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A periferia está na moda.

Atrai a Mas a criminalização aparece


atenção e os interesses de atores também na roupagem de iniciativa
públicos e privados, em busca de “prevenção ao crime” que é
de explorar o que parece ser imputada a muitos projetos culturais,
um novo Eldorado, território ainda quando realizados nos territórios
desconhecido e cujas riquezas periféricos.
não conseguiram mensurar. Mas a
Contudo, é sobre a dimensão de
periferia que se quer desejo e objeto
potência e resistência da cultura
de consumo é uma representação,
da periferia que se debruçam os
entre tantas outras possíveis. Essa
ensaios: sobre o poder de falar
periferia é vista e representada como
sobre e pela periferia, sobre a
espaço da carência – estrutural,
possibilidade de produzir rupturas
mas também política e cultural – que
e escapes à cultura (política)
precisa das iniciativas “de fora” para
hegemônica, sobre a inversão dos
ser salva e ter seu valor produzido,
fluxos de intercâmbio cultural e
(re)conhecido, comercializado.
político (não “de fora para dentro”,
Todavia, nessas periferias estão se
mas de dentro para o mundo), sobre
organizando, se encontrando e se
a afirmação de identidades não
(re)conhecendo muitos atores que
mais vistas como marginais, mas
recusam a etiqueta de “carentes”,
ainda como marginalizadas. Diversas
e que afirmam seu direito de se
iniciativas, como o Instituto Favelarte
autorrepresentarem através da
do Morro da Providência, a APAFUNK,
cultura, da arte e da ação coletiva.
o Teatro da Laje de Vila Cruzeiro, a
Os ensaios e artigos reunidos na Rede Enraizados, são apresentadas
coletânea “Política Cultural com as e analisadas sob a perspectiva de
Periferias: práticas e indagações de quem produz arte e cultura nesses
uma problemática contemporânea”, territórios, que reivindica sua voz, sua
resultado do trabalho realizado no ação e sua (auto)representação.
Curso de Extensão Periferias em Assim, mostram que mesmo a
Cena do Instituto Federal do Rio de militarização, que hoje domina e
Janeiro, descortinam essas outras submete as periferias, não conseguirá
periferias. Aqui o foco não é a impedir que os pobres, pretos e
carência, mas as expressões de luta, jovens moradores dos subúrbios,
resistência, criatividade e ousadia favelas e loteamentos transformem
quem marcam esses territórios. Nas a arte e a cultura em uma ação
periferias apresentadas aqui, a cultura coletiva com significados políticos
é um recurso abundante, mas a radicais.
cidadania ainda é um bem escasso.
O Estado atua nas suas “margens” de
forma arbitrária, hierarquizada e ilegal, Lia de Mattos Rocha
transformando a exceção em regra é Professora do
e definindo de fora para dentro que Departamento
cultura é legítima, e portanto passível
de Ciências
de ser produzida e consumida, e o
que deve ser rejeitado, através da
Sociais da
criminalização. É o caso do Funk, Universidade
objeto de diversos trabalhos aqui do Estado do
presentes. Rio de Janeiro
Aline Dantas
Marisa S. Mello
Pâmella Passos
(Orgs.)

Política Cultural com as


Periferias: Práticas e
Indagações de uma
Problemática Contemporânea

1ª Edição

Assis - SP
Gráfica Storbem
2013
Este trabalho está licenciado por Creative Commons - Atribuição
Uso não Comercial

STORBEM GRÁFICA E EDITORA


Editoração - Impressão

CAIO AMORIM
Capa

Ficha catalográfica elaborada por Cristiane da Cunha Teixeira


Bibliotecária e Documentalista – CRB7 5592
________________________________________________________________

P289 Política cultural com as periferias: práticas e indagações de uma


problemática contemporânea / Pâmella Passos, Aline
Dantas, Marisa S. Mello [organizadoras]. – Rio de Janeiro:
IFRJ, 2013.

55 f.: il. color. ; 21 cm.

1. Periferias – Aspectos sociais. 2. Periferias – Aspectos


políticos. 3. Política cultural. I. Passos, Pâmella. II. Dantas,
Aline. III. Mello, Marisa S. IV. Instituto Federal do Rio de
Janeiro. V. Título.

IFRJ/CMAR/CoBib CDU 304.4


________________________________________________________________
ÍNDICE

Agradecimentos..................................................................................................5

Apresentação.......................................................................................................7
Aline Dantas, Marisa S. Mello e Pâmella Passos

Cultura e Periferias – uma política (im)possível?........................................11


Kátia Aguiar e Pâmella Passos

Consumo Favela................................................................................................21
Adriana Facina

“É tudo nosso”: disputas culturais em torno da construção da


legitimidade discursiva como capital social e espacial das periferias do
Rio de Janeiro.....................................................................................................45
Ana Lucia Enne e Mariana Gomes

O Funk Carioca e a Lei - problemas e recomendações................................61


Luiz Fernando Moncau e Guilherme Pimentel

Entre a política cultural e a política de segurança pública – um relato


sobre ações culturais no Morro da Providência em tempos de paz
midiática.............................................................................................................79
Bruno Coutinho de Souza Oliveira e João Guerreiro

Teatro da Laje....................................................................................................99
Antonio Verissimo dos Santos Junior

Jovens negros e negras na literatura brasileira sobre a pobreza..............113


Marisa S. Mello e Victor Hugo A. Pereira

Jovens, desigualdades e NTICs em contextos de mobilização social......137


Julia Paiva Zanetti e Patrícia Lânes Araújo

Análises periféricas em cena: da produção cultural industrial à produção


de afectos alegres............................................................................................153
Alessandra Lacaz, Félix Berzins e Williana Louzada
AGRADECEMOS

À Direção do Campus Rio de Janeiro do IFRJ, que,


compreendendo a importância do projeto Periferias em Cena, viabilizou,
com recursos próprios, esta publicação.

Aos autores dos capítulos, colaboradores que aceitaram o desafio


de produzir de maneira intensa e popular sobre temáticas culturais
contemporâneas.

Aos alunos da turma do Periferias em cena de 2011, que continuam


fortalecendo o projeto, através de suas iniciativas pessoais e coletivas.

A equipe da Biblioteca Profº. Eurico de Oliveira Assis, situada no


Campus Rio de Janeiro do IFRJ, pelo intenso apoio nas questões
organizativas e estímulo a produção literária na Unidade de Ensino.

Aos Grupos de Pesquisa em Tecnologias Educação e Cultura


(GPTEC) e Observatório da Indústria Cultural (Oicult) pela possibilidade
de diálogo e produção conjunta.

A Revista Vírus Planetário pelo apoio em mais esta iniciativa.

[5]
[6]
APRESENTAÇÃO

A presente publicação, intitulada Política Cultural com as Periferias:


práticas e indagações de uma problemática contemporânea, abrange textos
sobre a cultura com e nas periferias, tanto como modo de vida, sob o
ponto de vista político, quanto a partir de expressões artísticas. O livro
pretende abordar o assunto sob três aspectos: reflexão sobre a cultura da
periferia: desde as políticas públicas, financiamento, novas tecnologias,
até o contexto onde acontece a incorporação desta; as manifestações
artísticas, como o teatro, a literatura e a música; e uma análise do
seminário de avaliação do curso 'Periferias em cena.'

Trata-se do segundo livro no contexto do projeto de formação de


agentes culturais populares. O primeiro foi o produto final do 4o curso de
extensão para agentes culturais populares, intitulado ‘Periferias em cena’.
A obra, retrato das periferias cariocas, foi escrita pelos próprios alunos e
membros da equipe que realizou o curso. O livro buscou dar visibilidade
e registrar a diversidade e a perspectiva cultural dos espaços que
historicamente foram vistos como carentes de cultura.

O curso de agentes culturais populares nasceu de uma


perspectiva que reúne critica ao elitismo na arte, na cultura e ao
mercado,parte de uma visão da cultura como trabalho criativo, e
percepção de que é preciso construir políticas culturais democráticas e
voltadas às demandas populares. O `Periferias em cena´ é um projeto de
extensão que visa reconhecer os saberes de agentes culturais populares,
capacitando-os e qualificando-os no desenvolvimento de atividades
culturais. Seus objetivos principais são construir a emancipação de
produtores culturais populares a partir da socialização de saberes acerca
da captação de recursos culturais; a criação de uma rede colaborativa das
periferias, contribuindo para um resgate e fortalecimento da cultura
popular; e a democratização no oferecimento e acesso à bens culturais na
cidade do Rio de Janeiro, atuando à favor de uma descentralização destes
instrumentos na região central e sul da cidade.

Kátia Aguiar e Pâmella Passos propõem uma reflexão acerca das


possibilidades e desafios na construção de uma Política Cultural
Periférica tendo como mote de análise o gênero edital. Partindo de
experiências com formação dos setores populares as autoras articulam

[7]
macro e micropolítica em suas análises para pensar os reais processos de
democratização e/ou capturas e aprisionamentos. Compreendendo uma
relação intrínseca entre uma política cultural que se almeja periférica e
especificidades da economia cultural as autoras situam suas discussões
no contexto da indústria cultural contemporânea e das estratégias de
dominação do capitalismo global.

Adriana Facina, idealizadora do curso, e professora do Museu


Nacional/UFRJ, reflete sobre a expansão de fronteiras de todo tipo de
consumo nas favelas, e ressalta como neste território se recriam novas
formas de sobrevivência dos pobres. A favela como negócio, desta
maneira, concorre com as históricas representações estigmatizadoras
deste como lugar de carência e da violência armada. Para analisar as
diferentes práticas de consumo Adriana trabalha com três categorias:
consumo como território, a partir dos tours de favelas para turistas;
intervenções culturais de grande porte por empresas ou produtores
culturais de fora da favela; e favela que consome, sobre os novos hábitos
de consumo dos moradores. A autora destaca os limites da associação
entre consumo e cidadania e, ao mesmo tempo, a capacidade do
consumo inverter fluxos culturais, principalmente o que se volta para
novas tecnologias informacionais.

Ana Lucia Enne e Mariana Gomes trazem como chave de


discussão as relações entre o espaço físico e o espaço social, percebendo
ambos como espaços de luta, tendo a cultura um papel fundamental de
produção de sentidos nesse contexto. Posicionando a lupa sobre a
dimensão discursiva de tais embates, as autoras levantam reflexões sobre
autoridade e legitimidade para enunciar. Discutindo a cidade e suas
formas de ocupação, apresentam a disputa constitutiva da lógica de
distribuição dos espaços, e resgatam uma série de experiências de
coletivos culturais periféricos, como a APAFUNK, para embasar suas
análises.

Luiz Fernando Moncau e Guilherme Pimentel debateram a


regulamentação cada vez maior de eventos na cidade do Rio de Janeiro,
destacando as dificuldades enfrentadas pelas manifestações culturais
populares, especialmente o funk. Os autores relacionam o tratamento
conferido ao funk pelo poder público como o resultado de uma história
de estigmatização e preconceito, não apenas com o estilo musical, mas
com os pobres e sua cultura em geral. A legislação, nos últimos anos,
especialmente a Resolução 013 tem dado poderes excessivos às
[8]
autoridades, configurando muitas vezes práticas de censura, exigências
desproporcionais para pequenos eventos, excessiva burocracia, que
acabam por incentivar a obtenção de vantagens ilícitas por parte dos
agentes públicos e incentivar a informalidade.

João Guerreiro e Bruno Coutinho apresentam uma análise das


políticas culturais, a partir de oficinas de fotografia desenvolvidas no
Morro da Providência (zona portuária do Rio de Janeiro) pelo Instituto
Favelarte. Buscam evidenciar e compreender o papel dos sujeitos que
atuam em organizações culturais e suas indagações frente à política de
segurança pública estatal. Para os autores, a intenção do Estado com a
nova política de segurança, por meio da criação da UPP, é a
transformação da cultura simbólica de áreas ocupadas através de novas
narrativas e discursos sobre os espaços dessas comunidades.

O autor Antonio Verissimo Junior nos convida a refletir sobre a


experiência de jovens atuantes no Grupo Teatro da Lage, numa
perspectiva para além da expressão estética, mas como prática cultural
que possibilitou aos sujeitos compartilhar experiências e atribuir sentido
ao seu próprio cotidiano e ao mundo. Aponta para uma ressignificação
da linguagem teatral ao estabelecer um diálogo entre o cotidiano e as
práticas da favela Vila Cruzeiro/RJ e os clássicos da dramaturgia de
Shakespeare e Jorge Amado, com a montagem de Tieta, o ônibus que Jorge
Amado nunca imaginou; Montéquios, Capuletos e nós. Através do relato do
espetáculo produzido pelo grupo A viagem da Vila Cruzeiro à Canaã de
Ipanema numa página de Facebook, o autor apresenta como a prática teatral
colocou em cena a criatividade, o protagonismo e o caráter autoral dos
jovens da favela, em conjunto com a comunidade na qual vivem, na
construção de suas identidades.

Victor Hugo Pereira e Marisa S. Mello abordam a representação


de jovens negros/as pobres como protagonistas na literatura brasileira e
a articulação desses destinos com propostas de transformação social e
com a realidade em que vivem estes/as jovens. A via que escolheram
para refletir sobre o assunto foi discutir comparativamente o modo com
que esses personagens surgiram na cena literária brasileira nos anos
1930, em textos de Jorge Amado e José Lins do Rego, e como são
apresentados na atualidade em obras de ficção, em autores como
Sacolinha, Conceição Evaristo e Férrez. A literatura ora aparece como
possibilidade de transformação de destinos individuais, eora como

[9]
guardiã e difusora do testemunho comunitário; um dos caminhos
possíveis para contar a história de um povo.

Patrícia Lânes Araújo e Julia Zanetti buscam discutir o uso das


Novas Tecnologias de Informação e Comunicação (NTICs) entre jovens
em situação de pobreza, oriundos de favelas e bairros populares da
região metropolitana do Rio de Janeiro, a partir dos resultados da
pesquisa Jovens Pobres e o uso das NTICs na criação de novas esferas
públicas democráticas, realizada pelo Instituto Brasileiro de Análises
Sociais e Econômicas (Ibase) em parceria com o Centro de Pesquisas para
o Desenvolvimento (IDRC)/Canadá. As autoras enfatizam as
apropriações e usos que os jovens fazem das NTICs para mobilização
social, melhoria de qualidade de vida e garantia de direitos.

Alessandra Lacaz, Félix Berzins e Williana Louzada partem de


uma Análise Institucional do projeto realizada no primeiro seminário de
avaliação do curso 'Periferias em Cena'. Tal momento marcado pelo
reencontro entre alunos, professores e gestores proporcionou a percepção
do que os autores denominam de afectos alegres, possibilitando uma
transversalização do campo de análise que levassem em conta aspectos
macro e micropolíticos. Articulando os níveis local, nacional e global os
autores refletem sobre o conceito de cultura para a partir de dispositivos
de análise mapear as interferências desta formação (Projeto Periferias em
Cena) em todos os sujeitos envolvidos.

Gostaríamos de convidá-los/as à leitura e reflexão suscitada pelos


debates aqui apresentados.

Pâmella Passos, Aline Dantas e Marisa S. Mello

Organizadoras do livro.

[ 10 ]
CULTURA E PERIFERIAS – UMA POLÍTICA
(IM)POSSÍVEL?
Katia Aguiar 1
Pâmella Passos 2

O caminhar de uma análise inscreve seus passos,


regulares ou ziguezagueantes, em cima de um terreno
habitado há muito tempo.
Michel de Certeau

Para dizer a que viemos

Um terreno habitado há muito tempo!


Essa pode ser uma das múltiplas definições para as periferias. Por
isso, embora não somente, queremos iniciar este ensaio, dizendo de um
encontro entre nós, autoras: aquele que fez convergir nossas inquietações
profissionais, como professoras/pesquisadoras, desde diferentes campos
de saber – a história e a psicologia – e que nos animou a tecer parcerias.
Ainda que, a partir de nossos lugares de pertencimento, afirmemos
apostas teórico-metodológicas nomeadas como dissidentes ou marginais
e que façamos incursões por terrenos ainda considerados menos nobres
no trabalho acadêmico, não estamos livres dos impasses colhidos como
efeitos das relações hierarquizantes, ainda hegemônicas, estabelecidas
entre o lugar social que ocupamos e a sociedade.
Sendo assim, importa considerar que investimos numa política de
pesquisa que se faz no exercício crítico e transgressivo de
desnaturalização tanto dos objetos, quanto das relações implicadas na
investigação. Uma atitude ético-política que em lugar de invalidar ou
driblar as diferenças e as divergências, comumente isoladas numa zona
de conflito a ser evitada, as reconhece e as recolhe como matéria de

1Professora e pesquisadora do Departamento Psicologia e do Programa de Pós-


Graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense, Pós-Doutorado
em Psicologia Social (UERJ), membro do Laboratório de Subjetividade e Política
- LaSP / UFF.
2 Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFRJ-

Campus Rio de Janeiro), Doutora em História pela Universidade Federal


Fluminense (UFF), coordenadora do Periferias em Cena e pesquisadora do
Observatório da Indústria Cultural (Oicult) e do Grupo de Pesquisas em
Tecnologia, Educação e Cultura (GPTEC)
[ 11 ]
ser entendidos como situações analisadoras, indicando a coexistência de
variadas intencionalidades, afetividades e racionalidades no campo de
trabalho/investigação.
Nossa experiência se inscreve no contexto urbano do Rio de
Janeiro onde, muitas vezes, as favelas ganham o sentido de periferias.
Um território habitado há muito tempo, mas que é recorrentemente
apresentado como local de falta ou de carência cultural – termo que
costuma operar uma síntese das fragilidades em saúde, educação,
habitação e, a reboque, sugerir como inadequados os hábitos e atitudes
de seus moradores. Notamos que essa concepção, permeia os discursos
mais conservadores e, por vezes, aparece mais ou menos intensificada
naqueles que se nomeiam como progressistas, vislumbrando na presença
do Estado a “salvação” desses territórios. Tal entendimento parece
carregar as marcas dos percursos colonizadores e civilizatórios, nos quais
as manifestações populares foram sistematicamente desqualificadas e
silenciadas.
Na última década, porém, temos observado uma inflexão nos
discursos oficiais que passaram a atribuir valor às culturas populares não
só ampliando a concepção do conceito, mas forjando declarações,
plataformas e políticas de apoio e fomento a iniciativas nesse campo.
Cabe ressaltar que não percebemos tal mudança como um real
reconhecimento e valorização de modos de vida singulares,
aproximando nosso entendimento daquela como uma modulação das
políticas de prevenção das violências e da promoção da segurança
mundial implementadas, por exemplo, pela UNESCO desde o pós-
guerra. Não podemos deixar de considerar que as estratégias de controle
e de ajuste em tempos neoliberais, têm investido energicamente no
direcionamento (econômico e mercadológico) da educação e da cultura –
estímulo ao empreendedorismo e ativação de uma racionalidade
assentada no gerenciamento produtivista (Havey, 2008).
Por tudo isso e entendendo que hoje os trabalhadores sociais se
movem num campo minado, onde as práticas ganham sentidos cada vez
mais paradoxais, é que propomos habitar a encruzilhada entre as
práticas que veiculam de forma acrítica as políticas de governo,
nomeadas públicas, e as práticas de oposição àquelas, as que recusam a
participação. Entre esses dois mundos, entre integrados e apocalípticos
(Eco, 2006) é que extraímos algumas considerações que tencionamos
trazer aqui. Tais considerações, de caráter introdutório, estão referidas a

[ 12 ]
diferentes atividades de pesquisa e de extensão 3 realizadas por cada uma
de nós, nos últimos dez anos, período no qual a ansiada consolidação
democrática ganhou novos tensionamentos gerados pelo contraditório
fenômeno da globalização da economia, cujas estratégias de ajuste se
assentam na proliferação dos dispositivos de segurança e na
criminalização de entidades e pessoas que escapam aos modos de vida
consentidos.
O que aproxima os diferentes processos nos quais estivemos
envolvidas é, em primeiro lugar, o fato de se apresentarem como
experimentações, encontrando no caráter processual e na dimensão
inventiva das práticas, elementos a privilegiar. Em segundo lugar, nos
aproxima o fato de desenvolvermos aquelas ações culturais em
territórios nomeados pelos discursos oficiais como “vulneráveis”. Tal
categorização tem sido o mote para a alocação de recursos
governamentais, não governamentais e empresariais, através de projetos
e de programas, que objetivam desde o apoio a iniciativas, já em curso,
envolvendo entidades e/ou pessoas que moram no local, até o
financiamento para implementação de tecnologias inovadoras, de caráter
multiplicador, já validadas em territórios afins.
De todo modo, o que tem nos chamado a atenção nesse tempo,
nos convocando a assumir um tom de prudência em nossos percursos, é
o caráter paradoxal desses investimentos: se o dinheiro circula, numa
atribuição de valor a territórios e pessoas historicamente excluídos de
benefícios, não tarda para que os mesmos sejam transmutados em capital
social, inscritos em novas estatísticas e devolvidos às engrenagens da
gestão (econômica) dos riscos. Operação de controle, contenção,
encarceramento ao ar livre. Mudanças para nada mudar...
Assim, para além da reivindicação de direitos sociais e de
políticas públicas que favoreçam os setores populares, importa
colocarmos nossa atenção no modo de elaboração e de implementação
dessas políticas. Num tempo em que “tudo é perigoso”, cabe usar desta
assertiva para nos deslocar de pretensas zonas de conforto que só num
estado de ignorância podem ser tranquilizadoras.

3 Katia Aguiar – Pesquisa-Intervenção: Subjetividade, Cultura e a Economia dos


Setores Populares e o Curso de Extensão Viabilidade Econômica e Gestão
Democrática de Empreendimentos Associativos Populares – promovidos pela
Universidade Católica de Salvador e Capina- assessoria e apoio a projetos de
inspiração alternativa.
Pâmella Passos - Pesquisa de tese de doutoramento: Lan house na favela: cultura
e práticas sociais em Acari e no Santa Marta e Projeto Periferias em Cena.
[ 13 ]
Entendendo que a construção de uma política cultural para a
periferia está diretamente implicada numa economia cultural e, portanto,
inscrita nas forças em luta que disputam concepções e projetos de
desenvolvimento, é que trazemos à cena um instrumento que ganhou
centralidade nas relações entre Estado, Sociedade e o mundo empresarial
na última década, a saber: o Edital.

Edital – entre o dicionário e o cotidiano das práticas

Assumindo os riscos de não explorar todas as possibilidades do


que aqui insinuamos como problema, é que nos aproximamos do Edital
como figura incorporada às conversas e discussões entre pesquisadores,
trabalhadores sociais e moradores das periferias, como condição nas
relações de trabalho, já que é caminho de acesso a recursos financeiros,
materiais e humanos. Queremos considerar como hipótese de trabalho
que tal incorporação, quando naturalizada, pode impedir a observação e
a análise tanto das condições de seu uso, quanto de seus efeitos –
operação que cola ao edital um significado, apagando os múltiplos
sentidos que com ele se efetuam.
Numa consulta ao dicionário, Edital se define como: ato oficial
contendo aviso, citação, determinação etc., que a autoridade competente ordena
seja publicada em imprensa oficial ou não; forma de divulgação oficial, para
conhecimento das próprias pessoas nele mencionadas, bem como às demais
interessadas no assunto. Além disso, dependendo de seu objetivo, o Edital
ganha diferentes denominações, referindo variados tipos de atividade, de
áreas administrativas ou de públicos – concurso público, licitação,
fomento à pesquisa ou a projetos socias, por exemplo.
(http://pt.wikipedia.org/wiki/Edital)
Em artigo sobre uma pesquisa realizada no campo de estudos da
linguagem (Santos e Nascimento, 2011), encontramos discussões que
classificam o Edital como gênero linguístico. Os autores do referido
artigo, utilizaram para a sua pesquisa documental três tipos de Edital,
captados na rede mundial de computadores – concurso para provimento
de cargos públicos, abertura de licitação e seleção para bolsa de estudo –
para com eles compor o seu corpus de análise. Tal investigação,
referenciada nos estudos dos gêneros discursivos, concluiu pela
necessidade de maior elaboração do gênero Edital. Segundo os autores,
os manuais normativos de elaboração, comumente utilizados por aqueles
que redigem os textos, não contemplam as especificidades, as

[ 14 ]
necessidades e a complexidade requeridas por cada tipo de Edital. Em
suas palavras,

“(...) a literatura em relação às orientações para


construção desse gênero ainda é precária e carece de
critérios linguístico-discursivos mais consistentes. Isso
é necessário pela própria função social desse gênero:
sabemos que as instituições privadas e públicas
mantêm, em grande parte, sua relação com a sociedade
através do edital. ”(p.142).

Os autores destacam, ainda, que essas dificuldades e


inadequações na redação do texto, com “aplicações indevidas de
termos”, favorecem problemas de interpretação, gerando muitos
recursos (processos) aos órgãos responsáveis.
Com isso, consideramos que o Edital embora tenha uma função
normativa, não tem alcançado o seu intento na medida que a língua não
é utilizada de forma adequada, “de maneira a atingir seu interlocutor e
indicando como deve agir.” (p.142) Encontramos ressonância a essa
observação em diálogos estabelecidos com um morador de Acari, dono
de uma lan house local, quando tendo sido eliminado de uma seleção
pública de projetos, comentava sua descrença nesses processos:

Então, essas pessoas, eles sabem, porque muitos


criadores de ONG, em sua grande maioria são
políticos, são pessoas formadas, né, em determinada
área, ou direito ou economia, entendeu? Agora tu traz
projeto, bota um projeto desse e um cidadão ali, que
mal terminou o segundo grau. Então como é que ele
vai montar um projeto desse sozinho?(Passos, 2013,
p.171)

Mas a fala desse morador amplia a discussão para além da boa


escritura e do mal entendido, trazendo com sua perplexidade a
confirmação de uma operação já antiga no controle dos setores
populares. É que ainda que mal redigidos, como observam os
pesquisadores, e que declaradamente sejam endereçados aos habitantes
das periferias, as exigências para a participação e concorrência, expõem
outros direcionamentos e favorecimentos políticos, fazendo do Edital
uma artimanha.
Tendo participado de diferentes processos normatizados por

[ 15 ]
Editais seja na posição de solicitantes, de concorrentes ou de
avaliadoras, afirmamos a pertinência de colocar em discussão tal
instrumento. Muitas vezes ouvimos que esse era o caminho mais
transparente e democrático de acesso aos recursos públicos, uma vez que
coloca “em pé de igualdade todos aqueles que se interessam ou
necessitam do fomento”. Ledo engano! As condições nas quais os Editais
são publicizados – prazos, exigências e contrapartidas, além do caráter
hermético dos textos - expõem por si só seus comprometimentos
políticos, indicando que as benesses de tais iniciativas, na maioria das
vezes, já têm nome e endereço certos.

Eu queria ter certeza só, eu entrei também assim, mais


pra ter certeza, entendeu?(...) Porque as coisas que eles
colocam ali pro teu projeto são coisas absurdas,
absurdas que pro pessoal de comunidade fica difícil.
(...) eles põem tanta dificuldade, porque quem
realmente sabe, né, como criar um projeto desses, são
as ONGs, né, que são praticamente uma empresa, ali é
uma empresa, pra meter a mão no dinheiro público,
né? (Passos, 2013,p.170)

Mais uma vez, a avaliação do morador de Acari está em sintonia


com algumas análises sobre as práticas das organizações não
governamentais (ONGs) nas últimas décadas. Numa pesquisa publicada
sobre o tema, Coutinho (2011) estuda as relações estabelecidas entre as
ONGs, o Estado e as políticas de ajuste do Banco Mundial (BM) para a
América Latina – o que inclui programas de capacitação nas áreas de
saúde, educação e cultura, dentre outras. Evidencia que mesmo entre as
entidades mais ‘progressistas’ e ‘radicais’, é difícil manter a autonomia
do sentido de suas ações, uma vez que as mesmas recebem
financiamento de organizações internacionais e de governos dos países
do norte, claramente comprometidos com as pautas do BM. Assim, para
além dos limites de sua autonomia, as ONGs assumiram pouco a pouco
funções de consultoria, preparando documentos, estratégias e políticas
operacionais, tornando-se “capaz de atender às exigências da
reestruturação produtiva, amenizando os efeitos do desemprego em
massa” (Coutinho, 2011, p.14).
Isso posto, ainda que o Edital apareça hoje como um mal
necessário, dadas as relações estabelecidas entre o Estado e Sociedade,
cabe observar que ele é indicativo da hegemonia de políticas de governo,
se constituindo como dispositivo de controle e modulação das práticas
[ 16 ]
sociais. Desse modo, embora evocando seu significado de documento
que “deve conter características de impessoalidade, do uso do padrão
culto de linguagem, da clareza, da concisão, da formalidade” (Santos e
Nascimento, 2011, p.134), sua operacionalização faz proliferar outros
sentidos que merecem ser observados.
Ao apontar a função social das ONGs como “colchão
amortecedor”, “administradoras de consenso” (Coutinho, 2011, p.130) ou
como “ventrílogos da escassez” (Oliveira, 2002, p.61), cabe alertar para o
efeito de traição das intenções frequentemente declaradas pelos seus
gestores, qual seja: a (real) democratização de recursos e o fortalecimento
de iniciativas de caráter popular.

Política Cultural Periférica e Economia Cultural

Pelo exposto, cabe interrogar: como viabilizar uma atividade


cultural na periferia?
É bem verdade que a despeito dos patrocinadores e editais elas
acontecem: rodas de samba, saraus, atividades esportivas, festas
populares, festivais, são realizados ora com apoio de comerciantes locais,
numa estratégia informal de patrocínio, ora na base de “interas”, as
famosas “vaquinhas” colaborativas entre os moradores. Em nossas
experiências encontramos muitos desses moradores que, a despeito de
“ganharem o pão” com outras atividades, esperam sedentos a
oportunidade de, quem sabe, sobreviver do que gostam de fazer e que
denominam de cultura periférica.
A necessidade imperiosa de ter acesso a informações pertinentes à
elaboração de projetos, prestação de contas ou mesmo aos temas com
maior chance de financiamento, coloca em cena o antigo lema “quem tem
fome tem pressa”, proferido por Betinho. Mas, como diz a música: “a
gente não quer só comida, agente quer comida, diversão e arte”... Como
então habitar esse conflituoso território? De que maneira é possível
perceber as capturas e manutenções de uma política cultural hegemônica
regida por editais, dialogar com ela e diferir, produzindo rupturas e
escapes?
Longe de oferecer soluções mágicas, fazemos aqui três destaques
que nos servem de orientadores na construção de dispositivos de análise
(reflexão e debates) nos coletivos de trabalho, nas periferias.
1º. Colocar em discussão as condições de produção e de
realização das atividades, avaliando as implicações da busca por

[ 17 ]
financiamento externo, como a possível perda de autonomia,
cumprimento de prazos, etc.;
2º. Dessacralizar da militância, promovendo discussões sobre os
prós e contras, os possíveis impasses, e o cenário político e econômico no
qual proliferam os editais de financiamento. Considerar esse cenário
mais amplo pode contribuir para pensar outras posições políticas fora do
embate entre “militantes puro-sangue” (aqueles resistentes, que não
participam de editais) e os “vendidos” (aqueles que querem concorrer,
sobreviver de sua arte e/ou produção cultural);
3º. Conhecer as exigências e avaliar a adequação entre o que se
quer fazer e o recurso disponibilizado, desfazendo ilusões quanto à
estabilidade de vínculo e de remuneração. É recorrente a submissão de
projetos populares com objetivos e metas muito além do que os recursos
previstos podem garantir, levando ao excesso de trabalho mal
remunerado;
4º. Fazer a gestão coletiva das atividades, desde a formulação do
projeto até a aplicação dos recursos, inscrevendo o projeto no contexto
das relações econômicas vigentes. O projeto serve assim, como uma
experimentação que favorece a compreensão dos limites e das
possibilidades da posição de cada um numa economia cultural.
Entendemos que não é possível fazer uma discussão sobre
política cultural sem considerar sua economia, o que implica atenção à
indústria cultural, sua estrutura e funcionamento, em especial, o seu
modelo de ação. Aqui, o chamado oligopólio de franja parece dominar a
cena fazendo coexistir um centro oligopolístico (majors) e uma franja
concorrencial (independentes), operando o domínio da distribuição, da
busca especulativa de talentos e modismos (efeito moda) e dos direitos
sobre as obras por longo período de tempo (efeito reserva). Tolila (2007)
aponta que esse modelo “permite explicar vários fenômenos observáveis
no setor das indústrias culturais (...). Coloca também, diretamente, a
questão da criação artística em seus novos aspectos questionando os
modos de intervenção das políticas públicas” – como e quando intervir.
Importantes considerações para pensar a relação entre cultura e
periferia e interrogar: uma política (im)possível?

Referências Bibliográficas

AGUIAR, Katia Faria de. Formação sócio-política e pesquisa-intervenção.


In SOARES, Sérgio, et ali (Orgs) Economia dos setores populares:

[ 18 ]
pensamentos, ferramentas e questões. Porto Alegre:Catarse – Coletivo de
Comunicação, 2009.
________________ e ROCHA, Marisa Lopes da. Micropolítica e o
exercício da pesquisa-intervenção: referenciais e dispositivos em análise.
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PASSOS, Pâmella S. Lan house na favela: cultura e práticas sociais em Acari e
no Santa Marta. Tese (Doutorado em História) – Universidade
Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia,
Departamento de História, 2013.
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do. O gênero edital e suas características linguístico-discursivas: para
além dos manuais de redação. InRevista do Secretariado Executivo. Passo
Fundo, p. 133-143, n. 7, 2011.
TOLILA, Paul. Cultura e Economia: problemas, hipóteses, pistas. São Paulo:
Iluminúrias: Itaú Cultural, 2007.

Música

Arnaldo Antunes/Sérgio Brito/Marcelo Fromer .Comida

[ 19 ]
[ 20 ]
CONSUMO FAVELA
Adriana Facina 4
Somos desiguais
e queremos ser
sempre desiguais.
E queremos ser
bonzinhos benévolos
comedidamente
sociologicamente
mui bem comportados.
(Trecho do poema Favelário, de Carlos Drummond de Andrade)

O geógrafo Mike Davis, no livro Planeta Favela, diz que os


favelados são pelo menos um terço da população urbana global. O
impacto desse dado faz com que as projeções urbanísticas para um
futuro próximo devam levar em consideração que
(...) as cidades do futuro, em vez de feitas de vidro e
aço, como fora previsto por gerações anteriores de
urbanistas, serão construídas em grande parte de tijolo
aparente, palha, plástico reciclado, blocos de cimento e
restos de madeira. Em vez de cidades de luz
arrojando-se aos céus, boa parte do mundo urbano do
século XXI instala-se na miséria, cercada de poluição,
excrementos e deterioração. (DAVIS, 2006: 28-9)

Essa precariedade, no entanto, não inviabiliza o “esplendor”, no


dizer de Vera Malaguti citando Foucault, necessário ao capitalismo
vídeo-financeiro, que tem nas favelas uma de suas fronteiras mais
promissoras para expansão de um ordenamento espetacularizado que
combina consumo com controle social. Nas palavras da socióloga:
Para ele [Foucault] esplendor seria a beleza visível da
ordem e o brilho de uma força que se manifesta e que
se irradia. Manter a ordem num campo de forças
naquele território usado, desigual, múltiplo,
controlando as populações. (MALAGUTI, 2011: 4)

4 Doutora em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em


Antropologia Social/Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro
(2002), com pós-doutorado pela mesma instituição (2008-2009). É professora do
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social/Museu Nacional/UFRJ.
Tem experiência nas áreas de Antropologia e História, com ênfase em
Antropologia Urbana e História Cultural.
[ 21 ]
A ordem necessária ao esplendor é garantida pela força das
armas, mas também pelo consenso construído a partir de subjetividades
organizadas em torno do consumo. Sem querer demonizar o consumo,
que inclui práticas muito heterogêneas, é fato que as demandas e
necessidades geradas por essas práticas na sociedade contemporânea
captura boa parte da vida e dos esforços de sobrevivência dos
indivíduos, sobretudo os mais pobres. Podemos afirmar que a favela é
hoje o centro desse processo, palco de ocupações armadas e cenário de
uma expansão de fronteiras de todo tipo de consumo, em meio ao
celebratório discurso das classes emergentes, nova face do capitalismo à
brasileira. Assim, parte do Planeta Favela de que fala Davis, é o
Consumo Favela, território de práticas diversas de financeirização da
vida, mas também de recriação das formas de sobrevivência dos pobres.
Em uma breve pesquisa no site de buscas Google a palavra favela
descortina um mundo ligado ao diversos tipos de práticas de consumo. É
fato: a favela está na moda. Concorrendo com as históricas
representações estigmatizadoras da favela como lugar de carência e de
violência armada, surge a imagem da favela como negócio, uma marca
poderosa capaz de atrair investimentos públicos e privados para todo
tipo de atividade econômica. Turismo, grandes lojas de varejo, pousadas
para receber gringos, eventos culturais de grande porte, shoppings,
festas e até mesmo um videogame online são parte desse cardápio à
disposição de quem deseja consumir a favela. Há ainda uma recente e
intensa valorização imobiliária, fenômeno que atinge sobretudo as áreas
que receberam Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), e também uma
presença frequente da favela como cenário ou tema de diversas
produções da indústria cultural, sejam os chamados favela movies, sejam
as novelas televisivas. Tornada consumo, a favela serve inclusive para
vender coisas que não têm diretamente a ver com ela, sendo utilizada
como sinal de modernidade criativa e “descolada”. É o caso de bares e
estabelecimentos no Brasil e no exterior que ostentam o nome Favela,
bem como de marcas como a Favela Hype. De acordo com o site da loja
roupas, criada em 2001:
A marca propõe um lifestyle repleto de referências
urbanas e passa pelos mais variados universos.
Cachaça Samba Club, Pobre Star, Soul do Rio e Toda
Nudez Será Castigada são algumas das coleções
criadas pela estilista. 5

5 Retirado do site http://www.favelahype.com.br em 24/10/2013.


[ 22 ]
Sem deixar de portar um estigma que confere a seus habitantes
uma identidade deteriorada, nos termos de Erving Goffman (1988), que
transparece no uso do termo “favelado” como categoria de acusação,
favela se torna também um signo que remete a significados outros. Para
analisar essas ressignificações associadas a diferentes práticas de
consumo, pretendo dividir estas em três categorias: 1. Consumo do
território. Como exemplo desta categoria, tratarei os tours de favelas
para turistas, em sua maioria, estrangeiros; 2. Intervenções culturais.
Aqui está a realização de eventos de grande porte (shows, festas etc) por
empresas ou produtores culturais de fora da favela, muitas vezes parte
de um “pacote cultural” que acompanha a implementação de algumas
UPPs; 3. Favela que consome. Enquanto nas categorias anteriores o foco
está nos “de fora” consumindo a favela, aqui o olhar se volta para novos
hábitos de consumo dos moradores e as iniciativas que buscam lucrar
com esses hábitos.

