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1ª Edição
Assis - SP
Gráfica Storbem
2013
Este trabalho está licenciado por Creative Commons - Atribuição
Uso não Comercial
CAIO AMORIM
Capa
Agradecimentos..................................................................................................5
Apresentação.......................................................................................................7
Aline Dantas, Marisa S. Mello e Pâmella Passos
Consumo Favela................................................................................................21
Adriana Facina
Teatro da Laje....................................................................................................99
Antonio Verissimo dos Santos Junior
[5]
[6]
APRESENTAÇÃO
[7]
macro e micropolítica em suas análises para pensar os reais processos de
democratização e/ou capturas e aprisionamentos. Compreendendo uma
relação intrínseca entre uma política cultural que se almeja periférica e
especificidades da economia cultural as autoras situam suas discussões
no contexto da indústria cultural contemporânea e das estratégias de
dominação do capitalismo global.
[9]
guardiã e difusora do testemunho comunitário; um dos caminhos
possíveis para contar a história de um povo.
Organizadoras do livro.
[ 10 ]
CULTURA E PERIFERIAS – UMA POLÍTICA
(IM)POSSÍVEL?
Katia Aguiar 1
Pâmella Passos 2
[ 12 ]
diferentes atividades de pesquisa e de extensão 3 realizadas por cada uma
de nós, nos últimos dez anos, período no qual a ansiada consolidação
democrática ganhou novos tensionamentos gerados pelo contraditório
fenômeno da globalização da economia, cujas estratégias de ajuste se
assentam na proliferação dos dispositivos de segurança e na
criminalização de entidades e pessoas que escapam aos modos de vida
consentidos.
O que aproxima os diferentes processos nos quais estivemos
envolvidas é, em primeiro lugar, o fato de se apresentarem como
experimentações, encontrando no caráter processual e na dimensão
inventiva das práticas, elementos a privilegiar. Em segundo lugar, nos
aproxima o fato de desenvolvermos aquelas ações culturais em
territórios nomeados pelos discursos oficiais como “vulneráveis”. Tal
categorização tem sido o mote para a alocação de recursos
governamentais, não governamentais e empresariais, através de projetos
e de programas, que objetivam desde o apoio a iniciativas, já em curso,
envolvendo entidades e/ou pessoas que moram no local, até o
financiamento para implementação de tecnologias inovadoras, de caráter
multiplicador, já validadas em territórios afins.
De todo modo, o que tem nos chamado a atenção nesse tempo,
nos convocando a assumir um tom de prudência em nossos percursos, é
o caráter paradoxal desses investimentos: se o dinheiro circula, numa
atribuição de valor a territórios e pessoas historicamente excluídos de
benefícios, não tarda para que os mesmos sejam transmutados em capital
social, inscritos em novas estatísticas e devolvidos às engrenagens da
gestão (econômica) dos riscos. Operação de controle, contenção,
encarceramento ao ar livre. Mudanças para nada mudar...
Assim, para além da reivindicação de direitos sociais e de
políticas públicas que favoreçam os setores populares, importa
colocarmos nossa atenção no modo de elaboração e de implementação
dessas políticas. Num tempo em que “tudo é perigoso”, cabe usar desta
assertiva para nos deslocar de pretensas zonas de conforto que só num
estado de ignorância podem ser tranquilizadoras.
[ 14 ]
necessidades e a complexidade requeridas por cada tipo de Edital. Em
suas palavras,
[ 15 ]
Editais seja na posição de solicitantes, de concorrentes ou de
avaliadoras, afirmamos a pertinência de colocar em discussão tal
instrumento. Muitas vezes ouvimos que esse era o caminho mais
transparente e democrático de acesso aos recursos públicos, uma vez que
coloca “em pé de igualdade todos aqueles que se interessam ou
necessitam do fomento”. Ledo engano! As condições nas quais os Editais
são publicizados – prazos, exigências e contrapartidas, além do caráter
hermético dos textos - expõem por si só seus comprometimentos
políticos, indicando que as benesses de tais iniciativas, na maioria das
vezes, já têm nome e endereço certos.
[ 17 ]
financiamento externo, como a possível perda de autonomia,
cumprimento de prazos, etc.;
2º. Dessacralizar da militância, promovendo discussões sobre os
prós e contras, os possíveis impasses, e o cenário político e econômico no
qual proliferam os editais de financiamento. Considerar esse cenário
mais amplo pode contribuir para pensar outras posições políticas fora do
embate entre “militantes puro-sangue” (aqueles resistentes, que não
participam de editais) e os “vendidos” (aqueles que querem concorrer,
sobreviver de sua arte e/ou produção cultural);
3º. Conhecer as exigências e avaliar a adequação entre o que se
quer fazer e o recurso disponibilizado, desfazendo ilusões quanto à
estabilidade de vínculo e de remuneração. É recorrente a submissão de
projetos populares com objetivos e metas muito além do que os recursos
previstos podem garantir, levando ao excesso de trabalho mal
remunerado;
4º. Fazer a gestão coletiva das atividades, desde a formulação do
projeto até a aplicação dos recursos, inscrevendo o projeto no contexto
das relações econômicas vigentes. O projeto serve assim, como uma
experimentação que favorece a compreensão dos limites e das
possibilidades da posição de cada um numa economia cultural.
Entendemos que não é possível fazer uma discussão sobre
política cultural sem considerar sua economia, o que implica atenção à
indústria cultural, sua estrutura e funcionamento, em especial, o seu
modelo de ação. Aqui, o chamado oligopólio de franja parece dominar a
cena fazendo coexistir um centro oligopolístico (majors) e uma franja
concorrencial (independentes), operando o domínio da distribuição, da
busca especulativa de talentos e modismos (efeito moda) e dos direitos
sobre as obras por longo período de tempo (efeito reserva). Tolila (2007)
aponta que esse modelo “permite explicar vários fenômenos observáveis
no setor das indústrias culturais (...). Coloca também, diretamente, a
questão da criação artística em seus novos aspectos questionando os
modos de intervenção das políticas públicas” – como e quando intervir.
Importantes considerações para pensar a relação entre cultura e
periferia e interrogar: uma política (im)possível?
Referências Bibliográficas
[ 18 ]
pensamentos, ferramentas e questões. Porto Alegre:Catarse – Coletivo de
Comunicação, 2009.
________________ e ROCHA, Marisa Lopes da. Micropolítica e o
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HARVEY, David. O neoliberalismo: histórias e implicações. São Paulo:
Loyola, 2008.
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TOLILA, Paul. Cultura e Economia: problemas, hipóteses, pistas. São Paulo:
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Música
[ 19 ]
[ 20 ]
CONSUMO FAVELA
Adriana Facina 4
Somos desiguais
e queremos ser
sempre desiguais.
E queremos ser
bonzinhos benévolos
comedidamente
sociologicamente
mui bem comportados.
(Trecho do poema Favelário, de Carlos Drummond de Andrade)
O consumo do território
[ 23 ]
moradores de favela. Michel Silva, jovem morador da Rocinha, ativista e
comunicador popular, expressa essa ideia nos seguintes termos:
[ 24 ]
está, em inglês, no site da empresa Favela Tour: “Se você quer entender o
Brasil, não vá embora do Rio sem fazer o Favela Tour.” 6
Já no site da empresa Jeep Tour, podemos ler:
de 2013.
7 http://www.jeeptour.com.br/index.php/2013-02-18-15-26-11/favelas,
capturado em 24 de outubro de 2013.
[ 25 ]
pesquisa realizada em 2011 pela FGV, mais da metade dos turistas que
chegam ao Rio de Janeiro quer conhecer as favelas, o “Brasil Real”, nos
termos de um turista canadense entrevistado pelo jornal. Ao mesmo
tempo, a mesma pesquisa revela que os turistas pouco consomem nesses
locais e que têm receio de comer nas favelas, pois vêm o lixo e esgoto nas
ruas com “nojo”. De acordo com o jornal,
8 http://oglobo.globo.com/rio/mais-da-metade-dos-turistas-quer-conhecer-
favelas-do-rio-7349831, consultado em 24/10/2013.
[ 26 ]
de pedófilos entre os turistas estrangeiros. 9
9 Idem.
10 http://www.turismo.gov.br/turismo/noticias/todas_noticias/20130121.html
, capturada em 28/10/2013.
[ 27 ]
consideradas do âmbito familiar privado. Essa visita turística que se faz
pelo passeio no teleférico, com parada apenas em suas estações e
imediações delas, é denominado por grupos de moradores que
organizam visitas ao Complexo como sendo “turismo pelo alto”. Para
eles, esse tipo de passeio não permite ao visitante conhecer de fato a
favela e estabelece com seus moradores uma relação de exotização e
exploração econômica considerada perversa. Em contraposição, esses
grupos organizam visitas por becos e vielas, o chamado “turismo por
baixo”, visto como mais verdadeiro e comprometido com a população da
favela. Um exemplo é o Rolê Afetivo, organizado pelo coletivo Ocupa
Alemão, formado por jovens moradores. Outro exemplo é o Fotoclube
Alemão, criado pelo fotógrafo Bruno Itan, e que mistura moradores e
visitantes em passeios por dentro das favelas do Complexo produzindo
fotos e discutindo a criação de um novo olhar sobre o território.
Pude comprovar a desvinculação do “turismo pelo alto” com a
vida na favela um dia em que fui a um evento que acontecia na última
das estações do teleférico, a de Palmeiras. Era um sábado de sol e havia
muitos turistas no teleférico e na estação. De repente, caiu um temporal
muito forte e o teleférico fechou. Um grupo de uns dez turistas ficou
apavorado, perguntando aflito na bilheteria se o teleférico voltaria a
funcionar. Diante da negativa do funcionário, ficaram muito assustados
em ter de descer o morro em que fica a estação e pegar um transporte
alternativo (Kombi, mototáxi etc) para chegar ao “asfalto”. Fui
caminhando junto com eles, pois tinha de ir a outro evento na Praça do
Conhecimento, na favela Nova Brasília. Ouvi seus comentários que
misturavam tensão, medo, revolta e uma imensa vontade de sair
correndo daquele lugar o mais rápido possível.
