximar-se de ima- casa de veraneio ideal? Que fantasias a constróem? Alguém, alguma
gem prévia alguma; ao contrário, busca, antes de tudo, evitá-la. vez, por algum instante, pensou na racionalidade da distribuição da sua
Para concluir esta visita, adentremos nas casas da chuva e do sol e com- planta, na sua economia de circulações e metros quadrados, em
provemos, aí, essa atenção esfumada do arquiteto em momentos sus- sua capacidade para acoplar-se a um conjunto habitacional como uma
pensos, nos quais os tópicos decisivos do projeto positivista - estrutura, célula, no ritmo modular da sua estrutura e do seu fechamento, na tec-
pele, eficiência distributiva -, e sua mecânica de análise em planta e de nificação avançada de seu ambiente, em todos esses aspectos como
evolução do geral ao detalhe, são incapazes de explicar tanto as técni- sendo parâmetros seletivos? O quanto desta atitude preguiçosa e
cas de projeto, quanto os valores da casa. A casa da chuva dá as boas- sensual das férias, desse momento de plenitude, ainda se fictício,
r • -vindas ao visitante, organizando, sob uma abóbada marcante, um poderíamos trasladar à cidade, à casa, ao cenário de nossa intimidade
pequeno labirinto com vitrines. Nas vitrines dispostas em leque, as dis- cotidiana? Em que deveríamos pensar ao construir esse espaço picas-
tintas coleções de objetos registram as afeições ·íntimas do proprietário e siano? Como deveríamos estruturar a lógica de nosso próprio projeto?
emolduram a visão da paisagem, num gesto Único de boas-vindas. Talvez seja interessante ressaltar, aqui, que há algo que diferencia a casa
A duplicação de circulações em uma das alas permite incrementar os fenomenológica das demais casas que visitamos. E tal é que esta casa
graus de complexidade e as formas de organização de uma casa cujo é tanto o produto das decisões de quem a projeta, quanto o objeto da
tamanho é relativamente pequeno; os muros exteriores incluem a arma- experiência de quem a vive. Dito de outra forma, a arquitetura é fenome-
zenagem de objetos, propiciando, assim, uma proteção climática extra; nológica em si mesma: todas as casas, pelo fato de serem objetos físicos
o cercamento da casa realiza-se através de um movimento, quase um colocados diante de alguém, são casas fenomenológicas, pois o que
balé, que realça o vale e, nele, a casa. A casa do sol buscará um arranjo essencialmente a fenomenologia estuda são tais relações, e os conheci-
sensorial em um clima ensolarado mediante a construção de aposentos mentos que provê dedicam-se a intensificar a experiência dos objetos.
no exterior; exagerará seu tamanho, desmembrando-se em distintos cor- A atitude fenomenológica ensina a questionar o burocrático método posi-
pos que criam um efeito de maior escala e ampla liberdade de uso; utili- tivista através da própria experiência vital. Efornece ao arquiteto uma ins-
zará, com deleite, motivos decorativos que refietem o esmero e os gostos trumentação técnica, uma "cozinha", que dificilmente pode ser ignorada
de quem a habita; buscará uma relação corpo a corpo com o meio físico se o que se deseja é escapar da jaula positivista. Mas há, também, limi-
definido pelo sol, pelo mar e pela rocha; fixará a posição de seus móveis tações, como as há na esfera da arte. Uma das suas limitações mais recor-
mais significativos, transformando-os em uma arquitetura permanente. rentemente citadas é a negligência de todo o esforço crítico, de todo o
Não foi casualmente que estes momentos do projeto, decisivos sob o posicionamento político, em favor de um declarado individualismo "sen-
ponto de vista da experiência de habitar essas casas, suplantaram sualista", acusação dirigida a muitas das manifestações desta corrente do
aqueles canonizados pela ortodoxia moderna na busca de uma inten- pensamento contemporâneo. Outra, esboçada sobretudo entre os leito-
sificação da percepção, busca esta responsável pelo desencadea- res de Bachelard, é o resvalo em uma nostalgia excessivamente literal, em
mento de um método específico de projeto. um perpétuo ensimesmamento, em uma imaginação rememorativa.
Já citamos a característica relação desta idealização da casa com as O desafio que o fenomenólogo nos coloca, porém, é precisamente
férias. Talvez no momento de precisar o método fenomenológico, outro: como recuperar a complexidade da experiência; como recriar os
devêssemos insistir nessa circunstância, já que o ócio, e a especial pre- labirintos topológicos dos grandes casarões rurais em vivendas e apar-

106 107
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tamentos com cem metros quadrados apenas; como organizar uma


Warhol at the Factory: das comunas (
pele entreaberta, provedora de intensidade, em fachadas com superfí-
cies e técnicas limitadas e em lugares sem qualidade alguma; como
freudiano-marxistas ao 1oft nova-iorquino ( .
relacionar o palácio em que Picasso desfrutava de longas, prazerosas ( :.
e produtivas férias, com tantas periferias deprimentes e sem quaisquer
atributos. Podemos - e por que não? - simplesmente renunciar a tal ( I

tentativa, e assumir que a concepção fenomenológica é demasiado (


bela para ser real, que·talvez seu destino seja mesmo elitista, e que sua
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intensidade somente possa ser empregada ali onde as circunstâncias o
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permitam . A arquitetura- e o nosso tempo- é, quase sempre, dema-
siado real, demasiado brutal, para admitir a sofisticada inocência do ( '

olhar fenomenológico. Contudo, ainda que carecesse de recursos, (


monsieur Hulot habitava, em uma poética plenitude, ao mesmo tempo ( I

um minúsculo espaço e a cidade inteira, desde o centro até a mais ( ;


remota periferia. mostrando que, às vezes, a imaginação é capaz de se
sobrepor até mesmo à pobreza.
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Vamos, agora, realizar uma visita relativamente extravagante, e, para to e do prestígio da solidão como forma voluntária e alt~rnativa de vida. (
tanto, teremos que ajuntar em nossa cabeça pelo menos três perso- A comuna, porém, assim como a solidão ou a família, não é apenas uma
nalidades díspares: Karl Marx, Sigmund Freud e Andy Warhol. E vamos organização social determinada: é uma forma de habitar, de pensar e
(
fazê-lo para descrever o surgimento e a disseminação de um fenôme- de construir o espaço privado, com claras derivações e implicações
(
no moderno - a comuna urbana -, que não só tem interesse socioló- arquitetônicas, e este é o foco prioritário do interesse de nossa visita.
gico e político, como também resulta na cristalização de um arquétipo Adentremos, portanto, com essa atenção espacial, na sala em que Andy (
da vida moderna que apenas nas ú~imas décadas- através da comer- Warhol nos recebe, visivelmente satisfeito com a sua invenção, com o (
cialização do 1oft como um espaço habitável - ultrapassou o âmbito caráter desordenado, não obstante sedutor, de seu imenso espaço pra- (
"alternativo", para converter-se em uma forma a mais de pensar, proje- teado; inteiramente à vontade nesta pose que é uma provocação na
tar e viver do nosso tempo. medida em que anuncia uma forma de domesticidade para cujo des-
A junção dos pensamentos de Freud e de Marx já foi explorada, com frute é necessária uma mínima iniciação. Uma iniciação que consiste no
grande repercussão, por Wilhem Reich, em A revolução sexual (1945), esquecimento não só da correção e da família que ideologicamente a
onde se analisam os problemas da vida cotidiana nas comunas russas suporta, mas também de toda a convicção ideológica alternativa, no (
revolucionárias. Essa experiência e essa crítica foram assimiladas pelo desejo de estender livremente a criatividade ao domínio da intimidade. (
conjunto de correntes da contracultura dos anos cinqüenta e sessenta, Um lugar que se institui como uma casa aberta, intensamente freqüen- (
até dar forma a um estilo de vida, a geração beat americana (especial- tada, um lugar ao mesmo tempo da festa e do trabalho - do trabalho
(
mente um grupo reduzido de pintores sediado em Nova Iorque), que como festa-, que nega a si mesmo a exclusão, a marginalização.
associou este estilo de vida a uma técnica de habitar: a apropriação de De sua festa participam miseráveis e afortunados, os que produzem arte <
um espaço industrial neutro, o 1oft. Seguramente a sua versão mais para os museus e música para as massas, e sua divulgação é feita por (
insólita foi The Factory, uma comuna produtiva liderada por Andy periódicos como a revista lnterview, formadora do gosto de uma cidade
Warhol, que não só não dormia ali, mas num apartamento próximo em como Nova Iorque. Um lugar que deixou de se ver como a~ernativo, para (
que vivia sua mãe, como pouco se interessava por Marx, Freud, Reich insolentemente apropriar-se do espaço público. Para familiarizarmo-nos
e todo o movimento comuna! da época. Não obstante, através de sua com este espaço, deixemo-nos guiar por um de seus biógrafos oficiais,
combinação de sedução e glamour, deu brilho e forma a este estilo de David Bourdon: "No final de 1963, encontrou um local maior, no quarto
vida, entendendo-se, aqui, dar forma também como dar forma arqui- (
andar do número 231 da rua 47, a uma curta distância da Grand Central
tetônica. Sem dúvida, será esta a comuna mais conhecida e influente, Station. O local media cerca de quinze metros por trinta e tinha janelas (
pelo menos do ponto de vista cultural, de quantas tentativas tenham se ao longo de toda a sua fachada sul, voltada para a rua, sobre o YMCA (
realizado no século xx. O glamour teatralmente destilado por Andy Vanderbilt. Dispôs seus quadros e suá mesa de trabalho junto às janelas. (
Warhol terá dado ao 1oft o prestígio de um arquétipo que condensa, em No edifício havia um monta-cargas, pouco mais que um piso e uma
si, os distintos carismas progressistas e contestadores da tradição grade aberta diretamente para uma das esquinas. Junto à saída da esca-
comuna! e o ambiente underground dos anos sessenta. da, havia um telefone público, opção sensata para alguém que passava \
Assim, paradoxalmente, a comuna mais capitalista, localizada na cidade anos driblando a companhia telefônica por culpa das ligações de seus
que é o símbolo do capital e habitada por personalidades amantes do antigos companheiros de apartamento. Os visitantes deram ao lugar o f I

capitalismo, produziu a culminância desta idéia anarquizante do habitar, apelido de 'Factory', em função da prodigiosa quantidade de quadros e (
destinada a um futuro imprevisível tanto em função da capacidade da filmes que ali se produziam. [...] Unich converteu-se não somente em ( '
claudicante família para perpetuar-se a si mesma, quanto do crescimen- decorador residente da Factory, mas também em seu superintendente e

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zelador. Criou a decoração prateada cobrindo as paredes acimentadas Como foi gerada esta forma de vida e quais são as suas referências?
e alguns arcos do teto com papel alumínio. Pintou uma parede de tijolos Antes de esmiuçarmos os seus conteúdos propriamente arquitetôni-
com uma tinta prateada, transformando-a em uma superfície reluzente. cos, vale a pena fazermos um percurso, seguramente um tanto intrin-
Continuou pintando de prateado quase tudo: mesas, cadeiras, a copia- cado, pela biografia desta forma de vida tão característica do século xx,
dora, os manequins desmembrados e o telefone. Inclusive o piso, mas a a comuna ainda que tantas vezes frustrada, que é a comuna.
circulação era tão intensa, que mantê-lo reluzente obrigaria a repintá-lo Tanto os primeiros socialistas utópicos, entre eles Saint-Simon e
a cada duas semanas. Línich passou tanto tempo arrumando a Factory Fourier, quanto algumas seitas religiosas puritanas que propunham
- a sua imaginação, alimentada por anfetaminas, nunca se esgotava novas formas de organização social, encontrarão nos Estados Unidos
com as tarefas que se impunha -, que passou a morar ali. Ao ajudar do início do século XIX uma terra promissora e fértil a estes modelos
Andy, Bílly criara um extraordinário hábitat para si mesmo. (...] Uns meses alternativos de organização. Movimentos ideológicos díspares coinci-
depois de se instalar no estúdio de Warhol, Línich descobriu, em uma de dirão, assim, na proposição de formas de vida comunais, isto é, de gru-
suas andanças noturnas, um sofá abandonado na calçada e o arrastou pos que, sem relações de parentesco, decidem livremente compartilhar
para a Factory. Aquele sofá converteu-se não só em um elemento impor- um espaço comum, no qual se organizam segundo uma maior ou
tante da decoraçê,o, mas também na peça básica do atrezzo de Couch, menor divisão de tarefas.
um filme em episódios que retratava uma série de visitantes metidos em Ainda que sejam inumeráveis os apóstolos das comunas, centraremo-nos
diferentes tipos de relações sociais e sexuais." aqui nas duas figuras - Marx e Freud - cujo trabalho intelectual tem um
Ouçamos agora Warhol: "A localização era estupenda: rua 47 com peso maior no questionamento do sujeito tradicional e de suas fonmas de
Terceira Avenida. Sempre víamos as manifestações em direção às habitar. Em Marx, a comuna é a conseqüência lógica de uma compre-
Nações Unidas. O papa passou pela 47 uma vez quando ia a São ensão revolucionária da sociedade - o materialismo - que demanda uma
Patrício. Kruschev também. A rua era muito boa, e larga. Muita gente ação coletiva radical: o sujeito marxista não se desenvolve, não toma
famosa começou a aparecer na oficina, por curiosidade, acho. Era uma posse de si mesmo - quer como indivíduo, quer como membro de uma
festa sem fim: Kerouac, Ginsberg, Fonda e Hopper, Barnett Newman, as classes sociais famüia- senão no interior de um grupo, da classe social que o molda. Marx
Judy Garland, os Rolling Stones. O Velvet Underground começou a desconstrói o mito filosófico do homem dotado de plena individualidade e
ensaiar ali mesmo, um pouco antes de fazermos apresentações juntos, liberdade de pensamento, inserindo-o em grupos sociais, as classes,
ao vivo e transmitidas, e de iniciarmos nossa turnê em 1963. Era como determinados pelas relações de produção. A conquista da liberdade é,
se tudo estivesse começando ali. A contracultura, a subcultura, o pop, portanto, uma conseqüência de uma transformação das forças produtivas.
os superstars, as drogas, as luzes, as discotecas, tudo o que estava O homem não cria, nem é o que imagina ser. Ele é o resultado do conjun-
'na crista da onda' provavelmente começou nesse momento. Sempre to das condições materiais de produção e das relações sociais: somente
tinha uma festa em algum lugar: se não era num ônibus, nem num através da luta social poderá adquirir, no decorrer dessa história cujo curso
barco, era na estátua da Liberdade. A gente vivia se aprontando para confunde-se com o da libertação, sua dignidade como homem livre.
ir para alguma festa. Ali Tomorrow's Parties era o título de uma música A esta desconstrução dos fundamentos do humanismo clássico a
que o Velvet ia cantar no Dom quando o Lower East Side estava partir da análise econômico-histórica, porém, sucederá outra, de igual
começando a perder seu status de zona de imigrantes e a virar uma a excentricidade intensidade, a partir da psicanálise, desferindo-se, portanto, um duplo
zona hippie. 'Que vestido usará a pobre menina nas festas de do eu golpe mortal no sujeito do humanismo.
amanhã ... ?' Eu realmente adorava essa música que o Velvet tocava e Freud mostra a radical excentricidade do eu sobre si mesmo, inverten-
Nico cantava." do o olhar de Marx sobre o homem: se este se produz sobre sua exte-

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rioridade e com base em um fundamento ainda teleológico, buscando que reduzam e anulem ao limite a neurose, e permita~ uma máxima (
a resolução dos conflitos no futuro, o olhar de Freud é introspectivo, energia libidinal descarga de energia libidinal. Reich propõe a comuna como um novo
dirigido ao interior, e se realiza através de uma translação ao passado eixo social de aprendizagem capaz de conectar o mundo- e mundo é
(
e ao inconsciente. O homem freudiano adquire sua relativa liberdade também trabalho- ao eu. A construção de um novo sujeito depende de
em um processo individual de autoconhecimento no qual se identificam transformações profundas no espaço privado e no espaço público, bem (
os mecanismos repressivos em que se baseia a educação e o proces- como nas relações e nos vínculos entre ambos. Algo que o socialismo (
so de socialização através da família, e em que se aprende a conviver real, como denunciou Reich, nunca pôde resolver, pois nele ainda impe- (
com o eu, reduzindo-se a neurose através da consciência do valor da rava o modelo burguês de ordem social. Enquanto Marx e Freud trou- (
auto-estima e dos desajustes nas relações com o mundo. O homem xeram à luz as implicações públicas da família, Reich demonstrou como
freudiano não só não se realiza socialmente, como a estrutura de sua a repressão doméstica relacionava-se com a repressão de forma geral,
(
personalidade psíquica é fragmentada, não constituindo uma unidade. como a família era o aparato que garantia a produção de indivíduos
A busca cega pela satisfação de seus impulsos, encarnada no "id", amedrontados, perfeitos para a perpetuação da ordem social: para ele,
(

entra em luta contra o "ego", que seria uma parte remodelada do a família é o agente delegado da repressão, na medida em que asse- \
"id" adaptada ao mundo exterior, enquanto o "superego" seria um sedi- gura "uma reprodução psicológica massiva do sistema econômico· d.a (
mento da dependência infantil em relação aos pais e às suas exigên- sociedade". (
cias de controle dos impulsos e de socialização. A influência de Reich nos líderes do movimento hippie e do Maio de 68
(
Resulta, assim, duplamente esgarçada a unidade do homem, imerso nas em Paris é um fato amplamente conhecido e divulgado. Neste período,
relações de produção que o determinam socialmente e, ao mesmo junto a Reich, adquirem prestígio Herbert Marcuse e Henri Lefebvre, pen- c
tempo, tendo a sua psique fragmentada por tendências inconciliáveis. sadores influenciados por ele, e cuja crítica marxista e psicanalítica à vida (
Tanto o materialismo histórico, quanto a psicanálise colocam em ques- cotidiana e ao esquema da família autoritária é pontualmente absorvida
tão o idealismo humanista, o homem centrado e o seu fundamento por Guy Debord e pela Internacional Situacionista, entre muitos outros (
ontológico na harmonia entre o eu, a razão e o mundo: tudo isso- o eu, grupos de ação que propunham uma drástica transformação da ordem
a razão e o mundo - perde a sua objetividade, fragmenta-se, revelan- estabelecida. Através de Marcuse, e da Escola de Frankfurt (Horkheimer,
do-se como construções consoladoras, como produtos das ilusões Fromm, Adorno, Benjamin), cresce a preocupação com o fenômeno dos
implícitas ao idealismo. totalitarismos ditatoriais e sua relação com a família, que passa a ser vista ( '

A tarefa de fundir essas duas disciplinas, psicanálise e materialismo, em como responsável pelo surgimento do líder carismático em momentos (

um único processo de construção de um novo sujeito social, ficará a de crise, através do mecanismo internalizado da autoridade.
cargo de Wilhem Reich, que denunciará os limites de cada uma e a sua Para eles, as novas formas de vida esboçadas carecem de um esforço
complementaridade. Para Reich, a resolução individual dos conflitos superior ao mero desejo de convivência: é necessário, antes de tudo,
(
internos é um resíduo ideológico burguês: a liberação interior não se antiautoritarismo destruir todo vestígio de autoritarismo, como já assinalavam os primei-
(
produz senão em um plano social. Isso significa, contudo, uma denún- ros pensadores anarquistas, e isto requer uma formação de raiz psica-
cia das estruturas sociais em que a família - a "família autoritária", em nalítica e o ensaio de formas não hierarquizadas de convivência em (
sua terminologia ~, como unidade produtiva, também reproduz as comunidades. A dissolução das práticas autoritárias em uma con- ( I

relações de produção da sociedade, transmitindo de pai para filho a vivência produtiva e lúdica aparece, assim, como um aprendizado de i
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luta de classes. É, portanto, necessário associar o materialismo, e sua ordem prática, cuja maior referência serão as investigações de Johan I
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exigência de igualdade, a processos de aprendizagem vital e sexual Huizinga sobre o jogo nas sociedades humanas. Seu texto Homo
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ludens (1954), uma argumentação a favor da compreensão das sexual, A revolução urbana, Homo ludens, A crítica d9 vida cotidiana),
relações humanas como uma busca regulada de diversão improdutiva, sem dúvida, o que animou a geração beat americana - Kerouac,
dará cobertura aos movimentos da contracultura que surgem na vira- Ginsberg, Burroughs ... - a ensaiar, nos anos cinqüenta, formas rudimen-
da da década, entre os anos cinqüenta e sessenta. a tribo tares de convivência em comunidade. Para eles, a tribo era uma espécie
A contracultura é então definida como o reverso da cultura estabelecida, a contracultura de parentesco eletivo, baseado na solidariedade, na hospitalidade, na
e encontra seus aspectos mais distintivos no antiautoritarismo, na origi- simplicidade e na amizade frente a uma sociedade endurecida. Estranhos
nalidade, na criatividade, na espontaneidade, no amor, no gosto e no ao esquema "produção-consumo", o desdém, a imprevisão, e a passivi-
prazer, no jogo e no trato direto, no espírito tribal e nas comunas. As dade passaram a ser formas contestadoras de ação e de luta revolucio-
comunas K1 e K2, em Berlim, seriam emblemáticas desta nova atitude. nária. Sua atitude, por um lado, levou ao abandono da cidade e à fun-
·. Com elas surgem também, pela primeira vez documentados, os novos dação de comunas hippies de sabor idealista, e, por outro, influenciou
problemas cotidianos- a divisão de tarefas, o seu caráter rotativo, a for- um estilo de vida urbano, o dos artistas de vanguarda, que encontraram
mação de casais e situações assimétricas, a obtenção de recursos na cidade de Nova Iorque o melhor lugar para se fixar, impregnando-se
econômicos, a liderança e o surgimento de tendências tribais, a limpeza, do cosmopolitismo especial dessa cidade. Para compreender esta
etc. -, obrigando a um aprendizado do espírito antiautoritário no âmbito situação, talvez seja convenierte recordar como Rem Koolhaas, em seu
da intimidade que integra hoje a tradição de um movimento, o dos squat- Delirious New York (1978), esforçou-se para descrever o estilo de vida
.I ters ou okupas, disperso atualmente por todo o mundo . cosmopolita nova-iorquino, baseado na exacerbação das tendências
O que tem a ver tudo isso com um Andy Warhol obviamente cético em mais progressistas e irracionais do capital.
relação a toda ideologia, e desde já ao marxismo e à psicanálise, des- manhattanismo Para este autor, o "manhattanismo" já havia produzido, nos anos trinta, o
,I
mesuradamente entregue a uma idolatria da América e do sistema "grande hotel residencial", uma nova forma de vida tão vanguardista,
americano, e, precisamente pela desmesura dessa entrega, responsá- quanto frívola, na realidade, uma revisão capitalista da comuna, cuja
vel por uma paródia mais crítica e mais perversa do que muitos dis- expressão mais deslumbrante seria o Waldorf Astoria. Talvez a proximida-
cursos edificantes? Como se liga a Factory a esta complexa trama de de temporal tenha impedido Koolhaas de observar como este fenômeno
intentos de construir uma espacialidade própria à comuna? estava se reproduzindo nos lofts do SoHo, os quais, em grande medida
Se atentamos para a peculiar capacidade da cultura americana, e, mais graças a este grande marqueteiro que foi Andy Warhol, teriam passado a
explicitamente, da nova-iorquina, para assimilar e descontextualizar as ser objeto de desejo da elite. A transformação da vida cotidiana, a busca
propostas das vanguardas européias, torna-se fácil perceber, no ambien- de uma arte de viver que se confundisse com o próprio trabalho criativo,
te da Factory, uma grande similitude com tantas outras tentativas de ins- o abandono da idéia de família como projeto vital e a colocação em práti-
tituir comunas. Há, ali, um ambiente permanente de festa e trabalho cria- ca de outras pautas de organização vital e sexual, perderão a radicalida-
tivo (pintura, cinema, música, happenings), no qual podemos reconhecer de política onipresente em Berlim e Paris e se desenvolverão, finalmente,
tanto o espírito dos manifestos da Internacional Situacionista por uma como expressão mesma da identidade dessa cidade, de sua cultura
construção criativa do próprio indivíduo - essa proposta de superação metropolitana e dos aspectos mais liberadores do capitalismo, dando-lhe
da arte através da sua realização na "arte de viver" -, quanto o espírito um novo impulso vital e econômico. Em poucos anos, Nova Iorque terá
lúdico do homo ludens de Huizinga, e o antiautoritarismo de Reich e convertido essa identidade cultural transgressora em sua principal indús-
Marcuse. tria, e a si mesma no destino preferencial do turismo cultural internacional.
Foi este espírito do tempo (que se pode descrever a partir da mera enu- Nos manifestos situacionistas, nas comunas berlinenses havia sido
meração dos títulos dos livros dos autores mencionados: A revolução necessário - e quanto deste esforço remete-nos ao dos arquitetos do