O consumo do território

Território é um conceito em voga atualmente, sobretudo nos


jargões das políticas culturais. Nos debates das Ciências Humanas,
território aparece como algo mais do que um espaço delimitado por
fronteiras físicas, tais como aquelas do Estado-Nação. Pierre Bourdieu
chama atenção para a dimensão de poder presente na definição de
qualquer território e para o aspecto simbólico que nos permite pensar o
território como prática e não apenas como um espaço físico. Junto deste,
haveria um espaço social marcado por distinções e hierarquizações
demarcadas por relações de poder. (BOURDIEU 1989 e 1998)
Assim, quando definimos a favela como um território, não
estamos nos referindo somente ao espaço físico das diferentes favelas,
mas também às construções simbólicas que informam as representações
sobre elas, bem como às práticas culturais e experiências compartilhadas
por seus moradores, por sua vez implicadas em processos de formação
de identidades.
O turismo em favelas organizado por agências situadas fora delas
e voltado prioritariamente para turistas estrangeiros opera na
ambiguidade das representações existentes sobre os territórios favelados.
O exotismo com que o passeio é apresentado o uso de jeeps como
veículos para a condução dos “gringos” fazem com que a associação com
os safáris nas savanas africanas seja frequentemente acionada pelos

[ 23 ]
moradores de favela. Michel Silva, jovem morador da Rocinha, ativista e
comunicador popular, expressa essa ideia nos seguintes termos:

Acho legal quando saem para conversar, alguns até se


mudam para cá, porque a vida é dura, mas é boa. Só
não curto os que ficam presos dentro dos jipes. Parece
um safári.(apud ABREU E SILVA, 2013: 99)

A mesma crítica pode ser vista no cartaz abaixo, retirado do blog


O Cotidiano (http://www.ocotidiano.com.br), do fotógrafo Franscisco
Valdean, morador da favela da Maré:

O exotismo tanto remete à violência e ao perigo, quanto a um


conhecimento profundo sobre que seria a sociedade brasileira, como

[ 24 ]
está, em inglês, no site da empresa Favela Tour: “Se você quer entender o
Brasil, não vá embora do Rio sem fazer o Favela Tour.” 6
Já no site da empresa Jeep Tour, podemos ler:

Numa comunidade é natural que todos estampem um


soriso (sic) no rosto, mesmo com as dificuldades do
cotidiano. No tour pelas favelas, é possível obter um
choque cultural tendo uma aula prática de
antropologia, conhecendo um lugar com uma
diversidade enorme quando o assunto é a
sobrevivência. Explore esta sensação, numa passagem
fantástica entre realidades e contrastes de várias
comunidades inseridas no cenário carioca. 7

Em 2008, quando realizava trabalho de campo na Rocinha para


minha pesquisa de pós-doutorado sobre o funk, vi diversas vezes os jeeps
camuflados repletos de turistas estrangeiros, alguns realmente vestindo
roupas e chapéus utilizadas em safáris, passeando pelas ruas da favela.
Pude ver também as expressões faciais e ouvir os comentários dos
moradores, sempre indignados com a cena. No livro Gringo na laje,
Bianca Freire-Medeiros apresenta uma pesquisa sobre o turismo na
Rocinha na qual demonstra que, ao lado de uma aceitação dessa
atividade, existem tensões entre moradores e turistas, ou entre
moradores e as agências de turismo. Segundo a pesquisa, realizada em
2009, os moradores vêm no turismo não tanto uma possibilidade de
ganho econômico, mas sim uma atividade estratégica para a reversão do
estigma que pesa sobre a favela. Mas, ao mesmo tempo, se incomodam
com as câmeras, a exotização e a falta de interação entre eles e os turistas.
(FREIRE-MEDEIROS, 2009)
Essa atividade cresceu em várias favelas após o estabelecimento
das UPPs, que criaram uma imagem das favelas pacificadas como
lugares seguros aos visitantes de fora, em oposição às favelas não
pacificadas, ainda tidas como “no-go areas”, termo que Les Back utiliza
para falar da criminalização de uma região do sul de Londres habitada
majoritariamente por negros e pobres. (LES BACK, 1996) De acordo com
matéria publicada em O Globo em 21 de janeiro de 2013, baseada em

6http://www.favelatour.com.br/ing/whatis.htm, capturado em 24 de outubro

de 2013.
7 http://www.jeeptour.com.br/index.php/2013-02-18-15-26-11/favelas,
capturado em 24 de outubro de 2013.
[ 25 ]
pesquisa realizada em 2011 pela FGV, mais da metade dos turistas que
chegam ao Rio de Janeiro quer conhecer as favelas, o “Brasil Real”, nos
termos de um turista canadense entrevistado pelo jornal. Ao mesmo
tempo, a mesma pesquisa revela que os turistas pouco consomem nesses
locais e que têm receio de comer nas favelas, pois vêm o lixo e esgoto nas
ruas com “nojo”. De acordo com o jornal,

O baixo consumo na favela contradiz com a percepção


geral declarada por 82,1% dos turistas brasileiros
entrevistados no aeroporto, de que esse tipo de
atividade traria benefícios sociais à comunidade. Entre
os estrangeiros, esse percentual foi de 73,2%.
Percentual similar de estrangeiros — 73% — declarou
que as operadoras de turismo lucram com a miséria,
ante 65,8% dos brasileiros.
O estudo ouviu 900 pessoas que deixavam o Rio,
sendo metade brasileiros e metade estrangeiros; 400
estrangeiros que faziam o passeio no Dona Marta; e 25
moradores, trabalhadores e policiais do morro, que
falaram na condição de anonimato.
O levantamento tratou também de outra questão
polêmica: o comportamento de quem visita a favela.
Para 70,2% dos estrangeiros ouvidos no aeroporto, os
turistas se comportam como num "zoológico de
pobre". O percentual de brasileiros que pensam assim
é menor: 46,1%. 8

Desse modo, podemos perceber que nem sempre o turismo se


apresenta como oportunidade econômica para os moradores de favelas,
gerando inclusive tensões entre turistas e moradores. Ainda de acordo
com O Globo,

O levantamento no Dona Marta constatou que a


relação entre moradores e turistas tem focos de tensão.
Uma delas diz respeito à privacidade da população
local, que reclama de visitantes que saem tirando fotos
de tudo e todos, sem pedir licença. Houve inclusive
moradores que expressaram temor com o destino das
imagens, sobretudo de crianças, temendo a presença

8 http://oglobo.globo.com/rio/mais-da-metade-dos-turistas-quer-conhecer-
favelas-do-rio-7349831, consultado em 24/10/2013.
[ 26 ]
de pedófilos entre os turistas estrangeiros. 9

Atualmente desenvolvo pesquisa sobre produção cultural e


práticas de letramento no Complexo do Alemão e no trabalho de campo
sempre ouço falas que se referem à transformação daquele território em
ponto turístico da cidade. Em matéria publicada na internet, o Governo
do Estado celebra o fenômeno:

Rio de Janeiro (RJ) – Os olhares curiosos, os cliques de


câmeras fotográficas e os idiomas estrangeiros falados
no vai e vem do teleférico do Morro do Alemão
revelam que o turismo chegou ao local. De acordo com
a Supervia Trens Urbanos, responsável pela
administração do equipamento, 14 mil pessoas
transitam diariamente pelos vagões suspensos da
comunidade pacificada. Desse total, o turismo
responde por 35,7% durante os dias úteis e 64,3% aos
fins de semana. O quantitativo é superior ao registrado
pelos vagões do Pão de Açúcar, conhecido como um
dos principais pontos turísticos do estado. 10

Até a ocupação militar de dezembro de 2010, essa era uma área


sempre representada nos meios de comunicação como violenta,
decadente economicamente, perigosa e sem atrativos portanto. A
despeito disso, alguns coletivos, como o Instituto Raízes em Movimento
e o Verdejar já se dedicavam a uma atividade de dar a conhecer o
território para pessoas de fora, um certo tipo de “turismo de
vivência”como define Alan Brum, sociólogo morador da favela e
fundador do Raízes.
No atual contexto após implementação de UPPs e a inauguração
do teleférico que foi construído como parte do PAC (Programa de
Aceleração ao Crescimento), diversos grupos de dentro e de fora da
favela começaram a organizar visitas turísticas. Em decorrência disso,
surgiram conflitos sobre os usos turísticos daquele território. Como no
Santa Marta, moradores reclamam da falta de privacidade trazida pelos
turistas, com o agravante que o teleférico permite que se olhe e fotografe
cenas ocorridas dentro de suas casas e nas suas lajes, estes locais onde se
festeja, pega sol, toma banho de mangueira etc. Atividades estas

9 Idem.
10 http://www.turismo.gov.br/turismo/noticias/todas_noticias/20130121.html
, capturada em 28/10/2013.
[ 27 ]
consideradas do âmbito familiar privado. Essa visita turística que se faz
pelo passeio no teleférico, com parada apenas em suas estações e
imediações delas, é denominado por grupos de moradores que
organizam visitas ao Complexo como sendo “turismo pelo alto”. Para
eles, esse tipo de passeio não permite ao visitante conhecer de fato a
favela e estabelece com seus moradores uma relação de exotização e
exploração econômica considerada perversa. Em contraposição, esses
grupos organizam visitas por becos e vielas, o chamado “turismo por
baixo”, visto como mais verdadeiro e comprometido com a população da
favela. Um exemplo é o Rolê Afetivo, organizado pelo coletivo Ocupa
Alemão, formado por jovens moradores. Outro exemplo é o Fotoclube
Alemão, criado pelo fotógrafo Bruno Itan, e que mistura moradores e
visitantes em passeios por dentro das favelas do Complexo produzindo
fotos e discutindo a criação de um novo olhar sobre o território.
Pude comprovar a desvinculação do “turismo pelo alto” com a
vida na favela um dia em que fui a um evento que acontecia na última
das estações do teleférico, a de Palmeiras. Era um sábado de sol e havia
muitos turistas no teleférico e na estação. De repente, caiu um temporal
muito forte e o teleférico fechou. Um grupo de uns dez turistas ficou
apavorado, perguntando aflito na bilheteria se o teleférico voltaria a
funcionar. Diante da negativa do funcionário, ficaram muito assustados
em ter de descer o morro em que fica a estação e pegar um transporte
alternativo (Kombi, mototáxi etc) para chegar ao “asfalto”. Fui
caminhando junto com eles, pois tinha de ir a outro evento na Praça do
Conhecimento, na favela Nova Brasília. Ouvi seus comentários que
misturavam tensão, medo, revolta e uma imensa vontade de sair
correndo daquele lugar o mais rápido possível.
Essas tensões em torno do consumo do território explicitam uma
cidade em disputa, material e simbolicamente falando. Quais são as
apropriações e as representações da cidade que os diversos tipos de
turismo em favelas pode criar? O turismo que segrega favela e asfalto ou
o turismo que integra e afirma “favela é cidade”?Ao consumo do
território favelado como perversidade, se contrapõe um tipo de interação
entre iguais no qual saberes sobre o território são trocado por novas
imagens produzidas sobre ele, na contramão da estigmatização
dominante.
Assim como o turismo, a produção cultural também é um campo
a ser explorado pelos agentes da comoditização da favela, reproduzindo
desigualdades de diversos tipos que instituem as relações de poder em
nossa sociedade.
[ 28 ]
Intervenções culturais

Boa parte do que se entende como cultura carioca, ou mesmo


brasileira, são criações produzidas ou relacionadas às populações e aos
modos de vida existentes em favelas e periferias. É o caso do samba,
música e dança identificados como típicos do Rio de Janeiro. É também o
caso do funk que ganhou o adjetivo de carioca como afirmação de sua
especificidade territorial. Assim, parece haver um consenso em torno da
favela como locus de produção de arte e de cultura.
No entanto, olhando com mais cuidado, vemos que não é bem
assim. Um discurso frequentemente pronunciado por ONGs,
representantes do Estado e pela mídia corporativa apresenta as favelas
como lugar de carências. E a carência cultural é uma delas.
No caso das ONGs voltadas para o desenvolvimento de projetos
culturais ou artísticos em favelas, observamos com frequência a
associação entre a “necessidade da arte” e a prevenção, ou mesmo
“recuperação”, da criminalidade entre os jovens habitantes desses
territórios. A Cultura, com C maiúsculo, seria uma maneira de ampliar
seus horizontes e retirar o poder simbólico dos criminosos enquanto
referência identitária da comunidade. Por vezes, esta intenção é tão
explícita que aparece já no nome da coisa, como é o caso da instituição
“Dançando para não dançar”, que utiliza a gíria “dançar”, sinônimo de ir
preso ou ser assassinado, em contraposição ao “dançando”, significando
aprender balé clássico e fazer parte do projeto que hoje conta com
diversos patrocínios e apoios, inclusive da Petrobrás. No site da
instituição (www.dancandoparanaodancar.org.br), encontramos a
seguinte descrição:

Em 1998, foi fundada a Associação Dançando para não


Dançar, em 10 de novembro, com o objetivo de
ampliar o raio de atuação do projeto e dedicar-se mais
à integração social de menores que vivem em situação
de risco nas favelas da cidade.
Além das aulas de balé clássico, passaram a ser
ministradas aulas de dança contemporânea e de
prática e teoria musicais. Passou-se a oferecer,
também, suporte social-educativo com aulas de reforço
escolar e de informática; atendimento médico,
dentário, psicológico; apoios de assistente social e de
fonoaudióloga, inclusive para os familiares diretos.

[ 29 ]
A Cultura que salva vem de fora e, mais do que elemento artístico
ou de valor estético, importa a sua capacidade de integrar os “menores”,
termo tipicamente criminalizante para designar jovens e crianças pobres,
à sociedade. Entendida como algo universal, essa Cultura desconsidera
as culturas dos espaços populares, ou aos toma como particularidades
hierarquicamente inferiores. Apresentada como universal e
politicamente neutra, tal concepção se encaixa perfeitamente na função
de controle social dessa camada da população, contendo rebeldias e
potencialidades pouco afeitas à ordem que resultam da experiência
cotidiana da pobreza e da opressão. Nas palavras de Terry Eagleton,

Não é, na verdade, apenas a cultura que está aqui em


questão, mas uma seleção particular de valores
culturais. Ser civilizado ou culto é ser abençoado com
sentimentos refinados, paixões temperadas, maneiras
agradáveis e uma mentalidade aberta. É portar-se
razoável e moderadamente, com uma sensibilidade
inata para o interesse dos outros, exercitar a
autodisciplina e estar preparado para sacrificar os
próprios interesses egoístas pelo bem do todo. Por
mais esplêndidas que algumas dessas prescrições
possam ser, certamente não são politicamente
inocentes. Ao contrário, o indivíduo culto parece-se
suspeitosamente com um liberal de tendências
conservadoras. É como se os noticiaristas da BBC
[poderíamos dizer TV GLOBO] fossem o paradigma
da humanidade em geral. Esse indivíduo civilizado
certamente não se parece com um revolucionário
político, ainda que a revolução também faça parte da
civilização. A palavra “razoável” significa aqui algo
como “aberto à persuasão” ou “disposto a
concessões”, como se toda convicção apaixonada fosse
ipso facto irracional. A cultura está do lado do
sentimento em vez do da paixão, o que quer dizer do
lado das classes médias de boas maneiras em vez do
das massas iradas. Dada a importância do equilíbrio, é
difícil ver por que alguém não seria solicitado a
contrabalançar uma objeção ao racismo com o seu
oposto. Ser inequivocamente contrário ao racismo
pareceria ser distintamente não pluralista. Já que a
moderação é sempre uma virtude, um leve desagrado
em relação à prostituição infantil pareceria mais
apropriado do que uma oposição veemente a ela. E já
[ 30 ]
que a ação pareceria implicar um conjunto de escolhas
razoavelmente definitivas, essa versão da cultura é,
inevitavelmente, mais contemplativa do que engagé.
(EAGLETON, 2005: 32-3)

Esse “leve desagrado” pode ser traduzido no discurso crítico da


“realidade social” feito de forma vaga, com o objetivo de não desagradar
e afastar possíveis parceiros que possam viabilizar economicamente os
projetos. É importante ainda, na corrida por investidores, apresentar a
favela como território da ausência de Cultura. E a relação que se faz entre
esta ausência e problemas sociais, notadamente a violência armada
ligada ao crime, a favela torna-se valiosa para estratégias de captação de
recursos públicos e privados para projetos culturais variados.
A chegada das UPPs potencializa isso e abre caminho não
somente para mega ONGs que trabalham como braço do Estado,
notadamente o Afroreggae, mas também para que a própria polícia
militar possa fazer esse “trabalho cultural”, militarizando ainda mais os
territórios ocupados.A UPP se apresenta, sobretudo, na mídia
corporativa, como oportunidade de levar “cultura” como complemento à
pacificação armada. São inúmeras as notícias de soldados da PM
oferecendo aulas de música ou de modalidades esportivas. No site oficial
do governo de Estado do Rio de Janeiro uma notícia dessas merece
destaque:

UPP Babilônia/Chapéu Mangueira oferece aulas de


violão
Por Julia de Brito - Assessoria de Comunicação do
Palácio
O amor pela música e pela farda fizeram com que o
soldado da PM Fausto Oliveira Cunha aceitasse o
convite para dar aulas de violão, no projeto Vozes e
Acordes, nas comunidades do morro da Babilônia e
Chapéu Mangueira. A oportunidade oferecida pelo
comandante da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP),
capitão Felipe Magalhães, que serve às duas
comunidades, é considerada pelo PM uma realização
pessoal que está levando crianças e adultos a conhecer
a linguagem universal da música.
- Este trabalho começou no fim de novembro do ano
passado. Começamos no Chapéu Mangueira, mas
agora houve um pedido para o Babilônia. Por dia, dou
cinco aulas, nas terças e nas quintas. Sempre fui

[ 31 ]
músico e sou recém-formado na polícia. O capitão me
perguntou se eu sabia ensinar, se já tinha dado aula de
violão. Já trabalhei profissionalmente com música.
Tenho um irmão mais velho que é músico. Tenho
percebido um grande interesse dos alunos e acho que é
um diferencial ter um policial passando este
conhecimento para eles – ressalta.
No armário do quarto, o violão encostado não possuía
serventia até que Maria Lúcia Teodoro Pereira, de 42
anos, recebeu a notícia de que a UPP Babilônia/
Chapéu Mangueira estava oferecendo aulas gratuitas
de violão. Agora, depois de aprender os primeiros
acordes, o sonho acalentado há tempos está sendo
realizado:
- Só agora consegui realizar este sonho. Tinha o violão,
mas não sabia nada. O professor Cunha deixa a gente
muito à vontade, ele cobra, mas é paciente. No
começo, foi difícil aprender violão. Comecei a me
dedicar mais em casa. Gosto de MPB. Estou
aprendendo músicas da Ana Carolina – conta.
Instalada com o objetivo de garantir mais segurança
aos moradores das comunidades e desmobilizar o
mercado do tráfico nos morros, a UPP Babilônia/
Chapéu Mangueira está cumprindo com o seu papel
pacifista ao estabelecer uma nova interação dos
membros da corporação lotados nestas comunidades
com seus moradores.
Para a moradora do morro da Babilônia, de 45 anos,
Arlete dos Santos, a tranquilidade dos moradores,
depois da instalação da UPP, não é conversa de
governo.
- Acho que a interação está muito boa e jogou por terra
muitos mitos. A UPP está mudando a visão do policial
para a comunidade. Está havendo uma aproximação
do policial com os moradores e esta interação é
positiva. Quando o policial chegava à comunidade era
de forma agressiva, acho que isto está mudando – diz.
As aulas de violão tiveram início na comunidade
Chapéu Mangueira, mas o grande número de pedidos
fez com que o curso abrisse vagas para alunos do
morro da Babilônia esta semana. As aulas acontecem

[ 32 ]
nos turnos da manhã e da tarde, sempre às terças e
quintas-feiras. 11

O “diferencial” de que fala o soldado professor de música, o


violão da moradora que estava “sem serventia” e passa a tocar “MPB”,
símbolo de distinção social, a cultura que tem “papel pacifista” ao
integrar policiais e moradores são significados atribuídos a cultura
entendida como dispositivo de controle social, de transmissão de valores
hegemônicos e deslegitimação de práticas culturais próprias daquele
território. O baile funk, por exemplo, seguia proibido. Todas as
atividades culturais envolvendo festejos que aconteciam antes da UPP
devem agora ser submetidas à anuência do comandante policial local.Em
2012, participei de uma roda de funk organizada pela APAFUNK
(Associação dos Profissionais e Amigos do Funk) no morro Chapéu
Mangueira e as lideranças comunitárias responsáveis tiveram de ficar
quase todo o tempo do evento, que ocorreu no final de tarde de um
sábado, “desenrolando” com policiais para que eles não interrompessem
a festa. Sendo que a UPP já havia sido comunicada com antecedência,
fato que, em si, já demonstra o Estado de Exceção implementado nessas
favelas. O mesmo ocorreu na Rocinha durante o sarau da APAFUNK em
conjunto com a paulista Cooperifa. Apesar do horário de matinê, de
haver um ambiente familiar com a presença de muitas crianças, do som
estar numa altura dentro da lei, das comunidades estarem a favor da sua
realização, ainda assim tivemos de aguentar a presença de policiais
fortemente armados e nos olhando de forma intimidadora.
O principal parceiro institucional da “cultura pacificada”, com
apoio não somente dos governos municipal e estadual, mas também de
empresários de setores variados, inclusive o poderoso setor financeiro, e,
sobretudo da mídia corporativa, em particular as Organizações Globo, é
o Afroreggae. Segundo seus estatutos, disponíveis em
http://www.afroreggae.org/wp-content/uploads/2013/01/Estatuto-
GAS.pdf e em http://www.afroreggae.org/wp-
content/uploads/2013/01/Estatuto-GCAR.pdf, o Afroreggae é
Associação Civil para Fins não Econômicos e é também Associação
Grupo Cultural Afroreggae. Em ambos fica clara a definição da entidade
como não possuindo fins lucrativos e em seus relatórios financeiros, bem

11 http://www.intranet.rj.gov.br/exibe_pagina.asp?id=8954, capturado em
30/10/2013.
[ 33 ]
como em declarações dadas por José Júnior, coordenador da mesmo, a
receita em 2012 girou em torno de 22 milhões de reais.
O Afroeggae ganhou destaque ao denunciar os horrores da
Chacina de Vigário Geral, impetrada por policiaisem 1993, trabalhando
com cultura, sobretudo música, como maneira de superar o trauma
sofrido pela população daquela favela. Hoje em dia, o Afroeggae se
especializou em buscar oferecer alternativas de vida a criminosos,
sobretudo os comerciantes varejistas de drogas mais famosos, gerentes
importantes ou mesmo dono de morros, estejam eles presos ou em
liberdade. Seu coordenador ganhou destaque midiático ao buscar
negociar com os bandidos do Complexo do Alemão a sua rendição ou
não reação à ocupação militar daquele território ocorrida no final de
2010. Episódio nebuloso que possui várias versões. Para a mídia
corporativa, José Júnior foi um herói destemido. Já para muitos
moradores sua atuação foi, para dizer o mínimo, questionável. As
intenções do Afroreggae, por meio das quais os apoios governamentais e
de empresas como Santander e Natura são obtidos, podem ser resumidas
em seu manifesto 12:

MANIFESTO AFROREGGAE
Mundo degradado.
Caos crescente.
O planeta, uma grande favela.
O homem continua desumano.
Tudo parece, sob medida,
para dar errado.
Mas, há utopia.
Loucos insistentes
acreditam na transformação.
Somos Afroreggae.
Trocar o fuzil pelo berimbau.
Derrubartodas as fronteiras
com explosões
de vitalidade e alegria.
Das ruínas
fazer nascer à liberdade
e o orgulho de ser o que se é.
SomosAfroreggae.

12http://www.afroreggae.org/manifesto, capturado em 30/10/2013.


[ 34 ]
Lutar pelo lado certo da vida errada.
Por uma vida sem lado.
Vida inteira de pessoas inteiras.
Porque ninguém precisa ser o que não é.
Somos Afroreggae.
Lutar, mesmo só,
porque ninguém está sozinho.
Conexões humanas, conexões urbanas.
Se tinha tudo para dar errado,
porque está dando certo?
Somos Afroreggae.
Salve a arte que nos salva.
No meio da guerra,
tráfico da liberdade e
da militância cultural.
Mudar a vida das pessoas
para mudar as nossas também.
Salve a arte que nos salva.
Somos Afroreggae.
Porque nenhum motivo explica a guerra.

O fuzil trocado pelo berimbau, a arte que salva, a ideia de que há


uma guerra em curso. Como parte de um de seus projetos mais famosos,
o Conexões Urbanas, o Afroreggae leva shows para favelas, com uma
grande estrutura, com o discurso de levar a qualidade dos shows “da
Zona Sul”, ou “da orla” para as favelas cariocas. Em setembro de 2007,
por exemplo, com patrocínio da TIM, o projeto promoveu um show de
Marisa Monte no Complexo do Alemão. O evento, muito noticiado na
imprensa na ocasião, ocorreu poucos meses após a Chacina do Pan,
quando no mínimo 19 pessoas foram mortas por forças militares do
Estado em um só dia. A atuação como braço do Estado fica clara na
notícia da Folha de S. Paulo:

No local do show havia várias faixas anunciando a


presença do governador do Rio, Sérgio Cabral, que
acabou sendo representado pelo vice-governador Luiz
Fernando Pezão. Essa segunda etapa do Conexões
Urbanas está associada às obras do PAC (Programa de
Aceleração do Crescimento). Pezão anunciou um
investimento de R$ 480 milhões para obras no
complexo.
 José Junior, coordenador do Afroreggae,
[ 35 ]
disse que "é a primeira vez que o movimento tem
relação de intimidade com o governo estadual".
 Nos
últimos três dias a Força Nacional de Segurança
passou a fazer o policiamento inclusive à noite, no
lugar da Polícia Militar, para reduzir a tensão e
permitir o show. 13

Com eventos garantidos manu militari, como também o foi o


recente Desafio pela Paz, corrida de rua promovida pela instituição, a
“cultura que salva” é um ótimo negócio para o Afroreggae, conferindo
legitimidade perante governos e elites (econômicas e culturais),
oferecendo pouco pão e muito circo para os moradores de favelas.
Perante a essas conexões estreitas com o Estado e ao apoio empresarial,
tornam-se invisíveis as iniciativas culturais locais e as especificidades do
território. Quanto custam esses shows? Quem escolhe os artistas que se
apresentam? Quantos moradores participam efetivamente da produção
desses eventos? Qual o papel dos artistas e agentes culturais das favelas
nos quais eles ocorrem? Quais os impactos duradouros de iniciativas
como essas nas localidades? Em julho de 2013, após o incêndio numa das
sedes do Afroreggae no Complexo do Alemão, mais um misterioso fato
envolvendo a instituição, a Prefeitura do Rio de Janeiro destinou 3,5
milhões para a mega ONG como resposta aos supostos ataques do
comércio varejista de drogas. São cifras imensas na opinião dos grupos
culturais que atuam no Complexo e que são invisibilizados pelo
gigantismo da ONG cultural oficial, muitas delas lutando por fatias de
verbas públicas conferidas em minguados editais.
A atuação que apaga os grupos culturais locais foi algo comum
nas intervenções do PAC, ao qual o Conexões Urbanas estava ligado. Um
caso emblemático é o dos grafites que foram pintados no interior das
estações do teleférico do Complexo do Alemão, realizados pelo Studio
Kobra, do famoso grafiteiro de São Paulo. O Alemão possui artistas do
grafite reconhecidos, como David Amen, uma referência naquele
território. David jamais foi contactado, como artista do local, para pintar
os painéis, que tratam da história e da realidade das favelas do
Complexo. Ao mesmo tempo em que erguia seu monumento mais
imponente, o PAC destruía uma das maiores galerias de grafite a céu
aberto do Brasil, que ornava os muros da Avenida Central, no Morro do
Alemão, com pinturas de artistas locais e de várias partes do mundo.

13 Ver, por exemplo, http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/


fq0110200737.htm, visitado em 30/10/2013.
[ 36 ]
Essas intervenções sinalizam que a cultura como negócio tende a
ser concentrada nas mãos de poucas instituições, capazes de tornar a
favela consumível, já que ordenada e pacificada para caber nos gostos e
tranquilizar os medos dos que com ela mais lucram, material ou
simbolicamente falando.
Mas, além de objeto de consumo, a favela consome, produzindo
contradições tortuosas como seus becos e vielas, com muitos caminhos e
possibilidades de reinvenção de desejos e práticas.

A favela que consome

Formada como complexidade, a favela sempre foi lugar de


heterogeneidades e desigualdades. Segundo Licia Valladares, é um
equívoco considerar a favela como lugar de pobreza, já que as
desigualdades de renda e de níveis de consumo estão presentes em
várias delas (VALLADARES, 2008). No entanto, recentemente, as favelas
têm sido tomadas como exemplo da emergência econômica das classes C,
D e E repetidamente afirmada em discursos governamentais desde a “era
Lula”. No dia 30 de outubro de 2013, uma matéria veiculada pelo Jornal
Nacional apresentou pesquisa realizada pelo instituto Data Popular,
especializado em consumo popular e dirigido por Renato Meirelles, que
afirmava que a classe média já formava a maioria dos moradores de
favelas no Brasil. Em tom celebratório, os dados foram apresentados pelo
diretor do Data Popular como sinal de que as favelas são um bom
negócio, lugar bom de se investir. Na reportagem, o programa associava
essa prosperidade, no Rio de Janeiro, à “chegada” das UPPs. Esta
“chegada” levou à formalização de negócios e ao pagamento de contas
de luz e outros encargos, vistos como fenômenos positivos, a despeito da
fala do presidente da Associação de Moradores do Santa Marta
afirmando que a tal prosperidade não era acompanhada de serviços
essenciais, como saneamento básico.
É significativo que de modo quase que simultâneo à instalação de
UPPs, as favelas recebam agências bancárias, lojas de grandes redes de
comércio varejista, empresas de TV a cabo procurando vender o serviço
que antes era conseguido de modo gratuito com o gatonet. Serviços
básicos historicamente obtidos “na marra” também são comoditizados,
como luz elétrica, água e internet. Em diversas entrevistas e debates, o
Repper Fiel, artista-ativista morador do Santa Marta, afirma que o efeito
disso foi uma gentrificação da favela e uma “expulsão branca” dos
moradores mais pobres. É preciso se estudar ainda o impacto da chegada

[ 37 ]
dessas grandes redes comerciais no pequeno comércio local, que não
possuem recursos para competir com esses novos concorrentes.
A ascensão do consumo na favela é noticiada por uma
reportagem da revista Isto É em 21 de junho de 2013, significativamente
intitulada Favela S/A. O personagem principal é Celso Athayde,
fundador da CUFA (Central Única das Favelas) e apresentado como
exemplo de empresário bem sucedido, capaz de transformar em cifras
milionárias o ainda pouco explorado “Eldorado” das favelas:

Favela S/A
Conheça Celso Athayde, o empresário carioca que,
com a parceria de potências como P&G, TIM e o
Grupo Doimo, da Itália, está montando uma ampla
teia de negócios para atuar exclusivamente nas favelas
brasileiras. Sua meta é investir R$ 1,5 bilhão até 2017
Por Rosenildo Gomes FERREIRA
Enquanto dirige seu utilitário-esportivo Freemont, na
cor preta, pelas vielas da Cidade de Deus, bairro
carente da zona oeste da cidade do Rio de Janeiro, o
empresário Celso Athayde, 50 anos, dono da Favela
Holding (FHolding), acena para conhecidos. Em
diversas ocasiões ele é parado por gente em busca de
ajuda para “dar um gás” em empreendimentos de
pequena monta, como a roda de pagode que acontece
no fim da tarde de domingo na quadra da Central
Única das Favelas (Cufa). Seu extenso currículo como
agitador cultural e ativista social o transformou em
uma referência nas comunidades cariocas – jargão
politicamente correto usado para designar os mais de
mil morros e favelas do Rio de Janeiro.
Atuando nos bastidores, Athayde se tornou amigo de
artistas renomados, empresários e políticos daqui e do
Exterior. Considerado um Ph.D. em matéria de baixa
renda e um dos maiores conhecedores das favelas, o
empreendedor carioca é requisitado pelo Banco
Mundial para proferir palestras em toda a América
Latina. Agora, ele quer transformar esses atributos em
negócios. Para isso, Athayde e seus sócios pretendem
investir R$ 1,5 bilhão, até 2017, em dez
empreendimentos que cobrem desde áreas de
entretenimento até logística, passando pela fabricação
de móveis, venda de passagens aéreas e distribuição
de peças de motocicleta. A maior parte dessa

[ 38 ]
dinheirama irá para a construção de shopping centers.

Detalhe: todos esses negócios, que serão replicados em


outros Estados, terão a favela como base. “Resolvi me
tornar empreendedor porque percebi que ninguém vai
querer promover os talentos das comunidades”, diz
Athayde. “Além disso, percebi que não se faz
revolução para valer sem a ajuda do capital.” A
ambição de Athayde, um ex-morador de rua, está
calcada em pesquisas que mostram as favelas
brasileiras como uma espécie de Eldorado, ainda
pouquíssimo explorado. São 12 milhões de moradores
que gastam nada menos que R$ 56 bilhões na compra
de bens e na contratação de serviços a cada ano, de
acordo com estudo das consultorias Data Popular e
Data Favela. Esse montante é superior ao Produto
Interno Bruto (PIB) de países como a Bolívia ou o
Paraguai.

Mais: o poder de consumo médio dessa fatia da


população triplicou nos últimos dez anos. Por conta
disso, 3,2 milhões de moradores de favelas passaram a
ser classificados como integrantes da classe média. A
aposta de Athayde é simples: cobrir a lacuna deixada
pelas grandes empresas. Hoje, é possível contar nos
dedos das mãos as ações destinadas a dominar uma
fatia desse apetitoso bolo. As poucas iniciativas se
resumem em tentar convencer esse consumidor a
adquirir produtos específicos ou serviços que, muitas
vezes, só estão disponíveis nos bairros mais
sofisticados das metrópoles. Por essas razões, Athayde
já costurou uma série de parcerias no asfalto, com
empresas dispostas a subir o morro. 14

Sócio de Renato Meirelles no Data Favela, projeto do Data


Popular, o maior produtor de dados sobre consumo em favelas, Celso
Athayde divulga dados que favorecem empreendedores com seu perfil,
cuja legitimidade para comoditizar a favela vem de sua origem popular.
“Se eu posso, todo favelado pode”, parece querer dizer com seu
“exemplo”. No entanto, a população favelada aparece de modo

14http://www.istoedinheiro.com.br/noticias/122091_FAVELA+SA, capturado
em 30/10/2013.
[ 39 ]
subalternizado em seus projetos, como clientela a ser explorada
duplamente, como força de trabalho e como consumidores.
Ainda que a força do consumo na favela seja um fato, em meu
trabalho de campo no Complexo do Alemão tenho ouvido diversas
críticas a essas iniciativas, entendidas, mesmo no caso de um ex-favelado
como Athayde, como vindas “de fora”. Sempre sob suspeita, para
algumas lideranças comunitárias, grupos de economia solidária entre
outros, essa ideia da favela como “Eldorado” a ser explorado
economicamente rompe com práticas econômicas baseadas em princípios
morais que se sobrepõem à lógica de mercado, vista como “fria” e
individualista. No lugar do dono da venda que vende fiado e ajuda
famílias em necessidade, grande empresas que inscrevem os nomes dos
devedores no SPC.
No entanto, apesar de importante, a força dessa mercantilização
ainda não se impõe sobre as práticas econômicas específicas de territórios
faveladas, marcadas por intensa criatividade e reguladas por uma lógica
que faz conviver economia moral e economia de mercado. Na rua
principal da favela Nova Brasília, a rádio do intenso comércio ali
presente anuncia nos auto-falantes presos nos postes uma pet shop
especializada em “estética animal”, voltada para o embelezamento de
animais domésticos, incluindo a oferta de serviço de pet-táxi com ar-
condicionado para buscar e levar os bichinhos. Além da criatividade, a
proximidade com o cliente é algo muito valorizado e é marca distintiva
dos inúmeros comércios de favelas. Não basta oferecer produtos bons e
baratos, e nem algo inovador, é preciso ser amável, simpático, íntimo. De
modo muito explícito, consumo na favela é relação social, forma de
interação valorizada para além do que se compra e do que se vende, para
o que não há equivalência em moeda. Daí a sempre presente
ambiguidade diante da ostentação de riqueza. Mesmo esta tem de ter
uma razão extra-econômica.
Indagado sobre seus hábitos de consumo de luxo, José Júnior, o
coordenador do Afroreggae, sempre afirma que é importante demonstrar
poder com o uso desses objetos para ser uma referência de indivíduo
bem-sucedido economicamente para os jovens da favela, como
“alternativa ao crime”. Mesmo no discurso de um dos maiores
agenciadores da favela como negócio, a justificativa para o
enriquecimento em cenário de desigualdades brutais, afinal, é moral.

[ 40 ]
Consumo e identidade

Em 2008, durante pesquisa de campo na favela de Acari, conheci


um bonde de funk que gastava mais dinheiro comprando roupas para
apresentações do que para produzir suas músicas. Na minha cabeça de
branca de classe média, eu não via sentido algum naquilo. Como pode
artistas priorizarem a vestimenta, pagando 200 reais numa camiseta de
malha de marca, por exemplo, ao invés de investirem numa produção
mais bem acabada de suas músicas? Quando fiz essa pergunta a esses
meninos, todos eles negros, a resposta foi uma verdadeira lição pra mim,
dessas que fazem a gente matutar por muito tempo:

Adriana, é assim, quando a gente chega pra se


apresentar numa boate de Zona Sul, o playboy lá pode
tá até de bermuda rasgada e havaiana. Mas se a gente
chega vestido mais ou menos, é logo “volta pra
favela”, “favelado”. Então, a gente tem de ir vestido
com as marcas mesmo, na maior beca, pra não dá
moral pra esses caras. Eles já ficam putos de verem as
meninas gritando pra gente, se tiverem a oportunidade
de esculachar, esculacham mesmo. Então, a gente não
vai dar esse mole pra eles.

Ao mesmo tempo meio de distinção e de integração, o consumo,


além de fornecer elementos para construção de identidades, é também
instrumento poderoso de reversão de estigmas, ainda que essa reversão
possa ser situacional. Se no palco sua indumentária lhes dá um
passaporte para o mundo dos “playboys”, fora dele os rapazes do bonde
de funk podem ser abordados de modo agressivo por policiais
simplesmente por usarem roupas ou tênis considerados muito caros para
o poder aquisitivos de jovens pobres, negros e favelados. “Onde você
conseguiu esse tênis?” é pergunta frequente feita por policiais a jovens
favelados durante suas abordagens, demonstrando de modo muito claro
os limites da associação entre consumo e cidadania.
O consumo também pode ser capaz de inverter fluxos culturais,
principalmente o que se volta para novas tecnologias informacionais. A
tese de doutorado de Pâmella Passos, intitulada Lan house na favela
(2013), analisa os usos e reinvenções criativas que donos e usuários de
lans nas favelas de Acari e Santa Marta produzem ao garantir acesso a
essas tecnologias em meio a toda sorte de dificuldades e precariedades
estruturais. Mais uma vez, retorno ao bonde de funk de Acari. Uma vez,
[ 41 ]
assistindo a um ensaio deles, fiquei curiosa com um passos diferentes
que eles inseriram numa coreografia. Perguntei de onde eles tinham
tirado aquilo e eles riram de mim. “Isso é kuduro! Vai dizer que você
nunca ouviu falar?” Era 2008, bem antes da moda do kuduro assolar
rádios e televisões no Brasil. De fato, do alto de minha ignorância, tive de
admitir que nunca tinha ouvido falar naquilo. Li no rosto deles “como
essa mulher pode estudar funk e não conhecer isso?”. Mas, educados que
eram, tiveram a paciência de me explicar: “É a última moda em Angola.
É como se fosse o funk de lá”. Para completar minha lição de diáspora
africana, eles me levaram numa lan house e me mostraram vídeos dos
meninos africanos dançando kuduro.
Na contramão do fluxo centro-periferia, os meninos foram buscar
em outras margens a matéria-prima da sua criatividade artística. Esta,
por sua vez, reapropriada pelo centro, virou moda e tema musical de
abertura de novela da Globo. Afinado com essa experiência de uma
modernidade alternativa, Veríssimo Junior, diretor do grupo Teatro da
Laje, sediado no favela Vila Cruzeiro, diz que, quando perguntado sobre
se o teatro pode salvar os meninos da favela, responde: “Não temos de
perguntar o que o teatro pode fazer por esses meninos e sim como esses
meninos podem contribuir para o teatro”. Com essa inversão, ele
reafirma seu lema, que pode ser também o de todos que procuram ver
essa história a contrapelo: “Favela não é carência. Favela é potência.”

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[ 42 ]
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VALLADARES, Licia do Prado. A invenção da favela. Do mito de origem à
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[ 43 ]
[ 44 ]
“É TUDO NOSSO”: DISPUTAS CULTURAIS EM
TORNO DA CONSTRUÇÃO DA
LEGITIMIDADE DISCURSIVA COMO
CAPITAL SOCIAL E ESPACIAL DAS
PERIFERIAS DO RIO DE JANEIRO
Ana Lucia Enne 15
Mariana Gomes 16

Direito de falar. Falar sobre. Falar de. Falar por. Em torno dessas
expressões configura-se parte expressiva da luta pelo direito à
significação e representação daqueles que, historicamente, foram
confinados a posições excludentes no jogo discursivo. Dentre eles, os
agentes cujos lugares ocupados nas distribuições do espaço físico e social
foram marcados por estratégias de estigmatização, degradação e
isolamento por parte dos detentores do capital econômico e político.
Falo, em especial, daqueles que habitam zonas alocadas como periféricas
aos centros avalizados e valorizados como referência, sempre presentes
quando se pensa nas modulações da estrutura espacial e social. No caso
da cidade do Rio de Janeiro, esse lugar periférico, também em processo
histórico de muitas variáveis, foi sendo construído em associação aos
bairros suburbanos, favelas, áreas rurais e a chamada região
metropolitana, com destaque para a Baixada Fluminense. Este artigo tem
por proposta principal refletir sobre as relações entre o espaço físico e o
espaço social, percebendo a ambos como espaços de luta, e compreender
o papel da cultura e da produção de sentidos como vital neste processo
de disputas.
Pretendemos apresentar uma breve discussão sobre essa questão,
bem como sobre a construção de projetos de identidade a partir do uso
da cultura, em suas imbricações com a política, para consolidar
apropriações sobre os territórios físicos e sociais, por parte de agentes
que vivenciam seu cotidiano em locais classificados como “periféricos”
ou pela lógica da “falta”, como as favelas, os subúrbios e a região da

15 Ana Lucia Enne é doutora em Antropologia pelo PPGAS/MN/UFRJ e


professora do curso de Estudos de Mídia e da Pós-graduação em Cultura e
Territorialidades da Universidade Federal Fluminense (PPCULT/UFF) –
anaenne@gmail.com
16 Mariana Gomes é graduada em Estudos de Mídia e mestranda em Cultura e
Territorialidades pelo PPCULT/UFF - marigomesgc@gmail.com
[ 45 ]
Baixada Fluminense. Entendemos que as apropriações culturais, em
especial as ligadas ao universo musical, permitem que esses sujeitos
experimentem um empoderamento como enunciadores, garantindo não
só que suas vozes tenham escoamento e suas representações visibilidade,
mas que possam escolher, em suas manifestações artísticas, sobre o que
falar, de onde falar e por quem falar como indicaremos a seguir. Também
indicaremos que tal investimento, que implica em formas múltiplas de
resistência, não se dá sem embates, negociações, alianças e conflitos com
os mais diversos setores sociais, incluindo as agências midiáticas, o poder
público, o mercado, o senso comum, a academia, dentre outras esferas
discursivas.
“Direito a falar”. Primeiro passo nessa arena discursiva. Sabemos
que uma das interdições da ordem do discurso é a do poder da fala.
Controlando os principais meios de expressão, como a mídia tradicional
e as indústrias culturais, as classes dominantes historicamente calaram
aquelas submetidas a condições de exploração, quando não o fizeram de
forma menos simbólica, pelo uso das forças repressivas do Estado que
atuam nas periferias. Evidentemente, os sujeitos concretos, em seus
cotidianos, sempre criaram modos de dizer, de fazer com as palavras e
com as coisas, significando suas práticas e as vivenciando. O fluxo
artístico e musical existiu sempre, entre as camadas populares, a despeito
do controle hegemônico das esferas mais amplas de circulação da
cultura. Mas o advento de novas tecnologias de comunicação e
informação (NTCIs), em especial as digitais e em rede, facilitaram a
eclosão de vozes contra hegemônicas. Da mesma forma, a partir de um
processo de “redescoberta” das favelas por parte da grande mídia, em
concordância com estratégias de positivação geradas pelo poder público
a partir de interesses diversos – implementação das UPPs, especulação
imobiliária, estratégias de controle e sedução, manutenção de redutos
eleitorais, formação de mercado consumidor, abertura das favelas ao
turismo etc. -, um enorme aparato discursivo veio sendo montado, com
matérias jornalísticas e programas televisivos, dentre outros produtos,
que teriam as periferias por destaque, dando-lhes voz e retratando suas
formas de vida. Em certo sentido, há uma abertura, na última década,
para a emergência de vozes da periferia, de formas muito diversas, como
indiquei até aqui. A periferia está, neste sentido, podendo falar, inclusive
nos circuitos de expressão antes a ela vedados. Mas sobre o que, e de que
forma?
“Falar sobre” evoca o problema das representações construídas
acerca de determinado objeto. Quando pensamos nas construções
[ 46 ]
discursivas acerca de determinado espaço físico, as favelas ou a Baixada
Fluminense, por exemplo, sabemos que o discurso hegemônico tende a
fixar os sentidos elegendo sobre o que falar, de que modo falar, como
enquadrar, o que deve ser destacado ou suprimido na criação
representacional. Da mesma forma, silenciar sobre a própria existência
ou de recortes dessa existência tem poder no existir. Assim, a luta
discursiva em torno do “falar sobre” nos conduz a esses aspectos: é
preciso falar de favelas, de periferias, da Baixada, de lugares excluídos
discursivamente, não silenciá-los. É preciso dar voz aos que habitam
esses espaços. Mas de que favelas, de que Baixada, de que periferias,
falaremos? Ou permitiremos, “nós”, hegemonia discursiva, que “eles”, os
que na periferia habitam, falem? Neste sentido, não é importante, dentro
das estratégias de luta, somente falar sobre determinado lugar, mas ter
direito a participar dos trabalhos de enquadramento, memória,
identidade e projeto sobre e para aquele lugar. Neste processo, a
autoridade de quem fala se torna questão fundamental, como detalhou
Michel Foucault (1970).
E isso nos remete ao eixo do “Falar de”. De que lugar, de que
posição, de que ponto de vista? Na luta discursiva, autoridade e
legitimidade para enunciar são fundamentais. Assim, o lugar de
nascimento ou de moradia, a vivência, a prática cotidiana passam a ser
usados como formas de capital cultural e social importantes para a
consolidação desses agentes nas disputas e, de forma tática, servem
também para reposicionar e desautorizar os demais agentes, que, por
outros critérios, se outorgaram e eram reconhecidos como aqueles com o
direito a falar sobre, incluindo aí jornalistas, produtores culturais,
artistas, acadêmicos, políticos etc. As acusações são fortes: não
pertencimento, não envolvimento, desconhecimento da realidade,
desenraizamento, interesses próprios... Sendo de fora, o outro não teria
legitimidade a falar sobre a periferia. E mesmo em ambientes antes
restritos, como a academia, a grande mídia e circuitos culturais
hegemônicos, presencia-se a luta pelo direito de significar a partir da
experiência vivida através de movimentos de ocupação dos mais
diversos. “É tudo nosso”, diz o cartaz veiculado nas redes sociais por
ocasião de um evento cultural na Baixada Fluminense. “É tudo nosso”,
posta também na rede social uma militante ativista da região quando é
cumprimentada por sua participação em um congresso acadêmico no
qual apresentou uma reflexão a partir de sua experiência.
Neste sentido, chegamos ao “falar por”. Através de diversas
táticas e estratégias, no sentido proposto por Michel de Certeau (1998),
[ 47 ]
criando suas próprias mídias, dando visibilidade a seus projetos,
participando de múltiplas esferas, colocando para circular suas músicas e
produtos artísticos, criando seus eventos, ocupando múltiplos lugares,
circulando, criando instituições, coletivos, redes, “a favela está atuando e
dispensando os dublês”, como canta Dudu de Morro Agudo, da rede
Enraizados da Baixada Fluminense, em sua música “Respeito” (ENNE,
2011). Trata-se, nesse caso, não só de exercer o direito à fala, de escolher
sobre o que falar e a partir de que posição, mas de não permitir que se
fale por aqueles que vivenciam o cotidiano das periferias. Estamos diante
de um processo de empoderamento discursivo, de construção de
autoridade e legitimidade em torno de pontos importantes. Que se
traduz através da compreensão de que as formas discursivas criam
mundo, são representações e práticas, em situações efetivas de luta e
ressignificação social.
Pierre Bourdieu aponta para a contiguidade entre o espaço social
e o espaço físico. E indica que somente compreendendo as relações entre
essas duas estruturas é que conseguiremos complexificar a questão da
produção dos lugares e das lutas pela composição do espaço. Da mesma
forma que o espaço físico é definido pela “exterioridade mútua das
partes”, também o espaço social é definido “pela exclusão mútua (ou a
distinção) das posições que o constituem” (BOURDIEU, 2011:160).
Portanto, as posições que os sujeitos ocupam nos espaços físicos estão
diretamente ligadas às suas posições nos espaços sociais. Assim, o habitat
contribui para fazer o hábito, mas o hábito também contribui para fazer o
habitat.