Essas tensões em torno do consumo do território explicitam uma
cidade em disputa, material e simbolicamente falando. Quais são as
apropriações e as representações da cidade que os diversos tipos de
turismo em favelas pode criar? O turismo que segrega favela e asfalto ou
o turismo que integra e afirma “favela é cidade”?Ao consumo do
território favelado como perversidade, se contrapõe um tipo de interação
entre iguais no qual saberes sobre o território são trocado por novas
imagens produzidas sobre ele, na contramão da estigmatização
dominante.
Assim como o turismo, a produção cultural também é um campo
a ser explorado pelos agentes da comoditização da favela, reproduzindo
desigualdades de diversos tipos que instituem as relações de poder em
nossa sociedade.
[ 28 ]
Intervenções culturais
[ 29 ]
A Cultura que salva vem de fora e, mais do que elemento artístico
ou de valor estético, importa a sua capacidade de integrar os “menores”,
termo tipicamente criminalizante para designar jovens e crianças pobres,
à sociedade. Entendida como algo universal, essa Cultura desconsidera
as culturas dos espaços populares, ou aos toma como particularidades
hierarquicamente inferiores. Apresentada como universal e
politicamente neutra, tal concepção se encaixa perfeitamente na função
de controle social dessa camada da população, contendo rebeldias e
potencialidades pouco afeitas à ordem que resultam da experiência
cotidiana da pobreza e da opressão. Nas palavras de Terry Eagleton,
[ 31 ]
músico e sou recém-formado na polícia. O capitão me
perguntou se eu sabia ensinar, se já tinha dado aula de
violão. Já trabalhei profissionalmente com música.
Tenho um irmão mais velho que é músico. Tenho
percebido um grande interesse dos alunos e acho que é
um diferencial ter um policial passando este
conhecimento para eles – ressalta.
No armário do quarto, o violão encostado não possuía
serventia até que Maria Lúcia Teodoro Pereira, de 42
anos, recebeu a notícia de que a UPP Babilônia/
Chapéu Mangueira estava oferecendo aulas gratuitas
de violão. Agora, depois de aprender os primeiros
acordes, o sonho acalentado há tempos está sendo
realizado:
- Só agora consegui realizar este sonho. Tinha o violão,
mas não sabia nada. O professor Cunha deixa a gente
muito à vontade, ele cobra, mas é paciente. No
começo, foi difícil aprender violão. Comecei a me
dedicar mais em casa. Gosto de MPB. Estou
aprendendo músicas da Ana Carolina – conta.
Instalada com o objetivo de garantir mais segurança
aos moradores das comunidades e desmobilizar o
mercado do tráfico nos morros, a UPP Babilônia/
Chapéu Mangueira está cumprindo com o seu papel
pacifista ao estabelecer uma nova interação dos
membros da corporação lotados nestas comunidades
com seus moradores.
Para a moradora do morro da Babilônia, de 45 anos,
Arlete dos Santos, a tranquilidade dos moradores,
depois da instalação da UPP, não é conversa de
governo.
- Acho que a interação está muito boa e jogou por terra
muitos mitos. A UPP está mudando a visão do policial
para a comunidade. Está havendo uma aproximação
do policial com os moradores e esta interação é
positiva. Quando o policial chegava à comunidade era
de forma agressiva, acho que isto está mudando – diz.
As aulas de violão tiveram início na comunidade
Chapéu Mangueira, mas o grande número de pedidos
fez com que o curso abrisse vagas para alunos do
morro da Babilônia esta semana. As aulas acontecem
[ 32 ]
nos turnos da manhã e da tarde, sempre às terças e
quintas-feiras. 11
11 http://www.intranet.rj.gov.br/exibe_pagina.asp?id=8954, capturado em
30/10/2013.
[ 33 ]
como em declarações dadas por José Júnior, coordenador da mesmo, a
receita em 2012 girou em torno de 22 milhões de reais.
O Afroeggae ganhou destaque ao denunciar os horrores da
Chacina de Vigário Geral, impetrada por policiaisem 1993, trabalhando
com cultura, sobretudo música, como maneira de superar o trauma
sofrido pela população daquela favela. Hoje em dia, o Afroeggae se
especializou em buscar oferecer alternativas de vida a criminosos,
sobretudo os comerciantes varejistas de drogas mais famosos, gerentes
importantes ou mesmo dono de morros, estejam eles presos ou em
liberdade. Seu coordenador ganhou destaque midiático ao buscar
negociar com os bandidos do Complexo do Alemão a sua rendição ou
não reação à ocupação militar daquele território ocorrida no final de
2010. Episódio nebuloso que possui várias versões. Para a mídia
corporativa, José Júnior foi um herói destemido. Já para muitos
moradores sua atuação foi, para dizer o mínimo, questionável. As
intenções do Afroreggae, por meio das quais os apoios governamentais e
de empresas como Santander e Natura são obtidos, podem ser resumidas
em seu manifesto 12:
MANIFESTO AFROREGGAE
Mundo degradado.
Caos crescente.
O planeta, uma grande favela.
O homem continua desumano.
Tudo parece, sob medida,
para dar errado.
Mas, há utopia.
Loucos insistentes
acreditam na transformação.
Somos Afroreggae.
Trocar o fuzil pelo berimbau.
Derrubartodas as fronteiras
com explosões
de vitalidade e alegria.
Das ruínas
fazer nascer à liberdade
e o orgulho de ser o que se é.
SomosAfroreggae.
[ 37 ]
dessas grandes redes comerciais no pequeno comércio local, que não
possuem recursos para competir com esses novos concorrentes.
A ascensão do consumo na favela é noticiada por uma
reportagem da revista Isto É em 21 de junho de 2013, significativamente
intitulada Favela S/A. O personagem principal é Celso Athayde,
fundador da CUFA (Central Única das Favelas) e apresentado como
exemplo de empresário bem sucedido, capaz de transformar em cifras
milionárias o ainda pouco explorado “Eldorado” das favelas:
Favela S/A
Conheça Celso Athayde, o empresário carioca que,
com a parceria de potências como P&G, TIM e o
Grupo Doimo, da Itália, está montando uma ampla
teia de negócios para atuar exclusivamente nas favelas
brasileiras. Sua meta é investir R$ 1,5 bilhão até 2017
Por Rosenildo Gomes FERREIRA
Enquanto dirige seu utilitário-esportivo Freemont, na
cor preta, pelas vielas da Cidade de Deus, bairro
carente da zona oeste da cidade do Rio de Janeiro, o
empresário Celso Athayde, 50 anos, dono da Favela
Holding (FHolding), acena para conhecidos. Em
diversas ocasiões ele é parado por gente em busca de
ajuda para “dar um gás” em empreendimentos de
pequena monta, como a roda de pagode que acontece
no fim da tarde de domingo na quadra da Central
Única das Favelas (Cufa). Seu extenso currículo como
agitador cultural e ativista social o transformou em
uma referência nas comunidades cariocas – jargão
politicamente correto usado para designar os mais de
mil morros e favelas do Rio de Janeiro.
Atuando nos bastidores, Athayde se tornou amigo de
artistas renomados, empresários e políticos daqui e do
Exterior. Considerado um Ph.D. em matéria de baixa
renda e um dos maiores conhecedores das favelas, o
empreendedor carioca é requisitado pelo Banco
Mundial para proferir palestras em toda a América
Latina. Agora, ele quer transformar esses atributos em
negócios. Para isso, Athayde e seus sócios pretendem
investir R$ 1,5 bilhão, até 2017, em dez
empreendimentos que cobrem desde áreas de
entretenimento até logística, passando pela fabricação
de móveis, venda de passagens aéreas e distribuição
de peças de motocicleta. A maior parte dessa
[ 38 ]
dinheirama irá para a construção de shopping centers.
14http://www.istoedinheiro.com.br/noticias/122091_FAVELA+SA, capturado
em 30/10/2013.
[ 39 ]
subalternizado em seus projetos, como clientela a ser explorada
duplamente, como força de trabalho e como consumidores.
Ainda que a força do consumo na favela seja um fato, em meu
trabalho de campo no Complexo do Alemão tenho ouvido diversas
críticas a essas iniciativas, entendidas, mesmo no caso de um ex-favelado
como Athayde, como vindas “de fora”. Sempre sob suspeita, para
algumas lideranças comunitárias, grupos de economia solidária entre
outros, essa ideia da favela como “Eldorado” a ser explorado
economicamente rompe com práticas econômicas baseadas em princípios
morais que se sobrepõem à lógica de mercado, vista como “fria” e
individualista. No lugar do dono da venda que vende fiado e ajuda
famílias em necessidade, grande empresas que inscrevem os nomes dos
devedores no SPC.
No entanto, apesar de importante, a força dessa mercantilização
ainda não se impõe sobre as práticas econômicas específicas de territórios
faveladas, marcadas por intensa criatividade e reguladas por uma lógica
que faz conviver economia moral e economia de mercado. Na rua
principal da favela Nova Brasília, a rádio do intenso comércio ali
presente anuncia nos auto-falantes presos nos postes uma pet shop
especializada em “estética animal”, voltada para o embelezamento de
animais domésticos, incluindo a oferta de serviço de pet-táxi com ar-
condicionado para buscar e levar os bichinhos. Além da criatividade, a
proximidade com o cliente é algo muito valorizado e é marca distintiva
dos inúmeros comércios de favelas. Não basta oferecer produtos bons e
baratos, e nem algo inovador, é preciso ser amável, simpático, íntimo. De
modo muito explícito, consumo na favela é relação social, forma de
interação valorizada para além do que se compra e do que se vende, para
o que não há equivalência em moeda. Daí a sempre presente
ambiguidade diante da ostentação de riqueza. Mesmo esta tem de ter
uma razão extra-econômica.