122 123
Team 1O- uma transformação a partir de dentro, argumentada e apoia- determinada zona da cidade como o SoHo já é uma afirmação da per- (
da nas mesmas referências ideológicas que se pretendia superar. Para tinência a uma certa comunidade. Igualmente, em função tanto de sua
entendermos essa conflituosa posição ideológica, basta recordarmos a grande superfície, quanto dos novos códigos sociais vigentes, estas
resposta dos situacionistas à pergunta, "Vocês são marxistas?", que não casas-oficinas permanecerão abertas a visitantes mais ou menos está-
foi outra, senão, "Tanto quanto Marx quando dizia: eu não sou marxista". veis, e à organização de festas e reuniões sociais, de modo que o efeito
Não obstante, na Factory, esse esforço parece completamente desne- comunal será uma de suas características mais evidentes. Em todas
cessário: ali, é irrelevante argumentar ou discutir, o que importa é passar elas, o trabalho criativo, individual ou coletivo, primará sobre outros
bem e produzir o mais intensa e provocativamente possível. aspectos da vida individual, tais como o conforto, o luxo, a ordem, ou a
Assim, Warhol será bem-sucedido não apenas ao fazer confluir a totali- intimidade. O contínuo contato com a comunidade, o desprestígio do
dade das tendências vanguardistas européias e americanas, mas tam- casal estável, e o entendimento do sexo como uma forma a mais de
bém ao fazê-lo oferecendo um n:.odelo vital que integraria nessa tra- comunicação propidarão, ainda assim, práticas amorosas e sexuais
dição o capitalismo progressista e cosmopolita de Nova Iorque. Não muito semelhantes às que, mais conscientemente, contudo, adotam as
nos interessá, portanto, narrar uma vez mais o processo pelo qual um comunas politizadas centro-européias. O ambiente é, pelo menos apa-
determinado grupo de artistas - de forma especialmente significativa, rentemente, festivo, criativo e liberal. Através desse modo de instalação,
Gordon Matta-Ciark e George Maciunas - decide viver e trabalhar no essa coletividade, ou tribo, constrói para si um marco urbano próprio,
sudoeste de Manhattan, adquirindo, para tanto, grandes espaços em relativamente independente, e se apropria de edifícios e porções da cida-
edifícios industriais e comerciais abandonados. O que nos interessa é de, modificando radicalmente sua identidade. É significativo, porém, que
investigar o que vêem ali, além do baixo preço do aluguel, ou que valo- não o faça construindo uma utopia, ou mediante a planificação de um
res e que idéias espaciais ali subjazem, ou, finalmente, como se orga- a apropriação projeto ex-novo, mas através de uma técnica, a apropriação, que, em
niza um dos modos mais singulares de morar que o século xx inventou, grande medida, poderia também descrever as práticas artísticas desses
como esta larga tradição que se originou nos socialistas utópicos resul- coletivos- o objet-trouvé e sua descontextualização -, de forma similar (
ta nesta sua versão mais delirante- o 1oft nova-iorquino -, e como este, 1oft nova-iorquino a como a Internacional Situacionista invoca o détournement (o desvio)
por sua vez, em uma forma de pensar, construir e habitar um arquétipo como uma prática social revolucionária, descrita como o "desvio de ele-
da casa contemporânea. mentos estéticos pré-fabricados. Integração de produções artísticas
O 1oft será, basicamente, uma casa-oficina, com uma grande superfície atuais ou do passado em uma construção superior do meio."
e um grande espaço interno, quase sempre alugada por preços muito Se na casa existencial poderíamos falar em consistência como pala-
baixos, instalada em um galpão industrial ou em um armazém - geral- vra-chave, na fenomenológica, em intensidade, na positivista, em visi-
mente datados do final do século XIX e situados num lugar central eco- bilidade, a palavra que gravita em torno desta idéia do habitar é "apro-
nomicamente decadente -, na qual se fundem os âmbitos privado e do priação", uma palavra que explica seu parentesco com as comunas e I
I '
trabalho. Um 1oft é, originalmente, uma porção de solo, para aluguel ou os edifícios ocupados ilegalmente, pois este será o impulso que gravi-
à venda, dentro de uma estrutura de pisos, o modelo tipológico industrial tará em torno do 1oft, da forma de colonizar o seu espaço, do ato ( '
característico do século XIX, geralmente medido pelo número de pórticos mesmo de apropriar-se parcialmente das experiências comunais, da (
estruturais com suporte para fundição que abarca. Poderá ser ocupado idéia de instalar-se no centro histórico da cidade.
individual ou coletivamente, em função basicamente da capacidade Ao transportar sua residência e sua oficina para áreas da cidade e ediff-
econômica, mas também dos interesses criativos ou do compromisso cios abandonados pela dinâmica especulativa, o artista, o homo ludens
warholiano, apropria-se da cidade, do seu centro histórico, e reivindica
\
social do(s) seu(s) residente(s). Em qualquer caso, a mudança para uma
( )

124 125 (
~I
~I
li todos os contravalores que a convenção - a convenção do positivismo - Todas estas manifestações da contracultura contestarã?, uma a uma,
~I havia rechaçado, começando precisamente por essa instalação na me- J
r
as categorias que a existência positivista havia idealizado. Por isso,
o 1oft poderá ser entendido exatamente como a negação do valor de
mória urbana frente à tabula rasa sempre propiciada pela modernidade

~:
I

ortodoxa. projeto positivista por excelência, o metro quadrado, substituído pela


Como é o espaço resultante dessa apropriação de uma nave diáfana proliferação não de metros quadrados apenas, mas de metros cúbicos
( I com imensas janelas e altura, ritmada pelo espaço isotrópico das colu- abundância de como o valor espacial máximo: a abundância de metros cúbicos sem
li nas prato-industriais? Em primeiro lugar, este é um espaço que nega a metros cúbicos qualidades de qualquer tipo - por exemplo, com nula, ou baixíssima
(

(: : modernidade, que demanda um habitante capaz de abandonar as ide-


alizações positivistas do habitar, para transportar-se justamente ao
tecnificação - é estabelecida no 1oft como uma demanda que é tam-
bém contrária à metodologia do arquiteto ortodoxo da modernidade, e
(I I espaço comercial e industrial anterior à modernidade. Em contrapo- a todo o seu aparato funcionalista pseudocientífico. Em um espaço
( como este, a criatividade empregada no habitar é máxima, pois todas
sição à ordem pautada da vida cotidiana regulada pelo funcionalismo, a
li
( desordem será a característica visual mais óbvia, uma desordem preci- desordem as opções são possíveis; apropriar-se deste volume de ar é a essência
li
(
\ sa, que se estende desde o espaço e seus usos sempre imprevisíveis e da forma de habitar em que se realiza o sujeito warholiano. É neste
(I improvisados até o tempo, dançio forma a modos de vida alheios ao volume, e mediante a técnica da apropriação ou détournement, que
I ritmo vital do homem-tipo. O 1oft pulsará em horários nunca estipulados: projetará sua cultura material e objetai.
(
seu momento privilegiado coincidirá com aquele em que o resto da Voltemos ao interior da Factory e comprovemos, novamente, esse desen-
c' cidade se apaga, e será vivido seja no trabalho criativo e/ou na festa dio- volvimento em torno de uma pose insolente e satisfeita consigo mesma.

~
nisíaca, que numerosas vezes chegam a se confundir e a se identificar. Warhol nos dirá: "Sempre gostei de trabalhar com as sobras, de conver-
Enquanto na casa dos Arpel tudo está submetido à regulação e à vigilân- ter as sobras em coisas. Sempre achei que as coisas rejeitadas, e que
cia, no 1oft warholiano não há ordem, nem vigilância: a casa pode ser ocu- todos pensam que não servem para nada, podem ser divertidas. É como
pada por qualquer um que tenha as credenciais da "tribo". Não há, nem um trabalho de reciclagem. Sempre achei que as sobras tinham muito
deve haver, outras determinações, nem rotinas, senão as que cada um humor." Assim como a Factory é, em si mesma, uma nave rejeitada e
imponha a si mesmo - não existe a programação, mas o seu inverso, a reciclada, os objetos com os quais se produz a sua apropriação espacial
improvisação. Enquanto para os habitantes positivistas, os habitantes das improvisação foram "apropriados", reciclados, daquilo que não serve para nada, repro-
comunas, os beatnicks e seus derivados serão uns "parasitas", os pri- duzindo-se, assim, um procedimento artístico bem conhecido do
meiros serão uns desmancha-prazeres para os segundos. Aspectos apa- objet-trouvé século xx, o objet-trouvé duchannpiano e descontextualizado. A criativida-

\
,, rentemente anedóticos como o da limpeza ou o do vestuário adquirirão
um conteúdo político e um sentido espacial preciso; a "contestação", o
de estende-se, portanto, do trabalho à vida cotidiana: das latas de sopas
Campbell e caixas de sabão Brilho, aos objetos domésticos, indistinta-
li espírito de protesto, insistirá com força na desconstrução destas "falsas mente. Contra o luxo, o conforto burguês, a intimidade fenomenológica,
1.1 necessidades" impostas por uma visão exacerbadamente higienista. a tecnificação moderna ou a beleza essencial da casa nietzschiana, surge
I

'li "Somos contra qualquer idéia de necessidade absoluta dos objetos", afir- uma idéia de espaço baseada na descontextualização e na proliferação
mará Asger Jorn em Sobre o valor atual da concepção funcionalista de objetos triviais, desprezados pelo consumo, que, recontextualizados,
11 adquirem um significado estético e, se se preferir, também satírico em
(1 956), enquanto em Berlim os comuneiros negam-se a aceitar o "tabu da
•I sujeira" próprio da sociedade moderna como critério para se discutir relação à vida cotidiana estabelecida, em um parasitismo criativo do ciclo
}I sobre ela: "a sujeira é um elemento da realidade ... e não se pode fazer de o insólito produção-consumo. O insólito polariza o espaço warholiano como a luz
'li conta que ela não existe por meio da obsessão pela limpeza". intensifica a presença do ar na casa vermeeriana. O aspecto reciclado do
1 11
!J .• 126 127
"
(

(
objet-trouvé conduzirá a uma estética acumulativa e heterogênea, alheia ziu um personagem com um estilo de vida duplamente revolucionário:
aos estereótipos da modernidade. Objetos díspares e contraditórios insultuoso tanto para o "autêntico" contestador, por sua exibição de bana· (
\
comporão paisagens, ou cenários, em que o grotesco e o requintado, inú- !idade, quanto para o homem do sistema, por sua radical imoralidade,
til e o desproporcionado, convivem caoticamente, em uma afirmação mas fascinante para um importante setor da vida cultural, cético diante do (
í
do caráter lúdico da desordem, da sua pertinência como valor criativo do aborrecido compromisso esquerdista, e enojado diante do cínico moralis· \

ambiente. Freqüentemente esta atitude levará a uma estética do excesso, mo das instituições públicas. Warhol preparou, assim, o caminho para (
da acumulação proliferante, o que, no caso de Andy Warhol, resultará em uma aceitação, em larga escala, desta forma de vida que já nos anos ( -
um consumismo fetichista compulsivo (algo, por outro lado, comum a oitenta penetrava nos mecanismos de promoção imobiliária, dirigida a
outras estrelas do universo pop, tais como Elvis Presley e Elton John ... ). segmentos endinheirados, aqueles mesmos segmentos que, anos antes,
Mas, no seu caso, este fetichismo será revelador, pois, contrariamente a haviam encontrado no hotel residencial a sua forma mais sofisticada e
qualquer hipótese previsível, não se aplicará apenas aos objetos descri- exclusiva de vida. Os refugos não são mais encontrados na rua, mas em
tos, mas incluirá, com igual intensidade, o mobiliário burguês, americano antiquários ou em mercados especializados; a sujeira e a desordem deram ·,
'
ou inglês, do século XIX, em um aparente desdobramento do gosto que lugar a um desleixo calculado; a roupa extravagante agora é glamourosa (
determina a paradoxal distância que há entre a Factory e a casa de sua e pode ser adquirida nas butiques da moda. Os quadros dos artistas pop (

mãe, em que seu próprio quarto desfaz qualquer unidimensionalidade do e minimalistas foram pendurados nas paredes, como evocações da cria· "
(
personagem. Se o contrapusermos ao espaço prateado da Factory e à tividade original deste modelo residencial.
(
sua raivosa modernidade, talvez entendamos porque Andy Warhol era a o 1oft como O 1oft passará a ter, em sua versão mercadológica, o aspecto de uma \

figura indicada para transformar a estética extravagante do 1oft em um galeria de arte galeria de arte, daquelas galerias pioneiras instaladas no SoHo, como a (
conceito espacial apto a ser consumido pelas classes altas. No universo aberta por Leo Castelli em 1970, no número 420 da Broadway Oeste, (
de Warhol, não há contradição: ele quer tudo, e, de cada coisa, o melhor. bela e elegante. Sua estética evoluirá até um relativo minimalismo muse· (
A única coisa que não é necessária é a congruência, o acordo entre as ográfico, em concordância com os novos padrões estéti-
(
partes, a exigência de uma coerência a priori, justamente as idéias das cos dos anos oitenta. Entremos, pelas mãos de Gabriela
quais sua arte tão rápida e lucidamente se livrou. Henkel, na galeria Castelli, em 1988, anos depois do z
O que há de verdadeiramente original na Factory, em relação ao conjunto boom de Jasper Johns, Robert Rauschenberg, Roy (

de !ofts que prolifera nos anos setenta, é a atitude radicalmente antimargi- Lichtenstein, Claes Oldenburg ou Warhol, e comprovemos
nal de Warhol, sua postura glamourosa e exibicionista. Foi esta postura a transformação e a consolidação operadas sobre esta ~I

que, sem dúvida alguma, contribuiu decisivamente para que se conce- configuração espacial convertida em lugar da elite: "Uma
bessem estes espaços vazios como lugares em que, de fato, não apenas escada estreita conduz aos espaços pertencentes a
se verificava uma liberação lúdica das forças criativas, mas também se liberação lúdica Castelli, imponentes já por sua extensão. No primeiro, em (

podia organizar uma forma de vida sensual e festiva, que não parecia exi- frente ao elevador, a sala de recepção está repleta. '·.
gir nem marginalização, nem submissão a princípios ideológicos contrá- Parquete em tons claros, paredes brancas com uma refi- c I

rios ao sistema, nem renúncia alguma aos prazeres do capitalismo. Warhol nada iluminação para as distintas exposições em exibição \
- com suas festas, freqüentadas por Truman Capote, Mick Jagger ou na casa, umas tantas colunas de ferro fundido, um par de r

Jackie Kennedy, com o Velvet Underground ensaiando por ali, e filmes bancos, nenhum móvel ou equipamento mais. Q segun-
\
. insólitos em exibição, fabricando estrelas de comportamento desinibido; do, mais reduzido, serve para expor obras, e dá passa- (
I
envolto em um halo de sexo, fama e dinheiro, drogas e diversão - produ- gem ao lugar de maior atividade, separado por um cordão
( )

128 129 (
'
r li
lj
li e totalmente inacessível ao mundo dos profanos. Ali, à esquerda, uma balhar, do que de descansar. Na cidade, até as árvo~es dos parques
ti série de escritórios para ·cinco ou seis assistentes - moças excepcio- trabalham muito, porque é esmagadora a quantidade de gente para
li nalmente bonitas -, que atendem diariamente a centenas de chamadas quem têm que fabricar oxigênio e clorofila. Se você vivessE? no Canadá,
do mundo todo, em telefones de timbre suave e respeitoso. Uma delas teria um milhão de árvores fabricando oxigênio só para você, de modo
"I fica junto ao terminal de um computador: podemos vê-la a classificar que cada uma dessas árvores não trabalharia muito. Na Times Square,
ti documentos, selecionar slídes, cumprimentar cordialmente as visitas, porém, uma árvore tem que fabricar oxigênio para um milhão de pes-
li ou a consolá-las quando ocorre que Leo esteja ocupado ao telefone ... , soas. Em Nova Iorque elas realmente têm que suar, e as árvores tam-
J I\ e Leo telefona muito. Ele se assenta quer entre as assistentes, diante de bém sabem disso, basta olharmos para elas."
.tl um dos escritórios, com um copo de Perríer diante de si, quer numa Também as árvores trabalham criativamente na cidade. O Central
ti sala envidraçada que é a sua central de comando, de onde pode obser- Park trabalha para a cidade, a natureza está a serviço da cidade.
var a casa em toda a sua extensão. Leo, a quem aborrece qualquer som A cidade é o lugar em que o trabalho criativo é prazeroso, divertido,
"'
,I ~
estridente, carrega consigo desde há muito tempo -devido, presumi-
velmente, ao seu ambiente -um aparelho auditivo invisível, para que
é o lugar da diversão. O habitante do 1oft vive no centro da cidade,
apropria-se dele, porque esta posição lhe dá tudo o que ele deseja,
'li ninguém precise gritar. Sobre a mesa negra à sua frente há uma peque- é o centro do cosmos existencial. Mas esta cidade não é uma
ti no bloco de notas. A desordem está proibida ali. Seguindo o exemplo cidade qualquer, é a expressão máxima do cosmopolitismo, é Nova
~I I do estilo e do ambiente que distinguem Castellí, já são muitos os mar- Iorque, a cidade que se construiu apropriando-se de tudo o que
I I chands mais jovens que atingiram a sofisticação do detalhe do cordão parecia atraente e interessante no mundo moderno, expressão desta

'li de isolamento e das flores viçosas sobre a mesa do escritório."


O 1oft é, agora, o espaço dos elegantes, um modelo único a ser expor-
tendência irrefreavelmente fetichista e consumista do capitalismo,
uma cidade para a qual nesse mesmo momento Rem Koolhaas cria-
li tado para todas as grandes cidades, uma forma de vida que com- va seu manifesto retroativo, o livro que toda grande cidade merece -
li pleta o conjunto de arquétipos da casa idealizados pelo século xx. como merece, ou possuí, um grande filme ou um grande romance.
' I~ Mas voltemos a esse outro momento, sem dúvida mais atrativo, em De novo, uma-homotetia sem escala: a cidade entendida como um
que Warhol, na sua Factory em Lexíngton, inicia a conquista de toda a acúmulo de objetos a serem consumidos, dos quais se apropria para
I'li cidade, recusando-se a permanecer na marginalidade. E busquemos dotá-los de beleza.
I ) I entender como esta forma de habitar relaciona-se com a cidade e com
a natureza, e que espaços públicos a ela se referem.
a rua Nesta perspectiva, a rua aparece como aquilo que o urbanismo moder-
no deseja "suprimir" - sua defesa, portanto, é uma contestação -, e
I , I~ A cidade existente, Nova Iorque, é o meio natural do habitante do 1oft a cidade como o lugar em que pode se praticar uma reapro-
warholíano, que é construído com seus resíduos, assim como o hábí- como natureza príação lúdica da cidade. A "deriva" situacionista
tat heídeggeríano é construído com os materiais presentes na Floresta não será outra coisa, senão uma prática - a vaga-
Negra. Para Warhol, não há natureza, não há o "campo": "Sou um bundagem experimental pelas ruas elevada à cons-
rapaz da cidade. Nas grandes cidades, as coisas foram organizadas de trução de uma psicogeografía subjetiva da cidade
tal forma, que você pode ir a um parque e se sentir num campo em existente- que reivindica a cidade da memória e da
miniatura, mas o campo não contém partes da cidade, de modo que experiência subjetiva, a cidade desvalorizada e,
eu prefiro a cidade. Outra razão que me faz gostar mais da cidade do
que do campo é que na cidade tudo é pensado para o trabalho,
I portanto, em extinção, como marco revolucionário
contra as determinações da cidade objetiva mo-
enquanto no campo tudo é pensado para o relax. Gosto mais de tra-

130
1 131
dernista. Esse marco, onde se podem construir
' .