“Não há espaço, em uma sociedade hierarquizada, que


não seja hierarquizado e que não exprima as
hierarquias e as distâncias sociais, sob uma forma
(mais ou menos) deformada e, sobretudo, dissimulada
pelo efeito de naturalização que a inscrição durável das
realidades sociais no mundo natural acarreta:
diferenças produzidas pela lógica histórica podem,
assim, parecer surgidas da natureza das coisas
(...)”(BOURDIEU,2011:160. Grifos do autor)

Há, portanto, uma hierarquia na configuração das espacialidades,


apoiada em sistemas valorativos gerados e mantidos por um sistema
cognitivo no qual as formas diferentes de capital atuam para consagrar
ou desconstruir, e cujo efeito mais poderoso é o da naturalização,
apagando seu caráter histórico. Assim, a estrutura espacial de
[ 48 ]
distribuição dos agentes e a estrutura espacial de distribuição de bens e
serviços, privados ou públicos, formam a tessitura de organização desse
sistema de valores que determinará inclusões e exclusões, positivações e
negativações, recusas e aceitações tanto de lugares quanto de sujeitos que
os habitam e suas práticas culturais.
Bourdieu descreve, em seu artigo, as oposições entre a capital e a
província, no caso francês, como formas de objetivação no espaço físico
de “simbólicas de distinção”. E nos lembra que essas materializações
tendem a se reproduzir no espírito e na linguagem, gerando “categorias
de percepção e de apreciação, ou estruturas mentais”. Dessa forma, “as
surdas injunções e os chamados silenciosos à ordem das estruturas do
espaço físico apropriado são uma das mediações através das quais as
estruturas sociais se convertem progressivamente em estruturas mentais
e em sistemas de preferência”(BOURDIEU, 2011:162).
Para Bourdieu, portanto, há uma relação direta entre as formas de
estruturação do espaço físico e do espaço social, implicando em uma
associação entre o controle sobre formas de capital, instâncias de poder e
capacidade de ocupar ambas as formas espaciais, gerando sistemas
classificatórios de pertencimento, valorização e exclusão. Mas o autor nos
adverte que é preciso cuidado para não cairmos em uma armadilha
analítica, de, ao compreendermos que o espaço pode se configurar em
oposições (centro x periferia, capital x província, urbano x suburbano,
dentre outras), considerarmos que estamos diante de blocos fechados,
sem conflitos internos. Porque o que o autor assinala é que a disputa é
constitutiva da lógica de distribuição dos espaços, tanto no que tange aos
sujeitos colocados em campos diferentes e mesmo opostos, como
também no que se refere à composição interna dos próprios campos que
compõem o espaço.
Neste jogo, ocupam importância fundamental formas de ocupar a
cidade, incluindo os deslocamentos e movimentos corporais. Os espaços
físicos positivados pela lógica do capital econômico e pela política da
rarefação não podem ser acessados por todos, a sua seletividade garante
sua afirmação simbólica, fazendo com que aqueles que os habitam sejam
também consagrados. Em contrapartida, aqueles que habitam os lugares
estigmatizados passam a carregar o estigma do espaço, sendo
simbolicamente degradados, e nessa condição, dentro de uma espiral
narrativa perversa, por lá viverem degradam ainda mais aquele espaço.
É nesse cenário de composição do urbano na modernidade
ocidental, em que as classes tradicionais e a burguesia em ascensão
tomam, através da concentração dos tipos de capital, os espaços e os
[ 49 ]
ressignificam através de uma simbólica de distinção e exclusão, que
aqueles que vivenciam os espaços degradados precisam também ativar
formas alternativas de capital para se colocarem na disputa e, nas arenas
possíveis, transformarem os espaços já significados em territórios de
identidade e pertencimento, evocando outros passaportes como garantia
de legitimidade e de poder. Afirma Bourdieu: “o sucesso nas disputas
depende do capital acumulado (sob suas diferentes espécies)”
(BOURDIEU, 2011:162). Portanto, é preciso ativar outros referenciais,
transformar os esquemas mentais, para modificar também a relação das
espacialidades objetivadas, porque, como também assinala Bourdieu,
“uma parte da inércia das estruturas do espaço social resulta de que elas
estão inscritas no espaço físico e que não poderia ser modificado senão
ao preço de um trabalho de transplantação (...)” (BOURDIEU, 2011:161.
Grifo do autor). Ora, nem sempre é possível alterar a composição física
do espaço, ao menos a curto/médio prazo. Dessa forma, é preciso
ressignificar a espacialidade já consolidada objetivamente. Seja
transformando-a em visível; seja exigindo o direito a escolher como
representá-la, o que falar sobre ela; seja reivindicando o direito e a
legitimidade de poder falar sobre ela, mais do que o observador externo,
porque a vivencia e pratica; de não querer que sua voz seja dominada,
amestrada, tomada por quem já lhe tomou a realidade objetivada. Trata-
se de outra importante dimensão da luta, que não necessariamente exclui
os enfrentamentos no campo da materialidade, mas coloca em cena o
lugar central da cultura nas disputas por poder, também indicado por
Stuart Hall (2003).
Diz Bourdieu:

“Entre todas as propriedades que a ocupação legítima


de um lugar supõe, estão, e não são as menos
determinantes, as que não se adquirem senão pela
ocupação prolongada desse lugar e a frequentação
seguida de seus ocupantes legítimos. É o caso,
evidentemente, do capital social de relações ou ligações
(e muito particularmente dessas ligações que são as
amizades de infância ou de adolescência) ou de todos
os aspectos mais sutis do capital cultural e linguístico,
com os seus modos corporais e a pronúncia (o sotaque)
etc. São traços que conferem todo o seu peso ao lugar
de nascimento (e, em menor grau, ao lugar de
residência)” (BOURDIEU, 2011:165. Grifos do autor)

[ 50 ]
Tais signos, que poderiam indicar, por um prisma hegemônico,
sinais de estigmatização, tais como nascer e viver em lugares
discriminados, construídos como degradados, como lugar da falta,
passam a ser mecanismos valorizados através de estratégias de
positivação: formas de dançar e mexer com o corpo; capacidade de se
mover pela cidade, conhecer as “quebradas”, não temer o contato,
circular; capacidade de falar sobre a experiência do cotidiano, uma
poética de vida que se encontra também em uma poética sobre a vida,
através de manifestações artísticas diversas; a gambiarra, o jeito, a
sagacidade como formas de vencer as agruras mas também de explorar a
criatividade humana; o afeto e a solidariedade vivenciados e pranteados
como valores perdidos pelas classes hegemônicas; as necessidades e
enfrentamentos cotidianos como escola e preparação para lutas políticas
mais vigorosas e mais “verdadeiras”, envolvendo, inclusive, a coragem
de denunciar a prática estatal da violência, do controle e da
desigualdade. Dentre muitas outras, essas são algumas categorias que
são ativadas na luta discursiva para valorizar e legitimar os sujeitos
historicamente submetidos a processos de exclusão e estigmatização.
Nesse sentido, enxergamos uma complexificação das formas de luta
entre posições diferentes no tecido social, que indicam como a “espuma
da cultura”, no dizer de Michel de Certeau (1995), é sempre algo em
renovação e impossível de caber em qualquer representação.
Percebemos esse jogo de disputas nos trabalhos de diversos
agentes, grupos, instituições, coletivos e redes que mapeamos em nosso
trabalho de campo. Através de suas estratégias de atuação, podemos
perceber como uma rede como a Enraizados, por exemplo, articula
práticas culturais transnacionais (hip-hop) para falar de realidades e
problemas locais (a vida em Morro Agudo, Nova Iguaçu), regionais (a
vida na Baixada Fluminense e sua relação com o Rio de Janeiro e com
outras espacialidades) e nacionais (temáticas como o racismo, o
desemprego juvenil, a violência nas grandes cidades, as drogas etc.),
sobrepondo espaços e os hibridizando (SANTOS, 2006). Nas letras das
músicas, nos documentários, na web-rádio que mantém, em seu portal
na internet, nos seus perfis das redes sociais, a rede Enraizados se coloca
como protagonista de um intenso processo de ação cultural e política,
tomando para si o direito à fala e à legitimidade da representação. E,
para além da fala, consolida sua ação em práticas diversas, através de
múltiplos eventos e intervenções no espaço urbano.
Quando pensamos na atuação de outro coletivo da Baixada
Fluminense, o Roque Pense, de Duque de Caxias, a imbricação entre a
[ 51 ]
esfera discursiva e as práticas sociais é clara. A partir de um difícil
posicionamento feminista em uma região marcada por práticas
conservadoras e machistas, as mulheres do coletivo idealizaram uma luta
contínua através de uma prática musical marcadamente masculina, o
rock, e realizam anualmente um festival com duração de três dias, em
que todas as bandas que se apresentam têm necessariamente de contar
ao menos com uma mulher, envolvendo oficinas, debates, exibição de
filmes, dentre outras estratégias, voltadas para a discussão de gênero,
feminismo, violência contra a mulher e possibilidades de desenvolver
atividades profissionais no campo da cultura, em geral ocupadas por
homens, como os ramos mais técnicos. No mesmo sentido, a ação da
Pagu Funk, também de Duque de Caxias, coletivo que busca usar tal
gênero musical e letras críticas como ferramentas de conscientização
feminista, mostra o embaralhamento entre práticas discursivas e sociais
como formas de luta.
Para fechar nossos exemplos, dentre os muitos que poderíamos
citar, mas trabalhando ainda com um corte pela questão das práticas
culturais, em especial a música, e a busca de posicionamentos políticos,
podemos citar o trabalho que vem sendo desenvolvendo, em suas várias
fases, pela Casa de Cultura Donana, de Belford Roxo, também da
Baixada Fluminense. O reggae marcou a primeira fase do espaço
cultural, fortemente atrelado à formação de consciência acerca da
opressão de classe e racial, e a música, a poesia e o cinema seguem sendo
importantes formas de ação. Da mesma forma, os cineclubes Mate com
Angu, de Nova Iguaçu, e Buraco do Getúlio, de Duque de Caxias, estão,
há vários anos, atuando no campo midiático promovendo exibição de
filmes e debates, alinhavados com práticas militantes de empoderamento
dos sujeitos locais e suas produções, que procuram oferecer múltiplos
olhares e interpretações sobre a Baixada e o habitar na região,
lembrando, como afirmou Asa Briggs, que o lugar é o espaço significado,
sendo o espaço sempre uma “coleção de lugares” (BRIGGS, 1985). Neste
sentido, percebemos o uso das ferramentas midiáticas e da esfera da
cultura como formas de luta, engendrando uma relação de imbricamento
entre as práticas discursivas e as práticas sociais.
Por isso, entendemos que a luta pelo direito a falar, de definir os
temas e ângulos acerca do que se fala, de reivindicar a legitimidade à fala
em razão da experiência e do pertencimento ao lugar, buscando, neste
sentido, o direito de falar em nome de si mesmo e daqueles que
partilham do mesmo cotidiano, e não serem falados por outras vozes
exteriores ao espaço físico, não se resume ao plano discursivo, sendo
[ 52 ]
prioritariamente uma luta política, pela ressignificação do espaço e pelas
mudanças sociais. E, como tais, não se dão sem conflitos internos, sem
ambiguidades e contradições. E, muito menos, sem ações reativas dos
que controlam o discurso e as práticas do espaço de forma hegemônica e
excludente. O exemplo que exploraremos a seguir, através de uma
análise do caso do funk e da atuação da Apafunk no Rio de Janeiro, nos
parece paradigmático para a compreensão do que argumentamos até
aqui.

Ativismo pró-política cultural: o funk e sua política de cultura


movimentada nas ruas

Nos dias de hoje, pode-se dizer que quase nada escapa aos dedos
da Indústria Cultural. Com o funk não poderia ser diferente. O ritmo, ao
mesmo tempo em que é criminalizado e tratado como “baixa cultura”
por muitos, é, algumas vezes, aclamado pela mídia. A grande maioria
das emissoras de televisão já apresentou artistas do funk, algumas até
fizeram programas especiais com esses artistas. As contradições da
Indústria Cultural estão presentes também no funk de várias formas. Seja
através da hierarquização das produções dos artistas, das relações de
trabalho existentes neste meio, das formas de produção e fruição. Assim,
a “indústria do funk” é permeada de contradições.
Segundo Micael Herschmann, o funk já apresenta uma
contradição central em sua base: atinge uma grande parcela da
população do Rio de Janeiro e do Brasil - inclusive a juventude de classe
média - enquanto produto cultural a ser consumido, no entanto, aqueles
que trabalham com o funk cotidianamente, os responsáveis pela criação,
composição e produção das músicas, bem como os que trabalham por
trás das produções de festas e eventos sofrem com a estigmatização de
sua origem social e seus estilos de vida. Todos esses artistas, bem como o
grande público consumidor do funk – tendo como maioria os moradores
de favelas e periferias – são referenciados em um mesmo rótulo, embora
algumas tentativas de criar novos rótulos estejam em processo.
Tanto os jovens de classe média como os favelados consomem o
funk, mesmo estando em classes sociais diferentes e representando
papéis completamente diferentes dentro dessa lógica de produção-
consumo. É claro que as formas de consumo são, em geral, bastante
distintas. E é claro também que essas formas de consumo acabam por
“moldar”, de certa forma, as músicas e artistas a serem consumidos, bem
como os locais em que esse consumo acontecerá. Trata-se de uma

[ 53 ]
tentativa, muitas vezes, de equalização, como diria Canclini (1998), na
qual adequa-se um determinado produto musical aos gostos da classe
hegemônica.
A indústria do funk é, hoje, regida por uma espécie de
monopólio, no qual apenas duas empresas controlam a maior parte da
produção. Dentro da dinâmica da indústria cultural, na qual o funk
também está inserido, a exploração é tão comum como em qualquer
esfera do trabalho na sociedade capitalista. O desrespeito às legislações
vigentes, tanto trabalhista como de direito autoral, é a principal marca
dessas empresas hoje, algo vem sido contestado principalmente pela
atuação da Associação dos Profissionais e Amigos do Funk (Apafunk).
Mas nem sempre o cenário foi este. Nos anos 80, a cena funk
girava praticamente em torno da enorme quantidade de equipes de som,
responsáveis pelos equipamentos e contratações de MCs para os bailes.
Com o processo de criminalização do funk, ao longo dos anos 90, a
grande maioria dessas equipes de som foi desaparecendo. Como parte
desse processo de criminalização, vale lembrar que esta era a época dos
chamados “bailes de corredor”. Nesses bailes, “galeras” de diversas
comunidades se dividiam em dois grupos, os “lados A e B”. Em um
determinado momento do baile, esses grupos eram incentivados pelos
DJs e organizadores da festa a brigarem entre si. Essas galeras passaram
a se enfrentar também fora dos bailes. Para os grandes jornais e para a
classe média frequentadora das praias da zona sul, eram os chamados
“arrastões”, nos quais os favelados saíam dos bailes funks já pela manhã
e passavam pelas praias assaltando e aterrorizando os banhistas. No
entanto, aquilo que se classificou como “arrastões” silenciava outras
práticas culturais, em especial as de enfrentamento entre galeras além-
baile.

“Criação midiática, os arrastões foram apresentados ao


amedrontado público como assaltos realizados por
bandos de funkeiros favelados. Na verdade, se
tratavam de embates entre galeras oriundas de bairros
como Vigário Geral, encenando na parte “nobre” da
cidade os rituais já bastante conhecidos nos territórios
além túnel. [...] O diferencial dos chamados arrastões
era a cor da pele e a origem social dos jovens que se
enfrentavam, alguns entoando gritos de guerra como
‘É o bonde do mal de Vigário Geral’”. (FACINA, 2009)

Esse fato foi o estopim de uma verdadeira guerra ao funk,


[ 54 ]
declarada pelo poder público e pela mídia. A partir daí, duas Comissões
Parlamentares de Inquérito (CPIs) foram instaladas, uma em 1995 e outra
em 1999, para investigar supostas ligações de MCs, organizadores de
bailes e DJs com o narcotráfico, entre outras questões. É nessa época que
os bailes começam a ser fechados pela polícia e equipes de som começam
a falir por falta de demanda. Esse processo também teve impacto na
carreira dos músicos. As proibições dos bailes, resultado do intenso
trabalho de criminalização do funk por parte do poder público e da
mídia corporativa, teve como resultado um mercado fechado e
controlado por poucos.
Com o surgimento da Apafunk e sua articulação com os
movimentos sociais de Direitos Humanos, diversas conquistas
importantes foram se acumulando, contribuindo para relevantes
transformações no cenário. Uma dessas importantes conquistas foi a
revogação da lei estadual de número 5265 que, na prática, inviabilizava a
produção dos bailes funk, pois colocava inúmeros empecilhos para sua
realização. Além da revogação desta lei, a Lei Funk é Cultura foi
aprovada, reconhecendo o funk como movimento cultural. Esta lei gerou
diversas discussões, entre elas a importância de transformar a visão da
sociedade e do poder público sobre o funk. Em setembro de 2013, uma
Lei de mesmo caráter foi aprovada no Congresso Nacional. O Projeto de
Lei 4124 de autoria do deputado Chico Alencar (RJ) foi apresentado em
2008, a Lei reconhece o funk como manifestação cultural brasileira.
A aliança dos funkeiros com diversos movimentos sociais fez com
que sua causa ganhasse força. Ao lado dos MCs e DJs estavam o MST,
MTD, ocupações urbanas, movimentos de luta pelos direitos humanos,
pela democratização da comunicação, e muitos outros. Uma ferramenta
utilizada para conscientizar os artistas foi fruto dessa aliança política.
Para diversos movimentos de esquerda, ali estava uma oportunidade de
luta mais ampla: a luta pela diversidade cultural, pelo direito à cultura e
pela democracia. A luta contra a criminalização do funk passou a constar
na ordem do dia como um dos grandes catalisadores da luta por direitos
na cidade do Rio de Janeiro.
Ao longo deste processo, que se consolidou em 2008 e segue até
hoje, diversos fatores provocaram novas discussões para o funk e para a
cultura de periferia como um todo no Rio de Janeiro. Com a
implementação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), em
dezembro de 2008, outra questão estava colocada: a proibição dos bailes
dentro das favelas “pacificadas”. A Resolução 013, por exemplo, foi
assinada pelo Secretário de Segurança, José Mariano Beltrame, em 2007.
[ 55 ]
A norma, baseada numa Lei do período da ditadura militar, delegava à
Polícia Militar a função de autorizar – ou não – qualquer tipo de evento
cultural. Não é preciso dizer que, nas áreas de UPP, onde a presença da
Polícia Militar é constante, os bailes funk praticamente desapareceram,
com base na Resolução 013. A Apafunk, então, iniciou uma grande
mobilização no sentido de derrubar a Resolução 013. Em agosto de 2013,
a revogação foi anunciada pelo governo do estado.
Outra importante luta travada neste âmbito diz respeito aos
setores do Estado que se relacionam com o funk. Uma das grandes
reivindicações do movimento está no fato de serem chamados a negociar
somente com a Secretaria de Segurança Pública, como se o funk fosse
algum tipo de infração. Os artistas acreditam que uma mudança de
mentalidade precisa acontecer para que o funk seja tratado de fato como
um movimento cultural pela sociedade, e o Estado tem um papel
importante nesse processo. A Associação reivindica que o Estado passe a
apresentar políticas culturais para o funk, inclusive, editais públicos que
o contemplem.
É necessário, para melhor compreensão deste processo,
diferenciarmos os termos “política cultural” e “política de cultura”. Para
isso, lançamos mão do que aponta Alexandre Barbalho ao conceituar os
dois termos. Barbalho nos aponta que a política cultural representa um
conjunto de políticas públicas propostas e implementadas por um
governo. Neste processo, o Estado dirige à cultura um tratamento
político, organizando os mais diversos atores, discursos e as práticas
envolvidas no processo. As políticas de cultura correspondem, segundo
o autor, às disputas simbólicas em torno do ambiente cultural, seja na
produção, distribuição, fruição ou no consumo dos bens culturais, das
práticas e dos significados simbólicos ali colocados.
As políticas de cultura podem, ou não, terem o objetivo e, por
conseguinte, culminarem em política cultural. Partido deste ponto pode-
se dizer que o movimento funk atua nos dois sentidos, exigindo do
Estado que garanta uma política cultural voltada ao movimento; e
criando suas próprias políticas de cultura, acentuando ainda mais os
processos de disputa de significado na sociedade. A Apafunk, em
parceria com os movimentos sociais, seguiu criando suas próprias
políticas de cultura.
A primeira política de cultura da Apafunk partiu da necessidade
de ocupar os espaços da cidade na luta contra a criminalização do funk.
As Rodas de Funk faziam alusão às rodas de samba e eram espaços
construídos para que fossem resgatadas músicas do chamado “funk
[ 56 ]
consciente” e, consequentemente, para que fossem trazidos de volta MCs
da década de 1990 que, em sua maioria, encontram-se esquecidos pela
mídia e pelo grande público. As Rodas de Funk também tinham o papel
de reunir esses artistas com o intuito de conscientizá-los de seus direitos
autorais e trabalhistas, além de buscarem alternativas para a falta de
espaço na grande mídia e para a proibição dos bailes.
O que teve início com as Rodas de Funk em 2008 foi ganhando
outros espaços. Um programa de rádio, na Rádio Nacional, também foi
um passo importante na construção das políticas culturais para o funk. A
partir dele, a divulgação de novos artistas, eventos e bandeiras
importantes para o funk foram possíveis. O programa Funk Nacional
está no ar diariamente, das 15h às 16h e apresentado por membros da
Apafunk. Dessa forma, o funk passa a não contar apenas com a internet e
as ruas como forma de visibilidade, mas também os meios de
comunicação considerados tradicionais.
Outro projeto de política de cultura importante é o Bloco
Apafunk. O objetivo é fazer parte também do carnaval, dando
continuidade, como a própria Apafunk coloca, aos objetivos iniciais das
Rodas de Funk, como podemos ver neste trecho do projeto 17 Bloco
Apafunk:

“A Apafunk já abalou o Rio de Janeiro com sua Roda


de Funk e agora quer ocupar espaço na maior festa do
planeta! Para mixar ritmos brasileiros na base do
pancadão, precisamos comprar instrumentos de
percussão para a formação da bateria da Apafunk
(Associação dos Profissionais e Amigos do Funk, um
movimento de funkeiros do Rio de Janeiro, criado em
2009), concretizando a primeira etapa do projeto Bloco
Apafunk 2014”.

Analisando o carnaval como um momento em que a ocupação do


espaço das ruas é fundamental, pode-se perceber a importância do Bloco
Apafunk. Em um momento em que o direito à cidade é debate central no
Brasil, o Bloco se coloca como uma proposta contra hegemônica de
ocupação dos espaços, trazendo a público o debate sobre as culturas

17 O projeto foi viabilizado por uma plataforma de financiamento coletivo


(crowdfunding), o Catarse.me, e atingiu o valor esperado para o financiamento
dos instrumentos. O projeto completo está disponível no site:
http://catarse.me/pt/blocoapafunk
[ 57 ]
periféricas. Vale discutirmos também a capacidade questionadora da
vivência do carnaval. Como nos mostra Bakhtin (1996), a subversão pode
colocar em cheque os poderes estabelecidos, como nas festas
carnavalescas da época estudada pelo autor. Assim, a presença de um
bloco de funk nas ruas do Rio de Janeiro no carnaval pode contribuir
para sua ressignificação e sua afirmação enquanto movimento cultural. A
luta pela ocupação do território é também uma luta simbólica importante
para o funk, por todo o contexto da sua trajetória.
Como política de cultura, o principal exemplo que abordaremos
aqui é o do Sarau Apafunk. O evento, que surgiu em 2012, acontece nas
segundas quintas-feiras de todo mês e reúne artistas de várias
localidades. Poetas, escritores, artistas plásticos, fotógrafos, músicos,
rimadores, dançarinos, todos reunidos na Rua Alcindo Guanabara, no
centro da cidade do Rio de Janeiro, ao menos uma vez por mês. Sob o
ponto de vista de ocupação cultural de espaços públicos, este é um
exemplo emblemático e importante. O Sarau Apafunk expõe sua conexão
com outros movimentos culturais, sejam eles de periferia ou não,
fortalecendo a ideia de luta simbólica pelos espaços da cidade.
A ideia de arte-luta, atribuída quase sempre à capoeira, pode
servir como exemplo para abstração neste caso. A capoeira é conceituada
como arte-luta por sua relação com a coreografia (dança), a música, a
indumentária e todo o universo notoriamente artístico com a qual se
relaciona, embora também seja uma luta, caracterizada por “golpes”.
Arte-luta é um conceito que dá conta de um conjunto de técnicas que não
são somente – e necessariamente – práticas. Não é somente arte – no
sentido abstrato – mas também não são somente luta – em seu sentido
prático. Assim, pode-se dizer que o Sarau Apafunk contempla a noção de
arte-luta, na medida em que coexistem os sentidos práticos da ocupação
do espaço público por formas de ativismo cultural e os sentidos abstratos
da arte. Embora essa divisão entre prática e abstração não seja palpável, a
dimensão da arte-luta e do ativismo cultural presente nos Saraus
Apafunk são visíveis.
Homi Bhabha (1998) nos diz que hoje, com o alargamento da
questão cultural, o que permeia o campo da cultura é a disputa por
significado, pelo poder de significar e pela legitimidade que esse poder
pode trazer. Nem todos os indivíduos têm legitimidade para que seus
significados sejam aceitos, nem tampouco a atribuição de significado é
determinada por aqueles que detêm o poder hegemônico. Os indivíduos
lutam, portanto, conscientemente ou não, pelo direito de significar. A
questão central, no caso do funk e da ocupação do espaço urbano, está na
[ 58 ]
luta pela visibilidade de sua produção de sentidos. As dúvidas em torno
da afirmação “funk é cultura” ainda persistem e estão presentes em
diversos setores da sociedade, desde a que consome funk à que não
consome. Mesmo no ambiente de origem do funk – as favelas e periferias
do Rio de Janeiro – ainda paira o questionamento sobre o assunto. O
questionamento à premissa de que funk é cultura traz consigo um forte
teor de preconceito de raça e classe, além do próprio preconceito
territorial. O mesmo preconceito já sofrido pelo samba, hoje é vivenciado
pelos produtores e consumidores de funk e hip hop, dependendo de sua
origem social.
Dessa forma, entendemos também a necessidade de apontar a
cultura como infindável processo de disputas. E vamos além. Na cultura
popular, estas disputas se intensificam e tornam o jogo cultural ainda
mais complexo. Encarando o funk como um ritmo da cultura popular,
compreender o discurso em torno das disputas que o envolvem é chave
para sua compreensão. Entender as tensões aí imbricadas é entender
também as disputas de significado através do discurso. É o discurso que
concretiza a disputa de hegemonia, e a cultura popular é a arena onde
essa disputa acontece, seja através da mídia, da opinião pública, das
práticas cotidianas. É preciso pontuar também que o discurso não é só
fala. Discurso é prática, modo de vida, produção, comportamento.
Ocupação de espaços também é discurso. Assim, compreendemos então
que ocupar as ruas é uma questão central no discurso do movimento
funk. É ela quem vai trazer o debate territorial, cultural, artístico.
Ocupando os espaços das mais diversas formas, sejam estes
espaços físicos, como as ruas do centro da cidade, ou o espectro do rádio,
o funk vai consolidando sua luta e sua disputa de sentidos vai
construindo novas formas de construção de conhecimento, de se
relacionar com outros movimentos culturais, fortalecendo sua relação
com os movimentos sociais que tanto colaboraram e colaboram para uma
visão de cultura contra hegemônica e mais democrática, ressignificando,
dessa forma, suas posições no espaço social.

Referências Bibliográficas

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Janeiro: Brasiliense, 1996.
BARBALHO, Alexandre. O papel da política e da cultura nas cidades
contemporâneas. IN Políticas Culturais em Revista, 2 (2), p. 1-3, 2009

[ 59 ]
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Abalando os anos 90: Funk e Hip-Hop – Globalização, Violência e Estilo
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[ 60 ]
O FUNK CARIOCA E A LEI - PROBLEMAS E
RECOMENDAÇÕES
Luiz Fernando Moncau 18
Guilherme Pimentel 19

Introdução

O Funk carioca é uma cultura, cuja indústria cultural, para atingir


seu pleno desenvolvimento, clama por mudanças na seara legislativa do
Estado do Rio de Janeiro. Nos últimos cinco anos, principalmente depois
da aprovação da lei estadual no. 5.543, de 22 de setembro de 2009 20, os
artistas e profissionais do Funk vêm enfrentando inúmeras dificuldades
no que diz respeito ao desenvolvimento de sua arte e de seu trabalho.
Dentre elas, podem-se destacar, por exemplo, a dificuldade do “nada a
opor” da Polícia aos eventos solicitados, a necessidade de reiteradas
solicitações de alvará para a realização de eventos públicos e temporários
por um curto período de tempo ou de bailes em locais que já possuem
alvará de funcionamento e rigidez da legislação com relação à
infraestrutura necessária à realização desses eventos.
Em matéria jornalística intitulada “O asfalto invade o morro”,
publicada na Revista Carta Capital em 27 de fevereiro de 2013 21 , a
jornalista Marsílea Gombata atesta a desigualdade de tratamento aos
eventos culturais em favelas por parte das autoridades públicas. Na
reportagem, salta aos olhos o fato de aqueles que promovem eventos
voltados para setores sociais que podem pagar ingressos mais caros não
encontrarem as mesmas restrições enfrentadas pelos promotores de
eventos populares, ainda que os eventos mais caros ocorram nos mesmos
locais onde hoje os bailes funk encontram sérias dificuldades, podendo
ser considerados, na prática, como proibidos.

18 Pesquisador Gestor do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV Direito Rio,


com o imprescindível apoio de João Gabriel Madeira Pontes.
19 Bacharel em Direito pela UERJ, membro do Movimento Direito Para Quem e

assessor da Comissão de Direitos Humanos da ALERJ.


20 Esta é lei “Funk é Cultura”, que define o Funk como movimento cultural e

musical de caráter popular, impondo ao Poder Público a competência de


assegurar a esse movimento a realização de suas manifestações próprias, e
proibindo a discriminação contra o movimento funk e seus integrantes.
21 Veja a matéria em: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/o-asfalto-

invade-o-morro [acesso em 20 de outubro de 2013]


[ 61 ]
Tendo em vista o cenário descrito acima, este texto visa a dar uma
contribuição ao debate acerca da regulamentação de eventos na cidade e
no Estado do Rio de Janeiro. Para tal, buscou-se fazer um levantamento
dos diplomas legais em vigor no referido Estado que permitisse tanto a
identificação de seus pontos mais problemáticos como a indicação de
medidas e sugestões que poderiam solucioná-los.
Sabe-se que a legislação que será destrinchada ao longo do
presente documento não pode ser separada de valores fundamentais do
nosso Direito, que gozam de ampla proteção constitucional, tais como: os
direitos culturais de acesso às fontes da cultura nacional, bem como o
apoio e a valorização da cultura nacional de acesso e de participação na
vida cultural (artigos 214 e seguintes da Constituição Federal); o direito à
livre manifestação do pensamento, à livre expressão e a liberdade de
reunião de pessoas para fins pacíficos (artigo 5º, incisos IV, IX e XVI da
Constituição Federal); o direito social à segurança (artigos 6º e144 e
seguintes da Constituição Federal); e os valores sociais do trabalho e da
livre iniciativa (art. 1º, 5º, XII, 6º e 170 da Constituição Federal). Por isso,
vale ressaltar que as medidas sugeridas para solucionar os problemas do
elenco de leis em tela tentarão prestigiar tais valores essenciais, sem
necessariamente descuidar-se de outros que não tenham sido
mencionados expressamente.

A legislação em vigor no Estado do Rio de Janeiro

A regulamentação fluminense referente à execução de eventos


públicos gravita em torno de três normas que merecem atenção especial:
O Decreto n° 39.355/2006; a resolução 278/2004, da Secretaria de Estado
da Defesa Civil (SEDEC), a qual alterou a resolução SEDEC no. 111/1993;
e a Resolução 013 (chamada de “Zero Treze”), da Secretaria de Estado de
Segurança, de 23 de janeiro de 2007. Bem, vamos analisar uma a uma.
Mas antes disso, é importante entender a diferença entre Resolução,
Decreto e Lei.
“Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa,
senão em virtude de lei”. É isso o que diz o inciso II do artigo 5º da nossa
Constituição. Esse dispositivo, que consolida o Princípio da Legalidade
em nosso Direito, deve ser lido em harmonia com outro princípio
constitucional, o Princípio da Divisão de Poderes, que determina que a
aprovação de leis é uma competência exclusiva do Poder Legislativo. Ou
seja, podemos dizer que, de acordo com o Direito brasileiro, ninguém
será obrigado a fazer ou deixar de fazer coisa sem que haja determinação

[ 62 ]
aprovada no Poder Legislativo na forma de lei. Assim, ainda que nem
toda norma seja uma lei, para ter validade jurídica, toda norma precisa
de amparo legal (estar baseada na Lei). Decretos (feitos pelo chefe do
Poder Executivo – o Prefeito, o Governador ou o Presidente) e
Resoluções (feitas pelos Secretários de Estado, também pertencentes ao
Poder Executivo) a rigor, são apenas formas de executar o que está
escrito em uma lei; são instrumentos de governo que só podem fazer o
que as leis autorizam. Portanto, para compreender a questão da
regulamentação de eventos no Rio de Janeiro, é importante entender que
toda Resolução é uma maneira do Secretário de Estado aplicar uma
determinação feita por Decreto de seu superior (o Chefe do Executivo,
neste caso o Governador). Este Decreto, por sua vez, precisa estar dentro
dos limites impostos pelo Poder Legislativo, através de suas leis e da
ordem Constitucional, a base fundamental de nosso sistema jurídico.
O decreto no. 39.355, de 24 de maio de 2006, não faz referência a
qualquer legislação que lhe delegue poderes de regulamentação. Em
outras palavras, não é possível apontar qual lei é por ele regulamentada,
o que já levanta uma dúvida grave, decorrente da falta de visível amparo
legal para lhe conferir validade. Para sanar essa dúvida, entretanto, é
possível rastrear um pouco de sua história, verificando quais normas o
antecederam e foram revogadas quando da sua aprovação. A mais antiga
delas é o decreto no. 3.074, de 05 de março de 1980, o qual também não
faz remissão a qualquer legislação superior e sim a outro decreto, do
antigo Estado da Guanabara, datado de 1968, que não foi analisado neste
estudo.
Em seu texto, a norma em análise aponta que competem ao
Estado as atividades de controle e de fiscalização das diversões públicas,
atribuindo esta competência à Secretaria de Segurança Pública “como
forma de assegurar o respeito aos bons costumes e a manutenção da ordem e da
tranquilidade públicas, através a (sic) e efetiva observância das prescrições legais
e regulamentares atinentes à Censura Federal”.
Dessa forma, é possível afirmar que o decreto no. 3.074/80 tinha
como um de seus objetivos conferir poderes suficientes e bastantes ao
Estado, de modo a implementar, no âmbito do Estado do Rio de Janeiro,
as normas de censura, instrumento central de controle político nos “anos
de chumbo”. Na breve pesquisa realizada, porém, não se conseguiu
verificar em que medida as disposições deste decreto reproduzem
normas relativas à Censura Federal.
De qualquer maneira, é certo que a redação do referido decreto
foi transmitida e complementada para as normas que lhe sucederam.