Indagado sobre seus hábitos de consumo de luxo, José Júnior, o
coordenador do Afroreggae, sempre afirma que é importante demonstrar
poder com o uso desses objetos para ser uma referência de indivíduo
bem-sucedido economicamente para os jovens da favela, como
“alternativa ao crime”. Mesmo no discurso de um dos maiores
agenciadores da favela como negócio, a justificativa para o
enriquecimento em cenário de desigualdades brutais, afinal, é moral.
[ 40 ]
Consumo e identidade
Referências Bibliográficas
[ 42 ]
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consumo e identidade nas sociedades contemporâneas”. Comunicação,
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VALLADARES, Licia do Prado. A invenção da favela. Do mito de origem à
favela.com. Rio de Janeiro, FGV, 2008.
[ 43 ]
[ 44 ]
“É TUDO NOSSO”: DISPUTAS CULTURAIS EM
TORNO DA CONSTRUÇÃO DA
LEGITIMIDADE DISCURSIVA COMO
CAPITAL SOCIAL E ESPACIAL DAS
PERIFERIAS DO RIO DE JANEIRO
Ana Lucia Enne 15
Mariana Gomes 16
Direito de falar. Falar sobre. Falar de. Falar por. Em torno dessas
expressões configura-se parte expressiva da luta pelo direito à
significação e representação daqueles que, historicamente, foram
confinados a posições excludentes no jogo discursivo. Dentre eles, os
agentes cujos lugares ocupados nas distribuições do espaço físico e social
foram marcados por estratégias de estigmatização, degradação e
isolamento por parte dos detentores do capital econômico e político.
Falo, em especial, daqueles que habitam zonas alocadas como periféricas
aos centros avalizados e valorizados como referência, sempre presentes
quando se pensa nas modulações da estrutura espacial e social. No caso
da cidade do Rio de Janeiro, esse lugar periférico, também em processo
histórico de muitas variáveis, foi sendo construído em associação aos
bairros suburbanos, favelas, áreas rurais e a chamada região
metropolitana, com destaque para a Baixada Fluminense. Este artigo tem
por proposta principal refletir sobre as relações entre o espaço físico e o
espaço social, percebendo a ambos como espaços de luta, e compreender
o papel da cultura e da produção de sentidos como vital neste processo
de disputas.
Pretendemos apresentar uma breve discussão sobre essa questão,
bem como sobre a construção de projetos de identidade a partir do uso
da cultura, em suas imbricações com a política, para consolidar
apropriações sobre os territórios físicos e sociais, por parte de agentes
que vivenciam seu cotidiano em locais classificados como “periféricos”
ou pela lógica da “falta”, como as favelas, os subúrbios e a região da
[ 50 ]
Tais signos, que poderiam indicar, por um prisma hegemônico,
sinais de estigmatização, tais como nascer e viver em lugares
discriminados, construídos como degradados, como lugar da falta,
passam a ser mecanismos valorizados através de estratégias de
positivação: formas de dançar e mexer com o corpo; capacidade de se
mover pela cidade, conhecer as “quebradas”, não temer o contato,
circular; capacidade de falar sobre a experiência do cotidiano, uma
poética de vida que se encontra também em uma poética sobre a vida,
através de manifestações artísticas diversas; a gambiarra, o jeito, a
sagacidade como formas de vencer as agruras mas também de explorar a
criatividade humana; o afeto e a solidariedade vivenciados e pranteados
como valores perdidos pelas classes hegemônicas; as necessidades e
enfrentamentos cotidianos como escola e preparação para lutas políticas
mais vigorosas e mais “verdadeiras”, envolvendo, inclusive, a coragem
de denunciar a prática estatal da violência, do controle e da
desigualdade. Dentre muitas outras, essas são algumas categorias que
são ativadas na luta discursiva para valorizar e legitimar os sujeitos
historicamente submetidos a processos de exclusão e estigmatização.
Nesse sentido, enxergamos uma complexificação das formas de luta
entre posições diferentes no tecido social, que indicam como a “espuma
da cultura”, no dizer de Michel de Certeau (1995), é sempre algo em
renovação e impossível de caber em qualquer representação.
Percebemos esse jogo de disputas nos trabalhos de diversos
agentes, grupos, instituições, coletivos e redes que mapeamos em nosso
trabalho de campo. Através de suas estratégias de atuação, podemos
perceber como uma rede como a Enraizados, por exemplo, articula
práticas culturais transnacionais (hip-hop) para falar de realidades e
problemas locais (a vida em Morro Agudo, Nova Iguaçu), regionais (a
vida na Baixada Fluminense e sua relação com o Rio de Janeiro e com
outras espacialidades) e nacionais (temáticas como o racismo, o
desemprego juvenil, a violência nas grandes cidades, as drogas etc.),
sobrepondo espaços e os hibridizando (SANTOS, 2006). Nas letras das
músicas, nos documentários, na web-rádio que mantém, em seu portal
na internet, nos seus perfis das redes sociais, a rede Enraizados se coloca
como protagonista de um intenso processo de ação cultural e política,
tomando para si o direito à fala e à legitimidade da representação. E,
para além da fala, consolida sua ação em práticas diversas, através de
múltiplos eventos e intervenções no espaço urbano.
Quando pensamos na atuação de outro coletivo da Baixada
Fluminense, o Roque Pense, de Duque de Caxias, a imbricação entre a
[ 51 ]
esfera discursiva e as práticas sociais é clara. A partir de um difícil
posicionamento feminista em uma região marcada por práticas
conservadoras e machistas, as mulheres do coletivo idealizaram uma luta
contínua através de uma prática musical marcadamente masculina, o
rock, e realizam anualmente um festival com duração de três dias, em
que todas as bandas que se apresentam têm necessariamente de contar
ao menos com uma mulher, envolvendo oficinas, debates, exibição de
filmes, dentre outras estratégias, voltadas para a discussão de gênero,
feminismo, violência contra a mulher e possibilidades de desenvolver
atividades profissionais no campo da cultura, em geral ocupadas por
homens, como os ramos mais técnicos. No mesmo sentido, a ação da
Pagu Funk, também de Duque de Caxias, coletivo que busca usar tal
gênero musical e letras críticas como ferramentas de conscientização
feminista, mostra o embaralhamento entre práticas discursivas e sociais
como formas de luta.
Para fechar nossos exemplos, dentre os muitos que poderíamos
citar, mas trabalhando ainda com um corte pela questão das práticas
culturais, em especial a música, e a busca de posicionamentos políticos,
podemos citar o trabalho que vem sendo desenvolvendo, em suas várias
fases, pela Casa de Cultura Donana, de Belford Roxo, também da
Baixada Fluminense. O reggae marcou a primeira fase do espaço
cultural, fortemente atrelado à formação de consciência acerca da
opressão de classe e racial, e a música, a poesia e o cinema seguem sendo
importantes formas de ação. Da mesma forma, os cineclubes Mate com
Angu, de Nova Iguaçu, e Buraco do Getúlio, de Duque de Caxias, estão,
há vários anos, atuando no campo midiático promovendo exibição de
filmes e debates, alinhavados com práticas militantes de empoderamento
dos sujeitos locais e suas produções, que procuram oferecer múltiplos
olhares e interpretações sobre a Baixada e o habitar na região,
lembrando, como afirmou Asa Briggs, que o lugar é o espaço significado,
sendo o espaço sempre uma “coleção de lugares” (BRIGGS, 1985). Neste
sentido, percebemos o uso das ferramentas midiáticas e da esfera da
cultura como formas de luta, engendrando uma relação de imbricamento
entre as práticas discursivas e as práticas sociais.
Por isso, entendemos que a luta pelo direito a falar, de definir os
temas e ângulos acerca do que se fala, de reivindicar a legitimidade à fala
em razão da experiência e do pertencimento ao lugar, buscando, neste
sentido, o direito de falar em nome de si mesmo e daqueles que
partilham do mesmo cotidiano, e não serem falados por outras vozes
exteriores ao espaço físico, não se resume ao plano discursivo, sendo
[ 52 ]
prioritariamente uma luta política, pela ressignificação do espaço e pelas
mudanças sociais. E, como tais, não se dão sem conflitos internos, sem
ambiguidades e contradições. E, muito menos, sem ações reativas dos
que controlam o discurso e as práticas do espaço de forma hegemônica e
excludente. O exemplo que exploraremos a seguir, através de uma
análise do caso do funk e da atuação da Apafunk no Rio de Janeiro, nos
parece paradigmático para a compreensão do que argumentamos até
aqui.
Nos dias de hoje, pode-se dizer que quase nada escapa aos dedos
da Indústria Cultural. Com o funk não poderia ser diferente. O ritmo, ao
mesmo tempo em que é criminalizado e tratado como “baixa cultura”
por muitos, é, algumas vezes, aclamado pela mídia. A grande maioria
das emissoras de televisão já apresentou artistas do funk, algumas até
fizeram programas especiais com esses artistas. As contradições da
Indústria Cultural estão presentes também no funk de várias formas. Seja
através da hierarquização das produções dos artistas, das relações de
trabalho existentes neste meio, das formas de produção e fruição. Assim,
a “indústria do funk” é permeada de contradições.