(
(
situações revolucionárias, é uma completa subjetivação lúdica, a revo- o papel copiativo dos arquitetos, cominho, alforva, molho de soja, cane- (
lução urbana que, nas palavras de Lefebvre, viria com uma liberação la, bananas fritas, as linhas de trem na Grand Central Státion, o cheiro de
(_
da subjetividade no espaço público. banana das tinturarias, os vapores das lavanderias dos edifícios de apar-
(
Estes enunciados políticos têm uma clara tradução na transformação do tamentos, os bares do East Side (cremes), os bares do West Side (suor),
I. (
l. SoHo, que se pode contemplar, à luz da teoria urbana situacionista, bancas de jornais, as bancas de frutas de todas as temporadas: moran-
como um valioso exemplo prático de apropriação de uma porção da gos, melões, pêssegos, ameixas, kiwis, cerejas, uvas de Concord, tan- (
cidade abandonada e alterada por práticas cotidianas que se estendem gerinas, abacaxis, maçãs, e me encanta a maneira com que o cheiro de
cada fruta impregna a madeira rugosa das caixas e o papel fino dos
do âmbito privado - o 1oft - à rua, esses dois elementos que o caracte-
embrulhos."
c
rizam. Warhol nem sequer se estabelecerá no SoHo: sua ambição e indi- (
l vidualidade serão maiores, a apropriação completa do espaço público Uma perfeita deriva consumista, através da qual Warhol também se
apropriaria das técnicas e estéticas da contracultura, submetidas, por (
que é Nova Iorque. Ou melhor, da "vitrine" que é Nova Iorque. Assim, sua
f': "deriva" pela cidade será tão sensorial e psicogeográfica como qualquer sua vez, a uma descontextualização perversa e sofisticada. O homo (
'
1 uma descrita por Debord, mas terá perdido qualquer conotação antica- ludens glamouroso de Warhol deu um salto qualitativo, integrando as (
pitalista, pois, como observa Koolhaas, a capacidade emotiva de Nova práticas da contracultura ao mundo totalmente superficial do consumis- (
Iorque virá de sua própria identidade como expressão do capitalismo e mo capitalista. Warhol deixa, pronta para o consumo elitista, uma oon-
(
de suas práticas consumistas. "Quando caminho por Nova Iorque, estou cepção de espaço que traz consigo um completo modelo espacial que
(
sempre atento aos odores que me rodeiam: os tapetes de borracha nos pode ser desenvolvido tanto no âmbito privado, quanto no público.
Depois dele, esta forma de habitar desenvolvida no SoHo passará a pri- (
edifícios de escritórios, as cadeiras estofadas dos teatros, a pizza, a laran-
jada Julius, expresso-alho-orégano, os hambúrgueres, as camisetas de vilegiar os yuppies reaganianos dos oitenta, que, assim como ele, aspi-
algodão, as lojas de alimentos nos bairros, as delícatessen, os cachorros- ram ao sucesso material, sem renegar o atrativo da contestação. O 1oft (
-quentes e as salsichas com Saverkraut, cheiro de loja de ferragens, chei- será, em poucos anos, o lugar, o espaço doméstico dos privilegiados. (
\

ro de papelaria, de souvlakí, de couro e de manta de viagem em Dunhi/1, Pode parecer que este modelo estético e existencial seja demasiado uni-
( I

Mark Cross e Gucci, de couro curtido marroquino nas bancas pelas ruas, dimensional, excessrvamente ligado a Warhol e à sua Factory, alheio ao
(
revistas novas, números atrasados de revistas, lojas de produtos chi- caráter combativo e idealista das primeiras comunas ou dos edifícios inva-
didos. Talvez por isso tenha chegado agora o momento de recapitular esta (
neses importados (mofados durante a travessia), lojas de produtos india-
nos importados, lojas de produtos japoneses importados, lojas de discos, grande e aparentemente dispersa corrente de pensamento que teria em (

lojas de comida natural, drugstores com máquinas de refrigerante, drug- Reich o seu mais preciso e sintético ideólogo. O que teriam em comum, (
stores em liquidação, barbearias, salões de beleza, rotisserias, depósitos além do abandono da família e da opção pela vida independente, as
(
de madeira; as mesas e as cadeiras da Biblioteca Pública de Nova Iorque, comunas, os lofts e os edifícios invadidos? Que idéia de vida, e que téc-
(
os donuts; os pretzels, de chicletes e de sucos de uva nos metrôs, as nicas se empregam em seu projeto? Sem dúvida, à crítica à família está
(
lojas de acessórios de cozinha, laboratórios fotográficos, sapatarias, lojas indissoluvelmente associada a crítica ao modelo ideológico positivista e ao
I~
I seu esquema de produção-consumo. A negação da casa funcional posi- (
de bicicletas, o papel e as tintas de impressão nas livrarias-papelarias
Scribner's, Brentano's, Doubleday's, Rizzoli, Marboro, Bookmasters, tivista, a sua "contestação", unifica seus critérios, ainda que os pressu- ( .
Barnes & Noble, engraxates, milk-shake, brilhantina, o cheiro de cara- postos ideológicos alternativos (basicamente anarquismo, socialismo f
\ J

radical e freudiano-marxismo) sejam relativamente díspares. O metro


melo barato em frente a Woolsworth's e o cheiro dos tecidos ao fundo, os
quadrado eficiente, como valor, é substituído pelo metro cúbico profuso e
c
cavalos em frente ao Plaza Hotel, a fumaça dos ônibus e dos caminhões, (,

133 (
132
ineficiente, tanto técnica, quanto programaticamente. Frente à fragmen- desejada do antiautoritarismo, do abandono da família em favor da tribo.
tação que organiza o projeto funcional em âmbitos de maior ou menor mínima privacidade A cultura objetai prima, assim, pela extravagância frente à "unidade e
privacidade, este modelo espacial reduz ao máximo o âmbito da privaci- coerência do desenho", uma cultura que tem como conseqüência um
dade, concebendo-o como uma seqüela do autoritarismo e do modo insólito caráter pitoresco: a casa é uma paisagem urbana caótica e
burguês e familiar de vida. Somente as camas e os vasos sanitários rece- decadente, na qual se dilui qualquer aspiração latente à privacidade e a
berão algum tipo de fechamento, geralmente tênue; a casa será o lugar um estado natural primitivo. A cidade passa a ser concebida como o
em que se aprende e se pratica o antiautoritarismo. Os "segredos do verdadeiro meio natural do habitante desta casa, como o seu marco
papai e da mamãe", e toda a sua codificação em espaços fragmentados, ecológico, do qual se nutre vital e criativamente. Dela somente serão
darão lugar a uma exposição enfática da intimidade, que se pretende rechaçadas as áreas estritamente funcionalistas: seu higienismo será
libertadora dos tabus sociais e sexuais. Não haverá hierarquias, nem dis- entendido como uma perfeita e inútil esterilização. Esta concepção deri-
tribuição, nem especialização espacial. A simplicidade do continente neu- vará em um deliberado anti-higienismo e este, por sua vez, em uma radi-
tro será o novo paradigma habitacional. Não haverá, nele, nenhuma outra cal minimização dos quartos técnicos, banheiros e cozinhas, agora con-
qualidade que não o seu tamanho, o seu volume. De fato, a "qualidade" fundidos, numa continuidade espacial, com a paisagem doméstica.
passa a ser um atributo negativo, suas conotações com o consumismo Igualmente, a materialidade eludirá tanto o "natural" - inexistente no ide-
burguês serão demasiado óbvias para que se.aceitem critérios de quali- ária do habitante desta casa-, quanto qualquer conotação com o fun-
dade: não terão qualidades tanto o ar - nem técnicas, nem sensoriais, cionamento higiênico e produtivo da cidade-máquina moderna: reutili-
nem existenciais -, quanto o "desenho" improvável dos objetos. Frente zará o prato-industrial já abandonado ou os produtos industriais mais
aos usuais padrões de qualidade, o imediatismo aparecerá como um denegridos, aqueles que passaram da moda. A materialidade será arti-
valor existencial: o barato - o de graça- é, agora, o melhor. Como resul- ficial, reciclada e descontextualizada, estendendo o critério já men-
tado de tudo isso, a apropriação será uma técnica exemplar, que mostra, cionado a todos os momentos do projeto desta casa. Definitivamente,
até a evidência, como se coloca o habitante desta casa frente ao ciclo esta casa possui dois antiarquétipos: não apenas a casa positivista dos
produção-consumo. Será uma espécie de parasita oportunista: à mar- Arpel, mas também a casa existencial, o refúgio protetor do homem
gem dos valores dominantes, mas vivendo deles, apropriando-se de seus interior e sua linhagem, enraizado no lugar e na natureza. Como antípo-
resíduos, jogando contra o ciclo consumista. Aparecerá, assim, uma cate- da de ambos, o habitante comuna! prescinde da família e das essências,
goria estética nova, o "retrô", a valorização do que o ciclo acelerado da da fé no progresso e na natureza. Constitui-se como puro exterior sem
moda abandonou e a sua conversão em antigo-moderno, uma espécie finalidade edificante: sua meta é o jogo, a festa, a risada coletiva.
de micromemória de curtíssima duração. A reciclagem de resíduos tem, reciclagem Caberia uma última digressão a respeito do destino do 1oft warholiano,
assim, uma estética associada que se concretiza em uma domesticidade de sua operatividade como arquétipo, pois poderia parecer que a idéia de
construída com objetos descontextualizados. Estes resíduos reciclados apropriação não permite um possível projeto ex-novo, mas apenas uma
tendem a não pertencer ao âmbito doméstico. O que é divertido e origi- reiterativa reprodução do modelo do SoHo em quantos bairros de caráter
nal, criativo e lúdico, é a incorporação de peças cujo âmbito de aplicação industrial que se coloquem à disposição de sua reapropriação residencial.
é estranho à tradição da casa: fragmentos de automóveis, restos de O que até aqui se descreveu tem, em grande medida, exatamente o obje-
bares, de mobiliário urbano, de discotecas e clubes, de ônibus ou aviões, tivo contrário: ao visitar a Factory, e, através dela, a experiência do 1oft
são agora o que melhor define o âmbito doméstico tribal. O que unifica nova-iorquino, o que se torna evidente é que há toda uma técnica de pro-
!
este ambiente é o humor, a hilaridade que provoca a descontextualização, humor jeto a se desenvolver. Técnica que passa pela apropriação da construção
um humor que é o tom existencial dominante na casa, a conseqüência

134
l -
mais banal, o armazém ou o galpão, como provedora de um grande

135
( i

(
volume, a um preço acessível, sobre o qual se pode operar com instrumen- popular. São exemplos como estes que nos permitem assumir este
tos de baixíssima determinação programática e formal, deixando ao arquétipo como uma forma de pensar, construir e habitar a casa, cuja
c
usuário um grande leque de possíveis apropriações do mesmo. Alguns atratividade abarca desde a luta política e as elites artísticas, até os (
projetos, como a casa Davis, realizada por Frank O. Gehry em 1972, grupos sociais cada vez mais numerosos e expectantes, desejosos de c
reproduzem, em exemplos isolados, os valores espaciais, materiais e obje- desenvolver sua criatividade no âmbito doméstico mediante uma apro- (
tais do 1oft, o uso do galpão sem atributos como um envolvente simples e priação lúdica de grandes volumes de ar sem qualidades, este volume de
generoso, a improvisação programática e sua materialidade descuidada, ar paradoxalmente "superficial", pronto para uma apropriação imprevisí-
o uso de técnicas e objetos descontextualizados. vel, capaz de satisfazer a idéia de domesticidade de seus habitantes.
Mas enquanto o programa - uma casa-estúdio Através do 1oft teremos aprendido a pensar o espaço doméstico como
para um pintor de vanguarda, ao norte de Los algo que pode permanecer alheio a todas as determinações funciona-
Angeles- permite esse desenvolvimento espacial
em sintonia com o 1oft nova-iorquino, no caso de
' listas, como um espaço generoso e indeterminado, em que alguns
mínimos atributos domésticos permitirão um estilo de vida desregrado,
uma pequena casa em Floriac, realizada por liberador, ligado à melhor tradição contestatória do século. Não obs-

-_-_ ~
Lacaton e Vassal (1993), o programa é conven- tante, para concluir, conseNaremos na retina essa duplicidade da sala
cional: a casa é habitada por um casal com filhos
cujos valores e forma de viver pertencem, ou
r--r- prateada da Factory e do denso quarto de Andy Warhol, essa duplici-
dade que nos assinala os limites desta modalidade doméstica, ao
(
(
desejam pertencer, a um âmbito cultural alterna- mesmo tempo em que amplia nossas expectativas, nosso desejo de ir (
tivo. E esta obra responde a essa aspiração com além. Não se trata de emitir juízos sobre essa duplicidade, numa atitu- c
um grande rigor, sem perder nem um pouco da de estupidamente moralista. Trata-se de entender até que ponto a pri- (
energia e da forma do galpão dilatado - que, vacidade é paradoxal, contraditória, misteriosa, até que ponto seria (
aqui, inclui uma enorme porção de ar de grande possível um projeto, uma forma de pensar a casa, que retirasse sua
ambigüidade graças ao uso do policarbonato -, energia de semelhante reflexão, que lançasse longe o que de liberador
c
(
nem do imprevisível desenvolvimento e da indefi- há nesta tradição doméstica do século xx.
nição do espaço interno realizado com técnicas (
próprias da bricolagem. Esta idéia de extensão do arquétipo do 1oft a (
uma forma tipológica a princípio estranha pode ser exemplificada, ainda ( ·
mais radicalmente, com o projeto Nemausus de Jean Nouvel, realizado (
ern Nlmes em 1987, um sério esforço de estender este arquétipo ao
(
terreno da promoção pública de habitações. Encontramos nesse proje-
to o princípio volumétrico do 1oft: metros cúbicos indeterminados, aber- (
tos a uma apropriação criativa, em um experimento cujo êxito é inegável (

por possibilitar uma ampliação da oferta pública de habitações, e uma (


ampliação não apenas no sentido distributivo, mas também no concei- C:
tual, já que rompe com a jaula moderna precisamente ali onde ela é mais
(
densa, mostrando de maneira convincente os resultados que podem ser
(
obtidos sem que se extrapolem os limites econômicos da habitação

136
-I
Cabanas, parasitas e nômades:
a desconstrução da casa
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"Desde os anos sessenta, o discurso sobre o sujeito v~m experimentan- c
do um giro explicitamente anti-humanista, tanto na filosofia, quanto na ( )
arquitetura. Na filosofia deste período, ou, mais precisamente, na teoria
(
-já que a prática pós-moderna provocou um deslocamento da filosofia -,
a desconstrução da tradição humanista fundamenta-se na radicalização (
dos textos de pensadores modernos como Marx, Nietzsche, Heidegger (
e Freud. Uns poucos textos trarão o indício de uma tendência generali- (
zada: desde a leitura de Althusser, em Para Marx, do humanismo como ( '
ideologia burguesa perniciosa, em que se aponta o seu 'anti-humanismo
(
radical teórico' com base no 'pré-requisito absoluto do mito filosófico
1'-
(teórico) do homem reduzido a cinzas', passando pela reafirmação de
Jacques Lacan de que a 'verdadeira descoberta de Freud' seria a 'radi- (
cal excentricidade do eu' , e pelas sistemáticas interpretações de Michael
• Foucault sobre as repressivas negações e reduções das diferenças inte- (
lectuais, psicológicas e sexuais cometidas pela razão moderna e suas (
derivações na 'morte do sujeito', em As palavras e as coisas, até a críti-
(
ca sustentada por Jacques Derrida sobre a metafísica do humanismo e
o pensamento logocêntrico. Através destes escritos, a ideologia moder- c
na do 'homem' como origem subjetiva e limite interpretativo do sentido c
e da realidade é enfrentada por um esforço anti-humanista determinado (
a eliminar da filosofia o que Jean François Lyotard chamou de 'obstácu- c
lo humanista'." (
Michael Hays
c
"Não estou falando de fazer casas feias, o que estou dizendo é: supo-
nhamos que façamos uma casa que não é simplesmente um 'lugar feliz', ( '

que está por um fio de ser misteriosa, que contém o sublime, um ele- c
mento de incerteza e, talvez, de terror. Algo que esteja além da beleza ... " (.
Peter Eisenman (
(
Vamos, agora, visitar uma casa construída em um meio virtual para um
habitante em potencial, o sujeito cuja desconstrução tem sido o obje- (
I

to de uma parte importante do pensamento contemporâneo, desde (


II Foucault e seu polêmico enunciado sobre a morte do sujeito, de óbvios ( ,
I· ecos nietzschianos, até Deleuze e Derrida. Um sujeito pós-estruturalis- (
i ta ou pós-humanista, que gravita em torno de um grande número de
(:
I (
L 141
experimentos levados a cabo em ambientes acadêmicos americanos e por obra do pretendente, os códigos de identificação dqs componentes
europeus nas duas últimas décadas do século xx, até adquirir uma enviados haviam sido alterados, não coincidindo com os do manual.
influente presença virtual. Não se trata, portanto, de uma casa materia- Ainda que logo fique evidente a ocorrência de algum erro, Keaton não
lizada, de um arquétipo que foi se formando no espaço cotidiano da vida tem alternativa alguma, nenhum outro modelo de pensar que possa opor
e da cidade, mas, em grande medida, de um constructo mental: a casa ao do manual, e, assim, procederá cegamente a uma construção maquí-
reprimida pelos fatores que compõem essa realidade cotidiana, a nica, cujo resultado final será uma cruel metáfora do futuro do casal e da
casa que, com sua mera presença latente, coloca em questão a com- instituição da família em nossos dias. Finalmente, depois de incontáveis
pacidade e a coerência objetivistas com as quais essa realidade se nos peripécias, a casa será destruída pelo mesmo trem que a havia trazido.
apresenta como algo concluso e tangível. Não obstante, deve-se Assim, então, não apenas a casa, mas também o casal, que sobre ela
advertir, desde o início, que tudo o que existe potencialmente, existe na projeta suas ilusões de uma domesticidade feliz, dissolvem-se, eviden-
medida em que sua virtualidade é suscetível de atualização, que o fato ciando-se os vínculos estreitos entre a incapacidade de opor estratégias
de que esta casa habite hoje na realidade virtual não apenas não a dis- materiais alternativas e a crise das instituições que se consolidam atra-
tancia do cotidiano, mas também lhe confere uma posição que talvez vés dessas práticas materiais, neste caso, a família, ou o casal.
lhe permita atuar sobre o espaço dos fenômenos tangívei~, da realida- Há, sem dúvida, uma similitude entre Keaton e Tati, na maneira como
de cotidiana, com maior precisão e capacidade descritiva. Esta casa ambos parodiam a dificuldade de sobrevivência do sujeito tradicional
virtual pode ser um instrumento para se elucidar, e, se se quiser, para no mundo contemporâneo. Porém, enquanto a casa de monsieur
se criticar o que se tornou a domesticidade nesse fim de século. Hulot, seu espaço doméstico, é, integralmente, uma alternativa à dos
Visitar esta casa é, em si mesmo, um ato problemático: não são apenas Arpel, Keaton não só renuncia a todas as alternativas, mas é e se sente
.I
as possibilidades de existência da casa como lugar de uma privacidade incapaz de opor qualquer lógica compensatória, aceitando os erros
inocente o que se questiona nesta visita, mas também a pertinência das como uma parte da norma e habitando a impossibilidade mesma de se
práticas sociais, materiais e de projeto que a tornam possível: é tanto a construir uma casa convencional.
instituição da famma, quanto a da arquitetura - definitivamente o "lugar Alterações para uma casa suburbana (1978) é o título de uma propos-
I feliz" - o que, a partir da ótica pós-estrutural, passa a estar sob sus- ta, nunca executada, de Dan Graham, em que uma típica casa subur-
peita, demandando uma "sacudida estrutural". bana - semelhante à que Keaton deseja construir - experimenta uma
Para tornar visível, passível de visitação, a casa deste sujeito "pós- transformação radical: a fachada frontal é substituída por um grande
I I
-humanista", não invocaremos, como fizemos em relação aos outros pano de vidro - gerando uma imagem a meio de caminho entre
I I arquétipos, um ou dois exemplos marcantes, mas um sem número de Lewittown e um pavilhão moderno -, e, em um vão, é instalado um
li referências, uma constelação de casas que, em sua diversidade mesma, espelho contínuo. A casa, seus habitantes e hipotéticos espectadores,
evidenciará a alteridade e a multiplicidade próprias deste modo de pen- vêem, assim, radicalmente modificadas suas relações: o que antes era
sar e de habitar. E começaremos com a casa que um Buster Keaton privado passa a ser público; o espectador, incorporado à cena domésti-
apaixonado e recém-casado deseja construir, para seu par e para si, ca através do espelho, passa a participar da privacidade do habitante,
como uma celebração de seu casamento. Em One Week (I 920), um dos destruindo-a; desmancham-se os limites entre o privado e o público,
primeiros curtas que protagonizou, Buster Keaton tenta, de todas as for- tornando-se impossível distinguir quem é, e onde está, cada um.
mas, levantar a casa pré-fabricada cujos componentes lhe foram envia- O habitante da casa, contudo, ainda tem um segundo setor - hipoteti-
dos, por trem, como presente de um antigo pretendente de sua mulher. camente destinado aos quartos e banheiros -, onde pode continuar
Junto aos elementos construtivos, chega um manual de instruções, mas,

142
1 vivendo uma intimidade convencional. Não obstante, o que se faz,

143
\

aqui, é denunciar a dissociação que o sujeito experimenta ao


(
viver, sob duas formas tão profundamente diferenciadas, um
(
mesmo espaço doméstico.
A proposta de Graham pode ser entendida como uma ence- c
nação realista do sujeito contemporâneo, ao mesmo tempo (
invasor e invadido em sua intimidade, estrangeiro sempre. E é (
também uma técnica de projeto em que se opta por uma
intervenção restrita à manipulação de linguagens e elementos
formais já dados: o trabalho do artista consiste em apresentá-
-los de forma que o que não é visível - visualmente e ao pen-
samento, e, por isso, aos olhos -, uma vez desconstruído ou
descontextualizado, torne-se evidente. Todas as pautas e gra- ( _
dações do público ao privado, através dessas leves altera-
ções- virtuais, sugeridas apenas-, reveladas, sublinhando-se
o microcosmo de regulações e codificações que o âmbito
doméstico estabelece para o sujeito contemporâneo.
Há mais de uma coincidência entre as casas de One week e (