[ 63 ]
Não seria equivocado dizer, portanto, que parte importante da
regulamentação hoje em vigor tenha sido inspirada, ainda que de
maneira desavisada, na referida norma, desconsiderando o fato de que a
prática da censura não é mais tolerada desde o fim da ditadura e o
advento da democracia brasileira no final da década de 80.
O decreto no. 3.074/80 era muito mais simples e conciso que a
regulação hoje em vigor. Entretanto, apresentava problemas,
principalmente no que tange à terminologia e à abertura de seus
dispositivos. Um exemplo dessa abertura – isto é, falta de precisão
técnica e de objetividade – era a atribuição de competência à Divisão de
Controle e Fiscalização de Diversões Públicas para “a manutenção da
ordem da segurança pública e do respeito aos bons costumes”.Com efeito, sabe-
se que é bastante discutível o que pode ser compreendido como bons
costumes, ou até mesmo como ordem. O uso dessa terminologia, portanto,
dá amplo espectro de discricionariedade aos agentes do Poder Público 22,
ampliando a insegurança do cidadão em relação àquilo que é ou não é
permitido fazer. Em outras palavras, a falta de definições mais precisas
dá poderes às autoridades para determinarem seus atos de acordo com
seus julgamentos pessoais e critérios próprios, deixando o cidadão “na
mão da autoridade”.
Ocorre que, mesmo com a substituição do decreto 3.074/80 e a
renovação do arcabouço regulatório que cuida da fiscalização das
Diversões Públicas no Estado do Rio de Janeiro, muitos dos dispositivos
presentes no referido texto legal acabaram mantidos, apenas com
pequenas modificações.
Em 1991, o decreto no. 16.695, de 12 de julho de 1991, transferiu a
competência de fiscalização das casas de diversões para a Secretaria de
Estado da Defesa Civil, alocando tais poderes primordialmente no Corpo
de Bombeiros. Sua regulamentação ocorreu pela resolução SEDEC n°.
111, de 09 de fevereiro de 1993, que recuperou boa parte da terminologia
do decreto 3.074/80, e criou uma série de procedimentos para tanto para
a obtenção de licença para eventos, bem como para a concessão de alvará
de funcionamento das casas de diversões.
Todo este arcabouço regulatório viria a ser atualizado pelo
decreto n°. 39.355, em 29 de maio de 2006. Através deste decreto, a então

22Seria possível imaginar que, em um período em que se buscava atender as

prescrições legais e regulamentos atinentes à Censura Federal, o uso deste tipo


de terminologia pode ter sido uma maneira conveniente de ampliar os poderes
dos agentes estatais, ainda que não se possua evidências concretas sobre isso.
[ 64 ]
governadora do Estado, Rosinha Garotinho, definiu que a realização de
qualquer evento artístico, social e esportivo, no âmbito do Estado do Rio
de Janeiro, passaria a depender do conhecimento prévio (mínimo de 08
dias) e da autorização do Comandante do Corpo de Bombeiros, do
Comandante da Polícia Militar responsável pelo policiamento da área, e
do Delegado da Polícia Civil da circunscrição onde o evento for ocorrer.
Ainda em uma perspectiva histórica, é importante notar que o
decreto 39.355/06 ampliou consideravelmente o escopo de regulação da
norma. Isso se deu porque o decreto n° 3.074/80 e o decreto n° 16.695/91
regulamentavam apenas a fiscalização das casas de diversões públicas.
Não tratavam, portanto, da autorização para a realização de eventos
artísticos, sociais e desportivos de maneira ampla, tal como mencionado
no artigo 1º do decreto no. 39.355/06.
Não bastassem as questões levantadas quanto à história do
decreto, outros problemas podem ser apontados. A partir da aplicação da
norma, foi dado um tratamento regulatório único para duas questões
semelhantes, porém bastante distintas: casas de diversões e eventos. De
fato, as duas matérias envolvem a reunião de um determinado público,
tornando imperativa a atuação de órgãos de segurança de modo a
assegurar a integridade física de todos os cidadãos, principalmente no
que diz respeito à segurança de seus frequentadores, como por exemplo,
na garantia de rotas de fuga adequadas para casos de incêndio e a outras
estruturas que atendam requisitos técnicos de segurança.
Ademais, o tratamento passou a ser mais restritivo e rígido. Com
a publicação do decreto no. 39.355/06, a atuação do Estado foi expandida,
transformando o que antes era mera atividade de fiscalização de casas de
diversões em prerrogativa de autorizar qualquer evento artístico, social e
esportivo.
Com efeito, em seu artigo 1°, já dispõe o referido Decreto:

Art. 1º - A realização de eventos artísticos, sociais e


esportivos, no âmbito do Estado do Rio de Janeiro,
depende do conhecimento, com antecedência mínima
de 08 (oito) dias, e respectiva autorização, por si dos
órgãos públicos abaixo nominados, de acordo com a
respectiva área de atuação(...)(grifo nosso)

Nos aspectos relativos à segurança do público presente, a


implantação de um regime de autorização baseado em critérios objetivos
é totalmente aceitável. Todavia, não deve caber a qualquer órgão do
Estado a prerrogativa de autorizar a realização de eventos em função de
[ 65 ]
critérios subjetivos e discricionários. Como poderá ser visto adiante, este
é um dos problemas da regulamentação de eventos em nosso Estado.
Para que pudesse gerar seus efeitos, o decreto no. 39.355/06 teve
de ser devidamente regulamentado pelas duas secretarias competentes
para fazê-lo – a Secretaria de Estado da Defesa Civil e a Secretaria de
Estado de Segurança. Assim, surgiram as resoluções 278 e 013, da
Secretaria de Estado de Defesa Civil (SEDEC) e da Secretaria de
Segurança (SESEG), respectivamente.
A resolução elaborada pela SEDEC é a que, segundo os próprios
profissionais do Funk, tem apresentado menos problemas no dia-a-dia
da organização de seus trabalhos. Contudo, mediante uma análise do
histórico dessa norma, é possível observar que a Resolução 278
recuperou das regulações anteriores o uso de uma terminologia aberta, e
deu início a um processo de burocratização do trâmite de autorização
para a realização de eventos. Vale lembrar que a presente resolução
apenas modificou e atualizou a antiga resolução SEDEC no. 111, de 1993,
a qual, por sua vez, resgatou, em seus comandos, boa parte do decreto
no. 3.074/80. Por isso, faz-se necessário entender a figura do
Assentimento Prévio, prevista no referido decreto.
A título ilustrativo pode-se observar que, no regime implantado
pelo decreto no. 3.074/80, o Assentimento Prévio somente seria
concedido depois de verificada a presença dos seguintes elementos: (i) a
idoneidade e os antecedentes dos responsáveis; (ii) o incômodo causado
pelo estabelecimento ao sossego público; (iii) a suspeita policial em
relação ao local; e (iv) o funcionamento anterior de estabelecimento
congênere no qual houvessem sido constatados fatos delituosos.
Os requisitos de idoneidade dos responsáveis e de existência de
suspeita policial seriam posteriormente incorporados ao artigo 6º da já
citada resolução SEDEC no. 111, assim como outras exigências para a
concessão do assentimento prévio também o seriam. A grande novidade
introduzida por essa resolução foi a de que os dois requisitos
mencionados teriam de ser observados pela Polícia Civil mediante a
emissão de um documento denominado “nada a opor”. Vejamos:

Art. 6° - O Assentimento Prévio, de que trata o artigo


anterior, será concedido mediante atendimento, em
processo administrativo, das seguintes exigências:

I – atestação do “nada a opor” da Delegacia de Polícia


da área, informando quanto:
a) a idoneidade e os antecedentes dos responsáveis; e
[ 66 ]
b) se o local esta sob suspeita policial, inclusive,
relativo à finalidade do negócio;

Com esta medida, portanto, a resolução SEDEC n°. 111 criou uma
nova instância decisória para a regularização das casas de diversões,
passando a exigir do empreendedor deste segmento que obtenha um
documento que em tudo se assemelha a uma autorização, da Polícia Civil
da área, em evidente inversão do princípio da presunção de inocência
(todos são inocentes até que se prove o contrário e ninguém será
submetido a pena sem o devido processo legal). Essa autorização, é
importante destacar, não obedece a critérios objetivos de segurança,
como a existência de rotas de fuga ou o respeito a outros critérios
técnicos, mas sim a julgamentos e valores subjetivos, como a idoneidade
dos responsáveis, e discricionários, como a existência de suspeita
policial.
A partir da obtenção do Assentimento Prévio, o agente cultural
pode obter anualmente um Certificado de Registro 23 , documento
considerado pela resolução como obrigatório para o funcionamento das
casas de diversões.
Vale salientar que todos os requisitos mencionados foram
integralmente preservados pela resolução SEDEC n° 278, a despeito das
mudanças trazidas por ela.
A figura do “nada a opor” ainda reaparecia no artigo 11 da
resolução SEDEC n°. 111, que começou a definir um regime mais
detalhado para a realização de eventos de diversões públicas. Em
primeiro lugar, é importante notar a Resolução 111 não define o que seria
“evento de diversões públicas”. Isso já levanta um primeiro problema,
pois traz uma incerteza sobre quando o respeito à norma será exigido
pelas autoridades e quando sua aplicação não cabe. Tal incerteza abre
vasto campo para interpretações conflituosas e situações de abuso de
poder. Tal problema se torna ainda maior na medida em que a resolução
SEDEC n°. 278, ao atualizar a resolução n°. 111, ampliou o rol de
exigências para a realização de eventos, tanto em estabelecimentos
fechados quanto ao ar livre.
Analisando o texto do artigo 11 – já atualizado –, pode-se
perceber que a realização de eventos fechados passou a depender de
uma nova autorização, mesmo que o estabelecimento já estivesse

23 A
obtenção do Certificado de Registro depende de alvará por parte do
município. A obtenção de alvará está sujeita a regras não avaliadas neste artigo.
[ 67 ]
regularizado, ampliando a burocracia e a confusão quanto ao que o
empreendedor deve respeitar. A ausência de definição do conceito de
“evento de diversão pública” é especialmente problemática nesses casos,
tendo em vista que as casas de diversões, por determinação da própria
regulação, já devem possuir o Certificado de Registro. Já no que diz
respeito aos eventos ao ar livre, o principal problema encontra-se no
inciso II, alínea b do referido dispositivo. Nele, é mencionada a
necessidade de declaração (“nada a opor”) dos “demais órgãos públicos
envolvidos”, sem, no entanto, enumerar quais seriam estes órgãos,
reduzindo, assim, a objetividade do critério e, mais uma vez, abrindo
espaço para abusos de poder.
Apesar destes problemas, a Resolução da Defesa Civil é acertada
ao trazer em outros requisitos, critérios objetivos que podem ser
facilmente compreendidos pelos cidadãos. A resolução também
apresenta importante distinção entre eventos de pequeno e de maior
porte, ao estabelecer no mesmo artigo 11, inciso II, alínea i, um critério
objetivo e responsabilidades diferenciadas para eventos cuja estimativa
de público seja superior a mil pessoas.
Além disso, é importante notar que no decorrer da evolução
histórica das normas houve uma equivocada manutenção de uma
terminologia excessivamente aberta, que confere amplo poder para o
agente público agir de acordo com critérios subjetivos. Como exemplo,
pode-se destacar o artigo 3° da resolução SEDEC n°. 111 (não alterado
pela resolução SEDEC n°. 278), com base no qual se confere ampla
competência ao Corpo de Bombeiros para adotar quaisquer medidas que
julgar convenientes para atender a valores como o respeito à sociedade e
os bons costumes. Referido dispositivo recupera quase integralmente o
artigo 3° do Decreto 3.074/80, que definia ser da competência da Polícia
Civil “assegurar a manutenção da ordem, da segurança pública e do respeito aos
bons costumes, antes durante e após os espetáculos (...)”, dando margem à
prática de excessos por parte dos agentes públicos.
Quanto à Resolução 013, da Secretaria de Segurança, esta
apresenta o maior número de problemas na regulamentação do Decreto
39.355/06. Isso porque, ao contrário da resolução SEDEC n°. 278, possui
abrangência muito maior (diz respeito a todos os eventos culturais,
sociais e esportivos), cria mais exigências e instâncias decisórias e avança
de maneira mais evidente em direção a um “regime de autorização” para
os eventos, em contraposição a um “regime de fiscalização”.

[ 68 ]
Como se pode observar no seu artigo 1º 24, a resolução 013 não
trata mais da fiscalização das casas de diversões no Estado do Rio de
Janeiro. O regime implantado por ela é o de concessão de autorizações,
por parte dos órgãos de segurança, para qualquer evento artístico, social
e desportivo. Aqui já fica evidente a agressão ao inciso XVI do artigo 5º
da Constituição Federal, que diz que “todos podem reunir-se
pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público,
independentemente de autorização, desde que não frustrem outra
reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas
exigido prévio aviso à autoridade competente”.
Além disso, já em seu artigo 2°, inciso I, item 1, a referida
resolução amplia de maneira substancial a quantidade de requisitos até
então existentes somente para a autorização de funcionamento de casas
de diversões. Desse modo, dentre os requisitos a serem observados para
que a Polícia Militar conceda autorização para eventos em lugares
fechados com cobrança de ingresso, destacam-se: a solicitação para
cadastramento de ambulantes; cópia de ofício à Fundação Parques e
Jardins, solicitando a poda de árvores para melhorar a observação por
parte do policiamento; cópia de ofício à RIOLUZ, solicitando reforço da
iluminação externa no local do evento; e cópia de ofício comunicando o
Juizado de Menores sobre o evento.
O referido dispositivo excepciona dessas exigências aquelas casas
de shows ou congêneres que já “tenham ato de consentimento para seu
funcionamento com base em legislação anterior”, sem, contudo,
especificar se este ato é o Certificado de Registro emitido pelo Corpo de
Bombeiros. Dessa forma, além do problema da grande quantidade de
exigências trazido pela resolução, há também o problema da incerteza
jurídica, já que não há clareza sobre quais são os estabelecimentos
excepcionados do comando regulatório.

24Art. 1° - Para efeito da regulamentação do Decreto Estadual nº 39.355, de 24 de


maio de 2006, são consideradas autoridades competentes para autorizar a
realização de eventos artísticos, sociais e esportivos, no âmbito da Secretaria de
Estado de Segurança:
(...)
Parágrafo Único – A realização de eventos artísticos, sociais e desportivos no
âmbito do Estado do Rio de Janeiro, a serem realiza dos em estabelecimentos ou
locais abertos ou fechados, depende de solicitação, no prazo de 20 (vinte) dias,
às autoridades indicadas nos incisos I e II, do art. 1ª desta Resolução, as quais
terão prazo de antecedência mínima de 08 (oito) dias, da data do evento para
conhecimento e respectiva autorização, per si. (grifos nossos)
[ 69 ]
Conforme o artigo 2°, inciso I, item 2, da resolução em tela, no
caso de eventos ao ar livre, sem cobrança de ingresso, as exigências
incluem, além daquelas já previstas para eventos em lugares fechados
com cobrança de ingresso: “nada a opor” da Polícia Militar do Rio de
Janeiro, com cópia para o Corpo de Bombeiros, Polícia Civil e Prefeitura;
o plano de incremento de transportes; e a delimitação de áreas de
estacionamento.
A resolução também estabelece alguns requisitos para a Polícia
Civil, tais como: solicitação de “nada a opor”, com cópia efetuada ao
Corpo de Bombeiros, Polícia Militar e Prefeitura; cadastro para
verificação da qualificação, idoneidade e antecedentes criminais dos
promotores do evento e dos responsáveis pelo estabelecimento onde o
evento se realizará; e relação nominal e fotográfica dos profissionais de
segurança.
Diante dos requisitos mencionados, é importante tecer algumas
considerações quanto à proporcionalidade e à adequação da norma.
Parece claro que as medidas estipuladas pela Secretaria de Segurança
Pública destinam-se apenas à regulação de megaeventos. Com efeito, a
própria resolução menciona no artigo 2°, inciso I, como exemplos de
locais fechados com cobrança de ingresso, a Apoteose, o Maracanã e o
Riocentro. No que diz respeito aos locais abertos, o mesmo artigo, em seu
item 2, faz referência ao Aterro do Flamengo, Quinta da Boa Vista e Orla
Marítima. No entanto, a Resolução 013 não distingue eventos por
tamanho e, dessa forma, eventos de menor porte acabam abarcados pela
Resolução, ficando sujeitos à obediência deste extenso rol de exigências.
Trata-se, evidentemente, de medida desproporcional e, portanto,
inadequada aos fins que pretende atingir.
No que diz respeito aos eventos de menor porte, a
impossibilidade de respeitar todas as exigências previstas acaba por
gerar, fatalmente, efeitos desastrosos. Isso porque o empreendedor de
pequeno porte não possui qualquer incentivo para formalizar a sua
atividade ou sequer informar os órgãos de segurança sobre eventos que
irá realizar, já ciente de que não será possível atender os requisitos legais.
Para piorar, a Resolução 013, através do parágrafo único do artigo
2º, confere um enorme poder discricionário às autoridades para elevar ou
reduzir o nível das exigências. Tal dispositivo mais uma vez dá poderes
excessivos à autoridade, podendo conduzir a abusos de poder.
Outro efeito perverso é a pulverização concentração do poder de
decisão em várias instâncias da Administração, criando a necessidade de
que o cidadão tenha que solicitar autorizações em vários órgãos distintos
[ 70 ]
(Corpo de Bombeiros, Prefeitura, Polícia Civil e Polícia Militar, pelo
menos). Além de aumentar os custos burocráticos da realização de um
evento e reduzir os incentivos para sua realização dentro da forma da lei,
cria-se um espaço fértil para que agentes públicos aproveitem-se da
burocracia, discricionariedade e lentidão nos trâmites para exigir
vantagens ilícitas, aumentando o nível de corrupção na administração
pública.
Neste cenário, é comum o surgimento de intermediários que
prestam o serviço de “desenrolar” a burocracia estatal, não raras vezes
através do pagamento de valores ilícitos aos agentes públicos. O
estabelecimento destes atores aumenta o custo da realização dos eventos,
fatalmente repassados aos consumidores e, frequentemente, torna
impossível a obtenção de autorizações sem a contratação do
intermediário, tendo em vista a relação de cumplicidade que
naturalmente tende a se desenvolver entre tais atores e os agentes do
Poder Público.
Ao empreendedor, portanto, muitas vezes não restará outra
escolha. Na impossibilidade de arcar com os custos de um intermediário
deste tipo, resta somente a alternativa da informalidade, com a
consequência de redução dos padrões de segurança ao cidadão, a
necessidade de aumento da fiscalização e repressão pelo Poder Público
(com novas margens para corrupção) e a concentração do mercado
somente entre aqueles que podem custear a burocracia estatal. A lógica
da relação entre Estado e Produtores Culturais, que deveria ser de
orientação e acompanhamento, passa a ser de informalidade e repressão.
A existência de um elevado grau de exigências, cuja aplicação
seria razoável apenas para megaeventos, aumenta o grau de
discricionariedade do agente público incumbido da tarefa de autorizar
ou não a realização dos eventos. Com efeito, não raras vezes um
empreendedor terá dificuldades em atender a todas as exigências
estabelecidas pela já confusa regulação. Ao deixar de cumprir qualquer
dos requisitos, o promotor de eventos fica sujeito à discricionariedade
prevista no artigo 2°, parágrafo único da Resolução SESEG 013.
Estabelece o referido artigo que:

Art. 2º - (...)

Parágrafo único - Considerando a natureza e o tipo do


evento a ser realizado, poderão as autoridades
indicadas nesta Resolução exigirem, motivadamente,
outros requisitos que visem à prevenção da
[ 71 ]
incolumidade das pessoas e do patrimônio e a
repressão às atividades criminosas. De igual modo,
poderão as autoridades indicadas nesta Resolução,
suprirem, motivadamente, determinados requisitos
considerando o grau mínimo de risco à segurança
pública e a natureza do evento artístico, social e/ou
desportivo de pequena ou média monta em
homenagem ao princípio da proporcionalidade.

Ademais, a resolução SESEG n°. 013 falha também ao não


estabelecer prazos razoáveis e condizentes com o esforço de organização
de eventos abertos ao público. Estabelece em seu artigo 1°, parágrafo
único, o prazo mínimo de 08 dias antes da data do evento para que a
autorização seja concedida ou negada. Ocorre que eventos artísticos
necessitam, em muitos casos, da contratação das atrações, elaboração de
um plano de marketing, divulgação do evento ao público, contratação de
serviços terceirizados (limpeza, segurança, bebidas, banheiros químicos),
movimentando toda uma cadeia produtiva em torno do espetáculo.
O cancelamento de um evento com apenas 08 dias de
antecedência, dessa forma, pode gerar um prejuízo irreparável ao
organizador de eventos,tanto no que diz respeito à sua reputação com o
público consumidor, como no que tange eventuais contratos
descumpridos, que podem ensejar o pagamento de multas pelo
cancelamento do contrato ou indenizações às partes contratadas. Some-
se a isso a incerteza jurídica e a dificuldade de compreensão de normas
técnicas e pouco acessíveis, e o cenário resultante é o de enorme risco
para o empreendedor e de completa ausência de incentivos por parte do
Estado, ao segmento cultural e esportivo no Estado do Rio de Janeiro.
Os problemas trazidos pela Resolução 013 demonstram-se, na
prática, tão amplos, que os profissionais do FUNK, em conjunto com
outras organizações, lançaram um manifesto apresentando “7 motivos
para ser contra a Resolução 013” (ANEXO I).
Até este ponto, foi feita uma análise, em separado, do decreto no.
39.355, da resolução SEDEC no. 278 eda resolução SESEG no. 013. No
entanto, faz-se necessária uma breve avaliação em conjunto dessas
normas. Assim, pode-se dizer que a complexidade das regras existentes
faz com que o procedimento para a obtenção de autorizações para a
realização de eventos não seja claro para o empreendedor e para o agente
público que deve aplicar a regra.
Dessa forma, são comuns relatos de produtores culturais cujo
trâmite de obtenção de um “nada a opor” é impedido em função de não
[ 72 ]
terem obtido antecipadamente o mesmo documento de outros órgãos
governamentais. Ou seja, o empreendedor que solicita o “nada a opor”
na Polícia Civil não obtém o documento por não possuir o “nada a opor”
da Polícia Militar, e vice-versa. Essa situação evidencia a ausência de um
fluxo procedimental claro para a regularização dos eventos.

Conclusões e recomendações

Diante do exposto, pode-se chegar a algumas conclusões.


Primeiramente, fica claro que as normas que regulamentam a realização
de eventos culturais e desportivos no Estado do Rio de Janeiro possuem
uma complexidade significativa, o que por si só já representa um
obstáculo à sua compreensão pelos empreendedores destes segmentos.
Além disso, essas normas apresentam uma evolução baseada em
regulamentações anteriores, e cada vez menos harmônica com a
realidade atual e com o Direito brasileiro hoje em vigor. Em outras
palavras, as novas normas adicionavam exigências não previstas por
regulamentações antigas, tornando o processo cada vez mais burocrático
e incerto para oprodutor cultural, principalmente porque tais normas
nunca foram atualizadas ou revistas de maneira a torná-las adequadas à
realidade atual. Ademais, seus dispositivos utilizam terminologias muito
abertas, bem como carecem de definições de conceitos-chave,
prejudicando, assim, qualquer pretensão de objetividade na
interpretação e na aplicação dessas normas.
Outro problema se dá na seara dos trâmites previstos por esses
diplomas legais. Há um excesso de procedimentos de autorização junto
aos diversos agentes públicos, criando um ambiente propício à obtenção
de vantagens ilícitas por parte dos agentes públicos e incentivando a
informalidade. Sob essa mesma perspectiva, não existe clareza quanto ao
fluxo de processos, de modo que tanto os cidadãos quanto os agentes
fiscalizadores dão sinais de desorientação na interpretação da norma.
Além disso, os prazos de resposta e a incerteza na obtenção de
autorizações geram um ambiente de alto risco para o investimento na
realização de eventos populares, com potenciais prejuízos à economia da
cultura e à geração de empregos neste segmento. Cabe ressaltar também
que não se fez uma distinção satisfatória entre grandes e pequenos
eventos.
Os problemas identificados acima aumentam o custo de entrada
de novos empreendedores no mercado, podendo provocar sua
concentração a elevação desnecessária de preços, em prejuízo do

[ 73 ]
consumidor final. Por isso, julgamos pertinente apresentar neste texto
algumas recomendações que, se seguidas, podem levar à transposição
das barreiras que dificultam a melhoria da atividade regulamentadora
em questão.
No que tange ao decreto n°. 39.355, este prevê a possibilidade de
centralização dos procedimentos em um único órgão. Nesse sentido, a
aplicação dessa idéia afastaria uma grande parte dos problemas aqui
mencionados, porque levaria à redução do número de instâncias com
poder de autorizar a realização de eventos, diminuindo, assim, o nível de
burocracia (e, consequentemente, de corrupção) e potencialmente
oferecendo mais agilidade aos trâmites de autorização e mais segurança
aos empreendedores.
Quanto à resolução SEDEC no. 278, aconselha-se a remoção de
critérios subjetivos e de prerrogativas de atuação baseadas em critérios
excessivamente amplos, tal como “o respeito à sociedade e aos bons
costumes”. Também é necessário que se definissem o conceito de eventos
de Diversões Públicas e os órgãos que devem conceder o “nada a opor”,
nos termos do artigo 11, inciso II, alínea ‘b’. O estabelecimento de prazos
razoáveis, de acordo com o tamanho do evento a ser realizado (sendo
que, quanto maior for o evento, maior deverá ser a antecedência de
resposta do Poder Público), a supressão da necessidade de solicitação de
reiteradas autorizações para eventos que ocorram de maneira sistemática
(v.g. todos os finais de semana) e a criação de mecanismos que permitam
a formalização por um período estendido de tempo (v.g. um mês) para
eventos temporários também são recomendados.
Para a resolução SESEG no. 013, indicam-se sua readequação para
que a realização de eventos fique sujeita a um regime de fiscalização e
não de autorização, salvo nos casos dos eventos de maior porte e em
relação aos itens de segurança, que devem atender a critérios objetivos
para a proteção dos próprios frequentadores e trabalhadores do evento,
além da criação de distinções entre eventos de grande, médio e pequeno
portes, possibilitando um nível de exigências menor para os eventos de
menor porte. Além disso, as três últimas alterações sugeridas para a
resolução SEDEC (citadas no parágrafo anterior) também se aplicam ao
caso da resolução SESEG.
Sob uma perspectiva mais ampla, de análise das normas em geral,
deve haver a centralização, em um único órgão, do recebimento de
pedidos para a realização de eventos, ou a definição de um fluxo
procedimental claro para a obtenção de autorizações. Também são
prementes a informatização dos procedimentos, afastando a necessidade
[ 74 ]
de negociação pessoal dos requisitos a serem atendidos pelo
empreendedor, gerando uma consequente agilização dos processos, e a
separação clara entre as regulações afetas à obtenção dos documentos de
autorização necessários para o funcionamento de casas de diversões e as
regulações relativas aos procedimentos que devem ser respeitados para a
realização de eventos temporários.
Por fim, é importante destacar algo muito importante.
Consideramos que o tratamento conferido ao Funk pelo Poder Público é
o resultado de uma história de estigmatização e preconceito, não apenas
com o estilo musical, mas com os pobres e sua cultura em geral. O
processo de criminalização do funk é apenas a manifestação atual do
mesmo processo vivido pelo samba, capoeira e demais batuques negros
no passado. Nesse sentido, ainda hoje é necessário empreender um
grande esforço para estender as garantias que existem em nossa
Constituição para todos os cidadãos, em especial aqueles que vivem na
periferia. A luta pela igualdade passa pela compreensão da forma como
o Estado se organiza e aplica suas leis. Passa por fazer as pessoas, no
Estado e fora dele, contestarem seus próprios preconceitos, aceitando
modos de vida distintos dos seus e colaborando para fazer das cidades
espaços de coesão e integração social, ao invés de territórios conflituosos
e cerceadores de liberdades.
Com este texto, a partir da análise das leis em vigor, esperamos
jogar um pouco mais de luz nesta discussão e contribuir para que o Funk
Carioca, e as demais culturas populares, possam se desenvolver a partir
de um tratamento cidadão e democrático, sem restrições exageradas ou
inadequadas.

[ 75 ]
ANEXO I

7 MOTIVOS PARA SER CONTRA A RESOLUÇÃO 013

1 – A Resolução 013 dificulta muito a realização de eventos, pois


estabelece uma grande burocracia para juntar todos os documentos
exigidos. Para piorar, o procedimento é todo descentralizado e o
organizador do evento deve passar por uma série de órgãos diferentes
antes de completar a solicitação do “nada-a-opor”. Muitas vezes, o
evento fica inviável por aquele jogo burocrático que todo mundo já
conhece...

2 – A Resolução 013 deixa o organizador de evento na mão da autoridade


policial. Ela não estabelece requisitos bem definidos a serem cumpridos
pelo organizador, nem critérios claros para a proibição ou autorização do
evento. O parágrafo único do artigo 2º dá poderes para a polícia proibir
eventos por qualquer motivo. Além de abusiva, a norma abre brechas
para a corrupção, pois os organizadores ficam submetidos à vontade e à
discricionariedade da autoridade policial de cada local.

3 – A Resolução 013 prejudica os eventos mais baratos, pois não


diferencia economias, tamanhos e geografias diferentes. A mesma norma
regula desde festas com 50 pessoas a shows com mais de 100.000.
Determina o mesmo procedimento para áreas pobres e bairros ricos.
Desse jeito, a norma fica desproporcional e acaba prejudicando a maioria,
que tem menos dinheiro para investir em estrutura.

4 – A Resolução 013 prejudica a economia de toda a comunidade. Como


não estabelece prazo mínimo para a resposta do órgão de segurança,
muitas vezes a proibição ocorre nas vésperas, ou até mesmo no dia do
evento. A essa altura, o organizador já contratou artistas, comprou
bebidas, gastou em divulgação e todo esse investimento vai por água
abaixo. Pior, não são somente os organizadores que perdem.
Restaurantes, bares, salões de beleza, ambulantes... todos deixam de
ganhar quando não tem o baile.

5 – A Resolução 013 foi feita sem diálogo com os principais interessados.


Nenhum organizador de eventos culturais, esportivos ou sociais foi
chamado. Nenhum usuário e/ou consumidor foi ouvido.

[ 76 ]
6 – A Resolução 013 não possui amparo legal e dá poderes exagerados
para os órgãos de segurança. No Estado Democrático de Direito não há
lei que dê poderes de proibir ou autorizar eventos para Secretário de
Segurança, Polícia Civil ou Polícia Militar. Pelo contrário, a Constituição
Federal assegura o direito de acesso à cultura para frequentadores, livre
manifestação do pensamento para os artistas, além dos direitos sociais ao
trabalho e à livre iniciativa dos organizadores. E para garantir todos
esses direitos é que existe o direito à segurança pública.

7 – A origem da Resolução 013 é questionável. Um parecer da Fundação


Getúlio Vargas (FGV) verificou que a resolução 013 é baseada no decreto
39.355/2006. Tal decreto, por sua vez, é a atualização de decretos do
passado. A origem de todos eles é um decreto de 1968, que dava à polícia
plenos poderes para proibir eventos “de diversão pública”, como forma
de implementação da censura

APAFUNK (Associação dos Profissionais e Amigos do Funk)


BOCA (Brigada Organizada de Cultura Ativista)
Visão da Favela Brasil

[ 77 ]
[ 78 ]
ENTRE A POLÍTICA CULTURAL E A POLÍTICA
DE SEGURANÇA PÚBLICA – UM RELATO
SOBRE AÇÕES CULTURAIS NO MORRO DA
PROVIDÊNCIA EM TEMPOS DE PAZ
MIDIÁTICA
João Guerreiro 25
Bruno Coutinho de Souza Oliveira 26

Eu não penso em transformar um garoto deste em fotógrafo.


Acho que eles têm que aprender é o olhar. Que ele tenha a “sacação”. Que ele
possa ser qualquer coisa. Não precisa ser fotógrafo, mas que ele tenha um
olhar... Que ele possa ver as coisas com mais clareza. Que ele não tenha que
descer o morro como um garoto da favela oprimido.

Com estas palavras, o fotógrafo Maurício Hora, coordenador do


Instituto Favelarte, no Morro da Providência, região portuária do Rio de
Janeiro, explica a sua proposta para as oficinas de fotografia que realiza
com os jovens da Providência.
O DVD em que foi apresentada esta entrevista foi produzido
pelos próprios jovens participantes das oficinas. Embora fosse a primeira
vez que estes seguravam uma câmera de filmar, o olhar cuidadoso por
trás da câmera, citado por Hora, aprendido durante as aulas de
fotografia, possibilitou a estes jovens o uso da tecnologia audiovisual
como forma de expressão de seus posicionamentos políticos e sociais
sobre as transformações ocorridas naquela comunidade desde 2010.
Discutiremos estas transformações um pouco mais a frente, mas
importa pensar a relação entre um projeto cultural como a oficina de
fotografia citada e uma experiência de cidadania. Seguindo a trilha
proposta por Maurício Hora, este artigo se preocupa com um olhar
cidadão, e por este motivo pretende pensar as políticas culturais,
buscando compreender este olhar de quem está na frente de
organizações culturais e suas indagações em relação ao novo momento
em que a política de segurança pública estatal tem nítida intenção de

25 Doutor em Políticas Públicas de Cultura. Professor do curso de graduação em


Produção Cultural do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia -
IFRJ/Campus Nilópolis.
26 Doutorando em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos / IESP-

UERJ.
[ 79 ]
transformar a cultura simbólica de áreas ocupadas através de novas
narrativas e discursos sobre os espaços dessas comunidades.
Nossa análise é parte de uma pesquisa iniciada em 2008 no Morro
da Providência (zona portuária do Rio de Janeiro/RJ), antigo Morro da
Favela, considerada por alguns como a primeira comunidade
reconhecida enquanto favela (MATTOS, 2007).
Quem nos acompanhará durante essas breves reflexões é o
Instituto Favelarte. O debate sobre a criação do Favelarte começa em
1996, véspera do Morro da Providência celebrar o centenário da sua
ocupação. O nosso personagem, Maurício Hora, e outros amigos
começam a discutir uma forma de dar visibilidade às histórias e ações da
Providência. Entretanto, segundo Maurício 27,

a pretensão era maior: buscar histórias dentro das


comunidades que a gente pudesse entrar. Existia a
questão dos diversos grupos que dominavam o
comércio de drogas ilícitas em todas as comunidades,
o que gerou uma dificuldade muito grande para o
projeto ser em outros lugares além da Providência. A
gente não conseguiu ainda desenvolver o nosso
projeto que é estar buscando essas histórias na voz dos
próprios moradores. E criar muitos (Favelarte) em cada
comunidade porque esse núcleo vai desenvolvendo a
historia da comunidade (HORA, 2013).

O objetivo do Favelarte, então, pareceu-nos ser o de registrar as


memórias das comunidades/favelas como forma de se valorizar o
patrimônio imaterial dessas áreas da cidade. Parece-nos um movimento
de positivação do cotidiano, das tradições e das memórias. Apesar desse
objetivo não ter sido atingido, a fala de Maurício apresenta ainda a
perseguição deste projeto. Devemos ter em conta que o Morro da
Providência está inserido no território já reconhecido como “Pequena
África” 28 na zona portuária do Rio de Janeiro e, como tal, os participantes
do Favelarte, ao discutirem como seria a forma de atuação da instituição,

27 A partir desse momento, as transcrições das falas de Maurício Hora são


baseadas em uma entrevista concedida em maio de 2013 no âmbito da pesquisa
de tese de doutorado de Guerreiro (2013) na qual parte desse artigo é baseada.
28 Segundo Moura (1995), essa denominação foi cunhada por João da Baiana e

visava designar o território da cidade do Rio de Janeiro “que se estendia da zona


do cais do porto até a Cidade Nova, tendo como capital a praça Onze”
(MOURA, 1995, p. 132).
[ 80 ]
apresentavam a necessidade do registro da memória das comunidades
oralmente, forma cultural de transmissão de conhecimentos e saberes
vinculados a uma cultura africana.
Assim, o debate sobre a criação e a institucionalização do
Favelarte, assim como diversas atividades culturais na Providência e em
outras favelas, ocorre bem antes da propalada “cultura da pacificação”.
Sim, existia vida antes das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs).
Retornemos, porém, aos primórdios do Instituto Favelarte. A
primeira tentativa de institucionalização ocorreu, entre os anos de 2001 e
2002, e teve como objetivo criar a marca Favelarte e se diferenciou da
proposta inicial (registro da memória dos lugares): a construção de uma
página eletrônica que, através de registros imagéticos do cotidiano do
Morro da Providência e do entorno contasse a história do lugar. E, para
isso, foi definido pelos fundadores do Favelarte que o suporte de registro
da memória local seria a fotografia.
E, essa opção feita pelos articuladores do Favelarte nos faz
lembrar do que diz Kossoy, ao discorrer sobre a utilização da fotografia
em pesquisa. Segundo ele:

quando apreciamos determinadas fotografias nos


vemos, quase sem perceber, mergulhados no seu
conteúdo e imaginando a trama dos fatos e as
circunstâncias que envolveram o assunto ou a própria
representação (o documento fotográfico) no contexto
em que foi produzido: trata-se de um exercício mental
de reconstituição quase intuitivo (KOSSOY, 1999,
p.132).

Ao optar pela fotografia, Hora a usa também como objeto e como


sujeito, como material e como simbólico. Representa, apresenta e deixa
que o expectador também reescreva a história do lugar.
Esta proposta é bastante próxima da ideia de Devir Imagético,
defendido por Marco Antonio Gonçalves e Scott Head como um
movimento de produção de imagens no qual:

as representações são produzidas através de um ‘jogo


de espelhos’ em que as ‘imagens sobre si’ se produzem
através dos outros em um processo, eminentemente
relacional, fazendo com que as imagens de si afetem e
sejam afetadas pelas imagens dos outros sobre si.
Assim, autoimagem é por definição uma imagem em

[ 81 ]
transformação, o que acentua o seu ‘devir-imagético’
(GONÇALVES e HEAD, 2009, p20).

Neste sentido, Maurício Hora desde então realiza, com os jovens


da comunidade, oficinas de fotografia cuja temática principal é o Morro
da Providência e o seu entorno.
Retornando à entrevista, ele nos diz que a falta de informação do
que era necessária para se registrar uma página eletrônica e,
principalmente, as implicações da criação de uma pessoa jurídica
demandaram horas de reuniões internas e uma certeza: as redes de
conhecimento na comunidade garantiam acesso às histórias do lugar e de
seus moradores, mas não às informações técnicas ou de conhecimentos
específicos essenciais em processos de formalizações institucionais ou
captação de recursos.
A página eletrônica foi lançada em 2002, segundo Maurício, mas a
institucionalização foi adiada até porque na opinião dos fundadores,
transformar o Instituto Favelarte em uma pessoa jurídica só teria sentido
se fosse para acessar recursos para implantação do projeto inicial de
registro. Não era o caso na época, pois não existia essa opção de captação
de recursos para uma atividade como essa seja acessando as opções
disponibilizadas pelo poder público, seja pelas empresas.
Outro parêntese se faz necessário. Em alguns espaços de debates
sobre o perfil dos moradores de favelas o estereótipo construído na
passagem do século XIX para o século XX ainda persiste: “A Favela (...) é a
aldeia do mal. Enfim, e por isso, por lhe parecer que essa gente não tem deveres
nem direitos em face da lei, a polícia não cogita de vigilância sobre ela” (Jornal
Correio da Manha, edição de 5 de julho de 1909, apud, MATTOS, 2007).
Ao falarmos da constituição do Favelarte e dos seus fundadores
buscamos contribuir para romper com estes estereótipos. Isso porque a
história de vida dos seus mais importantes fundadores soa como um
perfil diferente da expectativa de alguns interlocutores 29 . Tem-se, o
tempo todo, que lidar com olhares simplificadores e preconceituosos
como se na favela não existisse a diversidade social e cultural que nos
remete ao mosaico e as contradições existentes em todos os espaços de
nossa sociedade. Apesar do modelo de estruturação social do país ter
como característica a produção de desigualdades sociais, esses olhares
não conseguem perceber que nos territórios periféricos não há, também,

29Além de Maurício Hora, estão à frente do Favelarte desde as primeiras


discussões de 1996 o historiador Luiz Torres e o analista de sistema Renato
Barbosa. Os três nasceram e são moradores do Morro da Providência.
[ 82 ]
a homogeneidade por eles esperada: o território dos pobres, das
carências e, para alguns ainda, o espaço apenas do ilegal. Ao contrário
deste olhar, encontramos em morros como o da Providência uma
territorialidade produtiva, formadora e produtora de saberes,
conhecimentos e significados, e, que tem na informalidade aspectos
negativos e positivos.
Quando surgiu a ideia de se construir a pagina eletrônica do
Favelarte, os fundadores tinham como objetivo divulgar o Morro da
Providência e um pouco da Zona Portuária sob o olhar dos moradores. A
página viria a servir, ainda, como um espaço virtual de divulgação do
trabalho de fotografia social realizado, principalmente, na Providência,
mas, também, em outras áreas de região portuária e de outras partes da
cidade.
Uma noção que chama atenção na conversa com o fotógrafo
Maurício Hora é o seu olhar sobre o cotidiano. Maurício vê o cotidiano
como a dimensão real da vida dos moradores onde acontecem as
dominações, opressões, mas, também, a alegria, a emoção e a realização.
É lugar de partilha, solidariedade, colaboração e é, também, local de dor,
sofrimento e construção. Para ele, as construções são objetivas, como
quando há um mutirão para levantar uma casa de alvenaria onde existia
um barraco de madeira, mas, também, há construção subjetiva das redes
de relações que ele chama de “teias”. E ele sabe do que está falando.
Conforme podemos observar no livro que conta a sua história sob
a forma de revista em quadrinho 30, Maurício se define como fotógrafo
favelado (p. 1). Ele nos conta que seu pai foi o primeiro vendedor no Rio
de Janeira a criar um local fora de casa para vender drogas então ilícitas –
maconha e cocaína – e esse local ficou conhecido como “boca de fumo”.
A posição do seu pai no morro da Providência deixou como herança para
Maurício sentimentos de respeito pelos que o sucederam na
comercialização de drogas ilícitas, principalmente pelo fato dele nunca
ter se envolvido seja com o produto, seja com a comercialização do
produto 31.
Observamos em atividades e caminhadas pela Providência com
Maurício, ainda hoje, uma popularidade e reconhecimento dos
moradores em relação ao lugar que ele, pela militância política e cultural,
adquiriu no decorrer dos anos. Perguntado sobre quais as consequências
desse reconhecimento, Maurício nos apontou que isso lhe garantiu que

30 DINIZ, André. Morro da Favela. Editora LeYa. São Paulo, 2011


31 Maurício gosta de ressaltar que não fuma e nem bebe.
[ 83 ]
poucas vezes tivesse problema em fotografar no morro da Providência
ou do Pinto 32. E mais, se dizendo um fotógrafo “da câmera escura”, esse
relativo “salvo conduto” permitiu que Maurício exercitasse a sua
fotografia em um horário que mais gosta de fotografar: durante a noite e
a madrugada. Informou-nos, entretanto, que em momento de tensão na
comunidade essa facilidade se esvaia e, em épocas de disputa de controle
sobre os domínios do comércio de drogas ilegais no morro, ele mesmo
evitava andar com sua máquina de fotografia profissional 33. Por outro
lado, as forças de segurança pública sempre o viram como um possível
aliado do que elas sempre trataram como tráfico e que ele, a qualquer
momento, poderia flagrar uma ação que por ventura fosse realizada fora
do regimento permitido pela corporação militar.
Esse maior detalhamento sobre o entrevistado do Favelarte fez-se
necessário por suspeitarmos que os papéis por ele desempenhados
internamente à comunidade fortaleceram sua militância política externa
e nos auxilia a colocar em debate a política de segurança ontem e hoje. O
Favelarte e, principalmente, Maurício Hora é reconhecido em diferentes
espaços como o principal mobilizador cultural do Morro da Providência,
como um mediador entre as esferas governamentais e a comunidade da
Providência, atuando diretamente na política cultural.
Em conversar com Ângela Nogueira e Cristiana Candal, do
Centro de Estudos de Política Pública (CEPP) que produziram, em 2011,
o “Guia Caminhos da Cultura” do Morro da Providência, percebemos
que no mapeamento das expressões culturais detectadas na comunidade
– atividade esta realizada por jovens moradores do local que apontaram
as expressões reconhecidas como tal pelos moradores – Maurício é citado
de três formas diferentes. Uma como fotógrafo e líder sociocultural, a
segunda citação se deu como representante do Favelarte e, por fim, como
coordenador da Casa Amarela. A seguir reproduzimos o mapeamento
feito no ano de 2011 pelo CEPP e as identificações realizadas.

32 A Unidade de Polícia Pacificadora do Morro da Providência agrega o Morro

da Providência, Ladeira do Livramento e o Morro do Pinto.


33 Conforme seu relato, a máquina fotografia com uma lente objetiva levada à

altura dos olhos para fotografar pode facilmente ser confundida com uma arma.
[ 84 ]
Figura 1: Os caminhos da cultura no Morro da Providência

[ 85 ]
Fonte: Caminhos da cultura no morro da Providência. CEPP, 2011, p. 4 e 5

[ 86 ]
A nova política de segurança na Providência ocupada e o
Favelarte

As ações desenvolvidas pelo Favelarte no interior do Morro da


Providência e no entorno sempre necessitaram de espaços cedidos para
as oficinas. Também as exposições de fotografias dos alunos eram
realizadas fora da comunidade.
Mas, isso se modificou a partir do ano de 2008, com a vinda do
fotógrafo francês JR para realizar um trabalho na Providência. Ele
reencontrou Maurício Hora que havia conhecido quando o fotógrafo do
Favelarte realizou a exposição Favelité no metrô de Paris (França) durante
o Ano do Brasil na França (2005). Desse reencontro, surgiu a Casa
Amarela. Impressionado com a falta de espaços culturais na comunidade
da Providência, o fotógrafo francês comprou a residência do alto do
Morro da Providência para abrigar projetos sociais e culturais
comunitários.

Figura 2: Largo da Igreja, Casa Amarela – Morro da Providência


Fonte 34: Maurício Hora.

Sobre a Casa Amarela, o representante do Favelarte nos diz que,

o primeiro trabalho que surgiu dentro da casa, antes


da gente fazer qualquer coisa, foi usar o balcão direito
do ISER 35 (Instituto de Estudos da Religião), a gente

34 Disponível em http://rioonwatch.org/?p=9344.
[ 87 ]
instalou o balcão de direito e foi muito importante.
Eles davam assessoria jurídica. Foi importante por
inaugurar um projeto na Casa, mas não era o nosso
foco. A gente queria era cultura, arte. Só que para a
comunidade existem outras demandas muito grandes.
Tanto que as nossas experiências com a biblioteca
tiveram que virar uma sala de incentivo à leitura,
porque as crianças não sabiam ler. Tivemos que
alfabetizar através da poesia. Ao mesmo tempo
começou o curso de fotografia, só que nós não
tínhamos dinheiro, tínhamos equipamentos, mas não
tínhamos dinheiro pra desenvolver. Na verdade, me
fez falta uma equipe que agora nós temos na Casa
Amarela. Uma equipe legal, ainda que faltem pessoas
em algumas posições porque a gente precisa
desenvolver ou, então, entrar em editais e tal pra que a
gente possa se sustentar e sustentar o projeto de uma
forma mais contundente. Mas, enfim, a coisa começou
a andar melhor (HORA, 2013).

Esse início relatado ocorreu em 2008. No ano seguinte, João


Guerreiro, um dos autores deste artigo, inicia uma parceria com
Maurício Hora e, juntos, implantam o Cineclube Morro da Favela que
ocorria quinzenalmente no Largo da Escadaria, ao ar livre, visando
debater cinema com os moradores incluindo todas as faixas etárias nas
discussões.
Na ocasião, não houve qualquer ingerência dos representantes do
comércio varejista de drogas ilícitas locais. Acreditamos que isso tenha
ocorrido devido ao respeito que Maurício tem junto aos moradores. E,
como consequência, todos que passaram a atuar como parceiros dos
projetos que ocorriam na Casa Amarela receberam um tipo de “salvo
conduto” para circular pela comunidade.