Segundo Micael Herschmann, o funk já apresenta uma
contradição central em sua base: atinge uma grande parcela da
população do Rio de Janeiro e do Brasil - inclusive a juventude de classe
média - enquanto produto cultural a ser consumido, no entanto, aqueles
que trabalham com o funk cotidianamente, os responsáveis pela criação,
composição e produção das músicas, bem como os que trabalham por
trás das produções de festas e eventos sofrem com a estigmatização de
sua origem social e seus estilos de vida. Todos esses artistas, bem como o
grande público consumidor do funk – tendo como maioria os moradores
de favelas e periferias – são referenciados em um mesmo rótulo, embora
algumas tentativas de criar novos rótulos estejam em processo.
Tanto os jovens de classe média como os favelados consomem o
funk, mesmo estando em classes sociais diferentes e representando
papéis completamente diferentes dentro dessa lógica de produção-
consumo. É claro que as formas de consumo são, em geral, bastante
distintas. E é claro também que essas formas de consumo acabam por
“moldar”, de certa forma, as músicas e artistas a serem consumidos, bem
como os locais em que esse consumo acontecerá. Trata-se de uma
[ 53 ]
tentativa, muitas vezes, de equalização, como diria Canclini (1998), na
qual adequa-se um determinado produto musical aos gostos da classe
hegemônica.
A indústria do funk é, hoje, regida por uma espécie de
monopólio, no qual apenas duas empresas controlam a maior parte da
produção. Dentro da dinâmica da indústria cultural, na qual o funk
também está inserido, a exploração é tão comum como em qualquer
esfera do trabalho na sociedade capitalista. O desrespeito às legislações
vigentes, tanto trabalhista como de direito autoral, é a principal marca
dessas empresas hoje, algo vem sido contestado principalmente pela
atuação da Associação dos Profissionais e Amigos do Funk (Apafunk).
Mas nem sempre o cenário foi este. Nos anos 80, a cena funk
girava praticamente em torno da enorme quantidade de equipes de som,
responsáveis pelos equipamentos e contratações de MCs para os bailes.
Com o processo de criminalização do funk, ao longo dos anos 90, a
grande maioria dessas equipes de som foi desaparecendo. Como parte
desse processo de criminalização, vale lembrar que esta era a época dos
chamados “bailes de corredor”. Nesses bailes, “galeras” de diversas
comunidades se dividiam em dois grupos, os “lados A e B”. Em um
determinado momento do baile, esses grupos eram incentivados pelos
DJs e organizadores da festa a brigarem entre si. Essas galeras passaram
a se enfrentar também fora dos bailes. Para os grandes jornais e para a
classe média frequentadora das praias da zona sul, eram os chamados
“arrastões”, nos quais os favelados saíam dos bailes funks já pela manhã
e passavam pelas praias assaltando e aterrorizando os banhistas. No
entanto, aquilo que se classificou como “arrastões” silenciava outras
práticas culturais, em especial as de enfrentamento entre galeras além-
baile.
Referências Bibliográficas
[ 59 ]
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Vozes, 2011.
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1988.
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Abalando os anos 90: Funk e Hip-Hop – Globalização, Violência e Estilo
Cultural. Rio de Janeiro: Tempo Universitário, 1997.
[ 60 ]
O FUNK CARIOCA E A LEI - PROBLEMAS E
RECOMENDAÇÕES
Luiz Fernando Moncau 18
Guilherme Pimentel 19
Introdução
[ 62 ]
aprovada no Poder Legislativo na forma de lei. Assim, ainda que nem
toda norma seja uma lei, para ter validade jurídica, toda norma precisa
de amparo legal (estar baseada na Lei). Decretos (feitos pelo chefe do
Poder Executivo – o Prefeito, o Governador ou o Presidente) e
Resoluções (feitas pelos Secretários de Estado, também pertencentes ao
Poder Executivo) a rigor, são apenas formas de executar o que está
escrito em uma lei; são instrumentos de governo que só podem fazer o
que as leis autorizam. Portanto, para compreender a questão da
regulamentação de eventos no Rio de Janeiro, é importante entender que
toda Resolução é uma maneira do Secretário de Estado aplicar uma
determinação feita por Decreto de seu superior (o Chefe do Executivo,
neste caso o Governador). Este Decreto, por sua vez, precisa estar dentro
dos limites impostos pelo Poder Legislativo, através de suas leis e da
ordem Constitucional, a base fundamental de nosso sistema jurídico.
O decreto no. 39.355, de 24 de maio de 2006, não faz referência a
qualquer legislação que lhe delegue poderes de regulamentação. Em
outras palavras, não é possível apontar qual lei é por ele regulamentada,
o que já levanta uma dúvida grave, decorrente da falta de visível amparo
legal para lhe conferir validade. Para sanar essa dúvida, entretanto, é
possível rastrear um pouco de sua história, verificando quais normas o
antecederam e foram revogadas quando da sua aprovação. A mais antiga
delas é o decreto no. 3.074, de 05 de março de 1980, o qual também não
faz remissão a qualquer legislação superior e sim a outro decreto, do
antigo Estado da Guanabara, datado de 1968, que não foi analisado neste
estudo.
Em seu texto, a norma em análise aponta que competem ao
Estado as atividades de controle e de fiscalização das diversões públicas,
atribuindo esta competência à Secretaria de Segurança Pública “como
forma de assegurar o respeito aos bons costumes e a manutenção da ordem e da
tranquilidade públicas, através a (sic) e efetiva observância das prescrições legais
e regulamentares atinentes à Censura Federal”.
Dessa forma, é possível afirmar que o decreto no. 3.074/80 tinha
como um de seus objetivos conferir poderes suficientes e bastantes ao
Estado, de modo a implementar, no âmbito do Estado do Rio de Janeiro,
as normas de censura, instrumento central de controle político nos “anos
de chumbo”. Na breve pesquisa realizada, porém, não se conseguiu
verificar em que medida as disposições deste decreto reproduzem
normas relativas à Censura Federal.
De qualquer maneira, é certo que a redação do referido decreto
foi transmitida e complementada para as normas que lhe sucederam.
[ 63 ]
Não seria equivocado dizer, portanto, que parte importante da
regulamentação hoje em vigor tenha sido inspirada, ainda que de
maneira desavisada, na referida norma, desconsiderando o fato de que a
prática da censura não é mais tolerada desde o fim da ditadura e o
advento da democracia brasileira no final da década de 80.
O decreto no. 3.074/80 era muito mais simples e conciso que a
regulação hoje em vigor. Entretanto, apresentava problemas,
principalmente no que tange à terminologia e à abertura de seus
dispositivos. Um exemplo dessa abertura – isto é, falta de precisão
técnica e de objetividade – era a atribuição de competência à Divisão de
Controle e Fiscalização de Diversões Públicas para “a manutenção da
ordem da segurança pública e do respeito aos bons costumes”.Com efeito, sabe-
se que é bastante discutível o que pode ser compreendido como bons
costumes, ou até mesmo como ordem. O uso dessa terminologia, portanto,
dá amplo espectro de discricionariedade aos agentes do Poder Público 22,
ampliando a insegurança do cidadão em relação àquilo que é ou não é
permitido fazer. Em outras palavras, a falta de definições mais precisas
dá poderes às autoridades para determinarem seus atos de acordo com
seus julgamentos pessoais e critérios próprios, deixando o cidadão “na
mão da autoridade”.
Ocorre que, mesmo com a substituição do decreto 3.074/80 e a
renovação do arcabouço regulatório que cuida da fiscalização das
Diversões Públicas no Estado do Rio de Janeiro, muitos dos dispositivos
presentes no referido texto legal acabaram mantidos, apenas com
pequenas modificações.
Em 1991, o decreto no. 16.695, de 12 de julho de 1991, transferiu a
competência de fiscalização das casas de diversões para a Secretaria de
Estado da Defesa Civil, alocando tais poderes primordialmente no Corpo
de Bombeiros. Sua regulamentação ocorreu pela resolução SEDEC n°.
111, de 09 de fevereiro de 1993, que recuperou boa parte da terminologia
do decreto 3.074/80, e criou uma série de procedimentos para tanto para
a obtenção de licença para eventos, bem como para a concessão de alvará
de funcionamento das casas de diversões.
Todo este arcabouço regulatório viria a ser atualizado pelo
decreto n°. 39.355, em 29 de maio de 2006. Através deste decreto, a então
Com esta medida, portanto, a resolução SEDEC n°. 111 criou uma
nova instância decisória para a regularização das casas de diversões,
passando a exigir do empreendedor deste segmento que obtenha um
documento que em tudo se assemelha a uma autorização, da Polícia Civil
da área, em evidente inversão do princípio da presunção de inocência
(todos são inocentes até que se prove o contrário e ninguém será
submetido a pena sem o devido processo legal). Essa autorização, é
importante destacar, não obedece a critérios objetivos de segurança,
como a existência de rotas de fuga ou o respeito a outros critérios
técnicos, mas sim a julgamentos e valores subjetivos, como a idoneidade
dos responsáveis, e discricionários, como a existência de suspeita
policial.
A partir da obtenção do Assentimento Prévio, o agente cultural
pode obter anualmente um Certificado de Registro 23 , documento
considerado pela resolução como obrigatório para o funcionamento das
casas de diversões.
Vale salientar que todos os requisitos mencionados foram
integralmente preservados pela resolução SEDEC n° 278, a despeito das
mudanças trazidas por ela.