Alterações para uma casa suburbana e duas casas projetadas (


por dois arquitetos singulares no final do século xx: a House VI, (
construída por Peter Eisenman em Washington, Connecticut I .
\
(1 972-1975), e a casa que Frank Gehry fez para si mesmo, em
(
Santa Monica, Los Angeles (1 977-1 978). Se as janelas de
(
Keaton saem da altura do teto e são distorcidas, se não há
porta, e o telhado está pela metade, se as escadas não levam a (
I
lugar algum e o alpendre pode se desmanchar num sopro, pra- (

ticamente todos esses elementos encontram-se revisitados nas (


duas casas, aqui como lá, construídos com a mesma fé no cará- (
ter fatalmente determinista do processo mecânico que induz a
(
essa configuração. Enquanto em Gehry encontraremos analo-
(
gias mais explicitamente formais e "construtivas", em Eisenman
as semelhanças serão de caráter mais processual, e, por isso, (
mais precisamente referenciadas a Dan Graham. Eisenman agirá (
ao mesmo tempo como o construtor iludido e como o perverso (
subversor de normas: as escadas não conduzem a parte algu-
ma, uma coluna suspende-se no ar, a copa é recortada por uma
( '
(
outra incômoda coluna, que fica ali como um convidado indese-
(
(
jável, as camas do casal encontram-se separadas por um grande fosso reduzidos a nada mediante esse processo de intensifica9ão dos vínculos
no piso do quarto principal. .. O trabalho do arquiteto,. nesta casa, torna- entre os saberes e o poder. O homem já não é mais um indivfduo livre e
-se claramente esquizóide. De um lado, vale-se de uma série de conheci- central, que cria e constrói à sua imagem e semelhança: é um produto
mentos - em especial todo o legado sintático da modernidade - para que social, funcional a determinadas relações de poder, cujas pautas de com-
a casa possa ser construída; de outro, como Dan Graham, converte-se portamento estão submetidas à vigilância. Já não existe harmonia entre
em um comentarista crítico radical, cuja principal incumbência é questio- corpo e razão. O corpo foi "reificado", coisificado, convertido em objeto,
nar toda a convenção institucionalizada - a começar pela figura mesma incapaz de qualquer ação individual alheia às necessidades do Estado.
do arquiteto e pela arquitetura. Peter Eisenman imita Keaton, convencido O sujeito já não é mais um produtor individual de significados, mas, sim,
de que há mais verdade e mais "espírito ·dos tempos" em sua atitude atitude maquínica um conglomerado heterogêneo, com perfis desvanecidos, um movimen-
maquínica, do que em todos os discursos consoladores, do que em todas to, uma "entidade variável e dispersa, cuja verdadeira identidade e cujo
as reconstruções do sujeito que a filosofia intenta. verdadeiro lugar constituem-se nas práticas sociais", tal como Michael
O que ocorreu com o sujeito normal -o que submete-se à norma- para Hays descreveu em seu Modernism and the Posthuman Subjeçt (1992).
que se convertesse neste agente cuja única capacidade de expressão Algo que somente pode ser enunciado no plural, como multiplicidade.
consiste precisamente em sua incapacidade, tanto para opor resistência Assim Blanchot escreve, em palavras mais belas, a propósito da morte do •
às normas, quanto para, com êxito, desenvolvê-las? Este personagem, homem foucaultiano: "o sujeito não desaparece: é a determinação da sua
sem dúvida, é um dos que mais tem interessado ao pensamento con- unidade que é problemática, já que o que suscita o interesse e a investi-
temporâneo; é nele, com maior ou menor precisão, desde Foucault, que gação é precisamente a sua desaparição (ou seja, esta nova maneira de
têm pensado os principais críticos pós-estruturalistas franceses - ser que consiste na desaparição), ou mesmo a sua dispersão, que, embo-
Blanchot, Deleuze e Guattari, Lyotard, Derrida. Suas práticas materiais e ra não chegue a aniquilá-lo, não nos oferece dele mais do que uma plura-
sua instalação no mundo são objeto de estudo e de investigação nas lidade de posições e uma descontinuidade de funções."
melhores academias de arquitetura, como reflexo do prestígio alcançado Este retrato do sujeito contemporâneo como uma "nova maneira de ser
pelo pensamento pós-estruturalista, um fenômeno que somente muito que consiste na desaparição" adquire, no pensamento contemporâneo,
parcialmente será descrito sob a epígrafe "desconstrutivista", ainda se o distintas formas: o parasita de Derrida, os nômades de Deleuze e Guattari,
resultado obtido por Keaton, não por casualidade, remeta-nos instanta- ou a figura do vagabundo em Lyotard, entre outros, representam este
neamente a esta corrente do pensamento. Se queremos conhecer sua retraimento ou marginalidade do perfil do suje~o contemporâneo.
genealogia, teremos que nos referir à "morte do sujeito", enunciada por morte do sujeito Quando Derrida usa analogias arquitetônicas para descrever sua ativida-
Foucault em As palavras e as coisas como um eco de Nietzsche que, de "desconstrutora", ele o faz basicamente por meio de duas figuras: a
agora, porém, problematiza a idéia mesma de sujeito em que se fun- o parasita do edifício e da estrutura da metafísica, e a do "parasita", que represen-
damenta toda a experiência da modernidade, desde o humanismo clás- ta o objeto e o sujeito de seu pensamento. Através da primeira imagem,
sico. Michel Foucault, partindo de uma metodologia de análise baseada propõe um programa - "escavar sob o cimento do edifício da metafísi-
na "filosofia da suspeita" nietzschiana, perscrutou os modos através dos ca ... "- formulado explicitamente como uma prolongação do iniciado por
quais os saberes das novas ciências humanas constituem-se em instru- Heidegger, enquanto com a segunda, the para-site, o que está fora do
mentos das relações de poder, e o conhecimento adquirido através do sítio - outra imagem topológica-, descreve a atitude, o procedimento, a
desenvolvimento das ciências humanas, em seu arco clássico, resulta em mecânica desconstrutiva que, como no caso de Keaton e de Graham,
novas formas de dominação e crueldade, em última instância, como o não oferece qualquer alternativa, desenvolvendo-se como pura crítica,
sujeito clássico e o seu precedente, o homem do renascimento, foram como desconstrução. Entendido como modelo, o parasita é o intruso

146 147
\

que se instala na vida de terceiros - aqui, as outras formas de pensa- somente é deserto ern função de sua cor ocre e de s~a luz, ardente e (
mento -, evidenciando, com sua presença única e impertinente, a com- sem sombras. Nele, há uma multidão buliçosa, um enxame de abelhas,
plexa trama de leis e convenções secretas, não formuladas, cotidianas, uma melê de jogadores de futebol ou um grupo de tuareg1,1es. Eu estou
(
que tecem a rede da segurança e dos mecanismos de defesa privados, à margem dessa multidão, na periferia, mas pertenço a ela, estou unida
o conjunto de normas com as quais se organiza a violência no âmbito a ela por uma extremidade do meu corpo, uma mão ou um pé. Sei que (
doméstico e, através dela, por extensão ou por oposição, a violência no esta posição periférica é o único lugar possível para mim: eu morreria se
âmbito público. me deixasse arrastar até o centro da melê. E, no entanto, o mesmo (
Gilles Deleuze trabalhará sobre uma das patologias resultantes desta aconteceria se eu a abandonasse. Não é fácil conservar esta minha (
violência, a esquizofrenia, para propor uma visão permeada por essa posição, diria até que é muito difícil mantê-la, porque aqueles seres
incapacidade de distinguir o normal do alucinante, de construir totali- movem-se sem parar, seus movimentos são imprevisíveis e não obede-
dades coerentes. Mil platôs (1 980), escrito com Félix Guattari, é uma cem a ritmo algum. Ora eles se amontoam, ora dirigem-se ao norte, e, l
panorâmica múltipla e caleidoscópica do universo das sociedades capi- logo, repentinamente, a leste, sem que nenhum dos indivíduos que (
talistas, a partir de uma ótica atravessada por seus próprios efeitos psí- compõem a multidão mantenha a mesma posição em relação aos
quicos. Nela, os nômades afiaram como sujeitos cujas práticas sociais demais. As.sim, também estou em perpétuo movimento, e isso exige
poderiam ser vistas como um modelo de ação capaz de se opor, cons- uma grande tensão, mas ao mesmo tempo me proporciona um senti-
(
truindo "máquinas de guerra", ao estado moderno e ao seu modelo hie- mento violento, quase vertiginoso, de felicidade."
(
rárquico/pastoral. Em Mil platôs confundem-se o vaguear da visão esqui- A similitude da imagem deleuziana do nômade com as mudanças de
zóide entre um exterior e um interior nem sempre concordantes entre si, conduta nas sociedades avançadas - derivadas, em grande medida, (
e os modos de organização, de percepção e de conhecimento nômades, de mudanças simultaneamente econômicas, tecnológicas e demográficas- (
oferecendo ao sujeito uma posição possível, descrita por princípios de
organização rizomáticos - de conexão e heterogeneidade, de multiplici-
visão esquizóide
e princípios
é, sem dúvida, mais do que uma coincidência oportuna. Em termos socio-
lógicos, esta nova forma de ser é convencionalmente descrita como um
s
(
dade, de ruptura a-significante, de cartografia e decalcomania-, contra- rizomáticos aumento da mobilidade e, paralelamente, como uma diminuição da
( 1
postos aos clássicos modelos arbóreos ou piramidais, do tipo causa-efei- importância da família e da razão doméstica, essa associação tradicional
(
to, implícitos nas formulações científicas e filosóficas tradicionais. estabelecida entre um lugar, uma casa, uma linhagem familiar e uma loca-
(

Por outro lado, a idéia de um espaço "liso", implícito à mobilidade nôma- espaço liso atomização lização física em que se inscreve a própria existência. Atomização e mobi- (

de, frente a um espaço "rugoso", ligado ao sedentarismo e, através dele, e mobilidade lidade que conduzem a urna instalação no mundo fugaz e individualizada,
ao Estado Moderno, contém e é capaz de desenvolver o léxico neces- paralela, em grande medida, à mobilidade do capital em sua implantação
sário para se elaborar a proposta de um programa de trabalho baseado pelo território, pois ambos, indivíduos e capital, utilizam-se dos meios pro- (
no abandono de algumas das categorias mais estáveis, associadas à porcionados pelo desenvolvimento técnico como infra-estrutura vital e cul-
(
disciplina arquitetônica. Deleuze define um sistema de filosofia diferente tural. Este novo sujeito social é, assim, ao mesmo tempo, resu~ado e
do genealógico e hierárquico, presente nas formas tanto dedutivas, braço armado da globalização econômica do território. Para as civilizações
quanto indutivas de raciocínio, o qual encontra no deserto - na des- ou os habitantes sedentários, este sujeito, assim como todos os nôma- (
crição feita por um esquizofrênico de um sonho sobre o deserto - a des, é um parasita, um depredador que usa as cidades, e que, embora (
metáfora heurística e espacial que o explica: "Há um deserto. Mas nem tenha delas se originado, contribui, a partir de sua perspectiva, para a sua ( i
por isso faria sentido dizer que estou no deserto. Trata-se de uma visão destruição, na medida em que opera contra elas, como um fagócito que (
panorâmica do deserto. Esse deserto não é trágico, nem desabitado: tomasse para si todos os benefícios de um esforço que é coletivo.
\
148 149 (
•,

t' I 111

til Não se trata, portanto, do surgimento de um perfil ~specífico, de um


.i li novo sujeito, como foram o burguês e o proletário em seus respectivos
"1 11
momentos históricos, mas de um florescimento simultâneo de um con-
junto de pautas sociais que têm como denominador comum a recusa
'111
do modelo tradicional da família como referência vitaL Este sujeito con-
111

r
( verte-se no objeto de um sistema operativo, o do capitalismo tardio,
que exige uma diferente identificação do corpo social com os seus pró-
11[ prios processos de crescimento, atomização, ubiqüidade e globali-
ti li zação. Para David Harvey, autor de The Condition of Posmodernity

r~~ (1990), a expansão econômica sobre o território global demanda uma


nova capacidade de deslocamento correspondente à superacumu-
li 11 lação e aos problemas inerentes a ela. Os fluxos econômicos adotam,
111 agora, as pautas espaciais de um regime de acumulação flexível que
regime de
li il
!
acumulação inverte o modelo fordista-keynesiano segundo um novo enunciado:
~~ ~ flexível "Quanto mais flexíveis e desarticuladas são as estruturas locais, espaciais
ou temporais, materiais ou sociais, mais estável é o sistema ao nível glo-
f' I 1 11
bal". Encontramo-nos, assim, frente a um sujeito contraditório, pensado

r
(Oeleuze) como uma alternativa aos desenvolvimentos do capitalismo e,
paralelamente, descrito (Harvey) como o produto dos novos sistemas de
. j 11
acumulação flexível do caprtalismo globalizante, um sujeito ao mesmo
I i tempo negativo e funcional às necessidades de atomização e ubiqüida-
)I de criadas pelas novas pautas econômicas. Talvez através desses para-
li doxos possamos entender o que se quer dizer quando se recorre à
expressão "perfil desvanecido" para descrever a imagem deste sujeito.
I
À medida em que se desvanece o perfil do sujeito tradicional, desva-
li
nece-se não apenas a sua associação a um modelo antropocêntrico
li clássico segundo a visão etnocêntrica ocidental - o da família patriar-
) I cal, ou melhor, o do pater famílias-, mas também a sua ligação a uma
li linhagem ou a um lugar específicos. Seus limites e seus perfis tornam-
li -se desvanecidos em função tanto da fugacidade de sua fixação e dos
contatos com os seus semelhantes, quanto do abandono de um
ri
modelo racionalizável de mobilidade e comportamento, submetendo-
-se este, sob os novos fundamentos econômicos, a uma "randomi-
zação" tão crescente quanto a do mercado financeiro.
Toyo lto investiga este modelo de conduta, do ponto de vista da arqui-
tetura, estudando suas implicações no espaço doméstico através de

151
seus projetos para a "mulher nômade de Tóquio" (Pao 1, 1985, e Pao 2,
1989). O que Toyo lto projeta ali são estruturas ao mesmo tempo míni-
mas e tênues, verdadeiras cabanas ou barracas, nas quais apenas se
encerra o âmbito da privacidade. Nelas habita uma figura emergente e
especialmente singular no Japão: uma mulher jovem, independente,
ociosa e consumista, um sujeito em si mesmo banal, mas que, com sua
mera presença- parasitária-, coloca em questão a trama social japo-
nesa, altamente hierarquizada, sexista e tradicional. E não é só isso: ao
trasladar esse objeto de estudo, das suas heróicas formulações - o
super-homem nietzschiano, a família-tipo calvinista, o "autêntico" sujeito
existencial -, até esta protagonista, Toyo lto assinala aquele desloca-
mento de interesses, no pensamento contemporâneo, de um certo ano-
nimato- Any é a feliz expressão que Peter Eisenman usa para descrevê-
-lo e para denominar o sistema a partir do qual é investigado -, até um
afastamento expresso do sujeito heróico, centrado, masculino e domi-
nante, no qual todas as correntes do pensamento ocidental haviam se
comprazido até recentemente.
Não casualmente a casa, o espaço privado, sofre, a partir desta perspec-
tiva, uma transformação completa. A casa, como forma, como módulo
disponível para a agregação, como entidade reconhecível e como espaço
interior submetido a um zoneamento, deixa de ser interessante, de ser o
lugar no qual se resolve o projeto. Problemático, e importante, agora, é
o meio em que a mulher nômade realiza a sua existência: um conjunto de
artefatos ou móveis nos quais a técnica ou a memória já não são reco-
nhecidas como signos, meros instrumentos para o hedonismo- nos quais
a velha privacidade encontra-se dissolvida. Estes objetos são escolhidos
em função de seu vínculo com as principais atividades desenvolvidas pela
mulher nômade, conformando um programa estritamente relacionado ao
que há de mais imediato na sua existência diária: o embelezamento
(o toucador), a informação (uma mesa de telecomunicação) e o repouso
(uma mesa e uma cadeira). As perspectivas funcional, existencial ou feno-
menológica foram anuladas, reduzidas a um puro hedonismo consumis- hedonismo
ta, um hedonismo que se resolve na mecânica da sedução (a mulher consumista
nômade maquiando-se para sair), e na fugacidade existencial propiciada
pelas práticas econômicas, numa perspectiva que converte os artefatos
- as máquinas, os móveis, e também a decoração - em objetos.

152
A mulher nômade é um parasita da cidade - agora concebida como a a consciência de que, ao desfrutar de suas horas de desc~mso, estão na
infra-estrutura para o seu ócio e para o seu trabalho - e, assim, 'des- realidade trabalhando." Assim, pois, a cidade habitada pelos novos
barata os limites da casa, da sua privacidade, até convertê-la em um nômades não é apenas a que tem presença física, mas também aquela
lugar fragilíssimo e pequeno, usado exclusivamente para se recompor definida pela circulação contínua de fluxos invisíveis, fiuxos de infor-
e para se organizar a agenda. A casa da mulher nômade foi instalada mação e econômicos que provocam uma drástica mudança de escala:
na cidade. Seu nomadismo é agora urbano e consumista, exercido a cidade em que vive o sujeito pós-humanista é o mundo inteiro, a cida-
sobre o meio mais denso que se conhece: a cidade de Tóquio. A mu- de global, ou, se se preferir, a "cidade genérica", uma entidade asso-
lher nômade, porém, não resiste a seu meio, nem atua, ou exerce ciada intrinsecamente ao desenvolvimento científico e à economia de
pressão sobre ele, apenas se dispõe a ser objeto das ações e ofertas mercado, que subentende a compreensão do território como infra-
por ele propiciadas: sua existência é uma imolação ao consumo, que estrutura para a circulação da mais-valia, organizada não tanto pela
nela se encarna, adquirindo realidade física. Ela não se insere na cida- concentração geográfica da mais-valia - a cidade industrial -, quanto
de do trabalho, do transporte, da família e do ócio, nessa cidade- pela integração econômica, através da oposição desenvolvimento/sub-
-máquina-de-produzir em que habita: se as suas barracas se dispõem desenvolvimento.
na cidade, elas o fazem flutuando, pousando sobre lugares privilegia- David Harvey assinala a compressão espaço-temporal que a ubiqüida-
dos, sobre as atalaias conformadas pelos arranha-céus do centro de telemática e a lógica do capital impõem como sua característica
comercial. Como insetos ou vaga-lumes, colocam-se ali de onde a mais singular, capaz de modificar a percepção da cidade e do território.
cidade oferece um magnífico espetáculo de luz e agitação, transfor- The Generíc Cíty (1994), escrito por Rem Koolhaas - uma revisão de
mada em uma segunda natureza que convida a passear e a consumir. seus postulados teóricos, concluída vinte anos depois de Oelíríous New
A mulher nômade é parasitária porque não produz como os habitantes York (1994) - é uma descrição céptica e cínica desse magma global e
sedentários. Não obstante, cumpre uma função na mecânica do capi- de sua mecânica homogeneizadora, utilizando como referência já não
talismo pós-industrial, pois o seu consumismo é funcional ao sistema: consumismo mais Manhattan, demasiado precisa e "européia" -ou seja, demasiado
evita a superacumulação e regula a fluidez da circulação de mercado- funcionalista pronta, também culturalmente -, .mas a imensa expansão do fenô-
rias (lembremo-nos de que no Japão ocorre essa situação inusitada em meno urbano no sudeste asiático, a explosão das megalópoles para as
que as autoridades exortam os cidadãos a consumir mais). quais a economia de mercado, o regime de acumulação flexível, dire-
Javier Echevarría, em seu ensaio Telépo/ís (1994), explica, como ninguém, cionou sua implantação global. Nessas r:negalópoles, vem se configu-
esse paradoxo da sociedade contemporânea em que o consumo pas- rando um novo meio de difícil categorização, nem natural, nem artificial,
sou a ser tempo produtivo, uma contradição no sentido estrito, que pode um meio que se impõe, por si só, como uma segunda natureza, uma
ser exemplificada pelo "tele-segundo", essa unidade de ócio passivo que paisagem contínua, homogênea e fluida, na qual fenômenos biológicos,
a publicidade converte em fonte geradora de riquezas. "Através do tele- tais como o crescimento e a decadência, a instabilidade, a auto-simili-
-segundo, não foram apenas os meios de produção que se modificaram, tude, a violência e a mutação, podem ser observados como até então
nem tampouco unicamente o modo de produção (e de consumo), mas somente se fazia na natureza. Algo que está presente no texto, e espe-
a estrutura mesma da tríade produção/comércio/consumo.[ ... ] Telépolis cialmente nas imagens referenciais de The Generic City, propositada-
subverte a estrutura do mercado, fazendo com que o autêntico ato de mente desvanecidas: um esfumado que a tudo iguala e, ao mesmo
comprar passe a ocorrer sem que o comprador gaste dinheiro, ainda tempo, aponta para a instabilidade de que se constitui essa paisagem,
que gaste tempo [...] muitas formas de ócio foram transformadas em remetendo, mais uma vez, ao anonimato e à imprecisão do sujeito que
trabalho produtivo, em muitos casos, sem que os ociosos tenham a protagoniza .