35 Segundo informações da instituição, o balcão de direitos “consiste na


promoção, defesa e difusão dos direitos de moradores das favelas, no Rio de
Janeiro. É destinado aos moradores do Complexo do Alemão, da Providência e
da Rocinha. O objetivo principal é o de oferecer subsídios para que os
indivíduos e organizações comunitárias gestionem de forma consciente e
dialogada os conflitos presentes nestas localidades. Para tanto, são realizados
atendimentos baseados nos princípios da mediação comunitária,
comprometidos com o respeito à cultura local. Faz parte de um programa de
abrangência nacional”. (Fonte: página eletrônica do ISER. Disponível em
http://www.iser.org.br/site/projetos/balcao-direitos).
[ 88 ]
O projeto Casa Amarela foi ganhando mais densidade e a
participação dos demais moradores aumentou. Apesar de não terem
obtido o mesmo número de espectadores da primeira exibição do
Cineclube – 102 moradores – percebemos o crescente número de crianças
interessadas pela oportunidade de ter acesso a uma sessão de cinema,
ainda mais com a vista privilegiada que se tem do Largo da Escadaria.
Uma novidade ocorreu no início de 2010. Com uma coincidência
que não espantou nenhum morador da Providência, no dia em que se
iniciava o Fórum Urbano Mundial nos armazéns do Porto do Rio
(22/03/2010), houve a ocupação do Morro da Providência pelo Batalhão
de Operações Policiais Especiais - BOPE. Era o início do processo que
culminou na implantação da sétima Unidade de Polícia Pacificadora –
UPP - no Rio de Janeiro.
Retornando à Casa Amarela. O número crescente de crianças
participantes do cineclube fez com que fosse planejado utilizar o horário
anterior à exibição dos filmes para fomentar um sarau de poesia infantil.
Depois denominado de Sarau Providencial, a primeira tentativa ocorreria
no sábado seguinte, 29 de março de 2010. Porém, com a UPP, essa nova
realidade fez os organizadores refletirem, conversarem com as crianças e
seus responsáveis.
Resolveram entender melhor o que estava acontecendo. O
cineclube continuava, mas o sarau foi postergado. Até porque com a
troca de comando – segundo os moradores, saia o Comando Vermelho e
assumia o Comando Azul – era necessário conhecer os novos
procedimentos.
Como em diversas outras comunidades, na Providência, o baile
funk era a principal atividade cultural em termos de público. Também
como em outras comunidades em que foram instaladas UPPs, estes
bailes foram proibidos. Não bastasse os debates provocados pela Lei
estadual 5265/2008 para proibir os bailes funks em geral, uma legislação
específica, a Norma 013 de 2007, gerou na prática a proibição de bailes
funks em “comunidades pacificadas”.
No Morro da Providência o impacto foi imediato. Quem podia
dar autorização para realização dos bailes eram (e ainda são, apesar da
promessa de revogação dessa norma) os comandantes das UPPs.
Não demorou muito e os organizadores da Casa Amarela foram
“aconselhados” pelos novos soldados armados da Providência a
apresentarem as ações culturais em execução ao novo representante do
poder constituído. Eventos de cineclube, leitura e sarau de poesia?
Lógico que poderiam ocorrer sem problemas. Pelo menos enquanto o
[ 89 ]
comandante fosse esse...
A instalação da UPP na Providência tem uma razão próxima às
demais que criaram um “cinturão de segurança” nas áreas que serão
impactadas pelos Jogos Olímpicos de 2016. Mas, tem a sua
especificidade. Em janeiro de 2011, foi formalizado o início das obras de
urbanização no Morro da Providência. Estimadas em R$ 131 milhões, as
obras previam a construção de habitações populares em terrenos ainda
não definidos, um teleférico ligando o Morro à Cidade do Samba e à
Central do Brasil, além de um plano inclinado para a acessibilidade
interna. Cabe ressaltar a falta de participação dos moradores e de outros
atores sociais nos debates que antecederam ao lançamento desses
projetos.
A Providência nunca teve tantos investimentos públicos nos seus
114 anos. Entretanto, morros ou comunidades não são guetos – ou pelo
menos não deveriam ser vistos como tal – e estão interligados com todo o
tecido social do seu entorno. No caso específico da Providência, tem-se
que levar em conta o projeto de modificação da Zona Portuária: o Porto
Maravilha, que busca transformar a região em “um polo turístico e de
investimento para empresários de vários setores” (ARRAES, 2010).
Para adequar a Zona Portuária aos interesses dos investimentos
privados - vistos pelo poder público como indispensáveis para o sucesso
do Projeto - parâmetros urbanísticos foram modificados. Essas
modificações permitem, inclusive, a construção de edifícios de até 25
andares em algumas áreas da região. Como consequência, já há um
processo de alta valorização dos terrenos nas proximidades do cais do
Porto.
Por esses motivos, no Morro da Providência o preço dos imóveis
já subiu. Casas serão demolidas para a implantação do plano inclinado e
seus moradores, indenizados. Os valores oferecidos até agora estão
acima do que realmente pagaram e investiram em seus imóveis. Porém,
com a alta do preço das residências na Providência e no entorno, estes
valores tornam-se irrisórios para a realocação destes moradores.
E, principalmente, as redes de pertencimentos são esgarçadas o
que aponta para um processo de gentrificação 36 na comunidade.

36Valorização do preço do imóvel e do aluguel leva o morador atual a não


conseguir fazer frente à valorização e se muda da região procurando um lugar
onde possa arcar com os custos da moradia. Com isso, novos moradores, de fora
da região, são atraídos pelo discurso da revitalização urbana ancorada em
equipamentos culturais e infraestrutura nova e mais eficiente. Essa mudança de
[ 90 ]
No olhar de Maurício,

as transformações que o Porto Maravilha vai provocar


na região deverão transformá-la em uma ilha. Como
não há moradia popular no projeto, as pessoas virão
aqui para trabalhar. O morro da Providência voltará a
ser o Morro do Livramento e, como tal, um novo
morador irá para lá. (HORA, 2013).

Não podemos, entretanto, deixar de apontar que a instalação da


UPP na Providência provocou movimentos contraditórios no que
concerne às manifestações culturais.
Se, por um lado houve a proibição do maior evento de
manifestação cultural da comunidade – o baile funk – a exposição
midiática e a possibilidade de se auferir lucros individuais com a
modificação de interesse de parcelas de população em conhecer as
comunidades “pacificadas” geraram toda a sorte de pequenos
investimentos na comunidade. Linhas de crédito, oficinas de
empreendedorismo e articulação de moradores para qualificação
profissional começaram a surgir de forma desordenada.
Na Casa Amarela, o projeto de cineclube pôde se expandir. O
Sarau Providencial enfim foi iniciado em meados de 2010 e recursos de
projetos socioculturais como o lançado pelo Ministério da Justiça -
Microprojeto Territórios da Paz - foram acessados pelos fundadores do
Favelarte 37.
Essa nova realidade impôs um debate no interior do Favelarte.
Qual seria o posicionamento dos organizadores da Casa Amarela frente à
UPP e as transformações que ela traz enquanto projeto de mudança
midiática e simbólica? As contradições teriam que ser enfrentadas. Por
um lado, recursos para projetos culturais aceitos socialmente – como
incentivo à leitura, cineclubes etc. Por outro, remoção, destruição do
patrimônio cultural imaterial e investimentos não priorizados pelos
moradores 38.

público provocado pela valorização dos imóveis é definida pelos planejadores


urbanos como gentrificação.
37 Maurício Hora teve projeto de oficina fotográfica aprovado, assim como

Renato Barbosa obteve apoio para o projeto de implantação de um Espaço de


Leitura na Casa Amarela.
38 O mais evidente foi o investimento para a construção do teleférico cujo projeto

não beneficia os moradores da parte alta da comunidade – acima dos 162


[ 91 ]
Apesar de acessar alguns recursos públicos oferecidos aos
moradores da Providência e tendo como discurso o direito de acessá-los
como em diversas outras áreas da cidade, Maurício e o Favelarte não se
furtam a intervir no processo de disputa na Providência através de
diversas ações coletivas de arte e mobilização social. Em uma delas, em
maio de 2011, cem moradores que tiveram suas casas marcadas para
serem demolidas foram fotografados por Maurício Hora e suas fotos
foram coladas em frente às suas casas. Idealizado pelo fotógrafo JR e
realizado em diversas comunidades pelo mundo, o Projeto Inside Out na
Providência visava chamar atenção para os problemas decorrentes das
remoções.
Em um dos finais de semana que a ação de colagem das fotos foi
realizada pelos moradores e de voluntários, o Morro da Providência
recebeu a visita da arquiteta Raquel Rolnik, relatora da ONU para o
Direito à Moradia Adequada. Em conversa com os moradores disse que a
intervenção que a prefeitura vem planejando para o local através do
programa Morar Carioca parece não atender a critérios como o de
participação popular na definição das obras e remoções.
Junto com a intervenção unilateral do poder público na
comunidade apoiada pelo projeto de segurança pública começou a
crescer a insatisfação dos moradores.

Figura 3: Marcação de uma casa a ser demolida de acordo com projeto


da Prefeitura do RJ. Cena no vídeo Morro da Providência, histórias de vidas,
produzido pelos jovens da região.

degraus da escadaria que liga o morro do Livramento ao morro da Providência


propriamente dito.
[ 92 ]
Um dos exemplos da forma autoritária em que está ocorrendo a
ação na Providência pode ser observado na figura 3. Nela, pode ser visto
como as casas foram marcadas com as iniciais da Secretaria Municipal de
Urbanismo e um número. Além dos moradores não terem sido
previamente comunicados sobre o que representava essa marcação, a
mesma rememora, infelizmente, uma antiga Alemanha, que tinha a
prática de marcar com a Estrela de Davi os grupos sociais considerados
“inferiores”.
Segundo Maurício,

"estamos num momento muito crucial em nossa


história. As autoridades não têm incluído as nossas
preocupações nos seus planos. Ao colar os retratos na
comunidade, buscamos fazer ouvir nossas vozes neste
processo. Queremos visibilidade, participação e o
melhor resultado para essa comunidade, que foi
construída pelas nossas mãos, e as mãos dos nossos
pais e avós” (HORA, 2013).

O que se pode observar, a partir de conversar com moradores e


com técnicos da prefeitura é que os projetos de intervenção que,
inicialmente pareciam “apenas” obscuros, ao serem desvendados passam
a ser inacreditáveis. Ou como poderíamos adjetivar a proposta de
demolição das casas do Largo do Cruzeiro? O projeto prevê que, após a
remoção de todas as moradias do entorno do largo, será construído um
falso centro histórico com lojas e venda de lembranças para os turistas!
Mas o patrimônio cultural do local também não são seus moradores?
Segundo exemplo pode ser observado com relação à construção do plano
inclinado. Não há como discordar da importância da implantação do
plano inclinado frente à necessidade de acessibilidade dos moradores da
parte alta do morro tendo em vista que não serão beneficiados pelo o
teleférico. Porém, antes da resistência dos moradores o projeto previa a
destruição de todas as moradias que ladeavam a escadaria de acesso ao
Largo da Igreja. Após os embates os mesmos técnicos apontaram para
possibilidade de revisão da necessidade de desapropriação e demolição
das moradias. Antes os critérios eram apenas técnicos, agora, políticos.
E os moradores, o que acham da remoção, demolição e
indenização? Muito mais do que dinheiro, apontaram para a necessidade
e desejo de serem realocados no mesmo espaço. Sugerem a ampliação
das habitações populares no entorno garantindo o reassentamento de
todas as famílias afetadas. Outra demanda dos moradores até agora sem
[ 93 ]
respostas é a da necessidade de criação de espaços públicos comunitários
para abrigar os projetos socioculturais já existentes.
Essas demandas resumem as necessidades apresentadas por eles
nas conversas, audiências públicas e oportunidades que se apresentam
para os moradores se expressarem: criação de espaços de discussão com
os envolvidos nesse processo de modernização conservadora da
Providência. Pelo menos neste ponto, o Projeto deveria ser democrático e
participativo.
Mas, retornando ao impacto da UPP nas atividades culturais que
presenciamos na Providência. Uma prática que nunca havia ocorrido em
outras atividades ligadas ao Cineclube Morro da Providência era a
presença de pessoas com fuzil. Com a chegada da UPP, o projeto teve
que se acostumar com esta nova realidade. Sabemos que uma mudança
da cultura cotidiana da violência não se dá de uma hora para outra e não
depende apenas de ações pontuais de segurança pública. Até porque
essa violência não é desprovida de motivos e suas origens não estão nas
favelas. Muito pelo contrário, as favelas são as consequências do modelo
de constituição do país e fruto dos históricos e escandalosos indicadores
de desigualdade socioeconômica por nós vividos.
Mas, contraditoriamente, a partir da instalação das UPPs, os
policiais passaram a fazer ronda com armamento pesado enquanto as
crianças faziam suas apresentações de poesia. Depois de solicitado, o
comando da UPP inibiu essa ação.
A posição crítica tomada por alguns participantes da Casa
Amarela frente à demora de obtenção de ganhos reais em termos de
serviços de infraestrutura, oportunidades de escolarização e acessos à
saúde pública de qualidade fizeram com que a “aura” do espaço de
cultura comunitária fosse aos poucos sendo perdida frente ao poder
constituído. O caso mais emblemático vivenciado ocorreu no ano de
2013. Sem qualquer preocupação com o público que transita pela Casa
Amarela – crianças e adolescentes em sua maioria que estão fazendo
atividades ligadas à leitura - polícias armados invadiram esse que é o
único espaço destinado ao livro, leitura e exposição fotográfica na parte
alta do Morro da Providência na captura de um suspeito desarmado.
Alguma sorte ocorreu se compararmos com outros desfechos em
comunidades populares “pacificadas” ou não: como foi na hora de
almoço a casa estava praticamente vazia com “apenas” uma criança na
linha de tiro.
Nunca a polícia havia entrado na Casa Amarela e, além disso, a
"filial" da UPP é vizinha da Casa e sabe o que lá ocorre e quem frequenta.
[ 94 ]
Essas ações em 2013 já apresentam uma situação que passamos a
perceber a partir do segundo semestre de 2012. A política de segurança
onde a UPP é o lado mais visível ainda tem o apoio da maioria dos
moradores, mas a insatisfação com as demandas reprimidas não
resolvidas vem crescendo.
Se, as atividades da Casa Amarela não podem ser confrontadas
com atividades desenvolvidas em outros espaços da cidade do Rio de
Janeiro como na Livraria da Travessa ou Casa do Saber 39, o espaço vinha
se consolidando como uma “casa do aprender”.
O fator novo que percebemos ao caminhar pelo Morro da
Providência em 2013 é a sensação de apreensão que os moradores vêm
apresentando em relação ao futuro da política de segurança pública local.
Além das promessas não cumpridas pelo poder público em relação aos
demais serviços de cidadania percebemos que o clima de insegurança
sobrepuja as decepções em relação ao não funcionamento do teleférico,
do plano inclinado ou das indenizações em relação às remoções.
Os impactos desse novo cenário são imediatos. Na Casa Amarela,
que está funcionando de forma esvaziada a partir desse novo cenário de
insegurança e falta de recursos a ela associada, observa-se o início de um
processo de evasão de jovens que começam a ver o retorno de
oportunidade de trabalho, dado que o poder público não criou
alternativas de inserção social através de projetos de geração de renda.
Entretanto, não temos dúvidas que é possível que os projetos possam
voltar a se fortalecer, como ocorreu antes de 2010.
Mas, nos parece que a questão que cabe ser debatida neste
momento é se a política de segurança pública nas comunidades direta ou
indiretamente relacionadas com os Jogos Olímpicos terá fôlego para se
manter para além 2016 sem transformações estruturais e ofertas de
serviços públicos.

Referências

ARRAES, Jorge Luis. Brasil 2014 - campo das ideias: Projeto Porto
Maravilha e oportunidades para o mercado imobiliário. Disponível em
http://www.cpflcultura.com.br/2010/12/01/brasil-2014-%E2%80%93-
campo-das-ideias-%E2%80%93-projeto-porto-maravilha-e-

39 A Livraria da Travessa é uma rede de livrarias e a Casa do Saber é um espaço

de cursos e debates na Zona Sul do Rio de Janeiro, ambos frequentados


basicamente pelas classes A e B.
[ 95 ]
oportunidades-para-o-mercado-imobiliario-%E2%80%93-jorge-luiz-de-
souza-arraes/. Acesso em maio 2013.

DINIZ, André. Morro da Favela. Editora LeYa. São Paulo, 2011.

GUERREIRO, João. Quando o centro é a periferia: dinâmica cultural na região


portuária do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, PPGSS/UFRJ, 2013. 267 f. Tese.
(Doutorado).

GONÇALVES, Marco Antonio; HEAD, Scott. Confabulações de


alteridade: imagens dos outros (e) de si mesmos. In: GONÇALVES,
Marco Antonio e HEAD, Scott. Devires Imagéticos – a etnografia, o outro e
suas imagens. Rio de Janeiro, Editora 7 letras, 2009.

HORA, Maurício. Entrevista concedida a João Guerreiro. Rio de Janeiro, 29


de maio de 2013.

ISER. Balcão de direitos. Disponível em


http://www.iser.org.br/site/projetos/balcao-direitos. Acesso maio
2013.

KOSSOY, Boris. Realidades e ficções na trama fotográfica. S. Paulo: Ateliê Ed,


1999.

MATTOS, Rômulo. Aldeias do mal. In: Revista de História da Biblioteca


Nacional. Edição 25, outubro 2007. Disponível em
http://www.revistadehistoria.com.br/secao/capa/aldeias-do-mal.
Acesso em 30 de outubro de 2013.

MORRO DA PROVIDÊNCIA- Histórias de vida. Filme produzido pelo


Coletivo Casa Amarela. Rio de Janeiro, outubro de 2012. (DVD).

MOURA, Roberto. Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro. 2ª edição


— Rio de Janeiro; Secretaria Municipal de Cultura, Dep. Geral de Doc. e
Inf. Cultural, Divisão de Editoração, 1995. 178p.

NOGUEIRA, Angela; CANDAL, Cristiana. Caminhos da cultura no morro


da Providência. Centro de Estudos de Política Pública, 2011.

[ 96 ]
ROLNIK, Raquel. Porto Maravilha: custos públicos e benefícios
privados?Blog da Raquel Rolnik, 13/06/2011. Disponível em
http://raquelrolnik.wordpress.com/2011/06/13/porto-maravilha-
custos-publicos-e-beneficios-privados/. Acesso em maio 2013.

SESEG. Solicitação de autorização de realização de eventos de música


eletrônica (rave/funk). Nota 0777/2009. Disponível em
http://solatelie.com/cfap/html11/seseg_solicitacao_autorizacao_realiza
cao_eventos_musica_eletronica_rave_funk.html. Acesso em outubro
2013.

[ 97 ]
[ 98 ]
TEATRO DA LAJE
Antonio Verissimo dos Santos Junior 40

- "O que o teatro pode fazer pelos jovens da Vila Cruzeiro?"


- "Prefiro perguntar o que os jovens da Vila Cruzeiro podem fazer pelo teatro,
para restituir-lhe vida e prestígio, para oxigená-lo".

Com a reprodução desse trecho de uma entrevista dada por mim


a um jornalista, antecipo a questão central de que trata esse artigo:
destacar a contribuição única, singular, irredutível, e insubstituível dada
pelos jovens atores do Grupo Teatro da Laje e suas práticas cotidianas
para a criação de um teatro popular inserido na contemporaneidade.
O Teatro da Laje nasceu em 2003, como desdobramento de
minhas aulas de Artes Cênicas na Escola Municipal Leonor Coelho
Pereira, localizada na já referida favela da Vila Cruzeiro. Além de meu
desejo de ampliar e aprofundar os experimentos nascidos em sala de
aula, limitados pelas contingências do cotidiano escolar (exiguidade do
tempo de duração das aulas e de espaço físico, dentre outras), contribuiu
para a criação do grupo a demanda dos alunos da escola, expressa em
atitudes como “matar” aulas de outras disciplinas para assistir às aulas
de teatro, solicitar à direção o aumento da carga horária da disciplina e a
disposição de assistir a essas aulas mesmo fora do horário escolar. A
quantidade de jovens que se inscreveram nos testes para a formação do
elenco corrobora e dá a dimensão do que aqui é dito: mais de 100, para
apenas 20 vagas. O grupo tem em seu repertório três montagens: Tieta, o
ônibus que Jorge Amado nunca imaginou; Montéquios, Capuletos e nós e o
mais recente, A viagem da Vila Cruzeiro à Canaã de Ipanema numa página de
Facebook. Além de montagens de espetáculos, o coletivo desenvolve
oficinas onde os jovens que o integram atuam como instrutores dos
demais jovens da comunidade. Essas oficinas foram projetadas sobre a
compreensão de que o compartilhamento do método desenvolvido
resulta em seu aprimoramento. O nome do grupo remete ao uso das lajes
das casas da favela, onde começou a desenvolver suas atividades ao
mesmo tempo em que celebra essa autêntica instituição cultural das
favelas cariocas.

40 Ator formado pelo CFA/UFPE, Arte-Educador formado pela UNIRIO, mestre

em Educação pela UFF, Professor de Artes Cênicas da rede municipal de ensino


do Rio de Janeiro e diretor do Grupo Teatro da Laje.
[ 99 ]
Desde seu surgimento o Teatro da Laje se esforça por localizar no
cotidiano da comunidade elementos da dramaturgia universal e
descortinar a universalidade contida naquela localidade. Ou seja,
procura identificar o que há de local no universal e, inversamente, o que
há de universal no local. Foi assim com a montagem de Montéquios,
Capuletos e nós, uma versão contemporânea do clássico Romeu e Julieta, de
William Shakespeare. Ali o conflito entre famílias rivais da cidade de
Verona foi substituído pelo conflito entre duas fictícias favelas cariocas
dominadas por facções rivais do tráfico de drogas – o “Morro dos
Montéquios” e o “Morro dos Capuletos”.
Segundo Peter Brook,

Em astronomia, quando um planeta se aproxima da


Terra em sua órbita, todos os astrônomos montam seus
telescópios, porque é o melhor momento de estudá-lo;
assim também, pela primeira vez em quatro séculos, a
era elizabetana com todos os seus valores está mais
próxima de nós do que nunca. Há também, na galáxia
da dramaturgia, peças que se aproximam de nós em
certos momentos da história e outras que se afastam. 41

O que constatei, pois, nessa apropriação da obra de Shakespeare,


foi que a posição ocupada por aqueles jovens na sociedade coloca-os
num observatório astronômico privilegiado, tal a quantidade de corpos
da galáxia shakespeariana que deles mantêm proximidade. Poucos, como
eles, têm condições de tocar naqueles aspectos da obra de Shakespeare
diante dos quais muitos recuam, porque poucos como eles vivem um
cotidiano tão próximo da Inglaterra elisabetana, em seus tumultos,
perigos, fervores e tensões. Eles falam diretamente ao Shakespeare
elisabetano, por sobre o Shakespeare vitoriano.
A busca por formas teatrais que rompam e minem as fronteiras
ostensivas e ostensivamente policiadas do drama rigoroso 42 ,

41 BROOK, Peter. O ponto de mudança: quarenta anos de experiências teatrais. Rio de


Janeiro, Civilização Brasileira, 1994.
42 Para uma maior compreensão do drama como uma forma específica de poesia

teatral nascida na França do século XVIII que, por força de uma hegemonia,
passou a ser sinônimo de teatro cf. COSTA, Iná Camargo. Sinta o drama.
Petrópolis/RJ, Vozes, 1998, SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno [1880-1950].
São Paulo, Cosac & Naify, 2001 e LEHMAN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático.
São Paulo, Cosac & Naify, 2007.
[ 100 ]
parafraseando Boaventura de Sousa Santos, 43 também foi, desde o início,
uma constante nas investigações do grupo em torno da linguagem
teatral.
Foi, porém, em A viagem da Vila Cruzeiro à Canaã de Ipanema numa
página do Facebook que essa ruptura deu um salto de qualidade. O
espetáculo narra a saga de um grupo de jovens moradores de uma favela
da zona norte do Rio de Janeiro para encontrar uma faixa de areia onde
possam ficar num sábado de sol. Em sua jornada o grupo enfrenta uma
situação surreal: a interdição, por motivos diversos (final de
campeonatos esportivos, privatização da área por hotéis de luxo, reserva
para prática de naturismo, etc), de todas as praias aonde chegam.
Durante o périplo, um dos integrantes do grupo narra os acontecimentos
à medida que os registra em fotos que comporão o álbum de sua página
num site de relacionamentos e imagina legendas que assemelham a
situação do grupo a dos hebreus peregrinando pelo deserto, após a saída
do Egito, em busca da terra prometida. A montagem partiu de um
conceito central: o direito à cidade.
Esse espetáculo, como já foi sinalizado, representou um
deslocamento considerável na história do Grupo Teatro da Laje e em
suas opções estéticas. Dramaturgia confeccionada lado a lado com os
atores; irreverência; evidenciação da linguagem, rituais, problemas,
preocupações, signos e práticas cotidianas da juventude das favelas
cariocas; interpretação despojada, baseada mais na noção de jogo entre
os atores do que na de representação de personagens ficcionais;
reencontro com a ideia de persona ou máscara nitidamente separada do
ator; narrativa fragmentada em lugar de uma narrativa linear; criação
coletiva desenvolvida no processo de improvisações e jogos coletivos,
onde ao diretor/dramaturgo cabe a função de selecionar e costurar os
elementos produzidos; teatralidade exacerbada através da radicalização
dos signos próprios do teatro; foco não só no discurso dramatúrgico e
textual, mas também no discurso cênico; palco nu, utilização de poucos
objetos cênicos e valorização dos recursos físicos e criativos dos atores; o
ator como elemento central da criação; empenho mais na criação de uma
realidade assumidamente teatral do que na reprodução da realidade: são
os eixos da proposta teatral trazida por esse espetáculo.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências. Porto, Edições


43

Afrontamento, 2001.

[ 101 ]
O pensamento de Aníbal Quijano 44 sobre a questão da totalidade
serve para pensar e descrever o caráter dessa proposta que articulou
elementos heterogêneos, descontínuos e que se chocavam entre si; uma
teatralidade polifônica e polissêmica, onde as partes eram articuladas
numa totalidade aberta, ou seja, não pensada como um organismo, uma
máquina ou uma entidade sistêmica; uma teatralidade onde os vários
elementos da linguagem eram desierarquizados e articulados por um
discurso que funcionava como eixo comum e era confeccionado a partir
das vozes de todos esses elementos, que narravam por direito próprio e
não apenas como meros apoiadores, ilustradores ou coadjuvantes do
texto; uma teatralidade onde esses elementos eram partes da totalidade
constituída por esse discurso e, consequentemente, moviam-se dentro da
orientação geral indicada por ele, mas, ao mesmo tempo, não eram
apenas partes - como acontece na forma eurocêntrica de pensar a relação
entre o todo e as partes, denunciada por Quijano -, mas vistos em sua
relação separada com cada uma das outras partes, como uma unidade
total na sua própria configuração; uma teatralidade engendrada por um
discurso onde cada signo, cada elemento da linguagem era uma
particularidade e, ao mesmo tempo, uma especificidade e,
eventualmente até, uma singularidade - todos se movendo dentro da
tendência geral do discurso cênico, mas tendo ou podendo ter autonomia
relativa e até mesmo conflito com o conjunto.
Cabe esclarecer, porém, antes de prosseguirmos, que o
afastamento da primazia do texto e de uma narrativa linear e
unidirecional não significou a ausência no espetáculo de uma fábula,
como se pode ver na sinopse apresentada anteriormente.
O que interessa aqui, porém, como já foi dito, é detectar a
contribuição específica de cada um dos jovens integrantes do elenco e da
comunidade como um todo para a articulação dessa teatralidade, bem
como para a elaboração da fábula, que foi construída, ressalte-se, a partir
de entrevistas realizadas nas ruas, onde se pedia aos moradores a
narração de casos relacionados ao espaço da praia. Busco aqui por em
revelo o denso e rico conjunto de signos revelados pelos
comportamentos desses sujeitos em cena; seu complexo sistema de
relações, suas redes sociais, seu universo simbólico e cultural, suas
formas de perceber e expressar o mundo, de produzir sentidos e,

44 QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder e classificação social. In: SANTOS,

Boaventura de Sousa e MENESES, Maria de Paula. Epistemologias do Sul. São


Paulo, Cortez, 2010.
[ 102 ]
principalmente, a contribuição que trazem para o engendramento de
uma prática cênica e de uma teatralidade situada na contemporaneidade.
Alguns elementos dessas práticas cotidianas foram facilmente
percebidos e transfigurados em signos do discurso cênico pela própria
direção do espetáculo: as buzinas customizadas das kombis que realizam
transporte complementar na comunidade; um boneco, o Chatubão, cujo
nome fazia referência a uma das favelas da região, vestido com o
uniforme de um time de massas do futebol carioca e utilizado como
demarcador de território ao ser fincado em cada faixa de areia visitada
pelo grupo; as redes sociais da internet como forma de sociabilidade;
mitos da religiosidade hegemônica na comunidade... Outros elementos,
porém, foram trazidos à cena pelos próprios atores durante os jogos de
improvisação. É sobre esses que pretendo me debruçar. Falo, por
exemplo, do texto e do gestus criados por um dos atores a partir de seu
cotidiano numa cena em que sua persona conversava ao telefone com a
mãe. Na cena víamos a mãe da persona conferindo se a mesma havia
cumprido com todas as suas obrigações domésticas antes de ir à praia. A
persona ia prestando contas de tudo até lembrar que não havia estendido
a roupa no varal. Tentava negociar para que um irmão desempenhasse
essa tarefa e não tivesse que voltar para casa apenas por isso, mas a mãe
era irredutível: ela tinha que voltar e terminar o que havia deixado por
fazer. A persona protestava, chorava, mas obedecia. Todos os jovens da
comunidade gargalhavam sonoramente quando assistiam a essa cena.
Comentários de vários tipos perpassavam a sala de espetáculo:

- É assim mesmo que acontece! É assim mesmo! - dizia,


entre risos, a mãe do ator que protagonizava a cena.
- Igualzinha à minha filha! - galhofava outra mãe
presente na plateia.

Vale a pena, a propósito, analisarmos o papel igualmente decisivo


que a plateia formada pelo grupo no conjunto de favelas da Penha, ao
longo de seus 10 anos de existência, desempenha na modelagem dessa
teatralidade que aqui analisamos. Para tanto farei o relato do caso
exemplar de uma apresentação do espetáculo num teatro recém-
inaugurado na localidade, onde ocorreu uma autêntica celebração
dionisíaca. Mais de 300 jovens advindos de diversas partes daquele
conjunto de favelas, vestidos à vontade (bermudas, tênis e chinelo) -
comportamento por si só carregado de significado pela profanação e
dessacralização da liturgia vazia em que foi se transformando o ato de ir

[ 103 ]
ao teatro, como bem observou um estudante universitário presente no
evento - lotavam o espaço da Arena Carioca Dicró, como se estivessem
em suas casas, para ver mais uma apresentação do Grupo Teatro da Laje.
Um forte laço, uma forte aliança, uma liga firme unia palco e plateia, que
se olhavam e se tratavam com a intimidade e a cumplicidade de velhos
conhecidos separados, naquele momento, em palco e plateia, mas, no
cotidiano, amigos íntimos que compartilham o espaço comum das
escolas, ruas, praças, becos e vielas da comunidade. Uma plateia jovem
como jovem era o palco; que não se contentava em ser apenas plateia
(quem olhava para o mezanino podia ver os garotos e garotas
acompanhando o espetáculo de pé, dançando, cantando e batendo
palmas); uma plateia anárquica, bakhtiniana, rabelaisiana, pantagruélica,
ruidosa, buliçosa, calorosa, frenética, digna de um teatro vivo e não de
um teatro empalhado; uma plateia que, de tão íntima do espetáculo
(alguns voltavam para assisti-lo pela segunda, terceira, quarta ou mais
vezes), mostrava orgulhosa que sabia de cor o texto dos atores e
adiantava-o antes que fosse pronunciado por esses. A plateia se via no
palco e o palco se via na plateia, num jogo de espelhos excitante,
eletrizante e produtivo. A plateia cantava e dançava com o palco e o
palco descia para cantar e dançar com a plateia. Gritos, assobios, palmas,
urros e comentários em voz alta eram dirigidos o tempo todo ao
palco. "Uma plateia má educada e despreparada para o teatro!",
esbravejariam alguns. Mas, felizmente, como lembra Manuel Jacinto
Sarmento "para a mesma ação há vários sentidos, e há luta pelos
sentidos, há luta pelo sentido aceito e socialmente confirmado" 45. Uma
plateia que reinventava o coro dionisíaco, que revigorava o teatro, que
fazia reviver os melhores tempos do teatro elisabetano com um
ingrediente a mais: o tempero de nossa latinidade, a sensualidade de
nossa América Latina. A plateia que o Grupo Teatro da Laje construiu
laboriosamente e da qual muito se orgulha, a julgar pela atitude dos
atores durante o espetáculo e por seus comentários em seguida ("Foi
incrível!", "Morri de rir!", "Demais essa plateia! Curti muuuuito!", "Gente,
eu fui dançar com o pessoal da plateia, deitei no colo de uma, abracei a
outra..."). Uma plateia que provocaria palpitações em Artaud, Peter
Brook, Eugênio Barba, Ariane Mnouchkine... Uma plateia para quem

45 SARMENTO, Manuel Jacinto. Quotidianos densos – A pesquisa sociológica

dos contextos de acção educativa. In: Método, métodos, contramétodo. Regina Leite
Garcia (org). São Paulo, Cortez, 2003.
[ 104 ]
teatro não era artigo de consumo, mas força produtiva, momento de
festa, celebração e congraçamento - poderiam, portanto, dizer outros.
Isto posto, voltemos ao palco.
Não poderia deixar de falar de um momento em que os atores
restituíam o pleno vigor e significado da música Nós vamos invadir sua
praia, da banda Ultraje a Rigor, dando-lhe carnadura e corporeidade
quando avançavam impetuosamente em direção à plateia, impactando-a
e eletrizando-a. Destaco esse momento por se tratar de mais um acordo
grupal emergido de um jogo de improvisação entre os atores. Destaque-
se, aliás, que esse foi o procedimento adotado para a construção da
maioria das marcas e das movimentações do espetáculo, onde à direção
cabia o estímulo e o encorajamento do processo, além do fornecimento
de roteiros que serviam de base para as improvisações. Considere-se, por
fim, que minha intenção de discutir de forma bem-humorada a questão
central proposta pelo espetáculo, a do direito à cidade, só foi efetivada
quando o espaço cênico foi invadido por essas proposições dos atores e
as cenas tomadas em suas mãos. O que passou a se ver, então, foi uma
forma de tratar o tema onde prevalecia o deboche, a ironia, a capacidade
de rir do outro e de si mesmo, o uso sensual e provocativo da dança e do
corpo, a jocosidade, a caçoada, a troça, a inversão brincalhona, o
nonsense...
A inserção dos textos narrativos na montagem foi, sem dúvida, o
nó mais difícil de desatar, mas agora, e só agora, fácil de descrever.
Também aqui o papel ativo dos atores e da plateia da comunidade foi
decisivo no processo. A própria opção pelo estabelecimento de um
paralelo entre a situação mostrada em cena e a dos hebreus peregrinando
pelo deserto após a saída do Egito, em busca da terra prometida, e a
inserção na montagem de passagens do livro bíblico do Êxodo, onde é
narrada essa saga, orientou-se pela busca de um diálogo com a
religiosidade hegemônica na localidade. Buscou-se, contudo, o caráter
político e literário desse texto e não o religioso.
A opção pela inserção dessas passagens sem recorrermos a
adaptações se justificava pela preocupação de não diluirmos em diálogos
intersubjetivos a inteireza social, histórica e épica que pretendíamos
conferir aos acontecimentos mostrados em cena.
Ao analisar a ocorrência de experimentos com textos não
dramáticos para a composição da cena no teatro contemporâneo, Maria
Lúcia de Souza Barros Pupo resume e traduz com precisão essa nossa
preocupação:

[ 105 ]
Para [Jean-Pierre Sarrazac], essa fusão constitui uma
possível resposta às inquietações do encenador que se
confronta com uma nova constatação: parte daquilo
que ele tem a comunicar ao público não pode mais
passar pelo diálogo. 46

Como integrar organicamente, porém, numa montagem teatral


excertos de um texto não escrito especificamente para o teatro?
Durante os ensaios realizamos diversas tentativas de solução
desse problema. A mais significativa e marcante foi uma já conhecida
adaptação do tradicional jogo do "queimado", que transcorre num campo
dividido em dois, cada um ocupado por um time. Por trás de cada time,
no fundo de cada lado do campo, marca-se uma linha. O objetivo do jogo
é queimar alguém. Atrás daquela linha fica o “cemitério”, para onde irão
os jogadores queimados. Queima-se um jogador quando a bola bate nele
e depois cai no chão. O jogo inicia com o jogador de um time atirando a
bola no time adversário. Se o jogador contra o qual a bola foi atirada
conseguir agarrá-la sem deixá-la cair no chão, está salvo. O jogador
queimado deverá ir para o cemitério situado no campo do time
adversário. O time do jogador que foi queimado tem duas alternativas: a
primeira é tentar salvá-lo, atirando a bola para que alcance o cemitério
onde ele está sem que nenhum jogador adversário a agarre. O jogador
que está no cemitério terá o direito de voltar para seu campo se
conseguir queimar um adversário. A alternativa é continuar tentando
queimar os adversários. Ganha o jogo a equipe que queimar todos os
jogadores da equipe adversária.
Na adaptação que fizemos o texto substitui a bola e deve ser
arremessado contra a equipe adversária. O jogo transcorreu com intensa
liberação de energia. Era quase visível a bola-texto fora da cabeça dos
jogadores, ocupando lugar no espaço. Durante a avaliação os jogadores,
energizados, frenéticos, arrebatados, comentavam: "Eu sou energia
pura!"; "Estou sentindo a pancada da bola na minha perna até agora!";
"Cheguei a ficar preocupada, porque senti a pancada da bola em meus
seios"; "Juro que eu vi a bola! Senti seu peso em minhas mãos!".
Se, porém, o jogo contribuiu para o entrosamento e integração do
elenco, não resultou na pretendida incorporação orgânica do texto à
cena. As intervenções do narrador soavam gratuitas. O que fazia ele ali?
Não estava claro de que lugar falava tampouco para quem falava. Não

46 Pupo, Maria Lúcia de Souza Barros in RYNGAERT, Jean-Pierre. Jogar,


representar: práticas dramáticas e formação. São Paulo, Cosac Naify, 2009.
[ 106 ]
sabíamos o que fazer com as ações que se desenrolavam no palco quando
ocorriam essas intervenções. Deveríamos interrompê-las? Com que
propósito? Quando iniciar a interrupção e quando retomar a ação?
Aqui também a contribuição direta da comunidade revelou-se
decisiva, pois foi no contato com a plateia formada por ela que esse
problema evidenciou-se. O enfado e até mesmo a irritação demonstrados
por muitos espectadores com as intervenções extemporâneas do
narrador, indicaram-nos que a comunicação não fora estabelecida.
Outros vieram nos procurar depois para dizer que não haviam
compreendido o motivo daquelas intervenções. Optamos, então, por
suspender as apresentações e retornamos ao processo de montagem.
Fizemos isso e, intuitivamente, encontramos uma solução de caráter
lúdico que, ao fim, revelou-se acertada: os textos seriam proferidos como
legendas idealizadas pelo narrador para fotos destinadas a compor seu
álbum num site de relacionamentos. A solução provocou, evidentemente,
uma reviravolta completa na dramaturgia e na encenação do espetáculo,
que passou a ser pontuado por imagens fixas – as fotos que seriam
captadas pelo narrador. De resto, logramos explicitar e assumir até as
últimas consequências uma das peculiaridades da arte teatral – aquela
que faz com que o contato com diferentes grupos de espectadores gere
um novo produto que provoca um novo processo que gera um novo
produto que provoca um novo processo...
Procedem, igualmente, de Maria Lúcia de Souza Barros Pupo 47 as
ferramentas teóricas e analíticas que nos permitem explicar e
compreender os erros e acertos contidos nesse processo.
A autora se vale de uma experiência desenvolvida no norte do
Marrocos que teve como base o jogo teatral com textos narrativos para
elucidar as “complexas relações entre ação e narração” e, assim, formular
categorias que levem, num primeiro movimento, do texto narrativo ao
jogo teatral. O segundo movimento faz o caminho inverso: do jogo ao
texto. Por ora vamos nos ater ao primeiro movimento por considerá-lo
mais conexo aos problemas que enfrentamos.
As categorias

Constituem classes de problemas destinadas à


experimentação; são fruto de uma fusão entre
diretrizes voltadas para a análise da narrativa e
elementos básicos da linguagem teatral. 48

47 Op. cit.
48 PUPO. Op. cit.
[ 107 ]
Ao analisar o primeiro desses problemas, o da ação teatral e de
sua relação com o texto, a autora nos fornece pistas preciosas para a
compreensão dos erros e acertos presentes no processo por nós
vivenciado.
Nosso primeiro intento foi nos distanciarmos da relação que,
como diz a autora, tende a surgir de imediato, ou seja, “a ilustração do
texto mediante ações paralelas tendendo à redundância (...) as tentativas
de ilustração que poderíamos qualificar como meramente diretas”. 49
Pretendíamos descobrir “ações que não ilustrassem mimeticamente, mas
acrescentassem sentido ao texto (...) ações que fossem além da simples
reiteração textual”. 50 Ao fazê-lo, porém, negligenciamos uma
necessidade óbvia: justamente a de que as ações realizadas devem guardar
alguma relação com o texto comunicado. O resultado é que o texto se
transformou numa presença não justificada na cena, um corpo estranho
que não se tornou orgânico. Simplesmente não se via relação entre o que
se narrava e o que acontecia em cena. Não ocorreu, portanto, “fricção
entre a narrativa e a dramatização dessa narrativa”. 51
A pista para resolvermos esse problema foi dada por uma das
primeiras cenas do espetáculo, quando o grupo forma uma imagem fixa
ao lado da música de Elmer Bernstein composta para o filme Os Dez
Mandamentos. Assumimos a imagem como uma foto que seria tirada pelo
narrador – a primeira de uma série que, como já afirmei, pontuaria os
episódios e balizaria a narração. 52
Dessa forma, “ação e texto, operando paralelamente, abriam novo
leque de significações para o público” que antes inexistia. Também
descobrimos “outros tipos de relação possível entre texto e ação, tais
como a complementaridade ou a contradição” e, assim, conseguimos
deixar evidente a pretendida relação metafórica entre a situação de
nômades exilados do povo hebreu em busca de sua terra prometida e a
dos jovens moradores da favela em busca de uma faixa de areia onde
pudessem pousar. 53

49 PUPO. Op. cit.


50 PUPO. Op. cit.
51 PUPO. Op. cit.
52 Ao retornarmos ao texto de Maria Lúcia, constatamos com satisfação que um

recurso semelhante a esse foi utilizado na abordagem de História do Rei Simbad e


do Açor, conto extraído das Mil e uma noites, em sua experiência no Marrocos.
53 PUPO Op. cit.