A figura do “nada a opor” ainda reaparecia no artigo 11 da
resolução SEDEC n°. 111, que começou a definir um regime mais
detalhado para a realização de eventos de diversões públicas. Em
primeiro lugar, é importante notar a Resolução 111 não define o que seria
“evento de diversões públicas”. Isso já levanta um primeiro problema,
pois traz uma incerteza sobre quando o respeito à norma será exigido
pelas autoridades e quando sua aplicação não cabe. Tal incerteza abre
vasto campo para interpretações conflituosas e situações de abuso de
poder. Tal problema se torna ainda maior na medida em que a resolução
SEDEC n°. 278, ao atualizar a resolução n°. 111, ampliou o rol de
exigências para a realização de eventos, tanto em estabelecimentos
fechados quanto ao ar livre.
Analisando o texto do artigo 11 – já atualizado –, pode-se
perceber que a realização de eventos fechados passou a depender de
uma nova autorização, mesmo que o estabelecimento já estivesse
23 A
obtenção do Certificado de Registro depende de alvará por parte do
município. A obtenção de alvará está sujeita a regras não avaliadas neste artigo.
[ 67 ]
regularizado, ampliando a burocracia e a confusão quanto ao que o
empreendedor deve respeitar. A ausência de definição do conceito de
“evento de diversão pública” é especialmente problemática nesses casos,
tendo em vista que as casas de diversões, por determinação da própria
regulação, já devem possuir o Certificado de Registro. Já no que diz
respeito aos eventos ao ar livre, o principal problema encontra-se no
inciso II, alínea b do referido dispositivo. Nele, é mencionada a
necessidade de declaração (“nada a opor”) dos “demais órgãos públicos
envolvidos”, sem, no entanto, enumerar quais seriam estes órgãos,
reduzindo, assim, a objetividade do critério e, mais uma vez, abrindo
espaço para abusos de poder.
Apesar destes problemas, a Resolução da Defesa Civil é acertada
ao trazer em outros requisitos, critérios objetivos que podem ser
facilmente compreendidos pelos cidadãos. A resolução também
apresenta importante distinção entre eventos de pequeno e de maior
porte, ao estabelecer no mesmo artigo 11, inciso II, alínea i, um critério
objetivo e responsabilidades diferenciadas para eventos cuja estimativa
de público seja superior a mil pessoas.
Além disso, é importante notar que no decorrer da evolução
histórica das normas houve uma equivocada manutenção de uma
terminologia excessivamente aberta, que confere amplo poder para o
agente público agir de acordo com critérios subjetivos. Como exemplo,
pode-se destacar o artigo 3° da resolução SEDEC n°. 111 (não alterado
pela resolução SEDEC n°. 278), com base no qual se confere ampla
competência ao Corpo de Bombeiros para adotar quaisquer medidas que
julgar convenientes para atender a valores como o respeito à sociedade e
os bons costumes. Referido dispositivo recupera quase integralmente o
artigo 3° do Decreto 3.074/80, que definia ser da competência da Polícia
Civil “assegurar a manutenção da ordem, da segurança pública e do respeito aos
bons costumes, antes durante e após os espetáculos (...)”, dando margem à
prática de excessos por parte dos agentes públicos.
Quanto à Resolução 013, da Secretaria de Segurança, esta
apresenta o maior número de problemas na regulamentação do Decreto
39.355/06. Isso porque, ao contrário da resolução SEDEC n°. 278, possui
abrangência muito maior (diz respeito a todos os eventos culturais,
sociais e esportivos), cria mais exigências e instâncias decisórias e avança
de maneira mais evidente em direção a um “regime de autorização” para
os eventos, em contraposição a um “regime de fiscalização”.
[ 68 ]
Como se pode observar no seu artigo 1º 24, a resolução 013 não
trata mais da fiscalização das casas de diversões no Estado do Rio de
Janeiro. O regime implantado por ela é o de concessão de autorizações,
por parte dos órgãos de segurança, para qualquer evento artístico, social
e desportivo. Aqui já fica evidente a agressão ao inciso XVI do artigo 5º
da Constituição Federal, que diz que “todos podem reunir-se
pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público,
independentemente de autorização, desde que não frustrem outra
reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas
exigido prévio aviso à autoridade competente”.
Além disso, já em seu artigo 2°, inciso I, item 1, a referida
resolução amplia de maneira substancial a quantidade de requisitos até
então existentes somente para a autorização de funcionamento de casas
de diversões. Desse modo, dentre os requisitos a serem observados para
que a Polícia Militar conceda autorização para eventos em lugares
fechados com cobrança de ingresso, destacam-se: a solicitação para
cadastramento de ambulantes; cópia de ofício à Fundação Parques e
Jardins, solicitando a poda de árvores para melhorar a observação por
parte do policiamento; cópia de ofício à RIOLUZ, solicitando reforço da
iluminação externa no local do evento; e cópia de ofício comunicando o
Juizado de Menores sobre o evento.
O referido dispositivo excepciona dessas exigências aquelas casas
de shows ou congêneres que já “tenham ato de consentimento para seu
funcionamento com base em legislação anterior”, sem, contudo,
especificar se este ato é o Certificado de Registro emitido pelo Corpo de
Bombeiros. Dessa forma, além do problema da grande quantidade de
exigências trazido pela resolução, há também o problema da incerteza
jurídica, já que não há clareza sobre quais são os estabelecimentos
excepcionados do comando regulatório.
Art. 2º - (...)
Conclusões e recomendações
[ 73 ]
consumidor final. Por isso, julgamos pertinente apresentar neste texto
algumas recomendações que, se seguidas, podem levar à transposição
das barreiras que dificultam a melhoria da atividade regulamentadora
em questão.
No que tange ao decreto n°. 39.355, este prevê a possibilidade de
centralização dos procedimentos em um único órgão. Nesse sentido, a
aplicação dessa idéia afastaria uma grande parte dos problemas aqui
mencionados, porque levaria à redução do número de instâncias com
poder de autorizar a realização de eventos, diminuindo, assim, o nível de
burocracia (e, consequentemente, de corrupção) e potencialmente
oferecendo mais agilidade aos trâmites de autorização e mais segurança
aos empreendedores.
Quanto à resolução SEDEC no. 278, aconselha-se a remoção de
critérios subjetivos e de prerrogativas de atuação baseadas em critérios
excessivamente amplos, tal como “o respeito à sociedade e aos bons
costumes”. Também é necessário que se definissem o conceito de eventos
de Diversões Públicas e os órgãos que devem conceder o “nada a opor”,
nos termos do artigo 11, inciso II, alínea ‘b’. O estabelecimento de prazos
razoáveis, de acordo com o tamanho do evento a ser realizado (sendo
que, quanto maior for o evento, maior deverá ser a antecedência de
resposta do Poder Público), a supressão da necessidade de solicitação de
reiteradas autorizações para eventos que ocorram de maneira sistemática
(v.g. todos os finais de semana) e a criação de mecanismos que permitam
a formalização por um período estendido de tempo (v.g. um mês) para
eventos temporários também são recomendados.
Para a resolução SESEG no. 013, indicam-se sua readequação para
que a realização de eventos fique sujeita a um regime de fiscalização e
não de autorização, salvo nos casos dos eventos de maior porte e em
relação aos itens de segurança, que devem atender a critérios objetivos
para a proteção dos próprios frequentadores e trabalhadores do evento,
além da criação de distinções entre eventos de grande, médio e pequeno
portes, possibilitando um nível de exigências menor para os eventos de
menor porte. Além disso, as três últimas alterações sugeridas para a
resolução SEDEC (citadas no parágrafo anterior) também se aplicam ao
caso da resolução SESEG.
Sob uma perspectiva mais ampla, de análise das normas em geral,
deve haver a centralização, em um único órgão, do recebimento de
pedidos para a realização de eventos, ou a definição de um fluxo
procedimental claro para a obtenção de autorizações. Também são
prementes a informatização dos procedimentos, afastando a necessidade
[ 74 ]
de negociação pessoal dos requisitos a serem atendidos pelo
empreendedor, gerando uma consequente agilização dos processos, e a
separação clara entre as regulações afetas à obtenção dos documentos de
autorização necessários para o funcionamento de casas de diversões e as
regulações relativas aos procedimentos que devem ser respeitados para a
realização de eventos temporários.
Por fim, é importante destacar algo muito importante.
Consideramos que o tratamento conferido ao Funk pelo Poder Público é
o resultado de uma história de estigmatização e preconceito, não apenas
com o estilo musical, mas com os pobres e sua cultura em geral. O
processo de criminalização do funk é apenas a manifestação atual do
mesmo processo vivido pelo samba, capoeira e demais batuques negros
no passado. Nesse sentido, ainda hoje é necessário empreender um
grande esforço para estender as garantias que existem em nossa
Constituição para todos os cidadãos, em especial aqueles que vivem na
periferia. A luta pela igualdade passa pela compreensão da forma como
o Estado se organiza e aplica suas leis. Passa por fazer as pessoas, no
Estado e fora dele, contestarem seus próprios preconceitos, aceitando
modos de vida distintos dos seus e colaborando para fazer das cidades
espaços de coesão e integração social, ao invés de territórios conflituosos
e cerceadores de liberdades.
Com este texto, a partir da análise das leis em vigor, esperamos
jogar um pouco mais de luz nesta discussão e contribuir para que o Funk
Carioca, e as demais culturas populares, possam se desenvolver a partir
de um tratamento cidadão e democrático, sem restrições exageradas ou
inadequadas.
[ 75 ]
ANEXO I
[ 76 ]
6 – A Resolução 013 não possui amparo legal e dá poderes exagerados
para os órgãos de segurança. No Estado Democrático de Direito não há
lei que dê poderes de proibir ou autorizar eventos para Secretário de
Segurança, Polícia Civil ou Polícia Militar. Pelo contrário, a Constituição
Federal assegura o direito de acesso à cultura para frequentadores, livre
manifestação do pensamento para os artistas, além dos direitos sociais ao
trabalho e à livre iniciativa dos organizadores. E para garantir todos
esses direitos é que existe o direito à segurança pública.