.154 155
' li
. \

Voltemos à imagem das cabanas ~utuando sobre Tóquio !3 vejamos agora (


como a cidade perdeu, nelas, sua identidade, digitalmente transformada
\ !
numa cidade desfocada, "genérica". E vejamos como as CÇJ.banas pou-
sam como parasitas neste meio já quase natural, simultaneamente estan- (
do e não estando nele, diferenciando-se em seu tamanho, minúsculo, e (
em sua autonomia, pois não formam um corpo social: sua disposição não (
é coerente, mas aleatória. Uma disposição diferente, externa ao sistema,
mas funcional a ele, tal como a geometria que as define, sublinhando a
sua alteridade em relação às formas de viver a cidade e o âmbito privado.
A privacidade, reduzida ao mínimo, somente está protegida por um fino
véu, uma segunda pele que envolve uns poucos objetos.
Como cabanas primitivas, ànunciam um modo de se instalar no mundo
contemporâneo permeado por sua própria fugacidade, sem memória, nem 'I
(

presente contínuo, futuro, em um presente 'c9ntínuo telemático e em um espaço ubíquo ç


espaço ubíquo nem sempre idêntico a si mesmo. O sujeito pós-humanista habita exter-
namente, provisoriamente, esse magma cujas leis de organização caótica
(
nem sequer lhe pertencem. Está dentro e fora: como o parasita, não é
convidado, nem estranho, apenas cumpre a sua função como elemento c
integrante do sistema global. Tarzãs numa floresta midiátíca, assim como
os define Toyo lto em um texto, esses sujeitos transformaram a cidade (
genérica em sua natureza. Contudo, eles não são iguais entre iguais.
Do mesmo modo que o agricultor não vê a paisagem, que somente se ofe-
rece ao olhar do viajante ocioso, são turistas, hóspedes temporários na
posição cidade global. Sua posição é heterotópica, seu olhar é aquele que avista o
heterotópica mundo de fora dele. Não habitam propriamente: provisoriamente hospe-
dam-se. É em sua mobilidade, em seu trajeto, que esses sujeitos podem ~ I

se registrar; não há em sua concepção espacial um mundo de fundos e (


figuras, mas ~uidez, fugas, continuidades e vórtices. Sua percepção é a do
(
nômade, e seu espaço, um espaço feito de continuidades e singularida-
des, o espaço "liso" que Deleuze contrapõe ao espaço "rugoso" próprio
da percepção sedentária, da cidade e da casa institucionalizadas.
Como se poderia compreender a materialidade dessas cabanas para os (
novos tarzãs? Que técnicas de projeto requerem ser desenvolvidas? (
Talvez seja o momento de visitar a Casa Virtual do Foreign Office (1 996), (
uma casa sem outro cliente, nem outra localização, que não um seminá-
(
rio de arquitetura organizado por Any, o meio de difusão pós-humanista
<
157 (
em torno de Peter Eisenrnan: um lugar e um cliente paradigrnáticos, cujo
objetivo é o de ensaiar os novos valores e técnicas com os quais deve se
construir a casa pós-humanista. E assim a interpretarão seus autores,
como uma versão da cabana primitiva do abade Laugier, atualizada atra-
vés do olhar deste sujeito nômade para o qual a natureza já não é um
terreno virgem e inocente, mas uma construção cultural, uma metáfora
heurística da cidade global cibernética, sua verdadeira natureza.
Desta maneira, sua percepção encontrar-se-á impregnada pela visão
deleuziana do espaço liso; a paisagem é um material contínuo - a própria
cidade - atravessado por linhas de fuga, provisoriamente parasitadas.
O lugar da casa não é mais do que uma densificação do trajeto, um nódu-
lo, um vórtice onde se concentram e se vincam intensidades para definir a
expressão mínima do hab~ar, da idéia de interior que é consubstanciai ao
habitante. O caminho se dobrará sobre si mesmo, desenhando urna
cadeia de Moebius que é tanto um exterior - o trajeto -, quanto um inte-
rior, negando-se, assim, a interioridade- a intimidade?- como forma radi-
cal de se instalar diante do mundo. Em última instância, devolverá o nôma-
hecceidade de ao seu trajeto como num acidente, uma hecceidade desse material
contínuo e homogêneo que é a cidade-mundo-natureza. Este material é o
oposto daquele definido pela visão aristotélica dos corpos, aí cindidos em
forma e matéria. Frente a esta concepção hilemórfica - em que a forma
permanece fixa, e a matéria, homogênea-, o projeto remete-se àquilo que
Deleuze denomina "materialidade energética, em movimento, portadora de
singularidades ou hecceidades, que são formas mais implícitas, topológi-
cas, do que geométricas, e que se combinam com processos de defor-
mação: por exemplo, as ondulações e torções variáveis das fibras de
madeira." Urna materialidade presente nas estepes, no deserto, no mar ou
no céu, e que se constitui na expressão mesma do espaço liso deleuzia-
l i no: "O deserto de areia e o de gelo podem ser descritos nesses mesmos
{ .
termos: neles, nenhuma linha separa a terra do céu, não existe distância
)11
intermediária, perspectiva, nem contorno, a visibilidade é lim~ada, e, não
)li obstante, há uma topologia extraordinariamente fina, que não se baseia em
(
l'i 11 pontos ou objetos, mas em hecceidades, em conjunto de relações (os ven-
tos, as ondulações da neve ou da areia, o canto da areia ou a crep~ação
}: do gelo, as qualidades táteis de ambos); trata-se de um espaço tátil, ou
melhor, 'háptico', e de um espaço sonoro, muito mais do que visual ... "
~I '
h 159
l(l "
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(

\ '
Há, pois, nesta cabana "primitiva", a construção completa de uma com uma lógica de complexidade semelhante àquelq. que os novos ( I

visão da natureza, da matéria e da forma, uma visão que, não casual- desenvolvimentos científicos e biológicos pretendem captar. Como já foi
\ I
mente, vincula-se à que as ciências desenvolveram, ao longo do sécu- dito por um teórico da complexidade, "toda complexidade .se move em
lo, em busca de uma explicação para os fenômenos complexos, em (
direção à biologia", e é assim que se pode interpretar a necessidade de
busca da ordem no interior do caos, capaz de aproximar as ciências um suporte informático para se trabalhar com o modelo de uma cidade c
humanas das ciências exatas na medida em que ambas identificam desfocada, constituída pela presença turva do nômade, um modelo de (
seu objeto de estudo nos fenômenos complexos e instáveis - o tema fenômenos espaço fluido e vivo, que exige pensar o incorpóreo - o rastro do movi- (
central de pesquisadores tais como Ylya Prigogine, por ex(3mplo. complexos mento - através de uma materialidade precisa: o diagrama. A arquitetu- (
Nada, pois, semelhante a uma visão virginal ou à margem do conheci~ e instáveis '
ra pós-estrutural encontra no diagrama a aplicação e o desenvolvimento (
mento científico: a posição do parasita, do nômade, alimenta-se preci- de lógicas materiais invisíveis, mas capazes de explicar e gerar realida-
samente deste; é o domínio da informação que lhe permite estar e não 'I
des. Como realçou Sanford Kwinter: "O virtual relaciona-se com o atual
estar, adquirir uma presença incorpórea; é através do conhecimento (
não por uma transposição - um chegar a ser real-, mas por uma trans- \ .

'I .
que aprende a adotar uma posição mimética, diluída nesse material formação através de processos de integração, organização e coorde- f

que é a cidade-mundo-natureza. Assim, pois, o anel em que se insta- cidade-mundo- nação. [... ] A realidade é um fluxo, uma atualização irredutível no tempo;
la está, ele mesmo, mimetízado, camuflado no contexto organizado -natureza o mundo é uma esfoliação de diagramas". Há uma "bio-lógica" comum (
em cada ocasião. Mas este é um material ao qual não podemos dar ao sujeito desvanecido do pós-estruturalismo e às ciências do instável,
nome, produzido pela hibridação digital - morphing - de outros mate- do caos, a qual encontra, na capacidade iterativa e proliferante do orde-
riais conhecidos: o concreto armado e os patterns de camuflagem mili- nador e no trabalho sobre diagramas dinâmicos, o meio para tornar visí- c
tar, até dar lugar a um corpo com propriedades tectônicas, de conti- vel e material o que é incorpóreo e fluido. (
nuidade e ornamentais, que somente tem presença no espaço virtual
em que se situa. Igualmente, sua forma de apresentação passa a ser
Não se pode deixar de advertir, nesta concorrência científica, filosófica <
e técnica - biologia, desconstrução e informática -, sobre o perigo de (
digital- como nas colagens urbanas dos Pao de Toyo lto -, através de um certo determinismo objetivista, uma espécie de aggiornamento do
um vídeo em que se restitui a experiência deste sujeito itinerante, organicismo, do positivismo e da industrialização que levaram ao surgi-
(
nunca visível, que entra e sai ininterruptamente. A concepção topoló- mento objetivo da ortodoxia moderna como único modelo operativo.
gica do espaço liso, frente à convencional organização geométrica da O uso do diagrama implica necessariamente em uma concepção "con-
casa, assim como a sua organização material e as suas formas de dutista" e abstrata dos habitantes da cidade genérica, uma certa fasci- \ '
representação encontram, na tecnologia informática, o sistema opera- concepção nação pela proliferação de condutas e rotinas pautadas como matéria (
tivo necessário ao projeto, não um utensílio, mas um meio mesmo em topológica organizada. Em última instância, uma eliminação da diferença como (
que se concebe, constrói e habita a casa pós-humanista. e tecnologia caso relevante a partir da perspectiva cultural - o sujeito das outras
A tecnologia de informação não é um sistema operativo oportunista ou informática correntes do pensamento - , e inclusive do arquiteto como responsável
casual, à margem do que aqui se descreveu sobre a casa pós-huma- pelos processos mecânicos, capaz de conduzir até um funcionalismo
nista, mas um meio que permite operar com o virtual e o atual como ele- condutismo das massas no qual o arquiteto poderia operar como um braço arma- <
mentos de um processo dinâmico contínuo, algo que estaria vedado à e Big Brother do do Big Brother orwelliano. A própria história do século xx adverte-nos \
dualidade Real/Possível, sempre definida por oposição. A técnica infor- contra essa excessiva fascinação. Encontrar o lugar da crítica, a forma (
. mática permite operar com diagramas e processos dinâmicos em um diagramas com que o arquiteto concebe a si mesmo dentro desta mecânica de pro- (
estado contínuo de atualização e transformação, portanto, com fluxos, jeto é, ainda hoje, algo difícil de se buscar. Os projetos e os textos de
<
160 161
\ - ,

1
li I.
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li Peter Eisenman e de Greg Lynn, entre outros, ainda buscam uma reubi- instância, esta forma de pensar a casa contém um projeto liberador
, íl quação dos processos, dos resultados, e da responsabilidade (ou papel) frente à violência pública e privada, ainda que a custo de um questio-
JI
do arquiteto (ver, neste sentido, "Procesos de lo instersticial" e "Una con- namento mesmo do sujeito ou de sua extrema banalização. A casa
versación" em E! Croquis, n. 83, i997). Poder-se-ia dizer, então, que a pós-humanista não abriga nenhuma intimidade, nenhuma forma perdu-
li
casa pós-humanista implica em um comportamento maquínico do arqui- rável de conforto, nenhum consolo. Não é um refúgio da cidade gené-
, ,-'li
teto, que já teria encontrado o seu sujeito, seu modelo urbano, material rica, mas um posto de observação, em suma, um breve deter-se no
' 11
e espacial, seu sistema operativo, mas cuja aceitação completa, contu- caminho. Não se trata, porém, de uma mera enteléquia intelectual;
1 I! do, implicaria, por sua vez, na negação de uma finalidade essencial, trata-se, ao contrário, de abordar, com frio entusiasmo, questões que
qJ! numa "randomização" na conduta do arquiteto, dedicado a destruir a o tempo vai tornando mais e mais evidentes, relativas ao meio que o
)I aparência de um mundo do real e do possível para fazer proliferar formas desenvolvimento econômico e científico vai construindo ao nosso
distintas de materializar o incorpóreo, sem outra possível finalidade que redor. Nesse sentido, apesar desse estranhamento figurativo, ou pre-
,
:·,,1
I ' não "descobrir o que está reprimido pelas convenções ou normas em um cisamente em função dele, ninguém pode se sentir totalmente alheio
f ) I momento dado". a esta forma de pensar, construir e habitar. Todos vamos nos tornan-
I '
; 11
Não é fácil concluir esta visita. Em primeiro lugar, porque é difícil fugir à do nômades e parasitas neste modelo de cidade, todos somos um
I-
: 11 sensação de que não fomos bem recebidos nesta casa, de que é difí- pouco Keaton, um pouco mulher nômade, em nossa forma de viver e
. I
I JJ cil entrar nela, "possuí-la". Em segundo lugar, porque, ainda que seja em nosso trabalho. Este texto mesmo é um projeto que se construiu
fácil, não é reconfortante darmo-nos conta de que essas sensações parasitando valores e idéias de domesticidade, visitando casas que
não são casuais, mas integram a existência parasitária deste nômade. outros constróem e habitam, quiçá em sua fantasia. Tudo o que nele
Não possuir, não habitar nenhum espaço de intimidade, não se sub- se conta pode ser descrito, até certo ponto, como uma desconstrução
meter às pautas existenciais da "boa educação" seriam, praticamente, de seus valores; ao fim e ao cabo a desconstrução não é outra coisa
seus sinais de identidade. Mais do que isso, porém, depois de obser- senão uma forma de análise lingüística crítica. Não se pode pensar
var essa caricatura da casa tradicional que é a intrepidez de Keaton ou esta casa à margem de nós mesmos. Melhor será pensá-la como uma
a alteração de Grahan, esses Paos que, embora voluntariamente se forma de habitar que está antecipando uma topologia global frente ao
formalizem como alheios à ordem instituída, simultaneamente a incor- território segmentado das culturas tradicionais, uma forma de habitar que
poram e a controlam, ou aquela mesma pirueta geométrico-labiríntica questiona os limites e fundamentos do público e do privado. Esta forma
da casa virtual na qual ninguém chega a poder "estar", que é puro devi r, de habitar que opera sobre a convenção da cidade moderna - nas
damo-nos conta de que em todos estes projetos de casa há um dobras da arquitetura moderna - pode ser entendida não como uma
esforço extra de provocar, de produzir um estranhamento, de se apre- forma destrutiva da ordem da velha cidade burguesa, mas como
sentar como uma atitude deliberada de negação de qualquer possível uma forma reveladora de outros foros, de novos lugares nos quais se
imagem unificada ou totalizadora. Como se houvessem sido pensadas realizam intercâmbios, de novos lugares onde, talvez, constituam-se hoje
contra, violentando outros arquétipos e seus paradigmas até transfor- formas paralelas de habitar o público e o privado adequadas aos pro-
má-los em caricaturas de si mesmos. cessos de transformação a que nossas vidas estão submetidas.
Sabemos obviamente que é assim, que tal é, em essência, a dinâmica
desconstrutivista, que nesse objetivo de estranhamento há um delibe- estranhamento
rado intento de forçar um questionamento dos valores, manifestos ou
latentes, pelos quais a vida cotidiana tende a se regular, que, em última

162 163
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Quando, em 1968, David Hockney pintou A bigger sp!ash, talvez nem


l vigência na cultura contemporânea está muito longe d~ haver se esgo-
(
(
(
lhe ocorresse que esta obra acabaria sendo compreendida como um tado, mostrando uma vitalidade - uma capacidade de mudança e de
completo manifesto de arquitetura. Mas sua inocência durou pouco: adaptação - que está na base mesma do pensamento pragmatista. <'
mudança e verdade Foi a idéia de mudança a que James desejou positivamente propor ao
(
em 1973 ela já aparecia reproduzida na capa de Los Ange!es. The
architecture of four eco/ogies, provavelmente o melhor livro, e o mais defender a necessidade de a filosofia abandonar a busca de uma (
popular, de Reyner Banham. A bigger sp!ash sintetizava uma forma de verdade única e definitiva como objeto mesmo de seu pensamento. ( )

conceber a arquitetura, a cidade e a sua relação com a natureza que Em James, a verdade é algo que pode se suceder a uma idéia, "chega (
se vinculava definitivamente à memória do século xx. Uma idéia de pen- a ser verdadeira, torna-se verdadeira pelos acontecimentos". Não se
( I
sar, construir e habitar originalmente americana, mas, sem dúvida, uni- trata, portanto, de negar que a verdade exista, mas de afirmar seu
versal , como o demonstram não só a própria origem européia dos dois caráter contingente. A verdade é um processo em que a realidade e a
autores, Hockney e Banham, mas também a sua rápida expansão e mente adaptam-se uma à outra. James aceita que a verdade é corres-
aceitação em outros continentes. Esta forma de pensar a casa é aque- pondência com o mundo, é uma relação de ajuste com um mundo
la que, desde meados do século XIX e sobretudo a partir do princípio que, por sua vez, vai se construindo pela ação das próprias idéias. No
do xx, veio se consolidando através do pensamento dos filósofos prag- pensamento pragmatista, a mente e o mundo (a teoria e a prática) não ( I

máticos William James, Charles Sanders Peirce e John Dewey. Suas se encontram separados: constituem-se entre si. A idéia de "verdade"
é uma criação do homem e é, portanto, contingente, como mostra a
z
idéias sobre o papel da teoria frente aos fatos deram suporte a um
(
determinado perfil de sociedade- democrático, plural e progressista - experiência, como o é a própria linguagem de que se alimenta: "um
móvel exército de metáforas". Tal é a definição que Rorty tomará (
cuja capacidade de ação não encontrava reflexo nem no positivismo
europeu, nem nos demais modelos de pensamento metafísico, e que emprestada de Nietzsche para explicar a história das idéias. (
recentemente recebeu uma significativa revitalização, através do tra- O trabalho do filósofo, o trabalho do cientista e o do artista, não será
<
balho teórico de Richard Rorty - cujo livro Contingência, ironia e soli- redescrição outro senão a elaboração de uma "redescrição" da realidade através
( '
dariedade (1989) irá nos acompanhar nesta visita à casa pragmática-, dessa experiência em mutação. A redescrição metafórica, a invenção de
assim como a partir de múltiplas posições arquitetônicas que hoje já novas metáforas mais verossímeis, que convidem ao abandono das
conformam uma verdadeira alternativa ao pensamento pós-humanista. velhas linguagens e à adoção de um novo léxico será a tarefa própria
i'
do criador: "Raramente uma filosofia interessante consiste no exame dos (
Assim, pois, estudaremos agora esta casa da qual Hockney deixou-
-nos um retrato memorável, associado em nossa lembrança a tantos prós e contras de uma tese. O mais comum é que seja, implícita ou expli- (
.
I
. I
esforços para definir uma casa moderna, econômica e fácil de cons- citamente, uma disputa entre um léxico estabelecido, o qual se conver-
truir como as que se produziram em Los Angeles nos anos cinqüenta. teu em um estorvo, e um léxico novo e em formação que vagamente (
I
I' Uma casa que - e é melhor dizê-lo o quanto antes - pouco ou nada promete grandes coisas". Esta disputa desenrola-se, então, através de
I

tem a ver com aquela que Tati satirizou, a casa positivista, apesar de um método que "consiste em voltar a descobrir muitas coisas de uma
muitas vezes a historiografia do século xx tê-las englobado a ambas maneira nova até que se logre criar uma pauta de conduta lingüística que
a geração principiante vê-se tentada a adotar, estimulando-a a buscar (
sob o manto protetor do "estilo internacional", de um suposto movi-
mento moderno que a Europa teria exportado para a América. Esta novas formas de. conduta não lingüística tais como, por exemplo, a (
i.
i casa e esta forma de conceber a existência, cujo hedonismo e ligei- adoção de um novo equipamento científico ou de novas instituições (
ti reza tanto se distanciam dos parâmetros e valores positivistas, permi- sociais. Este tipo de filosofia não trabalha peça a peça, analisando con-
(
tirão resgatar, com plena autonomia, uma tradição doméstica cuja ceito após conceito, ou submetendo à prova uma tese após a outra.
( I
. I
I : 11. 172 173 ( '
Trabalha holística e pragmaticamente. Diz coisas como: 'intenta pensar A atualidade do pensamento pragmatista encontra-se neste abandono
deste modo', ou, mais especificamente, 'intenta ignorar as questões tra- da certeza e da objetividade como metas do pensamento, em sua
dicionais, manifestamente fúteis, substituindo-as pelas seguintes capacidade para instalar o criador -o arquiteto, se se desejar- em um
questões, novas e possivelmente interessantes'. Não pretende dispor de otimismo contexto heterogêneo e instável, e para fazê-lo com um certo otimismo,
(
um candidato mais apto a efetuar as mesmas velhas coisas que fazía- a partir da suposição de que a instabilidade e a heterogeneidade não
mos ao falar de acordo com o antigo costume; sugere, ao contrário, que são um acidente embaraçoso, mas um material criativo precioso, o
poderíamos propor deixar de fazer estas coisas e fazer outras. Porém, genuíno objeto da imaginação pragmatista. Uma visão, também, pro-
não argumenta a favor desta sugestão com base nos critérios prece- fundamente avessa às convicções positivistas, da visão do cientista

I
ri'
dentes, comuns ao velho e ao novo jogo da linguagem, pois, na medida
em que a nova linguagem seja realmente nova, tais critérios deixarão de
existir. De acordo com os meus próprios preceitos, não arrolarei argu-
como um "demiurgo", de sua abstração social e sua finalidade edifican-
te. Para o pragmático, se há algo que a experiência da ciência demons-
tra é o fato de não haver uma explicação única, de as distintas idéias
I ' mentos contra o léxico que pretendo substituir. No lugar disso, pretendo implicarem em distintas práticas materiais, de que todas as teorias
I
fazer com que o léxico que prefiro apresente-se atrativo, e evidencie o técnica e estão disponíveis para uma redescrição do eu e do mundo. As técnicas
modo como pode ser empregado para descrever diversos temas." imagi!lação das distintas práticas materiais e culturais chegam a ser o horizonte, o
O pragmatismo, portanto, é mais um método do que uma filosofia, um o método limite da imaginação, um ponto crítico, pois, a capacidade mesma de
método sem dogmas nem doutrinas, para o qual "as teorias chegam a pragmático, pensar e criar, e, portanto, um veículo essencial da sensibilidade prag-
ser instrumentos, mas não respostas a enigmas nas quais possamos a conversação mática. São as novas técnicas - sua invenção, transferência, mani-
nos apoiar... ". Um método de atualização das verdades, de redescrição pulação - os verdadeiros operadores da imaginação pragmática. Por
I e adaptação constante de nossas crenças e linguagens frente à nossa isso, o arquiteto, o "crítico" afeito a esta sensibilidade, conhece e tra-
1 experiência, que extrai da contingência do mundo e de suas represen- balha com elas, e o seu saber tem um caráter eminentemente técnico
I~
,. tações toda a sua energia. Uma forma de pensar que não se institui e metodológico.
como negação a outras concepções, mas que as cruza de forma sin- O pragmatismo contrapõe uma concepção individual e subjetiva do
gular, adotando-as para construir uma "conversação" particular, até mundo à grande máquina social positivista. Apresenta, assim, uma con-
iluminar novos léxicos cuja única validade não se ancora mais em sua cepção bastante distante daquela do tempo finalista e teleológico do
verdade, mas em sua "verossimilhança", em sua capacidade para criar positivismo. O tempo que o pragmatismo privilegia é o dos fatos - prag-
no outro o efeito de verdade através da experiência. James utilizou a o presente mata -, o das ações, o tempo do presente, um tempo que não é amné-
imagem de um corredor de hotel cujos aposentos abrigam diversas pragmático sico, porque tem a memória de si mesmo através deste exército móvel de
concepções de mundo; o corredor é o lugar em que todas elas se cru- metáforas no qual as novas se alinham, um tempo "que usa os sucessos
zam, o lugar onde se pode entabular uma conversação plural e enri- 'do passado para informar o presente", e para o qual o futuro é "mera-
quecedora. A metáfora pragmática será, assim, a "conversação", ima- mente uma promessa, um halo em volta do presente", tal como Oewey
gem que sublinha os vínculos com um modelo social no qual realmente escreveu. Trata-se de um tempo polarizado, atraído tanto pela experiên-
possa se dar uma discussão aberta e imprevisível, sem verdades últimas. cia do presente como pelo individualismo, um tempo ligado à nossa sub-
O criador, o artista e o filósofo confundem-se com a figura do "crítico", jetividade, que nada cobra ao desenvolvimento criativo do eu que tenha
pois operam com o mundo e o presente como materiais que se interro- uma origem remota ou apele a um destino coletivo, a um projeto lançado
gam, cuja coerência deve se refazer continuamente em uma espécie de além dessa busca de perfeição privada na qual se constitui a própria
aventura intelectual que definirá precisamente isto, a história das idéias. consciência do "eu".