[ 108 ]
Em vista da posição central que este problema ocupa na relação
entre texto e jogo, sua resolução abriu perspectivas para a solução de
outros a ele conexos, como o do local da narração e o do olhar do
narrador. Segundo Pupo,

quando se expõe fisicamente diante do público, o


jogador-narrador se defronta com todas as questões da
atuação teatral; seu corpo passa a significar, tanto
quanto significam os corpos dos jogadores-
personagens. As variações de seu olhar, sua
movimentação, a qualidade da concentração, a
diversidade da emissão vocal, não podem deixar de
ser lidos pela plateia. 54

Os textos narrativos não elidiram os diálogos intersubjetivos.


Apenas eram inseridos em momentos precisos, quando pretendíamos
estabelecer, com toda clareza possível, aquela relação metafórica a que já
nos referimos. Entendemos que, para a consecução desse objetivo, não
nos restava outra saída a não ser realçar a instância narrativa, ou seja,
fazer “emergir a relevância do próprio ato narrativo”. 55 Optamos, então,
por um movimento pendular de aproximação e distanciamento do
narrador em relação à área do jogo, dela destacando-se nos momentos de
captar as fotos e narrar para o público as legendas que as
acompanhariam e reinserindo-se em seguida. Os momentos de
afastamento da área do jogo eram aqueles em que o narrador assumia
plenamente sua função precípua e seu compromisso era claramente com
a plateia a quem dirigia seu relato. Ocorria, como diz Pupo, uma dessas
situações

em que o narrador privilegia a relação com o público;


seu olhar é tanto emissor quanto receptor nessa
comunicação. O jogo, por assim dizer, parece
prescindir de sua atuação. 56

Enveredamos, dessa forma, por uma teatralidade que nos


desobrigava de esconder que os acontecimentos eram dados a conhecer
através do narrador, cuja função de gerador da ficção, instaurador,

54 Op. cit.
55 PUPO Op. cit.
56 Op. cit.

[ 109 ]
estruturador e condutor dos acontecimentos era visível para o público,
mas não para as demais personas.
O olhar do narrador tinha sempre o público como ponto de
partida e de chegada, e entre esses se alternava ora para o infinito ora
para a área do jogo. No primeiro momento em que dirigia seu olhar para
o público o narrador fazia-o como que buscando sua cumplicidade para
a elaboração das legendas que acompanhariam as fotos. No segundo
momento, fazia-o como quem festeja com ele o achado dessas legendas.
O olhar para o infinito indicava a elaboração das legendas. As ocasiões
em que o olhar do narrador era dirigido à área do jogo, “englobando
jogadores, espaços, objetos, de modo a realçar o vínculo entre sua
atuação e a situação narrada”, denotava a apreciação do narrador-
fotógrafo sobre sua obra, abrindo passagem para o comentário e a
crítica. 57
A emissão vocal contribuía de modo peculiar para esse jogo de
aproximação e afastamento da área do jogo. Nos momentos em que o
narrador se afastava da área para se dirigir ao público, sua voz assumia
um tom sussurrado como que tramando com este, segredando-lhe e
transmitindo-lhe em primeira mão, antes do conhecimento dos outros
jogadores, as legendas que seriam apostas nas fotos. Nos momentos em
que voltava a dirigir a voz aos demais jogadores e se reinseria na área do
jogo a voz do narrador adquiria um tom artificialmente coloquial, como
que tentando disfarçar o que antes havia sido tramado.
Procedi, nessa montagem, como já disse, ao levantamento dos
signos oriundos da cultura de origem dos jovens por acreditar já não ser
mais suficiente para a compreensão do teatro contemporâneo o modelo
da intertextualidade, oriundo do estruturalismo e da semiologia, visto
que, como diz Patrice Pavis,

não é mais suficiente (...) descrever as relações dos


textos (ou mesmo dos espetáculos), compreender seu
funcionamento; é necessário também e sobretudo,
compreender sua inscrição nos diversos contextos e
culturas e, apreciar a produção cultural que resulta
desse transporte inaudito. 58

Espero ter demonstrado também, como diz Eugênio Barba, que

57 PUPO. Op. cit.


58 PAVIS, Patrice. O teatro no cruzamento de culturas. São Paulo, Perspectiva, 2008.
[ 110 ]
entre as diferentes formas de etnocentrismo teatral que
velam nossos olhos, existe uma que não concerne a
áreas geográficas e culturais, mas que depende da
relação cênica. É o etnocentrismo que observa o teatro
do ponto de vista do espectador, isto é, do resultado.
Omite-se assim o ponto de vista complementar: o
processo criativo de cada ator e do conjunto do qual
toma parte, com toda a rede relações, conhecimentos,
maneiras de pensar e adaptar-se do qual o espetáculo é
o fruto. 59

De resto, pretendi descrever um teatro que não seja apenas uma


expressão estética, mas também cultural, no sentido de refletir as
experiências compartilhadas dos sujeitos que o realizam e atribuir-lhes
significado; um teatro cuja estética emana das relações sociais de quem a
vê como coisa "ordinária", com diz Raymond Williams, e não coisa
"sublime"; de quem a vê como forma particular de energia humana (mais
uma vez William); de quem a tem dentro ou subjacente a todas as suas
demais práticas sociais (William de novo). 60

Referências Bibliográficas

BARBA, Eugenio. A canoa de papel: tratado de antropologia teatral. São


Paulo, Hucitec, 1994.
BROOK, Peter. O ponto de mudança: quarenta anos de experiências teatrais.
Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1994.
COSTA, Iná Camargo. Sinta o drama. Petrópolis/RJ, Vozes, 1998.
LEHMAN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. São Paulo, Cosac & Naify,
2007.
PAVIS, Patrice. O teatro no cruzamento de culturas. São Paulo, Perspectiva,
2008.
PUPO, Maria Lúcia de Souza Barros in RYNGAERT, Jean-Pierre. Jogar,
representar: práticas dramáticas e formação. São Paulo, Cosac Naify, 2009.
QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder e classificação social. In:
SANTOS, Boaventura de Sousa e MENESES, Maria de Paula.
Epistemologias do Sul. São Paulo, Cortez, 2010.

59 BARBA, Eugenio. A canoa de papel: tratado de antropologia teatral. São Paulo,

Hucitec, 1994.
60 WILLIAMS, Raymond. Cultura e sociedade: de Coleridge a Orwell. Petrópolis/RJ,

Vozes, 2011.
[ 111 ]
SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências. Porto,
Edições Afrontamento, 2001.
SARMENTO, Manuel Jacinto. Quotidianos densos – A pesquisa
sociológica dos contextos de acção educativa. In: Método, métodos,
contramétodo. Regina Leite Garcia (org). São Paulo, Cortez, 2003.

SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno [1880-1950]. São Paulo, Cosac &
Naify, 2001.
WILLIAMS, Raymond. Cultura e sociedade: de Coleridge a Orwell.
Petrópolis/RJ, Vozes, 2011.

[ 112 ]
JOVENS NEGROS E NEGRAS NA
LITERATURA BRASILEIRA SOBRE A
POBREZA
Victor Hugo A. Pereira 61
Marisa S. Mello 62

Em 2013, o Brasil foi o país homenageado da Feira do livro de


Frankfurt, evento ligado ao mercado livreiro internacional e o discurso
do escritor Luiz Ruffato 63 durante a cerimônia de abertura teve grande
repercussão e chamou a atenção por uma leitura crítica da formação
social brasileira. A história do Brasil, segundo o escritor, se caracteriza
pela “negação explícita do outro, por meio da violência e da indiferença”,
e, como sintoma disso, podemos destacar o lugar ocupado por negros e
negras na sociedade. O Brasil se autoproclama um país de igualdade
racial, que se construiu com base na miscigenação. No entanto, nossa
população é mestiça sim, mas a mistura é consequência, em sua maior
parte, do estupro das nativas indígenas e negras pelos colonizadores
brancos.
A escravidão é destacada pelo autor como a instituição nefasta
que trouxe à força para o Brasil, aprisionados, em torno de 5 milhões de
africanos negros, do século XVI até o fim do século XIX. Quando
tardiamente foi abolida, não houve um verdadeiro esforço para
possibilitar aos ex- integração ao país em condições dignas; por isso, até
hoje, a maioria dos afrodescendentes permanece na base da pirâmide
social. Acrescentemos a estes dados, o fato de que a criminalização da
pobreza somente cresceu ao longo dos séculos XX e XXI. Por isso, lembra
Ruffato que “não é coincidência que a população carcerária brasileira,

61 Victor H. A. Pereira – Professor-Associado de Teoria da Literatura UERJ;


bolsista-pesquisador do CNPQ e do Programa PROCIÊNCIA/FAPERJ-UERJ.
Pesquisa atualmente os impactos da modernização excludente na literatura e na
cultura do país. Tem livros e trabalhos publicados sobre teatro e literatura.
62 Marisa S. Mello é doutora em história pela Universidade Federal Fluminense.

Pesquisa, principalmente, os seguintes temas: história, literatura, cultura,


intelectuais, leitura e Modernismo. Trabalha na gestão de projetos culturais;
produção na área de artes visuais; e publicações, como livros e catálogos.
63 http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,leia-a-integra-do-discurso-
de-luiz-ruffato-na-abertura-da-feira-do-livro-de-frankfurt,1083463,0.htm.
Consultado em 20/10/2013.
[ 113 ]
cerca de 550 mil pessoas, seja formada primordialmente por jovens entre
18 e 34 anos, pobres, negros e com baixa instrução” (RUFFATO, 2013 -
online).
Outro dado destacado por Ruffato, no panorama da realidade
brasileira atual, é que “a taxa de homicídios no Brasil chega a 20
assassinatos por grupo de 100 mil habitantes, o que equivale a 37 mil
pessoas mortas por ano, número três vezes maior que a média mundial.”
E quem são estes habitantes assassinados? “São pobres, negros,
moradores de favelas e bairros da periferia, em sua maioria.”
Embora a presença dessa parte da população na literatura
brasileira não corresponda nem de longe à sua importância e ao
contingente numérico na composição demográfica do país, algumas
obras que alcançaram sucesso ou visibilidade na cena cultural ao longo
do século XX destacaram como protagonistas jovens negros/as e pobres.
Nesse trabalho, serão examinadas as perspectivas que nortearam a
abordagem dos problemas desses jovens em algumas obras de ficção que
participam de uma discussão que vem se desenrolando no país sobre o
lugar atribuído a essa parcela subalternizada da população nos projetos
de modernização do país. Fazer do/a negro/a e pobre protagonista
implica colocar perguntas sobre a mobilidade social na sociedade
brasileira, e os limites que coloca à inserção dos jovens das classes
populares, agravados pela questão racial. A via que escolhemos para
refletir sobre o assunto foi discutir comparativamente o modo com que
esses personagens surgiram na cena literária brasileira nos anos 1930 e
como são apresentados na atualidade em obras de ficção.
Para não “naturalizarmos” o interesse prioritário concedido aos
impactos da desigualdade social sobre a população masculina,
considerando seu papel na produção econômica, chamamos a atenção
para a contribuição trazida para a discussão deste problema pelo enfoque
de escritoras mulheres. Recordemos a repercussão obtida, em grande
parte pela originalidade e crueza de sua abordagem dos efeitos da
modernização no país, pela obra Quarto de Despejo: diário de uma favelada,
escrita por Carolina Maria de Jesus, publicada em 1960, em plena euforia
com o “país do futuro”. Esta obra impactante juntava relatos do
cotidiano de uma mulher negra adulta, mãe de família e de seus conflitos
numa favela de São Paulo. Também vale recordar que os dois
importantes romances de Conceição Evaristo, escritora brasileira
destacada na atualidade, Ponciá Vicêncio(2003) e Becos da Memória(2006),
testemunham sobrea permanência de muitos dos problemas abordados

[ 114 ]
por Carolina Maria, que afetam particularmente, ainda no século XXI, as
mulheres negras e pobres do país.

O negro, jovem e pobre na literatura de 1930

Em 1935, duas obras literárias representaram uma ruptura no


modo com que se tratavam negros e pobres em nossas letras, ao focalizar
protagonistas jovens das classes populares. Os romances Jubiabá, de
Jorge Amado, e O Moleque Ricardo, de José Lins do Rego, ambos
publicados no mesmo ano, chamam a atenção por várias coincidências
em sua estrutura, além da condição dos protagonistas. Ambos
exploraram no enredo as tentativas de inserção desses jovens na cidade,
em centros urbanos que refletiam os efeitos e os conflitos do projeto de
modernização hegemônico no Brasil: autoritário e excludente. A
trajetória de vida dos personagens coloca-os diante de condições de
trabalho duras, que denunciam a exploração exercida sobre a mão de
obra não qualificada.
Em O Moleque Ricardo, o interesse central da trama é a tentativa de
se integrar à cidade do Recife, de um jovem trabalhador rural que foge
da tutela do coronel José Paulino, proprietário do engenho Santa Rosa,
na região da várzea da Paraíba. A narrativa em 3ª pessoa não esconde a
identificação do narrador com o personagem protagonista e a
ingenuidade deste é um recurso que transforma o romance numa tela de
registro de uma gama complexa de contradições do meio urbano. O
interesse do texto é estabelecer a perspectiva conflitiva entre as condições
de vida no meio rural e urbano, incluindo as modalidades de exercício
do poder e o modo com que se articulam as forças políticas em jogo na
cidade e no campo.
Ricardo inicialmente se emprega como uma espécie de “faz tudo”
na casa do maquinista do trem que o havia convidado para ir morar na
cidade. Nesse trabalho doméstico mantém-se relativamente isolado dos
perigos e dos conflitos que pulsam no espaço público da cidade grande.
Posteriormente, consegue trabalho na padaria de Seu Alexandre,
português que emprega um conjunto de assalariados encarregados de
funções como masseiro ou forneiro. Esses trabalhadores colocarão
Ricardo a par dos conflitos políticos e sindicais, das diferentes correntes
que ali atuam, e das relações destes com o movimento estudantil, na
Faculdade de Direito de Recife.
O deslocamento de Ricardo do campo para a cidade irá situá-lo
como um ponto de observação crítica do contraste entre as tradições na

[ 115 ]
organização da produção econômica no campo, onde se revelam mais de
perto os legados da escravidão, e o trabalho assalariado no meio urbano.
A ingenuidade de Ricardo e seu olhar “estranhado” 64 propiciarão uma
perspectiva capaz de desnaturalizar as relações sociais e humanas
marcadas por essa diferença na organização da produção. Um eixo para
as observações e comentários do narrador, colado ao protagonista, será o
contraste recorrente que se opera na consciência de Ricardo entre o
tratamento concedido aos empregados da padaria por Seu Alexandre, e
aquelas que caracterizavam as relações do coronel José Paulino com os
agregados de sua fazenda. Nesse sentido, o narrador registra, através de
uma identificação com o protagonista, que, embora Ricardo receba, na
padaria, um pagamento maior até do que suas expectativas e
necessidades de sobrevivência, não tem nenhuma simpatia pelo patrão.
Na verdade, tem saudade do Coronel José Paulino. E também
reiteradamente afirma que a pobreza no latifúndio é mais feliz do que na
cidade: pelos meios de subsistência ao alcance dos trabalhadores rurais e
pelo tipo de exercício do poder pelo coronel. O trecho abaixo é ilustrativo
desta nostalgia e incorporação pelo personagem da perspectiva patriarcal
e coronelista:

Ricardo ficou com o pensamento na casa de Florêncio.


Os meninos eram amarelos como os do engenho, mas
eram mais infelizes ainda. Lá eles tinham o rio e a
capoeira para entreter os vermes e o impaludismo. Os
filhos de Florêncio faziam concorrência com os urubus,
cascavilhando no lixo. (...) Aquele curtume piorara
tudo. Não sabia por que o governo deixava aquilo.
Pobre não tinha direito de reclamar. (...) Ricardo achou
então que havia gente mais pobre do que os pobres do
Santa Rosa. Mãe Avelina vivia de barriga cheia na
casa-grande. Se ela viesse para ali e caísse naquela
vida? Se os seus irmãos saíssem para o lixo, ciscando
com os urubus? Florêncio ganhava quatro mil-réis por
noite. O que eram quatro mil-réis em Recife? Uma
miséria. Por isso o outro falava em greve, com aquela
força, aquela vontade de vencer (REGO, 2006:503-504).

Além das questões relacionadas ao mundo do trabalho, outro


campo de experiência deste jovem que tenta se integrar ao meio urbano é
o das relações sexuais e afetivas. O romance apresenta várias situações

64 Cf. conceito de “estranhamento” – CHKLOVSKI, 1970.


[ 116 ]
com parceiras diferentes que caracterizam as atitudes, sensações e
inquietações do protagonista, diante de experiências quase modelares,
como o amor platônico, a relação extremamente erotizada, o noivado e o
casamento em que o sexo passa a ser uma obrigação e, depois, um
tormento. Essas experiências serão rememoradas e avaliadas no
romance seguinte de José Lins, Usina (1936), em que se relata a passagem
de Ricardo pela colônia prisional de Fernando de Noronha. Lá, ele
encontrará a harmonização entre o prazer e a realização afetiva na
relação homoerótica com outro presidiário, o Seu Manuel (REGO: 2006,
p. 688).
Apesar do interesse que toma no enredo o filão desenvolvido
pelas relações amorosas do protagonista – por exemplo, o namoro com
Odete; o noivado ameaçado pela atração sexual por outra mulher; o
casamento seguido da doença e morte da esposa - o núcleo de
desenvolvimento da trama romanesca será constituído pelas tensões
sociais que afetam diretamente os padeiros que trabalham para Seu
Alexandre: sua participação nos confrontos com a polícia, o ferimento do
padeiro Florêncio num destes, o descaso com que é tratado pelos
dirigentes sindicais, as reações dos colegas ao comportamento das
lideranças do movimento político e sindical. Esses acontecimentos têm
como clímax a prisão dos trabalhadores da padaria e, entre eles, Ricardo,
encerrando-se o romance com o envio de todos num navio para a ilha-
prisão de Fernando de Noronha.
Servem também esses acontecimentos de pretexto para analisar as
relações sociais, o ideário e as práticas políticas que se destacavam no
momento que precedeu a Revolução de 30 – pode-se deduzir que o pano
de fundo da ação é um dos movimentos de insatisfação com a política do
governo federal em relação a certas províncias nos anos 1920. Além
dessas considerações e avaliações, o ponto de vista do trabalhador
deslocado para a cidade focaliza um painel das forças envolvidas nas
lutas políticas (e dos reflexos da luta de classes) que se revelam com
maior intensidade e concentração na cidade em crescimento que na zona
rural. A perspectiva adotada na narrativa se realiza através do discurso
citado – os debates ou o fluxo de consciência de Ricardo especialmente.
Esse recurso permite colocar em cena os diferentes posicionamentos e
opiniões dos trabalhadores proletarizados sobre as forças políticas em
luta no Recife diante de propostas separatistas do Estado de Pernambuco
– e, indo um pouco além, os conflitos ideológicos no meio político. Um
dos pretextos encontrados pelo escritor para explorar esse viés no
romance são as visitas de Ricardo ao sindicato dos padeiros e as
[ 117 ]
conversas com os colegas de padariaque representam um painel de
posições; sendo as duas mais polarizadas e expressivas: a do trabalhador
religioso que se recusa a aderir à luta sindical; e a daqueles empolgados
por estas, em especial o masseiro Florêncio.
Um interesse a mais em ler e estudar O Moleque Ricardo reside na
peculiaridade do mesmo ter como protagonista um “cabra do eito”. É um
caso singular no chamado “ciclo da cana de açúcar” da obra de José Lins
do Rego, em que quase sempre os protagonistas são representantes da
oligarquia rural, membros da família do escritor. O jogo intertextual
destes romances pode ser observado, por exemplo, pela presença de
Ricardo em outros livros deste ciclo – além de outros personagens do
romance, como o jovem Juca, que também é focalizado em outras obras.
Outro elemento a ser destacado no romance é a inegável simetria
com Jubiabá, de Jorge Amado, publicado no mesmo ano que ele. O
protagonista desta obra, Antonio Balduíno, é um dos primeiros negros
de perfil épico no romance brasileiro, construído como síntese das
qualidades e, ao mesmo tempo, contradições vividas por nosso povo. As
duas principais vozes do romance Jubiabá são o negro Balduíno – que vai
de mendigo a músico, de capoeirista a boxeador, de trabalhar nas
plantações de fumo a agitador político do sindicato - e o pai de santo
Jubiabá. Balduíno é o herói e Jubiabá a referência de sabedoria. Balduíno
mostra-se indignado com a pobreza e condições de trabalho de sua
gente, que vive no morro do Capa-Negro, em Salvador. Sua revolta no
início expressa-se na luta de boxe, onde vence um alemão. Em suas
andanças, precisa mostrar que é “gente”, que pensa e sente. Toda a
narrativa traz as questões relativas à pobreza e à etnia. Balduíno ouve o
relato de um pescador sobre a pobreza de sua vida e de sua família,
quando em suas andanças, que o faz afirmar: “- Pode ser heresia, minha
gente... Mas a vontade que esse negro que está aqui tem é matar os
brancos todos... matava e não tinha pena” (AMADO, 2008, p. 154).
Refletindo sobre a aceitação da ausência do poder público, das
desigualdades, da fome, vai justificar a apatia dos pobres: “Não se
revoltavam porque desde há muitos anos vinha sendo assim” (AMADO,
2008, p. 34). Os filhos dos ricos viraram engenheiros e médicos, e entre os
pobres, os homens trabalhavam para o cacau e fábricas; as mulheres
vendiam quitutes, lavavam roupa e trabalhavam de domésticas nas casas
ricas; e as crianças eram engraxates, vendiam jornais e levavam recados.
Mesmo assim, no morro, eram contadas a Antonio Balduíno histórias
daqueles que se revoltavam e a partir delas decidiu ser livre.
O morro do Capa-negro era assim chamado por ser uma fazenda
[ 118 ]
no período da escravidão onde o “sinhô dela” mandava capar os negros
que não tivessem filhos. Segue-se o comentário:

- Negro que ele capou era avô, bisavô de nós...Ele


procura nós pensando que ainda somos escravo dele.
- Mas negro não é mais escravo...
- Negro ainda é escravo e branco também – atalhou
um homem magro que trabalhava no cais - todo pobre
é ainda escravo. Escravidão ainda não acabou...
Os negros, os mulatos, os brancos baixaram a cabeça.
Só Antonio Balduíno ficou com a cabeça erguida. Ele
não ia ser escravo (AMADO, 2008, p. 42).

Depois que sua tia enlouquece, vai morar na casa de um


Comendador. Durante este período, Balduíno é perseguido por Amélia,
cozinheira da família. Quando Balduíno vai à escola, e é expulso por
liderar molecagens, a mulher declara: “Negro é uma raça que só serve
para escravo. Negro não nasceu para saber” (AMADO, 2008: 55). A
partir de então, a cozinheira elabora um plano de vingança, com ciúme
da atenção que os patrões concediam ao adolescente negro. A acusação
de que ele estava tentando desrespeitar Lindinalva, a filha do
Comendador, fará com que Balduíno leve uma surra e decida fugir para
viver nas ruas de Salvador. A imagem idealizada da menina
acompanhará o adolescente: “E daí por diante, dormisse com que mulher
dormisse, era com Lindinalva que o negro Antonio Balduíno estava
dormindo” (AMADO, 2008, p. 60).
Balduíno, juntamente com outros meninos, negros e brancos,
formam um grupo e neste momento faz amizades duradouras. Está em
busca de seu caminho, depois de largar as ruas e tentar ser boxeador,
tenta trabalhar no campo, na colheita de cacau.
No final do romance, depois de muitas andanças, Balduíno
conclui que os grandes inimigos dos negros não são os brancos, mas os
ricos. Trabalhadores brancos e negros compartilhavam a mesma miséria:
“Negro e branco pobre é tudo escravo, mas tem tudo na mão” (p. 290) e
“A gente é negro, eles são brancos, mas nesta hora tudo é pobre com
fome”(p. 282). É a partir da greve que Balduíno relativiza o papel de
Jubiabá, até então sua principal referência intelectual e religiosa. A
participação políticadá sentido a sua existência, inserindo-o em uma
coletividade, como o narrador deixa claro no trecho abaixo citado:

A greve fora novamente para o negro Antônio


Balduíno uma verdadeira revelação. A princípio, ele a

[ 119 ]
amara como luta, como barulho e briga, coisas que
gostava desde criança. (...) [mas] era qualquer coisa
mais que barulho, que briga. Era uma luta dirigida
para um fim, sabendo o que queria, uma luta bonita.
Ali na greve todos se amavam, se defendiam e
lutavam contra a escravidão (AMADO, 2008, p. 320).

Quanto às mulheres, Lindinalva, a moça idealizada por Baldo,


torna-se noiva de um advogado e acaba engravidando, o que a faz ser
abandonada. Seu sedutor casa-se com a filha de um deputado: “mandara
cem mil-réis para a criança e um pedido angustiado de silêncio”. É o que
acontece com as mulheres que fazem sexo antes do casamento,
principalmente nas camadas médias e nas classes altas. A estas resta a
prostituição como forma de sustento e a morte, como destino. Quando de
sua morte, deixa para Baldo a responsabilidade de cuidar de seu filho.
Esta criança e o engajamento político sintetizam a tarefa de Balduíno de
lutar para mudar o mundo.
Além do fato de que em Jubiabá como em O Moleque Ricardo, os
protagonistas são jovens negros, procurando se adaptar à cidade, outras
coincidências aproximam esses romances, conforme apontou Eneida Leal
Cunha (2000, p. 141). Entre elas, a influência e a autoridade sobre os
jovens protagonistas do pai de santo, que os coloca diante da opção de se
render à autoridade religiosa ou aderir à luta política. No entanto, se há
diálogo entre O Moleque Ricardo e a obra de Jorge Amado, ocorre uma
inversão especular: o negro Antonio Balduíno vê em Jubiabá uma espécie
de pai generoso, cuja autoridade ele supera ao definir sua adesão ao
Partido Comunista e à luta política; e Ricardo oscila em sua avaliação
sobre Seu Lucas, considerando-o de início um feiticeiro, com capacidade
de exercer uma influência maligna sobre ele; e, ao final da narrativa,
chega à conclusão de que era um amigo e protetor – o contrário das
lideranças políticas que o levaram à prisão. A cena que encerra ambos os
romances estabelece curioso contraste: em Jubiabá, o estivador Antonio
Balduíno, depois de um percurso de aperfeiçoamento, como observa
Eduardo de Assis Duarte (DUARTE, 1996, p. 85) descobre seu caminho
na existência e proclama haver descoberto a liberdade através da
participação em uma greve vitoriosa. Encerra o romance acenando para o
marinheiro Hans, um estrangeiro, consciente de que a luta dos
proletários não tem fronteiras e um dia poderá participar de outras
etapas desta em qualquer lugar do mundo. Exatamente o oposto se passa
com Ricardo, que jogado em um navio, parte para Fernando de Noronha,

[ 120 ]
para as limitações espaciais e simbólicas implicadas na prisão e acena
para o pai de santo no cais, despedindo-se da liberdade.
Não há neste romance a construção de um destino, numa
modalidade de “romance de formação proletário” - como Eduardo de
Assis caracterizou Jubiabá (DUARTE, 1996, p. 75) - em que podemos
identificar a compreensão e harmonização do protagonista com o meio
social, e até mesmo com uma perspectiva mais ampla, histórica e
cósmica. Há, ao contrário, em O Moleque Ricardo, a confirmação do
impasse e do desespero que caracterizaram a trajetória do protagonista,
quando o pai de santo, que representava a possibilidade de um sentido
para a vida, de uma fonte de explicações de todas as ordens,sem
explicações para a injustiça que acabara de testemunhar contra os
trabalhadores negros e pobres que se rebelaram contra o poder,
abandona a postura habitual de celebrante de um culto religioso.A
reação do pai de santo é de revolta e incompreensãodos motivos para
tanta injustiça, falando para seus fiéis sobre os “pobres que no mar se
perdiam” (672), num gesto desesperado:

O sacerdote quebrando o ritual para deixar escapar a


sua dor. Seu Lucas não era mais um Deus naquela
hora. Como um homem qualquer ele falava pelos
pobres que no mar se perdiam. O canto dele varava a
noite, varava o mundo:
- Que fizeram eles que vão pra Fernando de Noronha?
Ninguém sabe não!
(REGO, 2006, p.672).

O romance se encerra com essa pergunta que, mais uma vez,


estabelece uma simetria com o tom afirmativo do romance de Jorge
Amado, em queAntônio Balduíno, depois de visitar o pai de santo
Jubiabá para anunciar o encontro de um sentido para sua vida na luta
política, anda pelas ruas e pelo cais de Salvador, festejando a consciência
da liberdade e sua capacidade de transformar a realidade: em harmonia
com outros homens que no mundo todo compartilhavam esse mesmo
projeto.

Pobreza e negritude no romance contemporâneo: Graduado em


marginalidade

Trilhando caminhos e soluções semelhantes aos dois romances


citados, surge em 2009 o romance Graduado em Marginalidade do escritor
[ 121 ]
paulista Sacolinha. O romance, como os outros dois, explora a trajetória
de um jovem subalternizado em busca da afirmação social e, sobretudo
nesse caso, de superar o desequilíbrio provocado pelo assassinato de seu
pai. Há, portanto, a trajetória de uma estabilidade familiar quebrada
desde as primeiras páginas da narrativa, situação caracterizada pelo
modo com que o protagonista Burdão recebe o anúncio da morte do pai:

Burdão parou de chorar, não por resistência, mas por


ódio; ele não entende a força que o ser humano tem
para fazer o mal. Não está entendendo por que o fato
ocorrido foi com seu pai, aliás, grande pai,
caminhoneiro, trabalhador, homem dedicado ao maior
patrimônio do mundo que era a sua família; família
que ele respeitava e cultivou com todo o amor reinante
dentro daquele ser (SACOLINHA, 2009, p. 14).

Essa alusão ao mal que toma os seres humanos para tentar


explicar o assassinato de seu pai prenuncia o modo com que o policial
Lúcio, antagonista de Burdão no romance, será caracterizado durante
toda a narrativa: evidenciando sempre suas práticas condenadas
moralmente pelo narrador. O jovem Burdão acaba ficando na mira do
policial, pois não aceita trabalhar como traficante na quadrilha liderada
por este. Um dos motivos de Lucio para a perseguição movida contra o
jovem é o fato de se diferenciar de seus colegas, que vão sendo atraídos
pela expansão da oferta de drogas promovida pelo policial, ao assumir o
controle das vendas no local. Ainda no início do romance, narra-se o
modo com que Lucio eliminou Escobar, um “bom” traficante, amigo da
comunidade, que controlava a venda de drogas no local, e estabeleceu
um esquema maldoso e violento. Outro traço que se tornara incômodo
para o chefe do tráfico, conforme relata um dos policiais encarregados
por ele de tirar Burdão de circulação na favela, enviando-o para a prisão,
é seu apego aos livros. A fala do policial cumpliciado com Lucio deixa
claro o incômodo dessa percepção:

- Aí depois que a preocupação do carregamento


passou, Lúcio começou a se incomodar com esse
rapaz. Ele não veio no dia marcado, e entre todos lá da
Vila foi um dos poucos que não se viciou. Aí o Lúcio
ficou sabendo disso, e que esse maluco vivia pra cima
e pra baixo com uns livros na mão. Aí o patrão
desconfiou e mandou amarrar a peça
(SACOLINHA,2009, p. 82).
[ 122 ]
Poucas páginas antes, o narrador registrava a paixão do jovem
protagonista pela leitura, utilizando-a como consolo diante das agruras
que se impuseram a sua vida depois da morte do pai – a doença da mãe,
as dificuldades econômicas:

O estoque de livros que tem em casa já leu tudo, e,


como não sobra dinheiro, deixou de ir aos sebos. Fica
perturbado sem livro pra ler. A escola que fica a uns
vinte minutos da Vila Clementina, a mesma que
estudou desde a infância, proíbe os alunos que não
estudam mais de pegarem livros emprestados
(SACOLINHA, 2009, p. 80).

Na prisão, um colega, assaltante e a namorada Rebeca entregam-


lhe livros que, segundo se conclui, fornecem subsídios para as futuras
táticas utilizadas quando Burdão acaba sendo levado a participar
efetivamente do mundo do crime, praticando assalto e tomando o ponto
de vendas de drogas do traficante policial. Assim, comenta o narrador:

Um assaltante recém-chegado na cadeia trouxe


consigo alguns livros, Burdão foi o primeiro preso dali
a fazer amizade com ele. Benon é o seu nome. Entre os
livros que trouxe em sua bagagem estavam a história e
vida de diversos guerrilheiros. Já havia lido todos os
que Rebeca lhe trouxe. Ficou fascinado com as atitudes
dos personagens que continham as biografias. Agora
queimava os olhos na leitura da revolução cubana
(SACOLINHA, 2009, p. 136).

Esta situação narrada no romance remete a conjeturas sobre a


influência do contato entre presos comuns e presos políticos na
formação, no Brasil, de quadrilhas ou facções criminosas com estrutura e
planejamentos de ação mais complexos. Os presos comuns teriam
adquirido conhecimentos sobre táticas de guerrilha urbana dos presos
políticos com quem conviveram nas prisões durante o regime militar.De
modo análogo, no romance de Sacolinha, as leituras sobre lideranças
libertárias ou movimentos políticos não influenciam o protagonista a
procurar esse tipo de opção para reagir contra as injustiças de que vinha
sendo vítima. O desenvolvimento do enredo permite concluirmos que
essas leituras proporcionavam uma formação para planejar a atuação na
criminalidade, admirada e respeitada pelos companheiros de prisão que,
ao contrário dele, tinham a experiência prática:
[ 123 ]
Ninguém contestava, só se ouvia um “ham rã” vez ou
outra. O rosto dele refletia a sede de vingança, e todos
que o ouviam neste momento já haviam praticado
algum tipo de assalto, mas admiraram a estratégia
dele, até parecia um graduado em assalto a banco. Mas
isso tudo era a teoria, vamos ver na prática
(SACOLINHA, 2009, p. 147).

Corroborando essas considerações, o narrador comenta que


Burdão “até parecia um graduado em assalto a banco”. E retoma-se,
desse modo, o título do romance, sublinhando uma etapa atingida no
processo de formação desse jovem como criminoso.
Depois de conseguir fugir da prisão, Burdão retorna à favela em
que nasceu e tomao ponto de drogas dirigido por Lucio. Torna-se,
então,um bom traficante, à imagem do finado Escobar: respeitoso da
comunidade e dos valores familiares. Além disso, a narrativa fornece
elementos para comprovar seu respeito pelo que fica caracterizado como
uma cultura “de raiz” afro-brasileira. Reforçando seu respeito aos valores
familiares, atribui-se essa vinculação à cultura afroà influência de Jorjão,
seu pai: “Porém, Jorjão, quando ainda era uma pequena criatura no feto,
já usava a barriga da mãe como pandeiro, por isso o forte do seu filho é o
samba raiz e o partido alto, gosto herdado do pai”. O narrador relata, um
pouco adiante, como o jovem deu continuidade a essa herança:
“Começou a ler sobre a história do negro; chegou a ficar tão fascinado,
que acabou herdando sua raiz. // Entrou para o Candomblé e começou a
praticar capoeira. Nessa época estava com 16 anos”(SACOLINHA,2009,
p. 161).
Essa caracterização de um jovem, que se destacava da
comunidade por sua formação fiel a valores familiares e por
preocupações intelectuais, possibilita estabelecer um contraste com o
título do romance, já que este se refere à aquisição de uma graduação,
que foi alcançada na marginalidade... Justificando essa reversão de
expectativadiante da origem e do caráter de Burdão, atribui-se a
responsabilidade pela mudança de trajetória do protagonista à maldade
do policial Lucio. É o próprio protagonista quem registra a avaliação
sobre essa interferência em sua trajetória num dos últimos capítulos do
livro:

Chegou à conclusão que o culpado disso tudo é um


policial chamado Lúcio, que o jogou no porão da
sociedade sem nada dever. Foi por causa dele que foi
torturado, passou fome, brigou, foi humilhado, matou,
[ 124 ]
pegou em armas de fogo e se envolveu neste mundo
de onde agora é difícil de sair (SACOLINHA, 2009:
167).

Nesse sentido, o romance apresenta componentes éticos nas


atividades de Burdão como traficante. Por exemplo, não aceita estimular
o tráfico entre jovens favelados e, diante da possibilidade de prejuízo a
seus negócios com a droga pela extorsão de policiais, comenta o
narrador:

Mas nada disso impedia que faturasse mais do que


nunca. Muitos são os jovens que saem de Mogi das
Cruzes para comprar cocaína na área de Burdão. Nas
faculdades e escolas particulares da região, a conversa
que se ouve é que o pó mais puro dos últimos tempos
se encontra num bairro esquecido pelas autoridades;
no fundão de Brás Cubas (SACOLINHA, 2009, p. 175).

Quanto às personagens femininas no romance, alternam-se as


figuras maternais (o que incluí a namorada do protagonista, Rebeca) e
aquelas que são dominadas pelos homens na condição de prostitutas.
Neste caso, o romance focaliza a dificuldade ou impossibilidade da
mulher colocar limites aos caprichos masculinos e a crueldade com que
são tratadas pelos homens. O abuso de poder e o refinamento em
práticas eróticas que não levam em conta a vontade ou disposições da
mulher contam para a caracterização da maldade do personagem Lucio.
As passagens mais radicais nesse sentido alternam-se imediatamente
com cenas em que o personagem Burdão cuida de sua mãe com carinho e
abnegação. Esse contraste se dá de modo radical no capítulo 10, em que
a cena de notícia da morte da mãe do protagonista,terminadacom o
amparo e consolo da namorada, é imediatamente seguida de outra (p.
77), em que Lucio encontra-se com uma prostituta em uma boate e da
descrição de uma relação sexual misturada com ingestão de drogas e
práticas eróticas um tanto bizarras promovidas pelo policial. Cria-se,
portanto, o contraponto entre o respeito de Burdão às mulheres e à
ordem familiar e o abuso machista do policial corrupto Lucio – que, em
todas as suas ações, é conotado ao mal, fazendo jus à associação de seu
nome com Lúcifer. Acrescenta-se, para agravar esse contraste, o respeito
de Burdão à autoridade religiosa feminina, mãe Ditinha, depois da morte
do pai e diante da doença da mãe: “Iria pernoitar na casa de mãe Ditinha
à procura de AXÉ, força vitalizadora, energia que tudo movimenta”
[ 125 ]
(SACOLINHA, 2009: 63). Portanto nem sempre as mulheres são fracas ou
submetidas aos homens – a autoridade e a força também podem estar
associadas a algumas mulheres mediadoras do sagrado.

Reificação e fragmentação

A prosa de ficção que focaliza as classes populares, desde a


última década do século XX, veio revelando novos autores até à
atualidade, e retoma alguns pontos de interesse ou até mesmo a
indagação central dos romances dos anos 1930 sobre o destino dos jovens
confinados aos guetos da periferia urbana numa sociedade que se
moderniza. A pergunta que se coloca, de diferentes modos, é também
sobre as “saídas” para uma posição subalterna que se perenizou, numa
época histórica desencantada das lutas da macropolítica. Numa
perspectiva luckasiana, a impossibilidade de encontrar um sentido na
ação transformadora do mundo social repercute na fragmentação da
linguagem narrativa. 65 Repercute na restrição do horizonte dos
personagens ao espaço tangível imediatamente, ao tempo do cotidiano e,
muitas vezes, da afirmação como sujeito autônomo e capaz de agir no
mundo – uma afirmação alcançada pelos “ganhos” com cada golpe na
criminalidade. Em alguns casos, esse “ganho” refere-se à apropriação de
um bem de representantes das camadas opressoras da população; outras
vezes, em vitória sobre a polícia, sobre a ordem repressora voltada para
os mais pobres; e, na literatura produzida por jovens negros, muitas
vezes numa exibição da potência masculina no campo da sexualidade (e
do poder absoluto da vontade e dos caprichos individuais) sobre a
mulher, seja ela de que origem social for.
Nesse campo, estabelecem-se diferenças em relação aos dois
romances dos anos 1930 enfocados. Em Jubiabá, o protagonista encerra o
romance decidindo perfilhar a criança gerada pela mulher branca que ele
idealizara e, depois, fora traída e levada à prostituição por um
branco.Essa atitude talvez possa indicar uma questão mais ampla: a
submissão do negro aos brancos, mesmo em uma situação em que se
trata de uma mulher branca que chegou ao patamar mais baixo na escala
de valores burgueses: mãe solteira e prostituta. Como também pode
significar um gesto de desprendimento, numa atitude “dostoeivskiana”
de solidariedade com os “humilhados e ofendidos”, independente dos
conflitos étnicos e das diferenças de origem social e de gênero.