[ 77 ]
[ 78 ]
ENTRE A POLÍTICA CULTURAL E A POLÍTICA
DE SEGURANÇA PÚBLICA – UM RELATO
SOBRE AÇÕES CULTURAIS NO MORRO DA
PROVIDÊNCIA EM TEMPOS DE PAZ
MIDIÁTICA
João Guerreiro 25
Bruno Coutinho de Souza Oliveira 26
UERJ.
[ 79 ]
transformar a cultura simbólica de áreas ocupadas através de novas
narrativas e discursos sobre os espaços dessas comunidades.
Nossa análise é parte de uma pesquisa iniciada em 2008 no Morro
da Providência (zona portuária do Rio de Janeiro/RJ), antigo Morro da
Favela, considerada por alguns como a primeira comunidade
reconhecida enquanto favela (MATTOS, 2007).
Quem nos acompanhará durante essas breves reflexões é o
Instituto Favelarte. O debate sobre a criação do Favelarte começa em
1996, véspera do Morro da Providência celebrar o centenário da sua
ocupação. O nosso personagem, Maurício Hora, e outros amigos
começam a discutir uma forma de dar visibilidade às histórias e ações da
Providência. Entretanto, segundo Maurício 27,
[ 81 ]
transformação, o que acentua o seu ‘devir-imagético’
(GONÇALVES e HEAD, 2009, p20).
altura dos olhos para fotografar pode facilmente ser confundida com uma arma.
[ 84 ]
Figura 1: Os caminhos da cultura no Morro da Providência
[ 85 ]
Fonte: Caminhos da cultura no morro da Providência. CEPP, 2011, p. 4 e 5
[ 86 ]
A nova política de segurança na Providência ocupada e o
Favelarte
34 Disponível em http://rioonwatch.org/?p=9344.
[ 87 ]
instalou o balcão de direito e foi muito importante.
Eles davam assessoria jurídica. Foi importante por
inaugurar um projeto na Casa, mas não era o nosso
foco. A gente queria era cultura, arte. Só que para a
comunidade existem outras demandas muito grandes.
Tanto que as nossas experiências com a biblioteca
tiveram que virar uma sala de incentivo à leitura,
porque as crianças não sabiam ler. Tivemos que
alfabetizar através da poesia. Ao mesmo tempo
começou o curso de fotografia, só que nós não
tínhamos dinheiro, tínhamos equipamentos, mas não
tínhamos dinheiro pra desenvolver. Na verdade, me
fez falta uma equipe que agora nós temos na Casa
Amarela. Uma equipe legal, ainda que faltem pessoas
em algumas posições porque a gente precisa
desenvolver ou, então, entrar em editais e tal pra que a
gente possa se sustentar e sustentar o projeto de uma
forma mais contundente. Mas, enfim, a coisa começou
a andar melhor (HORA, 2013).
Referências
ARRAES, Jorge Luis. Brasil 2014 - campo das ideias: Projeto Porto
Maravilha e oportunidades para o mercado imobiliário. Disponível em
http://www.cpflcultura.com.br/2010/12/01/brasil-2014-%E2%80%93-
campo-das-ideias-%E2%80%93-projeto-porto-maravilha-e-
[ 96 ]
ROLNIK, Raquel. Porto Maravilha: custos públicos e benefícios
privados?Blog da Raquel Rolnik, 13/06/2011. Disponível em
http://raquelrolnik.wordpress.com/2011/06/13/porto-maravilha-
custos-publicos-e-beneficios-privados/. Acesso em maio 2013.
[ 97 ]
[ 98 ]
TEATRO DA LAJE
Antonio Verissimo dos Santos Junior 40
teatral nascida na França do século XVIII que, por força de uma hegemonia,
passou a ser sinônimo de teatro cf. COSTA, Iná Camargo. Sinta o drama.
Petrópolis/RJ, Vozes, 1998, SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno [1880-1950].
São Paulo, Cosac & Naify, 2001 e LEHMAN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático.
São Paulo, Cosac & Naify, 2007.
[ 100 ]
parafraseando Boaventura de Sousa Santos, 43 também foi, desde o início,
uma constante nas investigações do grupo em torno da linguagem
teatral.
Foi, porém, em A viagem da Vila Cruzeiro à Canaã de Ipanema numa
página do Facebook que essa ruptura deu um salto de qualidade. O
espetáculo narra a saga de um grupo de jovens moradores de uma favela
da zona norte do Rio de Janeiro para encontrar uma faixa de areia onde
possam ficar num sábado de sol. Em sua jornada o grupo enfrenta uma
situação surreal: a interdição, por motivos diversos (final de
campeonatos esportivos, privatização da área por hotéis de luxo, reserva
para prática de naturismo, etc), de todas as praias aonde chegam.
Durante o périplo, um dos integrantes do grupo narra os acontecimentos
à medida que os registra em fotos que comporão o álbum de sua página
num site de relacionamentos e imagina legendas que assemelham a
situação do grupo a dos hebreus peregrinando pelo deserto, após a saída
do Egito, em busca da terra prometida. A montagem partiu de um
conceito central: o direito à cidade.
Esse espetáculo, como já foi sinalizado, representou um
deslocamento considerável na história do Grupo Teatro da Laje e em
suas opções estéticas. Dramaturgia confeccionada lado a lado com os
atores; irreverência; evidenciação da linguagem, rituais, problemas,
preocupações, signos e práticas cotidianas da juventude das favelas
cariocas; interpretação despojada, baseada mais na noção de jogo entre
os atores do que na de representação de personagens ficcionais;
reencontro com a ideia de persona ou máscara nitidamente separada do
ator; narrativa fragmentada em lugar de uma narrativa linear; criação
coletiva desenvolvida no processo de improvisações e jogos coletivos,
onde ao diretor/dramaturgo cabe a função de selecionar e costurar os
elementos produzidos; teatralidade exacerbada através da radicalização
dos signos próprios do teatro; foco não só no discurso dramatúrgico e
textual, mas também no discurso cênico; palco nu, utilização de poucos
objetos cênicos e valorização dos recursos físicos e criativos dos atores; o
ator como elemento central da criação; empenho mais na criação de uma
realidade assumidamente teatral do que na reprodução da realidade: são
os eixos da proposta teatral trazida por esse espetáculo.
Afrontamento, 2001.
[ 101 ]
O pensamento de Aníbal Quijano 44 sobre a questão da totalidade
serve para pensar e descrever o caráter dessa proposta que articulou
elementos heterogêneos, descontínuos e que se chocavam entre si; uma
teatralidade polifônica e polissêmica, onde as partes eram articuladas
numa totalidade aberta, ou seja, não pensada como um organismo, uma
máquina ou uma entidade sistêmica; uma teatralidade onde os vários
elementos da linguagem eram desierarquizados e articulados por um
discurso que funcionava como eixo comum e era confeccionado a partir
das vozes de todos esses elementos, que narravam por direito próprio e
não apenas como meros apoiadores, ilustradores ou coadjuvantes do
texto; uma teatralidade onde esses elementos eram partes da totalidade
constituída por esse discurso e, consequentemente, moviam-se dentro da
orientação geral indicada por ele, mas, ao mesmo tempo, não eram
apenas partes - como acontece na forma eurocêntrica de pensar a relação
entre o todo e as partes, denunciada por Quijano -, mas vistos em sua
relação separada com cada uma das outras partes, como uma unidade
total na sua própria configuração; uma teatralidade engendrada por um
discurso onde cada signo, cada elemento da linguagem era uma
particularidade e, ao mesmo tempo, uma especificidade e,
eventualmente até, uma singularidade - todos se movendo dentro da
tendência geral do discurso cênico, mas tendo ou podendo ter autonomia
relativa e até mesmo conflito com o conjunto.
Cabe esclarecer, porém, antes de prosseguirmos, que o
afastamento da primazia do texto e de uma narrativa linear e
unidirecional não significou a ausência no espetáculo de uma fábula,
como se pode ver na sinopse apresentada anteriormente.
O que interessa aqui, porém, como já foi dito, é detectar a
contribuição específica de cada um dos jovens integrantes do elenco e da
comunidade como um todo para a articulação dessa teatralidade, bem
como para a elaboração da fábula, que foi construída, ressalte-se, a partir
de entrevistas realizadas nas ruas, onde se pedia aos moradores a
narração de casos relacionados ao espaço da praia. Busco aqui por em
revelo o denso e rico conjunto de signos revelados pelos
comportamentos desses sujeitos em cena; seu complexo sistema de
relações, suas redes sociais, seu universo simbólico e cultural, suas
formas de perceber e expressar o mundo, de produzir sentidos e,
[ 103 ]
ao teatro, como bem observou um estudante universitário presente no
evento - lotavam o espaço da Arena Carioca Dicró, como se estivessem
em suas casas, para ver mais uma apresentação do Grupo Teatro da Laje.