I~ 174 175
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I
I
O sujeito pragmático é uma criação artística individual de cada um sobre Que concepção de arquitetura, de arte, serve de bas('l à casa pragmá- (
si mesmo, uma sucessão de experiências, metáforas e linguagens que tica? Como se materializam os paradigmas, os valores a partir dos (
constituem a própria identidade e em cuja maior riqueza reside sua quais esta casa é pensada? Temos falado do presente como o tempo
(
plena realização. Rorty o denominou "ironista liberal"; irônico porque é ironista liberal que atende ao pragmatismo, como o lugar mesmo da experiência, mas
I: consciente da contingência de sua identidade, não sujeita a verdades não se trata de um presente e de uma experiência heróicos, épicos, ou (

!
! .
ou a essências de espécie alguma, liberal porque seu modelo social
baseia-se em um "pacto" entre sujeitos análogos, dirigido à libertação
experiências
cotidianas
singulares. O presente é o lugar no qual se dão as experiências coti-
dianas, o "hoje, aqui e agora" tão desatendido por tantas outras formas
(

I
,, do sofrimento e da dor, empenhado em evitá-los: "A concepção
que estou apresentando sustenta que existe um progresso moral, e que
do pensamento. Transformar esse presente cotidiano em uma força
criativa, aprender a ver nele um substrato poético com o qual pode se
(
(

I: 1:
esse progresso orienta-se, na realidade, em direção a uma maior soli~
dariedade humana. Porém, não considera que essa solidariedade con-
construir essa perfeição privada é, por excelência, a tarefa pragmática.
John Dewey, em Art as Experience (1934) -título por si só já bastante
(
I : li sista no reconhecimento de um eu nuclear - a essência humana - em elucidativo -, claramente a descreve: "Esta tarefa é a de restaurar a
todos os seres humanos. Ao invés, concebe tal essência como a capa- continuidade entre as formas refinadas e intensificadas da experiência !
f!
..
cidade de perceber cada vez mais claramente que as ?iferenças tradi- que são as obras de arte e os acontecimentos, os fatos e os sofri-
,I cionais (de tribo, de religião, de raça, de costumes, e outras semelhan- mentos cotidianos, universalmente reconhecidos como constituintes
tes) perdem importância quando comparadas com as semelhanças da experiência". E continua, advertindo-nos: "A primeira consideração
I I referentes à dor e à humilhação, como, portanto, a capacidade de con- importante é que a vida desenvolve-se em um entorno, não mera-
<,

i. siderar as pessoas muito diferentes de nós incluídas na categoria 'nós'."


Talvez esta exposição pareça extemporânea. Contudo, se retornarmos
mente 'em', mas por causa dele, através da sua interação com ele."
Não há, pois, uma autonomia da experiência: esta se dá através da
i agora àquela imagem de Hockney, ou observarmos as fotografias que interação do meio com os fatos cotidianos. <
Julius Shulman fez das Case Study Houses californianas na mesma arquitetura A arquitetura, a arte em geral, terão esse papel de construir o marco da
época, ou mergulharmos nos desenhos que Alejandro de la Sota pre- como marco experiência cotidiana que regula as interações do meio com o eu, pois
parou para mostrar o ambiente de seu projeto de casas para Alcudia da experiência "as coisas são experimentadas, mas não tal como se estivessem com-
(
(1984) - referências que nos acompanharão daqui em diante -, prova- postas em forma de experiência". Para que se produza tal experiência,
velmente nos veremos em melhores condições para apreciar como deve haver uma certa unidade emocional , uma qualidade estética, um
essas imagens concordam com a concepção pragmatista do eu e do "fecho" do qual se desprenda a energia. A arte, a obra plástica, apre-
mundo, como é a experiência do presente o que nelas está atendido de senta-se de forma análoga ao modo pelo qual o meio natural transfor-
i i! forma privilegiada. Um presente gozoso e cotidiano, ou, se se preferir, ma-se em uma experiência, à percepção estética de uma paisagem sin-
banal, cuja construção requer o desenvolvimento de uma coleção de guiar. A arte, a arquitetura, em última instância, a casa, adquirem, assim,
técnicas e métodos que desaparece no desfrute da conversação, da lei- um vínculo emocional com a paisagem, constituindo experiências simi-
tura ou do mergulho. Fixemo-nos em como a arquitetura retirou-se para lares. Talvez seja difícil hoje valorizar a inovação desta concepção da
(
um segundo plano, quase se desvanecendo, para tornar "naturais" arte como revelação das experiências cotidianas, como filtro ou marco
esses momentos, assim como ocorre com a moldura que enquadra regulador entre nosso presente e o meio em que ele se produz. Mas, (
aquelas cenas. Pensemos em como todos os elementos naturais e arti- em 1934 - antes que a arte pop nos restituísse um olhar poético sobre (
ficiais foram postos a trabalhar para que uma conversação - precisa- o cotidiano, antes que a mínima/ art problematizasse a experiência das (

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I
li
mente a metáfora do pensamento pragmático - possa se desenrolar.

176
J coisas em relação a seu entorno, e antes que aland art experimentas-

177
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,li se o meio natural como um meio plástico -, a visão pragmática já havia especificidade técnica, o fato de esta casa haver sido construída de
,, dado uma guinada significativa na concepção convencional das práti-
cas artísticas como experiências singulares, preparando as condições
I forma consciente, a partir de mecanismos disciplinares da arquitetura
mediterrânea: o terraço tradicional utilizado para obter privacidade e
para que todas estas formas artísticas pudessem se manifestar. aumentar o rendimento da escassa superfície do terreno, a cobertura
Voltemos novamente a contemplar as imagens da casa do pragmatis- como solário e terraço sobre o mar, a organização planimétrica em torno
I
mo, agora que já possuímos elementos críticos suficientes para indi- a uma sala central cruzada, o uso de gelosias e painéis de correr, a pis-
vidualizar seus paradigmas, que podemos diferenciá-la, agora sim, cina posicionada para provocar o movimento do ar e, como num eco
nitidamente, desta outra casa a que tantas vezes, num julgamento marítimo, a entrada de uma luz tremulante no salão, os toldos e os parrei-
excessivamente apressado, foi vinculada: a positivista. É agora, duran- rais, as árvores dispostas nos limites do terreno, para ao mesrno tempo
te essa cena cotidiana de um mergulho na piscina de uma casa califor- dilatá-lo e demarcá-lo ... De la Sota, que mantinha uma relação estupen-
niana, nesse instante em que a explosão da espuma da água faz com da com este projeto, costumava explicá-lo como uma pura experiência
que tudo gravite em torno da piscina, com as linhas simplificadas de sua sensorial tecnicamente induzida: basta ver suas anotações para enten-
arquitetura emoldurando a cena e refletindo outras cenas similares, com der o que ele buscava ali, até que ponto este trabalho imaterial é o núcleo
as palmeiras e o c~u azul remetendo a um clima quase tropical - um ar conceitual do projeto. Trata-se, portanto, de um projeto construído com
quente, puro, e quieto-, com a serenidade das suas linhas horizontais o ar, que faz com que o ar seja capaz de, por si mesmo, evocar aquela
e a superficialidade das suas cores planas e cálidas; é agora, enquanto condição feliz e hedonista que nosso imaginário projetou sobre as férias
nos falam de um olhar positivo sobre o cotidiano, do instante banal instante banal e a casa mediterrânea ...Assim De la Sola escreveu: "A arquitetura é o ar
como uma experiência estética, de um espaço entendido como inte- que respiramos, mas um ar carregado de odores, de sabedoria, um
ração entre o meio natural e o artificial, da tecnificação como suporte do ar transformado por isso mesmo, pela Arquitetura."
conforto, do prazer individual como uma meta legítima e desejável. Em Vamos agora à casa de Pierre Koenig (1959) fotografada por Shulman, a
Hockney, nos artistas pop, encontraremos plasmado, em grande medi- essa cena cuidadosamente preparada por este grande fotógrafo - em
da, este olhar que vê o hoje, aqui e agora como o centro do universo. grande medida, construtor ele mesmo da imagem das Case Study
Entremos agora na casa de Alcudia e deixemo-nos levar pela cena que Houses, e, não casualmente, morador de uma das mais bem-sucedidas,
gravita em torno de uma conversação com os pés na piscina, uma cena, realizada por Ralph Soriano -, em que duas mulheres conversam distrai-
como outras desenhadas por Alejandro de la Sota, na qual a arquitetura damente enquanto a visão noturna de Los Angeles abre-se a seus pés.
se desvanece na atmosfera. É difícil, por exemplo, entrar nas casas de Através dessas mulheres ociosas, revelam-se com total clareza o sujeito
Alcudia sem sentir a brisa e o prazer das sombras e contraluzes detrás e a genealogia da casa do pragmatismo. Comparemos essa cena com
das gelosias, sem pensar em como, frente ao ar imaculado moderno, a gravidade daquela em que Heidegger, um homem denso e maduro,
esta casa é uma verdadeira máquina de ativar o ar fresco e sombreado olha-nos inquisitivamente enquanto sua mulher, servil, cozinha em um
das construções rurais tradicionais. Aquele ar que faz tão gratas as obscuro e restrito interior. O protagonista da casa do pragmatismo é,
casas, com suas sombras, seus salões contíguos e suas persianas sem dúvida, essa mulher que penmaneceu oculta ou em segundo plano
maiorquinas, e que nos faz sentir na pele o ócio da vida, a proximidade em tantos outros arquétipos, uma mulher que é- e se sente- igual entre
do mar e a sua intensidade hedonista, o lento passo do dia. Quase evo- iguais, que habita, em plenitude, a casa e a cidade: não é a mulher
camos aquelas imagens felizes das casas mediterrâneas onde viveu nômade de Tóquio- não é um mulher tradicional, nem possuída pelo
Picasso, essa pura experiência metafórica da eternidade de um instante a mulher liberal consumismo -, mas uma mulher liberal e ativa; foi o seu olhar e a sua luta
feliz. Porém, o que há de interessante nesta memória latente é a sua de mais de um século que construiu esta idéia de domesticidade. A casa

178 j 179
do pragmatismo não teve congressos CIAM, nem métodos científicos fundador, com James, do pragmatismo). Catharine Beecher exercerá
de dedução de nenhum tipo de Existenzminimun. Sua domesticidade foi uma influência decisiva no desenvolvimento da casa pragmática através
deduzida empiricamente: nem é demasiado grande - o que preocupa de suas duas obras: Treatise on Domestic Economy, For the Use of Young
não é a representatividade do espaço, mas a sua manutenção -, nem Ladies at Home and at School, publicada em i 84 i , e sobretudo, The
demasiado pequena, já que nela deve haver espaço para que cada Amerícan Woman's Home, escrita com sua irmã Harriet e publicada em
membro da famnia leve uma vida autônoma. A casa pragmática é hipo- i 869. Sua intenção, a profissionalização do trabalho doméstico, induziu à
teticamente habitada por uma família - ou por proposição de um protótipo de casa protagonizado pela eficiência, utili-
qualquer uma de suas variantes hoje tão estendi- ·' zando as diferentes técnicas então disponíveis - sistemas de calefação e
das - cuja composição já é bastante reduzida, ventilação, hidráulico, elétrico e de gás - para facilitar a sua manutenção,
formada, no máximo, por duas gerações, e na
qual os papéis tradicionalmente designados às
figuras do pai, da mãe, e do filho/filha encontram-
ar tecnificado bem como uma concepção flexível do espaço e uma evidente redução da
sua superfície. Em Beecher, pela primeira vez, o ar deixa de ser inerte para
ocupar o plano central no projeto doméstico: a casa passa a ser pensa-
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-se relativamente diluídos em favor de um maior da através de sua tecnificação, o que conduz a uma mudança drástica
respeito à individualidade. Uma casa mecaniza- em sua concepção e organização. A casa exibe, agora, um cÜr?ção
da, pensada para evitar o quanto possível as técnico central que altera os então vigentes esquemas da casa vitoriana
tarefas ingratas, e que parte da hipótese de uma
eliminação completa da necessidade de serviçais
burguesa. Como Banham escreveu em La arquitectura de/ entorno bien
climatizado (i 969): "Tudo isto é obtido por um único conduto para a cale- ,..,.--
,.
- em outras concepções ocultos mediante dife- fação e a aspiração, ao redor do qual se agrupam os equipamentos que

.,.
rentes artifícios espaciais. A casa do pragmatismo foi construída a partir fornecem ar puro e água quente, e dentro do qual o ar sujo é aspirado e
da luta de um numeroso grupo de ativistas do feminismo, que, desde eliminado. O que há de peculiar nesta 'árvore' ambiental e em seus ramais
i 868, começa a problematizar a casa como o espaço da escravidão, do subsidiários é o fato de haverem usurpado da parede exterior da casa
"sofrimento" da mulher, quando pela primeira vez se reivindica o direito
de remuneração por seu trabalho e, a partir daí, questiona-se a organi-
todas as funções ambientais tradicionais, exceto duas: proteger do tempo
e permitir a entrada da luz. Não é sobrecarregada por nenhuma lareira, ,.
flf"
,.
zação espacial tradicional. Este materialismo feminista - que Dolores
Hayden narrou em The Grand Oomestic Revo/ution (i 982) - adotará inú-
meras formas de expressão: desde as mais radicais, devedoras do
conduto ou encanamento de alguma importância, nem atua corno uma
barreira térmica, pois nesta época já se pode dispor com segurança de
construções com estruturas leves." Com isso, Catharine Beecher "parece
introduzir, pela primeira vez, o conceito de um núcleo de serviços central
.,..,.,
,--
socialismo utópico e do marxismo, às mais imbuídas da moral protes-
tante. O que, entretanto, delineia-se em todas elas é o papel da mulher, e unificado, em torno do qual se organizam os pavimentos da casa, não
a sua invisibilidade e a sua condenação a uma extensa e interminável tanto como uma aglomeração de quartos, mas como um espaço livre,
rotina de trabalhos penosos que culminam em uma total alienação. aberto em seu traçado, mas diferenciado fúncionalmente por um mobiliá-
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Frente a este panorama, poderá se propor a coletivização das tarefas
domésticas através de cooperativas- Melusina Fay Peirce -, ou a tecnifi-
.cação radical das mesmas- Catharine Beecher -, mas sempre o tema da
eliminação do
rio especializado e por equipamentos integrados à arquitetura, anteci-
pando, assim, a organização funcional básica da casa Dymaxion de
Buckminster Fuller de i927."
Esta concepção técnica do ambiente e o conseqüente estreitamento das
,.
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eliminação do sofrimento estará claramente vinculado à concepção social


progressista do pragmatismo (e se refletirá diretamente em circunstâncias sofrimento paredes externas terão influenciado não apenas Fuller, mas também
pessoais, como o casamento de Melusina com Charles Sanders Peirce, Frank Lloyd Wright, cujas proposições técnicas e espaciais podem ser

180 181
entendidas como uma plena estilização do esquema beecheriano. eram as técnicas de projeto mais adequadas à tecnificação do momen-
Poderíamos nos deter nos dois autores e, assim, completar a genealo- to. No pós-guerra, o coração técnico, a árvore ambiental, terá deixado
gia, independente e autônoma em relação ao positivismo moderno, da de polarizar a organização da casa. Já não haverá um centro técnico,
casa pragmática. Mas o que nos interessa mais aqui é destacar como o mas uma difusão da tecnificação. A casa poderá se abrir, rompendo os
esquema pioneiro de Beecher, e, com ele, todas as tentativas de defi- esquemas nucleares e adotando configurações extensivas e homogê-
nição da casa do pragmatismo, consideram um problema o seu tama- tamanho facilidade de neas, nas quais, nem em função da posição, nem do tamanho, pode-
nho em relação ao trabalho empregado em sua manutenção, em relação construção -se facilmente distinguir as hierarquias tradicionais, num conjunto em
ao sofrimento da mulher, elaborando um programa para a minimização que se organizam salas de dimensões generosas, agrupadas de forma
relativa da superfície como valor prioritário. Se pensarmos na proposta econômica em figuras elementares.
de Le Corbusier de localizar uma cozinha no segundo pavimento, "para A eliminação do sofrimento nas tarefas domésticas terá conduzido a uma
evitar odores", o que é bastante diferente de simplesmente afastá-la da eliminação também do sofrimento nos processos de construção: a facili-
copa, ou nos trezentos metros quadrados do pavilhão do Esprit Nouveau dade e a simplificação técnica serão valores que se estenderão a todos os
(e das casas-pátio de Mies van der Rohe), e o contrapusermos aos momentos da casa. Esta é, agora, pensada, construída e habitada contra
escassos 90/100 metros das propostas desses manuais de construção tempo como· as complexidades técnica e existencial, comodamente. O tempo passará
para casas com programas similares - análogos aos de muitas normas material a ser entendido como um material, um material de construção, o mais
atuais para habitações populares -, entenderemos não só o que signi- valioso, de modo que
fica a deshierarquização da famma e o novo papel da mulher, mas tam- minimizá-lo adquire um
bém as profundas diferenças que separam o pensamento pragmático do sentido econômico abs-
positivista, em especial no que se refere ao significado e à operatividade trato, expressão des-
dos avanços técnicos. P•••JI-••••-!1-IÍil•íji~ sa facilidade existencial.
Será ao final da Segunda Guerra Mundial - no momento em que a Esther McCoy reunirá
maquinaria industrial disponibilizada para fins militares pode se transfe- nas páginas de seu livro
rir aos civis - que a casa pragmática chegará à maturidade, nesse imagens de casas em
momento que Shulman eterniza na memória da casa do século xx. construção, exibindo o
E será precisamente uma revista destinada preferencialmente ao públi- aspecto elementar de
co feminino, Art &Architecture, dirigida por John Entenza, a que deci- sua técnica com um
dirá reunir teoria e prática, materializando em uma coleção de exemplos claro objetivo demonstra-
a adaptação do pragmatismo às mudanças técnicas e culturais. Ray e tivo. O espaço pragmá-
Charles Eames, Ralph Soriano, Pierre Koenig, Craig Ellwood e outros tico, que vive no pre-
encontrarão em John Entenza um cliente abstrato e, em Los Angeles, sente, carece de sentido
um suporte ambiental perfeito para desenvolver este ideal da casa prag- teleológico e de um fundamento original ou transcendente. É, antes, o
mática lançado pelos manuais do século xrx, em uma aventura coletiva conforto inverso das casas existencial e positivista. Seu paradigma é o conforto
que, de novo não casualmente, foi recolhida pontualmente por outra instantâneo instantâneo, associado à mecanização e à ergonomia do espaço e do
mulher, Esther McCoy, em seu livro Case Study Houses, 1945-1962. mobiliário, propício para um habitar escassamente regulado, suavemente
Graças a esta aventura, a casa pragmática, como corresponde à sua codificado. Nos interiores pragmáticos encontraremos não apenas uma
posição intelectual, pôde finalmente materializar-se, revelando quais democrática homogeneidade no valor atribuído aos espaços individuais e