65 Cf. LUKÁCS, 1968.


[ 126 ]
Em O Moleque Ricardo, a relação erótica é sempre encarada como
um problema e a manipulação das mulheres sobre o protagonista o
colocam numa posição frágil. E, como observado anteriormente,
continuando a saga do protagonista Ricardo, José Lins do Rego focaliza
no romance seguinte, Usina, um caso de amor homoerótico, sem
competição, baseado na ternura e proteção de Seu Manuel, o enfermeiro
da Ilha de Fernando de Noronha, pelo prisioneiro.
Outro contraste entre a obra de Sacolinha e a de José Lins do Rego
focalizadas neste trabalho traz à tona questões levantadas por Luckács
quanto aos procedimentos narrativos. Embora haja constante migração
de espaços focalizados no romance O Moleque Ricardo e interposições da
memória do protagonista no percurso de desenvolvimento da trama
central, esses recursos colaboram para articular um todo harmonioso que
fornece compreensão sobre as forças sociais envolvidas nos conflitos
narrados e sobre a psicologia dos personagens. Cria-se um estofo
psicológico para as ações de Ricardo, relacionando passado e presente,
conferindo ao jovem negro e pobre um estatuto à altura dos grandes
personagens da tradição romanesca e colocando em causa a
caracterização desse livro num conjunto de produção definida como
‘naturalista’ por Flora Sussekind, no estudo Tal Brasil, Qual Romance?
(1984).Ao contrário, mesmo no que um crítico ferrenho do naturalismo
como Georg Luckács caracteriza com essa rubrica, não se pode
enquadrar exatamente o romance de José Lins. Este se encontra mais
próximo à tradição que este crítico caracteriza como “realista”, ao se
construir em torno de uma perspectiva humana que subordina todos os
acontecimentos a uma determinada angulação da experiência social e até
mesmo a percepção do espaço físico onde transcorre a ação. Como no
que Lukács caracteriza como o grande romance burguês (1968), a obra
enfoca a tentativa de compreensão, por um jovem provindo da zona
rural, das forças sociais e dos motivos humanos envolvidos nas práticas
políticas, sobre as suas possibilidades de eficácia destas naquele
momento histórico, naquele espaço geográfico.
Talvez mereça uma discussão mais aprofundada o fato de o
romance de José Lins não se caracterizar por uma fragmentação na
representação da realidade e outros procedimentos narrativos que
coloquem em xeque a capacidade de compreensão da totalidade do
mundo social, apesar de afirmar no seu encerramento a incompreensão
do pai de santo sobre as causas da repressão tão abrupta se abater sobre
os trabalhadores pobres e negros. Uma hipótese que parece viável é a de
que o romance salve como um patamar seguro de interpretação da
[ 127 ]
totalidade social, que garante um solo de segurança ao sujeito que
interpreta o mundo, a nostalgia pela ordem patriarcal. Esta aparece
sempre como contraponto ao meio urbano, marcado pelos conflitos e
desencontros existenciais, espaço em que se impôs a exploração
desapiedada do trabalho dos mais pobres. Portanto o compromisso da
perspectiva do narrador/escritor com a estabilidade da ordem patriarcal
garante um patamar seguro para a compreensão da degradação da
cidade sem que o discurso narrativo seja afetado radicalmente – como
acontece em outros textos literários que criticam os efeitos da
modernização no meio urbano - pela desagregação dos valores e da
compreensão da realidade nesse espaço.
Em textos mais recentes, em que se caracteriza a degradação nas
periferias urbanas do fim do século XX, observa-se um
comprometimento da perspectiva niilista dos escritores com a fatura dos
textos literários. Por exemplo, em duas obras que se tornaram
referências para a literatura contemporânea, Cidade de Deus (1997) de
Paulo Lins e Eles Eram Muitos Cavalos (2001) de Luiz Ruffato, a narrativa
em fragmentos corresponde à percepção de uma sociedade desagregada
em que os valores e esperanças se degradaram. Os impactos dessa
compreensão de sua época ou da sociedade em que se insere estão
presentes na prosa de ficção que se destacou na chamada literatura
marginal, como se pode constatar nos romances Capão Pecado (2000) e
Manual Prático do Ódio (2003) de Ferréz. Nesses romances ou nos contos
de autores da periferia ou que focalizam o cotidiano destas, a percepção
desencantada do mundo social, mesmo quando não interfere na
representação do espaço físico ou das sequências temporais, interfere na
construção dos personagens, no modo com que se relacionam com o
tempo e o ambiente. Contamina sua psicologia e seus valores a descrença
na possibilidade de compreensão e representação da totalidade social e,
principalmente, da capacidade de interferir nela. Caracteriza-os a
perspectiva de um mundo sem horizontes mais amplos do que o
imediato. A busca de “saída” dos personagens é restrita à procura da
porta de saída do gueto – e não de uma etapa histórica ou de uma
conjuntura mais ampla de exploração do trabalho humano. Até mesmo
porque a questão para muitos dos protagonistas é conseguir sair da
condição de lumpens e ingressar no mercado de trabalho.
Na produção literária contemporânea, o registro da ausência de
perspectiva sobre a política institucional - partidária, sindical e de
movimentos sociais organizados - como modo de transformação da
realidade entre as classes populares contrasta grandemente com os
[ 128 ]
romances dos anos 1930. Recordando que Jubiabá de Jorge Amado aponta
explicitamente a adesão ao sindicato como descoberta de uma saída
existencial para o personagem; e em O Moleque Ricardo se avalia, mesmo
que de modo pessimista, um painel de possibilidades de inserção em
uma das vertentes de atuação política. Sintomas dessa mudança, cujos
efeitos constatamos na atualidade, apresentam-se também na obra de
Jorge Amado a partir do fim dos anos 1950, e adquirem um viés que
merece comentário, porque parece comprometido com duas perspectivas
influentes na representação da nacionalidade brasileira. Para discutir
essa guinada na literatura de Jorge Amado, partimos de uma afirmativa
do escritor Luiz Ruffato, no discurso que proferiu na abertura da Feira
Literária de Frankfurt, citado no início deste trabalho. Em determinada
passagem desse discurso, o escritor situa a influência de dois modelos de
interpretação do país, dentro e fora dele: aquele que elabora uma atitude
crítica sobre a formação social brasileira; e o que mantém uma
perspectiva ufanista e folclórica sobre as singularidades do país. Afirma
ele:

Ora o Brasil surge como uma região exótica, de praias


paradisíacas, florestas edênicas, carnaval, capoeira e
futebol; ora como um lugar execrável, de violência
urbana, exploração da prostituição infantil, desrespeito
aos com mão de obra barata, por falta de competência
para gerir a própria riqueza (RUFFATO, 2013 -online).

A obra de Jorge Amado, em seu conjunto, caminha entre ambas


as perspectivas. Depois de uma safra de romances engajados, que
ensejaram até mesmo uma cerimônia de queima pública de seus
romances durante o Estado Novo, o romance Gabriela, Cravo e Canela
(1958) marca uma reviravolta na interpretação da sociedade brasileira.
Esta transformação na literatura do autor é provocada, principalmente,
pela mudança em seu posicionamento político, com o afastamento do
Partido Comunista. Mas também se associa a uma transformação no foco
das discussões sobre o país numa camada expressiva e influente de
críticos e intelectuais do país. A obra amadiana vai revelando um
deslocamento no modo com que aborda o negro e o pobre, enfatizando
cada vez mais a singularidade da cultura que se concentra nos extratos
populares da população, diminuindo a ênfase sobre a questão da luta de
classes.
A adoção desse ângulo de abordagem sobre a realidade do país
por Jorge Amado associa-se às perspectivas ideológicas influentes em
[ 129 ]
uma camada numerosa da classe média brasileira, nos anos que
precederam o golpe militar. Ganhara prestígio, nesse setor da população
que constituíao maior contingente de leitores de Jorge Amado no Brasil,
a pregação otimista sobre o futuro do país graças às suas peculiaridades
culturais e à democracia racial, promovida pela miscigenação e a
cordialidade.
O romance de Jorge Amado passa a explorar mais a
sensorialidade e as singularidades da cultura no Brasil (inclusive, de um
modo condescendente que contrasta enormemente com suas primeiras
obras, os traços particulares do coronelismo e patriarcalismo), ainda que
em Tenda dos Milagres (1969) coloque a questão racial como outra
plataforma de luta. Talvez, não por acaso, este livro tenha sido publicado
no conturbado momento em que em outros campos de produção, como o
teatro e o cinema, o posicionamento quanto aos impasses da luta
partidária e a opção pela luta armada passavam a ter destaque como
tema de obras culturais e a interferir na estética de espetáculos e de
filmes.
Escritores identificados como “vozes periféricas” na literatura
brasileira atual, como Ferréz ou Conceição Evaristo, apresentam os
conflitos e as situações de opressão nos espaços de exclusão das
metrópoles. Nesse sentido, fazem denúncias de modo análogo aos de
José Lins do Rego e Jorge Amado, ao focalizar a miséria nos bairros
pobres de Recife e Salvador. No entanto, esse tipo de denúncia, na
atualidade, não costuma se articular a propostas de transformações
sociais mais amplas ou raramente focaliza projetos comprometidos com
esta.
O escritor Luiz Ruffato travou polêmicas sobre os rumos dessa
literatura sobre as periferias e optou por escrever sobre o proletariado
brasileiro, a parcela oprimida da população comprometida com o mundo
do trabalho, afastando-se dos possíveis compromissos com a
criminalização da pobreza nas obras que enfatizam a violência e
marginalidade nos guetos urbanos. No entanto, pelo menos num tópico
que nos parece bastante relevante, compartilha com os escritores da
chamada periferia pontos de vista discutíveis. Defende, de modo
semelhante ao que ocorre com os escritores vinculados, direta ou
indiretamente, à literatura marginal – como Ferréz, Sacolinha, Sérgio Vaz
– um potencial transformador da literatura que a aproxima de uma
panaceia para as questões que afetam a juventude marginalizada
socialmente. Este ponto de vista domina a conclusão do discurso
apresentado em Frankfurt, encerrado com uma profissão de fé na
[ 130 ]
capacidade de transformação da literatura sobre os sujeitos que repercute
inevitavelmente no mundo social:

Eu acredito, talvez até ingenuamente, no papel


transformador da literatura. Filho de uma lavadeira
analfabeta e um pipoqueiro semianalfabeto, eu mesmo
pipoqueiro, caixeiro de botequim, balconista de
armarinho, operário têxtil, torneiro-mecânico, gerente
de lanchonete, tive meu destino modificado pelo
contato, embora fortuito, com os livros. E se a leitura de
um livro pode alterar o rumo da vida de uma pessoa, e sendo
a sociedade feita de pessoas, então a literatura pode mudar a
sociedade< grifo nosso>. Em nossos tempos, de
exacerbado apego ao narcisismo e extremado culto ao
individualismo, aquele que nos é estranho, e que por
isso deveria nos despertar o fascínio pelo
reconhecimento mútuo, mais que nunca tem sido visto
como o que nos ameaça. Voltamos as costas ao outro -
seja ele o imigrante, o pobre, o negro, o indígena, a
mulher, o homossexual - como tentativa de nos
preservar, esquecendo que assim implodimos a nossa
própria condição de existir. Sucumbimos à solidão e ao
egoísmo e nos negamos a nós mesmos. Para me
contrapor a isso escrevo: quero afetar o leitor,
modificá-lo, para transformar o mundo. Trata-se de
uma utopia, eu sei, mas me alimento de utopias.
Porque penso que o destino último de todo ser
humano deveria ser unicamente esse, o de alcançar a
felicidade na Terra. Aqui e agora (RUFFATO, 2013 –
online).

Encontramos perspectiva semelhante no romance Manual Prático


do Ódio (2003) de Ferréz. O apreço pela leitura marca uma diferenciação
entre o personagem Paulo, nitidamente colocado no decorrer do romance
como “alter ego” do autor. Este jovem não se deixa contaminar pela
degradação do meio social e consegue manter uma perspectiva crítica
sobre esse processo. No entanto, como se pode observar no trecho
abaixo, essa diferenciação associa-se ao desprezo pelas referências sociais
que dominam naquele meio hostil ao personagem:

Paulo lia de madrugada, pois às sete da manhã ia para


a metalúrgica, depois de um dia inteiro de trabalho,
chegava em casa, mas não lia de tarde, sempre
[ 131 ]
reclamava das músicas altas que os vizinhos
escutavam diariamente, ler Hermann Hesse ouvindo
Zezé di Camargo e Luciano ou terminar de ler a
“Enfermaria número 6” de Tchekov escutando “Pense
em mim” de Leandro e Leonardo não era o seu sonho
de vida, na pausa da leitura tentava escutar “O seu
olhar”, a voz grossa do cantor o acalmava e fazia o
peito arder de saudade de Auxiliadora, mas o som era
de potência muito fraca e a música dos vizinhos
abafava os versos bem construídos. (...) Ele odiava
tudo isso, odiava viver naquele lugar, no mesmo lugar
que puxou seu pai para a cova e fez sua mãe fugir com
o patrão e o abandonar ainda criança, mas sabia que o
lugar tinha um ritmo, e ele outro, sabia que não devia
entrar no ritmo do lugar e sim seguir o seu próprio
(FERRÉZ, 2003, p.77).

Revela-se neste trecho o desprezo pelas manifestações culturais


destacadas no consumo do meio favelado, que o narrador contrasta com
outras, consagradas canonicamente na literatura ou pelo padrão de gosto
de consumo das classes mais favorecidas, com que se identificava o
personagem sonhador romântico. Fica claro, entre a citação dessas
afinidades de gosto com um meio social e cultural exterior à favela, e a
descrição de formas de comportamento que Paulo desprezava, a
caracterização de um habitus cultural (BOURDIEU) diferenciado deste
indivíduo – que, por circunstâncias adversas do destino, fora condenado
a viver em uma favela. Será essa diferenciação de “habitus” um caminho
que conduz a uma solução coletiva para as condições adversas da
comunidade favelada? Ou uma saída possível franqueada apenas para
aqueles que conseguirem ter acesso aos bens culturais?
Uma escritora negra brasileira parece responder a essa questão,
apresentando uma alternativa a essa perspectiva sobre o papel da leitura
e da literatura na vida da população negra e jovem nas periferias
brasileiras. Conceição Evaristo parte de suas memórias para recuperar
histórias de vida de uma comunidade afrodescente que sofre as
consequências da desfavelização, demonstrando as marcas da escravidão
presentes no Brasil moderno. A remoção da favela remete a uma relação
problemática com o espaço, um desenraizamento, uma vez que o lugar
de habitação é precário e provisório. No final do livro, a comunidade
toda se dispersa, como se fosse um novo êxodo, conforme destaca Victor
Hugo Pereira, “trazendo a memória cultural da diáspora que acompanha

[ 132 ]
a população negra”. A política de remoção começa como uma ameaça,
um pesadelo, e ao longo do romance, vai-se tornando uma realidade.

“Denuncia-se, nesse caso, a permanência de um


processo forçado de diáspora – um processo que dá
continuidade àquele iniciado com o tráfico negreiro”
(PEREIRA, 2010).

Evitando dois mitos sobre as possibilidades de “saída” para a


população favelada, em grande parte condenada ao lumpesinato, a
narradora observa que o trabalho não significa a salvação da miséria e da
privação, tampouco a opção pela criminalidade:

O dia acabava e os que voltavam do trabalho tentavam


esquecer o cansaço, parando junto daqueles que
levavam um vadio viver. Quem era o mais sábio? O
malandro ou o trabalhador? Fora o perigo da polícia, a
vida de ambos era igual. As privações eram as
mesmas. Alguma coisa, pelo menos, estava provada: o
trabalho não enriquece ninguém. A malandragem
barata de morro também não (EVARISTO, 2006, p. 69).

O romance Becos da Memória demonstra que a violência


perpetrada sobre a comunidade, herança de uma sociedade escravocrata,
não se dá apenas nas relações com o Estado, principalmente através das
autoridades que promovem remoções forçadas e estimulam a violência
policial contra os favelados. A violência foi introduzida nos lares em que
o homem negro exerce a dominação sobre a mulher. Portanto, além da
criminalização da pobreza, presente no romance em algumas situações
do cotidiano das mulheres, a violência doméstica é marcante.

Quem sofria nas mãos dele era sua mulher e sua filha
Fuizinha. Vivia espancando as duas, espancava por
tudo e por nada. Os vizinhos mais próximos
acordavam altas horas da noite com o grito das duas.
Era mau o Fuinha. Diz que ele tirava a roupa das duas
e batia até sangrar. (...) Um dia, a mãe de Fuizinha
amanheceu adormecida, morta. Os vizinhos haviam
escutado a pancadaria na noite anterior. (...) Fuizinha
ainda muito haveria de gritar. (...) Dispôs da vida da
mulher até à morte. Agora dispunha da vida da filha.
Só que a filha, ele queria bem viva, bem ardente. Era o

[ 133 ]
dono, o macho, mulher é para isto mesmo. Mulher é
para tudo. Mulher é para a gente bater, mulher é para
apanhar, mulher é para gozar, assim pensava ele. O
Fuinha era tarado, usava a própria filha (EVARISTO,
2006, p. 75-76).

Não é certamente um acaso o fato de surgir o enfoque desses


desdobramentos da violência cotidiana na obra de uma escritora mulher
e negra. Ela parte das experiências da coletividade e privilegia como
tema central do livro a remoção, sempre esperada e temida, fomentando
a sensação de provisoriedade comunitária, e não compromete a narrativa
exclusivamente com o interesse pelo destino da personagem principal,
Maria-Nova, que é apenas mais uma que luta contra a miséria e os
preconceitos naquele espaço. O que faz Maria-Nova se destacar e justifica
seu papel central na narrativa é a circunstância de, por saber ler bem e
ser estudiosa desde criança, ter assumido uma espécie de missão de
contar a história de sua gente no futuro. A escrita, neste caso, não é um
espaço de salvação individual da personagem, mas um meio de contar a
história de seu povo e de materializar a existência deste grupo ignorado
pelo Estado quanto aos direitos sociais, mas sempre lembrado pela
polícia. A protagonista merece destaque porque representa a
comunidade, e não é avaliada primordialmente por sua proximidade à
cultura de um meio social mais valorizado:

Um dia, e agora ela já sabia qual seria sua ferramenta,


a escrita. Um dia, ela haveria de narrar, de fazer soar,
de soltar as vozes, os murmúrios, os silêncios, o grito
abafado que existia, que era de cada um e de todos.
Maria-Nova, um dia, escreveria a fala de seu povo.
(EVARISTO, 2006, p. 161)

Essa atitude diante da escrita oferece uma resposta comunitária


que coloca a literatura como guardiã e difusora do testemunho
comunitário e a tarefa de escritora como a descoberta de um sentido na
vida de uma favelada. Um sentido que não se confunde com a busca da
distinção social a partir de critérios de mercado ou da avaliação cultural
canônica, mas que aponta para a retomada das atribuições tradicionais
da arte narrativa. 66 Parece-nos, portanto, uma alternativa que não
pretende oferecer uma saída a ser buscada para todas e todos os jovens,

66 Cf. a perspectiva de Walter Benjamin sobre as tradições da narrativa.


[ 134 ]
mas uma descoberta de um dos caminhos possíveis a ser trilhado
individualmente diante das condições adversas da favela. Este não
substitui ou obscurece a consciência de que muitos outros poderiam ser
abertos pela educação e a luta por justiça e respeito em vários outros
âmbitos do convívio social. E foge da compensação imaginária diante
dos limites que se impõem em muitas outras situações à população
jovem que vive nas periferias.

Referências

AMADO, Jorge. Jubiabá. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.


____________. Gabriela cravo e canela. São Paulo: Companhia das Letras,
2008.
BOURDIEU. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Editora
Perspectiva, 1974.
CUNHA, Eneida Leal. “Jubiabá: leitura em duas vertentes”. In: Bahia, a
cidade de Jorge Amado. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado, 2000.
[Atas do ciclo de palestras A Bahia de Jorge Amado].
CHKLOVSKI, Vítor. “A arte como procedimento”. In: TOLEDO,
Dionísio de Oliveira (org.). Teoria da Literatura: formalistas russos. Porto
Alegre: Editora Globo, 1970.
DUARTE, Eduardo de Assis. Jorge Amado: romance em tempo de utopia.
Rio de Janeiro: Record, 1996.
EVARISTO, Conceição. Becos de memória. Belo Horizonte:Mazza Edições,
2006.
____________________. PonciáVivêncio. Belo Horizonte:Mazza Edições,
2003.
LINS, Paulo. Cidade de Deus. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
LUCKÁCS, Georg. “Narrar ou descrever?”. In: _____. Ensaios sobre
literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
FERRÉZ. Capão Pecado. São Paulo: Labortexto Editorial, 2000.
_______.Manual prático do ódio. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003.
PEREIRA, Victor Hugo Adler. “A atualidade da escravidão”. In JALLA
Brasil 2010. Anais das IX Jornadas Andinas de Literatura Latino
Americana.Niterói, 2010.
REGO, José Lins do. O moleque Ricardo / Usina. In: _____. Ficção completa
em dois volumes. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 2006. Volume I.
RUFFATO, Luiz. Eles eram muitos cavalos. São Paulo: Boitempo Editorial,
2001.

[ 135 ]
______________. Online:
lhttp://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,leia-a-integra-do-
discurso-de-luiz-ruffato-na-abertura-da-feira-do-livro-de-
frankfurt,1083463,0.htm.
SACOLINHA. Graduado em marginalidade. Rio de Janeiro: Confraria do
Vento, 2009.
_______. 85 letras e um disparo. São Paulo: Global, 2007. (Coleção
Literatura Periférica).
SUSSEKIND, Flora, Tal Brasil, qual romance? Uma ideologia estética e sua
história: o naturalismo. Rio de Janeiro:Achiamé, 1984.
VAZ, Sérgio. Literatura, pão e poesia. São Paulo: Global, 2011 (Coleção
Literatura Periférica).

[ 136 ]
JOVENS, DESIGUALDADES E NTICS EM
CONTEXTOS DE MOBILIZAÇÃO SOCIAL
Patrícia LânesAraújo de Souza 67
Julia Paiva Zanetti 68

Este artigo pretende abordar algumas questões encontradas no


desenvolvimento da pesquisa Jovens pobres e o uso das NTICs na criação de
novas esferas públicas democráticas, realizada entre fevereiro de 2012 e
junho de 2013, sob coordenação do Instituto Brasileiro de Análises
Sociais e Econômicas (Ibase) com financiamento do Centro de Pesquisas
para o Desenvolvimento (IDRC)/Canadá. A pesquisa se propôs a
produzir informações qualificadas sobre a utilização das Novas
Tecnologias de Informação e Comunicação (NTICs) entre jovens em
situação de pobreza, em especial, moradores(as) de favelas e bairros
populares da região metropolitana do Rio de Janeiro, dando visibilidade
aos usos que fazem das NTICs para mobilização social, melhoria de
qualidade de vida e garantia de direitos.
Para isso foram realizados três estudos de caso: Cultura e Novas
Tecnologias na Baixada Fluminense; Gênero e Novas Tecnologias; e
Identidade favelada e Novas Tecnologias 69. Trata-se de estudos qualita-
tivos, centrados no levantamento bibliográfico e de informações via
Internet, observação de eventos, realização conversas e oficinas com
pessoas que estudam, militam ou trabalham com os temas da pesquisa e

67 Mestre em Sociologia (PPGSA/ IFCS/ UFRJ) e doutoranda em Antropologia


(PPGA/ UFF). Tem experiência na área de Ciências Sociais nos seguintes temas:
juventude, políticas públicas, participação e movimentos sociais. Foi
pesquisadora do Ibase entre 1998 e 2012 e consultora da instituição para a
pesquisa em que se baseia este artigo.
68 Cientista social, mestre em Educação e técnica em assuntos educacionais do

Colégio Pedro II. Tem experiência na área de Ciências Socias, atuando


principalmente nos seguintes temas: juventude, feminismo, participação
política, identidade. Foi consultora do Ibase para a pesquisa em que se baseia
este artigo.
69 Nestes estudos de casos foram pesquisadas as seguintes experiências, Cultura

na Baixada Fluminense: Enraizados, Cineclube Buraco do Getúlio, Cineclube


Mate com Angu; Gênero: Donas da Arte, Roque Pense, Estimativa, Camtra,
Marcha contra a mídia machista RJ, Marcha das Vadias RJ; e Identidade
Favelada: blogueiros(as) moradores(as) de favelas, correspondentes
comunitários, sites e blogs de instituições de favelas.
[ 137 ]
entrevistas em profundidade com pessoas de favelas, bairros e
municípios populares da região metropolitana do Rio de Janeiro. 70
As últimas décadas foram marcadas por intensas transformações
tecnológicas com variadas implicações sociais. A popularização dos
computadores, da Internet e dos celulares, para ficar em alguns
exemplos, contribuiu para criar e alterar formas de sociabilidade e de
comunicação. De acordo com a antropóloga brasileira Regina Reyes
Novaes (2006), “a despeito de todas as desigualdades e diferenças,
qualquer análise sobre a condição juvenil atual deve levar em conta: as
imagens da juventude disseminadas pela publicidade, a televisão que
tudo transmite em tempo real e a internet, com seus mais variados usos.
'Ser jovem' em um 'mundo conectado' é viver uma experiência
historicamente inédita”. (p.113)
Nesse mesmo sentido, o sociólogo Manuel Castells (2007) utiliza a
noção de tecnossociabilidade para pensar “as tecnologias de comunicação
não como ferramentas, mas como contextos, condições ambientais que
tornam possível novas maneiras de ser, novas correntes de valores e
novas sensibilidades sobre o tempo, o espaço os acontecimentos
culturais”. Se é verdade que a tecnossociabilidade é uma dimensão
importante para se entender práticas e valores de pessoas que convivem
com essas tecnologias desde muito cedo, não se pode minimizar a
convivência das NTICs com diferentes agências de socialização, tais
como família, bairro, escola, religião etc. A sociabilidade é sempre fruto
de diferentes combinações de espaços de socialização. Isso porque o
“atual” é composto por uma variedade de arranjos entre tradição e
inovação, presentes na vida de diferentes segmentos juvenis. Sem levar
em conta esses aspectos, corre-se o risco de homogeneizar a juventude
(NOVAES, 2006).
As Novas Tecnologias devem ser entendidas, portanto, como
contextos, como condições contemporâneas de ser e de compreender o
mundo, incluindo a construção de novas (e revisão de velhas) utopias 71.

70Foram entrevistados(as) ao todo 24 jovens com idade entre 18 e 35 anos e com


inserção nas diversas experiências citadas anteriormente. A análise completa dos
materiais pode ser encontrada nos relatórios de estudos de caso, bem como a
lista completa de organizações, coletivos, sites, blogs e perfis em redes sociais
investigados. Esses três relatórios, o relatório geral e a publicação “Comunicação
e Juventudes em Movimento: novas tecnologias, territórios e desigualdades”
estão disponíveis em http://issuu.com/ibase.
71 De acordo com Escobar (2005), o ciberespaço, em sua concepção utópica,

poderia ser compreendido como “possibilidade de estabelecer uma lógica de


[ 138 ]
Tais condições permeiam não apenas aqueles que as utilizam
diretamente, mas a linguagem elaborada a partir da Internet que alterou,
por exemplo, a maneira como outros meios de comunicação (jornais
impressos e televisão, por exemplo) produzem seu conteúdo. No
entanto, são entendidas por muitos(as) jovens como instrumentos que
podem ser utilizados de acordo com seus objetivos e concebidos a partir
de interesses diversos. Não seriam, portanto, dimensões contraditórias,
mas planos inter-relacionados que se encontram presentes nesta
pesquisa.
Os(as) jovens pobres, que aparecem dessa maneira no enunciado
da investigação, são tomados aqui como pessoas de determinada geração
que vivem em lugares onde o acesso a serviços básicos e direitos é
dificultado ou inexistente. Ou seja, não se toma aqui pobreza como
questão de renda (até porque há grande diversidade nesse ponto entre os
entrevistados), mas como algo relacionada a direitos garantidos
disponíveis em seus locais de moradia. Há de se considerar, portanto,
uma dimensão estrutural na análise realizada. Se, de certo modo, por
pertencerem a determinada geração, há uma oferta em termos culturais e
comunicacionais (que inclui as Novas Tecnologias, mas não apenas elas),
há também constrangimentos que dizem respeito ao lugar onde, a
princípio, estariam localizados na estrutura social, que os(as) coloca em
posição menos privilegiada em termos de garantia de direitos e acesso a
serviços básicos, por exemplo. Essa desigualdade se relaciona a outras
tantas, como de gênero e raça, por exemplo, e se revela também em
termos territoriais.

Novas Tecnologias de Informação e Comunicação: algumas


aproximações

As Novas Tecnologias de Informação e Comunicação têm


possibilitado um modelo diferente ao dos meios de comunicação
convencionais, marcados por fluxo de informações unidirecional e rígido
controle ideológico daqueles que os dominam. Enquanto isso, as
possibilidades proporcionadas pelas NTICs se baseiam na interatividade,
podendo ser vistas como um “arquipélago descentralizado de zonas
relativamente autônomas” e tendendo a promover a criação de culturas

auto-organização, descentralizada e não hierárquica”. Na prática, no entanto, é


preciso considerar que hierarquias, relações de poder e distribuição desigual de
recursos estão presentes de diferentes maneiras no que se usa chamar
ciberespaço.
[ 139 ]
em rede sem as identidades homogeneizadas usadas pelos meios de
massa (ESCOBAR, 2005).
Certamente, a Internet é a principal ferramenta que tem
possibilitado esse novo modelo de comunicação, sendo fundamental
para a promoção de novas formas de participação política. Nesse
contexto, em junho de 2011, a ONU reconhece o acesso à Internet como
um direito humano 72, destacando que essa se tornou um dos principais
meios pelo qual os indivíduos podem exercer o direito à liberdade de
expressão e opinião, conforme o previsto pelo artigo 19 da Declaração
Universal dos Direitos Humanos.
Apesar de não se poder reduzir as NTICs apenas à Internet, essas
características da rede foram reconhecidas e bem apropriadas pelas
experiências pesquisadas. Todas têm, no mínimo, um perfil ou grupo na
rede social virtual Facebook, a maioria tem contas no Twitter e Youtube,
além de site próprio e/ou blog, algumas com intensa atividade em termos
de frequência de postagens, número de “amigos”, “seguidores” e/ou
acessos. Campanhas, reivindicações, eventos etc. são promovidos,
divulgados e relatados por meio dessas ferramentas, que servem para
informar e manter contato com o público envolvido, mas também para
apresentar a experiência para quem não a conhece ou para informar os
próximos ou últimos acontecimentos àqueles que não estão no cotidiano
dos grupos.
O uso da Internet vem articulado a outras tecnologias que são
utilizadas para elaboração de produtos próprios que dão voz aos grupos
pesquisados através de videoclipes musicais, vídeo-documentários,
curtas-metragens, registros fotográficos, programas de rádio, sessões de
cineclubes on e off-line. Filmadoras, câmeras fotográficas, gravadores,
datashows e equipamentos de áudio constituem-se ferramentas
necessárias para essa realização e para consolidação de alguns dos
grupos, sobretudo nos estudos de caso sobre cultura na Baixada
Fluminense e identidade favelada. Em ambos os casos, muitos (as) jovens
são produtores de informação e agentes ativos de comunicação, sendo
fotógrafos, rappers, grafiteiros, cineastas, publicitários etc., utilizando as
NTICs tanto em sua vida profissional como para militância/ação social.
O acesso a tais equipamentos é viabilizado de diversas formas.
Em alguns casos, há certo investimento pessoal e/ou familiar, sobretudo

72 Relatório sobre a promoção e proteção do direito à liberdade de opinião e de

expressão, disponível em http://www2.ohchr.org/english/bodies/hrcouncil/


docs/17session/A.HRC.17.27_en.pdf.
[ 140 ]
para a compra de computadores e celulares e para viabilizar o acesso à
Internet. Em outros, no caso de câmeras fotográficas e de filmagem
profissionais e/ou de projetores, por exemplo, esses equipamentos são
adquiridos por meio de editais públicos, como os Pontos de Cultura 73,
ainda que, em algumas experiências, sejam usados equipamentos
particulares ou emprestados para essas produções. Há, também, os casos
nos quais o acesso se dá via organização não-governamental da qual o(a)
jovem faz parte ou já participou, escola e/ou universidade. Ainda que
um ou outro entrevistado relate ter feito algum curso para aprender a
manusear esses recursos, a maior parte aprendeu e se mantém atualizado
na prática de maneira autodidata, contando com a ajuda de amigos e de
informações disponíveis na Internet.

Mobilização em rede e na rede

Conforme pôde ser verificado nas experiências investigadas nos


três estudos de caso, as redes sociais virtuais aparecem como principal
ferramenta quando se trata de Internet, especialmente o Facebook, como
uma base para a convergência de dados produzidos e disponibilizados
inicialmente por meio de outros tipos de ferramentas. Essas redes
permitem um compartilhamento mais dinâmico de imagens, pequenos
textos ou notícias de sites, blogs, jornais etc. Através delas é criada uma
rede de circulação de informações que acaba por fortalecer uma rede de
indivíduos de diversas localidades e envolvidos em diferentes pautas,
em que boa parte dos entrevistados nos três estudos de caso desta
pesquisa se encontra, por exemplo.
A Internet – via redes sociais, blogs, sites – amplia o alcance de
determinadas falas a partir da articulação entre redes de pessoas. O ato
recentemente popularizado pelo Facebook de “compartilhar” virou uma
maneira de dividir determinadas informações que passam pelas redes de
cada perfil, mas que também pode se conectar com outras tantas redes de
outros tantos perfis e chegar a lugares (e pessoas) inimagináveis até
muito recentemente. Entrar nesse circuito, certamente, exige o
conhecimento prévio de ao menos uma das pessoas que participa de tal
rede, além de interesse no que está sendo compartilhado pelas pessoas
em questão. Ao mesmo tempo em que essa dinâmica de produção e
compartilhamento de informações gera a possibilidade de acesso a textos

73Algumas experiências que integram a pesquisa são Pontos de Cultura como


Estimativa e Enraizados.
[ 141 ]
e imagens que nem sempre chegam à grande mídia ou aos meios de
comunicação comercial, há um perfil de público leitor de tais
informações, o que pode circunscrever esse acesso a um conjunto
específico de pessoas que têm interesse por assuntos políticos e sociais,
boa escolaridade e que transitam por diferentes instituições e grupos
sociais.
Poderíamos perguntar, portanto, se, em vez de ampliar
determinadas redes, o tipo de dinâmica por meio da qual funcionam as
redes sociais virtuais em questão não acabaria por reforçar certos
circuitos de relações previamente existentes, ajudando a disseminar,
produzir e compartilhar informações entre os mesmos e as mesmas em
vez de alargar fronteiras e criar novos espaços de interação. Cabe
lembrar, no entanto, que nas redes sociais online são articuladas
diferentes redes sociais off-line. Então, para além daquelas relacionadas
ao engajamento político e social, estão também presentes também redes
familiares, profissionais, religiosas etc., que possibilitam ampliar a
circulação desses conteúdos. Desse modo, o próprio número de acessos
de alguns desses blogs, sites e mesmo de amigos/seguidores de
determinadas pessoas/perfis apontam para uma forte possibilidade de
ampliação dessas conexões, revelando também neste circuito de
militância alguns nós mais densos do que outros. Um dos vários perfis
da ONG Estimativa no Facebook, por exemplo, tem mais de 5.200 amigos
e quase 1.600 assinaturas; o portal Voz das Comunidades tem mais de
66.000 seguidores no Twitter; e o portal Enraizados tem cerca de 600 mil
acessos mensais. Ou seja, estamos diante de um fenômeno de novo tipo
que pode reforçar redes já existentes, mas que também é capaz de
ampliá-las ou interconectá-las com outras redes de produção e recepção
de informação inimagináveis fora da Internet e da dinâmica consolidada
pela popularização do uso das redes sociais.
Não se trata de um otimismo descabido (nem sempre a
informação compartilhada é relevante ou positiva do ponto de vista de
democracia ou da cidadania), mas essa possibilidade faz parte também
deste novo cenário para uma geração de pessoas que buscam produzir
informações, narrativas e, em certa medida, construir visibilidade para
seus grupos, pautas e locais de moradia. Além disso, é importante
considerar que essas experiências também têm um alcance off-line ainda
pouco conhecido. A Marcha das Vadias e o conteúdo produzido em
perfis a ela associados nas redes sociais, por exemplo, têm ampla
repercussão em diferentes meios de comunicação comunitários e
comerciais; blogs e fotografias produzidos pelas experiências pesquisadas
[ 142 ]
têm recebido premiações e participado de exposições no Brasil e no
exterior como, por exemplo, é o caso do Imagens do Povo (iniciativa
ligada à ONG Observatório de Favelas) e do blog O Cotidiano, do
fotógrafo, cientista social e morador da Maré Francisco Valdean.
As características da comunicação via redes sociais online
(mensagens não muito longas, com hiperlinks, preferencialmente
acompanhadas de alguma imagem) provoca, em alguma medida, uma
tradução de questões políticas para essa “linguagem virtual”, o que, para
alguns militantes de outras gerações ou de modalidades mais
tradicionais de participação e engajamento, pode parecer uma
simplificação. No entanto, essas mensagens mais objetivas podem ser
uma forma de despertar o interesse de pessoas que não necessariamente
já estejam sensibilizadas por aquele tema. Além disso, muitas vezes,
essas mensagens são acompanhadas de links com textos maiores que
aprofundam a questão, além de haver sempre a possibilidade de recorrer
a um site de busca e fazer uma pesquisa online lançando mão de outros
recursos disponíveis.
Nas iniciativas pesquisadas, os blogs também são utilizados
frequentemente e de modos muito variados, por exemplo, para
promover e informar sobre eventos, campanhas ou novas produções,
para realizar sessões online de cineclube etc., além do uso para relatar
experiências pessoais. De modo geral, poderíamos dividi-los em dois
grupos: os blogs coletivos ou institucionais, muitas vezes utilizados pelas
iniciativas menos institucionalizadas, como um site dos grupos, e pelas
mais institucionalizadas, como um espaço específico para um projeto ou
pauta; e os blogs pessoais, nos quais os autores e autoras pretendem
expressar livremente pensamentos, imagens, ideias, sem a interferência
de outras pessoas ou institucionalidades e/ou apresentar opiniões,
experiências ou realidades vividas por eles(as), que lhes parecem
invisibilizadas ou diferentes daquelas veiculadas por outros meios de
comunicação. A frequência de atualização e o número de acessos variam
muito nos dois grupos: alguns têm uma atividade constante; outros, nem
tanto, havendo ainda aqueles cujo uso costuma ser mais intenso em
períodos de realização de eventos ou alguma atividade em especial.
No entanto, é possível entrever um declínio do uso dessa
ferramenta no segundo grupo. Muitos dos entrevistados disseram já ter
tido blog pessoal, mas, no período das entrevistas, vários deles afirmaram
usar raramente ou nunca, algumas possíveis razões podem ser
levantadas. A comunicação na Internet tem se dado de forma cada vez
mais instantânea, dinâmica e interativa, especialmente por meio de
[ 143 ]
imagens e pequenos textos, mais facilmente acessíveis por meio de
dispositivos móveis, como celulares e tablets. Nesse contexto, as redes
sociais, e especialmente o Facebook, têm se apresentado como ferramenta
mais eficaz, uma vez que oferece recursos como “curtir” ou
“compartilhar”, já conta com uma rede de “amigos” conectados e permite a
convergência de conteúdos de outros portais e redes sociais, além da
possibilidade da formação de grupos temáticos e organização de eventos.
O direcionamento para essa rede social torna-se ainda mais
compreensível se lembrarmos que, como afirma Máximo (2007), “o que
se mostra no blog não é a “a vida como ela é”, mas um cotidiano
inventado, dramatizado por meio de jogos performáticos para uma
apresentação do eu (GOFFMAN, 1995) e permanentemente negociado de
forma a se tornar compartilhável dentro de um conjunto de interesses e
afinidades específicas”. Cada vez mais, essa tem sido uma das dimensões
presentes na utilização de redes sociais.
Em uma sociedade cada vez mais imagética, a fotografia e o vídeo
têm um lugar central na produção de conteúdo tanto para blogs e sites
como nas redes sociais, o que se tornou possível graças à popularização
de tecnologias como celulares e máquinas digitais, que contam com esse
tipo de recurso, e ao acesso bastante simplificado a
plataformas/ferramentas que permitem disponibilizar imagens, como
aquelas presentes em redes sociais e blogs, assim como a recursos que
têm como finalidade maior a divulgação das mesmas, como Flicker,
Youtube e Instagram. Outros tipos de imagem também são criados, são
exemplos disso o fanzine e as montagens feitas a partir de propagandas
machistas nos casos do Roque Pense e da Marcha da Mídia Machista,
respectivamente, ambos investigados no estudo de caso sobre gênero.
Praticamente todas as experiências fazem amplo uso desses recursos
para divulgar suas pautas e promover seus eventos, antes, durante e
depois de sua realização. Além disso, a circulação de imagens não está
restrita ao espaço online, elas também estão presentes, e muitas vezes são
produzidas, em sessões de cineclube, oficinas de cartazes e fanzines,
exposições fotográficas etc.
Nas experiências de cultura na Baixada Fluminense, a ênfase é na
produção de curta-metragens, especialmente sobre a realidade local, e
videoclipes para promover as músicas produzidas no caso daqueles com
envolvimento no Hip Hop. Por exemplo, de acordo com seu site, o
Cineclube Mate com Angu “firme na missão de provocar a cidade de
Duque Caxias a se ver refletida (reflexo-e-reflexão) em todas as suas
nuances, delírios e deleites”, promoveu o Festival “Caxias em 1 Minuto”,
[ 144 ]
em comemoração aos seus 10 anos de existência, e, por meio de concurso,
selecionou e exibiu filmes em diferentes formatos sobre a cidade e/ou
feitos por pessoas da cidade.
No estudo sobre gênero, são usados igualmente vídeos e fotos
para denunciar as desigualdades de gênero persistentes e desconstruir
padrões de comportamento machistas. A Marcha das Vadias do Distrito
Federal, por exemplo, em 2012, fez a campanha “Feminista por quê?”,
que nas semanas que antecederam a manifestação, a cada dia,
disponibilizava no Facebook duas fotos com pessoas as mais diversas,
com frases como: “Não ensine a mulher a não ser estuprada. Ensine o
homem a não estuprar. Isso também é feminismo” e “Como mãe, não
educo nem machões nem submissas. Isso também é feminismo”. Essas
imagens foram compartilhadas pela página da Marcha das Vadias do Rio
de Janeiro, assim como, posteriormente, inúmeras fotos da manifestação
circularam intensamente nas redes sociais no período do evento,
chegando a inspirar iniciativas semelhantes. 74
No caso sobre jovens moradores(as) de favela, a imagem
fotográfica destaca-se como instrumento de registro, denúncia e/ou
visibilização do cotidiano, tendo, até mesmo, em diversos casos,
proeminência com relação à crítica escrita ou ao relato, ainda que em boa
parte dos casos as duas dimensões estejam associadas, por exemplo, nos
blogs de Francisco Valdean (O Cotidiano), Thamyra Thamara ((In)Visíveis)
e de Maycom Brum ou nos sites dos Correspondentes da Paz, Viva Favela e
Voz das Comunidades. Além das redes sociais, há também o uso bastante
disseminado entre eles do Youtube e do Flicker para postagem e
compartilhamento das imagens produzidas. Sem a imagem, mesmo os
textos de denúncia parecem perder parte de sua potência de mobilização
ou indignação.

Pode tudo na Internet? A liberdade em questão

As possibilidades oferecidas pela Internet parecem muito


democráticas, uma vez que é possível fazer muito gratuitamente e sem
limite de conteúdo e que, no Brasil, não há censura estatal, como
acontece em outros países. No entanto, de acordo com Vizer (2007),
“apesar das aparências, o verdadeiro ‘poder’ dos meios [de

74 Inspirado nesta iniciativa, meses antes das eleições municipais de 2012, o

Fórum de Juventudes do Rio de Janeiro criou a campanha “Sou jovem, tenho


direitos”, buscando pautar os direitos dos(as) jovens nas eleições e dando
informações sobre sua participação como eleitorado.
[ 145 ]
comunicação] não se encontra nos seus dispositivos de produção
midiática, mas no deter o monopólio dos processos de circulação”.
Portanto, é preciso lembrar sempre que as plataformas para criação de
blogs e redes sociais mais populares são propriedade de pessoas e
empresas que buscam obter lucros, com interesses específicos e que tem
o poder de criar limitações e constrangimentos para seus usos, ainda que
haja uma sensação de liberdade, já que poucos se lembram dos “termos de
uso”, ou seja, contratos assinados virtualmente para que se tenha acesso a
tais ferramentas. Como nos lembra Ronaldo Lemos 75, por meio desses
"termos de uso", essas empresas criam direitos e deveres, decidem o que
pode circular ou não, o que tem impacto em temas como privacidade ou
liberdade de expressão, gerando efeitos imediatos na vida dos seus
usuários. 76
Entre os sujeitos pesquisados, sobretudo no estudo de caso de
gênero, as jovens mulheres talvez sejam as que vêm sofrendo censuras e
restrições com mais frequência, especialmente pelo Facebook, visto que é
cada vez mais comum entre elas o uso de seus corpos para comunicar
suas reivindicações e que parte dos direitos exigidos tem origem no
direito ao próprio corpo, que, de diferentes formas, tem feito parte das
pautas feministas ao longo da história. Nas manifestações públicas,
jovens mulheres têm escrito suas questões nas partes descobertas do
corpo, assim como exibido o peito (como é permitido aos homens) como
forma de protesto, o que é intensamente fotografado, filmado e
divulgado por manifestantes e jornalistas. No entanto, quando essas
imagens começam a circular, frequentemente, são consideradas
impróprias e censuradas pelas redes sociais. Ainda que muitas vezes
sejam utilizadas nos grandes meios de comunicação para evidenciar
como são “exóticas” ou “inapropriadas” tais manifestações, ou mesmo
para exaltar a beleza (ou revelar a feiura) de determinados corpos,
reinserindo o corpo na lógica do consumo mesmo quando apresentado
como ferramenta política, despindo-o de seu contexto e de sua potência
como meio de reivindicação e afirmação.