Um forte laço, uma forte aliança, uma liga firme unia palco e plateia, que
se olhavam e se tratavam com a intimidade e a cumplicidade de velhos
conhecidos separados, naquele momento, em palco e plateia, mas, no
cotidiano, amigos íntimos que compartilham o espaço comum das
escolas, ruas, praças, becos e vielas da comunidade. Uma plateia jovem
como jovem era o palco; que não se contentava em ser apenas plateia
(quem olhava para o mezanino podia ver os garotos e garotas
acompanhando o espetáculo de pé, dançando, cantando e batendo
palmas); uma plateia anárquica, bakhtiniana, rabelaisiana, pantagruélica,
ruidosa, buliçosa, calorosa, frenética, digna de um teatro vivo e não de
um teatro empalhado; uma plateia que, de tão íntima do espetáculo
(alguns voltavam para assisti-lo pela segunda, terceira, quarta ou mais
vezes), mostrava orgulhosa que sabia de cor o texto dos atores e
adiantava-o antes que fosse pronunciado por esses. A plateia se via no
palco e o palco se via na plateia, num jogo de espelhos excitante,
eletrizante e produtivo. A plateia cantava e dançava com o palco e o
palco descia para cantar e dançar com a plateia. Gritos, assobios, palmas,
urros e comentários em voz alta eram dirigidos o tempo todo ao
palco. "Uma plateia má educada e despreparada para o teatro!",
esbravejariam alguns. Mas, felizmente, como lembra Manuel Jacinto
Sarmento "para a mesma ação há vários sentidos, e há luta pelos
sentidos, há luta pelo sentido aceito e socialmente confirmado" 45. Uma
plateia que reinventava o coro dionisíaco, que revigorava o teatro, que
fazia reviver os melhores tempos do teatro elisabetano com um
ingrediente a mais: o tempero de nossa latinidade, a sensualidade de
nossa América Latina. A plateia que o Grupo Teatro da Laje construiu
laboriosamente e da qual muito se orgulha, a julgar pela atitude dos
atores durante o espetáculo e por seus comentários em seguida ("Foi
incrível!", "Morri de rir!", "Demais essa plateia! Curti muuuuito!", "Gente,
eu fui dançar com o pessoal da plateia, deitei no colo de uma, abracei a
outra..."). Uma plateia que provocaria palpitações em Artaud, Peter
Brook, Eugênio Barba, Ariane Mnouchkine... Uma plateia para quem
dos contextos de acção educativa. In: Método, métodos, contramétodo. Regina Leite
Garcia (org). São Paulo, Cortez, 2003.
[ 104 ]
teatro não era artigo de consumo, mas força produtiva, momento de
festa, celebração e congraçamento - poderiam, portanto, dizer outros.
Isto posto, voltemos ao palco.
Não poderia deixar de falar de um momento em que os atores
restituíam o pleno vigor e significado da música Nós vamos invadir sua
praia, da banda Ultraje a Rigor, dando-lhe carnadura e corporeidade
quando avançavam impetuosamente em direção à plateia, impactando-a
e eletrizando-a. Destaco esse momento por se tratar de mais um acordo
grupal emergido de um jogo de improvisação entre os atores. Destaque-
se, aliás, que esse foi o procedimento adotado para a construção da
maioria das marcas e das movimentações do espetáculo, onde à direção
cabia o estímulo e o encorajamento do processo, além do fornecimento
de roteiros que serviam de base para as improvisações. Considere-se, por
fim, que minha intenção de discutir de forma bem-humorada a questão
central proposta pelo espetáculo, a do direito à cidade, só foi efetivada
quando o espaço cênico foi invadido por essas proposições dos atores e
as cenas tomadas em suas mãos. O que passou a se ver, então, foi uma
forma de tratar o tema onde prevalecia o deboche, a ironia, a capacidade
de rir do outro e de si mesmo, o uso sensual e provocativo da dança e do
corpo, a jocosidade, a caçoada, a troça, a inversão brincalhona, o
nonsense...
A inserção dos textos narrativos na montagem foi, sem dúvida, o
nó mais difícil de desatar, mas agora, e só agora, fácil de descrever.
Também aqui o papel ativo dos atores e da plateia da comunidade foi
decisivo no processo. A própria opção pelo estabelecimento de um
paralelo entre a situação mostrada em cena e a dos hebreus peregrinando
pelo deserto após a saída do Egito, em busca da terra prometida, e a
inserção na montagem de passagens do livro bíblico do Êxodo, onde é
narrada essa saga, orientou-se pela busca de um diálogo com a
religiosidade hegemônica na localidade. Buscou-se, contudo, o caráter
político e literário desse texto e não o religioso.
A opção pela inserção dessas passagens sem recorrermos a
adaptações se justificava pela preocupação de não diluirmos em diálogos
intersubjetivos a inteireza social, histórica e épica que pretendíamos
conferir aos acontecimentos mostrados em cena.
Ao analisar a ocorrência de experimentos com textos não
dramáticos para a composição da cena no teatro contemporâneo, Maria
Lúcia de Souza Barros Pupo resume e traduz com precisão essa nossa
preocupação:
[ 105 ]
Para [Jean-Pierre Sarrazac], essa fusão constitui uma
possível resposta às inquietações do encenador que se
confronta com uma nova constatação: parte daquilo
que ele tem a comunicar ao público não pode mais
passar pelo diálogo. 46
47 Op. cit.
48 PUPO. Op. cit.
[ 107 ]
Ao analisar o primeiro desses problemas, o da ação teatral e de
sua relação com o texto, a autora nos fornece pistas preciosas para a
compreensão dos erros e acertos presentes no processo por nós
vivenciado.
Nosso primeiro intento foi nos distanciarmos da relação que,
como diz a autora, tende a surgir de imediato, ou seja, “a ilustração do
texto mediante ações paralelas tendendo à redundância (...) as tentativas
de ilustração que poderíamos qualificar como meramente diretas”. 49
Pretendíamos descobrir “ações que não ilustrassem mimeticamente, mas
acrescentassem sentido ao texto (...) ações que fossem além da simples
reiteração textual”. 50 Ao fazê-lo, porém, negligenciamos uma
necessidade óbvia: justamente a de que as ações realizadas devem guardar
alguma relação com o texto comunicado. O resultado é que o texto se
transformou numa presença não justificada na cena, um corpo estranho
que não se tornou orgânico. Simplesmente não se via relação entre o que
se narrava e o que acontecia em cena. Não ocorreu, portanto, “fricção
entre a narrativa e a dramatização dessa narrativa”. 51
A pista para resolvermos esse problema foi dada por uma das
primeiras cenas do espetáculo, quando o grupo forma uma imagem fixa
ao lado da música de Elmer Bernstein composta para o filme Os Dez
Mandamentos. Assumimos a imagem como uma foto que seria tirada pelo
narrador – a primeira de uma série que, como já afirmei, pontuaria os
episódios e balizaria a narração. 52
Dessa forma, “ação e texto, operando paralelamente, abriam novo
leque de significações para o público” que antes inexistia. Também
descobrimos “outros tipos de relação possível entre texto e ação, tais
como a complementaridade ou a contradição” e, assim, conseguimos
deixar evidente a pretendida relação metafórica entre a situação de
nômades exilados do povo hebreu em busca de sua terra prometida e a
dos jovens moradores da favela em busca de uma faixa de areia onde
pudessem pousar. 53
[ 108 ]
Em vista da posição central que este problema ocupa na relação
entre texto e jogo, sua resolução abriu perspectivas para a solução de
outros a ele conexos, como o do local da narração e o do olhar do
narrador. Segundo Pupo,
54 Op. cit.
55 PUPO Op. cit.
56 Op. cit.
[ 109 ]
estruturador e condutor dos acontecimentos era visível para o público,
mas não para as demais personas.
O olhar do narrador tinha sempre o público como ponto de
partida e de chegada, e entre esses se alternava ora para o infinito ora
para a área do jogo. No primeiro momento em que dirigia seu olhar para
o público o narrador fazia-o como que buscando sua cumplicidade para
a elaboração das legendas que acompanhariam as fotos. No segundo
momento, fazia-o como quem festeja com ele o achado dessas legendas.
O olhar para o infinito indicava a elaboração das legendas. As ocasiões
em que o olhar do narrador era dirigido à área do jogo, “englobando
jogadores, espaços, objetos, de modo a realçar o vínculo entre sua
atuação e a situação narrada”, denotava a apreciação do narrador-
fotógrafo sobre sua obra, abrindo passagem para o comentário e a
crítica. 57
A emissão vocal contribuía de modo peculiar para esse jogo de
aproximação e afastamento da área do jogo. Nos momentos em que o
narrador se afastava da área para se dirigir ao público, sua voz assumia
um tom sussurrado como que tramando com este, segredando-lhe e
transmitindo-lhe em primeira mão, antes do conhecimento dos outros
jogadores, as legendas que seriam apostas nas fotos. Nos momentos em
que voltava a dirigir a voz aos demais jogadores e se reinseria na área do
jogo a voz do narrador adquiria um tom artificialmente coloquial, como
que tentando disfarçar o que antes havia sido tramado.
Procedi, nessa montagem, como já disse, ao levantamento dos
signos oriundos da cultura de origem dos jovens por acreditar já não ser
mais suficiente para a compreensão do teatro contemporâneo o modelo
da intertextualidade, oriundo do estruturalismo e da semiologia, visto
que, como diz Patrice Pavis,
Referências Bibliográficas
Hucitec, 1994.
60 WILLIAMS, Raymond. Cultura e sociedade: de Coleridge a Orwell. Petrópolis/RJ,
Vozes, 2011.
[ 111 ]
SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências. Porto,
Edições Afrontamento, 2001.
SARMENTO, Manuel Jacinto. Quotidianos densos – A pesquisa
sociológica dos contextos de acção educativa. In: Método, métodos,
contramétodo. Regina Leite Garcia (org). São Paulo, Cortez, 2003.
SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno [1880-1950]. São Paulo, Cosac &
Naify, 2001.
WILLIAMS, Raymond. Cultura e sociedade: de Coleridge a Orwell.
Petrópolis/RJ, Vozes, 2011.
[ 112 ]
JOVENS NEGROS E NEGRAS NA
LITERATURA BRASILEIRA SOBRE A
POBREZA
Victor Hugo A. Pereira 61
Marisa S. Mello 62
[ 114 ]
por Carolina Maria, que afetam particularmente, ainda no século XXI, as
mulheres negras e pobres do país.