182 183
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(
coletivos, mas também um conforto ambiental induzido pelas máquinas, seu maquinismo simbólico, em direção ao estudo da postura, numa
o qual se faz acompanhar por uma suavização dos limites, da precisão reflexão precisa do estilo informal e descontraído da '"boa educação"
das fronteiras entre o público e o privado. As máquinas, e de forma americana, esse estilo expresso em alguns dos desenhos de Norman
excepcionalmente significativa, o automóvel, o telefone e a televisão, intro- Rockwell ou nas fotografias que o casal Eames (de uma forma um
duzem em seu interior o mundo da opinião que, em Heidegger, é o da tanto carregada para o gosto europeu) tira de si mesmo.
superficialidade e do inautêntico. De fato é essa introdução do público, ou As máquinas já não são heróicas, mas reais, e tendem à invisibilidade,
ao menos do midiático, na casa, o que transtorna o antigo poder coesivo as máquinas à dissolução, à substituição de seu valor fetichista como objetos visíveis
(
da famma e de seu esquema hierárquico e interno. e a mídia pelos parâmetros do conforto que propiciam: calor, frio, umidade, ven-
Entretanto, não será apenas esta introdução da mobilidade e do midiá- tilação, luminosidade, isolamento térmico, isolamento acústico ou segu-
tico o que maculará a autenticidade heideggeriana da casa pragmáti- ar condicionado rança. O ar do pragmatismo é, em seu sentido mais amplo, um ar "con-
ca: toda a sua cultura objetai e material será artificial, industrial, ou, dicionado", este do qual William Carrier terá sido um impulsor, não só
mais precisamente ainda, consumista. Mais concretamente, será cons- teórico, mas também, como bom pragmático, prático, divulgando uni- (
truída através de produtos industriais sistematizados, acessíveis em versalmente as técnicas de condicionamento ambiental que já estão
catálogos comerciais, englobando desde a roupa e o mobiliário até os catálogos indissoluvelmente vinculadas ao espaço contemporâneo, aos tipos e às '·'
sistemas construtivos. Será, pois, uma casa que, em sua materialidade~ formas urbanas característicos de nosso tempo. Mas não será exclusi-
(
submete-se a essa exterioridade e ao parâmetro básico de sua regu- vamente um ar "condicionado" mediante técnicas mecânicas: a arqui-
lação interna, a influência da moda, que não apenas determina, em gran- tetura mesma, sua organização e materialidade derivarão de um con- ~
de medida, seu caráter perecível, como também regula as modificações forto ambiental passivo. A casa pragmática será aquela que incorpora (
que experimenta frente a qualquer reajuste de programa derivado da tanto técnicas passivas, quanto ativas de condicionamento; esse é o ar (
necessidade ou do puro desejo. das casas de De la Sota em Alcudia, e é essa a idéia mesma de Dewey
(
A soma de equipamentos para uma vida mais prazerosa e a eficácia da de interação com o entorno, a sua visão da arquitetura como marco que
produção industrial propiciarão o paradigma de um espaço banal, um espaço banal filtra e regula os intercâmbios com o meio. Uma visão que antecipa, em
espaço ligeiro, inconsistente, confortável e fugaz, cuja máxima expressão grande medida, essa posição ecológica que somente nas últimas déca-
formal será provavelmente a decoração perecível, construída através de das vem sendo assimilada no processo de definição da casa pragmáti-
objetos associados a viagens turísticas, a ídolos infantis ou à bricolagem. ca. Uma mudança paralela às mudanças culturais e técnicas, a uma
Sua expressão mais "clássica" sairá das mãos de Charles Eames, de crescente sensibilidade ambiental concomitante à irrupção de novas
seus desenhos de móveis baseados no estudo ergonômico da postu- tecnologias.
ra - uma busca do conforto empírico -, com Voltemos agora a visitar a casa que Hockney fixou no momento trivial
(
materiais e técnicas que nos anos cinqüenta de um dia ensolarado. Comparemo-la com a tormenta existencial, com
começam a estar disponíveis, tais como as a chuva e o estio da casa fenomenológica, com a noite buliçosa e con-
peças de madeira montáveis, o poliéster pré- sumista da mulher nômade de Tóquio, com o contemplativo fluir do (
-moldado e suas rápidas combinações, movi- tempo nietzschiano ou com o puritano uso medicinal do ar livre no ( l

dos pela honesta intenção de obter desenhos terraço positivista. A casa pragmática encontra seu momento privile- ( I
econômicos e ligeiros, capazes de competir no bom tempo giado no "bom tempo", inaugurando um hedonismo ocioso e impudi- ( I
: i mercado de móveis. A ênfase terá se desloca- co vinculado ao cuidado com o corpo; seu lugar é este jardim no qual
I
(
do, do interesse dos modernos pela exibição de se observa o barulho das mangueiras de irrigação, no qual ainda flutua
(
184 185 ( ..
no ar a espuma de um salto exibicionista na piscina. Uma cena coti- seriam os de evocação de uma existência autêntica ou de identificação
diana que somente um olhar atento, capaz de apreciar a beleza que há com o lugar, próprios da casa heideggeriana. É essa idéia instantânea
no mais fugaz, na contingência da vida comum, é capaz de transfor- e poderosíssima do conforto que se convencionou denominar "bem-
mar em obra de arte. Esse olhar atento é a técnica mesma do projeto conforto -estar" (we/fare) e que catalisa toda a cultura material pragmática, o que
pragmático, seu modo particular de pensar, construir e habitar a casa. e bem-estar aí se suscita. A construção da casa pragmática, a sua materialidade,
Qual é a materialidade especificamente pragmática? Como se desen- porém, não se encerra nos aspectos construtivos: a preparação do terre-
volve, no projeto, a sua cultura material e objetai? Já mencionamos a sim- no, a manipulação do meio natural, pressuporá o contraponto dialético
plicidade da técnica construtiva como um reflexo direto da atividade prag- do sistema, a forma com que o arquiteto organiza a construção de mar-
mática; neste sentido, sua aproximação da construção, da idéia de maté- cos que conduzem a esse mencionado bem-estar. As duas palmeiras de
ria, compartilhará, indubitavelmente, com o arquiteto moderno, um Hockney compõem a cena do mesmo modo que a plataforma artificial-
mesmo apreço pelas possibilidades da indústria e pelos processos de mente modelada e os eucaliptos que protegem, filtram e expandem a
construção que desencadeiam (esta será a razão de sua mistificação em casa Eames em direção às praias de Pacific Palisades, e que Alejandro
tantas historiografias). Mas a ênfase aqui será desviada, da exibição do de la Sota manipula o terreno até quase converter o projeto em uma
objeto em sua aparência maquínica, para a sua dissolução no sistema, topografia modificada. Fixemo-nos em sua explicação do projeto de
para a sua fácil articulação em uma totalidade difusa. A casa de Ray e Alcudia: "Segundo a biologia, o homem tende a possuir o seu próprio
Charles Eames será o exemplo paradigmático desta atitude pragmática, materialidade território. Segundo a climatologia, se o clima é propício, basta demarcá-
ao ser erguida e preenchida com peças e elementos escolhidos de dis- e sistema -lo. O rugido do leão, o chichi da raposa-macho. Segundo a noção de
tintos catálogos comerciais - alguns provenientes diretamente da indús- intimidade, que lhe é própria, é necessário ocultar a sua atividade e o seu
tria militar. Trata-se de uma materialidade sem essências, ligada a seu descanso. Se o homem encerra-se em sua casa, consegue tudo isso,
tempo precisamente através deste mecanismo de mercado. O trabalho mas perde a natureza. Ele busca, então, uma forma de apreendê-la,
do arquiteto desloca-se, assim, da invenção técnica positivista - emu- senão totalmente, ao menos em parte. Surge então o pátio. Desde
lando seu herói, o cientista-inventor - em direção à organização de sis- Pompéia, até Mies van der Rohe, e na Espanha nem se fale, temos o
temas construtivos a partir de patentes comerciais. Não haverá nem a pátio: interno, se a casa dá para tanto, e adjacente, contíguo, cercado,
épica da invenção, nem a emoção do detalhe; será a eliminação de se não chega a tanto. É um fato tão notoriamente manifesto o de possuir
ambos o que agora se propõe nesta materialidade subsumida pelo mer- a natureza, que não existe nada tão ligado à paisagem quanto a cerca.
cado. Imbuída deste espírito comercial, a casa pragmática não só adqui- Quilômetros de cercas têm passado nas melhores pinturas. Tenta-se
re uma materialidade contingente, tal como a dos objetos de consumo, uma urbanização com mais cercas. Dentro delas, a vida íntima, cobrindo
como pode ser integralmente entendida como um superobjeto pronto o espaço por elas determinado com parreiras, trepadeiras, toldos.
para o consumo. Um superobjeto que reproduz, num automorfismo, a a casa como Viveremos em toda essa pequena parcela que assim convertemos na
cultura material de quem o habita - suas roupas, seus automóveis, superobjeto maior das casas. Viveremos cercados por parreiras. Quem não selem-
hobbíes, móveis, máquinas ... bra dos abrigos dos zeladores dos caminhos públicos e dos guarda-can-
O quadro de Hockney anuncia tal aspecto com precisão. Nele, tudo - celas? Façamos da casa um periscópio, um terraço à sombra, para se
a casa, o clima, a natureza ... - apresenta-se com a força sedutora e avistar o mar e a montanha ao longe. Acrescente-se uma piscina peque-
banal de um anúncio publicitário, com as suas cores planas e cálidas, na e adequada, com água do mar. A construção é toda pré-fabricada e
e a sua marcação cinematográfica, assemelhando-se mais a um set do leva-se pronta da fábrica até, neste caso, Maiorca. Painéis em chapas,
que a um fragmento de realidade. Os sentimentos que provoca jamais vigas metálicas, divisórias em chapas, instalações fabricadas em oficinas,

186 187
(

pavimentos de grandes dimensões pré-fabricados, tudo de fácil monta- de "intenção": trata-se de dirigir os produtos elaborados pela sociedade a (

gem. Poupa-se tempo, obtém-se qualidade e se obriga a formas talvez novas e insólitas aplicações, resgatando-se, assim, uma dimensão crítica (
distantes da Arquitetura. Avistar o mar de todas as casas, propiciar inti- ao fazer arquitetônico. Trata-se também de um diálogo com o presente, (
midade em todas elas. Pensou-se numa casa aberta, que convertesse o com o que está aí, "tal qual", esperando ser olhado como algo capaz de
terreno, o jardim, em uma autêntica casa, coberta por buganvnias, tre- suscitar emoção e beleza. A desejada falicidade, a desdramatização da
padeiras ... E sobre elas, o mirante-salário." tarefa do arquiteto induz a algo mais do que uma certa limpeza dos deta-
A técnica e a materialidade pragmáticas encontram-se admiravelmen- lhes, tão do gosto minimalista: não é a limpeza, mas a simplicidade e a
te sintetizadas neste texto; aí se arrolam todos aqueles aspectos já economia de esforços - como uma extensão da facilidade a todo o pro-
mencionados: a cuidadosa manipulação do território, as técnicas cesso - o que se propugna. A construção é o momento da solidariedade,
comerciais, a facilidade e a agilidade, o uso do passado para informar da libertação do sofrimento. Os pragmáticos não têm verdades funda-
o presente - desde Mies van der Rohe até a tradição autóctone -, o mentais a defender, não há o que se sacrificar por algo mais original ou
(
presente pragmático, a ativação do ar, a arquitetura como acondicio- final; é ao se reduzir o sofrimento, ao contribuir para a sua redução, que
nador passivo e como superobjeto. Para quem - como nós - pôde se se pode desenvolver um trabalho progressivo efetivo. Somente o trabalho I
formar próximo a elas, foi fantástico desfrutar da sua fé na manipulação a partir dos aspectos técnicos criativos próprio a esta atitude permite o
do território e na técnica industrial justamente no momento em que desenvolvimento de uma estética especificamente pragmática.
ambas eram amaldiçoadas. Deleite ainda maior, porém, proporcionava Esta perspectiva solidária implica em uma simplificação e agilização
a elegância que o uso intencional das técnicas industriais imprimia ao construtivas que conduzem a uma peculiar "fenomenologia da imate-
processo construtivo: ali onde antes havia a emoção do esforço, do fenomenologia da rialidade". Mais precisamente, poder-se-ia dizer "quase imaterialidade",
(
suor, e a dimensão épica da obra, surgia o prazer da facilidade, da facilidade imaterialidade pois é nesse "quase" que reside o vínculo entre a arquitetura - cons-
trução de experiências físicas reais -, e o atual desenvolvimento tecno- (
substituição do esforço físico pelo esforço intelectual , da anulação de
toda a nostalgia - mais ou menos indisfarçável - por qualquer indício lógico. Como De la Sota encarregou-se de expressar em outro de seus (

de escravismo. O pejorativo "fácil" resultava substituído pelo pejorativo paradoxais aforismos, trata-se de alcançar "o mais nada possível", um (
"difícil", o salto muscular do atleta, pelo ágil vôo da bailarina. irônico manifesto sobre o uso da técnica em relação a uma possível (
O arquiteto pragmático é, sobretudo, aquele que dá voz à convenção, estética pragmatista. Nada de conhecimentos exaustivos: o construtor
(
que resgata a dimensão poética do aqui e agora, capaz de descontex- pragmático é precisamente o que não se enreda em detalhes, pois não
(
tualizar o já sabido e de fazê-lo adquirir o brilho da poesia. A insistência necessita deles, é o que consegue reduzir os materiais e a construção
nos aspectos materiais, tanto construtivos, quanto referentes à mani- a poucas e simples operações de encaixe entre sistemas compatíveis. l
pulação do território, deve ser interpretada sob esta ótica: não é aban- O procedimento a princípio paradoxal do De la Sota construtor - a prá- (
donando os aspectos mais rotineiros da disciplina que podemos tica inexistência de detalhes - é a chave que nos permite compreender
transcendê-la, mas, sim, reconhecendo nesses aspectos toda a força a importância da idéia de "sistema" no pensamento pragmático. Esta
poética de um gesto fundador. As decisões de projeto afetam todo o pro- perspectiva substitui a concepção tradicional do construtor pela de
cesso e todas as pessoas envolvidas no processo construtivo. A partir criador de sistemas, de conjuntos de elementos capazes não apenas
desta concepção, o arquiteto pragmático assume um compromisso com a de gerar uma ordem lógica em suas relações internas, mas também de
sociedade que não passa pelo messianismo social moderno. O catálogo manter suficientemente em aberto tal ordem, para permitir o surgi-
é sua ferramenta, o que parece óbvio se pensamos, por exemplo, nos mento da surpresa e da contradição. Como as regras de um jogo, um
Eames ou em De la Sota. Não se trata de um trabalho de "invenção", mas bom sistema mede-se tanto por sua economia, quanto pela abertura ·

188 189
(

(
( que promove, por seu grau de indeterminação. É no jogo, pois, onde baseado no presente efêmero, mas também de impulsioná-lo a uma
se origina o desenvolvimento criativo. condição já não ligeira- ao modo de De la Sota e seu aforístico " o mais
(
Podemos já pensar na vigência da casa pragmática, desfazendo nada possível" -, mas "evanescente", de trânsito da matéria de um esta-
(
momentaneamente o feitiço das Case Study Houses e das casas de do a outro. Uquid space é a categoria que Toyo lto propõe como metá-
Alcudia para estabelecer a sua atualidade no panorama cultural contem- fora capaz de desencadear um pragmatismo imaginativo atento às
( porâneo. E podemos fazê-lo sem nos distanciar de Los Angeles, apenas semelhanças entre o meio natural e o meio tecnológico atual, fluido e
( recordando sua viva presença nas arqurteturas residenciais de Frank imaterial. Será ele a afirmar: "o arquiteto contemporâneo ideal é uma
( O. Gehry, inclusive nos dois exemplos já mencionados nestas ,mesmas combinação de pragmatismo - 80 por cento - e imaginação - não mais
páginas ao falarmos da casa pós-humanista e do 1oft: todo o seu traba- do que 20 por cento-", coloquialmente expressando os vínculos que
lho residencial pode ser compreendido - e assim tem ocorrido em nume- fazem de um sistema, um jogo, e, de ambos, uma proposta arquitetôni-
rosas ocasiões - como uma mostra da vitalidade daquelas experiências ca coerente capaz de redescrever, com verossimilhança, nosso tempo.
dos anos cinqüenta, como uma nova interpretação desta idéia de siste- Seria difícil, para quem escreve, deixar de mencionar aqui o projeto,
ma e de jogo, a partir de uma particular habilidade para abrir e deslocar realizado junto a Juan Herreros, das casas AH (1994), uma tentativa de
os sistemas e patentes comerciais mais econômicos até fazê-los expres- conduzir a simplicidade e a agilidade dos sistemas técnicos do merca-
sar condições sociais e estéticas atuais. Geralmente este jogo é obtido do atual a novos paradigmas arquitetônicos. As casas são ali entendi-
mediante a atomização do esquema extensivo, mas compacto, próprio das como superobjetos
às Case Study Houses, e a busca intencional de "diferenças"- geomé- auto-suficientes - "co-
tricas, figurativas, materiais, de escala -frente à atração pela ordem e lhertadeiras, tratores, ou
pela uniformidade que ainda nos anos cinqüenta mostrava-se presente. caminhões-pipa" -, de
A obra de Gehry permaneceria inexplicável se não se atentasse para este modo que tanto a ico-
rico patrimônio que ele herdou e transmitiu a novos paradigmas espa- nografia como os sis-
ciais. Uma tradição, ou, melhor dizendo, um método e uma atitude que temas de agrupamento
também sem dúvida informam a produção de arquitetos contemporâ- tradicionais abrem pas-
neos, tais como Toyo lto e Kazuyo Sejima, em que se pode aferir, talvez sagem a experimentos
melhor do que em nenhum outro, como as novas condições técnicas e espaciais e ornamentais
sociais, assim como a emergente sensibilidade ambiental, resultam na que as aproximam da
redescrição de idéias como "agilidade" ou "sistema". Seus projetos, e lógica do consumo. Com
não apenas os residenciais, .desenvolvem-se a partir do questionamento isso, são estabelecidas relações entre técnica e natureza que respondem
tanto da "imaterialidade" das tecnologias informáticas, quanto das novas a transformações evidentes nas práticas cu~urais e materiais do sujeito
concepções, plásticas e científicas, referentes à natureza. De novo, contemporâneo. Como explica a memória do projeto: "As casas AH são,
como em De la Sota, emerge o tema dual do método pragmático: diante da casa tradicional, aquilo que é o Swatch diante do relógio de
técnica e natureza, ainda que agora com conteúdos próprios a uma técnica e pêndulo: não somente uma mudança tecnológica, mas a constatação
(
( outra época, adaptados, como a própria filosofia pragmática, à idéia de natureza de uma mudança de hábitos, da forma de relacionar-se com as coisas.
mudança. Na Sílver Hut que Toyo lto construiu em Tóquio (1984}, ou nos Um produto da cultura material contemporânea. Baseia-se na modifi-
dormitórios em Kumamoto, para a Companhia Saishukan (1991}, de cação do conceito de durabilidade associado ao de economia na pro-
Kazuyo Sejima, há uma vontade não apenas de construir um sistema dução industrial: a introdução de um produto investido de seriedade

190 191
(

(
cultural na lógica do consumo. Mas não se trata de disfarçar a má tec- a concepção de sistemas construtivos para montagem a seco que
(
nologia, nem de apressar a obsolescência. Na realidade, é tão ou mais prevejam o possível desmonte dos componentes, a êliminação de
tecnológico que muitos produtos sisudos e de aspecto científico, e sua acabamentos aderentes como vernizes ou pinturas, etc. Todos aque-
les aspectos relativos à facilidade construtiva e ao ar como material (
durabilidade é pelo menos igual à dos melhores edifícios atuais, pois foi
construído com os mesmos componentes e sistemas. Trata-se de ofe- são hoje os princípios de uma concepção de técnica sensível às
recer um produto que, em seus interesses, caráter e qualidades, adap- questões ambientais.
te-se melhor, isto é, identifique-se mais com a menor estabilidade, com Não é difícil, portanto, compreender as razões que impulsionaram
a maior fugacidade da vida do homem e das coisas que o rodeiam, Banham a escrever Los Angeles, la arquitectura de cuatro ecologias ,
com uma nova concepção de tempo." esse manifesto otimista - simétrico a Delirious New York - em que a
Sem dúvida, poderíamos visitar muitas outras experiências e projetos cidade do pragmatismo por excelência foi, finalmente, valorizada pela
contemporâneos nos quais a imaginação pragmática aplica-se a uma cultura acadêmica como uma das formas mais desenvolvidas de cons-
redefinição das relações entre técnica e natureza, tanto através dos trução das metrópoles contemporâneas. Foram necessários 38 anos,
aspectos figurativos como dos propriamente ambientais. A construção desde 1933, desde o momento em que a Carta de Atenas sacralizou a
de "sistemas" não se encerra na materialidade tangível, pois também idealização positivista da cidade, até que a sua contradição provavel-
se questiona, aí, o ar como material técnico de construção. É, de fato, mente mais flagrante, Los Angeles, fosse considerada um objeto sério
(
este questionamento do conforto ambiental o traço que mais diferen- de estudo. Obviamente o livro peca pelo otimismo militante inerente a
cia a atitude pragmática das demais casas visitadas aqui, um traço que todo manifesto - "Los Angeles é arquitetura instantânea numa paisa-
se definirá, em algumas ocasiões, com uma atenção maior aos siste- gem instantânea" - e passa com excessiva leveza pela imensa proble-
mas energéticos mecânicos, e em outras, especialmente a partir da mática social desta cidade - algo que é sem dúvida central em City ot (
crise energética dos anos setenta, com uma atenção crescente às téc- Quartz (1990), de Mike Davis, que serve como contraponto atualizado
(
nicas passivas ecológicas. do texto de Banham. Mas o significativo desse texto será seu método
Ecologia é uma palavra associada etimologicamente à palavra lugar de aproximação, uma verdadeira redescrição da cidade através da
(
(oikos): envolve o conjunto de conhecimentos necessários para esta- identificação de quatro subsistemas topográficos: a costa, as colinas, a
planície e as vias. Em cada um deles, pretende-se refletir a interação de (
belecer uma administração racional dos recursos do lugar, a casa, em
geografia, clima, economia, demografia, técnica e cultura: sua ecologia
relação ao meio. É essa acepção a que interessa aqui: a interação do
meio com a construção, essa ativação do ar parametrizado e já pre- particular, desde a sua origem como um litoral desértico há apenas (
duzentos anos, até a exuberante metrópole atual. Esta redescrição
sente em Beecher, em Fuller, nas Case Study Houses, em De la Sota.
Um compromisso ambiental que é uma "redescrição" das relações pode ser entendida como uma epopéiapop, mas é, sobretudo, uma pri-
entre técnica e natureza, alheio à nostalgia romântica em que tantas a cidade como meira tentativa de descrever as cidades como sistemas ecológicos artifi-
ciais, de descrever a capacidade do homem moderno - do pragma- (
vezes vem envolta a sensibilidade ecológica. sistema ecológico
artificial tismo? - para viver em interação criativa com o meio sem se sujeitar a um (
O arquiteto pragmático busca acordos entre as técnicas de mercado
para compor sistemas que minimizem o consumo de energia e seus modelo planificado "do geral ao particular": o modelo próprio da ortodo-
xia urbanística moderna. Los Ange/es é, portanto, um duro exame das
impactos ambientais. Quem deseje aprofundar este tema pode (
consultar manuais contemporâneos de técnicas ambientais, onde idealizações modernas e de suas revisões - também o Team 10 recebe
(
uma séria advertência -, e um argumento a favor de uma concepção
encontrará muitas das idéias aqui expressas: o uso preciso de mate- (
riais leves junto a recursos passivos como a composição do terreno, ecológica da arquitetura, em interação com seu meio topográfico.