75 Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/colunas/ronaldolemos/
1225230-empresas-de-internet-tem-leis-para-todos-inclusive-voce.shtml, acesso
em abril de 2013.
76Outra dimensão a ser considerada são os efeitos econômicos, por exemplo, o

Facebook vem restringindo a circulação dos posts e passou a cobrar pela


ampliação do seu alcance (disponível em http://www1.folha.uol.com.br/
colunas/ronaldolemos/1243917-entenda-melhor-o-misterioso-caso-dos-posts-
do-facebook.shtml, acesso em abr. 2013).
[ 146 ]
Dentre as experiências pesquisadas, a Marcha das Vadias do Rio
de Janeiro tem sido a mais afetada por esse tipo de restrição. Em 2011, o
evento local foi excluído do Facebook uma semana antes da data da
manifestação, de acordo com o informado pela rede social, por causa do
nome do evento e da quantidade de spam. A página excluída já contava
com mais de 8 mil pessoas, fazendo que muitos(as) pensassem que a
Marcha havia sido cancelada. Logo que o problema foi identificado, uma
nova página foi criada para o evento. Posteriormente, nesse mesmo ano e
em 2012, houve outros relatos e denúncias na mesma rede social de
postagens que foram excluídas por causa de imagens de mulheres com
seios expostos ou de algumas palavras consideradas impróprias pelo
Facebook. 77
Outros dois exemplos interessantes foram encontrados em
notícias internacionais que circularam no Brasil no fim de fevereiro de
2013. Em um artigo originalmente publicado nojornal The Guardian, que
aqui teve o título “O Facebook tem algum problema com as
mulheres?”, 78 questiona-se o fato de essa rede social afirmar que não
permite discursos odiosos ou que incitem a violência, mas não remover
publicações que incentivam o estupro e a violência doméstica. Como
exemplo, a autora cita uma imagem que mostrava uma mulher amarrada
e amordaçada em um sofá, com uma legenda que dizia: "Não é estupro.
Se ela realmente não quisesse, teria dito alguma coisa", neste caso, o
Twitter foi usado para manifestações contra a recusa do Facebook em
remover a imagem. Postura oposta a mesma rede social teve no Canadá,
onde bloqueou a foto de uma mulher que fez uma grande tatuagem no
lugar dos seios após fazer uma mastectomia dupla por causa de um
câncer de mama. 79
Esses exemplos evidenciam que, apesar das tecnologias serem
novas, ainda são administradas sob uma lógica que mantém discursos e

77 O item 7 da seção “Segurança” da Declaração de Direitos e Responsabilidades


do Facebook informa que: “Você não publicará conteúdo que: contenha discurso
de ódio, seja ameaçador ou pornográfico; incite violência; ou contenha nudez ou
violência gráfica ou desnecessária.” A questão é quem e como se define o que é
pornográfico ou não, por exemplo.
78 Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/1238556-o-
facebook-tem-algum-problema-com-as-mulheres.shtml, acesso em abril de 2013.
79 Essa história foi veiculada pela grande mídia e originou uma campanha pela

liberação de fotos como essa. Disponível em http://oglobo.globo.com/


megazine/banida-do-facebook-imagem-de-mulher-tatuada-se-torna-viral-
7628283, acesso em abril de 2013.
[ 147 ]
práticas que pretendem continuar controlando e reprimindo o corpo
feminino, reduzindo-o aos interesses do mercado ou do prazer
masculino machista, de acordo com o rígido padrão de beleza
incentivado por esses.

Nem on, nem off: onde as rupturas não fazem sentido

A relação entre os(as) entrevistados, seu lugar de moradia,


trabalho, encontro e conviência e as Novas Tecnologias de Informação e
Comunicação é central neste estudo. Por um lado, é preciso não perder
de vista que o acesso a tais tecnologias e, sobretudo à Internet, não está
desvinculado de uma dimensão concreta e territorial desse acesso. De
acordo com Name (2012):

“Ter acesso à Internet depende, afinal, de uma


infraestrutura que, no caráter de rede técnica, pouco
difere de outras como a viária, de água, esgoto ou
drenagem: é formada também por uma trama de nós e
linhas, pela qual é possibilitada a circulação de algo
que se quer distribuir. Mas diferente daquelas mais
usuais, as redes técnicas que são suporte às NTICs têm
componentes geralmente muito pequenos e leves,
usualmente escondidos da visão do público, como no
caso dos cabos de fibra ótica, as salas de servidores e
os canos enterrados debaixo das estradas ou correndo
por dentro das paredes e sob os pisos”.

Há, portanto, uma dimensão física, de infraestrutura, que


costuma ficar invisibilizada ao se falar de Internet e tecnologia, mas que
não se pode deixar de considerar. Se há um acesso mais disseminado
entre moradores(as) de áreas populares é porque houve, nos últimos
anos, certa ampliação no acesso a essas tecnologias que se vincula
também à percepção dessas pessoas como consumidores desses bens e
serviços (já que esta certa popularização se articula sobretudo a uma
ampliação de mercado). Para além dos serviços de acesso à Internet,
equipamentos que antes eram utilizados apenas com outros fins (como
computadores e telefones celulares, por exemplo) também passam a ser
utilizados por moradores(as) dessas áreas como meios de acesso à

[ 148 ]
Internet, por exemplo. Nos dados coletados com os(as) entrevistados(as)
nos três estudos de caso, o acesso à Internet via desktops em geral se
relaciona ao acesso por computador do trabalho, do celular e de netbooks
ou tablets. Um exemplo para além desta pesquisa reforça o argumento.
De acordo com artigo recente de Ronaldo Lemos (2013), “Cerca de 5
milhões de brasileiros acessaram a internet por meio de tablets em 2012.
Em 2011 o número era de pouco mais de 200 mil. (...) Uma parte das
tabuletas populares acaba indo parar nas periferias do país. Com isso, há
um novo fenômeno: da mesma forma como muita gente comprou celular
sem jamais ter tido um telefone fixo, há hoje pessoas comprando um
tablet sem nunca ter tido antes um computador”. Se há mais acesso a
essas tecnologias, esse vem se dando, sobretudo, via consumo. 80 Ainda
são raras, por exemplo, as favelas e os bairros populares onde há sinal de
Internet liberado para seus(suas) moradores(as). Quando isso acontece
(no estudo, isso aparece na favela Santa Marta, zona sul do Rio de
Janeiro), ainda é precário e se restringe a certas partes da localidade.
O sentido do território na pesquisa extrapola, em muito, a
dimensão descrita anteriormente. Em dois dos casos estudados –
identidade favelada e cultura na Baixada Fluminense –, ele é um dos
motivadores principais das ações e iniciativas dos(as) entrevistados
dentro e fora da Internet. A Baixada Fluminense, no caso da cultura,
aparece como um ponto forte e passa por uma relação de
autoidentificação e pertencimento que, ao mesmo tempo que pretende
manifestar sua insatisfação que, na maioria das vezes, tem a ver com a
má atuação do poder público e/ou a ausência de políticas públicas que
garantam direitos, propõe-se a produzir um novo imaginário sobre
aquele território, afirmando-o positivamente. Essa dimensão está
presente tanto nos cineclubes Buraco do Getúlio e Mate com Angu como
no trabalho do Enraizados. No caso da identidade favelada, fenômeno
muito semelhante está em jogo.
Os dois casos aproximam-se visto que boa parte das pessoas que
constituem as iniciativas estudadas está envolvida em atividades de
cultura e comunicação em que a ideia de disputa de certo imaginário é
central. Os(as) jovens moradores(as) de favelas buscam construir uma
visão positiva sobre seu local de moradia, sobretudo por textos e

80Esteponto é essencial quando se pensa que há um debate mais amplo acerca


do marco regulatório da Internet no Brasil e uma forte demanda, mesmo juvenil,
pela Banda Larga. Para mais informação sobre o Programa Nacional de Banda
Larga, ver http://www.mc.gov.br/acoes-e-programas/programa-nacional-de-
banda-larga-pnbl, acesso em abr. 2013.
[ 149 ]
imagens fotográficas, mas, assim como no caso da Baixada Fluminense,
não deixam de lado a crítica e a denúncia, sobretudo relacionadas ao
descaso do poder público com tais territórios. Baixada Fluminense e
favelas são os locais de moradia dessas pessoas, onde estabelecem
relacionamentos de diversos tipos e onde construíram as condições de
mobilização social que as transformaram em militantes, ativistas ou
trabalhadores sociais. Essa relação entre eles e seu território não é
motivadora de suas ações, motivo de orgulho (“ser nascido e criado na
favela” é algo muito comum de ouvir entre militantes sociais populares
como diferencial positivo para o engajamento) e de mobilização para
melhorias e reivindicações. Ao mesmo tempo, a ação via Internet permite
que determinados assuntos possam extrapolar territórios, encontrando
ecos em lugares distantes fisicamente, mas com realidades sociais
semelhantes. Por outro lado, a divulgação de determinados
acontecimentos e assuntos na Internet (seja de forma anônima, seja
utilizando seu nome ou da organização a que está associado) pode
ajudar a preservar a segurança física das pessoas que fazem certas
denúncias, sobretudo em casos relacionados à violência policial.
No caso que se refere ao estudo de caso de gênero/ jovens
mulheres, o território não tem a mesma centralidade. No entanto, e
apesar do amplo uso das NTICs, em especial a Internet, é importante
registrar que nenhuma das experiências pesquisadas abre mão de outras
formas de ação preexistentes, tais como realização de eventos
presenciais, produção de panfletos e cartazes e/ou o dito “olho no olho”.
Para as entrevistadas a Internet é um espaço de divulgação e mobilização
para pautas que estão presentes no seu ativismo cotidiano. Ela tem se
destacado também, especialmente o Facebook, na organização,
divulgação e visibilidade de eventos, tanto os aparentemente
“espontâneos” como os promovidos por coletivos identificados e
organizados presencialmente. Não se pode perder de vista que nesse
caso a Internet está sendo usada como um instrumento que potencializa
ações e movimentos que estão se dando também off-line e isso foi
reforçado diversas vezes por entrevistados dos três estudos de caso. O
território físico também é o cenário dessas relações. As instituições,
universidades, bares onde se encontram para organizar uma passeata ou
as ruas e calçadas onde essas passeatas e atividades são realizadas
podem ser entendidos, portanto, como territórios de luta visto que o uso
que é feito deles lhes atribui significado.
Em todos os estudos de caso, seria possível traçar mapas por
onde passam e passaram os(as) entrevistados(as) e que se realizam como
[ 150 ]
tais visto que neles são criadas redes de amizade, solidariedade,
familiares etc, mas também que são ressignificados a partir de atividades
políticas por eles criadas como no caso das marchas das mulheres, dos
cineclubes realizados em bares, clubes etc. e das mobilizações nas favelas
como o #Ocupa (Borel/ Alemão), atos contra a morte de jovens pela
polícia na Maré e as mobilizações contra a remoção no Santa Marta, por
exemplo. A Internet, e dentro dela blogs, perfis em redes sociais, contas
no Youtube ou no Flicker, sites e outros tantos recursos também
poderiam ser incluídos nesse mapa já que a circulação dessas pessoas e a
forma de apropriação dos territórios físicos por onde passam incorpora
os usos e significados criados e recriados por eles através da Internet e
dos outros recursos das NTICs que a ela se associam. Ao invés de pensar
online e off-line como par de oposições, nos casos estudados faz mais
sentido pensa-los em termos de continuidades, em dimensões
fundamentais na construção de práticas e repertórios de militância entre
as pessoas, grupos, movimentos sociais e organizações que buscamos
conhecer.

Referências Bibliográficas

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Sociologia. Rio de Janeiro: Editora Marco Zero, 1983.

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[ 151 ]
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In: ALMEIDA, Maria Isabel Mendes de. EUGENIO, Fernanda. (orgs.)
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favelada e novas tecnologias – Pesquisa Jovens pobres e o uso das NTICs
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________. Zanetti, Julia Paiva. Relatório Final da Pesquisa Jovens pobres


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ZANETTI, Julia Paiva. Relatório estudo de caso Gênero e novas


tecnologias – Pesquisa Jovens pobres e o uso das NTICs na criação de
novas esferas públicas democráticas. Rio de Janeiro: Ibase, 2013.

[ 152 ]
ANÁLISES PERIFÉRICAS EM CENA: DA
PRODUÇÃO CULTURAL INDUSTRIAL À
PRODUÇÃO DE AFECTOS ALEGRES
Alessandra Lacaz 81
Félix Berzins 82
Williana Louzada 83

Intentando escrever sobre a experiência do encontro que emergiu


durante a avaliação do curso Periferias em Cena (PC), buscamos trazer à
tona, neste artigo, as texturas que se presentificaram e permearam nossas
peles, compondo, assim, as análises que construímos neste processo.
Iniciamos com uma pergunta que se tornou premente nas
conjecturas tecidas nesta avaliação: o que pode um curso? Uma pergunta
simples, porém capciosa, pois nos desloca do lugar burocratizado de
meros avaliadores ao abrir uma multiplicidade de leituras sobre nosso
objeto de análise. Desta primeira pergunta é possível desenvolver uma
infinidade de outras: qual a capacidade que um curso possui de impacto na
vida de seus alunos? Como esse curso se relaciona com a realidade de seus
envolvidos? Em que contexto sócio-político-cultural esse curso se inscreve?
Quais as relações de poder que atravessam o curso, a nível institucional,
comunitário, municipal, e até global? Tais perguntas delimitam, em certa
medida, aquilo que queremos trazer neste artigo, dando espaço, ainda,
para os elementos ético-estético-políticos que emergiram ao longo desse
processo e que são parte integrante, mesmo que menos visíveis, de um
curso, da avaliação do mesmo e dos efeitos produzidos por ele.

81 Psicóloga e Analista Institucional, formada pela Universidade Federal

Fluminense, mestre em Psicologia Institucional pela Universidade Federal do


Espírito Santo. Para contato: a.slacaz@gmail.com
82 Psicólogo e Analista Institucional, formado na Universidade do Estado do Rio

de Janeiro (UERJ), especialista em Análise Institucional pelo Instituto Felix


Guattari, mestre em Psicologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em
Psicologia Social da UERJ e doutorando em Psicologia pela Universidade
Federal Fluminense. Para contato: felixberzins@gmail.com
83 Psicóloga, formada pela Universidade Federal Fluminense, coordenadora do

Núcleo de Reabilitação e Integração Social do Instituto Municipal Nise da


Silveira (RJ), mestre em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em
Psicologia Institucional da Universidade Federal do Espírito Santo. Para contato:
willianabr@gmail.com
[ 153 ]
Tendo sido a nós encomendada a realização da avaliação do
Periferias em Cena, vislumbramos dois caminhos possíveis a seguir:
sentirmo-nos confortáveis na posição de avaliadores-especialistas, uma
posição de poder verticalizada que se legitima, nesse caso específico, pela
reprodução de leituras e análises pré-moldadas que já possuem prestígio
e legitimidade no campo da produção cultural; ou poderíamos apostar
na criação de um campo referencial próprio, que fosse fruto de uma
construção coletiva entre avaliadores e os envolvidos diretos,
possibilitando, assim, uma leitura autônoma e local da realidade. Desde
o primeiro momento de construção da demanda para a realização deste
seminário, estabeleceu-se um acordo comum sobre o caráter ético e
estético dos instrumentos de avaliação que deveriam ser usados. A
avaliação, assim como o próprio curso PC, deveria problematizar em vez
de procurar por essências e explicações universais; questionar as
instituições que atravessavam a prática do curso; transversalizar o campo
de análise, incorporando na nossa leitura toda uma gama de aspectos
políticos, econômicos, culturais, subjetivos; e, principalmente, a avaliação
deveria ter uma metodologia aberta, inclusiva, incorporando o saber de
todos envolvidos, fomentando, assim, um espaço para que todos os
presentes pudessem elaborar um processo de auto-análise, ou análise de
implicação, se reconhecendo como ator participante desse campo de
avaliação. Dessa forma, a postura contratualmente definida, juntamente
com a gestão do curso, foi a de seguir o caminho que apostava na criação
coletiva e autônoma do processo de avaliação, qual seja o segundo
caminho.
Nesse sentido, cabe aqui expormos de onde partimos quando
afirmamos tais ambições metodológicas como condição e condução de
trabalho. Nossas alianças, neste caso, se deram, em especial, com as
ferramentas da Análise Institucional, um campo referencial por nós
adotado que condensa práticas, instrumentos conceituais, teóricos e
metodológicos, desenvolvidos a partir dos anos 60 por diversos
movimentos denominados institucionalistas. Foi a partir do interesse da
gestão do curso em utilizar tais referenciais que se construiu a demanda
concreta do Seminário de Avaliação do Curso Periferias em Cena e o
convite feito a nós.
É a partir desse referencial que nos dispusemos, enquanto
psicólogos, a nos despir de nossos especialismos, saberes e teorias para
nos apropriarmos de um campo que se dimensiona na experiência do
encontro e dos devires. Sendo assim, ocupamos, nessa aliança, a

[ 154 ]
profissão da desprofissionalização. Seguindo os passos de Rodrigues e
Souza (1987):

Diríamos que se a Análise Institucional não


profissionaliza este não é seu DEFEITO, mas seu
EFEITO: no exigir a análise permanente da implicação
do psicólogo na intervenção que efetua, provoca o
questionamento da “naturalidade” tanto de seu lugar
de perito quanto até mesmo de seu suposto “objeto
natural” (pois afinal, “o psíquico” ou o indivíduo não
seriam, também eles, instituições?). “Profissão
impossível” em seu limite ela o é, mas é também, por
definição e por proposta, PROFISSÃO
PERMANENTEMENTE EM CRISE ou LUGAR DA
DESPROFISSIONALIZAÇÃO IMINENTE.
(RODRIGUES & SOUZA, 1987, p. 30)

Tal questão constituiu o modo como construímos nossa atuação e


a avaliação do curso Periferias em Cena, e é o que permite o constante
movimento de desnaturalização de nossas práticas. Não nos
preocupamos em responder, dando ênfase à problematização. Longe de
tornar o papel do psicólogo um modelo, apostamos na mudança, nos
processos visíveis e invisíveis e na afirmação das diferenças.
Ao nos assumirmos como psicólogos-analistas institucionais não
estamos evocando alguma legitimidade, demarcando uma fatia de
mercado ou utilizando-nos de uma teoria para um exercício de poder.
Mas, ao contrário, estamos afirmando a potência desse não-lugar, que
tem como função última tornar-se completamente dispensável. Não
temos medo de admitir uma possível redundância de nossa presença
e/ou de nossa atuação. Queremos sim disparar processos de auto-análise
e autogestão e, por isso, nossa redundância é efetivamente nosso
objetivo.

Linhas Molares: o contexto da Produção Cultural

“O conceito de cultura é profundamente reacionário. É


uma maneira de separar atividades semióticas em
esferas, as quais os homens são remetidos. Isoladas,
tais atividades são padronizadas, instituídas potencial
ou realmente e capitalizadas para o modo de
semiotização dominantes - ou seja, elas são cortadas de
suas realidades políticas. A cultura enquanto esfera
autônoma só existe em nível dos mercados de poder,
[ 155 ]
dos mercados econômicos, e não em nível da
produção, da criação e do consumo real” (GUATTARI
& ROLNIK, 2005)

Trabalhar com o conceito de cultura é extremamente arriscado em


função dos inúmeros significados a ele acometidos, tanto no meio
intelectual como no senso comum da sociedade. É um daqueles conceitos
carregados, cheios de lógicas e raciocínios próprios acumulados ao longo
da história da humanidade, por isso seu uso sempre abre a possibilidade
de desentendimentos (ou multi-entendimentos). Mas não nos interessa
aqui depurar um significado ideal ou verdadeiro, esse seria um exercício
estéril para os objetivos dessa reflexão. O que realmente nos interessa é o
USO que a sociedade faz deste conceito: os enunciados e as práticas que
diferentes atores da sociedade fazem da noção de cultura para atingir
algum objetivo Ao entender um pouco mais dessa relação, ficará mais
claro o contorno de nosso território: os mercados econômicos e de poder
que dominam o campo de produção cultural do Rio de Janeiro, no qual
os agentes de cultura formados pelo curso estão de fato inseridos.
Os mercados de poder e os mercados econômicos que Guattari
assinala na citação acima se materializam em organizações ora parceiras,
ora em disputa. Bancos Multilaterais (como o Banco Mundial, Banco
Interamericano de Desenvolvimento, Banco Nacional de
Desenvolvimento Social), Organizações de Comércio (Acordo Geral de
Tarifas e Comércio, mais conhecida pela sigla em inglês GATT,
Organização Mundial do Comércio), Organizações Internacionais
(Organização das Nações Unidas/UNESCO), Estados-Nações, grandes
corporações, multinacionais, até a sociedade civil organizada
(Organizações Não Governamentais, Fundações, etc). São essas as
instituições que compõem, atualmente, o tecido social dos mercados
econômicos e de poder da produção cultural. A análise de seus discursos,
posicionamentos, disputas, enfim, todos os tipos de práticas envolvendo
o uso da cultura para alguma finalidade acaba por transformar o que
entendemos hoje por esse conceito, e circunscreve os modelos de
produção cultural constituídos.
George Yudice, em seu livro “A conveniência da Cultura”
(YUDICI, 2006), desenvolve profundamente essa análise, e por meio dela
sustenta que, na atualidade, a cultura é
entendida/apropriada/capitalizada/usada como um recurso. Essa
relação tem paralelos com o uso que a sociedade faz da natureza,
objetivando-a como um recurso natural, construindo, assim, a
necessidade de seu gerenciamento para a exploração, conservação,
[ 156 ]
distribuição e consumo. Dessa forma, a cultura pode ser compreendida
segundo duas dimensões que a compõem no mundo em que vivemos
hoje: a de um bem material, bem delimitado e, por isso, facilmente
privatizado, capitalizado e, consequentemente consumível, e a de um
bem imaterial, produto do trabalho imaterial 84 dos sujeitos, da colaboração
coletiva, da criatividade e inventividade. Ambas as dimensões
mencionadas compõem o campo da cultura contemporâneo e explicitam
as relações de poder presentes nesse território.
A expropriação da cultura pelo capitalismo havia sido muito
restrita até final do século XX, quando os mercados econômicos e de
poder encontraram nesse bem imaterial uma nova fonte de riqueza ainda
pouco explorada e renovável. A cultura, então, passa a não ser somente
compreendida como uma expressão folclórica, popular, uma arte
refinada ou um valor individual a ser cultivado. Começa a ser
mercantilizada massivamente no formato de produtos culturais, processo
esse que se intensifica no presente a partir da ampliação das chamadas
Indústrias Culturais (consolidadas na primeira metade do sec. XX) para
as chamadas Indústrias Criativas, que se utilizam de instrumentos
jurídicos para a geração de capital a partir das propriedades intelectuais.
Esse é um dos usos da cultura. A cultura como um recurso para a
economia mundial, que acaba moldando o que entendemos e fazemos da
cultura a partir de todo um mercado econômico/poder, com suas leis,
mecanismos de controle, distribuição e organização do trabalho, enfim,
todo um aparato social constituído em função do gerenciamento do
recurso da cultura objetivado em propriedade intelectual privada. Nesse
registro da cultura, os Bancos Multilaterais e os tratados de comércio
internacional exerceram e ainda exercem uma forte influência nas

84 Trabalho Imaterial é um conceito forjado por Lazaratto, Hardt e Negri que

expõem com muita clareza as novas dinâmicas econômicas e sociais da


contemporaneidade. A noção de bens imateriais como maior fonte de riqueza do
capitalismo contemporâneo está amplamente desenvolvida no livro “Trabalho
Imaterial” (LAZARATO, NEGRI, 2002), e “Império”, (HARDT, NEGRI, 2000)
para citar somente dois textos. Segundo Negri e Hardt (2000, p. 48), “o papel
central previamente ocupado pela força de trabalho de operários de fábrica na
produção de mais-valia está sendo hoje preenchido, cada vez mais, por força de
trabalho intelectual, imaterial e comunicativa”. Isto é, a produtividade vem
sendo acoplada a uma dimensão que ultrapassa a fabricação de um produto
mecanicamente produzido no interior de um estabelecimento industrial.
Competências subjetivas vão entrando em cena e definindo as novas prioridades
no cenário do mundo do trabalho.
[ 157 ]
políticas nacionais de incentivo e fomento cultural de inúmeros países,
incluindo o Brasil. Atualmente, o campo de produção cultural brasileira
continua basicamente restrito a financiamentos regidos pelas diretrizes e
indicadores adotados por esses bancos e acordos.
Paralelamente a esse processo, a massificação de bens culturais
acabou por gerar uma homogeneização da cultural consumida
globalmente, fazendo com que parcelas de representantes de Estados-
Nações, organismos internacionais (basicamente UNESCO) e a sociedade
civil global apontassem para a necessidade de conservação da
“biodiversidade” 85 cultural de cada território/povo. Um movimento
animado também pela constatação de que a cultura pode ser utilizada
como um recurso para o desenvolvimento social dos denominados
países emergentes. Assim, a cultura passa a ser um recurso a ser
gerenciado para o desenvolvimento social, e para fins de justiça social 86.
E, na ponta da rede de organizações estruturantes dessa outra faceta do
campo da produção cultural, ONG’s e Fundações instrumentalizam-se
da cultura em seu trabalho como método de inclusão social (na educação,
ensino de artes, oficinas, etc.) e/ou como forma de captação de recursos
para a sua subsistência.
Esses dois usos da cultura - como um recurso econômico e de
desenvolvimento social -, apesar de parecerem à primeira vista
antagônicos, não são completamente estranhos na sua lógica de
funcionamento e no formato de seus aparelhos organizativos. Pois
ambos se inserem na racionalidade do uso da cultura como um recurso,
que, por assim se constituir, necessita de aparatos para seu
gerenciamento. Essas estruturas organizativas se constituem de forma
verticalizada (pois as diretrizes que decidem pelo fomento da produção
cultural e, consequentemente, seu formato, são decididos de cima para
baixo, dos grandes e poderosos para os consumidores e usuários); e
acumulam poder na mão dos intermediários (distribuidores detentores

85Nota-se aqui novamente o paralelo da cultura sendo gerida como um recurso


da mesma forma que é a natureza.
86 Yudice utiliza do conceito de Justiça Social como um contraponto a

instrumentalização da cultura para fins econômicos. Dentro das análises que


desenvolve dentro desse conceito guarda-chuva, examina “o ativismo das
iniciativas de ações de cidadania e dos próprios órgãos culturais jovens, para,
respectivamente, curar as feridas da cidade dividida, e para dar poder a
juventude pobre e racializada” (YUDICE, 2006, p. 187). Outro conceito que ajuda
na compreensão sobre o que o autor entende por justiça social é o conceito de
Cidadania Cultural.
[ 158 ]
da propriedade intelectual- como gravadores e produtores culturais; e
organizações executoras de ações culturais para fins de justiça social,
como ONGS e fundações). Os artistas e agentes culturais são cada vez
mais relegados, assim, a figura de mero provedores de conteúdo e
trabalhadores precarizados. Além de funcionarem com formatos
similares, essas duas facetas dessa economia cultural produzem uma
exploração similar. Expropriam do campo social um bem imaterial
construído coletivamente para, em última instância, gerar lucros para os
financiadores. No retorno financeiro da venda de um bem imaterial
produtificado, ou numa recuperação financeira por meio de visibilidade
de marca, possível através dos mecanismos de incentivos fiscais que
permitem as empresas patrocinadoras explorarem o potencial
publicitário do empreendimento cultural (filmes, festivais, ações sociais,
etc.).
Em suma, o campo de produção cultural foi tomado, em última
instância, por uma lógica utilitarista, e os agentes culturais e artistas tem
como opção concreta lutar pelos poucos lugares de maior destaque nesse
mercado, ou então se verem sempre à margem dessa grande indústria,
precarizados e com pouco retorno financeiro de seu trabalho. As políticas
públicas culturais continuam a ser ditadas pela racionalidade ora
economicista, ora utilitalirista, segundo diretrizes e modelos ditados
pelos bancos, transformando pouco essa realidade. É nesse contexto
macropolítico que o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia
do Rio de Janeiro se inscreve quando propõe um curso de formação de
agentes culturais populares. A reflexão que nos atravessou como
avaliadores foi se o curso Periferias em Cena se portou como mais um nó
dessa rede, ou como um desvio, o que iremos destrinchar mais a frente.

O Seminário de Avaliação

Partindo dos pressupostos ético-estético-políticos já colocados


neste texto, montamos a proposta analítica dos processos do curso
Periferias em Cena. Inicialmente, buscamos conhecer o material produzido
a partir do curso (livro Periferias em Cena e vídeo) e o projeto Periferias em
Cena, também imbuídos das problematizações em torno do tema da
cultura e produção cultural. Ficou acordado que o convite para este
encontro seria feito contando com a presença dos participantes por dois
dias: uma sexta-feira de 18h às 22h e sábado o dia inteiro. Foram
convidados para a avaliação alunos, professores e colaboradores do
projeto. Além disso, foi elaborado um questionário, respondido pelos ex-
alunos do curso. A partir desses dois instrumentos (seminário e
[ 159 ]
questionário) foi possível levantar uma série de informações sobre o
curso que apresentaremos a seguir.
De maneira geral, vale ressaltar a predominância ampla de uma
avaliação positiva por parte dos alunos sobre o curso (em termos de
conteúdo e infraestrutura) e o corpo docente, expresso também na
ausência quase completa de reclamações ou mesmo sugestões de
melhorias para uma próxima turma. Tanto nos questionários como no
seminário de avaliação essa percepção positiva sobre o PC foi
compartilhada em comum entre os diferentes participantes,
configurando-se assim como um traço marcante desse grupo.
Optamos por uma metodologia não quantitativa no tratamento
dos dados levantados, uma vez que entendemos que a experiência vivida
durante esse processo pelos alunos e professores pouco podia ser
expressa em números e porcentagens, uma vez que dizia sobre afetos,
mutações subjetivas, e outros processos que atravessaram o coletivo de
forma singular para cada componente. Buscamos, portanto, nos
apropriar de algumas ferramentas disparadoras para as discussões como:
dinâmicas corporais, atividades em grupo, debates, recursos teatrais, etc.
Tais ferramentas consistiram em importante meio de conhecermos
aqueles que participaram do curso, suas implicações e análises acerca do
encontro produzido pelo PC.
Conforme já destacado, nas pesquisas e no seminário nos
deparamos com uma avaliação amplamente positiva do curso Periferias
em Cena. Esse cenário nos obrigou a nos deslocar do lugar usual do
Analista Institucional, pois este tem como principal função disparar
processos de auto-análise e autogestão que permitam que o coletivo
exponha e discuta abertamente sobre seus conflitos e os não-ditos
institucionais, e, assim, dissolvam eventuais mágoas, rancores e
encrudecimentos comuns às relações humanas largamente deterioradas
nas organizações de nossa sociedade. Porém, rapidamente identificamos
que esse não era o caso do coletivo que se formou a partir do PC, que
inclusive mostrava traços marcantes de processos de auto-análise e
autogestão no seu funcionamento. A partir dessa constatação, decidimos
nos misturar ao máximo com a dinâmica e funcionamento desse grupo
na tentativa de mergulhar um pouco mais no seu campo existencial e ser
atravessado por uma série de afectos que dizem muito a respeito do
aumento de potência que esse curso visivelmente havia desencadeado
nos seus participantes.
Desse modo, nesse artigo traremos alguns dos pontos que
consideramos mais relevantes nesse processo.
[ 160 ]
Autogestão

A autogestão se destaca como um importante ponto a ser


analisado no processo do PC. Percebemos um grau consistente de
autogestão nos processos organizativos do grupo. Entendemos por
autogestão a capacidade de um coletivo discutir, debater e decidir de
forma horizontal e autônoma questões referentes a seu funcionamento.
Em diversos momentos foi relatada a dificuldade inerente de manter um
alto grau de democracia direta em um grupo tão diverso, com pessoas de
localidades distintas, com implicações e modos de ser diferentes e
trabalhando com uma pluralidade de iniciativas/projetos relacionados à
cultura. Mas foi amplamente ressaltado que, apesar das dificuldades,
sempre se tentou manter o caráter democrático do grupo. Essa
característica é fundamental para a promoção de autonomia por parte da
turma e de seus integrantes, outro fator com grande impacto para a
aprendizagem. Nesse sentido, ao longo do curso, para além de uma rede
afetiva entre alunos, professores e colaboradores do PC, foi-se
construindo uma potente rede de gestão do curso, de suas atividades e
direcionamentos, bem como de trocas e articulações no campo da cultura
nas periferias. A desinstitucionalização dos lugares prontos, que
normalmente delimitariam e comporiam um curso em uma instituição de
formação como o IFRJ, permitiu que um formato de rede passasse a
compor as relações e conexões provenientes deste encontro.

PC como analisador 87

Neste ponto, buscamos evidenciar os efeitos produzidos e as


análises acerca do que foi construir um curso no IFRJ com público-alvo
especificamente voltado para as periferias e favelas do Rio de Janeiro e
região metropolitana. Chamam a atenção os deslocamentos efetuados
pelo PC no Instituto e seu modo de funcionar. Tendo sido construído
como um curso de extensão, isto é, que possibilita a interlocução com a
comunidade, o próprio PC se tornou um analisador para o IFRJ na
medida em que expôs como mecanismos elitistas e segregadores
atravessam as instituições educacionais de excelência, mesmo as
públicas.

87Entendemos os analisadores, segundo a Análise Institucional, como aqueles


acontecimentos que tornam visíveis as instituições "invisíveis" num só golpe.
Nesse sentido, o PC serviu como analisador do lugar que a Academia ocupa nas
sociedades contemporâneas e também sua função, já que tornou claras as formas
de gestão majoritariamente presentes no ensino público técnico e superior.
[ 161 ]
A aproximação entre o IFRJ e essa periferia, que se apresenta
através de outras histórias, outros modos de viver e de outras
necessidades e estratégias, deixa marcas nítidas no Instituto, mobilizando
diversos setores e membros do mesmo. Com um funcionamento e
articulações singulares, o PC evidenciou, em outras palavras, a
naturalização de uma certa privatização do ensino público técnico e
superior que acaba, muitas vezes, voltado apenas às elites. Com o PC, foi
preciso pensar uma estrutura que abarcasse condições diferenciadas e
que pudesse, de fato, dialogar com as periferias a partir de seus próprios
interesses e imperativos. Nessa medida pudemos avaliar através de
aspectos captados nos relatos dos presentes no seminário de avaliação –
que nos apontam para um alto grau de adesão ao curso – somados aos
indicadores de baixa evasão, que o curso possibilitou tal diálogo com
êxito.
Considerando, ainda, as análises apresentadas acerca do contexto
da produção cultural no contemporâneo, vale ressaltar que o curso
poderia ter favorecido o modo consumista e utilitarista tratado
anteriormente, reproduzindo a lógica hegemônica e não dando espaço a
iniciativas normalmente marginalizadas no contexto cultural;
principalmente se tivesse se proposto a fornecer mais um curso que
ensina como fazer cultura a partir de um viés universal historicamente
produzido como verdadeiro. No entanto, especialmente o foco na
produção cultural das periferias possibilitou que se produzisse um
desvio nesse campo e no que tange à formação de pessoas interessadas
na temática.
Seguindo com a análise, abaixo trazemos à tona outro vetor que
nos chama atenção e se destaca em nossa análise como ponto alto entre
os efeitos do PC.

Afectos 88

Partindo de Espinosa, Deleuze (2008) afirma que os sujeitos são


compostos por uma potência em constante processo de variação,
aumentando e diminuindo de intensidade. Essa variação da potência de
vida está relacionada à maneira como ela é preenchida, por afectos tristes
ou por afectos alegres. Os afectos tristes diminuem a potência de agir dos

88 Afectos se diferencia de afetos, os afectos não são pessoais, mas dizem

respeito a uma potência de vida impessoal. Uma potência afirmativa, potência


de ser; diz respeito a uma experimentação.
[ 162 ]
sujeitos, tendo como efeito diferentes afecções, como angústias, tristeza,
paralisação, impotência, dentre outros. Já os afectos alegres aumentam a
potência de agir, produzindo afecções, sentimentos e percepções que
impulsionam o sujeito para atividade, para a criação, expressam a
singularidade da vida e aumentam o poder do sujeito de ser afetado.
Os afectos alegres proporcionam uma expansão da vida como
um todo, e são importantes catalisadores dos processos de
aprendizagem, de auto-organização e no desempenho de qualquer
atividade de um sujeito/coletivo. Por isso a construção de um grupo
permeado por afectos alegres é fundamental para qualquer curso que se
proponha mais do que simplesmente repassar conteúdo, mas também
aumentar o grau de autonomia e de possibilidades de ação de seus
alunos.
Nos instrumentos de avaliação, pode-se perceber a presença de
um grande bloco de afectos alegres compartilhado em comum pelos
participantes do PC. Uma vibrante expressão do aumento de potência,
atualizada na maneira como todos se referiam uns aos outros e de suas
memórias do curso. As palavras como carinho, cumplicidade, respeito,
amizade e integração apontam justamente para esse quadro de relações
que produziam alegria e, consequentemente, a expansão da vida em sua
multiforma. Em suma, o curso permitiu a realização de bons encontros
entre os seus diferentes componentes, aumentando, assim, a potência de
agir desses sujeitos.
Esse grande bloco de afectos alegres, que se apresentou para nós,
‘avaliadores’, como base dos diferentes processos do PC, não pode ser
entendido somente como um produto de uma mera espontaneidade dos
encontros estabelecidos durante o curso, mas claramente foi fomentado
por ações conscientes envolvendo diferentes atores. Primeiramente os
proponentes, coordenadores, docentes, assistentes e outros envolvidos
na elaboração e execução do PC, que transpareceram uma forte
implicação na construção de um curso que visava justamente o aumento
da potência de seus participantes. Essa implicação dos diferentes sujeitos
que propuseram e bancaram o PC como um curso de extensão do IFRJ
proporcionou uma composição institucional habitada por afectos alegres,
materializados na criação de dispositivos (aulas e atividades
extracurriculares) que permitiram bons encontros e a atualização desses
afectos alegres nas relações que ali foram estabelecidas. Outros atores
fundamentais na composição desses afectos alegres foram os alunos, que,
conforme sua iniciativa de se inscrever no curso demonstra, estavam à
procura de maneiras de aumentar sua capacidade de agir no trabalho,

[ 163 ]
comunidade, enfim, no seu meio. Do encontro entre diferentes sujeitos à
procura de aumento de potência, ou melhor dizendo, habitados por
afectos alegres, podemos esperar grandes efeitos criativos e inventivos.

Conclusão

A partir do encontro produzido no Seminário de Avaliação, nas


leituras do material (projeto, livro e questionários de avaliação) pudemos
levantar alguns pontos que aqui foram explicitados e que denotam,
certamente, apenas parte do que pudemos captar da experiência vivida
ao longo do processo de formação no PC. Afinal, um curso nunca pôde
nem poderá dar conta de tudo, da universalidade das tecnologias de
ensino. O curso conseguiu provocar a construção de uma rede que se
expandiu para além do espaço-tempo das aulas, implicando seus alunos,
professores e colaboradores na aproximação entre a Academia e as
iniciativas culturais populares. Há claros indícios de que esse bom-
encontro produziu uma brecha nos modos naturalizados de atuar e
pensar o campo da cultura – em especial, nas periferias – aumentando,
assim, a potência de agir dos sujeitos envolvidos com o curso,
principalmente os alunos/multiplicadores. A própria confecção do curso
constituiu uma atenção e fomento de uma instituição pública de ensino,
nos moldes e porte do IFRJ, à cultura popular do Rio de Janeiro.
No contexto de produção cultural em que estamos inseridos,
parece-nos que apostar na potência criativa de uma rede alternativa é a
melhor estratégia para invenção de desvios potentes no campo da
produção cultural. Redes colaborativas entre agentes culturais, sem a
rigidez da intermediação institucional (salvando os casos onde as
instituições promovam essa rede, como foi o caso do IFRJ), onde os
sujeitos não sejam regidos pela competição, mas pela cocriação da
cultura como uma expressão e expansão da vida. Uma produção
cultural não industrial e mercantilizavel, mas como atualização dos
afectos alegres que buscamos cultivar. E, na constituição dessas redes
amarradas por afectos alegres, descobrir e inventar novos formatos
institucionais para o gerenciamento da cultura como um recurso com fins
não somente econômicos/sociais, mas também para a produção de
afectos alegres que aumentem a potência de todos envolvidos a agir
sobre e com suas vidas.
Pensando nisso, perguntamos, ainda, qual é a relação do IFRJ
com esse produto que, agora, também é dele? O próprio retorno do
grupo para um projeto de avaliação desse processo indica uma relação

[ 164 ]
do Instituto com esse “filho” que é reconhecido em sua importância e
que fomentará outros espaços de formação como este. Seguindo agora
pistas que levam não a um modelo de curso duro e pré-estabelecido, mas
á potencialização das vidas que passam por um processo de formação.
Retomamos aqui o ponto que destacamos a respeito das afecções,
do modo como se pode produzi-las, abarcando as singularidades, a
heterogeneidade, os conflitos e dificuldades como parte do processo e
não como algo a ser eliminado. Isso diz respeito inclusive à direção
hegemônica de um capitalismo que quer buscar características
empreendedoras em todos, direção essa que foi questionada e
subvertida, trazendo para o campo da produção cultural possibilidades
de criação de novos paradigmas culturais e não simplesmente a lógica de
captação de recursos.
Ensejamos, por fim, que esse texto seja mais um instrumento a
produzir ecos deste/neste trabalho, que não se encerrou com o curso e
nem com o seminário de avaliação. Seus efeitos têm ultrapassado os
muros institucionais e tomado caminhos que sequer conhecemos.

Referências Bibliográficas

DELEUZE, Gilles. En medio de Espinosa. Buenos Aires: Cactus, 2008.


GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: Cartografias do desejo.
Petrópolis: Editora Vozes, 2005.

HARDT, Michael; NEGRI, Antônio. Império. Rio de Janeiro: Record, 2000.


RODRIGUES, H. B. C. e SOUZA, V. L. B. A Análise Institucional e a
Profissionalização do Psicólogo. In: KAMKHAGI, V. R. e SAIDON, O.
(Orgs). Análise Institucional no Brasil. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo,
1987. p. 27-46.

YUDICE, George. A conveniência da cultura: usos da cultura na era global.


Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.

[ 165 ]

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