[ 115 ]
organização da produção econômica no campo, onde se revelam mais de
perto os legados da escravidão, e o trabalho assalariado no meio urbano.
A ingenuidade de Ricardo e seu olhar “estranhado” 64 propiciarão uma
perspectiva capaz de desnaturalizar as relações sociais e humanas
marcadas por essa diferença na organização da produção. Um eixo para
as observações e comentários do narrador, colado ao protagonista, será o
contraste recorrente que se opera na consciência de Ricardo entre o
tratamento concedido aos empregados da padaria por Seu Alexandre, e
aquelas que caracterizavam as relações do coronel José Paulino com os
agregados de sua fazenda. Nesse sentido, o narrador registra, através de
uma identificação com o protagonista, que, embora Ricardo receba, na
padaria, um pagamento maior até do que suas expectativas e
necessidades de sobrevivência, não tem nenhuma simpatia pelo patrão.
Na verdade, tem saudade do Coronel José Paulino. E também
reiteradamente afirma que a pobreza no latifúndio é mais feliz do que na
cidade: pelos meios de subsistência ao alcance dos trabalhadores rurais e
pelo tipo de exercício do poder pelo coronel. O trecho abaixo é ilustrativo
desta nostalgia e incorporação pelo personagem da perspectiva patriarcal
e coronelista:
[ 119 ]
amara como luta, como barulho e briga, coisas que
gostava desde criança. (...) [mas] era qualquer coisa
mais que barulho, que briga. Era uma luta dirigida
para um fim, sabendo o que queria, uma luta bonita.
Ali na greve todos se amavam, se defendiam e
lutavam contra a escravidão (AMADO, 2008, p. 320).
[ 120 ]
para as limitações espaciais e simbólicas implicadas na prisão e acena
para o pai de santo no cais, despedindo-se da liberdade.
Não há neste romance a construção de um destino, numa
modalidade de “romance de formação proletário” - como Eduardo de
Assis caracterizou Jubiabá (DUARTE, 1996, p. 75) - em que podemos
identificar a compreensão e harmonização do protagonista com o meio
social, e até mesmo com uma perspectiva mais ampla, histórica e
cósmica. Há, ao contrário, em O Moleque Ricardo, a confirmação do
impasse e do desespero que caracterizaram a trajetória do protagonista,
quando o pai de santo, que representava a possibilidade de um sentido
para a vida, de uma fonte de explicações de todas as ordens,sem
explicações para a injustiça que acabara de testemunhar contra os
trabalhadores negros e pobres que se rebelaram contra o poder,
abandona a postura habitual de celebrante de um culto religioso.A
reação do pai de santo é de revolta e incompreensãodos motivos para
tanta injustiça, falando para seus fiéis sobre os “pobres que no mar se
perdiam” (672), num gesto desesperado:
Reificação e fragmentação
[ 132 ]
a população negra”. A política de remoção começa como uma ameaça,
um pesadelo, e ao longo do romance, vai-se tornando uma realidade.
Quem sofria nas mãos dele era sua mulher e sua filha
Fuizinha. Vivia espancando as duas, espancava por
tudo e por nada. Os vizinhos mais próximos
acordavam altas horas da noite com o grito das duas.
Era mau o Fuinha. Diz que ele tirava a roupa das duas
e batia até sangrar. (...) Um dia, a mãe de Fuizinha
amanheceu adormecida, morta. Os vizinhos haviam
escutado a pancadaria na noite anterior. (...) Fuizinha
ainda muito haveria de gritar. (...) Dispôs da vida da
mulher até à morte. Agora dispunha da vida da filha.
Só que a filha, ele queria bem viva, bem ardente. Era o
[ 133 ]
dono, o macho, mulher é para isto mesmo. Mulher é
para tudo. Mulher é para a gente bater, mulher é para
apanhar, mulher é para gozar, assim pensava ele. O
Fuinha era tarado, usava a própria filha (EVARISTO,
2006, p. 75-76).
Referências
[ 135 ]
______________. Online:
lhttp://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,leia-a-integra-do-
discurso-de-luiz-ruffato-na-abertura-da-feira-do-livro-de-
frankfurt,1083463,0.htm.
SACOLINHA. Graduado em marginalidade. Rio de Janeiro: Confraria do
Vento, 2009.
_______. 85 letras e um disparo. São Paulo: Global, 2007. (Coleção
Literatura Periférica).
SUSSEKIND, Flora, Tal Brasil, qual romance? Uma ideologia estética e sua
história: o naturalismo. Rio de Janeiro:Achiamé, 1984.
VAZ, Sérgio. Literatura, pão e poesia. São Paulo: Global, 2011 (Coleção
Literatura Periférica).
[ 136 ]
JOVENS, DESIGUALDADES E NTICS EM
CONTEXTOS DE MOBILIZAÇÃO SOCIAL
Patrícia LânesAraújo de Souza 67
Julia Paiva Zanetti 68
75 Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/colunas/ronaldolemos/
1225230-empresas-de-internet-tem-leis-para-todos-inclusive-voce.shtml, acesso
em abril de 2013.
76Outra dimensão a ser considerada são os efeitos econômicos, por exemplo, o
[ 148 ]
Internet, por exemplo. Nos dados coletados com os(as) entrevistados(as)
nos três estudos de caso, o acesso à Internet via desktops em geral se
relaciona ao acesso por computador do trabalho, do celular e de netbooks
ou tablets. Um exemplo para além desta pesquisa reforça o argumento.
De acordo com artigo recente de Ronaldo Lemos (2013), “Cerca de 5
milhões de brasileiros acessaram a internet por meio de tablets em 2012.
Em 2011 o número era de pouco mais de 200 mil. (...) Uma parte das
tabuletas populares acaba indo parar nas periferias do país. Com isso, há
um novo fenômeno: da mesma forma como muita gente comprou celular
sem jamais ter tido um telefone fixo, há hoje pessoas comprando um
tablet sem nunca ter tido antes um computador”. Se há mais acesso a
essas tecnologias, esse vem se dando, sobretudo, via consumo. 80 Ainda
são raras, por exemplo, as favelas e os bairros populares onde há sinal de
Internet liberado para seus(suas) moradores(as). Quando isso acontece
(no estudo, isso aparece na favela Santa Marta, zona sul do Rio de
Janeiro), ainda é precário e se restringe a certas partes da localidade.
O sentido do território na pesquisa extrapola, em muito, a
dimensão descrita anteriormente. Em dois dos casos estudados –
identidade favelada e cultura na Baixada Fluminense –, ele é um dos
motivadores principais das ações e iniciativas dos(as) entrevistados
dentro e fora da Internet. A Baixada Fluminense, no caso da cultura,
aparece como um ponto forte e passa por uma relação de
autoidentificação e pertencimento que, ao mesmo tempo que pretende
manifestar sua insatisfação que, na maioria das vezes, tem a ver com a
má atuação do poder público e/ou a ausência de políticas públicas que
garantam direitos, propõe-se a produzir um novo imaginário sobre
aquele território, afirmando-o positivamente. Essa dimensão está
presente tanto nos cineclubes Buraco do Getúlio e Mate com Angu como
no trabalho do Enraizados. No caso da identidade favelada, fenômeno
muito semelhante está em jogo.
Os dois casos aproximam-se visto que boa parte das pessoas que
constituem as iniciativas estudadas está envolvida em atividades de
cultura e comunicação em que a ideia de disputa de certo imaginário é
central. Os(as) jovens moradores(as) de favelas buscam construir uma
visão positiva sobre seu local de moradia, sobretudo por textos e
Referências Bibliográficas
[ 151 ]
NOVAES, Regina. Os jovens de hoje: contextos, diferenças e trajetórias.
In: ALMEIDA, Maria Isabel Mendes de. EUGENIO, Fernanda. (orgs.)
Culturas Jovens – novos mapas do afeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
2006.
[ 152 ]
ANÁLISES PERIFÉRICAS EM CENA: DA
PRODUÇÃO CULTURAL INDUSTRIAL À
PRODUÇÃO DE AFECTOS ALEGRES
Alessandra Lacaz 81
Félix Berzins 82
Williana Louzada 83
[ 154 ]
profissão da desprofissionalização. Seguindo os passos de Rodrigues e
Souza (1987):
O Seminário de Avaliação
PC como analisador 87
Afectos 88
[ 163 ]
comunidade, enfim, no seu meio. Do encontro entre diferentes sujeitos à
procura de aumento de potência, ou melhor dizendo, habitados por
afectos alegres, podemos esperar grandes efeitos criativos e inventivos.
Conclusão
[ 164 ]
do Instituto com esse “filho” que é reconhecido em sua importância e
que fomentará outros espaços de formação como este. Seguindo agora
pistas que levam não a um modelo de curso duro e pré-estabelecido, mas
á potencialização das vidas que passam por um processo de formação.
Retomamos aqui o ponto que destacamos a respeito das afecções,
do modo como se pode produzi-las, abarcando as singularidades, a
heterogeneidade, os conflitos e dificuldades como parte do processo e
não como algo a ser eliminado. Isso diz respeito inclusive à direção
hegemônica de um capitalismo que quer buscar características
empreendedoras em todos, direção essa que foi questionada e
subvertida, trazendo para o campo da produção cultural possibilidades
de criação de novos paradigmas culturais e não simplesmente a lógica de
captação de recursos.
Ensejamos, por fim, que esse texto seja mais um instrumento a
produzir ecos deste/neste trabalho, que não se encerrou com o curso e
nem com o seminário de avaliação. Seus efeitos têm ultrapassado os
muros institucionais e tomado caminhos que sequer conhecemos.
Referências Bibliográficas
[ 165 ]