193
192
(
(
A cidade pragmática, a cidade em que vive o habitante pragmático, rios e das catástrofes naturais ou políticas, ou da existência de mino-
c integra o meio físico natural como uma peça fundamental e ativa de rias,· étnicas e de todos os tipos - religiosas, sexuais etc. -, exigem,
c. sua organização. Não se passará aqui o que sugere a visão pós-huma- muito além da relativamente cômoda abstração a que o pós-humanis-
( nista, a partir da qual toda a paisagem natural foi subsumida pelo mo conduziu o sujeito contemporâneo, o seu estudo como peça de
( manto homogeneizador da cidade genérica. Na cidade do pragma- uma engrenagem ecológica superior, em busca de fórmulas de inte-
( tismo, o meio físico aspira a definir um conglomerado equilibrado de gração que em absoluto são estranhas à imaginação profissional: é
natureza e artifício, uma reprodução homotética e expansiva da con- precisamente da contín 1Ja transformação, da hibridação ou mestiça-
(
cepção da casa individual no conjunto do território. E se em suas pri- gem de fatos e situações diferenciados, que se alimenta a "redes-
c meiras formulações esta aspiração levou à difusão discriminada do crição" pragmática, ao estabelecer pontes ou "conversações" que per-
( subúrbio residencial , com a conseqüência imediata de uma grande dis- mitam construir um meio heterogêneo e solidário, capaz de expressar
( sipação energética e ecológica, assim como de tempo, o que hoje se poeticamente a sensibilidade e os conflitos do cidadão de hoje.
( apresenta como desafio à imaginação pragmática é precisamente a O que atualmente podemos vislumbrar nos quadros californianos de
busca de modelos urbanos simultaneamente expansivos e coesivos, Hockney, no instantâneo que Shulman fixou em nossa memória do
capazes de criar novos equilíbrios entre o ·n~tural e o artificial, bem século xx, nas vinhetas de De la Sota, ou nos textos de Banham, é a
i(
como a adaptação dessa aspiração de dissolução campo-cidade a cli- promessa de um otimismo pop, solidário e democrático, um produto da
:( mas e contextos políticos e econômicos diferenciados. Algo que só sociedade do bem-estar que consiste em uma referência luminosa, um
( recentemente (e de forma parcial) começa a integrar a cultura urbana, ponto de partida exemplar. O qual, porém, para uma sociedade em
( incorporando-se como um conjunto de investigações e propostas, mutação, exige ser repensado tanto na escala urbana, quanto na
( embora desarticuladas, reunidas sob a epígrafe publicitária de "A cida- doméstica, a partir de novos paradigmas técnicos, de novas descrições
de sustentável". O objetivo é antecipar modos de crescimento e desen- da idéia de natureza, para um sujeito que possivelmente já não é mais
<
volvimento que suponham um balanço positivo entre os recursos do a mulher dos anos cinqüenta, mas a sua reencarnação em outros sujei-
(
meio físico, os desenvolvimentos técnicos, a cultura preexistente e tos, hoje invisíveis e "diferentes", cuja emancipação definirá o futuro ime-
(
as expectativas .sociais. Um exemplo destas aproximações são os diato de nossas paisagens urbanas e domésticas. A casa do pragma-
Congressos Eco-Tec, celebrados desde 1992 na Córsega, curiosa- tismo pode ser concebida como esse hotel cujo corredor integra um
mente uma das ilhas visitadas pelo transatlântico que serviu de cená- conjunto heterogêneo de formas de pensar e habitar- e, nesse sentido,
rio à elaboração da Carta de Atenas. Agora, contudo, esta ilha não é é, sem dúvida, algo semelhante a este mesmo texto, um conglomerado
mais apenas o destino de uma viagem turística em que se pode des- de referências vitais, culturais e técnicas. Um lugar de mestiçagem com
(
cansar do trabalho de dar forma à cidade moderna, mas o objeto uma estética que reproduz a heterogeneidade consubstanciai ao siste-
mesmo de estudo, o lugar onde se pode aprender a construir a cida- ma, com uma materialidade híbrida, produto da mescla de materiais
de contemporânea como algo concebido substancialmente a partir de altamente sofisticados com os mais arcaicos, tudo isso envolto em
seu equilíbrio com o meio. Passou a ser vista como um ecossistema redes de informações; um magma ou conglomerado cuja beleza
precário - todas as ilha o são - , mantido e preservado cuidadosamen- somente nos é revelada em clarões, da qual sabemos apenas que é
te ao longo do tempo: um exemplo a se contrapor à cidade moderna breve, que carece de densidade ou dificuldade. São clarões como os da
e a seus devastadores efeitos sobre o meio ambiente. Evidentemente espuma do quadro de Hockney, capazes de combinar a intensidade e
este não é o único desafio proposto pela denominada "ecologia urba- a simplicidade de formas insuspeitadas, ou como o espaço líqüido de
na". Outros problemas, como os derivados dos movimentos migrató-

194
J 195
Toyo lto, quem sabe se encarnado nesse sujeito invisível que, imerso
naquela piscina, polariza e ativa a cena, e dali de dentro, contempla
secretamente algo que nos é vedado. Sem dúvida a casa pragmática
exige do arquiteto uma grande dose de imaginação, um mergulho ainda
mais fundo e mais belo do que o que nos legou Hockney.
(

(
( Concluímos aqui as nossas visitas, sete intensas jornadas que recla- abre portas às mudanças profundas, e é, por outro l?do, o verda-
mam agora um descanso bíblico. Cabe aqui tão-somente fazer um deiro sentido da redescrição rortiana, desse método sem verdades
(
comentário, um balanço provisório, ainda que seja apenas para evitar que visitamos em nossa última jornada.
(
um corte brusco, tal como ocorre nas visitas que não são de ficção, Temos, à nossa disposição, as cinzas do século xx. Espalhadas dian-
improvisando algumas palavras de despedida à porta da última casa, te de nós sob a forma de múltiplos espaços domésticos, julgamos
( deixando que as impressões repousem até que se retome posterior- conveniente reduzir o positivismo da ortodoxia moderna a uma dentre
( mente o tema. Assim, então, em absoluta privacidade, se é que tal as muitas opções ideológicas, talvez a que mais intensamente brilhou
( situação existe, tanto é possível que o interesse inicial despertado se e mais rapidamente se desvaneceu. Visto assim, o século xx parece
desvaneça e nada permaneça, e nunca mais aquelas jornadas voltem ter nos legado uma herança heterogênea e apaixonante, uma autên-
a nós, como é possível exatamente o contrário, e uma frase ou uma tica coleção de casas delirantes. Devemos nos alegrar por termos
imagem qualquer, a mais insignificante para quem a propôs, produza esses pais ou avós tão afortunados e excêntricos, e por podermos
( uma autêntica revelação, o princípio de algo que afete de forma evi- desfrutar deles: um verdadeiro luxo. Mas, se somos arquitetos, talvez
( dente nosso trabalho e nossas idéias, assim como provavelmente deveríamos também saber nos colocar à altura das circunstâncias,
ocorreu a quem tomou a arbitrária decisão de fixar sua atenção nos para aprender a administrar e, sobretudo, aumentar e atualizar este
desenhos de Mies van der Rohe, perguntando-se, por capricho ou por patrimônio.
acaso, qual seria o segredo de seu grande atrativo, interrogando-se Colaborar com esse enriquecimento cultural é um desejo implícito
(
não sobre os seus atributos técnicos ou compositivos, mas sobre a neste livro que aqui se conclui. A contribuição que nele se pode
\ sua eficácia comunicativa, o seu caráter persuasivo, a sua sedutora encontrar não consiste na formulação de afirmações, regras ou novos
beleza. fundamentos, mas na ampliação do número de interrogantes, no ofe-
Nenhuma fórmula ou instrução, nenhuma certeza permanece após recimento de um conjunto de perguntas- a única bagagem aqui indi-
essas visitas. Seu objetivo, como anunciado, era outro, bem distante: vidualizada com um certo valor propositivo e metodológico -, dessas
tratava-se de reunir alguns dados para o conhecimento da origem e do perguntas que foram sendo extraídas de cada visita até compor, ino-
(
sentido das fantasias projetadas sobre a habitação, de servir como pinadamente, a estrutura oculta deste livro.
I·'
I ·' ferramenta - uma a mais - para se avançar nesta perda da inocência A quem se destina a casa, quem é o sujeito que privilegia? Com que
,C vivida há décadas pela cultura arquitetônica, e cujo principal objetivo a instrumentos podemos defini-lo? Assim se inicia o esquecimento da
expressão "aprender a esquecer a modernidade" tão bem sintetiza. modernidade e de sua família-tipo, na certeza de que as filosofias
Estas visitas ou jornadas arquitetônicas talvez tenham permitido visua- compõem imagens de sujeitos, projetam-nas, da mesma forma
( lizar melhor a divisão, experimentada pelo arquiteto de hoje, entre as como os arquitetos imaginam os marcos de sua existência. Que
práticas que permanecem ancoradas à metodologia positivista e uma idéia de tempo e de espaço derivam desses sujeitos, dessas filoso-
cultura e uma experiência pessoal tão estranhas àqueles ideais, a fias? Tempo e espaço são a frente e o verso, a cara e a coroa de
( ponto de demandar outras formas de aproximação do projeto. Talvez, uma forma de instalação no mundo: as descrições da idéia de
( ainda, tenham contribuído para questionar algumas das linguagens tempo que encontramos na ensaística contemporânea oferecem-
tópicas - aquelas derivadas de convicções profundas, que não admi- -nos excelentes pistas sobre os paradigmas espaciais que solicitam.
( tem uma explicação ulterior além da tautológica ou do "porque sim": se Por isso não é difícil imaginar que, através desta concepção espaço-
assim for, cabem felicitações pelo feito, e uma espera ansiosa pelos -temporal, possamos individualizar o espaço e o momento privile-
\..
seus desdobramentos, já que a crise das linguagens tópicas sempre giados, aqueles que cada casa, cada idéia de domesticidade, faz

198 199
(

resplandecer com luz própria. Se o binômio tempo-espaço permite- dimentos mais convencionais. Os arquétipos, porém .. são caricaturas, (
-nos identificar alguns paradigmas arquitetônicos, o mesmo acontece e não é fácil aceitar que a vida, isso que está aí fora com toda a sua
com outros que se sucedem quase imediatamente: a relação que se brutalidade e incoerência, possa se "domesticar" de forma tão ele-
(
estabelece entre o artifício da casa e a natureza, entre o público e o pri- mentar. A função da teoria, a função deste texto, não é a de dar ins-
vado. Natureza e cidade são, portanto, materiais implícitos no domés- truções, mas a de servir como uma sessão de ginástica à fantasia, a
tico, pois o descrevem e o balizam por contraste, explicando por si de despertar o interesse de superar as inércias adquiridas e explorar os
mesmos o quanto cada casa, mesmo a mais banal, pode conter em limites do conhecimento de nossa disciplina. O que aqui se fez foi mos-
potencial um mundo completo. Algo similar ocorre se a partir das con- trar como o significado das arquiteturas baliza-se pelos limites episte- f
\
cepções macroscópicas passamos às microscópicas, se interrogamos mológicos das técnicas de projeto. Transbordá-los, pensar o impen-
(
sobre a cultura material, sobre a materialidade e seu significado sim- sado, é talvez a tarefa mais estimulante a que nos lança a prática da
bólico, assim como sobre o mundo dos objetos e da decoração, sobre arquitetura. Talvez seja precisamente esta a lição mais preciosa legada (
como se colonizam esses espaços, que relações mantêm com as pelos arquétipos do século xx que visitamos: devemos pensá-los a par-
idéias de intimidade e conforto a que estão destinados. Faltaria, final- tir de uma radical exterioridade a seus limites epistemológicos, deposi-
mente, refletir sobre as técnicas de projeto que tais valores e ideali- tando nossa confiança em tudo o que eles excluíram, em busca dessa (
\
zações suscitam ou convocam, identificar como distintos paradigmas boa-vida nunca antes imaginada. Somente através de tal esforço
espaciais exigem distintas técnicas e posições do arquiteto em relação poderemos conceber essa casa que ainda não temos, poderemos
(
ao seu objeto e ao seu processo de constituição. erguer essa casa que nos comova inteiramente.
A partir do posicionamento aqui proposto apenas são pertinentes carac- (

teres distributivos, organizações em estruturas residenciais coletivas, (


orientações, densidades e tantos outros temas que pertencem, em sen- (
tido estrito, a uma dessas possíveis idealizações da casa, vitoriosa em
c.
sua luta para impor-se hegemonicamente às demais durante um longo
(
período de tempo. Diante destas questões- ou "problemas", como gos-
(
tavam de denominar os modernos em seu léxico cientificista -, sugerem-
-se aqui outras, num convite a um enfrentamento mais confiante não
apenas na própria disciplina, como também nos sistemas filosóficos (
contemporâneos e nas distintas práticas artísticas e materiais que nos (
descrevem, com as quais nos identificamos e que compõem o marco de (
nossa existência.
(
Ao se iniciar este texto, numa prévia advertência, afirmava-se que a sua
maior utilidade prática consistia em questionar as técnicas do projeto (
como o momento decisivo, aquele que contém o núcleo ideológico e (
crítico de nosso trabalho. Deve-se agora concluí-lo assumindo que o (
esquecimento de alguns tópicos herdados, e a possibilidade de inter- (
rogar nossa atividade sob a perspectiva aqui descrita podem, sem
(
dúvida, iluminar as limitações, incoerências e imperfeições dos proce-
(

200 201 c I
(
(
( Agradecimentos Referências bibliográficas
(
A boa-vida reproduz, com maior ou menor fidelidade, um Ruth Verde, na Bienal de Arquitetura de São Paulo; Thornas Nota Capítulo 1
( amplo conjunto de textos, cursos, conferências e seminá- Sprect1man e Juan Bastarrica, na Escuela de Arqu~ectura de Diante da possibilidade de se desenvolver urn texto com
rios, cuja origem remonta ao ano de 1986, quando Juan Montevidéu; Moshen Mostafavi, na Architectural Association um viés mais acadêmico, optou-se por dar-lhe um for- ÁBALOS, I. e HERREROS. J., "Diabólicos detalles",
( in SAVI, V. E. e MONTANER, J. M. (eds.), Less is more,
Herreros e eu preparamos e ministramos conjuntamente de Londres; Terence Riley no Museurn of Modem Art de mato ensaístico, o qual permitiu liberá-lo das notas e refe- Colegio de Arquitectos de Cataluiia e Actar, Barcelona,
um curso sobre construção que à época denominamos Nova Iorque, e John Ockman, na Colurnbia University de rências necessárias em um estudo fechado e exaustivo. 1996, pp. 50-54.
(
"A casa que ainda não temos", e que desde então veio evo- Nova Iorque, também ofereceram boas oportunidades para Enumera-se, portanto, aqui, somente a bibliografia que foi
AAW, Mies van der Rohe: Architect as Educator, lllinois
( luindo e tomando formas cada vez mais surpreendentes. ensaiar, documentar e ampliar o conteúdo destas páginas. consultada especificamente durante a elaboração dos
lnstitute of Technology, Chicago, 1986.
Na Escola de Arquitetura de Madri, os professores que são Paloma Lasso de la Vega contribuiu com idéias e imagens capítulos, da qual se extraíram as citações que neles apa-
( meus companheiros de docência - Federico Soriano, fundamentais e rne concedeu, generosamente, tudo o que recem. Neste caso, acrescenta-se à própria referência, em DAL CO, F., Dilucidaciones, Modemidad y Arquitectura,
Eduardo Arroyo, Pedro Urzaiz - , assim como os alunos de era necessário para que se tornasse um prazer escrever negrito, a página do livro em que consta a citação corres- Ediciones Paidós Ibérica, Barcelona, 19go.
(
diversos cursos, escutaram estoicamente essas diferentes estas páginas. Durante a sua redação, vivemos juntos em pondente. Muitos dos livros mencionados contém, por
EVANS, R., "Mies van der Rohe's Paradoxical
( versões à medida em que avançava a investigação, sempre casas singulares em Madri, Forrnentera, Rodalquilar, e El sua vez, bibliografias completas que permitirão, a quem o Symmetries", inM Files, n. 0 19, primavera 1990.
trazendo novas idéias e matizes. Juan Navarro Baldeweg, Escoriai, as quais, sem dúvida deixaram sua marca nos deseje, aprofundar os temas tratados nos diferentes capí-
José lgnacio Linazasoo, Simón Marchán, Antón Cap~el, diferentes capítulos aqui apresentados. tulos. Quando há a edição em castelhano, sua referência EVANS, R., Translations from Drawing to Building and
Joan Busquets e Juan Antonio Cortés estiveram envolvidos Tanto Mónica quanto Gustavo Gili,e, num primeiro momen- foi incluída. other Essays, Architectural Association, Londres, 1997.
em trabalhos acadêmicos que precederam este e que to, Xavier Güell souberam me oferecer o apoio adequado GLAESER, L., Ludwig Mies van der Rohe, MoMA, Nova
foram, em grande medida, seu ponto de partida. Uma pri- para dar a forma final a este trabalho, com uma atenção e Iorque, 1977.
meira versão, produto daqueles trabalhos realizados com um carinhÔ que em muito excedem as obrigações propria-
Juan Herreros, não só foi aprovada, como recebeu da mente editoriais. Auxiliadora Gálvez me ajudou a buscar e JAEGER, W., Paideia, Fondo de Cultura Económica,
México, 1957.
Fundación Esteyco, em 1996, o prêmio de melhor ensaio, a preparar as ilustrações, executando impecavelmente
atribuído por um júri excepcional composto por Javier Ruy- uma tarefa sempre tão difícil e complicada. Carmen Munoz JOHNSON, Ph. , Mies van der Rohe, MoMA, Nova
-Wamba, José Antonio Fernández Ordonez, Eduardo foi uma paciente transcritora do ilegível. María Luz Vélez, Iorque, 1947.
Torroja, Luis Landero e Rafael Moneo. Sua confiança no com oportunas sugestões sobre a sua redação, e Eulalia
MERTINS, D. (ed.), The Presence of Mies, Princeton
interesse daquele texto, assim como seus conselhos e Coma, com um desenho sensível ao seu conteúdo, sou- Architectural Press, Nova Iorque, 1994.
comentários foram determinantes para que eu me animas- beram reforçar e ampliar o significado deste livro. Francisco
se a arriscar um desenvolvimento sistemático do que era Jarauta, Ángel Jaramillo, Eduardo Arroyo e Juan Antonio NIETZSCHE, F. , Gaia Ciência, Companhia das Letras,
então ainda um esboço. Cortés, por amizade, fizeram dele uma leitura crítica que foi São Paulo, 2001.
Desde 1996, distintos lugares e ocasiões orientaram esse verdadeiramente estimulante e, sobretudo, útil para a reali- NIETZSCHE, F. , Assim falou Zaratustra, Martin Claret,
desenvolvimento. Quero agradecer a todos os que pacien- zação de uma criteriosa revisão final. São Paulo,1999.
temente assistiram à sua gestação fragmentária, lenta e Desejo manifestar também a dívida deste texto com os três
improvisada, e àquelas pessoas e instituições que, com arquitetos ligados a Madri, cujas obras, de uma forma não NEUMEYER, F. , The Artless Word. Mies van der Rohe
on the Building Art. Manifestos, Texts and Lectures ,
seus convites, contribuíram decisivamente para dar-lhe predeterminada, mas significativa, aqui aparecem tão deci- The M.I.T. Press, Londres, 1991.
forma: lgnasi Solá-Morales (Centro de Cultura Contempo- sivamente: Juan Navarro Baldeweg, com quem aprendi que
rânea de Barcelona e União Internacional dos Arquitetos), o estudo das questões técnicas tem sempre um duplo, QUETGLAS, P., lmágenes dei Pabellón deA/emania,
Manuel Gausá (Revista Quaderns e Escuela Superior de inverso ou simétrico, no estudo do ar ou do imaterial; Les Editions Section b, Montreal, 1991.
Arquitectura de la Universidad Internacional de Cataluna), Alejandro Zaera, com quem compartilho o gosto pela RAVETLLAT, P.J. , La casa pompeyana: Referencias ai
José María Torres Nadai (Escuela Técnica Superior de relação entre o pensamento e a arquitetura, e ao qual devo, conjunto de casas-patio realizadas por Ludwig Mies van
Arquitectura de Alicante e Colegio Oficial de Arquitectos em parte, o meu interesse pelo pragmatismo contemporâ- der Rohe en la década 1930-1940, tese de doutorado
de Valencia), Javier Cenicacelaya (Escuela de Arquitectura de neo, ainda que apenas para argumentar contra os excessos (inédita), ETSA Barcelona, 1993.
San Sebastién), lgnacio Paricio (Instituto Tecnológico deleuzianos em nossas discussões; Alejandro de la Sola, SCHULZE, F., Mies van der Rohe: A Critica! Biography,
de Cataluna), Virgílio Gutiérrez (Colegio de Arquitectos que, como já foi dito, estimulou-me, no momento oportuno, The University of Chicago Press, Chicago, 1985. Edição
de Tenerife), Julio Maio de Molina e Tomás Carranza a viajar com a imaginação e com a fantasia. consultada: Mies van der Rohe: una biografía crítica,
(Colegio de Arquitectos de Cádiz), Luis Moreno e Emílio E, por último, desejo manifestar meu débito e minha gra- Herman Blume, Madri, 1986.
Tufíón (Universidad Internacional Menéndez Pelayo), Miguel tidão para com Juan Herreros, a quem este texto tanto SEDLMAYR, H., Epochen und Werke, Herold Druck
Cereceda (Círculo de BeiJas Artes de Madrid), Eduard Bru deve, desde as primeiras idéias até a última revisão, e a und Verlag lg!Jsellschaft M.B.H., Viena, 1959. Edição
(Escuela Técnica Superior de Arquitectura de Barcelona), quem tantas coisas me unem, que não seria suficiente consultada: Epocas y Obras artísticas, Ediciones Rialp,
Miguel Ángel Alonso (Escuela Técnica Superior de Arqui- dizer que sem ele este livro não teria sido possível: não só Madri, 1965.
tectura de Pamplona), e outros dos quais seguramente não é assim, como também resultaria frio e tedioso, justamen-
me recordo, rnas que, espero, saibam me perdoar. te o contrário do que o seu título promete.
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